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vamente, a nível internacional. (...) O Dicionário dos Antis constitui-se como uma espécie
Direção de
José Eduardo
Direção de
dicionário
de perceção da “diferença”, de uma forma inovadora, mais abrangente e mais complexa.
Duarte Azinheira, da Apresentação
dicionário
d0s
A originalidade do dicionário que o leitor tem entre mãos consiste em observar as práticas
sociais de hoje e as suas representações em comportamentos e argumentações muito
mais antigos. E porque não desde a aurora da humanidade? (...) Ao longo das suas muitas
d0s
páginas, este dicionário manifesta a extraordinária conexão de Portugal com a história do
mundo. (...) Não há dúvida, por outro lado, de que o Dicionário dos Antis vai suscitar um vasto
debate internacional. (...) Não estamos em altura de denunciar este ou aquele grupo, mas de
entrar no laboratório do pensamento dialético, que é uma maneira de estimular o espírito
Volume 2
crítico quando o falso, o virtual e o verdadeiro se misturam; que é pôr em causa os erros cons- dicionário: AL – AX
pirativos e as certezas abusivas deste mundo dividido entre manipulação e informação que se El u c i d á r i o
tornou o nosso.
Fabrice d’Almeida, do Prefácio
A c u ltu ra portu gu esa em neg ati vo
Coordenação de
Volume 2
A
Adelino Cardoso
2.ª
presentamos ao leitor uma obra inesperada, sem dúvida inusitada, mas que não deixa,
Aida Sampaio Lemos
por isso, de ser fascinante. Propomos um olhar diferente, um olhar sobre o avesso da
o
Ediçã
António Castro Henriques
cultura portuguesa, em articulação com os dinamismos construtivos e disruptivos das suas
Carlos Fiolhais
congéneres internacionais. (...) Este dicionário, em contrapartida, propõe uma visão simétri- Helena Mateus Jerónimo
ca: uma viagem pelas correntes, as etnias, as religiões as instituições, as figuras, mas a partir João Relvão Caetano
do olhar do adversário, de quem discordou, de quem atacou, de quem pensou o contrário. Joaquim Pintassilgo
(...) É como se entrássemos numa casa, a casa da cultura portuguesa, e deparássemos com José Carlos Lopes de Miranda
um cenário inquietante, com os móveis de pernas para o ar, os armários virados do avesso, Luís Machado de Abreu
Luiz Eduardo Oliveira
as partes menos arrumadas e sujas à vista de todos; ou como se acordássemos de manhã e
Manuel Curado
víssemos no espelho as imagens que têm de nós os que menos nos querem e apreciam; ou
Manuel Silvério Marques Coordenação de
ainda, como se recebêssemos a nossa biografia negativa, uma narrativa produzida por aqueles Micaela Ramon
que nos detestam. Parece uma obra estranha. É verdade. Todavia, o negativo também faz Pedro Barbas Homem Adelino Cardoso z Aida Sampaio Lemos
história, também faz cultura, e não podemos desconhecê-lo nem desconsiderá-lo, pois ele é Ricardo Ventura António Castro Henriques z Carlos Fiolhais
Helena Mateus Jerónimo z João Relvão Caetano
um elemento constitutivo do processo de construção da nossa identidade, quando não parte
Joaquim Pintassilgo z José Carlos Lopes de Miranda
integrante da mesma.
Luís Machado de Abreu z Luiz Eduardo Oliveira
Da Introdução Manuel Curado z Manuel Silvério Marques z Micaela Ramon
Pedro Barbas Homem z Ricardo Ventura
dicionário
dos
antis
dicionário
dos
antis
A Cultura Portuguesa em Negativo
Volume 2
dicionário: Al –Ax
Elucidário
2.ª edição
Coordenação de
Título
Dicionário dos Antis: A Cultura Portuguesa em Negativo – Volume 2
Direção
José Eduardo Franco
Coordenação
Adelino Cardoso, Aida Sampaio Lemos,
António Castro Henriques, Carlos Fiolhais,
Helena Mateus Jerónimo, João Relvão Caetano,
Joaquim Pintassilgo, José Carlos Lopes de Miranda,
Luís Machado de Abreu, Luiz Eduardo Oliveira,
Manuel Curado, Manuel Silvério Marques, Micaela Ramon,
Pedro Barbas Homem, Ricardo Ventura
Design, Capa e Paginação
António Rochinha Diogo | ARD-Cor
Edição e Revisão
Maria José Figueiredo (coord.),
Álvaro Almeida, Milene Alves, Vanda Figueiredo
Impressão e Acabamentos
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2.ª edição
Abril de 2019
isbn
978-972-27-2716-7
Depósito Legal
443944-18
Edição
1020391
Dicionário
AL – AX
Tal gramática encontrava-se totalmente cular: uma, em 1918 (dec. n.º 4799, de se-
escrita na língua latina com o fim de os tembro), no Governo de Sidónio Pais, por
seus leitores aprenderem o latim por si influência do secretário de Estado da Ins-
mesmo, contendo por isso um excesso de trução Pública, José Alfredo de Magalhães;
regras, que dificultava a aprendizagem e outra, em 1926 (dec. n.º 12425, Diário do
a tornava morosa. Verney, por seu lado, Governo de 2 de outubro), já no período da
propôs o uso de um método de latim chamada ditadura militar, pelo ministro
mais prático e baseado em manuais com- da Instrução Pública, Artur Ricardo Jorge;
postos com a língua portuguesa. Além do e outra, em 1927 (dec. n.º 13056, de 20 ja-
mais, este escritor, apesar de reconhecer neiro; Diário do Governo de 22 de janeiro),
a importância do latim para a educação e pelo mesmo ministro.
para a formação dos jovens, afirmou que Nos princípios de maio de 1926, numa
o idioma latino não era crucial para o de- conferência feita em Lisboa, no salão da
senvolvimento completo de um homem União Intelectual Portuguesa, intitulada
douto, tendo comentado também, como “O clássico na educação e o problema
pensamento geral relativamente ao ensi- do latim”, António Sérgio, educador e
no, que “é loucura ensinar em latim uma político português, também atacou for-
coisa que, pela maior parte, se há de exe- temente o papel do latim no ensino se-
cutar em vulgar” (VERNEY, 1746, I, 155), cundário: “É ilusório esse latim; e, além
i.e., por meio da linguagem vernácula. disso, é maçador; ora, o tédio intoxica o
Embora a reforma pombalina tenha cérebro; o tédio, que dais à criança como
instituído várias mudanças nos métodos e coisa inócua, deprime, ensandece, mata.
nos planos de ensino, tendo valorizado o Uma vez, diante de Heine, falava-se com
português e diminuído o papel do latim, espanto da antiga Atenas, da superiorida-
não se revelou como uma reestruturação de mental dos velhos gregos sobre todas
verdadeiramente antilatinista. Também as nações do nosso tempo. ‘Isso’ – opi-
em Portugal, a língua latina continuou a nou o poeta – ‘não é inato no homem
fazer parte de uma formação elevada até moderno; vem da educação que se dá aos
ao séc. xx, época em que as suas funções jovens; vem de que os gregos foram o úni-
na instrução nacional sofreram, de facto, co povo... que não foi obrigado a estudar
os maiores ataques. latim...’” (SÉRGIO, 1971, 119).
Em 1905, ainda na vigência da monar- Em 1930, Gustavo Cordeiro Ramos,
quia, durante o Governo de José Luciano como ministro da Instrução Pública, por
de Castro, aconteceu uma reforma do meio da sua reforma do ensino liceal
ensino secundário (por decreto de 29 de (dec. n.º 18779, de 16 de agosto), au-
agosto, assinado pelo ministro e secre- mentou consideravelmente o número de
tário de Estado dos Negócios do Reino, horas escolares da cadeira de Latim no
Eduardo José Coelho) que transformou a curso geral das escolas secundárias, ten-
disciplina de Latim, anteriormente ainda tando restabelecer o equilíbrio entre o
uma das bases na educação, numa aula ensino das ciências e o das humanidades.
de três horas semanais para o 4.º e o 5.º Porém, em 1936, pelo dec.-lei n.º 27084,
anos do curso geral, e noutra de cinco de 14 outubro, o ministro António Faria
horas semanais para o 6.º e o 7.º anos dos Carneiro Pacheco (que, no mesmo ano,
cursos complementares de Letras. modificou a designação do Ministério
Posteriormente, ocorreram pequenas da Instrução Pública para Ministério da
mudanças sem qualquer relevância parti- Educação Nacional), contradizendo as
que falou Ralf Dahrendorf, nas Reflexões histórica. A perspetiva de análise críti-
sobre a Revolução na Europa (1990), para ca que agora se faz segue um ponto de
impedir a ocorrência da catástrofe revo- vista a partir da história, entrelaçando a
lucionária e caminhar de forma reformis- história das ideias com a história política
ta para um mundo melhor e mais justo. em diversos contextos relevantes dentro
O princípio da nação seria reinventado do poliedro antiliberal, influenciado do-
política e culturalmente através da expe- minantemente em Portugal pelos pensa-
riência história ao longo dos tempos. A vi- dores e pelos grupos políticos franceses.
são agregadora que dá continuidade às A argumentação antiliberal questionou
representações das identidades nacionais as lógicas individualistas, utilitaristas e
entretece-se de elementos das duas ideias relativistas dos liberalismos. No universo
de nação apresentadas, daí a importância do antiliberalismo português revelou-se a
da análise de Fichte, nos Discursos à Nação atitude mental dominante do nacionalis-
Alemã (1807-08), onde se compatibilizam mo tradicionalista, de matriz monárquica
elementos da ideia de nação etno-cultu- ou republicana, apesar de coexistir com
ral/nação-génio (tradição, língua) com outras variantes de nacionalismo revolu-
elementos da ideia de nação cívico-políti- cionário de menor receção. Esse tradicio-
ca/nação-contrato (liberdade, vontade), nalismo pode definir-se através do modo
refutando-se obviamente as justificações interpretativo que a argúcia de Fernan-
exclusivistas (raça, língua, religião ou do Pessoa estabeleceu: “o nacionalismo
geografia). De igual modo, Renan, na tradicionalista, que é o que faz consistir
conferência O Que É Uma Nação? (1882), a substância da nacionalidade em qual-
caracteriza o “princípio da nação” como quer ponto do seu passado, e a vitalidade
“uma alma, um princípio espiritual”, nacional na continuidade histórica com
“uma consciência moral”, mas uma cons- esse ponto do passado. Diversos são os cri-
ciência de duplo enraizamento: no passa- térios com que se pode buscar esse ponto
do, através das lembranças transmitidas do passado, mas, seja qual for o critério
e ritualizadas (culto dos antepassados); que se empregue, a essência do processus
no presente, por intermédio do consen- é a mesma” (PESSOA, 1979, 223).
timento, do desejo de viver em comum, A gramática ideológica, cultural e polí-
do “plebiscito de todos os dias” (RENAN, tica do antiliberalismo português percor-
1996, 240-242), recusando a ideia de eter- reu, entre finais do séc. xviii e meados
nidade e de essencialidade das nações. do séc. xx – período que está em obser-
A leitura fraturada desse pensamento de vação crítica neste texto –, o interior do
Renan conduziu a apropriações ideológi- monarquismo, do republicanismo, do so-
cas distintas, quer pelo republicanismo cialismo, do anarquismo, do comunismo
da Terceira República Francesa, quer e do autoritarismo fascista ou fascizante.
pelo antiliberalismo monárquico contrar- Se atendermos à configuração prolonga-
revolucionário de Charles Maurras e da da do antiliberalismo institucional, enrai-
Action Française. zado numa mundividência organicista do
A genealogia do pensamento e da ação Estado e da sociedade, que foi compati-
do antiliberalismo português incorporou bilizada com características do tradicio-
uma diversidade de pensadores, corren- nalismo republicano autoritário conser-
tes de opinião ideológicas e grupos polí- vador, o momento paradigmático será a
ticos, o que exige, inevitavelmente, uma ditadura do Estado Novo de António de
escolha, fragmentando essa totalidade Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano
para designar uma ideia de inimigo. líferos, embora o próprio Teófilo Braga
Jean‑Pierre Cavaillé defende que “‘o per- nunca recorra a ele. No edital da Real
fil libertino’ é uma qualidade extrínseca Mesa Censória de 24 de setembro de
aos sujeitos que estuda, uma qualificação 1770, e.g., o peso nuclear da libertinagem
externa à referida polémica, produzida é perfeitamente identificado na sua múl-
no discurso contemporâneo. O libertino tipla ameaça à religião, aos costumes e à
apenas é libertino num contexto cultu- tão denunciada interligação entre a Igre-
ral que o designa como tal” (CAVAILLÉ, ja e o poder político, ao mesmo tempo
2010, 24). Estamos, portanto, perante que se percebe que a circulação de livros
uma das mais salientes construções so- proibidos era um dos veículos por exce-
ciais de uma alteridade negativa, por lência da suposta contaminação de que
via da qual se impõe inversamente uma Portugal era vítima: “E porquanto me
forma igualmente artificial de identida- constou que muitos dos referidos Escri-
de positiva. Num trabalho posterior, o tos, abomináveis produções da incredulidade
mesmo ensaísta falará de “uma cultura e da libertinagem de homens temerários
de oposição” que, reagindo a essa ima- e soberbos, que se denominam Espíritos
gem negativa ao mesmo tempo que de- Fortes e se atribuem o especioso título de
senvolve a denúncia da cultura religiosa Filósofos, depois de terem soçobrado os
dominante e da sua associação à impos- países mais próximos ao seu nascimento,
tura política, se enquadra perfeitamente haviam chegado a penetrar neste Reino
num ideal maniqueísta do mundo, que, por caminhos indiretos e ocultos; haven-
“de acordo com essa representação, está do mandado proceder com a mais exata
cindida em dois: de um lado, as vítimas diligência no exame deles, constou pe-
da farsa, que constituem a imensa maio- las Censuras conterem doutrina Ímpia,
ria dos homens, e, do outro, os que não ofensiva da paz e sossego público, e só
são joguetes ou que pelo menos cultivam própria a estabelecer os grosseiros e de-
as dúvidas mais persistentes, quer contri- ploráveis erros do Ateísmo, Deísmo e do
buam ou não positivamente para manter Materialismo, a introduzir a relaxação
a farsa” (Id., 2011, 7). dos costumes, a tolerar o vício e a fazer
Em Portugal, são conhecidos a exten- perder toda a ideia da virtude, as Obras
são cultural e o impacto do controlo das seguintes” (BRAGA, 1898, 59-60). Os
ideias consideradas subversivas desde a trabalhos de Maria Teresa Esteves Payan
sequência do Concílio de Trento até à Martins expõem amplamente a conjuntu-
definitiva implantação do liberalismo. ra em que uma série de instituições, das
Na História da Universidade de Coimbra, quais sobressaíam a Inquisição e a Real
Teófilo Braga dedica bastante atenção Mesa Censória, procuraram conter a fra-
ao desenvolvimento das ideias euro- tura das ideias em que os pontos de vista
peias desde a renascença ao apogeu da libertinos tiveram um papel decisivo. No
fase crítica do enciclopedismo, expon- Dicionário de História Religiosa de Portugal,
do um amplo conjunto de documentos Luís de Oliveira Ramos observa a respei-
pertencentes à Real Mesa Censória que to do Iluminismo que “a presença de tan-
exibem a denúncia das obras de pensa- tos nomes [...] no rol dos livros proibidos
dores como Descartes, Thomas Hobbes, em Portugal e de um ou outro tópico
Montaigne, Voltaire, Rousseau, Diderot análogo aos seus na obra de escritores e
e Helvetius. Nesses documentos, o termo poetas portugueses e sobretudo em pro-
“libertinos” surge como um dos mais pro- cessos inquisitoriais contra mações e, em
parece ensinada por eles” (MACEDO, sexuais um dos mais prolíferos domínios
1816, 178). para o seu retrato purificador da socie-
Um ataque semelhante será dirigido a dade burguesa. Em 1865, António Fer-
Almeida Garrett quando, na sequência nandes Ferrer Farol apresentava o seu
das deliberações quanto à liberdade de estudo A Libertinagem perante a História, a
imprensa de 1821, publicou O Retrato de Philosofia e a Pathologia, em que conside-
Vénus, dando origem a uma polémica que ra que “A libertinagem, olhada à luz da
se prolonga de janeiro a março de 1822 medicina, é o flagelo que mais corrompe
e na qual diversos colunistas o acusaram a humanidade. Paixão violenta, seduto-
de se aproveitar de um século em que os ra aos olhos da mocidade inexperiente,
valores estavam moribundos para publi- essencialmente devastadora, é a liberti-
car obscenidades emanadas do espírito nagem a causa próxima de horrorosos
corruptor da Revolução Francesa. Na estados mórbidos, que aniquilam a vita-
introdução a O Roubo das Sabinas. Poemas lidade mais resistente” (FAROL, 1865,
Libertinos, de Garrett, Augusto da Costa 10). Colocando-se do lado da tradição
Dias defende a respeito desse momento filosófica da Igreja Católica, que também
inaugural que “O moço poeta percorre denunciava o estado existencial abjeto
todas as fases de labor ideológico a par- resultante da libertinagem e a renúncia
tir do padrão prestigioso do classicismo. à transcendência que esta pressupõe, o
Mas nesse trabalho conjugam-se o liberti- autor encara, contudo, o fenómeno do
nismo-filosófico do século xvii e a sua su- ponto de vista clínico, procurando com
peração iluminista. O fenómeno traduz, o seu trabalho “a regeneração social”
com clareza, o nosso atraso sociocultu- (Id., Ibid., 11) na análise rigorosa dos
ral. [...] ao seguir a via de um novo hu- vários desvios que ajudam a gerar “estes
manismo, Garrett palmilhará as suas pri- tipos execrandos, frios, melancólicos e
meiras expressões europeias dos tempos solitários” que são nocivos a qualquer
modernos: Renascimento e libertinismo sociedade (Id., Ibid., 44). Esta perspetiva
(o francês e o nacional, ainda hoje quase sobre os autómatos do vício não andará
por completo desconhecido!), o último muito longe da que um romancista como
dos quais vem entroncar na mais pro- Abel Botelho desenvolve no conjunto de
gressista ideologia do século xviii. Gar- obras que constituem o ciclo Patologia
rett está, porém, no século xix!” (DIAS, Social. Em O Livro de Alda, e.g., podem
1968, 62). ler-se as seguintes palavras do protago-
Ao longo do séc. xx, as críticas ao li- nista Mário, cujo percurso o conduz de
bertinismo em Portugal acompanharão um futuro socialmente promissor e con-
alguns dos desenvolvimentos europeus, cordante com o perfil da hipocrisia da
nomeadamente aquele que o associa já sociedade burguesa a um estado de ab-
não a um desvio de ordem religiosa ou soluta abjeção física e moral que quase
política, mas a um contexto de patolo- se precipita no suicídio: “O prazer dilui
gia e de degenerescência, típico quer do o carácter. Um vício extremo, radical,
desenvolvimento de um discurso ligado vale mais do que uma medíocre virtude.
à medicina (que Michel Foucault tem Requer sua ponta de abjeção a verdadei-
estudado com especial profundidade), ra felicidade. – Tanto que, nesta minha
quer de alguns dos ideais dominantes epicúria e ardente obstinação, na minha
da corrente naturalista, que encontram inestancável sede de amor, eu chegava a
na diversidade do leque das perversões desgostar-me de ser como sou… queria
D.R.
sos em virtude do triunfo do sensualismo
José Cardoso Pires (1925-1998).
em O Crime do Padre Amaro ao adultério
de Primo Basílio e à atitude promíscua e
donjuanesca do Carlos de Os Maias, im- libertinos. Este tipo de abordagem de
possível de redimir pelo amor na medi- Cardoso Pires, que dá à figura dos liberti-
da em que este conduz à transgressão nos um contexto mais racionalista e poli-
consciente do mais abjeto dos tabus. Sem ticamente interventivo ao mesmo tempo
grande diferença, vai ser este o quadro que realça a sua vertente cosmopolita e
do escândalo lisboeta que se seguirá à mundana, bem como o papel da sedução
publicação de Canções, de António Boto, no encontro amoroso entre os dois sexos,
em 1922. aproxima-se das considerações do francês
A libertinagem conheceria na déc. de Roger Vailland, cujo livro Le Regard Froid
60 do séc. xx um interessante momento (1963) recolhia textos como “Esquisse
de recuperação polémica, sendo determi- pour un portrait du vrai libertin” (1946)
nante na estrutura conceptual do ensaio e “Les quatre figures du libertinage”
Cartilha do Marialva (1960), de Cardo- (1950), importantes no quadro da recu-
so Pires, que definiu a atitude marialva peração do conceito pelas vanguardas
como um antilibertinismo tipicamente históricas. Em 1966, na polémica edição
português e, partindo desse pressuposto, de A Filosofia na Alcova, do marquês de
estabeleceu uma cisão entre duas formas Sade, Luís Pacheco aproveitaria os para-
de compreender o país, uma adequada digmas do livro de Cardoso Pires para,
à manutenção dos velhos valores ecle- assinalando o carácter permanentemente
siásticos e dos privilégios tradicionais polémico dos libertinos, definir a mun-
dos senhores da terra, outra que aponta dividência existencialmente inconfundí-
para uma mais racional, calculada e cos- vel propiciada pela conjugação das suas
mopolita abertura de Portugal ao diálogo vertentes religiosa, intelectual e amorosa:
com as outras nações europeias, e que te- “O libertino não é apenas o homem da
ria entre os seus representantes os mais vida amorosa, intensa ou desordeira, mas
avançados espíritos da nossa cultura, os algo mais [...]. É o ateu irredutível, é o
que faz da sua vida amorosa um espetácu- cristãos foi muitas vezes agitada por es-
lo – por atitudes, palavras ou escritos; é o tas ondas – lançada de um extremo ao
que gosta dela, em suma, por isso o pro- outro: do marxismo ao liberalismo, até à
clama. É o que transforma essa experiên- libertinagem, ao coletivismo radical; do
cia muito acima do prazer animal num ateísmo a um vago misticismo religioso;
jogo calculado, numa técnica da sedução, do agnosticismo ao sincretismo e por aí
numa aposta vital” (PACHECO, 1966, adiante. Cada dia surgem novas seitas
18). Em seguida, exalta também a sua re- e realiza-se quanto diz São Paulo acer-
lação com a liberdade: “É um tipo livre e, ca do engano dos homens, da astúcia
como tal, porque a liberdade apela pela que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14)”
liberdade, um tipo que quer (queria ver, (RATZINGER, 18 abr. 2005).
gostava, precisava de lidar com) gente li-
vre com ele, como ele, à sua volta. Logo Bibliog.: BOTELHO, Abel, O Livro de Alda,
trata-se duma mentalidade progressiva. Porto, Lello Editores, 1982; BRAGA, Teófi-
Isso o leva, o obriga, lhe exige estar con- lo, História da Universidade de Coimbra, Lisboa,
tra todas as tiranias” (Id., Ibid., 19). Tam- Tip. da Academia Real das Ciências, 1898;
bém em 1966, as Edições Afrodite deram CAMPOS, Augusto de, Estudos sobre o Soneto:
à estampa a Antologia de Poesia Portuguesa Três Conferências, Coimbra, Coimbra Editora,
1936; CAVAILLÉ, Jean-Pierre, “Le libertinisme
Erótica e Satírica, na qual a organizadora,
et philosophie: catégorie historiographique
Natália Correia, deu particular atenção a
et usage des termes dans les sources”, Liberti
autores tipicamente classificados como li- nage et Philosophie au XVIIe Siècle, n.º 12, 2010,
bertinos, exprimindo desde logo no títu- pp. 11‑32; Id., Postures Libertines, Toulouse,
lo a irredutível conjugação libertina entre Anacharsis, 2011; Id., “Libertine and liberti-
o conflito crítico pressuposto pela prática nism: polemic uses of the terms in sixteenth
da sátira e o exercício livre do erotismo. and seventeenth century english and scottish
Parece-nos de salientar, em conclu- literature”, Journal for Early Modern Cultural Stu
dies, vol. 12, n.º 2, 2012, pp. 12-36; CAVALEI-
são, o texto “La polémique anti-liber-
RO DE OLIVEIRA, Recreação Periódica, Lisboa,
tine et anti-libertaire contemporaine: Biblioteca Nacional, 1922; CORREIA, Natália
catholiques, libéraux, libertariens”, de (org.), Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e
Jean-Pierre Cavaillé, no qual o autor evi- Satírica, Lisboa, Afrodite, 1999; COTGRAVE,
dencia a persistência da denúncia dos Randle, A French and English Dictionary, Lon-
comportamentos tidos por libertinos don, Anthony Dolle, 1611; DIAS, Augusto
no discurso de filósofos como o italiano da Costa, “O jovem Garrett”, in GARRETT,
Almeida, O Roubo das Sabinas. Poemas Liberti
Augusto del Noce, que considera o pen-
nos, Lisboa, Portugália, 1968, pp. 7-100; DI-
samento libertino a vertente negativa da DEROT, Denis, “Libertinage”, in Encyclopédie
liberdade desde o final do Renascimen- ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et
to até ao que designa como libertina- des Métiers, vol. 9, Paris, chez Briasson, 1751,
gem de massas do séc. xx, e de Joseph p. 476; FAROL, António Fernandes Ferrer,
Ratzinger, que, num discurso de 18 de A Libertinagem perante a História, a Philosofia
abril de 2005, relaciona a libertinagem e a Pathologia, Porto, Tip. José Pereira da Sil-
com outras correntes de pensamento va, 1865; FOUCAULT, Didier, Histoire du Li
bertinage, Paris, Perrin, 2010; FOUCAULT,
contemporâneas: “Quantos ventos de
Michel, História da Sexualidade, vol. 1, Lisboa,
doutrina conhecemos nestes últimos Relógio d’Água, 1994; FUERTES, Juan Ve-
decénios, quantas correntes ideológicas, larde, El Libertino y el Nacimiento del Capitalismo,
quantas modas do pensamento... A pe- Madrid, Pirámide, 1981; FURETIÈRE, Antoi-
quena barca do pensamento de muitos ne, Dictionnaire Universel Contenant généralement
dever de ofício, inclusive nos registos pu- oral e o seu suporte escrito há naturais
ramente técnicos, onde urge inventar ou lacunas. Compendiados alguns universais
adaptar fórmulas, contrair empréstimos, ditos substanciais, como é o erotismo nas
fazer cedências, se necessário, na insufi- antigas civilizações, fácil se torna conciliá
ciência referencial do ponto de chegada. ‑los, a milénios de distância, com o nosso
Se se procura que um autor cronoló- presente.
gica, espacial e linguisticamente distante Fator de comunicação, desejavelmente
seja lido como se escrevesse no tempo e expressiva, a traduzibilidade impregna a
lugar da língua de chegada, maior orgu- letra, que liberta da cristalização, embora
lho sentimos quando este discurso é con- nem sempre do ridículo, como ver Fe-
siderado melhor por quem domina os renc/Franz Liszt vertido em Francisco Fa-
dois registos; mais ainda, quando o mes- rinha (“liszt”, em húngaro). As inevitáveis
mo autor se reconhece, e aos seus particu- quebras prosódicas, o conveniente des-
larismos, no feito, no conseguimento de respeito por regras e formas fixas, outros
outra matéria verbal. Há conglomerados, obstáculos, tudo isso ajuda ao conflito de
ou unidades de tradução, que uma sábia interpretações que transcendem a letra.
transposição resolve, sem grandes perdas No mínimo, ficamos com as belles infidèles.
semânticas. Converge a modulação em Já antes do apóstolo Paulo, um aviso
escala reduzida, e o recurso à analogia seco de Horácio na Arte Poética recomen-
linguística: do not enter, entrada proibida. dava ao scriptor: “nec verbum verbo cura-
Na interpretação de viva voz, e des- bis reddere fidus/interpres” (vv. 133-134).
contada a consecutiva – com texto pre- A dificuldade não está em que “procura-
viamente escrito, em que se integra a le- rás (curarás de) traduzir não (tão-pouco)
gendagem bastas vezes problemática dos palavra a/por palavra”; o busílis da ques-
media visuais –, percebemos, na simultâ- tão é “fidus intrepes”, dividido na cena,
nea (se não for demasiado sussurrada), em que o nome, “intérprete” ou “tradu-
quanto se perde, e se deriva, como essa tor”, conta menos do que o adjetivo. Este
tradução se reduz ao osso. É a demonstra- vê-se “(como) servil”, “bom/verdadeiro”,
ção maior (legítima, mesmo que depure “fiel”, em colorações tais, que, ao sabor
um discurso perifrástico?) da vitória anti- da tradição – só agora referida, enquanto
literalista, que ainda sorri aos desastres da pertinente nesta abordagem –, preferi-
tradução automática, desacompanhada mos “fiel intérprete” – literalmente.
de informações linguísticas específicas e
de uma gramática cultural.
Entra aqui a solução da transferência Bibliog.: HORÁCIO, Arte Poética; MAZZARE-
de um universo cultural – já não hipótese ZE, Tecla, “Interpretazione letterale: giuristi
linguística ou discursiva, como na trans- e linguisti a confronto”, in VELLUZZI, Vito
posição –, ainda que exija continuados (ed.), Significato Letterale e Interpretazione del
comentários e explicações. Universos di- Diritto, Torino, Giappichelli, 2000, pp. 95
ferentes, alguns só acessíveis a antropó- ‑136; MESCHONNIC, Henri, Poétique du Tra
duire, Paris, Verdier, 1999; RECANATI, Fran-
logos e estudiosos da longa duração, po-
çois, “Literalismo y contextualismo: algunas
dem conhecer razoáveis contrapartidas, variedades”, Revista de Investigación Lingüística,
mesmo se parciais, sem que isto signifi- n.º 10, 2007, pp. 193-224; Id., Le Sens Littéral:
que resistência da letra: não temos velei- Langage, Contexte, Contenu, Paris, Éditions de
dades de ter lido tudo ao olharmos para l’ Éclat, 2007.
a frase mais singela; entre uma tradição Ernesto Rodrigues
des nacionais não suprimidas por estes, Adam Smith, pelo seu lado, opina, algo
mas apenas transferidas, aliás mesmo po- provocatoriamente, que pelo Tratado de
tencialmente ampliadas. A distinção dos Methuen só Portugal foi beneficiado,
conceitos de criação e desvio de comér- tendo Inglaterra sofrido com o desvio de
cio, em meados do séc. xx oficialmente comércio de vinhos de outros países que
consagrada através da obra de Jacob Vi- aquele teria induzido (SMITH, 1981, II,
ner, parece em momentos diversos emer- 76). Estas opiniões, entretanto, são em
gir nas obras daqueles economistas de geral refutadas, mesmo por autores que
Setecentos e Oitocentos, sem que todavia no fundamental se reclamam do legado
esse distinguo analítico seja claramente smithiano. Jean-Baptiste Say, e.g., defen-
formulado. Finalmente, a própria corre- dendo o livre-câmbio universal e pro-
lação do grau de abertura das economias nunciando-se com desconfiança quanto
com os ritmos de crescimento económi- aos tratados (nos quais teme sobretudo a
co das mesmas é, nalguns casos, objeto promoção de rivalidades com terceiros),
de disputa, com os malefícios consisten- acrescenta ainda que Methuen configu-
tes da abertura a serem destacados por rou um caso de vantagens iníquas, ler
mais de um autor. “tributos coloridos” (SAY, 1972, 183), ob-
Mais interessante ainda, para os propó- tidas abusivamente por Inglaterra à custa
sitos deste texto, é o lugar ocupado por de Portugal. Já David Ricardo, como é sa-
Portugal no imaginário da teoria econó- bido, utilizou precisamente o modelo das
mica. As consequências do Tratado de relações luso-britânicas para, a respeito
Methuen são, pode dizer-se, um tema do comércio de vinhos e de tecidos, ex-
inescapável. Mas não apenas elas. Já em por as suas famosíssimas noções das van-
meados do séc. xviii, e.g., um autor como tagens absolutas e comparativas suposta-
Richard Cantillon, ao defender as vanta- mente associadas a tratados comerciais:
gens duma balança comercial favorável, de acordo com o modelo das primeiras,
distinguia as dinâmicas sociais correspon- Portugal disporia de condições mais van-
dentes aos casos em que esse saldo posi- tajosas para a produção de vinhos e a Grã
tivo é conseguido através da promoção ‑Bretanha para a produção de tecidos,
das manufaturas e da navegação daquele pelo que o tratado seria uma boa ideia.
outro, resultante da mera descoberta de Seguindo a lógica das vantagens compa-
minas de metais preciosos. Quando é do rativas, embora Portugal tivesse vantagem
primeiro caso que se trata, afirma, apesar em ambos os sectores, sendo a desvanta-
das tendências para a subida dos preços gem britânica menor nos tecidos, o tra-
resultantes do próprio excedente da ba- tado e a especialização produtiva subse-
lança comercial, o balanço global de pro- quente continuariam a ser uma boa coisa.
gresso e retrocesso é favorável à riqueza Relativamente a Friedrich List, deve
das nações e dos soberanos. Quando de- desde logo sublinhar-se que a sua obra
paramos com o segundo modelo, porém, pôde ser invocada entre nós quer a favor
i.e., se “a nobreza portuguesa e outras” da proteção pautal, quer contra ela. De
(CANTILLON, 1952, 44) se convertem facto, para além de ter considerado absur-
por ânsia de ostentação ao consumo ir- das e abusivas tanto as opiniões de Smith
restrito de bens luxuosos importados, o como as de Say relativas a comércio in-
efeito de imitação assim induzido no con- ternacional, List argumentou em termos
junto do corpo social leva a que o saldo gerais a favor das vantagens dos tratados,
global de fluxo e refluxo seja nocivo. acrescentando que as exceções admitidas
quer por Smith quer por Say à regra da cadência portuguesa, na qual teriam sido
liberdade de comércio eram geralmente goradas as expectativas da Coroa e da no-
tão absurdas quanto a própria regra. Por breza na melhoria, em virtude do suposto
outro lado, a proteção pautal deveria ser aumento das quantidades transaciona-
considerada uma “educação industrial”, das, dos rendimentos alfandegários e das
sendo por isso legítima apenas a relativa rendas da terra. A própria possibilidade
às manufaturas, não à agricultura (LIST, de mudanças bruscas na orientação e nas
1944, 164, 170, 192-193). Também não preferências do poder régio ilustraria
poderia ultrapassar um nível inicial de 40 bem o alcance limitado de qualquer ten-
‑60 % de direitos, e passando rapidamente tativa industrializadora empreendida por
para 20-30 %, no máximo. O principal co- um Estado absolutista, tornando eviden-
mércio internacional deveria, aliás, vir a te a necessidade de adoção dum regime
ser um comércio assente no livre-câmbio, constitucional, com garantia de estabili-
estabelecendo-se entre os países climaté- dade na estrutura jurídica, respeito pelos
rica, cultural e politicamente inclinados interesses dos manufatores, etc. Ao mes-
para as manufaturas (a generalidade da mo tempo, porém, Portugal é etiquetado
Europa Ocidental e da América do Nor- como país de dimensão demasiado redu-
te) e os países por aqueles mesmos con- zida e escassas condições culturais, para o
dicionalismos destinados à agricultura qual a proteção pautal seria inconvenien-
e outras atividades extrativas. Esta espe- te e tendo mais a ganhar com o livre-câm-
cialização produtiva seria supostamente bio. Bem vistas as coisas, se a escola desis-
vantajosa para todos os intervenientes, ao tisse de propagandear a mera liberdade
contrário do que sucedia com as nações genérica do comércio, aprendendo a re-
potencialmente industriais, mas às quais conhecer as especificidades das situações,
a ausência de proteção tivesse lesado na os seus pontos de vista seriam muito mais
caminhada industrializadora. A proteção facilmente aceites naquilo que têm de
é portanto, para List, algo de recomendá- genuinamente válido: “A teoria da liber-
vel para países situados numa zona inter- dade de comércio encontrará então bom
média de progresso económico, apenas acolhimento na Espanha, em Portugal,
para esses e estritamente adentro dos li- em Nápoles, na Turquia, no Egito e em
mites antes referidos. todos os países mais ou menos bárbaros e
Em que posição, neste contexto, ma- em todos os climas cálidos. Já não se con-
pear Portugal? List, deve reconhecer-se, ceberá nestes países, no seu grau de civili-
não prima exatamente pela coerência. zação atual, a ideia extravagante de criar
Obviamente, refere várias vezes o Tratado uma indústria manufatureira mediante o
de Methuen enquanto exemplo das con- sistema protetor” (Id., Ibid., 154).
sequências negativas da especialização, à Se considerarmos agora os autores
escala internacional, na produção agríco- portugueses de Oitocentos, período
la; refere também as desvantagens, para em que a questão do protecionismo e
as potências agrícolas e mais pequenas, do livre-cambismo foi discutida com
da celebração de tratados com potências particular veemência, deve ser desta-
industriais e maiores. Inclui mesmo nes- cado antes de mais o caso de Oliveira
tes argumentos uma referência explícita Marreca enquanto representativo duma
ao esforço industrializador empreendido evolução que, partindo de um argumen-
pelo conde de Ericeira, ao qual se teria tário basicamente inspirado em Say, vai
seguido, com o tratado, uma fase de de- percorrendo um longo caminho que o
reavaliação do método elaborada após A Maverick Medical Genius Tragic Quest to Rid
teorização justificativa dos efeitos dete- the World of Mental Illness, New Jersey, Wiley &
rioradores da personalidade, chamando Sons, 2005; FERNANDES, Henrique Baraho-
na et al., “A clinical and psychological study
“regressão sintónica” ao efeito colateral
on leucotomy”, in Psychosurgery. 1st International
(FERNANDES, 1983, 88) e contestando
Conference, Lisboa, Livraria Luso-Espanhola,
as hipóteses iniciais avançadas por Egas 1949, pp. 147-156; FERNANDES, Henrique
Moniz. Em ambos os casos, a atribuição Barahona, Egas Moniz Pioneiro de Descobrimen
do Prémio Nobel da Fisiologia ou Medi- tos Médicos, Lisboa, Instituto de Cultura e Lín-
cina, em 1949, contribuiu muito para a gua Portuguesa, 1983; FREEMAN, Walter, e
relativização das notas críticas e da des- WATTS, James, Psychosurgery in the Treatment of
valorização das linhas de argumentação Mental Disorders and Intractable Pain, Springfield,
Charles C. Thomas, 1942; FURTADO, Diogo,
contra o método, mesmo se oriundas
“Réflexions sur la lobotomie”, Jornal do Médi
do núcleo de colaboradores próximos de co, vol. xiv, n.º 351, 1949, sep.; LIMA, Almei-
Egas Moniz. da, “A técnica cirúrgica da leucotomia cere-
A controvérsia acompanhou o desenvol- bral (1)”, A Medicina Contemporânea, ano lxvii,
vimento da neurocirurgia e da psicofar- n.º 7, jul. 1949, pp. 267-271; Id., “Platão
macologia e avivou a tensão entre neuro- – Bacon – Egas Moniz. A propósito do tra-
logia e psiquiatria, colocando uma série de tamento das doenças mentais”, O Médico,
vol. lviii, n.º 1142, 1973, sep.; MILLER, Bru-
questões que continuam a suscitar respos-
ce L., e CUMMINGS, Jeffrey L. (orgs.), The
tas complexas de perfil interdisciplinar: Human Frontal Lobe. Functions and Disorders,
experimentação em humanos, interação New York, The Guilford Press, 2007; MONIZ,
cérebro-mente, etiologia das perturba- Egas, Tentatives Opératoires dans le Traitement de
ções mentais e neurológicas, superação Certaines Psychoses, Paris, Masson, 1936; VA-
das fronteiras disciplinares (psiquiatria/ LENSTEIN, Elliot, Brain Control. A Critical Exa
neurologia). Lobotomismo e antilobo- mination of Brain Stimulation and Psychosurgery,
tomismo acabaram por se diluir noutras New York, Wiley, 1973.
controvérsias que emergiram com as re- Manuel Correia
formulações operadas pelas neurociên-
cias e pelos sucedâneos da neurocirurgia
funcional.
Sem embargo das numerosas alusões
ao tema nos media, em geral, a principal
inscrição do antilobotomismo no cinema
continua associada ao filme de Milos For-
man, Voando sobre Um Ninho de Cucos, pro-
duzido nos EUA, em 1975.
e Mia Couto, em Moçambique; e Cláudia poder a quem fala a língua oficial e re-
Castelo e Joaquim Valente, em Portugal, tirando poder a quem não a fala, e que
verifica-se, em 2017, um exíguo número perde, assim, socialmente, a sua voz.
de estudos questionando a lusofonia. Este Desta dinâmica de assimilação/destrui-
facto aponta para alguma incapacidade ção linguística, é paradigma a situação
de um Portugal pós-colonial percecionar da “língua geral” brasileira ou nheen-
respeitosamente as identidades dos países gatu. Mistura entre português e tupi, o
colonizados que estão a ser reconstruí- nheengatu era uma língua ensinada pe-
das desde as respetivas independências, los missionários jesuítas (que a adotaram
e para alguma dependência, consciente como sua, numa lógica de vasos culturais
ou inconsciente, das ex-colónias em rela- comunicantes, havendo mesmo registo
ção ao país colonizador, dependência que de poesia luso-brasileira escrita por estes
pode ser vista como incapacidade de criar em nheengatu) até, no séc. xviii, esta
identidades linguísticas e culturais não lu- língua híbrida, que unia duas culturas,
sófonas. ter sido proibida aquando da oficializa-
A partir do final do séc. xx, o antilu- ção do português por decreto do mar-
sofonismo apresenta a lusofonia como a quês de Pombal (sendo que, a partir de
marca de um império que acabou, defen- tal momento, falar e escrever em portu-
dida por fações políticas conservadoras, guês passou a simbolizar ser civilizado,
posicionadas tanto à esquerda quanto à pretendendo esta estratégia colonialista
direita, e mantida porque, alimentando a conquistar súbditos para a Coroa portu-
ilusão de a CPLP ser uma pátria de lín- guesa). Esta situação demonstra algumas
gua comum, se suaviza o trauma do fim consequências culturais da imposição
do Império Português. Esta caracteriza- da língua a um povo – primeiramente,
ção argumenta que a lusofonia, símbolo causa a destruição de línguas autóctones
da negação de uma morte, dificulta criar (o tupi), que são assimiladas pela língua
pensamento crítico sobre o Portugal colo- do país colonizador (o português); pos-
nialista e as novas identidades dos países teriormente, destrói uma nova língua
que têm o português como língua oficial, (o nheengatu), que fundia, de forma
e questionar por que motivo(s) o princi- mais harmoniosa que o português, duas
pal interessado na lusofonia no séc. xxi culturas diferentes; finalmente, estratifi-
é Portugal, e não Angola ou Moçambi- ca diferentes culturas e línguas, caracteri-
que, países com uma elevada taxa de zando negativamente a cultura e a língua
cidadãos antilusofonistas (VALENTIM, autóctones, em prol da língua coloniza-
2004). Para este movimento, a lusofonia dora, que civiliza.
constitui uma “amnésia sobre o passado Esta intromissão do Estado na criação
pré-colonial” (RIBEIRO, Público, 18 jan. da língua está em clara oposição ao que
2013) que sustenta erros como a ideia Eduardo Lourenço, autor crucial para o
de os povos autóctones colonizados te- pensamento pós-colonialista em Portu-
rem sido descobertos pelos Portugueses, gal, inspirado pela conceção chomskyana
promovendo a ignorância sobre as suas de língua como uma construção feita por
identidades pré-coloniais. Argumenta-se, um povo e nunca imposta, estabelece:
também, que a oficialização do português a lusofonia enquanto “a existência de
nestes territórios conduziu à assimilação várias línguas portuguesas” que resultou
(e, portanto, destruição nalguns casos) da “transformação do reino português
das línguas aí então faladas, conferindo em império” (LOURENÇO, 2004, 112).
hodiernamente, Reforma Católica, dado que a ministerial, a via ritualista de união com
vontade e o apelo à renovação da Igreja foram Deus, o cumprimento da moral evangéli-
assumidos por muitos que procuraram reformá ca e a espiritualidade do laicado. O huma-
‑la por dentro, sem optar pela separação. nismo renascentista trifonte – lefebriano,
A par do espírito de reforma, com os líderes renaniano e erasmiano – não disfarçava o
reformistas a optarem, apoiados por líderes po- toque anticlericalista nem a contestação à
líticos, pelo confronto e a separação, gerou-se autoridade papal. No entanto, não havia
uma verdadeira corrente de combate de ambos unanimidade nos aspetos controvertidos,
os lados, que criou uma cultura negativa, ali- que iam da aceitação de uma tópica ge-
mentando uma imensa história de ideias an- nérica à negação do número e da teolo-
ticatólicas, de um lado, e antiprotestantes, do gia dos sacramentos, do ritual litúrgico,
outro. do valor das preces orais mecânicas, da
Em Portugal, conhece-se importante herança vida consagrada conventual, do celibato
cultural documentada desta cultura de comba- eclesiástico, do culto dos santos e das re-
te, que numa primeira fase corresponde, gros- líquias, da necessidade de sufrágios pelos
so modo, à época moderna, e que teve uma defuntos, da doutrina da justificação pelo
feição fundamentalmente antiluterana, visan- mérito das boas obras, da possibilidade
do a figura, o pensamento e a ação de Lutero de se chegar à verdade religiosa fora da
e o tremendo impacto que provocou a divisão Igreja.
da velha cristandade medieval. Recuperamos e Até à Dieta de Worms, e mesmo ao
reorganizamos aqui o valioso trabalho, muito Concílio de Trento (1545-1563), os altos
detalhado e cuidado, sobre o antiprotestantis- responsáveis católicos e luteranos acre-
mo em Portugal do historiador João Francisco ditavam na eficácia conciliadora de um
Marques, de saudosa memória, que no-lo tinha irenismo dialogante. Consumaram-se,
legado em bruto para esta obra dicionarial. todavia, o desentendimento e a irreversí-
Destacámos a primeira parte do seu trabalho, vel separação. Seguiram-se a rigidez das
que configura mais um claro antiluteranismo, costas voltadas, a surdez e o anátema re-
depois continuada numa segunda parte, que cíprocos, remetendo-se o catolicismo ao
se expressa mais multifocalmente no ataque ao afã de reforçar a unidade do rebanho fiel
movimento da Reforma, podendo-se denomi- e o protestantismo a fracionar-se cada vez
nar com mais propriedade antiprotestantismo mais em ramos de acentuadas diferenças.
(&Antiprotestantismo) O caminho estava aberto a fanatismos
atuantes, despoletando as estratégias de-
bem nem mal das seitas”. Pode afirmar Azambuja e Fr. Gaspar dos Reis; os teólo-
‑se, no entanto, que colaborou com sin- gos Fr. Jorge de Santiago e Diogo Gouveia
ceridade no movimento conciliador da Sénior; o leigo Jorge da Silva. Na alma ma-
déc. de 1530, a que Hubert Jedin chamou ter conimbricense, as principais cátedras
“o sonho do entendimento”, que grassava de Teologia passaram para a docência
por toda a Europa, não deixando sem en- de Paio Rodrigues de Vilarinho e Álvaro
volvimento nação alguma. Deste modo, Fonseca, e isso refletiu-se no antiprotes-
durante o pontificado de Paulo III (1534 tantismo dos discentes. O Colégio das
‑1541), intensificaram-se os esforços para Artes, entregue aos Jesuítas em 1555, e o
conseguir a reunião de católicos e protes- processo inquisitorial levantado aos mes-
tantes, pressionando-os na cedência em tres bordaleses Diogo de Teive e João da
questões dogmáticas. Sadoleto e Bem- Costa, que foram condenados, atestam o
bo, cardeais italianos, e o inglês Reginal endurecimento da política contrarrefor-
Pole, arcebispo de Cantuária, auxiliaram mista. A Univ. de Évora (1559), confiada
o movimento e Damião de Góis animou à Companhia de Jesus e orientada sobre-
‑se a pedir ao “doce Melanchthon” que se tudo para a preparação pastoral do clero
reconciliasse com a Igreja Romana. Nada alentejano, torna-se um baluarte ofensivo
de positivo se obteve. O odium theologicum da ortodoxia católica tridentina. Por sua
de papistas e luteranos radicais foi mais vez, o Santo Ofício, em exercício desde
forte, silenciando as vozes irenistas con- 1537, exerce a vigilância e constitui-se
ciliatórias e ostracizando a linha modera- como instrumento repressor de qualquer
dora de Erasmo de Roterdão, mentor da manifestação de evangelismo reformista,
docta pietas e corifeu da philosophia Christi, quer através da censura literária, quer no
de prestígio ímpar no espaço humanista julgamento das denúncias de naturais e
europeu, e que reforçara a autoridade da colónia estrangeira, mais ousada e fa-
ao resistir a Lutero, na sua desesperada nática, a entrar por mar e terra, sujeita a
tentativa de arrebanhamento. A partir contínua inquirição. Na armada de gente
da primeira interrupção de Trento, tudo francesa que, em 1561, partira para o Bra-
se precipitou terminantemente, pois as sil, levando consigo missionários calvinis-
tendências foram clivadas, sem margem tas, seguia Jean Cointat, senhor de Bou-
para conciliações. As sensibilidades ire- lés, convertido à doutrina do heresiarca
nistas e erasmianas esfumaram-se. Junto de Genebra, que, preso no Rio de Janeiro
de D. João III, a princípio moderado, mas e deportado para Lisboa, acabou por ser
sempre férreo opositor do luteranismo, condenado pela Inquisição e metido no
representantes qualificados do conserva- cárcere. O embaixador da mesma nação,
dorismo ideológico-religioso ganharam em maio do dito ano, comunicou a Paris
poderosa ascendência. Nas fileiras mais “que tinham sido processados no Santo
combativas, encontravam-se prelados, Ofício mais três ou quatro franceses após
sacerdotes e fidalgos influentes, e.g., os a sua chegada a Portugal”; e, em dezem-
bispos D. Agostinho Ribeiro e D. Fr. Ber- bro, ao deixar o país, informava que dei-
nardo da Cruz, conselheiros do cardeal xava presos 33 compatriotas (Id., Ibid., II,
D. Henrique, D. António Pinheiro, a quem 535-536).
foi confiada a educação do príncipe her- Ligado à terra brasílica refira-se, a pro-
deiro D. João, retirada esta a Damião de pósito, o caso do P.e Manuel de Morais,
Góis, e D. Jerónimo Osório, familiar da paulista e escritor, falecido em 1651, que
corte; os inquisidores Fr. Jerónimo de vestiu a roupeta da Companhia de Jesus
e que veio a ser expulso por conduta período pós Restauração, os quais per-
escandalosa. Tendo embarcado rumo à mitiam alguma liberdade religiosa, quer
Europa, entrou nas Províncias Unidas, com as fases de baixa repressão do Santo
converteu-se ao calvinismo e casou-se Ofício” (BRAGA, 2002). Os eclesiásticos
com uma Holandesa, pelo que o Tribu- que se deslocavam ao estrangeiro con-
nal da Inquisição o condenou a sair, no traíam, por vezes, contágios a sufocar,
auto de fé de abril de 1642, relaxado em como aconteceu com Fr. Valentim da Luz
estátua. Ao tentar regressar ao Brasil, foi (1524-1562), Agostinho, e com Manuel
encarcerado em Lisboa por ordem do Travassos, bacharel em Cânones e o pri-
Santo Ofício, que o libertou depois de meiro luterano português sentenciado no
obrigado, no auto de fé de 1647, a abju- auto de fé de 11 de março de 1571, estan-
rar a heresia. Nos dois primeiros séculos do convencido das verdades e doutrinas
de repressão, os números conhecidos do reformador saxónico. Isto pode ver-se
relativos a sentenciados evidenciam, po- em processos da Inquisição relativos a sa-
rém, uma patente exiguidade de réus. cerdotes e leigos que, segundo Silva Dias,
A estudiosa Elvira Mea cifra em apenas punham a descoberto “infiltrações lutera-
0,3 % os casos apreciados pelo Tribunal no-calvinistas”, envolvendo “a hostilidade
de Coimbra durante o período quinhen- ao clero, ao monacato e ao papado, a des-
tista (MEA, 1997, 280). Face às estatísticas crença do purgatório e das indulgências,
apresentadas por Isabel Drumond Braga, a repugnância pela Missa, pela Confissão
as pessoas acusadas de protestantes nas e pela veneração das imagens, e, enfim, o
Inquisições de Lisboa, Évora e Coimbra, desapego do mistério eucarístico, de que
240 do sexo masculino e 8 do feminino, ora uns, ora outros se mostram persuadi-
repartem-se do seguinte modo: 180 no dos” (DIAS, 1960, I, 216). Na altura, tam-
séc. xvi e 68 no seguinte, entre as quais bém não escaparam à suspeição do Tribu-
Ana Gorgin, missionária quaker que dese- nal Nicolau Chanterene, escultor, Diogo
java pregar nos reinos ibéricos. A maioria de Dembes, Dominicano flamengo, Fer-
corresponde a Franceses (92), Flamengos nando de Oliveira, gramático, que não
e Holandeses (66), Ingleses (37), segui- disfarçava a simpatia pelo anglicanismo.
dos de Alemães (29), Irlandeses (11), Isabel Drumond Braga adverte, todavia,
Espanhóis (5), Italianos (3) e outros (3), que se tenha “em conta que a Inquisição
sendo a média de idades dos 121 indiví- nunca distinguiu claramente os diversos
duos identificados de 20 a 35 anos, dis- tipos de protestantismo (luteranismo,
tribuídos por solteiros (59), casados (54), calvinismo e anglicanismo), designando
alguns com Portuguesas, e viúvos (8). genericamente o delito como ‘luteranis-
Quanto a ligações profissionais, há mer- mo’” (BRAGA, 2002, 238).
cadores (26), bufarinheiros (6), carpin- Ainda em Trento, o arcebispo D. Fr. Bar-
teiros (4), cirurgiões (5), soldados de vá- tolomeu dos Mártires, numa carta a
rias especialidades (9), marinheiros (9), Fr. João de Leiria, dominicano e seu subs-
pilotos (3), mestres de urcas (2), i.e., gen- tituto em Braga, não poupa críticas ao
te de passagem, entrada pelo mar. A in- luteranismo que alastrava pela França,
vestigadora conclui que o abaixamento muito temendo ver saltar “alguma faísca”
de casos, na centúria seiscentista, “deve em Portugal, e afirmava sem ambiguida-
ser relacionado, quer com os tratados des: “Porque de quanto tenho lido e por
de paz estabelecidos entre Portugal e os cá visto, estou resoluto que todo o cristão
diversos reinos protestantes europeus no que vive carnalmente, esquecido da sua
salvação, está isca mui seca ou pólvora Angliae Reginam [Carta à Rainha de Ingla-
para se lhe pegar esta peçonhenta seita, terra] foi o primeiro sinal feroz contra o
porque toda ela está fundada em liber- reformismo evangelista, com violenta ab-
dade, luxúria e gula. Por esta via, os pre- jurgatória à pessoa de Lutero; escrita por
gadores desta seita trazem muitos para sugestão do cardeal D. Henrique, é da
si, porque pregam que todo o cristão, autoria do humanista D. Jerónimo Osó-
de qualquer estado que seja, tenha mu- rio, figura de proa do clero e da cultura
lher, nem cuidam de obedecer aos pre- portuguesa que passou pelas Universida-
ceitos que mandam confessar, jejuar, não des de Salamanca, Paris e Bolonha, admi-
comer carne” (DIAS, 1960, I, 81). Nesta rador de Petrarca e Erasmo, sólido pilar
altura, contudo, o prelado não afasta- da ortodoxia católica. A intervenção do
va do horizonte a reconciliação com os régio purpurado português visava con-
protestantes, a fim de se evitar a cisão da vencer Isabel I, sucessora de Maria Tudor
Igreja. Para Pina Martins, historiador do no trono britânico, a voltar ao grémio ca-
Renascimento português, a substância tólico. Animava-o a atitude benevolente
polémica da “diatribe antiluterana” do da Soberana, mais aparente que sincera,
humanista André de Resende increpa para com os súbditos que permaneciam
Martinho Lutero, “não bispo, mas frade fiéis ao papado.
desprezador da religião e apóstata da fé, e A obra, publicada em 1562, teve rápida
a outra turba de heréticos que dele ema- repercussão, beneficiando do seu mode-
naram, sem madura idade, sem dignida- lar latim ciceroniano. Em finais de Seis-
de episcopal, e o que pior é, sem espírito centos, somava 23 edições, traduzida para
de temor de Deus”, aos quais nenhuma francês e inglês. De assumido recorte po-
autoridade assiste para “condenar o que lémico-apologético, visava denunciar as
fixo e firme estava […] e interpretar a es- consequências funestas dos erros doutri-
critura a seu danado apetite, contra inter- nários do luteranismo, desacreditar a in-
pretação dos sagrados doutores”, tendo- teireza moral do heresiarca e convencer
se recusado a assistir ao Sagrado Concílio a herdeira de Henrique VIII a retratar-se,
em Trento reunido, “que eles antes com para bem da sua alma e da unidade da Co-
tanta instância pediam”. No processo in- roa britânica. Esta espécie de carta aber-
quisitorial de mestre Marcial de Gouveia, ta, no estilo dos escritos trocados entre os
refere-se haver composto “um tratado humanistas do Renascimento, reveste-se
contra Lutero, que deu ao Abade de Ti- de um nítido tom catequético, gerando,
bães”, mosteiro beneditino do aro braca- no debate e no intercâmbio literário sus-
rense (MARTINS, 1973, 123-125). tentados, correntes de opinião antagóni-
cas e conciliatórias. No início do libelo, o
bispo de Silves imputa à “importunidade
A crítica pós-tridentina e ousadia” do heresiarca a rutura da Igre-
Finda a assembleia tridentina, publicados ja de Cristo, bem como aos “turbulentos
e postos em prática os decretos concilia- discursos” e aos “livros contaminados”
res, a onda antiprotestante, dentro do de- de “certos homens” ver-se “de repente
sígnio da denominada Reforma Católica, extinguir-se o pudor, destruir-se a hones-
tentava extirpar réstias de proveniência tidade, calcarem‑se aos pés os direitos
erasmiana e erradicava zelosamente os fo- divino e humano, profanarem-se as coi-
cos de heresia luterana ou afim. A Epistola sas sagradas, ridicularizar-se a santidade,
Hieronymi Osorii ad Serenissimam Elisabetam correr impune a audácia por todo o lado,
espírito, empreendem e executam, quer “no culto da mais santa religião”, consi-
boas quer más, restringindo-as a um fatal derando “que nada há mais pernicioso
e eterno determinismo” (Id., Ibid., 201). à República do que uma religião e san-
Desautorizar o heresiarca como líder reli- tidade inventadas pela mentira”. O evan-
gioso – “autor e maioral” deste plano satâ- gelismo deve rejeitar-se, porque, prome-
nico, “arquiteto de tão preclara obra” – e tendo “reconduzir os costumes corruptos
seus sequazes é outro objetivo do libelo à severidade do Evangelho e restaurar
acusatório de D. Jerónimo Osório, que aquela antiga pureza da Igreja”, não ape-
denuncia a devassidão do heresiarca, vi- nas se mostrou incapaz de manter “sã a
sível numa “vida infamada de escândalo”. Cristandade”, como pôs “toda a sua de-
Interroga, enfaticamente: “E quem foi terminação em sufocar tudo quanto exis-
esse Lutero? Um homem (para usar das tia de são e em inquinar tudo com males
palavras mais brandas), com toda a certe- pestíferos”. Para conduzir a Soberana à
za, turbulento e de todos o mais extrema- consciência das suas responsabilidades,
mente demagogo. E quem foram os que, diz-lhe estar em suas mãos a “salvação” ou
depois, profluíram da fonte, por assim di- a “ruína” da sua pátria, aconselhando-a à
zer, da sua doutrina? Homens verdadeira- retratação: “Na verdade, se assumirdes a
mente audaciosos, presunçosos, soberbos tarefa de expiar a religião ultrajada e vos
e (para não dizer coisa mais dura) não agregardes ao consenso da Igreja inteira e
exornados de tamanhas virtudes, que nos prestardes o devido culto aos antigos cos-
sintamos movidos pela sua autoridade e tumes e ofícios e, expulsando os homens
devamos abandonar a forma daquela re- ímpios, chamardes a vós os homens bons
ligião em que fomos educados” (Id., Ibid., e santos, fortalecida pela ajuda e auxílio
181). Em vez de darem continuidade à de Cristo, haveis de organizar de maneira
missão de Cristo, a de unir na “mútua be- perfeita a República e restituir a todos os
nevolência e amor”, esses homens evan- seres a salvação e a vida”. E apela, por fim,
gélicos fomentam a “missão do Diabo”, a que esconjure do reino “o ódio da Cruz
que é “dispersar e dissolver toda a socie- que esses autores da pestífera novidade
dade santamente constituída”, concitar abertamente sustentam” e siga “as pisadas
tumultos, semear a discórdia, dividir uma dos santos” e não as daqueles que, “ob-
só em infinitas seitas, atiçar “o ódio de cecados pelo seu amor-próprio, escora-
uma contra as outras”. Tal empresa, vinca dos na sua imaginação, precipitados pela
o prelado, é demagógica, pois, “acenan- sua audácia, recobertos de escândalos e
do com a visão de uma excessiva liberda- arrancados à união da Igreja, apregoam
de, arma o povo contra as leis, contra os [outro] como sendo o caminho que se
ministros das leis e contra a majestade e deve seguir” (Id., Ibid., 235-236).
o poder dos príncipes, e encoraja o furor A outra intervenção de D. Jerónimo
da turbamulta com uma falsa liberdade Osório, que é uma importante referên-
da religião”. A argumentação debruça-se, cia nesta linha polémica antiprotestante,
assim, sobre as incidências teológicas e, surge em 1564, no De Iustitia, Tratado de
em paralelo, aborda as políticas, refleti- Justiça redigido em latim e impresso em
das na ameaça da desordem social e na Veneza, que conheceu cinco reedições
destruição do sustentáculo da autorida- na era quinhentista. Contudo, a obra já
de régia. Por isso, recomenda à Rainha se encontrava terminada há três anos,
que com “mais força” organize “a defesa” ou mesmo antes, pois Diogo de Paiva de
do reino, cujo êxito estaria em colocá-lo Andrade, padre conciliar de quem fora
as Escrituras”, nada mais fazem do que “o caminho que através das bulas, condu-
“seguir os exemplos de Cristo, dos após- zia à perversão de costumes”. Quanto à
tolos e dos primeiros padres da Igreja” “autoridade única”, têm-na na pessoa da
(Id., Ibid., 172). Insiste, orgulhoso, haver Rainha, que “exerce senhorio sobre os
sido uma melhoria introduzida na disci- seus súbditos e, nas matérias religiosas,
plina religiosa anglicana a extinção da delega a sua autoridade nos bispos”, dan-
vida conventual, masculina e feminina, do “por decreto real força de lei às suas
com os seus “covis de crimes para onde os decisões” (Id., Ibid., 192-193) – i.e., regina
jovens de ambos os sexos eram arrastados locuta est, causa finita est. Critica o estilo
com grave detrimento da moral”, em que venenoso de Jerónimo Osório e acusa-o
as orações se faziam “numa língua des- de truncar a doutrina dos reformadores,
conhecida” e cujos edifícios “passaram que não se desviam do pensamento pau-
a albergar escolas, universidades, hospi- lino ao afirmarem “que o homem é justi-
tais” (Id., Ibid., 176). Também valoriza e ficado pela fé”, mas sem excluir que “a fé
encarece a supressão de todos os vestígios obra por caridade” (Id., Ibid., 206). Cen-
de idolatria: imagens, painéis e crucifi- sura também os católicos por se deixarem
xos. O que importa é adorar a Deus, e adormentar: “embalados pelas promessas
“as representações, se o espírito se acha de um perdão fácil concedido ao pecado,
presente, não fazem falta; na ausência através da confissão auricular e mediante
deste, carecem de préstimo” (Id., Ibid., a compra de bulas; embrutecidos pelas
180). Haddon indigna-se com o imenso pregações vãs e soporíferas dos frades e
exagero de Jerónimo Osório, que acusa pela assistência passiva a cerimónias litúr-
os reformadores protestantes de elimina- gicas, que não passam de um espetáculo
rem os sacramentos e os rituais e assegura para os sentidos, interpretado numa lín-
práticas religiosas bem diversas, pois, en- gua ininteligível”. E contrapõe o que se
tre os anglicanos: “enviam-se pregadores observa na vida de piedade da Igreja An-
a todas as partes para instruírem sobre a glicana: “assiduidade da pregação evan-
piedade e ensinarem o verdadeiro culto gélica (de frequência obrigatória por lei);
a Deus; servem-se de um formulário pú- serviços religiosos, que incluíam o cânti-
blico de orações, aprovado pelo parla- co dos salmos, hinos e extratos bíblicos,
mento e em relação ao qual não admitem aos quais se seguia a Ceia do Senhor, que
quaisquer desvios”. Calunia, pois, quem se serve nos dias santos” (Id., Ibid., 213).
afirma que a Igreja reformada não tem No que à interpretação bíblica diz respei-
“culto, sacramentos e cerimónias”, dado to, os protestantes “esquadrinham e estu-
estes continuarem a ser “ministrados em dam diretamente” as Escrituras, “e não
conformidade com as Escrituras e segun- interposição dos intérpretes e glosadores,
do o exemplo da Igreja dos primeiros como fazem os católicos” (Id., Ibid., 216).
tempos”, sendo que “tudo quanto tange Aconteceu que, em 1565, se encontrava
à religião se realiza usando da língua ver- na Flandres o português D. Manuel de Al-
nácula, de acordo aliás com a doutrina de mada, membro credenciado da comitiva
São Paulo e o exemplo das antigas igre- de 1000 pessoas, que, a 12 de agosto, par-
jas” (Id., Ibid., 184). Haddon sustenta: se tira de Lisboa para acompanhar, a Bruxe-
os anglicanos “sacudiram o jugo do bispo las, D. Maria, a filha de D. Duarte, duque
de Roma”, é porque o único “Sumo Pon- de Bragança, a fim de se unir ao seu noi-
tífice que reconhecem é Cristo”, e não se vo, Alexandre Farnésio, duque de Parma,
veja nisso “sedição”, mas antes o fechar aí presente, junto de sua mãe Margarida
de Áustria, governadora dos Países Bai- do texto haddoniano, que diz “tresandar
xos. D. Manuel de Almada (c. 1500-1580) a arte retórica” (Id., Ibid., 155-156). Os
era natural de Lisboa e licenciado em pontos discutidos são os da sobeja insis-
Cânones, deputado da Inquisição, bispo tência: a interpretação livre das Sagradas
titular de Angra, desde 1562, sem que, no Escrituras, o livre-arbítrio, a vida moral
entanto, residisse na Diocese, mas tendo dos reformadores protestantes, as ordens
feito aplicar nas ilhas açorianas os decre- religiosas, a autoridade papal e o pri-
tos tridentinos. Em contacto com Tho- mado do colégio dos bispos, o culto das
mas Harding, sacerdote católico inglês, imagens, o divisionismo das Igrejas refor-
que, por certo, o incitaria a responder, madas. Tudo exposto com dispersão, ao
teria recebido um exemplar do escrito de sabor da sequência dos tópicos que se lhe
Walter Haddon, na altura já na 2.ª edição, deparam. Conforme a informação que ia
publicada em Antuérpia, de réplica à Car- colhendo, D. Manuel de Almada contesta
ta apologética de D. Jerónimo Osório, de Haddon, afirmando que “grande parte
quem era amigo, dirigida à Rainha Isabel da população inglesa continua católica”
de Inglaterra, no prelo flamengo de Gui- e só “esconde a fé, não por medo, mas
lherme Silvius, onde também se impri- para apoiar ocultamente e não deixar
miu, em 1566, o livro de D. Manuel de fraquejar os que são torturados pela fé”
Almada, com o título: Epistula Reverendi (Id., Ibid., 161). Considera que os refor-
Patris Domini Emanuelis Dalmada Episcopi madores protestantes não passam de “tra-
Angrensis […] adversus Epistulam Gualteri tantes” e só por “perversos intentos” po-
Haddoni. dem equiparar-se aos venerandos Padres
As duas razões imperiosas da “exorta- da Igreja, a Atanásio, Jerónimo e Basílio,
ção epistolar” de D. Manuel de Almada, em sua “santidade e doutrina” (Id., Ibid.,
escrita nas vésperas da partida para a pá- 169). As “seitas nascidas de Lutero” não
tria, de réplica à Carta de Haddon, são: podem alinhar com as ordens religiosas
o desagravo à honra vilipendiada do católicas de S. Francisco, S. Domingos,
amigo ilustre D. Jerónimo Osório e o S. Basílio, S. Bento, S. Bernardo, S. Bru-
desejo de defender a religião católica na no, os Carmelitas, Premonstratenses,
confrontação com a heresia protestante. Trinitários, Lóios e Jesuítas; e, se foram
A conjuntura que se vivia nos Países Bai- suprimidas na Inglaterra, embora reco-
xos era incendiária: crescia o vendaval nhecendo os “costumes indignos” de al-
iconoclasta dos calvinistas e aproximava guns dos seus membros, a razão esteve na
‑se a duríssima repressão dos Tércios do “cobiça dos pseudorreformadores” pelos
duque de Alba, a extremar ainda mais os “bens materiais que estes possuíam” (Id.,
dois campos em conflito. No combate às Ibid., 170). Os votos de castidade volun-
heterodoxias, D. Manuel de Almada tinha tária da vida consagrada de religiosos e
já larga folha de serviços na militância do religiosas são legítimos e juridicamente
Santo Ofício, pois entrara nos processos vinculativos, defende o bispo de Angra; e,
inquisitoriais dos lentes coimbrãos João na esteira de S. Paulo, evoca “o paralelo
da Costa, Diogo de Teive, D. Lopo de Al- entre os grandes cuidados e fadigas pró-
meida e do Agostiniano Fr. Valentim da prios do matrimónio e a quietação de es-
Luz, que sofreram condenações e, o últi- pírito de que gozam quantos se entregam
mo, a condenação à morte na fogueira do à contemplação de Deus” (Id., Ibid., 176).
auto de fé. Canonista de formação, recor- Quanto ao culto dos santos, verbera a
re a dialéticas jurídicas e a largas citações “impiedade de Haddon”, aconselhando-o
A atmosfera vivida em Lisboa face aos gunda parte aparecido seis anos depois,
ataques de forças fiéis e aliadas ao preten- sem que lhe minguasse fundamentação
dente à Coroa, D. António, prior do Cra- para, de sobejo, alimentar a ênfase dada
to, vencido em Alcântara pelo exército ao ataque antiprotestante. José Adriano
invasor de Filipe II, em 1580, e a frustra- de Carvalho, revelador da parénese do
ção provocada pelo aniquilamento da In- P.e Inácio Martins, acentua que nessa tare-
vencível Armada, que integrou uma par- fa era ideologicamente explorada “a co-
ticipação naval portuguesa, motivaram notação dos ingleses como opressores e
vários sermões do Jesuíta Inácio Martins, hereges, desobedientes ao Papa […], ne-
sacerdote culto e ativo mestre catequista, gadores dos sacramentos católicos […],
que percorria as ruas e praças da capital profanadores de imagens e objetos de
do reino acompanhado de numerosos culto […], desafiadores do Rei Católi-
grupos de meninos. Nos inícios de maio co” (CARVALHO, 2004, 258). Contudo,
de 1588, na cruzada de pregações e ora- o desastre da Invencível Armada viera
ções para implorar a Deus o êxito daquela agravar as ameaças às costas e aos mares
ofensiva bélica, pronunciou o sacerdote portugueses e semear o pânico entre as
inaciano um Sermão na Guerra Justa contra populações, para além dos ataques às fro-
os Engreses Hereges na igreja de Santos-o tas que sulcavam o Atlântico. São de 1596
‑Velho, com violentas invetivas dirigidas outros cinco sermões manuscritos, respe-
à nação anglicana, inimiga declarada da tivamente pregados: na casa professa de
fé católica. Aliás, nesse mesmo ano, saiu S. Roque, aos padres e irmãos; na igreja
de prelos lisbonenses, em versão castelha- de S.ta Catarina, quando Drake, o corsário
na, a primeira parte da Historia Eclesiastica inglês, assolou as cidades de Cádis e Faro,
del Scisma del Reyno de Inglaterra, da auto- receando-se que avançasse sobre Lisboa;
ria de Pedro de Ribadeneira, tendo a se- o terceiro, quarto e quinto, sem templo
procurando atingir o domínio íntimo das Cedo começaram a ser publicados do-
consciências. Por outro lado, a origem da cumentos oficiais condenatórios e pre-
maçonaria em universo protestante e a ventivos da parte das instituições tutelares
estruturação esotérica de rituais iniciáti- das esferas política e religiosa, em parti-
cos que implicavam compromissos, jura- cular da Igreja Católica, das Igrejas pro-
mentos, fidelidades e obediências parale- testantes e dos governos dos Estados eu-
los e/ou em concorrência com processos ropeus do Antigo Regime. Em sociedades
de vinculação semelhantes da Igreja Ca- fechadas, onde o direito de associação
tólica e de outras confissões protestantes era muito restrito e, em múltiplos casos,
suscitavam grandes suspeitas, dúvidas e inexistente, o aparecimento das formas
receios da parte dos guardiões da ortodo- de associação maçónicas, estruturadas
xia religiosa, à luz de um modelo social sob a denominação de lojas, com ritua-
de cristandade defendido por instâncias lidades próprias, identidades secretas e
judiciais de vigilância como a Inquisição juramentos ocultos, suscitou as mais fan-
e outros sistemas de censura análogos. tasmáticas suspeitas.
Convém notar, como escreve Rui Ra- A corrente de oposição à maçonaria en-
mos, que “o antimaçonismo viveu também grossou e acirrou-se ao longo do séc. xix,
da ideia de uma subversão da própria or- criando doutrinas explicativas da sua
dem maçónica, supostamente desviada identidade, das suas origens, das suas prá-
dos seus desígnios originais por infiltração ticas e dos seus fins. Como notaram Graça
de grupos de indivíduos apostados em Dias e José S. Silva Dias, em Os Primórdios
manipular a Maçonaria para fazê-la ser- da Maçonaria em Portugal, a imagerie este-
vir os seus fins particulares. Já em 1738, a reotipada, que alimentou a formação de
diligência antimaçónica de Clemente XII um mito negro das obediências maçóni-
resultara da pressão de Jaime III, filhos cas, fundava-se num conhecimento im-
de Jaime II, que se apoiava nas Lojas es- perfeito, frágil e, muitas vezes, baseado
cocesas, maioritariamente simpáticas aos apenas em suspeitas pouco fundamenta-
Stuarts e ao catolicismo, e mais tarde ditas das, mas que suscitavam receios e juízos
‘antigas’, contra as Lojas inglesas, ‘moder- terríveis. A obra apontou ainda o parco
nas’, apoiantes da nova dinastia de Hano- conhecimento que havia da parte dos po-
ver e do Protestantismo. As Lojas escocesas deres tutelares da sociedade do séc. xviii
adotam o rito antigo e aceite, autorizado relativamente à organização maçónica,
pelo rei Jaime I da Escócia. A Europa Con- os quais tomaram medidas persecutórias
tinental tornou-se um campo de batalha e proibitivas fundadas mais em boatos e
das influências escocesa e inglesa. As Lo- opiniões difusas do que em informações
jas francesas acabaram por se separar e consistentes (DIAS e DIAS, 1980, 27).
por criar uma identidade própria, à volta Com efeito, a iliteracia do outro, cons-
de uma relação mais problemática com tituído como inimigo, esteve na base da
a religião reveladas, fazendo da tolerân- construção do mito negativo da maçona-
cia religiosa uma forma de relativização ria, como aconteceu com outros mitos as-
à beira da rejeição. Algumas glorificavam sentes na doutrina do complô, como é o
a ciência moderna, onde procuravam en- caso congénere dos mitos que recaem so-
troncar uma alternativa de espiritualidade bre os judeus, os Jesuítas e os comunistas.
racionalista às religiões reveladas; outras Perseguidos durante séculos pela sombra
dedicavam-se a experiências místicas fora da intolerância, os próprios maçons ti-
do cristianismo” (RAMOS, 2009, 347). nham esquecido as suas origens. Desde a
nestes, desde que manifestem aparente Nos (1882), Humanum Genus (1884), Inimi-
de honestidade natural, associam-se uns ca Vis (1892), Custodi di quella Fede (1892),
aos outros com um pacto estreito e im- Praeclara (1894) e Annum Ingressi (1902),
penetrável segundo leis e estatutos esta- de Leão XIII.
belecidos por eles, e ao mesmo tempo se Por seu lado, os dados históricos mos-
obrigam, sob juramento rigoroso presta- tram uma participação não irrelevante
do sobre a Sagrada Bíblia e sob ameaças do clero e dos fiéis católicos, tal como das
de penas severas, a dissimular com um Igrejas protestantes, na maçonaria, com
silêncio inviolável o que fazem em segre- uma expansão das redes de lojas maçóni-
do” (DENZINGUER e HUNERMANN, cas, desde a sua fundação. Houve, com
2006, 649). efeito, um significativo distanciamento
Através desta carta apostólica, o Papa entre as orientações do magistério ecle-
Clemente XII proibiu os católicos de siástico e o parecer de alguns católicos no
aderirem à maçonaria e instruiu os in- que a este assunto proibitivo diz respeito.
quisidores de depravação herética para Deste modo, verifica-se que as proibições
tomarem medidas contra os católicos que e os alertas fortes da Santa Sé se afirma-
se tornassem maçons ou que ajudassem a vam em linha contrária ao que era prática
maçonaria de qualquer forma, ordenan- efetiva dos católicos, que não compreen-
do a excomunhão como punição para diam a incompatibilidade entre as duas
aqueles que desafiavam a sua proibição. formas de pertença.
Seguiu-se um longo historial de conde- A Santa Sé, ou, como se lê muitas ve-
nações editadas contra a maçonaria. Em zes na documentação da época, a Corte
1751, um novo documento papal, Provi- de Roma, não foi a primeira nem a única
das Romanorum, publicado a 18 de maio a condenar e a proibir a maçonaria, no
pelo Papa Bento XIV, confirmou a con- séc. xviii. Alguns exemplos dão-nos a
denação da maçonaria determinada por ideia do receio que este tipo de associa-
Clemente XII, ampliando as razões para ção suscitava. Destacam-se algumas das
que fosse novamente proibida. Entre esses mais emblemáticas proibições em nome
motivos, destaquem-se os rituais iniciáti- da segurança do Estado, na linha do que
cos, o juramento maçónico e o carácter ensina o direito romano, fonte do direito
secreto da instituição, que era entendido jurídico ocidental, em relação às associa-
como um mecanismo para encobrir práti- ções não autorizadas pelo Estado. As lojas
cas criminosas. As reuniões contrariavam maçónicas foram proibidas, em 1735, pe-
as leis civis e eclesiásticas, uma vez que los Estados Gerais da Holanda; em 1736,
aconteciam sem a permissão das autori- pelo Conselho da República e Cantão de
dades constituídas. As sociedades secretas, Genebra; em 1737, pelo Governo de Luís
como a maçonaria, ganharam desde então XV de França e pelo príncipe eleitor de
feição altamente demonizada entre os ca- Manheim, no Palatinado; em 1738, pe-
tólicos. Os documentos papais críticos da los magistrados da cidade hanseática
maçonaria continuaram, assim, a surgir, de Hamburgo e pelo Rei Frederico I da
ao longo dos sécs. xix e xx, entre os quais Suécia; em 1743, pela Imperatriz Maria
se destacam Ecclesiam (1821), de Pio VII, Teresa de Áustria; em 1744, pelas autori-
Quo Graviora (1825), de Leão XII, Traditi dades de Avinhão, Paris e Genebra; em
(1829), de Pio VIII, Mirari Vos (1832), de 1745, pelo Conselho de Cantão de Berna,
Gregório XVI, Multiplices Inter (1865) e pelo Consistório da cidade de Hannover
Apostolicae Sedis (1869), de Pio IX, e Etsi e pelo chefe da polícia de Paris; em 1748,
Pio VII Ecclesiam a Jesu Christo, de 13 de católicos para que “erradicassem aquelas
setembro de 1821, reafirmava a excomu- sociedades secretas de homens facciosos
nhão para os que fossem maçons e dava que, completamente opostos a Deus e aos
como razão para a censura o segredo vin- príncipes, estão inteiramente dedicados
culado ao juramento feito nas sociedades a derrubar a Igreja, a destruir os reinos,
secretas e as suas conspirações contra a e à desordem no mundo inteiro” (DEN-
Igreja e o Estado. O documento ligava ZINGUER e HUNERMANN, 2006, 756).
ainda a maçonaria à carbonária, que na A carta apostólica Litteris Altero, de 25 de
época estava ativa na Itália e era conside- março de 1830, reiterou as condenações
rada um grupo revolucionário. Estávamos papais anteriores da maçonaria, especifi-
num contexto de acendimento e multi- camente a sua influência na educação.
plicação de focos de revolta e contestação A encíclica de Gregório XVI Mirari Vos,
ao sistema político do Antigo Regime. de 15 de agosto de 1832, incidiu na ques-
A Igreja e a monarquia viam cada vez mais tão política do liberalismo e na indiferen-
perigar as suas posições de sustentáculo ça religiosa, definida como “a fraude dos
da velha cristandade, fundada nos pode- ímpios que afirmam ser possível obter a
res absolutos do trono e do altar, numa salvação eterna da alma pela profissão
sociedade em processo de secularização, de qualquer tipo de religião, desde que
que reivindicava autonomia e liberdade. seja mantida a moralidade” (GREGÓRIO
Sobre as lojas secretas incidiam suspeitas XVI, 1832, 778). Esta encíclica não men-
agravadas por participações recentes em ciona a maçonaria, mas a indiferença re-
revoluções liberais que estavam a derru- ligiosa é uma das acusações que lhe são
bar o Antigo Regime em alguns países. dirigidas frequentemente em pronuncia-
A Igreja Católica, ainda muito compro- mentos papais. Algumas autoridades ca-
metida com o sistema político secular tólicas identificam esse pronunciamento
monárquico, tinha dificuldade em en- como antimaçónico. Sabe-se, no entan-
tender uma sociedade fora deste mode- to, que muitos religiosos não escondiam
lo, e também não estava preparada para a sua simpatia pelos ideais de igualdade
aceitar e acreditar na sobrevivência da e de liberdade da Revolução Francesa,
própria Igreja no quadro de um ordena- grande parte deles preparando as vias do
mento político garantido por outro regi- liberalismo.
me que não o de base legitimista. A encíclica de Pio IX Qui Pluribus, de
A constituição de Leão XII Quo Gravioria 9 de novembro de 1846, instigava os católi-
Mala, de 13 de março de 1825, reafirmou cos romanos a lutar contra a heresia, con-
a oposição da Igreja Católica Romana à denando aqueles que colocassem a razão
maçonaria como uma sociedade secreta, humana acima da fé e que acreditassem
com sigilo ligado a juramentos vinculati- no progresso humano. Estranhamente,
vos, que conspirava contra a Igreja e o Es- também atacava as “seitas” secretas e as so-
tado. Também a encíclica do breve pon- ciedades da Bíblia “astutas” que “forçam
tificado de Pio VIII Traditi Humilitati, de trechos da bíblia a pessoas de todos os ti-
24 de maio de 1829, foi considerada por pos, mesmo os ignorantes”. Esta encíclica
algumas autoridades católicas como um classificava como “perversa” a indiferença
documento antimaçónico. Advertindo religiosa. Ao reiterar as condenações dos
contra uma sociedade secreta cujo princi- seus antecessores, fazendo especial refe-
pal objetivo, a seu ver, seria levar os inicia- rência a Gregório XVI, Pio IX colocou
dos pelos caminhos do mal, apelava aos no mesmo patamar e julgou do mesmo
modo as restantes sociedades secretas, Perusa, o cardeal Pecci, futuro Leão XIII,
condenando o indiferentismo religioso e havia consagrado a este tema uma exten-
quaisquer ataques ao celibato sacerdotal, sa carta pastoral intitulada A Igreja e a Ci-
bem como todo aquele que, de um modo vilização. O Poder Temporal dos Papas. Com
geral, supunha dissidência ideológica-re- efeito, a unificação italiana, com Roma
ligiosa, mesmo sem pertencer a nenhum como capital, aparecia, à vista de uns e de
grupo específico. outros, como sinónimo mais ou menos
A encíclica Quanta Cura, emitida sob o vago do fim da Igreja, como 15 séculos
mesmo pontificado, a 8 de dezembro de antes muitos não tinham podido conce-
1864, não só condenava o carácter clan- ber uma ordem cristã que sobrevivesse ao
destino das sociedades secretas, como naufrágio da ordem romana e da unida-
também reiterava que estas serviam de de imperial do mundo. Os Papas Pio IX
arma por parte do Governo de Itália e Leão XIII estavam convencidos de que
contra o Estado pontifício. O Syllabus, do a Igreja dificilmente poderia ter poder
mesmo ano, atribuiu à maçonaria a defe- espiritual se não contasse também com
sa da corrente naturalista. É também rele- poder temporal.
vante o pronunciamento Multiplices Inter, A encíclica papal de Leão XIII Etsi Nos,
de 25 de setembro de 1865, feito pelo de 15 de fevereiro de 1882, referia as con-
Papa Pio IX, condenando a maçonaria e dições então vigentes na Itália, mencio-
outras sociedades secretas. Neste pronun- nando uma “seita perniciosa” em guerra
ciamento, o Papa acusava as associações com Jesus Cristo, seita essa que o Papa
maçónicas de conspirarem contra a Igre- responsabilizava pelos conflitos civis no
ja, Deus e a sociedade civil, atribuindo país. Algumas autoridades católicas iden-
revoluções e levantes às suas atividades e tificaram essa seita como uma referência
denunciando juramentos secretos, reu- à maçonaria ( Id., Ibid., 759ss.).
niões clandestinas e sanções maçónicas A encíclica Humanum Genus, de 20 de
(Id., Ibid., 759ss.). abril de 1884, do Papa Leão XIII, foi consi-
A constituição Apostolicae Sedis Mode- derada, de entre todos os pronunciamen-
ratoni, de 12 de outubro de 1869, sobre tos papais, um dos ataques mais cruéis à
questões de direito canónico, esclarece maçonaria. Afirmando que “uma árvore
o processo relativo às censuras, mudan- boa não pode produzir mau fruto, nem
do alguns cânones e estabelecendo uma árvore má dar bons fruto, a seita maçóni-
nova lista de censuras. Alguns especialis- ca produz frutos que são perniciosos e do
tas afirmam que este documento diz res- mais amargo sabor”, prossegue dizendo
peito à maçonaria. Três anos mais tarde, que o objetivo da maçonaria era a des-
na encíclica Etsi Multa, datada de 21 de truição da Igreja Católica Romana, sendo
novembro de 1873, o mesmo Papa Pio IX ambas adversárias. O Papa Leão XIII afir-
condenou a maçonaria, afirmando que mou que muitos maçons desconheciam
os grupos maçons integravam as “seitas” os objetivos finais da maçonaria e que
entre as quais “a sinagoga de Satanás é não deveriam ser considerados parceiros
construída” (DENZIGUER e HUNER- em atos criminosos por ela perpetrados.
MANN, 2006, 799ss.). De igual modo, condenou o naturalis-
A questão do poder temporal dos pa- mo da maçonaria,o qual entendia ser a
pas, cuja origem data da época carolín- crença de que “a natureza humana e a
gia, foi considerada por muitos católicos razão humana devem, em todas as coisas,
e eclesiásticos algo vital. O arcebispo de ser senhora e guia… eles não permitem
Trevas, a sul, chefiado pelo Príncipe das em cuja vastidão a hierarquia maniqueia
Trevas. Entretanto, porém, em estado de persistiu abertamente até ao séc. x d.C.
interpenetração e de luta, sucedem-se e, mimetizada (em grupos ascéticos taois-
várias emanações, ou aiona (saecula, em tas), até ao séc. xiii. Até ao séc. xx, por-
latim), do Pai da Luz, entre as quais Jesus tanto, o maniqueísmo só indiretamente
e o próprio Mani, vindos ao mundo mate- foi conhecido, por via de referências por
rial para despertar Adão, que fora criado parte de filósofos neoplatónicos – como
por malícia para aprisionar mais luz na Amónio Sacas, mestre de Orígenes, e Ale-
sua veste de carne, mas podia salvar-se, xandre de Licópolis, autor de um Contra
acolhendo o conhecimento por eles re- Manichaei Opiniones (transmitido, aliás,
velado. No ser humano, esta soteriologia à sombra da condição episcopal do seu
cósmica implica uma ascese do noético autor) – e por intermédio do antimani-
sobre o corpóreo (traduzida, para os elei- queísmo dos Padres da Igreja. Tal como
tos, em práticas como a abstinência de se verificou em fenómenos análogos,
carne e a rejeição da propriedade e do como o acesso indireto a heresiarcas e a
matrimónio), em ordem a uma progres- fontes anticristãs, como Celso ou Frontão
siva libertação do primeiro relativamente de Cirta, pesem embora a fragmentarie-
à prisão do segundo. Aos eleitos cabia a dade e a parcialidade inerentes ao proce-
iluminação dos auditores, em ordem ao dimento de exposição e de refutação, as
conhecimento da verdade (gnosis); a estes descobertas desses textos atestaram, mais
auditores, posto que incapazes de renun- uma vez, a fidedignidade dos géneros
ciar à perpetuação da maligna mistura polémicos antigos no que concerne ao
entre carne e espírito (pelo matrimónio), debate de ideias, o que nos deve refrear
caberia a prática da oração, do jejum e da a prontidão em reduzir o antimaniqueís-
esmola – entendida sobretudo como ofer- mo à atitude caricaturista da cultura em
ta de alimentos aos eleitos, de quem cons- negativo.
tituiriam a base de recrutamento –, bem Poderia considerar-se que a própria
como a perpetuação do conhecimento Paixão de Mani, nome litúrgico que de-
recebido. signava a queda em desgraça política do
Só no séc. xx foi possível aos eruditos, fundador e o seu suplício em 274, sob
e a muito poucos, o acesso direto a do- Bahram I (segundo sucessor do grande
cumentação maniqueia e, portanto, ao Sapor, seu mecenas), foi o início do anti-
conhecimento da doutrina e da organiza- maniqueísmo. Todavia, apesar de consti-
ção conhecidas por maniqueísmo. Datam tuir inequivocamente o ponto de partida
de 1904 os achados de Turfan, na rota da de uma persistente perseguição políti-
seda (China), e de 1930 os da biblioteca ca – que, com exceção do Turquestão,
de Medinet Madi (Egito). Os mais anti- em que foi religião de Estado no séc. ix,
gos textos maniqueus, entre os quais al- levará à completa extinção da organiza-
guns atribuíveis ao próprio Mani (como o ção maniqueia nos vários impérios do
Shabuhragan, o Livro de Sapor, imperador primeiro milénio –, não podemos deixar
dedicatário do resumo doutrinal, e a Epis- de considerar que não se trata de uma
tola Fundamenti, refutada por S.to Agosti- perseguição especificamente antimani-
nho em Contra Epistolam Manichaei Quam queia, mas sim de uma geral proscrição
Vocant Fundamenti), foram sendo desco- do estrangeiro no Extremo Oriente, e de
bertos em línguas como o persa, o parto, toda a alternativa gnóstico-dualista no
o copta, o turco e em línguas da China, mundo cristão, primeiro, e muçulmano,
tivação política – uma vez que o MRPP radical da espontaneidade e a sua depre-
assumia efetivamente uma apologia da ciação da organização partidária indicam
luta armada das massas populares con- nitidamente, para os comunistas Cunhal
tra o Movimento das Forças Armadas e e Jara, tanto a impotência daqueles gru-
a instauração de uma guerra civil –, mui- pos para se organizarem como partidos
tos interpretaram a ação do COPCON de massas, como a sua perspetiva subjeti-
como uma tentativa de aniquilamento vista e idealista pequeno‑burguesa.
do MRPP por parte do PCP, nomeada-
mente através da influência que este
partido teria sobre o Governo de Vasco
Gonçalves.
Da ala esquerda da política portugue-
sa, o partido que mais ativamente criti-
cou a ideologia maoista foi o PCP, o prin-
cipal inimigo assumido pelos partidos Bibliog.: impressa: ALEXANDER, Robert J.,
da frente maoista. Na produção escrita Maoism in the Developed World, New York, Prae-
ger Publishers, 2001; Cadernos Viva o Maoísmo,
nacional, destaca-se a obra de Álvaro
n.º 1, 1978; CARDINA, Miguel, Margem de Cer-
Cunhal Radicalismo Pequeno-Burguês de ta Maneira: o Maoísmo em Portugal 1964-1974,
Fachada Socialista, assim como A Farsa dos Lisboa, Tinta da China, 2011; CUNHAL, Álva-
Pseudo-Radicais em Portugal e Maoísmo em ro, O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada So-
Portugal da autoria de José Manuel Jara. cialista, Lisboa, Avante, 1974; FIELDS, A. Bel-
Estes escritos apresentam uma crítica den, Trotskyism and Maoism, New York, Praeger
sistemática dos princípios teóricos e do Publishers, 1988; Id., “A Revolução de abril 20
anos depois”, Vértice, n.º 59, mar.-abr. 1994,
que consideram serem os desvios doutri-
pp. 5-20; GLASER, Daryl, e WALKER, David
nários apresentados e defendidos pelos M. (coords.), Twentieth Century Marxism, Lon-
partidos da nova esquerda radical. As don/New York, Routledge, 2007; JARA, José
direções dos partidos maoistas, fazendo Manuel, A Farsa dos Pseudo-Radicais em Portugal.
a distinção dos apoiantes que se teriam Estudo Político e Teórico sobre os Grupos Maoístas e
deixado iludir pela “verborreia” maoista, Trotskistas perante a Revolução, Lisboa, Edições
são apresentados como grupos de radi- Sociais, 1974; Id., Maoísmo em Portugal. Ideo-
logia Anarquista Contra-Revolucionária e Paródia
cais pequeno-burgueses, desligados das
Burguesa do Marxismo, Lisboa, Edições Sociais,
massas operárias, constituindo uma pe- 1975; KNIGHT, Nick, Mao Zedong on Dialecti-
quena elite intelectual com a pretensão cal Materialism, New York, M. E. Sharp, Inc.,
de ser a vanguarda do proletariado por- 1990; Id., Marxist Philosophy in China, Dordre-
tuguês. Acusados de branquear e ignorar cht, Springer, 2005; MEISNER, Maurice J.,
o passado histórico das lutas operárias e Marxism, Maoism and Utopism, Winsconsin, The
o papel do PCP nestas, para Cunhal, os University of Winsconsin Press, 1982; digital:
partidos maoistas assumem nitidamente CUNHAL, Álvaro, “Situação política e as ta-
refas do partido”, Marxists Internet Archive, 20
a bandeira política do anticomunismo
out. 1974: https://www.marxists.org/portu-
e do antissindicalismo. Assim, Cunhal gues/cunhal/1974/10/20.htm (acedido a 19
encontra nestes partidos, não obstante set. 2016); Id., “Discurso no comício do PCP
o emprego das palavras de ordem e dos (Campo Pequeno – Lisboa)”, Marxists Internet
chavões marxistas-leninistas, um discur- Archive, 7 dez. 1975: https://www.marxists.
so político muito próximo do anarquis- org/portugues/cunhal/1975/12/07.htm (ace-
mo individualista e do oportunismo eco- dido a 19 set. 2016).
nómico. A apologia feita pela esquerda Sara Totta
Marinho de Azevedo ou, mais tarde, Fran- paz e de uma política justa e équa, pró-
cisco Manuel de Melo, os quais, pelas suas xima da linha do despotismo iluminado.
inquietudes intelectuais e ambiguidades, Foi demonstração célebre disto o Anti
já foram inscritos entre os representantes ‑Machiavel, escrito pelo Rei Frederico II
da chamada razão de Estado, ou tacitis- da Prússia e publicado por Voltaire, em
mo. De resto, os exemplares de O Príncipe 1740. Neste apogeu de um antimaquiave-
circulavam, “o próprio Maquiavel ocupa- lismo secularizado, podia-se relacionar o
va um lugar fundamental na curiosidade nome do secretário florentino com qual-
bibliográfica e no interesse” (TORGAL, quer inclinação ou comportamento ne-
1981, I, 205) das elites cultas e mais in- gativo. De forma exemplar, no Verdadeiro
ternacionalizadas, contribuindo inclu- Método de Estudar (1747) do estrangeirado
sive para a reflexão sobre as passagens Luís António Verney, um dos textos que
mais dramáticas da Restauração (1640). marcaram a viragem iluminista na cultu-
Isto não impedia que, mesmo aqueles ra portuguesa, contribuindo para a ultra-
possuindo uma tradução em português passagem da tradicional pedagogia esco-
da obra, caso de Manuel Fernandes Vila lástica dos Jesuítas, referia-se a ética de
Real, pudessem afastar-se abertamente do Maquiavel, lado a lado com as de Baruch
ensino de Maquiavel, como é possível co- de Espinosa e Thomas Hobbes (também
lher no tratado daquele sobre o cardeal autores proibidos em Portugal), como a
Richelieu, intitulado El Politico Cristianís- primeira entre as ímpias e que “facilmen-
simo (1642). Outros podiam ironizar so- te inspira o veneno dos seus princípios,
bre a distância entre o pensamento de apadrinhado pelo uso comum” (ALBU-
Maquiavel e a conduta prática dos minis- QUERQUE, 2007, 107).
tros portugueses, como fazia, em 1646, Portanto, não surpreenderá que, na
Vicente Nogueira, ao comentar a sua re- segunda metade do séc. xviii, fase com-
cente aquisição de uma edição italiana de plexa que se seguiu à ascensão ao poder
O Príncipe. Assim, era raro que, mesmo de de Sebastião José de Carvalho e Melo, de-
forma dissimulada, Maquiavel se tornasse pois marquês de Pombal, o choque com
objeto de um debate real, sendo a cena a Companhia de Jesus, que remontava,
pública ainda dominada por um duro entre outras razões, aos contrastes acer-
antimaquiavelismo, como o que exprimia ca da autonomia das missões dos padres
o fidalgo, jurista e diplomata António de no Pará e Maranhão e das interpretações
Sousa de Macedo no tratado Armonia Po- das causas do terramoto de 1755, tenha
litica dos Documentos Divinos com as Conve- chegado a dirigir as acusações de maquia-
niencias do Estado (1651). velismo contra os Jesuítas. Em fevereiro
Se a circulação de Maquiavel conti- de 1758, e.g., o ministro D. Luís da Cunha
nuou em toda Europa durante a segun- Manuel classificava as desordens provo-
da metade do séc. xvii e ao longo do cadas na América pelos Jesuítas como
séc. xviii, em Portugal, com a chegada “maquiavélicos enganos” e, lembrando a
de novas sensibilidades ligadas às Luzes, explicação, dada por Gabriele Malagrida
ao tradicional antimaquiavelismo de ma- e outros padres, do terramoto como casti-
triz católica somou-se uma nova corren- go divino, comentava que “não inventou
te, que partilhava a crítica racionalista a fertilíssima malícia de Nicolau Machia-
às presumidas astúcias e opacidades do velo diabrura política, que eles não pu-
pensamento do secretário florentino, em sessem por obra” (Id., Ibid., 92). Idênti-
nome da defesa do direito natural, da co juízo se encontrava na carta que, em
janeiro de 1759, uma semana depois das seus textos, de um lado, e, de outro lado,
execuções capitais de que foram vítimas as estratificações dos multíplices estereó-
os culpados do atentado dos meses ante- tipos negativos que, durante um caminho
riores contra D. José I, o Rei enviou aos plurissecular, o antimaquiavelismo conse-
prelados do reino, acusando os Jesuítas guiu associar ao adjetivo “maquiavélico”,
de serem os autores morais e coautores o qual ainda hoje, na língua portugue-
do delito, por terem semeado “o mesmo sa, tal como em muitas outras, tem um
pestilencial veneno dos maquiavúlicos significado pejorativo, que remete para
enganos e das ante-evangelicas doutri- a esfera da astúcia, da má-fé, do oportu-
nas” (Id., Ibid., 95). nismo contrário aos interesses do bem
O paradoxal encontro entre antijesui- comum e da sociedade.
tismo e antimaquiavelismo, revelador da
extraordinária plasticidade do arsenal Bibliog.: manuscrita: Biblioteca Nacional de
retórico deste último, acompanhou a Portugal, reservados, cód. 3060, Ao mui Alto
expulsão dos padres da Companhia dos e muito Poderosõ Rey de Portugal D. João 3°. deste
Nome Panegirico de João de Barros; impressa: AL-
territórios da coroa, que se verificou dali
BUQUERQUE, Martim de, Maquiavel e Portu-
a pouco tempo. Nos anos seguintes, saí- gal. Estudos de História das Ideias Políticas, Lisboa,
ram obras como Anti-Machiavelismo ou Alêtheia, 2007; ANGLO, Sydney, Machiavelli,
Nova Sciencia e Arte (1760) de António Fé- the First Century: Studies in Enthusiasm, Hostility
lix Mendes (pseudónimo de João Pedro and Irrelevance, Oxford, Oxford University Press,
do Vale), e o fidalgo Francisco Bernardo 2005; BAGNO, Sandra, e MONTEIRO, Rodri-
Holbeche, autorizado a ler livros defesos, go Bentes (orgs.), Maquiavel no Brasil. Dos Des-
cobrimentos ao Século XXI, Rio de Janeiro, Fun-
iniciou uma tradução de O Príncipe, limi-
dação Getúlio Vargas, 2015; MAQUIAVEL,
tada aos primeiros três capítulos, com Nicolau, O Príncipe; Id., Discursos sobre a Primei-
anotações, mas expurgada dos passos ra Década de Tito Lívio; MARCOCCI, Giuseppe,
mais comprometidos do ponto de vista “Machiavelli, la religione dei romani e l’impero
moral e religioso. Ainda mais, os novos portoghese”, Storica, n.os 41-42, 2008, pp. 35
estatutos da Univ. de Coimbra (1772) ‑68; MONTEIRO, Rodrigo Bentes, “Traduções
prescreveram aos professores evitarem de Maquiavel: da Índia portuguesa ao Brasil
‑apresentação”, Tempo, n.° 20, 2014, pp. 1-5;
detestáveis doutrinas como as do sistema
PROCACCI, Giuliano, Machiavelli nella Cultura
do maquiavelismo, enquanto a Real Mesa
Europea dell’Età Moderna, Roma/Bari, Laterza,
Censória assumia a proibição dos escritos 1995; PUIGDOMÈNECH, Helena, Maquiave-
de Maquiavel nos índices eclesiásticos, lo en España. Presencia de Sus Obras en los Siglos
condenando edições em circulação das XVI y XVII, Madrid, Fundación Universitaria
suas obras em língua francesa. Española, 1988; TORGAL, Luís Reis, Ideologia
Finalmente, nas décadas iniciais do Política e Teoria do Estado na Restauração, 2 vols.,
séc. xix abriu-se uma fase de reabilitação Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, 1981-82.
de Maquiavel no discurso público por
parte dos liberais, que denunciaram a Giuseppe Marcocci
lenda negra elaborada em torno do autor
de O Príncipe, no qual não faltava quem
visse um teórico do republicanismo. To-
davia, como mostravam claramente as
posições de vários tradicionalistas, já não
era possível recompor a distância entre a
figura histórica de Maquiavel e a letra dos
Os Freikorps, milícias paramilitares, auxi- período ficou conhecido como First Red
liados pelas tropas alemãs, reprimiram o Scare [Primeiro Terror Vermelho]. Em
movimento operário alemão, assassinan- 1919, um suposto plano bombista, desco-
do as suas principais figuras, como Rosa berto pelo Governo e atribuído a radicais
Luxemburgo, Liebknecht, Landauer, Lé- anarquistas, desencadeou uma violenta
vine, Eisner. O chamado “terror branco”, perseguição contra membros de grupos
de 1919, consistiu na execução de mi- sociais-democratas, anarquistas e comu-
lhares de Alemães pelo Exército alemão nistas, conhecida como Palmer Raids
e pelos Freikorps. A adoção de leis anti- [Raides de Palmer]. Entre 1947 e 1957,
marxistas e antissocialistas, bem como a o Governo norte-americano promoveu
repressão violenta dos partidos de inspi- uma nova vaga de perseguições e violên-
ração marxista e socialista, verificou-se cia antimarxista, conhecida como Second
em vários países europeus, onde cresceu Red Scare [Segundo Terror Vermelho]
simultaneamente a influência da extre- ou macarthismo. A divisão geopolítica
ma-direita (Áustria, Hungria, Polónia, polarizada pelas duas superpotências,
Itália, Espanha e Portugal). EUA e URSS, resultante do desfecho da
Em Portugal, o Partido Comunista Por- Segunda Guerra Mundial, e a corrida ao
tuguês (PCP) foi ilegalizado em 1926, armamento por ambas as partes caracte-
com o golpe de 28 de maio, um processo rizaram um período de grande confronto
que o obrigou a realizar as suas ações na ideológico promovido pelos dois lados; a
clandestinidade e levou ao seu desmem- Guerra Fria promoveu os mais fervoro-
bramento. Com a subida de Salazar ao sos ataques ideológicos aos princípios do
poder, a repressão sobre os comunistas marxismo e ao modelo socialista pratica-
portugueses aumentou exponencialmen- do na URSS.
te, levando à quase extinção da organi-
zação marxista. Durante o Estado Novo,
a prisão e a tortura física e psicológica
eram o método preferencial da Polícia Bibliog.: BAKUNIN, Mikhail, Marxism, Free-
Internacional e de Defesa do Estado dom and the State, London, Freedom Press,
(e, posteriormente, da Direção-Geral de 1950; BÖHM-BAWERK, Eugen von, Karl Marx
and the Close of His System, New York, Augus-
Segurança). Em outubro de 1936, foi
tus M. Kelly, 1949; Código de Direito Canónico,
inaugurado o Tarrafal, um campo de con- 1983; EVANS, Richard J., Rereading German
centração situado na ilha de Santiago, em History. From Unification to Reunification. 1800
Cabo Verde, destinado aos presos políti- ‑1996, London/New York, Routledge, 1997;
cos do regime salazarista; entre os primei- LEÃO XIII, Rerum Novarum, 1891; MARX, Karl,
ros prisioneiros aí recebidos encontrava e ENGELS, Friedrich, Collected Works, vol. 3,
‑se Bento Gonçalves, então líder do PCP, Moscow, Progress Publishers, 1975; PIO IX,
que lá haveria de falecer, como muitos Qui Pluribus, 1846; PIO XI, Quadragesimo Anno,
1931; Id., Divinis Redemptoris, 1937; PROU-
outros marxistas, vítimas das condições
DHON, Pierre-Joseph, O Que É a Propriedade?,
precárias e da violência física impostas Lisboa, Estampa, 1997; SANTA SÉ, Decretum
aos prisioneiros. contra Communismum, 1949; SCHMIDT, Regin,
Nos EUA, a Revolução Russa causou Red Scare. FBI and the Origins of Anticommunism
pânico na sociedade, alimentado por um in the United States, 1919-1943, Copenhagen,
clima de alarmismo na imprensa, que Museum Tusculanum Press/University of Co-
imputava planos de subversão comunis- penhagen, 2000.
ta a manifestações sindicais legais; este Sara Totta
que Proença melhor fundamenta a su- tou uma reação à eliminação da metafí-
perioridade do ideal democrático e dos sica. Nesta vertente de pensamento, mas
valores da liberdade e igualdade em que numa linha que vai para além da raiz gre-
aquele assenta. O Integralismo Lusitano ga da filosofia para mergulhar na mun-
era um movimento anti-iluminista, anti- dividência cristã da Europa, os trabalhos
democrático, antiliberal, antirracionalis- do sacerdote jesuíta Júlio Moreira Fraga-
ta e antimaterialista (&Anti-iluminismo, ta consideram o ente na sua existência e
&Antidemocratismo, &Antiliberalismo, transcendência, e não apenas reduzido
&Antirracionalismo), com um primado ao fenómeno puro da consciência. Na
político. finitude humana, o aparecimento do fe-
Nos tempos de António Sérgio (1883 nómeno da consciência exige um sujeito
‑1969), o positivismo revelava-se já pou- cognoscente na sua existência natural.
co sedutor, e novas vias se abriam com Na obra de Júlio Fragata (1920-1985) e
o saudosismo, o criacionismo, o integra- de outros filósofos, como Gustavo Fraga
lismo ou o humanismo de feição repu- (1922-2003) e Alexandre Morujão (1922
blicana. O racionalismo de Sérgio tinha ‑2009), a fenomenologia foi levada ao
uma limpidez cartesiana, pois ia ao en- ponto culminante de um debate sobre o
contro de Platão na visão de que só será presente, sobre os fundamentos e desti-
filósofo quem for geómetra. Em defesa no da humanidade europeia e da cultura
do seu intelectualismo, Sérgio rejeitou ocidental.
o positivismo e o anti-intelectualismo,
mas também o dilema do seu tempo
entre o catolicismo mais ortodoxo e o Bibliog.: impressa: Alves, Pedro M. S., “A fe-
marxismo, encarados ambos como ex- nomenologia em Portugal”, in CALAFATE,
pressão do dogmatismo. Nele, o percur- Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico
so histórico da ciência era a progressiva Português, vol. v, t. 1, Lisboa, Círculo de Lei-
tores, 2003, pp. 345-390; Calafate, Pedro,
passagem do imediato da perceção para
“A aliança entre a física experimental e a teo-
o fundo do pensamento. O seu modelo logia natural”, in CALAFATE, Pedro (dir.), His-
de racionalidade assentava nos proces- tória do Pensamento Filosófico Português, vol. iii,
sos de relacionação matemática, o que Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, pp. 317
lhe determinou o afastamento tanto do ‑358; Id., “A aliança entre a história natural e a
intelectualismo como do primado da in- teologia natural”, in CALAFATE, Pedro (dir.),
tuição sensível. O seu pensamento confi- História do Pensamento Filosófico Português, vol. iii,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2002a, pp. 359
gurava-se como um pensamento de cria-
‑368; Id., “Ciência e religião”, in CALAFATE,
ção, de um intelecto ativo, e não como Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico
um pensamento de síntese. O que sem- Português, vol. iii, Lisboa, Círculo de Leitores,
pre recusou foi o apelo a uma singulari- 2002b, pp. 305-316; Id., “O conceito de filo-
dade portuguesa que impedia o diálogo sofia: o triunfo da física e a crítica ao ‘espí-
com o racionalismo luminoso. rito de sistema’”, in CALAFATE, Pedro (dir.),
A fenomenologia husserliana é a cor- História do Pensamento Filosófico Português, vol. iii,
rente filosófica que se propõe, através Lisboa, Círculo de Leitores, 2002c, pp. 139
‑157; Id., “A inserção do Homem na natu-
da descrição das vivências da consciência
reza”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História do
pura, fora de qualquer construção con- Pensamento Filosófico Português, vol. iii, Lisboa,
ceptual, descobrir as estruturas transcen- Círculo de Leitores, 2002d, pp. 401-422; Id.,
dentes da consciência, a sua génese e a “O idealismo racionalista e crítico de António
sua essência. A fenomenologia represen- Sérgio”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História
O legado de Herculano, que tantas e tão lítico. De alguma forma, a contenda en-
profícuas reflexões deixara em prol de tre Martins e Vilhena dizia respeito não
uma revalorização da Idade Média por- só ao valor que deveria ser atribuído ao
tuguesa, bem como o balanço extrema- papel da Igreja Católica nos rumos da ci-
mente negativo que Quental demonstrou vilização, mas também à forma como se
fazer, noutros textos, do Antigo Regime dariam as transformações ao longo desse
português, terão contribuído certamente processo: em transições lentas, que obser-
para este seu posicionamento. Inspiran- vassem uma linha tradicional de conhe-
do-se no que conhecia de Hegel e das cimentos, onde a Igreja desempenharia,
teorias evolucionistas de Darwin e Hae- certamente, um lugar preponderante; ou
ckel, Quental afirma que a Idade Média em revoluções ou quebras abruptas relati-
devia, pois, ser vista como um momento vamente a paradigmas que atrasavam esta
de “crise orgânica” (Id., Ibid., 22) ou de longa caminhada.
estacionamento, após um período de rá- Ao longo do séc. xx, a crítica às narra-
pido desenvolvimento e de solidariedade tivas antimedievalistas perdeu boa parte
das forças do espírito, como teria sido a do seu peso ideológico. Diversos histo-
Antiguidade. Assim, elementos medievais riadores – dos quais se destacam, entre
negativos, e.g., o misticismo, teriam sido outros excelentes exemplos, Georges
males necessários, para que a civilização Duby, Jacques Le Goff e, em Portugal,
se recompusesse e recuperasse forças José Mattoso – contrariaram estas nar-
para levar a cabo todas as transformações rativas e colocaram em evidência o seu
posteriores. carácter generalizador e impreciso, atra-
Por seu turno, em confronto direto vés de contributos que promovem uma
com a posição de Oliveira Martins, Jú- melhor compreensão da vida na Idade
lio de Vilhena apresenta a Idade Média Média e assinalam inúmeros elementos
como uma “época de elaboração” (Id., de continuidade entre a época média e
Ibid., 42) que prepara o mundo moder- as épocas que a delimitam. A sua crítica
no, sublinhando elementos de continui- ao antimedievalismo é assim, de certo
dade entre a Antiguidade, o tempo me- modo, indireta e tem um alcance sobre-
dieval e a Modernidade. Afirmando-se tudo metodológico.
simultaneamente católico e progressista, Todavia, outros autores do séc. xx, ain-
Vilhena sustenta a sua tese em avanços da que muito tenham beneficiado com
alcançados pela filosofia católica do pe- estes avanços da historiografia, não se fur-
ríodo medieval, dos quais seriam exem- taram a explorar as extensões ideológicas
plo as conceções da origem popular do do debate acerca da Idade Média. Destes
poder do soberano e o direito dos povos referiremos dois casos particularmente
à resistência contra a tirania, tal como se apelativos: Régine Pernoud e Umberto
encontrariam formulados em Agostinho Eco.
e em Tomás de Aquino. O ponto de partida das reflexões de
Travada entre intelectuais da esquer- Régine Pernoud parece ser, precisamen-
da portuguesa da segunda metade do te, o da inversão e contestação histórica
séc. xix, esta polémica permite-nos com- e ideológica das narrativas antimedieva-
preender que, longe de ser perspetivada listas. Sugerindo um movimento de es-
como um tópico estritamente historio- clarecimento e de aprofundamento do
gráfico ou filosófico, a questão da Idade saber em torno das práticas e dos modos
Média tinha um alcance sobretudo po- de vida medievais, esta abordagem não
deixa, porém, de ficar refém das narrati- religiosa. Mais do que indícios ou frontei-
vas que combate, ao devolver uma espé- ras de transição entre tempo medieval e
cie de imagem invertida do antimedieva- moderno, estas significariam, antes, que
lismo. Assim se compreende que também na Baixa Idade Média haveria muito de
ela generalize e mitifique casos históricos moderno, assim como na Modernidade
que melhor possam contradizer tais nar- muito houve de medieval.
rativas. Ao não hesitar em adicionar às Esta ideia, de acento dialético, estava já
suas reflexões historiográficas uma clara presente no seu romance O Nome da Rosa,
apologia conservadora – em certa medi- em que acompanhamos a tensão entre
da antimoderna e anti-iluminista – o po- Jorge de Burgos, o medieval típico, e Gui-
sicionamento de Régine Pernoud tem, lherme de Baskerville, o medieval moder-
porém, a virtude de colocar em evidência no. Entre os dois, hesitante, encontramos
que a discussão acerca da Idade Média o jovem Adso de Melk. Sugerindo, artifi-
continuava, em pleno séc. xx, a ter con- ciosamente, na entrada do livro, uma re-
tornos ideológicos claros, à semelhança lação entre a trama do romance e as con-
do que acontecera no século anterior. tendas políticas da Guerra Fria, Umberto
Por seu turno, Umberto Eco demons- Eco como que nos segreda que talvez a
tra, em diversos passos da sua obra, uma contemporaneidade possa também ser
clara consciência das extensões ideológi- vista, de alguma maneira, como uma ida-
cas desta oposição entre modernidade e de média. Afinal, à semelhança do tempo
medievalidade, mas parece recusar-se a de Adso, nela há espaço para a certeza
integrar um dos polos da contenda, op- e para a curiosidade, para o ortodoxo e
tando por desconstruir esta dualidade. para o heterodoxo, para o horror e para
Talvez por isso, mas também sublinhando a esperança de que as trevas e as dificul-
o carácter insatisfatório do termo “Idade dades venham a ser superadas.
Média” em si, Umberto Eco apresenta, na
sua introdução a Idade Média, volume de Bibliog.: BROCKMANN, Stephen, Umberto
estudos por ele organizado, uma bastante Eco and the Meaning of the Middle Ages, Madison,
esclarecedora definição em negativo, por University of Wisconsin-Madison, 1988; ECO,
Umberto, Idade Média, vol. i, Lisboa, Dom Qui-
pontos, em que explica o que esta idade
xote, 2011; GRANT, Edward, God and Reason
não é ou não foi. Aqui, para além de reba- in the Middle Ages, Cambridge, Cambridge Uni-
ter diversas narrativas antimedievais e de versity Press, 2001; MARTINS, Oliveira et al.,
lhes contrapor diversos casos, nem sempre A Idade Média na História da Civilização, Lisboa,
excecionais, assinala ainda o eurocentris- Esfera do Caos, 2006; MOMMSEN, Theodore,
mo que costuma acompanhar as grandes “Petrarch’s conception of the ‘dark ages’, Spe-
periodizações históricas e a considerável culum, vol. 17, n.º 2, abr. 1942, pp. 226‑242;
PERNOUD, Régine, Luz sobre a Idade Média,
abrangência temporal do termo “Idade
Mem Martins, Europa-América, 1997.
Média”, que torna impraticável qualquer
abordagem genérica. Mas, para além dis- Ricardo Ventura
so, realiza uma operação mais subtil, que
é a de assinalar a presença, neste período,
sobretudo a partir do séc. xi, de corren-
tes, ideias e práticas que normalmente se
identificam como sendo modernas, como
são os casos do experimentalismo cien-
tífico, do secularismo e da contestação
com o espírito da nossa democracia, mas lítica volátil que levou alguns sectores da
nunca anarquizar despoticamente” (Id., sociedade civil a voltar a questionar o pa-
Ibid., 108). pel das forças militares na vida política.
Não pode deixar de se notar que o mili- Assim, interroga-se Raúl Rêgo, em 1981,
tarismo do novo regime, que Bernardino “Vamos mergulhar no militarismo?”, en-
Machado aponta, recordando os sucessi- quanto “disfarce de ditadura” (RÊGO,
vos episódios de aviltamento da institui- 1981, 11), perante as dificuldades que a
ção, foi marcado pelo controlo político iniciativa revolucionária e a tutela mili-
sobre as forças militares e não o inverso, tar do regime colocavam a uma socieda-
como seria provável esperar de um re- de pouco instruída e sem preparação po-
gime instaurado por um golpe militar. lítica, de que o Programa do Movimento
É também esse o sentido da identificação das Forças Armadas era um inevitável
do “exército republicano” (numa apro- exemplo.
priação também ela tipicamente republica- A opção constitucional da revisão de
na…) com a democracia, atraiçoado pelo 1982, que eliminou a tutela revolucioná-
militarismo e vítima irredutivelmente ria militar consubstanciada no Conselho
separada dos ditadores pelas injúrias, in- da Revolução foi um claro sinal de nor-
dignidades e traições cometidas aos que, malização da vida política em Portugal e
como Mendes Cabeçadas e Gomes de marca, de certa forma, um corte com a
Costa, haviam liderado o golpe para se- tradição de interferência militar na vida
rem rapidamente afastados do poder real. política do país que caracterizou o séc.
A denúncia do militarismo do regime xix e as primeiras décadas do séc. xx
de 1926, reforçado a partir de 1928, e em Portugal. A desmilitarização, que
depois do Estado Novo, não é tanto a de não se esgotou no momento pós-revolu-
um regime sob tutela militar, mas da ins- cionário, correspondeu à consolidação
trumentalização política das forças milita- democrática de uma tendência política
res. Veja-se, paradigmaticamente, o papel introduzida pelo Estado Novo, e foi uma
apagado do presidente da República, in- condição necessária ao processo de inte-
variavelmente oriundo da carreira militar. gração do país na comunidade europeia.
A permanência dos altos comandantes Mais recentemente, esta tendência ma-
militares como chefes de Estado cumpria nifestou-se em Portugal no movimento
o propósito de tranquilizar a vida social e de contestação ao serviço militar obriga-
política, depois da instabilidade violenta tório, que era liderado pelas juventudes
da Primeira República caracterizada tam- partidárias, embora tivesse recolhido um
bém pelo envolvimento das forças arma- relativo consenso na sociedade civil (o re-
das. A retirada de protagonismo político gime de conscrição foi eliminado pelo
aos militares no séc. xx é visível na refor- dec.-lei n.º 289/2000, de 14 de novem-
ma da administração ultramarina, no- bro). Igualmente demonstrativa daquela
meadamente na progressiva substituição tendência é a mais complexa questão da
das administrações militares pelas civis. desmilitarização das forças de segurança.
O espoletar da guerra em África trou- A complexidade prende-se, desde logo,
xe às forças armadas um novo momento com a opção, vigente desde a déc. de 20
de proeminência na vida política e na so- do séc. xx, por um corpo de forças de se-
ciedade portuguesas e, com a queda do gurança de natureza dual, militar (Guar-
regime, em 1974, por força de um novo da Nacional Republicana) e civil (Polícia
golpe militar, seguiu-se uma situação po- de Segurança Pública), a que se juntou
também uma força militarizada (Polícia Abecedario Militar do Que o Soldado Deve Fazer Se
Militar). A tendência internacional para a Chegar a Ser Capitaõ, Lisboa, Pedro Craesbeeck
desmilitarização das forças de segurança, Impressor del Rey, 1631; MACHADO, Bernar-
dino, O Militarismo, s.l., Editorial Lar, 1927;
a pressão interna de sectores alinhados à
MARQUES, Fernando Pereira, Exército, Mu-
esquerda ideológica, e o reconhecimento dança e Modernização na Primeira Metade do Sé-
de que as ameaças internas de natureza culo XIX, Lisboa, Cosmos, 1999; MATOS, Gas-
similar tendem a dissipar-se com a nor- tão de Melo, “Sobre o ‘Regimento de Guerra’
malização democrática têm vindo a ser quinhentista”, Anais da Academia Portuguesa de
apontados como argumentos para a pro- História, vol. 4, 1953, pp. 141-156; MELO,
gressiva unificação das forças de seguran- Francisco Manuel de, Política Militar, Madrid,
ça como forças puramente civis. en la Imprenta de Francisco Martinez, 1638;
Id., Historia de los Movimientos y Separación de
Cataluña, Lisboa, Pablo Craesbeeck Impressor
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Isidoro de Almeida das Instruções Militares, Évora, Faria de, “Arte militar quinhentista”, Boletim
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in BARATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, portuguesa”, in BARATA, Manuel Themudo,
Nuno Severiano, Nova História Militar de Portu- e TEIXEIRA, Nuno Severiano, Nova História
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pp. 36-67; COSTA, Fernando Dores, “A guer- Leitores, 2004, pp. 248-267; OLIVEIRA, Fer-
ra no tempo de Lippe e de Pombal”, in BA- nando, A Arte da Guerra do Mar, Lisboa, Edi-
RATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno ções 70, 2008; PARKER, Geoffrey, The Military
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vol. 2, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, pp. West, 1500-1800, Cambridge, Cambridge Uni-
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Leitores, 2004, pp. 9-33; HOWARD, Michael,
A Guerra na História da Europa, Lisboa, Euro-
pa-América, 1977; LEMOS, João Brito de,
A ntimiscigenacionismo é a expressão
ideológica que se coloca em oposição
à miscigenação (do lat. “miscere”, misturar,
antimestiçagem (como a viagem e a desco-
berta do múltiplo sobre o pano de fundo
do sedentarismo e da avaliação a partir do
e “genus”, raça), i.e., à convivência, união e mesmo), ou seja, de um pensamento que
geração entre indivíduos de características privilegia a ordem e a origem” (LAPLAN-
fenotípicas diversas, e de que concomitan- TINE e NOUSS, 2002, 9). Neste sentido,
temente se relevam estruturantes questões também já Alexandre Magno, pela sua pa-
políticas, religiosas, sociais e culturais. radigmática união com Roxane, terá con-
Como alternativa a este termo, encontram citado as atenções coevas sobre as relações
‑se com frequência as designações de anti- interétnicas.
miscigenação e antimestiçagem. Fruto do encontro de culturas, em espe-
Protagonista da cena em que se perfi- cial a partir do quadro da primeira globa-
lam, em pano de fundo, os contornos do lização que caracteriza a época dos Desco-
antimiscigenacionismo, o movimento mis- brimentos (não escamoteando, porém, os
cigenacionista tem sido caracterizado es- permanentes encontros e o comércio de
pecialmente em três fases: a primeira diz povos e costumes durante a Antiguidade
respeito à época de expansão marítima, e em época de cruzadas), a miscigenação
através dos encontros dos povos europeus é uma prática frequente e continuada,
com o resto do mundo e da promoção de habitualmente caracterizada pelo cruza-
uniões entre colonos e colonizados por mento interétnico (também denominado
meio de casamentos mistos, muitas vezes inter-racial), de que resulta a geração de
com fins estratégico-políticos; a segunda indivíduos mestiços. Estes cruzamentos,
fase identifica-se com o amplo movimento no imediato proporcionados pelas circuns-
de refutação categórica da miscigenação, tâncias de aproximação dos povos e das
assente em pressupostos científicos, espe- gentes (que dão igualmente lugar a parti-
cialmente a partir dos finais do séc. xix, lhas e misturas sociais e culturais), foram
com a ascensão das teorias racistas, e ao também muitas vezes promovidos por via
longo das primeiras décadas do séc. xx; institucional, por meio de políticas de in-
a terceira fase diz respeito ao movimento centivo aos casamentos mistos entre colo-
ostensivo de reprovação das teorias racistas nizadores e colonizados.
(&Antirracismo), em particular protago- Designados por caboclos, mestiços, híbri-
nizado pela UNESCO que, por extensão dos, mulatos, mamelucos, cafuzos, bóeres
e em complemento, contestou e rejeitou ‑hotentotes, cape coloured, anglo-polinésios,
todas as expressões antimiscigenacionis- entre outros, os descendentes das uniões
tas. Identifica-se, portanto, uma incidência ditas mistas foram, ao longo da história,
antimiscigenacionista mais pronunciada alvo de depreciações, que desembocaram
no quadro da segunda fase apontada. Não por diversas vezes em atitudes e políticas
obstante, para uma arqueologia deste mo- discriminatórias, e mesmo em políticas
vimento, os seus indícios merecem identi- proibitivas de miscigenação, expressão juri-
mundo, por maravilha, que também as de um inquérito que, entre outras ques-
pretas são mulheres, filhas de Eva. [...] tões, coloca a da “conveniência ou inconve-
Contra os dois cúmplices deste consórcio niência, no ponto de vista dos altos interes-
proibido, nas feições dos filhos e netos, em ses nacionais e do progresso, de favorecer
suas almas confusas, assim é sempre casti- a mestiçagem”. Destaque-se o seguinte ex-
gada a rebelião contra a ordem estabele- certo: “‘O maior perigo que se apresenta
cida no mundo” (RAPOSO, 1926, 55-56). à nacionalidade – escrevia um dos nossos
No campo científico, acompanhando amáveis correspondentes – é (valha-nos
os avanços internacionais da antropologia Deus) a amulatação’. Outros dão a mesti-
física, nomeadamente desde a déc. de 80 çagem como ‘o melhor modo de coloniza-
do séc. xix, em Portugal desenvolver-se-á ção’. Dos adversários dos cruzamentos ra-
também trabalho na denominada área da ciais, alguns reclamam ‘humanidade’ para
antropobiologia, em especial durante as os mestiços existentes, outros reconhecem
primeiras décadas do séc. xx, com vocação que os mestiços ‘são aproveitáveis onde não
particular para os estudos complementares é possível a colonização europeia’” (Traba-
à questão colonial. No âmbito do I Con- lhos do 1.º Congresso..., 1934, I, 336-337).
gresso Nacional de Antropologia Colonial, Estado de direito fundado constitucio-
realizado no Porto, em 1934, comunica- nalmente no respeito pela dignidade da
ções como a de Eusébio Tamagnini, em pessoa humana, à luz dos princípios do
sessão plenária, intitulada “Os problemas direito internacional e da Declaração Uni-
da mestiçagem”, davam a conhecer os re- versal dos Direitos Humanos, Portugal de-
sultados da investigação de diversos antro- fine-se atualmente pelos valores da integra-
pobiólogos portugueses. Uma das questões ção, da multiculturalidade e da tolerância.
abordadas foi, consequentemente, a das O combate a toda e qualquer discrimina-
uniões mistas e dos seus resultados, bem ção, com base na nacionalidade, na cor ou
como a da sua perceção contemporânea na origem étnica, tem estado patente na
e matizes antimiscigenacionistas. Note-se legislação e nas políticas nacionais, de que
que, à oposição generalizada e categórica faz prova a instituição da Comissão para a
ao cruzamento étnico, se contrapõem de- Igualdade e Contra a Discriminação Racial
terminados requisitos para a miscigenação: (lei n.º 134/99, de 28 de agosto).
defende-se a miscigenação condicionada Não obstante, apesar de o sentimento
em alternativa a um antimiscigenacionis- antimiscigenacionista ser liminarmente
mo arrogado, apontando que as teorias refutado pela voz oficial das sociedades
que assumem os mestiços como seres infe- democráticas de tradição ocidental, fac-
riores, porque degenerados, estão assentes to é que nas mesmas “há movimentos e
em estudos particulares, não possibilitando atitudes culturais que subsistem, fazem a
a generalização e confirmação destes indi- construção de uma história de que não se
cativos, logo, não podendo ser confiáveis, fala, permanecem como atavismos que só
posição assumida, e.g., por Alberto C. Ger- a consciência democrática e culturalmen-
mano da Silva Correia, em comunicação te fundada poderá vencer. E que ignoram
intitulada “Os eurafricanos de Angola”. que a humanidade se construiu e conti-
Ainda no mesmo Congresso, o antropo- nuará a construir precisamente na base
biólogo Mendes Corrêa, em “Os mestiços de intersecções sucessivas” (MARUJO e
nas colónias”, disserta sobre as vantagens e FRANCO, 2009, 25)
desvantagens biopsíquicas de certos cruza- Os discursos atuais com vista ao acolhi-
mentos étnicos. Revela ainda os resultados mento pleno de toda a humanidade no
‑1310) deixou um texto místico, Le Miroir quisidor Fernando de Valdés. Tanto Iná-
des Âmes Simples et Anéanties, condenado cio de Loiola (1491-1556), como os seus
em 1306 (chegando a ser queimado nes- companheiros, ainda estudantes de Teo-
te ano) e, novamente, em 1309. Porrette logia, experimentaram durante 42 dias
é condenada por heresia pela Inquisição a prisão, resultante da perseguição em-
em maio de 1309, acabando queimada na preendida pela Inquisição de Toledo. Em
fogueira no ano seguinte. Nos territórios causa estava o ensinamento de conteúdos
franceses, são ainda elucidativos outros da fé por pessoas sem formação completa
casos. Madame Guyon (1648‑1717), figu- em Teologia. Teresa de Ávila é também
ra indissociável da questão do quietismo um bom exemplo desta intervenção anti-
em França, não compreendida nem acei- mística. O alvo é tanto a pessoa de Teresa
te no que se refere à sua personalidade e como os seus escritos, muito em especial
aos seus escritos, facto para o qual tam- o Livro da Vida. Esta mulher abulense não
bém terá concorrido a proximidade a Mo- mostrava qualquer receio face ao poder
linos, é condenada e presa durante meses de então. Alertada para os “tempos difí-
pelo Rei Luís XIV, após a escuta das con- ceis” que se viviam e para o perigo que
clusões do exame a que o bispo Bossuet corria de ser acusada junto da Inquisição,
a tinha submetido. No contexto ainda do a resposta de Teresa não tardou: “Disse,
quietismo, estão também os famosos pro- pois, que disso não temessem; muito mau
cessos de Molinos e de Fénelon. O místico seria para a minha alma se nela houvesse
espanhol Miguel de Molinos (1628-1696) coisa que fosse de mole a eu temer a In-
foi exposto a um processo complexo de quisição. Se pensasse que havia de quê,
acusação das suas ideias quietistas. A 20 de eu mesma a iria buscar, mas, se fosse in-
novembro de 1687, o Papa Inocêncio XI ventado, o Senhor me livraria e ficaria eu
condena as suas doutrinas, através da bula com o lucro” (TERESA DE JESUS, 2000,
Caelestis Pastor. Com François de Salignac 134). Esta sua obra chegou mesmo a ser
de la Mothe Fénelon (1651-1715) o pro- sequestrada pela Inquisição. O próprio
cesso não foi diferente, tendo este teólogo Francisco de Osuna, embora aconselhas-
francês visto 23 das suas proposições con- se os fiéis a não caírem nas práticas dos
denadas como quietistas pelo Papa Ino- alumbrados, acabou por ser acusado de
cêncio XII, na sua bula Cum Alias (12 de ser um deles.
março de 1699). Não longe desta realidade estão as mu-
Em terras espanholas, no período do lheres e os homens místicos do nosso
chamado “século de ouro”, a vida dos país. Alvos de acusações de heresia, bru-
místicos não foi igualmente fácil. O Santo xaria, quietismo, profecias, etc., das místi-
Ofício sempre seguiu bem de perto mís- cas e dos místicos portugueses se ocupam
ticos como S. João de Ávila (1499-1569), também as acusações inquisitórias. Ve-
S.ta Teresa de Ávila (1515-1582), Fr. Luís jam-se os autos de fé de Coimbra, Lisboa
de Granada (1504-1588), Fr. Luís de e Évora no séc. xviii e o número elevado
Leão (1528-1591), S. João da Cruz (1542 de casos condenados de molinosismo.
‑1591). Apesar de notáveis escritores e in- O quietismo foi um dos alvos claros da
tervenientes na sociedade do seu tempo, Inquisição em Portugal. Recordemos as
todos eles tiveram de enfrentar quer o condenações de Manuel da Silva Sant’Ia-
controlo inquisitorial, quer as acusações go, Teresa Maria de S. José, Fr. João de
de heresia. O famoso Libro de Oración de S.ta Teresa, Josefa do Sacramento e do
Luís de Granada consta do Index do in- P.e António da Fonseca. Fr. Francisco da
como o antimodernismo passaram quase congregam tanto “os vários ramos das
desapercebidos, tendo sido aplicados obe- ciências e das letras, como da religião”,
dientemente os procedimentos e as regras manifestações acoimadas de “modernís-
antimodernistas ditados pela suprema au- ticas”. Amalgamava-se, deste modo, a fi-
toridade eclesiástica. gura do modernismo teológico com a do
As parcas manifestações modernistas modernismo estético e científico. Como
passaram por revistas como Voz de Santo o peso do anátema deixava antever, a co-
António, publicada em Braga a partir de notação do termo apresenta-se irremedia-
janeiro de 1895, e Estudos Sociais, publi- velmente pejorativa e minada de radical
cada em Coimbra, e por figuras como anarquia. Adianta-se mesmo uma “defi-
Manuel Abúndio da Silva (1874-1914), e nição” para não restarem dúvidas quanto
os Franciscanos Agostinho Mota (1875 ao perigo que o modernismo augura à es-
‑1938) e Manuel Alves Correia (1881 tabilidade da ordem social: “Sistema que,
‑1948). No entanto, neste modernismo desprezando todas as regras, estabelece
o que esteve sempre em primeiro plano como única a sua supremacia e indepen-
foi a questão política e partidária em tor- dência” (PORTUGAL, 1915, 239), assim
no do Partido Nacionalista, fundado em define Ribeiro Coelho o modernismo.
1903, e da obrigação ou não de, em cons- No mesmo Inquérito Literário, Manuel
ciência, os católicos votarem no partido António de Almeida, oficial do Exército,
católico. Manuel Abúndio da Silva e a Voz apressou-se a ensaiar uma clarificação,
de Santo António defendiam os princípios por considerar o juízo de Ribeiro Coelho
da doutrina católica e a sua aplicação à excessivo, no âmbito da sua aplicação.
organização da sociedade, mas opunham Entendia Manuel António de Almeida
‑se à confessionalização da vida partidária que a Igreja Católica não condenara o
e da participação política. Não consta, no modernismo em toda a sua extensão.
entanto, que tenha estado em causa em O anátema incidira apenas sobre a aspi-
Portugal, como núcleo central do moder- ração, definida como “um anelo para al-
nismo e do antimodernismo, a questão guma coisa de superior e vago” (Id., Ibid.,
bíblica ou a validade e evolução das ver- 229), “quando seja considerada como
dades de fé. origem ou forma de conhecimento, em
Um dos momentos culturalmente fe- especial do conhecimento das coisas su-
cundos em torno da crise modernista en- persensíveis” (Id., Ibid., 253-254). Reabi-
contra-se no Inquérito Literário de Boavida litava-se deste modo o modernismo esté-
Portugal. No contexto de um inquérito tico, que devia ser visto como efeito ou
literário promovido no diário República, produto da aspiração enquanto forma de
durante o outono de 1912, deparamos sensibilidade. Quanto à aspiração que é
com uma abordagem convergente, inédi- forma gnosiológica, sobre essa, sim, caíra
ta entre nós, dos modernismos religioso o labéu da condenação papal. Há nesta
e artístico. Em carta a Boavida Portugal, avaliação de Manuel António de Almei-
José Constantino Ribeiro Coelho, tipó- da uma ponderação certeira, ao atribuir
grafo católico e legitimista, denuncia o valor positivo ao modernismo em arte e
modernismo e o que designa por “siste- remeter para o domínio da aspiração ao
ma modernista” da Renascença Portu- conhecimento uma das características do
guesa. Regista o anátema lançado pelo modernismo teológico, sobre o qual in-
Papa Pio X na encíclica Pascendi sobre cidiu o anátema do antimodernismo do
o complexo do modernismo em que se Papa Pio X.
Coloniais, muitas delas com as exibições Unidas, em 1945). Após a Primeira Guer-
etnológicas, depois designadas por zoos ra Mundial, desapareceram três impérios
humanos. europeus (alemão, austro-húngaro e rus-
Portugal, além de participar em expo- so) e o turco-otomano, e começou a Gran-
sições no estrangeiro (Paris, Bulawayo, de Depressão (de 1929 até à Segunda
etc.), organizou as suas para exibir ao Guerra). Na Europa, o século vive uma
mundo o seu império, legitimando-o e profunda transformação. Alguns sinais:
reivindicando, também através desse ges- Interpretação dos Sonhos (1900), de Freud,
to, o respeito pelos direitos conquistados o Parque Güell (Gaudi), em Barcelona,
no terreno desde que, no séc. xv, Pêro da o Die Brücke (1905), em Dresden, a Teo-
Covilhã encontrou o Preste João (de que ria da Relatividade (1905), de Einstein,
Francisco Álvares dará notícia em A Ver- As Meninas de Avignon (1907), de Picasso,
dadeira Informação das Terras do Preste João, Ornamento e Delito (1908), de Adolf Loos,
de 1540) e foram pintados os Painéis de Do Espiritual na Arte (1912), de Kandinsky,
S. Vicente de Fora (1470-80), de Nuno Gon- Quadrado Negro sobre Fundo Branco (1913),
çalves, descobertos no final do séc. xix de Malevich, a revista De Stijl e os poemas
e reconduzidos ao providencialismo da sonoros dadá (1917). Entretanto, os ma-
propaganda do Estado Novo. nifestos do futurismo (1909), de Mari-
O séc. xx fragmentava-se entre guer- netti, do dadaísmo, de Hugo Ball (1916)
ras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), e de Aragon (1920), do surrealismo
a Guerra Fria (1945-1991) e a tentação (1924), de Breton, a Exposição Surrealis-
conciliatória (Organização das Nações ta (1936); a bomba atómica, a Revolução
As revistas foram, pois, órgãos em tor- mero da presença, “Literatura viva”, texto
no dos quais os sucessivos grupos e mo- programático de Régio, enuncia opções
vimentos tentaram sintonizar-se com as e valores que retoma depois em “Lite-
vanguardas europeias (com destaque ratura livresca e literatura viva”: mani-
para o futurismo), no modo como pro- festo que defende o sentido da ação de
moviam o diálogo das artes e um ser mo- grupo, à margem de interesses sociais e
derno que, no primeiro modernismo, de academismos formais, uma arte sem
se exprimia desde os comportamentos e academismo, anelante de inovação pro-
modos de vestir até ao grafismo editorial, fissional, elegendo a humanidade como
com destaque para a plasticização do ver- matéria e raiz da emoção estética e o
bo e a verbalização do plástico, qualquer primado da arte (sublinhado por títulos
um deles informado de ritmo. como “Li‑te‑ra‑tu‑ra”, de Régio, “A arte
O primeiro modernismo de grupo ti- é, não serve”, de Casais Monteiro, ambos
nha tido uma ação que visava abalar a de 1935) e da humanidade, com a valori-
doxa e inovar, não hesitando em chocar zação da inspiração por contraposição à
a sociedade, (auto)marginalizado por pessoana estética do fingimento.
isso. O sentimento niilista e trágico gera- As clivagens e os contrastes geracionais
do no drama mundial e no nacional vem e de ideários são patentes, quer entre os
acalmar o entusiasmo da arte intelectua- dois modernismos, quer entre grupos que
lizada por intelectuais, consagrando-a e os compõem. Ao lado, compondo a paisa-
dando-lhe visibilidade. Herdeira dessa gem editorial, outras intervenções de pe-
atmosfera, a presença surgia em moldura riódicos vinham, à boca de cena, assinalar
de retratística mais alargada e de mais a continuidade de forte caudal modernis-
lata compreensibilidade na sociedade da ta, apesar da diferença de registos, dos
época: a imprevisibilidade da arte desen- contrastes tonais, estéticos e ideológicos:
raizada do real inteligibiliza-se quando Bysancio (1923-24) e Tríptico (1924-25),
ladeada pelo comentário ou pela inda- com Alexandre de Aragão, Fausto José
gação da vida e do homem, atenta aos (assina ainda Fausto dos Santos), José Ré-
labirintos da sua psicologia e das suas gio, Vitorino Nemésio, António de Sousa,
motivações; o génio oitocentista roman- Edmundo de Bettencourt, etc.; mais pró-
ticamente beirando o abismo, bebendo ximas da tradição simbolista e decadente,
na vivência agónica finissecular simbo- a Icaro (1915-20) ou a Nova Phenix Renas-
licamente cristalizada no expressionista cida (1921), com Teixeira de Pascoaes,
O Grito (1893, da série O Friso da Vida), Eugénio de Castro, Afonso Lopes Vieira,
de Edvard Munch, cede ao homem nove- Cabral do Nascimento, Américo Cortez
centista fragilizado, debatendo‑se entre Pinto, Albino de Menezes, Alfredo Bro-
o quotidiano e os seus valores, todos eles chado, etc.; A Águia (1910‑32); Dyonisos
instáveis, mas condicionantes, hesitante, (1912-28), continuada por Museu (1934)
já não entre dicotomizações simplifica- e Prisma (1936-41), Contemporânea (1922
doras, mas entre complexidades elabora- ‑26), Athena (1924-25) e Sudoeste (1935);
das (dever, desejo, poder, querer, fazer, mais próximas da presença, Sinal (1930),
sentir, pensar…) que põem em causa as Manifesto (1936-38) e a Revista de Portugal
antigas equações e que agudizam o sen- (1937-40).
timento de desorientação, sentimento Com a península entre a ditadura do
questionado, confessado, memorializa- Estado Novo (1933-1974) e a Guerra Civil
do. Desde a abertura do primeiro nú- de Espanha (1936-1939), e, além Pirinéus,
uma Europa entre guerras dividida entre de quem desce com a generosidade supe-
o fascismo italiano, o nazismo alemão e o rior do organizador duma festa de bene-
estalinismo soviético, vinca-se a oposição ficência” (Id., Ibid.).
de princípios na arte: a exigência social e Cada lado se entrincheira e radicaliza os
a estética psicologista desenvolvem, pro- seus princípios nos seus órgãos editoriais:
gressivamente, um abismo entre si, ca- a presença confronta-se com a Seara Nova
vando o fosso entre o indivíduo, face ao (1921-78; 1985-2008), O Diabo (1934-40)
destino e às suas contingências, e o que e o Sol Nascente (1937‑40), num enfrenta-
a ordem económica tipifica sócio-profis- mento de titãs que chega a afirmações de
sionalmente. A (missão da) arte é pers- “perfeita incultura” e de “absurda confu-
petivada entre o olhar para dentro do são entre política e literatura”, expressões
indivíduo e para fora dele, para as suas da polémica revisitada por Joana Marques
circunstâncias económico-sociais. A exis- Macedo (MACEDO, 2010).
tência escavava um abismo na fronteira Duas figuras se evidenciam, dentre ou-
entre ambos os olhares e a palavra carto- tras, com perfil hoje simbolicamente ex-
grafava-o diversamente, de costas volta- pressivo dessas visões em confronto: José
das, mas em confronto especular. Régio e Álvaro Cunhal. A discordância
Em A Arte e a Vida Social, Plekhanov sobe de tom, até que Cunhal chega mes-
(1856-1918) declarará o mandamento mo a afirmar que, “enquanto a obsessão
que fará escola desde 1930, reiterado em destes [neorrealistas] é o próprio umbi-
conferência por Vasco Magalhães-Vilhe- go, a daqueles é a sorte da humanidade”
na em 1935 e por Redol em 1936: a arte e que “a poesia de José Régio exalta uma
deve ser instrumental, denunciando de- posição (e até uma atitude) condenável,
sequilíbrios e injustiças e promovendo o fracassada e decadente”, devendo, por
progresso e a justiça social. isso, “ser combatida” (CUNHAL, 1939),
O ano de 1935 assistirá ao antagonismo obrigando Régio a “definir posições”
entre perspetivas inconciliáveis no que (com que intitulará, na primeira pessoa,
constituía o seu núcleo duro: o psicolo- a resposta). António Sérgio e João Gaspar
gismo presencista e a ideologia política Simões também debatem, significativa-
marxista neorrealista (designação que mente, “O mistério da poesia” (com que
dissimulava, para a censura, o “realismo o segundo intitulou uma obra de 1971).
socialista” defendido por Andrei Jdanov). A agressividade acaba por conduzir o de-
O conflito exprime-se na acusação mú- sacordo ao ataque pessoal, numa mútua
tua: os primeiros consideram os segun- recriminação que vai subindo de tom e
dos empenhados na ação política e so- que se desenvolve também a nível inter-
cial, e não na arte, e de terem no “povo no dos grupos ideologicamente compro-
infeliz […] um eterno pretexto, a misé- metidos com a esquerda (partido, revis-
ria alheia, no fim de contas, um eterno tas, neorrealistas): a estética neorrealista
degrau, a mediocridade da maioria uma apresenta diversidade e clivagens que de-
eterna consolação” (RÉGIO, 1939, 61), rivam das divergências ideológicas, além
enquanto estes os acusam de alheamen de registar uma evolução no sentido da
to egoísta através da arte, de “umbi- posterior heterodoxia do simbólico e do
guismo”, nas palavras de Álvaro Cunhal esteticizado. A clandestinidade, o exílio e
(CUNHAL, 1939a, 154), e de “mandari- a emigração, os estrangeirados e os con-
nato”, segundo Manuel Filipe, conside- formados fazem-se presentes e atuantes,
rando que desenvolviam o “pensamento no jogo de ausência e de presença, de
arte que tivesse, como Gorki defende- Bibliog.: impressa: CRISTÓVÃO, Fernan-
ra no Congresso, “o trabalho” como sua do (coord.), Cadernos para Estudos, n.º 3. Do
matéria fundamental e como objetivo Romance Nordestino Brasileiro de 30 ao Neorrea-
lismo Português, Coimbra, Almedina, 2013;
uma “engenharia da alma” (Estaline) do
CUNHAL, Álvaro, “Numa encruzilhada dos
homem novo, sucedendo ao “mundo ve-
homens. A propósito das Cartas Intemporais de
lho”. Uma arte de catecismo marxista. José Régio publicadas na Seara Nova, n.os 608 e
Orfismo, presencismo, neorrealismo 609”, Seara Nova, n.º 615, 27 maio 1939,
e surrealismo são, pois, designações que pp. 285‑287; Id., “Ainda na encruzilhada”,
tendem a uniformizar o diverso e a dis- Seara Nova, n.º 626, 12 ago. 1939a, pp. 151
tinguir o afim. Em qualquer deles vibra- ‑154; DIONÍSIO, Eduarda et al. (orgs.), Situa-
vam emoções geradas nos desconcertos ção da Arte. Inquérito junto de Artistas e Intelectuais
Portugueses, Mem Martins, Europa-América,
do mundo, da vida, da sociedade e da
1968; GUIMARÃES, Fernando, “Revistas lite-
arte, todos (con)viviam (n)o sentimen- rárias dos anos 20 e 30”, Sema, n.º 3, outono
to de cultura intervalar de humanidade, 1979; MADEIRA, João, Os Engenheiros de Almas.
sociedade e cultura a (re)conhecerem O Partido Comunista e os Intelectuais, Lisboa, Es-
‑se e a (re)construírem-se em tempo de tampa, 1996; PIRES, Daniel, Dicionário das Re-
transformação, inquietação, inconfor- vistas Literárias Portuguesas do Século XX, Lisboa,
mismo, anseio de modernidade, de ino- Contexto, 1986; POMAR, Júlio, “O pintor e
o presente”, Seara Nova, n.º 1015, jan. 1947,
vação, de revolução cultural. Contudo,
pp. 19-20; RÉGIO, José, “Literatura viva”,
as referências e os pensamentos estéticos presença, sér. i, n.º 1, 10 mar. 1927, pp. 1-2;
têm perfis e concretizações diferentes e Id., “Literatura livresca e literatura viva”, pre-
conflituantes entre si: medeiam abismos sença, sér. i, n.º 9, 9 fev. 1928; Id., “Divagação
entre a esteticização e despersonalização mais ou menos pessoal sobre uma ‘blague’ do
da arte (primeiro modernismo), a análise Sr. Álvaro Cunhal, uma citação do Dom Cas-
introspetiva, psicologista (presencismo), murro, uma opinião de José Bacelar, o anexim
o compromisso ideológico com o social ‘preso por ter cão, preso por não ter’ e outras
miudezas que o leitor verá”, presença, sér. ii,
(neorrealismo) e entre estes e, depois, a
n.º 1, nov. 1939, pp. 59-61; VIÇOSO, Vítor,
mimetização criativa dos processos men- A Narrativa no Movimento Neo-Realista, Lisboa,
tais (surrealismo). Entre a arte, o homem Colibri, 2011; digital: CRISTALDO, Janer, En-
e a sociedade, o olhar estético vai elegen- genheiros de Almas (1886). O Stalinismo na Litera-
do os seus lugares, que reconfigura em tura de Jorge Amado e Graciliano Ramos: http://
recusa de outros, em choque com eles, www.ebooksbrasil.org/eLibris/engenheiros-
antiteticamente. dealmas.html (acedido a 29 dez. 2016); MA-
CEDO, Joana Marques, “Os movimentos mo-
Observar o percurso da primeira me-
dernista e neo-realista e o debate sobre a arte
tade do séc. xx, vetoriado pelos dois mo- pela arte e a arte social”, SAPIENS, n.os 3-4,
dernismos e pelos seus antis, na sua auto e 2010, pp. 125-151 [publicação online sem en-
heteroconfiguração, é ver renovar-se na li- dereço disponível].
nha do tempo cultural, periodicamente, o
Annabela Rita
velho choque entre antigos e modernos, a
colisão geracional, o gesto de autoprocla-
mação: na alternância pendular das ideias
e dos movimentos, cada identidade se vai
esboçando por oposição e negação da que
a precede, retomando muitas vezes outras
anterioridades, renovando-as/se com no-
vas constelações conceptuais.
A ntimonarquismo é a oposição ao
regime político cujo poder é detido
por um só indivíduo. Esta definição ra-
na sua definição greco-romana clássica, a
monarquia, termo mais corrente do que
monarquismo, é um regime legítimo, ao
dica na etimologia da palavra. Em gre- passo que a autocracia é ilegítima.
go, “mono” significa um, único, “archê” Ora, as monarquias europeias foram
poder. O antimonarquismo foi uma pai- instituídas na sequência das invasões ger-
xão oitocentista, que a Segunda Guerra mânicas, por isso designadas por neogo-
Mundial arrefeceu. Com efeito, na Euro- das, que deram termo violento ao Impé-
pa permanecem monarquias em Estados rio Romano do Ocidente. Assim, foram
relevantes (Reino Unido, Países Baixos, formas de governo em concreto antes de
Escandinávia) que coexistem com repú- serem uma forma de Estado em abstrato.
blicas; nem estas nem aquelas fomentam As ambiguidades do conceito derivam
restaurações ou temem antagonismos. aliás de ele assentar na designação do
Continua ainda a haver monarquias na chefe de Estado monárquico por uma
Comunidade Britânica (Canadá, Nova palavra culta, “monarca”, e não pelo ter-
Zelândia, Austrália e mais 12 realms), no mo “rei”, o mais corrente na linguagem
Japão e na Tailândia, além das tradicio- comum e na jurídica. “Monarquismo”
nais contemporâneas, onde se destacam sugere que o monarca derivou da mo-
as árabes que sobreviveram ao nacionalis- narquia, quando na realidade histórica
mo árabe. foram a monarquia e o monarquismo
que derivaram do monarca, ou melhor,
do rei. Aliás, já o sábio sevilhano ensinava
Definição de monarquia; “Regnum a regibus dictum”, i.e., o reino
variedade do conceito deriva do rei (ISIDORO DE SEVILHA,
O aparente irrealismo social da definição 2004, 754). “Monarca” corresponde ao ti-
etimológica de monarquismo choca mais tular do poder na definição grega de um
do que o antimonarquismo. Nas organi- dado regime justo, precisamente aquele
zações políticas contemporâneas, caracte- em que o poder é exercido por um só,
rizadas por uma profunda divisão social mas não correspondia, mesmo na Grécia
do trabalho, é inconcebível que o poder, clássica, ao titular em concreto desses re-
ou a soberania, seja exercido por um úni- gimes, o basileús – ao passo que a palavra
co indivíduo. Devemos ultrapassar essa “república” designa ao mesmo tempo o
defininição. Começaremos pela noção conceito abstrato e cada regime em con-
de monarquia que identifica as formas creto. A palavra “monarca” sugere um
de Estado(-nação) instituídas nas Idades sistema, a palavra “rei” sugere um regime
Média e Moderna europeias, cujo chefe determinado.
é um rei hereditário, quando não desig- Num certo sentido, a própria evidên-
na esse mesmo rei. O termo “monarca” cia é que a monarquia são Monarquias:
não é, com efeito, aplicado ao autocra- a britânica do séc. xx é um Estado
prático. Como eles surgem datados, tere- instituições, e foi indispensável, desde o
mos de os contrastar com a história polí- séc. xvi, ao liberalismo para o acesso a nu-
tica e com os monarquismos. merosas situações nas instituições dirigen-
tes; essa fiscalização impedia o acesso ao
Antirracista topo do poder dos cristãos-novos, conside-
Comecemos pela dimensão biológica rados não pela religião mas pela raça (ou
da monarquia. Os monarcas europeus o sangue), diferente da dos neogodos; o
tinham todos, ou quase todos, uma ori- mesmo sucedia com outras raças em Áfri-
gem tribal. Sendo chefe tribal, o rei é, ca, no Brasil e na Ásia.
portanto, um chefe racial. O governo
neogodo tem a conquista como único tí- Antirreligioso; o anticlericalismo
tulo jurídico. No séc. xviii, a aristocracia O rei tinha, ou tinha tido, uma dimensão
francesa, atribuindo-se uma origem ger- sagrada, que provocara anticorpos de-
mânica, afirma que governa a França por pois da Idade Média; não a examinámos.
um direito de conquista; os dois temas É no séc. xviii que renasce, em França, a
do direito de conquista e da raça foram teoria do direito divino dos reis, não no
depois desenvolvidos; a historiografia de- sentido de o poder em geral vir de Deus,
corrente desta visão será prolongada no nem no sentido de Deus ter instituído os
séc. xix quando a “história será decifra- reis enquanto seus agentes na esfera esta-
da de dois modos: a luta de classes e o tal, mas na aceção de Deus ter escolhido
afrontamento biológico” (FOUCAULT, para reinar em particular uma dada famí-
1989, 93-94). Sieyès agarrará nestes te- lia, cujos títulos eram augustos, i.e., divi-
mas para combater a nobreza e, de al- nos, ao passo que os outros reis eram ape-
gum modo, a monarquia, ameaçando de nas instrumentos de Deus, como disse o
modo brutal: “Se a aristocracia [francesa] bispo de Meaux (1627-1704) na primeira
justificasse os seus privilégios pelo direito parte do exórdio do seu célebre sermão
de conquista”, o terceiro estado, o povo “sobre os deveres dos reis” (BOSSUET,
da monarquia tradicional, “devolveria às 1975, 140).
florestas da Francónia todas essas famílias A acusação de clericalismo ligava-se à
que conservam a louca pretensão de des- dimensão religiosa das monarquias, mas
cenderem da raça dos conquistadores e concretizava-se na sua escolha de pessoal
de lhes terem sucedido nos seus direitos” dirigente. As monarquias, incluindo as
(SIEYÈS, 1982, 32). liberais, foram dele acusadas, em Portu-
Doutrinas semelhantes às francesas vigo- gal como em França. A italiana, que tinha
raram no direito público português, pelo invadido os Estados papais, estava imune.
menos do séc. xvi ao xviii; a concretiza- Esta crítica, porém, ainda que numa dada
ção das regras da endogamia da nobreza conjuntura fosse eficaz em termos de luta
portuguesa com grandeza assegurava, só política, era exterior à natureza da mo-
por si, ao menos em certos períodos, a ma- narquia. Já talvez lhe fosse endógena a
nutenção da raça neogoda, à qual abun- dificuldade de se separar de uma Igreja
dam as alusões, que ainda não foram obje- de Estado.
to de um programa de pesquisa, talvez por
sermos oficiosamente não racistas; função Anti-hereditário
simétrica era preenchida pela fiscalização A hereditariedade real era um derivado
da limpeza de sangue, que integrava a prá- substantivo da raça; não integrava a com-
tica tanto da Inquisição como de outras preensão do conceito de monarquia, mas
a história política europeia tinha-a torna- soluta ou absolutista; por isso, esta crítica
do uma adjacência dela inseparável na é típica dos sécs. xvii e xviii. O antiabso
prática e, desde o Renascimento, é um lutismo era mais adjetivo do que subs-
elemento tão importante da compreen- tantivo, mas sintetizava numa palavra as
são da monarquia como a unicidade do duas grandes críticas ao Ancien Régime
poder do Estado. que Penalva sumariava. No séc. xix, o ro-
Quando ou onde aquela justificação mantismo pintará nas cores mais negras
racial da hereditariedade política não o absolutismo, usando para tanto todas
era politicamente aceitável, o rei passou as formas artísticas. As óperas de G. Ver-
a ser apresentado como o protótipo da di (1813-1901) são uma ilustração deste
autoridade na família. “Os pais de famí- antimonarquismo.
lia foram os modelos dos reis”, lia-se, em O antimonarquismo sofria de debili-
1799, na Dissertação, seguindo Patriarcha dades teóricas pois equacionava a mo-
(PENALVA, 1942, 17). Mas o argumento narquia absoluta, um regime justo, com
não provava, pois a família real não era a a tirania, um regime injusto. A Encyclo-
única família, nem a família era incompa- pédie distinguia-a do “poder arbitrário
tível com outras formas de governo. Os e despótico” pois era “limitada pela sua
monárquicos do séc. xx contra-argumen- própria natureza, pela intenção daque-
taram, defendendo a realeza hereditária les de quem o monarca depende e pelas
de uma família como especialização no leis fundamentais do seu estado” (JAU-
serviço público, mas o argumento não COURT, 1986, 236).
respondia às objeções derivadas da loucu- Para ultrapassar o romantismo, G. W. F.
ra individual ou da variação genética no Hegel (1770-1831) propôs uma visão do
seio de uma mesma estirpe régia, nem, monarca próxima do absolutismo, mas
caso o monarca gozasse de algum poder, suscetível de uma leitura liberal: “A per-
ao argumento republicano, que já sinte- sonalidade do Estado só é real (wirklich)
tizaremos. como pessoa”, sendo a pessoa “o monar-
ca” – é a lição do Leviatã; por isso, “sem
Antiabsolutista o seu monarca e sem a articulação [com
O antimonarquismo das Luzes e da Re- o todo] que imediata e necessariamente
volução Liberal construtora de Estados dele provém, o povo (Volk) é uma massa
consistiu na recusa de uma chefia única sem forma, deixa de ser um Estado e dei-
e omnímoda; um homem decidirá em xa de ter as determinações que existem
última instância, mas essa instância será no todo organizado – soberania, gover-
definida por uma organização legal cons- no, justiça, autoridade, ordens, etc.” (HE-
titucional; daqui decorre o equilíbrio GEL, 1976, § 279).
dos poderes, dos checks and balances, que Mais tarde, já no séc. xx, os integralistas
ressuscitava a teoria greco-romana do também foram acusados de absolutismo,
governo misto e casava bem com a visão o que rejeitavam. António Sardinha de-
newtoniana do universo físico como sis- clarou-se deleitado por um jornalista lhe
tema autoequilibrante, visão que então dizer que ele queria uma república com
se afirmava. Este antimonarquismo, por um rei; só dissentia por não querer um
definição, não abrangia a monarquia li- rei “pedra de fecho da abóboda”; e apro-
beral, ou constitucional. veitava o ensejo para se distanciar do ab-
É a Revolução Liberal destrutora de Es- solutismo. Aliás, o integralismo propunha
tados que ataca a monarquia, por ser ab- um governo misto do tipo: monarquia na
Romana, e aos Seus Ministros (1809), Con- onde podemos ler que “esta terceira, e
fissão de Napoleão ou Satisfação Que Toma o tão bárbara invasão é um manifesto sinal
Diabo, pela Pouca Ventura Que Tem Concedi- da ira de Deus”, à qual se seguirão “sem
do ás Suas Armas (1809), Trombeta da Verda- nenhuma detença as murmurações, os es-
de Métrico-Analytica, contra os Planos, e Im- petáculos profanos, a fraude, a violência,
posturas de Napoleão, e Seus Satélites (1811), a injustiça, a vingança, a perfídia, e em
Na Festejada Morte do General Marmont, Que muitos ímpios, a quem superficial ciência
Deos Tem não Sei aonde, e na Derrota do Exer- da política Napoleónica enfatua, a cons-
cito Francez, Que Fugio com os Diabos (1812), piração abominável contra o Trono, e
Testamento Que Fez o D. Quixote da França, contra o Altar” (Id., 1814, 50-51). Na sua
antes de Partir para a Sonhada Conquista da generalidade, a condenação mais incre-
Russia (1813). pada de Napoleão que encontramos no
A estes escritos, podemos juntar os ser- conjunto dos escritos consultados cons-
mões do P.e José Agostinho de Macedo, trói-se com recurso a alegorias, a imagens
nos quais encontramos, num estilo elo- exageradas, escatológicas e apocalípticas,
quente mas truculento, uma condena- a linguagem subversiva, à sátira, à cari-
ção acintosa de Napoleão, o “atrocíssimo catura e à estereotipia, sendo muito co-
Corso” (MACEDO, 1809a, 23). Refira-se, muns as imagens do anticristo e da besta
e.g., o sermão proferido no dia 28 de se- do apocalipse, usadas para descrever Na-
tembro de 1808, pela restauração do rei- poleão, certamente favorecidas pela sua
no e pela retirada das tropas de Junot, no excomunhão pelo Papa Pio VII, em 10 de
qual demoniza o Imperador francês, que junho de 1809.
qualifica de “monstro”, “descarado usur- No âmbito de uma literatura mais eru-
pador”, “mesquinho mortal”, “vaidoso, dita, incluímos os panfletos antinapo-
e miserável mortal, tão digno de ódio, e leónicos do já mencionado José Acúrsio
desprezo publico, quanto é soberbo” (Id., das Neves, de que conhecemos 12 títu-
Ibid., 27-31); o sermão proferido nas mes- los, todos com data anterior à publica-
mas circunstâncias em 23 de novembro ção da sua História Geral, a saber: “Voz
de 1808, na igreja de N.ª Sr.ª dos Mártires, do patriotismo na restauração de Portu-
no qual designa como “Napolianismo” gal, e Hespanha” (1808), “Manifesto da
“o sistema atrocíssimo da opressão, e razão contra as usurpações francezas”
rapina pública, esta política peculiar, e (1808), “A generosidade de Jorge III e
privativa a um Tirano, que é o último re- a ambição de Bonaparte. Wellesley e os
finamento do Maquiavelismo” (Id., 1809, generaes francezes” (1809), “Tres peças
6); o sermão dirigido ao clero português patrioticas” (1809), “Observações sobre
contra o “espírito de seita” dos “apaixo- os acontecimentos das províncias d’en-
nado[s] dos franceses” (Id., 1811, 53-54), tre Douro e Minho, e Trás-os-Montes”
no qual encontramos condensado o sen- (1809), “Discurso sobre os principais suc-
timento antifrancês e antinapoleónico cessos da campanha do Douro, offereci-
nas expressões “mostrai-lhes um só Fran- do aos illustres guerreiros que nella tanto
cês, mostrai-lhes o inferno” e “se Satanás se distinguirão” (1809), “Paraphrase ao
se torna visível, eu não sei quem seja capítulo xiv do livro de Isaías” (1809),
mais o seu retrato...” (Id., Ibid., 36-37); e “O despertador dos soberanos, e dos pó-
o sermão de teor apocalíptico proferido vos, offerecido á humanidade” (1808) e
no dia 31 de agosto de 1811, por ocasião “Post-scriptum ao despertador dos sobe-
da invasão liderada pelo Gen. Massena, ranos e dos povos” (1809), “A salvação da
patria” (1809), “Reflexões sobre a inva- povo. De facto, vocábulos como “usurpa-
são dos Francezes em Portugal” (1809), dor”/“usurpadores”; “intruso”/“intrusa”;
“Elogio fúnebre do marquez de la Roma- “tirano”/“tiranos”/“tirânico”/“tirania”;
na” (1811). Do exame destes panfletos, “inimigo”/“inimigos”; “roubo”, “ladrão”/
retiramos algum do vocabulário mais “ladrões”, “espoliação”; “pérfido”/“pér-
incisivo utilizado para rotular Napoleão, fidos”/“perfídia”; “assassinos”/“assassí-
que é qualificado de “Verdugo da huma- nio”, “bárbaro”/“bárbaros”/“barbarida-
nidade, flagelo do mundo”, “impostor, de” aparecem amiúde no conjunto da
temerário”, “desprezível bicho da terra”, obra para nomear ou classificar Napoleão
“fraco”, “ímpio mortal”, “Cruel assassino, e/ou os seus associados e as respetivas
depredador infame” (NEVES, 1809, 7, 10 ações. Entre aqueles utilizados de for-
e 12); e “Destruidor das monarquias, e ma mais espaçada constam os seguintes
das républicas” (Id., 1808, 26). Os adje- (e respetivos derivados): “ímpios”, “aves
tivos/substantivos “tirano”, “usurpador” de rapina”, “infames”, “cobardes”, “malva-
e “monstro”, associados a Napoleão, são dos”, “destruidores”, “devastadores”, “ca-
comuns a todos os panfletos, assim como nibais”, “hipócritas”, “violento”, “rudez”,
a comparação, por oposição, com a Ingla- “crueldade”, “avareza”, “monstro”.
terra e os Ingleses, particularmente com A imagem negra de Napoleão e seus
o Gen. Arthur Wellesley, elevado a herói, sequazes que os textos de Acúrsio das
libertador e vingador de Portugal. Neves revelam estende-se à Revolução
Esta adjetivação, por sua vez, terá eco Francesa, aos ideais dela emanados e, por
na História Geral. Coeva do período em metonímia, à França e a todos os Fran-
que Portugal se viu pela terceira vez in- ceses. Neste sentido, os princípios revo-
vadido pelas tropas napoleónicas, esta lucionários assumem, nos seus escritos,
obra constitui-se como monumento do uma natureza estrangeira perante aquela
antifrancesismo oitocentista. Composta que é a tradição nacional, pelo que a luta
com o objetivo de “inflamar os povos para contra os invasores franceses não consti-
sacudir o jugo estrangeiro” (Id., 1821, 8), tui uma luta apenas pela independência
nela, o autor apresenta Napoleão como nacional mas, em última instância, pela
o “usurpador”, o inimigo contra o qual conservação de um status quo que confere
todos os Portugueses deveriam comba- identidade a Portugal. Todavia, o com-
ter. Assim, ao longo de cinco tomos, são bate contra o Francês abre, também, as
reveladas as atrocidades cometidas pelos portas a uma consciencialização política e
Franceses, ordenadas pelos seus generais ideológica que irá marcar o período que
e apoiadas pelos chamados afrancesados, antecede a Revolução Liberal.
ou partidistas, em nome de um impera- Deste modo, o tipo de literatura que
dor estrangeiro. A imagem que deles entre 1807 e 1811 estava orientada para
Acúrsio das Neves traça é, à semelhança um mesmo propósito, a expulsão dos
do que sucede nos seus panfletos, negati- Franceses, segue, a partir de 1811, vias di-
va e reveladora de um profundo despre- vergentes, conforme a orientação absolu-
zo, dela emanando aquilo a que podemos tista ou liberal que assume. Um aparente
chamar o mito negro de Napoleão. Para paradoxo que se explica pelo germinar
tal concorre o uso reiterado de termino- das sementes das ideias novas deixadas
logia e de expressões que visam concitar pelas invasões. De facto, já em 1811, fin-
a opinião pública contra os invasores e da a terceira invasão, profetizava a Gaze-
alimentar o sentimento patriótico do ta de Lisboa que “A memória desta gente
detestável durará mais tempo do que os N. Senhora dos Martyres a 23 de Novembro de 1808
estragos que nos fizeram” (Gazeta de Lis- por ocasião da Festividade na Feliz Restauração deste
boa, 23 abr. 1811). Também a este res- Reino, Lisboa, Officina de António Rodrigues
Galhardo, 1809; Id., Sermão Pregado na Real
peito, conclui António Pedro Vicente
Casa de Santo António, na Grande Festividade Que
que “[a]pós a saída dos franceses ficara
o Illustrissimo e Excellentissimo Senado da Câmara
o rancor e o ódio ao opressor mas tam- de Lisboa Fez pela Restauração deste Reino a 28 de
bém muito do seu credo político. Os que Setembro de 1808, Lisboa, Officina de António
escreviam nessas folhas aproveitaram os Rodrigues Galhardo, 1809a; Id., Sermão sobre o
hábitos do período invasor para conju- Espirito de Seita Dominante no Século XIX, Lisboa,
garem esforços na substituição das insti- Impressão Regia, 1811; Id., Sermão de Preces
tuições seculares da nação” (VICENTE, pelo Bom Sucesso das Nossas Armas, contra as do
Tyranno Bonaparte, na Terceira Invasão deste Reino,
1999, 124). Tais esforços iriam, por sua
Pregado na Igreja de N. Senhora dos Martyres a 31
vez, suscitar uma propaganda contrarre- de Agosto á noite, na Entrada da Solemne Procissão
volucionária, delatora das “quiméricas” de Penitencia, Que Fez a Exemplar Irmandade de
ideias francesas, que muitas vezes comple- N. Senhora de Jesus, Lisboa, Typografica Rollan-
menta, e se confunde, com a propaganda diana, 1814; NEVES, José Acúrsio das, Ma-
antinapoleónica. nifesto da Razão contra as Usurpações Francezas.
Assim, embora concentrado no perío- Offerecido à Nação Portugueza, aos Soberanos, e
aos Póvos, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo
do das invasões francesas, o mito negro
Ferreira, 1808; Id., Paraphrase ao Capitulo XIV
de Napoleão permaneceu enraizado na do Livro de Isaías, Lisboa, Officina de Simão
cultura portuguesa, não só por mediação Thaddeo Ferreira, 1809; Id., História Geral da
da literatura contrarrevolucionária, de Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restaura-
cariz nacionalista, mas também pela pena ção deste Reino, 4 t., Lisboa, Officina de Simão
de autores como Alexandre Herculano, Thaddeo Ferreira, 1810-11; Id., Manifesto, em
para quem Napoleão foi um salteador que o Desembargador J. Accursio das Neves Expõe
e um assassino, e Oliveira Martins, que e Analysa os Procedimentos contra Ele Praticados
pelos Exregentes do Reino, e os Seus Fundamentos,
recuperou a imagem do anticristo. No
Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira,
séc. xx, a imagem negativa de Napoleão 1821; VALENTE, Vasco Pulido, Tentar Perceber,
estará, sobretudo, associada ao discurso Lisboa, INCM, 1983; Id., Ir pró Maneta, Lisboa,
antimaçónico, pelo que não se poderá fa- Alêtheia, 2007; VENTURA, António (coord.),
lar de forma exata de antinapoleonismo, Napoleão: História & Mito, Lisboa, Centro de
estando este mais circunscrito ao período História da Universidade de Lisboa/Caleidos-
da Guerra Peninsular. Por outro lado, e cópio, 2008; VICENTE, António Pedro, “Pan-
fletos antinapoleónicos durante a Guerra Pe-
de uma forma geral, após este momento,
ninsular. Atividade editorial da Real Imprensa
o antinapoleonismo na cultura portugue- da Universidade”, Revista de História das Ideias,
sa deverá ser entendido como um adere- vol. xx, 1999, sep.
ço, um elemento constitutivo do antifran-
Cristiana Lucas Silva
cesismo e do antirrevolucionarismo.
probidade intelectual, Antero assume cla- sofia da natureza com a simples generali-
ramente essa estratégia logo no início do zação dos dados dum grupo de ciências e
seu extenso artigo: “Não sou naturalista e, sem ter em conta o indispensável critério
tendo a consciência da minha incompe- das ideias” (Id., Ibid., 110).
tência, não me atreveria a escrever sobre Tendo como referência matricial a
a obra do Sr. Viana de Lima, se o seu livro obra de Haeckel, a quem chama “pa-
fosse propriamente um livro de ciências triarca do monismo”, Miguel Bombarda
naturais, e se os quatro estudos, de que elaborou o mais sistemático e combativo
se compõe, se conservassem escrupulo- texto doutrinário em defesa do monismo
samente nos limites rigorosos do campo naturalista, considerando que o ponto de
científico. O livro, porém, do Sr. Viana de vista “fisiológico” é o único coerente e in-
Lima, apesar da modéstia do título, aspi- teligível (BOMBARDA, 1898, 349). Pela
ra de facto a ser um livro de filosofia da relevância do autor, pelo tom iluminista
natureza, e, nesse terreno, creio poder, e pela frontalidade do seu antijesuitismo,
sem temeridade, emitir algumas opiniões Consciência e Livre Arbítrio teve um impac-
fundamentadas” (QUENTAL, 1991, 93). to significativo nas elites portuguesas do
O cerne do argumento anteriano reside início do séc. xx. O contraponto, num es-
na insuficiência da conceção monista-evo- tilo sereno e pedagógico, veio de Leonar-
lucionista de matéria entendida como una do Coimbra, que designa a sua filosofia
e simples para explicar a variedade e com- como criacionismo, na medida em que a
plexidade dos fenómenos. De igual modo, atividade do espírito finito, longe de ser
a evolução não passa de um esquema abs- a expressão de forças elementares, é cria-
trato e fortuito, se não é esclarecida pelo cionista porque imita o ato criador divi-
esforço reflexivo de indagar um sentido no. Sem lograr a unidade e harmonia do
e uma finalidade, mesmo que imanen- universo, o artista, o cientista e acima de
tes, para o surgimento de formas naturais tudo o filósofo simbolizam essa unidade
complexas e a emergência da consciência, harmónica através de um trabalho de sín-
de cuja atividade resultam as superiores tese progressiva, resistindo à tendência
produções intelectuais e morais. cousista da racionalidade moderna para
Com irónica finura, Antero considera fixar cada ser num âmbito restrito, como
que o naturalismo evolucionista hacke- uma coisa fechada em si mesma. A procu-
liano, que se pretende uma síntese do ra da síntese opera-se por via da relação,
estado dos conhecimentos humanos na num quadro complexo e diversificado.
segunda metade do séc. xix, constitui Sem o mencionar expressamente, Coim-
uma reação legítima contra o excesso de bra não deixa de visar Bombarda na sua
metafísica da filosofia anterior, mas que, obra emblemática, Criacionismo: “Um co-
por seu lado, apela a uma salutar reação nhecido propagandista político gostava
espiritualista, que valide a ciência dentro de se declarar, em comícios públicos, filó-
dos seus limites próprios e lhe forneça um sofo naturalista”. Para o filósofo criacionis-
suplemento de sentido e valor: “Preten- ta, “o naturalismo é mais uma tendência
derei eu acaso, com essa crítica, contestar que uma filosofia”, i.e., é um pensamento
o valor dos trabalhos da escola monista, frágil que se caracteriza por cindir “a rea-
ou ainda a sua importância filosófica? De lidade em natureza e ideal” (COIMBRA,
modo algum. O que eu contesto é o valor 1983, 221), transformando a natureza
do seu sistema, como sistema, o que eu numa categoria abstrata e desligada da
censuro é a pretensão de fundar uma filo- atividade espiritual.
pela doença. Para tanto, entende que não apoiada em projetos de investigação siste-
precisa de ser médico nem possuir um mática e comprovação experimental cer-
diploma de prática médica; sem negar tificada, que a naturopatia instiga contra
a utilidade dos cursos e das práticas que si os defensores da medicina alopática;
possam ajudá-lo a decidir quais são as me- contra ela estão também os interesses da
lhores medidas terapêuticas a tomar nas indústria farmacêutica, na defesa dos fár-
variadas situações concretas com que po- macos sintéticos que a medicina conven-
derá deparar, entende que o que mais o cional utiliza e prescreve.
poderá ajudar será sempre a sua própria Por mais positivo e louvável que possa
experiência de vida, colhida no contac- parecer o programa de defesa da saúde
to direto com a natureza. As suas práti- que os naturopatas afirmam ser o seu, ba-
cas ao serviço da saúde devem ser tidas seado na eliminação de maus hábitos – so-
e tratadas como uma medicina natural, brealimentação, consumo de drogas, ho-
apresentando-se como medicinas alterna- rários inadequados de vida, preocupações
tivas à medicina tida como convencional, em demasia, aberrações sociais e sexuais,
a medicina ensinada e praticada pelas etc. –, orientado para a criação de hábitos
escolas académicas das universidades, a corretores de práticas erradas ou abusivas
medicina alopática. através de bons exercícios de uma correta
Dada a natureza tendencialmente ma- respiração, de corretas atitudes mentais
terialista da ciência e da sociedade oci- face aos acontecimentos do dia a dia e
dental dos começos do séc. xxi e o po- duma sã moderação na busca da própria
sitivismo que informa a sua cultura, a saúde e dos bens materiais, acompanha-
naturopatia, ao englobar no seu objeto do de uma cultura de princípios de ação
não apenas o corpo mas também o es- eficaz – jejum adequado, seleção de ali-
pírito, pretendendo tratar a saúde do mentos, banhos de luz e ar, hidroterapia,
ser humano apenas no quadro de um osteopatia, manipulação vertebral, cromo-
ser holístico, não consegue ser aceite terapia e outros –, o seu difícil enquadra-
como uma ciência. Os profissionais da mento na cultura que enforma e domina o
medicina académica, mesmo quando mundo ocidental dos começos do séc. xxi
nela veem aspetos e resultados positivos, (ao contrário de muito que caracteriza as
não deixam de a ver como uma medici- culturas tidas como do mundo oriental) é
na insólita e mostram-se renitentes e em a grande fonte do antinaturopatismo des-
oposição frontal à inclusão das suas prá- tas sociedades.
ticas no currículo dos seus cursos. Para
muitos médicos da medicina alopática,
fazê-lo seria um autêntico absurdo.
Não sendo reconhecido como verda-
deiro médico, o naturopata cai muitas ve-
zes na ilegalidade quando diz ser médico Bibliog.: ACHARAN, Manuel Lezaeta, Medici-
ou quando retira ou receita remédios sem na Natural ao alcance de Todos, 13.ª ed., Mexi-
autorização médica. As suas práticas não co, Pax, 2008; KUHNE, Louis, New Science of
se enquadram no sistema sanitário oficial Healing or the Doctrine of the Oneness of All Disea-
e convencional. E não é só pelo carácter ses, Leipzig, ed. do Autor, s.d.; VASEY, Chris-
acientífico das suas práticas, em confron- topher, Pequeno Tratado da Naturopatia, Lisboa,
to aberto com o carácter científico com Europa-América, 2009.
que se afirma a medicina convencional, António M. Amorim da Costa
No entanto, nos meses seguintes, a cen- Com efeito, nas vésperas da Segunda
sura terá continuado a permitir a publica- Grande Guerra, também a intelectuali-
ção de vários artigos que denunciavam as dade católica portuguesa alertou para os
atrocidades nazis. No jornal República, de perigos do regime nazi. A publicação da
18 de dezembro de 1933, Mário de Oli- encíclica Mit Brennender Sorge, por Pio XI,
veira ataca Hitler, comparando-o a Nero a 14 de março de 1937, viria a confirmar
e afirmando “que como este há de cair as perceções de muitos católicos portu-
amaldiçoado” (Id., Ibid., 175). No Raio, de gueses e dar o mote para novas invetivas.
21 de maio de 1934, a Alemanha nazi era Revistas católicas com diferentes públicos
retratada como um “País selvagem, onde e sensibilidades – como a Era Nova, revista
não podem viver sábios como Einstein católica, republicana e populista, a Novi-
com medo de serem espancados, mortos dades, mais próxima do Estado Novo, e a
ou enclausurados”. Em O Diabo de 5 de Lumen, publicação do episcopado portu-
agosto de 1934, Hitler é representado de guês com feição clerical – convergem na
modo ilustrativo: crítica ao fascismo pelo seu cesarismo e
Este desenho de Lemos, em conjunto “estatolatria”, que subjuga a dimensão da
com um artigo publicado no Diário de No- pessoa humana (CRUZ, 1992, 555-556).
tícias de 5 de agosto de 1934, referente às O nazismo representaria, por sua vez,
relações tensas entre o Mar. Hindenbur- uma versão exacerbada desta nova forma
go e Hitler, e um artigo publicado no jor- de governo, que acrescentava ao cesaris-
nal católico Novidades, de 8 de agosto do mo ideias pagãs, anticristãs e racistas que
mesmo ano, onde Hitler é apelidado de tendiam a expressar-se sob a forma de
“déspota” e de “paranoico da violência e atentados à vida e à dignidade humanas.
do sangue”, suscitariam um protesto da Na verdade, registam-se, ao longo da
legação alemã junto do Ministério dos déc. de 30, em particular na revista Lu-
Negócios Estrangeiros português (Id., men, diversos afloramentos à questão ra-
Ibid., 177). cial, nomeadamente ao antissemitismo,
que demonstram uma consciência apu-
rada da elite clerical portuguesa relativa-
mente aos perigos deste elemento distin-
tivo do nazi-fascismo. Simultaneamente,
as elites católicas procuravam também
influenciar os rumos assumidos pelo Es-
tado Novo, opondo-se internamente à li-
nha nacional-sindicalista, em favor de um
nacionalismo moderno e civilizado, que
se deveria concretizar sob a forma de um
corporativismo de inspiração cristã.
O Partido Comunista Português (PCP),
organização política que tinha sido ilega-
lizada no final dos anos 20, desempenhou
um papel preponderante na oposição ao
nazismo em Portugal. Sobretudo a partir
de 1935, no jornal Avante!, publicação clan-
“Serviço de limpesa”, de Lemos, O Diabo, destina fundada em 1931, o PCP moveu
5 ago. 1934 (BAIÔA, 2012, 178). um ataque cerrado ao regime de Hitler.
A ntineoliberalismo é o posicionamen-
to ideológico ou politicamente situa-
do no extremo contrário ao neoliberalis-
O conceito de neoliberalismo teve a
sua génese na déc. de 30 do séc. xx (o co-
lóquio sobre Walter Lippman, organiza-
mo como doutrina político-económica do em Paris em agosto de 1938 pelo fi-
pretensamente promotora de um exces- lósofo francês Louis Rougier, foi um dos
so de liberdade de mercado; excesso esse momentos-chave da criação do conceito)
que põe em causa interesses ou direitos como uma terceira via, defendida por al-
tidos como essenciais, sejam estes dos Es- guns economistas emergentes, de supe-
tados, dos povos, dos trabalhadores ou ração do laissez-faire do séc. xix, em que
das pessoas em geral. o Estado se limitava a proteger a vida e
Existem formas e manifestações de an- os direitos de propriedade clássicos, bem
tineoliberalismo contra os excessos do como do socialismo coletivista, de inspi-
capitalismo, sobretudo financeiro e espe- ração marxista. O termo “neoliberalis-
culativo, mas também contra a existência mo” foi cunhado por Alexander Rustow,
da liberdade de mercado tout court. Com visando uma recuperação moderada do
efeito, afirmam-se como antineoliberais liberalismo, em que o intervencionismo
pessoas de um larguíssimo espectro ideo- estatal, se bem que não dominante, fos-
lógico – da esquerda radical à extrema se defensável. Em 1947, na Sociedade
‑direita, passando por defensores da eco- Mont Pèlerin, herdeira dos debates do
nomia social de mercado, de inspiração colóquio sobre Lippman, sob a liderança
social-cristã, e sociais-democratas, entre do economista Hayek, estabeleceu-se o
outros –, que não pensam o mesmo em essencial do conceito de neoliberalismo:
termos políticos e económicos, o que é um programa e sistema político-econó-
motivo de confusão. Acresce que, nos iní- mico apoiado em princípios liberais, mas
cios do séc. xxi, poucos se afirmam como que poderia incluir políticas típicas da so-
neoliberais (é o caso dos membros do cial-democracia, como as promotoras de
Niskaken Center, um think tank [círculo um rendimento mínimo (salário mínimo
de reflexão] americano fundado por um e outras formas de distribuição), medidas
antigo conselheiro económico do Presi- de proteção da concorrência (proibindo
dente Ronald Reagan), dados os retratos ‑se as práticas anticoncorrenciais), o mo-
ideológicos que são feitos do neolibera- nopólio da moeda pelo governo e ainda
lismo, embora haja muitas pessoas que a intervenção pública nos casos em que
se afirmam contra ele, enquanto é iden- ocorressem falhas de mercado. Este con-
tificado como um mau sistema político senso neoliberal foi subscrito por autores
‑económico. como Friedrich Hayek, Frank Knight,
É por isso necessário perceber o signifi- Bertrand de Jouvenel, Karl Popper, Lu-
cado original e atual do conceito de neo- dwig von Mises, George Stigler e Milton
liberalismo e as razões pelas quais pessoas Friedman, apesar de algumas diferenças
de diferentes quadrantes ideológicos são de perspetiva.
O chanceler Ludwig Erhard (Alema- ção social, dados os custos crescentes dos
nha Ocidental), o Presidente da Repú- seus programas.
blica Luigi Einaudi (Itália), o presidente A partir da déc. de 80, deixou de exis-
da Reserva Federal dos Estados Unidos tir na Europa um consenso sobre o mo-
Arthur Burns e o primeiro-ministro Va- delo social que, após a Segunda Guerra
clav Klaus (República Checa) são exem- Mundial, foi defendido pelos partidos
plos de membros da Sociedade Mont democratas-cristãos e sociais-democratas,
Pèlerin que ocuparam posições públicas tendo muitos desses partidos desapareci-
proeminentes. Além disso, vários foram do, perdido influência ou simplesmente
os membros da referida sociedade que mudado de orientação política. Em ter-
foram galardoados com o (ainda que as- mos gerais, as ideias liberais passaram a
sim impropriamente chamado) Prémio predominar sobre o ideário socialista,
Nobel da Economia, incluindo Hayek, como forma de responder eficazmente
Milton Friedman e George Stigler. Estes em contextos económicos globais compe-
exemplos denotam a grande influência titivos, o que motivou alterações nos pro-
do ideário neoliberal na sociedade e so- gramas e na ação política dos partidos,
bre a política real. ainda que nem sempre compreendidas
Ronald Reagan, Presidente dos EUA ou assumidas.
entre 1980 e 1988, e Margaret Thatcher, Assim, pois, quando se fala de neoli-
que chefiou o Governo britânico entre beralismo e de antineoliberalismo, é ne-
1979 e 1990, adotaram programas com cessário perceber exatamente o uso que
maior ênfase na liberdade económica, se faz das palavras e os seus limites. Com
na linha do pensamento neoliberal. An- efeito, é frequente haver nos partidos po-
tes disso, na déc. de 70, o ditador chile- líticos pessoas que se afirmam contra o
no Augusto Pinochet tinha feito o mes- neoliberalismo, ao mesmo tempo que es-
mo, com o apoio entusiástico de Hayek ses partidos defendem a liberalização da
e Friedman. economia e, especificamente, a liberdade
Nas universidades, nos media e na po- de capitais, que está na base das profun-
lítica, os antineoliberais contestaram as das transformações que a economia mun-
ideias e as políticas promotoras de uma dial sofreu desde finais do séc. xx.
menor intervenção do Estado na econo- A União Europeia é um caso paradig-
mia, fosse por via legislativa ou adminis- mático de uma organização internacional
trativa, devido a estarem em contradi- que, desde a déc. de 90, prossegue políti-
ção com um ideário de bem-estar social. cas, no âmbito da criação de uma união
Concretamente, muitos antineoliberais económica e monetária, que muitos veem
acusaram os políticos referidos de pro- como neoliberais, e que são aplicadas, em
moverem um aumento da desigualdade contexto nacional, por governos tanto de
nos seus países. Porém, muita coisa mu- direita como de esquerda, a ponto de se
dou desde então, com destaque para as falar na falência das políticas sociais-de-
profundas alterações registadas nas estru- mocratas na Europa.
turas demográficas dos países desenvol- Por outro lado, em Portugal, em 2017,
vidos, por causa do envelhecimento da no decurso do processo político de su-
população, e no comércio internacional, cessão de Pedro Passos Coelho como lí-
com a integração de novos Estados na der do Partido Social Democrata (PSD),
economia mundial. Tudo isso fez perigar Pedro Duarte, militante deste partido,
a sustentabilidade dos modelos de prote- advogou a necessidade de convocação
D.R.
partidos, mas também de militantes do
PSD, como foi o caso de José Pacheco Milton Friedman (1912-2006).
Pereira, um influente comentador polí-
tico, que criticou a governação de Passos Uma segunda ideia a reter é que o
Coelho pelo que considerava os excessos antineoliberalismo é, na maioria dos
de liberalismo e por não ter defendido o casos, o resultado de uma perceção
Estado Social. Paulo Ferreira da Cunha, pública daquilo que o pensamento e
militante do Partido Socialista, também os comportamentos das pessoas são,
ele contestatário do ideário neoliberal, não correspondendo necessariamente
sustentou aliás que a principal linha po- ao que as pessoas pensam, dizem ou
lítica divisória no séc. xxi passou a es- fazem. E.g., o Papa Francisco contesta
tar entre os defensores e os contestatá- a economia que mata não apenas as
rios do Estado Social. A verdade é que, pessoas mas a própria Terra; segundo
sendo críticos do neoliberalismo, estes Francisco, a lógica do sistema capita-
autores são politicamente liberais, nisso lista dominante e, especificamente, a
se distinguindo dos antineoliberais mar- lógica da globalização financeira no
xistas, que contestam a existência de um séc. xxi visam o lucro a todo o custo,
modelo político liberal e, por essa razão, ignorando princípios morais essenciais.
não se pode dizer que sejam igualmente Ora, existindo uma vastíssima literatu-
antineoliberais. ra sobre este Pontífice que o descreve
Do que referimos decorrem algumas como antineoliberal, a verdade é que
ideias importantes sobre o antineolibe- os principais documentos do seu ma-
ralismo. A primeira ideia a reter é que gistério – designadamente a exortação
não existe um pensamento antineolibe- apostólica Evangelii Gaudium (2013) e a
ral coerente e único. O que existe são carta encíclica Laudato Si’ (2015) – não
narrativas antineoliberais que, generica- fazem quaisquer referências ao neolibe-
mente, assentam na ideia de que a polí- ralismo. Mais: não há dúvidas de que o
tica passou a ser dominada pelos interes- pensamento de Francisco está na linha
ses das grandes empresas multinacionais do dos seus antecessores, especialmen-
ou grupos financeiros internacionais te de João Paulo II e de Bento XVI, na
que não olham a meios para alcançar contestação de um capitalismo sem re-
os seus fins, violando desse modo prin- gras que ignora os direitos das pessoas,
cípios ou interesses sagrados, o que não sem que isso tenha feito de qualquer
é aceitável. deles antineoliberal, salvo na medida
Torga, Edmundo de Bettencourt, Mário campo literário, foi sem dúvida em con-
Dionísio e Vergílio Ferreira, e.g.), fazendo sequência das condições sociais e políti-
com que a revista fosse considerada com cas em que germinou e se desenvolveu,
um certo carácter contrarrevolucionário. que tinham no mundo da arte uma das
Muitos anos mais tarde, um seu colabo- maiores resistências à ditadura, que se
rador, Adolfo Casais Monteiro, diria que manteve praticamente durante meio sé-
“A Presença representava, para alguns dos culo. Nesse longo período e nesse con-
seus elementos, apenas o lado crítico, texto, pretender a humanização da arte
nesta nova situação do homem” (MON- numa sociedade oprimida e propôr não
TEIRO, 1972, 27). só retratar a realidade mas, como preten-
Num momento em que a oposição aos dia Karl Marx, transformá-la, eram pro-
neorrealistas tinha avançado bastante, os pósitos que naturalmente levaram a uma
autores ligados ao movimento da Presen- grande adesão ao neorrealismo.
ça continuavam ensimesmados na defesa
da ideia de sinceridade e de um certo
Bibliog.: ANDRADE, João Pedro de, Ambições e
biografismo, que se confundia já com
Limites do Neo-Realismo Português, Lisboa, Acon-
um romantismo requentado, o escritor tecimento, 2002; DIONÍSIO, Mário, Introdução
José Rodrigues Miguéis centrou, num à Pintura, Lisboa, Europa-América, 1963; FER-
depoimento ao Diário de Lisboa, o essen- REIRA, José Gomes, A Memória das Palavras,
cial dessa polémica nos termos seguin- Lisboa, Portugália, 1965; GUIMARÃES, Fer-
tes: “Uma literatura que não responde nando, A Poesia da Presença e o Aparecimento do
às interrogações da sua época – pelo Neo-Realismo, Porto, Inova, 1969; LOURENÇO,
Eduardo, Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista,
menos – está condenada ao desapareci-
Lisboa, Ulisseia, 1968; Id., Tempo e Poesia, Porto,
mento. [...] A própria literatura desinte- Inova, 1974; MARTINS, Mando, “José Régio
ressada, sem parti-pris, convicta de neu- – Casais Monteiro. Poetas”, Sol Nascente, n.º 20,
tralidade, tem de mergulhar raízes na 1 jan. 1937, p. 13; MENDONÇA, Fernando,
realidade social e moral do seu tempo” O Romance Português Contemporâneo, São Paulo,
(“Rodrigues Migueis…”, Diário de Lisboa, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências de As-
22 mar. 1935, 6). sis, 1966; MONTEIRO, Adolfo Casais, A Poesia
Foi aliás a rejeição da ideia da arte pela da Presença, Lisboa, Moraes Editores, 1972;
PITA, António Pedro et al., Batalha pelo Conteú-
arte, lema dos presencistas nesse debate,
do: Movimento Neo-Realista Português, Vila Franca
que levou ao afastamento de alguns auto- de Xira, Museu do Neo-Realismo, 2007; RÉ-
res que formaram um grupo de dissiden- GIO, José, “Literatura viva”, Presença, n.º 1, 10
tes da Presença em 1930: Miguel Torga, mar. 1927, pp. 1-2; “Rodrigues Migueis num
Branquinho da Fonseca e Edmundo de incisivo depoimento afirma que a literatura se
Bettencourt. Na revista Manifesto (Coim- libertou das disciplinas”, Diário de Lisboa, sup.
bra, 1936), dirigida por Miguel Torga e lit., 22 mar. 1935, p. 6; RODRIGUES, Urbano
Tavares, Realismo, Arte de Vanguarda e Nova Cul-
Albano Nogueira, lê-se precisamente nova
tura, Lisboa, Ulisseia, 1966; SACRAMENTO,
contestação a essa teoria da arte pela arte. Mário, Há Uma Estética Neo-Realista?, Lisboa,
Em suma, o neorrealismo consolidou Dom Quixote, 1968; TORRES, Alexandre Pi-
‑se no mundo da arte em Portugal como nheiro, O Neo-Realismo Literário Português, Lis-
corrente estética dominante entre os boa, Moares Editores, 1977; Id., O Movimento
anos 40 e os anos 60, prolongando-se até Neo-Realista em Portugal na Sua Primeira Fase,
perto do final do séc. xx, tendo sido um 2.ª ed., Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
dos seus movimentos mais férteis. E se se Portuguesa, 1983.
prolongou no tempo, especialmente no Jorge Augusto Maximino
A s repercussões do desenvolvimento
científico observado após a publi-
cação dos Philosophiæ Naturalis Principia
Outro nome proeminente foi Bento de
Moura Portugal, cuja aprendizagem da
filosofia newtoniana, durante a sua esta-
Mathematica (1687), do inglês Isaac New- da em Inglaterra, foi feita em contacto
ton, fizeram-se sentir em Portugal logo direto com alguns dos mais reputados
na primeira metade do séc. xviii. Ainda discípulos de Newton, entre os quais o
Newton era vivo e já Luís Baden promo- referido Desaguliers. O seu regresso a
via em Lisboa, em 1725, conferências so- Portugal viria, porém, a revelar‑se uma
bre filosofia experimental, onde se expli- opção trágica, uma vez que teve um fim
cavam metodicamente os fundamentos e de vida dramático. Com efeito, apesar do
as experiências dos filósofos modernos, seu prestígio, Moura Portugal viveu os
com especial destaque para os famosos últimos anos da sua vida na cadeia, em
Robert Boyle e Isaac Newton. Anteriores condições absolutamente desumanas,
a 1759, há registos da existência de obras vítima do despotismo reinante. Teodoro
de Newton nas bibliotecas do Colégio de Almeida fez-lhe justiça ao não o dei-
das Necessidades de Lisboa, pertencente xar cair no esquecimento, declarando de
à Congregação do Oratório, e no Colé- um modo bem claro a sua admiração pela
gio das Artes, no Colégio de S.to Antão pessoa e pelas ímpares qualidades inte-
e na Univ. de Évora, pertencentes aos lectuais deste estudioso.
Jesuítas. Também as obras dos principais
divulgadores do newtonianismo, Jean Isaac Newton (1643-1727).
Theophile Desaguliers, Petrus van Muss-
chenbroek e Willem Jacobs Gravesande,
começaram a surgir muito cedo nas bi-
bliotecas nacionais.
Um acontecimento que muito terá con-
tribuído para a difusão da filosofia new-
toniana em Portugal foi a ida do judeu
Jacob de Castro Sarmento para Inglater-
ra, para fugir à Inquisição, fixando‑se, em
1721, em terras britânicas, mas manten-
do uma importante influência sobre a
cultura portuguesa. Castro Sarmento foi
membro do Real Colégio dos Médicos e
da Royal Society de Londres; na Escócia,
recebeu o grau de doutor na Univ. de
Aberdeen. Tomou conhecimento da teo-
ria newtoniana em Londres, nas confe-
rências de Desaguliers. Uma das princi-
Antiniilismo
Este niilismo consumado já não cor- própria humanidade –, Husserl vai tentar
responde à velha herança platónica de reconduzir a esfera da ciência e da huma-
uma excessiva vontade de verdade – em nidade ao seu telos próprio, i.e., à essência
Sócrates, que era ainda demasiado grego, do modo de vida filosófico que se desvela
havia nessa vontade de verdade qualquer na Grécia clássica: “Que aprende a hu-
coisa de excessivo, que funcionava como manidade europeia, no homem antigo,
índice de uma vida transbordante –, mas como o essencial? Após alguma hesitação,
acaba por se perpetuar numa dissolução não é senão a forma de existir ‘filosófica’:
sem fim e num cálculo que, para Nietzs- o dar-se livremente a si mesmo, a toda a
che, só o excesso da arte pode contrariar. sua vida, as suas regras, a partir da razão
O pensamento pós-nietzschiano ficou pura, a partir da filosofia” (Id., Ibid., 23).
marcado pelo tema do niilismo e do an- De tons bastante mais sombrios, a obra
tiniilismo. Acontecimentos posteriores de Freud responde de forma diversa aos
vieram dar à ideia nietzschiana de uma acontecimentos da sua época. Profunda-
dissolução e de uma decadência matizes mente marcado pelos acontecimentos da
sombrios que são conhecidos e que in- Primeira Guerra Mundial, é esta última
fluenciaram um conjunto diverso de pen- que permite a Freud pensar a sociedade
sadores – de Adorno a Benjamin, passan- humana em geral. E o que, de facto, ele
do por Heidegger e Husserl. pensa encontrar nesta não é mais do que
Escrita entre 1935 e 1936, a obra de uma “sucessão de genocídios”: “é preci-
Husserl intitulada A Crise das Ciências samente a ênfase do mandamento ‘não
Europeias e a Fenomenologia Transcendental matarás’ que nos permite concluir com
acaba por se inserir num conjunto de certeza que todos nós descendemos de
gestos teóricos que olham a Europa e a uma linhagem infinitamente longa de
civilização como algo que se encontra à assassinos, que tinham no sangue o pra-
beira do perigo. Tendo como pano de zer de matar, como talvez nós tenhamos”
fundo uma realidade sombria, o texto (FREUD, 2008, 143).
de Husserl não fala, é certo, de niilismo, Partindo do pressuposto de que o in-
mas reconhece que é a própria essência consciente não conhece tempo, Freud
da Europa que se encontra em risco de avançará a hipótese de que a guerra en-
perecer. “Esta inversão não diz respeito à tre nações se deve a uma regressão a es-
sua cientificidade, mas ao que a cientifi- tados mentais primitivos que permanece
cidade, ao que a ciência em geral tinha sempre possível. É desta forma que Freud
significado e pode significar para a exis- irá pensar toda e qualquer sociedade
tência humana. A exclusividade com que, humana: como um perigo constante e
na segunda metade do século xix, toda como algo onde trabalha desde sempre
a mundividência do homem moderno se uma tendência para o inorgânico mer-
deixou determinar pelas ciências positi- cê das “más pulsões” do homem. Cada
vas, e cegar pela prosperity a elas devida, sociedade humana assenta, assim, numa
significou um virar costas indiferente às polarização: por um lado, uma força so-
questões que são decisivas para uma hu- cial, assente na pressão do erotismo, e ci-
manidade genuína. Meras ciências de fac- vilizacional, impondo uma conduta ética;
tos fazem meros homens de facto” (HUS- por outro lado, permanece sempre a base
SERL, 2008, 21). instintiva primitiva, feita dessa linhagem
Face ao empobrecimento do sentido infinita de assassinos e desse genocídio
da ciência – e, com ela, do sentido da perpétuo.
Neste domínio da técnica, que Heideg- pela poesia uma disposição para o apare-
ger entende sob a forma de um niilismo cer do Deus ou para a ausência do Deus
consumado, i.e., de uma transformação em declínio” (Id., Ibid., 122).
do ser em valor, há um motivo que cum- Encontramos, na cultura portugue-
pre assinalar: uma crítica ao individua- sa, um número extenso de pensadores,
lismo lida a partir da técnica. De facto, de Antero de Quental a Fernando Pes-
para Heidegger, há dois fenómenos que soa, passando por Teixeira de Pascoaes,
se tornam o correlato um do outro: por no seio dos quais surge um conjunto
um lado, a objetivação e o objetivismo – o de ideias que já encontrámos tanto em
mundo tornando-se imagem –, por outro Schiller e no romantismo como em Niet-
lado, o subjetivismo moderno, a desco- zsche. Acima de tudo, encontramos essa
berta do ego cogito [eu penso], a ponto de visão da sociedade e do país como algo
o mais radical objetivismo encontrar o que está capturado numa decadência e
igualmente radical subjetivismo. numa progressiva dissolução. Antero de
Numa entrevista podemos encontrar o Quental, e.g., no conhecido texto Causas
apelo de Heidegger a um “outro pensar” da Decadência dos Povos Peninsulares nos Úl-
enquanto forma de “ultrapassagem” do timos Três Séculos, aponta a influência pro-
niilismo. Se a metafísica ocidental “já não gressiva da Igreja romana como uma das
oferece possibilidade nenhuma de fazer causas dessa corrupção geral: “Tal é uma
a experiência de pensar os traços funda- das causas, senão a principal, da decadên-
mentais da técnica” (Id., 1989, 124), o cia dos povos peninsulares. Das influên-
“outro pensar” apela para o impensado cias deletérias nenhuma foi tão universal,
da técnica: “ao mistério da superpotência nenhuma lançou tão fundas raízes. Feriu
planetária da essência impensada da téc- o homem no que há de mais íntimo, nos
nica responde a provisoriedade e a insig- pontos mais essenciais da vida moral, no
nificância do pensar que procura reflec- crer, no sentir – no ser: Envenenou a vida
tir sobre este impensado” (Id., Ibid., 125). nas suas fontes mais secretas” (QUEN-
No entanto, este retorno, que marca a TAL, 2001, 23).
possibilidade da inversão, é, igualmente, Todavia, não é tanto quando faz ape-
uma possibilidade de “estabelecer uma lo à noção de decadência ou de corrup-
relação suficientemente rica à essência da ção – apesar de algo de semelhante ser já
técnica” – técnica que, desta forma, não pensado – que encontramos uma respos-
é encarada, por Heidegger, “como uma ta ao niilismo: esta decadência pode ain-
dependência impossível de desenvenci- da ser invertida se as suas causas forem
lhar e de separar” (Id., Ibid., 126). Que, combatidas.
assim, este antiniilismo seja, ao mesmo É necessário fazer referência a uma
tempo, uma tarefa inadiável e algo para o outra tradição, que permanece próxima
qual ainda não estamos preparados, não desta, porque é aí que encontramos for-
é difícil de perceber: “a filosofia não pode mulado um forte pensamento antiniilis-
provocar nenhuma alteração imediata do ta: a teoria do sebastianismo. Pensado sob
atual estado do mundo. Isto não é válido inúmeras formas e em contextos políticos
apenas em relação à filosofia, mas tam- diversos, o sebastianismo confronta-nos
bém a todos os sentires e anseios mera- com uma sociedade totalmente captu-
mente humanos. Já só um Deus nos pode rada pela negatividade e que, de certa
ainda salvar. Como única possibilidade, forma, encontrou o limite extremo da
resta-nos preparar pelo pensamento e dissolução num afastamento radical em
a partir de uma avaliação moral que lhes loração, mas é o ser que dá ao dever ser o
será sempre subjacente, sem recurso a seu conteúdo. A norma, construída e ins-
quaisquer fundamentos derivados da na- tituída pela teoria normativista, mais não
tureza humana –, existem dois autores é do que a expressão da visão burguesa da
que protagonizam a reação ao positivis- vida, e, por conseguinte, a tentativa de a
mo. Em primeiro lugar, Lon Fuller (1902 legitimar por meio do direito. Ou seja, o
‑1978), que protagonizou o chamado direito, e em particular o direito positivo,
debate Hart-Fuller (fevereiro de 1958), é uma reprodução abstrata das relações
com um artigo publicado na Harvard Law de poder estabelecidas pelo capital; os
Review, intitulado “Positivism and fidelity seus valores (ou os valores que o direito
to law: a reply to professor Hart”, em que cria mediante a instituição da norma) são
apresenta uma réplica antinormativista valores burgueses, logo, profundamente
a um artigo de Hart, também publicado particulares e interessados na manuten-
naquela revista, e intitulado “Positivism ção das estruturas de poder existentes
and the separation of law and morals”. (da chamada superestrutura), na distân-
Para Fuller, a lei, à qual reconhece uma cia abissal a que existe da base. Nenhum
moralidade interna, tem de obedecer a direito pode ser universal e igualitário se
oito requerimentos: deve ser geral; deve assente nas dinâmicas inerentes ao ma-
ser conhecida por todos, quando promul- terialismo dialético; pelo contrário, ape-
gada; não deve ser aplicada retroativa- nas pode ser particular e desigualitário,
mente; deve ser compreensível; não deve ao favorecer a ideologia burguesa e a sua
ser contraditória na sua formulação; não tomada de posição unilateral face à rea-
deve exigir uma conduta que fique para lidade (e a um seu segmento muito par-
além das capacidades daqueles a quem se ticular, que é o dos meios de produção).
aplica; deve permanecer a mesma ao lon- Dois nomes representam o antinorma-
go do tempo; e deve haver congruência tivismo marxista: Pyotr Stutchka (1865
entre o seu anúncio e a sua efetiva aplica- ‑1932) e Evgeni Pachukanis (1891-1937),
ção. Em segundo lugar, Ronald Dworkin juristas russos que, além de serem perso-
(1931-2013), protagonista do chamado nalidades marcantes do séc. xx, se des-
debate Hart-Dworkin, que, no seu ensaio tacaram pela sua produção intelectual.
“The model of rules” (1967), onde faz Refira-se que Pachukanis, em especial,
um ataque geral ao positivismo, escolhe chegou a ler e criticar textos de Kelsen;
a versão de Hart como alvo. a sua obra A Teoria Geral do Direito e o Mar-
O normativismo sofre ainda oposição xismo (1924) é particularmente relevante
por parte das chamadas ciências sociais, no quadro destas discussões, pois trata-se
bem como por parte do marxismo, que de um texto que pretende pôr em evidên-
pode ser considerado um dos expoentes cia que o normativismo abre um fosso in-
máximos da oposição ao normativismo. transponível entre o mundo das normas e
Com efeito, na mundividência marxista, o mundo das relações concretas.
a separação entre o ser e o dever ser pre- Em Portugal, o jusnaturalismo passou
conizada pela teoria normativista não faz por diversas fases, desde o jusnaturalis-
qualquer sentido, porque a normativida- mo escolástico e renascentista, até cerca
de abstrata do direito se encontra susten- do séc. xviii, altura em que entraram
tada pelo ser concreto das relações sociais em cena o jusracionalismo iluminista, o
que se estabelecem entre os homens: não jusnaturalismo sensista e utilitarista, e o
é o dever ser que institui o ser e a sua va- jusnaturalismo krausista, até aos movi-
No séc. xix, Amorim Viana (1822 zão prática. António Castanheira Neves
‑1901), Sampaio Bruno (1857-1915), Oli- (n. 1929), por fim, vê o direito como uma
veira Martins (1845-1894), Antero de intenção valorativa capaz de imprimir
Quental (1842-1891) e Manuel Ferreira validade à norma, em que a “intenciona-
Deusdado (1860-1918) reagiram ao posi- lidade normativa” é “transpositiva” (Id.,
tivismo de Comte, que, como vimos, teve Ibid., 132), ou seja, depende da impossi-
influência na forma moderna de pensar bilidade de atribuir um preço à pessoa
o direito. humana, que é detentora de dignidade.
No séc. xx, apareceram as respostas Apesar de considerar que o direito na-
ao normativismo. Cabral de Moncada tural não é objetivamente reconhecível,
(1888-1974), neokantiano, desenha o concorda que depende de qualquer coisa
direito natural como sendo constituído (a intenção normativa) de transcendente
por “ideais éticos e [...] princípios morais às circunstâncias finitas.
de valor universal, existentes a priori na
consciência, e por aquela ideia e senti-
mento inato de Justiça sempre presentes
na consciência”; e como uma forma que,
Bibliog.: BEIRNE, Piers, e SHARLET, Robert
em cada época, recebe “um conteúdo (orgs.), Pashukanis: Selected Writings on Mar-
material próprio” (Id., Ibid., 115), depen- xism and Law, London, Academic Press, 1980;
dente das circunstâncias histórico-sociais. DWORKIN, Ronald M., “The model of rules”,
Um dos seus discípulos, António Ramos University of Chicago Law Review, vol. 35, n.º 1,
de Almeida (1912-1961), criticou o nor- 1967, pp. 14-46; FULLER, Lon L., “Positivism
mativismo kelseano na obra A Teoria Pura and fidelity to law: a reply to professor Hart”,
Harvard Law Review, vol. 71, n.º 4, fev. 1958,
do Direito de Hans Kelsen. Delfim Santos
pp. 630-672; HART, H. L. A., “Positivism and
(1907-1966) eliminou a distinção entre the separation of law and morals”, Harvard
direito natural e direito positivo ao de- Law Review, vol. 71, n.º 4, fev. 1958, pp. 593
fender que só existe direito natural; para ‑629; KELSEN, Hans, Pure Theory of Law, Clark,
ele, qualquer norma, em sentido técni- The Lawbook Exchange, Ltd., 2005; MAC-
co, consubstancia-se como expressão de CORMICK, Neil, e WEINBERGER, Ota, An
um imperativo que tem a sua origem no Institutional Theory of Law: New Approaches to Le-
gal Positivism, Dordrecht, D. Reidel Publishing
interior do Homem; ao seguir uma li-
Company, 1992; PATTERSON, Denis (org.),
nha existencialista (Heidegger, Sartre), A Companion to Philosophy of Law and Legal Theory,
pensa o Homem como existência, não s.l., Wiley-Blackwell, 2010; SHAPIRO, Scott
como essência, e conclui, por isso, que J., The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide
o direito não pode ser objeto de raciocí- for the Perplexed, Public Law and Legal Theory
nios indutivos ou dedutivos, edificado em Working Paper Series, University of Michigan
abstrações normativistas. João Baptista Law School, working paper n.º 77, mar. 2007;
Machado (1927-1989) é outro crítico de SOARES, Moisés Alves, e PAZELLO, Ricardo
Prestes, “Direito e marxismo: entre o antinor-
Kelsen, mais precisamente no ponto que
mativo e o insurgente”, Revista Direito e Práxis,
diz respeito à natureza lógica da norma: vol. 5, n.º 9, 2014, pp. 475-500; TEIXEIRA,
como esta não pode senão derivar da ex- António Braz, O Pensamento Filosófico-Jurídico
periência subjetiva do sujeito que conhe- Português, Lisboa, Instituto de Cultura e Lín-
ce, o erro do normativismo é um vício de gua Portuguesa/Ministério da Educação e
sub-repção – para utilizar uma expressão Cultura, 1983; Id., História da Filosofia do Direito
marcadamente kantiana – entre o do- Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2005.
mínio da razão pura e o domínio da ra- Álvaro Almeida
O antinotivaguismo constituiu um
movimento social que se impôs
contra a frequência noturna das ruas,
é o melhor caminho para compreender,
como já dizia Aristóteles, ver é conhecer,
é distinguir contornos, é reconhecer, mes-
em algumas alturas sob punição legal, mo que apenas superficialmente. A inca-
outras apenas social. Prende-se, acima pacidade de distinguir, na obscuridade,
de tudo, com um desejo de ordem e de um arbusto de um ladrão alinha com a
tranquilidade, sentido principalmente nossa vertente mais irracional, estimula
no espaço da cidade, segundo o qual se a imaginação e, consequentemente, abre
tentava vedar a perambulação noturna um mundo paralelo onde tudo é possível,
tanto a homens como a mulheres. Duran- pois não o controlamos. Por outro lado,
te a noite, a presença de alguém na rua em alguns tratados médicos quinhentistas
facilmente se associava a criminalidade, e seiscentistas vemos descrito que era co-
a prostituição ou a vagabundagem. Este mum atribuir a origem de diversas doen-
movimento aconteceu um pouco por to- ças contagiosas aos ares da noite, que, ao
das as cidades, ao longo da sua história, penetrarem nos poros, poderiam colocar
muito embora alguns factos históricos, em risco os órgãos vitais, registando-se um
como o advento de diversos avanços cien- maior número de óbitos durante a noite,
tíficos e tecnológicos, nomeadamente a imputáveis à mesma causa.
difusão da iluminação artificial, tenham Mais tarde, nomeadamente com o movi-
alterado em muito a relação do Homem mento do Iluminismo durante o séc. xviii,
com a noite, especialmente na transição em termos culturais, e, depois, no contex-
da época moderna (sécs. xv a xvii) para to tecnológico, com a iluminação pública
a contemporânea (sécs. xviii a xx). a gás (que, na maior parte dos países, se
Antes de mais, a noite traz a lume o desenvolveu durante os anos de Setecen-
receio do desconhecido, sempre associa- tos, mas que em Portugal foi fomentada
do à escuridão e aos seus meandros. Ao apenas na segunda metade do séc. xix),
longo dos tempos, várias foram as formas as crenças em bruxas e no sobrenatu-
de representação do “outro” feitas pelo ral geralmente amenizaram. Em 1746,
antinotivaguismo, admitindo que ele é o aquando da inauguração da iluminação
desconhecido: aquele que vagueia de noi- pública em Paris, anunciou-se que o rei-
te pode ser, desde há séculos, a bruxa, o no da noite havia finalmente terminado.
monstro, o ser de outro mundo, o vam- Semelhantes reações haveriam de fazer
piro, o lobisomem, entre outras formas ‑se sentir, cerca de um século mais tarde,
de expressão de um imaginário bastante quando se inauguraram os candeeiros a
rico, como corrobora Joel Serrão no seu gás no Chiado, em Lisboa. Mesmo o ar
estudo sobre a noite: “Sair à noite? Era da noite, que antes se acreditava ser tão
tão perigoso como aventurar-se alguém nocivo, tornou-se calmante e refrescante,
no mar encapelado” (SERRÃO, 1978, e até aconselháveis os passeios pelas ruas
22). Em vários documentos, verificamos iluminadas a gás e pelo luar. Foi, de facto,
uma mudança drástica na relação dos ta. Apesar de existir nas cidades bastante
citadinos com a noite. Todavia, outros vida noturna, que muitas vezes se prolon-
medos permaneceram ou sobrevieram: gava até de madrugada, como é possível
da devassa da propriedade ou do corpo, verificar pelos jornais e por outros docu-
designadamente dos roubos, das facadas, mentos da época, a verdade é que existia
dos assaltos, realidades que se viam noti- uma certa hora, principalmente em certos
ciadas nos jornais urbanos e até rurais e locais, em que as ruas ficavam desertas e
que alimentavam novas abordagens aos os indivíduos que surgiam eram quase
medos do noctívago. sempre assustadores. Note-se que, no que
A própria legislação aconselhava ao an- diz respeito à instalação da iluminação a
tinotivaguismo, desde o facto de um crime gás, os bairros mais pobres foram deixados
ser mais gravemente punido se cometi- para último lugar; logo, durante largos
do durante a noite, até ao caso de quem anos, enquanto as zonas mais importantes
fosse apanhado a vaguear nas ruas sem de Lisboa estavam já há muito iluminadas,
propósito ser levado para uma casa da mi- bairros como Alfama, Mouraria e Madra-
sericórdia ou para a prisão, como vemos goa continuavam à mercê do breu que se
várias vezes descrito em textos de Fialho instalava ao anoitecer. Como consequên-
de Almeida e de Eça de Queirós, para cia disso, era precisamente nesses bairros
exemplificar o caso português oitocentis- que ocorria a maior parte dos crimes e que
se encontravam com facilidade os leitos da
Avenida Clichy, Cinco Horas da Tarde (1887), prostituição e o jogo ilegal.
de Louis Anquetin. Deste modo, o noctâmbulo era usual-
mente caracterizado como um elemento
exterior à sociedade, que escolhia estar
fora dela violando os seus hábitos instituí-
dos. O antinotivaguismo era particular-
mente atuante sobre todos aqueles que
perambulavam de noite pelas cidades
aquém de qualquer moldura social ou
profissional lícita.
O trabalho noturno, advindo princi-
palmente da Revolução Industrial e dos
seus avanços tecnológicos, veio interferir
de certa forma com esta situação. Ainda
assim, permaneceu durante muito tempo
vedado ao sexo feminino, não só devido
ao desgaste físico que imprimia nos tra-
balhadores, mas também pelo perigo que
representava. Além do trabalho por tur-
nos, nas fábricas ou nos hospitais, existia
o trabalho da polícia, a qual, a partir de
meados do séc. xix, oficializou uma das
suas funções para o período da noite na
figura do guarda-noturno (sendo que, na
prática, já existiam há muito tempo guar-
das destacados para este efeito).
nal, que toma posse em 1985, acaba por necessária, que passa por contrariar os
apostar no uso do carvão como fonte pri- níveis pouco sustentáveis e bulímicos de
mária de energia e no desenvolvimento consumo associados aos estilos de vida.
de aproveitamentos hidroelétricos. Por sua vez, os defensores do nuclear ad-
No contexto internacional, o movi- vogam que este é hoje uma tecnologia
mento contra as centrais nucleares co- regulada e segura, que pode contribuir
meça a ganhar uma expressão e adesão para combater o aquecimento global,
crescentes com a ocorrência de alguns devido à ausência de emissões de dióxi-
acidentes nucleares graves e o conhe- do de carbono, e que, estando cada vez
cimento progressivo dos consequentes mais próximo o esgotamento das reser-
efeitos cancerígenos induzidos pela ex- vas de combustíveis fósseis, é o único
posição contínua e excessiva à radioati- meio capaz de assegurar os consumos
vidade. Em 1979, ocorre, como foi refe- energéticos em que assenta a sociedade
rido, o acidente nuclear de Three Mile contemporânea.
Island; décadas antes, em 1957, aconte- Os argumentos a favor do nuclear ti-
cera o acidente de Windscale, em Ingla- veram um apoio particularmente impor-
terra. Em 1986, em Tchernobil, na então tante quando James Lovelock, um dos
União Soviética, ocorre por falha hu- principais teorizadores do movimento
mana o mais grave acidente da história ecologista mundial, publicou, em maio
das centrais nucleares. O segundo mais de 2004, o artigo de opinião “Nuclear
grave sobrevém, após um violento sismo power is the only green solution [A ener-
e tsunami, na central de Fukushima Daii- gia nuclear é a única solução verde]” no
chi, no Japão, em 2011. Se a literatura jornal britânico Independent. Nesse arti-
académica já tinha classificado Three go, Lovelock defende que só o nuclear
Mile Island como um “risco tecnológico pode travar o aquecimento global, que
maior” (LAGADEC, 1981, 47-54), Tcher- os medos face ao nuclear são irracionais
nobil e Fukushima vieram mostrar o pe- e injustificados, e que o tempo que resta
rigo numa escala ainda mais elevada. ao planeta e a nós não é compatível com
A dissensão sobre o nuclear inscreveu a procura e a experimentação de outras
‑se em diferentes mapas de compreensão fontes de energia. Já o lado que se opõe
do tema, esgrimindo-se posições a favor ao nuclear tem vindo a alicerçar-se na
ou contra as centrais no que diz respei- ideia de que não é possível quantificar
to à segurança, aos impactos ambientais, de forma precisa os perigos das centrais
à confiança na ciência, na tecnologia e nucleares, e que, dados os seus poten-
nos mecanismos de controlo, e às con- ciais efeitos ao longo do tempo, a pon-
ceções de desenvolvimento e bem-estar deração de fatores éticos deve obrigato-
socioeconómico. Em geral, os opositores riamente entrar na decisão sobre a sua
do nuclear salientam os riscos de segu- aceitabilidade (a este propósito, veja-se a
rança, os custos de produção elevados, obra de Kristin Shrader-Frechette).
a longevidade da radioatividade dos re- No início do séc. xxi, o nuclear volta a
síduos nucleares e o legado às gerações ser equacionado em Portugal. Decorria
vindouras, e defendem o aproveitamen- então o 16.º Governo constitucional, de
to de recursos energéticos renováveis curtíssima duração (julho de 2004-mar-
e a eficiência energética; argumentam ço de 2005), presidido por Pedro Santa-
ainda que a energia nuclear constitui na Lopes. A proposta de construção de
um simples adiamento de uma mudança uma central nuclear foi tornada pública
suas partes: o visível é sinal do oculto e este o assunto no âmbito difícil da direção es-
pode ser apreendido por mediação do piritual, dos retiros espirituais e das práti-
que se manifesta: “A natureza não é quem cas de confissão. Muitas diligências con-
menos observa a regularidade entre as fi- tra manifestações de fenómenos ligados
guras, e os mistérios delas; […] donde ao ocultismo poderão ter sido realizadas
vemos que as fisionomias naturais poucas nos segredos dos confessionários, como
vezes enganam, reverberando na figura, e mostra o texto de Domingos Barroso Pe-
aspeto humano as qualidades intrínsecas, reira Arte de Conhecer, e Confessar Feyticeyras
e ocultas” (MELO, 1724, 176). Vivendo (c. 1745).
tempos perigosos para curiosidades in- Toda a história das práticas exorcistas
telectuais pelo oculto, D. Francisco tem da Igreja Católica é uma vasta cruzada
a preocupação de apartar claramente o contra o mal substantivado e a possessão
estudo erudito da cabala das utilizações demoníaca, assunto que é, quiçá, a mani-
esotéricas dessa ciência oculta, nomeada- festação mais violenta do oculto. O inte-
mente na previsão de eventos: “a justa Ca- resse público por esse assunto é constante
bala foi uma profunda meditação de mis- ao longo dos tempos, apesar dos ata-
térios ocultos deduzida de nomes, letras, ques do cientismo positivista do final do
números, e figuras dos livros divinos; e a séc. xix. Os movimentos contra os mila-
injusta uma ficção Judiciária, que incer- gres de Lourdes (Alfredo de Magalhães,
tamente prognosticava do futuro por vãs Brito Camacho, etc.) e as aparições de
observações, misturando o sagrado, e o Fátima (Tomás da Fonseca, João Ilharco,
profano” (Id., Ibid., 35). Os mistérios das Mário de Oliveira, etc.) constituem uma
letras e da linguagem são uma das mani- amplificação do recato habitual com que
festações mais recorrentes do ocultismo. se lida com os assuntos do oculto. O re-
D. Francisco interessou-se por ele, mas cato também é, neste âmbito, um fenó-
haveria de acrescentar a tradição hermé- meno merecedor de estudo sistemático.
tica ocidental, a linguagem das aves dos Os silenciamentos da história muito rica
textos hagiográficos, as cartas de tocar de e antiga das manifestações aparentemen-
curandeiros como Luís de la Penha, os te marianas (e.g., o caso da Asseiceira,
sinais do pacto luciferino, os anagramas perto de Rio Maior, em 1954) talvez pos-
e as composições combinatórias do bar- sam ser categorizados como diligências
roco, os sinais percecionados em raptos antiocultistas, tal como o hipotético apro-
místicos e rituais mágicos, e, já com men- veitamento religioso de fenómenos não
talidade iluminista, a procura de cifras religiosos na sua essência. Nada dizer,
para facilitar as comunicações diplomáti- pouco dizer e dizer de modo diferente
cas e náuticas, aceder às mensagens dos poderão ser as ferramentas mais eficazes
inimigos e dificultar o acesso dos mesmos dos movimentos contra as manifestações
às nossas mensagens. do oculto. A questão do número das pes-
O cuidado que D. Francisco revela nos soas envolvidas não pode também ser es-
seus estudos sobre a cabala judaica é im- quecida; uma coisa são diligências contra
portante, contudo, para outra linha de pessoas individuais que de algum modo
análise. A reserva dos intelectuais, o si- se cruzaram com o oculto, outra muito
lêncio das academias e a autocensura dos diferente são medidas contra grupos in-
autores são dificuldades que atravessam a teiros (bruxas, cabalistas, espíritas, feiti-
história das medidas antiocultistas portu- ceiros, magos, maçons, etc.). Há que no-
guesas. Seria importante rastrear também tar a raridade de processos inquisitoriais
(Id., Ibid., 94). No tempo de D. Maria I, rais da Europa” (MACEDO, 1810, 3). Em
a lei “pela qual manda criar a Junta do O Homem, ou os Limites da Razão: Tentativa
Protomedicato, extinguindo os empregos Filosófica, perspetiva o oculto de um pon-
de Físico-Mor e Cirurgião-Mor do Reino”, to de vista epistemológico e ontológico.
de 17 de junho de 1782, foi decisiva para Denunciando a impotência da razão hu-
acabar com os remédios de segredo. Me- mana perante a dimensão oculta da na-
didas da própria Junta, como o edital tureza e da ordem geral do ser, desabafa
“mandando que os médicos, cirurgiões, que “tudo é sombra, enigma e ignorân-
farmacêuticos, etc., apresentem os seus cia”, mas também “abismo” e “escuridão
títulos perante a mesma Junta”, de 23 de espantosa” (Id., 1815a, 4, 8 e 9). Nas suas
julho de 1782, iniciou a era do controlo Cartas Filosóficas a Ático, de 1815, compara
corporativo das profissões ligadas à pres- o ser humano a um manuscrito com uma
tação de cuidados de saúde, advertindo língua inteiramente incógnita de que não
que, caso os títulos não fossem apresen- se tem “o mais pequeno vislumbre sobre
tados pelos profissionais, se deveria “pro- a sua significação” (Id., 1815, 248). Um
ceder contra eles como for justiça”. Um pensamento filosófico que não esconde
teórico da medicina, como José Henri- o problema da impotência da razão tem
ques Ferreira, publica o seu Discurso Crí- valor duradoiro. O lado positivo desta
tico em que Se Mostra o Dano Que Tem Feito denúncia é a afirmação do oculto como
aos Doentes, e ao Progresso da Medicina em horizonte permanente da inteligência
Todos os Tempos, a Introdução e Uso de Re- humana. Como não se vê que a denúncia
médios de Segredo, e Composições Ocultas, não não seja verdadeira, segue-se que o oculto
só pelos Charlatães, e Vagamundos, mas tam- talvez devesse aproximar-se do centro das
bém pelos Médicos, Que os Têm Imitado, de investigações filosóficas e científicas.
1785. O título longo é um programa de Opinião muito diferente tinha o de-
ação contra os segredistas que preparam sembargador vintista Manuel Borges
e vendem remédios secretos, do tipo de Carneiro, que considerava que a raciona-
“elixires de longa vida, tesouros da boca, lidade que se manifesta na filosofia tem
essências divinas, quintas-essências, águas força suficiente para acabar com todas as
angélicas” (CARVALHO, 1917, 72). Tam- manifestações do oculto, por ele conside-
bém o seu irmão, o médico Manuel Hen- radas contos de velhas, delírios, sandices,
riques de Paiva, na tradução anotada que ignorância, ridicularias, e “montão de
fez de uma obra de Tissot, considera que princípios escuros, pueris e arbitrários de
os segredos como as águas febrífugas, “ou que não pode resultar efeito algum real”
são invenções de charlatães ou de médi- (CARNEIRO, 1820, 9-10). A sua crença
cos ambiciosos” (PAIVA, 1786, 355). era a de que “o luzeiro da filosofia” irá
José Agostinho de Macedo pronun- descobrir os “segredos e forças ocultas da
ciou-se sobre várias formas de ocultismo. natureza” e anunciar à humanidade “de
Em 1810, em Os Sebastianistas: Reflexões quanto é capaz sem intervenção da magia
sobre esta Ridícula Seita, critica a utopia fabulosa” (Id., Ibid., 7). Borges Carneiro
sebastianista do rei oculto (&Antissebas- tem uma atitude militante e sem distân-
tianismo). É, contudo, a sua luta contra cia crítica perante as suas próprias afir-
a maçonaria que mais o irá ocupar (&An- mações. A oposição que descreve entre
timaçonismo). Na edição que fez da obra filosofia e magia fabulosa não explica a
do abade Barruel, considera os maçons continuidade multissecular da presença
“os motores invisíveis das calamidades ge- do oculto na vida das sociedades, nem o
paradoxo de, perante uma ciência futu- iniquidades; e minar a casa comum como
ra, qualquer ciência do passado parecer ladrões. Em conformidade com este en-
supersticiosa, porque, nas suas palavras, tendimento das atividades ocultas, Cle-
“nós passaríamos por mágicos na opi- mente XII condena e proíbe, sob pena
nião dos bárbaros que nos sucedessem” de excomunhão, as sociedades, juntas,
(Id., Ibid., 8). Mais tarde, já no séc. xx, ajuntamentos, congregações, assembleias
a terminar a Primeira Guerra Mundial, e conventículos secretos onde se propa-
José Augusto Correia critica os mistérios ga a herética pravidade. A bula Providas,
antigos aos quais, do seu ponto de vista, de Bento XIV, de março de 1751, denun-
a maçonaria e outras associações secretas cia a associação de homens de qualquer
foram buscar os seus rituais iniciáticos. religião ou seita, alertando para a perda
Para Correia, tratou-se de uma impostu- da pureza da religião católica. De acor-
ra dos sacerdotes para salvar “a essência do com Leão XII, especialmente dano-
e as fórmulas das religiões”, aumentado so é “o vínculo apertado e impenetrável
a influência sacerdotal (CORREIA, 1918, do segredo com que ocultam o que se
308). Estas manifestações de parte da eli- faz em seus conventículos” (LEÃO XII,
te intelectual do país contribuíram para 1828, 19). A bula Ecclesiam a Iesu Chris-
o processo de secularização da sociedade, to, de setembro de 1821, volta-se contra
afastando as referências ao oculto para as a seita dos carbonários e contra as asso-
margens da perceção pública. Outra ten- ciações secretas que nascem no âmbito
dência relevante, mas de sinal contrário, das universidades. Estas “seitas furiosas
foi a convicção de que os eventos sociais e detestáveis” desprezam o poder legíti-
são determinados por interesses ocultos. mo, consideram Cristo como escândalo
Há várias manifestações destas crenças, ou loucura, defendem a não existência
desde a providência de Deus que vigia a de Deus e a morte da alma juntamente
história humana, pelos conventículos de com o corpo. Pio VII aproxima os mem-
bruxas e associações secretas, até às con- bros aos priscilianos e a outras classes de
temporâneas teorias da conspiração. hereges antigos, acreditando que eles en-
A elite eclesiástica do país deixou pro- ganam “os fiéis com uma filosofia mun-
gressivamente de se interessar por com- dana” (Id., Ibid., 27). Em poucas páginas,
portamentos mágicos e outras manifesta- boa parte da história da Europa, de Pris-
ções ocultas; o que a preocupava eram as ciliano, que teve ação importante na His-
associações secretas com atuação política pânia ocidental do séc. iv, até ao séc. xix,
e influência social. A bula de Leão XII fica irmanada contra o mesmo perigo de
Contra os Pedreiros Livres, de março de associações cuja atividade oculta é alega-
1825, publicada em Portugal em 1828, faz damente causadora de grandes danos.
a recolha das medidas passadas da Santa A isto haveria de acrescentar, na sequên-
Sé contra as associações secretas. Destaca cia do Concílio de Trento, as várias edi-
‑se, assim, a bula In Eminenti, de abril de ções do índice tridentino; a bula Benedic-
1738, que alertava pela primeira vez con- tus Deus, de Pio IV, de 1564, cuja regra 9.ª
tra os gravíssimos danos que as atividades proíbe todos os livros sobre aeromancia,
ocultas de associações secretas causam astrologia judiciária, geomancia, encanta-
ao sossego temporal dos Estados e à saú- ções mágicas, hidromancia, nigromancia,
de espiritual das almas, nomeadamente: onomancia, piromancia, quiromancia; e
perverter o coração dos símplices; asse- a bula Coeli et Terrae, de Sixto V, de 1612.
tear ocultamente os inocentes; tramar Estas bulas e outros diplomas de teor
Antiopusdeísmo
esta acusação tenha perdido força e razão Em 2002, José Freire Antunes publicou
de ser dentro da Igreja (o teólogo Hans um livro no qual reuniu testemunhos de
Urs von Balthazar, que a terá insinuado, vida de cerca de 50 pessoas pertencentes
retirou-a expressamente, e a canonização à prelatura, permitindo verificar, em cer-
de Josemaría Escrivá não seria possível se ta medida, a representação que nela têm
a sua figura estivesse manchada com uma as mais variadas profissões e atividades,
leve sombra de heresia) continua a surgir e a heterogeneidade das proveniências
nos meios de comunicação social, em am- sociais dos seus membros. Fala-se ain-
biente laico. da, não sem relação com isto, de uma
Outra distorção afirma que a impor- suposta abundância de bens patrimo-
tância dada na espiritualidade da Obra niais, da fortuna pertencente à Obra,
ao trabalho profissional abre as portas trazendo implícita a denúncia de falta
ao chamado calvinismo católico, que de pobreza evangélica. No entanto, a
legitima ou estimula uma busca despro- utilização desse património, provenien-
porcionada da prosperidade material, te sobretudo de doações, para fins bem
da riqueza e do sucesso mundanos como delineados que nada têm que ver com o
fins em si mesmos. Porém, a obrigação enriquecimento dos membros nem com
de fazer o trabalho diário bem feito na qualquer obtenção de lucros, está à vista
espiritualidade de S. Josemaría nada tem e é passível de verificação: casas abertas
que ver com uma busca egoística do su- para estudo, trabalho e convívio, propor-
cesso, mas antes com o dever de cons- cionando as mais diversas atividades de
ciência para com a sociedade na qual se desenvolvimento humano e espiritual.
desempenha um papel específico para Note-se ainda que a propriedade destes
o bem comum; com uma visão positiva bens só se pode dizer da Obra em sen-
do trabalho como parte da realização tido impróprio, não jurídico, uma vez
autenticamente humana, a cocriação do que os seus proprietários são na realida-
mundo; e com o convite a tornar todas de “instituições de direito civil comum
as circunstâncias ordinárias da vida em constituídas por pessoas, na sua maio-
ocasião de oferecimento e amor a Deus ria do Opus Dei, que se associam para
e ao próximo. Não sem relação com esta, colaborar na ação formativa” da Obra,
surge a acusação de elitismo, i.e., de que pelo que “a responsabilidade pertence
os destinatários do trabalho apostólico aos leigos que constituem essas institui-
da prelatura seriam selecionados pela ções e é a eles que compete gerir os bens
sua pertença às elites económica e inte- económicos” (Gil, Opus Dei. Gabinete de
lectual, acabando também por perten- Imprensa, 24 fev. 2012), e não ao governo
cer a estas elites a maioria dos membros. central do Opus Dei.
Contrariando esta imagem, apresentam
‑se factos e números, nomeadamente a
existência de centros da Obra junto de Bibliog.: impressa: ALLEN JR., John, Opus
meios sociais desfavorecidos, que são Dei: Um Olhar Objectivo para lá dos Mitos e da
também a origem de alguns dos seus Realidade da mais Controversa Força da Igreja
Católica, Lisboa, Alêtheia, 2005; ANTUNES,
membros, bem como o desenvolvimen-
José Freire (org.), Opus Dei em Portugal: o Tes-
to de numerosas obras de cariz social, temunho de 50 Homens e Mulheres incluindo Um
como o hospital Monkole em Kinshasa e Texto de D. Javier Echevarría, Versailles, Edeli-
a escola profissional Punlaan, em Mani- ne, 2002; AURELL, Jaume, “La formación de
la, entre muitas outras. un gran relato sobre el Opus Dei”, Studia et
um destes autores fosse a seu respeito, ele grande voga nas primeiras décadas do
acaba por desempenhar invariavelmente séc. xvii, no auge do negócio de cativos
o papel instrumental de símbolo adequá- em Argel. Repletos de quadros de vio-
vel à “besta” de Apocalipse 13, ou ao pe- lência infligida pelos piratas turcos, estes
queno chifre de Deuteronómio 7-8, que têm, em alguns casos, e.g., no da Memorável
será, por fim, derrotada. Relação da Perda da Nau Conceição, de João
Desta série de textos, destaca-se o Liber Carvalho Mascarenhas, a virtude de se re-
Unicus, Exposição do XI, XII & XIII Capítu- velarem relativamente independentes em
los do IV Livro do Propheta Esdras, da auto- relação aos estereótipos que a ideologia
ria do pintor Félix da Costa Meesen, ma- de cruzada e a literatura antiturca vinha
nuscrito ilustrado que permanece ainda reproduzindo há mais de um século. Es-
inédito e que pode ser considerado com crita, segundo o autor, com o intuito de
justiça o mais relevante tratado sobre o contar o que passou e de avisar e “dar gos-
Império Otomano escrito em língua por- to a quem a lê” (MASCARENHAS, 1627,
tuguesa durante o séc. xvii. fl. bv.), a relação de Mascarenhas reparte
As notícias da campanha levada a cabo as suas críticas circunstanciais entre os
por João III Sobieski, Rei da Polónia, con- Turcos e os cristãos com quem se cruzou
tra as tropas otomanas, após o cerco de pessoalmente durante o episódio do nau-
Viena, no ano de 1783, chegaram com frágio e da captura.
relativa brevidade a Portugal, divulgadas Por fim, destacamos outra série de do-
numa série de 21 folhetos publicados cumentos, também associados ao negócio
pela imprensa de Miguel Deslandes en- dos cativos de Argel, constituída pelos pro-
tre 1686 e 1687, com o título de Relação cessos inquisitoriais de renegados. Através
Histórica Pertencente ao Estado, Sucessos e dos estudos de Lucia Rostagno e de Ben-
Progressos da Liga Sagrada contra Turcos. Es- nassar et al., tornou-se patente que estes
tas notícias terão despertado em Félix da processos inquisitoriais são importantes
Costa a esperança da destruição final do repositórios de narrativas biográficas de
Império Otomano. Todavia, enquanto se- migração e de contacto entre indivíduos
bastianista convicto, o pintor não poderia de diferentes proveniências étnicas, polí-
aceitar que a destruição do Turco coubes- ticas, culturais e religiosas. Estas permitem
se a um rei estrangeiro. esboçar um discurso historiográfico que
O Liber Unicus resulta do esforço de não se centra apenas nas grandes narrati-
construir uma nova interpretação de Es- vas políticas e militares, mas tem também
dras 4, livro deuterocanónico muito utili- em consideração as trajetórias de grupos
zado pelos sebastianistas, segundo a qual de classes sociais menos favorecidas (pes-
a águia terrífica que surge no capítulo cadores, marinheiros, aventureiros, co-
11 é o Império Otomano, e o leão que a merciantes, etc.), colocando em evidência
destrói é D. Sebastião, o Encoberto. Para níveis surpreendentes de miscigenação e
fundamentar a sua tese, Félix da Costa de circulação de pessoas através das fron-
recorreu a uma extensa bibliografia de teiras políticas e religiosas mediterrânicas
temática turca, em que se inclui, e.g., a in- durante a Idade Moderna.
contornável General Historie of the Turkes,
de Richard Knolles (1603).
De forma sensivelmente diferente, a Bibliog.: BENNASSAR, Bartolomé, e BEN-
figura do Turco seria também presente NASSAR, Lucile, Les Chrétiens d’Allah, 3.ª ed.
em relatos de cativeiro, que mereceriam rev. e aum., Paris, Perrin, 2006; GODINHO,
Esta fama cresceu ainda mais depois antigos, e defensores convictos da medici-
da sua morte, em Salzburgo, no ano de na de Galeno.
1541, com apenas 48 anos. Não tardou O mais virulento opositor de Paracelso
que a memória do homem controverso e das suas doutrinas foi talvez o seu com-
que fora em vida se transformasse numa patriota Thomas Liebler Erastus (1523
crescente admiração pelo considerado ‑1583), o qual, num escrito publicado
grande arauto de uma nova química, a em Basileia, em 1572-1573, com o título
iatroquímica. No final do séc. xvi, existia Disputatione de Medicina Nova Philippi Pa-
já uma imensa literatura sobre a matéria racelsi, o rotulou de um “obscurantista
médica por ele defendida, e um século de estilo tenebroso e ideias confusas”
depois, eram já centenas os textos para- (ERASTUS, 1572, 2), refutando com
celsianos publicados. Muitos médicos toda a veemência a possibilidade de qual-
notáveis de França, da Alemanha e de In- quer reação química por ação do calor,
glaterra se confessaram seus seguidores, do mercúrio, do enxofre ou do sal. Na
sendo de destacar, entre muitas outras, sua opinião, Paracelso saberia muito bem
algumas das mais notáveis figuras da quí- que as ideias que defendia eram falsas e
mica dos sécs. xvi-xvii, como Jean Bap- por isso teria optado por apresentá-las de
tiste van Helmont (1577-1644) e François um modo confuso, usando uma lingua-
de la Boë (1614-1672), mais conhecido gem bárbara infernal e apresentando-se
por Silvius, na Bélgica e em França, Otto como inventor de coisas com que nada
Tachenius (c. 1610-1680), André Liba- tinha que ver. Nesta sua investida fron-
vius (1550-1616) e Johannes Hartmann tal contra Paracelso, Erasto atacou sem
(1563-1631) na Alemanha. É esta filoso- quaisquer contemplações o homem e as
fia química e o conjunto de práticas dela suas doutrinas, nomeadamente a teoria
resultante, com origem na vida e obra de dos tria prima, considerando que nada ti-
Paracelso, que constituem o chamado pa- nham de construtivo.
racelsismo. A este virulento ataque se juntou um
Não tardou, porém, que o paracelsismo grande número de médicos e farmaco-
se tenha tornado um foco de controvér- logistas ingleses ligados à chamada re-
sia. Para isso terá contribuído a circuns- volução puritana, numa luta acesa entre
tância de Paracelso ter sido, durante toda médicos e farmacêuticos, um conflito
a sua vida, e nos mais diversos locais por aberto entre galenistas e paracelsianos,
onde passou, uma figura muito polémica. em que estes eram acusados de serem
E terá ajudado, sobretudo, o progressivo partidários de Calvino, razão bastante
aparecimento de uma corrente de filoso- para não deverem merecer grande cre-
fia natural que questionava o carácter de dibilidade. Como paradigma da rejeição
experimentalismo e observação que Para- de Paracelso por muitos destes médicos
celso defendia. O facto de a abordagem e farmacêuticos, refira-se Richard Baxter
médica de Paracelso diferir tanto daquilo (1615-1691), que considerava Paracelso
que era aceitável até então estabeleceu uma prova da existência do demónio,
um enorme confronto entre os paracel- considerando-o um “conjurado bêbado
sianos e o sistema médico oficial em vi- que mantinha conversas com o demónio,
gor, um confronto tornado mais agudo a origem das suas doutrinas” (ORME,
pelo impacto provocado pelos humanis- 1830, XX, 294). Contra a farmacologia
tas, muitos deles grandes admiradores de Paracelso, defensora da utilização dos
dos tratados de fisiologia e anatomia dos minerais, nomeadamente o antimónio,
sua confiança.
Marcelo Caetano (1906-1980).
Antipartidário se afirmou sempre o dou-
trinador e político Marcelo Caetano, que
sucedeu na chefia do Governo a Salazar, nómico e Social (SEDES), cujos estatutos
em 1968. O antipartidarismo foi a fórmu- foram publicados no Diário do Governo
la alternativa à democracia pluripartidá- nesse mesmo dia, e que se veio a revelar
ria que Marcelo Caetano definiu para uma influente associação cívica. Consti-
participar no processo político e exercer tuída por profissionais comprometidos
o poder. Ele, que fora presidente da UN, com a mudança do regime, a SEDES, que
promoveu a sua substituição pela Acção continuou a existir, distinguia-se, de fac-
Nacional Popular (ANP), que dizia não to, da ANP, que fora criada para apoiar
ser democrática, mas que era nova. Os es- politicamente o regime e participar em
tatutos da ANP foram aprovados a 28 de eleições. A organização centralizada e a
outubro 1970, quando Marcelo Caetano sua dependência do presidente do Con-
já era presidente do Conselho, por dois selho, a ausência de competitividade
despachos dos ministros do Interior e do eleitoral e a restrição dos direitos da opo-
Ultramar, publicados no Diário do Gover- sição tornaram a ANP mais do mesmo e
no. Os estatutos da “nova” associação fo- continuaram a garantir, não obstante as
ram aprovados com base no disposto no intenções de abertura do regime, o mo-
art. 2.º do dec.-lei n.º 39.660, de 20 de nopólio eleitoral da chamada situação
maio de 1954, que regulava o modo de sobre a oposição.
criação e funcionamento das associações Os sistemas antipartidários têm em
cívicas. Segundo os estatutos, a ANP era comum a negação das liberdades funda-
uma “associação cívica destinada a pro- mentais. Quando muito essas liberdades,
mover a participação dos cidadãos no es- como a liberdade de associação ou de
tudo dos problemas da Nação Portuguesa expressão, são liberdades formais ou for-
e a prática das soluções mais condizentes temente mitigadas por políticas repres-
com os princípios fundamentais que pro- soras. A ideia de democracia liberal, por
fessa” (art. 1.º). Nada que, aparentemen- contraponto ao antipartidarismo, con-
te, distinguisse nos seus fins a ANP da substancia a exigência de consagração
Associação para o Desenvolvimento Eco- constitucional ou legal de um conjunto
síduo tópos do campo como um espaço pla, com grande regularidade, a dimensão
intrínseca e estruturalmente violento. É sexual, muitas vezes instintiva e bestializa-
comum a violência irromper de um fa- da, e com desenlaces quase sempre dra-
talismo telúrico que aprisiona as pessoas máticos para as mulheres, particularmen-
à terra e atingir com maior gravidade as te as que entregam a sua honra a amores
que ambicionam fugir a essa subjuga- impossíveis e a fins trágicos, como a pros-
ção claustrofóbica, feito que não está ao tituição (“Vale de Crugens” de Mário Bra-
alcance de todas – tal é o caso da Maria ga), a loucura (“A maluca d’a dos corvos”
Campaniça de Aldeia Nova (1942), de Ma- do conde de Ficalho) e o suicídio (“Na
nuel da Fonseca, que anseia e receia que- aldeia” de Ramalho Ortigão). Mas nem
brar as correntes que a prendem à aldeia todas são filhas da desventura: se algumas
que a veria nascer e morrer. Num ponto mulheres entram na almejada domestici-
oposto, estão as personagens que nutrem dade do lar, outras, mais despudoradas, fi-
uma ligação obsidiante pela terra, numa cam-se pelos episódios de sexo casual, que
luta diária que extenua umas e outra, e por vezes instigam, sem grandes remorsos
que vai mantendo o Homem no limite da da consciência (“Os novilhos” de Fialho
sobrevivência, quando simplesmente não de Almeida; “A revelação”, “A festa” e
o aniquila. A aldeia, onde todos se conhe- “Prenha dum homem” de Miguel Torga).
cem e se cruzam, é um espaço físico e Porém, quando iniciadas na maternida-
mental invariavelmente disfórico – triste, de, podem ser mães extremosas (“Mater
negro, escuro, frio, sujo – onde não pri- dolorosa” de Trindade Coelho) ou péssi-
mam as virtudes morais: a inveja (“A luz mas mães (a Gertrudes de “A ponte do
elétrica” de João Araújo Correia), a ma- Cunhêdo” de Abel Botelho), e podem
ledicência (“Malandro” de Fernando Na- ter filhos bons e responsáveis, ou ingratos
mora) associada à mentira (com conse- (“O retrato dos pais” de Alberto Braga),
quências trágicas em “Manuel Maçores” ou até mesmo parricidas (“O sexto filho”
de Trindade Coelho), a avareza (Pároco de de Vergílio Ferreira). É assinalável o ape-
Aldeia de Alexandre Herculano) e as su- tite sensacionalista da antipastoral pela
perstições (“Bruxedo” de Miguel Torga). narração da violência que também atinge
Por isso, fugir do campo é fugir de um as infâncias e as velhices rurais (“A velha”
fim de mundo, migrando para a cidade de Fialho de Almeida).
ou emigrando: uma fatalidade que se tor- A literatura rural portuguesa é uma
naria uma das constantes mais importan- chave de leitura fundamental para o en-
tes da literatura rural portuguesa. tendimento da história cultural e social
A violência também tem origem fre- de Portugal, especialmente quando escri-
quente em vícios e comportamentos mas- ta em negativo – o número, a variedade e
culinos, como o alcoolismo (o Zé P’reira a significativa qualidade dos textos literá-
de A Morgadinha dos Canaviais de Júlio rios produzidos à luz de uma antipastoral
Dinis, “Névoa” de Manuel da Fonseca, portuguesa assim o confirmam.
“O vinho” de Miguel Torga) e o jogo, am-
bos alimentados na taberna e concretizan-
Bibliog.: ALMEIDA, Fialho de, A Cidade do Ví-
do-se em vinganças, cenas de pancadaria
cio – Obras Completas, 2.º vol., Lisboa, Círculo
(“O marrão”, Irene Lisboa) e atos crimi- de Leitores, 1991; Id., O País das Uvas – Obras
nosos. Quando atinge o seio da família, a Completas, 8.º vol., Lisboa, Círculo de Leito-
violência masculina desaba sobre mulhe- res, 1992; BOTELHO, Abel, Mulheres da Beira,
res, crianças, velhos e animais; e contem- Lisboa, Círculo de Leitores, 1990; BRAGA,
se revela nas palavras de um mourisco país de origem. Para essa formação con-
acerca da sua Espanha natal. Não caben- tribuiu um conjunto de aspetos como a
do aqui a discussão sobre a convivência relação do passado com a memória, a
com os termos “nação”/“nacionalismo”, construção das identidades e a génese
nem sequer a verificação das teses sobre e desenvolvimento da nação e da cons-
a existência do sentimento patriótico em ciência nacional. Destacamos o valor em
épocas anteriores à Modernidade, certo presença das identidades comuns, que
é que a intensidade e a escala de um sen- ultrapassam a dimensão da “natio” (no
tido de pertença aparece, ao longo de sentido que a palavra adquire a partir
séculos, indissociável deste conceito. De dos sécs. xiii-xiv) e se cristalizam em
tal forma que sobre este substrato ideo- “arquivos” memoriais mais amplos em
lógico, paralelo ao de “naturalidade”, se termos de escala e de tempo. É o caso da
constrói, paulatinamente, a figura insti- identidade cristalizada no termo “patria
tucional do Estado – no caso português, communis”, que permite perceber uma
com avantajada precocidade, pois já em continuidade, mas não a única, entre o
1106 o conde D. Henrique se intitula Império Romano e o ideal manifestado
“Portugalensium patrie princeps” (Id., na extensa christianitas. No caso da pe-
Ibid., 99-101). Esse sentido territorial do nínsula Ibérica, afirma-se definitivamen-
termo, diríamos mais objetivo, perpetua te a existência de uma pluralidade de
‑se e acentua-se em diversos momentos poderes e o seu progressivo confronto,
da história da civilização europeia, no- no sentido da afirmação da autoridade
meadamente nos momentos em que a real e da separação entre a figura do rei
oposição entre reinos/Estados se encon- e o reino, como entidades dotadas de au-
tra mais acesa. Também aqui, o caso por- tonomia e legitimidade próprias. Como
tuguês da Restauração (1640-1668) reve- duas consequências imediatas temos,
la bem esta tendência, nomeadamente por um lado, a ideia de historicidade da
através dos textos e da panfletária que própria noção de identidade; por outro,
sugerem este constante papel de defesa a noção de que será mais correto, para
da pátria, no sentido da terra, a par do esta época, admitir a coexistência de vá-
reino (nação) e do rei, terrenos férteis rios graus e estruturas identitárias.
para o enraizamento da dimensão emo- Apontemos, sinteticamente, alguns as-
cional e afetiva do conceito. petos de continuidade e de rutura fun-
Em segundo, revela-se uma noção po- damentais: i) a necessária consciência
sitiva que repousa mais nos sentimentos, de comunidade, no caso português, faci-
na sensibilidade, nas convicções e nas de- litada pelo confronto com o outro/mou-
voções do que nas instituições, ao ponto ro, desempenhando o rei cristão, como
de podermos referenciar a existência de chefe dos vassalos e através do processo
uma “fé patriótica”. Esta é uma conce- de reconquista, um papel muito ativo
ção formada em processo de longa du- nesta difusão do sentimento de unida-
ração, que apenas se torna problemático de e de pertença – decurso com nova
quando pontualmente afrontado pelo ênfase a partir da segunda metade do
“outro” estrangeiro e/ou inimigo, e que séc. xv na divulgação e legitimação de
apenas denuncia sinais de falência após conteúdos identitários face aos outros
a Segunda Grande Guerra e os processos interesses europeus na expansão, mas
de descolonização, pois deixa de cristali- também na afirmação do confronto com
zar os laços que ligam os sujeitos ao seu o outro/étnico; ii) a importância dos fa-
ao longo do séc. xix, na qual, com fre- lógico Castellano e Hispánico, 3.ª reimpr., Ma-
quência, os termos “antipatriotismo” e drid, Gredos, 1991; GEARY, Patrick J., O Mito
“antipatriota” passam a estar na ordem das Nações. A Invenção do Nacionalismo, Lisboa,
Gradiva, 2008; GELLNER, Ernest, Nations and
regular e frequente do discurso dos di-
Nationalism, London, John Wiley and Sons,
versos intervenientes. Na verdade, como
2006; GODINHO, Vitorino Magalhães, Portu-
demonstrámos, o conceito encontra-se gal: a Emergência de Uma Nação, Lisboa, Colibri/
solidamente fixado na tessitura do seu Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
antípoda – patriotismo –, assumindo este Universidade Nova de Lisboa, 2004; HER-
uma dimensão de profundo significado MET, Guy, História das Nações e do Nacionalismo
identitário que se revela, por si só, porta- na Europa, Lisboa, Estampa, 1996; HOBS-
dor de sentido anti. BAWM, Eric, A Questão do Nacionalismo. Nações
e Nacionalismo desde 1780, Lisboa, Terramar,
Por fim, o antipatriotismo como con-
2004; JOHNSON, Samuel, A Dictionary of the
ceito contemporâneo, apoiado nos mo- English Language: in Which the Words Are Dedu-
vimentos ideológicos e filosóficos que ced from Their Originals, and Illustrated in Their
nascem no Iluminismo setecentista e no Different Significations by Examples, London,
cientismo oitocentista, assume-se como J. & P. Knapton, 1755; KANTOROWICZ, Er-
dinamizador e aglutinador de dinamis- nst, “Pro patria mori”, American Historical Re-
mos também eles políticos, ideológicos e view, vol. 56, n.º 3, 1951, pp. 472-492; MA-
TTOSO, José, A Identidade Nacional, Lisboa,
sociais que remetem para outros planos
Fundação Mário Soares/Gradiva, 1998; PE-
da nossa condição comunitária. Tais mo- REIRA, Bento, Prosodia in Vocabularium Bilin-
vimentos pontuam duras críticas à susten- gue, Latinum, et Lusitanum Digesta, Eborae, Typ.
tação patriótica e nacional no estatuto Academiae, 1697; SANCHES, António Nunes,
pessoal e cívico dos sujeitos, configuran- Cartas sobre a Educação da Mocidade, Colonia,
do teorias anarquistas e/ou apátridas e s.n., 1760; SMITH, Anthony, Nacionalismo, Lis-
insistindo na vocação planetária do cida- boa, Teorema, 2006; SOBRAL, José Manuel,
dão (“cidadão do mundo”). Defendem, Portugal e os Portugueses: Uma Identidade Nacio-
nal, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos
assim, que nenhum indivíduo deverá
Santos, 2012; TORGAL, Luís Reis, Ideologia
estar ligado, por obrigação, a um país de Política e Teoria do Estado na Restauração, 2 vols.,
origem. Os grupos que aderem a tal tese Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade,
apostam, paradoxalmente, na dimensão 1981‑82; VIEIRA, Domingos, Grande Dicciona-
ideológica e racional, esquecendo a difi- rio Portuguez ou Thesouro da Lingoa Portugueza, 5
culdade em vencer e repor uma condição vols., Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
perpetuada pela longa duração da dia- H. de Moraes, 1871-74.
cronia e pela força do ímpeto sentimen- Orlando Miguel Gama
tal e emocional que sustenta a dimensão Alexandra Soares Rodrigues
do patriotismo.
Para boletim de morto no hospital” (Id., cia ao horizonte camoniano. Pelo menos,
Ibid., 33-34). E ainda sobre a relação de lendo “Notas sobre a Mensagem”, texto
Pessoa com Ofélia (e aqui não há como publicado, em 2010, na revista Ler e repu-
não recordar “Cartas de amor” de Álvaro blicado depois em Discursos Vários Poéticos
de Campos): “A Nini Bèbèzinho/Do Ibi/ (2013), é fácil percebê-lo. O que, em ri-
Dá Ófèli/Bjinho?” (Id., Ibid., 63). gor, Vasco Graça Moura faz é interrogar
No que respeita aos heterónimos e à o contributo épico do livro de Pessoa a
sua relação com Pessoa, a des-sublima- partir da presença tutelar da epopeia ca-
ção não poderia ser maior: “O Álvaro moniana. Senão vejamos: “a visão histó-
gosta muito de levar no cu/O Alberto rica implícita na Mensagem é muito tradi-
nem por isso/O Ricardo dá-lhe mais para cional e esquemática, quase se limitando
ir/O Fernando emociona-se e não conse- aos protagonistas heroicos de portugue-
gue acabar.//O Campos/Em podendo ses que Pessoa também eleva à categoria
fazia-o mais de uma vez por dia./Fica- de semideuses”, escreve Graça Moura.
vam-lhe os olhos brancos/E não falava, E antes disso, comparando Pessoa com
mordia. O Alberto/É mais por causa da Mário Beirão (O Último Lusíada e Lusitâ-
fotografia/Das árvores altas nos montes nia), não se abstém de observar sem com-
perto/Quando passam rapazes/O que placência que a “fantasmagoria de Pessoa
nem sempre sucedia.//O Fernando o é mais heráldica e hierática, mais seca e
seu maior desejo desde adulto/(Mas já mais descarnada, digamos mesmo, mais
na tenra idade lhe provia)/Era ver os abstratamente ‘desumanizada’” (MOU-
hètèros a foder uns com os outros/Pela RA, 2013, 18). E ainda na mesma página,
seguinte ordem e teoria:/O Ricardo no enfatizando implicitamente a inferiorida-
chão, debaixo de todos (era molengão/ de de Pessoa face a Camões: “Pessoa nun-
Em não se tratando de anacreônticas) ca compreendeu que, para engendrar
introduzia-/-Se no Alberto até à base/ uma epopeia, teria sido também necessá-
E com algum incómodo o Alberto er- rio incluir nela uma dimensão lírica, em
guia/Nos pulsos a ordem da Kabalia/ especial no tocante ao amor, às suas vá-
Tentando passa-la ao Álvaro/Que enros- rias formas, aos seus casos concretamen-
cado no Search mordia mordia/E a mais te considerados, à sua possível dimensão
não dava atenção./O Search tentava/ ontológica e até cósmica. Acontece com
Apanhar o membro do Bernardo/Que a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, a Divina Co-
crescia sem parança direção espaço/ média, o Orlando Furioso, Os Lusíadas... Na
E era o que mais avultava na dança/Das Lusitânia, ‘A monja’ é um poema de amor
pernas do maço da heteronímia/A que e distância” (Id., Ibid.). Não é preciso es-
aliás o Search era um pouco empresta- pecial clarividência para perceber que a
do/Como de ajuda externa (de janela do referência final a Mário Beirão serve para
lado)/Àquela endemonia/Hoje em dia desconsiderar Pessoa sem mercê. Ou
moderna e caso arrumado.//Formado o seja: como poderia Pessoa, nesta questão
quadrado/Era quando o Aleyster Crowel da epopeia, ombrear com Camões, sen-
aparecia./‘Iô Pan! Iô Pã!’, dizia,/E era fe- do que nem sequer se acharia à altura
latio para todos/E pão de ló molhado em de um Mário Beirão? Transcrevendo a
malvasia” (Id., Ibid., 70). seguir um trecho de um artigo de Pessoa
Manifestamente antipessoano é Vasco publicado, em 1924, no Diário de Lisboa e
Graça Moura. Não é ocioso dizer que o onde o autor da Mensagem, referindo-se a
seu antipessoanismo se define na referên- Camões, desconsidera a admiração pela
lírica, Graça Moura, rebatendo as críticas “A Mensagem é um ciclo poético com al-
de Pessoa e assumindo-se como indefetí- gumas belas coisas e com algumas coisas
vel camoniano, tece diversas críticas ao menores, em que talvez não falte a ima-
poeta. A propósito, e.g., da figura do Mos- ginação, mas em que faltam a paixão e o
trengo: “não pode [‘O Mostrengo’] dei- pensamento, isto para recorrer às cate-
xar de ser lido em correlação paradigmá- gorias do próprio Pessoa. Corresponde a
tica com o Adamastor (também presente um sentido muito pouco consistente da
em Beirão), mas em versão empobrecida identidade nacional, concebida, mais do
precisamente pelo escamoteamento de que vivida, em termos de um Saudosis-
toda e qualquer veleidade lírico-amorosa mo estático e estéril, que foi com toda a
na Mensagem. E ali, até o homem do leme probabilidade o mais nacionalmente ina-
não faz mais do que insistir em passar os bilitante dos movimentos intelectuais da
tão camonianos ‘vedados términos’ (Lus., nossa história cultural”; “É também uma
V, 41). E os filhos varões de D. João I são sequência de figuras hábil e abstratamen-
figuras da Mensagem em evidente recorte te elaboradas no vazio onírico de uma
paradigmático da ‘ínclita geração, altos História cujo sentido Pessoa, poeticamen-
infantes’ (Lus., IV, 50)...” (Id., Ibid., 19). te, só percebeu em termos fantasmáticos
E referindo-se a uma afirmação de Pes- e ultrapassados e cujo desembocar na sua
soa na edição de 13 de outubro de 1923 própria atualidade ele concebia, afinal,
da Revista Portuguesa (“Literariamente, como correspondente a um desfile de
o passado de Portugal está no seu futu- heróis de antigamente resvalando para o
ro. O infante, Albuquerque e os outros ‘nevoeiro’ de agora” (Id., Ibid., 20-22).
semideuses da nossa glória esperam ain- O que parece estar em causa nestas
da o seu cantor”), riposta Graça Moura, depreciações pessoanas de Vasco Graça
assumindo muito claramente o seu an- Moura é, em boa verdade, o seu camonis-
tipessoanismo, desta forma: “Como sou mo empenhado. Camonismo esse ainda
bastantemente antipessoano, talvez haja por cima visivelmente instigado pelas crí-
quem se surpreenda por me ouvir opinar ticas que Pessoa teceu ao autor de Os Lu-
que há na Mensagem alguns belos poemas síadas. Como salta à vista, Camões, para
e alguns belos versos, de par com outras Graça Moura, é o único autor épico dig-
coisas patentemente falhadas e desinte- no desse nome, sendo Pessoa, por assim
ressantes. Mas já ninguém se espantará dizer, uma pálida imitação do seu prede-
de me ouvir considerar aquela afirmação cessor quinhentista. Tanto mais que por
de que ‘literariamente, o passado de Por- ele seria influenciado, prova indesmentí-
tugal está no seu futuro’ uma portentosa vel da superioridade estético-literária de
parvoíce, à maneira, para mim insupor- Camões. A conclusão final de Graça Mou-
tável, de muitos paradoxos pessoanos do ra vai toda nesse sentido: “Mas Pessoa está
mesmo tipo” (Id., Ibid., 19). É difícil, con- ‘só e sonha saudade’ através da História.
venhamos, dizer pior. Dir-se-ia que Gra- E, se o nevoeiro significava a decadência
ça Moura pretende nada menos do que (já personificada no Doido cujo retrato
arrasar Pessoa, e o que vem a seguir não terrível se hipostasiava a Portugal em Pá-
desmente essa pretensão. Graça Moura tria de Junqueiro), até nisso ele estava a
prossegue a sua análise pessoana des- ser influenciado por Camões” (Id., Ibid.,
considerando o poeta. Basta reparar na 22). Em suma, dir-se-ia que Graça Moura
forma pouco menos do que demolidora avalia Pessoa em sede camoniana, vale di-
como aprecia globalmente a Mensagem: zer, fazendo um contraste entre ambos os
de o denegrir, do texto pessoano. Por ou- vamente à de Pessoa, pelo seu “lado pro-
tras palavras, se Vasco Graça Moura se dá fundamente humano”, vertente que ca-
ao cuidado de escrever um longo texto racterizaria em apreciável grau “a poesia
com o seu quê de hermético, ou melhor, do Camões, ao contrário da de Fernando
com uma retórica vácua e por isso de du- Pessoa. A poesia dele [Camões] tem um
vidosa rentabilidade para efeitos de com- lado carnal, de sangue, de vinho” (AR-
preensão estético-literária e filosófica, NAUT, 2008, 102). Mais explicitamente
fá-lo, em jeito de inegável paródia, para ainda: “O Camões gostava de amar, gos-
denunciar (e enunciar) a (suposta) elo- tava de comer... Ao contrário do Fernan-
quência inócua de O Livro do Desassossego. do Pessoa, que era um chato” (Id., Ibid.,
Outro autor que alinha pelo mesmo 110). Outro exemplo, ainda com pano
diapasão de Graça Moura é António Lobo de fundo camoniano: “Não gosto do Fer-
Antunes. Em longa entrevista concedida nando Pessoa nem do pensamento dele,
ao jornalista João Céu e Silva, a dada al- nem sequer da poesia dele, acho que ele
tura, sobre autores canónicos inexistentes é o Tomás Ribeiro deste século, todos os
nas livrarias, surge o nome de Pessoa: “Não séculos se tenta arranjar um poeta me-
me lembro de ver Os Lusíadas na bancada lhor do que o Camões. Acho que ele é
de uma livraria. Ou o Antero ou o – estou um bom poeta[,] mas não é um poeta
a inventar nomes – Bocage, o Nobre, o extraordinário” (Id., Ibid., 156). Noutra
Cesário... O Pessoa, sim, na altura em que entrevista, contradizendo-se, Lobo Antu-
estava na moda, mas agora está outra vez a nes, “apesar de tudo”, considera Pessoa
desaparecer” (SILVA, 2009, 294). Se não superior a Tomás Ribeiro, mas não o sufi-
fica claro se Lobo Antunes deplora ou ciente para não integrar o rol de autores
não a ausência de Pessoa das estantes das menores que procuraram, século após
livrarias, o certo é que mais à frente não século, superar Camões e, afinal, não re-
resiste a dizer o que pensa do poeta nestes sistiram à obliteração do tempo ao invés
termos pouco abonatórios: “Eu nunca fui de Camões: “Reparou que, em todos os
grande admirador do Pessoa, mas dá-me séculos, havia um escritor melhor do que
ideia de que ele se está a esbater outra vez. o Camões? Olhe, o Tomás Ribeiro no sé-
Eu fico frio com Pessoa, porque a poesia culo xix, o desembargador Gabriel Fer-
ortónima não me entusiasma muito. Se o reira de Castro no século xviii... Todos
Álvaro de Campos é aquilo, é melhor ler o considerados melhores do que ele! Mas
Walt Whitman. O Ricardo Reis são aquelas acabaram por passar, e o Camões fica!
odes pindéricas. O Livro do Desassossego... É como o Pessoa, que me parece, apesar
Deve ser um crime o que eu estou a dizer, de tudo, melhor que o Tomás Ribeiro!”
mas aquilo é uma série de lugares-comuns. (Id., Ibid., 289). No mesmo sentido: “To-
Não me entusiasma nada e é um livro que dos os anos se descobre um poeta melhor
teve um sucesso muito grande em França, que o Camões, o Tomás Ribeiro, no século
uma coisa louca – muito mais do que nos xix, o Fernando Pessoa no século xx, e,
países anglófonos – e está tudo publicado” no entanto, eles passam e o Camões fica”
(Id., Ibid., 295). (Id., Ibid., 482). Ou então: “Eu gosto do
Noutras entrevistas, Lobo Antunes, Camões porquê? Porque é da minha famí-
sempre que a ocasião se proporciona, lia. Fernando Pessoa não é, por exemplo.
desvaloriza Pessoa. Numa, fá-lo, na sen- Gosto da sensibilidade do Camões, conti-
da de Graça Moura, por contraposição nuo a achar que ele inventou o português
à lírica camoniana, enaltecendo-a relati- tal qual a gente o fala ou sente” (Id., Ibid.,
superar a visão alegórica e teologal carac- via também ser imitado como poeta que
terística da Idade Média, o Renascimen- modelarmente realizara a sua obra poéti-
to significou a afirmação do paradigma ca como um ‘espelho de vida’ (não se ex-
antropocêntrico concebido a partir da cluindo deste juízo uma positiva valoração
consciência da importância do Homem ética)” (SILVA, 1994, 181-182).
enquanto criação de Deus, dotado de ra- O prestígio de Petrarca assumiu tais
zão e da capacidade de agir sobre a reali- proporções que não será exagero afir-
dade circundante. Assistiu-se assim a uma mar que o idioleto por ele criado domina
mudança de perceção em relação aos ter- toda a produção lírica europeia do perío-
mos que constituem a tríade Deus-mun- do renascentista, ao ponto de se tornar
do-Homem, adquirindo este último uma “un hábito, una costumbre social, una
preponderância que levou a reconhecer cuestión de moda y de buen gusto dentro
o seu valor enquanto indivíduo. de la sociedad refinada y culta de la épo-
Neste contexto, Petrarca assumiu um ca [um hábito, um costume social, uma
papel fundamental, na medida em que questão de moda e bom gosto dentro da
marcou um ponto de inflexão definitivo sociedade refinada e culta da época]”
entre as mundividências medieval e re- (GARRIDO, s.d., 14). Tal equivale a dizer
nascentista, nomeadamente no que diz que a obra do poeta italiano foi objeto de
respeito à forma como a figura do poeta inúmeras traduções, imitações e comen-
passou a ser apreciada. O poeta de Arezzo tários, dando origem ao denominado pe-
foi o primeiro intelectual dedicado intei- trarquismo convencional, que se traduziu
ramente à criação literária, afastando-se no aparecimento de glossários, rimários
da sociedade mundana e mantendo com e mesmo miscelâneas de poemas escri-
as instituições mais prestigiadas da épo- tos à maneira de Petrarca e adaptáveis às
ca – a Igreja e a corte – uma relação de mais diversas situações. Este cenário de
representatividade, mas ao mesmo tempo saturação gera um contexto que permite
de independência. Ele personifica assim compreender o fenómeno do antipetrar-
o novo modelo emergente de intelectual quismo como manifestação de um desejo
‑cortesão, o qual constitui o ideal humano de oposição à tendência para uma prática
do período em causa; a sua poesia, por imitativa estrita, marcada pela invariabi-
seu lado, representa a codificação estética lidade e pela cristalização dos processos
e literária de tal ideal de vida. Deste modo criativos.
o Canzoniere, reconhecidíssimo repositó- Com efeito, nem toda a produção artís-
rio da poesia lírica de autoria petrarquia- tica e literária do Renascimento se con-
na, que associa a um refinamento linguís- forma com o cânone proposto, praticado
tico a expressão íntima do mundo afetivo e apreciado pelas elites culturais. Pelo
e sentimental do próprio autor, institui-se contrário, existiram manifestações poéti-
como a materialização programática do cas não hegemónicas, mas antes que dei-
género lírico de feição autobiográfica e xam de manifesto uma certa heterogenei-
confessional, na qual podiam ser encon- dade face ao paradigma dominante. Tais
trados os temas, os estilemas e as macroes- manifestações podem ser classificadas
truturas formais tidas como o acme do como antipetrarquistas por apresentarem
engenho poético. Petrarca passou assim a como característica definitória principal
ser objeto de imitação “como poeta que o facto de se contraporem aos cânones
criara um requintado e paradigmático ideais de beleza e de harmonia estética
repositório estilístico-formal, mas que de- teorizados pelos humanistas renascen-
cida é dotada de uma excecional beleza teressado prestado pelo amante à dama e
física e de uma essência angelical. Toda- à qual Camões contrapõe uma outra bem
via, como já antes se referiu, toda esta diferente, decorrente de uma atitude de
harmonia tem um preço: quer a figura assunção e de exibicionismo da dimensão
da mulher, quer a própria relação amo- sexual humana; ou no recurso à ironia
rosa assumem contornos marcadamente com que são tratados alguns símbolos de
academicistas, sendo o resultado de um amor petrarquista, como seja o símbolo
trabalho de seleção e de combinação de do objeto pertencente à pessoa amada e
elementos extraídos da obra de Petrarca que a pode substituir – o fetiche amoroso.
e carecendo, portanto, de autenticidade Em suma, pode afirmar-se que embora
poética. “as situações básicas do universo lírico
Ora, no quadro da poesia lírica de Ca- petrarquista, os seus grandes temas, a
mões, o modelo do retrato petrarquista gama de imagens utilizadas e os precei-
pode surgir trabalhado com substancial tos estilístico-retóricos que o enformam,
liberdade relativamente à matriz italiana. bem como as estruturas métricas e com-
Na verdade, na poesia camoniana, sobre- positivas celebrizadas pelas páginas dos
tudo nos textos escritos em medida velha Rerum Vulgarium Fragmenta [continuem]
(mas não só), observa-se uma transgres- a oferecer-se como padrão a ser mode-
são do modelo petrarquista quer na for- lizado” (Id., Ibid., 680) pela maioria dos
ma como a figura da mulher é descrita, autores da chamada época clássica, não
quer na recusa de uma conceção espiri- pode ser ignorada, na literatura euro-
tual e platónica do amor. peia, mormente na italiana e nas ibéricas,
No que diz respeito à recriação do mo- a existência de autores que assumiram
delo petrarquista de descrição da figura uma atitude de contestação das conven-
feminina, esta pode ser feita através do ções petrarquistas e, sobretudo, dos ex-
aproveitamento de elementos típicos do cessos que estas originaram, atitude essa
modelo aos quais são apostas caracte- classificável sob a designação de antipe-
rísticas contrárias, que, no entanto, são trarquismo.
consideradas superiores às características
canónicas, ou que são referenciadas jun-
tamente com outras que relevam da tradi-
ção lírica peninsular, com reminiscências
Bibliog.: impressa: MARNOTO, Rita, O Pe-
populares. Tal recriação pode ainda as- trarquismo Português do Renascimento e do Ma-
sumir contornos mais radicais, por meio neirismo, Coimbra, Universidade de Coimbra,
da negação explícita do próprio modelo, 1997; Id., Sete Ensaios Camonianos, Coimbra,
cuja pertinência é posta em causa de for- Centro Interuniversitário de Estudos Camo-
ma crítica e satirizante, quando não mes- nianos, 2007; SILVA, Vítor Manuel Aguiar e,
mo burlesca. Camões: Labirintos e Fascínios, Lisboa, Cotovia,
1994; SOROLLA, Maria Pilar Manero, Imáge-
Por outro lado, também a conceção es-
nes Petrarquistas en la Lírica Española del Renaci-
piritual e platonizante do amor é questio- miento: Repertorio, Barcelona, Promociones y
nada por meio de um trabalho de trans- Publicaciones Universitarias, 1990; digital:
formação do ideário dominante, o qual GARRIDO, Elisa Martínez, La Crisis del Hu-
assenta em dois processos fundamentais: manismo y el Renacimiento Italiano, s.d.: http://
numa desmistificação da conceção petrar- pendientedemigracion.ucm.es/info/italiano/
quista de amor cortês, que leva a encarar (acedido a 10 jan. 2017).
esse sentimento como um serviço desin- Micaela Ramon
Antipicarismo
O que faremos é, por conseguinte, pro- brincadeira, nós pimba, nós pimba”; e, se
curar aclarar a definição do género musi- a alusão sexual pudesse passar despercebi-
cal com base na origem do conceito, i.e., da a alguém, o teledisco, que foi emitido
procuraremos circunscrever o conceito a no programa semanal de música da televi-
um conjunto de determinações específi- são pública durante um ano consecutivo,
cas, de modo a que possamos entender o mostrava um jovem a entrar no quarto de
que é verdadeiramente o pimba e o que o hotel de uma rapariga, a porta do quar-
é por confusão ou por vista grossa. to 66 a bater vigorosamente, e o número
O conceito de música pimba surgiu seis a rodar, transformando o número do
em 1995 com o sucesso do álbum Pimba, quarto em 69. Assim, a origem do termo
Pimba de Emanuel. Quim Barreiros já ti- refere-se à folia, i.e., à libertação de se dan-
nha feito carreira antes da déc. de 90, no çar alegremente ao som de um trocadilho
entanto, ainda não havia um conceito ou brejeiro. É esse trocadilho, que constitui a
um quadro de leitura para o género, por- essência da canção de Emanuel, que deu
que, segundo Emanuel, Quim Barreiros o nome ao género. Poderia defender-se,
e outros trabalhavam “muito no paralelo, então, por esta interpretação etimológica
nas cassetes piratas. Não tinham acesso da designação do género, que, e.g., Tony
à rádio, à televisão, etc. Vim trazer uma Carreira e Marco Paulo, de facto, não
outra forma [de fazer as coisas]. Fui su- pertencem ao pimba, mas ao género mais
ficientemente corajoso para dizer: ‘Não, amplo da música popular ligeira, no qual
não digam mal, isto tem qualidade’. Não o pimba se insere.
gostam? Isso é outra história. Mas há Emanuel descreve a inovação que trou-
quem goste. E o povo também tem direi- xe à música popular ligeira da seguinte
to a gostar, certo? Não tem de ser sempre forma: “A minha música tinha muito de
o secundário da coisa. A minha atitude é novo. Estudei a música tradicional – fui
que fez a mudança. E as pessoas também buscar todas as características da nossa
não gostavam de ser confrontadas (nin- música popular – e depois peguei na sua
guém gosta)”. O termo “pimba” nasceu origem musical e transformei-a numa
desta visibilidade que Emanuel trouxe música muito mais dinâmica e com uma
ao género musical na cultura dominan- linguagem, embora brejeira, mais abran-
te, através da televisão pública. O termo gente”; e acrescenta que foi após o seu
designa então, uma “música de três acor- primeiro álbum, Rapaziada Vamos Dançar,
des! […] música tonal […] música popu- “que nasceu a indústria da música portu-
lar” (CIPRIANO, Observador, 4 dez. 2016), guesa, a partir de 94, 95. Antes disso, o
festiva, humorística e com recurso a troca- Marco Paulo gravava versões” de músicas
dilhos e a duplos sentidos de cariz sexual. estrangeiras e “o único que fazia grandes
O “pimba” refere-se ao trocadilho brejei- músicas era o [José] Cid, e pouco mais”.
ro da música de Emanuel, que associa o Emanuel diz que o álbum Pimba, Pimba foi
modo informal de designar uma ação ao “a confirmação, porque o Rapaziada Va-
modo informal de designar o coito. No mos Dançar esteve seis meses no Top +. Um
tema, Emanuel canta: “se elas querem um escândalo! Um cantor popular no Top +?
abraço ou um beijinho, nós pimba, nós Aquilo era só música estrangeira e um ou
pimba, se elas querem muito amor, muito dois artistas dentro do pop. Levaram co-
carinho, nós pimba, nós pimba, e se elas migo seis meses. E quando pensavam que
querem um encosto à maneira, nós pim- era mais um que vem e vai, levaram com
ba, nós pimba, e se elas querem à noitinha o Pimba um ano no Top! Quinhentas e
qualquer coisa mil cópias vendidas naque- “na televisão, na imprensa ou na rádio, os
le verão. Não foi brincadeira” (Id., Ibid.). debates sobre o estado da música portu-
O cantor diz ter sido este sucesso no topo guesa sucediam-se, e os especialistas não
de vendas (e, por conseguinte, no progra- conseguiam disfarçar uma profunda irri-
ma de televisão da RTP que passava, se- tação quando se debruçavam sobre este
manalmente, as músicas que estavam no assunto” (“E depois do pimba”, CM, 17
topo de vendas) que conquistou o espaço ago. 2003).
televisivo para a música popular e que de- Eduardo Cintra Torres dizia, em re-
senvolveu a indústria. O pimba haveria de lação a este movimento de oposição à
conquistar, ainda na déc. de 90, as feiras, música pimba, que “os excluídos sabem
as festas das aldeias e os bailaricos de ve- que a música pimba é a sua música.
rão, que se não tivessem um cantor pimba E sabem que os outros – os que têm po-
“perdiam a graça” (“E depois do pimba”, der – odeiam os seus valores culturais.
CM, 17 ago. 2003), e, diariamente, os pro- E isso fá-los identificar-se ainda mais
gramas da manhã e da tarde da televisão com a Mónica Sintra” (Ibid.).
portuguesa. O cantor Toy dizia que a opinião do pú-
O sociólogo Eduardo Cintra Torres diz blico era a única coisa que interessava e
que, antes do 25 de Abril, havia espaço, que os críticos eram “uns ignorantes que
na cultura, para a “música popularucha”, não percebem nada de música” (Ibid.),
presente tanto na televisão pública como apesar de reconhecer que era mais fácil
na rádio e no teatro de revista, mas que, cantar um tema popular do que um tema
após a Revolução, a RTP “exerceu uma de outro estilo musical. Emanuel, que fora
censura cultural sobre este tipo de pro- confrontado com a crítica à pobreza da
duto popular, ‘alienante’. Os ‘popularu- estrutura musical do seu tema, procurava
chos’ entraram numa clandestinidade explicar que não se podia descaracterizar
mediática: passaram da rádio, da revista e a música popular com acordes dissonan-
da RTP para as feiras e para os palcos im- tes e dizia que “aquela música só podia
provisados em qualquer lugar da ‘provín- ter três acordes. Se tivesse mais, estragava
cia’. […] Para o mundo ‘popularucho’, o tudo. Eu não tenho culpa que as pessoas
aparecimento da SIC foi o seu 25 de Abril não tenham este conhecimento. […] Se
e 25 de Novembro: terminava a clandes- Deus perdoa os ignorantes, quem sou eu
tinidade, começavam, no Big Show SIC, para não lhes perdoar? […] Temos de
os amanhãs que cantam. Em breve a RTP ser um pouco mais ecléticos, respeitar o
via-se obrigada a retomar o ‘popularu- gosto dos outros” (CIPRIANO, Observa-
cho’ de antes do 25 de Abril. Só depois dor, 4 dez. 2016). “Perante os ataques da
de a SIC existir é que Herman José, que comunicação social, […] Emanuel, num
antes os humorizava em Tony Silva ou Se- momento mais exaltado chegou a dizer
rafim Saudade, passou a levar os pimbas que os críticos podiam falar à vontade:
aos seus programas. Aos seis anos de ida- ‘Mas no final do dia, eu vou para casa
de, a SIC deixou-se levar de vencida pela num Mercedes e eles, coitados, num pe-
ideia dominante do que é o ‘bom gosto’ queno utilitário’. Uma guerra de palavras
e quer mudar de estatuto, quer ficar mais que contribuiu para o florescimento do
‘socialmente apresentável’” (TORRES, fenómeno” (“E depois do pimba”, CM, 17
Público, 14 abr. 1999). Este movimento ago. 2003).
crítico daquilo a que chamava a “socie- Tony Carreira dizia, sobre a força de
dade elegante” fez-se sentir de imediato: oposição ao pimba na cultura portuguesa,
digressão pelo país, entre 2013 e 2016, e Paulo vendeu 5.000.000 de discos. Jorge
convidou a Orquestra Metropolitana de Palma, um dos músicos mais prestigiados
Lisboa e artistas prestigiados como Jor- pela crítica do nosso país, que participou
ge Palma e Sara Tavares a juntarem-se a nos concertos de legitimação do pimba
ele. O espetáculo foi recebido em espa- organizados por Bruno Nogueira, encon-
ços culturais de renome como o Teatro tra-se abaixo de 500.000 vendas. Outra
S. Luiz. Na sinopse oficial do espetáculo forma de ponderarmos o sucesso da mú-
“Deixem o pimba em paz”, lia-se: “O pim- sica ligeira popular portuguesa é compa-
ba é unificador. Às escondidas, para não rar o número de discos vendidos pelo seu
parecer mal. Seja numa festa da Quinta cantor mais bem sucedido, Roberto Leal,
do Lago, seja no meio de um churrasco com o número de discos vendidos pela
em Massamá, aos primeiros acordes de totalidade dos 18 artistas internacionais
uma música de Quim Barreiros haverá mais bem sucedidos em vendas no nosso
uma debandada a correr para a pista de país: Roberto Leal vendeu, em Portugal,
dança e a cantar o refrão em alegre e alta mais discos que a totalidade dos seguintes
voz” (“Deixem o pimba…”, Teatro Muni- artistas: Júlio Iglésias, Roberto Carlos, Ro-
cipal São Luiz). A proposta do espetácu- berta Miranda, Daniela Mercury, ABBA,
lo era clara: acarinhar a alegria e a folia Pink Floyd, The Beatles, Madonna, U2,
do pimba e largar o escárnio da crítica Caetano Veloso, Ivete Sangalo, Shakira,
intelectual. Laura Pausini, Andrea Bocelli, Alejandro
Emanuel, numa entrevista, procurava Sanz, Ney Matogrosso, Fafá de Belém e
explicar a crítica à música pimba da se- Michael Jackson.
guinte forma: “Não era conhecimento, era Iran Costa, que, como vimos, apesar de
puro preconceito. E também havia esta rejeitar pertencer ao género da música
tendência que temos cá em Portugal de pimba, favoreceu do espaço conquistado
criticar tudo aquilo que tem muito suces- por Emanuel para a música ligeira, “con-
so” (CIPRIANO, Observador, 4 dez. 2016). seguiu vender mais de 160 mil unidades
Este aspeto do sucesso da música pimba do seu álbum Dance Music. Resultado:
poderá ser, de facto, muito importante o Bicho rendeu 230 mil contos e o cachet
para que se compreenda a enorme dimen- do cantor subiu em flecha, ficando-se pe-
são do movimento de oposição ao pimba los 800 contos por espetáculo. Tendo em
na sociedade portuguesa, sobretudo por conta que nesses meses quentes estava
parte dos críticos de música e dos agentes previsto o brasileiro dar perto de 100 con-
do meio, que procuravam lutar contra a certos...é uma questão de fazer as contas”
exposição mediática deste novo género. (“E depois do pimba”, CM, 17 ago. 2003).
Segundo a Wikipédia, na página “Lis- Sem considerar a inflação, os 230.000 con-
ta de músicos recordistas de vendas em tos obtidos com a venda do disco corres-
Portugal”, atualizada em fevereiro de pondem a uma receita de 1.147.235,16 €;
2017, quatro dos cinco artistas que ven- os 800 contos por espetáculo correspon-
deram mais discos em Portugal são can- dem a uma receita de 399.038,32 €, pela
tores de música popular ligeira. Segundo totalidade dos 100 espetáculos dados no
a plataforma, Amália Rodrigues vendeu verão de lançamento do álbum que con-
30.000.000 de discos, Roberto Leal ven- tinha o tema “O bicho”.
deu 17.000.000 de discos, Linda de Suza
vendeu 8.000.000 de discos, Jorge Ferrei-
ra vendeu 6.000.000 de discos e Marco
pela afirmação de que toda a sabedoria reiro, João de Deus e o Franciscano Pe-
humana é loucura e vaidade aos olhos dro Hispano. Em torno desta receção,
de Deus (P.e Manuel Bernardes, P.e Antó- são também dignos de registo: o relativo
nio Vieira, Matias Aires), pela denúncia afastamento da filosofia platónica entre
da vida como um sonho inconsequente os príncipes escritores da Casa de Avis,
(Isaac de Sequeira Samuda) ou como devido ao ascendente do pensamento de
uma loucura permanente (João Pedro do matriz estoica; a estima de Camões por
Vale, pseudónimo de António Félix Men- aspetos do pensamento platónico; a pre-
des, e sobretudo José Daniel Rodrigues sença da sabedoria socrático-platónica
da Costa) e pelo pessimismo antropológi- em D. Jerónimo Osório; a presença do
co (que se revela nas obras de Júlio César “divino Platão” no Hospital das Letras de
Machado, Alfredo Gallis e Albino Forjaz D. Francisco Manuel de Melo; a crítica
de Sampaio), é possível discernir muitas sistemática à presença do aristotelismo
manifestações de ceticismo a respeito da no ensino; a versão augustinista do plato-
capacidade de a racionalidade humana nismo, que voltou a ter alguma projeção
(que se revela na filosofia ou no debate na época iluminista. Além disso, no séc.
intelectual) alcançar resultados seguros. xix, não será excessivo ver apreço pelo
Em 1572, um personagem de D. Jeróni- platonismo em Antero de Quental, Antó-
mo Osório diz que “os filósofos falam nio Nobre e Camilo Pessanha; no séc. xx,
uma língua que não se entende” (OSÓ- Platão influenciou autores como Sam-
RIO, 1944, 41). Ainda o séc. xix come- paio Bruno, Leonardo Coimbra, Raul
çava quando José Agostinho de Macedo, Leal, José Marinho, Teixeira de Pascoaes,
na sua Tentativa Filosófica, afirmava que José Régio e David Mourão-Ferreira, e,
“não há uma só opinião dos Filósofos que como afirma Pinharanda Gomes, teve
se não possa considerar uma verdadeira um papel relevante na “elaboração da
loucura” (MACEDO, 1815a, 5), acres- filosofia da saudade, pois há conotações
centando, num outro texto, e de modo entre o amor platónico e a saudade por-
memorável, que “o maior Filósofo é um tuguesa” (Id., 2004, 254). Em todos estes
pedaço de asno” (Id., 1827, 320). Menos séculos, é justo reconhecer que o ponto
de um século depois, o espiritista João da mais alto do platonismo português foi
Rocha desabafava que não compreendia atingido pelos Diálogos de Amor, de Leão
bem “para que servem tantas canseiras de Hebreu. Sobre o mesmo assunto, diz Pi-
Filósofos” (ROCHA, 1900, 6). Do ponto nharanda Gomes: “O mais espantoso dos
de vista destas tradições sapienciais, lite- textos platónicos portugueses só é por-
rárias e esotéricas, não é significativo iso- tuguês porque um português, Leão He-
lar o caso do platonismo. breu, o redigiu” (Id., 1968, 12).
O platonismo terá entrado em terras Neste apanhado, há desde já que subli-
portuguesas muito antes do início da nhar a inexistência de traduções de Pla-
nacionalidade. Para Pinharanda Gomes, tão em língua portuguesa até ao séc. xx.
“Portugal herda Platão da Patrística”, Em 1849, regista-se a obra Constituição do
sobretudo do pensamento de S.to Agosti- Philosopho. Obra Extrahida da Republica
nho, de quem o bracarense Paulo Orósio de Platão, traduzida do francês pelo bra-
fora discípulo (GOMES, 1968, 4). Desde carense Joaquim José Antunes da Silva
estes séculos recuados, é possível acompa- Monteiro, que, apesar do subtítulo, não é
nhar as vicissitudes da receção das ideias realmente uma tradução de um texto de
de Platão em vultos como Francisco Car- Platão para português e não tem nada a
ver com o pensamento do filósofo grego. conhecimento dos textos antigos deverão
Na verdade, as primeiras traduções inte- ser inventariados, porque só desse modo
grais de Platão precisariam de mais anos será possível ter uma noção correta da
para surgir: na déc. de 1920, com Ângelo receção que Platão teve ao longo dos sé-
Ribeiro (Apologia de Sócrates, Fédon, Ban- culos. Álvaro Pais, no seu Status et Planc-
quete); na década seguinte, com António tus Ecclesiae, publicado em Ulm em 1474
Lobo Vilela (Diálogo sobre a Justiça), Agos- (com uma segunda edição em 1517), in-
tinho da Silva (Defesa de Sócrates, Crítone); terpreta de modo sapiencial o (aparente)
nos anos de 1940, com Alberto Machado igualitarismo político platónico, ao afir-
Cruz (Alcibíades, Cartas, Fédon), Sant’Ana mar que, para Platão, “não há nenhum
Dionísio (Hípias Maior, Hípias Menor), o rei que não seja oriundo de escravos,
P.e Dias Palmeira (Fédon), Agostinho da nem nenhum escravo que não descenda
Silva (Teoria do Amor) e António Lobo Vi- de reis” (PAIS, 1998, VIII, 203). Pais pare-
lela (Críton, Ménon, Parménides, Protágoras, cia seguir aqui a lição do autor anónimo
Teeteto); e, em 1951, com Manuel Maia do Horto do Esposo (c. 1380-90): “Diz Pla-
Pinto (O Timeu). Em 1965, surge o Sofista, tom filosafo que qualquer rei que foi dos
traduzido por Alexandre Pinheiro Tor- servos descendeo” (Horto do Esposo, 2007,
res. Surgiram também traduções popula- 171). Nem Pais nem o autor do Horto do
res, de qualidade duvidosa, feitas a partir Esposo reparam na natureza ilusória des-
da língua francesa. te igualitarismo, incompatível com a so-
Apesar da boa vontade destes traduto- ciedade fortemente hierarquizada que é
res e das casas editoriais que promoveram proposta na República; também nada di-
as edições, é justo reconhecer que só mui- zem sobre a causa metafísica última que
to mais tarde surgiriam tradutores que garante a veracidade da afirmação, i.e.,
preparariam traduções de nível científico, a transmigração das almas. Preocupado
como Maria Teresa Schiappa de Azevedo com a possibilidade de a virgindade ser
(Fédon, Hípias Maior), Maria José Figueire- ilícita por ir contra o preceito bíblico do
do (Parménides, Timeu), Carlos Humberto “crescei e multiplicai-vos”, Pais recupe-
Gomes (Leis), Rodolfo Lopes (Timeu, Crí- ra de S.to Agostinho a lenda que narra
tias), Adriana Manuela Nogueira e Mar- o modo piedoso como Platão sacrificava
celo Boeri (Teeteto), Francisco de Oliveira aos deuses para se redimir do pecado
(Cármides, Laques, Lísis), Maria Helena da de viver solteiro. Apesar de a biografia
Rocha Pereira (A República), Manuel de não ser determinante para o conteúdo
Oliveira Pulquério (Górgias), José Trinda- do pensamento filosófico de um autor, é
de Santos (Apologia de Sócrates, Críton, Êu- curioso que Pais ignore a aparente con-
tifron, Sofista), Carmen Isabel Leal Soares tradição entre o modo casto como Platão
(O Político), etc. Se têm significado algu- conduzia a sua vida e os exuberantes elo-
mas ausências que se estendem durante gios do amor no Banquete ou as festas de
séculos, cumpre observar que é digno de amor organizadas pelo Estado da Repú-
nota que apenas no séc. xx estas tradu- blica. A referência à biografia do filósofo
ções tenham aparecido. só raramente voltará a ser feita; alguns
É neste contexto que se podem enqua- autores oitocentistas, e.g., interpretaram
drar os vários autores que, em Portugal, muitas obras da cultura e do pensamento
foram criticando Platão tendo como base sob um prisma médico.
os seus próprios textos. Os posicionamen- Nos começos do séc. xvi, o humanista
tos contra o platonismo que derivam do Aires Barbosa, num dos seus epigramas,
e os juízes sofrem na República, Távora re- “opinião justa acerca de Deus”; que atri-
comenda que sejam antes os filósofos a bua à estrutura do Universo uma matéria
partir da cidade para sítios onde a agude- incriada que não deve a sua existência a
za do seu engenho não cause danos. Pla- um criador bondoso; e, de modo enigmá-
tão é, obviamente, um dos exemplos que tico, que tenha manchado “a formosura
dá dos malefícios causados pelos filósofos da virtude com algumas deformidades”
na governação. Como se esperaria, os ou- (Id., Ibid., 191).
tros participantes no diálogo tentam limi- Os índices expurgatórios foram, de
tar de imediato o alcance destas opiniões, um modo geral, generosos para com o
sendo o próprio D. Jerónimo a solicitar platonismo. Verifica-se apenas uma or-
aos seus amigos que não se divulgue o ata- dem para cortar as fábulas platónicas dos
que feito aos filósofos. É precioso o facto Diálogos de Amor de Leão Hebreu; o Index
de a obra Da Instituição Real e Sua Discipli- Auctorum Dañatae Memoriae, de 1624, cen-
na problematizar a relação entre conhe- sura muitas passagens dos comentários
cimento e exercício do poder político; de de Jean de Serres (Johannes Serranus),
facto, desde o Rei D. Duarte até à Corte filólogo que publicou as obras completas
na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo, de Platão em três volumes, em 1578.
o projeto platónico do governante sábio Francisco Sanches, filósofo cético e
atravessa todo o pensamento português. médico, recusa vários aspetos da Teoria
As páginas do bispo de Silves procuram do Conhecimento de Platão, nomeada-
ver de modo claro o que se ganha e o que mente a reminiscência, a teoria de que
se perde com a ideia, aparentemente evi- o conhecimento humano mais não é do
dente e necessária, dos reis filósofos. Em que recordação, observando no seu Que
1578, no seu Tratado da Verdadeira Sabedo- Nada Se Sabe, de 1581, que isso “não passa
ria, D. Jerónimo considera que Platão foi de uma agradável ficção nem confirmada
o “príncipe máximo da filosofia” (OSÓ- pela experiência nem pela razão” (SAN-
RIO, 2002, 227) e “o homem mais sábio CHES, 1955, 37). A refutação da opinião
da Grécia” (Id., Ibid., 229), apreciando em de Platão recorre à experiência médica
particular a teoria de que o mundo teve do autor, que conhecia doenças que fa-
um começo no tempo e não existiu desde zem esquecer às pessoas os seus próprios
sempre, criticando a este respeito a leitu- nomes, e a uma abordagem empírica das
ra, que considera equivocada, que Proclo questões da memória (diz Sanches que
fez do Timeu. Contudo, como se esperaria bateu propositadamente num cão, que,
de um bispo católico, salienta que todos depois disso, ladrava todas as vezes que o
os filósofos gregos que viveram antes da via). O ceticismo de Sanches toca igual-
doutrina cristã caíram na “mais rematada mente em questões profundas sobre a
loucura” por terem questionado a exis- identidade pessoal. Concedendo, em be-
tência e o poder de Deus, e o seu cuidado nefício do argumento, pertinência à dou-
pelas coisas humanas. Dispondo de um trina de Platão, conclui que, “se a alma
conhecimento textual direto de Platão, sabia antes de se unir ao corpo, também
que se revela nas citações amplas que faz depois é ela que sabe, e não o homem”
dos seus diálogos, o que D. Jerónimo não (Id., Ibid., 41). O conjunto de argumen-
consegue aceitar no filósofo é, em espe- tos recorre também a uma análise lógica
cial: a doutrina das “variadas e infinitas desta teoria, identificando, e.g., as falá-
migrações das almas de uns corpos para cias da multiplicação dos problemas e da
outros”; o facto de não conceber uma redução ao infinito: se o conhecimento
(Ibid., 87). Manuel Preto Valdez, na Aca- nossa Espanha!” (Id., 1730, 122). A per-
demia XVI, em sessão de 10 fevereiro de ceção enviesada que Bernardes tem de
1664, recorda que, quando o discípulo de Platão revela-se no que afirma sobre o de-
Sócrates faleceu, se acharam, debaixo da ver de obediência dos filhos aos pais. Do
sua cabeceira, as obras de um poeta có- seu ponto de vista, os pais seriam “deuses
mico, porque, justifica, “sempre foram as terrestres e domésticos, e amigos constan-
obras dos Poetas o descanso dos sábios” tíssimos” (Id., Ibid., 253), esquecendo-se,
(Ibid., 267). Nada se diz sobre a curiosa talvez caridosamente, que as mães da Re-
incongruência entre o gosto do autor da pública desconheciam quem eram os seus
República pelo cómico e a ausência desse próprios filhos e que estes eram conce-
tipo de literatura na sua desejada cidade bidos em festas promovidas pelo Estado
perfeita; e nada se diz também sobre o com recurso a lotarias viciadas (República,
modo como o desenvolvimento das luzes 459e-460a). Mais pragmático, o desem-
de cada ser humano poderá pôr em causa bargador portuense Alexandre Ferreira
a estrutura hierárquica da utopia platóni- não aceita que o objetivo último de uma
ca. Esta Academia seiscentista revela um república seja a contemplação, só acessí-
grande interesse por diálogos platónicos vel a uma elite, defendendo antes que é
cuja receção foi pouco estudada, como o a vida civil e honesta de todos. Com isto,
Fedro e o Íon. lançou a dúvida não apenas sobre a teoria
Em obra publicada já no séc. xviii, o política, mas também sobre a metafísica
seiscentista P.e Manuel Bernardes faz mui- do filósofo ateniense.
tas referências a Platão. Nos vários tomos Já avançado o século das Luzes, o Je-
da Nova Floresta, Bernardes recusa teses suíta António Cordeiro dedica um capí-
platónicas fundamentais. Em 1706, nega tulo da sua História Insulana a criticar o
que todas as coisas aconteçam por for- mito da Atlântida. Do seu ponto de vis-
ça de um destino, que as estrelas sejam ta, a cronologia é inaceitável, porque os
animadas e que exista transmigração das 9000 anos propostos por Platão seriam
almas de uns corpos para outros. A re- anteriores à própria criação do mundo;
presentação do psiquismo humano é es- a localização e a extensão do território
pecialmente criticada, recusando Bernar- também não são aceites, por manifesta
des que a alma possa ser vista como um falta de provas. Em conclusão, o também
cocheiro guiando o coche ou como um autor do Cursus Philosophicus considera
piloto guiando a nau. Em 1708, considera que se trata de um sonho não verdadeiro,
que a Atlântida não é mais do que uma quimérico, de uma história semelhante à
fábula ou ninharia. Como se esperaria, pintura, “pois o historiar sem fundamen-
estas críticas localizadas são amenizadas to, é pintar como querer” (CORDEIRO,
por um capítulo que dedica ao “Príncipe 1717, 4). O alquimista Anselmo Caetano
dos filósofos académicos” (BERNARDES, Munhós afirma que Platão “escreveu tão
1711, III, 373-376). Mais do que isso, Ber- oculta e enigmaticamente os seus dog-
nardes aceita com gosto as ideias do des- mas que poucos sábios os entenderam”
terro dos poetas, porque corruptores dos (BRANCO, 1732, 87).
bons costumes, e da censura estatal da ati- Com um projeto intelectual muito di-
vidade literária livre, manifestando o seu ferente, Luís António Verney critica am-
desejo de que elas fossem imediatamente plamente Platão e atribui-lhe a intenção
realizadas: “Oh quanto haveria que exa- de enganar os seus leitores. Em Seis Livros
minar e desterrar no nosso século e na de Lógica para Uso dos Jovens Portugueses,
afirma que Platão “ocultou intencional- do seu ponto de vista, mais não fizeram
mente as suas opiniões numa espécie do que produzir fábulas (Id., Ibid., 193).
de colóquios para que o leitor […] não Os seus Quatro Livros da Metafísica para
pudesse perceber claramente o que ele Uso dos Jovens Portugueses, de 1765, somam
pensava” (VERNEY, 2010, 67). A acusa- a estas críticas uma outra: a relação de
ção de ocultação deliberada do pensa- causalidade entre o modelo e a forma
mento é surpreendente, quando se toma que os objetos adquirem por mediação
em consideração que o filósofo grego foi do demiurgo poderia considerar-se uma
um dos pensadores que mais lutou pela quinta causa – uma causa exemplar –, a
clareza da expressão. Está por fazer, se- acrescentar às quatro causas identificadas
guindo paralelos estrangeiros, a história por Aristóteles.
da perceção que os intelectuais portugue- Também Duarte Ribeiro de Macedo in-
ses tiveram da necessidade de a filosofia terpreta criticamente o pensamento polí-
recorrer, ao longo de séculos, à escrita tico de Platão, começando por aludir aos
esotérica. Além da crítica à forma de es- processos retóricos de construção e pro-
crever, Verney critica as teses principais moção da figura do príncipe através de
da metafísica platónica, nomeadamente a fábulas e de outras mentiras úteis. Para
Teoria das Ideias, a diferença entre a ideia Ribeiro de Macedo, a fábula segundo
de bem e o plano eidético, a separação a qual os reis teriam dois espíritos mais
das coisas singulares em relação ao plano não é do que uma “quimera com que os
das ideias e a importante noção de par- Platónicos quiseram adular as majesta-
ticipação entre substâncias e ideias. Não des e subi-las sobre a condição humana”
dando conta do registo irónico do Crátilo, (MACEDO, 1767, 53). De um ponto de
Verney recusa também a teoria platónica vista já pouco simpático para com o mito
da origem da linguagem e da capacida- do “divino Platão”, Ribeiro de Macedo
de de os vocábulos significarem as coisas. não inclui o autor das Leis no grupo dos
A teoria da alma como substância sepa- pensadores verdadeiramente sábios em
rada da alma do mundo também mere- assuntos políticos, porque, sem nunca
ceu críticas. O corolário que Verney pro- ter governado um país, deu leis a cidades
põe é incisivo: “Deve refutar-se Platão, e ordenou formas de viver a povos (Id.,
que […] empreendeu persuadir os outros Ibid., 136). Por seu lado, Fr. Manuel do
sobre a existência de certas substâncias Cenáculo, nos textos para educação do
inteligentes, emanadas de Deus e distin- clero reunidos nas suas Memórias Histó-
tas dele, diferentes das coisas singulares” ricas do Ministério do Púlpito, de 1776, re-
(Id., Ibid., 191). Será difícil atacar o pensa- conhece a utilidade, do ponto de vista
mento platónico em teses mais nucleares cultural, de os eclesiásticos em formação
do que estas. Aspetos periféricos, como a lerem Platão, se bem que acrescente ime-
incapacidade de a filosofia natural de Pla- diatamente uma nota crítica: “Será tam-
tão explicar o fenómeno das marés – uma bém útil ao pregador se ler […] Platão,
inépcia de Platão e de outros autores da tanto nas Leis, como na República, ainda
antiguidade que nada explica –, também que seja muito abstrato” (CENÁCULO,
são mencionados. À forma e ao conteú- 1776, 313). A nota é surpreendente, por-
do, a crítica do emigrado português em que Cenáculo cita as obras platónicas que
Itália acrescenta a denúncia da tradição mais especificam os detalhes dos progra-
filosófica inspirada por Platão, formada mas filosóficos propostos e que talvez pos-
pelos “semiplatónicos ou ecléticos”, que, sam ser consideradas as menos abstratas
que escreveu. Num século em que o de- depois da morte; a reincarnação das al-
bate filosófico em torno da mente huma- mas em mulheres e animais, de tal modo
na aumentou em finura de análise e em que, afirma o interlocutor Teodoro, “tal-
quantidade de novos problemas, Fr. José vez que ainda venhamos a ser senhoras,
Maine denuncia o fracasso do filósofo ou talvez cavalos” (Id., 1792, VIII, 259).
grego em “combinar os ofícios da alma O interlocutor Sílvio considera a hipótese
com a inércia da matéria divisível”, bem de Platão ter sido irónico – questão que
como o malogro da sua Teoria da Alma constituiu desde sempre um problema
do Mundo (MAINE, 1778, 17). Apenas na interpretação dos escritos platóni-
um ano depois, o P.e António Pereira cos –, acabando por concluir que “Platão
de Figueiredo recusa que Platão possa não queria zombar, falava seriamente”,
ser considerado um sábio, considerando e recomendando, como consequência
que a tradição se baseou erradamente na disso, que o filósofo grego não fosse se-
vaidade dos próprios autores antigos. Co- guido. É também Sílvio que, na “Tarde
mentando a Epístola aos Romanos, assevera XXXIII.”, recusa a doutrina de que os as-
que os escritos de Platão estão cheios de tros são animados e têm uma alma racio-
“erros tão feios e grosseiros contra a boa nal e inteligente. Em O Feliz Independente
moral, e contra os mesmos princípios da do Mundo e da Fortuna, de 1779, Teodo-
razão”. Precisando a sua crítica, mencio- ro de Almeida considera não ter valor a
na em especial as alegadas concessões crítica severa dos defeitos humanos, de-
que Platão terá feito à embriaguez, em fendendo a inutilidade da imaginação
alguns casos, e a que as mulheres fossem de “belos sistemas”, de “ideias fabulosas
postas em comum (FIGUEIREDO, 1779, e repúblicas platónicas” (Id., 1779, III,
250, nota p). 186). Para além de os belos sistemas se-
O P.e Teodoro de Almeida coloca vá- rem exercícios inúteis, num mundo que é
rios interlocutores dos seus diálogos a como é e em que “os homens hão de ser
lançar dúvidas sobre o valor do edifício homens”(Id., Ibid.), Almeida acrescenta
filosófico de Platão. Assim, na Recreação uma nota interessante à crítica que faz: o
Filosófica, denuncia-se a inutilidade de se bem aparente dos belos sistemas só con-
estabelecerem leis para se viver em socie- tribui para tornar mais insuportáveis os
dade, dada a universalidade da natureza males verdadeiros que cercam as pessoas.
humana. As leis da república platónica O séc. xix português regista algumas
constituiriam, deste ponto de vista, como opiniões, pontualmente manifestadas,
afirma Coronel, uma das personagens, sobre Platão, em continuidade com as
“doutrinas para corações imaginários, e leituras do século anterior. A universi-
não para os corações que há neste mun- dade portuguesa da altura não conse-
do de carne e sangue, que só sabem viver guiu produzir o trabalho erudito sobre
de amor” (ALMEIDA, 1800, X, 415). Na autores clássicos que notabilizou muitas
“Tarde L.” criticam-se as conceções anti- academias além-fronteiras. A falta deste
gas sobre a natureza da alma, nomeada- trabalho minucioso e a inexistência de
mente as platónicas: a ideia de que a alma coleções de autores clássicos traduzidos
humana é uma porção da alma do mun- inviabilizaram o aparecimento de gran-
do, assim como o corpo é uma porção da des sínteses da filosofia antiga. Contudo,
massa do universo; a representação da o interesse popular pela questão plató-
terra como um animal sensível dotado nica era grande, sendo a mesma muitas
de alma; o destino das almas nos astros vezes utilizada nas fricções da sociedade
platónica, como se tudo estivesse anima- Nobre França denuncia a completa inu-
do (LARANJO, 1873, 246). De um ponto tilidade da filosofia antiga. Verificando
de vista diferente, o advogado e filósofo que os filósofos foram impotentes para
J. M. da Cunha Seixas recorre a Platão a conservação da Grécia frente aos po-
para criticar os exageros do positivismo deres estrangeiros que a conquistaram,
da época, recusando que os grandes Nobre França defende que isso se deveu
problemas filosóficos (Deus, a criação, a à absoluta contradição das filosofias “com
alma, a imortalidade, a moral, os entes os factos e os regimes aviltantes das so-
matemáticos, os conceitos) possam ser ciedades” (FRANÇA, 1891, 473). Para o
triturados nos laboratórios dos químicos. tipógrafo, que foi um dos fundadores do
Encontram-se poucas notas críticas: não Partido Socialista, a filosofia ocupa-se de
se apercebendo da ironia que atravessa o causas ilusórias, manifesta os sentimentos
Crátilo, Cunha Seixas considera que as ex- das classes sociais e os seus preconceitos,
plorações linguísticas de Platão “são hoje acabando por ser pura ilusão. Como não
de pouca importância” (SEIXAS, 1879, foi a filosofia que criou a velha civilização
122); abordando a importante noção oi- europeia, mas esta que criou aquela, con-
tocentista de progresso, reconhece que as clui que “as melhores instituições da Gré-
primeiras manifestações dessa ideia surgi- cia derivaram de uma filosofia bem mais
ram na obra de Platão, se bem que não superior do que a dos seus filósofos” (Id.,
tivessem sido historicamente relevantes Ibid., 474).
nos séculos posteriores. Em registo mais O introdutor da teosofia em Portugal,
pessoal, Antero de Quental, que tinha o visconde de Figanière, refere-se muitas
grande estima pelo pensamento antigo, vezes a Platão, que considera um inicia-
confessa ao seu correspondente António do, nos seus Estudos Esotéricos. O ponto de
de Azevedo Castelo Branco, no final da vista do diplomata não se baseia na mera
primavera de 1885, que, desejoso de se argumentação racional, mas apela a um
concentrar na redação dos seus textos conhecimento de acesso reservado. Com
filosóficos, “preferiria ser Sócrates a ser esta ressalva, o autor das Cartas Japonesas
Platão”, aludindo à sua incapacidade de avança com duas observações críticas:
se conter e seguir um método, e elogian- a primeira interpreta o processo de es-
do indiretamente o autor da República colha das vidas futuras pelas almas, no
(QUENTAL, 1989, 741). Mais tarde, em mito de Er, como um excesso de presen-
carta a Oliveira Martins, revela que alguns ça do ego; a segunda denuncia a confu-
intelectuais portugueses da altura inter- são do autor do Timeu a respeito da ilha
pretavam de modo ligeiro o encómio de e do continente da Atlântida, tendo este
Platão a regimes musculados como o de desaparecido milhares de anos antes da
Esparta, vendo nisso uma reação normal primeira. Quase no virar do século, o
perante as “trapalhadas e requintes” da poeta Gomes Leal manifesta, em uma
civilização da sua época (Id., Ibid., 886). das suas sátiras modernas, a esperança
O destinatário, por seu lado, parece recu- de transformar o mundo numa aldeia
sar o estatuto metafísico das ideias plató- campestre “sábia como Platão, simples
nicas, considerando-as como meros mitos como a criança” (LEAL, 1899, 314). No
racionais e assemelhando-as a espíritos poema “A ordem”, Leal acompanha o fi-
animistas que volteiam no ar (MARTINS, lósofo grego na crítica que faz aos poetas
1882, 269). No começo da última déca- não coniventes com o Estado: “Guiai-vos
da do séc. xix, o socialista José Correia por Platão – Lançai fora os poetas, que
são os mais revéis, fatais agitadores” (Id., nas a que cidadãos e escravos são sujeitos
Ibid., 181). Contudo, parecendo fazer um pelos mesmos crimes; a indignidade do
encómio ao filósofo grego, Leal, ao apro- tratamento, inaceitável, dado às mulhe-
ximar a república platónica de uma al- res, como se elas fossem património da
deia campestre e da simplicidade de uma sociedade e não parte dela, sendo im-
criança, sugere que o projeto político pla- possibilitadas de desenvolver livremente
tónico já não se adequa à complexidade a sua personalidade; o controlo do alei-
dos tempos modernos. tamento das crianças de modo policial;
Seria tarefa vasta precisar a receção o corte dos elos naturais que unem as
do platonismo num autor com a rique- mães aos filhos através de medidas que
za de pensamento de Fernando Pessoa. impedem o reconhecimento mútuo; etc.
O autor, interessado no pensamento eso- Em resumo, e antecipando em muitas
térico, terá tido uma interpretação cer- décadas a crítica que Karl Popper faria a
tamente diferente da dos seus heteróni- Platão como inimigo da sociedade aber-
mos. O que Pessoa escreveu a propósito ta, “o Estado é tudo, o cidadão nada”
de Platão caracteriza-se pela estima mani- (CORRÊA, 1918, 138). Esta crítica não é
festa que por ele tinha, mas também pela nova e, como reconhece Corrêa, já havia
receção crítica dos seus escritos. Assim, sido proposta, nas suas linhas principais,
num dos seus textos de pendor mais fi- por Aristóteles. Com alegria, o ensaísta
losófico, afirma claramente que “Platão conclui a sua crítica ao “barbarismo filo-
estava enganado quando atribuía às suas sófico” de Platão com a certeza de que
ideias uma realidade diferente da rea- se trata de um sistema científico que não
lidade das coisas” (PESSOA, 1968, 87). poderá senão perecer (Id., Ibid., 48). Pa-
O que o poeta lisboeta denuncia é o recem ter escapado a Corrêa os factos de
processo de substancialização das ideias. que o sistema não pereceu objetivamen-
O que parece estar em causa é a transfor- te (continuando, pelo contrário, a ser
mação de um recurso meramente prag- estudado) e de que conseguiu atravessar
mático (palavra, noção) numa entidade séculos e, mais preocupante do que tudo
com existência própria: “Platão caiu no isso, a possibilidade de vir a inspirar bar-
erro em que cairia um matemático que, barismos futuros ainda mais esquecidos
após servir-se de um x e de um y para a da natureza humana.
solução de um problema prático, erigis- Os estudiosos das ciências médicas não
se esses sinais úteis mas irreais em coisas, deixaram de se pronunciar sobre o pla-
só porque tinham representado sem erro tonismo. A alegada indulgência platónica
o seu papel pragmático de lhe servirem perante a homossexualidade foi criticada
para um determinado fim” (Id., Ibid., 94). algumas vezes. Arlindo Camilo Monteiro,
No final da Primeira Guerra Mundial, e.g., atribui a Platão a ideia de que a incli-
José Augusto Corrêa recusa o pensa- nação sexual é congénita e independen-
mento político de Platão. Para Corrêa, te de causas acidentais. Monteiro revela
o filósofo grego esqueceu-se da nature- preocupação por ser possível derivar des-
za humana, ou, quando se lembra dela, ta teoria “a irresponsabilidade dos indiví-
é para a ultrajar na sua liberdade e na duos portadores da anomalia amorosa”,
sua honra. São várias as denúncias que i.e., “o facto de não poderem ser consi-
faz dos erros do seu pensamento social e derados como culpados ao exterioriza-
político: o desprezo pelo indivíduo con- rem o impulso passional que os animava”
creto, que se manifesta nas diferentes pe- (MONTEIRO, 1922, 349).
bens e de mulheres – dificilmente podem dade desses aspetos com a época em que
ser consideradas assuntos da “populaça”. o crítico vivia), vê-se que o filósofo gre-
Sendo os dois pontos improváveis, Vito- go foi de um modo geral apreciado pelo
rino, ao criticar uma leitura recorrente pensamento e pela cultura intelectual em
da obra política de Platão, está de facto Portugal. Em muitos casos, permanece a
a pôr em causa teses filosóficas importan- dúvida sobre se o elogio ao “divino Pla-
tes, como o domínio que a política pode tão”, muitas vezes reiterado, deriva do
ter sobre a totalidade da vida social. É de apreço pelas teses filosóficas do autor ou
notar, contudo, que a interpretação que se, diferentemente, é um mero símbolo
Vitorino faz do pensamento político de da estima pelas origens gregas da civiliza-
Platão coloca no centro do debate her- ção ocidental. Os autores que não elogia-
menêutico um problema especialmente ram Platão, ou que acrescentaram ao elo-
delicado para os leitores do séc. xx, que gio críticas pertinentes, têm o mérito de
viram cometer as maiores atrocidades em terem contribuído para uma leitura justa
nome do Estado e em prol da “melhoria da obra de um dos maiores pensadores
da raça”. Mesmo que a tese da ironia e da da história da humanidade.
“populaça” seja verdadeira, e que Platão
não tivesse intenção de propor uma orga-
nização política que dominasse a totalida-
Bibliog.: Academias dos Singulares de Lisboa, De-
de da vida dos cidadãos (o período entre
dicadas a Apollo, t. i, Lisboa, Officina de Ma-
o nascimento e a morte, mas também o noel Lopes Ferreyra, 1692; AGUIAR, Manoel
período da preparação dos nascimentos, Caetano Pimenta de, Morte de Socrates. Trage-
através de casamentos combinados, e o dia, Lisboa, Impressão Regia, 1819; ALMEI-
período em que os governantes falecidos DA, Teodoro de, O Feliz Independente do Mundo
se tornariam génios tutelares do Estado), e da Fortuna, ou Arte de Viver Contente em Quais-
ainda assim haveria que explicar por que quer Trabalhos da Vida, 3 vols., Lisboa, Regia
razão a alegada ironia se manifestou com Officina Typográfica, 1779; Id., Recreação Filo-
sófica, ou Diálogo sobre a Filosofia Natural, para
tão grande detalhe. Além disso, desse
Instrução de Pessoas Curiosas, Que não Frequenta-
modo não se compreende que Aristóte- ram as Aulas, 10 vols., Lisboa, Regia Officina
les, o discípulo mais importante de Pla- Typografica, 1786-1800; ANDRADE, Diogo
tão, tenha criticado exaustivamente a de Paiva de, Sermões do Doutor Diogo de Payua
República e As Leis sem ver nessas obras d’Andrade. Primeira Parte. Começa no Pr.º Domin-
qualquer ironia, mas um projeto políti- go do Aduento & Acaba na Festa do Santissimo Sa-
co bem estruturado (Política, II). Se este cramento. Recopilados dos Proprios Originais por F.
Manoel da Conceição Seu Sobrinho da Ordem dos
contemporâneo de Platão, especialmente
Eremitas de S. Agostinho, Lisboa, Pedro Crasbee-
bem informado, não viu ironia no comu- ch, 1603; AZEVEDO, Luís António, Rivaes ou
nismo de mulheres e de bens, e se o pro- Dialogo Moral de Platão sobre a Filosofia Traduzido
jeto se estruturou com um nível de com- de Grego em Linguagem Portuguesa e Ilustrado com
plexidade muito elevado, segue-se que é Escolios, e Annotações Criticas, Lisboa, Regia Of-
implausível a leitura irónica. ficina Typográfica, 1790; BARBOSA, Aires,
Equilibrando a perspetiva da forma Obra Poética, fixação do texto latino, introd.,
anot. e coment. Sebastião Tavares de Pinho e
(traduções em número diminuto e ape-
Walter de Medeiros, Coimbra/Aveiro, Im-
nas a partir do séc. xx) com a do conteú-
prensa da Universidade de Coimbra/Universi-
do (críticas localizadas a aspetos parciais dade de Aveiro, 2013; BARROS, João de, Espe-
do pensamento de Platão, muitas delas lho de Casados, ed. lit. Tito de Noronha, 2.ª ed.,
assinalando meramente a incompatibili- Porto, Imprensa Portugueza, 1874; BERNAR-
DES, Manuel, Nova Floresta, ou Sylva de Varios rio, Coimbra, Faculdade de Letras da Univer-
Apophthegmas, e Ditos Sentenciosos Espirituaes, & sidade de Coimbra, 1967; FERREIRA, Alexan-
Moraes; com Reflexoens, em que o Util da Doutrina dre, Supplemento Historico ou Memorias, e Noticias
Se Acompanha com o Vario da Erudição assim Divi- da Célebre Ordem dos Templarios para a Historia da
na como Humana: Offerecida, & Dedicada a Sobe- Admirável Ordem de Nosso Senhor Jesu Christo, t. i,
rana Mãe da Divina Graça Maria Santissima Senho- Lisboa Ocidental, na Officina de Joseph Anto-
ra Nossa, 5 t., Lisboa, Officina de Valentim da nio da Sylva, 1735; FERREIRA, Silvestre Pi-
Costa Deslandes, 1706-28; Id., Estimulo Pratico nheiro, Ensaio sobre a Psicologia, Noções Elementa-
para Seguir o Bem, e Fugir o Mal. Exemplos Selectos res de Filosofia e Outros Escritos Filosóficos, pref.
das Virtudes, e Vicios; Illustrados com Reflexoens, e Maria Luísa Couto Soares, Lisboa, INCM,
Dedicados à Soberana Rainha dos Anjos Maria San- 1999; FIGANIÈRE, Visconde de, Estudos Esoté-
tissima Senhora Nossa, Lisboa Ocidental, Offici- ricos. Submundo, Mundo, Supramundo, Porto, Li-
na de Antonio Pedrozo Galram, 1730; BRAN- vraria Internacional de Ernesto Chardron,
CO, Anselmo Caetano Munhoz de Abreu 1889; FIGUEIREDO, António Pereira de,
Gusmão e Castelo, Ennaea, ou Aplicação do En- O Novo Testamento de Jesus Cristo, t. iii, Lisboa,
tendimento sobre a Pedra Philosophal, Lisboa Officina Typográfica, 1779; FRANÇA, Nobre,
Ocidental, Oficina de Maurício Vicente de A Philologia perante a História. Ensaio de Crítica á
Almeida, 1732; Caeiro, Francisco Gama, Sciencia Allemã e a Várias Sciencias, Porto, Typo-
“Platonismo em Portugal”, in Logos, vol. 4, graphia de A. F. Vasconcelos, 1891; FRANCO,
Lisboa, Verbo, 1992, cols. 267-270; CARVA- Francisco de Melo, “História da Academia
LHO, Gonçalo Dias de, Carta a el-Rei D. Sebas- Real das Sciencias de Lisboa para o ano de
tião, introd. Maria Luísa Couto-Soares, Lis- 1816”, in História e Memória da Academia Real
boa, Biblioteca Nacional, 1986; CARVALHO, das Sciencias de Lisboa, t. v, 1.ª pt., Lisboa, Typo-
Joaquim de, Estudos sobre a Cultura Portuguesa do grafia da mesma Academia, 1817, pp. i-xxix;
Século XV e XVI, vol. i, Coimbra, Universidade, GOMES, Álvaro, Tractado da Perfeiçaom da
1948; CENÁCULO, Manuel do, Memórias His- Alma, introd. e anot. A. Moreira de Sá, Coim-
tóricas do Ministério do Púlpito, Lisboa, Regia Of- bra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1947;
ficina Typografica, 1776; CIDADE, Hernâni, Gomes, Jesué Pinharanda, “Incidências pla-
“Neoplatonismo”, in COELHO, Jacinto do tónicas na cultura portuguesa”, in PLATÃO,
Prado (org.), Dicionário de Literatura, 3.ª ed., O Banquete ou do Amor, pref. e anot. Pinharan-
vol. 2, Porto, Figueirinhas, 1973, pp. 722-725; da Gomes, Coimbra, Atlântida, 1968, pp. 1‑36;
CORDEIRO, António, Historia Insulana das Ilhas Id., Os Conimbricenses, Lisboa, Instituto de Cul-
a Portugal Sugeytas no Oceano Occidental, Lisboa tura e Língua Portuguesa, 1992; Id., Dicionário
Ocidental, na Oficina de Antonio Pedrozo de Filosofia Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Dom
Galram, 1717; CORRÊA, José Augusto, Ciência Quixote, 2004; Horto do Esposo, ed. lit. Irene
e Literatura, Lisboa, Imprensa de Manuel Lucas Freire Nunes e coord. Helder Godinho, Lis-
Torres, 1918; COSTA, Uriel da, Exame das Tra- boa, Colibri, 2007; LARANJEIRA, Manuel,
dições Farisaicas/SILVA, Semuel da, Tratado da A Doença da Santidade: Ensaio Psychopatologico so-
Imortalidade da Alma, ed. lit. H. P. Salomon e I. bre o Mysticismo de Forma Religiosa, Porto, Typo-
S. D. Sassoon, Braga, Associação Portuguesa graphia do Porto Medico, 1907; LARANJO,
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tal, 1995; DIAS, José Sebastião da Silva, Cor- 1873, pp. 241-246; LEAL, Gomes, Fim de Um
rentes de Sentimento Religioso em Portugal (Séculos Mundo. Sátiras Modernas, Porto, Livraria Char-
XVI a XVIII), Coimbra, Universidade de Coim- dron, 1899; LESSA, Almerindo, Exortações Eu-
bra, 1960; FABRÍCIO, Arnaldo et al., Orações génicas. Notas para Um Programa de Política Gené-
de Sapiência. 1548-1555, pref. e org. Sebastião tica, Porto, Associação Profissional dos
Tavares de Pinho, Coimbra, Imprensa da Uni- Estudantes de Medicina do Porto, 1933; MA-
versidade de Coimbra, 2011; FERNANDES, CEDO, Duarte Ribeiro de, Obras do Doutor
Barahona, No Signo de Hipócrates, Lisboa, Livra- Duarte Ribeiro de Macedo, t. i, Lisboa, Oficina
ria Luso-Espanhola, 1944; FERNANDES, de António Rodrigues Galhardo, 1767; MA-
João, A Oração sobre a Fama da Universidade CEDO, José Agostinho de, Sermão contra o Filo-
(1548), pref., introd. e anot. Jorge Alves Osó- sofismo do Seculo XIXº, Pregado na Igreja de S. Julião
como uma das mais poderosas críticas po- de crítica sociopolítica, destaque para
líticas. A Queda de Um Anjo (1866), de Camilo
Ainda no âmbito da expressão icono- Castelo Branco, onde o autor pinta a
gráfica, destaque para um importante e realidade da atividade de um conjunto
famoso quadro do pintor José Malhoa de caciques e a dificuldade de um candi-
intitulado A Compra do Voto (1904), que dato governamental em conseguir o seu
é um excelente exemplo da importância apoio. Também Júlio Dinis aborda a pro-
destas práticas degenerativas no ambien- blemática da tentativa de controlo dos
te cultural de uma determinada época. atos eleitorais por intermédio de man-
A Compra do Voto representa o paradigma darins ou barões locais no seu romance
da contestação artística a uma atividade A Morgadinha dos Canaviais (1868). Para
depreciativa da política, arrogando-se em além da condenação à tentativa de con-
exemplo de antipolitiquismo. dicionamento ilegítimo dos resultados
Especial relevância para a literatura eleitorais com promessas de emprego,
(à semelhança do que aconteceu com subornos, ameaças físicas, censura ainda
outros escritores no mesmo período e o vira-casaquismo, uma prática frequen-
noutros pontos da Europa), nomeada- te entre o séc. xix e o séc. xx. Em Jú-
mente durante a segunda metade do lio Dinis encontramos o exemplo típico
séc. xix, altura em que vários autores da atividade política característica do
se pronunciaram (quer através do ro- séc. xix, expressa em elementos como “a
mance, quer através das publicações fulanização dos conflitos, o compadrio,
periódicas) muito criticamente sobre a troca de favores, as lealdades e depen-
o que é habitualmente designado por dências clientelistas” (ALMEIDA, 1991,
caciquismo. Entre os vários romances 102), bem como a feroz condenação da
mesma, num modelar do que pode de- eleitoral e as suas adulterações, nomeada-
signar-se como antipolitismo. mente através da manipulação dos regis-
Outras obras, ainda no séc. xix, permi- tos de eleitores e do controlo das comis-
tem compreender que o romance satíri- sões recenseadoras; bem como o relato
co não se limitou aos exemplos referidos. de António Teixeira de Sousa dos factos
Em O Senhor Deputado (1882), de Júlio ocorridos durante as eleições parlamen-
Lourenço Pinto, o tema é recuperado, e tares de 1879.
é oferecida aos leitores uma visão próxi- O antipolitiquismo não se reduziu às
ma da forma como as carreiras políticas críticas ao funcionamento do sistema
eram construídas e alicerçadas, tendo dos partidos e às práticas de caciquismo
como estrutura uma teia de interesses, de no processo eleitoral. Na fase final da
compadrio e de cumplicidades pessoais. Primeira República, encontramos uma
A novela Uma Eleição Perdida (1888), do condenação generalizada da democra-
conde de Ficalho, permite firmar uma cia, e durante o Estado Novo, que foi,
certeza sobre a forma de funcionamen- por natureza, uma negação da política
to das eleições locais, sendo, mais uma democrática, podemos encontrar uma
vez, possível identificar a crítica à falta de multiplicidade de discursos (sobretudo
debate de ideias, ao predomínio das re- de António de Oliveira Salazar) onde se
lações sustentadas pela solidariedade po- procura desconstruir as virtudes do siste-
lítica, ao agrilhoamento da maioria dos ma democrático liberal.
eleitores em torno de relações de depen- O estudo e o comentário do fenóme-
dência e à compra de votos. Também Eça no político durante a Terceira República
de Queirós, através de A Ilustre Casa de Ra- permitiram produzir inúmeros artigos de
mires, publicada postumamente, em 1900, opinião (também estes alvo de condena-
aborda esta temática. Nesta obra, é espe- ção, sobretudo tendo em consideração a
cialmente relevante a ideia de que o cir- falta de imparcialidade e de objetivida-
cunstancialismo político permite alterar de dos seus comentaristas) e entrevistas
o sentido ideológico e o posicionamento onde se aborda negativamente a ativida-
dos políticos, confirmando-se a noção do de política, sem que na realidade exista
vira-casaquismo como prática que con- qualquer unidade no discurso.
substancia a aceitação da prevalência do Neste âmbito, existem críticas muito
realismo político face à ideologia. extensas e profundas que passam pelo
Para além dos romances, os escritores obscurantismo da vida política, i.e., que
portugueses do final do séc. xix também tentam compreender as motivações dos
trabalharam esta temática nas publica- atores políticos e as realidades infraestru-
ções periódicas. Especial destaque para o turais, o que resulta, frequentemente, na
trabalho de Eça de Queirós e de Ramalho disseminação de teorias da conspiração
Ortigão em As Farpas, publicação mensal e na condenação da falta de ideias. Des-
na qual os dois escritores, através de uma taque para as acusações de relativismo
fina ironia, satirizavam os costumes da moral, para a denúncia de existência de
época, com especial destaque para as crí- redes de pressão, e para a burocratização
ticas à vida política. do aparelho de Estado e das respetivas
Noutro campo, encontramos ainda os consequências na organização da socie-
relatos políticos, como o de Domingos dade, bem como para as críticas à falta de
Tarrozo em A Forma de Votar (1898), que preparação e educação dos agentes polí-
aborda de forma destacada o processo ticos (e à profissionalização dos mesmos),
jam tão transformadores como previsto uma lenda negra deste ministro, fazendo
inicialmente. dele uma tempestade de desgraças, de-
Além da elevação de Pombal a herói sordem e impiedade. Donde o mito bipo-
do liberalismo, devido às suas poderosas lar de Pombal.
campanhas anticlericais e antijesuíticas Camilo Castelo Branco é um exem-
(glorificação que tem como dois grandes plo paradigmático da desconstrução da
momentos a reposição do medalhão de imagem heroica do marquês de Pombal.
Pombal na estátua de D. José I, em 1833, Com o objetivo claro de desmitificar a
pelo Monarca liberal D. Pedro, e as co- fantasmagoria delirante dos Jesuítas e mi-
memorações do primeiro centenário da tificante do ministro Carvalho e Melo, o
morte deste ministro, em 1882), a mitifi- escritor português opõe-se claramente à
cação, muito frequente nos documentos avalanche de textos panegíricos em torno
filopombalistas, consiste igualmente na da figura do marquês de Pombal, produ-
sua equiparação aos grandes ministros zidos por liberais, pedreiros-livres, repu-
modernos da Europa e aos seus politó- blicanos e socialistas, no âmbito das co-
logos. Neste contexto, seguindo Emídio memorações do seu primeiro centenário.
Garcia, salienta-se o vigor da política Em Perfil do Marquês de Pombal, Camilo
pombalina com vista ao bem do povo e tece uma espécie de lenda negra de Pom-
da nação; a grande ação de Pombal como bal, para desfazer, de forma incoercível,
economista e financeiro; o desenvolvi- o mito luminoso erguido em torno do
mento da agricultura e da indústria, das político português. Na visão beatífica,
artes e ofícios; o revigoramento das letras visão liberal e maçónica, Pombal é apre-
e das ciências. sentado como paladino das liberdades e
No entanto, a ação governativa do mar- precursor das ideologias sociopolíticas
quês de Pombal é marcada por diversas mais avançadas do seu tempo. Na visão
contradições, notórias, acima de tudo, na camiliana, pelo contrário, Pombal é um
disparidade entre o discurso e a prática. déspota, um mestre do terror, da tirania
Se, por um lado, procura iluminar e li- e da opressão. Isto perante a multiplica-
bertar Portugal, na prática, institui uma ção de iniciativas centenárias para cantar
política altamente repressiva, exigindo a
obediência pura aos ditames do Estado e
Camilo Castelo Branco (1825-1890).
à ordem estabelecida pela ideologia do-
minante, com o intuito de esmagar qual-
quer forma de oposição e de crítica. As
consequências ficam bem evidentes, quer
na sobrelotação das prisões régias com
presos políticos, quer na extinção do úni-
co órgão de imprensa periódica, a Gazeta
de Lisboa, no início da déc. de 60 da se-
gunda metade do séc. xviii.
Assim se percebe que, contrariamente
aos filopombalistas, que fazem de Sebas-
tião José de Carvalho e Melo o herói do
progresso e da iluminação de Portugal,
inimigo visceral do obscurantismo, da
hidra jesuítica, os antipombalistas criem
em relação à euforia nacional perante o SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (coord.),
Centenário pombalino, trajando de pre- Pombal Revisitado, vol. i, Lisboa, Presença,
to a sua primeira página e estampando 1984, pp. 75-95; BRANCO, Camilo Castelo,
O Perfil do Marquês de Pombal, Lisboa, Prefácio,
cruzes e símbolos fúnebres em artigos
2003; CORDEIRO, Manuel Caldas, O Mar-
desabonadores dedicados ao marquês de quez de Pombal (Folheto para Poucos), Porto,
Pombal. Os textos deste periódico des- s.n., 1890; FRANCO, José Eduardo, “A fun-
toam do imenso coro de louvor a Pom- dação pombalina do mito da Companhia
bal e procuram desacreditar e rebater a de Jesus”, Revista de História das Ideias, vol. 22,
importância histórica que lhe é atribuída 2001, pp. 209-253; Id., e RITA, Annabela,
pelos sectores maçónicos e anticlericais O Mito do Marquês de Pombal: a Mitificação do
Primeiro-Ministro de D. José I pela Maçonaria, Lis-
em geral. Sinal deste desacordo católico é
boa, Prefácio, 2004; FRANCO, José Eduardo,
ainda a realização, no mesmo ano, de um O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no
congresso católico, durante o qual se ten- Oriente (Séculos XVI a XX), vol. i, Lisboa, Gra-
ta reabilitar a imagem da Companhia de diva, 2006; GARCIA, Emygdio, O Marquez de
Jesus, completamente despedaçada pela Pombal. Lance d’Olhos sobre a Sua Sciencia, Política
propaganda filopombalista e antijesuítica. e Administração; Ideias Liberais, Que o Dominavam;
Com efeito, a figura, as ideias e a ação Plano e Primeiras Tentativas Democraticas, Coim-
bra, Imprensa da Universidade de Coimbra,
política de Sebastião José de Carvalho e
1869; MACEDO, Jorge Borges de, “Marquês
Melo, pela sua natureza dicotómica, ori- de Pombal”, in SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário
ginaram uma multiplicidade de leituras de História de Portugal, vol. v, Lisboa, Figueiri-
interpretativas, também elas antagónicas, nhas, s.d., pp. 113-114; Id., “Dialéctica da
oscilando entre o filopombalismo e o an- sociedade portuguesa no tempo de Pombal”,
tipombalismo, entre o mito luminoso e o in Como Interpretar Pombal? No Bicentenário da
mito negro. Sua Morte, Lisboa/Porto, Brotéria/Livraria
Apostolado da Imprensa, 1983, pp. 15-23;
Em grande medida, o séc. xix estabe-
MARQUES, A. H. Oliveira, e DIAS, João José
leceu, pois, os traços fundamentais que Alves, “Pombal na tradição maçónica portu-
caracterizam o antipombalismo na cultu- guesa”, in SANTOS, Maria Helena Carvalho
ra portuguesa, abrindo uma verdadeira dos (coord.), Pombal Revisitado, vol. i, Lis-
fratura divergente na interpretação da boa, Presença, 1984, pp. 61-71; MARQUES,
ação política e do perfil de Pombal que A. H. Oliveira, História da Maçonaria em Portugal:
se manteve como uma espécie de visão das Origens ao Triunfo, pt. i, Lisboa, Presença,
1990; MATOS, Sérgio Campos, Historiografia e
estilizada pelo séc. xx além. Ainda hoje
Memória Nacional (1846-1898), Lisboa, Colibri,
esta fratura interpretativa condiciona a 1998; MAXWELL, Kenneth, O Marquês de Pom-
forma como vemos e pensamos o período bal, Lisboa, Presença, 2001; POLIAKOV, Lion,
pombalino. Só uma releitura a partir do La Causalité Diabolique. Essai sur l’Origine des
levantamento e da edição crítica sistemá- Persécutions, s. l., Calmann-Lévy, 1980; SER-
tica das fontes pombalinas poderá abrir RÃO, Joel, “Repensar Pombal”, in SANTOS,
caminho para uma compreensão mais Maria Helena Carvalho dos (coord.), Pom-
bal Revisitado, vol. ii, Lisboa, Presença, 1984,
equilibrada e profunda desta figura com-
pp. 351‑359; TORGAL, Luís Reis, “Pombal
plexa e marcante da história portuguesa perante as ideologias tradicionalistas e católi-
e internacional. cas”, in SANTOS, Maria Helena Carvalho dos
(coord.), Pombal Revisitado, vol. i, Lisboa, Pre-
sença, 1984, pp. 131-157; Id., História e Ideolo-
Bibliog.: BEBIANO, Rui, “O 1º centenário
gia, Coimbra, Minerva, 1989.
pombalino (1882)”, Revista de História das
Ideias, n.º 4, 1982, pp. 381-482; BENIMELI, José Eduardo Franco
José A. Ferrer, “Pombal y la masonería”, in Vanda Figueiredo
vezes, mulheres identificadas com uma e, por outro lado, os materiais educativos,
parcela da comunidade feminista lésbica como os referentes às doenças sexual-
que rejeitava o sexo heterossexual por mente transmissíveis, poderiam ser blo-
uma questão de escolha, mas também de- queados ou ficar inacessíveis.
vido a uma leitura particularmente deter-
minística sobre a dinâmica de poder nas
relações heterossexuais.
Antipornografia em Portugal
O debate antipornografia ocorreu tam- Com a Implantação da República, foi
bém em outros países. Em 1912, foi fun- criada em Portugal uma lei de imprensa
dada no Brasil a Liga Antipornografia, que pretendia restituir a liberdade de ex-
que alguns anos mais tarde se tornaria a pressão e permitir críticas à ação gover-
Liga pela Moralidade. Surgiram nesse pe- nativa e a quaisquer doutrinas políticas e
ríodo discursos contra a venda de publi- religiosas. A dificuldade em implementar
cações pornográficas consideradas pre- o novo regime conduziu, contudo, à im-
judiciais ao progresso moral e social do posição de um conjunto de medidas e si-
Rio de Janeiro (a capital federal). A Liga tuações que justificavam a apreensão de
pela Moralidade estava vinculada à União publicações pelas autoridades judiciais,
Católica Brasileira e tinha como objeti- administrativas e policiais. Nesse contex-
vo salvaguardar a moral combatendo a to, ficaram proibidos os escritos que ul-
pornografia. trajassem as instituições republicanas e a
Em 2013, os parlamentares do Uganda segurança do Estado, assim como os que
aprovaram um projeto de lei que proibia tivessem conteúdo pornográfico. Na se-
o uso de minissaias, sendo que o ministro quência da declaração de guerra por par-
da Ética e da Integridade, Simon Lokodo, te da Alemanha, no quadro da Primeira
defendeu mesmo que as mulheres que Guerra Mundial, foi instaurada a censu-
usassem vestidos ou saias acima do joelho ra em 1916. Todos os documentos que
deveriam ser presas. Esse fenómeno foi pudessem prejudicar a defesa nacional
associado à legislação antipornografia do deveriam ser apreendidos. Esta censura,
país, que proíbe matérias explicitamente a cargo do Ministério da Guerra, foi con-
sexuais em músicas e vídeos, o que veio a siderada temporária, já que era assumida-
despertar um debate mais alargado sobre mente anticonstitucional.
esta questão. Ainda em 2013, o Governo Durante o Estado Novo, Maria Velho da
britânico pretendeu evitar a exposição de Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel
menores a conteúdos para adultos. Toda- Barreno estiveram envolvidas num pro-
via, foi criticado pela Organização para a cesso judicial na sequência da publica-
Segurança e Cooperação na Europa (da ção da obra Novas Cartas Portuguesas, em
qual fazem parte vários países, alguns 1972, que, embora constituísse sobretudo
não europeus). Esta entidade, promoto- uma crítica à sociedade patriarcal portu-
ra da segurança, dos direitos humanos e guesa e à condição das mulheres, conti
da liberdade de expressão, defendeu que nha elementos que foram considerados
filtrar automaticamente a Internet é ine- pornográficos e imorais.
ficaz e que o software pode ser facilmente Outro domínio sujeito à censura em
contornável; argumentou ainda que a li- Portugal foi o cinema. Lauro António
berdade de expressão poderia estar limi- refere que a primeira indicação de tal
tada, na medida em que eram definidos à é de 1919, e faz alusão a um decreto de
partida quais os elementos inapropriados 1917 que regulamentava a exibição de
ou satisfação de determinadas fantasias. tos aos mesmos, nem façam parte da sua
Os resultados deste estudo revelam tam- produção. Por outro lado, as investidas
bém que existe uma grande diversidade que estiveram na base da luta contra a
na procura de matérias pornográficas e pornografia (e, em alguns casos, contra
denunciam a variedade de preferências a prostituição) protagonizadas por mu-
sexuais: conteúdos heterossexuais, ho- lheres – como aconteceu com as femi-
mossexuais, bondage e sadomasoquista, nistas radicais nos EUA ou com as Mães
fetichista ou sites Hentai. Além disso, de Bragança em Portugal – podem ser
apesar de a maioria das mulheres que justificadas também por situações acumu-
participou neste estudo se considerar ladas. Como referiu José Machado Pais,
exclusivamente heterossexual, algumas “a intensidade da frustração, quando so-
delas procuram também material com cialmente compartilhada, é um carburan-
mulheres e imagens de relações sexuais te de movimentos sociais” (PAIS, 2010, 22).
entre mulheres. Talvez sejam os fatores A retórica antipornográfica absorveu
referidos anteriormente relativamente e sobrestimou os resultados dos estudos
à Internet (acessibilidade, anonimato e da psicologia experimental americana,
gratuitidade) que potenciem estas ex- que se centravam sobretudo na popula-
perimentações. No entanto, existe uma ção masculina (maioritariamente branca
espécie de sentimento de culpa relativa- e pouco escolarizada), e cujas conclusões
mente a estes comportamentos, já que, remetiam, de forma generalizada, para
e.g., de acordo com o estudo anterior- o comportamento agressivo desses ho-
mente referido, 46,1 % das mulheres diz mens. Além disso, o modo dicotómico de
ter sentido vergonha por visitar páginas encarar a realidade reduz o consumo da
eletrónicas com conteúdos pornográfi- pornografia a um mundo masculino e he-
cos, o que demonstra o peso que a nor- terossexual, não guardando espaço, e.g.,
ma social tem ainda sobre os pensamen- para as mulheres lésbicas. Esta naturaliza-
tos acerca da sexualidade feminina. ção, que toma os homens heterossexuais
como potenciais consumidores de porno-
grafia (e com aspetos violentos), deixan-
Da proibição à legalização do para as mulheres (heterossexuais) o
A pornografia foi considerada uma po- papel passivo de vítimas (dos efeitos desse
tencial ameaça para a família e para a consumo), impediu uma visão mais am-
instituição do casamento heterossexual, pla no que respeita à organização social
sobretudo pelos membros dos grupos re- da sexualidade.
ligiosos, mas também por indivíduos da A crítica a este posicionamento foi
sociedade civil não comprometidos com surgindo dentro da própria teoria femi-
nenhum desses grupos. Foi considerada nista, nomeadamente a partir dos anos
prejudicial para as mulheres, sobretudo 90, quando surgiu uma terceira vaga de
pelas feministas radicais americanas, mas feminismo, mais atenta à pluralidade
também por outros indivíduos, mulhe- das identidades e das sexualidades, ten-
res ou não, feministas ou não. E sobre- do em conta os avanços da teoria queer
tudo prejudicial para as crianças e para e os perigos da censura e da heteronor-
os jovens, tendo por isso os governos de matização. Todavia, os contra-ataques
vários países legislado sobre a difusão de da pró-pornografia nem sempre estão
materiais com conteúdo pornográfico atentos ao posicionamento das mulheres
para que os menores não sejam expos- relativamente à indústria pornográfica e
aos mercados capitalistas – tanto os mais tanto na Europa como em Portugal, re-
comerciais, como a esfera mais elitista lativamente às matérias pornográficas, as
da arte contemporânea. Assim, “o femi- mesmas não são proibidas, à exceção das
nismo anticensura (também chamado que incluam menores ou que estejam as-
pró-pornografia, pró-sexo, ou anti-anti- sociadas a crimes.
porn)” veio sublinhar a possibilidade de Existem poucos estudos no país sobre
“criação de novas pornografias feitas por o consumo de pornografia e os que exis-
mulheres para mulheres, postulando as- tem baseiam-se em amostras de pequena
sim a existência de um espaço alterna- dimensão, ou em questionários que não
tivo [...] capaz de fazer surgir discursos chegaram a ser validados. No entanto,
que fraturem o saturado mundo porno- todos eles deverão despertar-nos o inte-
gráfico masculino (heterossexual)” (Pin- resse para a necessidade de realizar mais
to et al., 2010, 379). pesquisas sobre este assunto, tendo em
Adicionalmente, as novas tecnologias conta vários campos e suportes (Inter-
do sexo, sobretudo dirigidas às mulhe- net, revistas, jornais, DVD), contextos e
res (farmacologia e cultura material as- variedade populacional (contemplando
sociada à masturbação), não abstraem diferentes grupos etários, socioeconómi-
dos imaginários da cultura pornográfica cos, religiosos e de orientação sexual).
dominante e podem elas próprias ser Por fim, é importante ter presente que
constitutivas de roteiros que disciplinam as fronteiras entre a pornografia e outras
a sexualidade. Embora num contexto representações da sexualidade são hoje
em que emergem novos discursos, o cor- ténues em alguns contextos. Alguns dos
po das mulheres pode vir a ser assim, de seus conteúdos, bem como o modo como
certa forma, recolonizado com os antigos são consumidos, não permitem algumas
poderes heteronormativos, que remetem vezes estabelecer distinções claras.
para uma ordem na qual dominam indi-
víduos masculinos e brancos (STOLER,
1995). A indústria pornográfica pode ain-
da naturalizar a “raça” e reificar a hiper-
sexualização dos negros, e, mais ainda,
das negras (MATOS, 2013). Tal compor- Bibliog.: impressa: ANTÓNIO, Lauro, Cinema
tamento pode estar relacionado com um e Censura em Portugal, 1926-1974, Lisboa, Ar-
certo fetichismo com imagens exóticas, cádia, 1978; Barreno, Maria Isabel et al.,
algumas provenientes dos imaginários Novas Cartas Portuguesas, Lisboa, Dom Quixote,
2010; Butler, Judith, “Against proper objec-
coloniais (McClintock, 1995).
ts”, in Weed, Elizabeth, e Schor, Naomi
Em Portugal, a pornografia é legal, (orgs.), Feminism Meets Queer Theory, Indiano-
mas os filmes pornográficos, e.g., ape- polis, Indiana University Press, 1997, pp. 1-30;
nas podem ser exibidos a adultos. Por Cunha, Paulo, “A censura depois da censu-
outro lado, existem vídeos e revistas de ra: o caso dos filmes eróticos e pornográficos
fácil acesso em quiosques, mas a venda (1974-76)”, in Cabrera, Ana (coord.), Cen-
e a difusão deste material a menores de sura nunca mais! A Censura ao Teatro e ao Cinema
no Estado Novo, Lisboa, Alêtheia, 2013, pp. 177
18 anos é punida por lei. Os filmes por-
‑204; Dworkin, Andrea, e MacKinnon,
nográficos estão banidos dos canais de Catharine, Pornography and Civil Rights: A New
TV com transmissão aberta e só podem Day for Women’s Equality, Minneapolis, Orga-
ser difundidos através de canais encrip- nizing Against Pornography, 1988; Gaspar,
tados. Embora exista regulamentação, Maria João, e Carvalheira, Ana, “O consu-
seu pai, D. João VI. Por isso, não será de e Portugal respondeu-lhes com uma luta
estranhar que ainda no início do séc. xxi, armada no ultramar.
resistam resquícios dessas apreciações crí- O último aspeto desta perspetiva do
ticas visando os Portugueses, no formato antiportuguesismo prende-se com es-
de piadas e anedotas cujo protagonista trangeiros, tanto aqueles que visitaram
português apresenta um comportamento Portugal, como aqueles que efetivamente
provinciano e/ou capacidades de raciocí- viveram no país. Neste caso, Portugal era
nio reduzidas. comparado com os países de origem des-
Já nas antigas colónias africanas, o an- ses estrangeiros e, por vezes, alvo de seve-
tiportuguesismo foi assumido de forma ras críticas. E.g., no séc. xviii, visitantes
muito mais evidente, sendo o seu expoen- estrangeiros em Lisboa relatavam critica-
te máximo a Guerra Colonial. Portugal mente diversos hábitos e costumes portu-
resistiu a todas as pressões internacionais gueses, como a falta de limpeza das ruas, o
anticolonialistas, que se intensificariam excesso de formalismos ocos (“A palavra
após a Segunda Guerra Mundial. O Es- Excelência ocorria em profusão entre esses
tado Novo justificava que fazia parte da homens sórdidos” [SANTOS et al., 1996,
génese portuguesa o facto de Portugal ser 36]), a falta de planeamento a longo pra-
uno e multicontinental, alegando que o zo, etc. Já anteriormente, no séc. xvi, um
país ia “do Minho a Timor”. Na prática, tutor real flamengo punha em evidência:
nomeadamente em Angola, em Moçam- “Em Portugal, somos todos nobres e ter
bique e na Guiné-Bissau, os movimentos qualquer tipo de trabalho é visto com
de libertação anticoloniais, em que se desdém” (HATTON, 2013, 75). No início
hasteava o antiportuguesismo, ganha- do séc. xxi, algumas destas críticas ain-
ram importância e apoio internacionais, da podem sentir-se, tanto enraizadas em
Embarque do Príncipe Regente de Portugal, D. João, e Toda a Família Real para o Brasil no Cais de Belém,
de Henri L’Evêque (1769-1832).
associado a uma fraca autoestima, resul- mente, este temor foi cultivado de forma
ta em passividade e conformismo. O es- inversa: Salazar assumia-se como pai dos
pírito derrotista é implacável quando se Portugueses, um pai austero, controla-
pensa que os outros são sempre melho- dor, dando ordens e castigando quem
res. Os “heróis do mar” do hino nacional não as cumprisse. Esta atitude paternalis-
surgem como termo de comparação des- ta, por um lado, promoveu o lado submis-
mesurado. A confrontação do Português so, resignado e altamente manipulável
com um modelo antigo e dourado pelo dos Portugueses e, por outro, privilegiou
tempo esmaga pela sua grandeza e con- a discrição, fomentando a desresponsa-
dena à prisão ao passado, que só pode ge- bilização. O fado do “é assim” e do “tem
rar um sentimento de frustração. A “des- de ser”, frequentemente acompanhado
centragem permanente dos portugueses” por um encolher de ombros, resulta na
(LOURENÇO, 2013, 74) – que ora se desculpabilização máxima que o lado
agarram ao passado, ora se projetam num sombrio proporciona e cuja verbalização
futuro imaginado – é fatal para o presen- passa pelo lamento constante. Os Portu-
te. O recurso à história de Portugal per- gueses são vítimas de um ente superior
mite perceber que foram várias as vezes e lamuriam a sua sina, mas pouco fazem
em que os Portugueses se sentiram aban- para mudar a sua sorte. A culpa nunca é
donados, se viram órfãos, sem ter quem de ninguém – afinal, ela “há de morrer
olhasse por eles. O desaparecimento de solteira” –, “o destino assim o quis”. A afli-
D. Sebastião, no séc. xvi, e o consequente ção provocada pela assunção da culpa ou
domínio filipino, e a fuga de D. João VI e da responsabilidade paralisa e o melhor
da sua corte para o Brasil, face à ameaça será “deixar andar”, até que os aconteci-
das invasões francesas, no séc. xix, são mentos caiam no esquecimento. O medo
exemplos de que o topo da hierarquia passa, também, pela ameaça que repre-
não fez muito caso do povo, o que pode senta aquilo que o outro pensa de cada
ter causado cismas e desconfianças. Os um, ou seja, os juízos alheios. Estes englo-
Portugueses ficaram desamparados e, bam o receio do “parece mal”, o pavor do
nessa situação, o medo ganhou terreno. ridículo e a inveja. “Os Portugueses não
O episódio de D. Sebastião em Alcácer convivem entre si […] espiam-se, con-
Quibir desencadeou tal insegurança e trolam-se uns aos outros; não dialogam,
temor entre a população que redundou disputam-se” (LOURENÇO, 2013, 78).
na criação do mito sebastiânico: o Messias Esta competição, que poderia promover
viria recuperar a glória de Portugal e sal- o desenvolvimento e a melhoria, não o
var os Portugueses, que, pela sua condi- faz, porque é expressa depreciativamen-
ção diminuída, não o conseguiriam fazer te e está minada pelo “sistema de invejas”
sozinhos. Este pode ser um exemplo de (GIL, 2012, 82). Nesta sua dimensão, o
“descentragem” nacional: a projeção de antiportuguesismo consubstancia-se no
um futuro glorioso estava ancorada num lado carrancudo português e é ilustrado
passado com a mesma magnitude, sendo pelo Zé Povinho de Rafael Bordalo Pi-
o presente uma mera ponte entre os dois. nheiro, caricatura do Português resigna-
Pessoa elucida este movimento com os úl- do, tacanho e preguiçoso.
timos versos de Mensagem: “Tudo é incer- A terceira e última perspetiva do lado
to e derradeiro./Tudo é disperso, nada é interno do antiportuguesismo é aquela
inteiro./Ó Portugal, hoje és nevoeiro...” que tem Portugal na sua mira. Desta vez, a
(PESSOA, 2009, 91). No séc. xx, curiosa- crítica visa o país. O curioso da atribuição
arte a este respeito: “Tudo são questões ainda que eles careçam por seu turno
intermináveis para o naturalista, por ina- de explicação” (BOMBARDA, 1877, 5).
cessíveis a uma demonstração de facto. E te- Em toda a sua obra posterior, nomeada-
nho por mal aproveitado o tempo que se mente em A Consciência e o Livre Arbítrio,
gasta em questões de abstração, sempre Bombarda assume uma posição militante
estéreis, quando encaminhadas à solu- em defesa dos procedimentos positivistas.
ção de tais problemas, que de sua natu- Similarmente, As Alucinações, trabalho
reza são insolúveis. O facto em fisiologia académico de Júlio de Matos, de 1880,
é quase tudo; e todos os trabalhos, aliás reflete a assunção do positivismo como
filhos de grandes engenhos, tendentes a forma consumada e definitiva do saber:
desviá-la deste caminho, não são aqueles “o espírito moderno sedento de conclu-
de que as ciências médicas hão de tirar sões positivas voltou-se para a ciência que
mais proveito” (SIMÕES, 1861, 7). lhe oferecia os recursos indefinidos de
A adesão formal ao positivismo ocorre análise objetiva. […] E se nem todos os
em 1877 com a obra Traços Gerais de Filo- problemas estão resolvidos, se resta ainda
sofia Positiva, de Teófilo Braga, que lança largo espaço a percorrer, se muitas afir-
no ano seguinte, com o jovem médico Jú- mações conservam o carácter hipotético,
lio de Matos, a revista O Positivismo, que é todavia certo que algumas conclusões
funcionou como o órgão oficial da escola positivas se inscrevem desde já na ciência
positivista. Apesar da sua curta duração, e que o processo seguido na sua consecu-
entre 1878 e 1882, com quatro volumes ção é definitivamente o único que deve-
publicados, O Positivismo teve um papel mos continuar a seguir” (MATOS, 1880,
muito importante na consolidação desta v-vi).
corrente filosófica no plano teórico-me- A crítica ao positivismo acompanha o
todológico e na reinterpretação da histó- processo de consolidação desta corrente
ria e da cultura portuguesas. filosófica. Num extenso artigo publicado
No quadro das ciências médicas, Mi- em 1878, Sampaio Bruno faz uma crítica
guel Bombarda e o mesmo Júlio de Matos veemente, em tom polémico, desafiando
dão um contributo muito relevante para o “fervor de adoção da moderna gera-
a vigência do positivismo desde o início ção portuguesa” (BRUNO, 2008, 388).
da sua produção científico-académica, De facto, o poder de atração do positivis-
atestando assim a penetração do ideário mo constitui um desafio para Bruno: “A
positivista nas escolas médicas de Lisboa escola positiva, ou melhor comtista, tem
e do Porto. Nos termos de Bombarda, a hoje uma história ilustre. Ela conta no
explicação científica consiste no estabe- número dos seus adeptos muitos dos mo-
lecimento de relações positivas e exatas dernos homens mais notáveis nas letras e
entre factos: “O mistério é o isolamento nas ciências de todos os países” (Id., Ibid.,
de um facto, como diz Bain. A sua reve- 389). As objeções de Bruno dirigem-se
lação consiste na demonstração das re- em especial à Lei dos Três Estados, que
lações, sempre positivas, que o ligam a implica a exclusão da teologia e da me-
outros factos, embora desconhecidos na tafísica do estado atual do saber, e, corre-
sua natureza íntima, mas todavia mais lativamente, a dualidade entre ciência e
simples que aquele de que eles podem metafísica. Teologia, metafísica e ciência
ser elementos. É na decomposição de um positiva são diferentes modos de abor-
facto nos seus princípios que está o escla- dagem da realidade, que respondem a
recimento, a demonstração desse facto, diferentes necessidades do espírito, não
Não o alumia a luz das ideias, não lhe dá além de uma mera coleção de factos.
vida a circulação do espírito” (QUEN- O erro mais grave de Comte e dos seus
TAL, 1991, 146). fiéis discípulos reside na pretensão de te-
Nas primeiras décadas do séc. xx, rem alcançado o estado final e definitivo
quando o positivismo impregna o pen- do saber, o que lhes dá um “ar bíblico
samento português, Leonardo Coimbra de perfeição”, como é dito a propósito
(1883-1936) é a voz mais vigorosa na luta do estado positivo do saber comtiano:
antipositivista, cujo tom é certamente “e um último (!!) e definitivo período
marcado pelo intento de responder ao positivista, período orgânico, normal,
materialismo positivista de Miguel Bom- representando a maior idade do ho-
barba. O antipositivismo é uma das mar- mem. Neste último período atingido por
cas do pensamento de Leonardo Coim- Comte e alguns felizes discípulos, como
bra, bem patente na abertura da sua obra o Sr. Teófilo Braga, não haverá discus-
emblemática, O Criacionismo (1912). Sem sões: a nova certeza será perfeita, o novo
delongas, o autor considera que a positi- acordo imediato, porque reinará o Facto
vista oposição entre ciência e metafísica e e (cá diz o boticário da minha aldeia…)
a proclamada falência desta última tive- contra factos não há argumentos” (Id.,
ram o efeito contrário ao pretendido por 1923, 238-239). No limite, o confronto
Comte e pelos seus numerosos seguido- do filósofo do criacionismo é com a “fi-
res: “Um dos benefícios que o pensamen- xidez do espírito científico petrificado”
to filosófico deve ao positivismo, é o da (Id., Ibid., 76), que se revela incapaz de
atenção que hoje desperta a metafísica. acompanhar o lado dinâmico e criador
A metafísica inconsciente de uns (como da razão.
os próprios positivistas) e a refletida me- Na primeira metade do séc. xx, o po-
tafísica de outros eram feitas na tranquila sitivismo torna-se o senso comum dos
inocência do instinto ou na confiança de homens de ciência, que, por isso mesmo,
quem usa um direito indiscutível. O pen- não sentem necessidade de uma tomada
samento metafísico foi envergonhado de posição teórica em favor desta corren-
pelo pensamento científico, sempre em te epistemológica. Ao invés, o antipositi-
progresso e em afirmações de palpável fe- vismo segue o seu curso, através da refle-
cundidade. O espírito alarmado olhou-se xão crítica de algumas das figuras mais
de novo, e, se reconheceu que a metafí- relevantes da vida intelectual portuguesa,
sica lhe é intranha, ficou sempre com a entre as quais Delfim Santos, Joaquim de
censura nos ouvidos, e hoje a sua metafí- Carvalho e José Marinho.
sica é consciente e crítica, prudente e hu- Num escrito de 1938, “Situação valora-
milde, corajosa e honesta. Como se verá, tiva do positivismo”, Delfim Santos inten-
no decorrer do livro, é, para nós, infun- ta uma crítica positivista ao positivismo,
dada e ingénua a distinção de Comte en- aplicando a esta corrente os seus prin-
tre as eras do pensamento” (COIMBRA, cípios e procedimentos. Segundo a aná-
1912, 1). lise deste docente da Univ. de Lisboa, a
Leonardo Coimbra denuncia a “ido- evolução do positivismo evidenciou uma
latria dos factos” (Id., Ibid., 213), “erros notável capacidade de arrumar a sintaxe
graves e, por vezes, perigosos” (Id., Ibid., lógica das descobertas científicas, para
234) na escola positivista, mas, ainda as- as quais não contribuiu todavia signifi-
sim, valoriza o seu esforço de síntese e cativamente. A explicação positivista das
organização dos saberes, que vai muito ciências, e nomeadamente a classificação
Antipresencismo
O antipresencismo é um fenómeno
exclusivamente português, que co-
nheceu a sua propalação essencialmente
entre os anos 30 e os anos 50 do séc. xx,
relativamente a par do seu referente po-
sitivo, o presencismo. As suas origens
encontram-se no vasto movimento de
reação à revista literária coimbrã Presença,
fundada em 1927 e caracterizada por dar
continuidade, de algum modo, à ideolo-
gia da sua precursora modernista Orfeu,
que viu o seu primeiro número em 1915.
Com efeito, a atividade dos promotores
Capa da Presença, n.º 1.
da revista e do movimento presencista,
entre eles José Régio, Adolfo Casais Mon-
teiro, João Gaspar Simões, Branquinho se situavam num raio limitado, em que o
da Fonseca, Miguel Torga e Edmundo Be- centro seria, segundo a crítica antipresen-
ttencourt, é não raras vezes apelidada de cista, o “ego-centro” do escritor.
segundo modernismo, sendo o primeiro, Foi precisamente a necessidade de ru-
como se sabe, protagonizado por Fernan- tura com a herança modernista que fez
do Pessoa, Almada Negreiros, Mário de surgir o movimento antipresencista ma-
Sá-Carneiro, entre outros. terializado tanto em alguns dissidentes
O segundo modernismo, ou, em rigor, do presencismo, como em oponentes a
o presencismo, já que a revista foi um dos este pensamento ideológico que vieram a
mais importantes epicentros deste grupo, formar a geração de 40: os neorrealistas.
aspirou de modo geral a uma literatura e Repare-se, porém, que a responsabilida-
a uma arte desvinculadas, senão mesmo de pela mudança de uma corrente para
alheadas, de qualquer posição de carác- outra é atribuída mais aos poetas que à
ter político ou religioso. Na verdade, tal poesia, i.e., ao facto de os novos poetas se
como as dos seus precursores modernis- reunirem em torno de outro paradigma
tas em geral, e de Fernando Pessoa em filosófico.
particular, as preocupações deste grupo As críticas ao presencismo, tanto de
incidiam principalmente em aspetos me- uns como de outros, incidiam essencial-
tafísicos, e até mesmo num certo psicolo- mente no excesso de metafísica e no
gismo que se desdobrava em expressões pouco contacto com as quotidianas “lu-
artísticas onde se desvendava a imagina- tas dos homens” (LOURENÇO, 1994,
ção psicológica, e a confissão ou transpo- 211), como diz Eduardo Lourenço acer-
sição imaginativa da consciência intros- ca do movimento presencista em geral e
petiva. Ou seja, todas as preocupações de José Régio em particular. Aliás, como
nota Rosa Maria Martelo, este movimento movimento literário e cultural: o neor-
é tanto antipresencista como é antirregia- realismo. Este comprometia-se e empe-
nista, pois é na figura do poeta José Régio nhava-se politicamente nas suas criações,
que se centraliza todo o movimento, bem denunciando as injustiças sociais e dando
como as principais respostas aos ataques voz e rosto ao homem de trabalho, i.e., ao
mais críticos. Não obstante, há que subli- proletariado. Nomes como Alves Redol,
nhar que não existe, da parte dos antipre- Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fon-
sencistas, uma desvalorização estética do seca assinavam textos que se reclamavam
movimento de 27, mas antes um respeito opostos aos do presencismo, entendido
pelo legado deixado por aquela geração como corrente autista e de autorreflexão,
aos mais novos. O principal móbil da crí- apartada da realidade social e política,
tica ao movimento presencista pertence para com a qual, segundo a nova corren-
ao foro ideológico. Na verdade, António te, todos temos direitos e, principalmente,
Sérgio, seguido de Casais Monteiro e ou- deveres. Contudo, há que sublinhar que,
tros, afirmava que a origem deste con- se do ponto de vista ideológico se verifi-
fronto esteve num equívoco entre o papel cava uma efetiva rutura, como vimos, essa
social e o papel literário do artista. rutura não existia com amplitude equiva-
É neste sentido que lemos a vasta pu- lente no plano estético, e não se verificou
blicação na imprensa da época, entre o uma produção poética radicalmente dife-
final dos anos 30 e o princípio dos anos renciada. O Novo Cancioneiro (1941), obra
40, que testemunha o diálogo entre pre- poética primeira dos poetas neorrealistas
sencistas e antipresencistas. Pode dizer-se (com o seu correlato narrativo no roman-
que a afirmação do movimento antipre- ce Gaibéus (1939), de Alves Redol), apre-
sencista, nos primeiros esboços de neor- senta processos de escrita com semelhan-
realismo, passou fundamentalmente pela ças fundamentais com os presencistas.
discussão sobre o papel social do artista
e sobre os modos de expressar, em arte, Bibliog.: CUNHAL, Álvaro, “Numa encru-
uma nova posição ideológica. Entre as zilhada dos homens”, Seara Nova, ano xviii,
personalidades que escreviam sobre a n.º 615, 27 de maio de 1939, pp. 285-287;
égide do antipresencismo pode contar-se, GUIMARÃES, Fernando, A Poesia da Presença
e.g., António Ramos de Almeida, Rodrigo e o Aparecimento do Neo-Realismo, Porto, Brasília
Editora, 1981; LISBOA, Eugénio, O Essencial
Soares, Mário Ramos, Mário Dionísio, Ro-
sobre José Régio, Lisboa, INCM, 2001; LOU-
drigues Miguéis, José Gomes Ferreira, o RENÇO, Eduardo, O Canto do Signo. Existência
jovem Álvaro Cunhal e José Pedro de An- e Literatura (1957-1993), Lisboa, Presença,
drade, sendo que as réplicas, a existirem, 1994; MARTELO, Rosa Maria, A Construção
seriam escritas maioritariamente por José do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira, Disser-
Régio. Os jornais e as revistas que serviam tação de Doutoramento em Literatura Portu-
de palco a esta quezília, mais ideológica guesa apresentada à Universidade do Porto,
Porto, texto policopiado, 1996; MONTEIRO,
que literária, foram a revista Seara Nova,
Adolfo Casais, A Poesia da “Presença”. Estudo e
onde Álvaro Cunhal trouxe a lume o lu- Antologia, Lisboa, Cotovia, 2003; RÉGIO, José
gar-comum do “umbicalismo regiano” et al., Presença. Folha de Arte e Crítica, ed. fac
(CUNHAL, 1939, 285), e os jornais O Dia- ‑símile compacta, t. i, Lisboa, Contexto, 1993;
bo e Sol Nascente. SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, His-
Em pouco tempo, alguns entusiastas do tória da Literatura Portuguesa, 17.ª ed., Porto,
movimento antipresencista (a chamada Porto Editora, 1996.
geração de 40) deram origem a um novo Rosa Maria Fina
Antipriscilianismo
concernentes à necessidade metodológi- da, não por aquelas atitudes serem irra-
ca de um correto enraizamento na histó- zoáveis, mas para poupar os marinheiros
ria, tanto quanto possível isento de juízos à evidência da sua razoabilidade. Aliás,
preconceituosos. o medo dos familiares acentua a perce-
Em segundo lugar, e insistindo na ideia ção da ousadia – quer no sentido nega-
da leitura e da escrita, sublinhe-se um tivo de hybris, quer no sentido positivo,
aspeto já implicado no ponto anterior: associado à coragem e à aventura – que
a qualidade não apenas construída, mas assiste à viagem dos nautas. É sobre este
simplificadora do estatuto de antipro- pano de fundo que assoma o Velho, “de
gressista, com frequência assente num aspeito venerando” e “experto peito” (IV,
consenso social e institucionalmente pro- 94). A descrição é inequivocamente apre-
movido (em cujo contexto a academia e ciativa, e maior fundamento confere às
a escola desempenham um papel de re- palavras da personagem o facto de quem
levo), do qual procedem a cristalização assim o descreve não ser outro que não o
e a vulgarização de certas imagens, des- próprio comandante da flotilha. Denun-
se modo incrustadas como estereótipos. cia o Velho a glória e a fama como falsos
Ora, a entronização de um estereótipo ídolos. Temos de enfrentar o ismaelita,
acarreta sempre um empobrecimento alerta. Com um inimigo às portas, como
da imagem preconizada. Um exemplo compreender que se vá em demanda de
maior, no âmbito do tema que aqui nos outro? O corolário surge na estância de
ocupa, é o Velho do Restelo camoniano. abertura do canto seguinte, onde o Gama
Sendo muito conhecido, o respetivo epi- se refere ao “velho honrado”, sem que se-
sódio de Os Lusíadas (IV, 94-104) tende, jamos constrangidos a detetar qualquer
sem dúvida, a ser mal recordado. A figu- condescendência no epíteto.
ra do Velho, reverberando no falar cor- Mais, e colocando agora o problema no
rente, glosada no discurso do jornalismo plano dos protocolos discursivos subja-
de opinião como motivo que não é dos centes à escrita e à interpretação do poe-
mais fungíveis, terçada como arma de ar- ma épico: a lógica da epopeia de maneira
remesso no combate político, é amiúde nenhuma obriga ao detrimento da estatu-
evocada como símbolo de uma atitude ra moral dos antagonistas. A heroicidade
passadista, temerosa, encolhida, quase dos Troianos contribui para a glória dos
imbecil. No entanto, mesmo uma análise Aqueus vitoriosos, e Aquiles, confrontado
pouco ambiciosa do poema deixa perce- com Príamo, verte lágrimas sobre o ca-
ber que a composição da personagem é dáver de Heitor, numa solidariedade de
mais complexa e mais subtil. O Velho não homens que reciprocamente respeitam
é uma encarnação da senilidade, mas da a sua grandeza, pondo de parte a cólera,
prudência. Relatando ao Rei de Melinde mas partilhando a dor.
as circunstâncias da partida, o próprio É curioso registar o modo como se
Vasco da Gama confessa ter-se sentido apropria do Velho do Restelo a adapta-
“Cheio dentro de dúvida e receio” (IV, ção de João de Barros, dita “quase lite-
87). No seu todo, é de grande pungência ral”, intitulada Os Lusíadas de Luís Vaz de
a cena oferecida por Camões. Saíam as Camões, Contados às Crianças e Lembrados
gentes à rua. Mães, esposas e irmãs pro- ao Povo (1930?). Transparece no título o
feriam palavras “De amor e de piadosa propósito de endoutrinar os mais novos
humanidade” (IV, 92), vindo o Gama a e de confirmar a nação na posse de um
decidir abreviar a cerimónia da despedi- património identitário. Quanto à partida
Alexander Pope The Dunciad para a situa- de Juvenal (canto ii, vv. 1208-1210), des-
ção portuguesa coetânea. Em Os Burros, tinado à fama “se tiverem preço” um dia
cuja primeira edição data de 1812 e que “a crítica, o juízo/Entre os homens de
foi revisto pelo autor para reedições publi- bem” (canto v, vv. 743-745), “Só do que
cadas em 1827, 1835 e 1837, o jornalismo é natural Macedo amigo” (canto iv, vv.
é apontado como um instrumento da deu- 261). O poema encerra e encena, pois, o
sa Sandice, da traição à independência e seu próprio contraditório – e a sua natu-
à cultura pátrias, sendo os homens da im- reza de contraditório –, atribuindo autori-
prensa colocados a par dos poetas, dos tra- dade a Macedo pela voz dos antagonistas.
dutores, dos académicos, dos pintores, dos Se Macedo responsabiliza os periódi-
cientistas, dos homens do teatro – todos cos pela degenerescência do reino, dis-
medíocres nas respetivas atividades, todos, corda frontalmente dele o causticado
ainda por cima, imorais. Para alvo princi- Rocha Loureiro. De sua autoria, O Portu-
pal, Macedo escolhe Rocha Loureiro, que guez, publicado em Londres entre 1814
vemos ser coroado pela Sandice como o e 1826, não continuamente embora,
mais estúpido entre os estúpidos. A João porque o sucesso da revolução vintista
Bernardo e aos seus sequazes – que são permitiu, ainda que precariamente, o re-
metamorfoseados em burros no culminar gresso à pátria, é um dos mais extensos
da obra – é cometida a missão de estender e interessantes jornais do exílio liberal.
o domínio da Sandice a Portugal, último Aí mostra Loureiro apreciável fôlego de
bastião anti-revolucionário e anti-francês. analista dos acontecimentos da época, de
No canto iii, os seguidores daquela bizar- polemista, até de doutrinador político,
ra deidade reúnem-se para determinar mais raramente de crítico e comentador
qual a melhor maneira de desempenhar literário. Um tema recorrente é o impe-
a incumbência. Uma personagem sugere rativo de habilitar de formação cívica a
o teatro, confessando-se autora de certas generalidade dos cidadãos e de os dotar
obras “Por quem digno me fiz de açoite e de informação que os capacite para a in-
forca” (v. 323); outra, uma epopeia a lou- tervenção na sociedade de homens livres
var quem quer que vença os conflitos do e participativos que se pretende instaurar
momento; outra, traduções que tragam em Portugal, findo, como se espera que
“o império da ignorância” (vv. 456-457); seja em breve, o período negro do pre-
outra, finalmente, apresenta e vê aprova- sente. Neste quadro, é atribuído ao pró-
da a ideia da criação de um novo periódi- prio jornalismo um papel de primeiro
co, intitulado O Bacio, que tem a vantagem plano na fundação da sociedade liberal,
de poder albergar a realização de todos que pressupõe a participação na res publi-
os planos anteriores. Vem, entretanto, a ca de uma massa alargada de cidadãos.
concluir-se que será desnecessário o novo Naturalmente, a liberdade de imprensa
jornal, na medida em que a Sandice já tem é um objetivo por cuja consagração legal
o reino conquistado, graças à ação do pe- não se inibirá o jornalista de fazer cam-
riodismo liberal corrente. panha. Interessante é notar o modo por
Atestam o cariz antitético da obra, ain- que a experiência do confronto direto
da, os lances em que Macedo, nomeado com as realidades britânicas – como que
por alguns burros e pela própria Sandice, a abrir uma linha de pensamento que
se inscreve no universo ficcional como ad- fará da Inglaterra, ao longo do século,
versário maior, qualificado como “mons- um modelo das instituições represen-
tro” temível que empunha um exemplar tativas, das liberdades, da participação
dita. Como refere Miguel Nogueira de Bri- vigente, abolindo a justiça senhorial, as ser-
to, a propriedade em Aristóteles é a causa vidões e os direitos banais ainda existentes.
eficiente da cidade, sendo o viver bem a Circunscrevemos a nossa análise aos au-
causa final, e a causa formal uma organiza- tores que, de forma consistente, esgrimem
ção social tão efetiva quanto seja possível. argumentos adversos a um determinado
A defesa da propriedade em Aristóteles é conceito de propriedade privada, posições
essencialmente de natureza privada, enca- que são mais facilmente identificáveis no
rada como o poder do dono da casa sobre séc. xix, em que vemos surgir a justificação
os bens externos, sendo, portanto, um dos da propriedade com base no trabalho, em
instrumentos necessários ao governo da contraposição ao conceito de propriedade
casa. S. Tomás de Aquino entende, por seu privada do liberalismo. De salientar que
turno, a propriedade como pertencente os movimentos de natureza social que vão
ao direito natural, admitindo que esta pos- analisar o conceito de propriedade com
sa ser comum quando exista necessidade. base no trabalho merecem especial aten-
O elemento comum das conceções medie- ção. Estas novas conceções vão atacar a
vais de propriedade centra-se, portanto, propriedade liberal, mencionando que é o
na defesa da propriedade privada depen- próprio trabalho que produz a proprieda-
dente da ideia de comunidade originária de, não podendo esta, por isso, ser possuída
de bens. por uma classe em particular. Destacamos,
Outro contributo importante para a a este respeito, a posição de Karl Marx, que
compreensão do direito de propriedade considera que a propriedade dos meios de
passa pela leitura da posição franciscana, produção pela classe burguesa é uma for-
que procede à diferenciação entre o uso ma de expropriação de trabalho humano.
e a propriedade, contrariando a heran- Este é inclusive um elemento determinan-
ça romanista que identificava proprietas e te na construção marxista da propriedade,
res. As duas conceções existentes acerca que defende a abolição da propriedade
da propriedade privada vão, portanto, privada como condição para a cessação
circunscrever-se, como refere Miguel No- da subjugação do trabalho alheio. Marx
gueira de Brito, à conceção mais antiga, considera que a apropriação da proprie-
que interioriza no proprietário a vertente dade privada por uma parte significativa
comunitária, e à conceção moderna, que da sociedade conduziu à inexistência des-
o identifica como agente da sua liberdade ta propriedade por parte do proletariado,
individual. submetido à escravatura. Importa, aliás,
A Revolução Francesa marca o início da mencionar que Marx, ao elaborar a sua
suposta libertação da propriedade, pela noção específica de propriedade privada,
abolição dos encargos que a oneravam recorda os modelos pré-capitalistas em que
desde a Idade Média, fazendo regressar al- havia coincidência entre o proprietário e o
guns dos conceitos defendidos pelo direito trabalhador, situação que manifestamente
romano, nomeadamente a propriedade não sucede quando se debruça sobre a rea-
plena, livre e individual. A Declaração lidade histórica descrita em O Capital, que
dos Direitos do Homem de 1789 define a afasta a propriedade originária do traba-
propriedade como um direito natural, in- lhador. Em consequência, define o comu-
violável e sagrado, reconhecendo ao pro- nismo não pela abolição da propriedade
prietário a livre disposição dos seus bens. em geral, mas pela abolição da proprieda-
Posteriormente, a Assembleia Constituinte de burguesa, como refere no seu Manifes-
francesa procurou suprimir o feudalismo to: “Mas a moderna propriedade privada
cia para com etnias e confissões religiosas os britânicos em 1807, vigorou até 1814,
diferentes, propícia a uma coexistência ocupando para quartel das guarnições
social pacífica. Numerosos “exemplos o edifício do antigo Colégio jesuítico de
domésticos” do passado mostravam ter a S. João Evangelista, onde estava instalado
intolerância conduzido a efeitos a quere- o Seminário, transferido para o pequeno
rem-se não repetidos, como lembrava em Mosteiro Novo, e o Convento das Cla-
certo passo de A Verdade da Religião Chris- rissas da Encarnação, que desalojaram,
tã, pois haviam feito “desertar a muitos indiferentes aos protestos levantados.
dos nossos para irem abraçar o judaísmo O contingente não chegava a 1500 ho-
e o protestantismo na Suíça, na Holanda mens, sendo veemente a discordância
e Inglaterra”. Isso não implicava, porém, do ilustrado vigário capitular D. Joaquim
que não sustentasse, em seu discorrer de Ataíde em carta dirigida à Rainha,
apologético, ser a verdade do catolicismo então no Rio de Janeiro, a denunciar e
“necessária absolutamente na ordem da a lamentar a usurpação do comando in-
salvação eterna”, embora o não fosse “por glês, escrevendo ser inaceitável que “um
si só […] na ordem pública do Estado” pequeno número de tropa ocupe os mes-
(SANTOS, 1787), e bem assim o seu mo- mos lugares em que se acomodavam mui-
nopólio no plano da propaganda religio- tos milhares de homens”. Acrescia, ainda,
sa. Foi a situação da realidade histórica a falta que desta forma ficava a haver de
portuguesa da viragem para o movimen- “uma casa de educação para aqueles que
tado séc. xix, que conhecerá no primeiro se não destinam à vida eclesiástica”, com
quartel acontecimentos fraturantes, des- flagrante míngua de instituições para
de as invasões francesas à ocupação ingle- a mocidade da ilha da Madeira, razão
sa e à Revolução de 1820, a encaminhar por que os pais “ou mandam seus filhos
a nação para o liberalismo, o que fez o a Londres, ou ficam sem instrução algu-
investigador José Esteves Pereira subli- ma, sendo aliás esta terra muito fértil em
nhar: “A influência do estrangeiramento talentos”. Contudo, o que fez crescer o
cultural não deixava, por outro lado, de repúdio de eclesiásticos e da população,
pesar no comércio de ideias religiosas, bem notório em 1812, ao falar aberta-
designadamente nas imediações dos gru- mente de profanação, foi a celebração do
pos sociais em que o canonista convive” culto anglicano nas igrejas católicas da
(PEREIRA, 1983). De registar é o caso Madeira, com saliência na igreja do Colé-
madeirense. Se o bispo da Diocese do gio, e na pequena capela do Convento da
Funchal, D. Lourenço de Távora, alertava Encarnação (Id., Ibid., 242-246).
em 1615 para a “fé infecionada” dos es- A resiliência continuava, porém, laten-
trangeiros desembarcados na Madeira, o te, quando chegou ao arquipélago, em
Inglês John Ovington, capelão anglicano 1839, Robert Reid Kalley (1809-1888),
que conhecia o meio religioso e social da médico escocês e habilitado teólogo pro-
ilha da Madeira e por lá passara em 1689, testante, que se tornou o continuador de
emitia um juízo excessivamente não li- uma evangelização de resultados promis-
sonjeiro sobre os Jesuítas do Colégio do sores. Eleito, em 1842, conselheiro-pres-
Funchal e os cónegos da Sé, de medíocre bítero da comunidade funchalense da
nível intelectual (CARITA, 2013, 107). Igreja Escocesa, existente desde 1822,
A invasão inglesa do início do séc. xix, a fervia em zelo de atrair ao redil protes-
título de proteção e defesa, mais justifica- tante os naturais da Madeira, na esteira
da e militarmente consistente ao voltarem do que em Portugal se verificava: Helena
sabe Deus por que meios”. Apontando, e “repelirem qualquer insidiosa tentati-
como motivo desta ofensiva, os milhares va” de “decrépitas doutrinas, apregoadas
de conversões anuais “ao catolicismo na como novas”, semeadas por estrangeiros
Alemanha, na Inglaterra, nos Estados que ignoram a língua, usos e costumes,
Unidos da América, onde o protestantis- índole, carácter e inabalável fidelidade
mo imperava altivo”, vê-a como tentativa dos Portugueses. Se as expressões dicotó-
de compensação de quem entende “por micas são afirmações dogmáticas inequí-
boa represália contra a igreja Católica vocas, não poderá passar despercebida
subtrair-lhe os seus fiéis portugueses”. uma nota de ressaibo moderno, a refletir
Adverte, em claro aviso ao governo, que a o influxo da mentalidade liberal coeva
dimensão política da rutura desta unida- na rejeição explícita de meios coercitivos
de dos espíritos pela crença não respeita para atalhar o mal. Além disso, recusa in-
só à religião, mas também ao Estado, pois vocar a observância da lei do Estado em
“a ambos presta relevante serviço quem defesa da religião, por contrariar a “ho-
concorre para que os filhos da mesma menagem a Deus o culto que não é vo-
pátria o sejam também da mesma Igreja”, luntário e livre”, e porque ia alentar o ad-
doutrina aliás consagrada na Lei Funda- versário a entrincheirar-se “no presumido
mental do país, “quando declara que ‘a baluarte da liberdade da crença e invio-
religião católica apostólica romana é a lável direito da pessoa humana”. Prefere
religião do Estado’”. Sem deixar de reco- o recurso à prece e à persuasão, ou seja,
nhecer “as exímias qualidades com que ao confronto dialogante. A segunda par-
muitos dos protestantes se tornam re- te é consagrada à “Defesa da autoridade
comendáveis e merecedores de estima”, da Igreja Católica”, que, em 18 séculos de
deplora a atitude e duvida da seriedade existência, se tem mantido una – o mes-
dos – em seu cômputo, poucos – ex-sacer- mo símbolo de fé, sacramentos, pastores
dotes diocesanos que repudiaram o gré- e um só chefe espiritual –, santa, católica
mio eclesial a que pertenciam. Aludindo e apostólica. A terceira destina-se à “Re-
em geral a todos e aos que diretamente futação do erro fundamental do protes-
conhecia, respeitantes ao bispado do Por- tantismo: o livre exame”, que considera
to, o prelado desta Diocese, na sua pas- ilusória verdade, pois, onde há liberda-
toral de 1878, trata-os de “desgraçados de de exame, de crenças e obras, há por
perjuros que levaram para o arraial inimi- certo falsidade. A quarta e última versa
go o sacerdócio de nós recebido”, acres- sobre a “Refutação dos principais erros
centando: “não nos consente a nossa fé do protestantismo: males que eles produ-
que acreditemos na convicção deles; não zem”, que pormenoriza no que respeita à
nos importa a torpeza dos motivos do seu presença real de Cristo na eucaristia; ao
proceder; não lastimamos a perda desses culto mariano, dos santos e à veneração
trânsfugas, nem invejamos a outrem por das imagens; à existência do Purgatório
certo à Igreja Lusitana a aquisição deles: e à necessidade de sufrágios pelos defun-
consigo mesmo levam o merecido casti- tos; à confissão sacramental; à indissolu-
go no desprezo da sua consciência e da bilidade do matrimónio e à rejeição do
dos próprios que os captaram”. O inten- divórcio; ao sacerdócio ministerial e ao
to do documento pastoral, que Instrução celibato. Tudo é passado pelo crivo da
se denomina, é tão-só animar a vontade controvérsia, num pautar dicotómico:
e iluminar o entendimento dos diocesa- Igreja e seita, verdade e erro, divino e hu-
nos a fim de se preservarem do contágio mano, sagrado e profano. Na “Exortação
sem excessos de linguagem nem as ex- para me servir dos termos da nossa Carta
pressões de agressiva contundência em fundamental, só um exercício ‘doméstico
que o escrito do P.e Sena Freitas era fértil. particular, em casas para isso destinadas,
A preocupação de conservar o debate ao sem forma alguma exterior de templo’”.
nível de um confronto doutrinário-teoló- Natural curiosidade desperta, por serem
gico é notória. A sua condição de docen- dois pontos de sempre acesa controvér-
te da especialidade, familiarizado com os sia, ver a atenção dada à confissão auri-
temas controversos, fazia-o sentir-se mais cular e ao celibato eclesiástico, inerente
à vontade na polémica. Saliente-se que ao voto de castidade pronunciado pelos
não vê necessidade de maior liberdade clérigos seculares e regulares. O restante,
de culto, aliás “um predicado próprio em jeito de conclusão, é uma apologia da
só da religião verdadeira e de nenhuma religião católica e da sua benéfica ação na
outra”, por poder “significar ceticismo, sociedade coeva. Não lhe passa sem men-
indiferença religiosa, ou um cálculo”, ção que “as conversões dos católicos mul-
dado que a existente já permitiu o que tiplicam-se e os limites da Igreja Romana
se tornou notório: “dentro dos muros do alargam-se na Inglaterra e nos Estados
Porto o primeiro templo protestante foi unidos da América”, constituindo a “cer-
construído à beira do Campo Pequeno, teza da sua origem divina”. Em síntese,
onde um alto muro, que por esse lado poderá ver-se que, em seu contexto his-
o guarnece, lhe deixa ver de fora as ci- tórico, a importância desta polémica en-
malhas e o telhado apenas. Ergue-se ul- tre católicos e protestantes, a primeira de
timamente na Praça Coronel Pacheco, algum fôlego, até pelo nível social, pela
e quão diferente é o seu público aspeto! craveira intelectual e pela posição dos in-
Ei-lo lá está o Protestantismo, debruçado tervenientes, reside na circunstância de
sobre o parapeito, que suas mãos conse- expressar a reação oficial e hierárquica
guiram abater mais, a fazer propaganda, da religião maioritária nos primórdios do
e impaciente à espera da noite da liberda- incremento do protestantismo no Porto
de de cultos”. E, contrafeito, resigna-se a e de constituir um significativo debate
admitir o que a lei apenas tolera, porque entre clérigos de formação teológica be-
“cumpre absolutamente às nações abra- bida nas mesmas fontes, mas com opções
çar e defender [como] única religião” o confessionais diferentes. E, sobretudo,
catolicismo, acentuando: “Sejam muito acaba por ser um valioso indicador con-
embora permitidos os outros cultos; pois juntural da assimilação doutrinária do
que nos organismos do direito público reformismo evangélico por um culto ex-
e do internacional, onde os indivíduos ‑presbítero romano e ministro metodista
e os povos figuram como outros tantos converso, bem como da forma como era
membros da grande humanidade, não utilizada apologeticamente num debate
devem ser excluídos do território em público na imprensa, reflexo por certo
que residem ou transitam, os cidadãos e do que se processaria, de ordinário, na
estrangeiros, pelo simples facto de não catequese e pregação confinadas ao inte-
professarem a religião do Estado, e per- rior dos templos.
tencerem a comunhões religiosas diver- O terceiro facto a equacionar centra-se
sas. Vale mais ter alguma religião do que no Ultimato de 1890, considerado pela
não seguir nenhuma. O Estado, porém, nação inteira uma odiosa e ultrajante
não deve conceder aos cultos bastardos afronta da Inglaterra, de crença esmaga-
e falsos uma representação pública, mas, doramente protestante e sua mais velha
que alguns eram atraídos ao evangelismo sem o terreno, “seria um bem incontes-
pelo aliciante de o livre-arbítrio se unir tável” (BRÁSIO, 1956, 8-10). O bispo que
“perfeitamente com o amor livre, e as com ele viera na mesma data e o desti-
mãos livres e viva a liberdade”, o que tor- nara mais dois companheiros à missão do
nava os protestantes “mil vezes piores que Congo, ao escrever ao então governador
os ladrões de estrada, que os salteadores ‑geral de Angola, logo a 11 de novembro
e assassinos”. de 1880, temia que eles se retirassem,
Entretanto, encontram-se reações de sem glória para a Religião nem para a Pá-
antiprotestantismo vindas de credencia- tria”, perante as dificuldades encontradas
dos missionários e governantes portugue- para se aguentarem, e ante a irrisão dos
ses que passaram por Angola e Moçambi- “Missionários protestantes, cujas vistas
que, na segunda metade do séc. xix, no são, como não desconhece o Governo,
desempenho das suas atividades. Ao com- a evangelização protestante e mais algu-
pulsar-se escritos e documentos oficiais ma coisa” (Id., Ibid., 349). Por seu lado,
de suas lavras, rastreiam-se observações conforme informa no relatório à Estação
elucidativas sobre o que pensavam de mé- Naval de Angola, de 2 de março de 1881,
todos e intenções dos agentes religiosos o segundo-tenente Carlos Cândido dos
protestantes. O célebre bispo D. António Reis, comandante em serviço na canho-
Barroso (1854-1918) – que, sacerdote de neira Bengo, que transportara os missio-
26 anos, foi enviado para o Congo a fim nários portugueses, havia, no terreno,
de restaurar as outrora pujantes missões duas missões protestantes, a Petit Congo
católicas aí existentes – não esconde o Mission e a Livingstone Zuland Mission,
juízo que lhe merecia essa atuação pro- ligadas a São Salvador do Congo: “Estas
selítica. A época era, com efeito, de for- duas Missões fazem tudo, menos missio-
tíssimo pendor colonialista europeu no nar; são viajantes enfatizáveis, explorado-
continente africano, coberto pelas deli- res geógrafos, tudo quanto quiserem me-
berações da Conferência de Berlim de nos missionários. Enquanto à influência
1855 e pelas grandes viagens científicas, e prestígio que estas Missões têm sobre
apoiadas política e economicamente por o indígena, pode-se avaliar pelos factos
Ingleses, Franceses e Alemães, a que aca- que acima deixo expostos. Assim que
bou por juntar-se o notável e empenhado acabam as fazendas [para pagamento aos
contributo português de natureza afim, príncipes cujos territórios atravessam],
embora com modestíssimos recursos têm imediatamente de retroceder, por-
logísticos. que os príncipes do interior nem mesmo
No primeiro relatório de 15 de junho lhes aceitam mokanda como pagamento;
de 1881, para D. Fr. José Sebastião Neto, isto quer dizer que têm menos crédito
prelado de Angola e futuro cardeal-pa- que qualquer aviado, que com um lápis
triarca, enviado de São Salvador do Con- e papel pode dirigir-se onde quiser, sem
go, o P.e António Barroso dá conta da encontrar dificuldades” (Id., Ibid., 361).
concorrência que à escola católica “lhe No relatório circunstanciado, oito dias
faz a protestante que apesar de não ser depois, do comandante da Bengo, capitão
pública, nem por isso deixa de existir, de mar e guerra João Ricardo Barreto
emanando dela, natural e logicamente, Mena, remetido ao governador-geral de
consequências que não podem ser favorá- Angola, aquele detinha-se a falar das mis-
veis nem ao catolicismo nem a Portugal”, sões a operar no Congo português e, em
chegando a pensar que, se abandonas- particular, na missão protestante de São
antiportuguesa dos protestantes – mem- Saída pela primeira vez em 1859, a sua
bros da Baptist Missionary Society e da difusão surpreende, perfazendo o total
London Missionary Society – logo a seguir das suas 15 edições, por volta de 1904,
à primeira expedição de Stanley, dispon- mais de 100.000 exemplares, de forma a
do de numeroso pessoal, de largas com- poder considerar-se o livro português de
petências profissionais e científicas, ao maior tiragem até então. Do formato de
serviço, primordialmente, dos interesses um devocionário a exceder 600 páginas,
políticos e económicos da Coroa inglesa, esta “Bíblia das aldeias”, de acentuado ri-
sob a capa de um proselitismo religioso. gor jansenista, destinava-se a “despertar
E, citando o relatório de 25 de setembro os descuidados, converter os pecadores, e
de 1885, que enviara para a metrópole, sustentar os frutos das missões”. Presente
dizia: “Vejo diante de mim essas missões em muitos lares de praticantes católicos,
protestantes, com religião sem dogmas, inclui o volumito, a partir da edição de
sem mistérios, sem filosofia, sem abstra- 1870, duas instruções, a 74.ª e 75.ª – de-
ção, sem misticismo, sem austeridade, re- pois com outra numeração, mas sempre
ligião para inteligências acanhadas e para seguidas –, intituladas “Contra os protes-
povos de costumes naturais, e vejo-as, tantes” e “As Bíblias protestantes”. As con-
para mal nosso, trabalhando com coesão denações atemorizadoras contidas não
e disciplina, e reagindo na sombra contra deixariam de se gravar, dada a sua lineari-
a soberania portuguesa” (Id., Ibid., 656). dade, na memória dos leitores e ouvintes
a quem tais páginas se dirigiam. Alerta a
primeira para a dicotomia entre as duas
Pregação popular, panfletismo religiões cristãs: o que “a Igreja Católica
e imprensa periódica afirma, o protestante nega”, no que res-
O combate antievangélico estava presente peita aos pontos de fé. Afirma-se que o
na pregação levada aos meios rurais e urba- protestantismo é “uma desorganização de
nos, no âmbito das denominadas missões toda a ordem”, cuja divisão “em mil pe-
do interior, que eram alimentadas com quenas seitas, que se anatematizam umas
exacerbado zelo por religiosos egressos. E às outras, e só concordando em seu ódio
manteve-se, ao longo das últimas décadas à Igreja Católica”, do que resulta ser “uma
do séc. xix e das primeiras do séc. xx, in- anarquia religiosa”. Rejeita, como “regra
tegrado nos exercícios de piedade que se fundamental da Fé, […] o ensino infalível
estimulavam no prolongamento desta ati- e autoridade divina do Papa e dos Bispos”;
vidade pastoral. Os fiéis, antes da “missa “não tem crenças, tem opiniões, e essas va-
de alva”, eram convidados a momentos de riáveis como ele mesmo; por isso é que en-
reflexão, após ouvirem breves leituras em tre os protestantes são tantas as religiões,
voz alta destinadas aos crentes reunidos, quantas as cabeças, e cada cabeça pode
sendo a maioria deles analfabetos. A uti- mudar dela todos os dias”; repudia, ainda,
lidade de um manual adequado para esse “tudo quanto há de consolador, terno e
fim é patenteada pelo impressionante su- afetuoso na Religião, como a presença de
cesso de A Missão Abreviada, referenciada Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, o
por Camilo, da autoria do P.e Manuel José tribunal da misericórdia e do perdão, a in-
Gonçalves do Couto (1819‑1897), que cal- vocação da Santíssima Virgem e dos San-
correou as regiões minhotas e transmon- tos”. A outra instrução abre lembrando
tanas durante larguíssimos anos, estando pecar “mortalmente todo o católico, que
entregue àquele ministério apostólico. scienter comprar, vender, ter, ou reter em
seu poder as bíblias protestantes, que são 1938, o também Inaciano P.e Domingos
essas, que por esses vendilhões em toda a Maurício escrevia: a protagonista, “que
parte, nas cidades, nas vilas, e até nas al- vivera na boa fé, volta à verdade, conquis-
deias, se vendem em grande abundância”, tada pela caridade dos católicos contra os
com “empenho e porfia”, e “pela barateza quais nutrira tantos preconceitos. A nar-
do seu preço, que nem sequer se pagam rativa é um simples pretexto para expor,
da encadernação”. Lembra que também em forma atraente e leve, os principais
são proibidas, porque a sua tradução cor- erros do protestantismo e a respetiva re-
re sem a aprovação da Igreja, anotações ti- futação. Livro, a propósito, para muitos
radas dos santos padres e “varões doutos e trabalhados pela propaganda herética”.
católicos”, faltando-lhes “livros, versículos, O P.e Rademaker, que sempre se mostrou
e capítulos” da Vulgata latina. Adverte-se empenhado neste combate, fez sair, em
incorrer mesmo “em excomunhão maior 1879, na Semana Religiosa Bracarense – logo
ipso facto” quem “as defender, reputar, ou vertido em castelhano sob o patrocínio
as tiver por verdadeiras; porque na ver- do bispo de Tui, e, dois anos depois, im-
dade são heréticas, falsas e protestantes”. presso em folheto pelo periódico vimara-
A intensidade com que os colportores as nense Progresso Católico –, o escrito “Vinte
difundem a nada mais obedece do que e cinco por cento aos cem disparates dos
a “de longe ir dispondo o povo para em protestantes”, que, em 1951, alcançava a
tempo oportuno introduzir neste reino o 6.ª edição, a qual merecia do crítico da re-
protestantismo, que é uma religião falsa vista eclesiástica Lumen o seguinte comen-
e depravada; é uma religião que veio do tário: “Nestas 30 páginas compendiou o
inferno e abre a porta a todos os vícios”. seu autor o Sr. Padre Rademaker, S.J.,
E, se é “cómoda para viver, para morrer vinte e cinco respostas, breves mas cer-
é o diabo”, acrescenta a terminar a po- teiras, a outras objeções ou ataques feitos
lémica invetiva de óbvia contundência à doutrina católica, particularmente em
apologética. Reflexo desta sanha católi- matéria bíblica, que é o ponto estratégico
ca contra as “Bíblias protestantes” pode dos reformadores. Merece larga difusão
verificar-se, por exemplo, no auto de fé este opúsculo, agora que a propaganda
feito na Covilhã em 1866, no governo de protestante alastra por todo país, invadin-
D. Manuel Martins Manso, bispo da Guar- do os meios populares”.
da (1858-1878), que o fora do Funchal O púlpito e a imprensa, poderosos ins-
(1850-1858), em que muitos exemplares trumentos de comunicação social, eram
foram queimados. os meios a que a maioria católica mais
Semelhante ataque antiprotestante recorria para enfrentar o proselitismo
apresentava análogos contornos pela protestante. Saliente-se a ação do polígra-
pena de outros eclesiásticos católicos, fo P.e José de Sousa Amado (1812-1887),
como, e.g., nas publicações afins do Jesuí- nome a colocar ao lado do P.e Sena Frei-
ta Carlos João Rademaker (1826-1885), tas em seu vigor polémico. Sacerdote ilus-
pregador popular, ao tempo de reco- trado, fogoso na peleja doutrinária e pro-
nhecida nomeada. Editada em 1871, a vocador nos desafios ao poder judicial,
sua novela edificante A Viúva do Ministro Sousa Amado tinha, como alvos a visar
pretende retratar a história “exemplar” por sua reconhecida influência sobre a
de um pastor protestante que deixou de- sociedade, considerando-os outros anti-
samparada uma pobre mulher seduzida. cristos a abater, a loja maçónica, a política
Em breve recensão crítica à 2.ª edição de liberal e o proselitismo evangélico. Para
ele, na raiz do grande desnorte estavam de Sá Pereira do Lago, coletânea dos ar-
Voltaire, o filosofismo moderno e a ciên- tigos publicados no semanário Voz Pública
cia positiva. A sua agressividade contra o de Vila Meã relativos à polémica travada
protestantismo, passando por cima as ha- com os ultramontanos daquele órgão en-
bituais referências à confissão sacramental tre agosto e novembro do ano anterior.
e às indulgências, é marcante. Forneceu A disputa fora provocada pela notícia do
‑lhe pertinente oportunidade a compra, correspondente local para esse diário,
pela Igreja Presbiteriana, do descativado possivelmente o próprio pároco da terra,
Convento dos Marianos, vasta construção em que os protestantes haviam sido tidos
lisboeta à R. das Janelas Verdes, que con- por parasitas, a propósito da morte de
tribuiu para incrementar a sua atividade uma senhora praticante dessa confissão,
pastoral e onde passaram a exercer o mi- para quem se pretendera obter sufrágios
nistério vários ex-sacerdotes católicos. Ao católicos. Chamados a terreno, vieram os
escrito, intitulado A Compra da Egreja do consabidos temas da confissão auricular,
Extincto Convento de N. Senhora dos Reme- da Bíblia editada pelos protestantes, do
dios por Uma Seita Protestante (1872), segui- Purgatório, da infalibilidade pontifícia,
ram-se: Os Protestantes Desmascarados, ou os da conduta de alguns papas e da mora-
Protestantes de hontem, de hoje e de amanhã lidade de Lutero, Calvino e Zuínglio. Na
(1873) e Exposição contra os Protestantes da resposta, de forma pejorativa, Pereira
Doutrina Catholica acerca da Presença Real do Lago trata os sacerdotes redatores de
de Jesus Christo no Sacramento da Eucharis- A Palavra, que sustentaram a polémica,
tia, segundo a Doutrina dos Santos Padres. de “jesuítas ultramontanos”, com notó-
1.º Opúsculo desde o Sec. I até ao Sec. VI rio intuito de denegrir a ala ortodoxa
(1875). De assinalar será a sua tradução do catolicismo conservador, julgada fa-
da obra de Guilherme Abott, Historia da nática. Retorquindo, A Palavra denomi-
Reforma Protestante em Inglaterra e Irlanda, na as seitas protestantes de “hediondas,
Fazendo Ver Que este Acontecimento Abateu prejudiciais e daninhas, por isso que são
e Empobreceu a Maior Parte dos Habitantes a mentira, e parto monstruoso da devas-
d’estes Paizes (1864). O título diz bem de sidão e do orgulho”. Mais: usando “edi-
como a temática se inscrevia no desígnio ções de Bíblias falsificadas têm os pro-
do seu combate antiprotestante. Numa testantes procurado perverter e enganar
altura em que o racionalismo, o positivis- os ignorantes […], publicado enchentes
mo, o agnosticismo e o ideário maçónico de traduções da Bíblia em língua vulgar
dominavam as gerações intelectuais que erróneas, capciosas e mutiladas com o
estavam empenhadas na militância anti- danado intuito de enganar e perverter”;
clerical, os pretextos factuais para con- para além de que “afrontam o Código Pe-
trovérsias entre católicos e protestantes nal numa propaganda desavergonhada”.
conduziam a debates sobre a confissão Vieram também da Univ. de Coimbra
auricular, o celibato sacerdotal, os exem- alinhamentos de peso para o confronto
plares da Bíblia distribuídos pelas socie- antiprotestante. Joaquim Alves da Hora,
dades bíblicas. Entre outros periódicos, o natural de Leça da Palmeira e regente
portuense A Palavra constituía uma arena da cadeira de Teologia Moral, apresen-
de embates acerosos, nascidos, por vezes, tou em 1879, como dissertação inaugural
de circunstâncias aparentemente irrele- para concurso, O Protestantismo Conside-
vantes. Foi o caso estampado no folheto rado em Seus Fundamentos, exame crítico
Jesuítas e Protestantes (1894), de Joaquim dos sistemas evangélicos sobre a regra
da fé. Por sua vez, António Garcia Ribei- ca, as conversões ao catolicismo crescem.
ro de Vasconcelos, lente catedrático de É o erro a bater em retirada. Por isso, ape-
Teologia Pastoral e de Estudos Bíblicos, la ao combate até “aniquilamento com-
apresentou no Porto, a 9 de dezembro pleto da heresia protestante”, que deve
de 1900, no Congresso Católico aí reuni- prosseguir com coragem e sem tréguas,
do, a conferência “A Bíblia protestante”, “porque o inimigo, julgando-nos despre-
impressa no ano seguinte. O assunto caía venidos, quer conquistar de surpresa este
em cheio no contexto religioso polemica- recanto abençoado da Europa”.
mente agitado que se vivia, ao apontar os A ambiguidade da legislação penal e a
terríveis estragos que faziam “certos lobos sua rigorista interpretação prestavam-se,
vestidos de pastores […] no rebanho cris- na verdade, a prisões de colportores, a
tão” da terra portuguesa “que se presava atritos sobre enterramentos de evangé-
de fidelíssima”, onde outros profetas do licos – apesar de, ao menos em Lisboa,
erro, “dizendo-se ministros de Cristo, e desde 1876, haverem sido demolidos os
falando-nos em nome do Salvador, pro- “muros odiosamente levantados” –, e ao
curam envenenar as nossas crenças com encerramento de lugares de culto. Em
palavras falazes”. Aqui e além, em inci- inícios de 1900, há prisões de colporto-
sos vários no decurso da exposição, que res, em Guimarães e Loulé, por difusão
faz incidir sobre a doutrina católica da de Bíblias e propaganda. O juiz da instru-
origem, constituição do cânone bíblico, ção criminal de Lisboa ordena à polícia,
inspiração e interpretação da Sagrada em 1901, que feche casas abertas à ora-
Escritura, aproveita para erguer o dedo ção e ao ministério protestante. No ano
acusador aos Portugueses que estão in- seguinte, em Setúbal, atribuem-se ações
teressados nessa empresa antipatriótica, de rua e atitudes persecutórias contra
ligados a essa conspiração contra a santa atos do culto evangélico ao fanatismo
crença que sempre foi o título e o fun- de católicos. A abertura política, patente
damento das maiores glórias dos Portu- em notícias e editoriais com que os jor-
gueses, e que constitui a mais santa, res- nais A Reforma e Igreja Lusitana acompa-
peitável e salutar das tradições da nação, nhavam a militância liberal e a corrente
bem como aos “propagandistas do protes- republicana em crescimento, exacerbava
tantismo”, esses “pregadores de recente cada vez mais o catolicismo monárquico
data” que “dividem, separam, arruínam, integrista e ortodoxo. Daí a polémica e
destroem” e, de Bíblia constantemente o teor agressivo das intervenções parla-
na mão, dela “fazem derivar seus erros mentares, cobertas pela imprensa regio-
e desvarios”. Ao exaltar a Sagrada Escri- nal e ideológica de Norte a Sul do país.
tura como fonte única da Revelação e ao Escritores e publicistas de confessa mili-
rejeitar a tradição apostólica e a autori- tância anticlerical e de tendência ateísta
dade da Igreja, o protestantismo é, em entravam em cena, agravando a turbulên-
seu entender, “um sistema de transição cia dos embates no aproveitamento de
para o racionalismo”. Termina o discur- acontecimentos circunstanciais, e.g.: as
so universitário por acrescentar que, se o celebrações do tricentenário da morte de
protestantismo se vai “tornando conheci- Camões e o sétimo centenário do nasci-
do por toda a parte”, nota-se uma enor- mento de S.to António, o caso Calmon e
me deserção “em todas as regiões, onde o das trinas. As fobias em relação ao jesui-
dominou soberano”. Na Alemanha e na tismo em particular e ao congreganismo
Inglaterra, baluartes da reforma evangéli- em geral, por sua poderosa influência
evangélicas mais enraizadas no país, ma- tismo, tais como a sua noção, variações e
téria suscetível de dúvidas e reservas, os origens, e […] a defesa histórico-filosófi-
seus representantes formularam pedidos ca da confissão sacramental”. Destinado
de esclarecimento e correção relativos às classes populares, o alvo preferido dos
a disposições de cuja rigorosa aplicação “falsos apóstolos”, de cujos erros devem
resultara o encerramento de alguns dos ser precavidas, pretendia obstar que o
seus templos e escolas. A resposta foi-lhes país viesse “a lamentar-se de mais um in-
dada a 11 de abril de 1912 por meio da fortúnio nacional se o desideratum” que
Direção-Geral dos Assuntos Eclesiásti- move o seu proselitismo “fosse um dia,
cos, e subscrita por José Caldas, especi- ao longe e ao largo, uma triste realida-
ficando certos conceitos empregados, de” (ALBUQUERQUE, s.d.). De maior
mas pronunciando-se pela negativa em fôlego e vigor polémico deve assinalar-se
vários pontos que acabaram por passar O Protestantismo Esfacelado perante a Verdade
posteriormente a objeto de discussão no do Catolicismo (1916), de Francisco Men-
Parlamento, como em minúcia se pode des Alçada de Paiva, sacerdote imbuído
ver nos textos do “Memorial das Igrejas de preconceitos ultramontanos. Em no-
protestantes a propósito da Lei da Sepa- tas pastorais dirigidas às suas dioceses, há
ração” e da “Representação das Igrejas prelados que aproveitam para tocar direta
evangélicas ao Congresso da República”. ou indiretamente na ofensiva evangélica.
As insistências renovaram-se em 1914, Acontece em 1922 com D. Manuel Viei-
sentindo os responsáveis que o regime ra de Matos, arcebispo de Braga, que, ao
republicano pequena melhoria trouxera recordar aos párocos a obrigação de em
à real situação das confissões reformadas. cada 10 anos promoverem uma missão re-
O ataque doutrinário ao protestantismo ligiosa ao povo, lhes chama a atenção para
persiste em brochuras dirigidas a um pú- a conduta dos evangélicos, que têm pro-
blico culto católico, que compra – e até curado imitar o exemplo dos católicos,
assina – este género de publicações. É o cientes das significativas vantagens das
caso da coleção Ciência e Religião, inicia- suas missões populares, alertando: “Auxi-
da em 1904 e finda em 1918, editada a liados do seu muito dinheiro, os protes-
partir da Póvoa de Varzim pelo jornalista tantes têm desenvolvido uma grande ativi-
e apologista de merecimento Artur Vieira dade. Onde existirem quinze protestantes
Cardoso Gomes dos Santos (1881-1918), eles fazem uma paróquia. Por toda a parte
réplica de outra célebre coleção editada eles espalham difusamente bíblias, jornais
em França com a mesma designação, e outros impressos”. E, como a intenção
Science et Religion, pretendendo-se que do documento se estendia a recordar o
os destinatários encontrassem nesses vo- tricentenário da Propaganda Fide, congre-
lumes de 80 páginas “a justificação histó- gação pontifícia incumbida da evangeli-
rica e filosófica racional e científica duma zação em terra de infiéis, o prelado cita
religião”. O n.º 21, O Protestantismo, do a informação de que em Moçambique a
teólogo Manuel Albuquerque, prior da missão evangélica suíça, “só em pessoal
colegiada de Guimarães, é um opúsculo europeu, conta 63 criaturas, número este
de pouco mais de 100 páginas publicado a que é preciso juntar o de 93 auxiliares
sem data, mas certamente logo após a Im- indígenas”, quantitativo que representa
plantação da República, que intenta ser mais gente e estrangeira do que todas as
apenas uma singela “exposição e crítica missões portuguesas no total, havendo
d’algumas ideias gerais sobre o protestan- “mais naquelas condições”.
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diocesano, n.º 7, 1922, pp. 129-134; MOREI- tória Económica e Social/Faculdade de Letras
RA, Eduardo, “Notas históricas sobre a ori- da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 305
gem das Igrejas evangélicas em Portugal”, ‑316; Seitas e Novos Movimentos Religiosos. Textos
Num texto que data de 1932, intitula- que assola a elite nacional, em contraste
do “O caso mental português”, o mesmo com o escol de outras nações civilizadas.
Fernando Pessoa caracterizava como Ainda nesse texto crítico, o autor diz-nos
provinciana a mentalidade portuguesa que o provinciano tem em comum com
do período de então. Para melhor fazer a criança a valorização do espontâneo e
compreender a sua posição, procura do artificial. Por fim, demonstrando que
analisar o estado das diferentes camadas os escritores e artistas nacionais apresen-
mentais. O povo, que corresponde à pri- tam um apego ao provincianismo, defen-
meira camada mental, é definido pela de que a emoção predomina nas obras
“incapacidade de refletir” (PESSOA, dos mesmos, sem que prevaleça o “auxí-
1993, 11). Desprovido de um espírito lio crítico da inteligência ou da cultura”
crítico, a sua atuação depende mais do (Id., Ibid., 15); refere ainda a ausência
acaso ou do irracional, formando no seu de planeamento e de organização que aí
todo um espaço homogéneo. A segunda transparece, e a ausência de ideias que
camada mental distingue-se por uma ca- caracterizaria o escol nacional.
pacidade de refletir em função do que Encontramos na Cartilha do Marialva
é produzido por terceiros. Por último, a (1960) de José Cardoso Pires uma reação
camada do escol ou das elites represen- perante “alguns provincianismos locais”
ta a capacidade de fazer uso da reflexão que predominariam no Portugal con-
e da crítica. Diga-se que todas as classes temporâneo. Segundo o autor, encon-
mencionadas, segundo o autor, estariam tramos a banalização deste provincianis-
impregnadas de provincianismo; daí este mo local “na ignorância, no ruralismo,
ser a enfermidade que atravessa todo o na não planificação, na resignação cam-
povo português. O provinciano portu- pestre ou na conservação fetichista do
guês, situando-se entre o campónio e o lugar-comum” (PIRES, 2002, 7). Na obra
citadino, reconhece, por um lado, a ar- em questão, a figura do marialva aparece
tificialidade do progresso, mas, por ou- como o representante de um certo imo-
tro lado, sente inconscientemente uma bilismo político-cultural, privilegiando
atração por todas essas irrupções no desde o séc. xviii uma certa conceção
tempo. De acordo com Pessoa, “o amor de vida.
às grandes cidades, às novas modas, às Sugere-se, então, a respeito da conce-
‘últimas novidades’, é o característico ção do poder político nacional, que o
distintivo do provinciano” (Id., Ibid., 13). provinciano é contrário ao citadino, de-
Enquanto o campónio, que tal como o rivando dessa oposição um determinado
provinciano sente a artificialidade do conflito irreconciliável. José Cardoso Pi-
progresso, demonstra um desconforto e res recorda o processo de modernização
um sentido crítico para com essa realida- empreendido na época pombalina, con-
de, o provinciano deixa-se inundar pelo trastando com essa tendência a persis-
diferente. A tese de Pessoa pretende sa- tente imutabilidade do espírito campes-
lientar duas realidades: o provincianis- tre que encontra na cidade um espaço de
mo é uma tendência presente no quadro desconfiança. A cidade, em contraponto
da humanidade civilizada, referindo-se com o campo, atemoriza o provincia-
especialmente, porém, ao caso portu- no, por ser o espaço privilegiado onde
guês; a grande diferença entre o contex- a modernização e o progresso ganham
to nacional e o restante contexto da ci- relevo. Essa resistência perante a cultura
vilização encontra-se no provincianismo citadina visa contrariar a novidade e o
provocatório ou mesmo sarcástico pre- assim dominar por uma certa alienação
sente em Pessoa, assume que o provincia- social: “toma a publicidade à letra, inte-
no é aquele que o é sem querer dar mos- rioriza o mito e procura recalcar para
tras de o ser; ao mesmo tempo, procura o inconsciente a sua própria realidade”
enjeitar a sua condição e ser reconhecido (Id., Ibid.).
por aquilo que não é, embora pretenda Descrevendo o provincianismo na qua-
sê-lo. lidade de problema endémico da socie-
Para este autor, a “obsessão do provin- dade portuguesa contemporânea, Saraiva
cianismo” é o único critério que lhe per- procura demonstrar que o descontenta-
mitirá definir tal condição, de tal modo mento nacional se resolveria resgatando
que o provinciano é dominado pelas o país à acefalia que retira ao Homem a
aparências. Nesse conflito interior que autenticidade que lhe permitirá assumir
se manifesta no provinciano, situação a sua real condição. O combate ao pro-
que vem a revelar-se em toda a sua exte- vincianismo implica, simultaneamente, a
rioridade, o mesmo pretende ser “cisne” adesão do português ao cosmopolitismo:
não obstante ter nascido “pato”. A feira “viver no mundo assumindo-nos e não es-
de vaidades é o seu lugar-comum, o que condendo-nos” (Id., Ibid.).
leva Saraiva a afirmar que “provinciano é
aquele cuja principal preocupação é não
Bibliog.: PESSOA, Fernando, “O caso men-
parecer provinciano”. Descreve assim três
tal português”, in PESSOA, Fernando,Textos
espécies de provincianos: “os egrégios de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Nova Ática,
intelectuais que dentro de Portugal sub- 1993; Id., “O provincianismo português”, in
vivem de mitos cosmopolitas à superfície PESSOA, Fernando, Textos de Crítica e de Inter-
da civilização e não têm sequer as pala- venção, Lisboa, Nova Ática, 1993a; PIRES, José
vras necessárias para falar a realidade que Cardoso, Cartilha do Marialva, Lisboa, Círculo
é a sua”; “os que fora de Portugal vestem a de Leitores, 2002; SARAIVA, António José,
“Provincianismo”, A Capital, 14 jan. 1969.
pele que não lhes pertence e estropiam o
próprio nome de batismo”; e “os que jul- Tiago Rego Ramalho
gam dar provas de não-provincianismo”
(Id., Ibid., 315).
O que se assume como provinciano, se-
guindo esta linha de pensamento, há de
ser algo que não aquilo pelo que procura
ser reconhecido. Por sua vez, provincia-
no é o que veste “roupa alheia”, que reve-
la “inautenticidade”, “descaracterização”
e “vergonha de si próprio” (Id., Ibid.).
É neste sentido que António José Sarai-
va vem insurgir-se perante a verdadeira
essência do provincianismo: a falsidade.
Deixando-se submergir numa realida-
de dominada pelo ditame exterior, pela
regulação do hábito e do comportamen-
to, pela uniformização dos preceitos de
vida, o provinciano receia deixar-se ficar
para trás na escalada do tempo; deixa-se
D.R.
experiências místicas? Deste ponto de
vista, a crítica ao psicologismo seria me- Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011).
ramente regional, consistindo em afir-
mar que um silogismo não tem que ver
com a capacidade de ver as cores do pôr to. Esta limitação foi afastada, quando
do sol. Esta crítica, contudo, apesar de se compreendeu que a lógica “deve des-
localizada, tem a vantagem de auxiliar a prezar por completo toda e qualquer
compreender estratos mais profundos da referência a um conteúdo pensado para
mente humana. Fica em aberto, como é atender exclusivamente à forma comum
evidente, um grande conjunto de ques- a todos os conteúdos”, e que, em conse-
tões, nomeadamente a possibilidade de quência, “deve eliminar do seu campo as
provar a existência dessa lógica profunda, considerações de carácter psicológico”
a sua localização no interior da mente, a (GODINHO, 1940, 53-54). Na sequência
sua eventual relação com as estruturas da crítica à pretensão de fundamentar a
do cérebro, e a sua hipotética existência lógica na psicologia, Magalhães Godinho
autónoma fora da mente humana, num critica o positivismo lógico, pois, do seu
também hipotético mundo platónico. ponto de vista, essa escola filosófica estava
Vitorino Magalhães Godinho, no capí- refém de uma doutrina empírica do co-
tulo 2 da sua tese de licenciatura, desen- nhecimento. Não podia, por conseguin-
volveu uma resenha histórica sobre a evo- te, postular a existência autónoma de
lução do pensamento lógico a partir do um mundo lógico, nem uma consciência
séc. xix, sublinhando as cinco teses que transcendental ao modo kantiano. Subli-
explicitam a contribuição de Kant para a nhando a contradição fatal aí implícita,
lógica contemporânea, abordagem que o futuro historiador concluía: “A filosofia
torna clara a ideia de que a lógica é inde- empírica não pode fundamentar outra
pendente da psicologia. As cinco teses são lógica que não seja uma determinada ma-
as seguintes: a lógica é estritamente for- neira de pôr um problema psicológico”
mal; a lógica é independente da psicolo- (Id., Ibid., 63).
gia; todo o conteúdo provém da intuição; Francisco Lopes Vieira de Almeida
a matemática não deriva da experiência; também salientou várias críticas ao psico-
e a matemática é uma ciência formal. No logismo. O professor lisboeta deu o seu
entanto, ao interpretar o contributo de acordo a argumentos de Husserl. Os seres
George Boole, e.g., Godinho considera ideais (essências, princípios lógicos, etc.)
que ainda existe um sentido psicológico estão fora do tempo e têm validade abso-
no cálculo puramente formal porque luta, o que faz com que sejam diferentes
este manifesta a marcha do pensamen- de tudo o que depende da organização
há, para os homens, outra lógica que não pelos sentidos (têm, e.g., a ideia de triân-
seja lógica humana” (Id., Ibid.). Sendo gulo perfeito, sem nunca o terem visto
o homem a medida de todas as coisas, a pelos sentidos), conclui Azevedo Fortes:
mente humana é o assunto que importa “Do que se segue que a nossa alma tem
investigar; contudo, se deve ocorrer algu- operações intelectuais que de nenhu-
ma redução epistemológica, é da psicolo- ma sorte dependem do corpo, nem dos
gia à lógica, e não o contrário. sentidos” (Id., Ibid., 97). Dando algumas
Chegando a este ponto, é importante ilustrações disto mesmo, as regras da
ter noção de dois aspetos que permitem matemática não se confundem com as
enquadrar o debate entre o psicologismo do conhecimento sensível; as paixões da
e o antipsicologismo: primeiro, é preciso alma, que impedem que se julgue bem o
ter em conta que qualquer época é o futu- que é verdadeiro e falso, não se confun-
ro de todos os seus passados, e que todos dem com os atos puros do espírito, como
os futuros equacionarão problemas que as ideias de perfeição e de regularidade,
podem ter sido intuídos anteriormente; garantidas, em última análise, por Deus.
segundo, não se pode esquecer que os Não será forçado ver aqui uma tese inci-
debates intelectuais dificilmente se acan- piente de antipsicologismo, pelo que há
tonam às épocas e às áreas disciplinares todo um trabalho a fazer para rastrear
que os viram nascer. as antecipações ao debate de Frege e de
É justo reconhecer que este debate Husserl em autores portugueses antigos,
localizado no tempo foi antecipado por de Silvestre Aranha e António Cordeiro,
muitos autores nacionais. De facto, todos até Silvestre Pinheiro Ferreira e Manuel
os autores que se dedicaram a questões Pinheiro de Almeida e Azevedo.
ligadas à mente humana tiveram de ter, Este debate não se conteve dentro dos
ainda que de forma tácita, uma teoria so- muros da academia, evidentemente. Os
bre as relações entre lógica e psicologia. autores de compêndios liceais contribuí-
Manuel de Azevedo Fortes, e.g., parece ram para difundir a alegada evidência de
ter intuído os termos principais do futu- que a lógica deve ser apartada da psico-
ro debate. Na sua Lógica Racional (1744), logia. Um dos mais claros exemplos dis-
afirma que nada podemos conhecer com so encontra-se no manual de filosofia de
evidência sem previamente nos conhecer- Eugénio Aresta, discípulo de Leonardo
mos a nós mesmos: “As nossas ideias são Coimbra. Aparecido em 1933, e adotado
a base e fundamento de todo o conheci- como livro único em 1950, este manual
mento […] e sem nos conhecermos a nós abordava o que na altura era conhecido
mesmos não poderemos adquirir conhe- como psicologia racional. Numa breve
cimento algum com evidência e clareza. secção sobre a relação entre a psicologia
E assim, primeiro nos devemos examinar e a lógica, o autor salienta que compete
interiormente para saber o que somos e o à psicologia estudar “toda a vida do espí-
que podemos e deste exame havemos de rito, tal como ela se revela à observação
tirar os mais sólidos fundamentos, regras e à experiência, nos seus três aspetos, o
e preceitos, assim da lógica como de to- cognitivo, o sensitivo e o volitivo”, e que
das as mais ciências” (FORTES, 2002, 76). compete à lógica estudar as “operações
Seguindo à letra esta recomendação, de- do conhecimento intelectual, procuran-
ver-se-ia adotar o psicologismo. Pelo con- do as suas condições de validade e legiti-
trário, depois de ponderar que os seres midade e o seu valor de investigação e de
humanos têm ideias que nunca passaram prova” (ARESTA, 1954, 12). Tratando-se
dos movimentos íntimos dos afetos e das cologismo, a cultura portuguesa parece
ideias dos artistas pecava por excesso de ter estado ciente da relevância dos funda-
atenção ao próprio umbigo, e por não mentos psicológicos para o conhecimen-
corresponder aos apelos e necessida- to do mundo e do ser humano. A psi-
des de partes significativas da sociedade cologia experimental, ainda que com
(&Antissolipsismo). Régio, denunciando um ligeiro atraso, foi uma ciência bem
a existência de um “timorato ou ressen- acolhida pela universidade portuguesa.
tido ódio do português pela psicologia”, É digno de nota o facto de o movimento
defendia um ideário de conhecimento contra o psicologismo ter surgido numa
aprofundado do Homem, objetivo que, época de renascimento filosófico e cientí-
do seu ponto de vista, não se confunde fico em Portugal, e também numa época
com o conhecimento de particularismos, em que se reclamou a reorganização do
subjetivismos ou individualismos (Id., ensino universitário e a autonomia de al-
1939, 6). gumas áreas, concretamente a psicologia
Este debate foi reiterado pelos cola- e a lógica. No confronto entre as duas
boradores da revista Vértice no início da áreas científicas, os autores portugueses
Guerra Fria. Manuel Campos Lima, João parecem oscilar entre psicologismo e an-
José Cochofel e outros pronunciaram tipsicologismo, como acontece claramen-
‑se contra o que consideravam ser um te com Miranda Barbosa e Curvelo. Nesta
excesso de protagonismo da psicologia fase do debate, a psicologia é entendida
na literatura. Raúl Gomes, em junho de como um todo; os críticos não enfatizam
1949, referindo-se aos “indivíduos que a questão das escolas e das tendências
vão buscar também a uma ciência como a dentro dessa ciência (introspeção, psica-
psicologia alimento para as suas criações nálise, Jung, psicologia humanista, cogni-
literárias”, pergunta se “serão as ciên- tivismo, etc.).
cias psicológicas mais compatíveis com No que diz respeito à essência do de-
a literatura do que as ciências sociais?” bate, cumpre deixar claro que não se
(RAMOND, 2008, 381). Opondo cons- descobriu ainda o modo de conciliar as
ciência a realidade, este colaborador da questões ligadas à mente com a descrição
Vértice equivoca-se ao associar a questão fisicista e matemática do mundo. Coloca
das ciências à criação literária; esta não ‑se, pois, a questão: este debate trata de
depende da psicologia nem das ciências um problema datado ou perene? Vê-se,
sociais. Diferentemente, pode ter interes- por esta súmula da cultura portuguesa,
se em abordar a realidade psíquica ou a que há sinais de que a segunda opção é
realidade social. Para este colaborador, mais fiel aos eventos. O problema conti-
“o risco do psicologismo […] está em dar nua em aberto, e é provável que ultrapas-
‑nos a realidade tomada do ponto de vista se a capacidade humana de o solucionar.
particular, pessoal, de uma consciência”
(Id., Ibid., 382). Em consequência, para
a literatura representar com fidelidade a Bibliog.: ALMEIDA, Francisco Lopes Vieira
realidade social, teria de ser depurada do de, Obras Filosóficas, org. Joel Serrão e Ro-
gério Fernandes, vol. ii, Lisboa, FCG, 1987;
excesso de psicologismo.
ANDRADE, João Pedro de, “Psicologismo na
Apesar de José Régio ter considerado literatura portuguesa”, in COELHO, Jacinto
que o Português tinha aversão à psicolo- do Prado (dir.), Dicionário de Literatura, 3.ª ed.,
gia, e apesar das afirmações que foram vol. iii, Porto, Figueirinhas, 1987, pp. 876
feitas por alguns intelectuais contra o psi- ‑878; ARESTA, Eugénio, Noções de Filosofia,
D.R.
Visita de Mahatma Gandhi a Kingsley Hall (1930).
Carlos I de Inglaterra (1629), de Daniel Mijtens. Bibliog.: AMARAL, Diogo Freitas do, História
das Ideias Políticas, Coimbra, Almedina, 2010;
ASTLEY, Maurice, Oliver Cromwell and The Pu-
ritan Revolution, London, English Universities
lução, dando origem ao fim da república Press, 1958; CARVALHO, Paulo Archer de, e
e à restauração da monarquia, com a su- CATROGA Fernando, Sociedade e Cultura Portu-
bida de Carlos II ao trono. Foi o fim da guesas II, Lisboa, Universidade Aberta, 1994;
república puritana e o dealbar de uma RUSS, Jacqueline, A Aventura do Pensamento Eu-
monarquia constitucional liberal, nasci- ropeu. Uma História das Ideias Ocidentais, Lisboa,
da da Revolução Gloriosa de 1688, que Terramar, 1997; TAVARES, Maria José Ferro,
Sociedade e Cultura Portuguesas I, Lisboa, Univer-
viria a garantir o desenvolvimento do
sidade Aberta, 1990.
capitalismo.
É interessante verificar que os movi- Isabel Baltazar
mentos sociais, culturais e religiosos inte-
ragem na sociedade e que não é possível
dissociar a religião da política: afinal, os
preceitos religiosos ligados ao antipurita-
nismo da Igreja Anglicana influenciaram
decisivamente a ordem social e política
inglesa, uma ordem antipuritana que
coexistia com a contraordem do purita-
nismo expresso pelo calvinismo inglês,
que a sua doutrina referente à oração se- quietistas. Destacaram-se François Mala-
guia a mesma linha mística de S.ta Teresa val, místico de Marselha, defensor da ora-
de Ávila. O Papa Inocêncio XI chega a ção de quietude, do qual se destacam as
solicitar ao cardeal Brancati de Láuria a seguintes obras: La Belle Ténèbre. Pratique
redação de um livro sobre esta polémica, Facile pour Élever l’Âme à la Contemplation
mas nada parecia pôr cobro às divergên- (1670); Poésies Spirituelles (1671); Instruc-
cias sobre o modo novo de orar. tions Familières sur l’Oraison Mentale en
Apesar de haver uma atenção especial Forme de Dialogue (1685). Por sua vez, M.me
e objetiva à identificação de eventuais fo- Guyon, Jeanne-Marie Bouvier de la Motte
cos de quietismo, estes não desaparecem (1648-1717), viúva e mãe de três filhos, de
de todo. São disso exemplo os centros da ascendência nobre e discípula de Moli-
Lombardia, o centro das Marcas, ligado nos, torna-se uma das grandes referências
ao Oratório de S. Filipe de Neri e a Pe- do chamado semiquietismo. Para o im-
trucci, os de Matelica, Jesi, e Fermo, em pulsionamento destas ideias no seio das
Veneza, onde eram abundantes as publi- classes dirigentes francesas, muito contri-
cações de obras identificadas como sen- buíram os seus escritos, como Le Moyen
do quietistas. O arcebispo de Nápoles, Court et Autres Écrits Spirituels (1685), Les
cardeal Carraccioli, faz chegar ao Papa Torrents Spirituels (1682). A sua doutrina,
Inocêncio XI, em 30 de janeiro de 1682, muito apoiada pelo seu amigo barnabita
uma carta relatando a existência de prá- Francisco Lacombe, incide de forma pro-
ticas de quietismo na sua Diocese. Atra- funda sobre a oração de silêncio e o amor
vés do cardeal Cybo, o Santo Ofício, em puro ao chamamento universal à salvação
1687, comunica aos bispos italianos que é e à relação íntima com Cristo, ao desejo
conhecedor da prática do quietismo em de união com Deus através de diversas ex-
diversas regiões de Itália. periências e vários estádios.
Naturalmente, instala-se em Itália um Os bispos franceses, contrários às ideias
ambiente de temor perante as denúncias de M.me Guyon, pedem-lhe que se recolha;
e acusações que amiúde vinham a pú- a senhora chega a ser enclausurada num
blico, algumas delas feridas de exagero. convento, em 1688 (ano em que também
Alvos claros destas acusações são Ângelo é condenado Lacombe). Em 1696, os bis-
Elli, Sixto Cucchi, Pablo Manassei de Ter- pos condenam formalmente a sua doutri-
ni, Juan Andrés Alberti, a M.e Paola Ma- na. Não menos importante, em matéria de
ria di Gesù, etc. Tal contexto propiciou antiquietismo, foi a polémica entre o arce-
a publicação da designada literatura anti- bispo de Cambrai, o teólogo François de
quietista. No início do séc. xviii, surgem Salignac la Mothe Fénelon (1651-1715),
diversos tratados com essas característi- e Jacques Bénigne Bossuet (1627-1704),
cas, como os de Domenico Ricci (Homo bispo de Meaux, e grande opositor de
Interior Juxta Doctoris Angelici Doctrinam M.me Guyon. Esta controvérsia deflagra no
Ad Explodendos Errores Michaelis de Molinos decorrer das conversações de Issy (1694
Damnatos, 1709-12) e de Nicola Terzago ‑1695), onde são julgadas as doutrinas de
(Theologia Historico-Mystica adversus Vete- Guyon, num caso designado por alguns
res et Novos Pseudomysticos Quorum Historia como o caso dos místicos, que de certa for-
Texitur et Errores Confutantur, 1784). ma origina o fim do quietismo em França.
Também a sociedade francesa conhe- Bossuet, em Instruction sur les États
cia figuras importantes propugnadoras d’Oraison (1697), contesta a obra de Féne-
e impulsionadoras das ideias e práticas lon, Explication des Maximes des Saints sur
la Vie Intérieure (1696). O caso chega ao bem patente nas obras, nos sermões dos
seu término com o apoio de Luís XIV a grandes mestres da espiritualidade e nas
Bossuet. O Papa Inocêncio XII, em 12 de próprias orientações espirituais. “Para que
março de 1699, com o breve Cum Alias, nos comecemos a unir com Deus é neces-
condena 23 proposições de teor quietis- sário entrar no Horto da Oração”, afirma-
ta de Fénelon. A forte oposição às ideias va, e.g., Fr. António das Chagas (CHAGAS,
quietistas no território francês não dei- 1684, 2). Este costume de oração deverá
xava de ter presente as acusações feitas à ser reverente, ou seja, de joelhos, solitária,
doutrina quietista na bula Caelestis Pastor. devota e perfeita. A oração mais elevada é
A Espanha do séc. xvi – o designado Sé- “estar sempre em contínuo acto de amor
culo de Ouro espanhol – vê emergir figu- de Deus, sem afligir o entendimento com
ras marcantes da mística, que afirmavam discursos demasiados” (Id., Ibid., 5). Este
de forma viva e rigorosa a valorização de frade franciscano, em Cartas Espirituais,
uma espiritualidade assente na oração, na orienta espiritualmente para a oração e o
contemplação, na aniquilação, na exigên- estado de quietude, com mortificação da
cia de descoberta do essencial, com vista à natureza para os gostos da graça, para ven-
união com Deus, tais como S. João de Ávi- cer as paixões da tristeza, da raiva e da me-
la, Fr. Luís de Granada, Fr. Luís de Leão, lancolia e estar em Deus. Para entrar em
S.ta Teresa de Ávila, S. João da Cruz, entre união com Deus é fundamental viver “sem
outros. Se, por um lado, estes mestres da criaturas no Pensamento, sem discursos
mística espanhola elevavam aos mais altos
graus a espiritualidade dos fiéis, por outro
Fr. António das Chagas (1631-1682).
experimentaram por diversas vezes, ao
longo da sua vida, suspeitas e acusações
de heresia. Estes místicos, porém, transfor-
mar-se-iam inevitavelmente na reconhe-
cida fonte de inspiração para as grandes
figuras do quietismo do séc. xvii, que os
citavam em muitas das suas obras, embora
de pouco isso lhes tenha valido nos seus
processos de condenação.
Nos autores místicos portugueses, como
D. Manoel de Portugal, D. Gaspar de
Leão, Fr. Heitor Pinto, Fr. Tomé de Jesus,
Fr. Amador de Arrais, Fr. Agostinho da
Cruz, Fr. António das Chagas, P.e Manuel
Bernardes, entre outros, encontramos, de
forma clara, o valor da interioridade, da
contemplação, da oração, da entrega total
isenta de qualquer amor, gosto ou vontade
própria, sem desejo de consolação sensí-
vel, num desejo absoluto do amor unitivo
com Deus, em entrega total ao dom da
graça. Esta orientação para o divino, her-
dada e fortemente vivida, imbuía a vida
espiritual dos fiéis desta época; ela estava
Quiete nell’Oratione, de Pablo Segneri, que linos, posição que o distanciava totalmente
se centrava na apresentação da natureza dos restantes cardeais.
e das condições da verdadeira contempla- Após o processo de Molinos, surgem,
ção, face ao brotar da doutrina da falsa no quadro desta polémica, diversos im-
oração. As extensas citações de Guía Es- pugnadores escudados triunfalmente na
piritual por parte de Segneri não deixa- bula pontifícia de condenação. Uma das
vam grandes dúvidas quanto a quem se primeiras obras opositoras a Molinos des-
opunha este famoso orador jesuíta, muito te período é a do P.e de Vaucel, Breves Con-
embora não mencionasse qualquer figura siderationes in Doctrinam Michaelis de Moli-
da ala quietista. No ano seguinte, Segneri nos et Aliorum Quietistarum, que surge em
vê ainda a sua Lettera di Risposta al Signor Colónia (1688). La Verdad en Su Centro y
Ignazio Bartalini ser condenada pelo San- Clara Luz en Su Horizonte, obra do pároco
to Ofício. As obras de Segneri acabaram de S. Ginés de Madrid, é um claro ataque
por ser retiradas do Index, sorte que não a Molinos. O pároco teve de se resignar
teve Alexandre Regio com a obra Clavis ao silêncio, fruto de uma intervenção por
Aurea Qua Aperiuntur Errores Michaelis de parte da Inquisição que proibiu tal publi-
Molinos (Veneza, 1682), na qual visava im- cação quando esta se encontrava ainda na
pugnar Molinos, a quem acusa de repetir fase de composição tipográfica.
as doutrinas dos begardos, expondo e re- A ação da Inquisição assentou na ideia
futando uma série de textos do Guía Espi- de que a força e autoridade reside mais
ritual que, segundo o seu ponto de vista, na proibição do que nas diversas refuta-
se opõem ao pensamento de S. Tomás e ções que surjam. Mais ainda, no entender
aos decretos de Viena. do Santo Ofício, o decreto de Sua San-
Sob o pseudónimo de Francesco Buona- tidade indicava que estas proposições e
valle surge outra obra já mencionada, Ristre- doutrinas não deviam ser controvertidas,
tto della Dottrina de’ Moderni Quietisti, que dá mas que tanto a sua memória como a do
claro indícios de se estar perante um autor respetivo autor deviam ser sepultadas.
jesuíta. Trata-se de uma obra cujo intuito era Refutando Molinos e os seus erros sur-
condensar e refutar a doutrina dos grandes gem Homo Interior, iuxta Doctoris Angelici Doc-
mestres quietistas, nomeadamente Malaval, trinam necnon Sanctorum Patrum Epositus, ad
Molinos, Petrucci e Menghini. Segundo Explanandos Errores Michaelis Molinos (Ná-
este autor, os quietistas erram ao considera- poles, 1709), do Dominicano Domingos
rem a contemplação sem imagens, ânsia e Ricci, e Theologia Historico-Mystica adversus
esperança de prodígios, ao fazerem oração Veteres et Novos Pesudo-Mysticos Quorum His-
mental sem atenção, ao excluírem o uso de toria Texitur et Errores Confutantur (Veneza,
imagens santas. Não se inibe de suster a sua 1764) de Nicolás Tergazo. Em 1691, mais
refutação recorrendo a S. Tomás e a S.ta Te- duas obras surgem a ocuparem-se das pro-
resa de Ávila. Outra publicação é a do car- posições de Molinos: Lucerna Mystica pro
deal Brancati de Láuria, membro do Santo Directoribus Animarum, Quae Omnia Prorsus
Ofício, Opuscula Acto de Oratione Christiana Difficilia et Obscura Quae in Dirigendis Ani-
eiusque Speciebus in Tironum Gratiam Edita mabus Evenire Solent Mira Dexteritate Clarifi-
(Roma, 1685), que, neste quadro de oposi- cat..., de José López Ezquerra (Saragoça,
ção quietista, surge como uma obra de ca- 1691), e, de Francisco Barambio Descal-
riz mais neutro e brando relativamente ao zo, Discursos Filosóficos, Teológicos, Morales
Guía Espiritual. Brancati, Franciscano con- y Misticos contra Proposiciones del Doctor Mi-
ventual, chegou a defender a obra de Mo- guel de Molinos (Madrid, 1691). Esta obra
compara cada uma das proposições com a que o processo de Petrucci foi, de entre
doutrina considerada tradicional, refutan- os grandes processos do tempo, o único
do-as à luz das ciências referidas no título fundado em proposições retiradas dos
da obra. Combate ainda a designada falsa livros publicados, sendo que os restantes
doutrina do quietismo a obra de Francisco se baseavam em testemunhos orais, con-
Posadas, Triunfos de la Castidad contra la Lu- selhos, cartas e documentos esotéricos.
juria Diabolica de Molinos (Córdova, 1868). Classifica ainda como um exagero a con-
Este Dominicano de Córdova apenas refu- denação de Ângelo Elli, levado ao Index
ta as proposições 41-53 de Molinos, que se em 1714, que, segundo afirma, mais do
referem à violência diabólica e respetivas que quietista é um begardista; e as de
consequências morais, por considerá-las, Sixto de Cucchi, observante reformado,
dentro do quietismo, as mais perigosas admirador dos místicos flamengos, e de
para uma espiritualidade sã. Pablo Manassei de Terni, condenado em
Várias outras obras se inserem nesta 1689. Daí resulta o questionamento e a
luta contra os modernos contemplativos oposição à ideia de se supor que estes
e a sua doutrina e práticas de oração de homens, como tantos outros (Falconi,
quietude. Consultas y Confutación de las Malaval, Cicogna, etc.), são quietistas.
Principales Proposiciones del Ímpio Molinos Na verdade, diversos fatores de diferen-
(Madrid, 1702), de Martín Torrecilla; tes naturezas influenciaram a conde-
Desengaños Misticos a las Almas Detenidas o nação do quietismo, dos seus autores e
Engañadas en el Camino de la Perfección (Za- das suas obras. Contam-se eles a falta de
ragoza, 1706), de Fr. Antonio Arbiol Diez; fundamento, as citações retiradas do seu
Quodlibeta Divi Thomae Aquinatis, Doctoris contexto, questões de natureza política,
Angelici, ad Mysticas Doctrinas Applicata… o simples facto de constarem no Index,
(Sevilha, 1719), do Dominicano Pedro o receio de que doutrinas e práticas de
Sánchez; Bellum Theologicum adversus Dia- natureza mística se propagassem, tor-
bolicas Violentias circa Externa de se Prava et nando-se acessíveis a todos os fiéis, com
Turpia (Pamplona, 1745), de Diego Gon- a possibilidade de fazer emergir outra
zález Mateo; Opúsculos y Prácticas Que para natureza de problemas espirituais, como
el Gobierno Interior y Dirección de las Almas..., o falso misticismo, a sensualidade e a
(Logronho, 1754), do Jesuíta Pedro Anto- fenomenologia extraordinária (visões,
nio Calatayud, e, pelo Oratoriano Vicente êxtases). A extensão desta ação antiquie-
Calatayud, Opusculum Mystico-Dogmaticum tista por parte dos defensores da fé, nem
Pseudo-Mysticorum Anathematizatas Proposi- sempre objetiva e ponderada, destinou
tiones Confodiens... (Valencia, 1756). muitos dos mestres espirituais e místicos,
Diferentes autores valorizam hoje uma assim como as suas obras, ao silêncio e
revisão histórica da designada doutrina ao desaparecimento.
heterodoxa do quietismo. Importa não A oração de quietude ou de silêncio, a
ficar preso à noção de que os únicos contemplação, a entrega total de si mes-
responsáveis pelo clima quietista são as mo, no sentido de alcançar o amor uniti-
obras proibidas. Estudos mais recentes vo com Deus formava o núcleo doutrinal
não identificam como quietistas muitas e prático do quietismo. As suspeitas, acu-
das figuras que surgem no seio desta sações e polémicas em torno desta ques-
polémica, mas como grandes mestres es- tão trouxeram consigo consequências
pirituais e místicos. O P.e Eulogio de la nefastas para a espiritualidade e a mística
Virgen del Carmen sublinha claramente católica. Neste sentido, os antiquietistas
são responsáveis por uma certa descredi- 2014; FIORANI, Luigi, “Per la storia dell’anti-
bilização da mística no seio do catolicis- quietismo romano, il padre Antonio Caprini e
mo. No entender de alguns historiadores, la polemica contro i ‘moderni contemplativi’
como o já referido Eulogio de la Virgen tra il 1680 e il 1890”, in L’Uomo e la Storia: Studi
Storici in Onore di Massimo Petrocchi, vol. i, Roma,
del Carmen, “toda a literatura antiquie-
Edizioni di Storia e Letteratura, 1983, pp. 299
tista é de uma monotonia aplanadora” ‑344; GOUVEIA, António Camões, “Quie-
(VIRGEN DEL CARMEN, 1969, 377). tismo”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.),
Uma outra plataforma de questões rela- Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. iv,
cionadas com o antiquietismo prende-se Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp. 87‑90;
com o próprio desenvolvimento da espi- MAGAZ, José María, Los Riesgos de la Fe en la So-
ritualidade no seio do catolicismo. O nas- ciedad Española, Madrid, Ediciones San Dámaso,
cimento de uma nova forma de entender 2014; MARCOCCHI, Massimo, La Spiritualità
tra Giansenismo e Quietismo nella Francia del Seicen-
a espiritualidade colide fortemente com a
to, Roma, Studium, 1983; MARTINS, António
escassez de tratadistas sistemáticos de teolo- Coimbra, “Quietismo”, in SERRÃO, Joel (dir.),
gia espiritual, fazendo emergir contestatá- Dicionário de História de Portugal, vol. v, Porto,
rios de doutrinas erróneas no que se refere Figueirinhas, 1992, pp. 221‑224; MODICA,
à espiritualidade ortodoxa, como é o caso Marilena, Infetta Dottrina: Inquisizione e Quieti-
do quietismo e do jansenismo, entre ou- smo nel Seicento, Roma, Viella, 2009; PACHO,
tras. Toda esta celeuma fragilizou a mística, Eulogio, “Quietismo”, in ANCILLI, Ermano,
lançou um clima de desconfiança da vida Diccionario de Espiritualidad, vol. iii, Barcelona,
Herder, 1984; Id., Storia della Spiritualità Moder-
contemplativa, empobreceu a dimensão da
na, Roma, Teresianum, 1984; Id., El Apogeo de la
oração junto dos devotos e afastou da vida
Mística Cristiana: Historia de la Espiritualidad Clási-
do catolicismo grandes mestres da mística ca Española 1450-1650, Burgos, Editorial Monte
e da espiritualidade, assim como obras de Carmelo, 2008; TAVARES, Pedro Vilas Boas,
valor extraordinário nesta matéria. “Papel dos Jesuítas no anti-quietismo em Por-
tugal”, in A Companhia de Jesus na Península Ibérica
nos Sécs. XVI e XVII. Actas do Colóquio Internacional,
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Fortunato, His- vol. i, Porto, Humbertipo, 2004, pp. 487-503;
tória da Igreja em Portugal, nova ed. preparada Id., “Vícios privados, públicas virtudes. Quietis-
e dirigida por Damião Peres, 4 vols., Porto/ mo e ética”, Peninsula-Revista de Estudos Ibéricos,
Lisboa, Portucalense, 1967-71; BALUST, Luis n.º 3, 2006, pp. 201‑212; VILANOVA, Evange-
Sala, “Los autores espirituales españoles con- lista, Historia de la Teología Cristiana, vol. ii, Bar-
temporáneos de Feijoo y las violencias diaboli-
celona, Herder, 1989; VIRGEN DEL CARMEN,
cas”, Salmanticensis, vol. 5, n.º 1, 1958, pp. 197
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D.R.
imigrantes nas escolas, onde os manuais
escolares mantinham a narrativa nacional Pavilhão de Portugal na Expo’98 (Lisboa).
hegemónica, levam a academia a começar
a discutir, sobretudo no campo da antro- cos de Lisboa, Porto e Setúbal. Porém, a
pologia, da sociologia e evidentemente na introdução e, sobretudo, a manutenção
história, os pressupostos do colonialismo da discussão mediática do racismo deve-
português e a sua herança no presente. se em grande parte ao movimento SOS
Começam então a ser realizados alguns Racismo, criado em 1990, e que nas pri-
trabalhos sociológicos, desde os de Fer- meiras décadas do séc. xxi permanece
nando Luís Machado aos de João Filipe como uma das únicas associações com
Marques (2007). É incontornável o tra- intenção declarada de combate ao racis-
balho de Miguel Vale de Almeida, que mo. Oficialmente, de acordo com a lista
restabelece os termos do debate sobre existente na Comissão para Igualdade e
o racismo no campo da antropologia, Contra a Discriminação Racial, existem
abrindo uma discussão sobre colonia- três associações antirracistas: SOS Ra-
lismo, luso-tropicalismo e racismo. Na cismo, Olho Vivo e Frente Antirracista.
história são centrais trabalhos, como os Além destas, destaca-se o trabalho da Am-
de José Ramos Tinhorão e Isabel Castro nistia Internacional, essencial na monito-
Henriques, que tratam a presença e a he- rização e denúncia de casos de discrimi-
rança africana e negra em Portugal, assim nação racial institucional e a Associação
como a obra de V. Alexandre (2000), que Portuguesa de Apoio à Vítima através da
analisa o nacionalismo imperial, devendo Unidade de Apoio à Vítima Imigrante e
referir-se também C. Castelo a respeito da de Discriminação Racial ou Étnica, que se
temática do lusotropicalismo. Juntamen- debruça, essencialmente, sobre o acom-
te com M. Jerónimo), que aborda o mito panhamento de casos individuais.
civilizador, estes autores contribuem para No início dos anos 2000, em particular
a desconstrução do lusotropicalismo e do no contexto da construção dos estádios
mito civilizador. Recentemente, salien- do Euro 2004, com a intensificação de
te-se o trabalho de Marta Araújo e Silvia fluxos migratórios vindos do Brasil e de
Rodríguez Maeso, que contribuem para o alguns países do Leste europeu, como a
estudo do antirracismo na epistemologia Ucrânia, a Roménia e a Rússia, dá-se uma
moderna, essencialmente a partir de uma nova mediatização do fenómeno da imi-
análise crítica da produção académica gração. Imediatamente a seguir, em 2001,
em Portugal. inicia-se um processo extraordinário de
A história da luta antirracista confun- regularização, desta vez com títulos de
de-se com a história do movimento asso- permanência temporários, mais precá-
ciativo imigrante e dos bairros periféri- rios do que os anteriores, o que leva a
uma nova mobilização das associações de da Cova da Moura ter sido brutalmente
imigrantes. Paralelamente, reaparece o espancado na esquadra da PSP de Alfragi-
discurso em torno do perigo dos gangues de (Amadora) uma semana antes. A ma-
da periferia, de uma segunda geração nifestação, organizada por moradores e
desintegrada, que responderia com a de- movimentos sociais, reverberaria ainda
linquência. Estes processos contribuem num outro protesto, intitulado “Vidas
amplamente para um conjunto de repre- Negras Importam”, no Lg. de São Domin-
sentações sociais e culturais negativas as- gos, a 21 de março. De acordo com o tex-
sociadas a bairros já de si segregados. to que convocava a concentração, além
Os casos de violência policial, alguns de assinalar o Dia Internacional para
dos quais resultando na morte de jovens, a Eliminação da Discriminação Racial,
como o caso de Manuel António Pereira este evento, à imagem da manifestação,
(Tony), no Bairro da Belavista, em Se- reivindicava: i) o final das operações do
túbal (2002), de Elson Sanches (Kuku), Corpo de Intervenção Rápida nos bair-
na Amadora (2009), e de Nuno Rodri- ros; ii) a criminalização (penal) dos atos
gues (Mc Snake), em Chelas (2010), de tortura e ódio racial; iii) a demissão
levantam novas questões sobre a forma imediata de todos os agentes envolvidos
como o Estado se relaciona com as po- nas atos de tortura ocorridos na esquadra
pulações negras e ciganas, ressaltando o de Alfragide.
papel da polícia nesta mediação. Note-se Salientamos ainda o constante papel
que é também por esta altura que a notí- do rap na denúncia e na discussão sobre o
cia de um arrastão na praia de Carcavelos racismo na sociedade portuguesa, assina-
em 2005 levanta, uma vez mais, um dis- lado inicialmente pela voz de General D,
curso anti-imigrantes na sociedade por- mas continuado por muitos outros. Parte
tuguesa. Paralelamente, é neste contexto desta produção musical contribuiu, pois,
que surgem novas associações de jovens para a denúncia da relação entre colonia-
residentes em bairros segregados, como é lismo, racismo e desigualdades sociais e
o caso da Associação Khapaz e, posterior- políticas na sociedade portuguesa em ge-
mente, da Plataforma Gueto. Esta última ral e, em particular, nas periferias.
realizou um conjunto de manifestações Focamos agora o nível institucional do
e iniciativas para denunciar a violência combate ao racismo. A área do racismo é
policial nos bairros, o racismo institucio- assegurada por um organismo específico,
nal e o discurso político. Promoveu ain- que junta a área da imigração e da popu-
da a formação especializada e encontros lação cigana. O Alto Comissariado para a
com o objetivo de debater o racismo e o Imigração e Minorias Étnicas foi criado
colonialismo, apresentar movimentos e em 1995 pelo Governo socialista de en-
pensadores do pan-africanismo, da ne- tão, mantendo-se nos governos seguintes
gritude, das lutas pela independência e com algumas alterações, sendo a prin-
do movimento negro. Estas iniciativas so- cipal em 2007, quando passa a instituto
maram contributos importantes ao movi- público e vê o seu nome alterado para
mento antirracista em Portugal e trouxe- Alto Comissariado para a Imigração e o
ram novo fôlego ao discurso antirracista. Diálogo Intercultural (ACIDI). Em feve-
Assinala-se a realização de uma Mani- reiro de 2014, a instituição sofre novas al-
festação contra o Racismo e a Violência terações, e é criado um novo organismo,
Policial, a 12 de fevereiro de 2015, depois o Alto Comissariado para as Migrações
de um grupo de jovens do Bairro do Alto (ACM) para substituir o ACIDI, com um
animal: “Apesar de todas estas prerrogati- Na segunda metade do séc. xx, o an-
vas do homem sobre os animais, colocá-lo tirreducionismo é uma linha orientado-
na mesma classe que eles é uma forma de ra da obra de Egdar Morin, que assumiu
o honrar” (Id., Ibid., 61). a complexidade como o ponto de vista
A tendência reducionista é um dos tra- adequado à ciência moderna. Nature-
ços marcantes da ciência do séc. xix, bem za, homem e cultura não são entidades
patente em autores emblemáticos como atómicas, mas realidades mutuamen-
James C. Maxwell ou Charles Darwin. Na te interdependentes; donde a recusa,
fórmula condensada de Ernst Haeckel, tanto do “biologismo”, como do “an-
divulgador das doutrinas evolucionistas, tropologismo”: “O que é irremediavel-
“todo o fenómeno tem uma causa mecâ- mente atingido é a conceção insular do
nica” (HAECKEL, 1902, 313). homem. […] O que também rebenta é
No panorama científico-cultural portu- o conceito insular da vida, já semique-
guês, o reducionismo assume o estatuto brada. Não é tão‑só o homem que não
de verdadeiro paradigma, com uma fi- pode ser reduzido à biologia, é a própria
losofia, um método e um sistema de va- biologia que não pode ser reduzida ao
lores, na obra de Miguel Bombarda, em biologismo” (MORIN, 1973, 50).
especial em Consciência e Livre Arbítrio, de No âmbito da ciência portuguesa, so-
1898. Para este médico-filósofo, a ciência bressai a voz de Barahona Fernandes,
declina-se no singular, não fazendo ne- que insistiu numa estratégia de olhar que
nhum sentido a distinção entre ciências fizesse a ponte entre um holismo vago
da natureza e ciências humanas. Neste e a fragmentação das diferentes ordens
quadro de naturalização do homem e da de fenómenos que se cruzam no “todo
sociedade, psicologia e sociologia são mo- complexo, heterogeneamente organiza-
dalidades da biologia: “São leis naturais do” que constitui o homem integral: “A
as que regem as ações humanas e os desti- apreensão desta estrutura não pode, por
nos sociais” (BOMBARDA, 1900, 17). Do enquanto, deixar de se fazer pela análise
ponto de vista metodológico, a operação dos seus vários aspectos materiais, bioló-
típica da ciência é a simplificação/redu- gicos, anímicos e espirituais. De contrá-
ção: “Simplificar o conhecimento dos rio, cai-se num ‘globalismo’ difuso, ou
fenómenos, reduzi-los à sua mais singela em vagas antropologias espiritualistas,
expressão, é a tarefa de toda a ciência” amputando o homem do Cosmos mate-
(BOMBARDA, 1898, XXI). rial e biológico, a que também pertence”
No meio intelectual português, a ofen- (FERNANDES, 1998, 390). Sem perder
siva antirreducionista tem a sua expressão de vista a unidade do homem todo, B.
lapidar na obra de Leonardo Coimbra, Fernandes aposta no pluralismo antirre-
para quem a matéria nas suas formas mais ducionista: “Nessa base voltamos a rejei-
elementares tende para o grau superior tar as perspetivas ‘divergentes, unilaterais
de realidade, identificado com a ativida- e parcelares’ que hoje se consideram
de da consciência: “A vida consciente na como ‘reducionistas’, tanto materialistas
sua plena manifestação, isto é, a pessoa, é como espiritualistas” (Id., Ibid., 764).
a realidade mais verdadeira e completa” No início do séc. xxi, a situação atual
(COIMBRA, 2004, 316). Sob a designação é de certo modo ambivalente, como bem
de criacionismo, o autor concebe a sua fi- ilustra a obra de António Damásio. Na sua
losofia como uma síntese filosófica, articu- obra emblemática, O Erro de Descartes, Da-
lando espiritualismo e ciência exata. másio recusa veementemente o dualismo
decurso de Oitocentos que tiveram espe- tudos médicos). E é, de modo muito par-
cial significado histórico, para perceber ticular, em relação à reforma dos estudos
em que medida tais reformas procuraram superiores que se observam reações de
transformar a realidade; importa, ao mes- hostilidade em Coimbra e, mesmo, nas
mo tempo, avaliar que confrontos foram províncias do Norte; algo que se com-
suscitados pelas estratégias de mudança preende se tivermos em linha de conta
que elas encerravam. Considerem-se, no que o que estava a ser posto em causa não
período imediatamente subsequente às era apenas a influência da referida aca-
guerras liberais, as disposições reforma- demia. Com efeito, a ação de Rodrigo da
doras de Rodrigo da Fonseca Magalhães, Fonseca Magalhães visava, em primeira
a quem coube a pasta dos Negócios do instância, defender os interesses da bur-
Reino (a instrução estava cometida a este guesia industrial de Lisboa (daí a aposta
ministério) em julho de 1835. A sua ati- nas escolas de aplicação em detrimento
vidade durante os quatro meses em que das faculdades universitárias). Assim, há
dirigiu o ministério incidiu em diversos um conjunto de forças políticas, sociais e
sectores do sistema de ensino, destacan- culturais com representantes na Univer-
do-se, entre outras medidas: i) a criação sidade que se opõe ao movimento refor-
do Conselho Superior de Instrução Públi- mador em questão. Dessa forma, não se
ca (dec. de 07/09/1835); ii) a publicação estranha que, para além das reclamações
do Regulamento Geral da Instrução Pri- do professorado, os próprios habitantes
mária (decreto dessa mesma data); iii) a da cidade de Coimbra tenham represen-
criação do Instituto das Ciências Físicas e tado à Rainha “rogando não consentisse
Matemáticas (dec. de 07/11/1835). Deve no desmembramento da Universidade e
dizer-se que parte substancial das suas re- na criação de estudos superiores noutros
formas não é posta em causa. Aquilo que, pontos do reino” (FERNANDES, 1983,
enquanto estratégia de mudança, vem a 239). Interessa dizer que os citados de-
ser alvo de oposição é o objetivo de exclu- cretos de 7 de setembro e de 11 de no-
são da Univ. de Coimbra do processo de vembro de 1835, entre outros diplomas,
negociação que a reforma pressupunha; foram suspensos por decreto de 2 de
mais, é claro o intento de retirar da tutela dezembro do mesmo ano, subscrito por
da academia de Coimbra a responsabili- Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque:
dade de conduzir a vida escolar do país. dava-se fundamento às reações desfavo-
Na verdade, o Conselho Superior de Ins- ráveis da opinião pública e aos protestos
trução Pública, sediado na capital e com da Univ. de Coimbra (sendo que, por sua
atribuições no respeitante aos diversos vez, o decreto de Mouzinho gerou uma
níveis de ensino (primário, secundário e onda de censura na capital).
superior), vinha substituir a Junta da Di- Apesar de o contexto político que en-
retoria Geral dos Estudos, que tinha a sua volveu a ação de Rodrigo da Fonseca Ma-
sede em Coimbra, junto da Universidade galhães ter sido complexo, é útil retirar
(a qual, de resto, ficava sob a égide do re- algumas ilações no que concerne à forma
ferido Conselho). Por outro lado, o novel como foram concebidas e implementa-
Instituto das Ciências Físicas e Matemá- das as suas disposições reformadoras e,
ticas previa a existência de escolas supe- consequentemente, às reações observa-
riores de aplicação em Lisboa e no Porto, das (que impediram, no fundo, que a
alternativas, sublinhe-se, às de Coimbra ação reformadora tivesse prosseguido),
(limitadas a escolas preparatórias dos es- que poderão ajudar a compreender o
uveia
(que são na realidade reformistas), como como objetivo a luta contra as “calúnias e
foi o caso da política da transição pacífica denúncias dos reformistas e revisionistas”
e da problemática relacionada com a con- (“Resolução sobre a fundação do MRPP
tinuidade da luta de classes. e a criação do Comité Lenine”), manifes-
No entanto, o antirreformismo e o tando-se desta forma o cariz antirrefor-
antirrevisionismo também se constroem mista deste partido político.
por intermédio do próprio PCP, sobretu- Em 1975, nasceu também o Partido Co-
do através da reação, no início dos anos munista Português (Reconstruído), com
50, contra a política de solução pacífica o objetivo de lutar contra o revisionismo
oriunda do campo de concentração do daquelas que consideravam ser as orga-
Tarrafal, e, mais tarde, já na déc. de 60, nizações burguesas, onde se incluíam,
através das críticas de Álvaro Cunhal ao no entendimento dos partidários do
designado desvio de direita dos anos de PCP(R), muitos dos que se autoprocla-
1956-1959. mavam de marxistas-leninistas. O PCP(R)
Não obstante as críticas emergentes apresentava como publicação oficial o
no seio do PCP aos desvios da doutrina jornal Bandeira Vermelha.
marxista-leninista, foram surgindo, a par- Uma nota final para a designada Or-
tir da déc. de 60, numerosos movimentos ganização Comunista Proletária (Marxis-
esquerdistas. ta-Bolchevique) de Portugal, criada em
O primeiro destes – e um dos mais des- 1994. As suas origens encontravam-se no
tacados movimentos de génese marxista Comité Marxista-Leninista Português e a
-leninista – surgiu em 1964 em resultado Organização tinha como objetivo reagru-
de uma cisão no PCP. Designava-se Comi- par todas as forças antirrevisionistas, por
té Marxista-Leninista Português e tinha forma a elaborar um programa revolu-
no Revolução Popular o seu periódico, jor- cionário que contivesse os objetivos das
nal no qual se encontram os principais massas.
textos críticos ao propalado revisionismo Por outro lado, o reformismo adminis-
do PCP. trativo (que terá sempre uma natureza
Posteriormente, destaque para a União política em função do facto de as funções
Democrática Popular, movimento surgi- administrativas estarem na dependência
do em 1974 a partir de três grupos (o Co- das opções políticas) pressupõe uma ou-
mité de Apoio à Reconstrução do Partido tra dimensão, associada aos significados
Marxista-Leninista, os Comités Comunis- modificar, reorganizar, corrigir, melhorar
tas Revolucionários Marxistas-Leninistas da palavra “reformar”, construindo-se o
e a Unidade Revolucionária Marxista-Le- seu anti, não meramente através da crítica
ninista) profundamente críticos do que à modificação do status quo, mas antes por
consideravam a ação revisionista do PCP. intermédio da negação (ainda que justi-
Relevo ainda para o Movimento Reor- ficada) da atividade reformadora. O an-
ganizativo do Partido do Proletariado tirreformismo administrativo constitui,
(MRPP) surgido em 1970 em crítica di- como todos os antis, uma corrente que
reta ao PCP, que consideram ser “a ex- surge indissociável da ação reformadora.
pressão política e ideológica da pequena Ao longo da história portuguesa, fo-
‑burguesia”, “agente da burguesia no seio ram vários os momentos em que se veri-
do proletariado” pretendendo apenas ficaram reformas de cariz administrativo
“arrastá-lo atrás dos objetivos reformistas (com especial destaque para as reformas
daquela”, ao mesmo tempo que apontam oitocentistas) sem que todas elas tenham
título tão sugestivo para o efeito, União onde se transmitiam as doutrinas corruptas
Católica, O Direito, ou Bem Público. Algu- do galicanismo laical e onde, desde há mais
mas personalidades de relevo intelectual de um século, se vinha ensinando a con-
e político tiveram um papel determinante siderar o papa como uma autoridade estran-
no desenvolvimento do debate, tais como geira e que os bispos são escravos do papa.
Francisco de Azeredo Teixeira de Aguiar Por sua vez, o país natural, constituído
(1828-1918), o conde de Samodães, par pela esmagadora maioria dos portugue-
do reino, ministro e secretário de Estado ses, segundo o mesmo Eco de Roma, crê
honorário, e Francisco Lopes de Azevedo que o papa é infalível quando ensina e deseja
Velho da Fonseca (1809‑1876), 1.º conde que se defina como dogma de fé a doutrina da
de Azevedo, que presidiram, em dezem- infalibilidade pessoal do papa, como já é um
bro de 1871, ao 1.º Congresso Católico, dogma da história e da filosofia” (FELÍCIO,
realizado no Porto. Tem ainda de referir 2000, 204).
‑se António de Almeida (1821-1900), Não deixa de ser muito interessan-
doutorado em direito por Coimbra, que te reconhecer no ambiente eclesiásti-
era um antiliberal indefetível – não acei- co português do pós-Segunda Guerra
tou nunca qualquer cargo que significas- Mundial uma nova versão desta bipola-
se dependência do regime – e um com- rização, por causa sobretudo da questão
batente incansável, através da escrita pela colonial. Como é sabido, a Concordata
liberdade do papa e da Igreja, e que con- entre Portugal e a Santa Sé, celebrada
siderava qualquer oposição ao papa uma em 7 de maio de 1940, incluiu uma es-
oposição à Igreja, à religião, e, exatamen- pécie de anexo destinado a especificar
te por isso, à própria sociedade. É que o que mais geralmente foi definido nos
liberdade do papa e da Igreja significa, arts. 26 a 28 da mesma Concordata acer-
neste contexto, a possibilidade de o papa ca da vida da Igreja no Ultramar, o cha-
intercomunicar livremente com os bispos mado Acordo Missionário, que, como
e com os fiéis, independentemente do ali mesmo se diz, mantém “firme tudo
significado político nacional das matérias quanto tem sido precedentemente con-
religiosas e espirituais. vencionado a respeito do Padroado do
É do primeiro jornal da breve lista de Oriente” (Preâmbulo). Isto é, não só o
imprensa católica acima referida uma su- novo texto concordatário não substituía
cinta e sugestiva descrição da bipolariza- nada do que a história das relações entre
ção ideológica e eclesiástica do Portugal Portugal e a Santa Sé já tinha adquiri-
de então, assim resumida por Manuel do quanto às missões no Oriente, como
Felício: “É vantajoso, com o jornal da também se pode deduzir que o espírito
época Eco de Roma, distinguir entre o país do Acordo Missionário é ainda o do regi-
legal e o país natural, como duas sociedades me de padroado. O Acordo Missionário
justapostas. A sociedade do país natural é, portanto, o sinal mais imediato e ma-
era a mais numerosa e, na sua quase to- terializado da tão posteriormente repro-
talidade, profundamente católica. A so- vada e combatida simbiose entre catoli-
ciedade do país legal era uma minoria e cismo e Estado Novo.
caracterizava-se pela sua indiferença face Quando, já a partir da encíclica Pacem
às matérias religiosas e pela hostilidade in Terris, de João XXIII, e depois da Po-
para com a Igreja Católica. Considera-se pulorum Progressio, de Paulo VI, os papas
que a fonte inspiradora deste país legal se começam a alinhar uma visão católica
encontrava na universidade de Coimbra, positiva sobre o amplo movimento da
como a região, entendida como identida- região nordestina, como o seu manifesto
de própria, é uma criação de intelectuais de 1926. Na verdade, foi um movimento
e políticos e assume, quase sempre, uma que impregnou o discurso político entre
dimensão particular no plano do debate finais do séc. xix e princípios do séc. xx,
político e institucional. e que contribuiu para que se entendesse
O regionalismo, tal como hoje o co- a expressão territorial do poder e esta
nhecemos, teve as suas primeiras mani- passasse a ter importância no quadro dos
festações em França, a partir de 1863, Estados e das nações.
mas vulgarizou-se no debate político Em Espanha, as regiões afirmam-se em
francês a partir de 1892, afirmando-se oposição ao nacionalismo, indo buscar a
com Jean Charles-Brun (1870-1948), e legitimação ao discurso histórico. A título
alargando-se, depois, a toda a Europa. de exemplo, refira-se o debate na Catalu-
É um movimento aberto a todos os sec- nha, em que se destacam os contributos
tores políticos e sócio-profissionais da de Miguel Dels Sants Olivier (1864-1920)
sociedade, que pretende defender os e Lluis Durem i Ventosa (1870-1954).
interesses da região, a sua diferenciação O primeiro, desde Maiorca, aproveitou a
cultural, através da promoção da cultura conjuntura de 1898, marcada pelo desas-
e da história. Daí certamente a adesão a tre colonial, para afirmar o regionalismo
este movimento de diversos sectores da insular em “La questió regional” (1899).
sociedade. Talvez por isso, a escola dos O debate em Barcelona conduzirá ao
Annales desenvolveu, a partir dos anos aparecimento de um movimento políti-
50 do séc. xx, um forte movimento de co, a Liga Regionalista (1898-1904). Na
afirmação da história regional, um dos Galiza, o movimento foi protagonizado
promotores evidentes da regionalidade
no território francês.
Miguel Dels Sants Oliver (1864-1920).
As atenções de políticos e cientistas vi-
raram-se para a identificação e criação da
região. O movimento regionalista espa-
lhou-se por toda a Europa, de forma evi-
dente em Espanha, na Alemanha, em Itá-
lia e em Portugal – onde se confunde, na
Madeira e nos Açores com o discurso da
autonomia –, com manifestações diversas
no combate político e na sua expressão
institucional. Grupos de intelectuais jun-
taram-se em partidos, movimentos e as-
sociações, reclamando atenção e poder
para o seu espaço de nascimento ou de
labuta. O regionalismo assumiu-se como
uma construção ideológico-cultural. No
pós-Segunda Guerra Mundial, afirmou
‑se pela reivindicação e a afirmação de
formas práticas de expressão na política
e na administração. E chegou também
à América do Sul, surgindo, no caso do
Brasil, Gilberto Freire como o arauto da
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O quadro político-administrativo que lo, Editora da Universidade Estadual de São
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trina filosófica segundo a qual a verdade só verdades mas também valores absolu-
depende do ponto de vista, não existindo tos, no sentido de valores de aceitação
verdades absolutas e universais que pos- geral. Uma das técnicas utilizadas pelos
sam ser partilhadas por todos com base autores pós-modernos, tanto na análise
em certos critérios. Esta noção contraria filosófica como na análise literária, técni-
a visão da ciência, que persegue um saber ca desenvolvida especialmente por Der-
universalmente acessível, que resulta da rida, foi o chamado descontrucionismo:
interrogação da natureza usando o méto- a opinião de uma pessoa qualquer é, para
do científico e a crítica pelos pares (peer esses autores, um ponto de vista tão vá-
review). Embora não se possa falar de ver- lido como a opinião de qualquer outra
dade absoluta em ciência, no sentido em pessoa, mesmo que esta seja especialista
que esta tem um carácter cumulativo, não no assunto em causa. Há várias formas
terminando nunca, pode falar-se de erro de relativismo, podendo a sua adoção ser
e até, como fez o filósofo austríaco Karl mais radical ou mais moderada. No rela-
Popper (1902-1994), afirmar que a ciên- tivismo cultural, por exemplo, recusa-se
cia é a forma de conhecimento na qual uma visão do mundo e da vida centrada
é possível a admissão do erro (critério de no Ocidente, aceitando-se a coexistência
falsificabilidade). Escreveu Popper em de vários etnocentrismos. No relativismo
Conjecturas e Refutações. O Desenvolvimento moral, por outro lado, o bem e o mal são
do Conhecimento Científico (1963): “A his- determinados por cada cultura e mesmo
tória da Ciência, tal como a história de por cada pessoa, não existindo de uma
todas as ideias humanas, é uma história forma universal. Esta ideia foi, como não
de sonhos irresponsáveis, de obstinação podia deixar de ser, criticada pela Igreja
e de erro. Mas a Ciência é uma das mui- Católica, nomeadamente em discursos
to poucas atividades humanas – talvez a dos Papas João Paulo II e Bento XVI.
única – em que os erros são sistematica- Entre os filósofos contemporâneos que
mente criticados e frequentes vezes corri- se revelaram adversários da ciência advo-
gidos com o tempo. É por isso que pode- gando o relativismo e ganhando assim a
mos dizer que, em Ciência, aprendemos apreciação dos pós-modernos destaca-se
frequentemente com os nossos erros, e o austríaco Paul Feyerabend, um discí-
é por isso que podemos falar, clara e ju- pulo de Popper que se distanciou do seu
diciosamente, em fazer progressos nela” mestre, autor dos livros Diálogo sobre o Mé-
(POPPER, 2003, 295). todo, Contra o Método e Adeus à Razão, todos
As filosofias pós-modernas, que surgi- eles traduzidos em português no início
ram em França nos anos 40 do séc. xx in- dos anos 90. Escreveu Feyerabend neste
fluenciadas pelo pensamento de autores último livro: “Atualmente, muitos inte-
germânicos como Friedrich Nietzsche, lectuais entendem que o conhecimento
Edmund Husserl e Martin Heidegger, e teórico ou ‘objetivo’ é o único conheci-
em oposição à filosofia analítica, de ori- mento digno de ser considerado. O pró-
gem anglo-saxónica, tiveram como princi- prio Popper fomenta a crença difamando
pais mentores os filósofos franceses Jean o relativismo. Assim sendo, este conceito
Baudrillard, Jean-François Lyotard, Ja- não teria fundamento se os cientistas e os
cques Derrida, Gilles Deleuze e Michel filósofos que procuram um conhecimento
Foucault. Estes pensadores contribuíram universal e objetivo e uma moralidade uni-
para a disseminação do relativismo, na versal e objetiva conseguissem a primeira
medida em que pretendiam recusar não e persuadissem, em vez de obrigarem, as
D.R.
1986, o sociólogo Boaventura de Sousa
Karl Popper (1902-1994).
Santos, professor na Univ. de Coimbra,
proferiu o discurso de abertura do ano
culturas opostas a adotar a última. Não é letivo nessa Universidade, intitulado Um
este o caso” (FEYERABEND, 1991, 199 Discurso sobre as Ciências e inspirado nas fi-
‑200). Poder-se-á objectar dizendo que losofias pós-modernas; transformado em
os cientistas não procuram uma “morali- livro, o Discurso conheceu ampla circula-
dade universal e objectiva”. De facto, os ção, não só em Portugal mas também no
livros de Feyerabend foram acendendo Brasil. A relativização do conhecimento
polémicas. científico foi aí exposta desta maneira:
Mas, além de Feyerabend, também Tho- “A ciência moderna não é a única explica-
mas Samuel Kuhn, historiador e sociólo- ção possível da realidade e não há sequer
go da ciência norte-americano, autor de qualquer razão científica para a conside-
Estrutura das Revoluções Científicas (1962), rar melhor que as explicações alternativas
é apreciado pelos pós-modernos. Nessa da metafísica, da astrologia da religião,
obra, Kuhn enfatiza os rompimentos que da arte ou da poesia. A razão porque pri-
a ciência concretiza quando, em certos vilegiamos hoje uma forma de conheci-
momentos, põe em causa um “paradig- mento assente na previsão e no controlo
ma” vigente (o termo, adotado por Kuhn, dos fenómenos nada tem de científico.
fez escola). Dito assim, parece que em É um juízo de valor” (SANTOS, 1988,
ciência o progresso só se concretiza com 52). O autor, ao denunciar uma crise no
mudanças revolucionárias que, ao colo- “paradigma dominante” (uma expressão
carem em causa os resultados anteriores, kuhniana), procurava uma aproximação
qualificam como precário o conhecimen- da ciência àquilo a que chamava o sen-
to científico acumulado até certa data, o so comum, na linha das ideias relativistas
que está longe de ser o caso: mesmo nos (Feyerabend era naturalmente referido).
momentos em que a descontinuidade é Essa tese foi espraiada em Introdução a
aparente, há uma clara continuação na Uma Ciência Pós-Moderna e em A Crítica
evolução científica. De qualquer modo, a da Razão Indolente: contra o Desperdício da
obra de Kuhn conduziu a um conjunto Experiência, duas obras de maior fôlego.
vasto de estudos sociológicos e culturais Embora com algum atraso, as afirmações
sobre o conhecimento científico, que de Sousa Santos originaram algumas re
alargaram o nosso conhecimento sobre a ações, em particular de dois livros do físico
natureza da ciência e o seu modo de fun- e divulgador de ciência António Manuel
cionamento. Baptista, O Discurso Pós-Moderno contra a
D.R.
nossos dias?” (BAPTISTA, 2002, 81). Sou-
Boaventura de Sousa Santos (n. 1940).
sa Santos viu-se obrigado a responder na
praça pública, tendo, para além de acusar
o seu antagonista de proferir insultos, tro- valiosa componente da cultura humana”
cado com ele alguns argumentos em jor- (DEUS, 2003, 115).
nais nacionais de grande circulação. Mais Essa polémica portuguesa em torno da
tarde o professor de Coimbra organizou ciência e da sua justificação não era mais
um espesso volume coletivo em que pro- do que uma réplica, um pouco tardia, da
curava, por meio de convites dirigidos a “guerra das ciências” que tinha tido lugar
vários autores, não só reapreciar a sua nos anos 90 do século anterior, nomeada-
Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna, mas mente a partir do chamado Caso Sokal,
também discutir a natureza e os limites da do nome do físico norte-americano Alan
ciência. O título – bastante original – que Sokal, que em 1996 conseguiu publicar
escolheu para esse volume foi Conheci- um embuste na revista Social Text, apre-
mento Prudente para Uma Vida Decente: Um sentando textos culturais pós-modernos.
Discurso sobre as Ciências Revisitado. Al- Os editores desta revista consideraram
guns cientistas, como o físico Jorge Dias digno de publicação um arrazoado sem
de Deus, do Instituto Superior Técnico, sentido, intitulado “Uma transgressão
também tomaram posição sobre esta de fronteiras: em direcção a uma her-
“guerra das ciências” em português. Em menêutica transformativa da gravidade
Da Crítica da Ciência à Negação da Ciência, quântica”, que usava de forma inadequa-
embora admitindo como salutar a crítica da e absurda uma variedade de termos
da ciência, Jorge Dias de Deus chamou a da ciência (curiosamente, Boaventura
atenção para alguns equívocos dos auto- de Sousa Santos era citado nesse artigo).
res pós-modernos no que respeita à apre- A paródia foi revelada pelo autor após
ciação da ciência, para concluir referindo a publicação do artigo, quando já vários
os limites e a confiança no conhecimento comentadores tinham apreciado o texto,
científico: “Portanto, a ciência não deve, tomando-o por sério. Este caso provocou
e nem pode, prometer futuros radiosos, uma enorme polémica intelectual, dando
sejam estes terrestres ou celestiais. Como ensejo ao surgimento de numerosos arti-
todas as coisas humanas, o conhecimen- gos e livros. Os ecos dessa discussão che-
to que a ciência produz é falível e pere- garam a Portugal ainda antes dos livros de
cível. Mas, nem por isso a ciência deixa António Manuel Baptista, com a publica-
de ser um impressionante movimento de ção, em 1999, de Imposturas Intelectuais, da
libertação do espírito e de constituir uma autoria de Sokal e de outro físico, o belga
tanto da vida pública como da vida pri- tindo a forma da ambição, com laivos
vada, se dissipou a benefício da reivindi- de orgulho” (SLOTERDIJK, 2009, 29).
cada autonomia e autarcia do homem. Abraão, pai do monoteísmo abraâmico,
Podemos perguntar se a religião, que en- ao colocar Deus, o Altíssimo, acima das
tretanto desaparecia do espaço público, divindades a que prestam culto os povos
ia sendo também obliterada na consciên- vizinhos, afasta estas divindades e confe-
cia dos indivíduos. É precisamente na re ao Altíssimo o estatuto de Deus único.
resposta a esta questão que as propostas Deste modo, fica patente que a afirma-
de Luc Ferry e Marcel Gauchet se encon- ção monoteísta na história das religiões
tram e divergem. Encontram-se, porque resulta de uma competição em que há
reconhecem ambos que noções e valores partes em conflito à procura de hege-
próprios do código religioso tradicio- monia. A defesa intransigente de Deus
nal estão agora vertidos no humanismo único faz-se acompanhar da mais inexo-
laico, território da nova transcendência rável violência que não recua perante a
e vínculo da cultura do mundo ociden- decisão de exterminar os infiéis. É o que
tal. Divergem, porém, porque enquanto podemos ver na celebração idolátrica do
Luc Ferry se mostra recetivo à conceção bezerro de ouro contra a qual reage a
do humanismo contemporâneo como cólera monoteísta de Moisés, ao ordenar
humanismo do homem-Deus, Marcel o homicídio dos infratores: “mate cada
Gauchet lhe contrapõe simplesmen- um a seu irmão, a seu amigo e a seu vizi-
te o humanismo do homem sem Deus. nho” (Ex 32, 27). A morte dos idólatras,
O primeiro pode anunciar a verdadeira mesmo que sejam os seres mais próxi-
religião como algo em aberto diante de mos, tem o valor de sacrifício oferecido
nós, perfilando-se como horizonte ainda pelos fiéis como desagravo pela ofensa
a descobrir. Gauchet, pelo contrário, vê grave contra o Deus único e como selo
o processo de enfraquecimento do vín- da aliança com o povo de Israel.
culo religioso como fatal e irreversível. O monoteísmo cristão desprende-se
O transcendente subsiste, mas configu- do judaísmo pondo em causa o carácter
rado agora como absoluto terrestre va- étnico da aliança do Deus único com o
zado em formas que ainda não se encon- povo único. Na sua missão universalista,
tram identificadas. Paulo de Tarso assume a constituição
Em A Loucura de Deus, de Peter Sloter- do novo Israel, em que a fé e o batismo
dijk (n. 1947), as religiões monoteístas abrem a todos os povos sem distinção,
descem do plano teológico da transcen- sejam gregos ou judeus, escravos ou
dência para o terreno da ciência das civi- homens livres, homens ou mulheres,
lizações, no qual se procura determinar a pertença ao mesmo povo de Deus da
a origem da experiência do transcen- Nova Aliança. Com o aparecimento do
dente e do Deus único. Para essa inda- monoteísmo islâmico, há o retorno ao
gação são convocados os contributos das passado de guerra contra os ídolos dos
ciências humanas e sociais e, em parti- politeísmos empreendido pelo povo he-
cular, a psicologia “timótica”, tida pelo breu. Para o islão, é abominável o judaís-
autor como apropriada para dar conta mo, que ele acusa de hipocrisia por não
das potencialidades polemológicas dos ter escutado e tomado a sério as procla-
monoteísmos. O termo “thymos” desig- mações e invetivas dos profetas. Quanto
na, na antropologia grega, “o centro de ao cristianismo, reprova-o por ter falsi-
excitação dos impulsos da psique reves- ficado o monoteísmo, ao transformar
o profeta Jesus em filho de Deus, e por o mundo dos monoteísmos, mas com
ainda agravar mais a falsidade com a grande abertura para a ética da ciência
teologia da Trindade. Em suma, “se o universal da civilização, resta como tare-
reforço monoteísta advindo em S. Paulo fa o longo caminho da educação para os
gerou a passagem do universalismo de- direitos humanos.
fensivo ao ofensivo, o reforço islâmico Nesta travessia sumária de algumas
gerou o desenvolvimento do universalis- modalidades de oposição ao fenómeno
mo ofensivo que passou de uma forma religioso, devemos ainda acrescentar
de expansão missionária a uma forma dois tipos muito particulares de antirre-
de expansão político-militar” (SLOTER- ligiosismo, a chamada religião natural e
DIJK, 2009, 39). São defensivos os com- o antirreligiosismo de raiz protestante.
bates travados pelo monoteísmo judaico Da longa história da religião natural,
porque estão ao serviço da separação dos que remonta pelo menos ao estoicismo
judeus relativamente aos outros povos. antigo, decorre a conclusão que faz dela
Visa assegurar por essa via a preservação uma espécie de religiosidade estranha,
do estatuto singular de povo eleito. Por distanciada, que se afirma de maneira
sua vez, os monoteísmos cristão e islâmi- crítica em relação às religiões socialmen-
co, por força do expansionismo que a te instituídas. Das muitas peculiaridades
atividade missionária e proselitista pro- que a religião natural mostrou em dife-
move, definem-se como universalismos rentes épocas e na reflexão de quantos
ofensivos. Tanto nas cruzadas como na a ela se referem, ressaltam algumas ca-
guerra santa, encontram-se expressões racterísticas comuns a todas as formula-
culminantes desse combate de expansio- ções. A aceitação da existência de Deus
nismo ofensivo. e a presença do bem e do mal moral no
A identificação do efeito monoteísta mundo constituem o máximo denomi-
nas formas históricas, efeito que se re- nador comum das suas mais variadas ma-
veste de violência exercida em nome do nifestações. Por outro lado, o conceito
Deus único, e que cada uma das três re- de revelação divina ou é simplesmente
ligiões abraâmicas reivindica para si, de- negado como sucede no deísmo, ou
sacredita, segundo análise de Sloterdijk, mantido em suspenso, sem ser rejeitado
a eficácia esperada do diálogo inter-reli- nem claramente afirmado como aconte-
gioso. Com a jihad atual em mente, este ce nos teísmos. Além disso, a racionali-
autor acredita que “o código religioso zação do sentido religioso produzida no
serve exclusivamente para pôr em texto âmbito da especulação filosófica afasta a
uma tensão existencial raivosa, ligada a esfera da religião natural das chamadas
condições sociais, e que exerce pressão religiões positivas. E é, acima de tudo, a
para se descarregar. […] O que pare- estas que se opõe o antirreligiosismo, ou
ce ser uma nova questão religiosa é, na mais apropriadamente o irreligiosismo.
realidade, a repetição da questão social Como no final do séc. xix foi lembrado,
ao nível de uma biopolítica global” (Id., “uma religião sem mitos, sem dogmas,
Ibid., 138). O devir cheio de conflitos do sem culto nem ritos, é tão só a religião
fenómeno religioso surge, nesta leitura natural, coisa algo bastarda que acaba
da história natural dos monoteísmos, por se resolver em hipóteses metafísicas”
como revelador do enredo demasiado (GUYAU, 1890, xiii).
humano que envolve a transcendência A filosofia da linguagem, a filosofia
do Deus único. Aos desencantados com analítica e o incremento das ciências da
de 1820 foi monárquica. O nexo entre 1890). No seu romance A Capital, na cé-
a Revolução Liberal e o republicanis- lebre cena da sessão do centro republica-
mo será profundo em Portugal, mas, tal no, Eça apresentou os participantes como
como em França, é acidental. Talvez por ingénuos e ignorantes, ou invejosos e me-
isso, a geração de 70, autora das Confe- díocres, todos desprovidos de uma ideia
rências do Casino, foi antirrepublicana, positiva para Portugal.
e talvez monárquica; Teófilo Braga foi o Abonando-se nas frases anteriores, algu-
seu único republicano militante. Antero ma propaganda monárquica apresentou
do Quental só foi republicano na primei- Antero e Eça como inimigos da repúbli-
ra mocidade; mais maduro, a 2 de feve- ca. Sê-lo-iam? Antero nunca vacilou no
reiro de 1873, escrevendo na sua revista republicanismo teórico, sobre o qual Eça
Pensamento Social sobre a república em evitou definir-se. Ambos criticam os re-
Espanha, um acontecimento traumático publicanos, e não a república, e, mesmo
para os Portugueses, considerou-a apenas assim, só em privado. As declarações são
“uma experiência empírica”, recusando-a quase todas proferidas na sequência da
“se não for mais do que a continuação da sangrenta Comuna de Paris e da violenta
monarquia com outro nome” (CARREI- Primeira República espanhola. A “balbúr-
RO, 1948, i, 340 e 448). Nas cartas aos dia sanguinolenta” é da vaga da Comuna
amigos, Antero foi cáustico sobre os repu- revolucionária, que ambos os nossos re-
blicanos: em abril de 1873, informava J. P. volucionários condenavam em privado
Oliveira Martins que tinha “ultimamente e poupavam em público. Eça insere esta
visitado” centros republicanos onde en- expressão num estudo sobre Ramalho Or-
contrara “ilusões senis” e “frase velhas”, tigão, a quem a atribui, pois escreve em
mas nem “um homem nem uma ideia”; discurso indireto livre; pede por ela “des-
como Martins tivesse anunciado que acei- culpa à nobreza e ao povo” e esclarece que
tava uma candidatura a deputado socialis- o “dever do artista” o obriga a interessar-se
ta pelo Porto, prevenia-o contra os repu- pelos políticos apenas enquanto tipos so-
blicanos, seus rivais eleitorais: eram “uma ciais, “todos igualmente explicáveis, todos
raça pérfida” (Id., Ibid., 340). igualmente interessantes”; pensava, por
Terá Eça de Queirós passado da revolu- certo, na referida cena de A Capital. Eça
ção proletária à monarquia liberal? Veja- não só enjeitava a autoria moral da frase,
mos o que ele escreveu e publicou sobre como a escrevera numa missiva datada de
a república e os republicanos. A 25 de 25 de fevereiro de 1878, quando a recorda-
fevereiro de 1878, Eça enviou de Newcas ção sangrenta da Comuna de Paris ainda
tle uma carta a Joaquim de Araújo onde estava viva (QUEIRÓS, 1928, 48). A Capital
afirmava que em Portugal a república é dessa série influenciada pela Comuna e
seria “uma balbúrdia sanguinolenta” parece romancear a frase de Antero sobre
(QUEIRÓS, 1928, 33). Logo a seguir ao os centros republicanos; foi escrita a partir
Ultimato de 1890, num texto anónimo da de 1877, embora só publicada em 1925, já
Revista de Portugal, de início atribuído a depois de ter sido retocada pelo filho, José
J. P. Oliveira Martins, Eça previu três regi- Maria; um especialista em Eça assinalou
mes futuros para Portugal, pois “a nação como origem dessa cena outras de Hono-
perdeu totalmente a fé no parlamentaris- ré de Balzac, e classificou a sua “intenção”
mo”: autocracia militar, “concentração de de “escarninha”, mas não de antirrepubli-
força na Coroa” e república, que “seria a cana (MARTINS, 1967, 314). Escrevendo
confusão, a anarquia, a bancarrota” (Id., duas décadas depois sobre as violências
revolucionárias da Comuna, Eça teme que e publicou nesse livro as fotografias dos
a república traga a Portugal a confusão e a que assim qualificava, como prova visual
bancarrota, mas não a sangueira. de pertença genético-cultural. O estilo
A popularidade da frase “balbúrdia san- era o de Charles Maurras: intelectualismo
guinolenta” como sinónimo da república verbalizado com violência.
em Portugal sugere que o antirrepublica- Em meados dos anos de 1920, boa par-
nismo se acentuou depois de proclamada te do antirrepublicanismo português era
a Primeira República. O Rei D. Manuel II republicano, pois, a Primeira República
afirmou até morrer a validade da Carta traíra as esperanças. Fora essa a atitude
Constitucional, tendo a República Por- de Antero.
tuguesa por uma rebelião inconstitucio- O Estado Novo firmara a natureza re-
nal, apesar de o concerto internacional publicana do Estado, mas António de
a reconhecer; até 1919, esta convicção Oliveira Salazar, o seu mais duradouro
ensimesmada autorizou-o a encorajar chefe de Governo, abafou a “questão do
encapotadamente revoltas monárquicas regime”, que dividia a opinião conserva-
armadas. O Integralismo Lusitano toca- dora, divisão que permitira a implantação
va alguns dos temas tradicionais do an- e a sobrevivência da Primeira República.
tirrepublicanismo autoritário: acusava a O Estado Novo não produziu antirrepu-
Primeira República de ser um regime de- blicanismo, embora perfilhasse alguns
sorganizador da nação, dominado pelos dos seus temas, como a crítica ao parla-
partidos políticos, pela maçonaria, pela mentarismo, e preferisse uma república
plutocracia e pelos judeus. As repúblicas surda. O jornal O Debate, semanário da
“como sistemas de governo” eram “má- Causa Monárquica, procurava criticar as
quinas de burocracia congestiva, em que instituições republicanas, mas, por demé-
as oligarquias, tanto partidaristas como rito próprio e mérito da censura admi-
plutocráticas, asfixiam as livres iniciativas, nistrativa prévia, não era brilhante nem
não só dos indivíduos como da coletivi- acutilante.
dade” (SARDINHA, 1929, 279); “ontem Os católicos portugueses, tal como os
o liberalismo [da monarquia], agora a franceses, oscilavam entre a sua fé e a da
democracia [da Primeira República], não monarquia. Nos anos de 1930, o cardeal
são senão as fachadas de um poder oculto Cerejeira evitará também essa “questão
que, no subsolo da política a manobra a do regime”, que dividira o catolicismo
seu belo prazer [...]. Tal poder é o da Ma- português e desautorizara os bispos.
çonaria, inimiga desde sempre de tudo Pode concluir-se que o antirrepublica-
quanto seja para Portugal o renascimento nismo foi intenso, sobretudo nos países
das suas velhas qualidades de fé e de dis- da Europa latina, no Brasil e na Argenti-
ciplina” (Id., 1978, 64-65). A mítica iden- na, mas não durou dois séculos. O seu fim
tificação do judaísmo e da maçonaria é ocorre com a Segunda Guerra Mundial,
concretizada pelo Integralismo: “O ma- cujos vencedores integram repúblicas ou
çonismo e a retórica do Progresso não monarquias liberais e cujos derrotados
são senão o sucedâneo da antiga aspira- agrupam os totalitarismos singularizantes,
ção messiânica do Judeu” (Id., 1926, 21). que se contavam entre os mais poderosos
O modernista Mário Saa produziu um an- impulsionadores do antirrepublicanismo.
tissemitismo republicano de igual brutali- Em Itália, a monarquia cai, em França,
dade: ataca A Invasão dos Judeus, que teria desaparece como ameaça estatal, e na
ocorrido durante a Primeira República, Índia os rajás enfrentaram uma morte
a prazo, embora a monarquia subsista pp. 13-88; FURET, François, e DENIS, Richet,
no Reino Unido, na Holanda, na Bélgi- La Révolution Française, Verviers, Marabout,
ca, nos países escandinavos, no Japão, na 1979; HOOP, Jean-Marie d’, “La France dans
Tailândia, além de algumas monarquias la Seconde Guerre Mondiale”, in DUBY, Geor-
árabes. Seria simplista atribuir o fim do ge (org.), Histoire de la France, Paris, Larous-
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antirrepublicanismo à derrota do totalita-
L’Action Française, Paris, Perrin/Tempus, 2011;
rismo nacional-socialista. Esse fim resulta
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do enfeixar de um conjunto de vetores a
sianos, Mem Martins, Europa-América, 1967;
que devemos chamar secularização políti- MATOS, Luís Salgado de, O Estado de Ordens,
ca. Enumeremos os principais: o aumen- Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004;
to da instrução formal minava a durabili- Id., Como Evitar Golpes Militares, Lisboa, Impren-
dade da governação heterónoma, o que sa de Ciências Sociais, 2008; Id., A Separação do
facilitava a “república1”; excluídas as mo- Estado e da Igreja, Lisboa, Dom Quixote, 2011;
narquias tradicionais contemporâneas, MÓNICA, Maria Filomena, Eça de Queirós,
os países nascidos da descolonização Lisboa, Quetzal, 2001; MONTESQUIEU, Es-
raramente possuíam uma família real, prit des Lois; NORA, Pierre, “République”, in
facilitando a “república2”, o que mais OZOUF, Mona (org.), Dictionnaire Critique de la
acirrava o antirrepublicanismo estatal; na Révolution Française, Paris, Flammarion, 1992,
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à democracia, o que significava o fim da
1997; PROUDHON, Pierre-Joseph, Idée Gé-
monarquia como regime preferencial e
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para os católicos; a “república3” é facili- nier Frères Libraires, 1851; QUEIRÓS, Eça de,
tada pela multiplicação de organizações “Novos factores da política portuguesa”, Re-
funcionais de cooperação internacional, vista de Portugal, vol. ii, abr. 1890, pp. 526-541;
como a União Internacional de Teleco- Id, Notas Contemporâneas, Porto, Lello e Irmão,
municações (1865), alargada a todas as 1928; Id., A Capital, introd. José Maria Eça de
funções estatais com as Nações Unidas Queirós, 9.ª ed., Porto, Lello e Irmão, 1971;
(1945), organização cuja designação pre- RIALS, Stephane, “La contre-révolution”, in
ter-republicana era a mesma da coligação ORY, Pascal (org.), Nouvelle Histoire des Idées Po-
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tes en France, vol. 1, Paris, Gallimard, 2006, Luís Salgado de Matos
Angra levou mais de um ano a capitular. Pedro de Baeça, irmão do asentista Jorge
No Norte de África, Ceuta permaneceu da Paz, que operava em Madrid, outros
unida a Espanha e o conde de Sarzedas, negociantes de grosso trato (Diogo Ro-
governador de Tânger, não manifestou drigo de Lisboa e Simão de Sousa Ser-
obediência à nova dinastia portuguesa. rão), funcionários municipais, oficiais da
Acabou por ser deposto pelos moradores, corte e magistrados. O plano para matar
em finais de 1643. Contudo, foi posterior- o Rei e restituir o reino a Castela era vas-
mente perdoado por D. João IV. to e abrangia gente de vários quadrantes
A mais significativa de todas as conjuras sociais. A ramificação da conspiração che-
contra o Rei restaurador foi a de 1641, gou ao contador da Fazenda, Luís Pereira
que ainda não está totalmente esclareci- de Barros. Este era próximo de Miguel de
da. Uma exaustiva e rigorosa investigação Vasconcelos, mas acabava de sair absolvi-
sobre fontes primárias mostra que o ale- do da prisão, pelo que foi o primeiro a
gado envolvimento do marquês de Vila delatar a conspiração, cujos rumores al-
Real e do duque de Caminha, seu filho, cançaram também o conde de Vimioso,
é, no mínimo, controverso: por falta de recém-chegado da campanha do Alen-
móbil dos acusados; por haver uma de- tejo. Todos os acusados foram presos,
manda judicial ainda não resolvida sobre nomeadamente Matias de Albuquerque,
a sucessão que pendia na casa Vila Real mais tarde perdoado, assim como muitos
(a passagem para Castela invalidaria as outros. D. João IV andava num “labirinto
pretensões do marquês face ao rival de ideias”, pelo que, segundo o conde da
D. Carlos de Noronha); e por haver moti- Ericeira, “era-lhe necessário não se fiar
vos de interesse político (a casa Vila Real,
com a Restauração, tornava-se na segun- Rei D. João IV (1604-1656).
da maior do reino).
O conde da Ericeira atribui a conce-
ção da trama ao arcebispo de Braga, que,
“querendo pagar a El-Rei Católico os
benefícios que havia recebido daquela
coroa” (ERICEIRA, 1945, I, 297), teria
explorado os ressentimentos do presu-
mível representante de uma das casas
mais ilustres e mais antigas da monar-
quia. O marquês sentir-se-ia ultrapassado
nas honras por indivíduos muito abaixo
da sua grandeza e queixara-se da ingra-
tidão de D. João IV, o que teria atraído
alguns cúmplices: D. Miguel de Noronha,
2.º duque de Caminha – o menos culpa-
do de todos, pois, mesmo na época, de-
monstrou ser contrário à conjura, não
a tendo denunciado por mero respeito
filial –, o conde de Armamar, sobrinho
do arcebispo, outros fidalgos da primei-
ra nobreza do reino, o inquisidor geral,
D. Francisco de Castro, o rico mercador
e em certas organizações secretas penin- que fosse responsável por fazer a propa-
sulares. Também o círculo do Club Ibéri- ganda desta ideia: a Ibéria.
co de Paris, dos Portugueses e Espanhóis A união deveria ser pacífica. O ponto de
emigrados, influenciado pela revolução partida do catalão Sinibaldo de Más era o
de 1848, advogava uma federação ibéri- conceito de progresso, nomeadamente o
ca republicana. A ideia de uma ligação progresso material das comunicações, que
entre Portugal e Espanha apareceu na o fontismo também defendia, pretenden-
Revista Militar espanhola (abril de 1849) do ligar o progressismo português ao seu
e foi transcrita na sua congénere portu- congénere espanhol. Achava ele que os
guesa em julho desse ano. O republica- pequenos Estados se deviam fundir com
no Henriques Nogueira defendeu a fe- as grandes nações com quem tinham cer-
deração dos povos da península nos seus tas afinidades de origem, raça, linguagem
Estudos sobre a Reforma em Portugal (1850) e tradições históricas, no sentido de se
e na Revista del Médio Dia advogava a mes- evoluir para a constituição de uma verda-
ma proposta. Em 1852, apareceu a pri- deira humanidade. Os jornais O Progresso
meira edição de um panfleto da autoria (1854-56), O Leiriense (1854) e a Revista
de Sinibaldo de Más, Ibéria, acompanha- Peninsular (1855-56) apresentaram com
da de um prefácio do jornalista e lente insistência esse ideário em artigos assina-
da Escola Politécnica de Lisboa, José dos por José de Torres, Henriques Noguei-
Maria Latino Coelho. Defendiam o prin- ra, Latino Coelho, Lopes de Mendonça e
cípio da superioridade de organizações Amorim Viana. Fundada por Carlos José
políticas mais vastas do que as nações, o Caldeira (que conheceu Sinibaldo de Más
que traria a redução dos encargos dos em Macau e era proprietário de uma tipo-
povos, e, consequentemente, a diminui- grafia), a Revista Peninsular pretendia con-
ção dos impostos. Supondo ser difícil tribuir para um conhecimento mútuo de
conseguir para toda a Europa uma situa- ambos os países, embora alguns dos cola-
ção unificada, a que se atribuía grandes boradores não manifestassem grande sim-
vantagens, propunha-se que fosse a pe- patia pela ideia ibérica (como era o caso
nínsula Ibérica a aproximar-se dessa de- de Alexandre Herculano).
sejável unidade, pois tinha mais condi- A polémica não tardou. O órgão migue-
ções do que a própria Itália para formar lista A Nação reagiu violentamente contra
uma só nação. A separação de Portugal esse tipo de propostas, assim como o polí-
e Espanha (1640) era vista como uma tico progressista e católico José Maria Ca-
verdadeira calamidade, e como o acon- sal Ribeiro e o jornal A Imprensa, de que
tecimento de onde provinha um “reino Rebelo da Silva era redator principal. Este
raquítico rodeado de grandes nações”, não só atacou energicamente a ideia em
que “sem grandes forças contra o golpe si mesma como chamou a atenção para
de mão que a Espanha intente e por con- a necessidade de a analisar também em
seguinte sempre temeroso dela, tem tido termos históricos, concluindo por uma in-
que lançar-se nos braços da Inglaterra” contestável vivência nacional anti-iberista.
(SANS, 1853, 12). As inúmeras razões de A sua História de Portugal nos Séculos XVII
ordem económica invocadas para a liga- e XVIII (1859-71), patrocinada por D. Pe-
ção de Portugal a Espanha concluíam dro V, correspondia a uma necessidade
que seria ótimo para um Português fa- cultural e pública. A experiência desses
zer parte de uma nação seis vezes maior. séculos não devia ser omitida da memó-
A proposta era formar uma sociedade ria nacional sob o pretexto de o regime
passo desmentida pela geografia e pela (lei n.º 8/2016, de 1 de abril). Celebrar a
história, e a ideologia arcaica que impos- Restauração será uma forma simbólica de
sibilitava a aproximação de Portugal e afirmar a nacionalidade, mas a sua capa-
Espanha, condição imprescindível para cidade mobilizadora fica em aberto.
o seu desejado ressurgimento. A alterna-
tiva seria o peninsularismo – expressão Bibliog.: manuscrita: British Library, Ma-
de “solidariedade afetuosa […], uma in- nuscripts, Add. 15194, 4 nov. 1658, fl. 19;
dicação constante da mesma Geografia e impressa: ALMEIDA, Fortunato de, História
da mesma História” (Id., Ibid., 23) –, para de Portugal, Coimbra, Imprensa Académica,
que através de uma aliança peninsular se 1899; Id., Curso de História de Portugal, 6.ª ed.,
pudesse restaurar o sentido perdido da Coimbra, F. de Almeida, 1919; Id., História
de Portugal, 6 vols., Coimbra, F. de Almeida,
antiga unidade hispânica.
1922-29; ALMEIDA, Gregório de, Restauração
Encontram-se ideias iberistas e federa-
de Portugal Prodigiosa, Lisboa, ed. António Al-
listas em pensadores portugueses (Teófi- varez, 1643; ÁLVAREZ, Fernando Bouza, Por-
lo Braga, Sampaio Bruno e, pouco mais tugal no Tempo dos Filipes. Política, Cultura, Repre-
tarde, Ana de Castro Osório) e espanhóis sentações (1580-1668), Lisboa, Cosmos, 2000;
(Miguel de Unamuno, Ignasi Ribera i ANDRADE, Luís Oliveira, e TORGAL, Luís
Rovira e Joan Maragall). Mais recente- Reis, Feriados em Portugal. Tempos de Memória e
mente, estes ideais aparecem em Miguel de Sociabilidade, Coimbra, Imprensa da Univer-
sidade, 2012; AZEVEDO, J. Lúcio de, Épocas
Torga, Fernando Lopes-Graça e José Sa-
de Portugal Económico, Lisboa, Livraria Clássica,
ramago. Mas existirá nestes pensadores a 1929; BLUTEAU, Rafael, Vocabulário Portuguez
noção de antirrestauracionismo? A per- e Latino, 10 vols., Coimbra, Colégio das Artes
gunta a fazer às novas gerações é sobre a da Companhia de Jesus, 1712-28; BOCAGE,
Restauração como conceito histórico. Co- Carlos Roma du, Subsídios para o Estudo das Re-
nhecem-no? Que sentido lhe atribuem? lações Exteriores de Portugal em Seguida à Restaura-
O que representa a história da pátria na ção. 1640-1649, Lisboa, Academia das Scien-
cias de Lisboa, 1916; BRANCO, Francisco R.
sua formação humana e nas suas opções
de Oliveira Castello, Os Homens de 1640 ou a
como cidadãos? A jovem República tinha Restauração de Portugal, Lisboa, Typ. da Biblio-
proclamado a data da Restauração como theca Universal, 1879; BRAZÃO, Eduardo,
feriado nacional, determinando que fos- A Restauração: Relações Diplomáticas de Portugal
se solenizado como Festa da Bandeira Na- de 1640 a 1668, Lisboa, Bertrand, 1939; CA-
cional (Diário do Governo, 24 nov. 1910). TROGA, Fernando, “Nacionalistas e iberis-
O facto de ter sido extinto praticamen- tas”, in MATTOSO, José (dir.), História de Por-
te um século depois (lei n.º 23/2012, de tugal, vol. v, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993;
CHAGAS, Manuel Pinheiro, História Alegre de
25 de junho, art. 234), juntamente com
Portugal, 4.ª ed., Lisboa, Imprensa Literária
outros três feriados, evidencia a reduzida Universal, 1880; Id., História de Portugal: Popular
importância que o poder político atri- e Ilustrada, 3.ª ed., 14 vols., Lisboa, Empreza da
bui ao significado nacional da data. Este Historia de Portugal, 1899-1909; COSTA, Leo-
acontecimento levou a vários protestos, nor Freire, e CUNHA, Mafalda Soares, D. João
nomeadamente da Sociedade Histórica IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; ERICEI-
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4 vols., Porto, Civilização, 1945; FARIA, Ana
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liderado por José Ribeiro e Castro, todos dos Negócios Estrangeiros, 2005; FERRÃO,
empenhados na reposição da festa pa- António, A Restauração de 1640: como Se Perdeu
triótica, como de facto veio a acontecer e Se Reconquistou a Independência (1580-1668),
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pres les Estats Generaux des Provinces Unies S’Est Ana Leal de Faria
nacional inspirado no drama romântico) Furst: “Aqui surge a distinção entre o sen-
e a proliferação de um assinalável con- timentalismo dos meados do séc. xviii
junto de revistas apostadas em propala- e aquele dos românticos: enquanto o
rem os novos valores estéticos (Panorama, primeiro foi largamente generalizado
Ramalhete, Revista Literária, Revista Estran- a um conjunto definido de respostas, o
geira, Universo Pitoresco, O Mosaico, Museu último foi – ou visa ser – essencialmente
Pitoresco, Revista Universal Lisbonense) con- pessoal, emergindo da experiência numa
tribuíram determinantemente para a rá- confissão autobiográfica” (FURST, 1972,
pida sedimentação do ideário romântico. 219). Ou, como diria Michel Meyer,
Como seria de esperar, o romantismo “o romantismo torna-se uma espécie de
não deixou de engendrar um homo ro- universalismo do sentimento, mas tam-
manticus. Homo romanticus configurado bém da afirmação de si; o que permitiu
substancialmente por um combate sem que se dissesse que Nietzsche, por exem-
tréguas, colocado sob a égide do anticlas- plo, devia vir do romantismo” (MEYER,
sicismo, pelo resgate de uma mentalida- 1994, 234). E tornar-se “universalismo do
de que podemos, com Isaiah Berlin, de- sentimento” é, acima de tudo, começar
finir assim: “o sofrimento era mais nobre por romper, em instância literária, com as
do que o prazer, o fracasso era preferível práticas literárias precedentes de matriz
ao sucesso mundano, que continha em si neoclássica – radicadas no culto da razão,
algo de vil e oportunista e que só podia do equilíbrio e da contenção, na discipli-
ser obtido à custa do atraiçoamento da na formal, tudo a bem de uma expressivi-
própria integridade, independência, da dade fundada na clareza e na ordenação;
chama interior, da visão ideal e íntima” como dizia, em fórmula lapidar, Boileau
(BERLIN, 1999, 336). Consequentemen- ‑Despréaux: “O que se concebe bem
te, deu-se uma nova maneira de ver e de enuncia-se claramente e as palavras para
pensar o mundo, que já se não confundia dizê-lo aparecem facilmente” (BOILEAU
com aquela através qual a salvação do ho- ‑DESPRÉAUX, 1815, 6).
mem assentaria na fé do conhecimento Não é possível, por isso, não aceitar o
racional e científico, na prosperidade co- romantismo enquanto poderosa estética
mercial e económica, e na tranquilidade ao serviço da expressão amorosa. Foi, não
social (nas instituições, nas leis, nos costu- se duvide, por intermédio dessa expres-
mes e nas conveniências). Para os român- são do amor que, historicamente, o ro-
ticos, tudo isto são critérios que aferem mantismo reprimiu o racionalismo ilumi-
limitações inaceitáveis. O esforço român- nista. Só que se trata, na verdade, de um
tico vai no sentido de harmonizar um amor abstrato e desmesurado, querendo
ideal que subscreve a repugnância pelo isto significar, tomando de empréstimo
emparcelamento social e a hipertrofia do palavras de Louis Maigron, o seguinte:
eu. O eu pelo qual se privilegiam a fluên- “Chegámos muito rapidamente ao dese-
cia da imaginação e da sensibilidade, e jo em si mesmo, independentemente de
que se caracteriza por pender para um qualquer objeto específico ao qual ele se
assombroso pessimismo, aspirando, in- pudesse aplicar” (MAIGRON, 1910, 263).
definível e vagamente, ao infinito. Numa Convém também esclarecer o facto de
palavra, exprime-se uma visão do mundo a cosmovisão romântica do amor se afi-
cuja força histórica se reconhece na ênfa- gurar indissociável de uma consciência
se dada à livre expressão dos sentimentos. (romântica) radicada na busca de uma
Como observa, com inteira justeza, Lilian unidade primordial com o absoluto.
que a leitura dos textos ultrarromânticos ragga e Teófilo Braga), que nos ajuda a
dá mostras, i.e., insistir no facto de o ro- perceber o que estava em jogo: “ligar Por-
mantismo, sobretudo na sua variante ul- tugal com o movimento moderno, fazen-
tra, já não fazer sentido em função de não do-o assim nutrir-se dos elementos vitais
dispor do estatuto pragmático, histórico de que vive a humanidade civilizada [...];
e referencial daquilo que se entende ser procurar adquirir consciência dos factos
Portugal por essa altura. Tratar-se-ia, so- que nos rodeiam na Europa [...]; agitar
bretudo nas suas zonas mais contaminadas na opinião pública as grandes questões
pelo macabro, de uma escola saturada de da filosofia e da ciência moderna [...];
ilusões fantasmagóricas sobre a realida- estudar as questões da transformação po-
de. E isso é o mesmo que reconhecer na lítica, económica e religiosa da sociedade
segunda geração romântica uma inépcia portuguesa” (CABRAL, s.d., 9-10).
ontológica ao nível da representação, por Não surpreende, dado o cariz revolu-
causa da sua convencionada natureza anti- cionário das conferências, que apenas
mimética (mimese avaliada no sentido da quatro fossem efetivamente levadas a
verosimilhança, entenda-se). efeito. As de Antero de Quental (“Causas
No que se reporta às Conferências do da decadência dos povos peninsulares,
Casino, ou melhor, às Conferências De- nos últimos três séculos”), Augusto Soro-
mocráticas do Casino Lisbonense, não é menho (“Literatura portuguesa contem-
impertinente considerá-las, pelo fôlego porânea”), Eça de Queirós (“Realismo
que deram às doutrinas do realismo ex- como nova expressão da arte”) e Adolfo
postas nos folhetos da Questão Coimbrã, Coelho (“Questão do ensino”). Da res-
o segundo grande momento antirromân- ponsabilidade de Salomão Sáragga, a
tico. Ocorridas sob o signo da liberda- quinta conferência (“Historiadores crí-
de de pensamento, visaram apresentar ticos da vida de Jesus”), prevista para o
renovação em matéria de pensamento, dia 26 de junho, não chegou a ocorrer,
literatura e arte. Melhor dizendo, Ante- proibida que foi pelo marquês de Ávila
ro, que entretanto adquirira algum cos-
mopolitismo viajando pela França e pela
América, propôs-se organizar uma série
A partir da esquerda: Eça de Queirós, Oliveira
de conferências repletas de consequên- Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão
cias, na medida em que esperava assim e Guerra Junqueiro (1884).
debater (como diria, em carta, a Teófilo
Braga) as grandes questões contemporâ-
neas à luz do positivismo. Propósito por
certo ambicioso e não menos responsabi-
lizador na sua amplitude. Em A Revolução
de Setembro, do dia 18 de maio de 1871,
a finalidade das conferências vem enun-
ciada com mais especificidade num ma-
nifesto (assinado, além Eça de Queirós,
por Antero de Quental, Adolfo Coelho,
Augusto Soromenho, Augusto Fuschini,
Germano Vieira de Meireles, Guilherme
de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira
Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sa-
Antirrusselismo
propaganda da ditadura – de que achou como com uma greve dos estivadores,
o Parlamento fútil e voltou para Coim- entre outras manifestações de desagrado
bra no mesmo dia –, mas porque, pouco que continuaram ativas até ao dia 9 de fe-
depois da sua tomada de posse, se deu a vereiro. Nesse mesmo ano de 1931, a 14
Noite Sangrenta, em que foram assassina- de abril, houve um levantamento militar
dos o então primeiro-ministro, António contra o Governo da ditadura nacional,
Granjo, bem como outros elementos do que acabou por alastrar para os Açores
partido do Governo. A par da atividade e para a Guiné portuguesa. Esta revolta
política, escrevia amiúde na imprensa, foi levada a cabo por militares opositores
onde debatia com os anticlericais repu- ao regime e apoiada pela Liga de Paris,
blicanos na defesa do catolicismo, que constituída por republicanos exilados na
considerava superior a qualquer pendor capital francesa.
político, e que, portanto, deveria convi- O final da Segunda Guerra Mundial,
ver em harmonia com qualquer regime. em 1945, colocou Salazar num estado
Com a Revolução de 1926, Salazar é de isolamento que rapidamente chamou
chamado ao poder na Ditadura Militar. a atenção dos Aliados e fragilizou a po-
Nesse mesmo ano, a 8 de outubro, dá-se sição do país no contexto internacional.
a revolta de João de Almeida, que consis- Portugal tornou-se o único país europeu
tiu num desentendimento interno entre com um regime totalitarista de direita.
os homens do 28 de Maio, cujo motivo Declaradamente país neutro no conflito,
pousava precisamente sobre Salazar: João não eram desconhecidas as boas relações
de Almeida e José Vicente de Freitas, com que o regime salazarista manteve com os
simpatias nacional-sindicalistas, opõem‑se países do Eixo, antes e durante o confli-
à presença de Salazar no Governo, princi- to, principalmente com a Alemanha e
palmente pelo carácter conservador que com a Itália. Provavelmente uma das me-
lhe era conhecido, e a estes juntam-se ou- didas mais polémicas do ponto de vista
tros. Tudo terminou com a prisão de João internacional foi a colocação da bandei-
de Almeida, em julho do ano seguinte. ra portuguesa a meia haste aquando da
Várias pequenas revoltas semelhantes à morte de Hitler. Foi também no rescaldo
que nomeámos tiveram lugar entre 1926 desta fragilização que ocorreu a fundação
e 1933, sendo o ano de 1931 o de gestão do Movimento de Unidade Democráti-
mais complicada. Uma das mais impor- ca (MUD), numa altura em que Salazar se
tantes revoltas deste ano foi a Revolta da vê obrigado a permitir alguma abertura
Farinha ou Revolta da Madeira, a 5 de política, por pressão internacional e pe-
fevereiro. Na origem deste levantamento los ventos democráticos que embalam a
popular no Funchal esteve o dec. 19.273, Europa do pós-guerra, chegando mesmo
o chamado decreto da fome, uma das a acreditar-se que o processo de democra-
mais austeras medidas económicas do mi- tização do país estava em marcha. Duran-
nistro das Finanças, que visava terminar te dois anos, o novo movimento granjeou
com a livre importação do trigo e das fa- apoios de vários sectores da sociedade
rinhas, criando um regime de monopó- inconformados com a falta de liberdade
lio e, consequentemente, aumentando de associação e de imprensa, entre outros
o preço do pão. A revolta manifestou-se protestos. Ainda que o Partido Comunis-
essencialmente na cidade do Funchal, ta não estivesse inicialmente ligado à for-
com alguns motins e o encerramento de mação, em 1946, as forças fundiram-se e
vários estabelecimentos comerciais, bem já se contavam nas camadas dirigentes do
o “dinossauro”. Na obra, tudo reverte lazar. Por outro lado, em 2007, no con-
para uma personagem, o Mestre Impera- texto da possibilidade de construção de
dor, causador de todos os males, mesmo um museu dedicado a Salazar e ao Estado
quando já moribundo. Há uma caricatu- Novo, em Santa Comba Dão, houve uma
rização como poucas da figura de Salazar, petição com 16.000 signatários contra a
que vai evoluindo ao longo da obra (e do construção do referido museu. Como um
tempo), ficando mais corcunda, mais sur- dos argumentos da petição, os signatários
da, as mãos a encurvarem e a terminarem afirmavam recear que o local pudesse tor-
em garras, os lábios a desaparecerem até nar-se destino de romarias de elementos
restar apenas uma fenda como boca. De da extrema-direita e de neonazis. À parte
cariz agudamente crítico, esta obra é não o facto de esta preocupação poder tor-
só contra o salazarismo como política, nar-se realidade ou não, a verdade é que
mas também contra Salazar como pessoa. até hoje o museu – uma instituição que se
Igualmente num registo literário e efa- pretende histórica e não de propaganda,
bulatório surge o curto, mas pungente, saliente-se – não foi construído.
poema “O velho abutre”, de Sophia de
Mello Breyner Andresen, confessamente
inspirado na figura de Salazar: “O velho
abutre é sábio e alisa as suas penas/A po-
dridão lhe agrada e seus discursos/Têm Bibliog.: impressa: ANDRESEN, Sophia de
o dom de tornar as almas mais peque- Mello Breyner, “O velho abutre”, in ANDRE-
nas” (ANDRESEN, 1998, 151). Ainda no SEN, Sophia de Mello Breyner, Obra Poética II,
âmbito da produção artística, mais espe- 3.ª ed., Lisboa, Caminho, 1998; GIL, José,
cificamente no campo da chamada mú- Salazar: a Retórica da Invisibilidade, Lisboa, Reló-
gio d’Água, 1995; MARINHO, António Luís,
sica de intervenção, encontramos vários
1961: o Ano Horrível de Salazar, Lisboa, Temas
exemplos de antissalazarismo; alguns dos e Debates/Círculo de Leitores, 2011; MATOS,
mais emblemáticos são da autoria de José Helena, Salazar: a Construção do Mito (1928
Afonso. Em 1972, já dois anos depois do ‑1933), Lisboa, Temas e Debates/Círculo de
falecimento do ditador, o cantor aveiren- Leitores, 2010; MENESES, Filipe Ribeiro de,
se edita o álbum Vou Ser como a Toupeira, Salazar: Uma Biografia Política, 3.ª ed., Lisboa,
onde surge a música “O avô cavernoso”, Dom Quixote, 2010; NOGUEIRA, Alberto
Franco, Salazar, 6 vols., Coimbra, Atlântida,
em memória satírica da figura do ditador.
s.d.; PINTO, António Costa, O Fim do Império
No séc. xxi, ainda se sentem algumas Português. A Cena Internacional, a Guerra Colonial
manifestações de antissalazarismo. Refe- e a Descolonização (1961-1975), Lisboa, Livros
riremos apenas duas, a título de exem- Horizonte, 2001; PINTO, Jaime Nogueira, Sa
plo. Em 2005, Mário Soares, numa me- lazar: o Outro Retrato, 2.ª ed., Lisboa, A Esfera
diática campanha para a Presidência da dos Livros, 2007; PIRES, José Cardoso, Dinos
República, declarou-se “anti-Salazar”, a sauro Excelentíssimo, ilust. de João Abel Manta,
propósito do recebimento do doutora- Lisboa, Arcádia, 1972; ROSAS, Fernando, e
BRITO, J. M. Brandão de, Dicionário de Histó
mento honoris causa da Univ. de Coimbra,
ria do Estado Novo, vols. i e ii, Lisboa, Bertrand,
instituição do antigo ditador. De facto, a 1996-97; digital: PESSOA, Fernando, “Antó-
comparação entre os dois seria irónica, nio de Oliveira Salazar”, Arquivo Pessoa: arqui-
por todo o passado de oposição do líder vopessoa.net/textos/4357 (acedido a 15 nov.
socialista durante os anos de ditadura, e 2016).
a resposta esteve à altura do seu percur- João Relvão Caetano
so, sempre em sentido inverso ao de Sa- Rosa Maria Fina
pedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago (ace-
dido a 18 abr. 2016); “José Saramago”, Wiki
Antissaudosismo
pedia [versão espanhola], 6 abr. 2016: http://
es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
(acedido a 18 abr. 2016); “José Saramago”,
Wikipedia [versão inglesa], 6 abr. 2016: http://
en.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
(acedido a 18 abr. 2016); “José Saramago”,
Wikipedia [versão portuguesa], 11 abr. 2016:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Sa-
ramago (acedido a 18 abr. 2016); LOUREN-
P ara indagar a razão de ser de um pen-
samento antissaudosista, convém co-
meçar por situar a problemática em torno
ÇO, Graça, “Saramago: o rei vai nu!”, None
da saudade e do saudosismo. Tanto quan-
Nova, 2 nov. 2009: http://nonenova.blogspot.
pt/2009/11/saramago-o-rei-vai-nu.html (ace- to nos é dado saber, a palavra “saudade”
dido a 18 abr. 2016); MARQUÊS, “Que faço é quase tão antiga quanto a fundação da
aqui?”, Uma Fatia de Pão e Um Copo de Vinho, 11 nacionalidade portuguesa. Já a encontra-
dez. 2013: http://umafatiadepaoeumcopo- mos proferida num sermão que o bispo
devinho.blogspot.pt/2013/12/que-faco-aqui. portuense D. Pedro Pitões, em 1147, diri-
html (acedido a 18 abr. 2016); MIGUEL, Afon- giu aos cruzados que se propunham con-
so, “A dúvida sobre Saramago”, Semper Idem,
quistar Lisboa, e, a partir de então, apare-
27 ago. 2009: http://semperidem.blogs.sapo.
pt/a-duvida-sobre-saramago-78681 (acedido ce com frequência no léxico português.
a 18 abr. 2016); MORENO, Júlio, “Saramago e D. Duarte (1391-1438), 11.º Rei de Portu-
a Bíblia, o Alcorão... e que mais?”, Must Be, 19 gal, apresenta-a como um sentimento liga-
out. 2009: http://mustbe.blogs.sapo.pt/6811. do ao coração e oposto à razão, com tra-
html (acedido a 18 abr. 2016); SAMUEL, “José dução apenas no léxico galaico-português,
Saramago (1922-2010)”, Cantigueiro, 18 jun. sendo, então, recorrente nas cantigas de
2010: http://samuel-cantigueiro.blogspot.
amigo, em Bernardim Ribeiro (c. 1482-
pt/2010/06/jose-saramago-1922-2010.html
(acedido a 18 abr. 2016); “Saramago era ‘po- -c. 1552), Agostinho da Cruz (1540-1619),
pulista extremista’, afirma obituário no jornal Francisco Manuel de Melo (1608-1666) e
do Vaticano”, Globo, 19 jun. 2010: http://g1. Almeida Garrett (1799-1854), que, em ple-
globo.com/pop-arte/noticia/2010/06/sara- no romantismo, lhe traçou um lugar espe-
mago-era-populista-extremista-afirma-obitua- cial no imaginário português ao defini-la
rio-no-jornal-do-vaticano.html (acedido a 18 como “gosto amargo” e “delicioso pungir”.
abr. 2016); SEPÚLVEDA, Torcato, “José Sara-
Mas foi Leonardo Coimbra (1883-1936)
mago critica responsáveis da Cultura”, Público,
10 maio 1992: http://static.publico.pt/docs/ que a pensou através dos elementos ét-
cmf/autores/joseSaramago/terceiraVezCensu- nicos, religiosos e filosóficos que foram
rado.htm (acedido a 18 abr. 2016); SILVA, Gil, sendo lançados na tradição especulativa
e MOURÃO, Paulo, “Padre Ângelo Minhava por aqueles que ajudaram a fundar e a
[entrevista]”, Eito Fora: Jornal de Vilarelho, n.º 9, fundamentar as características do homem
ago.-set. 1999: http://www.trasosmontes. português, em comum com o seu irmão
com/eitofora/numero9/perfil.html (acedido a
galego, do qual, desde o início da nacio-
18 abr. 2016).
nalidade, se mantém afastado. O galego
Paula Lago Ramon Piñeiro (1915-1990) tratou-a en-
quanto categoria existencial que se opõe à
razão e se liga ao sentimento e à emoção,
impondo-se como característica distintiva
de uma filosofia única, confinada a um
povo dividido em duas parcelas, a Galiza e
Portugal. A saudade assim pensada repre- cas: a dor romena, a anyoranza catalã, a nos-
senta o desejo de retorno a essa idade pri- talgia, a tristeza, a angústia, a melancolia.
mordial que foi quebrada pela força. Com um percurso tão arreigado às origens
Contudo, o grande teorizador da sauda- da nacionalidade e ao torrão com o qual
de foi Teixeira de Pascoaes (1877-1952), passámos a fazer fronteira, a Galiza, com-
que ajudou a dar corpo ao movimento da preende-se melhor que a saudade se ligue
renascença portuguesa e que, na ressaca ao mais íntimo sentimento de Portugueses
da instauração da república em 1910, se e galegos.
propunha renovar Portugal, colocando Foram os próprios saudosistas que
a saudade como conceito ontológico pri- em torno da saudade ajudaram a criar
mordial da portugalidade que importava um pensamento contraditório. Teixei-
desbravar. O poeta amarantino consi- ra de Pascoaes, meses antes de morrer
derava que na saudade se encontravam (15/03/1952), na conferência intitulada
fundidos o paganismo e o cristianismo, “Da saudade”, fazia saber: “A Saudade é
união esta que caracterizava o essencial do um sentimento universal, mas, só na alma
homem galaico-português. Fusão entre o lusitana, atinge as alturas supremas da
desejo carnal, pagão, e a dor espiritual, se- Poesia, contendo uma conceção da vida
mita e cristã, um pouco a lembrar o Eros e da existência. E alcançamos também,
platónico, filho de Poros e Penia, junção por virtude dela, o estado místico perfei-
do espírito divino, encarnado nos heróis, to, que é a saudade de Deus personalizada
e do desleixo humano que se arrasta no em nós, substituindo-se completamente
comum dos existentes: pelo desejo a sau- ao nosso ser, elevado num êxtase sem fim”
dade é esperança, pela dor é lembrança (Id., 1988, 243). Daqui retiramos que a
(PASCOAES, 2007, 89-91), e, sendo assim, saudade é um sentimento universal e não
o Universo é a expressão cósmica da sau- particular que atinge o seu auge na poe-
dade (Id., 1919). Entendida desta forma, a sia lusitana, sendo mais uma característica
saudade é mais uma estética do que uma poética do que racional. O autor de Marâ-
ontologia, representada pela phronêsis, ou nus tinha, portanto, evoluído no seu pen-
sabedoria prática, mas não pela sophia samento, pois não era, agora, tão restrito
enquanto espaço utópico de agregação como 40 anos antes, em 1912, quando, em
de todas as coisas sob o trabalho exigente “O espírito lusitano ou o saudosismo”, afir-
da reflexão filosófica. Porque assim é, foi mava que “Nós somos, na verdade, o úni-
ganhando forma na poesia de Pascoaes, co povo que pode dizer que na sua língua
Afonso Lopes Vieira, António Correia existe uma palavra intraduzível nos outros
de Oliveira, António Patrício, Augusto idiomas, a qual encerra todo o sentido da
Casimiro, Jaime Cortesão, Mário Beirão, sua alma coletiva” (Id., Ibid., 51). No ano
Américo Durão, Anrique Paço d’Arcos, seguinte, em 1913, em plena disputa inte-
Domingos Monteiro, Florbela Espanca, lectual com António Sérgio sobre o novo
António Nobre, entre muitos outros. Pas- enfoque filosófico dado à saudade, sem
coaes deu-lhe, então, incontornável forma nunca deixar de ligar o sentimento saudo-
poética e literária, tentando, também, fun- so ao profundo sentir do povo português
damentá-la no campo filosófico da antro- e galego, Pascoaes confinava a saudade a
pologia e da ontologia, enquanto dimen- uma expressão marcadamente subjetiva,
são identitária do sentimento próprio de de carácter existencial: “A Saudade, como
Portugueses e galegos, distinto de termos ela é hoje compreendida […] representa,
de outras latitudes com conotações idênti- portanto, a raça lusitana na sua expressão
contudo, “o que se canta bem pode ser as filiações, não se tem inibido de alertar
uma porcaria. A música dolente, terrível, para as insuficiências de um pensamento
e o palavreado, as desgraças que sucedem saudosista que sirva de suporte a um res-
a cada um e que põem em tanto portu- surgir da nacionalidade no seu esplendor
guês o gosto do desastre!” (Id., Ibid., 157). máximo. Só por trazerem algum realismo
O fado saudosista prende ao passado, en- e manterem um elevado diálogo intelec-
quanto o samba libertador renova o tem- tual em torno de uma categoria que está
po, transportando-nos para um futuro de longe de agregar todos os Portugueses,
esperança e alegria. Saudade só a deve- vale a pena ter em conta os seus argu-
mos sentir pelo futuro. O samba é a ca- mentos e refletir nas abundantes críticas
racterística do “português à solta”, aquele que vão formulando. O devir, tal como
que se quer libertar dessas amarras a um pretendem os saudosistas, é o resultado
passado penoso de desgraça e destruição de diversas sínteses para as quais os an-
e ser agente participativo na construção tissaudosistas vão dando um importante
de um futuro radioso. contributo.
Numa análise estritamente filosófica,
José Barata-Moura, ao analisar a tradição Bibliog.: BARATA-MOURA, José, “Peso, pê-
saudosista, eivado de uma filosofia da prá- same, pesadelo – para um sopesamento (não
saudosista) da saudade”, Philosophica, n.º 10,
xis, conclui que o saudosismo “dualiza,
1997, pp. 3-27; BOTELHO, Afonso, e TEIXEI-
não dialetiza; estetiza, não trabalha efe- RA, António Braz (coords.), Filosofia da Sauda
tivamente pelo pensamento e pela ação de, Lisboa, INCM, 1986; BOTELHO, Afonso,
possibilidades reais; consagra (lavrando Da Saudade ao Saudosismo, Lisboa, Instituto de
enevoados protestos), não revolucio- Cultura e Língua Portuguesa, 1990; CARDIA,
na materialmente” (BARATA-MOURA, Sottomayor (org.), Seara Nova – Antologia, pela
1997, 13). O saudosismo promove o re- Reforma da República, vol. ii, Lisboa, Seara Nova,
1972; COIMBRA, Leonardo, Obras Completas,
gresso a tempos idos e inibe a produção
vol. i, t. ii e vol. v, t. ii, Lisboa, INCM, 2004 e
do novo. Serve-se do presente para ali- 2009; COSTA, Dalila L. Pereira da, e GOMES,
mentar um passado que não retorna. Mas Pinharanda, Introdução à Saudade, Porto, Lello e
também, “do ponto de vista ontológico, Irmão, 1976; Logos, vol. iv, Lisboa, Verbo, 1992;
o saudosismo desatende (e procura ilu- LOURENÇO, Eduardo, Portugal como Destino
dir, começando por iludir-se) a unidade Seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva,
material do ser, mistifica a historicida- 1999; MARINHO, José, Verdade, Condição e Des
tino no Pensamento Português Contemporâneo, Por-
de” (Id., Ibid., 24). Para este pensador, to, Lello e Irmão, 1976; PASCOAES, Teixeira de,
“a abordagem saudosista […] vem eivada Os Poetas Lusíadas: Conferências Realizadas no Insti
de insalubridade, ao instalar-se numa órbi- tut de Estudos Catalans da Cidade de Barcelona, em
ta de comovida restrição da historicidade Junho de 1918, Porto, Tipografia Costa Carre-
ao revisitar (ainda que ‘intenso’ e, no gal, 1919; Id., A Saudade e o Saudosismo – Disper
limite, até ‘milenarista’) de um passado sos e Opúsculos, org. Pinharanda Gomes, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1988; Id., Arte de Ser Português,
idealizadamente (re)construído como
Lisboa, Assírio e Alvim, 2007; PROENÇA,
penhor de uma matriz nostálgica de futu- Raul, Polémicas, org. Daniel Pires, Lisboa, Dom
ro” (Id., Ibid., 26). Quixote, 1988; SILVA, Agostinho da, O Império
Ora, se bem que sem tantos seguidores Acabou. E agora? Entrevista a Antónia de Sousa, Lis-
quantos aqueles que ao longo dos tem- boa, Notícias, 2000; VASCONCELOS, Caroli-
pos se têm dedicado à gesta do estudo do na Michaëlis de, A Saudade Portuguesa, Lisboa,
saudosismo, a corrente antissaudosista, Guimarães Editores, 1996.
pela voz de diversos pensadores, de todas Artur Manso
nossa colação, a uma visão macro-históri- ter ainda convergido, de alguma manei-
ca ou centrada nos grandes factos e tex- ra, com formas de religiosidade conserva-
tos, procurando integrar elementos cir- das junto de elementos das comunidades
cunstanciais e prestar a atenção possível cristãs-novas.
a diversos níveis, mais ou menos ocultos Aquele que é provavelmente o princi-
e mais ou menos eruditos, de cultivo e de pal texto canónico da crença sebastianis-
combate ao sebastianismo. ta, as Trovas, de Gonçalo Anes Bandarra,
Para melhor compreendermos a oposi- sapateiro de Trancoso, terá emergido des-
ção ao sebastianismo, é útil ter em conta te fermento (&Antibandarrismo). A sua
alguns fenómenos anteriores à Batalha ambiência messiânica e judaizante, e a
de Alcácer Quibir que acima referimos sua forte difusão chamaram a atenção do
sucintamente e que integram inequivoca- recém-criado Tribunal do Santo Ofício.
mente o substrato da crença messiânica Bandarra ouviu a sentença no auto de fé
em D. Sebastião. Entre eles, encontra-se a de 23 de outubro de 1541. Considerado
miríade de motivos que, desde o começo um homem simples e de poucas letras,
do séc. xv, foram compondo aquilo a que foi-lhe imposto, sob pena de castigo, “que
poderíamos chamar ideologia imperial não se entremeta mais a responder nem
portuguesa. Adaptando elementos da tra-
dição medieval de toda a Europa ao con-
texto português e emprestando à história Rei D. Sebastião (1554-1578).
de Portugal e à sua empresa expansionis-
ta um significado sagrado, esta ideologia
foi reforçando a esperança de que a Co-
roa portuguesa estivesse predestinada a
encabeçar um movimento de conquista
e cristianização de todo o mundo, supos-
tamente profetizado nas Escrituras. Com
efeito, a cruzada contra o islão, e o plano
de recuperação da Terra Santa e de pleni-
ficação da cristandade por via da aliança
com o Preste João, aos olhos de muitas
figuras maiores do séc. xvi português,
parecem ter sido objetivos mais plausíveis
e legitimadores da empresa ultramarina
que o comércio da Ásia.
Todavia, a exposição e fundamentação
destes motivos não estava isenta de ris-
cos e excessos doutrinais. A ligação deste
ideário aos pensamentos de Joaquim de
Fiore e de autores franciscanos refor-
madores, como Ubertino da Casale, de
ortodoxia muito duvidosa, no alvor da
reforma tridentina, foi já objeto de estu-
dos relevantes, mas aguarda ainda novos
aprofundamentos. Para mais, a compo-
nente profética e exegética desta parece
disso, à semelhança, e.g., dos tratados de George Kubler refere, entre outros da-
D. João de Castro, todo o Thesouro Descu- dos relativos à biografia do pintor, a sua
berto parece ter sido composto num tom participação, em 1676, como testemu-
de polémica e de resposta a objeções nha abonatória, no processo inquisi-
várias. Esse contexto implicava ainda torial de António Serrão e Castro, dro-
cautelas diversas por parte do autor, que guista e cristão-novo. Daqui se retiram
reiteradamente procura conciliar as suas algumas informações sobre o quotidiano
conclusões com a ortodoxia católica. tanto do réu como de Félix da Costa cer-
Consistindo num comentário a um li- ca de uma década antes da redação dos
vro deuterocanónico muito utilizado por seus tratados proféticos. Refere o pintor
autores sebastianistas, Esdras 4, o Liber no seu testemunho que Serrão e Castro
Unicus implicava cuidados acrescidos. frequentava a casa de seu pai na antiga
O intuito geral do tratado consistia em R. dos Calafates, depois R. do Século,
apresentar uma nova interpretação alegó- no Bairro Alto, que eram amigos de in-
rica de um episódio de Esdras 4 em que fância, e que tinham em comum o gosto
um leão sai da selva para destruir uma pela leitura e pelo debate de livros de
águia que assolava o mundo. De acordo temática religiosa. Através de outros pa-
com Félix da Costa, a interpretação até péis anexados ao processo, ficamos tam-
então desenvolvida por outros autores bém a saber que a loja de Serrão e Castro
sebastianistas e joanistas, segundo a qual era frequentada por poetas e artistas de
a águia seria o Império Romano e o leão teatro, entre outras figuras da boémia
o Encoberto, estaria errada. Propõe, por lisboeta de então. A estas acrescentam
seu turno, à luz dos acontecimentos do ‑se figuras religiosas, como Fr. Miguel de
cerco de Viena, de 1682, e das campa- Jesus Maria, Agostinho Descalço, Fr. José
nhas posteriores, que a águia deve ser Delgado, Trinitário, e os padres Manuel
interpretada como figura do Império Pereira e Francisco Leonardo, nomea-
Otomano, e o leão como o Encoberto, dos autores das composições poéticas
D. Sebastião, que voltaria para encabeçar que abrem o Thesouro Descuberto elogian-
o movimento de destruição final dos tur- do o labor de Félix da Costa.
cos (&Antiotomanismo). Mesmo sem arriscar demasiado, é pos-
Félix da Costa procurava, assim, à se- sível aferir daqui alguns elementos acer-
melhança do P.e António Vieira, em algu- ca do contexto em que Félix da Costa se
mas cartas que redigiu neste tempo, dar movia e em que redigiu os seus tratados
vantagem a Portugal em relação à Poló- proféticos. Aparentemente, o pintor per-
nia numa competição profética pela pri- tenceria a um grupo de fiéis à crença se-
mazia na cruzada contra os turcos. Mas o bastianista que mantinha práticas comu-
que é interessante para esta nossa aborda- nitárias que, provavelmente, incluíam a
gem é o facto de Félix da Costa entregar o leitura e a discussão de textos proféticos.
comando dessa cruzada final a D. Sebas- O grupo de Félix da Costa movimentar
tião, a quem dedica devotamente todo o ‑se-ia na zona do Bairro Alto e parece ter
tratado: “desejoso de vos ver e beijar vos- tido ligações ao Convento da Trindade,
sas plantas, ainda que indigno, Félix da local de onde provém a cópia mais anti-
Costa” (Id., Liber Vnicus…, fls. 2-2v.). ga do Thesouro Descuberto que chegou aos
No estudo que acompanha a edição nossos dias (anterior a 1689; Biblioteca
da Antiguidade da Arte da Pintura, tratado da Ajuda, 52-VIII-52), e que tinha algu-
concluído por Félix da Costa em 1692, ma tradição sebastianista, se tivermos em
O antisseiscentismo é a expressão
coletiva de repúdio do séc. xvii,
melhor dizendo, do que ele representa:
plares: “Entende V.P. que, lendo-se estes
títulos, poderá um homem adivinhar o
que contêm estes livros? […] E isto é mui-
um paradigma cultural de decadência to frequente nas escolas da Companhia; e
das elites, de ignorância das massas e de não faltou já quem me dissesse que eram
degeneração nacional. O “ismo” apro- títulos engenhosos. […] Os seiscentistas
xima-o da ideologia. É por isso distinto são os que caíram nesta ridicularia; os
de uma corrente, já que o conceito tem antigos doutos todos a evitaram. […] Os
uma transversalidade temporal, emerge e modernos doutos, quando não são anóni-
imerge ao longo da historiografia, desde mos que querem brincar, servem-se de
o séc. xviii até aos nossos dias. Embora títulos sisudos, breves e claros, e nisto é
se possa ver nele um sentimento coleti- em que hoje se cuida” (VERNEY, 1991,
vo, convém também distingui-lo de uma 93-94). O texto de Verney é subtil, se o
crença, já que, no antisseiscentismo, o compararmos com os da polémica que
pathos nunca prescinde de argumentos vai provocar: mais do que uma época, o
científicos, ainda que paralógicos, entre a seiscentismo passa a designar um modo
razão/logos e a autoridade/ethos. Enquan- negativo de ser, de pensar, falar, escrever.
to tópica ou sistema de argumentos retó- Documentos como o Testamento Político
ricos, consideraremos nele três aspetos de Luís da Cunha, livros como a Deducção
nucleares: (i) o antisseiscentismo é uma Chronologica e acontecimentos como a ex-
organização mítica da história; (ii) o an- pulsão dos Jesuítas ajudam a compreen-
tisseiscentismo é uma variante de para- der o Compendio Historico do Estado da
digmas cognitivos, existentes antes e de- Universidade de Coimbra (1771), em que o
pois do séc. xvii; (iii) o antisseiscentismo antisseiscentismo se confunde com o an-
é retoricamente eficaz porque pressupõe tijesuitismo. Ao constatar “a decadência”
uma argumentação verosímil, baseada no e “as ruínas” em que as artes e ciências
entimema, nas premissas subentendidas, foram precipitadas na Univ. de Coimbra
nem sempre explícitas. pelas “maquinações dos denominados
(i) Enquanto organização mítica da jesuítas”, ao restabelecer os “cursos cien-
história, o antisseiscentismo é uma in- tíficos” e os “métodos”, “depois de mais
venção do setecentismo. Nada como de um século”, a Junta procurava reparar
as “luzes” do séc. xviii para fabricar as “a destruição de todas as leis, regras e mé-
“trevas” do séc. xvii. Na primeira meta- todos que haviam regido as Universida-
de do séc. xviii, ele atravessa suavemen- des” (CALAFATE, 2006, II, 266-267).
te alguns textos (como os de Ribeiro de A guerra mais feroz é aquela em que os
Macedo, Rafael Bluteau, Alexandre de argumentos são morais, em que a luz en-
Gusmão, João Baptista de Castro e Luís frenta as trevas. Do lado das trevas, os seis-
da Cunha), na medida em que anunciam centistas, os afetados, os engenhosos e os
novos tempos, mais afeitos à filosofia dos cultores dos equívocos, os da Companhia
longo. […] Tivemos no século xvi (que Marini, como à perda de influência polí-
consideramos com razão o nosso século tica dos Estados italianos face ao domínio
de ouro) um bom geómetra, alguns bons dos Habsburgos, sujeitos que ficaram à
homens de letras, alguns bons latinistas, invasão dos exércitos austríaco e francês.
simples eruditos” (CUNHA, 2006, 302 e A associação entre o séc. xvii e a deca-
304, trad. nossa). Depois do séc. xvi, o dência da nação (portuguesa) parece ser
silêncio. um dos mais significativos pontos de en-
(ii) O antisseiscentismo é variante de contro entre Verney e Cândido Lusitano,
paradigmas cognitivos, existentes antes autor da Ilustração Crítica, de 1751 (CAS-
e depois do séc. xviii. Para a dimensão TRO, 2008, 472). Sublinhamo-lo porque
afetiva das estruturas dicotómicas tinha as conotações políticas seriam responsá-
já Aristóteles alertado, desde logo no veis por uma maior visibilidade do antis-
“Livro dos afetos”, o segundo da Retó- seiscentismo português, intenso em grau
rica, mas sobretudo na Metafísica (e.g., e extenso em duração. A avaliar pelos
986a). A oposição entre a luz e as trevas textos antisseiscentistas, o século dos seis-
reproduz generalizações metafóricas que centistas portugueses estender-se-ia pelos
depois lemos por analogia: a luz e a re- sécs. xvi e xviii. Começaria em 1578,
gularidade lidas como bem, as trevas e a com a morte de grande parte da aristo-
irregularidade como mal. A historiogra- cracia em Alcácer Quibir (se não se con-
fia (literária ou não, nacional ou euro- siderasse a chegada dos Jesuítas ao Colé-
peia) vive primariamente de pertinências gio das Artes ou a progressiva influência
estéticas: áticos e asiáticos (Antiguidade); do Santo Ofício, pedidas por D. João III
antigos e godos (séc. xvi); antigos e mo- em meados do séc. xvii). E duraria, pelo
dernos (séc. xvii); quinhentistas e seiscen-
tistas (séc. xviii); clássicos e românticos
Francisco José Freire, que adotou o pseudónimo
(séc. xix), etc. Seria ingénuo pensar que
de Cândido Lusitano (1719-1773).
o antisseiscentismo é um conceito exclu-
sivamente português, ou que ele se obser-
va apenas no séc. xviii. A periodologia
literária é obra do séc. xix, e conceitos
como Renascimento ou Barroco seriam
sobretudo oponíveis a partir dos traba-
lhos de Wölfflin (Renascimento e Barroco,
de 1888, e Conceitos Fundamentais da His-
tória de Arte, de 1915). A própria raiz do
conceito de seiscentismo pode encontrar
‑se facilmente nos textos setecentistas ita-
lianos, e a ideia de decadência das letras
durante o séc. xvii encontra-se, talvez an-
tes das demais, na historiografia italiana,
desde logo em Della Perfetta Poesia Italia-
na (1706), e Riflessioni sopra il Buon Gusto
nelle Scienze e nell’Arti (1708), de Muratori.
Também logo aí as ideias de decadência
e barbárie são associadas, não só à futili-
dade dos concetti dos poetas da escola de
artigo intitulado “La mania del Seicento”: tteratura Portugueza por Camillo Castelo Branco.
critica o projeto, já que o séc. xvii é o me- Continuação e Complemento do Curso de Litteratu
nos italiano dos séculos e o estilo seiscen- ra Portugueza por José Maria de Andrade Ferreira,
2 vols., Lisboa, Livraria Editora de Mattos Mo-
tista simboliza o início da decadência da
reira & Co.ª, 1875-76; CALAFATE, Pedro, Co
arte (CHIRICO, 1921, 60). Em Portugal, nhecimento e Método. A Crise das Filosofias da His
António Sérgio escreve sobre O Seiscentis- tória e as Imagens do “Seiscentismo” em Portugal,
mo (1926), procurando responder a acu- Dissertação de Mestrado em Filosofia apre-
sações de vilipêndio e à dissertação de sentada à Universidade de Lisboa, Lisboa,
licenciatura de Manuel Múrias, O Seiscen- texto policopiado, 1985; Id. (org.), Portugal
tismo em Portugal (1923). Sustentava Múrias como Problema, 4 vols., Lisboa, Público/Funda-
ção Luso-Americana, 2006; CASTRO, Aníbal
que “o Seiscentismo é desprezado por ser
Pinto de, Retórica e Teorização Literária em Por
desconhecido à maioria dos que incons- tugal. Do Humanismo ao Neoclassicismo, Lisboa,
cientemente o atacam” (MÚRIAS, 1923, INCM, 2008; CENÁCULO, Manuel do, Me
12). Respondia Sérgio que “o século de mórias Históricas do Ministério do Púlpito, Lisboa,
Seiscentos representa, com efeito, a inva- Regia Officina Typografica, 1776; CHIRICO,
são da Estupidez (como disseram depois Giorgio de, “La mania del Seicento”, Valori
e antes de José Agostinho [de Macedo] to- Plastici, n.º 3, 1921, pp. 60-62; CUNHA, José
Anastácio da, Obra Literária, org. Maria Luísa
dos os homens cultos de Portugal)” (SÉR-
Malato Borralho e Cristina A. de Marinho,
GIO, 1926, 8). A questão descamba em vol. ii, Porto, Campo das Letras, 2006; DIAS,
ambos para o preconceito político. Escre- J. S. Silva, “Seiscentismo e renovação em Por-
verá António Sérgio: “E que vemos então? tugal no século xviii: estudo de um processo
NADA [sic]. Caímos dos altos para o nível inquisitorial”, Biblos, n.º 36, 1961, sep.; Id.,
zero” (Id., Ibid., 27). Tinha escrito Múrias: O Ecletismo em Portugal no Século XVIII. Génese
“Ainda hoje os judeus são, como sempre e Destino de Uma Atitude Filosófica, Coimbra,
Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagó-
foram, motivo de desordem e propulso-
gicos, 1972; FIGUEIREDO, António Pereira
res da desorganização social” (MÚRIAS, de, Carta de Hum Amigo a Outro Amigo na Qual
1923, 40). Será necessário o avanço do Se Defendem os Equivocos contra o Indiscreto Juizo,
séc. xx para ir introduzindo a verdade do Que delles Faz o Moderno Critico, Author da Obra
oximoro, a evidência do “ecletismo” filo- Intitulada, Verdadeiro Methodo de Estudar,
sófico (DIAS, 1972) ou a possibilidade de Paris, s.n., 1751; MONCADA, L. Cabral de,
um “iluminismo católico” (MONCADA, Estudos de História do Direito. Século XVIII: Ilumi
nismo Católico, Vernei, Muratori, Coimbra, por
1950). Condição indispensável para obser-
ordem da Universidade, 1950; MURATORI,
var a verdade que existe num Vieira, que L. A., Riflessioni sopra il Buon Gusto nelle Scienze e
proclama a clareza do estilo (“Sermão da nell’Arti, Venezia, Niccòlo Pezzana, 1752; MÚ-
sexagésima”, de 1655), e num António Pe- RIAS, Manuel, O Seiscentismo em Portugal, Lis-
reira de Figueiredo, que defende o valor boa, s.n., 1923; QUENTAL, Antero de, Cau
dos equívocos (FIGUEIREDO, 1751). sas da Decadência dos Povos Peninsulares, Lisboa,
Guimarães Editores, 2001; SÉRGIO, António,
O Seiscentismo. Reprodução do Artigo em que, segundo
Dizem os Que Me Odeiam, Insultei Um Morto e Fal
Bibliog.: BORRALHO, Maria Luísa Malato, sifiquei Textos, Lisboa, Seara Nova, 1926; VER-
“Teodoro de Almeida. Entre as histórias da NEY, Luís António, Verdadeiro Método de Estudar.
história e da literatura”, in Estudos em Home Cartas sobre Retórica e Poética, org. M. Lucília
nagem a João Francisco Marques, vol. i, Porto, Fa- Gonçalves Pires, Lisboa, Presença, 1991; VIEI-
culdade de Letras da Universidade do Porto, RA, António, Parenética, coord. João Francisco
2001, pp. 211-227; BRAGA, Teófilo, História Marques, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013.
da Literatura Portuguesa, vol. iii, Lisboa, INCM,
2005; BRANCO, Camilo Castelo, Curso de Li Maria Luísa Malato
seguinte. A vinda para Portugal de mais implica uma posição antissemita. Um dos
de uma centena de milhar de judeus em “anti” é de natureza rácica, o outro é de
1492 iria incendiar o já instável equilíbrio natureza política.
social numa cultura em que se aprimora- Mas nada neste campo das mentalida-
va um clima de intolerância que teria um des é linear. Transversalmente, há ainda a
dos seus momentos mais altos no massa- ideia de antissionismo, conceito de mais
cre de Lisboa de 1506, com a morte de, difícil definição. O moderno sionismo
possivelmente, 4000 pessoas. nasce no séc. xix e tem como objetivo o
O trabalho sistemático do Tribunal do restabelecimento de uma pátria judaica
Santo Ofício faria mais mossa no campo no espaço do antigo Israel. De facto, mui-
da criação de um clima de medo e de to do antissemitismo do séc. xix nasce
delação que no número de mortos. A In- por oposição às linhas de poder de gran-
quisição deixou a Portugal uma pesada des famílias judias que fomentaram esse
herança na forma como as comunidades discurso de regresso à Palestina.
de criptojudeus que chegaram ao séc. xx O olhar português para este fenómeno
a muito custo se deram a conhecer, por é bastante recente e centra-se num escas-
vezes quase 150 anos depois de a mesma so grupo de trabalhos, especialmente de
Inquisição ter sido extinta, o que é revela- João Medina e de Jorge Martins, sendo
dor do medo latente. este o investigador seguido mais de perto
Regressando à definição de conceitos, neste texto.
historicamente o antijudaísmo nasceu Os primeiros laivos verdadeiramente
primeiro. Baseado na ideia de que os antissemitas, na mais correta aceção da
judeus mataram Jesus, o Cristo, o Deus palavra, estão próximos de um quadro
Vivo, criou uma mácula que se estendeu ideológico e nacionalista muito específi-
por dois milénios. Culpados do deicídio, co de Portugal, a saber, nos grupos que
os judeus foram perseguidos por prati- se vão organizando, na déc. de 10 do
carem uma religião que conduziu a esse séc. xx, contra a Implantação da Repú-
crime máximo, sendo constantemente blica, grupos monárquicos, antiliberais e
considerados um dos males do mundo. antimaçónicos.
O antissemitismo difere desta noção por- Jorge Martins considera os opúsculos
que perdeu a carga religiosa, abrindo-se Os Meus Cadernos (1913), da autoria de
ao horizonte cultural e mesmo biológico. Mariotte, i.e., do P.e Amadeu de Vasconce-
Um antissemita não persegue um judeu los, confesso “monárquico antiparlamen-
porque ele pertence a uma religião, a tar, antiliberal e antijudeu” (MARTINS,
um grupo humano, que optou por matar 2010, 91), a primeira obra antissemita
Jesus. O antissemitismo existe porque vê portuguesa. Desta “raça maldita”, Ama-
nos judeus uma raça inferior. deu de Vasconcelos aponta Guerra Jun-
Diferindo do antissemitismo, a noção queiro como a prova de judaísmo da
de anti-israelismo é a que mais rigoro- República Portuguesa. Na sua obra, e pe-
samente se aplica a todos os que não se rante a inexistência em Portugal de uma
reveem no Estado de Israel. Este campo comunidade judaica de monta que desse
já pouco tem que ver com a religião ou corpo a algum perigo efetivo, afirmava:
com a visão de raças inferiores, tendo “devemos vigiá-los com cautela porque no
tudo que ver com uma delimitação de primeiro conflito entre o interesse nacio-
um Estado, a definição das fronteiras e as nal português e o interesse cosmopolita
resoluções da ONU. Ser anti-israelita não do judaísmo, esses fingidos portugueses
Aos olhos dos monárquicos e dos inte- empenhados na causa da guerra, foi en-
gralistas, era naturalmente agradável esta tregue a quem não reunia os requisitos
maviosa perceção de um intenso messia- adequados; o corpo de aviação, a operar
nismo, tipicamente português, projetado em conjunto com a força aérea francesa,
na figura cavaleiresca de Sidónio Pais, foi dissolvido e integrado no CEP; o co-
assim como lhes eram caras a defesa da municado português de guerra foi supri-
ordem, a perseguição aos democráticos mido e a censura agravada, no sentido de
ou a atitude de pendor neutralista face à abafar textos de apoio ao intervencionis-
Grande Guerra. mo português; e a dissolução, por decre-
No entanto, para os adeptos ferrenhos to, do Museu da Grande Guerra, criado
da intervenção militar de Portugal no pelo Governo anterior, simbolizava ple-
front e do retorno ao poder dos partidos namente os preconceitos antiguerristas
da república velha, “o consulado sidonis- dos novos governantes. Mas estas e outras
ta foi um equívoco político de graves con- medidas deixam também perceber uma
sequências”, segundo a expressiva síntese diferença óbvia quanto à autonomia e à
de um artigo anónimo publicado anos importância do efetivo português no qua-
depois, no suplemento Extra do jornal dro das forças aliadas: Norton de Matos
A Capital de 5 de dezembro de 1969. Nos e a equipa de guerra conferira-lhe um
anos da Primeira Guerra, a questão do estatuto elevado, mais próprio de uma
Corpo Expedicionário Português (CEP) potência beligerante equiparável, técni-
e da conduta de guerra gerida pelos go- ca, financeira e militarmente, à Inglater-
vernos de Sidónio Pais animou um deba- ra ou a França, enquanto Sidónio Pais e
te público determinado mais por razões os seus colaboradores, herdeiros de uma
de ideologia e de estratégia política que situação consumada, contra a qual mui-
por um exclusivo apuramento da verda- tos deles haviam proposto a neutralida-
de histórica. Em Paris, a Ligue pour la de, optaram por uma assunção discreta
Défense de la République Portugaise à e realista dos compromissos assumidos,
l’Étranger, composta por figuras cimei- especialmente com a velha aliada. Dois
ras da equipa de guerra, como Bernar- diferentes modos de estar no front que os
dino Machado, João Chagas e Alexandre guerristas converteram habilmente num
Braga, editou o opúsculo La Vérité sur le conflito insanável entre o bem e o mal.
Portugal e o ex-presidente da República, Uma boa conduta de guerra, de acor-
deposto pelo golpe dezembrista, expen- do com a argumentação de Paulo Osório,
de aí, tal como reproduz na coletânea de era tudo menos germanófila e defetista,
notas e de documentos avulsos intitulada ou seja, teria efetuado o roulement das tro-
No Exílio, a ideia de que a revolução sido- pas, concederia as licenças estipuladas,
nista culminou um processo urdido pelos manteria o corpo de aviação e recusaria a
sectores germanófilos para, através da de- redução do CEP a uma única divisão mili-
posição do Governo de Afonso Costa, ani- tar. O contrário disto era “O desastre” – tí-
quilarem por completo o esforço militar tulo do seu segundo artigo em A Capital,
português no teatro europeu. Em abono de 12 de março de 1919, precedido por
desta contundente afirmação, aponta vá- “Portugal na guerra”, publicado no dia
rias medidas da governação sidonista que anterior. Era, enfim, o enfraquecimento
sugeriam uma diferente orientação das do CEP, a trágica derrota no Lys e uma
autoridades de Lisboa: o estado-maior do humilhante subalternização de Portugal
CEP, formado por oficiais experientes e nas negociações da Conferência de Paz.
A toada crítica estava pronta a ser repe- dos Deputados de 27 de junho de 1919,
tida onde mais conviesse. No Parlamento, publicado com o título O Dezembrismo e a
Leote do Rego, deputado democrático Sua Política na Guerra e que inclui dados
e antigo comandante da Divisão Naval coligidos pelo órgão do seu partido du-
de Lisboa, dava o seu contributo para o rante 1918 e alguma documentação ofi-
processo do sidonismo lembrando que cial escolhida para reforçar as suas teses
Portugal entrara na guerra a pedido de políticas. O precedente tinha sido, aliás,
Inglaterra e em auxílio dos Aliados, que aberto com a publicação na imprensa do
o CEP funcionara em pleno até ao sido- memorando inglês de 10 de outubro de
nismo e que, em Lisboa, os Governos 1914 que convidava Portugal a colaborar
sidonistas haviam feito o jogo das forças no esforço de guerra, o que se entendia
monárquicas, reacionárias e germanófi- ser um convite formal de Inglaterra para
las, em conluio indecoroso com a propa- a entrada no conflito e a refutação de
ganda e a espionagem alemãs. Reclama- que Portugal se fizera convidado. Aceder
va, por isso, um inquérito parlamentar e a provas documentais será, a partir de en-
a indispensável – e depois efetiva – publi- tão, um dos trunfos de peso na pendula-
cação do Livro Branco da Grande Guer- ção vitoriosa do debate.
ra, numa palavra, o julgamento político Augusto Casimiro, combatente nas trin-
dos factos e da alegada traição de Sidó- cheiras, admirador de Norton de Matos
nio Pais, fogueira para a qual o deputado e responsável pela organização do Livro
evolucionista (o partido de António José Branco, entrou na polémica fomentada
de Almeida secundara, como se sabe, a por Cunha e Costa, através de um con-
política de guerra, embora longe da una- junto de artigos saídos no jornal A Vitória,
nimidade) Eduardo de Sousa, diretor do entre final de julho e inícios de outubro
jornal República, lançara mais umas achas de 1919, reunidos pouco depois em livro,
com o seu discurso na sessão da Câmara recheado de documentos e acrescido de
Uma situação, sem dúvida difícil e com- Outro militar, que, ao contrário do
plexa, que Luís Cabral de Moncada, lente anterior, se distinguirá pela oposição ao
coimbrão, amigo e admirador de Salazar, Estado Novo, João Sarmento Pimentel,
caracterizou, do ponto de vista político, nomeado em 1918 comandante do es-
em poucas linhas: “O sidonismo foi um quadrão da Guarda Republicana do Por-
homem, Sidónio, e nada mais. Faltou-lhe to e impossibilidado pela pneumónica de
um programa e uma fórmula teórica má- exercer, durante alguns meses, essas fun-
gica, com raízes em qualquer sólida tra- ções, reassumidas na fase da Monarquia
dição, e sobretudo faltaram-lhe colabo- do Norte, contra a qual combateu, acu-
radores. [...] Sidónio Pais chegou, pelo sou os monárquicos irredutíveis de terem
menos, oito anos mais cedo do que devia traído a excessiva confiança de Sidónio
ter chegado para a sua obra valer alguma Pais, figura evocada, aliás, com simpatia
coisa; antes disso, essa obra tinha em si nas Memórias do Capitão. Segundo Sar-
mesma as razões da sua própria insubsis- mento Pimentel, em entrevista a Norber-
tência” (MONCADA, 1992, 118). to Lopes, o fracasso da república deveu
Para quem participou fardado nessa ‑se, em parte, a Sidónio, por ter confiado
obra, como foi o caso de Jorge Botelho demasiado na seriedade dos monárqui-
Moniz, um dos cadetes do Sidónio, o cos, e aos próprios republicanos que se
“Chefe” – termo empregue com entu- “recusaram a colaborar com ele. Os re-
siasmo e veneração – era essencialmente publicanos estavam, porventura, eivados
um militar e comandou um punhado de de teorias utópicas, mas eram firmes nas
moços voluntaristas, patriotas exaltados, suas decisões, diga-se em abono da ver-
desdenhosos da república e dos políti- dade” (PIMENTEL, 1976, 113). Conven-
cos, que o seguiram fascinados. Sidónio ceram-se que “o Sidónio tinha traído a
Pais agigantara-se, pois, aos olhos de Bo- República, tinha traído a liberdade”; no
telho Moniz e dos companheiros, pela entanto “ele era sinceramente republica-
sua inteligência, o seu saber e a sua visão, no. A sua ação foi muito criticada. Depois
pelo seu projeto regenerador e nacional. da sua morte, porém, escreveu-se acerca
Afinal, ele tinha um projeto e era o seu dele muita coisa que não corresponde à
animador, o homem superior indispen- verdade” (Id., Ibid.).
sável à concretização do mesmo: “O mal A referida sinceridade republicana de
da situação de Sidónio Pais não era, ao Sidónio Pais foi corroborada por Gon-
contrário do que se tem dito, estar con- çalo Pereira Pimenta de Castro, alega-
substanciada num só Homem. As ditadu- damente monárquico, mas comprovada-
ras, como todos os grandes movimentos mente republicano unionista, que tinha
reformadores, estão sempre na mão dum ideias muito claras sobre qual deveria ser
Homem. O mal residia na heterogeneida- a atitude da república e que evoca nas
de dos elementos que a apoiavam. Na fal- suas curiosas memórias episódios castren-
ta dum novo chefe de prestígio”. Estas as ses que deixam transparecer a preocupa-
razões do fracasso de uma obra pioneira ção do Presidente da República com a
que anteciparia o fascismo italiano se não situação militar e o bom relacionamento
tivesse “morrido a vontade principal”, im- que manteve com a oficialidade. O então
perando “a luta das vontades secundárias, comandante de Infantaria 16 resumiu as
das pequeninas e baixas vontades, das co- suas impressões pessoais num trecho mui-
vardias, dos ódios, das ambições” (MO- to favorável ao malogrado Presidente:
NIZ, 1926, 8). “Era um Chefe de Estado bem preparado,
com ilustração, talento e até coração. Era trabalho, a índole esmoler, a comoven-
um Chefe de Estado completo, como não te solidariedade para com as vítimas da
é vulgar encontrar-se, porém, como di- pneumónica, a atitude teatral que en-
zia Alexandre Herculano, ‘nenhum país louquecia multidões, entre outras carac-
quer um bom governo!’ O seu consulado terísticas. Fora de palco, i.e., na “intimi-
foi tão benigno, que nem mesmo se de- dade era calmo, e sereno nos momentos
fendeu. Ao seu coração bondoso repug- de perigo, ainda que tivesse assomos de
navam vinganças ou perseguições. Como cólera. Vivia modestamente” e cumpria
republicano, desde os bancos do liceu, um programa diário que começava pelas
era verdadeiramente liberal e tolerante, 8.00 h, quando se levantava, até à noite,
não desejando um Governo imposto pela nunca se deitando antes das 3.00 h, por
violência. Queria a completa liberdade estar a trabalhar ou a receber visitas tar-
religiosa e política, mas também e acima dias. Fumava quatro maços de cigarros
de tudo o respeito pela lei. Só desta for- “baunilha” e, antes de se deitar, tomava
ma a República devia atrair e impor-se” um copo de leite para desintoxicar. Não
(CASTRO, s.d., 56). constava que alguma senhora tivesse per-
Imagem de tolerância e de bondade noitado no palácio. Vital Fontes repete
retocada, também, pela memória do che- ainda a decantada analogia com D. Pe-
fe da polícia Pereira dos Santos, vertida dro V, a propósito das fugas de Sidónio
em letra impressa por Manuel Nunes. Pais para o palácio da Pena, em Sintra,
O episódio contado seguiu-se à revolta mandado construir pelo pai daquele
frustrada de marinheiros no couraçado popular monarca. Alude à sua matriz
Vasco da Gama, em janeiro de 1918, e ti- profundamente republicana, evidencia-
nha a ver com o destino a dar aos detidos. da através do breve episódio dos retra-
O ministro do Interior, Machado Santos, tos com dedicatória de D. Luís Filipe e
convocara à sua presença o juiz Joaquim de D. Manuel achados no dito palácio.
Crisóstomo e o então agente policial Pe- E deixa clara a presença em seu redor de
reira dos Santos, para lhes transmitir ins- muitos oficiais jovens, de entre os quais o
truções sobre o processo dos 460 revol- mais cuidadoso em matéria de expedien-
tosos, pelos quais sentia a camaradagem te era o alferes miliciano Bernardo de Al-
de marinheiro: “Coitados, são todos uns buquerque, enquanto o capitão Camei-
exaltados, mas amam sinceramente o seu ra, “sempre muito irritado com todos,
país, embora nem sempre vejam bem as até com o sr. Botelho Moniz” (FONTES,
coisas, nem ao que se expõem! E após 1945, 106), assumia o papel de homem
uma pausa: – Um, como juiz, outro, como de total confiança do presidente.
agente, arranjam as coisas de forma que Um fragmento memorialístico, conci-
os presos sejam, pouco a pouco, restitu- so, mas impressivo por nos apresentar um
ídos à liberdade. É esse o desejo do dr. Sidónio Pais agastado pelo cansaço e pela
Sidónio Pais!” (NUNES, 1945, 87). sucessão vertiginosa de problemas e de
Ao esboço do político compreensivo conspirações, confrangedoramente só e
e generoso juntou Vital Fontes, chefe desiludido, em luta desigual contra a ad-
do pessoal do palácio de Belém, o per- versidade, foi redigido como editorial do
fil de um Sidónio Pais que “mal dormiu seu Diário de Notícias por Augusto de Cas-
durante todo o tempo que esteve em tro, jornalista, escritor e natural apoian-
Belém”. Da narrativa composta por Ro- te do Estado Novo, com o título literário
gério Perez, ressalta a entrega estoica ao “Uma noite com Sidónio”.
Tomé José de Barros Queirós, republi- que a galante figura de Sidónio, “os des-
cano histórico, unionista da primeira li- files militares, as brilhantes receções, sus-
nha, durante anos envolvido na vida polí- citando toda a espécie de adesões” davam
tico-administrativa da Câmara Municipal uma tonalidade especial, embora ao seu
de Lisboa, deputado, gestor e ministro regime faltassem “os necessarios quadros
da República, não deixou escritas as suas para executar o seu programa, pois os re-
memórias, mas deixou papéis, que seu fi- publicanos em breve o abandonariam”.
lho, Vasco de Barros Queirós, compilou e E daí a sua queda rápida e inexorável
ordenou numa narrativa filialmente apo- (MAGALHÃES, s.d., 30-31).
logética e alinhada por um democratis- Na literatura, e descontado o romance
mo primário em nome do qual a repúbli- Le Prêtre Jean, de Pierre Benoit, que enfa-
ca nova é reduzida ao epíteto de ditadura tiza em Sidónio Pais a ressurgência mes-
criminosa e irresponsável. siânico-sebastianista, o leque de imagens
No lado oposto, quer por colaborar não é variado, mas é muito esclarecedor
com o sidonismo, quer por ser monárqui- quanto ao estereotipismo reducionista
co, esteve o polémico António Adalberto que lhe serviu de legendagem.
Sollari Allegro, que também não terá es- No romance Moleque Ricardo, de José Lins
crito memórias, encarregando-se o filho do Rego, uma personagem – Seu Alexan-
de redigir uma espécie de biografia polí- dre, emigrante português, trabalhador,
tica justificativa da ação controvertida de avarento e dono de uma padaria – evoca
seu pai, especialmente antes e durante a Sidónio Pais como o “endireita” do país,
Monarquia do Norte. exclamando: “Que homem enérgico, que
Significativa é a amostra dos testemu- administrador de mão cheia” (REGO,
nhos memorialísticos em que é flagrante s.d., 180). Exclamação que se repete na
o contraste das representações da figura boca do tenente, cadete do ditador, per-
de Sidónio Pais e da sua república nova. sonagem de O Milagre segundo Salomé, de
Um contraste que se repete nos poucos José Rodrigues Miguéis, e na boca do pa-
textos literários (romances e contos) que drasto da Missa in Albis, de Maria Velho da
conhecemos, enquanto nos manuais do Costa: “‘Ah o Sidonio, que homem’, diz o
ensino primário oficial e liceal aprovados padrasto ‘nunca mais o país levantou ca-
durante a governação salazarista e marce- beça como nesses dias, lembras-te, jóia?’”
lista predomina e prevalece a mensagem (COSTA, 1989, 111-112). Em Trabalhos e
do precursor dos governos de autoridade Paixões de Benito Prada, de Fernando Assis
em rutura com o descrédito do parla- Pacheco, aparece a “figura enigmática”
mentarismo e a anarquia social para es- do “dr. Sidónio Bernardino da Silva Pais,
tabelecer a tranquilidade e o trabalho, a nascido em Coimbra – assim rezam as
ordem e o progresso, antecipando assim Enciclopédias e os Dicionários Ilustrados
a reacção nacionalista da Revolução de acessíveis a escritores... – mas com ante-
28 de Maio. E, no pós-25 de Abril, os ma- cedentes no Minho” (PACHECO, 1993,
nuais do ensino primário de Meio Físico 112), cuja morte o Jorge Ourives previa
e Social são tão lacónicos e redutores que às mãos de um pistoleiro “acirrado pelos
Sidónio e o sidonismo pura e simples- inimigos”, que eram “todos os outros,
mente desaparecem, emergindo, aqui e sem esquecer os monárquicos e os cató-
além, ou como precursor do fascismo, ou licos, que são de uma só ninhada e ele
como algo política e socialmente justifica- traz na palma da mão, esse parvo” (Id.,
do pelo contexto de crise e de guerra, a Ibid., 112-113). Opinião partilhada pelo
folhetinista de Vila Velha: “Passadas umas Autor, 1960; ALBUQUERQUE, António de,
semanas, foi a vez de cair, fulminado por Sidónio na Lenda, Lisboa, Lumen Empresa Inter-
um atentado, o major-presidente, de seu nacional Editora, 1922; ALLEGRO, José Lucia-
no Sollari, Para a História da Monarquia do Norte,
nome Sidónio Pais. Morto a tempo, quan-
s.l., ed. do Autor, 1988; ALMEIDA, A. Duar-
do a estrela redentora começava a em-
te, Regímen Republicano, Lisboa, João Romano
palidecer, teve funerais nacionais que se Torres, 1936; AMADO, José Carlos, História de
transformaram no adeus a outro encober- Portugal, vol. 2, Lisboa, Verbo, 1966; ARCOS,
to. Segundo as testemunhas vila-velhenses Joaquim Paço d’, Memórias da Minha Vida e do
que expressamente se deslocaram a Lis- Meu Tempo, vol. i, Lisboa, Guimarães & Cª,
boa, a urna balouçava num mar de gente 1973; BARRETO, Garcia, A Cidade dos Lacraus,
salpicado de cenas de histeria e tiroteio Lisboa, Editorial Escritor, 1994; BRANDÃO,
Raul, Memórias, vol. iii, Lisboa, Seara Nova,
esparso. O defunto deixava os monárqui-
1933; BURNAY, Eduardo, Sete Anos depois...
cos ao assalto do poder” (GUERRA, 1982, A Republica Nova. Carta ao Sr. Sidonio Paes, Incli
34). O defunto revelara-se, afinal, o covei- to e Invicto Restaurador da Ordem, Lisboa, Lamas
ro da República, segundo a confissão de Mota e Cª, s.d.; Id., Um Ano depois... a Morte!,
Carlos Rebello de Gualdym, arrependido Lisboa, Tipografia Universal, 1918; CAMPOS,
sidonista e autor do diário ficcional, com Eurico de, Quem São os Assassinos do Dr. Sidónio
início em dezembro de 1917 e fim a 14 de Pais? (Estudo de Investigação Criminal), Coimbra,
dezembro de 1918, que Artur Villares des- Livraria Editora Francisco França Amado,
1919; CARDOSO, Sá, Memórias duma Época
cobriu e editou. Um ano de morte e ódio,
e Apontamentos Politicos, Lisboa, ed. do Autor,
de prisões e de lacraus, alcunha dos civis 1973; CASIMIRO, Augusto, Sidónio Pais (Algu
armados, pretensamente ao serviço do mas Notas sobre a Intervenção de Portugal na Grande
sidonismo, que perseguiram e mataram Guerra), Porto, Livraria Chardron, 1919; CAS-
democráticos. Estes se espalharam pela TRO, Augusto de, “Uma noite com Sidónio”,
cidade e semearam o terror. O alter‑ego in CASTRO, Augusto de, Homens e Sombras,
de Garcia Barreto, protagonista e narra- Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade,
1958; CASTRO, Gonçalo Pereira Pimenta de,
dor, encerrou um ano de agitada vivência
As Minhas Memórias, vol. 2, Lisboa, Expansão
política com esta tirada: “Horas depois
Gráfica Livreira, Limitada, s.d.; CHAGAS,
soube que o Presidente expirava após ter João, Diario, 4 vols., Lisboa, Parceria Antonio
chegado ao Hospital de S. José. ‘Morro Maria Pereira, 1929-32; Correspondência Lite
bem! Salvem a pátria!’, terá dito quando rária e Política com João Chagas, 3 vols., Lisboa,
sentiu a vida abandoná-lo. Últimas pala- Notícias/Empresa Nacional de Publicidade,
vras de que tomei conhecimento através 1957-58; COSTA, Maria Velho da, Missa in
dos jornais do dia seguinte. Senti um alí- Albis, Lisboa, Círculo de Leitores, 1989; FON-
SECA, Tomás de, Memorias do Carcere (Subsidios
vio difícil de explicar. Tinha sido outro a
para a Historia Contemporanea), Coimbra, Fran-
concluir com eficácia e alguma loucura o ça & Armenio, 1919; Id., Memórias dum Chefe
gesto que me fora indicado por um rei de de Gabinete, Lisboa, Livros do Brasil, 1949;
espadas. Antes assim” (BARRETO, 1994, FONTES, Vital, Servidor de Reis e de Presidentes,
249-250). comp. Rogerio Perez, Lisboa, Marítimo-Co-
lonial Lda, 1945; GARCIA, Fernando, Sidonio
Paes. Um Ensaio de Psychologia Politica, Setúbal,
Bibliog.: manuscrita: Arquivo Pessoal de Si- Associação Setubalense de Caridade, 1921;
dónio Pais, ALBUQUERQUE, António de, GUERRA, Álvaro, Café República. Folhetim do
O Marquez da Bacalhôa (Escândalos da Côrte do Rei Mundo Vivido em Vila Velha (1914-1945), Lisboa,
Carlos), 5.ª ed., Lisboa, Livraria Brazileira de O Jornal, 1982; LEAL, Cunha, Eu, os Políticos e
Monteiro & Cª, 1912; impressa: ABREU, Gas- a Nação, Lisboa, Portugal-Brasil, s.d.; Id., Coi
par de, Memórias Políticas, vol. i, Braga, ed. do sas dos Tempos Idos. As Minhas Memórias, vol. 2,
Lisboa, ed. do Autor, 1967; LIMA, Sebastião Que Veio a Portugal Ganhar a Vida, Porto, ASA,
de Magalhães, Episodios da Minha Vida. Memo 1993; PIMENTA, Alfredo, A Situação Política.
rias Documentadas com Fotografias e Caricaturas, Conferencia Realisada no Salão Nobre da Liga Naval
vol. i, Lisboa, Livraria Universal de Armando Portugueza, na Noite de 26 Fevereiro de 1918, Lis-
J. Tavares, 1928; LOPES, Norberto, O Exilado boa, Livraria Ferreira, 1918; PIMENTEL, João
de Bougie. Perfil de Teixeira Gomes, Lisboa, Parce- Sarmento, Memórias do Capitão, Porto, Inova,
ria António Maria Pereira, 1942; MACHADO, 1974; Id., Sarmento Pimentel ou Uma Geração
Bernardino, La Vérité sur le Portugal, Paris, Ligue Traída (Diálogos de Norberto Lopes com o Autor das
pour la Défense de la République Portugaise Memórias do Capitão), Lisboa, Editorial As-
à l’Étranger, 1919; Id., No Exílio. O Perigo Ale ter, 1976; QUEIRÓS, Marques de, Epitome de
mão em Portugal, Famalicão, Tipografia Miner- História de Portugal (segundo os Novos Programas),
va, 1922; MAGALHÃES, J. Aires de, Primeiras 10.ª ed., Porto, s.n., s.d.; QUEIRÓS, Vasco de
Perguntas sobre História de Portugal. A Primeira e a Barros, Episódios da Vida do Político Thomé José de
Segunda República, Lisboa, Círculo de Leitores, Barros Queiroz, Lisboa, Eva D.L., 1985; REGO,
s.d.; MAGALHÃES, Luís de, Perante o Tribunal José Lins do, O Moleque Ricardo, Lisboa, Livros
e a Nação. A Monarchia do Norte e o Julgamento do Brasil, s.d.; RODRIGUES, Urbano, A Vida
da Junta Governativa do Reino, Coimbra, Coim- Romanesca de Teixeira Gomes. Notas para o Estu
bra Editora, 1925; MASCARENHAS, Arsénio do da Sua Personalidade e da Sua Obra, Lisboa,
Torres de, Ensino Primário Oficial. História de Marítimo-Colonial, Lda, 1946; SANTOS, Cé-
Portugal. Edição Ilustrada Remodelada e Ampliada sar dos, O Despresado. A Sua Conversão. Carta a
de Harmonia com os Principios de Orientação Edu S. M. a Rainha D. Amelia. O Regicidio e os Politi
cativa do Estado Novo por João Afonso de Miranda, cos. Quem Instigou o Marquez da Bacalhoa? Cartas
Advogado, Oficial do Exército e Antigo Professor do e Autografos Sensacionais, Lisboa, ed. do Autor,
Colégio Militar. Aprovada oficialmente, Lisboa, 1925; SARDINHA, António, E agora? Na Feira
Livraria Pacheco, 1937; MATOS, Norton de, dos Mitos. Idéas & Factos, Lisboa, Livraria Uni-
Memórias e Trabalhos da Minha Vida, 4 vols., Lis- versal de Armando J. Tavares, 1926; SILVA,
boa, Marítimo-Colonial, Lda, 1944-46; Id., Carlos Eugénio Correia da, Vita Brevi, Coim-
Memórias e Trabalhos da Minha Vida, 5.º vol., bra, Imprensa da Universidade, 1934; SILVA,
Coimbra, Imprensa da Universidade de Coim- Henrique Corrêa da (Paço d’Arcos), Memó
bra, 2005; MATTOSO, António G., Compêndio rias de Guerra no Mar, Coimbra, Imprensa da
de História de Portugal. Aprovado Oficialmente como Universidade, 1931; SOUSA, Eduardo de,
Texto Único para o 6.º Ano dos Liceus, Lisboa, Sá O Dezembrismo e a Sua Política na Guerra (para a
da Costa, s.d.; MEDINA, João, Morte e Transfi Historia do Dezembrismo). Depoimento duma Teste
guração de Sidónio Pais, Lisboa, Cosmos, 1994; munha, Porto, Companhia Portuguesa, 1919;
MENESES, Bourbon e, O Diario de João Chagas. TEIXEIRA-GOMES, Manuel, Londres Maravilho
A Obra e o Homem, Lisboa, J. Rodrigues & Cª sa e Outras Páginas Dispersas, coletânea, notas e
Editores, 1930; MIGUÉIS, José Rodrigues, pref. Castelo Branco Chaves, Lisboa, Portugá-
O Milagre segundo Salomé (Lenda Contemporânea), lia, s.d.; VIEIRA, Alexandre, Em volta da Minha
vol. i, Lisboa, Estúdios Cor, 1974; MONCA- Profissão. Subsídios para a História do Movimento
DA, Luís Cabral de, Memórias. Ao longo de Uma Operário no Portugal Continental, Lisboa, ed. do
Vida (Pessoas, Factos, Ideias). 1888-1974, Lisboa, Autor, 1950; Id., Para a História do Sindicalismo
Verbo, 1992; MONIZ, Jorge Botelho, O 18 de em Portugal, Lisboa, Seara Nova, 1974; VIEIRA,
Abril: Elementos para a História d’Uma Revolução Anselmo, A Crise Nacional, Lisboa, J. Rodrigues
Vencida, 2.ª ed., Lisboa, Casa Ventura Abran- & Cª, 1926; VILLARES, Artur, A Leva da Morte,
tes, 1926; NUNES, Manuel, As Memórias de Um Lisboa, Livros Horizonte, 1988.
Agente da Polícia. O Chefe Pereira dos Santos Con Armando Malheiro da Silva
tou-me a Sua Vida, Lisboa, Marítimo-Colonial,
Lda, 1945; OSÓRIO, Helena Sanches, Um só Este verbete foi extraído, em parte, de um
Rosto, Uma só Fé. Conversas com Adelino da Palma artigo publicado pelo Autor intitulado “Sidó-
Carlos, Lisboa, Edições Referendo Lda, 1988; nio e sidonismo entre a história e a literatu-
PACHECO, Fernando Assis, Trabalhos e Paixões ra”, Revista de História das Ideias, vol. 21, 2000,
pp. 307-388.
de Benito Prada, Galego da Província de Ourense,
de espírito, além das crónicas que publi- um loirito, que aliterasse, cesurasse, sim-
cou nas Novidades e no Universal. O tom bolizasse, rosa-cruzasse” (Id., Ibid., 115).
geral da caricatura do “estranho nefeliba- O tom estava dado. A homossexualidade
ta”, filho improvável de um cavaleiro da do marquês era publicamente conhecida,
Normandia e de uma chinesa que foram depois do escândalo da Trav. da Espera,
viver para Fornos de Algodres, represen- em 1881; além disso, Fialho estava den-
ta o simbolismo como uma manifestação tro do assunto porque Abel Botelho lhe
patológica: desarranjo na bola, loucura enviara pessoalmente o seu O Barão de
mansa, atonia inconsciente, melancolia Lavos, de 1891, que o cronista dos Gatos
implacável, doença moral, desequilíbrio anotara a lápis. O que causava surpresa
mental, enfim, “uma degenerescência in- era a junção de uma figura ligada a um
telectual furtada aos manicómios pela be- escândalo de costumes a uma crítica a um
nevolência da polícia” (BRAMÃO, 1896, novo movimento estético. A 30 de junho
102). desse mesmo ano, Fialho descreve Mo-
A crítica mais violenta terá sido indu- réas como um “poeta misterioso, carbo-
bitavelmente a de José Valentim Fialho noso e mesmo chato” (ALMEIDA, 1923,
de Almeida. A atenção ao detalhe da vida V, 295). Para Fialho, o simbolismo não
concreta e a riqueza da construção lite- passava de uns “ramalhetes de frases inin-
rária que este escritor de formação mé- teligíveis” (Id., Ibid., 297). A interpretação
dica sempre apreciou chocavam com o mordaz chega a diagnosticar insociabili-
ideário simbolista e decadentista. No ca- dade nos nevropatas, sintomas de neuras-
pítulo “Em fevereiro” do livro Vida Iróni- tenia e exibicionismo. Prestando atenção
ca, de 1892, Fialho conta uma conversa redobrada aos “simbolistas e decadistas
(real ou inventada) que terá tido com o cá de casa”, desfere um ataque ad homi-
marquês de Valada, famoso pederasta da nem demolidor que atribui a esses autores
época, a propósito dos “novos”. Usando falta de experiência de vida, culpando-os
com mestria a ambiguidade entre os no- de viverem à sombra dos rendimentos
vos apreciados pelo marquês e os novos dos pais da classe média, lentes, médicos
poetas simbolistas, Fialho pergunta ao e proprietários, pois “são uns rapazinhos
seu interlocutor “entre os nefelibatas e joviais e bem portados, com a digestão fá-
os sósistas, o sr. marquês por onde se de- cil, a alegria pronta, e o coração sujeito
cide?” (ALMEIDA, 1920, 113). Com “ne- a um tic-tac de que nenhuma comoção
felibatas”, a ironia de Fialho referia-se ao violenta altera o ritmo”. Do seu ponto
modo pelo qual eram conhecidos os sim- de vista, estes nevropatas “evitaram sem-
bolistas, jovens poetas que pareciam viver pre queimar a carcaça no auto de fé dos
nas nuvens devido ao seu gosto aristocrá- excessos de labor cerebral”. Em sintonia
tico; o nome havia sido dado por Manuel com o que Eça dirá nas Últimas Páginas,
Pinheiro Chagas, num artigo no Correio Fialho concede por misericórdia algum
da Manhã, de fevereiro de 1892. Com talento às composições simbolistas, mas
o termo “sósistas”, Fialho referia-se aos nega que sejam originais, porque os seus
leitores do Só, de António Nobre. As res- autores, “seres íntegros, bem comidos e
postas do marquês são, como se esperava, bem tratados, de inteligências conspí-
eivadas de lubricidade, acabando por sus- cuas, não criadoras, senão repetidoras […],
pirar dengosamente que o que mais lhe jamais conseguirão sair da nobre media-
dói “é que nenhum dos poetinhas seja loi- nia literária que o talento menstrua” (Id.,
ro”, porque “gostava tanto de jantar com Ibid., VI, 66). Estes literatos inexperientes,
1911, 28). Com estas credenciais que se dá diferença perante a alegada urgência de
a si mesmo, Mendes Correia assevera que transformação social (&Antissolipsismo).
“a maior parte dos simbolistas […] en- Mas, não obstante as várias – e, por vezes,
tram no domínio da patologia”, porque as ferozes – críticas ao simbolismo, a verda-
suas obras “têm tantos requintes de arte de é que algumas das suas características
como sinais de doença” (Id., Ibid., 68). não foram enjeitadas por movimentos
O comportamento dos magnicidas, crimi- estéticos posteriores. Na avaliação de Fer-
nosos que atentam contra pessoas ilustres nando Guimarães, e.g., Fernando Pessoa
ou eminentes, figuras públicas com poder “nunca deixou de muito explicitamente
mais simbólico do que real, mereceu vá- referir o modo como o simbolismo, em
rios estudos de médicos portugueses, seja Portugal, contribuiu para o desenvolvi-
a propósito dos regicidas, seja a propósito mento das correntes modernistas” (GUI-
do assassinato no cais de Lisboa do barão MARÃES, 1994, 98).
de Baligand, ministro da Alemanha em Para concluir, é importante ponderar o
Portugal. A leitura médica da ação políti- significado deste movimento contra um
ca acompanhava a leitura médica da civi- ideário estético, atenuando nessa pon-
lização ocidental como um todo, ou mais deração as circunstâncias epocais que o
especificamente da arte e da religião. viram nascer. Muitos argumentos que se
Num pequeno opúsculo com o título avançaram contra o simbolismo são hoje
Os Nefelibatas, publicado com o pseudóni- inaceitáveis. A degenerescência de Morel,
mo Luís de Borja, os simbolistas rejeitam tantas vezes invocada no último quartel
o nome ofensivo que lhes foi atribuído, do séc. xix fora do campo psiquiátrico, é
contando a história dos seus encontros um exemplo infeliz de uma classificação
periódicos às terças-feiras à noite na sem fundamento médico. A crítica da for-
casa da Sé, e afirmando o objetivo que ma de viver dos próprios autores e da sua
os movia, o de amar e rezar à “Arte, ao juventude, como modo de apoucar o va-
Amor, ao fugidio Ideal” (BORJA, 1992, lor das suas obras, seria hoje inaceitável.
9). Curiosamente, com a proclamação As insinuações pederastas são manifesta-
do seu desprezo heroico pela Terra e da mente deselegantes. Como é evidente, se
sua estima pelo satanismo, este texto co- a bondade dos argumentos dos críticos
letivo de 1892 alude à “nevrose esquisita do simbolismo desapareceu, é necessário
de quase todos”, dando sinal das muitas compreender de outro ângulo a animo-
críticas que tentaram diminuir o valor sidade que o simbolismo proporcionou.
do movimento estético devido a alegadas Talvez o modo como o simbolismo trata
características patológicas dos seus mem- os símbolos, diferente de outras produ-
bros (Id., Ibid., 6). ções artísticas, seja o fator decisivo des-
Bastaria pensar na imagem do solitá- sas críticas. Se cada época se revê na sua
rio artista simbolista – o sósista de Fia- arte, é justo reconhecer que os autores
lho – deleitando-se na composição da sua de símbolos são escrutinados com uma
complexa obra pessoal, para se perceber indulgência pouco generosa. Sinal disto
a inadequação, a resistência, e até a rejei- são as disposições legais contra o desres-
ção do simbolismo. Poucos anos depois, o peito de símbolos coletivos, que sempre
romance psicológico irá sofrer críticas de existiram. Assim, o art. 11.º da Constitui-
índole semelhante às que o simbolismo ção da República Portuguesa, de 1976
mereceu, sendo acusado de excesso de (atualizada de acordo com a lei constitu-
“adoração do próprio umbigo” ou de in- cional n.º 1/2005, de 12 de agosto), deli-
mita a bandeira, o hino e a língua oficial Bibliog.: ALMEIDA, J. V. Fialho de, Vida Irónica
(português) como símbolos nacionais. (Jornal dum Vagabundo), 4.ª ed., Lisboa, Livraria
Os emblemas de partidos políticos não Clássica, 1920; Id., Os Gatos. Publicação Mensal
de Inquérito à Vida Portuguesa, 5.ª ed., vols. v e vi,
podem ser confundíveis com os símbolos
Lisboa, Livraria Clássica, 1923; BORJA, Luiz
nacionais (art. 51.º). A verificação da lega-
de, Os Nephelibatas, Guimarães, Sociedade
lidade dos símbolos dos partidos compe- Martins Sarmento, 1992; BRAMÃO, Alber-
te ao Tribunal Constitucional (art. 223.º, to, A Rir e a sério. O Cantagalo (História Verídica
n.º 2, al. e). A legislação acerca do regi- de Seus Feitos), Lisboa, Livraria António Maria
me dos símbolos nacionais compete ex- Pereira, 1896; BRANDÃO, Raul, A Pedra ainda
clusivamente à Assembleia da República Espera Dar Flor. Dispersos 1891-1930, org. Vas-
(art. 164.º, al. s). Complementarmente, o co Rosa, Lisboa, Quetzal, 2013; CASTRO, Eu-
génio de, Horas, 2.ª ed., Coimbra, Francisco
n.º 1 do art. 332.º do Código Penal refe-
França Amado Editor, 1912; CORREIA, Antó-
re que “quem […] ultrajar a República, nio Augusto Mendes, O Génio e o Talento na Pa
a bandeira ou o hino nacionais, as armas tologia (Esboço Crítico), Porto, Imprensa Portu-
ou emblemas da soberania portuguesa, guesa, 1911; DANTAS, Júlio, Pintores e Poetas de
ou faltar ao respeito que lhes é devido, Rilhafoles, Lisboa, Livraria Editora Guimarães,
é punido com pena de prisão”. Este tipo Libânio e C.ia, 1900; FIGUEIREDO, Cândido
de medidas contra meros sons, meras co- de, Lisboa no Ano Três Mil (Revelações Hipnóticas),
Lisboa, Livraria Ferreira, 1892; GUIMARÃES,
res, meras formas, meros tecidos e outros
Fernando, Os Problemas da Modernidade, Lis-
materiais banais revela bem que a questão boa, Presença, 1994; HOWES, Robert, “Con-
dos símbolos se liga a dimensões muito cerning the eccentricities of the marquis of
profundas da alma humana. Os muitos Valada: politics, culture and homosexuality in
séculos em que a cultura portuguesa com- fin-de-siècle Portugal”, Sexualities, vol. 5, n.º 1,
bateu a utilização mágica dos símbolos são 2002, pp. 25-48; LACERDA, José de, Esboços
também indicadores da complexidade da de Patologia Social e Ideias sobre Pedagogia Geral.
questão simbólica (&Antifeiticeirismo). Estudos de Biologia, Lisboa, Livraria de José
A. Rodrigues, 1901; LARANJEIRA, Manuel,
Os símbolos parecem simplificar o real,
Obras, org. José Carlos Seabra Pereira, vol. ii,
tal como um mapa de estradas simplifica Porto, ASA, 1993; MORÉAS, Jean, “Le sym-
o território, mas há que acrescentar que bolisme. Un manifeste littéraire”, Le Figaro,
essa simplificação é benéfica porque tam- 18 set. 1886, p. 150; NUNES, José Coelho
bém contribuem para ampliar o que se dá Moreira, O Simbolismo como Manifestação da
na experiência quotidiana. É impensável, Degenerescência, Famalicão, Tipografia Mi-
pois, a ausência dos símbolos da vida dos nerva, 1899; QUEIRÓS, Eça de, “O france-
sismo”, in QUEIRÓS, Eça de, Últimas Páginas
seres que já foram precisamente carac-
(Manuscritos Inéditos), Porto, Lello e Irmão,
terizados como uma espécie simbólica. 1911, pp. 383-411.
Está-se muito longe de uma teoria final,
Manuel Curado
qualquer que seja a sua natureza (arque- Armando Magalhães
típica, computacional, cognitiva, evolu-
tiva, linguística, etc.), que esgote de vez
um assunto infinito. É provável, por con-
seguinte, que muitos outros movimentos
que reclamem a capacidade de expressar
mais fielmente a profundidade da alma
humana, a beleza da ordem do mundo e
o mistério do divino venham a surgir no
futuro, bem como os seus detratores.
P or antissindicalismo entende-se a
oposição às doutrinas ou práticas do
sindicalismo (trade unionism, syndicalisme),
direitos, concorrência, etc., com que li-
daram os dois tipos de organização apre-
sentavam, de facto, muitas similaridades,
entendido este como o movimento de de- pelo que é por vezes difícil, até à segunda
fesa ou representação dos interesses dos metade do séc. xix, estabelecer uma linha
trabalhadores associados em sindicatos, de fronteira nítida entre organização cor-
inicialmente ditos em Portugal associa- porativa e organização sindical – ambas,
ções de classe. O sindicato é, na aceção afinal, alvos do ataque do liberalismo eco-
predominante da palavra em começos do nómico. O aparecimento dos sindicatos
séc. xxi, uma associação de trabalhadores deu-se, por regra, à margem de qualquer
assalariados. Com este preciso sentido, o quadro legal, sendo umas vezes apenas
termo começou gradualmente a ser usa- tolerados, outras vezes considerados ile-
do em Portugal, em vez de “associação gais e perseguidos, sobretudo quando
de classe”, nos primeiros anos depois da desenvolviam ações concertadas. As com-
Implantação da República, refletindo a binações, convenções e coligações de
influência do sindicalismo francês; con- trabalhadores no âmbito dessa atividade
tudo, em 1926, a maioria das 428 associa- associativa foram também, por regra, cri-
ções de assalariados existentes ainda usava minalizadas (em França, pela lei Le Cha-
a designação antiga. Foram os proprietá- pelier de 1791; em Inglaterra, pelo Com-
rios rurais, com os seus sindicatos agrí- bination Act de 1799; e, em Portugal, pelo
colas (criados a partir de 1893-1994, na Código Penal de 1852), a pretexto de
peugada dos syndicats agricoles franceses), atentarem contra a liberdade de trabalho
os primeiros a usar em Portugal, no âm- e comércio. O reconhecimento legal dos
bito do associativismo, a designação “sin- sindicatos ou associações de classe ocor-
dicato”, até o regime corporativista lhes reu na Europa durante a segunda meta-
impor, em 1937, a designação de “grémios de do séc. xix, quando o seu número se
da lavoura”. O Estado Novo extinguiu a havia multiplicado e a sua ação, apesar de
denominação “associação de classe”, im- desenquadrada da lei, começara a gene-
pondo, durante 40 anos, a de “sindicato ralizar-se na prática, a ponto de o poder
nacional”, expressão que, sob o regime político os não poder ignorar nem per-
democrático posterior, perdeu a adjetiva- seguir. Em Inglaterra, a ação concertada
ção nacionalista. dos trabalhadores, antes qualificada como
Os sindicatos de trabalhadores sur- combinação para limitar a liberdade de
giram com a revolução industrial e a comércio, foi descriminalizada em 1867,
concentração de massas operárias dela os sindicatos legalmente reconhecidos
resultante, inicialmente em Inglaterra e em 1871, e os piquetes de greve admiti-
depois, gradualmente, por toda a Euro- dos por lei de 1875. Em França, a greve
pa, e distinguiam-se mais ou menos clara- foi descriminalizada pela lei Ollivier, de
mente das antigas corporações de ofícios 1864, e os sindicatos reconhecidos pela
Tanto nos meios patronais como entre as admissão numa empresa (sistema de clo-
massas de assalariados, a adesão ao apelo sed shop). As origens dessa atitude de resis-
associativo, quando voluntária, foi sempre tência são diversas: receio de discrimina-
função de uma avaliação das vantagens e ção e represálias por parte das entidades
desvantagens da associação. Certos meios patronais contra os sindicalizados, recusa
patronais são recetivos aos benefícios da disciplina sindical e do comportamen-
tanto da associação patronal como da to solidário com os colegas de trabalho,
sindicalização dos trabalhadores, vendo recusa do pagamento da quotização, não
nesses dois processos paralelos úteis ins- reconhecimento dos benefícios da ação
trumentos de paz social e prevenção de coletiva, divergências relacionadas com
conflitos, regulação da concorrência e a orientação política do sindicato, etc.
coordenação dos interesses comuns pe- A queda das taxas de sindicalização que
rante o Estado. Uma parte do patronato, começou a verificar-se por quase toda
porém, mostrou-se sempre relutante em a Europa, Portugal incluído, e América
abdicar das suas prerrogativas e estraté- do Norte a partir da déc. de 1970 é, em
gias individuais, recusando-se a negociar parte, expressão crescente desse antissin-
com representantes sindicais, discrimi- dicalismo dos trabalhadores, a que alguns
nando e perseguindo os trabalhadores sociólogos chamaram já sindicatofobia.
filiados em sindicatos, respondendo com O declínio da sindicalização é, todavia, re-
ações punitivas às reivindicações, greves lacionável também com uma variedade de
e violências sindicais e, inclusivamente, causas estruturais verificadas no mundo
criando sindicatos alternativos controla- ocidental na segunda metade do séc. xx:
dos pelos patrões (os chamados sindica- diversificação e recomposição técnica da
tos amarelos). A rejeição do sindicalismo força de trabalho, predomínio do sector
conduziu em vários países à criação de terciário e declínio acentuado do sector
organizações antissindicalistas, destina- industrial, flexibilização e precarização
das sobretudo ao combate às greves. Em do vínculo laboral (no quadro da cha-
Portugal, no período pós-Primeira Guerra mada globalização da economia mundial
Mundial, que coincidiu com o apogeu do e sob a influência das políticas económi-
sindicalismo anarquista e comunista, sur- cas liberais que a defendem), bem como
giu em 1920 uma Confederação Patronal o forte crescimento dos contingentes de
chefiada pelo ex-sindicalista revolucioná- mão de obra imigrante, tradicionalmen-
rio Sérgio Príncipe, um antigo ferroviário te menos reivindicativa. Não em último
que seis anos antes havia organizado uma lugar, a dessindicalização é também um
violenta greve dos caminhos de ferro. Ins- produto indireto do acrescido papel do
pirada também nos métodos repressivos Estado na regulamentação socio-laboral,
da milícia catalã Somatén, a Confedera- facto que em alguns países tornou a ação
ção Patronal contribuiu eficazmente para sindical menos decisiva para a defesa dos
o insucesso de várias greves, até o seu lí- trabalhadores. Sobre este fenómeno es-
der ser alvo, em 1923, de um atentado da creveu o sociólogo Pierre Bourdieu, refe-
organização terrorista Legião Vermelha, rindo-se não só às condições de trabalho,
acusado de traição à classe operária. mas igualmente aos sistemas de segurança
De modo idêntico, entre os trabalhado- e proteção social do trabalhador: “Só apa-
res houve sempre uma relutância, maior rentemente será paradoxal considerar
ou menor, à sindicalização, exceto quan- ‑se o declínio do sindicalismo como um
do ela constituía condição obrigatória de efeito indirecto e diferido do seu triunfo:
ensinaram // Maus caminhos por direi- abordasse o silogismo sofístico, i.e., “as
tos” (RODRIGUES e VIEIRA, 1932, 47). argumentações falaciosas e vãs dos sofis-
No período da Restauração, também o tas” (CARVALHO, 2010, 57).
autor da Arte de Furtar alude à racionali- As ciências estão irmanadas pela bus-
dade enganosa, quando descreve como a ca da verdade. A identificação de erros
malícia procede, calando o que não lhe de pensamento, ou sofismas, é apanágio
interessa, representando apenas o que sa- tradicional da história da lógica filosófi-
tisfaz o seu intento e “paliando tudo com ca. No entanto, seria possível estudar a
razões afetadas e sofísticas, até dar caça luta continuada contra os sofismas na ad-
ao que pretende em favor da parte que vocacia, na magistratura e na medicina.
lhe toca” (Arte…, 1744, 184). Cada um O Médico Político, de Rodrigo de Castro,
destes exemplos comporta uma crítica de 1614, dedica, aliás, um capítulo à com-
implícita ao uso do sofisma, mas também paração entre a jurisprudência e a medi-
a convicção de que o engano deliberado cina, e também adverte contra os falsos e
e a aparência de sabedoria são factos da os verdadeiros médicos. Do seu ponto de
vida humana. vista, o falso médico é destituído de uma
Os usos linguísticos do conjunto voca- cultura sólida, tem uma estulta presunção
bular em torno do conceito de sofisma de erudição, tentando conseguir “a ad-
são preciosos para acompanhar a sua his- miração da massa ignorante”, sobretudo
tória na cultura portuguesa. É importan- “junto de mulheres crédulas” (CASTRO,
te, contudo, isolar os pensadores que, de 2011, 229). O comportamento verbal
modo ostensivo, se pronunciaram contra censurável e os muitos erros de ciência
modos de fazer cultura que seriam, do identificam-se facilmente na “conversa às
seu ponto de vista, sofísticos e despro- vezes embrulhada, que pode cair para um
vidos de valor. Momentos importantes lado ou outro” (Id., Ibid., 230). A sabedo-
da história da educação, da ciência, da ria do Dr. Rodrigo de Castro só é frágil
cultura e da filosofia portuguesas foram quando apouca o papel do mau médico
marcados por acusações de recurso a junto de quem acredita nele, não expli-
sofismas. Há um movimento antissofista cando por que razão, ao longo de tantos
da cultura intelectual portuguesa, ten- séculos, se continua a solicitar os serviços
do a palavra sido dicionarizada em 1871 dos sofistas clínicos. A questão, especial-
(VIEIRA, 1874, V, 591). mente delicada, manifesta-se também na
O conimbricense Sebastião do Couto história da medicina, porque qualquer
comentou o tratado aristotélico Refu- século posterior a uma época que se se-
tações Sofísticas. No proémio do seu co- lecione terá uma medicina melhor do
mentário, começa por justificar o estudo que a medicina do melhor dos médicos
dos argumentos sofísticos, assunto com do passado. Com esta perspetiva históri-
o seu melindre, porque falar sobre as ca, pode acontecer que o clínico sofístico
coisas erradas poderá influenciar outros seja indistinguível do mais sábio dos clíni-
a seguir por esse caminho. Contudo, Se- cos (à luz de uma sabedoria futura). No
bastião do Couto mostra por analogia contexto dos sofismas da argumentação
que, para se conhecer os costumes, em e da lógica, perante uma verdade futura,
ordem a aperfeiçoar a vontade, não só qualquer verdade do passado parecerá
há necessidade de estudar as virtudes, as uma manifestação de erro ou de incom-
boas disposições e as leis, mas também os pletude. O Perfeito Advogado, uma obra de
vícios. Esta é a razão para que Aristóteles 1743 de Jerónimo da Silva Araújo, é outro
que está em causa um sucedâneo do fal- e Azevedo propõe regras gerais para se
so médico de Rodrigo de Castro, do ad- evitar ser convencido pelos sofismas dos
vogado palavroso de Silva Araújo ou do outros: a prevenção contra a obscuridade
mau pregador de Vieira, de Cenáculo e dos termos, observar escrupulosamente
de Verney. Para mostrar a perigosidade as regras do raciocínio e chamar a exame
letal desses sofismas, o autor compara-os o conteúdo das premissas, sempre que
à cicuta entre as plantas. Curiosamen- pareçam viciosas ou incertas. Nas edições
te, a ênfase do autor não é colocada na seguintes do manual, com novo título e
questão política, mas nos problemas filo- significativamente aumentado, o capí-
sóficos mais substantivos, como a imor- tulo dedicado a sofismas e paralogismos
talidade da alma (lição ii) ou as provas é mais desenvolvido. O professor braca-
da sua existência, deduzidas da natureza rense acreditava que é possível dominar
humana (lição iv). Encontra-se, em mui- suficientemente bem as regras da lógica,
tos outros autores da época, esta conexão controlar as paixões que possam toldar o
entre problemas filosóficos fundamentais pensamento e defender com empenho a
e felicidade pessoal, ou entre aqueles e os verdade; este conjunto é um “preservati-
hipotéticos danos causados por eles a um vo seguro contra todos os mencionados
modelo conservador de sociedade. A sua sofismas e paralogismos”, só desculpando
denúncia, muitas vezes inflamada, dos so- os que cometem essas faltas quando as
fismas dos filósofos modernos não deve causas do erro são inevitáveis (Id., 1872,
ser interpretada apenas como ataque aos 147). Apesar de ter estudado sistemati-
autores visados, mas também como alerta camente a questão da argumentação so-
contra possíveis perigos pessoais e sociais. fística, o professor Pinheiro d’Almeida
O professor nortenho P.e Manuel da Con- não se apercebe de como, ao considerar
ceição e Barros mostra esta conexão nos como sinais patológicos as teorias filosó-
seus Elementos de Metafísica, de 1854, quan- ficas de outros autores, está ele próprio
do adverte que fala “da verdadeira Filoso- a sofismar: “a existência de Deus, a espi-
fia […] e não da Sofística e Quimérica, ritualidade e a imortalidade da alma, e a
que, longe de aperfeiçoar a razão, antes necessidade da religião, que, sendo ver-
a corrompe, e por conseguinte é contrá- dades certíssimas em si, têm sido […] ata-
ria à nossa felicidade” (BARROS, 1854, cadas por um pequeno número de ho-
59). O professor bracarense Manuel Pi- mens, ou alucinados ou perversos” (Id.,
nheiro d’Almeida e Azevedo, com quem 1843, 62). Interpretando estas alegadas
o P.e Conceição e Barros manteve uma verdades, que nada têm de evidente, pe-
polémica em relação à qual Inocêncio los seus próprios critérios, a dúvida reside
escreveu que “fora de desejar não existis- apenas em saber se houve erro inevitável
se” (VI, 86), dedicou uma atenção conti- ou não, ou, dizendo-o de outro modo, se
nuada aos sofismas nos seus manuais para a vontade teve algum papel na expressão
o ensino liceal. Nas Noções Elementares de dessas críticas. Joaquim Alves de Sousa,
Psicologia e Ideologia, o professor de ideo- professor em Coimbra, oferece uma ti-
logia aparta o sofisma do paralogismo, pologia de sofismas e paralogismos com
definindo este último como um sofisma uma orientação muito próxima da de Pi-
que “se funda na ignorância e boa-fé nheiro d’Almeida e Azevedo. O seu Curso
do sujeito que o emprega” (AZEVEDO, de Filosofia Elementar conclui a exposição
1843, 93). Depois de analisar casos con- deste tema afirmando que os paralogis-
cretos de sofismas, Pinheiro d’Almeida mos podem ter alguma desculpa, mas os
as Exequias dos Trinta Dias, do Insigne, ta que o ser humano tem em relação a
Eminente, e Pio Hahan e Doutor R. David si próprio e ao mundo, conclui de modo
Netto, de 1724, e a epopeia As Viríadas, memorável dizendo que “o maior Filóso-
do médico Isaac de Sequeira Samuda, fo é um pedaço de asno” (Id., Ibid., 320).
deixada incompleta à data da sua morte Na carta xix, “Sobre ser o Homem o obje-
em 1729, de que o canto v é um manifes- to mais ignorado pelo mesmo Homem”,
to eloquente da vida humana como ilu- descreve-se uma vida humana totalmente
são total; o Anti-Maquiavelismo, ou Nova solipsista, porque “o homem se adora a
Ciência, e Arte, para Cada Um dos Homens si mesmo quando consideramos no bem
Possa Escapar os Detrimentos da Sociedade, que ele a si mesmo sente” (Id., Ibid., 252).
de João Pedro do Vale, de 1760, que de- Apesar de ter tido uma vida rica em polé-
fende que a melhor forma de alguém ser micas com os seus contemporâneos, José
bem sucedido é a de fingir que é louco; Agostinho de Macedo associa a ideia de
a obra vasta do folhetinista José Daniel uma vida sábia ao afastamento em relação
Rodrigues da Costa, nomeadamente o às coisas do mundo. Comparando a vida
Barco da Carreira dos Tolos, de 1803, e Hos- humana a um manuscrito totalmente in-
pital do Mundo, de 1805; e o Da Loucura e compreensível (Id., Ibid., 248), a peque-
das Manias em Portugal, do novelista Júlio na felicidade possível reside no emprego
César Machado, de 1871. dos sentidos e no entretenimento com
O séc. xix não esqueceu a questão do questões eruditas. O seu imponente tra-
solipsismo. A abrir o século, por altura das tado de antropologia filosófica, O Homem
invasões francesas, José António de Sá, ou os Limites da Razão: Tentativa Filosófica,
na obra Defesa dos Direitos Naturais e Reais de 1815, reitera, na tradição erasmiana,
da Monarquia Portuguesa, irmanava o so- a denúncia da impotência da razão, con-
lipsismo ao ateísmo prático de Napoleão, siderando que “não há uma só opinião
“a verdadeira causa dos infames e inaudi- dos Filósofos que se não possa conside-
tos procedimentos do Tirano de França rar uma verdadeira loucura” (Id., 1815a,
e de seus Sequazes” (SÁ, 1810, 72). Na 5). Como se esperaria, José Agostinho de
segunda edição da sua obra, de 1816, ca- Macedo escreveu muitos dos seus textos
racteriza o sistema político napoleónico sob a forma de solilóquios, reunidos nos
como um solipsismo absoluto (Id., 1816, quatro volumes do Motim Literário, de
289). Por essa mesma época, José Agosti- 1811.
nho de Macedo descreve uma humanida- Na segunda metade do séc. xix, vários
de voltada sobre as suas próprias paixões pensadores pronunciaram-se contra o
e interesses, ignorante da sua natureza úl- solipsismo. O jurista Vicente Ferrer Neto
tima e da ordem do mundo. Algumas das Paiva considera que o solipsismo revela
suas Cartas Filosóficas a Ático, de 1815, são um cálculo económico deficiente. Do seu
especialmente cáusticas. Denunciando a ponto de vista, o egoísta não deve pensar
impotência do pensamento racional, afir- que, “trabalhando pela felicidade dos
ma que “a reflexão não contribui para a outros, prejudica os seus interesses [...].
felicidade natural! Não só não contribui, O próprio solipsismo, se calcular bem as
mas antes a empece” (MACEDO, 1815, suas conveniências, há de encontrar gran-
93). O ponto alto da crítica corrosiva é de interesse na igualdade das obrigações
atingido na carta xxvii, “Sobre os pou- para connosco e para com os outros, ape-
cos conhecimentos do Homem”, em que, sar de parecer totalmente desinteressado”
depois de descrever a ignorância absolu- (PAIVA, 1856, 230). José de Lacerda, por
esta não existe para ele, está fora da sua Schlick, mostra que a questão do solipsis-
esfera sensorial” (Id., Ibid., 274). Tam- mo perdurou no seio do pensamento
bém o filósofo Sampaio Bruno criticaria epistemológico mais avançado do séc. xx.
Berkeley, temendo que, se se atingisse o O pensamento português não foi insen-
idealismo puro, se seguiria o niilismo in- sível a estes debates epistemológicos do
tegral (BRUNO, 1998, 19). Numa época círculo de Viena. A crítica ao solipsismo
de grande paixão pelo detalhe, pela his- atingiu o seu maior desenvolvimento em
tória, e pela ciência aplicada à técnica, língua portuguesa na filosofia da psico-
qualquer sugestão de idealismo seria for- logia de Edmundo Curvelo. O professor
temente criticada. Depois de condenar o da Faculdade de Letras de Lisboa tinha
“ódio pela realidade externa”, Sampaio o projeto filosófico de cartografar todas
Bruno conclui que esta metafísica é “sa- as estruturas mentais possíveis através
crílega e ímpia” (Id., Ibid., 23). da utilização de símbolos lógicos. Este
A receção do pensamento do círculo projeto hercúleo levou-o a questionar-se
de Viena em Portugal deu origem a de- sobre questões filosóficas muito comple-
bates públicos sobre problemas filosó- xas, como a da existência autónoma do
ficos tradicionalmente reservados aos mundo exterior e a da possibilidade de
académicos. Nas suas crónicas intituladas se aceder aos estados mentais de outras
“O pensamento positivo contemporâneo”, pessoas. Para Curvelo, a realidade fun-
publicadas no jornal O Diabo, o médico damental não é o cogito cartesiano, o “eu
e filósofo Abel Salazar equacionou o pro- penso”; do seu ponto de vista, o cogito é já
blema do dado, i.e., do critério para dife- uma construção de uma realidade ante-
renciar o exterior e o interior. Na cróni- rior e mais fundamental, que só poderá
ca de 16 de janeiro de 1938, afirma que, ser descrita de modo impessoal, como um
“para discutir sobre o mundo exterior, é “pensa-se”. Na sua obra mais importante,
preciso saber distinguir entre exterior e os Fundamentos Lógicos da Psicologia, do fi-
interior; o que não pode ser atingido se- nal da Segunda Guerra Mundial, Curvelo
não na medida em que o ‘dado’ é consi- faz ruir o que denomina “trincheira do
derado como ‘conteúdo’ de consciência solipsismo”, afirmando que a aparência
por um ou muitos indivíduos que o têm de inexpugnabilidade do solipsismo de-
recebido” (SALAZAR, 2012, 183). Para riva da “convicção de que o eu penso, de
Abel Salazar, a questão do dado à cons- que o meu pensamento, é o dado imediato
ciência é decisiva para o pensamento e único, e com isso me fica vedado falar
epistemológico do positivismo lógico, no- do teu pensamento, do tu pensas, pois tudo
meadamente para se aquilatar o valor dos quanto exprimir é sempre pensamento
seus ataques à metafísica tradicional. De meu; inclusivamente, o tu só existe como
acordo com o autor, a equação do pro- pensamento meu”. O golpe decisivo ao so-
blema é a seguinte: “se apenas se admite lipsismo é dado logo de seguida, porque
o dado próprio a cada um, é então o so- “o eu não é dado imediato e único, e a
lipsismo; se se admite a sua distribuição mesma operação que segrega o eu segre-
por muitos indivíduos, é o idealismo de ga o tu, desaparece a irredutibilidade
Berkeley. O positivismo tornar-se-ia assim metafísica, a irracionalidade, entre mim
idêntico à antiga metafísica idealista” (Id., e qualquer mundo (domínio) distinto de
Ibid.). Este resumo sucinto dos dilemas mim” (CURVELO, 2013, 276). A essência
metafísicos que enfrentavam os pensado- do solipsismo deriva de uma aparente im-
res do círculo de Viena, nomeadamente possibilidade: a descrição que cada indi-
víduo faz da sua consciência não se pode cologia nunca poderá existir como ciên-
aplicar à consciência de mais ninguém. cia autónoma. Num resumo do proble-
Esta questão acompanhou Curvelo ma, Curvelo afirma que, “se admitirmos
desde o primeiro livro que publicou, a como dado, para a estruturação da psi-
Introdução à Lógica, de 1943. Para descre- cologia, a descrição da consciência [...] ou
ver a impossibilidade total de existir uma negamos, implicitamente, a possibilidade
tradução verdadeira, Curvelo representa da psicologia, ou entramos na metafísi-
dois indivíduos (A e B) que ouvem um de- ca, o que é, da mesma maneira, negar a
terminado som (a), cada um deles ao seu psicologia como ciência” (Id., Ibid., 280).
modo. A impossibilidade de tradução deri- Um exemplo eloquente do modo como
va da incapacidade de se provar que o som Curvelo tentou acabar com o solipsismo
que A e B ouvem é o mesmo. É inútil pedir é a relação amorosa entre duas pessoas.
a cada um dos indivíduos que descreva o O amor coloca muitas vezes os problemas
som ou que o represente através de um si- terríveis do solipsismo e da tradução: será
nal, porque não há forma de verificar se que o que ela está a sentir é o que eu es-
o que A traduz pelo sinal é o mesmo que tou a sentir? Quando ele me disse “amo
B traduz pelo sinal (Id., Ibid., 138-139). Os ‑te”, queria dizer o mesmo que eu sinto,
mesmos sinais poderão corresponder a ou queria de facto dizer “empresta-me
sons radicalmente diferentes. Não ape- dinheiro”? Nos termos de uma das mais
nas sons, evidentemente, mas qualquer importantes obras de Curvelo, a Funda-
conteúdo da consciência, como as cores. mentação Epistemológica da Psicologia, de
O indivíduo A poderá dizer que está a ver 1951, “quando dois indivíduos se amam,
a cor vermelha; o indivíduo B poderá ter por exemplo, eu digo que não há um
aprendido a representar a cor de laranja amor (individual, próprio, fechado no
que vê através da palavra “vermelho”. Não indivíduo) de um lado, e outro amor (in-
há forma de se ter a certeza do que qual- dividual, próprio, fechado no indivíduo)
quer outra pessoa está a sentir. Curvelo do outro lado. Digo que os estados amo-
enfrenta, como se vê, o momentoso pro- rosos de ambos são subestruturas corre-
blema filosófico do solipsismo. lativas condicionadas por uma estrutura
Uma parte significativa da sua obra mais geral; a estrutura ‘estado amoroso’.
intelectual fulgurante foi uma tentativa Eu julgo, poeticamente, que cada um de
de resposta ao problema de um univer- nós é como uma nota numa sinfonia”.
so constituído por seres conscientes que Num resumo preciso que se segue ime-
não conseguem saber com certeza o que diatamente a esta descrição da solidão
os outros seres conscientes estão a sen- dos amantes, conclui Curvelo que “o so-
tir. A multidão é feita de seres solitários, lipsismo e o individualismo psicológico
e a comunicação que estabelecem entre são incompatíveis com esta maneira de
si é um espetáculo triste de pessoas que ver” (Id., Ibid., 1200).
se iludem com a crença de que poderão Qual é, pois, o fator decisivo da des-
expressar aos outros o que estão a sentir, construção que Curvelo faz da aparente
desconhecedoras que são do facto inelu- impossibilidade de se vencer a solidão
tável da impossibilidade de tradução. As de milhões de vidas solipsistas, que só
vidas humanas são solipsistas, a menos conseguem falar de si mesmas e criar a
que exista uma consciência universal da ilusão de que comunicam com os outros,
qual cada consciência individual é uma quando isso nunca poderá acontecer?
parte. Este solipsismo implica que a psi- Para Curvelo, ninguém tem um amor, ou
tem um significado na sua mente; antes à sua volta e a obra de Deus” (CURADO,
do indivíduo, há uma teia de relações. 2011, 27). A questão solipsista que este
O seu projeto filosófico contra o solipsis- ponto de vista equaciona não depende de
mo é intelectualmente ambicioso e, num estados mentais; diferentemente, procu-
paradoxo aparente, de natureza idealista. ra explicar que a atividade humana é um
Viu-se anteriormente, nas críticas de Ver- empreendimento solipsista em conflito
ney a Malebranche, Bayle e Berkeley, que contra a natureza e contra outros even-
o idealismo é uma versão de solipsismo; tuais poderes que existam na ordem do
Curvelo recusaria esta identificação, pois mundo. Neste conflito multissecular, o
apresenta um projeto filosófico idealista solipsismo manifesta-se também nos pan-
contra o solipsismo. Do seu ponto de vis- teões das diversas religiões, sendo a re-
ta, primeiro há uma sinfonia a acontecer, presentação de entidades sobrenaturais
e só depois acontece uma nota determi- modos de amplificação da realidade e
nada. Dizendo de modo menos literário, das necessidades humanas. Para Manuel
os seres humanos são subestruturas de Curado, o solipsismo é o único modo de
estruturas globais. Como é evidente, será os seres humanos realizarem os seus inte-
necessário demonstrar como é que uma resses mais fundamentais. Como se vê, o
nota se pode apropriar do ponto de vis- debate filosófico em torno do solipsismo
ta da sinfonia, ou uma consciência indi- está longe de terminar.
vidual do ponto de vista da consciência
universal. Ainda antes dessa demonstra-
ção, Curvelo pretende apenas demons-
O debate literário
trar que o solipsismo deixou de ser pen- Utilizando uma expressão de Hernâni Ci-
sável, deixou de poder ser equacionado. dade, é possível afirmar que as letras por-
Resumindo as conclusões do seu ataque tuguesas tiveram desde sempre um “in-
ao solipsismo, Curvelo afirma que “dou- teresse pelo mundo interior” (CIDADE,
trinas metafísicas como o solipsismo ou 1939, 53). O lirismo é uma das manifesta-
problemas como o da comunicação entre ções mais elevadas do espírito português.
consciências diversas [...] deixam de ser, O solipsismo é a tese filosófica que defen-
já não digo aceitáveis, mas inteligíveis” de que a expressão lírica é mais vasta do
(Id., Ibid., 1199). que o género literário que é classificado
A questão do solipsismo não desapare- habitualmente desse modo, porque, em
ceu do pensamento filosófico português. última análise, tudo o que os seres hu-
Manuel Curado propôs um estudo exaus- manos fazem literariamente é uma mani-
tivo da produção cultural e científica tal festação da sua subjetividade inalienável.
como ela se manifesta na atividade edi- Como é evidente, o problema filosófico
torial ou em instituições como as univer- não se confunde com a atividade literá-
sidades. Analisando, e.g., os catálogos de ria. Contudo, alguns movimentos esté-
cursos universitários do ponto de vista ticos e de crítica literária conduziram a
dos estudos de “coisas que são feitas pelos debates muito interessantes em torno do
seres humanos” e dos estudos de “coisas solipsismo na literatura (&Antipsicologis-
que estão lá fora à espera de ser estuda- mo). Os dinamizadores de revista Presença
das”, concluiu que “os seres humanos in- defenderam, nos anos 20, a necessidade
teressam-se sobretudo por si próprios; de de o escritor mergulhar na sua vida inte-
modo residual e meramente simbólico, rior mais profunda. No manifesto “Litera-
os seres humanos investigam a natureza tura viva”, de março de 1927, José Régio
defende uma arte que provenha “da par- tórico que se vivia nem com a necessária
te mais virgem, mais verdadeira e mais transformação da sociedade, e que, pelo
íntima duma personalidade artística” contrário, se dedicavam a analisar os seus
(RÉGIO, 1927, 1). João Gaspar Simões, estados psíquicos e a escrever sobre eles.
dando conta da importância de uma li- O livro As Encruzilhadas de Deus, de José Ré-
teratura que contribua para a descoberta gio, foi a causa próxima da crítica. Cunhal,
da dimensão mais profunda da pessoa, ao definir a “incómoda posição” deste es-
equaciona o problema do valor univer- critor, destaca alguns versos do livro: “Ver-
sal de obras marcadas por uma agenda go a cabeça sobre o peito/Concentro os
estética assinaladamente individualista: olhos sobre o umbigo”, do poema “Mitolo-
“Como se converterá, no entanto, em gia”. Para Cunhal, este tipo de literatura é
universal esta criação estritamente indivi- “uma expressão dolorosa da fuga, do can-
dual? Que espécie de osmose se realizará saço, da renúncia, daqueles que não têm
entre o individual e o universo, para que força e sensibilidade para permanecerem
os seus rasgos subjetivíssimos alcancem corajosamente onde se digladiam as multi-
uma eterna universalidade?” (SIMÕES, dões”. A pouco mais de três meses do iní-
1927, 1). Para Gaspar Simões, a universa- cio da Segunda Guerra Mundial, o jovem
lidade da obra individual fundamenta-se Cunhal dava sinal das tensões da época
precisamente “em que todos os homens e exigia o empenhamento dos criadores
a contemplarão e sofrerão o choque hu- artísticos no processo histórico. Para ele,
maníssimo da sua vitalidade” (Id., Ibid., “é inútil um talento que se limita a ado-
2). Deste ponto de vista, a boa notícia é rar o próprio umbigo” (CUNHAL, 1939,
a de que um trabalho artístico sobre a 286). Estava lançada a polémica do “umbi-
própria consciência do artista será reco- licalismo”. Cunhal respondia assim a uma
nhecido pelos outros seres humanos, que das “cartas intemporais do nosso tempo”,
identificarão nesse trabalho traços da sua em que Régio refletiu sobre a literatura
própria vida interior; a má notícia é a de brasileira contemporânea, marcada cla-
que o artista só descobre o que já lá está ramente pelo neorrealismo. Nesse texto
e o que é comum a outros homens. Tanto publicado na revista Seara Nova, Régio de-
uma quanto outra significam que nada fendia que “todo o chamado mundo exte-
de novo será proposto à humanidade. rior não é motivo de arte senão interiori-
A possibilidade de reconhecimento pelos zando-se no artista” (RÉGIO, 1939, 169).
outros não significa que o solipsismo te- Procurando um símbolo para representar
nha sido vencido; significa apenas que se a essência do trabalho de criação literária,
amplificou. O indivíduo fala apenas de si. Régio avança com a árvore coberta de ni-
Em relação aos tempos em que D. Duar- nhos, simbolizando as forças contrárias
te, príncipe de Avis e Rei de Portugal, das raízes históricas do artista e da aspira-
descrevia a sua melancolia no Leal Conse- ção a voar. Longe de recusar qualquer li-
lheiro, no distante séc. xv, não parece ter gação do artista à sociedade e ao processo
havido um progresso significativo. histórico, Régio reclamava apenas “uma
Em maio de 1939, surgiu uma polémi- imaginação psicológica pronta a animar
ca literária muito interessante sobre um todas as criações” (Id., 1939, 204).
aspeto da questão do solipsismo. Álvaro A resposta de Régio é dada em 10 pon-
Cunhal criticou abertamente os escritores tos no mês seguinte, no artigo “Defino
portugueses que, do seu ponto de vista, posições”. Elogiando as declarações de
não se comprometiam com o tempo his- Cunhal, Régio começa por recusar que
a criação artística seja limitada por con- Cunhal afirmam afinal estar contra o so-
siderações meramente pragmáticas e por lipsismo da adoração do próprio umbigo.
um exclusivismo que ataque a divisão O primeiro afirma o seu amor pelos deser-
do trabalho e a variedade das vocações. dados da terra, se bem que confesse que
Afirmando sem ambiguidade que não é pouco tem feito por esses deserdados (RÉ-
partidário da adoração do próprio um- GIO, 1939a, 8). O segundo reclama uma
bigo, Régio acusa Cunhal de ter retira- ação solidária e a participação no esforço
do alguns versos do contexto, e de não coletivo para melhorar a sorte dos mes-
ver a natureza dialética do vasto poema, mos. O primeiro defende a importância
que culmina na “superação do homem da observação psicológica, mas procura a
particular, todo enrolado em caracol enfer- sua superação numa intimidade já pouco
mo, pelo Homem, alargando-se na intui- humana, porque aberta a Deus. O segun-
ção e no amor de Deus” (Id., 1939a, 7). do denuncia as limitações da análise psico-
O argumento decisivo de Régio assenta na lógica para o conhecimento do Homem,
divisão do trabalho social e na importân- afirmando a necessidade de se conhecer
cia de se respeitar as diferentes vocações o meio e as condições de vida (CUNHAL,
que se realizam no trabalho intelectual 1939a, 153). Como se vê, as posições de
ou artístico: “não admito que se pretenda ambos complementam-se. Irmanados na
impor nada a um trabalhador intelectual. crítica ao umbigo, não se aperceberam
Amo a liberdade do espírito criador, do da dimensão mais profunda do problema
espírito especulativo, do espírito crítico, em causa: tanto a abertura a Deus, de Ré-
do espírito científico” (Id., Ibid., 8). Em gio, quanto a abertura à praça pública, de
agosto, a poucos dias do início da Segun- Cunhal, são coisas que se passam na mente
da Guerra Mundial, Cunhal volta ao as- das pessoas; pode acontecer que essas re-
sunto no artigo “Ainda na encruzilhada”. presentações não tenham correlato. Deste
Recusando discutir a sinceridade dos en- ponto de vista, tais representações são um
volvidos na polémica, reclama “discutir a cinema interior inconsequente. Afinal, os
justeza das posições sinceras” (CUNHAL, conteúdos desse cinema não dependem
1939a, 151). O debate centra-se na ques- de cada ser humano, porque, a correr na
tão quase etérea de se apurar se a arte mente das pessoas, sempre existiu um fil-
deve estar ou não isolada da vida. Cunhal me que fala dos outros, do que se passa
rejeita uma arte isolada e escritores que na praça pública e da busca da transcen-
não possam acompanhar a multidão. dência. O filme é monótono e tem uma
A atitude mística, muito apreciada por estrutura relativamente estável desde os
Régio, é entendida por Cunhal como um registos humanos mais antigos. Seria pos-
modo de realçar a vida solitária, a vida sível encontrar as posições de Régio e de
longe do terreiro e da praça pública. Cunhal nos personagens dos poemas ho-
O significado perene desta polémica méricos; os aedos Haliterses e Teoclímeno
merece ser ponderado. São muitos os as- poderiam interpretar-se como expressan-
petos datados da controvérsia: o momento do a tese do primeiro, enquanto Aquiles e
histórico especialmente dramático que se Ulisses reclamariam a necessidade de estar
vivia na Europa, a situação política portu- “onde se digladiam as multidões”. Nada
guesa, os atritos normais entre programas de novo, pois, sob o sol. Faltou a Régio
estéticos. As posições em confronto dis- e a Cunhal a dúvida filosófica acerca dos
tanciam-se menos uma da outra do que correlatos da representação. Afinal, como
na altura pareceria. Tanto Régio quanto se pode ter a certeza de que os assuntos
que, por seu turno, designava o governo Associação dos Professores de Portugal,
do país, o Conselho dos Comissários do foi convidado pela Confederação Pan
Povo. Era esta a fórmula sintetizada por ‑Russa dos Trabalhadores do Ensino para
Lenine com a frase: “Todo o poder aos contactar com as instituições escolares rus-
sovietes”. No entanto, depois do perío- sas. Dessa digressão fez um relato no livro
do da Guerra Civil, com a consolidação A Rússia, hoje e amanhã. Uma Excursão ao
do poder soviético, era necessário esta- País dos Sovietes (1929). Carlos Santos, que
bilizar a situação. Em 1922, foi criada a esteve na Rússia em agosto de 1926, escre-
URSS. A Constituição de 1924 instituiu veu uma série de crónicas para o Jornal de
o Congresso dos Sovietes da URSS como Notícias. Este professor do ensino secundá-
principal órgão, donde a identificação rio e crítico de arte publicou o livro Como
do termo “soviético” com o regime, con- Eu Vi a Rússia (1927), obra que teve um
siderado como sinónimo de “russo” e de grande sucesso, com várias edições, e que
“comunista”. Falar em antissovietismo constitui um olhar relativamente objetivo
era, portanto, falar de anticomunismo sobre a realidade soviética. O jornalista
em geral, e de anticomunismo russo em Herlânder Ribeiro viajou pela Rússia e pu-
particular. blicou diversas crónicas no Diário de Lisboa,
Desde muito cedo, surgiram em Portu- reunidas em 1927 no volume Crónicas da
gal publicações onde se pretendia atacar Rússia Soviética. Procurando ser objetivo,
a experiência soviética, pondo em causa, não esconde as críticas. Referindo-se ao
e.g., a capacidade de os trabalhadores e comissário Tchitcherine, sublinha que “na
soldados administrarem a coisa pública. Moscovo da igualdade, vivia em luxuosa
O Diário de Notícias escrevia, a 1 de dezem- casa e tinha seis secretários” (RIBEIRO,
bro de 1917, que “um simples soldado 1927). Ribeiro de Carvalho publicou, em
foi nomeado comandante das tropas da 1932, o livro O Que Era a Rússia antes dos
região de Moscovo, um alferes e um as- Bolchevistas, no qual, sem julgar o regime
pirante vice-comandantes, um aspirante bolchevista, caracteriza a opressão czaris-
intendente-geral, dois alferes inspetores ta, concluindo que o povo espoliado “foi
de artilharia e engenharia”, e que os dele- mais generoso do que os seus antigos car-
gados russos às conversações de paz com rascos” (CARVALHO, 1932). A mesma
a Alemanha compreendiam “um soldado editora deu à estampa, no ano seguinte, a
e um marinheiro que apenas sabem ler”. obra O Que É a Rússia com os Bolchevistas,
Noutro artigo (15 jan. 1918), escrevia-se de Schlesinger, procurando fornecer in-
que “esses mujiques e soldados bêbados formação precisa, incluindo legislação e
queimam bibliotecas, espatifam tudo. As- o texto da Constituição: “algumas pessoas
sassinam os professores primários, as par- veem nos bolchevistas os salvadores da Hu-
teiras, os estudantes, porque são intelec- manidade e outros veem neles bandos de
tuais, sabendo ler e escrever e podendo criminosos e de loucos” (SCHLESINGER,
por isso enganar o pobre povo”. 1933, 7). Muito favorável foi também o li-
Também surgiram livros com uma visão vro de Henri Barbusse, Rússia, publicado
positiva sobre a realidade russa resultantes em 1931 em Coimbra pelo Instituto de
de viagens ali realizadas por Portugueses, Estudos Livres, uma organização de estu-
como A Rússia dos Sovietes (1924), de Car- dantes republicanos contrários à ditadura.
los Rates. César Porto, professor e diretor Os primeiros anos da experiência soviética
da Escola Oficina n.º 1, um dos entusiastas foram também tema para o livro do ale-
da escola nova em Portugal e dirigente da mão Artur Feiler, que emigrou, em 1933,
decorrer dos sécs. xix e xx, a abordagem na cultura, e envolvendo figuras públicas,
moral do antitabagismo vai cedendo lu- que apareciam a fumar. O objetivo des-
gar a uma perspetiva de saúde pública, tas campanhas era, em parte, combater
ambas justificativas da atitude social e das a imagem negativa associada aos danos à
intervenções dos Estados. saúde provocados pelo consumo do taba-
No início do séc. xx, as fusões e incor- co. Em contrapartida, em 1954, foi criada
porações tinham-se instalado no merca- nos EUA a Comissão de Investigação da
do liberalizado. As empresas dos EUA e Indústria do Tabaco (que, em 1964, viu o
de Inglaterra dominavam 80 % do mer- seu nome alterado para Conselho para a
cado mundial de tabaco. É o começo das Investigação do Tabaco), que promoveu
empresas multinacionais, que criaram uma campanha incisiva contra os estudos
um mercado global ao longo do séc. xx que estabeleciam uma relação causal entre
e granjearam uma influência significa- o tabaco e o cancro do pulmão. Durante os
tiva junto dos governos e da sociedade. anos que se seguiram, a indústria do taba-
Em Portugal, as políticas protecionistas co, para negar os danos à saúde associados
da indústria do tabaco continuaram a ser ao consumo, fez publicidade e patrocinou
discutidas desde esse final do séc. xix até estudos, cujas conclusões eram manipu-
1927, quando foi decidida a reorganiza- ladas, ocultadas ou mesmo eliminadas,
ção do monopólio, a fim de conciliar os quando apresentavam resultados desfavo-
superiores interesses do Estado com o lu- ráveis. Esta prática corporizou, aliás, um
cro honesto e moderado. dos maiores escândalos do final do séc. xx,
A Primeira Guerra Mundial constituiu quando um enorme conjunto de docu-
um marco no crescimento do consumo mentos confidenciais da indústria veio a
de tabaco, associado à imagem dos solda- público, o que contribuiu decisivamente
dos e à crise de 1929, bem como aos pre- para a luta antitabágica, alargando o foco
ços baixos e a uma grande concorrência do combate contra o tabaco e os seus ma-
entre marcas. Durante a Segunda Guerra lefícios à indústria do tabaco, pela sua falta
Mundial, o consumo de tabaco tornou-se de ética e responsabilidade social. Poste-
o maior de todos os tempos e, com o Pla- riormente, graças a um acordo estabeleci-
no Marshall, cerca de 93.000 t de tabaco do, em 1998, entre os procuradores-gerais
foram enviadas gratuitamente pelos EUA de 46 estados e 5 territórios dos EUA e a in-
para a Alemanha. Foi ainda entre os anos dústria do tabaco, cerca de 14.000.000 de
de 1920 e 1940 que uma série de preo- documentos internos (com 80.000.000 de
cupações relacionadas com a possível páginas), produzidos pelas grandes empre-
ligação entre o tabaco e as doenças co- sas de tabaco e relacionados com assuntos
ronárias e determinados tipos de cancro e casos paradigmáticos, como as estratégias
(como o do pulmão, da boca e dos lábios, da indústria para a publicidade, o fabrico,
em fumadores, e do pulmão em esposas o marketing e as vendas, bem como com a
não fumadoras) começaram a surgir de sua intervenção na investigação científica,
forma consistente no meio científico, a entre outros, foram reunidos numa base
ponto de se sobreporem aos lóbis insta- de dados online de acesso aberto.
lados e à força da publicidade do tabaco. Foi ainda na déc. de 1950 que as provas
Nos anos de 1950, a publicidade às mar- científicas sobre a relação entre diversas
cas de tabaco e as suas atividades de patro- doenças e o uso de tabaco cresceram de
cínio atingiram o seu auge, disseminando forma significativa. Destaca-se a importân-
‑se na televisão, no cinema, no desporto e cia de uma série de estudos de Richard
Doll e Brandford Hill, que adquiriram defendiam os direitos dos não fumadores,
grande relevância na luta contra o taba- por um lado, e uma reação da indústria
gismo. Em 1955, a Comissão Federal de com campanhas públicas contra esses mo-
Comércio dos EUA começou a regular a vimentos, por outro. Durante este perío-
publicidade aos cigarros, proibindo qual- do, a indústria tabaqueira foi intensamen-
quer alusão aos supostos benefícios do te investigada, tendo negado qualquer
tabaco para a saúde. Nesta época, assistiu conhecimento das propriedades induto-
‑se também à introdução dos primeiros de ras de dependência da nicotina. No en-
muitos processos apresentados em tribu- tanto, as investigações apontavam não só
nal nos EUA por fumadores e seus paren- para o seu conhecimento, como também
tes contra a indústria tabaqueira, devido a para os esforços da indústria em potenciar
doenças provocadas pelo uso prolongado essas propriedades. Apontavam também
do tabaco e ao desconhecimento das con- para o uso de estratégias pouco éticas
sequências do mesmo para a saúde. para ludibriar o público e induzir mulhe-
Na déc. de 1960, o Governo britânico de- res e jovens a fumar. Muitos países proi-
cretou que os produtos derivados do taba- biram os anúncios publicitários às marcas
co deviam ter avisos sobre os riscos poten- de tabaco. A Comunidade Económica Eu-
ciais associados ao seu consumo e proibiu ropeia vinha, desde 1981, advertindo para
a publicidade a cigarros na televisão. Em a necessidade de proteger a saúde dos
Portugal, data de 1959 a primeira proibi- consumidores no que respeita ao tabaco
ção de fumar dentro de recintos fechados e, durante essa década, encetou diversas
e de 1968 a primeira proibição de fumar iniciativas antitabágicas nas suas políticas,
nos transportes públicos urbanos. Entre destacando-se a proibição de fumar em es-
1965 e 1969, o Congresso dos EUA adotou paços públicos, a rotulagem dos produtos
legislação sobre a aplicação de advertências
nos maços de tabaco, a proibição da publi- Cartaz antitabagismo.
cidade na rádio e na televisão, e a obrigação
de o Governo produzir um relatório anual
sobre as consequências do consumo do
tabaco. No decorrer da década seguinte,
um pouco por todos os países ocidentais,
foi publicada legislação no mesmo sentido.
Assistiu-se, assim, a uma diminuição
na venda de cigarros até à déc. de 1970.
A partir daí, as vendas voltaram a aumen-
tar, principalmente entre os adolescentes
e jovens adultos, sobretudo do sexo femi-
nino; nos EUA, a publicidade a cigarros
nas revistas e nos jornais superava todas
as outras. Em 1970, a OMS tomou uma
posição pública contra o tabagismo, e,
nos EUA, foi pela primeira vez comemo-
rado o Dia sem Tabaco. Em 1987, a OMS
instituiu o Dia Mundial sem Tabaco.
No início da déc. de 1980, existiu uma
pressão dos grupos da sociedade civil que
Tomar. Em 1751-1752, foi publicado, nas ropa. Em 1820, José Acúrsio das Neves,
Philosophical Transactions da Royal Society na Memoria sobre os Meios de Melhorar a
de Londres, um relatório do engenheiro Industria Portuguesa, Considerada nos Seus
inglês John Smeaton sobre a máquina a Diferentes Ramos, lastimava o estado em
vapor de Bento de Moura Portugal, que que Portugal se encontrava, denuncian-
se baseava no modelo da máquina de do que tudo se fazia à força de braços e
Savery. de animais, enquanto nos outros países
Avançando para o séc. xix, na sessão quase se dispensava o esforço humano
pública da Academia Real das Ciências nos trabalhos mais pesados, aumentando
de Lisboa de 18 de janeiro de 1805, Cons- prodigiosamente os frutos da indústria.
tantino Botelho de Lacerda Lobo, profes- Assim, ao passo que, numa grande parte
sor do Gabinete de Física Experimental da Europa e nos Estados Unidos, já os rios
da Univ. de Coimbra, apresentou a “Me- e até os mares eram navegados por ação
mória sobre um novo modo de aplicar ao do fogo, sem mastros, velas ou remos, em
movimento das máquinas a força de va- Portugal, não havia uma única máquina a
por d’agua fervendo”, que foi publicada vapor nas indústrias.
no Jornal de Coimbra em 1812 (fig. 2). A industrialização portuguesa no séc. xix
Apesar da notícia da instalação da má- procedeu a um ritmo bastante lento. Os
quina a vapor ainda na primeira metade industriais portugueses iam recorrendo
do séc. xviii, Portugal não acompanhou, à energia hidráulica graças à abundância
ao longo do séc. xix, o desenvolvimento de recursos hídricos e ao aperfeiçoamen-
industrial que se ia observando na Eu- to da roda e da turbina hidráulicas. Só
no fim deste século começaram a apare-
cer alguns indicadores, embora ténues,
Máquina a vapor de Constantino Botelho de de arranque industrial, pois predomi-
Lacerda Lobo, Jornal de Coimbra, 1812.
nava a mão de obra não especializada.
A gestão científica do trabalho foi pro-
posta pelo engenheiro norte-americano
Frederick Taylor, nas décs. de 1880 e
1890, com o objetivo de promover uma
melhoria na eficiência económica das in-
dústrias transformadoras. Mas já decorria
o ano de 1917 quando foi publicado em
Portugal o primeiro estudo advogando as
virtudes do taylorismo, da autoria de An-
tónio Mendes Correia, médico e antropó-
logo, professor da Faculdade de Ciências
da Univ. do Porto, onde se defendia a
aplicação desta doutrina não apenas na
reeducação dos mutilados da Primeira
Guerra Mundial, mas como modelo geral
para a prosperidade do trabalho nacional
(CORREIA, 1917). Nesta época, os tex-
tos de Taylor começaram a ser discutidos
entre nós, servindo de referência para a
análise do trabalho, a estandardização, a
a sua célebre lei dos três estádios, na fi- escrito programático – Programa de Uma
losofia de Feuerbach, para quem as reli- Sociedade Internacional Secreta da Emanci-
giões não são senão momentos necessá- pação da Humanidade (1864) –, Bakunin
rios pelos quais a humanidade se revela a afirma que a Revolução Francesa “procla-
si própria, constituindo o cristianismo o mou uma nova religião, a verdadeira reli-
cume dessa autorrevelação. A dependên- gião, não celestial, mas terrestre, não divi-
cia inicial do Homem relativamente ao na, mas humanitária: a da realização dos
mundo exterior, que é causa de sofrimen- destinos humanos na terra” (BAKUNIN,
to e temor, levou-o, progressivamente, a 2014, 86). Dois anos mais tarde, no Ca-
recorrer a forças naturais (fetichismo), tecismo Revolucionário, propõe substituir
aos deuses (politeísmo) e, finalmente, à “o culto de Deus pelo respeito e pelo amor
suprema abstração que constitui o Deus à humanidade” (Id., 2009, 18). E, em Fe-
judaico-cristão (monoteísmo). Essa abs- deralismo, Socialismo e Antiteologismo, refe-
tração divina é, depois, enriquecida com re o socialismo como “a nova religião do
aquilo de que se despoja a humanidade povo” (Id., 2012, 27).
(a liberdade, a justiça, etc.). A imagem Em segundo lugar, utiliza os conceitos
ou o fantasma divino é uma abstração mi- de religião e de sagrado para designar
santropa, aviltante da humanidade, que é uma relação especial com um ideal, seja
necessário combater e suprimir. ele patriótico (e.g., o do seu opositor Maz-
Todavia, como dissemos, em Bakunin a zini) ou revolucionário (o dele próprio).
religião tem um carácter ambivalente; há Para Bakunin, a paixão revolucionária é
nele também uma série de utilizações po- pensada à maneira de uma religião, onde
sitivas do conceito de religião. Em primei- não falta também o postulado de um
ro lugar, no contexto da revolução e do mundo novo que importa instaurar.
socialismo, concebe uma espécie de re- Por último, apesar do seu constante
ligião humanitária ou religião da huma- apelo à abolição do “serviço e culto da
nidade, antiteológica. No seu primeiro divindade”, Bakunin tem consciência das
crenças religiosas dos seus contemporâ-
neos, e respeita-as (ANGAUT, 2014). To-
Manuel da Silva Mendes (1867-1931).
davia, quando se trata de organizações re-
volucionárias por si criadas, não deixa de
exigir a todos os que a elas aderem que
sejam expressamente ateus. No quadro
da Internacional, contudo, diverge de ou-
tros revolucionários (e nomeadamente
de Marx), manifestando-se contra a parti-
darização e a ideologização do programa
da Internacional e defendendo a liberda-
de de expressão e discussão. Para ele, a
Internacional tem por objetivo organizar
a solidariedade dentro da classe trabalha-
dora e não formar um partido político.
Em Portugal, o maior defensor e divul-
gador das ideias de Bakunin foi Manuel
da Silva Mendes, no seu Socialismo Liberta-
rio ou Anarchismo, um livro aclamado por
mas não só o povo. Era também um proje- dos. Por exemplo, o Tratado que instituiu
to político e social global (nesse sentido, a Organização do Tratado do Atlântico
moderno), subversivo, visando pôr ter- Norte (NATO), de 1951, foi explícito na
mo aos privilégios na sociedade france- afirmação de que os EUA e o Reino Uni-
sa de finais de Setecentos. Fazendo uma do respeitariam as formas de governo
reflexão original sobre o terceiro estado, dos países signatários do Tratado e o livre
Sieyès dizia que este era toda uma nação exercício da sua soberania, não havendo
(a França), que ainda não existia, mas que qualquer pressão americana ou britânica
ele pedia que existisse (entenda-se, de um sobre as potências coloniais para que des-
modo radicalmente diferente do que vigo- colonizassem as suas colónias, nem aque-
rara até então). las imaginavam que a descolonização esti-
Também o Terceiro Mundo ainda não vesse iminente. Já a União das Repúblicas
existia quando Sauvy escreveu “Três mun- Socialistas Soviéticas (URSS), como refere
dos, um planeta”, em 1952. Ele mesmo o Wallerstein, desconfiava de qualquer mo-
diz; e ele mesmo pede que passe a existir. vimento nacional, ainda que de influência
Para o efeito, advoga a subversão do mun- comunista, a menos que as tropas soviéti-
do saído da Segunda Guerra Mundial, ca- cas estivessem no país em questão. Wallers-
racterizado pela derrota dos fascismos, mas tein dá como exemplos da sua tese o aban-
também, paradoxalmente, pela deletéria dono dos comunistas gregos pela União
aliança americano-soviética, que impedia Soviética, durante a Guerra Civil (1946
a libertação dos povos. Segundo Sauvy, os ‑1949), assim como os conselhos de pru-
dois blocos dominantes (o pró-americano dência dados pela nomenclatura soviética
e o pró-soviético) precisavam um do outro aos comunistas chineses, em 1951, suge-
para existirem e ignoravam o resto do mun- rindo-lhes um acordo com o nacionalista
do, maioritariamente subdesenvolvido. Chang Kai-chek, que Mao (o líder da rebe-
A leitura da realidade feita por Sauvy lião comunista) ignorou. Contra a União
estava correta, dado que, à época, os Es- Soviética, revoltou-se Tito, na Jugoslávia,
tados Unidos e a União Soviética não se um país comunista onde não havia tro-
interessavam pelos países subdesenvolvi- pas soviéticas. Até meados da déc. de 50,
para os EUA e a URSS, de acordo com a
Josip Broz Tito (1892-1980). fórmula de John Foster Dulles, secretário
de Estado norte-americano (1953-1959),
num discurso de 9 de junho de 1955,
“o neutralismo [que viria a ser marca do
terceiro-mundismo] era imoral”.
A perceção das duas grandes potências
relativamente aos autodenominados paí-
ses do Terceiro Mundo só mudaria mais
tarde, após a criação do Movimento dos
Não Alinhados, em 1955, promovida por
Tito, que agregou a maioria dos líderes
dos novos Estados independentes. Na
génese do terceiro-mundismo está a con-
testação da ordem bipolar que vigorava
neste tempo, mas rapidamente foi ele
também contestado.
Estados procurariam o lugar que lhes dos Países Exportadores de Petróleo au-
pertencia de pleno direito, suplantando mentou o preço do petróleo e provocou
a dicotomia entre os blocos políticos e uma crise mundial de grandes propor-
militares existentes. ções, o Terceiro Mundo rejubilou, pois
Estava instalada a Guerra Fria. Suposta- concentrava as principais reservas de pe-
mente, os Estados do Terceiro Mundo não tróleo do mundo.
estariam implicados no processo, porque Curiosamente, a China, em meados
não seriam comunistas nem liberais. A ver- da déc. de 70, num contexto de más re-
dade é que, além de irritarem os Estados lações com a URSS, e visando garantir a
ocidentais com a sua retórica marxista e a sua liberdade de ação (por definição con-
sua ação contra os seus interesses, nomea- trária a quaisquer alianças), arrogou-se o
damente na Assembleia Geral das Nações estatuto de potência neutral, como país
Unidas, não lograram a aceitação de todos do Terceiro Mundo, mediante a explíci-
os outros, dada a sua estratégia de alianças ta invocação da visão dos três mundos de
e as políticas por eles prosseguidas. Isso foi Mao. Henry Kissinger – que, enquanto
muito evidente na Conferência de Ban- secretário de Estado norte-americano, as-
dung, na qual se criou o Movimento dos sistira à emergência do Terceiro Mundo
Não Alinhados, como anteriormente refe- – descreveu a situação como interessan-
rido. Antes da Conferência, tinham-se rea- te, dado poder ser explorada pelos EUA,
lizado alguns importantes encontros entre mas letal para o futuro do Movimento dos
Estados – com destaque para a cimeira Não Alinhados. O futuro deu-lhe razão.
entre a China e a Índia –, que condiciona- O posicionamento ideológico marxis-
ram os passos seguintes. Os organizadores ta do Movimento dos Não Alinhados foi
da Conferência – Nehru, da Índia, Nasser, contestado pelo Ocidente. E, por ser não
do Egito, Tito, da Jugoslávia, Kofélawala, alinhado com a URSS, mereceu a con-
do Sri Lanca, e Sukarno, da Indonésia, o testação desta e dos seus aliados. E nem
anfitrião – convocaram a China, o Japão o seu ideário de conquista do poder do
e os dois Vietnames, mas não convidaram Estado e de transformação do mundo,
as Coreias. A União Soviética manifestou que merecera o apoio entusiástico de
vontade em participar, mas não foi convi- pensadores e partidos de esquerda no
dada. Mesmo depois do XX Congresso do Ocidente, ficou incólume às críticas. Em
Partido Comunista da União Soviética e 1978, Jacques Julliard escreveu, no Nouvel
do relatório de Krutchev, de fevereiro de Observateur, um texto intitulado “Le tiers
1956, em que a URSS deixou de conside- monde et la gauche”, no qual denunciou
rar os novos Estados independentes como a corrupção e a repressão de muitos re-
burgueses e reacionários, e passou a consi- gimes do Terceiro Mundo, concluindo
derá-los “regimes socialistas em gestação”, que “o direito dos povos [se tornara] o
a maioria dos Estados Não Alinhados con- principal instrumento de estrangulamen-
tinuou a rejeitar a União Soviética como to dos direitos humanos” (JULLIARD, Le
membro do bloco. Nouvel Observateur, 5 jun. 1978, 39). Em
Até finais da déc. de 60, o Movimento 1979, o jornal promoveu a publicação de
dos Não Alinhados floresceu e passou um livro com diferentes perspetivas sobre
a ter a maioria na Assembleia Geral das o terceiro-mundismo. As conclusões de
Nações Unidas, o que lhe permitiu com- Jacques Julliard não poderiam ser mais
bater o colonialismo e encontrar novos pessimistas, ao afirmar que o terceiro
aliados. Quando, em 1973, a Organização ‑mundismo falhara como “sucedâneo de
uma escatologia socialista, hoje arruina- tugal, exceto numa ocasião, em que foi
da” (Id., 1979, 37). muito utilizado: na campanha presiden-
A maior parte dos novos Estados inde- cial de 1986, a candidata Maria de Lurdes
pendentes acabou por se ligar a um dos Pintasilgo foi criticada por ser terceiro
blocos geopolíticos dominantes e, pos- ‑mundista; os seus adversários políticos,
teriormente, aos EUA. A influência do fundamentalmente à direita (o candidato
Movimento dos Não Alinhados, que se Freitas do Amaral), mas não só (também
autointitulara representante do Terceiro o candidato socialista Mário Soares), fala-
Mundo e reivindicara políticas alternati- ram do seu suposto ideário terceiro-mun-
vas às dos dois blocos, diminuiu drastica- dista. Curiosamente, nessas eleições, o
mente. A profunda transformação da or- único partido que apoiou formalmente a
dem internacional, que fora anunciada, candidata Maria de Lurdes Pintasilgo foi
não ocorreu. a União para a Democracia Popular, par-
Após o colapso da URSS e dos regimes tido de matriz marxista e maoista, desali-
de socialismo real, com os quais muitos nhado do Partido Comunista Português,
dos países ditos não alinhados tinham afi- e que simpatizava com o Movimento dos
nidades ideológicas, pelo menos na sua Não Alinhados.
oposição aos países capitalistas, a expres- Maria de Lurdes Pintasilgo rejeitou o
são “Terceiro Mundo” foi progressiva- epíteto dos seus adversários. De facto,
mente substituída pelas expressões “paí- nunca fora terceiro-mundista, embora o
ses em vias de desenvolvimento” e “países seu percurso político e cívico fosse singu-
emergentes”. lar. Católica e feminista, fora procurado-
Como perspetiva política e doutriná- ra à Câmara Corporativa durante o Esta-
ria, o terceiro-mundismo logrou alguma do Novo. Afirmava-se de esquerda e foi,
institucionalização no plano das organi- em democracia, a primeira mulher – e,
zações internacionais e da ação política pelo menos até aos começos do séc. xxi,
internacional, mas ela foi incomparavel- a única – que exerceu, em Portugal, as
mente inferior à verificada em França funções de primeira-ministra.
no período revolucionário. Por um lado,
porque a multiplicidade de Estados ter-
ceiro-mundistas dificultou o consenso.
Bibliog.: GIL, José, “Introdução”, in SIEYÈS,
Por outro lado, porque a feição ideoló- Emmanuel Joseph, O Que É o Terceiro Estado?,
gica antiliberal e anticapitalista do ter- Lisboa, Círculo de Leitores, 2009, pp. 11-39;
ceiro-mundismo suscitou a sua rejeição. JULLIARD, Jacques, “Le tiers monde et la gau-
O terceiro-mundismo é derrotado pela che”, Le Nouvel Observateur, 5 jun. 1978, p. 39;
política externa norte-americana de com- Id., “Le tiers monde et la gauche”, in DANIEL,
bate ao comunismo. Jean, e BURGUIÈRE, André (orgs.), Le Tiers Mon
A defesa dos valores ocidentais contra de et la Gauche, Paris, Seuil, 1979, pp. 36-40;
KISSINGER, Henry, Da China, Lisboa, Quetzal,
as várias feições do comunismo interna-
2011; SAUVY, Alfred, “Trois mondes, une planè-
cional constitui a marca por excelência te”, L’Observateur, 14 ago. 1952, p. 14; SIEYÈS,
do antiterceiro-mundismo, sem que, po- Emmanuel Joseph, Essai sur les Privilèges, s.l., s.n.,
rém, o mundo tenha acolhido os valores 1788; Id., Qu’Est-Ce Que le Tiers État?, s.l., s.n.,
ocidentais, como se comprova, e.g., com 1789; WALLERSTEIN, Immanuel, “De Bandung
o fenómeno do terrorismo internacional. à Seattle. ‘C’était quoi, le tiers-monde ?’”, Le
Raramente o termo “terceiro-mundis- Monde Diplomatique, ago. 2000, pp. 18-19.
mo” foi usado no debate político em Por- João Relvão Caetano
tribunal militar especial e a ser também em 1937, o deputado José Cabral chegou
alvo de penas especiais. No tratamento a propor – sem sucesso –, na Assembleia
dos “delitos políticos”, a recém-formada Nacional, o restabelecimento da pena de
Polícia de Vigilância e Defesa do Estado morte nos “crimes contra a segurança do
(PVDE) assume um papel fundamental, Estado”, a fim de fazer face “sem huma-
que inclui a possibilidade de detenção nitarismos suicidas” à “guerra do interior
privativa. Até 1945, a maior parte dos [interna]” que assolava o povo português
presos políticos era encarcerada devido (Diário das Sessões…, 6 dez. 1937, 211-213).
a participação em revolução, a propagan- Após a Segunda Guerra Mundial, o re-
da subversiva, a pertença a organizações gime encetou uma maior formalização da
partidárias proibidas, a desrespeito pela justiça política com a extinção dos tribu-
autoridade ou ao uso e porte de armas nais militares especiais e a sua substitui-
e explosivos proibidos. Neste período, ção por tribunais plenários, assim como
a categorização destes crimes como de com a criação da Polícia Internacional
terrorismo ainda não era regularmen- e de Defesa do Estado (PIDE), em subs-
te praticada, embora os alvos da política tituição da PVDE, com amplos poderes
repressora fossem identificados invaria- para a repressão e prevenção dos crimes
velmente como subversivos, extremistas contra a segurança interior e exterior do
e revolucionários, sendo vistos, na sua Estado. Será sobretudo a partir da segun-
maioria, como comunistas ou simpatizan- da metade do séc. xx que a descrição,
tes; no fundo, como elementos perturba- na legislação penal do Estado Novo, de
dores da ordem. No seguimento do aten- certos crimes como “terrorismo” terá
tado falhado contra o chefe do Governo, tendência a crescer, embora sempre de
e autores morais das FP-25, que foram uma organização internacional (art. 3).
também julgados por terrorismo, sendo Para além do endurecimento das penas,
condenados em 1987, mas amnistiados a nova lei também consagrou a respon-
em 1996 (com a oposição dos partidos sabilização criminal das pessoas coletivas
de centro-direita, que reclamaram a in- e entidades (como é o caso de possíveis
constitucionalidade da lei); e a morte do grupos transnacionais). De registar, tam-
primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, bém nesse ano, o reforço da cooperação
em dezembro de 1980, cuja tese oficial horizontal entre forças e serviços de segu-
de acidente foi sendo, com o passar dos rança, através da criação da Unidade de
anos, posta em causa, reforçando-se na Coordenação Antiterrorismo (UCAT),
opinião pública a suspeita de atentado exclusivamente dedicada à problemática
(e por conseguinte, de um ato terrorista). do terrorismo e com representantes da
A segunda fase do antiterrorismo do Autoridade Marítima, do Serviço de Es-
Estado português no regime democrático trangeiros e Fronteiras, da PSP, da GNR,
foi impulsionada pelos ataques do terro- do SIS e, em anos posteriores, do Serviço
rismo islâmico, primeiro nos Estados Uni- de Informações Estratégicas de Defesa e
dos e depois em território europeu. Foi do Ministério Público, refletindo assim a
sobretudo a partir de 2001 que a União procura de uma estratégia integrada, no-
Europeia (UE) fez do contraterrorismo meadamente a cooperação civil-militar,
uma prioridade, em vez de ser fundamen- contra um terrorismo também cada vez
talmente, como até então, uma questão mais integrado e complexo. É durante
de política interna de cada Estado; até este período que Portugal, como a maior
essa data, apenas 6 países, entre os quais parte dos Estados membros da UE, vai
Portugal, num total de 15 Estados mem- adotar, de forma a alertar a opinião pú-
bros, tinham legislação especificamente blica, um sistema de classificação – numa
antiterrorista. Em 2002, a UE aprovou escala de 1 a 5 – do nível de ameaça, defi-
uma decisão-quadro, a ser ratificada por nido pelo SIS, de um atentado terrorista,
todos os membros, relativamente à luta que pode ou não ser alterado de acordo
contra o terrorismo, destinada a harmo- com o contexto internacional. A partir
nizar as políticas e a cooperação a nível desta segunda fase – e tendo em conta
comunitário. Esta nova política euro- a intensificação do terrorismo transna-
peia foi cumprida, em Portugal, com cional –, o enfâse legislativo vai incidir
a aprovação pela Assembleia da Repú- cada vez mais na interdependência exis-
blica da Lei de Combate ao Terrorismo tente entre a segurança interna do país
(lei n.º 52/2003, de 22 ago.), criando-se e as componentes internacionais e de se-
assim um novo regime jurídico. A ideia gurança externa. É nessa perspetiva que
de que o terrorismo rompia fronteiras a UE, no seguimento dos atentados da
e era transnacional – nas suas fontes de Al Qaeda em Madrid, adota, em 2005, a
financiamento, nos seus apoios, na sua sua estratégia antiterrorista, a qual, para
mobilidade operacional e nos seus al- além de promover a coordenação entre
vos – constituiu uma das ideias mestras políticas e agências de segurança a nível
da nova lei, que acrescentava o crime de europeu, acentua a necessidade da “pre-
terrorismo internacional (art. 5) e, em venção” do terrorismo doméstico, no
“outras organizações terroristas”, todas sentido de conter a crescente radicaliza-
as situações em que os agentes pudessem ção e recrutamento para ações terroristas
ter como alvo um Estado estrangeiro ou que se verificava no interior dos Estados
menos, de divergência e crítica para com Barbo (ou Paulo Soncinas) e Crisóstomo
o modelo medieval de matriz aristotélico Javelli. Ora, estes comentadores de Aris-
‑tomista, em particular no que se refere tóteles segundo a mente de Tomás de
ao seu modo de conceber a teologia e a Aquino não podem ignorar o movimento
filosofia, criticando, especificamente, na- humanista e as novas posições filosóficas e
quela, a metodologia de exegese bíblica teológicas por ele aportadas. Deste modo,
e a conceção de moralidade, e nesta, a é possível observar alguma penetração da
metafísica e a lógica. Por antitomismo en- corrente humanista na própria escolástica
tende-se, desde esta perspetiva, uma visão de filiação tomista e, embora não possa-
do mundo conectada com o movimento mos falar de um antitomismo que a afete,
humanista da renascença, com o seu cri- é certo que o próprio ensino escolástico
ticismo do modelo escolástico medieval, de orientação tomista em alguns momen-
a abertura à ciência da época e à matriz tos se abrirá efetivamente à novidade.
antropológica aí veiculada, concretamen- Esse facto denota-se manifestamente no
te no que se refere à ciência médica, mas ensino da Teologia Moral e do Direito,
também à matemática e à física; o apreço originado na Univ. de Salamanca no iní-
pelas línguas e textos clássicos e a opção cio do séc. xvi, sobretudo quando a men-
por um modelo de conceção do mundo te dos grandes mestres se confronta com
de matriz platonizante. novas realidades antropológicas e cultu-
Contudo, mesmo no que à crítica ao rais, como as que derivam dos contactos
pensamento escolástico diz respeito, é com os povos indígenas, a sua religião e
preciso não deixar de ter em considera- cultura, e com os problemas éticos e polí-
ção que nem todo o ensino escolástico ticos derivados da conquista das Américas
é de linha e filiação tomista, convivendo pelas coroas espanhola e portuguesa. As-
esta com outras correntes, tais como o petos de compenetração entre escolástica
escotismo e o nominalismo, ambas de fi- tomista e humanismo podem verificar-se,
liação franciscana e platónica-agostiniana. por influência de teólogos como Francis-
Sendo assim, não obstante estas últimas co de Vitória, Domingo de Soto e Mel-
serem também doutrinas de escola, por- chor Cano, já no séc. xvi e na península
que ensinadas nas universidades, também Ibérica, nomeadamente no movimento
elas se podem considerar antitomistas, na que se designa por Escola de Salamanca.
medida em que não seguem as doutrinas As características deste movimento, que
ontoepistemológicas e teológicas de To- costumo designar por escolástica huma-
más de Aquino e, por vezes, a elas aberta- nista, originado em contexto académico
mente se opõem. Inversamente, convém de modelo escolástico e de orientação
ter presente que o movimento designado tomista, que soube assimilar aspetos de
por humanismo renascentista não elimi- novidade e estar atento à mudança dos
na o ensino escolástico de filiação tomista, tempos, surtem um efeito colateral curio-
que permanece ligado, nomeadamente so nos autores mais fiéis ao tomismo, que
ao longo do séc. xv, sobretudo ao ensino vem a ser o de uma maior preocupação de
universitário regido pela Ordem dos Pre- proximidade doutrinal ao fundador Aqui-
gadores. Entre os comentadores italianos no, verificada, e.g., na obra de teólogos da
deste período que são fiéis à doutrina designada segunda Escola de Salamanca,
de Tomás de Aquino destacam-se nomes como Bartolomeu de Medina, Domingo
como Francisco Silvestre ou de Ferrara, Bañez e, mais tarde, já em pleno contexto
Tomás de Vio (cardeal Caetano), Paulo contrarreformista, João Poinsot, alias, de
ou, mais perto de nós e atuando em áreas De acordo com o exposto, enunciaremos
de ponta, como a ética e a bioética, a que de seguida algumas nótulas identificativas
se ligam nomes como Edmund Pellegrino de uma forma outra de sentir e de pen-
e David Thomasma –, o tomismo é contes- sar, em obras de autores portugueses que
tado pelas filosofias e teologias que privi- agiram no contexto da instituição univer-
legiam a historicidade da razão e atendem sitária, numa época em que a doutrina de
a uma conceção do homem e da natureza Tomás de Aquino era proposta e assumi-
essencialmente dinâmica, validadas pelos da pelas autoridades competentes como
desenvolvimentos contemporâneos da fí- aquela que deveria ser seguida no ensino
sica e da ciência médica, com consequen- da Filosofia e da Teologia.
tes repercussões éticas, antropológicas e Tal época histórica coincide com o en-
sociológicas. sino ministrado, no séc. xvi, nas univer-
De quanto até agora expusemos acerca sidades portuguesas de Coimbra e Évora.
do tomismo, deduziremos o horizonte se- Contudo, o ensino da Teologia e da Filo-
mântico do conceito de antitomismo, tal sofia em Portugal neste período, no que
como aqui o iremos considerar. A abor- se refere ao plano de estudos e ao inter-
dagem que aqui se fará será direcionada câmbio de docentes, está intimamente re-
para os autores que agiram em Portugal, lacionado como o mesmo ensino nas de-
e o âmbito semântico do conceito será es- mais universidades da península Ibérica
clarecido à luz dos seguintes parâmetros: e, mesmo, com o projeto de ensino para
1) correntes filosóficas e teológicas de além deste espaço geográfico, haja em vis-
filiação agostiniana-franciscana, atuando ta as relações, nomeadamente, com Fran-
no contexto institucional das universida- ça e com Itália, numa primeira fase, e, já
des; 2) correntes de pensamento ligadas no séc. xvii, mesmo com os territórios de
ao movimento intelectual designado por além-mar, sobretudo a Oriente, como o
humanismo renascentista; 3) doutrinas Japão e a China. O movimento ligado à
filosóficas e teológicas associadas com filosofia ética e política iniciado por Fran-
o movimento da Reforma; 4) tópicos de cisco de Vitória, em Salamanca, está hoje
controvérsia explícita. amplamente estudado e documentado
Mais do que mediante uma controvér- e nele se podem verificar características
sia aberta ou um enfrentamento de esco- daquilo que já antes designámos como
las, que não são características essenciais humanismo escolástico. Apesar do apa-
da identificação do conceito no contex- rente paradoxo que envolve a expressão,
to português, exceto porventura para a ela dá conta de uma escolástica aberta ao
discussão teológica em torno da piedosa diálogo com as descobertas científicas do
doutrina acerca da conceção imaculada tempo, às posições teóricas dos humanis-
da Virgem Maria – que adiante glosare- tas e a uma nova conceção antropológica
mos –, antitomismo significa, na nossa e cosmológica, que emerge necessaria-
abordagem, a adoção de um conjunto mente no confronto com a realidade
de proposições no domínio filosófico e humana e até mesmo cósmica que deriva
teológico divergentes das explicadas por do encontro da cultura ocidental conti-
Tomás de Aquino e pelos seus comenta- nental com o Novo Mundo. Assim, é por
dores, menos próximas da lógica e da me- iniciativa do próprio Francisco de Vitória
tafísica aristotélicas e mais consonantes que – à semelhança do que se praticava
com outras correntes ou escolas filosófi- em Paris e já em diversos colégios de or-
cas, e/ou carismas de profissão religiosa. dens religiosas, mesmo em Espanha – o
Esta confluência de fatores torna de ex- ção entre estes e o direito dos povos. Na
trema complexidade a nossa compreen- verdade, Vitória e Soto abrem o caminho
são de um período da história das ideias para a consideração de um direito subje-
e das culturas ainda pouco estudado e tivo, e o nosso Dominicano, professor em
envolto em obscuridade, dependente de Coimbra, dá conta, no seu comentário,
fontes ainda amplamente ignoradas, a dos riscos da influência desta nova inter-
maior parte delas subsistente em latim e pretação nos domínios ético e político.
sob forma manuscrita. No manuseamento O tomismo de Suárez também deixa mui-
de fontes que pude realizar até à data, no to a desejar, razão pela qual foi criticado já
âmbito de alguns projetos de investigação no seu tempo pelos correligionários. Luis
que dirigi ou em que participei, verifi- de Molina é, por seu turno, um leitor assí-
quei divergências, por vezes subtis, face à duo de Agostinho de Hipona e adota de
doutrina de Aquino, sobretudo no que se perto as suas doutrinas no que se refere
refere a questões envoltas em ambiguida- à natureza da liberdade, à concordância
de na exposição do próprio Angélico. Da desta com a presciência e ao problema
análise feita, tenho dificuldade em inscre- da predestinação. O facto de todos estes
ver, sem mais, sob designação de tomistas autores serem comentadores de S. Tomás
posições de teólogos como António de de modo algum permite considerá-los to-
S. Domingos, Francisco Suárez, Egídio da mistas, sendo, contudo, necessário identi-
Apresentação, Cristóvão Gil, Luis de Mo- ficar até que ponto as suas doutrinas em
lina, Fernando Pérez, entre muitos que, questões particulares, ou no todo, se apro-
por vezes, encontramos colocados sob a ximam ou divergem, por vezes mesmo
mesma designação. Assim, e.g., no estudo abissalmente, das posições do Angélico.
comparativo que realizei sobre a questão Por sua vez, cremos que se esses pontos de
específica vtrum ius gentium sit idem cum divergência não permitem classificar aber-
iure naturali – se o direito dos povos é o tamente as doutrinas destes autores como
mesmo que o direito natural –, que cor- antitomistas – pois, na maior parte dos
responde ao comentário à Suma de Teolo- casos, não se trata de um afastamento no
gia, II-IIæ, q. 57, a.3, verifiquei a crítica de âmbito de controvérsia, mas sim no exer-
António de S. Domingos, Dominicano, a cício da liberdade do pensar e na procura
Vitória e a Soto, também Dominicanos, de encontrar a melhor explicação racio-
por, na opinião daquele primeiro, estes nal para os desafios da época –, permitem
se afastarem do sentir de Aquino, por um ao menos uma melhor compreensão do
lado; e a divergência entre Fernando Pé- que se produziu nas universidades portu-
rez, sj, e António de S. Domingo, por ou- guesas, da liberdade de pensamento em
tro, pela maior abertura da interpretação exercício e da confluência de correntes
do Jesuíta, quando confrontada com a do filosóficas e teológicas, num contexto ins-
Dominicano, no que diz respeito à defesa titucional onde o ensino da Filosofia e da
da radicação do conceito de ius gentium no Teologia estava fortemente dependente
direito natural. António de S. Domingos da Coroa e da instituição eclesiástica, com
critica abertamente Soto, pois afirma que normas didáticas e doutrinais pouco flexí-
considerar o direito dos povos como um veis e cujo incumprimento foi, em alguns
direito positivo levaria à subjetivização de casos, ocasião de fortes penalizações para
um conjunto de normas que só Deus pode os que a ele se atreveram.
revogar, como as que estão nos manda- A par desta atividade dos teólogos que
mentos do decálogo, pela estreita vincula- agiram em contexto universitário, os
salir deste camino y mirar las cosas más de emerge para cada problema. Afinal, é
raíz, de lo cual nace que ordinariamente esta atitude que louvamos nos grandes fi-
parece llevan mis cosas algo de novedad, lósofos e é ela que se verifica na leitura
quier en la traza, quier en el modo de de- da obra de Suárez. Assim é quando adota
clararlas, quier en las razones, quier en a conceção escotista da univocidade do
las soluciones a las dificultades, quier en conceito objetivo de ente como base da
levantar algunas dudas que otros no tra- sua metafísica, a qual se torna inconciliá-
tan de propósito, quier en otras cosas que vel com a tradicional tese tomista da dis-
siempre se ofrecen; y de aquí pienso que tinção real entre essência e existência; as-
resulta que, aunque las verdades que se sim é quando no seu De Passionibus rejeita
leen no sean nuevas, se hagan nuevas por a taxonomia das paixões da alma, promul-
el modo, o porque salen algo de la verdad gada por Aquino na Suma de Teologia, cri-
de los cartapacios [o modo de ler que eu ticando-a e à posição que lhe subjaz sobre
tenho [...] é diferente dos que usam os a natureza do composto humano, optan-
outros por cá, porque há o costume de ler do explicitamente pela divisão escotista e
por cartapácios, lendo as coisas mais por pela antropologia que, para o caso parti-
tradição de uns a outros do que olhando cular, lhe está subjacente; assim é quando
‑as profundamente e tirando-as das suas debate a possibilidade do conhecimento
fontes, que são a autoridade sacra, a hu- racional da destinação do homem a um
mana e a razão, cada coisa segundo o seu fim último sobrenatural no seu De Fine
grau. Procurei sair deste caminho e olhar Ultimo Hominis, discutindo a controversa
as coisas mais de raiz, donde resulta que, possibilidade, postulada por Aquino, de
ordinariamente, parece que as minhas tal conhecimento. É este paradigma de
coisas têm alguma novidade, quer no tra- um pensar aberto e em diálogo com a tra-
ço, quer no modo de as declarar, quer nas dição que aqui aproximamos da conceção
razões, quer nas soluções às dificuldades, de um antitomismo. Ao menos no caso de
quer no levantamento de algumas dúvidas Suárez, foi assim que tal posição foi en-
que outros propositadamente não tratam, tendida pelos seus contemporâneos. Com
quer em outras coisas que sempre se apre- ela se indica a atitude filosófica e teológi-
sentam. Considero que o resultado disto ca de construção do saber e de resposta
é que, apesar de as verdades que se leem aos desafios do tempo, aberta às melhores
não serem novas, se tornem novas pelo interpretações e em busca delas, que de-
modo, ou porque fogem um pouco à ver- notam tantos escritos filosóficos produzi-
dade dos cartapácios]” (PONCELA, 2000, dos no período que nos ocupa. Afinal, é
100-101). nesse período que a dicotomia tomismo/
A raiz da defesa de Suárez contra a antitomismo porventura mais se eviden-
acusação de antitomista é justamente o cia, ao menos no que se refere à cultura
princípio da liberdade de pensamento, portuguesa.
inerente a uma leitura crítica e reflexiva Neste contexto, mas agora a partir de
da história da filosofia e da teologia, a uma questão claramente de sede teoló-
profundidade de análise dos argumentos gica, importa referir a polémica que, en-
e objeções e, mesmo, o arrojo de colocar quanto tal, i.e., em contexto de efetiva
em causa argumentos de autoridade, mes- controvérsia doutrinal, mais dividiu os to-
mo os proferidos por Aquino, quando se mistas de outras escolas, nomeadamente
comprova que, abandonados estes, uma a escotista. Aqui, podemos falar com pro-
conceção dotada de sentido mais amplo priedade de uma doutrina antitomista,
ordem à realização de um plano salvífico. cas, devendo o Reitor contribuir para elas
Assim, o Doutor Subtil considera a conve- com uma participação monetária” (Id.,
niência da geração imaculada da criatura Ibid.).
humana Maria, Mãe de Cristo, e raciocina Porém, no início do séc. xvii, a polémi-
do seguinte modo: em ordem à sublime ca entre defensores da tese imaculista e
perfeição de Cristo, Verbo de Deus incar- seus opositores reacende-se em Portugal
nado, e, portanto, sem pecado, é adequa- – então sob administração espanhola – e
da e conveniente a perfeição imaculada em Espanha, e o problema torna-se uma
de sua Mãe. Deus pode criar um ser não espécie de causa do reino, tomando pro-
sujeito ao pecado original. Se pode criar porções políticas e ideológicas. Como
tal ser; e se criar tal ser é um ato mais per- evidencia Fonseca, esse reacender da con-
feito do que não o criar, então cria. trovérsia leva Filipe III a solicitar a todas
Ambas as doutrinas, não podendo, por as universidades da península que escre-
sua própria natureza, ser demonstradas vam ao Papa explicitando a sua opinião
por evidência racional apodítica, são ad- neste assunto. Em Coimbra, o pedido foi
mitidas como sentenças prováveis. Ora, bem aceite, à exceção, naturalmente, dos
como nota Taveira da Fonseca, a univer- professores dominicanos Vicente Aranha
sidade parisiense é a primeira a adotar a e João Aranha. Da consulta ao Claustro
tese de Escoto, decretando a celebração Pleno e em resposta ao Rei resultou uma
da festa, “no que é seguida pelas de Ox- forma diplomática de contornar a exigida
ford e Cambridge e, mais tarde por esta- posição formal por escrito. Basicamente,
tuto de 1496, ordena que todos os seus a carta emanada da reunião da Junta de
doutores façam juramento de defender Lentes, presidida pelo reitor, mas à qual
perpetuamente o mistério da Imaculada faltaram aqueles dois professores domini-
Conceição e determina não admitir aos canos, sugeria ao Soberano que, em vez
graus quem não fizer tal voto e juramento. de ser a Universidade a dar o seu parecer
No seguimento de Escoto, numerosos teó- sobre a matéria ao Papa, a pedido do Rei,
logos, sobretudo da Ordem franciscana, fosse o Rei a solicitar ao Papa que fizesse
tornaram-se defensores deste privilégio o pedido à Universidade. A deliberação
da Virgem Maria [...] A Ordem religiosa sobre o conteúdo da resposta à consulta
que constituía exceção era a dos Domini- do Rei acerca da posição da Universidade
canos que, na convicção de se manterem em matéria teológica sobre a imaculada
na esteira de Santo Tomás, negavam a conceição seria a seguinte: a Universidade
conceição imaculada” (FONSECA, Centro sempre defendera, desde a sua fundação,
Académico…, 8 dez. 2003). que a Virgem Maria foi preservada do pe-
Na Univ. de Coimbra, a doutrina imacu- cado original e esse era o sentir de todos
lista fora explicita ou implicitamente ado- os doutores presentes na Junta (VASCON-
tada e, ainda segundo o mesmo erudito, CELOS, 1904, 77). Por então, a situação
os Estatutos de 1559 e os de 1597 (ratifica- ficou nestes termos, mas a polémica iria
dos em 1653), “confirmavam a celebração reacender-se no período posterior à Res-
da festa de Nossa Senhora da Conceição, tauração, quando alguns membros da or-
deslocando-se, na véspera e no próprio dem franciscana portuguesa, porventura
dia, todos os membros da comunidade no calor da decisão do Monarca de en-
universitária, sub poena praestiti iuramenti, tronar a Santíssima Conceição padroeira
ao Colégio de Tomar, da Ordem de Cris- de Portugal, em ato solene realizado a 25
to, para participar nas celebrações litúrgi- de março de 1646 nos Paços da Ribeira,
corresponder a uma marca negativa como nante no séc. xviii, e no caso português
a uma imagem positiva, e que em alguns consolidada pelos liberalismos da centú-
casos equivale, de facto, a um eufemismo ria seguinte, pode emergir um antitradi-
que sufraga os posicionamentos radicais, cionalismo.
moderando-lhes os paroxismos sectários Este depende, portanto, de um qua-
e efetuando uma sorte de saneamento dro de pensamento moderno no qual
ideológico (&Antiprogressismo). Porém, prevalece uma perspetiva de historicida-
esse pendor característico, que quase de, i.e., uma diagnose da ação no (e do)
instintivamente nos condiciona, gera lei- tempo referida primordialmente aos seus
turas desistoricizantes, tingidas de pressu- agentes (e sujeitos) intrínsecos – indiví-
postos nossos contemporâneos, que em duos, classes, nações, etc., e, por outro
muitos casos não contribuem para uma lado, ideologias, projetos, aspirações. Só
abordagem lúcida e objetiva dos fenóme- numa perspetiva de linearidade históri-
nos a descrever no plano das transforma- ca, que admite a liberdade dos agentes
ções sociais e das mentalidades. em face de todas as suposições de carác-
Reside o segundo equívoco em supor ter teleológico, se torna possível encarar
que uma atitude antitradicionalista cor- o passado como outra coisa que não uma
responde por definição a uma apologia do prefiguração determinativa do presente.
novo, quando pode bem tratar-se de – ou Essa transformação mundividencial sur-
apresentar-se como – um revivalismo, um ge-nos indiciada no termo “revolução”,
integralismo, um saudosismo, um funda- que evoluiu de um sentido relaciona-
mentalismo, que contrapõe tradição a tra- do com a ideia de retorno, conforme
dição, que convoca ortodoxia contra or- ao étimo latino (o re-volver, uma curva
todoxia. Aliás, é plausível que a oposição fechada, a ciclicidade da revolução dos
de tradicional a novo e/ou a moderno, orbes celestes), para vir a designar uma
hoje corrente e quase imediata, fosse con- alteração súbita e profunda, uma cesura
traintuitiva, e porventura absurda e cho- histórica, sentido que na atualidade usu-
cante, até à Idade Contemporânea, quer frui de maior realce. Não dispomos de
dizer, a uma viragem situada algures nos um dicionário histórico da língua portu-
sécs. xviii‑xix. De acordo com esta hipó- guesa, mas é provável que a reierarqui-
tese, um antitradicionalismo, em sentido zação de significados tenha ocorrido na
próprio, apenas se torna pensável adentro viragem para o séc. xix (parece indicá
de um entendimento linear e, sobre isso, ‑lo o Dicionário de Moraes). Pode-se ainda
secular da temporalidade humana e civili- conjeturar que outros termos atinentes à
zacional, pois é em semelhante contexto possibilidade de fratura temporal e à re-
que a rutura pode verdadeiramente con- lação com o passado tenham vindo a exi-
ceber-se. Na persistência de conceções da bir derivações semânticas análogas. No
história ancoradas em qualquer tipo de caso da palavra “radical”, que etimologi-
providencialismo, em particular se este as- camente remete para “raiz”, sugerindo
sumir contornos profético-apocalípticos, integridade e fidelidade a uma ideia ma-
e enquanto imperam conceções cíclicas tricial, veio a predominar o sentido de
da história, um antitradicionalismo não mudança extrema, de corte e até de abu-
passa de uma contradição lógica ou retó- so, desvio ou corrupção de uma noção
rica, um capricho do pensamento ou do originária. E mesmo o termo “ortodo-
verbo. Só na modernidade instaurada à xia”, nomeadamente em contextos que
escala europeia pelo Iluminismo culmi- se prendem com o controlo institucional
das ideologias, tem deixado muitas vezes taram na formação das Igrejas Ortodoxas
de descrever aqueles que são detentores a partir do séc. xi e dos protestantismos
de uma certa verdade, e da verdade cer- dos alvores da Idade Moderna. Anuncian-
ta, para denunciar aqueles que exercem do fidelidade a um passado onde se pos-
impositivamente uma autoridade castra- tula encarnada a verdade, a avocação de
dora e inflexível: àqueles que têm (ou ti- ortodoxia e de reforma nos nomes pelos
nham) a faculdade de caucionar outros quais ficaram conhecidas as igrejas assim
foi retirada a caução no uso corrente do fundadas é sintomática do argumento,
idioma. Como nos casos anteriores, a que as animou, de recuperação de uma
aceção expressiva da continuidade e da autenticidade perdida. Em rigor, a retó-
permanência cedeu a primazia à valori- rica do novo – uma atitude assumida de
zação de uma mudança extrema. antitradicionalismo – tem especial falta
Adotando um ângulo de visão mais de cabimento nesse contexto.
aberto, é proveitoso sublinhar que a As reticências quanto ao avançar osten-
cultura portuguesa não é excecional a sivo de rasgadas novidades intelectuais
este respeito. Os cognatos de revolução, são notoriamente duradouras. No âmago
radical e ortodoxia sofreram evoluções do Iluminismo, ainda, quando Descartes,
semânticas similares em outras línguas, na iv parte do Discurso do Método (1637),
como o inglês e o francês. O dado rele- enuncia a regra da evidência, está a con-
vante é que o vocabulário do puro e sim- trapor o seu método à evidência daquele
ples enfrentamento da tradição tardou a senso comum que empiricamente nos
estabelecer-se, decerto porque as barrei- indica que o Sol se move em torno da
ras colocadas à plena admissibilidade des- Terra, enquanto, por outro lado, glosa a
se desiderato, no plano das mentalidades, terminologia da escolástica. Preterindo
só foram derrubadas no dealbar da Idade uma eventual substituição do vocabulá-
Contemporânea. O problema insere-se, rio a uma sua mera modulação, o filósofo
pois, no domínio das representações: não francês parece querer deixar virtualmen-
tendo escasseado polémicas e ruturas em te incólume a autoridade de um quadro
períodos anteriores, é característica de epistemológico que, neste ponto em
épocas recentes a possibilidade de enten- particular, ousa pôr em causa apenas de
der e exprimir o sentido desses desenvol- forma camuflada. Empregando uma lin-
vimentos em termos fortemente polari- guagem moderada, Descartes perfila-se
zados e subordinados a um princípio de como um pensador que interfere num
exclusão. O que caracteriza os períodos contínuo cujo curso não pretende alte-
anteriores é a invocação de tradição con- rar de modo significativo, quando, sob o
tra tradição. Os movimentos de contesta- verniz, está a introduzir novidades subs-
ção afirmam-se mais verdadeiros do que tantivas. A prova disto é que, ao contra-
os adversários, que impugnam por cor- por uma racionalidade analítica e espe-
ruptos. São novas – ditas – ortodoxias que culativa ao senso comum empírico, lança
questionam as ortodoxias vigentes, visan- uma pedra angular de outra tradição de
do tomar o seu lugar. Já nós vivemos num pensamento.
tempo que aprecia o heterodoxo. No domínio das artes, e em especial da
Exemplos de tradição (dita pristina) literatura, também na extensa querela
contra tradição (alegadamente decaída dos Antigos e dos Modernos – e debates
ou adulterada) são os grandes cismas dog- adjacentes, como a polémica do Cid, em
mático-eclesiais da cristandade, que resul- França, e a controvérsia entre Gottsched
ta [...] pode largar as velas à sua fantasia, do (os artigos da disputa foram coligidos
e voar até descobrir novos Mundos. Feliz por Maria Filomena Mónica em A Europa
aquele, que não só imita, mas excede ao e Nós). Vive-se sob o consulado do Mar.
seu Original” (Id., Ibid., 333). Por seu tur- Saldanha e ainda no rescaldo da Grande
no, Cândido Lusitano também tempera Exposição de Londres de 1851, que pa-
aquele absolutismo crítico aquando da tenteou, no Palácio de Cristal, as mais
reescrita de um clássico de segunda or- recentes maravilhas da técnica. O minis-
dem, pois que não dimana da Antiguida- tro das Obras Públicas, Fontes Pereira
de, sendo embora suposta personificação de Melo, quer renovar profundamente
da mesma norma. Inflete na tradução as vias de ligação terrestre à Europa pela
de Racine, cuja Athalie traslada em 1762, construção de linhas de caminho de fer-
quanto conveniente para uma profícua ro (o primeiro troço seria inaugurado em
e demonstrada vernaculidade, que aliás 1856). Escrevendo no diário O Portuguez,
arguiu numa “Dissertaçaõ do traductor” Herculano interroga o rumo de um pro-
e em copiosas notas, ele que é denoda- gresso que teme ponha em risco a inde-
do teórico da língua portuguesa e mui- pendência de Portugal, ameaçado de ab-
to porfia contra a sua estrangeirização. sorção por Espanha. A seu ver, o caminho
O purismo linguístico é revelador de um de ferro “é o coveiro que abre a sepultura
contexto em que todos recusam uma pu- das nações” mais pequenas (MÓNICA,
tativa categorização como antitradiciona- 1996, 27). Replicando em A Revolução de
listas, vindicando, ao invés, a sua fidelida- Septembro, Lopes de Mendonça aplaude
de a patrimónios herdados. sem reservas aquela que entende ser a es-
A peleja entre filintistas e elmanistas, a trada para desenvolver social e economi-
jusante no mesmo século e espraiando-se camente o país e para o civilizar, quer por-
como uma bifurcação do gosto por poe- que se torne assim mais próspera e culta a
tas de gerações subsequentes, trava-se população, quer porque com a via férrea
ainda pelo confronto entre os preceitos chegará a “carta de alforria” que fará de
de um rigorismo formal e de uma linha cada homem, convertido ao bem-estar,
mais transigente em matéria de inovação “um apóstolo dos princípios liberais”
estilística. Com um Almeida Garrett e um (Id., Ibid., 29). Mendonça reclama para
António Feliciano de Castilho, já na cen- o seu lado “a abnegação, o patriotismo”
túria seguinte, o próprio romantismo não (Id., Ibid., 43). Declara-se contra “a misé-
dá mostras de pretender votar ao esqueci- ria” e “o estacionamento” (Id., Ibid., 60).
mento a tradição dos clássicos, incluindo Clama de passo contra “os governos rea-
os debates críticos que permitem mantê cionários da Europa” (Id., Ibid., 31) e diz
‑la operacional na praxis literária. que se sente “o horror invencível às trans-
Diverso é o sentido da polémica entre formações económicas” (Id., Ibid., 30).
Alexandre Herculano e António Pedro Com ironia, chama “ordeiros” e “idealis-
Lopes de Mendonça em 1853, e não tas” aos adversários, acusando-os de per-
apenas, nem sobretudo, por se reportar manecerem alheados dos problemas da
a uma vertente diversa da vida social. época, quando não de serem hipócritas
O timbre do debate é agora distintamente (Id., Ibid., 41-44, 63-64, 66-68). No calor
outro, por não hesitar Lopes de Mendon- da refrega jornalística, não desdenha exa-
ça em declarar a sua crença indefetível gerar e deformar a posição conservadora,
no progresso e por reivindicar as vanta- dirigindo-se aos antagonistas com total
gens de um corte decidido com o passa- desassombro: “Que conclusões quereis
tirar daí? Que devemos comprar a nos- 1850, e no debate com o P.e Francisco
sa nacionalidade, à custa da nossa civili- Recreio – aparece como confutador de
zação? Que devemos ser miseráveis para ideias arraigadas, como um desmistifica-
ser livres? Que para conservarmos uma dor. Em Herculano, o rosto do tradicio-
tradição, devemos permanecer isolados, nalista e o do antitradicionalista são um
bisonhos, selvagens, estranhos a todos e o mesmo: são as circunstâncias que os
os progressos, excomungados de todas fazem, que os posicionam. E podemos
as ideias que transformam as sociedades dizê-lo também de outra maneira: o con-
modernas?” (Id., Ibid., 32). Trata-se de ceito de tradição não designa um todo
uma interpelação falaciosa e caricatural. homogéneo; (co)existem tradições, no
Decerto não é em Herculano que se acha plural – a do municipalismo, a da apari-
a apologia de uma nação “selvagem”. ção de Cristo a D. Afonso Henriques –, e,
Herculano tem, aliás, o caminho de ferro portanto, (co)existem tradicionalismos
por útil e inevitável. O que o preocupa e antitradicionalismos, seja a marcar a
é a inexistência de medidas que acaute- fisionomia individual de um dado inter-
lem a defesa da individualidade nacional, veniente, seja nos acentos informadores
ameaçada de fundir-se com a de Espanha de uma época.
em resultado do reforço dos interesses O democrata Lopes de Mendonça abra-
comuns. A seu tempo, no decurso da ça jubilosamente o epíteto lançado pelo
contenda, Herculano vem a especificar interlocutor e empolga-se na visão de uma
uma medida de salvaguarda: a descentra- nova era: “São medidas de guerra estas.
lização administrativa, com a restauração Guerra contra a barbaridade, contra a
do municipalismo, porquanto crê nos miséria, contra a ignávia, contra a pregui-
patriotismos locais como fundamento do ça. [...] Estamos agora também empenha-
patriotismo nacional. O historiador faz, dos numa grande conquista: a conquista
deste modo, uma profissão de fé política da civilização” (Id., Ibid., 45). O tom exal-
que remete palpavelmente para o passa- tado é uma marca dos artigos de Mendon-
do, declarando-se, em simultâneo, muni- ça. É também uma marca do mais extrava-
cipalista e não democrata. gante movimento de repúdio da tradição,
É interessante ressaltar ainda dois as- o futurismo de inícios do séc. xx. Pelo Por-
petos desta controvérsia que relevam de tugal Futurista, de que saiu número único,
um modo mais geral para o nosso tema. em 1917, dirigido por Carlos Filipe Porfí-
Em primeiro lugar, é brandida de par- rio, desfilam as mais retumbantes procla-
te a parte a palavra “revolução”, com o mações contra todos os tipos de nostalgias
sentido que se nos tornou mais familiar, e venerações. Numa colagem feita por Be-
de processo transformador ou de “uma tencourt-Rebelo, que reúne fragmentos
ideia que anula, que mata a ideia ante- de textos de Marinetti e de outros futuris-
rior” (Id., Ibid., 109). Este dado dá teste- tas italianos, pode ler-se: “O homem como
munho de que se encontra consumada a um divino génio do mal emancipa-se da
deslocação semântica que acima referi- tutela vergonhosa do Passado e da Tradi-
mos. Em segundo lugar, importa não eli- ção” (BETENCOURT‑REBELO, 1917, 6).
dir o carácter multifacetado da interven- O enunciado atinge uma dimensão onto-
ção intelectual e cívica de Herculano, lógica quando visiona a possibilidade de
que em outras ocasiões – notoriamente quebrar “a hostilidade aparentemente
na questão do Milagre de Ourique, hi- irredutível que separa a nossa carne hu-
postasiada no opúsculo Eu e o Clero, de mana do metal dos motores. Depois do
cumplicidades que surpreenda, se aten- publica o manifesto Nós, faz jus àquela
tarmos no percurso político dos futuris- condição, ainda que por essa altura os
tas de outros países, que compactuaram, correligionários do futurismo tenham já
e por vezes arrebatadamente, com os to- morrido (Santa-Rita e Amadeu de Sousa
talitarismos emergentes e/ou instalados, Cardoso em 1918) ou se dediquem a ex-
fornecendo a Itália e a União Soviética perimentar trajetórias divergentes (Pes-
os exemplos mais notórios. De resto, as soa e Almada). Encenando na página
ambivalências são óbvias, em especial no um tenso diálogo entre Eu e a Multidão,
terreno do nazi-fascismo. Esses regimes, o autor de Nós profere afirmações como:
que se querem energicamente progres- “O passado é mentira, o passado não exis-
sistas, desenvolvem um imaginário e ado- te, é uma calúnia...” e “Um comboio que
tam simbologias nos quais reverbera uma passa é um século que avança. Os com-
memória histórica mais ou menos falsi- boios andam mais depressa do que os
ficada: os fasci, a suástica, a saudação de homens. Sejamos comboios, portanto!”
braço estendido, Siegfried e os Nibelun- (FERRO, 1987, 149). Saído das fileiras do
gos, o mito da raça ariana. Numa verda- modernismo, Ferro entusiasma-se com
deira duplicidade de Jano, a ditadura de reais ou putativos ditadores (Filomeno da
Mussolini organiza uma Mostra Augustea Câmara, Gabriele d’Annunzio) e, fazen-
della Romanità, por ocasião do bimilená- do nome como jornalista, tem a oportu-
rio de Augusto César, em 1937, capitali- nidade de entrevistar alguns dos homens
zando a favor do império a haver a evoca- fortes da política europeia. Publicadas
ção do império da Antiguidade. inicialmente em jornais como o Diário
Há, nos gestos e nas políticas, paralelos de Notícias, muitas dessas entrevistas vêm
com o paradoxo de um Estado que entre a ser coligidas sob a forma de livros: Via-
nós se diz Novo e que é constitutivamen- gem á volta das Ditaduras, de 1927, onde
te retrógrado e nostálgico, preconizando se plasma um especial fascínio por Mus-
oficialmente não a rejeição, mas a revisão solini e onde figuram vultos como Primo
da história. Encarado deste ponto de vis- de Rivera, Kemal Atatürk e Pio XI; Praça
ta, o percurso de um António Ferro con- da Concórdia, de 1929, onde são entrevis-
sistiu menos na passagem da condição tados Foch e Pétain; e as conversas com
de modernista à condição de apologeta Salazar, saídas em 1933 com o título Sa-
do salazarismo do que na manifestação lazar – o Homem e a Sua Obra. Sendo-lhe
de faces contrastantes cuja coexistência nesse ano confiada a direção do Secre-
é congruente com a fatura paradoxal de tariado da Propaganda Nacional (SPN)
posicionamentos ideológicos coetâneos (a partir de 1944, Secretariado Nacional
em outros países. da Informação, Cultura Popular e Turis-
Em 1915, Ferro surge em lugar de mo (SNI), que superintendia aos serviços
evidência precoce no mundo das letras de censura), cargo que abandona apenas
como editor de Orpheu, onde sai a “Ode em 1949, Ferro giza uma longa campa-
marítima” de Pessoa-Campos, poema em nha pelo bom gosto e pela moral. Sob a
que se descortinam traços futuristas. Fer- sua chefia, o SPN/SNI assume uma fun-
ro pouco ou nada terá contribuído para ção agregadora dos artistas de vanguar-
a revista, mas vê-se cooptado para o esta- da, visando neutralizar-lhes o potencial
tuto nominal de editor por ser, enquanto subversivo e pondo a sua criatividade ao
menor, legalmente inimputável. De qual- serviço de uma certa ideia de pátria, de
quer modo, quando, seis anos mais tarde, conformidade e bons costumes. Através
cismo medievo, bebendo aqui da visão de obedientes e imbecis; foi a isto que leva-
Alexandre Herculano, que fazia da Idade ram as famosas Missões do Paraguai; o Pa-
Média a era dourada da nacionalidade, os raguai foi o reino dos céus da Companhia
Jesuítas tinham tido parte fundamental de Jesus, perfeita ordem, perfeita devo-
na sua ideação. Este catolicismo da Con- ção; uma só coisa faltava, a alma, id est, a
trarreforma, caracterizado como estando dignidade e a vontade, o que distingue o
marcado por uma sede de poder ilimitado homem da animalidade” (Id., Ibid., 280).
de natureza teocrática, é definido como Subjacente a esta visão está a matriz míti-
um “ultramontanismo invasor”, que tre- ca dos Jesuítas estabelecida por Pombal,
pou por cima de todas as legitimidades que atribuiu a estes padres o colossal pla-
nacionais e desencadeou o “protesto das no de formar um reino independente na
Igrejas da Península” (Id., Ibid., 272-276). América do Sul, à custa do cerceamento
Esta Igreja peninsular é descrita à luz do das possessões portuguesas e espanholas
carácter atribuído à raça hispânica, que daquele continente.
lhe confere um especial espírito de au- Na ótica anteriana, o catolicismo pós
tonomia em relação ao poder centralista ‑tridentino, moldado pelos Jesuítas, é ca-
da cúria papal; na Igreja ibérica, ver-se-ia racterizado pela sua natureza ultramon-
um cristianismo genuíno, contraposto tana, logo, cerceadora das liberdades
ao cristianismo imposto pela normativi- nacionais. De facto, ao tornar as ordens
dade dogmática e disciplinar de Trento, religiosas independentes dos bispos e
congeminada pelos Jesuítas e ordenada mais dependentes de Roma (por sua vez
de acordo com o seu tirânico sistema de dominada pelos Jesuítas), ao “impor aos
obediência, monolítico e centralista. povos a polícia romana”, ao “apagar os
Deste modo, ao sistema jesuítico que últimos vestígios das Igrejas nacionais”,
caucionou Trento é atribuída a dege- ao determinar a superioridade do papa
neração histórica para que os povos pe- sobre os concílios, o concílio tridentino
ninsulares foram arrastados, acrescen- tornava o catolicismo uma instituição ul-
tando-se-lhe, para efeitos de ampliação tramontana, estrangeira: “o concílio dei-
exemplificativa a nível internacional, xava de ser universal: era simplesmente
a responsabilidade pelo desencadear e italiano; nem italiano, romano apenas”
prolongar da sangrenta Guerra dos Trin- (Id., Ibid., 274-276).
ta Anos, o desmembramento do terri- Por outro lado, este escritor, hiperbo-
tório da nação polaca e as ameaças que lizando ao extremo o papel dos Jesuítas
pairavam sobre a recente união da nação na restauração católica, responsabiliza
italiana. Antero desenvolve uma consi- esse novo catolicismo, a sua doutrina e
derável operação analítica no sentido educação pela decadência política e so-
de exautorar aquilo que qualifica como cial dos Estados ibéricos, tecendo essa
sendo a “funesta moral jesuítica” e o seu visão também à luz do mito de complô.
inerente ideal de educação, que está sem- A sua posição antijesuítica insere-se no
pre na base do enfraquecimento do vigor quadro do anticlericalismo liberal que
criativo e transformador dos povos que os pugnava pela não interferência do clero,
Jesuítas fazem suas vítimas. O resultado conservador e ultramontano, na esfera
desta ação educativa apresenta como pro- política e noutras esferas que não eram
duto modelar mais acabado os amerín- específicas da sua missão religiosa, reme-
dios civilizados nas célebres reduções do tendo a sua ação para o cubículo restrito
Paraguai: “É um povo de crianças mudas, das sacristias.
Trento, sendo essa a causa do nosso des- organizações religiosas obedientes ao po-
calabro. Alexandre Barbas ataca também der central de Roma, que o movimento
a supremacia das ordens e congregações jurisdicional canónico pós-tridentino ti-
religiosas, como frente avançada do cato- nha sobremaneira valorizado. Estávamos
licismo de Trento, que divulgaram uma no tempo do esplendor das nações. Tren-
religião da submissão e da vassalagem à to e o internacionalismo da Igreja ga-
Cúria romana; e dedica capítulos aos paí- rantido pelas ordens e congregações, de
ses que considera modelares da Europa do que os Jesuítas eram o modelo mais me-
progresso, antíteses de Portugal e da Espa- diático, são apontados como o inimigo a
nha, nomeadamente os países escandina- temer e a combater. Hoje em dia, com a
vos, a Alemanha, a Inglaterra, os Países valorização das dinâmicas e das redes in-
Baixos e a França, que se teriam deixado ternacionais no quadro da globalização
inspirar pelos ares das correntes da refor- total, as organizações multinacionais da
ma protestante, considerando a influência Igreja e a própria Igreja, com a sua ma-
protestante causa de uma maior abertura cro-organização transnacional, acabaram
destas sociedade do Centro e do Norte da por integrar-se de forma mais pacífica nas
Europa para a liberdade de pensamento e democracias contemporâneas, sendo a
para um cristianismo mais autêntico. sua cooperação em vários planos da cons-
Em suma, a corrente antitridentina em trução social bem aceite. Por isso, o inter-
Portugal desenvolveu uma apreciação nacionalismo de Trento é hoje mais bem
muito negativa da receção de Trento e compreendido do que o era no séc. xix.
atribuiu-lhe força suficiente para mudar
a orientação do país e a sua dinâmica
social, fazendo-o voltar as costas ao pro- Bibliog.: ANTUNES, Manuel, “O Concílio de
gresso e à prosperidade. O antitridentis- Trento na perspectiva do Vaticano II”, Broté
ria, vol. lxxvii, n.º 6, dez. 1963, pp. 497-503;
mo é promovido por intelectuais e por
BARBAS, Alexandre, O Concílio de Trento e a Ci
correntes que defendem uma releitura vilização Moderna, Lisboa, Impresso no Centro
da história portuguesa, a avaliação das Tipográfico Colonial, 1914; HERCULANO,
suas diferentes épocas e o papel relativo Alexandre, Opúsculos, org., introd. e notas
das forças em presença (ou em ausência) Jorge Custódio e José Manuel Garcia, 6 vols.,
para favorecer o projeto de afirmação de Lisboa, Presença, 1982-87; MARTINS, Olivei-
Portugal à luz de modelos europeus de ra, Temas e Questões. Antologia de Textos, pref.,
org. e notas Guilherme de Oliveira Martins,
autonomia e progresso. Por isso é que à
Lisboa, INCM, 1981; Id., História da Civilização
cultura negativa propugnada pela cor- Ibérica, 12.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores,
rente de depreciação de Trento temos de 1994; MATOS, Sérgio Campos, Memória e Na
ligar necessariamente a promoção, por ção, Dissertação de Doutoramento em Histó-
alguns, do mito luminoso do catolicismo ria apresentada à Universidade de Lisboa, Lis-
medieval por contraste com o moderno, boa, texto policopiado, 1995; MEDINA, João,
a defesa da vantagem da opção protestan- As Conferências do Casino e o Socialismo em Por
te frente à católica afirmada pelo concílio tugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984; QUEIRÓS,
Eça de, O Crime do Padre Amaro, ed. crítica
tridentino, e uma perspetiva de valoriza-
coord. por Carlos Reis, Lisboa, INCM, 2000;
ção de tudo o que é nacional no quadro QUENTAL, Antero de, Prosas Sócio-Políticas, pu-
de uma lógica de afirmação dos estados blicadas e apresentadas por Joel Serrão, Lis-
‑nação que dominava as elites culturais e boa, INCM, 1982.
políticas laicas e anticlericais. Estas abo- José Eduardo Franco
minavam todo o internacionalismo das Cristiana Lucas Silva
Antiultramontanismo 1869
sequência do corte de relações diplo- cios de uma teorização laicista, que visa
máticas com a Santa Sé em 1760, com o restringir os poderes temporal e espiri-
intuito de rejeitar em Portugal o breve tual aos domínios que lhes são especí-
Apostolicum Pascendi, de Clemente XIII, ficos. Não se trata de submeter a Igreja
pelo qual se reafirmava a importância da ao domínio do Estado, como pretendia
Companhia de Jesus; a criação da Real Pombal, mas de manter uma e outro in-
Mesa Censória por alvará de 5 de abril de dependentes, promovendo assim o valor,
1768, transferindo para o Estado a fiscali- tão caro a Ribeiro Sanches, da tolerância.
zação das obras que poderiam ser publi- Apesar de um certo retraimento da
cadas em Portugal – função até então a política regalista durante o reinado de
cargo da Inquisição – e o poder de negar D. Maria I, a sua prática intensificou-se
o beneplácito aos índices romanos de a partir do vintismo e, embora inscrito
livros proibidos; a secularização do Tri- num tempo de revolução, o regalismo
bunal do Santo Ofício, tornado tribunal liberal caracterizou-se por uma conti-
régio em 1769, o que implicava, e.g., que nuidade do regalismo pombalino, cujo
os bens confiscados aos condenados pas- fundo doutrinário serviu de fundamen-
sassem a ser propriedade do erário régio, tação. De facto, D. João VI reforçou o
e a reforma do Regimento da Inquisição regalismo herdado do governo josefino,
(1774); e a elaboração dos novos Estatu- intensificando o controlo da Coroa sobre
tos da Universidade de Coimbra (1772), que os assuntos eclesiásticos e restringindo o
constituem um manifesto das doutrinas domínio ou ingerência da Cúria roma-
regalistas, de cerceamento dos poderes na nos assuntos da igreja nacional. Com
do papa e de exaltação dos poderes ré- a Revolução Liberal e à luz dos novos
gios, mas também o molde que enforma- ideais veiculados pela Revolução France-
rá o pensamento liberal. sa sob a fórmula “liberdade, igualdade,
O estrangeirado António Nunes Ri- fraternidade”, semeados em Portugal na
beiro Sanches foi um dos autores que sequência das invasões francesas e das
denunciaram a supremacia do poder es- Cortes de Cádis de 1812, firmou-se uma
piritual sobre o temporal, expressa por rutura com o Antigo Regime e o regalis-
um abuso do poder ultramontano, e de- mo foi assumido como política ao serviço
fenderam, em contraposição, a remoção do Estado-nação, já não do poder abso-
dos privilégios de que o clero foi sendo luto e indivisível do rei, e adquiriu um
dotado ao longo dos séculos e que contri- teor anticongreganista, em função do
buíram para o estado de degeneração de qual foi aproveitada toda uma constru-
Portugal. Nas suas Cartas sobre a Educação ção discursiva antijesuítica herdada do
da Mocidade (1760), a fim de demonstrar pombalismo. Com toda uma fundamen-
os danos causados pela educação ecle- tação teórica já elaborada sob a supervi-
siástica ministrada à mocidade e de com- são pombalina, a doutrina regalista libe-
provar a competência do monarca para ral constitui-se mais como prática do que
reformar os estudos universitários, Ri- como teoria. Os próprios autores liberais
beiro Sanches procede a uma refutação que se detiveram a teorizar, defender e
do ultramontanismo e, mediante uma legitimar os princípios regalistas fizeram
fundamentação pactualista da origem ‑no tendo por base os textos produzidos
do poder, a uma defesa da secularização no século precedente e tendo em Antó-
das instituições e sobretudo do ensino. nio Pereira de Figueiredo um mestre.
Encontramos em Ribeiro Sanches indí- De facto, o deputado Manuel Borges
pela situação de atraso generalizado do Alexandre Herculano foi uma das vo-
país, como consequência de uma tradi- zes antiultramontanas de Oitocentos.
ção de intolerância e violência alimenta- O historiador, como acérrimo defensor
das pela Igreja num passado ainda recen- do regime liberal e arrojado crítico do ul-
te. A mobilização de energias católicas, tramontanismo, considerava que a Igre-
em defesa dos seus interesses e como rea- ja não deveria interferir na vida política
ção ao regime vigente – traduzida na ten- do país nem tão-pouco na liberdade de
tativa de reintrodução de ordens e con- consciência individual. São estes pressu-
gregações religiosas, na dogmatização da postos que perpassam parte considerável
infalibilidade pontifícia e na condena- da sua obra e que encontramos espe-
ção por Pio IX das ideias liberais, numa cialmente desenvolvidos em alguns dos
dupla e simultânea atitude defensiva e seus escritos de natureza mais polemista,
contraofensiva, e numa organização po- como A Reacção Ultramontana em Portugal
lítico-social do catolicismo português e ou a Concordata de 21 de Fevereiro (1857), o
respetiva intervenção na cena política Manifesto da Associação Popular Promotora
através da composição partidária –, de- da Educação do Sexo Feminino. Ao Partido
terminou um anticlericalismo sistemáti- Liberal Português (1858), sobre o signifi-
co e uma resistência ideológico-política cado da presença e ação das Irmãs da Ca-
à Igreja ultramontana. Se a definição do ridade francesas em Portugal, as Cartas
dogma da Imaculada Conceição, pela sobre o Casamento Civil (1865-66), em Es-
bula Ineffabilis Deus (8 de dezembro de tudos sobre o Casamento Civil. Por ocasião do
1854), a publicação da encíclica Quanta Opúsculo do Sr, Visconde de Seabra sobre este
Cura, acompanhada da declaração Syl- Assunto (1866), em A Supressão das Con-
labus Errorum (1864), e a definição do ferências do Casino (1871) e ainda em Da
dogma da infalibilidade pontifícia, no Origem e Estabelecimento da Inquisição em
contexto do Concílio Vaticano I (1870), Portugal – Tentativa Histórica (1854-59).
geraram uma forte reação no meio polí- Outra figura relevante para o estudo
tico-intelectual, outros eventos provoca- do antiultramontanismo na cultura por-
ram um inflamado nacionalismo anticle- tuguesa é Antero de Quental, mormente
rical e antiultramontano que alcançou o através do texto da célebre conferência
domínio popular, ganhando forte com- “Causas da decadência dos povos penin-
ponente ideológica: a questão das Irmãs sulares nos últimos três séculos”, pronun-
da Caridade francesas (1857-1862), a ciado no dia 27 de maio de 1871, na qual
Concordata sobre o Padroado Português apresentou a sua teoria da causalidade
(1857), o regresso paulatino das ordens e decadentista mediante uma análise dos
congregações religiosas (entre as quais a motivos que terão conduzido a nação
Companhia de Jesus) e, posteriormente, portuguesa, em poucos anos, de uma
o caso das Trinas, do assassinato de Sara situação de “grandeza”, “importância”
de Matos (1891) – episódio empolado e “originalidade”, a um estado de “aba-
pela crise provocada pelo Ultimatum in- timento e insignificância” (QUENTAL,
glês – e o rapto de Rosa Calmon (1901). 1871, 7). Segundo Antero, o motivo
Estes acontecimentos foram interpreta- de ordem moral que estava na origem
dos, no seu conjunto e à luz da teoria do de uma tão grande disparidade entre
complô, como obra dos Jesuítas, guarda a grandiosidade de Portugal durante
avançada do ultramontanismo contra a o “primeiro período da Renascença”,
liberdade e o progresso na nação. “toda a Idade Média” e “os últimos anos
da Antiguidade” (Id., Ibid., 25) e a sua de- Este processo dessacralizador operou-se
cadência nos sécs. xvii, xviii e xix era a destruindo determinadas estruturas que
transformação do catolicismo pelo Con- conferiam à religião católica um estatuto
cílio de Trento. Este, ao tornar as ordens social proeminente, nomeadamente pela
religiosas independentes dos bispos e secularização dos ritos de passagem (so-
mais dependentes de Roma (que o autor bretudo o matrimónio) e pela contesta-
considerava dominada pelos Jesuítas), ao ção do celibato e da confissão auricular:
“impor aos povos a polícia romana, apa- tido como contrário ao direito natural e
gando implacavelmente por toda a parte causa da decadência dos princípios mo-
os últimos vestígios das Igrejas nacionais” rais do cristianismo, o celibato seria usa-
(Id., Ibid., 28) e ao determinar a superio- do pelo ultramontanismo para um con-
ridade do papa sobre os concílios, torna- trolo mais apertado do clero nacional; já
va a Igreja Católica uma instituição ultra- a confissão auricular serviria igualmente
montana, ou seja, estrangeira. Antero de os propósitos ultramontanos, como meio
Quental não parece colocar em causa o de controlo da população e de manipula-
facto de o catolicismo ser religião oficial ção das consciências.
do Estado, mas a sua tendência absolu- Não obstante a tradição antiultra-
tista e, sobretudo, o facto de a Igreja ser montana que remontava ao tempo do
romana e não nacional, estando por isso marquês de Pombal, o catolicismo man-
dependente de um soberano estrangei- teve em Portugal uma autoridade que
ro cujas deliberações infalíveis tinham os republicanos vieram a considerar in-
em vista o interesse de Roma, não de compatível com o chamado “princípio
Portugal. de soberania nacional” (CATROGA,
À reação católica representada pela po- 2010, 202). O antijesuitismo de Pom-
sição assumida por Pio IX e, mais tarde, bal, o anticongreganismo dos liberais,
pela política de ralliement de Leão XIII o anticlericalismo dos republicanos e as
correspondeu uma reação dos sectores práticas regalistas que lhes são comuns
defensores do laicismo e o anticlerica- derivam de um mesmo sentimento, que
lismo foi explorado ao limite, sobretudo foi recrudescendo ao sabor das novas
pelos partidos de oposição à monarquia, ideias, contra o poder e a influência da
constituídos maioritariamente por livres Igreja romana sobre a sociedade civil,
‑pensadores e republicanos, assumindo sendo as ordens religiosas em geral e a
como chave argumentativa a natureza Companhia de Jesus em particular a re-
estrangeira da Igreja ultramontana e a presentação metonímica desse poder
incompatibilidade desta com o progres- extranacional. Tendo sempre em vista o
so, a liberdade e a igualdade. Fundado progresso do país e baseada num ideário
em 1876, o Partido Republicano Portu- nacionalista, a propaganda republicana
guês tornou o laicismo o seu emblema de reivindicava a laicização do Estado e da
campanha. Recuperando a matriz secu- sociedade e a erradicação da influência
larizadora do pombalismo e do liberalis- da Igreja na vida dos Portugueses, ape-
mo e imprimindo-lhe um carácter mais lando a uma Igreja nacional ou, de for-
radical, a propaganda laicista teve como ma mais radical, a uma religião civil, com
objetivo dessacralizar o estatuto do pa- a criação de toda uma simbologia laica,
dre e da Igreja mediante a multiplicação com a substituição da religião pela ciên-
dos discursos antijesuíticos e anticleri- cia exata, com a negação, em casos mais
cais herdados dos períodos precedentes. extremos, da própria existência de Deus,
artigos mais ilustrativos do seu antiultra- teza quanto às relações entre o Estado e
montanismo encontram-se “Livre pensa- o Vaticano, sobretudo devido à questão
mento em Portugal”, de 27 de abril de premente do Padroado do Oriente, mas
1908, no qual defende a separação do também de alguma tensão entre católicos
Estado da Igreja e a laicização da socie- e laicos apoiantes do regime, de que foi
dade como antídotos para combater o figurativa a crise política suscitada pela
ultramontanismo; “Política católica”, de portaria dos sinos, de junho de 1929.
24 de abril de 1910, onde critica a inter- Apesar de católico, Salazar soube se-
ferência do clero nos assuntos políticos e parar a questão religiosa da questão po-
o uso despudorado, pela Igreja, da reli- lítica. Por isso, em 1928, assumiu como
gião para influenciar a opinião pública; prioridade o saneamento financeiro do
“Consequências do clericalismo”, de 8 de país e, a partir de 1933, a consolidação
maio de 1910, um artigo antijesuítico e do Estado Novo tornou-se o foco da sua
antiultramontano, escrito em memória ação política, o que explica a celebração
de Alexandre Herculano; e “Jesuitismo tardia de uma concordata entre o seu
em Portugal”, de 18 de novembro de Governo e o Vaticano, efetivada somente
1882, no qual o jesuíta surge como re- em 1940 e após longa discussão pautada
presentante simbólico da Igreja Católica, por avanços e recuos. Na verdade, nem
cujos membros Magalhães Lima declara mesmo quando Salazar acumulou a pasta
inimigos da pátria e da liberdade. Os ar- dos Negócios Estrangeiros, em 1936, con-
tigos mencionados têm em comum não trariando as expectativas, a concordata se
apenas a crítica ao catolicismo na sua efetivou. A sua estratégia era muito clara:
vertente ultramontana, mas a associação a concordata era a única coisa que po-
deste ao regime monárquico, fazendo-os dia oferecer aos católicos e, por não estar
aliados numa conspiração contra a liber- disposto a grandes cedências nem a criar
dade e contra a pátria. conflitos internos entre republicanos lai-
A Lei da Separação do Estado das cos e católicos, havia que protelar o mais
Igrejas não resolveu a chamada questão possível essa oferta, embora não eterna-
religiosa e manteve latente o sentimen- mente, pois dela também dependia a
to antiultramontano. Assumindo a sua conservação do Estado Novo. É conhe-
neutralidade religiosa, o Estado e a Igre- cida a sua declaração ao jornal Novida-
ja tornam-se, na teoria, duas realidades des, no dia seguinte ao da sua nomeação
independentes, não fosse a permanência como ministro das Finanças, que sinteti-
de um certo regalismo que tendia a ins- za bem a sua estratégia político-religiosa:
trumentalizar a Igreja e a religião, quer “Diga aos católicos que o meu sacrifício
para a pacificação da sociedade, quer me dá o direito de esperar deles que se-
para a consolidação nacional e interna- jam, de entre todos os portugueses, os
cional do regime, quer ainda para a defe- primeiros a pagar os sacrifícios que lhes
sa do império ultramarino e do Padroa- peça e os últimos a pedir os favores que
do Português no Oriente, preocupações eu lhes não posso fazer” (CRUZ, 1997,
estratégicas que continuaram a regular 431). Apesar de a sua ascensão política se
as relações entre o Estado e a Igreja du- ter concretizado no seio de um partido
rante o regime ditatorial. A nomeação de católico, o Centro Católico Português,
António Oliveira Salazar como ministro Salazar esforçou-se por cercear a auto-
das Finanças em 26 de abril de 1928 coin- nomia política dos católicos, temendo
cidiu com um período de grande incer- que estes pudessem vir a constituir um
qual a universidade seria motor primeiro Bibliog.: Acto – Fascículos de Cultura, n.os 1-2,
e reflexo maior e, assim, à hierarquiza- 1951-52; BAPTISTA, Pedro, O Milagre da
ção superficial, aparente ou de critérios Quinta Amarela – História da Primeira Faculdade
de Letras da Universidade do Porto (1919-1931),
funcionais. Impõe-se um programa de
Porto, Universidade do Porto, 2012; BOTE-
reportugalização da filosofia universi- LHO, Afonso, O Drama do Universitário, Lisboa,
tária, desde logo pela constituição de Cidade Nova, 1955; CALAFATE, Pedro, “Edu-
uma disciplina de Filosofia Portuguesa cação em Portugal”, in Logos, vol. v, Lisboa,
que assumidamente o seja, pressupon- Verbo, 1992, pp. 858-871; COIMBRA, Leo-
do que só na assunção de uma filosofia nardo, “Professores”, Nova Silva, ano 1, n.º 5,
particular radical se torna possível a ele- 1907, p. 3; Id., O Problema da Educação Nacional,
Porto, Maranus, 1926; Id., Obras de Leonardo
vação ao universal (sobretudo quando a
Coimbra, vol. i, Porto, Lello e Irmão, 1983;
radicalidade em causa é tão claramente CORTESÃO, Jaime, “Nacionalismo e cosmo-
universalista). A expressão antiuniver- politismo”, A Vida Portuguesa, n.º 22, 10 fev.
sitária desta reforma pedagógica terá 1914, p. 9; DIONÍSIO, Sant’Anna, A Filosofia
decerto relações com o anticlericalismo como Objecto de Pedagogia, Lisboa, Seara Nova,
português, com as características anti-ins- 1952; DUARTE, Miguel Bruno, Noemas de Filo
titucionais e inconformistas pátrias, bem sofia Portuguesa – Um Estudo Revelador de como a
Universidade É o Maior Inimigo da Cultura Lusíada,
como com a tradição quinto-imperista,
São Paulo, É Realizações, 2013; Escola Formal,
e com a liberdade extrema de pensar e n.os 1-6, 1977-78; GASSET, José Ortega y, Mis
viver – assim como há uma espiritualida- são da Universidade, Lisboa, Seara Nova, 1946;
de transteológica, há aqui, notoriamen- GOMES, Pinharanda, Inquérito sobre a Filosofia
te, um pensamento metaformal. Talvez Portuguesa, Belo Horizonte, Editora Pax, 1972;
por isso a filosofia portuguesa se tenha MANSO, Artur, Filosofia Educacional na Obra de
dedicado a meditar sobre as condições Agostinho da Silva, Braga, Universidade do Mi-
nho, 2007; MARINHO, José, Filosofia – Ensino
de possibilidade do estabelecimento de
ou Iniciação, Lisboa, FCG, 1972; Id., “Filosofia
uma filosofia desprendida das ancilosa- portuguesa e universalidade da filosofia”, in
das formas hermenêuticas. A proposta MARINHO, José, Estudos sobre o Pensamento
de um retorno à educação comunal, con- Português Contemporâneo, Lisboa, Biblioteca
siderando a universidade como comu- Nacional, 1981; Nova Silva, ano 1, n.os 1-5,
nidade de estudantes, de compromisso 1907; PASCOAES, Teixeira de, “Renascença
existencial, senão metafísico, inscreven- portuguesa”, O Comercio da Póvoa do Varzim,
1 maio 1914, p. 1; Id., Arte de Ser Português,
do-o na tradição lusa, concita a pensar
Porto, Renascença Portuguesa, 1915; QUA-
a universitas como uma outra ilha dos DROS, António, A Angústia do Nosso Tempo e
amores, na anulação iconoclasta das for- a Crise da Universidade, Lisboa, Cidade Nova,
mas pela experiência da reintegração 1956; Id., “Inquérito aos pensadores portu-
essencial. Isto não resultaria num qual- gueses. O testemunho de Álvaro Ribeiro”,
quer passadismo, mas antes num exercí- 57: Folha Independente de Cultura, n.os 3-4,
cio de autenticação futurante através de dez. 1957, p. 6; RIBEIRO, Álvaro, O Problema
da Filosofia Portuguesa, Lisboa, Inquérito, 1943;
uma arqueologia essencial. Por isso, o
SANTOS, Delfim, Linha Geral da Nova Universi
inconsciente, a memória, a saudade são dade, Lisboa, Cadernos de Cultura Democra-
valorizados como vias essenciais. Tendo tista, 1934; VILELA, António Lobo, A Crise da
isto em conta, o antiuniversitarismo será, Universidade, Figueira da Foz, Renovação De-
afinal, um pró-universitarismo que para mocrática, 1933; VITORINO, Orlando, Exal
esse renovo intenta depor o que se julga tação da Filosofia Derrotada, Lisboa, Guimarães
degenerado, permitindo o trânsito da di- Editores, 1983.
versidade à universidade. Pedro Vistas
causa: esta forma de urbanização em lu- considera uma influência nefasta; Mahat-
gar de beneficiar a natureza aumenta a ma Gandhi (1869-1948), que estabeleceu
pressão humana e o impacto sobre o am- na África do Sul uma comunidade rural
biente (causando assim a destruição do a que chamou Quinta Tolstoi (por ser
próprio objeto de desejo). influenciado por este) e que elogiou a
Para a geografia cultural, o antiurba- preferência dos seus antepassados india-
nismo define-se como um discurso de nos por pequenas cidades ou vilas, consi-
medo da cidade, radicado na industria- derando as cidades armadilhas (onde os
lização e na forma como esta destitui a pobres são roubados por ricos), lugares
ideia de cidade como lugar para a vida onde as pessoas não podem viver felizes;
boa (Aristóteles), tornando-se, ao invés, e o escritor nigeriano Cypriar Ekwensi
suja, ameaçadora, anónima e populosa, (1921-2007), que faz uma leitura aves-
opondo-se-lhe o ideal campestre. O geó- sa à cidade na sua obra People of the City
grafo urbano Tom Slater (n. 1975) dá (1954), em que o protagonista, tendo
como exemplo paradigmático de antiur- vivido demasiado tempo na cidade, já
banismo o pintor Edward Hopper (1882 não se importa com o bem ou o mal,
‑1967), pelas suas representações de in- contando que o seu fim pretendido seja
divíduos isolados, deslocados e mesmo alcançado.
alienados face ao espaço urbano, onde Em Portugal, é sobretudo na literatu-
se encontra evidenciada, segundo Slater, ra que se podem encontrar críticas ao
uma marcada crítica à metrópole. modo de vida urbano, ou uma dicoto-
No âmbito dos estudos queer, o termo mia entre a cidade (os seus habitantes
“antiurbanismo” tem vindo a ser utilizado e modo de habitar) e o campo. Eça de
para questionar a associação da identida- Queirós (1845‑1900), em especial em
de queer à urbanidade. O conceito, pro- As Cidades e as Serras, critica a sociedade
posto por Scott Herring em Another Coun- da época e a vida na metrópole – opu-
try: Queer Anti Urbanism, problematiza o lenta, corrupta e artificial – opondo-lhe
suposto imaginário gay, no qual a cidade o mundo rural – puro e bucólico; em
é associada à tolerância, por oposição ao Viagens na Minha Terra, de Almeida Gar-
campo que seria associado à perseguição, rett (1799-1854), é notória a descrição
senão mesmo à ausência de homossexua- elogiosa das paisagens naturais ou ru-
lidade, identificando formas de resposta rais e dos seus habitantes, por oposição
rurais a uma mentalidade centralizada na à descrição crítica das cidades, tanto no
cidade e constituindo assim uma crítica que toca à arquitetura, como aos monu-
aos ideais de metronormatividade. mentos, ao modo de habitar a cidade e à
Walter Moss, em An Age of Progress?, dá sociedade urbana (nacional) da época.
conta da amplitude internacional de vi- No Brasil, a divergência entre uma vi-
sões antiurbanistas, referindo, para além são da grande metrópole como marca de
dos autores norte-americanos já mencio- desenvolvimento (importada dos mode-
nados, exemplos como o poeta William los da Europa e da América do Norte) e
Wordsworth (1770-1850), no Reino Uni- a visão antiurbanista (que apresenta o ru-
do, para quem a metrópole é corruptora, ral como essência nacional) acompanha
enlaçando e aprisionando os inocentes; a procura de uma identidade nacional,
Leo Tolstoi (1826-1910), na Rússia, um sobretudo durante a primeira metade
adepto da vida simples próxima da na- do séc. xx. Assim, na literatura brasi-
tureza, crítico severo da vida urbana que leira do início do século, autores como
Euclides da Cunha (Os Sertões, 1902) e sor da cidade, critica os excessos urba-
Graça Aranha (Canaã, 1902) fazem o elo- nos que a tornam uma prisão, onde não
gio da ruralidade (por oposição à urba- se manifestam nem pensamentos claros,
nidade), denunciando o esquecimento, nem sentimentos sãos, preferindo a pe-
pela República, do interior face ao lito- quena cidade rural onde a vida é mais
ral. O planeamento urbano acompanha natural (importa referir que defende e
a discussão política, ora defendendo-se elogia os arranha-céus se implantados
a moradia individual (identificada com em espaços abertos ou rodeados por
uma vocação rural e tradicional), ora elo- jardins). Tirando partido da descentra-
giando‑se a urbanização para uma trans- lização tornada possível pelo sistema
formação positiva do país. de autoestradas, pela grelha de energia
Lewis Mumford (1895-1990), grande elétrica e pela transmissão eletrónica de
historiador da cidade, embora não se informação, desenvolveu um projeto de
possa apelidar simplisticamente de an- cidade em que esta já não necessita de se
tiurbanista, argumenta que a uniformi- aglomerar em torno de um centro, mas
zação e a homogeneização através da se pode espalhar pelo campo: a broadacre
dispersão urbana – ou conurbação – des- city (1932), que aliava uma proposta de
troem por completo as formas sociais da planeamento a uma proposta de índole
cidade (a sua variedade de núcleos de social e política, estabelecendo a criação
cultura e de reunião social e individual). de unidades funcionais, desviando-se de
No desenho urbano e na arquitetura, um excesso de urbanização por forma a
surgem várias vozes críticas à grande possibilitar uma vivência em pleno num
cidade como modelo urbanístico e ar- ambiente propício ao desenvolvimento
quitetónico, entre as quais Frank Lloyd mútuo do indivíduo e da comunidade,
Wright (1869-1959), que, acompanhan- com uma relação próxima com a terra
do a crítica à cidade de William James, (ou o direito natural à terra), acreditan-
John Dewey e Jane Adams – sobretudo à do que só a proximidade e o contacto
forma como os habitantes da cidade são com a natureza desenvolveria harmonio-
oprimidos e incapazes de desenvolver a samente a pessoa humana na sua totali-
sua vida ao máximo –, critica a cultura do dade (com acesso a ar fresco, luz e ter-
arranha-céus nas cidades já de si sobrelo- ra). Esta descentralização pode ser vista
tadas, classificando-a como uma “mons- como o fim da cidade (mais do que o fim
truosidade” moral, económica, estética da necessidade da cidade, o fim efetivo
e ética. Declara que, se se tivesse em desta).
consideração os direitos do cidadão que Mais recentemente, Alberto Magna
habita nos andares inferiores, não existi- ghi (n. 1941), fundador da escola territo-
riam edifícios tão altos, não se insistiria rialista italiana, propõe a regeneração da
na “perpendicularidade”. Wright conde- qualidade urbana a partir de um desen-
na a estreiteza das ruas e o consequente volvimento local autossustentável e critica
congestionamento de trânsito, o cons- o modelo de desenvolvimento que reduz
tante ensombramento provocado pela o território a mera extensão, transformá-
verticalidade da construção, que aprisio- vel pela técnica e por perspetivas econo-
na o cidadão e o desrespeita, concluindo micistas, alertando ainda para a destrui-
que o sentido da proporção humana é ção irreversível de tais modelos. Por sua
fatalmente perdido devido aos excessos vez, Pier Luigi Cervellati (n. 1936), sen-
da urbanização. Apesar de ser um defen- do um defensor da cidade, elabora a sua
proposta por forma a repensar os exces- 2 vols., Napoli, Giannini, 1973; BERQUE, Au-
sos do urbanismo. Este arquiteto defende gustin, “Mythologie de l’urbain diffus”, Annals
a demolição sempre que seja necessário, de Géographie, n.º 704, abr. 2015, pp. 351
‑365; BONESIO, Luisa, “Elogio della conser-
de modo a recuperar as formas anterio-
vazione”, in Oltre il Paesaggio: I Luoghi tra Este
res à barbárie modernista e industrialista,
tica e Geofilosofia, Casalecchio, Arianna, 2002,
opondo-se à construção de novas cidades pp. 3‑26; BROOKS, H. Allen (org.), Writings on
ou de grandes obras de infraestruturas. Já Wright: Selected Comment on Frank Lloyd Wright,
o novo urbanismo (new urbanism) promo- Cambridge, Massachusetts Institute of Tech-
ve a criação de bairros essencialmente pe- nology Press, 1981; Campos, Cândido Mal-
destres, onde tudo pode ser encontrado à ta, “Urbanismo e anti-urbanismo no debate
distância de 10 min, com predominância nacional brasileiro, 1900-1945”, Seminário de
História da Cidade e do Urbanismo, vol. 6, n.º 1,
de espaços públicos e de elementos de
2000; CHOAY, Françoise, O Urbanismo, Utopias
natureza na cidade. O urbanismo de pai- e Realidades. Uma Antologia, São Paulo, Editora
sagem (landscape urbanism), por sua vez, Perspectiva, 2005; CONN, Steven, Americans
propõe a organização da cidade a partir against the City: Anti-Urbanism in the Twentieth
do todo, integrando grandes infraestru- Century, New York, Oxford University Press,
turas, habitação e parques urbanos. 2014; Herring, Scott, Another Country: Queer
Note-se que, na arquitetura e no pla- Anti-Urbanism, New York/London, New York
University Press, 2010; MAGNAGHI, Alber-
neamento urbano, uma visão antiurbanis-
to, Il Projetto Locale, Torino, Bolati Boringhieri,
ta não é necessariamente uma recusa da 2000; MOSS, Walter G., An Age of Progress?:
cidade, mas uma procura de novos mo- Clashing Twentieth-Century Global Forces, New
delos de organização que façam face ao York, Anthem Press, 2008; Mumford,
crescimento sem limites, às condições de Lewis, The City in History: Its Origins, its Trans
vida precárias e ao ruir da própria ideia formations and its Prospects, London, Penguin
de cidade. Para o arquiteto e urbanista Books, 1961; SIMMEL, Georg, “A metrópole
argentino contemporâneo Jorge Mário e a vida mental”, in VELHO, Otávio Guilher-
me (org.), O Fenômeno Urbano, Rio de Janeiro,
Jáuregui, que alcançou reconhecimento
Zahar, 1977, pp. 10-24; SLATER, Tom, “Fear
internacional com o seu trabalho em fa- of the city 1882–1967: Edward Hopper and
velas do Rio de Janeiro, antiurbanismo é the discourse of anti-urbanism”, Social & Cul
a forma de ocupação não sustentável do tural Geography, vol. 3, n.º 2, 2002, pp. 135
território; é um atentado aos processos ‑154; Id., “Anti-urbanism”, in KITCHIN, R.,
vitais da vida em sociedade, posto em prá- e THRIFT, N. (orgs.), International Encyclope
tica pela especulação imobiliária, guiada dia of Human Geography, vol. 1, Oxford, Else-
vier, 2009, pp. 159-166; White, Morton, e
pelo consumismo e pelo individualismo,
White, Lucia, The Intellectual versus the City,
e que resulta da falta de estratégias e de Cambridge, Harvard University Press, 1962;
políticas urbanas. WRIGHT, Frank Lloyd, Writings and Buildings,
Cleveland, World Publishing, 1961.
Moirika Reker
Bibliog.: AMORÓS, Miguel, “Urbanización
y destruicción”, in CONTRA EL URBANISMO:
Apuntes Sobre las Ciudades como Espacio de Domi
nación, Bioregión Valle Maipo, Editorial Germi-
nal, 2011, pp. 39‑49; Id., “La urbe totalitaria”,
in CONTRA EL URBANISMO: Apuntes Sobre las
Ciudades como Espacio de Dominación, Bioregión
Valle Maipo, Editorial Germinal, 2011, pp. 31
‑38; Assunto, Rosario, Il Paesaggio e l’Estetica,
mercee que lhis defendades que nom on- COSTA, 2004, doc. 19). Vários outros epi-
zenem ou que temperedes a onzena per sódios quatrocentistas mostram o mesmo
tal guisa que nom Seia tam danosa nem espírito acomodatício, que reinava a des-
tam grande como he” (MARQUES, 1982, peito das condenações canónicas e civis.
35). Assim, quando em 1352 D. Pedro I Esta maior tolerância relativa às práti-
reafirmou a proibição de contratos crip- cas creditícias do séc. xv continuaria pelo
to-usurários, fez coincidir o cristianismo século seguinte. Nas constituições sino-
com a renúncia à usura: “Saluo aquelles dais bracarenses de 1497 não há conde-
que de directo deuem fazer e que os fe- nações da usura, e tão-pouco se conhece
zessem como boons mercadores e ver- qualquer nova legislação. As Ordenações
dadejros christãos” (RODRIGUES, 1971, Manuelinas de 1514 (liv. iv, tít. xiv) rei-
458-462). Ou seja, o recurso à usura era teram a condenação da usura de acordo
um atentado à ética mercantil, por não com o direito civil e canónico, mas abrem
respeitar a equivalência entre coisas com- a porta a um conjunto de exceções (letras
pradas e vendidas, e à ética religiosa, por de câmbio; atrasos em pagamentos de do-
ser um pecado. tes; atrasos na entrega dos imóveis; etc.).
As proibições enfáticas nos dois tipos O espírito desta lei está bem patente no
de direitos contrastam com a indiferença seu nome: “Das Usuras, como são defe-
ao tema nos textos literários dos sécs. xiii sas. E em que maneira se podem levar”.
e xiv. Os termos “usura” e “onzena” (e os A própria escolástica, com o professor
seus derivados) estão ausentes das Can- de Évora Tomas de Molina à cabeça, co-
tigas galaico-portuguesas, dos Livros de meçou a aceitar a existência de juros em
Linhagens e das primeiras crónicas. É no- nome da lei natural. No Concílio Provin-
tável que a usura tenha escapado à zom- cial Bracarense de 1566 entende-se por
baria dos trovadores e aos jograis, que, usura não o juro per se mas o juro injusto,
aliás, se empenharam bastante em criti- i.e., aquele que está acima da taxa de re-
car a avareza e a ganância nas cantigas de torno de uma compra de rendas.
escárnio e maldizer. Ao contrário do que acontecera nos
Tal como a indiferença dos textos li- sécs. xiii e xiv, em que a usura era proi-
terários sugere, as afirmações terminan- bida pelas leis mas escapava aos juízos
tes da legislação eram temperadas com morais expressos na literatura, os auto-
algum pragmatismo. A necessidade de res quinhentistas expressam amiúde a
crédito conduziu a uma disposição mais sua repulsa pela onzena. As condenações
complacente perante a cobrança de ju- da usura surgem por todo o lado: no púl-
ros, visível não tanto na legislação como pito, no palco e nos prelos. O onzeneiro,
em decisões concretas. Em 1330, Afon- a quem o diabo trata como parente che-
so IV transigia ao pedido do concelho gado, é uma personagem assídua no tea-
de Bragança para regular e não proibir tro vicentino. O Auto da Barca do Inferno
os empréstimos feitos por judeus, por- é também claro quanto à onzena: “Ó on-
que a proibição seria ainda mais gravosa zena, como és feia e filha de maldição!”
para a comunidade: “Nom podya scusar (vv. 222-223). Em certa medida, Gil Vi-
que nom ouvessem de tirar enprestado cente e alguns poetas do Cancioneiro Ge-
dos judeus polas pressas e menguas que ral de Garcia de Resende parecem reagir
avyam que se o assy nom fezessem que se à disseminação dos negócios financei-
lhis tornarya en mayor dano que aquelo ros. Na descrição moral de Lisboa feita
que os judeus levaryam deles” (CUNHA e por Álvaro de Brito, poeta do Cancioneiro
Nos sécs. xviii e xix, o termo “usura” mente, as proibições pombalinas foram
passou a designar contratos de emprésti- revertidas nos reinados seguintes. Em es-
mo em que as condições eram muito exi- pecial, a gravosa proibição da liberdade
gentes para o devedor, e não apenas um de juro no comércio com a Ásia foi anu-
empréstimo onerado por juros. Como tal, lada em 1810 por D. João VI, invocando
a acusação de contrato usurário servia de o “direito natural” e as vantagens que um
fundamento para se anularem contratos mercado de capitais ativo proporcionava
que prejudicavam a economia familiar ao “bem público” (SILVA, 1826, 875).
das grandes casas. No séc. xix, a usura e a onzena conti-
Nos sécs. xviii e xix, o termo “usura” nuam a animar a discussão política. No
passou a designar contratos de emprésti- entanto, surgem acompanhadas e mesmo
mo em que as condições eram muito exi- contaminadas por um novo conceito, o
gentes para o devedor, e não apenas um de agiotagem. Com efeito, o regime libe-
empréstimo onerado por juros. Como ral libertou a usura da sua proibição civil
tal, a acusação de contrato usurário ser- e canónica, mas a desconfiança relativa-
via de fundamento para se anularem mente às práticas creditícias continuou
contratos que prejudicavam a economia muito presente no discurso político. Os
familiar das grandes casas. No plano das debates parlamentares a partir dos anos
ideias, havia já defensores da legitimida- de 1830 mostram como o conceito de
de dos juros, como se deduz por algumas usura ultrapassara o seu berço canónico
obras polémicas do séc. xviii (FONSE- para se tornar uma arma retórica. Usu-
CA, 2012, 106); na verdade, no último ra e onzena passaram a ser uma forma
quartel desse século, a legitimidade dos depreciativa de designar o juro elevado,
juros ainda era em Portugal objeto de mas sem grande elaboração conceptual e
“acalorado debate” (MONTEIRO, 1992, quantitativa. Estas duas palavras consagra-
281). Este equilíbrio sofreu um grande das passaram a confundir-se com a agio-
sobressalto com o reformismo pombali- tagem, que significava um predomínio
no. Foi ainda a velha condenação da prejudicial da especulação sobre a produ-
usura que levou o marquês a interferir, ção. Assim, a “agiotagem desenfreada” na
em 1757, numa das mais importantes banca portuguesa (CORDEIRO, 1999) e
áreas de liberdade (o crédito para co- os agiotas dos mercados internacionais
mércio a longa distância com a Ásia) e acabam por se confundir com o conceito
a impor-lhe o juro máximo reduzido de mais restrito de usura. Nas duas câmaras
5 %. Na verdade, a intenção do estadista do liberalismo português, as acusações de
era direcionar os capitais disponíveis no onzena e de onzeneiro (termos arcaicos)
mercado financeiro português para as conhecem nova vida a partir de 1888.
companhias majestáticas. Esta ordem de Ainda que a tradição legal portuguesa
razões levou o mesmo legislador, alegan- culpasse as duas partes envolvidas em con-
do de novo a usura, a proibir a conces- trato ferido de usura, o termo “usurário”,
são de crédito por parte da Santa Casa com a sua carga negativa, acabou por de-
da Misericórdia de Lisboa. Uma histo- signar o credor abusivo. A linguagem cor-
riadora contemporânea classificou esta rente conservou esta assimetria. As dificul-
medida, entre outras, como “um exem- dades financeiras do Estado português em
plo acabado de manipulação doutrinal” inícios do terceiro milénio emprestaram
feito contra a prática geral e a legislação um novo fôlego ao termo “usura”. A ve-
régia (LOPES, 2008, 150). Sintomatica- lha ideia de que o empréstimo depredava
à eficácia desta prática era reforçada pela cional. De acordo com estes pressupos-
sua incompatibilidade com o direito na- tos, seria criado na déc. de 1790 o Hospi-
tural e divino, já que estava em causa a tal da Inoculação das Bexigas, instituição
sujeição do corpo a “uma doença certa e sediada nas imediações de Arroios, em
presente, para evitar um dano incerto, e Lisboa, e financiada pelo erário públi-
futuro” (SALDANHA, 1761, I, 356). “Pri- co, onde concorreriam crianças de todo
mum non nocere [antes de mais, não fa- o país, tendo em vista a inoculação e o
zer mal]” – eis o princípio que sintetiza acompanhamento da evolução de todo
estas preocupações, e que importava não o processo. No caso português, tal es-
subverter. paço hospitalar deverá ter contribuído
As palavras do autor de Ilustração Mé- para que a inoculação se fosse firmando,
dica caracterizam bem o quadro mental entre a classe médica, como a estratégia
que tornava a inoculação uma prática ao mais eficaz para debelar uma doença res-
mesmo tempo desafiadora e inquietan- ponsável pela dizimação das populações
te. Talvez por isso se justifique a fraca e pela deformação crónica dos corpos.
adesão a este procedimento num perío- Legitimada pelas autoridades sanitá-
do histórico em que a varíola constituía, rias, a profilaxia da varíola estender-se-ia
desde há muito, um mal fortemente um pouco por todo o país, mesmo após
arreigado e endémico. Em meados do a extinção, provavelmente em 1804, do
séc. xviii, na sua Balança Intelectual, o Hospital da Inoculação, onde é aliás de
poeta e polemista Francisco de Pina e admitir que se tenha realizado a vacina-
de Mel teria mesmo oportunidade de ção, substituto daquele método e feita a
proceder a uma breve descrição das te- partir da matéria morbosa do gado va-
rapêuticas mais difundidas para fazer cum. Nas primeiras décadas do séc. xix,
face às bexigas, sem referir a inoculação, vários médicos e filantropos empreen-
talvez por se tratar de um método pro- deram esforços para a difusão da vaci-
filático. Como sublinhava este homem nação. Tais esforços filantrópicos, que
de letras, “uns sangram, outros proí- preparavam caminho para a Instituição
bem a sangria; uns pretendem dar mais Vacínica, fundada em Portugal quase
agilidade ao sangue, outros a hebetam; uma década depois, em 1812, não dei-
há quem promova a transpiração, e há xaram de encontrar nos poderes locais
quem a embarace. Já houve médico de e nas populações importantes obstáculos
grande nome que mandava meter os be- que importa assinalar. Era o caso de um
xigosos em água fria, outro em azeite”, médico de Abrantes, um exemplo entre
e por fim rematava: “em tanta confusão outros que, em abril de 1804, lograva
de opiniões, quem descobrirá o acerto?” “principiar pelos enjeitados a pôr em
(MELO, 1752, 173-174). prática a inoculação da vacina, como
Em finais do séc. xviii, os poderes pú- substituto e preservativo das bexigas”,
blicos não foram indiferentes a estas dú- mas cujas diligências eram impedidas
vidas e incertezas. A Junta do Protome- pelo “juiz de fora da mesma vila [que]
dicato e a Intendência-geral da Polícia lho não quisera permitir” (ANTT, Inten-
articularam então esforços para, em pri- dência-Geral da Polícia, liv. 7, fl. 277v.).
meiro lugar, determinar cabalmente a Nas primeiras décadas do séc. xix, a
eficácia da prática de inoculação na pre- vacinação é ainda um tópico controver-
venção da varíola e, depois, para alargar so e as incertezas do passado não se en-
o procedimento a todo o território na- contram totalmente dissipadas. Razões
que justificam a proliferação de alguns contra uma ideia, que considera “tão ex-
papéis e opúsculos arguindo os prós e travagante”, de “livrar a humanidade de
os contras da vacina, que conduziram uma moléstia […] por meio de uma ma-
ao pedido de uma consulta pública ao téria morbosa, originada em um animal
corpo académico da Faculdade de Me- de uma natureza tão diferente, a vaca”
dicina da Univ. de Coimbra, à Junta do (CARNEIRO, 1808, VIII). Argumentos
Protomedicato e aos médicos e cirur- que acentuavam a desconfiança e resis-
giões mais reputados e da melhor nota tência das populações em relação a tais
(como então se dizia) da cidade de Lis- procedimentos.
boa, por parte da Intendência‑Geral da Nas inúmeras descrições médicas pu-
Polícia. A necessidade de um parecer blicadas no Jornal de Coimbra nas primei-
acreditado que esclarecesse a eficácia ras décadas do séc. xix, podemos ler al-
da vacina decorria, em primeiro lugar, guns lamentos em relação à reticência
da proliferação de iniciativas no senti- dos pais de família perante a vacinação
do de difundir a profilaxia da varíola que médicos e cirurgiões procuravam
um pouco por todo o país e, em segun- introduzir nas aldeias e vilas do reino.
do, da intensificação das resistências Em 1818, Manuel Albano de Morais e
dos poderes locais e das populações, António Manuel Garcia, médico e cirur-
que obrigavam frequentemente as au- gião do partido da Câmara de Torre de
toridades policiais a intervir e mediar Moncorvo, asseguravam mesmo que os
os conflitos, um aspeto que não se al- seus esforços na sensibilização da popu-
terará substancialmente com o avanço lação local para os efeitos benéficos da
na centúria de Oitocentos. Oposição vacina eram, a todo o momento, subver-
reiterada, que aumentava à medida tidos por um sem número de “pessoas
que ia havendo notícia, como sucedeu idiotas com seus impostores e falsos
em Chaves em agosto de 1818, de que discursos, […] causa de os habitantes
“têm morrido de bexigas algumas crian- desta vila não gozarem o bem que lhes
ças que tinham sido vacinadas” (Ibid., podia provir deste benéfico remédio”
Intendência-Geral da Polícia, liv. 17, (“Conta de Manuel…”, Jornal de Coim-
fls. 281v.-282). bra, 1818, 29).
Não obstante a sentença favorável de No mesmo relatório, o médico e o ci-
um número cada vez maior de médicos rurgião de Torre de Moncorvo não dei-
e cirurgiões portugueses, tais circunstân- xavam de sublinhar que alguns casos de
cias sociais impediam o consenso em tor- morte por varíola na sequência de uma
no da vacinação e se, nas primeiras dé- vacinação mal conduzida e da má qua-
cadas de Oitocentos, estamos longe dos lidade geral da matéria vacínica haviam
argumentos extraídos do direito civil e mesmo estado na base desta resistência
divino tematizados por Duarte Rebelo popular, que havia sido reforçada pela
de Saldanha no século anterior, a ques- circulação, entre o povo, do opúsculo de
tão da eficácia do método persiste como Heliodoro Jacinto Carneiro que correu
ponto de discórdia entre partidários e “até por pessoas que não sabem ler, mas
opositores do novo método profilático. a quem a vista das 4 estampas horrori-
Eram aliás estas as razões que levavam zou, e convenceu prontamente; e fez a
Heliodoro Jacinto Carneiro, nas suas dita obra a sepultura de um ente tão útil,
Reflexões e Observações sobre a Prática da e tão proveitoso à humanidade!” (Ibid.,
Inoculação da Vacina (1808), a afirmar-se 29-30) (figs. seguintes).
que a contraceção fosse aprovada ou, pelo mente cansado e desejando passar o tes-
menos, não hostilizada pelo documento temunho a quem se sentisse com energia
do magistério papal. Foi também ampla- para enfrentar a situação alarmante que
mente explorado pela opinião pública o se vivia no Vaticano, Bento XVI decidiu
estranhíssimo caso da morte inesperada resignar em fevereiro de 2013.
do Papa João Paulo I, anunciada no dia O antivaticanismo traduz uma visão
29 de setembro de 1978, notícia logo crítica alimentada frequentemente por
acompanhada de toda a espécie de sus- preconceitos a que o secretismo da insti-
peitas de conspiração envolvendo os seus tuição romana, as intrigas palacianas e as
colaboradores mais próximos. A credibi- suspeições conferem enorme vigor. Con-
lidade do Vaticano sofreu igualmente for- ta o teólogo Hans Küng que o superior
te abalo em 1982, quando o Banco Am- de uma ordem religiosa, no momento em
brosiano abriu falência, em virtude das que ambos entravam por uma das portas
ligações perigosas com ele mantidas pelo do Vaticano, lhe confidenciou: “Agora,
Istituto per le Opere di Religione (IOR) benzer-nos-emos para que Deus nos pro-
presidido por Mons. Paulo Marcinkus. teja das más tentações, enquanto estiver-
As irregularidades do IOR continuaram mos lá dentro” (BLASCHKE, 2014, 41).
a levantar suspeitas sobre operações fi- Na verdade, se o antivaticanismo expri-
nanceiras que conotavam esta instituição me sempre uma atitude de desconfiança,
com procedimentos próprios de paraísos desprezo e hostilidade de quem olha de
fiscais. O caso levou, em 2010, a Justiça fora o que se passa na Cidade do Vatica-
italiana a investigar o IOR por suspeita de no, essa atitude tem sido, vezes sem con-
violação das normas do sistema financei- ta, alimentada por comportamentos an-
ro contra lavagem de dinheiro. O Papa tievangélicos e por tenebrosos escândalos
Bento XVI viu-se mesmo obrigado a ex- praticadas dentro de portas.
pulsar o respetivo presidente, Ettore
Gotti Tedeschi, membro do Opus Dei, Bibliog.: BLASCHKE, Jorge, Francisco, os Jesuítas
organização que, sob a proteção do Papa e os Pecados da Igreja, Lisboa, Clube do Autor,
João Paulo II, havia alcançado posições 2014; COUTO, Sérgio Pereira, Os Arquivos Se
relevantes na administração do Vaticano. cretos do Vaticano, Barcarena, Marcador Edito-
ra, 2015; DAUNOU, Pierre Claude Charles,
As maquinações urdidas nos meios
Essai sur la Puissance Temporelle des Papes et sur
mais próximos de Bento XVI, em que l’Abus Qu’Ils Ont Fait de Leur Ministère Spirituel,
o mordomo Paolo Gabriele traiu a con- s.l., Éditions Coda, 2007; I MILLENARI, O Va
fiança do Papa, fotocopiando documen- ticano contra Cristo, Lisboa, Notícias, 2000; LE-
tos secretos e correspondência privada e COMTE, Bernard, Les Secrets du Vatican, Paris,
passando-os à comunicação social, revela- Perrin, 2011; POUPARD, Paul, O Vaticano Ac
ram jogos de interesses, ambição de po- tual, Lisboa, Livros do Brasil, 1968.
der, corrupção, escândalos sexuais e até Luís Machado de Abreu
rumores de próximo atentado contra o
Papa. O caso, conhecido como Vatileaks,
inundou a opinião pública com revela-
ções repugnantes, que se juntaram aos
crimes de pedofilia praticados por ecle-
siásticos de vários países, amplamente di-
fundidos e comentados pelas trombetas
da comunicação social. Doente, notoria-
advogava tal regime com base na crença expressamente assumida por tal ou tal
na metempsicose ou reencarnação. Pla- autor e, não obstante, tem uma força assi-
tão identificou (cf. República e Leis) a car- nalável na vida cultural contemporânea.
ne com a luxúria, enquanto Aristóteles, Tal deve-se a que a atitude antivegetaria-
reconhecendo nos animais apenas o va- na corresponde ao senso comum e à mais
lor do instinto, sustentou que eles deviam comum ortodoxia médica. Seguidamen-
ser dominados (cf. As Partes dos Animais). te, vamos elencar alguns dos argumentos
Ovídio (cf. Metamorfoses) põe na boca de mais relevantes dos antivegetarianos.
Pitágoras a condenação da alimentação Os antivegetarianos são defensores do
carnívora, como fizeram os ciclopes. Por- regime omnívoro, sustentando diversos
fírio (c. 232-c. 304), filósofo neoplatónico argumentos contra a insuficiência dos
e discípulo de Plotino, escreveu uma Vida cereais e legumes no regime alimentar
de Pitágoras e um tratado a favor do vege- humano, quer em proteínas, quer em di-
tarianismo, com o título Da Abstinência do versas vitaminas.
Alimento Animal. A demitização do valor da soja, designa-
Na Idade Média, a carne era privilégio damente a geneticamente modificada, é
da classe senhorial, considerando a Igreja um dos principais cavalos de batalha nes-
que a abstinência do seu consumo era um sa argumentação. Com efeito, tais defen-
meio de evitar as tentações sensuais. sores relevam a deficiência da soja, seja
Grande parte dos humanistas do Re- em aminoácidos sulfurosos, como a me-
nascimento, redescobrindo o pitagoris- tionina e a cistina, seja em cálcio e vitami-
mo, condenava a crueldade para com os na D, necessários para a saúde dos ossos.
animais e incentivava o vegetarianismo, Por outro lado, afirmam que a vitamina
o mesmo sucedendo, no séc. xviii, com B12 (cobalina), que previne problemas
o Iluminismo, ao invés de Descartes, que cardíacos e é essencial para a manuten-
considerava os animais meros autómatos, ção do sistema nervoso e o metabolismo
não vendo, por isso, qualquer problema celular, não pode ser assimilada da soja
no consumo de carne. Apesar de conside- pelo corpo humano; pelo contrário, essa
rar que há uma finalidade imanente aos ingestão causa maior necessidade desse
vivos, Immanuel Kant, em Lições de Ética, composto vitamínico. A negação do valor
chamava a atenção para a inconsciência da soja como preventivo contra as doen-
dos animais, sendo eles meros meios ao ças cancerígenas e a osteoporose é outra
serviço do homem. faceta dessa argumentação; assim, defen-
A partir do séc. xix, surgem as asso- dem que as isoflavonas são agentes que
ciações de vegetarianismo, como a Ve- rompem o equilíbrio do sistema endócri-
getarian Society, fundada na Inglaterra no e podem estimular o crescimento das
em 1847, a qual reivindicou ter criado células cancerígenas. O elevado teor de
a própria palavra “vegetarian” (“vegeta- estrogénio na soja pode causar também o
riano”), do latim “vegetus”, que significa crescimento de tumores e o seu deficit no
“vivo”. A União Vegetariana Internacio- funcionamento da tiroide pode originar
nal foi fundada em Dresden, Alemanha, deficiência na menopausa. Reconhecem
em 1908, enquanto no Porto foi consti- nela a possibilidade de reduzir o coleste-
tuída a Sociedade Vegetariana de Portu- rol, mas negam a relação entre as doen-
gal em 1911. ças cardíacas e o aumento do colesterol.
O antivegetarianismo não constitui pro- Identificam a infertilidade nos animais
priamente uma corrente de pensamento com o consumo da soja e o crescimento
pelo carácter fogoso e frontalmente re- são racional do ser humano, a partir do
probatório com que denuncia as injusti- qual a leitura da história passa a ser con-
ças e o que considera necessário reformar dicionada e, inclusivamente, instrumen-
social e politicamente. talizada pelo ideário dos mentores da
Com efeito, Vieira gera uma verdadei- dita era da razão, opondo-se, claramen-
ra corrente de hostilidade e de oposição. te, à leitura, igualmente dogmática, da
Um verdadeiro antivieirismo, manifesta- história sagrada. Assim, à dialética bem/
do, desde logo, na tentativa de limitar a mal e divino/diabólico desta contrapõe
sua ação e na recusa do seu pensamento ‑se a dialética iluminista racionalidade/
sobre o presente e o futuro de Portugal irracionalidade, progresso/decadência,
na relação com a sua teologia da história clareza/obscuridade, que marca signifi-
de matriz cristã. Assim, na segunda me- cativamente a hermenêutica do passado,
tade do séc. xvii, além do antivieirismo dividindo-o radicalmente, ao nível da in-
físico, Vieira é confrontado com um anti- terpretação, entre os fautores individuais
vieirismo político e, posteriormente, teo-
lógico-religioso e literário. Este antiviei-
Padre António Vieira (1608-1697).
rismo deve entender-se em articulação
com a “lenda negra” jesuítica, ou seja,
com as formulações que, no contexto
de um discurso anticlerical e laico, visam
particularmente a Companhia de Jesus,
com tal distorção ideológica que tendem
a incorporar elementos da morfologia
do discurso do complô, caracterizado,
essencialmente, pela transformação de
factos em mitos. Daí que em Portugal,
pelo menos até ao final da Primeira Re-
pública, as críticas aos Jesuítas sejam, ge-
ralmente, pouco explícitas, desenvolvidas
e fundamentadas, reduzindo-se a simples
alusões.
No respeitante à relação entre o anti-
vieirismo e a “lenda negra” antijesuítica,
importa referir três situações distintas:
a) a dos promotores do complô, que in-
tegram a condenação de Vieira nesse
contexto; b) a dos promotores do mito
antijesuítico, que apenas o mencionam, o
ignoram ou, surpreendentemente, o elo-
giam; c) a dos promotores de um julga-
mento estético antibarroco, nem sempre
associado ao antijesuitismo.
A depreciação da Companhia de Jesus
compreende-se no quadro do sistema fi-
losófico e socio-histórico do Iluminismo,
e da consequente enfatização da dimen-
nome dos interesses da ordem. Na verda- nebre do seu túmulo), exemplifica cla-
de, à semelhança de Pombal, Teófilo tem ramente a centralidade da questão edu-
a preocupação constante de mostrar, por cativa nos ataques jesuíticos, sobretudo
um lado, que a ação do Padre António por julgar que “OS JESUÍTAS NÃO SÃO
Vieira, assim como a de todos os Jesuí- SÁBIOS” (GRAÍNHA, 1891, 145). Assim,
tas, visa a realização de um plano secreto apesar de reconhecer algumas exceções a
(transnacional e ultramontano) oposto esta regra, como António Vieira (margi-
aos interesses nacionais; por outro, que nalizado e hostilizado pela ordem à qual
a Companhia de Jesus se rege por uma pertence), defende a proibição do exercí-
lógica maquiavélica, segundo a qual os cio do ensino pelas congregações religio-
seus objetivos justificam o uso de todos sas ou, mais ainda, a sua expulsão.
os meios, nomeadamente a manipulação, Miguel Bombarda é quem, de entre os
sendo Vieira um exemplo do recurso a três nomes referidos, reveste as suas acu-
esta estratégia (BRAGA, 1916, 629-634). sações jesuíticas de um invólucro mais
Neste âmbito, refiram-se agora os dou- estritamente positivista, o que se reflete
trinadores e propagandistas do anticleri- na defesa da importância de denunciar
calismo de finais do séc. xix e inícios do a violação à sacrossanta lei dos três está-
século seguinte, pelo seu alinhamento dios praticada pela educação jesuítica,
com a ortodoxia antijesuítica pombalina. da qual resultam “cabeças fora do seu
Além de autores mais esclarecidos e mais tempo [...] cabeças híbridas que, enchar-
fundamentados em termos ideológicos, cadas na ciência prática, que utilizam e
como o positivista Miguel Bombarda, des- gozam, não concebem sequer o espírito
tacam-se alguns publicistas antijesuíticos profundo que a enlaça” (BOMBARDA,
mais empíricos, e hoje desconhecidos ou 1900, 33). Bombarda esclarece, logo de
pouco conhecidos, como José Caldas e seguida, que esse é o espírito positivista,
Manuel B. Graínha. afirmando que, se a religião, na Idade Po-
José Caldas, contrariamente a Eça de sitiva sua contemporânea, é uma fraude,
Queirós, ilustra claramente o paradoxo “ninguém praticou a falsificação com mais
dos autointitulados livres-pensadores ao entusiasmo e menos escrúpulo do que os
chamar a atenção para o facto de faze- jesuítas” (Id., Ibid., 35). Neste contexto,
rem da essência desse livre-pensamento recupera as acusações pombalinas relati-
o assumir de posições extremamente vamente à figura de Vieira, defendendo
autoritárias e repressivas no campo re- a utilidade de recolher as “pias fraudes”:
ligioso, considerando, comparativamen- “a Arte de Furtar precisa de ser irmanada
te, “D. José mais liberal que D. Carlos I” com a arte de falsificar e António Vieira que
(CALDAS, 1901, 4). No respeitante ao tanto sabia de casa, devia ter-nos presta-
discurso do complô jesuítico, constrói-o do esse serviço que tão fácil lhe era” (Id.,
associando os elementos fundamentais Ibid., 39). Finalmente, propõe duas solu-
do ataque pombalino a elementos do ções para resolver o problema jesuítico:
organicismo positivista, representando o “para os jesuítas sinceros, o manicómio,
Jesuíta como um vírus. E refere-se parti- porque sofriam de loucura religiosa em
cularmente a António Vieira como um elevado grau; para os não sinceros o exí-
agente do complô. lio numa ilha onde se juntariam a todos
Manuel B. Graínha, fiel inimigo da os criminosos comuns, assim impedidos
Companhia de Jesus (característica que de contaminar com a doença hereditária
faz anunciar no epitáfio do mármore fú- do crime gentes de bem” (Id., Ibid., 188).
Nesta senda, Lino da Assunção sobres- Jesus faz um “uso sistemático, diabolica-
sai como uma das vozes mais críticas e mente habilidoso” da influência política
ferozes em relação à presença da Com- e religiosa, daí derivando o nome jesui-
panhia de Jesus em Portugal, especial- tismo. E acrescenta: “Em biologia o mes-
mente na sua História Geral dos Jesuítas, mo fenómeno tem o nome científico de
escrita a partir da teoria do complô, com mimetismo” (COIMBRA, 1994, 27). Do
uma formulação cientista e organicista. mesmo modo, explica o predomínio dos
É assim que Assunção define alegori- Jesuítas em Portugal em função de de-
camente os Jesuítas, apresentando-os terminados interesses políticos e como
como uma espécie de vírus endógeno uma espécie de enfermidade hereditária
com características epidémicas impossí- realçada pela educação, dominada por
veis de combater, devido à sua natureza uma conspiração de abrangência uni-
remanescente. Leia-se o excerto em cau- versal: “Em toda a parte entrou o jesuíta.
sa: “Como as epidemias, cujos micróbios Ele está nas escolas, desde a instrução
não são absolutamente extintos, e que, primária até aos cursos superiores, o en-
deixados em meio apropriado, se de- sino dogmaticamente estúpido e incha-
senvolvem, crescem e de novo infetam, do, oco como a cabeça de um deputado
assim acontece com os jesuítas, cujo fer- da maioria, verbalista e canhestro” (Id.,
mento amaldiçoado fica escondido até Ibid.).
ao momento, que eles julgam propício Ainda relativamente ao antijesutitismo
para nova invasão” (ASSUNÇÃO, 1901, republicano, mas agora numa formula-
606). Os Jesuítas são apelidados de fin- ção mais cultural que cientificista, im-
gidos, desleais, manipuladores, ambi- porta destacar Sampaio Bruno e Simões
ciosos, promovedores da decadência... Dias. Aquele, na obra O Encoberto, apesar
E António Vieira, apesar das suas quali- de considerar o jesuitismo, à semelhan-
dades pessoais, é um agente ao serviço ça de Antero de Quental e de Oliveira
dos interesses da Companhia, totalmen- Martins, como um dos fatores determi-
te opostos aos da nação. Lino da Assun- nantes do decadentismo das nações ca-
ção é talvez quem melhor exprime uma tólicas peninsulares, apelida Vieira, a
dificuldade comum a vários intelectuais propósito da pretensa autoria de Notícias
antijesuíticos: a dificuldade de lidar, no Recônditas do Modo de Proceder a Inquisi-
âmbito de uma crítica extremadamente ção com os Seus Presos, de “nosso insigne
nacionalista, com o ultramontanismo e Pe. António Vieira” (BRUNO, 1983, 45).
os seus agentes jesuítas, por um lado, Não obstante, mais à frente, no capítu-
e, por outro, com uma glória literária lo “O restaurado”, qualifica de loucas as
nacional: “Portugal não é tão rico de deduções do pregador acerca das prosas
glórias literárias que possa repelir esta, de Bandarra e da sua prurida aplicação à
embora envolta na roupeta de jesuíta. realidade histórica sua contemporânea.
Diremos mais: se tal homem não tives- Já Simões Dias, na sua História da Li-
se envergado tal sotaina, seria um dos teratura, apresenta Vieira relacionando-o
maiores do seu tempo” (Id., Ibid., 480). comparativamente com o declínio cul-
A crítica antijesuítica de pendor cien- tural do séc. xvii, caracterizado pelo ar-
tificista continua com Leonardo Coim- tificialismo do excesso, da desmesura e
bra. Este republicano afirmou, num co- da teatralidade do barroco. A literatura,
mício realizado em 1909, na Pç. 24 de tal como a história política e económi-
Agosto, no Porto, que a Companhia de ca, é definida como banal e decadente,
um pretenso rigor absoluto da ciência Lisboa, Presença, 1989; ELIADE, Mircea, As
e por um certo puritanismo generaliza- pectos do Mito, Lisboa, Edições 70, 1989; GAR-
do): a sua aventurosa vida, o lado parado- RETT, Almeida, Bosqueijo da História da Poesia e
Língua Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores,
xal e controverso de muitas das suas posi-
1983; GIRARDET, Raoul, Mythes et Mythologies
ções, a heteronomia do seu pensamento,
Politiques, Paris, Seuil, 1986; GOFF, Jacques
o seu empenho na defesa dos índios, a Le, “Decadência”, in Enciclopédia Einaudi, vol. i,
sua produção utópica e o seu valor literá- Lisboa, INCM, 1984, pp. 393-424; GRAÍ-
rio. Aspetos que esvaziaram, portanto, os NHA, Manuel B., Os Jesuítas e as Congregações
fundamentos das apreciações negativas Religiosas, Porto, Tip. da Imprensa Literária e
do antivieirismo físico, político e teológi- Tipográfica, 1891; HERCULANO, Alexandre,
co-religioso em torno desta figura maior Opúsculos, vols. i-ii, Lisboa, Presença, 1982-83;
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que a historiografia registou sob
a designação de antivintismo surgiu no
se perfilou no horizonte.
Nas Cortes Constituintes, a palavra
“contrarrevolução” foi referida, expressa-
próprio momento em que, no Porto, mente, pela primeira vez, em 10 de abril
se verificou, sob a ação determinada de de 1821, pelo deputado João Castelo
Manuel Fernandes Tomás, José da Silva Branco, quando, ao defender a adoção
Carvalho e José Ferreira Borges, a revolu- de providências pela regência, reconhe-
ção de 24 de agosto de 1820. Defenden- ceu que “os povos estão entusiasmados,
do para o país uma reforma guiada pela mas a paciência acaba, e nós teremos
razão e pela justiça, a primeira procla- necessariamente uma contrarrevolução”
mação dos revolucionários, datada desse (Diário das Cortes…, 1821, 526). Uma cer-
mesmo dia, termina com vivas às cortes, teza ditada pelos primeiros percalços, en-
à Constituição “que assegure os nossos tre os quais se destaca a recusa do cardeal
direitos” (Documentos para a História…, patriarca, D. Carlos da Cunha e Meneses,
1883, 6) e ao Rei D. João VI. Constituin- próximo da Rainha Carlota Joaquina que
do a “expressão de uma coalizão de des- virá também a assumir a mesma atitude,
contamentos generalizados aos diversos em aceitar jurar integralmente as bases
núcleos da população” (DIAS, 1981, I, constitucionais definidas pelas Cortes,
21), a revolução alastrou a todo o país, um ato simbólico de grande significado
impondo-se vitoriosamente no início de para o poder vigente, reforçado, no ano
outubro. Num país que sentia a humi- seguinte, pelos rumores da organização
lhação da subalternização face ao Brasil, de uma conspiração que ficou conhecida
onde o Monarca insistia em permanecer, pela “conspiração da rua Formosa”, de
e da presença dominadora dos Ingleses, contornos mal conhecidos.
poucos foram os obstáculos a vencer. O sentimento de desconfiança acentua-
Tanto mais que de Espanha, a viver des- va-se, devido aos boatos em circulação so-
de janeiro de 1820 a segunda experiência bre uma eventual intervenção militar em
liberal, vinha uma motivação acrescida. Portugal da Europa restauracionista da
A construção da nova ordem política que Santa Aliança. Entretanto, para as Cortes
os revolucionários vinstistas defendiam Ordinárias de 1822-1823, foram eleitos
seria, no entanto, mais difícil. Por várias alguns homens bem conhecidos pela sua
razões. Joel Serrão destacou a ambigui- oposição ao regime, como José Agostinho
dade entre a mudança e a conservação de Macedo, que não chegou a tomar pos-
que caracterizou a ação e o discurso dos se, e Acúrsio das Neves. Este último, em
novos homens no poder, presos de com- meados de 1822, publica as Cartas de Um
promissos vários. José e Graça Silva Dias Português aos Seus Concidadãos sobre Diferen-
sublinharam a incapacidade dos revolu- tes Objectos de Utilidade Geral e Individual, nas
cionários em “gerir a conjuntura” (DIAS quais, apesar de reconhecer que o exercí-
e DIAS, 1980, II, 573) e a inviabilidade cio do direito de expressão, proclamado
o ser humano seriam automata, quer di- conjuntamente com James Watson e Mau-
zer, dispositivos mecânicos distintos dos rice Wilkins, com o Prémio Nobel de
artificiais apenas pelo seu grau de com- Fisiologia ou Medicina em 1962. Crick
plexidade. Na filosofia, encontram-se procurou – unicamente através da ciên-
entre os seus principais defensores: Frie- cia – estender os limites do conhecimen-
drich Nietzsche (1844-1900), para quem to biológico, declarando-se antipatizan-
o real se identifica com a própria vida (e te tanto das ideias dos antigos vitalistas
esta, sendo intuível, não pode ser reduzi- (como Driesch e Bergson), como das
da a um objeto da ciência); Hans Driesch conceções de vitalistas mais recentes
(1867-1941), para quem a vida de um or- (como os filósofos Michael Polanyi e Tei-
ganismo seria explicada através da entelé- lhard de Chardin). Considerou que uma
quia, ou seja, de um princípio ou de uma conceção da vida segundo a qual esta é
força vital que controlaria os processos gerada e dirigida por uma força que não
orgânicos; e Henry Bergson (1874-1948), está sujeita às leis da física e da química, e
que defendeu a existência do élan [impul- que não pode ser verificada por meio de
so] vital, o qual justificaria a superação da experiências científicas (noutros termos,
resistência da matéria inerte à formação que é metafísica), não tem suficiente ri-
de corpos vivos, e rejeitou a superiorida- gor e não pode, por conseguinte, ser leva-
de do conhecimento racional (sustentou, da a sério. Pelo contrário, defendeu que a
pelo contrário, a possibilidade de um co- origem da vida e os processos implicados
nhecimento direto da realidade). Apesar nela (incluindo a consciência e o livre-ar-
de existirem diversas formas de vitalismo, bítrio) podem ser explicados apenas de
é-lhes transversal a rejeição de toda a um ponto de vista racional e científico.
possibilidade de redução do orgânico ao No seu livro Of Molecules and Men, procu-
inorgânico. rou levar os mais recentes conhecimentos
O antivitalismo exprime-se sob distin- da biologia a um público de leigos na ma-
tas formas, sendo as críticas ao vitalismo téria e expor-lhes a explicação material e
oriundas sobretudo das ciências ditas científica do Homem. Numa crítica decla-
“duras”. Em 1847, Hermann von Hel- rada ao vitalismo, propôs mesmo o aban-
mholtz (1821-1894), fisiologista e físico, dono da preocupação com a definição de
estabeleceu a Lei da Conservação da “vivo” – sugerindo que o foco de estudo
Energia, postulando que a energia não deveria antes ser o “biológico” (por oposi-
é criada nem destruída – que, portan- ção ao sintético ou tecnológico, como um
to, não são necessárias forças vitais para computador ou uma meia de nylon) – já
mover um órgão ou corpo –, indo assim que, segundo o autor, a explicitação do
contra algumas das ideias vitalistas; na termo coloca diversos problemas, desig-
mesma época, Julius von Mayer e James nadamente quando o opomos a “morto”,
Joule chegavam, por diferentes vias, à o que pressupõe que o que agora está
mesma conclusão. Já no séc. xx, o físico morto esteve antes vivo, além de que a dis-
Henry Margenau (1901-1997) apontou tinção tradicional entre animais, vegetais
às teorias vitalistas o defeito de se confi- e minerais não nos permite compreender
narem a um campo muito reduzido, não se um vírus é ou não uma entidade viva.
sendo extensíveis a outras zonas da rea- Procurou, ainda, delimitar as fronteiras
lidade. Mais claramente antivitalista foi entre orgânico e inorgânico e justificar
Francis Crick (1916-2004), físico, biólogo o fenómeno da consciência numa base
molecular e neurocientista, galardoado, puramente científica, servindo-se da
energia vital que anima os corpos e se- siderou que o cientista devia cingir-se à
gundo as quais a doença não tem origem realidade fenoménica, em vez de se ocu-
nos órgãos, mas é o resultado de um dese- par de causas últimas.
quilíbrio na energia que circula no corpo
(“qi”). Bibliog.: BERGSON, Henri, Ensaio sobre os Da
No panorama português, um dos pri- dos Imediatos da Consciência, Lisboa, Edições 70,
meiros autores a criticar o vitalismo (mas 2011; BOMBARDA, Miguel, A Consciência e o
Livre Arbítrio, Lisboa, Parceria António Maria
também o materialismo, que acusa de ge-
Pereira, 1902; BRASSIER, Ray, Nihil Unbound.
neralizar uma doutrina por dedução, ao Enlightment and Extinction, Chippenham/East
considerar alguns atos do organismo su- bourne, Palgrave Macmillan, 2007; CALAFA-
bordinados às leis físicas e químicas, sem TE, Pedro, “Filosofia e medicina: iatromecani-
que os factos sejam verificáveis, ou sem cismo, vitalismo e animismo”, in CALAFATE,
que estas leis consigam explicar grande Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófi
parte dos fenómenos vitais) foi António co Português, vol. iii, Lisboa, Caminho, 2001,
pp. 159‑167; CARDOSO, Adelino, “Filoso-
Augusto da Costa Simões (1819-1903),
fia e história das ciências: a inteligibilidade
médico, professor e reitor da Univ. de científica no Portugal oitocentista”, in CALA-
Coimbra. No seu livro Elementos de Phy- FATE, Pedro (dir.), História do Pensamento Filo
siologia Humana, Costa Simões declarou sófico Português, vol. iv, t. 2, Lisboa, Caminho,
que a vida se manifesta por intermédio 2004, pp. 13-41; Id., O Trabalho da Mediação no
dos fenómenos dos campos organizados, Pensamento Leibniziano, Lisboa, Colibri, 2005;
mas sublinhou que nada sabemos acerca CRICK, Francis, Of Molecules and Men, Seatle,
University of Washington Press, 1966; Id.,
daquilo em que consiste a sua essência.
A Hipótese Espantosa. Busca Científica da Alma,
Critica o vitalismo pela falta de demons-
Lisboa, Edições Piaget, 1998; GLISSON,
tração, por meio de factos, das suas teo- Francis, De Natura Substantiantiae Energetica,
rias, considerando que há questões que London, Flesher, 1672; JOHNSTON, Adrian,
se situam na esfera da metafísica (e.g., se a Prolegomena to Any Future Materialism, vol. 1,
vida é uma causa ou um efeito, ou se é um Evanston, Northwest University Press, 2013;
só o princípio que serve de agente mo- MALABOU, Catherine, L’Avenir de Hegel. Plas
tor de todos os atos de uma vida). Dada ticité, Temporalité, Dialectique, Paris, Vrin, 1996;
MORA, José Ferrater, “Vitalismo”, Dicionario
a natureza insolúvel dos problemas meta-
de Filosofia, vol. 4, Madrid, Alianza Editorial,
físicos, conclui ser estéril a sua discussão, 1982, pp. 3444-3446; SHELDRAKE, Rupert,
e inútil à medicina. O cientista, também A New Science of Life. The Hypothesis of Formative
ele médico, que mais combativamente se Causation, London, Blond and Briggs, 1981;
opôs ao vitalismo foi Miguel Bombarda SIMÕES, António Augusto da Costa, Elemen
(1851-1910), em especial na sua obra A tos de Physiologia Humana com a História Corres
Consciência e o Livre Arbítrio, onde defen- pondente, vol. 1, Coimbra, Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra, 1861.
deu claramente a redução da vida aos
fenómenos físicos e químicos. Para este Moirika Reker
médico, a consciência é tão-só um resulta-
do físico-químico do cérebro, da mesma
forma que a origem do Homem é uma
consequência de um processo mecânico,
e não o reflexo da vontade divina. Bom-
barda rejeitou, assim, a ideia de alma, ne-
gando haver diferenças qualitativas entre
o homem e os outros seres. Ademais, con-
dos trabalhadores imigrantes indica que discriminação racial, mudanças essas alta-
existe uma marca da segmentação étnica mente subsidiárias da produção de novas
do mercado de trabalho português, com disposições legais a nível europeu. Entre
os imigrantes oriundos dos países africa- as disposições legais, assumem especial
nos de língua oficial portuguesa, da Eu- significado as diretivas do Conselho Euro-
ropa de Leste e do Brasil a trabalharem, peu, aprovadas no ano 2000. No entanto,
maioritariamente, na construção civil, na convém dizer que, entre os instrumentos
hotelaria e no turismo ou em trabalhos legais para a luta contra o racismo e a dis-
não qualificados. São também empregos criminação racial ou étnica se incluem
de risco e ocupações com menor segu- normas penais, civis e administrativas,
rança laboral, onde a probabilidade de bem como normas internacionais e co-
ocorrência de acidentes incapacitantes munitárias, ratificadas ou transpostas
ou mesmo mortais é maior, como é o caso para a ordem jurídica interna, anteriores
da construção civil. Verifica-se uma maior ao ano de 2000.
precariedade e, portanto, uma maior vul- O art. 15.º da Constituição da Repúbli-
nerabilidade às flutuações da conjuntura ca Portuguesa baseia-se no princípio da
económica. É ainda necessário acrescen- dignidade humana, prevendo um leque
tar que a desvantagem estrutural em que de direitos, liberdades e garantias que de-
se encontram os imigrantes face ao mer- vem ser aplicados de acordo com o prin-
cado de trabalho em Portugal se apro- cípio de que todos os cidadãos são iguais
funda quando se olha para a situação perante a lei (art. 13.º). Muitas outras
das mulheres imigrantes, para as quais a normas constitucionais são baseadas no
discriminação étnica ou racial se junta à princípio da igualdade e na luta contra
discriminação de género. A desigualda- a discriminação. Há outros diplomas le-
de em que se encontram os imigrantes gais que incluem normas antidiscrimina-
consegue ser ainda aferida por aquilo a tórias, como o Código de Procedimento
que se pode chamar desqualificação obje- Administrativo, a Lei dos Partidos Polí-
tiva em relação ao seu nível de instrução ticos, o Código da Publicidade, a Lei de
(PEIXE et al., 2008, 36). Cooperação Judiciária Internacional em
Será ainda necessário dizer que os tra- Matéria Penal e o Estatuto das Institui-
balhos mal remunerados e pouco qualifi- ções Particulares de Solidariedade Social.
cados associados, no imaginário popular, O Código Penal português inclui vá-
a algumas camadas de imigrantes e, em rias normas criminalizadoras de com-
parte, confirmados pelos estudos e pelos portamentos discriminatórios, entre elas
dados oficiais ocupam um lugar estrutu- a norma que tipifica como homicídio
ral na economia portuguesa. Numa al- qualificado aquele que é motivado por
tura em que há uma pressão para a fle- ódio racial, religioso ou político, consi-
xibilização (e precarização) da mão de derando-se que este reveste especial cen-
obra, os empregadores encontram nos surabilidade ou perversidade. Não existe,
trabalhadores imigrantes a força de tra- no entanto, uma norma geral que esta-
balho flexível que as novas regulamen- beleça que a motivação racista constitui
tações laborais querem impor a todos os circunstância agravante para a prática de
trabalhadores. todos os crimes. Assim sendo, em relação
Nos últimos anos do séc. xx, houve, em aos restantes crimes, é a decisão judicial
Portugal, importantes mudanças no qua- que considera a motivação racista como
dro legal e institucional da luta contra a agravante ou não. Desde o ano de 1996,
Elucidário
de conceitos e correntes afins
NOTA INTRODUTÓRIA
Como remate final deste dicionário, apresentam-se sínteses críticas sobre conceitos,
correntes, produções críticas, tendências que não se configurando como
movimentos anti consagrados pelo “ismo” são-lhes afins, fazendo parte do
domínio de compreensão que pretendemos abarcar com esta obra
e revelando-se significativos em ordem à mapização do campo negativo.
Não se trata de um elenco exaustivo, mas apenas de verbetes
com carácter exploratório e ilustrativo, podendo ser completados em projetos
posteriores que estamos a promover nesta nova área de investigação
de banda mais larga intitulada “Culturas em negativo”.
vida ligada à beleza artística, mesmo quan- e humana com que conviviam quotidiana-
do próxima dos “abismos do mal e do mente e desse modo adotaram uma ati-
horror” (Eco, 2007, 350). As tendências tude que, suicidária por vezes, constituiu
satânicas e demoníacas dominantes entre uma forma de refúgio e de sobrevivência.
muitos dos artistas finisseculares, assim Como observa Julia Kristeva, a literatu-
como o culto do vício, do excesso e da de- ra moderna é riquíssima em sucessivas
formação sexual influenciarão profunda- formas de derrisão que, explorando as
mente o uso que as vanguardas farão do fronteiras do socialmente aceitável, pro-
feio, do abjeto, do obsceno, da quebra do curaram desconstruir a retórica homo-
tabu sexual, das transgressões estéticas, es- geneizante e desse modo conquistar, por
truturais e genológicas, dos próprios con- via do excesso artístico, uma catarse com-
ceitos de arte e de antiarte. As vanguar- pensadora do real diminuído. Em 1963,
das tratariam esses aspetos como parcelas na heteróclita antologia Surrealismo/Abjec
ativas do desejo de abarcar artisticamente cionismo, organizada por Mário Cesariny,
todas as dimensões do humano e da busca percebe-se na diversidade dos autores e
de uma nova linguagem poética, mais am- mesmo dos percursos estéticos que lhes
pla e viva, usando-os também como armas subjazem a uniformidade de uma mesma
de arremesso capazes de chocar e de mos- denúncia, concentrada em torno de um
trar o verdadeiro rosto de uma sociedade entendimento do quotidiano enquanto
castradora, hipócrita, fundada em valores emanação de abjeções.
violentos e na opressão constante dos ver-
dadeiros instintos do Homem.
Em Portugal, o abjecionismo, vertente
em torno da qual se reuniram as expres-
sões artísticas heterogéneas dos herdeiros Bibliog.: impressa: Angelo, Paolo d’, A Es-
do surrealismo, tendo como mote a icóni- tética do Romantismo, Lisboa, Estampa, 1998;
ca pergunta de Pedro Oom: “o que pode Bataille, Georges, “L’abjection et les formes
fazer um homem desesperado, quando misérables”, in Bataille, Georges, Oeuvres
o ar é um vómito e nós seres abjetos?” Complètes, II. Écrits Posthumes, Paris, Gallimard,
(Cesariny, 1997), terá configurado a 1970, pp. 217-221; Id., O Erotismo, Lisboa, An-
tígona, 1988; Cesariny, Mário (org.), Surrea-
mais relevante expressão de recusa e de
lismo/Abjeccionismo, Lisboa, Minotauro, 1963;
resistência conflituosa, emergindo como Id. (org.), A Intervenção Surrealista, Lisboa, As-
expressão não apenas da escolha estética sírio e Alvim, 1997; Eco, Umberto (dir.), His-
dos domínios socialmente identificados tória do Feio, Miraflores, Difel, 2007; Fou-
como abjetos, mas também da abjeção re- cault, Michel, História da Sexualidade, 3 vols.,
presentada pelo Estado Novo e pela sua Lisboa, Relógio d’Água, 1994; Gasset, José
menorização dos potenciais individuais e Ortega y, A Desumanização da Arte, Lisboa,
coletivos do povo português. À semelhan- Vega, 1996; Kristeva, Julia, Pouvoirs de l’Hor-
reur: Essai sur l’Abjection, Paris, Seuil, 1983; Se-
ça do termo “decadentes” com que os ar-
ligmann-Silva, Márcio, O Local da Diferença:
tistas do final do séc. xix caracterizaram a Ensaios sobre Memória, Arte, Literatura e Tradução,
sua rutura face aos valores dominantes da São Paulo, Edições 34, 2005; digital: Ceia,
civilização ocidental, destacando-se dela Carlos, “Abjeção”, in CEIA, Carlos (coord.),
para nela reconhecerem especularmente E-Dicionário de Termos Literários, s.d.: http://
a decadência que lhes servia de epíteto edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6537/ab-
crítico, os abjecionistas definiram-se pela jeccao/ (acedido a 31 ago. 2015).
consciência da degradação social, cultural Rui Sousa
distopia catastrófica, estes autores recriam na exclusão dos erros cometidos nas fa-
uma sociedade futura, sem problemas am- ses anteriores, renovando a esperança das
bientais, fundamentada no regresso ao idí- ambicionadas felicidade e prosperidade.
lio naturalista e no retorno à mãe nature- Como referência, o termo “anti-antiu-
za. Como exemplo de obras deste género, topia” aparece citado na edição de 1979
referem-se Ecotopia, publicada em 1975, da da obra Voyages aux Pays de Nulle Part, de
autoria de Ernest Callenbach (1929-2012), Raymond Trousson (1936-2013), num
e Mai 86, de Jacques Sternberg (1923 trecho em que o autor se refere às uto-
‑2006), publicada em 1978. Através da in- pias ecológicas ou ecotopias, preconiza-
trodução de medidas que impeçam ou ate- doras dum futuro melhor ao recusarem a
nuem a utilização dos meios responsáveis forma de progresso baseado numa indus-
pela ocorrência de desequilíbrios ecológi- trialização maciça a qualquer custo, com
cos, as sociedades projetadas nestas obras os consequentes danos ambientais.
encontram-se livres dos danos ambientais Duma forma mais abrangente que o
conhecidos nessa época. Ou seja, é a partir exemplo da ecotopia referido por R. Trous
do conhecimento do mal que se vão elabo- son, a anti-antiutopia poderá identificar
rar as medidas mitigadoras dos problemas ‑se com o renascimento da vontade utó-
ambientais existentes, permitindo o apa- pica do Homem, quando a utopia inicial
recimento dum mundo novo, onde exista o atirou para o inferno, em vez de o ter
uma relação harmoniosa entre o Homem conduzido ao paraíso. Não foi atingido
e a natureza. Segundo este procedimento, o paraíso almejado pela propensão utó-
os ensinamentos, obtidos na procura utó- pica, mas esse percurso mostrou os erros
pica da sociedade ideal do bem-estar e da cometidos, funcionando como uma learn
felicidade, são aproveitados para corrigir ing curve. Na tentativa utópica seguinte,
os males encontrados e reequacionar o foram já introduzidas as medidas mitiga-
objetivo utópico inicialmente delineado. doras que evitam o retorno ao inferno an-
É nisto que consiste a anti-antiutopia. terior. É nesta visão estratégica, que impe-
A anti-antiutopia revela, portanto, um de o Homem de cair nos mesmos erros,
processo dinâmico para a realização que se fundamenta a anti-antiutopia. Re-
duma estratégia de reconstrução. Esta es- presenta, assim, a forma de renovar a es-
tratégia permitirá reativar o espírito utó- perança, construindo um novo caminho,
pico, após o desalento encontrado, num consolidado por via da aprendizagem das
primeiro estádio, com o aparecimento da ações que motivaram o insucesso do so-
antiutopia gerada como reflexo do objeti- nho utópico inicial.
vo utópico não conseguido. Trata-se dum Regressando à procura de referências
processo faseado no tempo, cumprindo na literatura quanto ao uso do vocábulo
a seguinte ordem: primeiro, a afirma- “anti-antiutopia”, o crítico literário Fre-
ção, a seguir, a negação, para se chegar, dric Jameson (n. 1934) emprega este
finalmente, à negação da negação. A pri- termo para descrever a única forma de
meira fase corresponde à utopia inicial- utopismo que aparece a seguir ao pe-
mente projetada, enquanto a segunda ríodo de proliferação do antiutopismo
compreende o período de desilusão por iniciado com a Guerra Fria. Na linha
não terem sido alcançados os objetivos da sua teorização, este crítico ameri-
previstos. A terceira e última fase, iden- cano designa como anti-antiutopistas
tificada com a anti-antiutopia, equivale um grupo de escritores americanos de
ao começo dum novo projeto, edificado ficção científica do pós-modernismo
dos impostos e a aplicação do produto dos Açores, 1987; MACEDO, Jorge Braga de,
líquido não revertem em benefício da re- História Diplomática Portuguesa: Constantes e Li-
gião, que tanto deles necessita. Esta ideia nhas de Força. Estudo de Geopolítica, Lisboa, Ins-
tituto da Defesa Nacional, 1987; REIS, Ma-
persiste e domina o debate, chegando à
nuel Pestana, “Regionalismo. A autonomia da
Assembleia pela voz de Manuel José Viei-
Madeira”, in Quinto Centenário do Descobrimento
ra, em intervenção de 7 de maio de 1883: da Madeira, Publicação Comemorativa, Funchal,
“sabemos que fazemos parte do reino de Comissão de Propaganda e Publicidade do
Portugal única e exclusivamente para qui- Centenário, 1922; VERÍSSIMO, Nelson, “Em
nhoarmos nos encargos que se renovam 1917, a Madeira reclama autonomia”, Atlânti-
ou batizam com nomes diferentes, mas co, n.º 3, 1985, pp. 229-232; Id., “A nossa auto-
que sempre se acrescentam” (VIEIRA, nomia: um inquérito de Armando Pinto Cor-
reia”, Atlântico, n. º 19, 1989, pp. 197-202; Id.,
1883, 6).
“O alargamento da autonomia dos distritos
Se no séc. xv foi a necessidade de usu- insulares: o debate na Madeira (1922-1923)”,
fruto das receitas e a riqueza dos espaços in Actas do II Colóquio Internacional de História da
insulares que levou a Coroa a travar a Madeira, Funchal, Direção Regional dos As-
continuidade do processo de pseudoau- suntos Culturais, 1990; Id., “Autonomia in-
tonomia com o senhorio das ilhas, a par- sular: as ideias de Quirino Avelino de Jesus”,
tir da déc. de 20 do séc. xix, o discurso da Islenha, n.º 7, jul.-dez. 1990, pp. 32-36; Id.,
“Autonomia insular. O debate na primavera
autonomia destes espaços assume como
marcelista”, Islenha, n.º 9, jul.-dez. 1991,
principal bandeira a utilização dos meios pp. 10‑11; VIEIRA, Alberto, A Autonomia XX.
financeiros gerados nas regiões em seu Aniversário. Breves Notas Históricas, Funchal,
favor. Passado um século, o discurso da Secretaria Regional de Educação, 1996; Id.,
antiautonomia assenta na negação destes História e Autonomia da Madeira, Funchal, Se-
meios e na ideia de regiões insulares po- cretaria Regional de Educação, 2003; VIEI-
liticamente incapazes e muito gastadoras. RA, Manuel José, Discurso Proferido na Câmara
Este discurso manteve-se até ao séc. xxi dos Senhores Deputados na Sessão de 7 de Maio de
1883, Lisboa, Typ. do Diário da Manhã, 1883;
e tornou-se a principal bandeira dos par-
digital: ENES, Carlos, “Açores e Madeira vis-
tidários da antiautonomia, ganhando tos por Marcello Caetano em 1938”, Bole-
expressão nas bancadas do Parlamento e tim do Núcleo Cultural da Horta, n.º 14, 2005:
nos meios de comunicação. http://www.nch.pt/biblioteca-virtual/bol-n-
ch14/n14-7.html (acedido a 14 dez. 2016).
Bibliog.: impressa: “1497-abril-27: carta
Alberto Vieira
régia”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xvii,
1973, pp. 363-364; Autonomia e História das
Ilhas. Seminário Internacional, Funchal, Centro
de Estudos de História do Atlântico, 2001;
CARREIRO, José Bruno, A Autonomia Admi-
nistrativa dos Distritos das Ilhas Adjacentes, Ponta Algumas partes desta entrada foram anterior-
mente publicadas em:
Delgada, Jornal da Cultura, 1994; CORDEI-
http://www.academia.edu/26559254/VIEI-
RO, Carlos, Nacionalismo, Regionalismo e Autori- RA_Alberto_AUTONOMIA_INSULAR._AL-
tarismo nos Açores durante a I República, Lisboa, GUNS_DADOS_PARA_OUTRA_LEITURA;
Salamandra, 1999; “Editorial”, A Verdade, 19 h t t p : / / w w w. a c a d e m i a . e d u / 2 5 6 0 1 3 2 4 /
nov. 1917, p. 1; JANES, Emanuel, Nacionalismo VIEIRA_Alberto_AO_ENCONTRO_DAS_
e Nacionalistas na Madeira nos Anos Trinta (1928 MEM%C3%93RIAS_E_DOS_DISCURSOS_
‑1936), Funchal, Centro de Estudos de Histó- DA_AUTONOMIA_INSULAR_O_ARQUIP%-
C3%89LAGO_DA_MADEIRA;
ria do Atlântico, 1997; LEITE, José Guilherme
Reis, Autonomia dos Açores na Legislação Portu- http://aprenderamadeira.net/autonomia-e-
financas/.
guesa 1892-1947, Horta, Assembleia Regional
cujos acordes chorosos poderiam amole- a ser progressivamente validado pelos es-
cer o coração, e banir a comédia, e até critores e pelos intelectuais.
o riso, que ficam mal à dignidade que Segundo Terri Ginsberg e Chris Li-
os guardiões devem conservar. O objeti- ppard, este tipo de oposição ao cinema,
vo era o de secar o poderio das paixões com base na moralidade, ocorreu tam-
na nossa alma e o de rejeitar os prazeres bém na Arábia Saudita, desde 1980 até
intensos, como a arte com ritmos orgiás- 2008. No país, o cinema era proibido
ticos e o sexo homossexual (que visava o em solo religioso e não havia salas de ci-
prazer e não a procriação), por terem um nema comerciais. Apenas se podia ir ao
carácter violento e destemperado e por cinema em cidades periféricas, onde se
serem, por isso, o oposto da disciplina, da anunciavam visionamentos pedagógicos
moderação e da submissão ao logos, i.e., ou espetáculos visuais, para não chamar
ao discurso do ser. a atenção dos grupos anticinema, que
Em 1907, 12 anos após a invenção do consideravam que o cinema promovia
cinema, teve começo, na Bélgica, segun- comportamentos sórdidos, decadentes e
do Daniel Biltereyst, um grande movi- imorais.
mento anticinema impulsionado por Em Portugal, em 1898, segundo Bér-
vários grupos conservadores, dentre os nard da Costa, famigerado diretor da
quais se destacava a Igreja Católica. Antes Cinemateca Portuguesa, partilhava-se a
das invasões alemãs da Primeira Guerra ideia de que o cinema tivesse pouco méri-
Mundial, grupos como a Ligue contre to artístico, tendo o público começado a
l’Immoralité, a Ligue du Cinéma Moral desinteressar-se pelo cinema e a fartar-se
e a Société Belge de Pédotéchnie faziam “‘da novidade’ e de receitas repetidas mo-
ouvir os argumentos de que o cinema era notonamente de programa em progra-
uma escola do vício, do crime e da imora- ma, como aliás aconteceu em toda a par-
lidade, e pediam que a questão fosse leva- te”. Por isso, “o País manteve-se quase por
da ao Parlamento. No entanto, o regime completo alheio ao primeiro ‘boom’ do
de censura, no cinema, viria apenas com cinema. Passados os anos da ‘novidade’,
a ocupação alemã. nem Portugal descobriu o cinema nem
Algo de semelhante ocorreu em Espa- o cinema descobriu Portugal” (COSTA,
nha, segundo Mark Garrett Cooper, onde, 1991, 12-13).
a partir de 1908 e até à déc. de 20, espe- Em Portugal, o cinema foi tido como
cialmente na Catalunha, houve campa- uma curiosidade, não tendo granjeado
nhas anticinema conduzidas pela Igreja um estatuto artístico. “Quadros vivos é de-
Católica e por intelectuais como Eugeni signação apropriada a esses filmes (1 a 2
d’Ors e Ramond Rucabado. As imagens minutos de duração) que, como as obras
em movimento foram acusadas de enco- contemporâneas de Paz dos Reis, se limi-
rajar o comportamento imoral, de causar taram a acrescentar movimento à fotogra-
doenças oftálmicas, e de ter pouco mérito fia, na mesma busca de efeito de real que
artístico. Só os filmes não narrativos foram no mesmo ano encontramos nos milha-
defendidos como tendo alguma utilidade. res de obras análogas rodadas por todo
No entanto, a partir de 1915, a revista o mundo pelos operadores dos Lumière,
España, editada pelo filósofo Ortega y de Paul, de Edison, de Skalandanowski,
Gasset, passou a incluir uma secção para etc. Chegadas de comboios, saídas e en-
crítica cinematográfica, o que fez com tradas de operários, festas populares,
que, a partir de então, o cinema passasse bombeiros extinguindo fogos, bebés
com uma ordem interna subjetiva. A re- deixaram nada igual ao que estava” (Id.,
presentação do tempo no cinema seria a Ibid., 123).
representação de um tempo relativo, sem Bénard da Costa diz que o filme Os
meridianos e pontos de referência, um Verdes Anos, de Paulo Rocha, inaugural
tempo maleável, perspetivado e sensível. do novo cinema português, “faz de qua-
Em suma, o cinema moderno da escola se todos os melhores dos filmes poste-
francesa seria, segundo Grilo, “um instru- riores seus herdeiros”, um filme em que
mento de uma ciência da incerteza, do existe “um amor total aos personagens
relativismo e da probabilidade que, de que se exprime num erotismo difuso e
resto, o pensamento científico da moder- nada físico, numa espécie de ‘saudade
nidade (a física e a matemática modernas, de os amar’ e de ‘tudo amar’ que, re-
por exemplo) trabalha ao mesmo tempo. cuperando um imaginário típico da li-
O real é coisa problemática, incerta, ma- teratura romântica (da novela popular
leável; o cinema é, simultaneamente, o ao Amor de Perdição) cortam com o lado
modo de o figurar e a forma mais rentá- queirosiano de que o cinema portu-
vel de traduzir essa maleabilidade” (Id., guês tinha sido quase sempre involun-
Ibid., 71). tário herdeiro, para o religar a uma tra-
Em Portugal, ainda antes do 25 de dição fantomática em que o fatalismo é
Abril, segundo Bénard da Costa, teve lu- o único fio condutor [...]. Verdes Anos é
gar uma grande contenda em relação ao o filme que melhor dá a ver Lisboa e
rumo que havia de tomar o novo cinema Portugal como espaços de frustração,
português, após o crescimento económi- espaços claustrofóbicos, sem saídas,
co da déc. de 50. “Aos defensores de ‘um onde tudo se frustra e tudo se agoniza
cinema moral’, ‘um cinema de raízes de- numa morte branda” (Id., Ibid., 120).
mocráticas, enquadrado na mais genuí- Fernando Lopes, em Belarmino, outro
na ortodoxia neorrealista’, começaram filme pioneiro do cinema novo portu-
a opor-se vozes que proclamavam um guês, caracterizar-se-ia também pelo
cinema afim da ‘nouvelle vague’ fran- fatalismo, ao filmar um boxeur em deca-
cesa e que se reclamam das teorias dos dência que interpreta o seu próprio pa-
Cahiers du Cinéma e da visão ‘auteurista’ pel, e que se “tivesse vivido noutro país,
do cinema. [
] E o ‘cinema novo’ nasce talvez fosse um grande campeão”. Esta
no meio dessa ‘polémica? que caracte- afirmação, feita no filme, faz passar Be
rizou, com separações e ruturas, toda a larmino “do fait-divers para a tragédia”
década de 60” (COSTA, 1991, 114). Na (Id., Ibid., 121). Manoel de Oliveira,
déc. de 60 nasceria, então, o cinema figura central do cinema português,
novo português, um cinema moderno, “escreveu José Manuel Costa, eregia
de rutura com as convenções do cinema ‘a ultrapassagem da convenção como
clássico, mas um cinema que viria a ter postulado’ e longe de proceder a uma
uma identidade própria, ao invés de ser reconstituição fílmica ‘enunciava sobre
uma duplicata de uma corrente estilística uma matéria pré-existente (o texto tea-
internacional. Destacam-se, na configu- tral) um universo imaginário’ em que
ração do caminho português do cinema, mais uma vez a função do cinema era
os realizadores Manoel de Oliveira, com repensada” (Id., Ibid., 122). Segundo o
Acto da Primavera e A Caça, Paulo Rocha, fundador da Cinemateca Portuguesa,
com Os Verdes Anos, e Fernando Lopes, Acto da Primavera e A Caça eram obras
com Belarmino, quatro filmes que “não demasiado inovadoras para serem com-
Anti-Coca-Cola
A Coca-Cola tem sido criticada com 1920, alegando que a acidez da bebida é
argumentos de diversa ordem: os efeitos perigosa, não foi detetado pelos investiga-
adversos para a saúde humana; as suas dores qualquer dado nesse sentido.
agressivas campanhas publicitárias diri- Desde 1980, nos Estados Unidos, tem
gidas a crianças; as práticas de explora- sido utilizado na Coca-Cola, em vez de
ção laboral; os altos níveis de pesticidas açúcar de cana, xarope de milho, que
utilizados; a construção de fábricas na é rico em frutose, o que pode provocar
Alemanha nazi, que empregavam mão de obesidade e diabetes.
obra escrava; a destruição ambiental; as Na Índia, há uma controvérsia sobre
práticas comerciais monopolistas; a con- a existência de pesticidas e outros pro-
tratação de unidades paramilitares para dutos químicos nocivos em produtos
assassinar dirigentes sindicais. engarrafados, incluindo a Coca-Cola.
Em outubro de 2009, num esforço para Em 2003, o Centre for Science and En-
melhorar a sua imagem, a Companhia fez vironment (CSE), uma organização não
uma parceria com a Academia America- governamental de Nova Deli, denunciou
na de Médicos de Família e doou 500.000 que as águas gaseificadas produzidas por
dólares à promoção da educação com vis- fabricantes de refrigerantes na Índia, in-
ta a uma vida saudável. A parceria gerou cluindo gigantes multinacionais como a
fortes críticas sobre ambos os parceiros, PepsiCo e a Coca-Cola, continham toxi-
por parte de médicos e nutricionistas. nas, como lindano, DDT, malatião e clor-
Por sua vez, a Bolívia anunciou, em ja- pirifós, podendo tais pesticidas contribuir
neiro de 2013, que iria proibir a venda da para o desenvolvimento de doenças can-
Coca-Cola no seu território. cerígenas e o colapso do sistema imuno-
Há estudos indicadores de que os re- lógico. Após estas acusações, as vendas da
frigerantes e as bebidas açucaradas são a Coca-Cola na Índia diminuíram 15 %. Em
principal fonte de calorias na dieta ame- 2004, uma comissão parlamentar indiana
ricana, o que leva a maioria dos nutricio- apoiou as descobertas do CSE e uma co-
nistas a alertar para os seus efeitos nocivos, missão nomeada pelo Governo foi encar-
quando consumidos em excesso, desig- regada de desenvolver padrões de pestici-
nadamente por crianças. Outros estudos, das para refrigerantes produzidos no país.
como o de Michael Jacobson, evidenciam A empresa The Coca-Cola Company tem
que os consumidores regulares de refrige- respondido que utiliza água filtrada para
rantes possuem um menor consumo de remover contaminantes potenciais, que os
cálcio, magnésio, ácido ascórbico, ribofla- seus produtos são testados para verificar a
vina e vitamina A. A cafeína utilizada na existência de pesticidas, e que cumpre as
bebida também pode provocar dependên- normas mínimas de segurança sanitária.
cia física. Foi demonstrada, nomeadamen- A Companhia também foi acusada de uso
te por Katherine Tucker, a existência de excessivo de água na Índia.
uma relação, a longo prazo, entre a inges- Em 1928, Fernando Pessoa escreveu o
tão regular dessa bebida e a osteoporose slogan de lançamento da Coca-Cola em
em mulheres mais velhas, devido à presen- Portugal: “Primeiro, estranha-se. Depois,
ça de ácido fosfórico, tanto na bebida com entranha-se”. A Coca-Cola viria a ser in-
cafeína como na descafeinada, e tanto na terditada pelas autoridades por, alegada-
açucarada como na não açucarada. To- mente, se tratar de um produto suscetível
davia, apesar de vários processos judiciais de criar habituação. De facto, o então
contra The Coca-Cola Company, desde diretor de Saúde do Governo português,
decretou que este novos cristãos tivessem cida “Proposta feita a el-Rei D. João IV em
os mesmos direitos que os velhos cristãos. que se lhe representava o miserável esta-
Todavia, esta igualdade legal foi perver- do do reino e a necessidade que tinha de
tida pelo estigma social que no reinado admitir os homens de nação mercadores”
seguinte, de D. João III, refreou a política (FRANCO e CALAFATE, 2014, 33-48).
de equiparação e acentuou cada vez mais Neste opúsculo, depois de apresentar o
uma discriminação que a implantação estado realmente miserável do país e sua
do Santo Ofício em 1536 acabaria por vulnerabilidade relativamente à vizinha
institucionalizar. Espanha, Vieira procura demonstrar que
A criação da Inquisição espanhola no somente pelo incentivo, proteção e de-
séc. xv e da portuguesa no séc. xvi, vigo- senvolvimento do comércio poderia Por-
rando durante três séculos, estabeleceu tugal fortalecer a economia e assegurar
as bases de vigilância para garantir a con- a sua independência, e, para o efeito, os
solidação de uma sociedade monolítica, judeus e cristãos-novos teriam um papel
de uma só fé e de pensamento único. Os fundamental. O padre jesuíta retomou
judeus e mouros que permaneceram na o tema noutros escritos, como “Propos-
península Ibérica, com a condição de ta que se fez ao sereníssimo Rei Dom
aderirem à fé cristã, acabaram por ficar João IV a favor da gente de nação, pelo
sob o labéu da suspeição e da limitação padre António Vieira, sobre a mudança
de direitos no acesso a cargos políticos e dos estilos do Santo Ofício e do Fisco.
religiosos. Neste contexto, estabeleceu-se 1646”, “Razões apontadas a el-Rei Dom
o estatuto de limpeza de sangue, defini- João IV a favor dos cristãos-novos”, “Papel
do através de inquéritos para averiguar a que fez o padre António Vieira, estando
existência, até à sexta geração, de ascen- em Roma, a favor dos cristãos-novos, no
dentes judeus ou mouros de um candida- tempo em que o príncipe regente Dom
to a cargos públicos e eclesiásticos – e.g., Pedro tinha mandado publicar uma lei
a bispo, a membro de ordens religiosas, de vários castigos contra eles, movido do
a juiz, etc. — ou de um arguido da In- roubo, que se fez ao sacramento da paró-
quisição. Estes inquéritos de limpeza de quia de Odivelas, o qual papel se deu ao
sangue determinavam se um indivíduo príncipe, sem nome em 1671”, “Desen-
era cristão-velho e detentor de todos os gano católico sobre o negócio da gente
direitos sociais, políticos e religiosos, ou de nação hebreia” e “Memorial a favor da
cristão-novo, limitado na sua condição de gente de nação hebreia sobre o recurso
cristão e considerado mais susceptível de que intentava ter em Roma, exposto ao
trair a fé e enveredar pelo caminho da he- príncipe Dom Pedro”, entre outros títu-
resia e da apostasia. los que encontramos reunidos no volume
O padre António Vieira destacou-se Escritos sobre os Judeus e a Inquisição, da sua
como uma das vozes mais fortes na ten- Obra Completa (2015).
tativa de acordar a consciência do Rei, Em meados do séc. xviii, emergiu
então D. João IV, relativamente à ques- no seio da classe intelectual portuguesa
tão judaica. O missionário jesuíta foi um uma especial atenção sobre o lugar dos
homem de visão, dividido entre a selva cristãos-novos na sociedade, traduzida
e a corte, entre os assuntos espirituais e em produção literária que ficou gravada
os temporais. Intimamente preocupado na história como divisa de tolerância em
com o presente e com o futuro de Portu- Portugal, e que acabaria por ter eco nas
gal, o Jesuíta compôs, em 1643, a conhe- medidas posteriormente tomadas por
Sebastião José de Carvalho e Melo a res- tornando-o tribunal régio, estavam cria-
peito da mesma temática. Referimo‑nos das as premissas que determinariam a li-
particularmente aos textos Testamento mitação da atividade daquela instituição,
Político (1747-49), de D. Luís da Cunha, o que veio a acontecer na sequência da
embora algumas das suas posições já es- promulgação do alvará de 1 de setembro
tivessem expostas na sua Instrução Política de 1774, que aprovava o novo Regimento
para Marco António de Azevedo Coutinho da Inquisição, restringindo a sua autori-
(1736), e Cristãos Novos e Cristãos Velhos em dade e poderes, designadamente quanto
Portugal (1748), de António Nunes Ribei- à sua forma de atuar — com a abolição,
ro Sanches. Nestes textos, é recuperada a e.g., dos autos de fé públicos e particula-
argumentação utilizada na defesa de ju- res, a regulação do sistema das denún-
deus e cristãos-novos por António Vieira, cias e a limitação do recurso à tortura.
para justificar a necessidade de suprimir Por fim, no ano de 1773, foi aprovada e
a distinção entre cristãos-novos e cristãos publicada a carta de lei de 25 de maio,
‑velhos, de limitar a ação da Inquisição, que decretava a revogação dos estatutos
de revogar as inquirições de sangue e os de pureza de sangue e a abolição da dis-
autos de fé públicos e privados e de elimi- tinção entre cristãos-novos e cristãos-ve-
nar os Róis de Fintas (listas com o registo lhos, e impunha pesadas penas impostas
dos cristãos-novos usadas para a cobrança contra aqueles que desobedecessem à lei
de impostos especiais e outros fins discri- insistindo no uso dos termos distintivos
minantes e persecutórios), medidas con- cristão-novo e cristão-velho, e em 1775,
sideradas essenciais para a preservação da com a carta de lei de 15 de dezembro,
independência portuguesa, para o reflo- D. José I completava as disposições legais
rescimento do comércio e da indústria, anteriores ao proteger os cristãos-novos
para a promoção de uma melhor imagem do confisco dos bens pela Inquisição.
de Portugal no estrangeiro e para a defe- Sebastião José de Carvalho e Melo, o
sa da religião católica. ministro por detrás de toda esta arquite-
Foi durante a governação pombalina tura legislativa, é considerado “o primei-
que os cristãos-novos portugueses viram ro legislador a favor dos judeus que abriu
finalmente conquistada a paridade re- as portas à sua completa emancipação”
lativamente à demais população cristã. (MARTINS, 2010, I, 222). Um dos argu-
Data de 2 de maio de 1768 a primeira lei mentos utilizados para apoiar esta ilação
decretada, neste contexto, em defesa dos prende-se com o facto de ter sido Pom-
cristãos-novos, pondo fim aos chamados bal a estabelecer como lei aquilo que era
Róis de Fintas. No mesmo ano, um alva- “apenas uma corajosa ideia defendida à
rá confidencial de 5 de outubro abolia o boca pequena” (Id., Ibid., 224) por Antó-
puritanismo da nobreza, ou seja, perante nio Vieira, D. Luís da Cunha ou Ribeiro
a recusa da nobreza em “misturar o seu Sanches. Outros há que justificam a legis-
sangue” e maculá-lo com o sangue con- lação pombalina em matéria judaica à luz
siderado impuro dos judeus, obrigava os de uma política de promoção da burgue-
chefes das famílias chamadas “puritanas” sia e de controlo da nobreza, bem como
a casar os seus filhos com elementos de no quadro da campanha antijesuítica que
famílias consideradas “não puritanas”. levou, também no ano de 1773, à publi-
Quando, a 20 de maio de 1769, D. José cação da bula de expulsão universal da
assinou um alvará a dotar o Tribunal do Companhia de Jesus, Dominus ac Redentor
Santo Ofício com o título de Majestade, Nostri Jesus, pelo papa Clemente XIV (PE-
E
Ra
ste movimento, também designa-
do como Disegno Radicale [Design
dical], resultou da deceção gerada
a elaboração de uma filosofia autocrítica.
Ao procurar desembaraçar-se da tradição
funcionalista, criou um enquadramento
pelo modernismo e deu resposta a esta que permitia projetar de forma mais des-
desilusão, ao manifestar-se como um contraída e irreverente, e elaborar pro-
protesto contra essa tendência estética, jetos através de fotomontagens, filmes e
afirmando-se simultaneamente como exposições, o que também correspondia
proposta alternativa aos ditames do mo- a uma crítica ao ideário modernista.
dernismo. A expressão “anti-design” foi Se o modernismo conferiu ao design
uma das primeiras expressões a crista- valores como a eficácia, a permanência,
lizar-se neste campo disciplinar na pós a conjugação de formas puras, o respeito
‑modernidade. Nas décs. de 50 e de 60 pelas propriedades intrínsecas dos mate-
a desilusão face ao modernismo gerou riais, e uma paleta onde o preto, o bran-
acesos debates na Trienali di Milano co e o cinzento predominavam, o anti
[Trienal de Milão]. Vários membros da ‑design preferiu o efémero e o que era
vanguarda italiana não concordavam veiculado pela Arte Pop, interrogando
com o facto de o designado Italian Style o consumismo e usando o ornamento e
[Estilo Italiano] ser o fundamento do de a exuberância da cor. O anti-design rejei-
sign nesse país, apesar do enorme pres- tou muitas vezes as preocupações habi-
tígio que a linea italiana ou o bel disegno tuais do design, que passam pela utilida-
tinha adquirido no mundo ocidental, de, pela funcionalidade, e pelo carácter
associado a uma cultura urbana capita- prático, para fabricar, ao invés, objetos
lista e sofisticada. Foram esses debates absurdos, incoerentes, e que, portanto,
que estiveram na origem do anti-design, ficavam fora dos padrões comuns. Para
mas o seu nascimento enquanto tendên- tal, brincava com a escala, usava o hu-
cia localiza-se em Itália, na déc. de 60 do mor, a ironia, ou o kitsch, atingindo, em
séc. xx, dissolvendo-se nos anos 80. Teve alguns casos, o dadaísmo no design. Estas
pois como pano de fundo, a contestação opções decorriam de um pensamento
ideológica em que esses anos foram fér- sobre a própria disciplina num mundo
teis. Os objetivos do modernismo, que hiperindustrializado e consumista. O de
se tinham transformado num mero ins- signer já não era um agente que transfor-
trumento de marketing, fizeram com que mava a casa num lugar aprazível, mas sim
o anti-design consolidasse a sua posição aquele que fazia pensar e estimulava pa-
inconformista; os seus promotores não drões de comportamento, contribuindo
aceitavam nem a perda do idealismo da para uma consciência social plena, para
democratização, nem o desprezo quan- um novo equilíbrio de valores, e para
to ao contributo específico para a reso- denunciar a alienação gerada pelo con-
lução dos problemas da sociedade que o sumo compulsivo, lembrando ao mesmo
design pode dar. tempo que o indivíduo concentra em si
Fabrizio Fiumi e Paolo Galli, estava espe- vimento foi relevante para o futuro deste
cialmente interessado no papel do teatro campo disciplinar e que a sua complexi-
como lugar de arte e de arquitetura. Re- dade continua a marcar todos os que en-
corde-se a organização de um happening tendem o projeto como um manifesto.
na Ponte Vecchio e a conceção, em Flo-
rença, de um interior de discoteca que
seguiu a fantasia da ficção científica. Bibliog.: BÜRDEK, Bernhard E., History, Theo-
O Gruppo Strum, formado em Turim ry and Practice of Product Design, Boston/Berlin,
Birkhäuser Basel, 2005; COLES, Alex, e ROS-
no final dos anos 60, usava a arquitetura
SI, Catharine (orgs.), The Italian Avant-Garde:
como meio de transmissão de propagan- 1968-1976, Berlin, Sternberg Press, 2013; ER-
da política. Dos seus membros destacam LHOFF, Michael, e MARSHALL, Tim (orgs.),
‑se Giorgio Ceretti (1932), Pietro Derossi Design Dictionary, Boston/Berlin, Basel
(1933), Carlo Gianmarco, Riccardo Ros- Birkhäuser, 2008; FERREIRA, Patrícia, Design
so e Maurizio Vogliazzo. O seu memo- Conceptual na Era Pós-Industrial: “A Forma Segue
rável projeto de assento, Pratone (1971), o Conceito”, Lisboa, Faculdade de Arquitetu-
ra da Universidade Técnica de Lisboa, 2010;
materializa perfeitamente o movimento
FUAD-LUKE, Alastair, Design Activism: Beauti-
anti-design. Este grupo concebeu mobi- ful Strangeness for a Sustainable World, London,
liário versátil com diversas associações ao Earthscan, 2009; LEES-MAFFEI, Grace, e
universo naïf. O uso de espuma de poliu- FALLAN, Kjetil, Made in Italy: Rethinking a Cen-
retano, um material novo naqueles anos, tury of Italian Design, London, Bloomsbury
induziu à criação de uma série de objetos Publishing, 2013; MARGOLIN, Victor (org.),
com presença escultórica em ambientes Design Discourse: History, Theory, Criticism, Chi-
domésticos. cago, The University of Chicago Press, 1989;
MORTEO, Enrico, Petite Encyclopédie du Design,
Pode ainda referir-se a ação do Gruppo
Paris, Édition Solar, 2009; RAIZMAN, David,
DAM (Designer Associati Milano) e do History of Modern Design: Graphics and Products
coletivo UFO. since the Industrial Revolution, London, Laurence
Muitas das propostas radicais dos ar- King Publishing, 2003; SPARKE, Penny, Italian
quitetos e designers italianos da déc. de Design, 1870 to the Present, London, Thames
1960 e do início da déc. de 1970 foram and Hudson, 1988; Id., 100 Ans de Design,
exibidas na exposição de referência Paris, Octopus, 1998; SUDJIC, Deyan, The
Language of Things, London, Penguin, 2009;
Italy: The New Domestic Landscape, que
WOODHAM, Jonathan M., Twentieth-Century
ocorreu em 1972 e teve lugar no Museu Design, Oxford/New York, Oxford University
de Arte Moderna de Nova Iorque. Esta Press, 1997.
exposição foi organizada por Emilio
Sandra Leandro
Ambasz e mostrou não só o bel disegno
de Mario Bellini (1935), Joe Colom-
bo (1930-1971), Richard Sapper (1932
‑2015) e Marco Zanuso (1916-2001), mas
também o design de contracorrente do
Archizoom, do Superstudio, do Strum
e do 9999. Ao expor tendências opostas
que coexistiam naquela época, Ambasz
sublinhou a diversidade e o dinamismo
do design italiano.
Colocando o design fora da ordem mo-
dernista, pode considerar-se que este mo-
Decadentismo
um programa: refletir a imagem deste A lista seria numerosa, até Mário de Sá
mundo spleenático; nada de descrições, ‑Carneiro e Álvaro de Campos, que des-
ou tão-só uma súmula rápida, dando a trinça entre ser e estar decadente: “Fui
impressão dos objetos. Não pintar, fazer em tempos poeta decadente [em “Opiá-
sentir; dar a sensação das coisas, seja por rio”]; hoje creio que estou decadente, e
construções novas, seja por símbolos evo- já o não sou” (CAMPOS, 1922).
cando a ideia, com uso mais intenso da Luís de Montalvor resume, em “Tenta-
comparação. Sintetizar a matéria, mas tiva de um ensaio sobre a decadência”:
analisar o coração. “Ser-se doente é ser-se doente espiri-
Essencialmente do foro lírico, esta arte tualmente, é ser-se superior! A arte é a
conjuga morte, noturnidade, homosse- doença imortal dos pálidos de Deus e da
xualidade, morbidez, histeria, nevrose, Beleza. A arte profunda alimenta-se das
como o soneto de Miguel Fernandez, “Dé- lágrimas ínfimas da dor universal”. Mui-
générescence”, título da tradução fran- tos cultivaram este ponto; receosos, culti-
cesa do clássico de Max Nordau (1894), varam menos a androginia, o equívoco se-
desejando provar que as modernas ten- xual, diluídos num ideal de beleza: “Ah!
dências artísticas e literárias tinham ori- ser-se decadente é ser-se lindo de gestos,
gem na degenerescência dos autores: é ser-se débil e femininamente o sistema
a fortiori, os decadentistas eram objeto nervoso de todas a sensações, de todas a
de estudo. Para Baju, “tout décade [tudo emoções, de todos os pensamentos, de
decai]”; mas, na civilização da abundân- todas as inferioridades, de todas as gran-
cia de um próximo Jacinto queirosiano, dezas, de todas as imoralidades, de todos
da qual esteticamente se desconfia – não os ascetismos, da convulsão espasmódica
associar, porém, decadência e decaden- e mediúmnica do nosso século!”. A sín-
tismo –, escreva-se com delicadeza (mar- tese, com aceno a Baju e 1886, 30 anos
ca de instabilidade), elevação (sinal de antes, poderia estar nestas linhas: “Somos
artifício) e o refinamento de olhar par- os decadentes do século da Decadência.
cial (fragmentação) que gere novidoso Vamos esculpindo a nossa arte na nossa
estilo; o efeito, preciosista, é não raro indiferença. A vida não vale pelo que é,
ininteligível. mas pelo que dói... Só a Beleza nos inte-
Entre a imprensa estrangeira que adere ressa... Se nos apelidamos ou nos apelida-
ao movimento surge o nome de Xavier de ram caracteristicamente de decadentes,
Carvalho, correspondente de A Província é porque temos um sentido próprio de
(Porto), que saúda Baju e aí insere “As decadência” (MONTALVOR, 1916).
anémicas” (set. 1886), além de outros
poemas em várias folhas, tornando-se in-
trodutor do decadentismo em Portugal.
Mau grado a convocação de grupos dís-
pares (nefelibatas, soístas [do Só nobria-
no], pré-expressionistas), conviria não ir Bibliog.: BAJU, Anatole, L’École Décadente, Pa-
muito além de nomes e títulos que ora ris, Léon Vanier, 1887; CAMPOS, Álvaro de,
entenebrecem o spleen de Cesário, ora “Carta a José Pacheco”, Contemporânea, n.º 4,
correm a doenças psicológicas e à morte, 1922; MONTALVOR, Luís de “Tentativa de
num tardio dandismo: Júlio Dantas, Ma- um ensaio sobre a decadência”, Centauro,
nuel Penteado, José Duro, algum Gomes n.º 1, out. 1916.
Leal ou Fialho, Raul Brandão, e outros. Ernesto Rodrigues
meio dela articulável em todas as formas dição entre o canto de grandeza e glória,
particulares de expressão: um sentimento exigidas pela tradição homérica e pela
nacional de grandiosidade heroica e de convenção épica, e o canto que parece
orgulho confiante, que transparece de rejeitar uma e outra – o canto da condi-
forma modelar em Os Lusíadas, na fala de ção humana –, sempre atraiu a atenção
Vasco da Gama ao Rei de Melinde (III, dos estudiosos. O mantuano, mais atento
20); um sentimento de rejeição dessa à grande e desventurada família huma-
grandeza e de quanto com ela se cruza: na que a heroísmos rutilantes, mostra-se
do tom inflamado e grandiloquente, à incapaz de seguir com rigor os poemas
figura de Camões, metonimicamente homéricos. Esta impossibilidade originou
associada ao destino coletivo português, um novo modelo de epopeia que veio a
passando pela mitologia engrandecedora ter larga fortuna nas múltiplas literaturas
e providencialista, com destaque para o ocidentais, nomeadamente na literatu-
sebastianismo. São, em boa verdade, dois ra portuguesa. Camões, ajustando a sua
retratos de Portugal que em cada uma epopeia a circunstâncias históricas natu-
das designações se confrontam: o Portu- ralmente diversas das que caracterizam a
gal descobridor, imperial e dourado, o epopeia latina, acolhe esta dimensão pa-
mesmo que Camões, em estrofes de tensa radoxal como reflexo de um novo modo
altivez, anuncia no limiar do seu poema; de sentir, próprio da cultura portuguesa
o Portugal da “apagada e vil tristeza” (X, de Quinhentos, católica, missionária, a
145) que leva o canto épico camoniano a transitar da ufania imperial para a melan-
dialogar com a sua própria negação. colia do sic transit e da vanitas vanitatum
As variantes épicas e antiépicas, tantas característicos do maneirismo e do barro-
vezes em contrastante convívio no mes- co. Os clamores de desalento, as vozes de
mo autor e na mesma obra, reflexo do reprovação e os indícios de pessimismo
claro-escuro que simbolicamente resume que o épico quinhentista não se exime a
a gesta marítima portuguesa, a que tem introduzir no poema glorificador da ges-
sido sujeita a interpretação da história ta portuguesa ganham foros de desassom-
de Portugal, são uma evidência que não brada primazia em distintos testemunhos
carece de prova. Já Manuel de Faria e literários do tempo e posteriores, com
Sousa, no séc. xvii, parecia intuir as particular incidência na segunda metade
contradições existentes em Os Lusíadas, do séc. xx, muito por força do contex-
referindo-se, no “Juízo do poema” que to sociopolítico que o caracteriza, onde
introduz a edição madrilena do mesmo, não é de somenos o desfazer do Império
de 1639, a um “mistério guardado”. Mais colonial.
modernamente, uma corrente de inter- Ainda Camões não trouxera ao prelo
pretação do poema camoniano, parti- o seu opus magnum, e já por Lisboa cir-
cularmente atenta às críticas do narrador culavam alguns dos relatos de naufrágios
à sociedade do seu tempo e à presença que no séc. xviii o bibliófilo Bernardo
da voz pessoal do poeta, tem sublinhado Gomes de Brito haveria de reunir sob o
a dimensão paradoxal de Os Lusíadas. título de História Trágico-Marítima. Rela-
A presença de episódios como o do Velho ções de desastres marítimos ocorridos du-
do Restelo e de múltiplas notas subjeti- rante a segunda metade do séc. xvi que
vas dissonantes reforçam os laços com o põem em evidência o lado mais sombrio
modelo épico subjacente: a epopeia vir- e desastroso dos Descobrimentos, nomea-
giliana. A Eneida, na sua essencial contra- damente a ambição e cobiça dos merca-
vir à tona o verosímil invisível. Projetando 1344 e dos Livros de Linhagens que pude-
a história de um ponto de vista não oficial mos chegar ao seu conhecimento. Tratar
nem triunfalista, o autor aplica a um de- ‑se-ia fundamentalmente de composições
terminado contexto histórico escalas am- resultantes da tradição oral, compostas
plificadas pela ficção, que lhe permitem em verso épico de timbre jogralesco, con-
pôr em evidência os ignorados da his- centradas sobretudo em afirmar a uni-
toriografia e as versões nunca contadas, dade cultural do Ocidente hispânico e a
mas porventura mais próximas do real. autonomia étnica dos Portugueses. Estas
Por esse prisma, pode ver-se no Memo composições estão na génese das célebres
rial do Convento (1982) a antiepopeia da canções de gesta, nas quais se inscreve,
pedra. Também a Trilogia Lusitana (mais em contexto peninsular, o Cantar de Mio
tarde tetralogia Lusitânia) de Almeida Cid, e em Itália darão forma aos poemas
Faria, particularmente o terceiro volume, heroicos de cavalaria como Orlando In
Lusitânia (1980), investe simbolicamente namorato de Boiardo e Orlando Furioso de
contra um Portugal arcaico e desconcer- Ariosto, que prenunciam o género épico
tante, impugnando um imaginário pátrio renascentista. Na epopeia quinhentista
ancestralmente instituído. Num romance confluem, pois, quer a tradição medieval
epistolar impregnado de alusões à poesia quer a greco-romana de celebrar os he-
do nosso Épico, ressoa a veneranda voz róis fundamentais da nação. A dimensão
do velho lusíada denunciando os naufrá- histórica constitui-se como um dos eixos
gios e as catastróficas penas do Império. estruturantes de Os Lusíadas, e o poeta
Pela malha do texto perpassa um “ímpe- não poupa nos encómios que tece a figu-
to antiépico” com o qual o autor intenta ras como D. Afonso Henriques, Nuno Ál-
desfazer as sucessivas interpretações cal- vares Pereira, infante D. Henrique, D. Se-
cificadas de Os Lusíadas, responsáveis por bastião, Diogo Cão, Bartolomeu Dias,
visões eufóricas de messianismo nacional Vasco da Gama.
e pela elevação da epopeia à categoria de A reação antiépica pré e pós-colonia-
“bíblia do destino português” (REBELO, lista, apostada em subverter as imagens
2014, 19). Deste modo, o quotidiano po- de exaltação nacionalista do passado,
bre e sem nobreza das personagens des- em prol de uma autognose que melhor
mente e contrasta com o discurso épico correspondesse à verdadeira identidade
parodiado. nacional, glosa negativamente este mo-
Antecedendo Os Lusíadas, é possível delo de herói medieval e renascentista,
assinalar a existência de toda uma tradi- portador de qualidades exacerbadas:
ção épica medieval que ainda não se regia denodado espírito guerreiro, detentor
pelos cânones do modelo clássico, mas das melhores virtudes morais, cavaleiro
seguia as características estéticas dos poe- perfeito, expoente de cortesia e devoção
mas épicos castelhanos, cantando figuras religiosa, paladino do amor. Destacamos,
e feitos histórico-lendários da jovem na- a este título, a Torre de Barbela (1965), de
ção. A lenda do Rei Ramiro, a lenda de Ruben A., e As Naus (1988), de António
Egas Moniz, o relato da Batalha do Sala- Lobo Antunes. Ambas as obras visam
do e um ciclo narrativo sobre D. Afonso criticamente a ladainha nacionalista da
Henriques faziam parte deste corpus li- identidade pátria, por intermédio de um
terário, do qual, infelizmente, nenhum engenhoso mecanismo técnico-retórico
texto chegou aos nossos dias. Foi pela in- assente na fusão surrealista de persona-
terposta via da Crónica Geral de Espanha de gens e coordenadas espácio-temporais
reais com categorias narrativas oníricas. espécie de epopeia às avessas, Lobo An-
A Torre de Barbela apresenta-se como uma tunes reconta as suas vidas em África,
trama fantasmagórica, passada em dois diferentes em todos os sentidos das ver-
níveis narrativos distintos, um que remete sões consagradas, e coloca-os, ao longo
para o reino dos vivos mortos no Portugal de uma trama híbrida, como híbridos
contemporâneo entre Douro e Minho, e são os tempos e os lugares, no papel de
outro, para um submerso reino de mor- jogadores de cartas, bêbedos, proxenetas
tos viventes, onde personagens de resso- e oportunistas. As suas desventuras trági-
nâncias históricas se encontram e desen- cas, frequentemente burlescas, oferecem
contram em diálogos e comentários que uma releitura deturpada e caricaturada
catapultam a diegese para o nível simbó- quer do passado quer do presente da
lico da história de Portugal. Em foco, a nação, com Lisboa a ser, por sinédoque,
ancestral paixão de Portugal pela nação o centro aglutinador das catástrofes pes-
francesa e pela sua cultura, encarnada soais e nacionais, cidade em cujas ruí-
metonimicamente na paixão do Cavalei- nas, em cujo desregramento e em cuja
ro de Barbela e dos restantes e ilustres ha- imundície se representa o passado e o
bitantes da Torre de Barbela pela prima presente ruinoso, caótico e imoral destes
Madeleine. O espírito tacanho e tímido anti-heróis, intérpretes do requiem pela
dos Barbelas contrasta com o sensualismo queda do Império, protagonistas de um
descomplexado de Madeleine. A um Por- acentuado arrefecimento da inflamada
tugal isolado, retrógrado e provinciano representação coletiva da história pátria.
opõe-se uma Paris aberta, evoluída e ple- A epopeia camoniana ressoa na evocação
na de vivacidade. Os Barbelas represen- simbólica das tágides, que “moléstias ri-
tam o Portugal petrificado, que foi sendo beirinhas” praticamente extinguiram e
motivo de críticas mais ou menos veladas agora se apresentam “reduzidas a um pe-
nos romances de Ruben A. queno cardume de sereias grisalhas que
Com grande liberdade criativa, porten- se alimentavam dos esgotos de Chelas”,
tosa imaginação e verve crítica, António “tágides a quem as hérnias da coluna mal
Lobo Antunes desconstrói em As Naus a consentiam nadar”, “tágides sem força
tradição épica portuguesa e o discurso para lutar contra as marés” (ANTUNES,
histórico oficial, recorrendo a elementos 1988, 118ss.). A decrepitude das tágides
satíricos, paródicos, cómicos e grotescos, reforça a intenção assumida do autor de
desmistificando personalidades históri- fazer desta obra sobre o retorno o decres-
cas do coletivo nacional através do seu cendo que falta a Os Lusíadas.
rebaixamento. A interpenetração de dois Como é sabido, a epopeia de Luís de
tempos históricos distintos no tempo da Camões viria a determinar a formação
ação narrativa traz para o séc. xx figuras de um extenso veio de poesia heroica,
egrégias do séc. xvi ligadas à expansão sempre muito influenciada pela matriz
marítima em situação de retornados do camoniana, mesmo quando se visava
ultramar: Pedro Álvares Cabral, Francis- destronar o poeta do seu primado, como
co Xavier, Luís de Sepúlveda, Luís de Ca- foi o caso de Oriente (1814), do P.e José
mões, Diogo Cão, Fernão Mendes Pinto, Agostinho de Macedo. A maior parte
Vasco da Gama regressam desiludidos a desta vasta produção corresponde, como
“Lixboa” no rescaldo da colonização. Re- temos dito, a composições de inspiração
tratando-os como pessoas comuns, com patriótica e interesse nacional. Subjacen-
os seus vícios e as suas fraquezas, nesta te a estes, em muitos casos, pouco mais
que arremedos, está o mesmo objetivo çando o desejado efeito cómico. No caso
de exaltação de ações, ideias e agentes, e de Os Lusíadas, o anacronismo burlesco é
todos tentam de algum modo aproximar uma das mais frequentes técnicas de car-
‑se do arquétipo camoniano seja por via navalização paródica.
do “tecnicismo literário”, da “virtuosida- Alberto Pimentel, na obra Poemas He
de da língua como verbo heroico” ou da rói-Cómicos Portugueses (1922), inventariou
“persistência do gosto épico” (FIGUEI- mais de 100 destes poemas caricaturais
REDO, 1993, 24). A partir do romantis- do género épico. Trata-se de um autên-
mo, o modelo clássico entra em declínio. tico catálogo humorístico-literário, cujos
A adaptação ao novo contexto social, títulos bastam para suscitar de imediato
político, cultural e literário obriga à sua o riso e deixar adivinhar a temática satíri-
reformulação, com a aplicação de novos ca e hilariante latente: Batoteida; Bisnaga
metros, novo ritmo e nova estrutura. Nos Escolástica; Cabulogia; Calouríados; Cebolía
poemas narrativos Camões e Dona Branca das; Fradalhada; Narigueida, etc. Um dos
(1826) de Almeida Garrett, a narrativa primeiros, mais conhecidos e também
cede lugar ao lirismo. Dissociado o tom mais relevantes no corpus da literatura
épico laudatório da intriga romanesca nacional é o Hyssope (1802), de António
e do modo narrativo, perde pertinência Diniz, que foi proibido e constantemente
a classificação de epopeia, optando-se reeditado. De assinalar também a Agosti
por poema épico, caracterizado por uma nheida (1817), de Nuno Pato Moniz, pelo
grande flexibilidade formal e temática: seu efeito literário e heroico-humorístico,
o positivismo imprimir-lhe-á temas de ín- que se cifra numa acintosa sátira pessoal
dole científica e filosófica; os inícios do contra o maledicente, devasso e egocên-
séc. xx oscilarão entre o misticismo mes- trico P.e José Agostinho de Macedo, o tal
siânico e o misticismo panteísta. que pretendeu destronar Camões da cá-
Paralelamente ao processo de imitação tedra dos épicos e, pelo que fica dito na
séria, fez o seu caminho a mimese cari- Agostinheida, também da cátedra dos amo-
catural e paródica, que é outra forma de res. A maior parte destas composições jo-
antiepopeia ou de menorização épica. cosas contém desbragadas paródias mais
Há registo de numerosos poemas herói- ou menos extensas a passos de Os Lusía
‑cómicos e burlescos que procuraram das. Com efeito, as paródias de poemas
caricaturar o gosto épico como forma de épicos, e por maioria de razão da obra de
crítica satírica a pessoas, acontecimen- Camões, conheceram grande fortuna em
tos e costumes. As estratégias estilísticas Portugal, havendo registo delas a partir
próprias da convenção épica servem aqui do séc. xvi. Henrique Lima apresenta
para agigantar à escala heroica defeitos, uma resenha significativa no seu ensaio
falhas humanas e sociais, prestando ao bibliográfico intitulado As Paródias na Li
mesmo tempo reconhecimento a um su- teratura Portuguesa (LIMA, 1930, 29-42).
premo valor estético e moral: o conceito As mais comuns vão desde as Festas Baca
épico ou heroico da vida. O contraste có- nais (1589), paródia do primeiro canto de
mico resulta precisamente dessa distân- Os Lusíadas, feita por um grupo de escola-
cia acentuada entre o modo formal e o res de Évora, a Os Lusíadas do Século XIX,
assunto, sendo que, a partir do momento Poema Heroi-Cómico (1865), de Francisco
em que a forma épica renascentista cai de Almeida, e às Republicaniadas (1913),
em desuso, a sua posterior reutilização de Marco António (pseud. de António
passa a ser vista como anacrónica, alcan- Correia Pinto de Almeida), sátira cruel
aos primeiros homens da república, feita épica) do poeta, como sucede, e.g., logo
em rigoroso paralelismo com Os Lusíadas. na abertura (onde se evoca o passo em
Do outro lado do Atlântico são igualmen- que o épico descreve o mapa da Europa
te inúmeras as adaptações cómicas da e traça o perfil de Portugal – “Onde a ter-
epopeia camoniana, até O Canguleiro Joca ra se acaba e o mar começa” [III, 20]),
(1956), testemunho maior dessa tradição não existem neste romance, salvo raríssi-
parodística que vem comprovada no estu- mas exceções, passagens a remeter para
do de Gilberto Mendonça Teles Camões e passos determinados da epopeia lusíada,
a Poesia Brasileira. nem tão-pouco um claro e prolongado
De toda a sorte de émulos, parodistas rasto citacional camoniano que possa ser
incluídos, que Camões inspirou, salien- seguido. Qual fantasma, Camões aparece
te-se, no domínio da ficção portuguesa e desaparece, de modo nunca apreendi-
contemporânea, pela sua originalidade, do, deixando-nos a ilusão de uma sequen-
uma singular parceria literária: Manuel cialidade e coesão discursiva. É no cerzir
da Silva Ramos e Alface, pseudónimo li- de alusões, breves incrustações do texto
terário (e extraliterário) de João Carlos camoniano, por vezes fugidios signos lite-
Alfacinha da Silva. Obra experimental rários que se sobrepõem formando uma
devedora da revolução narrativa de Ja- espécie de mescla camoniana – flashs li-
mes Joyce, os lusíadas de Manuel da Silva terários –, que se revela o fantasma do
Ramos e Alface combinam com agressivi- autor de Os Lusíadas, patente em vários
dade paródico-satírica temáticas diversas, passos atentamente analisados por Teresa
discursos fraturados e cheios de hiatos Carvalho (2007).
que operam um esvaziamento do conteú- As Quybyrycas de Fr. Ioannes Garabatus
do épico presente em Os Lusíadas de Luís (pseud. literário do pintor António Qua-
de Camões, subvertendo a prática roma- dros) é o título do “poema éthico em oi-
nesca tradicional e suas categorizações es- tavas”, publicado em 1972, para coincidir
téticas, numa ação destruidora que ques- com os 400 anos da primeira edição de
tiona a existência da literatura, do livro Os Lusíadas, e impõe-se no panorama da
e da própria língua nacional. O romance literatura nacional como enorme sátira
inaugura uma trilogia, genericamente burlesca da epopeia camoniana, para a
denominada Tuga, que se constitui como qual contribui grandemente o “rial pri-
“uma espécie de meditação ficcional so- vilégio de Jorge de Sena”, autor do bri-
bre Portugal” (CARVALHO, 2007, 346) e lhante prefácio, pleno de erudição, ironia
onde se incluem ainda As Noites Brancas e sarcasmo. Nunca o jogo de imitação
do Papa Negro (1982) e Beijinhos (1996), paródica da obra, das suas coordenadas
o romance que a completaria com o ideotemáticas e do contexto de crítica
“adeus, ditado pelo fim do império, pelo hermenêutica e ecdótica que a encer-
acabar da aventura planetária, com o ra conseguiu simultaneamente uma tão
consequente regresso à fonte matricial grande aproximação e um tão grande
de retornados e emigrantes” (Id., Ibid.). distanciamento. Aproximação na imita-
Num livro cujo alvo paródico primeiro é ção do estilo, na tentativa de reprodução
o famoso dístico “fé e império”, Camões, da linguagem épica, à qual os arcaísmos
o cantor maior desse Império, é um dos dão o seu cunho realista, na estrutura
grandes fantasmas a exorcizar. Apesar de formal, na matéria, até na ostentação do
existirem alusões diretas e referências célebre grifo na portada da obra. A pró-
parodísticas à figura e obra (não apenas pria mistificação da autoria, com o autor
contrário, uma história de partidas que rico que Álvaro de Campos fixou nos co-
convergem não já no “cais de uma sauda- nhecidos versos de “Opiário”: “Pertenço
de de pedra” de Álvaro de Campos, mas a um género de portugueses/Que depois
num cais de desastre e de calamidade. De de estar a Índia descoberta/Ficaram sem
assinalar também uma série de poemas trabalho. A morte é certa”.
de Manuel Alegre, autor que estabelece Quando, depois de um breve tirocínio
com os códigos da epopeia uma relação na sombria capital de um império arrui-
de atração-repulsa e para quem a aventu- nado, Manuel Maria Barbosa du Boca-
ra ultramarina determinara uma inflexão ge parte para o Oriente, em 1786, em
no caminho do “Portugal terra e raiz”, busca de um ideal que o elevasse acima
servindo de limiar a um longo ciclo de da mediocridade dominante do Portu-
consequências funestas. À semelhança do gal de Setecentos, leva no olhar o vulto
poema camoniano, também na poesia de de Camões, cujos passos parece querer
Manuel Alegre boa parte da história de seguir. Mas a viagem em que Bocage se
Portugal se torna imagem. Ela não é, po- acha embarcado não podia oferecer-lhe
rém, um painel polícromo de aventuras mais que um presente decetivo, contrá-
que abalaram o mundo, como Os Lusía rio sombrio desse passado heroico que
das, mas um quadro sombrio e rumoro- Camões cantou. A Índia onde pôs o pé
so de andanças em que nos perdemos. não estava já coberta por um véu de mis-
“Vão-se os homens desta terra”, “Portugal tério e sedução, mas por um manto de
em Paris”, “Pátria expatriada”, “Trova do soturna ruína que mais não podia que
emigrante”, “Lusíada exilado”, poemas acabrunhar quem a pisava. “Das terras a
que integram a antiepopeia que é O Can pior tu és, ó Goa”, escreve, numa sátira
to e as Armas (1967), gravariam no nosso implacável onde a história ressurge sob a
imaginário a dimensão trágica da diáspo- forma de fantasma: “Lusos heróis, cadá-
ra portuguesa, magoadamente revisitada veres cediços,/Erguei-vos de entre o pó,
pelo poeta no Livro do Português Errante sombras honradas,/Surgi, vinde exercer
(2001). Neste contexto, destaque ain- as mãos mirrada/Nestes vis, nestes cães,
da para o poema “L’été au Portugal” de nestes mestiços” (BOCAGE, 2004, soneto
Jorge de Sena, publicado em Exorcismos 195). Por outro lado, as imagens de cor e
(1972), a traçar o retrato desapiedado de de aventura relatadas na epopeia camo-
um Portugal esvaziado, em fim de ciclo: niana, que o poeta sadino guardava na
camponeses e artesãos que partem para retina, não tinham correspondência no
as Europas, rapazes estropiados regressa- séc. xviii, realidade que a sua obra poéti-
dos de uma guerra anacrónica. ca atesta em muitos lugares. Tinham ad-
Em meados do séc. xvi, a imagem triun- quirido novas formas, novos contornos,
fal da pátria, entretanto abatida, moral- ao estilo da época. As façanhas grandio-
mente prostrada, esvaída pela miragem sas da era de Quinhentos deram lugar a
da Índia, só em Os Lusíadas se encontra- saborosas aventuras de alcova. Tinham
va. O séc. xvii viu 15 edições do poema revertido os sucessos guerreiros em fortu-
camoniano juntarem-se às 5 edições feitas nas sem grandeza, exibidas por uma aris-
ainda no século anterior, no qual atuam tocracia cada vez mais arredada da vida
como antídoto às humilhações sofridas militar. As próprias musas, agora fáceis e
face ao domínio filipino e à ideia de de- buliçosas, deixaram de ser invocadas para
cadência que se vivia. Começava então a serem aplaudidas no botequim, espaço
desenhar-se a ideia de desemprego histó- onde se agitavam as ideias iluministas,
e a vinho,/a arder nas penas celestes/da rett (“Formosa Magalona”, a “Nau Catri-
térrea paz de um caminho” (NAMORA, neta”, o naufrágio do vapor Perseverança).
1989, 103). Curiosamente, o António Nobre que atri-
O Aviso à Navegação (1941) lançado bui ao mar uma dimensão antiépica é o
por Joaquim Namorado, um ano após as mesmo poeta que em 1898 – ano do quar-
comemorações dos Centenários da Inde- to centenário da viagem à Índia – afirma
pendência de Portugal e da sua Restau- com amargo desencanto: “Realmente só
ração, de cujo programa sobressai a Ex- acredito que sou compatriota de Vasco da
posição do Mundo Português, é o dobre Gama e de Luís de Camões quando olho
de finados da aura mítica que envolvia este nosso mar. País perdido! Para sem-
as navegações e o discurso historicista, pre! E sem prestígio nenhum” (MATTO-
exclusivamente ancorado em momen- SO, 1981, 306).
tos notáveis do passado da nação, com Manuel Alegre, o autor que no contex-
destaque para o período áureo das Des- to da poesia portuguesa contemporânea
cobertas quinhentistas. “O mar é fundo, mais explora a face desastrosa da gesta
as ondas são altas, o lenho é podre”, lê-se portuguesa nos mares, introduz no seu
no “Manifesto à tripulação” (NAMORA- espaço poético descrições enumerativas
DO, 1941, 23), poema em que a pátria se desse sepulcro sem fundo, pleno de “sal-
constitui como uma comunidade afun- sugens restos naufrágios” (“Canção da
dada sob o peso de erros cuja soma é o praia ocidental”), que poetas como An-
absoluto reverso da gesta lusa. Aos signos tónio Nobre, Gomes Leal ou Camilo Pes-
antiépicos do naufrágio, da perdição e da sanha diversamente exploraram. O mar,
desorientação, em clara contraposição a mais importante via da ação épica por-
com os da aventura marítima portuguesa, tuguesa – prontamente conspurcada por
vem juntar-se o signo da morte, sendo o Cesário Verde, num inédito gesto antiépi-
poema o registo dos seus sinais. co: “Escarro, com desdém, no grande
Deste tempo sem barcos nem epopeias mar!” (“Heroísmo”) –, volve-se, na poesia
nos fala também Portugal (1950) de Mi- de Alegre, em caminho fatal, alcançando
guel Torga, um livro no qual o mar viril a dimensão simbólica moldada ao substra-
das Descobertas se confronta com o mar to ideológico que alimenta a antiepopeia.
fatal, que ali adquire o rosto da enganosa “Canção da praia ocidental” é um poema
sereia “rouca e triste” (“Mar”), imprimin- que reflete bem o reverso histórico do re-
do às reflexões do poeta um efeito gra- lato heroico camoniano. Muito embora
duado em valores de tragédia. À história o mar das Descobertas exerça sobre esta
contada na Exposição do Mundo Portu- poesia um forte poder de sedução, o poe-
guês, um dos eventos culturais mais des- ta revela-se incapaz de deter a voz desse
tacados do Estado Novo, contrapunham outro mar que deixa falar os mortos que
assim algumas poéticas desta época a que compõem a sua contraepopeia e no qual
aí não tivera lugar: a história trágico-ma- se espelha a angústia de um presente de
rítima dos “heróis que jazem insepultos” perda e de desesperança coletiva.
(NAMORADO, 1941). A lírica de Antó- Com o “barco-Portugal” dialoga Praça
nio Nobre dera já insistente expressão à da Canção (1965) e a “epopeia por de-
imagem trágica do mar-jazigo, acusando feito” que é O Canto e as Armas, um dos
a memória intertextual dos relatos de mais emblemáticos títulos do poeta, que
naufrágios, mas também de alguns ro- ali pede emprestada a Camões a figura
mances do Romanceiro Português, de Gar- do Velho do Restelo, cuja voz se ergue
“Epopeia sumária” (assim a designa o cho da terra tão pequeno” (Os Lusíadas,
irónico subtítulo) não se conhece notícia I, 106). Na sua variedade de ecos camo-
de solicitação persistente, mas a verdade nianos, é um livro que se move na esfera
é que o Portugal politicamente repressivo dos pequenos formatos domésticos que
e discriminatório, produtor de quadros transportam no seu curso a nossa histó-
de amedrontamento e suspeição, care- ria coletiva, pela remissão para alguns
cia de um livro que o refletisse. Centra- dos seus episódios e personagens simbo-
dos na vida comum, estes re-cantos, que licamente mais significativas. Os títulos
têm como significativo centro gravítico o das quatro partes de que se compõe o
verbo “contornar”, fazem infletir o mode- volume – “Poses do desconforto”, “Quei-
lo épico num sentido substancialmente xas ou resignações”, “Minha senhora de
novo, como o título desde logo indicia ao nada”, “Epopeias de luz” – são já todo um
aludir aos 10 cantos da epopeia camonia- programa de marca antiépica, sensível à
na “para logo os desequilibrar numa du- efemeridade e ao inane, mas também à
plicação imperfeita (dez mais dez menos construção de epifanias do quotidiano.
um)” (MARTELO, 2006, 93). As marcas Com mais ou menos visibilidade, Ca-
estáveis da epopeia clássica – proposição, mões e Os Lusíadas, modelo habitual das
invocação, dedicatória e narração difusa- poéticas reflexivas, mantêm-se na cena
mente exibidas –, a temática marítima e poética do séc. xxi, num eterno retorno
viajante, recontextualizada e desenvolvi- feito de repetição e de diferença. Lendas
da num fio diegético descontínuo e frag- da Índia (2011) de Luís Filipe Castro Men-
mentado, as reminiscências do discurso des, livro que recolhe a experiência da
épico camoniano apontavam no sentido passagem do poeta-diplomata por Nova
de uma epopeia do comum existir, cons- Deli, afasta-se dos píncaros épicos para
truída com humaníssima e íntima heroi- descer a um quotidiano olhado à luz do
cidade, mas capaz de interpelar o mundo efémero. O título do volume, tomado ao
público. livro homónimo do séc. xvi, bem como
Dissociada do modelo camoniano, a a epígrafe-advertência, subtraída ao mes-
“Epopeia privada” (Trirreme, 1978) de mo Gaspar Correia, criam desde logo a
A. M. Pires Cabral dá-se a ler como mis- atmosfera memorialista e melancólica,
to de arte poética e de autobiografia: preparando para a disforia que transcen-
“As armas e os barões/foi outra coisa.// de o plano individual para contaminar
Falo de mim e do/que em mim decor- o coletivo. A simbólica figura do Samo-
re.//[…] Minha epopeia/privada//pe- rim que comparece no poema “Calicute:
quenina. Nem sequer/ul/trapacear a Ta- aqui desembarcou Vasco da Gama”, mo-
probana!”. Nela se conta de um mundo dernizada e pragmática, expurgada de
sem heróis nem grandezas, refigurado à qualquer aura mítica, nada deve àquela
luz das asperezas do real imediato. outra que recebeu o capitão da frota por-
Longe da esfera pública se situam tam- tuguesa e que Camões acolheu nos seus
bém as Epopeias (1994) de Ana Luísa Ama- decassílabos. Intérprete privilegiado da
ral. E também elas não passam à margem temática da viagem, Castro Mendes de-
da história, escamoteada nas suas gran- senvolve neste livro um diálogo, por ve-
diloquências e heroísmos em favor dos zes distorcido, com a história portuguesa,
quadros da vida quotidiana, na variedade o intertexto camoniano e esse signo de
trivial das experiências prosaicas que ele natureza dúplice que é o Oriente, a um
oferece, e da luta diária do feminino “bi- tempo fonte de fascínios e de cansaços.
maio 1947, pp. 520-529; CANDEIAS, Antó- e História: Possibilidades, Leituras, Campinas,
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“Filosofia Portuguesa” e sobre o lugar de ‘estrangeirado’” (1966), Vítor de Sá na
Portugal e da sua cultura na Europa. De sua “Apresentação” (1971) à edição do
facto, data dos anos que intervalam a fun- opúsculo de Ribeiro Sanches Dificuldades
dação da NATO e o estabelecimento da Que Tem Um Reino Velho para Emendar-se
Comunidade Europeia do Carvão e do e Outros Textos, Diogo Ramada Curto no
Aço a publicação de alguns textos funda- artigo “Um lugar para os estrangeirados”
mentais para a apreensão do sentido do (2013) e Onésimo Teotónio Almeida no
conceito, nomeadamente: Heterodoxia I, ensaio “Estrangeirados – os valores do
de Eduardo Lourenço (1949); Portugal outro lado da nossa fronteira” (2017),
e a Cultura Europeia (Séculos XVI a XVIII), entre outros; e a que lhes imputa um sen-
de José Sebastião da Silva Dias (1952); tido negativo, sendo esta a atitude, e.g.,
e Alexandre de Gusmão e o Tratado de Ma Domingos Maurício, no verbete “Estran-
drid, de Jaime Cortesão (1952). A partir geirados” publicado na Enciclopédia Luso
de então, vários textos foram publicados ‑Brasileira da Cultura, e dos mentores do
sobre este tema e a discussão sobre o uso movimento da filosofia portuguesa, como
e o valor do conceito de estrangeirados Álvaro Ribeiro e António Quadros, e, de
instalou-se, protagonizada pelos mais di- forma mais moderada, de Jaime Cortesão
versos e abalizados eruditos, oscilando na obra Alexandre de Gusmão e o Tratado
entre os que não concebem os estran- de Madrid (1952) e de Eduardo Louren-
geirados enquanto conceito operatório, ço no ensaio “Nacionalistas e estrangei-
como Jorge Borges de Macedo em Estran rados” (1988) publicado em Destroços.
geirados, Um Conceito a Rever (1974) e Luís O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, assu-
Filipe Barreto em “Ribeiro Sanches e o mindo ambos uma atitude crítica acerca
poder do saber” (1984); os que reconhe- da imagem luminosa que vinha sendo
cem o valor daqueles que são chamados traçada dos estrangeirados sem, todavia,
de estrangeirados embora sem asseverar colocarem em causa a relevância do seu
a sua unidade conceptual, como Hernâni legado.
Cidade no seu Ensaio sobre a Crise Mental A atitude dualista acima identificada
do Século XVIII (1929) e em “Uma revo- reflete uma visão maniqueísta da socie-
lução na vida mental da península no sé- dade e da cultura portuguesas, que se
culo xviii” (1934), e Eduardo Lourenço traduz no antagonismo entre castiços
no ensaio “Europa ou o diálogo que nos (representantes da tradição) e estrangei-
falta” (1949), publicado em Heterodoxia I; rados (representantes da rutura com essa
e os que aceitam e usam o conceito, regis- tradição), que Jaime Cortesão sintetizou
tando-se, por sua vez, quanto a este ter- da seguinte forma: “Dum lado, os que
ceiro grupo, duas atitudes antagónicas: defendem, a todo o custo, o pensamen-
a que, na senda de António Sérgio, con- to e a tradição do governo absoluto, se-
fere um sentido positivo aos estrangeira- veramente definido e vigiado na pureza
dos, posição adotada por Joaquim Bar- da fé pelo Santo Ofício; no ensino pela
radas de Carvalho em As Ideias Políticas e Companhia de Jesus; nas letras sagradas
Sociais de Alexandre Herculano (1949), José ou profanas, por um complicado sistema
Sebastião da Silva Dias em Portugal e a Cul de censura, e para os quais a salvação da
tura Europeia (Séculos XVI e XVIII) (1952), grei estava na preservação de toda a in-
António Coimbra Martins no verbete “Es- fluência estrangeira, e, mais que tudo, da
trangeirados” publicado no Dicionário de França e da Inglaterra. Do outro, os que
feministas do séc. xx. O modo como, luto: “Homem reina, mulher governa”,
a partir do biológico, aquilo que é mesmo que confira à esposa a orientação
dado, se construíram associações, de- do trabalho doméstico: “Na casa manda
terminações, expectativas e exigências ela mas nela mando eu”. É sobretudo nes-
preocupou muitas autoras. É por de- te plano que se espera a colaboração das
mais conhecida a posição de Simone mulheres enquanto trabalhadoras do lar,
de Beauvoir em Le Deuxième Sexe, uma contribuindo deste modo para o equilí-
tese que se transformou na bandeira de brio económico da família, visto que:
alguns feminismos radicais: “on ne naît “Mulher de bom recado, enche a casa até
pas femme, on le devient [uma pessoa ao telhado”. E essa qualidade é sobresti-
não nasce mulher, torna-se mulher]” mada em detrimento do próprio aspeto
(BEAUVOIR, 1949, II, 13). A obra em físico, uma vez que: “Formosura de mu-
causa impôs-se como referência nos lher não enriquece o homem”. A predo-
estudos de género, pela desconstrução minância masculina e a necessidade de se
operada ao conceito de feminino, uma encontrar um bode expiatório para com-
prisão que circunscreve as mulheres a pensar as desventuras ficam bem claras
um segundo plano, interditando-lhes o no ditado: “Faça-as quem as fizer, quem
acesso à realização plena a que todos os as paga é a minha mulher”.
humanos aspiram. Um dos estereótipos mais comuns as-
Aceitando que o conceito de feminino sociados ao conceito de feminino reside
está longe de ser neutro, analisar-se-á o na ligação das mulheres à família, na qual
modo como as mulheres foram represen- se reconhece a sua preponderância e se
tadas no imaginário cultural português a aceita o seu poder de gerir a lida domés-
partir de um conjunto de provérbios que tica. Por isso se aconselha: “Se queres
as retratam. Se analisarmos uma resenha uma boa filha escolhe uma boa mãe”.
de provérbios elaborada pela editora Nenhum afeto se compara ao amor ma-
Texto, verificamos que, relativamente ao ternal, tão grande, que tudo desculpa ou
tema da mulher, a visão predominante é mesmo ignora: “O amor de mãe é cego”.
negativa. Há um ou outro caso em que Tal amor nem sempre é acompanhado
a mulher/a figura feminina é tratada de alegria, sendo o sofrimento encarado
com benevolência, e.g., quando se afirma: como natural, e, inclusivamente, exigido
“Casa sem mulher lanterna sem chamas”, em certas circunstâncias, sob pena de fi-
ou quando se desaconselham compor- carem diminuídos os méritos da proge-
tamentos violentos: “Não se deve bater nitora: “Filho sem dor, mãe sem amor”.
na mulher nem com uma flor”. Mas são Note-se que nem sempre a relação ma-
adágios em que se pode descortinar um ternal é vista com bons olhos, pois a voz
paternalismo implícito, imediatamente do povo culpa a mulher quando as coisas
explicitado noutros, como: “Casa varrida correm mal: “Erros de filhos, culpas de
e mulher penteada, parece bem e não mães”. E o estereótipo da madrasta não
custa nada”. O ideal feminino é orienta- falta: “Madrasta, o nome lhe basta”. No
do para os trabalhos domésticos, a área que respeita às filhas, há que desconfiar
a que a mulher se deverá circunscrever, delas, tal como se desconfia das esposas:
pois: “Boa mulher nunca está ociosa”. Es- “Bela mãe e bela filha, disputas na famí-
tamos assim perante um imaginário po- lia”. A solução passa sempre pelo homem
pular declaradamente machista, no qual que é assim aconselhado: “Filha má, do-
o homem se assume como senhor abso- ta-a e casa-a”.
secundário português, cujo êxito depen- fesa dos interesses dos grandes proprie-
dia da adoção estrita do modelo inglês: tários. Igualmente crítico da fisiocracia,
“Queremos ser fabricantes, imitemos os José Acúrsio das Neves objetava à centra-
ingleses, e sigamos as suas normas. Eles, lidade atribuída à agricultura como fun-
no ano de 1689, excitando com prémios damento da riqueza nacional e contra-
a extracção de combustíveis, promove- punha-a à função original do trabalho.
ram a agricultura, depois aumentaram Defensor da liberdade comercial, Neves
o seu comércio e multiplicaram as fábri- demonstrava acolher os postulados de-
cas; e para que estas não prejudicassem fendidos por Jean Baptiste Say, de cuja
a agricultura, inventaram máquinas para aplicação ao contexto português resulta-
facilitar a mão de obra em aquelas fábri- va a ideia de atraso nacional, tributário
cas” (Id., Ibid., 250). A reflexão crítica de causas estruturais endógenas face ao
ao movimento memorialista inspirado desenvolvimento tecnológico das nações
pela Academia das Ciências de Lisboa industriosas. Em 1820, expandia estas
germinou, numa fase inicial, entre os premissas na sua Memória sobre os Meios
meios ligados ao comércio, mormente de Melhorar a Indústria Portuguesa Conside-
luso-brasileiro. Em 1821, eram conhe- rada nos Seus Diferentes Ramos, uma obra
cidas as considerações formuladas por onde procurava demonstrar os benefí-
M. J. R. (Manuel Joaquim Rebelo, co- cios dos sectores industrial e comercial
merciante da praça de Lisboa, segundo face à agricultura, condicionada pela
CARDOSO, 1989 e Economia Política…, fertilidade dos solos e extensão das áreas
1992) no ano de 1795. Neste opúsculo, de cultura. Por esse motivo, refutava o
enfatizava-se a relevância do desenvolvi- progresso agrícola como requisito pré-
mento técnico e a sua articulação com a vio ao desenvolvimento da indústria, à
atividade comercial. Mais, procedia-se à qual imputava efeitos multiplicadores,
demonstração dos benefícios resultantes também apreciados pela agricultura,
do investimento nos domínios da fiação nas áreas de implantação. Salientava,
e tecelagem de algodão, em Portugal. no entanto, a importância da circula-
Em 1803, Manuel Luís da Veiga dava à ção monetária e, subsequentemente, da
estampa Escola Mercantil sobre o Comércio criação de bancos. Igualmente promo-
assim Antigo como Moderno entre as Nações tor do desenvolvimento da indústria,
Comerciantes dos Velhos Continentes, assen- Francisco Solano Constâncio procedia a
te numa perspetiva de correlação dese- uma revisão crítica da obra de Acúrsio
jável entre o estímulo da atividade co- das Neves em The State of Portugal during
mercial e o desenvolvimento industrial. the Last Thirty Years. Aduziria reservas ao
No ano seguinte, José da Silva Lisboa pensamento de Adam Smith sobre as
rebatia os fundamentos da escola fisio- virtualidades do comércio externo, reco-
crática em Princípios da Economia Política, nhecidas unicamente face à inexistência
texto revelador da influência exercida de rivalidades entre as potências, assim
por Adam Smith no pensamento deste como críticas à visão de Malthus sobre
autor. Segundo Lisboa, o trabalho cons- evolução demográfica e subsistências.
tituía a origem e o fundamento de toda Entre os críticos da corrente fisiocrática
a propriedade e do valor, premissa onde na primeira metade do séc. xix, ponti-
radicava quer a defesa das nações co- ficaram também José Ferreira Borges,
merciais e manufatureiras, quer a crítica um assumido defensor das ideias de
à escola fisiocrática, conotada com a de- Adam Smith, e Silvestre Pinheiro Ferrei-
ra cujo rebate aos “novos economistas” José Esteves Pereira, Lisboa, Banco de Portu-
não eximia o reconhecimento do seu gal, 1996; LARANJO, José Frederico, Econo‑
contributo para a economia política, o mistas Portugueses, 2.ª ed., Lisboa, Guimarães
Editores, 1976; LISBOA, José da Silva, Escritos
qual enfatizava em Pantólogo, de 1842, ao
Económicos Escolhidos (1804-1820), introd. An-
considerar a anterioridade da agricultu- tónio Almodovar, Lisboa, Banco de Portugal,
ra e das minas face à indústria que, por 1993; Memórias Económicas da Real Academia
seu turno, deveria ser exposta a um en- das Ciências de Lisboa, para o Adiantamento da
quadramento concorrencial livre, com Agricultura, das Artes e da Indústria em Portugal e
o objectivo de assegurar o progresso in- Suas Conquistas, 5 t., Lisboa, Oficina da Acade-
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de Economia Política e Social (1813-1851), ed. lit. Teresa Nunes
continuaram a mostrar que não esque- “barão” denunciado nas Viagens) e pela
ciam o contributo que dera ao fomento sedução das falsas alternativas do “so-
da revolução setembrista. cialismo” e do “comunismo” (visados na
Acusado, por Costa Cabral e outros, nota K a O Arco de Santana).
de incoerência política, tanto sofre re- Se já Um Auto de Gil Vicente, em 1838,
moques nesse sentido de Costa Cabral inculca marcas de sintonia com a dinâmi-
e outros conservadores, quanto suporta ca do setembrismo no projeto de renas-
ataques em que se excede a divergência cença do teatro genuinamente português
progressista de opiniões perante o seu e sofre por isso maculações do seu valor
confronto parlamentar com José Estê- e alcance na difusa receção crítica, maio-
vão Coelho de Magalhães. O celebrizado res implicações empíricas, favoráveis e
“Discurso do porto Pireu”, o despique desfavoráveis a Garrett, terá o alongado
com José Estêvão e as objurgatórias con- processo de conceção (génese por 1832),
tra o radicalismo jacobino valeram a Gar- elaboração (avançada durante o cerco do
rett os protestos à esquerda contra a sua Porto), publicação originária do tomo i
defeção, sem lhe merecerem a confiança (1845) e publicação do tomo ii (1850) de
dos conservadores que o olhavam como O Arco de Santana.
“filho bastardo da revolução”. Em consonância com o melhor en-
Em 1842, sobre a vida política por- tendimento romântico do historicismo
tuguesa e sobre a posição e a imagem e do medievalismo, o romance O Arco de
de Garrett no espaço público abate-se Santana não se quer narrativa de evasão
a “ordem feroz” de Costa Cabral, em no tempo, entregue ao pitoresco da cor
nome do cartismo puro e duro. Embo- histórica como sub-rogação do confronto
ra apoiado não apenas na vontade do com as questões da contemporaneidade
trono e no Exército, mas também numa do escritor, mas sim exercício de transpo-
maioria parlamentar disciplinada, o au- sição estética numa ficção interventiva,
toritarismo cabralista depressa foi tido em que a prepotência da personagem do
por ditatorial, tanto pelos ordeiros cen- bispo do Porto e a ação em torno dela de-
tristas como pelos radicais setembristas; senvolvida remetem iniludivelmente para
e Garrett sofreu de imediato as conse- a inaceitada situação política sob o auto-
quências, com a demissão compulsiva ritarismo cabralista e a recuperação da
dos cargos de inspetor-geral dos Teatros oligarquia eclesiástica, ao mesmo tempo
e de cronista-mor do reino. Essa atitude que certos passos denunciam a manipu-
persecutória não o impediu de pugnar lação demagógica das classes populares e
contra a chamada “lei das rolhas”, em dos protagonistas exaltados em situações
1849-1850. de crise similares. O prefácio programáti-
No plano ambivalente da manifestação co da 1.ª edição (não desautorizado pelo
da obra literária e teatral, um vetor pro- da 2.ª edição) apresenta o romance como
pício às receções contrapolares traça-se exemplo de prática política inconformis-
pelo nacionalismo de O Alfageme de Santa- ta, justiceira e retificadora, não se cingin-
rém (1842) e o portuguesismo de Frei Luís do à “Advertência ao benévolo leitor” de
de Sousa (1843), em conexão com o pa- que “O romance é deste século; se tirou
triotismo cívico da cidadania liberal e o o seu argumento do décimo-quarto, foi
ideal romântico de regeneração pátria escrito sob as impressões do décimo-no-
ameaçados pela degradação oligárqui- no”; naturalmente fez com que a crítica
ca do capitalismo burguês (o regime do da época impusesse a imagem parcial de
Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão (1926), de Columbano.
Sala dos Passos Perdidos do Parlamento.
pelo Vale de Santarém) permite captar me- as desilusões e os agravos de quem lutara
lhor as valências semântico-pragmáticas por um moderado progressismo e um vi-
que a inserção num contexto sociopolíti- vaz patriotismo cívico na implementação
co de atualidade lhes traz identicamente do sistema representativo monárquico,
na obra-prima Viagens na Minha Terra. com tolerante conciliação de liberdade
Após composição ligada por contrapos- e tradição católica, com aquele módico
tos nexos às movimentações políticas do de crítica geracional e de autocrítica até
momento, a sua primeira publicação em onde o egotismo vaidoso lhe deixava ir.
folhetins da Revista Universal Lisbonense Garrett não rasura nesses vários registos
(1843) será temporariamente suspensa o sentimento de homem, cidadão e es-
por razões não de todo aclaradas, mas critor, que se julga ora incompreendido
decerto por causa da reação cabralista e mal-amado, ora atraiçoado e injustiça-
perante os drásticos comentários de Gar- do – no rescaldo da confiança depositada
rett à política rasteira de pragmatismo ga- no cartismo ilustrado de Rodrigo (e seu
nancioso. Retomada nesse periódico em ato adicional de 1852) entre a queda de
1845, para sair em livro um ano depois, Costa Cabral e a Regeneração, tal como
a obra não se quer narrativa de viagem da passagem pelo governo regenerador
e ficção novelesca de evasão no espaço, (entre março e agosto de 1852) e da pe-
entregue ao pitoresco da “cor local”, e de nosa saída do cargo.
amenização da aventura do eu romântico Com efeito, na sequência do pronun-
em deriva de escape sentimental, mas sim ciamento militar de Saldanha que, em
discurso multímodo de complexidade abril de 1851, põe fim ao segundo con-
ideológica e de dialogismo interpelativo sulado de Costa Cabral, Garrett apoia a
com fortes incidências de crítica sociocul- Regeneração, dominada pelo seu amigo
tural e política. Rodrigo da Fonseca Magalhães, e, se-
Ambas obras de inegável cariz políti- gundo alguns, desliza para a convenien-
co, O Arco de Santana e Viagens na Minha te complacência com a degradação dos
Terra refletem – em paralelo com a cor- ideais fundadores do liberalismo. O certo
respondência para vultos como Rodrigo é que a nova situação política se apressa a
da Fonseca Magalhães – a reprovação da favorecê-lo com honrarias e com lugares
Guerra Civil e a preocupada tentativa de de destaque, alguns dos quais afinal se
equilíbrio político num ardiloso jogo de tornaram (por forçadas razões e decisão
forças, que Garrett sabe não se reduzir própria) bem efémeros – logo em 1851,
à oposição entre miguelistas e liberais, é nomeado ministro plenipotenciário
antes se complica pelas tensas movimen- para a negociação da concordata com
tações entre cartistas puros (cabralistas), a Santa Sé, reintegrado na direção do
cartistas progressistas (os ordeiros de Ro- Conservatório e na Inspecção-Geral dos
drigo da Fonseca Magalhães) e setembris- Espetáculos, recolocado como cronista
tas (polarizados por Passos Manuel, mas ‑mor do reino, agraciado com o título
com variadas tendências). de visconde, nomeado membro efetivo
Particularmente nas Viagens – em re- do Conselho Ultramarino; em 1852, ano
correntes desabafos do relato construído em que é admitido como membro efeti-
e no destino de Carlos, em boa parte pro- vo da Academia Real das Ciências, é feito
jeção ficcional de Garrett –, refletem-se par do reino (por empenho de Rodrigo
também já, como nas cartas dos anos 50 e e a contragosto da Rainha) e escolhido,
nos discursos finais na Câmara dos Pares, em março, para ministro dos Negócios
Estrangeiros – mas, num ambiente de acu- apreço literário em que Garrett se tinha a
sações de incoerência política e de pou- si mesmo, cuja manifestação culmina na
ca honestidade nas diligências para um redação do prólogo de Viagens na Minha
tratado de comércio com a França, vê-se Terra, estrategicamente apresentado como
compelido a demitir-se logo em agosto. da autoria dos editores. Nessa conformi-
No que diz respeito às ligações femini- dade, “Garrett tornara-se, ingenuamente,
nas de Garrett, muita maledicência. Nu- um joguete nas mãos de políticos experi-
merosas ligações passageiras – que nas mentados e ardilosos que, aproveitando-se
insinuações de adversários e despeitados da sua vaidade, exploravam os seus talen-
eram erroneamente feitas equivaler às si- tos”, como assinala o biógrafo José Calvet
tuações recorrentes nas obras literárias de de Magalhães (MAGALHÃES, 1998).
Garrett, em que “um homem, preso nas A versatilidade de espírito e discurso
malhas sociais, não sabe amar, causando que Garrett se apostou em patentear foi
com essa incapacidade o deperecimento duradouramente confundida com cami-
de quem se lhe dedicou integralmente” nhos sinuosos de um cético e ambicioso.
(MONTEIRO, 1987, 11). Essas características combinar-se-iam,
Quando, em 1836, se separa judicial- segundo os detratores de Garrett, tanto
mente de Luísa Midosi (com quem se ca- no gosto e brilho da sociabilidade espiri-
sara em 1822), correram insinuações mui- tuosa e elegante, quanto no pendor e no
to malévolas, que o discípulo e biógrafo talento para a teatralidade.
Gomes de Amorim procura destruir. Para Por outro lado, todos esses traços impu-
alguns, Garrett ter-se-á feito passar por tados à personalidade e ao projeto de vida
solteiro para conseguir conquistar Adelai- de Garrett surgiam associados à ardência e
de Pastor; e insinuações afins nem cedem mobilidade dos sentimentos amorosos; e,
perante a morte pungente de Adelaide, por seu turno, esse conjunto levava a uma
que lacera um trágico conflito íntimo de consideração superficial do seu dandismo.
Garrett e da sua obra (depois de Viagens A sua biografia revela uma relação mui-
e de Frei Luís de Sousa, dramaticamente to cuidada com a indumentária pessoal,
retomado por 1849 no fragmento de ro- que, à época, ora o fez ser olhado como
mance A Cruz e o Perjúrio). influente exemplo para janotas, ora lhe
A experiência passional com a viscon- acarretou o sarcasmo de “adamado” (traje
dessa da Luz aumentou a fama donjua- de afetada elegância, uso preocupado de
nesca de Garrett, mas acarretou novos postiços, etc.). Por isso, o editor do perió-
custos para a sua imagem pública. A liga- dico O Toucador foi subestimado; e a sua
ção adulterina com Rosa Montufar, que publicação foi redutoramente lida como
se reflete aliás na poesia de Folhas Caídas mero magazine sobre moda.
e particularmente na recorrência das pala- A publicação de Folhas Caídas (1853),
vras “rosa” e “luz”, foi mesmo objeto de ca- com poemas maioritariamente compos-
ricaturas nos jornais cabralistas, por vezes tos entre 1843 e 1850, origina desfocados
legendadas, como em A Matraca por 1848: ataques moralistas. Mas em verdade jus-
“Por largo campo, indómita e fremente / tifica reparos, por toldar a expressão do
Corre a revolução, / Da vossa Luz a rápida sentimento amoroso e do desejo erótico
torrente / Me alegra o coração”. com traços de mundanidade e de exibi-
Não ficaram sem consequências perni- cionismo – que também favorecem a lei-
ciosas ou ingratas a insofismável caracte- tura redutora do inegável donjuanismo,
rística idiossincrática de vaidade e o alto aliás fulcral na constelação ideotemática
presença dos Estados, centrado em em- acentuado as diferenças entre os países ri-
presas presentes numa diversidade de cos e os pobres, entre o hemisfério norte
países, tem potenciado os movimentos e o hemisfério sul. As assimetrias económi-
antiglobalização. A acumulação de capi- cas e regionais aumentaram nas últimas
tais e de lucros pelas grandes empresas décadas do séc. xx e primeiras do séc. xxi.
e a tentativa de criação de um mercado Os movimentos antiglobalização pre-
global é criticada pelos movimentos an- tendem criar um novo sistema interna-
tiglobalização, que se opõem também à cional, que valorize a cooperação entre
existência de empresas globais, que do- Estados e povos, e não a competição en-
minam o comércio mundial e atravessam tre eles. Defende-se uma revitalização das
os Estados, pondo-os em causa. comunidades locais como fator de cres-
Dentro do conceito de antiglobalização, cimento e de melhoria das condições de
encontramos uma pluralidade de movi- vida das populações, em especial as que
mentos que contestam a globalização eco- vivem em países subdesenvolvidos.
nómica, financeira, ambiental, cultural. Para algumas correntes, a globalização
Não obstante os diversos fatores de crítica, leva a um antinacionalismo, por defender
o acento tónico é sempre colocado no com- a superação das nações na criação de uma
bate à existência de um mercado global. sociedade mundial. Os ideais de defesa
Na contestação à globalização econó- dos nacionalismos podem também cons-
mica, tida como capitalista, encontramos tituir um movimento antiglobalização.
grupos socialistas, comunistas, anarquis- Entre os movimentos antiglobalização,
tas, ecologistas, católicos progressistas, encontramos ainda os ambientalistas, que
entre outros. Na génese do movimento, contestam os impactos negativos para o
encontra-se a oposição a determinadas meio ambiente provocados pela explo-
políticas económicas e a defesa de ideo- ração insustentável de matérias-primas
logias políticas anticapitalistas. (necessárias para responder às exigências
As críticas à globalização centram-se dos consumidores mundiais), pela polui-
também numa luta ideológica em que ção ligada à industrialização, pelas altera-
se “misturam sentimentos nacionalistas e ções climáticas, pela redução de camada
protecionistas, o ressentimento e a inveja de ozono e pelos desastres ambientais e
relativamente aos mais bem-sucedidos ou ecológicos decorrentes do denominado
ainda a luta pela hegemonia e a ambição sistema económico capitalista.
de poder” (COSTA, 2004, 448).
No domínio da especulação financeira, Bibliog.: COSTA, Miguel Dias, “Implicações éti-
as empresas de rating, que avaliam o risco co-políticas da globalização como ideologia”,
de concessão de créditos a entidades esta- Brotéria, vol. 159, n.º 5, nov. 2004, pp. 441-452;
duais e empresariais, constituem um sério PAGE, Martin, A Primeira Aldeia Global, Lisboa,
risco para a democracia e soberania dos Casa das Letras, 2008; PINHEIRO, Luís de Lima,
“Portugal, Europe and globalization in the priva-
Estados, gerando falências, desemprego,
te law perspective”, in Portugal, Europe and the Glo‑
pobreza, tumultos, tensões sociais, violên- balization of the Law, Lisboa, Faculdade de Direito
cia. Estas agências têm sido muito contes- da Universidade de Lisboa, 2015, pp. 46-57;
tadas, nomeadamente após a última crise QUADROS, Fausto de, “Portugal, Europe and
financeira mundial, iniciada em 2008. legal globalization”, in Portugal, Europe and the Glo‑
Os opositores dos movimentos de globa- balization of the Law, Lisboa, Faculdade de Direito
lização alertam para o facto de este sistema da Universidade de Lisboa, 2015, pp. 78-83.
ter posto em causa o Estado-providência e Pedro Caridade de Freitas
dos, ao mesmo tempo que não tem em mento, que apresentavam já pressupostos
conta usos da atualidade. e designações ainda hoje em voga.
A gramática, lê-se no Dicionário da Lín- As primeiras gramáticas portuguesas
gua Portuguesa Contemporânea, é a “descri- datam, como se sabe, do séc. xvi: a de
ção dos princípios que organizam e re- Fernão de Oliveira, de 1536, a de João de
gem a fonologia, a morfologia e a sintaxe Barros, de 1540 , seguindo-se, a partir daí,
de uma língua; o sistema de regras que vários outros trabalhos, incluindo, tam-
atuam na construção dessa língua”. Entre bém – a partir do séc. xviii –, o ensino da
várias outras aceções, também é definida língua portuguesa a falantes estrangeiros
como “uso correto ou o bom uso de uma (franceses, italianos, etc.). Neste século
língua, tanto escrita como falada”. O con- há o advento da gramática comparativa,
ceito de gramática inclui, muitas vezes, a chegando-se à conclusão – através da aná-
ortografia da língua em causa. lise das características comuns entre lín-
Nascida no Oriente (Índia, nos sécs. vi guas de diferentes famílias – da existência
e v a.C.), no mundo ocidental a gramáti- de uma base comum à maior parte dos
ca desenvolve-se a partir do séc. iii a.C., idiomas: o indo-europeu.
na Grécia, constituindo um marco im- O séc. xx conhecerá a descrição gra-
portante a Arte da Gramática, atribuída a matical daí decorrente, desenvolvendo
Dionísio de Trácia, nos sécs. ii-i a.C. Com várias bases científicas para a descrição
base nos modelos gregos, surge a gramá- da estrutura e do funcionamento, do en-
tica latina, que está claramente na base sino e da abordagem das línguas. Com os
das gramáticas existentes até ao Renasci- vários estudos e investigações realizados
chegou-se à conclusão de que a noção do
que é correto e errado depende de vários
Folha de rosto da Grammatica da Lingoagem fatores, e de que mudança e permanên-
Portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira. cia se conjugam, exigindo-se regras que
definam os limites de aceitabilidade para
que a comunicação se possa efetuar.
No ensino das línguas e, nomeadamen-
te, no de uma língua segunda ou não
materna, houve sempre uma enorme tra-
dição gramatical, provinda do ensino do
latim como língua estrangeira, e que era
uma metodologia baseada na gramática
e na tradução, largamente utilizada até
finais do séc. xix. Tratava-se de uma gra-
mática prescritiva e também fundada na
dedução e memorização de regras e voca-
bulário, que são, aliás, importantes para a
aprendizagem de uma nova língua.
Já em finais de Oitocentos se começa
a questionar esse método e o facto de o
ensino de uma língua morta poder ser
aplicado a línguas vivas, criando-se uma
reação contra o modelo anterior. A esse
novo método, mais intuitivo e que dá
quecer programas antigos, quer por faze- aconteceu não somente na pintura e na
rem a destruição de imagens anteriormen- escultura, mas também na própria arqui-
te reinantes, quer por fazerem acontecer, tetura, designadamente no universo da
através de novas imagens, outras narrativas arquitetura minimalista que vê na imagem
múltiplas vezes antinómicas, que configu- uma concorrente do discurso depura-
raram programas iconográficos ao serviço do que, também per se, pode ser avaliado
desse mesmo poder político. como um ícone.
Não estranha, por conseguinte, que a Paralelamente ao questionamento da
própria arte, quando, sobretudo na era arquitetura religiosa na segunda metade
contemporânea, se pretende libertar de de Novecentos – e, nalguns casos, numa
todos os preconceitos com que se enten- relação intelectual de causa-consequên-
deu enformada e com os quais se sentiu cia –, o próprio discurso eclesiológico do
aprisionada, haja querido lançar vivos catolicismo que a si próprio se reflete no
manifestos, também eles entendíveis no Concílio Vaticano II levou também a que
quadro do conceito de iconoclastia, a par- a atitude artística relativa aos espaços cul-
tir da forma de apresentar e representar o tuais gizada a partir da Sacrosanctum Conci-
mundo e os seus ideários, destruindo ima- lium os requeresse despojados de imagens
gens feitas e ideias preconcebidas do belo e a que os mesmos fossem tomados, por
que serviam determinados regimes socie- determinado sentir crítico, como icono-
tários. Assim, não raramente se veem, na clastas, não obstante a depuração formal
história da arte contemporânea, autores dessas igrejas pretender apresentar como
que, ao proporem novas reflexões artísti- ícone maior a ecclesia reunida.
cas, ao pretenderem negar a própria arte, Embora todas as conjunturas históricas
sobretudo nos seus valores academistas, se tenham usado a imagem, e por isso todas
mostram rebeldes relativamente a histori- elas se possam estudar a partir do uso que
cismos e subvertem, inclusivamente e atra- desta fizeram, a epistemologia tem dado
vés do uso de imagens de obras de arte, os à sociedade moderna, porventura inau-
paradigmas antigos, criando, outrossim, gurada com o século das Luzes – que, pa-
através do conceito de desconstrução e de radoxalmente, coabitou com a ambiência
destruição, novas linguagens, e reabilitan- barroca da sociedade do espetáculo e com
do, inclusive, temas arcaicos nessas épocas o seu sentido de horror vacui –, esse estatu-
entendidos como anticivilizacionais (ve- to de querer contrariar, através da fobia à
ja-se, cada um com a sua forma mentis, o imagem tantas vezes responsável pelo de-
cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, a arte sinvestimento nas artes figurativas, o axio-
povera, etc.). ma popularizado de que “uma imagem
Entendendo também que a imagem vale mais que mil palavras”.
pressupunha a figuração, a arte virá a Dentro da temática iconoclasta, pode
defender a abstração como antinomia ainda ser lido, quer na arte antiga (veja-se,
da imagem, do ícone, não obstante essas e.g., as representações dos marginalia dos
abstrações serem entendíveis, inexoravel- códices medievais), quer na arte contem-
mente, como verdadeiras imagens, não porânea, o uso dos assuntos interditos, de
raramente legendadas com a formulação que são exemplo a bandeira nacional e
“sem título”, que remete, também, para outros símbolos da comunidade (políticos
a negação da criação de uma imagem e religiosos): ou por serem institucionais,
‑apreensão única e que poderá fazer po- e, por isso, intocáveis (e.g., Manuel Casi-
tenciar a criação de outras imagens. Assim miro e Nikias Skapinakis sobre a bandeira
Ideologia
(distância do continente, e etc.)” (DIE- por ser um dos principais centros da peri-
GUES, 1998, 51). E acrescenta: “A insu- feria europeia.
laridade refere-se à identidade cultural Não obstante as evidências da história,
do ilhéu diferenciada do continental, que clamam por um protagonismo e por
mas é resultante das práticas económicas uma afirmação dos espaços insulares,
e sociais em um espaço limitado, cerca- haverá ainda lugar para o discurso da
do pelo oceano. A ilheidade é um neolo- insularidade, aqui entendido como fator
gismo de origem francesa utilizado para resultante de um isolamento que a his-
designar as representações simbólicas e tória nega e que afirma, pela evidência
imagens decorrentes da insularidade e do seu curso, ter sido um espaço aberto
que se expressam por mitos fundadores ao mundo e bem posicionado nos eixos
das sociedades insulares e lendas que de influência dos impérios coloniais, ou
explicam formas de conduta, comporta- um espaço também aberto, desde muito
mento, etc.” (Id., Ibid., 93). cedo, ao turismo? Em certa medida, afir-
No quadro da biogeografia, a insula- mar este discurso da insularidade, como
ridade afirma-se pelos endemismos, na sinónimo de isolamento, não será negar
língua e na literatura, pelos arcaísmos, o processo histórico de algumas ilhas e,
enquanto na economia e na política é o de forma especial, da Madeira, que se
isolamento que conta, i.e., o afastamento construiu a partir do Funchal como um
dos centros de decisão e dos mercados. espaço do mundo e para o mundo?
O discurso histórico, quanto a isto, não Ainda neste contexto, deveremos ter
tem posição clara, fazendo sempre de- em conta a necessidade do recurso a ou-
pender a insularidade da dimensão do tros conceitos operatórios para entender
tempo, dos múltiplos enquadramentos os mecanismos que constroem ou des-
que se sucedem nos espaços insulares e troem a insularidade. Daí a operaciona-
das conjunturas e estruturas dos espaços lidade das noções de centro e periferia,
próximos ou de dominação, transmitindo bem como da mais recente reformulação
uma ideia de contacto e de permanente de perificidade e ultraperificidade, ou
interligação entre eles, em que o próprio do conceito de economia e política co-
Homem, através de diversos mecanismos, lonial. É no quadro deste conjunto de
pode reforçar a sua posição e contribuir relações de dependência e de subordina-
para a sua valorização, nos diversos corre- ção que se constrói a insularidade, o que
dores oceânicos. faz com que ela não seja uma realidade
Apela-se insistentemente à história permanente.
para referir o papel relevante que as ilhas Neste universo, é de assinalar a realida-
tiveram no desbravamento e na afirma- de que se afirma no espaço da ilha e dos
ção dos oceanos e dos impérios. Insiste arquipélagos, que obedece à mesma lógi-
‑se na sua abertura ao mundo e no seu ca. Daí as chamadas insularidades inter-
protagonismo, como que a dizer que a nas de cada ilha ou arquipélago, como se
insularidade terá desaparecido das ilhas pode verificar nos Açores e nas Canárias.
com os Descobrimentos europeus dos Vem a propósito uma opinião expressa
sécs. xv e xvi. Desta forma, o processo no jornal O Lidador de Angra, em 1863,
iniciado pelos Portugueses no séc. xv não que, face à localização do Tribunal da
só desinsularizou a Europa, mas também Relação dos Açores, em Ponta Delgada,
algumas ilhas oceânicas. Pela sua função reclamava: “Hoje os povos das ilhas estão
económica na navegação, estas acabaram mais relacionados com o continente que
estabelecem modelos para medir os im- sociais e humanas há lugar para os discur-
pactos da insularidade nas economias sos da insularidade. As ilhas perdem o seu
insulares, optando declaradamente por significado específico e afirmam-se como
uma aceitação do fenómeno. Algumas um espaço entre outros. Daí as noções de
correntes da Geografia não atribuem par- ilhas de mar, ilhas urbanas, ilhas de terra,
ticular significado às ilhas, considerando sendo exemplo destas últimas os chama-
‑as apenas como um espaço igual ao con- dos oásis.
tinental, negando assim a insularidade. Se, no plano da biogeografia, os con-
Há que ter em linha de conta algumas ca- sensos são evidentes quanto à presença e
racterísticas incontornáveis do território à definição de insularidade, nos demais
insular, como a sua delimitação por uma ramos do conhecimento esta ideia não se
fronteira fixa natural e sempre presente, apresenta de forma tão clara, merecendo
assim como a sua exiguidade. A desconti- diferentes interpretações, nomeadamen-
nuidade territorial é aqui evidente, sendo te junto dos geógrafos. É aqui que vamos
uma das condicionantes mais significati- encontrar uma mais cuidada atenção por
vas no processo de desenvolvimento eco- parte dos especialistas ao tema da insu-
nómico, e, no quadro autonómico da Ma- laridade, mas também os discursos mais
deira e Açores, uma justificação para uma marcantes da anti-insularidade.
intervenção mais generosa do Estado do Os diversos discursos das ciências e da
ponto de vista financeiro. política trouxeram, na segunda metade
Passou-se da constatação daquela rea- do séc. xx, a insularidade para o primeiro
lidade à avaliação do seu impacto em plano no campo da sua conceptualização.
termos do desenvolvimento das socie- Alguns contrapõem a insularidade à con-
dades insulares, definindo-se mesmo os tinentalidade em sentido fraco (como
chamados “custos de insularidade”, que hipoinsularidade), enquanto outros a
justificam o valor das verbas que os Es- reforçam, enriquecendo o dicionário das
tados metropolitanos transferem para insularidades com novos conceitos como
estas regiões. Definem-se políticas anti hiperinsularidade, insulamento, ilheida-
‑insularidade, como que para compensar de, insularismo, ultraperiferia, ultraperi-
os insulares dos efeitos da insularidade. ficidade. No quadro das ciências, a ilhei-
Fala-se, até, no efetivo desaparecimento dade, como o modo de existir próprio das
da insularidade do quotidiano das ilhas, ilhas, substituiu a insularidade. Daí que
por força do desenvolvimento económi- Paulo Cunha seja forçado a afirmar que
co e social, resultante das grandes trans- a insularidade “é mais um estado de alma
formações ocorridas nos domínios dos que uma condição geográfica” (CUNHA,
transportes e das telecomunicações e da 2010, 74). É neste sentido que cada vez
afirmação das ilhas pelo turismo, ao pon- mais é entendida, apagando-se a ideia de
to de se questionar a utilização do termo isolamento e a carga negativa que sempre
“insularidade” e de se afirmar o fim dessa a acompanhou.
realidade. A chamada hipoinsularidade é uma for-
A partir da déc. de 60 do séc. xx, o de- ma de expressão do discurso da anti-in-
bate das ciências foi marcado, de uma sularidade novamente fundada na ideia
forma ou de outra, pela discussão em de isolamento. Daí certamente Thierry
torno da existência ou da inexistência da Nicolas apelar à necessidade de revisão
insularidade e do impacto da insularida- da noção de insularidade, e a progressiva
de. Em quase todos os ramos das ciências afirmação do conceito de ilheidade, que
global, talvez porque o arquipélago se te- sité Bordeaux 3, 2002; CORDEIRO, Carlos,
nha mantido historicamente mais fecha- Insularidade e Continentalidade: os Açores e as
do ao mundo. Mesmo em escritores que Contradições da Regeneração, 1851-1870, Coim-
bra, Livraria Minerva, 1992; CUNHA, Paulo
ocupam lugar de relevo a nível nacional,
Ferreira da, “Direito, utopia e insularidade”,
como Vitorino Nemésio ou João de Melo,
Atlântida, vol. lv, 2010, pp. 73-82; DEPRAE-
há uma aposta plena na insularidade, TERE, C., “Le phénomène insulaire à l’échelle
que se assume como um traço claro de du globe: tailles, hiérarchies et formes des îles
diferenciação de uma identidade no qua- océanes”, L’Espace Géographique, t. xix-xx, n.° 2,
dro nacional. Também na poesia há uma 1991, pp. 126-134; DIEGUES, Antonio Car-
afirmação deliberada da insularidade, los, Ilhas e Mares. Simbolismo e Imaginário, São
sem qualquer medo ou vergonha, como Paulo, Hucitec, 1998; FEBVRE, L., La Terre
et l’Évolution Humaine, Paris, La Renaissance
podemos verificar em Roberto Mesquita
du Livre, 1922; FERNÁNDEZ, Martín, Islas y
ou Almeida Firmino. Regiones Ultraperiféricas de la Unión Europea, La
A anti-insularidade é real e expressa-se Tour-d’Aigues, Éditions de L’Aube, 1999;
em diversas vozes. É quase sempre um FORT, C. Murillo et al., “El coste de la insula-
discurso marcado pela política partidária, ridad y la fragmentación territorial”, Papeles de
onde a fronteira entre as opções e ideias Economía Española, n.º 15, 1995, pp. 305-315;
se torna mais clara. A tribuna parlamen- FOSSIER, Arnaud, e GARDELLA, Édouard,
“Insularités théoriques. De la circulation
tar e os discursos foram e são a sua expres-
conceptuelle à la communication langagière
são, chegando, por vezes, à comunicação entre chercheurs”, Tracés. Revue de Sciences Hu‑
social. Mais do que vozes claras e assumi- maines, n.º 3, 2003, pp. 105-113; GODENAU,
das da anti-insularidade, sucedem-se dia- D., e MARTIN, R., “Insularidad: un concepto
riamente os murmúrios que a refletem e de relevância analítica?”, Estudios Regionales,
que fazem avolumar a sua dimensão na n.º 45, 1996, pp. 177-192; HENRIQUES,
cultura, na política e na sociedade. Daí Eduardo Brito, Distância e Conexão. Insularida‑
a dificuldade em medi-la e em descobrir de, Relações Culturais e Sentido de Lugar no Espaço
da Macaronésia, Lisboa, Instituto Açoriano de
as suas fontes. Tudo isto porque a nossa
Cultura/Centro de Estudos Geográficos da
tradição cultural é incapaz de estabelecer Universidade de Lisboa, 2009; JOÃO, Isabel,
balizas, fronteiras claras entre o positivo e “Reflexões sobre a insularidade e integração.
o negativo, o bem e o mal. O caso do arquipélago dos Açores”, Mare Li‑
berum, n.º 4, 1992, pp. 299-306; JOLLARD, P.,
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2001; RUE, E. Aubert de la, L’Homme et les Îles, ultraperiféricas portuguesas: discurso polí-
Paris, Gallimard, 1935; SANGUIN, André tico e imprensa regional”, Mneme. Revista de
‑Louis (dir.), Vivre dans Une Île. Une Géopoliti‑ Humanidades, vol. 10, n.º 26, 2009, pp. 39-57:
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Alberto Vieira
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em Desenvolvimento, Dissertação de Doutora-
mento em Geografia Humana apresentada à
Universidade de Lisboa, Lisboa, texto polico-
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au Changement et Réinventer des Îles, Dissertação
de Doutoramento em Geografia apresentada
à Université de La Rochelle, La Rochelle, texto
policopiado, 2011; STÉPHANE, Gombaud,
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des Espaces Archipélagiques, Réunion, Univer-
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la variabilité de leur insularité et de leur sta-
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vol. 5, n.º 2, 2011, pp. 45-67; Id. (dir.), Insula‑
rité et Développement Durable, Paris, Institut de
Recherche pour le Développement Éditions,
No debate público, a Internet surge fre- Em The Filter Bubble, Eli Pariser alerta
quentemente visada no questionamento para o risco da personalização exacerba-
de comportamentos viciantes e atuações da no uso da Internet, referindo os limi-
dolosas materializadas online, ou relacio- tes do acesso a informação ditados pelas
nada com outros efeitos sociais negativos, definições de motores de busca como o
e.g.: incremento da criminalidade em Google. Orientados por critérios comer-
geral e do cibercrime em particular; ex- ciais, estes isolam o utilizador em temas
ploração da violência e pornografia; risco e visões circunscritos aos seus interesses.
acrescido, para crianças e jovens, que se Para este autor, representam uma perda
encontram alegadamente desprotegidos da capacidade de inovação e da criativi-
face a conteúdos potencialmente agres- dade, da capacidade de enfrentar a in-
sivos. As visões céticas e negativas, ques- certeza e o desconhecido, de procurar
tionando as faces ocultas da Internet e soluções por si, favorecendo uma atitude
das redes digitais, apesar de surgirem em passiva. Tal contribui para o isolamento
contracorrente, registam notoriedade e intelectual, reduz o diálogo, a capacidade
ponderação pública. Não sendo aqui pos- discursiva e o confronto com opções dife-
sível fornecer mais do que uma nota abre- rentes, prejudicando a democracia, que
viada, compilam-se, de seguida, observa- exige “cidadãos capazes de pensar para
ções de algumas destas vozes críticas. lá do seu estrito interesse pessoal” (PARI-
Rebecca Mackinnon assinala e docu- SER, 2011).
menta os limites da atual gestão da In- Nicholas Carr, retomando contributos
ternet, sublinhando o controlo que as da psicologia e das neurociências, assi-
corporações e os governos sobre ela exer- nala, entre outros aspetos, que, a par das
cem, assim como a inação perante ques- suas vantagens, a Internet tem um pre-
tões críticas como a privacidade online, a ço: torna os seres humanos “escravos das
regulação da neutralidade da Internet, máquinas”; “altera o modo como lemos,
a proteção da liberdade de expressão, a pensamos e recordamos, e o modo como
proteção dos direitos de propriedade in- funciona o cérebro humano, transfor-
telectual, entre outras. mando a noção de humanidade” (CARR,
Shaheed Nick Mohammed salienta a 2010).
tendência de os utilizadores permanece- Jaron Lanier, investigador pioneiro na
rem ligados às suas comunidades tradi- área da realidade virtual, afirma que o
cionais, o que indicia desinteresse face a mais importante no que toca à tecnolo-
novas realidades. O uso da Internet con- gia é o modo como afeta as pessoas e as
tribui assim para a perpetuação do desco- suas vidas. Recorda que as posições críti-
nhecimento e da ignorância. cas não visam demonizar as redes sociais
Mark Bauerlein atribui à Internet par- ou a Internet, mas equacionar-lhes as
te da responsabilidade pelo desconhe- consequências, para prevenir usos inde-
cimento e desinteresse dos jovens pelas sejáveis e ineficientes. Questiona os con-
realidades sociais e políticas. Considera tornos da economia digital, a qual gera
que o uso intensivo desta está a tornar uma concentração de riqueza assimétrica
os jovens americanos “estúpidos e des- e injusta, em benefício de uma minoria,
leixados”, sem capacidade para contex- e que terá estado na origem dos proble-
tualizar e conhecer a história das ideias e mas financeiros sentidos a nível mundial
dos acontecimentos relevantes (BAUER- nos últimos anos do séc. xx e primeiros
LEIN, 2008). do séc. xxi. Apela a uma outra economia
digital, mais equilibrada e digna, obser- convencidos de que clicar numa petição
vando que uma parte do desafio reside no Facebook equivale a uma ação política
no facto de a maioria das pessoas não ter direta. Propõe, pois, um “ciber-realismo”
noção do valor dos seus dados. Sublinha que pondere as vantagens e os limites da
ainda os riscos da crença – muito parti- Internet para objetivos específicos e em
lhada – na sofisticação dos algoritmos de situações concretas (MOROZOV, 2011).
programação, quais bolas de cristal para As redes sociais e a Internet são, em
prever e antecipar o curso da realidade. muitos aspetos, apelativas e úteis. Interes-
É uma ilusão pensar que a automatização sa que se lhes possam discernir oportu-
do pensamento é infalível. Isso não se tem nidades e limitações, benefícios e riscos,
confirmado: “[As] empresas de gestão de acautelando os aspetos potencialmente
risco e os esquemas para gerir hipotecas negativos para que as abordagens críticas
já falharam” (LANIER, 2013). O Google e céticas sensibilizam.
e Facebook também podem falhar.
Andrew Keen, autointitulado “Anti- Bibliog.: impressa: ALLMER et al., “Social
cristo de Silicon Valley”, argumenta que networking sites in the surveillance society:
os media sociais estão a enfraquecer, de- critical perspectives and empirical findings”,
sorientar e dividir as pessoas, em vez de in JANSSON, André, e CHRISTENSEN, Miya-
se (orgs.), Media, Surveillance and Identity. So‑
contribuírem para o advento de uma
cial Perspectives, New York, Peter Lang, 2014,
nova era, mais comunitária e igualitária.
pp. 49‑70; BAUERLEIN, Mark, The Dumbest
Assinala uma tensão entre a procura de Generation: how the Digital Age Stupefies Young
amizade e de ligação comunitária online e Americans and Jeopardizes Our Future (or, don’t
o etos individualista que a inspira: quanto Trust Anyone under 30), New York, Tarcher/Pen-
mais digitalmente conectados, mais sós e guin, 2008; CARR, Nicholas, The Shallows: how
menos soberanos somos. Noutro plano, the Internet Is Changing the Way We Think, Read
assinala a relação entre vigilância, privaci- and Remember, London, Atlantic Books, 2010;
FEENBERG, Andrew, “Introduction: toward a
dade e rentabilização de dados pessoais:
critical theory of the Internet”, in FEENBERG,
“os dados são o novo petróleo”, “os no- Andrew, e FRIESEN, Norm (orgs.), (Re)Invent‑
vos barões do séc. xxi são gente ligada à ing the Internet, Critical Case Studies, Boston,
rentabilização de dados”; “esta tentação Sense Publishers, 2012, pp. 3-17; FISHER,
exibicionista de difundirmos a nossa in- Eran, Media and New Capitalism in the Digital
timidade, globalmente, para o mundo Age, Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2010;
inteiro, dá cabo de nós” (KEEN, 2012). FUCHS, Christian, “Transnational space and
the ‘network society’”, 21st Century Society,
Evgeny Morozov questiona a euforia à
vol. ii, n.º 1, 2007, pp. 49-78; Id., “Theoret-
volta do papel democratizante da Inter- ical foundations of defining the participa-
net, nomeadamente face aos dados que tory, co-operative, sustainable information
mostram o controlo exercido por Estados society”, Information, Communication & Society,
e corporações sobre os utilizadores. Assi- vol. xiii, n.º 1, 2010, pp. 23-47; Id., “Class and
nala que muito do discurso apologético exploitation on the Internet”, in SCHOLZ,
combina um misto de utopia e ignorância, Trebor (org.), Digital Labor. The Internet as Play‑
ilustrado na crença de que a cultura da ground and Factory, New York, Routledge, 2013,
pp. 211-224; GARNHAM, Nicholas, “Political
Internet é inerentemente emancipatória,
economy and cultural studies: reconciliation
e de que as mais importantes questões so- or divorce?” in STOREY, J. (org.), Cultural
bre a sociedade e a política podem ser de- Theory and Popular Culture, Harlow, Pearson,
batidas online. E nota, ironicamente, que 1998, pp. 600-612; KEEN, Andrew, The Cult
alguns ativistas da Internet parecem estar of the Amateur: how Today’s Internet Is Killing Our
ímpio; os ateus, um crente”, traduz satis- zes numa conivência recíproca” (SEABRA,
fatoriamente o xadrez que tentámos es- JN, 2 jan. 1997, 42).
boçar (GUIMARÃES, 1942, 10-11). A questão propriamente dita do “caso
O poeta de Os Simples sabia que “o em- literário de Junqueiro” (LOPES e SA-
buste mais inacreditável, se o enxertarem RAIVA, 1982, 979), embora com raízes
com destreza num ódio político ou reli- longínquas, mas não despiciendas, no
gioso, tem logo seiva para alimento, deita texto de Moniz Barreto sobre a literatura
vergônteas e dá frutos” (JUNQUEIRO, portuguesa sua contemporânea (1889),
A Pátria, 23 abr. 1910, 3; Id., 1945, 133 tem início na déc. de 20 do século pas-
‑193). Pior, “a cínica audácia das injúrias, sado, com “O caprichismo romântico na
além do prazer que desperta em todos os obra do Sr. Junqueiro”, célebre texto de
malandros, é acolhida, embora com vaga António Sérgio. O pensamento (e ação)
indecisão, por muitos ingénuos e igno- do seu autor, estruturado pela questão
rantes” (Id., Ibid., 135). Retrospetivamen- política, impôs-se como força motriz ex-
te, do ponto em que nos encontramos, tensiva a vários domínios, tendo sido na
vê-se que o poeta não podia ser mais cer- educação o pensador “que mais aceitação
teiro no diagnóstico que traçou. colheu junto da opinião pública portu-
À luz das duas questões apontadas há guesa pertinente” (PATRÍCIO, 2004, 31).
de pesar-se-lhe o passado e quase se lhe No caso de Junqueiro, não será exagero
hipoteca o futuro, uma vez que a própria dizer-se que a crítica sergiana se projeta
crítica literária feita à sua obra, se bem como sombra imensa por todo o séc. xx.
que desejavelmente autónoma, será tam- Nela enforma uma imagem global do
bém ali enxertada. Pequeno exemplo pa- autor. A subsequente apreciação ou uma
radigmático disso será o seu “caso” com certa crítica literária – mais intelectual e
Sena Freitas. Durante oito longas déca- de empenhamento (estético, político, fi-
das se disse que uma tal sátira foi vinga- losófico) do que especializada –, adotan-
tiva e vergonhosa retaliação de Guerra do-a como base racional teórica, nela há
Junqueiro à Autópsia operada por Sena de fermentar e ressumar.
Freitas em A Velhice do Padre Eterno. Ape- Um certo antijunqueirismo é caracte-
nas em 2005 se demoliu tal “adquirido”, risticamente presencista. Por outro lado,
provando-se que a controversa sátira foi deve notar-se que Fernando Pessoa, por-
escrita dez anos antes da Autópsia, à qual, ventura “o mais verdadeiro”, é aquele
aliás, Junqueiro nunca deu explícita res- que admirou Junqueiro, considerando
posta; acresce que a sátira não foi escrita ‑o o poeta da obra “máxima” da nova
para ser publicada (como de facto, abu- poesia portuguesa.
sivamente o foi) e Junqueiro tudo fez, Gaspar Simões e Casais Monteiro,
chegando ao ponto de usar tesoura, para apontados como contestatários do ma-
que aqueles destemperados alexandrinos gistério sergiano, estavam, afinal, no
fossem esconjurados pelo silêncio. que toca a Junqueiro, em pleno acordo.
Com efeito, em Junqueiro se “cristaliza- Quanto a José Régio – indicado pelos
ram certas obsessões geracionais de sinal vá- seus pares como “o principal doutrinário
rio, alimentando falsas querelas, de que se da presença” (SIMÕES, 1977, 8) ou, de
aproveitaram as ortodoxias e os poderes forma mais genérica e consensual, como
em confronto, que as utilizaram como um “a grande figura que se avantaja no gru-
meio de congelar as leituras e interpreta- po da Presença” (SENA, 1977, 63) – não
ções das respetivas obras e ações, muitas ve- restavam dúvidas de que sintonizou com
cultivar literariamente, se via sujeito, por de cordel de José Daniel da Costa, que, em
parte de quem o temia. cada um dos seus títulos versando sobre o
A reforma educacional do marquês assunto, desdenhava da mulher que aos es-
de Pombal não contempla o género fe- tudos se dedicava, apodando-a de inútil à
minino, com a criação de escolas para o sociedade. Luís António Verney consagra
efeito; pelo contrário, será através das or- no seu O Verdadeiro Método de Estudar (1746)
dens religiosas das Ursulinas e da Visita- um – atente-se no título – “Apêndice sobre
ção (ambas provenientes de França) que os estudos das mulheres”, no qual reflete
uma pequena percentagem terá acesso a que “Certamente que a educação das mu-
alguma formação, indubitavelmente con- lheres neste Reino é péssima; os homens
dicionada, porém, porquanto segundo quase as consideram como animais de
rígidos modelos de orientação mística e, outra espécie: e não só pouco aptas, mas
em alguns casos, visando aconselhamen- incapazes de qualquer género de estudo
tos para um bem sucedido matrimónio. e erudição” (RIBEIRO, 2002, 38). Talvez
Apenas no séc. xix surgem os primeiros esta meditação seja um indício do pensa-
estabelecimentos escolares femininos, re- mento que, em geral, atravessava a socie-
fletindo precisamente que, não existindo dade portuguesa, explicando a resistência
igualdade em termos de oportunidade, os à educação literária e cultural da mulher.
programas de ensino também apresenta- Em boa verdade, poucos eram os homens
vam diferenças no seu conteúdo, além de que se importavam com valores culturais,
que a construção desses edifícios depen- dedicando-se, por força de circunstâncias
dia do que sobrasse do subsídio literário exteriores que se prendiam com a própria
(imposto lançado por Pombal com o ob- sobrevivência, a matérias mais utilitárias e
jetivo de suportar as despesas aplicadas na imediatas. Ora, em função da mentalidade
sua reforma da instrução) e da disponibi- da época, fundamentava-se como válida a
lidade parca de um número, também re- premissa de que, não sendo o homem – ser
duzido, de mulheres profissionais na área. superior – alfabetizado, que argumen-
Acrescente-se que as professoras (mestras) tos explicariam que a mulher o fosse?
auferiam um salário inferior ao dos pro- O progresso e a edificação social estavam
fessores e tinham de sujeitar a sua condu- apenas reservados ao homem. Ignorando
ta pedagógica ao parecer e aprovação de o paradigma preconizado pelo racionalis-
superiores (maioritariamente religiosos), mo, segundo o qual a razão é uma faculda-
que também regulavam os conteúdos de de humana, a sociedade portuguesa não
aprendizagem. permitia, pois, que essa verdade se aplicas-
De um modo geral, a resistência à for- se à mulher. Ainda no contexto que se vi-
mação erudita da mulher era uma realida- via na época, Verney não diferia em muito
de evidente em Portugal, tanto por parte do pensamento reinante, na medida em
de homens quanto de outras mulheres, as que considerava essencial a educação da
que consideravam imorais e desproposi- mulher apenas para benefício do lar, pois
tadas as inclinações literárias de quem as dela dependia a educação dos filhos, a ges-
ambicionava, quando o seu lugar sempre tão doméstica, a serenidade do marido, a
fora o do canto do lar, o seu controlo, o agradabilidade no momento convivial.
do braço do marido/pai, e a sua voz, a do Neste caso, seria pertinente evitar que a
gesto do outro. As literatas eram, por isso, mulher nutrisse elevados pensamentos
motivo de crítica, explanada de vários mo- literário-filosóficos, e tentar que exercitas-
dos, nomeadamente através da literatura se competências mais concordantes com
matérias práticas. Outros autores também um cavalo de circo, e não lhes reconhecia
defendiam este princípio: seria imprete- sua capacidade para o raciocínio abstrato”
rivelmente importante que as mulheres, (Id., Ibid., 50). Considerava-as eficientes
especialmente porque futuras esposas e em armas de sedução, mas não em maté-
mães, afastassem o seu entendimento de rias de ciência enquanto acúmulo de co-
manifestações questionantes e existencia- nhecimento, julgando, depreciativamen-
listas que se pudessem revelar interventi- te, que a inteligência feminina só assim
vas e disruptivas de uma aparente estabi- era tida num país de muitos medíocres e
lidade emocional entre os dois géneros. poucos doutos, que excediam os entusias-
Ribeiro Sanches, e.g., em Cartas sobre a Edu- mos ante coisa rara, a de vislumbrarem
cação da Mocidade, vai mais longe no pre- uma mulher que compusesse belamente
conceito, afirmando que, no seu entender, umas frases.
a educação da mulher seria extremamen- Em síntese, “o discurso normativo que
te importante porque contribuiria para a a sociedade impingia [era o de que]: mu-
consequente educação do homem, na sua lher não deve ser letrada” (Id., Ibid., 51).
inequívoca função de mãe. I.e., embora se reconhecendo a importân-
Francisco Xavier (ou Cavaleiro) de Oli- cia de se libertar a mulher da submissão
veira, em muitos escritos seus, que relatam, cega e gratuita, a sociedade em geral, e até
de modo pitoresco, os costumes e ambien- superioras religiosas encarregadas de mi-
tes da época, “reputava a mulher incapaz nistrar a educação das mulheres em suas
de emitir um bom parecer”, fundando-se ordens, concordava em limitar esse anseio
nas mesmas ideias de Cícero, que “consi- nos moldes estatuídos nas alíneas de Ver-
derava uma mulher sábia tão inútil como ney, instruindo-as para serem regradas.
dessa atmosfera. Mas foram a Inquisição Alorna, e depois Garrett, Herculano, An-
e a censura os instrumentos primordiais tero de Quental, Eça de Queirós, António
responsáveis por ela. Pela sua eficácia, Sérgio, Jorge de Sena, Eduardo Louren-
violência e duração, elas haveriam de ço, entre outros. Teodoro de Almeida,
condicionar, negativa e indelevelmente, culto e viajado, lastimará, orando em ses-
toda a vida material e mental da nação. são de abertura da Academia das Ciências
E, se a sua eficácia e violência se tornaram de Lisboa, as humilhantes representações
notórias a nível internacional, a sua du- que de Portugal se faziam por essa Europa
ração foi impressionante. De facto, se ti- fora e que em tantas ocasiões o haviam fei-
vermos em conta os quase quatro séculos to corar de pejo e emudecer. E, se toda a
e meio que medeiam entre a criação do nação sofreu os efeitos desta degradação,
Santo Ofício da Inquisição (1536) – e, a intelectualidade foi um dos seus campos
consequentemente, o início da censura mais visíveis. Carrère sintetizou cruamen-
formal – e a Revolução de Abril de 1974, te a situação: quem queria manter-se tran-
verificamos que durante quase três sé- quilo no reino de Portugal calava-se e não
culos fomos sujeitos à primeira, a Inquisi- escrevia (CARRÈRE, 1797, 236). Entre os
ção, e que estivemos livres da segunda, a Portugueses, Teófilo Braga mudaria a fór-
censura, apenas durante cerca de um sé- mula, que não o sentido: “Não ter ideias
culo. As consequências daí provenientes era tino prático” (BRAGA, 1876, 82).
foram abundantemente assinaladas, em E quem queria tê-las e exprimi-las arrisca-
plena época das Luzes, não só por vozes va a tortura, a prisão, o exílio voluntário
do exterior, mas também internamente. ou forçado, a morte – os exemplos disso
Na primeira forma, encontramos nume- são incontáveis.
rosos registos de olhares que tiveram o Portugal abrira-se à realidade renas-
ensejo de contactar, nessa época, com a centista e tornara-se notado. A cultura
nossa realidade, desde J. Bourgoing e humanista adquirira raízes bem visíveis
Ange Goudar a J. B. F. Carrère ou ao com- e a literatura e a ciência legaram criado-
te d’Albon, a Dumouriez, M. Link, Carl res e criações de projeção internacional.
Ruders, Jacome Ratton, Ph. Stevens, e a Mas esta realidade começaria a inverter
tantos outros. Em geral, pintaram Portu- ‑se ainda durante o séc. xvi. A Inquisi-
gal como império de frades e freiras, onde ção foi instituída em Portugal através da
moravam a ignorância, a imbecilidade e a bula Cum ad Nihil Magis (23 de maio de
barbaridade, a superstição e o fanatismo, 1536), depois de longas, persistentes e
a tirania opressiva e o mais sanguinário muito onerosas negociações com Roma.
tribunal inquisitório. Voltaire apodou a O interesse da Coroa portuguesa, cujo
nação portuguesa de a mais ignorante e território tinha especificidades parale-
fanática da Europa, e não deixou de cele- las ao da Espanha (onde se verificava a
brar com ironia a sorte de Newton, e com presença das heterodoxias judia e muçul-
ele a da razão, por não ter nascido em mana), era conseguir, para o reino, um
Portugal, livrando‑se, assim, de ter de ves- modelo que favorecesse o amplo contro-
tir um sambenito e acabar queimado num lo da instituição pelo poder real, como o
auto de fé. Internamente, muitos pensa- que fora obtido pelos Reis Católicos em
ram o mesmo, e alguns o disseram, como 1478. Isso não se alcançou de imediato,
o P.e António Vieira, D. Luís da Cunha, mas em 1547 este controlo era já muito
Verney, Ribeiro Sanches, o Cavaleiro de significativo. Desta forma, uma institui-
Oliveira, Filinto Elísio, a marquesa de ção originariamente criada com intuitos
Luzes, o ministro de D. José colocou a Co- ‑Luzes da “seita”, vista como a primeira
roa portuguesa na esfera de outros países responsável pelo facto de o reino se achar
que se moviam no quadro do despotismo nos antípodas culturais de outrora e se
esclarecido, como a Áustria de Maria Te- ter afastado dos padrões de progresso da
resa, cuja corte havia frequentado. A sua Europa. Aliás, Verney – que fora formado
política cultural e as reformas pedagógi- na escola daquela Ordem e que era tão
cas que promoveu em todos os graus de acarinhado pelo ministro – já insinuara o
ensino foram emblemáticas e corajosas cá mesmo no Verdadeiro Método; idênticas de-
e muito admiradas no estrangeiro. Movi- núncias haviam sido feitas por alguns Ora-
do por uma ideologia secular e concentra- torianos e intelectuais, foragidos ou não.
cionária, ditou uma política regalista, teo- Semelhante atitude não ocultará o sen-
ricamente sustentada, em que participou tido concentracionário e despótico do seu
uma importante e esclarecida parcela da projeto político global, e este requeria,
intelectualidade do reino. Assim, ao mes- impreterivelmente, uma mudança radical
mo tempo que intentou retirar a Igreja no figurino dos Tribunais do Santo Ofício
portuguesa da alçada de Roma, moveu-se que seria estultícia o ministro dispensar.
no sentido da separação de poderes e da Era imperioso torná-los um instrumento
inversão dos pesos da balança na relação ao serviço do Estado, do “seu” Estado, e,
altar-trono. atente-se, torná-los menos sujeitos às “se-
A expulsão, em 1759, dos Jesuítas, que veras críticas, que as nações mais polidas,
dominavam a cultura e o ensino, tinham e cultas da Europa [lhes] têm feito” (lei
enorme poder político, económico e so- de 5 abr. 1768). Foi, então, esvaziando,
cial e eram elemento fundamental da enfraquecendo e descaracterizando o seu
instituição inquisitorial e censória, foi um antigo perfil, equiparando-os a tribunais
momento fulcral desta estratégia. As mo- régios. Dada a matriz filosófica e política
tivações do ato depreendem-se logo do dos novos tempos, retirou da alçada da-
conteúdo da lei da expulsão (3 set. 1759) queles tribunais a censura literária, já que
e do alvará de extinção de todas as esco- aí residiria um dos principais esteios de
las reguladas pelos seus métodos, mas o desenvolvimento e consolidação do seu
seu significado pleno entender-se-á mais projeto, gizando para esta censura um
cabalmente com o libelo da Deducção Chro- corpo próprio de natureza secular e crian-
nologica e Analytica (1767) e a subsequen- do a Real Mesa Censória (pela lei atrás re-
te lei de criação da Real Mesa Censória ferida). Desta forma, a censura persistia,
(1768), bem como, posteriormente, com mas pintada com as cores do seu pincel.
o célebre projeto que fundamentará os Es- Neste âmbito, tornou os antigos mento-
tatutos da Universidade de Coimbra (1772), res da Inquisição, os Jesuítas, seus alvos;
de sugestivo título: Compendio Historico do suspendeu a jurisdição do volumoso Index
Estado da Universidade de Coimbra no Tem- Expurgatório de 1624, do inaciano P.e Balta-
po da Invasão dos Denominados Jesuitas e dos zar Álvares, e proscreveu do reino as bulas
Estragos Feitos nas Sciencias e nos Professores, da Ceia do Senhor e todos os Índices Expur-
e Directores Que a Regiam pelas Maquinações, gatórios, que faziam residir a responsabili-
e Publicações dos Novos Estatutos por Elles Fa- dade executiva em censores “destituídos
bricados (1771). Na verdade, para além do das letras necessárias para conhecerem,
atentado ao Rei, a que Sebastião de Car- e julgarem as obras” (lei de 5 abr. 1768,
valho e Melo vinculou os Jesuítas, a expul- base i), que agiam de forma a “proibi-
são é sempre por ele ligada à ação anti rem-se os livros, que se deviam permitir”,
censura tripartida (lei de 17 dez. 1794), isolados, “um atado” deles (MACHADO,
fórmula da velha Inquisição. O zelo e a 2000, 39). O “não é bom vassalo quem não
fúria censória exacerbaram-se com a exe- for bom cristão” convertia-se, por pena do
cução de Luís XVI e Maria Antonieta. Por cardeal patriarca D. José II numa pastoral,
isso, o recurso à ação policial, através da em “não é bom cristão quem não for bom
intendência de Pina Manique e das suas vassalo” (JOSÉ II, 1789). Bispos e clérigos
“moscas” (agentes que eram como que os reconheceram e seguiram, em geral, esta
olhos e os ouvidos do intendente e que, precedência do bom vassalo sobre o bom
de forma discreta, esquadrinhavam e de- cristão. A heresia política sobrepunha-se,
nunciavam elementos, pessoas e situações em gravidade e em penas, à heresia reli-
que lhes parecessem heterodoxos ou sub- giosa. O processo de Bocage demonstrará
versivos), bem como à hierarquia da Igre- muito bem isso.
ja e aos governos da Universidade (que, A agressividade censória e repressiva
por meio de editais e da ação, apelavam contra tudo o que punha em causa os
freneticamente à denúncia, mesmo que baluartes do status e contra a sublevação
secreta, de livros perigosos, pedreiros-li- política continuaram até à Revolução
vres, jacobinos, sectários e partidários dos Liberal de 1820. Mas as circunstâncias
Franceses), tornou-se uma prática obses- da Guerra Peninsular e da fuga da corte
siva. E, se a prevalência de alvos de natu- real para o Brasil, aliadas a uma progres-
reza filosófica e política já existia desde siva deterioração da eficácia inquisitorial
Pombal, agora tornava-se quase absoluta. a partir de Pombal, laxaram claramente
O influente ministro do Reino, Seabra da as capacidades de atuação censória con-
Silva, sintetizava esta situação em recado tra os novos e persistentes ventos que as
enviado ao vice-reitor da Univ. de Coim- Luzes traziam. Esta realidade foi tremen-
bra, sobre a necessidade de uma mudan- damente potenciada pela criação de nu-
ça curricular na formação dos regulares, merosos periódicos portugueses com sede
que continuava mergulhada em matérias no estrangeiro, e de alguns no reino, que
de religião e teologia: “Não têm os teólo- fintaram, em grande escala, a eficácia da
gos de combater Arianos nem Calvinistas. máquina obstaculizante. Fazia-se neles
Têm que combater Filósofos, que atacam eco dos novos saberes, das novas técnicas,
os governos e a política e zombam da Teo- das criações literárias, das novas filosofias,
logia” (BRAGA, 1898-1904, III, 735 e 736). dos novos valores, e até das novas práticas
Não era por acaso que o Contrato Social de políticas testadas no exterior. Enfim, fazia
Rousseau, que antes da Revolução Fran- ‑se a pedagogia em vista da revolução que
cesa pouca atenção concitara – fosse de já se adivinhava.
sentido elogioso, fosse depreciativo –, era Para além da Inquisição e da censura,
agora profusamente achado por visitado- acolitadas por uma acutilante ação poli-
res e censores. Com efeito, entre as exis- cial e estruturadas por um forte edifício
tências encontradas em sede da Comis- normativo, também a ideologia foi, desde
são Geral sobre o Exame e Censura dos Pombal até ao liberalismo, um importan-
Livros, aquando da transformação deste te instrumento de contenção das Luzes
organismo na censura tripartida – Santo do século e de combate a elas. Conside-
Ofício da Inquisição, Ordinário e Mesa rado o seu recurso pouco pertinente,
do Desembargo do Paço –, por lei de porque pouco necessário, no período
D. Maria I, de 17 de dezembro de 1794, pré-pombalino, tornou-se muito intenso
descobriu-se, a par de outros exemplares a partir da segunda metade do séc. xviii.
estrangeirados, que cavou uma enorme ra europeia (sécs. xvi a xviii)”, Biblos, vol. xxviii,
distância da circunstância europeia além 1953, sep.; FRANCO, Francisco de Melo, Rei
‑Pirenéus. E é claro que esta “fatalidade”, no da Estupidez. Poema, Paris, A. Bobée, 1818;
embora situada no tempo, deixou marcas GARRETT, Almeida, Obra Política. Escritos do
Vintismo (1820-1823), Lisboa, Estampa, 1985;
que se manifestavam ainda nos começos
HERCULANO, Alexandre, História da Origem e
do séc. xxi. O “país de cafres”, de acordo Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 3 vols.,
com o desabafo de Vieira (VIEIRA, 1970, Amadora, Bertrand, 1975; JOSÉ II, Pastoral
177) no séc. xvii, continuou a ser tido, no sobre a Defesa da Fé, Lisboa, Officina de Anto-
séc. xviii, como “cadaveroso reino” por nio Rodrigues Galhardo, 1789; MACHADO,
Ribeiro Sanches (SANCHES, s.d., 78), Fernando Augusto, Rousseau em Portugal. Da
ilustre exilado, e como “reino da estupi- Clandestinidade Setecentista à Legalidade Vintista,
dez” (FRANCO, 1818), refletido na nossa Porto, Campo das Letras, 2000; MARQUES,
Maria Adelaide Salvador, “A Real Mesa Cen-
universidade, pelo estudante Melo Franco
sória e a cultura nacional. Aspectos da geo-
(1881), depois famoso médico. Também grafia cultural portuguesa no século xviii”,
assim o apodaram, já no séc. xx, Antó- Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra,
nio Sérgio, seguindo Sanches, e Jorge de vol. xxvi, 1963, sep.; Id., “Pombalismo e cultu-
Sena, seguindo Franco. Sempre ao abrigo ra média – Meios para um diagnóstico através
da mesma razão: o fado anti‑Luzes. da Real Mesa Censória”, Brotéria, vol. 115,
n.os 2-4, ago.-out. 1982, pp. 181-208; MAR-
TINS, A. Coimbra, “Luzes”, in SERRÃO,
Bibliog.: manuscrita: ANTT, Real Mesa Cen- Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal,
sória, Censuras e Pareceres, cx. 3, n.º 22, vol. iv, Porto, Figueirinhas, s.d., pp. 86‑106;
Livros de Authores Estrangeiros Que Devem Ser RAMOS, Luís A. de Oliveira, Sob o Signo das
Prohibidos por Edital, s.d.; Ibid., Real Mesa Cen- “Luzes”, Lisboa, INCM, 1988; REGO, Raul,
sória, Censuras e Pareceres, cx. 3, n.º 23, Juizo Os Índices Expurgatórios e a Cultura Portuguesa,
sobre os Authores Impios, e Obscenos Que Devem Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portu-
Ser Condenados, ou pelo Index, ou pelo Edital desta guesa, 1982; RODRIGUES, Graça Almeida,
Real Meza, Precedido de Alguas Reflexões sobre a Breve História da Censura Literária em Portugal,
Condenação, e Queima dos Livros, s.d.; impressa: Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portu-
ALMEIDA, Teodoro de, “Oração na abertura guesa, 1980; SANCHES, A. N. Ribeiro, Dificul‑
da Academia das Sciencias em 1 de julho de dades Que Tem Um Reino Velho para Emendar-se e
1780”, in AIRES, Cristóvão, Para a História da Outros Textos, ed. lit. Vítor de Sá, Porto, Inova,
Academia das Sciências de Lisboa, Coimbra, Im- s.d.; SENA, Jorge de, O Reino da Estupidez, Lis-
prensa da Universidade, 1927, pp. 94-104; boa, Livraria Morais, 1961; SÉRGIO, António,
AZEVEDO, João Lúcio de, O Marquês de Pom‑ “O reino cadaveroso ou o problema da cultu-
bal e a Sua Época, Lisboa, Clássica Editora, ra em Portugal”, in SÉRGIO, António, Ensaios,
1909; BAIÃO, António, Episódios Dramáticos da t. ii, Lisboa, Sá da Costa, 1972, pp. 25-57; SIL-
Inquisição Portuguesa, 3.ª ed., 3 vols., Lisboa, VA, António Delgado da (comp.), Supplemento
Seara Nova, 1972-73; BRAGA, Teófilo, Bocage. á Collecção de Legislação Portugueza do Desembar‑
Sua Vida e Época Literária, Porto, Imprensa Por- gador Antonio Delgado da Silva pelo mesmo. Anno
tuguesa Editora, 1876; Id., História da Universi‑
de 1763 a 1790, Lisboa, Typ. de Luiz Correa
dade de Coimbra nas Suas Relações com a Instrução
da Cunha, 1844; TRACY, Antoine L. Claude
Pública Portugueza, 4 t., Lisboa, Typographia
Destutt de, Eléments d’Ideologie, Paris, Cour-
da Academia Real das Ciências, 1898-1904;
cier, 1804; VIEIRA, António, Cartas, coord. e
CARRÈRE, J. B. F., Tableau de Lisbonne, en 1796;
anot. J. Lúcio de Azevedo, t. iii, Lisboa, INCM,
Suivi de Lettres Écrites de Portugal sur l’État Ancien
1970; VOLTAIRE, “Newton et Descartes”, in
et Actuel de Ce Royaume, Paris, H. J. Jansen,
VOLTAIRE, Oeuvres Complètes de Voltaire, t. viii,
1797; COELHO, António Borges, Inquisição de
Paris, Furne, 1836, pp. 88-89.
Évora, 2 vols., Lisboa, Caminho, 1987; DIAS,
José Sebastião da Silva, “Portugal e a cultu- Fernando Augusto Machado
“territórios do nada” (ALVES et al., 2002, des simbólicas e físicas da forma urbana
53), digamos que porosos e híbridos, (modelada pela planificação urbana dos
aliado à abrangência dos discursos coleti- anos 60 do séc. xx, e depois pelos progra-
vamente produzidos a partir do quartel mas e políticas de habitação dos anos 70),
‑general instalado no bairro da Flamenga, de maneira a que as principais peças se
assegurou ao evento o cariz de aconteci- constituíssem como gestos não apenas de
mento. Dado o grau de abertura à impon- interpelação e interação participatórias,
derabilidade do relacional – uma partilha mas também coreográficos ou de sinaliza-
de vivências –, “foram momentos raros” e ção. Esta espetacular tradução do tecido
um “convite de dois gumes incitando para urbano em inovadoras situações sociais
o abismo” (CAMPINO, 2006, 196). assentou na capacidade de o projeto es-
Projetos off como a LXCN tentam supe- tabelecer objetivamente premissas para
rar constrangimentos formais de campos
e disciplinas. No plano de uma generosi-
dade militante e em favor da indecidibili- Porque É Que Existe o Ser em vez do Nada? (2001),
dade comunicacional, investigam registos de José Maçãs de Carvalho.
alternativos para uma consciência demo-
crática em que o contacto performático
com o real inscreve iluminações estéticas
que demonstram como certas coisas po-
deriam ser diferentes, sem jamais ceder
ao paternalismo reformista ou à provoca-
ção gratuita. A LXCN foi, portanto, anti
relativamente ao que os seus mentores
entenderam como redutoramente cultu-
ral (quando os aspetos mais profundos
da cultura são delimitados pelo habitus e
alienados pelas indústrias criativas e cul-
turais, também ao nível do território).
O que aconteceu foi assim a aplicação
direta de um modelo imanente de cons-
cientização urbana em toda a sua radica-
lidade, exemplaridade e complexidade
inerentes. Mais exploratória que labora-
torial, a ação atualizou aspetos do situa-
cionismo – um movimento europeu de
crítica social, cultural e política reunindo
poetas, arquitetos, cineastas, artistas plás-
ticos e outros profissionais – num quadro
de grande cinismo perante sistemas e
aparelhos, fossem da arte, da arquitetura,
do urbanismo ou do design.
Monumental exercício de contacto com
a paisagem (problemática ecológica) e a
vida na cidade (problemática da coesão
social), a LXCN reagiu às descontinuida-
para a compreensão das lutas contra o tos de carácter religioso, substituídos por
apartheid. Mas a Europa dos últimos sé- declarações de honra; a supressão do
culos também não é exceção: na Renas- ensino da doutrina cristã nas escolas de
cença inglesa da primeira metade do séc. ensino primário; a erradicação das obri-
xvii, o poeta épico John Milton viu o seu gações religiosas da Univ. de Coimbra,
tratado Eikonoklastes transformar-se em tal como a extinção da sua Faculdade de
cinzas por atacar a hipocrisia religiosa; na Teologia; a introdução do divórcio na
Alemanha nazi, o Governo de Hitler ini- legislação portuguesa; a proibição de o
ciou uma campanha para incinerar os li- Exército intervir em cerimónias religio-
vros dos judeus. sas; e ainda de direitos sobre pessoas e
Em Portugal, um dos casos registados bens das congregações religiosas. Em
foi a dura política do marquês de Pombal síntese, a Primeira República buscava a
contra a presença e influência dos Jesuítas, supressão da vida religiosa, mais especi-
tendo logrado a sua expulsão do reino, a ficamente, da influência jesuítica na so-
suspensão das suas práticas pedagógicas e ciedade portuguesa. Para tal, sumarizou
a eliminação de todos os livros de sua auto- a época monárquica na sua vertente re-
ria, de sua pertença ou de seu uso. ligiosa e declarou guerra contra o con-
Além deste, é importante destacar tam- ceito do jesuíta, enquanto educação re-
bém três momentos marcantes do séc. xx ligiosa infrutífera, nefasta e deturpadora
português ao nível da manipulação da dos espíritos progressistas, encerrando
memória: a proclamação da república, nele todo um passado e todo um para-
por substituição da monarquia, a 5 de digma de sociedade e de Homem com o
outubro de 1910, o funcionamento do qual queria romper. Na sua essência, “o
Estado Novo, órgão único do poder entre jesuitismo significava a antirrepública”
1933 e 1974 e, finalmente, a instauração (MATTOSO, 1994, 353).
da democracia, a 25 de abril de 1974. Esta luta pelo apagamento dos traços
Com efeito, a transição para o regi- do adversário declarado não era isenta
me republicano esteve profundamente de um forte carácter político. Conforme
marcada pela questão religiosa. Após a destaca José Eduardo Franco, “o jesuitis-
Implantação da República, três dias bas- mo era nome da ameaça mais imaginada
taram ao novo Governo, na pessoa do mi- e imaginária que real, a face do inimigo
nistro da Justiça, Afonso Costa, para de- de que a República precisou ou que con-
cretar a expulsão dos Jesuítas e das demais tinuava a precisar para melhor mobilizar
congregações religiosas, repondo em vi- as massas populares e os diferentes secto-
gor a expulsão dos Jesuítas decretada pelo res ideológicos laicistas em favor da sua
Governo do marquês de Pombal. Além da causa” (FRANCO, 2007, II, 245). Trata-
extinção das congregações, o Governo va-se, em grande parte, de um fait-divers
presidido por Teófilo Braga ambicionava para desviar as atenções da opinião públi-
o fim da confessionalidade religiosa do ca dos reais e mais complexos problemas
país ou da religião oficial em termos cons- da política nacional. Convém recordar
titucionais, traduzido na separação oficial a profunda instabilidade deste regime:
da Igreja em relação ao Estado. entre 1910 e 1926, houve 7 parlamentos
Ao longo dos primeiros dois meses eleitos, 8 presidentes da República e 50
de governo, estes pontos programáticos governos, além dos frequentes motins mi-
traduziram-se numa pluralidade de me- litares e da forte desvalorização da moeda
didas, tais como a abolição dos juramen- após a Primeira Guerra Mundial.
Enquanto Norton de Matos, ministro beiro, 1981, 155). Como descreve Ann
das Colónias e da Guerra (1915), gover- Laura Stoler (1995), a sexualidade nas
nador (1912-1915), e mais tarde alto colónias foi influenciada por fatores ra-
‑comissário de Angola (1921‑1923), de- ciais e de classe social. A contaminação
fendeu a imigração de todas as famílias dos ricos pelos pobres, dos urbanos pelos
brancas que o desejassem, já Armindo rurais, dos saudáveis pelos doentes, e a
Monteiro, ministro das Colónias (1931 suposta perturbação de hierarquias e das
‑1935), que na conferência dos governa- ordens instituídas seguiam a par e passo
dores coloniais (1934) sustentou a limi- com as ansiedades relacionadas com a
tação da imigração em África, defendeu miscigenação racial.
que os potenciais colonos só deveriam No campo literário, as representações
viajar com uma “carta de chamada”, pois parecem amiúde responsabilizar a falta
não se devia suscitar a ideia de que as de mulheres portuguesas pela miscige-
colónias eram habitadas por desempre- nação – vista como patológica e pertur-
gados ou fugitivos. badora pelos homens solteiros em África.
Os princípios orientadores da política Maria Lamas (1893-1983) escreveu duas
colonial portuguesa, expressos em 1930 novelas – Diferença de Raças (1923) e O Ca-
no Ato Colonial, onde é definido o im- minho Luminoso (1927) – que ilustram o
pério colonial português, onde são iden- modo como as mulheres burguesas foram
tificados os territórios que o constituem comprometidas no esforço por colonizar
e onde são descritos os seus habitantes, África, em alternativa à emigração para
ingressaram na nova Constituição aprova- o Brasil ou para os EUA. A mesma auto-
da pelo Estado Novo em 1933. As popu- ra, que viveu em Angola (1911-1913) na
lações que habitaram esse império foram qualidade de esposa de um militar repu-
idealizadas a partir de uma perspetiva blicano, esboçou os caracteres femininos
racial, e por vezes racista, influente entre moralmente fortes e religiosos considera-
o final do séc. xix e o início do séc. xx. dos necessários para que os Portugueses
A legislação discriminava sobretudo os mantivessem relações sociais e sexuais es-
“indígenas”, que não eram considerados tritamente endogâmicas, tanto no Novo
cidadãos portugueses, tendo para tal um Mundo como nos territórios africanos
fundamento racial, discriminatório do (Ferreira, 2012, 104). Por seu turno,
ponto de vista social, o que influenciou as Ana de Castro Osório defendeu a endo-
relações entre os diferentes habitantes do gamia na obra Mundo Novo (1927), onde
Império Português. trata a “colónia” portuguesa Nova Espe-
Os discursos antimestiçagem fortalece- rança, que ficava em São Paulo (Brasil).
ram-se principalmente no contexto das Maria Archer (1899-1982), colaboradora
referidas colónias de assentamento, mas do periódico Cadernos Coloniais, aborda
ocorreram também em outros territórios. as relações raciais na sociedade colonial
Alguns governadores coloniais, como e sugere que as “raças”, assim como as
Norton de Matos ou Vicente Ferreira, classes, devem permanecer separadas e
ministro das Finanças (1912-1913 e 1921) diferenciadas. Gastão de Sousa Dias tam-
e das Colónias (1923), não eram favorá- bém destaca a falta de mulheres brancas
veis à mestiçagem, embora fossem a favor na história da Angola colonial, e sugere
da “elevação social de pretos e mulatos”, que só a sua presença poderia evitar a
salvaguardando que estes constituíssem miscigenação e elevar o nível de civiliza-
“grupos cuidadosamente separados” (Ri- ção daquela colónia; para o autor, o grau
podia servir de exemplo para o resto do 1945, e a aprovação da Carta das Nações
mundo. Além da democracia racial, o au- Unidas, fizeram cair sobre Portugal uma
tor destaca a predisposição dos Portugue- pressão internacional pelo facto de pos-
ses para o contacto fraterno com as popu- suir territórios coloniais. Foi necessário
lações tropicais, o que talvez fosse devido proceder a uma reformulação da atitude
ao seu passado étnico e cultural de povo portuguesa, pelo que se assistiu a uma
indefinido, entre a Europa e a África. transformação da imagem imperial, o
Historicamente, também existiram in- que também aconteceu com países
divíduos a defender uma política de ca- como a França, a Inglaterra e a Holan-
samento misto. Afonso de Albuquerque, da. Foi neste contexto que Sarmento Ro-
governador da Índia, encorajou os seus drigues foi nomeado para a pasta do Ul-
homens a casarem-se com mulheres de tramar (1950-1955) e procedeu à revisão
origem ariana convertidas ao cristianis- da legislação. A expressão “colonização”
mo, embora não quisesse que eles se ca- passou a ser gradualmente substituída
sassem com mulheres negras de Malabar. pela expressão “integração”. Apesar dis-
Albuquerque procurava “criar uma raça so, o censo de 1950 indica que há uma
cristã legítima, porém mista, através do percentagem mínima da população das
casamento com mulheres hindus selecio- colónias a apresentar o estatuto de “civi-
nadas” (Boxer, 1967, 98-99). A sua visão lizada” ou “assimilada”. Mas o novo con-
político-militar, posta em prática no início texto internacional exigia a validação do
do séc. xvi, foi considerada inspiradora projeto colonial português e a aposta na
e precursora das ideias que se quiseram legitimação da sua diferença, e, nesse
pôr em prática nos territórios coloniais no sentido, defende-se uma nação pluri-
séc. xx. Num documento publicado por continental constituída por Portugueses
ocasião da Primeira Exposição Colonial de todas as raças, com a qual todos se
Portuguesa, realizada no Porto em 1934, identifiquem. As ideias discriminatórias
é mencionado o plano de Albuquerque, do Ato Colonial começam a ser aban-
que procurava levar sangue novo para a donadas. O termo “indígena” começa a
população da Índia portuguesa (Goa, Da- ser substituído por termos mais neutros,
mão e Diu). Todavia, a política de Albu- embora se continuem a utilizar estereó-
querque não chegou a aplicar-se nos ter- tipos para o identificar. Os argumentos
ritórios africanos. Além dos preconceitos sobre a “vocação imperial” alteram-se.
associados às populações nativas de África, Ao contrário de outros países, Portugal
como a crença de que eram culturalmente ter-se-ia caracterizado por uma coloniza-
inferiores, registaram-se, como se assina- ção desinteressada, baseada na transmis-
lou, vários discursos antimestiçagem, que são dos ideais cristãos e na procura da in-
chegaram a declarar, em alguns momen- tegração das populações colonizadas na
tos, a mestiçagem como uma ameaça à in- civilização ocidental. No dia 26 de abril
tegridade da nação. de 1951, Mendes Correia, enquanto de-
Com o fim da Segunda Guerra Mun- putado à Assembleia Nacional, pronun-
dial (1945) os sistemas coloniais, de um cia-se contra o “estatuto de indígena”,
modo geral, entraram em processo de defendendo que todos os habitantes
decadência. Na Ásia e em África surgi- do Império Português – metrópole e
ram novos movimentos nacionalistas e colónias – deveriam ser considerados
os já existentes foram reforçados. A fun- cidadãos portugueses. Ainda nesse ano,
dação da ONU, no dia 24 de outubro de afirma que os exemplos de mescla racial
Os não lugares, por isso, podem indu- que interpreta o não lugar como concei-
zir um sentimento de dissociação, de fal- to de transição, ambíguo, todavia aberto a
ta de coordenadas, de não construção de nova reflexão e a novos desenvolvimentos,
espaços concretos e simbólicos na vida in- na senda de Buchanan, Peter Osborne e
dividual e na vida coletiva, como adverte Bruno Bosteels. Neste último, o autor in-
Ian Buchanan. Não é, todavia, uma men- clui os que designa como expansionistas,
sagem negativa a análise de Marc Augé, aqueles pensadores e estudiosos que não
já que retrata a supermodernidade como limitam o não lugar à esfera dos espaços
possibilidade de união de antigo e novo de trânsito (Merriman, Ayse Boren, Chia-
e de coexistência de indivíduos distintos, ra Libera, Tim Gregory).
mas similares: “L’espace du non-lieu ne No seguimento da teoria dos não luga-
crée ni identité singulière, ni relation, res, vários estudiosos propuseram novas
mais solitude et similitude. Le non-lieu perspetivas, como o espanhol Manuel
est le contraire de l’utopie: il existe et Castells, com o conceito de espaços de
n’abrite aucune société organique. Néan- fluxos, desenvolvido em La Era de la In-
moins, l’errance individuelle, dans la formación, e centrado no mundo da in-
réalité d’aujourd’hui comme dans le my- formação em rede, e a Italiana Daniela
the d’hier, reste porteuse d’attente sinon Marcheschi, que, em 2013, propôs o con-
d’espoir [O espaço do não lugar não cria ceito de interlugar no I Simpósio Interna-
identidade singular nem relação, mas cional Que Saber(es) para o Século XXI?
solidão e semelhança. O não lugar é o História, Cultura e Ciência na/da Madei-
contrário da utopia: existe e não alberga ra, realizado no Funchal, e sobre o qual
uma sociedade orgânica. No entanto, a escreveu em 2015. Partindo da ideia de
errância individual, na realidade de hoje Augé, de que existem diversos graus de
como no mito de ontem, continua a ser relação, a estudiosa dialoga com o concei-
portadora de espera, e mesmo de espe- to de não lugar, admitindo a possibilidade
rança]” (Id., Ibid., 130). O perigo está na de lugares de trânsito ou de tantos outros
indiferença que possa intrometer-se en- espaços/tempos nos quais se estabelecem
tre estes indivíduos, i.e., em que que a sua relações – não próximas, mas ainda assim
interação não crie lugares. relações – durante as quais o Homem
O conceito de não lugar desenvolvido nunca deixa de ver, perceber e refletir.
por Marc Augé não teve uma receção úni- Esta condição antropológica de ligação
ca e homogénea por parte dos estudiosos, com o mundo permite que pensemos,
sendo por alguns considerado contraditó- imaginemos e sintamos o lugar como
rio e ambíguo. Erdem Üngür sistematiza base essencial de qualquer ação ou movi-
e divide as interpretações e o uso do con- mento: “Luoghi ed interluoghi non sono
ceito em três grupos: o grupo que enten- dunque polarità. Ma piuttosto proiezioni
de Augé como existencialista, no sentido incessanti del nostro Io corporeo [Luga-
heideggeriano, e como um metafísico res e não lugares não são, portanto, pola-
sedentarista, a que pertencem Ian Bucha- ridades, mas antes projeções incessantes
nan, Judith Okely e Ilke Tekin; o que o vê do nosso Eu corpóreo]” (MARCHESCHI,
como pioneiro no campo da antropolo- 2015, 31) que habita a Terra, lhe dá senti-
gia, abrindo caminho a novas possibilida- do e dela recebe sentido.
des na era da sobremodermidade, como Considerando as diversas reflexões,
defendem Tim Creswell e Buchanan; e análises, reconstruções e propostas que
um grupo, mais alargado e heterogéneo, o conceito de Marc Augé produziu no