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E sta é uma obra singular, rara e inesperada no panorama editorial do nosso país e, inclusi-

vamente, a nível internacional. (...) O Dicionário dos Antis constitui-se como uma espécie
Direção de
José Eduardo
Direção de

José Eduardo Franco


de história da cultura portuguesa, olhada do ângulo dos dinamismos de oposição e de contra- Franco
dição, que permite compreender-nos a partir de uma perspetiva inabitual, abrindo caminhos

dicionário
de perceção da “diferença”, de uma forma inovadora, mais abrangente e mais complexa.
Duarte Azinheira, da Apresentação
dicionário
d0s
A originalidade do dicionário que o leitor tem entre mãos consiste em observar as práticas
sociais de hoje e as suas representações em comportamentos e argumentações muito
mais antigos. E porque não desde a aurora da humanidade? (...) Ao longo das suas muitas
d0s
páginas, este dicionário manifesta a extraordinária conexão de Portugal com a história do
mundo. (...) Não há dúvida, por outro lado, de que o Dicionário dos Antis vai suscitar um vasto
debate internacional. (...) Não estamos em altura de denunciar este ou aquele grupo, mas de
entrar no laboratório do pensamento dialético, que é uma maneira de estimular o espírito
Volume 2
crítico quando o falso, o virtual e o verdadeiro se misturam; que é pôr em causa os erros cons- dicionário: AL – AX
pirativos e as certezas abusivas deste mundo dividido entre manipulação e informação que se El u c i d á r i o
tornou o nosso.
Fabrice d’Almeida, do Prefácio
A c u ltu ra portu gu esa em neg ati vo
Coordenação de
Volume 2
A
Adelino Cardoso
2.ª
presentamos ao leitor uma obra inesperada, sem dúvida inusitada, mas que não deixa,
Aida Sampaio Lemos
por isso, de ser fascinante. Propomos um olhar diferente, um olhar sobre o avesso da
o
Ediçã
António Castro Henriques
cultura portuguesa, em articulação com os dinamismos construtivos e disruptivos das suas
Carlos Fiolhais
congéneres internacionais. (...) Este dicionário, em contrapartida, propõe uma visão simétri- Helena Mateus Jerónimo
ca: uma viagem pelas correntes, as etnias, as religiões as instituições, as figuras, mas a partir João Relvão Caetano
do olhar do adversário, de quem discordou, de quem atacou, de quem pensou o contrário. Joaquim Pintassilgo
(...) É como se entrássemos numa casa, a casa da cultura portuguesa, e deparássemos com José Carlos Lopes de Miranda
um cenário inquietante, com os móveis de pernas para o ar, os armários virados do avesso, Luís Machado de Abreu
Luiz Eduardo Oliveira
as partes menos arrumadas e sujas à vista de todos; ou como se acordássemos de manhã e
Manuel Curado
víssemos no espelho as imagens que têm de nós os que menos nos querem e apreciam; ou
Manuel Silvério Marques Coordenação de
ainda, como se recebêssemos a nossa biografia negativa, uma narrativa produzida por aqueles Micaela Ramon
que nos detestam. Parece uma obra estranha. É verdade. Todavia, o negativo também faz Pedro Barbas Homem Adelino Cardoso z Aida Sampaio Lemos
história, também faz cultura, e não podemos desconhecê-lo nem desconsiderá-lo, pois ele é Ricardo Ventura António Castro Henriques z Carlos Fiolhais
Helena Mateus Jerónimo z João Relvão Caetano
um elemento constitutivo do processo de construção da nossa identidade, quando não parte
Joaquim Pintassilgo z José Carlos Lopes de Miranda
integrante da mesma.
Luís Machado de Abreu z Luiz Eduardo Oliveira
Da Introdução Manuel Curado z Manuel Silvério Marques z Micaela Ramon
Pedro Barbas Homem z Ricardo Ventura
dicionário
dos

antis

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Direção de

José Eduardo Franco

dicionário
dos

antis
A Cultura Portuguesa em Negativo

Volume 2
dicionário: Al –Ax
Elucidário

2.ª edição

Coordenação de

Adelino Cardoso z Aida Sampaio Lemos


António Castro Henriques z Carlos Fiolhais
Helena Mateus Jerónimo z João Relvão Caetano
Joaquim Pintassilgo z José Carlos Lopes de Miranda
Luís Machado de Abreu z Luiz Eduardo Oliveira
Manuel Curado z Manuel Silvério Marques z Micaela Ramon
Pedro Barbas Homem z Ricardo Ventura

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Imprensa Nacional
é a marca editorial da
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A.
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© Instituto Europeu de Ciências da Cultura P. Manuel Antunes (IECCPMA)


e Imprensa Nacional-Casa da Moeda

Título
Dicionário dos Antis: A Cultura Portuguesa em Negativo – Volume 2
Direção
José Eduardo Franco
Coordenação
Adelino Cardoso, Aida Sampaio Lemos,
António Castro Henriques, Carlos Fiolhais,
Helena Mateus Jerónimo, João Relvão Caetano,
Joaquim Pintassilgo, José Carlos Lopes de Miranda,
Luís Machado de Abreu, Luiz Eduardo Oliveira,
Manuel Curado, Manuel Silvério Marques, Micaela Ramon,
Pedro Barbas Homem, Ricardo Ventura
Design, Capa e Paginação
António Rochinha Diogo | ARD-Cor
Edição e Revisão
Maria José Figueiredo (coord.),
Álvaro Almeida, Milene Alves, Vanda Figueiredo
Impressão e Acabamentos
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2.ª edição
Abril de 2019
isbn
978-972-27-2716-7
Depósito Legal
443944-18
Edição
1020391

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 v

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AL – AX

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Antilatinismo De qualquer modo, entre os sécs. x e


xiii, alguns vernáculos começaram a su-
plantar o latim e a adquirir influência
na linguagem escrita. Em determinados
países, como Portugal, tal transição acon-
teceu por imposição da lei (em 1279,
D.  Dinis estabeleceu definitivamente o

O termo “latinismo” refere-se a uma


forma de expressão fundamentada
na antiga língua latina, que foi utiliza-
português como a língua oficial do seu
reino – seguindo o exemplo de seu avô,
D. Afonso X de Leão e Castela, que ti-
da como o idioma de comunicação in- nha instituído o vernáculo castelhano
ternacional e como a base do ensino na como a linguagem oficial dos seus do-
Europa até cerca do séc. xviii, período mínios  –,  embora já na chancelaria de
em que começou a ser definitivamente D. Afonso  III, a partir de 1255, se tives-
superada pelos vernáculos. De facto, o se começado a usar a língua portuguesa
latim representa mais de 2000 anos de em conjunto com o latim nos diplomas
cultura. Desde o tempo dos Romanos, oficiais); em outras regiões, como nas da
esta língua assumiu uma considerável Itália, os vernáculos encontraram uma
importância nos desenvolvimentos da posição de relevo através de vários poe-
religião, da filosofia, da arte, da ciência, tas e escritores proeminentes (tais como
etc. Ao longo da maior parte da história Giacomo da Lentini e Dante Alighieri)
europeia, uma educação clássica foi con- que os utilizaram por sua própria inicia-
siderada crucial para a formação de uma tiva. Além do mais, na ciência, durante a
elite cultural. Idade Média e até ao início do Renasci-
A partir do séc. v, durante o fenóme- mento, o latim ainda não era o meio de
no da fragmentação do Império Romano expressão dominante; na verdade, estava
e a quebra das suas anteriores redes de subordinado às línguas grega e árabe.
comunicação, o latim vulgar começou a No Renascimento, o latim persistiu
evoluir de forma independente em cada na diplomacia internacional e na gover-
espaço da Europa, divergindo e origi- nação, de que são exemplo os domínios
nando, com o passar do tempo, várias poliglotas da antiga República das Duas
expressões linguísticas distintas. Por con- Nações e dos da casa de Habsburgo. Por
seguinte, durante a Idade Média, o latim outro lado, embora em tal época se tenha
propriamente dito deixou de ser apren- destacado a recuperação e a revaloriza-
dido como uma língua viva e nativa. No ção da cultura da Antiguidade clássica e a
entanto, inúmeros indivíduos das elites influência desta na nova literatura emer-
aristocráticas e aqueles que ingressavam gente, existia já alguma resistência, da
numa carreira relacionada com a Igreja parte de determinados homens doutos,
estudavam, de forma escrita e oral, o idio- à utilização do idioma latino na escrita e
ma latino, que continuou a ser frequen- à ação exercida por aquele no desenvol-
temente utilizado na documentação da vimento das respetivas línguas nacionais.
época. A influência e o poder da institui- A título de exemplo, releva-se a oposição
ção da Igreja durante tais tempos foram de John Cheke, estadista e tutor do Rei
fatores consideráveis na persistência da Eduardo VI da Inglaterra, que, embora
língua latina como uma forma de comu- tenha sido um erudito fluente nas línguas
nicação privilegiada. clássicas, defendia o uso do inglês sem o

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John Cheke (1514-1557). Charles Perrault (1628-1703).

recurso a palavras de origem latina ou dos em francês (tal aconteceu principal-


grega e estimulava a tradução generaliza- mente entre 1530 e 1597; porém, desde
da dos textos antigos. este último ano até cerca de 1685, o latim
Neste período, o latim também se tor- seria também a linguagem mais utilizada
nou o mais importante meio de trans- na comunicação de tais trabalhos).
missão dos conhecimentos científicos, Além disso, perto do final do séc. xvii,
unindo estudiosos de várias nacionalida- surgiu naquela nação a famosa querelle
des; no entanto, inúmeros países da Eu- des anciens et des modernes, um debate da
ropa ocidental começaram cada vez mais Academia Francesa que agitou o mundo
a utilizar os seus idiomas vernáculos nos académico e artístico. Esta contenda co-
assuntos oficiais. Em França, uma das locou em confronto duas posições: uma
nações que mais culturalmente influen- defendia a autoridade e o valor dos escri-
ciou o continente europeu, o decreto de tos antigos, e a outra, as inovações e os
Villers-Cotterêts, em 1539, impôs o em- desenvolvimentos na literatura moderna
prego do francês nos atos administrativos da época. A obra Parallèle des Anciens et
e judiciais. Também neste país e nesta des Modernes en Ce Qui Concerne les Arts et
época, começaram-se a difundir, em con- les Sciences, de 1693, composta por Char-
siderável quantidade, os primeiros léxicos les Perrault, escritor, advogado e supe-
latim-francês e as primeiras traduções em rintendente do Rei Luís XIV de França,
vernáculo das grandes obras antigas. Nas representou a mais importante oposição
universidades da França continuou-se a formal às antigas perspetivas.
ensinar exclusivamente em latim, mas, Iniciava-se, então, o desenvolvimento
em escolas de província, destacava-se o de um novo rumo cultural: no séc. xviii,
fenómeno de os estudos médicos, que co- o fenómeno do iluminismo despontou, a
meçavam a desenvolver-se, serem realiza- França destacou-se como o centro deste

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movimento, e o idioma francês acabou à formação de crianças pobres, também


por adquirir uma considerável influên- tinha iniciado, em França, a criação de
cia na Europa. Os intelectuais europeus programas e de escolas de ensino sem o
começaram a exercitar consistentemente idioma latino. Tal movimento encontrou
a língua francesa, assim como a fazer e a um pleno desenvolvimento sob a Revo-
ler, de outras línguas, traduções de textos lução Francesa. Então, nas grandes e nas
em francês (ou, na sua falta, traduções do pequenas escolas, o ensino começou a ser
francês para o latim). transmitido principalmente em francês e
O Tratado de Rastatt, um acordo de para um maior número de estudantes,
paz, realizado a 7 de março 1714, entre tendo sido progressivamente diminuído
a França e a Áustria, representou o mo- o número de anos e de horas dedicado
mento inicial da consagração da língua ao latim (embora Napoleão Bonaparte,
francesa como o principal meio de comu- pelo decreto de 1802, tivesse determina-
nicação na diplomacia internacional. Em do a utilização dos exames das disciplinas
1763, o Tratado de Hubertusburg, que de Latim e de Matemática como os meios
marcou o fim da Guerra dos Sete Anos, para selecionar a elite escolar).
evidenciou definitivamente a priorida- Vários fatores, na verdade, contribuíram
de do uso do francês sobre o do latim. para rebaixar o lugar atribuído à língua la-
O francês começou a ser utilizado, inclu- tina, principalmente a partir do séc. xviii.
sive, entre os principados alemães do Sa- Na esfera política, refira-se o progressivo
cro Império Romano-Germânico. declínio do poder da Igreja, por um lado, e
Ademais, no início do séc. xviii, Jean­ o aumento da influência da França (sobre-
‑Baptiste de La Salle, sacerdote e educa- tudo, durante o crescimento do Império
dor inovador que consagrou a sua vida Napoleónico), por outro, juntamente com

O Juramento do Jogo da Pela, de Jacques-Louis David (1748-1825).

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minente). Também deve ser considerada a


evolução dos planos das educações nacio-
nais que, menos influenciados pela Igreja
e pela religião, começaram cada vez mais a
formar novos métodos de ensino com base
nos vernáculos, tentando responder ao
crescimento dos novos saberes e aos desa-
fios das sociedades comerciais e industriais
emergentes. Adicionem-se igualmente as
perspetivas do espírito racional e iluminis-
ta, que expressaram a crença na superio-
ridade dos tempos modernos em relação
ao passado, e, finalmente, os desenvolvi-
mentos da imprensa, que não só propor-
cionaram, desde o séc. xvi, as condições
para o florescimento de diversas línguas
na escrita, mas também originaram, sem
o recurso aos escribas especializados da
Galileu Galilei (1564-1642). Igreja, uma proliferação de publicações
destinada a um conjunto de leitores que
poderia dispor de pouca ou de nenhuma
a elevação do idioma francês, como referi- formação clássica.
do. Também se reconhecia que era difícil Em todo o caso, apesar do enfraqueci-
adaptar a língua latina às mudanças e às mento do seu papel, o latim continuou
características dos novos conhecimentos a manter uma considerável importân-
que se desenvolviam (as dificuldades eram cia para a formação de letrados até ao
consideráveis, e.g., em disciplinas como a séc.  xx, época em que os programas de
Física e a Química). Além disso, começou ensino instituídos lhe assestaram os maio-
a ser progressivamente mais fácil aos estu- res golpes (tal ocorreu, e.g., na Dinamar-
diosos a aquisição de apoios e de clientes ca, no princípio desse século, em Itália,
próximos de si próprios mediante a com- na déc. de 1920, com a reforma Gentile,
posição de trabalhos na sua língua nativa: em Inglaterra, nos anos 50, e na França,
esta foi uma das motivações de cientistas nos finais de 1960).
como Galileu Galilei, quando começou a Neste período, os defensores do la-
utilizar o idioma italiano em detrimento tim insistiram em vários argumentos a
do latim, e de Isaac Newton, quando es- favor do ensino e do uso de tal língua,
creveu a sua obra Opticks em 1704. Neste tentando renovar a sua antiga importân-
século, o desenvolvimento do mundo cien- cia. Defenderam que a aprendizagem
tífico teve, de facto, um papel na diminui- do latim poderia, e.g., facilitar a apren-
ção do uso do latim; o reinado deste como dizagem das línguas vivas, desenvolver a
a língua universal da comunicação cien- clareza e a precisão na expressão escrita,
tífica na Europa não foi muito longo (na favorecer o desenvolvimento do pensa-
verdade, o triunvirato das línguas france- mento lógico, e criar as condições para
sa, inglesa e alemã acabaria por se impor o aluno compreender os fundamentos
em tais meios até cerca do séc. xx, período e o património cultural da civilização
que elevaria o inglês a uma posição proe- ocidental.

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Em Portugal, como acima menciona-


do, D. Dinis instituiu o português como
a língua oficial no seu tempo (além de
ter estimulado a tradução de várias obras
para português e contribuído para a poe-
sia trovadoresca portuguesa), determi-
nando definitivamente a sua utilização
nos documentos oficiais.
O latim, no entanto, continuou a ser a
base do ensino no país. A educação en-
contrava-se, na sua maior parte, influen-
ciada pela Igreja, tendo estado, desde
o séc. xvi, principalmente nas mãos da
Companhia de Jesus até à reforma pom-
balina do séc. xviii. Nesta centúria, o Es-
tado tomou o comando dos programas
de ensino nacionais. Através do alvará
régio de 28 de junho de 1759, o marquês
Rei D. Dinis (1261-1325). de Pombal, ao mesmo tempo que expul-
sou os Jesuítas de Portugal e suprimiu os
colégios jesuíticos, estabeleceu métodos
de ensino que serviam, sobretudo, os in-
Os seus opositores, por seu lado, além teresses seculares, económicos e políticos
de considerarem exageradas as afirmações da nação. Esta reforma simplificou os mé-
apresentadas em cima, referem como con- todos de aprendizagem da língua latina,
tra-argumentos: a pouca utilização real e abreviando o seu tempo de instrução,
concreta do latim nos meios científicos atendeu ao objetivo de criar nos educan-
modernos; o excessivo número de anos dos as competências para determinados
necessário para a aquisição de um grau estudos, mais amplos e adequados aos
razoável de fluência; as dificuldades na desenvolvimentos sociais, científicos e
aprendizagem da gramática latina e em culturais europeus, e também enfatizou a
encontrar termos latinos para expressar importância da língua, da gramática e da
inúmeras realidades atuais; o próprio mé- ortografia portuguesas, aspetos que deve-
todo de ensino do latim, que, influencia- riam, então, ser aprendidos diretamente
do excessivamente pela filologia, reduz e não por intermédio do latim, através do
tal língua a meros exercícios gramaticais qual as matérias, em geral, eram anterior-
e dificulta o desenvolvimento da interio- mente estudadas.
rização das estruturas linguísticas; o facto Luís António Verney, um dos maiores
de a formação clássica se encontrar afas- representantes do Iluminismo no país e o
tada dos assuntos dominantes na Moder- autor da famosa obra intitulada Verdadeiro
nidade e de apenas servir os objetivos de Método de Estudar, também criticou forte-
estudiosos com uma especialização espe- mente o modo anterior de educar, inclu-
cífica; e a existência atual de um grande sive o método de ensinar latim de Manuel
número de traduções das antigas obras Álvares, autor do séc. xvi que escreveu
romanas, que podem ser apreciadas sem uma gramática latina que adquiriu uma
o conhecimento do idioma latino. considerável reputação internacional.

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1132 Antilatinismo

Tal gramática encontrava-se totalmente cular: uma, em 1918 (dec. n.º 4799, de se-
escrita na língua latina com o fim de os tembro), no Governo de Sidónio Pais, por
seus leitores aprenderem o latim por si influência do secretário de Estado da Ins-
mesmo, contendo por isso um excesso de trução Pública, José Alfredo de Magalhães;
regras, que dificultava a aprendizagem e outra, em 1926 (dec. n.º 12425, Diário do
a tornava morosa. Verney, por seu lado, Governo de 2 de outubro), já no período da
propôs o uso de um método de latim chamada ditadura militar, pelo ministro
mais prático e baseado em manuais com- da Instrução Pública, Artur Ricardo Jorge;
postos com a língua portuguesa. Além do e outra, em 1927 (dec. n.º 13056, de 20 ja-
mais, este escritor, apesar de reconhecer neiro; Diário do Governo de 22 de janeiro),
a importância do latim para a educação e pelo mesmo ministro.
para a formação dos jovens, afirmou que Nos princípios de maio de 1926, numa
o idioma latino não era crucial para o de- conferência feita em Lisboa, no salão da
senvolvimento completo de um homem União Intelectual Portuguesa, intitulada
douto, tendo comentado também, como “O clássico na educação e o problema
pensamento geral relativamente ao ensi- do latim”, António Sérgio, educador e
no, que “é loucura ensinar em latim uma político português, também atacou for-
coisa que, pela maior parte, se há de exe- temente o papel do latim no ensino se-
cutar em vulgar” (VERNEY, 1746, I, 155), cundário: “É ilusório esse latim; e, além
i.e., por meio da linguagem vernácula. disso, é maçador; ora, o tédio intoxica o
Embora a reforma pombalina tenha cérebro; o tédio, que dais à criança como
instituído várias mudanças nos métodos e coisa inócua, deprime, ensandece, mata.
nos planos de ensino, tendo valorizado o Uma vez, diante de Heine, falava-se com
português e diminuído o papel do latim, espanto da antiga Atenas, da superiorida-
não se revelou como uma reestruturação de mental dos velhos gregos sobre todas
verdadeiramente antilatinista. Também as nações do nosso tempo. ‘Isso’ – opi-
em Portugal, a língua latina continuou a nou o poeta  –  ‘não é inato no homem
fazer parte de uma formação elevada até moderno; vem da educação que se dá aos
ao séc. xx, época em que as suas funções jovens; vem de que os gregos foram o úni-
na instrução nacional sofreram, de facto, co povo... que não foi obrigado a estudar
os maiores ataques. latim...’” (SÉRGIO, 1971, 119).
Em 1905, ainda na vigência da monar- Em 1930, Gustavo Cordeiro Ramos,
quia, durante o Governo de José Luciano como ministro da Instrução Pública, por
de Castro, aconteceu uma reforma do meio da sua reforma do ensino liceal
ensino secundário (por decreto de 29 de (dec. n.º 18779, de 16 de agosto), au-
agosto, assinado pelo ministro e secre- mentou consideravelmente o número de
tário de Estado dos Negócios do Reino, horas escolares da cadeira de Latim no
Eduardo José Coelho) que transformou a curso geral das escolas secundárias, ten-
disciplina de Latim, anteriormente ainda tando restabelecer o equilíbrio entre o
uma das bases na educação, numa aula ensino das ciências e o das humanidades.
de três horas semanais para o 4.º e o 5.º Porém, em 1936, pelo dec.-lei n.º 27084,
anos do curso geral, e noutra de cinco de 14 outubro, o ministro António Faria
horas semanais para o 6.º e o 7.º anos dos Carneiro Pacheco (que, no mesmo ano,
cursos complementares de Letras. modificou a designação do Ministério
Posteriormente, ocorreram pequenas da Instrução Pública para Ministério da
mudanças sem qualquer relevância parti- Educação Nacional), contradizendo as

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Antilatinismo 1133

mudanças anteriores, diminuiu as horas Todavia, nas décadas seguintes, a dege-


letivas atribuídas à língua latina e incor- nerescência em relação ao papel do idio-
porou o ensino daquela na disciplina de ma latino no ensino continuaria. Em 1996,
Português. cerca de 13.000 alunos realizaram o exame
Em 1947, Fernando Andrade Pires de de Latim; em 2014 (sendo a disciplina op-
Lima acabou definitivamente com a pos- cional de Latim oferecida apenas aos alu-
sibilidade de todos os alunos aprenderem nos dos cursos da área de Humanidades, a
latim, permanecendo a oferta do ensino partir do 10.º ano de escolaridade), somen-
daquele somente nos cursos complemen- te 114 se apresentaram àquela prova.
tares de Letras (com a exceção do de Ciên- Em 2010, a UNESCO recomendava aos
cias Geográficas) e nos de Direito, com países com línguas de origem latina um
cinco horas semanais nos 6.º e 7.º anos. maior desenvolvimento relativamente ao
Em 1972, o ministro da Educação Na- ensino do latim nas escolas; no entanto, em
cional do Governo de Marcelo Caetano, Portugal, no princípio do séc. xxi, os pro-
José Veiga Simão, reformulou novamen- gressos são ténues, vislumbrando-se como
te, por simples despacho, a estrutura dos longínqua a possibilidade de o latim se
cursos complementares dos liceus, tendo aproximar da sua importância de outrora.
reduzido o Latim à situação de cadeira
opcional em quase todos os cursos de
Letras (a língua latina manteve-se como
obrigatória apenas para o curso de Filo-
logia Clássica).
Na sequência desta última legislação,
Francisco de Sá Carneiro, na secção “Vis-
to” do jornal Expresso de 31 de março de
1973, publicou um texto intitulado “Pro- Bibliog.: CARNEIRO, Francisco de Sá, “Pro-
gredir em latim”, retomando os argu- gredir em latim”, in CARNEIRO, Francisco
mentos contra o ensino do idioma latino. de Sá, Textos, vol. ii, Lisboa, Alêtheia, 2010,
A partir de 1974, atingiu-se, em várias pp. 45-48; CARNEIRO, Manuel Cerejeira,
universidades, a situação de se conferir o “Como renovar o ensino do Latim. Algumas
sugestões”, in As Línguas Clássicas: Investigação e
grau de licenciatura em Estudos Portu-
Ensino – Actas, Coimbra, Instituto de Estudos
gueses sem a exigência da disciplina de
Clássicos, 1993, pp. 157-165; COUTURAT,
Latim nos respetivos currículos, originan- L., e LEAU, L., Histoire de la Langue Universelle,
do uma considerável diminuição da sua Paris, Hachette, 1903; Estatutos da Universidade
frequência no ensino secundário. de Coimbra (1772), Coimbra, Universidade de
Esta situação foi considerada imprópria Coimbra, 1972; GORDIN, Michael, Scientific
pelas Faculdades de Letras das Universi- Babel, Chicago, University of Chicago Press,
dades de Coimbra e de Lisboa, que tenta- 2015; LENNIE, Claude, e CELLARD, Jacques,
“A querela do latim”, Clássica, vol. vi, 1980,
ram retomar o requisito de, pelo menos,
pp. 47­‑50; NASCIMENTO, Aires, “As línguas
uma cadeira anual de Latim nos currícu- clássicas para uma formação cultural de
los de licenciatura de todas as variantes re- hoje”, Clássica, vol. xviii, 1992, pp. 9-24; SÉR-
lacionadas com os estudos portugueses, e GIO, António, Ensaios, vol. ii, Lisboa, Sá da
também a frequência de dois anos de lín- Costa, 1971; VERNEY, Luís António, Verdadei­
gua latina nos liceus para a obtenção do ro Método de Estudar, 2 t., Valensa, Oficina de
acesso a todos os cursos de Letras (com a António Balle, 1746.
exceção do de Ciências Geográficas). Mário Lopes da Silva

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1134 Antilegitimismo

Antilegitimismo mento político-filosófico que rejeitou as


suas posições fundamentais e que se de-
signou por antilegitimista. Procuraremos
ainda contextualizar a situação portugue-
sa relativamente ao pensamento político
europeu e reconduzir as ideias em con-
fronto às teorias então desenvolvidas.

E ntende-se por antilegitimismo a opo-


sição aos movimentos políticos histó-
ricos concretos que mereceram a designa-
O termo “legitimismo” designa uma
reação à progressiva afirmação de ideias
políticas que punham em causa a legiti-
ção de legitimistas, bem como a rejeição midade do poder real tal como este era
dos postulados teóricos sobre a origem e concebido até aí. Referimo-nos aos ideais
os fundamentos do poder político asso- liberais defensores de uma monarquia
ciados a movimentos desta natureza. constitucional, na qual o poder do rei
Em sentido literal, todo o pensamento passaria a estar institucionalmente limi-
político que se pronuncia sobre o pro- tado por uma constituição escrita, além
blema essencial de saber o que torna e de submetido a leis das quais não seria já
conserva legítimo um poder instituído o principal autor, pertencendo o poder
poderia dizer-se legitimista, na medida legislativo à assembleia, representativa
em que postula uma fonte de legitimi- da nação. Ao monarca estaria reservada a
dade do poder. Historicamente, porém, chefia do poder executivo, no quadro de
o termo “legitimismo” fixou-se como de- uma separação de poderes descentraliza-
signação: a)  da movimentação política a dora. Tais ideias, a cuja formulação e di-
favor de um determinado candidato ao fusão estão associados exemplarmente os
trono, considerado legítimo face a ou- nomes de Locke, Voltaire, Montesquieu e
tro, de acordo com os princípios de uma Rousseau, começaram por se desenvolver
monarquia hereditária, numa situação de a partir da verificação do despotismo para
conflito ou crise dinástica; b) da doutrina o qual o absolutismo monárquico pro-
sobre os fundamentos do poder legítimo gressivamente resvalava em muitos países
que subjaz a um regime monárquico tra- europeus desde os alvores do séc.  xvi,
dicional. Atendendo ao primeiro signifi- suportado pela doutrina do direito divi-
cado, temos como principal objeto desta no dos reis. Segundo esta doutrina, que
entrada a oposição ao movimento legiti- tinha por objeto precisamente a origem
mista que se formou em Portugal a favor da legitimidade do poder real, este deri-
da ocupação do trono por D. Miguel, fi- vava diretamente de Deus (a sua natureza
lho segundo de D. João VI, depois de o ir- era a mesma da do poder eclesiástico), de
mão mais velho (e em princípio sucessor onde se seguia que, sem prejuízo da res-
legítimo) ter declarado a independência ponsabilidade do rei, decorrente da sua
do Brasil, proclamando-se Imperador sujeição à lei natural e à lei divina, não
do novo Estado, e perdendo assim, de era admissível qualquer controlo da sua
acordo com os seus adversários legitimis- ação e do seu governo, fosse ele jurídico
tas – ou miguelistas –, o direito ao trono ou político, por uma instância humana.
de Portugal. Tendo em conta a doutrina No plano das ideias, é em relação a esta
política abrangente defendida pelos le- teoria que se pode falar de antilegiti-
gitimistas portugueses, procuraremos, mismo, na medida em que a rejeição da
concomitantemente, dar conta do pensa- justificação tradicional da legitimidade

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Antilegitimismo 1135

do poder do rei, acompanhada da críti- mente, neste seu alvor, o pensamento


ca da degeneração da monarquia em ti- político liberal não coincidiu totalmente
rania, é um elemento típico das doutri- com o mais tardio republicanismo, visto
nas políticas modernas. Embora não do que não recusou legitimidade ao poder
mesmo modo em todos os autores, este do rei. Porém, há que reconhecer que
antilegitimismo foi acompanhado de procedeu a uma reconfiguração e redu-
um anticlericalismo, do qual o exemplo ção substancial dos poderes do soberano,
mais expressivo e radical foi Voltaire. Este como marca típica do liberalismo euro-
autor afirmou-se contra a pretensão das peu continental, e, nesse sentido, cons-
religiões, em particular do catolicismo, tituiu uma aproximação ao pensamento
a uma representação formal e institu- republicano.
cional, admitindo apenas uma religião Impõe-se perguntar como justificou o
natural. O elo de ligação entre estes dois liberalismo antilegitimista a legitimidade
elementos negativos estava na rejeição do monarca como instância de represen-
da influência política e social do clero, tação não eletiva. Qual era a legitimidade
vista como uma forma de contaminação do poder do rei na monarquia constitu-
da natureza autónoma do poder civil. No cional que o liberalismo estabeleceu e
entanto, o anticlericalismo associado às aprofundou ao longo dos tempos? A co­
doutrinas políticas liberais antilegitimis- existência da legitimidade hereditária
tas só se entende cabalmente se tivermos do rei com a legitimidade da soberania
em conta a colisão entre os fundamentos popular foi explicada com fundamento
racionalistas destas últimas – a sua implí- na relevância da dimensão simbólica da
cita afirmação da autonomia completa de figura do monarca para a consciência
uma moral racional e universal em rela- da identidade histórica coletiva e para a
ção à religião cristã – e os ensinamentos unidade da nação, embora fosse eviden-
da Igreja Católica. te a dificuldade de conjugação entre o
O pensamento liberal antilegitimis- liberalismo político, por referência à ra-
ta está vinculado ao racionalismo, que dicalidade dos seus fundamentos, e um
prescreve que o poder político legítimo princípio hereditário de legitimidade,
obedece somente à razão natural, sendo não sendo outra, no plano de fundamen-
pois uma decorrência dos seus ditames. tação, a genealogia do republicanismo.
É no contrato social, definido por Rous- É importante sublinhar que, embora
seau como uma autolimitação voluntária se tenham manifestado particular e mais
das liberdades por parte dos indivíduos imediatamente antagonistas da doutrina
com vista a tornar possível a felicidade do direito divino dos reis, as doutrinas
de todos, que reside a origem legítima liberais não se opuseram apenas a esta
(racional) do poder. Nesta teoria de jus- justificação da legitimidade do poder
tificação do poder de feição racionalista real. De facto, o discurso filosófico-po-
reconhecemos o primado e a soberania lítico que assumiu em Portugal a de-
do indivíduo, e o voluntarismo que lhe signação “legitimista”, sendo também,
está inerente, pois, em última análise, a como começámos por dizer, uma reação
fonte de legitimidade do poder e das leis às conceções modernas do poder, coin-
é a vontade do indivíduo racionalmente cidiu amplamente com o ideal expres-
orientada, expressa na vontade geral rous­ samente antidespótico da monarquia
seauniana (que não se confunde com uma tradicional, cujas regras impediam o rei
vontade comum partilhada). Consabida- de governar tiranicamente, movido pelo

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1136 Antilegitimismo

seu capricho ou interesse, em detrimen- em Deus o seu fundamento último. Se-


to do bem comum. Ainda segundo a gundo esta teoria, o poder político é
perspetiva legitimista, essas regras con- humano no modo de existência, mas de
duziriam à participação dos súbditos no concessão divina na essência. Os limites
governo do reino. O reconhecimento da do poder assim concebido e as condi-
autoridade do rei por parte do povo era ções da sua legitimidade derivam da sua
também, de acordo com esta perspetiva, origem e finalidade: o poder exercido
uma condição da sua própria legitimida- despoticamente perde legitimidade por-
de, pelo que o monarca estaria obrigado que se desliga da sua fonte, que exige
a auscultar as necessidades e o sentir dos um exercício de acordo com a verdade e
súbditos por meio de representantes e a o bem que essa mesma fonte é. Desliga-
respeitar as leis do reino que assegura- do da finalidade do bem comum, para a
vam os seus direitos. Ainda segundo esta qual foi estabelecido, o poder despótico
perspetiva, no caso de se tornar um tira- perde, pois, legitimidade, não podendo
no, o rei perdia legitimidade e poderia ser visto como um verdadeiro poder.
ser licitamente deposto, se necessário A  monarquia é apresentada como o re-
por meio de violência, sendo esta uma gime ideal, no quadro desta cosmovisão
diferença prática fundamental entre as integrada, porque se a natureza (que de-
perspetivas legitimistas tradicionais e as riva de Deus) encontra a perfeição num
perspetivas de carácter absolutista sus- princípio de unidade, também na arte
tentadas no direito divino dos reis. (no que é realização política humana)
Àquelas teorias subjaz uma conceção o domínio de um princípio de unidade
política escolástica, que colhe o essen- sobre a multiplicidade de vontades será
cial dos ensinamentos de S. Tomás de a via da perfeição.
Aquino em matéria de origem e orga- É verdade, porém, que nem todos os
nização do poder político. Ora, para aspetos deste legitimismo antidespóti-
S.  Tomás, cujo pensamento sustenta co português refletiram o equilíbrio e
uma (certa) autonomia da natureza em realismo desta fundamentação tomista.
relação ao fim sobrenatural do Homem, De facto, enquanto para S. Tomás, de
e das verdades acessíveis à razão em rela- acordo com o exposto, uma monarquia
ção às verdades da fé, a esfera do poder poderia ser eletiva, essa hipótese dificil-
temporal é uma esfera diferenciada da mente seria conciliável com a importân-
esfera do poder espiritual. Consequen- cia dada pelos legitimistas portugueses
temente, os reis não são representantes de Oitocentos e do princípio de Nove-
de Deus, e a origem imediata do poder centos à hereditariedade do poder real.
político está no povo, seu destinatário, Do mesmo modo, alguns discursos legi-
por quem deve ser instituído. Para S. To- timistas, como o de José Pestana da Sil-
más, o soberano deve ser escolhido pelos va em Doutrina Legitimista da Restauração
súbditos. O reconhecimento desta dife- Política Cristã de Portugal (1915), mesmo
renciação não implica nenhum parale- sem invocarem a doutrina do direito
lismo, ou qualquer cisão, no exercício divino dos reis, pareceram afastar-se do
do poder, pois não se perde de vista que postulado da autonomia do poder tem-
é o próprio Deus, o autor da natureza, poral, defendendo antes uma visão que,
o único que detém a autoridade em si a partir da afirmação da realeza de Cristo
mesmo, pelo que o poder político está e da visão deste como o único detentor
submetido às leis natural e divina, e tem do poder legítimo, concebia o monarca

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Antilegitimismo 1137

como um seu vigário na esfera temporal ao poder legislativo do Parlamento. Não


e lhe atribuía expressamente a missão da se questionava porém a preponderância
propagação da fé e do estabelecimento do poder legislativo da câmara represen-
do reino. Justifica-se, no entanto, man- tativa, nem a submissão do rei às leis do
ter que foram estes os alicerces funda- reino. Esse era um dado adquirido no
mentais do discurso legitimista que, no movimento legitimista. De resto, insistia­
séc. xix, se digladiou em Portugal com ‑se na obrigatoriedade da convocação
as doutrinas modernas da justificação do das Cortes representativas para a apro-
poder aceites pelos liberais. Foram suas vação da legislação e para o estabeleci-
linhas orientadoras: a oposição aos pos- mento da direção política do reino em
tulados voluntaristas que, reconduzindo assuntos politicamente relevantes. Esta
a legitimidade do poder e das leis uni- obrigatoriedade remete, por sua vez,
camente à decisão da maioria popular, para um aspeto fundamental da doutri-
os tornavam alheios ao seu fundamento na legitimista, que é o valor da história e
último transcendente, fundando a razão da tradição, e dos usos ancestrais do povo
em si própria, muito para além da ne- português, como fonte de legitimidade
cessária afirmação da sua autonomia; e a das instituições políticas, assumindo-se
defesa de uma forma humana de gover- como verdadeira constituição não escri-
no constituída por imitação da nature- ta. Tomou, assim, grande relevância no
za, i.e., do poder em si mesmo (o poder discurso miguelista a referência às Cor-
divino). tes de Lamego, nas quais teria sido esco-
lhido e aclamado Rei, pelos representan-
tes do povo, D. Afonso Henriques, e nas
O antilegitimismo em Portugal: quais teriam sido elaboradas em conse-
o antimiguelismo lho as leis fundamentais da monarquia.
No contexto das lutas liberais em Por- Segundo os miguelistas, a intervenção
tugal, o termo “legitimismo” cruza dois do povo governado teria sido essencial
significados: a defesa de um candidato na instituição e consolidação da mo-
particular ao trono (D. Miguel) e a de- narquia em Portugal. Foi precisamente
fesa da instituição monárquica. O legi- com base nessas leis fundamentais que
timismo dos partidários de D. Miguel, a legitimidade de D. Pedro IV como Rei
pelo menos na sua parte mais significa- foi contestada pelos legitimistas: por um
tiva, não se inspirou, pelas razões já re- lado, porque D. Pedro advogava uma or-
feridas, no absolutismo monárquico ou dem constitucional estranha à tradição
na doutrina do direito divino dos reis, portuguesa; por outro lado, porque, ao
antes consistiu na defesa dos princípios proclamar-se Imperador do Brasil como
de uma monarquia tradicional. A retó- país independente, D. Pedro tornara-se
rica usada apoiou-se claramente na fun- estrangeiro. Ora, diziam os miguelistas,
damentação escolástica que referimos, de acordo com a doutrina das Cortes
ao sublinhar os limites (finalidades) na- fundadoras, o trono português deveria
turais e jurídicos do poder real. E daí o ser ocupado somente por Portugueses.
seu cuidado na utilização da expressão Os antilegitimistas, por sua vez, eram
“poder absoluto” do rei. Este poder ab- os partidários de D. Pedro IV, cujo di-
soluto não seria mais do que a liberdade reito ao trono defendiam, assim como
de legislação e de governo do monarca, o texto da Carta Constitucional por ele
por oposição à ideia de submissão deste outorgada em 1826. O seu ideário era

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1138 Antilegitimismo

liberal, constitucionalista, monárquico


e antiabsolutista. Se o movimento legi-
timista favorável a D. Miguel tinha uma
visão política alicerçada na defesa de um
regime monárquico hereditário puro,
o partido favorável a D. Pedro fez eco
de um ideário liberal promotor de um
governo constitucional e parlamentar.
Convém ainda dizer que os opositores
de D. Miguel não formavam uma só fa-
ção homogénea. Prova das suas diferen-
ças é o facto de se terem dividido entre
defensores da Carta Constitucional (li-
berais cartistas) e defensores de uma
nova constituição que recuperasse o es-
pírito da Constituição de 1822 (liberais
setembristas). Enquanto os primeiros
conservaram no seu ideário alguns ele-
mentos do legitimismo, os segundos de- Rei D. Pedro IV (1798-1834).
fenderam uma rutura com os seus prin-
cípios básicos.
Para os antilegitimistas, D. Pedro IV formadora da fação oposta, associada à
era o Rei que vinha libertar o povo do po- identificação da oposição política com
der despótico dos reis absolutos, poder uma posição de conciliação impossível
esse cujo exercício se tornara arbitrário, e mesmo inaceitável aos critérios da ra-
alheio ao interesse e à felicidade comuns zão. No entanto eram os alvores de um
do reino, assim como um instrumento tempo novo, feito das contradições, que
para alcançar o interesse próprio daque- o sistema político parlamentar garantia.
les que o detinham. Esse poder deixara E nesse plano não havia volta atrás.
de estar submetido aos ditames da jus- À evocação das leis fundamentais da
tiça e do direito. D. Miguel era visto e monarquia por parte dos legitimistas,
caracterizado como o Rei tirano e déspo- respondeu o discurso antilegitimista ridi-
ta, que encarnava a resistência de uma cularizando tal ideia. Por um lado, os an-
antiga ordem em que o povo era oprimi- tilegitimistas denunciaram a exiguidade
do e o poder exercido sem a limitação das fontes históricas que atestavam a fac-
e orientação do direito. Mesmificando o tualidade dessas Cortes fundadoras. Por
diferente, como era próprio de um dis- outro lado, argumentaram que esse pri-
curso de que dependia a conservação de meiro pacto, a ter sido real, não exprimi-
um regime e que se constituiu, de facto, ria senão as vontades dos indivíduos que
como um discurso anti, a propaganda o realizaram, não as vontades dos mem-
liberal antimiguelista não deu grande bros da sociedade do seu tempo. A  sua
atenção ao facto de os seus opositores argumentação evidenciou um critério de
se declararem partidários da restauração legitimidade voluntarista, assim como a
das instituições tradicionais do reino e prevalência da razão humana e do indiví-
se afirmarem adversários do despotismo. duo sobre os valores da história, da tradi-
Antes promoveu uma simplificação de- ção e da identidade comunitária do povo

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Antilegitimismo 1139

português. Afirmaram ainda os antilegiti- para que a Igreja continuasse a exercer


mistas que, não tendo as Cortes de Lame- um domínio ilegítimo na esfera civil.
go mais legitimidade do que quaisquer De acordo com os princípios enuncia-
outras, uma vez que em todas as cortes dos, para os antilegitimistas liberais, o
os representantes das ordens do reino clero deveria ser nomeado pelo rei, não
foram legisladores de pleno direito, não por um bispo ou pelo papa. Já para os
faltava às que aclamaram D. Pedro como legitimistas, as bulas, encíclicas e decre-
Rei legitimidade para revogar ou modi- tos pontifícios deveriam ter aplicação
ficar os preceitos anteriores que obstas- imediata em Portugal, por se dirigirem
sem a tal aclamação. De facto, segundo à universalidade católica, sem frontei-
a perspetiva liberal dos antilegitimistas, ras nacionais. Para os seus adversários,
as cortes, enquanto órgão representativo porém, tais documentos poderiam ser
do povo, no qual residia a soberania, se- aplicáveis apenas mediante sanção régia,
riam detentoras de um poder originário, gozando o monarca da prerrogativa le-
ao qual não estaria, portanto, vedada a gítima de aceitar ou não a vontade do
instituição e modificação de quaisquer papa. Por aqui se reconhece que não era
leis, desde que fosse expressiva da vonta- tanto a independência das esferas civil e
de geral do povo. religiosa que os liberais ambicionavam,
A rejeição da possibilidade de modifi- mas antes o estabelecimento de igrejas
cação das leis de carácter fundamental, nacionais, concedendo, em última aná-
afirmada pelos legitimistas, num qua- lise, ao rei a presidência em matéria de
dro de preponderância da identidade religião. Por causa da defesa de posições
do povo e da tradição sobre os indiví- como esta, assim como da declarada
duos decisores, valeu-lhes a caracterização oposição ao art. 6.º da Carta Constitucio-
como inimigos do progresso, opositores nal (que estabelecia o catolicismo como
à mudança e cegos face à necessidade de religião de Estado, embora consagrando
adaptação às circunstâncias dos tempos. a liberdade de culto público das outras
Questão decisiva para os legitimistas religiões), os legitimistas foram muitas
era a relação entre os poderes espiritual vezes caracterizados, pelos seus adversá-
e temporal, entre os quais, em sua opi- rios, como um grupo intolerante, favorá-
nião, deveria existir uma aliança que não vel à perseguição religiosa e ao barbaris-
permitisse a confusão das esferas, mas mo da Inquisição.
exigisse uma certa submissão do poder Na fase final da democracia constitu-
temporal ao espiritual, nas matérias em cional, persistiu no debate político por-
que este fosse naturalmente implicado. tuguês a questão essencial do relaciona-
No fundo, advogava-se uma relação sem mento das Igrejas, particularmente da
confusão, mas não sem hierarquia, en- Igreja Católica, com o Estado. O poder
tre poderes. Tal submissão seria condi- republicano prosseguiria em grande par-
ção necessária para que a construção do te a lógica liberal de nacionalização do
corpo social se alicerçasse nos princípios fenómeno religioso, mas curiosamente
do cristianismo, sem os quais não pode- esse tipo de posições perdeu força. Sem
ria constituir-se saudável. Aos olhos dos que a política e a sociedade portuguesas
antilegitimistas, ou antes, na sua retórica tenham recuperado qualquer resíduo
política, tal princípio não passava de um de legitimismo, até porque o regime
pretexto dos miguelistas para que o cle- republicano se consolidou, aprofundou­
ro pudesse manter os seus privilégios e ‑se uma relação de separação entre as

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1140 Antileninismo

esferas temporal e espiritual, sem sub-


missão de uma à outra, independente-
Antileninismo
mente da natureza das questões. Subsis-
te porém – como ressonância do debate
oitocentista – o papel dos fundamentos
e valores religiosos na orientação da so-
ciedade política.

O antileninismo pode ser entendido


em dois sentidos: como hostilidade
em relação ao homem e em relação às
ideias de Lenine. A Revolução Russa de
1917, ocorrendo no contexto da guerra
que dilacerava a Europa, com repercus-
Bibliog.: CALDER, Livreiro, Chatecismo do Por­ sões noutras partes do mundo, foi segui-
tuguês Legitimista: Oferecido aos Amigos da Pátria, da, nas suas diversas fases, com interes-
Porto, Typ. Comercial, 1854; FALCÃO, José se, preocupação, esperança e, acima de
Anastácio, Provas Incontestáveis da Legitimidade e tudo, rodeada de enorme confusão. Em
do Indispensável Direito Que Tem à Coroa de Portu­
especial depois da tomada do poder pe-
gal o Senhor D. Pedro IV, Rei destes Reinos, Impera­
dor, Deffensor Perpetuo do Brazil, Lisboa, Typ. Sil- los bolcheviques, começou a sobressair o
viana, 1826; A Legitimidade do Senhor Dom Pedro nome do seu mais destacado dirigente,
IVº, Rey de Portugal, contra as Invectivas Apostólico­ Lenine, que já era conhecido pelas po-
‑Jesuítas, Lisboa, s.n., 1827; MATTOSO, José, sições que tomara acerca da Guerra que
“O liberalismo”, in MATTOSO, José (coord.), nesse momento grassava na Europa. Inte-
História de Portugal, vol. v, Lisboa, Estampa, grara, juntamente com Paul Axelrod e M.
1988, pp. 68-120; Partido Legitimista Português:
Bobrov a delegação russa à Conferência
Programma Elaborado pelo Conselho Superior do
de Zimmerwald, em setembro de 1915,
Mesmo Partido, s.l., s.n., 1880; PASSOS, Car-
los, D. Pedro IV e D. Miguel I, 1826-1834, Porto, sendo um dos subscritores do manifes-
Livraria Simões, 1936; Relação dos Festejos Que to ali aprovado. Também participou na
Tiverão Lugar em Lisboa nos Memoráveis Dias 31 de Conferência de Kienthal, no cantão suíço
Julho, 1, 2, etc. de Agosto de 1826, por occasião do de Berna, em abril de 1916, que deu se-
Juramento Prestado à Carta Constitucional Decreta­ quência à reunião anterior, na qual esteve
da e Dada á Nação Portugueza pelo Seu Legítimo acompanhado por Zinoviev. Era, pois, co-
Rei o Senhor D. Pedro IV Imperador do Brasil, Lis-
nhecido pela sua oposição à Guerra, que
boa, Typ. de J. F. M. de Campos, 1826; SER-
RA, António Truyol y, História da Filosofia do considerava um fenómeno de cariz impe-
Direito e do Estado, vol. 2, Lisboa, Instituto de rialista e alheio aos interesses dos traba-
Novas Profissões, 1990; SILVA, José Joaquim lhadores, contrapondo-lhe a necessidade
Guimarães Pestana da, Doutrina Legitimista da da revolução.
Restauração Política Cristã de Portugal, Porto, Es- Exilado em Zurique, Lenine regres-
cola Tipográfica da Oficina de São José, 1915; sou à Rússia após a queda da monarquia
SOTOMAIOR, Miguel, A Realeza de D. Miguel:
czarista. Mas esse episódio causou algu-
Resposta a Um Livro do Senhor Tomaz Ribeiro por
Um Legitimista, Porto, Livraria Portuense de
ma perplexidade. As autoridades alemãs
Clavel, 1822; TOUCHARD, Jean (dir.), História autorizaram a viagem, num comboio se-
das Ideias Políticas, vols. 1 e 2, Lisboa, Europa­ lado que fez um longo trajeto, passando
‑América, 1970. por território por eles controlado, sendo
João Relvão Caetano acompanhado por uma trintena de par-
Beatriz Miranda tidários. Chegou a 16 de abril à estação

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Antileninismo 1141

Finlândia, desembarcando em Petrogra- José do Vale, antigo carbonário e sindi-


do, onde foi recebido por uma multidão calista-revolucionário, classificava-o, nas
de apoiantes. E não tardou a expor o seu páginas de O Mundo de 19 e 27 de no-
programa, defendendo a saída da Rússia vembro de 1917, de “tresloucado”, “mi-
da Guerra e a fórmula: “todo o poder serável” e “traidor”, considerando que os
aos sovietes”. Externamente, nos países chefes bolcheviques eram pseudorrevolu-
aliados, a ida de Lenine para a Rússia foi cionários ao serviço dos Alemães. Em 29
vista como um ato de cumplicidade com de novembro de 1917, o diário A Capital
os Alemães, interessados na retirada uni- rotulava Lenine e Trotsky de “assalariados
lateral da Rússia da Guerra. De facto, a as- pela Alemanha”; e, a 17 do mesmo mês,
sinatura da paz de Brest-Litovsk, em 3 de o jornal República retratava Lenine como
março de 1918, na qual os Russos cede- “o  fanático agitador”: de “pera sedosa,
ram em toda a linha às imposições germâ- cuidada, que lhe dá um ar de mosquetei-
nicas, permitiu ao Kaiser retirar as tropas ro ou de cabeleiro parisiense é um faná-
que tinha na frente leste e recolocá-las tico. A sua razão ignora a realidade”. Por
a Ocidente, o que poderia ter provoca- sua vez, o Diário de Notícias de 24 de janei-
do uma inversão dramática no rumo da ro de 1918 não hesitava em o classificar
Guerra se os Estados Unidos não tivessem de “czar Lenine I”, enquanto O Primeiro
entrado no conflito, desequilibrando ir- de Janeiro de 16 do mês seguinte se refere
remediavelmente o balanço das forças. a “Lenine e demais energúmenos do ma-
Lenine foi acusado de ser um agente ale- ximalismo”. Os exemplos são infindáveis.
mão, e começou uma campanha interna- Na literatura anticomunista, que sur-
cional contra ele que foi ampliada quan- giu logo em 1917 e nos anos seguintes,
do se converteu no dirigente máximo da a tónica era sempre a mesma. Homem
revolução soviética. Era ele o rosto visível Cristo sublinhava, em 1919, que “Leni-
da nova política russa. ne foi sempre coerente consigo mesmo.
A imprensa portuguesa não diferiu, no O seu único fim, aquele para o qual sem-
essencial, dos comentários e das apre- pre se inclinou, tem ido o estabelecimen-
ciações que surgiam a seu respeito na to do comunismo não só na Rússia mas
imprensa internacional. Os jornais ope- também na Europa inteira pela revolu-
rários, mesmo de cariz anarquista, mos- ção bolchevista internacional” (CRISTO,
travam simpatia para com a Revolução 1919). Nesse mesmo ano, surgiu o livro
e o seu dirigente máximo, fazendo eco, A Rússia Vermelha, de Gabriel Domergue,
naturalmente, de numerosas notícias fan­ publicado em França no ano anterior.
tásticas e imprecisas. Mas a imprensa dita Nesta obra profundamente antibolche-
burguesa traçava um retrato profunda- vista, o autor atacava Lenine com grande
mente negativo do dirigente bolchevi- violência: “É um fanático repelente, sem
que, que era considerado um bárbaro, entusiasmo nenhum. Ninguém o ima-
um novo huno, apreciação que os traços gine como um César Bórgia! Diz-se até
da sua fisionomia confirmavam; com que Sua Majestade teve sempre uma vida
efeito, sua avó paterna, Anna Alexeevna modesta e regular de um bom burguês
Smirnova, era originária da Calmúquia, e de um bom pai de família. Lenine é a
junto à Mongólia e à China. combinação do Wagner de Fausto e do
Em Portugal, Lenine foi alvo dos mais Smerdiakov russo [herói de Os Irmãos Ka-
diversos ataques por parte da imprensa ramazov, de Dostoievski]. É o pedantismo
republicana e conservadora. O jornalista obtuso, cego e surdo, acrescentado com

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1142 Antiliberalismo

o niilismo, e a ausência de critério moral


que caracteriza Smerdiakov. Pouco se lhe
Antiliberalismo
dá que o alambique destile a vergonha
e a ruína da pátria, que o resultado seja
a hegemonia desbragada da Alemanha:
Lenine continua sempre com as suas ex-
periências para fabricar com o mujique
o seu boneco socialista)” (DOMERGUE,
1919, 162).
À crítica de Lenine, como homem, as-
O s contextos históricos da Revolução
Francesa (finais do séc. xviii) e das
unificações italiana e alemã (meados do
sociava-se a condenação das suas ideias e séc. xix) são considerados, nas perspeti-
da sua prática à frente da Rússia soviéti- vas da historiografia, da ciência política
ca. Assim irá continuar mesmo depois da ou da sociologia política, por um lado,
morte do dirigente soviético, embora as momentos genéticos da tensão entre libe-
características do homem se fossem per- ralismo e antiliberalismo e da fundação
dendo, e por isso deixassem de ser efica- do moderno conceito de nacionalismo,
zes os ataques pessoais a alguém que já e, por outro lado, marcadores de mudan-
não fazia parte do mundo dos vivos. No ça em relação ao conteúdo semântico de
início da déc. de 30 do séc. xx, surge a conceitos como pátria, nação, povo, co-
primeira biografia de Lenine traduzida munidade e Estado. No mundo dos novos
para português, da autoria de Jean Jaco- ou renovados conceitos, que a linguagem
by, publicado em 1933 em França. Come- política, social e cultural utilizará sistema-
ça com as origens familiares e termina ticamente, passaram a figurar os de revo-
com a morte e a colocação do político lução, povo, cidadão, nação, pátria, cons-
russo no mausoléu, augurando autor que tituição, contrato social, opinião pública,
o corpo “desagrega-se, cai em podridão partido, vontade geral, carácter nacional
como a própria obra de Lenine” (JACO- e alma nacional. Quanto à ideia contem-
BY, 1934, 121). No entanto, embora o ho- porânea de nação, fundamento de pode-
mem tivesse morrido, a lenda já se apode- res políticos e de poderes simbólicos,  a
rara do seu nome. Fazia sentido, por isso, literatura crítica segue habitualmente
prosseguir o combate contra a imagem a  distinção feita por Friedrich Meinecke,
que ele projetara, e que continuava a ser- na obra Cosmopolitismo e Estado Nacional
vir de referência e de bandeira para mui- (1908), entre os conceitos de staatsnation
tos, dentro e fora das fronteiras russas. e de kulturnation, sem que isso signifique
o estabelecimento de fronteiras incomu-
nicáveis, claramente desmentidas pelas vá-
rias dinâmicas nacionais e transnacionais.
Por um lado, estava uma tradição de ma-
triz inglesa e francesa de nação cívico-po-
Bibliog.: CRISTO, Homem, O Bolchevismo na
Rússia, Aveiro, Tipografia Nacional, 1919; lítica/nação-contrato, alicerçada em defi-
DOMERGUE, Gabriel, A Rússia Vermelha, Por- nições de John Locke, Emmanuel Siéyès,
to, Companhia Portuguesa, 1919; JACOBY, J., John Stuart Mill e Ernest Renan. Por outro
Lenine, Porto, Livraria Lello, 1934; OLIVEIRA, lado, havia uma tradição de matriz italiana
César, A Revolução Russa na Imprensa Portuguesa e alemã de nação etno-cultural/nação-gé-
da Época, Lisboa, Diabril, 1976. nio, firmada em pontos de vista de Giam-
António Ventura battista Vico, Johann Herder e Johann

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Antiliberalismo 1143

Fichte. A primeira perspetiva coadunava­ ao modelo do absolutismo de soberania


‑se com os processos de construção libe- dinástica (trono) e sacralização religiosa
ral do Estado-nação, enquanto a segunda (altar), os revolucionários franceses con-
servia de justificação aos processos de for- trapuseram o modelo do liberalismo de
mação ou refundação da nação-Estado. soberania popular (cidadão) e regula-
A apropriação de ambas as categorias para mentação jurídica (lei). Daí Tocqueville
formulações políticas, históricas ou lite- considerar que a Revolução Francesa de
rárias far-se-á dentro do liberalismo e do 1789 tenha sido essencialmente uma re-
antiliberalismo e a utilização dessas duas volução política anunciadora de uma es-
ideias de nação permite observar melhor pécie de religião nova, que inundou toda
as múltiplas faces do discurso ideológico­ a Terra com os seus soldados, apóstolos e
‑político e suas interdependências, dentro mártires para criar um homem novo.
do vasto campo do nacionalismo portu- Essa promessa do homem novo num
guês – liberal e antiliberal, monárquico e mundo novo não é exclusiva, a nível
republicano, católico e laico. político, do liberalismo revolucionário
Charles Alexis de Tocqueville viu o francês, visto surpreender-se também
ano francês de 1789, na sua obra O Anti- no republicanismo, no antiliberalismo
go Regime e a Revolução (1856), como um comunista e no antiliberalismo fascista.
“tempo de imortal memória”, assinalado Contudo, se olharmos para a Revolu-
pela dupla paixão da igualdade e da li- ção Inglesa de 1688 ou para a Revolu-
berdade e formador de uma “nova pátria ção Americana de 1776, percecionamos
espiritual” (TOCQUEVILLE, 1989, 27 e críticas a esse paradigma utopista, que
178-179). O  que esse pensador político conduziu, por vezes, ao despotismo, ao
liberal pretendia afirmar era a mudança totalitarismo e à morte da pessoa huma-
dos princípios de representação e de legi- na, e encontramos a proposta de uma
timação nos novos Estados-nação liberais: pacífica “Constituição da liberdade”, de

Emmanuel-Joseph Sieyès (1748-1836). Johann Gottfried Herder (1744-1803).

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1144 Antiliberalismo

que falou Ralf Dahrendorf, nas Reflexões histórica. A perspetiva de análise críti-
sobre a Revolução na Europa (1990), para ca que agora se faz segue um ponto de
impedir a ocorrência da catástrofe revo- vista a partir da história, entrelaçando a
lucionária e caminhar de forma reformis- história das ideias com a história política
ta para um mundo melhor e mais justo. em diversos contextos relevantes dentro
O princípio da nação seria reinventado do poliedro antiliberal, influenciado do-
política e culturalmente através da expe- minantemente em Portugal pelos pensa-
riência história ao longo dos tempos. A vi- dores e pelos grupos políticos franceses.
são agregadora que dá continuidade às A  argumentação antiliberal questionou
representações das identidades nacionais as lógicas individualistas, utilitaristas e
entretece-se de elementos das duas ideias relativistas dos liberalismos. No universo
de nação apresentadas, daí a importância do antiliberalismo português revelou-se a
da análise de Fichte, nos Discursos à Nação atitude mental dominante do nacionalis-
Alemã (1807-08), onde se compatibilizam mo tradicionalista, de matriz monárquica
elementos da ideia de nação etno-cultu- ou republicana, apesar de coexistir com
ral/nação-génio (tradição, língua) com outras variantes de nacionalismo revolu-
elementos da ideia de nação cívico-políti- cionário de menor receção. Esse tradicio-
ca/nação-contrato (liberdade, vontade), nalismo pode definir-se através do modo
refutando-se obviamente as justificações interpretativo que a argúcia de Fernan-
exclusivistas (raça, língua, religião ou do Pessoa estabeleceu: “o nacionalismo
geografia). De igual modo, Renan, na tradicionalista, que é o que faz consistir
conferência O Que É Uma Nação? (1882), a substância da nacionalidade em qual-
caracteriza o “princípio da nação” como quer ponto do seu passado, e a vitalidade
“uma alma, um princípio espiritual”, nacional na continuidade histórica com
“uma consciência moral”, mas uma cons- esse ponto do passado. Diversos são os cri-
ciência de duplo enraizamento: no passa- térios com que se pode buscar esse ponto
do, através das lembranças transmitidas do passado, mas, seja qual for o critério
e ritualizadas (culto dos antepassados); que se empregue, a essência do processus
no presente, por intermédio do consen- é a mesma” (PESSOA, 1979, 223).
timento, do desejo de viver em comum, A gramática ideológica, cultural e polí-
do “plebiscito de todos os dias” (RENAN, tica do antiliberalismo português percor-
1996, 240-242), recusando a ideia de eter- reu, entre finais do séc. xviii e meados
nidade e de essencialidade das nações. do séc. xx – período que está em obser-
A leitura fraturada desse pensamento de vação crítica neste texto –, o interior do
Renan conduziu a apropriações ideológi- monarquismo, do republicanismo, do so-
cas distintas, quer pelo republicanismo cialismo, do anarquismo, do comunismo
da Terceira República Francesa, quer e do autoritarismo fascista ou fascizante.
pelo antiliberalismo monárquico contrar- Se atendermos à configuração prolonga-
revolucionário de Charles Maurras e da da do antiliberalismo institucional, enrai-
Action Française. zado numa mundividência organicista do
A genealogia do pensamento e da ação Estado e da sociedade, que foi compati-
do antiliberalismo português incorporou bilizada com características do tradicio-
uma diversidade de pensadores, corren- nalismo republicano autoritário conser-
tes de opinião ideológicas e grupos polí- vador, o momento paradigmático será a
ticos, o que exige, inevitavelmente, uma ditadura do Estado Novo de António de
escolha, fragmentando essa totalidade Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano

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Antiliberalismo 1145

(1933-1974), em virtude de o reinado di- sidência dentro da matriz tradicionalista


tatorial de D. Miguel (1828-1834), molda- antiliberal monárquica e construíram su-
do num antiliberalismo tradicionalista le- cessivamente a corrente integralista sindi-
gitimista e contrarrevolucionário, ter sido calista (jornal A Revolução, Lisboa, 1922­
de durabilidade muito menor e dilace­ ‑23) de Francisco Rolão Preto, dentro do
rado por uma Guerra Civil (1832­‑1834). Integralismo Lusitano de António Sardi-
A resposta política à denominada “crise nha; a Ação Realista Portuguesa (ARP)
do Estado moderno” (Estado liberal), de (1923­‑1926) de Alfredo Pimenta; e o
que falou Oliveira Salazar num discurso Movimento Nacional-Sindicalista (MNS)
feito em Lisboa a 30 de julho de 1930, (1932-1935) de Francisco Rolão Preto.
sintetizaria um ideário antiliberal e anti- Em 1926, a segunda geração monárquica
democrático, autoritário e conservador, integralista lançou-se no aprofundamento
nacionalista e colonial, elaborado funda- da mobilização política e doutrinária da
mentalmente a partir de conceitos e de juventude académica contra o demolibe-
práticas ideológicas das matrizes católica ralismo republicano e publicou a revista
social (democracia cristã), republicana Ordem Nova, em Lisboa, sob a direção de
autoritária conservadora, tradicionalista Albano Dias de Magalhães e Marcelo Cae-
monárquica e fascista italiana. Consti- tano, onde esse tipo de antiliberalismo
tuiu um modelo doutrinário sincrético monárquico radical encontrava expressão
de antiliberalismo tradicionalista repu- de relevo no seu programático subtítulo:
blicano e autoritário, que incluiu a vio- “Revista antimoderna, antiliberal, anti-
lência política e social como instrumen- democrática, antiburguesa e antibolche-
to de domínio e articulou elementos de vista. Contrarrevolucionária; reacionária;
várias matrizes ideológico-políticas para católica, apostólica e romana; monárqui-
justificar a razão instrumental da com- ca; intolerante e intransigente; insolidária
petência governativa (mito dos governos com escritores, jornalistas e quaisquer
técnicos), da autoridade política (mito profissionais das letras, das artes e da
do chefe/Estado), da harmonia social imprensa”. Após a conversão política ao
(mito do corporativismo), do equilíbrio antiliberalismo autoritário e conservador
financeiro e da modernização económica da ditadura do Estado Novo, por parte
(mito da regeneração/do progresso), e de várias personalidades do grupo mo-
do culto da pátria e dos heróis nacionais nárquico integralista Ordem Nova, da ARP
(mito da nação). Ecoou, no sincretismo e do MNS, a radicalidade dessas áreas
pragmático salazarista, a tradição católica ideológicas dissolveu-se no “levar os por-
(neo)tomista da democracia cristã con- tugueses a viver habitualmente”, para o
servadora e a teorização organicista com- que “Vamos devagarinho, passo a passo”,
tiana da conciliação positiva da ordem e como afirmaria Oliveira Salazar, “salari-
do progresso e da ditadura sociocrática. zando”, dirá, por sua vez, António Ferro
A afirmação hegemónica desse pen- (FERRO, 2003, 99, 172, 207). Assim se
samento nacionalista sincrético teve de inculcaria nos costumes políticos do novo
submeter politicamente as pulsões de an- regime político ditatorial o “nacionalismo
tiliberalismo monárquico radical, por via português”, síntese abrangente divulgada
da adesão aos princípios do sindicalismo por Quirino Avelino de Jesus, em 1932,
contrarrevolucionário (Georges Valois) numa obra com esse mesmo nome, e por
e do revolucionarismo violentista (Geor- ele considerado o “mais desenvolvido sis-
ges Sorel), que tinham entrado em dis- tema que se podia formar neste momento

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1146 Antiliberalismo

para se garantir em Portugal a marcha da Federativo e da Necessidade de Reconstruir o


civilização romana-cristã, assaltada pela Partido da Revolução (1863). As fórmulas
Revolução” (JESUS, 1932, 62). O tópico políticas, económicas e sociais aí expos-
da revolução recordava, por um lado, tas propunham uma superação do mode-
duas origens políticas fundamentais do lo clássico de Estado liberal, nacionalista
antiliberalismo europeu – a Revolução e unitário, pela construção de um Estado
Francesa de 1789 e a Revolução Russa de republicano federal ou confederal, plu-
1917 – e, por outro lado, dois momentos ralista e autonomista. Uma convergência
portugueses essenciais para o desenvolvi- significativa, dentro destas áreas ideoló-
mento teórico-político do antiliberalismo gicas, foi a valorização da dimensão so-
– a Revolução Liberal de 1820 e a Revolu- cietária do indivíduo, a recusa de pro-
ção Republicana de 1910. Fundado como postas estatistas e coletivistas e o combate
reação (contrarrevolução) à primeira à visão liberal espontânea da harmonia
conjuntura revolucionária liberal conti- social. Daí a importância das propostas
nental e devedor dos doutrinadores con- solidaristas, descentralistas, mutualistas,
trarrevolucionários franceses – dentro da assistenciais, educativas e municipalistas
tradição antiliberal europeia, destaque-se para uma cidadania ativa e um espírito
o pioneirismo da obra de Joseph de Mais- livre e responsável. Nos anos 20, o nos-
tre, Considerações sobre a França (1797) –, o so mundo antiliberal incorporou o co-
antiliberalismo político e cultural portu- munismo, com a fundação do Partido
guês, não só o de matriz tradicionalista, foi Comunista Português (PCP), em 1921, e
reinventado na reação às outras três con- o fascismo, com a criação do Centro do
junturas fundamentais, umas vezes limi- Nacionalismo Lusitano (CNL), em 1922.
tando-se à ação doutrinária e panfletária, Acompanhando a reação antiliberal,
outras vezes ganhando audiência pública tradicionalista e contrarrevolucionária
assinalável através de ação política mobili- francesa, após o terror de Robespierre,
zadora. Evocaram um novo Nuno Álvares surgiram em Portugal pensadores conver-
ou um novo D. Sebastião, para a reden- gentes com essa crítica ideológico-políti-
ção nacional, manifestando-se o mito do co. Pode considerar-se o marquês de Pe-
salvador (chefe-Estado), tendo acoplado nalva, Fernando Teles da Silva Caminha e
o mito da unidade (sociedade-nação), Meneses, com a obra Dissertação a favor da
particularmente evidente em momentos Monarquia (1799), o primeiro doutrina-
de desregulação do sistema político e de dor do discurso antiliberal, tradicionalis-
crise económico-financeira profunda. ta e contrarrevolucionário português. Aí
O antiliberalismo português percorreu se formalizava a necessidade da unidade
também as áreas ideológicas do republi- do poder, em que o rei detinha uma su-
canismo, do socialismo e do anarquis- prema capacidade arbitral, o que sugeria
mo, as quais, entre meados do séc. xix e um poder real de carácter absoluto, mas
princípios do séc. xx, evidenciaram per- não despótico, visto ser condicionado
sonalidades, periódicos e formas orga- pela religião (moral católica) e pelo direi-
nizativas que conviveram proximamen- to, e se desenvolvia a crítica ao conceito
te e partilharam utopias redentoristas liberal de soberania nacional, que condu-
comuns, em parte devido à importante zia, segundo ele, à criação de uma classe
receção do federalismo regionalista e política dependente do sufrágio eleito-
descentralizador de Pierre-Joseph Prou- ral, anulando as liberdades tradicionais
dhon, divulgado na sua obra Do Princípio dos povos. A argumentação antiliberal

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Antiliberalismo 1147

foi desenvolvida pelo jurista-economista dos poderes e apresentou a necessidade


José Acúrsio das Neves, nas Cartas de Um de repor o princípio do rei absoluto, a
Português aos Seus Concidadãos, sobre Dife- fundamentação superior da religião ca-
rentes Objectos de Utilidade Geral e Individual tólica e a sociedade de cortes gerais para
(1822) e na Continuação das Cartas aos Por- a representação orgânica dos corpos so-
tugueses (1823), onde encontramos quer ciais, regressando assim a antiga monar-
a justificação das intenções reformistas quia portuguesa baseada numa ordem
da regência nas vésperas da Revolução legitimada por valores eclesiástico-nobi-
Liberal de 1820, em particular a política liárquicos. Após a derrota político-militar
económica por ele delineada, quer consi- do miguelismo institucional em 1834 e o
derações sobre a não preparação do povo esgotamento da corrente sediciosa, im-
para a liberdade. Quanto a este último pulsionada por António Ribeiro Saraiva,
aspeto, o argumento contrarrevolucioná- em 1847, com o final da Guerra Civil da
rio e antiliberal será recorrente em vários Patuleia, o miguelismo político-ideoló-
períodos da vida portuguesa: a liberdade gico desenvolveu, ao longo da segunda
individualista do cidadão esmagava as li- metade do séc. xix, a lenta e complexa
berdades tradicionais e orgânicas dos po- definição de uma estrutura de tipo parti-
vos; a falta de instrução e cultura do povo dário (Partido Legitimista), dispondo do
impedia a livre e consciente determina- periódico oficial A Nação (criado em se-
ção na escolha dos seus representantes. tembro de 1847) para ativar uma rede de
A contrarresposta liberal será dada por núcleos locais e distritais, vindo a ingres-
Almeida Garrett, em Portugal na Balança sar os legitimistas no sistema parlamentar
da Europa (1830), e a pendência liberalis- com cinco deputados, após as eleições de
mo/antiliberalismo firmou argumentos novembro de 1856. A partir da déc. de
críticos ao longo do séc. xix português, 1870, os legitimistas vão combater prio-
que serão evocados recorrentemente no ritariamente o liberalismo monárquico
séc. xx. No campo antiliberal, tradiciona- católico e o catolicismo liberal, identifi-
lista e contrarrevolucionário, encontra- cado na divisa “Deus e Pátria”, que tinha
mos variantes ideológicas sobre a origem criado a Sociedade Católica (1843-1853)
do poder e a constituição da sociedade, como sua primeira organização e procu-
incorporando ora o providencialismo rava desvincular-se da chamada questão
(António Joaquim de Gouveia Pinto), ora dinástica. Os legitimistas envolveram-se
o contratualismo (António Ribeiro Sarai- no debate acerca da criação de um parti-
va), ora o voluntarismo (José da Gama e do católico, polémica que foi em grande
Castro), ora perspetivas mitigadas (mar- parte desenvolvida nas páginas do jornal
quês de Penalva e José Acúrsio das Ne- A Palavra, do Porto, que aceitava as estru-
ves), sendo que este último, conhecedor turas do poder liberal vigente, mas refu-
da economia política liberal, apesar de tava a ideologia que as legitimava, e do
defender a solução política absolutista, jornal A Nação, de Lisboa, órgão do tradi-
perfilhava um lugar destacado para a in- cionalismo monárquico antiliberal. Nos
dústria num plano de desenvolvimento finais do séc. xix, as manifestações de ra-
nacional, seguindo as posições industria- dicalismo anticlerical liberal monárquico
listas de Jean-Baptiste Say. e republicano propiciaram a construção
O miguelismo, sob a divisa “Deus, Pátria de um catolicismo integral (ultramon-
e Rei”, insistiu na denúncia dos equívocos tano e devocional), complexificando as
do princípio representativo e da divisão opções dentro do campo católico, onde

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1148 Antiliberalismo

existia o catolicismo liberal (constitu- tatutos), conseguida através da ação revo-


cional e concordatário) e o catolicismo lucionária e da ditadura do proletariado.
intransigente (legitimista e antiliberal), Ao mito político da greve geral revolucio-
vindo o Centro Católico Português (1917­ nária dos sindicalistas revolucionários, os
‑1932) a representar mais uma tentativa primeiros comunistas opunham o mito
mal sucedida de unificação das várias cor- político da revolução, criticando a buro-
rentes católicas, para intervir nos terre- cratização da Confederação Geral do Tra-
nos político, social e religioso. balho e a autossuficiência sindical. Para
Um lastro comum entre sectores socia- eles, o sindicato servia para a luta econó-
listas, republicanos e anarquistas portu- mica, enquanto o partido devia ser o ins-
gueses era devido à mentalidade federal, trumento da luta política.
ao associativismo e ao municipalismo au- A mais importante proposta ideológica,
tónomo, filiado no pensamento de Prou- cultural e política, de matriz antiliberal,
dhon, que se fundava na anarquia positi- contrarrevolucionária e tradicionalista
va e rompia com a modernidade liberal, monárquica, constituiu-se no Integralis-
propiciando a expressão de posições mo Lusitano (1914), animado por An-
ideológico-políticas de cunho antiliberal tónio Sardinha, Hipólito Raposo, Luís
e organicista. Um dos problemas teóricos de Almeida Braga, Alberto Monsaraz,
debatidos no interior do republicanismo, Francisco Rolão Preto e José Pequito
a mais importante corrente doutrinária Rebelo, e dispôs da revista de filosofia
de entre essas três na crítica à monar- política Nação Portuguesa (subintitulada,
quia liberal, foi a compatibilização dos depois, “Revista de cultura nacionalista”)
direitos naturais com os direitos sociais, e do diário A Monarquia, editados em Lis-
sem cair no liberalismo individualista boa. A orientação essencial estabelecia a
nem no coletivismo estatista. A criação propaganda da monarquia orgânica tra-
do PCP representou mais um polo no di- dicionalista antiparlamentar, com uma
versificado mundo ideológico-político do tendência concentradora (nacionalismo
antiliberalismo. A matriz genética anar- e poder pessoal do rei) e uma tendência
quista, anarcossindicalista e sindicalista descentralizadora (municipalismo e cor-
revolucionária dos seus principais funda- porativismo). Este sistema filosófico-polí-
dores, alguns deles vindos da Federação tico destinava-se a restaurar a nação pela
Maximalista Portuguesa (1919-1920), autoridade do rei e pela intervenção dos
configurará nos primeiros anos um par- corpos administrativos e profissionais;
tido assente em princípios descentrali- daí a formulação de base do Integralismo
zadores e federalistas (base 1.ª dos esta- Lusitano ser nacionalista por princípio,
tutos), permitindo certas convergências sindicalista e corporativista por meio e
com o republicanismo radical (Partido monárquica por conclusão. A geração
Republicano Radical), o republicanismo política integralista questionará o de-
esquerdista (Partido Republicano da Es- moliberalismo republicano, no que ele
querda Democrática) e o anarcossindica- manifestava de crise de autoridade do
lismo (Confederação Geral do Trabalho). Estado, de conflitualidade religiosa e so-
O  objetivo supremo dos comunistas era cial ou de racionalismo cultural e positi-
a socialização integral dos meios de pro- vismo científico, propondo a reinvenção
dução, circulação e consumo, i.e., a trans- dos modelos monárquicos medievais a
formação radical da sociedade capitalista partir dos valores da raça, da terra e da
em sociedade comunista (base 3.ª dos es- tradição, dotados de um estatuto messiâ-

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Antiliberalismo 1149

união entre a Igreja Católica e o Estado


monárquico. Se é certa a filiação genea-
lógica no discurso antiliberal e contrarre-
volucionário português do séc. xix, em
particular de José Agostinho de Macedo,
José da Gama e Castro e José Acúrcio das
Neves, não se deve ignorar a importante
projeção político-ideológica das obras de
Charles Maurras, Enquête sur la Monar-
chie (1900), e de Léon Daudet, Le Stupide
XIXe. Siècle (1922).
O exemplo da Action Française proje-
tou-se de forma relevante no antilibera-
lismo monárquico da ARP, dirigida por
Alfredo Pimenta, que juntou integralistas
que reconheciam D. Manuel II, o que
não tinha acontecido com tanta densi-
dade no Integralismo Lusitano, sendo
defendido claramente o primado do polí-
tico, o sindicalismo profissional e a orga-
Símbolo do Integralismo Lusitano. nização milicial do corpo de voluntários
da ARP, à semelhança da maurrasiana
Fédération Nationale des Camelots du
nico para a sonhada restauração monár- Roi, criada em 1908, por Maurice Pujo.
quica. Este romantismo político-cultural O ideário político-social organicista con-
era devedor do gosto nostálgico por um sagrava um modelo de estruturação social
passado representado numa idealizada cujas células primárias eram a família, o
e mitificada medievalidade dos forais município e o sindicato profissional; um
(monarquia contratual), dos concelhos modelo de representação política através
(predileção localista) e das cortes gerais da constituição de cortes gerais represen-
(representação dos corpos sociais), para tativas dos interesses da Igreja, da terra,
a qual, em Portugal, Alexandre Hercula- da inteligência e da produção; e uma che-
no muito contribuíra, mas inserido den- fia do Estado com um rei que governasse
tro de uma proposta regeneradora libe- e escolhesse livremente os seus minis-
ral. Porém, essa leitura esteve disponível, tros, politicamente responsáveis perante
com algumas diferenças, em Chateau- ele. A ARP extinguir-se-ia entre finais de
briand, Barrès, Bonald ou Maistre, donde 1926 e princípios de 1927, dentro de um
os integralistas portugueses receberam processo falhado de reorganização dos
várias influências. A  campanha pública vários segmentos monárquicos integralis-
integralista promovia uma forte contes- tas, que passaria pelo desejo episódico de
tação do liberalismo, do democratismo, uma Liga de Ação Integralista, animada
do parlamentarismo e do revolucionaris- por António Rodrigues Cavalheiro.
mo da Primeira República, apresentando De existência efémera, deve referir-se
três aspirações restauracionistas: regime o CNL, grupo político antiliberal e fascis-
político monárquico, regime administra- ta, liderado por João de Castro Osório e
tivo municipalista e regime jurídico de apoiado, e.g., pelo Cor. João de Almeida e

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1150 Antiliberalismo

por António de Cértima e Raul de Carva-


lho. O ideário político está identificado no
opúsculo A Revolução Nacionalista (1922),
da autoria de João de Castro Osório, po-
dendo observar-se aí a projeção do fascis-
mo italiano envolto numa releitura anti-
liberal da ditadura da “República Nova”,
aparecendo Sidónio Pais como “o  mes-
sias e não o político realizador”, pois a
sua “mentalidade sofria ainda de precon-
ceitos liberais e republicanos” (CASTRO
[OSÓRIO], 1924, 30-31). Entre as prin-
cipais propostas sugeridas, estava a ne-
cessidade do ditador, da ditadura nacio-
nal antiliberal, do governo meramente
executivo, do parlamento com exclusiva
representação profissional e municipal,
das milícias voluntárias e do catolicismo
como religião oficial do Estado. O surgi-
mento em outubro de 1923, em Lisboa,
do semanário A Ditadura, “periódico do
fascismo português”, dirigido por Raul de Capa da revista Crusada Nacional (1922).
Carvalho, potenciará a divulgação públi-
ca, mas tal não se revestiu de importância carismática (chefe de Estado responsável
significativa. A sua matriz revolucionária perante a nação e interveniente no go-
irredentista era demasiado herética den- verno), partido/movimento definidor da
tro do ambiente conservador e institu- direção política, representação política
cionalista dominante na elite autoritária orgânica (assembleia nacional com câma-
e antiliberal portuguesa, que, cada vez ra dos municípios e senado corporativo),
mais, acreditava na intervenção organi- mobilização milicial de massas e sistema
zada das forças armadas para solucionar corporativo integral.
a crise de autoridade do Estado liberal. As diversas formulações doutrinárias e
O regresso político-ideológico do mo- organizativas antiliberais, vindas do pen-
narquismo sindicalista antiliberal, que samento monárquico, republicano e ca-
Rolão Preto e Alberto de Monsaraz esbo- tólico, manifestaram-se com vigor durante
çaram nos inícios da déc. de 1920, far-se­‑á a Primeira República, mas não devemos
com a organização do MNS e do seu jor- ignorar os processos de convergência éti-
nal Revolução, tentativa esta que visava, co-políticos e ideológico-culturais entre
dentro da emergente ditadura do Estado antiliberais e liberais, com bastante rele-
Novo, impor uma via da revolução políti- vância após 1915, o que propiciou a cria-
ca com caudilhismo civil milicial e mobi- ção de espaços cívicos de encontro, como
lização de massas. O modelo alternativo conferências, congressos, campanhas cí-
de nacionalismo revolucionário antilibe- vicas, revistas e ligas, dentro de uma críti-
ral questionava o nacionalismo conser- ca comum ao diagnosticado revoluciona-
vador antiliberal vigente e propunha um rismo republicano. O debate promovido
Estado corporativo e sindical, com chefia entre os seus protagonistas permitiu a

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Antiliberalismo 1151

identificação de um conjunto de tópicos Bibliog.: CAMPOS, Fernando, O Pensamen­


essenciais para um programa nacionalista to Contra-Revolucionário em Portugal (Século XIX),
de amplo compromisso, em grande parte 2 vols., Lisboa, Edição de José Fernandes Jú-
recolhido, até à Revolução de 28 de maio nior, 1931­‑32; CASTRO [OSÓRIO], João de,
“Sidónio Pais e o messianismo ditatorial”, in
de 1926, na Liga Nacional, na Cruzada
CARVALHO, Feliciano de (org.), Um Ano de Di­
Nacional D. Nuno Álvares Pereira e no tadura: Discursos e Alocuções de Sidónio Pais, Lisboa,
Centro Católico Português, convergindo, Lusitânia, 1924, pp. 7-34; CRUZ, Manuel Braga
depois de 1926, no ideário sincrético da da, As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo,
ditadura do Estado Novo, bem expresso Lisboa, Presença, 1980; CUNHA, Norberto
no lema “Deus, Pátria, Autoridade, Famí- Ferreira da, “O tradicionalismo integralista”, in
lia, Trabalho” – reduzido à divisa mínima Poiética do Mundo: Homenagem a Joaquim Cerqueira
“Deus, Pátria, Família” –, que Oliveira Sa- Gonçalves, Lisboa, Colibri/Departamento de Fi-
losofia e Centro de Filosofia da Faculdade de Le-
lazar enunciou em “As grandes certezas
tras da Universidade de Lisboa, 2001, pp. 375­
da revolução nacional” (Braga, discurso ‑399; FERRO, António, Entrevistas de António Ferro
de 26 de maio de 1936). Não obstante a Salazar, pref. Fernando Rosas, Lisboa, Parceria
a controvérsia ideológica sobre o lugar A. M. Pereira, 2003; JESUS, Quirino Avelino de,
da prioridade a atribuir ao primado da Nacionalismo Português, Porto, Empresa Industrial
moral (laica), ao primado do religioso Gráfica do Porto, Lda., 1932; LEAL, Ernesto
(católico) e ao primado do político (po- Castro, António Ferro: Espaço Político e Imaginário
der), gerou-se, no primeiro pós-guerra, Social (1918-1932), Lisboa, Cosmos, 1994; Id.,
Nação e Nacionalismos: a Cruzada Nacional D. Nuno
uma área consensual de opinião entre
Álvares Pereira e as Origens do Estado Novo (1918­
destacados elementos das elites naciona-
‑1938), Lisboa, Cosmos, 1999; Id., “Tópicos
listas antiliberais (incluindo republicanos sobre os nacionalismos críticos do demolibera-
conservadores) à volta de algumas ideias lismo republicano: moral, religião e política”, in
essenciais: moral cristã, ética da respon- CALAFATE, Pedro (dir.), História do Pensamento
sabilidade, patriotismo cívico, Estado Filosófico Português, vol. v, t. 2, Lisboa, Caminho,
unitário, nação imperial, regime repu- 2000, pp. 135-160; Id., “Antiliberalismo: vias de
blicano presidencialista, governo consti- pensamento e de acção”, in MARUJO, António,
tuído com forte componente de técnicos e FRANCO, José Eduardo (coords.), Dança dos
Demónios. Intolerância em Portugal, Lisboa, Círculo
(ministério nacional das competências),
de Leitores, 2009, pp. 484­‑533; Id., “Naciona-
regime de separação leal entre o Estado lismo e antiliberalismo em Portugal: uma visão
e as Igrejas (com crescente audiência histórico-política (1820-1940)”, Historia Crítica,
do concordatismo de separação jurídica n.º 56, 2015, pp.  113­‑135; PEREIRA, José Es-
com a Igreja católica), corporativismo teves, “Pensamento político em Portugal no
(representação institucional de corpos século xix”, in CARVALHO, José Maurício de
sociais intermédios) e projeto de desen- (org.), Atas do VII Colóquio Antero de Quental, São
volvimento económico-social com inter- João del-Rei, Universidade Federal de São João
del-Rei/Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro,
venção estadual.
2007, pp. 54-84; PESSOA, Fernando, Da Repú­
blica (1910-1935), ed. lit. Maria Isabel Rocheta,
Maria Paula Morão e Joel Serrão, Lisboa, Ática,
1979; RENAN, Ernest, Qu’Est-Ce Qu’Une Nation?
Et Autres Écrits Politiques, Paris, Imprimerie Natio-
nale Éditions, 1996; TOCQUEVILLE, Alexis de,
O Antigo Regime e a Revolução, Lisboa, Fragmen-
tos, 1989.
Ernesto Castro Leal

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1152 Antilibertinismo

Antilibertinismo liberdade adquirida e os maus usos que


se fazem dessa liberdade, na medida em
que se considera que a submissão às pai-
xões individuais é nociva ao indivíduo e
à sua comunidade, será um dos estigmas
predominantes das múltiplas manifesta-
ções do que se encara como reivindica-

O termo “libertino” constitui um dos


mais prolíferos e constantes epíte-
tos utilizados na designação de toda uma
ção indevida: a liberdade de consciência,
antes de mais, que terá particular expres-
são no domínio do religioso; a liberdade
galeria de perspetivas intelectuais e com- de pensamento, que será típica de uma
portamentais consideradas perniciosas, vertente filosoficamente erudita de liber-
excessivas, contrárias a um determinado tinos no séc. xvii; a liberdade de costu-
ideal de ordem constituída. Para se com- mes, típica daquele que é provavelmente
preender devidamente o alcance deste o mais recorrente sentido que se associa
conceito, será necessário que atentemos, nos nossos dias ao termo “libertino”; a
antes de mais, em três aspetos: no percur- liberdade política, que permitirá que os
so que lhe permitiu adquirir, em contex- libertinos sejam encarados sucessivamen-
tos históricos e culturais muito distintos, te tanto como uma peça indispensável no
uma pluralidade de significados negati- desenvolvimento da razão de Estado pro-
vos, designando quase sempre o nome movida por Richelieu e na génese do ca-
de um determinado grupo condenado, pitalismo europeu, como enquanto raiz
marginalizado e tomado como inimigo essencial do pensamento crítico iluminis-
a segregar; na sua dispersão geográfica, ta e do ceticismo que lhe está associado,
que permite que seja interpretado ora e que conduziria à Revolução Francesa,
como um fenómeno europeu, ora como bem como, posteriormente, como núcleo
um determinado âmbito de expressões das expressões heterodoxas que questio-
heterodoxas comum às mais distantes nam a própria supremacia da razão que
culturas; e, finalmente, no mecanismo as Luzes trouxeram consigo, acompa-
especular que permite que os libertinos nhando os sucessivos movimentos con-
sejam simultaneamente, quase desde a traculturais que fazem face aos valores da
sua origem, o produto abstrato dos te- sociedade burguesa; e mesmo uma liber-
mores, das desconfianças e dos repúdios dade relativa ao domínio do artístico, que
dos sucessivos poderes dominantes, e o aponta para a irregularidade nos planos
núcleo produtor de uma imagem, igual- estético e estilístico e para a transgressão
mente negativa, dos valores tomados dos conceitos tradicionais dos géneros
como universais. literários – Agostinho de Campos, e.g.,
Etimologicamente, não será estranha refere-se, nos seus Estudos sobre o Soneto,
ao percurso do conceito a base essencial aos “inconvenientes do soneto irregular
da sua origem latina no termo “liberti- ou libertino, que sempre se há de sujei-
nus”, designação de um escravo que ob- tar ao menosprezo da crítica, forte no seu
tivera a sua liberdade e que nessa medida direito de dizer que tal soneto não é so-
se distinguia tanto dos cidadãos origina- neto” (CAMPOS, 1936, 39). A oposição
riamente livres como dos escravos pro- ao libertino convive permanentemente
priamente ditos. De facto, como observa com essa indiferenciação que o apresenta
Jean-Pierre Cavaillé, a associação entre a como designação de uma diversidade de

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Antilibertinismo 1153

radicalismos e de heterodoxias que não


possuem relação entre si e que, no olhar
de severos denunciadores como o Jesuíta
François Garasse, formam um corpo arti-
ficial no qual se conjugam uma série de
contravalores. É o próprio Garasse que
considera que “pela palavra libertino não
entendo nem um huguenote, nem um
ateu, nem um católico, nem um heréti-
co, nem um político, mas um composto
particular de todas estas qualidades” (GA-
RASSE, 1622, 681). De facto, desde pelo
menos 1690, nas páginas do Dictionnaire
Universel de Antoine Furetière, o termo
era utilizado para designar a quase to-
talidade das sugestões de desordem, de- François Garasse (1585-1631).
sobediência ou desregramento, mesmo
em domínios da trivialidade quotidiana, doutrinas imorais e antissociais” (VER-
como o do estudante que não cumpre de- NET, 1920, 801). O primeiro sentido de
vidamente com os seus deveres escolares evidente oposição a um grupo concreto
ou o da rapariga que não acata as deter- encontra-se contudo em Calvino, que,
minações maternas. em 1545, escreve o panfleto Contre la Sec-
De acordo com Didier Foucault, pode- te Phantastique et Furieuse des Libertins Qui
remos encontrar as origens remotas do se Nomment Spirituels para denunciar os
recurso consciente ao termo “libertinos” seus opositores genoveses e o excessivo
para designar uma atitude de transgressão desregramento de costumes em que vi-
face aos padrões instituídos no contexto viam. Como refere François Laplanche,
dos clérigos goliardos, que, nos sécs.  xii o contexto da Reforma dará a conhecer
e xiii, desenvolveram poeticamente uma outros relevantes sentidos do conceito
arte de viver satírica e hedonista, e que, – “os teólogos cristãos chamam aos seus
influenciados pela raiz latina ainda bem adversários [...] ‘ateus’, ‘deistas’, ‘liberti-
presente, se referiam a si próprios como nos’, ‘profanos’, ‘acrístico’. O termo que
“libertini” ou “affranchis” (FOUCAULT, emergirá dessas águas misturadas é o de
2010, 37-38). “Libertinos” era também a ‘libertinos’” (LAPLANCHE, 1992, 1094­
designação de uma heresia medieval que ‑1095)  –, desenvolvendo-se no séc. xvii
teria prolongamentos até ao séc.  xvi e para expressar uma radicalização do eras-
que Félix Vernet identifica com a tradi- mismo e depois o sistemático colocar em
ção dos Irmãos do Livre Espírito, descri- causa da Revelação, ao mesmo tempo que
ta pela tradição dos heresiólogos como vai designando também a busca desregra-
“uma seita única que se propagou ao da de satisfações eróticas por parte de nú-
longo dos séculos, transmitindo de uma cleos de descrentes, nomeadamente no
geração para a outra um credo substan- seio da aristocracia francesa. É também
cialmente idêntico, cujo fundo seria, do nesse contexto que o ceticismo religio-
ponto de vista metafísico, o panteísmo e, so se manifestará no pensamento de um
na prática, uma ‘liberdade do espírito’, conjunto de jovens eruditos que seguem
que resulta, pelo menos no conjunto, em de perto a herança de alguns filósofos

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1154 Antilibertinismo

do Renascimento italiano que tinham principais pontes para o seu emergir no


sido também designados como libertinos, âmbito das vanguardas históricas, sobre-
como Vanini, Pomponazzi e Giordano tudo no contexto do surrealismo, que
Bruno. Em Inglaterra, pelo menos desde fará uma recuperação da figura de Sade
1611, no French English Dictionnaire de Cot- e, como observa Annette Tamuly, vai con-
grave, o termo foi identificado com o epi- ferir à libertinagem “um novo vigor ao
curismo e a licenciosidade, quadro que retomar o seu sentido original de liber-
encontra eco nos usos literários conhe- tação face a todas as forças de coerção”
cidos, e.g., em Hamlet (I, 3), de William (TAMULY, 1988, 38). Será nesta sequên-
Shakespeare, ou em The Poetaster, de Ben cia que as obras de autores como Geor-
Johnson. Jean-Pierre Cavaillé, um dos ges Bataille, Henry Miller, Anaïs Nin,
mais prolíferos investigadores do fenó- Roger Vailland ou Jean Genet marcarão
meno libertino europeu, evidenciou, em a continuidade do percurso da tradição
“Libertine and libertinism: polemic uses libertina no séc. xx.
of the terms in sixteenth and seventeenth Atentemos agora nos outros dois aspe-
century english and scottish literature”, tos inicialmente apontados: a dimensão
que ao longo deste período o termo foi europeia do conceito e o modo como
utilizado recorrentemente em importan- por ele se instaura uma especular bipo-
tes tratados de heresiografia ao mesmo laridade arquetípica. Na sua importante
tempo que designou uma vertente em obra Dall’Europa Libertina all’Europa Illu-
que a crítica religiosa se conjugava com o minista, de 1997, Sérgio Zoli salientou
âmbito da imoralidade no plano dos cos- as duas vias pelas quais a libertinagem
tumes. Alguns grupos, como os Ranters, conhece uma abrangência cultural im-
terão adotado inclusive o termo como epí- portantíssima para o percurso da cultura
teto provocatório, em textos como Divinity europeia desde a Modernidade, que se
Anatomized, de Joseph Salmon (1649-50). expressa não só geograficamente, por via
A partir do séc. xviii, o termo ficou ligado do vasto movimento de ideias que, ema-
sobretudo aos domínios do erotismo e da nando de França, chegaram aos diversos
transgressão sexual, passando os liberti- Estados europeus ao longo dos sécs. xvii
nos eruditos a definir-se como livre-pensa- e xviii, no decorrer das viagens e da
dores. O distanciamento dos dois sentidos correspondência de intelectuais, mas
percebe-se, e.g., na Encyclopédie, em que também na circulação crescente de uma
Diderot se refere ao comportamento ou literatura clandestina que transgredia os
atitude de um indivíduo libertino como mais severos mecanismos de repressão,
“o hábito de ceder ao instinto que nos como na península Ibérica; mas também
leva aos prazeres dos sentidos”, típico de na capacidade de infiltração da cultura
quem “não respeita os costumes, mas não libertina, que durante algum tempo es-
procura afrontá-los; é alguém desprovido tivera confinada às elites, num espaço
de delicadeza, e apenas justifica as suas es- popular que abraça os rudimentos fun-
colhas pela sua inconstância, está a meio damentais dos textos heterodoxos e a
caminho entre a volúpia e o deboche” atitude propiciadora de uma valorização
(DIDEROT, 1751, 476). do indivíduo e da sua subjetividade face
A associação do termo à controversa ao impulso congregador das doutrinas
obra do marquês de Sade, em muitos as- tradicionais. Não é estranha a este con-
petos denunciadora dos limites do ideal flito a fratura inevitável resultante de um
iluminista, permanece como uma das conceito tão recorrentemente utilizado

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Antilibertinismo 1155

para designar uma ideia de inimigo. líferos, embora o próprio Teófilo Braga
Jean­‑Pierre Cavaillé defende que “‘o per- nunca recorra a ele. No edital da Real
fil libertino’ é uma qualidade extrínseca Mesa Censória de 24 de setembro de
aos sujeitos que estuda, uma qualificação 1770, e.g., o peso nuclear da libertinagem
externa à referida polémica, produzida é perfeitamente identificado na sua múl-
no discurso contemporâneo. O libertino tipla ameaça à religião, aos costumes e à
apenas é libertino num contexto cultu- tão denunciada interligação entre a Igre-
ral que o designa como tal” (CAVAILLÉ, ja e o poder político, ao mesmo tempo
2010, 24). Estamos, portanto, perante que se percebe que a circulação de livros
uma das mais salientes construções so- proibidos era um dos veículos por exce-
ciais de uma alteridade negativa, por lência da suposta contaminação de que
via da qual se impõe inversamente uma Portugal era vítima: “E porquanto me
forma igualmente artificial de identida- constou que muitos dos referidos Escri-
de positiva. Num trabalho posterior, o tos, abomináveis produções da incredulidade
mesmo ensaísta falará de “uma cultura e da libertinagem de homens temerários
de oposição” que, reagindo a essa ima- e soberbos, que se denominam Espíritos
gem negativa ao mesmo tempo que de- Fortes e se atribuem o especioso título de
senvolve a denúncia da cultura religiosa Filósofos, depois de terem soçobrado os
dominante e da sua associação à impos- países mais próximos ao seu nascimento,
tura política, se enquadra perfeitamente haviam chegado a penetrar neste Reino
num ideal maniqueísta do mundo, que, por caminhos indiretos e ocultos; haven-
“de acordo com essa representação, está do mandado proceder com a mais exata
cindida em dois: de um lado, as vítimas diligência no exame deles, constou pe-
da farsa, que constituem a imensa maio- las Censuras conterem doutrina Ímpia,
ria dos homens, e, do outro, os que não ofensiva da paz e sossego público, e só
são joguetes ou que pelo menos cultivam própria a estabelecer os grosseiros e de-
as dúvidas mais persistentes, quer contri- ploráveis erros do Ateísmo, Deísmo e do
buam ou não positivamente para manter Materialismo, a introduzir a relaxação
a farsa” (Id., 2011, 7). dos costumes, a tolerar o vício e a fazer
Em Portugal, são conhecidos a exten- perder toda a ideia da virtude, as Obras
são cultural e o impacto do controlo das seguintes” (BRAGA, 1898, 59-60). Os
ideias consideradas subversivas desde a trabalhos de Maria Teresa Esteves Payan
sequência do Concílio de Trento até à Martins expõem amplamente a conjuntu-
definitiva implantação do liberalismo. ra em que uma série de instituições, das
Na História da Universidade de Coimbra, quais sobressaíam a Inquisição e a Real
Teófilo Braga dedica bastante atenção Mesa Censória, procuraram conter a fra-
ao desenvolvimento das ideias euro- tura das ideias em que os pontos de vista
peias desde a renascença ao apogeu da libertinos tiveram um papel decisivo. No
fase crítica do enciclopedismo, expon- Dicionário de História Religiosa de Portugal,
do um amplo conjunto de documentos Luís de Oliveira Ramos observa a respei-
pertencentes à Real Mesa Censória que to do Iluminismo que “a presença de tan-
exibem a denúncia das obras de pensa- tos nomes [...] no rol dos livros proibidos
dores como Descartes, Thomas Hobbes, em Portugal e de um ou outro tópico
Montaigne, Voltaire, Rousseau, Diderot análogo aos seus na obra de escritores e
e Helvetius. Nesses documentos, o termo poetas portugueses e sobretudo em pro-
“libertinos” surge como um dos mais pro- cessos inquisitoriais contra mações e, em

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1156 Antilibertinismo

especial, contra heréticos de filosofia, matrimónio, denunciando os males a que


no século xviii, obriga-nos a reafirmar o desregramento sexual pode conduzir e
o influxo que exerceram em minorias questionando a via ateísta. Em Recreação
nacionais particularmente contunden- Periódica, e.g., afirmará: “Hoje, estou em
tes” (RAMOS, 2000, 418), nas quais in- considerar criminosa toda a afeição que
tegra os nomes de filósofos, educadores, não seja pautada pelos termos da minha.
poetas e escritores tão relevantes como Os libertinos arguirão o contrário sob o
Verney, Francisco Xavier de Oliveira, Ri- falso argumento de que sendo o amor
beiro Sanches, José Anastácio da Cunha, uma paixão natural não carece do es-
Filinto Elísio, Bocage e D. Leonor de tado de matrimónio para se coonestar.
Almeida, a que se poderiam juntar os A minha opinião, universalmente aceite
nomes menos conhecidos de poetas an- e benquista de todos os homens honra-
tologiados em vários volumes dedicados dos, não precisa de defesa” (CAvalei-
à poesia satírica e erótica em Portugal. ro de OLIVEIRA, 1922, 47).
A diversidade destes nomes implica que Por outro lado, a atitude de um pan-
se perceba, como defende Daniel Pires fletário como José Agostinho de Mace-
na introdução ao sétimo volume da Obra do, um dos mais constantes defensores
Completa de Bocage, que dominava em Por- dos ideais absolutistas, permite perceber
tugal “uma sociedade fortemente tutela- que em Portugal também se verificou o
da, extremamente hierarquizada, erigida ataque indiferenciado a uma série de ati-
em função da nobreza” e que “necessitou tudes filosóficas e comportamentais dis-
de construir um aparelho de Estado sóli- tintas, conjugando termos como “liberti-
do que lhe permitisse anular quaisquer nos”, “enciclopedistas” ou “iluminados”,
veleidades que colidissem com os seus “pedreiros livres”, “jacobinos”, “maçons”,
interesses, designadamente as reivindica- “deístas”, “ateus” e “infiéis” nas mesmas
ções da burguesia ascendente” (PIRES, obras. Em Refutação dos Principios Metha-
2004, 9). Só assim se compreende que o fysicos e Moraes dos Pedreiros Livres Illumi-
processo de denúncia de José Anastácio nados, de 1816, procurava associar os
da Cunha, e.g., conjugue alguns supostos ideais dos enciclopedistas à tradição do
incumprimentos religiosos com o conví- epicurismo, vendo-os como criminosos
vio próximo mantido com estrangeiros que, proclamando-se livres-pensadores,
alegadamente ligados a igrejas protestan- apenas pretendiam colocar em causa os
tes e à maçonaria, e com supostos com- princípios do trono e da religião. A habi-
portamentos ilícitos, nomeadamente tual associação entre os ideais filosóficos
o alcoolismo e a vivência extraconjugal modernos e a dissolução dos comporta-
de uma experiência amorosa que a sua mentos é também estabelecida com vee-
poesia largamente documenta. E que mência: “Deixaste em fim cair a máscara,
Cavaleiro de Oliveira, um dos mais ex- e o prazer que propões e tanto exaltas
pressivos exemplos de protestantismo condescende com o prazer do vício, e
em Portugal e acérrimo defensor de uma em quanto os outros Filósofos fazem to-
atitude cultural cosmopolita e voltada dos os esforços para promover os bons
para o contacto com diferentes nacio- costumes, tu és o Filósofo que promove
nalidades e culturas, acabe por tecer nas a imoralidade. Dissolutos, pois, efemi-
suas obras algumas considerações bastan- nados, desonestos, viciosos de todas as
te negativas a respeito de alguns tópicos maneiras, vinde, achou-se uma Filosofia
associados aos libertinos, defendendo o que é toda vossa, e até dos brutos pois

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Antilibertinismo 1157

parece ensinada por eles” (MACEDO, sexuais um dos mais prolíferos domínios
1816, 178). para o seu retrato purificador da socie-
Um ataque semelhante será dirigido a dade burguesa. Em 1865, António Fer-
Almeida Garrett quando, na sequência nandes Ferrer Farol apresentava o seu
das deliberações quanto à liberdade de estudo A Libertinagem perante a História, a
imprensa de 1821, publicou O Retrato de Philosofia e a Pathologia, em que conside-
Vénus, dando origem a uma polémica que ra que “A libertinagem, olhada à luz da
se prolonga de janeiro a março de 1822 medicina, é o flagelo que mais corrompe
e na qual diversos colunistas o acusaram a humanidade. Paixão violenta, seduto-
de se aproveitar de um século em que os ra aos olhos da mocidade inexperiente,
valores estavam moribundos para publi- essencialmente devastadora, é a liberti-
car obscenidades emanadas do espírito nagem a causa próxima de horrorosos
corruptor da Revolução Francesa. Na estados mórbidos, que aniquilam a vita-
introdução a O Roubo das Sabinas. Poemas lidade mais resistente” (FAROL, 1865,
Libertinos, de Garrett, Augusto da Costa 10). Colocando-se do lado da tradição
Dias defende a respeito desse momento filosófica da Igreja Católica, que também
inaugural que “O moço poeta percorre denunciava o estado existencial abjeto
todas as fases de labor ideológico a par- resultante da libertinagem e a renúncia
tir do padrão prestigioso do classicismo. à transcendência que esta pressupõe, o
Mas nesse trabalho conjugam-se o liberti- autor encara, contudo, o fenómeno do
nismo-filosófico do século xvii e a sua su- ponto de vista clínico, procurando com
peração iluminista. O fenómeno traduz, o seu trabalho “a regeneração social”
com clareza, o nosso atraso sociocultu- (Id., Ibid., 11) na análise rigorosa dos
ral.  [...] ao seguir a via de um novo hu- vários desvios que ajudam a gerar “estes
manismo, Garrett palmilhará as suas pri- tipos execrandos, frios, melancólicos e
meiras expressões europeias dos tempos solitários” que são nocivos a qualquer
modernos: Renascimento e libertinismo sociedade (Id., Ibid., 44). Esta perspetiva
(o francês e o nacional, ainda hoje quase sobre os autómatos do vício não andará
por completo desconhecido!), o último muito longe da que um romancista como
dos quais vem entroncar na mais pro- Abel Botelho desenvolve no conjunto de
gressista ideologia do século xviii. Gar- obras que constituem o ciclo Patologia
rett está, porém, no século xix!” (DIAS, Social. Em O Livro de Alda, e.g., podem
1968, 62). ler-se as seguintes palavras do protago-
Ao longo do séc. xx, as críticas ao li- nista Mário, cujo percurso o conduz de
bertinismo em Portugal acompanharão um futuro socialmente promissor e con-
alguns dos desenvolvimentos europeus, cordante com o perfil da hipocrisia da
nomeadamente aquele que o associa já sociedade burguesa a um estado de ab-
não a um desvio de ordem religiosa ou soluta abjeção física e moral que quase
política, mas a um contexto de patolo- se precipita no suicídio: “O prazer dilui
gia e de degenerescência, típico quer do o carácter. Um vício extremo, radical,
desenvolvimento de um discurso ligado vale mais do que uma medíocre virtude.
à medicina (que Michel Foucault tem Requer sua ponta de abjeção a verdadei-
estudado com especial profundidade), ra felicidade. – Tanto que, nesta minha
quer de alguns dos ideais dominantes epicúria e ardente obstinação, na minha
da corrente naturalista, que encontram inestancável sede de amor, eu chegava a
na diversidade do leque das perversões desgostar-me de ser como sou… queria

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1158 Antilibertinismo

ver por completo varridas ao sopro cá-


lido da paixão algumas boas qualidades
que ainda me restam, para poder então,
franca e desapoderadamente, afrontan-
do a sociedade, atropelando o dever,
cavalgando o mundo, chafurdar bem
de vontade e de instinto no complicado
atasqueiro de todos os deboches que a
imaginação libertina dos torturados pelo
desespero inventou…” (BOTELHO,
1982, 241-242). E não esqueçamos que
alguns dos mais célebres romances com
que Eça de Queirós pretende documen-
tar os mais salientes quadros do atraso e
da decadência da sociedade portuguesa
apontam para diferentes tipos de vícios
libertinos, da derrisão dos valores religio-

D.R.
sos em virtude do triunfo do sensualismo
José Cardoso Pires (1925-1998).
em O Crime do Padre Amaro ao adultério
de Primo Basílio e à atitude promíscua e
donjuanesca do Carlos de Os Maias, im- libertinos. Este tipo de abordagem de
possível de redimir pelo amor na medi- Cardoso Pires, que dá à figura dos liberti-
da em que este conduz à transgressão nos um contexto mais racionalista e poli-
consciente do mais abjeto dos tabus. Sem ticamente interventivo ao mesmo tempo
grande diferença, vai ser este o quadro que realça a sua vertente cosmopolita e
do escândalo lisboeta que se seguirá à mundana, bem como o papel da sedução
publicação de Canções, de António Boto, no encontro amoroso entre os dois sexos,
em 1922. aproxima-se das considerações do francês
A libertinagem conheceria na déc. de Roger Vailland, cujo livro Le Regard Froid
60 do séc. xx um interessante momento (1963) recolhia textos como “Esquisse
de recuperação polémica, sendo determi- pour un portrait du vrai libertin” (1946)
nante na estrutura conceptual do ensaio e “Les quatre figures du libertinage”
Cartilha do Marialva (1960), de Cardo- (1950), importantes no quadro da recu-
so Pires, que definiu a atitude marialva peração do conceito pelas vanguardas
como um antilibertinismo tipicamente históricas. Em 1966, na polémica edição
português e, partindo desse pressuposto, de A Filosofia na Alcova, do marquês de
estabeleceu uma cisão entre duas formas Sade, Luís Pacheco aproveitaria os para-
de compreender o país, uma adequada digmas do livro de Cardoso Pires para,
à manutenção dos velhos valores ecle- assinalando o carácter permanentemente
siásticos e dos privilégios tradicionais polémico dos libertinos, definir a mun-
dos senhores da terra, outra que aponta dividência existencialmente inconfundí-
para uma mais racional, calculada e cos- vel propiciada pela conjugação das suas
mopolita abertura de Portugal ao diálogo vertentes religiosa, intelectual e amorosa:
com as outras nações europeias, e que te- “O libertino não é apenas o homem da
ria entre os seus representantes os mais vida amorosa, intensa ou desordeira, mas
avançados espíritos da nossa cultura, os algo mais [...]. É o ateu irredutível, é o

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Antilibertinismo 1159

que faz da sua vida amorosa um espetácu- cristãos foi muitas vezes agitada por es-
lo – por atitudes, palavras ou escritos; é o tas ondas – lançada de um extremo ao
que gosta dela, em suma, por isso o pro- outro: do marxismo ao liberalismo, até à
clama. É o que transforma essa experiên- libertinagem, ao coletivismo radical; do
cia muito acima do prazer animal num ateísmo a um vago misticismo religioso;
jogo calculado, numa técnica da sedução, do agnosticismo ao sincretismo e por aí
numa aposta vital” (PACHECO, 1966, adiante. Cada dia surgem novas seitas
18). Em seguida, exalta também a sua re- e realiza-se quanto diz São Paulo acer-
lação com a liberdade: “É um tipo livre e, ca do engano dos homens, da astúcia
como tal, porque a liberdade apela pela que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14)”
liberdade, um tipo que quer (queria ver, (RATZINGER, 18 abr. 2005).
gostava, precisava de lidar com) gente li-
vre com ele, como ele, à sua volta. Logo Bibliog.: BOTELHO, Abel,  O Livro de Alda,
trata-se duma mentalidade progressiva. Porto, Lello Editores, 1982; BRAGA, Teófi-
Isso o leva, o obriga, lhe exige estar con- lo,  História da Universidade de Coimbra, Lisboa,
tra todas as tiranias” (Id., Ibid., 19). Tam- Tip. da Academia Real das Ciências, 1898;
bém em 1966, as Edições Afrodite deram CAMPOS, Augusto de,  Estudos sobre o Soneto:
à estampa a Antologia de Poesia Portuguesa Três Conferências, Coimbra, Coimbra Editora,
1936; CAVAILLÉ, Jean-Pierre, “Le libertinisme
Erótica e Satírica, na qual a organizadora,
et philosophie: catégorie historiographique
Natália Correia, deu particular atenção a
et usage des termes dans les sources”, Liberti­
autores tipicamente classificados como li- nage et Philosophie au XVIIe Siècle, n.º 12, 2010,
bertinos, exprimindo desde logo no títu- pp.  11­‑32; Id.,  Postures Libertines, Toulouse,
lo a irredutível conjugação libertina entre Anacharsis, 2011; Id.,  “Libertine and liberti-
o conflito crítico pressuposto pela prática nism: polemic uses of the terms in sixteenth
da sátira e o exercício livre do erotismo. and seventeenth century english and scottish
Parece-nos de salientar, em conclu- literature”, Journal for Early Modern Cultural Stu­
dies, vol. 12, n.º 2, 2012, pp. 12-36; CAVALEI-
são, o texto “La polémique anti-liber-
RO DE OLIVEIRA, Recreação Periódica, Lisboa,
tine et anti-libertaire contemporaine: Biblioteca Nacional, 1922; CORREIA, Natália
catholiques, libéraux, libertariens”, de (org.),  Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e
Jean-Pierre Cavaillé, no qual o autor evi- Satírica, Lisboa, Afrodite, 1999; COTGRAVE,
dencia a persistência da denúncia dos Randle,  A French and English Dictionary, Lon-
comportamentos tidos por libertinos don, Anthony Dolle, 1611; DIAS, Augusto
no discurso de filósofos como o italiano da Costa, “O jovem Garrett”, in GARRETT,
Almeida,  O Roubo das Sabinas. Poemas Liberti­
Augusto del Noce, que considera o pen-
nos, Lisboa, Portugália, 1968, pp. 7-100; DI-
samento libertino a vertente negativa da DEROT, Denis, “Libertinage”, in  Encyclopédie
liberdade desde o final do Renascimen- ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et
to até ao que designa como libertina- des Métiers, vol. 9, Paris,  chez Briasson, 1751,
gem de massas do séc. xx, e de Joseph p.  476; FAROL,  António Fernandes Ferrer,
Ratzinger, que, num discurso de 18 de A Libertinagem perante a História, a Philosofia
abril de 2005, relaciona a libertinagem e a Pathologia, Porto, Tip. José Pereira da Sil-
com outras correntes de pensamento va, 1865; FOUCAULT, Didier,  Histoire du Li­
bertinage, Paris, Perrin, 2010; FOUCAULT,
contemporâneas: “Quantos ventos de
Michel,  História da Sexualidade, vol. 1, Lisboa,
doutrina conhecemos nestes últimos Relógio d’Água, 1994; FUERTES, Juan Ve-
decénios, quantas correntes ideológicas, larde, El Libertino y el Nacimiento del Capitalismo,
quantas modas do pensamento... A pe- Madrid, Pirámide, 1981; FURETIÈRE, Antoi-
quena barca do pensamento de muitos ne, Dictionnaire Universel Contenant généralement

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1160 Antiliteralismo

Tous les Mots François tant Vieux Que Modernes,


Roterdão, Arnout & Reinier Leers, 1690; GA-
Antiliteralismo
RASSE, Pierre, Recherche des Recherches, Paris,
Sébastien Cappelet, 1622; GONÇALVES, Ze-
tho da Cunha (org.), Notícia do Maior Escândalo
Erótico-Sexual do Século XX em Portugal, Lisboa,
Letra Livre, 2014; LAPLANCHE, François, “Le
mouvement intellectuel et les Églises”, in VE-
NARD, Marc, Histoire du Christianisme, des Ori­
gines à Nos Jours, Paris, Declée/Fayard, 1992,
pp. 1061-1120; LISTA, Giovanni, Dada Libertin
C ontra a letra em seus limites deno-
tativos, e um significado primário e
simples, o antiliteralismo é um mecanis-
& Libertaire, Paris, L’Insolite, 2005; MACE- mo ou processo interpretativo, sobretudo
DO, José Agostinho de, Refutação dos Principios
na hermenêutica bíblica, na análise literá-
Methafysicos e Moraes dos Pedreiros Livres Illumi­
nados, Lisboa, Impressão Régia, 1816; MAR- ria e no exercício da tradução. Pressupõe
TINS,  Maria Teresa Esteves Payan,  A Censura o influxo do espírito, seja no Íon platóni-
Literária em Portugal nos Séculos XVII e XVIII, Lis- co ou no fogo pentescostal, em que a lava
boa, FCG, 2005; Id.,  Livros Clandestinos e Con­ da inspiração vai para lá do que é dito e
trafacções em Portugal no Século XVIII,  Lisboa, de quem enuncia, mais do que mediador
Colibri, 2012; PACHECO, Luís, “O Sade aqui ou mero canal, com que se denega a ir-
entre nós”, in  SADE, Marquês de, A Filosofia
responsabilidade do sujeito emissor. Para-
na Alcova, Lisboa, Afrodite, 1966, pp. 11-25;
PIRES, Daniel, “Introdução”, in BOCAGE,
digmática é a segunda epístola de S. Pau-
Obra Completa, vol. vii, Porto, Caixotim, 2004, lo aos Coríntios (3, 6), segundo a qual a
pp. 9-55; PIRES, José Cardoso,  A Cartilha do letra mata, mas o espírito vivifica: “littera
Marialva, Lisboa, Dom Quixote/Círculo de Lei- enim occidit, Spiritus autem vivificat”.
tores, 1989; RAMOS, Luís António, “Iluminis- Se, no imediato, esse capítulo visa os
mo”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Di­ fariseus na prisão da letra – diligência
cionário de História Religiosa de Portugal, Lisboa, comum nas proposições rabínicas e no
Círculo de Leitores, 2000, pp. 414-419; RAT-
mesmo Cristo (desde logo, nas remissões
ZINGER, Joseph, “Homilia”, 18 abr. 2005;
SALGADO, Maria Antonieta (org.), A Polémica para o Antigo Testamento, na metalin-
sobre o Retrato de Vénus, Lisboa, INCM,  1983; guística operada nas Escrituras) –, urge,
TAMULY, Annette, “Amour, humour. Une na configuração ortodoxa, combater
passerelle naturelle et surnaturelle jetée sur la heresias, qual o pelagianismo do séc.  v,
vie”, Mélusine, n.º 10, 1988, pp. 35-41; VAIL- quando S.to Agostinho lança um título fe-
LAND, Roger, Esboço de Um Retrato do Verdadeiro liz, De Spiritu et Littera (412), aproveitado
Libertino, Lisboa, & etc, 1976; VERNET, Félix,
pela moderna crítica literária e pela juris-
“Frères du libre esprit”, in Dictionnaire de Théo­
logie Catholique, Paris,  Letouzey et Ané, 1920, prudência, embora também deparemos
pp. 801-810; ZOLI, Sergio, Europa Libertina tra com um provocador Sentido Literal (sub-
Contrariforma e Illuminismo, Florença, Nardine título: Ensaios de Literatura Portuguesa, por
Editore, 1997. Maria João Reynaud, 2004), olhando, to-
Rui Sousa davia, à littera como embrião da literatura
ou das belas-letras (no séc. xvii, antecipa-
da pela formação letradura).
Na tradição alegórica (o que crer), sa-
lientara-se Fílon de Alexandria (c. 25 a.C.-
­‑40), autorizando algo muito comum na
exegese tipológica, que se reencontra
no P.e António Vieira: prefigurar Cristo

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Antiliteralismo 1161

no Antigo Testamento. Clemente de


Alexandria (c. 145-c. 215) e Orígenes
(c. 185­‑253) convergem na ideia de Re-
velação, de um fundamento originário
do mundo; este, alegorista-mor (sem
desprezo do sentido moral: o que fazer),
interessa saudá-lo como preocupado pelo
texto do Antigo Testamento, que dispõe
em seis colunas: em hebraico, na trans-
crição grega do hebraico, e nas traduções
gregas dos Setenta, de Áquila, de Símaco
e de Teodocião. Discurso do Céu, a Escri-
tura não pode ser indigna do seu autor,
donde evitar absurdos no corpo da letra e
sentidos transtornados – que muitos, em-
bora inspirados, mas possuídos pelo mal,
alimentam.
Orígenes (c. 185-253).
A agostiniana teoria da graça reves-
te-se de um quarto sentido, anagógico
(o  que esperar, se iluminados por Deus:
a graça perdoa, regenera, predestina), não será não literal – preferível ao inade-
mas, na resposta a Pelágio (c. 350/360- quado “antiliteral” –, fundada no sobera-
-c. 425/435) – contra o livre-arbítrio tam- no contextualismo.
bém defendido por Orígenes, assumindo O contexto de uso funda a lingua-
o pecado de Adão como hereditário, atri- gem – melhor, cada ato de enunciação – na
buindo importância ao batismo, dizendo base de pressuposições não forçosamente
Cristo salvador, para lá de exemplo éti- declaradas, mas variáveis, sem reivindicar
co –, Agostinho lê a passagem de S. Paulo uma verdade definida (que, porém, se
atrás referida jogando com a literalidade persegue, dentro de um grau de satisfa-
e sobreposição das Escrituras, para con- ção relativa), permitindo que qualquer
cluir da salvífica aliança com o Espírito proposição diga coisa diversa em contexto
divino. diferente. A ambiguidade semântica pode
Literais, antes de teólogos, procuraram reduzir-se a efeito colateral.
ser os principais tradutores da Bíblia, O antiliteralismo será outro império,
não raro, refundadores de línguas verná- em que desagua abundância de tropos e
culas. Algumas buscaram caução por ou- figuras de pensamento; não vemos que
tra via: maior proximidade ao hebraico tal exista em “pernas da cadeira”, estando
alegadamente adâmico através do grego em causa metáfora, e, mesmo, em “per-
e do latim, indiferentes às retóricas de- nas torneadas da cadeira”. Tudo muda,
siguais. Mas essa gramaticalidade não se disser “pernas hollywoodescas da ca-
sobreviveria, não passaria de letra morta, deira” – não, quiçá, para tribo amazóni-
se novos tempos não lessem contra ela. ca alheia aos nossos quadros mentais, e
Assim, fixada uma literalidade (uso lite- cujos mitos pedem um esforçado antilite-
ral de matéria que novos editores podem ralismo da nossa parte. Do uso vamos ao
questionar; estado da língua em forma sentido e, nestes dois últimos exemplos,
de letra), dificilmente a interpretação em vez de “anti-”, pudéramos optar por

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1162 Antiliteralismo

“não-”. Se necessário, e possível, com al- pacto institucional acolhe e se debruça


gum “espírito”. sobre os frutos à vista. Posto isso, vejamos
As dificuldades de tradução do Livro outros degraus antiliterais.
dos Livros e da Antiguidade profana, a A letra recreia-se, recria-se, organizan-
par do espólio medievo-ocidental, não do-se, conforme os tempos, em escalas
demoveram os nossos quatrocentistas, valorativas, cuja última instância deveria
vazando excertos e vertendo as primei- ser a impressão de naturalidade. A rees-
ras obras. Por respeito, em eras de imita- crita (ou rescrita) é uma curiosa escalada,
ção, desejam-se exatos, palavra a palavra sem, desejavelmente, perda da ideia ori-
(metáfrase); mas a ordem da natureza ginária, a acompanhar os nossos passos:
– muito confusa, a natureza humana, na no caso, a adaptação é um salto – ora fica-
refrega contrarreformista – e o espírito mos privados de cenas e personagens, ora
de uma tarefa particular, qual penitência de descrições inócuas para o propósito da
pós-babélica, cedo exigem outras formas versão, ora se propõe um análogo enten-
de estar, em que se não seja escravo, nem dível à chegada sob forma de condensa-
obscura figura ancilar, mas mediador (al- ção –, tal como é um desvio a recriação
guns serão plagiadores); em que se não linguística. Esta pode dar-se, inclusive,
perca a essência pressentida, ainda que a no perímetro de um idioma: assim, tan-
expensas de ruturas formais ou da inevi- to se procura um discurso medieval mais
tável paráfrase. Natureza variada não es- ou menos bem forjado para original ou
quivou excessivos adornos, mas é próprio mundividência medievais, como se atua-
do não literal um efeito de compensação. liza, não raro corrigindo alegadas falhas
Este quadro, à partida sobre textos bí- (e não se pensa, aqui, em crítica genéti-
blicos e greco-latinos (ainda pouco sobre ca), obra-prima ancestral. Vai-se do loca-
línguas nacionais), deve ser entendido lismo ao pitoresco, do borrão talvez po-
nos seus porquês: um ato de fé ou um bre ao kitsch ambiental, defendendo, uns,
exercício filológico são diferentes de uma que o efeito sobre os leitores, agora, de-
transferência de conhecimento ou de cul- veria ser semelhante ao sentido pelos pri-
turas; o vezo pedagógico ou moral, recor- meiros leitores ou ao que sentiria quem
tado em tantas censuras, abstrai de pre­ lesse o original. É uma ilusão conhecer o
ocupações estéticas. Se o significado está efeito sobre quem primeiro leu Virgílio, e
debaixo das vestes linguísticas, é possível querer imitá-lo, como julgar da constân-
o decalque – às vezes, são longas vestes, o cia das leituras contemporâneas. Se assim
que dá larga sintaxe frouxa ou multipli- fosse, não tínhamos versões diferentes de
cação de vocábulos –, mesmo geminação, um discurso no espaço de horas. Isto tan-
i.e., construir proposições identicamente to serve para a tradução como para um
lidas em latim e português. Mas o esforço estudo analítico-interpretativo.
tem as suas limitações, quando não com- A equivalência estilístico-formal torna­
porta riscos e soluções risíveis entre vizi- ‑se desafiadora (daí Os Lusíadas transla-
nhos, afinal, ciosamente senhores da sua dados em prosa) e, nos idiomas sintéticos
linguagem. O contágio entre falsos ami- ou aglutinantes, rebarbativa, se obedecer-
gos, ou duvidosos irmãos neolatinos, re- mos, e.g., à anacolutia: o génio das línguas
dunda em tragédia: o “mórbido” italiano põe à prova o engenho de quem, se for
não é “mórbido”, antes “macio”. Enfim, é sério, gostaria de ser fiel. Traduzir, tam-
pouco operativo demorarmo-nos no con- bém como labor interpretativo, é deba-
ceito de intraduzibilidade, quando um ter-se com a letra, ser-se transliteral por

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Antiliteralismo 1163

dever de ofício, inclusive nos registos pu- oral e o seu suporte escrito há naturais
ramente técnicos, onde urge inventar ou lacunas. Compendiados alguns universais
adaptar fórmulas, contrair empréstimos, ditos substanciais, como é o erotismo nas
fazer cedências, se necessário, na insufi- antigas civilizações, fácil se torna conciliá­
ciência referencial do ponto de chegada. ‑los, a milénios de distância, com o nosso
Se se procura que um autor cronoló- presente.
gica, espacial e linguisticamente distante Fator de comunicação, desejavelmente
seja lido como se escrevesse no tempo e expressiva, a traduzibilidade impregna a
lugar da língua de chegada, maior orgu- letra, que liberta da cristalização, embora
lho sentimos quando este discurso é con- nem sempre do ridículo, como ver Fe-
siderado melhor por quem domina os renc/Franz Liszt vertido em Francisco Fa-
dois registos; mais ainda, quando o mes- rinha (“liszt”, em húngaro). As inevitáveis
mo autor se reconhece, e aos seus particu- quebras prosódicas, o conveniente des-
larismos, no feito, no conseguimento de respeito por regras e formas fixas, outros
outra matéria verbal. Há conglomerados, obstáculos, tudo isso ajuda ao conflito de
ou unidades de tradução, que uma sábia interpretações que transcendem a letra.
transposição resolve, sem grandes perdas No mínimo, ficamos com as belles infidèles.
semânticas. Converge a modulação em Já antes do apóstolo Paulo, um aviso
escala reduzida, e o recurso à analogia seco de Horácio na Arte Poética recomen-
linguística: do not enter, entrada proibida. dava ao scriptor: “nec verbum verbo cura-
Na interpretação de viva voz, e des- bis reddere fidus/interpres” (vv. 133-134).
contada a consecutiva – com texto pre- A dificuldade não está em que “procura-
viamente escrito, em que se integra a le- rás (curarás de) traduzir não (tão-pouco)
gendagem bastas vezes problemática dos palavra a/por palavra”; o busílis da ques-
media visuais –, percebemos, na simultâ- tão é “fidus intrepes”, dividido na cena,
nea (se não for demasiado sussurrada), em que o nome, “intérprete” ou “tradu-
quanto se perde, e se deriva, como essa tor”, conta menos do que o adjetivo. Este
tradução se reduz ao osso. É a demonstra- vê-se “(como) servil”, “bom/verdadeiro”,
ção maior (legítima, mesmo que depure “fiel”, em colorações tais, que, ao sabor
um discurso perifrástico?) da vitória anti- da tradição – só agora referida, enquanto
literalista, que ainda sorri aos desastres da pertinente nesta abordagem –, preferi-
tradução automática, desacompanhada mos “fiel intérprete” – literalmente.
de informações linguísticas específicas e
de uma gramática cultural.
Entra aqui a solução da transferência Bibliog.: HORÁCIO, Arte Poética; MAZZARE-
de um universo cultural – já não hipótese ZE, Tecla, “Interpretazione letterale: giuristi
linguística ou discursiva, como na trans- e linguisti a confronto”, in VELLUZZI, Vito
posição –, ainda que exija continuados (ed.),  Significato Letterale e Interpretazione del
comentários e explicações. Universos di- Diritto, Torino, Giappichelli, 2000, pp. 95­
ferentes, alguns só acessíveis a antropó- ‑136; MESCHONNIC, Henri,  Poétique du Tra­
duire,  Paris, Verdier, 1999; RECANATI, Fran-
logos e estudiosos da longa duração, po-
çois,  “Literalismo y contextualismo: algunas
dem conhecer razoáveis contrapartidas, variedades”,  Revista de Investigación Lingüística,
mesmo se parciais, sem que isto signifi- n.º 10, 2007, pp. 193-224; Id., Le Sens Littéral:
que resistência da letra: não temos velei- Langage, Contexte, Contenu, Paris, Éditions de
dades de ter lido tudo ao olharmos para l’ Éclat, 2007.
a frase mais singela; entre uma tradição Ernesto Rodrigues

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1164 Antilivre-cambismo

Antilivre-cambismo mo admitindo que o livre-câmbio univer-


sal seria a melhor opção global, replicam
os seus opositores: será isso argumento
suficiente, quando se sabe que nem to-
dos adotaram ou adotarão tal conduta?
E  mesmo que ele promova uma melhor
afetação geral dos recursos produtivos:

T ratar uma expressão cultural em ne-


gativo constitui uma forma de de-
tetar manifestações discursivas social e
não é entretanto inegável que produz e
produzirá desemprego e miséria, pelo
menos, no curto prazo?
culturalmente subalternas, veiculando A viabilidade dos argumentos prote-
pretensões que um determinado contex- cionistas, todavia, é quase sempre fra-
to hegemónico reconhece, mas que man- camente articulada, ou dotada apenas
tém precisamente sob uma forma larvar, de duvidoso direito de cidadania acadé-
escassamente articuladas, emergindo mico, o que, não raro, leva um discurso
apenas enquanto oposição a algo ou potencialmente pela positiva a travestir­
como neurose coletiva, indicando uma ‑se de algo apresentado pela negativa. As
dificuldade global de saber bem o que diferenças entre os efeitos de curto pra-
se pretende, mas ainda assim sabendo zo e os de longo prazo, ou entre o ponto
ou julgando saber bem que “não vou por de vista da mera estática comparada e o
aí” – para usar a expressão consagrada dos efeitos dinâmicos, com os processos
pelos famosíssimos versos de José Régio. industrializadores a poderem produzir
Em boa medida, o discurso antilivre­ externalidades positivas e economias de
‑cambista de Oitocentos pode ser inte- aglomeração, e.g., constituíram linhas ar-
grado nesta categorização geral. Recor- gumentativas expostas por mais do que
demos que este é, primeiro, o século do um autor de Oitocentos, mas em geral
imperialismo do livre-câmbio promovido de forma apenas parcialmente cons-
pelo Reino Unido, para pouco a pouco se ciente. O mesmo é válido para a ideia
transformar no século da obsessão pelo de que um comércio externo desregula-
comércio justo, i.e., pela proteção, antes mentado poderia propiciar o surgimen-
de mais a proteção pautal, a qual acaba to ou a ampliação de crises económicas,
por fazer refluir a maré livre-cambista, acrescentando a estas últimas uma com-
vindo finalmente a contestá-la com su- ponente estritamente especulativa e/ou
cesso considerável até mesmo em terras predatória. Analogamente para a noção
britânicas. Todavia, deve acrescentar-se, de que o livre-câmbio universal é algo a
chega-se frequentemente a esse resulta- ser cuidadosamente distinguido do es-
do mais em virtude dum mero realismo tabelecimento de tratados comerciais.
político do que em função da adoção de Adam Smith e David Ricardo, Jean-Bap-
teorias ou doutrinas perfeitamente ela- tiste Say, Friedrich List e Michel Cheva-
boradas – e isso expressa antes de mais lier, entre tantos outros – todos eles se
o facto de o protecionismo pautal oito- confrontaram com o problema de que o
centista ser sobretudo uma corrente de ideário de globalismo ou mundialismo
oposição ao livre-cambismo dominante, implícito na noção de livre-câmbio podia
ao qual contrapõe, de forma muitas vezes conflituar com as dinâmicas regionalistas
tateante, a realidade factual e as dificul- tendencialmente associadas à instituição
dades das opções políticas práticas. Mes- de tratados comerciais, sendo as rivalida-

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Antilivre-cambismo 1165

des nacionais não suprimidas por estes, Adam Smith, pelo seu lado, opina, algo
mas apenas transferidas, aliás mesmo po- provocatoriamente, que pelo Tratado de
tencialmente ampliadas. A distinção dos Methuen só Portugal foi beneficiado,
conceitos de criação e desvio de comér- tendo Inglaterra sofrido com o desvio de
cio, em meados do séc. xx oficialmente comércio de vinhos de outros países que
consagrada através da obra de Jacob Vi- aquele teria induzido (SMITH, 1981, II,
ner, parece em momentos diversos emer- 76). Estas opiniões, entretanto, são em
gir nas obras daqueles economistas de geral refutadas, mesmo por autores que
Setecentos e Oitocentos, sem que todavia no fundamental se reclamam do legado
esse distinguo analítico seja claramente smithiano. Jean-Baptiste Say, e.g., defen-
formulado. Finalmente, a própria corre- dendo o livre-câmbio universal e pro-
lação do grau de abertura das economias nunciando-se com desconfiança quanto
com os ritmos de crescimento económi- aos tratados (nos quais teme sobretudo a
co das mesmas é, nalguns casos, objeto promoção de rivalidades com terceiros),
de disputa, com os malefícios consisten- acrescenta ainda que Methuen configu-
tes da abertura a serem destacados por rou um caso de vantagens iníquas, ler
mais de um autor. “tributos coloridos” (SAY, 1972, 183), ob-
Mais interessante ainda, para os propó- tidas abusivamente por Inglaterra à custa
sitos deste texto, é o lugar ocupado por de Portugal. Já David Ricardo, como é sa-
Portugal no imaginário da teoria econó- bido, utilizou precisamente o modelo das
mica. As consequências do Tratado de relações luso-britânicas para, a respeito
Methuen são, pode dizer-se, um tema do comércio de vinhos e de tecidos, ex-
inescapável. Mas não apenas elas. Já em por as suas famosíssimas noções das van-
meados do séc. xviii, e.g., um autor como tagens absolutas e comparativas suposta-
Richard Cantillon, ao defender as vanta- mente associadas a tratados comerciais:
gens duma balança comercial favorável, de acordo com o modelo das primeiras,
distinguia as dinâmicas sociais correspon- Portugal disporia de condições mais van-
dentes aos casos em que esse saldo posi- tajosas para a produção de vinhos e a Grã­
tivo é conseguido através da promoção ‑Bretanha para a produção de tecidos,
das manufaturas e da navegação daquele pelo que o tratado seria uma boa ideia.
outro, resultante da mera descoberta de Seguindo a lógica das vantagens compa-
minas de metais preciosos. Quando é do rativas, embora Portugal tivesse vantagem
primeiro caso que se trata, afirma, apesar em ambos os sectores, sendo a desvanta-
das tendências para a subida dos preços gem britânica menor nos tecidos, o tra-
resultantes do próprio excedente da ba- tado e a especialização produtiva subse-
lança comercial, o balanço global de pro- quente continuariam a ser uma boa coisa.
gresso e retrocesso é favorável à riqueza Relativamente a Friedrich List, deve
das nações e dos soberanos. Quando de- desde logo sublinhar-se que a sua obra
paramos com o segundo modelo, porém, pôde ser invocada entre nós quer a favor
i.e., se “a nobreza portuguesa e outras” da proteção pautal, quer contra ela. De
(CANTILLON, 1952, 44) se convertem facto, para além de ter considerado absur-
por ânsia de ostentação ao consumo ir- das e abusivas tanto as opiniões de Smith
restrito de bens luxuosos importados, o como as de Say relativas a comércio in-
efeito de imitação assim induzido no con- ternacional, List argumentou em termos
junto do corpo social leva a que o saldo gerais a favor das vantagens dos tratados,
global de fluxo e refluxo seja nocivo. acrescentando que as exceções admitidas

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1166 Antilivre-cambismo

quer por Smith quer por Say à regra da cadência portuguesa, na qual teriam sido
liberdade de comércio eram geralmente goradas as expectativas da Coroa e da no-
tão absurdas quanto a própria regra. Por breza na melhoria, em virtude do suposto
outro lado, a proteção pautal deveria ser aumento das quantidades transaciona-
considerada uma “educação industrial”, das, dos rendimentos alfandegários e das
sendo por isso legítima apenas a relativa rendas da terra. A própria possibilidade
às manufaturas, não à agricultura (LIST, de mudanças bruscas na orientação e nas
1944, 164, 170, 192-193). Também não preferências do poder régio ilustraria
poderia ultrapassar um nível inicial de 40­ bem o alcance limitado de qualquer ten-
‑60 % de direitos, e passando rapidamente tativa industrializadora empreendida por
para 20-30 %, no máximo. O principal co- um Estado absolutista, tornando eviden-
mércio internacional deveria, aliás, vir a te a necessidade de adoção dum regime
ser um comércio assente no livre-câmbio, constitucional, com garantia de estabili-
estabelecendo-se entre os países climaté- dade na estrutura jurídica, respeito pelos
rica, cultural e politicamente inclinados interesses dos manufatores, etc. Ao mes-
para as manufaturas (a generalidade da mo tempo, porém, Portugal é etiquetado
Europa Ocidental e da América do Nor- como país de dimensão demasiado redu-
te) e os países por aqueles mesmos con- zida e escassas condições culturais, para o
dicionalismos destinados à agricultura qual a proteção pautal seria inconvenien-
e outras atividades extrativas. Esta espe- te e tendo mais a ganhar com o livre-câm-
cialização produtiva seria supostamente bio. Bem vistas as coisas, se a escola desis-
vantajosa para todos os intervenientes, ao tisse de propagandear a mera liberdade
contrário do que sucedia com as nações genérica do comércio, aprendendo a re-
potencialmente industriais, mas às quais conhecer as especificidades das situações,
a ausência de proteção tivesse lesado na os seus pontos de vista seriam muito mais
caminhada industrializadora. A proteção facilmente aceites naquilo que têm de
é portanto, para List, algo de recomendá- genuinamente válido: “A teoria da liber-
vel para países situados numa zona inter- dade de comércio encontrará então bom
média de progresso económico, apenas acolhimento na Espanha, em Portugal,
para esses e estritamente adentro dos li- em Nápoles, na Turquia, no Egito e em
mites antes referidos. todos os países mais ou menos bárbaros e
Em que posição, neste contexto, ma- em todos os climas cálidos. Já não se con-
pear Portugal? List, deve reconhecer-se, ceberá nestes países, no seu grau de civili-
não prima exatamente pela coerência. zação atual, a ideia extravagante de criar
Obviamente, refere várias vezes o Tratado uma indústria manufatureira mediante o
de Methuen enquanto exemplo das con- sistema protetor” (Id., Ibid., 154).
sequências negativas da especialização, à Se considerarmos agora os autores
escala internacional, na produção agríco- portugueses de Oitocentos, período
la; refere também as desvantagens, para em que a questão do protecionismo e
as potências agrícolas e mais pequenas, do livre-cambismo foi discutida com
da celebração de tratados com potências particular veemência, deve ser desta-
industriais e maiores. Inclui mesmo nes- cado antes de mais o caso de Oliveira
tes argumentos uma referência explícita Marreca enquanto representativo duma
ao esforço industrializador empreendido evolução que, partindo de um argumen-
pelo conde de Ericeira, ao qual se teria tário basicamente inspirado em Say, vai
seguido, com o tratado, uma fase de de- percorrendo um longo caminho que o

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Antilivre-cambismo 1167

aproxima de muitos dos raciocínios e


das conclusões práticas de List, o qual
todavia praticamente não cita. São re-
levantes, entre outras: a noção de que
os interesses da nação, concebida como
totalidade orgânica, devem ser antepos-
tos aos dos grupos parciais; a ideia de
primazia da consideração dos agentes
económicos enquanto produtores relati-
vamente ao que os mesmos representam
enquanto consumidores; a ênfase nas
possibilidades civilizadoras da indústria
manufatora e das cidades, por compa-
ração com a agricultura e os campos;
enfim, a persuasão de que promover
deliberadamente a indústria não desvia José Frederico Laranjo (1846-1910).
recursos da agricultura nem lhe retira
mercados. Bem pelo contrário: sem ela
os recursos permaneceriam inutilizados, É igualmente merecedora de destaque
e nenhum mercado exterior para produ- a intervenção de José Frederico Laran-
tos agrícolas se perde por se apostar na jo no âmbito destas discussões. Antes de
promoção da manufaturas, muito mais mais, deve sublinhar-se a tendência des-
fiáveis no desempenho dessa função. te autor para uma invenção de tradição
Mais tarde, ocupando-se da obra de portuguesa de pensamento económico
Marreca, o também republicano Rodri- protecionista, sendo Acúrsio das Neves
gues de Freitas destaca o relativismo das e sobretudo Solano Constâncio assinala-
argumentações, seja a favor da proteção dos por ele como precursores lusos da
pautal ou do livre-câmbio, da indústria economia nacional de List. Enquanto
manufatora ou da agricultura, bem como lente de economia política na Facul-
a estreita ligação das discussões relativas à dade de Direito da Univ. de Coimbra,
vida económica com aspetos mais imedia- deve dizer-se, Laranjo apresenta todo
tamente políticos na existência das socie- um sofisticado programa de investiga-
dades. O protecionismo parece-lhe, neste ções, e também de doutrinação, que o
contexto, pouco mais do que um expe- aproxima muito conscientemente quer
diente parcial, sugerindo mesmo a maior de List, quer do “socialismo de cátedra”.
coerência de projetos de intervenção Entre outros aspetos, merece destaque
económica estatal, como os vulgarmen- a consciência evidenciada quanto ao
te associados ao “socialismo de cátedra” que considera o carácter globalmente
(FREITAS, 1906, 38-39). Apelando ao protecionista da generalidade das pau-
socialismo neste contexto, Freitas pare- tas portuguesas, da extrema-esquerda
ce em boa verdade assumir a paixão pela à extrema-direita do espectro político,
questão social enquanto possível sucedâ- segundo Laranjo geralmente em resulta-
neo parcial das tendências para a aposta do de meras considerações de realismo
no protecionismo pautal – mas também político, as quais teriam levado muito ra-
como seu complemento lógico, o que zoavelmente os governantes a conciliar
não deixa de ser interessante. com os interesses, reconhecidos como

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1168 Antilivre-cambismo

intrinsecamente legítimos, dos vários gam essa direção, auxílio e hospedagem,


grupos sociais. tornando-nos odiosos perante os africa-
O protecionismo de Laranjo é, em nos, desacreditando-nos perante a Euro-
suma, demasiado sofisticado para ser re- pa, como aconteceu com Livingstone; a
duzido a um mero antilivre-cambismo. Inglaterra apontada nas cortes portugue-
Enquanto deputado progressista, porém, sas por um ministro de Portugal como
defrontava a necessidade de explanar os uma nação de que não temos nada que
seus raciocínios de forma concisa, cap- recear para as nossas colónias de África!”
tando as atenções do potencial auditório (LARANJO, 1879, 23-25).
pelo menos tanto pela via da componen- Que o antilivre-cambismo de Laranjo
te emocional como através do recurso à correspondia a convicções firmemente
pura lógica. O seu discurso remete assim, meditadas é algo fora de questão, como
obviamente, ao contexto antibritânico o é também a articulação estreita daquele
do debate, constituindo a partilha dos com um consciente antibritanismo. Ainda
despojos coloniais pelos parceiros/rivais assim, deve repetir-se que esta exposição
europeus, e sobretudo a condição das de pontos de vista ocorria no contexto
colónias portuguesas assuntos trazidos à das suas atividades enquanto parlamentar
colação, e sendo o livre-câmbio explicita- do partido progressista, e que no âmbi-
mente colocado, neste âmbito, em para- to até mesmo desta formação partidária
lelo com as guerras do ópio e em geral (predominantemente de leal oposição
com os holocaustos vitorianos: monárquica a governos regeneradores),
“A Inglaterra, a nação que pelas suas o discurso português mainstream aponta,
circunstâncias naturais, reforçadas por mesmo nestes anos, não apenas para o li-
meios artificiais centralizou em si a in- vre-câmbio universal, mas também para a
dústria e se fez oficina do mundo, vê-se livre circulação mundial dos capitais, um
hoje a braços com uma crise prevista há e outro facto apontados como correlatos
muito pelos homens da ciência. É claro da livre circulação das ideias, apresentan-
que à proporção que as diversas nações do-se portanto tais tendências enquanto
que serviam de mercado à Inglaterra, inevitabilidades e mesmo inevitabilidades
forem progredindo industrialmente, o vantajosas, de maneira aliás muito análo-
poder da Inglaterra há-de ir diminuin- ga à forma mentis caraterística do ideário
do. Vão-se fechando já hoje uma gran- globalista dos começos do séc. xxi. A tí-
de parte dos mercados da Inglaterra, e tulo de exemplo, João Crisóstomo, do
a ativa nação vê que só a África a pode mesmo partido que Laranjo e bem mais
salvar. […] A Inglaterra, a nação que na influente politicamente do que ele, argu-
Oceânia faz desaparecer diante de si as menta de forma convicta pela inevitabili-
raças indígenas; que na Ásia oprime a dade da queda das “muralhas da China”
Índia com armas e mercadorias e enve- em todo o lado: “No fim do século XIX
nena a China com ópio; que na Europa não há muralhas da China, nem para a
empresta dinheiro a nações tontas para própria China, e os capitais e a ciência
lhes recolher a herança, como fazem os não têm pátria; é sempre boa política
usurários aos filhos famílias; que inven- convidá-los a concorrer para o progresso
tou para a Europa o ópio do livre-câmbio do país” (SOUSA, 1893, 23).
para lhe destruir a indústria; a Inglaterra, O ambiente de finais de séc. xix e prin-
cujos missionários dirigidos, auxiliados e cípios do séc. xx, porém, correspondeu
hospedados pelos portugueses, nos pa- em quase toda a Europa a uma queda em

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Antilivre-cambismo 1169

desgraça do livre-cambismo do período cada”, isto é, impedir quem vem depois


anterior, não raro depreciativamente de- de utilizar os mesmos expedientes a que
signado agora como manchesterianismo. nós recorremos primeiro, o que exprime
Neste contexto, faz sentido considerar o fundamental das ideias listianas sobre
emblemáticas as guinadas de posição do o imperialismo britânico do livre-câmbio.
famoso polígrafo Oliveira Martins, sem
dúvida mais duradouramente influente
em períodos posteriores da história das
Bibliog.: impressa: CANTILLON, Richard, Es­
ideias em Portugal do que qualquer ou-
sai sur la Nature du Commerce en général, Paris,
tro autor antes considerado. Partindo Institut National d’Études Démographiques,
duma liminar rejeição da proteção pau- 1952; CHANG, Ha-Joon, Kicking away the La­
tal em 1873 em Portugal e o Socialismo, já dder: Development Strategy in Historical Perspecti­
em 1885, porém, em Política e Economia ve, London/New York, Anthem Press, 2002;
Nacional, se manifesta claramente a favor FREITAS, Rodrigues de, “Um economista
da dita proteção, e mesmo de uma pro- português (António de Oliveira Marreca)”, in
FREITAS, Rodrigues de, Páginas Avulsas, Porto,
teção que pode ser considerada como
Livraria Chardron, 1906, pp. 1-76; LARAN-
sobretudo industrialista. O ideal de pro-
JO, José Frederico, As Concessões na Zambézia,
teger tudo, de forma mais ou menos in- Lisboa, Imprensa Nacional, 1879; LIST, Frie-
diferenciada, obtém entretanto plena drich, Sistema Nacional de Economia Politica,
consagração em 1890, na obra Fomento Madrid, M. Aguilar Editor, 1944; MARRECA,
Rural e Emigração, ao passo que a preten- António de Oliveira, Obra Económica, 2 vols.,
samente inevitável tendência geral para Lisboa, Instituto Português de Ensino à Dis-
a autarcia económica e para o imperia- tância, 1983; MARTINS, Joaquim Pedro de
Oliveira, A Inglaterra de hoje: Cartas de Um Via­
lismo, enquanto consequências da satu-
jante, Lisboa, Guimarães Editores, 1951; Id.,
ração dos mercados, são ideias afincada- Portugal e o Socialismo, Lisboa, Guimarães Edi-
mente defendidas por ele em A Inglaterra tores, 1990; Id., Política e Economia Nacional, Lis-
de hoje: Cartas de Um Viajante, grupo de boa, Guimarães Editores, 1992; Id., Fomento
textos de 1893. Rural e Emigração, Lisboa, Guimarães Editores,
Com todos estes ziguezagues e hesita- 1994; RICARDO, David, Princípios de Economia
ções, deve enfim sublinhar-se, os autores Política e de Tributação, Lisboa, FCG, 1975; SAY,
Jean-Baptiste, Traité d’Économie Politique, Paris,
de Oitocentos todavia transmitiram à pos-
Calmann-Lévy, 1972; SMITH, Adam, Riqueza
teridade uma formulação dos prós e con- das Nações, 2 vols., Lisboa, FCG, 1981; SOU-
tras da protecção e do livre-câmbio que SA, João Crisóstomo de Abreu e, Uma Carta
permaneceu basicamente intacta duran- do General João Crisóstomo Abreu e Sousa, Lis-
te o séc. xx e na verdade chegou, ainda boa, Tipografia do Jornal de Comércio, 1893;
em boa medida válida, até aos começos VINER, Jacob, The Customs Union Issue, New
do séc. xxi – a pontos de um famoso eco- York, Carnegie Endowment for World Peace,
nomista desse período, autor de obras 1950; digital: GRAÇA, João Carlos, “José Fre-
derico Laranjo”, in MATOS, Sérgio Campos
celebradas com furor editorial e apre-
(coord.), Dicionário de Historiadores em Portu­
sentadas enquanto dernier cri da teoria do gal: da Fundação da Academia Real das Ciências
crescimento económico, Ha-Joon Chang, aos Finais do Estado Novo (1779-1974), Lisboa,
dar àquele que é talvez o mais célebre dos Centro de História da Universidade de Lisboa:
seus livros um título manifestamente ins- http://dichp.bnportugal.pt/historiadores/
pirado não apenas nas ideias de List, mas historiadores_laranjo.htm (acedido a 10 out.
até mesmo numa sua expressão: Kicking 2013).
away the Ladder, “dar um pontapé na es- João Carlos Graça

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1170 Antilobotomismo

Antilobotomismo riscos elevados, a indeterminação dos al-


vos cirúrgicos e as degradantes alterações
da personalidade que começavam a ser
geralmente admitidas.
A adoção dos primeiros neurolépticos
(fármacos que somam à função sedativa
efeitos antipsicóticos positivos sobre alu-

E xpressão que designa a oposição à


prática da lobotomia, ou leucotomia,
e demais práticas cirúrgicas ablativas ou
cinações e delírios) na medicação psi-
quiátrica, por volta de 1952, coincidiu
com a redução acentuada do recurso à
lesionais do encéfalo com fins psiquiátri- psicocirurgia, sem no entanto extinguir
cos. “Lobotomismo” implica uma aceção a sua prática nem a controvérsia que a
pejorativa do conceito, correspondendo envolveu. A realização da 2.ª Conferên-
à crítica da excessiva importância dos lo- cia Internacional de Psicocirurgia, em
bos frontais para a compreensão das fun- Copenhaga, em 1970 – 22 anos após
ções psíquicas, normais e patológicas. a 1.ª –, deu nota de um recurso mais mo-
Com a realização das primeiras lobo- derado à psicocirurgia, estabelecendo cri-
tomias nos Estados Unidos da América, térios mais apertados na indicação, maior
em 1936, a expressão “lobotomista” foi ponderação ética e rejeição consensual
aplicada a Walter Freeman, como refere do método primitivo, procurando maior
Jack El-Hai na obra The Lobotomist, inten- rigor com a introdução e desenvolvimen-
sificando-se em seguida, tendo atingido o to da estereotaxia (método minimamen-
auge no final dos anos 40 do séc. xx, com te invasivo de intervenção cirúrgica que
a atribuição, em 1949, do Prémio Nobel usa um sistema tridimensional de coor-
da Fisiologia ou Medicina ao precursor denadas para localizar pequenos alvos no
do método, Egas Moniz (1874-1955), interior do cérebro) no arsenal tecnoló-
pelo valor terapêutico da leucotomia no gico da neurocirurgia.
tratamento de certas psicoses. A convicção de que os lobos frontais
O antilobotomismo assumiu também, distinguiam os primatas das outras espé-
no plano mediático, a forma de campa- cies, na medida do seu maior desenvolvi-
nhas internacionais pela desnobelização mento, alicerçou as principais conjeturas
de Egas Moniz, designadamente a con- evolucionistas a este respeito. O estudo
duzida por Christine Johnson na última das lesões acidentais nos lobos frontais
década do séc. xx. pôs em evidência, em muitos casos, a não
Discordando da validade das conclu- afetação das funções vitais e motoras. Por
sões que os praticantes da leucotomia isso, até ao início do séc. xx era chama-
pré-frontal, lobotomia frontal e deriva- da a zona silenciosa ou muda do cérebro.
das apresentaram, nomeadamente na A  singularidade evolutiva (maior de-
1.ª Conferência Internacional de Psicoci- senvolvimento nos primatas do que nas
rurgia, realizada em Lisboa em 1948, os outras espécies) e a singularidade fun-
antilobotomistas (críticos da psicocirur- cional (zona silenciosa) levaram a que
gia) apontaram as limitações do entendi- fosse adiantada a hipótese de que, por
mento que valorizava exageradamente o exclusão de partes, fosse aquela a zona de
papel dos lobos frontais na dinâmica psí- integração das funções psíquicas relacio-
quica, e denunciaram os efeitos colaterais nadas com a consciência, a coordenação
danosos daquele método, sublinhando os superior e o enquadramento comporta-

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Antilobotomismo 1171

mental. A concentração da atenção nesta


área do cérebro prolongou uma moda-
lidade de localizacionismo mitigado. As
convicções a este respeito foram ao pon-
to de alguns, como Miller e Cummings,
terem preconizado que o séc. xx seria o
século do lobo frontal.
Os defensores da eficácia terapêutica
da leucotomia pré-frontal, lobotomia
frontal e similares teorizadas no âmbito
da psicocirurgia – Egas Moniz, Walter
Freeman e seguidores – sustentavam o lo-
botomismo, enquanto aqueles que se lhe
opunham, embora com diferentes moti- D.R.
Walter Freeman (1895-1972).
vações, assumiam posições assimiláveis ao
antilobotomismo.
Na sua expressão mais simples, o antilo- cação, merece menção especial a relativa
botomismo rejeitava o valor terapêutico demarcação de Almeida Lima (neuroci-
das operações praticadas no âmbito da rurgião da equipa de Egas Moniz) e de
psicocirurgia desde 1935-1936, assinalan- Barahona Fernandes (psiquiatra da mes-
do que os efeitos colaterais indesejáveis ma equipa).
apagavam as parcas vantagens sintomáti- Para além das objeções levantadas por
cas que em muitos casos se obtinham. Na Sobral Cid e, mais tarde, por Diogo Fur-
segunda metade do séc. xx, os movimen- tado, Almeida Lima, um dos principais
tos identificados com a antipsiquiatria colaboradores de Egas Moniz, discordou
(&Antipsiquiatrismo) reforçaram a críti- quer de alguns aspetos da conceptualiza-
ca à psicocirurgia e a outros métodos de ção e da designação, quer da continui-
choque então em uso. No plano teórico, dade da aplicação do procedimento pri-
contestava-se o reducionismo experimen- mitivo por si implementado, juntamente
talista, que confundia eliminação de sin- com o inventor do método. Por outro
tomas com etiologia patológica. lado, Barahona Fernandes remeteu o mé-
Da bibliografia que acumulou as vá- todo – inicialmente apresentado como
rias fases das controvérsias que confron- curativo – para a categoria de mero tra-
taram lobotomistas e antilobotomistas, tamento de choque, menos eficaz do que
destacam-se logo na primeira fase (1935­ a insulinoterapia ou a eletroterapia en-
‑1950), pelo lado dos lobotomistas, a tão em uso. As críticas de Almeida Lima
descrição das primeiras leucotomias pré­ orientavam-se para o quesito de rigor no
‑frontais em Portugal, por parte de Egas plano neurocirúrgico, considerando in-
Moniz, e nos EUA, com Freeman e Watts, compatível a indeterminação dos alvos a
suscitando um intenso debate marcado lesionar e a imprecisão do procedimento,
por casos de imediata e frontal oposição estendendo a recém-formulada condena-
na Europa, como aconteceu com Sobral ção ao método standard modificado de
Cid e Henri Baruk, mas também, tempos Freeman e Watts, bem como à lobotomia
depois, nos EUA, com Peter Breggin e transorbital do psiquiatra Fiamberti, tam-
Elliot Valenstein. Entre o abandono do bém adotada por Freeman. Quanto a Ba-
método primitivo e a sua defesa e justifi- rahona Fernandes, estamos perante uma

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1172 Antilobotomismo

reavaliação do método elaborada após A Maverick Medical Genius Tragic Quest to Rid
teorização justificativa dos efeitos dete- the World of Mental Illness, New Jersey, Wiley &
rioradores da personalidade, chamando Sons, 2005; FERNANDES, Henrique Baraho-
na et al., “A clinical and psychological study
“regressão sintónica” ao efeito colateral
on leucotomy”, in Psychosurgery. 1st International
(FERNANDES, 1983, 88) e contestando
Conference, Lisboa, Livraria Luso-Espanhola,
as hipóteses iniciais avançadas por Egas 1949, pp. 147-156; FERNANDES, Henrique
Moniz. Em ambos os casos, a atribuição Barahona, Egas Moniz Pioneiro de Descobrimen­
do Prémio Nobel da Fisiologia ou Medi- tos Médicos, Lisboa, Instituto de Cultura e Lín-
cina, em 1949, contribuiu muito para a gua Portuguesa, 1983; FREEMAN, Walter, e
relativização das notas críticas e da des- WATTS, James, Psychosurgery in the Treatment of
valorização das linhas de argumentação Mental Disorders and Intractable Pain, Springfield,
Charles C. Thomas, 1942; FURTADO, Diogo,
contra o método, mesmo se oriundas
“Réflexions sur la lobotomie”, Jornal do Médi­
do núcleo de colaboradores próximos de co, vol. xiv, n.º 351, 1949, sep.; LIMA, Almei-
Egas Moniz. da, “A técnica cirúrgica da leucotomia cere-
A controvérsia acompanhou o desenvol- bral (1)”, A Medicina Contemporânea, ano  lxvii,
vimento da neurocirurgia e da psicofar- n.º 7, jul. 1949, pp. 267-271; Id., “Platão
macologia e avivou a tensão entre neuro- – Bacon – Egas Moniz. A propósito do tra-
logia e psiquiatria, colocando uma série de tamento das doenças mentais”, O Médico,
vol.  lviii, n.º 1142, 1973, sep.; MILLER, Bru-
questões que continuam a suscitar respos-
ce  L., e CUMMINGS, Jeffrey L. (orgs.), The
tas complexas de perfil interdisciplinar: Human Frontal Lobe. Functions and Disorders,
experimentação em humanos, interação New York, The Guilford Press, 2007; MONIZ,
cérebro-mente, etiologia das perturba- Egas, Tentatives Opératoires dans le Traitement de
ções mentais e neurológicas, superação Certaines Psychoses, Paris, Masson, 1936; VA-
das fronteiras disciplinares (psiquiatria/ LENSTEIN, Elliot, Brain Control. A Critical Exa­
neurologia). Lobotomismo e antilobo- mination of Brain Stimulation and Psychosurgery,
tomismo acabaram por se diluir noutras New York, Wiley, 1973.
controvérsias que emergiram com as re- Manuel Correia
formulações operadas pelas neurociên-
cias e pelos sucedâneos da neurocirurgia
funcional.
Sem embargo das numerosas alusões
ao tema nos media, em geral, a principal
inscrição do antilobotomismo no cinema
continua associada ao filme de Milos For-
man, Voando sobre Um Ninho de Cucos, pro-
duzido nos EUA, em 1975.

Bibliog.: BARUK, Henri, La Désorganisation de


la Personnalité, Paris, PUF, 1952; BREGGIN,
Peter, “Lobotomies: an alert”, American Journal
of Psychiatry, n.º 129, 1972, pp. 98-99; CID, J.
M. Sobral, Obras, vol. i, Lisboa, FCG, 1983;
CORREIA, Manuel, Egas Moniz e o Prémio No­
bel, Coimbra, Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2006; EL-HAI, Jack, The Lobotomist.

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Antilusitanismo 1173

Antilusitanismo em “lyssa”, “fúria”  das bacantes (“Varro


pervenisse hiberos et persas et phoenicas
celtasque et poenos tradit. lusum enim li-
beri patris aut lyssam cum eo bacchantium
nomen dedisse lusitaniae et pana praefec-
tum eius universae. at quae de hercule ac
pyrene vel saturno traduntur fabulosa in

O vocábulo “lusitanismo” tem por base


o adjetivo “lusitano”, do latim lusi-
tanus, o qual é apontado, tradicionalmen-
primis arbitror”, Id., Ibid.). Como prevê o
próprio André de Resende, em Antiguida-
des da Lusitânia, rejeitando a tradução de
te e de modo pouco científico, como pro- “lusus” por “jogo”, não seria possível que
veniente do nome próprio de Lusos, filho o termo, designando uma geografia polí-
de Líber, antigo deus itálico do vinho. Te- tica anterior à romanização, proviesse do
ria sido esta figura mitológica a dar nome latim. André de Resende, não alcançan-
à Lusitânia, pois teria povoado a parte oci- do porém a extensão última da sua afir-
dental da península Ibérica. Esta etimolo- mação, mantém que “lusus” equivale a
gia encontra-se já na primeira gramática “Luso”, filho de Baco, alegando que assim
do português, de Fernão de Oliveira. No é este território designado desde o tempo
entanto, apesar de os dicionários do come- do deus romano.
ço do séc. xxi manterem esta etimologia A forja de etimologias maravilhosas
forjada com base no dimensionamento para Lusitânia teve outras continuidades.
maravilhoso de Portugal, a mesma deverá No Vocabulario de Bluteau, na entrada
ter sido mais mundana, permanecendo a “Lusitano”, menciona-se que Manuel de
origem do termo ainda incerta. O nome Faria, no seu comentário ao canto primei-
Lusitania encontra-se já abonado nas His- ro de Os Lusíadas, afirma que a raiz “luso”
tórias de Políbio, que cobre o período de está três vezes presente no nome dos lusi-
264 a.C. a 146 d.C., designando a provín- tanos, a saber: “A primeira pelo amor que
cia romana. A Lusitânia apenas surge com lhes teve o rei Luso, em retorno da estima-
a presença romana em espaço peninsular, ção com que os portugueses o veneraram.
num estratégico processo político e admi- Luso era filho de Sicceleo, rei da Espanha
nistrativo nem sempre coincidente com a por 1500 a.C. A segunda, porque alguns
expressão territorial de interesses e afini- anos adiante, saindo Baco a Espanha, lhes
dades culturais e étnicas autóctones, mas deu por particular rei a seu filho, ou com-
assinalando uma expressiva passagem de panheiro Luso, ou Lysias [...]. A terceira
etnónimo a topónimo. O valor do tema re- porque a terra de Portugal jaz ao longo
vela-se logo pelas sofisticadas construções do mar e em língua Vascoense, Lusa sig-
eruditas que rapidamente fazem esque- nifica longitude ou comprimento”; Blu-
cer o caminho do epónimo, pois supõe­ teau acrescenta ainda, na mesma entrada,
‑se que é com base numa tradução errada uma outra etimologia, de carácter místi-
das palavras “lusum enim Liberi patris”, co: “como da Lusitania é tão próprio o
de Plínio, o Velho, na História Natural (III, culto da igreja católica, parece que não
8), que se sustenta que “Lusitânia” deriva sem mistério lhe coube um dos nomes de
da figura mitológica Luso. No entanto, o Jerusalém, em que se representa a igreja
texto de Plínio, que cita Varrão, informa militante, pois um deles é Lusa, como se
que o termo “Lusitânia” terá tido origem vê num versos que Abraão Ortelio traz na
em “lusus”, “jogos” do pai Baco, ou então sua Sinonímia geográfica”.

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1174 Antilusitanismo

Estas etimologias alheadas do méto- paradoxalmente, a sua oposta, da resis-


do científico interessam mais para com- tência, que acaba por aglutinar, sincreti-
preendermos a construção do lusita- camente, todos os fatores (geográficos,
nismo do que a verdadeira etimologia, políticos, étnicos, económicos, mentais)
para cuja delineação não existem dados em seu favor, cristalizada em figuras he-
suficientes. Nota-se que, em todas elas, roicas como Viriato – que foi digerido
está presente o carácter maravilhoso e desde Teófilo Braga (1843-1924) a João
até providencial em que se quis assen- Aguiar (1943-2010).
tar a edificação da ideia de Lusitânia, O próprio termo assume uma dimen-
nutriente do lusitanismo. Na realidade, são de profundo significado identitário
a sua evolução e o seu conteúdo expres- que se revela, por si só, portador de um
sivo em contexto histórico conformam a sentido anti – por oposição ao outro
existência de uma representação da uni- castelhano (particularmente durante a
dade nacional, remetendo para o proces- monarquia dual e a Restauração) –, mas
so de construção erudita das identidades também étnico (quase recuperando o
geográficas e espaciais nas mais variadas seu sentido original de etnónimo), no
escalas. Desde a conceção herdada, as- caso de outras culturas do mundo: negro,
sente na recuperação da visão clássica, índio/Brasil, asiático. Daí, igualmente, a
ela própria digerida pela medievalidade sua força como elemento congregador e
(da analística dos sécs. viii e ix às cróni- matriz no discurso diplomático interna-
cas tardo-medievais), assumindo papel cional (de que são exemplo as Orações
protagonista nas conceções e interpreta- de Obediência dos reis portugueses aos
ções renascentistas e humanistas (de que sucessivos chefes da Igreja). O lusitanis-
são exemplo Damião de Góis, Hispania, mo é, em essência, uma afirmação da
1542; Luís de Camões na sua obra maior, identidade e esta, no seio da afirmação
Os Lusíadas; e o texto de Fr. Bernardo de nacional, vive do confronto com o outro.
Brito, A Monarchia Lusytana, 1596-1607), Daí também a iconografia vinculada na
para depois se colocar, paulatina mas de- figura da Lusitânia na edição de 1677 da
cisivamente, a tónica numa Nova Lusitâ- Epítome de las Historias Portuguesas de Fa-
nia, título da obra de Francisco de Brito ria e Sousa, que, ladeada pela Fé e pela
Freire, publicada em 1675 no Brasil. As- Fortaleza, revela o seu estatuto planetá-
sim, percebemos que o tema encerra po- rio através de alusões militares e políticas
tencialidades de análise que ultrapassam (nas armas, na couraça, no capacete ao
a dimensão meramente política e ideoló- estilo romano clássico, no cetro), sempre
gica, assumindo-se como estruturante na secundada pela proteção da cruz divina,
definição genérica de um perfil identitá- assentando nos quatro continentes, eles
rio e emocional de grande abrangência; próprios figurados como reis montados
argumentos que diminuíram a força da em animais de reconhecida força e gran-
evidência da impossibilidade factual de de porte e todos carregando a figura ale-
fazer coincidir a geografia da Lusitânia górica cimeira.
(província romana) com a de Portugal Mas um novo caminho se desenha com
(passado, contemporâneo ou mesmo os sécs. xvii e xviii: a afirmação da Nova
futuro, nas palavras de António Vieira), Lusitânia. Sinal evidente de uma nova
até porque a Lusitânia que a transdiscur- apropriação do termo que não represen-
sividade origina, perpetua e legitima não ta agora apenas o território tradicional da
é, na verdade, a entidade romana, mas, nação, mas cujo espírito étnico, indelével

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Antilusitanismo 1175

cipação política” (MENDES, 2009, 57),


curiosamente consentâneo com a neces-
sidade de consolidar a construção, afir-
mação e legitimação de uma nacionali-
dade, metonímia do anterior processo da
metrópole que empresta, nesta ocasião, a
figura, o motivo e o objeto da oposição.
Os múltiplos episódios de antilusitanismo
que percorrem todo o séc. xix, alimen-
tando-se do imaginário pós-colonial, e se
prolongam pelo séc. xx, com uma car-
ga política progressivamente mais dimi-
nuída, mas sobrevivendo no anedotário
humorístico popular, revelam a força e
a maleabilidade transdiscursiva e mental
do imaginário da identidade portuguesa.
O lusitanismo e a sua antítese corres-
pondem, enfim, à análise de uma so-
brevivência, sem fundamento histórico
concreto que não o da sua construção
identificável, que renasce como conceito
historiográfico pelas mãos de uma elite
Folha de rosto de Monarchia Lusytana,
de Fr. Bernardo de Brito (1569-1617). religiosa e política e que assume uma pro-
jeção ímpar, pulverizando-se no uso e di-
e perene pode ser transposto, estrategica- versificando-se na forma; e não há outra
mente em proposta assinalável, para um que tenha concorrido até hoje com tanta
novo espaço político, numa reconfigura- persistência e tão carregada de harmóni-
ção da geografia dos poderes, qual Fénix cos paradoxos. Ela permite aquilatar da
renascida. Trata-se de um programa ex- complexidade e profundidade dos subs-
tenso no espaço e no tempo, com diversas tratos em que se situam estas problemáti-
e justapostas configurações. cas, pois os mecanismos de identidade e
Não será, pois, por acaso que é do ou- da memória, no recurso ao passado, são
tro lado do Atlântico que vem a maior altamente significativos na nossa configu-
manifestação daquilo a que poderemos ração enquanto comunidade.
chamar antilusitanismo, um termo em-
pregado pelos próprios autores e atores
da época. Não tendo sido concretizado o Bibliog.: Bluteau, Rafael, Vocabulario Portu­
sonho profético de transpor a Lusitânia guez e Latino, 8 vols. e 2 sups., Coimbra, Colle-
em tempo útil, exulta-se com a própria gio das Artes da Companhia de Jesu, 1712­
individualidade e identidade, expulsan- ‑28; GAMA, Orlando Miguel P. G. M. da,
do e saneando a entidade geradora. Des- “Imagens cartográficas do Brasil na historio-
grafia setecentista”, in GARCIA, João Carlos,
te modo, o Brasil nasce de parto difícil e
A Nova Lusitânia. Imagens Cartográficas do Brasil
com naturais sintomas de rejeição do ber- nas Colecções da Biblioteca Nacional (1700-1822),
ço estafado da clássica figura alegórica. Lisboa, Comissão Nacional para as Come-
Processo longo com “trajetória particular morações dos Descobrimentos Portugueses,
e extensa, iniciada bem antes da eman- 2001, pp. 81-106; GUERRA, Amílcar, Plínio­

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1176 Antilusofonismo

‑o­‑Velho e a Lusitânia, Lisboa, Colibri, 1995;


Houaiss, Antônio et al., Dicionário Houaiss da
Antilusofonismo
Língua Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores,
2001; LLORIS, Francisco Beltrán, “De etnia
a provincia: identidades colectivas en la Lusi-
tania antigua”, in OLIVEIRA, Francisco et al.,
Espaços e Paisagens: Antiguidade Clássica e Heran­
ças Contemporâneas, vol. 3, Coimbra, Associa-
ção Portuguesa de Estudos Clássicos, 2010,
pp.  33­‑51; MENDES, José Sachetta Ramos,
“Lei e etnicidade no Brasil: entre a lusofobia
M ovimento linguístico, sociológico
e político que se posiciona contra
o conceito de lusofonia enquanto união
e o favorecimento jurídico dos Portugueses”, cultural e linguística da Comunidade dos
Revista de Ciência e Cultura, vol. 61, n.º 2, 2009,
Países de Língua Portuguesa (CPLP) – An-
pp. 56-59; Oliveira, Fernão de, Grammati­
ca da Lingoagem Portuguesa, Lisboa, Biblioteca gola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Nacional, 1981; Plínio o velho, Naturalis Moçambique, Portugal, São Tomé e Prín-
Historia; Políbio, Historiae; Resende, André cipe e Timor-Leste (a que se juntou, em
de, As Antiguidades da Lusitânia, Coimbra, Im- 2014, a Guiné Equatorial) –, o antilusofo-
prensa da Universidade de Coimbra, 2009; nismo está presente na maioria dos países
RIBEIRO, Gladys Sabina, “Por que você veio referidos, embora surja com maior inci-
encher o pandulho aqui? Os Portugueses, o
dência e mais visivelmente naqueles que
antilusitanismo e a exploração das moradias
populares no Rio de Janeiro da República
foram colonizados por Portugal durante
Velha”, Análise Social, vol. xxix, n.º 127, 1994, a expansão marítima portuguesa. Con-
pp. 631-654; ROWLAND, Robert, “Manuéis quanto proveniente de vários contextos,
e Joaquins: a cultura brasileira e os Portugue- a argumentação usada pelos linguistas, es-
ses”, Etnográfica, vol. v, n.º 1, 2001, pp. 157­ critores, pensadores, políticos e cidadãos
‑172; Sousa, Manoel de Faria e, Lusiadas, de que se opõem à lusofonia nas primeiras
Luis de Camoens, Principe de los Poetas de España, duas décs. do séc. xxi prende-se maiorita-
Comentadas, Madrid, Juan Sanches, 1639; Id.,
riamente com duas questões: a identifica-
Epitome de las Historias Portuguesas, Divididas en
Quatro Partes, Brusselas, Francisco Poppens, ção de lusofonia com neocolonialismo, e
1677; SOUZA, Ricardo Luiz de, “O antilusita- as motivações meramente económicas da
nismo e a afirmação da nacionalidade”, Poli­ criação de uma comunidade lusófona.
teia, vol. 5, n.º 1, 2005, pp. 133-151; VILATE- A partir do séc. xv, o português e a cul-
LA, L. Perez, “De la Lusitania independiente a tura portuguesa começaram a ser dissemi-
la creacion de la provincia”, in GORGES, G., e nados pelos territórios que os Portugueses
NOGALES, T., Sociedad y Cultura en la Lusitania
conquistaram e estabelecidos onde os co-
Romana, Merida, Editora Regional de Extre-
madura, 2000, pp. 73-84. lonos portugueses se fixaram (frequente-
mente pela força, seja através da educação
Orlando Miguel Gama primária dos nativos em português, da le-
Alexandra Soares Rodrigues
gislação régia que torna obrigatório o uso
do português, ou ainda da assimilação das
línguas autóctones, pré-coloniais, pelo por-
tuguês, que assim as elimina). No entanto,
é no séc. xix, quando a incapacidade de
Portugal competir com as novas potências
industrializadas se torna evidente, aquan-
do da realização do “mapa cor-de-rosa”,
que, a fim de reunir recursos económi-

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Antilusofonismo 1177

cos inexistentes no território europeu do


Império Português, esta antiga potência,
agora empobrecida, tenta criar um projeto
político lusófono que una o Atlântico ao
Índico e Angola a Moçambique.
Todavia, foi durante a ditadura de An-
tónio Oliveira Salazar, entre as décs. de 30
e 60 do séc. xx, que a ideia de lusofonia
se afirmou como a génese identitária de
Portugal. Este feito foi orquestrado pelo
regime ditatorial com o intuito de unir
os Portugueses na concordância com o
Governo no que dizia respeito à Guerra
Colonial (tornando-se, deste modo, a lu-
sofonia um argumento pró-colonialista),
e conseguido através da apropriação po-
lítica da tese lusotropicalista do sociólogo
brasileiro Gilberto Freyre, presente em
O Luso e o Trópico. Salazar, servindo-se des- “Mapa cor-de-rosa”.
ta teoria sociológica, de Mensagem (poe-
ma-épico-místico de Fernando Pessoa, cia das ex-colónias, o que se compreende
concebido à luz de uma fraternidade uni- enquanto resultado do trauma sofrido
versalizante e de um império espiritual aquando da perda destes países e do con-
movido pela língua portuguesa) e da fra- sequente fim do Império Português, no
se “A minha pátria é a língua portuguesa” pós-25 de Abril. Este luto foi feito relativi-
(posteriormente, tornada bandeira de zando a violência dos Portugueses, com-
colonialistas, lusofonistas e europeístas), parativamente com outros colonizadores,
também de Fernando Pessoa (numa li- sobre os povos colonizados, apagando-se
gação que este poeta modernista, entre- a memória de massacres executados pe-
tanto morto, decerto renegaria, dado los primeiros, como é o caso do massacre
o seu manifesto desprezo pelo ditador, de Wiriyamu e do massacre de Mihinjo, e
caracterizado no poema “António de Oli- perpetuando-se o mito de uma coloniza-
veira Salazar” como um “tiraninho” “fei- ção suave.
to de sal e azar” [PESSOA, 1979, 349]), Na déc. de 90 do séc. xx, começou a sur-
promoveu a lusofonia como base de um gir em Portugal uma primeira reflexão so-
império construído sobre uma afetivida- bre o assunto, especialmente nas ciências
de multiétnica entre o país colonizador sociais e humanas (pelas vozes de Cláudia
e os países colonizados (concretamente, Castelo, Eduardo Lourenço e Miguel Vale
Angola e Moçambique, os últimos a se- de Almeida), permitindo que se começas-
rem descolonizados), que negaria qual- se a refletir sobre a confusão entre língua
quer sinal de tensão ou agressão entre e cultura a que o conceito de lusofonia
as partes envolvidas. Funcionando como pode conduzir, e sobre as relações entre
argumento serenador durante o Estado lusofonia e colonialismo / imperialismo
Novo, a lusofonia tem-se mantido em ou neocolonialismo / neoimperialismo.
Portugal como algo quase inquestionável, Apesar dos trabalhos de António Tomás e
apesar da descolonização e independên- Victor Barros, em Angola; Eliso Macamo

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1178 Antilusofonismo

e Mia Couto, em Moçambique; e Cláudia poder a quem fala a língua oficial e re-
Castelo e Joaquim Valente, em Portugal, tirando poder a quem não a fala, e que
verifica-se, em 2017, um exíguo número perde, assim, socialmente, a sua voz.
de estudos questionando a lusofonia. Este Desta dinâmica de assimilação/destrui-
facto aponta para alguma incapacidade ção linguística, é paradigma a situação
de um Portugal pós-colonial percecionar da “língua geral” brasileira ou nheen-
respeitosamente as identidades dos países gatu. Mistura entre português e tupi, o
colonizados que estão a ser reconstruí- nheengatu era uma língua ensinada pe-
das desde as respetivas independências, los missionários jesuítas (que a adotaram
e para alguma dependência, consciente como sua, numa lógica de vasos culturais
ou inconsciente, das ex-colónias em rela- comunicantes, havendo mesmo registo
ção ao país colonizador, dependência que de poesia luso-brasileira escrita por estes
pode ser vista como incapacidade de criar em nheengatu) até, no séc. xviii, esta
identidades linguísticas e culturais não lu- língua híbrida, que unia duas culturas,
sófonas. ter sido proibida aquando da oficializa-
A partir do final do séc. xx, o antilu- ção do português por decreto do mar-
sofonismo apresenta a lusofonia como a quês de Pombal (sendo que, a partir de
marca de um império que acabou, defen- tal momento, falar e escrever em portu-
dida por fações políticas conservadoras, guês passou a simbolizar ser civilizado,
posicionadas tanto à esquerda quanto à pretendendo esta estratégia colonialista
direita, e mantida porque, alimentando a conquistar súbditos para a Coroa portu-
ilusão de a CPLP ser uma pátria de lín- guesa). Esta situação demonstra algumas
gua comum, se suaviza o trauma do fim consequências culturais da imposição
do Império Português. Esta caracteriza- da língua a um povo – primeiramente,
ção argumenta que a lusofonia, símbolo causa a destruição de línguas autóctones
da negação de uma morte, dificulta criar (o tupi), que são assimiladas pela língua
pensamento crítico sobre o Portugal colo- do país colonizador (o português); pos-
nialista e as novas identidades dos países teriormente, destrói uma nova língua
que têm o português como língua oficial, (o nheengatu), que fundia, de forma
e questionar por que motivo(s) o princi- mais harmoniosa que o português, duas
pal interessado na lusofonia no séc.  xxi culturas diferentes; finalmente, estratifi-
é Portugal, e não Angola ou Moçambi- ca diferentes culturas e línguas, caracteri-
que, países com uma elevada taxa de zando negativamente a cultura e a língua
cidadãos antilusofonistas (VALENTIM, autóctones, em prol da língua coloniza-
2004). Para este movimento, a lusofonia dora, que civiliza.
constitui uma “amnésia sobre o passado Esta intromissão do Estado na criação
pré-colonial” (RIBEIRO, Público, 18 jan. da língua está em clara oposição ao que
2013) que sustenta erros como a ideia Eduardo Lourenço, autor crucial para o
de os povos autóctones colonizados te- pensamento pós-colonialista em Portu-
rem sido descobertos pelos Portugueses, gal, inspirado pela conceção chomskyana
promovendo a ignorância sobre as suas de língua como uma construção feita por
identidades pré-coloniais. Argumenta-se, um povo e nunca imposta, estabelece:
também, que a oficialização do português a lusofonia enquanto “a existência de
nestes territórios conduziu à assimilação várias línguas portuguesas” que resultou
(e, portanto, destruição nalguns casos) da “transformação do reino português
das línguas aí então faladas, conferindo em império” (LOURENÇO, 2004, 112).

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Antilusofonismo 1179

Assim, e porque os povos autóctones, medida em que os que estão desprovidos


apesar de colonizados, não passaram a de conhecimentos linguísticos relativos à
ver o mundo como portugueses (por não língua oficial não têm acesso ao poder.
o serem), o antilusofonismo frisa que, a Com efeito e consequentemente, a inves-
par do português, na CPLP, se mantêm vi- tigação que os estudos pós-coloniais têm
vas muitas línguas não oficiais: em Ango- vindo a desenvolver e a criação do Acordo
la, fala-se kikongo, kimbundo, tchokue, Ortográfico de 1990 (AO 90) entre os paí-
umbundo, mbunda, kwanyama, nhaneca, ses da CPLP no fim do séc. xx e no início
fiote, nganguela; no Brasil, 305 etnias in- do séc. xxi conduziram a um aumento da
dígenas falam 274 línguas diferentes, para tendência antilusofonista em Angola, no
além do alemão e do italiano, línguas Brasil e em Portugal, verificando-se uma
cooficiais nalguns territórios nacionais; clivagem entre os posicionamentos luso-
em Cabo Verde, fala-se cabo-verdiano ou fonistas dos representantes dos Estados
crioulo; na Guiné-Bissau, fala-se crioulo, envolvidos e a atitude antilusofonista de
mandjaco, mandinga; em Moçambique, alguns cidadãos dos mesmos países, ainda
fala-se cicopi, cinyanja, cinyungwe, ci- que esta última seja vivida de forma dife-
senga, cishona, ciyao, echuwabo, ekoti, rente. No caso de Angola, como salienta
elomwe, gitonga, maconde, kimwani, ma- José Eduardo Agualusa, o português en-
cua, memane, suaíli, suazi, xichanga, xi- raizou-se muito mais nas populações au-
ronga, xitswa, zulu; em São Tomé e Prín- tóctones depois da independência do que
cipe, fala-se forro, angolar, tonga, monco; durante o colonialismo, o que, à partida,
e, em Timor-Leste, fala-se tétum, atauren- não seria a tendência mais lógica num país
se, baiqueno, becais, búnaque, canaimi- que esteja a fazer a sua descolonização e a
na, fataluco, galóli, habo, idalaca, lovaia, reconstruir a sua identidade. No entanto,
macalero, macassai, mambai, quémaque, é possível compreender esta inversão do
tocolede. Esta apreciação leva-o a acusar senso comum percebendo o conceito de
a lusofonia de, ao padronizar linguisti- comunidade lusófona enquanto comuni-
camente e agir neoimperialmente num dade de partilha de interesses políticos e
mundo pós-colonial, pôr em causa estas económicos, com vista ao usufruto de ter-
línguas e o poder dos seus falantes, consi- ritórios (à imagem do que acontece em
derando que seria preferível que os povos comunidades e alianças como a comuni-
das ex-colónias comunicassem oralmente dade francófona, a Commonwealth, o G8
nas línguas nativas referidas. A propósito, ou o G20). Poderá ler-se, então, a esta luz a
António Filipe Augusto, expresso antilu- defesa da lusofonia por José Eduardo dos
sofonista, caracteriza a África lusófona Santos, presidente de Angola, criticado
como tendo uma “identidade prótese”, por antilusofonistas do norte do país que
que assimilou identidades pré-coloniais, defendem uma identidade angolana mais
eliminando-as, permitindo uma recolo- centrada nas culturas pré-coloniais, e que
nização do português, apesar da inde- o apelidam de “falso africano” (AGUALU-
pendência ganha com a descolonização, SA, Público, 24 set. 2006).
e uma manutenção do imperialismo lin- No Brasil, e apesar de, desde a instaura-
guístico e cultural dos cinco séculos de ção da independência, salvo um momento
ocupação portuguesa. Acrescenta ainda inicial em que se fizeram sentir tendências
que esta eliminação de identidades frag- nacionalistas e antilusófonas, a língua ofi-
menta socialmente os cidadãos africanos cial portuguesa ser um facto que não sus-
que resistem a este neocolonialismo, na cita discussão maior, verificou­‑se, durante

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1180 Antilusofonismo

os anos de discussão do AO 90, alguma Paradoxalmente, é em português que o


indiferença relativamente à questão lu- antilusofonismo ataca a lusofonia. É tam-
sófona e à opinião dos outros países da bém em português que esta discussão
CPLP sobre a lusofonia. Por fim, e con- acontece – simultaneamente, permitindo
trariamente ao que sucedeu no Brasil, a reconstrução identitária dos países colo-
em Portugal, verificou-se, desde a déc. nizados, mas recolonizando-os ainda.
de 90 do séc. xx, uma grande discussão
pública sobre o assunto (&Antiacordis-
Bibliog.: impressa: CASTELO, Cláudia, “O Modo
mo). À imagem do que alguns linguistas
Português de Estar no Mundo”: o Luso-Tropicalismo
angolanos, como Amélia Mingas, de- e a Ideologia Colonial Portuguesa, Porto, Afronta-
clararam – que o objetivo maior do AO mento, 1998; FREYRE, Gilberto, O Luso e o Tró­
90 era ser uma legitimação da variante pico, Lisboa, Comissão Executiva do V Cente-
do português falado no Brasil –,  várias nário da Morte do Infante D. Henrique, 1960;
vozes da sociedade e da academia por- JUNIOR, Jair de Almeida, “Antilusofonismo”,
tuguesas, e, com especial destaque, a Revista de Estudos de Cultura, n.º 1, jan.-abr.
2015, pp. 62-68; LOURENÇO, Eduardo,
do escritor, ensaísta e tradutor Vasco
A Nau de Ícaro Seguido de Imagem e Miragem da Lu­
Graça Moura, levantaram-se contra o
sofonia, Lisboa, Gradiva, 2004; PESSOA, Fer-
AO 90, revelando-se antilusófonas (se a nando, Da República (1910-1935), Lisboa, Áti-
lusofonia implicasse aceitar as regras do ca, 1979; VALENTIM, Joaquim Manuel Pires,
acordo em causa). A argumentação utili- Identidade e Lusofonia nas Representações Sociais de
zada para justificar este posicionamento Portugueses e de Africanos, Dissertação de Dou-
anti de grande parte da opinião pública toramento em Psicologia Social apresentada
portuguesa centrou-se, por um lado, na à Universidade de Coimbra, Coimbra, texto
policopiado, 2004; digital: AGUALUSA, José
crença de que o AO 90, ao homogenei-
Eduardo, “Fronteiras perdidas”, Público, 24
zar graficamente as variantes da língua set. 2006: http://macua.blogs.com/moam-
oficial da CPLP, desfigurava a grafia do bique_para_todos/2006/09/lngua_e_poder.
português europeu, considerado a va- html (acedido a 11 set. 2017); AUGUSTO,
riante pura e correta, donde as outras António Filipe, “África lusófona: uma iden-
decorriam e às quais este não se deve- tidade prótese”, O  País: http://opais.co.ao/
ria vergar; e, por outro lado, na acusa- africa-lusofona-uma-identidade-protese-ou-
mentes-colonizadas-i (acedido a 2 ago. 2017);
ção de que o acordo servia interesses
CASTELO, Cláudia, “O lusotropicalismo e o
empresariais (editoriais) e geopolíticos colonialismo português tardio”, Buala, 5 mar.
brasileiros (especialmente, em relação 2013: http://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-
aos países africanos lusófonos). Deste tropicalismo-e-o-colonialismo-portugues-tar-
modo, o AO 90, ao invés do seu propó- dio (acedido a 2 ago. 2017); GARCIA, Elisa
sito de união diplomática e unificação Frühauf, “O projeto pombalino de imposição
linguística e cultural, desvelou xenofo- da língua portuguesa aos índios e a sua apli-
bia e racismo da parte de alguns países cação na América Meridional”, Tempo, n.º 23,
jul. 2007: http://www.historia.uff.br/tempo/
lusófonos envolvidos na discussão, moti-
artigos_dossie/v12n23a03.pdf (acedido a 2
vados pelo sentimento de pertença e de ago. 2017); RIBEIRO, António Pinto, “Para
maior direito de legislar a língua, como acabar de vez com a lusofonia”, Público, 18
foi o caso de Portugal, e por interesses jan. 2013: https://www.publico.pt/opiniao--
económicos rivais, demonstrando algu- -politica-cultural/jornal/para-acabar-de-vez-
ma fragmentação no projeto cultural, com-a-lusofonia-25877639 (acedido a 11
linguístico e político em que consiste o set. 2017).
mundo lusófono. Joana Lima

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Antilusotropicalismo 1181

Antilusotropicalismo descolonizar, o Estado Novo manipulou


o lusotropicalismo para caucionar cien-
tificamente as políticas e as pretensões
do Governo português, de forma a con-
vencer a comunidade internacional da
excecionalidade do colonialismo luso e
a preservar o império colonial. A convi-

L ogo no próprio título, Casa-Grande


e Senzala (1933), estudo de Gilberto
Freyre sobre a formação da família bra-
te do ministro das Colónias, Sarmento
Rodrigues, Gilberto Freyre viaja por Por-
tugal e quase todos os seus territórios ul-
sileira sob o regime da economia patriar- tramarinos em 1951, tornando visível a
cal, anuncia a hibridez como elemento conivência entre o intelectual e o poder.
característico da sociedade brasileira. A apropriação nacionalista do lusotropi-
Para o autor, “a sociedade brasileira é de calismo fez tábua rasa da natureza “supra-
todas da América a que se constituiu mais nacional” que Freyre atribuía ao mundo
harmoniosamente quanto às relações de criado pelo Português, “federação quan-
raça”. Este “ambiente de quase reciproci- do não política, cultural” (Id., s.d.a, 46),
dade cultural” (FREYRE, 2002, 119) seria que não era incompatível com a indepen-
impensável sem a “aptidão para a vida dência das colónias.
nos trópicos” (Id., Ibid., 33) revelada pe- Embora o lusotropicalismo tenha con-
los Portugueses na criação de sociedades tribuído para a autoimagem dos Por-
compósitas, mas unificadas, permitindo tugueses como povo tolerante e não ra-
ao povo luso triunfar em contextos onde cista, particularmente capacitado para
outros colonizadores falharam, sem dei- mediar o diálogo com o hemisfério sul,
xar de ser europeu. É nesta particularida- do mesmo modo que muitas das formu-
de lusíada que Freyre radica o lusotropi- lações freyrianas ajudaram a configurar a
calismo, teoria que completará sobretudo identidade brasileira, a teoria lusotropi-
em O Mundo Que o Português Criou (1941), calista nunca foi consensual. O carácter
obra em que estende aos diferentes ter- pouco científico da “sociologia de cor-
ritórios então sob administração portu- da grossa” (LOURENÇO, 2014, 56) de
guesa a natureza simbiótica inicialmente Freyre, baseada em intuições pessoais,
atribuída à cultura brasileira, e em Um
Brasileiro em Terras Portuguesas (1953), em Gilberto Freyre (1900-1987).
cujas páginas designa como lusotropical
a civilização a que o Português deu ori-
gem nas suas andanças pelo mundo. Se-
gundo o sociólogo pernambucano, este
empreendimento cultural reflete a des-
valorização da componente rácica pelo
Português, ele próprio fruto do cruza-
mento de várias raças, a sua natureza mais
cristocêntrica do que etnocêntrica, o seu
lirismo religioso e a plasticidade do seu
carácter.
Após a Segunda Guerra Mundial, quan-
do Portugal sofreu pressões externas para
D.R.

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1182 Antilusotropicalismo

generalizações abusivas e preconceitos sentados por Mondlane, que poemas de


de descendente de senhor de engenho, Noémia de Sousa, de Craveirinha e do
foi o principal aliado dos seus detratores. angolano António Jacinto evocam litera-
Em Portugal, nos anos 30-40 do séc. xx, a riamente, não diferem dos resultados da
conceção fraterna da colonização portu- análise que, no início dos anos 60, Char-
guesa colidia com o discurso oficial e as les Boxer fez das relações do colonizador
práticas racistas, como faz notar Cláudia português com o seu colonizado entre os
Castelo. Na mesma época, António Sér- sécs. xv e xix. Contrariamente ao que
gio sugere que o sucesso da colonização supunha Freyre, não era por imitar colo-
do Brasil se deveu às particulares condi- nialismos estrangeiros que o colono por-
ções físicas da colónia americana e não tuguês tinha comportamentos indignos
às qualidades intrínsecas do povo portu- da sua natureza cristocêntrica. A este res-
guês. Maria Archer, por sua vez, questio- peito, delimitações temporais e espaciais
na implicitamente a natureza lusotropi- como as sugeridas por Gabriel Mariano
cal das colónias portuguesas em África, impediriam conceções essencialistas dos
nas quais “se atrofiavam os elementos Portugueses e uma visão da coloniza-
que se expandiam no Brasil” (CASTELO, ção em abstrato. Também a assimilação,
2011, 74). pressupondo a superioridade da cultura
Na segunda metade do séc. xx, o con- portuguesa, era, segundo Mondlane, cla-
sentido aproveitamento ideológico do ramente racista. Mário Pinto de Andrade,
lusotropicalismo pelo Estado Novo ele- no seu inaugural texto antilusotropicalis-
vou o nível da contestação à teoria do ta de 1955, que assina com o pseudónimo
escritor brasileiro, sobretudo no campo Buanga Fele, considera-a mesmo uma
político. Até então pouco audíveis, são prática segregacionista que contraria
principalmente vozes africanas, quase o convívio fraternal de culturas, o qual,
sempre ligadas aos movimentos de liber- afirma, nunca existiu nas colónias por-
tação das colónias, que vão contrapor, na tuguesas, onde a cultura do colonizador
arena internacional, o seu testemunho à se sobrepôs à do colonizado. Segundo o
propagandística versão oficial do colonia- mesmo autor, a mestiçagem é outra mira-
lismo português, a qual é também refu- gem freyriana, pois não resultou de uma
tada por autores europeus pertencentes política consciente, mas da debilidade do
ao campo cultural. Que os Portugueses Português como colonizador e da falta de
eram racistas comprova-o, como demons- mulheres brancas nas colónias, facto este
tra Mondlane, não só a legislação relativa igualmente apontado por Mondlane e
ao trabalho e à cidadania dos nativos afri- Eduardo Lourenço. Para este último, “é o
canos, mas também a ineficácia de novas colonizador o fruto dela [miscigenação]”
leis resultantes da pressão internacional. (LOURENÇO, 2014, 152), salientando
Uma sociedade rigidamente hierarquiza- ao mesmo tempo a relação de domínio
da e dominada por uma minoria branca, que lhe subjaz e retirando ao Português
a existência de trabalho forçado e de con- o exclusivo da sua prática. Sublinha ain-
tratados, a discriminação salarial entre da a “bem restrita vigência” (Id., Ibid.,
negros e brancos, assim como a depen- 56) dessa conduta e os interesses políti-
dência político-económica dos primei- cos que a sua exaltação encobre. A “im-
ros em relação aos segundos contrariam postura velada” (FELE, 1955, 35) do lu-
igualmente a “teoria mística” (MONDLA- sotropicalismo negligencia, sobretudo,
NE, 2011, 310) freyriana. Os factos apre- o colonialismo como “uma empresa de

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Antiluteranismo (Época Moderna) 1183

exploração económica dirigida por um


poder político ” (Id., Ibid., 27). Enfim, a
Antiluteranismo
(Época moderna)
publicação de O Luso e o Trópico (1961) no
ano do início da guerra colonial faz des-
ta obra o  derradeiro capítulo da “ficção
monstruosa” (LOURENÇO, 2014, 60)
que Freyre construiu em torno do colo-
nialismo português.

Bibliog.: CASTELO, Cláudia, “O Modo Por­


tuguês de Estar no Mundo”: O Luso-Tropicalismo
A grande divisão religiosa ocorrida na Eu-
ropa cristã no dealbar da Modernidade
cavou uma fratura e originou um movimento
e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933-1961),
imenso e multifacetado que toma a designação
2.ª  ed., Lisboa, Afrontamento, 2011; FELE,
Buala, “Qu’est-ce que le ‘luso tropicalismo’?”, generalista de protestantismo. Contudo, Marti-
Présence Africaine, nova sér., n.º 4, out.-nov. nho Lutero foi o maior protagonista deste movi-
1955, pp. 24-35; FREYRE, Gilberto, Um Bra­ mento e que mais se evidenciou de entre muitas
sileiro em Terras Portuguesas, Lisboa, Livros do tentativas de afrontamento, protesto  e crítica
Brasil, s.d.; Id., O Mundo Que o Português Criou em relação a alguns aspetos da vida e da dou-
& Uma Cultura Ameaçada: a Luso­‑Brasileira, trina da Igreja, que, a partir de então, passou
2.ª  ed., Lisboa, Livros do Brasil, s.d.a; Id.,
a salientar mais os adjetivos “católica” e “ro-
O  Luso e o Trópico, Lisboa, Comissão Executi-
va das Comemorações do V Centenário da mana”, por diferenciação das outras confissões
Morte do Infante D. Henrique, 1961; Id., cristãs que dela se autonomizaram, formando
Casa-Grande & Senzala, ed. crítica Guillermo Igrejas separadas. A cisão operada por Mar-
Giucci et al., Madrid/Barcelona/La Habana, tinho Lutero e o pletórico movimento denomi-
ALLCA XX, 2002; LOURENÇO, Eduardo, Do nado Reforma Protestante, que teve outros par-
Colonialismo como Nosso Impensado, Lisboa, Gra- ticipantes de relevo, suscitou um movimento
diva, 2014; MARIANO, Gabriel, “Do funco ao
contrário chamado Contrarreforma, ou, mais
sobrado ou o mundo que o mulato criou”,
in MARIANO, Gabriel, Cultura Caboverdeana,
Lisboa, Veja, 1991, pp. 39-63; MONDLANE, Martinho Lutero (1483-1546).
Eduardo, “A estrutura social – mitos e factos”,
in SANCHES, Manuela Ribeiro, Malhas Que
os Impérios Tecem, Lisboa, Edições 70, 2011,
pp. 309-332.
Ana Ribeiro

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1184 Antiluteranismo (Época moderna)

hodiernamente, Reforma Católica, dado que a ministerial, a via ritualista de união com
vontade e o apelo à renovação da Igreja foram Deus, o cumprimento da moral evangéli-
assumidos por muitos que procuraram reformá­ ca e a espiritualidade do laicado. O huma-
‑la por dentro, sem optar pela separação. nismo renascentista trifonte – lefebriano,
A par do espírito de reforma, com os líderes renaniano e erasmiano – não disfarçava o
reformistas a optarem, apoiados por líderes po- toque anticlericalista nem a contestação à
líticos, pelo confronto e a separação, gerou-se autoridade papal. No entanto, não havia
uma verdadeira corrente de combate de ambos unanimidade nos aspetos controvertidos,
os lados, que criou uma cultura negativa, ali- que iam da aceitação de uma tópica ge-
mentando uma imensa história de ideias an- nérica à negação do número e da teolo-
ticatólicas, de um lado, e antiprotestantes, do gia dos sacramentos, do ritual litúrgico,
outro. do valor das preces orais mecânicas, da
Em Portugal, conhece-se importante herança vida consagrada conventual, do celibato
cultural documentada desta cultura de comba- eclesiástico, do culto dos santos e das re-
te, que numa primeira fase corresponde, gros- líquias, da necessidade de sufrágios pelos
so modo, à época moderna, e que teve uma defuntos, da doutrina da justificação pelo
feição fundamentalmente antiluterana, visan- mérito das boas obras, da possibilidade
do a figura, o pensamento e a ação de Lutero de se chegar à verdade religiosa fora da
e o tremendo impacto que provocou a divisão Igreja.
da velha cristandade medieval. Recuperamos e Até à Dieta de Worms, e mesmo ao
reorganizamos aqui o valioso trabalho, muito Concílio de Trento (1545-1563), os altos
detalhado e cuidado, sobre o antiprotestantis- responsáveis católicos e luteranos acre-
mo em Portugal do historiador João Francisco ditavam na eficácia conciliadora de um
Marques, de saudosa memória, que no-lo tinha irenismo dialogante. Consumaram-se,
legado em bruto para esta obra dicionarial. todavia, o desentendimento e a irreversí-
Destacámos a primeira parte do seu trabalho, vel separação. Seguiram-se a rigidez das
que configura mais um claro antiluteranismo, costas voltadas, a surdez e o anátema re-
depois continuada numa segunda parte, que cíprocos, remetendo-se o catolicismo ao
se expressa mais multifocalmente no ataque ao afã de reforçar a unidade do rebanho fiel
movimento da Reforma, podendo-se denomi- e o protestantismo a fracionar-se cada vez
nar com mais propriedade antiprotestantismo mais em ramos de acentuadas diferenças.
(&Antiprotestantismo) O caminho estava aberto a fanatismos
atuantes, despoletando as estratégias de-

A corrente evangelista, que corria, de


modo crescente, pela Europa cristã
dos finais da Idade Média ao primeiro
fensivas das cidadelas assediadas. Foi esta
a origem desses conhecidos antifunda-
mentalismos militantes, que passaram a
quartel da era quinhentista, era polimor- caracterizar a dolorosa rutura da cristan-
fa e tinha raiz popular. Este movimento dade ocidental, ainda hoje a gotejar.
de largo espectro sofria o impulso de
dinâmicas várias, que provinham de re-
ligiosos da vida comum a mendicantes
Início do combate
da observância, de Savonarola a Erasmo, Os grandes defensores da ortodoxia cató-
de Lutero a Melanchton, contestando a lica, na península Ibérica, foram Carlos V
doutrina e a prática da hierarquia ecle- e D. João III, que cortaram nos seus Es-
siástico-romana. Assumiam-se denúncias tados, após iniciais momentos de expec-
e combates, que atacavam o sacerdócio tante tolerância, todos os caminhos que

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Antiluteranismo (Época moderna) 1185

levassem infiltração da heresia protes-


tante. O bispo D. Miguel da Silva, em-
baixador português em Roma, escrevia,
em 1521, a D. Manuel mal acabara de
publicar-se o Édito de Worms, referindo
a bula de Leão X contra o rebelde fra-
de saxónico, da qual este escarnecera,
e o pedido generalizado da cristandade
por concílio e reformação. Por sua vez, o
Pontífice, que endereçara ao Rei portu-
guês uma outra, datada de 23 de março,
dava-lhe conta de quanto temia ver os es-
critos de Lutero espalhar-se em Espanha
e que dali passassem a Portugal, e exor- Martinho Lutero na Dieta de Worms (1877),
tava a que o evitasse. O Soberano apres- de Anton von Werner.
sou-se a atender o pedido do Papa: em
agosto, este agradecia o que D. Manuel
havia feito nesse sentido, animando-o a docente à altura. Do esforço bem-suce-
não afrouxar no seu zelo. Na era de 1530 dido do debate na magna aula conciliar
do reinado de D. João III, o superior da podia seguir-se a reconciliação pretendi-
província franciscana teria executado a da, e talvez até a reunificação das fações
vontade do geral, que mandava fazerem­ em conflito. Cardeais da Cúria, religio-
‑se preces nos conventos dos frades meno- sos proeminentes e leigos, intelectuais e
res, para que os erros do luteranismo não políticos empenharam-se afincadamente
infestassem a Igreja de Deus. Ao Monarca nessa meta. O destaque maior vai para o
piedoso, que, segundo o historiador Silva humanista Damião de Góis, rotinado nas
Dias, “não via o problema luterano como andanças europeias, teólogo e prático em
o simples caso de um heresiarca bem-su- idiomas correntes, domínios importantes
cedido”, agradava, realmente, e como se para o convívio, a controvérsia e a episto-
vê pela instrução de 1532 a D. Martinho lografia, embora o latim continuasse a ser
de Portugal, “que houvesse concílio, se a língua culta.
nele se houvesse de tratar das cousas que O antigo feitor na Flandres tratava, de
tocam às heresias […] e assim em muitas resto, com notórios protestantes. Ouvira
outras em que deve ser muito provido” a pregação de Lutero em Wittemberg,
(DIAS, 1960, 423). A constante insistên- e correspondera-se com este e com Me-
cia na convocação de uma assembleia lanchthon, e deles recebeu cartas levadas
ecuménica, enquanto espaço dialogan- por Jerónimo Pavia, o Capucho, cunhado
te e legislativo, como meio mais indica- do gramático João de Barros, que ousou
do para dar resposta à crescente crise contrariar as teses do heresiarca alemão
religiosa do século, revela a sintonia de ao ponto de irritá-lo; e, se não tinha a me-
D. João III com a mentalidade irenista e o nor intenção de cortar com o catolicismo,
ideário erasmiano. Ambos, aliás, estão pa- menos ainda queria ser um militante an-
tentes na transferência da Universidade tiprotestante. Erasmo, que Góis tinha por
para Coimbra, com particular escolha do mestre, procurava suster-lhe os avanços
corpo docente, bem como na criação do entusiastas, recomendando quanto era
Colégio das Artes, dotado de um suporte “altamente aconselhável” não falar “nem

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1186 Antiluteranismo (Época moderna)

bem nem mal das seitas”. Pode afirmar­ Azambuja e Fr. Gaspar dos Reis; os teólo-
‑se, no entanto, que colaborou com sin- gos Fr. Jorge de Santiago e Diogo Gouveia
ceridade no movimento conciliador da Sénior; o leigo Jorge da Silva. Na alma ma-
déc. de 1530, a que Hubert Jedin chamou ter conimbricense, as principais cátedras
“o sonho do entendimento”, que grassava de Teologia passaram para a docência
por toda a Europa, não deixando sem en- de Paio Rodrigues de Vilarinho e Álvaro
volvimento nação alguma. Deste modo, Fonseca, e isso refletiu-se no antiprotes-
durante o pontificado de Paulo III (1534­ tantismo dos discentes. O Colégio das
‑1541), intensificaram-se os esforços para Artes, entregue aos Jesuítas em 1555, e o
conseguir a reunião de católicos e protes- processo inquisitorial levantado aos mes-
tantes, pressionando-os na cedência em tres bordaleses Diogo de Teive e João da
questões dogmáticas. Sadoleto e Bem- Costa, que foram condenados, atestam o
bo, cardeais italianos, e o inglês Reginal endurecimento da política contrarrefor-
Pole, arcebispo de Cantuária, auxiliaram mista. A Univ. de Évora (1559), confiada
o movimento e Damião de Góis animou­ à Companhia de Jesus e orientada sobre-
‑se a pedir ao “doce Melanchthon” que se tudo para a preparação pastoral do clero
reconciliasse com a Igreja Romana. Nada alentejano, torna-se um baluarte ofensivo
de positivo se obteve. O odium theologicum da ortodoxia católica tridentina. Por sua
de papistas e luteranos radicais foi mais vez, o Santo Ofício, em exercício desde
forte, silenciando as vozes irenistas con- 1537, exerce a vigilância e constitui-se
ciliatórias e ostracizando a linha modera- como instrumento repressor de qualquer
dora de Erasmo de Roterdão, mentor da manifestação de evangelismo reformista,
docta pietas e corifeu da philosophia Christi, quer através da censura literária, quer no
de prestígio ímpar no espaço humanista julgamento das denúncias de naturais e
europeu, e que reforçara a autoridade da colónia estrangeira, mais ousada e fa-
ao resistir a Lutero, na sua desesperada nática, a entrar por mar e terra, sujeita a
tentativa de arrebanhamento. A partir contínua inquirição. Na armada de gente
da primeira interrupção de Trento, tudo francesa que, em 1561, partira para o Bra-
se precipitou terminantemente, pois as sil, levando consigo missionários calvinis-
tendências foram clivadas, sem margem tas, seguia Jean Cointat, senhor de Bou-
para conciliações. As sensibilidades ire- lés, convertido à doutrina do heresiarca
nistas e erasmianas esfumaram-se. Junto de Genebra, que, preso no Rio de Janeiro
de D. João III, a princípio moderado, mas e deportado para Lisboa, acabou por ser
sempre férreo opositor do luteranismo, condenado pela Inquisição e metido no
representantes qualificados do conserva- cárcere. O embaixador da mesma nação,
dorismo ideológico-religioso ganharam em maio do dito ano, comunicou a Paris
poderosa ascendência. Nas fileiras mais “que tinham sido processados no Santo
combativas, encontravam-se prelados, Ofício mais três ou quatro franceses após
sacerdotes e fidalgos influentes, e.g., os a sua chegada a Portugal”; e, em dezem-
bispos D. Agostinho Ribeiro e D. Fr. Ber- bro, ao deixar o país, informava que dei-
nardo da Cruz, conselheiros do cardeal xava presos 33 compatriotas (Id., Ibid., II,
D. Henrique, D. António Pinheiro, a quem 535-536).
foi confiada a educação do príncipe her- Ligado à terra brasílica refira-se, a pro-
deiro D. João, retirada esta a Damião de pósito, o caso do P.e Manuel de Morais,
Góis, e D. Jerónimo Osório, familiar da paulista e escritor, falecido em 1651, que
corte; os inquisidores Fr. Jerónimo de vestiu a roupeta da Companhia de Jesus

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Antiluteranismo (Época moderna) 1187

e que veio a ser expulso por conduta período pós Restauração, os quais per-
escandalosa. Tendo embarcado rumo à mitiam alguma liberdade religiosa, quer
Europa, entrou nas Províncias Unidas, com as fases de baixa repressão do Santo
converteu-se ao calvinismo e casou-se Ofício” (BRAGA, 2002). Os eclesiásticos
com uma Holandesa, pelo que o Tribu- que se deslocavam ao estrangeiro con-
nal da Inquisição o condenou a sair, no traíam, por vezes, contágios a sufocar,
auto de fé de abril de 1642, relaxado em como aconteceu com Fr. Valentim da Luz
estátua. Ao tentar regressar ao Brasil, foi (1524-1562), Agostinho, e com Manuel
encarcerado em Lisboa por ordem do Travassos, bacharel em Cânones e o pri-
Santo Ofício, que o libertou depois de meiro luterano português sentenciado no
obrigado, no auto de fé de 1647, a abju- auto de fé de 11 de março de 1571, estan-
rar a heresia. Nos dois primeiros séculos do convencido das verdades e doutrinas
de repressão, os números conhecidos do reformador saxónico. Isto pode ver-se
relativos a sentenciados evidenciam, po- em processos da Inquisição relativos a sa-
rém, uma patente exiguidade de réus. cerdotes e leigos que, segundo Silva Dias,
A  estudiosa Elvira Mea cifra em apenas punham a descoberto “infiltrações lutera-
0,3 % os casos apreciados pelo Tribunal no-calvinistas”, envolvendo “a hostilidade
de Coimbra durante o período quinhen- ao clero, ao monacato e ao papado, a des-
tista (MEA, 1997, 280). Face às estatísticas crença do purgatório e das indulgências,
apresentadas por Isabel Drumond Braga, a repugnância pela Missa, pela Confissão
as pessoas acusadas de protestantes nas e pela veneração das imagens, e, enfim, o
Inquisições de Lisboa, Évora e Coimbra, desapego do mistério eucarístico, de que
240 do sexo masculino e 8 do feminino, ora uns, ora outros se mostram persuadi-
repartem-se do seguinte modo: 180 no dos” (DIAS, 1960, I, 216). Na altura, tam-
séc. xvi e 68 no seguinte, entre as quais bém não escaparam à suspeição do Tribu-
Ana Gorgin, missionária quaker que dese- nal Nicolau Chanterene, escultor, Diogo
java pregar nos reinos ibéricos. A maioria de Dembes, Dominicano flamengo, Fer-
corresponde a Franceses (92), Flamengos nando de Oliveira, gramático, que não
e Holandeses  (66), Ingleses  (37), segui- disfarçava a simpatia pelo anglicanismo.
dos de Alemães  (29), Irlandeses  (11), Isabel Drumond Braga adverte, todavia,
Espanhóis (5), Italianos (3) e outros (3), que se tenha “em conta que a Inquisição
sendo a média de idades dos 121 indiví- nunca distinguiu claramente os diversos
duos identificados de 20 a 35 anos, dis- tipos de protestantismo (luteranismo,
tribuídos por solteiros (59), casados (54), calvinismo e anglicanismo), designando
alguns com Portuguesas, e viúvos  (8). genericamente o delito como ‘luteranis-
Quanto a ligações profissionais, há mer- mo’” (BRAGA, 2002, 238).
cadores  (26), bufarinheiros  (6), carpin- Ainda em Trento, o arcebispo D. Fr. Bar-
teiros (4), cirurgiões (5), soldados de vá- tolomeu dos Mártires, numa carta a
rias especialidades  (9), marinheiros  (9), Fr. João de Leiria, dominicano e seu subs-
pilotos (3), mestres de urcas (2), i.e., gen- tituto em Braga, não poupa críticas ao
te de passagem, entrada pelo mar. A  in- luteranismo que alastrava pela França,
vestigadora conclui que o abaixamento muito temendo ver saltar “alguma faísca”
de casos, na centúria seiscentista, “deve em Portugal, e afirmava sem ambiguida-
ser relacionado, quer com os tratados des: “Porque de quanto tenho lido e por
de paz estabelecidos entre Portugal e os cá visto, estou resoluto que todo o cristão
diversos reinos protestantes europeus no que vive carnalmente, esquecido da sua

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1188 Antiluteranismo (Época moderna)

salvação, está isca mui seca ou pólvora Angliae Reginam [Carta à Rainha de Ingla-
para se lhe pegar esta peçonhenta seita, terra] foi o primeiro sinal feroz contra o
porque toda ela está fundada em liber- reformismo evangelista, com violenta ab-
dade, luxúria e gula. Por esta via, os pre- jurgatória à pessoa de Lutero; escrita por
gadores desta seita trazem muitos para sugestão do cardeal D. Henrique, é da
si, porque pregam que todo o cristão, autoria do humanista D. Jerónimo Osó-
de qualquer estado que seja, tenha mu- rio, figura de proa do clero e da cultura
lher, nem cuidam de obedecer aos pre- portuguesa que passou pelas Universida-
ceitos que mandam confessar, jejuar, não des de Salamanca, Paris e Bolonha, admi-
comer carne” (DIAS, 1960, I, 81). Nesta rador de Petrarca e Erasmo, sólido pilar
altura, contudo, o prelado não afasta- da ortodoxia católica. A intervenção do
va do horizonte a reconciliação com os régio purpurado português visava con-
protestantes, a fim de se evitar a cisão da vencer Isabel I, sucessora de Maria Tudor
Igreja. Para Pina Martins, historiador do no trono britânico, a voltar ao grémio ca-
Renascimento português, a substância tólico. Animava-o a atitude benevolente
polémica da “diatribe antiluterana” do da Soberana, mais aparente que sincera,
humanista André de Resende increpa para com os súbditos que permaneciam
Martinho Lutero, “não bispo, mas frade fiéis ao papado.
desprezador da religião e apóstata da fé, e A obra, publicada em 1562, teve rápida
a outra turba de heréticos que dele ema- repercussão, beneficiando do seu mode-
naram, sem madura idade, sem dignida- lar latim ciceroniano. Em finais de Seis-
de episcopal, e o que pior é, sem espírito centos, somava 23 edições, traduzida para
de temor de Deus”, aos quais nenhuma francês e inglês. De assumido recorte po-
autoridade assiste para “condenar o que lémico-apologético, visava denunciar as
fixo e firme estava […] e interpretar a es- consequências funestas dos erros doutri-
critura a seu danado apetite, contra inter- nários do luteranismo, desacreditar a in-
pretação dos sagrados doutores”, tendo- teireza moral do heresiarca e convencer
se recusado a assistir ao Sagrado Concílio a herdeira de Henrique VIII a retratar-se,
em Trento reunido, “que eles antes com para bem da sua alma e da unidade da Co-
tanta instância pediam”. No processo in- roa britânica. Esta espécie de carta aber-
quisitorial de mestre Marcial de Gouveia, ta, no estilo dos escritos trocados entre os
refere-se haver composto “um tratado humanistas do Renascimento, reveste-se
contra Lutero, que deu ao Abade de Ti- de um nítido tom catequético, gerando,
bães”, mosteiro beneditino do aro braca- no debate e no intercâmbio literário sus-
rense (MARTINS, 1973, 123-125). tentados, correntes de opinião antagóni-
cas e conciliatórias. No início do libelo, o
bispo de Silves imputa à “importunidade
A crítica pós-tridentina e ousadia” do heresiarca a rutura da Igre-
Finda a assembleia tridentina, publicados ja de Cristo, bem como aos “turbulentos
e postos em prática os decretos concilia- discursos” e aos “livros contaminados”
res, a onda antiprotestante, dentro do de- de “certos homens” ver-se “de repente
sígnio da denominada Reforma Católica, extinguir-se o pudor, destruir-se a hones-
tentava extirpar réstias de proveniência tidade, calcarem­‑se aos pés os direitos
erasmiana e erradicava zelosamente os fo- divino e humano, profanarem-se as coi-
cos de heresia luterana ou afim. A Epistola sas sagradas, ridicularizar-se a santidade,
Hieronymi Osorii ad Serenissimam Elisabetam correr impune a audácia por todo o lado,

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Antiluteranismo (Época moderna) 1189

as reuniões clandestinas em que eles


tramam a morte e a destruição dos reis
e maquinam, com infando crime, o assas-
sínio daqueles por cuja salvação deviam
venerar e dirigir preces a Deus”. Carrega
ainda mais as cores, ao imputar ao pro-
grama desta “seita demagógica” o intento
de “maquinar, pela fraude e pelo crime, a
morte daqueles príncipes que não estive-
rem dispostos a abandonar a religião em
que foram santa e sabiamente educados,
para seguirem a loucura da demagogia
popular”. Semelhante seita, insiste, “que
invadiu muitas partes da Cristandade”,
pretende “a destruição da República, a
ruína dos costumes, a devastação do Rei-
no, o derrube do esplendor régio”. Com
pedagógico acento, D. Jerónimo Osório
enumera, entre os malefícios: a abolição
da vida consagrada; a eliminação das
“imagens dos santos, todos os símbolos
da Cruz, todos os quadros pintados em
Página de rosto de Da Vida e Feitos…, de D. Jeróni- que fora reproduzido algo que represen-
mo Osório, dedicada ao cardeal D. Henrique. tasse a memória da clemência divina ou
de alguma egrégia virtude” e do sacrifício
corroborar-se a impudência, semearem-se da missa, das cerimónias e dos sacramen-
as opiniões desvairadas e profundamente tos, bem como do temor de Deus, pois
desvairadas entre si, romper-se de todo se a força da fé for grande e estiver “es-
a união cristã pela ímpia variedade das tabelecida na maior firmeza, ainda que
seitas e, em todo o lugar por onde desa- o homem seja ímpio e pecador, pode
bava esta loucura dos homens, estimular­ considerar garantida para si a graça de
‑se a chama e o incêndio da mais sinistra Cristo e a imortalidade da vida bem-aven-
discórdia”. O requisitório de entonado turada” (OSÓRIO, 1981, 189-191). Acres-
retoricismo prossegue com o desdobra- centa que as sistematizações teológicas
mento dos malefícios: “foi daqui que sur- do protestantismo conduzem a “coisas”
giram ódios acerbos, tumultos frequentes de deixar “os homens mais depressa pe-
e contendas mortíferas. Daqui nasceram trificados”, a saber: “Amordaçam a razão
guerras horrendas e mortais. E daqui apa- humana, roubam a liberdade de opinião,
receram depois, por toda a parte, muitas agrilhoam a vontade com cadeias eternas
mortandades, muitas devastações e os ha- e privam de tal forma o homem todo de
veres de muita gente destruídos a ferro e julgamento e de sensibilidade, e deixam­
fogo”. Acrescem “a isto os males políticos: ‑no de tal maneira espoliado de qualquer
a ruína das leis, o desprezo da autorida- arbítrio próprio, que não há ponta de
de, o ódio à majestade régia, e as cruéis diferença entre ele e uma pedra”, pas-
insídias que esses, ímpia e sacrilegamen- sando a atribuir “à autoria de Deus todas
te, armam contra os príncipes. Juntem-se as coisas que os homens desenham no

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1190 Antiluteranismo (Época moderna)

espírito, empreendem e executam, quer “no culto da mais santa religião”, consi-
boas quer más, restringindo-as a um fatal derando “que nada há mais pernicioso
e eterno determinismo” (Id., Ibid., 201). à República do que uma religião e san-
Desautorizar o heresiarca como líder reli- tidade inventadas pela mentira”. O evan-
gioso – “autor e maioral” deste plano satâ- gelismo deve rejeitar-se, porque, prome-
nico, “arquiteto de tão preclara obra” – e tendo “reconduzir os costumes corruptos
seus sequazes é outro objetivo do libelo à severidade do Evangelho e restaurar
acusatório de D. Jerónimo Osório, que aquela antiga pureza da Igreja”, não ape-
denuncia a devassidão do heresiarca, vi- nas se mostrou incapaz de manter “sã a
sível numa “vida infamada de escândalo”. Cristandade”, como pôs “toda a sua de-
Interroga, enfaticamente: “E quem foi terminação em sufocar tudo quanto exis-
esse Lutero? Um homem (para usar das tia de são e em inquinar tudo com males
palavras mais brandas), com toda a certe- pestíferos”. Para conduzir a Soberana à
za, turbulento e de todos o mais extrema- consciência das suas responsabilidades,
mente demagogo. E quem foram os que, diz-lhe estar em suas mãos a “salvação” ou
depois, profluíram da fonte, por assim di- a “ruína” da sua pátria, aconselhando-a à
zer, da sua doutrina? Homens verdadeira- retratação: “Na verdade, se assumirdes a
mente audaciosos, presunçosos, soberbos tarefa de expiar a religião ultrajada e vos
e (para não dizer coisa mais dura) não agregardes ao consenso da Igreja inteira e
exornados de tamanhas virtudes, que nos prestardes o devido culto aos antigos cos-
sintamos movidos pela sua autoridade e tumes e ofícios e, expulsando os homens
devamos abandonar a forma daquela re- ímpios, chamardes a vós os homens bons
ligião em que fomos educados” (Id., Ibid., e santos, fortalecida pela ajuda e auxílio
181). Em vez de darem continuidade à de Cristo, haveis de organizar de maneira
missão de Cristo, a de unir na “mútua be- perfeita a República e restituir a todos os
nevolência e amor”, esses homens evan- seres a salvação e a vida”. E apela, por fim,
gélicos fomentam a “missão do Diabo”, a que esconjure do reino “o ódio da Cruz
que é “dispersar e dissolver toda a socie- que esses autores da pestífera novidade
dade santamente constituída”, concitar abertamente sustentam” e siga “as pisadas
tumultos, semear a discórdia, dividir uma dos santos” e não as daqueles que, “ob-
só em infinitas seitas, atiçar “o ódio de cecados pelo seu amor-próprio, escora-
uma contra as outras”. Tal empresa, vinca dos na sua imaginação, precipitados pela
o prelado, é demagógica, pois, “acenan- sua audácia, recobertos de escândalos e
do com a visão de uma excessiva liberda- arrancados à união da Igreja, apregoam
de, arma o povo contra as leis, contra os [outro] como sendo o caminho que se
ministros das leis e contra a majestade e deve seguir” (Id., Ibid., 235-236).
o poder dos príncipes, e encoraja o furor A outra intervenção de D. Jerónimo
da turbamulta com uma falsa liberdade Osório, que é uma importante referên-
da religião”. A argumentação debruça-se, cia nesta linha polémica antiprotestante,
assim, sobre as incidências teológicas e, surge em 1564, no De Iustitia, Tratado de
em paralelo, aborda as políticas, refleti- Justiça redigido em latim e impresso em
das na ameaça da desordem social e na Veneza, que conheceu cinco reedições
destruição do sustentáculo da autorida- na era quinhentista. Contudo, a obra já
de régia. Por isso, recomenda à Rainha se encontrava terminada há três anos,
que com “mais força” organize “a defesa” ou mesmo antes, pois Diogo de Paiva de
do reino, cujo êxito estaria em colocá-lo Andrade, padre conciliar de quem fora

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Antiluteranismo (Época moderna) 1191

amigo e arguente de mestrado em Artes, de crítico e reformador do cristianismo


concluído em 1549, por mercê dessas vivido sob a égide do papado. Como se
andanças, empregou a sua eficiente me- dissesse, na hipótese de Lutero poder
diação no acolhimento dado pelo editor lê-lo e responder-lhe: tens coragem de
veneziano, Agostinho Valério, alavanca prosseguir, “havendo tu traído, com núp-
útil para uma difusão a nível europeu. cias impuras, a fé publicamente jurada
O tema era muito oportuno, se se atentar a Cristo; tendo tu seduzido impudente-
em que as ideias-força da teologia lutera- mente, para fazê-la aceder à desenfreada
na, formalmente contrárias à doutrina ca- sensualidade, uma virgem consagrada a
tólica, defendiam que “todo o mérito das Deus; tu que foste a peste da tua pátria e
obras, toda a justiça inerente”, se devia ao a perturbação e tempestade da religião”
sacrifício de Cristo, e não à “liberdade do (Id., 1999, 35)? Durante séculos, foram
arbítrio”. Nesse sentido, também de um aliás também estas acusações ferinas que
português, D. Fr. Gaspar do Casal, bispo a vulgata católica antiprotestante repe-
de Leiria, teólogo e eremita agostiniano tiu até à saciedade contra o heresiarca
presente em Trento, saiu dos prelos ve- germânico.
nezianos de Iordanus Ziletus, em 1563, o Os livros oitavo e nono de Tratado da
Quadripertita Iustitia, grosso tomo de 413 Justiça debatem os temas teológicos mais
fólios a duas colunas, de feição polémica apaixonantes para a consciência cristã:
e de ataque aos heréticos mentores do a liberdade humana e a predestinação, o
cristianismo evangélico, patente na afir- livre-arbítrio e a presciência divina. Lu-
mação do valor das obras humanas para tero e Calvino equacionaram-nos até às
alcançar a união com Deus, que nisso últimas consequências. Por conseguinte,
consiste a justiça. Definida esta virtude, D. Jerónimo Osório não lhes poupa o
que permite ao cristão ser portador da peso da sua virulência polémica, chaman-
vida divina, precisado o significado do do-lhes “raça maldita de sequazes de Sa-
vocábulo “fides” (fé) e estabelecido o tanás”, e apelida as suas falsas doutrinas
duplo entendimento que engloba o ter- de “maquinações diabólicas”. O bispo de
mo “Igreja”, corpo místico de Cristo e Silves acusa Lutero de blasfémia, quan-
comunidade dos fiéis que participam dos do atribui a miséria humana “ao próprio
mesmos sacramentos, instituídos para sua santíssimo e ótimo Pai de todas as coisas”.
santificação, D. Jerónimo Osório procu- E acrescenta que propagou isto, “não de
ra, no livro segundo do Tratado, refutar modo confuso, como muitos o fizeram,
o conceito de fé de Lutero, não sem dei- nem com dano mitigado, como os pro-
xar de provocá-lo com ironia: cuida este fessores: mas com audácia desenfreada
insigne homem “que o género humano e com impudência, às escâncaras e aber-
viveu no engano até hoje, e que ele, sem tamente, através de escritos e sermões,
margem para dúvidas, nasceu por graça infetando com a mortífera peçonha um
de Deus a fim de libertar os entendimen- incontável número de homens”. Se Cal-
tos dos homens de erros sem conta”, e vino distingue entre “necessidade” e “co­
julga “que a justiça, a salvação e a imorta- ação”, não deixa de reiterar a interpreta-
lidade se alcançam unicamente por meio ção luterana que, sem dúvida, minimiza
desta fé singular e desacompanhada de a infinita riqueza da divina misericórdia.
obras”. Em direta invetiva, denuncia o ca- Motivo suficiente para dirigir ao teólogo
rácter escandaloso da sua vida moral, de alemão mais um truculento ataque ad ho-
modo a minar a sua pretensa autoridade minem, nos seguintes termos: “Não causa

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1192 Antiluteranismo (Época moderna)

estranheza alguma aquilo que ouvimos Prince. Trata-se de um opúsculo originaria-


dizer: que tu antes de morreres, foste mente escrito em latim, mas de que não
também atormentado e inquietado várias resta nenhum exemplar, e foi impresso,
vezes pelo assédio de um pestífero De- de forma clandestina, no ano de 1564, em
mónio e que amiúde te viste atribulado Paris, na oficina de Robert Estienne, por
por visões medonhas. Pois não é possível diligências do embaixador britânico que
que a um tão grande crime não se siga, espalhou alguns livrinhos na comunidade
imediatamente, uma vesânia desumana e de católicos ingleses refugiados em Lovai-
o acerbo suplício da consciência acabru- na, enviando outros para a corte londrina.
nhada” (Id., Ibid., 44-45). Nesta frente de Seguindo a síntese estrutural de Gui-
combate deve inscrever-se também a obra marães Pinto, extraída das obras em
do Jesuíta P.e Manuel da Veiga, De Vita, causa dos autores intervenientes na po-
Miraculis Lutheri, Calvini et Bezae (1586), lémica, fica-se ciente dos vetores que as
cujo título ressuma acintosa ironia. consubstanciam. Após reconhecer a mes-
Estava assim lançada a controvérsia re- tria retórica de Osório, “grande embla-
ligiosa luso-anglicana que António Gui- dor de palavras e frases”, Haddon justifica
marães Pinto, erudito latinista, exaustiva o facto de se adiantar em responder por
e proficientemente estudou. O sucesso ser “inglês, criatura da rainha e conhece-
obtido pela difusão da Carta apologéti- dor das instituições públicas da pátria”,
ca de D. Jerónimo Osório ao nível euro- que o Português ignora, não recuando
peu – com edições em Veneza, Lovaina e além disso em atribuir à Inglaterra “uma
Paris, no ano de 1565, em que saiu uma impiedosa e odiosa inovação no domínio
tradução francesa, e, em 1565, com duas religioso”. Por outro lado, Osório é acusa-
edições, publicadas em Antuérpia, de do de afrontar as leis inglesas cuja legi-
uma versão inglesa – levou a corte britâni- timidade provém de serem “votadas no
ca a diligenciar pronta e enérgica réplica parlamento pelo povo, confirmadas pelos
que “fosse também uma espécie de ma- nobres e pelos representantes da Igreja
nifesto da diferente situação político-reli- e sancionadas pelo príncipe” (Id., Ibid.,
giosa instaurada” sob a égide da nova So- 161). Intima-o, assim, a indicar “os fac-
berana (PINTO, 2006, I, 146). A Walter tos e monstruosidades que alegara como
Haddon (1516-1572), mestre em Artes, consequências dessa religião imaginária”,
doutor em Leis, professor de Direito Civil que desdenhosamente chama religião
e vice-chanceler da Univ. de Cambridge, anglicana (Id., Ibid., 163). Os reforma-
prosélito zeloso da Igreja Anglicana, lati- dores que cobre de injúrias “são mestres
nista ciceroniano de reconhecida quali- do Evangelho enviados por Deus numa
dade, político e parlamentar, diplomata época de decadência”, motivo pelo qual
e autor de escritos antipapistas, coube a foram procurados pela Rainha Isabel e
tarefa de contraditar o argumentário de amparados pelos Ingleses. E, porquanto
D.  Jerónimo Osório, considerado inverí- ensinam “o mesmo corpo” doutrinário
dico e ofensivo, num texto que saiu, em que os antigos, “são dignos de relevância”
1565, da tipografia londrina de William (Id., Ibid., 169-172), e é insultuoso cha-
Seres, sob o título: A Sight of the Portugall mar louco a Lutero, se foi elogiado por
Pearle, That is, the Aunswere of D. Haddon Erasmo, e demagogo, a não ser que tal
Maister of the Requests unto Our Souveraigne seja sinónimo de “o amigo e salvador do
Lady Elizabeth, against the Epistle Hieronymus povo” cristão. Se os reformadores defen-
Osorius a Portugall, Entitled a Pearle for a dem que se deve seguir “exclusivamente

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Antiluteranismo (Época moderna) 1193

as Escrituras”, nada mais fazem do que “o caminho que através das bulas, condu-
“seguir os exemplos de Cristo, dos após- zia à perversão de costumes”. Quanto à
tolos e dos primeiros padres da Igreja” “autoridade única”, têm-na na pessoa da
(Id., Ibid., 172). Insiste, orgulhoso, haver Rainha, que “exerce senhorio sobre os
sido uma melhoria introduzida na disci- seus súbditos e, nas matérias religiosas,
plina religiosa anglicana a extinção da delega a sua autoridade nos bispos”, dan-
vida conventual, masculina e feminina, do “por decreto real força de lei às suas
com os seus “covis de crimes para onde os decisões” (Id., Ibid., 192-193) – i.e., regina
jovens de ambos os sexos eram arrastados locuta est, causa finita est. Critica o estilo
com grave detrimento da moral”, em que venenoso de Jerónimo Osório e acusa-o
as orações se faziam “numa língua des- de truncar a doutrina dos reformadores,
conhecida” e cujos edifícios “passaram que não se desviam do pensamento pau-
a albergar escolas, universidades, hospi- lino ao afirmarem “que o homem é justi-
tais” (Id., Ibid., 176). Também valoriza e ficado pela fé”, mas sem excluir que “a fé
encarece a supressão de todos os vestígios obra por caridade” (Id., Ibid., 206). Cen-
de idolatria: imagens, painéis e crucifi- sura também os católicos por se deixarem
xos. O que importa é adorar a Deus, e adormentar: “embalados pelas promessas
“as representações, se o espírito se acha de um perdão fácil concedido ao pecado,
presente, não fazem falta; na ausência através da confissão auricular e mediante
deste, carecem de préstimo” (Id., Ibid., a compra de bulas; embrutecidos pelas
180). Haddon indigna-se com o imenso pregações vãs e soporíferas dos frades e
exagero de Jerónimo Osório, que acusa pela assistência passiva a cerimónias litúr-
os reformadores protestantes de elimina- gicas, que não passam de um espetáculo
rem os sacramentos e os rituais e assegura para os sentidos, interpretado numa lín-
práticas religiosas bem diversas, pois, en- gua ininteligível”. E contrapõe o que se
tre os anglicanos: “enviam-se pregadores observa na vida de piedade da Igreja An-
a todas as partes para instruírem sobre a glicana: “assiduidade da pregação evan-
piedade e ensinarem o verdadeiro culto gélica (de frequência obrigatória por lei);
a Deus; servem-se de um formulário pú- serviços religiosos, que incluíam o cânti-
blico de orações, aprovado pelo parla- co dos salmos, hinos e extratos bíblicos,
mento e em relação ao qual não admitem aos quais se seguia a Ceia do Senhor, que
quaisquer desvios”. Calunia, pois, quem se serve nos dias santos” (Id., Ibid., 213).
afirma que a Igreja reformada não tem No que à interpretação bíblica diz respei-
“culto, sacramentos e cerimónias”, dado to, os protestantes “esquadrinham e estu-
estes continuarem a ser “ministrados em dam diretamente” as Escrituras, “e não
conformidade com as Escrituras e segun- interposição dos intérpretes e glosadores,
do o exemplo da Igreja dos primeiros como fazem os católicos” (Id., Ibid., 216).
tempos”, sendo que “tudo quanto tange Aconteceu que, em 1565, se encontrava
à religião se realiza usando da língua ver- na Flandres o português D. Manuel de Al-
nácula, de acordo aliás com a doutrina de mada, membro credenciado da comitiva
São Paulo e o exemplo das antigas igre- de 1000 pessoas, que, a 12 de agosto, par-
jas” (Id., Ibid., 184). Haddon sustenta: se tira de Lisboa para acompanhar, a Bruxe-
os anglicanos “sacudiram o jugo do bispo las, D. Maria, a filha de D. Duarte, duque
de Roma”, é porque o único “Sumo Pon- de Bragança, a fim de se unir ao seu noi-
tífice que reconhecem é Cristo”, e não se vo, Alexandre Farnésio, duque de Parma,
veja nisso “sedição”, mas antes o fechar aí presente, junto de sua mãe Margarida

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1194 Antiluteranismo (Época moderna)

de Áustria, governadora dos Países Bai- do texto haddoniano, que diz “tresandar
xos. D. Manuel de Almada (c. 1500-1580) a arte retórica” (Id., Ibid., 155-156). Os
era natural de Lisboa e licenciado em pontos discutidos são os da sobeja insis-
Cânones, deputado da Inquisição, bispo tência: a interpretação livre das Sagradas
titular de Angra, desde 1562, sem que, no Escrituras, o livre-arbítrio, a vida moral
entanto, residisse na Diocese, mas tendo dos reformadores protestantes, as ordens
feito aplicar nas ilhas açorianas os decre- religiosas, a autoridade papal e o pri-
tos tridentinos. Em contacto com Tho- mado do colégio dos bispos, o culto das
mas Harding, sacerdote católico inglês, imagens, o divisionismo das Igrejas refor-
que, por certo, o incitaria a responder, madas. Tudo exposto com dispersão, ao
teria recebido um exemplar do escrito de sabor da sequência dos tópicos que se lhe
Walter Haddon, na altura já na 2.ª edição, deparam. Conforme a informação que ia
publicada em Antuérpia, de réplica à Car- colhendo, D. Manuel de Almada contesta
ta apologética de D. Jerónimo Osório, de Haddon, afirmando que “grande parte
quem era amigo, dirigida à Rainha Isabel da população inglesa continua católica”
de Inglaterra, no prelo flamengo de Gui- e só “esconde a fé, não por medo, mas
lherme Silvius, onde também se impri- para apoiar ocultamente e não deixar
miu, em 1566, o livro de D. Manuel de fraquejar os que são torturados pela fé”
Almada, com o título: Epistula Reverendi (Id., Ibid., 161). Considera que os refor-
Patris Domini Emanuelis Dalmada Episcopi madores protestantes não passam de “tra-
Angrensis […] adversus Epistulam Gualteri tantes” e só por “perversos intentos” po-
Haddoni. dem equiparar-se aos venerandos Padres
As duas razões imperiosas da “exorta- da Igreja, a Atanásio, Jerónimo e Basílio,
ção epistolar” de D. Manuel de Almada, em sua “santidade e doutrina” (Id., Ibid.,
escrita nas vésperas da partida para a pá- 169). As “seitas nascidas de Lutero” não
tria, de réplica à Carta de Haddon, são: podem alinhar com as ordens religiosas
o desagravo à honra vilipendiada do católicas de S. Francisco, S. Domingos,
amigo ilustre D. Jerónimo Osório e o S. Basílio, S. Bento, S. Bernardo, S. Bru-
desejo de defender a religião católica na no, os Carmelitas, Premonstratenses,
confrontação com a heresia protestante. Trinitários, Lóios e Jesuítas; e, se foram
A conjuntura que se vivia nos Países Bai- suprimidas na Inglaterra, embora reco-
xos era incendiária: crescia o vendaval nhecendo os “costumes indignos” de al-
iconoclasta dos calvinistas e aproximava­ guns dos seus membros, a razão esteve na
‑se a duríssima repressão dos Tércios do “cobiça dos pseudorreformadores” pelos
duque de Alba, a extremar ainda mais os “bens materiais que estes possuíam” (Id.,
dois campos em conflito. No combate às Ibid., 170). Os votos de castidade volun-
heterodoxias, D. Manuel de Almada tinha tária da vida consagrada de religiosos e
já larga folha de serviços na militância do religiosas são legítimos e juridicamente
Santo Ofício, pois entrara nos processos vinculativos, defende o bispo de Angra; e,
inquisitoriais dos lentes coimbrãos João na esteira de S. Paulo, evoca “o paralelo
da Costa, Diogo de Teive, D. Lopo de Al- entre os grandes cuidados e fadigas pró-
meida e do Agostiniano Fr. Valentim da prios do matrimónio e a quietação de es-
Luz, que sofreram condenações e, o últi- pírito de que gozam quantos se entregam
mo, a condenação à morte na fogueira do à contemplação de Deus” (Id., Ibid., 176).
auto de fé. Canonista de formação, recor- Quanto ao culto dos santos, verbera a
re a dialéticas jurídicas e a largas citações “impiedade de Haddon”, aconselhando-o

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Antiluteranismo (Época moderna) 1195

sagrados”. A interpretação individual das


Escrituras e a sua tradução nos idiomas
vernáculos tiveram, como nefastas con-
sequências “por todas as regiões onde
predominam as doutrinas protestantes”,
uma “dissensão generalizada e multidão
de seitas guerreando-se mútua e inces-
santemente” (Id., Ibid., 184-185). A defe-
sa veemente da primazia da sé católica,
apostólica, romana, negada por Haddon,
leva o bispo de Angra a tratá-lo “como
blasfemo, perturbador, sacrílego, traidor,
perjuro, supressor das tradições eclesiás-
ticas, ladrão da jurisdição e faculdade de
redigir decretos que Cristo dera à Igreja
D. Manuel de Almada (c. 1500-1580).
a título de doação”. Os maus ministros
que esta teve não lhe permitem querer
“destruir toda a hierarquia eclesiástica”,
a consultar os “teólogos católicos sobre por muito que seja “amante da acefalia”
as diferenças que a Igreja estatuiu entre (Id., Ibid., 193-195). Repetindo, sopori-
hiperdulia, dulia e latria”, sendo inexato feramente, ataques antes feitos, insiste,
que a antiga Igreja não aceitasse as ima- até ao termo da sua réplica a Haddon, na
gens dos santos, como as determinações unidade de fé e na concórdia, bem como
do Concílio de Niceia o patenteiam (Id., na obediência dos primeiros cristãos, que
Ibid., 180-181). Ponderando uma soma de foram dilacerados pelos hereges protes-
questões, D. Manuel de Almada respon- tantes de modo calamitoso, em virtude
de: os que nomearam “os atuais bispos de soberba e falta de caridade, acusando­
anglicanos que substituíram à força os ‑os de usarem “na eucaristia” pão e vinho
que haviam sido canonicamente eleitos” que julgam consagrados, mas não o são
não possuíam jurisdição eclesiástica para porque os seus sacerdotes não receberam
a necessária validade, pelo que “não pas- legítima ordenação (Id., Ibid., 214-215).
sam de salteadores e hereges”. O braço No início do verão de 1566, vindo da
secular não faz mais do que “uma meta- Flandres, D. Manuel de Almada pisou no-
morfose e aberração inaudita”, transfor- vamente o solo pátrio, mas teriam decor-
mando “algo que é braço em cabeça da rido cerca de 14 meses até que o opúscu-
igreja inglesa”, ao sagrá-los chefes reli- lo de Walter Haddon chegasse às mãos de
giosos. Cristo escolheu o apóstolo Pedro D. Jerónimo Osório, enviado pelo amigo,
para seu “vigário geral”, pelo que só ao o prelado da diocese açoriana, com votos
papado cabe a definição e a transmissão de pronta réplica, acompanhado do de
da doutrina, dos ritos e dos dogmas – não sua autoria. Liberto de algum trabalho
aos Parlamentos das nações particulares. pastoral urgente, o bispo do Algarve dis-
O uso do latim e não do vernáculo é di- pôs-se a retorquir à Carta do anglicano,
tado pela universalidade, e “serve para entregando o escrito latino aos prelos
assinalar a unidade e evitar equívocos na lisbonenses de Francisco Correia, que
interpretação das cerimónias” e “a  ba- terminou a sua impressão, a 7 de outu-
nalização e vulgarização dos mistérios bro de 1567, com o título Amplissimi atque

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1196 Antiluteranismo (Época moderna)

Doctissimi Virii D. Hieronymi Osorii, Episcopi de Osório a Haddon é o da vocação con-


Sylvensis, in Gualterum Haddonum Magis- sagrada no seio da vida conventual. Com
trum Libellorum Supplicum […] Libri Tres, insistência, o bispo de Silves arremessa
conhecido como Contra Haddon entre o aos reformados a causa decisiva que os
público académico. Livros destes, “corrup- levou, na Inglaterra, à destruição dos ce-
tores da sã ortodoxia”, confessa o antístite nóbios masculinos e femininos: o “ódio à
de Silves, desejaria bem ignorá-los, por fo- castidade, ao qual se juntou a cobiça dos
mentarem “o contágio de uma peste tão bens com que os religiosos se sustenta-
funesta” como a heresia protestante. Só vam”. A linha do argumentário segue a
toma a pena com o objetivo de “defender exaltação da vida no claustro na Igreja
a religião ultrajada e também para praticar Católica, em que há “uma luta contínua
uma obra de caridade”, levando Haddon contra a carne e uma meditação de temas
a reconhecer a sua “ligeireza” e néscia vai- divinos”. Em reforço, alega “a má vontade
dade. Ao escrever a Carta à Rainha, fê-lo do rei [Henrique VIII] contra o papa por
por se encontrar longe dela, de contrá- negar-se a conceder-lhe o divórcio, a ga-
rio “aconselhá-la-ia de viva voz a evitar o nância dos bens monásticos, a adulação
trato com os perversos” (Id., Ibid., 157). dos perversos que influíam na vontade do
A unidade da Igreja de Cristo, assen- soberano, a paixão revolucionária, o ódio
te no poder supremo dos sucessores do da castidade”. Para ele, foi em torno desta
apóstolo Pedro, obsta a que as seitas pos- matéria que se “estabeleceu o fundamento
sam crescer livremente, como decorre da ‘peste’ luterana”: a sua conduta, neste
da fé luterana, que, atacando o papado, particular, ditada de “acordo com a sua
concorre para a destruição do catolicis- natureza sensual” – de resto, “nenhum
mo. A imagem que se retira dos “costu- dos reformadores foi casto”. Permite-se,
mes dos protestantes ingleses” acaba por a pretexto, adiantar a questão: quem é
ser uma consequência lógica da doutrina mais livre – a mulher casada ou a reli-
professada (Id., Ibid., 167). É doloso e de- giosa? Categórico, afirma “que o espírito
magógico, sustenta D. Jerónimo Osório, só goza de liberdade quando a sua parte
o caminho seguido por Lutero ao “lison- racional (mens) detém o senhorio sobre
jear os apetites da plebe”, a coberto da todo ele” (Id., Ibid., 176-179). Mereceu
ambição de alguns príncipes, e ao deixar ainda a atenção de D. Jerónimo Osório
escravizar-se por “seus caprichos treslou- o culto das imagens e a doutrina sobre os
cados”. Não podendo segurar os sequazes sacramentos, em particular, a penitência
que acabaram por se rebelar contra a sua e a eucaristia.
autoridade, arrastou para a morte “mi- Em defesa do primeiro, lembra: a lei
lhares de europeus”. O ataque ao here- antiga não o proíbe, mas apenas os “si-
siarca alemão redobra de contundência mulacros” pagãos; os crentes que não so-
ao retratá-lo como estando “dominado bem às alturas da vida espiritual precisam
pela sensualidade, pela agressividade e do estímulo que as imagens representam
pelo orgulho” e como apologista da su- para serem alentados na piedade; a con-
pressão do livre-arbítrio, tornando Deus denação, pelos concílios, dos iconoclas-
óbvio “autor dos pecados dos homens”, o tas. Adverte, por fim, que as imagens de
que faz não serem, entre os protestantes, Cristo, da Virgem e dos santos eram “ex-
considerados pecados “a luxúria, a sedi- postas à veneração dos homens para que
ção e toda a sorte de desmandos” (Id., tivessem presente a lembrança da miseri-
Ibid., 173-175). Ponto crucial na réplica córdia divina” (Id., Ibid., 181-182). Por sua

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vez, a eficácia dos sacramentos procede A equiparação dos poderes pontifício e


dos méritos de Cristo, e, para a salvação, régio na sua extensão e nos seus limites,
os da penitência e da eucaristia são da sobretudo a supremacia da autoridade
maior importância. A acentuação sobre régia no governo dos súbditos, em que o
“os grandes benefícios sociais e morais monarca não pode ser tirano, mas deve
que resultam da confissão” espelha-se no ser zelador da prosperidade daqueles, ar-
incitamento ao “espírito de moderação” rasta D. Jerónimo Osório, na resposta a
e à “prática do dever”, tornando o peni- Haddon, a “inflamada objurgatória con-
tente “mais puro, mais íntegro, melhor”. tra os lisonjeiros que, com a sua adulação
A  forma como os protestantes “zombam aos reis, desencadeiam a perdição sobre
da satisfação” pelos pecados e a obstina- as sociedades”. Foi o caso, como refere,
ção com que defendem “a confissão di- de Henrique VIII, que condenou à morte
reta a Deus” levam a cada um ser juiz em Thomas More e Fisher, com o consequen-
causa própria. E, se a Igreja prescreve a te cisma anglicano (Id., Ibid., 195-197).
confissão anual, fá-lo “a fim de evitar que O problema da salvação pela fé em Cristo
fosse votado ao desprezo um sacramento sem o emparelhamento das obras, pomo
de tão grande utilidade”. Ao deter-se na basilar da controvérsia teológica católico­
defesa da doutrina católica da eucaris- ‑luterana, a partir do pensamento pauli-
tia, aviva o diferendo quando impugna no, é dominante no argumentário dialé-
a interpretação teológica luterana que tico Osório-Haddon. A este e a Lutero
a considera “mero recordatório e sím- não reconhece o bispo de Silves o enten-
bolo da morte de Cristo”. Alude Osório dimento das Escrituras, recomendando a
à distinção obsessiva entre a pureza das leitura do seu Tratado da Justiça, onde se
almas santas e a imoralidade dos pecado- encontra a luz precisa para haver certeza
res carnais, quando aponta o irredutível de que “as obras por si ocasionam salva-
contraste: “os santos castos que desde a ção ou perdição” – por isso, a fé precisa
origem da Igreja ensinam esta doutrina de obras, aquelas que Cristo ordena (Id.,
ortodoxa sobre a eucaristia [verdadeiro Ibid., 203). Outro ponto controvertido da
sacrifício], e, por outro, ‘os loucos da sen- teologia católica é o livre-arbítrio. Se Lu-
sualidade’ que recentemente fraguaram tero afirma que “o homem não passa de
essa interpretação herética”, aniquilando uma ferramenta nas mãos de Deus usada
assim “aquele que é o máximo benefício para o bem e para o mal”, não lhe é lícito
da misericórdia divina”. Por sua vez, em punir os pecados dos quais “é Ele afinal o
convergência com D. Manuel de Almada, autor”. Inaudita “monstruosidade” e, ao
intenta a impugnação a outros dois deba- mesmo tempo, “loucura abominável com
tidos pilares do protestantismo: o uso da funestas consequências para toda a vida
língua vulgar na liturgia e a livre interpre- moral e social”, afirma. Deus concede ao
tação da Sagrada Escritura, recusando o homem a graça suficiente para que se não
acesso “indiscriminado de todos” à Bíblia, perca eternamente: “em suma, os que são
que segue a sua tradução em vernáculo, salvos, são-no graças à imensa misericór-
e a “necessidade de abandonar o latim dia de Deus, os que são condenados, são­
como língua litúrgica, pois, se a comu- ‑no pelo Seu justo juízo”, o qual tem raiz
nidade de língua une os espíritos, nada na deliberação providente, na equidade
há de mais ajustado à regra cristã do que e na razão (Id., Ibid., 206-209). Osório
louvar a Deus numa só língua” (Id., Ibid., reduz a refinada perversidade a reforma
184-189). anglicana, porquanto, no que se viu, só

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se encontram resultados funestos: “em giada em “insultos” e obstinações, “amiú-


vez do santo ócio, um negócio infame; de com a petulância de linguagem do in-
em lugar do zelo da pureza, mancebias glês”, torna-se estéril (Id., Ibid., 225-226).
sacrílegas; em troca da ortodoxia doutri- No entanto, a agressividade verbal, regis-
nal, ironias de homem desvairado” (Id., te-se, não deixava de ser mútua.
Ibid., 210). Assegura, no entanto, não ter Ao regressar a Inglaterra, nos começos
pretendido atacar a Inglaterra, em que de novembro de 1567, Thomas Wilson,
ainda “vivem muitos homens piedosos”, embaixador da Rainha Isabel em Lis-
enquanto outros foram “obrigados a er- boa, trazia consigo exemplares da obra
rar exilados para não contemplarem um de D.  Jerónimo Osório, não sendo difí-
espetáculo tão doloroso como o que se cil ima­ginar a reação de Haddon e dos
desenrola na sua pátria”. Não pode, po- cortesãos londrinos, a partir de Cecil, o
rém, considerar, como parece sugerir secretário da Soberana, a qual o bispo
Haddon, “inócuos pecadilhos o estendal português reputava de generosa. Jean
de misérias e crimes atrozes que acabara Matal, velho correspondente de D. Je-
de desdobrar” (Id., Ibid., 211-213). Além rónimo Osório, escreveu-lhe, na altura,
disso, lastima não conseguir ver, “nos ser- a dizer que Haddon “afiava a pena” para
viços religiosos” dos reformados, as me- a réplica que deixou, porém, inacabada.
lhorias que o Inglês exalta, no confronto Falecendo em janeiro de 1572, a resposta
com o culto católico, pelo que se vê obri- manuscrita não ia além de livro e meio, do
gado a concluir “que tais reformadores total de três dirigidos ao Contra Haddon do
são falsos profetas e merecem a condena- prelado algarvio (Id., Ibid., 151-153). Com-
ção eterna” (Id., Ibid., 216-217). pletou-a, todavia, John Foxe (1516-1587),
Não termina a contestação de D. Je- mestre em Artes, graduado pela Univ. de
rónimo Osório às inovações teológicas Oxford, anglicano radical e sacerdote,
introduzidas pelo protestantismo sem tra- conhecido escritor de Christus Triumphans
tar da existência do Purgatório, que lem- (1556), “drama latino de tema apocalíp-
bra haver Lutero primeiro aceite para, tico”, e de Acts and Monuments, obra de
posteriormente, negá-lo. As Escrituras e fôlego acerca do martirológio protestan-
a tradição testemunham-no como verda- te, logo colocada “em todas as sés cate-
de a crer. Aproveita o ensejo para realçar drais e nas residências dos arcebispos,
a renovação sentida na Igreja Católica, bispos, diáconos e subdiáconos” ingleses.
enquanto nas fileiras protestantes, tan- O Contra Osório, dado à luz em 1577, sob
to no âmbito secular como no religioso, o título Contra Hiron. Osorium, eiusque
“combatem-se mutuamente, ressuscitam Odiosas Insectationes pro Evangelicae Veritatis
heresias esquecidas, abrem caminho à Necessaria Defensione, Responsio Apologetica.
negação de Deus”. Na política europeia, Per Clarissimum Virum Gualt. Haddonum
também os efeitos não foram melhores: Inchoata: Deinde Suscepta et Continuata per
“na Alemanha, na França, na Inglaterra e Ioan. Foxum, foi impresso em Londres
na Escócia, os povos levantaram-se contra por John Day, no ano de 1577. Autor e
os seus legítimos senhores”. Termina pro- continuador, Haddon e Foxe, perfilhan-
metendo que só voltará a este diálogo re- do a toada polémica própria da literatura
ligioso se tiver “alguma esperança de cura afim, persistem no arremesso de acutilan-
relativamente a Haddon ou seus confra- tes diatribes insultuosas, numa exaltação
des”, pois a disputa sem “razões, provas proselítica do anglicanismo, que conside-
e exemplos” convincentes e apenas refu- ram difamatoriamente deturpado pelo

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teólogo português, cujos textos compa- proporcionavam pertinentes ensejos a


ram a “frioleiras de fanfarrão” (Id., Ibid., comentários polémicos e explanações
205). Esta polémica acintosa, esgrimida apologéticas. Assim, na missa do segundo
com armas de aço latino, naturais para domingo do Advento, a 11 de dezembro
eruditos renascentistas mas distantes do de 1552, a que D. João III assistia com a
púlpito vulgar, morreria aqui, até mesmo família real, um mercador inglês, chega-
porque D. Jerónimo Osório ficou a des- do a Lisboa, acercou-se do sacerdote no
conhecer essa última réplica de Haddon­ momento da elevação e, arrancando-lhe
‑Foxe, cuja versão inglesa, Against Jerome a hóstia consagrada, atirou-a ao chão.
Osoryus Byshopp of Silvane in Portingall and Foi preso e sentenciado à fogueira, sen-
against His Slaunderous Inuectives […] now do executado no dia seguinte. No dia 13,
Englished by Iames Bell, veio a lume, em terça-feira, houve uma procissão eucarís-
1581, pela mão do referido impressor tica de desagravo pelo sacrilégio, com a
londrino. No entanto, John Foxe regres- participação de mais de 60.000 pessoas,
sará ao terreno com o avantajado volume do Monarca e da corte. Houve, no final,
in-octavo intitulado De Christo Gratis Ius- uma pregação em louvor do Santíssi-
tificante. Contra Osorianam Iustitiam, caete- mo Sacramento por António Pinheiro,
rosque eiusdem Inhaerentis Iustitae Patronos, teólogo e mestre do príncipe herdeiro,
Stan. Hosium, Andrad., Canisium, Vegam, que era apropriada à ocorrência, sendo
Tiletanum, Lorichium, contram Uniuersam esse um momento de muitas lágrimas e
denique Turbam Tridentinam e Iesuiticam, devoção. Aconteceu também que, após
Amica et Modesta Defensio, de 436 páginas, conhecer-se em Lisboa a matança do dia
impresso em 1583 na oficina de Thomas de S. Bartolomeu, 24 de agosto de 1572,
Purfoot (Id., Ibid., 117). O ataque dirige­ em que foram massacrados na cidade de
‑se agora contra a doutrina católica da Paris cerca de 3000 huguenotes e talvez
justificação pela graça divina, exposta por para cima de 14.000 protestantes por
D. Jerónimo Osório em Tratado da Justiça, toda a França, o Dominicano Fr. Luís de
tal como os mais credenciados teólogos Granada (1504-1588), a 8 de setembro,
ibéricos a defendem, entre os quais os proferiu em S. Domingos um sermão de
Portugueses Diogo de Paiva de Andrade “engrandecimento” pela vitória que ao
e Pedro de Vega. Emudeceu, em seguida, Rei gaulês Deus concedera. Por sua vez, o
esta histórica controvérsia religiosa luso­ teólogo tridentino e orador sacro Diogo
‑anglicana, não sem reforçar o peso dos de Paiva de Andrade (1528-1575), irmão
anti no contexto da progressiva rutura da de Fr. Tomé de Jesus e assíduo frequen-
Europa cristã. tador do círculo espiritual dominicano,
embora não gozasse da inteira confiança
da ala conservadora da ortodoxia católi-
A parenética ca, refutava no púlpito, convictamente, a
e a censura inquisitorial heresia luterana e as opiniões da mesma
Em tempos de fortíssimo analfabetismo fonte derivadas. Algo análogo se poderia
e de enorme afluência aos templos, a ora- dizer, com respeito a problemas contro-
tória sacra era um poderoso meio para a vertidos da Reforma protestante, de es-
mentalização antiprotestante, tanto mais critos e sermões do P.e Sebastião Barradas
eficaz quanto a autoridade dos pregado- (1543-1615), insigne biblista e mestre je-
res fosse abonada pelo saber e pela vir- suíta, considerado ao tempo pregador de
tude. Factos ocorrentes de afim relação nomeada.

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Matança do Dia de S. Bartolomeu, de François Dubois (1529-1584).

A atmosfera vivida em Lisboa face aos gunda parte aparecido seis anos depois,
ataques de forças fiéis e aliadas ao preten- sem que lhe minguasse fundamentação
dente à Coroa, D. António, prior do Cra- para, de sobejo, alimentar a ênfase dada
to, vencido em Alcântara pelo exército ao ataque antiprotestante. José Adriano
invasor de Filipe II, em 1580, e a frustra- de Carvalho, revelador da parénese do
ção provocada pelo aniquilamento da In- P.e Inácio Martins, acentua que nessa tare-
vencível Armada, que integrou uma par- fa era ideologicamente explorada “a  co-
ticipação naval portuguesa, motivaram notação dos ingleses como opressores e
vários sermões do Jesuíta Inácio Martins, hereges, desobedientes ao Papa […], ne-
sacerdote culto e ativo mestre catequista, gadores dos sacramentos católicos […],
que percorria as ruas e praças da capital profanadores de imagens e objetos de
do reino acompanhado de numerosos culto […], desafiadores do Rei Católi-
grupos de meninos. Nos inícios de maio co” (CARVALHO, 2004, 258). Contudo,
de 1588, na cruzada de pregações e ora- o desastre da Invencível Armada viera
ções para implorar a Deus o êxito daquela agravar as ameaças às costas e aos mares
ofensiva bélica, pronunciou o sacerdote portugueses e semear o pânico entre as
inaciano um Sermão na Guerra Justa contra populações, para além dos ataques às fro-
os Engreses Hereges na igreja de Santos-o­ tas que sulcavam o Atlântico. São de 1596
‑Velho, com violentas invetivas dirigidas outros cinco sermões manuscritos, respe-
à nação anglicana, inimiga declarada da tivamente pregados: na casa professa de
fé católica. Aliás, nesse mesmo ano, saiu S. Roque, aos padres e irmãos; na igreja
de prelos lisbonenses, em versão castelha- de S.ta Catarina, quando Drake, o corsário
na, a primeira parte da Historia Eclesiastica inglês, assolou as cidades de Cádis e Faro,
del Scisma del Reyno de Inglaterra, da auto- receando-se que avançasse sobre Lisboa;
ria de Pedro de Ribadeneira, tendo a se- o terceiro, quarto e quinto, sem templo

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certo, foram também pronunciados no excomunhão e que eram de obrigatória


decurso dessas dramáticas circunstâncias denúncia ao Tribunal inquisitório. Com
históricas. Ao apontar o Inglês, naquele esta aturada vigilância, procurava-se man-
medonho tempo, como herege, o qual ter o país, de certo modo, defendido do
“é a Deus injurioso, é em si todo perdi- contágio protestante. De facto, a longa
do, é à igreja contagioso”, atribui-lhe as Guerra da Restauração, de quase três dé-
malfeitorias criminosas cometidas na al- cadas, levou o poder político a permitir,
tura. Assim se expressou, e.g., no sermão em 1641, a existência de uma Igreja ho-
a S. Bartolomeu, um daqueles cinco: “ou- landesa reformada, embora apenas para
viste-me dizer que inventara Deus três o culto de naturais das Províncias Uni-
cousas, igrejas, ornamentos, imagens sa- das, e, no tratado luso-britânico firma-
gradas e que todas três eram proveitosíssi- do nesse ano, a reconhecer a liberdade
mas às almas. E todas essas três cousas nos de consciência aos súbditos ingleses de
pretendeu tirar o demónio (com?) ferro confissão evangélica residentes no país,
pelos ingleses este ano de 1596. E se não desde que exercessem as celebrações em
vede o que fizera em Calix [Cadiz] e em privado, não obstante saber-se que o Papa
Faro. O de Calix deixo. Em Faro derriba- Clemente VIII entendia ser tal direito
ram três igrejas, espedaçaram as imagens, “o pior do mundo”. Tenha-se em atenção
profanaram os ornamentos e das estolas o edital do Santo Ofício de 20 de março
e manípulos fizeram ligas das calças. Que de 1746, aliás idêntico ao que, anualmen-
haveis de fazer os católicos como todos te era afixado nos templos por ocasião
sois? Haveis de vingar esta injúria” (Id., do quarto domingo da Quaresma, em
Ibid., 262-263). O P.e Inácio Martins não que se mandava delatar, sob pena de ex-
apontava outra resposta que não fosse o comunhão maior in ipso facto incurrenda,
confronto armado. quaisquer pessoas eclesiásticas, seculares
A censura literária, confiada ao braço e regulares sem exceção, e todo o cristão
eclesiástico, cedo se fez sentir, ao obstar a que tivesse por boa a seita de Lutero e
entrada em Portugal da literatura protes- Calvino, bem como qualquer heresiarca,
tante vinda de além-fronteiras. Em 1540, dos antigos e modernos, condenado pela
por ordem do arcebispo de Lisboa, o car- Sé Apostólica.
deal infante D. Afonso, foram os livreiros A vigilância antiprotestante, exercida
da cidade intimados a entregarem ao sob a égide da Inquisição, prosseguiu ao
doutor sorbónico Álvaro Gomes uma lista longo do séc. xviii, sendo o exame dos
dos livros para venda, a fim de os volumes livros postos à venda feito, por vezes, com
suspeitos serem todos vistos, em especial aturada minúcia. Na visita a que, por or-
os que tinham origem na Alemanha, para dem do Santo Ofício, Fr. Nicolau da As-
evitar que chegassem às mãos dos católi- sunção procedeu em Lisboa, a 26 de abril
cos, sendo depois submetidos ao exame de 1759, nos inícios do consulado pom-
dos censores. Por essa altura, apareceram balino, à loja de um importador de livros
os catálogos de índices de livros proibi- italianos, o Dominicano encontrou um
dos (1547, 1551, 1559, 1561), seguindo­ exemplar da Minerva de Francisco San-
‑se os do Dominicano Francisco Foreiro cho, impressa sete anos antes em Ames-
(1564), do metropolita de Lisboa D. Jor- terdão, e anotada por Jacob Perizonio,
ge de Almeida (1581) e do Jesuíta Bal- um reconhecido herege. O deputado do
tazar Álvares (1561-1630), com as obras Tribunal da Fé encontrou uma passagem
que se vedavam aos católicos sob pena de em que se punha em causa a doutrina

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reafirmada em Trento logo no prefácio, humanística, Francisco Xavier entrou na


tendo-se apressado a minutar fundar-se vida profissional pelo funcionalismo pú-
aquela num erro de Calvino que “nega a blico. A turbulência amorosa marcou-lhe
infalibilidade das definições dos Pontífi- a adolescência e a juventude, havendo
ces Romanos e dos Concílios”, expressan- contraído em Portugal e no estrangeiro
do que, no seu parecer, se devia “mandar sucessivos casamentos. Agraciado com o
riscar como herético”. O desanuviar tra- grau de Cavaleiro da Ordem de Cristo,
zido pelos ventos iluministas, mesmo no o talento e as relações sociais abriram­
Portugal ortodoxo setecentista, permitiu ‑lhe uma carreira diplomática acidentada,
aflorações deístas, jansenistas, ateístas, com permanentes dificuldades financei-
voltairianas, bem como reafirmações lute- ras que o lançaram nos braços da here-
ranas e calvinistas, que, todavia, acabaram sia protestante, assumida em pleno por
sendo alvo de condenatórias oposições. volta de 1741 no meio anglicano inglês.
De referir o Triumpho da Religião. Poema O iluminismo francês enciclopedista e
Epico Polemico (1756), dedicado ao Papa cético reflete-se já na versão escrita das
Bento XIV, do intelectual ortodoxo, em- Cartas Familiares, Históricas, Políticas e Crí-
bora controverso e instável vate, Francisco ticas, obra enviada a exame censório do
de Pina e de Melo, denominado “corvo Santo Ofício onde, segundo o seu melhor
do Mondego” na voz de Correia Garção, biógrafo, Gonçalves Rodrigues, é feita
defensor dos Jesuítas e suspeito para Pom- “a apologia da Razão como fonte do co-
bal, que o mandou prender. A obra, escri- nhecimento”, da “liberdade de discor-
ta com o intuito de combater, entre vários rer”, das “leis sagradas e invioláveis da
sistemas heréticos ao tempo em voga, o lu- consciência” (RODRIGUES, 1950, 147);
teranismo e o calvinismo, deu azo a acesa indigna-se, sobretudo, com a imoralidade
crítica e contestação, que circulavam em do clero. Em 1738, mantém claras dúvi-
folhas impressas e manuscritas. das sobre o dogma da transubstanciação
eucarística e, no ano seguinte, exprime a
sua descrença no Purgatório, pois consi-
A condenação do Cavaleiro de Oliveira, dera vãs as “cerimónias praticadas mal a
o “protestante lusitano” propósito com os cadáveres insensíveis”.
Deve referir-se o caso dominante no Por- O deputado do Santo Ofício que lhe cen-
tugal setecentista: o de Francisco Xavier surou as Cartas não lhe perdoa a menção
de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira, o sobre o celibato eclesiástico e “o valor
“protestante lusitano”, cujos escritos ti- relativo da virgindade e do matrimónio”.
veram larga difusão e cuja impenitente Mas a ofensiva antirromana do Cavaleiro
conduta recebeu da Inquisição letal ba- de Oliveira parte da análise crítica aos
nimento. O pai, funcionário nas missões problemas teológicos e políticos susci-
diplomáticas de Utrecht e Viena, no tem- tados no diferendo entre o papado e a
po do marquês de Alegrete e do conde corte inglesa, que conduziram à organi-
de Tarouca, contava frades e freiras entre zação da Anglicana Ecclesia (Church of
os filhos e parentes, a ponto de, com ver- England), regida doutrinariamente pelos
dade, ser exato que este filho fora edu- conhecidos 39 artigos de fé. Casado em
cado em ambiente conventual de orto- Inglaterra com uma senhora de filiação
doxia tridentina e sensibilidade barroca. huguenote, será pelos panfletos da velhi-
Nascido a 21 de novembro de 1702 em ce que se constata como o protestantismo
Lisboa, onde recebeu cuidada instrução que perfilhava, ainda conforme Gonçalves

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Rodrigues, se distingue “mais pela oposi- setembro de 1761 – deveu-se à publica-


ção intransigente ao catolicismo do que ção do Discours Pathètique, que, em 1756,
pelo espírito de inovação e independên- teve edições em francês e inglês. Tratava­
cia”, animado sempre pelo vivíssimo de- ‑se de uma interpretação providencialista
sígnio de evangelizar a sua pátria, ainda do terramoto de Lisboa de 1755, que foi
que por motivos mais políticos do que atribuído à adoração das imagens religio-
espirituais (Id., Ibid., 165-166). Para ele, sas, ato mais criminoso do que a idolatria
o celibato, a abstinência e os jejuns não do gentilismo, à proibição da leitura da
passam de exterioridade, e o culto das Bíblia em vernáculo, à perseguição aos
relíquias de mera superstição; e nenhum judeus, impedindo-os de praticar o seu
acolhimento concede ao mérito das boas culto. Para o seu citado biógrafo, o autor
obras para a justificação, dádiva gratuita pretendia com esta obra “estimular a cria-
que apenas pela fé se recebe. Estes os ção, de uma Igreja Lusitana submetida ao
pontos doutrinários de inteiro cerne lute- gládio político, à imagem e semelhança
rano que o Cavaleiro de Oliveira tornara da igreja anglicana que o aceitara como
patentes, entre outros escritos, no Tratado membro” (Id., Ibid., 254). A versão de um
das Conformidades entre o Paganismo e o Pa- credo protestante de medula nacional
pismo, corpo estruturante do Amusement, recebe, assim, inequívoca preferência,
obra considerada fulcral para o rastreio quer ao rejeitar a jurisdição do papa em
do seu ideário protestante. Não admira, território português, cujo domínio abso-
pois, ser decretada pelo Santo Ofício a luto pertencia a seu rei natural, quer ao
proibição de todos os seus escritos, que, preconizar pertencer a este o direito de
de resto, passaram a rarear em extremo “convocar uma assembleia de homens
no país, numa medida repressiva ditada doutos, especialmente de França e Ale-
pela ortodoxia tridentina, protegida e manha, para discutir os problemas religio-
fomentada pelo Estado português, com sos, de Bíblia na mão, fielmente vertida
agrado do povo avesso aos cristãos-novos. em vernáculo”. Cada vez mais doente, o
Por sua vez, a Europa anglo-saxónica e Cavaleiro de Oliveira chegou, octogená-
iluminista manifestava acintosa fobia ao rio, ao fim de prolongada velhice: a 18 de
catolicismo obscurantista que, no fundo, outubro de 1783, no ano a seguir à morte
representava outra forma de conduta do marquês de Pombal, faleceu em seu
inquisitorial e de intolerância também desterro londrino, sem nunca ter voltado
persecutória. à pátria desde que partira. As suas ideias
A Inquisição apercebia-se, contudo, de heterodoxas, que foram anatematizadas
que o combate sem tréguas de Oliveira, pelos anti-iluministas, tanto eclesiásticos
para sua completa extinção, era de to- como leigos, acabaram, no entanto, por
mar a sério, porquanto ele provocato- encontrar eco na geração liberal por-
riamente afirmava esperar o advento de tuguesa que se abriria à tolerância para
um Calvino português capaz de levar a com o credo protestante e as confissões
nação a converter-se ao protestantismo. acatólicas.
O fundamento, porém, da condenação
do herege pelo Santo Tribunal – que o
Bibliog.: ANDRADE, António Alberto Banha
sentenciou a ser queimado em efígie, por
de, Verney e a Cultura do Seu Tempo, Coimbra,
“ausente e morador em Londres, con- Acta Universitatis Conimbrigensis, 1966; AU-
victo, negativo e contumaz”, como o foi, BIN, Jean, “Damião de Góis dans une Europe
simulado em “espantalho de lã”, a 20 de évangélique”, Humanitas, n.os 31-32, 1979-80,

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1204 Antiluteranismo (Época moderna)

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terária inquisitorial”, Boletim da Segunda Classe, (1570-1571)”, Anais da Academia Portuguesa de
vol. 12, n.º 2, 1918, pp. 473-560; BRAGA, História, 2.ª sér., vol. 36, 1998, pp. 155-173;
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ros e a Inquisição Portuguesa (Séculos XVI-XVII), em Portugal no Século XVIII. António Ribeiro dos
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A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, nio Guimarães, Humanismo e Controvérsia Re­
Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, ligiosa. Lusitanos e Anglicanos, 3 vols., Lisboa,
1948; BRASÃO, Eduardo, Relações Diplomáticas INCM, 2006; PRESTAGE, Edgar, As Relações
de Portugal de 1640 a 1668, Lisboa, Bertrand, Diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra
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Martins, sj – seis sermões contra os Ingleses nio Gonçalves, O  Protestante Lusitano. Estudo
(1588-1596) e cinco cartas da viagem por Eu- Biográfico e Crítico sobre o Cavaleiro de Oliveira
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Francisco de Carvalho, “A introdução da Fac­‑Simile, Lisboa, INCM, 1983; TAVARES, Pe-
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para a história religiosa do Nordeste”, Estu­ teranismo ibérico do séc. xvi: breves reflexões
dos Transmontanos, n.º 2, 1984, pp. 119-142; sobre alguns pressupostos, equívocos e encru-
DIAS, José Sebastião da Silva, Correntes de Sen­ zilhadas”, Humanística e Teologia, t. 15, n.os 1-2,
timento Religioso em Portugal (Séculos XVI a XVIII), 1994, pp. 205-223; Id., “Por ‘erros de Lutero e
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de Góis, Lisboa, FCG, 1987; MARTINS, José V.
de Pina, Humanismo e Erasmismo na Cultura Por­
tuguesa do Século XVI, Paris, FCG/Centro Cultu- Esta entrada recupera, em versão adaptada,
parte do texto “Antiprotestantismo. A oposição
ral Português, 1973; MEA, Elvira de Azevedo, crítica ao protestantismo pelo catolicismo em
A Inquisição de Coimbra no Século XVI. A Institui­ Portugal”, publicado anteriormente em MARU-
ção, os Homens e a Sociedade, Porto, Fundação JO, António, e FRANCO, Eduardo  (coords.),
Eng.º António de Almeida, 1997; OSÓRIO, Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal,
Jerónimo, Carta à Rainha de Inglaterra, Lisboa, Lisboa, Círculo de Leitores/Temas e Debates,
2009, pp. 203-264.
Biblioteca Nacional de Portugal, 1981; Id.,
Tratado de Justiça, Lisboa, INCM, 1999; PEREI-
RA, Isaías da Rosa, “O processo de Damião
de Góis na Inquisição de Lisboa (4 de abril
de 1571-16 de dezembro de 1572)”, Anais da
Academia Portuguesa de História, 2.ª sér., vol. 23,
t. i, 1975, pp. 117-156; Id., “O primeiro lutera-
no português penitenciado pela Inquisição”,
in Inquisição. Comunicações do 1.º Congresso Luso­
‑Brasileiro, vol. i, Lisboa, Sociedade Portuguesa
de Estudos sobre o Século XVIII/Universitária
Editora, 1989, pp. 259-261; Id., “O processo

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Antimaçonismo 1205

Antimaçonismo momento, e a qual atingiu a Maçonaria


apenas por tabela” (RAMOS, 2009, 322).
A disseminação de lojas maçónicas, de
há quase 300 anos a esta parte, provocou
uma forte corrente de condenação, de
crítica e de perseguição a esta novíssima
forma de associativismo, para promover

O antimaçonismo configura a corren-


te que incorpora na longa duração
histórica as iniciativas, as posições, as
ideias novas e criar grupos coesos, assen-
tes em vínculos de fraternidade ritual-
mente selados.
ações e a aparelhagem argumentativa de Embora o debate sobre as origens da
combate à emergência, expansão, con- maçonaria tenha persistido, campo em
solidação e influência da Maçonaria nas que também prepondera uma história do
suas diferentes expressões e instituições. imaginário muito rica e digna de estudo
O romance O Cemitério de Praga (2011), crítico, os estudiosos mais credenciados
de Umberto Eco, e o complementar li- situam em 1717 a fundação de um tronco
vro de ensaios do mesmo autor, Construir organizativo, que se estenderá como uma
o Inimigo (2011), relevam o sucesso e a árvore frondosa com inúmeros ramos.
proliferação de uma cultura de comba- A  criação da Grande Loja de Londres e
te e dos seus discursos, que fundam as a designação dos membros pelo nome
teorias de complô na história moderna de free mason (pedreiro-livre) marcaram
e contemporânea. A queda e a ascen- o arranque da estruturação do associa-
são de regimes, a sucessão de correntes tivismo franco-maçom ou da chamada
culturais e ideológicas, o nascimento de maçonaria especulativa, que se considera
novas instituições, em concorrência com herdeira simbólica da maçonaria operati-
organizações seculares, a hegemonia de va dos pedreiros e arquitetos medievais,
umas confissões religiosas e étnicas sobre construtores de catedrais e templos, dis-
outras suscitaram poderosos discursos de seminadores da grande arte e do melhor
construção do inimigo como estratégia património edificado na Europa.
de afirmação, de diferenciação identitá- Criando e recriando rituais iniciáticos e
ria, de legitimação e de conquista de es- revestindo-se de paramentos simbólicos,
paço social, político e simbólico. a maçonaria nasceu entre a história e a
A maçonaria é um desses territórios do
imaginário, que tem sido muito fértil na Pormenor do interior da Grande Loja de Londres.
construção de uma cultura em negativo:
o inimigo a combater é o campo cercado
da razão explicativa para muitas derivas
das sociedades tardo-modernas e con-
temporâneas. O historiador Rui Ramos
alerta para a devida cautela metodoló-
gica na definição do termo “antimaço-
nismo”, distinguindo a sua aplicação em
cada momento histórico, como “rejeição
doutrinal da maçonaria e uma política de
recessão de certas organizações e formas
de sociabilidade suspeitas ao poder do

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1206 Antimaçonismo

memória. O seu texto fundador, publica- as Letras. No entanto, a tentativa fracas-


do em Londres, em 1723, procurou criar sou porque o cardeal Fleury respondeu
uma identidade e uma legitimidade para a que essas assembleias não agradavam ao
organização. Na introdução das Constitui- Rei. Ramsay retirou-se da maçonaria de-
ções, o seu editor, Désaguliers, um exilado finitivamente, procurando um simulacro
protestante francês, na altura grão­‑mestre de repressão, completo pela publicação
da Loja de Londres e Westminster, asse- de opúsculos destinados a desacreditá-la.
gurou entregar aos leitores “uma relação Apesar do seu fracasso, Ramsay deixou
fiel e exata da Maçonaria desde o começo uma marca forte no imaginário coletivo,
do mundo” (DÉSAGULIERS, 1723, II). com inesperados efeitos, popularizando
Através de um relato lendário, a novíssima a ideia de que a maçonaria não era uma
maçonaria apresentou-se como herdeira fraternidade civil, mas sim uma ordem de
de uma tradição imemorial. Este passa- cavalaria. Este relato alimentou o imagi-
do reinventado ancorou as suas raízes na nário da maçonaria francesa espalhan-
criação do mundo. No séc. xviii prolife- do-se pelos países que tinham relações
rou a tese das origens medievais. O rela- com as lojas francesas, como a Alemanha,
to medieval foi confecionado, de facto, a Itália, a Suécia e a Rússia. As variantes
a 26 de dezembro de 1736. O seu autor, deste discurso proliferaram, fragmentan-
um católico escocês emigrado em França, do-se em microcosmos imaginários.
de nome Andrew Michael Ramsay, publi- As Constituições de Anderson, elaboradas
cara novelas sobre viagens iniciáticas e entre 1714 e 1723, tornaram-se a refe-
religiões enigmáticas. Se as Constituições rência estruturante da consolidação das
de 1723 tinham impulsionado o mito da práticas rituais, dos conteúdos doutrinais
origem antiga, Ramsay substituiu-o pelo e das orgânicas institucionais das lojas
mito da origem medieval cavaleiresca, maçónicas de tradição britânica. Estas
evocando os cruzados. Adequava-se assim incorporaram a simbologia herdada das
ao gosto literário do séc. xvii e do início corporações de pedreiros e arquitetos e
do séc. xviii, respondendo à paixão que os elementos das correntes herméticas,
pequenos círculos tinham pelas novelas alquímicas e cabalísticas, que ganharam
de cavalaria. Muito de acordo com este força com o dealbar da época moderna.
gosto, adaptou o relato das origens e in- As Constituições instituíram a maçonaria
cluiu lendas sobre os monges-soldados como ordem iniciática, consistindo em
cruzados do séc. xii. Ramsay seguiu uma rituais praticados nas lojas, depois fede-
corrente cristã-mística, o quietismo, mui- radas em obediências ou grandes lojas.
to difundido nos sécs. xvii e xviii, conde- O  iniciado era sujeito a uma ascese e a
nada como herética pela Igreja Católica, um ensino através de ritos e símbolos, de
em 1687. Levou esta ideia ao cardeal de forma a atingir, através de vários estádios,
Fleury, principal ministro do Rei Luís XV um modo de ser superior àquele que ex-
e homem forte do Estado francês. perimentava na sua vida social profana. Os
As lojas começaram a desenvolver-se em graus eram indicativos da sua progressão.
França, onde o poder político começou a Os iniciados consideravam-se irmãos entre
manifestar desconfiança, proibindo estas si, mas, devido ao carácter secreto da sua
assembleias a 17 de março de 1737. Ram- iniciação, não lhes era permitido revelar a
say solicitou a Sua Majestade tolerância e sua identidade, a qual, no entanto, podia
proteção para a confraria que, segundo ser mutuamente atestada, através de sinais
ele, deveria servir a religião, o Estado e discretos de reconhecimento.

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Antimaçonismo 1207

Folha de rosto de The Constitutions of the Free-Masons (1723), de James Anderson.

A fraternidade era estruturante do ponsáveis do Estado, diferentemente do


ideário das lojas, onde se acolhiam e to- que viria a acontecer nos países europeus
leravam diferentes modos de pensar, de continentais.
acreditar e de idealizar novos modelos Desde finais do séc. xvii, Londres, se-
de sociedade. Embora se aconselhasse a guida de Paris e Amesterdão, tinha-se
fé monoteísta e o respeito pelos poderes convertido no epicentro europeu de uma
instituídos, as lojas eram apresentadas verdadeira explosão associativa. Multipli-
como um espaço de debate livre e como cavam-se os círculos literários, os salões,
laboratórios de pensamento novo. os cenáculos, as sociedades socráticas, as
A Inglaterra incarnava, em finais do publicações e os periódicos. Estes grupos
séc. xvii, um modelo único na Europa mesclavam indivíduos com diversos hori-
e no mundo. O Estado estava dotado de zontes, aristocratas e burgueses dotados
novos enclaves geopolíticos, institucio- de capital cultural.
nais, económicos e sociais. Depois de ter No primeiro século do surgimento das
dirimido as tentativas urdidas a partir de lojas maçónicas, no contexto do Ilumi-
França para uma restauração católica e nismo e das correntes de crítica ao mo-
absolutista, a nova monarquia tinha-se delo social e político do Antigo Regime,
reequilibrado. A unificação da Inglaterra a Igreja, sendo um dos pilares essenciais
e da Escócia, pela lei da União de 1706­ de um sistema social fundado na coope-
‑1707, tinha selado o reino da Grã-Bre- ração estreita entre o poder temporal e
tanha, privando a França católica da sua o poder espiritual, não poderia acatar
aliança tradicional com a Escócia. A disse- com serenidade um movimento de pen-
minação das organizações maçónicas no samento livre que sonhava com uma so-
país-ilha que era a Grã-Bretanha foi bem ciedade diferente e que fugia, pelo méto-
recebida e até apoiada pelos altos res- do do segredo, ao controlo eclesiástico,

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1208 Antimaçonismo

procurando atingir o domínio íntimo das Cedo começaram a ser publicados do-
consciências. Por outro lado, a origem da cumentos oficiais condenatórios e pre-
maçonaria em universo protestante e a ventivos da parte das instituições tutelares
estruturação esotérica de rituais iniciáti- das esferas política e religiosa, em parti-
cos que implicavam compromissos, jura- cular da Igreja Católica, das Igrejas pro-
mentos, fidelidades e obediências parale- testantes e dos governos dos Estados eu-
los e/ou em concorrência com processos ropeus do Antigo Regime. Em sociedades
de vinculação semelhantes da Igreja Ca- fechadas, onde o direito de associação
tólica e de outras confissões protestantes era muito restrito e, em múltiplos casos,
suscitavam grandes suspeitas, dúvidas e inexistente, o aparecimento das formas
receios da parte dos guardiões da ortodo- de associação maçónicas, estruturadas
xia religiosa, à luz de um modelo social sob a denominação de lojas, com ritua-
de cristandade defendido por instâncias lidades próprias, identidades secretas e
judiciais de vigilância como a Inquisição juramentos ocultos, suscitou as mais fan-
e outros sistemas de censura análogos. tasmáticas suspeitas.
Convém notar, como escreve Rui Ra- A corrente de oposição à maçonaria en-
mos, que “o antimaçonismo viveu também grossou e acirrou-se ao longo do séc. xix,
da ideia de uma subversão da própria or- criando doutrinas explicativas da sua
dem maçónica, supostamente desviada identidade, das suas origens, das suas prá-
dos seus desígnios originais por infiltração ticas e dos seus fins. Como notaram Graça
de grupos de indivíduos apostados em Dias e José S. Silva Dias, em Os Primórdios
manipular a Maçonaria para fazê-la ser- da Maçonaria em Portugal, a imagerie este-
vir os seus fins particulares. Já em 1738, a reotipada, que alimentou a formação de
diligência antimaçónica de Clemente XII um mito negro das obediências maçóni-
resultara da pressão de Jaime III, filhos cas, fundava-se num conhecimento im-
de Jaime II, que se apoiava nas Lojas es- perfeito, frágil e, muitas vezes, baseado
cocesas, maioritariamente simpáticas aos apenas em suspeitas pouco fundamenta-
Stuarts e ao catolicismo, e mais tarde ditas das, mas que suscitavam receios e juízos
‘antigas’, contra as Lojas inglesas, ‘moder- terríveis. A obra apontou ainda o parco
nas’, apoiantes da nova dinastia de Hano- conhecimento que havia da parte dos po-
ver e do Protestantismo. As Lojas escocesas deres tutelares da sociedade do séc. xviii
adotam o rito antigo e aceite, autorizado relativamente à organização maçónica,
pelo rei Jaime I da Escócia. A Europa Con- os quais tomaram medidas persecutórias
tinental tornou-se um campo de batalha e proibitivas fundadas mais em boatos e
das influências escocesa e inglesa. As Lo- opiniões difusas do que em informações
jas francesas acabaram por se separar e consistentes (DIAS e DIAS, 1980, 27).
por criar uma identidade própria, à volta Com efeito, a iliteracia do outro, cons-
de uma relação mais problemática com tituído como inimigo, esteve na base da
a religião reveladas, fazendo da tolerân- construção do mito negativo da maçona-
cia religiosa uma forma de relativização ria, como aconteceu com outros mitos as-
à beira da rejeição. Algumas glorificavam sentes na doutrina do complô, como é o
a ciência moderna, onde procuravam en- caso congénere dos mitos que recaem so-
troncar uma alternativa de espiritualidade bre os judeus, os Jesuítas e os comunistas.
racionalista às religiões reveladas; outras Perseguidos durante séculos pela sombra
dedicavam-se a experiências místicas fora da intolerância, os próprios maçons ti-
do cristianismo” (RAMOS, 2009, 347). nham esquecido as suas origens. Desde a

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Antimaçonismo 1209

Revolução Francesa, e mesmo no início


do séc. xx, a maçonaria pelejava, nova-
mente, entre a luz e a sombra. Conforme
notou Roland Barthes, o mito vale como
o tipo de discurso eleito, historicamente,
com função deformadora, uma vez que
escolhe de forma parcial os seus elemen-
tos formativos, trabalhando com a ajuda
de imagens pobres, incompletas, que ar-
ticulam diversos elementos para criar um
sistema que pretende ser natural (BAR-
THES, 1970, 207, 215).
Embora a Igreja Católica tenha fica-
do marcada, no imaginário antimaçom,
como a arqui-inimiga da maçonaria, os
primeiros motins violentos contra uma
loja maçónica registaram-se em território
protestante. Passada pouco mais de uma
década da criação da maçonaria, o anti-
maçonismo foi inaugurado de forma vio- Papa Clemente XII (1652-1740).
lenta, com um motim popular que atacou
uma loja maçónica em Amesterdão, em assentava em argumentos que serão, em
1735. Esta convulsão social forçou o Go- grande medida, replicados e aprofunda-
verno dos Países Baixos a proibir o fun- dos por outros documentos papais anti-
cionamento destas organizações secretas. maçónicos, publicados com frequência
Dois anos depois, a monarquia católica desde então: o acolhimento, em sede ma-
francesa ordenou uma ação policial para çónica, de homens de todas as religiões;
deter, interrogar e investigar a atividade os juramentos rituais praticados; a recusa
dos pedreiros-livres, que começavam a de alguns maçons em aceitar a autorida-
proliferar na capital francesa, com ramifi- de clerical e o segredo total como prática
cações noutras cidades. A origem inglesa maçónica de proteção e de velamento,
desta organização, o segredo, o clima de mesmo perante os poderes eclesiástico
liberdade de pensamento e de opinião e político. O Pontífice Romano, no pri-
não controlada pelas autoridades come- meiro documento antimaçónico emitido
çaram a suscitar fortes desconfianças e pela Santa Sé, constata a proliferação das
uma corrente de boatos e de estereótipos lojas maçónicas com a sua característica
em cadeia. secreta, para depois considerá-las crimi-
Depois das primeiras iniciativas de re- nosas e proibi-las: “Inteirámo-nos de que
pressão da parte política, a Igreja Católica se estão difundindo por todas as partes e
começou a sua ofensiva doutrinal contra cada vez mais se consolidam algumas so-
a maçonaria, a 28 de abril de 1738, com ciedades, associações, círculos, uniões ou
a publicação, pelo Papa Clemente XII, conventículos comummente chamados
da carta apostólica In Eminenti Apostolatus ‘liberi Muratori’ ou ‘Franco Mações’, ou
Specula. A dificuldade do alto magistério designados com algum outro nome em
eclesiástico em aceitar as novas formas função da variedade das línguas. Homens
de associação das obediências maçónicas de qualquer religião ou seita participam

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1210 Antimaçonismo

nestes, desde que manifestem aparente Nos (1882), Humanum Genus (1884), Inimi-
de honestidade natural, associam-se uns ca Vis (1892), Custodi di quella Fede (1892),
aos outros com um pacto estreito e im- Praeclara (1894) e Annum Ingressi (1902),
penetrável segundo leis e estatutos esta- de Leão XIII.
belecidos por eles, e ao mesmo tempo se Por seu lado, os dados históricos mos-
obrigam, sob juramento rigoroso presta- tram uma participação não irrelevante
do sobre a Sagrada Bíblia e sob ameaças do clero e dos fiéis católicos, tal como das
de penas severas, a dissimular com um Igrejas protestantes, na maçonaria, com
silêncio inviolável o que fazem em segre- uma expansão das redes de lojas maçóni-
do” (DENZINGUER e HUNERMANN, cas, desde a sua fundação. Houve, com
2006, 649). efeito, um significativo distanciamento
Através desta carta apostólica, o Papa entre as orientações do magistério ecle-
Clemente XII proibiu os católicos de siástico e o parecer de alguns católicos no
aderirem à maçonaria e instruiu os in- que a este assunto proibitivo diz respeito.
quisidores de depravação herética para Deste modo, verifica-se que as proibições
tomarem medidas contra os católicos que e os alertas fortes da Santa Sé se afirma-
se tornassem maçons ou que ajudassem a vam em linha contrária ao que era prática
maçonaria de qualquer forma, ordenan- efetiva dos católicos, que não compreen-
do a excomunhão como punição para diam a incompatibilidade entre as duas
aqueles que desafiavam a sua proibição. formas de pertença.
Seguiu-se um longo historial de conde- A Santa Sé, ou, como se lê muitas ve-
nações editadas contra a maçonaria. Em zes na documentação da época, a Corte
1751, um novo documento papal, Provi- de Roma, não foi a primeira nem a única
das Romanorum, publicado a 18 de maio a condenar e a proibir a maçonaria, no
pelo Papa Bento  XIV, confirmou a con- séc. xviii. Alguns exemplos dão-nos a
denação da maçonaria determinada por ideia do receio que este tipo de associa-
Clemente  XII, ampliando as razões para ção suscitava. Destacam-se algumas das
que fosse novamente proibida. Entre esses mais emblemáticas proibições em nome
motivos, destaquem-se os rituais iniciáti- da segurança do Estado, na linha do que
cos, o juramento maçónico e o carácter ensina o direito romano, fonte do direito
secreto da instituição, que era entendido jurídico ocidental, em relação às associa-
como um mecanismo para encobrir práti- ções não autorizadas pelo Estado. As lojas
cas criminosas. As reuniões contrariavam maçónicas foram proibidas, em 1735, pe-
as leis civis e eclesiásticas, uma vez que los Estados Gerais da Holanda; em 1736,
aconteciam sem a permissão das autori- pelo Conselho da República e Cantão de
dades constituídas. As sociedades secretas, Genebra; em 1737, pelo Governo de Luís
como a maçonaria, ganharam desde então XV de França e pelo príncipe eleitor de
feição altamente demonizada entre os ca- Manheim, no Palatinado; em 1738, pe-
tólicos. Os documentos papais críticos da los magistrados da cidade hanseática
maçonaria continuaram, assim, a surgir, de Hamburgo e pelo Rei Frederico I da
ao longo dos sécs. xix e xx, entre os quais Suécia; em 1743, pela Imperatriz Maria
se destacam Ecclesiam (1821), de Pio  VII, Teresa de Áustria; em 1744, pelas autori-
Quo Graviora (1825), de Leão XII, Traditi dades de Avinhão, Paris e Genebra; em
(1829), de Pio VIII, Mirari Vos (1832), de 1745, pelo Conselho de Cantão de Berna,
Gregório  XVI, Multiplices Inter (1865) e pelo Consistório da cidade de Hannover
Apostolicae Sedis (1869), de Pio  IX, e Etsi e pelo chefe da polícia de Paris; em 1748,

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Antimaçonismo 1211

pelo grande sultão de Constantinopla; expressamente os católicos romanos de


em 1751, pelo Rei Carlos VII de Nápo- participarem em qualquer grupo ma-
les (futuro Carlos III de Espanha) e pelo çónico. Apesar destas condenações, um
seu irmão Fernando VI de Espanha; em dos maiores defensores da maçonaria da
1763, pelos magistrados de Dantzig; em altura, Karl Joseph Michaeler, ex-jesuíta
1770, pelo governador da ilha da Madei- e maçom, reitor da Univ. de Innsbruck
ra e pelo Governo de Berna e Genebra; e professor de História Universal, referia
em 1784, pelo príncipe do Mónaco e pelo que, na loja maçónica à qual pertencia,
eleitor da Baviera, Carlos Teodoro; em Saint-Jean de La Vraie Concorde, havia
1785, pelo grande duque de Baden e pelo outros eclesiásticos católicos.
Imperador da Áustria, José II; em 1794, Do outro lado da barricada, importa
pelo Imperador da Alemanha, Francis- notar que, a partir da segunda meta-
co II, pelo Rei de Sardenha, Victor Ama- de do séc. xviii, a maçonaria acentuou
deu, e pelo Imperador russo, Paulo I; e, também a sua campanha anticlerical,
em 1798, por Guilherme III da Prússia, sobretudo contra os Jesuítas. Tornou-se
entre outros casos. emergente um discurso propagandístico,
Na realidade, foi um país protestante o de mobilização coletiva, “explorando o
primeiro a proibir a maçonaria nos seus sentimento de medo resultante da fan-
territórios, um dado que convém ter em tasmagórica figuração demonizada do
conta quando se avaliam certas motiva- inimigo” (FRANCO, 2007, 101). Aliando­
ções alegadas, no séc. xviii, pelos países ‑se a formas de republicanismo, de socia-
católicos para justificar decisões seme- lismo e de livre-pensamento, a maçona-
lhantes. Assim, os documentos antima- ria produziu um discurso caracterizado
çónicos do magistério da Igreja Católica pela retórica da agressividade, típica do
não constituíram exceção nas insistentes discurso de complô.
acusações à maçonaria. Tanto Clemen- Se, historicamente, a forte reemergên-
te XII quanto Bento XIV alegaram moti- cia do anticlericalismo moderno se pode
vos de segurança de Estado, mas também situar no séc. xviii, o séc. xix veio acen-
a suspeita de heresia pelo facto de a ma- tuar o binómio clericalismo-anticlerica-
çonaria admitir nas suas lojas indivíduos lismo. Estes são substantivos que fazem
de diversas religiões, o que no séc. xviii a sua aparição depois de 1850. O termo
tinha uma valoração e um peso muito dis- “clericalismo”, mais adiante, vai opor-se a
tintos dos que adquiriu posteriormente. “laicismo”, termo que perde o seu sentido
Aos governos europeus, bem como à San- original, pois laico era aquele que não era
ta Sé, desagradava, acima de tudo, a atitu- sacerdote secular nem regular, assumin-
de de clandestinidade da maçonaria, que do o significado de pessoa que se opõe
os impedia de estar ao corrente do que ao clero, na sua pretensão de controlar os
se tratava nas reuniões secretas. A já refe- assuntos de ordem temporal. É justamen-
rida constituição de Bento XIV, Providas, te nesta extensão de sentido que reside
de 18 de maio de 1751, tinha confirma- toda a ambiguidade: para o crente, o anti-
do a constituição apostólica In Eminenti e clerical ou laico transforma-se no inimigo
condenado a maçonaria em razão da sua que, pretendendo limitar o papel político
defesa do naturalismo e da sua exigência da Igreja, aspirará, finalmente, à luz de
de juramentos, sigilo e indiferença reli- um ideário secularista, à sua destruição.
giosa, representando uma possível amea- No século seguinte, outro importan-
ça à Igreja e ao Estado, tendo proibido te documento papal, a constituição de

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Pio  VII Ecclesiam a Jesu Christo, de 13 de católicos para que “erradicassem aquelas
setembro de 1821, reafirmava a excomu- sociedades secretas de homens facciosos
nhão para os que fossem maçons e dava que, completamente opostos a Deus e aos
como razão para a censura o segredo vin- príncipes, estão inteiramente dedicados
culado ao juramento feito nas sociedades a derrubar a Igreja, a destruir os reinos,
secretas e as suas conspirações contra a e à desordem no mundo inteiro” (DEN-
Igreja e o Estado. O documento ligava ZINGUER e HUNERMANN, 2006, 756).
ainda a maçonaria à carbonária, que na A carta apostólica Litteris Altero, de 25 de
época estava ativa na Itália e era conside- março de 1830, reiterou as condenações
rada um grupo revolucionário. Estávamos papais anteriores da maçonaria, especifi-
num contexto de acendimento e multi- camente a sua influência na educação.
plicação de focos de revolta e contestação A encíclica de Gregório XVI Mirari Vos,
ao sistema político do Antigo Regime. de 15 de agosto de 1832, incidiu na ques-
A Igreja e a monarquia viam cada vez mais tão política do liberalismo e na indiferen-
perigar as suas posições de sustentáculo ça religiosa, definida como “a fraude dos
da velha cristandade, fundada nos pode- ímpios que afirmam ser possível obter a
res absolutos do trono e do altar, numa salvação eterna da alma pela profissão
sociedade em processo de secularização, de qualquer tipo de religião, desde que
que reivindicava autonomia e liberdade. seja mantida a moralidade” (GREGÓRIO
Sobre as lojas secretas incidiam suspeitas XVI, 1832, 778). Esta encíclica não men-
agravadas por participações recentes em ciona a maçonaria, mas a indiferença re-
revoluções liberais que estavam a derru- ligiosa é uma das acusações que lhe são
bar o Antigo Regime em alguns países. dirigidas frequentemente em pronuncia-
A Igreja Católica, ainda muito compro- mentos papais. Algumas autoridades ca-
metida com o sistema político secular tólicas identificam esse pronunciamento
monárquico, tinha dificuldade em en- como antimaçónico. Sabe-se, no entan-
tender uma sociedade fora deste mode- to, que muitos religiosos não escondiam
lo, e também não estava preparada para a sua simpatia pelos ideais de igualdade
aceitar e acreditar na sobrevivência da e de liberdade da Revolução Francesa,
própria Igreja no quadro de um ordena- grande parte deles preparando as vias do
mento político garantido por outro regi- liberalismo.
me que não o de base legitimista. A encíclica de Pio IX Qui Pluribus, de
A constituição de Leão XII Quo Gravioria 9 de novembro de 1846, instigava os católi-
Mala, de 13 de março de 1825, reafirmou cos romanos a lutar contra a heresia, con-
a oposição da Igreja Católica Romana à denando aqueles que colocassem a razão
maçonaria como uma sociedade secreta, humana acima da fé e que acreditassem
com sigilo ligado a juramentos vinculati- no progresso humano. Estranhamente,
vos, que conspirava contra a Igreja e o Es- também atacava as “seitas” secretas e as so-
tado. Também a encíclica do breve pon- ciedades da Bíblia “astutas” que “forçam
tificado de Pio VIII Traditi Humilitati, de trechos da bíblia a pessoas de todos os ti-
24 de maio de 1829, foi considerada por pos, mesmo os ignorantes”. Esta encíclica
algumas autoridades católicas como um classificava como “perversa” a indiferença
documento antimaçónico. Advertindo religiosa. Ao reiterar as condenações dos
contra uma sociedade secreta cujo princi- seus antecessores, fazendo especial refe-
pal objetivo, a seu ver, seria levar os inicia- rência a Gregório XVI, Pio IX colocou
dos pelos caminhos do mal, apelava aos no mesmo patamar e julgou do mesmo

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Antimaçonismo 1213

modo as restantes sociedades secretas, Perusa, o cardeal Pecci, futuro Leão XIII,
condenando o indiferentismo religioso e havia consagrado a este tema uma exten-
quaisquer ataques ao celibato sacerdotal, sa carta pastoral intitulada A Igreja e a Ci-
bem como todo aquele que, de um modo vilização. O Poder Temporal dos Papas. Com
geral, supunha dissidência ideológica-re- efeito, a unificação italiana, com Roma
ligiosa, mesmo sem pertencer a nenhum como capital, aparecia, à vista de uns e de
grupo específico. outros, como sinónimo mais ou menos
A encíclica Quanta Cura, emitida sob o vago do fim da Igreja, como 15 séculos
mesmo pontificado, a 8 de dezembro de antes muitos não tinham podido conce-
1864, não só condenava o carácter clan- ber uma ordem cristã que sobrevivesse ao
destino das sociedades secretas, como naufrágio da ordem romana e da unida-
também reiterava que estas serviam de de imperial do mundo. Os Papas Pio IX
arma por parte do Governo de Itália e Leão XIII estavam convencidos de que
contra o Estado pontifício. O Syllabus, do a Igreja dificilmente poderia ter poder
mesmo ano, atribuiu à maçonaria a defe- espiritual se não contasse também com
sa da corrente naturalista. É também rele- poder temporal.
vante o pronunciamento Multiplices Inter, A encíclica papal de Leão XIII Etsi Nos,
de 25 de setembro de 1865, feito pelo de 15 de fevereiro de 1882, referia as con-
Papa Pio IX, condenando a maçonaria e dições então vigentes na Itália, mencio-
outras sociedades secretas. Neste pronun- nando uma “seita perniciosa” em guerra
ciamento, o Papa acusava as associações com Jesus Cristo, seita essa que o Papa
maçónicas de conspirarem contra a Igre- responsabilizava pelos conflitos civis no
ja, Deus e a sociedade civil, atribuindo país. Algumas autoridades católicas iden-
revoluções e levantes às suas atividades e tificaram essa seita como uma referência
denunciando juramentos secretos, reu- à maçonaria ( Id., Ibid., 759ss.).
niões clandestinas e sanções maçónicas A encíclica Humanum Genus, de 20 de
(Id., Ibid., 759ss.). abril de 1884, do Papa Leão XIII, foi consi-
A constituição Apostolicae Sedis Mode- derada, de entre todos os pronunciamen-
ratoni, de 12 de outubro de 1869, sobre tos papais, um dos ataques mais cruéis à
questões de direito canónico, esclarece maçonaria. Afirmando que “uma árvore
o processo relativo às censuras, mudan- boa não pode produzir mau fruto, nem
do alguns cânones e estabelecendo uma árvore má dar bons fruto, a seita maçóni-
nova lista de censuras. Alguns especialis- ca produz frutos que são perniciosos e do
tas afirmam que este documento diz res- mais amargo sabor”, prossegue dizendo
peito à maçonaria. Três anos mais tarde, que o objetivo da maçonaria era a des-
na encíclica Etsi Multa, datada de 21 de truição da Igreja Católica Romana, sendo
novembro de 1873, o mesmo Papa Pio IX ambas adversárias. O Papa Leão XIII afir-
condenou a maçonaria, afirmando que mou que muitos maçons desconheciam
os grupos maçons integravam as “seitas” os objetivos finais da maçonaria e que
entre as quais “a sinagoga de Satanás é não deveriam ser considerados parceiros
construída” (DENZIGUER e HUNER- em atos criminosos por ela perpetrados.
MANN, 2006, 799ss.). De igual modo, condenou o naturalis-
A questão do poder temporal dos pa- mo da maçonaria,o qual entendia ser a
pas, cuja origem data da época carolín- crença de que “a natureza humana e a
gia, foi considerada por muitos católicos razão humana devem, em todas as coisas,
e eclesiásticos algo vital. O arcebispo de ser senhora e guia… eles não permitem

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qualquer dogma de religião ou verdade O conjunto de documentos pontifícios


que não possa ser entendido pela inteli- teve eco no orbe católico, materializando­
gência humana, nem qualquer mestre ‑se através de sucessivas e violentas cam-
que deva ser acreditado devido à sua panhas antimaçónicas. A partir de 1884,
autoridade.” É interessante notar que o proliferaram associações, revistas, livros,
Ir. Albert Pike afirmou que esta encíclica panfletos e até mesmo congressos inter-
era uma “declaração de guerra, e o sinal nacionais antimaçónicos, o que contri-
para uma cruzada contra os direitos do buiu para criar um clima de histeria geral
homem” (BENIMELI, 1996, 129). Segun- contra a maçonaria. Em particular, a encí-
do Leão XIII, a maçonaria era criminosa, clica Humanum Genus foi sucessivamente
ímpia, imoral, subversiva, revolucionária traduzida e comentada, do mesmo modo
e monstruosa em hipocrisia, disseminan- que foram escritas diversas pastorais dedi-
do mentiras. cadas ao tema e artigos e comentários na
Outras encíclicas se seguiram, num lon- imprensa especificamente católica, com
go historial de desconfianças e acusações secções e páginas completas. Este conjun-
por parte da Igreja em relação à maçona- to de documentos formou um autêntico
ria. A carta encíclica Officio Sanctissimo, de mundo impresso dedicado à cruzada an-
22 de dezembro de 1887, incluía um alerta timaçónica. Outro dado curioso foi a or-
contra a organização. A carta afirmava que ganização de um congresso antimaçónico
a maçonaria era um “contágio”, uma “seita em Trento, em 1896, onde se reuniram
das trevas”. A encíclica Dall’Alto dell’Aposto- pelo menos 36 bispos, 50 delegados epis-
lico Seggio, de 15 de outubro de 1890, tam- copais e outros 700 delegados, a maioria
bém conhecida como Ab Apostolici, tratava dos quais eram eclesiásticos. Entre estas
da maçonaria na Itália, considerando o delegações destacavam-se as de França e
curso dos assuntos públicos no país como da Áustria, com mais de 50 pessoas cada
a realização do “programa maçónico”. uma, mas também as de Espanha, Hun-
Este alegado programa era regido por um gria, Alemanha e Estados Unidos. O co-
“ódio mortal à Igreja”, a abolição do ensi- mité antimaçónico tridentino proporcio-
no religioso nas escolas e a absoluta inde- nou alojamento a todos os congressistas
pendência da sociedade civil da influência vindos de fora. O protagonista foi Léo Ta-
clerical. A carta encíclica Inimica Vis, de 18 xil (de nome verdadeiro Gabriel Jogang
de dezembro de 1892, escrita aos bispos da Pagés), um dos principais patrocinadores
Itália, reiterava a necessidade urgente de da campanha antimaçónica, que tinha
combater os objetivos da maçonaria e su- lançado uma série de livros antimaçóni-
plicava aos bispos que trabalhassem para cos, entre os quais Os Irmãos Três Pontos.
converter as “vítimas” da organização. Revelações Completas sobre a Maçonaria; As
Afirmava ainda que alguns membros do Irmãs Maçonas; A Francomaçonaria Revela-
clero católico romano estavam a colaborar da e Explicada; Os Assassinatos Maçónicos;
com a maçonaria. A carta encíclica Custodi A Lenda de Pio IX Maçom.
di Qualla Fede, de 18 de dezembro de 1892, Apesar dos ataques cada vez mais in-
referia o trabalho que se deveria empreen- sistentes da Igreja, através de pronun-
der contra a maçonaria, protegendo os ciamentos papais e outros instrumentos
lares católicos contra a infiltração dessa de condenação, a maçonaria não parou
ideologia, criando escolas católicas e socie- de progredir. Os pronunciamentos to-
dades de ajuda mútua, e instituindo uma maram a forma de constituições, encí-
imprensa católica. clicas e epístolas apostólicas. A título de

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Antimaçonismo 1215

informação, note-se ainda que, no séc. a um desejável diálogo entre as partes em


xviii, as condenações dos papas à maço- conflito (Id., Ibid., 88).
naria não foram promulgadas nos Esta- Em Portugal, segundo Alexandre Man-
dos Unidos. Numa carta datada de 1794, sur Barata, pode afirmar-se que o proces-
John Carroll referia-se à questão dizen- so de inserção da sociabilidade maçóni-
do: “Não tenho a pretensão de que esses ca coincidiu com a primeira condenação
decretos [contra a maçonaria] sejam re- formal da maçonaria pela Igreja Católi-
cebidos em geral pela Igreja, ou tenham ca, após a publicação da já referida cons-
total autoridade nessas dioceses” (OLI- tituição apostólica In Eminenti, do Papa
VEIRA, 2013, 87). Clemente XII. A maçonaria começou
Os católicos britânicos tinham uma ati- por se desenvolver nas cidades maríti-
tude semelhante em relação à autoridade mas, em especial no Funchal e em Lis-
da Igreja. Havia grão-mestres católicos na boa, com protagonismo de membros
maçonaria inglesa durante o séc. xviii, das comunidades britânicas e de outros
incluindo Thomas, o duque de Norfolk, países do centro e do Norte da Europa,
que foi grão-mestre da primeira gran- que ali tinham residência e atividade
de loja da Inglaterra, em 1730. Robert profissional. Pouco depois das condena-
Edward, o 9.º lord Petre, tornou-se grão­ ções papais, o Tribunal do Santo Ofício
‑mestre da primeira grande loja em 1772 iniciou as suas atividades de vigilância e
(Id., Ibid., 88). Algumas lojas maçónicas controlo da maçonaria, com a identifica-
adotaram o nome de “grande heráldico” ção e detenção dos seus membros para
a partir de 1730, na sequência do costu- interrogatório, a 18 de julho de 1738.
me feudal do “grande porta espadas”, O padre dominicano Charles O’Kelly
em que o dignitáro do Estado transpor- foi chamado a prestar declarações à
tava uma espada do Estado como insígnia Inquisição, em Lisboa. Segundo ele, a
(MACKEY, 2009, I, 51). maçonaria juntava um grupo de escoce-
O Código do Direito Canónico, pro- ses, irlandeses e ingleses, tanto católicos
mulgado por Bento XV a 27 de maio de como protestantes, que se reuniam num
1917, consagrou a doutrina então em vi- restaurante. Entre eles estavam médicos,
gor, em especial a de Pio IX e Leão XIII. capitães de navios, militares, arquitetos,
Com o advento deste Código, a Igreja in- negociantes e vários padres. O’Kelly no-
corporou a doutrina das encíclicas ante- tou que, nas reuniões mensais, não tra-
riores, em particular no cân. 2335, onde tavam de nada contrário à fé cristã, até
declara que “aqueles que se juntam a porque era confessor de alguns dos par-
uma seita maçónica ou outras sociedades ticipantes. A maçonaria foi ouvida pelos
do mesmo tipo que conspiram contra a inquisidores, na voz do grão-mestre da
Igreja ou contra as autoridades civis legí- Casa Real dos Pedreiros-Livres da Lusitâ-
timas estão sujeitos à excomunhão” (OLI- nia, fundada quatro ou cinco anos antes,
VEIRA, 2013, 88). Esta lei da Igreja man- pelo Cor. de Infantaria Hugh O’Kelly.
teve-se. Na opinião de alguns estudiosos, Os maçons interrogados descreveram à
com o Concílio Vaticano II, começou a Inquisição as cerimónias, os graus e os
abertura de algumas questões para rever níveis da organização. Na ocasião, a ma-
a condenação da maçonaria pela Igre- çonaria não foi considerada uma amea-
ja. O espírito de diálogo que se cultivou ça ou um atentado à fé católica.
desde então aconselharia o estudo e o co- Cinco anos depois, esta atitude de
nhecimento mútuos, para abrir caminho aparente benevolência acabaria por se

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alterar. A 14 de março de 1743, Jean Depois das perseguições da déc. de


Coustos, um Suíço acusado de ser chefe 1740, a maçonaria só voltou a ter alguma
dos franco-maçons ou pedreiros-livres, atividade em Portugal durante a segunda
foi detido, após uma denúncia feita no metade da vigência do Governo pom-
ano anterior. Coustos não fazia segredo balino. O estabelecimento do conde de
da sua condição de maçom, tendo expli- Lippe em Portugal, a convite de Pombal,
cado a várias pessoas que a congregação para reorganizar os exércitos, bem como
não era prejudicial à religião ou ao Esta- a presença de grandes comunidades de
do. Em fevereiro de 1743, nenhuma das comerciantes ingleses e franceses foram
testemunhas ouvidas pela Inquisição no vistas como as razões que explicam esse
inquérito preliminar conseguiu elucidar ressurgimento, que não contou com uma
os inquisidores sobre o que se fazia nas oposição ostensiva por parte do Governo
reuniões. Algumas referiram que eram pombalino.
levados instrumentos de pedreiros, pares Registou-se um incremento da ma-
de luvas e aventais de couro, e que havia çonaria em Portugal a partir de 1762 e,
sinais de reconhecimento mútuo. A 4 de durante o chamado consulado pombali-
março, depois de ouvidas várias testemu- no, que durou 27 anos, os membros da
nhas, os inquisidores concluíram final- maçonaria não foram muito incomoda-
mente que se tratava da mesma institui- dos. Tendo em conta o conhecido perfil
ção reprovada pelo documento pontifício repressivo da ação política pombalina em
In Eminenti, de Clemente XII. Nesta carta relação a tudo o que escapava ao contro-
apostólica recomendava-se que os inquisi- lo do Estado, alguns historiadores, como
dores punissem semelhantes sociedades, A. H. de Oliveira Marques, procuraram
ainda que estas atuassem com o pretexto compreender esta tolerância pombalina
da bondade, da utilidade ou de outro fim em relação à maçonaria através da tese
semelhante. Coustos explicou os princí- de que o secretário de Estado de D. José I,
pios da maçonaria, indicando como obra Sebastião de Carvalho e Melo, teria sido
reguladora as Constituicões de Maçons. Na iniciado na maçonaria em Londres ou
sua argumentação, referiu que julgava em Viena de Áustria, onde foi embai-
que as condenações papais só se aplica- xador. No entanto, não se descobriram
vam aos católicos portugueses, insistindo provas documentais concludentes desta
que a maçonaria tinha como objetivo a pertença de Pombal à maçonaria regular,
entreajuda entre os seus elementos. como concluiu António Ventura, na sua
Coustos foi condenado a trabalhos for- recente e monumental História da Maço-
çados durante quatro anos. Acabou por naria em Portugal: “falta provas de que tal
ser libertado, em outubro de 1744, graças tenha sucedido” (VENTURA, 2013, 33).
à intervenção diplomática de Inglaterra. Um dos casos emblemáticos de não
Desta experiência resultou uma obra de atendimento pelo Governo pombalino a
sua autoria denunciando a perseguição denúncias de atividade maçónica acon-
antimaçónica, cujo título original era The teceu precisamente numa das regiões de
Sufferings of John Coustos for Free Masonry and emergência desta nova dinâmica associa-
for His Refusing to Turn Roman Catholic in the tiva: a Madeira. O governador apresentou
Inquisition at Lisbon where He Was Sentenced queixas à Corte contra indivíduos que
during Four Years to the Galley, and afterwards estariam a organizar lojas de pedreiros-li-
Released from thence by the Gracious Interposi- vres no Funchal. O processo foi arquiva-
tion of His Present Majesty King George II. do e ficou sem resposta.

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Antimaçonismo 1217

No reinado de D. Maria, observou-se derruir a velha ordem política absolutis-


um recrudescimento das perseguições à ta, levando consigo na mesma avalanche
atividade maçónica, através das institui- demolidora a Igreja Católica.
ções de controlo religioso e político, em Conforme observou a historiadora Ma-
que se destacaram alguns membros do ria Helena Carvalho dos Santos, nos últi-
episcopado, a Inquisição e o intendente­ mos anos do séc. xviii, a maçonaria era
‑geral da Polícia, Pina Manique. uma instituição organizada, mas ainda
Acentuaram-se, a partir das duas últi- assim perseguida (SANTOS, 2007, 1090).
mas décadas do séc. xviii, as denúncias Na viragem do séc. xviii para o séc. xix,
que apontavam para a constituição de desenvolveu-se um poderoso imaginá-
uma rede maçónica em Portugal, tendo rio antimaçónico, da responsabilidade
como epicentro principal a cidade do da propaganda legitimista associada aos
Funchal, que era um porto estratégico sectores sociais e religiosos descontentes
de passagem de viajantes franceses e in- e preocupados com o processo de der-
gleses. As denúncias e devassas incluídas rocada da velha ordem, configurada no
no edital da Inquisição mandado ler em Antigo Regime monárquico e absolutista.
todas as igrejas do arquipélago madei- O sismo social, ideológico e político que
rense permitem ter uma ideia da grande a Revolução Francesa de 1789 começou
implantação da maçonaria no local, cujos a provocar foi visto como consequência
membros, que atingiam já cerca de duas de uma grande conspiração, onde as or-
centenas, eram recrutados entre a aristo- ganizações secretas teriam tido um papel
cracia local, a burguesia endinheirada, determinante.
os políticos, os militares e os clérigos. Um emblemático representante da
O aperto da vigilância inquisitorial, com produção de ideografia antimaçónica
identificações de membros, interrogató- foi o P.e José Agostinho Macedo, que re-
rios e prisões, levou à fuga de vários ma- plicou, em Portugal, as teses do célebre
çons para o estrangeiro, à autodenúncia autor francês antimaçom Abade Barruel,
e ao abandono das lojas. Note-se que ti- através da obra O Segredo Revelado, ou a
nha sido precisamente na Madeira que Manifestação do Sistema dos Pedreiros-Li-
nascera a primeira reunião maçónica vres, e Iluminados e a Sua Influência na Fa-
portuguesa, ou seja, como escreve Antó- tal Revolução Francesa. Macedo tornou-se
nio Loja, “a primeira Loja maçónica ge- um dos mais corrosivos propagandistas
nuinamente portuguesa com cidadãos antimaçónicos da sua época, alinhando,
portugueses aceites como irmãos” (LOJA, no reinado neoabsolutista e antimaçom
1986, 247). Também foi na Madeira que de D. Miguel, entre 1829 e 1834, com a
se registaram as mais violentas devassas corrente tradicionalista que fez da ma-
contra membros da maçonaria. çonaria sua arqui-inimiga. Em diversos
Os ideais da fraternidade humana eram libelos, entre os quais se destacou o pe-
acolhidos por um novo tempo histórico, riódico A  Besta Esfolada, o P.e José Mace-
no quadro da luta empreendida contra o do acusava os membros das sociedades
despotismo régio e contra a autoridade secretas de serem perversos e perigosos
secular da Igreja. Acrescia a tudo isto o conspiradores contra a ordem moral e
facto de muitos membros da maçonaria política estabelecida. Pelo mesmo diapa-
estarem envolvidos ou, em alguns casos, são afinavam autores como Fr. Fortunato
na dianteira e liderança revolucionária de São Boaventura, com libelos emble-
de movimentos responsáveis por fazer máticos como O Maço Férreo Antimaçónico.

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1218 Antimaçonismo

Nesta propaganda, o antimaçonismo ra- tituições para se organizarem” (RAMOS,


dical caracterizava as lojas dos pedreiros­ 2009, 349).
‑livres como antros de conspiração onde O engrossar da corrente do anticleri-
conluiavam ateus, livres-pensadores, ju- calismo foi inevitável. No decurso deste
deus e protestantes, com vista à ruína da processo revolucionário, que se desenvol-
Igreja Católica e da monarquia. Daí que veu da Revolução Francesa até à instaura-
no antimaçonismo se misturem e se con- ção dos regimes republicanos na Europa,
fundam outras correntes anti muito pro- num movimento que influenciou o resto
dutivas de explicações conspirativas da do mundo, a Igreja foi também frontal-
dinâmica social, como o antissemitismo, mente atacada. Os sécs. xviii e xix foram
o antiprotestantismo e o antifilosofismo. profícuos em perseguições à Igreja e às
Em linha com os ideólogos legitimistas e suas organizações de perfil mais interna-
tradicionalistas, o neoabsolutismo migue- cionalista, que se vieram a apelidar de
lista tomou medidas eficazes de proibição ultramontanas, culminando na expulsão
das sociedades secretas, considerando-as das ordens religiosas pelo dec. de 28 de
o motor do liberalismo e da derrocada maio de 1834, ao qual se seguiram vários
da ordem social legitimista. O movimen- outros projetos legislativos para impedir
to contrarrevolucionário e filolegitimista a implantação dos institutos religiosos
adotou, em Portugal, a hermenêutica do que tinham voltado a entrar em Portugal
padre e escritor francês Augustin Barruel a partir da segunda metade do séc. xix,
(1741-1820), consignada na sua obra de como é o caso do empenho em dissolver
referência, História do Clero perante a Revo- a Congregação das Irmãs da Caridade
lução Francesa, publicada em 1797, e nou- (dec. de 22 de junho de 1861). Segun-
tras que se lhe seguiram. Os opositores do Zuzarte de Mendonça, “pouco faltou
do projeto liberal tenderam a observar para se pedir a cabeça dos católicos e dos
uma grande conspiração maçónica na padres”. O autor considerava os progra-
expulsão dos Jesuítas, na abolição da In- mas apresentados pelo Governo portu-
quisição e na ruína dos pilares fundamen- guês como “maçónicos”, com a maçona-
tais que sustentavam a ordem social do ria a ser acusada de “descristianizar” as
Antigo Regime, assente na aliança entre famílias. Zuzarte de Mendonça concluía
o trono e o altar. Aliás, Barruel, noutras ainda: “A Maçonaria odeia-nos de morte.
obras, como Memórias para a História do É preciso dar-lhe combate e estar sempre
Jacobinismo, chegou mesmo a denunciar a preparado para a luta” (MENDONÇA,
existência de uma conspiração contra o s.d., 89). Também o combate ao clerica-
cristianismo no seu todo, embora consi- lismo se acentuou, bem como a laicização
derasse que nem todos os maçons e nem das escolas, daí decorrendo uma vasta li-
todas as obediências maçónicas estariam teratura de feição anticlerical.
a intentar este escopo, mas sim determi- Em razão deste afrontamento, a maço-
nados sectores ímpios, designados por naria passou a ser demonizada pela Igreja
seita dos Iluminados. e vista como um grande inimigo a temer.
De facto, a maçonaria passou a ser cada Num jogo de espelhos marcado pelo co-
vez mais identificada com uma “sociabi- mércio propagandístico dos estereótipos,
lidade de contestação, e entre os irmãos Igreja e maçonaria emergiram, na histó-
passaram a fazer parte muitos radicais e ria, como inimigas em rota de colisão,
republicanos, os quais começaram a usar produzindo uma dança de demónios,
a Maçonaria ou a inspirar-se nas suas ins- em que cada lado tentou representar o

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Antimaçonismo 1219

adversário com as cores mais terríveis.


A figura do dissemelhante construiu-se,
assim, como um desvio em face do que se
vê aquém, combinando de formas insóli-
tas a visão do outro. A maçonaria foi mui-
tas vezes olhada com desconfiança e vista
como um atentado aos valores da Igreja,
ripostando, a partir das suas fações mais
radicais, numa longa campanha contra a
Igreja Católica.
O século de Oitocentos foi o século da
ascensão da maçonaria e da sua plurirra-
mificação, marcando a agenda política e
social. Foi o século das grandes mudanças
sociais. As guerras liberais e a instabilida-
de política, com a ascensão e a queda de
regimes e de atores políticos, tiveram o Pedro de Sousa Holstein,
envolvimento de elementos das lojas ma- 1.º duque de Palmela (1781-1850).
çónicas, nem sempre em paz entre elas, a
fermentar este século de estruturais trans- acompanhado do subtítulo “Não há ma-
formações históricas. Desde a Revolução çonaria em Portugal”, afirmava que o país
Liberal ao Cabralismo, passando pela Re- não podia tolerar uma associação secreta,
generação, a maçonaria teve a participa- uma vez que era ilícita, segundo o Códi-
ção de protagonistas relevantes alistados go Penal, e que as reuniões maçónicas se
nas suas fileiras, como D. Pedro Mou- limitavam a encontros e a jantares que
zinho da Silveira, Costa Cabral e o du- nada tinham de secreto e que se realiza-
que de Saldanha, só para referir os mais vam abertamente no Grémio Lusitano.
emblemáticos. Diversas páginas de jornal compiladas
Algumas das acusações que se torna- por Cunha Dias mostram uma campanha
ram recorrentes eram o espírito clien- a favor da maçonaria, na tentativa de apa-
telar e os jogos de interesses que pre- gar a imagem de uma sociedade secreta,
ponderavam na maçonaria, de que é com poderes ocultos.
emblemática esta invetiva do duque de Apesar do abismo de incompreensão e
Palmela, proferida num discurso peran- da proibição de relações entre a Igreja e
te a Câmara dos Deputados: “a filiação a maçonaria, o historiador António Reis
nesta corporação era reputada atual- explica que esse fenómeno não se redu-
mente como um meio de obter prote- ziu à verificação de admissões em conjun-
ções profícuas, ou empregos, e substi- turas da vida europeia, perturbadas por
tuía em parte uma lei de habilitações” convulsões (como foi o caso da Revolu-
(PALMELA, 1846, 112). ção Francesa) ou angústias existenciais
Uma análise de jornais e panfletos do que predispunham as almas à tentação
período republicano mostra uma tenta- de experimentar o oculto; segundo ele,
tiva de desmistificar a imagem negra da “a explicação há de encontrar-se na con-
maçonaria e com isso dissolver os rumo- vergência de elementos de compreensão
res antimaçónicos que se faziam sentir (a começar pelo fio cronológico) – uma
na sociedade portuguesa. O jornal A Voz, forma de realização de sociabilidade e uma

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1220 Antimaçonismo

plataforma alargada de crença religiosa e por periódicos. O poeta Fernando Pes-


que a Maçonaria tinha para oferecer aos soa é um dos intelectuais que mais ataca
seus membros que, logo por isso, não se os antimaçons, referindo-se a eles como
reviam nos destinatários do anátema pon- completamente ignorantes nos assuntos
tifício; e menos ainda temiam o ditame que dizem respeito à maçonaria, num ar-
quando ele vinha de quem acumulava ain- tigo publicado no Diário de Lisboa, a 4 de
da o poder temporal” (REIS, 2001, 164). fevereiro de 1935 (Id., Ibid., 235-236).
A emergência, nos anos 20 e 30 do As décs. de 60 e 70, em Portugal, vão
séc.  xx, do fascismo e do comunismo constituir uma época de atenuação do
criou um ambiente desfavorável à existên- clima de combate contra a maçonaria,
cia de sociedades secretas com liberdade quer por parte da Igreja, quer por parte
de pensamento e ação fora da alçada dos do Estado. O Concílio Vaticano II, con-
Estados fundados nestas ideologias políti- cluído em 1965, e a Revolução de 25 de
cas. A maçonaria foi olhada com descon- abril de 1974 vão simbolizar esses pontos
fiança e foi objeto de proibição, quer sob de desanuviamento.
os novos regimes comunistas, quer sob os O Concílio Vaticano II, acontecimen-
regimes fascistas. Portugal não foi exce- to que marcou uma viragem por parte
ção. O Governo de Salazar proibiu, com da Igreja em relação à sua atitude face
a lei de 21 de maio de 1935, as socieda- às realidades temporais, inaugurou uma
des secretas no Estado Novo e ordenou etapa de maior abertura, diálogo e com-
o encerramento do Grande Oriente Lu- preensão, tanto mais que a própria Igreja
sitano, através da port. de 21 de janeiro transformou o seu olhar frente ao mundo
de 1937. Convencido de que a sua obra contemporâneo e evoluiu no sentido de
de restauração nacional estava ameaça- incorporar a defesa de valores preconiza-
da pelas lojas, pediu a Abel de Andrade, dos séculos antes pela maçonaria, como a
professor de Direito da Univ. de Lisboa, e tolerância e o ecumenismo. O Código de
ao deputado José Cabral que lhe envias- Direito Canónico (CDC) de 1983 omite
sem um relatório, que, apresentado na qualquer referência à maçonaria, adap-
Câmara, se converteria em projeto de lei tando o cân. 2335 do CDC anterior, que
de defesa contra as sociedades secretas, excomungava ipso facto os inscritos em
que acabaria por ser aprovado e promul- “seita maçónica”, na nova redação patente
gado oficialmente pela portaria supraci- no cân. 1734: “Aquele que entra para uma
tada. A  lei em questão, com o n.º 1901, associação que conspira contra a Igreja
tornou-se pública pelo ministro da Justiça deve ser punido com justa pena; aquele
e por decreto da Assembleia Nacional. As que promove ou dirige tal associação, no
sociedades secretas eram novamente pos- entanto, deve ser punido com interdito”.
tas em questão na Europa, por meio de A “crescente ambivalência” (OLIVEI-
uma lei que tinha muito em comum com RA, 2013, 89) da posição da Igreja sobre
a lei fascista italiana, promulgada 10 anos a maçonaria conheceu outro momento
antes (BENIMELI, s.d., 231-232). A lei de em 1974, quando o cardeal Franjo Seper,
21 de maio de 1935 teve ampla difusão e prefeito da Congregação para a Doutrina
repercussão nas revistas antimaçónicas da da Fé e autor do documento Mysterium Ec-
época, em especial na Revue Internationale clesiae, enviou uma carta ao cardeal John
des Sociétés Secrètes, publicada em Paris, a Krol, de Filadélfia, e a outros sobre a for-
1 de novembro de 1935. A lei é duramente ça e o significado do cân. 2335 do CDC
criticada por alguns circuitos intelectuais de 1917. Nessa missiva, o cardeal Seper

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Antimaçonismo 1221

afirmava que o cânone permanecia em que estão sujeitos os membros regulares


vigor, mas que, uma vez que as leis penais sem cargos de promoção da maçonaria
eram sujeitas a interpretação estrita, a ex- (OLIVEIRA, 2013, 90)
comunhão só seria aplicável aos católicos Como consequência do novo CDC e da
que aderissem a organizações que cons- referida carta do cardeal Seper, a Igreja
pirassem ativamente contra a Igreja Cató- foi confrontada com a necessidade de
lica. A carta foi interpretada por muitos responder à possibilidade de adesão de
como assinalando que as antigas restri- católicos à maçonaria quando não ocor-
ções contra a filiação de católicos roma- re conspiração contra a Igreja Católica.
nos na Maçonaria haviam sido removidas Influenciada pelas declarações da Con-
(Id., Ibid., 2013, 89). gregação para a Doutrina da Fé e pela
Em 1978, foi eleito o Papa João Paulo II e reversão da tendência de curta duração
as posições mais conservadoras da Igreja para o ecumenismo, em 1985, os bispos
em relação à maçonaria voltaram a ga- americanos publicaram um relatório inti-
nhar preponderância. A 2 de março de tulado “maçonaria e religião naturalista”,
1981, sete anos após a carta do cardeal onde declaram que, apesar de não se ser
Seper, a Congregação para a Doutrina da excomungado por se ser maçom, é peca-
Fé repensou a questão da tolerância para do pertencer a organizações maçónicas.
com as instituições maçónicas. Este órgão O raciocínio dos bispos dos EUA é que os
da cúria romana emitiu a Declaração sobre princípios da Maçonaria são irreconciliá-
a Participação de Católicos em Associações veis ​​com os da Igreja. O relatório cita um
Maçónicas, na qual se indicava que a carta estudo aprofundado realizado pelos bis-
de 1974 – que era, aliás, uma carta “reser- pos da Alemanha e o estudo sobre a ma-
vada” – dera “margem a interpretações çonaria norte-americana realizado por
erróneas e tendenciosas”, e que se confir- William Whalen, bem como fontes que
mava que as regras antigas relacionadas afirmam que os princípios e rituais bási-
com a maçonaria estavam em pleno vigor cos da maçonaria encarnam uma religião
(SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A naturalista, sendo a participação nesta
DOUTRINA DA FÉ, 17 fev. 1981, 2). incompatível com a fé e a prática cristãs.
O CDC de 1983 parece diferenciar a Aqueles que conscientemente abraçam
simples adesão a uma loja, para a qual a esses princípios estão, pois, a cometer um
punição é uma pena justa, da promoção pecado grave.
ou detenção de cargos em tal sociedade, A impossibilidade de qualquer aproxi-
para a qual o castigo é um interdito. Um mação entre a Igreja Católica e a maço-
interdito é uma pena através da qual os naria ficou definitivamente estabelecida
fiéis católicos, permanecendo em comu- pela já mencionada Declaração sobre a
nhão com a Igreja, estão proibidos de Maçonaria, publicada em 26 de novem-
receber os sacramentos e de participar bro de 1983 no jornal oficial do Vatica-
em determinados atos sagrados, nomea- no, L’Osservatore Romano, e assinada pelo
damente de celebrar ou assistir a ofícios cardeal Joseph Ratzinger: “Os fiéis que
divinos e de receber enterro eclesiástico. pertencem às associações maçónicas
Assim, onde os grupos maçónicos estão estão em estado de pecado grave e não
determinados a conspirar contra a Igreja, podem receber a sagrada comunhão”.
os católicos com responsabilidade de li- A  Declaração fora aprovada pelo Sumo
derança em tais lojas estão sujeitos a uma Pontífice João Paulo II, que ordenara a
penalidade mais severa do que aquela a sua publicação.

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1222 Antimaçonismo

Na sua edição de 11 de março de 1985, ceu, continuando a estimular as imagina-


L’Osservatore Romano (em língua inglesa) ções na imprensa e na literatura popular.
publicou um artigo esclarecendo que a A atenção que é dada à provável filiação
maçonaria tem uma conceção relativista maçónica de personagens públicas, sobre-
da moral, que é inaceitável para o cato- tudo quando envolvidas em ‘escândalos’,
licismo. O mesmo foi reafirmado pelo revela uma perene suspeita em relação a
cardeal Poupard, em 2001, embora con- uma organização secreta. Foi o que se viu
cedendo que poderia ser aceitável um em Portugal, em 1999, com um caso judi-
diálogo e uma colaboração, a certos ní- cial envolvendo a direção de uma institui-
veis, com a maçonaria, desde que tal não ção do ensino superior do sector privado
implicasse a procura de entendimento (a Universidade Moderna). A imprensa
em questões doutrinais, mas apenas em enfatizou a filiação dos principais argui-
tarefas relacionadas com o bem comum dos numa Loja maçónica e a acusação
da humanidade. Esta posição foi renova- pública, em tribunal, atribuiu-lhes o fim
da em documentos posteriores. de ‘tomar o poder’ – um curioso eco da
É difícil encontrar um tema sobre o teoria dos planos de dominação universal
qual as autoridades da Igreja Católica se geralmente assacados às sociedades secre-
tenham pronunciado tão reiteradamente tas” (RAMOS, 2009, 413).
como no caso da maçonaria: de 1738 a No começo do séc. xxi, vieram a lume
1980, conservam-se nada menos de 371 com abundância em Portugal notícias,
documentos, aos quais se devem acrescen- reportagens e livros de toda a ordem,
tar abundantes intervenções dos dicasté- apontando pessoas e explicando desta
rios da cúria romana e, sobretudo a par- maneira a queda e a ascensão de figuras
tir do Concílio Vaticano II, as não menos públicas; foi o que aconteceu com as po-
numerosas declarações das conferências lémicas em torno dos casos do Serviço de
episcopais e dos bispos de todo o mundo. Informações de Segurança, da Univ. Lu-
Tudo isto indica que nos encontramos pe- sófona e de outras instituições.
rante uma questão vivamente debatida, Em suma, a maçonaria foi, desde o
fortemente sentida e cuja discussão não se início, objeto de suspeita, entendível no
pode considerar fechada (GIL, 1996). âmbito do seu aparecimento e do seu
Por seu lado, ao longo das primeiras modelo de organização e quadro de va-
quatro décadas de democracia em Por- lores, que entraram em choque com o
tugal, não houve perseguições institu- status quo religioso e político instituído.
cionais à maçonaria, mas surgiram fre- Descontando as questões teo-dogmáticas,
quentemente livros e artigos de imprensa os formalismos rituais e as fidelidades ju-
com polémicas e denúncias associadas à ramentais, há um território de valores
presença conspiradora de organizações comuns que pode favorecer um diálogo
secretas por detrás de lutas de poder e entre instituições que estiveram de costas
de decisões governamentais. A apetência voltadas e em guerra propagandística fre-
regular da comunicação social por estas quente ao longo da história; com efeito,
notícias, que dão azo a muitas especula- os valores da tolerância, do ecumenismo,
ções, é bem reveladora da permanência do respeito pela diferença, do pluralis-
do imaginário da conspiração, que liga mo, da fraternidade, da liberdade de
a maçonaria ao poder e à gestão dos consciência, do amor à humanidade no
seus meandros. Como refere Rui Ramos, seu todo, da defesa da dignidade huma-
“o  velho antimaçonismo não desapare- na tornaram-se consensuais, permitindo

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Antimaçonismo 1223

constituir um campo de diálogo que ul- Definitionum et Declarationum de Rebus Fidei et


trapasse as velhas querelas e o clima de Morum, Barcelona, Herder, 2006; DÉSAGU-
suspeita que vigorou durante séculos, em- LIERS, John T., “Dedication to his grace, the
duke of Montagu”, in ANDERSON, James, e
bora as posições de incompatibilidade e
DÉSAGULIERS, John T. (orgs.), The Constitu-
de alguma desconfiança se mantenham. tions of the Free-Masons, Containing the History,
Esta desconfiança é favorável à promoção Charges, Regulations of that Most Ancient and Right
de especulações várias. A questão do se- Worshipful Fraternity, London, William Hunter,
gredo ou a prática de uma existência dis- 1723; DIAS, Cunha, A Maçonaria em Portugal,
creta, tanto na maçonaria como noutras Lisboa, Celta, 1930; DIAS, Graça, e DIAS,
instituições, acabam por constituir a cor- José S. Silva, Os Primórdios da Maçonaria em Por-
tugal, vol. i, t. i, Lisboa, Instituto Nacional de
tina de fumo e de mistério que dá lugar
Investigação Científica, 1980; ECO, Umberto,
a todo o tipo de imaginação. A maçona- O Cemitério de Praga, Lisboa, Gradiva, 2011; Id.,
ria e a sua influência transformadora das Construir o Inimigo e Outros Escritos Ocasionais, Lis-
sociedades e culturas nos sécs. xix e xx boa, Gradiva, 2011; FRANCO, José Eduardo,
foram atacadas quer pela capacidade de e PEREIRA, Zélia, “A construção do mito jesuí-
atração de membros ilustres, quer pela ta no discurso maçónico em Portugal (1869­
sua ação discreta, suscitadora de um ima- ‑1910)”, in BENIMELI, José A. Ferrer (coord.),
La Masonería Española en el 2000. Una Revisión
ginário constituído em torno de si, pinta-
Histórica, vol. ii, Zaragoza, Centro de Estudios
do com cores terríveis por parte dos seus
Históricos de la Masonería Española, 2001,
detratores, e com cores luminosas por pp. 573-591; FRANCO, José Eduardo, e RITA,
parte dos seus defensores. Annabela, O Mito do Marquês de Pombal. A Mi-
tificação do Primeiro-Ministro de D. José I pela Ma-
çonaria, Lisboa, Prefácio, 2004; FRANCO, José
Bibliog.: ABREU, Luís Machado de, “O trono Eduardo, O Mito dos Jesuítas. Em Portugal, no Bra-
e o altar no discurso anticlerical português”, sil e no Oriente (Séculos XVI a XX), vol. ii, Lisboa,
in RAMOS, Luís A. de Oliveira et al. (orgs.), Gradiva, 2007; GIL, Federico R. Aznar, “La
Estudos em Homenagem a João Francisco Marques, Iglesia Católica y la masonería: incompatibi-
vol.  i, Porto, Faculdade de Letras da Universi- lidad teológica?”, in BENIMELI, José Antonio
dade do Porto, 2001, pp. 33-46; “Acta apos- Ferrer, Masonería y Religión: Convergencias, Oposi-
tolicae sedis 73 [1981]”, L’Osservatore Romano, ción, Incompatibilidad?, Madrid, Editorial Com-
9 mar. 1981, pp. 240-241; BARATA, Alexandre plutense, 1996, pp. 187-229; GREGÓRIO XVI,
Mansur, Maçonaria, Sociabilidade Ilustrada e Inde- Mirari Vos, 1832; IBÁÑEZ, Amparo Fonseca,
pendência do Brasil (1790-1822), São Paulo/Juiz “La obediencia, fuente de poder. Masones y
de Fora, Annablume/Editora da Universidade Jesuitas del siglo xix”, in ENCISO, José Eduardo
Federal de Juiz de Fora, 2006; BARTHES, Ro- Rueca, Los Imaginarios y la Cultura Popular, Bo-
land, Mythologies, Paris, Seuil, 1970; BENIME- gotá, Cerec, 1993, pp. 66-87; LOJA, António
LI, José A. Ferrer, El Conturbenio Judeo-Masónico­ Egídio Fernandes, A Luta do Poder contra a Maço-
‑Comunista, Madrid, Istmo, s.d.; Id., Masoneria naria. Quatro Perseguições no Século XVIII, Lisboa,
despues del Concilio, Barcelona, Editorial AHR, INCM, 1986; MACEDO, José Agostinho, Cen-
1968; Id. (coord.), La Masoneria en la España del suras a Diversas Obras, Lisboa, Academia Real
Siglo XIX, Léon, Junta de Castilla y Leon, 1987; das Ciências, 1901; MACKEY, Albert Galla-
Id., La Masonería Española, Cadiz, Istmo, 1996; tin, Os Princípios das Leis Maçônicas, 2 vols., São
Id., La Masonería, Madrid, Alianza Editorial, Paulo, Universo dos Livros, 2009; MARQUES,
2001; COUSTOS, John, The Sufferings of John A. H. de Oliveira, História da Maçonaria em Portu-
Coustos for Free Masonry and for His Refusing to gal, vols. i-iii, Lisboa, Presença, 1990­‑97; MEN-
Turn Roman Catholic in the Inquisition at Lisbon, DONÇA, Zuzarte de, A  Maçonaria. O  Seu Pro-
Whitefish, Kessinger Publishing, 2004; DEN- grama e a Sua Acção, Póvoa do Varzim, Livraria
ZINGUER, Heinrich, e HUNERMANN, Peter, Povoense, s.d.; MOLLÈS, Dévrig, La Invención de
El Magisterio de la Iglesia. Enchiridion, Symbolorum, la Masonería. Revolución Cultural: Religión, Ciencia y

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1224 Antimaniqueísmo

Exilios, Buenos Aires, Editorial de la Universidad


de La Plata, 2015; OLIVEIRA, Adilson Luiz Pe-
Antimaniqueísmo
reira de, Decodificando a Maçonaria: Ecumenismo,
Intolerância e Diálogo, Joinville, Clube de Auto-
res, 2013; PALMELA, Duque de, “Discurso na
Câmara dos Pares”, Diário do Governo, 21 fev.
1846; RAMOS, Rui, “Antimaçonismo. O mito
das forças secretas da história”, in MARUJO,
António, e FRANCO, José Eduardo (coords.),
Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal,
Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores,
N ão parecem caber no âmbito de um
dicionário os infinitos usos analó-
gicos constantes daquele lugar-comum,
2009, pp. 317-417; RATZINGER, Joseph, “De- corrente desde a crítica literária até ao
claração sobre a maçonaria”, 26 nov. 1983; jornalismo desportivo, que consiste em
REIS, António do Carmo, “Maçonaria”, in
apodar de maniqueísta a atitude de ver
AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário
de História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo o bem e o mal, puros e separados, em
de Leitores, 2001, pp. 163-168; Revue Interna- duas partes contendentes. Independen-
tionale des Sociétés Secrètes, n.º 19, 1 nov. 1935; temente da justeza de tal lugar-comum,
RUIZ, Juan José Morales, El Discurso Antimasóni- na aceção mais estrita, aqui relevante, en-
co em la Guerra Civil Española (1936-1939), Zara- tende-se por maniqueísmo a doutrina do
goza, Gobierno de Aragón, 2001; SAGRADA persa Mani (Manes ou Manichaios, em
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, grego), que cruza sincreticamente o maz­
Mysterium Ecclesiae, 24 jun. 1973; Id., “Declara-
deísmo de Zoroastro, substrato religioso
ção sobre a participação de católicos em as-
tradicional da Pérsia, com o pessimismo
sociações maçónicas”, 17 fev. 1981; SANTOS,
Fernanda, “La idea del sacerdote católico en cosmológico das religiões orientais e os
los textos masónicos en el período del libera- gnosticismos judeo-cristãos muito difun-
lismo português (1820-1910)”, in BENIMELI, didos nos sécs. ii e iii. O traço mais ca-
José A. Ferrer (coord.), La Masonería Española racterístico é o seu dualismo metafísico
en la Época de Sagasta. XI Symposium Internacional e cosmológico, i.e., a explicação do ser
de Historia de la Masonería Española, vol. ii, Za- e do mundo a partir de dois princípios
ragoza, Cometa S.A., 2007, pp. 1117-1127;
subsistentes em si mesmos, o Bem, ou
Id., e FRANCO, José Eduardo, “A insustentável
princípio da Luz – que se confunde com
leveza das fronteiras. Clero católico na maço-
naria e a questão do anticlericalismo e anti- a unidade e simplicidade do espírito – e
maçonismo em Portugal”, Revista de Estudios o Mal, ou princípio das Trevas – que se
Historicos de la Masonería Latina e Caribeña, vol. ii, identifica com a multiplicidade da ma-
n.º 2, dez. 2010-abr. 2011, pp. 53-65; SAN- téria. De ambos decorrem emanações
TOS, Maria Helena Carvalho dos, “Maçonaria que, no mundo, se misturam em perene
e Portugal entre os séculos. 1743-1820, 1871­ combate. No ser humano, esse combate é
‑1910, 1974-2016”, in BENIMELI, José A. Fer- travado entre uma alma noética ou “lumi-
rer (coord.), La Masonería Española en la Época de
nosa” e a alma corpórea ou “tenebrosa”,
Sagasta. XI Symposium Internacional de Historia de
la Masonería Española, vol. ii, Zaragoza, Cometa puros episódios fenoménicos do combate
S.A., 2007, pp. 1089-1098; SERRÃO, Joaquim cósmico e, portanto, personagens meno-
Veríssimo, História de Portugal, vol. vi, Lisboa, res – e, no fundo, irresponsáveis – desse
Verbo, 1981; VENTURA, António, Uma História drama. A soteriologia aponta para o con-
da Maçonaria em Portugal (1727-1986), Lisboa, finamento do Mal, i.e., para a reposição
Círculo de Leitores, 2013. da separação primordial entre os dois
José Eduardo Franco princípios e as suas emanações, o da Luz,
Fernanda Santos a norte, chefiado pelo Pai da Luz, e o das

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Antimaniqueísmo 1225

Trevas, a sul, chefiado pelo Príncipe das em cuja vastidão a hierarquia maniqueia
Trevas. Entretanto, porém, em estado de persistiu abertamente até ao séc. x d.C.
interpenetração e de luta, sucedem-se e, mimetizada (em grupos ascéticos taois-
várias emanações, ou aiona (saecula, em tas), até ao séc. xiii. Até ao séc. xx, por-
latim), do Pai da Luz, entre as quais Jesus tanto, o maniqueísmo só indiretamente
e o próprio Mani, vindos ao mundo mate- foi conhecido, por via de referências por
rial para despertar Adão, que fora criado parte de filósofos neoplatónicos – como
por malícia para aprisionar mais luz na Amónio Sacas, mestre de Orígenes, e Ale-
sua veste de carne, mas podia salvar-se, xandre de Licópolis, autor de um Contra
acolhendo o conhecimento por eles re- Manichaei Opiniones (transmitido, aliás,
velado. No ser humano, esta soteriologia à sombra da condição episcopal do seu
cósmica implica uma ascese do noético autor) – e por intermédio do antimani-
sobre o corpóreo (traduzida, para os elei- queísmo dos Padres da Igreja. Tal como
tos, em práticas como a abstinência de se verificou em fenómenos análogos,
carne e a rejeição da propriedade e do como o acesso indireto a heresiarcas e a
matrimónio), em ordem a uma progres- fontes anticristãs, como Celso ou Frontão
siva libertação do primeiro relativamente de Cirta, pesem embora a fragmentarie-
à prisão do segundo. Aos eleitos cabia a dade e a parcialidade inerentes ao proce-
iluminação dos auditores, em ordem ao dimento de exposição e de refutação, as
conhecimento da verdade (gnosis); a estes descobertas desses textos atestaram, mais
auditores, posto que incapazes de renun- uma vez, a fidedignidade dos géneros
ciar à perpetuação da maligna mistura polémicos antigos no que concerne ao
entre carne e espírito (pelo matrimónio), debate de ideias, o que nos deve refrear
caberia a prática da oração, do jejum e da a prontidão em reduzir o antimaniqueís-
esmola – entendida sobretudo como ofer- mo à atitude caricaturista da cultura em
ta de alimentos aos eleitos, de quem cons- negativo.
tituiriam a base de recrutamento –, bem Poderia considerar-se que a própria
como a perpetuação do conhecimento Paixão de Mani, nome litúrgico que de-
recebido. signava a queda em desgraça política do
Só no séc. xx foi possível aos eruditos, fundador e o seu suplício em 274, sob
e a muito poucos, o acesso direto a do- Bahram I (segundo sucessor do grande
cumentação maniqueia e, portanto, ao Sapor, seu mecenas), foi o início do anti-
conhecimento da doutrina e da organiza- maniqueísmo. Todavia, apesar de consti-
ção conhecidas por maniqueísmo. Datam tuir inequivocamente o ponto de partida
de 1904 os achados de Turfan, na rota da de uma persistente perseguição políti-
seda (China), e de 1930 os da biblioteca ca  – que, com exceção do Turquestão,
de Medinet Madi (Egito). Os mais anti- em que foi religião de Estado no séc. ix,
gos textos maniqueus, entre os quais al- levará à completa extinção da organiza-
guns atribuíveis ao próprio Mani (como o ção maniqueia nos vários impérios do
Shabuhragan, o Livro de Sapor, imperador primeiro milénio –, não podemos deixar
dedicatário do resumo doutrinal, e a Epis- de considerar que não se trata de uma
tola Fundamenti, refutada por S.to Agosti- perseguição especificamente antimani-
nho em Contra Epistolam Manichaei Quam queia, mas sim de uma geral proscrição
Vocant Fundamenti), foram sendo desco- do estrangeiro no Extremo Oriente, e de
bertos em línguas como o persa, o parto, toda a alternativa gnóstico-dualista no
o copta, o turco e em línguas da China, mundo cristão, primeiro, e muçulmano,

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1226 Antimaniqueísmo

depois. É, portanto, àquele corpus lite- tes contra o maniqueísmo encontram­


rário, tecido, por um lado, em torno da ‑se ainda, nos dois séculos seguintes, em
exposição e da refutação da metafísica e Teodoreto de Ciro e Severo de Antio-
ética maniqueias e, por outro, da apologia quia (além de no já mencionado Cirilo
da Igreja Católica e da sua autoridade face de Jerusalém). Mas foi no mundo latino,
à hierarquia dos sequazes de Mani, que se ainda nos fins do séc. iv, sobretudo com
deve propriamente a designação de anti- S.to Agostinho, que se estruturou a defi-
maniqueísmo. Pouco mais será possível, nitiva confutação capaz de guiar, a longo
no presente contexto, do que elencá-lo e prazo, as condenações do maniqueísmo
formular a refutação fundamental, a sa- no mundo cristão. Especificamente anti-
ber, a da substancialização do mal. maniqueias são uma fase e uma parte sig-
Texto fundante e inspirador do anti- nificativa da sua obra, quer em matéria
maniqueísmo subsequente são os Acta exegética (De Genesi adversus Manichaeos,
Archelai, de 348 (limite post quem, cons- l. ii), quer ética (De Libero Arbitrio, De Mo-
tituído pela mais antiga referência, na ribus Ecclesiae Catholicae et De Moribus Ma-
VI Catequese de S. Cirilo de Jerusalém), nichaeorum, contra Faustum Manichaeum,
assim designados por ser em latim a l. xxxiii), quer metafísica e antropoló-
versão integral que chegou até nós, de gica (De Duabus Animabus, o já referido
provável versão grega a partir de um ori- Contra Epistolam Manichaei Quam Vocant
ginal siríaco, segundo S. Jerónimo (De Fundamenti, De Natura Boni). É, porém,
Viris Illustris, 72). Além de uma série de nas Confissões, ao narrar a atormentada
debates de Arquelau, bispo de Cárcara, indagação que, pelo amor da verdade, o
na Mesopotâmia, contra Mani, o escri- levara a ser auditor, e daí à plenitude da
to inclui uma narração considerada de fé católica, com a descoberta da bonda-
carácter puramente ficcional, que na de da matéria, que se encontra o melhor
realidade não visa mais do que aplicar resumo dessa confutação: “Tornou-se
a Mani o topos apologético da genealogia para mim claro que as coisas corruptíveis
errorum, remontando invariavelmente a são boas. Se não fossem boas, quer o fos-
Simão Mago. Para além do retrato gro- sem absolutamente, quer não o fossem,
tesco e caricatural do heresiarca (que não poderiam ser corruptíveis”; i.e., só se
não prescinde de outro topos da histo- perde o que se tem. Sendo a corrupção
riografia greco-romana antiga, qual o uma privação de um bem, os seres múl-
de persa maldito, encarnação do outro, tiplos são corruptíveis precisamente na
irredutível e perene inimigo), é ele que mesma medida em que possuem algum
oferece aos sucessivos polemistas a fonte bem. “Concluí assim que tudo o que
das mais antigas citações de Mani e da existe é bom e que esse mal cuja origem
sua exegese. Com os Acta Archelai rivali- tanto me interrogava não é uma substân-
zam de perto os dois primeiros dos qua- cia […], pelo que compreendi com toda
tro livros Contra Manicheos, do bispo Tito a evidência que tudo o que Vós criastes
de Bostra, na Arábia (m. 375), tratado é bom e não há substância alguma que
completamente acessível numa versão não tenha em Vós a sua origem” [tradu-
integral siríaca. Claramente inscrito na ção do autor da entrada] (AGOSTINHO
tradição exegética antioquena, encontra DE HIPONA, Confessiones, liv. vii, 12,
a sua melhor inspiração antimaniqueia 18). E será ainda sobre esta base antima-
na defesa do sentido literal da Escritura. niqueísta que o seu pensamento terá de
No mundo grego, referências frequen- alargar-se depois, no contexto do antipe-

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Antimaniqueísmo 1227

substancialização do mal, ou, pelo menos,


para a sua incompatibilidade com a bon-
dade divina. Fez-lhe eco, em meados do
séc. xviii, a polémica antimaniqueia entre
o sobredito Francesco Piro e, entre outros,
o seu confrade Gerardo de Angelis. Ao
tratado Della Origine del Male contra Bayle,
Nuovo Sistema Antimanicheo (Nápoles,
1749), seguiram-se, no mesmo ano, a Ri-
sposta del P. Francesco Piro de’Minimi all’Op-
ponimento che Fece il P. Gherardo degli Angioli
al Suo Libro Intitolato L’Antimanicheismo
e L’Antimanicheismo del P. Francesco Antonio
Piro de’ Minimi in miglior Forma Compendia-
to, Dichiarato e Difeso colla Nuova Aggiunta di
Una Lettera Apologetica ed Una Dissertazione
del Congruismo Universale (1770).
Na Modernidade portuguesa (ou na
S. Cirilo de Jerusalém (313-386). contemporaneidade, segundo a cansa-
da designação), podem ser encontrados
lagianismo, à integração do mal moral traços de um certo neomaniqueísmo em
na providência divina. Guerra Junqueiro, Sampaio Bruno (com
Na continuidade com este antimani- referências explícitas à raiz iraniana do
queísmo fundamental, podemos encon- messianismo) e Basílio Teles; pouco fal-
trar duas avultadas teodiceias do pensa- tando em Junqueiro para explicitar a
mento medieval em S. Boaventura e em assonância maniqueia da sua substan-
de S. Tomás de Aquino. No pano de fun- cialização do mal na natureza (com a
do, estariam as recentes convulsões que redenção gnóstica pela evolução, rein-
haviam incendiado a Europa a partir, pre- tegradora da unidade), que o leva à fla-
cisamente, de traços comuns que permi- grante designação de “Satanás-Universo”
tem associar valdenses, cátaros e albigen- (JUNQUEIRO, 1978, 51). Todavia, a apo-
ses à antiga mundividência maniqueia. logética portuguesa ignorou a possível
Na Modernidade, é possível identifi- vertente maniqueia daqueles filósofos.
car um neomaniqueísmo e um antima- O mesmo se pode dizer dos sobreditos
niqueísmo explícitos na Ilustração de movimentos libertários da Baixa Idade
Setecentos. É particularmente significa- Média (valdenses, cátaros, albigenses),
tiva, neste sentido, a obra do napolitano que tiveram pouca expressão entre nós e
Francesco Piro, da Ordem dos Mínimos não suscitaram, por isso, reação em ter-
de S.  Francisco de Paula, com o fito de mos de teodiceia nos filósofos/teólogos
refutar a antiteodiceia do Dictionnaire His- do tempo, S.to António e Pedro Hispano,
torique et Critique de Pierre Bayle (1647­ mais interessados, grosso modo, em ques-
‑1706), justamente percebida como neo- tões de gnosiologia, nem em Álvaro Pais,
maniqueísmo. Num diálogo fictício entre bispo de Silves, de cujo Colírio da Fé contra
um filósofo cristão e Zoroastro (alter ego as Heresias seria, embora, de esperar terre-
do autor), Bayle, apesar de formalmente no mais propício. Exceção significativa a
o negar, faz pender o debate para uma um carente antimaniqueísmo doméstico

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1228 Antimaoismo

será talvez a de Fr. Sueiro Gomes, cofun-


dador da Ordem Dominicana. Sem po-
Antimaoismo
der identificar nos seus Decretos Laicais um
destinatário especificamente maniqueís-
ta, não deixa de ser certo, se o quisermos
ver como antimaniqueísta prático, que o
que o moveu até terras da Occitânia foi a
paixão de combater cátaros e albigenses,
indiscutíveis epígonos medievais do ma-
niqueísmo.
F enómeno político e ideológico de
reação negativa à doutrina político-fi-
losófica de Mao Zedong, também conhe-
cida como marxismo-leninismo-maoismo
Bibliog.: ADDANTE, P., Il Movimento Anti- ou pensamento de Mao, assim como aos
bayliano nel Mezzogiorno d’Italia dal Piro al Ge- seus adeptos e aos movimentos políticos
novesi, Bari, Levante, 1982; AGOSTINHO DE
que se disseminaram na esquerda inter-
HIPONA, Confessiones; CAEIRO, G., “Sobre
heresias medievais: em torno dos decretos nacional inspirados no novo modelo co-
de Soeiro Gomes”, Boletim da Faculdade de Di- munista chinês, particularmente a partir
reito de Coimbra, vol. lviii, 1982, pp. 433-446; dos anos 60 do séc. xx.
CALIGIURI, W., Francesco Antonio Piro e la Fi- No XX Congresso do Partido Comu-
losofia di Leibniz. Principio di Ragion Sufficiente e nista da União Soviética, em fevereiro
il Problema del Male, Cosenza, Luigi Pellegrini de 1956, Khrushchov denuncia Estali-
Editore, 2004; HANSEN, G. C., “Zu den Evan-
ne e apresenta as suas polémicas teses,
gelienzitaten in den ‘Acta Archelai’”, Texte und
entre as quais a defesa da coexistência
Untersuchungen, vol.  92, 1966, pp. 473-485;
JUNQUEIRO, Guerra, Prosas Dispersas, Porto, pacífica entre o bloco soviético e o blo-
Lello e Irmão, 1978; LÁZARO, M., “Dios per- co capitalista, encabeçado pelos Estados
mite el mal para el bien. Dos aproximaciones Unidos da América. O Partido Comunista
diferentes desde la metafísica del ser y del bien Chinês  (PCC), então liderado por Mao,
en Santo Tomás y San Buenaventura”, Revista opõe-se vigorosamente tanto às acusações
Española de Filosofía Medieval, n.º 21, 2014, feitas a Estaline (que encara como um
pp. 95­‑103; ROCHA, A., A Filosofia da Religião
duro golpe no movimento revolucioná-
em Portugal (1850­‑1910), Porto, Universidade
Católica Editora, 2013; SILEO, L., “Tempo- rio internacional) como à tese da coexis-
ralia bona a tenebrarum principe creata. Tra tência pacífica com os EUA, atitude que
metafisica e etica: il male e l’antimanicheismo considerou ser revisionista e contrarre­
bonaventuriano del De Regno Dei”, Doctor Se- volucionária. Não reconhecendo auto-
raphicus, vol.  38, 1991, pp. 57-96; TARDIEU, ridade aos novos dirigentes da URSS, os
M., Le Manichéisme, Paris, PUF, 1981; VECCHI, líderes do PCC aclamaram Mao como
A., “L’antimanicheismo nelle Confessioni di
o único digno sucessor de Estaline no
S. Agostino”, Giornale di Metafisica, t. 20, 1965,
pp. 91­‑121.
comando do movimento internacional
comu­nista e a República Popular da Chi-
José Carlos Lopes de Miranda na como modelo ideal e político alterna-
tivo ao modelo soviético, pejorativamen-
te caracterizado por Mao Zedong como
social imperialismo. Neste período, e
em consequência da cisão sino-soviética,
surgem vários movimentos maoistas nos
países desenvolvidos europeus, sobretu-
do em França, mas também nos EUA, no

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Antimaoismo 1229

Canadá, na Austrália e no Japão, que fo-


ram geralmente liderados por dissidentes
dos partidos comunistas.
Do ponto de vista doutrinário, o maois-
mo distingue-se das restantes interpreta-
ções marxistas pelo papel preponderante
que atribui à estrutura social e à interven-
ção prática das classes na transformação
da estrutura económica. Neste sentido,
o maoismo atribui maior relevância ao
cultivo alargado e ao fortalecimento da
consciência da classe operária, de modo
a promover a adesão espontânea à revolu-
ção socialista na China. Baseando-se nas
condições sociais e económicas chinesas,
decorrentes de um modelo semifeudal e Mao Zedong (1893-1976).
sustentado pela agricultura, o pensamen-
to político de Mao distingue-se pela re- Em 1972, durante um encontro de estu-
levância e o carácter revolucionário que dantes na Faculdade de Ciências Econó-
atribui à classe camponesa, reconhecen- micas e Financeiras de Lisboa, a PIDE,
do-lhe capacidade de se organizar espon- polícia política, assassinaria Ribeiro San-
tânea e autonomamente, sem necessida- tos, um militante ativo da Federação dos
de da liderança de outrem. Estudantes Marxistas-Leninistas, movi-
Em Portugal, no final dos anos 60, for- mento juvenil do MRPP. O clima repressi-
mam-se vários movimentos políticos de vo imposto por esta polícia no meio aca-
influência maoista, cuja base, tal como démico, procurando limitar as ações e os
ocorreu noutros grupos maoistas euro- direitos dos estudantes nas universidades,
peus, é frequentemente constituída por polos de reunião e debate político privi-
militantes dissidentes do Partido Comu- legiado, foi controlando e suprimindo a
nista. Em 1964, é fundada a Frente de expressão política destes grupos clandes-
Ação Popular, que se extinguiria no ano tinos, que, até então, não eram mais do
seguinte após repressão policial e o apri- que grupos associativos informais de pro-
sionamento de vários dos seus membros; testo contra o regime fascista, a guerra co-
em 1966, surge a Liga Unitária de Ação lonial e a política opressiva e financeira-
Revolucionária. Porém, a forte repressão mente austera que o Governo de Marcelo
policial limitou bastante a intervenção Caetano implantava nas universidades
dos grupos maoistas no cenário político portuguesas.
e sindical. Um dos principais partidos Somente após a queda do regime mar-
maoistas portugueses, o Movimento de celista, e a consequente democratização
Reorganização do Partido do Proletaria- do espaço político português, entrariam
do  (MRPP), que adota mais tarde a de- em cena novos partidos de orientação
signação de Partido Comunista dos Tra- maoista, agora com maior expressão po-
balhadores Portugueses, foi fundado em pular e simpatia junto dos trabalhado-
1970 por Arnaldo Matos e José Rosas e res. Um dos principais partidos maoistas
viria a atuar no meio universitário portu- portugueses, a União Democrática Popu-
guês como campo político privilegiado. lar (UDP), tem como membro fundador

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1230 Antimaoismo

e principal figura Francisco Martins Ro- do proletariado português, agudizou


drigues, ex-militante do Partido Comu- uma forte concorrência política, por
nista Português (PCP). Fundada a 16 de vezes violenta, entre aqueles partidos e
dezembro de 1974, a UDP nasce da fusão outros movimentos do espectro marxista
de três grupos marxistas-leninistas de e anarcossindicalista português.
orientação maoista: o Comité de Apoio No período conhecido como “verão
à Reconstrução do Partido Marxista-Le- quente” de 1975, assistiu-se a um dos
ninista, os Comités Comunistas Revolu- principais episódios de anticomunismo
cionários Marxistas-Leninistas e a Uni- em Portugal e, por consequência, tam-
dade Revolucionária Marxista-Leninista, bém de antimaoismo. Organizações de
distinguindo-se esta última das restantes direita e extrema-direita, algumas com
por assumir uma posição ideológica mais ligações a sectores militares próximos
próxima do trotskismo. Ainda que gozan- de Spínola e da Igreja Católica, como o
do de menor influência política e dimen- Movimento Democrático pela Liberta-
são partidária que o MRPP e a UDP, é ção de Portugal (MDLP), o Movimen-
ainda de referência o Partido Comunista to Independente para a Reconstrução
Português Marxista-Leninista (PCP-ML), Nacional e o Exército de Libertação de
fundado em 1970, em Paris, sob a direção Portugal, foram protagonistas de ações
do Gen. Heduíno Gomes Vilar. Em 1975, violentas contra partidos de esquerda,
várias cisões políticas no interior do PCP­ especialmente no Norte do país. Ata-
‑ML dariam origem a novos partidos po- ques bombistas, assassinato de militantes
líticos: o Partido da União Popular, o Co- de esquerda e destruição de sedes de
mité Marxista-Leninista Português – que partidos foram alguns dos acontecimen-
mais tarde se fundiu com o Partido Co- tos que caracterizaram a oposição de di-
munista Português Reconstruído – e o reita à influência dos partidos nacionais
Partido Comunista (Marxista-Leninista) mais à esquerda nos órgãos de poder e
Português, formado em 1978. na comunicação social, visando particu-
Todos estes novos partidos da esquer- larmente o PCP e a UDP. No seguimen-
da portuguesa, muitas vezes autodesig- to do rapto e da tortura de um militar
nada por esquerda radical ou mesmo que estaria ligado ao MDLP, em maio do
extrema-esquerda, assumem como prin- mesmo ano, o Comando Operacional do
cipal concorrente político, e adversário Continente (COPCON) deteve centenas
ideológico, o Partido Comunista Portu- de militantes do MRPP, que viria a ser
guês, que mantinha até então relações mesmo impedido de participar nas elei-
próximas com a União Soviética, motivo ções para a Assembleia Constituinte.
pelo qual haveria de ser apelidado de re- A repressão policial exercida sobre os
visionista e social-fascista pelos maoistas militantes do MRPP granjeou ao 5.º Go-
portugueses. Todavia, o facto de assumi- verno provisório, chefiado por Vasco
rem um inimigo comum e de partilha- Gonçalves, fortes críticas por parte da
rem posições políticas muito próximas oposição socialista, comandada por
não tornou os diversos grupos maoistas Mário Soares, bem como do Partido
mais solidários entre si; pelo contrário, a Popular Democrático, e ainda de toda
atitude sectária e antiunitária do MRPP, a esquerda radical, que consideraram
da UDP e do PCP-ML, cada um dos quais que tal ato era politicamente motivado
reclamava para si o título de verdadeiro e antidemocrático. Ainda que não se
partido marxista-leninista e vanguarda tratasse de uma atuação com nítida mo-

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Antimaoismo 1231

tivação política  – uma vez que o MRPP radical da espontaneidade e a sua depre-
assumia efetivamente uma apologia da ciação da organização partidária indicam
luta armada das massas populares con- nitidamente, para os comunistas Cunhal
tra o Movimento das Forças Armadas e e Jara, tanto a impotência daqueles gru-
a instauração de uma guerra civil –, mui- pos para se organizarem como partidos
tos interpretaram a ação do COPCON de massas, como a sua perspetiva subjeti-
como uma tentativa de aniquilamento vista e idealista pequeno­‑burguesa.
do MRPP por parte do PCP, nomeada-
mente através da influência que este
partido teria sobre o Governo de Vasco
Gonçalves.
Da ala esquerda da política portugue-
sa, o partido que mais ativamente criti-
cou a ideologia maoista foi o PCP, o prin-
cipal inimigo assumido pelos partidos Bibliog.: impressa: ALEXANDER, Robert J.,
da frente maoista. Na produção escrita Maoism in the Developed World, New York, Prae-
ger Publishers, 2001; Cadernos Viva o Maoísmo,
nacional, destaca-se a obra de Álvaro
n.º 1, 1978; CARDINA, Miguel, Margem de Cer-
Cunhal Radicalismo Pequeno-Burguês de ta Maneira: o Maoísmo em Portugal 1964-1974,
Fachada Socialista, assim como A Farsa dos Lisboa, Tinta da China, 2011; CUNHAL, Álva-
Pseudo-Radicais em Portugal e Maoísmo em ro, O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada So-
Portugal da autoria de José Manuel Jara. cialista, Lisboa, Avante, 1974; FIELDS, A. Bel-
Estes escritos apresentam uma crítica den, Trotskyism and Maoism, New York, Praeger
sistemática dos princípios teóricos e do Publishers, 1988; Id., “A Revolução de abril 20
anos depois”, Vértice, n.º 59, mar.-abr. 1994,
que consideram serem os desvios doutri-
pp. 5-20; GLASER, Daryl, e WALKER, David
nários apresentados e defendidos pelos M. (coords.), Twentieth Century Marxism, Lon-
partidos da nova esquerda radical. As don/New York, Routledge, 2007; JARA, José
direções dos partidos maoistas, fazendo Manuel, A Farsa dos Pseudo-Radicais em Portugal.
a distinção dos apoiantes que se teriam Estudo Político e Teórico sobre os Grupos Maoístas e
deixado iludir pela “verborreia” maoista, Trotskistas perante a Revolução, Lisboa, Edições
são apresentados como grupos de radi- Sociais, 1974; Id., Maoísmo em Portugal. Ideo-
logia Anarquista Contra-Revolucionária e Paródia
cais pequeno-burgueses, desligados das
Burguesa do Marxismo, Lisboa, Edições Sociais,
massas operárias, constituindo uma pe- 1975; KNIGHT, Nick, Mao Zedong on Dialecti-
quena elite intelectual com a pretensão cal Materialism, New York, M. E. Sharp, Inc.,
de ser a vanguarda do proletariado por- 1990; Id., Marxist Philosophy in China, Dordre-
tuguês. Acusados de branquear e ignorar cht, Springer, 2005; MEISNER, Maurice J.,
o passado histórico das lutas operárias e Marxism, Maoism and Utopism, Winsconsin, The
o papel do PCP nestas, para Cunhal, os University of Winsconsin Press, 1982; digital:
partidos maoistas assumem nitidamente CUNHAL, Álvaro, “Situação política e as ta-
refas do partido”, Marxists Internet Archive, 20
a bandeira política do anticomunismo
out. 1974: https://www.marxists.org/portu-
e do antissindicalismo. Assim, Cunhal gues/cunhal/1974/10/20.htm (acedido a 19
encontra nestes partidos, não obstante set. 2016); Id., “Discurso no comício do PCP
o emprego das palavras de ordem e dos (Campo Pequeno – Lisboa)”, Marxists Internet
chavões marxistas-leninistas, um discur- Archive, 7 dez. 1975: https://www.marxists.
so político muito próximo do anarquis- org/portugues/cunhal/1975/12/07.htm (ace-
mo individualista e do oportunismo eco- dido a 19 set. 2016).
nómico. A apologia feita pela esquerda Sara Totta

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1232 Antimaquiavelismo

Antimaquiavelismo qual a aparência fosse mais importante


do que a substância, sendo que muitas
vezes, para as suas finalidades, deveria ir
“contra a humanidade, contra a caridade,
contra a religião” (MAQUIAVEL, O Prín-
cipe, cap. xviii).
Apesar do grande fascínio que O Prín-

N ão são muitos os autores cujos escri-


tos tenham sido objeto de tantas crí-
ticas, polémicas e distorções como suce-
cipe exerceu entre os leitores ainda antes
de ser publicado, devido também ao es-
tilo seco e incisivo da sua prosa, foram
deu com Nicolau Maquiavel (1469-1527). expressões deste tipo que levaram pron-
Secretário e legado diplomático durante tamente várias vozes a acusar Maquiavel
a efémera experiência da República Flo- de ser um autor ímpio e imoral. Contu-
rentina (1494-1512), mas também histo- do, quando a Igreja romana incluiu os
riador, poeta e dramaturgo, Maquiavel foi seus escritos no Índice dos livros proibidos
sem dúvida o mais importante pensador (1559), as obras de Maquiavel já circula-
político do Renascimento. Confirma­‑o a vam em milhares de exemplares impres-
fama universal da sua obra-prima, O Prín- sos e, sobretudo, tinham já inspirado a
cipe, cuja data de composição convencio- produção de muitos pensadores políticos.
nal é o ano de 1513, apesar de ter sido Assim, a luta contra a leitura dos escritos
publicada somente duas décadas depois, de Maquiavel, na Europa católica como
em 1532. Este breve tratado sobre os mo- naquela protestante, foi acompanhada
dos para alcançar e conservar o poder, re- por um clima de suspeita relativamente
digido na época convulsa das guerras de a passos de obras que pareciam retomar
Itália (1494-1529), mas também de gran- à letra, ou ecoar, as ideias do secretário
des transformações, devidas, entre outros florentino. Paralelamente, difundiam-se
fatores, ao conflito entre a Espanha e a cada vez mais imagens e estereótipos ne-
França e à expansão mediterrânica do gativos acerca de Maquiavel e do seu pen-
império otomano, inovou profundamen- samento, apresentados como perigosos e
te a literatura dos conselhos e preceitos diabólicos. Foram desenvolvidos através
políticos, que tinha formado, durante a de uma literatura de controvérsia, não
Idade Média, o género dos espelhos de desprovida de ambiguidade, a qual deu
príncipes. De facto, com respeito a esta uma contribuição decisiva para a forma-
tradição, O Príncipe abandonava a insis- ção de uma corrente robusta e duradou-
tência no primado da conduta ética em ra, mas de modo nenhum homogénea:
favor de um realismo lúcido, que levasse o antimaquiavelismo.
os atores políticos a operar conforme as A influência da representação em nega-
circunstâncias, aproveitando a fortuna, tivo atingiu também os estudiosos moder-
alternando engenho e força, e, no caso nos, como demonstra de maneira eviden-
de um soberano, sendo capaz de suscitar te a historiografia sobre a circulação de
o amor e o temor no povo, segundo as Maquiavel em Portugal, marcada durante
exigências. Para além disto, Maquiavel muito tempo pelas interpretações avança-
esboçava o perfil de um príncipe que, tal das em vários trabalhos, realizados entre
como o Papa Alexandre VI Borja (pontífi- os anos 60 e 70 do século passado, por
ce entre 1492 e 1503), soubesse ser “gran- Martim de Albuquerque. Se a importân-
de simulador e dissimulador”, e para o cia do seu levantamento das ocorrências

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Antimaquiavelismo 1233

relativas a Maquiavel na cultura portu-


guesa entre os sécs. xvi e xix é incontor-
nável, o sabor nitidamente antimaquiavé-
lico da análise de Albuquerque invalida
largamente as conclusões que apresentou
acerca do impacto do autor de O Príncipe.
De facto, quase prolongando a sensibili-
dade dos polemistas da idade moderna,
talvez num esforço de fornecer uma ima-
gem agradecida ao regime salazarista ain-
da vigente, Albuquerque procurou nos
seus escritos confutar sistematicamente
qualquer rasto de interesse para as ideias
de Maquiavel. A tese fundamental é a de
uma incompatibilidade radical entre este
último, associado a Martinho Lutero, e
a inclinação intrínseca dos Portugueses
para o catolicismo e os seus valores mo-
Nicolau Maquiavel (1469-1527).
rais, o que motivaria, “pelo menos no pla-
no doutrinal, contestação generalizada”
(ALBUQUERQUE, 2007, 81) contra o se- reelaboraram as ideias provocadoras do
cretário florentino. Ao retomar a imagem autor de O Príncipe e as integraram em
de um Maquiavel “herege”, Albuquerque seus escritos.
alinhava com os juízos dos autores que No texto manuscrito de um panegírico
examinava, como o jurista Pedro Barbosa de D. João III, que o humanista João de
Homem, autor, em 1626, de um tratado Barros teria declamado na presença da
contra as “monstruosidades de Maquia- corte, em Évora, em 1533, encontra-se
vel [...] dignas de Lutero” (Id., Ibid., 63). um dos primeiros exemplos de inclusão
Um resquício de antimaquiavelismo, de trechos inteiros tirados de Maquiavel,
portanto, dificultou uma correta com- traduzidos para português e reinterpre-
preensão das dinâmicas de receção e tados à luz de uma harmonização entre
rejeição de Maquiavel, das suas obras os antigos gentios e os modernos cristãos,
e  das suas ideias em Portugal, até aos i.e., entre o valor militar dos romanos e o
tempos recentes, que têm inaugurado dos Portugueses. A questão não fora le-
uma nova e vivaz fase de investigação, a vantada em O Príncipe, mas nos Discursos
qual está a mudar em vasta escala a per- sobre a Primeira Década de Tito Lívio, um co-
ceção da sua substancial ausência na his- mentário da secção inicial da obra histo-
tória intelectual portuguesa. A remoção riográfica latina, publicado pela primeira
de Maquiavel do panorama dos autores vez em 1531, onde Maquiavel meditava
de referência na cultura portuguesa dos sobre a Roma antiga, as evoluções do seu
séculos passados é ainda mais paradoxal sistema político e as razões da ascensão
se considerarmos que pesquisas recentes e do declínio do seu poder, recorrendo
demonstraram não só as ambivalências e também a comparações frequentes com
oscilações do antimaquiavelismo oficial, o tempo presente. Entre os alvos polémi-
mas também a excecional precocidade cos de Maquiavel estava a Igreja de Roma,
com que alguns humanistas portugueses acusada de oferecer um espetáculo

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1234 Antimaquiavelismo

quotidiano de corrupção e irreligiosida- Coroas ibéricas, exaltadora da construção


de, para além de ser a responsável princi- dos impérios ultramarinos como triunfo
pal da ruína e desunião política de Itália, de armas cristãs. Assim, foi a partir de
sendo que o papa era suficientemente uma defesa orgulhosa da nobreza cristã e
forte para impedir que outro príncipe do acordo pleno entre a intensidade da fé
se tornasse senhor de toda a península, e o valor militar que, durante a sua esta-
mas débil demais para realizar aquele re- dia em Bolonha, nos anos 30 do séc. xvi,
sultado. Contudo, a crítica contida nos na companhia do humanista espanhol
Discursos era ainda mais radical e atingia Juan Ginés de Sepúlveda (também autor
o cristianismo em si, descrito como fé de um escrito contra Maquiavel, publica-
contemplativa e ultramundana, que, re- do em 1535), o teólogo português Jeróni-
futando “a honra do mundo”, enfraquece mo Osório elaborou uma resposta contra
os ânimos e produz “a velhacaria dos ho- o secretário florentino, finalmente cha-
mens, que interpretaram a nossa religião mado pelo nome, na qual a violência do
conforme o ócio, e não conforme a vir- ataque escondia alguma ambiguidade. De
tude”, ao contrário da “religião antiga”, Nobilitate Civili et Christiana foi publicado
a dos romanos, que, com os seus rituais em Lisboa, em 1542. Enquanto atribuía
civis e juramentos, e pese embora priva- pensamentos alheios a Maquiavel, Osório
da de verdade, “não beatificava senão os criticava-o, apoderando-se de argumen-
homens cheios de glória mundana, como tos tirados dos próprios Discursos. Assim,
era o caso de capitães de exércitos e prín- se acusava Maquiavel de ter explicado a
cipes de repúblicas” (MAQUIAVEL, Dis- queda do Império Romano a partir dos
cursos..., liv. ii, cap. ii). efeitos nefastos do advento do cristianis-
Entre as asserções de Maquiavel, a mo, Osório replicava, com S.to Agosti-
que inicialmente atraiu o maior interes- nho, que as causas e os efeitos do declí-
se, como era de esperar no contexto do nio haviam precedido em muitos anos
humanismo renascentista, foi a ideia de o nascimento de Cristo; e prosseguia,
que a grandeza extraordinária da Roma convocando a teoria da decadência natu-
antiga derivava de um vínculo entre os ral dos impérios, os inveterados conflitos
seus cidadãos, favorecido por uma falsa civis que laceravam Roma e a progressiva
religião que os tornava leais entre si e perda de virtude e disciplina por parte
corajosos em guerra. João de Barros não do povo romano, ou seja, exatamente os
resistiu à tentação de recuperar este ar- factores que Maquiavel tinha apontado
gumento de Maquiavel, dissolvendo o seu como as verdadeiras causas da crise impe-
potencial corrosivo através de uma repre- rial. A demonstração da inferioridade da
sentação do cristianismo, na hierarquia religião dos antigos fundamentava-se, em
do valor civil e militar, como evolução da Osório, na descrição desta última como
religião dos romanos: “Se a religião dos superstição originada do medo da mor-
gentios, reprovada e falsa, tinha poder, te, aquele medo que os soldados cristãos
pelo apartamento dos vícios e limpeza não podiam ter, conscientes de que a vida
do espírito, de causar tanta perfeição eterna os esperava.
a quem a seguia, quanto mais se deve Abriu-se assim um debate subterrâneo
isto esperar da verdadeira fé de Cristo?” acerca da possibilidade de Deus ter pre-
(BNP, cód. 3060, fl. 36v.). miado as virtudes motivadas por uma
A posição expressa nos Discursos cons- religião falsa, em que se aludia às posi-
tituía uma ameaça à retórica oficial das ções de Maquiavel através de referências

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Antimaquiavelismo 1235

a S.to  Agostinho. A polémica tornou-se guesa, é mais correto falarmos de um an-


particularmente vivaz nos anos sucessivos timaquiavelismo ibérico, profundamente
à publicação do De Nobilitate de Osório, marcado pela tratadística jesuíta, a qual,
quando, contra as sugestões dos Discur- mais do que criticar Maquiavel, de cujo
sos, evidentes no Libro Primero del Espejo pensamento havia por vezes apenas um
del Príncipe Cristiano (1544) de Francisco conhecimento indireto, e.g. através do
de Monzón, se levantou a voz, explícita Discours contre Machiavel (1576) do hu-
e agressiva, do Agostinho Martín de Az- guenote Innocent Gentillet, procurava
pilcueta, mais conhecido como “doutor contrastar o maquiavelismo, i.e., uma va-
navarro”, o principal professor de direito riegada corrente baseada na licitude sis-
canónico da Univ. de Coimbra. temática de mentir, quebrar a fé pública
As incertezas do antimaquiavelismo e enganar para o poder, cuja origem se
na cultura portuguesa continuaram no imputava ao secretário florentino, apesar
De Gloria (1549) de Osório, e ainda mais de se não achar rasto dos seus conteúdos
no De Regis Institutione (1571-1572), onde nos escritos dele.
o mesmo autor, então bispo do Algarve, O objetivo do esforço polémico dos
completava o seu itinerário intelectual da autores jesuítas, onde abundavam carica-
“crítica aparente” à “velada aprovação” de turas e desvirtuamentos das ideias de Ma-
Maquiavel (ANGLO, 2005, 156 e 163), ao quiavel, associadas cada vez mais sistema-
retomar quase à letra as palavras com que ticamente aos hereges, era o de esboçar
Barros tinha tentado compatibilizar as os contornos do príncipe cristão, recon-
ideias do secretário florentino sobre a re- ciliando a teoria política com os valores
ligião dos romanos e o cristianismo. Esta de uma ética cristã tornada mais maleável
operação era ainda mais arriscada por- pela casuística, de que os próprios discí-
que, diferentemente do que aconteceria pulos de Inácio de Loiola eram mestres.
em Espanha, onde as obras de Maquiavel Assim, entre os sécs. xvi e xvii, ao lado
foram proibidas somente em 1583-1584 e de importantes padres italianos, como
circulavam traduções dos Discursos dedi- Antonio Possevino, Tommaso Bozio e Ro-
cadas a D. Filipe II, em Portugal a inter- berto Bellarmino, entre os protagonistas
dição dos escritos do autor de O Príncipe de um ataque europeu aos maquiavelista
remontava a 1559. não faltaram importantes Jesuítas espa-
Foi somente com a crise dinástica de nhóis, como Pedro de Ribadeneira, que
1580-1581, e a inauguração de uma fase aliás voltou a criticar também a ideia da
de reorientação da cultura portuguesa superioridade da religião dos romanos
em forte entrelaçamento com a espanho- sobre o cristianismo, ou Juan de Mariana,
la, que se verificou uma alteração decisiva teórico do tiranicídio (com referência so-
na evolução do antimaquiavelismo em bretudo à situação francesa), ambos com
Portugal, o qual, seguindo o interesse largo eco em Portugal, ou entre os auto-
crescente dos leitores por O Príncipe, ela- res portugueses ativos em Espanha.
borou novos argumentos retóricos, ago- A linha indicada pelos Jesuítas definiu
ra relativos ao cinismo de Maquiavel, o o horizonte do antimaquiavelismo oficial,
danado autor, ateu e satânico, à lição do que procurava subordinar a política aos
qual se atribuíam os episódios mais trági- preceitos da religião e da moral católica,
cos das guerras de religião em França. De permeando também a maioria dos au-
facto, relativamente a esta época, devido tores portugueses, como Fernando Al-
também ao bilinguismo da cultura portu- via de Castro, Luís Torres de Lima, Luís

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1236 Antimaquiavelismo

Marinho de Azevedo ou, mais tarde, Fran- paz e de uma política justa e équa, pró-
cisco Manuel de Melo, os quais, pelas suas xima da linha do despotismo iluminado.
inquietudes intelectuais e ambiguidades, Foi demonstração célebre disto o Anti­
já foram inscritos entre os representantes ‑Machiavel, escrito pelo Rei Frederico  II
da chamada razão de Estado, ou tacitis- da Prússia e publicado por Voltaire, em
mo. De resto, os exemplares de O Príncipe 1740. Neste apogeu de um antimaquiave-
circulavam, “o próprio Maquiavel ocupa- lismo secularizado, podia-se relacionar o
va um lugar fundamental na curiosidade nome do secretário florentino com qual-
bibliográfica e no interesse” (TORGAL, quer inclinação ou comportamento ne-
1981, I, 205) das elites cultas e mais in- gativo. De forma exemplar, no Verdadeiro
ternacionalizadas, contribuindo inclu- Método de Estudar (1747) do estrangeirado
sive para a reflexão sobre as passagens Luís António Verney, um dos textos que
mais dramáticas da Restauração (1640). marcaram a viragem iluminista na cultu-
Isto não impedia que, mesmo aqueles ra portuguesa, contribuindo para a ultra-
possuindo uma tradução em português passagem da tradicional pedagogia esco-
da obra, caso de Manuel Fernandes Vila lástica dos Jesuítas, referia-se a ética de
Real, pudessem afastar-se abertamente do Maquiavel, lado a lado com as de Baruch
ensino de Maquiavel, como é possível co- de Espinosa e Thomas Hobbes (também
lher no tratado daquele sobre o cardeal autores proibidos em Portugal), como a
Richelieu, intitulado El Politico Cristianís- primeira entre as ímpias e que “facilmen-
simo (1642). Outros podiam ironizar so- te inspira o veneno dos seus princípios,
bre a distância entre o pensamento de apadrinhado pelo uso comum” (ALBU-
Maquiavel e a conduta prática dos minis- QUERQUE, 2007, 107).
tros portugueses, como fazia, em 1646, Portanto, não surpreenderá que, na
Vicente Nogueira, ao comentar a sua re- segunda metade do séc. xviii, fase com-
cente aquisição de uma edição italiana de plexa que se seguiu à ascensão ao poder
O Príncipe. Assim, era raro que, mesmo de de Sebastião José de Carvalho e Melo, de-
forma dissimulada, Maquiavel se tornasse pois marquês de Pombal, o choque com
objeto de um debate real, sendo a cena a Companhia de Jesus, que remontava,
pública ainda dominada por um duro entre outras razões, aos contrastes acer-
antimaquiavelismo, como o que exprimia ca da autonomia das missões dos padres
o fidalgo, jurista e diplomata António de no Pará e Maranhão e das interpretações
Sousa de Macedo no tratado Armonia Po- das causas do terramoto de 1755, tenha
litica dos Documentos Divinos com as Conve- chegado a dirigir as acusações de maquia-
niencias do Estado (1651). velismo contra os Jesuítas. Em fevereiro
Se a circulação de Maquiavel conti- de 1758, e.g., o ministro D. Luís da Cunha
nuou em toda Europa durante a segun- Manuel classificava as desordens provo-
da metade do séc. xvii e ao longo do cadas na América pelos Jesuítas como
séc. xviii, em Portugal, com a chegada “maquiavélicos enganos” e, lembrando a
de novas sensibilidades ligadas às Luzes, explicação, dada por Gabriele Malagrida
ao tradicional antimaquiavelismo de ma- e outros padres, do terramoto como casti-
triz católica somou-se uma nova corren- go divino, comentava que “não inventou
te, que partilhava a crítica racionalista a fertilíssima malícia de Nicolau Machia-
às presumidas astúcias e opacidades do velo diabrura política, que eles não pu-
pensamento do secretário florentino, em sessem por obra” (Id., Ibid., 92). Idênti-
nome da defesa do direito natural, da co juízo se encontrava na carta que, em

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Antimaquiavelismo 1237

janeiro de 1759, uma semana depois das seus textos, de um lado, e, de outro lado,
execuções capitais de que foram vítimas as estratificações dos multíplices estereó-
os culpados do atentado dos meses ante- tipos negativos que, durante um caminho
riores contra D. José I, o Rei enviou aos plurissecular, o antimaquiavelismo conse-
prelados do reino, acusando os Jesuítas guiu associar ao adjetivo “maquiavélico”,
de serem os autores morais e coautores o qual ainda hoje, na língua portugue-
do delito, por terem semeado “o mesmo sa, tal como em muitas outras, tem um
pestilencial veneno dos maquiavúlicos significado pejorativo, que remete para
enganos e das ante-evangelicas doutri- a esfera da astúcia, da má-fé, do oportu-
nas” (Id., Ibid., 95). nismo contrário aos interesses do bem
O paradoxal encontro entre antijesui- comum e da sociedade.
tismo e antimaquiavelismo, revelador da
extraordinária plasticidade do arsenal Bibliog.: manuscrita: Biblioteca Nacional de
retórico deste último, acompanhou a Portugal, reservados, cód. 3060, Ao mui Alto
expulsão dos padres da Companhia dos e muito Poderosõ Rey de Portugal D. João 3°. deste
Nome Panegirico de João de Barros; impressa: AL-
territórios da coroa, que se verificou dali
BUQUERQUE, Martim de, Maquiavel e Portu-
a pouco tempo. Nos anos seguintes, saí- gal. Estudos de História das Ideias Políticas, Lisboa,
ram obras como Anti-Machiavelismo ou Alêtheia, 2007; ANGLO, Sydney, Machiavelli,
Nova Sciencia e Arte (1760) de António Fé- the First Century: Studies in Enthusiasm, Hostility
lix Mendes (pseudónimo de João Pedro and Irrelevance, Oxford, Oxford University Press,
do Vale), e o fidalgo Francisco Bernardo 2005; BAGNO, Sandra, e MONTEIRO, Rodri-
Holbeche, autorizado a ler livros defesos, go Bentes (orgs.), Maquiavel no Brasil. Dos Des-
cobrimentos ao Século XXI, Rio de Janeiro, Fun-
iniciou uma tradução de O Príncipe, limi-
dação Getúlio Vargas, 2015; MAQUIAVEL,
tada aos primeiros três capítulos, com Nicolau, O Príncipe; Id., Discursos sobre a Primei-
anotações, mas expurgada dos passos ra Década de Tito Lívio; MARCOCCI, Giuseppe,
mais comprometidos do ponto de vista “Machiavelli, la religione dei romani e l’impero
moral e religioso. Ainda mais, os novos portoghese”, Storica, n.os 41-42, 2008, pp. 35­
estatutos da Univ. de Coimbra (1772) ‑68; MONTEIRO, Rodrigo Bentes, “Traduções
prescreveram aos professores evitarem de Maquiavel: da Índia portuguesa ao Brasil­
‑apresentação”, Tempo, n.° 20, 2014, pp. 1-5;
detestáveis doutrinas como as do sistema
PROCACCI, Giuliano, Machiavelli nella Cultura
do maquiavelismo, enquanto a Real Mesa
Europea dell’Età Moderna, Roma/Bari, Laterza,
Censória assumia a proibição dos escritos 1995; PUIGDOMÈNECH, Helena, Maquiave-
de Maquiavel nos índices eclesiásticos, lo en España. Presencia de Sus Obras en los Siglos
condenando edições em circulação das XVI y XVII, Madrid, Fundación Universitaria
suas obras em língua francesa. Española, 1988; TORGAL, Luís Reis, Ideologia
Finalmente, nas décadas iniciais do Política e Teoria do Estado na Restauração, 2 vols.,
séc. xix abriu-se uma fase de reabilitação Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, 1981-82.
de Maquiavel no discurso público por
parte dos liberais, que denunciaram a Giuseppe Marcocci
lenda negra elaborada em torno do autor
de O Príncipe, no qual não faltava quem
visse um teórico do republicanismo. To-
davia, como mostravam claramente as
posições de vários tradicionalistas, já não
era possível recompor a distância entre a
figura histórica de Maquiavel e a letra dos

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1238 Antimarialvismo

Antimarialvismo rista e conquistador de mulheres, com


uma vida extravagante, ociosa e disso-
luta, que gosta ou se ocupa de cavalos,
touros e touradas. É também um “fadista
que pertence a família distinta, ou que o
aparenta” (MACHADO, 1991, 40).
No ensaio Cartilha do Marialva ou das

A ntónimo de “marialvismo”, cuja ori-


gem reside no antropónimo “Ma-
rialva”, pertencente à família do 4.º mar-
Negações Libertinas (1960), José Cardoso
Pires define a essência do seu espírito e
representa-o em algumas personagens
quês de Marialva, D. Pedro de Alcântara dos seus contos: “Ritual dos pequenos
de Menezes Coutinho (1713-1799), tam- vampiros” e “Dom Quixote, as velhas viú-
bém 6.º conde de Cantanhede, general vas e a rapariga dos fósforos”, em Jogos de
de cavalaria, estribeiro-mor de D. José I, Azar (1963); e romances: O Anjo Ancora-
conselheiro de guerra e claveiro da or- do (1958), O Delfim (1968) e Balada da
dem militar de S. Tiago, que, como des- Praia dos Cães (1982). Segundo este escri-
tro cavaleiro português e conhecedor tor, o termo “marialva” surge como cate-
da equitação académica à francesa, ins- goria social em Os Marialvas (1876), de
tituiu as regras de montar à gineta e de Braz Fogaça, e a sua filosofia de vida é já
forma elegante. Esta herança equestre e antes legitimada, didática e moralmente,
tauromáquica é descrita pelo mestre de pela Carta de Guia de Casados (1651), de
picaria Manuel Carlos de Andrade que, D. Francisco Manuel de Melo, que con-
num tratado de equitação intitulado sagra a mulher portuguesa ao lar. É um
Luz da Liberal, e Nobre Arte da Cavallaria arquétipo da aristocracia medieval, fidal-
(1790), conhecido por Tratado ou Arte go boémio e estoura-vergas, influente
de Marialva, faz perdurar este nome de provinciano adverso ao citadino, com va-
família, que é simultaneamente substan- lores conservadores, autoritários e pater-
tivo e adjetivo. A expressão “(à) marial- nalistas. As relações de poder que exerce
va” refere-se ao chapéu “alto, com aba não são apenas no feminino, mas tam-
direita” (NASCENTES, 1966, 121), mas bém, como fidalgo ou proprietário, com
também à atitude senhorial e altiva, bem o camponês ou o empregado. Se, social-
como ao traje dos cavaleiros tauromá- mente, é “um indivíduo interessado em
quicos portugueses à Luís XV, com os certo tipo de economia e em certa fisio-
arreios das montadas à séc. xviii. Para nomia política assente no irracionalis-
homenagear esta figura setecentista, foi mo”, intelectualmente é avesso ao poder
dado, e.g., o seu nome, marquês de Ma- da inteligência, à coragem responsável e
rialva, a uma sala (ao lado do bar) no a “leituras e viagens, meios de adquirir
Palácio de Seteais, construído também experiência, [porque] são os malefícios
no séc. xviii, bem como, em Lisboa, ao da civilização a que o marialva atribui
jardim do Campo Pequeno. os desarranjos sociais” (PIRES, 1970,
Até ao séc. xxi, o substantivo e o ad- 9 e 75). O seu exibicionismo de garanhão
jetivo “marialva” adquirem vários signi- “constrói uma mitologia própria onde
ficados e são associados ao género mas- agita os seus galhardetes de vitória” (Id.,
culino. De forma valorativa, o vocábulo Ibid., 80) através de uma gíria que torna
significa um exímio e elegante cavaleiro, ainda mais depreciativa a sua imagem.
mas, pejorativamente, refere-se a um far- Neste âmbito, até à primeira metade do

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Antimarialvismo 1239

O marialvismo está igualmente asso-


ciado ao universo militar pela defesa de
uma cultura de bravos cujo lema é: “Mas,
Nós, os fortes, iremos além!” (TEIXEI-
RA, 2013, 98) O poder político também
não lhe é alheio e D. Miguel I é consi-
derado o seu primeiro aliado, porque
restaurou as hierarquias sociais, o sebas-
tianismo e combateu as ideias liberais.
Ficcionalmente, é uma presença na lite-
ratura, no teatro, na revista à portugue-
sa, nas novelas e nos filmes.
O antimarialvismo rejeita este modelo
de masculinidade, onde o machismo, a
retórica e exibição viris, e a obediência
à tradição patriarcal são uma constan-
te. Com legitimidade histórico-cultural,
diz-se que este género masculino se move
mais nas áreas de Lisboa, do Ribatejo e
do Sul de Portugal. A ética marialva, que
tem na figura do cavaleiro a sua perso-
nificação, reflete uma imagem de nacio-
nalidade e de atuação que, tradicional
Folha de rosto de Carta de Guia de Casados e popularmente, se considera o modo
(1678), de D. Francisco Manuel de Melo. de ser português: fado, cavalos, caça e
touradas. Por isso, a temática do antima-
séc. xx, o fado tem um papel preponde- rialvismo foi associada a um manifesto
rante na construção da sua identidade. contra a caça e a corrida à portuguesa.
Títulos como “Fado do Marialva”, cuja No entanto, Manuel Alegre afirma que
letra, “Portugal desde menino/Foi ca- “há muita gente profundamente anti-
valeiro e campino…”, “explica o varão marialva que gosta de touros e […]  de
português como um duro a cheirar a ca- caça. De resto, eu acho que tudo nasceu
valo” (TEIXEIRA, 2013, 98-99), e “Fado da caça. Tudo. A começar pela poesia”
do 31”, assim como a história da Severa, (MARQUES, 2010, 36).
em peça teatral, por Júlio Dantas, e em O antimarialvismo combate atitudes e
filme, por Leitão de Barros, são modelos comportamentos arreigados a uma igno-
para se esculpir um imaginário social fa- rância consentida, autoritária e medío-
miliar e de boémia pautado pela margi- cre, fossilizada numa tradição portugue-
nalidade e a transgressão, uma realidade sa sem valores de igualdade de direitos
que, na época, é rejeitada, em parte, pe- e deveres, gerando o atraso de uma so-
los intelectuais portugueses, porque os ciedade, de um país. Na literatura portu-
“três artigos de fé do regulamento ma- guesa, Maria Teresa Horta, Maria Velho
rialva no capítulo, obsessivo para ele, da da Costa e Maria Isabel Barreno, em No-
sua condição e privilégio de macho” são vas Cartas Portuguesas (obra editada por
“desigualdade na parceria sentimental, Natália Correia, em 1972), são reconhe-
desvario e facilidade” (PIRES, 1970, 85). cidas pela sua luta durante os últimos

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1240 Antimarxismo

anos da ditadura do Estado Novo. Neste


universo, consiste numa desmistificação
Antimarxismo
da realidade feminina portuguesa, que
está associada à representação de uma
imagem política, social e cultural dos gé-
neros, ou seja, na defesa da igualdade de
género.

Bibliog.: ALMEIDA, Miguel Vale de, “Marial-


vismo. Fado, touros e saudade como discursos
F enómeno político e cultural de re­
ação negativa ao pensamento político­
‑filosófico de Karl Marx e Friedrich En-
de masculinidade, da hierarquia social e da gels. A doutrina comummente designada
identidade nacional”, Trabalhos de Antropologia
por marxismo é uma conceção filosófica
e Etnologia, vol. 37, fascs. 1-2, 1997, pp. 41­
‑66; MACHADO, José Pedro, Grande Dicionário que os seus fundadores denominaram
da Língua Portuguesa, vol. 4, Lisboa, Alfa, 1991; originalmente de materialismo dialético,
MAGALHAENS, António Xavier de Carvalho e apresenta-se como uma alternativa ao
Pereira de, Epitafio Latino e Portuguez Dedicado á materialismo vulgar, designação pela qual
Memoria do Senhor Dom Pedro de Alcantara de Me- Marx se refere às teorias materialistas na-
nezes Coutinho, IV. Marquez de Marialva, VI. Con- turalistas. A dialética idealista de Hegel
de de Cantanhede, &c. &c. &c. Offerecido aos Ill.
forneceu a Marx e Engels o instrumento
mos, e Ex.mos Descendentes da Antiquíssima, e Real
Família dos Menezes, Lisboa, Officina de Lino conceptual para pensar a complexidade
da Silva Godinho, 1799; MARQUES, Carlos e a dinâmica das transformações sociais
Vaz, “Entrevista a Manuel Alegre”, Revista Ler, e políticas.
n.º  90, abr. 2010, pp. 29-36; NASCENTES, Dedicando-se intensamente ao estudo
Antenor, Dicionário de Língua Portuguêsa, vol. 3, da história e da economia do seu tempo,
Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Marx deu os primeiros passos no sentido
Nacional, 1966; PIRES, José Cardoso, Cartilha da elaboração da sua teoria de classes e da
do Marialva ou das Negações Libertinas, 4.ª ed.,
compreensão do papel fundamental da
Lisboa, Moraes Editores, 1970; TEIXEIRA, Rui
de Azevedo, Homem de Guerra e Boémio. Jaime configuração económica da sociedade,
Neves por Rui de Azevedo Teixeira, 2.ª ed., Lisboa, não só no estabelecimento das relações
Bertrand, 2013. sociais, mas também na organização po-
Helena Isabel Jorge
lítica: seja qual for a época histórica, veri-
fica-se sempre a necessidade de o homem
produzir os seus meios de subsistência
(naturalmente, o que produz e o modo
como produz terá um impacto decisivo
na vida das comunidades).
Esta conceção socioeconómica é con-
sequência dos princípios ontológicos e
metodológicos que orientam uma deter-
minada interpretação da dialética, po-
dendo ser resumida nos seguintes princí-
pios: a  realidade encarada do ponto de
vista da totalidade, ou seja, como uma
unidade complexa de entes e entidades
materiais, que, não só pelas suas qualida-
des naturais, mas também pelas relações

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Antimarxismo 1241

que estabelecem entre si, devido à sua


natureza, se encontram interligadas por
relações de causalidade mútua; a essência
processual da realidade, que, em cons-
tante mudança, não só nega ser eterna
e absoluta, como justifica uma conceção
historicista do ser, concebido como uni-
dade determinada pelas relações mútuas
entre história humana e história natural;
finalmente, a teoria dialética dos opostos,
de acordo com a qual toda a realidade é
permeada por tensões, donde o seu ca-
rácter intrinsecamente dinâmico – assim,
a história resulta, para os fundadores do
materialismo dialético, da luta constante
D.R.

entre classes dominantes e classes domi- Karl Marx (1818-1883)


nadas na tentativa de chegar ao poder. e Friedrich Engels (1820-1895).
Testemunhando no séc. xix a forma-
ção dos primeiros movimentos sindicais e
o aumento significativo do descontenta- As convicções religiosas – a religião foi
mento das classes trabalhadoras (devido caracterizada por Marx como o “ópio do
à exploração do seu trabalho por parte povo” (MARX e ENGELS, 1975, 175) – fo-
da classe capitalista), que começavam mentaram as primeiras reações negativas
a organizar-se como força política, Karl ao materialismo dialético (como, de res-
Marx encontrou no proletariado a nova to, a qualquer forma de materialismo).
classe revolucionária. As condições de ex- Negando a existência de entidades espi-
trema adversidade em que esta vivia não rituais, tais como Deus e a alma, o mar-
poderiam senão conduzi-la à tentativa xismo não colheu admiradores no seio
de transformar completamente as rela- da Igreja Católica. Uma das primeiras
ções económicas e sociais vigentes: deste condenações explícitas do comunismo
modo, o projeto da sociedade comunista por parte da Igreja encontra-se na encí-
a realizar envolvia o fim do Estado (como clica Qui Pluribus (1846), do Papa Pio IX,
mecanismo político de domínio de uma que condena o comunismo como a teo-
classe sobre as restantes) e a abolição da ria mais adversa ao direito natural, cuja
propriedade privada (e, com isso, a elimi- aplicação levaria à destruição completa
nação da diferenciação entre classes). das leis, do governo e da propriedade – e,
O radicalismo que representavam, na por conseguinte, de toda a sociedade hu-
altura, as ideias de Marx e Engels fez que mana. Em 1891, oito anos volvidos sobre
rapidamente surgissem adversários delas o falecimento de Marx, o Papa Leão XIII
nos mais diversos países e em várias áreas publica uma carta encíclica intitulada
do saber, (algo que foi posteriormente Rerum Novarum, visando as condições de
reforçado pelas experiências políticas so- vida dos operários, e considerada por
cialistas na União Soviética e em outros muitos como o documento que viria a
países que procuraram implementar re- inspirar a doutrina social da Igreja. Nes-
gimes políticos baseados nos princípios ta encíclica, encontra-se uma exposição
comunistas). mais sistemática das posições da Igreja

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1242 Antimarxismo

Católica face às teses socialistas e comu- contexto do movimento socialista inter-


nistas que tomavam o materialismo his- nacional; Marx combateu a variante prou-
tórico de Marx e Engels como modelo. dhoniana do socialismo, que apelidou de
A  condenação do sindicalismo em favor “socialismo utópico”, designação pela
de um modelo corporativista e a defesa qual ficou conhecida. Influenciado pela
da propriedade privada como fundamen- filosofia de Hegel, Proudhon serve­‑se do
to da liberdade individual e como direito modelo dialético para analisar a oposição
inalienável do Homem são os principais entre os interesses do trabalhador explo-
argumentos contra as teorias socialistas. rado e os dos detentores do capital (os
Outras encíclicas papais foram reforçan- quais recolhem o valor acrescentado de
do as posições tomadas pelo Papa Pio IX, um trabalho que lhes é alheio, procuran-
nomeadamente a encíclica Quadragesimo do sempre retirar o máximo de lucro pos-
Anno, em 1931 (assinalando os 40 anos sível da força de trabalho que é vendida
da Rerum Novarum), e a encíclica Divini pelo operário por um salário  –  quantia
Redemptoris, em 1937, ambas publicadas necessária para a subsistência deste du-
durante o pontificado de Pio XI. A resis- rante o tempo de produção –, o qual nun-
tência da Igreja Católica às ideias marxis- ca equivale ao valor económico produzi-
tas – especialmente quando alguns mem- do por aquela força). Contudo, ao invés
bros do clero começavam a aproximar o de defender uma solução revolucionária
socialismo da doutrina da Igreja, assim de destruição do capital, a teoria prou­
como a participar ativamente em orga- d­honiana defende a conservação “har-
nizações socialistas – deu origem à mais moniosa” do antagonismo entre os inte-
abrangente ordem de excomunhão da resses dos detentores do capital e os dos
história da Igreja Católica, com o Decreto trabalhadores explorados, preferindo-a à
contra o Comunismo. Entre 1949 e 1955 resolução do conflito. Pelo contrário, as
foram emitidas, sob supervisão do Papa perspetivas em contradição (a do traba-
Pio  XII, várias condenações que resulta- lho e a do capital, no plano económico, e
ram na excomunhão de todos aqueles a da comunidade e a da propriedade, no
que defendessem ideias comunistas ou plano político) devem complementar-se
tivessem qualquer ligação a atividades e corrigir-se mutuamente, já que são uni-
comunistas. Este decreto viria a ser con- laterais e, consideradas isoladamente, são
siderado inválido com a promulgação do mesmo contrárias à sociabilidade natural
Código de Direito Canónico de 1983, pelo do homem. Para Proudhon, a comunida-
Papa João Paulo II. de – ou o comunismo, num sentido mais
O combate aos princípios do marxismo alargado – é tão injusta quanto a socie-
está presente inclusivamente na obra de dade capitalista baseada na propriedade:
pensadores liberais e anarquistas. Por sua com o objetivo de suprimir a proprieda-
vez, alguns destes pensadores – Max Stir- de, o comunismo centraliza-a no poder
ner, Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail do Estado, tornando-se assim a comuni-
Bakunin –, contemporâneos de Marx e dade o proprietário exclusivo; além disso,
Engels, foram objeto de crítica sistemáti- a coletivização dos meios de produção e
ca por parte destes. a organização social do trabalho por par-
Dada a notoriedade e influência de te do Estado restringe o livre-arbítrio e
Proudhon no meio operário francês e in- o direito dos indivíduos a disporem das
ternacional, este foi mesmo considerado suas próprias faculdades e da sua força de
por Marx como o seu rival ideológico no trabalho.

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Antimarxismo 1243

concebia como o verdadeiro proletaria-


do (já que os camponeses e o lumpem-
proletariado constituíam as classes mais
populosas), ao contrário dos proletários
industriais das cidades (para o filósofo
anarquista, mais próximos da pequena
burguesia). O confronto constante entre
os dois filósofos na Associação Interna-
cional de Trabalhadores, comummente
conhecida como Primeira Internacional,
marcou a sua época e os primeiros passos
da história do movimento internacional
operário; Bakunin, sustentando uma in-
terpretação distorcida do pensamento de
Marx, e com um conceito de liberdade
identificado com a espontaneidade, ou
a impulsividade, apenas reconheceu no
projeto do socialista alemão uma nova
Mikhail Bakunin (1814-1876). forma de autoritarismo.
Um dos pilares fundamentais da teo-
Mikhail Bakunin, anarquista e discípu- ria económica de Marx é a sua definição
lo de Proudhon, celebrizou-se como um da lei do valor, um problema muito rele-
dos grandes adversários políticos do mar- vante na economia política desde Adam
xismo. De acordo com Bakunin, a “dita- Smith. Para o economista inglês, a fonte
dura do proletariado”, defendida pelos do valor de qualquer mercadoria é o tra-
marxistas como fase preparatória neces- balho nela investido; noutros termos, só o
sária para a supressão do Estado e para o trabalho gera valor. Ainda que Smith não
fim da sociedade de classes, apenas pode- tivesse retirado da sua tese qualquer con-
ria resultar em mais uma forma opressora sequência política, os teóricos socialistas
de governo, na qual os proletários assu- haveriam de se basear nela para a defesa
miriam o lugar de burgueses na explo- do direito do trabalhador ao produto in-
ração da classe operária. O anarquismo tegral do seu trabalho e, no quadro capi-
bakuniniano visava como fim último, tal talista de produção, desenvolver as mais
como o marxismo, a adoção de um mo- diversas teorias sobre a exploração do tra-
delo económico socialista e o estabeleci- balho. A  polémica lei do valor de Marx,
mento de uma sociedade sem distinção baseada no princípio de que o valor das
de classes – e, por conseguinte, sem pro- mercadorias era substantivado pelo tra-
priedade privada; ademais, assumia como balho social nelas incorporado – por
condição necessária para a realização des- conseguinte, as relações de troca eram
se projeto a imediata eliminação do Es- possíveis segundo um princípio de equi-
tado. Do mesmo modo, a secundarização valência de valores –, alimentou as críticas
do papel revolucionário dos camponeses dos principais opositores do marxismo na
e do lumpemproletariado (composto ciência económica, a saber, os liberalistas.
por desempregados, criminosos vulgares, Reagindo à ameaça que as ideias mar-
etc.), na teoria da revolução marxista, xistas constituiriam para a liberdade dos
foi muito criticada por Bakunin, que os mercados, a conhecida Escola Austríaca

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1244 Antimarxismo

produziu os mais notáveis opositores das em 1878, as leis antissocialistas, proibin-


teorias socialistas de Marx e Engels, entre do a promoção de ideias sociais-democra-
os quais Carl Menger, Friedrich Wieser, tas e socialistas sob todas as suas formas.
Ludwig Böhm-Bawerk e Friedrich Hayek. O seu objetivo era enfraquecer o cada vez
Böhm-Bawerk terá mesmo sido o primei- mais influente Partido Social-Democra-
ro economista a dedicar os seus escritos ta Alemão (SPD), fundado por Wilhelm
ao escrutínio dos princípios económicos Liebknecht e August Bebel sob influên-
presentes em O Capital, à sua argumen- cia de Marx e Engels (viria a ser o maior
tação teórica e à identificação das suas partido alemão e, desde 1910 a 1933, o
contradições. Na sua obra Karl Marx e a mais representado no Reichstag). A parti-
Conclusão do Seu Sistema, Böhm-Bawerk de- cipação da Alemanha na Primeira Guerra
nuncia a contradição entre a lei do valor Mundial, e, em especial, a aprovação dos
elaborada no primeiro volume de O  Ca- créditos de guerra, causaria uma cisão no
pital e a lei do valor utilizada no terceiro seio do SPD. Os comunistas, mantendo
volume da mesma obra: a primeira for- uma posição antibelicista, abandonaram
mulação da lei, de carácter mais abstrato o partido e formaram a Liga Espartaquis-
e ambíguo, presume que só o tempo de ta, sob a liderança de Rosa Luxemburgo
trabalho incorporado é critério de valor, e Karl Liebknecht (que haveria de ser
enquanto a segunda conta já com a varia- preso em virtude da sua posição antibe-
ção dos preços introduzida pela relação licista); provenientes da ala revisionis-
entre oferta e procura, bem como pela ta do partido, Hugo Haase, Bernstein e
concorrência de capitais privados. Par- Kautsky abandoná-lo-iam, formando o
tindo de uma conceção subjetiva do valor Partido Independente Social-Democrata
fundada na teoria marginalista, que torna Alemão (USPD). Inspirados pela Revo-
o valor dependente das necessidades de lução Bolchevique de 1917, soldados e
cada consumidor e das condições exis- trabalhadores – entre os quais membros
tentes para a sua satisfação, Böhm-Bawerk do USPD e delegados sindicais – uniram­
coloca-se em oposição direta à teoria eco- ‑se em conselhos revolucionários e, em
nómica marxista, que parte de uma con- várias cidades alemãs, assumiram o con-
ceção objetiva do valor, o qual resulta do trolo de postos militares e policiais, for-
tempo médio necessário à produção. çando a monarquia alemã a renunciar.
As agitações sociais que haveriam de Iniciava-se, então, a Revolução Alemã de
marcar o séc. xix europeu, entre as quais 1918-1919. Em novembro de 1918, em
se destacam as Revoluções de 1848, a Munique, os comunistas chegaram ao po-
Comuna de Paris, em 1871, e o cresci- der e, liderados por Kurt Eisner, procla-
mento do movimento sindical (com o maram a República Soviética da Baviera.
subsequente aumento da capacidade Friedrich Ebert, líder do SPD na altura,
reivindicativa e de mobilização de traba- desejando manter o sistema político par-
lhadores cada vez mais insatisfeitos com lamentar, que então liderava como chan-
a dureza das condições em que viviam), celer, recusou-se a entregar o poder aos
levaram os Estados a adotar medidas cada conselhos militares e operários que ha-
vez mais repressivas para com as organi- viam assumido o controlo de várias cida-
zações socialistas e as suas principais fi- des, como Leipzig, Hamburgo, Bremen e
guras. Na Alemanha, onde o movimento Düsseldorf. Ebert encontrou na extrema­
socialista ganhava cada vez mais apoio das ‑direita, no apoio do Comando Supremo
classes operárias, Otto Bismarck aprova, das Forças Armadas, o seu braço armado.

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Antimarxismo 1245

Os Freikorps, milícias paramilitares, auxi- período ficou conhecido como First Red
liados pelas tropas alemãs, reprimiram o Scare [Primeiro Terror Vermelho]. Em
movimento operário alemão, assassinan- 1919, um suposto plano bombista, desco-
do as suas principais figuras, como Rosa berto pelo Governo e atribuído a radicais
Luxemburgo, Liebknecht, Landauer, Lé- anarquistas, desencadeou uma violenta
vine, Eisner. O chamado “terror branco”, perseguição contra membros de grupos
de 1919, consistiu na execução de mi- sociais-democratas, anarquistas e comu-
lhares de Alemães pelo Exército alemão nistas, conhecida como Palmer Raids
e pelos Freikorps. A adoção de leis anti- [Raides de Palmer]. Entre 1947 e 1957,
marxistas e antissocialistas, bem como a o Governo norte-americano promoveu
repressão violenta dos partidos de inspi- uma nova vaga de perseguições e violên-
ração marxista e socialista, verificou-se cia antimarxista, conhecida como Second
em vários países europeus, onde cresceu Red Scare [Segundo Terror Vermelho]
simultaneamente a influência da extre- ou macarthismo. A divisão geopolítica
ma-direita (Áustria, Hungria, Polónia, polarizada pelas duas superpotências,
Itália, Espanha e Portugal). EUA e URSS, resultante do desfecho da
Em Portugal, o Partido Comunista Por- Segunda Guerra Mundial, e a corrida ao
tuguês (PCP) foi ilegalizado em 1926, armamento por ambas as partes caracte-
com o golpe de 28 de maio, um processo rizaram um período de grande confronto
que o obrigou a realizar as suas ações na ideológico promovido pelos dois lados; a
clandestinidade e levou ao seu desmem- Guerra Fria promoveu os mais fervoro-
bramento. Com a subida de Salazar ao sos ataques ideológicos aos princípios do
poder, a repressão sobre os comunistas marxismo e ao modelo socialista pratica-
portugueses aumentou exponencialmen- do na URSS.
te, levando à quase extinção da organi-
zação marxista. Durante o Estado Novo,
a prisão e a tortura física e psicológica
eram o método preferencial da Polícia Bibliog.: BAKUNIN, Mikhail, Marxism, Free-
Internacional e de Defesa do Estado dom and the State, London, Freedom Press,
(e, posteriormente, da Direção-Geral de 1950; BÖHM-BAWERK, Eugen von, Karl Marx
and the Close of His System, New York, Augus-
Segurança). Em outubro de 1936, foi
tus M. Kelly, 1949; Código de Direito Canónico,
inaugurado o Tarrafal, um campo de con- 1983; EVANS, Richard J., Rereading German
centração situado na ilha de Santiago, em History. From Unification to Reunification. 1800­
Cabo Verde, destinado aos presos políti- ‑1996, London/New York, Routledge, 1997;
cos do regime salazarista; entre os primei- LEÃO XIII, Rerum Novarum, 1891; MARX, Karl,
ros prisioneiros aí recebidos encontrava­ e ENGELS, Friedrich, Collected Works, vol. 3,
‑se Bento Gonçalves, então líder do PCP, Moscow, Progress Publishers, 1975; PIO IX,
que lá haveria de falecer, como muitos Qui Pluribus, 1846; PIO XI, Quadragesimo Anno,
1931; Id., Divinis Redemptoris, 1937; PROU-
outros marxistas, vítimas das condições
DHON, Pierre-Joseph, O Que É a Propriedade?,
precárias e da violência física impostas Lisboa, Estampa, 1997; SANTA SÉ, Decretum
aos prisioneiros. contra Communismum, 1949; SCHMIDT, Regin,
Nos EUA, a Revolução Russa causou Red Scare. FBI and the Origins of Anticommunism
pânico na sociedade, alimentado por um in the United States, 1919-1943, Copenhagen,
clima de alarmismo na imprensa, que Museum Tusculanum Press/University of Co-
imputava planos de subversão comunis- penhagen, 2000.
ta a manifestações sindicais legais; este Sara Totta

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1246 Antimaterialismo

Antimaterialismo mas patenteia também um sentido de


moderação e equilíbrio, valor fundamen-
tal do Iluminismo português. A paróquia
definia para as populações europeias um
quadro elementar de vida, que Georges
Gustorf denominou de um cristianismo
“encarnado” (Id., 2002d, 405), com es-

O materialismo em sentido estrito é


uma doutrina que apresenta toda
a realidade como material. Trata-se de
pecial atenção ao utilitário e ao tecno-
crático. Foi a pensar na vida na paróquia
que Cenáculo prosseguiu e defendeu
um conceito dos primórdios da ciência um conhecimento científico ao serviço
que, nos começos do séc. xxi, tem pou- da promoção da vida humana, uma pro-
cos adeptos. Pensadores como Charles moção com a marca franciscana, no elo-
Darwin, Karl Marx e Sigmund Freud gio da mão como símbolo do trabalho, a
representaram os seres humanos não mão que importa estender ao outro para
como entidades morais e espirituais, mas alimento do corpo e da alma. Há no seu
como máquinas que habitam um univer- pensamento uma relação dinâmica en-
so regido apenas por forças impessoais, tre ação e contemplação, numa dialética
num quadro materialista. Num sentido ascendente que vai da matéria ao espíri-
amplo, entenderemos o materialismo to, com respeito pela perfeição de cada
como a doutrina que permite à ciência nível na sua especificidade. Para Cená-
admitir que é possível encontrar cau- culo “tudo na natureza satisfaz um fim
sas e consequências dos fenómenos no que se revela útil ao homem”, prova da
mundo físico, e que os objetos da ciência Providência divina (Id., Ibid., 407). A físi-
são testáveis, i.e., que é possível avançar ca newtoniana e a geometria euclidiana
hipóteses, que serão ou não comprova- constituem o alfabeto definitivo da razão
das pela experiência. Neste contexto, o na leitura e interpretação da natureza e
materialismo tem uma relação estreita dos seus mecanismos. A “bela física uni-
com o empirismo e com a rejeição da da à matemática” (Id., 2002c, 149), eis o
metafísica, dado que as proposições des- paradigma que destronaria não só o edi-
ta última não são testáveis. fício da escolástica, mas também o racio-
No Portugal de Setecentos, Fr. Manuel nalismo metafísico cartesiano. O cálculo
do Cenáculo (1724-1814), numa linha diferencial e integral, a “parte mais su-
de franciscanismo potenciado pelo in- blime da física”, e mais a metafísica, que
fluxo antoniano, apresentou uma pers- já lhe não vem a partir do domínio expe-
petiva antimaterialista tendo como base rimental, mas sim pela via da matemáti-
cultural de uma força ativa, que, sendo ca, permitia atar entre si os fenómenos
proveniente de Deus, se destinava ao “com rodeios tão numerosos e variados”
homem, o que confere um sentido à sua (Id., Ibid., 145)
antropologia. A sua linguagem patenteia O Iluminismo português empenhou­
“a necessidade de ‘espiritualizar a ma- ‑se na conciliação entre a ciência experi-
terialidade dos objetos’” (CALAFATE, mental e a teologia natural, na perceção
2002, 347), que não traduz uma evasão do sentido divino das realidades visíveis.
do mundo mas uma condição de reali- Assim, os filósofos portugueses distancia-
zação do homem, um reflexo do esforço ram-se de Descartes, cuja filosofia é mar-
humano para se apoderar do Universo; cadamente contra uma “interpretação

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Antimaterialismo 1247

simbólica da natureza” (Id., 2002b, 310).


O Deus de Descartes não fala através do
“espetáculo da Natureza”, mas tão somen-
te através do homem (Id., Ibid., 311).
Entre nós, no séc. xviii, a leitura da
natureza revestiu-se de um carácter sim-
bólico, como abertura do finito ao infi-
nito. O homem, como ser finito, é capaz
de se abrir ao infinito, de o procurar e
de ser por ele questionado. Prevalece
um princípio de causalidade e de con-
tingência dos seres criados, e o Deus-re-
lojoeiro entende-se quer na ordem do
criar, quer na ordem do fazer. As provas
físicas dos teóricos setecentistas nacio-
nais são, de facto, provas físico-metafí-
sicas. Uma oposição entre razão e reli-
gião não faz sentido para Luís António
Verney (1713-1792), Fr. Cenáculo ou
Teodoro de Almeida (1722-1804), que
veem o poder de Deus na formação do Fr. Manuel do Cenáculo (1724-1814).
Universo, na sua conservação, movimen-
to e governo e em fazê-lo obedecer às
suas leis. Ao abrir o “livro do mundo”, referenciada à luz da metáfora do livro,
o físico não encontrará um simples de- mas com um significado religioso mais
terminismo, mas a sabedoria da ordem esbatido. Vandelli defende que o conhe-
natural, pelo que Fr. Cenáculo procurou cimento da natureza não deve ficar no
um compromisso tanto do lado da ciên- plano da instrução, mas ser completado
cia como do lado da teologia, estimulan- pelo plano da elevação, unindo a ciência
do uma filosofia religiosa denominada natural com a religião. Brotero assumiu
iluminismo católico. Entre nós, poucos uma posição mais moderada, que não o
autores se opõem a uma física teológica, levou a especular sobre a ordem natu-
sendo os mais críticos Verney e Almeida. ral; o significado religioso do Universo
Por seu lado, naturalistas como Domeni- confina-se para ele à persuasão clara da
co Vandelli (1735-1816) ou José Mayne existência de Deus. A síntese newtoniana
(m. 1792) afirmam a solidariedade entre apressou a morte de Deus na epistemo-
a ciência e a religião. logia e na metafísica.
Na história natural, marcou o panora- O percurso histórico da doutrina ma-
ma europeu a obra de Buffon, na visão terialista, marcado pela reação ao ter-
da natureza como “trône extérieur de la ramoto de Lisboa de 1755, que impres-
magnificence divine [trono exterior da sionou vivamente toda a Europa, e pela
magnificência divina]” (Id., 2002a, 360). mecânica celeste de Pierre-Simon Lapla-
Nesta linha encontramos autores como ce (1749-1827), que retirou Deus da ex-
Domingos Vandelli, Felix de Avelar Bro- plicação dos fenómenos naturais  –  por
tero, entre outros. Nos Estatutos da Uni- tudo explicar, mas nada permitir pre-
versidade de Coimbra de 1772, a natureza é ver  –, culminou em Auguste Comte

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1248 Antimaterialismo

(1798­‑1857). O alicerce fundamental da e aberta, para a qual a ciência poderia


sua teoria é a lei dos três estados – teo- ser o ponto de partida. Para Antero, a
lógico, metafísico, positivo –, que erige a conceção mecânica do Universo não
ciência positiva em modelo de raciona- está errada, mas é incompleta; constitui
lidade e relega a teologia e a metafísica tão-só a “região média do conhecimen-
para estádios mais atrasados de civiliza- to, entre o senso comum, de um lado,
ção e de inteligência. e o conhecimento metafísico do outro”
No panorama nacional desta corrente e só a filosofia aporta essa “compreensão
destacam-se os nomes de Teófilo Braga total” (PIMENTEL, 2004, 101).
(1843-1924) e de Júlio de Matos (1856­ As controvérsias suscitadas pela publi-
‑1922), que a perseguiram como pro- cação de A Origem das Espécies (1859) por
grama de regeneração do meio cultural Darwin também atravessaram Portugal.
português, ainda muito dominado pela Júlio de Matos é um dos nomes que mais
teologia e pela especulação filosófica. As se destacam na assunção da validade da
ciências foram consideradas estranhas à explicação evolucionista. Na sua His-
filosofia, que para alguns mais não pare- tória Natural Ilustrada, em seis volumes
cia ser do que uma especulação estéril. (sendo o vol. 1 de 1880), tomou partido
Como realçou o físico Henrique Teixei- a favor de ideias tão centrais como a da
ra Bastos (1861-1943), “o materialismo, luta pela sobrevivência, a seleção natural
bem longe de ser um estado filosófico e a hereditariedade dos caracteres ad-
mais avançado do que o positivismo, é o quiridos. Oliveira Martins (1845-1894),
último grau do estado metafísico, o grau em Elementos de Antropologia (1880), re-
da positividade incompleta”. E, “apoian- conheceu que ciência e religião são ra-
do‑se em Littré, […] reconhece uma afi- dicalmente heterogéneas, mas tal não
nidade entre o positivismo e o materialis- implica que a racionalidade científica
mo” (LUZ, 2004, 252). O objetivo deste exija a negação da religiosidade. Mito,
estado seria expurgar das explicações religião, poesia e metafísica respondem,
científicas a intervenção de entidades em seu entender, a interesses fundamen-
teológicas e religiosas que lhes poderiam tais do homem; o evolucionismo é válido
trazer questões destituídas de sentido e no plano dos factos, mas não é filosofi-
inacessíveis a qualquer investigação. camente satisfatório. O médico Miguel
O estilo da oposição dos teólogos da Bombarda (1851-1910) defendeu um
Univ. de Coimbra ao positivismo produ- Iluminismo materialista na forma de um
ziu um efeito contrário ao que preten- combate apostólico pelo progresso. Para
diam, acabando por preparar um ter- ele, a relação com a verdade não deve
reno fértil para a difusão em Portugal ser contemplativa, mas sim de militân-
do mesmo positivismo. “A dissolução cia ativa, revelando-se particularmente
teológica fora apressada pela educação intransigente a favor da redução dos fe-
metafísica e científica da universidade, nómenos psíquicos aos físicos. O estatu-
das politécnicas e das escolas de medici- to de exceção que o homem se atribui a
na” (Id., Ibid., 261). Mas há vozes discor- si mesmo, ao julgar-se detentor de uma
dantes deste positivismo, entre as quais alma que participa da essência de Deus,
sobressai a de Antero de Quental (1842­ é por este autor considerado fantasioso
‑1891), que marca claramente os limites e ilegítimo. Bombarda visava instaurar
da ciência no terreno dos factos, haven- uma ciência baseada em factos compro-
do que procurar uma síntese mais ampla vados objetivamente, mas numa linha de

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Antimaterialismo 1249

extrema simplificação, considerando despertar a metafísica e o antimaterialis-


que não há vestígios de vida psíquica mo. O filósofo Leonardo Coimbra (1883­
no sentido tomado usualmente, porque ‑1936) surgiu na época como o pensador
tudo se reduz a simples fenómenos físicos português com a obra mais significativa
e químicos. Trata-se de um materialismo no campo da filosofia das ciências, sendo,
redutor, fundamento de inteligibilidade. contudo, um antipositivista, uma vez que
No panorama português, foi Bombarda afirmou que a ciência “tem conteúdo real
quem mais longe levou o pensamento e é de ordem ideal” (FITAS et al., 2003,
do determinismo e do materialismo. 437) e “trata de noções e não de cousas”.
Antero demarcou-se fortemente deste Escarmentou-nos contra “o semiceticis-
determinismo de necessidade absoluta, mo dos pragmatistas” e o “universalismo
prestando tributo a um ideal de razão absolutista dos metafísicos cientistas” (Id.,
moral, em que leis naturais e sociais se Ibid., 443), estes últimos na sua constru-
transfiguram em leis finais do espírito. ção de um universo de matéria. Por isso
Antes do séc. xx, perpassaram na física partilhou com o filósofo francês Pierre
duas grandes sínteses, a do newtonianis- Duhem uma posição não mecanicista.
mo e a do eletromagnetismo. A primeira A génese do criacionismo de Leo-
assentava num espaço e num tempo ab- nardo Coimbra remonta a 1908-1909.
solutos, enquanto a segunda, ao renegar A sua criação refere-se a uma filosofia,
a interação instantânea à distância entre uma explicação integral do ser e do
os corpos, não pôde aceitar um espaço saber, e a um método de pensar, com
e tempo absolutos e desembocou na base em conceitos científicos e símbo-
Teoria da Relatividade. Paralelamente, los artísticos que, sem esgotarem o real,
a conceção mecanicista da natureza veio sempre o organizam sob as mais altas
a ser complementada pelo conceito de aspirações do espírito. A sua conceção
energia, uma ideia unificadora na física, reivindica­‑se de um cristianismo puro,
que foi axiomatizada no primeiro princí- de que o catolicismo é uma face dogmá-
pio da termodinâmica, a que se seguiu, tica e degradada. No pensamento leo-
alicerçado pela mecânica estatística, o nardino, nada na religião é ideal, mas
segundo princípio, que aportou o con- real. Para ele, a criação incorpora “um
ceito de entropia, ligado de perto à no- conceito de produção eficiente, criadora
ção de irreversibilidade, desconhecida ou inventiva, e uma conceção de ativi-
da conceção mecanicista. O químico-fí- dade como a própria nascente que dá
sico alemão Wilhelm Ostwald defendeu o ser às naturezas criadas e as sustenta”
que a única entidade real da natureza (PIMENTEL, 2003, 64). “O verdadeiro
era a energia e manifestou-se contra a problema de Deus ‘é o problema do
teoria da estrutura atómica da matéria. significado humano ou super-humano
O positivismo, no seu combate a conce- mas finito e do significado absoluto da
ções idealistas e espiritualistas, configu- moral’” (Id., Ibid., 70). A “razão experi-
rou-se como antimetafísico. mental” (Id., Ibid., 64 e 65) que constrói a
Concomitantemente com a Implanta- ciência, não é apenas a razão científica,
ção da República em Portugal, assistiu-se nem a razão pura ou a razão prática, nem
à implantação do positivismo no ensino mesmo a razão positiva de Auguste Com-
universitário e a um ataque ao espírito te, mas abrange a mais sublime das ex-
teológico do ensino do século anterior, periências humanas – a metafísica – que
positivismo esse que, como reação, veio lhe confere uma unidade intrínseca.

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1250 Antimaterialismo

Salazar (1889-1946), posição que par-


tilhou com o matemático Bento de Je-
sus Caraça (1901-1948). Abel Salazar
lutou pela necessidade urgente de um
novo modo de a filosofia portuguesa
combater a retórica oca. O neopositi-
vismo procurou superar duas linhas
filosóficas tidas como profundamente
divergentes: a dos racionalistas, com o
primado do conceito e do a priori sinté-
tico sobre a realidade sensível, e a dos
empiristas, com a absoluta proeminên-
cia da experiência na construção racio-
nal; procurava igualmente responder às
críticas a que vinham sendo sujeitos o
positivismo e o materialismo e comba-
ter a forma como o positivismo se tinha
deixado contaminar por elementos
Leonardo Coimbra, de Eduardo Malta (1919). metafísicos.
Na linha de um materialismo dialético
Ao criacionismo, Leonardo opõe o coi- figura Egídio Namorado (1920­‑1977),
sismo, que é a tendência para o imo- que sujeitou algumas teses do neopositi-
bilismo, para a queda nos momentos vismo a uma crítica, designadamente na
inferiores da dialética. No vício coisista dependência do conhecimento em rela-
teimaram as inúmeras formas de mate- ção ao ambiente social, económico e téc-
rialismo (como o energicismo, o sensis- nico. O princípio da verificação da Escola
mo e o naturalismo), o positivismo de de Viena permitia distinguir proposições
Comte e seus seguidores, o criticismo com sentido de proposições sem sentido.
de Kant, o idealismo de Fichte e Hegel, Namorado contra-argumentou dizendo
o vitalismo de Bergson e outros movi- que há proposições com sentido e que
mentos filosóficos. O criacionismo par- não são verificáveis, pelo que o critério
te da “descoberta da irredutível síntese não é geral. Mais: recusou-se a aceitar que
de pensamento, em toda a realidade o pensamento científico tivesse um carác-
implicada” (Id., Ibid., 82), defende o ter tautológico.
enraizamento carnal do cogito e toda a Vitorino Magalhães Godinho (1918­
reabilitação do sensível, gnosiológica e ‑2011) também elaborou uma tese con-
ontológica daí decorrente. O seu pen- tendo críticas ao positivismo. Para este
samento filosófico está contra a filoso- autor, a razão não é algo “que se asseme-
fia minimalista da época, de uma razão lhe a uma ‘entidade transcendente ou
estática, ao procurar apelar ao sentido uma ficção lógica’”, mas um “percurso
maior da filosofia, mediante o pensar a racional que tem a ver com a evolução
totalidade do universo humano, de que da experiência concreta da sociedade hu-
a ciência é parte, mas sem descurar pen- mana” (FITAS et al., 2003, 469). Pugnou
sar a existência, o ser e o Deus. por uma iluminação de conexão entre
Outro eminente intelectual materialis- ciência, filosofia e história da ciência: de
ta e antimetafísico foi o médico Abel uma filosofia que não fosse escolástica,

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Antimaterialismo 1251

estéril ou retórica desordenada, de uma qualquer mecanicismo, pois a célula no


história que visse ideias e não datas e seu autocaminhar para o mais instável e
de uma ciência viva e profundamente complexo, ao contrário de um fenóme-
humana. José Luís Rodrigues Martins no físico, e.g. um decaimento radioativo,
(1914-1994) veio defender o papel da requer “um princípio formal imanente e
história da ciência e da filosofia da ciên- superior que lhes dê explicação suficien-
cia no ensino universitário, para forne- te” (Id., Ibid., 521).
cer “uma segura perspectiva de conjunto Raul Proença (1884-1941) defendeu
dos conhecimentos adquiridos, transfor- que a filosofia positivista não se esgota
mando-os em mais do que um triste caos na sua dimensão estritamente intelectua-
de factos e leis” (Id., Ibid., 490), no que lista, antes deve procurar “harmonizar a
foi pioneiro em Portugal. Assumiu uma vida pensante com a vida sentimental e
posição crítica em relação ao neoposi- a vida ativa, traduzindo-se numa conduta
tivismo e à menorização do papel dos definida com intuito social” (REIS, 2003,
métodos indutivos no progresso da ciên- 132). O vitalismo é a doutrina segundo a
cia, aproximando-se do pensamento do qual os seres vivos manifestam uma força
francês Gaston Bachelard ao perspetivar particular, que é irredutível à físico-quími-
a ciência como um acontecimento es- ca e que dá origem aos fenómenos vitais.
sencialmente histórico que avança por O pensamento filosófico de Proença per-
ruturas epistemológicas sucessivas. Ro- corre uma ética vitalista para superar um
drigues Martins obstou a qualquer envie- positivismo demasiado intelectualizante
samento da física moderna em prol de do dever e dos valores morais, procuran-
projeções espirituais ou místicas, situa- do “pôr de acordo a Vida com a Razão”
das bem para lá do mundo físico. (Id., Ibid., 135). Ao demarcar-se de cor-
O sacerdote jesuíta Manuel Antunes rentes filosóficas irracionalistas, demar-
(1918-1985) reconheceu, no panora- ca-se também do puro racionalismo, da
ma intelectual da primeira metade do razão positivista e científica, conseguindo
séc. xx, a existência de um duplo im- superar o estreito materialismo positivista
perialismo, o da filosofia que se quer por uma via ética, que equilibra as fun-
manter e o da ciência que pretende ções intelectiva, afetiva e volitiva do ho-
impor-se. E outro Jesuíta, Luís Archer mem. Alcança um vitalismo espiritualista
(1926-2011), bioquímico especialista em e mesmo religioso, mas acima das crenças
genética, afirmou que, “na realidade, o dogmáticas. Proença assumiu a suprema-
espírito humano é uno, e é inútil querer cia ontológica do espírito sobre a maté-
separar em absoluto a ciência no fieri da ria, indo ao ponto de afirmar: “Sentimos
sua informação e aspiração metafísica”, religiosa toda a ação que se destina a um
pelo que, na linha de Bachelard, defen- fim que nos ultrapassa e que nos obriga a
deu um humanismo científico, no qual a ultrapassar-nos a nós mesmos” (Id., Ibid.,
filosofia se configura com a “última sín- 136). Não obstante defender uma ontolo-
tese” do pensamento humano de que a gia espiritualista, a sua posição metafísica
ciência é “aspeto parcelar”. Para ele, o é frontalmente ateísta, “porque a ausên-
conhecimento científico em biologia, cia da fé é o que exige ainda a maior fé
ao arrancar do esforço imaginativo e ar- no valor incomensurável da espiritualida-
rojado das hipóteses de trabalho, com de” (Id., Ibid., 142). É no combate doutri-
toda a sua subjetividade, não obriga a nário contra o Integralismo Lusitano de
que as suas explicações se reduzam a um António Sardinha e dos seus discípulos

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que Proença melhor fundamenta a su- tou uma reação à eliminação da metafí-
perioridade do ideal democrático e dos sica. Nesta vertente de pensamento, mas
valores da liberdade e igualdade em que numa linha que vai para além da raiz gre-
aquele assenta. O Integralismo Lusitano ga da filosofia para mergulhar na mun-
era um movimento anti-iluminista, anti- dividência cristã da Europa, os trabalhos
democrático, antiliberal, antirracionalis- do sacerdote jesuíta Júlio Moreira Fraga-
ta e antimaterialista (&Anti-iluminismo, ta consideram o ente na sua existência e
&Antidemocratismo, &Antiliberalismo, transcendência, e não apenas reduzido
&Antirracionalismo), com um primado ao fenómeno puro da consciência. Na
político. finitude humana, o aparecimento do fe-
Nos tempos de António Sérgio (1883­ nómeno da consciência exige um sujeito
‑1969), o positivismo revelava-se já pou- cognoscente na sua existência natural.
co sedutor, e novas vias se abriam com Na obra de Júlio Fragata (1920-1985) e
o saudosismo, o criacionismo, o integra- de outros filósofos, como Gustavo Fraga
lismo ou o humanismo de feição repu- (1922-2003) e Alexandre Morujão (1922­
blicana. O racionalismo de Sérgio tinha ‑2009), a fenomenologia foi levada ao
uma limpidez cartesiana, pois ia ao en- ponto culminante de um debate sobre o
contro de Platão na visão de que só será presente, sobre os fundamentos e desti-
filósofo quem for geómetra. Em defesa no da humanidade europeia e da cultura
do seu intelectualismo, Sérgio rejeitou ocidental.
o positivismo e o anti-intelectualismo,
mas também o dilema do seu tempo
entre o catolicismo mais ortodoxo e o Bibliog.: impressa: Alves, Pedro M. S., “A fe-
marxismo, encarados ambos como ex- nomenologia em Portugal”, in CALAFATE,
pressão do dogmatismo. Nele, o percur- Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico
so histórico da ciência era a progressiva Português, vol. v, t. 1, Lisboa, Círculo de Lei-
tores, 2003, pp. 345-390; Calafate, Pedro,
passagem do imediato da perceção para
“A aliança entre a física experimental e a teo-
o fundo do pensamento. O seu modelo logia natural”, in CALAFATE, Pedro (dir.), His-
de racionalidade assentava nos proces- tória do Pensamento Filosófico Português, vol.  iii,
sos de relacionação matemática, o que Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, pp.  317­
lhe determinou o afastamento tanto do ‑358; Id., “A aliança entre a história natural e a
intelectualismo como do primado da in- teologia natural”, in CALAFATE, Pedro (dir.),
tuição sensível. O seu pensamento confi- História do Pensamento Filosófico Português, vol. iii,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2002a, pp.  359­
gurava-se como um pensamento de cria-
‑368; Id., “Ciência e religião”, in CALAFATE,
ção, de um intelecto ativo, e não como Pedro  (dir.), História do Pensamento Filosófico
um pensamento de síntese. O que sem- Português, vol. iii, Lisboa, Círculo de Leitores,
pre recusou foi o apelo a uma singulari- 2002b, pp. 305-316; Id., “O conceito de filo-
dade portuguesa que impedia o diálogo sofia: o triunfo da física e a crítica ao ‘espí-
com o racionalismo luminoso. rito de sistema’”, in CALAFATE, Pedro (dir.),
A fenomenologia husserliana é a cor- História do Pensamento Filosófico Português, vol. iii,
rente filosófica que se propõe, através Lisboa, Círculo de Leitores, 2002c, pp.  139­
‑157; Id., “A  inserção do Homem na natu-
da descrição das vivências da consciência
reza”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História do
pura, fora de qualquer construção con- Pensamento Filosófico Português, vol. iii, Lisboa,
ceptual, descobrir as estruturas transcen- Círculo de Leitores, 2002d, pp. 401-422; Id.,
dentes da consciência, a sua génese e a “O idealismo racionalista e crítico de António
sua essência. A fenomenologia represen- Sérgio”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História

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Antimecanicismo 1253

do Pensamento Filosófico Português, vol. v, t. 1,


Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, pp.  103­
Antimecanicismo
‑130; Cardoso, Adelino, “Filosofia e his-
tória das ciências: a inteligibilidade científica
no Portugal oitocentista”, in CALAFATE, Pe-
dro  (dir.), História do Pensamento Filosófico Por-
tuguês, vol. iv, t. 2, Lisboa, Círculo de Leitores,
2004, pp.  13-41; Fitas, Augusto J. S. et al.,
“A filosofia da ciência no Portugal do século
xx”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História do
Pensamento Filosófico Português, vol. v, t. 2, Lis-
D ois modos de explicação científica
vêm dos gregos – uma civilização
fundamentalmente intelectual. Um, do
boa, Círculo de Leitores, 2003, pp. 421-582; domínio da astronomia, é a explicação
Luz, José Luís Brandão da, “A propagação do
geométrica; o outro, da analogia com um
positivismo em Portugal”, in CALAFATE, Pe-
dro  (dir.), História do Pensamento Filosófico Por- organismo vivo, é a explicação biológica.
tuguês, vol. iv, t. 1, Lisboa, Círculo de Leitores, Enquanto a bússola parecia funcionar por
2004, pp. 239-261; Pimentel, Manuel Cân- algum poder misterioso e uma harmonia
dido, “A  filosofia criacionista de Leonardo oculta com a Terra, a maquinaria, tal como
Coimbra”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História um arado, um relógio ou uma prensa de
do Pensamento Filosófico Português, vol. v, t. 1, caracteres móveis, via-se que funcionava
Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, pp. 55-102;
através de puxões e empurrões. Durante
Id., “O idealismo espiritualista de Antero de
Quental”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História
os sécs. xvi e xvii este modo de explica-
do Pensamento Filosófico Português, vol. iv, t. 1, ção mecânica passou a ser considerado o
Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, pp. 93­‑129; modo ideal de explicação científica, ao
Reis, António, “Raul Proença: uma ética vi- ser potenciado pela geometria analítica
talista e espiritualista de liberdade”, in CA- de Descartes, que constituiu o início da
LAFATE, Pedro (dir.), História do Pensamento matemática moderna. Para compreender
Filosófico Português, vol. v, t. 1, Lisboa, Círculo o funcionamento de um maquinismo, tí-
de Leitores, 2003, pp. 131-152; digital: CAR-
nhamos de o dividir nas suas partes – aná-
VALHO, Paulo Archer de, “Da nação portu-
guesa (1914-1938) ao Integralismo Lusitano lise –, voltar a juntá-las – síntese –, e pôr de
(1932-34): a insurreição dos intelectuais”, novo a máquina a funcionar.
s.d.: http://docplayer.com.br/14518550-Da- O mecanicismo é uma doutrina filosó-
nacao-portuguesa-1914-1938-ao-1ntegral1s- fica nascida no séc. xvii que afirma como
mo-lusitano-1932-34-a-insurreicao-dos-inte- única forma de causalidade a influência
lectuais.html (acedido a 3 jul. 2016). física entre as entidades que constituem
Sebastião Formosinho o mundo material. As interações mecâ-
nicas seriam condição necessária e sufi-
ciente para explicar o funcionamento
dos fenómenos do mundo. A ontologia
mecanicista cartesiana vê o mundo como
uma estrutura comparável à de uma má-
quina. O  relógio foi, nessa época e du-
rante bastante tempo, o protótipo desse
mecanismo. Uma explicação mecânica
pretende alcançar uma certa completude
e simplicidade. Esta explicação diz, e.g.,
como funciona um relógio e as coisas em
geral, mas nada diz sobre quem o fez nem

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1254 Antimecanicismo

sobre como foi desenhado. Decorre que a interiorização de metodologias alicer-


este tipo de explicação mecânica não é çadas na experiência e a aquisição de há-
compatível com explicações teleológicas, bitos de precisão, a intolerância político­
relativas a uma finalidade. ‑religiosa dos tempos levou a uma perda
No contexto de uma cultura escolástica, intelectual. Mesmo o filósofo Pedro Mar-
segundo a qual os corpos são constituídos galho (1474­‑1556), apesar de convencido
por matéria e forma, as reações antime- da prioridade do saber da física para es-
canicistas podem revelar-se de diferentes clarecer toda a realidade criada e as ma-
modos: no combate pela legitimidade das nifestações de Deus, movia-se no paradig-
formas substanciais ou de outras entida- ma tradicional de um mundo de formas
des não materiais; na oposição à visão de qualitativas, se bem que a geometria e a
que um organismo se explica com base matemática já entrassem na análise do seu
na ideia de uma máquina e de que a ex- mapa mundi, mas mais como instrumento
plicação científica tem como base apenas de medida do que como paradigma da
as leis físicas do movimento; na oposição interpretação da realidade. O médico e
à ideia de que o tempo cronológico é úni- filósofo Francisco Sanches (1550-1622),
co e linear, contrastando-a com a ideia do que foi coevo de Francis Bacon e que
tempo duração, do tempo de “criação com ele apresenta diversas relações nos
contínua e de um brotar ininterrupto terrenos da filosofia, entende a natureza
de novidades” (CARVALHO, 2012, 103), de um modo equívoco, umas vezes num
como fez o filósofo francês Henri Berg- sentido físico, outras num sentido meta-
son. Mas, no contexto da filosofia dos físico, como aliás acontecia nas escolas do
sécs.  xviii e xix em Portugal, inserida seu tempo. Neste contexto, no nosso país
num ambiente cultural profundamente não se poderia afirmar o conceito de me-
católico, o antimecanicismo é muitas ve- canicismo, não podendo por isso ocorrer
zes um antideísmo (&Antideísmo) e um quaisquer reações de antimecanicismo.
antimaterialismo (&Antimaterialismo). O Iluminismo em Portugal não teve iní-
O mecanicismo como doutrina filosófi- cio com o marquês de Pombal, pois já o
ca caracterizou a física como a mais impor- Rei D. João V soubera criar condições bási-
tante disciplina científica no panorama cas para uma mudança, que o pombalismo
das Luzes. Tal como os vários iluminismos assumiria em plenitude, culminando com
europeus, também o português procurou a reforma da Univ. de Coimbra, em 1772.
ter um carácter omnicompreensivo e mul- A déc. de 40 do séc. xviii, ainda no pe-
tidisciplinar, tentando conciliar as filoso- ríodo joanino, ficará assinalada por um
fias de René Descartes e de John Locke, dos textos mais significativos do Iluminis-
mas contrapondo sistematicamente a luz mo em Portugal, o Verdadeiro Método de
e as trevas perante o “tribunal da razão” Estudar (1746), de Luís António Verney,
(CALAFATE, 2002d, 12). Luís Cabral “uma obra intencionalmente polémica,
Moncada caracteriza este panorama na- onde o autor passa em revista os princi-
cional como iluminismo católico, oposto pais ‘defeitos’ e ‘enfermidades’ da cultura
ao deísmo e ao materialismo. portuguesa, propondo uma abertura que
Apesar de nos sécs. xvi e xvii se ter a seu ver a filosofia escolástica imperante
assistido em Portugal a uma atividade fi- não estaria em condições de levar a cabo”
losófica de considerável amplitude, e de (Id., Ibid.). Esta obra, atribuída na época
os Descobrimentos terem aberto janelas a um anónimo religioso barbadinho de
para a modernidade vindoura, mediante uma congregação italiana (era, de facto,

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Antimecanicismo 1255

um pseudónimo de Verney), assume clara- dia Voltaire, toda a variedade da criação


mente uma posição antiescolástica (&An- se considera em plano idêntico, pelo que
tiescolasticismo); mas também recusa o para Deus não existe diferença entre um
racionalismo científico metafísico, em es- homem e uma formiga. António Ribeiro
pecial o cartesiano, não obstante a grande dos Santos (1745-1818) é outro crítico do
veneração que demonstra pelo filósofo deísmo voltairiano ao afirmar que “Deus
que derrubou o aristotelismo escolástico não existe em eterna solidão” (Id., Ibid.,
no seio da física. Contudo, na linha de Lo- 356); para este autor, o mundo é uma má-
cke, assume uma posição contrária a Des- quina que, para se conservar, necessita do
cartes no que concerne às ideias inatas, à cuidado permanente do seu autor.
despromoção do sensível e ao papel mar- No panorama português, outro eminen-
ginal atribuído à experiência, perante o te crítico do sistema cartesiano foi Antó-
primado da dedução. Ergue-se igualmen- nio Soares Barbosa (1734-1801) que, sem
te contra o anseio filosófico de encerrar deixar de elogiar a Descartes o contributo
a verdade no interior do sistema que Des- na destruição do aristotelismo, lhe aponta
cartes e outros filósofos idealizaram: “Este o defeito de querer explicar toda a natu-
é o sistema moderno: não ter sistema, e reza. Soares Barbosa escreveu: “O univer-
só assim é que se tem descoberto alguma so é um enigma no qual só percebemos
verdade” (Id., 2002b, 140). Na Carta Déci- algumas sílabas que ainda não fazem
ma, dedicada à física, Verney, num espírito sentido”. Aponta ainda a este eminente
de estrangeirado, critica o atraso nacional filósofo francês, “a falsa desconfiança dos
por o país seguir ainda uma física aristoté- sentidos” e ter começado por explicar o
lica, qualitativa e livresca, não apoiada no universo pelas causas em vez de o fazer
estudo da natureza. Para o mecanicismo pelos efeitos, bem como ter começado pe-
de Verney, todos os fenómenos naturais las ideias abstratas em vez de o fazer pelas
se explicam pelo jogo de forças dos cor- ideias simples; em suma, tinha começado
pos e respetivo movimento, mas trata-se por explicar o universo a partir de cima,
de um mecanicismo mitigado, pois para de um ponto arquimediano, diríamos, em
ele, tal como para os autores dos Estatutos vez de começar a partir de baixo, a partir
da Universidade de Coimbra, de 1772, o do alicerce da física, como fez Newton (Id.,
combate ao deísmo e ao materialismo é 2002b, 144). Numa clara adesão ao sensis-
uma peça fundamental da apologética do mo de Locke, Soares Barbosa ergueu-se
cristianismo. Em Verney encontramos a igualmente contra o “calar dos sentidos”
posição extrema dos pensadores nacionais em Descartes, pois são os sentidos que per-
da época a favor do mecanicismo. mitem a comunicação do homem com o
O Oratoriano Teodoro de Almeida universo, e a sua ausência num qualquer
(1722-1804) também trava combate contra maquinismo.
o deísmo de um Deus criador mas sem cul- Contra os exageros mecanicistas se er-
to nem dogma, mediante uma visão estéti- gueram António Nunes Ribeiro Sanches
ca do sensível e do inteligível em ordem a (1699-1783) e, como foi referido, Teodo-
uma valorização da dignidade do homem e ro de Almeida, que procuraram um prin-
de um apelo estético “no intuito de elevar o cípio imaterial e espiritual para explicar
homem até à fonte pura e imaterial de toda a vida e os fenómenos dos organismos,
a beleza” (Id., 2002, 340). No deísmo de na esteira do médico holandês Herman
um mecanicismo extremado, para o qual Boerhaave. Entre nós, o primeiro a er-
tudo é matéria e movimento, como defen- guer a pena contra o mecanicismo foi José

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1256 Antimecanicismo

Rodrigues de Abreu (1682-1752?), fazen-


do-o na esteira da teoria vitalista do quími-
co alemão Georg Ernst Stahl, no que foi
secundado por Martinho de Mendonça
no prefácio que escreveu para Historiolo-
gia Médica (1733), obra de Rodrigues de
Abreu. Este conjunto de autores recusava­
‑se a confundir os movimentos mecânicos
com movimentos vitais: “o corpo vivo e a
máquina são contrários”. “Para Rodrigues
de Abreu, os mecanicistas ‘apeam a alma
do título de governadora do corpo [...] e
semelham todas as operações humanas às
de um relógio ou um moinho’, aspeto que
lhe merece repúdio por se lhe afigurar
insuficiente. Pelo contrário, é a alma ra-
cional, tal como em Stahl, que é causa das
ações do corpo” (Id., 2002c, 162). Havia,
pois, que procurar um princípio vivifican-
te, distinto da matéria e do movimento,
que é a ”alma racional”.
Também Bento José de Sousa Farinha Capa de Historiologia Medica (1739),
(1740-1820), em obra manuscrita conser- de José Rodrigues de Abreu.

vada na Biblioteca do Palácio da Ajuda,


nega a suficiência da explicação puramen- to e harmonia ao universo. Para este autor,
te mecânica da natureza e o determinismo uma criatura corporal não se reduz à sua
físico sem uma “causa infinitamente sábia concretude corporal, antes deve ser enten-
e poderosa” que confira ordem, movimen- dida como expressão de um Deus criador.
Já nos começos do séc. xx, o saudosis-
António Ribeiro Sanches (1699-1783). mo foi uma corrente de pensamento ini-
ciada por Teixeira de Pascoaes. A saudade
é entendida como “o sangue espiritual da
raça”, um “sentimento-ideia”, uma “emoção
refletida”. “Ligado a ideia de saudade ao
autonomismo quinhentista e ao processo
de resistência sebastianista, o movimento,
que defendia uma democracia religiosa
e rural, foi injustamente acusado de pas-
sadista, quando era um ativismo vitalis-
ta, anti-intelectualista e antimecanicista,
conforme assinala Pinharanda Gomes”
(MALTEZ, Respublica, s.d.). Entre os inte-
lectuais desta corrente figuram Leonardo
Coimbra, Jaime Cortesão e Afonso Lopes
Vieira. Mas as ideias fertilizam-se mutua-
mente e vão-se diluindo em doutrinas

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Antimedievalismo 1257

mais abrangentes. Assim se verificou


com o mecanicismo, que foi imergindo
Antimedievalismo
noutros sistemas de doutrinas filosóficas.
Outros pensadores portugueses, entre os
sécs. xviii e a primeira metade do xx, des-
de Fr. Manuel do Cenáculo a Abel Salazar,
assumiram igualmente posições antime-
canicistas mas, num sentido mais abran-
gente, essencialmente de antimaterialis-
mo (&Antimaterialismo).
O conceito remete-nos para o conjun-
to das perceções negativas acerca
da Idade Média, referentes aos mais di-
versos domínios da vida humana duran-
te esse tempo, isoladamente ou no seu
conjunto: a política, a religião, o direito,
o pensamento filosófico, a arte, o quoti-
Bibliog.: impressa: Calafate, Pedro, “A alian-
ça entre a física experimental e a teologia na- diano, a técnica, entre outros.
tural”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História do A ideia de uma Idade Média está, à par-
Pensamento Filosófico Português, vol. iii, Lisboa, tida, investida de uma conotação negati-
Círculo de Leitores, 2002, pp. 317-358; Id., va: é um tempo intermédio, entre a Anti-
“O conceito de filosofia: o recuo da metafí- guidade e o Renascimento ou o começo
sica”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História do da Modernidade, i.e., um tempo que não
Pensamento Filosófico Português, vol. iii, Lisboa, é o antigo nem o novo. Ele abrange cer-
Círculo de Leitores, 2002a, pp. 125-137; Id.,
ca de 10 séculos, que vão da queda do
“O conceito de filosofia: o triunfo da física e
a crítica ao ‘espírito de sistema’”, in CALAFA- Império Romano (476) ao começo da
TE, Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico Modernidade, situada em diferentes da-
Português, vol. iii, Lisboa, Círculo de Leitores, tas, consoante os autores e os contextos
2002b, pp. 139-157; Id., “Filosofia e medi- geográficos e históricos em questão: em
cina: iatromecanicismo, vitalismo e animis- 1453, com a tomada de Constantinopla
mo”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História do pelo Império Otomano; em 1492, com a
Pensamento Filosófico Português, vol. iii, Lisboa, chegada de Colombo à América ou com
Círculo de Leitores, 2002c, pp. 159-167; Id.,
a conquista de Granada pelos Reis Católi-
“Introdução”, in CALAFATE, Pedro (dir.), His-
tória do Pensamento Filosófico Português, vol.  iii,
cos; em 1517, com a divulgação, por Lute-
Lisboa, Círculo de Leitores, 2002d, pp. 11­ ro, das 95 teses de Wittenberg.
‑20; CARVALHO, Magda Costa, “A intuição A conceção deste tempo intermédio,
bergsoniana de duração”, Kairos, n.º 4, 2012, no contexto de uma divisão tripartida da
pp.  87­‑104; Gonçalves, Joaquim Cerquei- história (Antiguidade, Idade Média, Mo-
ra, “A física em Pedro Margalho”, in CALAFA- dernidade) regista-se, pela primeira vez,
TE, Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico na Historia Florentini Populi [História do
Português, vol. ii, Lisboa, Círculo de Leitores,
Povo Florentino], de Leonardo Bruni, con-
2002, pp. 387-398; Silva, Lúcio Craveiro
cluída em 1442. Com efeito, o desenvolvi-
da, “Francisco Sanches”, in CALAFATE, Pe-
dro (dir.), História do Pensamento Filosófico Portu- mento da cidade italiana nos começos do
guês, vol. ii, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, séc. xiv levara o cronista à afirmação de
pp. 429-452; digital: Maltez, José Adelino, que vivia num novo tempo.
“Saudosismo”, Respublica, s.d.: http://maltez. Esta conceção tripartida seria, depois,
info/respublica/topicos/aaletras/saudosis- popularizada por autores dos sécs. xvii e
mo.htm (acedido a 28 nov. 2013). xviii, nomeadamente por Christoph Ce-
Sebastião Formosinho llarius, na sua Historia Universalis (1702),

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1258 Antimedievalismo

na sequência de um conjunto de refle-


xões que, em certa medida, já atribuíam
um estatuto negativo ao chamado tempo
médio.
O uso da expressão “idade das trevas”,
para designar o período medieval, re-
montará a Petrarca, que, em dois passos
principalmente, se refere aos obscuros
tempos passados e à claridade dos tem-
pos que viriam. Porém, a primeira alusão
ao período intermédio, ou Idade Média,
enquanto idade das trevas regista-se num
trecho dos Annales Ecclesiastici (1602) de
César Barónio, onde o cronista se refere
a um tempo particularmente conturbado
da história eclesiástica, entre os sécs. x
e xi. Até então, a ideia da Idade Média
como uma idade obscura ocorria em di-
versos autores, que se referiam a fases de-
terminadas do tempo medieval sobre as
quais escasseavam as fontes históricas ou
em que se registara intensa pluviosidade. Francesco Petrarca (1304-1374).
O caminho percorrido entre estas per-
ceções circunstanciais, que atribuem um
carácter negativo a períodos circunscritos constituído ao longo de toda a Moderni-
dentro da hoje chamada Idade Média, e dade nos meios eruditos, com particular
a extrapolação ou a extensão desta nega- intensidade e intenção entre os autores
tividade aos 10 séculos de história que ela do Iluminismo. Na segunda metade do
abrange é longo. Em termos muito bre- séc. xix e começos do séc. xx, com o
ves, os seus passos acompanham os suces- impulso de ideais como o jacobinismo,
sivos projetos da Modernidade e as narra- o anticlericalismo e o positivismo, estas
tivas que neles foram sendo construídas narrativas não só terão sido compiladas
acerca do progresso ou desenvolvimento, sob a forma de tese ou doutrina historio-
da ilustração ou iluminação, e da pacifi- gráfica, como se terão disseminado poste-
cação e melhoria das condições de vida riormente pelos manuais escolares, pela
da humanidade. literatura e, mais tarde, pelo cinema – em
Diferentes autores que, ao longo do suma, por todos os dispositivos de divul-
séc. xx, procuraram desconstruir esta gação histórica.
imagem negativa dos tempos e dos mo- Os eruditos da Modernidade tardia
dos de vida medievais denunciaram a sua teriam, pois, identificado na conjuntura
vigência tanto no meio académico como medieval a vigência de um conjunto de fa-
no público em geral (Umberto Eco, Idade tores negativos dos quais ainda existiriam
Média; Régine Pernoud, Luz sobre a Idade resíduos na Modernidade e que deveriam
Média; Edward Grant, God and Reason). ser superados. Entre ele constam: o siste-
De acordo com esta perspetiva, as narrati- ma político-administrativo feudal, que
vas e os tópicos antimedievalistas ter-se-ão implicava uma quase ausência do Estado

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Antimedievalismo 1259

em relação aos cidadãos; a adulteração a ser desempenhada pela Idade Média e


do direito romano por um direito arbi- pelos espaços rurais.
trário, estabelecido segundo os interes- Com efeito, só na segunda metade do
ses dos mais poderosos; a hegemonia da séc. xix terá havido condições para a
religião e o obscurantismo, que travavam tese antimedievalista se consolidar plena-
o avanço técnico-científico e qualquer mente em Portugal, associada à discussão
compromisso da religião com o progres- política entre posições progressistas e
so material; a escolástica e a submissão conservadoras, com particular incidên-
da filosofia à teologia; um quotidiano cia sobre a questão relativa ao peso que a
violento e escassas noções de civilidade, Igreja Católica deveria ou não exercer na
que distanciavam o humano medieval do vida do país.
cosmopolita moderno. O volume A Idade Média na História da
Nessa medida, as narrativas antimedie- Civilização, ainda que só tenha vindo a ser
valistas talvez nos digam mais sobre os publicado em 1925, constitui um impor-
problemas e os projetos da Modernidade tante testemunho acerca da forma como
(e até mesmo da chamada pós-Moderni- o tempo medieval era perspetivado por
dade), sobre as suas esperanças e as suas alguma intelectualidade progressista por-
frustrações, do que sobre a Idade Média. tuguesa de Oitocentos. Nele se reúnem
Com efeito, nos diferentes contextos as peças de uma polémica suscitada por
europeus, a crítica depreciadora da Ida- considerações tecidas por Oliveira Mar-
de Média parece ter sido proporcional tins na sua Teoria do Socialismo, de acordo
à exigência e ao inconformismo que os com as quais a Idade Média constituía
intelectuais da Modernidade demonstra- um momento de “retrocesso geral e atro-
ram relativamente à cultura (científica, fia dos elementos evolutivos da civiliza-
religiosa, artística, etc.) e às condições de ção” (MARTINS et al., 2006, 20). A tese
vida do seu tempo. de Oliveira Martins contemplava diversos
Porém, a associação de elementos ne- domínios da vida humana durante o pe-
gativos à Idade Média implicava não só ríodo medieval. Segundo o autor, a conta-
uma completa interiorização dos ideais minação bárbara da civilização europeia
iluministas de civilização e de progresso, estaria na origem de um amplo movimen-
como também da conceção tripartida da to de deturpação do legado da Antigui-
história. Por esse motivo, quando inte- dade e do cristianismo: o autoritarismo
lectuais do iluminismo português, como feudal sobrepusera-se ao municipalismo
Teodoro de Almeida e Ribeiro Sanches, romano; o direito romano fora deturpa-
denunciam o atraso filosófico, científico do; a teologia sobrepusera-se à filosofia;
e cultural do reino, mesmo que tenham a Igreja associara-se ao império e a místi-
em vista ideais de inovação e de progres- ca substituíra o espírito comunitário das
so, as suas críticas dirigem-se, ainda e comunidades cristãs primitivas. Por fim,
expressamente, a práticas e instituições Oliveira Martins aponta ainda dois fato-
do seu tempo, e à diferença que estas re- res negativos introduzidos na civilização
presentavam relativamente àquelas que europeia pelo elemento bárbaro: a exal-
vigoravam noutros reinos da Europa. As- tação do papel da mulher na sociedade
sim, é provável que, para os iluministas e a primazia dada à contemplação sobre
portugueses, a situação do reino tenha o trabalho.
desempenhado a função discursiva que, Antero de Quental participa desta po-
noutras paragens da Europa, começava lémica enquanto elemento moderado.

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1260 Antimedievalismo

O legado de Herculano, que tantas e tão lítico. De alguma forma, a contenda en-
profícuas reflexões deixara em prol de tre Martins e Vilhena dizia respeito não
uma revalorização da Idade Média por- só ao valor que deveria ser atribuído ao
tuguesa, bem como o balanço extrema- papel da Igreja Católica nos rumos da ci-
mente negativo que Quental demonstrou vilização, mas também à forma como se
fazer, noutros textos, do Antigo Regime dariam as transformações ao longo desse
português, terão contribuído certamente processo: em transições lentas, que obser-
para este seu posicionamento. Inspiran- vassem uma linha tradicional de conhe-
do-se no que conhecia de Hegel e das cimentos, onde a Igreja desempenharia,
teorias evolucionistas de Darwin e Hae- certamente, um lugar preponderante; ou
ckel, Quental afirma que a Idade Média em revoluções ou quebras abruptas relati-
devia, pois, ser vista como um momento vamente a paradigmas que atrasavam esta
de “crise orgânica” (Id., Ibid., 22) ou de longa caminhada.
estacionamento, após um período de rá- Ao longo do séc. xx, a crítica às narra-
pido desenvolvimento e de solidariedade tivas antimedievalistas perdeu boa parte
das forças do espírito, como teria sido a do seu peso ideológico. Diversos histo-
Antiguidade. Assim, elementos medievais riadores – dos quais se destacam, entre
negativos, e.g., o misticismo, teriam sido outros excelentes exemplos, Georges
males necessários, para que a civilização Duby, Jacques Le Goff e, em Portugal,
se recompusesse e recuperasse forças José Mattoso  – contrariaram estas nar-
para levar a cabo todas as transformações rativas e colocaram em evidência o seu
posteriores. carácter generalizador e impreciso, atra-
Por seu turno, em confronto direto vés de contributos que promovem uma
com a posição de Oliveira Martins, Jú- melhor compreensão da vida na Idade
lio de Vilhena apresenta a Idade Média Média e assinalam inúmeros elementos
como uma “época de elaboração” (Id., de continuidade entre a época média e
Ibid., 42) que prepara o mundo moder- as épocas que a delimitam. A sua crítica
no, sublinhando elementos de continui- ao antimedievalismo é assim, de certo
dade entre a Antiguidade, o tempo me- modo, indireta e tem um alcance sobre-
dieval e a Modernidade. Afirmando-se tudo metodológico.
simultaneamente católico e progressista, Todavia, outros autores do séc. xx, ain-
Vilhena sustenta a sua tese em avanços da que muito tenham beneficiado com
alcançados pela filosofia católica do pe- estes avanços da historiografia, não se fur-
ríodo medieval, dos quais seriam exem- taram a explorar as extensões ideológicas
plo as conceções da origem popular do do debate acerca da Idade Média. Destes
poder do soberano e o direito dos povos referiremos dois casos particularmente
à resistência contra a tirania, tal como se apelativos: Régine Pernoud e Umberto
encontrariam formulados em Agostinho Eco.
e em Tomás de Aquino. O ponto de partida das reflexões de
Travada entre intelectuais da esquer- Régine Pernoud parece ser, precisamen-
da portuguesa da segunda metade do te, o da inversão e contestação histórica
séc. xix, esta polémica permite-nos com- e ideológica das narrativas antimedieva-
preender que, longe de ser perspetivada listas. Sugerindo um movimento de es-
como um tópico estritamente historio- clarecimento e de aprofundamento do
gráfico ou filosófico, a questão da Idade saber em torno das práticas e dos modos
Média tinha um alcance sobretudo po- de vida medievais, esta abordagem não

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Antimedievalismo 1261

deixa, porém, de ficar refém das narrati- religiosa. Mais do que indícios ou frontei-
vas que combate, ao devolver uma espé- ras de transição entre tempo medieval e
cie de imagem invertida do antimedieva- moderno, estas significariam, antes, que
lismo. Assim se compreende que também na Baixa Idade Média haveria muito de
ela generalize e mitifique casos históricos moderno, assim como na Modernidade
que melhor possam contradizer tais nar- muito houve de medieval.
rativas. Ao não hesitar em adicionar às Esta ideia, de acento dialético, estava já
suas reflexões historiográficas uma clara presente no seu romance O Nome da Rosa,
apologia conservadora – em certa medi- em que acompanhamos a tensão entre
da antimoderna e anti-iluminista – o po- Jorge de Burgos, o medieval típico, e Gui-
sicionamento de Régine Pernoud tem, lherme de Baskerville, o medieval moder-
porém, a virtude de colocar em evidência no. Entre os dois, hesitante, encontramos
que a discussão acerca da Idade Média o jovem Adso de Melk. Sugerindo, artifi-
continuava, em pleno séc. xx, a ter con- ciosamente, na entrada do livro, uma re-
tornos ideológicos claros, à semelhança lação entre a trama do romance e as con-
do que acontecera no século anterior. tendas políticas da Guerra Fria, Umberto
Por seu turno, Umberto Eco demons- Eco como que nos segreda que talvez a
tra, em diversos passos da sua obra, uma contemporaneidade possa também ser
clara consciência das extensões ideológi- vista, de alguma maneira, como uma ida-
cas desta oposição entre modernidade e de média. Afinal, à semelhança do tempo
medievalidade, mas parece recusar-se a de Adso, nela há espaço para a certeza
integrar um dos polos da contenda, op- e para a curiosidade, para o ortodoxo e
tando por desconstruir esta dualidade. para o heterodoxo, para o horror e para
Talvez por isso, mas também sublinhando a esperança de que as trevas e as dificul-
o carácter insatisfatório do termo “Idade dades venham a ser superadas.
Média” em si, Umberto Eco apresenta, na
sua introdução a Idade Média, volume de Bibliog.: BROCKMANN, Stephen, Umberto
estudos por ele organizado, uma bastante Eco and the Meaning of the Middle Ages, Madison,
esclarecedora definição em negativo, por University of Wisconsin-Madison, 1988; ECO,
Umberto, Idade Média, vol. i, Lisboa, Dom Qui-
pontos, em que explica o que esta idade
xote, 2011; GRANT, Edward, God and Reason
não é ou não foi. Aqui, para além de reba- in the Middle Ages, Cambridge, Cambridge Uni-
ter diversas narrativas antimedievais e de versity Press, 2001; MARTINS, Oliveira et al.,
lhes contrapor diversos casos, nem sempre A Idade Média na História da Civilização, Lisboa,
excecionais, assinala ainda o eurocentris- Esfera do Caos, 2006; MOMMSEN, Theodore,
mo que costuma acompanhar as grandes “Petrarch’s conception of the ‘dark ages’, Spe-
periodizações históricas e a considerável culum, vol. 17, n.º 2, abr. 1942, pp. 226­‑242;
PERNOUD, Régine, Luz sobre a Idade Média,
abrangência temporal do termo “Idade
Mem Martins, Europa-América, 1997.
Média”, que torna impraticável qualquer
abordagem genérica. Mas, para além dis- Ricardo Ventura
so, realiza uma operação mais subtil, que
é a de assinalar a presença, neste período,
sobretudo a partir do séc. xi, de corren-
tes, ideias e práticas que normalmente se
identificam como sendo modernas, como
são os casos do experimentalismo cien-
tífico, do secularismo e da contestação

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1262 Antimercantilismo

Antimercantilismo tações de manufaturas que marcou o


mercantilismo português. O argumento
do desembargador Almeida Carvalho é
curiosamente liberal: se tantas leis prag-
máticas foram emitidas com tão pou-
co êxito, é porque a limitação ao luxo
é daninha e, ao mesmo tempo, inútil.

O mercantilismo designa um conjun-


to de práticas de economia política
que proliferou sobretudo nos sécs. xvii
Serviam a multiplicidade das leis e a in-
certeza do direito; não o interesse dos
consumidores e produtores. O luxo era
e xviii, e que, apesar dos matizes consi- à partida um estímulo para a economia
deráveis, se caracteriza em última análi- nacional e não um sumidouro de meios
se por subordinar a atividade económica financeiros. Ao invés de combater o luxo
privada a diretrizes emanadas pelo sobe- sob o pretexto de que o seu consumo
rano com vista ao interesse comum (da desvia a riqueza dos potenciais investido-
república, dos povos, nacional, da Coroa, res, o desembargador defende a redução
do Estado, do reino, etc.). Os seus ele- dos tributos. No final do séc. xviii, este
mentos típicos são a defesa da proteção compacto de ideias a que se chama mer-
alfandegária, uma visão estática da econo- cantilismo apresenta ainda mais brechas.
mia mundial (entendida com um jogo de A literatura económica portuguesa de fi-
soma nula, em que não há crescimento, nais do séc. xviii critica as instituições
mas apenas disputa de um conjunto fini- e regras que afetam o comércio exter-
to de recursos), o desenvolvimento das no, ainda que as posições mercantilistas
manufaturas ou da produção dos bens continuassem a reinar mesmo entre os
necessários, a defesa de uma balança co- mercadores. No entanto, autores como
mercial favorável e a retenção dos metais Manuel J. Rebelo atacavam regimes de
preciosos. Como tal, pode entender-se contratos exclusivos e outros privilégios
por antimercantilista um discurso que de carácter monopolista praticados nos
não apenas se distancie de um destes as- territórios ultramarinos.
petos, mas do mercantilismo no seu todo. A crítica consistente ao mercantilismo
Um certo distanciamento do discurso emerge após a saída de cena do marquês
mercantilista encontra-se já no séc. xviii. de Pombal e a ascensão do pensamento
Um autor conhecido como cardeal da fisiocrático liderado pela Academia das
Mota aceita que o estabelecimento de Ciências de Lisboa. Segundo Jorge M. Pe-
fábricas em Portugal é uma evidência dreira (1988), uma das marcas dos textos
que não carece de fundamentação, mas saídos desta Academia era a hostilidade
pondera uma objeção importante a esta para com o entendimento de que a rique-
causa central do mercantilismo, designa- za das nações residia no seu comércio e
damente a perda de receita fiscal que a nas suas fábricas. Assim, o pensamento
diminuição de importações implicaria. que se pode rotular como antimercanti-
No entanto, o cardeal não explora até ao lista assume a forma do agrarismo. Para
fim as consequências desta objeção. Tal estes autores, a indústria tinha um efeito
como mostra Luís F. de Carvalho Dias empobrecedor na agricultura (e, ergo, no
(1955-1956), o padre e desembargador país como um todo) ao roubar braços à
Almeida Carvalho é um dos primeiros lavoura. No entanto, muitos dos pensado-
a romper com a fixação com as impor- res ligados ao agrarismo acabam por trair

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Antimercantilismo 1263

a sua matriz fisiocrática ao exigir prote-


ção alfandegária contra a concorrência
estrangeira. O principal expoente desta
corrente crítica do mercantilismo foi a
obra Memórias Políticas sobre as Verdadeiras
Bases da Grandeza das Nações, de J. J. Ro-
drigues de Brito, professor de Direito na
Univ. de Coimbra. Brito faz uma crítica
clara e explícita ao “sistema mercantil” ou
“das manufaturas e comércio” (BRITO,
1805, 59, 62, 73), por abafarem a nature-
za humana e a ordem da sociedade. Para
este autor, tal como o descrevem Almo-
dovar e Cardoso, os “fenómenos e meca-
nismos económicos estão subordinados a
leis naturais próprias que nenhum siste-
ma legal ou político poderia alguma vez
mudar” (ALMODOVAR e CARDOSO,
1998, 46). Ora, os direitos de proprieda-
de enquadram-se nessa ordem natural
que nem as inclinações e parcialidades
dos governos conseguem alterar. O seu
contemporâneo José da Silva Lisboa cri- Folha de rosto de Memorias Politicas sobre as
tica igualmente as limitações estatais ao Verdadeiras Bases da Grandeza das Nações (1803),
de J. J. Rodrigues de Brito.
comércio internacional para fins de pro-
teção industrial, os riscos de uma carga
fiscal excessiva e a defesa da liberdade de
ocupação e investimento. cismo” (&Antieconomicismo). É sob este
Apesar do protecionismo dominante pano de fundo que podemos entender
na classe política portuguesa de Oito- um texto provocatório intitulado Néo-Mer-
centos, a verdade é que o termo “mer- cantilismo e datado de vésperas da Gran-
cantilismo” acabou por concitar as mais de Depressão. O seu autor é um singular
ferozes críticas à intervenção do Estado. economista português (Moses Bensabat
Nas atas oitocentistas das duas câmaras Amzalak), que se insurge contra o fecha-
(a dos Pares e a dos Deputados), o mer- mento das economias mundiais que suce-
cantilismo era tipicamente apodado de deu à Primeira Guerra Mundial. O texto
“abjeto”, “depravado”, “sórdido”, “avaro”, é interessante porque Amzalak, longe
“nocivo”, “desenfreado” e “desaforado”. de diabolizar as posições das principais
Esta carga negativa transitou para a lin- economias capitalistas, compreende as
guagem comum, onde permaneceu até motivações do mercantilismo, embora
aos nossos dias. Com efeito, no séc.  xx, não deixe de considerar os seus efeitos
o termo “mercantilismo” assumiu outro permanentes como nocivos para as di-
sentido – muito diferente e até contra- ferentes economias. Sintomaticamente,
ditório relativamente ao sentido origi- o autor faz equivaler a questão do mer-
nal  –,  o de preocupação excessiva com cantilismo a uma luta entre o sentimento
as realidades económicas, e.g., “economi- (nacional) e a razão (económica).

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1264 Antimiguelismo

Bibliog.: ALMODOVAR, António, “Introdu-


ção a José da Silva Lisboa”, in LISBOA, José
Antimiguelismo
da Silva, Escritos Económicos Escolhidos (1804­
‑1820), ed. lit. António Almodovar, vol. 1,
Lisboa, Banco de Portugal, 1993, pp. i-xxxii;
Id., e CARDOSO, José Luís, A History of Por-
tuguese Economic Thought, London, Routldege,
1998; ALMODOVAR, António, “José da Silva
Lisboa”, in CARDOSO, José Luís (coord.),
Dicionário Histórico de Economistas Portugueses,
Lisboa, Temas e Debates, 2001, pp. 174-177;
O infante D. Miguel foi a cabeça visível
da contrarrevolução que se manifes-
tou na Vila‑Francada e na Abrilada (1823
AMZALAK, Moses Bensabat, O Néo-Mercan- e 1824), sendo que, logo após o primeiro
tilismo, Lisboa, Museu Comercial de Lisboa,
destes golpes, “nascia o miguelismo e ini-
1929; BRITO, Joaquim José Rodrigues de,
Memórias Políticas sobre as Verdadeiras Bases da ciava-se o processo de mitificação de D. Mi-
Grandeza das Nações, Lisboa, Imprensa Ré- guel” (LOUSADA e FERREIRA, 2006, 53).
gia, 1805; DIAS, Luís F. Carvalho, “Luxo e Desta ideologia e deste mito, bem como
pragmáticas no pensamento económico do do miguelismo como “fenómeno multípli-
século  xviii”, Boletim de Ciências Económicas da ce”, abordado por uma vasta literatura
Faculdade de Direito de Coimbra, vol. 4, n.os 2-3, desde então até ao presente, trata Arman-
1995, pp.  103­‑146; vol. 5, n.os 1-3, 1956,
do Malheiro da Silva em diversos estudos.
pp. 1­‑82; MACEDO, Jorge Borges, “O pensa-
mento económico do cardeal Mota”, Revista
O tradicionalismo contrarrevolucionário
da Faculdade de Letras de Lisboa, iii sér., n.º 4, derramou-se por numerosos periódicos de
1960, pp. 79­‑97; Id., “Mercantilismo”, in SER- características diversas (os primeiros mar-
RÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de Portu- cadamente virulentos, destacando-se en-
gal, vol. iii, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, tre os posteriores A Nação, 1847-1928), fo-
pp. 35­‑39; PEDREIRA, Jorge M., “Agrarismo, lhetos e livros, pela pena de vários autores,
industrialismo, liberalismo. Algumas notas ao longo do séc. xix (Agostinho de Ma-
sobre o pensamento económico português
cedo, Acúrsio das Neves, Gama e Castro,
(1780-1820)”, in CARDOSO, José Luís (org.),
Contribuições para a História do Pensamento Econó- Ribeiro Saraiva, Visconde de Santarém,
mico em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1988, Miguel Sottomayor, etc.), sendo renovado
pp. 64-83; Id., Os Homens de Negócio da Praça de nos inícios do séc. xx pelo movimento in-
Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822): Dife- tegrista que promoveu a revalorização do
renciação, Reprodução e Identificação de Um Grupo Desejado e a consequente estigmatização
Social, Dissertação de Doutoramento em So- do liberalismo constitucional, numa linha
ciologia apresentada à Universidade Nova de
que se projetou e afirmou na historiogra-
Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 1995; SAN-
TOS, Luís Aguiar, Comércio e Política na Crise do fia estadonovista.
Liberalismo: a Associação Comercial de Lisboa e o Em meados do séc. xx, Joel Serrão, no
Reajustamento do Regime Proteccionista Português, verbete “D. Miguel” do clássico Dicionário
1885-1894, Lisboa, Colibri, 2004. da História de Portugal, reclamava mais es-
António Castro Henriques tudos historiográficos para a compreensão
do fenómeno histórico do miguelismo, ins-
pirado na asserção de Oliveira Martins de
que ele era “um efeito e não uma causa”
(SERRÃO, 1981, 293), discordando todavia
da tese martiniana (na esteira de António
Sérgio) da unanimidade da nação em tor-
no do miguelismo, sem negligenciar, mas

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Antimiguelismo 1265

problematizando, o apoio que o filho dileto


de Carlota Joaquina tinha das massas popu-
lares e de boa parte da nobreza e do clero.
Outra obra da nossa historiografia detém­
‑se no marco interpretativo que constituiu
a obra Portugal Contemporâneo, de Oliveira
Martins, e a sua “antítese entre o Portugal
velho, encarnado na sebástica figura de
D. Miguel, e com forte enraizamento popu-
lar, e o Portugal novo, com os seus ideais
de valores de rutura, estranhos à tradição
e consubstanciados na personalidade de
D. Pedro IV” (TORGAL et al., 1996, 151).
Tal movimento desenrolou-se num qua-
dro político, ideológico, jurídico e inter-
nacional complexo, em que D. Miguel
personificou o combate ao vintismo e ao li-
beralismo constitucional, conotados com a Rei D. Miguel (1802-1866).
irreligião e a maçonaria, pelo que, após ser
proclamado Rei absoluto em Cortes pelos
três estados em julho de 1828, iniciou um guelista expressou-se em diferentes línguas
reinado que ficou marcado pela repressão. e proveio maioritariamente do exílio: “So-
Andréa Gonçalves, num estudo sobre qua- bretudo a partir de 1828, a prática jornalísti-
se um milhar e meio de processos políticos ca intensificar-se-ia e, para além dos jornais
de Lisboa, apurou mais de uma centena de propriamente ditos, multiplicavam-se os fo-
envolvidos estrangeiros, entre os quais pelo lhetos, veículo mais maleável […], de maior
menos 11 brasileiros, o que a levou a utilizar garantia de anonimato” (SANTOS, 1988,
a forte expressão “internacional antimigue- 112). E assim, nesse mesmo ano, o emigra-
lista” (GONÇALVES, 2013, 217). Além do do liberal Paulo Midosi publicou anonima-
sequestro de bens a cerca de 80.000 famí- mente, em Londres, e primeiramente em
lias, de milhares de encarcerados e desterra- inglês, um opúsculo fundacional nesta ma-
dos e de largas dezenas de execuções sumá- téria intitulado Quem É o Legitimo Rei de Por-
rias, o terror miguelino provocou uma vaga tugal? Questão Portugueza Submettida ao Juízo
de emigração política sem precedentes no dos Homens Imparciaes, que teve aliás ime-
país. Foi, pois, no desterro que se constituiu diata confutação de Agostinho de Macedo,
o antimiguelismo de feição diplomática, mi- encomendada pelo Governo para atenuar o
litar, propagandística e ideológica. efeito causado. Midosi, que colaborou em
Esta literatura combativa teve o seu epi- jornais no exílio, como O Chaveco Liberal
centro entre 1828 e 1833 e, para além do ata- (editado apenas em 1829) com Garrett e
que à pessoa de D. Miguel, assentou em três Ferreira Borges, escreveu posteriormente
grandes linhas: crítica político-doutrinária outros folhetos que tinham os realistas em
do absolutismo; condenação da usurpação mira, como Primeira Sessão dos Diplomatas
do trono por meios tirânicos e repressivos, Miguelistas (1834) e Os  Miguelistas Chama-
contrapondo-lhe a legitimidade de D.  Pe- dos á Autoria (1848). Também de 1828 foi o
dro; intenção de recolocar Portugal nos texto de Ferreira Borges Duas Palavras sobre
trilhos do liberalismo. A imprensa antimi- o Assento dos Tres Estados do Reino, Juntos em

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1266 Antimiguelismo

Côrtes na Cidade de Lisboa, Feito a 11 de Julho Se Achavam no Castello de Extremoz no Infausto


de 1828, que, nesse ano ainda, também saiu Dia 27 de Julho de 1833; de Joaquim Soares,
em francês, publicado em Paris. Da auto- o poema História da Usurpação e do Usurpador
ria de Rocha Loureiro, apresentam-se dois D. Miguel (1836); de índole memorialista,
exemplos de 1829, publicados em Londres: portanto mais tardiamente, as Memorias de
Dithyrambo por o Sancto Dia 9 de Novembro de Um Preso Emigrado pela Usurpação de D. Mi-
1829, quando Aconteceu a Fatal Catástrofe ao guel, ou ainda Tragicos Sucessos de Portugal
Rei de Teatro Miguel I (de carácter satírico) e pela Usurpação de D. Miguel, Relativos á Praça
Apostillas á Enormíssima Sentença Condemnato- de Almeida, memória atribuída a Manuel da
ria, Que sobre o Suposto Crime de Rebelião e Mo- Costa de Vasconcelos Delgado, publicada
tim Foi Proferida em Lisboa aos 26 de Fevereiro de postumamente no Jornal Litterario de Coim-
1829, e ahi Executada em 6 de Março Seguinte bra, em 1869. No âmbito das publicações
(de denúncia do terror miguelista). De Luís periódicas, além das já citadas, destaque-se
António de Abreu e Lima (visconde de Car- o semanário Paquete de Portugal (Londres,
reira em 1834) foi publicado, em Bruxelas, 1829-31), em cuja redação participaram
La Légitimité et le Portugal; Rêveries d’Un Por- Rodrigo da Fonseca Magalhães, Marcos Vaz
tugais. O jurista António Luís de Seabra, du- Preto e José Liberato F. de Carvalho, que de-
rante a sua emigração política (1828-1833), nunciou as atrocidades do Governo migue-
deu à estampa vários opúsculos e panfletos lino e atacou o monarca usurpador e tirano,
sem nome do autor, dos quais se notabili- conotado com a imoralidade, a cobardia, a
zou Exposição Apologetica dos Portuguezes Emi- traição e a torpeza, sendo recorrentemente
grados na Belgica, Que Recusaram Fazer Prestar comparado a Nero (SILVA, 2005, 45). Após
o Juramento d’Elles Exigido no Dia 26 de Agosto a morte de D. Miguel (1866), a reclamação
de 1830. José Vitorino Barreto Feio, emigra- dos direitos de seu filho suscitou repúdio,
do em Inglaterra, no Brasil e em Hambur- como demonstra o texto de Teotónio de
go, traduziu para francês, juntamente com Ornelas Bruges Aqui não: Resposta ao Folheto
Mesnard, a obra do barão de Eschwege pu- Intitulado D. Miguel II.
blicada naquela cidade germânica, que saiu É consabida a hegemonia da visão anti-
com o título Dom Miguel: Ses Aventures Scan- miguelista da história após a vitória liberal
daleuses, Ses Crimes et Son Usurpation par Un de 1834, numa vastidão de obras aqui im-
Portugais de Distinction e que foi publicada possível de referir. Mas esse caminho ence-
em Paris, em 1833, tendo ainda nesse ano tou-se anos antes, quando tudo estava por
segunda edição. Entre os textos publicados decidir. Publicados em 1830, um em França
no Brasil, podem referir-se dois escritos de e o outro em Inglaterra, foram textos “per-
João Pereira Baptista Vieira Soares (aí exi- cursores da historiografia liberal”, ambos
lado em 1828-1834): D. Miguel Chorando a na lógica “liberdade/progresso versus des-
Sua Desgraça em Quatro Visões, para Servir de potismo/reacção” (SILVA, 1993a, 540), o
Espelho aos Miguelistas e A Saudosa Despedida Ensaio Historico-Politico sobre a Constituição e
dos Escravos Miguelistas, ou o Ultimo Adeus a Governo do Reino de Portugal, de José Libe-
Seu Senhor D. Miguel. Como exemplos desta rato Freire de Carvalho, republicado em
literatura publicada em Portugal, necessa- Portugal em 1843, e o célebre Portugal na
riamente a partir dos finais da Guerra Ci- Balança da Europa, de Almeida Garrett, fru-
vil, veja-se, de Ribeiro Soares, A Descida de to de vários artigos que o autor vinha escre-
D. Miguel aos Infernos a Pedir Auxílio: Poema vendo desde 1825. Na abertura, Garrett ex-
Heróico-Comico em Dois Cantos; Horrorosa Mor- plicava que “um tirano cruel e sanguinário”
tandade Feita em Todos os Presos Politicos Que era o remédio para curar um país do seu

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Antimilitarismo 1267

estado de podridão e agonia: “Esse benefí-


cio da Providência foi para ti não duvides, ó
Antimilitarismo
Nação Portuguesa, o flagelo da ira de Deus
que há dois anos te consome: foi D. Miguel
que te veio castigar da tua criminosa indi-
ferença e cedo te restituirá ao estado de vi-
gor e energia que só pode comportar o ali-
mento são, sólido e nutriente da liberdade”
(GARRETT, s.d., 19). A identificação de um movimento
antimilitarista implica a verificação
dos vários fenómenos que constituíram
a reação à militarização das sociedades
enquanto comunidades políticas e cultu-
rais. O militarismo tanto pode traduzir-se
na tutela militar de um sistema político,
Bibliog.: COSTA, Fernando Marques da et al. como na prevalência da instituição mi-
(orgs.), Do Antigo Regime ao Liberalismo (1750­
litar e dos seus métodos em diferentes
‑1850), Lisboa, Veja, 1989; GARRETT, Almei-
da, Portugal na Balança da Europa: do Que Tem âmbitos da organização social e política,
Sido e do Que Ora Lhe Convém Ser na Nova Ordem bem como das relações internacionais.
de Coisas do Mundo Civilizado, Lisboa, Livros Esta posição implica a autonomização e
Horizonte, s.d.; GONÇALVES, Andréa Lisly, implantação das forças militares enquan-
“A luta de Brasileiros contra o miguelismo em to centros de poder, bem como do seu
Portugal (1828-1834): o caso do Homem Preto ethos próprio, enquanto paradigma de
Luciano Augusto”, Revista Brasileira de História,
organização social, pelo que a constitui-
vol. 33, n.º 65, 2013, pp. 211-223; LOUSA-
DA, Maria Alexandre, e FERREIRA, Maria da
ção dos exércitos nacionais permanentes
Fátima Sá e Melo, D. Miguel, Lisboa, Círculo constitui, no plano histórico, um fenóme-
de Leitores, 2006; SANTOS, Maria de Lourdes no da maior relevância para a análise do
Costa dos, Intelectuais Portugueses na Primeira militarismo e da sua negação.
Metade de Oitocentos, Lisboa, Presença, 1988; Embora a guerra moderna, nas suas ver-
SERRÃO, Joel, “Miguel, D. (1802-1866)”, in tentes ideológica, organizativa, tecnológi-
SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de ca, estratégica e tática, tenha emergido
Portugal, vol. iv, Porto, Figueirinhas, 1981, pp.
de um conjunto de profundas alterações
291-294; SILVA, Armando B. Malheiro da,
Miguelismo: Ideologia e Mito, Coimbra, Minerva verificadas na Europa entre os sécs. xvi e
Histórica, 1993; Id., “O miguelismo na histó- xviii – o que tem sido divergentemente
ria contemporânea de Portugal: retrospectiva interpretado como uma verdadeira re-
e subsídios bibliográficos”, Itinerarium, vol. 39, volução militar ou, pelo contrário, como
1993a, pp. 537-647; SILVA, Innocencio Fran- um lento processo – é no séc. xix que a
cisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, instituição militar assume uma função
Lisboa, Imprensa Nacional, 1872; SILVA, Jor-
política e social inédita, bem visível não
ge Bastos da Silva, Shakespeare no Romantismo
Português: Factos, Problemas, Interpretações, Por- apenas na relevância direta que assume
to, Campo das Letras, 2005; TORGAL, Luís como instituição integrante da estrutu-
Reis, e ROQUE, João Lourenço (coords.), ra do Estado, mas também no lugar que
História de Portugal, vol. v, Lisboa, Círculo de ocupa na retórica política, como objeto
Leitores, 1993; TORGAL, Luís Reis et al., Histó- de relação com as opiniões públicas, e
ria da História em Portugal (Sécs. XIX-XX), Lisboa, como recurso nos imaginários nacionais
Círculo de Leitores, 1996. enquanto fonte de soluções em momen-
Conceição Meireles Pereira tos de crise.

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1268 Antimilitarismo

A manifestação de fenómenos antimi- a nobreza tinha no recrutamento e no co-


litaristas em Portugal ocorreu no contex- mando militar. A substituição destes exér-
to da “revolução militar” que, a partir do citos de feição ainda medieval por exérci-
séc. xvi, alterou a organização dos exérci- tos profissionais afirmava o poder régio,
tos e abalou a hierarquização social que ne- ao mesmo tempo que arredava a nobreza
les se projetava. Esta é, aliás, uma das cau- de uma função que fora em grande me-
sas mais diretas da emergência da primeira dida identitária daquele grupo. Não será
manifestação antimilitarista em Portugal. portanto de estranhar que a reação à
A manutenção de exércitos permanen- orientação da reforma então introduzida
tes e profissionalizados foi vista com des- tenha assentado num particular enten-
confiança pelos que ainda olhavam para dimento moral e social da natureza da
o exercício da guerra como um dever de guerra e das virtudes do combatente. As-
honra e uma inerência de estatuto, de- sim, a Lei das Ordenanças de D. João III
signadamente as funções de chefia em sobre os cavalos e sobre as armas (1549),
combate. É neste contexto que se pode que foi ampliada pela lei de D. Sebastião
enquadrar a resistência às Ordenanças de de 9 de dezembro de 1569, marca uma
D. João III, o monarca que introduziu as clara intenção de militarização da socie-
primeiras medidas tendentes à criação de dade, impondo a generalização da posse
um exército moderno. D. João III preten- de cavalos e de armas, ou só de armas,
dia levar a termo uma reforma que as difi- consoante o património, introduzindo
culdades militares sentidas pelo reino em uma importante alteração no estatuto
África e na Índia vinham a demonstrar pessoal daqueles que tivessem cavalo, ao
necessária – e que fora anteriormente im- estender a estes a escusa de pena vil, tra-
possibilitada em grande parte pela falta dicional privilégio da nobreza. Trata-se
de organização do reino e pela prepon- de um bom exemplo da forma como a
derância que D. Manuel fizera questão militarização da sociedade implicou uma
de continuar a reconhecer à nobreza. Se, erosão de velhas hierarquias; a genera-
perante as tentativas de mudar as formas lização das funções militares e a adoção
de recrutamento, os impasses se deveram de um critério puramente patrimonial na
sobretudo à inércia e à falta de organiza- organização das armas traduziu-se numa
ção administrativa, as reformas impostas desqualificação da nobreza.
pela legislação de D. João III e de D. Se- À crítica da profissionalização da arte
bastião, que visavam já a adaptação mili- militar e do abandono da honra pela
tar do país às inovações implementadas técnica – do cavaleiro pelo mercená-
pelas principais potências europeias, con- rio –, que dificilmente passava de uma in-
correntes de Portugal em vários cenários, tenção, contrapunha-se o desenvolvimen-
bem como às dificuldades militares que o to de uma tendência social e cultural de
reino experimentava, especialmente nas sentido diferente, mas igualmente eficaz
praças do Norte de África, suscitaram ou- na desconstrução do tradicional modelo
tro tipo de resistência. moral, social e cultural do combatente.
A construção dos Estados modernos Paralelamente às intenções políticas de
também passou pela criação de exércitos profissionalização, as necessidades prá-
profissionais, correspondendo à tendên- ticas impostas pelo desenvolvimento do
cia de centralização do poder em detri- império e da respetiva administração
mento dos poderes intermédios – que no num reino parco em homens haviam sus-
plano militar se mantinham no papel que citado o aparecimento de um novo tipo

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Antimilitarismo 1269

de combatente, forjado em cenários de progressivamente absolutista a partir do


combate ultramarinos, em tudo distantes séc. xviii, com a perspetiva iluminista da
das práticas da guerra formalizada euro- guerra, mais técnica e menos épica, con-
peia, adaptando o mais das vezes táticas tribuíram para que se acentuasse a espe-
de combate locais, informais, pragmáti- cificidade da organização militar e para
cas, alheias às convenções de moral e de que esta se definisse politicamente, auto-
honra tradicionais. nomizando-se o seu papel enquanto ins-
Correspondendo aos intentos da legis- trumento dos interesses do Estado. Ates-
lação quinhentista e a atestar a preponde- ta-o, especificamente, a legislação militar
rância política que a nova perspetiva da pombalina. No entanto, importa registar
guerra ganhou, assistiu-se ao desenvolvi- a tendência de perceção social e reação
mento de uma literatura militar de cariz contra um dos aspetos da modernização
técnico, de que são exemplo o Quarto Li- militar em Portugal durante os sécs. xvii
vro de Isidoro de Almeida das Instruções Mi- e xviii – a da resistência ao recrutamen-
litares (1573) Arte Militar (1612), de Luís to. Fosse pela necessidade de homens no
Mendes de Vasconcelos; Abecedário Militar espaço do império, sobretudo na Índia, a
(1631), de João Brito de Lemos; e Regi- que o modelo de recrutamento voluntá-
mento Militar (1644), de António Galo. rio do séc. xvi já não conseguia respon-
Também obras de cariz político fazem der, fosse por força da inserção do reino
eco, tanto no contexto da consolidação no espaço geopolítico da casa de Áustria,
do império e como no da Restauração, que estava sob o domínio filipino, sobre-
da dimensão estratégica de uma renova- tudo a partir do ano de 1639, e depois no
ção da ciência e da técnica militares: “Do contexto da Restauração, o sentido do
muito que importará para a conservação recrutamento foi alterado, deixando de
e aumento da monarquia de Espanha, as- corresponder a uma mobilização pontual
sistir Sua Majestade com sua corte em Lis- para uma ação militar concreta, material
boa” (1624), e “Discurso sobre a Ordem e temporalmente definida, e adquirindo
da Milícia que antigamente havia em Por- um carácter indeterminado, ao mesmo
tugal e das forças militares que hoje tem tempo que passou a reforçar a tendência
para se conservar e ficar superior a seus de progressiva universalização do servi-
contrários”, publicado em Notícias de Por- ço militar. Além disto, a falta de homens
tugal (1655), ambos de Manuel Severim obrigava a recrutar crianças desde os 12
de Faria; Política Militar (1638), e Historia anos. A disrupção da vida familiar, social
de los Movimientos y Separación de Cataluña e económica que um recrutamento deste
(1645), ambos de D.  Francisco Manuel tipo implicava provocou uma generaliza-
de Melo. da fuga ao mesmo, desde logo através dos
O período da Restauração não acolheu, “recebimentos”, que alguns comissários
naturalmente, movimentos culturais anti- e outros agentes envolvidos no processo
militaristas, e a posterior pacificação as- aceitavam para “livrar” homens, autênti-
segurada pela consolidação do estatuto cos resgates que várias famílias pagavam
político e diplomático de Portugal no repetidamente para salvar os filhos. Esta
contexto europeu, após a paz de Utrecht, situação manteve-se ao longo do séc. xviii
reforçou essa tendência. e nem o recrudescimento da punição da
O desenvolvimento da teoria da razão fuga e do auxílio a fugitivos, determinada
de Estado desde o final do séc. xvi e o es- na legislação pombalina (alvará de 6 de
tabelecimento de um regime de pendor setembro de 1765), conseguiu inverter a

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1270 Antimilitarismo

benevolência com que o fenómeno era


tratado – e que se traduzia em perdões
gerais periódicos, retomados no final do
reinado de D. José, no dec. de 3 de outu-
bro de 1776.
Outro foco de reação às reformas mi-
litares do conde de Lippe partiu dos
próprios oficiais portugueses. Além do
desconforto com a presença de oficiais
estrangeiros – que não se limitavam a um
grupo restrito de especialistas no coman-
do supremo, mas eram um vasto número
de oficiais, que se esperava viesse influen-
ciar o comportamento dos portugue-
ses – foi também, nas palavras do próprio
conde de Lippe, a rejeição da disciplina e
do treino diários, a “chère paresse”, que
suscitou a aversão que Dores Costa qua-
lificou como manifestação da verdadeira
“aculturação” que a tentativa de profissio-
nalização das forças militares portuguesas
no séc. xviii representou, e que não terá
sequência (COSTA, 2004, 348-350).
A autonomização da instituição militar, Folha de rosto de Regulamento para o Exercicio
associada à consolidação do Estado mo- e Disciplina (1763), feito por ordem do conde
de Lippe.
derno, fez-se de uma progressiva tecni-
cidade e das mutações sociais e culturais
que ela implicava, e traduziu-se, no plano de dezembro de 1643 e Regimento dos
jurídico, na definição de uma jurisdição Governadores de Armas de 1 de junho de
própria. 1678). Paralelamente, alargou-se o privi-
Apesar de anteriormente o direito légio de foro, que não implicava a aplica-
português ter conhecido a solução for- ção de um direito especial).
mulada pelo direito romano de isentar Passo fundamental na sedimentação da
os militares do foro comum, mesmo no jurisdição militar é a reforma setecentista
âmbito da reforma introduzida pela pro- introduzida pelos regulamentos do con-
visão de D. Sebastião, de 15 de maio de de de Lippe (alvará de 18 de fevereiro
1574, só reservava à competência dos de 1763), nos quais pela primeira vez se
oficiais superiores algumas matérias de procedeu a uma compilação de direito
carácter essencialmente disciplinar inter- penal e processual militar. Após a nomea-
no, recaindo as restantes sob a jurisdição ção de uma junta para a elaboração de
civil. Só no contexto da Guerra da Res- um Código Penal Militar, a 21 de março
tauração, a partir de 1643, é que foi cria- de 1802, e de um Código Penal da Ma-
da uma jurisdição especial para matérias rinha, a 23 de março de 1804, viria a ser
militares, que admitia recurso aos tribu- finalmente aprovado em 7 de agosto de
nais superiores militares, encimados pelo 1820 o Código Penal Militar, que foi o pri-
Conselho de Guerra (Regimento de 22 meiro código contemporâneo português.

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Antimilitarismo 1271

As reformas militares de 1806 e de 1834, A crítica ao militarismo será retomada


que visavam reforçar o Exército regular e no contexto da reação política de secto-
reduzir os variados corpos milicianos, de- res republicanos ao golpe de 28 de maio
monstram uma continuidade no modelo de 1926. Em O Militarismo, publicado em
organizativo, que, portanto, não sofreu 1927, Bernardino Machado estabelece o
alterações com a mudança de regime. sentido do conceito como “a pior de to-
“Não existe um modelo de Exército ou de das a fações” que não deve ser confundi-
Marinha do absolutismo contra um mo- da com o “exército inteiro” (MACHADO,
delo do liberalismo. O que assistimos foi 1927, 107). Antes, retrata o controlo e a
a organizações, reorganizações, extinções instrumentalização das forças militares
e, na sua maioria, intenções de reestru- com fins políticos: “os chefes militaristas
turações fundamentalmente ditadas ou mantaram a máquina política dentro da
por necessidades operacionais ou, espe- força pública. Após os conclaves à porta
cialmente entre 1820 até 1834, por ne- fechada no Ministério da Guerra, trans-
cessidades de filiação e lealdade” (PIRES, mitem as deliberações tomadas aos qua-
2009, 258). Por outro lado, a conflituosi- dros das divisões. Chama-se a isto serviço
dade da primeira metade do séc. xix não de ligação. Mas é escandalosamente a ga-
se traduziu na dissociação das elites mili- lopinagem nos quartéis” (Id., Ibid.); um
tar e civil, verificando-se uma intervenção controlo que assenta, antes de mais, na
conjunta e recíproca entre ambas: “Se sua própria submissão humilhante, como
por um lado o exército se politiza, por ou- teria ficado demonstrado na célebre or-
tro, a política militariza-se” (MARQUES, dem “unidos e calados” dada em nota
1999, 190). oficiosa aos comandantes de algumas
O séc. xix não foi marcado por fenó- regiões militares descontentes com o go-
menos antimilitaristas, pelo contrário, vernador militar de Lisboa: “Os motivos
verificou-se uma renovada apologia do de descontentamento […] dizem respei-
espírito bélico, em face das necessida- to a assuntos sobre os quais aos oficiais é
des de defesa contra o invasor francês e extremamente difícil emitir opinião fun-
depois na violenta oposição entre fações damentada, porque são complexos e de-
que marcou a primeira metade do século, mandam aturado estudo. É de presumir
até à Regeneração. que, não podendo os oficiais, salvo raras
A crítica ao militarismo só voltará, pois, exceções, ter estudado cuidadosamente
a desenvolver-se expressivamente no séc. esses problemas, a sua opinião será for-
xx, e em grande medida contra o espírito mada pelo que ouvem dizer aos inimigos
herdado do século anterior. Além da he- da situação. […] Os oficiais devem, pois,
rança da Guerra Civil que marca até tar- fechar os ouvidos às intrigas, conservan-
diamente as dificuldades de pacificação do-se calados e unidos”. E observa, uma
do reino, a contestação internacional dos vez mais demarcando o que considera
direitos históricos de Portugal em África ser o vício do militarismo da nobreza da
inflamou a retórica interna, que respon- instituição, que o novo regime pretende
dia à necessidade de uma política de afir- transformar “a força pública em institui-
mação da pátria no final de Oitocentos, ção política […] discutindo secretamente
também no plano militar, de que foram os assuntos da governação” opinando que
exemplo as campanhas conduzidas em isso “é ferir de morte […] os princípios
África entre 1894 e 1895 por Mouzinho estruturais da própria sociedade militar,
de Albuquerque. que devemos fazer tudo por identificar

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1272 Antimilitarismo

com o espírito da nossa democracia, mas lítica volátil que levou alguns sectores da
nunca anarquizar despoticamente” (Id., sociedade civil a voltar a questionar o pa-
Ibid., 108). pel das forças militares na vida política.
Não pode deixar de se notar que o mili- Assim, interroga-se Raúl Rêgo, em 1981,
tarismo do novo regime, que Bernardino “Vamos mergulhar no militarismo?”, en-
Machado aponta, recordando os sucessi- quanto “disfarce de ditadura” (RÊGO,
vos episódios de aviltamento da institui- 1981, 11), perante as dificuldades que a
ção, foi marcado pelo controlo político iniciativa revolucionária e a tutela mili-
sobre as forças militares e não o inverso, tar do regime colocavam a uma socieda-
como seria provável esperar de um re- de pouco instruída e sem preparação po-
gime instaurado por um golpe militar. lítica, de que o Programa do Movimento
É também esse o sentido da identificação das Forças Armadas era um inevitável
do “exército republicano” (numa apro- exemplo.
priação também ela tipicamente republica- A opção constitucional da revisão de
na…) com a democracia, atraiçoado pelo 1982, que eliminou a tutela revolucioná-
militarismo e vítima irredutivelmente ria militar consubstanciada no Conselho
separada dos ditadores pelas injúrias, in- da Revolução foi um claro sinal de nor-
dignidades e traições cometidas aos que, malização da vida política em Portugal e
como Mendes Cabeçadas e Gomes de marca, de certa forma, um corte com a
Costa, haviam liderado o golpe para se- tradição de interferência militar na vida
rem rapidamente afastados do poder real. política do país que caracterizou o séc.
A denúncia do militarismo do regime xix e as primeiras décadas do séc.  xx
de 1926, reforçado a partir de 1928, e em Portugal. A desmilitarização, que
depois do Estado Novo, não é tanto a de não se esgotou no momento pós-revolu-
um regime sob tutela militar, mas da ins- cionário, correspondeu à consolidação
trumentalização política das forças milita- democrática de uma tendência política
res. Veja-se, paradigmaticamente, o papel introduzida pelo Estado Novo, e foi uma
apagado do presidente da República, in- condição necessária ao processo de inte-
variavelmente oriundo da carreira militar. gração do país na comunidade europeia.
A permanência dos altos comandantes Mais recentemente, esta tendência ma-
militares como chefes de Estado cumpria nifestou-se em Portugal no movimento
o propósito de tranquilizar a vida social e de contestação ao serviço militar obriga-
política, depois da instabilidade violenta tório, que era liderado pelas juventudes
da Primeira República caracterizada tam- partidárias, embora tivesse recolhido um
bém pelo envolvimento das forças arma- relativo consenso na sociedade civil (o re-
das. A retirada de protagonismo político gime de conscrição foi eliminado pelo
aos militares no séc. xx é visível na refor- dec.-lei n.º 289/2000, de 14 de novem-
ma da administração ultramarina, no- bro). Igualmente demonstrativa daquela
meadamente na progressiva substituição tendência é a mais complexa questão da
das administrações militares pelas civis. desmilitarização das forças de segurança.
O espoletar da guerra em África trou- A complexidade prende-se, desde logo,
xe às forças armadas um novo momento com a opção, vigente desde a déc. de 20
de proeminência na vida política e na so- do séc. xx, por um corpo de forças de se-
ciedade portuguesas e, com a queda do gurança de natureza dual, militar (Guar-
regime, em 1974, por força de um novo da Nacional Republicana) e civil (Polícia
golpe militar, seguiu-se uma situação po- de Segurança Pública), a que se juntou

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Antimilitarismo 1273

também uma força militarizada (Polícia Abecedario Militar do Que o Soldado Deve Fazer Se
Militar). A tendência internacional para a Chegar a Ser Capitaõ, Lisboa, Pedro Craesbeeck
desmilitarização das forças de segurança, Impressor del Rey, 1631; MACHADO, Bernar-
dino, O Militarismo, s.l., Editorial Lar, 1927;
a pressão interna de sectores alinhados à
MARQUES, Fernando Pereira, Exército, Mu-
esquerda ideológica, e o reconhecimento dança e Modernização na Primeira Metade do Sé-
de que as ameaças internas de natureza culo XIX, Lisboa, Cosmos, 1999; MATOS, Gas-
similar tendem a dissipar-se com a nor- tão de Melo, “Sobre o ‘Regimento de Guerra’
malização democrática têm vindo a ser quinhentista”, Anais da Academia Portuguesa de
apontados como argumentos para a pro- História, vol. 4, 1953, pp. 141-156; MELO,
gressiva unificação das forças de seguran- Francisco Manuel de, Política Militar, Madrid,
ça como forças puramente civis. en la Imprenta de Francisco Martinez, 1638;
Id., Historia de los Movimientos y Separación de
Cataluña, Lisboa, Pablo Craesbeeck Impressor
Bibliog.: ALMEIDA, Isidoro, Quarto Livro de de las Ordenes Militares, 1645; MORAIS, A.
Isidoro de Almeida das Instruções Militares, Évora, Faria de, “Arte militar quinhentista”, Boletim
André de Burgos, 1573; BEBIANO, Rui, “A do Arquivo Histórico Militar, vol. 23, 1953, sep.;
guerra: o seu imaginário e a sua deontologia”, MOURA, Vasco Graça, “A guerra na literatura
in BARATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, portuguesa”, in BARATA, Manuel Themudo,
Nuno Severiano, Nova História Militar de Portu- e TEIXEIRA, Nuno Severiano, Nova História
gal, vol. 2, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, Militar de Portugal, vol. 5, Lisboa, Círculo de
pp. 36-67; COSTA, Fernando Dores, “A guer- Leitores, 2004, pp. 248-267; OLIVEIRA, Fer-
ra no tempo de Lippe e de Pombal”, in BA- nando, A Arte da Guerra do Mar, Lisboa, Edi-
RATA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno ções 70, 2008; PARKER, Geoffrey, The Military
Severiano, Nova História Militar de Portugal, Revolution. Military Innovation and the Rise of the
vol. 2, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, pp. West, 1500-1800, Cambridge, Cambridge Uni-
331-358; Id., “Milícia e sociedade”, in BARA- versity Press, 1988; PIRES, Nuno Lemos, “Das
TA, Manuel Themudo, e TEIXEIRA, Nuno Se- reformas militares de 1806 ao modelo de or-
veriano, Nova História Militar de Portugal, vol. 2, ganização de 1834”, in IV Congresso Histórico de
Lisboa, Círculo de Leitores, 2004a, pp.  68­ Guimarães – do Absolutismo ao Liberalismo, vol. iii,
‑111; COUTO, Diogo do, O Soldado Prático, Guimarães, Câmara Municipal de Guimarães,
Lisboa, Sá da Costa, 1954; ESPÍRITO SAN- 2009, pp. 229-264; RÊGO, Raúl, Militares,
TO, Gabriel Augusto do, “As resistências em Clérigos e Paisanos ou o Militarismo e Outras For-
Portugal à revolução militar quinhentista”, ças de Violência na Sociedade Portuguesa, Lisboa,
Revista Militar, n.os 2537-2538, jun.-jul. 2013, Perspectivas & Realidades, 1981; ROBERTS,
pp. 599­‑644; FARIA, Manuel Severim de, No- Michael, The Military Revolution, 1560-1660:
tícias de Portugal, 2.ª ed., Lisboa, Officina de An Inaugural Lecture Delivered before the Queen’s
António Isidoro da Fonseca, 1740; GALO, University of Belfast, Belfast, M. Boyd, 1956;
António, Regimento Militar, Que Trata de como los VASCONCELOS, Luís Mendes de, Arte Militar,
Soldados Se Hande Governar, Obedecer, y Guardar Alenquer, Vicente Alvarez, 1612; VICENTE,
las Ordenes, y como los Oficialos los Han de Gover- Gil, Obras Completas de Gil Vicente, vol. iv, Lis-
nar, Lisboa, Pablo Craesbeeck Impressor, & Li- boa, Sá de Costa, 1943.
vreiro de las Ordenes Militares, 1644; HALE,
Ana Caldeira Fouto
J. R., War and Society in Renaissance Europe, 1450­
‑1620, Baltimore, The John Hopkins Universi-
ty Press, 1985; HESPANHA, António Manuel,
“Introdução”, in BARATA, Manuel Themudo,
e TEIXEIRA, Nuno Severiano, Nova História
Militar de Portugal, vol. 2, Lisboa, Círculo de
Leitores, 2004, pp. 9-33; HOWARD, Michael,
A Guerra na História da Europa, Lisboa, Euro-
pa-América, 1977; LEMOS, João Brito de,

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1274 Antimiscigenacionismo

Antimiscigenacionismo ficação em períodos anteriores, também


porque o tema da miscigenação, ou mes-
tiçagem, se caracteriza por poder ser en-
tendido como partindo precisamente do
princípio anti, uma vez que, como constata
Laplantine e Nouss, “a mestiçagem sempre
tenha existido sobre o pano de fundo da

A ntimiscigenacionismo é a expressão
ideológica que se coloca em oposição
à miscigenação (do lat. “miscere”, misturar,
antimestiçagem (como a viagem e a desco-
berta do múltiplo sobre o pano de fundo
do sedentarismo e da avaliação a partir do
e “genus”, raça), i.e., à convivência, união e mesmo), ou seja, de um pensamento que
geração entre indivíduos de características privilegia a ordem e a origem” (LAPLAN-
fenotípicas diversas, e de que concomitan- TINE e NOUSS, 2002, 9). Neste sentido,
temente se relevam estruturantes questões também já Alexandre Magno, pela sua pa-
políticas, religiosas, sociais e culturais. radigmática união com Roxane, terá con-
Como alternativa a este termo, encontram­ citado as atenções coevas sobre as relações
‑se com frequência as designações de anti- interétnicas.
miscigenação e antimestiçagem. Fruto do encontro de culturas, em espe-
Protagonista da cena em que se perfi- cial a partir do quadro da primeira globa-
lam, em pano de fundo, os contornos do lização que caracteriza a época dos Desco-
antimiscigenacionismo, o movimento mis- brimentos (não escamoteando, porém, os
cigenacionista tem sido caracterizado es- permanentes encontros e o comércio de
pecialmente em três fases: a primeira diz povos e costumes durante a Antiguidade
respeito à época de expansão marítima, e em época de cruzadas), a miscigenação
através dos encontros dos povos europeus é uma prática frequente e continuada,
com o resto do mundo e da promoção de habitualmente caracterizada pelo cruza-
uniões entre colonos e colonizados por mento interétnico (também denominado
meio de casamentos mistos, muitas vezes inter-racial), de que resulta a geração de
com fins estratégico-políticos; a segunda indivíduos mestiços. Estes cruzamentos,
fase identifica-se com o amplo movimento no imediato proporcionados pelas circuns-
de refutação categórica da miscigenação, tâncias de aproximação dos povos e das
assente em pressupostos científicos, espe- gentes (que dão igualmente lugar a parti-
cialmente a partir dos finais do séc. xix, lhas e misturas sociais e culturais), foram
com a ascensão das teorias racistas, e ao também muitas vezes promovidos por via
longo das primeiras décadas do séc. xx; institucional, por meio de políticas de in-
a terceira fase diz respeito ao movimento centivo aos casamentos mistos entre colo-
ostensivo de reprovação das teorias racistas nizadores e colonizados.
(&Antirracismo), em particular protago- Designados por caboclos, mestiços, híbri-
nizado pela UNESCO que, por extensão dos, mulatos, mamelucos, cafuzos, bóeres­
e em complemento, contestou e rejeitou ‑hotentotes, cape coloured, anglo-polinésios,
todas as expressões antimiscigenacionis- entre outros, os descendentes das uniões
tas. Identifica-se, portanto, uma incidência ditas mistas foram, ao longo da história,
antimiscigenacionista mais pronunciada alvo de depreciações, que desembocaram
no quadro da segunda fase apontada. Não por diversas vezes em atitudes e políticas
obstante, para uma arqueologia deste mo- discriminatórias, e mesmo em políticas
vimento, os seus indícios merecem identi- proibitivas de miscigenação, expressão juri-

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Antimiscigenacionismo 1275

dicamente firmada do antimiscigenacionis- co, que pretendeu aferir, através de testes


mo (e.g. leis antimiscigenacionistas nos Es- de laboratório, que os seres humanos pro-
tados Unidos, na Alemanha nazi e na África cedentes de uniões mistas eram inferiores,
do Sul durante o apartheid). Ao mestiço uma vez que davam muitas vezes lugar a
(bem como a índios e a negros) eram fre- seres humanos degenerados. De notar que
quentemente atribuídas características que a designação naturalista de híbridos, tam-
tinham em vista denegrir o seu lugar na bém utilizada para estes filhos, colhe o seu
sociedade, colocando em causa a sua pre- primeiro sentido na raiz etimológica dada
sença dentro de um quadro de civilização pela palavra grega “hybris”, insolência.
e progresso: ingenuidade, brandura, indo- Em contraponto, por vezes assistiu-se
lência, selvajaria, propensão para o alcoolis- também a processos direcionados de in-
mo, zoomorfismo, etc. A palavra “mulato” centivo à miscigenação: na prática, avança-
constitui mesmo um exemplo linguístico va-se com uma política miscigenacionista
de cultivo desse manto depreciativo que co- como combate e sobreposição aos resul-
bre o tema miscigenacionista: tem por raiz tados da miscigenação. E.g., em território
“mulet” (mula), sendo por isso, desde logo, brasileiro, entre o final do séc. xix e o
formada com sentido pejorativo para desig- início do séc. xx, verificou-se a promoção
nar o filho de negro e branco. de uma política migratória que reforçasse
A disposição antimiscigenacionista irá a presença de europeus brancos (depois
destacar-se em especial a partir da segunda também asiáticos), a fim de que estes pu-
metade do séc. xix, sustentada em parti- dessem conceber descendência no país,
cular nas teorias evolucionistas, sob o pris- tornando a população cada vez mais bran-
ma das suas modulações sociais e culturais ca – o chamado processo de branqueamen-
(darwinismo social, a partir das teorias de to. Defendia-se uma gradual renovação da
Herbert Spencer e seus seguidores), bem população, com o progressivo caldeamen-
como nas teorias da superioridade rácica, to de indivíduos de tez negra e mestiça
de que a obra de Arthur Gobineau Essai sur com indivíduos brancos. Gizar-se-ia assim,
l’Inegalité des Races Humaines (1853-55) viria em simultâneo, uma identidade cultural,
a ser pedra de toque, entre outras, levan- social e política brasileira, no sentido de
do a uma diabolização dos descendentes uma cada vez maior afirmação nacional,
mestiços e a uma sistemática rejeição dos por meio da uniformização dos habitantes
mesmos, bem como, por extensão, destas e costumes. O elemento mestiço, fruto das
uniões. Biologicamente, o mestiço era o re- uniões entre índios, negros e brancos que
sultado do encontro entre raças ditas puras ali ocorriam desde a época dos Descobri-
e raças consideradas inferiores; o seu lugar mentos, era encarado como o “diferente
resultava, portanto, numa posição inter- nefasto”, i.e., “como lugar explicativo dos
média (in-between) entre um progenitor su- males da vida pública e privada” (MARUJO
perior e outro dito inferior. O mestiço se- e FRANCO, 2009, 19), entrando, portanto,
ria ainda um indivíduo intermédio numa para a lista de causas do atraso do Brasil;
leitura entre o eu e o outro, entre o coloni- era pois necessário eliminá-lo, como bode
zador e o colonizado, entre a civilização e a expiatório. Acreditava-se que, com o pro-
barbárie, não se enquadrando plenamente gressivo branqueamento da sociedade, o
na disposição político-social patenteada à país se aproximaria cada vez mais de um
época. Consequentemente, as correntes panorama de excelência, de progresso e
antimiscigenacionistas encontrariam su- de avanço civilizacional nunca antes visto.
porte fundamental no racialismo científi- Assim se desenvolveu, não uma tentativa

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1276 Antimiscigenacionismo

generalizada de marginalização dos mes- Em contexto português, tem-se verifi-


tiços, e de todos aqueles que não fossem cado com frequência, a par de análises
encarados como de raça branca, mas uma divergentes (&Antilusotropicalismo), a
política que visava a total eliminação da predisposição dos Portugueses para a mis-
presença mestiça no território brasilei- cigenação, proporcionada também pelo
ro  –  em suma, um “desejo de absorver e contacto constante com diferentes povos
apagar a cultura do outro” (Id., Ibid., 22). no território ibérico, bem como além-fron-
O antimiscigenacionismo representa teiras, durante e após a época dos Desco-
uma das vias para o racismo, ao condenar brimentos, sendo mesmo Portugal aponta-
a união entre as mulheres e os homens do como o país europeu em que mais se
de diferentes proveniências e a sua gera- verificaram encontros e misturas culturais.
ção. Asua refutação viria a ser consagrada Em especial no quadro ultramarino, a
internacionalmente pela UNESCO, num miscigenação concretizou-se através da
conjunto de estudos e documentos direcio- promoção de casamentos interétnicos,
nados em exclusivo para o combate ao pre- mormente com fins políticos, religiosos e
conceito rácico. Em particular, o documen- sociais. E.g., com as reformas pombalinas,
to The Race Question (1950) visará o tema o alvará de lei de 4 de abril de 1755 incen-
no seu ponto 13, destacando que, com rela- tivou a união entre os Portugueses e as ín-
ção à miscigenação, esta ocorre desde sem- dias, proibindo concomitantemente o uso
pre, não existindo factos que comprovem do termo “cabouclos”, com que se identifi-
que estes cruzamentos provocam degene- cavam as pessoas nascidas destes casamen-
rescências, não sendo, portanto, justificada tos. Semelhante política miscigenacionis-
biologicamente a proibição de casamentos ta, em confronto com o sistema de castas,
entre grupos étnicos diferenciados: “With também já tinha sido promovida por Afon-
respect to race mixture, the evidence points so de Albuquerque na Índia, aquando da
unequivocally to the fact that this has been conquista de Goa, em 1510.
going on from the earliest times. [...] State- Não obstante, o sentimento antimisci-
ments that human hybrids frequently show genacionista pode ser entrevisto quer no
undesirable traits, both physically and men- espaço social e cultural do Império e da
tally, physical disharmonies and mental de- metrópole (destaque-se o sentido de se-
generacies, are not supported by the facts. gregação e antimiscigenação que acarreta
There is, therefore, no biological justifi- a expressão da “pureza de sangue” ligada
cation for prohibiting intermarriage bet­ à questão do antissemitismo (&Antissemi-
ween persons of different ethnic groups. tismo), quer também nas suas expressões
[No que diz respeito à mistura de raças, literárias e científicas. No campo literário,
a prova aponta inequivocamente para o e.g., Gonçalves Crespo (1846-1883), poeta
facto de que isto se tem passado desde luso-brasileiro, reflete sobre a oposição
os tempos primevos. […] Afirmações de entre luz e sombra como incompatibili-
que os híbridos humanos mostram fre- dade de cruzamento: “Não pode a bruma
quentemente braços indesejáveis, quer espessa/Casar-se à luz do dia:/Unir-se a ti
física quer mentalmente, desarmonias fí- podia/A minha sorte avessa?” (CRESPO,
sicas e degenerescências mentais, não são 1942, 88); Hipólito Raposo (1885-1953)
suportadas pelos factos. Não existe, por patenteia também esta impossibilidade:
isso, nenhuma justificação biológica para “O mestiço é assim um ser imprevisto no
proibir o intercasamento entre pessoas de plano do mundo, uma experiência infe-
diferentes grupos étnicos]”. liz dos Portugueses, só para mostrar ao

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Antimiscigenacionismo 1277

mundo, por maravilha, que também as de um inquérito que, entre outras ques-
pretas são mulheres, filhas de Eva. [...] tões, coloca a da “conveniência ou inconve-
Contra os dois cúmplices deste consórcio niência, no ponto de vista dos altos interes-
proibido, nas feições dos filhos e netos, em ses nacionais e do progresso, de favorecer
suas almas confusas, assim é sempre casti- a mestiçagem”. Destaque-se o seguinte ex-
gada a rebelião contra a ordem estabele- certo: “‘O  maior perigo que se apresenta
cida no mundo” (RAPOSO, 1926, 55-56). à nacionalidade – escrevia um dos nossos
No campo científico, acompanhando amáveis correspondentes  – é (valha-nos
os avanços internacionais da antropologia Deus) a amulatação’. Outros dão a mesti-
física, nomeadamente desde a déc. de 80 çagem como ‘o melhor modo de coloniza-
do séc. xix, em Portugal desenvolver-se-á ção’. Dos adversários dos cruzamentos ra-
também trabalho na denominada área da ciais, alguns reclamam ‘humanidade’ para
antropobiologia, em especial durante as os mestiços existentes, outros reconhecem
primeiras décadas do séc. xx, com vocação que os mestiços ‘são aproveitáveis onde não
particular para os estudos complementares é possível a colonização europeia’” (Traba-
à questão colonial. No âmbito do I Con- lhos do 1.º Congresso..., 1934, I, 336-337).
gresso Nacional de Antropologia Colonial, Estado de direito fundado constitucio-
realizado no Porto, em 1934, comunica- nalmente no respeito pela dignidade da
ções como a de Eusébio Tamagnini, em pessoa humana, à luz dos princípios do
sessão plenária, intitulada “Os problemas direito internacional e da Declaração Uni-
da mestiçagem”, davam a conhecer os re- versal dos Direitos Humanos, Portugal de-
sultados da investigação de diversos antro- fine-se atualmente pelos valores da integra-
pobiólogos portugueses. Uma das questões ção, da multiculturalidade e da tolerância.
abordadas foi, consequentemente, a das O combate a toda e qualquer discrimina-
uniões mistas e dos seus resultados, bem ção, com base na nacionalidade, na cor ou
como a da sua perceção contemporânea na origem étnica, tem estado patente na
e matizes antimiscigenacionistas. Note-se legislação e nas políticas nacionais, de que
que, à oposição generalizada e categórica faz prova a instituição da Comissão para a
ao cruzamento étnico, se contrapõem de- Igualdade e Contra a Discriminação Racial
terminados requisitos para a miscigenação: (lei n.º 134/99, de 28 de agosto).
defende-se a miscigenação condicionada Não obstante, apesar de o sentimento
em alternativa a um antimiscigenacionis- antimiscigenacionista ser liminarmente
mo arrogado, apontando que as teorias refutado pela voz oficial das sociedades
que assumem os mestiços como seres infe- democráticas de tradição ocidental, fac-
riores, porque degenerados, estão assentes to é que nas mesmas “há movimentos e
em estudos particulares, não possibilitando atitudes culturais que subsistem, fazem a
a generalização e confirmação destes indi- construção de uma história de que não se
cativos, logo, não podendo ser confiáveis, fala, permanecem como atavismos que só
posição assumida, e.g., por Alberto C. Ger- a consciência democrática e culturalmen-
mano da Silva Correia, em comunicação te fundada poderá vencer. E que ignoram
intitulada “Os eurafricanos de Angola”. que a humanidade se construiu e conti-
Ainda no mesmo Congresso, o antropo- nuará a construir precisamente na base
biólogo Mendes Corrêa, em “Os mestiços de intersecções sucessivas” (MARUJO e
nas colónias”, disserta sobre as vantagens e FRANCO, 2009, 25)
desvantagens bio­psíquicas de certos cruza- Os discursos atuais com vista ao acolhi-
mentos étnicos. Revela ainda os resultados mento pleno de toda a humanidade no

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1278 Antimisticismo

seio das mais diversas sociedades e entre as


mais diversas culturas continuam, portan-
Antimisticismo
to, a convocar a reflexão e o debate pro-
fundo, crítico e construtivo no contexto
do presente quadro global: “Hoje em dia
um discurso antirracista, favorável à ideia
de mestiçagem e à de multiculturalismo
co­existe com movimentos de afirmação
identitária e de defesa de direitos de cida-
dania que acentuam a separação, na base
O termo “mística” comporta consigo
uma complexidade e ambivalência
grandes. Ao longo dos tempos, este vocá-
de uma análise crítica do processo racial bulo foi assumindo significações variadas,
na história e no presente. Neste ambiente, nos mais diversos campos culturais e re-
miscigenação, mestiçagem e hibridismo ligiosos, tornando-se não raras vezes alvo
continuam a ser nós discursivos que conta- de abusos de utilização. Hoje, tanto se
minam de ambiguidade – mas também de fala de mística no âmbito religioso como
abertura de sentido – as práticas emancipa- de mística empresarial, mística do fute-
tórias” (ALMEIDA, 2000, 200). bol, mística da natureza, etc.
A fenomenologia da religião tem sido
grandemente responsável pela realização
Bibliog.: ALMEIDA, Miguel Vale de, Um Mar da de um estudo sério sobre esta temática,
Cor da Terra: Raça, Cultura e Política da Identidade, devolvendo quer ao termo quer à nature-
Oeiras, Celta, 2000; BARATA, Óscar, “Misci- za das experiências místicas o valor fun-
genação”, in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira dante da sua verdadeira significação. Esta
de Cultura: Edição Século XXI, vol. 20, Lisboa/
investigação tem trazido a público os tra-
São Paulo, Verbo, 1999, cols. 6-7; BETHEN-
COURT, Francisco, Racismos: das Cruzadas ao ços característicos da mística nas grandes
Século XX, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de religiões orientais, nas grandes religiões
Leitores, 2015; CASTELO, Cláudia, “O Modo proféticas e nas diferentes formas não
Português de Estar no Mundo”: O Luso-Tropicalis- religiosas. Discute-se ainda, neste âm-
mo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933-1961), bito, se é legítimo falar de semelhanças
Porto, Afrontamento, 1998; CRESPO, Gon- entre diferentes experiências místicas; se
çalves, Obras Completas de Gonçalves Crespo, Rio
podemos ou não considerar existir uma
de Janeiro, Livros de Portugal, 1942; LAPLAN-
mesma linguagem mística, independen-
TINE, François, e NOUSS, Alexis, Métissages:
de Arcimboldo à Zombi, Paris, Éditions Pauvert, temente da crença que lhe está subjacen-
2001; Id., A Mestiçagem, Lisboa, Instituto Pia- te; se às ditas experiências cume, de sen-
get, 2002; LUCIANI, José Antonio Kelly, Sobre timento oceânico, de estados alterados
a Antimestiçagem, Desterro, Cultura e Barbárie, da consciência, de consciência cósmica,
2016; MARUJO, António, e FRANCO, José etc., se poderá chamar experiência mís-
Eduardo (coords.), A Dança dos Demónios. Into- tica. Estas são, na realidade, algumas das
lerância em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores/
questões que ilustram a complexidade do
Temas e Debates, 2009; RAPOSO, Hipólito,
Ana a Kalunga, Lisboa, s.n., 1926; SCHMIDT, universo da mística.
Nelly, Histoire du Métissage, Paris, Éditions de Uma certa leitura contemporânea, não
la Martinière, 2003; Trabalhos do 1.º Congresso tão interessada no aprofundamento desta
Nacional de Antropologia Colonial, 2 vols., Porto, questão, oferece uma interpretação pejo-
Edições da 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, rativa do misticismo. As narrações desta
1934. categoria de experiências são assumi-
Susana Alves-Jesus das, na quase totalidade dos casos, como

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Antimisticismo 1279

estranhas, fantasiosas, oligofrénicas, se- envolve por inteiro, vivendo arreigado na


cretas, mágicas, etc. A consequência é sociedade e na cultura onde se insere.
clara: tais experiências são desacreditadas Torna-se “forjador de história” (GONZÁ-
e as pessoas que as protagonizam, tidas LEZ, 2004, 30). Assim, a mística não é de
como místicas, são alvo de ostracização todo uma experiência solipsista ou aliena-
social. Há, contudo, a visão contrária, que da do mundo, mas antes uma experiência
considera que as mulheres e os homens de alteridade e de construção criativa do
místicos são seres pertencentes a uma es- mundo. A relação amorosa e de cumplici-
fera especial que os distingue do huma- dade com o divino a quem ama, a intensi-
no comum, seres acima da realidade e dade desta experiência, determina todo o
superiores ao mundo que são objeto de trabalho interior que o místico empreen-
fenómenos extraordinários (visões, êx- derá no conhecimento de si, no desen-
tases, estigmas, etc.), sendo convertidos, volvimento da sua personalidade  –  pro-
por isso, em seres venerados pela ordem cesso em que estão implicados todos os
superior que representam. níveis neurológicos, todas as estruturas
Ora, o termo “místico” procede do psicofísicas –, operando mudanças de
termo grego “mystikos”, que significa o consciência que escapam à perceção dos
que é relativo aos mistérios religiosos (“ta demais. A sua linguagem mística revela,
mystika”), e do verbo “myo”, que exprime nas dimensões humanas que lhe são ine-
a ação de fechar a boca, fechar os olhos. rentes, toda esta experiência, assim como
Esta significação orienta-nos para a noção os movimentos amorosos que o divino e o
de realidades misteriosas, ocultas, secre- humano realizam nesta relação de amor.
tas. Durante bastante tempo, utilizou-se Logo, a linguagem mística é linguagem
o termo “misticismo”. Porém, este termo de experiência e, como tal, é convite à ex-
remetia facilmente para as ideias mais ne- periência. Sendo linguagem experiencial
gativas associadas a esta realidade. Hoje, de amor, ela expressa, de forma simbólica
usa-se o termo “mística” sempre que nos e metafórica, a vocação mais sublime do
referimos a estas experiências humanas humano: a vocação ao amor, no Amor.
de relação íntima com o divino. No âmbi- Um quadro de oposição ao misticismo
to do cristianismo, a mística é uma expe- conduz-nos em direção a duas frentes dis-
riência humana de totalidade, de relação tintas, porém indissociáveis: a da pessoa
consciente, amorosa, com o divino. Místi- do místico e a da mística na sua ampli-
ca é relação de amor, portanto, na qual o tude. A oposição à pessoa que é sujeito
todo do humano está envolvido e busca a de experiência mística é aqui tomada
união com o divino, estado último de co- pela designação de antimístico(a). Esta
munhão. O divino revela-se no centro da posição negativa situa-se na oposição à
alma, tomando assim a iniciativa da rela- personalidade da pessoa, à sua ação ou à
ção amorosa. O humano toma consciên- sua obra discursiva. Neste âmbito, os ca-
cia desta presença no mais íntimo de si sos multiplicam-se no panorama europeu
mesmo e a ela responde, amando este tu cristão. Contra Mestre Eckhart (1260­
divino que se lhe comunica. O místico é ‑1328), místico alemão, é movido um pro-
sempre o humano após esta experiência cesso inquisitório, sendo alguns dos seus
de presença relacional. É a partir desta artigos considerados heréticos, nomeada-
relação, portanto, que o místico delineia mente por João XXII, que, na sua bula
toda a sua presença no mundo. Longe de In Agro Dominico, condena 28 proposições
se alhear do tempo em que vive, nele se do místico. Marguerite Porrette (c. 1250­

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1280 Antimisticismo

‑1310) deixou um texto místico, Le Miroir quisidor Fernando de Valdés. Tanto Iná-
des Âmes Simples et Anéanties, condenado cio de Loiola (1491-1556), como os seus
em 1306 (chegando a ser queimado nes- companheiros, ainda estudantes de Teo-
te ano) e, novamente, em 1309. Porrette logia, experimentaram durante 42 dias
é condenada por heresia pela Inquisição a prisão, resultante da perseguição em-
em maio de 1309, acabando queimada na preendida pela Inquisição de Toledo. Em
fogueira no ano seguinte. Nos territórios causa estava o ensinamento de conteúdos
franceses, são ainda elucidativos outros da fé por pessoas sem formação completa
casos. Madame Guyon (1648­‑1717), figu- em Teologia. Teresa de Ávila é também
ra indissociável da questão do quietismo um bom exemplo desta intervenção anti-
em França, não compreendida nem acei- mística. O alvo é tanto a pessoa de Teresa
te no que se refere à sua personalidade e como os seus escritos, muito em especial
aos seus escritos, facto para o qual tam- o Livro da Vida. Esta mulher abulense não
bém terá concorrido a proximidade a Mo- mostrava qualquer receio face ao poder
linos, é condenada e presa durante meses de então. Alertada para os “tempos difí-
pelo Rei Luís XIV, após a escuta das con- ceis” que se viviam e para o perigo que
clusões do exame a que o bispo Bossuet corria de ser acusada junto da Inquisição,
a tinha submetido. No contexto ainda do a resposta de Teresa não tardou: “Disse,
quietismo, estão também os famosos pro- pois, que disso não temessem; muito mau
cessos de Molinos e de Fénelon. O místico seria para a minha alma se nela houvesse
espanhol Miguel de Molinos (1628-1696) coisa que fosse de mole a eu temer a In-
foi exposto a um processo complexo de quisição. Se pensasse que havia de quê,
acusação das suas ideias quietistas. A 20 de eu mesma a iria buscar, mas, se fosse in-
novembro de 1687, o Papa Inocêncio XI ventado, o Senhor me livraria e ficaria eu
condena as suas doutrinas, através da bula com o lucro” (TERESA DE JESUS, 2000,
Caelestis Pastor. Com François de Salignac 134). Esta sua obra chegou mesmo a ser
de la Mothe Fénelon (1651-1715) o pro- sequestrada pela Inquisição. O próprio
cesso não foi diferente, tendo este teólogo Francisco de Osuna, embora aconselhas-
francês visto 23 das suas proposições con- se os fiéis a não caírem nas práticas dos
denadas como quietistas pelo Papa Ino- alumbrados, acabou por ser acusado de
cêncio XII, na sua bula Cum Alias (12 de ser um deles.
março de 1699). Não longe desta realidade estão as mu-
Em terras espanholas, no período do lheres e os homens místicos do nosso
chamado “século de ouro”, a vida dos país. Alvos de acusações de heresia, bru-
místicos não foi igualmente fácil. O Santo xaria, quietismo, profecias, etc., das místi-
Ofício sempre seguiu bem de perto mís- cas e dos místicos portugueses se ocupam
ticos como S. João de Ávila (1499-1569), também as acusações inquisitórias. Ve-
S.ta Teresa de Ávila (1515-1582), Fr. Luís jam-se os autos de fé de Coimbra, Lisboa
de Granada (1504-1588), Fr. Luís de e Évora no séc. xviii e o número elevado
Leão (1528-1591), S. João da Cruz (1542­ de casos condenados de molinosismo.
‑1591). Apesar de notáveis escritores e in- O quietismo foi um dos alvos claros da
tervenientes na sociedade do seu tempo, Inquisição em Portugal. Recordemos as
todos eles tiveram de enfrentar quer o condenações de Manuel da Silva Sant’Ia-
controlo inquisitorial, quer as acusações go, Teresa Maria de S. José, Fr. João de
de heresia. O famoso Libro de Oración de S.ta Teresa, Josefa do Sacramento e do
Luís de Granada consta do Index do in- P.e António da Fonseca. Fr. Francisco da

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Antimisticismo 1281

Anunciação, Afonso dos Prazeres e An-


tónio de S. Boaventura são, nesta altura,
figuras de destaque na luta contra o quie-
tismo. Na obra O Auto dos Místicos (2016),
António Vitor Ribeiro faz um percurso
pelo universo dos alumbrados, das profe-
cias, das aparições e dos inquisidores dos
sécs. xvi a xviii, a partir dos arquivos do
Tribunal do Santo Ofício. Esta obra leva
ao questionamento da complexidade que
envolve os sujeitos e as comunidades no
que toca à forma como se relacionam
com o divino, e como confluem na pes-
soa e na comunidade elementos diversos,
que vão desde as influências de corren-
S.ta Teresa de Ávila (1515-1582).
tes místicas vindas de fora das fronteiras,
passando pela própria elaboração mental
da pessoa, da sua crença, até aos horizon- à mística é o medo motivado pelo dife-
tes da cultura popular. Também o nosso rente; a intranquilidade face a tudo o
Gaspar de Leão vê o seu Desengano de que tem traços de mistério e se afigura
Perdidos (1573) entre os títulos proibidos distinto das fontes conhecidas leva a que
pelo Índice Expurgatório de 1581. Entre os isso seja apelidado de heresia, magia ou
espirituais portugueses, não é muito di- feitiçaria;
verso: o P.e António Vieira é alvo de um b) combate em nome da razão: o misti-
processo inquisitorial que se delonga por cismo apresentava-se, aos olhos dos seus
quatro anos; o P.e Manuel Bernardes, de opositores, como matéria do domínio do
insuspeita ortodoxia, não deixa de trans- subjetivo, não cabendo no domínio da ra-
parecer no início da Doutrina VII de Luz cionalidade, i.e., do que é próprio da com-
e Calor I (1696) o ambiente vivido à épo- preensão, da teologização do mistério da
ca quando diz que sujeita a sua obra “em fé, da racionalização investigativa-teológi-
tudo à censura e correção não só dos Su- ca, de um cristianismo teologizado, que
periores, a que toca, mas ainda de todos se sobrepõe a uma saudade da origem.
os que melhor sentirem” (BERNARDES, O próprio ensino da Teologia o denuncia
1991, 183). quando os planos dos cursos salvaguar-
A oposição aos místicos e às suas obras dam as disciplinas referentes ao crer, ao
levam-nos à interrogação sobre as mo- conhecer e ao celebrar, e quando a dog-
tivações que a fundam e aos traços que mática, a história e a liturgia são convoca-
ela denota. Com efeito, os fenómenos de das e a mística é ignorada. No contexto
marginalização da mística ou de oposição da Igreja Católica, que aqui nos ocupa,
à mesma, tendo em vista a sua supressão, é assinalável o facto de, após o Concílio
pretendem dela transmitir sinais de ar- Vaticano II, a teologia mística ter deixado
caísmo, de menoridade, de heterodoxia, de estar presente nos seminários católicos
etc., que, em nosso entender, se apoiam e nos departamentos de Teologia;
nos seguintes fatores: c) combate em nome do poder insti-
a) combate assente no medo: uma das tuído antirreformista: a tensão heresia/
razões mais imediatas para a oposição ortodoxia dos tempos medievais traduz

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1282 Antimisticismo

tam de impor uma ordem por via da au-


toridade instituída e da força, sendo disso
um claro exemplo, entre outros, a autori-
dade inquisitorial;
d) combate ao misticismo enquanto
domínio de interioridade ou de subjeti-
vidade: o combate ao misticismo assenta,
muitas vezes, na evolução ocorrida na es-
piritualidade de um fundo especulativo
para um sentido mais afetivo. Este movi-
mento conduz o misticismo para um uni-
verso mais alargado de pessoas, menos re-
servado e elitista. No entanto, este desvio
de rota para uma prática mais interior e
pessoal recebe uma leitura de oposição,
que afirma tratar-se de uma via de su-
blimação sexual: por um mecanismo de
repressão, o místico prescindiria do de-
senvolvimento normal da sua sexualida-
de, atingindo uma “realização fantástica
da energia erótica”; o encontro místico
seria uma “transposição do êxtase sexual
P.e Manuel Bernardes (1644-1710).
na linha do infinito”; os místicos seriam
“amantes frustrados”, “equivocados”, que
“por inibição, impotência ou por loucu-
a reação contra o feudalismo eclesiástico ra passam para o nível imaginário o que
e civil; o movimento humanista de tantas não conseguem realizar ao nível concre-
ordens, designadamente dos monges da to” (PIKAZA, 2007, 473). Esta identifi-
Cartuxa de Colónia, visa a reforma da cação do misticismo com as oscilações
Igreja, no campo eclesiástico e monacal, violentas dos humores e a dimensão pa-
em oposição a um modo de vida exterior tológica do religioso denota uma natural
e intelectualizado. Contra as fraquezas visão crítica de tal fenómeno, entendido,
e os desvios do mundo eclesiástico – “si- na formulação da ciência psicanalítica,
monia, corrupção do clero, relaxamento como subjetivo e estranho, estado de in-
dos frades menores, absentismo episco- fantilismo psíquico (Freud), estado de
pal, temporalidade da Cúria Pontifícia” regressão ao serviço do ego (Ross), pro-
(DIAS, 1960, 8) –, os reformadores apre- cura de uma completude narcísica con-
sentam propostas que visam uma vida in- cretizada através da ligação fusional com
terior e uma vida ativa orantes, fundadas Deus (Tesone), estado patológico ou de
no amor evangélico, i.e., puro, desinteres- sexualidade distorcida (Reich), produ-
sado e gratuito. Em rigor, cria-se um am- to do cérebro (Persinger). Em Portugal,
biente de antimisticismo, porque a místi- é obrigatória a referência a Sílvio Lima,
ca representa a consciência moral da vida que, no séc. xx, luta contra a crítica re-
cristã e, por isso, da Igreja. Ao invés dos ducionista do fenómeno religioso feita
movimentos reformistas e no combate a por certa abordagem filosófica e cientí-
eles, os movimentos absolutistas necessi- fica, em particular no contexto de uma

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Antimisticismo 1283

leitura psicanalítica. Em “O amor místico porque só parece interessar-lhe a sua


(noção e valor da experiência religiosa)”, humanização. Como vimos, o incómodo
o autor critica a perspetiva da psicanálise provocado pelo misticismo decorreu, ao
do amor místico, “teoria erotogénica do longo dos tempos, de motivos diversos,
misticismo” (LIMA, 2002, 555), em que que têm, no entanto, como ponto co-
se reduz o amor místico ao amor sexual. mum a fidelidade às raízes evangélicas.
Lima é claro: “o fenómeno religioso não Tal fundação implica uma forte dimen-
se reduz ao fenómeno sexual” (Id., Ibid., são de verdade por parte da mulher e do
905). Esta sua obra – uma tese apresenta- homem místicos em relação ao Deus em
da para o concurso de professor extraor- quem creem e à Igreja na qual vivem; ser
dinário – constituiu um ensaio inovador reformista não é, necessariamente, criar
no seu tempo, inquietante e ousado, no fora; é, antes, recriar dentro, qual analo-
entender de muitos dos intelectuais da gia do movimento interior da alma, que
altura, mas não teve a melhor aceitação, não busca fora, mas dentro, o conheci-
tendo sido, na expressão do seu próprio mento de Deus e de si. A mística repre-
autor “exilado das livrarias, vendido clan- sentou ao longo dos tempos, sem dúvida,
destinamente como matéria inflamável” uma metaconsciência pessoal e eclesial.
(FERNANDES, 1979, 8); Hoje, é-o de igual modo. O humano que
e) combate em nome da recusa duma eliminou o divino da sua dimensão pes-
visão próxima de Deus e do sagrado: in- soal, relacional e universal é o humano
questionavelmente, a mística transporta que dá sinais claros de uma procura dessa
o divino e o humano para uma esfera de união, abraço incessantemente procura-
intimidade; ao contrário, os seus oposi- do e ainda não realizado. Para o huma-
tores insistem em colocar o sagrado na no de hoje, que procura o seu próprio
etérea esfera do distante. Fazem-no em contento e o seu próprio prazer, a mística
nome de um Deus com o qual o homem continua a ser o convite ao movimento
não é relacionável de forma direta, por- inverso: a entrega a Deus e aos outros na
que temem que tal relação prescinda sua totalidade. A oposição do humano
da estrutura mediadora da organização de hoje, crente ou não crente, ao movi-
da Igreja. Fazem-no pela ameaça duma mento místico pode traduzir-se, direta
prática de proximidade, mais íntima e ou indiretamente, consciente ou incons-
pessoal, que combatem com uma liturgia cientemente, no simples arredamento de
externa e uma arquitetura de distância. tal movimento. Na própria Igreja, ainda
O antimisticismo é, em suma, uma hoje se esquece que a vocação do cristão
reação de recusa daquilo que a mística, é uma vocação mística. A maior oposição
como uma das mais importantes expe- da sociedade laica e da Igreja à mística,
riências da vida do humano, traz à pessoa ao misticismo, não é hoje, porventura, a
e à sociedade, ou de defesa perante tal ação contrária, persecutória e opositora
experiência. A mística é o rosto do que de outrora, mas apenas o seu silêncio.
a sociedade atual, sem prejuízo doutras,
não entende, nem pretende: a lição do
Bibliog.: BERNARDES, Manuel, Luz e Calor,
despojamento, do não saber, do nada ter,
vol. i, Porto, Lello e Irmãos, 1991; BETHEN-
para se encontrar a si, encontrar tudo, COURT, Francisco, “Campo religioso e In-
encontrar o todo. O humano de hoje pa- quisição em Portugal no século xvi”, Studium
rece não ter ouvidos para o tema central Generale, n.º 6, 1984, pp. 43-60; DIAS, José
da mística, a “divinização do homem”, Sebastião da Silva, Correntes de Sentimento

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1284 Antimodernismo católico

Religioso em Portugal (Séculos XVI a XVIII),


Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960;
Antimodernismo
FERNANDES, Barahona, “Revivendo um en- católico
saio de Sílvio Lima decapitado pela censura:
O Amor Místico”, Biblos, vol. 55, 1979, pp. 7­‑33;
GONZÁLEZ, Luis Jorge, “Mística del desar-
rollo humano”, in FERMÍN, Francisco Sancho
(coord.), Mística de la Plenitud Humana, Ávila,
Centro Internacional Teresiano-Sanjuanista,
2004, pp. 13-52; JUNIOR, Ario Borges Nu-
nes, Êxtase e Clausura. Sujeito Místico, Psicanálise e
Estética, São Paulo, Annablume, 2005; LIMA,
A questão modernista eclodiu no
seio da Igreja Católica em finais do
séc.  xix. Foi o coroar de um longo pro-
Sílvio, “O amor místico (noção e valor da ex-
cesso em que, no decorrer desse século,
periência religiosa)”, in LIMA, Sílvio, Obras
Completas, vol. i, Lisboa, FCG, 2002, pp. 553­
se foram manifestando múltiplas tomadas
‑921; PAIVA, José Pedro, “Revisitar o processo de consciência da necessidade imperiosa
inquisitorial do padre António Vieira”, Lusita- de abrir a cultura teológica e as estruturas
nia Sacra, 2.ª sér., t. 23, 2011, pp. 151-168; Id., eclesiásticas a novas ideias e a valores tra-
e MARCOCCI, Giuseppe, História da Inquisição zidos pelo mundo moderno, em acelera-
Portuguesa 1536-1821, Lisboa, A Esfera dos Li- da mudança. Essa imperatividade renova-
vros, 2013; PIKAZA, Xabier, Palabras de Amor: dora que anima o modernismo traduz, de
Guía del Amor Humano y Cristianismo, Bilbao,
maneira objetiva, a recusa do imobilismo
Desclée de Brouwer, 2007; RIBEIRO, António
Vitor, “Quando os santos recolhem ao leito: teológico e da estagnação doutrinal do
mística, santidade e modernidade em Portu- pensamento católico; significa também a
gal entre os séculos xvii e xx”, Lusitania Sacra, urgência de repensar saberes assentes na
2.ª sér., t. 28, 2013, pp. 119‑152; Id., O Auto autoridade de verdades dogmáticas, con-
dos Místicos. Alumbrados, Profecias, Aparições e trapondo-lhes o conhecimento construí-
Inquisidores (Séculos XVI-XVIII), Lisboa, Chiado do conforme o método histórico-crítico.
Editora, 2016; TAVARES, Pedro Vilas Boas,
Contudo, as iniciativas de abertura aos
Beatas, Inquisidores e Teólogos: Reação Portuguesa
a Miguel de Molinos, Dissertação de Doutora- apelos de renovação depararam frequen-
mento em Cultura Portuguesa apresentada temente com um muro de desconfiança
à Universidade do Porto, Porto, texto polico- e de rejeição, a que se juntavam pesadas
piado, 2002; TERESA DE JESUS, Obras Com- sanções eclesiásticas.
pletas, Paço d’Arcos, Carmelo, 2000; VELAS- É verdade que, em 1883, na encíclica
CO, Juan Martín, La Experiencia Mística: Estudio Saepe Numero, Leão XIII “recusava ali-
Interdisciplinar, Madrid, Trotta, 2004. nhar pelas teses dos tradicionalistas, para
Eugénia Magalhães quem a história contemporânea teria
dado origem à elaboração de uma vasta
conspiração contra a verdade” (RUSSO,
2008, 93). O mesmo Papa deu sinais po-
sitivos de inovação no relacionamento
com os regimes políticos e no apoio ao
catolicismo social e à formação da demo-
cracia cristã. Não terá estado, no entanto,
igualmente disponível para proceder à
renovação do pensamento teológico e da
correspondente linguagem. Ao promo-
ver na encíclica Aeterni Patris, em 1879,

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Antimodernismo católico 1285

o revigoramento e difusão da filosofia to- o anátema sobre quem afirmasse que


mista, Leão XIII colocava sob o signo do “o Pontífice Romano pode e deve re-
legado escolástico medieval o indispensá- conciliar-se e transigir com o progresso,
vel diálogo com o pensamento contem- o liberalismo e a civilização moderna”
porâneo. Por isso, tanto a vontade de mo- (PIO IX, 1861, LXXX).
dernização da linguagem teológica como Aos olhos da generalidade dos fiéis, os
o aparecimento e a divulgação do moder- esforços da hierarquia tendentes a resti-
nismo doutrinal foram, desde o primeiro tuir a doutrina e moral católicas ao mais
momento, denunciados em claras toma- estrito respeito pela tradição da Igreja e
das de posição contrárias à modernização à sintonia rigorosa com o depósito da fé
e ao modernismo. pareciam ser a posição certa e esperada.
Para ser corretamente interpretado, Assim o reclamavam figuras respeitáveis
o antimodernismo católico exige que se do integrismo católico oitocentista, en-
tome em consideração o lugar a partir do tre as quais D. Prosper Guéranger (1805­
qual ele se enuncia. Ocupa esse lugar a ‑1875), restaurador da ordem beneditina
Igreja da Contrarreforma, com os varia- em França. Aos olhos de outros católicos
dos campos em que interveio, depois de sinceros, tais medidas deixavam a Igreja
terem sido definidas pelo Concílio de mais distante da sensibilidade, da lin-
Trento (1545-1563) as prioridades de guagem e das aspirações do homem mo-
intervenção e reafirmados os pontos fun- derno. Tanto no meio clerical como no
damentais da doutrina católica. Verifica- laical, alguns espíritos mais atentos aos
mos que, em paralelo com iniciativas de progressos do saber histórico e filológi-
renovação eclesial tridentina nos âmbitos co, insatisfeitos com o tradicionalismo
doutrinal e pastoral, se desenvolveu um rotineiro da teologia e da apologética,
processo de distanciamento e incompati- enveredaram com audácia pela exegese
bilidade com os caminhos da revolução bíblica e pela história das origens cristãs,
cultural da Modernidade. Assim se foi aplicando-lhes os novos métodos e proce-
desenhando a figura do antimodernismo dimentos introduzidos noutros campos
católico, no seu sentido mais amplo. Con- de saber. Pretendiam responder por essa
figuraram-na todas aquelas fases em que via aos apelos vindos do novo foro cultu-
as iniciativas empenhadas em responder ral a que se mostravam particularmente
aos novos contextos culturais com rece- atentos. À reputação pouco satisfatória da
tividade e diálogo depararam com obstá- qualidade do ensino eclesiástico, procu-
culos dissuasores e com efetivas desapro- rou responder a investigação e o ensino
vações e censuras por parte da hierarquia teológico de nível universitário nos insti-
eclesiástica. Lembremos, a este respeito, tutos católicos fundados, a partir de 1875,
dois episódios relevantes. Com a encíclica em algumas cidades francesas, a começar
Mirari Vos, de 1832, o Papa Gregório XVI por Paris. Também a ciência das religiões
pôs termo ao movimento de aproximação tinha começado a desenvolver-se, por ini-
à cultura liberal animado por Lamennais ciativa de estudiosos sem filiação confes-
e pelo grupo de jovens católicos reunidos sional, como os orientalistas Eugène Bur-
à volta do jornal L’Avenir. Em dezembro nouf (1801-1852) e Friedrich Max Müller
de 1864, foi a vez de o Papa Pio IX pu- (1823-1900), e o especialista em crítica
blicar o catálogo de 80 erros modernos, bíblica Ernest Renan (1823-1892); e o
compendiados nas 80 proposições do Syl- protestantismo liberal, apoiado na erudi-
labus. A última dessas proposições lançava ção de filósofos, historiadores e exegetas

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1286 Antimodernismo católico

alemães, tinha assimilado tendências e in- comportou-se sempre como defensor do


terpretações que o tornavam mais próxi- pluralismo teológico e da recetividade
mo da mentalidade do tempo. Face a este da Igreja aos desafios do mundo moder-
contexto tão dinâmico culturalmente, no, tendo sido chamado, com justiça, o
seria estranho que o universo eclesiástico “Erasmo do modernismo”. Referindo-se,
permanecesse impermeável. mais tarde, à visita que von Hügel fez, em
De vários modos, foram surgindo ma- 22 de novembro de 1893, a Mons.  Mig-
nifestações corajosas de homens da Igre- not, Loisy qualificaria esse dia como “me-
ja empenhados em assumir as exigências morável na história do modernismo cató-
dos mais recentes saberes e assim reagir lico”. E acrescenta que essa bem poderia
com responsabilidade aos desafios da ser “uma das datas que marcaram o seu
ciência e dos novos horizontes sociais e começo” (GOICHOT, 2002, 36).
culturais. No Instituto Católico de Pa- O que visava afinal Loisy na linha de
ris, Louis Duchesne (1843-1922) asse- investigação sobre os fundamentos escri-
gurava com grande notoriedade acadé- turísticos do cristianismo? Propunha-se
mica o ensino da história da Igreja e a abandonar o ponto de vista dogmático
investigação sobre as origens históricas da teologia tradicional para passar a estu-
do cristianismo. O jovem Alfred Loisy dá-la a partir da história, a começar pela
(1857­‑1940), enviado a Paris em 1878, a história bíblica, de modo racional e críti-
fim de aí completar estudos de teologia, co. Os livros e artigos que foi publicando
conheceu Duchesne. A doença, porém, em revistas, como a Revue d’Histoire et de
obrigou-o a interromper os estudos. Vol- Littérature Religieuses, por ele fundada em
tou em 1881, contando, desde então, 1896, suscitaram ondas de suspeição, de
com a estima e apoio do mestre. Na Es- tal modo que se foi apertando o cerco à
cola de Altos Estudos, Loisy prosseguiu sua volta, cerco extensivo a amigos e cor-
a sua formação, especializando-se em respondentes. A publicação, em 1902, de
línguas orientais, história e crítica dos L’Évangile et l’Église marcou o irreversível
textos bíblicos. Depressa se convenceu, começo de uma sequência de proibições
em nome do espírito crítico, de que não e censuras. O cardeal Richard, arcebispo
era possível aceitar a conceção tradicio- de Paris, condenou a obra e proibiu a sua
nal sobre a verdade bíblica. Tal como leitura aos padres e leigos da Diocese, de-
acontecera com Duchesne, cujos escritos cisão logo seguida por outros bispos. Em
e cujo ensino o tinham tornado suspei- 1904, a obra passava a figurar no Index
to de ousadias contrárias à apresentação dos livros proibidos. O caminho revelou­
tradicional da história das origens cristãs, ‑se sem retorno, e de Roma emanaram
também Loisy vai sofrer as consequên- dois documentos, o decreto Lamentabili
cias de ter enveredado na Igreja Católica e a encíclica Pascendi, que tornaram for-
pelo estudo crítico da Bíblia e dos fun- mal, solene e universal a condenação do
damentos da fé. Sendo muitas as reser- modernismo.
vas e grande a hostilidade que suscitava, O Santo Ofício, pelo decreto Lamen-
não faltavam também demonstrações de tabili Sane Exitu, de 3 de julho de 1907,
interesse e simpatia vindas de amigos. compendiava em 65 proposições os erros
A esse número pertenciam, com alguns modernistas. Aí estavam alinhados erros
outros, Friedrich von Hügel (1852-1925) sobre matérias nucleares da doutrina ca-
e Mons. Eudoxe Mignot (1842-1918), tólica, como a autoridade das decisões
bispo de Fréjus e depois de Albi. Este doutrinais da Igreja, a inspiração bíblica

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Antimodernismo católico 1287

Para impedir inovações perigosas, o motu


proprio Sacrorum Antistitum, de 1 de se-
tembro de 1910, instituiu o juramento
antimodernista, a que ficava obrigado o
clero, em particular os professores de fi-
losofia e de teologia de seminários e uni-
versidades católicas.
Ainda que menos frequente, houve
também um antimodernismo professado
por modernistas dececionados. Ilustra
este tipo de antimodernismo a figura de
Albert Houtin (1867-1926), que, tendo
alinhado e participado ativamente no
movimento, veio depois acusar o mo-
dernismo de ser “empresa tão vã quanto
quimérica”, que, ao esforçar-se por forne-
cer novas interpretações do cristianismo,
participava afinal do “mesmo sistema de
mistificação” (Id., Ibid., 114). As reações
antimodernistas do tradicionalismo reli-
gioso e da hierarquia católica acabaram
Capa da Revue d’Histoire
por envolver o termo “modernismo” e a
et de Littérature Religieuses, n.º 1.
qualificação de modernista atribuída a
um autor ou a uma obra numa atmosfera
e a exegese, a revelação e o dogma, a cris- repulsiva de depreciação e injúria.
tologia, os sacramentos, a eclesiologia, o E em Portugal, que expressão teve o
evolucionismo religioso. A encíclica Pas- antimodernismo católico? Em Portugal,
cendi Dominici Gregis, de 8 de setembro de o antimodernismo confunde-se com a
1907, ao mesmo tempo que fazia o levan- defesa intransigente e combativa da dou-
tamento pormenorizado dos erros conti- trina católica tradicional e do magisté-
dos no programa modernista, preparava rio pontifício. Havendo o modernismo
os meios destinados a reprimir a propa- tocado a Igreja portuguesa só de modo
gação dessas doutrinas. Ao modernismo, muito superficial e confinado, também o
a que a encíclica se opunha intransigen- antimodernismo teológico foi pouco rele-
temente, era atribuída a natureza de sis- vante. Um e outro estiveram polarizados
tema organicamente estruturado, síntese em torno dos seus afloramentos sociais e
de todas as heresias e etapa de uma cami- político-partidários, sempre muito longe
nhada de destruição crescente da fé cató- do núcleo teológico-dogmático que ocu-
lica em que os protestantes haviam dado pou o centro da questão modernista e do
o primeiro passo, os modernistas o segun- antimodernismo condenado na encíclica
do, e se avançava a passo acelerado para o Pascendi, de Pio X. Embora o apelo à mo-
mais radical ateísmo. O anátema lançado dernização da vida católica no país tivesse
sobre os erros atentatórios dos dogmas surgido a partir de raros inconformistas,
era acompanhado por grande preocu- nunca essa preocupação encontrou apoios
pação quanto ao alastrar desses desvios de vulto na Igreja portuguesa. Parece irre-
e à proliferação de novidades doutrinais. futável que tanto o modernismo católico

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1288 Antimodernismo católico

como o antimodernismo passaram quase congregam tanto “os vários ramos das
desapercebidos, tendo sido aplicados obe- ciências e das letras, como da religião”,
dientemente os procedimentos e as regras manifestações acoimadas de “modernís-
antimodernistas ditados pela suprema au- ticas”. Amalgamava-se, deste modo, a fi-
toridade eclesiástica. gura do modernismo teológico com a do
As parcas manifestações modernistas modernismo estético e científico. Como
passaram por revistas como Voz de Santo o peso do anátema deixava antever, a co-
António, publicada em Braga a partir de notação do termo apresenta-se irremedia-
janeiro de 1895, e Estudos Sociais, publi- velmente pejorativa e minada de radical
cada em Coimbra, e por figuras como anarquia. Adianta-se mesmo uma “defi-
Manuel Abúndio da Silva (1874-1914), e nição” para não restarem dúvidas quanto
os Franciscanos Agostinho Mota (1875­ ao perigo que o modernismo augura à es-
‑1938) e Manuel Alves Correia (1881­ tabilidade da ordem social: “Sistema que,
‑1948). No entanto, neste modernismo desprezando todas as regras, estabelece
o que esteve sempre em primeiro plano como única a sua supremacia e indepen-
foi a questão política e partidária em tor- dência” (PORTUGAL, 1915, 239), assim
no do Partido Nacionalista, fundado em define Ribeiro Coelho o modernismo.
1903, e da obrigação ou não de, em cons- No mesmo Inquérito Literário, Manuel
ciência, os católicos votarem no partido António de Almeida, oficial do Exército,
católico. Manuel Abúndio da Silva e a Voz apressou-se a ensaiar uma clarificação,
de Santo António defendiam os princípios por considerar o juízo de Ribeiro Coelho
da doutrina católica e a sua aplicação à excessivo, no âmbito da sua aplicação.
organização da sociedade, mas opunham­ Entendia Manuel António de Almeida
‑se à confessionalização da vida partidária que a Igreja Católica não condenara o
e da participação política. Não consta, no modernismo em toda a sua extensão.
entanto, que tenha estado em causa em O anátema incidira apenas sobre a aspi-
Portugal, como núcleo central do moder- ração, definida como “um anelo para al-
nismo e do antimodernismo, a questão guma coisa de superior e vago” (Id., Ibid.,
bíblica ou a validade e evolução das ver- 229), “quando seja considerada como
dades de fé. origem ou forma de conhecimento, em
Um dos momentos culturalmente fe- especial do conhecimento das coisas su-
cundos em torno da crise modernista en- persensíveis” (Id., Ibid., 253-254). Reabi-
contra-se no Inquérito Literário de Boavida litava-se deste modo o modernismo esté-
Portugal. No contexto de um inquérito tico, que devia ser visto como efeito ou
literário promovido no diário República, produto da aspiração enquanto forma de
durante o outono de 1912, deparamos sensibilidade. Quanto à aspiração que é
com uma abordagem convergente, inédi- forma gnosiológica, sobre essa, sim, caíra
ta entre nós, dos modernismos religioso o labéu da condenação papal. Há nesta
e artístico. Em carta a Boavida Portugal, avaliação de Manuel António de Almei-
José Constantino Ribeiro Coelho, tipó- da uma ponderação certeira, ao atribuir
grafo católico e legitimista, denuncia o valor positivo ao modernismo em arte e
modernismo e o que designa por “siste- remeter para o domínio da aspiração ao
ma modernista” da Renascença Portu- conhecimento uma das características do
guesa. Regista o anátema lançado pelo modernismo teológico, sobre o qual in-
Papa Pio  X na encíclica Pascendi sobre cidiu o anátema do antimodernismo do
o complexo do modernismo em que se Papa Pio X.

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Antimodernismo literário 1289

Para fechar esta breve exposição, pare-


cem oportuníssimas as considerações de
Antimodernismo
Émile Poulat: “O modernismo histórico literário
morreu, mas não morreu sozinho. De-
sapareceu também do nosso horizonte
o meio cultural que se lhe opôs e o re-
jeitou. Nada o fará ressuscitar. Mas não
desapareceram nem foram resolvidos os
problemas que o dilaceravam” (POULAT,
1982, 222). Que não desapareceram os
problemas mostrou-o dramaticamente a
E ntre o final do séc. xix e o início do
séc. xx, surgiram, nos meios cultu-
rais, tendências de contestação da tradi-
inabilidade para respeitar a perenidade ção e dos seus velhos modelos estéticos,
do depósito da fé sem iludir a sua inser- em nome do que se pretendia inovação
ção na história dos homens, em casos e modernidade: foi o que se designa por
tão diversamente paradigmáticos como modernismo(s), englobando, na verda-
foram o de Teilhard de Chardin (1881­ de, uma diversidade de perspetivas, até
‑1955) e o da encíclica Humanae Vitae na sucessão temporal (primeiro moder-
(1968), entre outros. nismo e segundo modernismo), ultrapas-
sado o seu advento, sinais da renovação
que, afinal, periodicamente se verifica na
Bibliog.: BLONDEL, Maurice, Lettre sur les vida cultural. Ponderemos a moldura que
Exigences de la Pensée Contemporaine en Matière enquadra e esclarece os modernismos e
d’Apologétique (1896). Histoire et Dogme, Paris, os movimentos que os contestam.
PUF, 1956; COLIN, Pierre, L’Audace et le Soup- Desde meados do séc. xix, o fascínio
çon. La Crise du Modernisme dans le Catholicisme
com a ciência e as artes conduziu ao fascí-
Français, Paris, Desclée de Brouwer, 1997;
GOICHOT, Émile, Alfred Loisy et Ses Amis, Pa-
nio pelas suas mostras: as exposições uni-
ris, Cerf, 2002; LOISY, Alfred, Simples Réflexions versais corresponderam a esse desejo de
sur le Décret du Saint-Office Lamentabili Sane reunir, antologiar e catalogar, sistemica-
Exitu et sur l’Encyclique Pascendi Dominici Gre- mente, as cristalizações do progresso, do
gis, 2.ª ed., Ceffonds, ed. do Autor, 1908; “admirável mundo novo” em que todos se
PIO IX, Quanta Cura et Syllabus, 1861; PORTU- sentiam a participar. Essas exposições dei-
GAL, Boavida, Inquérito Literário, Lisboa, Livra- xaram pavilhões ou outros vestígios, in-
ria Clássica, 1915; POULAT, Émile, Histoire,
cluindo museus que recolheram muitos
Dogme et Critique dans la Crise Moderniste, s.l.,
Casterman, 1962; Id., Modernistica, Horizons, dos seus materiais e prolongaram o seu
Physionomies, Débats, Paris, Nouvelles Éditions gesto. Nesse itinerário de exposições – a
Latines, 1982; RUSSO, Daniel, “Les lectures lista é impressionante, de quase centena
de l’art sacré en France et en Europe au tour- e meia –, os impérios coloniais procura-
nant des années 1880-1920. Autour du ‘mé- ram destacar-se, numa guerra pela supre-
diévalisme’”, in Chaubet, François (dir.), Ca- macia da visibilidade, impondo a sua rea-
tholicisme et Monde Moderne aux XIXe et XXe Siècles
lidade e as suas representações, exibindo
autour du “Modernisme”, Dijon, Éditions Uni-
versitaires de Dijon, 2008, pp. 91-102; SOU- as insígnias da heterogeneidade que os
SA, João António de, O Conceito de Revelação constituía e tentando familiarizar as me-
na Controvérsia Modernista (1898-1910), Lisboa, trópoles e os outros países com ela, en-
Livraria Sampedro, 1972; TRESMONTANT, carada e feita encarar como prova da sua
Claude, La Crise Moderniste, Paris, Seuil, 1979. superioridade humana, cultural, política
Luís Machado de Abreu e militar. Foram as sucessivas Exposições

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1290 Antimodernismo literário

Coloniais, muitas delas com as exibições Unidas, em 1945). Após a Primeira Guer-
etnológicas, depois designadas por zoos ra Mundial, desapareceram três impérios
humanos. europeus (alemão, austro-húngaro e rus-
Portugal, além de participar em expo- so) e o turco-otomano, e começou a Gran-
sições no estrangeiro (Paris, Bulawayo, de Depressão (de 1929 até à Segunda
etc.), organizou as suas para exibir ao Guerra). Na Europa, o século vive uma
mundo o seu império, legitimando-o e profunda transformação. Alguns sinais:
reivindicando, também através desse ges- Interpretação dos Sonhos (1900), de Freud,
to, o respeito pelos direitos conquistados o Parque Güell (Gaudi), em Barcelona,
no terreno desde que, no séc. xv, Pêro da o Die Brücke (1905), em Dresden, a Teo-
Covilhã  encontrou o Preste João (de que ria da Relatividade (1905), de Einstein,
Francisco Álvares dará notícia em A  Ver- As Meninas de Avignon (1907), de Picasso,
dadeira Informação das Terras do Preste João, Ornamento e Delito (1908), de Adolf Loos,
de 1540) e foram pintados os  Painéis de Do Espiritual na Arte (1912), de Kandinsky,
S. Vicente de Fora (1470-80), de Nuno Gon- Quadrado Negro sobre Fundo Branco (1913),
çalves, descobertos no final do séc.  xix de Malevich, a revista De Stijl e os poemas
e reconduzidos ao providencialismo da sonoros dadá (1917). Entretanto, os ma-
propaganda do Estado Novo. nifestos do futurismo (1909), de Mari-
O séc. xx fragmentava-se entre guer- netti, do dadaísmo, de Hugo Ball (1916)
ras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), e de Aragon (1920), do surrealismo
a Guerra Fria (1945-1991) e a tentação (1924), de Breton, a Exposição Surrealis-
conciliatória (Organização das Nações ta (1936); a bomba atómica, a Revolução

Exposição Universal de 1900, Paris.

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Antimodernismo literário 1291

Russa (1917). O questionamento, a vee-


mência, a irreverência, a inovação, a re-
volução e a tragédia eram os ingredientes
dessa profunda mudança de mentalida-
des, de uma humanidade que começa a
viver ao ritmo e em função da televisão,
do rádio, do telefone, dos aviões, dos apa-
relhos portáteis, do computador.
Entretanto, a arte deslumbra-se com a
ideia de si própria, de transformação e de
movimento, entre ecos de manifestos e
de experiências (Maiakovski, Eisenstein),
com transformações de regime em fundo
(em Portugal, o regicídio e a Primeira
República).
Na déc. de 30, a importância da expo-
sição, da visibilidade, emerge com uma
força e premência inquestionáveis: as
representações conquistam a cena e le-
gitimam-se como provas, demonstrações,
ilustrações de poder e de existência, prin-
cípio de realidade sobrepondo-se ao ver- Capa de Orpheu, n.º 1.
dadeiro real. É o tempo da propaganda
moderna dos regimes e dos Estados.
Emergindo dessa panorâmica, dese- de 1927, a revista presença (assim mesmo,
nham-se expressões estéticas que recla- com assumida minúscula) persiste até
mam a mudança cultural. Em 1915, a 1940, com mudanças na direção (Adolfo
publicação da revista  Orpheu, influencia- Casais Monteiro também a marcou) e de
da pelas grandes correntes estéticas eu- formato (a nova série de 1939-40), prota-
ropeias, reúne  Fernando Pessoa,  Mário gonizando e centralizando mais de uma
de Sá-Carneiro e  Almada Negreiros, en- década de debate e de influência crítica e
tre outros, congregando os que desejam estética no panorama cultural português.
contestar e inovar, promovendo, pela Designada Folha de Arte e Crítica, a revista
via estética, a mudança cultural. Mais tem ação marcante, e figuras como José
tarde, acalmada esta onda de irreverên- Régio (1901-1969) e João Gaspar Simões
cia estética e cultural, que também bebe (1903-1987) representam bem essa in-
nas raízes da cultura ocidental (são disso fluência caldeada em diversificada pro-
emblemáticas obras como “Começar”, de dução artística e ensaística: do romance à
Almada Negreiros) e que se prolonga e novela e ao conto, da poesia ao teatro, da
metamorfoseia por outras publicações, autobiografia ao memorialismo, da críti-
toma forma o presencismo, marcado pelo ca à historiografia, do desenho à pintura
psicologismo, movimento que crismou e ao cinema nascente, da reflexão entre
numa revista a sua vontade de marcar as relações da arte consigo mesma e com
isso mesmo: presença. Lançada por Bran- a vida à que versava as contingências da
quinho da Fonseca, João Gaspar Simões época, nada pareceu escapar a essa folha
e José Régio em Coimbra, a 10 de março durante 13 anos.

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1292 Antimodernismo literário

As revistas foram, pois, órgãos em tor- mero da presença, “Literatura viva”, texto
no dos quais os sucessivos grupos e mo- programático de Régio, enuncia opções
vimentos tentaram sintonizar-se com as e valores que retoma depois em “Lite-
vanguardas europeias (com destaque ratura livresca e literatura viva”: mani-
para o futurismo), no modo como pro- festo que defende o sentido da ação de
moviam o diálogo das artes e um ser mo- grupo, à margem de interesses sociais e
derno que, no primeiro modernismo, de academismos formais, uma arte sem
se exprimia desde os comportamentos e academismo, anelante de inovação pro-
modos de vestir até ao grafismo editorial, fissional, elegendo a humanidade como
com destaque para a plasticização do ver- matéria e raiz da emoção estética e o
bo e a verbalização do plástico, qualquer primado da arte (sublinhado por títulos
um deles informado de ritmo. como “Li‑te‑ra‑tu‑ra”, de Régio, “A arte
O primeiro modernismo de grupo ti- é, não serve”, de Casais Monteiro, ambos
nha tido uma ação que visava abalar a de 1935) e da humanidade, com a valori-
doxa e inovar, não hesitando em chocar zação da inspiração por contraposição à
a sociedade, (auto)marginalizado por pessoana estética do fingimento.
isso. O sentimento niilista e trágico gera- As clivagens e os contrastes geracionais
do no drama mundial e no nacional vem e de ideários são patentes, quer entre os
acalmar o entusiasmo da arte intelectua- dois modernismos, quer entre grupos que
lizada por intelectuais, consagrando-a e os compõem. Ao lado, compondo a paisa-
dando-lhe visibilidade. Herdeira dessa gem editorial, outras intervenções de pe-
atmosfera, a presença surgia em moldura riódicos vinham, à boca de cena, assinalar
de retratística mais alargada e de mais a continuidade de forte caudal modernis-
lata compreensibilidade na sociedade da ta, apesar da diferença de registos, dos
época: a imprevisibilidade da arte desen- contrastes tonais, estéticos e ideológicos:
raizada do real inteligibiliza-se quando Bysancio (1923-24) e Tríptico (1924-25),
ladeada pelo comentário ou pela inda- com Alexandre de Aragão, Fausto José
gação da vida e do homem, atenta aos (assina ainda Fausto dos Santos), José Ré-
labirintos da sua psicologia e das suas gio, Vitorino Nemésio, António de Sousa,
motivações; o génio oitocentista roman- Edmundo de Bettencourt, etc.; mais pró-
ticamente beirando o abismo, bebendo ximas da tradição simbolista e decadente,
na vivência agónica finissecular simbo- a Icaro (1915-20) ou a Nova Phenix Renas-
licamente cristalizada no expressionista cida (1921), com Teixeira de Pascoaes,
O Grito (1893, da série O Friso da Vida), Eugénio de Castro, Afonso Lopes Vieira,
de Edvard Munch, cede ao homem nove- Cabral do Nascimento, Américo Cortez
centista fragilizado, debatendo‑se entre Pinto, Albino de Menezes, Alfredo Bro-
o quotidiano e os seus valores, todos eles chado, etc.; A Águia (1910­‑32); Dyonisos
instáveis, mas condicionantes, hesitante, (1912-28), continuada por Museu (1934)
já não entre dicotomizações simplifica- e Prisma (1936-41), Contemporânea (1922­
doras, mas entre complexidades elabora- ‑26), Athena (1924-25) e Sudoeste (1935);
das (dever, desejo, poder, querer, fazer, mais próximas da presença, Sinal (1930),
sentir, pensar…) que põem em causa as Manifesto (1936-38) e a Revista de Portugal
antigas equações e que agudizam o sen- (1937-40).
timento de desorientação, sentimento Com a península entre a ditadura do
questionado, confessado, memorializa- Estado Novo (1933-1974) e a Guerra Civil
do. Desde a abertura do primeiro nú- de Espanha (1936-1939), e, além Pirinéus,

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Antimodernismo literário 1293

uma Europa entre guerras dividida entre de quem desce com a generosidade supe-
o fascismo italiano, o nazismo alemão e o rior do organizador duma festa de bene-
estalinismo soviético, vinca-se a oposição ficência” (Id., Ibid.).
de princípios na arte: a exigência social e Cada lado se entrincheira e radicaliza os
a estética psicologista desenvolvem, pro- seus princípios nos seus órgãos editoriais:
gressivamente, um abismo entre si, ca- a presença confronta-se com a Seara Nova
vando o fosso entre o indivíduo, face ao (1921-78; 1985-2008), O Diabo (1934-40)
destino e às suas contingências, e o que e o Sol Nascente (1937‑40), num enfrenta-
a ordem económica tipifica sócio-profis- mento de titãs que chega a afirmações de
sionalmente. A (missão da) arte é pers- “perfeita incultura” e de “absurda confu-
petivada entre o olhar para dentro do são entre política e literatura”, expressões
indivíduo e para fora dele, para as suas da polémica revisitada por Joana Marques
circunstâncias económico-sociais. A exis- Macedo (MACEDO, 2010).
tência escavava um abismo na fronteira Duas figuras se evidenciam, dentre ou-
entre ambos os olhares e a palavra carto- tras, com perfil hoje simbolicamente ex-
grafava-o diversamente, de costas volta- pressivo dessas visões em confronto: José
das, mas em confronto especular. Régio e Álvaro Cunhal. A discordância
Em A Arte e a Vida Social, Plekhanov sobe de tom, até que Cunhal chega mes-
(1856-1918) declarará o mandamento mo a afirmar que, “enquanto a obsessão
que fará escola desde 1930, reiterado em destes [neorrealistas] é o próprio umbi-
conferência por Vasco Magalhães-Vilhe- go, a daqueles é a sorte da humanidade”
na em 1935 e por Redol em 1936: a arte e que “a poesia de José Régio exalta uma
deve ser instrumental, denunciando de- posição (e até uma atitude) condenável,
sequilíbrios e injustiças e promovendo o fracassada e decadente”, devendo, por
progresso e a justiça social. isso, “ser combatida” (CUNHAL, 1939),
O ano de 1935 assistirá ao antagonismo obrigando Régio a “definir posições”
entre perspetivas inconciliáveis no que (com que intitulará, na primeira pessoa,
constituía o seu núcleo duro: o psicolo- a resposta). António Sérgio e João Gaspar
gismo presencista e a ideologia política Simões também debatem, significativa-
marxista neorrealista (designação que mente, “O mistério da poesia” (com que
dissimulava, para a censura, o “realismo o segundo intitulou uma obra de 1971).
socialista” defendido por Andrei Jdanov). A agressividade acaba por conduzir o de-
O conflito exprime-se na acusação mú- sacordo ao ataque pessoal, numa mútua
tua: os primeiros consideram os segun- recriminação que vai subindo de tom e
dos empenhados na ação política e so- que se desenvolve também a nível inter-
cial, e não na arte, e de terem no “povo no dos grupos ideologicamente compro-
infeliz  […]  um eterno pretexto, a misé- metidos com a esquerda (partido, revis-
ria alheia, no fim de contas, um eterno tas, neorrealistas): a estética neorrealista
degrau, a mediocridade da maioria uma apresenta diversidade e clivagens que de-
eterna consolação” (RÉGIO, 1939, 61), rivam das divergências ideológicas, além
enquanto estes os acusam de alheamen­ de registar uma evolução no sentido da
to egoísta através da arte, de “umbi- posterior heterodoxia do simbólico e do
guismo”, nas palavras de Álvaro Cunhal esteticizado. A clandestinidade, o exílio e
(CUNHAL, 1939a, 154), e de “mandari- a emigração, os estrangeirados e os con-
nato”, segundo Manuel Filipe, conside- formados fazem-se presentes e atuantes,
rando que desenvolviam o “pensamento no jogo de ausência e de presença, de

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1294 Antimodernismo literário

verbo e de silêncio, de proximidade e de mostrada, demonstrada, analisada nas


afastamento, de isolamento e de comuni- suas realidades e razões.
dade, fantasmagorizando todos os con- O tempo verá outras figuras tomarem o
tornos da vida social, que uns perscrutam facho aos que pensaram a Europa a par-
nas dobras dos sentimentos e que outros tir de Portugal e este a partir daquela ou,
querem denunciar e moldar. pelo menos, convocarem-nos na continui-
O percurso estético de autores como dade de certos tópicos e posições, recar-
Carlos de Oliveira é de um compromisso tografando a geopolítica até ao Portugal
ideológico expresso no mais óbvio (Alca- “novo” (Magalhães Godinho), de “hoje”
teia, de 1944, obra que, por isso, rejeitará e com “medo de existir” (José Gil), com
depois) para uma subtilização dessa pers- “duas razões” (Eduardo Lourenço), mas
petiva ideológica na elaboração ficcio- assumida e proclamadamente europeu e
nal esteticizante, marcada pela atenção lusófono (Fernando Cristóvão), entre o
ao trabalho de escrita e ao seu diverso mito imperial, a marginalidade política e
simbolismo. a dependência económica, finisterra em
Vergílio Ferreira protagoniza uma ou- ânsia e medo de ser, entre continente, pe-
tra tendência de distanciamento: a senda nínsula, memória mediterrânica e atlân-
existencialista. O humanismo que lhe in- tica, mas também do telúrico contrastivo
forma a escrita condu-lo para o confronto de aquém e além-mar.
íntimo e com a natureza humana, pers- Em 1939, na abertura da segunda série,
crutados nas situações-limite. a presença reitera a rejeição programática
A Europa é também palco e protago- da arte comprometida, social e politica-
nista da crise que se alimenta destas que mente empenhada, radicalizando o inte-
a polémica vocaliza: A Crise da Europa resse pelas criações de arte, as pesquisas
(1942), de Abel Salazar, encontra respos- ou conclusões da crítica. Em contraste,
ta em O Problema da Europa (1945), de Sil- observa-se a reiteração intolerante, do
va Dias; as divisões e as guerras convivem outro lado, do primado social, do “rea-
com os projetos de unificação, entre uto- lismo socialista”, seguindo as diretivas do
pia e possibilidade. Portugal repensa-se I Congresso dos Escritores Soviéticos (1934),
na sua relação com a Europa: hesitando da arte-“antídoto contra a decadência
entre a mitificação do passado, a perife- da literatura burguesa” (VIÇOSO, 2011,
ria e o isolamento do presente e o senti- 23), a arte-reflexo do real no contexto da
mento de ocidentalidade, entre o canto dialética revolucionária, desenvolvendo
e o contracanto que sempre lhe atraves- o conceito de herói positivo, monolítico,
saram a cultura. Ensaio sobre a Essência do de marcada ideologia. Na Seara Nova, em
Ensaio (1944), de Sílvio Lima, Repensar a 1947, Júlio Pomar defenderá que “tanto
Europa e a Globalização (2006, publicação os interesses imediatos, como os objetivos
póstuma), do P.e Manuel Antunes, Hetero- gerais dos artistas agrupados em torno
doxia (1949), de Eduardo Lourenço, sem do novo realismo, visam a mais ampla e
esquecermos o inquérito à vida cultural socialmente proveitosa utilização da arte
nacional realizado por este último para a pelas massas” (POMAR, 1947). Ou seja:
revista Bicórnio, em 1952, a pedido de Jo- a arte neorrealista tende a tornar-se uma
sé-Augusto França. Fazem-se ouvir Casais arte “do povo, pelo povo e para o povo”,
Monteiro, António Sérgio, Delfim Santos, como diz Garrett na “Memória ao Con-
Joel Serrão: as fraturas do nacional e en- servatório Real”, conferência proferida
tre este e a Europa são matéria debatida, em 6 de maio de 1843. Em suma, uma

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Antimodernismo literário 1295

arte que tivesse, como Gorki defende- Bibliog.: impressa: CRISTÓVÃO, Fernan-
ra no Congresso, “o trabalho” como sua do (coord.), Cadernos para Estudos, n.º 3. Do
matéria fundamental e como objetivo Romance Nordestino Brasileiro de 30 ao Neorrea-
lismo Português, Coimbra, Almedina, 2013;
uma “engenharia da alma” (Estaline) do
CUNHAL, Álvaro, “Numa encruzilhada dos
homem novo, sucedendo ao “mundo ve-
homens. A propósito das Cartas Intemporais de
lho”. Uma arte de catecismo marxista. José Régio publicadas na Seara Nova, n.os 608 e
Orfismo, presencismo, neorrealismo 609”, Seara Nova, n.º 615, 27 maio 1939,
e surrealismo são, pois, designações que pp.  285­‑287; Id., “Ainda na encruzilhada”,
tendem a uniformizar o diverso e a dis- Seara Nova, n.º 626, 12 ago. 1939a, pp. 151­
tinguir o afim. Em qualquer deles vibra- ‑154; DIONÍSIO, Eduarda et al. (orgs.), Situa-
vam emoções geradas nos desconcertos ção da Arte. Inquérito junto de Artistas e Intelectuais
Portugueses, Mem Martins, Europa-América,
do mundo, da vida, da sociedade e da
1968; GUIMARÃES, Fernando, “Revistas lite-
arte, todos (con)viviam (n)o sentimen- rárias dos anos 20 e 30”, Sema, n.º 3, outono
to de cultura intervalar de humanidade, 1979; MADEIRA, João, Os Engenheiros de Almas.
sociedade e cultura a (re)conhecerem­ O Partido Comunista e os Intelectuais, Lisboa, Es-
‑se e a (re)construírem-se em tempo de tampa, 1996; PIRES, Daniel, Dicionário das Re-
transformação, inquietação, inconfor- vistas Literárias Portuguesas do Século XX, Lisboa,
mismo, anseio de modernidade, de ino- Contexto, 1986; POMAR, Júlio, “O pintor e
o presente”, Seara Nova, n.º 1015, jan. 1947,
vação, de revolução cultural. Contudo,
pp. 19-20; RÉGIO, José, “Literatura viva”,
as referências e os pensamentos estéticos presença, sér. i, n.º 1, 10 mar. 1927, pp. 1-2;
têm perfis e concretizações diferentes e Id., “Literatura livresca e literatura viva”, pre-
conflituantes entre si: medeiam abismos sença, sér. i, n.º 9, 9 fev. 1928; Id., “Divagação
entre a esteticização e despersonalização mais ou menos pessoal sobre uma ‘blague’ do
da arte (primeiro modernismo), a análise Sr. Álvaro Cunhal, uma citação do Dom Cas-
introspetiva, psicologista (presencismo), murro, uma opinião de José Bacelar, o anexim
o compromisso ideológico com o social ‘preso por ter cão, preso por não ter’ e outras
miudezas que o leitor verá”, presença, sér. ii,
(neorrealismo) e entre estes e, depois, a
n.º 1, nov. 1939, pp. 59-61; VIÇOSO, Vítor,
mimetização criativa dos processos men- A Narrativa no Movimento Neo-Realista, Lisboa,
tais (surrealismo). Entre a arte, o homem Colibri, 2011; digital: CRISTALDO, Janer, En-
e a sociedade, o olhar estético vai elegen- genheiros de Almas (1886). O Stalinismo na Litera-
do os seus lugares, que reconfigura em tura de Jorge Amado e Graciliano Ramos: http://
recusa de outros, em choque com eles, www.ebooksbrasil.org/eLibris/engenheiros-
antiteticamente. dealmas.html (acedido a 29 dez. 2016); MA-
CEDO, Joana Marques, “Os movimentos mo-
Observar o percurso da primeira me-
dernista e neo-realista e o debate sobre a arte
tade do séc. xx, vetoriado pelos dois mo- pela arte e a arte social”, SAPIENS, n.os 3-4,
dernismos e pelos seus antis, na sua auto e 2010, pp. 125-151 [publicação online sem en-
heteroconfiguração, é ver renovar-se na li- dereço disponível].
nha do tempo cultural, periodicamente, o
Annabela Rita
velho choque entre antigos e modernos, a
colisão geracional, o gesto de autoprocla-
mação: na alternância pendular das ideias
e dos movimentos, cada identidade se vai
esboçando por oposição e negação da que
a precede, retomando muitas vezes outras
anterioridades, renovando-as/se com no-
vas constelações conceptuais.

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1296 Antimonarquismo

ta não hereditário, o ditador soberano,


Antimonarquismo que governa em nome próprio, nem ao
ditador comissário, o dictator romano,
que age em nome da República e é tem-
porário, legítimo, ocorrendo em estados
de exceção; apesar de ambos integrarem
aquela definição etimológica. Tal como,

A ntimonarquismo é a oposição ao
regime político cujo poder é detido
por um só indivíduo. Esta definição ra-
na sua definição greco-romana clássica, a
monarquia, termo mais corrente do que
monarquismo, é um regime legítimo, ao
dica na etimologia da palavra. Em gre- passo que a autocracia é ilegítima.
go, “mono” significa um, único, “archê” Ora, as monarquias europeias foram
poder. O antimonarquismo foi uma pai- instituídas na sequência das invasões ger-
xão oitocentista, que a Segunda Guerra mânicas, por isso designadas por neogo-
Mundial arrefeceu. Com efeito, na Euro- das, que deram termo violento ao Impé-
pa permanecem monarquias em Estados rio Romano do Ocidente. Assim, foram
relevantes (Reino Unido, Países Baixos, formas de governo em concreto antes de
Escandinávia) que coexistem com repú- serem uma forma de Estado em abstrato.
blicas; nem estas nem aquelas fomentam As ambiguidades do conceito derivam
restaurações ou temem antagonismos. aliás de ele assentar na designação do
Continua ainda a haver monarquias na chefe de Estado monárquico por uma
Comunidade Britânica (Canadá, Nova palavra culta, “monarca”, e não pelo ter-
Zelândia, Austrália e mais 12 realms), no mo “rei”, o mais corrente na linguagem
Japão e na Tailândia, além das tradicio- comum e na jurídica. “Monarquismo”
nais contemporâneas, onde se destacam sugere que o monarca derivou da mo-
as árabes que sobreviveram ao nacionalis- narquia, quando na realidade histórica
mo árabe. foram a monarquia e o monarquismo
que derivaram do monarca, ou melhor,
do rei. Aliás, já o sábio sevilhano ensinava
Definição de monarquia; “Regnum a regibus dictum”, i.e., o reino
variedade do conceito deriva do rei (ISIDORO DE SEVILHA,
O aparente irrealismo social da definição 2004, 754). “Monarca” corresponde ao ti-
etimológica de monarquismo choca mais tular do poder na definição grega de um
do que o antimonarquismo. Nas organi- dado regime justo, precisamente aquele
zações políticas contemporâneas, caracte- em que o poder é exercido por um só,
rizadas por uma profunda divisão social mas não correspondia, mesmo na Grécia
do trabalho, é inconcebível que o poder, clássica, ao titular em concreto desses re-
ou a soberania, seja exercido por um úni- gimes, o basileús – ao passo que a palavra
co indivíduo. Devemos ultrapassar essa “república” designa ao mesmo tempo o
defininição. Começaremos pela noção conceito abstrato e cada regime em con-
de monarquia que identifica as formas creto. A  palavra “monarca” sugere um
de Estado(-nação) instituídas nas Idades sistema, a palavra “rei” sugere um regime
Média e Moderna europeias, cujo chefe determinado.
é um rei hereditário, quando não desig- Num certo sentido, a própria evidên-
na esse mesmo rei. O termo “monarca” cia é que a monarquia são Monarquias:
não é, com efeito, aplicado ao autocra- a britânica do séc. xx é um Estado

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Antimonarquismo 1297

democrático de direito, a espanhola du- de poderes importantes, se não tiverem


rante a regência autocrática do genera- valor, causam grandes prejuízos, como
líssimo Francisco Franco e a Monarquia já sucedeu em Esparta” (Política, 1272b).
da Arábia Saudita coexistiram no tempo No Renascimento francês, Jean Bodin
e pouco terão de comum. É tal a diversi- começava por demonstrar a prioridade
dade das monarquias que, para muitos, da monarquia sem mencionar a heredi-
existe rei e não regime monárquico. tariedade, e só de raspão a defendia no
Entre nós, António de Oliveira Salazar, penúltimo capítulo de Les Six Livres de la
professor de Direito e o mais conhecido République; referia as posições aristotélicas
autocrata do Estado Novo, expressou e alegava, sem curar da verosimilhança:
essa tese em 1951, numa frase concisa “Todos os povos eram de opinião contrá-
que repetiu quase à letra sete anos mais ria” à do Estagirita, pois a hereditarieda-
tarde: “A  monarquia não é um regime, de era mais segura e de “direito natural”.
é apenas uma instituição”, a saber, o rei, A primeira doutrina política moderna só
o chefe de Estado. incomodada defendia a hereditariedade
Não só a monarquia é vária, o conceito real. Mais tarde, Penalva promoverá a
de rei é também múltiplo. A etimologia hereditariedade da aristocracia mas não
logo sugere diferenças estruturais entre, a do rei.
e.g., “rex”, que remete para o governo Na prática, as monarquias neogodas
reto – S.to Isidoro de Sevilha ensinou “Re- só com dificuldade foram adotando a
ges a recte agendo”, i.e., reis por agirem hereditariedade real, que era causa de
retamente (Id., Ibid., 312) – e a raiz *gen estabilidade política. A Idade Moderna
(nascer), aproximável do latim “gens”, europeia conheceu reis não hereditários,
que gera o “könig” alemão e o “king” como o Imperador do Sacro Império Ro-
inglês, ambos estes termos significando mano-Germânico ou, a serem tomados
bem nascidos. Sem preocupação de apro- por reis, os condottieri italianos. Ambos
fundamento, anotemos que uma tipolo- eram sinónimos de instabilidade políti-
gia do rei decorre da obra de Max Weber; ca; com efeito, as monarquias nacionais
com efeito, dos seus três tipos de legiti- europeias só tinham estabilizado quando
midade, tradicional, burocrático-legal e passara a ser hereditária a transmissão da
carismática, decorrem três figuras de rei chefia do Estado. O Iluminismo criticará
e talvez eles tenham sido produzidos a a hereditariedade do poder estatal por
partir de figuras de reis. ser injusta e gerar incompetência. A ultra-
passagem da hereditariedade política é,
por isso, um momento decisivo na trans-
Monarquia e hereditariedade formação da organização política apenas
É inexata a identificação corrente entre orgânica para a que é também contra-
monarquia e hereditariedade na trans- tual, pois o automatismo dinástico passa
missão da coroa. A hereditariedade não a sobrepor­‑se à adscrição familiar do po-
gozava de boa reputação teórica entre der político e à vontade do seu ancião.
os clássicos greco-romanos. Aristóteles No séc. xix, o romantismo reposicionará
distinguira-a da monarquia e condena- uma nova moda do princípio biológico:
ra-a; preferia a monarquia de Cartago à “A  hereditariedade dá à luz a legitimi-
de Esparta porque os seus reis “não são dade, ou a permanência, ou a duração”,
de uma linhagem específica”, o que era escreveu Chateaubriand, que reconhecia
uma “vantagem” pois, “como dispõem que “à primeira vista” a “hereditariedade

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1298 Antimonarquismo

monárquica” parecia “absurda” mas o a representação em termos de mandato,


“uso” mostrara-a superior à monarquia mas insere-a num dispositivo que justi-
eletiva, por razões “evidentes” que releva- fica a concentração de todo o poder no
vam da estabilidade (CHATEAUBRIAND, soberano. Em primeiro lugar, pela siste-
liv. 33, cap. 7). matização. Hobbes começa o seu sistema
pela constituição da organização social
(De Cive, 1642) e fá-lo com base na no-
Começo do antimonarquismo ção de contrato social, o qual depende
A palavra “antimonarquismo” é tripla- em absoluto do indivíduo; só convoca o
mente enganadora: sugere que as monar- conceito de representação quando a or-
quias europeias resultam de uma teoria ganização social já foi constituída pelo
política, quando elas são acima de tudo contrato social e está a funcionar; é este
factos históricos e singulares; pressupõe o tema do Leviatã. Esta teoria hobbesiana
que a monarquia é um sistema de gover- da representação destaca o representan-
no, e só um, quando corresponde a vários te, apaga os representados e prepara o
e talvez seja apenas a instituição real, que soberano pela própria lógica da articula-
não um sistema; estabelece uma simetria ção entre as noções de contrato social e
com outros antis estatais, os quais se opu- de representação. O seu covenant – o con-
nham a regimes que, ao contrário da mo- trato social – apenas vincula os súbditos,
narquia, existiam na teoria política antes pois, por definição, é uma delegação to-
de serem concretizados na vida política, tal e irrevogável de poderes no soberano.
como o federalismo presidencial dos Hobbes afirmava a monarquia, absolutis-
Estados Unidos e a República Francesa. ta mas contratual, por uma necessidade
Vimos serem inexatas as duas primeiras de segurança, agudizada pela guerra civil.
pressuposições; examinaremos de segui- A sua teoria, porém, era ilógica: se o so-
da a terceira. berano, enquanto indivíduo, participa na
Não havia antimonarquismo na monar- multidão que vota o contrato social e dela
quia da Idade Média, que era um regime se exclui, abstendo-se de votar, isso não o
singular e singularizante, que desconhe- dispensa das obrigações dele resultantes;
cia a oposição. O antimonarquismo só se era alheio à multidão contratante, não
começa depois de ter começado o monar- era parte do contrato, tendo recebido um
quismo, i.e., quando a realeza tradicional mandato, desse contrato decorrente, é a
é abalada, sente a necessidade de se de- todo o momento lícito aos contratantes
fender e para tanto adota uma doutrina demitirem-no; por outro lado, a lógica do
abstrata. É a transformação em sistema contrato não autoriza um compromisso
de um poder pessoal que começou por sem prazo, pelo que os cidadãos são livres
existir apenas na sua singularidade e que de alterar o covenant.
só para sobreviver procurou passar a con- Mesmo no plano teórico, a monarquia
ceito abstrato. absolutista de Hobbes influenciou pou-
O primeiro monarquista moderno é co a prática política. Patriarcha (1680)
Thomas Hobbes (1588-1679), cuja teoria teve mais expansão e respondeu-lhe em
política responde à Commonwealth re- nome dos defensores do poder régio:
publicana que Cromwell estabelecera na “Não só Adão mas os patriarcas seus su-
Guerra Civil britânica; para isso, funda- cessores gozavam, por direito de pater-
menta a monarquia absoluta no contrato nidade, da autoridade real sobre os seus
social. O seiscentista formula claramente filhos”; o “senhorio” de Adão sobre o

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Antimonarquismo 1299

implícito pressupunha que o déspota


era limitado pela burocracia racionaliza-
dora. Em França, a Encyclopédie ensinava
que “a  melhor forma” de monarquia era
a “limitada”, pois nela “os três poderes
[executivo, legislativo, judicial] estão de
tal modo fundidos que se servem uns aos
outros de balança dos poderes”; e dava o
exemplo da Coroa britânica, já exaltado
por Montesquieu (JAUCOURT, 1986, 236).
No Portugal setecentista, a teoria polí-
tica monárquica terá sido mais tradicio-
nalista do que iluminista, acentuando a
unidade da organização política. “A uni-
dade de chefe é sempre necessária à so-
ciedade”, afirmou a Dissertação a favor da
Monarquia, o primeiro texto monarquista
português, datado de 1799 e influenciado
por Filmer (PENALVA, 1942, 29).

Capa da obra Leviathan, de Thomas Hobbes


Os antimonarquismos
(1588-1679). Se não há uma monarquia, mas várias;
se não há um rei, mas diferentes reis; se
mundo era “tão grande e amplo como não há um monarquismo mas diversas
o do mais absoluto dos monarcas desde teorias monarquistas, então não há um
a criação” (FILMER, 1680, cap. 1, §§3­ antimonarquismo mas sim uma plurali-
‑4). O seu autor adotou “a perigosa táti- dade deles.
ca de levar a guerra ao terreno inimigo” A monarquia são as monarquias: uma
pois, “em vez de basear-se na autoridade representa uma raça, outra é hereditária,
da Escritura, procurou demonstrar que outra não é, uma é autocrática, a outra
o poder do monarca é ‘natural’” (SABI- é liberal, e assim por diante. Os antimo-
NE, 1978, 379); e John Locke desfez a narquismos mudam consoante as situa-
sua argumentação no First Treaty: nunca ções específicas. Assim, por exemplo,
um pai dispõe de um poder absoluto so- no final do séc. xviii português, a Dis-
bre os seus filhos; se o seu poder vem de sertação nomeia duas críticas principais
os ter engendrado, deve partilhá-lo com à monarquia: a ausência de “liberdade”
a mãe; a haver senhorio absoluto, esten- e de “direitos do cidadão” (Id., Ibid., 39,
der-se-ia à terra e aos animais, mas não 45). Examinemos os monarquismos e os
aos homens; se os reis tivessem herdado antimonarquismos de cada um deles em
de Adão os seus poderes, haveria um termos gerais; distinguiremos sucessiva-
único rei absoluto. mente o antirracista, o antirreligioso, o
No séc. xviii, o Iluminismo desmulti- anti-hereditariedade, o antiabsolutista,
plicou-se em julgamentos sobre a monar- o antiliberalismo, o positivismo antimo-
quia. Aceitou-a absoluta desde que fosse nárquico, o antimonarquismo dos mo-
iluminada, o que ao menos de modo nárquicos e, por fim, o antimonarquismo

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1300 Antimonarquismo

prático. Como eles surgem datados, tere- instituições, e foi indispensável, desde o
mos de os contrastar com a história polí- séc. xvi, ao liberalismo para o acesso a nu-
tica e com os monarquismos. merosas situações nas instituições dirigen-
tes; essa fiscalização impedia o acesso ao
Antirracista topo do poder dos cristãos-novos, conside-
Comecemos pela dimensão biológica rados não pela religião mas pela raça (ou
da monarquia. Os monarcas europeus o sangue), diferente da dos neogodos; o
tinham todos, ou quase todos, uma ori- mesmo sucedia com outras raças em Áfri-
gem tribal. Sendo chefe tribal, o rei é, ca, no Brasil e na Ásia.
portanto, um chefe racial. O governo
neogodo tem a conquista como único tí- Antirreligioso; o anticlericalismo
tulo jurídico. No séc. xviii, a aristocracia O rei tinha, ou tinha tido, uma dimensão
francesa, atribuindo-se uma origem ger- sagrada, que provocara anticorpos de-
mânica, afirma que governa a França por pois da Idade Média; não a examinámos.
um direito de conquista; os dois temas É no séc. xviii que renasce, em França, a
do direito de conquista e da raça foram teoria do direito divino dos reis, não no
depois desenvolvidos; a historiografia de- sentido de o poder em geral vir de Deus,
corrente desta visão será prolongada no nem no sentido de Deus ter instituído os
séc. xix quando a “história será decifra- reis enquanto seus agentes na esfera esta-
da de dois modos: a luta de classes e o tal, mas na aceção de Deus ter escolhido
afrontamento biológico” (FOUCAULT, para reinar em particular uma dada famí-
1989, 93-94). Sieyès agarrará nestes te- lia, cujos títulos eram augustos, i.e., divi-
mas para combater a nobreza e, de al- nos, ao passo que os outros reis eram ape-
gum modo, a monarquia, ameaçando de nas instrumentos de Deus, como disse o
modo brutal: “Se a aristocracia [francesa] bispo de Meaux (1627-1704) na primeira
justificasse os seus privilégios pelo direito parte do exórdio do seu célebre sermão
de conquista”, o terceiro estado, o povo “sobre os deveres dos reis” (BOSSUET,
da monarquia tradicional, “devolveria às 1975, 140).
florestas da Francónia todas essas famílias A acusação de clericalismo ligava-se à
que conservam a louca pretensão de des- dimensão religiosa das monarquias, mas
cenderem da raça dos conquistadores e concretizava-se na sua escolha de pessoal
de lhes terem sucedido nos seus direitos” dirigente. As monarquias, incluindo as
(SIEYÈS, 1982, 32). liberais, foram dele acusadas, em Portu-
Doutrinas semelhantes às francesas vigo- gal como em França. A italiana, que tinha
raram no direito público português, pelo invadido os Estados papais, estava imune.
menos do séc. xvi ao xviii; a concretiza- Esta crítica, porém, ainda que numa dada
ção das regras da endogamia da nobreza conjuntura fosse eficaz em termos de luta
portuguesa com grandeza assegurava, só política, era exterior à natureza da mo-
por si, ao menos em certos períodos, a ma- narquia. Já talvez lhe fosse endógena a
nutenção da raça neogoda, à qual abun- dificuldade de se separar de uma Igreja
dam as alusões, que ainda não foram obje- de Estado.
to de um programa de pesquisa, talvez por
sermos oficiosamente não racistas; função Anti-hereditário
simétrica era preenchida pela fiscalização A hereditariedade real era um derivado
da limpeza de sangue, que integrava a prá- substantivo da raça; não integrava a com-
tica tanto da Inquisição como de outras preensão do conceito de monarquia, mas

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Antimonarquismo 1301

a história política europeia tinha-a torna- soluta ou absolutista; por isso, esta crítica
do uma adjacência dela inseparável na é típica dos sécs. xvii e xviii. O antiabso­
prática e, desde o Renascimento, é um lutismo era mais adjetivo do que subs-
elemento tão importante da compreen- tantivo, mas sintetizava numa palavra as
são da monarquia como a unicidade do duas grandes críticas ao Ancien Régime
poder do Estado. que Penalva sumariava. No séc. xix, o ro-
Quando ou onde aquela justificação mantismo pintará nas cores mais negras
racial da hereditariedade política não o absolutismo, usando para tanto todas
era politicamente aceitável, o rei passou as formas artísticas. As óperas de G. Ver-
a ser apresentado como o protótipo da di (1813-1901) são uma ilustração deste
autoridade na família. “Os pais de famí- antimonarquismo.
lia foram os modelos dos reis”, lia-se, em O antimonarquismo sofria de debili-
1799, na Dissertação, seguindo Patriarcha dades teóricas pois equacionava a mo-
(PENALVA, 1942, 17). Mas o argumento narquia absoluta, um regime justo, com
não provava, pois a família real não era a a tirania, um regime injusto. A Encyclo-
única família, nem a família era incompa- pédie distinguia-a do “poder arbitrário
tível com outras formas de governo. Os e despótico” pois era “limitada pela sua
monárquicos do séc. xx contra-argumen- própria natureza, pela intenção daque-
taram, defendendo a realeza hereditária les de quem o monarca depende e pelas
de uma família como especialização no leis fundamentais do seu estado” (JAU-
serviço público, mas o argumento não COURT, 1986, 236).
respondia às objeções derivadas da loucu- Para ultrapassar o romantismo, G. W. F.
ra individual ou da variação genética no Hegel (1770-1831) propôs uma visão do
seio de uma mesma estirpe régia, nem, monarca próxima do absolutismo, mas
caso o monarca gozasse de algum poder, suscetível de uma leitura liberal: “A per-
ao argumento republicano, que já sinte- sonalidade do Estado só é real (wirklich)
tizaremos. como pessoa”, sendo a pessoa “o monar-
ca” – é a lição do Leviatã; por isso, “sem
Antiabsolutista o seu monarca e sem a articulação [com
O antimonarquismo das Luzes e da Re- o todo] que imediata e necessariamente
volução Liberal construtora de Estados dele provém, o povo (Volk) é uma massa
consistiu na recusa de uma chefia única sem forma, deixa de ser um Estado e dei-
e omnímoda; um homem decidirá em xa de ter as determinações que existem
última instância, mas essa instância será no todo organizado – soberania, gover-
definida por uma organização legal cons- no, justiça, autoridade, ordens, etc.” (HE-
titucional; daqui decorre o equilíbrio GEL, 1976, § 279).
dos poderes, dos checks and balances, que Mais tarde, já no séc. xx, os integra­listas
ressuscitava a teoria greco-romana do também foram acusados de absolutismo,
governo misto e casava bem com a visão o que rejeitavam. António Sardinha de-
newtoniana do universo físico como sis- clarou-se deleitado por um jornalista lhe
tema autoequilibrante, visão que então dizer que ele queria uma república com
se afirmava. Este antimonarquismo, por um rei; só dissentia por não querer um
definição, não abrangia a monarquia li- rei “pedra de fecho da abóboda”; e apro-
beral, ou constitucional. veitava o ensejo para se distanciar do ab-
É a Revolução Liberal destrutora de Es- solutismo. Aliás, o integralismo propunha
tados que ataca a monarquia, por ser ab- um governo misto do tipo: monarquia na

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1302 Antimonarquismo

nação, aristocracia na profissão, demo- Anti-integralista


cracia no município; mas recusava o su- A Action Française e o Integralismo Lusi-
frágio universal direto e anónimo como tano defenderam, no começo do séc. xx,
fonte de poder estatal (SARDINHA, uma organização política em que o rei
1924, 125ss.). era o centro de uma sociedade orgânica,
Os monárquicos liberais tinham ainda nostálgica da integração social atribuída
menos dificuldade em rejeitar a acusa- à Idade Média. Em 1921, na Seara Nova,
ção de absolutistas: afinal, tinham sido os Raul Proença criticou os integralistas
coveiros do absolutismo. Para eles, o rei por, embora afirmando a originalidade
era apenas um magistrado da nação; os portuguesa, serem uma cópia da escola
poderes eram os que ela lhe dava. O apo- do francês Charles Maurras (1868-1952),
geu desta monarquia começou no Reino crítica que eles rejeitaram. O monarquis-
Unido, durante o reinado de Jorge  V mo integralista é mais atacado pela sua
(1865-1936), em particular quando o Rei especificidade antiliberal do que pela sua
não reagiu à abolição do veto legislativo generalidade monárquica.
da Câmara dos Lordes, imposto pela Câ-
mara dos Comuns, em 1909, após longa
Antiliberal
luta entre os partidos Liberal, maiori-
As monarquias liberais foram acusadas
tário na câmara eletiva, e Conservador,
dos mesmos pecados que as repúblicas
maioritário na hereditária. Aplicaram-se
liberais: partidocracia, plutocracia, etc.
então plenamente os célebres adágios
Eram, porém, críticas mais dirigidas ao
“The king can do no wrong” e “Le roi
acidente da monarquia do que à sua es-
règne mais il ne gouverne pas”. Aqueles
sência, pois visavam o liberalismo e não o
adágios concretizavam-se no “princípio
monarquismo.
da responsabilidade ministerial”: o rei
só atuava sob proposta de um ministro,
o qual respondia perante o parlamento O antimonarquismo positivista
(HARVEY e BATHER, 1977, 218). Assim Auguste Comte (1798-1857), por reação
se conciliava a realeza com a soberania do à Revolução Francesa enquanto crise
eleitorado. Este tipo de regime foi qualifi- social, produziu uma teoria orgânica
cado de respublica. do político que foi uma arma poderosa
A mutação, que transformava o rei num do antimonarquismo; central a essa teo-
magistrado apenas representativo, passou ria era a lei dos três estados, segundo a
desapercebida ao Rei D. Carlos, que, em qual a humanidade e cada homem tinha
novembro de 1907, declarou a J. Galtier, de passar por três idades: teológica, ou
jornalista do Le Temps: “Faremos [ele e feudal; metafísica, correspondendo ao
João Franco] as eleições no momento Iluminismo; positiva, o triunfo da ciên-
que escolhermos” (GALTIER, Le Temps, 14 cia depois da Revolução Francesa. A mo-
nov. 1907, s.p.). O Rei afirmava-se como narquia era assim relegada para a fase
governo e aliado de um partido, violando inicial da humanidade e, por isso, cor-
assim o princípio da responsabilidade mi- respondia a um retrocesso civilizacional.
nisterial e precipitando a opinião liberal Por paradoxo, o positivismo comteano,
para os braços dos republicanos; foi por ao criticar a metafísica iluminista e de-
certo o primeiro caso de ignorância do fender a política dos factos, será a base
direito constitucional castigada com o re- das teorias de Charles Maurras e de An-
gicídio, em 1908. tónio Sardinha (1887­‑1925).

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Antimonarquismo 1303

Os antimonarquismos ra Junqueiro (“O caçador Simão”), nos


monárquicos quais muitos viram um regicídio em apelo
Os diferentes tipos de monarquia com- ou premonição, e as caricaturas de Leal
bateram-se uns aos outros: legitimistas e da Câmara valeram no antimonarquismo
liberais não se pouparam. Um episódio prático muitas resmas de teoria túrgida.
célebre ilustra esta guerra. Em 1875, após O Estado Novo esvaziou a questão do
a derrota frente à Alemanha bismarckia- regime, o que fora facilitado pela derrota
na, a 5 de julho de 1871, colocou-se, em militar e política sofrida pelos monárqui-
França, a possibilidade da restauração cos, em 1919, em Monsanto e no Norte.
da monarquia; o conde de Chambord, Carlos Ferrão, um jornalista, manteve a
o pretendente legitimista, na sua decla- chama da polémica antimonárquica, em
ração da bandeira branca, recusou jurar particular no primeiro cinquentenário da
a flâmula tricolor, o símbolo revolucio- República, mas o êxito das suas numero-
nário da França aceite pelos Orléans, o sas obras foi de estima, mais do que de
ramo mais novo dos Bourbons, e por isso fundo.
o Parlamento não o aceitou como rei. O antimonarquismo perdeu quando
Sem o dizer, Chambord preferia à monar- a monarquia ultrapassou as suas origens
quia constitucional e liberal a república; singulares e aceitou o universal. Em
sem ele, esta não teria triunfado em 1871. termos weberianos, diríamos que o rei
A luta fratricida dos monárquicos ocor- “rotinizou o carisma”, passando para as
reu também em Portugal. No número de instituições as suas qualidades pessoais.
setembro de 1923 da Nação Portuguesa, O que aliás não era sinónimo de universa-
António Sardinha comemora o 15.º ani- lismo. No séc. xxi, subsistiam numerosas
versário de D. Duarte Nuno de Bragança; monarquias, a maior parte das quais não
persiste em “saudá-lo como ‘o herdeiro suscitava oposição. O debate na Austrália
presuntivo do Encoberto’” e declara que sobre a sua transformação em república
foi “espoliado dos seus direitos inaliená- mostrava que o antimonarquismo morre-
veis [ao trono] por uma cabala, em que ra com o antirrepublicanismo.
aparece algo da garra maçónica”, que
favorecera o Rei D. Manuel II, então exi-
lado. Os monárquicos liberais não eram Bibliog.: ARISTÓTELES, Política; BENVE-
mais ternos em relação aos integralistas. NISTE, Emile, Le Vocabulaire des Institutions In-
do-Européennes, vol. ii, Paris, Les Editions de
Minuit, 1969; BODIN, Jean, Les Six Livres de
Os antimonarquismos práticos
la République, Paris, Jacques du Puys, 1576;
Os antimonarquismos estatais portugue- BOSSUET, Jacques Bénigne, Sermons, Paris, Li-
ses do séc. xix tiveram os seus teóricos, brairie Larousse, 1975; BURDEAU, Georges,
como Henriques Nogueira, Teófilo Braga Traité de Science Politique, vol. ii, Paris, Librai-
e Sebastião Magalhães Lima. Mas o essen- rie Générale de Droit et Jurisprudence, 1949;
cial estava no ataque à pessoa do rei, pois CATROGA, Fernando, Ensaio Respublicano, Lis-
a monarquia tornara-se o que a realeza boa, Fundação Francisco Manuel dos Santos,
era: um poder personalizado. Em Fran- 2011; CHATEAUBRIAND, François-René,
Mémoires d’Outre-Tombe; FILMER, Robert, Pa-
ça, Luís XVI fugiu e traiu, D. Carlos teria
triarcha  or the  Natural Power of Kings, London,
traído no Ultimato a favor da “pérfida Al- Ric. Chiswell, 1680; FOUCAULT, Michel,
bion”. “Papagaio real, diz-me, quem pas- Résumé des Cours 1970-1982, Paris, Julliard,
sa?/É alguém, é alguém que foi à caça./ 1989; GALTIER, Joseph, “Visite au Portu-
Do caçador Simão!” – estes versos de Guer- gal”, Le Temps, 14 nov. 1907, s.p.; HARVEY,

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1304 Antinacionalismo

Jack, e BATHER, Leslie, The British Constitution,


4.ª ed., London, MacMillan Education, 1977;
Antinacionalismo
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Princípios da
Filosofia do Direito, Lisboa, Guimarães Editora,
1976; HOBBES, Thomas, Leviathan, London,
Fontana/Collins, 1972; Id., Le Citoyen ou les
Fondements de la Politique, Paris, Flammarion,
1982; ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias,
Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos,
2004; JAUCOURT, Louis de, “Monarchie ab-
solue”, in Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné
O antinacionalismo é uma corrente
ideológica de oposição ao nacio-
nalismo (à ideia de nação), que defende
des Sciences, des Arts et des Métiers, Paris, Flam- que os ideais nacionalistas apresentam
marion, 1986; LOCKE, John, First Treatise on
desvantagens e riscos, e são incompa-
Government; MATOS, Luís Salgado de, O Es-
tado de Ordens, Lisboa, Imprensa de Ciências tíveis com a modernidade e com a de-
Sociais, 2004; Id., Como Evitar Golpes Militares, mocracia. Os movimentos antinaciona-
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008; listas apresentam uma pluralidade de
MONTEIRO, Nuno, O Crepúsculo dos Grandes. sentidos  – político-ideológicos, religio-
A Casa e o Património da Aristocracia em Portugal sos, etc. –, que têm, no entanto, o mesmo
(1750-1832), Lisboa, INCM, 1998; OLIVAL, objetivo: contrapor-se aos ideais naciona-
Fernanda, “Rigor e interesses. Os estatutos
listas, que entendem o Estado como uma
de limpeza de sangue em Portugal”, Cadernos
de Estudos Sefarditas, n.º 4, 2004, pp. 151­‑182;
nação politicamente organizada.
PENALVA, Marquês de, Dissertação a favor Não se consegue entender o antinacio-
da Monarquia, Lisboa, Edições Gama, 1942; nalismo sem se compreender a noção de
PROENÇA, Raul, Acerca do Integralismo Lusita- nação. O termo “nação” deriva do verbo
no, Lisboa, Seara Nova, 1964; ROUX, Jean­ latino nascor e etimologicamente significa
‑Paul, Le Roi. Mythes et Symboles, Paris, Fayard, relações de origem. Podemos definir na-
1995; SABINE, George, Historia de la Teoria Po- ção como conjunto de pessoas que apre-
litica, México/Madrid/Buenos Aires, Fondo de
sentam uma relação de nascimento (de
Cultura Economica, 1978; SARDINHA, Antó-
nio, Ao Princípio Era o Verbo. Ensaios e Estudos, origem), atravessada por uma comunhão
Lisboa, Portugália, 1924; SCHMITT, Carl, La de raça, língua e costumes, independen-
Dictadura desde los Comienzos del Pensamiento Mo- temente de viverem no mesmo territó-
derno de la Soberania hasta la Lucha de Clases Pro- rio soberano. Esse vínculo é o elemento
letaria, Madrid, Ediciones de la Revista de Oc- essencial da nação e o que une entre si
cidente, 1968; SIEYÈS, Emmanuel, Qu’Est­‑Ce diversos grupos que desenvolvem a sua
Que le Tiers État?, Paris, PUF, 1982; WEBER,
atividade num determinado território,
Max, Économie et Société, t. i, Paris, Plon, 1971.
que receberam juntos as luzes da civiliza-
Luís Salgado de Matos ção, que desenvolveram interesses pelas
mesmas vias, que aperfeiçoaram aptidões
e adquiriram hábitos semelhantes, que
possuem tradições, história e, em muitos
casos, uma língua comum. A nacionali-
dade foi também, por isso, identificada
com a raça, que é moldada pelas grandes
divisões etnológicas e pelas fronteiras na-
turais. Em resumo, o termo “nação” de-
signa um povo submetido a um governo,
com uma identidade cultural, linguística

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Antinacionalismo 1305

e política determinada, e com uma cons- do séc. xx, e a revolucionário e socialista


ciência de individualização em relação a no pós-Segunda Guerra Mundial (1939­
outros povos. A nação unifica-se através ‑1945), nomeadamente por força da
do Estado e, como se pode comprovar do emergência dos países descolonizados,
ponto de vista histórico, sem Estado não especialmente do continente africano.
se concebe a nação. O mesmo é dizer que as correntes libe-
Do conceito de nação surge o de nacio- rais de nacionalismo foram substituídas
nalismo, que foi entendido por Martim por uma conceção conservadora, típica
de Albuquerque como o “amor comum a dos movimentos fascistas e autoritários
um solo ou a outra qualquer realidade”, dos anos 30 e 40 do séc. xx, e de novo,
como a língua ou a civilização, ou ainda durante o pós-Segunda Guerra Mun-
“o desejo de independência política”, a dial, por uma corrente libertadora e
adoção do “princípio de que a nação é revolucionária.
um fim em si mesmo a que o indivíduo Houve um recrudescer dos nacionalis-
se deve votar exclusivamente”, a “ideia mos no final do séc. xx, numa altura em
da nação como nação suprema” (ALBU- que foram quebradas as amarras ideológi-
QUERQUE, 1974, 18). O sentimento de cas emergentes do pós-guerra, de contes-
pertença a um grupo, que deu origem, tação ao federalismo europeu e de eman-
em muitos casos, ao processo de constru- cipação de povos submetidos a regimes
ção do Estado-nação, gerou-se a partir das ditatoriais no Leste europeu. A ideia de
dimensões culturais, étnicas e políticas. pertença a um grupo, típica do naciona-
As comunidades culturais organizadas lismo, assumiu também uma dimensão
territorialmente projetaram-se em reali- de exclusão, uma vez que o nacionalismo
dades políticas, dando origem à pátria. se reveste de um sentido de diferencia-
Os movimentos nacionalistas, que surgi- ção em relação a outras comunidades.
ram a partir do séc. xix, assumiram uma Isto permite dizer que a ideia de nação
dupla função: por um lado, libertar os gru- apresenta simultaneamente um fator de
pos nacionais que se encontravam subme- integração (ad intra) e um fator de dife-
tidos a um Estado governado por pessoas renciação (ad extra). Talvez tenha sido
de outra nacionalidade, por outro, e em por esta razão que Nehru afirmou que o
concomitância, reunir num só Estado as nacionalismo era um “sentimento anti”,
populações com a mesma nacionalidade. um sentimento que excluía um grupo em
Por isso, na doutrina política do séc. xix, relação a outro (CRUZ, 1992, 833).
era comum haver uma equiparação entre O princípio das nacionalidades e os
os conceitos de Estado e de nação. movimentos nacionalistas tiveram como
Pode afirmar-se que o nacionalismo contraditores não apenas aqueles que
moderno surgiu como fenómeno revo- defenderam a fraternidade entre todos
lucionário de contestação perante o sis- os homens e a constituição de um Estado
tema político de cariz absoluto, uma vez universal que superasse as nacionalida-
que defendia as liberdades individuais e a des existentes, mas também os que, não
descentralização do poder. O desenvolvi- se identificando com os regimes políticos
mento dos movimentos nacionalistas ao em exercício, os contestaram, assim como
longo do séc. xix ocorreu em simultanei- aos princípios pelos quais se orientavam,
dade com a defesa da soberania popular. que se baseavam na diplomacia da força,
O nacionalismo de matriz liberal do na cultura do poder pelo poder, na eleva-
séc.  xix passou a autoritário no início ção da pátria e da nação como estruturas

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1306 Antinacionalismo

basilares da construção política e na su- vimento pacifista considera que a união


premacia de um povo sobre os outros. As dos povos conduz à paz.
formas de criticar o poder político através O pacifismo dito pragmático, que não
do conceito de nação deram origem aos acredita no Estado, mas no indivíduo e
vários movimentos antinacionalistas. na sua integração societária, foi desenvol-
Entre os antinacionalistas encontra- vido pelas correntes anarquistas, que im-
mos os idealistas, que no séc. xix con- putam às organizações estatais a violência
denaram a divisão da humanidade em e a opressão. O anarquismo, que lutou
nações, como oposta à fraternidade hu- contra as ideias nacionalistas e contra a
mana. Esta corrente, que entendia que divisão estadual estatal ou nacional dos
a criação de nações constituía um crime povos, defendeu o fim da propriedade
de lesa-majestade, teve o pensamento de privada e do Estado, e propugnou uma
Lamennais como expoente e como fun- sociedade baseada na solidariedade e na
damento a epístola de S. Paulo aos Gála- liberdade.
tas, onde se pode ler: “Não há judeu nem As correntes marxistas consideram que
grego; não há escravo nem livre, não há a ideologia nacionalista origina uma ano-
homem e mulher, porque todos sois um malia política e social. A construção polí-
só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28). Os idea- tica marxista implica um internacionalis-
listas propunham a integração dos seres mo, uma vez que as ideias de igualdade e
humanos numa só pátria, numa só nação, de justiça social que o marxismo propala
o que os convertia em “cidadãos do mun- têm uma vocação universal, incompatível
do”. A  doutrina idealista defendia a co- com a construção política nacional e com
munhão e a solidariedade universal, bem a pluralidade de identidades nacionais.
como a abolição das guerras, das alianças, No entanto, apesar de o marxismo não
dos egoísmos nacionais, dos tratados, e ser um adepto teórico do nacionalismo,
de outras coisas similares. De modo geral, historicamente a realidade demonstrou
as correntes universalistas são, por isso, e que as revoluções que se seguiram à Se-
por natureza, antinacionalistas. gunda Guerra Mundial foram nacionalis-
Os antinacionalismos revolucionários, tas, mesmo se de matriz marxista, como
que podem assumir uma perspetiva socia- as ocorridas no continente africano com
lista, comunista e anarquista, não hostili- o eclipsar dos impérios coloniais.
zam o conceito de fronteiras nacionais, Os movimentos antinacionalistas tam-
mas entendem que essas divisões podem bém podem assumir uma feição ideológi-
ser desvantajosas, causando, e.g., situa- ca de extrema-direita. Na Europa, depois
ções de xenofobismo e, em consequên- da queda do Muro de Berlim (1989), as-
cia, a guerra. sistiu-se a um conjunto de manifestações
As correntes pacifistas também podem antinacionalistas – em muitos casos liga-
ser consideradas antinacionalistas. Ao das à extrema-direita – que se opunham
defenderem uma paz universal, veem na aos movimentos de imigrantes que che-
construção estadual e nacional a princi- gavam à Europa Ocidental e aos Estados
pal causa das contendas bélicas interna- Unidos da América oriundos da desa-
cionais. A unidade dos Estados e dos po- gregação de países como a Jugoslávia e a
vos, mesmo que em estruturas federadas União Soviética. Estes movimentos, cono-
ou confederadas, tal como foi defendida tados com forças tradicionalistas e con-
por Kant no opúsculo A Paz Perpétua, é servadoras, agiam em nome da segurança
uma solução para evitar a guerra. O mo- dos Estados ocidentais, e contestavam a

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Antinacionalismo 1307

Bibliog.: ALBUQUERQUE, Martim, A Cons-


ciência Nacional Portuguesa. Ensaio de História
das Ideias Políticas, vol. i, Dissertação de Dou-
toramento em História Moderna e Contem-
porânea apresentada à Universidade de Lis-
boa, Lisboa, texto policopiado, 1974; Id.,
A Consciência Nacional Portuguesa, Lisboa, Ver-
bo, 2016; ANDRADE, Abel de, Princípio das
Nacionalidades, Coimbra, Imprensa da Univer-
sidade, 1893; CRUZ, Manuel Braga da, “Euro-
peísmo, nacionalismo, regionalismo”, Análise
Social, vol. xxvii, n.os 118-119, 1992, pp. 827­
‑853; FIGUEIREDO, José Valle de, “Naciona-
D.R. lismo”, in Polis, vol. iv, Lisboa, Verbo, 1986,
pp. 503-506; FREITAS, Pedro Caridade de,
Placa assinalando o ponto onde passava
Portugal e a Comunidade Internacional na Segunda
o Muro de Berlim (1961-1989).
Metade do Século XIX, Lisboa, Quid Juris, 2012;
HOBSBAWM, Eric, A Questão do Nacionalismo.
desagregação dos Estados do denomina- Nações e Nacionalismo desde 1780, 2.ª ed., Lis-
do bloco de Leste, pelas consequências boa, Terramar, 2004; MANCINI, Pasquale
Stanislao, Sobre la Nacionalidad, ed. Antonio
migratórias que pudessem trazer. Desta
E. Pérez Luño, Madrid, Tecnos, 1985; MO-
forma acabam por ser opositores dos mo- REIRA, Carlos Diogo, Pátria, Identidade e Nação,
vimentos nacionalistas que surgiam neste Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais
processo de desagregação dos Estados. e Políticas, 2007; OTERO, Paulo, A Democra-
Os antinacionalismos podem também cia Totalitária. Do Estado Totalitário à Sociedade
assumir uma feição democrata. Os concei- Totalitária. A Influência do Totalitarismo na Demo-
tos de pátria e de nação, defendidos por cracia do Século XXI, Cascais, Principia, 2001;
PIMENTEL, António de Serpa, Questões de Polí-
regimes políticos coevos com a Segunda
tica Positiva. Da Nacionalidade e do Governo Repre-
Guerra Mundial e posteriores a ela, como sentativo, Coimbra, Imprensa da Universidade,
o português e o espanhol, levaram a que 1881; SOBRAL, José Manuel, “A  formação
se conotasse o pensamento nacionalis- das nações e o nacionalismo: os paradigmas
ta com as ideias dos regimes autoritários explicativos e o caso português”, Análise Social,
europeus. O combate aos autoritarismos vol. xxxvii, n.º 165, 2002, pp. 1093-1126.
peninsulares fazia-se no campo ideológico Pedro Caridade de Freitas
pela negação da ideia de nação.
Com a democratização dos regimes,
especificamente no caso português, ope-
rou-se a superação das ideias coletivas
da nação pela defesa do individualismo.
O indivíduo, mais do que a comunidade,
surge como elemento central da constru-
ção política e societária, e é desligado dos
laços nacionais, religiosos e morais. O in-
dividualismo questiona a nação, a impor-
tância do coletivo, do corporativo, em
defesa do indivíduo, podendo, por isso,
inscrever-se também dentro das correntes
antinacionalistas.

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1308 Antinapoleonismo

Antinapoleonismo através da formulação do mito negro de


Napoleão, temas que ficaram registados
na cultura e no imaginário nacionais.
No dia 25 de novembro de 1807, de-
pois de o exército francês comandado
por Junot ter atravessado a fronteira, reu-
nido o Conselho de Estado, decidia-se o

N apoleão Bonaparte (1769-1821) é


uma das figuras mais controversas
e fascinantes da história mundial. Como
embarque da família real e da corte para
o Rio de Janeiro e a constituição de um
Conselho de Regência. Quando o gene-
tal, suscitou sentimentos contraditórios ral francês entrou em Lisboa, no dia 30
de admiração, ódio, respeito e temor, de novembro, não encontrou resistên-
cuja expressão literária originou a cons- cia, conforme as orientações deixadas
trução de uma imagem mitificada do ge- pelo príncipe regente em decreto de 26
neral e Imperador francês. de novembro. Encontramos uma clara
No quadro da cultura portuguesa, as expressão destas instruções numa pasto-
representações de Napoleão estão inti- ral do cardeal-patriarca, com a data de 6
mamente ligadas à imagem da França no de dezembro de 1807, na qual convoca
contexto da Guerra Peninsular, mas tam- a população a confiar em “Napoleão o
bém à receção da Revolução Francesa em Grande” e a respeitar as suas determina-
Portugal. É importante notar, a este res- ções, apresentando-o como um “homem
peito, a forte impressão que causou a exe- prodigioso”, que “derramará sobre nós as
cução de Luís XVI e de Maria Antonieta, felicidades da paz” (FREITAS, 1830, 61).
em janeiro de 1793, a que ficou inevita- As medidas desde logo tomadas pelo ge-
velmente associado o ato revolucionário. neral francês, como a dissolução da Re-
Por esta razão, enaltecer os ideais de liber- gência, a substituição da bandeira portu-
dade, igualdade e fraternidade emanados guesa pela francesa no castelo de S. Jorge
da revolução significava, particularmente e nas guarnições de Lisboa, o aumento de
de acordo com a literatura contrarrevolu- impostos (sob a forma de uma contribui-
cionária, condescender com o terror pra- ção extraordinária de guerra), a redução
ticado em nome deles. O mesmo se po- do exército português e a constituição da
derá considerar a respeito de Napoleão. Legião Portuguesa, enviada para França
De facto, outra das razões que justifica as para ser incorporada no exército fran-
imagens negativas da França revolucioná- cês, e a proibição de “ajuntamento de
ria prende-se com o espírito nacionalista qualquer natureza” (Id., Ibid., 66), não
e imperialista dela provindo e que estará foram bem acolhidas pela população.
por detrás das sucessivas invasões de Por- Por outro lado, os termos da proclama-
tugal pelos exércitos napoleónicos, entre ção que Junot dirigiu aos Portugueses em
1807 e 1811. Nestas circunstâncias, Na- fevereiro de 1808, anunciando Napoleão
poleão será objeto de uma diabolização, como protetor de Portugal e a deposição
que será depois retomada pela propagan- da Casa de Bragança, também não terão
da contrarrevolucionária, quer no perío- agradado ao príncipe regente, que, a
do liberal, quer no período republicano. 1 de maio de 1808, despachou um mani-
Não obstante, é na literatura coeva das in- festo no qual expôs as razões que o ha-
vasões francesas que se concentram os te- viam levado a transferir a corte para o
mas que estruturam o antinapoleonismo, Brasil e criticou a conduta de Napoleão e

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Antinapoleonismo 1309

seus representantes com vista ao domínio


de Portugal e da Europa; no mesmo ma-
nifesto D. João não só declarou a rutura
das relações com a França, como autori-
zou os Portugueses “a fazer guerra por
Terra, e Mar aos Vassalos do Imperador
dos Franceses”, revogando ainda “todos
os tratados, que o Imperador dos France-
ses o obrigou a assinar, e particularmente
os de Badajoz, e de Madrid em 1801, e
o de neutralidade de 1804; pois que ele
nunca os respeitou” (Id., Ibid., 114).
Pela parte popular, e ainda sem o co-
nhecimento deste manifesto, a insurrei-
ção mais inflamada começaria logo em
junho de 1808, no Porto, para o que cer-
tamente terá contribuído o levantamento
popular de 2 de maio, em Madrid, contra
as forças napoleónicas comandadas pelo
Gen. Murat. A revolta, iniciada no Norte
do país e que depressa se estendeu ao Al-
garve, foi na sua essência popular; como
denota Vasco Pulido Valente, “partira da
gente baixa”, que não pretendia somente
derrotar as forças invasoras, mas recon- O Primeiro Cônsul Napoleão Cruzando os Alpes,
de Jacques-Louis David (1748-1825).
quistar o domínio do território” (VA-
LENTE, 2007, 6). O conjunto de revoltas
populares arrogava, assim, na sua génese, país do jugo francês. Depois da vitória lu-
uma natureza política, contra o invasor, e so-britânica nas batalhas da Roliça (17 de
social, contra a ordem estabelecida, que agosto) e do Vimeiro (21 de agosto), no
em vários momentos se traduziu em ex- dia 30 daquele mês assinava-se a Conven-
cessos contra a nobreza, genericamente ção de Sintra, que punha fim à primeira
considerada “afrancesada”. invasão francesa.
A forma como Junot lidou com as revol- As duas invasões seguintes, dirigidas
tas, menosprezando-as, e a violência com pelos generais Soult (1809) e Massena
que o Gen. Loison (que operava sob o co- (1810-1811), devido aos contínuos exces-
mando de Junot) respondeu às investidas sos, violências e roubos praticados pelos
populares, ordenando o massacre de po- soldados de Napoleão, tiveram o efeito
pulações e permitindo o assalto a igrejas de amplificar o sentimento antinapo-
e conventos, foram determinantes para o leónico e antifrancês entre a população,
fracasso da primeira investida napoleó- unida com o fito de expulsar o inimigo
nica em Portugal. Quando, no dia 1 de comum. Foi a associação do clero a esta
agosto de 1808, o corpo expedicionário empresa popular que lhe conferiu um
britânico desembarcou na foz do Mon- conteúdo ideológico, tornando-a uma
dego, já os guerrilheiros portugueses ha- luta pelo trono e pelo altar, uma guerra
viam libertado uma parte significativa do religiosa contra o Francês, o jacobino, o

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1310 Antinapoleonismo

pedreiro-livre e o “afrancesado”, que as- napoleónica, a História Geral da Invasão


somavam como inimigos de Deus e do dos Franceses, e da Restauração de Portugal
Rei. A revolta assumia, assim, um sentido (1810-11), de José Acúrsio das Neves, e as
duplamente imperativo: além da defesa suas obras patrióticas, das quais pretende-
da religião, pressupunha a defesa de uma mos extrair as imagens que dão forma ao
monarquia de direito divino, logo, sagra- mito negro do Imperador e dos generais
da. A feição religiosa da guerra contra o franceses, metonimicamente represen-
invasor será um dos motes da propagan- tantes da França revolucionária.
da antinapoleónica, talvez o mais eficaz. Como exemplo de títulos tão sugesti-
Esta, ao representar Napoleão como ateu, vos vindos à estampa naquele período de
como o demónio ou o anticristo, estaria a 1807-1811, sendo alguns originais e ou-
agregar num mesmo núcleo semântico, tros traduções de escritos espanhóis ou
conferindo-lhes conteúdo diabólico, as ingleses, assinalamos a seguinte mostra:
ideias promovidas pela Revolução Fran- Inventario dos Roubos Feitos pelos Francezes
cesa e, associadas a estas, os conceitos de em os Paizes Invadidos pelos Seus Exercitos
jacobinismo, maçonismo, ateísmo, livre­ (1808), Buonaparte sem Mascara (1808),
‑pensamento, liberalismo, entre outros Protecção á francesa (1808), Exposição dos
que serão estigmatizados pela literatura Factos, e Maquinações, com Que Se Preparou a
contrarrevolucionária. Usurpação da Coroa de Hespanha, e dos Meios
Entre os anos de 1807 e 1814, mas com Que o Imperador dos Francezes Tem Posto em
maior incidência até 1811, foram publica- Pratica para Realiza-la (1808), Evora no Seu
dos, em Portugal, centenas de escritos an- Abatimento, gloriosamente Exaltada: ou Nar-
tifranceses ou antinapoleónicos, quer sob ração Historica do Combate, Saque, e Cruel-
a forma de panfletos ou folhetos, quer dades Praticadas pelos Franceses em 29. 30.
de poemas, epístolas, discursos, entre ou- e 31. de Julho de 1808. Na Cidade de Evora,
tros, que constituíram uma arma eficaz com Huma Breve Exposição das Suas Antece-
de mobilização para o combate contra dencias, e Consequências, para Maior Clare-
o invasor. Supõe-se que Londres tivesse za da História (1808), Perfidia, ou Politica
sido o ponto de partida desta intensa li- Infernal. Dialogo entre Lucifer, e Bonaparte
teratura antinapoleónica, favorecida pela (1808), Cartilha Napoleónica, ou Instrucções
liberdade de imprensa praticada naquela Machiavelico-Vandalicas (1808), Chalaça
cidade, e que fora através de Portugal que de Napoleão (1808), Correio do Outro Mun-
esta penetrara no continente europeu. do. Dialogo entre Um Druida e Um Moderno
Da mesma forma, terá sido a propaganda Francez (1808), Napoleada ou Sentimento dos
inglesa contra Napoleão a fornecer à con- Povos da Catalunha (1808), A Besta de Sete
génere portuguesa os tópicos e estereóti- Cabeças e Dez Cornos: Visão do Evangelista e
pos que a enformarão e que serão repli- Apostolo S. João (1809), Pintura Horrivel da
cados na intensa literatura difundida por França, Publicada em Inglaterra para Servir
uma atividade editorial inusitada, não só de Admoestação Tremenda, e de Aviso Instruc-
em Portugal como em Espanha. tivo a Todas as Nações do Mundo Civilizado
O estudo dos panfletos antinapoleóni- (1809), Memorias da Villa de Chaves, na Sua
cos tem sido desenvolvido por António Gloriosa Revolução contra a Perfidia do Tyra-
Pedro Vicente e por António de Oliveira no da Europa (1809), A Religião Ofendida
Santos. Recordem-se alguns títulos, no- pelos Seus Chamados Protectores ou Manifesto
meadamente aquela que consideramos das Injúrias Que o Governo Francez Intruso
a obra basilar da literatura coeva anti- em Portugal Há Feito á Religião Catholica

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Antinapoleonismo 1311

Romana, e aos Seus Ministros (1809), Con- onde podemos ler que “esta terceira, e
fissão de Napoleão ou Satisfação Que Toma o tão bárbara invasão é um manifesto sinal
Diabo, pela Pouca Ventura Que Tem Concedi- da ira de Deus”, à qual se seguirão “sem
do ás Suas Armas (1809), Trombeta da Verda- nenhuma detença as murmurações, os es-
de Métrico-Analytica, contra os Planos, e Im- petáculos profanos, a fraude, a violência,
posturas de Napoleão, e Seus Satélites (1811), a injustiça, a vingança, a perfídia, e em
Na Festejada Morte do General Marmont, Que muitos ímpios, a quem superficial ciência
Deos Tem não Sei aonde, e na Derrota do Exer- da política Napoleónica enfatua, a cons-
cito Francez, Que Fugio com os Diabos (1812), piração abominável contra o Trono, e
Testamento Que Fez o D. Quixote da França, contra o Altar” (Id., 1814, 50-51). Na sua
antes de Partir para a Sonhada Conquista da generalidade, a condenação mais incre-
Russia (1813). pada de Napoleão que encontramos no
A estes escritos, podemos juntar os ser- conjunto dos escritos consultados cons-
mões do P.e José Agostinho de Macedo, trói-se com recurso a alegorias, a imagens
nos quais encontramos, num estilo elo- exageradas, escatológicas e apocalípticas,
quente mas truculento, uma condena- a linguagem subversiva, à sátira, à cari-
ção acintosa de Napoleão, o “atrocíssimo catura e à estereotipia, sendo muito co-
Corso” (MACEDO, 1809a, 23). Refira-se, muns as imagens do anticristo e da besta
e.g., o sermão proferido no dia 28 de se- do apocalipse, usadas para descrever Na-
tembro de 1808, pela restauração do rei- poleão, certamente favorecidas pela sua
no e pela retirada das tropas de Junot, no excomunhão pelo Papa Pio VII, em 10 de
qual demoniza o Imperador francês, que junho de 1809.
qualifica de “monstro”, “descarado usur- No âmbito de uma literatura mais eru-
pador”, “mesquinho mortal”, “vaidoso, dita, incluímos os panfletos antinapo-
e miserável mortal, tão digno de ódio, e leónicos do já mencionado José Acúrsio
desprezo publico, quanto é soberbo” (Id., das Neves, de que conhecemos 12 títu-
Ibid., 27-31); o sermão proferido nas mes- los, todos com data anterior à publica-
mas circunstâncias em 23 de novembro ção da sua História Geral, a saber: “Voz
de 1808, na igreja de N.ª Sr.ª dos Mártires, do patriotismo na restauração de Portu-
no qual designa como “Napolianismo” gal, e Hespanha” (1808), “Manifesto da
“o sistema atrocíssimo da opressão, e razão contra as usurpações francezas”
rapina pública, esta política peculiar, e (1808), “A generosidade de Jorge III e
privativa a um Tirano, que é o último re- a ambição de Bonaparte. Wellesley e os
finamento do Maquiavelismo” (Id., 1809, generaes francezes” (1809), “Tres peças
6); o sermão dirigido ao clero português patrioticas” (1809), “Observações sobre
contra o “espírito de seita” dos “apaixo- os acontecimentos das províncias d’en-
nado[s] dos franceses” (Id., 1811, 53-54), tre Douro e Minho, e Trás-os-Montes”
no qual encontramos condensado o sen- (1809), “Discurso sobre os principais suc-
timento antifrancês e antinapoleónico cessos da campanha do Douro, offereci-
nas expressões “mostrai-lhes um só Fran- do aos illustres guerreiros que nella tanto
cês, mostrai-lhes o inferno” e “se Satanás se distinguirão” (1809), “Paraphrase ao
se torna visível, eu não sei quem seja capítulo xiv do livro de Isaías” (1809),
mais o seu retrato...” (Id., Ibid., 36-37); e “O despertador dos soberanos, e dos pó-
o sermão de teor apocalíptico proferido vos, offerecido á humanidade” (1808) e
no dia 31 de agosto de 1811, por ocasião “Post-scriptum ao despertador dos sobe-
da invasão liderada pelo Gen. Massena, ranos e dos povos” (1809), “A salvação da

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1312 Antinapoleonismo

patria” (1809), “Reflexões sobre a inva- povo. De facto, vocábulos como “usurpa-
são dos Francezes em Portugal” (1809), dor”/“usurpadores”; “intruso”/“intrusa”;
“Elogio fúnebre do marquez de la Roma- “tirano”/“tiranos”/“tirânico”/“tirania”;
na” (1811). Do exame destes panfletos, “inimigo”/“inimigos”; “roubo”, “ladrão”/
retiramos algum do vocabulário mais “ladrões”, “espoliação”; “pérfido”/“pér-
incisivo utilizado para rotular Napoleão, fidos”/“perfídia”; “assassinos”/“assassí-
que é qualificado de “Verdugo da huma- nio”, “bárbaro”/“bárbaros”/“barbarida-
nidade, flagelo do mundo”, “impostor, de” aparecem amiúde no conjunto da
temerário”, “desprezível bicho da terra”, obra para nomear ou classificar Napoleão
“fraco”, “ímpio mortal”, “Cruel assassino, e/ou os seus associados e as respetivas
depredador infame” (NEVES, 1809, 7, 10 ações. Entre aqueles utilizados de for-
e 12); e “Destruidor das monarquias, e ma mais espaçada constam os seguintes
das républicas” (Id., 1808, 26). Os adje- (e respetivos derivados): “ímpios”, “aves
tivos/substantivos “tirano”, “usurpador” de rapina”, “infames”, “cobardes”, “malva-
e “monstro”, associados a Napoleão, são dos”, “destruidores”, “devastadores”, “ca-
comuns a todos os panfletos, assim como nibais”, “hipócritas”, “violento”, “rudez”,
a comparação, por oposição, com a Ingla- “crueldade”, “avareza”, “monstro”.
terra e os Ingleses, particularmente com A imagem negra de Napoleão e seus
o Gen. Arthur Wellesley, elevado a herói, sequazes que os textos de Acúrsio das
libertador e vingador de Portugal. Neves revelam estende-se à Revolução
Esta adjetivação, por sua vez, terá eco Francesa, aos ideais dela emanados e, por
na História Geral. Coeva do período em metonímia, à França e a todos os Fran-
que Portugal se viu pela terceira vez in- ceses. Neste sentido, os princípios revo-
vadido pelas tropas napoleónicas, esta lucionários assumem, nos seus escritos,
obra constitui-se como monumento do uma natureza estrangeira perante aquela
antifrancesismo oitocentista. Composta que é a tradição nacional, pelo que a luta
com o objetivo de “inflamar os povos para contra os invasores franceses não consti-
sacudir o jugo estrangeiro” (Id., 1821, 8), tui uma luta apenas pela independência
nela, o autor apresenta Napoleão como nacional mas, em última instância, pela
o “usurpador”, o inimigo contra o qual conservação de um status quo que confere
todos os Portugueses deveriam comba- identidade a Portugal. Todavia, o com-
ter. Assim, ao longo de cinco tomos, são bate contra o Francês abre, também, as
reveladas as atrocidades cometidas pelos portas a uma consciencialização política e
Franceses, ordenadas pelos seus generais ideológica que irá marcar o período que
e apoiadas pelos chamados afrancesados, antecede a Revolução Liberal.
ou partidistas, em nome de um impera- Deste modo, o tipo de literatura que
dor estrangeiro. A imagem que deles entre 1807 e 1811 estava orientada para
Acúrsio das Neves traça é, à semelhança um mesmo propósito, a expulsão dos
do que sucede nos seus panfletos, negati- Franceses, segue, a partir de 1811, vias di-
va e reveladora de um profundo despre- vergentes, conforme a orientação absolu-
zo, dela emanando aquilo a que podemos tista ou liberal que assume. Um aparente
chamar o mito negro de Napoleão. Para paradoxo que se explica pelo germinar
tal concorre o uso reiterado de termino- das sementes das ideias novas deixadas
logia e de expressões que visam concitar pelas invasões. De facto, já em 1811, fin-
a opinião pública contra os invasores e da a terceira invasão, profetizava a Gaze-
alimentar o sentimento patriótico do ta de Lisboa que “A memória desta gente

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Antinapoleonismo 1313

detestável durará mais tempo do que os N. Senhora dos Martyres a 23 de Novembro de 1808
estragos que nos fizeram” (Gazeta de Lis- por ocasião da Festividade na Feliz Restauração deste
boa, 23 abr. 1811). Também a este res- Reino, Lisboa, Officina de António Rodrigues
Galhardo, 1809; Id., Sermão Pregado na Real
peito, conclui António Pedro Vicente
Casa de Santo António, na Grande Festividade Que
que “[a]pós a saída dos franceses ficara
o Illustrissimo e Excellentissimo Senado da Câmara
o rancor e o ódio ao opressor mas tam- de Lisboa Fez pela Restauração deste Reino a 28 de
bém muito do seu credo político. Os que Setembro de 1808, Lisboa, Officina de António
escreviam nessas folhas aproveitaram os Rodrigues Galhardo, 1809a; Id., Sermão sobre o
hábitos do período invasor para conju- Espirito de Seita Dominante no Século XIX, Lisboa,
garem esforços na substituição das insti- Impressão Regia, 1811; Id., Sermão de Preces
tuições seculares da nação” (VICENTE, pelo Bom Sucesso das Nossas Armas, contra as do
Tyranno Bonaparte, na Terceira Invasão deste Reino,
1999, 124). Tais esforços iriam, por sua
Pregado na Igreja de N. Senhora dos Martyres a 31
vez, suscitar uma propaganda contrarre- de Agosto á noite, na Entrada da Solemne Procissão
volucionária, delatora das “quiméricas” de Penitencia, Que Fez a Exemplar Irmandade de
ideias francesas, que muitas vezes comple- N. Senhora de Jesus, Lisboa, Typografica Rollan-
menta, e se confunde, com a propaganda diana, 1814; NEVES, José Acúrsio das, Ma-
antinapoleónica. nifesto da Razão contra as Usurpações Francezas.
Assim, embora concentrado no perío- Offerecido à Nação Portugueza, aos Soberanos, e
aos Póvos, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo
do das invasões francesas, o mito negro
Ferreira, 1808; Id., Paraphrase ao Capitulo XIV
de Napoleão permaneceu enraizado na do Livro de Isaías, Lisboa, Officina de Simão
cultura portuguesa, não só por mediação Thaddeo Ferreira, 1809; Id., História Geral da
da literatura contrarrevolucionária, de Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restaura-
cariz nacionalista, mas também pela pena ção deste Reino, 4 t., Lisboa, Officina de Simão
de autores como Alexandre Herculano, Thaddeo Ferreira, 1810-11; Id., Manifesto, em
para quem Napoleão foi um salteador que o Desembargador J. Accursio das Neves Expõe
e um assassino, e Oliveira Martins, que e Analysa os Procedimentos contra Ele Praticados
pelos Exregentes do Reino, e os Seus Fundamentos,
recuperou a imagem do anticristo. No
Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira,
séc. xx, a imagem negativa de Napoleão 1821; VALENTE, Vasco Pulido, Tentar Perceber,
estará, sobretudo, associada ao discurso Lisboa, INCM, 1983; Id., Ir pró Maneta, Lisboa,
antimaçónico, pelo que não se poderá fa- Alêtheia, 2007; VENTURA, António (coord.),
lar de forma exata de antinapoleonismo, Napoleão: História & Mito, Lisboa, Centro de
estando este mais circunscrito ao período História da Universidade de Lisboa/Caleidos-
da Guerra Peninsular. Por outro lado, e cópio, 2008; VICENTE, António Pedro, “Pan-
fletos antinapoleónicos durante a Guerra Pe-
de uma forma geral, após este momento,
ninsular. Atividade editorial da Real Imprensa
o antinapoleonismo na cultura portugue- da Universidade”, Revista de História das Ideias,
sa deverá ser entendido como um adere- vol. xx, 1999, sep.
ço, um elemento constitutivo do antifran-
Cristiana Lucas Silva
cesismo e do antirrevolucionarismo.

Bibliog.: ARAÚJO, Ana Cristiana, “Revoltas


e ideologias durante as invasões francesas”,
Revista de História das Ideias, vol. vii, 1985, sep.;
FREITAS, José Ferreira de, Bibliotheca Histó-
rica, Política, Diplomática da Nação Portuguesa,
t. i, London, Sustenance e Sthetch, 1830;
Gazeta de Lisboa, 23 abr. 1811; MACEDO,
José Agostinho de, Sermão Pregado na Igreja de

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1314 Antinaturalismo

Antinaturalismo descrever e classificar formas naturais


existentes em regiões inexploradas, pelo
menos na perspetiva da ciência europeia.
Enquanto explicação hegemónica de
tudo quanto se nos apresenta, o natura-
lismo constituiu uma tendência filosófi-
co-científica do pensamento iluminista,

D esde os primórdios da racionalida-


de, a natureza (physis, em grego,
natura, em latim) assume o estatuto de
numa atitude racional e estético-moral
que Diderot resumiu bem ao afirmar que
os naturalistas são aqueles que têm por
noção ordenadora, designando simul- ofício observar a natureza e por única re-
taneamente a ordem universal, a consti- ligião a da natureza.
tuição originária de uma coisa e a série No séc. xix, o naturalismo impregna o
regular dos fenómenos relativos a um senso comum dos cientistas, que frequen-
determinado ser ou a uma certa espécie. temente fazem dele uma arma de com-
A física designa, desde Aristóteles até ao bate. Émile Zola e Renan são exemplos
séc. xviii, o estudo da natureza, da mes- típicos dessa atitude. A teoria darwiniana
ma forma que o médico, na medida em da evolução e seleção natural das espécies
que conhece a natureza e visa aperfeiçoá­ (1859) tem um impacto extraordinário
‑la, é chamado físico. não só no domínio científico estrito, mas
No quadro da racionalidade instaura- também no domínio filosófico e antropo-
da pelos Gregos, a natureza não é uma lógico-moral, propondo-se como um ver-
noção totalizadora, abarcando todos os dadeiro paradigma de matriz naturalista.
fenómenos que ocorrem no universo Em Portugal, naturalismo e antinatura-
e os princípios respetivos. A par da na- lismo ocorrem em simultâneo, na transi-
tureza, há lugar para o sobrenatural, ção do séc. xix para o séc. xx. O artigo
no qual se incluem os fenómenos cuja de Antero de Quental “A filosofia da na-
ocorrência exige forças superiores à na- tureza dos naturalistas” é um documento
tureza, e para a cultura humana, que cria exemplar no panorama da cultura cien-
uma esfera própria de ações, realizações, tífica em Portugal. Publicado na revista
procedimentos. A  Província, em 1886, este artigo é simul-
No seu uso preciso, o naturalismo sig- taneamente uma recensão crítica do livro
nifica a redução de toda a realidade ao Exposé Sommaire des Théories Transformistes
plano natural, eliminando o sobrenatu- de Lamarck, Darwin et Haeckel (1885), de
ral e relegando a cultura para a posição um falante de língua portuguesa, Viana
subalterna de uma instância derivada da de Lima, sobre as modernas teorias trans-
natureza. No entanto, o termo “natura- formistas e um violento libelo contra o
lismo” tem sido objeto de múltiplos usos naturalismo pretensamente científico des-
e significações. É frequente designar-se te discípulo de Haeckel, o mais influente
como naturalista o cientista que se dedi- apóstolo de Darwin no final do séc. xix.
ca à observação e explicação da natureza. A estratégia argumentativa de Antero
É nesse sentido que se chama naturalista segue duas linhas complementares: re-
a um fino observador do mundo vegetal conhecer o sentido da hipótese evolucio-
como Garcia de Orta e aos cientistas que, nista no plano científico e afirmar a sua
em especial no séc. xviii, empreende- insuficiência enquanto explicação geral
ram viagens filosóficas visando observar, da natureza. Com toda a frontalidade e

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Antinaturalismo 1315

probidade intelectual, Antero assume cla- sofia da natureza com a simples generali-
ramente essa estratégia logo no início do zação dos dados dum grupo de ciências e
seu extenso artigo: “Não sou naturalista e, sem ter em conta o indispensável critério
tendo a consciência da minha incompe- das ideias” (Id., Ibid., 110).
tência, não me atreveria a escrever sobre Tendo como referência matricial a
a obra do Sr. Viana de Lima, se o seu livro obra de Haeckel, a quem chama “pa-
fosse propriamente um livro de ciências triarca do monismo”, Miguel Bombarda
naturais, e se os quatro estudos, de que elaborou o mais sistemático e combativo
se compõe, se conservassem escrupulo- texto doutrinário em defesa do monismo
samente nos limites rigorosos do campo naturalista, considerando que o ponto de
científico. O livro, porém, do Sr. Viana de vista “fisiológico” é o único coerente e in-
Lima, apesar da modéstia do título, aspi- teligível (BOMBARDA, 1898, 349). Pela
ra de facto a ser um livro de filosofia da relevância do autor, pelo tom iluminista
natureza, e, nesse terreno, creio poder, e pela frontalidade do seu antijesuitismo,
sem temeridade, emitir algumas opiniões Consciência e Livre Arbítrio teve um impac-
fundamentadas” (QUENTAL, 1991, 93). to significativo nas elites portuguesas do
O cerne do argumento anteriano reside início do séc. xx. O contraponto, num es-
na insuficiência da conceção monista-evo- tilo sereno e pedagógico, veio de Leonar-
lucionista de matéria entendida como una do Coimbra, que designa a sua filosofia
e simples para explicar a variedade e com- como criacionismo, na medida em que a
plexidade dos fenómenos. De igual modo, atividade do espírito finito, longe de ser
a evolução não passa de um esquema abs- a expressão de forças elementares, é cria-
trato e fortuito, se não é esclarecida pelo cionista porque imita o ato criador divi-
esforço reflexivo de indagar um sentido no. Sem lograr a unidade e harmonia do
e uma finalidade, mesmo que imanen- universo, o artista, o cientista e acima de
tes, para o surgimento de formas naturais tudo o filósofo simbolizam essa unidade
complexas e a emergência da consciência, harmónica através de um trabalho de sín-
de cuja atividade resultam as superiores tese progressiva, resistindo à tendência
produções intelectuais e morais. cousista da racionalidade moderna para
Com irónica finura, Antero considera fixar cada ser num âmbito restrito, como
que o naturalismo evolucionista hacke- uma coisa fechada em si mesma. A procu-
liano, que se pretende uma síntese do ra da síntese opera-se por via da relação,
estado dos conhecimentos humanos na num quadro complexo e diversificado.
segunda metade do séc. xix, constitui Sem o mencionar expressamente, Coim-
uma reação legítima contra o excesso de bra não deixa de visar Bombarda na sua
metafísica da filosofia anterior, mas que, obra emblemática, Criacionismo: “Um co-
por seu lado, apela a uma salutar reação nhecido propagandista político gostava
espiritualista, que valide a ciência dentro de se declarar, em comícios públicos, filó-
dos seus limites próprios e lhe forneça um sofo naturalista”. Para o filósofo criacionis-
suplemento de sentido e valor: “Preten- ta, “o naturalismo é mais uma tendência
derei eu acaso, com essa crítica, contestar que uma filosofia”, i.e., é um pensamento
o valor dos trabalhos da escola monista, frágil que se caracteriza por cindir “a rea-
ou ainda a sua importância filosófica? De lidade em natureza e ideal” (COIMBRA,
modo algum. O que eu contesto é o valor 1983, 221), transformando a natureza
do seu sistema, como sistema, o que eu numa categoria abstrata e desligada da
censuro é a pretensão de fundar uma filo- atividade espiritual.

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1316 Antinaturopatismo

Consciente do impacto da filosofia de


Haeckel, cuja obra Os Enigmas do Uni-
Antinaturopatismo
verso, “se correspondesse ao título, seria
o procurado dicionário universal” (Id.,
Ibid., 222), Leonardo Coimbra ataca vio-
lentamente o “haeckelismo”, que acusa
de enfermar do “vício cousista”, ao redu-
zir toda a realidade, incluindo a consciên-
cia e suas produções, a uma “substância
universal” elementar: “O monismo de
E studo e tratamento das doenças atra-
vés de processos naturais, deixando
que o próprio corpo reaja com a sua
Haeckel é um naturalismo que se fixa energia vital quando livre das toxinas
na matéria e na evolução”. Visando des- que se acumulam devido a maus hábitos
truir o haeckelismo no seu próprio ter- adquiridos durante a vida, a naturopatia
reno, Coimbra qualifica-o de retrógrado é um movimento naturalista nascido no
e anticientífico: “Haeckel tem de tirar a séc. xix, misto de terapia e filosofia de
consciência da Substância universal, por vida, afirmando-se como a arte de curar
isso regressa a um animismo pré-científi- recorrendo à vis medicatrix naturae, a força
co, que coloca no átomo e na molécula, curativa da natureza.
rudimentos de sentimento e consciência. Usado pela primeira vez por John
Nesta altura, deixa Haeckel de ser um sá- Scheel, médico em Nova Iorque, para
bio equivocado no meio do trabalho filo- caracterizar a prática médica a que se de-
sófico para ser uma cegueira proselítica dicava – uma terapia baseada na rejeição
e uma teimosia de ordem sentimental, de todo e qualquer tipo de remédios ou
ou uma inteligência sem lógica, e sem medicamentos da indústria farmacêutica,
pudor” (Id., Ibid., 223). Como vemos, o substituindo-os por uma terapia baseada
objeto da crítica de Leonardo vai além da num sistema de prevenção da doença
filosofia naturalista, visando o ethos que, utilizando exclusivamente métodos na-
em seu entender, está ligado à sua expres- turais, quer através da alimentação, da
são haeckeliana. hidroterapia (cura com a água), da geo-
A tensão naturalismo/antinaturalismo terapia (cura com argila), da fitoterapia
baixa de intensidade a partir dos anos 20 (cura com plantas florais) e de práticas de
do séc. xx. exercício físico – o nome “naturopatia”
foi popularizado, em 1902, pelo médico
alemão Benedict Lust (1872-1945), que
o utilizou para designar uma terapia nu-
tricional, insistindo numa dieta natural,
Bibliog.: BOMBARDA, Miguel, Consciência e assente na fitoterapia, na manipulação
Livre Arbítrio, Lisboa, Parceria António Maria vertebral, no exercício, na homeopatia,
Pereira, 1898; COIMBRA, Leonardo, Obras de
na hidroterapia e na eletroterapia. Ab-
Leonardo Coimbra, Porto, Lello e Irmão, 1983;
HAECKEL, Ernst, Os Enigmas do Universo, Por- solutamente convicto da bondade destas
to, Lello e Irmão, 1926; LIMA, Arthur Vianna práticas de saúde, tornou-se o seu gran-
de, Exposé Sommaire des Théories Transformistes de apóstolo e, sofrendo ele mesmo de
de Lamarck, Darwin et Haeckel, Paris, Librairie tuberculose, usou-as no seu próprio tra-
Delagrave, 1885; QUENTAL, Antero de, Obras tamento. Fundou a primeira Escola Ame-
Completas, vol. iii, Lisboa, Comunicação, 1991. ricana de Naturopatia, em Nova Iorque,
Adelino Cardoso e também a Associação Americana de

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Antinaturopatismo 1317

Naturopatia, a primeira associação pro-


fissional de médicos naturopáticos. Em
1918, criou e dirigiu a Enciclopédia Uni-
versal Naturopática, pugnando por uma
terapia sem medicamentos, o mesmo
fazendo através da revista Nature’s Path,
também por ele criada e dirigida. Ao lon-
go de todo o séc. xx e nos primeiros anos
do séc. xxi, a naturopatia difundiu-se ra-
pidamente pela Europa e pela América,
sendo criadas grandes escolas em alguns
dos países mais influentes na prestação
dos serviços de saúde, nomeadamente
Alemanha, Espanha, Estados Unidos da
América e diversos países da América do
Sul, e foi incentivada pela Organização Benedict Lust (1872-1945).
Mundial de Saúde.
Centrada na força curativa da natureza,
a naturopatia pode ser considerada como pre uma descrição incompleta, podendo
uma medicina holística; a base de toda tornar-se altamente perniciosa e ineficaz.
a sua atuação é a afirmação do homem As diferentes partes do corpo humano
como um pequeno universo, um micro- devem ser tratadas como um sistema inte-
cosmos no seio do macrocosmos que grado, cujas propriedades não podem ser
é toda a natureza em que está inserido. reduzidas às das suas unidades menores.
Assim, o organismo que é o ser humano Neste sentido, porquanto comungam das
não pode ser tratado como mera parte ideias da filosofia alquímica, as diferentes
do Universo, pois forma com ele um todo terapias naturais defendidas e praticadas
(holos); não são as partes que permitem pelos naturopatas – desde a terapia nu-
compreender o todo, mas o todo, que tricional, à fitoterapia, à homeopatia, à
é muito mais do que a mera soma das manipulação vertebral, à terapia do exer-
suas partes, que permite compreender as cício, à hidroterapia, à eletroterapia e a
partes. São as mesmas as leis gerais que outras do género – têm sido consideradas
regem o Universo e todos os seus cons- muitas vezes como medicinas alquímicas.
tituintes, leis que regem de igual modo À sua visão holística está associada uma
os diferentes constituintes do homem e visão vitalista, considerando que a vida é
tudo aquilo de que este é feito. algo mais do que a soma dos processos
Em consequência, o corpo humano bioquímicos e defendendo que o corpo
não deve ser tratado como uma máquina, tem uma inteligência inata que sempre
como o faz, desde o séc. xvii, a filosofia se esforça por alcançar a saúde, pelo que
mecanicista de Descartes e de Newton. cada corpo doente possui em si o neces-
Na abordagem ao seu estado de saúde sário para se curar a si mesmo. Daí que o
ou de doença, não se deve negligenciar verdadeiro naturopata não receita medi-
nunca o estudo sistémico da natureza de camentos, antes buscando em cada caso
organismo vivo que ele é. Por mais útil e as medidas terapêuticas mais indicadas e
necessária que possa ser a descrição redu- ideais para restaurar e estimular as capa-
cionista do seu funcionamento, será sem- cidades funcionais do organismo atingido

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1318 Antinaturopatismo

pela doença. Para tanto, entende que não apoiada em projetos de investigação siste-
precisa de ser médico nem possuir um mática e comprovação experimental cer-
diploma de prática médica; sem negar tificada, que a naturopatia instiga contra
a utilidade dos cursos e das práticas que si os defensores da medicina alopática;
possam ajudá-lo a decidir quais são as me- contra ela estão também os interesses da
lhores medidas terapêuticas a tomar nas indústria farmacêutica, na defesa dos fár-
variadas situações concretas com que po- macos sintéticos que a medicina conven-
derá deparar, entende que o que mais o cional utiliza e prescreve.
poderá ajudar será sempre a sua própria Por mais positivo e louvável que possa
experiência de vida, colhida no contac- parecer o programa de defesa da saúde
to direto com a natureza. As suas práti- que os naturopatas afirmam ser o seu, ba-
cas ao serviço da saúde devem ser tidas seado na eliminação de maus hábitos – so-
e tratadas como uma medicina natural, brealimentação, consumo de drogas, ho-
apresentando-se como medicinas alterna- rários inadequados de vida, preocupações
tivas à medicina tida como convencional, em demasia, aberrações sociais e sexuais,
a medicina ensinada e praticada pelas etc. –, orientado para a criação de hábitos
escolas académicas das universidades, a corretores de práticas erradas ou abusivas
medicina alopática. através de bons exercícios de uma correta
Dada a natureza tendencialmente ma- respiração, de corretas atitudes mentais
terialista da ciência e da sociedade oci- face aos acontecimentos do dia a dia e
dental dos começos do séc. xxi e o po- duma sã moderação na busca da própria
sitivismo que informa a sua cultura, a saúde e dos bens materiais, acompanha-
naturopatia, ao englobar no seu objeto do de uma cultura de princípios de ação
não apenas o corpo mas também o es- eficaz – jejum adequado, seleção de ali-
pírito, pretendendo tratar a saúde do mentos, banhos de luz e ar, hidroterapia,
ser humano apenas no quadro de um osteopatia, manipulação vertebral, cromo-
ser holístico, não consegue ser aceite terapia e outros –, o seu difícil enquadra-
como uma ciência. Os profissionais da mento na cultura que enforma e domina o
medicina académica, mesmo quando mundo ocidental dos começos do séc. xxi
nela veem aspetos e resultados positivos, (ao contrário de muito que caracteriza as
não deixam de a ver como uma medici- culturas tidas como do mundo oriental) é
na insólita e mostram-se renitentes e em a grande fonte do antinaturopatismo des-
oposição frontal à inclusão das suas prá- tas sociedades.
ticas no currículo dos seus cursos. Para
muitos médicos da medicina alopática,
fazê-lo seria um autêntico absurdo.
Não sendo reconhecido como verda-
deiro médico, o naturopata cai muitas ve-
zes na ilegalidade quando diz ser médico Bibliog.: ACHARAN, Manuel Lezaeta, Medici-
ou quando retira ou receita remédios sem na Natural ao alcance de Todos, 13.ª ed., Mexi-
autorização médica. As suas práticas não co, Pax, 2008; KUHNE, Louis, New Science of
se enquadram no sistema sanitário oficial Healing or the Doctrine of the Oneness of All Disea-
e convencional. E não é só pelo carácter ses, Leipzig, ed. do Autor, s.d.; VASEY, Chris-
acientífico das suas práticas, em confron- topher, Pequeno Tratado da Naturopatia, Lisboa,
to aberto com o carácter científico com Europa-América, 2009.
que se afirma a medicina convencional, António M. Amorim da Costa

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Antinazismo 1319

Antinazismo sua brutalidade com maior ou menor vee-


mência. Tal como Michael Mann assinala,
nos primeiros panfletos e ações do partido
nazi eram já patentes as invetivas racistas,
antissemitas e pangermanistas. Com efei-
to, ainda que, nos finais da déc. de 20, a
propaganda e as ações violentas de parti-

E m certa medida análogo ao conceito


de antifascismo, o termo alude a ati-
tudes e fenómenos heterogéneos, disper-
dários e milícias nazis visassem sobretudo
os comunistas alemães, seus principais
opositores políticos, a ascensão ao poder e
sos por uma linha histórica que atraves- a expansão territorial bélica abriram espa-
sa toda a contemporaneidade, desde os ço para uma expressão mais clara e ampla
primeiros anos do pós-Primeira Guerra da monstruosidade do seu ideário.
Mundial até ao presente. Uma abordagem exploratória ao an-
As expressões de antinazismo podem tinazismo em Portugal deverá ter em
ser perspetivadas em função das dife- consideração estas diferentes fases de
rentes fases de manifestação do ideário manifestação do regime de Hitler e a sua
nacional-socialista. Uma primeira fase re- interação com a dinâmica política e social
portar-se-ia ao período que medeia entre portuguesa.
a criação, em 1919, do Partido Nacional Com efeito, as vozes que se opõem ao
Socialista dos Trabalhadores Alemães ideário nazi em Portugal elevam-se de for-
(Nationalsozialistische Deutsche Arbei- ma mais evidente após a ascensão de Adolf
terpartei) – que tomaria, no ano seguin- Hitler ao cargo de chanceler em 1933,
te, já sob o comando de Adolf Hitler, a contemporânea da promulgação da Cons-
designação mais sintética de Partido Na- tituição do Estado Novo. Sobretudo na
cional Socialista (Nationalsozialistische imprensa autorizada que mais claramente
Partei) – e a sua ascensão ao poder, em se opunha à situação, como O Diabo, a Re-
1933. A segunda fase integraria o exercí- pública e o Raio, multiplicam-se os artigos
cio do poder até à invasão da Polónia, a 1 que denunciam a violência nazi e desmas-
de setembro de 1939, fronteira temporal caram os pretensos progressos sociais e
que assinala o começo da Segunda Guer- económicos que a imprensa conservadora
ra Mundial. A terceira fase abrange os cer- atribuía ao regime de Hitler.
ca de cinco anos de guerra, até à derrota Estes clamores suscitariam a preocupa-
do Eixo e ao colapso do regime. A quarta ção das autoridades portuguesas. Na se-
e última fase, que se prolonga desde esse quência da detenção do alemão Arthus
período aos nossos dias, compreende o Dahl Adler, na fronteira de Marvão, que
desmantelamento das estruturas de orga- se encontrava na posse de literatura pro-
nização hitleriana e o repúdio generaliza- pagandística comunista alemã e francesa,
do dos seus ideais e práticas por diversas o ministro do Interior emitiu, a 29 de
instituições internacionais, reduzindo-se novembro de 1933, um despacho para a
o cultivo destes a fações políticas minori- Polícia de Vigilância e Defesa do Estado,
tárias e a grupos de delinquentes. no qual ordenava que fosse restringida
Estas fases não implicam que tenha ha- toda a “propaganda antifascista que vise
vido uma mutação substancial do ideário diretamente o governo alemão e princi-
nazi ao longo das décadas, mas sim que palmente o seu chefe, com acusações de
ele assumiu diferentes meios para impor a toda a espécie” (BAIÔA, 2012, 176).

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1320 Antinazismo

No entanto, nos meses seguintes, a cen- Com efeito, nas vésperas da Segunda
sura terá continuado a permitir a publica- Grande Guerra, também a intelectuali-
ção de vários artigos que denunciavam as dade católica portuguesa alertou para os
atrocidades nazis. No jornal República, de perigos do regime nazi. A publicação da
18 de dezembro de 1933, Mário de Oli- encíclica Mit Brennender Sorge, por Pio XI,
veira ataca Hitler, comparando-o a Nero a 14 de março de 1937, viria a confirmar
e afirmando “que como este há de cair as perceções de muitos católicos portu-
amaldiçoado” (Id., Ibid., 175). No Raio, de gueses e dar o mote para novas invetivas.
21 de maio de 1934, a Alemanha nazi era Revistas católicas com diferentes públicos
retratada como um “País selvagem, onde e sensibilidades – como a Era Nova, revista
não podem viver sábios como Einstein católica, republicana e populista, a Novi-
com medo de serem espancados, mortos dades, mais próxima do Estado Novo, e a
ou enclausurados”. Em O Diabo de 5 de Lumen, publicação do episcopado portu-
agosto de 1934, Hitler é representado de guês com feição clerical – convergem na
modo ilustrativo: crítica ao fascismo pelo seu cesarismo e
Este desenho de Lemos, em conjunto “estatolatria”, que subjuga a dimensão da
com um artigo publicado no Diário de No- pessoa humana (CRUZ, 1992, 555-556).
tícias de 5 de agosto de 1934, referente às O nazismo representaria, por sua vez,
relações tensas entre o Mar. Hindenbur- uma versão exacerbada desta nova forma
go e Hitler, e um artigo publicado no jor- de governo, que acrescentava ao cesaris-
nal católico Novidades, de 8 de agosto do mo ideias pagãs, anticristãs e racistas que
mesmo ano, onde Hitler é apelidado de tendiam a expressar-se sob a forma de
“déspota” e de “paranoico da violência e atentados à vida e à dignidade humanas.
do sangue”, suscitariam um protesto da Na verdade, registam-se, ao longo da
legação alemã junto do Ministério dos déc. de 30, em particular na revista Lu-
Negócios Estrangeiros português (Id., men, diversos afloramentos à questão ra-
Ibid., 177). cial, nomeadamente ao antissemitismo,
que demonstram uma consciência apu-
rada da elite clerical portuguesa relativa-
mente aos perigos deste elemento distin-
tivo do nazi-fascismo. Simultaneamente,
as elites católicas procuravam também
influenciar os rumos assumidos pelo Es-
tado Novo, opondo-se internamente à li-
nha nacional-sindicalista, em favor de um
nacionalismo moderno e civilizado, que
se deveria concretizar sob a forma de um
corporativismo de inspiração cristã.
O Partido Comunista Português (PCP),
organização política que tinha sido ilega-
lizada no final dos anos 20, desempenhou
um papel preponderante na oposição ao
nazismo em Portugal. Sobretudo a partir
de 1935, no jornal Avante!, publicação clan-
“Serviço de limpesa”, de Lemos, O Diabo, destina fundada em 1931, o PCP moveu
5 ago. 1934 (BAIÔA, 2012, 178). um ataque cerrado ao regime de Hitler.

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Antinazismo 1321

Os argumentos brandidos aproximam­ através da sua capacidade bélica e da sua


‑se, em parte, daqueles que já se encon- preeminência no quadro das relações
travam nas publicações oposicionistas internacionais.
autorizadas acima referidas: a denúncia Ainda que, a partir de 1939, o Estado
do terror das perseguições políticas, a Novo tenha apertado a censura sobre os
refutação das teses que atribuíam ao re- artigos que abordassem o regime nazi,
gime nazi melhorias diversas na situação foi, no entanto, permitida a circulação
económica e social alemã, e o comentário de algumas publicações ilustradas especi-
a casos da conturbada vida política ale- ficamente dedicadas aos acontecimentos
mã dos anos que antecedem a Segunda da guerra. De tendência anglófila e pró­
Grande Guerra. ‑Aliados, portanto contrária ao Eixo, são
No entanto, a apologética antinazi dos de referir a revista Mundo Gráfico, editada
comunistas portugueses antes da Segun- em Portugal, e a Guerra Ilustrada, edição
da Guerra Mundial distinguia-se da da estrangeira distribuída em Portugal.
imprensa autorizada pelo seu carácter No desfecho da Segunda Guerra Mun-
programático, exortando os seus militan- dial, o Estado Novo empreendeu esforços
tes e os simpatizantes à luta contra o fas- de aproximação aos Aliados. Nas páginas
cismo, como também pela constante de- do Avante! comentava-se: “Salazar – o fas-
núncia da cumplicidade existente entre o cista hitleriano faz-se passar por amigo da
Estado Novo e o Terceiro Reich. A partir democracia e das Nações Unidas” (“Sala-
de 1937, os artigos do Avante! referem­ zar – o fascista …”, Avante!, 1 jun. 1945,
‑se mais explicitamente a uma relação 3). As notícias das atrocidades nazis cir-
de submissão do Estado Novo ao regime culavam então pelo mundo e a sua con-
nazi, que colocaria em causa a autodeter- denação reuniu amplo consenso entre as
minação do povo português, subjugando­ instituições internacionais. Caducado o
‑o aos interesses imperialistas alemães. seu papel de ideologia de Estado, o nazis-
Durante a Segunda Grande Guerra, mo passa, doravante, ao estatuto de ideo-
os inúmeros artigos publicados no Avan- logia minoritária, compreensivelmente
te! alusivos ao nazismo dividiam-se, pois, perseguida e deplorada no contexto das
entre a exaltação do contributo soviético democracias contemporâneas, incluindo
para a derrota do Eixo, a cumplicidade a portuguesa.
existente entre Salazar e Hitler, e a exor- O propósito de repressão de ideais fas-
tação à luta nacional contra o regime por- cistas e discriminatórios está, e.g., subja-
tuguês como modo eficaz de combate ao cente em alguns itens da legislação por-
fascismo enquanto bloco internacional. tuguesa. Entre eles, o n.º 4 do art.  46.º
Tornava-se, assim, ainda mais explícita a da Constituição Portuguesa promulgada
articulação entre a luta política nacional a 25 de abril de 1976, que proíbe asso-
e o projeto internacionalista de constru- ciações de carácter militar, racista ou
ção do socialismo, sob a orientação so- que “perfilhem a ideologia fascista”. No
viética. Sem aprofundarem demasiado as Código Penal, o art. 240.º proíbe atos de
características distintivas do regime nazi violência, difamação ou ameaças com
face ao Estado Novo, ao contrário do que base na discriminação racial, religiosa
acontecia em boa parte da imprensa au- ou sexual. Os arts. 132.º (“Homicídio
torizada, os comunistas portugueses insis- qualificado”) e 145.º (“Ofensas à integri-
tiam sobretudo em equiparar a ideologia dade física qualificada”) preveem agra-
de ambos os regimes, diferenciando-os vamentos penais para crimes motivados

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1322 Antinazismo

por discriminação racial e religiosa, e Bibliog.: impressa: BAIÔA, Manuel, “A censu-


em função do sexo ou orientação sexual ra como actor de formação e consolidação do
das vítimas. salazarismo: o caso do noticiário sobre políti-
ca internacional na imprensa (1933-1935)”, in
Todavia, só em outubro de 2008 foi MARTINS, Fernando (coord.), A Formação e a
emitida a primeira sentença de condena- Consolidação Política do Salazarismo e do Franquismo.
ção por discriminação racial em Portugal. As Décadas de 1930 e 1940, Lisboa, Colibri/Cen-
No total, foram julgados 36 réus, tendo 6 tro Interdisciplinar de História, Culturas e Socie-
sido condenados a pena de prisão efetiva dades da Universidade de Évora, 2012, pp. 155­
‑193; CARDOSO, Débora, Imagem e Propaganda
e 18 a pena suspensa. Alegadamente per-
em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, Dis-
tencentes a um grupo internacional de sertação de Mestrado em História Moderna e
extrema-direita, os Hammerskin Nation, Contemporânea apresentada ao Instituto Su-
os arguidos foram “formalmente acusa- perior de Ciências do Trabalho e da Empresa,
dos de prática reiterada de discriminação Lisboa, texto policopiado, 2014; CLARA, Fer-
nando, e NINHOS, Cláudia (orgs.), A Angústia da
racial, para além de outros crimes rela-
Influência. Política, Cultura e Ciência nas Relações da
cionados com a difusão de mensagens Alemanha com a Europa do Sul, 1933-1945, Frank-
de racismo, xenofobia e antissemitismo, furt am Main, Peter Lang, 2014; “Como Hitler
com incitação ao ódio e à violência” (PEI- ‘salva’ a Alemanha”, Avante!, ago. 1936, p. 5;
XE et al., 2008, 18). Em 2016, a Unidade CRUZ, Manuel Braga da, “As elites católicas
Nacional de Contraterrorismo da Polícia nos primórdios do salazarismo”, Análise Social,
vol. xxvii , n.os 116-117, 1992, pp. 547-574; “Do
Judiciária apreendeu, numa skinhouse em balanço de 5 anos de hitlerianismo”, Avante!, fev.
Odivelas, diversas armas e propaganda 1938, p. 4; “Hitler, Goering e Goebels foram ou
hammerskin numa operação que termi- não os incendiários [do Reichstag]?”, Avante!,
nou com a detenção de 21 suspeitos de jan. 1935, p. 3; MANN, Michael, Fascistas, Lis-
diversos delitos, entre os quais agressões, boa, Edições 70, 2011; “Na Alemanha hitleria-
na”, Avante!, out. 1935, p. 3; “No paraíso hitle-
crimes de ódio e de discriminação racial riano...”, Avante!, jan. 1937, p. 4; PEIXE, Bruno et
e sexual, perpetrados sobre duas dezenas al., O Racismo e Xenofobia em Portugal (2001-2007),
de vítimas entre 2013 e 2015 (CANECO, Oeiras, Númena/Amnistia Internacional, 2008;
Visão, 17 nov. 2016). PITA, Gabriel de Jesus, “A revista Lumen e os to-
Ao longo das mais de quatro décadas talitarismos nacionalistas (1937-1945)”, Lusita-
nia Sacra, 2.ª sér., t. 8-9, 1996-97, pp. 501-517;
da democracia portuguesa, diversas asso-
“Portugal não quer ser uma colónia de Hitler!”,
ciações, organizações não governamen- Avante!, mar. 1938, p. 2; “Portugal nas mãos
tais e grupos informais ocuparam-se do de Hitler”, Avante!, ago. 1937, p. 3; ROSÁRIO,
combate aos ideais fascistas e à violência Edite et al., Discursos do Racismo em Portugal: Essen-
e discriminação racial, xenófoba e homo- cialismo e Inferiorização nas Trocas Coloquiais sobre
Categorias Minoritárias, Lisboa, Alto Comissariado
fóbica em Portugal. Com efeito, a reorga-
para a Imigração e Diálogo Intercultural, 2011;
nização da extrema-direita em várias re- ROSAS, Fernando, e BRITO, J. M. Brandão de,
giões da Europa nos começos do séc. xxi Dicionário de História do Estado Novo, 2 vols., Lis-
demonstra que a vigilância permanente boa, Bertrand, 1996; “Salazar – o fascista hitle-
sobre o recrudescimento de ideais totali- riano faz-se passar por amigo da democracia e
tários continua a ser um imperativo das das Nações Unidas”, Avante!, 1 jun. 1945, p. 3;
“O terror hitleriano e os comunistas ante os in-
sociedades democráticas. Este esforço im- terrogatórios”, Avante!, abr. 1935, p. 6; digital:
plica não apenas o esclarecimento das po- CANECO, Sílvia, “O regresso dos skins”, Visão,
pulações, no contexto escolar e mediáti- 17 nov. 2016: http://visao.sapo.pt/actualida-
co, mas sobretudo o aprofundamento de de/sociedade/2016-11-27-O-regresso-dos-skins
políticas de justiça social e de cooperação (acedido a 15 set. 2017).
internacional. Ricardo Ventura

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Antineoliberalismo 1323

Antineoliberalismo contra o neoliberalismo. É ainda necessá-


rio perceber se os conceitos de neolibera-
lismo e de antineoliberalismo utilizados
nas ciências sociais e no espaço público
são coerentemente utilizados e se o seu
uso é aceite por todos ou, pelo contrário,
é disputado.

A ntineoliberalismo é o posicionamen-
to ideológico ou politicamente situa-
do no extremo contrário ao neoliberalis-
O conceito de neoliberalismo teve a
sua génese na déc. de 30 do séc. xx (o co-
lóquio sobre Walter Lippman, organiza-
mo como doutrina político-económica do em Paris em agosto de 1938 pelo fi-
pretensamente promotora de um exces- lósofo francês Louis Rougier, foi um dos
so de liberdade de mercado; excesso esse momentos-chave da criação do conceito)
que põe em causa interesses ou direitos como uma terceira via, defendida por al-
tidos como essenciais, sejam estes dos Es- guns economistas emergentes, de supe-
tados, dos povos, dos trabalhadores ou ração do laissez-faire do séc. xix, em que
das pessoas em geral. o Estado se limitava a proteger a vida e
Existem formas e manifestações de an- os direitos de propriedade clássicos, bem
tineoliberalismo contra os excessos do como do socialismo coletivista, de inspi-
capitalismo, sobretudo financeiro e espe- ração marxista. O termo “neoliberalis-
culativo, mas também contra a existência mo” foi cunhado por Alexander Rustow,
da liberdade de mercado tout court. Com visando uma recuperação moderada do
efeito, afirmam-se como antineoliberais liberalismo, em que o intervencionismo
pessoas de um larguíssimo espectro ideo- estatal, se bem que não dominante, fos-
lógico – da esquerda radical à extrema­ se defensável. Em 1947, na Sociedade
‑direita, passando por defensores da eco- Mont Pèlerin, herdeira dos debates do
nomia social de mercado, de inspiração colóquio sobre Lippman, sob a liderança
social-cristã, e sociais-democratas, entre do economista Hayek, estabeleceu-se o
outros –, que não pensam o mesmo em essencial do conceito de neoliberalismo:
termos políticos e económicos, o que é um programa e sistema político-econó-
motivo de confusão. Acresce que, nos iní- mico apoiado em princípios liberais, mas
cios do séc. xxi, poucos se afirmam como que poderia incluir políticas típicas da so-
neoliberais (é o caso dos membros do cial-democracia, como as promotoras de
Niskaken Center, um think tank [círculo um rendimento mínimo (salário mínimo
de reflexão] americano fundado por um e outras formas de distribuição), medidas
antigo conselheiro económico do Presi- de proteção da concorrência (proibindo­
dente Ronald Reagan), dados os retratos ‑se as práticas anticoncorrenciais), o mo-
ideológicos que são feitos do neolibera- nopólio da moeda pelo governo e ainda
lismo, embora haja muitas pessoas que a intervenção pública nos casos em que
se afirmam contra ele, enquanto é iden- ocorressem falhas de mercado. Este con-
tificado como um mau sistema político­ senso neoliberal foi subscrito por autores
‑económico. como Friedrich Hayek, Frank Knight,
É por isso necessário perceber o signifi- Bertrand de Jouvenel, Karl Popper, Lu-
cado original e atual do conceito de neo- dwig von Mises, George Stigler e Milton
liberalismo e as razões pelas quais pessoas Friedman, apesar de algumas diferenças
de diferentes quadrantes ideológicos são de perspetiva.

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1324 Antineoliberalismo

O chanceler Ludwig Erhard (Alema- ção social, dados os custos crescentes dos
nha Ocidental), o Presidente da Repú- seus programas.
blica Luigi Einaudi (Itália), o presidente A partir da déc. de 80, deixou de exis-
da Reserva Federal dos Estados Unidos tir na Europa um consenso sobre o mo-
Arthur Burns e o primeiro-ministro Va- delo social que, após a Segunda Guerra
clav Klaus (República Checa) são exem- Mundial, foi defendido pelos partidos
plos de membros da Sociedade Mont democratas-cristãos e sociais-democratas,
Pèlerin que ocuparam posições públicas tendo muitos desses partidos desapareci-
proeminentes. Além disso, vários foram do, perdido influência ou simplesmente
os membros da referida sociedade que mudado de orientação política. Em ter-
foram galardoados com o (ainda que as- mos gerais, as ideias liberais passaram a
sim impropriamente chamado) Prémio predominar sobre o ideário socialista,
Nobel da Economia, incluindo Hayek, como forma de responder eficazmente
Milton Friedman e George Stigler. Estes em contextos económicos globais compe-
exemplos denotam a grande influência titivos, o que motivou alterações nos pro-
do ideário neoliberal na sociedade e so- gramas e na ação política dos partidos,
bre a política real. ainda que nem sempre compreendidas
Ronald Reagan, Presidente dos EUA ou assumidas.
entre 1980 e 1988, e Margaret Thatcher, Assim, pois, quando se fala de neoli-
que chefiou o Governo britânico entre beralismo e de antineoliberalismo, é ne-
1979 e 1990, adotaram programas com cessário perceber exatamente o uso que
maior ênfase na liberdade económica, se faz das palavras e os seus limites. Com
na linha do pensamento neoliberal. An- efeito, é frequente haver nos partidos po-
tes disso, na déc. de 70, o ditador chile- líticos pessoas que se afirmam contra o
no Augusto Pinochet tinha feito o mes- neoliberalismo, ao mesmo tempo que es-
mo, com o apoio entusiástico de Hayek ses partidos defendem a liberalização da
e Friedman. economia e, especificamente, a liberdade
Nas universidades, nos media e na po- de capitais, que está na base das profun-
lítica, os antineoliberais contestaram as das transformações que a economia mun-
ideias e as políticas promotoras de uma dial sofreu desde finais do séc. xx.
menor intervenção do Estado na econo- A União Europeia é um caso paradig-
mia, fosse por via legislativa ou adminis- mático de uma organização internacional
trativa, devido a estarem em contradi- que, desde a déc. de 90, prossegue políti-
ção com um ideário de bem-estar social. cas, no âmbito da criação de uma união
Concretamente, muitos antineoliberais económica e monetária, que muitos veem
acusaram os políticos referidos de pro- como neoliberais, e que são aplicadas, em
moverem um aumento da desigualdade contexto nacional, por governos tanto de
nos seus países. Porém, muita coisa mu- direita como de esquerda, a ponto de se
dou desde então, com destaque para as falar na falência das políticas sociais-de-
profundas alterações registadas nas estru- mocratas na Europa.
turas demográficas dos países desenvol- Por outro lado, em Portugal, em 2017,
vidos, por causa do envelhecimento da no decurso do processo político de su-
população, e no comércio internacional, cessão de Pedro Passos Coelho como lí-
com a integração de novos Estados na der do Partido Social Democrata (PSD),
economia mundial. Tudo isso fez perigar Pedro Duarte, militante deste partido,
a sustentabilidade dos modelos de prote- advogou a necessidade de convocação

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Antineoliberalismo 1325

de um congresso programático, por, em


sua opinião, ter havido uma deriva neo-
liberal no partido, contra a sua matriz
ideológica social-democrata. Já no perío-
do de austeridade que se seguiu a 2011,
decorrente da crise financeira e da inter-
venção externa em Portugal, o Governo
de Pedro Passos Coelho foi acusado de
ter práticas neoliberais, ao diminuir os
apoios do Estado às pessoas e ao libera-
lizar os mercados. Nesse sentido foram
as intervenções de pessoas de outros

D.R.
partidos, mas também de militantes do
PSD, como foi o caso de José Pacheco Milton Friedman (1912-2006).
Pereira, um influente comentador polí-
tico, que criticou a governação de Passos Uma segunda ideia a reter é que o
Coelho pelo que considerava os excessos antineoliberalismo é, na maioria dos
de liberalismo e por não ter defendido o casos, o resultado de uma perceção
Estado Social. Paulo Ferreira da Cunha, pública daquilo que o pensamento e
militante do Partido Socialista, também os comportamentos das pessoas são,
ele contestatário do ideário neoliberal, não correspondendo necessariamente
sustentou aliás que a principal linha po- ao que as pessoas pensam, dizem ou
lítica divisória no séc. xxi passou a es- fazem. E.g., o Papa Francisco contesta
tar entre os defensores e os contestatá- a economia que mata não apenas as
rios do Estado Social. A  verdade é que, pessoas mas a própria Terra; segundo
sendo críticos do neoliberalismo, estes Francisco, a lógica do sistema capita-
autores são politicamente liberais, nisso lista dominante e, especificamente, a
se distinguindo dos antineoliberais mar- lógica da globalização financeira no
xistas, que contestam a existência de um séc. xxi visam o lucro a todo o custo,
modelo político liberal e, por essa razão, ignorando princípios morais essenciais.
não se pode dizer que sejam igualmente Ora, existindo uma vastíssima literatu-
antineoliberais. ra sobre este Pontífice que o descreve
Do que referimos decorrem algumas como antineoliberal, a verdade é que
ideias importantes sobre o antineolibe- os principais documentos do seu ma-
ralismo. A primeira ideia a reter é que gistério – designadamente a exortação
não existe um pensamento antineolibe- apostólica Evangelii Gaudium (2013) e a
ral coerente e único. O que existe são carta encíclica Laudato Si’ (2015) – não
narrativas antineoliberais que, generica- fazem quaisquer referências ao neolibe-
mente, assentam na ideia de que a polí- ralismo. Mais: não há dúvidas de que o
tica passou a ser dominada pelos interes- pensamento de Francisco está na linha
ses das grandes empresas multinacionais do dos seus antecessores, especialmen-
ou grupos financeiros internacionais te de João Paulo II e de Bento XVI, na
que não olham a meios para alcançar contestação de um capitalismo sem re-
os seus fins, violando desse modo prin- gras que ignora os direitos das pessoas,
cípios ou interesses sagrados, o que não sem que isso tenha feito de qualquer
é aceitável. deles antineoliberal, salvo na medida

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1326 Antineoliberalismo

dos trabalhadores. Mas quando se viu


Donald Trump, um destacado capitalis-
ta, do Partido Republicano, contestar o
neoliberalismo, por supostamente pôr
em causa os interesses do povo ameri-
cano, percebemos que a sua narrativa
era diferente. E ambas são diferentes
das narrativas católicas dos Papas refe-
ridos, que, com diferenças de estilo e
linguagem, radicam na defesa dos mes-
mos princípios. De destacar ainda que,
no contexto da campanha presidencial
D.R.
americana de 2016, Robert George e
George Weigel acusaram a candidatura
Papa Francisco (n. 1936). de Trump de não defender os valores
humanos essenciais a uma sociedade
em que foram vistos como antineoli- livre. Argumentou ainda Weigel que a
berais (principalmente Francisco) por democracia é um grande desafio mas
parte dos seus seguidores. Convenha- também uma grande responsabilida-
mos que isto é relevante, na medida em de, incompatível com charlatães, como
que evidencia o pensamento à esquer- seria o caso de Trump, cujo carácter e
da de muitos dos seus apoiantes, den- comportamento não davam garantias
tro e fora da Igreja Católica. Todavia, de que promoveria políticas públicas
é preciso notar que outras pessoas que adequadas ao desenvolvimento integral
igualmente valorizam o pensamento das pessoas. A análise de Weigel tem o
social dos papas referidos não rotulam mérito de associar o estudo da políti-
nenhum deles como antineoliberal. Au- ca aos comportamentos dos políticos,
tores como George Weigel ou Robert na defesa de políticas públicas, o que
George afirmam mesmo a compatibili- permite verificar a congruência entre o
dade da doutrina social da Igreja com que é dito e o que é feito.
um saudável liberalismo. Sendo o antineoliberalismo difícil de
Quando verificamos que a campanha classificar, por não existir uma ideologia
presidencial norte-americana de 2016 antineoliberal unificada contraposta a
foi marcada por muitos ataques ao neo- uma ideologia neoliberal, é necessário
liberalismo vindos de candidaturas mui- considerar os comportamentos dos anti-
to diferentes ideologicamente, como fo- neoliberais e o que estes especificamente
ram os casos das candidaturas de Bernie pensam, quer em termos filosóficos, quer
Sanders e de Donald Trump, percebe- a respeito de políticas públicas. É um fac-
mos que estamos em águas teóricas mo- to que muitos dos que combatem o neo-
vediças. Que Bernie Sanders, candidato liberalismo são contra o liberalismo, mas,
da ala esquerda do Partido Democrata noutros casos, o que releva é um posicio-
nas primárias deste partido, tenha zur- namento político situado contra a preva-
zido a bandeira do antineoliberalismo, lência dos interesses económicos sobre o
ainda se perceberia, numa lógica de interesse geral, com efeitos, e.g., na des-
combate ao poder das grandes empre- truição do Estado Social, visto como uma
sas capitalistas e em defesa dos direitos conquista civilizacional.

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Antineoliberalismo 1327

A denúncia dos malefícios decorren- Bibliog.: impressa: CUNHA, Paulo Ferreira,


tes da prevalência dos interesses eco- Direito Constitucional Aplicado, Lisboa, Quid
nómicos sobre o interesse geral das co- Juris, 2007; FRANCISCO, Evangelii Gaudium,
2013; Id., Laudato Si’, 2015; GEORGE, Robert,
letividades políticas está ainda ligada a
The Clash of Orthodoxies: Law, Religion, and Mo-
fenómenos como a corrupção e outros
rality in Crisis, Wilmington, ISI Books, 2001;
crimes económicos, muito frequentes WEIGEL, George, Witness to Hope: the Biography
nos inícios do séc. xxi, independente- of Pope John Paul II, New York, Harper Collins,
mente da natureza dos regimes políti- 1999; digital: COSTA, Filipe Santos, “Pedro
cos. Tais fenómenos verificam-se tanto Duarte propõe congresso programático no
em democracias consolidadas, e.g. as de- PSD antes da disputa de liderança”, Expresso,
mocracias ocidentais, como em Estados 3 out. 2017: http://expresso.sapo.pt/revista-
de-imprensa/2017-10-03-Pedro-Duarte-pro-
autocráticos, e.g. a China. Nos regimes
poe-congresso-programatico-no-PSD-antes-
democráticos, tais fenómenos atingem da-disputa-de-lideranca (acedido a 28 dez.
principalmente os partidos centrais que 2017); GEORGE, Robert, e WEIGEL, Geor-
habitualmente exercem o poder. ge, “An appeal to our fellow catholics and to
Em conclusão: só em parte o antineo- all men and women of good will”, National
liberalismo se refere à contestação das Review, 7 mar. 2016: http://www.national-
ideias económicas promovidas pela So- review.com/article/432437/donald-trump-
catholic-opponents-statement (acedido a 28
ciedade de Mont Pèlerin e pelos think
dez. 2017); WEIGEL, George, “Trump, Kaine,
tanks a ela associados, até porque se ve- and more illusions”, First Things, 3 ago. 2016:
rificou, em finais do séc. xx e princípios https://www.firstthings.com/web-exclusi-
do séc. xxi, uma ampla disseminação de ves/2016/08/trump-kaine-and-more-illusions
ideias económicas liberais que dificilmen- (acedido a 28 dez. 2017).
te podem ser atribuídas aos economistas João Relvão Caetano
referidos. Porém, é um facto que desde
finais do séc. xx o capitalismo financeiro
ganhou preponderância sobre os fluxos
económicos reais e que foi em nome de
discursos formalmente antineoliberais ou
considerados como tais que movimentos
sociais, partidos políticos e líderes de opi-
nião contestaram a especulação financei-
ra à escala mundial que afetou muitos Es-
tados e pessoas, de que é exemplo a crise
financeira de 2007. O uso da expressão
“neoliberalismo” e os discursos antineoli-
berais são muitas vezes retóricos, visando
apenas finalidades de luta política, inde-
pendentemente da ideologia dos seus au-
tores. Precisamente por razões ideológi-
cas, não existe um conceito unificado de
antineoliberalismo, nem se afigura que
tal venha a acontecer, dado que as ideo-
logias dos ditos antineoliberais são dife-
rentes, reportando-se, no plano político,
a antiliberais e liberais.

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1328 Antineologismo

Antineologismo Parece que o antineologismo terá flo-


rescido mais tarde, com os puristas a
combater vivamente a entrada de vocábu-
los de origem francesa, principalmente
no séc. xix. A partir da Segunda Guerra
Mundial, sobretudo, tem sido o inglês a
fornecer um leque considerável de novas

A oposição ao uso de neologismos de-


corre de uma visão nacionalista ou
conservadora (sobretudo purista) de uma
palavras à língua portuguesa.
Rosa V. Mattos e Silva refere os “estran-
geirismos recentes” (no caso “inglesis-
língua que critica a entrada de novas pa- mos”) da Lição V de Carolina Michaëlis de
lavras ou expressões no idioma, por con- Vasconcelos, datada de 1911-1912/1913­
siderá-las desvirtuadoras do mesmo. ‑1914, que eram, naquele momento,
A palavra “antineologismo” é formada neologismos: “empréstimos sancionados
pelo acrescento do prefixo, de origem gre- pelo aplauso do vulgo são, por exemplo,
ga, “anti”, que significa “contra”, ao subs- bife, rosbife, [...], lanche, vagão, buldogue” e
tantivo “neologismo” (do grego “neo”, acrescenta ainda “queque” (cake), “pu-
novo, e “logos”, vocábulo e substantivo dim”, “clube”, “túnel”, “júri”, “jóquei”,
formado ainda com aposição do sufixo etc. (VASCONCELOS, 1956, 327). Se-
“ismo”). riam, portanto, “palavras novas”, aceites
A existência de novas palavras na lín- pelos falantes menos cultos e em fase de
gua portuguesa verifica-se já nos comen- difusão.
tários dos primeiros gramáticos portu- Com efeito, as novas criações têm de
gueses, no séc. xvi. Na Grammatica da enquadrar-se nos padrões fonológicos de
Lingoagem Portuguesa (1536), Fernão de uma língua e sobreviver à resistência dos
Oliveira distingue entre as “dicções ve- falantes. Para tal, é imprescindível que se-
lhas” e as “dicções novas”, alertando para jam aceites e adotadas por uma parcela
o perigo de os falantes menos cultos fa- significativa da comunidade linguística,
zerem “escárnio” desse uso, pelo que de modo a imporem-se no idioma. No
considera preferível derivar as formas entanto, essas criações não estão isentas
novas de outras antigas, já consagradas, de receber uma reação contrária, sendo
ou deixar claro que se tem consciência frequentemente vistas como uma conta-
de que são formações recentes, ante- minação, numa clara atitude de oposição.
cedendo o seu uso por “como dizem” Surge, então, o antineologismo.
(OLIVEIRA, 1988). O neologismo é um fenómeno linguís-
Duarte Nunes de Leão, por sua vez, tico que consiste na criação de uma nova
na Origem da Lingoa Portuguesa (1606), palavra ou expressão, ou em atribuir um
apresenta critérios para a aceitação de novo sentido a um vocábulo já existente
vocábulos novos, referindo que “como os no idioma, com o intuito de designar no-
conceitos dos homens são infinitos e as vos objetos ou realidades, sejam conheci-
palavras finitas, necessariamente as inven- mentos técnicos e científicos ou suscita-
tamos ou buscamos e tomamos empresta- dos por questões estilísticas e literárias,
das de outras gentes”. E para o uso desses para dar maior riqueza e expressividade
vocábulos há que dar aos seus opositores a um texto.
“autores autênticos, cuja autoridade os Os neologismos são, normalmente,
convença” (LEÃO, 1983). criados – na evolução própria das línguas

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Antineologismo 1329

vivas, por inovação de um falante ou de e os estrangeirismos, adaptados ou não à


uma comunidade linguística – com base grafia e fonética do idioma de acolhimen-
em processos morfológicos e lexicais que to (“tsunami”, e.g., palavra entrada em fi-
são recursos normais nessa língua, tais nais de 2004, por ocasião da terrível tra-
como prefixação, sufixação, justaposição gédia que ocorreu na Indonésia), que são
ou aglutinação. Pode haver ainda forma- também, muitas vezes, a base a partir da
ções espontâneas, importação de palavras qual se formam palavras com o acréscimo
de outros idiomas, novas formações com de sufixos ou prefixos comuns nessa lín-
elementos já existentes nessa língua, imi- gua. São casos de hibridismo “pizzaria”,
tação de processos já nela comuns, alte- “jihadismo”, “jihadista”, etc.
ração de um sentido anterior e até, como O uso, a difusão e a entrada definitiva
aponta Maria Lúcia Mexias Simon, “for- de neologismos num determinado idio-
mações onomatopaicas ou, mesmo, sines- ma são fruto de uma avaliação por parte
tésicas” (SIMON, s.d.). dos falantes, bem como da sua aceitação.
Há, ainda, a possibilidade de surgirem Marinovic nota que o neologismo é uti-
palavras totalmente novas, como ocorre, lizado, inicialmente, apenas por alguns
não raras vezes, com os neologismos lite- grupos de pessoas e em determinadas
rários, para efeitos específicos de estilo situações, até entrar, por fim, no uso ge-
ou de clarificação de algum sentido que ral ou ser substituído por outro vocábulo
o autor tenha em mente. A liberdade melhor. “Se uma palavra vai ser categori-
de escrita que a literatura permite tor- zada como neologismo ou não depende
na-a, como nota Lurdes Aguiar Trilho, em certa medida do uso e da frequência
um “campo privilegiado para o desen- dos contextos em que aparece”, acrescen-
volvimento de neologismos” (TRILHO, ta (MARINOVIC, Visão, 10 jan. 2008).
s.d.). Autores como Eça de Queirós (Os Ao longo da sua história linguística, o
Maias, e.g.), e Lídia Jorge (O Vale da português recebeu palavras vindas das
Paixão), entre muitos outros, criaram e mais variadas origens, que hoje são sen-
usaram novas palavras para os fins acima tidas como elementos integrantes e total-
mencionados. mente nacionais.
Entre os neologismos podem incluir-se, A criação de neologismos é um fenóme-
igualmente, os vocábulos típicos da gíria no natural em qualquer língua, enrique-
dos jovens, que têm como preocupações cendo-a e assegurando a sua evolução,
principais a defesa da sua própria identi- uma vez que cada língua viva se renova
dade como geração à parte, e não serem para garantir a própria continuidade.
totalmente compreendidos pelos demais Contudo, o exagero, as modas e o pe-
falantes (note-se vocábulos como “bué”, dantismo no uso de criações vocabulares
“cota”, “tipo”, “cena”, etc.). O discurso novas têm, muitas vezes, o efeito contrá-
publicitário serve-se também de neologis- rio, levando a que os falantes estranhem
mos para tornar mais atraente o produto e condenem essa inovação, como se de
a promover. uma contaminação ou vício aberrante se
São ainda consideradas neologismos al- tratasse, combatendo ferozmente esses
gumas palavras que alteraram o seu sen- neologismos e exigindo o regresso da pa-
tido ou ganharam um novo com o passar lavra vernácula.
dos tempos (e.g., “realizar”, com o valor Ao longo dos séculos, tem-se ouvido cri-
de aperceber-se, fruto do uso da língua ticar “detalhe” (do francês “détail”), suge-
inglesa), as siglas/acrónimos (SIDA, e.g.) rindo-se “minúcia”, “envelope” (do francês

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1330 Antineologismo

“enveloppe”), propondo-se “sobrescrito”,


etc., formas estrangeiras essas que até
deixaram de ser sentidas como alheias
aos falantes nativos, tal como acontece
com “lanche” ou “entrevista”, oriundos
do inglês. O neologismo, neste contexto,
é visto como barbarismo, como um vício
de linguagem que os interessados em pre-
servar a língua devem evitar (&Antirrefor-
mismo linguístico).
Em finais do séc. xix, mais especifica-
mente na obra Gallicismos, Palavras e Phra-
ses da Lingua Franceza..., Souza e Silva, e.g.,
insurgia-se vivamente contra o abuso do
emprego de vocábulos do francês na lín-
gua portuguesa, que era típico de gente
vulgar que não tinha acesso aos clássicos.
Era comum os letrados defenderem vi-
vamente o seu idioma, mostrando não
Mafalda, de Quino.
só descontentamento relativamente aos
neologismos importados, mas ainda um
claro e feroz preconceito contra os mes-
e de que a entrada ou criação de novos
mos. Havia, portanto, uma diferença en-
vocábulos ou novas expressões (alguns
tre os cultos e conhecedores da língua,
deles para designar novos conceitos ou
que mantinham os vocábulos nacionais,
realidades, nomeadamente nos campos
e o vulgo, os iletrados, que usavam até
da ciência e da economia, nos meios de
à exaustão os francesismos e idiotismos
comunicação social e na publicidade) po-
franceses.
dem constituir um enriquecimento lin-
Fernando Pessoa também alude ao
guístico, há ainda a preocupação (já não
tema, dizendo: “O pensamento tem um
tão ligada a preconceitos sociais e cultu-
vício. Cria um neologismo para o descre-
rais) em manter os vocábulos vernacula-
ver – coisar” (SILVA, 2014, 50).
res, que evoluíram ao longo dos séculos,
Já no decurso do séc. xx, passa a ser o
vendo-os como importante património a
inglês a emprestar vocábulos ao idioma
preservar.
nacional. Em alguns meios sociais e cultu-
rais, essas palavras substituem as nativas,
como mostra, de forma satírica, uma ban-
da desenhada [ver imagem na coluna ao Bibliog.: impressa: ALVES, Ieda Maria, Neolo-
lado] da conhecida Mafalda, de Quino. gismo. Criação Lexical,  São Paulo, Ática, 1994;
Ainda hoje há a ideia de que, e.g., não LEÃO, Duarte Nunes de, Ortografia e Origem
se devem usar estrangeirismos se houver da Língua Portuguesa, Lisboa, INCM, 1983;
na língua de acolhimento formas com o OLIVEIRA, Fernão de, Gramática da Linguagem
Portuguesa, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1988;
mesmo sentido. Assim, apesar de haver,
SILVA, Joaquim Norberto de Souza e, Gallicis-
nos nossos dias, uma maior aceitação de mos, Palavras e Phrases da Lingua Franceza Intro-
neologismos, aliada à consciência de que duzidas por Descuido, Ignorancia ou Necessidade
a língua está em permanente evolução na Lingua Portugueza. Estudos e Reflexões, Rio de

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Antineorrealismo 1331

Janeiro, B. L. Garnier, 1877; SILVA, Paulo Ne-


ves da (ed. lit.), Citações e Pensamentos de Fernan-
Antineorrealismo
do Pessoa, 10.ª ed., Alfragide, Casa das Letras,
2014; SILVA, Rosa Virgínia Mattos e, “O con-
ceito relativo de neologismo e arcaísmo. Um
estudo pancrônico”, in OLIVEIRA, Klebson
et al. (orgs.), Do Português Arcaico ao Português
Brasileiro. Outras Histórias, Salvador, Editora da
Universidade Federal da Bahia, 2009, pp. 11­
‑20; VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de,
Lições de Filologia Portuguesa, Lisboa, Revista
O neorrealismo, enquanto movimen-
to artístico e cultural, com um
forte cariz ideológico de raiz socialista e
de Portugal, 1956; digital: MARINOVIC, grandes implicações no campo estético,
Anamarija, “O uso de neologismos e estran-
germinou em Portugal na segunda déca-
geirismos nos jornais portugueses”, Visão, 10
jan. 2008: http://www.webartigos.com/arti- da do séc. xx. Depois de um período de
gos/o-uso-de-neologismos-e-estrangeirismos- consolidação no plano teórico, começou
nos-jornais-portugueses/94614/#ixzz3rUed- a manifestar-se através de uma nova valo-
FKYf (acedido a 2 jan. 2017); SIMON, Maria rização do realismo na arte, no seio de
Lúcia Mexias, “Neologismos”, CIFEFIL, s.d.: uma geração que vivia num período so-
http://www.filologia.org.br/vcnlf/anais%20v/ cial e político conturbado, além da grave
civ2_11.htm (acedido a 2 jan. 2017); TRI-
crise económica que se seguiu à Primeira
LHO, Lurdes Aguiar, “Neologismo”, E-Dicio-
nário de Termos Literários, s.d.: http://www.edtl.
Guerra Mundial. Foi nos anos 30 que se
com.pt/business-directory/6091/neologis- consolidou o neorrealismo, e Gaibéus, de
mo/ (acedido a 2 jan. 2017). Alves Redol, publicado em 1939, acabou
por ser o primeiro romance neorrealista,
Maria Carmen de Frias e Gouveia
tornando-se o marco desse movimen-
to, uma vez que, na perspetiva dos seus
teorizadores (João Pedro de Andrade,
A.  J.  Pimpão, Mando Mendes, entre ou-
tros), seguia a ideia de denúncia das in-
justiças sociais, com a preocupação do co-
nhecimento das causas das contradições
da organização social, das condições de
vida nos campos e nas fábricas.
Nesse tempo de múltiplas contradições
sociais, viveu-se também em Portugal
uma profunda crise cultural. Nesse con-
texto se afirmou o movimento neorrealis-
ta, com intuito marcadamente de inter-
venção social, e começou a manifestar-se
no plano teórico a partir dos anos 20 em
publicações coletivas, propondo um
novo humanismo na criação artística e,
no campo literário, a necessidade de se
cultivar uma nova ficção romanesca, que
devia aproximar-se dos problemas eco-
nómicos e sociais, partindo da realidade.
Trata-se de temáticas que já tinham sido

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1332 Antineorrealismo

desenvolvidas em várias regiões do mun- tervenção social e os neorrealistas reite-


do por escritores hoje consagrados, como ravam a urgência de um realismo social
Gorki, Malraux, Steinbeck, Hemingway, na arte, contra a literatura dita subjetiva,
Jorge Amado e José Lins do Rego. contra o psicologismo e o esteticismo dos
O movimento neorrealista, tendo emer- presencistas.
gido das ideias socialistas e, posteriormen- José Régio, principal responsável da Pre-
te, aderindo aos princípios do realismo sença, tinha publicado “Literatura viva”,
socialista russo, teve desde cedo opositores um texto-manifesto, no primeiro número
em Portugal, especialmente no próprio da revista. O autor afirmava nesse texto
Estado, logo a seguir à implementação do que “em arte é vivo tudo o que é original”,
regime autoritário que se seguiu ao golpe considerando ainda existirem “dois vícios
de 1926, que organizou a perseguição aos que inferiorizam grande parte da litera-
opositores dessa ditadura de direita, a co- tura contemporânea, roubando-lhe esse
meçar por denúncias de anticomunismo, carácter de invenção e descoberta que faz
e, logo de seguida, com instauração da grande a arte moderna. São eles a origina-
censura prévia a todas as publicações. Ou- lidade e a sinceridade” (RÉGIO, 1927, 1).
tro antídoto a essas ideias de esquerda fo- Era uma visão sobre a literatura que, na
ram as revistas culturais, de cariz conserva- verdade, não acompanhava a atualidade
dor na sua maioria, que estabeleceram um literária desse perído nem as propostas
combate permanente contra os neorrealis- estéticas dos autores que introduziram
tas, ao longo das décadas que se seguiram, o modernismo em Portugal, a começar
até à Revolução de 25 abril de 1974. por Fernando Pessoa, com uma obra cen-
Este combate cultural de base ideológica trada na criação heteronímica e no fin-
teve o seu lugar de forma consistente em gimento, perspetiva estética que colidia
revistas e jornais como Seara Nova e Diário com a visão daquele autor da Presença.
de Notícias, em que se opuseram neorrealis- Mais de uma década depois da publicação
tas e conservadores, muitos deles ligados do livro de José Régio intitulado Poemas
ao Integralismo Lusitano e ao saudosismo, de Deus e do Diabo (1925), Mando Martins
que viam na viragem política de 1926, de- referia-se, na revista Sol Nascente, à poesia
pois do golpe de Estado, a esperança para de Régio nos termos seguintes: “Régio é o
uma renascença passível de fazer reviver a poeta de si mesmo. […] A poesia de José
alma portuguesa, o que exprimia cultural- Régio é uma casa fechada sem janelas”
mente um certo nacionalismo literário; no (MARTINS, 1937, 13). Régio respondeu
Porto, este movimento esteve centrado em no número seguinte da mesma revista,
Teixeira de Pascoaes e seus companheiros, relevando os preconceitos e o fanatismo
alguns ligados à revista Águia. do autor daquela crítica, e a polémica
Esse debate sobre arte e ideologia alar- prolongou-se durante longos meses nos
gou-se com o aparecimento da revista números seguintes das duas revistas (Sol
Presença, de Coimbra, em 1927, sendo os Nascente e Presença).
seus responsáveis (José Régio, Branqui- É neste plano que se instala a polémi-
nho da Fonseca, João Gaspar Simões) os ca entre autores neorrealistas e autores
principais opositores ao neorrealismo. ligados à revista Presença, que criou efeti-
Debate marcado por uma acesa polémica vamente um movimento cultural, desig-
sobretudo no plano da estética, em que nado abusivamente, segundo Eduardo
os presencistas denunciavam uma arte Lourenço, por segundo modernismo.
condicionada pelo compromisso de in- Embora sem o espírito de vanguarda a

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Antineorrealismo 1333

que ficou associado o modernismo, na


Presença viriam depois a colaborar autores
com sensibilidades estéticas diferentes,
colaboração que deu origem à consagra-
ção da obra de escritores emblemáticos,
também ligados às revistas Orpheu (1915)
e Portugal Futurista (1917), entre os quais
se contam Fernando Pessoa e José de Al-
mada Negreiros. Constata-se, no quadro
deste debate de cariz ideológico, a opo-
sição dos neorrealistas ao elitismo dos
movimentos modernistas e, desse modo,
uma clara hostilidade para com os “mes-
tres” da Orpheu, como eram designados os D.R.

coordenadores da revista Presença.


José Régio (1901-1969).
A esse elitismo se opuseram vários au-
tores, que encontraram nesse aspeto um
ponto comum de rejeição, como José
Gomes Ferreira, que clarificou mais tar- período e nos anos seguintes, fixando-se
de as razões dessa rejeição: “Os nossos próximas dos neorrealistas, entre outras,
guias, em 1921, não eram nem podiam publicações como Seara Nova, Sol Nascente
ser Fernando Pessoa ou Mário de Sá­ e Vértice, bem como outras associadas ao
‑Carneiro. Nós tínhamos escolhido como Novo Cancioneiro, coleção de poesia que
mestre Raúl Brandão […] em cuja obra serviu de doutrinação a revistas e outras
os membros do grupo encontravam o publicações periódicas como Pensamento,
Absurdo, […] o Inumano e a Loucura do Gládio, Gleba, Agora, O Diabo, Manifesto, Ou-
mundo moderno mas também a fraterni- tro Ritmo; no campo oposto, além da Pre-
dade […]. Nós colocávamos, ao lado de sença, situavam-se publicações de conteú-
Brandão, o Fialho dos contos rústicos, a do estritamente artístico na sua maioria,
verdade no mundo rural do incompará- evitando mesmo referências programáti-
vel Aquilino das Terras do Demo, Camilo, cas, embora consideradas conservadoras,
Dostoievski, Tolstoi, Gorki, Strindberg” como Revista de Portugal, Aventura, Sinal,
(FERREIRA, 1965, 89). Graal, Nação Portuguesa e Brotéria, que ser-
No grande debate instalado com a viam de contraponto no âmbito formal,
polémica que ficou atomizada na oposi- repudiando a submissão da criação artís-
ção entre os autores e dinamizadores do tica a um programa de intervenção social,
neorrealismo e os autores que dirigiam e fazendo implicitamente a negação da
a revista Presença ou nela colaboravam, ideologia neorrealista. Essa situação não
foram abordados vários pontos centrais foi uma divisão estanque e não impediu
relacionados com a criação artística: for- a colaboração de muitos artistas em todas
ma vs. conteúdo; utilidade da arte ou arte essas publicações, independentemente
útil vs. arte pela arte ou arte pura. do seu posicionamento ideológico.
Foram as posições sobre estes temas Observe-se que o rescaldo da polémi-
que definiram a orientação estética de ca dos neorrealistas contra os autores da
muitas das publicações mais relevantes Presença acabou por provocar dissensões
no quadro do aceso debate durante esse internas em ambos os campos (Miguel

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1334 Antineorrealismo

Torga, Edmundo de Bettencourt, Mário campo literário, foi sem dúvida em con-
Dionísio e Vergílio Ferreira, e.g.), fazendo sequência das condições sociais e políti-
com que a revista fosse considerada com cas em que germinou e se desenvolveu,
um certo carácter contrarrevolucionário. que tinham no mundo da arte uma das
Muitos anos mais tarde, um seu colabo- maiores resistências à ditadura, que se
rador, Adolfo Casais Monteiro, diria que manteve praticamente durante meio sé-
“A Presença representava, para alguns dos culo. Nesse longo período e nesse con-
seus elementos, apenas o lado crítico, texto, pretender a humanização da arte
nesta nova situação do homem” (MON- numa sociedade oprimida e propôr não
TEIRO, 1972, 27). só retratar a realidade mas, como preten-
Num momento em que a oposição aos dia Karl Marx, transformá-la, eram pro-
neorrealistas tinha avançado bastante, os pósitos que naturalmente levaram a uma
autores ligados ao movimento da Presen- grande adesão ao neorrealismo.
ça continuavam ensimesmados na defesa
da ideia de sinceridade e de um certo
Bibliog.: ANDRADE, João Pedro de, Ambições e
biografismo, que se confundia já com
Limites do Neo-Realismo Português, Lisboa, Acon-
um romantismo requentado, o escritor tecimento, 2002; DIONÍSIO, Mário, Introdução
José Rodrigues Miguéis centrou, num à Pintura, Lisboa, Europa-América, 1963; FER-
depoimento ao Diário de Lisboa, o essen- REIRA, José Gomes, A Memória das Palavras,
cial dessa polémica nos termos seguin- Lisboa, Portugália, 1965; GUIMARÃES, Fer-
tes: “Uma literatura que não responde nando, A Poesia da Presença e o Aparecimento do
às interrogações da sua época – pelo Neo-Realismo, Porto, Inova, 1969; LOURENÇO,
Eduardo, Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista,
menos – está condenada ao desapareci-
Lisboa, Ulisseia, 1968; Id., Tempo e Poesia, Porto,
mento. [...] A própria literatura desinte- Inova, 1974; MARTINS, Mando, “José Régio
ressada, sem parti-pris, convicta de neu- – Casais Monteiro. Poetas”, Sol Nascente, n.º 20,
tralidade, tem de mergulhar raízes na 1 jan. 1937, p. 13; MENDONÇA, Fernando,
realidade social e moral do seu tempo” O Romance Português Contemporâneo, São Paulo,
(“Rodrigues Migueis…”, Diário de Lisboa, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências de As-
22 mar. 1935, 6). sis, 1966; MONTEIRO, Adolfo Casais, A Poesia
Foi aliás a rejeição da ideia da arte pela da Presença, Lisboa, Moraes Editores, 1972;
PITA, António Pedro et al., Batalha pelo Conteú-
arte, lema dos presencistas nesse debate,
do: Movimento Neo-Realista Português, Vila Franca
que levou ao afastamento de alguns auto- de Xira, Museu do Neo-Realismo, 2007; RÉ-
res que formaram um grupo de dissiden- GIO, José, “Literatura viva”, Presença, n.º 1, 10
tes da Presença em 1930: Miguel Torga, mar. 1927, pp. 1-2; “Rodrigues Migueis num
Branquinho da Fonseca e Edmundo de incisivo depoimento afirma que a literatura se
Bettencourt. Na revista Manifesto (Coim- libertou das disciplinas”, Diário de Lisboa, sup.
bra, 1936), dirigida por Miguel Torga e lit., 22 mar. 1935, p. 6; RODRIGUES, Urbano
Tavares, Realismo, Arte de Vanguarda e Nova Cul-
Albano Nogueira, lê-se precisamente nova
tura, Lisboa, Ulisseia, 1966; SACRAMENTO,
contestação a essa teoria da arte pela arte. Mário, Há Uma Estética Neo-Realista?, Lisboa,
Em suma, o neorrealismo consolidou­ Dom Quixote, 1968; TORRES, Alexandre Pi-
‑se no mundo da arte em Portugal como nheiro, O  Neo-Realismo Literário Português, Lis-
corrente estética dominante entre os boa, Moares Editores, 1977; Id., O Movimento
anos 40 e os anos 60, prolongando-se até Neo-Realista em Portugal na Sua Primeira Fase,
perto do final do séc. xx, tendo sido um 2.ª ed., Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
dos seus movimentos mais férteis. E se se Portuguesa, 1983.
prolongou no tempo, especialmente no Jorge Augusto Maximino

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Antinewtonianismo 1335

Antinewtonianismo pais obras de sua autoria, tida como uma


referência da cultura científica portugue-
sa da primeira metade do séc. xviii, é a
Theorica Verdadeira das Mares, conforme à
Philosofia do Incomparável Cavalheiro Isaac
Newton, publicada na capital inglesa no
ano de 1737.

A s repercussões do desenvolvimento
científico observado após a publi-
cação dos Philosophiæ Naturalis Principia
Outro nome proeminente foi Bento de
Moura Portugal, cuja aprendizagem da
filosofia newtoniana, durante a sua esta-
Mathematica (1687), do inglês Isaac New- da em Inglaterra, foi feita em contacto
ton, fizeram-se sentir em Portugal logo direto com alguns dos mais reputados
na primeira metade do séc. xviii. Ainda discípulos de Newton, entre os quais o
Newton era vivo e já Luís Baden promo- referido Desaguliers. O seu regresso a
via em Lisboa, em 1725, conferências so- Portugal viria, porém, a revelar‑se uma
bre filosofia experimental, onde se expli- opção trágica, uma vez que teve um fim
cavam metodicamente os fundamentos e de vida dramático. Com efeito, apesar do
as experiências dos filósofos modernos, seu prestígio, Moura Portugal viveu os
com especial destaque para os famosos últimos anos da sua vida na cadeia, em
Robert Boyle e Isaac Newton. Anteriores condições absolutamente desumanas,
a 1759, há registos da existência de obras vítima do despotismo reinante. Teodoro
de Newton nas bibliotecas do Colégio de Almeida fez-lhe justiça ao não o dei-
das Necessidades de Lisboa, pertencente xar cair no esquecimento, declarando de
à Congregação do Oratório, e no Colé- um modo bem claro a sua admiração pela
gio das Artes, no Colégio de S.to Antão pessoa e pelas ímpares qualidades inte-
e na Univ. de Évora, pertencentes aos lectuais deste estudioso.
Jesuítas. Também as obras dos principais
divulgadores do newtonianismo, Jean Isaac Newton (1643-1727).
Theophile Desaguliers, Petrus van Muss-
chenbroek e Willem Jacobs Gravesande,
começaram a surgir muito cedo nas bi-
bliotecas nacionais.
Um acontecimento que muito terá con-
tribuído para a difusão da filosofia new-
toniana em Portugal foi a ida do judeu
Jacob de Castro Sarmento para Inglater-
ra, para fugir à Inquisição, fixando‑se, em
1721, em terras britânicas, mas manten-
do uma importante influência sobre a
cultura portuguesa. Castro Sarmento foi
membro do Real Colégio dos Médicos e
da Royal Society de Londres; na Escócia,
recebeu o grau de doutor na Univ.  de
Aberdeen. Tomou conhecimento da teo-
ria newtoniana em Londres, nas confe-
rências de Desaguliers. Uma das princi-

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1336 Antinewtonianismo

As influências no sentido da laicização muitas determinações, a imposição restri-


do ensino e da sociedade em geral come- tiva de autores e filósofos modernos, no-
çaram a sentir-se de forma mais pronun- meadamente de Newton, foi considera-
ciada em 1760, com a publicação das Car- da uma conduta de oposição intelectual
tas sobre a Educação da Mocidade, da autoria generalizada por parte dos Jesuítas do
do médico judeu António Nunes Ribeiro Colégio das Artes em relação ao ensino
Sanches. Nesta obra, são valorizadas as das ciências em geral e particularmente
excelências do método experimental e da nova física. Consequentemente, a es-
as virtudes da matemática como meio cola de Coimbra passou a ser conotada
indispensável ao exercício do rigor e do com o sector mais retrógrado da cultura
raciocínio lógico. Provas do impacto des- científica portuguesa, tendo sido classifi-
ta obra no sistema educativo português cada como o mais influente bastião da fi-
foram a criação do Colégio dos Nobres, losofia peripatética. A proibição permite,
em Lisboa, e posteriormente a reforma contudo, supor que os temas da filosofia
pombalina da universidade, ambas ba- moderna, e particularmente da filosofia
seadas em modelos educativos inspirados newtoniana, constituíam objeto de aná-
pelo newtonianismo e pelas teses do in- lise nas aulas daquele colégio, embora
glês John Locke. de uma forma não oficial e ao arrepio
Contudo, não foi fácil admitir oficial- dos preceitos estatutários. Apesar de to-
mente o ensino das novas tendências das as adversidades, alguns professores
científicas e filosóficas, designadamente aventuravam-se no ensino das matérias
a adoção do newtonianismo, sobretudo científicas de um modo mais consonante
por motivos extrínsecos e de outra or- com a Modernidade. O facto de, naque-
dem, que não eram decorrentes do des- le documento, o reitor proibir de modo
conhecimento da obra de Newton. Após explícito o ensino, ou a simples defesa,
a recusa do pedido de alargamento do das opiniões novas, pouco recebidas ou
ensino da Física no curso de Filosofia em inúteis para o estudo das ciências, como
Coimbra, verificada em 1712 (&Antiex- eram tidas as teses de Descartes, Gassendi
perimentalismo), nova imposição res- e Newton, constituiu um grande obstácu-
tritiva viria condicionar a orientação do lo à atualização do ensino na escola coim-
ensino das matérias físico‑matemáticas brã. Sem essa proibição não teria sido
virada para o newtonianismo que se ia necessário aguardar pela reforma pom-
implantando nas mais prestigiadas uni- balina da universidade, em 1772, para
versidades europeias. Algumas décadas que o newtonianismo tivesse entrado na
mais tarde, o mesmo condicionalismo foi cultura portuguesa.
reafirmado num edital do reitor do Colé-
gio das Artes de Coimbra, datado de 7 de
maio de 1746; entre as várias deliberações Bibliog.: ALMEIDA, Teodoro de, Cartas Fysi-
co-Mathematicas,  t. iii, Lisboa, Officina de An-
constantes deste texto, destacava-se uma
tonio Rodrigues Galhardo, impressor da Real
alínea que condicionava a abordagem de Meza Censoria, 1799; CARVALHO, Joaquim
assuntos de carácter científico nas aulas, de, “João Locke. Ensaio sobre o entendimento
deixando bem clara a proibição da defesa humano”, Boletim da Biblioteca da Universidade de
das opiniões de filósofos modernos, entre Coimbra, vol. xx, 1951, pp. 2-195; CARVALHO,
os quais Newton. Rómulo, Colectânea de Estudos Históricos (1935­
A este documento foi dada uma impor- ‑1994), Évora, Universidade de Évora, 1997.
tância extraordinária, porque, entre as Décio Ruivo Martins

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Antiniilismo 1337

Antiniilismo

N uma carta dirigida a Fichte, em


1799, Jacobi acusa a filosofia des-
te último, na sua recusa em reconhecer
qualquer forma de acesso a outra realida-
de que não o eu puro e vazio, de perma-
necer uma filosofia niilista. É desta forma,
enquanto acusação e maldição, que o ter-
mo “niilismo” entrará no vocabulário fi-
losófico. A esta existência vazia e sem sen-
tido, Jacobi contrapõe uma esfera apenas
acessível ao coração ou à fé. “Mas o ser
humano tem uma escolha, esta única: Friedrich Schiller (1759-1805).
o Nada ou Deus. Ao escolher o Nada, ele
transforma-se em Deus; isto é, ele trans- em Nietzsche, décadas depois, o seu gran-
forma a aparência em Deus porque, se de pensador. “Com um doloroso desejo,
não há Deus, é impossível que o homem sentimos a nostalgia do regresso logo que
e tudo quanto o rodeia não seja apenas principiamos a experimentar os martírios da
uma aparência” (CRITCHLEY, 1997, 4). cultura, e ouvimos no exílio distante da arte
É num tom existencial que surge o anti- a voz comovente da mãe. Enquanto éra-
niilismo de Jacobi: seria preciso contrapor mos simples filhos da natureza, éramos
ao sem sentido de uma vida que conhece felizes e perfeitos; tornámo-nos livres e
apenas um eu sem conteúdo uma esfera perdemos ambas as coisas. Daí brota uma
irredutível onde o mundo e Deus fazem nostalgia dupla face à natureza: uma nos-
valer os seus direitos. Esta esfera existen- talgia face à sua felicidade, uma nostalgia
cial não é, no entanto, a única onde, na face à sua perfeição” (Id., Ibid., 54; itálico
mesma altura, niilismo e antiniilismo vão acrescentado).
despontar. Um primeiro momento surge Face a esta perda e a este exílio, a arte
com o romantismo, cuja relação com a vai tornar-se profundamente aporética.
Modernidade vê nesta última uma época O gesto de Schiller é, de facto, duplo no
de dispersão e de perda. Num ensaio de que diz respeito ao combate a esta doença.
1795, Schiller dá conta de que algo se pas- Em primeiro lugar, ele ensaia um retorno
sa com a sua época, de que qualquer coi- aos Gregos – algo que se irá tornar co-
sa se perdeu. Ele não delineia, é certo, o mum e que chegará a Nietzsche. É preci-
niilismo; no entanto, ao invocar uma per- so entender, no entanto, este retorno não
da, ao invocar uma doença que afligiria o como algo efetivo mas como um ponto
seu tempo – “o nosso sentimento pela na- de vista da própria Modernidade face a si
tureza é igual ao que o doente sente pela mesma. É este, aliás, o sentido que lhe vai
saúde” (SCHILLER, 2003, 58) –, ele dá dar Schiller: os antigos tornam-se uma li-
já conta de um mal-estar que encontrará nha de clivagem da própria Modernidade.

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1338 Antiniilismo

“O sentimento de que aqui se fala não é experimentação de diversas saídas para


portanto aquele que os antigos tinham; é a dissolução. Antiniilista é, assim, o ge-
muito mais idêntico ao que nós temos pelos nealogista de A Genealogia da Moral, com
antigos. Eles sentiam de forma natural; nós a “origem” não metafísica dos sentimen-
sentimos o que é natural” (Id., Ibid., 58). tos morais; mas é também aquele que ri
Desta forma, tanto a Antiguidade como, em A Gaia Ciência, o espírito livre de Para
de facto, a arte mantêm uma posição am- além de Bem e Mal ou, por último, o super­
bígua. Ambas são, de facto, o lugar onde ‑homem de Assim Falava Zaratustra.
se joga a nostalgia face a um tempo onde No entanto, há que colocar em desta-
não nos encontrávamos distantes da na- que a arte como momento importante
tureza. Mas, ao mesmo tempo, elas são o no antiniilismo de Nietzsche. Em A Gaia
índice dessa distância e dessa perda. Ciência, é ela que nos torna a existência
Foi com Nietzsche que o niilismo en- suportável: “Se não tivéssemos acolhido
controu o seu primeiro pensador. Com as artes e inventado esta espécie de culto
ele, o universo torna-se algo desprovido do não verdadeiro, então não consegui-
de qualquer sentido. É o que afirma, ríamos suportar a compreensão da inver-
aliás, em Para além de Bem e Mal: “Imagi- dade geral e da falsidade que agora nos
nai um ser como a natureza, pródigo o é dada pela ciência – a noção de que o
mais possível, o mais possível indiferente, delírio e o erro são condições da existên-
sem intenções nem considerações para cia cognoscente e sensível. A honestidade
com ninguém, sem piedade nem justiça, teria como consequência a náusea e o
fecundo e árido e incerto ao mesmo tem- suicídio. [...] Como fenómeno estético,
po, imaginai a própria indiferença como a existência é ainda suportável para nós”
força” (Nietzsche, 2008, 22; itálicos (Id., Ibid., 118).
acrescentados). Esta afirmação da vida, enquanto ele-
Esta indiferença de tudo quanto existe mento antiniilista da arte, é a afirmação
é, ao mesmo tempo, uma consequência desse excesso da arte que não se subsume
da vontade de verdade do homem oci- à vontade de verdade. O conhecimento
dental, a descoberta do sem-valor de to- que a arte nos dá não deixa de ser, no
dos os valores, mas também aquilo face entanto, um conhecimento doloroso.
ao qual, para Nietzsche, teremos de nos O homem da gaia ciência já não preten-
determinar. Niilismo, desta forma, não de justificar a vida, conferir-lhe um fun-
é a ausência de sentido de tudo quanto damento transcendente. O seu riso, en-
existe, não é tanto a morte de Deus e a quanto índice do excesso de vida, não se
desvalorização de todos os valores, mas o pode separar da ausência de sentido, mas
viver ainda na sombra deste: “Depois que separa essa ausência de sentido do cam-
Buda morreu, mostraram ainda duran- po infinito de possibilidades que, desta
te séculos a sombra dele numa caverna, forma, lhe é aberto. É por isso, aliás, que
uma sombra enorme e medonha. Deus a afirmação da vida é um conhecimento
está morto! Mas, sendo os homens como doloroso e que esse riso de que fala Niet-
são, haverá ainda talvez, durante séculos, zsche é, também, um “chorar por nós”:
cavernas onde se mostre a sua sombra. aquele que ri, aquele que afirma a vida, é
E  nós, nós temos ainda de vencer a sua também obrigado a afirmar a ausência de
sombra” (Id., 1998, 123). sentido, a passar o teste do eterno retor-
É face a este conhecimento último que no: “não te lançarias ao chão, rangendo
Nietzsche vai pensar o antiniilismo como os dentes e amaldiçoando o demónio que

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Antiniilismo 1339

planta homem, julgamos saber que tal se


deu sempre em condições absolutamente
opostas; julgamos que, para tal, o perigo
da sua situação teve de crescer primeiro
de forma gigantesca, a sua força inventiva
e simuladora (o seu espírito) teve que de-
senvolver-se sob uma pressão e um cons-
trangimento prolongados, até à audácia e
à subtileza, que a sua vontade de vida teve
de intensificar-se até à absoluta vontade
de poder” (Id., 2008, 68).
Contrariamente aos homens moder-
nos, que se limitam a calcular com o
abismo, os espíritos livres são “os mais
comedidos, aqueles que não têm neces-
sidade de artigos de fé extremos, aqueles
que não apenas admitem mas até amam
uma boa parte de acaso e de sem-senti-
Friedrich Nietzsche (1844-1900).
do, aqueles que podem pensar o homem
com uma significativa redução do seu va-
assim falava? Ou experimentaste alguma lor sem com isso se tornarem pequenos e
vez um portentoso instante, em que lhe fracos” (NABAIS, 1997, 234). Numa épo-
responderias: ‘tu és um deus e eu nunca ca de corrupção como a sua, Nietzsche
ouvi nada mais divino!’. [...] Ou então vai encontrar nesses espíritos falsamente
como terias de te sentir bem em relação livres que combate uma das figuras últi-
a ti próprio e à vida para não reclamares mas do niilismo, sob a forma de um in-
mais nada senão esta última eterna confir- dividualismo e de uma privatização das
mação, esta última eterna sanção?” (Id., paixões. De facto, “essas velhas paixões
Ibid., 244). populares de que a guerra e os torneios
Encontramos aqui algo que para Niet- constituíam manifestações esplêndidas
zsche é importante e que o vai impedir são agora menos visíveis por se terem
de se tornar um pensador nostálgico: transformado em paixões privadas” (Id.,
é apenas experimentando o abismo do Ibid., 41), e o tirano moderno é, na rea-
niilismo que se descobre o antiniilismo; lidade, “o rebento prematuro do indiví-
através de uma vontade de verdade que, duo” (NIETZSCHE, 1998, 40). Nietzsche
levada ao limite, se descobre o seu contrá- combate aqui duas ideias: em primeiro
rio; através do eterno retorno que se des- lugar, todas as retóricas do progresso que
cobre, ao mesmo tempo, uma vontade de ele considera serem essa sombra de Deus
nada e a vontade de poder enquanto ele- que continua a pairar e que se limita a
mento diferencial das forças que avaliam. trocar valor por valor (Deus pela huma-
O espírito livre de Para além de Bem e Mal nidade ou pelo progresso); em segundo
é, de facto, esse conhecimento do perigo. lugar, o próprio indivíduo enquanto fi-
“Nós, que vemos as coisas inversamente, gura limite deste movimento de dissolu-
nós que abrimos os olhos e a consciência ção: é este, na medida em que é a própria
à questão de saber onde e como se de- calculabilidade, que acaba por surgir no
senvolveu até aqui mais vigorosamente a limite da dissolução e da decadência.

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1340 Antiniilismo

Este niilismo consumado já não cor- própria humanidade –, Husserl vai tentar
responde à velha herança platónica de reconduzir a esfera da ciência e da huma-
uma excessiva vontade de verdade – em nidade ao seu telos próprio, i.e., à essência
Sócrates, que era ainda demasiado grego, do modo de vida filosófico que se desvela
havia nessa vontade de verdade qualquer na Grécia clássica: “Que aprende a hu-
coisa de excessivo, que funcionava como manidade europeia, no homem antigo,
índice de uma vida transbordante –, mas como o essencial? Após alguma hesitação,
acaba por se perpetuar numa dissolução não é senão a forma de existir ‘filosófica’:
sem fim e num cálculo que, para Nietzs- o dar-se livremente a si mesmo, a toda a
che, só o excesso da arte pode contrariar. sua vida, as suas regras, a partir da razão
O pensamento pós-nietzschiano ficou pura, a partir da filosofia” (Id., Ibid., 23).
marcado pelo tema do niilismo e do an- De tons bastante mais sombrios, a obra
tiniilismo. Acontecimentos posteriores de Freud responde de forma diversa aos
vieram dar à ideia nietzschiana de uma acontecimentos da sua época. Profunda-
dissolução e de uma decadência matizes mente marcado pelos acontecimentos da
sombrios que são conhecidos e que in- Primeira Guerra Mundial, é esta última
fluenciaram um conjunto diverso de pen- que permite a Freud pensar a sociedade
sadores – de Adorno a Benjamin, passan- humana em geral. E o que, de facto, ele
do por Heidegger e Husserl. pensa encontrar nesta não é mais do que
Escrita entre 1935 e 1936, a obra de uma “sucessão de genocídios”: “é preci-
Husserl intitulada A Crise das Ciências samente a ênfase do mandamento ‘não
Europeias e a Fenomenologia Transcendental matarás’ que nos permite concluir com
acaba por se inserir num conjunto de certeza que todos nós descendemos de
gestos teóricos que olham a Europa e a uma linhagem infinitamente longa de
civilização como algo que se encontra à assassinos, que tinham no sangue o pra-
beira do perigo. Tendo como pano de zer de matar, como talvez nós tenhamos”
fundo uma realidade sombria, o texto (FREUD, 2008, 143).
de Husserl não fala, é certo, de niilismo, Partindo do pressuposto de que o in-
mas reconhece que é a própria essência consciente não conhece tempo, Freud
da Europa que se encontra em risco de avançará a hipótese de que a guerra en-
perecer. “Esta inversão não diz respeito à tre nações se deve a uma regressão a es-
sua cientificidade, mas ao que a cientifi- tados mentais primitivos que permanece
cidade, ao que a ciência em geral tinha sempre possível. É desta forma que Freud
significado e pode significar para a exis- irá pensar toda e qualquer sociedade
tência humana. A exclusividade com que, humana: como um perigo constante e
na segunda metade do século xix, toda como algo onde trabalha desde sempre
a mundividência do homem moderno se uma tendência para o inorgânico mer-
deixou determinar pelas ciências positi- cê das “más pulsões” do homem. Cada
vas, e cegar pela prosperity a elas devida, sociedade humana assenta, assim, numa
significou um virar costas indiferente às polarização: por um lado, uma força so-
questões que são decisivas para uma hu- cial, assente na pressão do erotismo, e ci-
manidade genuína. Meras ciências de fac- vilizacional, impondo uma conduta ética;
tos fazem meros homens de facto” (HUS- por outro lado, permanece sempre a base
SERL, 2008, 21). instintiva primitiva, feita dessa linhagem
Face ao empobrecimento do sentido infinita de assassinos e desse genocídio
da ciência – e, com ela, do sentido da perpétuo.

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Antiniilismo 1341

Lugar de destaque merece Martin


Heidegger. Leitor atento de Nietzsche,
Heidegger recusaria, decerto, o termo
“antiniilismo”. Num texto sobre Nietzs-
che, é fazendo referência precisamente à
partícula “anti” que Heidegger irá criticar
este último: “Nietzsche compreende a sua
filosofia própria como o contramovimen-
to contra a metafísica, isto é, para ele,
contra o platonismo. Contudo, enquanto
mero contramovimento, ela permanece
necessariamente, como todo o anti-, pre-
sa na essência daquilo contra o que se
vira” (HEIDEGGER, 2002, 251).
Isto não significa, obviamente, que Hei-
Martin Heidegger (1889-1976).
degger seja niilista ou que abrace o nii-
lismo, nem que defenda uma saída nos-
tálgica. Significa, sim, que só aquele que temos relações puramente técnicas” (Id.,
alcance o abismo da indigência do mun- 1989, 121).
do é que pode esperar salvação. “A salva- A técnica, enquanto domínio do ente,
ção terá de vir do lugar onde se dá a vira- desenraíza o homem, retira-o de qualquer
gem no interior da essência dos mortais. tradição, e lança-o no perigo porque a to-
Haverá mortais que mais cedo alcancem talidade do ente coincide, desta forma,
o abismo do indigente e da sua indigên- com o estar-disponível. O exemplo de
cia? Estes, os mais mortais dos mortais, Heidegger torna-se interessante, porque
seriam os mais arriscados. Arriscar-se-iam dá a ver a forma como pensa a técnica: a
ainda mais do que o ser humano que se Terra, enquanto “lugar” de enraizamen-
impõe, o qual se arrisca já mais do que as to do homem, permanece velada para
plantas e os animais” (Id., Ibid., 340). ele. A partir do momento em que é foto-
No entanto, apesar de leitor atento de grafada, ela deixa de ser o “impensado”
Nietzsche, Heidegger vai infletir o nii- para vir à claridade. No entanto, este vir à
lismo no sentido de um pensar sobre a presença da Terra só aparece sob a forma
técnica. Niilismo será, desta forma, o do- de um estar disponível, de uma objetifica-
mínio da técnica sobre a Terra, domínio ção. “O conhecer, enquanto investigação,
que coincidirá, em última análise, com a pede contas ao ente acerca de como e em
própria metafísica. Num exemplo escla- que medida ele pode ser tornado disponí-
recedor: “Tudo funciona. É precisamente vel para o representar. A investigação dis-
isso que é inquietante: tudo funciona, e o põe do ente quando pode calculá-lo pre-
funcionar arrasta consigo o continuar a viamente no seu curso futuro ou quando
funcionar, e a técnica arranca o homem pode conferi-lo como passado [...].  Esta
da terra e desenraíza-o cada vez mais. Eu objetivação do ente cumpre-se num re-
não sei se não os assusta – seja como for, presentar (Vor-stellen) que tem como ob-
a mim assusta-me – ver agora as fotogra- jectivo trazer para diante de si qualquer
fias da Terra feitas da Lua. Não é preciso ente, de tal modo que o homem calcula-
nenhuma bomba atómica: o desenrai- dor possa estar seguro do ente, isto é, pos-
zamento do homem já está aí. Nós já só sa estar certo do ente” (Id., 2002, 109).

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1342 Antiniilismo

Neste domínio da técnica, que Heideg- pela poesia uma disposição para o apare-
ger entende sob a forma de um niilismo cer do Deus ou para a ausência do Deus
consumado, i.e., de uma transformação em declínio” (Id., Ibid., 122).
do ser em valor, há um motivo que cum- Encontramos, na cultura portugue-
pre assinalar: uma crítica ao individua- sa, um número extenso de pensadores,
lismo lida a partir da técnica. De facto, de Antero de Quental a Fernando Pes-
para Heidegger, há dois fenómenos que soa, passando por Teixeira de Pascoaes,
se tornam o correlato um do outro: por no seio dos quais surge um conjunto
um lado, a objetivação e o objetivismo – o de ideias que já encontrámos tanto em
mundo tornando-se imagem –, por outro Schiller e no romantismo como em Niet-
lado, o subjetivismo moderno, a desco- zsche. Acima de tudo, encontramos essa
berta do ego cogito [eu penso], a ponto de visão da sociedade e do país como algo
o mais radical objetivismo encontrar o que está capturado numa decadência e
igualmente radical subjetivismo. numa progressiva dissolução. Antero de
Numa entrevista podemos encontrar o Quental, e.g., no conhecido texto Causas
apelo de Heidegger a um “outro pensar” da Decadência dos Povos Peninsulares nos Úl-
enquanto forma de “ultrapassagem” do timos Três Séculos, aponta a influência pro-
niilismo. Se a metafísica ocidental “já não gressiva da Igreja romana como uma das
oferece possibilidade nenhuma de fazer causas dessa corrupção geral: “Tal é uma
a experiência de pensar os traços funda- das causas, senão a principal, da decadên-
mentais da técnica” (Id., 1989, 124), o cia dos povos peninsulares. Das influên-
“outro pensar” apela para o impensado cias deletérias nenhuma foi tão universal,
da técnica: “ao mistério da superpotência nenhuma lançou tão fundas raízes. Feriu
planetária da essência impensada da téc- o homem no que há de mais íntimo, nos
nica responde a provisoriedade e a insig- pontos mais essenciais da vida moral, no
nificância do pensar que procura reflec- crer, no sentir – no ser: Envenenou a vida
tir sobre este impensado” (Id., Ibid., 125). nas suas fontes mais secretas” (QUEN-
No entanto, este retorno, que marca a TAL, 2001, 23).
possibilidade da inversão, é, igualmente, Todavia, não é tanto quando faz ape-
uma possibilidade de “estabelecer uma lo à noção de decadência ou de corrup-
relação suficientemente rica à essência da ção – apesar de algo de semelhante ser já
técnica” – técnica que, desta forma, não pensado – que encontramos uma respos-
é encarada, por Heidegger, “como uma ta ao niilismo: esta decadência pode ain-
dependência impossível de desenvenci- da ser invertida se as suas causas forem
lhar e de separar” (Id., Ibid., 126). Que, combatidas.
assim, este antiniilismo seja, ao mesmo É necessário fazer referência a uma
tempo, uma tarefa inadiável e algo para o outra tradição, que permanece próxima
qual ainda não estamos preparados, não desta, porque é aí que encontramos for-
é difícil de perceber: “a filosofia não pode mulado um forte pensamento antiniilis-
provocar nenhuma alteração imediata do ta: a teoria do sebastianismo. Pensado sob
atual estado do mundo. Isto não é válido inúmeras formas e em contextos políticos
apenas em relação à filosofia, mas tam- diversos, o sebastianismo confronta-nos
bém a todos os sentires e anseios mera- com uma sociedade totalmente captu-
mente humanos. Já só um Deus nos pode rada pela negatividade e que, de certa
ainda salvar. Como única possibilidade, forma, encontrou o limite extremo da
resta-nos preparar pelo pensamento e dissolução num afastamento radical em

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Antinormativismo linguístico 1343

relação à essência de Portugal: já não se


trata, portanto, de uma decadência que
Antinormativismo
teria como causa algo exterior, como em linguístico
Antero de Quental, mas que seria, de cer-
ta forma, interior ao corpo do país.
O sebastianismo irá surgir, assim, tendo
como pano de fundo essa profunda ne-
gatividade na qual o país se encontra. No
entanto, o sebastianismo não se tornará,
nas suas diversas declinações, um simples
remédio ou uma forma, igual a tantas ou-
O normativismo linguístico, também
conhecido como prescritivismo, é
uma noção segundo a qual as normas são
tras, de organização da comunidade, ou impostas às línguas naturais de modo ar-
seja, um ideal ôntico. Ele será, pelo con- bitrário, i.e., alheio ao uso que estas delas
trário, a dobra utópica do futuro, apelan- fazem. A noção de antinormativismo refu-
do à essência reconciliada de Portugal. ta a ideia de se regular as línguas naturais
É este um dos sentidos possíveis daquilo ignorando a variação a que estão sujeitas,
que o P.e António Vieira e Fernando Pes- mantendo desta forma uma relação pró-
soa nos dão a pensar com o Quinto Impé- xima com a noção de descritivismo.
rio – lembremos, aliás, a frase de Pessoa O discurso normativista, que remonta
em A Mensagem: “Senhor, falta cumprir-se ao surgimento das primeiras gramáticas e
Portugal!”. Não, decerto, como uma épo- que se intensifica na Europa renascentis-
ca histórica ou como uma realidade ônti- ta com a organização do ensino das lín-
ca, mas como um apelo do futuro que se guas, tenta impor aos utilizadores de uma
daria a ouvir sempre. língua a ideia de que existe um modo cer-
to de falar e escrever, por oposição a um
modo errado. Na base deste pensamento,
Bibliog.: CRITCHLEY, Simon,  Very little… Al- que o antinormativismo tenta combater,
most nothing. Death, Philosophy, Literature, Lon- estão as noções de norma e purismo.
don, Routledge, 1997; FREUD, Sigmund, Mal­ O período que medeia entre os sécs. xv
‑Estar na Civilização, Lisboa, Relógio d’Água, e xix no contexto histórico e cultural da
2008; HEIDEGGER, Martin, “Entrevista con-
Europa é fértil no surgimento de gramá-
cedida à revista alemã  Der Spiegel  em 23 de
setembro de 1966”, Filosofia, vol. iii, n.os 1-2,
ticas e dicionários, com os quais se pre-
outono de 1989, pp. 109-135; Id.,  Caminhos tendia fixar as normas de várias línguas
de Floresta, Lisboa, FCG, 2002; HUSSERL, europeias. Os conteúdos gramaticais de-
Edmund,  A Crise das Ciências Europeias e a Fe- senvolveram-se durante este período, se-
nomenologia Transcendental, Lisboa, Centro de guindo uma orientação simultaneamente
Filosofia da Universidade de Lisboa, 2008; normativa e lógica, i.e., orientados para o
NABAIS, Nuno,  Metafísica do Trágico, Lisboa, estudo do certo e do errado e inspirados
Relógio d’Água, 1997; NIETZSCHE, Friedri-
na tradição filosófica.
ch,  A Gaia Ciência, Lisboa, Relógio d’Água,
1998; Id., Para além de Bem e Mal, Lisboa, Gui- Em reação ao pensamento norma-
marães Editores, 2008; QUENTAL, Antero de, tivista e inspirado pelo surgimento da
Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos sociolinguística, o antinormativismo lin-
Últimos Três Séculos, Lisboa, Guimarães Edito- guístico viria a manifestar-se de forma
res, 2001; SCHILLER, Friedrich, Sobre Poesia acentuada no séc. xx. Na base do pensa-
Ingénua e Sentimental, Lisboa, INCM, 2003. mento antinormativista está a ideia de que
João Oliveira Duarte a norma linguística é subjetiva, e de que

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1344 Antinormativismo linguístico

o normativismo se baseia na criação de e noutros casos, o antinormativismo lin-


regras sobre o uso da língua isoladas da guístico surge inevitavelmente como ele-
realidade social. O antinormativismo en- mento de crítica à criação e atualização
fatiza a importância das diferenças lin- de um instrumento linguístico que igno-
guísticas, originadas pelos mais variados ra ou entra em contradição com a des-
fatores contextuais, e.g., a situação comu- crição das variedades linguísticas e do(s)
nicativa dos falantes e a sua origem geo- seu(s) uso(s).
gráfica. Nesta perspetiva, a língua perde
o seu carácter normativo, presumidamen- Bibliog.: BAGNO, Marcos, “Norma linguís-
te imutável e impermeável às mudanças. tica & preconceito social: questões de termi-
Por se tratar de um património social nologia”, Veredas, vol. 5, n.º 2, 2009, pp. 71­
‑83; BECHARA, Evanildo, Moderna Gramática
comum a uma comunidade de falantes,
da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Lucerna,
existe de facto uma variedade padrão, i.e., 1999; CRISTÓVÃO, Fernando (dir. e coord.),
uma norma; todavia, porque as línguas Dicionário Temático da Lusofonia, Lisboa, Texto
estão sujeitas a mudanças, o antinormati- Editora, 2005; FARIA, I. Hub et al., Introdução
vismo reclama a existência de variedades à Linguística Geral e Portuguesa (ILGP), Lisboa,
não padrão, com o mesmo valor linguísti- Caminho, 1996; KELSEN, Hans, Teoria Pura
co mas com os seus próprios sistemas de do Direito, Coimbra, Arménio Amado, 1984;
MARQUES, J. G., “Normas linguísticas e pu-
regras. Na verdade, o pensamento anti-
rismo: algumas observações críticas”, Recorte,
normativista realça que a desvalorização vol. 8, n.º 1, 2011, pp. 1-15.
de uma variante linguística não se baseia
em critérios linguísticos, mas sociais. Sérgio Barros
O uso concreto e socialmente contex-
tualizado da língua ao longo do tempo
produz mudanças assinaláveis na sua es-
trutura, ao nível da fonologia, da morfo-
logia, da sintaxe e da semântica. A hete-
rogeneidade discursiva revela por isso
diferentes variedades linguísticas num
só território e alimenta o debate sobre a
identificação de uma norma linguística,
apesar de em Portugal não haver propria-
mente pomo de discórdia, dada a consi-
derável homogeneidade linguística que
caracteriza o território. Noutros casos,
uma heterogeneidade linguística pode
originar atitudes prescritivas sobre a lín-
gua que afirmam que uma variedade tem
um valor inerente maior do que todas as
outras.
No espaço lusófono, o Acordo Ortográ-
fico de 1990, enquanto tratado interna-
cional que fixa uma ortografia unificada
para o português, atraiu movimentos de
oposição à mudança e ao alegado prescri-
tivismo de algumas das suas bases. Neste

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Antinormativismo 1345

Antinormativismo dem e em relação às quais são incapazes


de impor limites.
Posto isto, e num âmbito mais concreto
e definido, atentemos no seguinte. Não
obstante a existência, incipiente, de uma
abordagem à linguagem e à linguística
que se pode dizer antinormativista, o

E m geral, num sentido extraordina-


riamente vago e puramente abstra-
to, entende-se por antinormativismo
tratamento do antinormativismo estará
aqui restrito à sua aceção jurídica ou fi-
losófico-jurídica, que é, por assim dizer,
uma posição que defende a inexistência aquela onde encontramos o seu sentido
objetiva de uma norma numa qualquer mais técnico e sistemático (e também
esfera da idealidade humana. Ora, se próprio). Para o efeito, é necessário co-
atendermos ao significado etimológico meçar por apresentar, em traços largos, a
latino do termo “norma”, que aponta que corresponde o normativismo a que o
para um padrão ou uma regra, ou, mais antinormativismo se opõe.
precisamente ainda, para um esquadro Tradicionalmente, no quadro da filoso-
de carpinteiro, utilizado para aferir a re- fia do direito, o chamado normativismo,
tidão dos ângulos, isso quererá dizer que ou positivismo, ou ainda positivismo le-
um ponto de vista contrário ou oposto à gal, é a teoria que defende que, no que
norma é um ponto de vista que contraria concerne à natureza da lei, não existe
ou se opõe ao reconhecimento e à utiliza- nenhuma relação de necessidade entre
ção de determinações que sirvam de base a lei e a moralidade, por um lado, nem
a uma padronização da realidade. A ser a validade legal é determinada por outra
assim, normal, normativo e normativida- coisa que não seja o conjunto de certos
de serão apenas imprecisões linguísticas, factos sociais, por outro. Assim, o direito
conceitos ilusórios que remetem para a positivo (o conjunto das ordenações jurí-
falsa possibilidade de prescrever um fun- dicas) é positivo porque é posto, quer di-
cionamento típico (regular, preciso e de- zer, o seu fundamento é tão-só o próprio
finido) do real ou de um seu segmento. direito ou o ato que determina o que é di-
Quando falamos, e.g., de um comporta- reito e o que não é, sem qualquer recur-
mento normal, remetemos, mesmo que so a fundamentos de carácter transcen-
apenas implicitamente, para um padrão dente ou valorativo (i.e., suprapositivos).
de comportamento definido que serve O seu aparecimento e a sua importância
uma distinção entre o que é habitual e na história das ideias encontra as suas
conforme à regra e o que viola os parâme- raízes no empirismo, no positivismo de
tros de uma ação compreensível (razoá- Auguste Comte (1798-1857), na filosofia
vel); ou seja, faz-se apelo a uma medida, política de Thomas Hobbes (1588-1679)
se quisermos ser mais exatos, medida essa e na filosofia utilitarista de Jeremy Ben-
que, para uma posição antinormativista, tham (1748-1832); entre os seus defen-
não existe, i.e., não tem propriamente sores mais acérrimos, encontram-se John
nenhum fundamento nem legitimidade Austin (1790-1859), O. W. Holmes Jr.
prescritiva: enquanto construções, as nor- (1841-1935), H. L. A. Hart (1907-1992)
mas não existem, ou melhor, existem úni- e Hans Kelsen (1881-1973), o jurista aus-
ca e exclusivamente enquanto variáveis tríaco, que pode ser considerado o seu
integrantes de estruturas que as transcen- representante máximo e merece alguma

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1346 Antinormativismo

atenção na apresentação da posição mais legalização ou ilegalização de uma ação


extremada do normativismo. humana que faz daquela uma ação legal
Diretamente influenciado por Rudolf ou ilegal, é o ato de instituição da norma
Stammler (1856-1938), filósofo do direi- que faz com que a ação seja ou não con-
to de feição neokantiana, e pela Escola forme à legalidade, caso contrário a sua
de Marburgo, Kelsen construiu um mo- interpretação será somente uma inter-
nismo normativista que adquiriu enor- pretação causal. Na instituição da norma,
me preponderância. Em Reine Rechtslehre está em causa a determinação de que algo
[Teoria Pura do Direito], obra publicada deve ser ou acontecer, nomeadamente
pela primeira vez em 1934, apresenta que um ser humano, na relação com os
como seu escopo a libertação da ciência seus semelhantes, deve comportar-se de
do direito de elementos que lhe sejam certa maneira – a norma ordena, permite
estranhos: trata-se de uma teoria pura do e autoriza certos comportamentos em de-
direito, porquanto procura simplesmente trimento de outros. Ou melhor, a norma
descrever a lei ou o direito e eliminar do é o sentido de um ato mediante o qual
objeto da sua descrição tudo o que não um certo comportamento é ordenado,
corresponda estritamente a isso. Para este permitido e autorizado, sendo a resposta
autor (como para os positivistas do direi- a esse sentido sempre um “devo”; e a nor-
to, em geral), todo o direito é respeitan- ma fundamental é a pressuposição que
te às normas jurídicas de uma sociedade estabelece a validade das normas de uma
e nelas assenta. Todavia, para que assim ordem moral ou jurídica. Nesse sentido, a
seja, e porque mediante o argumento da norma não possui apenas um valor subje-
regressão infinita é impossível justificar tivo, mediante o qual o sujeito reconhece
uma norma por meio de outra norma que deve fazer qualquer coisa, mas um
e assim sucessivamente ad infinitum – se valor objetivo, independente do reconhe-
uma tal regressão fosse possível, uma nor- cimento do sujeito; quer dizer, a norma
ma nunca teria justificação –, é necessá- é obrigatoriamente vinculativa para uma
rio que se reconheça a existência de uma vontade. Além disso, a norma institui
norma fundamental (Grundnorm) que te- uma cisão entre o dever e o ser: um facto,
nha sido posta como alicerce de todas as enquanto facto, é apenas isso – um facto;
que se lhe seguem e subordinam, hierar- e mesmo que um facto, no reino do ser,
quizadas de acordo com a sua importân- seja conforme à norma, isso não faz dele
cia. A norma, enquanto norma, é consi- um dever, porquanto um dever é dever, e
derada um esquema de interpretação, do não ser. Nenhum facto, nada do que per-
qual deriva o sentido legal de uma ação tence ao reino do ser, pode dar origem a
humana que tem realidade no espaço um dever; pelo contrário, é o dever que,
e no tempo: uma ação, enquanto inter- ao valer por si, modifica o sentido do ser.
venção deliberada no espaço e no tempo As normas não são, então, e não pode-
(i.e., que é concretizada no espaço e no riam ser nunca, a vontade ou o manda-
tempo, e que, por isso, altera o próprio mento do legislador, quando se entende
curso do espaço e do tempo e lhes atri- por vontade ou mandamento um ato de
bui conotações que não tinham antes), vontade psicológico, mas determinações
não é legal ou ilegal em virtude da sua jurídicas que permanecem e vigoram
existência física, antes só o é em virtude na sua validade muito para lá da inicia-
da interpretação objetiva que sofre, inter- tiva dos seus criadores: elas são o sentido
pretação essa que é normativa; é o ato de de um ato de vontade, não um ato de

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Antinormativismo 1347

vontade ele próprio (ainda que os limites


espaciais, temporais, pessoais e materiais
da norma dependam do ato criador).
A todos estes aspetos que caracterizam a
existência da norma, importa acrescentar
ainda mais um, que é o seguinte: os juízos
de valor respeitantes a ações (integradas
num quadro de realidade legal ou ilegal,
de acordo com a determinação norma-
tiva de cada vez em causa) só são juízos
de valor por causa da norma – é a norma
que faz com que uma dada ação seja boa
ou má, quer dizer, a norma é criadora de
valores.
Como reação a este edifício formal do
D.R.

normativismo, encontramos o antinor-


Hans Kelsen (1881-1973).
mativismo, relativamente ao qual cum-
pre fazer uma observação fundamental.
Não obstante haver uma abordagem aos consciência (na esteira de S. Paulo e da
fundamentos do direito que se apresenta sua lei escrita nos corações), e de que é
como resposta à teoria positivista do di- essa lei que deve estar na base na elabo-
reito, e que tem que ver com a compreen- ração das leis das nações; e o de S. Tomás
são da lei ou do direito como instituição de Aquino (1225-1274), que, ao firmar a
social ou prática social, a verdade é que diferença entre quatro tipos de lei (eter-
há outra abordagem, mais original, que, na, natural, divina e humana), faz derivar
apesar de não se apresentar primeira- a lei positiva da lei natural – a lei justa,
mente como resposta ao desenvolvimen- no quadro tomista, é a lei que segue as
to do positivismo, ainda assim antecipa a exigências da lei natural, ordenada que
sua exclusão – o jusnaturalismo ou a teo- deve estar ao bem comum. Do Renasci-
ria do direito natural, que sustenta que mento para a frente, destacam-se Fran-
o direito tem origem numa lei natural cisco Suarez (1548-1617), Hugo Grotius
existente no Homem ou decorrente da (1583­‑1645), Samuel Pufendorf (1632­
natureza. ‑1694) e William Blackstone (1723-1780).
Sem ignorarmos a presença de ideias Mais recentemente, são incontornáveis os
jusnaturalistas em outros autores mais nomes de Jacques Maritain (1882-1973),
antigos, o autor mais atestado para o seu de pendor aristotélico-tomista, numa re-
desenvolvimento é Cícero (106-43 a.C.), formulação da teoria da lei natural pen-
que segue a escola estoica grega na tese sada como originária da lei divina, e John
de que a vida deve ser vivida de acordo Finnis (n. 1940), que estabelece uma co-
com a natureza, o que implica, necessa- nexão necessária e natural entre a exis-
riamente, o exercício de uma recta ratio tência da lei e a obtenção dos bens funda-
capaz de seguir a lei eterna e imutável. De mentais da vida humana, possuidores de
maior importância é também, na Idade valor intrínseco e evidentes por si. Por ou-
Média, o pensamento de S.to Agostinho tro lado, no âmbito da nova vaga natura-
(354-430) na defesa de que existe uma lista – que pensa a lei e a sua elaboração,
lei natural que é a marca da lei divina na os sistemas legais e as normas individuais

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1348 Antinormativismo

a partir de uma avaliação moral que lhes loração, mas é o ser que dá ao dever ser o
será sempre subjacente, sem recurso a seu conteúdo. A norma, construída e ins-
quaisquer fundamentos derivados da na- tituída pela teoria normativista, mais não
tureza humana –, existem dois autores é do que a expressão da visão burguesa da
que protagonizam a reação ao positivis- vida, e, por conseguinte, a tentativa de a
mo. Em primeiro lugar, Lon Fuller (1902­ legitimar por meio do direito. Ou seja, o
‑1978), que protagonizou o chamado direito, e em particular o direito positivo,
debate Hart-Fuller (fevereiro de 1958), é uma reprodução abstrata das relações
com um artigo publicado na Harvard Law de poder estabelecidas pelo capital; os
Review, intitulado “Positivism and fidelity seus valores (ou os valores que o direito
to law: a reply to professor Hart”, em que cria mediante a instituição da norma) são
apresenta uma réplica antinormativista valores burgueses, logo, profundamente
a um artigo de Hart, também publicado particulares e interessados na manuten-
naquela revista, e intitulado “Positivism ção das estruturas de poder existentes
and the separation of law and morals”. (da chamada superestrutura), na distân-
Para Fuller, a lei, à qual reconhece uma cia abissal a que existe da base. Nenhum
moralidade interna, tem de obedecer a direito pode ser universal e igualitário se
oito requerimentos: deve ser geral; deve assente nas dinâmicas inerentes ao ma-
ser conhecida por todos, quando promul- terialismo dialético; pelo contrário, ape-
gada; não deve ser aplicada retroativa- nas pode ser particular e desigualitário,
mente; deve ser compreensível; não deve ao favorecer a ideologia burguesa e a sua
ser contraditória na sua formulação; não tomada de posição unilateral face à rea-
deve exigir uma conduta que fique para lidade (e a um seu segmento muito par-
além das capacidades daqueles a quem se ticular, que é o dos meios de produção).
aplica; deve permanecer a mesma ao lon- Dois nomes representam o antinorma-
go do tempo; e deve haver congruência tivismo marxista: Pyotr Stutchka (1865­
entre o seu anúncio e a sua efetiva aplica- ‑1932) e Evgeni Pachukanis (1891-1937),
ção. Em segundo lugar, Ronald Dworkin juristas russos que, além de serem perso-
(1931-2013), protagonista do chamado nalidades marcantes do séc. xx, se des-
debate Hart-Dworkin, que, no seu ensaio tacaram pela sua produção intelectual.
“The model of rules” (1967), onde faz Refira-se que Pachukanis, em especial,
um ataque geral ao positivismo, escolhe chegou a ler e criticar textos de Kelsen;
a versão de Hart como alvo. a sua obra A Teoria Geral do Direito e o Mar-
O normativismo sofre ainda oposição xismo (1924) é particularmente relevante
por parte das chamadas ciências sociais, no quadro destas discussões, pois trata-se
bem como por parte do marxismo, que de um texto que pretende pôr em evidên-
pode ser considerado um dos expoentes cia que o normativismo abre um fosso in-
máximos da oposição ao normativismo. transponível entre o mundo das normas e
Com efeito, na mundividência marxista, o mundo das relações concretas.
a separação entre o ser e o dever ser pre- Em Portugal, o jusnaturalismo passou
conizada pela teoria normativista não faz por diversas fases, desde o jusnaturalis-
qualquer sentido, porque a normativida- mo escolástico e renascentista, até cerca
de abstrata do direito se encontra susten- do séc. xviii, altura em que entraram
tada pelo ser concreto das relações sociais em cena o jusracionalismo iluminista, o
que se estabelecem entre os homens: não jusnaturalismo sensista e utilitarista, e o
é o dever ser que institui o ser e a sua va- jusnaturalismo krausista, até aos movi-

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Antinormativismo 1349

mentos de reação contemporâneos ao (no âmbito de uma certa leitura comum


utilitarismo e ao positivismo. da queda adâmica). Nesse contexto,
Contribuíram para a primeira fase Deus aparece como necessário enquanto
autores como Álvaro Pais (1330-1390), princípio das leis, ao qual se juntam o li-
com as obras Speculum Regum e De Statu et vre-arbítrio e a imputabilidade; ainda de
Planctu Ecclesiae, inspiradas pela obra De acordo com este autor, o direito positivo
Regimine Principium, de Egídio Romano, consiste nas disposições não necessárias e
na defesa da tese de que as sementes da provenientes da vontade de quem legis-
justiça se encontram gravadas por nature- la. Merecem ainda referência Teodoro
za no coração humano; D. Duarte (1391­ de Almeida (1722-1804), e António Soa-
‑1438), com O Leal Conselheiro; Fr. João res Barbosa (1734-1801), o qual, curiosa-
Sobrinho, que dá a lume em 1843 a sua mente, e contrariamente àquele, volta a
De Justitia Commutativa, em que mantém substituir a luz da razão enquanto funda-
a distinção tomista entre as quatro leis e mento do direito por uma fonte transcen-
a tese de que a lei é obra da razão e está dente, a saber, a revelação divina que dá a
ordenada ao bem comum; Diogo Lopes conhecer ao Homem a lei moral.
Rebelo (m. 1498), com a De Republica Gu- Entre 1840 e 1870, a adoção da versão
bernanda per Regem; Fr. António de Beja krausista do idealismo alemão conduziu a
(1493-1517), com a sua Breve Doutrina e inflexões diferentes. Vicente Ferrer Neto
Ensinança de Príncipes; Fr. Heitor Pinto, Paiva (1798-1886) assumiu uma reflexão
com a sua Imagem da Vida Cristã; Jeróni- ontocosmológica da lei e do direito: no
mo Osório (1506-1580), com a sua De pressuposto de que o Homem tem duas
Regis Institutione et Disciplina; Manuel de naturezas e é um fim em si mesmo (i.e., é
Góis (1543-1597), que faz um comentário pessoa), o direito deve ocupar-se das con-
jusnaturalista à Ética a Nicómaco de Aristó- dições internas e externas que promovem
teles; e Duarte Ribeiro de Macedo (1618­ a liberdade humana, numa tentativa de
‑1680). resolução da cisão entre ser e dever ser,
No quadro do jusnaturalismo iluminis- que passam a estar reunidos num único
ta, Luís António Verney (1713-1792) é ente atravessado pelas esferas empírica
figura de peso, ao afastar-se do teocentris- e racional. José Maria da Cunha Seixas
mo vigente na filosofia do direito até aí (1836-1895) considerou que, objetiva-
estudada e aproximar-se de um jusnatu- mente, o direito é “a ciência dos princí-
ralismo iluminista “de base sensista e em- pios relativos às condições manifestadas
pirista” (TEIXEIRA, 1983, 54), em que a exteriormente, dependentes da liberda-
(boa) razão humana é fonte de direito. de e necessárias para o nosso fim”, ao pas-
Tomás António Gonzaga (1744-1810), so que, subjetivamente, é “a faculdade ou
por sua vez, não é menos relevante, ao poder de praticar ou deixar de praticar os
construir um pensamento no qual o di- atos da vida moral e social”, no contexto
reito natural é o conjunto de leis infundi- de um “pluralismo monadológico” even-
do por Deus no Homem “para o conduzir tualmente inspirado pela filosofia leibni-
ao fim para que foi criado”, “por meio do ziana (Id., Ibid., 78-79). Joaquim Maria
raciocínio e da razão” (Id., Ibid., 42); para Rodrigues de Brito (1822-1873) assentou
ele, a necessidade do poder ordenador os pressupostos do direito na ideia de
tem a sua causa no pecado original e no bem inscrita no Homem, cujo fim depen-
subsequente obscurecimento da lei na- de das várias relações que estabelece com
tural, o qual tem de poder ser superado a realidade em virtude da sua natureza.

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1350 Antinormativismo

No séc. xix, Amorim Viana (1822­ zão prática. António Castanheira Neves
‑1901), Sampaio Bruno (1857-1915), Oli- (n. 1929), por fim, vê o direito como uma
veira Martins (1845-1894), Antero de intenção valorativa capaz de imprimir
Quental (1842-1891) e Manuel Ferreira validade à norma, em que a “intenciona-
Deusdado (1860-1918) reagiram ao posi- lidade normativa” é “transpositiva” (Id.,
tivismo de Comte, que, como vimos, teve Ibid., 132), ou seja, depende da impossi-
influência na forma moderna de pensar bilidade de atribuir um preço à pessoa
o direito. humana, que é detentora de dignidade.
No séc. xx, apareceram as respostas Apesar de considerar que o direito na-
ao normativismo. Cabral de Moncada tural não é objetivamente reconhecível,
(1888-1974), neokantiano, desenha o concorda que depende de qualquer coisa
direito natural como sendo constituído (a intenção normativa) de transcendente
por “ideais éticos e [...] princípios morais às circunstâncias finitas.
de valor universal, existentes a priori na
consciência, e por aquela ideia e senti-
mento inato de Justiça sempre presentes
na consciência”; e como uma forma que,
Bibliog.: BEIRNE, Piers, e SHARLET, Robert
em cada época, recebe “um conteúdo (orgs.), Pashukanis: Selected Writings on Mar-
material próprio” (Id., Ibid., 115), depen- xism and Law, London, Academic Press, 1980;
dente das circunstâncias histórico-sociais. DWORKIN, Ronald M., “The model of rules”,
Um dos seus discípulos, António Ramos University of Chicago Law Review, vol. 35, n.º 1,
de Almeida (1912-1961), criticou o nor- 1967, pp. 14-46; FULLER, Lon L., “Positivism
mativismo kelseano na obra A Teoria Pura and fidelity to law: a reply to professor Hart”,
Harvard Law Review, vol. 71, n.º 4, fev. 1958,
do Direito de Hans Kelsen. Delfim Santos
pp. 630-672; HART, H. L. A., “Positivism and
(1907-1966) eliminou a distinção entre the separation of law and morals”, Harvard
direito natural e direito positivo ao de- Law Review, vol. 71, n.º 4, fev. 1958, pp. 593­
fender que só existe direito natural; para ‑629; KELSEN, Hans, Pure Theory of Law, Clark,
ele, qualquer norma, em sentido técni- The Lawbook Exchange, Ltd., 2005; MAC-
co, consubstancia-se como expressão de CORMICK, Neil, e WEINBERGER, Ota, An
um imperativo que tem a sua origem no Institutional Theory of Law: New Approaches to Le-
gal Positivism, Dordrecht, D. Reidel Publishing
interior do Homem; ao seguir uma li-
Company, 1992; PATTERSON, Denis (org.),
nha existencialista (Heidegger, Sartre), A Companion to Philosophy of Law and Legal Theory,
pensa o Homem como existência, não s.l., Wiley-Blackwell, 2010; SHAPIRO, Scott
como essência, e conclui, por isso, que J., The “Hart-Dworkin” Debate: A Short Guide
o direito não pode ser objeto de raciocí- for the Perplexed, Public Law and Legal Theory
nios indutivos ou dedutivos, edificado em Working Paper Series, University of Michigan
abstrações normativistas. João Baptista Law School, working paper n.º 77, mar. 2007;
Machado (1927-1989) é outro crítico de SOARES, Moisés Alves, e PAZELLO, Ricardo
Prestes, “Direito e marxismo: entre o antinor-
Kelsen, mais precisamente no ponto que
mativo e o insurgente”, Revista Direito e Práxis,
diz respeito à natureza lógica da norma: vol. 5, n.º 9, 2014, pp. 475-500; TEIXEIRA,
como esta não pode senão derivar da ex- António Braz, O Pensamento Filosófico-Jurídico
periência subjetiva do sujeito que conhe- Português, Lisboa, Instituto de Cultura e Lín-
ce, o erro do normativismo é um vício de gua Portuguesa/Ministério da Educação e
sub-repção – para utilizar uma expressão Cultura, 1983; Id., História da Filosofia do Direito
marcadamente kantiana – entre o do- Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2005.
mínio da razão pura e o domínio da ra- Álvaro Almeida

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Antinotivaguismo 1351

Antinotivaguismo que a noite era amiúde associada à fi-


gura do demónio, existindo a crença de
que Deus criara o período noturno ape-
nas como prova da existência do Inferno.
Com efeito, a noite foge ao controlo hu-
mano muito por conta de nos privar do
mais precioso dos sentidos: a visão. Ver

O antinotivaguismo constituiu um
movimento social que se impôs
contra a frequência noturna das ruas,
é o melhor caminho para compreender,
como já dizia Aristóteles, ver é conhecer,
é distinguir contornos, é reconhecer, mes-
em algumas alturas sob punição legal, mo que apenas superficialmente. A inca-
outras apenas social. Prende-se, acima pacidade de distinguir, na obscuridade,
de tudo, com um desejo de ordem e de um arbusto de um ladrão alinha com a
tranquilidade, sentido principalmente nossa vertente mais irracional, estimula
no espaço da cidade, segundo o qual se a imaginação e, consequentemente, abre
tentava vedar a perambulação noturna um mundo paralelo onde tudo é possível,
tanto a homens como a mulheres. Duran- pois não o controlamos. Por outro lado,
te a noite, a presença de alguém na rua em alguns tratados médicos quinhentistas
facilmente se associava a criminalidade, e seiscentistas vemos descrito que era co-
a prostituição ou a vagabundagem. Este mum atribuir a origem de diversas doen-
movimento aconteceu um pouco por to- ças contagiosas aos ares da noite, que, ao
das as cidades, ao longo da sua história, penetrarem nos poros, poderiam colocar
muito embora alguns factos históricos, em risco os órgãos vitais, registando-se um
como o advento de diversos avanços cien- maior número de óbitos durante a noite,
tíficos e tecnológicos, nomeadamente a imputáveis à mesma causa.
difusão da iluminação artificial, tenham Mais tarde, nomeadamente com o movi-
alterado em muito a relação do Homem mento do Iluminismo durante o séc. xviii,
com a noite, especialmente na transição em termos culturais, e, depois, no contex-
da época moderna (sécs. xv a xvii) para to tecnológico, com a iluminação pública
a contemporânea (sécs. xviii a xx). a gás (que, na maior parte dos países, se
Antes de mais, a noite traz a lume o desenvolveu durante os anos de Setecen-
receio do desconhecido, sempre associa- tos, mas que em Portugal foi fomentada
do à escuridão e aos seus meandros. Ao apenas na segunda metade do séc. xix),
longo dos tempos, várias foram as formas as crenças em bruxas e no sobrenatu-
de representação do “outro” feitas pelo ral geralmente amenizaram. Em 1746,
antinotivaguismo, admitindo que ele é o aquando da inauguração da iluminação
desconhecido: aquele que vagueia de noi- pública em Paris, anunciou-se que o rei-
te pode ser, desde há séculos, a bruxa, o no da noite havia finalmente terminado.
monstro, o ser de outro mundo, o vam- Semelhantes reações haveriam de fazer­
piro, o lobisomem, entre outras formas ‑se sentir, cerca de um século mais tarde,
de expressão de um imaginário bastante quando se inauguraram os candeeiros a
rico, como corrobora Joel Serrão no seu gás no Chiado, em Lisboa. Mesmo o ar
estudo sobre a noite: “Sair à noite? Era da noite, que antes se acreditava ser tão
tão perigoso como aventurar-se alguém nocivo, tornou-se calmante e refrescante,
no mar encapelado” (SERRÃO, 1978, e até aconselháveis os passeios pelas ruas
22). Em vários documentos, verificamos iluminadas a gás e pelo luar. Foi, de facto,

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1352 Antinotivaguismo

uma mudança drástica na relação dos ta. Apesar de existir nas cidades bastante
citadinos com a noite. Todavia, outros vida noturna, que muitas vezes se prolon-
medos permaneceram ou sobrevieram: gava até de madrugada, como é possível
da devassa da propriedade ou do corpo, verificar pelos jornais e por outros docu-
designadamente dos roubos, das facadas, mentos da época, a verdade é que existia
dos assaltos, realidades que se viam noti- uma certa hora, principalmente em certos
ciadas nos jornais urbanos e até rurais e locais, em que as ruas ficavam desertas e
que alimentavam novas abordagens aos os indivíduos que surgiam eram quase
medos do noctívago. sempre assustadores. Note-se que, no que
A própria legislação aconselhava ao an- diz respeito à instalação da iluminação a
tinotivaguismo, desde o facto de um crime gás, os bairros mais pobres foram deixados
ser mais gravemente punido se cometi- para último lugar; logo, durante largos
do durante a noite, até ao caso de quem anos, enquanto as zonas mais importantes
fosse apanhado a vaguear nas ruas sem de Lisboa estavam já há muito iluminadas,
propósito ser levado para uma casa da mi- bairros como Alfama, Mouraria e Madra-
sericórdia ou para a prisão, como vemos goa continuavam à mercê do breu que se
várias vezes descrito em textos de Fialho instalava ao anoitecer. Como consequên-
de Almeida e de Eça de Queirós, para cia disso, era precisamente nesses bairros
exemplificar o caso português oitocentis- que ocorria a maior parte dos crimes e que
se encontravam com facilidade os leitos da
Avenida Clichy, Cinco Horas da Tarde (1887), prostituição e o jogo ilegal.
de Louis Anquetin. Deste modo, o noctâmbulo era usual-
mente caracterizado como um elemento
exterior à sociedade, que escolhia estar
fora dela violando os seus hábitos instituí-
dos. O antinotivaguismo era particular-
mente atuante sobre todos aqueles que
perambulavam de noite pelas cidades
aquém de qualquer moldura social ou
profissional lícita.
O trabalho noturno, advindo princi-
palmente da Revolução Industrial e dos
seus avanços tecnológicos, veio interferir
de certa forma com esta situação. Ainda
assim, permaneceu durante muito tempo
vedado ao sexo feminino, não só devido
ao desgaste físico que imprimia nos tra-
balhadores, mas também pelo perigo que
representava. Além do trabalho por tur-
nos, nas fábricas ou nos hospitais, existia
o trabalho da polícia, a qual, a partir de
meados do séc. xix, oficializou uma das
suas funções para o período da noite na
figura do guarda-noturno (sendo que, na
prática, já existiam há muito tempo guar-
das destacados para este efeito).

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Antinuclearismo 1353

Numa outra abordagem, não deixa de


ser curiosa uma manifestação de antino-
Antinuclearismo
tivaguismo que reside essencialmente
numa questão ambiental, e que se de-
senvolve no sentido da necessidade de a
noite permanecer um elemento separa-
do do dia (ao invés da fusão entre uma
e o outro, para que caminhamos). Desde
a aurora da humanidade que o Homem
se habituou, nomeadamente por motivos
U m poder tecnológico assombroso é,
sem dúvida, o que é conferido pela
energia nuclear. Esse poder, decorrente
fisiológicos, e do ponto de vista social, das aplicações militares do átomo sur-
a recolher-se durante a noite; essa lei, gidas na déc. de 40 do séc. xx, merece
como que sacralizada pelos tempos, tem inclusive o epíteto de inaugurador de
sido violada e as rotinas típicas do perío- uma nova etapa civilizacional e antro-
do diurno foram invadindo o espaço da pológica, que, nas palavras de Günther
noite, muito por força das tecnologias da Anders, se caracteriza pela “obsolescên-
iluminação. No entanto, o período no- cia do homem” (ANDERS, 1956) face ao
turno tem um lugar e uma pertinência poder de destruição de um único enge-
biológica que não devem ser perturba- nho. As outras aplicações do átomo, des-
dos, colocando em risco habitats naturais de as centrais de produção de eletricida-
e equilíbrios ecológicos muito frágeis. de aos aparelhos médicos – usualmente
Além disso, existem diversos estudos que apelidadas de aplicações com fins pacífi-
defendem a tese de que o Homem, como cos –, nasceram, portanto, com a marca
qualquer outro ser vivo, está a sofrer as de um feito científico-técnico que co-
consequências deste desequilíbrio ecoló- meçou por mostrar uma capacidade de
gico, embora ainda não seja possível defi- aniquilamento nunca vista e com efeitos
ni-las com rigor. potencialmente globais.
No panorama mundial, onde aproxi-
madamente 30 países possuem mais de
Bibliog.: ALVAREZ, A., Noite. A Vida Noturna, a 400 centrais nucleares em funcionamen-
Linguagem da Noite, o Sono e os Sonhos, São Pau- to (com destaque para os EUA, a França,
lo, Companhia das Letras, 1996; BOGARD,
a Rússia, a Alemanha, a Coreia do Sul
Paul (ed.), Let there Be Night. Testimony on behalf
of the Dark, Las Vegas, University of the Nevada e, até há poucos anos, o Japão), mais
Press, 2008; CABANTOUS, Alain, Histoire de de 130 das quais se situam em 14 países
la Nuit. XVIIe-XVIIIe Siècle, Paris, Fayard, 2009; da União Europeia, estando mais de 70
DURAND, Gilbert, Estruturas Antropológicas do em construção, sobretudo na China e na
Imaginário. Introdução à Arquetipologia Geral, São Rússia, Portugal apresenta no séc. xxi
Paulo, Martins Fontes, 2002; EKIRCH, Roger, uma situação singular, por não possuir
At Day’s Close. A History of Nighttime, London,
uma única central nuclear. O debate no
Weidenfeld & Nicolson, 2005; GINZBURG,
Carl, História Noturna. Decifrando o Sabá, São país em torno das tecnologias associadas
Paulo, Companhia das Letras, 1989; KOSLO- à energia nuclear tem sido feito mais a
FSY, Craig, The Empire of the Evening. A History of propósito das chamadas aplicações pací-
the Night in the Early Modern Europe, Cambridge, ficas do que a propósito das aplicações
Cambridge Press, 2011; SERRÃO, Joel, Temas militares, razão pela qual o presente ver-
Oitocentistas II, Lisboa, Livros Horizonte, 1978. bete se circunscreve à primeira dimen-
Rosa Maria Fina são, expondo algumas das dinâmicas que

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1354 Antinuclearismo

surgiram neste domínio e os movimen- Portugal investiu” no séc. xx (OLIVEI-


tos que se lhes opuseram quando foram RA, 2002, 228), esse investimento nunca
propostas medidas práticas. Importa, no se chegou a traduzir na construção de
entanto, reconhecer que também houve uma central no país.
expressões portuguesas “antinucleares” De entre as várias iniciativas impor-
no âmbito da luta internacional contra tantes para a história do nuclear em
o armamento atómico, em particular as Portugal, merece destaque a formação,
campanhas do Conselho Português para em 1954, da Junta de Energia Nuclear
a Paz e a Cooperação, na qual participa- (JEN), na dependência direta do presi-
ram figuras eminentes como o escritor dente do Conselho de Ministros (dec.-
José Saramago e o Presidente da Repú- -lei n.º 39.580, de 29 de março de 1954).
blica Francisco Costa Gomes, e a coloca- José Frederico Ulrich foi o primeiro
ção de placas à entrada de alguns con- presidente da JEN, chefiando uma equi-
celhos a anunciar que o município era pa composta por Francisco Leite Pinto
uma “Zona livre de armas nucleares”. (vice-presidente), António Herculano
O desenvolvimento do programa de de Carvalho, João Carrington Simões
energia nuclear em Portugal seguiu uma da Costa, Carlos Coutinho Braga, Vítor
rota algo ziguezagueante, com muitas Hugo Lemos, Kaúlza de Arriaga, Alberto
hesitações e impasses, apesar de se te- Manzanares, Luís Castro Solla e Rogério
rem constituído vários institutos, bem Cavaca, entre outros. Vivia-se então num
como diversas iniciativas e investigações, contexto de mudança radical da política
da filiação do país em organizações in- nuclear dos EUA, de levantamento do
ternacionais de energia nuclear, e da segredo neste domínio e reorientação
formação de uma franja significativa de dos esforços da pesquisa para a produ-
engenheiros, cientistas, técnicos e aca- ção de energia elétrica por via nuclear,
démicos na área. Os registos históricos objetivos patentes no programa Átomos
mostram que as universidades portu- para a Paz, anunciado em 1953 pelo Pre-
guesas estavam, já em finais do séc. xix sidente dos EUA, Dwight Eisenhower,
e inícios do séc. xx, a conduzir estudos num famoso discurso perante a Assem-
experimentais e a validar dissertações bleia Geral da ONU. O programa visava
sobre radioatividade (veja-se a obra que descolar a imagem do nuclear das bom-
Jaime da Costa Oliveira publicou em bas largadas, em 1945, sobre Hiroxima
2005), mas a posição do país focalizou­ e Nagasáqui (bem como do teste prévio
‑se sobretudo na exploração de minérios feito em Alamogordo, no Novo México),
radioativos, como os concentrados de e afirmar as vantagens do átomo quando
rádio e urânio, e na exportação deste úl- utilizado para as chamadas aplicações
timo, no pós-Segunda Guerra Mundial, pacíficas. O Atomium, construído em
para o Reino Unido e para os EUA. Estes Bruxelas para a Exposição Mundial de
concentrados provinham especialmente 1958 (Expo’58), sob a palavra de ordem
da mina da Urgeiriça (Viseu), um dos ja- “A world for a better life for mankind
zigos uraníferos mais importantes da Eu- [Um mundo para uma vida melhor para
ropa (sobre a Urgeiriça, veja-se o artigo a humanidade]”, ilustra bem esse nascer
de José Manuel Mendes e Pedro Araú- da esperança quanto a uma reformula-
jo). Mesmo que se considere que o nu- ção da idade atómica.
clear foi “praticamente [o] único sector Entre as incumbências da JEN in-
de alta intensidade tecnológica em que cluía-se a prospeção, a exploração e a

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Antinuclearismo 1355

comercialização de materiais radioativos energia nuclear, a CEEN fomentou uma


(como o urânio) e a geração de eletrici- política de criação de centros de investi-
dade através de centrais nucleares. Oli- gação junto das universidades, aprovei-
veira Salazar, no ato oficial de posse da tando o know-how dos bolseiros anterior-
JEN, reconhece que esta entidade “surge mente enviados para o estrangeiro.
em Portugal com visível atraso em rela- O papel central da JEN deve-se tam-
ção à generalidade dos países” e susten- bém ao facto de ter montado o Labora-
ta o interesse estratégico dos recursos tório de Física e Engenharia Nucleares
uraníferos e do nuclear: “Pode ser que (antecessor do Instituto Tecnológico e
a Providência, tendo-se mostrado avara Nuclear, ligado ao Instituto Superior
connosco quanto a fontes conhecidas Técnico), em Sacavém, onde foi insta-
de energia – o carvão, os óleos mine- lado o Reator Nuclear de Investigação,
rais, mesmo a força hídrica – nos tenha inaugurado em 1961. O reator foi cons-
compensado de alguma forma com um truído à luz do já referido programa Áto-
pouco de urânio e de outros minérios mos para a Paz e dos acordos bilaterais
afins, mananciais a explorar no futu- de cooperação no domínio da energia
ro. […] Seja como for, e ainda que ape- nuclear para fins exclusivos de investiga-
nas comece a desentranhar-se de densa ção científica. Na cobertura da imprensa
nebulosa a era nuclear, como nova era ao evento lê-se que o reator “constituirá
do mundo, há já seguramente possibili- [um] instrumento precioso para impul-
dades que se oferecem, atividades novas sionar o progresso científico e técnico
a empreender, interesses a acautelar, do nosso país” (Id., 2005, 69). Não obs-
aplicações de toda a ordem a integrar na tante ter sido avançada a hipótese de
vida” (Id., Ibid., 18). encerramento na déc. de 90 do séc. xx,
O programa de prospeção de urânio o reator permanece em Sacavém e con-
em Portugal implicou a formação de tinua a ser um polo único na península
cientistas e técnicos no estrangeiro, atra- Ibérica, quer em termos de formação de
vés da atribuição de bolsas de estudo, cientistas e técnicos, quer ao nível de de-
o apoio à criação de centros de investi- senvolvimento de projetos de investiga-
gação e a aquisição de equipamentos. ção, cujos campos de atuação vão desde
Estas ações vinham no seguimento dos a medicina à agronomia, passando pelo
planos da Junta Nacional de Educação ambiente e pelo património cultural.
criada em 1936 (e que substituía a Junta A reputação positiva da JEN e os es-
de Educação Nacional criada em 1929), forços empreendidos contribuíram para
e tinham sido já impulsionadas pelo Ins- que Portugal integrasse o grupo funda-
tituto de Alta Cultura, onde, em 1952, dor de importantes organismos inter-
foi constituída uma Comissão Provisória nacionais de energia nuclear, como a
de Estudos de Energia Nuclear – ato a Agência Internacional de Energia Ató-
que não foi certamente indiferente a mica, em 1957, e para que os investi-
formação da Junta de Energia Nuclear gadores portugueses participassem em
espanhola em 1951 –, oficializada de- encontros nacionais e internacionais,
pois pela Comissão de Estudos de Ener- onde defenderam a necessidade de o
gia Nuclear (CEEN). Com o objetivo de país instalar uma central de elevada po-
fazer crescer no país a esfera cientifico­ tência ainda durante a primeira metade
‑tecnológica do nuclear e edificar as ba- da déc. de 60 do séc. xx. Refira-se, pela
ses para um futuro organismo oficial de sua relevância histórica, que na primeira

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1356 Antinuclearismo

conferência internacional sobre as apli- cal, pelo então emergente associativismo


cações da energia para fins pacíficos, ambiental, pela cobertura da imprensa,
realizada em Genebra, em agosto de bem como pelo interesse ativista de al-
1955, a participação portuguesa se fez guns jornalistas, como Afonso Cautela,
por intermédio de Alberto Manzanares, que se tornou depois diretor do Movi-
do Instituto Superior Técnico. mento Ecológico Português, e de figu-
A par destas ações, outras houve que ras relevantes da comunidade científica,
não tiveram concretização. Foi o caso como o físico J. J. Delgado Domingos, do
do amplo conjunto de documentos Instituto Superior Técnico, que escreveu
e estudos sobre a construção de uma abundantemente contra o nuclear em
central-piloto apresentado pela Compa- revistas técnicas e nos media. A ação de
nhia Portuguesa de Indústrias Nuclea- protesto mais marcante foi a manifesta-
res ao Governo português em 1961, por ção ocorrida no dia 15 março de 1976.
intermédio do ministro da Economia, Afirmam os jornais da época que, ao
que sustentava o interesse e a urgência badalar incessante do sino da igreja, a
de desenvolver um programa nuclear população de Ferrel saiu à rua munida
de abastecimento de eletricidade tendo dos instrumentos da faina agrícola, para
por base projeções para 1975 quanto interromper os trabalhos preparatórios
ao aumento do consumo de energia e de construção da central, na zona do
à saturação das reservas hídricas. Outro Moinho Velho. Um comunicado, onde
exemplo foi o abandono do projeto ibé- se lia que os inconvenientes do nuclear
rico para a construção de uma central (com vários exemplos) eram muito su-
nuclear junto ao rio Guadiana, perto periores às suas eventuais vantagens, ha-
de Alcoutim, cujo relatório foi entre- via circulado anteriormente pela popu-
gue em 1967 aos Governos português e lação do concelho. Na sequência deste
espanhol pela Empresa Termoelétrica acontecimento constituiu-se a Comissão
Portuguesa e pela Companhia Sevilha- de Apoio à Luta Contra a Ameaça Nu-
na de Eletricidade. clear. Em fevereiro de 1977, quase um
A vontade política em apostar no nu- ano depois da marcha de protesto, o
clear, para a geração de eletricidade, movimento Viver é Preciso lançou um
como um dos objetivos estratégicos em apelo nacional intitulado “Somos todos
prol da autonomia energética nacional, moradores de Ferrel”, que se opunha
expressa logo no pós-25 de Abril de 1974 à política pró-nuclear do Governo, que
pela Secretaria de Estado da Indústria e através da JEN dera, entretanto, início
Energia do 3.º Governo provisório, e no a uma campanha de informação e es-
programa do 1.º Governo constitucio- clarecimento. Em paralelo, foi tornado
nal, vai-se mantendo ao longo de vários público um manifesto subscrito por 110
governos constitucionais, mas acaba por cientistas e técnicos que advogava a ne-
se desvanecer em meados dos anos de cessidade de um debate sobre a opção
1980. A sua faceta mais concreta foi o nuclear. Em janeiro de 1978, o Festival
projeto para a construção de uma cen- pela Vida e contra o Nuclear, realizado
tral nuclear na localidade de Ferrel, no nas Caldas da Rainha e em Ferrel, reu-
concelho de Peniche. Contudo, esta niu cerca de 3000 pessoas, que assisti-
opção do Governo e de alguns sectores ram a debates, workshops e espetáculos
económicos foi boicotada pela forte de Zeca Afonso, Fausto, Vitorino, Pedro
contestação por parte da população lo- Barroso e Sérgio Godinho, entre outros.

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Antinuclearismo 1357

Na altura, o tema da central de Ferrel


foi musicado por Fausto, que na déc. de
1970 era conhecido pelas suas canções
de intervenção. A letra da canção “Se
tu fores ver o mar (Rosalinda)” é ex-
pressamente antinuclear: “Em Ferrel lá
p’ra Peniche/vão fazer uma central/que
para alguns é nuclear/mas para muitos
é mortal/os peixes hão de vir à mão/um
doente outro sem vida/não tem vida o
pescador/morre o sável e o salmão/isto
é civilização/assim falou um senhor/
tem cuidado” (FAUSTO, 1977).
Estes protestos foram concomitantes D.R.

ao alavancar do programa nuclear e


ao subsequente conjunto de iniciativas Fausto Bordalo Dias (n. 1948).
conducentes à construção de infraes-
truturas elétricas baseadas nessa forma
de energia. organismos, é decidido o desmembra-
Em 1976, foi instituída uma comissão mento e posterior extinção da JEN, em
técnica independente de carácter con- 1979. Sucederam-se muitas reorgani-
sultivo para redigir um Livro Branco so- zações e várias entidades neste quadro,
bre as Centrais Nucleares em Portugal, como a Empresa Nacional de Urânio,
coordenada por Jaime da Costa Oliveira. o Laboratório Nacional de Engenha-
O estudo foi concluído e entregue em ria e Tecnologia Industrial, o Gabinete
finais do ano de 1977, mas a sua divul- de Proteção e Segurança Nucleares e a
gação pública ocorreu apenas três anos Direcção­‑Geral de Energia. Alguns des-
depois. As conclusões acabaram por per- tes organismos técnicos e administrati-
der alguma atualidade, porque, nos en- vos eram referidos na concretização do
tremeios, ocorreu o segundo choque pe- Plano Energético Nacional (PEN). Este
trolífero na sequência da crise no Irão, Plano, na versão apresentada em 1982,
o grave acidente na central de Three previa a introdução do gás natural e o
Mile Island nos EUA, em 1979, e, a nível lançamento do programa nuclear. Em
nacional, a realização de estudos geoló- 1983, no debate público sobre o PEN,
gicos e sismológicos do sítio de Ferrel e Carlos Pimenta, então secretário de Es-
outros, e a atribuição do dossiê do nu- tado do Ambiente, destaca-se pela sua
clear à Eletricidade de Portugal  (EDP), oposição ao nuclear, e pelo consequente
uma empresa estatal constituída em confronto com o ministro da Indústria e
1976, após a fusão de várias outras em- Energia da altura, José Veiga Simão, para
presas do sector, o que denotava que a quem a construção de centrais nucleares
responsabilidade pela construção e ex- era a solução económica mais adequada
ploração de uma eventual central nu- para a produção de eletricidade, especial-
clear não estaria a cargo da JEN. mente depois de duas crises petrolíferas.
Na sequência de sucessivas reestrutu- A versão final do PEN nunca chega a ser
rações e da dispersão das suas ativida- submetida à Assembleia da República, e
des, competências e poderes por outros o programa do 10.º Governo constitucio-

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1358 Antinuclearismo

nal, que toma posse em 1985, acaba por necessária, que passa por contrariar os
apostar no uso do carvão como fonte pri- níveis pouco sustentáveis e bulímicos de
mária de energia e no desenvolvimento consumo associados aos estilos de vida.
de aproveitamentos hidroelétricos. Por sua vez, os defensores do nuclear ad-
No contexto internacional, o movi- vogam que este é hoje uma tecnologia
mento contra as centrais nucleares co- regulada e segura, que pode contribuir
meça a ganhar uma expressão e adesão para combater o aquecimento global,
crescentes com a ocorrência de alguns devido à ausência de emissões de dióxi-
acidentes nucleares graves e o conhe- do de carbono, e que, estando cada vez
cimento progressivo dos consequentes mais próximo o esgotamento das reser-
efeitos cancerígenos induzidos pela ex- vas de combustíveis fósseis, é o único
posição contínua e excessiva à radioati- meio capaz de assegurar os consumos
vidade. Em 1979, ocorre, como foi refe- energéticos em que assenta a sociedade
rido, o acidente nuclear de Three Mile contemporânea.
Island; décadas antes, em 1957, aconte- Os argumentos a favor do nuclear ti-
cera o acidente de Windscale, em Ingla- veram um apoio particularmente impor-
terra. Em 1986, em Tchernobil, na então tante quando James Lovelock, um dos
União Soviética, ocorre por falha hu- principais teorizadores do movimento
mana o mais grave acidente da história ecologista mundial, publicou, em maio
das centrais nucleares. O segundo mais de 2004, o artigo de opinião “Nuclear
grave sobrevém, após um violento sismo power is the only green solution [A ener-
e tsunami, na central de Fukushima Daii- gia nuclear é a única solução verde]” no
chi, no Japão, em 2011. Se a literatura jornal britânico Independent. Nesse arti-
académica já tinha classificado Three go, Lovelock defende que só o nuclear
Mile Island como um “risco tecnológico pode travar o aquecimento global, que
maior” (LAGADEC, 1981, 47-54), Tcher- os medos face ao nuclear são irracionais
nobil e Fukushima vieram mostrar o pe- e injustificados, e que o tempo que resta
rigo numa escala ainda mais elevada. ao planeta e a nós não é compatível com
A dissensão sobre o nuclear inscreveu­ a procura e a experimentação de outras
‑se em diferentes mapas de compreensão fontes de energia. Já o lado que se opõe
do tema, esgrimindo-se posições a favor ao nuclear tem vindo a alicerçar-se na
ou contra as centrais no que diz respei- ideia de que não é possível quantificar
to à segurança, aos impactos ambientais, de forma precisa os perigos das centrais
à confiança na ciência, na tecnologia e nucleares, e que, dados os seus poten-
nos mecanismos de controlo, e às con- ciais efeitos ao longo do tempo, a pon-
ceções de desenvolvimento e bem-estar deração de fatores éticos deve obrigato-
socioeconómico. Em geral, os opositores riamente entrar na decisão sobre a sua
do nuclear salientam os riscos de segu- aceitabilidade (a este propósito, veja-se a
rança, os custos de produção elevados, obra de Kristin Shrader-Frechette).
a longevidade da radioatividade dos re- No início do séc. xxi, o nuclear volta a
síduos nucleares e o legado às gerações ser equacionado em Portugal. Decorria
vindouras, e defendem o aproveitamen- então o 16.º Governo constitucional, de
to de recursos energéticos renováveis curtíssima duração (julho de 2004-mar-
e a eficiência energética; argumentam ço de 2005), presidido por Pedro Santa-
ainda que a energia nuclear constitui na Lopes. A proposta de construção de
um simples adiamento de uma mudança uma central nuclear foi tornada pública

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Antinuclearismo 1359

em fevereiro de 2005, encabeçada pelo continua a ressurgir pontualmente. Es-


empresário Patrick Monteiro de Barros tas manifestações acontecem a propósito
e apoiada pelo interesse de vários ope- da central espanhola de Almaraz, dada
radores privados estrangeiros. Estes de- a sua proximidade da fronteira portu-
fendiam que a central permitiria reduzir guesa e a sua localização junto ao rio
a dependência energética do país, que Tejo, ou de qualquer projeto relativo ao
importa a totalidade dos combustíveis nuclear que esteja em discussão em Es-
fósseis que consome, o que o torna par- panha e cuja localização esteja prevista
ticularmente vulnerável às oscilações do para perto da fronteira, tal como acon-
mercado petrolífero internacional. Os teceu em finais da déc. de 80 do séc. xx,
media noticiaram que a localização visa- quando se contestou a instalação de um
da para a construção da central tinha cemitério nuclear em Aldeadávila, nas
sido Mogadouro, em Trás-os-Montes, margens do rio Douro.
nas margens do rio Douro. À época, fo- Face à decisão de não construir uma
ram organizados vários debates sobre o central nuclear, à elevada dependência
tema, como a conferência Energia Nu- energética externa, e à importação de
clear: o Debate Necessário (fevereiro petróleo, Portugal tem respondido com
de 2006), promovida pela Ordem dos a realização de avultados investimentos
Engenheiros com o apoio de várias as- nas chamadas energias renováveis, como
sociações empresariais. Os movimentos a hídrica, a eólica, a geotérmica e a ener-
que se opunham, sobretudo associações gia de biomassa. Refira-se que, segundo
ambientalistas como a Quercus, a Liga as estatísticas da European Wind Energy
para a Proteção da Natureza, a Geota, Association, em finais de 2013, Portugal
a Gaia, a Campo Aberto, etc., só para figurava no grupo dos 10 países com
mencionar algumas, estabeleceram nes- mais produção eólica na Europa, logo a
ta altura a Plataforma Não ao Nuclear. seguir à Dinamarca e à frente da Holan-
O  contexto era o da rememoração do da. No que concerne especificamente
30.º aniversário da manifestação de Fer- à produção de energia elétrica por via
rel, assinalado, inclusive, na esfera literá- nuclear, o movimento antinuclear teve
ria, com a publicação do livro A Maldição talvez a seu favor o facto de a vontade
das Bruxas de Ferrel, de Mariano Calado, política nunca ter sido muito determina-
um romance de inspiração histórica cujo da. Na opinião de Jaime da Costa Olivei-
pano de fundo é precisamente aquela ra, físico nuclear, autor de vários livros
ação de protesto. O Governo que se se- sobre o tema e coordenador da comissão
guiu, liderado por José Sócrates, não se de redação do já referido Livro Branco
mostrou interessado na opção nuclear e sobre centrais nucleares em Portugal, os
defendeu que tal questão não estava na fatores que impediram o avanço do pro-
agenda política, posição patente na Es- grama nuclear por parte dos sucessivos
tratégia Nacional para a Energia (veja-se governos foram os protestos em Ferrel,
a Resolução do Conselho de Ministros a extinção da JEN, a incapacidade de a
n.º 169/2005, de 6 de outubro). A opção EDP conduzir um programa nuclear, a
pelo nuclear não voltou a estar presente promoção do carvão (dada a reconver-
nos programas dos governos subsequen- são das indústrias consumidoras de fue-
tes, mas nas ações de protesto das asso- lóleo e a decisão de usar aquele combus-
ciações ambientalistas portuguesas, e de tível na central de Sines), os acidentes
certas franjas da população, o nuclear nucleares no mundo e as polémicas em

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1360 Antinuclearismo

MENDES, José Manuel, e ARAÚJO, Pedro,


“Nuclearidade, trabalho dos corpos e justiça:
a requalificação ambiental das minas da Urgei-
riça e os protestos locais”, Sociologia, Problemas
e Práticas, n.º 64, 2010, pp. 81-105; OLIVEIRA,
Jaime da Costa, A Energia Nuclear em Portugal:
Uma Esquina da História, Santarém, O  Miran-
te, 2002; Id., O Reactor Nuclear Português: Fonte
de Conhecimento, Santarém, O Mirante, 2005;
“O povo de Ferrel diz não à central”, O Ara-
do, 16 mar. 1976; ROLLO, Maria Fernanda et
al., Ciência, Cultura e Língua em Portugal no Sécu-
lo XX, Lisboa, INCM/Instituto Camões, 2012;
SHRADER-FRECHETTE, Kristin, Burying Un-
certainty: Risk and the Case against Geological Dis-
posal of Nuclear Waste, Berkeley, University of
Manifestação contra central nuclear em Ferrel, California Press, 1993; SOUSA, Alfredo de et
Peniche, 1976, Jornal das Caldas, 21 mar. 2012. al., Centrais Nucleares em Portugal: Projecto de Livro
Branco, Lisboa, Ministério da Indústria e Tecno-
logia, 1978; digital: THE EUROPEAN WIND
ENERGY ASSOCIATION, Wind in Power: 2013
torno do Plano Estratégico Nuclear (ve-
European Statistics, 2014: http://www.ewea.org/
ja-se a obra que Jaime da Costa Oliveira fileadmin/files/library/publications/statistics/
publicou em 2002). EWEA_Annual_Statistics_2013.pdf (acedido a
A energia nuclear é uma tecnologia 13 dez. 2014); GOMES, Francisco, “Evocada
imensamente poderosa que abriu uma luta contra central nuclear em Ferrel”, Jornal das
nova frente de vulnerabilidade à hu- Caldas, 21 mar. 2012: http://jornaldascaldas.
manidade. Não raras vezes, as posições com/evocada-luta-contra-central-nuclear-em-
antinucleares são acusadas de provocar ferrel (acedido a 26 out. 2016); LOVELOCK,
James, “Nuclear power is the only green so-
desnecessariamente o medo, mas, para
lution”, Independent, 23 maio 2004: http://
os defensores destas posições, o desas- www.independent.co.uk/voices/commenta-
troso é precisamente o escamoteamento tors/james-lovelock-nuclear-power-is-the-on-
do medo, enquanto heurística perante ly-green-solution-6169341.html (acedido a 9
uma grande potência destrutiva. jun. 2014); “World nuclear power reactors &
uranium requirements”, World Nuclear Associa-
Bibliog.: impressa: ANDERS, Günther, Die tion, 1 jun. 2014: http://www.world-nuclear.
Antiquiertheit des Menschen: Über die Seele im Zei- org/information-library/facts-and-figures/wor-
talter der Zweiten Industriellen Revolution, vol. i, ld-nuclear-power-reactors-archive/reactor-ar-
Munich, C. H. Beck, 1956; CALADO, Maria- chive-june-2014.aspx (acedido a 1 ago. 2014).
no, A Maldição das Bruxas de Ferrel, Águas San- Helena Mateus Jerónimo
tas, Sempre-em-Pé, 2006; CORREIA, Paulo
et al., Energia Nuclear: Uma Opção para Portugal,
Lisboa, Bnomics, 2009; FAUSTO, Madrugada
dos Trapeiros, Porto, Orfeu, 1977; LAGADEC,
Patrick, La Civilisation du Risque: Catastrophes Te-
chnologiques et Responsabilité Sociale, Paris, Seuil,
1981; LAIA, Carlos, “Country perspective:
Portugal”, in NETZER, Nina, e STEINHIL-
DER, Jochen (orgs.), The End of Nuclear Energy?
International Perspectives after Fukushima, Ber-
lin, Friedrich Ebert Stiftung, 2011, pp. 57-61;

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Antinupcialismo 1361

Antinupcialismo alguma, uniforme, pese embora se iden-


tifiquem alguns elementos comuns entre
os Estados na segunda metade do séc. xx,
como seja a prévia existência de casamen-
to, em que os cônjuges iniciam a sua vida
matrimonial separados fisicamente da
família nuclear, com taxas de fecundida-

O antinupcialismo é uma corrente


do séc. xx que critica o exclusivis-
mo do modelo tradicional de família de
de menores face à primeira metade do
séc. xx (SARACENO e NALDINI, 2001,
34). A contraposição das realidades fami-
proveniência ocidental, que assenta no liares campesina e urbana é outro elemen-
casamento heterossexual monogâmico to importante para a compreensão desta
indissolúvel, valorizando outras formas matéria, que não deve ser esquecido.
de relações familiares alternativas ao ca- O enquadramento cronológico da cor-
samento, de natureza temporária e não rente começou a ser identificado a partir
necessariamente constitutiva de víncu- dos anos 60 do séc. xx, mercê da revolu-
los jurídicos. I.e., o critério da relevância ção sexual ocorrida em consequência do
jurídica das uniões, definindo modelos aparecimento, entre outros fatores de na-
reguladores da vida social, é substituído tureza económico-social, da pílula como
pelas relações que assumem ou não na- método anticoncecional, o que permitiu
tureza afetiva e das quais podem resultar uma nova atitude das mulheres face aos
filhos, reconhecidos em nome da verda- modelos tradicionais de família. Outros
de biológica, o que se contrapõe ao nup- elementos podem ser identificados para
cialismo oitocentista. A procriação, neste justificar o aparecimento da corrente:
sentido, é desvalorizada como pressupos- i) o neomalthusianismo, corrente median-
to da união estabelecida. Importa atentar, te a qual se defendia que a explosão da
a este propósito, no próprio conceito de natalidade conduziria a uma utilização
casamento como elemento unificador das abusiva dos recursos disponíveis, o que
várias filosofias existentes. Aqui, o critério
jurídico acabou por acompanhar a cons-
A Assinar o Registo (1920),
trução sociológica da instituição, embora de Edmund Blair Leighton.
não seja coincidente, podendo definir-se
o casamento como “o acordo entre um
homem e uma mulher feito segundo as
determinações da lei e dirigido ao esta-
belecimento de uma plena comunhão de
vida entre eles” (COELHO e OLIVEIRA,
2003, 212). É exatamente este instituto
que vai ser objeto de crítica pela corrente
em referência.
De salientar que o conceito de famí-
lia adotado pela tradição ocidental é de
suma relevância para a identificação dos
princípios da corrente antinupcialista. Na
realidade, o modelo de família ocidental
a que nos reportamos não é, de forma

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1362 Antinupcialismo

apenas seria alterado com uma limitação A valorização do papel da mulher na


dos nascimentos; por esta via se diminui- estrutura social em geral e na vida fami-
ria a pobreza gerada pelo aumento popu- liar em particular suscitou o aparecimen-
lacional; ii) o feminismo, que tinha con- to de novas questões relativas ao género,
tribuído para o enaltecimento da posição nomeadamente do poder reconhecido às
da mulher na estrutura social e familiar, mulheres para a organização dos respe-
com o consequente afastamento da visão tivos percursos individuais. Por um lado,
tradicional da esposa submissa na estrutu- a possibilidade de as mulheres desem-
ra conjugal; este movimento terá origina- penharem uma profissão com indepen-
do igualmente uma rutura com a visão da dência económica justifica a escolha de
maternidade enquanto função natural da caminhos alternativos ao casamento tradi-
mulher, a qual passa a ser encarada como cional, assente numa natural inferiorida-
uma prisão biológica que a própria deve de feminina face ao poder assumido pelo
combater; iii) por último, o niilismo pro- chefe de família. Por outro lado, o contro-
porcionou a relativização do pensamen- lo feminino da vida sexual afasta as mulhe-
to, justificando um desapego das institui- res do casamento como único modelo de
ções tradicionais, nas quais o casamento iniciação, o que motiva o aparecimento da
naturalmente se integra. vida pré-matrimonial, fazendo questionar
A abertura verificada, na legislação de a conjugalidade oficial. Em consequência,
vários países europeus, pela admissibili- diminui a ilegitimidade na primeira meta-
dade da rutura do casamento através do de do séc. xx, fator justificado nesta nova
divórcio auxiliou igualmente o entendi- vivência da sexualidade. Passa, assim, a ser
mento de acordo com o qual o casamen- possível separar o casamento da procria-
to não era o modelo exclusivo de vincula- ção e da sexualidade, invertendo os pilares
ção familiar e, acima de tudo, aquele que vigentes até à déc. de 60. A este propósito,
garantia a felicidade possível, como fora Kaufmann fala no “casal a pequenos pas-
defendido, quer na filosofia moral, quer sos” (KAUFMANN, 2010, 44).
na tradição cristã. Importa não esquecer Em Portugal, o Código Civil de 1867
que os sécs. xviii e xix haviam teorizado havia estabelecido a desigualdade jurídi-
o casamento como o marco que iniciava ca de poderes entre os cônjuges, devendo
a vida conjugal, no qual a coabitação era a mulher obediência ao respetivo marido
admitida e pelo qual se estruturavam os (art. 1185.º), situação que apenas foi al-
papéis do homem e da mulher. Era, aliás, terada com o Código Civil de 1966, que
no seio desta forma de coabitação que se veio a consagrar uma maior igualização
legitimava a prole, sancionando-se com a dos cônjuges, positivamente instituída
ilegitimidade os nascidos fora do lar con- com a reforma de 1977. Saliente-se ainda
jugal. A conjugalidade oficial marcava, o contributo dado pelo dec. n.º 1 de 25
assim, a vida dos casais, sendo reprova- de dezembro de 1910, que estabelecia, no
dos os comportamentos que a afastavam seu art. 2.º, o casamento como um contra-
como modelo jurídico de convivência to civil, tendo a Concordata entre a Santa
(MATTOSO, 2001, 263). De referir que Sé e a República Portuguesa reconheci-
o início do séc. xx foi marcado por ele- do efeitos civis aos casamentos católicos,
vadas taxas de nupcialidade e por uma embora não fosse admissível aos tribunais
diminuição da idade média do casamen- aplicar o divórcio nestes casamentos.
to, tendência que se inverte a partir dos O movimento da emancipação da mu-
anos 60. lher, emergente na segunda metade do

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Antinupcialismo 1363

séc. xx, contribuiu para a introdução da primeiras é indiscutível. Trost, em Cohabi-


corrente antinupcialista na sociedade da tation in the Nordic Countries, salienta, aliás,
época, ainda mais considerando que, tra- que o casamento, de rito de passagem, se
dicionalmente, são as mulheres que pro- transformou em rito de confirmação, nem
movem a celebração do casamento. Na sempre necessário. A ausência de dados
legislação, a presença da corrente em aná- estatísticos, em alguns países, sobre este
lise é visível na forma como se tutela uma fenómeno impede, no entanto, que se
matéria de significativa importância como possa efetuar uma análise rigorosa desta
o poder paternal. De acordo com a cor- realidade. A emergência destas novas insti-
rente nupcialista, pontualmente plasmada tuições influencia, assim, a atuação dos po-
na ordem jurídica nacional, a filiação é de- líticos e legisladores, uma vez que se veem
finida pela prévia existência de uma conju- confrontados com a dificuldade de atuar
galidade oficial. Neste sentido estabelece perante realidades cuja objetividade nem
o art. 1720.º do Código Civil de 1966, que sempre se verifica nestas novas formas de
presume a paternidade do marido da mãe, família.
assentando na premissa de que os casados Importa considerar, ainda, duas perspe-
apenas se relacionam sexualmente entre tivas na corrente antinupcialista. Se, por
si. Importa destacar o facto de estarmos um lado, é inegável, de um ponto de vista
perante uma premissa que pode ser afas- sociológico, que a assunção de relações à
tada e, em consequência, fazer esquecer o margem da conjugalidade oficial é uma
critério nupcialista. Neste caso, será o ele- realidade que tem vindo a crescer nas úl-
mento biológico a comprovar a existência timas décadas, o reconhecimento social e
de uma paternidade. Esta concessão de- jurídico destas convivências não ocorreu
monstra que o referido Código não adota no mesmo sentido. A aceitação da união
um critério nupcialista puro, uma vez que de facto na legislação nacional não foi
reconhece a possibilidade de afastamento isenta de dificuldades, pela prevalência
da presunção, em nome da verdade bio- do casamento como meio juridicamente
lógica. É por isso admissível que se defina aceite de vida conjugal. Os críticos dos
um indivíduo como pater [pai] apenas modelos alternativos de família referem
quando este é simultaneamente o genitor que, pelo reconhecimento da união de
[genitor]. O Código denuncia alguma facto, se legitima uma convivência em que
concessão às relações familiares paralelas os unidos se afastam voluntariamente do
ao casamento, uma vez que remete para a modelo tradicional de união, querendo
legislação especial vigente em matéria de beneficiar das vantagens associadas ao
união de facto. A aceitação destas formas casamento sem a ritualização necessária
alternativas ao casamento demonstra que ter sido observada. Os defensores deste
este não é a única opção de união, reco- reconhecimento invocam a identidade de
nhecendo-se a validade social e jurídica do conteúdo destas uniões face ao casamen-
casamento. A este propósito, há que aten- to, desconsiderando a ausência de formali-
der aos vários tipos de convivência more zação da união e invocando a necessidade
uxorio, distinguindo, a partir dos anos 50 de proteção do património comum adqui-
do séc. xx, as convivências pré-matrimo- rido pelos unidos durante a união, que
niais das existentes entre adultos, como ficaria desprotegido com o falecimento
nos referem Saraceno e Naldini, na sua de um dos seus elementos. Importa, por
obra Sociologia da Família, mencionando isso, considerar que, embora a corrente
que, nos países ocidentais, o aumento das antinupcialista exista dogmaticamente de

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1364 Antiobscurantismo

forma independente do reconhecimento


jurídico, e, neste sentido, não se esgote
Antiobscurantismo
neste objeto, a sua evolução ocorreu ten-
do em vista reivindicar do Estado a legi-
timidade das uniões existentes à margem
do casamento.

Bibliog.: AGOSTINO, Francesco d’, Elementos


para Una Filosofia de la Familia, 2.ª ed., Madrid,
S apere aude! (Ousa saber!) é máxima
horaciana que aparece na segunda
carta da obra Epistularum Liber Primus,
Rialp, 2002; Id., Una Filosofia della Famiglia, ed.
rev. e aum., Milano, Giuffrè Editore, 2003; mais especificamente no v. 40, interpe-
ARIÈS, Philippe, A Criança e a Vida Familiar no lando os que, tendo vencido meio cami-
Antigo Regime, Lisboa, Relógio d’Água, 1988; nho, devem atrever-se a usar o entendi-
COELHO, Francisco Pereira, e OLIVEIRA, Gui- mento: “Dimidium facti qui coepit habet:
lherme de, Curso de Direito da Família, 3.ª ed., sapere aude [Vai a meio aquele que co-
vol. i, Coimbra, Coimbra Editora, 2003; DU-
meçou: ousa saber]”. Kant fê-la insígnia
FOUR, Alfred, Le Mariage dans l’École Allemande
da conquista pessoal no artigo “O que é
du Droit Naturel Moderne au XVIIIème Siècle, Paris,
Librairie Générale de Droit et de Jurispruden- o Iluminismo?” (primeira versão, 1783),
ce, 1972; Id., Mariage et Société Moderne. Les quando a disseminação política e cultu-
Ideologies du Droit Matrimonial Moderne, Paris, ral deste movimento, um dos rostos do
Éditions Universitaires Fribourg Suisse, 1997; antiobscurantismo, há muito estava em
FLANDRIN, Jean-Louis, “Contraception, ma- curso, política e socialmente vitorioso na
riage et relations amoureuses dans l’Occident Revolução Francesa de 1789. Seus lumi-
chrétien”, Annales. Économies, Sociétés, Civilisa-
nares eram os enciclopedistas gauleses e
tions, 24.º ano, n.º 6, 1969, pp.  1370­‑1390;
Id., “Mariage tardif et vie sexuelle. Discussions pensadores alemães, tão racionais quan-
et hypothèses de recherche”, Annales. Écono- to recusando o finalismo religioso. O su-
mies, Societés, Civilisations, 27.º ano, n.º 6, 1972, jeito, menorizado por culpa própria,
pp. 1351-1378; Id., “La vie sexuelle des gens sem coragem, tutelado por outrem e in-
mariés dans l’ancienne société”, Communica- capaz de se servir do seu entendimento
tions, n.º 35, 1982, pp. 102­‑115; Id., Famílias, (nesta adaptação de Kant vai uma ideia
Parentesco, Casa e Sexualidade na Sociedade Antiga,
da filosofia como luz), na órbita de Igre-
2.ª ed., Lisboa, Estampa, 1995; KAUFMANN,
Jean-Claude, Sociologie du Couple, Paris, PUF,
ja dogmática ou do absolutismo régio,
2010; LEBRUN, François, A Vida Conjugal no teria vivido 10 séculos na escuridão até
Antigo Regime, Lisboa, Rolin, s.d.; MATTOSO, à queda do Império Romano do Oriente
José, História da Vida Privada em Portugal. A Épo- (1453), e nem a globalização quatrocen-
ca Contemporânea, Lisboa, Temas e Debates/ tista por via marítima deixava de explo-
Círculo de Leitores, 2011; OLIVEIRA, Guilher- rar e escravizar povos achados ou desco-
me de, Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra, bertos, o que só raros condenavam nos
Almedina, 2003; SARACENO, Chiara, e NAL-
sécs. xvi e xvii.
DINI, Manuela, Sociologia da Família, Lisboa,
Estampa, 2001; SHORTER, Edward, A Forma- O ensino escolástico (de scola, escola)
ção da Família Moderna, Lisboa, Terramar, s.d.; do séc. ix e seguintes foi o principal alvo
VAQUINHAS, Irene, Nem Gatas Borralheiras dos ataques humanistas, embora lhes fos-
nem Bonecas de Luxo. As Mulheres Portuguesas sob sem comuns os textos da Antiguidade.
o Olhar da História (Séculos XIX e XX), Lisboa, Li- O seu método, aristotélico, assentava na
vros Horizonte, 2005. lectio, leitura sobretudo da Bíblia, multi-
Míriam Afonso Brigas plicada em comentários de autoridades;

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Antiobscurantismo 1365

se sobrevinham dificuldades, confronta- vas”, devida ao Renascimento, outra face


vam-se interpretações: a quaestio resolvia­ dita antiobscurantista, como se a univer-
‑se em sic ou non, após largos exercícios sidade europeia desde o séc. xii e “as
dialéticos e contraposições racionais à navegações e as origens da mentalidade
volta da responsio – o pró (pro) e contra científica” (para parafrasear um título de
(sed contra) de S. Tomás de Aquino (1225­ A. J. Saraiva de 2010) trevas fossem.
‑1274) –, que animavam a disputatio, fosse A cisão de Lutero e outros ensombra a
no silêncio das deduções ou em aplaudi- alma católica; como reação, a liberdade
das provas públicas. de pensamento é uma fábula, entre cen-
Mau grado a itinerância europeia dos sura, índices de livros proibidos, fugas,
melhores intelectuais – em que, pela tole- conversões forçadas, prisões e foguei-
rância como condição de um humanismo ras; o nosso Renascimento faz-se curto e
crístico universal, Erasmo (1466-1536) pouco científico, já tingido do claro-es-
antecipava a tolerância do Estado reque- curo maneirista mais evidente na poesia
rida por Locke (1632-1704) –, já preceto- e na pintura. O desespero assoma nos
res de príncipes e nobres, ou docentes, brincos da lírica cultista e carregados
entre nós desde o último quartel de Qua- brilhos do barroco, na escultura retor-
trocentos, o retraimento dos países católi- cida, nos trompes-l’oeil, como verdades de
cos, com a emergência da Inquisição (em fé. Passados dois séculos de Concílio de
Portugal, entre 1536 e 1821) e os efeitos Trento (1545-1563), de monarquia dual
da contrarreforma, cristalizou o ensino (1580-1640) e de guerras da Restauração
até ao séc. xviii. Neste ponto, é significa- (1641-1668), até à arquitetura espeta-
tivo o êxito mundial da Gramática Latina cular – que, no caso português, o ouro
do P.e Manuel Álvares, de 1572. brasileiro alimentava desde 1699 –,  o
Perseverávamos na “luz eterna da terramoto de Lisboa (1755) veio, dir-se­
razão”, segundo S.to Agostinho (354­ ‑ia, pôr as coisas no lugar e urbanizar a
‑430) – inteligimos a partir da iluminação razão.
divina  –, retomando o Um, a unidade Luís António Verney (1713-1792)
de Plotino (c. 204-270), fonte de luz, em lançara o Verdadeiro Método de Estudar
que entroncam o Deus de Boécio (c. 480­ em 1746, libelando contra a pedagogia
‑524), que confere unidade ao mundo, jesuítica: não abolia o latim, mas mi-
e a metafísica da luz de S. Boaventura nistrava-o de modo diverso, com outra
(c. 1217-1274); mas, se fé e saber nem gramática e novas autoridades; somava
sempre se conjugaram, se uma criticável línguas orientais, sobretudo grego e he-
crença medieval dizia serem verdadeiros braico, mas também francês e italiano;
anjos, demónios e homens, olhe-se às considerava que a retórica e a poesia es-
conquistas medievais representadas no terilizavam as mentes e, sem receio, cri-
castelo, no mosteiro e no moinho; fixe- ticava o P.e António Vieira, Camões, etc.,
mo-nos nas catedrais góticas, em vitrais propugnando por uma arte poética útil
donde mana uma claridade especial, ou para a mocidade; o quadro nacional de
na invenção dos óculos a partir da teoria filosofia, ciência e lógica, com que fecha
da luz de Roger Bacon (c. 1214­‑1292/94), a carta viii e o 1.º tomo, é desanimador.
para quem a experiência interior tam- No 2.º, mostra a metafísica inseparável da
bém é de iluminação divina. lógica e da física, a esta dedicando a carta
Estes exemplos bastariam para arredar x; ética, medicina (longo capítulo), direi-
essa síntese grosseira de “idade das tre- to romano, teologia e direito canónico

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1366 Antiobscurantismo

desembocam na síntese da carta xvi, ou vias e os meios de comunicação, a come-


método de regular os estudos da gramá- çar pela emergente imprensa de massas.
tica à teologia. Se visa os rapazes, não Houve um interregno de “orgulhosa-
esquece as mulheres e como instruí-las, mente sós” (1926-1974), que Barradas de
não só nos estudos, mas na economia, Carvalho designou como O Obscurantismo
com utilidade da república. Salazarista (a partir de artigos publicados
Desde 1540 em Portugal, fundamentais em Portugal Democrático entre 1964-1970)
no ensino e na missionação, os Jesuítas e que afastou do país dezenas de univer-
são expulsos por Sebastião José de Carva- sitários e escritores, enquanto perseguia
lho e Melo (1699-1782) em 3 de novem- e silenciava cá dentro. Sucederam atrasos
bro de 1759 (“Lei dada para a proscrição, lamentáveis, além do medo que se insti-
desnaturalização e expulsão dos regulares lou por gerações, denegando aquela fór-
da Companhia de Jesus, nestes reinos e mula kantiana. Entretanto, sobrevoando
seus domínios”). Emerge a imprensa pe- a ciência em lenta recuperação, questio-
riódica enciclopédica, ou da Ilustração; naram-na arautos de novas linguagens:
o marquês de Pombal altera os estatutos fortuna editorial não significa ganho de
da Univ. de Coimbra (1772) e introduz causa, nem esclarecimento, como provou
disciplinas científicas; os estrangeirados A. M. Batista (2002). Ganharam imenso
(que nem sempre regressam, receosos de as formas da mediação – do comentário
represálias) modelam uma nova era de à publicidade, da propaganda ideológica
conhecimento. ao marketing –, transformando as indús-
A poesia filosófica de Bocage (1765­ trias cultural e educativa numa consumi-
‑1805), escondida entre a burlesca, a ção de sujeitos que se julgam senhores do
erótica e a satírica (só editada em 1854), que consomem: de facto, a alma reificou­
oferece os dois manifestos-súmula do ‑se, no império da razão instrumental de
Iluminismo português, com o particular um novo Iluminismo, de um Deus que
de nomes femininos no título: “Epístola julgamos estar online.
a Marília” e “Cartas de Olinda e Alzira”
pugnam pela felicidade contra o precon- Bibliog.: BATISTA, A. M., O Discurso Pós-Mo-
ceito e a educação que menoriza, assu- derno contra a Ciência. Obscurantismo e Irresponsa-
mem o direito ao corpo e ao prazer, em bilidade, Lisboa, Gradiva, 2002; CARVALHO,
Joaquim Barradas de, O Obscurantismo Salaza-
livre-arbítrio. Aquele, mais conhecido
rista, Lisboa, Seara Nova, 1974; KUNZMANN,
pelo primeiro verso, “Pavorosa ilusão da Peter et al., Atlas de la Philosophie, Paris, La Po-
eternidade”, faz-se anticlerical e hino su- chothèque/Le Livre de Poche, 1999; RAMOS,
premo à razão. Luís A. de Oliveira, Sob o Signo das ‘Luzes’, Lis-
A alma romântica entremostrou suas boa, INCM, 1988.
profundezas e obscuridades plasmadas Ernesto Rodrigues
no elogio da noite, das trevas satânicas, de
que o positivismo se riu, aportando bran-
cas carnações, iluminando as cidades.
Para lá de substituir a pregação unívoca
do púlpito pela vária oratória parlamen-
tar, de democratizar a escola e oferecer
entretenimento à sociedade assente nas
luzes do palco e do circo, o séc. xix desen-
volve os dispositivos que magnificam as

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Antiocultismo 1367

Antiocultismo as pessoas que desconhecem a sua cha-


ve de leitura e poderá ser claro para os
que a possuem. Mesmo que não existis-
sem textos, religiões ou grupos humanos
com interesses próprios não coincidentes
com os interesses de outros grupos, ainda
assim o oculto caracterizaria a vida hu-

O oculto, o debate em torno do ocul-


tismo e as medidas que cada época
promove para dificultar ou para permitir
mana. Os filósofos trabalham desde há
muito tempo problemas como o das ou-
tras mentes (saber o que está a sentir e a
o acesso a esse tema aos que por ele se in- pensar a pessoa que está ao lado e aceder
teressam atravessam a história da cultura à vida mental de animais não humanos),
portuguesa, tal como de todas as socieda- o do solipsismo (ter a certeza de que exis-
des humanas. O oculto é um aspeto que te o mundo e as outras pessoas fora da
integra a experiência religiosa, mágica e minha experiência) e o da tradução (ter
mística, bem como a dinâmica da socie- a certeza de que algo que se diz numa
dade e a vida das pessoas. Integra tam- língua de uma forma é exatamente seme-
bém um conjunto de fenómenos anóma- lhante ao que se diz noutra língua de ou-
los que não é fácil categorizar, como luzes tra forma). As idades da vida humana são
inexplicáveis no céu e encontros com se- também naturalmente veladas umas em
res não humanos, incluindo o ciclo vasto relação às outras: a vida dos adolescentes
de aparições marianas e as manifestações parece estranha às crianças, a vida das
de entidades salvíficas por altura de aci- pessoas de idade avançada parece enig-
dentes e dos estertores da morte que al- mática aos jovens adultos, etc. A estrutura
gumas pessoas experienciam. A história da consciência humana individual tam-
do pensamento científico, filosófico e bém é atravessada por fenómenos de fal-
religioso não se pode compreender no ta de transparência do sujeito a si mesmo
esquecimento da escrita esotérica devido (e.g., saber que se sabe algo sem que se
à necessidade que autores de todos os sé- consiga expressá-lo; fazer algo muito bem
culos sentiram de proteger as suas obras numa determinada faculdade cognitiva,
de críticos, perseguidores e intérpretes sem que se consiga fazer esse algo noutra
de má-fé. O modo velado de transmitir faculdade; a atividade onírica; o conflito
uma ideia ou informação pode também entre coração e razão), pelos acasos feli-
justificar-se pela necessidade de proteger zes, as coincidências significativas, a se-
a mensagem (e.g., em contexto diplomá- rendipidade, etc. É provável que este seja
tico, militar, náutico e político) e os seus um traço da condição humana que está
destinatários (o conto infantil pode abor- além das capacidades da inteligência do
dar preocupações de seres adultos numa ser humano, fazendo parte da categoria
linguagem velada acessível a crianças). de problemas que podem ser equaciona-
Há textos, contudo, em que não é fácil dos, mas que talvez nunca venham a ser
determinar o que protegem, se os auto- solucionados. A representação científica,
res, se a mensagem, se os destinatários, se filosófica e teológica da ordem geral do
o sentido último do que é dito. A dificul- ser pode dificultar ou auxiliar a integra-
tar esta questão há também o problema ção do oculto na vida das comunidades.
constitutivo da interpretação. Um texto As categorias antigas de natural, preter-
poderá ser obscuro ou ininteligível para natural e sobrenatural possibilitaram a

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1368 Antiocultismo

integração de muitos fenómenos; o pro- agouros, astrologia, bruxaria, consulta-


cesso científico da Modernidade tendeu ções com o demónio, feitiçaria, idolatria,
a afastar as manifestações preternaturais magia, nigromancia, pactos fáusticos, sor-
e sobrenaturais como restos de supersti- tes, etc. Para além das questões teológi-
ções antigas. cas, políticas e de mentalidade que estas
As medidas que a sociedade portuguesa disposições revelam, a racionalidade das
tomou contra o oculto, as práticas ocultis- mesmas presume que o que era proibi-
tas e as muitas formas do segredo acom- do e censurado era real e exercia uma
panham estas dificuldades. Não há a este influência efetiva na vida das pessoas,
respeito objeto científico único: as dili- pois, caso contrário, não se justificaria a
gências de um general para desvendar o repressão.
código de comunicações dos inimigos são O Vocabulário Portuguez e Latino (1712­
manifestamente diferentes das medidas ‑28), de Rafael Bluteau, apresenta uma
de instituições religiosas e políticas para definição de ocultismo que apouca os
controlar os praticantes de cultos alterna- traços esotéricos do conceito, oferecendo
tivos, tal como a espionagem policial, mi- um enquadramento filosófico do mesmo
litar ou industrial se destina a acabar com através da oposição entre o que se mani-
um determinado segredo. De um ponto festa e o que se não vê. O verbete posi-
de vista superficial, é o acesso ao interdi- ciona-se contra os defensores das quali-
to que irmana estas diligências. É difícil dades, virtudes ou propriedades ocultas.
apoucar o papel notável que o oculto, Em particular, Bluteau critica os “maus
nas suas diversificadas manifestações, das filósofos” por denominarem propriedade
superficiais às mais profundas, exerceu oculta toda aquela de que veem os efeitos
na arte, na filosofia, nas ciências, nas re- e ignoram a causa. Se fosse desse modo,
ligiões públicas e secretas, e na dinâmica afirma, “muitas qualidades manifestas
histórica das sociedades. A história das mereceriam o nome de ocultas”. Este se-
universidades europeias, por razões que ria o caso da cor e do som. O absurdo des-
se prendem com o debate intelectual da ta definição deriva, do seu ponto de vista,
Modernidade e com a afirmação do pa- de só existirem qualidades ocultas com
radigma da ciência galilaica, cartesiana e referência a um determinado sistema de
newtoniana, tendeu a hostilizar qualquer interpretação. Quanto ao sentido proto-
investigação sobre o oculto, com as conse- típico do termo “oculto”, o dos ramos do
quências expectáveis na edição de livros e conhecimento que se dedicam a um ale-
revistas, no estabelecimento do cânone gado saber só acessível a poucas pessoas,
do gosto, na atribuição legal de respon- Bluteau considera-os especulações e ciên-
sabilidades, etc. Há ainda muito a fazer cias vãs, dando como exemplos a cabala,
para compreender a relação entre a ciên- a magia e a nigromancia (BLUTEAU,
cia que se fez nas universidades europeias 1720, 31).
e as formas ancestrais de conhecimento. Ainda com mentalidade seiscentista,
Os vários sistemas de censura literária mas em obra póstuma publicada já no
que o país conheceu ao longo de séculos séc. xviii, tal como a de Bluteau, D. Fran-
pronunciaram-se sistematicamente sobre cisco Manuel de Melo revela no seu Tra-
as diferentes manifestações do oculto e tado de Ciência Cabala ou Notícia da Arte Ca-
das práticas ou ciências a elas associadas, balística um grande interesse pelo oculto
consideradas de um modo geral como su- e pela tradição cabalística. A estrutura do
perstições, nomeadamente adivinhação, mundo é mutuamente esclarecedora nas

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Antiocultismo 1369

suas partes: o visível é sinal do oculto e este o assunto no âmbito difícil da direção es-
pode ser apreendido por mediação do piritual, dos retiros espirituais e das práti-
que se manifesta: “A natureza não é quem cas de confissão. Muitas diligências con-
menos observa a regularidade entre as fi- tra manifestações de fenómenos ligados
guras, e os mistérios delas;  […]  donde ao ocultismo poderão ter sido realizadas
vemos que as fisionomias naturais poucas nos segredos dos confessionários, como
vezes enganam, reverberando na figura, e mostra o texto de Domingos Barroso Pe-
aspeto humano as qualidades intrínsecas, reira Arte de Conhecer, e Confessar Feyticeyras
e ocultas” (MELO, 1724, 176). Vivendo (c. 1745).
tempos perigosos para curiosidades in- Toda a história das práticas exorcistas
telectuais pelo oculto, D.  Francisco tem da Igreja Católica é uma vasta cruzada
a preocupação de apartar claramente o contra o mal substantivado e a possessão
estudo erudito da cabala das utilizações demoníaca, assunto que é, quiçá, a mani-
esotéricas dessa ciência oculta, nomeada- festação mais violenta do oculto. O inte-
mente na previsão de eventos: “a justa Ca- resse público por esse assunto é constante
bala foi uma profunda meditação de mis- ao longo dos tempos, apesar dos ata-
térios ocultos deduzida de nomes, letras, ques do cientismo positivista do final do
números, e figuras dos livros divinos; e a séc. xix. Os movimentos contra os mila-
injusta uma ficção Judiciária, que incer- gres de Lourdes (Alfredo de Magalhães,
tamente prognosticava do futuro por vãs Brito Camacho, etc.) e as aparições de
observações, misturando o sagrado, e o Fátima (Tomás da Fonseca, João Ilharco,
profano” (Id., Ibid., 35). Os mistérios das Mário de Oliveira, etc.) constituem uma
letras e da linguagem são uma das mani- amplificação do recato habitual com que
festações mais recorrentes do ocultismo. se lida com os assuntos do oculto. O re-
D. Francisco interessou-se por ele, mas cato também é, neste âmbito, um fenó-
haveria de acrescentar a tradição hermé- meno merecedor de estudo sistemático.
tica ocidental, a linguagem das aves dos Os silenciamentos da história muito rica
textos hagiográficos, as cartas de tocar de e antiga das manifestações aparentemen-
curandeiros como Luís de la Penha, os te marianas (e.g., o caso da Asseiceira,
sinais do pacto luciferino, os anagramas perto de Rio Maior, em 1954) talvez pos-
e as composições combinatórias do bar- sam ser categorizados como diligências
roco, os sinais percecionados em raptos antiocultistas, tal como o hipotético apro-
místicos e rituais mágicos, e, já com men- veitamento religioso de fenómenos não
talidade iluminista, a procura de cifras religiosos na sua essência. Nada dizer,
para facilitar as comunicações diplomáti- pouco dizer e dizer de modo diferente
cas e náuticas, aceder às mensagens dos poderão ser as ferramentas mais eficazes
inimigos e dificultar o acesso dos mesmos dos movimentos contra as manifestações
às nossas mensagens. do oculto. A questão do número das pes-
O cuidado que D. Francisco revela nos soas envolvidas não pode também ser es-
seus estudos sobre a cabala judaica é im- quecida; uma coisa são diligências contra
portante, contudo, para outra linha de pessoas individuais que de algum modo
análise. A reserva dos intelectuais, o si- se cruzaram com o oculto, outra muito
lêncio das academias e a autocensura dos diferente são medidas contra grupos in-
autores são dificuldades que atravessam a teiros (bruxas, cabalistas, espíritas, feiti-
história das medidas antiocultistas portu- ceiros, magos, maçons, etc.). Há que no-
guesas. Seria importante rastrear também tar a raridade de processos inquisitoriais

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1370 Antiocultismo

contra grupos específicos devido a inte- suscetíveis de explicação nos quadros da


resses pelo oculto, como o grupo com ciência moderna. Uma categoria própria
traços apocalípticos do heresiarca João é constituída pelos casos em que o indiví-
Pinto, de São Martinho de Vale de Bouro, duo não se interessa pelo oculto, mas em
na segunda metade do séc. xviii. O caso que o oculto se interessa pelo indivíduo,
de Soalhães, de 1934, envolveu violência parecendo acompanhar o seu destino; é
de uma parte da população dessa aldeia o caso, em registo literário, da feiticeira
do concelho do Marco de Canavezes con- de Smolensko, personagem de um dos
tra uma mulher bonita que alegadamen- contos de O Major Napoleão, de Manuel
te estaria possuída pelo demónio: Joana Pinheiro Chagas (1872). A chegada à
foi queimada viva devido à crença dos Presidência da República de Manuel de
aldeões de que esse seria o modo correto Arriaga parece ter sido prevista em ses-
de exorcizar o demónio. O caso inspirou sões espíritas muitos anos antes, como
a peça de teatro de Bernardo Santareno, demonstrou a investigação de Joaquim
O Crime de Aldeia Velha, de 1959, e a sua Fernandes em Portugal Insólito. Nestes
adaptação ao cinema por António Cunha casos, haveria que esclarecer se as vidas
Teles e Manuel Guimarães, em 1964. desses indivíduos, aparentemente alhea-
A complicar a perceção deste assunto, das das solicitações que outras dimensões
há ainda a dissonância entre discursos e da realidade têm a seu respeito, poderão
comportamentos públicos, por um lado, ser consideradas um distanciamento in-
e crenças e atividades privadas, por outro consciente ou deliberado em relação à
lado. Pense-se em personalidades como iniciativa das entidades ocultas, uma re-
a do marechal duque de Saldanha, pio- cusa em aceitar o contacto com elas, e,
neiro da homeopatia em Portugal; a do indiretamente, uma manifestação de an-
diplomata visconde de Figanière, intro- tiocultismo. Como se vê, o facto de uns
dutor da teosofia em Portugal; a dos mé- se dizerem praticantes do ocultismo e
dicos Amélia Cardia e António J. Freire, outros se posicionarem contra o assunto
interessados no espiritismo; ou a do po- não deverá ser apreciado de forma linear.
lítico republicano Afonso Costa, que teve A questão da origem das medidas an-
uma atividade política claramente antir- tiocultistas é também muito relevante.
religiosa e, na sua vida particular, culti- É manifestamente difícil encontrar me-
vou também interesses espíritas. Muitos didas que tenham a sua origem exclu-
outros exemplos poderiam ser dados. A sivamente em Portugal; o controlo das
situação contrária, de autores aparente- manifestações da religiosidade popular,
mente espiritualistas em público mas céti- a Inquisição, os índices censórios, as me-
cos ou totalmente descrentes no segredo didas contra o secretismo das reuniões,
das suas consciências, é manifestamente etc., atravessam a cultura ocidental. Des-
de estudo difícil. Talvez existissem inqui- te ponto de vista, o antiocultismo portu-
sidores descrentes, apesar das muitas for- guês revela uma influência estrangeira
mas de controlo das consciências; nunca constante, como se esperaria de uma na-
se saberá. Como não é possível garantir ção tradicionalmente aberta ao mundo.
a sinceridade dos discursos públicos, é Estão ainda por fazer, contudo, estudos
provável que muitas pessoas com ativi- específicos sobre a receção, na cultura
dade antiocultista tivessem crenças par- intelectual portuguesa, de movimen-
ticulares com estima pelo oculto, ou até tos importantes do antiocultismo euro-
mesmo encontros com fenómenos não peu, nomeadamente a obra dos grandes

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Antiocultismo 1371

demonólogos (o Malleus Maleficarum, desenvolve um ataque sistemático contra


de Krämer e Sprenger, certamente, mas a utilização, no âmbito da medicina, de
também Bodin, Boguet, Del Rio, Guazzo, remédios de segredo em Portugal, país
Nider, Remy, Sinistrari, von Spee, Wyer, em que, do seu ponto de vista, “o abuso
entre outros). Tendo em atenção a vas- dos remédios tem chegado a termos que
tidão das Descobertas e a extensão dos não se pode suportar”. A questão dos re-
territórios ultramarinos, a relação dos médios de segredo é uma parte decisiva
Portugueses com as práticas ocultas das da argumentação de Verney contra a me-
terras que alcançaram também não está dicina galénica e a favor de uma medici-
suficientemente estudada, o mesmo não na iatromecânica que considere “o corpo
acontecendo com a perceção que se teve humano como uma máquina” (VERNEY,
das religiões locais. 1952, 43). Neste âmbito, Verney, através
No século em que o Cavaleiro de Oli- de um processo de ridicularização dos
veira afirmava que “[a]os doutores das métodos e dos remédios utilizados por
ciências ocultas basta dizerem na era boticários, mezinheiros, médicos galéni-
presente que as conhecem para serem cos, charlatães e segredistas, como Cur-
estimados” (CAVALEIRO DE OLIVEI- vo Semedo, procurava desenvolver uma
RA, 1855, III, 11), e em que ele próprio advertência contra a tradição de utiliza-
deu uma grande atenção aos fenómenos ção de remédios cuja composição não
metapsíquicos e da religião popular, sur- seguia critérios científicos e que prome-
giram novas conceções, novos métodos e tiam efeitos miraculosos e a cura de to-
princípios científicos, bem como inova- das as doenças. Para o autor, os remédios
ções no âmbito da medicina, e começou secretos não eram senão imposturas, na
a assistir-se ao desenvolvimento de uma medida em que a sua criação implicava
crítica aos métodos praticados em Portu- a utilização de muitos componentes sem
gal. No universo da medicina, a questão que os médicos tivessem uma clara noção
do oculto foi decisiva para a emergência de qual desses componentes produzia o
da ciência médica moderna. A perceção efeito desejado no organismo, recomen-
que se tem de tal disciplina como um cor- dando que “de médicos segredistas deve
po de saberes unitário com o monopólio fugir todo o homem como de coisa sus-
sobre os assuntos da saúde é posterior peitosa” (Id., Ibid., 53).
à segunda metade do séc. xix. Sempre O ceticismo em relação ao valor dos
existiram muitas formas de medicina em remédios de segredo era partilhado pelo
todo o mundo. A medicina ocidental teve médico António Nunes Ribeiro Sanches.
de se impor através da demonstração da Nos seus Apontamentos para Estabelecer-se
bondade científica da sua leitura dos fe- Um Tribunal e Colégio de Medicina, denun-
nómenos e da eficácia das suas formas cia a falta de cuidado na preparação dos
de terapia, mas também através do con- medicamentos: “não se conhece comér-
flito contra outras formas de entender as cio algum mais sujeito a danificação, a
doenças e os infortúnios. A repressão das falsificação das mercancias do que dos
curas mágicas aconteceu durante séculos, remédios símplices ou compostos, o que
se bem que tenha atingido o seu maior vulgarmente se chamam drogas” (SAN-
desenvolvimento durante o Iluminismo CHES, 1966, 92). Com carácter de ur-
e o séc. xix, no contexto das polémicas gência, advoga que um tribunal médico
entre ciência e religião. Luís António superintenda à “composição e distribui-
Verney, em Verdadeiro Método de Estudar, ção dos remédios compostos e químicos”

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1372 Antiocultismo

(Id., Ibid., 94). No tempo de D. Maria I, rais da Europa” (MACEDO, 1810, 3). Em
a lei “pela qual manda criar a Junta do O Homem, ou os Limites da Razão: Tentativa
Protomedicato, extinguindo os empregos Filosófica, perspetiva o oculto de um pon-
de Físico-Mor e Cirurgião-Mor do Reino”, to de vista epistemológico e ontológico.
de 17 de junho de 1782, foi decisiva para Denunciando a impotência da razão hu-
acabar com os remédios de segredo. Me- mana perante a dimensão oculta da na-
didas da própria Junta, como o edital tureza e da ordem geral do ser, desabafa
“mandando que os médicos, cirurgiões, que “tudo é sombra, enigma e ignorân-
farmacêuticos, etc., apresentem os seus cia”, mas também “abismo” e “escuridão
títulos perante a mesma Junta”, de 23 de espantosa” (Id., 1815a, 4, 8 e 9). Nas suas
julho de 1782, iniciou a era do controlo Cartas Filosóficas a Ático, de 1815, compara
corporativo das profissões ligadas à pres- o ser humano a um manuscrito com uma
tação de cuidados de saúde, advertindo língua inteiramente incógnita de que não
que, caso os títulos não fossem apresen- se tem “o mais pequeno vislumbre sobre
tados pelos profissionais, se deveria “pro- a sua significação” (Id., 1815, 248). Um
ceder contra eles como for justiça”. Um pensamento filosófico que não esconde
teórico da medicina, como José Henri- o problema da impotência da razão tem
ques Ferreira, publica o seu Discurso Crí- valor duradoiro. O lado positivo desta
tico em que Se Mostra o Dano Que Tem Feito denúncia é a afirmação do oculto como
aos Doentes, e ao Progresso da Medicina em horizonte permanente da inteligência
Todos os Tempos, a Introdução e Uso de Re- humana. Como não se vê que a denúncia
médios de Segredo, e Composições Ocultas, não não seja verdadeira, segue-se que o oculto
só pelos Charlatães, e Vagamundos, mas tam- talvez devesse aproximar-se do centro das
bém pelos Médicos, Que os Têm Imitado, de investigações filosóficas e científicas.
1785. O título longo é um programa de Opinião muito diferente tinha o de-
ação contra os segredistas que preparam sembargador vintista Manuel Borges
e vendem remédios secretos, do tipo de Carneiro, que considerava que a raciona-
“elixires de longa vida, tesouros da boca, lidade que se manifesta na filosofia tem
essências divinas, quintas-essências, águas força suficiente para acabar com todas as
angélicas” (CARVALHO, 1917, 72). Tam- manifestações do oculto, por ele conside-
bém o seu irmão, o médico Manuel Hen- radas contos de velhas, delírios, sandices,
riques de Paiva, na tradução anotada que ignorância, ridicularias, e “montão de
fez de uma obra de Tissot, considera que princípios escuros, pueris e arbitrários de
os segredos como as águas febrífugas, “ou que não pode resultar efeito algum real”
são invenções de charlatães ou de médi- (CARNEIRO, 1820, 9-10). A sua crença
cos ambiciosos” (PAIVA, 1786, 355). era a de que “o luzeiro da filosofia” irá
José Agostinho de Macedo pronun- descobrir os “segredos e forças ocultas da
ciou-se sobre várias formas de ocultismo. natureza” e anunciar à humanidade “de
Em 1810, em Os Sebastianistas: Reflexões quanto é capaz sem intervenção da magia
sobre esta Ridícula Seita, critica a utopia fabulosa” (Id., Ibid., 7). Borges Carneiro
sebastianista do rei oculto (&Antissebas- tem uma atitude militante e sem distân-
tianismo). É, contudo, a sua luta contra cia crítica perante as suas próprias afir-
a maçonaria que mais o irá ocupar (&An- mações. A oposição que descreve entre
timaçonismo). Na edição que fez da obra filosofia e magia fabulosa não explica a
do abade Barruel, considera os maçons continuidade multissecular da presença
“os motores invisíveis das calamidades ge- do oculto na vida das sociedades, nem o

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Antiocultismo 1373

paradoxo de, perante uma ciência futu- iniquidades; e minar a casa comum como
ra, qualquer ciência do passado parecer ladrões. Em conformidade com este en-
supersticiosa, porque, nas suas palavras, tendimento das atividades ocultas, Cle-
“nós passaríamos por mágicos na opi- mente XII condena e proíbe, sob pena
nião dos bárbaros que nos sucedessem” de excomunhão, as sociedades, juntas,
(Id., Ibid., 8). Mais tarde, já no séc. xx, ajuntamentos, congregações, assembleias
a terminar a Primeira Guerra Mundial, e conventículos secretos onde se propa-
José Augusto Correia critica os mistérios ga a herética pravidade. A bula Providas,
antigos aos quais, do seu ponto de vista, de Bento XIV, de março de 1751, denun-
a maçonaria e outras associações secretas cia a associação de homens de qualquer
foram buscar os seus rituais iniciáticos. religião ou seita, alertando para a perda
Para Correia, tratou-se de uma impostu- da pureza da religião católica. De acor-
ra dos sacerdotes para salvar “a essência do com Leão XII, especialmente dano-
e as fórmulas das religiões”, aumentado so é “o vínculo apertado e impenetrável
a influência sacerdotal (CORREIA, 1918, do segredo com que ocultam o que se
308). Estas manifestações de parte da eli- faz em seus conventículos” (LEÃO XII,
te intelectual do país contribuíram para 1828, 19). A bula Ecclesiam a Iesu Chris-
o processo de secularização da sociedade, to, de setembro de 1821, volta-se contra
afastando as referências ao oculto para as a seita dos carbonários e contra as asso-
margens da perceção pública. Outra ten- ciações secretas que nascem no âmbito
dência relevante, mas de sinal contrário, das universidades. Estas “seitas furiosas
foi a convicção de que os eventos sociais e detestáveis” desprezam o poder legíti-
são determinados por interesses ocultos. mo, consideram Cristo como escândalo
Há várias manifestações destas crenças, ou loucura, defendem a não existência
desde a providência de Deus que vigia a de Deus e a morte da alma juntamente
história humana, pelos conventículos de com o corpo. Pio VII aproxima os mem-
bruxas e associações secretas, até às con- bros aos priscilianos e a outras classes de
temporâneas teorias da conspiração. hereges antigos, acreditando que eles en-
A elite eclesiástica do país deixou pro- ganam “os fiéis com uma filosofia mun-
gressivamente de se interessar por com- dana” (Id., Ibid., 27). Em poucas páginas,
portamentos mágicos e outras manifesta- boa parte da história da Europa, de Pris-
ções ocultas; o que a preocupava eram as ciliano, que teve ação importante na His-
associações secretas com atuação política pânia ocidental do séc. iv, até ao séc. xix,
e influência social. A bula de Leão  XII fica irmanada contra o mesmo perigo de
Contra os Pedreiros Livres, de março de associações cuja atividade oculta é alega-
1825, publicada em Portugal em 1828, faz damente causadora de grandes danos.
a recolha das medidas passadas da Santa A isto haveria de acrescentar, na sequên-
Sé contra as associações secretas. Destaca­ cia do Concílio de Trento, as várias edi-
‑se, assim, a bula In Eminenti, de abril de ções do índice tridentino; a bula Benedic-
1738, que alertava pela primeira vez con- tus Deus, de Pio IV, de 1564, cuja regra 9.ª
tra os gravíssimos danos que as atividades proíbe todos os livros sobre aeromancia,
ocultas de associações secretas causam astrologia judiciária, geomancia, encanta-
ao sossego temporal dos Estados e à saú- ções mágicas, hidromancia, nigromancia,
de espiritual das almas, nomeadamente: onomancia, piromancia, quiromancia; e
perverter o coração dos símplices; asse- a bula Coeli et Terrae, de Sixto V, de 1612.
tear ocultamente os inocentes; tramar Estas bulas e outros diplomas de teor

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1374 Antiocultismo

semelhante obrigavam toda a cristanda- tas memórias” (Id., Ibid.). A suspeita de


de, tendo sido adequadas localmente pe- que os assuntos públicos e a sequência
las constituições sinodais dos bispados. dos eventos são determinados por entida-
Ainda no séc. xix, a redação do jornal des desconhecidas com interesses inson-
O Eco, e.g., manteve uma pequena polémi- dáveis é recorrente na sociedade portu-
ca com o jornal O Correio de Lisboa sobre guesa. Nem a atividade dos académicos
o papel dos clubes secretos nos assuntos mais racionais escapou a essa suspeita.
públicos. O Eco defendia a importância É  fácil encontrar esse tipo de debates
dos clubes secretos porque, se se acabasse noutras épocas históricas, nomeadamen-
com a influência política desses clubes, só te por ocasião da aprovação da lei de José
se estaria a dar início à influência políti- Cabral contra as associações secretas (lei
ca de outros interesses ocultos. O âmbito n.º 1901, de 21 de maio de 1935), mas
dessa influência estava bem delimitado: também na segunda metade do séc. xx e
tratava-se do “poder oculto que governa o no início do séc. xxi.
governo português” e do papel que os clu- As críticas ao secretismo das associações
bes secretos podem ter na orientação da filantrópicas de acesso reservado atraves-
opinião pública. Afirma o redator que sam a história portuguesa contemporâ-
“o  poder que substituísse o poder oculto, nea, dois séculos depois das polémicas
por certo seria mais oculto, mais secreto de José Agostinho de Macedo. Sinal disso
e mais tenebroso do que qualquer outro” são as críticas que o cardeal-patriarca de
(O Eco, 5 set. 1839, 6775). Generalizando Lisboa, D. José Policarpo, fez na sua nota
o seu ponto de vista, o articulista defende pastoral da Quaresma de 2005. D. José
que “esse poder oculto tem sido e é essen- mostrava o seu desagrado pela realização
cialíssimo”. As associações secretas teriam de um ritual maçónico, em setembro de
a função de prevenir a rebelião do corpo 2004, na capela mortuária da basílica da
social, uma “rebelião dos membros do corpo Estrela, antes do funeral do juiz conse-
humano contra o estômago” (Ibid., 6776). lheiro Luís Nunes de Almeida, membro
Em contexto aparentemente diferente do Grande Oriente Lusitano. Uma parte
e mais idóneo, o médico Manuel Bento importante dessa nota pastoral de D. José
de Sousa faz, no seu A Parvónia, de 1868, versou a “Maçonaria e a definição do sen-
a coberto do pseudónimo Marcos Pinto, tido da História”. O desagrado público
a caricatura das reuniões da Academia do patriarca derivava de “o Grão-Mestre
das Ciências de Lisboa, a qual “celebra da Maçonaria, com o nosso desconheci-
de noite as suas sessões, que são secretas mento”, ter convocado “para um ‘ritual
como as de qualquer chafarica” (PINTO, maçónico’, em honra do defunto, a rea-
2007, 161). É por esses anos (c. 1881) que lizar num espaço da Basílica. Esta iniciati-
a palavra “chafarica” assume o significado va, que considero imprudente e indevida,
de loja maçónica. Os sócios, verdadeiros provocou indignação em muitos católi-
“aventesmas das trevas”, caminham “pe- cos, que incessantemente têm pedido um
las ruas mais desertas e cosidos com as esclarecimento da Hierarquia da Igreja”
paredes”, escondendo-se pelas sombras. (POLICARPO, 2005). A nota pastoral
O que fazem dentro de paredes também não menciona a questão do segredo e do
é descrito com mordacidade: “supõe-se oculto, mas infere-se que a realização de
que dormem, revelando-se-lhes em so- um ritual de acesso restrito nos espaços
nhos as grandes verdades sobre as quais da basílica provocou indignação em al-
escrevem, depois de acordados, suculen- guns católicos. Sinal dos tempos, este tipo

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Antiocultismo 1375

de críticas limita-se ao campo das lutas de suas representações complementares na


poder na sociedade, em que uns grupos linguagem e em obras de cultura e pen-
lutam pela influência ou aquisição de po- samento. Como seria expectável, toda a
der contra outros grupos. Esta é a versão realidade para que apontam essas mani-
superficial do oculto, muito distante da festações passa despercebida às formas de
riqueza que o tema desvelou ao longo de cultura e de racionalidade que dominam
séculos. os sistemas de ensino. O imaginário (po-
Portugal, contudo, ainda não teve pular, romanesco, cinematográfico, etc.),
personalidades que inventariassem siste- contudo, nunca deixou de representar
maticamente os eventos que não podem essas manifestações.
ser objetos das ciências padronizadas, ao É difícil retirar conclusões da experiên-
modo do norte-americano Charles Fort, cia portuguesa das medidas de antiocul-
porque parecem acontecer apenas uma tismo. A influência cultural estrangeira
vez e não são suscetíveis de reiteração. é evidente; a relação com a conquista de
Fort, nos jornais de língua inglesa que alguma forma de poder é inquestionável;
passou em revista, não se esqueceu de a invisibilidade das práticas ocultas dos
anotar os poucos casos portugueses de territórios que em algum momento tive-
eventos anómalos cuja notícia atravessou ram relações privilegiadas com Portugal
o Atlântico (pedras relâmpago, chuva de também é identificável; a dimensão po-
meteoritos, ausência de restos mortais pular do fenómeno combatido é discer-
das pessoas que desapareceram no cais nível, sobretudo quando comparada com
de Lisboa por altura do terramoto, regis- a quase total ausência de medidas contra
to astronómico de corpos desconhecidos grandes ocultistas, cabalistas, magos ou
que atravessaram o disco solar e dois ca- alquimistas. Causa surpresa, a este respei-
sos de vampirismo). Infelizmente, a co- to, a falta de testemunhos portugueses so-
munidade secreta portuguesa, como se bre personalidades da estatura esotérica
poderia denominar na tradição da Secret de um John Dee, de um conde de Saint
Commonwealth of Elves, Fauns and Fairies Germain, de um Alessandro Cagliostro
do seiscentista escocês Robert Kirk, ain- ou de uma Helena P. Blavatsky, com a ex-
da não foi suficientemente estudada. Não ceção notável de Fernando Pessoa, que
parece existir um modo de conciliar o motivou a passagem de Aleister Crowley
imaginário profundo do povo português por Portugal. Impõe-se, pois, a questão
e a sua reverência multissecular para com derradeira sobre o sentido último das
o numinoso com a racionalidade que se medidas contra o oculto. Simplificando
estruturou a partir do início da Moder- excessivamente um assunto vasto, o ocul-
nidade. Neste sentido, todo o sistema to existe ou é um assunto sem referente.
oficial de ensino português pode ser in- No primeiro caso, todas as medidas con-
terpretado como uma manifestação da tra ele estão condenadas à partida, por-
racionalidade antiocultista. Existiram, que haveria uma iniciativa de hipotéticas
certamente, desde os tempos seiscentistas entidades sobrenaturais (motivo recor-
do erudito Jorge Cardoso, autor do Agio- rente na providência divina, na tentação
logio Lusitano dos Santos e Varões Ilustres em demoníaca, no pacto fáustico, nas narra-
virtude do Reino de Portugal e Suas Conquis- tivas de raptos por extraterrestres, etc.);
tas (1652-66), tentativas de sistematizar a no segundo caso, combater algo que
recolha das manifestações evanescentes pode não ter existência real no mundo
de fenómenos de etiologia oculta e das diz muito sobre a racionalidade humana.

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1376 Antiocultismo

John Dee (1527-1608). Conde de Saint Germain (1712-1784).

O exercício contrafactual obrigatório é o Politicas, e Criticas, t. i-iii, Lisboa, s.n., 1855;


de imaginar a história cultural portugue- Id., Recreação Periódica, pref. e trad. Aquilino
sa sem medidas contra o oculto, ou com Ribeiro, 2 vols., Lisboa, Oficinas Gráficas
da Biblioteca Nacional, 1922; CHAGAS, M.
medidas contra o oculto cujo sucesso ga-
Pinheiro, O Major Napoleão, Lisboa, Livraria
rantisse o desaparecimento completo do
de Campos Júnior, 1872; CORREIA, José
assunto nos séculos a seguir. O que seria Augusto, Ciência e Literatura, Lisboa, Impren-
diferente? O que ganhou a cultura por- sa de Manuel Lucas Torres, 1918; O Eco, 5
tuguesa numa guerra de vitória impos- set. 1839; FERNANDES, Joaquim, História
sível contra o oculto? A resposta a estas Prodigiosa de Portugal. Magia e Mistérios, vol. i,
e a muitas outras questões é certamente Vila do Conde, QuidNovi, 2012; Id., Histó-
impossível, tal como é provável que o sen- ria Prodigiosa de Portugal. Magias e Mistérios,
vol. ii, Vila do Conde, Verso da História,
tido último deste assunto infinito possa
2015; Id., Portugal Insólito. Enigmas, Crenças,
nunca vir a ser conhecido. Experiências Sobrenaturais e Outros Mistérios,
Barcarena, Manuscrito, 2016; FORT, Char-
les, The Complete Books of Charles Fort, New
York, Dover, 1974; LEÃO XII, Bulla do Santis-
Bibliog.: manuscrita: Biblioteca Pública de simo Padre Leão XII. Contra os Pedreiros Livres.
Évora, cód. cxxiii/2-8, Domingos Barroso Pe- Mandada Publicar pela Piedade, e Decidido Amor
reira, Arte de Conhecer, e Confessar Feyticeyras; á Religião, e ao Throno da muito Alta, e Augus-
impressa: BLUTEAU, Rafael, Vocabulário Por- ta Imperatriz e Raynha, a Senhora Dona Carlota
tuguez e Latino: Aulico, Anatomico, Architectoni- Joaquina de Bourbon, Lisboa, na Regia Typ.
co, Bellico, Botanico...: Autorizado com Exemplos Silviana, 1828; MACEDO, José Agostinho
dos Melhores Escritores Portugueses, e Latinos..., de, O Segredo Revelado, ou Manifestação do Sis-
vol. vi, Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, tema dos Pedreiros-Livres e Iluminados, 2.ª ed.,
1720; CARNEIRO, Manuel Borges, A Magia pt. i, Lisboa, Imprensa de Alcobia, 1810; Id.,
e mais Superstições Desmascaradas, Lisboa, Typ. Cartas Filosóficas a Ático, Lisboa, Impressão
Lacerdiana, 1820; CARVALHO, Augusto Régia, 1815; Id., O Homem, ou os Limites da
da Silva, Médicos e Curandeiros, Lisboa, Tip. Razão: Tentativa Filosofica, Lisboa, na Impres-
Adolfo de Mendonça, 1917; CAVALEIRO são Regia, 1815a; MARTINS, Maria Teresa
DE OLIVEIRA, Cartas Familiares, Historicas, Esteves Payan, A Censura Literária em Portugal

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Antiopusdeísmo 1377

Antiopusdeísmo

F alar de uma movimentação anti-Opus


Dei, i.e., de uma corrente de oposição
e hostilidade, presente na imprensa e na
opinião pública por ela recolhida e plas-
mada, ao Opus Dei, não colide com o re-
conhecimento do facto mais significativo
de que há que tomar nota em relação a
esta realidade da Igreja, que é a sua cé-
Alessandro Cagliostro (1743-1795).
lere difusão e crescimento, dada a diver-
sidade dos países e ambientes sociais em
que floresce, a par do inegável reconhe-
nos Séculos XVII e XVIII, Dissertação de Dou- cimento que lhe tem merecido dentro da
toramento em Literatura e Cultura Portu- Igreja o seu labor apostólico e, ainda para
guesas apresentada à Universidade Nova
lá dela, o serviço que presta em âmbitos
de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2001;
MELO, Francisco Manuel de, Tratado da Ciên-
como os da educação, da cultura e inves-
cia Cabala, Lisboa, Oficina de Bernardo da tigação científica e do desenvolvimento.
Costa de Carvalho, 1724; PAIVA, Manuel Não é, de facto, exclusivo do Opus Dei,
Joaquim Henriques de, Aviso ao Povo acerca mas caracterizou o surgimento e o per-
da Sua Saúde, por Monsieur Tissot, t. i, Lisboa, curso de numerosas instituições da Igreja
Oficina de Filipe da Silva e Azevedo, 1786; Católica – tão importantes e prestigiadas
PINTO, Marcos (pseud.), A Parvónia: Recor- como a Companhia de Jesus – a oposição,
dações de Viagem, Lisboa, Frenesi, 2007; SAN-
a crítica e a calúnia, inclusivamente da
CHES, António Nunes Ribeiro, Obras, vol. ii,
Coimbra, Universidade de Coimbra, 1966; parte da própria hierarquia da Igreja e de
SEMEDO, João Curvo, Polyanthea Medicinal, entidades eclesiais.
Noticias Galenicas, e Chymicas Repartidas em Tres Antes de elencar e compreender estas
Tractados, Lisboa, Miguel Deslandes, 1697; críticas, é indispensável ter presentes os
VERNEY, Luís António, Verdadeiro Método de traços essenciais do perfil positivo da rea-
Estudar, ed. António Salgado Júnior, vol. iv, lidade cuja projeção negativa nos propo-
Lisboa, Sá da Costa, 1952; WALKER, Timo-
mos conhecer, i.e., a identidade, as finali-
thy D., Médicos, Medicina Popular e Inquisição:
a Repressão das Curas Mágicas em Portugal duran- dades, os campos e moldes de atuação do
te o Iluminismo, Lisboa, Imprensa de Ciências Opus Dei, tal como são apresentados pelos
Sociais, 2013; digital: POLICARPO, José da seus membros e pelos seus representantes.
Cruz, “Nota pastoral do cardeal-patriarca
de Lisboa para a Quaresma: a Páscoa da eu-
caristia”, Patriarcado de Lisboa, 22 jan. 2005: O Opus Dei: breve perfil positivo
http://www.patriarcado-lisboa.pt/site/
O Opus Dei é o fruto de uma intuição es-
print_obj.php?id=100&tem=112 (acedido a
28 nov. 2015).
piritual do jovem sacerdote espanhol Jose-
maría Escrivá de Balaguer, cujo conteúdo
Manuel Curado essencial é uma compreensão da vocação

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1378 Antiopusdeísmo

universal à santidade, e, portanto, de um Em termos de configuração jurídico-ca-


chamamento à santificação no meio do nónica, o Opus Dei reveste, depois de ex-
mundo, através das atividades quotidianas perimentar alguns formatos provisórios, a
e particularmente do trabalho profissio- forma de uma prelatura – um tipo de cir-
nal, colocando Cristo “no cume de todas cunscrição eclesiástica que é estabelecido
as atividades humanas” (BALAGUER, por exceção relativamente à primeira for-
Caminho, n.º 28). Enquanto estrutura or- ma que assumem as igrejas particulares,
ganizada, o Opus Dei não tem, pois, ne- i.e., às dioceses, para prover às necessida-
nhum objetivo diferente desta finalidade des específicas de um território (prelatura
espiritual. Como ramo da árvore da Igreja territorial) ou de um determinado grupo
Católica, tem a missão apostólica comum de fiéis (prelatura pessoal). Equiparadas,
a toda a Igreja que é a difusão do evange- portanto, às dioceses, as prelaturas têm
lho de Cristo e a transformação do mun- clero, fiéis e um pastor próprio, que as
do segundo essa mensagem, bem como a governa como um bispo governa a sua
comunicação do seu particular tesouro es- diocese. Dado que é às necessidades de
piritual (à imagem de muitas outras obras determinado grupo de fiéis, espalhado
e carismas da Igreja), caracterizado, entre por todo o mundo e sem fronteiras ter-
outros, pelo referido aspeto essencial da ritoriais, que se quer prover no caso do
santificação das atividades quotidianas. Os Opus Dei, este constitui uma prelatura
membros do Opus Dei são, pois, pessoas pessoal. A estranheza que causa esta for-
que fazem parte de uma mesma família es- ma, que não é nova, mas pouco usual, tem
piritual, quer vivam em celibato apostóli- sido também pretexto de distorções, reve-
co, não deixando por isso de exercer uma lando o desconhecimento da realidade
profissão – é o caso dos chamados nume- jurídico-canónica em causa; são exemplo
rários e agregados –, quer sejam casados, disso a descrição do Opus Dei como “uma
designando-se supranumerários. Dado igreja dentro da Igreja”, título escolhido
fundamental é o facto de não deixarem, para a obra de Bénédict e Patrice des Ma-
nem uns nem outros, de ser leigos, sendo zery, ou como entidade separada da igreja
precisamente a plenitude da vocação de e não exatamente católica, bem como o
batizado leigo, no cumprimento dos deve- espanto que leva a falar dos chamados pa-
res profissionais e familiares e no aposto- dres para consumo interno do Opus Dei
lado, que está em causa na espiritualidade como de um estranho privilégio.
e missão específicas do Opus Dei. Por esta
razão, os membros da instituição não têm
nenhum sinal externo que os identifique,
O mito negro – as acusações
ao contrário dos religiosos – facto em que
de maçonaria, secretismo
se reconhece facilmente o pretexto da
e tráfico de influências
acusação-tipo de secretismo – e a mesma São, como dissemos, de natureza muito
razão explica, ao menos em parte, que os diversa as acusações que se tem feito pen-
edifícios nos quais se desenvolvem as ati- der sobre esta entidade eclesial. Desde
vidades do Opus Dei não sejam imedia- cedo, no contexto da Espanha do primei-
tamente identificáveis como edifícios de ro franquismo, no qual nasceu, correram
uma entidade católica, dada a ausência de rumores de que Escrivá e os jovens que o
símbolos religiosos exteriores e o carácter seguiam haviam criado uma seita maçóni-
profano, neutro, dos nomes com que são ca, e, para alguns, judaica. Dizia-se, inclusi-
designadas as casas e as obras. vamente, que no interior dos edifícios em

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Antiopusdeísmo 1379

que se encontravam abundavam os símbo- Em Portugal, é comum chamar-se ao


los da maçonaria (acusação cuja falsidade Opus Dei, na comunicação social, maço-
se tornaria evidente para quem entrasse naria branca e máfia portuguesa; as revis-
ou entre num edifício onde se desenvol- tas Sábado e Visão publicam títulos sensa-
vam atividades da Obra). Data da mesma cionalistas, como “A fortuna escondida
altura, e está indubitavelmente correlacio- do Opus Dei em Portugal” e “Angola e
nada com esta, a acusação de secretismo, Opus Dei dominam gabinete de privatiza-
i.e., de que aqueles que pediam a admissão ções no Governo”, e uma breve busca na
ao Opus Dei se esforçavam por manter se- Internet com “Opus Dei” por palavra-cha-
creta a sua qualidade de membros e que só ve fornece uma lista abundante de artigos
uma vez dentro se podia conhecer as ativi- dispersos em que perpassa a imagem da
dades e os propósitos da instituição, inten- prelatura como uma organização secreta
cionalmente mantidos ocultos para fora. infiltrada nas estruturas governamentais
A história mostrou que a construção e da alta finança para exercer controlo.
desta imagem teve origem no meio ecle- São igualmente expressivas obras como
sial: o boato referente ao secretismo e à O Labirinto da Conspiração: P2, Mafia, Opus
natureza maçónica, a par de acusação de Dei; Opus Dei: Uma Investigação sobre a Po-
heresia (dizia-se que os seguidores de Es- derosa Sociedade Secreta da Igreja Católica; e
crivá se assemelhavam aos hereges ilumi- Opus Dei Secreta.
nados), fora posto a circular por alguns Estas distorções poderão ter por base
Jesuítas, com grande influência junto factos reais, mas lidos erroneamente ou
dos jovens de Madrid e responsáveis pe- distorcidos. Assim, a acusação de secretis-
las Congregações Marianas, das quais saía mo poderá ser alimentada pela referida
grande parte das vocações para a Compa- ausência de símbolos exteriores, e pela
nhia. A explicação destes primitivos boa- inerente marca da discrição, preceituada
tos reconduz-se, pois, sobretudo, ao re- pelo fundador, por um lado, como con-
ceio e à resistência ante a novidade, mais cretização da virtude cristã da humilda-
concretamente à perceção de uma desva- de e, por outro, enfatizando o carácter
lorização da vocação religiosa na mensa- essencialmente laical da vocação à Obra,
gem de uma vocação plena à santidade no expressos numa normalidade e discrição
estado laical e no meio do mundo; tam- externas que podem ser confundidas
bém tinha o seu peso o receio de se per- com intento de ocultação. Não seria ab-
derem vocações religiosas. Apesar de esta surdo ainda arriscar, que o contexto de
origem ser inequívoca, as distorções so- perseguição religiosa que a instituição
breviveram, resilientes, adaptando-se aos atravessou no período da sua fundação,
tempos e ao meio, e manifestando-se hoje durante a Guerra Civil espanhola, terá
não tanto dentro da Igreja, mas no espaço contribuído para esta (excessiva, para
público da sociedade secularizada. Assim, alguns) discrição, na altura verdadeira-
em Itália, alguns partidos de esquerda so- mente indispensável à sobrevivência do
licitaram a aplicação ao Opus Dei da lei empreendimento. Porém, a acessibilida-
contra as sociedades secretas; e é bastante de pública de toda a informação neces-
expressivo o episódio em que um conhe- sária para o conhecimento da identidade
cido membro da maçonaria, sobre quem da Obra, bem como a universal abertura
pendia uma suspeita de fraude, desvia as das suas casas a quem as visitar, contra-
atenções insinuando publicamente uma riam a ideia de que o Opus Dei é uma
vaga acusação contra o Opus Dei. organização secreta, qualidade, aliás, que

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1380 Antiopusdeísmo

seria incompatível com a sua integração Ullatstres e Mariano Navarro Rubio –, em


na Igreja Católica. funções entre 1957 e 1965 nas pastas do
Já a imagem da rede de influências, Comércio e das Finanças, pertencerem
inerente ao estatuto de sociedade secreta, à Obra. Num momento marcado pela
com a maçonaria por paradigma, resul- necessidade de dar resposta a uma crise
ta do facto de alguns membros do Opus económica interna, e face ao período de
Dei, no exercício da sua atividade pessoal desenvolvimento que se vivia na Europa
autónoma, terem efetivamente desempe- do pós-Segunda Guerra Mundial, a preo-
nhado cargos de relevância. Sendo o Opus cupação central do Governo era a trans-
Dei uma associação de fiéis leigos que con- formação das políticas económicas no sen-
tinuam a exercer a sua atividade profissio- tido da abertura da economia espanhola,
nal e a ter iniciativas pessoais em perfeita até então em regime de autarquia – uma
autonomia, os seus membros podem ocu- preocupação pragmática que contrasta-
par as mais diversas profissões e múltiplos va com o tom essencialista e ideológico
cargos; daqui não se pode inferir, natu- dominante no confronto político. Dos
ralmente, que, na eventualidade de ocu- sectores resistentes a esta mudança deri-
parem um cargo de chefia ou de impor- vou então a designação depreciativa de
tância, o tenham alcançado em virtude de tecnocratas, aplicada aos novos ministros
pertencerem à Obra, nem, sobretudo, que destas pastas cruciais, com a insinuação de
ajam em sua representação – pois só o fa- que eram pessoas com preparação técni-
zem no âmbito do trabalho apostólico da ca mas sem verdadeiro sentido de Estado,
mesma Obra. Para avaliar a existência ou e a ligação arbitrária a este rótulo da sua
inexistência de uma atuação organizada e pertença ao Opus Dei: tecnocratas e mi-
oculta da instituição para colocar os seus nistros do Opus Dei tornaram-se assim
membros em altos cargos, basta analisar noções intercambiáveis, alimentando a
os números. As primeiras acusações deste confusão entre a atividade e responsabi-
género datam da déc. de 40, em Espanha, lidade pessoais dos fiéis da prelatura e a
onde se falou de um assalto do Opus Dei sua eventual atividade em representação
às cátedras (Aurell, 2012, 259). Ora, da Obra, não obstante as repetidas decla-
entre 1940 e 1945, período em que a po- rações na altura feitas pelo fundador e pe-
lémica foi mais acentuada, acederam às los representantes da secretaria geral do
cátedras universitárias 179 professores, Opus Dei em Espanha, enfatizando a total
11 dos quais eram membros da Obra; ao liberdade de posicionamento político que
longo de toda a déc. de 40, foram 23 os assiste aos membros da Obra, dentro dos
membros da Obra que atingiram a posi- limites decorrentes da moral católica, e a
ção de professores catedráticos. Acrescen- total autonomia das suas atividades tem-
te-se que se vivia nesta altura em Espanha, porais. Assim, a pertença destes ministros
na sequência da Guerra Civil, um período ao Opus Dei suscitou acusações tanto de
de profunda reconstrução cultural, para a falangistas e tradicionalistas, como das
qual a universidade era um elemento ne­ forças de esquerda, para as quais o Opus
vrálgico, e na qual muitos católicos (inde- Dei seria um braço encapotado de apoio
pendentemente de simpatizantes ou não ao franquismo. A prelatura foi, pois, alvo
com o regime) sentiam o dever de intervir do mecanismo de criação de um bode ex-
ativamente. Outro facto decisivo para a piatório, na medida em que um mesmo
formação desta imagem foi a circunstân- facto (a pertença dos ministros de Franco
cia de dois ministros de Franco – Alberto à Obra) deu origem a críticas opostas.

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Antiopusdeísmo 1381

A imagem da Obra como organização


apoiante do regime franquista (ignoran-
do e.g., a declarada oposição ao regime
de alguns membros bem conhecidos
como Rafael Calvo Serer, e outros) foi fa-
cilmente transposta para o contexto por-
tuguês através da associação da Obra ao
regime de Salazar, cristalizando-se gene-
ricamente numa referenciação do Opus
Dei como força ideológica ligada aos re-
gimes autoritários de direita.
Em Portugal, será a pertença à Obra
de Jardim Gonçalves, que foi presidente
do Banco Comercial Português, o facto D.R.

invariavelmente invocado para indiciar o S. Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975).


tráfico de influências e o controlo orga-
nizado das grandes instituições financei-
ras que seria desígnio do Opus Dei, ao palestras, meditações, círculos, direção
mesmo tempo que as infrações de que foi espiritual – são definidos como “os méto-
acusado são sub-repticiamente atribuí- dos de maior controlo de consciências”;
das, pela comunicação social, à organiza- fala-se da mortificação corporal e concre-
ção de que fazia parte. tamente de “flagelações” como se fossem
também uma obrigação “imposta” aos
membros da prelatura e uma prática fre-
Outros elementos de uma imagem quente e exclusiva, ignorando o sentido
negativa: acusações de elitismo, de cristão da mortificação, esteio comum de
manipulação de consciências, de muitas espiritualidades cristãs, e a longa
integrismo e de calvinismo católico tradição ascética (não apenas cristã) em
Sem qualquer relação com esta imagem que se apoia, e calando a excecionalida-
de secretismo, outros traços negativos são de de que se revestem as formas referidas
recorrentes na abordagem mediática da da flagelação e do cilício. A presença, no
Obra, não tanto através de acusações ex- mesmo artigo, de excertos de depoimen-
plícitas, mas por meio de imprecisões e tos de pessoas pertencentes à Obra, como
de uma linguagem valorativa que esboça a afirmação de uma supranumerária de
os contornos de uma organização opres- que “reza e vai à missa todos os dias por-
siva e autoritária. O artigo que Filipe que quer e não é mandada por ninguém”,
Fialho e Manuel Vilas Boas publicam na não impedem que o texto mantenha um
Visão a 28 de novembro de 2002 é atraves- empenho na acusação de autoritarismo e
sado por um tom de suspeita, se não de de supressão de liberdade. Vários outros
denúncia, que manifesta o seu principal artigos procuram traçar o mesmo retra-
propósito: referir os preceitos “impostos” to, muitas vezes com base em entrevistas
por Escrivá aos seus seguidores descritos a ex-membros da Obra que narram uma
como “semelhantes aos da vida monacal”; experiência negativa, que constitui tam-
refere-se o “plano de vida” como algo que bém tema de vários livros. O que não
a Obra “impõe” aos seus membros; os deixa dúvidas ao reconhecimento de
meios de formação espiritual da Obra – um fenómeno “anti” é o facto de os tes-

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1382 Antiopusdeísmo

temunhos positivos serem praticamente ça dos anos de 1960. Num momento em


ignorados, enquanto os negativos, incom- que, em certos países europeus, como
paravelmente mais procurados, acabam a Itália, o catolicismo progressista se
por determinar a perspetiva dos autores aproximava da total dissolução da men-
das peças, cujo papel está longe de ser o sagem cristã num projeto político, no-
de meros relatores. É este mesmo retrato meadamente sob o impulso da teologia
caricatural que encontramos, expressiva- da libertação, o Opus Dei desempenhou
mente, no famoso livro de ficção de Dan assumidamente um papel de paladino
Brown O Código Da Vinci, através de uma da doutrina, da prioridade da formação
personagem que alia à particularidade de catequética e espiritual, e da transmissão
ser membro da Obra um carácter pertur- da fé, para além da inequívoca rejeição
bado e fanático, que raia a loucura. das ideias marxistas como incompatíveis,
na sua leitura global, com o cristianismo.
Assim, apelidados de hereges nos prin-
No interior da Igreja cípios da sua existência, os fiéis da pre-
Esta atitude de hostilidade e distorção latura passaram a ser criticados pela sua
públicas deve ser distinguida de um cer- demasiada ortodoxia.
to rótulo de tradicionalismo, aplicado, É também a partir de dentro da Igreja
por vezes sem simpatia, ao Opus Dei que surge na história da prelatura a sus-
em meios católicos. A crítica que aqui peita de integrismo. Deste ponto de vista,
se pode ler (se não for a mera constata- a espiritualidade e a ação apostólica da
ção da grande diversidade de carismas e Obra caracterizar-se-iam pela negação da
também de estilos e formas de estar que autonomia das várias áreas da cultura, no-
caracteriza o tecido multicolor da Igreja meadamente (ou principalmente) da po-
Católica) não radica em ideias fantasio- lítica, numa recusa em dar a César o que é
sas, mas em aspetos reais. Com efeito, a de César e na busca de uma solução para
absoluta fidelidade ao magistério, a obe- todos os problemas da vida pública na fé.
diência ao Papa e o cuidado e observân- A origem da objeção estará talvez na ên-
cia em matéria de liturgia – sem serem, fase dada à exigência de unidade na vida
evidentemente, um exclusivo da prela- dos cristãos, i.e., às consequências da con-
tura – são traços importantes, definido- dição de batizado em todas as dimensões
res da identidade da Obra. Recordando da vida, incluindo a vida profissional e o
uma instituição da Igreja cuja grandeza exercício da cidadania; ou então na decor-
e importância históricas são proporcio- rente afirmação do dever de os cristãos in-
nais à hostilização de que foi alvo – a tervirem ativamente na sociedade. Nenhu-
Companhia de Jesus –, Vittorio Messori ma destas afirmações pode, contudo, ser
sublinha que a fidelidade ao papa (quar- alvo de suspeita de integrismo. Por outro
to voto próprio dos Jesuítas) é um vetor lado, a repetida afirmação da liberdade de
comum às duas entidades católicas, arris- posicionamento político dos membros da
cando a hipótese de se encontrar no re- Obra por parte do fundador, dentro dos
ceio provocado por essa atitude, poten- limites da moral católica, afasta a possibi-
ciadora da força e da unidade da Igreja, lidade de um projeto político concreto
o motivo da perseguição. A antipatia que associado à prelatura, evidenciando antes
sobrevive nos meios eclesiais não é disso- a perspetiva propriamente cristã, que não
ciável da divisão entre católicos progres- concebe a esquizofrenia entre o natural e
sistas e conservadores, que é uma heran- o sobrenatural, a natureza e a fé. Embora

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Antiopusdeísmo 1383

esta acusação tenha perdido força e razão Em 2002, José Freire Antunes publicou
de ser dentro da Igreja (o teólogo Hans um livro no qual reuniu testemunhos de
Urs von Balthazar, que a terá insinuado, vida de cerca de 50 pessoas pertencentes
retirou-a expressamente, e a canonização à prelatura, permitindo verificar, em cer-
de Josemaría Escrivá não seria possível se ta medida, a representação que nela têm
a sua figura estivesse manchada com uma as mais variadas profissões e atividades,
leve sombra de heresia) continua a surgir e a heterogeneidade das proveniências
nos meios de comunicação social, em am- sociais dos seus membros. Fala-se ain-
biente laico. da, não sem relação com isto, de uma
Outra distorção afirma que a impor- suposta abundância de bens patrimo-
tância dada na espiritualidade da Obra niais, da fortuna pertencente à Obra,
ao trabalho profissional abre as portas trazendo implícita a denúncia de falta
ao chamado calvinismo católico, que de pobreza evangélica. No entanto, a
legitima ou estimula uma busca despro- utilização desse património, provenien-
porcionada da prosperidade material, te sobretudo de doações, para fins bem
da riqueza e do sucesso mundanos como delineados que nada têm que ver com o
fins em si mesmos. Porém, a obrigação enriquecimento dos membros nem com
de fazer o trabalho diário bem feito na qualquer obtenção de lucros, está à vista
espiritualidade de S. Josemaría nada tem e é passível de verificação: casas abertas
que ver com uma busca egoística do su- para estudo, trabalho e convívio, propor-
cesso, mas antes com o dever de cons- cionando as mais diversas atividades de
ciência para com a sociedade na qual se desenvolvimento humano e espiritual.
desempenha um papel específico para Note-se ainda que a propriedade destes
o bem comum; com uma visão positiva bens só se pode dizer da Obra em sen-
do trabalho como parte da realização tido impróprio, não jurídico, uma vez
autenticamente humana, a cocriação do que os seus proprietários são na realida-
mundo; e com o convite a tornar todas de “instituições de direito civil comum
as circunstâncias ordinárias da vida em constituídas por pessoas, na sua maio-
ocasião de oferecimento e amor a Deus ria do Opus Dei, que se associam para
e ao próximo. Não sem relação com esta, colaborar na ação formativa” da Obra,
surge a acusação de elitismo, i.e., de que pelo que “a responsabilidade pertence
os destinatários do trabalho apostólico aos leigos que constituem essas institui-
da prelatura seriam selecionados pela ções e é a eles que compete gerir os bens
sua pertença às elites económica e inte- económicos” (Gil, Opus Dei. Gabinete de
lectual, acabando também por perten- Imprensa, 24 fev. 2012), e não ao governo
cer a estas elites a maioria dos membros. central do Opus Dei.
Contrariando esta imagem, apresentam­
‑se factos e números, nomeadamente a
existência de centros da Obra junto de Bibliog.: impressa: ALLEN JR., John, Opus
meios sociais desfavorecidos, que são Dei: Um Olhar Objectivo para lá dos Mitos e da
também a origem de alguns dos seus Realidade da mais Controversa Força da Igreja
Católica, Lisboa, Alêtheia, 2005; ANTUNES,
membros, bem como o desenvolvimen-
José Freire (org.), Opus Dei em Portugal: o Tes-
to de numerosas obras de cariz social, temunho de 50 Homens e Mulheres incluindo Um
como o hospital Monkole em Kinshasa e Texto de D. Javier Echevarría, Versailles, Edeli-
a escola profissional Punlaan, em Mani- ne, 2002; AURELL, Jaume, “La formación de
la, entre muitas outras. un gran relato sobre el Opus Dei”, Studia et

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1384 Antiorganicismo

Do­cumenta, n.º 6, 2012, pp. 235-294; BALA-


GUER, Josemaría Escrivá, Caminho; Id., Sul-
Antiorganicismo
co; FERREIRA, Viviane Lovatti, O Opus Dei e
as Mulheres, São Paulo, Panda Books, 2006;
FIALHO, Filipe, e BOAS, Manuel Vilas, “Opus
Dei, o exército de Ballaguer”, Visão, 28 nov.
2002; GANHÃO, José, O Labirinto da Conspi-
ração: P2, Mafia, Opus Dei, Lisboa, Caminho,
1986; HAHN, Scott, Trabalho com Qualidade,
Graça em Quantidade: Uma Viagem Espiritual pelo
Opus Dei, Lisboa, Diel, 2008; HERRANZ, Ju-
O pêndulo do conhecimento foi os-
cilando ao longo da história mais
para o lado de uma explicação geométri-
lián, “El Opus Dei y la política”, Nuestro Tiem- ca ou mais para o lado de uma explica-
po, n.º 34, abr. 1957, sep.; Id., “O Opus Dei, ção biológica, que nos legaram os gregos.
primeiro instituto secular da Igreja”, Rumo,
Com a matematização da geometria, com
jul. 1961, sep.; Id., “Natureza do Opus Dei
o cálculo diferencial e com o surgimento
e actividades temporais dos seus membros”,
Rumo, dez. 1962, sep.; HUTCHISON, Robert, da física newtoniana, o pêndulo oscilou
O Mundo Secreto do Opus Dei, Lisboa, Prefácio, para longe do organicismo. O organicis-
2002; MAZERY, Bénédicte des, e MAZERY, mo deve aqui ser entendido num sentido
Patrice des, Opus Dei, Uma Investigação sobre filosófico, segundo o qual a vida é o re-
Uma Igreja dentro da Igreja, Lisboa, Presença, sultado da organização biológica. E, nes-
2006; MESSORI, Vittorio, Opus Dei: Uma In- se sentido, podemos ver o organicismo
vestigação Jornalística, Lisboa, Notícias, 1995;
como uma posição intermédia entre o
PINNOTTI, Ferruccio, Opus Dei Secreta, Porto,
vitalismo extremo e o puro mecanicismo,
Campo das Letras, 2008; RODRÍGUEZ, Pe-
dro et al., O Opus Dei na Igreja: Uma Introdução pelo que o antiorganicismo pode confi-
Eclesiológica à Vida e ao Apostolado do Opus Dei, gurar-se entre um antivitalismo (&Antivi-
Lisboa, Rei dos Livros, 1994; TAPIA, Maria talismo) e um antimecanicismo (&Anti-
del Carmen, Do Lado de dentro: Uma Vida no mecanicismo). Mas o organicismo pode
Opus Dei, Lisboa, Europa-América, 1993; também ser assumido, numa perspetiva
VILELA, António José, e BRANDÃO, Pedro sociológica, como uma doutrina que en-
Ramos, Salazar e a Conspiração do Opus Dei, tende as sociedades como organismos
Alfragide, Casa das Letras, 2011; TOUR-
vivos e tende a explicar o seu funciona-
NEAU, Dominique Le, O Opus Dei, Lisboa,
Rei dos Livros, 1990; VILELA, António José, mento com base nas leis e nas teorias da
e CASTRO, Pedro Jorge, “A fortuna escon- biologia.
dida do Opus Dei em Portugal”, Sábado, 23 No panorama nacional é o último dos
fev. 2012; WALSH, Michael, Opus Dei: Uma sentidos que pode ser considerado o
Investigação sobre a Poderosa Sociedade Secreta ponto de partida, pois condicionou todo
da Igreja Católica, Algés, Difel, 2006; digital: o Iluminismo português como um Ilumi-
“Angola e Opus Dei dominam gabinete de nismo católico. O catolicismo sofreu uma
privatizações no Governo”, esquerda.net, 23
grande rutura a nível europeu com a Re-
out. 2014: http://www.esquerda.net/artigo/
angola-e-opus-dei-dominam-gabinete-das
forma. Como refere Gonzalo Fernández
-privatizacoes-no-governo/34573 (acedido a de la Mora, “Antes da Reforma, o crente
22 mar. 2017); GIL, Pedro, “Comunicado de religava-se Deus e às escrituras através do
24 de fevereiro de 2012”, Opus Dei. Gabinete magistério eclesiástico ou da evolução ho-
de Imprensa, 24 fev. 2012: http://opusdei.pt/ mogénea da tradição. Tratava-se de uma
pt-pt/article/comunicado-de-24-de-feverei- religiosidade orgânica. Mas o exame livre
ro-de-2012/ (acedido a 22 mar. 2017). luterano deixou o homem só perante os
Beatriz Miranda textos revelados. Foi a proclamação de um

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Antiorganicismo 1385

individualismo intelectual absoluto. Além


disso, emergiu o individualismo moral: a
justificação pela fé. [...] O protestantismo
implicava, teoricamente, a dissolução da
anterior estrutura da Igreja e, indireta-
mente, da sociedade. As circunstâncias e
as contradições internas não permitiram
na prática a consumação da individualiza-
ção da sociedade civil. Essa foi a obra da
Revolução Francesa” (MORA, “Recepção
da Reforma…”). O pro­ testantismo fun-
cionou, portanto, como um antiorganicis- Rei D. João III (1502-1557).
mo moderado perante o cristianismo.
Em Portugal, a Reforma protestante
Erasmo de Roterdão, considerado perni-
não teve grandes repercussões e ficou
cioso por tolerar certos ideais protestan-
muito aquém do que se verificou nou-
tes e concordar com certos aspetos do
tros países europeus. Foi fraca a difusão
luteranismo” (Id., Ibid.). Em suma, em
do luteranismo, “essencialmente leva-
Portugal foram suprimidos os alvores
do a cabo por um restrito número de
de um antiorganicismo católico e algu-
intelectuais que muito discretamente o
ma individualização conceptual acabou
faziam, muitas vezes usando a ortodo-
por emergir, entre nós, com as Luzes e
xia como escudo de proteção”. O  Con-
o “pensar por si” kantiano. Mas, com o
cílio de Trento, que coincidiu nos seus
despontar do positivismo no campo da
primeiro e segundo períodos de ses-
sociologia, de que foi expoente Emídio
sões com o reinado de D. João III, foi
Garcia, segundo o qual a “sociedade é
um ponto de viragem no catolicismo.
um organismo”, o pêndulo do conheci-
“É exatamente durante este reinado que
podemos entender a ténue expressão
da Reforma protestante que poderia ter Erasmo de Roterdão (1466-1536).
ocorrido num primeiro momento, e de-
pois a sua repressão numa segunda fase,
que é já a da implantação da Inquisição.
Assim, numa primeira fase do gover-
no, o monarca demonstra uma enorme
abertura aos ideais renascentistas, reve-
lando-se num verdadeiro príncipe do
Renascimento através da promoção e
da circulação de ideias, com a vinda de
estrangeiros para o reino, a criação do
Colégio das Artes e a transferência da
universidade de Lisboa para Coimbra
em 1537. Esta primeira fase contrasta vi-
vamente com a segunda parte do seu rei-
nado, a partir dos anos 40, manifestando
um fechamento à cultura renascentista
e ao humanismo cristão veiculado por

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1386 Antiorganicismo

mento retomou ideias da Antiguidade nho Mendonça e para José Rodrigues de


clássica (LUZ, 2004, 265). Abreu, trata-se, contudo, de um predo-
No panorama nacional das Luzes, a mínio mitigado, pois “tanto a vida como
física unida à matemática surgiu como o movimento do corpo radicam numa
a chave de interpretação da natureza e substância não corpórea e mais perfeita.
dos seus mecanismos. Luís António Ver- A vida não consiste na mera organização
ney, no seu Verdadeiro Método de Estudar do corpo, sendo certo que os viventes
(1746), assumiu, na época, a posição conservam essa organização depois de
mais antiorganicista dos intelectuais por- perderem a vida”. E, em contraste com
tugueses, pela importância que atribuiu Verney, esses autores não veem a vida
às ciências naturais, sobretudo à física, como mero movimento. Rodrigues de
no âmbito global da filosofia. Verney Abreu refere mesmo que “o corpo vivo e
considerou meramente “hipotéticas” as a máquina são contrários”, embora não
considerações relativas a um “terceiro negue que o corpo se encontra submeti-
princípio”, que explicaria os movimen- do a leis mecânicas, aceitando o paradig-
tos vitais distinguindo-os dos mecâni- ma fisicista. Mas tal não implica que só es-
cos. Tais explicações eram para ele um sas leis expliquem o movimento de que o
desvio em relação aos princípios físicos corpo é dotado, parecendo-lhe “impossí-
e matemáticos em que a medicina (físi- vel, ou, ao menos difícil de crer, mover-se
ca do corpo) deveria assentar, pois, na o corpo humano somente de necessidade
sua opinião, o corpo humano podia ser mecânica” (Id., Ibid., 159-162). Tratava­
reduzido à figura e ao movimento, sur- ‑se de uma reação contra a dessacraliza-
gindo como “uma máquina hidráulica ção do corpo e a excessiva amplitude do
maravilhosa, a qual pode viver muito mecanicismo. Daí o facto de ter surgido,
bem sem a alma inteligente, e cuja vida nos finais do séc. xvii e durante todo o
nada depende do conhecimento”. Esta séc. xviii, um sem número de correntes
atitude teórica pressupõe a identificação animistas e vitalistas, tentando recuperar
entre movimento e vida, razão pela qual o enigma da vida e do espírito.
Verney considera que “o movimento dos Em posição marcadamente organicista
líquidos pelo corpo, sem olhar para as numa perspetiva social, figura o médico
qualidades, é o que sustenta esta má- Miguel Bombarda, recusando qualquer
quina [...] e somente, cessando o movi- papel à psicologia e à sociologia: “São leis
mento cessa a vida; tornando ressuscita”. naturais as que regem as acções huma-
A posição extrema de Verney não deixa nas e os destinos sociais”. No seu enten-
de revelar algumas debilidades: “consi- dimento, a psicologia e a sociologia são
derava o corpo vivo como uma máquina, meros prolongamentos da biologia – “a
mas o inverso não era verdadeiro” (CA- sociedade é, pois, um organismo”. Para
LAFATE, 2002, 164). Bombarda, era o programa de “uma ciên-
A metafísica constituiu o fundamento cia nova a instaurar, na qual se combinem
da medicina até ao séc. xvi, mas, com o a vertente crítica e a objectividade” (CAR-
surgimento do mecanicismo no séc. xvii, DOSO, 2004, 38-39).
a física assumiu lugar de destaque, sem Após um tempo forte do nacionalismo
contudo deixar de beneficiar do nasci- liberal e republicano, aproximadamente
mento da química moderna, com La- entre 1860-1890, ocorreu uma viragem
voisier, a respeito da interpretação da organicista da sociedade e da política,
combustão e da respiração. Para Marti- com o primado dos grupos sobre os indi-

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Antiorientalismo 1387

víduos, uma viragem que irá prosseguir.


No período da Primeira República Portu-
Antiorientalismo
guesa sobressaiu o nacionalismo católico,
o nacionalismo integralista lusitano e o
nacionalismo sincrético, este uma síntese
orgânica do que será fundamentalmente
o travejamento doutrinário do chamado
Estado Novo.

Bibliog.: impressa: Calafate, Pedro, “Filo-


O orientalismo designa tanto o estudo
académico especializado dos povos
e das culturas orientais, quanto qualquer
sofia e medicina: iatromecanicismo, vitalis- produção que tenha o Oriente como
mo e animismo”, in CALAFATE, Pedro (dir.), tema (na economia, na historiografia, na
História do Pensamento Filosófico Português, vol.
literatura, na pintura, na fotografia, etc.).
iii, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, pp. 159­
‑167; Cardoso, Adelino, “Filosofia e histó- Após a publicação de Orientalism: Western
ria das ciências: a inteligibilidade científica no Conceptions of the Orient (1978), de Edward
Portugal oitocentista”, in CALAFATE, Pedro W. Said, o termo adquiriu um carácter ne-
(dir.), História do Pensamento Filosófico Portu- gativo, por nessa obra o orientalismo ser
guês, vol.  iv, t. 2, Lisboa, Círculo de Leitores, encarado como enformando as práticas
2004, pp. 13­‑41; Leal, Ernesto Castro, “Tó- coloniais ou o discurso de superioridade
picos sobre os nacionalismos críticos do de-
civilizacional europeia, através do qual a
mo-liberalismo republicano: moral, religião e
política”, in CALAFATE, Pedro (dir.), História subalternização do outro e da sua cultura
do Pensamento Filosófico Português, vol. v, t. 2, é motivada por diversos interesses práti-
Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, pp. 135­ cos. Falar, portanto, de antiorientalismo
‑160; LUZ, José Luís Brandão da, “Orientação pressupõe uma positividade cognitiva,
sociológica do positivismo”, in CALAFATE, que nos seria dada por uma atitude as-
Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico sumidamente crítica do enunciador face
Português, vol. iv, t. 1, Lisboa, Círculo de Leito- à estereotipização ou essencialização do
res, 2004, pp. 263­‑320; digital: MORA, Gon-
que é tido por oriental. Antiorientalis-
zalo Fernández de la, “Recepção da Reforma
protestante em Portugal”, s.d.: http://www. tas podem ser, então, tanto os discursos
infopedia.pt/$recepcao-da-reforma-protes- científicos e artísticos que ao longo do
tante-em-portugal (acedido a 14 dez. 2013); tempo funcionaram como vozes contra­
URUÑUELA, Fernando, “Protestantismo e ‑hegemónicas à visão consensual sobre
idealismo alemán”, Historia y Evolución de la o Oriente, como as análises críticas que
Democracia Orgánica, 20 mar. 2013: http://his- hoje procuram desconstruir os discursos
toriademorganica.blogspot.pt/2013/03/pro-
que reproduzem essa visão consensual.
testantismo-e-idealismo-aleman.html (acedi-
do a 12 dez. 2013). O entendimento de Edward W. Said
acerca do orientalismo assenta, sobretu-
Sebastião Formosinho do, nas noções foucaultianas de saber e
poder, e no conceito de hegemonia de
Antonio Gramsci. A grande maioria dos
exemplos de orientalismo na aceção que
defende é extraída das experiências bri-
tânica, francesa e norte-americana no
Oriente, levando-se em consideração que
a massa de conhecimentos sobre este se
adensa e se profissionaliza a partir de

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1388 Antiorientalismo

finais do séc. xviii, coincidindo com o ção de orientalismo católico, conjunto


período que a historiografia tradicional de saberes produzidos no âmbito de uma
geralmente apresenta como o do início respublica christiana com o mesmo tipo de
do domínio efetivo da Europa sobre os objetivos (nomeadamente o exercício
territórios extraeuropeus conquistados. do poder) que estarão presentes no âm-
O estudo do orientalismo, sob a pers- bito secular das potências europeias que
petiva saidiana, constitui ainda uma no- emergem na fase seguinte.
vidade em Portugal, onde a sua obra só Nesse sentido, poder-se-á falar em an-
foi publicada 26 anos depois da edição tiorientalismo no primeiro período se se
original em inglês. Tendo o poder do considerar não subalternizante a produ-
Império Português na Ásia já entrado em ção oriunda da ação de “um certo tipo
declínio aquando da emergência do cha- de missionário”, na qual “os saberes so-
mado “novo imperialismo” do séc.  xix bre o homem e a sociedade tinham uma
e tendo a profissionalização dos estudos estrutura tópica e aberta. Os diferentes
orientais em Portugal ocorrido de for- pontos de vista eram confrontados, sem
ma bastante precária e limitada, a ques- que necessariamente se concluísse num
tão que se coloca no contexto lusitano é determinado sentido”, como seria o caso
a de procurar perceber se as produções do discurso do Tratado das Contradições
portuguesas sobre o Oriente anteriores a e Diferenças de Costumes entre a Europa e o
finais do séc.  xviii e também as realiza- Japão (1585), do Jesuíta Luís Fróis (1532­
das desde finais do mesmo século podem ‑1597), “meramente anotativo das ‘dife-
ser consideradas orientalistas. No caso renças’” entre os costumes europeus e os
do primeiro período, historiadores como japoneses (HESPANHA, 1999, 20). Existi-
Xavier e Zupanov (2015) propõem a no- riam outros exemplos, mas sempre como
exceção à regra: “casos houve, raros é ver-
dade, de missionários que apreenderam,
Pormenor de biombo Namban. compreenderam e transmitiram a alteri-
dade sem expressar o lado ‘negativo’ nos
seus escritos, a exemplo do redigido pelo
Padre João Rodrigues [c. 1558-1634] a
respeito do chanoyu [cerimónia do chá]
no Japão” (CUNHA, 2012, 145), na sua
História da Igreja do Japão (séc. xvii).
Uma outra perspetiva, apontando para
uma não subalternização do outro orien-
tal na cultura portuguesa, é oferecida
pela proposta de substituir, no tocante
a Portugal, o termo “orientalismo” por
“orientalidade”, sendo, porém, evidente
a sua filiação na controversa tese do lu-
sotropicalismo do sociólogo brasileiro
Gilberto Freyre, além de negligenciar o
envolvimento direto de muitos dos auto-
res abarcados com os aparelhos do Im-
pério Português. O termo “orientalida-
de” “descreve a presença portuguesa no

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Antiorientalismo 1389

Oriente antes do Orientalismo”, inferin- uma obra que “o ar pós-colonial e multi-


do um “estado entre-culturas [que] surge cultural do nosso tempo […] obriga […]
de comunidades híbridas e de povos mis- a nascer com várias precauções ideológi-
cigenados, criados ao longo do caminho cas”, com um “desmascarar de estereóti-
marítimo seis e setecentista, do Brasil até pos” e uma “ultrapassagem do modo exó-
ao Japão”, e originado numa “formação tico”, não obstante o seu autor “acabe por
de laços de amizade e parentesco mistos, ceder a glosar velhos tópicos que domina-
entre portugueses, africanos e asiáticos”; ram a visão europeia da Ásia ao longo dos
ilustrariam essa orientalidade “figuras séculos xix e xx” (BRAGA, 2012, 224).
que entenderam muito bem Ocidente e
Oriente”, como Garcia da Horta (c. 1500­ Bibliog.: BRAGA, Duarte D., “Um orientalis-
‑1568) e Diogo do Couto (c. 1542-1616) mo esclarecido? As Lendas da Índia de Luís Fi-
(JACKSON, 2014, 17). lipe Castro Mendes”, Abril, vol. 5, n.º 9, nov.
No tocante à literatura, encontram­ 2012, pp. 224-229; CUNHA, João Teles e,
“Dares e tomares no orientalismo português”,
‑se, ao longo dos séculos, vozes que, em
in KEMNITZ, Eva-Maria von (coord.), Estudos
certos aspetos, seriam claramente consi-
Orientais. Volume Comemorativo do Primeiro Decé-
deradas antiorientalistas, a começar por nio do Instituto de Estudos Orientais (2002-2012),
Fernão Mendes Pinto (c. 1514-1583), Lisboa, Universidade Católica, 2012, pp. 135­
com a sua Peregrinação (1614), por aí fi- ‑163; GROSSEGESSE, Orlando, “Das leituras
xar a “atenção num conceito de civiliza- do Oriente à aventura da escrita a propósito
ção superior, a chinesa, uma civilização de O Mandarim e A Relíquia”, in Queirós, Eça
decididamente oposta à da nossa moral de, Obra Completa, vol. i, Rio de Janeiro, Nova
Aguilar, 1996, pp. 767-780; HESPANHA, An-
(ou falta de moral) imperialista degra-
tónio Manuel, “O orientalismo em Portugal
dada, pretensamente heroica e herda- (séculos xvi-xx)”, in O Orientalismo em Portugal,
da em linha reta de gregos e romanos” Lisboa, Comissão Nacional para as Come-
(MACHADO, 1983, 12). No séc. xix, morações dos Descobrimentos Portugueses,
Eça de Queirós (1845-1900), com a obra 1999, pp. 15-39; JACKSON, Kenneth David,
O Mandarim (1880), teria dado lugar a “Goa e a orientalidade”, in MACHADO, Ever-
uma “escrita orientalista em segundo ton V., e BRAGA, Duarte D. (orgs.), ACT 27 –
Goa Portuguesa e Pós-Colonial. Literatura, Cultura
grau” (GROSSEGESSE, 1996, 773), na
e Sociedade, Vila Nova de Famalicão, Húmus,
medida em que estaria a parodiar criti- 2014, pp. 13-37; MACHADO, Álvaro Manuel,
camente a visão e os clichês orientalistas. O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa, Lis-
As Cartas do Japão (1904), de Venceslau boa, Instituto de Cultura e Língua Portugue-
de Morais (1854-1929), “têm a particula- sa, 1983; PEREZ, Rosa Maria, “Introdução”,
ridade de valorizar sistematicamente as in PEREZ, Rosa Maria (coord.), Os Portugueses
culturas não ocidentais”, num “saudável e o Oriente. História, Itinerários, Representações,
contraponto aos discursos patrióticos Lisboa, Dom Quixote, 2006, pp. 11-36; RA-
MOS, Manuela Delgado Leão, António Feijó
sobre os direitos dos portugueses” (RA-
e Camilo Pessanha no Panorama do Orientalismo
MOS, 2001, 78). Português, Lisboa, Fundação Oriente, 2001;
A seguir às transmutações pós-coloniais SAID, Edward W., Orientalismo: Representações
do séc. xx, outra ideia, a de orientalismo Ocidentais do Oriente, Lisboa, Livros Cotovia,
esclarecido, talvez permita distinguir, na 2004; XAVIER, Ângela Barreto, e ZUPANOV,
cultura portuguesa, tentativas de supe- Inês, Catholic Orientalism – Portuguese Empire,
ração do orientalismo. É o caso de Luís Indian Knowledge (16th-18th Centuries), New De-
lhi, Oxford University Press, 2015.
Filipe Castro Mendes (n. 1950) na cole-
tânea de poemas Lendas da Índia (2011), Everton V. Machado

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1390 Antiotomanismo

Antiotomanismo tos parecem responder a uma conceptua-


lização negativa do “Turco” que, numa
primeira fase, correspondente ao auge
do poderio bélico do Império Otomano,
o essencializava como inimigo da cristan-
dade e da civilidade europeia e que, mais
tarde, em pleno orientalismo, transfor-

D esde a segunda metade do séc. xx,


diversos autores têm afirmado que
é impossível pensar a história da Europa
mava elementos da sua cultura em bens
e motivos estéticos para consumo do
“Ocidente”.
no período da Modernidade sem ter em Assim, ao assinalarem a interdependên-
conta a história do Império Otomano. cia entre potências políticas, estas pers-
A perspetiva mais comum, seguindo petivas abriram também campo para o
uma lógica que aproxima o contexto mo- estudo dos discursos ideológicos que exa-
derno da política de polos vivida durante cerbavam as diferenças entre europeu e
a Guerra Fria, concebe o Império Otoma- otomano, deformando ou caricaturando
no como uma poderosa potência política o alegado outro, e para a reconstituição
e militar que impôs à unidade de uma de diversos percursos marginais, parale-
Europa cristã diversos desafios, aos quais los às grandes narrativas bélicas e políti-
esta nem sempre conseguiu responder cas, que evidenciam fronteiras porosas e
categoricamente, mas que acabaram por margens de contacto entre indivíduos de
determinar a forma como se desenvolveu diferentes nações.
e afirmou ao longo de séculos. O antiotomanismo português, entendi-
Outros autores, recusando esta visão, do como o conjunto dos fenómenos e dis-
defendem que, em função da multipli- cursos de medo, aversão ou conflitualida-
cidade de relações entre reinos cristãos de com o “Turco” na história de Portugal,
europeus e o Império Otomano, não ape- constitui um caso interessante, em que
nas conflituais e bélicas mas também de os modos de perceção negativa do outro
intenso intercâmbio cultural e comercial, parecem depender inequivocamente dos
é inevitável pensar o referido Império graus de distanciamento ou contacto en-
como um elemento integrante da Euro- tre as nações em diferentes momentos da
pa, perspetiva que parece ter presente a sua história.
discussão relativa à adesão da Turquia à Portugal começou o seu processo de
União Europeia. expansão a partir da segunda década do
Convergentes com esta visão, são ainda séc. xv, período em que decorreram tam-
de destacar as perspetivas que identificam bém as conquistas de Murad II em territó-
o Mediterrâneo como o espaço que ver- rio europeu. Ainda que ambos os reinos
dadeiramente centralizava as dinâmicas se encontrassem em partes da Europa
políticas, culturais e económicas durante a diametralmente opostas, as suas histórias
Modernidade e, mais recentemente, aque- começariam a cruzar-se de forma mais
las que assinalam a crescente interdepen- evidente nesta fase.
dência entre todos os povos e indivíduos Respondendo aos apelos do papado à
do mundo no alvor da globalização. cruzada contra o “infiel”, a Coroa portu-
De diversas formas, e em alguns casos guesa parece ter tentado mover o combate
ecoando questões do tempo histórico em em duas frentes, o Mediterrâneo oriental
que foram desenvolvidos, estes contribu- e o Norte de África, ao longo do séc. xv.

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Antiotomanismo 1391

As ações portuguesas na frente orien- e Apúlia. Portugal respondeu aos apelos


tal terão sido comandadas pelo infante de cruzada feitos por Sisto IV aos prínci-
D. Pedro. No Livro do Infante D. Pedro, de pes cristãos com o envio de uma armada
Gomes de Santo Estêvão, e na Crónica de comandada por D. Garcia de Menezes,
D. João I, de Duarte Nunes de Leão, é rela- bispo de Évora, no ano de 1481. Todavia,
tada a presença do infante junto da corte após a morte de Mehmed II, em maio
do Imperador Segismundo, na compa- desse ano, as tropas otomanas acabariam
nhia de D. Afonso V de Aragão, muito por abandonar Otranto. Aportando em
provavelmente em 1418 e entre 1426 e Roma, em agosto, D. Garcia de Menezes
1428. Em elevado reconhecimento dos já não ia a tempo de cumprir a sua mis-
seus serviços na luta contra o Turco, o in- são, mas não deixou, por isso, de apresen-
fante recebeu a marca de Treviso. tar uma oração de obediência ao Sumo
Ao longo do séc. xv, multiplicar-se-iam Pontífice.
os contactos com as cortes de Aragão e Nesta oração, exemplo cimeiro do
de Borgonha, no sentido de se estabele- discurso antiotomano em Portugal na
cerem alianças militares para a guerra segunda metade do séc. xv, em que os
contra os Turcos. Turcos são classificados com expressões
Nos anos que sucederam a conquista como “crudelíssimos bárbaros”, “abo-
de Constantinopla por Mehmed II, em mináveis feras” e “bestas truculentas”, o
1453, D. Afonso V desenvolve contactos arcebispo de Évora começa por lastimar
permanentes com os Papas Nicolau V e dramaticamente a conquista turca de
Clemente III, apresentando as suas inten- Constantinopla e os recentes avanços
ções de manter as duas frentes de comba- no sul de Itália, para incitar os príncipes
te ao infiel. Desta forma, D. Afonso V pro- cristãos a uma grande cruzada. Seria este
curava assumir uma posição saliente na o remédio para a “mais atroz, perigosa e
cruzada contra os Turcos, face à competi- funesta [guerra] das que alguma vez sur-
ção das cortes de Aragão e de Borgonha, giram contra a fé de Cristo” (MENEZES,
ao mesmo tempo que obtinha do papado 1988, 30). Para esse intuito, oferece, por
meios financeiros e legais para prosseguir fim, os navios de Portugal, que considera
a expansão do Norte de África. muito mais robustos que as galés turcas,
Em 1457, Vasco Farinha participou na e exalta os esforços levados a cabo por
batalha de Metelino como vice-almirante D. Afonso V na luta contra o “infiel” não
da Armada pontifícia e foram desenvolvi- só no Mediterrâneo oriental, mas tam-
dos esforços para que uma armada portu- bém no Norte de África.
guesa participasse numa expedição à Si- A oração de Garcia de Menezes eviden-
cília. Porém, ainda que tivesse obtido do cia um momento de transição na política
papado bulas que concediam o domínio portuguesa face à Europa e ao papado.
e a exploração dos territórios conquista- Nela, ao mesmo tempo que encontra-
dos no Norte de África, D. Afonso V nun- mos uma reprodução à letra de tópicos
ca viria a conseguir assumir uma posição da retórica cruzadística medieval, prepa-
predominante na frente oriental. Após a ram-se condições legais e materiais para a
morte de Calisto III, em 1457, o Rei con- assunção de uma nova atitude pela Coroa
centraria os seus esforços na conquista de portuguesa, decisivamente balanceada na
Alcácer Ceguer, Anafé e Arzila. conquista de território da costa ocidental
Em 1480, os Turcos entram finalmente africana, prenunciando a constituição de
em território italiano, tomando Otranto um império.

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1392 Antiotomanismo

Nas duas primeiras décadas do séc. xvi, formado no claustro cisterciense de Alco-


a intervenção militar portuguesa no Me- baça, residiria, por altura da redação do
diterrâneo reduzir-se-ia ao apoio prestado seu tratado, provavelmente em Antuér-
às tropas castelhanas na tomada de Mers­ pia, sob a proteção do mercador Manuel
‑el-Kebir, em 1505. A viragem do Império Cirne. O  frade e o mercador ter-se-iam
Português para uma cruzada no Oriente conhecido no Norte de África, onde a
tornava-se ainda mais explícita com as in- notícia da conquista de Tunes lhes teria
cursões de Afonso de Albuquerque con- despertado a curiosidade sobre a temáti-
tra sultanatos aliados do Império Otoma- ca turca.
no, à entrada do mar Vermelho e na costa Formado num dos centros eruditos de
ocidental da Índia. O ideal de cruzada e Portugal e transitando por diversos espa-
o plano de reconquista da Terra Santa ços europeus, Castilho pôde compilar, no
terá estado subjacente, a par de motivos seu tratado, informações provindas de
mais prosaicos, ao projeto manuelino de textos emblemáticos do séc. xv, como a
expansão para Oriente. carta de Pio II a Mehmet II, e de trata-
Em resposta a um apelo à cruzada emi- dos publicados posteriormente, como o
tido por Clemente VII face aos assina- Turcicarum Rebus Commentarius (1537), de
láveis avanços de Solimão na Hungria, Paulo Jovius, relativas à origem do povo
D.  João  III enviou uma carta em que turco, aos seus costumes, à sua organiza-
afirmava terminantemente o novo rumo ção política e ao seu exército. No final do
da política portuguesa. Aqui, mostran- livro, Castilho cita ainda sentenças pro-
do-se solidário com o reino da Hungria, féticas que anunciavam a destruição do
D.  João III lastima, no entanto, a desu- Império Otomano pelas mãos de um rei
nião dos príncipes cristãos e argumenta hispânico.
que as várias empresas que está a levar a Todavia, é assinalável que o Livro da
cabo em África e na Ásia, para além do Origem dos Turcos não teça considerações
dote de D. Isabel, que se casara com Car- significativas acerca das empresas portu-
los V, representam já uma enorme san- guesas na Ásia e na costa oriental africa-
gria de recursos humanos e financeiros. na. Assim, apesar de ter sido escrito em
Desta forma, o Rei afirma-se impossibili- português, o tratado de Castilho obedece
tado de prestar uma ajuda significativa no a uma lógica que é sobretudo europeia
leste da Europa, para se poder centrar em ou mediterrânica.
todas as empresas que mantém em curso. Ao longo do séc. xvi, seriam publica-
Contudo, D. João III não deixaria de dos alguns relatos de encontros bélicos
intervir pontualmente no Mediterrâneo entre Portugueses e otomanos no Orien-
ocidental. O envio de um contingente te. Entre eles, destacamos a Historia das
chefiado por D. Luís, seu irmão, na to- Cousas Que o mui Esforçado Capitão Dom
mada de Tunes pelas tropas de Carlos V, Cristóvão da Gama Fez nos Reinos do Preste
em 1535, constituiu o ponto alto dessa João com Quatrocentos Portugueses Que Con-
intervenção. sigo Levou, redigida por Miguel Castanho-
Três anos mais tarde, em 1538, foi pu- so, em registo que labora entre a crónica
blicado em Leuven o primeiro tratado e a hagiologia, publicado em 1564; o Co-
em língua portuguesa sobre o Império mentário do Cerco de Goa e de Chaul no Ano
Otomano de que temos notícia, o Li- de 1570, de António Castilho, publicado
vro da Origem dos Turcos, de Fr. Diogo de em 1573; o Sucesso do Segundo Cerco de Diu,
Castilho. Pouco se sabe sobre Fr. Diogo; poema épico de Jerónimo Osório sobre

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Antiotomanismo 1393

os acontecimentos de 1546, publicado


em 1574. Prolongando modos de carac-
terização dos Turcos bastante recorren-
tes – guerreiros ferozes, ímpios, bárbaros
e traiçoeiros –, estes textos acrescentam,
no entanto, dados de convivência e de
comunicação com o outro otomano que
fogem a uma lógica de distância e de au-
sência de contacto que predominava na
documentação portuguesa do séc. xv.
Esta lógica encontra-se excecional-
mente superada no Desengano de Perdi-
dos, diálogo de conversão de um Turco
escrito por D. Gaspar de Leão, primeiro
arcebispo de Goa, e publicado em 1572.
O  livro é composto na sua maior parte
por um diálogo ficcionado entre um
Turco e um cristão, que decorre ao lon-
go de uma caminhada entre o Suez e o
Cairo. Ambas as personagens são antigos
soldados que, estropiados na guerra, já
não conseguem lutar. Ainda que a ima-
gem do Turco nele apresentada convirja
globalmente para os estereótipos vigen-
tes – o Turco violento, tirânico e concu-
piscente –, o diálogo introduz a temática
da conversão através da razão natural,
tese negada em vários escritos antioto-
manos anteriores. Para além disso, o
ambiente informal e convivial que rege
boa parte do texto, abordando temas do
quotidiano como a alimentação, a famí-
lia, a educação dos mais jovens, mesmo
que em diversos momentos acuse algu- Subida ao trono de Mehmet II (1432-1481).
ma artificialidade, contrasta com o am-
biente hostil em que labora a maior par-
te dos textos antiotomanos, geralmente que parece nunca ter cessado verdadeira-
centrados no tema da guerra. mente – foi amplamente renovada em al-
No contexto da literatura sebastianista guns autores portugueses. Aqui, a figura
e restauracionista do séc. xvii, o Turco do Turco parece surgir, muitas vezes, es-
surge perspetivado de forma bastante di- tereotipada e desligada da realidade fac-
ferente. Face ao domínio filipino e à per- tual. Tanto nos comentários sebastianis-
da de várias praças do Império para novas tas de João de Castro ou de Fr. Sebastião
potências emergentes, a especulação pro- de Paiva, como nas congeminações do
fética em torno da destruição do islão e P.e António Vieira (&Antissebastianismo),
da plenificação da cristandade – tradição por mais ou menos informados que cada

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1394 Antiotomanismo

um destes autores fosse a seu respeito, ele grande voga nas primeiras décadas do
acaba por desempenhar invariavelmente séc. xvii, no auge do negócio de cativos
o papel instrumental de símbolo adequá- em Argel. Repletos de quadros de vio-
vel à “besta” de Apocalipse 13, ou ao pe- lência infligida pelos piratas turcos, estes
queno chifre de Deuteronómio 7-8, que têm, em alguns casos, e.g., no da Memorável
será, por fim, derrotada. Relação da Perda da Nau Conceição, de João
Desta série de textos, destaca-se o Liber Carvalho Mascarenhas, a virtude de se re-
Unicus, Exposição do XI, XII & XIII Capítu- velarem relativamente independentes em
los do IV Livro do Propheta Esdras, da auto- relação aos estereótipos que a ideologia
ria do pintor Félix da Costa Meesen, ma- de cruzada e a literatura antiturca vinha
nuscrito ilustrado que permanece ainda reproduzindo há mais de um século. Es-
inédito e que pode ser considerado com crita, segundo o autor, com o intuito de
justiça o mais relevante tratado sobre o contar o que passou e de avisar e “dar gos-
Império Otomano escrito em língua por- to a quem a lê” (MASCARENHAS, 1627,
tuguesa durante o séc. xvii. fl. bv.), a relação de Mascarenhas reparte
As notícias da campanha levada a cabo as suas críticas circunstanciais entre os
por João III Sobieski, Rei da Polónia, con- Turcos e os cristãos com quem se cruzou
tra as tropas otomanas, após o cerco de pessoalmente durante o episódio do nau-
Viena, no ano de 1783, chegaram com frágio e da captura.
relativa brevidade a Portugal, divulgadas Por fim, destacamos outra série de do-
numa série de 21 folhetos publicados cumentos, também associados ao negócio
pela imprensa de Miguel Deslandes en- dos cativos de Argel, constituída pelos pro-
tre 1686 e 1687, com o título de Relação cessos inquisitoriais de renegados. Através
Histórica Pertencente ao Estado, Sucessos e dos estudos de Lucia Rostagno e de Ben-
Progressos da Liga Sagrada contra Turcos. Es- nassar et al., tornou-se patente que estes
tas notícias terão despertado em Félix da processos inquisitoriais são importantes
Costa a esperança da destruição final do repositórios de narrativas biográficas de
Império Otomano. Todavia, enquanto se- migração e de contacto entre indivíduos
bastianista convicto, o pintor não poderia de diferentes proveniências étnicas, polí-
aceitar que a destruição do Turco coubes- ticas, culturais e religiosas. Estas permitem
se a um rei estrangeiro. esboçar um discurso historiográfico que
O Liber Unicus resulta do esforço de não se centra apenas nas grandes narrati-
construir uma nova interpretação de Es- vas políticas e militares, mas tem também
dras 4, livro deuterocanónico muito utili- em consideração as trajetórias de grupos
zado pelos sebastianistas, segundo a qual de classes sociais menos favorecidas (pes-
a águia terrífica que surge no capítulo cadores, marinheiros, aventureiros, co-
11 é o Império Otomano, e o leão que a merciantes, etc.), colocando em evidência
destrói é D. Sebastião, o Encoberto. Para níveis surpreendentes de miscigenação e
fundamentar a sua tese, Félix da Costa de circulação de pessoas através das fron-
recorreu a uma extensa bibliografia de teiras políticas e religiosas mediterrânicas
temática turca, em que se inclui, e.g., a in- durante a Idade Moderna.
contornável General Historie of the Turkes,
de Richard Knolles (1603).
De forma sensivelmente diferente, a Bibliog.: BENNASSAR, Bartolomé, e BEN-
figura do Turco seria também presente NASSAR, Lucile, Les Chrétiens d’Allah, 3.ª ed.
em relatos de cativeiro, que mereceriam rev. e aum., Paris, Perrin, 2006; GODINHO,

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Antipaganismo 1395

Vitorino Magalhães, A Economia dos Descobri-


mentos Henriquinos, Lisboa, Sá da Costa, 1962;
Antipaganismo
JOVIUS, Paulo, Turcicarum Rerum Commentarius
Pauli Iouii Episcopi Nucerini ad Carolum.V. Impera-
torem Augustum: Ex Italico Latinus Factus, Francisco
Nigro Bassianate Interprete. Origo Turcici Imperij.
Vitae Omnium Turcicorum Imperatorum. Ordo ac
Disciplina Turcicae Militiae Exactissime Conscrip-
ta, Argentorati, Vendelinus Ribelius, 1537;
LIMÃO, Paula, Portugal e o Império Turco na
Área do Mediterrâneo (Século XV), Dissertação
N as modernas traduções da Bíblia
deparamo-nos com o uso frequente
do termo “pagão”, que não encontramos,
de Mestrado em História dos Descobrimen- e.g., na Vulgata de Jerónimo. Sendo um
tos e da Expansão Portuguesa apresentada termo de origem latina – “paganus” –, es-
à Universidade de Lisboa, Lisboa, texto po-
perar-se-ia que fosse usado naquela famo-
licopiado, 1994; LOUREIRO, Rui Manuel,
A Rare Sixteenth Century Imprint: the Livro da sa tradução; mas isso não ocorre. O que
Origem dos Turcos by Fr. Diogo de Castilho (Leu- acontece é que o termo “pagão” (ou “pa-
ven, 1538), Portimão, Instituto Superior Ma- ganismo”) recebe no final do séc. iv, en-
nuel Teixeira Gomes, 2013; MASCARENHAS, tre os cristãos, um sentido extremamente
João Carvalho, Memoravel Relaçam da Perda da negativo, e, até, de chacota, referindo-se
Nao Conceiçam Que os Turcos Queymáraõ à vista a todos aqueles que se sentiam tentados
da Barra de Lisboa, e Varios Successos das Pessoas a apostatar (à maneira do Imperador Ju-
Que Nella Cativáraõ. Com a Nova Descripçaõ da
liano) e a aderir às novas filosofias ecléti-
Cidade de Argel, de Seu Governo, e Cousas muy No-
taveis Aconsentidas Nestes Ultimos Annos de 1621. cas surgidas entretanto em Roma. Neste
Até o de 626, Lisboa, Antonio Alvarez, 1627; sentido, é praticamente natural a ante-
MENEZES, Garcia de, “Oração ao Sumo Pon- posição do prefixo “anti-” a essa palavra:
tífice Sisto IV dita por D. Garcia de Meneses o paganismo era uma atitude a combater.
em 1481”, in ALBUQUERQUE, Martim Talvez por ser uma nomenclatura inter-
de (org.), Orações de Obediência dos Reis de Por- na dos cristãos, a expressão é evitada em
tugal aos Sumos Pontífices, vol. ii, Lisboa, Inapa, contextos em que importa mais o diálo-
1988; RICCI, Giovanni, Ossessione Turca. In Una
go com o exterior (como seria o caso da
Retrovia Cristiana dell’Europa Moderna, Bologna,
Il Mulino, 2002; ROSTAGNO, Lucia, Mi Fac- tradução bíblica de Jerónimo). Progressi-
cio Turco. Esperienze ed Immagini dell’Islam nell’I- vamente, o termo assume-se como sinóni-
talia Moderna, Roma, Istituto per l’Oriente C. mo de atitude religiosa dos não cristãos, e
A. Nallino, 1983; SCHWOEBEL, Robert, The a expressão “contra paganos” (ver Orósio
Shadow of the Crescent: the Renaissance Image of e Agostinho) simplesmente substitui as
the Turk (1453-1517), New York, St. Martin’s expressões usadas no passado: “contra os
Press, 1967; SETTON, Kenneth M., The Papacy gregos” (Taciano, Apolinário) e “contra
and the Levant (1204-1571), 3 vols., Philadel-
os gentios” (Justino).
phia, The American Philosophical Society,
1976; SOUSA, Ivo Carneiro de, “A expansão O termo latino “paganus” emerge, ao
otomana e a reacção portuguesa no reinado longo do séc. iv, na literatura cristã, para
de D. Afonso V: 1453-1481”, in FONSECA, designar os adeptos da religião romana
Luís Adão da et al. (coords.), Os Reinos Ibéricos em declínio. Paulatinamente, torna-se
na Idade Média: Livro de Homenagem ao Professor uma etiqueta da religião vencedora e, du-
Doutor Humberto Carlos Baquero Moreno, vol. ii, rante alguns séculos, serve para designar
Porto, Faculdade de Letras da Universidade toda a atitude contrária à prática cristã.
do Porto, 2003, pp. 567-579.
Esse termo latino encontra-se, primeiro,
Ricardo Ventura em duas inscrições funerárias do primeiro

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1396 Antipaganismo

(enquanto corpo civil) designaria o que


está de fora – entenda-se, da comunida-
de cristã; mas esta, como observa James J.
O’Donnell, parece ser uma interpretação
demasiado neutra.
Segundo este autor, o sentido original
pode muito bem ser o do contexto militar
(tal como foi usado por Tertuliano), mas,
durante muito tempo, pareceu um termo
demasiado sofisticado e não era usado cor-
rentemente; efetivamente não fez parte
do vocabulário cristão do séc. iii. As coisas
mudaram no século seguinte: o cristianis-
mo tornou-se a religião oficial do Império,
o credo dominante – e, por isso, em posi-
ção de poder zombar do paganismo –, e
aquele conceito sofisticado ganhou novos
S. Jerónimo (1632), significados, a partir da etimologia grega
de Jacques Blanchard. “pagos” (originalmente colina, que deu
origem ao latim “pagus”, burgo, aldeia).
terço desse séc. iv; depois, num passo de Note-se que a resistência ao cristianismo
Mário Vitorino (360) em que comenta a não acontecia apenas no campo, entre os
carta aos Gálatas e numa lei de 370 (17 rústicos, mas também na cidade, entre os
fev.), de Valentiniano I, recolhida no Có- senadores. Aliás, o final do séc. iv, quando
digo de Teodósio (438); e, finalmente, em se impõe o termo “paganus”, é o grande
vários escritores eclesiásticos e Padres da período da reação pagã entre a nobreza
Igreja, nomeadamente em Ambrosiaster, romana. O termo serviria então, como já
Paciano de Barcelona, Optato de Milevi, se referiu, para desacreditar esse novo pa-
Filástrio de Bréscia, Prudêncio e Agosti- ganismo eclético, e para zombar dele em
nho de Hipona. meios cristãos, onde pudesse haver a ten-
A origem do termo é objeto de uma tação da apostasia, mas é claramente evita-
grande discussão entre os especialistas. do quando se trata de persuadir os gentios
A explicação clássica, que encontramos em a aceitar o cristianismo (veja-se o caso de
Paulo Orósio e Isidoro de Sevilha – como Ambrósio e de Jerónimo, mormente na já
designação dos habitantes dos campos, mencionada tradução da Vulgata).
os rústicos, mais resistentes ao cristianis- Passado o período desse confronto, o
mo –, não parece ser muito convincente. termo “pagão” assume o sentido tradicio-
O termo podia então ter que ver com uma nal de gentios (gentes em Isidoro, Etimolo-
outra realidade, que encontramos referi- gias, viii, 10, 1-5), na linha da terminolo-
da já em Tertuliano, em que “paganus” gia bíblica: o hebraico “goyim” e o grego
designa a população civil, por oposição ao “ethne”. A tradução grega dos Setenta
corpo de militares: e assim, de um ponto mantém a distinção hebraica entre “am”,
de vista cristão, o pagão opor-se-ia à milícia o povo eleito [de Israel] (traduzido por
de Cristo (os cristãos). Mas há ainda, en- “laos”), e “goyim”, as nações [estrangei-
tre os estudiosos do séc. xxi, quem pense ras], ou os não judeus (traduzido por “eth-
numa via intermédia, em que “paganus” ne”). E essa distinção continua no Novo

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Antipaganismo 1397

Testamento: os cristãos são o novo laos,


“povo eleito” (At 15, 14; Rm 9, 24; 2Cor 6,
14ss.), o “novo Israel” de Deus (Tt 2, 14;
Hb 2, 17; 1Pd 2, 9). O seu comportamen-
to, portanto, deve ser distinto do dos ethne,
“gentios” (Mt 6, 32; Lc 12, 30). Estes não
conhecem Deus (1Ts 4, 5) e são arrastados
pelos ídolos (Rm 1, 18-32; 1Cor 12, 2);
também não conhecem a lei divina (Gl 2,
15) e caminham no vazio (At 14, 16; Ef 4,
17); ou seja, encontram-se fora do chama-
mento de Deus (Ef 2, 11ss.), embora pos-
sam vir a ser salvos (Mt 8, 10ss.; 15, 25),
porque Deus tanto é dos judeus como dos
gentios (At 15, 3; Rm 3, 29).
No final da Antiguidade, o paganismo
não tinha nada que ver com uma religião
não cristã, mas era sobretudo uma atitude Jupiter e Thetis (1811),
combatida pelos autores cristãos, e, até, pe- de Jean-Auguste-Dominique Ingres.

las autoridades imperiais (de um império


já cristão). Não havia, portanto, uma iden- ‑se unicamente a fazer aquilo que estivesse
tidade pagã reivindicada fosse por quem em contradição com a sua fé (nomeada-
fosse. O combate antipagão, porém, era mente a prática do politeísmo e o culto do
o culminar de um confronto começado imperador). De acordo com a sua argu-
muitos anos antes, no início da era cristã. mentação: não eram ateus, mas adoravam
Desde o início, os cristãos foram hosti- o verdadeiro Deus (ao qual já tinham che-
lizados como um grupo que representava gado os melhores filósofos gregos); não
uma ameaça aos valores e estruturas iden- eram infiéis ao Estado, antes o serviam e
titárias da cidade. Eram acusados de im- pagavam os seus impostos; não atraíam os
piedade e ateísmo porque não prestavam males à sociedade, bem pelo contrário,
culto aos deuses; eram tidos por infiéis ao rezavam ao Deus único por ela e colabo-
Estado porque recusavam o culto do im- ravam para o bem comum. Por tudo isso,
perador, não participavam nos banquetes eles protestam contra as leis iníquas que os
públicos e desprezavam os valores (tradi- perseguem e não só se dizem inocentes das
cionais) da família; e atraíam ainda todos imoralidades de que são acusados, como
os males, pois não sacrificavam aos deuses. arguem que o seu comportamento moral
O seu proselitismo era visto como uma é mais elevado que o dos seus acusadores.
ameaça à harmonia social e difundiam­ O pequeno período de paz para os cris-
‑se rumores contra eles – que praticavam tãos que ocorreu entre 260 e 303 foi um
sacrifícios rituais e antropofagia (referên- tempo crucial do ponto de vista religioso.
cia provável à eucaristia) – e fantasias de Grandes sectores da sociedade romana
índole sexual. Os apologistas cristãos dos foram ganhos para o monoteísmo radical
sécs. ii e iii esforçaram-se por demonstrar e a ética rigorosa do cristianismo. Com o
que os cristãos não eram diferentes dos Édito de Milão (313), Constantino traz
outros cidadãos, vivendo de acordo com o concurso do poder político para uma
as regras de vida dos demais e negando­ visão que já tinha ganhado grande parte

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1398 Antipaganismo

da população. E a cristianização da socie-


dade atinge o seu auge com a legislação
unificadora de Teodósio I, mormente com
o Édito de Tessalónica (380), que impõe
a ortodoxia niceana como religião do
Estado e proíbe qualquer manifestação
pública dos cultos politeístas. O grupo de
referência mudou: agora, o outro já não é
o cristão, mas o herético e o pagão (que,
por vezes, são também transformados em
vítimas). No auge da reação pagã, comba-
tida energicamente por Ambrósio na cor-
te imperial, surge um escrito poético de
um autor anónimo, Carmen contra Paganos Disco comemorativo do Imperador Teodósio I.
(c. 385/388), destinado a combater o prin-
cipal impulsionador dessa reação, Quinto No entanto, chegavam os bárbaros e era
Aurélio Símaco, parente de Ambrósio, preciso convertê-los. Nos séculos seguin-
perfeito de Roma (384 e 385) e cônsul tes, assiste-se a um novo tipo de combate
(391). Alguns anos mais tarde, após o sa- contra o paganismo, que oscila entre a to-
que de Roma (410), Paulo Orósio escreve lerância – insistindo no esforço evangeliza-
uma obra providencialista, onde acusa os dor, para levar os supersticiosos a abando-
pagãos de terem provocado aquele desas- nar as suas crenças e práticas (a perspetiva
tre: Historiae adversus Paganos (c. 416-418). de Martinho de Dume, mas também de
E, reagindo aos círculos pagãos que acusa- Gregório de Tours e Gregório Magno) – e
vam o cristianismo dos males que teriam a intolerância – defendendo que se deve
caído sobre Roma, Agostinho escreve De punir os idólatras, acabar com as suas festas
Civitate Dei contra Paganos (c. 426), onde e destruir os seus lugares de culto (como
refuta essas acusações (livs. i a v), retira pensava Cesário de Arles, e estava expres-
qualquer valor salvífico ao culto politeísta so na legislação decorrente de concílios
(livs. vi a x) e faz uma exposição sistemá- regionais). Mas não se mudam facilmente
tica da doutrina cristã (livs. xi a xxii). Po- os hábitos e as mentalidades! Segundo Le
rém, o triunfo do cristianismo, anunciado Goff, aquilo a que se convencionou cha-
por Agostinho, não está isento de intole- mar religiosidade popular medieval não é
rância: existem testemunhos de ativistas mais do que a permanência de elementos
cristãos que destruíram monumentos pa- pagãos no seio da cristandade: entre os
gãos em Roma, em Alexandria e na Síria. povos germânicos, as crenças em dragões,
A etapa subsequente da história do pa- sereias e bosques encantados; entre os la-
ganismo acontece com as invasões bárba- tinos, o culto das árvores, das fontes, dos
ras, que criaram alguma confusão no cris- lagos e dos rochedos; entre os campone-
tianismo triunfalista do início do séc.  iv. ses, a crença nas forças da natureza, no-
Uma vez vencida a reação pagã, Agosti- meadamente a chuva, e no poder das er-
nho difunde (em De Natura et Gratia, de vas e das plantas medicinais; continuam a
413/415, a mesma altura em que começa recitar­‑se antigas canções e palavras mági-
a escrever De Civitate Dei) a ideia de que cas, na busca de uma maior fertilidade das
praticamente todo o orbe havia recebido terras; consultam-se magos e feiticeiros;
o evangelho. procura­‑se o contacto com os mortos, etc.

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Antipaganismo 1399

O método mais eficaz para combater este


tipo de paganismo foi, certamente, o da
educação do clero (a criação de escolas ca-
tedrais e monásticas) e o estabelecimento
de paróquias rurais e mosteiros.
Excluindo essas formas de religiosidade
popular, é verdade que o paganismo não
interessou grandemente à Idade Média.
Tendo o evangelho sido pregado em todo
o mundo, havia apenas dois grupos real-
mente estranhos ao orbe cristão: o gentio
maometano, que era necessário combater,
pois constituía uma verdadeira ameaça à
cristandade; e o gentio selvagem, que in- Ulrico Zuínglio (1484-1531).
cluía o negro africano e asiático, tido por
anticristão. imediato usado: apelidavam-se de bárba-
O paganismo, contudo, reaparece no ros, índios e idólatras os que ainda não
Renascimento, com a recuperação dos au- tinham recebido o batismo e não gozavam
tores clássicos. Na literatura e na pintura, da civitas christiana dos descobridores. Na
há um novo contacto com o politeísmo apologética católica (de Las Casas a Lafi-
greco-romano. Na filosofia e na moral, tau), as religiões não cristãs são progressi-
sobretudo, há uma recuperação do modus vamente designadas como religiões pagãs
vivendi pagão (veja-se a influência que teve e primitivas.
o filósofo bizantino Jorge Gemisto Pletão Por volta de 1700, há um grande inte-
na Florença quatrocentista), sem que isso resse pelos estudos comparativos das re-
implique uma apostasia do cristianismo. ligiões (Pierre-Daniel Huet, Jean Venant
Dois exemplos claros desse processo são Bouchet, Charles Rollin e André Michel
Erasmo e Zuínglio, que praticamente san- Ramsay). Por outro lado, os filósofos deís-
tificam muitos dos antigos filósofos greco­ tas substituem as noções de paganismo
‑romanos de comportamento exemplar, e idolatria pela de politeísmo. Até então
como Sócrates, Cícero e Plutarco, cuja considerava-se o politeísmo pagão como a
moralidade e honestidade superariam as degeneração de um monoteísmo original.
dos cristãos. Como observou Walter Ben- Mas David Hume, no seu Natural History
jamin, em Origem do Drama Trágico Alemão of Religion (1757), opera uma mudança
(1925), a recuperação do modus vivendi radical de perspetiva: o politeísmo é mais
pagão tem mais que ver com a defesa de antigo (e mais tolerante), sendo depois
uma nova virtude (“uma era de liberdade substituído pelo monoteísmo, que é in-
profana na vida da fé” [BENJAMIN, 2011, tolerante; mas a história é caracterizada
64]), do que com um paganismo religioso por um fluxo e refluxo entre politeísmo e
propriamente dito. monoteísmo.
Durante a Modernidade, o paganismo Em geral, nos sécs. xviii e xix, o termo
é, enfim, transformado em religião. Esse “politeísmo” era aplicado predominante-
processo não foi imediato. No momento mente às religiões orientais, sendo estas
da descoberta de novos mundos, em que consideradas primitivas e pagãs (do ponto
se alargava consideravelmente o campo de vista cristão). Por causa desta conotação
dos gentios, o termo “pagão” não foi de negativa, o termo parecia inapropriado

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1400 Antipaganismo

para designar o sistema religioso greco-ro- de Portugal e Galiza) e o neopaganismo


mano, preferindo falar-se de fé dos Gregos lusitano, enquanto recuperação da antiga
ou religião dos Gregos. Nietzsche é um en- religião lusitana, assim como em rituais de
tusiasta da religião dos Gregos e não tem bruxaria.
problemas em assumir que o politeísmo Ligado ao paganismo está o conceito de
greco-romano constitui uma alternativa salvação. Desde o início do cristianismo,
viável, e histórica, ao cristianismo: os Gre- surgiram duas atitudes muito distintas face
gos tinham um sentimento nobre e eleva- à gentilidade (greco-romana): enquanto
do, porque concebiam e representavam alguns apologistas condenavam em bloco
os seus deuses como um espelho (ideal) toda a cultura gentia, considerando-a in-
deles próprios, enquanto o cristianismo, compatível com o cristianismo (Taciano,
pelo contrário, oprime e humilha os seus Teófilo e Hérmias Filósofo), outros havia
fiéis, pregando-lhes um bem-estar espiri- que estimavam positivamente muitos dos
tual trazido por intervenção de um salva- valores que os gentios tinham alcançado
dor divino. graças à razão (natural) e apresentavam
O neopaganismo do séc. xx é um con- o cristianismo como um complemento e
junto de movimentos religiosos (ou espi- uma coroação dos mesmos (Justino, Ate-
ritualidades) modernos(as) influencia- nágoras e Aristides). Orígenes iria mesmo
dos(as) pelas crenças pagãs pré-cristãs, mais longe nesta direção, afirmando que,
umas politeístas, outras animistas ou para além da razão natural, Deus também
panteístas (os exemplos mais conheci- auxiliava os gentios com a sua graça.
dos são a espiritualidade neodruísta, que No Ocidente, contudo, desenvolve-
busca a harmonia com a natureza, e o ram-se posições bem mais negativas. Ter-
movimento religioso wicca, de carácter tuliano, Lactâncio e Cipriano negavam­
sincretista, aliando esoterismo e magia). ‑se rotundamente a admitir que o culto
A característica mais evidente deste neo- idolátrico pudesse servir de instrumento
paganismo consiste na recusa, por vezes para levar os homens a Deus. Na contro-
virulenta, dos valores e dogmas mono- vérsia pelagiana, Agostinho não dá valor
teístas. Ao mesmo tempo, na sua origem algum à virtude pagã e atribui a origem
está uma fascinação e uma idealização dos deuses pagãos a uma inspiração de-
dos paganismos antigos e das religiosi- moníaca que levou os homens a divinizar
dades das sociedades tradicionais; acima os seus próprios antepassados ilustres
de tudo, o neopagão interessa-se pela (uma opinião difundida anteriormente
existência de lugares sagrados pré-esta- por Evémero). Neste sentido, Cristo está
belecidos, destinados à celebração de absolutamente “contra as religiões” (TA-
cultos, e de ciclos cósmicos, percebidos MAYO, 2003, 54). Assim se devia enten-
como um todo harmonioso que engloba der o axioma de Cipriano, “fora da Igre-
o próprio Homem. ja não há salvação” (Epístola 73, 21, 2),
Em Portugal, fala-se de um neopaga- reinterpretado por Fulgêncio de Ruspe,
nismo inspirado em Pessoa e nos seus he- e conservado durante a Idade Média com
terónimos (veja-se o “Programa geral do esta formulação: “não só todos os pagãos,
neopaganismo português”), mas que pare- mas todos os judeus, todos os hereges e
ce ser sobretudo um regresso aos Gregos, cismáticos que morrem fora da Igreja ca-
um pouco à maneira do que fez Nietzsche. tólica irão para o fogo eterno preparado
Haveria que procurar antes em movimen- pelo diabo e seus anjos” (De Fide ad Pe-
tos como o neopaganismo celta (Norte trum, 38, 79).

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Antipaganismo 1401

Os descobrimentos portugueses e espa- Introduction, Oxford, Oxford University Press,


nhóis vieram pôr em causa este estado de 2011; Dodds, E. R., Pagan and Christian in An
coisas. Ao contrário do que pensara Agos- Age of Anxiety, Cambridge, Cambridge Universi-
tinho, o evangelho não fora anunciado em ty Press, 1965; Errington, R. Malcolm, Ro-
man Imperial Policy from Julian to Theodosius, Cha-
todo o mundo: como se salvaria a imensa
pel Hill, The University of North Carolina Press,
maioria da humanidade, que não conhe-
2006; Goff, Jacques Le, “Il cristianesimo me-
cia Jesus Cristo e não pertencia à Igreja dievale in Occidente dal Concilio di Nicea alla
(duas condições indispensáveis para a sal- Riforma”, in Puech, H. C. (org.), Storia delle Re-
vação, segundo os teólogos)? Embora o ligioni, vol. iii, Roma/Bari, Editori Laterza, 1977,
Concílio de Trento não tenha dado uma pp. 1-120; Henrichs, Albert, “‘Full of gods’:
resposta a esta questão, a teologia pós­ Nietzsche on greek polytheism and culture”,
‑tridentina não a ignorou. Entre as várias in Bishop, Paul (org.), Nietzsche and Antiquity,
propostas avançadas (desde a de Vitória, Rochester, Camden House, 2004, pp. 114-­
que defendia que bastava o conhecimento -137; Künzel, Rudi, “Paganisme, syncré-
natural de Deus e a prática das boas obras, tisme et culture religieuse populaire au Haut
Moyen Âge: réflexions de méthode”, Annales.
até à de Ripalta, segundo a qual o auxílio
Économies, Sociétés, Civilisations, vol. 47, n.os 4-5,
sobrenatural da graça divina era expresso
1992, pp. 1055­‑1069; Levieils, Xavier, Contra
em todo o ato honesto da natureza huma- Christianos. La Critique Sociale et Religieuse du Chris-
na), a que teve maior sucesso foi a da cha- tianisme des Origines au Concile de Nicée (45-325),
mada fé implícita, defendida por Domin- Berlin/New York, Walter de Gruyter, 2007;
gos Soto e Andrés de Vega. Para evitar o McKenna, Stephen, Paganism and Pagan Survi-
pelagianismo (o velho fantasma agostinia- vals in Spain up to the Fall of the Visigothic Kingdom,
no), estes autores concebem que os bárba- Washington, The Catholic University of Ame-
ros podem salvar-se quando vivem os aspe- rica, 1938; O’Donnell, James J., “Paganus”,
tos mais relevantes da fé, mesmo se, por Classical Folia, n.º 31, 1977, pp. 163­‑169; PES-
ignorância, a não confessam. Deste modo, SOA, Fernando, “Programa geral do neopaga-
nismo português”, in PESSOA, Fernando, Pági-
o antigo axioma de Cipriano foi perdendo
nas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática,
importância, até ser praticamente aban- 1996, p. 224; Sánchez, Miguel A. Belmonte,
donado na segunda metade do séc. xx “Actualidad de la crítica de san Augustín al
(efetivamente, o caso Leonard Feeney, de paganismo en De Civitate Dei”, Espíritu, vol. 61,
Boston, em 1947, viria a mostrar a impos- n.º 144, 2012, pp. 313‑328; Tamayo, Juan
sibilidade de uma interpretação estrita da José, “El Dios cristiano y las otras religiones”,
antiga expressão de Cipriano), às portas Frontera, n.º 26, 2003, pp.  53­‑70; Vilano-
do Concílio Vaticano II. va, Evangelista, Historia de la Teología Cristiana,
vol. ii, Barcelona, Herder, 1989; Zagorin, Pe-
rez, How the Idea of Religious Toleration Came to the
Bibliog.: impressa: ÁNGEL, Lorenzo Martínez,
West, Princeton/Oxford, Princeton University
“Reflexiones sobre el paganismo y la cristiani-
Press, 2003; digital: Mourão, José Augusto,
zación”, Medievalismo, n.º 8, 1998, pp.  19­‑33;
“António Mora: uma perspectiva naturalista
BENJAMIN, Walter, Origem do Drama Trágico Ale-
da religião”, Triplov, s.d.: www.triplov.com/
mão, 2.ª ed., Belo Horizonte, Autêntica Editora,
coloquio_4/mourao.html (acedido a 30 out.
2011; Biethenhard, H., “Pueblo”, in Coe-
nen, Lothar et al. (orgs.), Diccionario Teológico 2017); “Vers un renouveau du néo-paganisme
del Nuevo Testamento, 3.ª ed., vol. 3, Salamanca, en Europe?”, Fragments sur le Temps Présents, s.d.:
Sígueme, 1993, pp. 437­‑445; Damboriena, http://tempspresents.com/2014/01/31/ste-
Prudencio, La Salvación en las Religiones no Cristia- phane-francois-vers-un-renouveau-du-neo-pa-
nas, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, ganisme-en-europe/ (acedido a 30 out. 2017).
1973; Davies, Owen, Paganism: A Very Short Porfírio Pinto

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1402 Antipapismo

Antipapismo àqueles discursos suscitados pelo segun-


do aspeto, na história portuguesa existi-
ram tensões entre aquilo que, no início
do séc. xxi, se designa como jurisdição
eclesiástica e a jurisdição civil, i.e., apesar
de ao longo dos séculos da Idade Média e
da Idade Moderna estas jurisdições esta-

P ortugal e a sua cultura nunca fo-


ram caracterizáveis amplamente por
aquilo que se possa considerar antipapis-
rem entretecidas entre si, existiram con-
junturalmente condições para conflitos.
É necessário, no entanto, distinguir entre
mo. Recorde-se, na sequência da plena um discurso anti e um discurso reformis-
integração do catolicismo português na ta: o primeiro é movido pelo interesse na
tendência de exaltação do primado do total negação ou no esvaziamento da ins-
papa consubstanciada no Concílio Vati- tituição do papado; o segundo é movido
cano I e da declaração dogmática da in- pelo desejo da correção do exercício do
falibilidade pontifícia, a importância da primado, supondo a verdade e autentici-
oração pelas intenções do sumo pontífi- dade da instituição.
ce na mensagem de Fátima, a ponto de Os autores europeus clássicos e fun-
estar na origem do acrescento das três dadores de um discurso antipapista
ave-marias finais à estrutura da oração são Marsílio de Pádua (c. 1275-1342) e
do terço do rosário. E considerem-se as Guilherme de Ockham (c. 1285-1347)
íntimas relações desenvolvidas ao longo que, aliás, se terão cruzado pessoal-
do séc. xx entre os papas, o santuário e a mente. Não cabendo aqui o significado
mensagem de Fátima, e sua repercussão mais amplo do labor intelectual destas
nas relações entre os católicos portugue- duas figuras, importa antes, e para com-
ses e o papa. preender o que das suas obras nos in-
Se se ensaiasse uma definição do dis- teressa neste tema, traçar muito breve-
curso antipapista, imediatamente nos da- mente o contexto histórico-eclesiástico
ríamos conta de que não há apenas um, em que elaboraram o seu antipapismo.
mas vários e substancialmente diversos Depois de a teocracia papal ter atingido
discursos, condicionados ou suscitados o auge com o pontificado de Inocên-
pelos diversos ângulos de onde se pode cio  III (1198-1216), o poder propria-
ver e verificar o exercício do primado do mente político que ele e os seus imedia-
papa de Roma: por um lado, o primado tos sucessores possuíam foi-se tornando
no magistério, i.e., no ensino e na preser- cada vez mais fonte de problemas, uma
vação da pureza da fé e da moral e, por vez que ia crescendo nos soberanos eu-
outro lado, o primado de jurisdição, i.e., ropeus, nomeadamente das grandes po-
no governo da Igreja universal ou, de ou- tências como a França e a Alemanha, a
tro modo, no irrenunciável direito de go- consciência e a apetência pela soberania
verno das Igrejas locais, concretamente nacional. Os dois pontificados paradig-
na eleição e nomeação dos bispos. máticos mais evocados pela historiogra-
Em Portugal, os discursos antipapistas fia sob esse ponto de vista são os de Bo-
suscitados pelo primeiro aspeto do pri- nifácio VIII (1294-1303) e de João XXII
mado do papa não tiveram uma expres- (1316-1334), ao longo dos quais se de-
são significativa, dada a plena integração senvolveram longos conflitos com o Rei
do país na Reforma católica. Já quanto de França, Filipe, o Belo, e com Luís

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Antipapismo 1403

da Baviera, respetivamente. Os motivos


iniciais de tais conflitos, embora es-
tes atingissem uma configuração mais
complexa, que se desenhou depois em
várias frentes, foram fundamentalmen-
te, no primeiro caso, o lançamento por
parte do poder civil de impostos sobre
o clero e as instituições eclesiásticas e,
no segundo, a disputa do controlo polí-
tico e jurisdicional da península Itálica.
O papa comportava-se como qualquer
outro soberano civil concorrente, na
sequência não só da perfeita teocracia
papal atingida cerca de um século antes,
mas também da soberania temporal do
papa sobre grande parte do território da Papa Inocêncio III (1161-1216).
península Itálica, assumida, com todas
as suas consequências, desde Pepino, o ção medieval do poder, eminentemente
Breve, e Carlos Magno – altura em que teológico­‑canónica, segundo a qual o
pela primeira vez, depois da queda do papa, como vigário de Cristo – fonte de
Império Romano do Ocidente, se rein- todo o poder  – e tendo em vista a voca-
terpretou com consistência a relação ção sobrenatural e eterna do homem,
entre um imperador para o Ocidente e detém, em última instância, a plenitude
o papa. O desgaste interno sofrido pelos da jurisdição espiritual que subsume em
papas nestes longos conflitos em que se si tudo o que através da jurisdição mate-
perderam e o afastamento do essencial rial é ordenado para a salvação eterna, de
do exercício do primado petrino pro- modo que o poder do imperador é uma
vocaram uma enorme erosão na estima participação do poder sacerdotal para as
pelo munus papal e, embora teológico­ matérias meramente civis. Esta participa-
‑dogmaticamente nunca se perdessem ção é querida por Deus (Rm 13, 1-6) e,
as referências, surgiram condições que, portanto, é obrigação do papa exercer a
embora não exclusivamente responsá- jurisdição material não por si, mas pelo
veis, propiciaram o aparecimento de imperador, sobre quem exerce uma auto-
um discurso não só reformista, mas ex- ridade espiritual, não material.
plicitamente antipapista, i.e., negador Mas a posição de Marsílio de Pádua
do papel do primado petrino na vida da tornava-se tanto mais antipapista quanto
Igreja. mais conciliarista se revelou, ao negar a
A obra decisiva de Marsílio de Pádua supremacia do papa na Igreja em favor
é Defensor Pacis, publicada em 1324, na do concílio geral formado por leigos e
qual defende a subordinação da Igre- pelo clero. A tentação do conciliarismo
ja ao Estado, uma vez que foi deste que continuou presente na Igreja até à defini-
aquela recebeu a jurisdição tanto espiri- ção dogmática da infalibilidade pontifícia
tual como temporal, como a história da do Concílio Vaticano I. Marsílio foi exco-
jurisdição do papa sobre os territórios mungado por João XXII, em 1327.
italianos demonstrava. Não pode haver Guilherme de Ockham era francis-
ideia mais radicalmente oposta à conce- cano e ensinava em Oxford. Em 1327,

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1404 Antipapismo

Latrão, de 1929, passaram a constituir o


Estado do Vaticano –, a desejável refor-
ma da Igreja dependia da pura e simples
eliminação do papado, e não da reforma
do mesmo em direção à sua “essenciali-
zação”, i.e., da sua recondução ao papel
tido como original de primado, um po-
der e um governo espirituais, doutriná-
rios e estritamente eclesiais.
Nos alvores do reino de Portugal, si-
tuados no período áureo do papado
medieval e da teocracia papal, os conhe-
cidos conflitos entre a Coroa (D.  San-
cho  I, D.  Afonso II e D. Afonso III) e
o alto clero, sempre de algum modo re-
lacionados com a isenção absoluta ecle-
siástica da jurisdição civil e a imunidade
dos bens eclesiásticos, significando, é
Rei Filipe, o Belo (1268-1314). certo, uma crescente afirmação do po-
der real à custa da disputa de algum es-
paço de poder ocupado pela Igreja, não
depois de acusado de heresia pelo Papa, significaram, no entanto, nem estavam
refugiou-se junto de Luís da Baviera e ainda reunidas as condições para isso,
acusou João XXII, igualmente, de he- a afirmação de um discurso antipapista
resia, sendo excomungado em 1328 propriamente dito. É habitualmente re-
e expulso dos Franciscanos em 1331. ferida, e certamente com acuidade, a im-
Combateu a posição e bula de João XXII portância na direção do desenvolvimen-
sobre a questão da pobreza dos Francis- to destes conflitos por parte da Coroa do
canos e da Igreja quando este revogou pensamento jurídico dos mestres chan-
a bula Exiit qui Seminat de Nicolau III, celeres do reino, desde o mestre Julião
de 14 de agosto de 1279 – que atribuía Pais (1160-1215) até aos seus sucessores
aos Franciscanos apenas o uso dos bens, Gonçalo Mendes e Vicente, certamente
reservando à Santa Sé a sua proprieda- formados na então nova escola jurídica
de – com a Ad Conditorem Canonum (8 de da nascente Univ. de Coimbra, fascina-
dezembro de 1322), proclamando os da pelo estudo do Direito romano. Ao
Franciscanos proprietários de todos os combate “ideológico” contra o poderio
seus bens móveis e imóveis; defendeu feudal eclesiástico que protagonizaram,
ainda a submissão do papa ao imperador não terá sido estranha a defesa, que pro-
e negou a instituição divina do papado e fessaram e que plasmaram na produção
a infalibilidade da Igreja. legislativa da chancelaria régia, da ori-
Para estes autores, considerando o uso gem diretamente divina do poder régio
que o papado fazia do seu poder espi- para, mediante isso, libertarem a monar-
ritual, contaminado por um poder em quia do cordão umbilical que a ligava ao
matérias meramente civis – a saber, a já poder espiritual centralizado no papa; e
referida soberania temporal sobre os seus fizeram-no em bases nunca como até en-
territórios que, depois dos Acordos de tão alcançadas. Todavia, isso não signi-

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Antipapismo 1405

ficou ainda uma visão antipapista como


solução dos problemas, tanto mais que
a maior parte dos conflitos foi resolvida
com intermediação do Papa e, a partir
de D. Dinis, com a Concordata de 40 Ar-
tigos aprovada por Nicolau IV na bula
Cum Olim de 7 de março de 1289.
Na época da crise mais aguda do pa-
pado, entre os sécs. xiv e xv, a cultura
portuguesa contribui para o debate com
o pensamento de Álvaro Pais (m. 1352),
franciscano galego que cursou Direito
em Bolonha e Teologia em Paris, que foi
bispo de Silves e penitenciário do Papa
João XXII. De entre as suas obras destaca-
Rei D. Sancho I (1154-1211).
se, para o nosso tema, o Status et Planctus
Ecclesiae, em que, já depois da morte do
Papa que servira, lamenta e critica os pe- a assumir e apurar no consulado do mar-
cados do governo da Igreja, referindo­‑se quês de Pombal. Foi na fundamentação
explicitamente a vários papas, mas aca- deste instituto e do seu significado mais
bando fundamentalmente por propor o amplo que se desenvolveu, ao tempo
perfil do papa revestido da pobreza evan- do marquês de Pombal, um discurso de
gélica que trará a desejada reforma à Igre- pendor fortemente antipapista, porque
ja. Combateu explicitamente as doutrinas regalista. Com efeito, a reforma política,
de Marsílio de Pádua e de Guilherme de jurídica e universitária empreendida por
Ockham. Intérprete exímio da conceção Sebastião José de Carvalho e Melo, afir-
medieval teológico-canónica do poder, madora de um nítido despotismo ilumi-
trata-se, portanto, de um reformista in- nado em Portugal, implicou a colocação
transigentemente defensor da potestade das relações entre o Estado e a Igreja de
espiritual universal do papa em todas as uma forma inevitável e duramente cer-
suas dimensões. ceadora da autoridade do papa sobre a
No entanto, desde o séc. xiv que o Igreja e os fiéis em Portugal em favor da
ordenamento jurídico português pre- autoridade do rei absoluto.
vê o instituto chamado beneplácito ré- No fundo, para que o rei tenha um
gio – exigência de autorização régia para poder absoluto sobre os súbditos, é ne-
a publicação e aplicação em Portugal de cessário que a autoridade do papa sobre
decisões do papa, mesmo que em matéria os fiéis seja controlada pelo rei. Regalis-
espiritual – que, assumindo vários perfis mo na península Ibérica, josefinismo na
concretos ao longo do tempo, nomea- Áustria, febronianismo (de Justinus Fe-
damente o que logo de início D. Pedro I bronius, pseudónimo de Nicolaus von
lhe deu, atendendo aos pedidos do povo Hontheim, 1701-1790) na Alemanha,
para que mediante tal instituto se solucio- galicanismo na França, são designações
nassem as contradições, por assim dizer, para essa mesma realidade, embora osci-
entre direito civil e eclesiástico, nunca lando entre dois caminhos possíveis para
deixou, em rigor, de manifestar o seu a alcançar: o episcopalismo, teorizado ini-
pendor essencialmente regalista que veio cialmente por Zeger Bernard van Espen

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1406 Antipapismo

(1646-1728) e assimilável a um concilia- antes e durante o corte de relações de


rismo radical; e o galicanismo ancestral Portugal com a Santa Sé, em 1760, por
de Filipe, o Belo, contra Bonifácio VIII, causa da pretensão do Governo de jul-
que se concretizará na Pragmática San- gar coletivamente os Jesuítas. Embora já
ção de Bruges, de 1438, de Carlos VII, e antes as suas posições sejam claramente
na Declaratio Cleri Galicani de Potestate Eccle- episcopalistas, é a partir, sobretudo, de
siastica, de 1682. A primeira defendeu o 1760 que, atendendo às circunstâncias,
direito da Igreja de França a administrar se dedica a defender, por um lado, a so-
as suas propriedades temporais de forma berania do rei sobre o clero português
independente do papa e dispensou-o de e, por outro lado, a autonomia dos bis-
prover os benefícios vagos; a segunda pos em conceder dispensas e resolver
explicitará que os reis não estão, em ne- causas reservadas à Santa Sé. As suas
nhum aspeto temporal, sujeitos ao po- obras principais são a Doctrinam Veteris
der espiritual, nem podem ser depostos Ecclesiae de Suprema Regum etiam Clericos
pelo papa, e que o papa está sujeito aos Potestate, que teve 2.ª edição em 1766; a
concílios gerais. Como se pode constatar, Tentativa Teológica em que Se Pretende Mos-
há sempre uma matéria-prima comum, trar Que Impedido o Recurso à Sé Apostólica
quer estando no início, quer no fim da Se Devolve aos Senhores Bispos a Faculdade
argumentação, a saber, o conciliarismo, e de Dispensar nos Impedimentos Publicos do
este, no contexto da teoria política, resul- Matrimonio, e de Prover Espiritualmente em
ta num antipapismo. Todos os Mais Casos Reservados ao Papa,
O regalismo em Portugal, como tam- também de 1766, e a Demonstração Teo-
bém o poder real absoluto, não foram lógica, Canónica e Histórica do Direito dos
inventados, como já se foi vislumbran- Metropolitanos de Portugal para Confirma-
do nas brevíssimas considerações acer- rem e Mandarem Sagrar os Bispos Suffra-
ca do beneplácito régio, no séc. xviii. ganeos Nomeados por Sua Magestade e do
O  regalismo perpassa tanto o bene- Direito dos Bispos de cada Provincia para
plácito régio como a autorização régia Sagrarem os Seus Respectivos Metropolita-
para a nomeação dos bispos, ou a Mesa nos, de 1769. As principais teses que se
da Consciência e Ordens de D. João III vislumbram por detrás destes títulos de-
(1532), ou ainda o Tribunal da Inquisi- pendem diretamente do contexto políti-
ção. E, já em 1640, é posta no Índice dos co da época, e pretendem elaborar uma
Livros Proibidos uma importante obra de teoria das relações entre a Igreja e o Es-
teorização regalista, o tratado De Manu tado no contexto do absolutismo régio,
Regia Tractatus in quo Omnium Legum Re- a afirmar-se num longo corte de rela-
giarum quibus, Regi Portugalliae in Causis ções com a Santa Sé. Embora as teses se-
Ecclesiasticis Cogniti Est ex Jure, Privilegio, jam mais diretamente regalistas do que
Consuetudine, seu Concordia, Sensus, & antipapistas, não deixam, exatamente
Vera Decidendi Ratio Aperitur, publicado por isso, de ser também antipapistas, ao
em Lisboa, em 1622-1625, de Gabriel sujeitar a hierarquia eclesiástica local
Pereira de Castro (1571-1632). Contu- ao rei, antes que ao papa, e ao definir o
do, o teórico oficial do regalismo pom- uso exclusivo da força pelo poder régio
balino com todas as suas incidências também para a defesa da religião, nem
antipapistas foi o Oratoriano P.e Antó- que seja contra o próprio papa. A eru-
nio Pereira de Figueiredo (1725-1797). dição quanto às fontes teológicas e ca-
A sua produção literária divide-se entre nónicas do trabalho deste teórico oficial

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Antipapismo 1407

do regalismo pombalino é inegável, e ao até então apenas se podiam referir anti-


agrado encontrado entre a hierarquia papismos relacionados com a dimensão
eclesiástica nacional corresponde, tam- jurisdicional do exercício do primado
bém, a significativa internacionalização romano pelo facto de Portugal se ter
das suas obras, que conheceram tradu- inserido completamente na reforma
ções em várias línguas europeias, tendo católica, também é verdade que o país
as que foram originalmente escritas em se encontrou inserido no processo am-
português sido vertidas para latim por plamente ocidental de algumas formas
parte dos círculos ideológicos afins. de antipapismo relacionadas com a
Juntamente com as obras de António dimensão magisterial do primado ro-
Pereira de Figueiredo, devem citar-se os mano. Com efeito, o persistente cum-
Estatutos da Universidade de Coimbra primento duma agenda legislativa ti-
de 1772, na sua parte programática do picamente motivada pela ideologia de
estudo da Teologia, como o outro grande género, a que se assistiu também em
texto regalista da trajetória cultural por- Portugal, criou entre nós, à semelhan-
tuguesa e, por isso, de sinal antipapista. ça do que aconteceu noutros países, a
O regalismo setecentista sobreviveu ascensão daquilo a que se pode chamar
entre nós não só no regime liberal saído o princípio anti-homofóbico que, onde
do processo revolucionário de 1820, mas se consagrou juridicamente, provocou
também na Primeira República, que con- numerosas situações de conflito liminar
cebeu a Lei da Separação da Igreja do Es- entre o cidadão e o católico no mesmo
tado, de 1911, mais como um modelo de indivíduo. Nessas situações, o católico
administração civil e estatal da religião do dividiu-se entre a fidelidade à própria
que como separação propriamente dita. consciência, cuja formação o liga ao
Nem mesmo a Concordata de 1940 está ensino da Igreja, de que o papa é o vi-
completamente isenta de regalismo, quer gilante supremo, e a obediência à auto-
no Acordo Missionário, quer nas condi- ridade civil. O princípio anti-homofóbi-
ções impostas para a nomeação dos bispos. co tendeu a não considerar tal conflito
A nova situação proporcionada, por neste ponto como objeto enquadrável
um lado, pelo Concílio Vaticano II e a sua no instituto da objeção de consciência,
visão sobre as relações entre a Igreja e o pelo que a tensão se tornou muito forte.
mundo, e o novo ordenamento constitu- Pôde, pois, neste contexto, falar-se num
cional saído da mudança de regime ope- antipapismo internacional – expresso,
rada a partir do 25 de Abril de 1974, por e.g., em alguma oposição ao estatuto de
outro, ditaram o afastamento, no final direito internacional da Santa Sé –, a que
do séc. xx, das tentações regalistas e da Portugal não esteve imune.
consequente aversão ao papel do papa,
na medida em que este possa interferir
nas relações entre o poder civil e todos Bibliog.: ARAÚJO, António de Sousa, “Bene-
os cidadãos. A Lei sobre a Liberdade Re- plácito régio”, in AZEVEDO, Carlos Morei-
ligiosa, de 2001, e a Concordata entre a ra  (dir.), Dicionário de História Religiosa de Por-
tugal, vol. i, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001,
Santa Sé e a República Portuguesa, de
pp.  209­‑211; BARBOSA, David Sampaio
2004, estabelecem o enquadramento ju- Dias, “Santa Sé e Portugal”, in AZEVEDO,
rídico para tal. Carlos Moreira (dir.), Dicionário de História
No começo do séc. xxi, foram colo- Religiosa de Portugal, vol. iv, Lisboa, Círculo de
cadas novas questões. Se é verdade que Leitores, 2001, pp. 155-164; CASTRO, Zília

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1408 Antiparacelsismo

Osório de, “Jansenismo”, in AZEVEDO, Car-


los Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa
Antiparacelsismo
de Portugal, vol. iii, Lisboa, Círculo de Leitores,
2001, pp. 7-10; Id., “Pombalismo”, in AZEVE-
DO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de Histó-
ria Religiosa de Portugal, vol. iii, Lisboa, Círculo
de Leitores, 2001, pp. 462-464; FELÍCIO, Ma-
nuel da Rocha, Portugal e a Definição Dogmáti-
ca da Infalibilidade Pontifícia. Teologia, Magistério
e Debate Público, Viseu, Instituto Superior de
Teologia, 2000; FERREIRA, Manuel Pinho de,
N ascido em Einsieden, perto de
Zurique, em 1493, Philippus Au-
reolus Theophrastus Bombastus von
A Igreja e o Estado Novo na Obra de D. António Hohenheim, de pseudónimo Paracelso,
Ferreira Gomes, Salamanca, Universidad Pon-
começou por trabalhar como aprendiz
tificia, Facultad de Derecho Canónico, 2004;
LEITE, A., “Concordatas”, in AZEVEDO, Car- nas minas de Villac, onde seu pai se esta-
los Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa belecera. Depois, principiou a sua forma-
de Portugal, vol. i, Lisboa, Círculo de Leitores, ção escolar como discípulo de Tritemius
2001, pp. 423-429; MARCOS, Rui Manuel (1462-1516). Ao longo de várias décadas,
de Figueiredo, A Legislação Pombalina. Alguns dedicou-se ao estudo da medicina, fre-
Aspectos Fundamentais, Coimbra, Almedina, quentando várias universidades e per-
2006; MARSÍLIO DE PÁDUA, Defensor Pacis,
correndo durante anos os mais diversos
org.  Alan Gewhirt e J. Nederman, New York,
Columbia University Press, 2001; MONDIN,
recantos do mundo, à procura do que ne-
Battista, Dizionario Enciclopedico dei Papi. Storia les se fazia nesta área. Apaixonado pelo
e Insegnamenti, Roma, Città Nuova Editrice, neoplatonismo, tornou-se um estudioso
1995; NICOLAU III, Exit Qui Seminat, 1279; da natureza na tentativa de bem enten-
NICOLAU IV, Cum Olim, 1289; ORLANDIS, der o corpo humano e de buscar as me-
José, Historia de las Instituciones de la Iglesia Cató- lhores soluções para as enfermidades que
lica, 2.ª ed., Pamplona, Ediciones Universidad tratava. Apaixonado pela Bíblia, devotou
de Navarra, 2006; PAIS, Álvaro, Estado e Pran-
profundo interesse ao estudo da astrolo-
to da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), Lisboa,
Instituto Nacional de Investigação Científica, gia, da alquimia, da cabala e da magia.
1983; RAMOS, Luís de Oliveira, “Regalismo”, Mas foi a medicina que ocupou o primei-
in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário ro lugar nas suas atividades de clínico e
de História Religiosa de Portugal, vol. iv, Lisboa, de professor, nos mais diversos locais em
Círculo de Leitores, 2001, pp. 96-99; SAN- que teve ocasião de ensinar durante toda
TOS, Cândido dos, “António Pereira de Fi- a sua vida.
gueiredo, Pombal e a Aufklärung”, Revista de
Homem do Renascimento, em vez de
História das Ideias, n.º 4, 1982, pp. 167-203;
SEABRA, João, A Igreja e o Estado em Portugal se apaixonar pela filosofia e pelas práticas
no Início do Séc. XX: a Lei da Separação de 1911, dos antigos, cedo se tornou um adversá-
Cascais, Principia, 2009. rio acérrimo das doutrinas de Aristóteles,
cuja autoridade combateu por todos mo-
Pedro Carlos Lopes de Miranda
dos e com a mais dura linguagem. Lutou
com igual radicalismo e intolerância con-
tra a medicina galénica e a astronomia
de Ptolomeu, menosprezando os colegas,
cujos livros e atos considerava serem ape-
nas cópias de Hipócrates e de Galeno,
indo a ponto de queimar publicamente
obras de Aristóteles, Galeno e Avicena, e

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Antiparacelsismo 1409

opondo-se com toda a veemência à circu-


lação de qualquer obra redigida em la-
tim, por entender que o ensino devia ser
ministrado em vernáculo, no seu caso, o
alemão.
No seu hermetismo, defendeu o prin-
cípio de uma rigorosa correspondência e
analogia entre o macrocosmo (o univer-
so exterior ao homem) e o microcosmo
(o universo do corpo humano), afirman-
do existir entre ambos uma relação cons-
tante e recíproca. Para ele, o verdadeiro
médico deveria encontrar a verdade ape-
nas e só nos dois livros divinos: a Reve-
lação (a Bíblia) e a criação (a natureza).
Na sua interpretação da criação, defen-
deu uma química apoiada nos tria prima,
o enxofre, o mercúrio e o sal, e uma me-
dicina centrada nos arcana, os arcanos, Philippus Aureolus Theophrastus
princípios incorpóreos eternos com o Bombastus von Hohenheim,
de pseudónimo Paracelso (1493-1541).
poder de transmutar os doentes. Na sua
intransigência à cultura dos antigos, ne-
gou qualquer valor à prática da medicina a substância dotada de vida orgânica,
galénica, defendendo em seu lugar uma embora aparentemente inerte, encerra-
medicina em que ao médico caberia pre- va uma grande variedade de potências
parar os arcana e em cada um deles des- curativas.
cobrir, utilizando todos os métodos quí- Em conformidade com o que apregoa-
micos possíveis, a força inata e vital que va, ele próprio se dedicou à preparação
neles está oculta, a sua quinta-essência, o de medicamentos sob a forma de extra-
seu archeus, único modo de combater as tos alcoólicos e de tinturas, com utiliza-
doenças. A sua missão seria prepará-los, ção do ópio, do enxofre, do mercúrio,
manuseando devidamente o calor com o do ferro, do arsénio, do sulfato de cobre,
calor, o frio com o frio, o húmido com o do sal; e aconselhava banhos repetidos
húmido, o seco com o seco, etc., na cer- com soluções minerais. Em Paragranum
teza de que o similar se cura pelo similar. (1530) expôs e legou aos seus discípulos
A química deveria, pois, ser iatroquímica, as suas crenças neste domínio, podendo
química espagírica, uma química votada esta obra ser tida como uma verdadeira
à cura das doenças. farmacologia.
Contra as práticas da medicina galéni- Para além da sua filosofia química, Pa-
ca, estava convencido de que quase todos racelso deu exemplo vivo de uma total
os minerais submetidos à análise podiam dedicação do médico aos seus doentes,
revelar-se muito eficazes, pois detinham movido pelo mais desinteressado espírito
grandes segredos curativos e vivificantes, de sacrifício, nas diversas terras e nações
permitindo levar a novas combinações por onde viajou. A sua fama foi em au-
perfeitamente eficazes para certas doen- mento, com as muitas e prodigiosas curas
ças mentais ou físicas. Notou que toda que se dizia terem sido por ele realizadas.

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1410 Antiparacelsismo

Esta fama cresceu ainda mais depois antigos, e defensores convictos da medici-
da sua morte, em Salzburgo, no ano de na de Galeno.
1541, com apenas 48 anos. Não tardou O mais virulento opositor de Paracelso
que a memória do homem controverso e das suas doutrinas foi talvez o seu com-
que fora em vida se transformasse numa patriota Thomas Liebler Erastus (1523­
crescente admiração pelo considerado ‑1583), o qual, num escrito publicado
grande arauto de uma nova química, a em Basileia, em 1572-1573, com o título
iatroquímica. No final do séc. xvi, existia Disputatione de Medicina Nova Philippi Pa-
já uma imensa literatura sobre a matéria racelsi, o rotulou de um “obscurantista
médica por ele defendida, e um século de estilo tenebroso e ideias confusas”
depois, eram já centenas os textos para- (ERASTUS, 1572, 2), refutando com
celsianos publicados. Muitos médicos toda a veemência a possibilidade de qual-
notáveis de França, da Alemanha e de In- quer reação química por ação do calor,
glaterra se confessaram seus seguidores, do mercúrio, do enxofre ou do sal. Na
sendo de destacar, entre muitas outras, sua opinião, Paracelso saberia muito bem
algumas das mais notáveis figuras da quí- que as ideias que defendia eram falsas e
mica dos sécs. xvi-xvii, como Jean Bap- por isso teria optado por apresentá-las de
tiste van Helmont (1577-1644) e François um modo confuso, usando uma lingua-
de la Boë (1614-1672), mais conhecido gem bárbara infernal e apresentando-se
por Silvius, na Bélgica e em França, Otto como inventor de coisas com que nada
Tachenius (c. 1610-1680), André Liba- tinha que ver. Nesta sua investida fron-
vius (1550-1616) e Johannes Hartmann tal contra Paracelso, Erasto atacou sem
(1563-1631) na Alemanha. É esta filoso- quaisquer contemplações o homem e as
fia química e o conjunto de práticas dela suas doutrinas, nomeadamente a teoria
resultante, com origem na vida e obra de dos tria prima, considerando que nada ti-
Paracelso, que constituem o chamado pa- nham de construtivo.
racelsismo. A este virulento ataque se juntou um
Não tardou, porém, que o paracelsismo grande número de médicos e farmaco-
se tenha tornado um foco de controvér- logistas ingleses ligados à chamada re-
sia. Para isso terá contribuído a circuns- volução puritana, numa luta acesa entre
tância de Paracelso ter sido, durante toda médicos e farmacêuticos, um conflito
a sua vida, e nos mais diversos locais por aberto entre galenistas e paracelsianos,
onde passou, uma figura muito polémica. em que estes eram acusados de serem
E terá ajudado, sobretudo, o progressivo partidários de Calvino, razão bastante
aparecimento de uma corrente de filoso- para não deverem merecer grande cre-
fia natural que questionava o carácter de dibilidade. Como paradigma da rejeição
experimentalismo e observação que Para- de Paracelso por muitos destes médicos
celso defendia. O facto de a abordagem e farmacêuticos, refira-se Richard Baxter
médica de Paracelso diferir tanto daquilo (1615-1691), que considerava Paracelso
que era aceitável até então estabeleceu uma prova da existência do demónio,
um enorme confronto entre os paracel- considerando-o um “conjurado bêbado
sianos e o sistema médico oficial em vi- que mantinha conversas com o demónio,
gor, um confronto tornado mais agudo a origem das suas doutrinas” (ORME,
pelo impacto provocado pelos humanis- 1830, XX, 294). Contra a farmacologia
tas, muitos deles grandes admiradores de Paracelso, defensora da utilização dos
dos tratados de fisiologia e anatomia dos minerais, nomeadamente o antimónio,

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Antiparacelsismo 1411

de então e resume deste modo as princi-


pais razões para o facto: “a química que
pode ser de tanto serviço à Medicina,
quando bem aplicada, a principiaram a
introduzir, errada e vergonhosamente
uns homens ignorantes, e entusiásticos,
de que o principal e cabeça foi Paracel-
sus; e com os seus fingimentos e enganos
tiveram quase pervertido e arruinado
de todo um sólido e verdadeiro Proje-
to. Mas não chegaram as suas quime-
ras a ter efeito; tanto pelas falácias que
experimentaram os que punham a sua
confiança neles; como pelas Obras de
diversos Homens famosos desse tempo,
(e do Príncipe deles todos, depois, o
Jacob de Castro Sarmento (1691-1762). ilustre Bacónio) que trouxeram a de-
monstração, que as Artes e Ciências, em
e defendendo o regresso à medicina ga- lugar de conjeturas, só se podem aumen-
lénica, se pronunciariam os influentes tar por próprias e exatas experiências, e
Jean Béguin (1550-1620) e Michael Sen- por conclusões verdadeiras e sólidas”
divogius (1566-1636). A uma tomada (SARMENTO, 1735, XLIV).
de posição de regresso a Galeno contra
Paracelso, juntar-se-ia o combate ao que Bibliog.: DEBUS, Allen George, “La philoso-
consideravam o antirracionalismo (&An- phie chimique de la Renaissance et ses rela-
tirracionalismo) de Paracelso, para quem tions avec la chimie de la fin du xviie siècle”,
a razão seria uma faculdade corrupta. in ROGER, J. (org.), VIIIe Congrès International
Sob a influência do empirismo raciona- de Tours – Sciences à la Renaissance, Paris, Vrin,
lista de Francis Bacon (1561-1626) e a 1973, pp. 274-281; DURAND, M. H., “En-
defesa crescente das teorias corpuscula- tre Paracelse et Lémery: la chimie française
au début du xviie siècle”, in ROGER, J. (org.),
res e mecanicistas, nomeadamente com
VIIIe Congrès International de Tours – Sciences à la
Pierre Gassendi (1592-1655), René Des- Renaissance, Paris, Vrin, 1973, pp. 261-272;
cartes (1596-1650) e, um pouco mais tar- ERASTUS, Thomas Liebler, Disputatione de Me-
de, John Dalton (1766-1844), a química dicina Nova Philippi Paracelsi, Basileia, G. Castel-
assumia novos caminhos – com Johann vetro, 1572; GOLDAMER, Kurt, “La contribu-
J. Becher (1635-1682) e Georg E. Stahl tion de Paracelse à la nouvelle méthodologie
(1659-1734), a teoria do flogisto, com An- scientifique et à la théorie de la connaissance”,
in ROGER, J. (org.), VIIIe Congrès International
toine L. Lavoisier (1743-1794), a teoria
de Tours – Sciences à la Renaissance, Paris, Vrin,
do oxigénio –, e afastava-se por completo 1973, pp. 229-243; ORME, W., The Practical
do sistema de Paracelso. Works of Rev. Richard Baxter, vol. xx, London, Ja-
O médico português Jacob de Castro mes Duncan, 1830; PAGEL, Walter, Paracelse:
Sarmento (1691-1762), na sua obra Ma- Introduction à la Médecine Philosophique de la Re-
teria Medica Physico-Historico-Mechanica, naissance, Paris, Arthaud, 1963; SARMENTO,
publicada em Londres, em 1735, dá-nos Jacob de Castro, Materia Medica Physico-Histori-
conta do antiparacelsismo que ia cres- co-Mechanica, London, s.n., 1735.
cendo no seio da comunidade científica António M. Amorim da Costa

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1412 Antiparlamentarismo

Antiparlamentarismo globais de extrema-esquerda e de extre-


ma-direita.
O antiparlamentarismo assemelha­
‑se ao antipartidarismo, mas não são
conceitos idênticos. O antipartidaris-
mo é uma reação à ideia de democra-
cia representativa, i.e., de pluralismo

O antiparlamentarismo é uma ideo-


logia política de desvalorização ou
rejeição do papel do Parlamento como
partidário, enquanto o antiparlamen-
tarismo é uma reação ao ideário par-
lamentarista, i.e., à ideia de que existe
órgão de representação da vontade ge- um órgão de representação da vontade
ral (Rousseau), entendida como a soma de todos. Está em causa, muitas vezes,
das diferenças das vontades particulares. não a rejeição da ideia da representa-
A definição de Rousseau está sujeita con- ção da vontade de todos, mas a aptidão
temporaneamente a muitas críticas, com dos Parlamentos para tal. Com efeito, a
o aparecimento de novas formas de ex- atividade parlamentar, feita de maiorias
pressão popular e de utilização do espa- e de noções como arco da governação
ço público, por vezes subversivas, mas é e alternância, tende, em alguns países,
ainda a versão normal do parlamentaris- como é o caso de Portugal, a excluir al-
mo vigente nos países ocidentais, como guns partidos das responsabilidades de
regime político ou forma de governo governo, sugerindo a impossibilidade
em que o Parlamento ocupa um lugar da representação de todos. Esta é cla-
central. ramente uma fragilidade das democra-
Há também antiparlamentarismo nas cias contemporâneas. Curiosamente,
atitudes pessoais, típicas nas socieda- algumas ditaduras antiparlamentaristas
des democráticas contemporâneas, e propõem-se representar todos.
que os meios de comunicação social Existe parlamentarismo desde que, na
amplificam, de crítica ao trabalho dos Idade Média, ganhou forma, em Inglater-
parlamentares, que é visto como inútil. ra, a ideia de um Parlamento com pode-
Estudos levados a cabo em vários países res próprios e exclusivos. Desde essa altu-
ocidentais mostram que parte significa- ra, existe também antiparlamentarismo,
tiva dos cidadãos tem uma perceção ne- defendido pelo rei e pela aristocracia.
gativa do funcionamento do Parlamen- Aristóteles teve o mérito de assina-
to como órgão da estrutura do Estado, lar que um regime político equilibrado
o que decorre não só da separação do deve incluir três elementos: monárquico,
Estado relativamente à sociedade, mas aristocrático e democrático. Rousseau
do enfraquecimento do próprio Estado, pensou o papel do Parlamento de forma
que não quer ou não pode difundir uma inovadora, mas o seu modelo não é o fi-
ideologia funcional geral. nal. O modelo parlamentarista rousseau-
As ideologias e os comportamentos crí- niano visou garantir que os elementos
ticos dos regimes parlamentares decor- monárquico e aristocrático não resvala-
rem do descontentamento das pessoas riam para a tirania porque existiria um
comuns com a política e traduzem-se, fre- órgão de representação da vontade de
quentemente, em inovações sincréticas todos, como espaço de debate e de deci-
de recuperação de velhas fórmulas, como são em matérias essenciais. Nesse ponto
no caso dos movimentos contestatários reside a diferença do parlamentarismo

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Antiparlamentarismo 1413

Cópia certificada da Magna Carta, 1215.

relativamente ao antiparlamentarismo. de antiparlamentarismo, assume novos


Praticamente todos os regimes políticos contornos. Os fenómenos de antiparla-
consagram estruturas de tipo colegial mentarismo verificam-se em todas as for-
subsumíveis na categoria de assembleia mas de governo referenciadas.
política. O antiparlamentarismo não im- Nos regimes parlamentaristas, não só é
plica a rejeição de uma figura desse tipo, competência do Parlamento a aprovação
nem a atribuição de competências rele- dos principais instrumentos de governo,
vantes às assembleias, porque todas elas com o orçamento à cabeça, como dele
têm competências políticas e/ou legislati- dependem os governos.
vas; significa, isso sim, a rejeição do papel Historicamente, o parlamentarismo é
primacial da assembleia política no seio o regime político ou sistema de governo
do próprio regime ou, melhor dito, a re- em que os ministros do Estado são res-
jeição da possibilidade de debate político ponsáveis perante o Parlamento como
e controlo de poderes. estrutura democrática. Podemos buscar
Percebe-se que falamos de parlamenta- as suas raízes na Magna Carta de 1215,
rismo não como forma de governo mas pela qual o Rei João de Inglaterra se
como regime político. Como forma de obrigou a respeitar as competências do
governo, o parlamentarismo opõe-se ao Parlamento em matéria de aumento de
presidencialismo e ao semipresidencia- impostos. Embora seja uma matéria con-
lismo. No plano formal, podemos en- trovertida, entende a maioria dos auto-
contrar estas formas tanto em democra- res que a Magna Carta visou combater os
cia como em ditadura. Porém, no plano poderes concentrados numa só pessoa
substancial, a ideia de parlamentarismo, (o monarca, por excelência) e o favore-
precisamente quando contraposta à ideia cimento das ideias do respeito pela lei,

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1414 Antiparlamentarismo

separação de poderes e constitucionalis- no ou do presidente da República – do


mo, típicos da democracia como regime que de muitas. Típica atitude antipar-
político. lamentarista teve a direção política do
Existem sucedâneos da palavra “parla- Estado Novo, em Portugal, no período
mento” a que subjazem diferentes pers- entre 1933 e 1974. A Constituição por-
petivas sobre a respetiva natureza e fun- tuguesa de 1933 estabeleceu um modelo
ção no sistema político. Os constituintes em que o presidente do Conselho de Mi-
portugueses de 1976, e.g., ao trabalharem nistros respondia politicamente perante
o texto da nova constituição democrática, o chefe de Estado, mas não perante a
discutiram e rejeitaram várias possibilida- Assembleia Nacional. E frequentes ve-
des de designação do órgão parlamentar, zes se pronunciaram os altos dignitários
até se fixarem na proposta de Assembleia do regime contra a possibilidade de, à
da República feita pelo constituinte Mota semelhança da Grã-Bretanha, se ter um
Pinto. Entre as designações rejeitadas Parlamento, por considerarem que tal
pelos constituintes portugueses estavam geraria discussões inúteis e infindas, e
“parlamento” e “assembleia nacional”. que o povo português não estaria cultu-
A rejeição da primeira designação teve ralmente preparado para uma democra-
que ver com a feição que quiseram dar cia de tipo parlamentar (exemplarmen-
à forma de governo, que, apesar de ser te, a democracia britânica, referida nos
democrático, não seria parlamentar, mas, discursos dos referidos agentes). O anti-
conforme as interpretações, semipresi- parlamentarismo é, pois, uma expressão
dencial ou de parlamentarismo raciona- típica de regimes não democráticos, que
lizado. Já a segunda designação foi rejei- normalmente tendem a evitar a palavra
tada por ser a designação constante na “parlamento”. Essa perspetiva está pre-
Constituição não democrática de 1933, sente em outros elementos da definição
embora seja ainda o nome da assembleia ou da prática das assembleias políticas
democrática francesa. dos sistemas políticos não democráticos,
As palavras não são unívocas, mas his- em que os membros das assembleias são
toricamente as estruturas de natureza escolhidos em eleições não competitivas
parlamentar são típicas de sistemas de ou segundo modos alternativos de de-
governo democráticos e representati- signação, e o seu mandato é de nature-
vos. Coisa diferente é admitir que pode za não representativa. Essas assembleias
existir antiparlamentarismo tanto em re- não têm poderes de fiscalização política
gimes autoritários como em regimes de- e a sua capacidade legislativa é reduzida
mocráticos. Os regimes autoritários são ou posta sob o domínio de iniciativa e
antiparlamentaristas porque rejeitam a capacidade legislativa do governo.
centralidade do Parlamento no sistema Como se referiu, também pode existir
político e, especialmente, na sua dire- antiparlamentarismo nos regimes demo-
ção. Essa rejeição ocorre de maneira di- cráticos. Para além das formas referidas,
ferenciada, segundo a forma de governo existe uma forma subtil, nas atitudes dos
adotada. Nos sistemas de governo mistos agentes políticos em relação ao papel do
ou semipresidenciais de feição autoritá- Parlamento. É o caso da desvalorização
ria, o governo é o órgão central e não intencional, nos discursos e na ação po-
depende politicamente da assembleia lítica, do papel do Parlamento em detri-
política. Mais facilmente depende de mento de outros órgãos, normalmente
uma só pessoa – e.g., do chefe do gover- do governo. Essa desvalorização pode

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Antiparlamentarismo 1415

ser ideológica, decorrente da existência (iniciativas legislativas próprias), como


de resíduos antidemocráticos nos agen- indireto (iniciativas legislativas delega-
tes que atuam em contexto democrático, das pelo Parlamento), beneficiando os
como no caso dos políticos que advogam governos do facto de terem uma infraes-
a suspensão da democracia, sobretudo trutura de apoio à feitura de leis muito
em períodos de crise, sugerindo que o mais eficaz do que os Parlamentos. A es-
Parlamento é um fator de instabilida- tes, sobram as competências parlamen-
de política, particularmente quando tares de fiscalização dos atos do executi-
não existe uma maioria parlamentar de vo. Aqui, o antiparlamentarismo nota-se
apoio ao governo e se impõe a tomada em atos subtis de dominação dos Par-
de decisões difíceis. Mas a desvaloriza- lamentos pelos governos, que chegam
ção do Parlamento também ocorre por a contratar empresas especializadas de
razões práticas, visando a afirmação de advogados para fazerem as leis, o que se
uma liderança política. Essa situação repercute na perceção negativa que as
pode ocorrer em regimes semipresiden- pessoas comuns têm do pessoal político,
ciais ou de parlamentarismo racionali- em especial dos parlamentares.
zado, em que os governos respondem Nas democracias contemporâneas, o
perante os Parlamentos num quadro de maior adversário dos Parlamentos é a
repartição de competências legislativas opinião pública, conforme comprovam
entre o Parlamento e o governo. A ten- muitos estudos de opinião. Como par-
dência, neste caso, é para que o líder te dos processos de comunicação de
do governo (ou os líderes dos partidos massas, as transformações tecnológicas
que suportam parlamentarmente o go- apontam para formas alternativas de
verno) procure controlar o Parlamento, democracia direta que tendem a desva-
tornando-o uma extensão do governo. lorizar o papel dos Parlamentos e que,
Para esse efeito, a liderança do partido no limite, podem pôr em causa não só o
(e do governo) procura escolher líderes modelo, mas a própria democracia.
parlamentares que lhe sejam obedientes
e com propensão a representarem mais
os partidos de que são membros do que Bibliog.: FERREIRA, José Medeiros, Portugal
os eleitores que os escolheram. em Transe, in MATTOSO, José (coord.), Histó-
Nos regimes democráticos contem- ria de Portugal, vol. viii, Lisboa, Estampa, 1993.
porâneos, o Parlamento, por definição, João Relvão Caetano
ocupa uma posição de destaque na
hierarquia constitucional, gozando de
três tipos de competências: políticas,
legislativas e de fiscalização. Todas estas
competências são importantes, mas, nos
finais do séc. xx e inícios do séc. xxi,
salvo nos regimes presidencialistas, as
competências políticas e de fiscalização
tornaram-se preponderantes. Nos regi-
mes semipresidenciais e parlamentares,
verificou-se um aumento das competên-
cias legislativas dos governos em relação
aos Parlamentos, tanto de modo direto

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1416 Antipartidarismo

Antipartidarismo era o partido dominante. Curiosamente,


na Polónia, foi um dos partidos-satélite
do Partido Comunista – o Partido dos
Camponeses – que, em 1989, na sequên-
cia das eleições parcialmente democrá-
ticas para o Senado e a Câmara Baixa,
que o regime comunista, sujeito a fortes

E xistem duas aceções principais de an-


tipartidarismo: como ideologia con-
trária à ideia de pluralismo partidário; e
pressões internas e externas, foi forçado
a aceitar, constituiu uma maioria política
com o Solidariedade, o autoproclamado
como ideologia e posicionamento políti- sindicato de resistência ao regime, lidera-
co e cívico contrários ao monopólio dos do por Lech Walesa, que, no advento da
partidos políticos, em matéria de repre- nova ordem, fora legalizado como parti-
sentação da vontade popular. do político.
Na primeira aceção, o antipartidarismo Nos regimes autoritários de direita tam-
é uma ideologia política antidemocrática bém encontramos formas de antipartida-
e antiliberal, que não admite a existência rismo juridicamente institucionalizado.
de partidos políticos e se afirma contra A Constituição portuguesa de 1933, e.g.,
as suas práticas. Este tipo de antipartida- consagrava a organização corporativa do
rismo existe tanto em regimes políticos Estado, remetendo o seu art. 85.º, § 1.º,
democráticos como em regimes políticos para lei especial a determinação dos re-
não democráticos. Na segunda aceção, o quisitos de elegibilidade dos deputados,
antipartidarismo consubstancia um posi- a organização dos colégios eleitorais e
cionamento orientado para a renovação o processo de eleição dos membros da
do sistema político e, em particular, do Assembleia Nacional. Às eleições gerais
sistema partidário, visando a renovação para a Assembleia Nacional podiam con-
das instituições políticas e dos partidos, correr forças políticas organizadas, sem o
assim como a sua abertura à sociedade. estatuto e o nome de partidos, como foi
Existem regimes políticos autocráticos o caso da União Nacional (UN), braço
que proíbem a existência de partidos político do regime. No art. 1.º dos seus
políticos e sujeitam a direção do Estado estatutos, aprovados pelo dec. n.º 21.608,
a um partido único ou dirigente, con- de 20 de agosto de 1932, podia ler-se que
sagrando um antipartidarismo juridica- “a União Nacional é uma associação, sem
mente institucionalizado. Foi o caso da carácter de partido e independente do
União Soviética até ao seu desmembra- Estado, destinada a assegurar, na ordem
mento, em 1991, e o caso de Cuba, ainda cívica, pela colaboração dos seus filiados,
nos começos do séc. xxi, ambos regimes sem distinção de escola política ou de
comunistas. Segundo este modelo, até confissão religiosa, a realização e a defesa
pode existir mais do que um partido, des- dos princípios considerados nestes esta-
de que a direção política do Estado caiba tutos, com pleno acatamento das institui-
apenas a um deles, que coordena as ativi- ções vigentes”.
dades dos demais. Foi o que se passou em Aprovada a sua constituição e as suas fi-
sistemas políticos como o alemão orien- nalidades por lei, ou seja, por vontade da
tal e o polaco, na esfera de influência da elite política dirigente, verificou-se, pelo
União Soviética, até finais da déc. de 80 rol das responsabilidades que lhe foram
do séc. xx, em que o Partido Comunista atribuídas, que esta associação cívica era

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Antipartidarismo 1417

uma força política ao serviço do Estado


e do regime vigente. Os estatutos não
deixavam margem para dúvidas na defi-
nição, quer dos meios de que dispunha
a associação, quer dos princípios funda-
mentais que esta aceitava e se compro-
metia a propagar e defender ao serviço
do Estado e do regime (arts. 3.º e 5.º dos
estatutos da UN), o que fez dela o sucedâ-
neo de um partido único. Na presidência
da comissão executiva da UN estiveram
sempre políticos experimentados afetos
ao Estado Novo. No início, esteve o pró-
prio Salazar, ideólogo e chefe do regime;
posteriormente, estiveram homens da
D.R.

sua confiança.
Marcelo Caetano (1906-1980).
Antipartidário se afirmou sempre o dou-
trinador e político Marcelo Caetano, que
sucedeu na chefia do Governo a Salazar, nómico e Social (SEDES), cujos estatutos
em 1968. O antipartidarismo foi a fórmu- foram publicados no Diário do Governo
la alternativa à democracia pluripartidá- nesse mesmo dia, e que se veio a revelar
ria que Marcelo Caetano definiu para uma influente associação cívica. Consti-
participar no processo político e exercer tuída por profissionais comprometidos
o poder. Ele, que fora presidente da UN, com a mudança do regime, a SEDES, que
promoveu a sua substituição pela Acção continuou a existir, distinguia-se, de fac-
Nacional Popular (ANP), que dizia não to, da ANP, que fora criada para apoiar
ser democrática, mas que era nova. Os es- politicamente o regime e participar em
tatutos da ANP foram aprovados a 28 de eleições. A organização centralizada e a
outubro 1970, quando Marcelo Caetano sua dependência do presidente do Con-
já era presidente do Conselho, por dois selho, a ausência de competitividade
despachos dos ministros do Interior e do eleitoral e a restrição dos direitos da opo-
Ultramar, publicados no Diário do Gover- sição tornaram a ANP mais do mesmo e
no. Os estatutos da “nova” associação fo- continuaram a garantir, não obstante as
ram aprovados com base no disposto no intenções de abertura do regime, o mo-
art. 2.º do dec.-lei n.º 39.660, de 20 de nopólio eleitoral da chamada situação
maio de 1954, que regulava o modo de sobre a oposição.
criação e funcionamento das associações Os sistemas antipartidários têm em
cívicas. Segundo os estatutos, a ANP era comum a negação das liberdades funda-
uma “associação cívica destinada a pro- mentais. Quando muito essas liberdades,
mover a participação dos cidadãos no es- como a liberdade de associação ou de
tudo dos problemas da Nação Portuguesa expressão, são liberdades formais ou for-
e a prática das soluções mais condizentes temente mitigadas por políticas repres-
com os princípios fundamentais que pro- soras. A ideia de democracia liberal, por
fessa” (art. 1.º). Nada que, aparentemen- contraponto ao antipartidarismo, con-
te, distinguisse nos seus fins a ANP da substancia a exigência de consagração
Associação para o Desenvolvimento Eco- constitucional ou legal de um conjunto

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1418 Antipartidarismo

de liberdades fundamentais, designada- representação pelos seus militantes, com


mente a liberdade de associação. É da a abertura de candidaturas e votação a ci-
liberdade de associação que emerge não dadãos independentes.
só a possibilidade, mas a obrigatoriedade Este antipartidarismo é diferente do
de existência de partidos políticos como anterior, tendo concretizado, com suces-
condição de existência de uma democra- so, algumas das suas pretensões em vá-
cia. A maior parte das constituições políti- rios sistemas políticos, se bem que com
cas democráticas estabelece o monopólio alcance limitado. Em Portugal, é possí-
da ação política, pelo menos em determi- vel existirem candidaturas independen-
nados tipos de eleições, como sejam as tes nas eleições autárquicas. Mas conti-
eleições parlamentares, aos partidos po- nua vedado o acesso de personalidades
líticos, cujas listas podem incluir militan- independentes – a não ser através dos
tes do próprio partido ou personalidades partidos políticos – a eleições de âmbito
independentes. nacional, regional ou europeu. Este tipo
Também existe antipartidarismo em de antipartidarismo não visa a consagra-
democracia quer nos partidos que pro- ção de um sistema de partido único ou a
gramaticamente são contra o pluralismo eliminação do pluripartidarismo, sendo
partidário, quer, sobretudo, nos com- antes uma crítica ao funcionamento dos
portamentos dos dirigentes partidários partidos e uma via para o seu aperfeiçoa-
ou das pessoas comuns que destacam mento. Estes comportamentos resultam
os malefícios provocados pela ação par- da descrença das pessoas no funciona-
tidária. Em ambos os casos, os partidos mento da democracia e, em particular,
são acusados de promoverem o cliente- dos partidos políticos, que se traduz no
lismo e a distribuição de lugares pelos abaixamento da participação dos cida-
seus seguidores, assim como de promo- dãos nos atos eleitorais. Esse facto é mais
verem o afastamento dos melhores da evidente em sistemas, como o portu-
vida política, por indisponibilidade des- guês, em que não existe voto obrigató-
tes para participarem nos processos de rio, embora também não esteja provado
cooptação e decisão político-partidária que  o voto obrigatório seja a solução
de satisfação dos interesses particulares para o problema da falta de participação
em detrimento do interesse geral. É o política e a renovação dos partidos. Este
domínio da chamada partidocracia ou antipartidarismo coloca muitos desafios
plutocracia. aos decisores políticos, que são chama-
Os defensores desta posição não são dos a pensar e a não ter receio de mu-
necessariamente contrários à existência dar as regras do acesso ao jogo político
de partidos políticos, mas sim contrários nos sistemas em vigor, ou a mudar os
à ação dos partidos existentes ou ao seu próprios sistemas político e de governo,
monopólio no acesso aos atos eleitorais dando, e.g., maior peso à democracia di-
e, por isso, defendem desde a regenera- reta ou participativa, em detrimento da
ção dos sistemas partidários e a aposta em democracia representativa.
formas de democracia direta à possibili-
dade de candidaturas de listas ou perso-
nalidades independentes à generalidade Bibliog.: BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal
dos atos eleitorais. À falta de melhor, pro- ao Estado Social, 8.ª ed., São Paulo, Malheiros
põem, no seio dos próprios partidos, o Editores, 2007; CAETANO, Marcelo, Minhas
abandono do monopólio dos lugares de Memórias de Salazar, 4.ª ed., Lisboa, Verbo,

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Antipastoralismo 1419

2006; CUNHA, Paulo Ferreira da, Repensar a


Política. Ciência & Ideologia, 2.ª ed., Coimbra,
Antipastoralismo
Almedina, 2007; Id., Pensar o Estado, Lisboa,
Quid Juris, 2009; FREIRE, André et al., Repre-
sentação Política em Portugal. Inquéritos e Bases
de Dados, Lisboa, Sextante, 2009; FREIRE,
André, e VIEGAS, José Manuel Leite (orgs.),
Representação Política. O Caso Português em pers-
pectiva Comparada, Lisboa, Sextante, 2009;
FREIRE, André et al. (orgs.), Portuguese Jour-
nal of Political Science and International Relations.
C amilo Castelo Branco, nas Novelas do
Minho, no prefácio à novela “O  co-
mendador”, e a pretexto da leitura de
Cidadãos, Parlamentos e Representação Política. um livro (escrito e oferecido por um seu
Perspectivas, n.º 5, 2011; FREIRE, André, e
amigo) sobre o Minho, realiza um iróni-
BELCHIOR, Ana, “Ideological representation
in Portugal: MPs­‑electors linkages in terms co exercício de escrita criativa que põe
of left-right placement and substantive mea- a descoberto duas formas radicalmente
ning”, Journal of Legislative Studies, vol. 19, n.º 1, opostas de ver e escrever a paisagem rural
2013, pp. 1­‑21; MALTEZ, José Adelino, O Pro- minhota: a do seu amigo, que viu de pas-
blema do Estado, 2  vols., Lisboa, Academia sagem um Minho bucólico; e a sua, o Mi-
Internacional da Cultura Portuguesa, 1991; nho íntimo, menos conforme à pastoral
MEIRINHO, Manuel, Participação Política e De-
de tradição greco-latina, fortemente im-
mocracia, Lisboa, Instituto Superior de Ciên-
cias Sociais e Políticas, 2004; Id. et al. (orgs.),
pressa na matriz cultural do Ocidente ao
Revista de Ciências Sociais e Políticas. Candidatos, longo dos séculos. Depois de Alexandre
Eleitores e Campanhas Eleitorais: as Eleições Legis- Herculano com O Pároco de Aldeia (1851),
lativas de 2009 em perspectiva, n.º 23, 2011; MI- foi Camilo quem convocou a vida rural
RANDA, Jorge, Fontes e Trabalhos Preparatórios para a centralidade das letras portuguesas
da Constituição, 2 vols., Lisboa, INCM, 1978; e fê-lo, não só mas também, em resposta
PEQUITO, Conceição et al., “Parliamentary ao novo olhar realista-naturalista sobre a
representation in Portugal: deputies’ focus
realidade em geral e o campo em parti-
and style of representation”, Portuguese Journal
of Social Science, vol. 11, n.º 2, 2012, pp.  99­ cular; o mesmo olhar que preside ao pro-
‑117; REYBROUCK, David van, Against Elec- cesso de desmantelamento da falsa éclo-
tions: the Case for Democracy, London, Random ga que, em A Cidade e as Serras (1901), de
House, 2016; ROSENBLUM, Nancy L., Mem- Eça de Queirós, tanto perturbaria Jacinto,
bership and Morals: the Personal Uses of Pluralism quando confrontado com a existência de
in America, Princeton, Princeton University fome, pobreza, doença e tristeza entre as
Press, 1998; Id., Good Neighbors: the Democracy
famílias trabalhadoras das suas próprias
of Everyday Life in America, Princeton, Princeton
University Press, 2016. terras. Camilo e Eça testemunham essa
outra ruralidade – a antipastoral –  que,
João Relvão Caetano numa miríade de gradientes, desde Bal-
zac (Les Paysans, 1855) e de Zola (La
Terre, 1887) aos nossos dias, seria roman-
ceada por muitos escritores, nacionais e
estrangeiros. Na literatura portuguesa,
da abordagem mais sentimental de Júlio
Dinis e de Trindade Coelho ao horror
rural de Fialho de Almeida e de Teixeira
de Queirós, contam-se, entre os mais co-
nhecidos: Rodrigo Paganino, Júlio César

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1420 Antipastoralismo

Machado, o conde de Ficalho, Alberto e.g. em Irene Lisboa (Crónicas da Serra,


Braga, Abel Botelho, Guilherme Gama, 1958), Almeida Faria, Rentes de Carvalho
Júlio Brandão, etc. A pujança da ênfase (O Rebate, 1973), em títulos dos jornalis-
realista-naturalista na representação fiel tas Mário Ventura e José Viale Moutinho
do mundo rural decresceria, mas não se (Romanceiro da Terra Morta, 1988), na obra
esgotaria, com a viragem para o séc. xx, (ainda de pendor fortemente ideológico)
sendo que, nas primeiras décadas, uma Amor numa Cama de Cardos (1990) de An-
fértil literatura humanista e de realismo tónio Colaço, e na perspicaz captação do
social crítico contou com nomes tão im- viver rural português pelo escritor holan-
portantes como Manuel Teixeira Gomes, dês Gerrit Komrij (Atrás dos Montes, 1997,
Raúl Brandão, Aquilino Ribeiro (a quem e Um Almoço de Negócios em Sintra, 1999).
se atribui a invenção da literatura regio- O apetite pela ruralidade não idílica res-
nalista portuguesa), Ferreira de Castro, surge, no início de séc. xxi, numa versão
João Araújo Correia, Vergílio Godinho, poética e agridoce com José Luís Peixoto
José Marmelo e Silva (com a novidade (Morreste-me, 2000; Cal, 2007; Livro, 2010),
das temáticas da sexualidade adolescente na escrita distanciada e enxuta de Tiago
e da homossexualidade) e Miguel Torga, Patrício (Trás-os-Montes, 2012) e como
que, nos seus diários, contos rurais e num poderosa sinédoque de um país em de-
romance como Vindima (1945), se revela cadência com Madrugada Suja (2013) de
como um dos autores que mais e melhor Miguel Sousa Tavares.
escreveu sobre a ruralidade trágica. A len- A literatura rural portuguesa – que,
te distópica sobre o mundo rural atingi- com algum desprezo, e confusamente,
ria o auge do seu uso a partir do final da tem sido apodada de rústica, campesina
déc. de 30, com o movimento neorrealis- ou regionalista – está longe de se esgotar
ta e seus cultores, de entre os quais: Alves nas descrições pitorescas da paisagem
Redol, Manuel da Fonseca, Afonso Ribei- rural, na dimensão folclorista do casti-
ro, Fauré da Rosa, o primeiro Vergílio ço popular e na observação etnográfica
Ferreira, Soeiro Pereira Gomes, Carlos dos hábitos e costumes rurais (formas de
de Oliveira, o Fernando Namora do ciclo vestuário, habitação, superstição, lingua-
rural, José Cardoso Pires, Urbano Tavares gem, tarefas agrícolas, divertimentos, en-
Rodrigues, Mário Braga, Garibaldino de tre outras). Trata-se de uma vasta literatu-
Andrade, Antunes da Silva e Papiniano ra que, pela ficção – em novelas, contos,
Carlos. Independentemente da preferên- romances, teatro e crónicas –, insufla vida
cia pessoal de cada autor por regiões es- em personagens rurais outrora desconsi-
pecíficas do país, os autores neorrealistas deradas enquanto objetos de interesse
exploram com grande afinco a descrição literário e artístico, e fá-lo explorando
dos trabalhos agrícolas e a extenuação a importância da ação do meio sobre a
humana deles resultante, e denunciam fisiologia e a psicologia dessas persona-
sobretudo o peso da dimensão socioeco- gens, nos contextos quer das relações
nómica na perpetuação da dicotomia ex- inter-humanas (familiares e comunitá-
ploradores-explorados. rias), quer da relação entre o Homem e
Na sequência da ressaca de um neorrea- natureza, da qual fazem parte decisiva os
lismo marcadamente rural, a literatura animais. As representações menos bucóli-
portuguesa tendeu a urbanizar-se, passan- cas no quadro dessas relações são recor-
do o campo a ser tema de eleição menos rentes e alimentam interessantes leituras,
frequente, e encontrando-se aqui e acolá, entre elas as que giram em torno do as-

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Antipastoralismo 1421

síduo tópos do campo como um espaço pla, com grande regularidade, a dimensão
intrínseca e estruturalmente violento. É sexual, muitas vezes instintiva e bestializa-
comum a violência irromper de um fa- da, e com desenlaces quase sempre dra-
talismo telúrico que aprisiona as pessoas máticos para as mulheres, particularmen-
à terra e atingir com maior gravidade as te as que entregam a sua honra a amores
que ambicionam fugir a essa subjuga- impossíveis e a fins trágicos, como a pros-
ção claustrofóbica, feito que não está ao tituição (“Vale de Crugens” de Mário Bra-
alcance de todas – tal é o caso da Maria ga), a loucura (“A maluca d’a dos corvos”
Campaniça de Aldeia Nova (1942), de Ma- do conde de Ficalho) e o suicídio (“Na
nuel da Fonseca, que anseia e receia que- aldeia” de Ramalho Ortigão). Mas nem
brar as correntes que a prendem à aldeia todas são filhas da desventura: se algumas
que a veria nascer e morrer. Num ponto mulheres entram na almejada domestici-
oposto, estão as personagens que nutrem dade do lar, outras, mais despudoradas, fi-
uma ligação obsidiante pela terra, numa cam-se pelos episódios de sexo casual, que
luta diária que extenua umas e outra, e por vezes instigam, sem grandes remorsos
que vai mantendo o Homem no limite da da consciência (“Os novilhos” de Fialho
sobrevivência, quando simplesmente não de Almeida; “A revelação”, “A  festa” e
o aniquila. A aldeia, onde todos se conhe- “Prenha dum homem” de Miguel Torga).
cem e se cruzam, é um espaço físico e Porém, quando iniciadas na maternida-
mental invariavelmente disfórico – triste, de, podem ser mães extremosas (“Mater
negro, escuro, frio, sujo – onde não pri- dolorosa” de Trindade Coelho) ou péssi-
mam as virtudes morais: a inveja (“A luz mas mães (a Gertrudes de “A  ponte do
elétrica” de João Araújo Correia), a ma- Cunhêdo” de Abel Botelho), e podem
ledicência (“Malandro” de Fernando Na- ter filhos bons e responsáveis, ou ingratos
mora) associada à mentira (com conse- (“O retrato dos pais” de Alberto Braga),
quências trágicas em “Manuel Maçores” ou até mesmo parricidas (“O sexto filho”
de Trindade Coelho), a avareza (Pároco de de Vergílio Ferreira). É assinalável o ape-
Aldeia de Alexandre Herculano) e as su- tite sensacionalista da antipastoral pela
perstições (“Bruxedo” de Miguel Torga). narração da violência que também atinge
Por isso, fugir do campo é fugir de um as infâncias e as velhices rurais (“A velha”
fim de mundo, migrando para a cidade de Fialho de Almeida).
ou emigrando: uma fatalidade que se tor- A literatura rural portuguesa é uma
naria uma das constantes mais importan- chave de leitura fundamental para o en-
tes da literatura rural portuguesa. tendimento da história cultural e social
A violência também tem origem fre- de Portugal, especialmente quando escri-
quente em vícios e comportamentos mas- ta em negativo – o número, a variedade e
culinos, como o alcoolismo (o Zé P’reira a significativa qualidade dos textos literá-
de A Morgadinha dos Canaviais de Júlio rios produzidos à luz de uma antipastoral
Dinis, “Névoa” de Manuel da Fonseca, portuguesa assim o confirmam.
“O vinho” de Miguel Torga) e o jogo, am-
bos alimentados na taberna e concretizan-
Bibliog.: ALMEIDA, Fialho de, A Cidade do Ví-
do-se em vinganças, cenas de pancadaria
cio – Obras Completas, 2.º vol., Lisboa, Círculo
(“O  marrão”, Irene Lisboa) e atos crimi- de Leitores, 1991; Id., O País das Uvas – Obras
nosos. Quando atinge o seio da família, a Completas, 8.º vol., Lisboa, Círculo de Leito-
violência masculina desaba sobre mulhe- res, 1992; BOTELHO, Abel, Mulheres da Beira,
res, crianças, velhos e animais; e contem- Lisboa, Círculo de Leitores, 1990; BRAGA,

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1422 Antipatriotismo

Alberto, “O retrato dos pais” in Contos de


Oitocentos, Porto, Fronteira do Caos, 2006,
Antipatriotismo
pp.  221­‑234; BRAGA, Mário, Nevoeiro. Ca-
minhos sem Sol, Lisboa, Escritor Lda, 1996;
BRANCO, Camilo Castelo, Novelas do Minho,
8.ª ed., 1.º vol., Lisboa, Parceria A. M. Perei-
ra, 1971; CARVALHO, J. Rentes de, O Rebate,
Lisboa, Quetzal, 2012; COELHO, Trindade,
Os Meus Amores, Lisboa, Ulisseia/Verbo, 2005;
COLAÇO, António, Amor numa Cama de Car-
dos, Lisboa, Margem, 1990; CORREIA, João
O termo “patriotismo” é derivado de
“patriota”, que provém de “pátria”,
cultismo do latim “patria”. Este vocábulo
Araújo, Contos e Novelas: Folhas de Xisto, 2.º vol., latino provém de “pater” (“pai”).
Lisboa, INCM, 2008; DINIS, Júlio, A Morgadi-
“Patriotismo” aparece abonado no
nha dos Canaviais, Lisboa, Círculo de Leitores,
1992; FERREIRA, Vergílio, Contos, 4.ª  ed., Grande Diccionario Portuguez, de Domingos
Venda Nova, Bertrand, 1991; FICALHO, Con- Vieira, com a significação de amor, zelo
de de, “A maluca d’a dos corvos” in Antologia do bem da pátria, encontrando-se neste
do Conto Realista e Naturalista, Porto, Campo dicionário novecentista o termo “pátria”
das Letras, 2000, pp. 201-207; FONSECA, provido do significado de “Lugar, cida-
Manuel da, Aldeia Nova, 2.ª ed., Lisboa, Inqué- de ou país em que alguém nasce”. Já em
rito, 1944; HERCULANO, Alexandre, Pároco
latim “patria” detinha a mesma significa-
de Aldeia; o Galego, Lisboa, Círculo de Leitores,
1986; KOMRIJ, Gerrit, Atrás dos Montes, Porto,
ção, sendo de relevar o peso semântico
Asa, 1997; Id., Um Almoço de Negócios em Sintra, da figura masculina na ligação de génese
Porto, Asa, 1999; LISBOA, Irene, Crónicas da com a terra natal.
Serra – Obras de Irene Lisboa, 2.ª ed., 7.º  vol., De acordo com o Diccionario Crítico Eti-
Lisboa, Presença, 1997; MOUTINHO, José mológico Castellano e Hispánico, a primeira
Viale, Romanceiro da Terra Morta, Lisboa, Cami- língua românica a tomar o termo latino
nho, 1988; NAMORA, Fernando, Retalhos da “pátria” como cultismo deverá ter sido o
Vida de Um Médico, Lisboa, Círculo de Leitores,
italiano, pois já Dante o usara. Segundo
1975; ORTIGÃO, Ramalho, Contos e Páginas
Dispersas, Lisboa, Livraria Clássica, 1945; PA- os autores do dicionário, em castelha-
TRICÍO, Tiago, Trás-os-Montes, Lisboa, Gradi- no, o termo já é utilizado em 1440. Já
va, 2012; PEIXOTO, José Luís, Morreste-me, na língua portuguesa o termo “patriota”
2.ª  ed., Lisboa, Temas e Debates, 2001; Id., encontra-se registado em Bento Pereira,
Cal, 2.ª ed., Lisboa, Bertrand, 2008; Id., Livro, na obra Prosodia in Vocabularium Bilingue,
Lisboa, Quetzal, 2010; QUEIROZ, Eça de, Latinum, et Lusitanum Digesta, com a signi-
A Cidade e as Serras, Lisboa, Círculo de Leitores,
ficação de “natural da mesma pátria, da
1980; TAVARES, Miguel Sousa, Madrugada
Suja, Lisboa, Clube do Autor, 2013; TORGA, mesma terra; ou da mesma tribo”. O ter-
Miguel, Vindima: Romance, s.l., s.n., 1945; Id., mo “patriotismo” foi já usado por Antó-
Contos, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 2009. nio Nunes Ribeiro Sanches, em 1760.
Em inglês, o termo “patriotismo” já se
Vera Rocha Prescott
encontra abonado em 1755 no Dictionary
of the English Language de Samuel John-
son. Não reside, pois, em múltiplas ou
forjadas etimologias o valor semântico do
termo. Mesmo reconhecendo um proces-
so evolutivo semântico similar em várias
línguas europeias, com o redimensiona-
mento da escala, que passa da terra natal

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Antipatriotismo 1423

à dimensão do Estado, o termo continua- de notar, que por pais se entendem em


rá sempre a remeter para o sentido pri- este mandamento, principalmente aque-
mordial, em jogo com as noções de país les que nos geraram: e os parentes, a pá-
e nação. Aliás, nele surpreendemos a in- tria, e amigos dela que nos conservam.
vocação a uma paternidade simbólica de E secundariamente os governadores ecle-
uma terra natal, processo de longa dura- siásticos, e seculares, e os que têm cuidado
ção que começa desde cedo, em suportes de nós outros, como são os Tutores, Cura-
discursivos diversos, cristalizado no amor dores, Mestres e aios” (ALBUQUERQUE,
pelas patriae – o sentido plural das terras 1974, 117-118). Para quem não respeitasse
e cidades, de pequena escala, de uma re- ou desejasse algum mal a qualquer destas
gião –, patente na poesia aristocrática dos instâncias, a penitência imposta era a mes-
sécs. v e vi, e que vem até à contempo- ma de pecado mortal.
raneidade, postulando uma atitude afeti- Podemos, pois, nesta base fundadora,
va e moral de compromisso para com o perceber duas dimensões que se cruzam
país. O termo é, assim, progressivamente e complementam na formação e fixação
apropriado e instalado como referente deste conceito. Em primeiro, o peso in-
do léxico político e jurídico, ajudando trínseco e a persistência de uma semânti-
a construir a história das ideias, dos con- ca da relação pátria-terra, como lugar de
ceitos e dos dinamismos sociais, decurso nascimento ou terra natural, em proces-
incontornável que permite compreender sos discursivos que, ora aliam, pelo va-
a sua antítese natural – o antipatriotismo. lor, a pátria divina à pátria terrestre, ora
O conceito e a sua prolixidade semânti- concebem esta (nas múltiplas entidades
ca estão, naturalmente, carregados de um territoriais) como último reduto da ca-
espesso conteúdo emocional e radicados racterização dos sujeitos. Disso é exem-
em sólidas bases civilizacionais e culturais. plo o patriotismo transcultural que Cer-
Na verdade, a fixação do seu substrato cí- vantes regista no seu Don Quijote e que
vico-político é precedida de uma intensa
cristalização cristã e eclesiástica. À figura Don Quijote, de Pablo Picasso (1881-1973).
central, fundadora e tutelar de Deus e do
seu Filho incarnado, Jesus, o cristianismo
apõe o verbo, consubstanciado na palavra
maior que os textos bíblicos nos transmi-
tem, norte da vivência milenar europeia.
No Decálogo, o quinto mandamento dado
ao povo de Israel manda “honrar o teu pai
e a tua mãe, como te ordenou o Senhor,
teu Deus, a fim de prolongares os teus
dias, viveres feliz na terra que o Senhor teu
Deus te há de dar” (Dt, 5, 16) – projeção
do liame inelutável entre o destino frater-
no, amoroso e ético da humanidade e a sua
geografia de vida. De tal forma a imagem
é integradora e persistente que no Com-
pendio e Sumario de Confessores da Ordem de
S. Francisco, em 1567, escreviam-se estas
significativas palavras: “Primeiramente é

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1424 Antipatriotismo

se revela nas palavras de um mourisco país de origem. Para essa formação con-
acerca da sua Espanha natal. Não caben- tribuiu um conjunto de aspetos como a
do aqui a discussão sobre a convivência relação do passado com a memória, a
com os termos “nação”/“nacionalismo”, construção das identidades e a génese
nem sequer a verificação das teses sobre e desenvolvimento da nação e da cons-
a existência do sentimento patriótico em ciência nacional. Destacamos o valor em
épocas anteriores à Modernidade, certo presença das identidades comuns, que
é que a intensidade e a escala de um sen- ultrapassam a dimensão da “natio” (no
tido de pertença aparece, ao longo de sentido que a palavra adquire a partir
séculos, indissociável deste conceito. De dos sécs. xiii-xiv) e se cristalizam em
tal forma que sobre este substrato ideo- “arquivos” memoriais mais amplos em
lógico, paralelo ao de “naturalidade”, se termos de escala e de tempo. É o caso da
constrói, paulatinamente, a figura insti- identidade cristalizada no termo “patria
tucional do Estado – no caso português, communis”, que permite perceber uma
com avantajada precocidade, pois já em continuidade, mas não a única, entre o
1106 o conde D. Henrique se intitula Império Romano e o ideal manifestado
“Portugalensium patrie princeps” (Id., na extensa christianitas. No caso da pe-
Ibid., 99-101). Esse sentido territorial do nínsula Ibérica, afirma-se definitivamen-
termo, diríamos mais objetivo, perpetua­ te a existência de uma pluralidade de
‑se e acentua-se em diversos momentos poderes e o seu progressivo confronto,
da história da civilização europeia, no- no sentido da afirmação da autoridade
meadamente nos momentos em que a real e da separação entre a figura do rei
oposição entre reinos/Estados se encon- e o reino, como entidades dotadas de au-
tra mais acesa. Também aqui, o caso por- tonomia e legitimidade próprias. Como
tuguês da Restauração (1640-1668) reve- duas consequências imediatas temos,
la bem esta tendência, nomeadamente por um lado, a ideia de historicidade da
através dos textos e da panfletária que própria noção de identidade; por outro,
sugerem este constante papel de defesa a noção de que será mais correto, para
da pátria, no sentido da terra, a par do esta época, admitir a coexistência de vá-
reino (nação) e do rei, terrenos férteis rios graus e estruturas identitárias.
para o enraizamento da dimensão emo- Apontemos, sinteticamente, alguns as-
cional e afetiva do conceito. petos de continuidade e de rutura fun-
Em segundo, revela-se uma noção po- damentais: i) a necessária consciência
sitiva que repousa mais nos sentimentos, de comunidade, no caso português, faci-
na sensibilidade, nas convicções e nas de- litada pelo confronto com o outro/mou-
voções do que nas instituições, ao ponto ro, desempenhando o rei cristão, como
de podermos referenciar a existência de chefe dos vassalos e através do processo
uma “fé patriótica”. Esta é uma conce- de reconquista, um papel muito ativo
ção formada em processo de longa du- nesta difusão do sentimento de unida-
ração, que apenas se torna problemático de e de pertença – decurso com nova
quando pontualmente afrontado pelo ênfase a partir da segunda metade do
“outro” estrangeiro e/ou inimigo, e que séc. xv na divulgação e legitimação de
apenas denuncia sinais de falência após conteúdos identitários face aos outros
a Segunda Grande Guerra e os processos interesses europeus na expansão, mas
de descolonização, pois deixa de cristali- também na afirmação do confronto com
zar os laços que ligam os sujeitos ao seu o outro/étnico; ii) a importância dos fa-

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Antipatriotismo 1425

tores políticos e territoriais na formação


da nacionalidade, com as fronteiras es-
tabelecidas desde os finais do séc. xiii,
necessariamente com repercussões no
discurso historiográfico e na simbólica
adotada; iii) os públicos recetores deste
discurso e desta simbólica situavam-se,
numa primeira fase, perto dos respeti-
vos produtores (ou coincidiam mesmo),
sendo, no caso do rei, os oficiais, a cor-
te e os grupos de apoio (certas camadas
do clero e da nobreza, e.g.) –, posterior-
mente, com o alargamento dos públicos
e das novas formas de divulgação (mor-
mente através da tecnologia da impren-
sa), o tema assume contornos diferentes D. Filipa de Vilhena Armando os Filhos Cavaleiros
(1801), de Vieira Portuense.
na sua configuração e na sua expressão
(segunda metade do séc. xv e primeira
metade do séc. xvi); iv) a difusão do a repulsa, marginalização e exclusão de
conceito de vassalo “natural”, a partir do todos os que têm iniciativas contra a ter-
séc. xiii; v) a progressiva associação da ra ancestral. Alforge imenso onde cabe
carga política de alguns dos elementos todo o tipo de manifestações, estendidas
da simbólica e do discurso historiográfi- no tempo e do mais variado teor, e prota-
co com a dimensão cultural, em épocas gonizadas por todos aqueles que se opo-
em que a estratégia de poder já impunha nham aos agentes de poder, ao comum
outras necessidades; vi) a prolongada exercício das práticas institucionais e aos
manutenção da divisa de Cícero, no ima- detentores dos aparelhos simbólicos. Por
ginário político e na discussão jurídica essa condição, recolhe essencialmente à
dos Estados europeus – “mecum patria, dimensão interna de um país e/ou na-
quae mihi vita mea multo est carior [a ção. O antipatriotismo é, pois, vivificado
pátria é para mim mais importante que e conformado em situações tão díspares
a minha vida]” (KANTOROWICZ, 1951, e diversas como a luta dos cavaleiros me-
473) –,  traduzida na alocução “Pro pa- dievais contra a própria pátria, rotulada
tria mori” (MATTOSO, 1998, 29-30). de pecado por João de Deus, numa altura
Todos estes fatores conduziram a um em que o contexto económico, político
enraizamento secular que remete para a e familiar resultava numa prática merce-
nossa incontornável condição política e nária em larga escala; ou no pensamento
social, formatando a leitura da realidade político e jurídico humanista do séc. xvi,
europeia e deixando pouco espaço para tecendo a sua essência pelo expressivo va-
acautelar outras formas de entendimento lor da justificação com que o filho podia
da vida em comum. Nesse sentido, o anti- matar o pai em nome da pátria, concluin-
patriotismo vai eclodindo, pontualmente, do-se da penalização que redundasse,
em forma e conteúdo, de início sem apor- em determinada situação, o acatamento
te linguístico, mas com vincada certeza da do oposto à ação eticamente prevista; ou
sua dimensão profunda e vigorosa, misto ainda pela intensa luta interna que opõe
de sentimentos e de ações – promovendo os diversos movimentos e fações políticas

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1426 Antipatriotismo

ao longo do séc. xix, na qual, com fre- lógico Castellano e Hispánico, 3.ª reimpr., Ma-
quência, os termos “antipatriotismo” e drid, Gredos, 1991; GEARY, Patrick J., O Mito
“antipatriota” passam a estar na ordem das Nações. A Invenção do Nacionalismo, Lisboa,
Gradiva, 2008; GELLNER, Ernest, Nations and
regular e frequente do discurso dos di-
Nationalism, London, John Wiley and Sons,
versos intervenientes. Na verdade, como
2006; GODINHO, Vitorino Magalhães, Portu-
demonstrámos, o conceito encontra-se gal: a Emergência de Uma Nação, Lisboa, Colibri/
solidamente fixado na tessitura do seu Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
antípoda – patriotismo –, assumindo este Universidade Nova de Lisboa, 2004; HER-
uma dimensão de profundo significado MET, Guy, História das Nações e do Nacionalismo
identitário que se revela, por si só, porta- na Europa, Lisboa, Estampa, 1996; HOBS-
dor de sentido anti. BAWM, Eric, A Questão do Nacionalismo. Nações
e Nacionalismo desde 1780, Lisboa, Terramar,
Por fim, o antipatriotismo como con-
2004; JOHNSON, Samuel, A Dictionary of the
ceito contemporâneo, apoiado nos mo- English Language: in Which the Words Are Dedu-
vimentos ideológicos e filosóficos que ced from Their Originals, and Illustrated in Their
nascem no Iluminismo setecentista e no Different Significations by Examples, London,
cientismo oitocentista, assume-se como J. & P. Knapton, 1755; KANTOROWICZ, Er-
dinamizador e aglutinador de dinamis- nst, “Pro patria mori”, American Historical Re-
mos também eles políticos, ideológicos e view, vol. 56, n.º 3, 1951, pp. 472-492; MA-
TTOSO, José, A Identidade Nacional, Lisboa,
sociais que remetem para outros planos
Fundação Mário Soares/Gradiva, 1998; PE-
da nossa condição comunitária. Tais mo- REIRA, Bento, Prosodia in Vocabularium Bilin-
vimentos pontuam duras críticas à susten- gue, Latinum, et Lusitanum Digesta, Eborae, Typ.
tação patriótica e nacional no estatuto Academiae, 1697; SANCHES, António Nunes,
pessoal e cívico dos sujeitos, configuran- Cartas sobre a Educação da Mocidade, Colonia,
do teorias anarquistas e/ou apátridas e s.n., 1760; SMITH, Anthony, Nacionalismo, Lis-
insistindo na vocação planetária do cida- boa, Teorema, 2006; SOBRAL, José Manuel,
dão (“cidadão do mundo”). Defendem, Portugal e os Portugueses: Uma Identidade Nacio-
nal, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos
assim, que nenhum indivíduo deverá
Santos, 2012; TORGAL, Luís Reis, Ideologia
estar ligado, por obrigação, a um país de Política e Teoria do Estado na Restauração, 2 vols.,
origem. Os grupos que aderem a tal tese Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade,
apostam, paradoxalmente, na dimensão 1981­‑82; VIEIRA, Domingos, Grande Dicciona-
ideológica e racional, esquecendo a difi- rio Portuguez ou Thesouro da Lingoa Portugueza, 5
culdade em vencer e repor uma condição vols., Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu
perpetuada pela longa duração da dia- H. de Moraes, 1871-74.
cronia e pela força do ímpeto sentimen- Orlando Miguel Gama
tal e emocional que sustenta a dimensão Alexandra Soares Rodrigues
do patriotismo.

Bibliog.: ALBUQUERQUE, Martim, A Cons-


ciência Nacional Portuguesa. Ensaio de História
das Ideias Políticas, Lisboa, s.n., 1974; ANDER-
SON, Benedict, Comunidades Imaginadas. Refle-
xões sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo,
Lisboa, Edições 70, 2005; BURGUIÈRE, An-
dré, e REVEL, Jacques (coords.), Histoire de la
France, Paris, Seuil, 2000; COROMINAS, Joan,
e PASCUAL, Duarte, Diccionario Crítico Etimo-

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Antipedagogismo 1427

Antipedagogismo termo é pouco usado, constando apenas


uma definição: “sistema ou conjunto de
métodos, técnicas ou processos usados
pelos pedagogos” (Dicionário…, 2001, II,
2794). O adjetivo “antipedagógico” surge
no dicionário de Cândido de Figueiredo,
em 1939, mas já era utilizado pelas elites

N a língua portuguesa, existem os ter-


mos “pedagogia”, “pedagogicamen-
te”, “pedagogice”, “pedagógico”, “peda-
intelectuais em 1921. Se “antipedagógi-
co” significa “que é contrário aos prin-
cípios da ciência da educação, da peda-
gogismo”, “pedagogista”, “pedagogium”, gogia”, apresentando-se como exemplo
“pedagogizar”, “pedagogo” e, em oposi- “métodos antipedagógicos” (FIGUEIRE-
ção ao quarto vocábulo, “antipedagógi- DO, 1939, I, 268-269), a definição de an-
co”. Se “pedagogo” tem a sua origem em tipedagogismo subordina-se também à de
1589 e “pedagógico” em 1836 (HOUAISS pedagogia, um conceito tendente à cria-
e VILLAR, 2005, XIV, 6185), os outros vo- ção de neologismos, como é exemplo a
cábulos surgiram no séc. xix, exceto “pe- expressão “pedagocite aguda”, criada em
dagogice”, “pedagogium”, “pedagogizar” 1927 por Adolfo Lima.
e “antipedagógico”. Nos dicionários, in- No quotidiano dos começos do séc. xxi,
clusive nos digitais de editoras nacionais, as noções de pedagogia e antipedagógi-
não surge a menção a “antipedagogismo” co tinham-se banalizado, a ponto de a
ou “antipedagogia”. segunda ser, às vezes, utilizada de forma
Etimologicamente, a palavra “antipe- arbitrária, inclusive pelos alunos (e.g.,
dagogismo” é formada por “pedagogis- em expressões como: “fazer trabalhos
mo” (pedagogia+ismo), que aparece, em de casa é antipedagógico”). Deste modo,
1899, no Novo Diccionário de Língua Por- tornou-se difícil definir antipedagogismo
tuguesa, de Cândido de Figueiredo, com ou antipedagogia numa época com uma
o significado de “sistema ou processos diversidade de realidades pedagógicas e
dos pedagogos” (FIGUEIREDO, 1939, de modelo(s) de prática(s), e várias mo-
II, 279). Nos sécs. xix e xx, o uso do su- das ditas pedagógicas que poderiam ser
fixo “-ismo”, por influência do francês, “a  maior tragédia da educação” (NÓ-
formou inúmeros termos, significando VOA, 2012, 18).
tanto “movimentos sociais, ideológicos, Nos finais do séc. xix e princípios do
políticos, culturais, opinativos, religiosos séc. xx, surge, com fortes repercussões
e personativos” como uma “doutrina, sis- nos Estados Unidos da América, na Eu-
tema, teoria, tendência, corrente” (HOU- ropa e no Brasil, um movimento criado
AISS e VILLAR, 2005, XI, 4747-4748). No para a renovação do ensino, a escola
séc. xxi, tem três significados: “conjunto nova (escola ativa ou escola progressiva),
de princípios, métodos ou característi- herdeira do pensamento de Jean­‑Jacques
cas dos pedagogos”, “tendência a excluir Rousseau e dos pedagogos Heinrich Pes-
tudo o que contraria os preceitos pedagó- talozzi e Freidrich Fröebe, cujos princi-
gicos” e “adopção indiscriminada de teo- pais teorizadores são John Dewey e Adol-
rias pedagógicas sem comprovação prá- phe Ferrière e que põe em causa a atitude
tica ou científica” (Id., Ibid., XIV, 6185). do magister dixit, o que inicia uma discus-
Segundo o Dicionário da Língua Portugue- são sobre a educação que se dissemina
sa da Academia das Ciências de Lisboa, o por vários países ocidentais e leva o meio

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1428 Antipedagogismo

intelectual a repensá-la. Em Espanha, esta tosa salganhada de coisas com sentido e


questão é de tal modo debatida que, em sem sentido” (ARENDT, 2006, 188), e dos
1902, Miguel de Unamuno publica Amor conceitos do progresso e da igualdade de
y Pedagogia, onde ficcionalmente ridicula- oportunidades. Apresentou-a como um
riza todos os exageros ditos pedagógicos. fenómeno global e não exclusivamente
Na história da educação, desde o racio- local ou nacional e chamou ao séc. xx o
nalismo e o naturalismo, pedagogos, filó- século da criança, devido à emancipação
sofos, sociólogos e psicólogos esgrimem e liberdade de ação dadas à criança pela
e exploram o tema da educação e da educação moderna, o que, mais tarde, se
pedagogia em detrimento da instrução. designou por antipedagogia.
Retêm-se aqui alguns pensamentos filosó- No Brasil, o antipedagogismo foi estu-
ficos do tratado de pedagogia de Imma- dado como uma reflexão crítica contra o
nuel Kant, quando conclui que o homem pedagogismo burguês, porque “o excesso
só se torna homem através da educação, de pedagogismo e a educação burguesa
que lhe é transmitida por outros homens, não servem para um projeto de educação
que antes a receberam. Manuel Antu- diferenciada, libertadora”, i.e., como “for-
nes acrescentará que a educação é uma ma de anúncio” (SENRA e SATO, 2007,
necessidade e um dever e, por isso, um 165 e 167) para a instauração de outro
problema para a sociedade, e a utilização projeto educativo: a educação ambiental
do anti, um fenómeno no séc. xx, é um crítica.
dos modos linguísticos que o homem tem Em Portugal, o significado de (anti)pe-
para protestar e se opor perante o passa- dagogismo depende dos movimentos,
do, o presente e o futuro da realidade projetos e modas educacionais e, princi-
que pensa e vive. palmente, do modelo racionalista da edu-
Em França, a partir dos anos 90 do cação portuguesa que, segundo Jorge do
séc.  xx, as querelas educacionais desen- Ó, é criado nos finais do séc. xix como
volveram-se de tal modo que os conceitos uma herança do Iluminismo. Um dos mo-
de pedagogismo e o seu anti foram asso- vimentos mais importantes é o da escola
ciados a ideologias políticas. Se, para uns, moderna portuguesa, cuja origem teórica
um determinado pedagogismo é a verda- está na escola nova e em Célestin Freinet,
deira pedagogia de que a escola necessi- tendo como principal teorizador o peda-
ta, para outros, põe-na em causa e enfra- gogo Sérgio Niza. Foi criado oficialmente
quece-a, porque, e.g., colocar a criança em Portugal, em 1966, e desenvolve a sua
no centro do sistema escolar e privilegiar ação pedagógica principalmente na for-
mais a descoberta do saber pelo aluno do mação de professores.
que a transmissão do conhecimento pelo O confronto teórico expõe criticamen-
professor, pondo em causa a sua autori- te os diversos pedagogismos e associa-os a
dade e a tradição, provoca, de imediato, ideologias políticas. Enquanto “a história
uma mudança de perspetiva na educa- revelou-nos quanto certos ideais genero-
ção. Antes, em 1957, Hannah Arendt já sos e progressistas foram objeto de pro-
a tinha denunciado quando dissertou so- gramas modernizadores e extensionistas,
bre a crise na educação, nos Estados Uni- de raiz autoritária e tecnocrática, em con-
dos da América, com um cariz político, tradição profunda com os princípios de-
por influência da “mistura de modernas mocráticos e emancipatórios que os inspi-
teorias educativas provenientes da Euro- ravam”, é necessário analisar criticamente
pa Central, e que consiste numa espan- “um certo pedagogismo tradicional de

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Antipedagogismo 1429

esquerda” (“crença ingénua” de a “edu-


cação progressista conseguir mudar o
mundo e transformar a sociedade e a
economia”) e não ignorar “um idêntico
pedagogismo, ainda que de sinal contrá-
rio”, que originou “um novo tipo de pe-
dagogismo – o pedagogismo económico
e social  –, baseado numa pedagogização
extensiva da sociedade e da economia,
fazendo corresponder a cada problema
económico e social uma solução pedagó-
gica” (LIMA, 2005, 85-86). A análise críti-
ca da educação tem, por vezes, subjacente
a vontade de instaurar outras pedagogias D.R.

educativas, e.g., a de Paulo Freire, que de- Hannah Arendt (1906-1975).


fende que o ato educativo é um ato po-
lítico. No entanto, o desejo de inovar de
muitos pedagogos, professores e escolas, saberes, desperta a curiosidade, observa,
sem uma reflexão e experimentação crí- dialoga, ajuda, corrige, valoriza, dá suges-
ticas ponderadas, pode conduzir a um tões, promove responsabilidades, conce-
“pedagogismo quase provinciano”, que, de tempo e autonomia ao aluno para ser
cegamente, adere às inovações ditas edu- e avalia-o, além de ter um idealismo real
cativas e considera “inútil e retrógrado” o para acreditar no poder da educação e no
que foi ensinado assim como os métodos que o discente é capaz de fazer. Por outro
de trabalho desenvolvidos (CEREJEIRA, lado, mostra-lhe, pela sua prática peda-
2006, 217). gógica, que estudar implica curiosidade,
Há valores, princípios e características vontade, observação, compreensão, refle-
que devem estar presentes numa esco- xão, pensamento, investigação, conheci-
la, independentemente das teorias, dos mento, aplicação, análise, empenho, es-
modelos, dos movimentos, das correntes forço, organização, disciplina, trabalho,
ou dos projetos que os defendem. Uma memória, repetição, reprodução, (re)lei-
eventual antítese não é benéfica para a tura, (r)escrita, questionamento, tempo,
educação e, por isso, cabe ao professor, expressão do eu, criatividade.
no exercício da sua prática docente diá- A escola é um lugar plural de pes-
ria, adaptá-los, reorientá-los e, se for ne- soas, de saber e aprendizagem, de estu-
cessário, conciliá-los e até reconstruí-los. do, de comunicação, de intercultura e
Atualmente, a educação portuguesa as- de responsabilidade solidária e cívica.
senta, principalmente, em leis e progra- À  luz do pensamento de Sérgio Niza,
mas ministeriais, no projeto educativo António Nóvoa define pedagogia como
de escola/agrupamento, nas escolhas sendo história, cooperação, diferença,
pedagógicas e metodológicas dos grupos ética, democracia, diálogo e cultura, o
disciplinares/dos educadores, na sensibi- que “lhe permite valorizar a relação hu-
lidade e na razão do professor e dos alu- mana, ao mesmo tempo como relação
nos/turma que leciona. Um docente que social e pessoal” e “assegurando uma
exerça a sua profissão há décadas sabe relação educativa feita de autenticidade
que ensina e partilha conhecimentos e e de respeito” (NÓVOA, 2012, 20). Por

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1430 Antipedagogismo

oposição, pode definir-se antipedagogis- Bibliog.: impressa: ANTUNES, Manuel, Edu-


mo e antipedagogia, como anti-história, cação e Sociedade, Águeda, Sampedro, 1973;
anticooperação, antidiferença, antiética, ARENDT, Hannah, Entre o Passado e o Futuro.
Oito Exercícios sobre o Pensamento Político, Lisboa,
antidemocracia, antidiálogo e anticultu-
Relógio d’Água, 2006; CEREJEIRA, Manuel,
ra. Além disso, um professor tem de ser
“O ensino do português (pedagogia e peda-
flexível para se adaptar às circunstâncias gogismo)”, Máthesis, n.º 15, 2006, pp.  211­
dos tempos e não ficar paralisado em ‑219; DIAS, José Manuel de Barros, Miguel
apontamentos, doutrinas, teorias, cor- de Unamuno e Teixeira de Pascoaes. Compromissos
rentes e métodos, talvez já desadequados Plenos para a Educação dos Povos Peninsulares,
e ultrapassados, porque tem diariamen- 2 vols., Lisboa, INCM, 2002; Dicionário da Lín-
te um compromisso educativo de conhe- gua Portuguesa Contemporânea, 2 vols., Lisboa,
Verbo, 2001; FIGUEIREDO, Cândido, Novo
cimento, sensibilidade e experiência.
Dicionário de Língua Portuguesa, 5.ª ed., 2 vols.,
Sem anular o rigor da sua prática, deve Lisboa, Bertrand, 1939; HOUAISS, António,
prevalecer o bom senso nas suas decisões e VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss
pedagógicas, inclusive numa das ques- da Língua Portuguesa, 18 vols., Lisboa, Temas e
tões mais difíceis da prática docente, a Debates, 2005; JORGE, Ricardo, Sermões dum
avaliação. Leigo, Lisboa, Empresa Literária Fluminense,
O atrito que pode ser criado com o an- 1925; LIMA, Adolfo, “Instrução primária”,
Educação Social, n.os 78-79, 1927, pp. 79-85;
tipedagogismo pode levar à falta de quali-
LIMA, Licínio, “Cidadania e educação: adap-
dade no ensino, que é burocraticamente tação ao mercado competitivo ou participa-
avaliado pela estatística e pelos rankings. ção na democratização da democracia?”,
Parafraseando Daniel Pennac (PENNAC, Educação, Sociedade & Cultura, n.º 23, 2005,
2007, 9), tudo se explica a nível estatísti- pp. 71-90; MEIRIEU, Philippe, Pédagogie: des
co, mas a nível pessoal tudo se complica, Lieux Communs aux Concepts Clés, Paris, Édition
principalmente perante práticas que não Sociale Française, 2013; NÓVOA, António,
despertem a curiosidade dos alunos que, “Eu pedagogo me confesso. Diálogos com
Rui Grácio”, Inovação, vol. 14, n.os 1-2, 2001,
segundo Mark Prensky, já são nativos digi-
pp. 1-23; Id., “Ética, pedagogia e democracia
tais no séc. xxi. A apatia e a indisciplina são a mesma coisa”, in NÓVOA, António et
surgem e, aliadas à intransigência, levam al., Sérgio Niza. Escritos sobre a Educação, Lisboa,
ao aparecimento do autoritarismo. Por Tinta da China, 2012, pp. 17-21; Ó, Jorge
isso, o antipedagogismo é inflexibilidade, do, “Desafios à escola contemporânea: um
intransigência e defesa do autoritarismo. diálogo”, Educação e Realidade, n.º 32, jul.-dez.
O antipedagogismo pode ser também 2007, pp. 109­‑116; PENNAC, Daniel, Chagrin
d’École, Paris, Gallimard, 2007; PRENSKY,
uma reação crítica a pedagogias obsoletas
Marc, “Digital natives, digital immigrants”, On
ou desadequadas, mesmo que aceites por the Horizon, vol. 9, n.º 5, out. 2001, pp. 1­‑6;
sucessivas gerações. Mas será que se trata digital: SENRA, Ronaldo, e SATO, Michèle,
de antipedagogismo ou de antipedagogia “Antipedagogismo e educação ambiental”,
ou é o resultado da ação pedagógica de Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Am-
observação, reavaliação e renovação pe- biental, vol.  19, jul.-dez. 2007, pp. 165­‑180:
los seus agentes? Provavelmente, em Por- http://www.remea.furg.br (acedido a 1 ago.
2013).
tugal, o conceito de antipedagogismo po-
derá ser absorvido pelo de antipedagogia, Helena Isabel Jorge
por influência da língua anglo-saxónica,
ou não, pelo uso teórico no país, no Bra-
sil e em outras línguas estrangeiras como
o francês.

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Antipessoanismo 1431

Antipessoanismo à altura da língua-pátria, na medida em


que padeceria da especificidade de certas
construções artificiosas, i.e., contrárias
ao vernaculismo sintático. Assim, o re-
censeador não deixa de criticar no verso
pessoano a falta de uma matriz lusa: “Os
futuros ensaístas – e muitos merece ter e

A pesar do vasto consenso, à escala in-


ternacional, em torno do merecimen-
to estético-literário da obra de Fernando
terá – marcarão ainda, estou certo, quanto
por vezes empregou uma linguagem ine-
xistente, nem arcaica nem de hoje, uma
Pessoa, a verdade, porém, é que por vezes, linguagem de ordenação artificiosa, fora
e em função de motivos diversos, não dei- da índole e natural evolução do idioma,
xam de surgir avulsamente vozes dissonan- uma linguagem inventada com palavras
tes quanto à canonização pessoana. Não portuguesas mas que à sintaxe portugue-
significa isto em todos os casos forçosa- sa não pertence e da qual, a um primeiro
mente um flagrante antipessoanismo, an- aspeto e superficial exame, se afigurasse
tes dúvidas pontuais em relação ao (supos- retrocesso”. Em todo o caso, assegura
to) valor imaculado do poeta. logo a seguir Tomás de Figueiredo, em
É precisamente o caso da apreciação jeito de condescendente justificação, Pes-
de Tomás de Figueiredo. Recenseando, soa denota alguma coragem e uma retó-
em dezembro de 1942, para o jornal rica compreensível: “Ao repararem como
Aléo, o volume Poesias, em texto intitula- o poeta, em tantos passos, escreveu como
do “Acerca de Fernando Pessoa”, o escri- todos os que bem escrevem, concluirão
tor não poupa nos elogios, como se nota
sem custo: “Por não ser lugar-comum que
Fernando Pessoa (1888-1935).
Fernando Pessoa seja um poeta dos maio-
res – dos maiores de todos os tempos – o
senhor grande público guarda presente
reserva, posto em guarda, à espera da
necessária definição dogmática, receoso
de fazer triste figura, de comer gato por
lebre. Para mais é detestador de poe-
tas: – seres na verdade inúteis para quem
prescinde de alma, seres até prejudiciais
por longe da vida prática, a única a que
é sensível” (FIGUEIREDO, Aléo, 30 dez.
1942, 2). A estima por Pessoa é evidente.
Não obstante, Tomás de Figueiredo não
se inibe de apontar falhas, pois para um
autor tão purista como ele, tão zeloso da
sintaxe robusta dos nossos clássicos – com
predileção especial pelo P.e António Viei-
ra e por Camilo Castelo Branco –, atingir
o esplendor da língua no seu aparato ver-
náculo seria pouco menos do que crime
indefensável. Pessoa não estaria por vezes

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1432 Antipessoanismo

que, muito ao contrário do que leviana- tertextuais, Cesariny pronuncia-se sobre


mente poderia supor-se, ele não quis, de a poesia de Pessoa e sobre umas quantas
vontade, tais construções defeituosas, não matérias pessoanas (nomeadamente a
pretendeu ser original buscando a origi- teoria da heteronímia, os poetas admi-
nalidade em fazer o contrário dos outros, rados por Pessoa ou a inspiração aristo-
não pretendeu formar escola à parte, e, télica e platónica). O ataque à aura pes-
apenas, por acidental e momentânea soana, digamo-lo assim, é detetável sem
deficiência de expressão, optou corajo- dificuldade logo no subtítulo do livro,
samente por dizer em mau português o significativamente enunciativo do tom
que pretendia, de preferência a procurar irónico, cáustico e mordaz da obra: FER-
circunlóquio elegante, menos ajustado NANDO PESSOA Explicado às Criancinhas
com a ideia a exprimir”. Seja como for, Naturais & Estrangeiras por M. C. V. Who
nota-se perfeitamente que, segundo Knows Enough about It Seguido de LOUVOR
Tomás de Figueiredo, Pessoa carece de E DESRATIZAÇÃO DE ÁLVARO DE CAM-
portuguesismo na forma expressiva. Se POS pelo MESMO no Mesmo Lugar. Com 2
lhe elogia o talento, não se inibe, como Cartas de RAUL LEAL (HENOCH) ao He-
que por imperativo patriótico, de lhe terónomo; e a Gravura da Universidade. Es-
censurar a falta do manejo da língua en- crito & Compilado de Jun. 1987 a Set. 1988.
quanto valor patrimonial (o que os clás- Quanto aos poemas, eis alguns tre-
sicos ensinam). Exemplo suficiente disso chos bem ilustrativos do propósito anti-
acha-se ainda nesta passagem: “E hão de pessoano de Cesariny: “Os meus versos
aproximá-lo de Antero, na originalíssima ingleses!... Lá se foderam/(1904-1921)
expressão poética dessa torturada sede, dezassete anos,/Quantos já tinha de flo-
embora Pessoa, menos disciplinado, pas- resta de enganos/Quando meteram no
se atrabiliária e desconcertantemente da um só cano “Herzog”/The little thing
afirmação para a negação” (Id., Ibid., 3). that I was/O pequeno lord que eu era
Se Tomás de Figueiredo não chega a (e continuei a ser)/Até mais não poder
ser propriamente antipessoano, como (até morrer)” (Id., Ibid., 26); “E maior do
dissemos, o mesmo não se poderá segu- que todos, a rodos, de todos os modos,/
ramente afirmar de Mário Cesariny. Em O Bernadim [Ribeiro]! Eh, Bernadim/
O Virgem Negra, livro altamente irreveren- Que não vieste contra mim/Que quando
te, não menos satírico e assaz virulento, a ti vim, Bernadim,/Já só pude o ‘Livro
o poeta, visando uma dessacralização do Desassossego’/E de Bernadim fiz Ber-
extrema, compraz-se em construir uma nardo [Soares]/Que é outra cara de par-
muito singular, desde logo porque mar- vo” (Id., Ibid., 27-28); “Lúcido, sim. Lúci-
cadamente maldizente, biografia de Pes- do até ás fezes./Até ás alças dos atilhos
soa (o Virgem Negra), “abjeto e miserável das calças/Até me pôr a olhar para mim
indivíduo”, como a certo passo o qualifica a andar/A parar para melhor observar/
Cesariny por interposta presença de Álva- Como entrava e saía do Jardim da Estre-
ro de Campos (CESARINY, 1989, 64). Em la/Quando ia para debaixo da janela da
composições não raramente corrosivas Ofélia/Para ela ver que eu ia, que não
e num inconfundível estilo, aquele pelo faltava,/E eu era ela que me olhava ca-
qual os versos, com um léxico bem rasan- bisbaixo/No cimo da janela dela em bai-
te, mas também estridente, não receiam xo.../Lúcido! Sim! E medonho. Ou biso-
a expressão da vulgaridade, posto que nho./Tirado do natural./‘Autocêntrico
apetrechados de notáveis invocações in- mudo’/É o melhor diagnóstico sisudo/

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Antipessoanismo 1433

Para boletim de morto no hospital” (Id., cia ao horizonte camoniano. Pelo menos,
Ibid., 33-34). E ainda sobre a relação de lendo “Notas sobre a Mensagem”, texto
Pessoa com Ofélia (e aqui não há como publicado, em 2010, na revista Ler e repu-
não recordar “Cartas de amor” de Álvaro blicado depois em Discursos Vários Poéticos
de Campos): “A Nini Bèbèzinho/Do Ibi/ (2013), é fácil percebê-lo. O que, em ri-
Dá Ófèli/Bjinho?” (Id., Ibid., 63). gor, Vasco Graça Moura faz é interrogar
No que respeita aos heterónimos e à o contributo épico do livro de Pessoa a
sua relação com Pessoa, a des-sublima- partir da presença tutelar da epopeia ca-
ção não poderia ser maior: “O Álvaro moniana. Senão vejamos: “a visão histó-
gosta muito de levar no cu/O Alberto rica implícita na Mensagem é muito tradi-
nem por isso/O Ricardo dá-lhe mais para cional e esquemática, quase se limitando
ir/O Fernando emociona-se e não conse- aos protagonistas heroicos de portugue-
gue acabar.//O Campos/Em podendo ses que Pessoa também eleva à categoria
fazia-o mais de uma vez por dia./Fica- de semideuses”, escreve Graça Moura.
vam-lhe os olhos brancos/E não falava, E antes disso, comparando Pessoa com
mordia. O Alberto/É mais por causa da Mário Beirão (O Último Lusíada e Lusitâ-
fotografia/Das árvores altas nos montes nia), não se abstém de observar sem com-
perto/Quando passam rapazes/O que placência que a “fantasmagoria de Pessoa
nem sempre sucedia.//O Fernando o é mais heráldica e hierática, mais seca e
seu maior desejo desde adulto/(Mas já mais descarnada, digamos mesmo, mais
na tenra idade lhe provia)/Era ver os abstratamente ‘desumanizada’” (MOU-
hètèros a foder uns com os outros/Pela RA, 2013, 18). E ainda na mesma página,
seguinte ordem e teoria:/O Ricardo no enfatizando implicitamente a inferiorida-
chão, debaixo de todos (era molengão/ de de Pessoa face a Camões: “Pessoa nun-
Em não se tratando de anacreônticas) ca compreendeu que, para engendrar
introduzia-/-Se no Alberto até à base/ uma epopeia, teria sido também necessá-
E com algum incómodo o Alberto er- rio incluir nela uma dimensão lírica, em
guia/Nos pulsos a ordem da Kabalia/ especial no tocante ao amor, às suas vá-
Tentando passa-la ao Álvaro/Que enros- rias formas, aos seus casos concretamen-
cado no Search mordia mordia/E a mais te considerados, à sua possível dimensão
não dava atenção./O Search tentava/ ontológica e até cósmica. Acontece com
Apanhar o membro do Bernardo/Que a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, a Divina Co-
crescia sem parança direção espaço/ média, o Orlando Furioso, Os Lusíadas... Na
E era o que mais avultava na dança/Das Lusitânia, ‘A monja’ é um poema de amor
pernas do maço da heteronímia/A que e distância” (Id., Ibid.). Não é preciso es-
aliás o Search era um pouco empresta- pecial clarividência para perceber que a
do/Como de ajuda externa (de janela do referência final a Mário Beirão serve para
lado)/Àquela endemonia/Hoje em dia desconsiderar Pessoa sem mercê. Ou
moderna e caso arrumado.//Formado o seja: como poderia Pessoa, nesta questão
quadrado/Era quando o Aleyster Crowel da epopeia, ombrear com Camões, sen-
aparecia./‘Iô Pan! Iô Pã!’, dizia,/E era fe- do que nem sequer se acharia à altura
latio para todos/E pão de ló molhado em de um Mário Beirão? Transcrevendo a
malvasia” (Id., Ibid., 70). seguir um trecho de um artigo de Pessoa
Manifestamente antipessoano é Vasco publicado, em 1924, no Diário de Lisboa e
Graça Moura. Não é ocioso dizer que o onde o autor da Mensagem, referindo-se a
seu antipessoanismo se define na referên- Camões, desconsidera a admiração pela

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1434 Antipessoanismo

lírica, Graça Moura, rebatendo as críticas “A Mensagem é um ciclo poético com al-
de Pessoa e assumindo-se como indefetí- gumas belas coisas e com algumas coisas
vel camoniano, tece diversas críticas ao menores, em que talvez não falte a ima-
poeta. A propósito, e.g., da figura do Mos- ginação, mas em que faltam a paixão e o
trengo: “não pode [‘O Mostrengo’] dei- pensamento, isto para recorrer às cate-
xar de ser lido em correlação paradigmá- gorias do próprio Pessoa. Corresponde a
tica com o Adamastor (também presente um sentido muito pouco consistente da
em Beirão), mas em versão empobrecida identidade nacional, concebida, mais do
precisamente pelo escamoteamento de que vivida, em termos de um Saudosis-
toda e qualquer veleidade lírico-amorosa mo estático e estéril, que foi com toda a
na Mensagem. E ali, até o homem do leme probabilidade o mais nacionalmente ina-
não faz mais do que insistir em passar os bilitante dos movimentos intelectuais da
tão camonianos ‘vedados términos’ (Lus., nossa história cultural”; “É também uma
V, 41). E os filhos varões de D. João I são sequência de figuras hábil e abstratamen-
figuras da Mensagem em evidente recorte te elaboradas no vazio onírico de uma
paradigmático da ‘ínclita geração, altos História cujo sentido Pessoa, poeticamen-
infantes’ (Lus., IV, 50)...” (Id., Ibid., 19). te, só percebeu em termos fantasmáticos
E referindo-se a uma afirmação de Pes- e ultrapassados e cujo desembocar na sua
soa na edição de 13 de outubro de 1923 própria atualidade ele concebia, afinal,
da Revista Portuguesa (“Literariamente, como correspondente a um desfile de
o passado de Portugal está no seu futu- heróis de antigamente resvalando para o
ro. O infante, Albuquerque e os outros ‘nevoeiro’ de agora” (Id., Ibid., 20-22).
semideuses da nossa glória esperam ain- O que parece estar em causa nestas
da o seu cantor”), riposta Graça Moura, depreciações pessoanas de Vasco Graça
assumindo muito claramente o seu an- Moura é, em boa verdade, o seu camonis-
tipessoanismo, desta forma: “Como sou mo empenhado. Camonismo esse ainda
bastantemente antipessoano, talvez haja por cima visivelmente instigado pelas crí-
quem se surpreenda por me ouvir opinar ticas que Pessoa teceu ao autor de Os Lu-
que há na Mensagem alguns belos poemas síadas. Como salta à vista, Camões, para
e alguns belos versos, de par com outras Graça Moura, é o único autor épico dig-
coisas patentemente falhadas e desinte- no desse nome, sendo Pessoa, por assim
ressantes. Mas já ninguém se espantará dizer, uma pálida imitação do seu prede-
de me ouvir considerar aquela afirmação cessor quinhentista. Tanto mais que por
de que ‘literariamente, o passado de Por- ele seria influenciado, prova indesmentí-
tugal está no seu futuro’ uma portentosa vel da superioridade estético-literária de
parvoíce, à maneira, para mim insupor- Camões. A conclusão final de Graça Mou-
tável, de muitos paradoxos pessoanos do ra vai toda nesse sentido: “Mas Pessoa está
mesmo tipo” (Id., Ibid., 19). É difícil, con- ‘só e sonha saudade’ através da História.
venhamos, dizer pior. Dir-se-ia que Gra- E, se o nevoeiro significava a decadência
ça Moura pretende nada menos do que (já personificada no Doido cujo retrato
arrasar Pessoa, e o que vem a seguir não terrível se hipostasiava a Portugal em Pá-
desmente essa pretensão. Graça Moura tria de Junqueiro), até nisso ele estava a
prossegue a sua análise pessoana des- ser influenciado por Camões” (Id., Ibid.,
considerando o poeta. Basta reparar na 22). Em suma, dir-se-ia que Graça Moura
forma pouco menos do que demolidora avalia Pessoa em sede camoniana, vale di-
como aprecia globalmente a Mensagem: zer, fazendo um contraste entre ambos os

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Antipessoanismo 1435

autores a partir do qual reivindica muito


nitidamente a sua militância camoniana.
Fica de fora destas considerações gené-
ricas – e ao mesmo tempo um tanto mi-
nuciosas, sempre que está em causa uma
progressão argumentativa conducente à
desconsideração de Pessoa – o que confe-
re ao poeta não pouco estatuto canónico:
a heteronímia. Essa é a razão principal
pela qual a crítica de Graça Moura per-
de fatalmente fundamentação sólida.
Porque, apesar de deixar evidente o seu
ponto de vista, Graça Moura não pode
resumir a relevância do poeta à Men- D.R.

sagem; e, mais, à Mensagem filtrada pela Vasco Graça Moura (1942-2014).


epopeia camoniana, de que Graça Moura
foi um fino conhecedor, como sabemos. E se dúvidas ainda houvesse sobre o
Ao fazê-lo abdica da indispensável condi- antipessoanismo de Vasco Graça Moura,
ção de legibilidade do poeta que são os bastaria atentar no texto “Contra Bernar-
heterónimos. do Soares”, lido no Centro Cultural de
A descanonização de Pessoa às mãos de Belém em maio de 1998 e publicado em
Graça Moura nota-se ainda num texto, Contra Bernardo Soares e Outras Observações
muito sugestivamente intitulado “Fernan- do qual extraímos, entre outros possíveis,
do Pessoa e a inflação”, igualmente publi- este eloquente excerto: “não há nestas
cado em 2010 na revista Ler. Nele, e após páginas desespero nenhum. Nem crítica,
assinalar, sem grande força persuasiva, um nem inconformismo, nem revolta, nem
certo declínio no tocante à “inflação pes- expressão de uma humanidade de senti-
soana”, Graça Moura refere-se a Bernardo mentos e de convicções, nem mesmo um
Soares. Como seria de esperar, a referên- princípio de silêncio que, sendo ontoló-
cia ao semi-heterónimo não abona a favor gico quanto ao nada que propõem, elas
do ortónimo, antes serve para reforçar a se encarregam de desautorizar enquanto
indiferença que por este nutre. E à falta prática loquaz e diuturna. Há, sim, o con-
de razões verdadeiramente credíveis, so- trário de tudo isso, no que acaba por tor-
bra uma bem subjetiva (“Fernando Pessoa nar-se a sobranceria sentenciosa e alhea-
não me apetece”): “No que toca a Bernar- da de tudo, em virtude do ‘privilégio’ da
do Soares, já tive a ocasião de manifestar detenção de um não-saber. E depois, se-
o quanto ele me deixa indiferente. É mais ria o próprio autor o primeiro a dar-me
ao menos o que acontece com o diário de logo razão, no que me tiraria a razão de
Amiel que, de resto, o precede em vários eu me pôr a afirmar a perfeita inutilidade
aspetos de uma analítica exaustivamente delas para o prazer ou para o sacrifício
desagregadora de si mesmo e da mani- da leitura, para a crueldade ou para o le-
festação de um sentimento de vazio e da nitivo da reflexão” (MOURA, 1999, 142).
falta de interesse de tudo o que constitui É impossível não ver nestas palavras uma
o mundo. De facto, mesmo quando con- crítica contundente ao Livro do Desassos-
segue ser interessante, Fernando Pessoa sego. E  a  crítica aqui é visível em função
não me apetece” (Id., Ibid., 24). de  uma imitação, com notória intenção

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1436 Antipessoanismo

de o denegrir, do texto pessoano. Por ou- vamente à de Pessoa, pelo seu “lado pro-
tras palavras, se Vasco Graça Moura se dá fundamente humano”, vertente que ca-
ao cuidado de escrever um longo texto racterizaria em apreciável grau “a poesia
com o seu quê de hermético, ou melhor, do Camões, ao contrário da de Fernando
com uma retórica vácua e por isso de du- Pessoa. A poesia dele [Camões] tem um
vidosa rentabilidade para efeitos de com- lado carnal, de sangue, de vinho” (AR-
preensão estético-literária e filosófica, NAUT, 2008, 102). Mais explicitamente
fá-lo, em jeito de inegável paródia, para ainda: “O Camões gostava de amar, gos-
denunciar (e enunciar) a (suposta) elo- tava de comer... Ao contrário do Fernan-
quência inócua de O Livro do Desassossego. do Pessoa, que era um chato” (Id., Ibid.,
Outro autor que alinha pelo mesmo 110). Outro exemplo, ainda com pano
diapasão de Graça Moura é António Lobo de fundo camoniano: “Não gosto do Fer-
Antunes. Em longa entrevista concedida nando Pessoa nem do pensamento dele,
ao jornalista João Céu e Silva, a dada al- nem sequer da poesia dele, acho que ele
tura, sobre autores canónicos inexistentes é o Tomás Ribeiro deste século, todos os
nas livrarias, surge o nome de Pessoa: “Não séculos se tenta arranjar um poeta me-
me lembro de ver Os Lusíadas na bancada lhor do que o Camões. Acho que ele é
de uma livraria. Ou o Antero ou o – estou um bom poeta[,] mas não é um poeta
a inventar nomes – Bocage, o Nobre, o extraordinário” (Id., Ibid., 156). Noutra
Cesário... O Pessoa, sim, na altura em que entrevista, contradizendo-se, Lobo Antu-
estava na moda, mas agora está outra vez a nes, “apesar de tudo”, considera Pessoa
desaparecer” (SILVA, 2009, 294). Se não superior a Tomás Ribeiro, mas não o sufi-
fica claro se Lobo Antunes deplora ou ciente para não integrar o rol de autores
não a ausência de Pessoa das estantes das menores que procuraram, século após
livrarias, o certo é que mais à frente não século, superar Camões e, afinal, não re-
resiste a dizer o que pensa do poeta nestes sistiram à obliteração do tempo ao invés
termos pouco abonatórios: “Eu nunca fui de Camões: “Reparou que, em todos os
grande admirador do Pessoa, mas dá-me séculos, havia um escritor melhor do que
ideia de que ele se está a esbater outra vez. o Camões? Olhe, o Tomás Ribeiro no sé-
Eu fico frio com Pessoa, porque a poesia culo xix, o desembargador Gabriel Fer-
ortónima não me entusiasma muito. Se o reira de Castro no século xviii... Todos
Álvaro de Campos é aquilo, é melhor ler o considerados melhores do que ele! Mas
Walt Whitman. O Ricardo Reis são aquelas acabaram por passar, e o Camões fica!
odes pindéricas. O Livro do Desassossego... É como o Pessoa, que me parece, apesar
Deve ser um crime o que eu estou a dizer, de tudo, melhor que o Tomás Ribeiro!”
mas aquilo é uma série de lugares-comuns. (Id., Ibid., 289). No mesmo sentido: “To-
Não me entusiasma nada e é um livro que dos os anos se descobre um poeta melhor
teve um sucesso muito grande em França, que o Camões, o Tomás Ribeiro, no século
uma coisa louca – muito mais do que nos xix, o Fernando Pessoa no século xx, e,
países anglófonos – e está tudo publicado” no entanto, eles passam e o Camões fica”
(Id., Ibid., 295). (Id., Ibid., 482). Ou então: “Eu gosto do
Noutras entrevistas, Lobo Antunes, Camões porquê? Porque é da minha famí-
sempre que a ocasião se proporciona, lia. Fernando Pessoa não é, por exemplo.
desvaloriza Pessoa. Numa, fá-lo, na sen- Gosto da sensibilidade do Camões, conti-
da de Graça Moura, por contraposição nuo a achar que ele inventou o português
à lírica camoniana, enaltecendo-a relati- tal qual a gente o fala ou sente” (Id., Ibid.,

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Antipetrarquismo 1437

299). Como se vê, Camões é sempre a me-


dida pela qual se avalia Pessoa, e isso de
Antipetrarquismo
um modo assaz ambivalente, por assim di-
zer: gostando-se de Camões, dificilmente
se gostará de Pessoa. E de um modo lapi-
dar (e inclemente): “O Pessoa está muito
sobrevalorizado... O Alberto Caeiro acho
muito fraco, algum Ricardo Reis, algum
Álvaro de Campos eu gosto, a prosa acho
miserável”. Quanto a O Livro do Desassosse-
A ntipetrarquismo é a designação usa-
da para referir o posicionamento
daqueles autores que, sobretudo a partir
go, a resposta não se faz esperar, vem dire- do séc. xvi, sem que a admiração gene-
ta e virulenta: “Acho uma porcaria” (Id., ralizada pela obra de Petrarca fosse pos-
Ibid., 339). ta em causa, questionaram a sua lição,
Muito curiosamente, existiria, a crer submetendo-a a recriações de natureza
em Eduardo Lourenço, uma notória se- mais ou menos profunda, normalmente
melhança compositiva entre Pessoa e em sentido irónico ou em tom de paró-
Lobo Antunes enunciada num soneto dia, mas sempre deixando antever uma
daquele. Em ambos, digamos, a compo- velada intenção crítica e uma necessida-
sição literária obedeceria a uma espécie de evidente de criar fora da unanimida-
de transe mediúnico que funcionaria de dos cânones dominantes. Pode, pois,
como combustível criativo: “Uma vez o considerar-se que o antipetrarquismo
Eduardo Lourenço estava a dizer: ‘Ah, tu decorre das reservas suscitadas pela imi-
fazes-me lembrar um soneto de Pessoa...’ tação da obra de Petrarca e dos poetas
Fiquei logo de pé atrás, não é? A minha que o emularam sem que, no entanto, a
relação com Pessoa... É aquele que co- validade do modelo criado pelo vate ita-
meça: ‘Emissário de um rei desconheci- liano e disseminado pelos poetas ditos pe-
do/Eu cumpro informes instruções do trarquistas fosse abalada nos seus funda-
além...’ E depois começa a aparecer uma mentos intrínsecos. Apesar de configurar
coisa, uns filamentos, umas frases, um es- uma tendência subalterna no panorama
boço de história” (Id., Ibid., 550). literário do humanismo renascentista, o
antipetrarquismo caracteriza-se por pôr
em questão a hegemonia do modelo di-
vulgado por Petrarca, quer em termos te-
máticos, quer estilístico-formais.
Bibliog.: ARNAUT, Ana Paula (ed. lit.), En- É consabida a importância de Petrarca
trevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: para a renovação das práticas literárias e
Confissões do Trapeiro, Lisboa, Almedina, 2008; dos códigos estéticos no quadro do Re-
CESARINY, Mário, O Virgem Negra, Lisboa, As-
nascimento, época marcada por profun-
sírio e Alvim, 1989; FIGUEIREDO, Tomás de,
“Acerca de Fernando Pessoa”, Aléo, 30 dez. das alterações tanto no plano das letras
1942, pp. 2-3; MOURA, Vasco Graça, Contra e das artes, como no da história cultural,
Bernardo Soares e Outras Observações, Lisboa, social e civil da Europa dos sécs. xv e xvi.
Campo das Letras, 1999; Id., Discursos Vários Tendo por suporte o humanismo, basea-
Poéticos, Lisboa, Verbo, 2013; SILVA, João Céu do na redescoberta e no conhecimento
e, Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes, profundo dos textos clássicos greco-lati-
Porto, Porto Editora, 2009.
nos, dos quais emergia uma imagem po-
Sérgio Guimarães de Sousa sitiva do Homem e do mundo capaz de

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1438 Antipetrarquismo

superar a visão alegórica e teologal carac- via também ser imitado como poeta que
terística da Idade Média, o Renascimen- modelarmente realizara a sua obra poéti-
to significou a afirmação do paradigma ca como um ‘espelho de vida’ (não se ex-
antropocêntrico concebido a partir da cluindo deste juízo uma positiva valoração
consciência da importância do Homem ética)” (SILVA, 1994, 181-182).
enquanto criação de Deus, dotado de ra- O prestígio de Petrarca assumiu tais
zão e da capacidade de agir sobre a reali- proporções que não será exagero afir-
dade circundante. Assistiu-se assim a uma mar que o idioleto por ele criado domina
mudança de perceção em relação aos ter- toda a produção lírica europeia do perío-
mos que constituem a tríade Deus-mun- do renascentista, ao ponto de se tornar
do-Homem, adquirindo este último uma “un hábito, una costumbre social, una
preponderância que levou a reconhecer cuestión de moda y de buen gusto dentro
o seu valor enquanto indivíduo. de la sociedad refinada y culta de la épo-
Neste contexto, Petrarca assumiu um ca [um hábito, um costume social, uma
papel fundamental, na medida em que questão de moda e bom gosto dentro da
marcou um ponto de inflexão definitivo sociedade refinada e culta da época]”
entre as mundividências medieval e re- (GARRIDO, s.d., 14). Tal equivale a dizer
nascentista, nomeadamente no que diz que a obra do poeta italiano foi objeto de
respeito à forma como a figura do poeta inúmeras traduções, imitações e comen-
passou a ser apreciada. O poeta de Arezzo tários, dando origem ao denominado pe-
foi o primeiro intelectual dedicado intei- trarquismo convencional, que se traduziu
ramente à criação literária, afastando-se no aparecimento de glossários, rimários
da sociedade mundana e mantendo com e mesmo miscelâneas de poemas escri-
as instituições mais prestigiadas da épo- tos à maneira de Petrarca e adaptáveis às
ca – a Igreja e a corte – uma relação de mais diversas situações. Este cenário de
representatividade, mas ao mesmo tempo saturação gera um contexto que permite
de independência. Ele personifica assim compreender o fenómeno do antipetrar-
o novo modelo emergente de intelectual­ quismo como manifestação de um desejo
‑cortesão, o qual constitui o ideal humano de oposição à tendência para uma prática
do período em causa; a sua poesia, por imitativa estrita, marcada pela invariabi-
seu lado, representa a codificação estética lidade e pela cristalização dos processos
e literária de tal ideal de vida. Deste modo criativos.
o Canzoniere, reconhecidíssimo repositó- Com efeito, nem toda a produção artís-
rio da poesia lírica de autoria petrarquia- tica e literária do Renascimento se con-
na, que associa a um refinamento linguís- forma com o cânone proposto, praticado
tico a expressão íntima do mundo afetivo e apreciado pelas elites culturais. Pelo
e sentimental do próprio autor, institui-se contrário, existiram manifestações poéti-
como a materialização programática do cas não hegemónicas, mas antes que dei-
género lírico de feição autobiográfica e xam de manifesto uma certa heterogenei-
confessional, na qual podiam ser encon- dade face ao paradigma dominante. Tais
trados os temas, os estilemas e as macroes- manifestações podem ser classificadas
truturas formais tidas como o acme do como antipetrarquistas por apresentarem
engenho poético. Petrarca passou assim a como característica definitória principal
ser objeto de imitação “como poeta que o facto de se contraporem aos cânones
criara um requintado e paradigmático ideais de beleza e de harmonia estética
repositório estilístico-formal, mas que de- teorizados pelos humanistas renascen-

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Antipetrarquismo 1439

tistas e apropriados por Petrarca e pelos


poetas petrarquistas. Ou seja, por porem
a nu o desajustamento existente entre um
plano teórico onde se inserem a língua
poética e os modelos de comportamento
vulgarizados pela poesia de Petrarca, e
que os poetas seus seguidores imitaram,
e a prática que lhes subjaz, mostrando à
saciação o carácter estereotipado de um
modo de poetar marcado pela aceitação
acrítica das normas estéticas do sistema
literário dominante e pela repetição in-
sistente dos mesmos códigos semânticos
e estilístico-formais.
As manifestações iniciais de antipetrar-
quismo tiveram origem na própria Itália,
pátria do petrarquismo, e é entre os au-
tores italianos que o fenómeno primeira-
mente ganha expressão. Com efeito, a ad-
miração tributada à obra de Petrarca não
impediu que alguns autores assumissem,
por vezes, uma atitude de contestação,
revelada em registo irónico ou parodís-
tico. Tais são os casos de Camillo Scrof-
fa, autor de “despudorados sonetos”; de
Nicolau Maquiavel, a quem “a sátira an-
tipetrarquista havia inspirado […] um Francesco Petrarca (1304-1374).
texto tão corrosivo como a Mandragola”
(MARNOTO, 1997, 660); e de Ruzzan- parodístico e dissonante não foi tão con-
te, cujas comédias, partindo embora dos tundente, o que não significa que o an-
modelos codificados, os subvertem com tipetrarquismo não tenha tido expressão
claras intenções satíricas e críticas, que em Espanha e em Portugal.
pretendem, em última análise, afastar-se A título de exemplo da ocorrência do
do idealismo petrarquista e neoplatonis- fenómeno na produção literária do país
ta e assumir-se como um reflexo mais fi- vizinho, referiremos apenas o caso de Mi-
dedigno e direto da realidade social da guel de Cervantes, centro do cânone da
época. Aliás, cabe ressaltar o papel pre- literatura em língua espanhola, cuja opera
ponderante desempenhado pelos textos magna – Dom Quixote – prodigaliza exem-
dramáticos, nomeadamente as comédias, plos bastantes de antipetrarquismo. A ge-
para a expressão do antipetrarquismo, nialidade e a originalidade de Cervantes
pois este tipo de textos permitiu aos seus levaram-no a repudiar um tipo de imita-
autores fazerem a revisão crítica dos pos- ção baseado na mera repetição dos con-
tulados estéticos e idealizantes da literatu- vencionalismos imagísticos petrarquistas,
ra renascentista. na sua generalidade tão tópicos que dei-
Entre os autores peninsulares ibéricos, xam pouca margem para uma verdadeira
a reescrita de textos de Petrarca em tom expressão literária das vivências íntimas

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1440 Antipetrarquismo

do poeta. Por isso, “a partir de la poesia retratar o comportamento afetivo de ena-


inserta en el Quijote, de lo que podemos morados fanfarrões, como a linguagem
hablar es de antipetrarquismo o, si se prosaica e desprovida de poeticidade que
quiere, de la utilización de la imagineria o dramaturgo usa nestes textos mostram
petrarquista con fines burlescos o dudo- a distância que os separa da expressão de-
sos [a partir da poesia inserida no Quixo- licada de sentimentos e de emoções que
te, podemos falar de antripetrarquismo o código petrarquista divulgou através de
ou, se se preferir, da utilização da ima- um conjunto bem codificado de imagens
ginaria petrarquista com fins burlescos metafóricas usadas para descrever a bele-
ou duvidosos]” (SOROLLA, 1990, 762), za feminina e a perfeição idealizante do
de que é exemplo eloquente o retrato de sentimento amoroso.
Dulcineia. Quanto a Camões, apesar de, na sua
No caso português encontram-se ma- produção dramática, também ridiculari-
nifestações antipetrarquistas tanto em zar figuras e situações tipificadas, mani-
produções dramáticas, como líricas. Pa- festando assim a sua independência face
radoxalmente, os melhores exemplos do ao padrão petrarquista que lhe serve de
fenómeno nas letras portuguesas encon- modelo, é na sua obra lírica que se ras-
trámo-los na obra de alguns dos autores treiam os melhores exemplos de antipe-
que mais contribuíram para a introdu- trarquismo. Na verdade, embora Camões
ção, teorização e aprimoramento das não tenha deixado de explorar o filão pe-
inovações estéticas do Renascimento, em trarquista nos seus poemas líricos, a sua
cujo centro está precisamente Petrarca e obra mostra que ele ocupa já um lugar
o seu Canzoniere, cabendo aqui referir de de transição entre o Renascimento e o
forma particular Sá de Miranda, António maneirismo, pois se, por um lado, se re-
Ferreira e Luís de Camões. vela um fiel imitador de modelos literá-
Sá de Miranda, pioneiro na introdu- rios consagrados, por outro, recria-os de
ção dos novos códigos poéticos quer a forma distanciada e muito livre, mostran-
nível formal, quer temático, coloca na do-se crítico em relação aos modelos que
fala da personagem Inês, da écloga En- adota.
cantamento, “uma severa condenação No Canzoniere de Petrarca, o retrato
de amor, elaborada a partir de algumas feminino é construído a partir de um es-
das mais famosas imagens petrarquistas” casso número de elementos caracteriza-
(MARNOTO, 1997, 656); para além dis- dores, que se fixam, por via de regra, no
so, igualmente na sua produção teatral, semblante da amada: cabelos, olhos, face
assume uma atitude crítica face ao petrar- e boca, aos quais se podem acrescentar
quismo, explorando as potencialidades o pescoço, o peito e a mão. Além disso,
cómicas de uma linguagem preciosista as metáforas e as imagens utilizadas são
e repleta de chavões, que, desprovidos bem definidas e remetem sobretudo para
de qualquer autenticidade dramática ou a luminosidade e a cor. Posteriormente,
verosimilhança situacional, não podem os ditos poetas petrarquistas procederam
senão ser entendidos como uma paródia a uma miscigenação destes elementos do
antipetrarquista. código petrarquista com componentes
Também António Ferreira se serve so- do ideário neoplatonista. O amor passa
bretudo das suas comédias – Bristo e Cio- a ser concebido como um sentimento
so – para subverter o modelo petrarquista. harmonioso que proporciona felicidade
Tanto as situações cómicas criadas para ao enamorado; a figura feminina enalte-

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Antipetrarquismo 1441

cida é dotada de uma excecional beleza teressado prestado pelo amante à dama e
física e de uma essência angelical. Toda- à qual Camões contrapõe uma outra bem
via, como já antes se referiu, toda esta diferente, decorrente de uma atitude de
harmonia tem um preço: quer a figura assunção e de exibicionismo da dimensão
da mulher, quer a própria relação amo- sexual humana; ou no recurso à ironia
rosa assumem contornos marcadamente com que são tratados alguns símbolos de
academicistas, sendo o resultado de um amor petrarquista, como seja o símbolo
trabalho de seleção e de combinação de do objeto pertencente à pessoa amada e
elementos extraídos da obra de Petrarca que a pode substituir – o fetiche amoroso.
e carecendo, portanto, de autenticidade Em suma, pode afirmar-se que embora
poética. “as situações básicas do universo lírico
Ora, no quadro da poesia lírica de Ca- petrarquista, os seus grandes temas, a
mões, o modelo do retrato petrarquista gama de imagens utilizadas e os precei-
pode surgir trabalhado com substancial tos estilístico-retóricos que o enformam,
liberdade relativamente à matriz italiana. bem como as estruturas métricas e com-
Na verdade, na poesia camoniana, sobre- positivas celebrizadas pelas páginas dos
tudo nos textos escritos em medida velha Rerum Vulgarium Fragmenta [continuem]
(mas não só), observa-se uma transgres- a oferecer-se como padrão a ser mode-
são do modelo petrarquista quer na for- lizado” (Id., Ibid., 680) pela maioria dos
ma como a figura da mulher é descrita, autores da chamada época clássica, não
quer na recusa de uma conceção espiri- pode ser ignorada, na literatura euro-
tual e platónica do amor. peia, mormente na italiana e nas ibéricas,
No que diz respeito à recriação do mo- a existência de autores que assumiram
delo petrarquista de descrição da figura uma atitude de contestação das conven-
feminina, esta pode ser feita através do ções petrarquistas e, sobretudo, dos ex-
aproveitamento de elementos típicos do cessos que estas originaram, atitude essa
modelo aos quais são apostas caracte- classificável sob a designação de antipe-
rísticas contrárias, que, no entanto, são trarquismo.
consideradas superiores às características
canónicas, ou que são referenciadas jun-
tamente com outras que relevam da tradi-
ção lírica peninsular, com reminiscências
Bibliog.: impressa: MARNOTO, Rita, O Pe-
populares. Tal recriação pode ainda as- trarquismo Português do Renascimento e do Ma-
sumir contornos mais radicais, por meio neirismo, Coimbra, Universidade de Coimbra,
da negação explícita do próprio modelo, 1997; Id., Sete Ensaios Camonianos, Coimbra,
cuja pertinência é posta em causa de for- Centro Interuniversitário de Estudos Camo-
ma crítica e satirizante, quando não mes- nianos, 2007; SILVA, Vítor Manuel Aguiar e,
mo burlesca. Camões: Labirintos e Fascínios, Lisboa, Cotovia,
1994; SOROLLA, Maria Pilar Manero, Imáge-
Por outro lado, também a conceção es-
nes Petrarquistas en la Lírica Española del Renaci-
piritual e platonizante do amor é questio- miento: Repertorio, Barcelona,  Promociones y
nada por meio de um trabalho de trans- Publicaciones Universitarias, 1990; digital:
formação do ideário dominante, o qual GARRIDO, Elisa Martínez, La Crisis del Hu-
assenta em dois processos fundamentais: manismo y el Renacimiento Italiano, s.d.: http://
numa desmistificação da conceção petrar- pendientedemigracion.ucm.es/info/italiano/
quista de amor cortês, que leva a encarar (acedido a 10 jan. 2017).
esse sentimento como um serviço desin- Micaela Ramon

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1442 Antipicarismo

Antipicarismo

A sátira, entendida como um proces-


so divertido de denunciar os podres
da sociedade, atravessa toda a história da
literatura portuguesa e das modalidades
genéricas que lhe dão corpo. O jeito pica-
resco de criticar a realidade do país não
foge à regra, muito embora o modelo
lusitano se tenha afastado do castelhano
estabelecido pelo autor anónimo de Laza-
rillo de Tormes (1554), por Mateo Alemán
nas duas partes de Guzmán de Alfarache
(1599 e 1604) e por Quevedo em Buscón
(1626), criando soluções muito próprias
ou anticanónicas da matriz hispânica
fundadora.
O carácter fragmentário e antinoveles-
Folha de rosto de La Vida de Lazarillo de Tormes,
co de algumas obras arroladas na série na edição de 1554 de Medina del Campo,
explica, em parte, a conduta anticonven- impressa por Mateo e Francisco del Canto.
cional que as define. Tais os casos da Far-
sa dos Escudeiros (1505) de Gil Vicente, da
Arte de Furtar (c. 1652) e da Vida de Um nal dum género várias vezes operado nas
Estudante Pobre, coligida no Postilhão de Novelas Ejemplares e em Don Quijote.
Apolo (1761-62). A marca distintiva portu- A tendência antirrealista manifesta-se,
guesa pode aferir-se, também, pelo antir- por vezes, em formas literárias próximas
realismo gravado na estrutura discursiva das soluções novelescas aparentadas com
de alguns outros títulos de clara sonori- a picaresca. As Obras do Fradinho | Diabi-
dade pícara. Assim acontece com Relógios nho da Mão Furada (c. 1675), protagoni-
Falantes (1654), Escritório Avarento (1655), zadas por um ex-combatente das guerras
Visita das Fontes (1657) e Hospital das Le- da Flandres à procura da remissão total
tras (1657), os quatro Apólogos Dialogais de dos pecados no Convento de Xabregas,
D. Francisco Manuel de Melo, protagoni- sublinham os fitos antipícaros e exempla-
zados por objetos diversos animados de res do texto. Em Piolho Viajante (1802-04),
vida e capacidade de crítica generalizada conjunto de 72 relatos publicados em fo-
de costumes: relógios, moedas, fontes e li- lheto na passagem das estéticas barrocas
vros. Os ecos modelares gizados por Cer- tardias para as românticas de cariz po-
vantes em El Coloquio de los Perros (1613) pular, a feição apicarada do autobiogra-
são percetíveis nos textos portugueses, fado é similarmente posta em causa pela
forma privilegiada encontrada pelo autor natureza não humana que possui. Dei-
castelhano de satirizar o cânone tradicio- xam-se ouvir as ressonâncias distantes da

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Antipicarismo 1443

2.ª parte de Lazarillo de Tormes (1555), a predestinação inevitável para o crime.


onde o anti-herói se converte em atum, O processo de desintegração do género
numa subversão clara dos traços natura- estava concluído, abrindo sendeiros a no-
listas que deram origem ao género. vos paradigmas narrativos. A conversão
O corpus novelesco realista produzido do moço de muitos amos, nomes e ma-
pelas letras nacionais reduz-se a dois úni- nhas no servo exclusivo dum só senhor,
cos textos epígonos, compostos na pri- desígnio e devoção, a permuta do falso
meira metade de Seiscentos e publicados arrependimento pelo arrependimento
a título póstumo. O primeiro, redigido verdadeiro, a transformação do estado de
em português, deve-se a Fr. Gaspar Pires pecado da juventude no estado de graça
de Rebelo, com O Desgraciado Amante Pe- da velhice configuram a passagem da no-
ralvilho (1650), que só se desvia do mode- vela pícara pretérita na novela edificante
lo canónico fundador quando o testemu- futura. A conduta de vida antiexemplar
nho pessoal do protagonista alterna com do anti-herói pícaro e vagabundo criado
os apartes impessoais do narrador não por Alemán chegara ao fim, abrindo ca-
participante na intriga. O segundo foi minho à vida exemplar do herói antipíca-
concebido em castelhano por Félix Ma- ro e sedentário redesenhado por Monte-
chado de Silva, marquês de Montebelo, belo. O percurso acidentado da picaresca
fidalgo português exilado na corte de Fi- portuguesa estava traçado, dando origem
lipe IV após a restauração da monarquia aos pressupostos novelescos indicadores
lusitana por D. João IV. das virtudes contrarreformistas do antipi-
O sucesso obtido pela novela de Mateo carismo.
Alemán levou-o a continuá-la na Terce-
ra Parte de Guzmán de Alfarache (c. 1650)
em nome de um inventado e convenien-
te Félix Márquez, catedrático de prima
em picardia, que razões ignoradas man-
tiveram inédita até 1927, ano em que
Gerhard Moldenhauer a publica na Révue Bibliog.: GONÇALVES, Artur Ribeiro, “Tercei-
Hispanique, a partir dum manuscrito da ra parte portuguesa do Guzmán de Alfarache. As
metamorfoses do pícaro na visão do 1.º mar-
Biblioteca da Ajuda. A originalidade do
quês de Montebelo”, in LAFARGA, Francisco
inédito assenta na reabilitação total do et al., Interacciones entre las Literaturas Ibéricas,
protagonista, que é libertado das galeras vol. iii, Berna, Peter Lang, 2010, pp.  437­
por ser filho dum nobre espanhol, oriun- ‑450; Id., “Representações portuguesas da
do duma família balizada pela pureza peregrinação pícara peninsular: frei Gaspar
de sangue e o estamento social. O novo Pires de Rebelo e marquês de Montebelo”, in
D. Juan de Guzmán inicia uma peregrina- CALDERÓN, Manuel et al., Por S’Entender bem
ção a Santiago de Compostela, com par- a Letra. Homenagem a Stephen Reckert, Lisboa,
INCM, 2011, pp. 147-162; PALMA-FERREI-
tida de Sevilha e passagem por Portugal.
RA, João, Do Pícaro na Literatura Portuguesa, Lis-
Desiludido dos pecados humanos e dos boa, Instituto de Língua e Cultura Portuguesa,
bens terrenos, o ex-pícaro, ex-bandido 1981; SILVA, Félix Machado de, Tercera Parte
e ex-condenado converte-se em ermitão de Guzmán Alfarache, Sevilla, Ayuntamiento de
no finis terrae galego, protegido com o Sevilla, 2010; TRULLEMANS, Ulla M., Huellas
hábito de S. Francisco. A peregrinatio fami de la Picaresca en Portugal, Madrid/Gotenburg,
é substituída pela peregrinatio religiosae, ga- Instituto Ibero-Americano/Ínsula, 1968.
rantindo a vitória do livre-arbítrio sobre Artur Henrique Ribeiro Gonçalves

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1444 Antipimbismo

Antipimbismo nada a ver com o estilo da Ágata ou do


Tony Carreira. O meu género musical é a
dance music” (“E depois do pimba”, CM,
17 ago. 2003). Tony Carreira também re-
cusa a pertença ao género, dizendo ter­
‑se sentido muito ofendido por o terem
intitulado cantor pimba: “Não é justo, e

A dificuldade maior ao elaborar um


discurso sobre o movimento de opo-
sição ao pimba encontra-se na definição
a injustiça é uma coisa terrível”; este ar-
tista defende merecer a designação de
cantor romântico e não de cantor pimba,
desse género musical. Convencionou-se colocando a questão sobre a definição
designar de música pimba a música que do termo: “O que é música pimba? Não
figura nos festivais de verão rurais, des- sei. […] Quim Barreiros, por exemplo, é o
tinados à população local e à população quê? Para mim, é brejeiro. Quando se fala
emigrante que regressa a Portugal entre em música pimba, penso que as pessoas
julho e setembro. No entanto, existem di- querem dizer música má. […] Se o Iglé-
ferenças significativas no que diz respei- sias cantasse em Portugal chamavam-lhe
to ao estilo, à linguagem e aos temas das pimba, como me chamam a mim” (“A mi-
canções que participam nestes festivais. nha música …”, Expresso, 14 jun. 2009).
A dificuldade em circunscrever o domí- Como vemos, há muita confusão so-
nio deste género musical, assim como a bre o que é o pimba, que parece desig-
recusa de muitos cantores em aceitar a nar, de forma difusa, a música de falso
pertença a este género (que possui uma e barato sentimentalismo, a música bre-
conotação pejorativa), faz com que, por jeira, a música pobre linguisticamente,
vezes, se utilizem outros termos como estilisticamente, tecnicamente e inte-
“música popular de verão para nomear lectualmente, e a música que tem como
esta vertente da produção fonográfica público-alvo os emigrantes, as pessoas
portuguesa contemporânea” (MONTEI- do meio rural e as pessoas de menor ins-
RO, 2011, 10). trução. Desta forma, percebemos que o
A conotação negativa do termo “pim- próprio termo “pimba” constitui já, em
ba” está patente, desde logo, na defini- si mesmo, um ato de oposição ao género
ção encontrada no dicionário Priberam, que designa. Douglas Walton falava so-
a saber: “relativo à música de melodia bre o poder retórico presente na desig-
fácil ou pouco elaborada, com estruturas nação que damos às coisas, dizendo que,
musicais básicas e letras superficiais ou ao darmos um nome a um conteúdo, es-
de cariz brejeiro; que revela mau gosto tamos já a conduzir o pensamento para
ou fraca qualidade” (“Pimba”, Priberam). a sua aceitação ou rejeição. E.g., quando
Como se disse, muitos cantores censu- se deu à bomba atómica o nome “instru-
ram o uso do termo para designar a sua mento de manutenção de paz”, ou quan-
produção, alegando que “em nada se do se deu o nome de “guerra contra o
aproximam, sob uma perspetiva estilís- terrorismo” à guerra do Iraque, segundo
tica ou semântica, da produção suposta- o autor, manipulou-se a representação
mente seminal de Emanuel” (MONTEI- do conteúdo que foi trazido à reflexão
RO, 2011, 10). Iran Costa, e.g., na déc. de da população americana. Deste modo,
90 do séc. xx, rejeitava pertencer a este pensar em música pimba é, a priori, pen-
género musical, dizendo: “eu não tenho sar em música de mau gosto.

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Antipimbismo 1445

O que faremos é, por conseguinte, pro- brincadeira, nós pimba, nós pimba”; e, se
curar aclarar a definição do género musi- a alusão sexual pudesse passar despercebi-
cal com base na origem do conceito, i.e., da a alguém, o teledisco, que foi emitido
procuraremos circunscrever o conceito a no programa semanal de música da televi-
um conjunto de determinações específi- são pública durante um ano consecutivo,
cas, de modo a que possamos entender o mostrava um jovem a entrar no quarto de
que é verdadeiramente o pimba e o que o hotel de uma rapariga, a porta do quar-
é por confusão ou por vista grossa. to 66 a bater vigorosamente, e o número
O conceito de música pimba surgiu seis a rodar, transformando o número do
em 1995 com o sucesso do álbum Pimba, quarto em 69. Assim, a origem do termo
Pimba de Emanuel. Quim Barreiros já ti- refere-se à folia, i.e., à libertação de se dan-
nha feito carreira antes da déc. de 90, no çar alegremente ao som de um trocadilho
entanto, ainda não havia um conceito ou brejeiro. É esse trocadilho, que constitui a
um quadro de leitura para o género, por- essência da canção de Emanuel, que deu
que, segundo Emanuel, Quim Barreiros o nome ao género. Poderia defender-se,
e outros trabalhavam “muito no paralelo, então, por esta interpretação etimológica
nas cassetes piratas. Não tinham acesso da designação do género, que, e.g., Tony
à rádio, à televisão, etc. Vim trazer uma Carreira e Marco Paulo, de facto, não
outra forma [de fazer as coisas]. Fui su- pertencem ao pimba, mas ao género mais
ficientemente corajoso para dizer: ‘Não, amplo da música popular ligeira, no qual
não digam mal, isto tem qualidade’. Não o pimba se insere.
gostam? Isso é outra história. Mas há Emanuel descreve a inovação que trou-
quem goste. E o povo também tem direi- xe à música popular ligeira da seguinte
to a gostar, certo? Não tem de ser sempre forma: “A minha música tinha muito de
o secundário da coisa. A minha atitude é novo. Estudei a música tradicional – fui
que fez a mudança. E as pessoas também buscar todas as características da nossa
não gostavam de ser confrontadas (nin- música popular – e depois peguei na sua
guém gosta)”. O termo “pimba” nasceu origem musical e transformei-a numa
desta visibilidade que Emanuel trouxe música muito mais dinâmica e com uma
ao género musical na cultura dominan- linguagem, embora brejeira, mais abran-
te, através da televisão pública. O termo gente”; e acrescenta que foi após o seu
designa então, uma “música de três acor- primeiro álbum, Rapaziada Vamos Dançar,
des! […] música tonal […] música popu- “que nasceu a indústria da música portu-
lar” (CIPRIANO, Observador, 4 dez. 2016), guesa, a partir de 94, 95. Antes disso, o
festiva, humorística e com recurso a troca- Marco Paulo gravava versões” de músicas
dilhos e a duplos sentidos de cariz sexual. estrangeiras e “o único que fazia grandes
O “pimba” refere-se ao trocadilho brejei- músicas era o [José] Cid, e pouco mais”.
ro da música de Emanuel, que associa o Emanuel diz que o álbum Pimba, Pimba foi
modo informal de designar uma ação ao “a confirmação, porque o Rapaziada Va-
modo informal de designar o coito. No mos Dançar esteve seis meses no Top +. Um
tema, Emanuel canta: “se elas querem um escândalo! Um cantor popular no Top +?
abraço ou um beijinho, nós pimba, nós Aquilo era só música estrangeira e um ou
pimba, se elas querem muito amor, muito dois artistas dentro do pop. Levaram co-
carinho, nós pimba, nós pimba, e se elas migo seis meses. E quando pensavam que
querem um encosto à maneira, nós pim- era mais um que vem e vai, levaram com
ba, nós pimba, e se elas querem à noitinha o Pimba um ano no Top! Quinhentas e

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1446 Antipimbismo

qualquer coisa mil cópias vendidas naque- “na televisão, na imprensa ou na rádio, os
le verão. Não foi brincadeira” (Id., Ibid.). debates sobre o estado da música portu-
O cantor diz ter sido este sucesso no topo guesa sucediam-se, e os especialistas não
de vendas (e, por conseguinte, no progra- conseguiam disfarçar uma profunda irri-
ma de televisão da RTP que passava, se- tação quando se debruçavam sobre este
manalmente, as músicas que estavam no assunto” (“E depois do pimba”, CM, 17
topo de vendas) que conquistou o espaço ago. 2003).
televisivo para a música popular e que de- Eduardo Cintra Torres dizia, em re-
senvolveu a indústria. O pimba haveria de lação a este movimento de oposição à
conquistar, ainda na déc. de 90, as feiras, música pimba, que “os excluídos sabem
as festas das aldeias e os bailaricos de ve- que a música pimba é a sua música.
rão, que se não tivessem um cantor pimba E sabem que os outros – os que têm po-
“perdiam a graça” (“E depois do pimba”, der  –  odeiam os seus valores culturais.
CM, 17 ago. 2003), e, diariamente, os pro- E  isso fá-los identificar-se ainda mais
gramas da manhã e da tarde da televisão com a Mónica Sintra” (Ibid.).
portuguesa. O cantor Toy dizia que a opinião do pú-
O sociólogo Eduardo Cintra Torres diz blico era a única coisa que interessava e
que, antes do 25 de Abril, havia espaço, que os críticos eram “uns ignorantes que
na cultura, para a “música popularucha”, não percebem nada de música” (Ibid.),
presente tanto na televisão pública como apesar de reconhecer que era mais fácil
na rádio e no teatro de revista, mas que, cantar um tema popular do que um tema
após a Revolução, a RTP “exerceu uma de outro estilo musical. Emanuel, que fora
censura cultural sobre este tipo de pro- confrontado com a crítica à pobreza da
duto popular, ‘alienante’. Os ‘popularu- estrutura musical do seu tema, procurava
chos’ entraram numa clandestinidade explicar que não se podia descaracterizar
mediática: passaram da rádio, da revista e a música popular com acordes dissonan-
da RTP para as feiras e para os palcos im- tes e dizia que “aquela música só podia
provisados em qualquer lugar da ‘provín- ter três acordes. Se tivesse mais, estragava
cia’. […] Para o mundo ‘popularucho’, o tudo. Eu não tenho culpa que as pessoas
aparecimento da SIC foi o seu 25 de Abril não tenham este conhecimento. […] Se
e 25 de Novembro: terminava a clandes- Deus perdoa os ignorantes, quem sou eu
tinidade, começavam, no Big Show SIC, para não lhes perdoar? […]  Temos de
os amanhãs que cantam. Em breve a RTP ser um pouco mais ecléticos, respeitar o
via-se obrigada a retomar o ‘popularu- gosto dos outros” (CIPRIANO, Observa-
cho’ de antes do 25 de Abril. Só depois dor, 4 dez. 2016). “Perante os ataques da
de a SIC existir é que Herman José, que comunicação social, […] Emanuel, num
antes os humorizava em Tony Silva ou Se- momento mais exaltado chegou a dizer
rafim Saudade, passou a levar os pimbas que os críticos podiam falar à vontade:
aos seus programas. Aos seis anos de ida- ‘Mas no final do dia, eu vou para casa
de, a SIC deixou-se levar de vencida pela num Mercedes e eles, coitados, num pe-
ideia dominante do que é o ‘bom gosto’ queno utilitário’. Uma guerra de palavras
e quer mudar de estatuto, quer ficar mais que contribuiu para o florescimento do
‘socialmente apresentável’” (TORRES, fenómeno” (“E depois do pimba”, CM, 17
Público, 14 abr. 1999). Este movimento ago. 2003).
crítico daquilo a que chamava a “socie- Tony Carreira dizia, sobre a força de
dade elegante” fez-se sentir de imediato: oposição ao pimba na cultura portuguesa,

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Antipimbismo 1447

que “o meu percurso na música ligeira


foi muito mais difícil do que se cantas-
se rock, pop, jazz ou blues […] porque,
à partida, um cantor de música ligeira é
logo denegrido” (“A minha música…”,
Expresso, 14 jun. 2009). Ágata confirma-
va esta dificuldade, dizendo sentir um
grande estigma por pertencer à música
pimba: “uns dizem que a editora não dei-
xa, outros que não é bem a área. Tinha
o sonho de cantar com vários colegas e
nunca foi possível. Muitos dizem que sim
e depois nunca mais atendem o telefone”
(PEREIRINHA, Sábado, 2 jul. 2016).
Em 2014, uma música pimba venceu
Esperança, de Emanuel (n. 1957).
o Festival da Canção. Este incidente deu
lugar a uma grande polémica. Regista-
ram-se muitos comentários negativos na tas canções nas noites do Santo António
rádio, na televisão e na plataforma online ou do São João”, observando que o pimba
da RTP, e houve uma petição pública com era vivido, nessas noites, de duas formas
milhares de assinaturas para bloquear a diferentes, relacionadas com a classe so-
participação do tema no Festival da Eu- cioeconómica: “para uns, elas são genuí-
rovisão, como representante de Portu- nas e, sem qualquer pudor ou vergonha,
gal. “José Cid, que participou em vários constituem a sua banda sonora diária;
destes festivais, afirma que o evento está para outros, são só mais um elemento
hoje ‘mal organizado’ e que isso se refle- de um anedotário elitista, para consumo
te numa má representação internacional imediato e, de preferência, regado a ál-
da ‘alma portuguesa’. ‘A votação que o cool”. E concluía: “Há muito que o tro-
público faz é muito mal pensada. A tele- cadilho brejeiro faz parte do cancioneiro
visão devia escolher o músico que nos vai pimba nacional. Na verdade, a piadola da
representar. Portugal está cheio de bons coentrada, do bacalhau ou dos grelos já
poetas e bons músicos e de bons intérpre- não choca os ouvidos mais puritanos e
tes’, diz”. A organização do festival acei- nem vale a pena rezar três avé-marias por-
tou as críticas e admitiu que o festival “já que até na festa da paróquia as músicas
não tem o significado que teve há umas da Rosinha já têm lugar garantido” (LA-
décadas” e justificou-se dizendo que “não MELAS, Sábado, 24 set. 2016).
há o envolvimento atrás do festival que Um dos fatores que terá contribuído
lhe concedia mediatismo. Não há edito- para a mudança significativa de relação
ras nem artistas a apostar nesse género de com a música pimba terá sido o movi-
música” (MARQUES, Rádio Renascença, mento de aceitação e de legitimação cul-
18 mar. 2014). tural do pimba iniciado por Bruno No-
Filipe Lamelas, em 2016, dava conta de gueira em 2013. O humorista convidou
uma mudança significativa na relação da a cantora Manuela Azevedo, músicos de
população urbana com o pimba. Dizia jazz e músicos de instrução clássica a cria-
que se acrescentava “uma nova dimensão rem novas orquestrações para os temas,
ao fenómeno: o facto de ser cool ouvir es- reinventando-os. O humorista esteve em

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1448 Antipimbismo

digressão pelo país, entre 2013 e 2016, e Paulo vendeu 5.000.000 de discos. Jorge
convidou a Orquestra Metropolitana de Palma, um dos músicos mais prestigiados
Lisboa e artistas prestigiados como Jor- pela crítica do nosso país, que participou
ge Palma e Sara Tavares a juntarem-se a nos concertos de legitimação do pimba
ele. O espetáculo foi recebido em espa- organizados por Bruno Nogueira, encon-
ços culturais de renome como o Teatro tra-se abaixo de 500.000 vendas. Outra
S. Luiz. Na sinopse oficial do espetáculo forma de ponderarmos o sucesso da mú-
“Deixem o pimba em paz”, lia-se: “O pim- sica ligeira popular portuguesa é compa-
ba é unificador. Às escondidas, para não rar o número de discos vendidos pelo seu
parecer mal. Seja numa festa da Quinta cantor mais bem sucedido, Roberto Leal,
do Lago, seja no meio de um churrasco com o número de discos vendidos pela
em Massamá, aos primeiros acordes de totalidade dos 18 artistas internacionais
uma música de Quim Barreiros haverá mais bem sucedidos em vendas no nosso
uma debandada a correr para a pista de país: Roberto Leal vendeu, em Portugal,
dança e a cantar o refrão em alegre e alta mais discos que a totalidade dos seguintes
voz” (“Deixem o pimba…”, Teatro Muni- artistas: Júlio Iglésias, Roberto Carlos, Ro-
cipal São Luiz). A proposta do espetácu- berta Miranda, Daniela Mercury, ABBA,
lo era clara: acarinhar a alegria e a folia Pink Floyd, The Beatles, Madonna, U2,
do pimba e largar o escárnio da crítica Caetano Veloso, Ivete Sangalo, Shakira,
intelectual. Laura Pausini, Andrea Bocelli, Alejandro
Emanuel, numa entrevista, procurava Sanz, Ney Matogrosso, Fafá de Belém e
explicar a crítica à música pimba da se- Michael Jackson.
guinte forma: “Não era conhecimento, era Iran Costa, que, como vimos, apesar de
puro preconceito. E também havia esta rejeitar pertencer ao género da música
tendência que temos cá em Portugal de pimba, favoreceu do espaço conquistado
criticar tudo aquilo que tem muito suces- por Emanuel para a música ligeira, “con-
so” (CIPRIANO, Observador, 4 dez. 2016). seguiu vender mais de 160 mil unidades
Este aspeto do sucesso da música pimba do seu álbum Dance Music. Resultado:
poderá ser, de facto, muito importante o Bicho rendeu 230 mil contos e o cachet
para que se compreenda a enorme dimen- do cantor subiu em flecha, ficando-se pe-
são do movimento de oposição ao pimba los 800 contos por espetáculo. Tendo em
na sociedade portuguesa, sobretudo por conta que nesses meses quentes estava
parte dos críticos de música e dos agentes previsto o brasileiro dar perto de 100 con-
do meio, que procuravam lutar contra a certos...é uma questão de fazer as contas”
exposição mediática deste novo género. (“E depois do pimba”, CM, 17 ago. 2003).
Segundo a Wikipédia, na página “Lis- Sem considerar a inflação, os 230.000 con-
ta de músicos recordistas de vendas em tos obtidos com a venda do disco corres-
Portugal”, atualizada em fevereiro de pondem a uma receita de 1.147.235,16 €;
2017, quatro dos cinco artistas que ven- os 800 contos por espetáculo correspon-
deram mais discos em Portugal são can- dem a uma receita de 399.038,32 €, pela
tores de música popular ligeira. Segundo totalidade dos 100 espetáculos dados no
a plataforma, Amália Rodrigues vendeu verão de lançamento do álbum que con-
30.000.000 de discos, Roberto Leal ven- tinha o tema “O bicho”.
deu 17.000.000 de discos, Linda de Suza
vendeu 8.000.000 de discos, Jorge Ferrei-
ra vendeu 6.000.000 de discos e Marco

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Antiplatonismo 1449

Bibliog.: CIPRIANO, Rita, “Emanuel: Eu sou


a prova viva de que tudo é possível”, Obser-
Antiplatonismo
vador, 4 dez. 2016: http://observador.pt/
especiais/emanuel-sou-a-prova-viva-de-que-
tudo-e-possivel/ (acedido a 23 maio 2017);
“Deixem o pimba em paz”, Teatro Municipal
São Luiz: http://www.teatrosaoluiz.pt/cata-
logo/detalhes_produto.php?id=368 (acedi-
do a 23 maio 2017); “E depois do pimba”,
Correio da Manhã, 17 ago. 2003: http://www.
cmjornal.pt/mais-cm/domingo/detalhe/e-
P latão é um dos pais fundadores da
cultura europeia. Sendo um dos filó-
sofos mais influentes de todos os tempos,
depois-do-pimba (acedido a 23 maio 2017); não há nenhum século posterior ao seu
LAMELAS, Filipe, “O pimba e o pop do ve- que não se tenha confrontado com o seu
rão 2016: uma crítica de música”, Sábado, 24
pensamento. O seu legado filosófico é de-
set. 2016: http://www.sabado.pt/gps/deta-
cisivo para muitas áreas do pensamento
lhe/o-pimba-e-o-pop-do-verao-2016-uma-
critica-de-musica (acedido a 23 maio 2017); do séc. xxi. De tal forma é assim que o
“Lista de músicos recordistas de vendas em platonismo, originalmente relativo à Teo-
Portugal”, in Wikipédia, 9 maio 2017: https:// ria das Ideias de Platão, se transformou
pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_m%C3%BA- num movimento filosófico historicamen-
sicos_recordistas_de_vendas_em_Portugal te muito mais amplo e complexo do que o
(acedido a 23 maio 2017); MARQUES, Ana sistema filosófico produzido pelo discípu-
Patrícia, “Vitória pimba no Festival da Can-
lo de Sócrates; há, portanto, o platonismo
ção abre polémica”, Rádio Renascença, 18 mar.
de Platão e o platonismo dos platónicos.
2014: http://rr.sapo.pt/informacao_deta-
lhe.aspx?fid=30&did=142499 (acedido a 23 Neste sentido, o platonismo assume dois
maio 2017); “A minha música tirou uma fã do sentidos diferentes: por um lado, é a dou-
coma”, Expresso, 14 jun. 2009: http://expres- trina filosófica proposta por Platão; por
so.sapo.pt/actualidade/a-minha-musica-ti- outro lado, é a designação dada à filosofia
rou-um-fa-do-coma=f520548, (acedido a 23 preconizada pelos discípulos de Platão e
maio 2017); MONTEIRO, Tiago José, “Nós pelos que nele se inspiraram para formu-
pimba!: uma reflexão em torno das apropria- lar as suas próprias ideias filosóficas. Des-
ções e dos juízos sobre um estilo musical es-
te modo, ao longo da história apareceram
tigmatizado”, comunicação apresentada ao
XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Co- várias escolas de platonismo: o platonis-
municação, Recife, 2-6 set. 2011: http://www. mo da Academia, o platonismo médio, o
intercom.org.br/papers/nacionais/2011/ neoplatonismo, o platonismo cristão, o
resumos/R6-0820-1.pdf (acedido a 23 maio platonismo árabe e o persa, o platonismo
2017); PEREIRINHA, Tânia, “Ágata: É difícil bizantino e o latino-medieval, o platonis-
arranjar colegas que cantem comigo”, Sába- mo utópico e político do Renascimento,
do, 2 jul. 2016: http://www.sabado.pt/vida/ o da Modernidade, o contemporâneo, o
detalhe/agata-e-dificil-arranjar--colegas-que-
platonismo literário, o simbólico, o reli-
cantem-comigo--parece-que--sou-um-bicho
(acedido a 23 maio 2017); “Pimba”, Priberam:
gioso, o místico, o científico, etc.
https://priberam.pt/dlpo/pimba (acedido a É uma tarefa quase impossível fazer o
23 maio 2017); TORRES, Eduardo Cintra, inventário completo da influência exer-
“Os avanços e recuos do pimba”, Público, 14 cida por um autor como Platão. Mesmo
abr. 1999: https://www.publico.pt/media/ que esse levantamento se circunscrevesse
jornal/avancos-e-recuos-do-pimba-131931 ao caso de um país como Portugal, mui-
(acedido a 23 maio 2017). to haveria a dizer: o pensamento do au-
Ricardo Franco tor da República influiu em praticamente

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1450 Antiplatonismo

todos os domínios da cultura portuguesa,


não só na esfera das disciplinas filosóficas
tradicionais, mas também na reflexão so-
bre as artes, a matemática, a educação, a
poesia, a política e a teologia; basta um
breve exemplo para se compreender o
que está em causa.
A cultura europeia representou, duran-
te muitos séculos, a forma de sobrevivên-
cia da alma depois da morte como resul-
tado de uma avaliação moral: as pessoas
que tiverem vivido retamente serão re-
compensadas no Além, as que não o tive-
rem feito serão sancionadas. O Além que
é representado nos poemas homéricos é
moralmente neutro, no sentido em que o
pior dos assassinos terá o mesmo destino
que o homem mais justo. Em contrapar-
tida, os quatro mitos platónicos sobre a
morte, que amplificaram a conceção da
morte dos pitagóricos, moralizaram o
destino das almas, no sentido em que o
Platão (428-348 a.C.).
destino dos malfeitores será diferente do
destino dos benfeitores; esta moralização
da representação da morte tornou-se, que “cada século, a bem dizer, conheceu
mais tarde, um elemento decisivo para uma interpretação do Platão” (CARVA-
a estruturação da teologia cristã. Apenas LHO, 1948, 230). Apesar dessa diversi-
mais um exemplo. Em boa parte das ins- dade de interpretações, no que se segue
tituições de ensino dos países ocidentais tentar-se-á inventariar os autores que
está em vigor a paridade na educação de ostensivamente se pronunciaram contra
homens e mulheres; ora, o primeiro au- algum aspeto do pensamento de Platão.
tor ocidental a falar sistematicamente do É necessário ter em conta que muitas crí-
assunto foi Platão. Os exemplos poderiam ticas, ou talvez mesmo a totalidade, não
ser facilmente multiplicados. Como seria derivam de nenhum movimento organi-
de esperar, a dificuldade que se refere à zado contra o autor, mas do debate acadé-
delimitação da influência do pensamen- mico ou intelectual normal. Além disso,
to de Platão alastra aos movimentos que as críticas feitas a Platão não pressupõem
de algum modo se posicionaram contra o uma crítica à filosofia em geral. A cultura
pensamento platónico, seja o que consta portuguesa tem sido atravessada, ao lon-
dos escritos de Platão, seja o que, por me- go dos séculos, por tradições sapienciais
diação de outros autores, foi de certa for- que denunciaram sistematicamente a
ma absorvido por algumas instituições. proliferação de uma atividade intelectual
Nos seus estudos sobre o conhecimen- voltada sobre si mesma e a soberba dos sá-
to de filósofos por parte de Camões, Joa- bios. Para lá dos vários autores que foram
quim de Carvalho resume a questão da influenciados pelo Elogio da Loucura, de
receção portuguesa de Platão afirmando Erasmo (como Aires Barbosa), passando

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pela afirmação de que toda a sabedoria reiro, João de Deus e o Franciscano Pe-
humana é loucura e vaidade aos olhos dro Hispano. Em torno desta receção,
de Deus (P.e Manuel Bernardes, P.e Antó- são também dignos de registo: o relativo
nio Vieira, Matias Aires), pela denúncia afastamento da filosofia platónica entre
da vida como um sonho inconsequente os príncipes escritores da Casa de Avis,
(Isaac de Sequeira Samuda) ou como devido ao ascendente do pensamento de
uma loucura permanente (João Pedro do matriz estoica; a estima de Camões por
Vale, pseudónimo de António Félix Men- aspetos do pensamento platónico; a pre-
des, e sobretudo José Daniel Rodrigues sença da sabedoria socrático-platónica
da Costa) e pelo pessimismo antropológi- em D.  Jerónimo Osório; a presença do
co (que se revela nas obras de Júlio César “divino Platão” no Hospital das Letras de
Machado, Alfredo Gallis e Albino Forjaz D.  Francisco Manuel de Melo; a crítica
de Sampaio), é possível discernir muitas sistemática à presença do aristotelismo
manifestações de ceticismo a respeito da no ensino; a versão augustinista do plato-
capacidade de a racionalidade humana nismo, que voltou a ter alguma projeção
(que se revela na filosofia ou no debate na época iluminista. Além disso, no séc.
intelectual) alcançar resultados seguros. xix, não será excessivo ver apreço pelo
Em 1572, um personagem de D. Jeróni- platonismo em Antero de Quental, Antó-
mo Osório diz que “os filósofos falam nio Nobre e Camilo Pessanha; no séc. xx,
uma língua que não se entende” (OSÓ- Platão influenciou autores como Sam-
RIO, 1944, 41). Ainda o séc. xix come- paio Bruno, Leonardo Coimbra, Raul
çava quando José Agostinho de Macedo, Leal, José Marinho, Teixeira de Pascoaes,
na sua Tentativa Filosófica, afirmava que José Régio e David Mourão-Ferreira, e,
“não há uma só opinião dos Filósofos que como afirma Pinharanda Gomes, teve
se não possa considerar uma verdadeira um papel relevante na “elaboração da
loucura” (MACEDO, 1815a, 5), acres- filosofia da saudade, pois há conotações
centando, num outro texto, e de modo entre o amor platónico e a saudade por-
memorável, que “o maior Filósofo é um tuguesa” (Id., 2004, 254). Em todos estes
pedaço de asno” (Id., 1827, 320). Menos séculos, é justo reconhecer que o ponto
de um século depois, o espiritista João da mais alto do platonismo português foi
Rocha desabafava que não compreendia atingido pelos Diálogos de Amor, de Leão
bem “para que servem tantas canseiras de Hebreu. Sobre o mesmo assunto, diz Pi-
Filósofos” (ROCHA, 1900, 6). Do ponto nharanda Gomes: “O mais espantoso dos
de vista destas tradições sapienciais, lite- textos platónicos portugueses só é por-
rárias e esotéricas, não é significativo iso- tuguês porque um português, Leão He-
lar o caso do platonismo. breu, o redigiu” (Id., 1968, 12).
O platonismo terá entrado em terras Neste apanhado, há desde já que subli-
portuguesas muito antes do início da nhar a inexistência de traduções de Pla-
nacionalidade. Para Pinharanda Gomes, tão em língua portuguesa até ao séc. xx.
“Portugal herda Platão da Patrística”, Em 1849, regista-se a obra Constituição do
sobretudo do pensamento de S.to Agosti- Philosopho. Obra Extrahida da Republica
nho, de quem o bracarense Paulo Orósio de Platão, traduzida do francês pelo bra-
fora discípulo (GOMES, 1968, 4). Desde carense Joaquim José Antunes da Silva
estes séculos recuados, é possível acompa- Monteiro, que, apesar do subtítulo, não é
nhar as vicissitudes da receção das ideias realmente uma tradução de um texto de
de Platão em vultos como Francisco Car- Platão para português e não tem nada a

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ver com o pensamento do filósofo grego. conhecimento dos textos antigos deverão
Na verdade, as primeiras traduções inte- ser inventariados, porque só desse modo
grais de Platão precisariam de mais anos será possível ter uma noção correta da
para surgir: na déc. de 1920, com Ângelo receção que Platão teve ao longo dos sé-
Ribeiro (Apologia de Sócrates, Fédon, Ban- culos. Álvaro Pais, no seu Status et Planc-
quete); na década seguinte, com António tus Ecclesiae, publicado em Ulm em 1474
Lobo Vilela (Diálogo sobre a Justiça), Agos- (com uma segunda edição em 1517), in-
tinho da Silva (Defesa de Sócrates, Crítone); terpreta de modo sapiencial o (aparente)
nos anos de 1940, com Alberto Machado igualitarismo político platónico, ao afir-
Cruz (Alcibíades, Cartas, Fédon), Sant’Ana mar que, para Platão, “não há nenhum
Dionísio (Hípias Maior, Hípias Menor), o rei que não seja oriundo de escravos,
P.e Dias Palmeira (Fédon), Agostinho da nem nenhum escravo que não descenda
Silva (Teoria do Amor) e António Lobo Vi- de reis” (PAIS, 1998, VIII, 203). Pais pare-
lela (Críton, Ménon, Parménides, Protágoras, cia seguir aqui a lição do autor anónimo
Teeteto); e, em 1951, com Manuel Maia do Horto do Esposo (c. 1380-90): “Diz Pla-
Pinto (O Timeu). Em 1965, surge o Sofista, tom filosafo que qualquer rei que foi dos
traduzido por Alexandre Pinheiro Tor- servos descendeo” (Horto do Esposo, 2007,
res. Surgiram também traduções popula- 171). Nem Pais nem o autor do Horto do
res, de qualidade duvidosa, feitas a partir Esposo reparam na natureza ilusória des-
da língua francesa. te igualitarismo, incompatível com a so-
Apesar da boa vontade destes traduto- ciedade fortemente hierarquizada que é
res e das casas editoriais que promoveram proposta na República; também nada di-
as edições, é justo reconhecer que só mui- zem sobre a causa metafísica última que
to mais tarde surgiriam tradutores que garante a veracidade da afirmação, i.e.,
preparariam traduções de nível científico, a transmigração das almas. Preocupado
como Maria Teresa Schiappa de Azevedo com a possibilidade de a virgindade ser
(Fédon, Hípias Maior), Maria José Figueire- ilícita por ir contra o preceito bíblico do
do (Parménides, Timeu), Carlos Humberto “crescei e multiplicai-vos”, Pais recupe-
Gomes (Leis), Rodolfo Lopes (Timeu, Crí- ra de S.to Agostinho a lenda que narra
tias), Adriana Manuela Nogueira e Mar- o modo piedoso como Platão sacrificava
celo Boeri (Teeteto), Francisco de Oliveira aos deuses para se redimir do pecado
(Cármides, Laques, Lísis), Maria Helena da de viver solteiro. Apesar de a biografia
Rocha Pereira (A República), Manuel de não ser determinante para o conteúdo
Oliveira Pulquério (Górgias), José Trinda- do pensamento filosófico de um autor, é
de Santos (Apologia de Sócrates, Críton, Êu- curioso que Pais ignore a aparente con-
tifron, Sofista), Carmen Isabel Leal Soares tradição entre o modo casto como Platão
(O Político), etc. Se têm significado algu- conduzia a sua vida e os exuberantes elo-
mas ausências que se estendem durante gios do amor no Banquete ou as festas de
séculos, cumpre observar que é digno de amor organizadas pelo Estado da Repú-
nota que apenas no séc. xx estas tradu- blica. A referência à biografia do filósofo
ções tenham aparecido. só raramente voltará a ser feita; alguns
É neste contexto que se podem enqua- autores oitocentistas, e.g., interpretaram
drar os vários autores que, em Portugal, muitas obras da cultura e do pensamento
foram criticando Platão tendo como base sob um prisma médico.
os seus próprios textos. Os posicionamen- Nos começos do séc. xvi, o humanista
tos contra o platonismo que derivam do Aires Barbosa, num dos seus epigramas,

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alude à expulsão dos poetas da república provável origem pitagórica: a doutrina


platónica a propósito da obra do cardeal de que o corpo é um cárcere da alma.
Arátor, dizendo que, “se aquele supremo Álvaro Gomes aprecia a moralização do
Platão conhecesse estes mistérios, não destino das almas após a morte, “pois as
permitiria que este vate partisse da sua ci- almas que bem obravão, estão em bom lu-
dade” (BARBOSA, 2013, 112). O incómo- gar, onde recebem gloria perpetua, cousa
do com a atitude de Platão a respeito da muy justa he que tãobem as que mal hu-
arte, a que se deve acrescentar a magistra- saraom, tenham pena e estem em mao lu-
tura e a medicina, será reiterado muitas gar, porque emtão Deos não seria direito
vezes ao longo dos séculos. Juiz se, segundo aas obras de cada hum,
O desembargador bracarense João de não lhe desse sua ygoal paga” (Id., Ibid.,
Barros revela preocupação pelo estatuto 114-115). O conhecimento que Álvaro
da mulher na república platónica. Em Es- Gomes tinha de Platão, apesar de notável
pelho de Casados, de 1540, afirma que “fun- para a época, não teria sido vasto. A partir
daua ainda que mal Platom que fossem de uma alusão pitagórica do Fédon, Álvaro
ellas comnuas e nam propias” (BARROS, Gomes considera que, para Platão, o In-
1874, X). Preocupado com a sexualida- ferno existia no mundo da vida humana,
de feminina, devido à “jncontinencia e porque seria no cárcere do corpo que a
impudicia de muita parte das molheres alma haveria de padecer os tormentos, as
porque som mui prigosas em sua castida- penas, os martírios, os males e as tristezas.
de”, não aceita que as mulheres possam O que Álvaro Gomes não pode aceitar é
atingir a mesma perfeição que os homens a pré-existência da alma em relação ao
(Id., Ibid., VIII). Na sua quarta razão con- corpo porque, nesse caso, o “seu inferno
tra o matrimónio, a simplicidade das mu- seria no corpo, pois amtes dentrar nelle
lheres, Barros acrescenta a sua aversão à não podião ter feito por onde o mereces-
doutrina da transmigração das almas, não sem” (Id., Ibid.).
sabendo se Platão juntaria as mulheres A estima que D. Jerónimo Osório, bis-
aos homens se aos animais. Movendo-se po de Silves, tinha por Platão é visível no
numa época em que a vida perfeita para vasto debate intelectual que promoveu
um homem se resumia a casar-se ou a en- sobre temas platónicos, como a criação e
trar numa ordem religiosa, o magistrado a eternidade do mundo, a transmigração
censura Platão como homem por nunca das almas e a meditação da morte. No
se ter casado (Id., Ibid., XXVI). seu tratado dialogado sobre a educação
O eborense Álvaro Gomes, lente de de príncipes, denominado Da Instituição
Teologia nas universidades de Paris, Real e Sua Disciplina, de 1572, o seu inter-
Salamanca e Coimbra, e confessor de locutor, Lourenço Távora, lança um duro
D. João III, faz, no seu Tractado da Perfei- ataque à utilidade da filosofia na forma-
çaom da Alma (c. 1550), algumas críticas a ção dos futuros monarcas. Do seu ponto
Platão com conteúdo filosófico relevante. de vista, um rei filósofo não será verda-
Reconhecendo a importância do mestre deiramente rei, porque os seus interesses
de Aristóteles, afirma que ele “em toda- o afastarão da forma de viver do povo que
las cousas mais larguamente falou” (GO- governa, considerando até que os delei-
MES, 1947, 19). Apesar de considerar o tes da carne são menos perniciosos que os
“divino Platão” como um “grande medi- das letras. Numa curiosa expressão de iro-
co e curador das almas” (Id., Ibid., 95), nia a propósito do desterro que os poetas
critica um aspeto do seu pensamento de não coniventes com o Estado, os médicos

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e os juízes sofrem na República, Távora re- “opinião justa acerca de Deus”; que atri-
comenda que sejam antes os filósofos a bua à estrutura do Universo uma matéria
partir da cidade para sítios onde a agude- incriada que não deve a sua existência a
za do seu engenho não cause danos. Pla- um criador bondoso; e, de modo enigmá-
tão é, obviamente, um dos exemplos que tico, que tenha manchado “a formosura
dá dos malefícios causados pelos filósofos da virtude com algumas deformidades”
na governação. Como se esperaria, os ou- (Id., Ibid., 191).
tros participantes no diálogo tentam limi- Os índices expurgatórios foram, de
tar de imediato o alcance destas opiniões, um modo geral, generosos para com o
sendo o próprio D. Jerónimo a solicitar platonismo. Verifica-se apenas uma or-
aos seus amigos que não se divulgue o ata- dem para cortar as fábulas platónicas dos
que feito aos filósofos. É precioso o facto Diálogos de Amor de Leão Hebreu; o Index
de a obra Da Instituição Real e Sua Discipli- Auctorum Dañatae Memoriae, de 1624, cen-
na problematizar a relação entre conhe- sura muitas passagens dos comentários
cimento e exercício do poder político; de de Jean de Serres (Johannes Serranus),
facto, desde o Rei D. Duarte até à Corte filólogo que publicou as obras completas
na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo, de Platão em três volumes, em 1578.
o projeto platónico do governante sábio Francisco Sanches, filósofo cético e
atravessa todo o pensamento português. médico, recusa vários aspetos da Teoria
As páginas do bispo de Silves procuram do Conhecimento de Platão, nomeada-
ver de modo claro o que se ganha e o que mente a reminiscência, a teoria de que
se perde com a ideia, aparentemente evi- o conhecimento humano mais não é do
dente e necessária, dos reis filósofos. Em que recordação, observando no seu Que
1578, no seu Tratado da Verdadeira Sabedo- Nada Se Sabe, de 1581, que isso “não passa
ria, D. Jerónimo considera que Platão foi de uma agradável ficção nem confirmada
o “príncipe máximo da filosofia” (OSÓ- pela experiência nem pela razão” (SAN-
RIO, 2002, 227) e “o homem mais sábio CHES, 1955, 37). A refutação da opinião
da Grécia” (Id., Ibid., 229), apreciando em de Platão recorre à experiência médica
particular a teoria de que o mundo teve do autor, que conhecia doenças que fa-
um começo no tempo e não existiu desde zem esquecer às pessoas os seus próprios
sempre, criticando a este respeito a leitu- nomes, e a uma abordagem empírica das
ra, que considera equivocada, que Proclo questões da memória (diz Sanches que
fez do Timeu. Contudo, como se esperaria bateu propositadamente num cão, que,
de um bispo católico, salienta que todos depois disso, ladrava todas as vezes que o
os filósofos gregos que viveram antes da via). O ceticismo de Sanches toca igual-
doutrina cristã caíram na “mais rematada mente em questões profundas sobre a
loucura” por terem questionado a exis- identidade pessoal. Concedendo, em be-
tência e o poder de Deus, e o seu cuidado nefício do argumento, pertinência à dou-
pelas coisas humanas. Dispondo de um trina de Platão, conclui que, “se a alma
conhecimento textual direto de Platão, sabia antes de se unir ao corpo, também
que se revela nas citações amplas que faz depois é ela que sabe, e não o homem”
dos seus diálogos, o que D. Jerónimo não (Id., Ibid., 41). O conjunto de argumen-
consegue aceitar no filósofo é, em espe- tos recorre também a uma análise lógica
cial: a doutrina das “variadas e infinitas desta teoria, identificando, e.g., as falá-
migrações das almas de uns corpos para cias da multiplicação dos problemas e da
outros”; o facto de não conceber uma redução ao infinito: se o conhecimento

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Antiplatonismo 1455

que o ser humano tem deriva do conhe- truções em mármore da Antiguidade,


cimento que a alma adquiriu, segue-se não desapareceu, congratulando-se com
que se deve também questionar esta úl- almas como essa, “que se preocupam em
tima origem; afinal, o conhecimento da deixar o céu como herança aos vindou-
alma poderá ser também uma recorda- ros” (FERNANDES, 1967, 147). Como
ção, e assim sucessivamente. Do ponto seria expectável neste contexto, a úni-
de vista de Sanches, o conhecimento que ca crítica possível a Platão é a de a sua
se adquire durante a vida não pode ser grande sabedoria ser diminuta quando
uma recordação do que a alma eventual- comparada com a verdadeira sabedoria
mente terá visto antes de incarnar. Ape- da Revelação cristã, crítica que já tinha
sar de estas linhas de argumentação se levado Álvaro Pais a afirmar que Platão
reforçarem mutuamente, Sanches, fiel à e os outros filósofos pagãos “habitam as
abordagem empírica, concede in extremis trevas exteriores porque não glorifica-
a plausibilidade da doutrina de Platão, ram a Deus” (PAIS, 1996, VI, 35). Assim,
dizendo que, “se ele dissesse que tinha Hilário Moreira, apesar de considerar
visto a sua alma sabendo todas as coisas que o “divino Platão” “tão afeiçoado foi à
antes de ter entrado no corpo, talvez que verdade”, e não obstante apreciar a ideia
eu acreditasse: e então não seria homem, de o poder político estar nas mãos dos
mas espectro ou fantasma” (Id., Ibid., filósofos, reconhece que a ciência de Pla-
39). A Teoria da Reminiscência é, pois, tão desconhece que Deus escondeu aos
afastada, tal como a Teoria das Ideias. Na sábios e prudentes deste mundo os mis-
carta prefacial a Diogo de Castro, San- térios “que havia de revelar um dia aos
ches considera essas teorias como meras pequeninos” (MATOS, 1990, 79).
ficções que nenhuma pessoa é capaz de Para além da hipotética verdade intrín-
compreender, porque não se pode com- seca de alguns aspetos do pensamento
preender o que não existe. de Platão e da manifesta qualidade lite-
Os tempos em que o infante D. Duar- rária dos seus textos, o mundo dos uni-
te, filho natural de D. João III, come- versitários teria certamente motivos não
çava a sua Oração em Louvor da Filosofia filosóficos para apreciá-lo. Um autor que
com uma citação do Fédon, e em que a coloca o poder nas mãos dos sábios e que
presença do platonismo e do neoplato- propõe uma organização da vida humana
nismo era manifesta em Álvaro Gomes, em torno da educação só poderia obter
André de Resende, Fr. Diogo de Murça, a estima de humanistas e universitários.
Fr. Heitor Pinto e Luís de Granada, es- O vimaranense Gonçalo Dias de Carvalho
tavam a terminar. A oitava “Quem pode ainda podia, na sua Carta a el-Rei D. Sebas-
ser no mundo tão quieto?”, de Camões, tião, de 1557, recomendar ao Desejado o
ainda aludia a “Platão divino”. As orações que considerava ser o modelo do estadis-
de sapiência quinhentistas pronunciadas ta platónico, um pastor zeloso do bem­
na Univ. de Coimbra por Arnaldo Fabrí- ‑estar do seu rebanho político, ou um pai
cio, Belchior Beleago, Pedro Fernandes, com um amor ilimitado aos filhos a seu
Hilário Moreira, Jerónimo de Brito e cargo: “A todo que gouerna, he necessa-
António Pinto estão cheias de louvores rio amar muito, aos que ha de governar,
à quase divina sabedoria de Platão; e.g., segundo Platam” (CARVALHO, 1986,
João Fernandes (ou Juan Fernández), A3). Este conselheiro do Rei concorda-
mestre de Retórica, elogiava o santuário ria certamente com a interpretação que
de Platão, que, diferentemente das cons- os humanistas fizeram do pensamento

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político platónico, já que, do seu ponto do desembargador João de Barros, con-


de vista, a maior enfermidade do Esta- siderando que “nos livros de Platão se
do é ter na condução dos seus destinos acharam escritas aquelas palavras de São
alguém sem ciência, sem justiça e sem João” (SILVA, 1620, 8). Maior elogio do
virtude: “dezia Platam, que hum Rey sem que este seria difícil. Mesmo um Diogo
sciencia era hum corpo sem alma: & que de Paiva de Andrade aproxima Platão
esta era a mor, & mais pestilencial infir- de S. Paulo, dando a vitória da elegância
midade, que hua republica podia ter” ao primeiro e a da eloquência sagrada
(Id., Ibid., B1). Um século depois, o autor ao segundo (ANDRADE, 1603, 19). Este
de Arte de Furtar também revelaria a sua mundo ainda olhava o filósofo grego
simpatia pelo modelo platónico do go- como um Moisés grego ou, nas palavras
vernante virtuoso. do Jesuíta Bartolomeu Guerreiro, na sua
O mundo exterior aos muros da uni- Gloriosa Coroa de Esforçados Religiosos, um
versidade, contudo, necessitou de um Moisés ático. O campo da crítica estava,
enquadramento filosófico diferente. As pois, severamente limitado; contudo,
Descobertas exigiram uma referência Fr.  Bernardino ainda consegue avançar
filosófica que manifestasse mais apreço com o traço do pensamento platónico
pelo conhecimento derivado da observa- que lhe parece absolutamente inaceitá-
ção direta do mundo visível. É este espí- vel, “que a alma immortal, a que chama
rito que Pedro de Mariz traduz nos seus diuina, se trãsforme em hum bruto” (SIL-
Diálogos de Vária História, fazendo dizer a VA, 1620, 12). No mesmo ano da publi-
um interlocutor que ficaria feliz que lhe cação da obra de Fr. Bernardino, 1620,
contassem “alguas cousas maravilhosas, Manuel do Vale de Moura, deputado da
que pelo mundo achastes, & eu nunca vi, Mesa da Inquisição de Évora, no seu tra-
& me podem servir de melhores mestres, tado sobre o uso de encantamentos mági-
para governar a vida, que os diálogos de cos, De Incantationibus seu Ensalmis, muito
Platão, inda que seja o diuino” (MARIZ, influente na Europa da época, volta à
1594, 2). Além disso, a Contrarreforma questão da vida íntima de Platão, já abor-
contribuiu para que Aristóteles passasse dada por Álvaro Pais e pelo desembarga-
a ser o pensador mais estudado; neste dor João de Barros. O doutor em Teolo-
contexto, os comentários dos conim- gia e em Jurisprudência Pontifícia mostra
bricenses à obra de Aristóteles revelam a sua surpresa por S. Tomás ter citado Pla-
as novas exigências do ensino universi- tão, conhecendo que este foi sodomita:
tário. Mas o conhecimento enciclopé- “Absolutamente digno de admiração é o
dico dos conimbricenses não poderia facto de São Tomás de Aquino, na esteira
deixar de mencionar Platão, apesar de de Santo Agostinho, ter escrito acerca de
a sua visão do mundo e a sua conceção Platão (sobretudo se foi Sodomita) … que
de método filosófico serem aristotélicas. ‘Só Platão, por amor à busca da verdade
Justificando a sua posição filosófica, o Je- e em nome desse amor, se manteve afas-
suíta Manuel de Góis, e.g., afirma, em In tado de todo o prazer sexual’. Embora
Octo Libros Physicorum Aristotelis, que Pla- os dois autores acrescentem que ‘ele não
tão não deixou “um género de doutrina o achava pecado de alguma maneira,
absolutamente perfeita com afirmação mas que cedia ao engano dos cidadãos’,
certa e constante” (GOMES, 1992, 68). que sem dúvida acreditavam que a casti-
De um ponto de vista mais tradicionalis- dade [não] era uma virtude central, de
ta, Fr. Bernardino da Silva repete a lição tal maneira que aquele que totalmente

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Antiplatonismo 1457

se abstivesse de relações sexuais, ofendia


essa virtude” (MOURA, 1620, 501b).
No contexto da diáspora de intelec-
tuais judeo-portugueses, Samuel da Silva,
no seu Tratado da Imortalidade da Alma, de
1623, atribui a Platão a doutrina de que
a alma assiste o corpo, mas não o forma
nem lhe dá vida. A relação entre alma e
corpo seria, do ponto de vista desta in-
terpretação, como a de um piloto com o
leme da sua nau; em caso de impedimen-
to desta, rapidamente o piloto a abando-
na. Vendo o perigo de a alma não vivifi-
car o corpo e de este se tornar um mero
instrumento fantástico daquela, “como
faziam os espíritos malignos nos ídolos”,
Samuel da Silva teme que esta doutri-
na acabe com a tese de que o homem é
um composto de corpo e alma (COSTA,
1995, 464). Uriel da Costa, no seu Exame
das Tradições Farisaicas, critica a separação
entre alma sensitiva e alma racional. Iro-
nizando, imagina que a alma racional po- Frontispício de Philosophia Libera in Septem Libros
deria ter algum contratempo a chegar ao Distributa, de Isaac Cardoso (1604-1683).
nascimento de um bebé; nascendo este
apenas com a alma sensitiva, pergunta-se Ainda no séc. xvii, a Academia dos
sobre o tipo de ser humano que viria ao Singulares de Lisboa toma muitas vezes o
mundo nesta situação. Acaba por con- exemplo de Platão para promover, junto
cluir que “é mais que loucura dizer que dos seus sócios, o gosto pelo debate in-
o homem não gera seu semelhante” (Id., telectual e pela poesia. Na Academia III,
Ibid., 403). Isaac Cardoso dedicou uma realizada a 11 de novembro de 1663, Luís
secção aos erros de Platão no seu Philo- Bulhão recorda que o filósofo grego fre-
sophia Libera in Septem Libros Distributa, de quentou as academias como estudante até
1673. O inventário desses erros é mais ao final da vida, afirmando que, apesar de
abrangente do que as críticas localizadas não ser sua intenção persuadir cada só-
que Platão mereceu por parte de outros cio a que se torne um Platão, já que a na-
autores lusitanos. Cardoso destaca como tureza criou luzes em cada ser humano,
grandes erros a tese da origem do mun- será justo que essas luzes brilhem (Aca-
do a partir de uma matéria caótica com demias…, 1692, 34). André Rodrigues de
existência eterna, a crença pitagórica na Matos, na Academia VI, toma o adjetivo
transmigração das almas, o facto de Pla- com que a tradição caracterizou Platão
tão ter defendido que as mulheres fossem para transmitir a sua convicção de que o
postas em comum na sua decantada re- estudo das ciências é suficientemente po-
pública, a teoria de que Deus é a alma do deroso para quase se chegar a divinizar
mundo e a teoria de que o conhecimento a condição humana, pois “assim o certi-
é uma reminiscência. ficou o apelido em Platão: divinus Plato”

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(Ibid., 87). Manuel Preto Valdez, na Aca- nossa Espanha!” (Id., 1730, 122). A per-
demia XVI, em sessão de 10 fevereiro de ceção enviesada que Bernardes tem de
1664, recorda que, quando o discípulo de Platão revela-se no que afirma sobre o de-
Sócrates faleceu, se acharam, debaixo da ver de obediência dos filhos aos pais. Do
sua cabeceira, as obras de um poeta có- seu ponto de vista, os pais seriam “deuses
mico, porque, justifica, “sempre foram as terrestres e domésticos, e amigos constan-
obras dos Poetas o descanso dos sábios” tíssimos” (Id., Ibid., 253), esquecendo-se,
(Ibid., 267). Nada se diz sobre a curiosa talvez caridosamente, que as mães da Re-
incongruência entre o gosto do autor da pública desconheciam quem eram os seus
República pelo cómico e a ausência desse próprios filhos e que estes eram conce-
tipo de literatura na sua desejada cidade bidos em festas promovidas pelo Estado
perfeita; e nada se diz também sobre o com recurso a lotarias viciadas (República,
modo como o desenvolvimento das luzes 459e-460a). Mais pragmático, o desem-
de cada ser humano poderá pôr em causa bargador portuense Alexandre Ferreira
a estrutura hierárquica da utopia platóni- não aceita que o objetivo último de uma
ca. Esta Academia seiscentista revela um república seja a contemplação, só acessí-
grande interesse por diálogos platónicos vel a uma elite, defendendo antes que é
cuja receção foi pouco estudada, como o a vida civil e honesta de todos. Com isto,
Fedro e o Íon. lançou a dúvida não apenas sobre a teoria
Em obra publicada já no séc. xviii, o política, mas também sobre a metafísica
seiscentista P.e Manuel Bernardes faz mui- do filósofo ateniense.
tas referências a Platão. Nos vários tomos Já avançado o século das Luzes, o Je-
da Nova Floresta, Bernardes recusa teses suíta António Cordeiro dedica um capí-
platónicas fundamentais. Em 1706, nega tulo da sua História Insulana a criticar o
que todas as coisas aconteçam por for- mito da Atlântida. Do seu ponto de vis-
ça de um destino, que as estrelas sejam ta, a cronologia é inaceitável, porque os
animadas e que exista transmigração das 9000 anos propostos por Platão seriam
almas de uns corpos para outros. A re- anteriores à própria criação do mundo;
presentação do psiquismo humano é es- a localização e a extensão do território
pecialmente criticada, recusando Bernar- também não são aceites, por manifesta
des que a alma possa ser vista como um falta de provas. Em conclusão, o também
cocheiro guiando o coche ou como um autor do Cursus Philosophicus considera
piloto guiando a nau. Em 1708, considera que se trata de um sonho não verdadeiro,
que a Atlântida não é mais do que uma quimérico, de uma história semelhante à
fábula ou ninharia. Como se esperaria, pintura, “pois o historiar sem fundamen-
estas críticas localizadas são amenizadas to, é pintar como querer” (CORDEIRO,
por um capítulo que dedica ao “Príncipe 1717, 4). O alquimista Anselmo Caetano
dos filósofos académicos” (BERNARDES, Munhós afirma que Platão “escreveu tão
1711, III, 373-376). Mais do que isso, Ber- oculta e enigmaticamente os seus dog-
nardes aceita com gosto as ideias do des- mas que poucos sábios os entenderam”
terro dos poetas, porque corruptores dos (BRANCO, 1732, 87).
bons costumes, e da censura estatal da ati- Com um projeto intelectual muito di-
vidade literária livre, manifestando o seu ferente, Luís António Verney critica am-
desejo de que elas fossem imediatamente plamente Platão e atribui-lhe a intenção
realizadas: “Oh quanto haveria que exa- de enganar os seus leitores. Em Seis Livros
minar e desterrar no nosso século e na de Lógica para Uso dos Jovens Portugueses,

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afirma que Platão “ocultou intencional- do seu ponto de vista, mais não fizeram
mente as suas opiniões numa espécie do que produzir fábulas (Id., Ibid., 193).
de colóquios para que o leitor […] não Os seus Quatro Livros da Metafísica para
pudesse perceber claramente o que ele Uso dos Jovens Portugueses, de 1765, somam
pensava” (VERNEY, 2010, 67). A acusa- a estas críticas uma outra: a relação de
ção de ocultação deliberada do pensa- causalidade entre o modelo e a forma
mento é surpreendente, quando se toma que os objetos adquirem por mediação
em consideração que o filósofo grego foi do demiurgo poderia considerar-se uma
um dos pensadores que mais lutou pela quinta causa – uma causa exemplar –, a
clareza da expressão. Está por fazer, se- acrescentar às quatro causas identificadas
guindo paralelos estrangeiros, a história por Aristóteles.
da perceção que os intelectuais portugue- Também Duarte Ribeiro de Macedo in-
ses tiveram da necessidade de a filosofia terpreta criticamente o pensamento polí-
recorrer, ao longo de séculos, à escrita tico de Platão, começando por aludir aos
esotérica. Além da crítica à forma de es- processos retóricos de construção e pro-
crever, Verney critica as teses principais moção da figura do príncipe através de
da metafísica platónica, nomeadamente a fábulas e de outras mentiras úteis. Para
Teoria das Ideias, a diferença entre a ideia Ribeiro de Macedo, a fábula segundo
de bem e o plano eidético, a separação a qual os reis teriam dois espíritos mais
das coisas singulares em relação ao plano não é do que uma “quimera com que os
das ideias e a importante noção de par- Platónicos quiseram adular as majesta-
ticipação entre substâncias e ideias. Não des e subi-las sobre a condição humana”
dando conta do registo irónico do Crátilo, (MACEDO, 1767, 53). De um ponto de
Verney recusa também a teoria platónica vista já pouco simpático para com o mito
da origem da linguagem e da capacida- do “divino Platão”, Ribeiro de Macedo
de de os vocábulos significarem as coisas. não inclui o autor das Leis no grupo dos
A teoria da alma como substância sepa- pensadores verdadeiramente sábios em
rada da alma do mundo também mere- assuntos políticos, porque, sem nunca
ceu críticas. O corolário que Verney pro- ter governado um país, deu leis a cidades
põe é incisivo: “Deve refutar-se Platão, e ordenou formas de viver a povos (Id.,
que […] empreendeu persuadir os outros Ibid., 136). Por seu lado, Fr. Manuel do
sobre a existência de certas substâncias Cenáculo, nos textos para educação do
inteligentes, emanadas de Deus e distin- clero reunidos nas suas Memórias Histó-
tas dele, diferentes das coisas singulares” ricas do Ministério do Púlpito, de 1776, re-
(Id., Ibid., 191). Será difícil atacar o pensa- conhece a utilidade, do ponto de vista
mento platónico em teses mais nucleares cultural, de os eclesiásticos em formação
do que estas. Aspetos periféricos, como a lerem Platão, se bem que acrescente ime-
incapacidade de a filosofia natural de Pla- diatamente uma nota crítica: “Será tam-
tão explicar o fenómeno das marés – uma bém útil ao pregador se ler […] Platão,
inépcia de Platão e de outros autores da tanto nas Leis, como na República, ainda
antiguidade que nada explica –, também que seja muito abstrato” (CENÁCULO,
são mencionados. À forma e ao conteú- 1776, 313). A nota é surpreendente, por-
do, a crítica do emigrado português em que Cenáculo cita as obras platónicas que
Itália acrescenta a denúncia da tradição mais especificam os detalhes dos progra-
filosófica inspirada por Platão, formada mas filosóficos propostos e que talvez pos-
pelos “semiplatónicos ou ecléticos”, que, sam ser consideradas as menos abstratas

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que escreveu. Num século em que o de- depois da morte; a reincarnação das al-
bate filosófico em torno da mente huma- mas em mulheres e animais, de tal modo
na aumentou em finura de análise e em que, afirma o interlocutor Teodoro, “tal-
quantidade de novos problemas, Fr. José vez que ainda venhamos a ser senhoras,
Maine denuncia o fracasso do filósofo ou talvez cavalos” (Id., 1792, VIII, 259).
grego em “combinar os ofícios da alma O interlocutor Sílvio considera a hipótese
com a inércia da matéria divisível”, bem de Platão ter sido irónico – questão que
como o malogro da sua Teoria da Alma constituiu desde sempre um problema
do Mundo (MAINE, 1778, 17). Apenas na interpretação dos escritos platóni-
um ano depois, o P.e António Pereira cos –, acabando por concluir que “Platão
de Figueiredo recusa que Platão possa não queria zombar, falava seriamente”,
ser considerado um sábio, considerando e recomendando, como consequência
que a tradição se baseou erradamente na disso, que o filósofo grego não fosse se-
vaidade dos próprios autores antigos. Co- guido. É também Sílvio que, na “Tarde
mentando a Epístola aos Romanos, assevera XXXIII.”, recusa a doutrina de que os as-
que os escritos de Platão estão cheios de tros são animados e têm uma alma racio-
“erros tão feios e grosseiros contra a boa nal e inteligente. Em O Feliz Independente
moral, e contra os mesmos princípios da do Mundo e da Fortuna, de 1779, Teodo-
razão”. Precisando a sua crítica, mencio- ro de Almeida considera não ter valor a
na em especial as alegadas concessões crítica severa dos defeitos humanos, de-
que Platão terá feito à embriaguez, em fendendo a inutilidade da imaginação
alguns casos, e a que as mulheres fossem de “belos sistemas”, de “ideias fabulosas
postas em comum (FIGUEIREDO, 1779, e repúblicas platónicas” (Id., 1779, III,
250, nota p). 186). Para além de os belos sistemas se-
O P.e Teodoro de Almeida coloca vá- rem exercícios inúteis, num mundo que é
rios interlocutores dos seus diálogos a como é e em que “os homens hão de ser
lançar dúvidas sobre o valor do edifício homens”(Id., Ibid.), Almeida acrescenta
filosófico de Platão. Assim, na Recreação uma nota interessante à crítica que faz: o
Filosófica, denuncia-se a inutilidade de se bem aparente dos belos sistemas só con-
estabelecerem leis para se viver em socie- tribui para tornar mais insuportáveis os
dade, dada a universalidade da natureza males verdadeiros que cercam as pessoas.
humana. As leis da república platónica O séc. xix português regista algumas
constituiriam, deste ponto de vista, como opiniões, pontualmente manifestadas,
afirma Coronel, uma das personagens, sobre Platão, em continuidade com as
“doutrinas para corações imaginários, e leituras do século anterior. A universi-
não para os corações que há neste mun- dade portuguesa da altura não conse-
do de carne e sangue, que só sabem viver guiu produzir o trabalho erudito sobre
de amor” (ALMEIDA, 1800, X, 415). Na autores clássicos que notabilizou muitas
“Tarde L.” criticam-se as conceções anti- academias além-fronteiras. A falta deste
gas sobre a natureza da alma, nomeada- trabalho minucioso e a inexistência de
mente as platónicas: a ideia de que a alma coleções de autores clássicos traduzidos
humana é uma porção da alma do mun- inviabilizaram o aparecimento de gran-
do, assim como o corpo é uma porção da des sínteses da filosofia antiga. Contudo,
massa do universo; a representação da o interesse popular pela questão plató-
terra como um animal sensível dotado nica era grande, sendo a mesma muitas
de alma; o destino das almas nos astros vezes utilizada nas fricções da sociedade

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oitocentista. Também o teatro não se político Silvestre Pinheiro Ferreira desfe-


esqueceu do caso socrático (refira-se a re, no seu Essai sur la Psychologie, de 1824,
tragédia Morte de Socrates, de Manoel Pi- um ataque severo a algumas das teses
menta de Aguiar). O debate filosófico, platónicas mais importantes. A propósi-
muitas vezes influenciado pela situação to do Fédon, Platão é acusado de confun-
social da época, continuou a atacar vários dir os significados metafórico e próprio
aspetos do legado platónico. A propósito das palavras, devido à “vivacidade da sua
da natureza divina, e.g., José Agostinho imaginação” (FERREIRA, 1999, 113); de
de Macedo denunciou as limitações da deliberadamente enganar os leitores com
razão natural dos mestres do pensamen- metáforas e com faltas grosseiras de lógi-
to grego antigo, como se as afirmações ca; e até de as suas aparentes provas da
desses grandes pensadores não passassem imortalidade da alma e do dever de não
de ditos de crianças quando comparadas atentar contra a própria vida não serem
com a verdade da Revelação cristã. Do mais do que incentivos ao panteísmo e ao
seu ponto de vista, todas as suas obras suicídio. Para Pinheiro Ferreira, o polí-
não são mais do que “o balbuciamento de tico romano Catão da Útica, conhecido
tenros meninos a respeito do que ensina pela sua integridade moral, suicidou-se
o menos profundo dos teólogos cristãos depois de ter lido esse diálogo duas vezes
e o mais superficial e insignificante dos numa noite. O tom crítico deste texto, es-
nossos livros” (MACEDO, 1811, 44). Não crito para concorrer a um prémio da Aca-
se trata do desconhecimento da influên- demia Real das Ciências de Copenhaga, é
cia profunda que o pensamento antigo reiterado, em 1839, nas Noções Elementares
exerceu sobre a teologia cristã; está antes de Filosofia. O método de diálogo socrá-
em causa o confronto entre a especula- tico é severamente criticado pelo minis-
ção filosófica e uma tradição sapiencial tro do Reino, da Guerra e dos Negócios
baseada na Revelação divina. De natureza Estrangeiros, que lamenta que os segui-
diferente é a sua recusa da teoria pitagó- dores desse método não se empreguem
rico-platónica do corpo como um envol- “em assuntos mais dignos de um filósofo”
tório do espírito, que considera ser falsa. (Id., Ibid., 252). Neste livro, Pinheiro Fer-
O projeto político platónico também lhe reira também acusa Platão de defender o
parecia uma mera imaginação. Apesar panteísmo, aparentando falaciosamente
destas críticas, José Agostinho de Macedo estar a defender o espiritualismo. José de
coloca Platão em lugar de destaque nos Torres lembra as críticas setecentistas do
seus poemas “Newton”, “A meditação” e Jesuíta António Cordeiro, afirmando que
“Viagem extática ao templo da sabedo- não é fácil crer na existência da Atlântida.
ria”, e considera-o um filósofo que está José Frederico Laranjo dedicou a Platão
no reduzido número dos que honraram um artigo de divulgação, parte de uma
a humanidade, recorrendo a ele muitas história da filosofia que planeava elabo-
vezes nas suas diatribes contra os pedrei- rar. O professor e jurista lamenta que o
ros-livres. Em resumo, agradava a Macedo autor da República tomasse como modelo
a conceção providencial do mundo que “a selvagem Esparta” e que a sua moral
julgava encontrar no autor grego. O aca- tenha constituído o início do excesso
démico Francisco de Melo Franco reitera de ascetismo e do horror ao corpo que
o ponto de vista do setecentista Alexan- marcaram muitos períodos da cultura
dre Ferreira sobre a impraticabilidade da ocidental. Referindo-se ao Timeu, vê uma
filosofia política platónica. O filósofo e superabundância de vida na cosmologia

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platónica, como se tudo estivesse anima- Nobre França denuncia a completa inu-
do (LARANJO, 1873, 246). De um ponto tilidade da filosofia antiga. Verificando
de vista diferente, o advogado e filósofo que os filósofos foram impotentes para
J. M. da Cunha Seixas recorre a Platão a conservação da Grécia frente aos po-
para criticar os exageros do positivismo deres estrangeiros que a conquistaram,
da época, recusando que os grandes Nobre França defende que isso se deveu
problemas filosóficos (Deus, a criação, a à absoluta contradição das filosofias “com
alma, a imortalidade, a moral, os entes os factos e os regimes aviltantes das so-
matemáticos, os conceitos) possam ser ciedades” (FRANÇA, 1891, 473). Para o
triturados nos laboratórios dos químicos. tipógrafo, que foi um dos fundadores do
Encontram-se poucas notas críticas: não Partido Socialista, a filosofia ocupa-se de
se apercebendo da ironia que atravessa o causas ilusórias, manifesta os sentimentos
Crátilo, Cunha Seixas considera que as ex- das classes sociais e os seus preconceitos,
plorações linguísticas de Platão “são hoje acabando por ser pura ilusão. Como não
de pouca importância” (SEIXAS, 1879, foi a filosofia que criou a velha civilização
122); abordando a importante noção oi- europeia, mas esta que criou aquela, con-
tocentista de progresso, reconhece que as clui que “as melhores instituições da Gré-
primeiras manifestações dessa ideia surgi- cia derivaram de uma filosofia bem mais
ram na obra de Platão, se bem que não superior do que a dos seus filósofos” (Id.,
tivessem sido historicamente relevantes Ibid., 474).
nos séculos posteriores. Em registo mais O introdutor da teosofia em Portugal,
pessoal, Antero de Quental, que tinha o visconde de Figanière, refere-se muitas
grande estima pelo pensamento antigo, vezes a Platão, que considera um inicia-
confessa ao seu correspondente António do, nos seus Estudos Esotéricos. O ponto de
de Azevedo Castelo Branco, no final da vista do diplomata não se baseia na mera
primavera de 1885, que, desejoso de se argumentação racional, mas apela a um
concentrar na redação dos seus textos conhecimento de acesso reservado. Com
filosóficos, “preferiria ser Sócrates a ser esta ressalva, o autor das Cartas Japonesas
Platão”, aludindo à sua incapacidade de avança com duas observações críticas:
se conter e seguir um método, e elogian- a primeira interpreta o processo de es-
do indiretamente o autor da República colha das vidas futuras pelas almas, no
(QUENTAL, 1989, 741). Mais tarde, em mito de Er, como um excesso de presen-
carta a Oliveira Martins, revela que alguns ça  do ego; a segunda denuncia a confu-
intelectuais portugueses da altura inter- são do autor do Timeu a respeito da ilha
pretavam de modo ligeiro o encómio de e do continente da Atlântida, tendo este
Platão a regimes musculados como o de desaparecido milhares de anos antes da
Esparta, vendo nisso uma reação normal primeira. Quase no virar do século, o
perante as “trapalhadas e requintes” da poeta Gomes Leal manifesta, em uma
civilização da sua época (Id., Ibid., 886). das suas sátiras modernas, a esperança
O destinatário, por seu lado, parece recu- de transformar o mundo numa aldeia
sar o estatuto metafísico das ideias plató- campestre “sábia como Platão, simples
nicas, considerando-as como meros mitos como a criança” (LEAL, 1899, 314). No
racionais e assemelhando-as a espíritos poema “A ordem”, Leal acompanha o fi-
animistas que volteiam no ar (MARTINS, lósofo grego na crítica que faz aos poetas
1882, 269). No começo da última déca- não coniventes com o Estado: “Guiai-vos
da do séc. xix, o socialista José Correia por Platão  –  Lançai fora os poetas, que

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são os mais revéis, fatais agitadores” (Id., nas a que cidadãos e escravos são sujeitos
Ibid., 181). Contudo, parecendo fazer um pelos mesmos crimes; a indignidade do
encómio ao filósofo grego, Leal, ao apro- tratamento, inaceitável, dado às mulhe-
ximar a república platónica de uma al- res, como se elas fossem património da
deia campestre e da simplicidade de uma sociedade e não parte dela, sendo im-
criança, sugere que o projeto político pla- possibilitadas de desenvolver livremente
tónico já não se adequa à complexidade a sua personalidade; o controlo do alei-
dos tempos modernos. tamento das crianças de modo policial;
Seria tarefa vasta precisar a receção o corte dos elos naturais que unem as
do platonismo num autor com a rique- mães aos filhos através de medidas que
za de pensamento de Fernando Pessoa. impedem o reconhecimento mútuo; etc.
O autor, interessado no pensamento eso- Em resumo, e antecipando em muitas
térico, terá tido uma interpretação cer- décadas a crítica que Karl Popper faria a
tamente diferente da dos seus heteróni- Platão como inimigo da sociedade aber-
mos. O que Pessoa escreveu a propósito ta, “o Estado é tudo, o cidadão nada”
de Platão caracteriza-se pela estima mani- (CORRÊA, 1918, 138). Esta crítica não é
festa que por ele tinha, mas também pela nova e, como reconhece Corrêa, já havia
receção crítica dos seus escritos. Assim, sido proposta, nas suas linhas principais,
num dos seus textos de pendor mais fi- por Aristóteles. Com alegria, o ensaísta
losófico, afirma claramente que “Platão conclui a sua crítica ao “barbarismo filo-
estava enganado quando atribuía às suas sófico” de Platão com a certeza de que
ideias uma realidade diferente da rea- se trata de um sistema científico que não
lidade das coisas” (PESSOA, 1968, 87). poderá senão perecer (Id., Ibid., 48). Pa-
O que o poeta lisboeta denuncia é o recem ter escapado a Corrêa os factos de
processo de substancialização das ideias. que o sistema não pereceu objetivamen-
O que parece estar em causa é a transfor- te (continuando, pelo contrário, a ser
mação de um recurso meramente prag- estudado) e de que conseguiu atravessar
mático (palavra, noção) numa entidade séculos e, mais preocupante do que tudo
com existência própria: “Platão caiu no isso, a possibilidade de vir a inspirar bar-
erro em que cairia um matemático que, barismos futuros ainda mais esquecidos
após servir-se de um x e de um y para a da natureza humana.
solução de um problema prático, erigis- Os estudiosos das ciências médicas não
se esses sinais úteis mas irreais em coisas, deixaram de se pronunciar sobre o pla-
só porque tinham representado sem erro tonismo. A alegada indulgência platónica
o seu papel pragmático de lhe servirem perante a homossexualidade foi criticada
para um determinado fim” (Id., Ibid., 94). algumas vezes. Arlindo Camilo Monteiro,
No final da Primeira Guerra Mundial, e.g., atribui a Platão a ideia de que a incli-
José Augusto Corrêa recusa o pensa- nação sexual é congénita e independen-
mento político de Platão. Para Corrêa, te de causas acidentais. Monteiro revela
o filósofo grego esqueceu-se da nature- preocupação por ser possível derivar des-
za humana, ou, quando se lembra dela, ta teoria “a irresponsabilidade dos indiví-
é para a ultrajar na sua liberdade e na duos portadores da anomalia amorosa”,
sua honra. São várias as denúncias que i.e., “o facto de não poderem ser consi-
faz dos erros do seu pensamento social e derados como culpados ao exterioriza-
político: o desprezo pelo indivíduo con- rem o impulso passional que os animava”
creto, que se manifesta nas diferentes pe- (MONTEIRO, 1922, 349).

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1464 Antiplatonismo

Em registo diferente, alguns defenso-


res de medidas eugénicas não deixaram
de recordar o contributo de Platão nes-
se sentido. Escrevendo em 1933, Alme-
rindo Lessa celebra o facto de Platão ter
preconizado que os conselhos de anciãos
verificassem, “nos casamentos, o estado
de alma e corpo dos nubentes” (LESSA,
1933, 6). Na revista A Medicina Contempo-
rânea, de 1938, também Barahona Fer-
nandes alude aos “gérmenes do moderno
pensamento eugénico”, entre os quais in-
clui o filósofo grego (FERNANDES, 1944,
179). Apesar de serem ideias datadas,
causa surpresa a ausência de uma palavra
crítica dos pensadores portugueses a res-
Abel Salazar (1889-1946).
peito do pensamento eugénico e do seu
fundador europeu.
O médico, filósofo e artista Abel Sala- lectual e emotivo” (Id., Ibid., 189). Salazar,
zar, em crónica de 30 de agosto de 1936, ao pronunciar-se sobre Platão enquanto
publicada no jornal O Diabo, censura o homem concreto, recupera intuições an-
modo alegadamente impreciso da escri- tigas sobre a relação entre a totalidade de
ta platónica, vendo nela excesso de liris- uma obra e a biografia do respetivo autor,
mo, de emoção, de êxtase, de devaneio e nunca suficientemente bem exploradas,
de fantasia: “Na obra de muitos autores, como a de Álvaro Pais, ou, mais próxima
como […] o próprio Platão, […] os ele- de si, a do médico e poeta Manuel Laran-
mentos emocionais predominam sobre jeira, que via em Platão um tipo psíquico
os filosóficos […] e a razão faz-se então de tendências místicas. O tom geral da
o vassalo da emoção” (SALAZAR, 2012, crítica de Abel Salazar é a denúncia do
45). Menos de um ano depois, a 17 de “carácter híbrido, filosófico-literário, filo-
julho de 1937, denuncia a limitação do sófico-poético” do pensamento platónico
projeto platónico no que diz respeito à (Id., Ibid., 271) e a afirmação de que este
matéria do Universo e à criação a partir contribuiu, na figura do demiurgo, para
do nada. O demiurgo platónico dá forma o aumento dos absurdos e dos paradoxos
à matéria mas não a cria. A observação “que nada resolvem, e não fazem senão
crítica sublinha as dificuldades que a ex- tornar a situação mais confusa” (Id., Ibid.,
periência e a matéria colocam ao pensa- 303). Também a receção do platonismo
mento; em complemento, Abel Salazar vê mereceu as críticas de Salazar, no âmbito
o idealismo e o teísmo espiritual absoluto da denúncia que fez do estado suposta-
de Platão como uma teoria filosófica in- mente atrasado do conhecimento que
completa, porque a realidade divina fica os filósofos portugueses, e até as univer-
por explicar, bem como a independência sidades portuguesas, tinham de pensa-
metafísica do plano das ideias, e a matéria dores contemporâneos, nomeadamente
revela-se impenetrável à razão humana. dos que estavam mais próximos da lógica
Para este autor, a obra de Platão não é se- matemática e das descobertas da física;
não “uma autoafirmação do homem inte- neste contexto, do seu ponto de vista,

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Antiplatonismo 1465

“impera  […] um platonismo provincia- de Platão. O comunitarismo de bens, de


no” (Id., Ibid., 289). mulheres e de filhos, a aplicação univer-
Já na segunda metade do séc. xx, o sal de medidas eugénicas violentas, a ex-
jornalista e polígrafo Hugo Rocha cri- pulsão de artistas, de médicos e de juízes
tica fortemente Platão no que respeita não coniventes com o Estado, o controlo
à localização de mundos habitados por da religião popular pelos governantes e
seres inteligentes. Em Outros Mundos, Ou- a divinização dos governantes depois da
tras Humanidades, de 1958, Rocha afirma morte constituíram desde sempre temas
que o “misticismo platónico não merece polémicos na receção do pensamento
especial consideração […] porque, para de Platão. Orlando Vitorino considera
Platão, os mundos habitados situavam-se que essa receção não compreendeu su-
fora do universo visível, o que é, manifes- ficientemente a dimensão irónica, e até
tamente, absurdo” (ROCHA, 1958, 30). lúdica, desta parte do pensamento po-
Esta questão permaneceu fora do deba- lítico de Platão. Do seu ponto de vista,
te académico português, apesar de ser não se reparou com a devida atenção no
central por muitas razões: por um lado, magistral exercício de ironia que é todo
aborda a possível existência, no espaço o comunitarismo de bens e de mulheres
exterior, de mundos habitados por seres da República platónica: “Considera-se, em
inteligentes; por outro lado, aponta para geral, que Platão é o filósofo da ironia,
o destino último das almas depois da mas raras vezes se reconhece a ironia
morte (&Antiespiritismo). Raul Proença, onde Platão a põe”. Em consequência,
que trabalhou durante a Primeira Guer- Vitorino recusa que uma obra como A Re-
ra Mundial, mas tendo apontamentos pública possa ser incluída na categoria dos
doutros períodos, contribuiu de modo escritos utópicos, não sendo mais do que
original para um aspeto complementar a magistral explicitação irónica de todas
deste debate, não o da estrutura profun- as consequências dos sistemas que “susci-
da do espaço em Platão, mas o da estru- taram o entusiasmo daqueles a quem Pla-
tura profunda do tempo e da cadeia de tão chamava o que nós designamos por
eventos. No seu O Eterno Retorno, recusa ‘populaça’” (VITORINO, 2010, 438-439).
que Platão possa ser considerado um de- Esta interpretação, fundada numa refle-
fensor de teorias retornistas do tempo, xão sobre a misantropia platónica e sobre
porque o ciclo das metempsicoses não a conceção da política que se expressa
implica a eterna repetição do idêntico no diálogo O Político, auxilia a figura de
e, para algumas pessoas, o ciclo tem um Platão, pois enfatiza o lado da receção do
termo. Conclui, pois, que, “se um anel pensamento do filósofo grego. A inter-
da cadeia da realidade […] não é desti- pretação de Vitorino não fica, contudo,
nado a repetir­‑se, a própria cadeia não amplamente demonstrada. Por um lado,
torna idêntica, e a outra fase do mundo haveria que explicar por que razão foi
apresentará factos e seres que diferem tão difícil, durante séculos, perceber-se a
completamente dos da fase anterior” ironia platónica num assunto tão decisivo
(PROENÇA, 1987, 133-134). quanto o da organização do Estado. Por
Cerca de duas décadas depois do estu- outro lado, medidas políticas altamente
do de Hugo Rocha, o filósofo Orlando intelectualizadas – como a eugenia, a uti-
Vitorino, em Refutação da Filosofia Triun- lização de mentiras para fins políticos, a
fante, de 1976, aborda problemas com- menorização da religião popular em rela-
plexos da hermenêutica da obra política ção à ordem política e a comunidade de

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1466 Antiplatonismo

bens e de mulheres – dificilmente podem dade desses aspetos com a época em que
ser consideradas assuntos da “populaça”. o crítico vivia), vê-se que o filósofo gre-
Sendo os dois pontos improváveis, Vito- go foi de um modo geral apreciado pelo
rino, ao criticar uma leitura recorrente pensamento e pela cultura intelectual em
da obra política de Platão, está de facto Portugal. Em muitos casos, permanece a
a pôr em causa teses filosóficas importan- dúvida sobre se o elogio ao “divino Pla-
tes, como o domínio que a política pode tão”, muitas vezes reiterado, deriva do
ter sobre a totalidade da vida social. É de apreço pelas teses filosóficas do autor ou
notar, contudo, que a interpretação que se, diferentemente, é um mero símbolo
Vitorino faz do pensamento político de da estima pelas origens gregas da civiliza-
Platão coloca no centro do debate her- ção ocidental. Os autores que não elogia-
menêutico um problema especialmente ram Platão, ou que acrescentaram ao elo-
delicado para os leitores do séc. xx, que gio críticas pertinentes, têm o mérito de
viram cometer as maiores atrocidades em terem contribuído para uma leitura justa
nome do Estado e em prol da “melhoria da obra de um dos maiores pensadores
da raça”. Mesmo que a tese da ironia e da da história da humanidade.
“populaça” seja verdadeira, e que Platão
não tivesse intenção de propor uma orga-
nização política que dominasse a totalida-
Bibliog.: Academias dos Singulares de Lisboa, De-
de da vida dos cidadãos (o período entre
dicadas a Apollo, t. i, Lisboa, Officina de Ma-
o nascimento e a morte, mas também o noel Lopes Ferreyra, 1692; AGUIAR, Manoel
período da preparação dos nascimentos, Caetano Pimenta de, Morte de Socrates. Trage-
através de casamentos combinados, e o dia, Lisboa, Impressão Regia, 1819; ALMEI-
período em que os governantes falecidos DA, Teodoro de, O Feliz Independente do Mundo
se tornariam génios tutelares do Estado), e da Fortuna, ou Arte de Viver Contente em Quais-
ainda assim haveria que explicar por que quer Trabalhos da Vida, 3 vols., Lisboa, Regia
razão a alegada ironia se manifestou com Officina Typográfica, 1779; Id., Recreação Filo-
sófica, ou Diálogo sobre a Filosofia Natural, para
tão grande detalhe. Além disso, desse
Instrução de Pessoas Curiosas, Que não Frequenta-
modo não se compreende que Aristóte- ram as Aulas, 10 vols., Lisboa, Regia Officina
les, o discípulo mais importante de Pla- Typografica, 1786-1800; ANDRADE, Diogo
tão, tenha criticado exaustivamente a de Paiva de, Sermões do Doutor Diogo de Payua
República e As Leis sem ver nessas obras d’Andrade. Primeira Parte. Começa no Pr.º Domin-
qualquer ironia, mas um projeto políti- go do Aduento & Acaba na Festa do Santissimo Sa-
co bem estruturado (Política, II). Se este cramento. Recopilados dos Proprios Originais por F.
Manoel da Conceição Seu Sobrinho da Ordem dos
contemporâneo de Platão, especialmente
Eremitas de S. Agostinho, Lisboa, Pedro Crasbee-
bem informado, não viu ironia no comu- ch, 1603; AZEVEDO, Luís António, Rivaes ou
nismo de mulheres e de bens, e se o pro- Dialogo Moral de Platão sobre a Filosofia Traduzido
jeto se estruturou com um nível de com- de Grego em Linguagem Portuguesa e Ilustrado com
plexidade muito elevado, segue-se que é Escolios, e Annotações Criticas, Lisboa, Regia Of-
implausível a leitura irónica. ficina Typográfica, 1790; BARBOSA, Aires,
Equilibrando a perspetiva da forma Obra Poética, fixação do texto latino, introd.,
anot. e coment. Sebastião Tavares de Pinho e
(traduções em número diminuto e ape-
Walter de Medeiros, Coimbra/Aveiro, Im-
nas a partir do séc. xx) com a do conteú-
prensa da Universidade de Coimbra/Universi-
do (críticas localizadas a aspetos parciais dade de Aveiro, 2013; BARROS, João de, Espe-
do pensamento de Platão, muitas delas lho de Casados, ed. lit. Tito de Noronha, 2.ª ed.,
assinalando meramente a incompatibili- Porto, Imprensa Portugueza, 1874; BERNAR-

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Antiplatonismo 1467

DES, Manuel, Nova Floresta, ou Sylva de Varios rio, Coimbra, Faculdade de Letras da Univer-
Apophthegmas, e Ditos Sentenciosos Espirituaes, & sidade de Coimbra, 1967; FERREIRA, Alexan-
Moraes; com Reflexoens, em que o Util da Doutrina dre, Supplemento Historico ou Memorias, e Noticias
Se Acompanha com o Vario da Erudição assim Divi- da Célebre Ordem dos Templarios para a Historia da
na como Humana: Offerecida, & Dedicada a Sobe- Admirável Ordem de Nosso Senhor Jesu Christo, t. i,
rana Mãe da Divina Graça Maria Santissima Senho- Lisboa Ocidental, na Officina de Joseph Anto-
ra Nossa, 5 t., Lisboa, Officina de Valentim da nio da Sylva, 1735; FERREIRA, Silvestre Pi-
Costa Deslandes, 1706-28; Id., Estimulo Pratico nheiro, Ensaio sobre a Psicologia, Noções Elementa-
para Seguir o Bem, e Fugir o Mal. Exemplos Selectos res de Filosofia e Outros Escritos Filosóficos, pref.
das Virtudes, e Vicios; Illustrados com Reflexoens, e Maria Luísa Couto Soares, Lisboa, INCM,
Dedicados à Soberana Rainha dos Anjos Maria San- 1999; FIGANIÈRE, Visconde de, Estudos Esoté-
tissima Senhora Nossa, Lisboa Ocidental, Offici- ricos. Submundo, Mundo, Supramundo, Porto, Li-
na de Antonio Pedrozo Galram, 1730; BRAN- vraria Internacional de Ernesto Chardron,
CO, Anselmo Caetano Munhoz de Abreu 1889; FIGUEIREDO, António Pereira de,
Gusmão e Castelo, Ennaea, ou Aplicação do En- O Novo Testamento de Jesus Cristo, t. iii, Lisboa,
tendimento sobre a Pedra Philosophal, Lisboa Officina Typográfica, 1779; FRANÇA, Nobre,
Ocidental, Oficina de Maurício Vicente de A Philologia perante a História. Ensaio de Crítica á
Almeida, 1732; Caeiro, Francisco Gama, Sciencia Allemã e a Várias Sciencias, Porto, Typo-
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João, A Oração sobre a Fama da Universidade CEDO, José Agostinho de, Sermão contra o Filo-
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1468 Antiplatonismo

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Anno de MDCCCXI, Lisboa, na Impressão Re- Raul, Os Índices Expurgatórios e a Cultura Portu-
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pressão Regia, 1815a; Id., Refutação dos Princí- Educação Nacional, 1958; ROCHA, João da,
pios Methaphysicos, e Moraes dos Pedreiros Livres Memorias de Um “Medium” Excerptos de Um Dia-
Iluminados, Lisboa, Impressão Regia, 1816; Id., rio, Porto, Livraria Nacional e Estrangeira,
Cartas de José Agostinho de Macedo a Seu Amigo J. 1900; SALAZAR, Abel, Obras Completas de Abel
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Se Mostrão os Sólidos Fundamentos da Sua Immor- CHES, Francisco, Tratados Filosóficos, pref. A.
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rem Muytas Cousas Antiguas de Hespanha C Todas Galeria das Ciências Contemporâneas, Porto, Li-
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Suas Gloriosas Conquistas antes e depois de Ser Le- da, Defensam da Monarquia Lusitana, Coimbra,
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República; PROENÇA, Raul, O Eterno Retorno,
introd., fixação do texto e anot. António Reis,
vol. i, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1987;
vol. ii, Lisboa, Instituto da Biblioteca Nacional
e do Livro/INCM, 1994; QUENTAL, Antero
de, Cartas, org. Ana Maria Almeida Martins,

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Antipluralismo 1469

Antipluralismo elementares da ordem natural de uma


cultura genuína, a saber, o reconheci-
mento de uma hierarquia intelectual.
O filósofo alemão dizia que a emancipa-
ção das massas face à orientação de uma
elite intelectual era uma traição à cultu-
ra, uma vez que o desejável seria que as

C omecemos por precisar o conceito


de pluralismo, que está vinculado à
ideia de diversidade. O termo é usado, o
massas seguissem os caminhos trilhados
pelos génios e não que se impusessem a
eles. Nietzsche dizia que esse logro, esse
mais das vezes, no contexto da política, falso bem, tinha por base uma conceção
apesar de também ter significação na fi- errada de liberdade, uma vez que uma
losofia e no direito. Pluralismo político liberdade absoluta resultaria na degene-
designa um sistema em que se reconhece ração da cultura e na regressão da socie-
o direito à liberdade de expressão e de dade ao estádio dos bárbaros. A destrui-
comportamentos e em que se permite a ção da hierarquia intelectual por parte
criação de diferentes partidos políticos, do Iluminismo fez, segundo o filósofo,
independentes, com ideologias diferen- com que os homens escolhessem demo-
tes e com igual direito ao exercício do craticamente a lei do menor esforço, da
poder. Concentrar-nos-emos, neste tex- comodidade, e resultou na perpetuação
to, nesta aceção do pluralismo. Importa, de valores mesquinhos. Nietzsche con-
no entanto, referir os significados que o sidera que ninguém tem um desejo de
termo colhe na filosofia e no direito. Na liberdade absoluta, à exceção dos bárba-
filosofia, pluralismo designa uma dou- ros, uma vez que os homens civilizados
trina que afirma que todos os seres são querem servir a cultura.
múltiplos e diversos entre si, opondo-se Na Antiguidade, Platão defendia uma
ao monismo, i.e., afirmando que os seres ideia semelhante, considerando que a
que compõem o Universo não são redu- verdadeira liberdade é a submissão ao
tíveis a um princípio constitutivo único. logos, i.e., ao discurso do ser, que é um
Pluralismo jurídico refere a existência apagamento do indivíduo perante essa
concomitante de dois ou mais sistemas razão superior do logos-uno. Para o filó-
jurídicos num Estado. sofo, o pluralismo seria um falso bem.
A defesa do pluralismo político esteve Platão propunha que, no Estado ideal, a
na base das democracias da civilização arte só tivesse a liberdade de servir a mo-
ocidental após a Revolução Francesa, ral e a política, que os poemas imitassem
assente nos ideais do Iluminismo. O Ilu- só os bons costumes e que se inibissem
minismo defendia que a vocação do do falso bem que era a imitação do vício,
Homem era pensar por si mesmo, sem da intemperança, da baixeza e da inde-
orientação externa, considerada como cência. Platão dizia que, nas assembleias
uma restrição da liberdade e, por con- democráticas da cidade, não se devia
seguinte, da possibilidade de evolução ouvir quem não tivesse saberes técnicos
e melhoramento do espírito. No en- sobre as questões discutidas: nem todas
tanto, os ideais do Iluminismo não fo- as opiniões teriam valor ou direito à ex-
ram unanimemente aceites. Nietzsche, pressão. Para o filósofo grego, a justiça
e.g., dizia que o Iluminismo constituía florescia na cidade com base numa asso-
uma afronta a um dos princípios mais ciação da formação dos cidadãos à ideia

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1470 Antipluralismo

de simetria, proporção, ritmo, excelência (que impõe o princípio de igualdade de


moral e unidade. tratamento jornalístico em, relação a to-
Durante a ditadura de Salazar, em Por- das as candidaturas, independentemen-
tugal, segundo Graça dos Santos, viveu-se te da importância dos acontecimentos e
o período da “‘política do espírito’, que do contexto da atualidade informativa),
inclui iniciativas como a ‘Campanha do mas também para evitarem a aplicação
bom gosto’ […] para […] a busca imode- de multas pesadas” (“Nova proposta do
rada da harmonia” (SANTOS, 2008, 64), PS…”, SIC Notícias, 26 maio 2015). Mui-
i.e., um período de antagonismo ao plu- tos políticos e cronistas apelidaram a
ralismo, uma vez que o Governo do Es- televisão e os jornais de antipluralistas,
tado Novo era conservador e servia-se da alegando que perpetuavam a alternância
propaganda, da censura e da polícia po- no poder dos dois partidos com maior
lítica para forjar uma união nacional no expressão no Parlamento, constrangen-
que diz respeito à moral e aos costumes. do a capacidade dos partidos com menor
No entanto, décadas após o 25 de Abril, expressão de comunicarem as ideias do
teve lugar uma discussão mediática que seu programa eleitoral à população e de
revelou a fragilidade do conceito demo- colherem maior número de votos.
crático de pluralismo. A Comissão Nacio-
nal de Eleições considerou, em 2013, que
a diferença de tratamento das campa- Bibliog.: impressa: GUTHRIE, W. K. C.,
nhas dos diversos partidos, no que dizia A History of Greek Philosophy, vol. iv, Cambridge,
respeito ao tempo de antena, ao número Cambridge University Press, 1992; KANT,
de notícias e à atenção dada na análise Immanuel, A Paz Perpétua e Outros Opúscu-
dos comentadores políticos, violava a lei los, Lisboa, Edições 70, 2004; NIETZSCHE,
Friedrich, On the Future of Our Educational Ins-
de cobertura das eleições, que exigia pa-
titutions, London, Morrison & Gibb Limited,
ridade no tratamento da candidatura dos 1910; Id., Crepúsculo dos Ídolos, Lisboa, Edições
diversos agentes políticos. As redações 70, 1940; PLATÃO, A República, 10.ª ed., Lis-
das agências noticiosas alegaram que a boa, FCG, 2010; ROGUE, Christophe, Com-
Comissão Nacional de Eleições confun- preender Platão, Porto, Porto Editora, 2004;
dia propaganda com matéria informativa SANTOS, Graça dos, “Política do espírito”,
e que não só seria impossível cobrir to- Media & Jornalismo, n.º 12, 2008, pp. 59­‑72;
digital: “Nova proposta do PS reconhece li-
das as candidaturas de igual forma, como
berdade editorial na cobertura das campa-
isso não seria válido do ponto de vista do
nhas eleitorais”, SIC Notícias, 26 maio 2015:
interesse público e alegaram o direito de http://sicnoticias.sapo.pt/pais/2015-05-26-
liberdade editorial para destrinçar as no- Nova-proposta-do-PS-reconhece-liberdade-e-
tícias que teriam relevância e as que não ditorial-na-cobertura-das-campanhas-eleito-
teriam. A polémica foi duradoura, esten- rais (acedido a 23 maio 2017).
dendo-se por múltiplas eleições, como dá Ricardo Franco
conta uma notícia publicada em 2015:
“nos últimos atos eleitorais, as televisões
deixaram de fazer debates (para cum-
prir a atual lei, teriam de realizar mais
de uma centena, o que é manifestamen-
te impossível) e reduziram a cobertura
da campanha aos mínimos para, assim,
não só respeitarem a lei garantidamente

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Antipolitiquismo 1471

Antipolitiquismo tivo “politiquilho”, assumem um pendor


pejorativo, significando aquele ou aque-
les que são políticos de baixa qualidade,
que se ocupam da política partidária ou
que, fazendo política, se ocupam de pro-
cessos menos corretos. Associados a estes
conceitos encontramos outros, como ca-

O nome (substantivo masculino) “po-


litiquismo” surge na língua por-
tuguesa enquanto derivação da palavra
ciquismo, compadrio, fulanização, clien-
telismo e partidocracia, cujo contexto de
utilização na prática discursiva valida a di-
“política”. Utilizado na prática discursiva reta relação com a degeneração política
com um sentido depreciativo, é emprega- própria do politiquismo.
do procurando transmitir a mesma ideia A crítica da política desvirtuada tem,
que as palavras “politicagem”, “politica- em Portugal, uma história longa (que re-
lha”, “politicaria” e “politiquice”. Associa- monta pelo menos ao séc. xix) e pluri-
dos a estes nomes estão os adjetivos “poli- facetada, assumindo uma multiplicidade
ticalheiro”, “politiqueiro” e “politicante”, de dimensões nos domínios da represen-
e o substantivo “politiquilho”. tação iconográfica (escultura ou pintu-
Importa salientar que a origem etimo- ra), do romance literário, da monogra-
lógica do conceito de política e, subse- fia científica e do artigo jornalístico de
quentemente, de politiquismo remonta opinião. Esta censura à praxis da política
à palavra grega “pólis”, significando tudo resultou num movimento de multíplices
o que se refere à cidade. A utilização do e diferentes manifestações, que têm em
termo expandiu-se “graças à influência comum o facto de se poderem designar
da grande obra de Aristóteles, intitulada como antipolitiquismo.
Política, que deve ser considerada como No domínio da iconografia, encontra-
o primeiro tratado sobre a natureza, mos exemplos de crítica social que des-
funções e divisão do Estado, e sobre as tacam o exercício anormal e perverso
várias formas de Governo” (BOBBIO et de funções políticas. O mais célebre dos
al., 2004, 954). Em português, a palavra exemplos artísticos do antipolitiquismo é
“política” significa arte ou ciência de a figura do Zé Povinho, popularizada por
governar ou de influenciar o modo de Rafael Bordalo Pinheiro. Não obstante
governação, não existindo na prática dis- ser possível entender o Zé Povinho como
cursiva uma direta valorização negativa uma personalização do povo português,
do termo. que reflete, portanto, características des-
Como referido, na multiplicidade de te povo, como as suas fraquezas, os seus
utilizações e derivações do conceito de anseios, as suas exaltações e as suas per-
politiquismo existe sempre uma conota- plexidades, esta imagem também está
ção negativa. Neste sentido, o substantivo diretamente associada à crítica social e
“politicagem”, para o qual remetem todos à censura de uma determinada praxis
os outros vocábulos, é utilizado para se re- política, necessariamente desvirtuada.
ferir a “política de interesses pessoais, de A pluralidade de aplicações da figura do
troca de favores, ou de realizações insig- Zé Povinho desde a data da sua primeira
nificantes” (HOUAISS e VILLAR, 2003, aparição, em 1875, na revista A Lanterna
2918). Já os adjetivos “politicalheiro”, Mágica, tem marcado a vida político-social
“politiqueiro” e “politicante”, e o substan- portuguesa desde então, configurando-se

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1472 Antipolitiquismo

“Zé Povinho”, O António Maria, 10 de fev. 1881.

como uma das mais poderosas críticas po- de crítica sociopolítica, destaque para
líticas. A Queda de Um Anjo (1866), de Camilo
Ainda no âmbito da expressão icono- Castelo Branco, onde o autor pinta a
gráfica, destaque para um importante e realidade da atividade de um conjunto
famoso quadro do pintor José Malhoa de caciques e a dificuldade de um candi-
intitulado A Compra do Voto (1904), que dato governamental em conseguir o seu
é um excelente exemplo da importância apoio. Também Júlio Dinis aborda a pro-
destas práticas degenerativas no ambien- blemática da tentativa de controlo dos
te cultural de uma determinada época. atos eleitorais por intermédio de man-
A Compra do Voto representa o paradigma darins ou barões locais no seu romance
da contestação artística a uma atividade A Morgadinha dos Canaviais (1868). Para
depreciativa da política, arrogando-se em além da condenação à tentativa de con-
exemplo de antipolitiquismo. dicionamento ilegítimo dos resultados
Especial relevância para a literatura eleitorais com promessas de emprego,
(à semelhança do que aconteceu com subornos, ameaças físicas, censura ainda
outros escritores no mesmo período e o vira-casaquismo, uma prática frequen-
noutros pontos da Europa), nomeada- te entre o séc. xix e o séc. xx. Em Jú-
mente durante a segunda metade do lio Dinis encontramos o exemplo típico
séc.  xix, altura em que vários autores da atividade política característica do
se pronunciaram (quer através do ro- séc. xix, expressa em elementos como “a
mance, quer através das publicações fulanização dos conflitos, o compadrio,
periódicas) muito criticamente sobre a troca de favores, as lealdades e depen-
o que é habitualmente designado por dências clientelistas” (ALMEIDA, 1991,
caciquismo. Entre os vários romances 102), bem como a feroz condenação da

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Antipolitiquismo 1473

mesma, num modelar do que pode de- eleitoral e as suas adulterações, nomeada-
signar-se como antipolitismo. mente através da manipulação dos regis-
Outras obras, ainda no séc. xix, permi- tos de eleitores e do controlo das comis-
tem compreender que o romance satíri- sões recenseadoras; bem como o relato
co não se limitou aos exemplos referidos. de António Teixeira de Sousa dos factos
Em O Senhor Deputado (1882), de Júlio ocorridos durante as eleições parlamen-
Lourenço Pinto, o tema é recuperado, e tares de 1879.
é oferecida aos leitores uma visão próxi- O antipolitiquismo não se reduziu às
ma da forma como as carreiras políticas críticas ao funcionamento do sistema
eram construídas e alicerçadas, tendo dos partidos e às práticas de caciquismo
como estrutura uma teia de interesses, de no processo eleitoral. Na fase final da
compadrio e de cumplicidades pessoais. Primeira República, encontramos uma
A novela Uma Eleição Perdida (1888), do condenação generalizada da democra-
conde de Ficalho, permite firmar uma cia, e durante o Estado Novo, que foi,
certeza sobre a forma de funcionamen- por natureza, uma negação da política
to das eleições locais, sendo, mais uma democrática, podemos encontrar uma
vez, possível identificar a crítica à falta de multiplicidade de discursos (sobretudo
debate de ideias, ao predomínio das re- de António de Oliveira Salazar) onde se
lações sustentadas pela solidariedade po- procura desconstruir as virtudes do siste-
lítica, ao agrilhoamento da maioria dos ma democrático liberal.
eleitores em torno de relações de depen- O estudo e o comentário do fenóme-
dência e à compra de votos. Também Eça no político durante a Terceira República
de Queirós, através de A Ilustre Casa de Ra- permitiram produzir inúmeros artigos de
mires, publicada postumamente, em 1900, opinião (também estes alvo de condena-
aborda esta temática. Nesta obra, é espe- ção, sobretudo tendo em consideração a
cialmente relevante a ideia de que o cir- falta de imparcialidade e de objetivida-
cunstancialismo político permite alterar de dos seus comentaristas) e entrevistas
o sentido ideológico e o posicionamento onde se aborda negativamente a ativida-
dos políticos, confirmando-se a noção do de política, sem que na realidade exista
vira-casaquismo como prática que con- qualquer unidade no discurso.
substancia a aceitação da prevalência do Neste âmbito, existem críticas muito
realismo político face à ideologia. extensas e profundas que passam pelo
Para além dos romances, os escritores obscurantismo da vida política, i.e., que
portugueses do final do séc. xix também tentam compreender as motivações dos
trabalharam esta temática nas publica- atores políticos e as realidades infraestru-
ções periódicas. Especial destaque para o turais, o que resulta, frequentemente, na
trabalho de Eça de Queirós e de Ramalho disseminação de teorias da conspiração
Ortigão em As Farpas, publicação mensal e na condenação da falta de ideias. Des-
na qual os dois escritores, através de uma taque para as acusações de relativismo
fina ironia, satirizavam os costumes da moral, para a denúncia de existência de
época, com especial destaque para as crí- redes de pressão, e para a burocratização
ticas à vida política. do aparelho de Estado e das respetivas
Noutro campo, encontramos ainda os consequências na organização da socie-
relatos políticos, como o de Domingos dade, bem como para as críticas à falta de
Tarrozo em A Forma de Votar (1898), que preparação e educação dos agentes polí-
aborda de forma destacada o processo ticos (e à profissionalização dos mesmos),

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1474 Antipombalismo

aos jobs for the boys, às juventudes partidá-


rias, aos modelos de financiamento par-
Antipombalismo
tidário e ao funcionamento interno dos
partidos políticos. Isto ao mesmo tempo
que se condenavam os métodos partido-
cráticos (onde predominavam os sindi-
catos de voto e as práticas oligárquicas
consubstanciadas nos caciques locais, nos
barões ou nos notáveis), o pragmatismo,
a ausência de ideologia, o rotativismo do
O antipombalismo consiste numa
corrente que compreende a oposi-
ção, mas, acima de tudo, as leituras crí-
chamado bloco central (o conjunto dos ticas relativamente à figura, às ideias e à
partidos que habitualmente tinham aces- ação política de Sebastião José de Carva-
so ao poder), e o compadrio. lho e Melo (1699-1782), ministro do Rei
Entre o séc. xix e o séc. xx, surgiu D. José I (entre 1750 e 1777), mais conhe-
uma miríade de críticas ao exercício da cido pelo título nobiliárquico de marquês
política nas suas múltiplas dimensões, o de Pombal.
que consubstanciou aquilo que podemos A imagem do marquês de Pombal que
designar como antipolitiquismo, ou seja, chega até nós não é propriamente a de
uma direta condenação de práticas que um político tolerante e compassivo. Pelo
ficam nas margens morais e éticas da ati- contrário, a sua prática aparece associada
vidade política. Estas críticas, como se ob- à expulsão, à tortura, bem como ao domí-
servou, concretizaram-se em diferentes nio, com recurso à força militar, de gru-
aceções e de forma permanente na prá- pos da população em manifestação con-
tica discursiva, bem como em representa- tra as suas medidas de reforma política e
ções iconográficas diversificadas. económica. Recordem-se, a título ilustra-
tivo, a expulsão e prisão de centenas de
Jesuítas (e, neste contexto, o auto de fé
Bibliog.: ALMEIDA, Pedro Tavares, Eleições e que determina a queima do italiano Ga-
Caciquismo no Portugal Oitocentista (1868-1890), briel Malagrida), a condenação de mais
Lisboa, Difel, 1991; BOBBIO, Norberto et al., de meia centena de pessoas pela Inquisi-
Dicionário de Política, 12.ª ed., vol. ii, São Pau-
ção (liderada por Paulo de Carvalho, ir-
lo, Universidade de Brasília, 2004; HOUAISS,
Antônio, e VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário
mão de Pombal), a tortura de membros
Houaiss da Língua Portuguesa, vol. iii, Lisboa, Te- dos Távoras, a repressão da aldeia de
mas e Debates, 2003; MALTEZ, José Adelino, pescadores da Trafaria e o esmagamento
Tradição e Revolução, 2 vols., Lisboa, Tribuna da da revolta dos comerciantes do vinho do
História, 2004-05; PINHEIRO, Rafael Borda- Porto pelas tropas do Rei.
lo, “Zé Povinho”, A Lanterna Mágica, n.º 5, 12 No entanto, se, por um lado, Sebastião
jun. 1875, pp. 36-37; RAMOS, Rui, A Segunda de Carvalho e Melo é implacável para
Fundação, in MATTOSO, José (coord.),  Histó-
determinados grupos, algumas famílias
ria de Portugal, vol. vi, Lisboa, Estampa, 1994;
Id., “Oligarquia e caciquismo em Oliveira ideológicas e instituições, para outros
Martins, Joaquín Costa e Gaetano Mosca cria e faz publicar legislação que inaugu-
(c. 1880-c. 1900)”, Análise Social, vol. xli, ra uma nova era de tolerância e de inte-
n.º 178, 2006, pp. 31-53; SALAZAR, António gração há muito desejada. Lembremos os
de Oliveira, Discursos, 5.ª ed., vol. i, Coimbra, casos da legislação pioneira de proibição
Coimbra Editora, 1961. da escravatura na metrópole, a liberda-
Filipe Arede Nunes de dos índios no Brasil, o fomento dos

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Antipombalismo 1475

casamentos mistos nos territórios ultra-


marinos, nomeadamente na Índia, e ain-
da o arquivamento de processos de acusa-
ção contra as emergentes lojas maçónicas.
Mas o mais relevante, em nosso enten-
der, é a preparação e a publicação pro-
gressiva de legislação destinada a resolver
um problema ignóbil de discriminação
social: a distinção entre cristãos-velhos e
cristãos-novos, criadora de uma conjun-
tura social de diferenciação negativa em
relação aos descendentes de judeus e de
mouros convertidos ao cristianismo. Com
efeito, Pombal concede aquilo a que po-
demos chamar, eufemisticamente, “per-
dão aos judeus”, conseguindo pôr fim a
séculos de estigmatização das minorias
religiosas judia e islâmica numa socie-
dade cristã. Fá-lo, é certo, por estratégia Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782).

política, mas também à luz dos valores


iluministas, tendo como horizonte o ideal de Lisboa na sequência do terramoto de
da universalidade e atenção à diversida- 1755; a revisão das relações entre o Esta-
de do género humano nas suas diferen- do e a Igreja na perspetiva da afirmação
tes expressões. Porém, se este princípio do regalismo político, colocando esta na
é aplicado a alguns grupos, com outros dependência daquele no que ao tempo-
resulta a contrario, durante os 27 anos do ral diz respeito; a reforma do ensino e,
consulado pombalino, uma diferença neste contexto, da Univ. de Coimbra.
que exemplifica a contradição inerente à Estas são algumas das mudanças mais rá-
prática reformista do secretário de Esta- pidas e profundas de Pombal, que fazem
do de D. José I e, consequentemente, a dele um construtor do Estado moderno,
controvérsia que desencadeia. sendo essenciais para a compreensão das
Na verdade, as diferentes leituras do alterações que, desde então, acontecem
significado das transformações realiza- em Portugal, nas relações entre Portugal
das pelo marquês de Pombal originam e a Europa e no mundo ultramarino de
correntes hermenêuticas partidarizadas. influência colonial portuguesa.
Destaquemos as mudanças económicas, No entanto, estas medidas têm um im-
através da criação de companhias mono- pacto sísmico na sociedade e no meio
polistas em sectores estratégicos (como a político português, nomeadamente por
produção vinícola do Porto, as pescas, o romperem com práticas e protocolos há
vidro e o comércio com o Brasil); a reor- muito estabilizados. A política de Pom-
ganização das ordens religiosas e a me- bal e a forma determinada e abrangente
dida extrema de expulsão dos Jesuítas; a da sua atuação, não poucas vezes marcada
restruturação do aparelho do Estado no pelo recurso a métodos repressivos e vio-
sentido de uma centralização absoluta lentos (à semelhança dos métodos usados
do poder no rei; a reordenação do poli- pelos líderes despóticos europeus), desen-
ciamento e do Exército; a reconstrução cadeiam apreciações bastante divergentes

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1476 Antipombalismo

da sua ação, constituídas, desde então, recordemos o facto de a ação dicotómica


em movimentos de interpretação. pombalina acima referida originar duas
Por isso, Keneth Maxwel, com apro- correntes antagónicas e irreconciliáveis
priado rigor de análise, classifica Pombal de interpretação: o antipombalismo e o
como um autêntico paradoxo do Ilumi- filopombalismo.
nismo, aquela figura e aquele período Importa assinalar ainda que a atuação
que têm constituído o calcanhar de Aqui- de Pombal e as mensagens expressas na
les da historiografia crítica portuguesa. sua propaganda e nas obras de funda-
De algum modo, Sebastião José continua mentação legislativa e historiográfica que
a ser uma espécie de enigma historiográ- acompanham, para efeitos de legitima-
fico, devido, precisamente, às múltiplas ção, o seu processo político, instituem
leituras geradas em seu torno. De facto, aquilo que Jorge Borges de Macedo clas-
o período pombalino é, indubitavelmen- sifica como história partidária, dividin-
te, um dos períodos mais marcados por do o passado entre sombras e luz, entre
“interpretações ideológicas da história”, retrocesso e progresso. Por sua vez, as
dividindo opiniões e perspetivas de re- correntes hermenêuticas a propósito das
composição do passado, como bem nota reformas políticas pombalinas acentuam
Reis Torgal (TORGAL, 1989, 47). Muitas a partidarização das visões do passado,
das análises da figura política de Pombal, criando, de forma irreconciliável, um
produzidas pela historiografia nacional e mito janiforme, um lado negro e um lado
internacional, estão enfermadas ideologi- luminoso deste ministro real que adqui-
camente, daí que seja fácil encontrar tan- riu um poder digno de um alter rex.
to o elogio mais abnegado como a crítica Embora os críticos e os opositores ao
mais feroz. modo de fazer política e às reformas
A propósito, Borges de Macedo iden- pombalinas tenham surgido durante a
tifica três grandes correntes interpretati- governação de Sebastião José, a elabo-
vas divergentes no tocante à avaliação do ração crítica aberta ao seu consulado
desempenho político de Pombal: “Uma governativo tem início no reinado de
primeira corrente tem considerado a D. Maria I. Com efeito, o termo “Viradei-
ação de Pombal como catastrófica para o ra” é usado para marcar a assunção de um
País [...]. Outra toma-o como o precursor movimento de oposição a Pombal e à sua
do laicismo anticlerical; [...] Uma tercei- política. E passam a concentrar-se no mi-
ra corrente [...] entendia que Carvalho e nistro de D. José I todas as responsabili-
Melo deve ser ‘julgado’ quanto aos meios dades pelos aspetos menos agradáveis do
de governo que praticou e ao conteúdo Governo real, ficando o Rei praticamente
da sua atividade, no que se refere à liga- desresponsabilizado historicamente pelo
ção desta com a Moral” (MACEDO, 1983, que só a Carvalho e Melo se imputa. Por
15). Estas apreciações tão contrastantes isso, é rigoroso falar de um antipombalis-
permitem-nos compreender o pedido de mo e não de um antijosefismo.
Ernst Bloch aos historiadores portugue- Note-se que a forte dinâmica de opo-
ses: “Pombalistas, antipombalistas, dizei­ sição surge menos enquanto sistema de
‑nos tão somente quem foi Pombal” (SER- ideias e de valores com características
RÃO, 1984, 353). Porque, na verdade, as bem definidas do que enquanto reivin-
perspetivas ideológicas acabam por impe- dicação da reparação das ofensas e das
dir a construção de uma visão equilibrada lesões causadas aos interesses das hierar-
do real papel histórico do marquês. Aqui, quias e das elites sociais e institucionais.

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Antipombalismo 1477

Isto diferentemente do que acontecerá como o advento de um regime e de uma


após as invasões francesas, no dealbar do ordem social novos ou, pelo menos, como
século seguinte, pois o antipombalismo o primeiro grande abalo na velha arquite-
passará a identificar-se cada vez mais com tura sociológica absolutista e clerical.
o tradicionalismo contrarrevolucionário, A maçonaria tem um papel determi-
em clivagem com o filopombalismo, que nante neste processo de valorização, no-
se distinguirá nos sectores de militância meadamente através da criação de uma
revolucionária de feição liberal. imagem luminosa do marquês de Pom-
Não obstante, é, efetivamente, no rei- bal, como herói restaurador do velho
nado de D. Maria I que começam a dis- prestígio de Portugal na cena internacio-
tinguir-se claramente estas duas corren- nal e como responsável pela abertura das
tes. Primeiro em nome de interesses para portas do país à entrada do progresso e
restaurar regalias perdidas ou para garan- da liberdade. Daí as imagens estereotipa-
tir conquistas alcançadas e privilégios ad- das e desenraizadas da base histórica de
quiridos, mas, posteriormente, ganham um Pombal como precursor da Revolu-
forma ideológica, adensando fraturas, ção Francesa, dos direitos humanos, dos
numa crescente cisão cultural transversal valores liberais, da liberdade de opinião e
ao séc. xix português. Como comenta de consciência e, numa idealização mais
Borges de Macedo: “os governantes e as extrema, da própria democracia.
classes pensantes do país dividiam-se em O encantamento e a glorificação ma-
dois grupos bem distintos: os pombalinos çónicos são bem visíveis em discursos,
e os antipombalinos; para os primeiros, homenagens, alusões circunstanciais, re­
representados pelo ministro Sousa Cou- edição de escritos da autoria do marquês
tinho, as amarguras da governação de e edição de obras laudatórias (de entre
Sebastião José de Carvalho e Melo foram as quais se destaca o texto publicado em
esquecidas para darem lugar a uma inter- 1869 por Emídio Garcia, mação e profes-
pretação da sua atitude quase laicista, jus- sor de Direito da Univ. de Coimbra, inti-
naturalista, percursora de novos tempos tulado O Marquez de Pombal. Lance d’Olhos
e de novas formas de governo, ligadas aos sobre a Sua Sciencia, Política e Administração;
conceitos do despotismo iluminado. A se- Ideias Liberais, Que o Dominavam; Plano e
gunda corrente, expressa no Visconde Primeiras Tentativas Democraticas), e ainda
de Vila Nova de Cerveira, tradicionalista, através de campanhas de recolha de fun-
considerava ignominioso o período pom- dos para a construção da estátua deste po-
balino” (MACEDO, s.d., 113-114). lítico, inaugurada a 13 de maio de 1934,
Todavia, no decurso do Liberalismo que poderá considerar-se o corolário apo-
português, e logo desde os seus alvores, teótico do empenho filopombalista de
regista-se um esforço cada vez mais visí- elevação de Carvalho e Melo ao estatuto
vel para reabilitar e reler o período pom- das figuras cimeiras da história de Portu-
balino como um marco anunciador das gal. Este monumento pombalino erguido
conquistas revolucionárias do séc. xix. sobranceiramente sobre Lisboa é o sím-
O protagonismo de Carvalho e Melo e o bolo mais acabado do longo processo de
lugar cimeiro alcançado na esfera políti- mitificação de Pombal.
ca do Antigo Regime, assim como as re- É difícil compreender o empenho das
formas estruturais implantadas em vários lojas maçónicas em restaurar a memória
sectores vitais da sociedade e do Estado, de Carvalho e Melo e em adotá-lo como
são sumamente valorizados e entendidos um dos seus patronos, bem como um dos

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1478 Antipombalismo

inspiradores mais acarinhados do ideário Por isso, consideramos o mito heroico


secularizante e, mais tarde, laicista que a e luminoso do marquês de Pombal, as-
maçonaria tenta implantar, em oposição sente numa teoria da causalidade lumi-
crescente ao domínio e influência do cle- nosa ou benigna, subsidiário do grande
ro, em geral, e dos Jesuítas, em particular. mito negativo jesuítico, assente na teoria
Por outro lado, não existem dados abso- da causalidade diabólica, que faz da Com-
lutamente conclusivos que provem a filia- panhia de Jesus o cérebro do complô,
ção de Pombal na maçonaria. Contudo, o responsável por oprimir e fazer decair
seu empenho no combate à Companhia Portugal, pela opressão do povo e pela
de Jesus e na limitação dos privilégios difusão de uma ignorância infantilizado-
eclesiásticos leva a que muitos, especial- ra. A construção do primeiro não pode
mente no séc. xix, considerem que a sua dissociar-se da difusão do mito negro dos
política obedece a um plano conspirativo Jesuítas. Ambos emergem como elemen-
concertado da maçonaria e do despotis- tos fundamentais da propaganda maçóni-
mo esclarecido europeu contra o poder ca, laica e anticlerical contra a dita era do
da Igreja. obscurantismo, e em prol da instauração
Releve-se ainda o facto de a associação da nova ordem maçónica do progresso,
de Sebastião José a esta organização secre- da igualdade e da fraternidade.
ta ser fomentada pelos sectores antipom- Neste contexto, convém sublinhar que
balinos e filojesuíticos, mas igualmente o marquês de Pombal é elevado ao estatu-
pelos sectores filopombalinos ligados à to de herói da Modernidade portuguesa e
maçonaria, no período do Liberalismo considerado precursor de valores demo-
e da Primeira República. Neste sentido, cráticos em função da sua política regalis-
Ferrer Benimeli recorda que, internacio- ta, antijesuítica e subjugadora da podero-
nalmente, a criação da imagem de Carva- sa nobreza tradicional ao poder absoluto
lho e Melo resulta da sua associação aos do Estado. Nobres, Jesuítas e hierarquia
pedreiros-livres. eclesiástica são subjugados pela política
Na nossa ótica, o fator mais relevante reformista e persecutória daquele minis-
para o investimento maçónico na exalta- tro, que obtém do Monarca D. José I um
ção de Pombal, como se comprova pelos poder quase ilimitado. E  que, à luz de
documentos, é a sua posição antijesuítica, uma ideologia política ultra-absolutista,
regalista e ultramontana. Acima de tudo, passa para o controlo estatal as principais
o ministro de D. José surge como paradig- atividades produtivas do país, através da
ma desta campanha ideológica, principal- criação de companhias monopolistas;
mente através da medida de expulsão da reforma e estatiza as instituições de con-
Companhia de Jesus, em 1759. De facto, trolo social, nomeadamente a Inquisi-
nos textos laudatórios vindos a lume com ção. Em suma: organismos e instituições
a chancela de mações ou de instituições representativos da sociedade do Antigo
maçónicas emerge obrigatória e enfati- Regime passam a funcionar sob a batuta
camente a questão jesuítica. Recorde-se vigilante e restritiva do Governo monár-
que uma das obras mais lidas nas lojas quico. O mesmo acontece com o ensino,
maçónicas é a Dedução Cronológica e Ana- reformado com base nas novas correntes
lítica, escrita sob a supervisão do marquês pedagógicas e científicas do Iluminismo
de Pombal e editada pela primeira vez em europeu. Pombal tem o mérito de criar
1767­‑1768, considerada, precisamente, a o primeiro sistema de ensino estatal na
Bíblia do antijesuitismo português. Europa, embora os seus efeitos não se-

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Antipombalismo 1479

jam tão transformadores como previsto uma lenda negra deste ministro, fazendo
inicialmente. dele uma tempestade de desgraças, de-
Além da elevação de Pombal a herói sordem e impiedade. Donde o mito bipo-
do liberalismo, devido às suas poderosas lar de Pombal.
campanhas anticlericais e antijesuíticas Camilo Castelo Branco é um exem-
(glorificação que tem como dois grandes plo paradigmático da desconstrução da
momentos a reposição do medalhão de imagem heroica do marquês de Pombal.
Pombal na estátua de D. José I, em 1833, Com o objetivo claro de desmitificar a
pelo Monarca liberal D. Pedro, e as co- fantasmagoria delirante dos Jesuítas e mi-
memorações do primeiro centenário da tificante do ministro Carvalho e Melo, o
morte deste ministro, em 1882), a mitifi- escritor português opõe-se claramente à
cação, muito frequente nos documentos avalanche de textos panegíricos em torno
filopombalistas, consiste igualmente na da figura do marquês de Pombal, produ-
sua equiparação aos grandes ministros zidos por liberais, pedreiros-livres, repu-
modernos da Europa e aos seus politó- blicanos e socialistas, no âmbito das co-
logos. Neste contexto, seguindo Emídio memorações do seu primeiro centenário.
Garcia, salienta-se o vigor da política Em Perfil do Marquês de Pombal, Camilo
pombalina com vista ao bem do povo e tece uma espécie de lenda negra de Pom-
da nação; a grande ação de Pombal como bal, para desfazer, de forma incoercível,
economista e financeiro; o desenvolvi- o mito luminoso erguido em torno do
mento da agricultura e da indústria, das político português. Na visão beatífica,
artes e ofícios; o revigoramento das letras visão liberal e maçónica, Pombal é apre-
e das ciências. sentado como paladino das liberdades e
No entanto, a ação governativa do mar- precursor das ideologias sociopolíticas
quês de Pombal é marcada por diversas mais avançadas do seu tempo. Na visão
contradições, notórias, acima de tudo, na camiliana, pelo contrário, Pombal é um
disparidade entre o discurso e a prática. déspota, um mestre do terror, da tirania
Se, por um lado, procura iluminar e li- e da opressão. Isto perante a multiplica-
bertar Portugal, na prática, institui uma ção de iniciativas centenárias para cantar
política altamente repressiva, exigindo a
obediência pura aos ditames do Estado e
Camilo Castelo Branco (1825-1890).
à ordem estabelecida pela ideologia do-
minante, com o intuito de esmagar qual-
quer forma de oposição e de crítica. As
consequências ficam bem evidentes, quer
na sobrelotação das prisões régias com
presos políticos, quer na extinção do úni-
co órgão de imprensa periódica, a Gazeta
de Lisboa, no início da déc. de 60 da se-
gunda metade do séc. xviii.
Assim se percebe que, contrariamente
aos filopombalistas, que fazem de Sebas-
tião José de Carvalho e Melo o herói do
progresso e da iluminação de Portugal,
inimigo visceral do obscurantismo, da
hidra jesuítica, os antipombalistas criem

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1480 Antipombalismo

louvores à memória do marquês, orien- tiva atacando a liberalização paradoxal de


tadas para um aproveitamento político e um dos maiores símbolos do absolutismo
ideológico de natureza fortemente antije- português. Nesta linha antipombalina,
suítica, num “contexto de crescente radi- veja-se também o opúsculo O Marquez de
calização da questão religiosa motivada pelo Pombal (Folheto para Poucos), de Manuel
impacto da III República Francesa em Caldas Cordeiro, publicado posterior-
Portugal, a entrada em Portugal de mem- mente, mais concretamente em 1890.
bros de ordens religiosas e a afirmação do Assim se desenha, com contornos bem
catolicismo social” (MATOS, 1998, 444). definidos, uma imagem negra de Pom-
E contra o coro de palestras, comícios, bal, da qual é bastante ilustrativa a seguin-
libelos, poesias, sínteses histórias e outras te passagem do protesto feito pela junta
intervenções públicas e publicações cir- diretora da Associação Católica de Braga
cunstanciais, com o propósito de exaltar a contra as comemorações dedicadas ao
personalidade histórica de Pombal como marquês de Pombal: “um servidor cego e
um dos maiores heróis nacionais. condigno da Enciclopédia, da Revolução
A reação de Camilo Castelo Branco ao e da Maçonaria, de que foi o primeiro
movimento dominante de glorificação de chefe em Portugal; ele foi o verdadeiro
Pombal não é um caso isolado. Entende- iniciador e introdutor das ideias revolu-
mos, por isso, que o romancista exagera cionárias neste país; a ele deve Portugal
quando escreve, logo no início da sua os progressos funestos da descrença e a
obra, que o perfil que traça de Pombal inversão dos costumes” (1882). Neste
“não pode agradar a ninguém” (BRAN- ponto, refiram-se igualmente os textos de
CO, 2003, 7). Agrada certamente, ainda outras organizações católicas, como é o
que apenas na forma do discurso e não caso da Associação Protectora dos Operá-
no substrato ideológico, aos Jesuítas, aos rios da Covilhã, a que os Jesuítas estavam
católicos e aos legitimistas, em desacordo ligados. Cumpre recordar que esta visão
com o forte investimento de vários secto- ímpia da vida do marquês de Pombal é
res da cultura e da política portuguesas ainda divulgada pela corrente antipom-
na celebração da memória de um político balista, designadamente através da reali-
cuja ação pouco beneficia o prestígio da zação de missas em sufrágio da alma de
Igreja, a dignidade e a grandeza de uma Carvalho e Melo.
visão legitimista do poder monárquico. É precisamente a partir das comemora-
Em especial, a forte reação católica à ções pombalinas que começa a notar-se
exaltação pombalina reflete a ausência mais claramente uma tendência gene-
de unanimidade relativamente às co- ralizada nos meios intelectuais afetos ao
memorações do Centenário de Pombal. catolicismo para a apreciação negativa
O conde de Samodães, uma das figuras da ação política de Carvalho e Melo, em
marcantes do catolicismo de Oitocentos particular da sua política regalista. O que
mais abertas ao liberalismo, manifesta o não pode deixar de ser compreendido
seu desacordo, verberando contra a ins- como uma reação à adoção da figura do
trumentalização dos festejos pombalinos marquês como bandeira pela corrente
para incrementar a campanha antijesuí- anticlerical, para melhor atacar a Igreja.
tica. Juntando-se aos jornais e às associa- Deste descontentamento é ainda exem-
ções católicas que criticam em uníssono plo a reação do jornal católico A Palavra,
a utilização anticlerical e anticatólica de com sede no Porto, que, a 8 de maio de
Pombal, Samodães publica a sua perspe- 1882, exibe publicamente o seu desagrado

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Antipombalismo 1481

em relação à euforia nacional perante o SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (coord.),
Centenário pombalino, trajando de pre- Pombal Revisitado, vol. i, Lisboa, Presença,
to a sua primeira página e estampando 1984, pp. 75-95; BRANCO, Camilo Castelo,
O Perfil do Marquês de Pombal, Lisboa, Prefácio,
cruzes e símbolos fúnebres em artigos
2003; CORDEIRO, Manuel Caldas, O  Mar-
desabonadores dedicados ao marquês de quez de Pombal (Folheto para Poucos), Porto,
Pombal. Os textos deste periódico des- s.n., 1890; FRANCO, José Eduardo, “A  fun-
toam do imenso coro de louvor a Pom- dação pombalina do mito da Companhia
bal e procuram desacreditar e rebater a de Jesus”, Revista de História das Ideias, vol. 22,
importância histórica que lhe é atribuída 2001, pp. 209-253; Id., e RITA, Annabela,
pelos sectores maçónicos e anticlericais O  Mito do Marquês de Pombal: a Mitificação do
Primeiro-Ministro de D. José I pela Maçonaria, Lis-
em geral. Sinal deste desacordo católico é
boa, Prefácio, 2004; FRANCO, José Eduardo,
ainda a realização, no mesmo ano, de um O  Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no
congresso católico, durante o qual se ten- Oriente (Séculos XVI a XX), vol. i, Lisboa, Gra-
ta reabilitar a imagem da Companhia de diva, 2006; GARCIA, Emygdio, O Marquez de
Jesus, completamente despedaçada pela Pombal. Lance d’Olhos sobre a Sua Sciencia, Política
propaganda filopombalista e antijesuítica. e Administração; Ideias Liberais, Que o Dominavam;
Com efeito, a figura, as ideias e a ação Plano e Primeiras Tentativas Democraticas, Coim-
bra, Imprensa da Universidade de Coimbra,
política de Sebastião José de Carvalho e
1869; MACEDO, Jorge Borges de, “Marquês
Melo, pela sua natureza dicotómica, ori- de Pombal”, in SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário
ginaram uma multiplicidade de leituras de História de Portugal, vol. v, Lisboa, Figueiri-
interpretativas, também elas antagónicas, nhas, s.d., pp. 113-114; Id., “Dialéctica da
oscilando entre o filopombalismo e o an- sociedade portuguesa no tempo de Pombal”,
tipombalismo, entre o mito luminoso e o in Como Interpretar Pombal? No Bicentenário da
mito negro. Sua Morte, Lisboa/Porto, Brotéria/Livraria
Apostolado da Imprensa, 1983, pp. 15-23;
Em grande medida, o séc. xix estabe-
MARQUES, A. H. Oliveira, e DIAS, João José
leceu, pois, os traços fundamentais que Alves, “Pombal na tradição maçónica portu-
caracterizam o antipombalismo na cultu- guesa”, in SANTOS, Maria Helena Carvalho
ra portuguesa, abrindo uma verdadeira dos (coord.), Pombal Revisitado, vol. i, Lis-
fratura divergente na interpretação da boa, Presença, 1984, pp. 61-71; MARQUES,
ação política e do perfil de Pombal que A. H. Oliveira, História da Maçonaria em Portugal:
se manteve como uma espécie de visão das Origens ao Triunfo, pt. i, Lisboa, Presença,
1990; MATOS, Sérgio Campos, Historiografia e
estilizada pelo séc. xx além. Ainda hoje
Memória Nacional (1846-1898), Lisboa, Colibri,
esta fratura interpretativa condiciona a 1998; MAXWELL, Kenneth, O Marquês de Pom-
forma como vemos e pensamos o período bal, Lisboa, Presença, 2001; POLIAKOV, Lion,
pombalino. Só uma releitura a partir do La Causalité Diabolique. Essai sur l’Origine des
levantamento e da edição crítica sistemá- Persécutions, s. l., Calmann-Lévy, 1980; SER-
tica das fontes pombalinas poderá abrir RÃO, Joel, “Repensar Pombal”, in SANTOS,
caminho para uma compreensão mais Maria Helena Carvalho dos (coord.), Pom-
bal Revisitado, vol. ii, Lisboa, Presença, 1984,
equilibrada e profunda desta figura com-
pp. 351­‑359; TORGAL, Luís Reis, “Pombal
plexa e marcante da história portuguesa perante as ideologias tradicionalistas e católi-
e internacional. cas”, in SANTOS, Maria Helena Carvalho dos
(coord.), Pombal Revisitado, vol. i, Lisboa, Pre-
sença, 1984, pp. 131-157; Id., História e Ideolo-
Bibliog.: BEBIANO, Rui, “O 1º centenário
gia, Coimbra, Minerva, 1989.
pombalino (1882)”, Revista de História das
Ideias, n.º 4, 1982, pp. 381-482; BENIMELI, José Eduardo Franco
José A. Ferrer, “Pombal y la masonería”, in Vanda Figueiredo

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1482 Antipopulismo

Antipopulismo recentemente a um certo acordo sobre


este conceito esquivo; e é com base nes-
ta definição de populismo que se pode
construir uma definição de antipopulis-
mo. O populismo é, acima de tudo, uma
ideologia ou, de forma mais genérica, um
conjunto de ideias. O termo pressupõe

T anto em Portugal como no resto da


Europa, o termo “populismo” adqui-
riu má conotação na linguagem corrente.
uma sociedade dividida em dois grupos
relativamente homogéneos, a elite e o
povo, que se opõem: a elite, que é cor-
É usado para descrever os políticos opor- rupta, tomou conta do poder soberano
tunistas que atraem os eleitores fazendo ir- do povo, que é puro, e que continua a ser
responsavelmente promessas irrealizáveis. o seu legítimo detentor; ora, o populismo
Os políticos populistas são também aque- visa restaurar a soberania popular comba-
les que usam uma linguagem emocional tendo a elite maléfica.
e simplista, passível de ser compreendida Não é possível dar uma definição única
pelo homem comum. É certo que nenhu- do que é o povo e do que são as elites. Por
ma dessas definições é capaz de traçar os esta razão, alguns estudiosos consideram
limites conceptuais de um género popu- que o populismo é uma ideologia impre-
lista específico. Na verdade, hoje em dia, cisa, que pode ter um conteúdo ideoló-
quase todos os políticos recorrem, uma gico substancial originário da esquerda
vez ou outra, a palavras de ordem simples (e.g., o socialismo) ou da direita (e.g., o
e pouco sofisticadas, criadas com o objeti- nacionalismo). Enquanto o discurso po-
vo de se ajustarem à duração de um noti- pulista tipicamente de esquerda se centra
ciário televisivo ou ao número limitado de na ideia de que as “grandes empresas”
caracteres de um tweet. exploram “os pobres trabalhadores”, o
Dado o descrédito em torno do termo, alvo da direita é a complacência – ou ine-
são poucos os políticos europeus que ficácia – das elites governantes face à ale-
aceitam o rótulo de populistas. Quando gada “ameaça” da imigração. Por outras
o fazem, normalmente tomam a precau- palavras, o populismo é uma propriedade
ção de definir antecipadamente o signi- da mensagem e não do partido. Se acei-
ficado da palavra, apresentando-a como tarmos essa definição, concluiremos que
sinónimo de democrata, de pessoa que há como que uma graduação dentro do
cumpre a vontade do povo. De facto, esta populismo, o que nos permite rastrear a
é a forma como alguns políticos dos Esta- sua evolução.
dos Unidos usam o termo. Na Europa, a O primeiro movimento populista apa-
palavra está muitas vezes presente no re- receu na Rússia no final do séc. xix,
pertório discursivo dos políticos quando quando as elites narodniki tentaram (sem
estes atacam os seus adversários; assim, o sucesso) mobilizar os camponeses contra
número das autointituladas forças anti- o Governo autoritário em funções. Du-
populistas supera o das que representam rante o séc. xx, foram surgindo outros
uma “ameaça populista”. movimentos europeus; não podemos fa-
A utilidade do termo “populismo” re- lar de uma onda populista, mas da uti-
sulta do facto de a sua definição no de- lização esporádica, por diversas forças,
bate público ainda ser bastante vaga. da retórica populista (e.g., o poujadismo
Felizmente, os académicos chegaram em França no final da déc. de 1950).

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Antipopulismo 1483

O  crescimento eleitoral dos partidos cidadãos com o que consideram ser a


de extrema-direita no início da déc. de incapacidade dos partidos estabelecidos
1990 (como a Frente Nacional em Fran- para resolverem problemas complexos
ça e o Bloco Flamengo na Bélgica) mar- como a imigração e o desemprego. Por
ca o início do crescimento do populismo outro lado, o poder político estabeleci-
na Europa. Hoje em dia, a maioria dos do também é acusado de ter conduzido
países europeus tem, de entre os parti- o país à recessão que teve início nos co-
dos que concorrem a eleições, pelo me- meços do séc. xxi, e de ter entregado o
nos um, tanto à direita como à esquerda poder de decisão nas mãos da troika de
do espectro político, que recorre a uma instituições (Comissão Europeia, Banco
ideologia fortemente populista. Há mes- Central Europeu e Fundo Monetário In-
mo comentadores que consideram que ternacional) à qual recorreu para evitar
está a espalhar-se pela Europa ocidental cair na bancarrota. De forma geral, es-
um zeitgeist populista. tes partidos populistas consideram que a
Ao contrário de outros países da Eu- crise política está intimamente interliga-
ropa ocidental, Portugal não assistiu ao da com o estado da economia.
surgimento de partidos populistas fortes Através da definição do conceito acima
na sequência da transição democrática. avançada, também é possível entender o
Há partidos, da extrema-esquerda como que é o antipopulismo ou, mais correta-
da extrema-direita, que podem ser acu- mente, o que é que se opõe teoricamente
sados ​​de cair ocasionalmente no populis- ao populismo: o elitismo e o pluralismo.
mo, mas foram poucos os que o fizeram O elitismo compartilha com o populismo
sistematicamente. À direita do espectro uma visão da sociedade dividida em dois
político, regista-se o caso do Partido Na- grupos homogéneos, a elite e o povo; a
cional Renovador, um partido naciona- diferença reside no facto de os elitistas
lista fundado em 2000, mas que nunca valorizarem positivamente a elite, em
conseguiu eleger um representante seu detrimento do povo. Baseando-se numa
nas eleições. tradição de pensamento que remonta a
Também se encontram exemplos de Platão, o elitismo argumenta que o poder
discurso populista em declarações de deve ser confiado a um grupo reduzido
Alberto João Jardim, presidente do Go- de pessoas, que são consideradas superio-
verno regional da Madeira de 1978 a res por razões morais ou culturais; estas
2015; embora a sua mensagem tenha pessoas formam um grupo relativamente
um conteúdo distinto, Jardim recorre fechado, com cooptação muito limitada
a uma combinação de dispositivos re- de elementos não pertencentes às elites.
tóricos que é uma marca registada dos Em termos de soluções políticas, os elitis-
partidos populistas contemporâneos. tas favorecem a tomada de decisão tec-
São eles a oposição às elites nacionais, nocrática e a necessidade de despolitizar
sejam de centro-esquerda ou de centro­ áreas políticas importantes. Fora do cír-
‑direita, que considera pertencerem a culo da elite estão as massas que, na me-
uma mesma casta; e à transferência de dida do possível, devem ser impedidas de
poderes para os burocratas e tecnocratas aceder aos círculos do poder. As massas
da União Europeia, que terão privado os são, de uma maneira geral, passivas, pou-
Portugueses da sua soberania. Do ponto co informadas e incapazes de ter opiniões
de vista argumentativo, estes discursos políticas que não sejam elementares e de
exploram a crescente insatisfação dos curto alcance. Quando se mobilizam,

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1484 Antipopulismo

saem geralmente à rua, protagonizando si, que diferem em termos de recursos e


manifestações violentas. preferências. Os defensores do pluralis-
Os elitistas argumentam que a demo- mo mostram-se céticos em relação à pos-
cracia está sempre em perigo de degene- sibilidade de existir uma “vontade popu-
rar no populismo, ou seja, na queda do lar”, pois consideram que esta não passa
poder nas mãos do povo. Desse modo, de uma estratégia das elites para manter
o antipopulismo é um instrumento dis- o poder e perpetrar atrocidades contra
cursivo destinado a deslegitimar os opo- as minorias (os imigrantes, as minorias
sitores políticos, pregando-lhes o rótulo étnicas) que não pertencem ao chamado
pejorativo de populistas. De acordo com “povo”. Pelo contrário, os pluralistas de-
alguns autores, este tipo de retórica tor- fendem que a soberania popular é o re-
nou-se predominante, nomeadamente, sultado de um processo dinâmico aberto
na Grécia, no quadro da crise por que à contribuição de muitos elementos, e
este país está a passar nas primeiras dé- não a expressão rígida de uma espécie
cadas do séc. xxi. Com efeito, a imple- de volonté generale. Na verdade, a questão
mentação das medidas de austeridade central da teoria pluralista reside na for-
impostas pela mesma troika de institui- ma de preservar e aumentar o número
ções suscitou uma onda de agitação so- de centros que competem pelo poder,
cial. A  reação de uma parte do poder e de fazer com que eles comuniquem
político e intelectual estabelecido con- entre si. Os chamados Estados Gerais,
sistiu em condenar esses protestos, ro- que o Partido Socialista português or-
tulando-os de manobras irresponsáveis​​ ganizou em 1995, na preparação das
de forças populistas, com o objetivo de eleições para a Assembleia da Repúbli-
conquistar o poder e derrubar a demo- ca, são um exemplo de um processo de
cracia grega. consulta que abarcou, não só membros
As elites políticas também tendem a desse Partido, mas também elementos
tratar com cautela e distanciamento ca- da sociedade civil. Como resultado dessa
nais mais institucionais de participação mobilização de independentes por todo
pública na política; e.g., o Portugal de- o país, foi redigido um acordo sobre as
mocrático teve de esperar vários anos linhas programáticas que constituiriam a
para que a consulta pública direta atra- plataforma eleitoral do Partido Socialis-
vés de referendos nacionais fosse consa- ta. O  sucesso desta experiência levou à
grada na Constituição. Durante a tran- realização de consultas populares seme-
sição democrática, a memória da forma lhantes nos anos subsequentes, promovi-
como Salazar usara a figura do plebiscito das também por outros partidos.
para legitimar a Constituição de 1933 Os pluralistas não se opõem ao popu-
ainda estava muito viva na memória de lismo por ser antidemocrático, mas por
todos, e foi preciso algum tempo para se pôr em causa os princípios da democra-
aceitarem os referendos como comple- cia liberal. Quando os partidos populistas
mento à democracia representativa. estão no poder, continua a haver eleições,
O pluralismo difere tanto do elitismo mas sem garantias de uma concorrência
como do populismo, porque põe em leal; dentro de uma ideia monolítica de
causa a visão maniqueísta da sociedade povo, não há espaço para a deliberação
que opõe a elite ao povo. Num sistema e a discussão; as minorias não são pro-
pluralista, a esfera política inclui uma tegidas; e não existe equilíbrio entre os
variedade de grupos concorrentes entre diversos poderes. Todos os cargos, sejam

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Antipornografismo 1485

ou não resultantes de uma eleição, são


ocupados por elementos leais ao parti-
Antipornografismo
do que está no poder e há uma tentativa
constante de minar as iniciativas da opo-
sição. Adotar uma perspetiva diferente
da maioria torna-se equivalente a apoiar
a elite contra o povo. O populismo não se
opõe apenas às elites, opõe-se a uma visão
pluralista da sociedade. S egundo o Michaelis: Moderno Dicioná-
rio da Língua Portuguesa, pornografia
é: “1. arte ou literatura obscena; 2. trata-
Bibliog.: Costa, José Mourão da, “O Partido do acerca da prostituição; 3. coleção de
Nacional Renovador: a nova extrema-direi- pinturas ou gravuras obscenas; 4. carác-
ta na democracia portuguesa”, Análise Social, ter obsceno de uma publicação; 5. devas-
vol. xlvi, n.º 201, 2011, pp. 765-787; Dahl,
sidão”. De um modo geral, a pornogra-
Robert, Polyarchy, New Haven, Yale University
Press, 1971; Espejo, Paulina Ochoa, The Time fia permite que os indivíduos se possam
of Popular Sovereignty: Process and the Democratic emocionar ao assistir a espetáculos,
State,  Pennsylvania, Penn State Press, 2011; embora sem contacto direto. Permite a
Mudde, Cas, “The populist zeitgeist”, Go- excitação sexual sem se assumir qual-
vernment and Opposition, vol. xxxix, n.º 4, 2004, quer compromisso. Quando termina o
pp. 541-563; Pappas, Takis S., “Popu­ list espetáculo, o filme, o vídeo ou a sessão,
democracies: post-authoritarian Greece and
é possível cada um voltar para a sua vida
post-communist Hungary”, Government and
Opposition, vol. xlix, n.º 1, 2014, pp. 1-23; Ro- privada sem constrangimentos, ou com
drigues, António Filipe Gaião, The Referen- o mínimo de envolvimento. O sexo com
dum in the Portuguese Constitutional Experience, um parceiro distante é também possível
Leiden, Leiden University Press, 2013; Stan- através de um computador com acesso à
ley, Ben, “The thin ideology of populism”, Internet, abrindo-se aí um mundo de ce-
Journal of Political Ideologies, vol. xiii, n.º 1, 2008, nários. As práticas realizadas em privado
pp. 95-110; Stavrakakis, Yannis, “Populism entre adultos não são em princípio pe-
in power: Syriza’s challenge to Europe”, Junctu-
nalizadas, o mesmo acontecendo com as
re, vol. xxi, n.º 4, 2015, pp. 273-280.
representações do corpo.
Enrico Borghetto A pornografia, distinta do erotismo ar-
tístico, é sobretudo um campo de negócio
e de oportunidades, havendo várias em-
presas dedicadas a produzi-la, pois um dos
seus objetivos é demonstrar as inúmeras
possibilidades de prazer sexual. As  ima-
gens focam-se sobretudo nos órgãos geni-
tais, podendo a câmara recriar tamanhos,
formas, texturas e posturas. As  interven-
ções cirúrgicas, que aumentam os órgãos
genitais ou colocam implantes, também
contribuem para este fim. A pornografia
envolve assim uma forma específica de
representar os corpos. Com a sexologia
foi possível elaborar-se um saber que es-
tuda o uso dos órgãos genitais, permite

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1486 Antipornografismo

resolver problemas que acompanham o tos antipornografia: os religiosos, mais


seu funcionamento e ajuda a definir uma circunscritos, e os inspirados por outros
identidade. Além disso, uma boa parte cidadãos, nomeadamente por feministas,
das perversões consideradas obsessivas no que, sendo mais alargados e mediatizados,
passado (como o fetichismo) desaparece- vieram a alcançar uma maior visibilidade.
ram dos manuais psiquiátricos e a mastur- Existem ainda movimentos isolados, diri-
bação é considerada um bom meio para gidos por indivíduos ou organizações não
conhecer o próprio corpo e libertar as governamentais, que direcionam críticas
tensões (PÉREZ, 2012). sobretudo à indústria pornográfica e aos
A forma como se encara a pornogra- seus consumidores.
fia está relacionada com o modo como De um modo geral, qualquer imagem
se entende e vive a sexualidade, com a de índole pornográfica, ou mesmo eróti-
perceção do corpo das mulheres pelos ca, é repudiada pelos membros de grupos
homens e pelas próprias mulheres, e com religiosos de todos os quadrantes. É pos-
perceções que podem remeter para pa- sível exemplificar esta conduta, e.g., com
péis sociais diferentes (no trabalho, em a revista Sentinela, editada pelas Testemu-
atividades, ou acerca de quem dispõe, nhas de Jeová desde 1879 sem interrup-
ou não, de poder). As mulheres estão ção, em mais de 200 idiomas, incluindo
historicamente ligadas à imposição da línguas de sinais, que colocou na capa
procriação, mas também à proibição da referente ao mês de agosto de 2013 o se-
contraceção e da interrupção voluntária guinte título: “Pornografia – inofensiva
da gravidez, sobretudo em sectores mais ou mortífera?”. No seu interior, o texto
conservadores da sociedade, que podem do artigo chama a atenção para a difusão
incluir alguns partidos políticos ou gru- alargada do consumo de pornografia na
pos religiosos. As visões mais tradiciona- sociedade atual, bem como para o facto
listas exemplificam ainda padrões em de a mesma ser viciante e de alguns tera-
que as jovens raparigas são incentivadas peutas a compararem ao crack. A justifi-
à virgindade, a par da existência de uma cação dos efeitos nefastos da pornografia
maior tolerância para com os rapazes. é feita no artigo através da remissão de
Relativamente a este tema, tem havido algumas passagens para partes da Bíblia,
uma mudança de atitude ao longo dos como aliás acontece na fundamentação
anos, que tem em conta a evolução das de outros argumentos defendidos por
próprias mentalidades, mas que revela esta religião. De acordo com o texto,
também um acréscimo de atenção face a os indivíduos que consomem materiais
determinados fenómenos que são inacei- pornográficos ficam escravizados, pelo
táveis, nomeadamente no que concerne que sugere alguns passos para a liberta-
à pornografia infantil e à exploração de ção do vício de consumir pornografia:
seres humanos vulneráveis. 1. orar a Deus; 2. buscar a ajuda de outros;
3. identificar e evitar o que pode des-
pertar desejos errados; 4. fortalecer a
Movimentos antipornografia espiritualidade. Assim, os argumentos
no mundo usados pelos membros dos grupos reli-
O incremento da disponibilidade da por- giosos assentam essencialmente em dois
nografia e os seus efeitos têm levanta- pressupostos: o de que o sexo deve ser
do reações em todo o mundo. Existem reservado para o casamento (heterosse-
essencialmente dois tipos de movimen- xual) e o de que a pornografia aumenta

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Antipornografismo 1487

o comportamento imoral e a violência da Devil in Miss Jones (ambos de 1973). O ator


sociedade. Importa, contudo, referir que principal de Deep Throat, Harry Reems, foi
a heterossexualidade normativa é amiúde o primeiro ator nos EUA a ser preso por
valorizada não por causas religiosas, mas obscenidade; a atriz principal do filme,
devido a aspetos que têm que ver com a Linda Boreman, conhecida por Linda
gestão do casamento e da transmissão de Lovelace, escreveu quatro autobiografias
linhagem e propriedade. ao longo da sua vida, alegando em duas
O padre jesuíta Morton A. Hill (1917­ delas que o marido, Chuck Traynor, tam-
‑1985) foi um dos líderes da campanha bém realizador, a manteve como escrava
contra a pornografia nos EUA, nos anos sexual, a ameaçou com armas de fogo, a
60, 70 e 80 do séc. xx, e um dos funda- torturou e até a hipnotizou para gravar o
dores da Morality in Media, uma organi- filme. Foi então que as feministas Catha-
zação criada em 1962 para lutar contra a rine MacKinnon (advogada e professo-
pornografia. Mas houve também os que ra), Andrea Dworkin (escritora) e Gloria
defenderam que a pornografia devia ser Steinem (jornalista), assim como a orga-
descriminalizada e que não havia ligações nização ativista radical Women Against
entre pornografia e comportamento pas- Pornography (criada em Nova Iorque em
sível de ser considerado crime. Em 1969, 1978), tomaram Linda Boreman como
o Supremo Tribunal, no caso Stanley um exemplo das mulheres que estavam
contra Georgia, sustentou que as pessoas envolvidas na pornografia.
podiam ver o que quisessem na privacida- Dworkin, MacKinnon e Steinem co-
de das suas casas, estabelecendo assim na meçaram a discutir a possibilidade de
lei o direito à privacidade. Isto conduziu reparação legal para Boreman dentro
o Presidente Lyndon B. Johnson, com o da lei dos direitos civis federais. Duas se-
apoio do Congresso, a nomear uma co- manas mais tarde, encontraram-se com
missão para estudar a pornografia. Boreman para discutir a ideia de avançar
O ataque mais visível à pornografia com uma ação judicial contra Traynor
nos EUA viria de uma ala do movimento e outros realizadores de pornografia.
feminista (conhecida por feminismo ra-
dical), que a considera parte da agenda
Harry Reems (1947-2013).
machista, que degrada a mulher e induz
à violência contra ela. Esta posição foi to-
mada não por valores morais ou convic-
ções cristãs, mas porque a pornografia foi
considerada essencialmente machista, na
medida em que os homens surgem como
consumidores e as mulheres como explo-
radas e humilhadas. Estas feministas não
representam, porém, a totalidade do mo-
vimento, uma vez que existem feministas
que defendem a pornografia.
Os anos 70 foram uma época caracte-
rizada pela exibição de filmes pornográ-
ficos que se tornaram sucessos de bilhe-
teira nos cinemas americanos, como Deep
Throat (1972), Behind the Green Door e The
D.R.

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1488 Antipornografismo

Boreman mostrou-se interessada, mas, Brownmiller, Janet Gornick e Wendy


como Steinem descobriu que o período Kaminer  –, concordando embora com a
para uma possível ação tinha passado, re- crítica à pornografia de Dworkin e Ma-
cuou. Contudo, Dworkin e MacKinnon cKinnon, opuseram-se à tentativa de a
continuaram a discutir a possibilidade combater através de campanhas legislati-
do desrespeito pelos direitos civis como vas, pois temiam que estas fossem inefica-
uma oportunidade para combater a por- zes nos tribunais, violassem princípios da
nografia, tornando-se as duas feministas liberdade de expressão ou prejudicassem
que mais se destacaram na luta contra a o próprio movimento antipornografia,
mesma, a prostituição e o assédio sexual afastando-se dos objetivos do movimento
a partir dos anos 80. Ambas redigiram, – a educação e a ação direta – e emara-
em 1983 e a pedido da cidade de Mineá- nhando-se em disputas políticas.
polis, a lei dos direitos civis antiporno- Outra crítica que o movimento anti-
grafia e foram apoiadas por muitos (mas pornografia da ala das feministas radicais
não todos) dos membros do movimento recebeu estava relacionada com o facto
antipornografia. Essa lei propõe tratar de elas – sendo Catharine MacKinnon
a pornografia como uma violação dos e o artigo “Feminism, marxism, method
direitos civis das mulheres e permitir and the State: an agenda for theory” um
àquelas que são prejudicadas por esta exemplo – analisarem as relações sexuais
atividade uma compensação através de como sendo estruturadas pela noção de
ações judiciais. Algumas versões desta lei subordinação, de tal modo que os atos
foram aprovadas em várias cidades dos de dominação sexual exprimem o signi-
EUA, mas não foram aceites pelas autori- ficado social do “homem” e a condição
dades municipais de Mineápolis e foram de submissão o significado social da “mu-
inviabilizadas pelos tribunais, que consi- lher”. Estas análises baseavam-se exclusi-
deraram que aquelas violavam as prote- vamente na matriz da heterossexualida-
ções à liberdade de expressão consagra- de (considerando-se que a sociedade se
das na Primeira Emenda à Constituição organiza em dois sexos e um domina o
dos Estados Unidos. outro), na qual a pornografia surge como
Além da dificuldade em fazer aprovar expressão da dominação masculina, fei-
a lei referida, as feministas dividiram-se ta por homens para homens. De acordo
quanto ao argumento antipornografia. com Judith Butler, esse determinismo rí-
Algumas, como Wendy McElroy, Ellen gido tem duas implicações: 1. a noção de
Willis, Susie Bright e Carole Vance, opu- que toda a relação de poder é uma rela-
seram-se à antipornografia como princí- ção de dominação, uma relação de géne-
pio, identificando-se com a posição pró­ ro, pois só pode ser interpretada por esse
‑sexo ou sexo-positiva (sex-positive) nas crivo; 2. a justaposição da sexualidade ao
guerras de sexo feministas dos anos 70 e género (entendido a partir de posições
80. Estas feministas, também chamadas rígidas e simplificadas do poder), asso-
pro-porn, notaram que os regulamentos ciando-o de modo simplista ao “homem”
antipornografia defendidos por MacKin- e à “mulher”. O feminismo radical pode
non e Dworkin apelavam à eliminação, assim ser considerado antagonista do ma-
à censura ou ao controlo do material chismo, na medida em que procura dimi-
sexualmente explícito. Muitas feministas nuir e até desrespeitar o sexo masculino.
antipornografia apoiaram os esforços le- Para Maria Filomena Gregori (2004, 2),
gislativos, mas outras – incluindo Susan os membros destes grupos eram, muitas

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Antipornografismo 1489

vezes, mulheres identificadas com uma e, por outro lado, os materiais educativos,
parcela da comunidade feminista lésbica como os referentes às doenças sexual-
que rejeitava o sexo heterossexual por mente transmissíveis, poderiam ser blo-
uma questão de escolha, mas também de- queados ou ficar inacessíveis.
vido a uma leitura particularmente deter-
minística sobre a dinâmica de poder nas
relações heterossexuais.
Antipornografia em Portugal
O debate antipornografia ocorreu tam- Com a Implantação da República, foi
bém em outros países. Em 1912, foi fun- criada em Portugal uma lei de imprensa
dada no Brasil a Liga Antipornografia, que pretendia restituir a liberdade de ex-
que alguns anos mais tarde se tornaria a pressão e permitir críticas à ação gover-
Liga pela Moralidade. Surgiram nesse pe- nativa e a quaisquer doutrinas políticas e
ríodo discursos contra a venda de publi- religiosas. A dificuldade em implementar
cações pornográficas consideradas pre- o novo regime conduziu, contudo, à im-
judiciais ao progresso moral e social do posição de um conjunto de medidas e si-
Rio de Janeiro (a capital federal). A Liga tuações que justificavam a apreensão de
pela Moralidade estava vinculada à União publicações pelas autoridades judiciais,
Católica Brasileira e tinha como objeti- administrativas e policiais. Nesse contex-
vo salvaguardar a moral combatendo a to, ficaram proibidos os escritos que ul-
pornografia. trajassem as instituições republicanas e a
Em 2013, os parlamentares do Uganda segurança do Estado, assim como os que
aprovaram um projeto de lei que proibia tivessem conteúdo pornográfico. Na se-
o uso de minissaias, sendo que o ministro quência da declaração de guerra por par-
da Ética e da Integridade, Simon Lokodo, te da Alemanha, no quadro da Primeira
defendeu mesmo que as mulheres que Guerra Mundial, foi instaurada a censu-
usassem vestidos ou saias acima do joelho ra em 1916. Todos os documentos que
deveriam ser presas. Esse fenómeno foi pudessem prejudicar a defesa nacional
associado à legislação antipornografia do deveriam ser apreendidos. Esta censura,
país, que proíbe matérias explicitamente a cargo do Ministério da Guerra, foi con-
sexuais em músicas e vídeos, o que veio a siderada temporária, já que era assumida-
despertar um debate mais alargado sobre mente anticonstitucional.
esta questão. Ainda em 2013, o Governo Durante o Estado Novo, Maria Velho da
britânico pretendeu evitar a exposição de Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel
menores a conteúdos para adultos. Toda- Barreno estiveram envolvidas num pro-
via, foi criticado pela Organização para a cesso judicial na sequência da publica-
Segurança e Cooperação na Europa (da ção da obra Novas Cartas Portuguesas, em
qual fazem parte vários países, alguns 1972, que, embora constituísse sobretudo
não europeus). Esta entidade, promoto- uma crítica à sociedade patriarcal portu-
ra da segurança, dos direitos humanos e guesa e à condição das mulheres, conti­
da liberdade de expressão, defendeu que nha elementos que foram considerados
filtrar automaticamente a Internet é ine- pornográficos e imorais.
ficaz e que o software pode ser facilmente Outro domínio sujeito à censura em
contornável; argumentou ainda que a li- Portugal foi o cinema. Lauro António
berdade de expressão poderia estar limi- refere que a primeira indicação de tal
tada, na medida em que eram definidos à é de 1919, e faz alusão a um decreto de
partida quais os elementos inapropriados 1917 que regulamentava a exibição de

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1490 Antipornografismo

pelos europeus, foi considerado neces-


sário regulamentar os filmes, sobretudo
aqueles que denunciavam a presença de
elementos violentos e pornográficos. Esta
regulamentação entrou mais uma vez em
debate com a ideia de liberdade de ex-
pressão, formulação que, contudo, nunca
foi consensual. Os filmes eróticos e por-
nográficos foram proibidos em Portugal
até 1974, mas quando filmes como La-
ranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971),
Por detrás da Porta Verde (James Mitchell e
Artie Mitchell, 1972), Último Tango em Pa-
ris (Bernardo Bertolucci, 1972) ou Emma-
nuelle (Just Jaeckin, 1974) estrearam no
D.R.

país, já depois de suspensas as atividades


Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e
Maria Isabel Barreno.
da Censura, foi levantado um debate
acerca da exibição dos seus conteúdos.
Com o fim do Estado Novo, o Movimen-
“fitas” (António, 1978, 25). A partir de to das Forças Armadas (MFA) pretendeu
1932, os filmes passam a ser visados, i.e., abolir a censura e o exame prévio, procu-
visionados e validados pelos inspetores da rando assim garantir a liberdade de ex-
Inspecção-Geral de Espectáculos. Apenas pressão. O gabinete do delegado à Secre-
em 1948 foi instituída a censura prévia taria de Estado da Informação e Turismo
de filmes, com a criação da Comissão de reiterou a decisão do MFA, mas criou uma
Censura dos Espectáculos e do Fundo do comissão para controlar a rádio, a televi-
Cinema Nacional. Durante esse período, são, a imprensa, o teatro e o cinema, no
verificou-se não só a censura relativamen- sentido de salvaguardar os segredos mili-
te aos filmes estrangeiros (contribuindo tares e evitar as perturbações na opinião
assim para o isolamento nacional), mas pública. No que respeita ao cinema, foi
também no que concerne à produção definido um novo esquema de classifi-
feita no país, que viu, desse modo, o seu cação etária de acordo com quatro esca-
desenvolvimento gorado. lões. Os filmes interditos a menores de 18
As dinâmicas sociais dos anos 60 e 70 anos contemplavam aspetos considerados
despertaram as ideias de liberdade, paz como perversão, expressa em termos psi-
e amor, sem regras nem convenções, quiátricos; exploração da sexualidade, que
como foram as associadas, e.g., ao mo- surge desumanizada ou sob formas mani-
vimento hippie. Mesmo depois de este festamente chocantes; violência, com for-
movimento ter passado, continuaram a mas sadomasoquistas ou que conduzam
surgir, de modo mais ou menos visível, à aprendizagem de técnicas de agressão;
materiais (filmes, livros ou revistas) nos apologia do recurso à droga ou alcoolismo
quais o sexo era apresentado de modo como solução para problemas individuais
explícito ou violento. A revista Playboy é ou sociais; apresentação de casos psiquiá-
um exemplo desse novo modo de ver a tricos suscetíveis de originar a identifica-
sexualidade. Apesar desta vaga, e da rela- ção com a personagem e afetar a saúde
tiva aceitação das películas de Hollywood mental do espectador (CUNHA, 2013).

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Antipornografismo 1491

O Governo português teve assim de Ainda de acordo com o mesmo de-


publicar uma nova legislação cinemato- creto, “são considerados pornográficos
gráfica, tendo em conta os filmes consi- ou obscenos os objetos e meios [...] que
derados pornográficos, através do dec.-lei contenham palavras, descrições ou ima-
n.º 254/76, de 7 de abril. O referido decre- gens que ultrajem ou ofendam o pudor
to, complementado pelo dec.-lei 647/76, público ou moral pública” e “é proibido
de 31 de julho, com as alterações da lei afixar ou expor em montras, paredes ou
30/2006, de 11 de julho, regulamenta a em outros lugares públicos [...] cartazes,
distribuição de conteúdos pornográficos anúncios, avisos, programas, manuscritos,
e determina as respetivas penalizações à desenhos, gravuras, pinturas, estampas,
infração da lei. De acordo com o mesmo, emblemas, discos, fotografias, filmes e em
a edição e a venda de obras com elemen- geral quaisquer impressos, instrumentos
tos pornográficos em estabelecimentos de reprodução mecânica e outros objetos
especializados “é hoje uma prática gene- ou formas de comunicação audiovisual
ralizada no comum dos países, defendida de teor pornográfico ou obsceno, salvo
por psicólogos, sociólogos e pedagogos, e nas circunstâncias e locais previstos”. Adi-
desempenham, de acordo com os dados cionalmente, “a exposição e venda de ob-
da experiência e da ciência, uma função jetos e meios referidos [...] só é permitida
desmistificadora e desintoxicante”. A for- no interior de estabelecimentos [...]  de-
mulação deste decreto-lei inclui também vidamente licenciados”, sendo vedada a
a sua justificação, i.e., apesar de regular menores de 18 anos.
o acesso aos conteúdos pornográficos, Verifica-se assim que, de acordo com a
não veda o acesso universal aos mesmos, lei portuguesa, os materiais com conteú-
já que tal poderia ser considerado uma dos pornográficos e obscenos podem ser
afronta à liberdade de expressão: “Ai da considerados obras de arte e exercícios
liberdade de expressão e pensamento, no de liberdade de expressão. Porém, a lei
dia em que o Estado se arvore em fiscal impõe limites à sua criação e difusão, na
da criação artística e da sua procura, ain- medida em que, e.g., no caso da exibição
da que a pretexto de zelo moral ou de de- de filmes, propõe classificá-los como por-
fesa dos costumes”. Assim, a lei portugue- nográficos e não pornográficos, aplican-
sa considera que “após quase meio século do aos primeiros uma sobretaxa que de
de mistificação do sexo e de total ausên- algum modo desincentive a sua importa-
cia de educação sexual” é “compreensível ção e procura, e que restrinja a sua exibi-
a curiosidade que caracterizou a procura ção a maiores de 18 anos. Ao contrário
de publicações, exibições fílmicas” e “de de outros países europeus, Portugal não
instrumentos de expressão e comunica- possui uma comissão de censura, mas sim
ção versando temas eróticos”. Por outro um órgão – Inspeção-Geral das Atividades
lado, “como a liberdade que se sucede à Culturais – que classifica os filmes, ainda
contenção repressiva tem sempre o preço que não tenha poderes para limitar a sua
de alguns excessos” e como se começou difusão, a não ser que as obras não respei-
a assistir “à exploração mercantil, não já tem a lei e contenham, e.g., pornografia
do erótico ou do nu artístico, mas do por- infantil, remetendo assim o caso para o
nográfico e obsceno”, foi necessário regu- domínio jurídico.
lamentar o seu acesso e visibilidade, sem A permissividade da lei portuguesa face
contudo regressar ao anterior “extremo à pornografia estende-se à prostituição.
de contenção”. Embora não seja permitido promover,

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1492 Antipornografismo

encorajar ou lucrar com essa atividade, Em Portugal, foram ainda tomadas


ainda que existam restrições alfandegá- medidas de foro judicial no sentido de
rias controladas pela polícia, e seja proi- combater a pornografia infantil na Inter-
bido o tráfico de pessoas, assim como a net. Tal combate enquadra-se na punição
prostituição infantil, a prostituição não é de atos que se inscrevem no conceito de
ilegal de acordo com o Código Penal. pedofilia – previstos no cap.  v (crimes
Todavia, ocorreu, em 2003, o movi- contra a liberdade e autodeterminação
mento autodenominado Mães de Bra- sexual) do tít. i (crimes contra pessoas)
gança, que envolveu um conjunto de do Código Penal português, em especial
mulheres insurgentes contra a chegada na sec. ii (crimes contra a autodetermina-
à cidade transmontana de mulheres bra- ção sexual), composta pelos arts. 172.º e
sileiras que se prostituíam ou acompa- seguintes, que incidem sobre o “abuso
nhavam homens em bares locais, ou nas sexual de crianças”, o “abuso sexual de
chamadas casas de alterne (muitas vezes, menores dependentes”, “atos sexuais
bordéis disfarçados). Tendo as referidas com adolescentes” e “lenocínio e tráfico
mulheres bracarenses filhos dos homens de menores”. Na secção subsequente, es-
com quem eram casadas, receavam que tão previstas as penas que contemplam a
o sustento dos descendentes ficasse em agravação, a queixa e a inibição de poder
perigo. A organização do movimento paternal. Existem ainda medidas previs-
teve como objetivo a expulsão das imi- tas ao nível da União Europeia no que
grantes através de um manifesto – entre- concerne à exploração sexual de crianças
gue ao governador civil, ao presidente (que envolve a proteção de menores),
da Câmara e ao comandante da Polícia sendo no âmbito destas que surgem as
de Segurança Pública – e da difusão do medidas de combate à pornografia infan-
caso pelos meios de comunicação social, til na Internet. Também o Conselho da
tendo este chegado à revista Time no final Europa se tem dedicado à luta contra a
de 2003, e tendo-se adensado por ocasião exploração sexual de crianças e, especi-
do campeonato europeu de futebol que ficamente, contra a pornografia infantil
decorreu no país em 2004. A iniciativa, na Internet. Já a ONU tem procurado
apoiada também pelo bispo de Bragança, proteger as crianças através do Conselho
conduziu a várias rusgas da polícia, ao en- de Direitos Humanos, da UNICEF e da
cerramento de casas de alterne, à conde- Organização Internacional do Trabalho.
nação de algumas pessoas à prisão, e ao A Convenção Internacional sobre os Di-
repatriamento de dezenas de Brasileiras reitos da Criança, adotada pelas Nações
que se encontravam no país em situação Unidas em 1989, é o instrumento jurídi-
ilegal. Além de mulheres católicas, este co mais ratificado no mundo (apenas não
movimento envolveu mulheres arredadas fazendo parte dela os EUA e a Somália),
de cultos religiosos, não sendo despicien- tendo Portugal ratificado esta Convenção
da a base económica do seu argumento. em 1990. Além destas, têm-se registado
Apesar de ter contribuído para a visibili- várias outras iniciativas a nível interna-
dade das mulheres, enquanto mães e ze- cional, nomeadamente congressos, onde
ladoras de uma certa ordem social, este são discutidos temas como o tráfico de
movimento veio favorecer a associação crianças, a prostituição e a pornografia
generalista entre Brasileiras e prostitui- infantil, mas também as causas destes fla-
ção, bem como a deslocação do fenóme- gelos, nomeadamente a pobreza, a desi-
no da prostituição para Espanha. gualdade social, as famílias disfuncionais,

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Antipornografismo 1493

a perseguição, a violência, o VIH/SIDA, o não tenham sido ainda sistematizados.


conflito armado e a criminalidade. No que concerne às mulheres, há ain-
da menos estudos, mas alguns deles re-
velam que existem, de facto, diferentes
Alguns dados sobre o consumo atitudes por parte das mulheres relativa-
de pornografia em Portugal mente à pornografia. Charlene Y. Senn
A produção nacional ao nível da porno- publicou, em 1993, um estudo em que
grafia existe, mas não com o desígnio de identificou quatro diferentes perspetivas:
indústria. Por outro lado, ainda se regista 1. a perspetiva feminista radical, que se
uma grande preocupação relativamente revela completamente antipornografia;
à pornografia infantil e um desconten- 2. a perspetiva conservadora, semelhante
tamento em relação à atual lei, que para à anterior no que concerne à classifica-
alguns não é suficiente na prevenção des- ção dos materiais sexualmente explícitos
se crime. A Internet facilitou o acesso à como prejudiciais e à sua associação com
pornografia e permitiu inaugurar uma a violência contra as mulheres; 3. a pers-
nova era neste campo, colocando em se- petiva humanista, que procura proteger
gundo plano as lojas e os quiosques onde as crianças dos malefícios da pornografia:
se vendem revistas, os clubes de aluguer 4. a perspetiva ambivalente, na qual se
e as salas de projeção de filmes; permitiu encontram mulheres que não veem mui-
ainda dar lugar a uma nova indústria re- ta pornografia e que não têm opiniões
lacionada com as empresas de canais por formadas sobre o assunto. Nesta última
cabo, que desenvolveram esquemas que perspetiva, encontram-se mulheres que
permitem a não identificação de quem não manifestam rejeição relativamente à
compra material pornográfico e facilitam pornografia, não se importam que os seus
o não aparecimento dessas aquisições parceiros a consumam, veem pornografia
na fatura mensal. Por outro lado, não só desde a adolescência, e não concordam
através dos motores de busca, como atra- com a atitude de vitimização das feminis-
vés de vários navegadores na Internet, é tas radicais.
possível limitar o acesso à pornografia, As diferentes correntes feministas têm
tanto em computadores, como em tele- influenciado também a forma como o
móveis ou outros dispositivos. A versa- sexo feminino encara o material porno-
tilidade da Internet é justificada pelos gráfico. Por outro lado, a pornografia
seguintes fatores: acessibilidade, anoni- feita por mulheres e dirigida às mulhe-
mato e gratuitidade (para a maioria das res pode reforçar a ideia de que esta
páginas eletrónicas). De acordo com a modalidade também é valorizada, ou
página eletrónica de estatísticas Internet apreciada, por esse público-alvo. Para
Filter Review, 25 % de todas as pesquisas o caso português existe, e.g., um artigo
realizadas na rede são relativas a páginas de Maria João Gaspar e Ana Carvalheira
com conteúdo pornográfico e 35 % de to- (2012), baseado numa amostra de 216
dos os descarregamentos são de material mulheres portuguesas, de acordo com o
pornográfico. qual 59 % já visitou páginas eletrónicas
O consumo de pornografia, nomea- com conteúdos pornográficos e 7 % gas-
damente através da Internet, é sobretu- ta mais de 6 h por semana nessa ativida-
do associado aos homens, e é neles que de. As suas principais motivações são en-
é centrada a maioria dos estudos que tretenimento, curiosidade, obtenção de
existem, embora os números envolvidos excitação sexual, aprendizagem sexual

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1494 Antipornografismo

ou satisfação de determinadas fantasias. tos aos mesmos, nem façam parte da sua
Os resultados deste estudo revelam tam- produção. Por outro lado, as investidas
bém que existe uma grande diversidade que estiveram na base da luta contra a
na procura de matérias pornográficas e pornografia (e, em alguns casos, contra
denunciam a variedade de preferências a prostituição) protagonizadas por mu-
sexuais: conteúdos heterossexuais, ho- lheres – como aconteceu com as femi-
mossexuais, bondage e sadomasoquista, nistas radicais nos EUA ou com as Mães
fetichista ou sites Hentai. Além disso, de Bragança em Portugal – podem ser
apesar de a maioria das mulheres que justificadas também por situações acumu-
participou neste estudo se considerar ladas. Como referiu José Machado Pais,
exclusivamente heterossexual, algumas “a intensidade da frustração, quando so-
delas procuram também material com cialmente compartilhada, é um carburan-
mulheres e imagens de relações sexuais te de movimentos sociais” (PAIS, 2010, 22).
entre mulheres. Talvez sejam os fatores A retórica antipornográfica absorveu
referidos anteriormente relativamente e sobrestimou os resultados dos estudos
à Internet (acessibilidade, anonimato e da psicologia experimental americana,
gratuitidade) que potenciem estas ex- que se centravam sobretudo na popula-
perimentações. No entanto, existe uma ção masculina (maioritariamente branca
espécie de sentimento de culpa relativa- e pouco escolarizada), e cujas conclusões
mente a estes comportamentos, já que, remetiam, de forma generalizada, para
e.g., de acordo com o estudo anterior- o comportamento agressivo desses ho-
mente referido, 46,1 % das mulheres diz mens. Além disso, o modo dicotómico de
ter sentido vergonha por visitar páginas encarar a realidade reduz o consumo da
eletrónicas com conteúdos pornográfi- pornografia a um mundo masculino e he-
cos, o que demonstra o peso que a nor- terossexual, não guardando espaço, e.g.,
ma social tem ainda sobre os pensamen- para as mulheres lésbicas. Esta naturaliza-
tos acerca da sexualidade feminina. ção, que toma os homens heterossexuais
como potenciais consumidores de porno-
grafia (e com aspetos violentos), deixan-
Da proibição à legalização do para as mulheres (heterossexuais) o
A pornografia foi considerada uma po- papel passivo de vítimas (dos efeitos desse
tencial ameaça para a família e para a consumo), impediu uma visão mais am-
instituição do casamento heterossexual, pla no que respeita à organização social
sobretudo pelos membros dos grupos re- da sexualidade.
ligiosos, mas também por indivíduos da A crítica a este posicionamento foi
sociedade civil não comprometidos com surgindo dentro da própria teoria femi-
nenhum desses grupos. Foi considerada nista, nomeadamente a partir dos anos
prejudicial para as mulheres, sobretudo 90, quando surgiu uma terceira vaga de
pelas feministas radicais americanas, mas feminismo, mais atenta à pluralidade
também por outros indivíduos, mulhe- das identidades e das sexualidades, ten-
res ou não, feministas ou não. E sobre- do em conta os avanços da teoria queer
tudo prejudicial para as crianças e para e os perigos da censura e da heteronor-
os jovens, tendo por isso os governos de matização. Todavia, os contra-ataques
vários países legislado sobre a difusão de da pró-pornografia nem sempre estão
materiais com conteúdo pornográfico atentos ao posicionamento das mulheres
para que os menores não sejam expos- relativamente à indústria pornográfica e

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Antipornografismo 1495

aos mercados capitalistas – tanto os mais tanto na Europa como em Portugal, re-
comerciais, como a esfera mais elitista lativamente às matérias pornográficas, as
da arte contemporânea. Assim, “o femi- mesmas não são proibidas, à exceção das
nismo anticensura (também chamado que incluam menores ou que estejam as-
pró-pornografia, pró-sexo, ou anti-anti- sociadas a crimes.
porn)” veio sublinhar a possibilidade de Existem poucos estudos no país sobre
“criação de novas pornografias feitas por o consumo de pornografia e os que exis-
mulheres para mulheres, postulando as- tem baseiam-se em amostras de pequena
sim a existência de um espaço alterna- dimensão, ou em questionários que não
tivo  [...]  capaz de fazer surgir discursos chegaram a ser validados. No entanto,
que fraturem o saturado mundo porno- todos eles deverão despertar-nos o inte-
gráfico masculino (heterossexual)” (Pin- resse para a necessidade de realizar mais
to et al., 2010, 379). pesquisas sobre este assunto, tendo em
Adicionalmente, as novas tecnologias conta vários campos e suportes (Inter-
do sexo, sobretudo dirigidas às mulhe- net, revistas, jornais, DVD), contextos e
res (farmacologia e cultura material as- variedade populacional (contemplando
sociada à masturbação), não abstraem diferentes grupos etários, socioeconómi-
dos imaginários da cultura pornográfica cos, religiosos e de orientação sexual).
dominante e podem elas próprias ser Por fim, é importante ter presente que
constitutivas de roteiros que disciplinam as fronteiras entre a pornografia e outras
a sexualidade. Embora num contexto representações da sexualidade são hoje
em que emergem novos discursos, o cor- ténues em alguns contextos. Alguns dos
po das mulheres pode vir a ser assim, de seus conteúdos, bem como o modo como
certa forma, recolonizado com os antigos são consumidos, não permitem algumas
poderes heteronormativos, que remetem vezes estabelecer distinções claras.
para uma ordem na qual dominam indi-
víduos masculinos e brancos (STOLER,
1995). A indústria pornográfica pode ain-
da naturalizar a “raça” e reificar a hiper-
sexualização dos negros, e, mais ainda,
das negras (MATOS, 2013). Tal compor- Bibliog.: impressa: ANTÓNIO, Lauro, Cinema
tamento pode estar relacionado com um e Censura em Portugal, 1926-1974, Lisboa, Ar-
certo fetichismo com imagens exóticas, cádia, 1978; Barreno, Maria Isabel et al.,
algumas provenientes dos imaginários Novas Cartas Portuguesas, Lisboa, Dom Quixote,
2010; Butler, Judith, “Against proper objec-
coloniais (McClintock, 1995).
ts”, in Weed, Elizabeth, e Schor, Naomi
Em Portugal, a pornografia é legal, (orgs.), Feminism Meets Queer Theory, Indiano-
mas os filmes pornográficos, e.g., ape- polis, Indiana University Press, 1997, pp. 1-30;
nas podem ser exibidos a adultos. Por Cunha, Paulo, “A censura depois da censu-
outro lado, existem vídeos e revistas de ra: o caso dos filmes eróticos e pornográficos
fácil acesso em quiosques, mas a venda (1974-76)”, in Cabrera, Ana (coord.), Cen-
e a difusão deste material a menores de sura nunca mais! A Censura ao Teatro e ao Cinema
no Estado Novo, Lisboa, Alêtheia, 2013, pp. 177­
18 anos é punida por lei. Os filmes por-
‑204; Dworkin, Andrea, e MacKinnon,
nográficos estão banidos dos canais de Catharine, Pornography and Civil Rights: A New
TV com transmissão aberta e só podem Day for Women’s Equality, Minneapolis, Orga-
ser difundidos através de canais encrip- nizing Against Pornography, 1988; Gaspar,
tados. Embora exista regulamentação, Maria João, e Carvalheira, Ana, “O consu-

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1496 Antiportuguesismo

mo de pornografia na Internet numa amostra


de mulheres portuguesas”, Psychology, Commu-
Antiportuguesismo
nity & Health, vol. 1, n.º 2, 2012, pp. 163­‑171;
Gregori, Maria Filomena, “Prazer e perigo:
notas sobre feminismo, sex-shops e S/M”,
Quaderns Institut Catalá d’Antropología, vol. 4,
2004, pp.  1­‑23; MacKinnon, Catharine,
“Feminism, marxism, method and the Sta-
te: an agenda for theory”, Signs, vol. 7, n.º 3,
1980, pp. 515­‑544; MATOS, Patrícia Ferraz,
The Colours of the Empire. Racialized Representa-
O antiportuguesismo consiste numa
forma específica de antipatriotismo
dirigida a Portugal, que critica os hábi-
tions during Portuguese Colonialism, Oxford/New tos, os costumes, os valores, as maneiras
York, Berghahn Books, 2013; McClintock, de ser e as formas de estar e de sentir
Anne, Imperial Leather: Race, Gender and Sexua-
característicos dos Portugueses. O anti-
lity in the Colonial Contest, London, Routledge,
portuguesismo pode exprimir-se de dois
1995; Michaelis: Moderno Dicionário da Língua
Portuguesa, 5.ª ed., São Paulo, Melhoramen- modos, o externo e o interno.
tos, 1998; PAIS, José Machado, “‘Mães de Do ponto de vista externo, o antiportu-
Bragança’ e feitiços: enredos luso-brasileiros guesismo tem, na sua génese, fatores his-
em torno da sexualidade”, Revista de Ciências tórico-geográficos: a rivalidade com Espa-
Sociais, vol. 41, n.º 2, jul.-dez. 2010, pp. 9-23; nha, as relações com os centros de poder
Pérez, Javier Ugarte, “La matriz del deseo: nas antigas colónias e as perspetivas dos
del genero a lo genital”, Ayer. Revista de Historia
estrangeiros que estiveram em Portugal.
Contemporánea, vol. 87, n.º 3, 2012, pp. 23­
É possível que a primeira manifestação
‑44; Pinto, Pedro et al., “Debates feministas
sobre pornografia heteronormativa: estéticas de antiportuguesismo tenha ocorrido na
e ideologias da sexualização”, Psicologia: Refle- Idade Média, quando os cronistas do rei-
xão e Crítica, vol. 23, n.º 2, 2010, pp. 374-383; no de Castela dirigiram observações des-
“Pornografia – inofensiva ou mortífera?”, Sen- primorosas ao rei de Portugal (e, por ex-
tinela, vol. 134, n.º 15, 2013, pp. 3-7; RIPLEY, tensão, ao seu povo), a par de panegíricos
Amanda, “When the meninas came to town”, ao seu homólogo castelhano, mostrando
Time, 12 out. 2010, p. 15; SENN, Charlene assim a hostilidade que se vivia entre os
Y., “Women’s multiple perspectives and expe-
dois reinos. A proximidade e a concor-
riences with pornography”, Psychology of Wo-
men Quarterly, vol. 17, set. 1993, pp. 319-341; rência entre as potências ibéricas eram
STOLER, Ann Laura, Race and the Education of duas faces da mesma moeda.
Desire: Foucault’s History of Sexuality and the Noutra vertente externa, o antiportu-
Colonial Order of Things, Durham, Duke Uni- guesismo fez-se sentir nas antigas coló-
versity Press, 1995; Vance, Carole S., “More nias portuguesas, aí com a máscara de an-
danger, more pleasure: a decade after the Bar- ti-imperialismo ou de anticolonialismo.
nard Sexuality Conference”, in Vance, Carole No Brasil, tornou-se recorrente dizer-se
S. (org.), Pleasure and Danger: Towards A Politi-
que, se o país tivesse sido colonizado
cs of Sexuality, London, Pandora Press, 1992,
pp. 26-39; digital: “Organização europeia de
por Holandeses, seria bastante melhor, o
segurança critica filtros anti-pornografia no que espelha um juízo implícito sobre as
Reino Unido”, Público, 23 jul. 2013: https:// políticas administrativas implementadas
www.publico.pt/tecnologia/noticia/organiza- desde a época dos capitães-donatários
cao-europeia-de-seguranca-critica-filtros-an- até ao “grito do Ipiranga” de D. Pedro,
tipornografia-no-reino-unido-1601088 (ace- que, ao proclamar a independência do
dido a 14 nov. 2016). Brasil, extinguiu o Reino Unido de Por-
Patrícia Ferraz de Matos tugal, Brasil e Algarves, promulgado por

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Antiportuguesismo 1497

seu pai, D. João VI. Por isso, não será de e Portugal respondeu-lhes com uma luta
estranhar que ainda no início do séc. xxi, armada no ultramar.
resistam resquícios dessas apreciações crí- O último aspeto desta perspetiva do
ticas visando os Portugueses, no formato antiportuguesismo prende-se com es-
de piadas e anedotas cujo protagonista trangeiros, tanto aqueles que visitaram
português apresenta um comportamento Portugal, como aqueles que efetivamente
provinciano e/ou capacidades de raciocí- viveram no país. Neste caso, Portugal era
nio reduzidas. comparado com os países de origem des-
Já nas antigas colónias africanas, o an- ses estrangeiros e, por vezes, alvo de seve-
tiportuguesismo foi assumido de forma ras críticas. E.g., no séc. xviii, visitantes
muito mais evidente, sendo o seu expoen- estrangeiros em Lisboa relatavam critica-
te máximo a Guerra Colonial. Portugal mente diversos hábitos e costumes portu-
resistiu a todas as pressões internacionais gueses, como a falta de limpeza das ruas, o
anticolonialistas, que se intensificariam excesso de formalismos ocos (“A palavra
após a Segunda Guerra Mundial. O Es- Excelência ocorria em profusão entre esses
tado Novo justificava que fazia parte da homens sórdidos” [SANTOS et al., 1996,
génese portuguesa o facto de Portugal ser 36]), a falta de planeamento a longo pra-
uno e multicontinental, alegando que o zo, etc. Já anteriormente, no séc. xvi, um
país ia “do Minho a Timor”. Na prática, tutor real flamengo punha em evidência:
nomeadamente em Angola, em Moçam- “Em Portugal, somos todos nobres e ter
bique e na Guiné-Bissau, os movimentos qualquer tipo de trabalho é visto com
de libertação anticoloniais, em que se desdém” (HATTON, 2013, 75). No início
hasteava o antiportuguesismo, ganha- do séc. xxi, algumas destas críticas ain-
ram importância e apoio internacionais, da podem sentir-se, tanto enraizadas em

Embarque do Príncipe Regente de Portugal, D. João, e Toda a Família Real para o Brasil no Cais de Belém,
de Henri L’Evêque (1769-1832).

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1498 Antiportuguesismo

expressões populares como “trabalhar existência de Portugueses em campos de


como um mouro” ou “trabalhar como batalha opostos ocorre em vários momen-
um galego”, como no uso ostensivo de tí- tos históricos a partir da fundação de Por-
tulos académicos ou ainda na tendência tugal (ou até desde antes, se se puder con-
para a tomada de decisões com impacto siderar haver antiportuguesismo avant la
imediato ou a curto prazo. lettre no berço da portugalidade, por oca-
Por outro lado, o antiportuguesismo sião do confronto entre Afonso Henri-
também pode ser observado de um ponto ques e sua mãe, D. Teresa). Desde então,
de vista interno, quando são os próprios foram vários os episódios que opuseram
Portugueses a autocriticar-se e a analisar fações de Portugueses (e.g., absolutis-
o seu país de forma depreciativa. Neste tas contra liberais, monárquicos contra
sentido, o antiportuguesismo pode ser re- republicanos). Os “bons” Portugueses
velador de um traço identitário. Todavia, desejavam o melhor para Portugal, jul-
ao invés de ser parte de um processo re- gando obviamente ter uma atitude mais
flexivo promotor do aprimoramento, esta adequada que a dos seus adversários, os
crítica representa tão-só uma capacidade “maus” Portugueses. Mas não são apenas
de satirizar, de menosprezar e, muitas ve- a história ou a política que apresentam os
zes, de denegrir uma imagem de que o episódios de antiportuguesismo: também
emissor também faz parte, sem que dela a literatura oferece exemplos críticos da
tire qualquer tipo de lição. Curiosamen- sociedade portuguesa – dos seus hábitos
te, os Portugueses são céleres na autocrí- nocivos e das suas práticas danosas –, no-
tica, mas olham com desagrado e suspei- meadamente por meio da sátira social de
ção o facto de a mesma observação ser Gil Vicente ou da refinada crítica da so-
emitida por estrangeiros. Nesta dimen- ciedade de Eça de Queirós.
são de antiportuguesismo, distinguem-se O segundo nível de antiportuguesismo
três aspetos: o antiportuguesismo entre do ponto de vista interno corresponde à
os Portugueses; o lado sombrio dos Por- existência de um lado sombrio dos Por-
tugueses; e, por último, os Portugueses tugueses. Trata-se de um exercício ana-
contra Portugal. lítico, onde se reconhece que, no fundo
Numa primeira faceta, o antiportugue- de cada Português, há algo taciturno que
sismo manifesta-se no seio dos Portugue- pode toldar o pensamento, anestesiar a
ses: o objeto dos sentimentos negativos, forma de agir e denegrir a maneira de
da hostilidade e da condenação são os ser. Esta sombra tem na sua génese uma
próprios Portugueses. No entanto, os insegurança que resulta em medo, o qual,
emissores da crítica também o são, ou por sua vez, dá origem a desconfiança.
seja, há Portugueses que não se reveem Esta insegurança provém de uma desacre-
nos seus pares, demarcando-se dessa con- ditação crónica que deprecia e diminui
dição e denominação comuns. Presumin- os Portugueses, fazendo com que nunca
do que os Portugueses são todos iguais, se sintam à altura do que quer que seja.
haveria uns mais portugueses que outros. O antiportuguesismo espelha aqui um
Neste caso, o antiportuguesismo refle- combate interno entre medo e coragem,
te-se na crença de que o outro, o “mau” o qual raramente apresenta um meio-ter-
Português, não quer contribuir para um mo. A incerteza e a fragilidade expressas
Portugal melhor, insistindo em modelos num queixume constante são oriundas
políticos inadequados e em comporta- desse sentimento de temor e produzem
mentos sociais reprováveis. Note-se que a um descontentamento contínuo, que,

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Antiportuguesismo 1499

associado a uma fraca autoestima, resul- mente, este temor foi cultivado de forma
ta em passividade e conformismo. O es- inversa: Salazar assumia-se como pai dos
pírito derrotista é implacável quando se Portugueses, um pai austero, controla-
pensa que os outros são sempre melho- dor, dando ordens e castigando quem
res. Os “heróis do mar” do hino nacional não as cumprisse. Esta atitude paternalis-
surgem como termo de comparação des- ta, por um lado, promoveu o lado submis-
mesurado. A confrontação do Português so, resignado e altamente manipulável
com um modelo antigo e dourado pelo dos Portugueses e, por outro, privilegiou
tempo esmaga pela sua grandeza e con- a discrição, fomentando a desresponsa-
dena à prisão ao passado, que só pode ge- bilização. O fado do “é assim” e do “tem
rar um sentimento de frustração. A “des- de ser”, frequentemente acompanhado
centragem permanente dos portugueses” por um encolher de ombros, resulta na
(LOURENÇO, 2013, 74) – que ora se desculpabilização máxima que o lado
agarram ao passado, ora se projetam num sombrio proporciona e cuja verbalização
futuro imaginado – é fatal para o presen- passa pelo lamento constante. Os Portu-
te. O recurso à história de Portugal per- gueses são vítimas de um ente superior
mite perceber que foram várias as vezes e lamuriam a sua sina, mas pouco fazem
em que os Portugueses se sentiram aban- para mudar a sua sorte. A culpa nunca é
donados, se viram órfãos, sem ter quem de ninguém – afinal, ela “há de morrer
olhasse por eles. O desaparecimento de solteira” –, “o destino assim o quis”. A afli-
D. Sebastião, no séc. xvi, e o consequente ção provocada pela assunção da culpa ou
domínio filipino, e a fuga de D. João VI e da responsabilidade paralisa e o melhor
da sua corte para o Brasil, face à ameaça será “deixar andar”, até que os aconteci-
das invasões francesas, no séc. xix, são mentos caiam no esquecimento. O medo
exemplos de que o topo da hierarquia passa, também, pela ameaça que repre-
não fez muito caso do povo, o que pode senta aquilo que o outro pensa de cada
ter causado cismas e desconfianças. Os um, ou seja, os juízos alheios. Estes englo-
Portugueses ficaram desamparados e, bam o receio do “parece mal”, o pavor do
nessa situação, o medo ganhou terreno. ridículo e a inveja. “Os Portugueses não
O episódio de D. Sebastião em Alcácer convivem entre si […] espiam-se, con-
Quibir desencadeou tal insegurança e trolam-se uns aos outros; não dialogam,
temor entre a população que redundou disputam-se” (LOURENÇO, 2013, 78).
na criação do mito sebastiânico: o Messias Esta competição, que poderia promover
viria recuperar a glória de Portugal e sal- o desenvolvimento e a melhoria, não o
var os Portugueses, que, pela sua condi- faz, porque é expressa depreciativamen-
ção diminuída, não o conseguiriam fazer te e está minada pelo “sistema de invejas”
sozinhos. Este pode ser um exemplo de (GIL, 2012, 82). Nesta sua dimensão, o
“descentragem” nacional: a projeção de antiportuguesismo consubstancia-se no
um futuro glorioso estava ancorada num lado carrancudo português e é ilustrado
passado com a mesma magnitude, sendo pelo Zé Povinho de Rafael Bordalo Pi-
o presente uma mera ponte entre os dois. nheiro, caricatura do Português resigna-
Pessoa elucida este movimento com os úl- do, tacanho e preguiçoso.
timos versos de Mensagem: “Tudo é incer- A terceira e última perspetiva do lado
to e derradeiro./Tudo é disperso, nada é interno do antiportuguesismo é aquela
inteiro./Ó Portugal, hoje és nevoeiro...” que tem Portugal na sua mira. Desta vez, a
(PESSOA, 2009, 91). No séc. xx, curiosa- crítica visa o país. O curioso da atribuição

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1500 Antiportuguesismo

de culpas ao próprio país, enquanto uni- utopicamente por José Saramago em


dade abstrata que não se pode defender, A Jangada de Pedra.
é que por meio dela se desculpabilizam Avulsas ou coordenadas, as diferentes
os indivíduos. “Assim cresceu, de maneira variantes do antiportuguesismo revelam
desmesurada, um sentimento complexo, um conflito que acompanha os Portu-
misto de ódio, ressentimento, despre- gueses e cuja resolução obriga a um pro-
zo, asco, indignação resignada contra ‘o fundo exercício de autoanálise, de modo
país’” (Id., Ibid., 80). É comum dizer-se a dissipar o constante nevoeiro e a abrir
“este país isto” ou “Portugal aquilo”; veri- caminho para um Portugal melhor. Em
fica-se aí uma delimitação de um espaço última instância, a permanente crítica aos
de onde o enunciador se demarca. Em Portugueses e a Portugal pode ser uma
“País relativo”, O’Neill ridiculariza esta forma dissimulada de afirmar o próprio
atitude: “País onde qualquer palerma portuguesismo.
diz,/a afastar do busílis o nariz:/– Não,
não é para mim este país!” (O’NEILL, Bibliog.: GIL, José, Portugal, hoje. O Medo de
1978, 19). Note-se o desdém com que se Existir, Lisboa, Relógio d’Água, 2012; HAT-
fala de Portugal como algo completamen- TON, Barry, Os Portugueses, Lisboa, Clube do
Autor, 2013; LOURENÇO, Eduardo, Labirinto
te alheio, demitindo-se os Portugueses da
da Saudade, Lisboa, Gradiva, 2013; MAALOUF,
responsabilidade do que vai sucedendo Amin, Les Identités Meurtrières, Paris, Grasset e
ao país. Portugal é o outro, Portugal são Fasquelle, 2013; MEDINA, João, Portuguesis-
os outros e nunca o próprio. Miguel Tor- mo(s). Acerca da Identidade Nacional. Ensaio sobre
ga referia-se a Portugal (embora incluin- as Imagens de Marca Identitárias, os Emblemas, os
do-se na apreciação) dizendo: “somos Mitos e Outros Símbolos Nacionais, Seguido de o Zé
socialmente uma sociedade pacífica de Povinho, Estereótipo Nacional, Autocaricatura do
Português desde 1875 e Outros Estudos bem como
revoltados” (TORGA, 1999, 983): a in-
de Uma Addenda. Panorama Documental e Gráfi-
dignação até se pode sentir, mas não se co Comentado, Lisboa, Centro de História da
exterioriza, porque o medo, o respeito, a Universidade de Lisboa, 2006; O’NEILL, Ale-
submissão, a desresponsabilização não o xandre, Feira Cabisbaixa, Lisboa, Sá da Costa,
permitem. Portugal abstrato é o réu per- 1978; PESSOA, Fernando, Mensagem, Lisboa,
feito. As inúmeras páginas da Internet in- Guimarães Editores, 2009; SANTOS, Piedade
tituladas “Portugal no seu melhor” agre- Braga et al., Lisboa Setecentista, Vista por Estran-
geiros, Lisboa, Livros Horizonte, 1996; SARA-
gam, ironicamente, imagens anedóticas,
MAGO, José, A Jangada de Pedra, 15.ª ed., Lis-
risíveis, e simultaneamente miseráveis de
boa, Caminho, 2010; TORGA, Miguel, Diário,
um Portugal de que, mais uma vez, o seu Lisboa, Dom Quixote, 1999.
emissor se distancia.
Cláudia Fernandes
Outro indício desta vertente de anti-
portuguesismo consiste na deslocalização
dos Portugueses do seu espaço natural:
os emigrantes. Fora do país, a tacanhez, a
resignação e a passividade são de repente
substituídas pela coragem e pela diligên-
cia, que se revelam bem-sucedidas. Em
última instância, esta modalidade de anti-
portuguesismo, bem como a condenação
da entidade “Portugal”, poderá resvalar
para a imagem de iberismo, difundida

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Antipositivismo 1501

Antipositivismo e em diferentes tons, a reação antipositi-


vista tem uma expressão significativa des-
de as últimas décadas do séc. xix, tendo
como alvos preferenciais o cientismo e o
reducionismo positivistas.
O impacto do positivismo na ciência e
na cultura portuguesas está em grande

O positivismo foi a filosofia da ciência


mais importante do séc. xix e cuja
influência perdurou, em especial nos
medida por estudar, mas é certamen-
te revelador que uma das figuras mais
prestigiadas da Faculdade de Medicina
meios científicos, até à atualidade. O seu na segunda metade do séc. xix, António
âmbito não se confina, porém, às ques- Augusto da Costa Simões, professor de
tões epistemológicas, abarcando igual- Fisiologia, assuma na sua obra Elementos
mente a filosofia da história, a antropo- de Fisiologia (1861) uma posição inequi-
logia e a religião. O termo “positivo”, do vocamente positivista, se bem que não
qual se forma esta corrente filosófica, terá faça nenhuma referência direta a esta
porventura contribuído para o seu forte corrente filosófica. A disciplina mental
impacto. Contudo, o seu sucesso deve-se do positivismo é adotada como o novo
principalmente a duas ordens de razões: credo científico, como é bem visível no
o positivismo responde aos excessos do início da obra, em especial no art. 2.º,
idealismo alemão (1781-1831), que sobre- “Ideia geral da vida”. Aí, a propósito da
valorizou os direitos da razão e do sujeito incerteza em que se encontrava a fisiolo-
cognoscente no processo de aquisição e gia – entendida no sentido habitual deste
validação do saber; complementarmente, termo nos sécs. xviii e xix, como ciência
o positivismo é a expressão teórica do for- da vida – para compreender a origem da
te incremento das ciências no séc. xix. vida e a especificidade dos seus fenóme-
A elaboração teórica do positivismo nos, Costa Simões sintetiza o estado da
constituiu o mote da obra de Auguste
Comte (1798-1857), cujos tópicos nuclea-
res são os seguintes: 1) a ciência é um Auguste Comte (1798-1857).
conhecimento positivo, i.e., objetivo; 2) o
conhecimento humano é uma aquisição
progressiva, que, tanto à escala individual
como coletiva, se desenvolve segundo a
famosa Lei dos Três Estados: teológico,
metafísico e positivo; 3) as ciências cons-
tituem um sistema organizado desde o
mais simples, a matemática, ao mais com-
plexo, a sociologia.
Na segunda metade do séc. xix, o po-
sitivismo vai-se impondo como corrente
hegemónica da ciência portuguesa, con-
solidando essa posição por volta de 1880.
A crítica a esta corrente surge em simul-
tâneo com o processo da sua afirmação:
a partir de diferentes áreas disciplinares

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1502 Antipositivismo

arte a este respeito: “Tudo são questões ainda que eles careçam por seu turno
intermináveis para o naturalista, por ina- de explicação” (BOMBARDA, 1877, 5).
cessíveis a uma demonstração de facto. E te- Em toda a sua obra posterior, nomeada-
nho por mal aproveitado o tempo que se mente em A Consciência e o Livre Arbítrio,
gasta em questões de abstração, sempre Bombarda assume uma posição militante
estéreis, quando encaminhadas à solu- em defesa dos procedimentos positivistas.
ção de tais problemas, que de sua natu- Similarmente, As Alucinações, trabalho
reza são insolúveis. O facto em fisiologia académico de Júlio de Matos, de 1880,
é quase tudo; e todos os trabalhos, aliás reflete a assunção do positivismo como
filhos de grandes engenhos, tendentes a forma consumada e definitiva do saber:
desviá-la deste caminho, não são aqueles “o espírito moderno sedento de conclu-
de que as ciências médicas hão de tirar sões positivas voltou-se para a ciência que
mais proveito” (SIMÕES, 1861, 7). lhe oferecia os recursos indefinidos de
A adesão formal ao positivismo ocorre análise objetiva. […] E se nem todos os
em 1877 com a obra Traços Gerais de Filo- problemas estão resolvidos, se resta ainda
sofia Positiva, de Teófilo Braga, que lança largo espaço a percorrer, se muitas afir-
no ano seguinte, com o jovem médico Jú- mações conservam o carácter hipotético,
lio de Matos, a revista O Positivismo, que é todavia certo que algumas conclusões
funcionou como o órgão oficial da escola positivas se inscrevem desde já na ciência
positivista. Apesar da sua curta duração, e que o processo seguido na sua consecu-
entre 1878 e 1882, com quatro volumes ção é definitivamente o único que deve-
publicados, O Positivismo teve um papel mos continuar a seguir” (MATOS, 1880,
muito importante na consolidação desta v-vi).
corrente filosófica no plano teórico-me- A crítica ao positivismo acompanha o
todológico e na reinterpretação da histó- processo de consolidação desta corrente
ria e da cultura portuguesas. filosófica. Num extenso artigo publicado
No quadro das ciências médicas, Mi- em 1878, Sampaio Bruno faz uma crítica
guel Bombarda e o mesmo Júlio de Matos veemente, em tom polémico, desafiando
dão um contributo muito relevante para o “fervor de adoção da moderna gera-
a vigência do positivismo desde o início ção portuguesa” (BRUNO, 2008, 388).
da sua produção científico-académica, De facto, o poder de atração do positivis-
atestando assim a penetração do ideário mo constitui um desafio para Bruno: “A
positivista nas escolas médicas de Lisboa escola positiva, ou melhor comtista, tem
e do Porto. Nos termos de Bombarda, a hoje uma história ilustre. Ela conta no
explicação científica consiste no estabe- número dos seus adeptos muitos dos mo-
lecimento de relações positivas e exatas dernos homens mais notáveis nas letras e
entre factos: “O mistério é o isolamento nas ciências de todos os países” (Id., Ibid.,
de um facto, como diz Bain. A sua reve- 389). As objeções de Bruno dirigem-se
lação consiste na demonstração das re- em especial à Lei dos Três Estados, que
lações, sempre positivas, que o ligam a implica a exclusão da teologia e da me-
outros factos, embora desconhecidos na tafísica do estado atual do saber, e, corre-
sua natureza íntima, mas todavia mais lativamente, a dualidade entre ciência e
simples que aquele de que eles podem metafísica. Teologia, metafísica e ciência
ser elementos. É na decomposição de um positiva são diferentes modos de abor-
facto nos seus princípios que está o escla- dagem da realidade, que respondem a
recimento, a demonstração desse facto, diferentes necessidades do espírito, não

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Antipositivismo 1503

são etapas sucessivas e mutuamente ex- apagar os desejos corpóreos, mortifica-


clusivas: “O  espírito humano, de todos vam as carnes e se impunham privações,
os tempos, tem seguido simultaneamente assim os dogmatistas do positivismo pre-
e não sucessivamente as diferentes vias in- tendem impor os cilícios para sufocar as
dicadas, não deixando assim uma para legítimas aspirações da especulação cien-
tomar em seguida exclusivamente a ou- tífica” (JORGE, 1886, 31).
tra” (Id., Ibid., 395-396). Por seu lado, a Num registo diferente, Oliveira Mar-
persistência da religiosidade e da metafí- tins critica os “espíritos secos” que só re-
sica decorre do facto de as preocupações conhecem a ciência positiva e se revelam
e questões a que elas respondem não se- incapazes de compreender e dialogar
rem elimináveis do espírito humano, por com a religião e os seus fundamentos mí-
mais avançada que seja a sua ciência. tico-poéticos. A mitologia cristã, e.g., en-
No âmbito propriamente científico, cerra a sua verdade, não assimilável à da
a crítica ao positivismo, na fase da sua ciência, e incumbe a esta última interpre-
consolidação em Portugal, foi feita por tar e dar sentido a essa mitologia, através
autores tão diferentes como Ricardo de um exercício de “tradução”, tal como
Jorge e Oliveira Martins. Ricardo Jor- é dito a propósito da descrição bíblica da
ge, num ensaio de 1881 (publicado em criação: “Tal é o mito de que a antropolo-
1886) intitulado “O bioplasma e a biome- gia tem de dar a tradução; tal é a doutrina
dicina”, segue a disciplina positivista no que ela refuta, desde que o farisaísmo re-
que respeita à exigência de objetividade ligioso pretende atribuir foros de verda-
e aos procedimentos indutivos da ciên- de positiva, ao que por natureza própria
cia, mas, com notável lucidez, demarca­ de origem só a tem poética” (MARTINS,
‑se dos “dogmatistas do positivismo” na 1881, xi).
sua pretensão de eliminar a especulação Antero de Quental, em “Tendências
metafísica, enquanto etapa pré-científi- gerais da filosofia na segunda metade do
ca e ultrapassada da consciência. Na sua século xix” (1890), reconhece a valida-
perspetiva, a metafísica faz sentido, uma de do positivismo na esfera da ciência,
vez que esta seja depurada do carácter contrariando a tendência idealista para
abstrato e logicamente vicioso da escolás- construir sistemas a priori sem uma base
tica e se constitua como uma reflexão que empírica que os sustente, e valoriza os
aprofunda as aquisições da ciência, elabo- procedimentos indutivos, ainda que cri-
rando sínteses ousadas e passíveis de re- tique vivamente o reducionismo positivis-
visão permanente: “Se devem considerar­ ta por este confinar o sentido à verdade
‑se fossilizadas as metafísicas tradicionais, científica. Como bem diz Antero, não
será lícito desprezar toda e qualquer me- se trata de uma questão acidental, mas
tafísica? Estatuído como ponto inabalável de um tópico central da inteligibilidade
que o método indutivo é o guia seguro da científica. Esta é limitada e incapaz de sa-
ciência, a positividade não é incompatível tisfazer o espírito humano na sua sede de
com as sínteses ousadas, não encerradas valor e de absoluto: “De tudo isto resulta
em linhas inflexíveis, mas suscetíveis de uma conceção das coisas extremamente
transformações progressivas. Sobre os precisa, mas limitada à esfera inferior do
fenómenos e suas leis é legitimo elevar- ser e por isso abstrata e inexpressiva. Daí
mo-nos ao desconhecido e reduzi-lo por o quer que é de glacial e morto na sua
vias mais ou menos longas às perceções lucidez. É um universo que se move nas
diretas. […] Como os ascetas que, para trevas, sem saber porquê nem para onde.

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1504 Antipositivismo

Não o alumia a luz das ideias, não lhe dá além de uma mera coleção de factos.
vida a circulação do espírito” (QUEN- O erro mais grave de Comte e dos seus
TAL, 1991, 146). fiéis discípulos reside na pretensão de te-
Nas primeiras décadas do séc. xx, rem alcançado o estado final e definitivo
quando o positivismo impregna o pen- do saber, o que lhes dá um “ar bíblico
samento português, Leonardo Coimbra de perfeição”, como é dito a propósito
(1883-1936) é a voz mais vigorosa na luta do estado positivo do saber comtiano:
antipositivista, cujo tom é certamente “e  um último (!!) e definitivo período
marcado pelo intento de responder ao positivista, período orgânico, normal,
materialismo positivista de Miguel Bom- representando a maior idade do ho-
barba. O antipositivismo é uma das mar- mem. Neste último período atingido por
cas do pensamento de Leonardo Coim- Comte e alguns felizes discípulos, como
bra, bem patente na abertura da sua obra o Sr.  Teófilo Braga, não haverá discus-
emblemática, O Criacionismo (1912). Sem sões: a nova certeza será perfeita, o novo
delongas, o autor considera que a positi- acordo imediato, porque reinará o Facto
vista oposição entre ciência e metafísica e e (cá diz o boticário da minha aldeia…)
a proclamada falência desta última tive- contra factos não há argumentos” (Id.,
ram o efeito contrário ao pretendido por 1923, 238-239). No limite, o confronto
Comte e pelos seus numerosos seguido- do filósofo do criacionismo é com a “fi-
res: “Um dos benefícios que o pensamen- xidez do espírito científico petrificado”
to filosófico deve ao positivismo, é o da (Id., Ibid., 76), que se revela incapaz de
atenção que hoje desperta a metafísica. acompanhar o lado dinâmico e criador
A metafísica inconsciente de uns (como da razão.
os próprios positivistas) e a refletida me- Na primeira metade do séc. xx, o po-
tafísica de outros eram feitas na tranquila sitivismo torna-se o senso comum dos
inocência do instinto ou na confiança de homens de ciência, que, por isso mesmo,
quem usa um direito indiscutível. O pen- não sentem necessidade de uma tomada
samento metafísico foi envergonhado de posição teórica em favor desta corren-
pelo pensamento científico, sempre em te epistemológica. Ao invés, o antipositi-
progresso e em afirmações de palpável fe- vismo segue o seu curso, através da refle-
cundidade. O espírito alarmado olhou-se xão crítica de algumas das figuras mais
de novo, e, se reconheceu que a metafí- relevantes da vida intelectual portuguesa,
sica lhe é intranha, ficou sempre com a entre as quais Delfim Santos, Joaquim de
censura nos ouvidos, e hoje a sua metafí- Carvalho e José Marinho.
sica é consciente e crítica, prudente e hu- Num escrito de 1938, “Situação valora-
milde, corajosa e honesta. Como se verá, tiva do positivismo”, Delfim Santos inten-
no decorrer do livro, é, para nós, infun- ta uma crítica positivista ao positivismo,
dada e ingénua a distinção de Comte en- aplicando a esta corrente os seus prin-
tre as eras do pensamento” (COIMBRA, cípios e procedimentos. Segundo a aná-
1912, 1). lise deste docente da Univ. de Lisboa, a
Leonardo Coimbra denuncia a “ido- evolução do positivismo evidenciou uma
latria dos factos” (Id., Ibid., 213), “erros notável capacidade de arrumar a sintaxe
graves e, por vezes, perigosos” (Id., Ibid., lógica das descobertas científicas, para
234) na escola positivista, mas, ainda as- as quais não contribuiu todavia signifi-
sim, valoriza o seu esforço de síntese e cativamente. A explicação positivista das
organização dos saberes, que vai muito ciências, e nomeadamente a classificação

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Antipositivismo 1505

Como muito lucidamente propõe José


Marinho, a penetração do positivismo na
ciência e na filosofia portuguesas resul-
tou, em larga medida, de que “ele cor-
respondia, como nenhum outro sistema
filosófico, à tradição escolástica”. O seu
impacto não se traduziu, por conseguin-
te, num reforço do espírito crítico e da
autonomia de pensar, mas na substituição
de “uma escolástica teológica em nome
de Deus e do céu, por uma escolástica fi-
losófico-científica em nome do homem e
da terra” (Id., Ibid., 144). O antipositivis-
mo tem uma função terapêutica contra o
entorpecimento do espírito.
Delfim Santos (1907-1966).

Bibliog.: BOMBARDA, Miguel, Dos Hemisphe-


comtiana, é exógena, não tomando em rios Cerebraes e Suas Funções Psychicas, Lisboa,
consideração o que é específico da ativi- Lallemant Frères, 1877; BRUNO, Sampaio,
dade científica. Dispersos I (1872-1879), Lisboa, INCM, 2008;
Joaquim de Carvalho, professor muito CARVALHO, Joaquim de, “Saber e filosofia”,
influente da Univ. de Coimbra, no escri- in CARVALHO, Joaquim de, Obra Comple-
ta, vol. i, Lisboa, FCG, 1981, pp. 355-376;
to “Saber e filosofia”, de 1951, critica o
COIMBRA, Leonardo, O Criacionismo (Esboço
cientismo positivista, questionando a sua de Um Sistema Filosófico), Porto, Renascença
pretensão de autossuficiência. O seu alvo Portuguesa, 1912; Id., A Razão Experimental
é, pois, duplo: a ciência é um saber que (Lógica e Metafísica), Porto, Renascença Portu-
não se funda a si próprio; a filosofia tem guesa, 1923; COMTE, Auguste, Cours de Philo-
uma função própria e inalienável, que sophie Positive, Paris, Hermann, 1975; JORGE,
não pode ser eliminada pelo progresso Ricardo, Ensaios Científicos e Críticos, Porto,
Typ. Ocidental, 1886; MARINHO, José, Ver-
da ciência.
dade, Condição e Destino no Pensamento Português
José Marinho, em Verdade, Condição e
Contemporâneo, Porto, Lello e Irmão, 1976;
Destino (1976), faz uma retrospetiva do MARTINS, Oliveira, Elementos de Antropologia
positivismo português, numa abordagem (História Natural do Homem), 2.ª ed., Lisboa,
pós-positivista, considerando que a meta- Bertrand, 1881; MATOS, Júlio de, As Hallucina-
física retomou a sua função de “proto-filo- ções. Estudo Medico-Psycologico, Porto, Imprensa
sofia, filosofia primeira ou dos princípios” Comercial, 1880; QUENTAL, Antero de, “Ten-
(MARINHO, 1976, 162), i.e., um saber dências gerais da filosofia na segunda metade
do século xix”, in QUENTAL, Antero de, Obras
dos pressupostos implicados no ato fi-
Completas, vol. iii, Lisboa, Comunicação, 1991,
losófico de levar o pensamento aos seus pp. 115-172; SANTOS, Delfim, “Situação va-
limites; complementarmente, para José lorativa do positivismo”, in SANTOS, Delfim,
Marinho, “o conceito de ciência alargou­ Obras Completas, vol. i, Lisboa, FCG, 1973,
‑se extraordinariamente” (Id., Ibid., 164), pp.  51­‑195; SIMÕES, António Augusto da
deixando de corresponder ao ideal positi- Costa, Elementos de Fisiologia, Coimbra, Im-
vista de um saber sobre factos estritamen- prensa da Universidade, 1861.
te delimitados. Adelino Cardoso

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1506 Antipresencismo

Antipresencismo

O antipresencismo é um fenómeno
exclusivamente português, que co-
nheceu a sua propalação essencialmente
entre os anos 30 e os anos 50 do séc. xx,
relativamente a par do seu referente po-
sitivo, o presencismo. As suas origens
encontram-se no vasto movimento de
reação à revista literária coimbrã Presença,
fundada em 1927 e caracterizada por dar
continuidade, de algum modo, à ideolo-
gia da sua precursora modernista Orfeu,
que viu o seu primeiro número em 1915.
Com efeito, a atividade dos promotores
Capa da Presença, n.º 1.
da revista e do movimento presencista,
entre eles José Régio, Adolfo Casais Mon-
teiro, João Gaspar Simões, Branquinho se situavam num raio limitado, em que o
da Fonseca, Miguel Torga e Edmundo Be- centro seria, segundo a crítica antipresen-
ttencourt, é não raras vezes apelidada de cista, o “ego-centro” do escritor.
segundo modernismo, sendo o primeiro, Foi precisamente a necessidade de ru-
como se sabe, protagonizado por Fernan- tura com a herança modernista que fez
do Pessoa, Almada Negreiros, Mário de surgir o movimento antipresencista ma-
Sá-Carneiro, entre outros. terializado tanto em alguns dissidentes
O segundo modernismo, ou, em rigor, do presencismo, como em oponentes a
o presencismo, já que a revista foi um dos este pensamento ideológico que vieram a
mais importantes epicentros deste grupo, formar a geração de 40: os neorrealistas.
aspirou de modo geral a uma literatura e Repare-se, porém, que a responsabilida-
a uma arte desvinculadas, senão mesmo de pela mudança de uma corrente para
alheadas, de qualquer posição de carác- outra é atribuída mais aos poetas que à
ter político ou religioso. Na verdade, tal poesia, i.e., ao facto de os novos poetas se
como as dos seus precursores modernis- reunirem em torno de outro paradigma
tas em geral, e de Fernando Pessoa em filosófico.
particular, as preocupações deste grupo As críticas ao presencismo, tanto de
incidiam principalmente em aspetos me- uns como de outros, incidiam essencial-
tafísicos, e até mesmo num certo psicolo- mente no excesso de metafísica e no
gismo que se desdobrava em expressões pouco contacto com as quotidianas “lu-
artísticas onde se desvendava a imagina- tas dos homens” (LOURENÇO, 1994,
ção psicológica, e a confissão ou transpo- 211), como diz Eduardo Lourenço acer-
sição imaginativa da consciência intros- ca do movimento presencista em geral e
petiva. Ou seja, todas as preocupações de José Régio em particular. Aliás, como

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Antipresencismo 1507

nota Rosa Maria Martelo, este movimento movimento literário e cultural: o neor-
é tanto antipresencista como é antirregia- realismo. Este comprometia-se e empe-
nista, pois é na figura do poeta José Régio nhava-se politicamente nas suas criações,
que se centraliza todo o movimento, bem denunciando as injustiças sociais e dando
como as principais respostas aos ataques voz e rosto ao homem de trabalho, i.e., ao
mais críticos. Não obstante, há que subli- proletariado. Nomes como Alves Redol,
nhar que não existe, da parte dos antipre- Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fon-
sencistas, uma desvalorização estética do seca assinavam textos que se reclamavam
movimento de 27, mas antes um respeito opostos aos do presencismo, entendido
pelo legado deixado por aquela geração como corrente autista e de autorreflexão,
aos mais novos. O principal móbil da crí- apartada da realidade social e política,
tica ao movimento presencista pertence para com a qual, segundo a nova corren-
ao foro ideológico. Na verdade, António te, todos temos direitos e, principalmente,
Sérgio, seguido de Casais Monteiro e ou- deveres. Contudo, há que sublinhar que,
tros, afirmava que a origem deste con- se do ponto de vista ideológico se verifi-
fronto esteve num equívoco entre o papel cava uma efetiva rutura, como vimos, essa
social e o papel literário do artista. rutura não existia com amplitude equiva-
É neste sentido que lemos a vasta pu- lente no plano estético, e não se verificou
blicação na imprensa da época, entre o uma produção poética radicalmente dife-
final dos anos 30 e o princípio dos anos renciada. O Novo Cancioneiro (1941), obra
40, que testemunha o diálogo entre pre- poética primeira dos poetas neorrealistas
sencistas e antipresencistas. Pode dizer-se (com o seu correlato narrativo no roman-
que a afirmação do movimento antipre- ce Gaibéus (1939), de Alves Redol), apre-
sencista, nos primeiros esboços de neor- senta processos de escrita com semelhan-
realismo, passou fundamentalmente pela ças fundamentais com os presencistas.
discussão sobre o papel social do artista
e sobre os modos de expressar, em arte, Bibliog.: CUNHAL, Álvaro, “Numa encru-
uma nova posição ideológica. Entre as zilhada dos homens”, Seara Nova, ano xviii,
personalidades que escreviam sobre a n.º  615, 27 de maio de 1939, pp. 285-287;
égide do antipresencismo pode contar-se, GUIMARÃES, Fernando, A Poesia da Presença
e.g., António Ramos de Almeida, Rodrigo e o Aparecimento do Neo-Realismo, Porto, Brasília
Editora, 1981; LISBOA, Eugénio, O Essencial
Soares, Mário Ramos, Mário Dionísio, Ro-
sobre José Régio, Lisboa, INCM, 2001; LOU-
drigues Miguéis, José Gomes Ferreira, o RENÇO, Eduardo, O Canto do Signo. Existência
jovem Álvaro Cunhal e José Pedro de An- e Literatura (1957-1993), Lisboa, Presença,
drade, sendo que as réplicas, a existirem, 1994; MARTELO, Rosa Maria, A Construção
seriam escritas maioritariamente por José do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira, Disser-
Régio. Os jornais e as revistas que serviam tação de Doutoramento em Literatura Portu-
de palco a esta quezília, mais ideológica guesa apresentada à Universidade do Porto,
Porto, texto policopiado, 1996; MONTEIRO,
que literária, foram a revista Seara Nova,
Adolfo Casais, A Poesia da “Presença”. Estudo e
onde Álvaro Cunhal trouxe a lume o lu- Antologia, Lisboa, Cotovia, 2003; RÉGIO, José
gar-comum do “umbicalismo regiano” et al., Presença. Folha de Arte e Crítica, ed. fac­
(CUNHAL, 1939, 285), e os jornais O Dia- ‑símile compacta, t. i, Lisboa, Contexto, 1993;
bo e Sol Nascente. SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, His-
Em pouco tempo, alguns entusiastas do tória da Literatura Portuguesa, 17.ª ed., Porto,
movimento antipresencista (a chamada Porto Editora, 1996.
geração de 40) deram origem a um novo Rosa Maria Fina

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1508 Antipriscilianismo

Antipriscilianismo

N ão sendo recorrente na bibliografia


disponível, o conceito de antipris-
cilianismo poderá ser associado a um
conjunto de atitudes epistemológica e
metodologicamente heterogéneas, mas
que têm em comum a filiação católica e
o antignosticismo.
Pouco se sabe acerca da figura de Pris-
ciliano, da sua doutrina e das eventuais
derivações que ela terá sofrido junto dos
seus seguidores. Desde a segunda meta-
de do séc. xx, diferentes autores – como Prisciliano (c. 340-385).
Maria Escribano Paño, Henry Chadwick
ou Sylvain Sánchez  –  desenvolveram o Antiguidade em busca das raízes nacio-
esforço histórico, filológico e exegético nais do seu reino, mas também enquan-
de compreender os escritos atribuídos to tópico da polémica entre autores
a Prisciliano e aos seus seguidores, des- católicos e protestantes. Em crónicas
cobertos por Georg Schepps em 1886, apologéticas protestantes, encontram­
na Biblioteca de Würz­burg, na Alema- ‑se as bases de uma discussão que se
nha, compaginando-os com fontes da prolongaria durante séculos, em que à
Antiguidade tardia que, na sua gene- condenação de Prisciliano por heresia
ralidade, apresentam Prisciliano como se opõe a figura do reformador contes-
um heresiarca. Com efeito, o retrato tatário do poder centralizador do papa-
de Prisciliano esboçado por escritores do, defensor da livre interpretação dos
católicos como Sulpício Severo, S. Je- textos bíblicos, da leitura de apócrifos
rónimo, S.to Agostinho, Orósio e Hidá- e de uma congregação carismática em
cio, enquanto gnóstico-maniqueu que que homens e mulheres se encontra-
ameaçou a unidade da Igreja Católica vam em igual condição.
após o Concílio de Niceia, tempo em No contexto cultural português da Mo-
que esta formulava alguns dos pilares dernidade, predominantemente cató­­lico,
cruciais da sua doutrina e reforçava lar- não se regista qualquer testemunho desta
gamente a sua institucionalização, mar- posição. Por seu turno, a primeira refle-
caria indelevelmente as perspetivações xão antipriscilianista que supera a glosa
posteriores. dos autores da Antiguidade tardia surgi-
Após largos séculos em que parece ter ria só nos começos do séc. xvii. Na Segun-
estado afastado das mentes dos escrito- da Parte da Monarchia Lusytana, redigida
res, Prisciliano ressurge em escritos da nos começos do séc. xvii, Fr. Bernardo
Modernidade, não só nas crónicas de de Brito descreve Prisciliano e sobretu-
humanistas que revisitavam as fontes da do o priscilianismo como os principais

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Antipriscilianismo 1509

entraves ao pacífico estabelecimento do Na segunda metade do séc. xx, diver-


catolicismo na península Ibérica duran- sos autores associáveis ao grupo da filoso-
te os sécs. v e vi. Ressurgindo em vagas fia portuguesa, como Agostinho da Silva,
cíclicas que se manifestam teimosamen- António Braz Teixeira, Dalila Pereira da
te, a heresia priscilianista desempenha, Costa e Pinharanda Gomes, prolongaram
no discurso de Fr. Bernardo de Brito, a as premissas desses autores da primeira
função de negativo da fé, da paz e da jus- metade do séc. xx, associando Prisciliano
tiça, o oposto de S. Martinho de Dume, a uma corrente heterodoxa e imanentista
que congrega todas as virtudes cristãs e que se teria mantido, de forma mais ou
heroicas, e é representado como figura menos continuada, na tradição do pensa-
principal da cristianização peninsular. mento português.
Para mais, ao transcrever e comentar os Com a ascensão do Estado Novo e o
cânones dos concílios eclesiásticos ocor- paulatino retorno à vigência do catoli-
ridos na península Ibérica durante este cismo nas universidades portuguesas,
tempo, Bernardo de Brito demonstra a questão priscilianista não foi alvo de
também que diversos cânones tinham estudos académicos até às últimas déca-
das do séc. xx. O livro Correntes da Fi-
em vista o combate ao priscilianismo.
losofia Religiosa em Braga dos Séculos IV a
Todavia, o teor herético da fábula pris-
VII, publicado em 1950, da autoria de
cilianista e a simpatia que ela merecera
Mário Martins, académico e clérigo, é
junto de alguns autores protestantes
uma rara exceção a esse silêncio. Nele se
afastaram-na de forma duradoura das
vislumbra um renovado modo de abor-
páginas portuguesas. Só quase três sé-
dagem ao tema do priscilianismo, que
culos mais tarde, após o vasto ensaio que
integrava os dados mais recentes, re-
Ménendez Pelayo dedicou a Prisciliano
sultantes da descoberta dos tratados de
na sua Historia de los Heterodoxos Españo-
Würzburg, na apologia antipriscilianista
les (1880-82) e a descoberta dos tratados
católica. Assim, dedicando algumas de-
de Würzburg, esta figura voltaria a ser zenas de páginas do seu livro a Priscilia-
discutida em obras portuguesas, desta no, Mário Martins tentou demonstrar o
vez com manifesta simpatia por parte carácter herético de diversas proposi-
de autores republicanos como Sampaio ções e práticas atribuídas aos priscilia-
Bruno, Teixeira de Pascoaes e Jaime nistas, ao mesmo tempo que procurou
Cortesão. As posições antieclesiásticas esvaziá-las de acuidade teológica. Se-
ou heterodoxas destes autores e as suas gundo o autor, é difícil encontrar nos
afinidades diversas com autores do gale- “pequeninos opúsculos” descobertos
guismo poderão explicar genericamente por Schepps o “trágico reformador, cuja
estas aproximações à figura de Priscilia- história nos impressiona, ainda, a tantos
no. São também testemunhos de que séculos de distância” (MARTINS, 1950,
Prisciliano terá entrado nesta fase na 103). Porém, o erudito clérigo concede
ponderação dos estudiosos da literatura a estes textos o valor de nos remeterem
portuguesa algumas referências que se para a importância que a leitura dos tex-
encontram em textos de Hernâni Cida- tos apócrifos alegadamente terá para a
de e de Carolina Michaëlis, associando compreensão de algumas manifestações
especulativamente o priscilianismo à im- da espiritualidade popular em Portugal.
portância que o elemento feminino me- Para além disso, bem à maneira de al-
recia na lírica galaico-portuguesa. gumas propostas do seu tempo, Mário

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1510 Antipriscilianismo

Martins releva a emotividade e o cristo­ conta contributos da historiografia e da


‑centrismo de algumas proposições atri- arqueologia, e dispensando visões mo-
buídas a Prisciliano, associando-o a uma nolíticas do cristianismo.
forma de sensibilidade religiosa que, de
acordo com a sua visão, caracterizaria o Bibliog.: BRITO, Bernardo de, Segunda Parte da
povo português. Monarchia Lusytana, Lisboa, Pedro Crasbeeck,
Após a revolução de 25 de abril de 1609; CHADWICK, Henry, Priscillian of Avila,
Oxford, Claredon Classics, 1976; FABIÃO,
1974, a gradual laicização da academia
Carlos, “Prisciliano”, in MEDINA, João (dir.),
contribuiu para que fossem surgindo História de Portugal, vol. iii, Alfragide, Ediclube,
outros tipos de abordagens à questão 2004, pp. 239-241; FERNANDES, Raul Ro-
priscilianista – e.g., as de José Mattoso e sado, “Priscilianismo ou não?”,  Euphrosyne,
Carlos Fabião –, que integraram histo- n.º 10, 1980, pp. 165-172; GUILLEM, Andrés
ricamente o fenómeno no contexto so- Olivares, Prisciliano a través del Tiempo. Historia
cial, político e religioso do Noroeste da de los Estudios sobre el Priscilianismo, A Coruña,
Fundación Barrié de la Maza, 2004; MAR-
península Ibérica de meados do séc. iv,
TINS, Mário, Correntes da Filosofia Religiosa em
sem tecer sobre ele juízos de índole Braga nos Séculos IV a VII, Porto, Livraria Tavares
teológica. Martins, 1950; MATOS, Albino de Almeida,
Todavia, dado o teor eminentemente “Priscilianismo ou não? Resposta ao Prof.
polémico da questão e dos seus antece- Rosado Fernandes”, Revista da Faculdade de
dentes, a discussão de Prisciliano e do Letras de Aveiro, n.º 1, 1984, pp. 289-308; Id.,
priscilianismo em Portugal raramente “Prisciliano visto através dos seus escritos”,
Revista da Faculdade de Letras de Aveiro, n.º 2,
se desviou do enfoque judicativo e he-
1985, pp. 7­‑38; MATTOSO, José, Naquele Tem-
resiológico. Numa breve polémica entre
po: Estudos de História Medieval, Lisboa, Círculo
Albino de Almeida Matos e Raul Rosado de Leitores, 2000; PAÑO, Maria Escribano,
Fernandes acerca da presença ou não Iglesia y Estado en el Certamen Priscilianista. Causa
presença de infiltrações priscilianistas Ecclesia y Iuditium Publicum, Saragoza, Universi-
no hinário litúrgico hispânico, os dois dad de Saragoza, 1988; PRISCILIANO, Trata-
autores demonstram estar de acordo, dos, trad. e introd. Ricardo Ventura, Lisboa,
pelo menos, acerca da iniquidade da INCM, 2005; SÁNCHEZ, Sylvain Jean Gabriel,
Priscillien, Un Chrétien non Conformiste. Doctrine
heresia priscilianista, associando-a a um
et Pratique du Priscillianisme, Paris, Beauches-
conceito vago de gnosticismo e julgando ne, 2009; SIMÕES, Margarida Barahona,
as proposições priscilianistas com ana- Prisciliano e as Tensões Religiosas do Século IV, Lis-
crónico inquisitorialismo. Posteriormen- boa, Universidade Lusíada, 2002; VENTURA,
te, e com resultados bastante mais sig- Ricardo, “Prisciliano e o priscilianismo em
nificativos, Margarida Barahona Simões Portugal”, in PRIETO, Victorino Pérez (org.),
recorreu à historiografia disponível e ao Prisciliano e o Priscilianismo. Da Condena á Reha-
bilitación, Coruña, Biblos, 2012, pp. 87­‑107.
comentário dos textos de Würzburg para
recusar a tese de heresia e situar o prisci- Ricardo Ventura
lianismo no âmbito de práticas ascéticas
cultivadas por membros da aristocracia
dos sécs. iv e v.
O avanço do estudo da questão prisci-
lianista em Portugal depende sobretudo
de investigações que se centrem no apro-
fundamento do trabalho filológico sobre
os manuscritos de Würzburg, tendo em

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Antiprogressismo 1511

Antiprogressismo explicitar desde já. Em primeiro lugar,


e como foi antecipado acima, se a histó-
ria é escrita pelos vencedores, também
é verdade que Clio é uma musa volúvel,
podendo a dignidade dos corifeus do
progresso ser revogada aquando do re-
fluxo da maré. Uma vez que, em muitos

P odem ser apontados como exemplos


de antiprogressismo toda a conduta e
todo o posicionamento ideológico de re-
dos casos mais salientes, não existem mo-
tivos intrínsecos para diminuir o papel
histórico de um determinado indivíduo,
sistência a vetores de mudança que, em incidentalmente sujeito a esse qualificati-
retrospetiva, reconhecemos terem vinga- vo de ignomínia, mas estão simplesmente
do por se patentearem no plano da rea- em jogo opções e pressupostos axiológi-
lidade histórica como aspetos caracterís- cos que, quando escrutinados, se revelam
ticos, e por vezes mesmo definidores, de estranhos ao objeto do juízo, porque fun-
épocas mais tardias. Tendo desse modo dados num contexto diverso, um antipro-
vingado, e de acordo com o apotegma gressista pode, mediante reinterpretação
que ensina ser a história escrita pelos ven- e revalorização, eximir-se ao seu estatuto
cedores (notaremos de seguida que essa de excomungado e ver-se reintegrado
condição implica sempre a possibilida- numa visão positiva do passado. Quantas
de da reescrita), tais vetores de mudan- leituras e contraleituras se não fizeram já
ça granjeiam tipicamente um prestígio do grande arquiteto do absolutismo que
que os preserva da controvérsia e os alça foi Pombal, ora demonizando-o como
ao plano do incontestável, do familiar e implacável protagonista de uma política
até do canónico. A caução da respeita- de intolerância, ora incensando-o como
bilidade, ainda quando não intenta ou paladino da modernização da sociedade
não alcança converter-se na presunção portuguesa! O facto é que as personali-
da inevitabilidade do triunfo das forças dades mais ricas são – perdoe-se a redun-
instauradoras do novo, derroga auto- dância – as mais multifacetadas, e rea-
maticamente os antiprogressistas que se preciar o seu perfil e o seu papel é parte
opõem a essas dinâmicas, condenando-os integrante do trabalho de memória que
ao estatuto de amaldiçoados da história, garante a construção e a atualização de
sobretudo a partir do momento em que um indispensável sentido de identidade
se dá, na consciência do homem ociden- coletiva. De resto, mudam-se os tempos,
tal, a naturalização da apologia do pro- mudam-se as verdades...
gresso – atingindo, nas suas formas mais Nesta perspetiva, e tendo em conta a
extravagantes, como que uma idolatria facilidade que há em, unilateral e apres-
da marcha ascensional das gentes e das sadamente, encarar as manifestações de
coisas – decorrente da crença iluminista oposição ao progresso como formas de
nas capacidades pragmáticas, morais e irracionalismo histórico, aplicam-se aos
cognoscitivas de uma razão capacitadora, entendimentos pouco discriminativos e
libertadora e redentora. falsamente objetivistas (que na realida-
Reportar o conceito de antiprogres- de não são senão intencionalistas) do
sismo a atitudes de resistência a uma conceito de antiprogressismo as especi-
mudança que, todavia, se consuma traz ficações expostas a propósito do concei-
consigo consequências que é vantajoso to de antifuturismo (&Antifuturismo),

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1512 Antiprogressismo

concernentes à necessidade metodológi- da, não por aquelas atitudes serem irra-
ca de um correto enraizamento na histó- zoáveis, mas para poupar os marinheiros
ria, tanto quanto possível isento de juízos à evidência da sua razoabilidade. Aliás,
preconceituosos. o medo dos familiares acentua a perce-
Em segundo lugar, e insistindo na ideia ção da ousadia – quer no sentido nega-
da leitura e da escrita, sublinhe-se um tivo de hybris, quer no sentido positivo,
aspeto já implicado no ponto anterior: associado à coragem e à aventura – que
a qualidade não apenas construída, mas assiste à viagem dos nautas. É sobre este
simplificadora do estatuto de antipro- pano de fundo que assoma o Velho, “de
gressista, com frequência assente num aspeito venerando” e “experto peito” (IV,
consenso social e institucionalmente pro- 94). A descrição é inequivocamente apre-
movido (em cujo contexto a academia e ciativa, e maior fundamento confere às
a escola desempenham um papel de re- palavras da personagem o facto de quem
levo), do qual procedem a cristalização assim o descreve não ser outro que não o
e a vulgarização de certas imagens, des- próprio comandante da flotilha. Denun-
se modo incrustadas como estereótipos. cia o Velho a glória e a fama como falsos
Ora, a entronização de um estereótipo ídolos. Temos de enfrentar o ismaelita,
acarreta sempre um empobrecimento alerta. Com um inimigo às portas, como
da imagem preconizada. Um exemplo compreender que se vá em demanda de
maior, no âmbito do tema que aqui nos outro? O corolário surge na estância de
ocupa, é o Velho do Restelo camoniano. abertura do canto seguinte, onde o Gama
Sendo muito conhecido, o respetivo epi- se refere ao “velho honrado”, sem que se-
sódio de Os Lusíadas (IV, 94-104) tende, jamos constrangidos a detetar qualquer
sem dúvida, a ser mal recordado. A figu- condescendência no epíteto.
ra do Velho, reverberando no falar cor- Mais, e colocando agora o problema no
rente, glosada no discurso do jornalismo plano dos protocolos discursivos subja-
de opinião como motivo que não é dos centes à escrita e à interpretação do poe-
mais fungíveis, terçada como arma de ar- ma épico: a lógica da epopeia de maneira
remesso no combate político, é amiúde nenhuma obriga ao detrimento da estatu-
evocada como símbolo de uma atitude ra moral dos antagonistas. A heroicidade
passadista, temerosa, encolhida, quase dos Troianos contribui para a glória dos
imbecil. No entanto, mesmo uma análise Aqueus vitoriosos, e Aquiles, confrontado
pouco ambiciosa do poema deixa perce- com Príamo, verte lágrimas sobre o ca-
ber que a composição da personagem é dáver de Heitor, numa solidariedade de
mais complexa e mais subtil. O Velho não homens que reciprocamente respeitam
é uma encarnação da senilidade, mas da a sua grandeza, pondo de parte a cólera,
prudência. Relatando ao Rei de Melinde mas partilhando a dor.
as circunstâncias da partida, o próprio É curioso registar o modo como se
Vasco da Gama confessa ter-se sentido apropria do Velho do Restelo a adapta-
“Cheio dentro de dúvida e receio” (IV, ção de João de Barros, dita “quase lite-
87). No seu todo, é de grande pungência ral”, intitulada Os Lusíadas de Luís Vaz de
a cena oferecida por Camões. Saíam as Camões, Contados às Crianças e Lembrados
gentes à rua. Mães, esposas e irmãs pro- ao Povo (1930?). Transparece no título o
feriam palavras “De amor e de piadosa propósito de endoutrinar os mais novos
humanidade” (IV, 92), vindo o Gama a e de confirmar a nação na posse de um
decidir abreviar a cerimónia da despedi- património identitário. Quanto à partida

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Antiprogressismo 1513

dos barcos de Lisboa, o adaptador suma-


ria a emoção dos que ficam, já pejados de
saudade, e a fala do Velho, porém não se
coibindo de acrescentar um comentário
de teor adversativo: “Mas esquecia o ve-
lho do Restelo que somos um povo de
marinheiros. E não queria também lem-
brar-se de que o bom nome e a honra de
Portugal exigia que levássemos ao fim a
empresa começada” (BARROS, 2012, 7,
49). Assim, num claro exercício manipu-
latório, tacitamente justificado por ser o
poema “a Bíblia da Pátria” (Id., Ibid., 7),
imputa-se ao Velho um argumentário
falacioso, eivado de má-fé: ele esquece
deliberadamente os valores mais impor-
tantes. Segundo este estreitamento da li-
berdade interpretativa, o antiprogressista
é um antipatriota, e a interpelação lan-
çada aos navegantes carece de qualquer Capa de Os Lusíadas de Luíz de Camões,
seriedade. O impacto de semelhante mo- de João de Barros (1881-1960).
dulação, produzida numa obra que foi
editada perto de 70 vezes e teve traduções Carvalho e Melo e de um Pina Manique
em várias línguas, é incomensurável. (e, no plano internacional, subsequen-
Como terceira e mais óbvia advertência te à Revolução Francesa), ocorrem, em
de carácter geral, observemos que a análi- sucessão veloz, as invasões do território
se das instanciações do antiprogressismo metropolitano pelos exércitos napoleó-
impõe o escrúpulo de inquirir, a respeito nicos, o exílio da família real no Rio de
dessa atitude de resistência, contra e em Janeiro, a chegada do corpo expedicio-
nome de quê e/ou de quem ela se decla- nário britânico e a regência de Beres-
ra. Trata-se, mais uma vez, de um preceito ford, a Revolução de 1820, a assunção
metodológico que evita deixar as indivi- do título de Imperador do Brasil pelo
dualidades do passado numa nebulosa príncipe D. Pedro e a outorga da Carta
onde se torna inviável apreciar o recorte Constitucional, a cisão no seio dos Bra-
das suas motivações e dos seus pontos de ganças, a autocracia miguelista, a Guer-
vista. ra Civil e, finalmente, já nos anos 30, a
À guisa de ilustração deste preceito, instauração de um regime liberal com
revela-se operatório focar a discussão do certo grau de estabilidade. No limiar de
antiprogressismo numa grande conjun- tão conturbado período, emerge uma
tura de crise (quer dizer, de esgotamen- constelação de autores que – sem que,
tos, de escolhas e de reinícios), situada todavia se lhes possa atribuir sistemati-
na passagem do séc. xviii para o xix, cidade e coordenação estratégica, pois
período no qual justamente se locali- que não há notícia de que formassem
za o influxo de ideias iluministas a que uma frente unida de escritores agencia-
acima aludimos. Nessa conjuntura, de- dos – se destacam como porta-vozes de
senhada após o desaparecimento de um um conservadorismo político que não

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1514 Antiprogressismo

hesita em reivindicar-se de alta integrida- de John Peltier traduzido por intermé-


de moral, patriótica e mesmo religiosa. dio do francês (tratando-se de facto de
Confrontados com a desagregação das um original anglo-saxónico), que ano-
estruturas que formavam ou sustentavam ta profusamente no vezo de increpar o
a sociedade do Ancien Régime em Portu- primeiro cônsul e futuro imperador. Do
gal, homens como Fr. Fortunato de São ano seguinte data A Religião Offendida pe-
Boaventura, José Agostinho de Macedo los Seus Chamados Protectores ou Manifesto
e Francisco Bento Maria Targini saem à das Injurias Que o Governo Francez Intruso
liça, tendo do lado oposto João Bernardo em Portugal Ha Feito á Religião Catholica
da Rocha Loureiro, José Liberato Freire Romana e aos Seus Ministros, de teor con-
de Carvalho, Hipólito José da Costa, Vi- sonante. Mas é sobretudo a partir da ins-
cente Pedro Nolasco da Cunha e alguns tauração do nosso primeiro liberalismo,
vultos preponderantes da geração seguin- com a Revolução de 1820, que o cister-
te, entre eles Almeida Garrett. Formando ciense dá rédea solta à pena, para assinar
estes intelectuais uma rede de inter-rela- periódicos como O Punhal dos Corcundas
ções sob o signo da militância e do con- (1823-24), O Mastigoforo (1824, 1829)
flito ideológico, mostra-se sobremaneira e A  Contra Mina (1830-32). Tomando a
estimulante atender ao modo como mu- franco-maçonaria como alvo privilegia-
tuamente se elegem e se entrequalificam do, crisma de pedreiros, de modo vir-
os antagonistas. Trata-se de um jogo de tualmente indiscriminado, todos os que
reciprocidades pelo qual, a nossos olhos, alinham nas fileiras contrárias: os vintis-
e na própria dinâmica da altercação, os tas, os liberais, os afrancesados. Incansá-
contendores se definem a si mesmos e vel, afirma no último periódico citado,
aos outros como campeões do antipro- em 1831, que, se “tivesse a eloquência,
gressismo e do antitradicionalismo. e a virtude de [s]eu Pai S. Bernardo”,
Esta constatação deixa adivinhar, de pregaria “uma Cruzada contra as Luzes
resto, um ponto de alcance geral para do Século, muito piores que a barbari-
o nosso tema: que os posicionamentos dade Maometana” (São BOAVENTU-
e os apodos de antiprogressista e anti- RA, 1830­‑31, n.º 8, 12). Mais desenvolvi-
tradicionalista são sempre relativos. São damente, e nesse mesmo ano, formula
como espelhos que se encaram. Postos em termos expressivos a sua convicção
perante o positivo do negativo e o ne- de fundo, que o aproxima do conserva-
gativo do positivo – como poderemos dorismo de um Edmund Burke, o mais
distingui-los, objetivamente? Submeti- célebre opositor britânico dos desman-
dos a um enfoque inverso, cabem tam- dos políticos inspirados pelos philosophes:
bém nesta resenha do antiprogressis- “É indisputável, e demonstrado até à
mo os exemplos de antitradicionalismo evidência, que nós os Realistas (segun-
(&Antitradicionalismo). do a confissão dos mesmos Pedreiros)
É sonoro adversário das ideias novas vivemos em um mundo inteiramente
Fr. Fortunato de São Boaventura, que diverso do em que eles vivem: [...] Nós
vem a ser estreme apoiante do despo- abraçados com os Séculos queremos
tismo miguelista e arcebispo de Évora. aquilo, que quiseram nossos Maiores, e
Em 1808, dá a lume o Quadro da Infame com que foram venturosos; eles querem
Conducta de Napoleão Bonaparte, para com uma ordem de coisas, que só existe na
os Differentes Soberanos da Europa desde a sua imaginação, e que apenas aparece
Sua Intrusão no Governo Francez, panfleto no mundo começa com ela a desordem”

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Antiprogressismo 1515

(SÃO BOAVENTURA, 1831, I, 104-105). nidade, própria de uma circunstância que


De um lado, a caução dos séculos; do ou- deixou de ser lícito definir por referência
tro, a ordem congeminada que origina o a uma nação política fechada, circunscrita
caos. O passo ocorre numa obra cujo tí- aos limites de uma elite. Ao invés, assiste­
tulo denota o seu intento irónico: o Novo ‑se à emergência de uma opinião públi-
Vocabulario Filosofico-Democratico Indis- ca, e nem Fr. Fortunato nem Macedo se
pensavel para Todos Que Desejem Entender alheiam desse processo. Acresce que o pe-
a Nova Lingua Revolucionaria, traduzido riodismo não é apenas suporte, mas tam-
do italiano de “D. Lourenço Thiuli” (de bém objeto da reflexão e da intervenção,
facto Lorenzo Ignazio Thiulen), obra que ao usá-lo o molda e o valida, sem que
em despique “contra o moderno Filo- os progressistas tenham disso o exclusivo.
sofismo” e que visa pôr a nu “a língua Atentemos na prolongada contenda
republicana democrática” (Id., Ibid., 5, que opôs Macedo a Loureiro. Situando­
11), acusando os progressistas daquilo ‑se os dois autores em posições políticas
que hoje apelidaríamos de revisionismo. irredutivelmente opostas, verifica-se
Como Fr. Fortunato, o P.e José Agosti- num o receio, no outro a expectativa
nho de Macedo é campeão de um tradi- que se projeta sobre as consequências cí-
cionalismo que rejeita a maçonaria e todas vicas e morais do periodismo; em ambos
as veleidades de carácter liberal. Como uma preocupação com a cultura de que
aquele, também Macedo nega o carácter se alimentam os Portugueses, e mormen-
despótico do regime que defende e impu- te com a sua língua; em ambos, implícita
ta os mais variados crimes e impiedades à se não explicitamente, o reconhecimen-
fação contrária. Cultor de prosa virulenta, to de que o advento de uma imprensa
Macedo toma a iniciativa de criar e redi- periódica forte, livre e influente corres-
gir diversos periódicos, à semelhança do ponde a um desenvolvimento civiliza-
autor precedente: entre outros, O Desa- cional novo e certamente significativo.
pprovador (1818-19), A Tripa Virada (1823), Macedo exprime o seu desagrado com
A Besta Esfolada (1828­‑29, com um número a nova sociedade emergente nas páginas
inédito em 1831), O Desengano (1830­‑31). de A Besta Esfolada, em que empreende
São repositórios de invetivas contra os a denúncia dos absurdos da imprensa
“corcundas”, onde patenteia o seu temor exilada, que difundia entre os Portu-
de que o progresso não equivalha senão a gueses o credo liberal. A presença em
corrupção, e onde elege como adversário Inglaterra antolha-se-lhe perigosíssima,
dileto João Bernardo da Rocha Loureiro, pelo contágio de costumes que reprova
jornalista no exílio e partidário do libera- (&Antibritanismo). Tendo esse país já
lismo. Aliás, não é despiciendo realçar que efetuado a sua revolução agrária, “que
o facto de dirimirem razões (e não raro pastos, que verdes, que anafas acham a
trocarem sarcasmos e insultos) na praça Besta, e Bestinhas naqueles fertilíssimos
pública por excelência que é a imprensa campos?”, pergunta-se no n.º 5 do jornal
periódica é sintomático de tão profunda (MACEDO, 1828-29, n.º 5, 1).
mudança dos tempos que nessa mesma No desdobrar do léxico da “besta”, Ma-
atuação se entrevê não serem os propa- cedo explora um imaginário embebido no
gandistas conservadores, em absoluto, an- livro do Apocalipse e que faz prolongar
tiprogressistas como que acantonados na no desfecho do poema herói-cómico Os
orla da sua época, já que a adesão a esse Burros, onde, em tom amargo, transpõe a
veículo é ela mesma um sinal de moder- fantasmagoria escatológica do poema de

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1516 Antiprogressismo

Alexander Pope The Dunciad para a situa- de Juvenal (canto ii, vv. 1208-1210), des-
ção portuguesa coetânea. Em Os Burros, tinado à fama “se tiverem preço” um dia
cuja primeira edição data de 1812 e que “a  crítica, o juízo/Entre os homens de
foi revisto pelo autor para reedições publi- bem” (canto v, vv. 743-745), “Só do que
cadas em 1827, 1835 e 1837, o jornalismo é natural Macedo amigo” (canto iv, vv.
é apontado como um instrumento da deu- 261). O poema encerra e encena, pois, o
sa Sandice, da traição à independência e seu próprio contraditório – e a sua natu-
à cultura pátrias, sendo os homens da im- reza de contraditório –, atribuindo autori-
prensa colocados a par dos poetas, dos tra- dade a Macedo pela voz dos antagonistas.
dutores, dos académicos, dos pintores, dos Se Macedo responsabiliza os periódi-
cientistas, dos homens do teatro – todos cos pela degenerescência do reino, dis-
medíocres nas respetivas atividades, todos, corda frontalmente dele o causticado
ainda por cima, imorais. Para alvo princi- Rocha Loureiro. De sua autoria, O Portu-
pal, Macedo escolhe Rocha Loureiro, que guez, publicado em Londres entre 1814
vemos ser coroado pela Sandice como o e 1826, não continuamente embora,
mais estúpido entre os estúpidos. A João porque o sucesso da revolução vintista
Bernardo e aos seus sequazes – que são permitiu, ainda que precariamente, o re-
metamorfoseados em burros no culminar gresso à pátria, é um dos mais extensos
da obra – é cometida a missão de estender e interessantes jornais do exílio liberal.
o domínio da Sandice a Portugal, último Aí mostra Loureiro apreciável fôlego de
bastião anti-revolucionário e anti-francês. analista dos acontecimentos da época, de
No canto iii, os seguidores daquela bizar- polemista, até de doutrinador político,
ra deidade reúnem-se para determinar mais raramente de crítico e comentador
qual a melhor maneira de desempenhar literário. Um tema recorrente é o impe-
a incumbência. Uma personagem sugere rativo de habilitar de formação cívica a
o teatro, confessando-se autora de certas generalidade dos cidadãos e de os dotar
obras “Por quem digno me fiz de açoite e de informação que os capacite para a in-
forca” (v. 323); outra, uma epopeia a lou- tervenção na sociedade de homens livres
var quem quer que vença os conflitos do e participativos que se pretende instaurar
momento; outra, traduções que tragam em Portugal, findo, como se espera que
“o  império da ignorância” (vv. 456-457); seja em breve, o período negro do pre-
outra, finalmente, apresenta e vê aprova- sente. Neste quadro, é atribuído ao pró-
da a ideia da criação de um novo periódi- prio jornalismo um papel de primeiro
co, intitulado O Bacio, que tem a vantagem plano na fundação da sociedade liberal,
de poder albergar a realização de todos que pressupõe a participação na res publi-
os planos anteriores. Vem, entretanto, a ca de uma massa alargada de cidadãos.
concluir-se que será desnecessário o novo Naturalmente, a liberdade de imprensa
jornal, na medida em que a Sandice já tem é um objetivo por cuja consagração legal
o reino conquistado, graças à ação do pe- não se inibirá o jornalista de fazer cam-
riodismo liberal corrente. panha. Interessante é notar o modo por
Atestam o cariz antitético da obra, ain- que a experiência do confronto direto
da, os lances em que Macedo, nomeado com as realidades britânicas – como que
por alguns burros e pela própria Sandice, a abrir uma linha de pensamento que
se inscreve no universo ficcional como ad- fará da Inglaterra, ao longo do século,
versário maior, qualificado como “mons- um modelo das instituições represen-
tro” temível que empunha um exemplar tativas, das liberdades, da participação

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Antiprogressismo 1517

cívica – suscita a adução do exemplo in-


glês, se não como instituto a copiar, pelo
menos como padrão para avaliar das ne-
cessidades próprias: “Em Inglaterra, isso
que se chama Constituição, e só é um
agregado de poucas leis, com bastantes
formas, fundadas em costumes e tradi-
ções, existe, com varia fortuna, de tempos
imemoriais: pode dizer-se, que essa Cons-
tituição, tal qual, existe como as monta-
nhas de Gales, por a coerência gradual
de suas partes, e pelo peso dos séculos,
que lhe cimentou os elementos. É parte
fundada em feudalismo; e estou certo,
que se agora a fizessem de novo os Ingle-
ses, não haviam escolher tão ruim base,
que é tão contrária à liberdade. Esta não
depende aqui da forma aristocrática; mas
Francisco Bento Maria Targini (1756-1827).
está fundada em outras leis, que não têm
nenhuma relação com a casa dos Lords,
como são, liberdade d’imprensa, proces- Enquanto Macedo põe a ridículo Lou-
so por Jurado, independência dos Juízes, reiro como asno supremo, Loureiro vol-
e favor e justiça dos processos. Portanto, ta-se para outro apóstolo do absolutismo,
como se agora constituem de novo os Francisco Bento Maria Targini, tesourei-
Portugueses, razão têm de extirpar abu- ro-mor de D. João VI em terras brasílicas,
sos antigos, e se dar uma Constituição, que em 1819 faz publicar uma tradução
como a tiverem por mais acomodada à anotada do poema filosófico de Pope “An
liberdade e suas necessidades, cuja pos- essay on man” – dir-se-ia, por coincidência
sam chamar sua” (LOUREIRO, 1821, ou não, que aplicando a um autor caro a
XII, n.º 67, 23). É este mesmo apropriar­ Macedo os métodos de mobilização ideo-
‑se da realidade estrangeira, quando o lógica de originais estrangeiros praticados
modelo estrangeiro em causa é de feição por Fr. Fortunato. Na dedicatória (ao Rei)
liberal, e este desígnio mesmo de divul- que encabeça um pesado aparato críti-
gá-lo no espaço dos periódicos, em tom co, Targini frisa que “a Educação pública
mais ou menos apologético, que tanto depois das revoluções da França, pelo es-
repugna a José Agostinho de Macedo. Ao pírito de uma liberdade mal entendida
mesmo tempo, assinale-se uma singular e de uma igualdade quimérica, tem tido
simetria: se o conservantismo de Fr. For- grande quebra entre nós”, pelo que o “sis-
tunato e de Macedo não os impede de tema de Ética” popeano pode ministrar-se
recorrer à imprensa periódica quando se como uma panaceia para tal enfermidade
trata de pugnar pela sua causa, também (POPE, 1819, I, pp. xiii, xix). A tarefa de
o progressismo de Loureiro encarna di- verter a obra constitui, pois, mais um servi-
nâmicas de modernidade que, na medi- ço prestado à nação pelo alto funcionário,
da em que invocam o exemplo britânico, que aliás não perde a oportunidade para
não dispensam estribar-se numa tradição fazer a apologia da manutenção da ordem
multissecular. e, em particular, do regime monárquico.

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1518 Antiprogressismo

A esta espécie de manifesto legitimista Bibliog.: BARROS, João de, Os Lusíadas de


responde Rocha Loureiro descarregando Luís Vaz de Camões, Contados às Crianças e Lem-
sobre Targini todo um arsenal de acusa- brados ao Povo, adaptação em prosa de João
de Barros, ilust. André Letria, Barcarena,
ções e de desdéns. Numa série de artigos
Marcador, 2012; CAMÕES, Luís de, Os Lu-
no Portuguez, fustiga Targini por pedante
síadas, org. António José Saraiva, Porto, Fi-
e incompetente. Declara-o tão pouco idó- gueirinhas, 1978; FERREIRA, António Mega,
neo na qualidade de tradutor como a cui- Macedo. Uma Biografia da Infâmia, Porto, Sex-
dar do erário: seria, num capítulo como tante, 2011; LOUREIRO, João Bernardo
no outro, dado a malversações. A pouco da Rocha, O Portuguez ou, Mercurio Politico,
e pouco, vai proverbializando o nome do Commercial, e Literario, Londres, W. Lewis,
conselheiro, taxando de “targinadores” 1814-25; MACEDO, José Agostinho de,
A Besta Esfolada, Lisboa, na Typ. de Bulhões/
os que enriquecem ilegitimamente à cus-
na Impressão Regia, 1828-29; Id., Os  Bur-
ta do Estado. Apostando-se em descredi- ros, 5.ª ed., Porto, Livraria Cruz Coutinho,
bilizar o tradutor no foro pessoal como 1892; POPE, Alexander, Ensaio sobre o Ho-
no político, no moral como no literário, mem de Alexandre Pope, trad. Francisco Ben-
Loureiro insinua a falsidade das profis- to Maria Targini, barão de São Lourenço,
sões targinianas de patriotismo e fideli- 3 vols., Londres, Officina Typographica de
dade ao Rei, aludindo à sua ascendência C. Whittingham, 1819; SÃO BOAVENTURA,
Fortunato de, A Contra Mina. Periodico Moral,
italiana e à hipocrisia que lhe mina a apa-
e Politico, Lisboa, na Impressão Regia, 1830­
rente severidade de costumes. De resto, ‑31; Id., Novo Vocabulario Filosofico-Democratico
como definitiva estocada do seu exame Indispensavel para Todos Que Desejem Entender a
do Ensaio sobre o Homem, sentencia que Nova Lingua Revolucionaria, Escrito em Italiano e
Targini não compreendeu o poema de Traduzido em Português, 2 vols., Lisboa, na Im-
Pope, que é na realidade um compêndio pressão Regia, 1831-32; SILVA, Jorge Bastos
de deísmo, e que, portanto, errou rotun- da, “Pope in Portugal: translation, criticism,
damente o tradutor ao pretender incutir controversy”, Revista de Estudos Anglo-America-
nos/A Journal of Anglo-American Studies, n.º  6,
como salutífero as suas doutrinas.
2003, pp. 49-69; Id., Tradução e Cultura Literá-
Neste último ponto, não deixa Lou- ria. Ensaios sobre a Presença de Autores Estrangei-
reiro de recuperar argumentos que o ros em Portugal, Porto, Instituto de Literatura
pensamento de Pope fez levantar no seu Comparada Margarida Losa/Afrontamento,
próprio século, e pode a verosimilhança 2014; TENGARRINHA, José, Nova História da
de tais reservas ter contribuído para que Imprensa Portuguesa. Das Origens a 1865, Lis-
o muito invetivado Targini se visse vota- boa, Temas e Debates/Círculo de Leitores,
2013.
do a um talvez imerecido esquecimento.
De forma semelhante, poucos se mos- Jorge Bastos da Silva
tram hoje familiarizados com a figura de
Fr. Fortunato, mesmo entre os estudiosos
da cultura portuguesa, e Macedo foi obje-
to em data recente de uma obra que, su-
bintitulando-se Uma Biografia da Infâmia,
em nada minora a antipatia que de há
muito lhe tem sido dedicada. Confirma-
ção, se precisa fosse, de que os antipro-
gressistas tendem a ficar do lado de fora
quando os triunfadores da história se sen-
tam à secretária para escrevê-la.

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Antiproprietarismo 1519

Antiproprietarismo vada e os princípios observados em cada


ordem jurídica para designar o direito de
propriedade. Entendemos, no entanto,
que esta análise não deve ser desenvolvida
aqui, uma vez que nos debruçamos sobre
conceções cujos alicerces teóricos se cen-
tram na própria legitimidade da proprie-

O antiproprietarismo é uma corrente


que pode ser identificada, a par-
tir do séc. xix, como um conjunto de
dade privada como instituição jurídica, à
margem dos regimes específicos criados.
São vários os entendimentos existentes
conceções contrárias a um determinado a propósito do direito de propriedade ao
entendimento da propriedade privada, longo da Idade Média e da Idade Moder-
tendencialmente associado à formação na, cujo interesse é indiscutível. O direito
deste conceito nas sociedades capitalistas. romano recebeu o direito de propriedade
Importa, no entanto, esclarecer que esta nas suas instituições jurídicas, adotando
corrente não é contrária ao direito de pro- uma visão ampla dos seus poderes, que
priedade privada, uma vez que as várias incluía o poder de uso, fruição e perce-
conceções existentes se referem a este di- ção de utilidades. A propriedade quiritá-
reito como necessário, embora discutam ria foi inicialmente apenas reservada aos
a sua titularidade e extensão. De salientar cidadãos romanos, com aplicação restrita
ainda que as correntes a que faremos re- a Roma, tendo a sua admissibilidade sido
ferência não se autointitulam antiproprie- progressivamente alargada, em conse-
taristas, mas têm um património comum quência da receção do direito romano em
ideológico de crítica da propriedade pri- todo o Império. Considerava-se, no entan-
vada. A análise efetuada resulta, assim, da to, que este poder tinha limitações, no-
aceitação deste pressuposto. meadamente em matéria de bens imóveis.
Para a compreensão do direito de pro- Os germanos conceberam a propriedade
priedade importa ter em consideração dividindo-a em propriedade individual
a evolução que ocorreu nos conceitos mobiliária e imobiliária, centrando-se em
associados a este direito, os quais foram duas noções sobrepostas da propriedade
acompanhados de produção doutrinária comum: a propriedade do clã e a proprie-
que nos impede de centralizar a proprie- dade da família. A evolução do direito de
dade num único conceito. Reportamo-nos propriedade nos sécs. x e seguintes foi no
aos conceitos de propriedade individual, sentido do desmembramento do direito
propriedade privada, propriedade fami- de propriedade, ocorrendo uma diminui-
liar, propriedade coletiva e propriedade ção dos direitos do senhor da terra, assu-
pública, só para destacar os mais relevan- mindo-se o tenente como o verdadeiro
tes. Para a presente análise, centrámo-nos proprietário.
na propriedade privada, pese embora Recordando os antecedentes dogmáti-
a evolução histórica deste direito tenha cos deste direito, verificamos que na dou-
resultado da conjugação dos conceitos trina aristotélica a propriedade ocupava
mencionados. uma posição subordinada no governo da
Na análise do direito de propriedade cidade, contrariamente à alimentação, aos
privada, não ignoramos a relevância atri- ofícios, ao armamento, ao culto e à juris-
buída por Tony Honoré à relação entre dição, sendo estes elementos essenciais di-
o conceito abstrato de propriedade pri- ferenciados da propriedade propriamente

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1520 Antiproprietarismo

dita. Como refere Miguel Nogueira de Bri- vigente, abolindo a justiça senhorial, as ser-
to, a propriedade em Aristóteles é a causa vidões e os direitos banais ainda existentes.
eficiente da cidade, sendo o viver bem a Circunscrevemos a nossa análise aos au-
causa final, e a causa formal uma organiza- tores que, de forma consistente, esgrimem
ção social tão efetiva quanto seja possível. argumentos adversos a um determinado
A defesa da propriedade em Aristóteles é conceito de propriedade privada, posições
essencialmente de natureza privada, enca- que são mais facilmente identificáveis no
rada como o poder do dono da casa sobre séc. xix, em que vemos surgir a justificação
os bens externos, sendo, portanto, um dos da propriedade com base no trabalho, em
instrumentos necessários ao governo da contraposição ao conceito de propriedade
casa. S. Tomás de Aquino entende, por seu privada do liberalismo. De salientar que
turno, a propriedade como pertencente os movimentos de natureza social que vão
ao direito natural, admitindo que esta pos- analisar o conceito de propriedade com
sa ser comum quando exista necessidade. base no trabalho merecem especial aten-
O elemento comum das conceções medie- ção. Estas novas conceções vão atacar a
vais de propriedade centra-se, portanto, propriedade liberal, mencionando que é o
na defesa da propriedade privada depen- próprio trabalho que produz a proprieda-
dente da ideia de comunidade originária de, não podendo esta, por isso, ser possuída
de bens. por uma classe em particular. Destacamos,
Outro contributo importante para a a este respeito, a posição de Karl Marx, que
compreensão do direito de propriedade considera que a propriedade dos meios de
passa pela leitura da posição franciscana, produção pela classe burguesa é uma for-
que procede à diferenciação entre o uso ma de expropriação de trabalho humano.
e a propriedade, contrariando a heran- Este é inclusive um elemento determinan-
ça romanista que identificava proprietas e te na construção marxista da propriedade,
res. As duas conceções existentes acerca que defende a abolição da propriedade
da propriedade privada vão, portanto, privada como condição para a cessação
circunscrever-se, como refere Miguel No- da subjugação do trabalho alheio. Marx
gueira de Brito, à conceção mais antiga, considera que a apropriação da proprie-
que interioriza no proprietário a vertente dade privada por uma parte significativa
comunitária, e à conceção moderna, que da sociedade conduziu à inexistência des-
o identifica como agente da sua liberdade ta propriedade por parte do proletariado,
individual. submetido à escravatura. Importa, aliás,
A Revolução Francesa marca o início da mencionar que Marx, ao elaborar a sua
suposta libertação da propriedade, pela noção específica de propriedade privada,
abolição dos encargos que a oneravam recorda os modelos pré-capitalistas em que
desde a Idade Média, fazendo regressar al- havia coincidência entre o proprietário e o
guns dos conceitos defendidos pelo direito trabalhador, situação que manifestamente
romano, nomeadamente a propriedade não sucede quando se debruça sobre a rea-
plena, livre e individual. A Declaração lidade histórica descrita em O Capital, que
dos Direitos do Homem de 1789 define a afasta a propriedade originária do traba-
propriedade como um direito natural, in- lhador. Em consequência, define o comu-
violável e sagrado, reconhecendo ao pro- nismo não pela abolição da propriedade
prietário a livre disposição dos seus bens. em geral, mas pela abolição da proprieda-
Posteriormente, a Assembleia Constituinte de burguesa, como refere no seu Manifes-
francesa procurou suprimir o feudalismo to: “Mas a moderna propriedade privada

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Antiproprietarismo 1521

burguesa é a representação última e mais que será posteriormente desenvolvido por


conseguida da produção e apropriação Hegel. Nesta construção, argumenta-se
dos produtos baseadas na luta de classes, que a propriedade privada não pode ser
na exploração de umas pelas outras. Neste entendida como um elemento da realiza-
sentido, os comunistas podem sintetizar a ção da personalidade, já que ela impede
sua teoria numa única frase: abolição da o próprio funcionamento da liberdade
propriedade privada” (MARX e ENGELS, como princípio fundamental. Marx advo-
1997, 28). ga ainda a expropriação da propriedade
Proudhon vai criticar o entendimento fundiária e o emprego das rendas fundiá-
que sufraga que é o trabalho que justifica rias para certas despesas do Estado, a apli-
a propriedade, invocando duas ordens de cação de impostos progressivos, a abolição
argumentos: por um lado, a ideia de que a do direito sucessório à perceção da heran-
propriedade sobre o produto do trabalho ça e a confiscação da propriedade de to-
não implica a propriedade sobre a maté- dos os emigrantes e rebeldes.
ria de produção, por outro lado, o reco- Também Friedrich Engels se debruçou
nhecimento de que o trabalho faz surgir a sobre a importância da propriedade pri-
propriedade sobre o produto do trabalho, vada na formação de instituições como a
devendo este princípio valer para todos os família e o Estado, concluindo que a estru-
trabalhadores. Este autor defende, por- tura doméstica promove a desigualdade
tanto, a existência de um direito de pos- jurídica e social entre os cônjuges, vindo
se individual assente no trabalho, sem se a monogamia a promover a concentração
comprometer com os fundamentos para a da riqueza num dos elementos da estru-
rejeição da propriedade. A este respeito, tura familiar, o marido. Por seu turno, a
refere que a propriedade é “um direito mulher é colocada numa posição de sub-
natural, necessário, inerente ao trabalho, serviência, dependente do marido. Desta
inseparável da qualidade de produtor” forma, a desigualdade jurídica resulta de
(PROUDHON, 1975, 98). uma desigualdade económica assente na
Karl Marx aceita algumas das premissas estrutura patriarcal da família, em que a
defendidas por Proudhon, criticando a direção da casa perde a sua natureza pú-
construção liberal de propriedade e de- blica, tornando-se um serviço privado. Este
fendendo a propriedade do trabalhador autor refere que a supremacia atribuída à
relativamente ao seu trabalho. Em conse- propriedade privada sobre a propriedade
quência, rejeita o conceito de proprieda- comum é outros dos fatores de decadên-
de privada capitalista, visto esta fundar-se cia da estrutura social monogâmica. Em
na exploração do trabalhador, ao qual consequência, advoga ser necessário afas-
deve ser reconhecida a propriedade dos tar o que apelida de escravatura doméstica
meios de produção geradores do seu tra- da mulher, criando a igualdade jurídica
balho. Marx entende que, se a apropria- entre os cônjuges, o que apenas poderá
ção dos meios de produção pelos traba- ser alcançado com a integração da mulher
lhadores se torna impossível pelo sistema na vida pública, que, por sua vez, passa
capitalista criado, é indispensável abolir a pela eliminação da qualidade da família
propriedade privada sobre o capital. Ou- singular como unidade económica da so-
tro elemento relevante da construção mar- ciedade. Este autor transpõe, portanto,
xista assenta na crítica ao entendimento para a família os conceitos de propriedade
da propriedade privada como fator de rea- privada e de propriedade comum, ao con-
lização da personalidade humana, aspeto siderar que a supremacia adquirida pela

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1522 Antiprotecionismo

propriedade privada conduz à domina-


ção masculina, o que é gerador de uniões
Antiprotecionismo
fundadas em pressupostos económicos
fortemente desigualitários. Neste sentido
afirma: “aquilo que, porém, decididamen-
te desaparecerá da monogamia são todos
os caracteres que nela foram impressos do
seu surgir das relações de propriedade”
(ENGELS, 1986, 103). A propriedade pri-
vada de um dos sujeitos, que assume a po-
O protecionismo é entendido habi-
tualmente como um conjunto de
regras e de práticas empregues pelos
sição de domínio, é novamente criticada governos com o objetivo de impedir a
por ser elemento gerador de desigualda- concorrência estrangeira num mercado
de, promovendo-se a propriedade comum nacional (seja de bens, de capitais ou
como o instrumento reparador de possí- do trabalho). Mesmo que o termo “pro-
veis injustiças sociais. tecionismo” seja utilizado atualmente
Nas principais teses apresentadas, ve- sobretudo de forma depreciativa, ao con-
rifica-se, assim, a existência de um ele- trário de outros termos análogos (“despe-
mento comum: a crítica da propriedade sismo”, “estatismo”), pode assumir uma
privada pelos efeitos gerados na estrutu- justificação teórica ou, pelo menos, uma
ra social e económica. Não é a proprie- racionalização. Com efeito, na história
dade que é condenada como instituição, portuguesa não tem faltado quem de-
mas a sua titularidade e os conteúdos fenda de forma articulada e consequen-
que lhe estão associados. Em consequên- te o protecionismo, quer na procura da
cia, há uma teorização da sua constru- autarcia, quer como estratégia desenvol-
ção, entendendo-se que a forma como a vimentista de crescimento de sectores
sua afetação for realizada deve atender nascentes, quer como necessidade para
aos próprios interesses dos elementos da impedir um saldo negativo da balança
estrutura social/familiar. comercial, quer como necessidade para
conservar ou ampliar as receitas fiscais.
Aliás, grande parte do discurso económi-
Bibliog.: BRITO, Miguel Nogueira de, A Jus-
co português desde o séc. xvi até meados
tificação da Propriedade Privada numa Democra-
cia Constitucional, Coimbra, Almedina, 2008; do séc. xx é orientada precisamente por
ENGELS, Friedrich, A Origem da Família, da estes quatro motivos. Autores rotulados
Propriedade Privada e do Estado, Lisboa, Avan- como “mercantilistas”, “fisiocratas”, “clás-
te, 1986; GLISSEN, John, Introdução Histórica sicos” ou “socialistas” concordam na ne-
ao Direito, 2.ª ed., Lisboa, FCG, 1979; HO- cessidade de proteger pelo menos alguns
NORÉ, Tony, Making Law Bind, Essays Legal and sectores da economia portuguesa. Mesmo
Philosophical, Oxford, Oxford University Press,
o discurso desenvolvimentista, que vigo-
1987; MARX, Karl, Sociedade e Mudanças So-
rou nos sécs. xviii e xix, especialmente
ciais, Lisboa, Edições 70, 1974; Id., O Socialis-
mo Científico, 2.ª ed., Lisboa, Estampa, 1975; neste último, defendia algumas políticas
Id., Manuscritos Histórico-Filosóficos de 1844, Lis- protecionistas, justificadas pelo interesse
boa, Avante, 1994; Id., e ENGELS, Friedrich, nacional.
Manifesto do Partido Comunista, Lisboa, Avante, É necessário, todavia, sublinhar que a
1997; PROUDHON, Pierre-Joseph, O Que É a partir do séc. xix o discurso económico
Propriedade?, 2.ª ed., Lisboa, Estampa, 1975. é predominantemente antiprotecionis-
Míriam Afonso Brigas ta. Os autores mais significativos não

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Antiprotecionismo 1523

hesitam em condenar o protecionismo e A expansão no Atlântico sul, e depois


em considerá-lo contrário à boa econo- no Índico, e a política intransigente de
mia. Aliás, é precisamente neste contexto mare clausum, ampliaram este quadro pro-
que o substantivo “proteção” assume uma tecionista, que raras vezes foi desafiado.
conotação negativa, que ainda persiste. A primeira perspetiva crítica deste siste-
Porém, a generalidade destes economis- ma pertence ao veneziano Cà Masser, que
tas renuncia a condenar o protecionis- aconselhou o Rei de Portugal a abrir o
mo de forma absoluta. Como observa comércio a todos os mercadores estran-
Cardoso, no séc. xix, “o problema de se geiros, de forma a aumentar o volume
saber se um autor é genuinamente prote- do comércio e a receita fiscal. É provável
cionista ou coerentemente livre-cambis- que esta posição circulasse nos círculos
ta deixa de fazer sentido” (CARDOSO, comerciais portugueses, já que em 1544
2001, 80), uma vez que, a partir de 1800, Damião de Góis defenderia um sistema
quase todos os autores reconhecem que concorrencial no acesso às especiarias,
os contextos político, administrativo ou ao invés de proteger o preço elevado. No
produtivo podiam justificar a concessão entanto, há razões para crer que, no con-
de certas formas ou determinados graus texto quinhentista português, estas foram
de proteção. Note-se que estamos a abor- vozes isoladas, ou quase isoladas.
dar a proteção das economias nacionais O discurso mercantilista do séc. xvii
contra a concorrência externa (sobre as foi além do simples protecionismo alfan-
limitações à concorrência ver a entrada degário orientado para um saldo comer-
&Antiestatismo). cial favorável, entendendo que as tarifas
O tema da proteção da economia por- podiam ser complementadas com outros
tuguesa ganha expressão no início do instrumentos, como isenções fiscais e
séc. xiii, altura em que a legislação portu- prémios, com o objetivo de substituir as
guesa manifesta preocupação com a saída importações feitas por fabricantes portu-
do reino de mercadorias como os cereais gueses. O expoente máximo desta visão
e os metais. A partir do ano de 1253, o é Duarte Ribeiro de Macedo, no seu Dis-
alealdamento (ou seja, a obrigação im- curso sobre a Introdução das Artes no Reino
posta a cada mercador de exportar um va- (1675), talvez o mais citado mercantilista
lor equivalente ao importado) tornou-se português, que irá ter grande influência
lei, que era aplicada por um desenvolvido sobre as políticas desenvolvidas pelo con-
sistema de alfândegas, orientado sobretu- de da Ericeira (MACEDO, 1950, 185).
do pelo objetivo de impedir a saída de Seria errado relacionar o Tratado de
metais do reino (&Antidespesismo). Este Methuen, celebrado no ano de 1703,
sistema não foi questionado. Nos grava- com o advento de alguma crítica ao pro-
mes apresentados em Cortes, que cons- tecionismo, já que a sua lógica era preci-
tituem um bom repositório das ideias samente “proteger” os lanifícios ingleses
económicas em vigor entre os sécs.  xiv e os vinhos portugueses da concorrência,
e xv, não se regista qualquer contestação tendo sido com este argumento que o
sobre os direitos de importação de pro- Tratado colheu apoios de cada uma das
dutos estrangeiros. Pelo contrário, nas duas potências; nas palavras de outro
reuniões de Lisboa (1413, 1455, 1456 e mercantilista, D. Luís da Cunha, o trata-
1459) e de Évora (1472, 1473) leem-se do fez-se “não cuidando mais o Parlamen-
apelos ao reforço das limitações impostas to outra coisa que não adiantar e animar
aos estrangeiros. as suas manufaturas” (PEDREIRA, 2001,

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1524 Antiprotecionismo

o comércio dos Portugueses da Europa e


da América, bem como a garantir a sua
maior comodidade.
À medida que o pensamento clássico
foi arribando às costas portuguesas sur-
giram mais críticas às disposições prote-
cionistas. José da Silva Lisboa, o primeiro
economista clássico português, denuncia
com clareza o projeto autárcico: “O amor
da independência nacional, e o desejo do
extenso e geral emprego dos cidadãos,
não deve precipitar a um governo ilumi-
nado ao absurdo e impossível projeto de
concentrar no próprio território todos
os ramos da indústria e comércio, e me-
nos os daqueles países que têm decisivas
vantagens naturais ou adquiridas nesses
ramos”, concluindo: “mostra-se, assim, na
teoria, como em prática, que a divisão do
trabalho é igualmente benéfica aos parti-
culares e às nações; e que a liberdade de
comércio amplifica tanto a sólida grande-
za e opulência dos Estados […] como a
Luís de Meneses, 3.° conde da Ericeira (1632-1690).
contrária política arruína os impérios, e
obsta ao progresso da civilização e filan-
66). No entanto, o século de Methuen tropia”. Como lucidamente escrevia o
reserva-nos algumas surpresas neste cam- mesmo autor a propósito da assinatura
po. As críticas mais abrangentes ao pro- do tratado comercial de 1810, “fábricas
tecionismo devem-se a Estevão Álvares que não se puderem suster, introduzir e
Bandeira, um negociante da praça de prosperar com estes favores e incitamen-
Lisboa ligado ao comércio com o Báltico. tos, manifestam que são impróprias ou
Partindo da complementaridade entre os prematuras nas circunstâncias do país”
recursos naturais das extremidades les- (LISBOA, 1993, 36-37). Mas os autores
te e oeste da Europa, Bandeira defende em questão não deixam de sacrificar es-
a eliminação dos direitos alfandegários tes princípios àquilo a que José Luís Car-
entre os países envolvidos, e mesmo a li- doso chamou “critérios de oportunidade
berdade de circulação de pessoas entre os política”. Pode-se apontar a este respei-
países. As suas críticas versam sobretudo to o exemplo de D. Rodrigo de Sousa
o protecionismo imposto pelas leis e pe- Coutinho, que enuncia o princípio do
las práticas de Holandeses e Ingleses, que benefício mútuo das trocas comerciais,
Bandeira descreve como espantalhos. mas não deixa de apontar a existência de
Partindo do princípio de que o comércio “comércio nocivo” (CARDOSO, 2001, 84,
livre traria vantagens absolutas, Bandeira 87-88). Segundo Cardoso, em 1804 e em
concebe mesmo uma união alfandegária 1810, o argumentário contra a proteção e
europeia, e defende o estabelecimento defesa do comércio livre foi aplicado ao
de portos francos, de forma a estimular serviço da racionalização da abertura dos

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Antiprotecionismo 1525

portos brasileiros aos Ingleses, uma medi- ternacional se fundava na reciprocidade


da que obedecia essencialmente a razões e que defendeu o Tratado de Methuen.
de ordem diplomática. Embora, por princípio, fosse inimigo dos
Durante o vintismo continuaram as críti- limites, Acúrsio aceita que haveria casos
cas à proteção como contrapartida do elo- em que seria necessário recorrer ao “sis-
gio ao comércio livre. Soares Franco, lente tema proibitivo”, para que a indústria
e deputado das Cortes de 1820, afirmava estrangeira não sufocasse à nascença os
que a proteção dos interesses industriais estabelecimentos fabris nacionais. Assim
através de pautas aduaneiras favoráveis era seria em Portugal: “[o proibitivo] não será
contrária às “claras ideias de economia po- bom sistema mas com ele é que as nossas
lítica” (Id., Ibid., 99). Estas “claras ideias”, fabricas nascerão, e prosperarão, e o mes-
porém, enfrentavam obscuras realidades: mo tem acontecido nas outras nações”
a construção do Estado liberal implicava (NEVES, 1827, 43). Deste modo, os críti-
maiores recursos públicos e o intenso co- cos das tarifas alfandegárias e da restrição
mércio internacional português oferecia à entrada de mercadorias estrangeiras fo-
uma oportunidade irresistível para obter ram entendidos como livrescos ingénuos,
as receitas necessárias. Um percurso inte- firmes na teoria mas ténues no realismo.
lectual sintomático é o de J. X. Mouzinho Ao tempo em que Mouzinho ou Acúrsio
da Silveira, que defendia que o “sistema de escrevia, era evidente a disparidade entre
proteção” tinha consequências ruinosas os ideais liberais e as duras realidades da
para o país. Num texto não datado, escrito falta de competitividade internacional e
por volta de 1825, afirmava a necessidade dos deficits orçamentais.
de “promover a introdução […] de uma Na déc. de 1830, a par do que aconte-
bem entendida liberdade no comércio, re- ce com vários países europeus, emerge
movendo gradualmente as restrições que um sector de opinião coerente contrário
sem utilidade alguma têm até agora em-
baraçado e entorpecido a marcha deste”
(ALEXANDRE et al., 1989, I, 907). No en- Paul Methuen (1672-1757).
tanto, como platonicamente reconheceu
este grande reformador, este “belo per-
feito” não tinha lugar no xadrez político
nacional.
José Acúrsio das Neves ironizou a res-
peito dos defensores ingénuos do prote-
cionismo: “Iluminados estadistas nos têm
provado com argumentos metafísicos, que
para sermos ricos é necessário que seja-
mos pródigos, abrindo os nossos portos à
indústria dos estrangeiros que fecham os
seus à nossa indústria [...] e fizeram-nos
ver como coisa demonstrada que nisso
mesmo estava a nossa felicidade; porque
pobreza multiplicada por pobreza deve
dar riqueza”. A ironia de Acúrsio tem
grande relevância porque se trata de um
autor que reconhecia que o comércio in-

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1526 Antiprotecionismo

à orientação essencialmente protecio- protecionistas eram os que a economia


nista dos principais governos. Em 1831, clássica repetia desde o séc. xviii: os pre-
Ferreira Borges afirmava que “os direi- ços altos (escassez de bens) e a falta de
tos proibitivos e protetores são a ruína concorrência. De resto, Nogueira Soares
da […] prosperidade” (ALMODÔVAR e acredita mesmo que o atraso português
CARDOSO, 1998, 67). Segundo Almodô- se explicava pelo excesso de tarifas: “Que-
var e Cardoso, Ferreira Borges encabeça remos a destruição completa do sistema
uma vasta frente de paladinos do antipro- protetor, porque estamos profundamen-
tecionsimo com o argumento de que Por- te convencidos de que esse sistema é uma
tugal se deveria especializar na agricultu- das principais causas do nosso atraso”
ra e obter as manufaturas do estrangeiro, (CARDOSO, 2001, 91). Semelhantes
posição que recorda o famoso princípio ideias presidem a numerosos projetos
da vantagem comparativa enunciado por de liberalização multi ou bilateral do co-
David Ricardo anos antes. mércio, envolvendo sobretudo Portugal e
Esta posição foi articulada numa impor- Espanha.
tante publicação periódica, A Liga – Jornal Ao longo do séc. xix, como faz no-
de Interesses Económicos. Editado pela Liga tar J. L. Cardoso, e como os próprios
Promotora dos Interesses Públicos do economistas de Oitocentos alertavam,
País, nele pontificavam Cláudio Adriano “a  adesão ao liberalismo económico era
da Costa e Policarpo Francisco Lima, re- quase sempre filtrada por critérios de in-
datores de vários artigos. Também autores teresse nacional” (Id., Ibid., 99). De res-
e professores das associações comerciais to, o antiprotecionismo é um princípio
de Lisboa e Porto se juntaram ao coro an- frequentemente enunciado, mas as suas
tiprotecionista. Porém, como indicou José consequências benéficas nem sempre são
Luís Cardoso, não obstante a considerável plenamente compreendidas. Almodôvar
expressão em termos de publicações, tra- e Cardoso notam mesmo que a teoria da
tava-se de posições politicamente pouco vantagem comparativa, enunciada por
mobilizadoras. Em qualquer caso, “este Ricardo, não foi diretamente comenta-
mesmo liberalismo revelou alguma capa- da pelos economistas portugueses do
cidade de influenciar a sociedade e o pró- séc. xix. Era voz corrente, e.g., que a rápi-
prio sistema político”, sem nunca haver da prosperidade atingida por economias
um programa próximo de uma liberaliza- como a Itália ou os EUA se devia às ele-
ção radical (BASTIEN, 2009, 349). vadas tarifas concebidas para proteger as
Sintomaticamente, a principal polémi- indústrias nacionais.
ca em torno do protecionismo versou so- Uma espécie de síntese do antiprote-
bre decisões políticas no estrangeiro, de- cionismo do liberalismo português foi
signadamente a aprovação de uma nova feita pela Associação Comercial de Lis-
pauta alfandegária na França do Segun- boa em 1909. Esta Associação realizou
do Império. Em 1860, escrevendo contra um extraordinário relatório, que incluiu
o elogio do protecionismo de Fradesso da um amplo levantamento de dados sobre a
Silveira, Nogueira Soares proclama das economia portuguesa, com o objetivo de
páginas do jornal Revolução de Setembro aferir os efeitos prejudiciais (ou não) do
que “proibir ou restringir a concorrência protecionismo.
é proibir ou restringir os meios necessá- Na sua análise, os relatores da Associa-
rios à realização do homem, da sociedade ção Comercial de Lisboa consideravam
e do governo”. Os argumentos contra os que vigorava em Portugal um protecio-

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Antiprotecionismo 1527

nismo cego que encarecia os produtos do protecionismo frumentário. O seu ar-


desnecessariamente e que protegia de- gumento é o de que, ao permitir um preço
terminados sectores. Assinalavam ainda elevado para o trigo produzido em Portu-
como inconvenientes do protecionismo: gal, o protecionismo frumentário desen-
a imobilização de capital, o encarecimen- corajava os investimentos necessários para
to de salários e de matérias-primas para desenvolver culturas intensivas com maior
transformação, o aumento dos preços, a produtividade calórica por hectare, em
falta de estímulo do progresso tecnológi- especial a cultura do milho. A proteção
co, a fuga de capitais da agricultura para a tinha garantido um preço favorável aos
indústria, o facto de estorvar a assinatura produtores, mas que nem sequer tinha
de tratados, de favorecer o contrabando e resultado na pretendida autossuficiência.
a falsificação, de contribuir para guerras Tal como no séc. xix, no séc. xx o pro-
tarifárias, de encaminhar capitais para in- tecionismo também teve poucos defen-
dústrias pouco competitivas, de favorecer sores. O ambiente intelectual português
a grande propriedade e a cultura exten- não concedia grande importância às
siva no Alentejo, e de incitar à litigância questões do comércio internacional e da
e à concentração das cabeças numa espe- balança externa. Ferreira Dias, um impor-
cialidade como o direito fiscal e aduanei- tante economista do Estado Novo, tenaz
ro. Reconhecendo a utilidade das tarifas industrialista e engenheiro, manifestou
em três níveis – a segurança conferida a uma posição contrária à proteção pautal
certas indústrias nascentes, a moralização excessiva, porque estava convencido de
do consumo (incluindo o desdém pelos que esta conduzia à ineficiência da pro-
produtos nacionais), e a receita pública dução doméstica. As condições favoráveis
através das tarifas elevadas  –, a associa- garantidas pela entrada de Portugal na
ção rejeita o princípio do protecionismo, Associação Europeia de Livre Comércio
afirmando que “a proteção não seja tanta (que tolerou uma certa proteção à indús-
que suprima a iniciativa e o estímulo, mo- tria portuguesa), e mesmo na CEE, rele-
las reais do progresso” (ASSOCIAÇÃO garam a questão da proteção pautal para
COMERCIAL DE LISBOA, 1909, 82). De um plano muito secundário.
resto, as principais virtudes do protecio-
nismo não produziam resultados razoá-
veis: a receita das tarifas não chegava para Bibliog.: ALEXANDRE, Valentim et al. (orgs.),
cobrir o deficit e as indústrias nascentes Mouzinho da Silveira – Obras, 2 vols., Lisboa,
em breve dispensariam a proteção pau- FCG, 1989; ALMODÔVAR, António, e CAR-
DOSO, José Luís, A History of Portuguese Eco-
tal. Ainda assim, mesmo na Associação
nomic Thought, New York, Routledge, 1998;
Comercial de Lisboa, a recusa do prote- ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE LISBOA,
cionismo no campo das ideias coexistia Situação Económica do País. Relatório da Associa-
sem problemas com a proteção a sectores ção Comercial de Lisboa ao Congresso Nacional de
nascentes específicos. Lisboa, Lisboa, Centro Typographico Colo-
Uma posição interessante a este respei- nial, 1909; BANDEIRA, E. A., “Arbítrio de Es-
to é a de Ezequiel de Campos, que, não tevão Álvares Bandeira acerca de reformas a
realizar em Portugal e no seu império colonial
se mostrando um entusiasta da libertação
dirigido ao duque de Cadaval”, in MIRAN-
dos movimentos comerciais internacionais DA, J., A Ideia da Europa em Portugal na Época
(duvida mesmo de que os tratados comer- de D. João V, Lisboa, Edições Universitárias
ciais conduzam a vantagens recíprocas), Lusófonas, 2000, pp. 215-242; Id., “Carta
centra o seu antiprotecionismo no chama- a Pedro o Grande datada de 7 de agosto de

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1528 A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a )

1724”, in MIRANDA, J., A Ideia da Europa em


Portugal na Época de D. João V, Lisboa, Edições
Antiprotestantismo
Universitárias Lusófonas, 2000, pp. 199-204; (Época contemporânea)
Id., “Carta a Pedro o Grande datada de 15
de agosto de 1724”, in MIRANDA, J., A Ideia
da Europa em Portugal na Época de D. João V, Lis-
boa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000,
pp. 204-214; BASTIEN, Carlos, “A integração
europeia vista pelos economistas portugue-
ses – uma perspectiva de longo prazo”, Análi-
se Social, vol. xliv, n.º 191, 2009, pp. 337-359;
CARDOSO, José Luís, Pensar a Economia em
A história do antiprotestantismo em
Portugal é complexa, coexistindo
a explícita e veemente recusa quanto à
Portugal: Digressões Históricas, Lisboa, Difel, entrada das várias confissões protestan-
1997; Id., História do Pensamento Económico Por- tes no país com uma certa abertura à
tuguês – Temas e Problemas, Lisboa, Livros Ho-
sua instalação no território, sendo que,
rizonte, 2001; FRANCO, Francisco Soares,
Ensaio sobre os Melhoramentos de Portugal e do por motivos de índole diversa, a presen-
Brasil, Lisboa, Impressão Régia, 1821; GODI- ça simultânea de uma maioria católica e
NHO, Vitorino Magalhães, “Portugal no co- diversas minorias protestantes, embora
meço do século xvi: instituições e economia. com um número de fiéis relativamente
O relatório do veneziano Lunardo da Cà Mas- reduzido, não deixou de representar um
ser”, Revista de História Económica e Social, n.º 4, enorme desafio, tanto para as autorida-
1979, pp. 75-88; LISBOA, José da Silva, Escri- des civis como para a hierarquia da Igreja
tos Económicos Escolhidos (1804-1820), org. An-
Católica. A Revolução Liberal, nomeada-
tónio Almodôvar, 2 vols., Lisboa, Banco de
Portugal,  1993; MACEDO, Jorge Borges de,
mente, constituiu-se como palco de am-
Problemas de História da Indústria Portuguesa no bas as conceções – a de combate ao pro-
Século XVIII, Lisboa, Associação Comercial testantismo e a da sua aceitação –, sendo
de Lisboa, 1950; MARQUES, A. H. de Oli- o séc. xix o momento em que a própria
veira, Das Invasões Germânicas à “Reconquista”, Constituição autoriza os cultos dissiden-
in MARQUES, A. H. de Oliveira, e SERRÃO, tes. O caso madeirense é exemplo deste
Joel  (orgs.), Nova  História de Portugal, vol. ii, confronto, que parece ter sido alimenta-
Lisboa, Presença, 1996; NEVES, Acúrsio das,
do não menos por protestantes que por
Noções Historicas, Economicas, e Administrativas
católicos: a difusão evangélica de Robert
sobre a Producção, e Manufactura das Sedas em
Portugal, e particularmente sobre a Real Fabrica Reid Kalley, teólogo protestante escocês,
do Suburbio do Rato, e Suas Annexas, Lisboa, suscitou enorme polémica. Apesar de a
Impressão Régia, 1827; PEDREIRA, Jorge, Lei da Separação da Igreja e do Estado
“Agrarismo, industrialismo, liberalismo: al- reconhecer igual liberdade de culto à
gumas notas sobre o pensamento económico Igreja Católica e às restantes confissões
português, 1780-1820”, in CARDOSO, José religiosas, o problema antes mencionado
Luís, Contribuições para a História do Pensamento adentrou pelo séc. xx – século que co-
Económico em Portugal, Lisboa, Dom Quixote,
nheceu também a promessa do carácter
1988, pp. 63­‑83; Id., “Cunha, Luís da (D.)”,
in CARDOSO, José Luís (org.), Dicionário His- benfazejo do ecumenismo, se bem que
tórico de Economistas Portugueses, Lisboa, Temas nem sempre corretamente entendido, de
e Debates, 2001, p. 66-69; SOUSA, Armindo, que é exemplo o Oitavário pela Unidade
As Cortes Medievais Portuguesas. 1385-1490, dos Cristãos.
Porto, Instituto Nacional de Investigação Recuperamos e reorganizamos aqui
Científica, 1990. o valioso trabalho, muito detalhado e
António Castro Henriques cuidado, sobre o antiprotestantismo em

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A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a ) 1529

Portugal do historiador João Francisco


Marques, de saudosa memória, que no­
‑lo tinha legado em bruto para esta obra
dicionarial. Trata-se de uma segunda
parte, que se expressa mais multifocal-
mente no ataque ao movimento da Re-
forma, podendo-se denominar com mais
propriedade antiprotestantismo, sendo
que a primeira parte do seu trabalho
configura mais um claro antiluteranismo
(&Antiluteranismo).
Árduo e longo será o caminho da to-
lerância até à aceitação legal das Igrejas
protestantes no seio da sociedade portu-
guesa. O olhar estrangeiro sobre o que
se passa no terreno, mesmo ao dobrar o
séc.  xviii, pode ver-se nas anotações de
Carl Israel Ruders, pastor sueco, em sua
Viagem em Portugal (1798-1802), e de Link,
sábio alemão, na visita a Lisboa (1799), as
quais permitem descortinar como as trans- Robert Reid Kalley (1809-1888).

formações se verificavam por arrastamen-


to da presença das colónias forasteiras e dentes britânicos no país eram autoriza-
da ocupação militar inglesa ocasionada dos a possuir lugares de culto, desde que
pelas invasões napoleónicas. Todavia, é não fossem reconhecíveis pelo seu aspeto
digna de registo a observação de Ruders, exterior. A Revolução Liberal vintista foi,
na carta xxxvi, em que, após lembrar certamente, um marco de viragem com
serem os hereges residentes em Portugal simultâneo recrudescer da militância ca-
pejorativamente chamados protestantes, tólica antiprotestante. Aprovada em Cor-
acrescenta: “É certo que os estrangeiros tes, a Constituição Portuguesa de 1822
neste país não têm direito a queixar-se da reconhece o direito à existência de cultos
falta de tolerância nas manifestações da dissidentes (art. 17.º); e, embora a Carta
vida social; no entanto, estou convencido Constitucional de 1826 acusasse menos
que a gente do povo, e até mesmo as clas- tolerância, estatuía que ninguém fosse
ses mais elevadas, sobretudo as mulheres, perseguido por motivos religiosos uma
alimentam uma secreta aversão contra vez que respeitasse a religião do Estado, a
todos os indivíduos que não professam a católica, apostólica, romana (art.  145.º),
religião católica, principalmente quando e garantia às comunidades protestantes
os veem abster-se das práticas religiosas, radicadas no país poderem celebrar os
que obrigam a certos sacrifícios e priva- seus cultos particulares “em casas para
ções” (RUDERS, 1981). Lenta, mas pal- isso destinadas, sem forma alguma exte-
pavelmente, ia-se fazendo a mudança. rior de templo” (art. 6.º). Contudo, só o
Assim, logo em 1800, permitia-se um cul- triunfo da ofensiva dos liberais em 1834
to eucarístico de reformados suíços na pôs termo ao preocupante bloqueio que,
capela da Memória, junto a Belém; e, no desde 1828, a ditadura miguelista im-
tratado anglo-português de 1810, os resi- pusera. A liberdade de culto, ainda que

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com restrições, assegurada na legislação


vai adquirindo consistência frente à atua-
ção algo tolerante dos governos liberais
e à influência de uma elite intelectual
contrária ao férreo predomínio do pen-
samento cristão ortodoxo, reflexo dos
ventos que varriam a Europa racionalis-
ta, apesar de mantido o vínculo institu-
cional da aliança entre o trono e o altar
e do catolicismo ser a religião do reino
oficialmente protegida. Desta forma,
saíam beneficiados o proselitismo e a di-
fusão das confissões evangélicas no país:
Almeida Garrett, em Portugal na Balança
da Europa (1830), lamenta que o reino se
mantenha isolado da corrente religiosa
tolerante com base no protestantismo;
Midosi, no seu Manual do Cidadão (1834),
defende a liberdade das crenças religio-
sas; a revista O Panorama (1837), dirigida
por Alexandre Herculano, elogia as esco-
las dominicais de orientação protestante
e o ensino da Bíblia que ministram; o me-
Capa de O Panorama, n.º 2,
todismo mostra-se ativo no país; George
13 maio 1837.
Barrow, agente da Sociedade Bíblica de
Londres, em itinerância por terras portu-
guesas a caminho de Espanha, distribui reforço da união entre o absolutismo e
exemplares da Bíblia em Évora e Elvas; a a Igreja, manteve o povo em respeitoso
capela anglicana lisbonense da Estrela é temor, obediente à ordem estabelecida.
solenemente sagrada; o presbiterianismo Será, no entanto, de atender a que as
radica-se em Lisboa com certa solidez. Es- necessidades espirituais das legações di-
tes são, no entanto, sintomas alarmantes plomáticas acreditadas no país, das famí-
para a hierarquia católica que instrumen- lias de militares após a vinda do luterano
taliza o zelo das camadas populares prati- conde de Lippe (1762) e dos estrangei-
cantes e do poder político conservador, ros residentes, sobretudo comerciantes
em ordem a muscular uma acentuada burgueses não católicos, exigiam uma
reação antiprotestante. assistência religiosa própria. Assim acon-
teceu em 1773, com a chegada a Lisboa
do pastor Muller, vindo para pastorear a
A tolerância iluminista
comunidade luterana alemã. Aliás, já an-
e a perseguição na Madeira
tes, talvez mesmo em 1725, fora permiti-
A repressão da liberdade de opinião e de da a abertura de um cemitério britânico.
consciência no consulado policial do in- Por seu lado, o canonista e jurisconsulto
tendente Pina Manique, em maré de cres- António Ribeiro dos Santos, que animou
cente influência maçónica e dos ideais da com os seus escritos o pensamento políti-
Revolução Francesa, se contribuiu para o co setecentista, pugnava por uma tolerân-

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A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a ) 1531

cia para com etnias e confissões religiosas os britânicos em 1807, vigorou até 1814,
diferentes, propícia a uma coexistência ocupando para quartel das guarnições
social pacífica. Numerosos “exemplos o edifício do antigo Colégio jesuítico de
domésticos” do passado mostravam ter a S. João Evangelista, onde estava instalado
intolerância conduzido a efeitos a quere- o Seminário, transferido para o pequeno
rem-se não repetidos, como lembrava em Mosteiro Novo, e o Convento das Cla-
certo passo de A Verdade da Religião Chris- rissas da Encarnação, que desalojaram,
tã, pois haviam feito “desertar a muitos indiferentes aos protestos levantados.
dos nossos para irem abraçar o judaísmo O  contingente não chegava a 1500 ho-
e o protestantismo na Suíça, na Holanda mens, sendo veemente a discordância
e Inglaterra”. Isso não implicava, porém, do ilustrado vigário capitular D. Joaquim
que não sustentasse, em seu discorrer de Ataíde em carta dirigida à Rainha,
apologético, ser a verdade do catolicismo então no Rio de Janeiro, a denunciar e
“necessária absolutamente na ordem da a lamentar a usurpação do comando in-
salvação eterna”, embora o não fosse “por glês, escrevendo ser inaceitável que “um
si só […] na ordem pública do Estado” pequeno número de tropa ocupe os mes-
(SANTOS, 1787), e bem assim o seu mo- mos lugares em que se acomodavam mui-
nopólio no plano da propaganda religio- tos milhares de homens”. Acrescia, ainda,
sa. Foi a situação da realidade histórica a falta que desta forma ficava a haver de
portuguesa da viragem para o movimen- “uma casa de educação para aqueles que
tado séc. xix, que conhecerá no primeiro se não destinam à vida eclesiástica”, com
quartel acontecimentos fraturantes, des- flagrante míngua de instituições para
de as invasões francesas à ocupação ingle- a mocidade da ilha da Madeira, razão
sa e à Revolução de 1820, a encaminhar por que os pais “ou mandam seus filhos
a nação para o liberalismo, o que fez o a Londres, ou ficam sem instrução algu-
investigador José Esteves Pereira subli- ma, sendo aliás esta terra muito fértil em
nhar: “A influência do estrangeiramento talentos”. Contudo, o que fez crescer o
cultural não deixava, por outro lado, de repúdio de eclesiásticos e da população,
pesar no comércio de ideias religiosas, bem notório em 1812, ao falar aberta-
designadamente nas imediações dos gru- mente de profanação, foi a celebração do
pos sociais em que o canonista convive” culto anglicano nas igrejas católicas da
(PEREIRA, 1983). De registar é o caso Madeira, com saliência na igreja do Colé-
madeirense. Se o bispo da Diocese do gio, e na pequena capela do Convento da
Funchal, D. Lourenço de Távora, alertava Encarnação (Id., Ibid., 242-246).
em 1615 para a “fé infecionada” dos es- A resiliência continuava, porém, laten-
trangeiros desembarcados na Madeira, o te, quando chegou ao arquipélago, em
Inglês John Ovington, capelão anglicano 1839, Robert Reid Kalley (1809-1888),
que conhecia o meio religioso e social da médico escocês e habilitado teólogo pro-
ilha da Madeira e por lá passara em 1689, testante, que se tornou o continuador de
emitia um juízo excessivamente não li- uma evangelização de resultados promis-
sonjeiro sobre os Jesuítas do Colégio do sores. Eleito, em 1842, conselheiro-pres-
Funchal e os cónegos da Sé, de medíocre bítero da comunidade funchalense da
nível intelectual (CARITA, 2013, 107). Igreja Escocesa, existente desde 1822,
A invasão inglesa do início do séc. xix, a fervia em zelo de atrair ao redil protes-
título de proteção e defesa, mais justifica- tante os naturais da Madeira, na esteira
da e militarmente consistente ao voltarem do que em Portugal se verificava: Helena

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1532 A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a )

Madeirenses protestantes na Quinta da Ameixoeira, em Santo António da Serra.

Boughton, em Lisboa; George Robinson, nómicos atraentes à emigração do povo


em Portalegre; Diogo Cassels, em Vila da Madeira. Robert Kalley publicou, em
Nova de Gaia – secundados pelo valor 1843, o folheto “Uma exposição de fac-
dos colportores na difusão de exempla- tos”, em que procurava “explicar e a seu
res da Bíblia que a Sociedade Bíblica de jeito as Sagradas Escrituras” e propagar
Londres espalhava sem custos por todo o doutrinas ofensivas e contraditórias aos
país. Chocado com o quadro de pobreza, dogmas essenciais da religião católica,
precárias condições de higiene, analfabe- apostólica, romana. Manuel de Santa Ana
tismo, prática religiosa rude e rotineira de Vasconcelos (1798-1851), leigo, ao
que na Madeira encontrava, o cirurgião considerar o impacto que a propaganda
Kalley aprende português e, autorizado a evangélica ia tendo sobre os católicos do
exercer medicina, desenvolve uma ativi- arquipélago, que achava abusivo e maléfi-
dade social despida de intuitos lucrativos, co, saiu à estacada, em 1845, em polémica
em particular junto dos mais carenciados. resposta ao panfleto de Kalley: escreveu
Recebido o sacerdócio, complementa Revista Histórica do Prosilytismo Anti-Catholi-
esta ação benemerente com o ministério co Exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Rober-
de pastor. Ao tempo, a Diocese do Fun- to Reid Kalley, desde 1838 até hoje, opúsculo
chal encontrava-se sem bispo católico de 92 páginas, sem o nome do autor es-
residente, D. Francisco José Rodrigues tampado. No entanto, a ação filantrópica
de Andrade (1821-1833), que o regime li- e o combate ao analfabetismo de Robert
beral afastara por ser miguelista, estando Kalley mereciam da edilidade público
a governá-la durante 10 anos um vigário encómio. Crescia, porém, a animosidade
capitular. De notar que, abolida a escrava- do clero católico, que, desde 1844, con-
tura e dada a estagnação do preço do vi- tava com um novo prelado na pessoa de
nho, o Novo Mundo abrira destinos eco- D.  José Xavier de Cerveira e Sousa, mas

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A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a ) 1533

apenas por um lustro, sendo as comuni- A promulgação do Código Penal de


dades protestantes vítimas de persegui- 1852, contrariando a Carta Constitucio-
ção. Alguns fiéis evangelistas chegam a nal em vigor, mas a que a Rainha D. Ma-
sofrer lamentáveis violências e, à saída da ria  II juntou o Ato Adicional, elimina o
missa dominical de 9 de outubro, na por- livre exercício de religião acatólica e
ta da Sé do Funchal são queimados, como proíbe, debaixo de severas sanções, “as
em auto de fé, exemplares da edição pro- tentativas de fazer proselitismo contra a
testante da Bíblia, enquanto outros pas- religião do Estado”, conduzindo ao en-
sam a ser escondidos nas cinzas das larei- cerramento da capela que o evangelista
ras, fazendo-se também reuniões de culto espanhol Gómez y Tovar abrira na capi-
em locais clandestinos. Durante duas se- tal. Em intervenção de 1855 na Câmara
manas de graves turbulências, escreve dos Pares, o marquês de Valada protesta
François Guichard, verificam-se brutali- contra a difusão de “traduções de várias
dades várias, destruições, julgamentos su- obras péssimas que ofendem a moral e
mários, prisões e excomunhões, perante que desacatam as leis sagradas num país
a colaboração forçada e ante a passivida- católico”, numa referência aos folhetos
de das autoridades locais (GUICHARD, de propaganda e às Bíblias editadas pela
1993, 166). As perseguições de exaltados Sociedade Bíblica londrina, verberando
católicos madeirenses concorreram para ainda, sem mencionar nomes, o procedi-
levar perto de um milhar de ilhéus a re- mento do pastor Tovar, “um protestante
fugiar-se no Brasil – onde Kalley, a residir que propaga doutrinas antirreligiosas, e
no Rio de Janeiro desde 1855 até 1872, até se dirigiu a um digno Par do Reino
funda a Igreja Reformada Fluminense – e pedindo-lhe que empregasse os meios ao
nos Estados Unidos, onde organizam, na seu alcance a fim de que triunfassem as
ilha da Trindade e no Illinois, comunida- ideias protestantes!” Assiste-se depois à
des presbiterianas. A 30 de outubro de prisão de colportores, ativos agentes da
1846, o bispo do Funchal publica uma Sociedade Bíblica de Londres, que espa-
pastoral em que pede às suas ovelhas que lhavam exemplares da Sagrada Escritura
agradeçam ao Senhor tê-las libertado de Norte a Sul do país. É o caso de Manuel
da heresia, sem que, no entanto, toda a de Sousa Vieira, um torna-viagem de ter-
sementeira houvesse sido arrancada. As ras brasileiras, onde se convertera à Igreja
plantações das Antilhas, as Baamas, a ilha Reformada, que no arcebispado de Braga
Trindade, os Estados Unidos, o Brasil e irrompia nos recintos dos santuários de
outras regiões recolheram muitos prosé- peregrinação, como o do Bom Jesus, vin-
litos protestantes – calcula-se que perto do a ser espancado pela populaça; denun-
de 1000 – mercê desta diáspora social e ciado em 1864, foi condenado a dois anos
religiosa. Kalley e o pastor Hewilson, que de prisão. Vítima de semelhante punição
fora para a Madeira a fim de organizar os foi Manuel Francisco da Silva, sentencia-
núcleos já enraizados, tiveram de abando- do a dois anos prisão pelo crime de ven-
nar os seus portos e deixar a ilha. Radi- der Bíblias em Lamego, tendo o causídico
cados noutras paragens, pode afirmar-se Custódio José Vieira publicado, acerca
que em terras de Vera Cruz, da América dos processos judiciais de ambos, Liberda-
e em várias outras se criaram viveiros de de de Consciência (1867), que ao tempo co-
missionários, pastores e colportores que nheceu certo impacto. João de Alenquer
alimentaram o proselitismo protestante é outro exemplo significativo desta ativi-
mesmo em solo português. dade: durante 28 anos, calcorreou o país

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1534 A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a )

como colportor bíblico, vendo-se sujeito à soberania portuguesa no ultramar e


às mesmas penas. De novo nas Cortes, em uma ativa contestação republicana para
agosto de 1868, o deputado Carlos Testa derrube da monarquia. De entre vários
protesta contra “o desassombro e afoute- outros factos de menor impacto, sistema-
za” da propaganda da Sociedade Bíblica tizem-se três como balizando a mudança
e a atmosfera de condescendência face do status quo entre a maioria católica e
aos cultos evangélicos então a surgir, que a tímida minoria protestante, sendo de
tendiam “a destruir o princípio da auto- salientar a atitude manifestamente agres-
ridade em matéria de religião”; e, meses siva daquela na pregação, na imprensa e
depois, interpela o Governo a propósito na conduta generalizada dos fiéis. Com
das atividades protestantes em cresci- efeito, a implantação crescente dos cultos
mento. O Governo, presidido por Sá da evangélicos, de iniciativa e incremento
Bandeira, tinha como ministro do Reino forasteiro, avoluma-se a partir de vários
D. António Alves Martins (1868-1871), fatores: da propaganda itinerante de
bispo de Viseu, de ânimo conciliador e agentes da Sociedade Bíblica nos meios
de grande prestígio político, que apre- urbanos e rurais; da supressão das ordens
sentou, sem resultado, um projeto de religiosas, com a síndroma dos egressos;
reforma constitucional, contemplando a do Concílio Vaticano I, convocado por
liberdade de cultos. Na região do Porto, Pio IX, que define os dogmas da infali-
movimentavam-se alguns gaienses aposta- bilidade pontifícia e da Imaculada Con-
dos em favorecer o culto reformado, con- ceição; do Ultimato inglês de 1890 e da
seguindo que, em outubro de 1868, fosse concomitante intensificação da militân-
aberta a capela de Torne (Vila Nova de cia antimonárquica. O primeiro é marca-
Gaia), em que pontificaria durante largos do em 1864 pela iniciativa da Sociedade
anos Diogo Cassels (1844-1923), perante Bíblica de Londres, que já antes havia
a viva desaprovação do bispo da Diocese, enviado catecismos e livros, ao abrir em
D. João de França Castro e Moura (1863­ Lisboa, na R. dos Fanqueiros, um depó-
‑1868), um dos mais encarniçados opo- sito das suas publicações. Para a difusão
sitores das Igrejas cristãs evangélicas. Na recrutaram prosélitos, o que logo provo-
cidade invicta, no início da déc. de 1870, cou veemente denúncia da parte católi-
o cidadão António de Matos, de confissão ca, estampada sem descanso na imprensa
presbiteriana e naturalizado americano, afeta. O Lazarista P.e Sena Freitas, vigo-
inaugura um culto metodista num salão roso polemista coevo, aproveitou, e.g., as
alugado pelo cônsul Fletcher, na Pç. de afirmações de lord Shafetesbury, um dos
S.ta Teresa, sofrendo uma provocação de principais impulsionadores dessa organi-
ultramontanos que se traduziu em assal- zação protestante, para, em 1875, sob o
tos com pedradas e tiros. título “Programação da Bíblia”, contestar,
na Semana Religiosa Bracarense, órgão
oficioso da Diocese, que tais traduções
Reação ao réveil oitocentista: bíblicas exportadas de Inglaterra fossem
a pastoral do cardeal D. Américo “obra intelectual”, como pretendiam os
e a polémica suscitada autores, pois, em geral, eram péssimas e
A segunda metade do séc. xix continuou deturpavam o sentido do texto sagrado.
a conhecer acesas lutas ideológicas, con- De facto, estas versões não mereciam a
frontos doutrinários, perturbações po- aprovação da hierarquia católica. Des-
lítico-partidárias, ataques estrangeiros ta circunstância nasceu a insistente

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A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a ) 1535

do Oratório, em corretíssimo vernáculo,


ostentava a indicação: “Da edição aprova-
da em 1842 pela Rainha D. Maria II com
a consulta do Patriarca Arcebispo eleito
de Lisboa”. Sabe-se que, entre 1809 e
1902, foram publicadas pela Sociedade
Bíblica de Londres, em Inglaterra e em
Portugal, 221.342 exemplares da Bíblia, e
ainda 492.420 só do Novo Testamento, e
930.275 dos Evangelhos, das Epístolas e
dos Atos dos Apóstolos, em separado.
O segundo facto residiu no impacto
que teve na religiosidade das populações
o decreto de 30 de maio de 1834, que
acarretou a extinção de 356 comunida-
des de frades e monges, cifrando-se em
5061 o número de religiosos professos
tornados egressos, cuja maioria se trans-
D. Américo Ferreira dos Santos Silva formou em clero diocesano, embora não
(1830-1899).
poucos vagueassem de Norte a Sul do
país, com liberdades fáceis de conjeturar.
advertência aos fiéis para verificarem se Os dogmas definidos por Pio IX, a juntar
as edições da Bíblia que lhes chegavam às à publicação do Syllabus (1864) e da encí-
mãos traziam o nihil obstat do prelado dio- clica Quanta Cura, levaram a forte reação
cesano do lugar da impressão, dado cir- contra o designado ultramontanismo re-
cularem volumes de origem protestante. ligioso que conduziu à secessão de dimi-
Assim sucedia com a tradução portuguesa nuta fração de fiéis e ministros sagrados
seiscentista do P.e João Ferreira de Almei- que, mantendo a denominação católica,
da, que no Oriente apostatara, a qual não instituíram uma comunidade eclesial au-
incluía os livros designados deuteroca- tónoma com hierarquia e culto desliga-
nónicos, e com a do teólogo iluminista dos da comunhão romana. Nasceu, desta
P.e Pereira de Figueiredo, Oratoriano da forma, a Igreja Lusitana Católica Apos-
época pombalina. Acerca das falsificadas tólica Evangélica, de rito episcopaliano
Bíblias abriu-se acesa polémica, que fez e, em 1880, de ligação anglicana. A pro-
correr muita tinta dos lados evangélico e liferação de lugares de culto protestante
católico em jornais e folhetos de propa- oferecia também oportunidade para se
ganda. Fortunato de Almeida escreve que recrutarem pastores entre os clérigos por-
os protestantes “começaram a usar a ver- tugueses que iam deixando o catolicismo.
são do Padre António Maria Pereira de Na déc. de 70, foram notórias as defeções
Figueiredo, mutilada e sem notas” (AL- de sacerdotes que passaram para as con-
MEIDA, 1968-1970, II-III). No entanto, os fissões protestantes, com o subsequente
exemplares que se pretendiam distribuir abandono do celibato e a opção pelo ca-
em Angra de Heroísmo, em 1840 e 1842, samento civil. A imprensa ia dando con-
possuíam, ao que pode ser comprovado, ta de vários, pertencentes às Dioceses de
os textos integrais. De notar que a versão Lisboa, do Porto, de Coimbra e da provín-
corrente do sacerdote da Congregação cia: os presbíteros João Joaquim da Costa

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e Almeida, José Inácio Pinheiro, Manuel mencionada defeção de padres católicos


Jerónimo Cordeiro, António Ferreira de e a tendenciosa propaganda bíblica re-
Miranda, Manuel António Pereira Júnior, formista patente na supressão de livros,
António Ribeiro de Melo, José Joaquim passagens e na deturpação de textos da
Rechouso, José Nunes Chaves, Manuel Sagrada Escritura, vertidos a seu modo
dos Santos Carvalho, Henrique Ribeiro por contrários às suas opiniões. Remetida
Ferreira de Albuquerque, Guilherme aos párocos, a fim de ser lida na íntegra
Dias e Joaquim dos Santos Figueiredo, os durante a estação das missas conventuais,
três últimos conceituados oradores sagra- constitui um extenso texto doutrinário,
dos. Em 1892, a apostasia do P.e Henrique dividido em quatro partes e 35 parágra-
Ribeiro, viseense e irmão do ministro do fos, onde se faz uma apologia do catolicis-
Reino, o poeta Tomás Ribeiro, tivera mes- mo, se refuta o princípio do livre exame
mo repercussão no Porto, onde subia ao e se denunciam os principais erros e ma-
púlpito com frequência. Contribuíra para les da heresia protestante. Por detrás de
badalar o caso, a defendê-lo, a apreciação um intuito notoriamente comedido, mais
de Camilo, estampada no preâmbulo da preventiva que combativa, a Instrução Pas-
nova edição do poema “A delfina do mal”, toral obedecia à imperiosa necessidade de
que Tomás Ribeiro dedicara ao irmão em marcar posição pública face ao avanço
1868, aproveitando para justificá-lo. Po- do evangelismo no coração da Diocese
dia haver, subjacente à atitude da maioria e a dois concomitantes problemas na cir-
dos ex-padres, a intenção de encontrar cunstância associados: o escândalo da de-
meios de sobrevivência, descompensados serção de padres católicos para ministros
que se viram pelo abandono do ministé- do culto de Igrejas reformadas e o osten-
rio religioso, e a de tentarem obter, por sivo abandono do celibato, coonestado
intermédio do casamento civil, a legaliza- pelo casamento civil. Numa referência
ção oficial de suas assumidas uniões con- explícita ao bispado portuense até então
jugais e a legitimação dos filhos – tinham livre de semelhante contágio, assinala a
família a sustentar. A reação católica de penetração de uma dessas seitas reforma-
condenação e repúdio, estigmatizando das que, “protegida pela cumplicidade
a deserção como sacrilégio e escândalo, de alguns, favorecida pela ignorância ou
repercutiu-se na imprensa afeta, nas pas- indiferentismo de muitos, à sombra da
torais dos prelados de Lisboa, de Braga, tolerância de todos, vai pouco a pouco
de Coimbra, de Beja, da Guarda, de La- e com mão oculta disseminando os seus
mego e de Viseu, e em intervenções de erros”. E acrescenta, em tom de lamen-
parlamentares. to, à vista do inquietante quadro: “Menos
A intensificação do proselitismo das ditoso do que os nossos antecessores, já
confissões evangélicas, bem evidenciado não contamos como eles, quantos dioce-
na abertura de locais de culto na região sanos, outras tantas ovelhas do nosso re-
portuense – a episcopaliana do Salvador, dil, outros tantos filhos da igreja católica;
a metodista do Mirante e a presbiteria- e quis Deus experimentar-nos e permitir
na do Torne –, originou a publicação da que aos incessantes trabalhos do episco-
polémica e assaz extensa “Instrução pas- pado portuense acrescesse agora a atribu-
toral sobre o protestantismo”, datada de lação moral de vermos que o indicioso e
30 de setembro de 1878, do bispo por- incansável adversário nos vai arrebatan-
tuense cardeal D. Américo Ferreira dos do número já grande de fiéis, levados
Santos Silva (1871-1899), que verbera a uns na melhor boa-fé, arrastados outros

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sabe Deus por que meios”. Apontando, e “repelirem qualquer insidiosa tentati-
como motivo desta ofensiva, os milhares va” de “decrépitas doutrinas, apregoadas
de conversões anuais “ao catolicismo na como novas”, semeadas por estrangeiros
Alemanha, na Inglaterra, nos Estados que ignoram a língua, usos e costumes,
Unidos da América, onde o protestantis- índole, carácter e inabalável fidelidade
mo imperava altivo”, vê-a como tentativa dos Portugueses. Se as expressões dicotó-
de compensação de quem entende “por micas são afirmações dogmáticas inequí-
boa represália contra a igreja Católica vocas, não poderá passar despercebida
subtrair-lhe os seus fiéis portugueses”. uma nota de ressaibo moderno, a refletir
Adverte, em claro aviso ao governo, que a o influxo da mentalidade liberal coeva
dimensão política da rutura desta unida- na rejeição explícita de meios coercitivos
de dos espíritos pela crença não respeita para atalhar o mal. Além disso, recusa in-
só à religião, mas também ao Estado, pois vocar a observância da lei do Estado em
“a ambos presta relevante serviço quem defesa da religião, por contrariar a “ho-
concorre para que os filhos da mesma menagem a Deus o culto que não é vo-
pátria o sejam também da mesma Igreja”, luntário e livre”, e porque ia alentar o ad-
doutrina aliás consagrada na Lei Funda- versário a entrincheirar-se “no presumido
mental do país, “quando declara que ‘a baluarte da liberdade da crença e invio-
religião católica apostólica romana é a lável direito da pessoa humana”. Prefere
religião do Estado’”. Sem deixar de reco- o recurso à prece e à persuasão, ou seja,
nhecer “as exímias qualidades com que ao confronto dialogante. A segunda par-
muitos dos protestantes se tornam re- te é consagrada à “Defesa da autoridade
comendáveis e merecedores de estima”, da Igreja Católica”, que, em 18 séculos de
deplora a atitude e duvida da seriedade existência, se tem mantido una – o mes-
dos – em seu cômputo, poucos – ex-sacer- mo símbolo de fé, sacramentos, pastores
dotes diocesanos que repudiaram o gré- e um só chefe espiritual –, santa, católica
mio eclesial a que pertenciam. Aludindo e apostólica. A  terceira destina-se à “Re-
em geral a todos e aos que diretamente futação do erro fundamental do protes-
conhecia, respeitantes ao bispado do Por- tantismo: o livre exame”, que considera
to, o prelado desta Diocese, na sua pas- ilusória verdade, pois, onde há liberda-
toral de 1878, trata-os de “desgraçados de de exame, de crenças e obras, há por
perjuros que levaram para o arraial inimi- certo falsidade. A  quarta e última versa
go o sacerdócio de nós recebido”, acres- sobre a “Refutação dos principais erros
centando: “não nos consente a nossa fé do protestantismo: males que eles produ-
que acreditemos na convicção deles; não zem”, que pormenoriza no que respeita à
nos importa a torpeza dos motivos do seu presença real de Cristo na eucaristia; ao
proceder; não lastimamos a perda desses culto mariano, dos santos e à veneração
trânsfugas, nem invejamos a outrem por das imagens; à existência do Purgatório
certo à Igreja Lusitana a aquisição deles: e à necessidade de sufrágios pelos defun-
consigo mesmo levam o merecido casti- tos; à confissão sacramental; à indissolu-
go no desprezo da sua consciência e da bilidade do matrimónio e à rejeição do
dos próprios que os captaram”. O inten- divórcio; ao sacerdócio ministerial e ao
to do documento pastoral, que Instrução celibato. Tudo é passado pelo crivo da
se denomina, é tão-só animar a vontade controvérsia, num pautar dicotómico:
e iluminar o entendimento dos diocesa- Igreja e seita, verdade e erro, divino e hu-
nos a fim de se preservarem do contágio mano, sagrado e profano. Na “Exortação

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final”, pretende alertar os sentimentos propiciação feita por Jesus, o Purgatório


religiosos dos diocesanos, estimular os e as indulgências, o celibato eclesiásti-
deveres dos pastores e, como meios privi- co – ensinamentos abusivos, a ponto de o
legiados para combater o protestantismo, seu evangelho ter “apenas de divino só o
incrementar a pregação, a catequese e o nome”. Repele com veemência o facto de
ensino confessional católico nas escolas. se ter pessoalmente deixado tentar pela
O teor polémico que impregnava o do- “retribuição anual de centenas de libras
cumento prelatício provocou a saída de [em troca de seus] trabalhos evangélicos
um folheto sob o título de Resposta Que [ou pelas] vantagens” encontradas no
à Instrucção Pastoral do Ex.mo Bispo do Por- seu casamento, pois antes e só o impeliu
to, D. Américo Dá o Padre Guilherme Dias, “o abandono do erro pela verdade”. No
posto de imediato a circular. O autor mais, insistindo que o bispo divagou e
(c. 1844-1907), que fora sacerdote cató- não provou, tenta, pari passu, responder
lico e pregador de nomeada, era, desde aos itens da pastoral, agrupando-os em
1875, ministro da Igreja Metodista, em dois pontos: “Pureza da autoridade da
que entrara pela mão de Diogo Cassels, Egreja Catholica” (§§ 5-20) e “Refutação
após fazer a sua abjuração pública na ca- dos principaes erros do protestantismo:
pela evangélica do Torne, em Vila Nova males que elles produzem” (§§ 21-31).
de Gaia, onde se mantinha. Invoca, como Existe um abismo, conclui, a separar o
razão para entrar nesta polémica doutri- protestantismo da Igreja Católica, que
nária que o constrange, pois sente o me- se afastou das raízes do cristianismo, não
lindre da sua “situação individual de filho sendo de “estranhar-se ao romanismo as
de pais, cujas crenças religiosas ainda in- suas aberrações teológicas, os seus desva-
felizmente se circunscrevem e limitam na rios disciplinares, e as prepotências, que
esfera da igreja romana”, o sentimento no exercício da sua autoridade origina-
de “legítima e justa defesa”, convicto dos ram o seu descrédito e o seu desprezo”.
“erros do romanismo [e das] verdades A tréplica do lado contrário, na defe-
do protestantismo” e despido do receio sa da posição impugnada e na reposição
de que o escrito sirva de arma para ali- dos pontos doutrinários controvertidos,
mentar a perseguição contra si. Move-o, partiu do mais temível e credenciado
ainda, o propósito de dizer os “porquês” polemista católico da segunda metade
da sua separação da Igreja Romana, que do séc. xix, o polígrafo e pregador laza-
afirma haverem sido doutrinários e po- rista P.e José Joaquim Sena Freitas (1840­
rem em perigo a salvação eterna, tais os ‑1913), com o opúsculo Crítica à Crítica
professados por uma “seita que desde sé- ou Duas Palavras de Resposta ao Folheto do
culos tem mentido ao mundo em nome Snr Padre Guilherme Dias acerca da Instruc-
de Cristo”. Estava lançado o braço de fer- ção Pastoral do Ex.mo Snr D. Américo, Bispo do
ro, ao denunciar a Igreja Católica como Porto, de truculenta prosa, polvilhada de
instituição puramente humana e carente ironias e argumentos ad hominem, envol-
de ortodoxia à luz do evangelho, em pon- ta numa roupagem literária rica de ima-
tos como: a supremacia e infalibilidade gens, citações e evocações comprovativas,
do papa, o direito na interpretação da à maneira da retórica do púlpito, esta-
Bíblia, a tradição para provar verdades de deando abundante erudição bíblica e pa-
fé, a aceitação dos livros deuterocanóni- trística. Face à notável pastoral, considera
cos como inspirados, os sete sacramentos, “libelo difamatório” o escrito de Guilher-
a justificação pelas obras, a alienação da me Dias, “ex-português” e “ex-sacerdote”.

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Tomando a refutação como moeda falsa, car “o escrito de preferência ao escritor, e


e folheto sem valor, “cuja redação a má fé a seita de preferência ao sectário”.
entrelinhou a cada passo”, de um padre Acabou, ainda, por entrar na polémi-
apóstata, põe-lhe em dúvida a paternida- ca o já mencionado Rev. Robert Reid
de da autoria, por não o considerar “dele, Kalley, que, em três artigos publicados
mas de outro in sacris, que já vai no perío- no jornal evangélico A Reforma, de ja-
do de larva ou de crisálida, e em breve neiro e fevereiro de 1879, em estilo de
será ministro da seita”. O fio do discur- “Carta a um amigo”, se serve das epísto-
so – que não pusera “a mira em responder las paulinas para demonstrar que o bis-
a todos os sofismas que nele pululam”, po do Porto distorce o que o apóstolo
para não lhes dar a relevância que sem ensina, detendo-se em particular na di-
dúvida não têm nem engrossar desneces- fusão da Sagrada Escritura e na edição
sariamente um trabalho que, para atingir das denominadas “Bíblias falsificadas”;
o seu fito, não carece, com certeza, de no culto da Virgem Maria; no Purgató-
maior fôlego – pretende ser tanto mais rio e nas missas de sufrágio; no perdão
contundente quanto curto para se tornar dos pecados pelo sacramento da confis-
“precisamente mais convidativo”. Move-o são; no culto das imagens dos santos; no
ver a Igreja Católica ultrajada pela falsi- dinheiro e no poder eclesiástico.
dade e calúnia. Espraia a confutação em Não se limitaram, porém, a ser estes os
12 capítulos, mais um sonho, aliás uma interventores diretos na polémica provo-
imaginária entrevista, e uma conclusão, cada pela Instrução Pastoral de D. Amé-
enveredando, sem largar a análise teoló- rico, pois, perante as respostas de Gui-
gica, por uma argumentação apologética lherme Dias e Kalley, o corpo docente do
baseada nos testemunhos dos próprios Curso Teológico do Seminário do Porto,
fautores do protestantismo e incrédulos reunido extraordinariamente em feve-
de nomeada com o mimoseio de adjeti- reiro de 1879, resolveu contestar as duas
vações mordazes. O recurso a fictícia en- referidas críticas evangélicas e defender
trevista, sob o disfarce de sonho, como o documento episcopal, cuja doutrina,
acontecida com Guilherme Dias no por- completamente ortodoxa, era também
tuense hotel Bragança, é pretexto para professada por aquela douta instituição,
cravar mais alfinetadas críticas no evange- que desta forma se solidarizava com o seu
lismo reformista: à difusão da mensagem prelado. Para o efeito, foi confiada ao
religiosa pela pregação que, ao tempo, Cón. Manoel Felipe Coelho (1864-1926),
os protestantes faziam por meio de pan- arcipreste da Sé e professor no Seminário
fletos, enquanto os católicos se mantêm Maior de Nossa Senhora da Conceição, a
fiéis ao anacrónico recurso das missões e incumbência de, em nome dos colegas e
dos sermões de “levantar berreiro”; à edi- como mais antigo, elaborar a contestação
ção vulgarizada da Bíblia, traduzida pelo que logo saiu impressa com o título de
P.e António Pereira de Figueiredo, como Refutação das Principaes Objecções d’Alguns
fonte de fé; às seitas saídas da Reforma; ao Protestantes contra a Instrucção do Exmo Snr
seu casamento com uma atriz de teatro. D. Américo, Bispo do Porto, um opúsculo de
Ao concluir, zurze sem complacência a quase centena e meia de páginas, pouco
estadia do ex-padre em Pernambuco, an- conhecido. Distribui-se o texto por 17 ca-
tes de ingressar na Igreja Metodista, que pítulos não numerados, mas subintitula-
“matou o padre e engendrou o apóstata”, dos, de desigual extensão. O tom mantém­
sustentando ter apenas a intenção de ata- ‑se dentro de uma moderada contenção,

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sem excessos de linguagem nem as ex- para me servir dos termos da nossa Carta
pressões de agressiva contundência em fundamental, só um exercício ‘doméstico
que o escrito do P.e Sena Freitas era fértil. particular, em casas para isso destinadas,
A preocupação de conservar o debate ao sem forma alguma exterior de templo’”.
nível de um confronto doutrinário-teoló- Natural curiosidade desperta, por serem
gico é notória. A sua condição de docen- dois pontos de sempre acesa controvér-
te da especialidade, familiarizado com os sia, ver a atenção dada à confissão auri-
temas controversos, fazia-o sentir-se mais cular e ao celibato eclesiástico, inerente
à vontade na polémica. Saliente-se que ao voto de castidade pronunciado pelos
não vê necessidade de maior liberdade clérigos seculares e regulares. O restante,
de culto, aliás “um predicado próprio em jeito de conclusão, é uma apologia da
só da religião verdadeira e de nenhuma religião católica e da sua benéfica ação na
outra”, por poder “significar ceticismo, sociedade coeva. Não lhe passa sem men-
indiferença religiosa, ou um cálculo”, ção que “as conversões dos católicos mul-
dado que a existente já permitiu o que tiplicam-se e os limites da Igreja Romana
se tornou notório: “dentro dos muros do alargam-se na Inglaterra e nos Estados
Porto o primeiro templo protestante foi unidos da América”, constituindo a “cer-
construído à beira do Campo Pequeno, teza da sua origem divina”. Em síntese,
onde um alto muro, que por esse lado poderá ver-se que, em seu contexto his-
o guarnece, lhe deixa ver de fora as ci- tórico, a importância desta polémica en-
malhas e o telhado apenas. Ergue-se ul- tre católicos e protestantes, a primeira de
timamente na Praça Coronel Pacheco, algum fôlego, até pelo nível social, pela
e quão diferente é o seu público aspeto! craveira intelectual e pela posição dos in-
Ei-lo lá está o Protestantismo, debruçado tervenientes, reside na circunstância de
sobre o parapeito, que suas mãos conse- expressar a reação oficial e hierárquica
guiram abater mais, a fazer propaganda, da religião maioritária nos primórdios do
e impaciente à espera da noite da liberda- incremento do protestantismo no Porto
de de cultos”. E, contrafeito, resigna-se a e de constituir um significativo debate
admitir o que a lei apenas tolera, porque entre clérigos de formação teológica be-
“cumpre absolutamente às nações abra- bida nas mesmas fontes, mas com opções
çar e defender [como] única religião” o confessionais diferentes. E, sobretudo,
catolicismo, acentuando: “Sejam muito acaba por ser um valioso indicador con-
embora permitidos os outros cultos; pois juntural da assimilação doutrinária do
que nos organismos do direito público reformismo evangélico por um culto ex-
e do internacional, onde os indivíduos ‑presbítero romano e ministro metodista
e os povos figuram como outros tantos converso, bem como da forma como era
membros da grande humanidade, não utilizada apologeticamente num debate
devem ser excluídos do território em público na imprensa, reflexo por certo
que residem ou transitam, os cidadãos e do que se processaria, de ordinário, na
estrangeiros, pelo simples facto de não catequese e pregação confinadas ao inte-
professarem a religião do Estado, e per- rior dos templos.
tencerem a comunhões religiosas diver- O terceiro facto a equacionar centra-se
sas. Vale mais ter alguma religião do que no Ultimato de 1890, considerado pela
não seguir nenhuma. O Estado, porém, nação inteira uma odiosa e ultrajante
não deve conceder aos cultos bastardos afronta da Inglaterra, de crença esmaga-
e falsos uma representação pública, mas, doramente protestante e sua mais velha

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do o texto diplomático enviado, logo se


gerou uma onda exaltada de protesto, o
que serviu para intensificar a hostilidade
da maioria católica à colónia inglesa e ao
protestantismo, como é saliente nas pas-
torais e nos documentos diocesanos dos
prelados residenciais. De resto, a progres-
siva difusão do credo evangélico, sobretu-
do através da propaganda da Sociedade
Bíblica de Londres, logo foi conotada
com as intenções do Ultimato. A indigna-
ção subiu também alto nas colunas da im-
prensa semanal e diária, com relevo para
o influente quotidiano católico portuense
A Palavra, redigido em grande parte por
eclesiásticos. A título exemplificativo,
Guilherme Dias (1844-1907). leia-se o artigo de 2 de janeiro de 1890,
“O britanismo”, da pena do conde Samo-
dães, que constitui uma veemente denún-
aliada. Corria mesmo que fora sugerido cia do proselitismo protestante verificado
por um bispo anglicano da mesma na- na metrópole e no ultramar. A acusação
cionalidade, missionando nas regiões do baseia-se em ocorrências factuais que cita,
Norte de Moçambique, cobiçadas pelo aduzindo ter visto Ingleses a pronunciar
imperialismo britânico. Apesar das reite- conferências públicas anticatólicas e a
radas garantias do Governo português de “espalhar livros e derramar sementes de
respeito pelas missões e interesses ingle- erro”. Na sequência deste clima, em 1893,
ses nas regiões do Niassa e do Chire, em na Câmara dos Pares, D. António Mendes
notas diplomáticas de 17 a 19 de novem- Belo, então bispo do Algarve e futuro car-
bro de 1889, era espalhada na Europa a deal patriarca, tem uma intervenção de
notícia de que a tribo dos Macololos havia contundente ataque ao protestantismo.
atacado as forças lusas. Passado um mês, o Nos finais do séc. xix, quando se tornou
bispo anglicano Smithyes enviava para In- mais rara a violência física e persistia a
glaterra um relatório com a acusação de virulência verbal recíproca, a imprensa
que o Maj. Serpa Pinto havia intimidado protestante queixava-se da guerra des-
pela força aquela tribo que a Coroa ingle- leal que lhes fazia a hierarquia católica.
sa tomara sob a sua proteção. Tanto bas- O metropolita de Lisboa era acusado, em
tou para que a imprensa da Grã-Bretanha O Evangelista de 15 de setembro de 1899,
lançasse contra Portugal um violento ata- de aproveitar as cartas pastorais “para
que que foi o pretexto de uma nota apre- ferir injustamente a Igreja reformada” e
sentada, a 18 de dezembro, por George de ter concedido aprovação eclesiástica
G. Petre, encarregado da delegação do a um livro publicado em Peniche, onde
seu país em Lisboa, a Barros Gomes, mi- se dizia: os que “pregam o Protestantis-
nistro dos Negócios Estrangeiros. As re- mo são […] uns vadios, uns perdidos, e
lações entre os dois Governos tornaram­ preguiçosos entregues a todos os vícios, e
‑se tensas e, a 11 de janeiro de 1890, era os que o seguem uns ignorantes, ou mu-
entregue o Ultimato britânico. Conheci- lheres de mau viver, etc.”, acrescentando

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que alguns eram atraídos ao evangelismo sem o terreno, “seria um bem incontes-
pelo aliciante de o livre-arbítrio se unir tável” (BRÁSIO, 1956, 8-10). O bispo que
“perfeitamente com o amor livre, e as com ele viera na mesma data e o desti-
mãos livres e viva a liberdade”, o que tor- nara mais dois companheiros à missão do
nava os protestantes “mil vezes piores que Congo, ao escrever ao então governador­
os ladrões de estrada, que os salteadores ‑geral de Angola, logo a 11 de novembro
e assassinos”. de 1880, temia que eles se retirassem,
Entretanto, encontram-se reações de sem glória para a Religião nem para a Pá-
antiprotestantismo vindas de credencia- tria”, perante as dificuldades encontradas
dos missionários e governantes portugue- para se aguentarem, e ante a irrisão dos
ses que passaram por Angola e Moçambi- “Missionários protestantes, cujas vistas
que, na segunda metade do séc. xix, no são, como não desconhece o Governo,
desempenho das suas atividades. Ao com- a evangelização protestante e mais algu-
pulsar-se escritos e documentos oficiais ma coisa” (Id., Ibid., 349). Por seu lado,
de suas lavras, rastreiam-se observações conforme informa no relatório à Estação
elucidativas sobre o que pensavam de mé- Naval de Angola, de 2 de março de 1881,
todos e intenções dos agentes religiosos o segundo-tenente Carlos Cândido dos
protestantes. O célebre bispo D. António Reis, comandante em serviço na canho-
Barroso (1854-1918) – que, sacerdote de neira Bengo, que transportara os missio-
26 anos, foi enviado para o Congo a fim nários portugueses, havia, no terreno,
de restaurar as outrora pujantes missões duas missões protestantes, a Petit Congo
católicas aí existentes – não esconde o Mission e a Livingstone Zuland Mission,
juízo que lhe merecia essa atuação pro- ligadas a São Salvador do Congo: “Estas
selítica. A época era, com efeito, de for- duas Missões fazem tudo, menos missio-
tíssimo pendor colonialista europeu no nar; são viajantes enfatizáveis, explorado-
continente africano, coberto pelas deli- res geógrafos, tudo quanto quiserem me-
berações da Conferência de Berlim de nos missionários. Enquanto à influência
1855 e pelas grandes viagens científicas, e prestígio que estas Missões têm sobre
apoiadas política e economicamente por o indígena, pode-se avaliar pelos factos
Ingleses, Franceses e Alemães, a que aca- que acima deixo expostos. Assim que
bou por juntar-se o notável e empenhado acabam as fazendas [para pagamento aos
contributo português de natureza afim, príncipes cujos territórios atravessam],
embora com modestíssimos recursos têm imediatamente de retroceder, por-
logísticos. que os príncipes do interior nem mesmo
No primeiro relatório de 15 de junho lhes aceitam mokanda como pagamento;
de 1881, para D. Fr. José Sebastião Neto, isto quer dizer que têm menos crédito
prelado de Angola e futuro cardeal-pa- que qualquer aviado, que com um lápis
triarca, enviado de São Salvador do Con- e papel pode dirigir-se onde quiser, sem
go, o P.e António Barroso dá conta da encontrar dificuldades” (Id., Ibid., 361).
concorrência que à escola católica “lhe No relatório circunstanciado, oito dias
faz a protestante que apesar de não ser depois, do comandante da Bengo, capitão
pública, nem por isso deixa de existir, de mar e guerra João Ricardo Barreto
emanando dela, natural e logicamente, Mena, remetido ao governador-geral de
consequências que não podem ser favorá- Angola, aquele detinha-se a falar das mis-
veis nem ao catolicismo nem a Portugal”, sões a operar no Congo português e, em
chegando a pensar que, se abandonas- particular, na missão protestante de São

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Salvador, de que era superior o Rev. Com- Luanda, no relatório de 14 de março de


be, que agia conforme as instruções rece- 1881, estranha a itinerância, na região de
bidas, e o oficial luso expressa: “As Mis- soberania lusa, da dita missão protestante
sões protestantes têm, pode-se afirmá-lo e a “coincidência esquisita entre os avan-
com afoiteza, três fins distintos, a saber: ços dos trabalhos de Stanley e o desloca-
político, científico e religioso. A qual des- mento mais para o interior da sede da
tes fins se dedicam mais? Difícil é dizê-lo. Missão”. A escola que possuem para “edu-
A qual menos? Ao religioso, com toda a cação religiosa” das crianças negras, em-
certeza. Faziam, quando em São Salvador, bora com limitada frequência de alunos,
várias e frequentes excursões aos povos vi- observa, “foi sempre para os missionários
zinhos, e nestes levavam sempre os instru- de interesse secundário”; o que, no en-
mentos, cujo nome não nos soube dizer tanto, “dá lugar a sérias e bem fundadas
o nosso informador (o Rei do Congo), suspeitas” sobre os verdadeiros fins desses
como facilmente se acreditará, mas que missionários protestantes (Id., Ibid., 374­
pela descrição (?) que deles nos fez, eram ‑375). Em ofício de 12 de setembro de
empregados em levantamentos topográ- 1882, enviado para Lisboa ao ministro do
ficos; faziam, além disso, frequentes ob- Ultramar, o prelado de Angola e Congo,
servações astronómicas. Pelo que respeita D. Fr. José Sebastião Neto, pede-lhe que
ao fim político-religioso, tentaram por vezes apresse o embarque de dois, “mais pru-
converter o Rei do Congo à religião pro- dentes e inteligentes”, dos quatro (no-
testante, conforme ele próprio nos con- vos) missionários de Cernache, que lhe
tou, insinuando-lhe que era absurda a
adoração dos Santos, pois nada mais eram D. António Barroso (1854-1918).
que uns bonecos de madeira; ao que ele,
Rei, respondeu com a seguinte pergunta:
e para que veneram os senhores o retrato
da Rainha Vitória, que lá têm em casa?
Ele nada mais é, também, que um bone-
co. Por outra ocasião quiseram-lhe tomar
medida à cabeça para, diziam eles, man-
darem fazer uma coroa inglesa e oferece-
ram-lha; a isto se recusou formalmente o
Rei do Congo”. Acrescentava que, quan-
do chegaram, logo trataram de construir
residência própria sem se importarem
de licença da autoridade portuguesa,
aproveitando-se do “muro de uma ruína
e pedra de outras igrejas”. E, irónico, re-
mata: “Parece pois concluir-se do que fica
expendido, que os bons missionários fre-
quente[mente] se distraem das suas con-
templações místicas para se ocuparem
das coisas terrestres” (Id., Ibid., 368). Por
seu lado, o guarda-marinha João Augus-
to da Mota e Sousa, de bordo da corveta
Duque da Terceira, ancorada no porto de

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consta estarem habilitados e prontos, a educação feminina: “A missão Anabatista


fim de “procederem com acerto em face aqui estabelecida, muito anterior à nossa,
da Missão protestante, que procura des- conta atualmente quatro membros, um
prestigiar-nos por todos os modos e com dos quais médico para serviço sanitário e
um Rei ambicioso, que especula com uma mulher para o ensino das raparigas
Portugueses e estrangeiros”. E, porque indígenas, tendo já algumas alunas, ain-
“a missão protestante chama para junto da que felizmente poucas”. E acrescenta:
de si mestras protestantes”, é preciso que “Como V. Exª. Rev.ma poderá imaginar, fa-
a missão católica crie igualmente escolas zem uma propaganda muito ativa e se não
do sexo feminino, dirigidas por Irmãs da têm conseguido muitos prosélitos firmes,
Caridade “competentes pelo espírito que conseguem tornar este povo suficiente-
as anima” (Id., Ibid., 389). mente indiferente para se não importa-
Com a frieza que o banal realismo po- rem com religião alguma; é consequência
lítico dita, o governador-geral de Angola, lógica de duas Missões de carácter intei-
que geria a colónia de 1892 a 1893, escre- ramente contrário, não só religioso, mas
via no relatório para o Ministério do Ul- também político” (Id., Ibid., 482). Por sua
tramar: “Os missionários protestantes do vez, em ofício de 14 de março de 1887
Congo, bastante inteligentes para perce- para o ministro das Colónias, o governa-
berem quanto os nossos ganharam terre- dor de Angola, Guilherme Augusto Brito
no no espírito do Rei, o que sucedeu logo Capelo, refere-lhe a gravidade da falta
que escutei o caminho dos presentes, que de mais missionários católicos e de pes-
os ingleses havia muito exploravam, e soal habilitado, “com grande prejuízo da
que pudemos chamar a nós os filhos, e religião e do predomínio de Portugal”,
principalmente o D. Álvaro que nomeei no sertão da província, “principalmente
professor de instrução primária”. Em res- no Norte, onde a nossa influência é por
posta, protestavam com intrigas junto do todos os modos combatida, tanto pelos
cônsul inglês que, sendo de origem ju- padres das missões protestantes, como
daica, os aborrecia, e, por isso, não lhes pelos negociantes estrangeiros, que nos
ligava importância. Contudo, perante “as caluniam e se esforçam por indispor o
doutrinas dos missionários portugueses, indígena contra o domínio português, ao
que pretendiam obstar à propaganda qual não desejam estar sujeitos” (Id., Ibid.,
protestante, aconselhando o Rei do Con- 503). Vai no mesmo sentido o então bis-
go a que excluísse dos seus estados os po de Angola, que, no ofício ao ministro
missionários que não fossem católicos”, o da Marinha, de 20 de fevereiro de 1889,
governador recomendava a suspensão da exalta a ação do P.e António Barroso e dos
“prédica de tais doutrinas, perfeitamen- seus companheiros no confronto “com os
te opostas ao que manda a Carta Cons- opulentos missionários protestantes, cuja
titucional da Monarquia, e que comple- propaganda era mais política do que reli-
tamente nos desacreditavam à face das giosa” (Id., Ibid., 529).
nações cultas da Europa” (Id., Ibid., 426). No artigo “Um ano no Congo (1.5.1885­
No ofício de 25 de agosto de 1886 para ‑1.5.1886)”, publicado em 1889 na revista
o bispo de Angola, D. António Leitão de espiritana Portugal em África, o governa-
Castro, o P.e António Barroso menciona a dor do Congo, Jaime Pereira de Sampaio
oposição crescente que a missão católica Forjaz de Serpa Pimentel, ao traçar a si-
congolesa continua a sentir da parte das tuação missionária naquela região ango-
missões anabatistas, nas áreas da saúde e lana, sublinha a atividade anticatólica e

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antiportuguesa dos protestantes – mem- Saída pela primeira vez em 1859, a sua
bros da Baptist Missionary Society e da difusão surpreende, perfazendo o total
London Missionary Society – logo a seguir das suas 15 edições, por volta de 1904,
à primeira expedição de Stanley, dispon- mais de 100.000 exemplares, de forma a
do de numeroso pessoal, de largas com- poder considerar-se o livro português de
petências profissionais e científicas, ao maior tiragem até então. Do formato de
serviço, primordialmente, dos interesses um devocionário a exceder 600 páginas,
políticos e económicos da Coroa inglesa, esta “Bíblia das aldeias”, de acentuado ri-
sob a capa de um proselitismo religioso. gor jansenista, destinava-se a “despertar
E, citando o relatório de 25 de setembro os descuidados, converter os pecadores, e
de 1885, que enviara para a metrópole, sustentar os frutos das missões”. Presente
dizia: “Vejo diante de mim essas missões em muitos lares de praticantes católicos,
protestantes, com religião sem dogmas, inclui o volumito, a partir da edição de
sem mistérios, sem filosofia, sem abstra- 1870, duas instruções, a 74.ª e 75.ª – de-
ção, sem misticismo, sem austeridade, re- pois com outra numeração, mas sempre
ligião para inteligências acanhadas e para seguidas –, intituladas “Contra os protes-
povos de costumes naturais, e vejo-as, tantes” e “As Bíblias protestantes”. As con-
para mal nosso, trabalhando com coesão denações atemorizadoras contidas não
e disciplina, e reagindo na sombra contra deixariam de se gravar, dada a sua lineari-
a soberania portuguesa” (Id., Ibid., 656). dade, na memória dos leitores e ouvintes
a quem tais páginas se dirigiam. Alerta a
primeira para a dicotomia entre as duas
Pregação popular, panfletismo religiões cristãs: o que “a Igreja Católica
e imprensa periódica afirma, o protestante nega”, no que res-
O combate antievangélico estava presente peita aos pontos de fé. Afirma-se que o
na pregação levada aos meios rurais e urba- protestantismo é “uma desorganização de
nos, no âmbito das denominadas missões toda a ordem”, cuja divisão “em mil pe-
do interior, que eram alimentadas com quenas seitas, que se anatematizam umas
exacerbado zelo por religiosos egressos. E às outras, e só concordando em seu ódio
manteve-se, ao longo das últimas décadas à Igreja Católica”, do que resulta ser “uma
do séc. xix e das primeiras do séc. xx, in- anarquia religiosa”. Rejeita, como “regra
tegrado nos exercícios de piedade que se fundamental da Fé, […] o ensino infalível
estimulavam no prolongamento desta ati- e autoridade divina do Papa e dos Bispos”;
vidade pastoral. Os fiéis, antes da “missa “não tem crenças, tem opiniões, e essas va-
de alva”, eram convidados a momentos de riáveis como ele mesmo; por isso é que en-
reflexão, após ouvirem breves leituras em tre os protestantes são tantas as religiões,
voz alta destinadas aos crentes reunidos, quantas as cabeças, e cada cabeça pode
sendo a maioria deles analfabetos. A uti- mudar dela todos os dias”; repudia, ainda,
lidade de um manual adequado para esse “tudo quanto há de consolador, terno e
fim é patenteada pelo impressionante su- afetuoso na Religião, como a presença de
cesso de A Missão Abreviada, referenciada Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, o
por Camilo, da autoria do P.e Manuel José tribunal da misericórdia e do perdão, a in-
Gonçalves do Couto (1819­‑1897), que cal- vocação da Santíssima Virgem e dos San-
correou as regiões minhotas e transmon- tos”. A outra instrução abre lembrando
tanas durante larguíssimos anos, estando pecar “mortalmente todo o católico, que
entregue àquele ministério apostólico. scienter comprar, vender, ter, ou reter em

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seu poder as bíblias protestantes, que são 1938, o também Inaciano P.e Domingos
essas, que por esses vendilhões em toda a Maurício escrevia: a protagonista, “que
parte, nas cidades, nas vilas, e até nas al- vivera na boa fé, volta à verdade, conquis-
deias, se vendem em grande abundância”, tada pela caridade dos católicos contra os
com “empenho e porfia”, e “pela barateza quais nutrira tantos preconceitos. A nar-
do seu preço, que nem sequer se pagam rativa é um simples pretexto para expor,
da encadernação”. Lembra que também em forma atraente e leve, os principais
são proibidas, porque a sua tradução cor- erros do protestantismo e a respetiva re-
re sem a aprovação da Igreja, anotações ti- futação. Livro, a propósito, para muitos
radas dos santos padres e “varões doutos e trabalhados pela propaganda herética”.
católicos”, faltando-lhes “livros, versículos, O P.e Rademaker, que sempre se mostrou
e capítulos” da Vulgata latina. Adverte-se empenhado neste combate, fez sair, em
incorrer mesmo “em excomunhão maior 1879, na Semana Religiosa Bracarense – logo
ipso facto” quem “as defender, reputar, ou vertido em castelhano sob o patrocínio
as tiver por verdadeiras; porque na ver- do bispo de Tui, e, dois anos depois, im-
dade são heréticas, falsas e protestantes”. presso em folheto pelo periódico vimara-
A intensidade com que os colportores as nense Progresso Católico –, o escrito “Vinte
difundem a nada mais obedece do que e cinco por cento aos cem disparates dos
a “de longe ir dispondo o povo para em protestantes”, que, em 1951, alcançava a
tempo oportuno introduzir neste reino o 6.ª edição, a qual merecia do crítico da re-
protestantismo, que é uma religião falsa vista eclesiástica Lumen o seguinte comen-
e depravada; é uma religião que veio do tário: “Nestas 30 páginas compendiou o
inferno e abre a porta a todos os vícios”. seu autor o Sr. Padre Rademaker, S.J.,
E, se é “cómoda para viver, para morrer vinte e cinco respostas, breves mas cer-
é o diabo”, acrescenta a terminar a po- teiras, a outras objeções ou ataques feitos
lémica invetiva de óbvia contundência à doutrina católica, particularmente em
apologética. Reflexo desta sanha católi- matéria bíblica, que é o ponto estratégico
ca contra as “Bíblias protestantes” pode dos reformadores. Merece larga difusão
verificar-se, por exemplo, no auto de fé este opúsculo, agora que a propaganda
feito na Covilhã em 1866, no governo de protestante alastra por todo país, invadin-
D. Manuel Martins Manso, bispo da Guar- do os meios populares”.
da (1858-1878), que o fora do Funchal O púlpito e a imprensa, poderosos ins-
(1850-1858), em que muitos exemplares trumentos de comunicação social, eram
foram queimados. os meios a que a maioria católica mais
Semelhante ataque antiprotestante recorria para enfrentar o proselitismo
apresentava análogos contornos pela protestante. Saliente-se a ação do polígra-
pena de outros eclesiásticos católicos, fo P.e José de Sousa Amado (1812-1887),
como, e.g., nas publicações afins do Jesuí- nome a colocar ao lado do P.e Sena Frei-
ta Carlos João Rademaker (1826-1885), tas em seu vigor polémico. Sacerdote ilus-
pregador popular, ao tempo de reco- trado, fogoso na peleja doutrinária e pro-
nhecida nomeada. Editada em 1871, a vocador nos desafios ao poder judicial,
sua novela edificante A Viúva do Ministro Sousa Amado tinha, como alvos a visar
pretende retratar a história “exemplar” por sua reconhecida influência sobre a
de um pastor protestante que deixou de- sociedade, considerando-os outros anti-
samparada uma pobre mulher seduzida. cristos a abater, a loja maçónica, a política
Em breve recensão crítica à 2.ª edição de liberal e o proselitismo evangélico. Para

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ele, na raiz do grande desnorte estavam de Sá Pereira do Lago, coletânea dos ar-
Voltaire, o filosofismo moderno e a ciên- tigos publicados no semanário Voz Pública
cia positiva. A sua agressividade contra o de Vila Meã relativos à polémica travada
protestantismo, passando por cima as ha- com os ultramontanos daquele órgão en-
bituais referências à confissão sacramental tre agosto e novembro do ano anterior.
e às indulgências, é marcante. Forneceu­ A disputa fora provocada pela notícia do
‑lhe pertinente oportunidade a compra, correspondente local para esse diário,
pela Igreja Presbiteriana, do descativado possivelmente o próprio pároco da terra,
Convento dos Marianos, vasta construção em que os protestantes haviam sido tidos
lisboeta à R. das Janelas Verdes, que con- por parasitas, a propósito da morte de
tribuiu para incrementar a sua atividade uma senhora praticante dessa confissão,
pastoral e onde passaram a exercer o mi- para quem se pretendera obter sufrágios
nistério vários ex-sacerdotes católicos. Ao católicos. Chamados a terreno, vieram os
escrito, intitulado A Compra da Egreja do consabidos temas da confissão auricular,
Extincto Convento de N. Senhora dos Reme- da Bíblia editada pelos protestantes, do
dios por Uma Seita Protestante (1872), segui- Purgatório, da infalibilidade pontifícia,
ram-se: Os Protestantes Desmascarados, ou os da conduta de alguns papas e da mora-
Protestantes de hontem, de hoje e de amanhã lidade de Lutero, Calvino e Zuínglio. Na
(1873) e Exposição contra os Protestantes da resposta, de forma pejorativa, Pereira
Doutrina Catholica acerca da Presença Real do Lago trata os sacerdotes redatores de
de Jesus Christo no Sacramento da Eucharis- A  Palavra, que sustentaram a polémica,
tia, segundo a Doutrina dos Santos Padres. de “jesuítas ultramontanos”, com notó-
1.º Opúsculo desde o Sec. I até ao Sec. VI rio intuito de denegrir a ala ortodoxa
(1875). De assinalar será a sua tradução do catolicismo conservador, julgada fa-
da obra de Guilherme Abott, Historia da nática. Retorquindo, A Palavra denomi-
Reforma Protestante em Inglaterra e Irlanda, na as seitas protestantes de “hediondas,
Fazendo Ver Que este Acontecimento Abateu prejudiciais e daninhas, por isso que são
e Empobreceu a Maior Parte dos Habitantes a mentira, e parto monstruoso da devas-
d’estes Paizes (1864). O título diz bem de sidão e do orgulho”. Mais: usando “edi-
como a temática se inscrevia no desígnio ções de Bíblias falsificadas têm os pro-
do seu combate antiprotestante. Numa testantes procurado perverter e enganar
altura em que o racionalismo, o positivis- os ignorantes […], publicado enchentes
mo, o agnosticismo e o ideário maçónico de traduções da Bíblia em língua vulgar
dominavam as gerações intelectuais que erróneas, capciosas e mutiladas com o
estavam empenhadas na militância anti- danado intuito de enganar e perverter”;
clerical, os pretextos factuais para con- para além de que “afrontam o Código Pe-
trovérsias entre católicos e protestantes nal numa propaganda desavergonhada”.
conduziam a debates sobre a confissão Vieram também da Univ. de Coimbra
auricular, o celibato sacerdotal, os exem- alinhamentos de peso para o confronto
plares da Bíblia distribuídos pelas socie- antiprotestante. Joaquim Alves da Hora,
dades bíblicas. Entre outros periódicos, o natural de Leça da Palmeira e regente
portuense A Palavra constituía uma arena da cadeira de Teologia Moral, apresen-
de embates acerosos, nascidos, por vezes, tou em 1879, como dissertação inaugural
de circunstâncias aparentemente irrele- para concurso, O Protestantismo Conside-
vantes. Foi o caso estampado no folheto rado em Seus Fundamentos, exame crítico
Jesuítas e Protestantes (1894), de Joaquim dos sistemas evangélicos sobre a regra

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da fé. Por sua vez, António Garcia Ribei- ca, as conversões ao catolicismo crescem.
ro de Vasconcelos, lente catedrático de É o erro a bater em retirada. Por isso, ape-
Teologia Pastoral e de Estudos Bíblicos, la ao combate até “aniquilamento com-
apresentou no Porto, a 9 de dezembro pleto da heresia protestante”, que deve
de 1900, no Congresso Católico aí reuni- prosseguir com coragem e sem tréguas,
do, a conferência “A Bíblia protestante”, “porque o inimigo, julgando-nos despre-
impressa no ano seguinte. O assunto caía venidos, quer conquistar de surpresa este
em cheio no contexto religioso polemica- recanto abençoado da Europa”.
mente agitado que se vivia, ao apontar os A ambiguidade da legislação penal e a
terríveis estragos que faziam “certos lobos sua rigorista interpretação prestavam-se,
vestidos de pastores […] no rebanho cris- na verdade, a prisões de colportores, a
tão” da terra portuguesa “que se presava atritos sobre enterramentos de evangé-
de fidelíssima”, onde outros profetas do licos – apesar de, ao menos em Lisboa,
erro, “dizendo-se ministros de Cristo, e desde 1876, haverem sido demolidos os
falando-nos em nome do Salvador, pro- “muros odiosamente levantados” –, e ao
curam envenenar as nossas crenças com encerramento de lugares de culto. Em
palavras falazes”. Aqui e além, em inci- inícios de 1900, há prisões de colporto-
sos vários no decurso da exposição, que res, em Guimarães e Loulé, por difusão
faz incidir sobre a doutrina católica da de Bíblias e propaganda. O juiz da instru-
origem, constituição do cânone bíblico, ção criminal de Lisboa ordena à polícia,
inspiração e interpretação da Sagrada em 1901, que feche casas abertas à ora-
Escritura, aproveita para erguer o dedo ção e ao ministério protestante. No ano
acusador aos Portugueses que estão in- seguinte, em Setúbal, atribuem-se ações
teressados nessa empresa antipatriótica, de rua e atitudes persecutórias contra
ligados a essa conspiração contra a santa atos do culto evangélico ao fanatismo
crença que sempre foi o título e o fun- de católicos. A abertura política, patente
damento das maiores glórias dos Portu- em notícias e editoriais com que os jor-
gueses, e que constitui a mais santa, res- nais A Reforma e Igreja Lusitana acompa-
peitável e salutar das tradições da nação, nhavam a militância liberal e a corrente
bem como aos “propagandistas do protes- republicana em crescimento, exacerbava
tantismo”, esses “pregadores de recente cada vez mais o catolicismo monárquico
data” que “dividem, separam, arruínam, integrista e ortodoxo. Daí a polémica e
destroem” e, de Bíblia constantemente o teor agressivo das intervenções parla-
na mão, dela “fazem derivar seus erros mentares, cobertas pela imprensa regio-
e desvarios”. Ao exaltar a Sagrada Escri- nal e ideológica de Norte a Sul do país.
tura como fonte única da Revelação e ao Escritores e publicistas de confessa mili-
rejeitar a tradição apostólica e a autori- tância anticlerical e de tendência ateísta
dade da Igreja, o protestantismo é, em entravam em cena, agravando a turbulên-
seu entender, “um sistema de transição cia dos embates no aproveitamento de
para o racionalismo”. Termina o discur- acontecimentos circunstanciais, e.g.: as
so universitário por acrescentar que, se o celebrações do tricentenário da morte de
protestantismo se vai “tornando conheci- Camões e o sétimo centenário do nasci-
do por toda a parte”, nota-se uma enor- mento de S.to António, o caso Calmon e
me deserção “em todas as regiões, onde o das trinas. As fobias em relação ao jesui-
dominou soberano”. Na Alemanha e na tismo em particular e ao congreganismo
Inglaterra, baluartes da reforma evangéli- em geral, por sua poderosa influência

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social dentro e fora do templo, de resto lar do antiprotestantismo em Portugal:


fruto de posições ideológicas assumidas, a Constituição de 1911, a consagrar a se-
exteriorizadas pela pena de Rodrigues paração da Igreja e do Estado; o pronun-
de Freitas, Basílio Teles, Latino Coelho, ciamento militar de 1926, que inaugura o
Sampaio Bruno, Teófilo Braga, Helio- Estado Novo, período de quase meio sé-
doro Salgado, Borges Graínha e outros, culo marcado pela autocracia salazarista
mais comprometiam a tímida simpatia e a vigência da Constituição de 1933 em
condescendente face à liberdade religio- que, todavia, se contemplava a doutrina
sa e ao protestantismo. A confessa ligação da liberdade de consciência e de culto; a
de Trindade Coelho com o movimento repercussão, no país, do espírito do Con-
evangélico reflete-se no seu Manual Polí- cílio Vaticano  II (1962-1965), com o en-
tico do Cidadão Português, saído em 1906 e corajamento ao ecumenismo; a guerra do
com 2.ª edição logo em 1908, através das ultramar, o 25 de Abril e a descoloniza-
estatísticas da atividade protestante refe- ção; a proliferação do fenómeno das sei-
rentes a lugares de culto, no total de 55 tas religiosas e a espiritualidade new age.
igrejas e 31 escolas, sendo de sublinhar as Pormenorizando as vicissitudes da posi-
achegas que procura dar para a solução ção da maioria religiosa em Portugal face
das “Bíblias falsas”, ponto de acirrada dis- às Igrejas reformadas, será de atender,
córdia e alvo privilegiado do ataque an- em simultâneo com o arranque do regi-
tiprotestante. A luta por uma tolerância me republicano, ao ideário e à atuação
legal, que se inscrevia no âmago do ideá- carbonária de governantes como Afonso
rio iluminista e da Revolução Francesa, Costa, Manuel de Arriaga e Teófilo Bra-
no tocante aos direitos do Homem e na ga, liminarmente repudiados pela hierar-
aliança oposicionista republicano-protes- quia católica logo na sua pastoral coletiva
tante, conseguiria uma consagração vito- de 1910. Foi notória uma atitude estatal
riosa com a viragem do regime em 1910, acintosa dirigida contra o episcopado,
ao legalizar o enracinement irremovível do com perseguições e desterro de prela-
protestantismo, pondo fim à plurissecu- dos, expulsão das ordens religiosas, con-
lar campanha antievangélica assente na fisco de bens patrimoniais das paróquias
denúncia da origem estrangeira e desna- e outros atropelos, aliás em significativo
cionalizadora da heresia luterano-refor- contraste com a cordialidade como eram
mista a extirpar do solo pátrio. Mas seria recebidos bispos e pastores protestantes
o fim do primeiro período de uma dolo- estrangeiros, para além da exigida pela
rosa história e o advento de outro de não oficial polidez protocolar. A  euforia des-
beligerância marcadamente diferente? pertada nos evangélicos com a instaura-
ção da república arrastou mesmo alguns
dos seus representantes e escritores afetos
Da república ao Estado Novo a convidarem membros do clero católico
A Implantação da República pareceu a ingressar na Igreja Lusitana em ordem a
abrir, de facto, legítimas expectativas as- uma única instituição nacional e católica.
sentes na proveniência cultural de algu- A Lei da Separação da Igreja e do Estado,
mas figuras cimeiras do poder e na natu- datada de 1911, igualava, quanto à liber-
reza da legislação promulgada. A longa dade de culto, aliás próprio de um Estado
duração, correspondente por inteiro ao laico, a Igreja Católica Romana às outras
séc. xx, conhecerá, porém, eventos e confissões religiosas existentes. No entan-
movimentos que pontuaram o desenro- to, por ela conter, na opinião das Igrejas

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evangélicas mais enraizadas no país, ma- tismo, tais como a sua noção, variações e
téria suscetível de dúvidas e reservas, os origens, e […] a defesa histórico-filosófi-
seus representantes formularam pedidos ca da confissão sacramental”. Destinado
de esclarecimento e correção relativos às classes populares, o alvo preferido dos
a disposições de cuja rigorosa aplicação “falsos apóstolos”, de cujos erros devem
resultara o encerramento de alguns dos ser precavidas, pretendia obstar que o
seus templos e escolas. A resposta foi-lhes país viesse “a lamentar-se de mais um in-
dada a 11 de abril de 1912 por meio da fortúnio nacional se o desideratum” que
Direção-Geral dos Assuntos Eclesiásti- move o seu proselitismo “fosse um dia,
cos, e subscrita por José Caldas, especi- ao longe e ao largo, uma triste realida-
ficando certos conceitos empregados, de” (ALBUQUERQUE, s.d.). De maior
mas pronunciando-se pela negativa em fôlego e vigor polémico deve assinalar-se
vários pontos que acabaram por passar O Protestantismo Esfacelado perante a Verdade
posteriormente a objeto de discussão no do Catolicismo (1916), de Francisco Men-
Parlamento, como em minúcia se pode des Alçada de Paiva, sacerdote imbuído
ver nos textos do “Memorial das Igrejas de preconceitos ultramontanos. Em no-
protestantes a propósito da Lei da Sepa- tas pastorais dirigidas às suas dioceses, há
ração” e da “Representação das Igrejas prelados que aproveitam para tocar direta
evangélicas ao Congresso da República”. ou indiretamente na ofensiva evangélica.
As insistências renovaram-se em 1914, Acontece em 1922 com D. Manuel Viei-
sentindo os responsáveis que o regime ra de Matos, arcebispo de Braga, que, ao
republicano pequena melhoria trouxera recordar aos párocos a obrigação de em
à real situação das confissões reformadas. cada 10 anos promoverem uma missão re-
O ataque doutrinário ao protestantismo ligiosa ao povo, lhes chama a atenção para
persiste em brochuras dirigidas a um pú- a conduta dos evangélicos, que têm pro-
blico culto católico, que compra – e até curado imitar o exemplo dos católicos,
assina – este género de publicações. É o cientes das significativas vantagens das
caso da coleção Ciência e Religião, inicia- suas missões populares, alertando: “Auxi-
da em 1904 e finda em 1918, editada a liados do seu muito dinheiro, os protes-
partir da Póvoa de Varzim pelo jornalista tantes têm desenvolvido uma grande ativi-
e apologista de merecimento Artur Vieira dade. Onde existirem quinze protestantes
Cardoso Gomes dos Santos (1881-1918), eles fazem uma paróquia. Por toda a parte
réplica de outra célebre coleção editada eles espalham difusamente bíblias, jornais
em França com a mesma designação, e outros impressos”. E, como a intenção
Science et Religion, pretendendo-se que do documento se estendia a recordar o
os destinatários encontrassem nesses vo- tricentenário da Propaganda Fide, congre-
lumes de 80 páginas “a justificação histó- gação pontifícia incumbida da evangeli-
rica e filosófica racional e científica duma zação em terra de infiéis, o prelado cita
religião”. O n.º 21, O Protestantismo, do a informação de que em Moçambique a
teólogo Manuel Albuquerque, prior da missão evangélica suíça, “só em pessoal
colegiada de Guimarães, é um opúsculo europeu, conta 63 criaturas, número este
de pouco mais de 100 páginas publicado a que é preciso juntar o de 93 auxiliares
sem data, mas certamente logo após a Im- indígenas”, quantitativo que representa
plantação da República, que intenta ser mais gente e estrangeira do que todas as
apenas uma singela “exposição e crítica missões portuguesas no total, havendo
d’algumas ideias gerais sobre o protestan- “mais naquelas condições”.

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Recrudescer do frentismo tantes”. Ignora se há perigo ou não nesta


antiprotestante: a pastoral invasão protestante, como também “se de
do bispo de Coimbra portugueses se farão ou não bons protes-
e a revista católica Brotéria tantes, ainda que para ser bom protestan-
te não é preciso muito”. Apenas sabe que
Por inteiro voltada para o alvo é a Ins- importa agir, pois “a ação protestante,
trução Pastoral contra o Protestantismo, do pelos meios de sedução que emprega, é
bispo-conde de Coimbra, D. Manuel Luís capaz de atrair à heresia muitas crianças
Coelho da Silva, publicada em 1931 e, 12 incautas, e é capaz de fazer perder a fé
anos depois, aparecida em nova edição. a grande número de católicos fracos ou
Do texto primitivamente inserido no Bo- maus, tornando-os ímpios, hereges ou
letim diocesano houve separata de uma indiferentes”. Considera ser o protestan-
centena de páginas e milhares de exem- tismo uma verdadeira peste e um grande
plares de tiragem para serem espalhados mal, por constituir um “germe corrosivo
pelo país. Na introdução, esclarece-se os de desordem intelectual e religiosa”. A fi-
motivos do aparecimento: os protestantes nalidade desta instrução pastoral, que
que, “sem resultados apreciáveis”, tinham confessa ter sido ditada por um impera-
tentado no séc. xix introduzir-se no país, tivo de consciência, é “chamar ao grémio
“depois de 1910, aproveitando-se da guer- da Igreja as pessoas de boa fé”, desviadas
ra feita ao clero e às instituições católicas, pela ação dos protestantes, e preservar do
cobraram ânimo, declararam Portugal contágio os católicos que se sintam ten-
um país de missão como se fora um peda- tados a segui-los. O documento diocesa-
ço de África, e ei-los aí novamente a bater no antiprotestante de D. Manuel Coelho
à porta”. Lembra que esse perigoso prose- da Silva representa o primeiro de algum
litismo, não havendo conseguido o aguar- fôlego publicado por um prelado portu-
dado êxito no espaço urbano, virava-se guês, meio século após o de D. Américo,
agora para as zonas rurais. Há focos de bispo do Porto, decorrida uma vintena de
protestantes, aponta, em dioceses impor- anos desde a proclamação da república e
tantes como: “Lisboa, Porto, Coimbra, Vi- passado um lustro de vigência do 28 de
seu, Algarve e até Braga”. No mesmo ór- Maio, que marca o início do Estado Novo
gão do bispado, sob o título de “Invasão e, consequentemente, do salazarismo.
protestante”, já antes alertara para a Asso- O  tom doutrinário‑polémico, polvilhado
ciação Cristã dos Estudantes, que estava de salpicos de moderada contundência
instalada num “belo edifício construído à e assente no princípio de que a falta de
custa do estrangeiro, mas quási sem vida, instrução é o maior inimigo da fé, afina
apesar das grandes vantagens que dá aos pelo diapasão apologético tradicional.
associados”. Denuncia o prelado a ofensi- Estruturado em cinco partes e destinado
va em terras do interior, através da funda- a refutar os considerados erros protestan-
ção de “casas nas povoações rurais mais tes, percorre os pontos que a controvérsia
abandonadas, de braço dado com mações doutrinária privilegiava: a Igreja Católica
e livres-pensadores”. O motivo julga en- Romana, verdadeira Igreja de Cristo; a
contrá-lo na conversão anual de milhares Bíblia, regra de fé; o culto dos santos, da
de protestantes pelo mundo e no fracas- Virgem e das imagens; a eucaristia, sacra-
so das últimas reuniões confessionais de mento da presença real; a penitência e
Estocolmo e Lausanne, que procuravam confissão auricular. A conclusiva exorta-
“evitar o esfacelamento das seitas protes- ção, com algumas sugestões práticas para

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lhe dirige, considerando-o, para além de


ímpio, estrangeiro, fomentador de de-
sunião e discórdia social e aglutinador
de oposições políticas e religiosas, qual
outra “quinta coluna” que, para bem da
nação, urgia travar. Ao apelar ao braço
protetor estatal, reclamava-se, obviamen-
te, uma atitude persecutória à liberdade
de consciência e ao proselitismo religioso
acatólico. Deixava-se nas mãos do Estado
autoritário as opções práticas a tomar se-
gundo as sensibilidades locais, o que fez
com que as Igrejas protestantes se voltas-
sem mais sobre si próprias, vivendo do
ministério possível e para ele. A situação
manteve-se até se aproximar a Revolução
de Abril. Das razões invocadas para a ree-
dição, em 1943, desta Instrução Pastoral,
deixe-se cair o estar esgotada e choverem
D. Manuel Coelho da Silva (1859-1936). de muitas partes “pedidos dela”, sobrele-
vando-se antes as duas destacadas na nota
pastores de almas e católicos, encerra preambular assinada: uma de natureza
um pedido às autoridades, se bem que religiosa e outra de carácter político, am-
logo esclareça não visar a proteção pela bas circunstanciais. São referidas: a “alar-
força, mas antes e só que as autoridades mante e intensa propaganda de cisão
administrativas e escolares “não consin- religiosa” a alastrar “por Portugal além”,
tam que sejam ultrajados os católicos, ou pois das cidades e dos centros de certa
lhes sejam roubadas as crenças por meios importância populacional se passou, e
capciosos e fraudulentos”. E, em mal ve- com reconhecido fruto, “às mais sertane-
lada denúncia, adianta: “peço que essas jas aldeias”; e, em hora em “que a divisão
Autoridades não protejam diretamente o da família portuguesa, em tantas fações
protestantismo na sua propaganda, como que a puseram à beira do abismo, vai de-
já tem acontecido. O Estado tem tudo a saparecendo” e de novo se vê “progredir
perder, auxiliando a mão funesta que lan- a certeza da união no mesmo pensamen-
ça no nosso solo a semente da discórdia, to patriótico”, importa obstar, por “impe-
do ceticismo e da impiedade. A unidade rativo de ordem nacional e sobretudo da
religiosa é o laço social por excelência. consciência católica”, que se materialize
Se o protestantismo ganhar forças, vê-lo­ o perigo de vir a “germinar a dissidência
‑emos crescer em audácia com o auxílio religiosa” desagregadora do “património
estrangeiro; vê-lo-emos tornar-se centro moral e material das nações”, de resto
de reunião para todos os díscolos e des- “sempre uno e indivisível”.
contentes; vê-lo-emos promover funestas Com o paulatino regresso das ordens
perturbações e preparar os Portugueses religiosas na déc. de 1930 e, em parti-
para se dobrarem em tudo ao arbítrio cular, da Companhia de Jesus, houve en-
dos interesses de insidiosos protetores”. sejo de ativar, aliás também mercê do
É expressiva a súmula de epítetos que contexto internacional europeu, a tese

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da conspiração anticatólica encabeçada enfraquecer Portugal de modo significa-


por mações, comunistas e protestantes, tivo. Maçonaria, judaísmo, descrença
que, no meio eclesiástico, corria ser são aliados nesta campanha, insiste, não
apoiada por capitais americanos. O re- sendo “a propaganda evangélica, batis-
forço ideológico do Estado autoritário ta, […] mais que uma complicada rami-
proporcionou, então, o ensejo de de- ficação tentacular da conjura mundial
nunciá-los como inimigos declarados e de ódio à Igreja Católica” (VELOSO,
de combatê-los na pregação e na im- 1947). O segundo escrito segue a mesma
prensa, neste ponto favorecida pela cen- esteira polémica. De novo visando o
sura salazarista. A partir dos anos 40, a mesmo alvo, acusa o Jesuíta os militantes
imprensa católica dá sinais de inquieta- adventistas de, a coberto da permissão
ção perante o avanço do adventismo em de cultos consignada na Constituição
solo português e brande a bandeira da política da nação, atentarem contra a
unidade da nação que entende ameaça- unidade do povo português, assente no
da. A Brotéria, revista de cultura dos Je- esteio da sua crença religiosa maioritá-
suítas de confirmado prestígio, sai a ter- ria, que o último recenseamento sufra-
reiro com três artigos acutilantes e gara. Estende, porém, o dedo acusador a
dignos de referência de um dos redato- agentes comunistas, que lhe dizem anda-
res, o P.e Agostinho Veloso: “A conjura rem “por toda a parte a fazer adventistas,
do ódio”, “O adventismo avariado” e “As para assim, à sombra da liberdade reli-
seitas protestantes, o comunismo e a ma- giosa, minarem, impunemente, a alma
çonaria”, respetivamente saídos nos fas- das nações católicas”. Conclui, afirman-
cículos de janeiro, fevereiro e maio de do que a propaganda adventista apenas
1948. O primeiro denuncia a propagan- serve “os inimigos, não só da Igreja Cató-
da proselítica camuflada paga pelo es- lica, mas também de Portugal, enfraque-
trangeiro, a saber: as seitas evangélicas cendo-nos as forças e os motivos de resis-
americanas, aproveitando a alta do dó- tência e preparando o caminho e
lar, desencadeiam uma ofensiva na Euro- fornecendo armas aos adversários irre-
pa do pós-guerra com a “descarada cum- dutíveis da civilização cristã que, por isso
plicidade” da maçonaria e do comunismo mesmo, são, também, evidentemente, os
ateu, em “rancorosa conjura contra a nossos inimigos naturais” (VELOSO,
Igreja Católica”. O pretexto é haver tido 1948). No terceiro artigo expõe algumas
conhecimento, através de um artigo do reflexões sobre a agressividade dos ad-
historiador inglês Aubrey Bell, da cir- ventistas em terras portuguesas, a propó-
culação do periódico Linhas de Comuni- sito dos protestos dos atingidos, manifes-
cação, que não sabe se legal, se realmen- tados em cartas remetidas à Brotéria e nos
te sediado em Lisboa, apostado em anúncios que estamparam nos diários de
denegrir a fé católica, na altura em que, maior expansão de Lisboa e do Porto.
na península Ibérica, se combatiam “sem Insiste o P.e Veloso nos compromissos do
desfalecimento as heresias protestante e protestantismo com a maçonaria, na
comunista”. Avultam insultos na folha “grande e irredutível conjura organiza-
adventista, como os de “paganismo des- da contra Cristo e a sua Igreja, no mun-
cristianizado”, “erro diabólico”, “propa- do”, o primeiro em nome do evangelho
ganda do diabo”. A soldo do exterior, e a segunda em nome da razão. O Cava-
qual outro cavalo de Troia, responde o leiro de Oliveira era protestante e ma-
articulista que o protestantismo tenta ção  –  daí, o povo não andar longe da

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verdade ao chamar mações aos protes- e protestantes. Percorra-se, entre outras


tantes. Cita o caso da seita presbiteriana publicações de divulgação católica desti-
de S. Paulo, referindo o pastor Eduardo nadas ao grande público, o Mensageiro do
Carlos Pereira que, em 1880, ao preten- Coração de Jesus, órgão oficial do Aposto-
der tornar-se independente, logo verifi- lado da Oração que foi relançado em
cou que muitos ministros protestantes 1922; a Voz de Fátima, mensário surgido
estavam filiados na maçonaria. Aponta­ no mesmo ano e órgão do Santuário da
‑os como “estrangeiros do interior”, Cova da Iria; o Mensageiro de Maria, men-
“quintas colunas ao serviço de potências sário ilustrado e órgão dos congressos
estranhas”. A concluir, recorda que, se a marianos fundado em 1923; A Cruzada,
maçonaria está fora de lei em Portugal, boletim arquidiocesano bracarense e ór-
há motivos para pensar que o rotarismo, gão das vocações sacerdotais e seminá-
que age com o mesmo espírito, está, rios, aparecido também em 1923. Em
com vantagem, a substituir aquela. toda esta imprensa são habituais as notí-
E  mais afirma: longe de fazer um juízo cias, os comentários e os artigos com um
temerário, “a presente invasão protes- timbre combativo direcionado contra a
tante em Portugal pode muito bem cons- ideologia bolchevista, o corrosivo secre-
tituir um disfarçado e perigosíssimo as- tismo maçónico e as Igrejas protestantes,
salto à unidade católica da Nação”, pois a que certas camadas de praticantes
não foi no intuito de salvar o país “que as eram recetivas. Por sua vez, o Estado
seitas protestantes aumentaram, ultima- Novo, hostil às sociedades secretas, e que
mente, de atividade, entre nós” (VELO- acreditava poder aguentar-se no mútuo
SO, 1948a). Continuava, assim, a vincar­ apoio de uma religião dominante, receo-
‑se que o protestantismo era, para estes so das consequências internas da Guerra
sectores eclesiásticos, um fenómeno reli- Civil espanhola, que o exército franquis-
gioso de importação que atentava contra ta conduzia como uma verdadeira cruza-
a unidade nacional, por considerar-se da contra o comunismo internacional e
que o catolicismo constituía fundamen- a militância maçónica, bem cedo facilita-
to integrante da identidade da nação. ra o combate aos inimigos da fé católica.
Será, ainda, de recordar que a difusão da A presença antiprotestante, através das
mensagem de Fátima serviu de relança- décs. de 1940 e 1950, torna-se marcante:
mento popular do culto mariano, a que na obra de fôlego da autoria do cónego
os protestantes levantam sérias reservas, madeirense Gonçalves Jardim, A Igreja e
a juntar às do culto das imagens e a ou- o Protestantismo (1940-41), um erudito es-
tras práticas devocionais de uma religio- tudo de eclesiologia que se encontra
sidade que privilegiava o afetivo. A res- polvilhado de comentos de sabor panfle-
posta católica, sobremaneira a veiculada tário; em Os Protestantes Negam o Evange-
pelas publicações confessionais e pelos lho (1940), do teólogo egitaniense Ma-
organismos pios, atingia por vezes foros nuel Mendes do Carmo; em O Adventismo
de contundente agressividade. O comba- (1943), do Franciscano P.e José Rolim,
te à propaganda comunista, com base na que agrupa um feixe de questões religio-
Rússia soviética, onde a revolução bol- sas em torno das doutrinas evangélicas,
chevista triunfara em 1917, ano das apa- suas heterodoxias e infiltrações nas ca-
rições da Virgem de Fátima, proporcio- madas populares; em Resposta aos Protes-
nava que se englobassem, no mesmo tantes (1951) e A Virgem Maria no Tribu-
núcleo de inimigos a abater, comunistas nal Protestante, com 5.ª edição em 1961,

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do Dominicano P.e João de Oliveira, que tímida tolerância, embora centradas em


pretende refutar o folheto do evangélico posições individuais. Digno de registo
José Rodrigues Couto, Reflexões sobre a é o aparecimento, em 1931, da obra do
Virgem, distribuído no total declarado de Espiritano P.e Joaquim Alves Correia,
8000 exemplares pela região de Abran- A Larguesa do Reino de Deus ou como a Into-
tes, impugnando os principais dogmas lerância e o Despotismo São apenas Variações
marianos. Contra a seita de coloração do Anticristo Proteiforme, a qual engloba
judaico-reformista, o mesmo autor escre- uma apreciação positiva sobre a Socieda-
veu “Testemunhas de Jeová” e Seus Enganos, de Britânica e Estrangeira e a difusão da
e fez sair em 1983 o opúsculo em 4.ª edi- edição protestante da Bíblia, uma e ou-
ção de 3000 exemplares, abreviando o tra tão acerrimamente combatidas; e por
texto e retocando o título para “Testemu- que não referir também, a partir de 1963,
nhas de Jeová” contra a Bíblia, que consti- a influência da revista O Tempo e o Modo,
tui um escrito polémico-apologético de católica e doutrinária, tão corajosamen-
defesa da fé católica. A filiação adventis- te aberta ao diálogo e à problemática
ta desta confissão religiosa, a forma cultural, política, religiosa e ecuménica,
como é propagada, em catequização numa “estreita colaboração entre crentes
porta a porta, e seus esteios doutrinários e não crentes”? A atravessar, ainda, todo o
foram escalpelizados numa análise des- Concílio Vaticano II, mencione-se sobre-
dobrada pelos seguintes folhetos do ma- tudo o tão promissor Boletim de Informa-
logrado Jesuíta J. Barbosa Pinto, em ção Pastoral, de periodicidade trimestral,
tom, declara o autor, “não de ofensa mas editado em Lisboa pelo Secretariado da
de esclarecimento de erros que mere- Informação Religiosa, iniciado em 1958 e
cem ser odiados”: Quem São as Testemu- extinto em 1970, que trouxe, em alguns
nhas de Jeová (1972), Como Trabalham as dos seus números, notícias estimulantes
Testemunhas de Jeová, Que Dizem as Teste- acerca das vias ecuménicas trilhadas, con-
munhas de Jeová, Como é a Bíblia das Teste- sagrando-lhe o dossier “Caminhos para a
munhas de Jeová. unidade” (1969), que inseriu: “O ecume-
nismo em Portugal, breves notas históri-
cas”, por D. Luís Pereira, bispo da Igreja
No horizonte do diálogo ecuménico Lusitana; “Problemas do ecumenismo.
Trazido até aqui este desbobinar dia- Conversa gravada entre alguns cristãos”;
crónico do antiprotestantismo em Portu- “Opiniões do reverendo Ireneu Cunha,
gal, pode e talvez mesmo deve estender-se da Igreja Metodista de Aveiro”. Salazar,
um olhar ao último quartel do séc. xx à apesar de católico convicto, soube preser-
procura dos sinais e motivos da mudança, var os princípios constitucionais da liber-
de facto, verificada. É certo, no entanto, dade de consciência e de culto. Por outro
que algumas bolsas de resistência con- lado, lembra François Guichard, em “Le
servadoras continuaram a manter-se, ao protestantisme au Portugal”, durante as
menos entre a aversão e a desconfiança. guerras coloniais (1961-1974), apesar de
Importará, porém, remetê-las ao que sói severamente vigiados pela polícia polí-
denominar-se de atitudes fundamentalis- tica, a PIDE, vários elementos das elites
tas. No longo período, com vários séculos indígenas que combateram pela indepen-
de perseguição e combativa hostilidade, dência de Angola e de Moçambique fo-
que se espraiou até à déc. de 1930, des- ram educados nas missões protestantes e,
cobrem-se, no início desta, marcas de indo frequentar os cursos universitários

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a Lisboa, recebiam o acolhimento e o questões de justiça social e dos trabalha-


apoio dos correligionários portugueses. dores-emigrantes dos países africanos de
O monolitismo religioso ia alargando língua oficial portuguesa no continente.
brechas. Visível mudança que não impede, contu-
A proliferação das Igrejas reformadas e do, a Aliança Evangélica Portuguesa, que
a adesão da hierarquia católica a ativida- congrega 80 % das denominações protes-
des ecuménicas, com reflexos evidentes tantes, de informar, em conferência de
na massa dos fiéis dos grandes centros ur- imprensa realizada em Lisboa em 1990,
banos, foram facilitando tanto um diver- ter sido recebida pelo procurador-geral
sificado proselitismo protestante como da República e pelo ministro da Justiça, a
a aproximação interconfessional. As ce- quem denunciou a discriminação de que
lebrações anuais do Oitavário da Unida- aquelas se sentiam vítimas.
de dos Cristãos, no mês de janeiro, que Se a diminuição do número de crentes
desde 1965 se realizavam no Porto e em se parece notar, mantém-se o espírito ecu-
Lisboa, acolhiam a presença de pastores ménico de que a edição interconfessional
protestantes. Assim, a concelebração ecu- da Bíblia – traduzida dos originais hebrai-
ménica na igreja dos Carmelitas do Porto, co, aramaico e grego para português cor-
em 1972, animada pelo P.e Narciso Rodri- rente – é prova inequívoca. Na “aprovação
gues, que fora assistente nacional da Ju- da Conferência Episcopal Portuguesa”,
ventude Operária Católica, contou com lê­‑se: “Realizada por uma equipa de bi­
a participação da Igreja Lusitana, na pes- blistas pertencentes a várias confissões
soa do Rev. Fernando Luso Soares e do cristãs, produzida e editada segundo crité-
vigário-geral Cón. Guedes Coelho, e do rios acordados entre as Sociedades Bíbli-
superintendente-geral da Igreja Metodis- cas Unidas e a Santa Sé e publicada com
ta Portuguesa, o Rev. Albert Aspey. O im- a colaboração de uma editora protestante
pulso pioneiro do P.e Narciso conduziu, e outra católica, esta Bíblia pode conside-
ao tempo do prelado D. António Ferreira rar-se uma expressão daquele espaço de
Gomes, à criação da primeira Comissão comunhão e entendimento que a Palavra
Ecuménica a nível diocesano existente no de Deus não pode deixar de constituir
país, onde estavam oficialmente represen- para todos os que se dispõem a escutá-la”.
tadas diversas Igrejas evangélicas, cujo es- Importante e significativo marco, a assina-
pírito e cuja ação se repercutiram de for- lar com uma pedra branca no assaz longo
ma muito profícua no decorrer da déc. de e acidentado percurso das relações entre
1970, contribuindo para tornar definiti- o catolicismo e o protestantismo no espa-
vo o degelo. O primeiro encontro ecumé­ ço continental.
nico alargado aos representantes da Con- Se o reconhecimento de uma afinida-
ferência Episcopal Portuguesa com o de doutrinária é a rampa de lançamento
Conselho Português das Igrejas Cristãs, para prosseguir o diálogo ecuménico,
fundado em 1971 pelas Igrejas Lusitana, não só a comunhão da Igreja Católica
Metodista e Presbiteriana, teve lugar em com as outras grandes comunidades cris-
Viseu. Trataram-se diversos assuntos de tãs mundiais constitui a meta a atingir,
comum interesse, e alguns confessionais, como será de aceitar que nem com todas
a merecer aprofundado estudo, havendo há o mesmo grau de aproximação. Po-
uma intervenção convergente em pro- rém, um fenómeno sociológico-religioso
blemas sociais respeitantes aos cidadãos deveras preocupante surgiu nas últimas
em geral: ecológicos, direitos humanos, décadas do séc. xx: o despontar de seitas,

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ou novos movimentos espiritualistas de nhece, por “muito afins ao Cristianismo e


coloração cristã. A Igreja Maná e a Igre- com fortes raízes na história pátria”. Em
ja Universal do Reino de Deus, as mais suma: as ações comuns, motivadas por
popularmente conhecidas, atingiram em circunstancialismos vários durante as der-
Portugal um número surpreendente de radeiras décadas, têm demonstrado que
centenas de milhares de fiéis. Face a estas, o elã ecuménico, a incrementar a apro-
em particular, como às outras não cristãs, ximação e colaboração entre católicos e
também de forte proselitismo, que fervi- protestantes portugueses, é mais um se-
lharam em Portugal, a Igreja Católica e as guro indício da vontade de comunhão,
grandes confissões protestantes cerraram a diluir as sequelas do odiento frentismo
fileiras numa frente comum, em medidas que durante séculos entre si mantiveram.
pastorais afins, pois viram nas seitas que
principiaram a despontar no país após o
conflito mundial de 1939-1945 fatores de Bibliog.: ALBUQUERQUE, Manuel d’, O Pro-
desorientação e divisão, numa altura em testantismo, Póvoa de Varzim, Livraria Povoen-
que se avançava para a comunhão ecle- se, s.d.; ALMEIDA, Fortunato de, História da
sial. Sem suporte doutrinário, ou quando Igreja em Portugal, ed. Damião Peres, vols. ii-iii,
muito rudimentar e vago, puxam-nas, su- Porto/Lisboa, Livraria Civilização, 1968 e
1970; ASPEY, Albert, Por Este Caminho. Origem
blinhava uma nota de 1995 da Conferên-
e Progresso do Metodismo em Portugal no Sécu-
cia Episcopal, “as pessoas traumatizadas lo  XIX. Umas Páginas da História da Procura da
por alterações profundas de ordem psi- Liberdade Religiosa, Porto, Sínodo da Igreja
cossomática e sociocultural”, nascidas “de Evangélica Metodista Portuguesa, 1971;
desenraizamento familiar, profissional ou AZEVEDO, Pedro de, “O calvinista português
geográfico”, bem como a força carismá- Ferreira de Almeida”, Boletim da Segunda Classe,
tica de quem as comandava. A sua men- vol. 12, n.º 2, 1918, pp. 766-773; BRÁSIO,
António, D. António Barroso. Missionário, Cientis-
sagem, que mergulhava em lamentáveis
ta, Missiólogo, Lisboa, Centro de Estudos de
ambiguidades, escrevia por sua vez Rui
História Ultramarina, 1956; BRUNO, Sam-
Santos, secretário da Aliança Evangélica paio, A Questão Religiosa, Porto, Livraria Char-
Portuguesa, estava “voltada para conve- dron, 1907; CARDOSO, Manuel Pedro, Histó-
niência imediata: a saúde e as necessi- ria do Protestantismo em Portugal, Figueira da
dades materiais, ligadas às questões eco- Foz, Cadernos CER-2, 1985; CARITA, Rui,
nómicas”. Mas há mais: o Cristo da new Colégio dos Jesuítas do Funchal. Memória Histórica,
age, para além de desfigurado, apresenta Funchal, Associação Académica da Universi-
dade da Madeira, 2013; CARMO, Manuel
um distanciamento da Palavra de Deus
Mendes do, Os Protestantes Negam o Evangelho,
transmitida nos textos evangélicos. Logo, Guarda, s.n., 1940; CORREIA, Joaquim Alves,
como escreveu Paul Poupard, “o oposto A Larguesa do Reino de Deus ou como a Intolerância
ao essencial da fé cristã”. e o Despotismo São apenas Variações do Anticristo
Por fim, no clima de liberdade e tole- Proteiforme, Lisboa, Imprensa de Portugal-Bra-
rância que a Constituição da República sil, 1931; FIGUEIREDO, J. Santos, Factos Notá-
Portuguesa assegura para tornar viável o veis da História da Egreja Lusitana, 2.ª ed., Porto,
Biblioteca António Maria Candal, 1909; FREI-
pluralismo político, religioso e cultural,
TAS, J. Senna, Crítica à Crítica, Porto, Livraria
uma outra abertura se tornou desejável: Portuense, 1879; GOMES, Álvaro, Apologia,
o diálogo inter-religioso com as duas ou- Lisboa, INCM, 1981; GOMES, J. Pinharan-
tras religiões monoteístas, judaísmo e is- da, Dom Manuel Martins Manso, Bispo do Fun-
lamismo, como a Conferência Episcopal chal e da Guarda, Lisboa, ed. do Autor, 1996;
Portuguesa, no documento citado, reco- GUICHARD, François, “Le protestantisme au

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1558 A n t i p r o t e s ta n t i s m o ( É p o c a c o n t e m p o r â n e a )

Portugal”, Arquivos do Centro Cultural Português, Revista de História, n.º 6, 1913, pp. 114-121;
vol. xxviii, 1990, pp. 455-482; Id., “Madère, Id., Vidas Convergentes, Lisboa, Junta Presbite-
pôle de diffusion du protestantisme dans le riana de Cooperação em Portugal, 1958; MO-
monde lusophone”, in Congresso Internacional REIRA, Joaquim Manuel Mendes, Origens do
de História, Missionação Portuguesa e Encontro de Episcopalismo em Portugal. O Despertar da Igreja
Culturas, vol. iv, Braga, Universidade Católica, Lusitana, 2 vols., Dissertação de Mestrado em
1993, pp. 153-171; Id., “A formação de um História Moderna apresentada à Universida-
protestantismo lusófono através do Atlânti- de do Porto, Porto, texto policopiado, 1995;
co: esquema de difusão”, Revista da Faculdade NERVEL, H. A., The English Church in Madeira
de Letras do Porto, 2.ª sér., vol. 7, 1995, now the Church of the Holy and Undivided Trinity.
pp.  411­‑429; Id., e MARQUES, João, “Pro- A  History, Oxford, Oxford University Press,
gramme de travail sur les minorités religieuses 1931; PEIXOTO, Fernando, Diogo Cassels, Uma
et de pensée au Portugal et notamment le cas Vida em Duas Margens, Vila Nova de Gaia, Câ-
du protestantisme”, Lusitania Sacra, 2.ª  sér., mara Municipal, 2001; PEREIRA, José Este-
t. 8­‑9, 1996-97, pp. 599-609; JUSTINO, Má- ves, O Pensamento Político em Portugal no Século
rio, Nos Bastidores do Reino. A Vida Secreta na Igre- XVIII. António Ribeiro dos Santos, Lisboa, INCM,
ja Universal do Reino de Deus, Lisboa, Livros do 1983; RADEMAKER, Carlos João, A Viúva do
Brasil, 1995; KALLEY, Robert Reid, Exposição Ministro, Lisboa, União Gráfica, 1936; Id., Vin-
dos Factos por R. R. Kalley, M. D. & C., Relativos à te e Cinco por cento aos Cem Disparates dos Protes-
Agressão contra os Protestantes da Ilha da Madeira, tantes, 6.ª ed., Lisboa, Brotéria, 1951; Refuta-
Lisboa, Typ. Luso-Britanica de W. T. Wood, ção das Principais Objecções d’Alguns Protestantes
1875; Id., “Observações à pastoral do Ex.mo contra a Pastoral do Exmo Snr. D. Américo Bispo do
bispo do Porto, D. Américo sobre o protes- Porto sobre Protestantismo por Manoel Filippe Coe-
tantismo”, A Reforma, 2.º ano, n.º 12, 16 jan. lho, Porto, Chardron, 1879; RENDALL, Mar-
1879; n.º 13, 6 fev. 1879; n.º 14, 20 fev. 1879; garet, Religiões em Diálogo, Sacavém, Sociedade
LÉONARD, Emile G., Histoire Générale du Pro- São Paulo, 1997; Resposta Que à Instrucção Pas-
testantisme, vol. iii, Paris, Quadrige/PUF, 1988; toral do Ex.mo Bispo do Porto, D. Américo Dá o Pa-
MARQUES, João Francisco, “Para a história dre Guilherme Dias, Porto, Imprensa Civiliza-
do protestantismo em Portugal”, Revista da Fa- ção, 1878; RUDERS, Carl Israel, Viagem em
culdade de Letras do Porto. História, 2.ª sér., Portugal. 1798-1802, Lisboa, Biblioteca Nacio-
vol. 12, 1995, pp. 431-475; Id., “Reacção da nal de Portugal, 1981; SANTOS, António Ri-
maioria católica face à minoria protestante beiro dos, A Verdade da Religião Christã, Coim-
em Portugal”, in Gaia de Há Cem Anos. Colóquio bra, Imprensa da Universidade, 1787;
Comemorativo do Centenário da Igreja de Torne, SANTOS, Eugénio dos, “Missões do interior
Vila Nova de Gaia, Junta Paroquial de São em Portugal na época moderna: agentes, mé-
João Evangelista, 1995, pp. 159-168; Id., todos e resultados”, Arquipélago. Ciências Huma-
“A controvérsia doutrinária entre o catolicis- nas, n.º 6, 1984, pp. 29-65; SANTOS, Luís
mo e o protestantismo em Portugal no últi- Aguiar, “Protestantismo”, in AZEVEDO, Carlos
mo quartel do século xix”, in Lusotopie/Des Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa de
Protestantismes en “Lusophonie Catholique”, Pa- Portugal, vol. iv, Lisboa, Círculo de Leitores,
ris, Éditions Karthala, 1998, pp. 283-298; 2002, pp. 75-85; Id., “Sociedade Bíblica de
Id., “O rigorismo na espiritualidade popular Portugal”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.),
oitocentista. O contributo da Missão Abrevia- Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. iv,
da”, in Piedade Popular. Sociabilidades, Represen- Lisboa, Círculo de Leitores, 2002, pp. 252-254;
tações, Espiritualidades, Lisboa, Terramar/Cen- Id., “As estratégias de implantação de uma mi-
tro da História da Cultura da Universidade noria plural: os protestantes em Portugal nos
Nova de Lisboa, 1999, pp. 231-242; MATOS, séculos xix e xx”, in MOTA, Guilhermina
Manuel Vieira de, “Carta pastoral de 16 de (coord.), Minorias Étnicas e Religiosas em Portugal.
março de 1922”, Acção Católica. Boletim Arqui- História e Actualidade, Coimbra, Instituto de His-
diocesano, n.º 7, 1922, pp. 129-134; MOREI- tória Económica e Social/Faculdade de Letras
RA, Eduardo, “Notas históricas sobre a ori- da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 305­
gem das Igrejas evangélicas em Portugal”, ‑316; Seitas e Novos Movimentos Religiosos. Textos

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Antiprovençalismo 1559

da Igreja Católica 1986-1994, Lisboa, Rei dos Li-


vros, 1995; SILVA, Américo Ferreira dos San-
Antiprovençalismo
tos, “Instrução pastoral sobre o protestantis-
mo”, in SILVA, Américo Ferreira dos Santos,
Obras Pastorais do Ex.mo Cardeal D. Américo, Bispo
do Porto, vol. 1, Porto, Typ. Officina de S. José,
1901; SILVA, António Manuel S. P. da, “A Igre-
ja Lusitana e a instauração da república”,
O Novo Despertar, n.º 56, 1989, pp. 6-7; Id., “Os
protestantes e a política portuguesa: o caso da
Igreja Lusitana na transição do séc. xix para o
C om designação derivada da região
da Provença (ou Provence, em
França), o antiprovençalismo é uma
séc. xx”, in Lusotopie/Des Protestantismes en “Luso- reação contra a influência ou as carac-
phonie Catholique”, Paris, Éditions Karthala,
terísticas com essa proveniência que se
1998, pp. 269­‑282; SILVA, Fernando Augusto
da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário podem encontrar tanto na elaboração
Madeirense, 2.ª ed., Funchal, Junta do Distrito ou temática de uma determinada obra
Autónomo, 1945; SILVA, Manuel Luís Coelho literária ou composição poética, como
da, Instrução Pastoral contra o Protestantismo, ainda – aqui numa perspetiva linguística
Coimbra, s.n., 1931; Id., Instrução Pastoral contra e social – na origem de elementos léxi-
o Protestantismo, 2.ª ed., Coimbra, s.n., 1943; cos ou construção frásica. Neste último
TESTA, Michael P., O Apóstolo da Madeira (Dr.
caso, existe essencialmente uma atitude
Robert Reid Kalley), Lisboa, Igreja Evangélica
Presbiteriana de Portugal, 1963; Id., Injuriados e
de crítica, e até de desprestígio, face ao
Perseguidos. Panorâmica Histórica da Fé Reformada regionalismo provençal, que se avalia pe-
em Portugal, Montijo, Igreja Evangélica Presbite- jorativamente.
riana de Portugal, 1977; VALENTE, David, O antiprovençalismo é, portanto, o
“Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal: inverso do provençalismo, que se pauta,
contributo para a história da sua formação”, no âmbito literário, por uma influência
Lusitania Sacra, 2.ª sér., t. 16, 2004, pp. 477­ e filiação nas particularidades da litera-
‑510; VASCONCELOS, António Garcia Ribeiro
tura de tradição provençal, que se pro-
de, A Bíblia Protestante, Porto, Typ. de José Fruc-
tuoso da Fonseca, 1901; VAZ, A. Luís, “Calvino pagaram por toda a Europa Ocidental a
e o calvinismo em Portugal, ou uma achega partir dos sécs. xi-xii, trazidas pelo recru-
para o próximo concílio ecuménico”, Lumen, tamento de cavaleiros dessa origem para
n.º 23, 1959, pp. 842­‑852; VELOSO, Agosti- combater os mouros e assegurar a paz, so-
nho, “A conjura do ódio”, Brotéria, vol. xlv, bretudo a partir do conde D. Henrique, e
fasc. 6, dez. 1947, pp. 5-20; Id., “O adventismo por artistas ambulantes, sendo difundida
avariado”, Brotéria, vol. xlvi, fasc. 2, fev. 1948,
oralmente por trovadores e jograis. Essa
pp. 177-190; Id., “As seitas protestantes, o co-
munismo e a maçonaria”, Brotéria, vol. xlvi, poesia trovadoresca combinava duas tra-
fasc. 5, maio-jun. 1948a, pp. 581-597. dições: as cantigas de amigo, de origem
popular e cenário doméstico e rural, e as
… João Francisco Marques
cantigas de amor, de influência marcada-
mente provençal, com regras rígidas em
termos formais e temáticos, dotadas de
Esta entrada recupera, em versão adaptada,
parte do texto “Antiprotestantismo. A oposição algum artificialismo; alguns nobres com-
crítica ao protestantismo pelo catolicismo em puseram ainda cantigas satíricas (ditas de
Portugal”, publicado anteriormente em MARU-
JO, António, e FRANCO, Eduardo  (coords.), escárnio e maldizer).
Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal, O declínio da literatura provençal
Lisboa, Círculo de Leitores/Temas e Debates, verificou-se principalmente por razões
2009, pp. 203-264.
políticas, nomeadamente pela Cruzada

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1560 Antiprovençalismo

nascimento, contudo, não descurou es-


sas tradições (antes as combinou), e o
formalismo da poesia de base provençal
continuou no petrarquismo, nas com-
posições do Cancioneiro Geral de Garcia
de Resende, e repercutiu-se em Luís de
Camões, Sá de Miranda e Bernardim Ri-
beiro, mas igualmente na produção poé-
tica de autores posteriores, e.g., Natália
Correia.
Maior contestação ocorreu no âmbito
linguístico, não tanto na influência e en-
trada de provençalismos pela literatura
ibérica (onde ainda subsistem, a par de
posteriores galicismos, ainda que – por
vezes – condenados pelos puristas), mas
sobretudo na região galo-românica,
onde o provençalismo (a variedade lin-
guística da região de Provence e o occi-
tano) foi considerado erro linguístico,
arcaísmo, e – portanto – uso incorreto
da língua francesa. Posteriormente, a
perspetiva de sobrevivência da língua
histórica e do seu legado cultural e patri-
Bernardim Ribeiro (1907), de António Augusto da monial acalmou um pouco a polémica e
Costa Mota. os processos que se geraram à volta dessa
variedade linguística.
contra os Albigenses (primeira metade
do séc. xiii), que arruinou grande nú- Bibliog.: CARPEAUX, Otto Maria, A Idade
mero de nobres que eram seus cultores, Média por Carpeaux, vol. 2, São Paulo, Leya
Brasil, 2012; CARVALHO, Amorim de, Dos
e conduziu igualmente ao progressivo
Trovadores ao Orfeu: Contribuição para o Estudo
abandono do occitano. No entanto, no do Maneirismo na Poesia Portuguesa, Porto, Edi-
âmbito literário, não houve concreta- ções Ecopy, 2012; SAGNES, Sylvie, “Unité et
mente antiprovençalismo, uma vez que (ou) diversité de la (des) langue(s) d’oc: His-
a escola de trovadores veio influenciar toire et actualité d’une divergence”, Lengas,
a literatura de épocas posteriores. Terá n.º 71, 2012, pp. 51-78.
havido efetivamente um ou dois perío- Maria Carmen de Frias e Gouveia
dos menos cultivadores dessa literatu-
ra: o primeiro corresponde à primeira
fase da lírica trovadoresca, que conhe-
ceu uma breve oposição da Igreja, pois
o poeta cantava a uma dama casada – à
qual, como vassalo da época feudal, re-
conhecia como “senhor”, devendo-lhe
lealdade e obrigando-se até a lutar por
ela –, e o segundo aos sécs. xiv-xv. O Re-

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Antiprovincianismo 1561

Antiprovincianismo pela pertença “a uma civilização sem to-


mar parte no desenvolvimento superior
dela”, constrangendo-se a uma espécie
de existência ilusória. Este modo de ser
provinciano não passa tanto pelo iso-
lamento de uma qualquer identidade,
quanto por se ser um agente passivo da

O provincianismo pode ser caracte-


rizado como a atitude típica de
um imobilismo cultural, em que a fixa-
civilização. Adiante, Pessoa escreve que
este mal provinciano compreende três
características intrínsecas: “o entusias-
ção a um contexto específico oblitera mo e admiração pelos grandes meios
a capacidade de reconhecer outras di- e pelas grandes cidades”; “o entusias-
nâmicas. O enraizamento provinciano mo e admiração pelo progresso e pela
consiste, por meio da recusa de uma modernidade” e a “incapacidade de iro-
qualquer transitoriedade, em prescre- nia” (PESSOA, 1993a, 5). Neste plano,
ver ininterruptamente um sentimento o provinciano é o deslumbrado pelos
de pertença para aqueles que prosse- feitos ou pelas construções provenien-
guem na imutabilidade do hábito. En- tes do exterior, pelo que somente é ca-
quanto cultura de expressão, demons- paz dessa sensação aquele que em nada
tra-se reticente no reconhecimento do contribuiu para o sucedido. Segundo o
outro e recusa-se a comparticipar na autor, o provinciano demonstra-se ad-
totalidade orgânica do espaço nacional, mirado pelas conquistas do progresso e
reconhecendo, por sua vez, a provín- do moderno pelo simples facto de que
cia como espaço identitário. Por outro não é parte ativa dos mesmos; enquan-
lado, como veremos adiante, podemos to o provinciano admira o legado dos
definir o provincianismo em função da outros, o civilizado não se deixa maravi-
ausência de singularidade ou autentici- lhar por aquilo que produz. O modo de
dade das suas ações, pelo facto de so- ser provinciano assume aqui uma ati-
brestimarem o que é proveniente do ex- tude condizente com o que podemos
terior. A presente configuração admite denominar por plagiador de modas.
um deslumbramento em torno do que é A  crítica a essa forma advém do facto
apresentado como repleto de novidade, de que o provinciano é um permanen-
não obstante o carácter de passividade te espectador das ações prosseguidas
que lhe é vulgarmente associado. pelo civilizado. Pessoa escreve que
A tentativa de conceptualizar o pro- “o  provinciano, porém, pasma do que
vincianismo, no quadro da cultura na- não fez, precisamente porque o não
cional contemporânea, parece sofrer fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo.
um desdobramento: reconhecer ou não Se assim não sentisse, não seria pro-
reconhecer o outro. No ano de 1928, vinciano” (Id., Ibid., 6), reconhecendo
num texto denominado “O provincia- assim um traço característico de Portu-
nismo português”, Fernando Pessoa gal. A  inconsciência provinciana apa-
apresentava o provincianismo como rece em Pessoa como a patologia da
sendo o “mal superior português”, em- sociedade portuguesa. Desde logo, Eça
bora admitindo que tal destino não se- de Queirós é visto como exemplo desse
ria uma exclusividade do contexto na- provincianismo, pela forma como pro-
cional. Definia então o provincianismo cura encontrar-se com a civilização.

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1562 Antiprovincianismo

Num texto que data de 1932, intitula- que assola a elite nacional, em contraste
do “O caso mental português”, o mesmo com o escol de outras nações civilizadas.
Fernando Pessoa caracterizava como Ainda nesse texto crítico, o autor diz-nos
provinciana a mentalidade portuguesa que o provinciano tem em comum com
do período de então. Para melhor fazer a criança a valorização do espontâneo e
compreender a sua posição, procura do artificial. Por fim, demonstrando que
analisar o estado das diferentes camadas os escritores e artistas nacionais apresen-
mentais. O povo, que corresponde à pri- tam um apego ao provincianismo, defen-
meira camada mental, é definido pela de que a emoção predomina nas obras
“incapacidade de refletir” (PESSOA, dos mesmos, sem que prevaleça o “auxí-
1993, 11). Desprovido de um espírito lio crítico da inteligência ou da cultura”
crítico, a sua atuação depende mais do (Id., Ibid., 15); refere ainda a ausência
acaso ou do irracional, formando no seu de planeamento e de organização que aí
todo um espaço homogéneo. A segunda transparece, e a ausência de ideias que
camada mental distingue-se por uma ca- caracterizaria o escol nacional.
pacidade de refletir em função do que Encontramos na Cartilha do Marialva
é produzido por terceiros. Por último, a (1960) de José Cardoso Pires uma reação
camada do escol ou das elites represen- perante “alguns provincianismos locais”
ta a capacidade de fazer uso da reflexão que predominariam no Portugal con-
e da crítica. Diga-se que todas as classes temporâneo. Segundo o autor, encon-
mencionadas, segundo o autor, estariam tramos a banalização deste provincianis-
impregnadas de provincianismo; daí este mo local “na ignorância, no ruralismo,
ser a enfermidade que atravessa todo o na não planificação, na resignação cam-
povo português. O provinciano portu- pestre ou na conservação fetichista do
guês, situando-se entre o campónio e o lugar-comum” (PIRES, 2002, 7). Na obra
citadino, reconhece, por um lado, a ar- em questão, a figura do marialva aparece
tificialidade do progresso, mas, por ou- como o representante de um certo imo-
tro lado, sente inconscientemente uma bilismo político-cultural, privilegiando
atração por todas essas irrupções no desde o séc. xviii uma certa conceção
tempo. De acordo com Pessoa, “o amor de vida.
às grandes cidades, às novas modas, às Sugere-se, então, a respeito da conce-
‘últimas novidades’, é o característico ção do poder político nacional, que o
distintivo do provinciano” (Id., Ibid., 13). provinciano é contrário ao citadino, de-
Enquanto o campónio, que tal como o rivando dessa oposição um determinado
provinciano sente a artificialidade do conflito irreconciliável. José Cardoso Pi-
progresso, demonstra um desconforto e res recorda o processo de modernização
um sentido crítico para com essa realida- empreendido na época pombalina, con-
de, o provinciano deixa-se inundar pelo trastando com essa tendência a persis-
diferente. A tese de Pessoa pretende sa- tente imutabilidade do espírito campes-
lientar duas realidades: o provincianis- tre que encontra na cidade um espaço de
mo é uma tendência presente no quadro desconfiança. A cidade, em contraponto
da humanidade civilizada, referindo-se com o campo, atemoriza o provincia-
especialmente, porém, ao caso portu- no, por ser o espaço privilegiado onde
guês; a grande diferença entre o contex- a modernização e o progresso ganham
to nacional e o restante contexto da ci- relevo. Essa resistência perante a cultura
vilização encontra-se no provincianismo citadina visa contrariar a novidade e o

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Antiprovincianismo 1563

vício que, segundo os devedores da “paz


rural”, a caracterizaria por excelência.
Exemplo típico de uma cultura política
provinciana, António de Oliveira Salazar
apelava a princípios e valores como a
“mística da terra” e a “vocação de pobre-
za”. Adiante, Cardoso Pires sustenta que
o “incontestável é que, como homem de
lavoura contra a cidade ou dominando
a cidade, o influente provinciano ain-
da hoje enaltece o saber nas exposições
rudes que se transmitem de geração em
geração e manifesta uma sensibilidade
refratária em relação à industrialização
agrícola” (Id., Ibid., 26).
Este autor reage contra a “inatuali-
dade de uma ordem provinciana” que
vinha persistindo em meados do séc. xx
em território nacional. No pós-Segunda
D.R.

Guerra Mundial e aquando do surgi-


mento da Guerra Colonial, proclama-se António José Saraiva (1917-1993).
o “orgulhosamente sós” perante as pres-
sões internacionais; a substituição do
termo “colónia” por “província ultrama- reverência esperada. Para além do pa-
rina” é apontada como outro sinal in- ternalismo doméstico, em que a mulher
dicador da mesma tendência (Id., Ibid., cumpre a missão providencial de zela-
81). O  irracionalismo que atravessa a dora do lar, o paternalismo governa-
sociedade portuguesa permite-nos en- mental socorre-se da Providência divina
tender o provincianismo marialva que para perpetuar na estrutura de poder o
persiste em certos valores: a valorização indivíduo tocado por Deus. Numa lin-
do ideal campestre; a persistência das guagem política, podemos afirmar que
tradições e costumes locais; a defesa da o provincianismo propõe-se sempre
submissão hierárquica e da disciplina enaltecer a ordem tradicional presen-
laboral; o papel subalterno a desempe- te nos alvores do tempo, rejeitando as
nhar pela mulher. Em jeito de conclu- fórmulas modernas e progressistas que
são, Cardoso Pires refere que para “as repousam no vocabulário do avanço
mentalidades acientíficas, mistério e sa- civilizacional.
gração estão presentes em todo o ato de No final da déc. de 1960, apresentando
criar” (Id., Ibid., 108). O provincianismo a sua reflexão sobre o tema em análise,
assume-se, enquanto cultura política, o historiador da cultura António José
na forma como valoriza e sai em defesa Saraiva começava por afirmar que “um
de princípios, crenças, valores e ideias dos lugares-comuns mais cansativos de
como a maternidade, o chefe ou o con- uma fração dos plumitivos portugueses
ceito de nação. Na unidade familiar, o é o provincianismo nacional” (SARAI-
marido aparece natural e previamente VA, A Capital, 14 jan. 1969, 314). Prosse-
como pater familias, devendo-se-lhe a guindo de alguma forma o estilo crítico,

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1564 Antiprovincianismo

provocatório ou mesmo sarcástico pre- assim dominar por uma certa alienação
sente em Pessoa, assume que o provincia- social: “toma a publicidade à letra, inte-
no é aquele que o é sem querer dar mos- rioriza o mito e procura recalcar para
tras de o ser; ao mesmo tempo, procura o inconsciente a sua própria realidade”
enjeitar a sua condição e ser reconhecido (Id., Ibid.).
por aquilo que não é, embora pretenda Descrevendo o provincianismo na qua-
sê-lo. lidade de problema endémico da socie-
Para este autor, a “obsessão do provin- dade portuguesa contemporânea, Saraiva
cianismo” é o único critério que lhe per- procura demonstrar que o descontenta-
mitirá definir tal condição, de tal modo mento nacional se resolveria resgatando
que o provinciano é dominado pelas o país à acefalia que retira ao Homem a
aparências. Nesse conflito interior que autenticidade que lhe permitirá assumir
se manifesta no provinciano, situação a sua real condição. O combate ao pro-
que vem a revelar-se em toda a sua exte- vincianismo implica, simultaneamente, a
rioridade, o mesmo pretende ser “cisne” adesão do português ao cosmopolitismo:
não obstante ter nascido “pato”. A feira “viver no mundo assumindo-nos e não es-
de vaidades é o seu lugar-comum, o que condendo-nos” (Id., Ibid.).
leva Saraiva a afirmar que “provinciano é
aquele cuja principal preocupação é não
Bibliog.: PESSOA, Fernando, “O caso men-
parecer provinciano”. Descreve assim três
tal português”, in PESSOA, Fernando,Textos
espécies de provincianos: “os egrégios de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Nova Ática,
intelectuais que dentro de Portugal sub- 1993; Id., “O provincianismo português”, in
vivem de mitos cosmopolitas à superfície PESSOA, Fernando, Textos de Crítica e de Inter-
da civilização e não têm sequer as pala- venção, Lisboa, Nova Ática, 1993a; PIRES, José
vras necessárias para falar a realidade que Cardoso, Cartilha do Marialva, Lisboa, Círculo
é a sua”; “os que fora de Portugal vestem a de Leitores, 2002; SARAIVA, António José,
“Provincianismo”, A Capital, 14 jan. 1969.
pele que não lhes pertence e estropiam o
próprio nome de batismo”; e “os que jul- Tiago Rego Ramalho
gam dar provas de não-provincianismo”
(Id., Ibid., 315).
O que se assume como provinciano, se-
guindo esta linha de pensamento, há de
ser algo que não aquilo pelo que procura
ser reconhecido. Por sua vez, provincia-
no é o que veste “roupa alheia”, que reve-
la “inautenticidade”, “descaracterização”
e “vergonha de si próprio” (Id., Ibid.).
É neste sentido que António José Sarai-
va vem insurgir-se perante a verdadeira
essência do provincianismo: a falsidade.
Deixando-se submergir numa realida-
de dominada pelo ditame exterior, pela
regulação do hábito e do comportamen-
to, pela uniformização dos preceitos de
vida, o provinciano receia deixar-se ficar
para trás na escalada do tempo; deixa-se

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Antipsicologismo 1565

Antipsicologismo Existem características comuns, certa-


mente. Por um lado, a evidência mani-
festa-se de muitos modos: é evidente para
alguém que está a sentir cócegas ou a ver
uma árvore, mas também é evidente para
alguém a validade de um determinado ra-
ciocínio lógico, como o modus ponens, ou

A filosofia desenvolveu desde a Grécia


Antiga um esforço de compreensão
das estruturas da mente humana. O pen-
de uma determinada operação matemá-
tica correta. A sensação de evidência não
se confunde com o conteúdo específico
samento português foi desde sempre sen- das cócegas, nem com o conteúdo especí-
sível a esta área de investigação filosófica. fico do raciocínio lógico ou matemático.
A lista dos fenómenos mentais é muito A temporalidade é outra característica co-
longa: sensações, cócegas, dores, fantasias, mum: uma sensação tem um gradiente, e
crenças, etc. Colocou-se desde muito cedo um raciocínio tem uma sequencialidade.
a questão do estatuto relativo da inteligên- Seria possível enriquecer significativa-
cia racional, nomeadamente da capacida- mente a lista de características comuns
de humana de raciocinar logicamente e a todas as estruturas, atividades e con-
da capacidade de realizar operações lógi- teúdos da mente humana, bem como a
co-matemáticas. A racionalidade parece lista de propriedades que as diferenciam
ter características diferentes da perceção, umas das outras.
da memória, da crença, e da vontade. Este debate intelectual atingiu o seu
O debate em torno do psicologismo ponto mais elevado entre o final do
aparta duas posições filosóficas antagóni- séc. xix e o início do séc. xx, período em
cas. Por um lado, o psicologismo defende que os matemáticos aprofundaram a ques-
que a racionalidade que se expressa na tão dos fundamentos, e em que os lógicos
lógica, na matemática, na argumentação lutaram por desenvolver e refundar o le-
e no método científico deriva da vida gado aristotélico e multissecular da lógica,
psíquica. Deste ponto de vista, os enun- bem como por posicionar-se em relação à
ciados racionais teriam o mesmo estatuto matemática. O facto histórico de a psicolo-
que as perceções, as crenças e as dores. gia se ter tornado uma ciência autónoma
Em consequência, a ciência que estuda a e independente foi decisivo neste debate.
vida psíquica seria o fundamento da ciên- A lógica acompanhou a história do
cia que estuda a racionalidade. Por outro pensamento português e foi decisiva em
lado, a racionalidade tem características debates de natureza filosófica, mas tam-
que não são compartilhadas por outras bém educacional. Quando se considera
estruturas mentais humanas. A subjetivi- a persistência de um assunto, que irma-
dade da expressão de uma preferência na Pedro Hispano, os conimbricenses,
alimentar, e.g., choca com a objetividade Fr. João de São Tomás, António Cordeiro,
de um raciocínio lógico, ou com a pre- Manuel de Azevedo Fortes, Manuel Álva-
cisão de um cálculo matemático, que se res, Luís António Verney, Francisco Viei-
impõem à inteligência das pessoas. Esta é ra de Almeida, Edmundo Curvelo e M. S.
a posição defendida pelo antipsicologis- Lourenço, entre muitos outros, é a justo
mo, segundo a qual as leis que regem a título que se poderá afirmar que a arte de
racionalidade são diferentes das que re- pensar bem é um motivo de orgulho para
gem outros fenómenos mentais. a cultura portuguesa.

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1566 Antipsicologismo

O debate internacional em torno do Trabalhando com a ideia de que a lógi-


psicologismo, em que pontificaram au- ca deveria ser “uma ciência pura de aná-
tores como John Stuart Mill, Theodor lise do pensamento” (BARBOSA, 1996,
Lipps e, sobretudo, Gottlob Frege e 35), a primeira tarefa a resolver seria a
Edmund Husserl, colocou, todavia, des- questão do psicologismo. Miranda Barbo-
de o final do séc. xix, muitas questões sa considerava que só o êxito da crítica
complicadas sobre a natureza última da ao psicologismo permitiria pensar numa
racionalidade que se manifesta na lógi- lógica pura, livre do condicionamento
ca, na matemática e em muitos outros psicologista. Sendo a lógica a ciência do
modos de argumentação racional. Ape- pensamento, e sendo este uma faculdade
sar do interesse multissecular, as muitas anímica, seria plausível que a lógica fos-
vicissitudes que acompanharam a histó- se enquadrada pela psicologia. Todavia,
ria da lógica no pensamento português Miranda Barbosa argumenta que a lógica
levaram a que só quatro décadas depois “não se confunde com uma ciência analí-
aparecessem os primeiros ecos desse tica e especulativa do ‘pensar’” (Id., Ibid.,
debate em Portugal. Os filósofos nacio- 41). O facto de o pensamento ser um
nais que na déc. de 1940 maior atenção produto da mente humana não implica
deram às questões de didática da lógica que o trabalho lógico necessite de uma
moderna posicionaram-se contra a tese prévia investigação psicológica. Diferen-
de que as ciências formais dependeriam temente, a investigação psicológica não
da psicologia. As ideias que defenderam é útil, nem possível, nem legítima como
revelam que a academia portuguesa fundamento da lógica. Com subtileza,
acompanhava o debate internacional so- aparta-se a lógica das outras atividades
bre o psicologismo. Entre os nomes mais da mente humana, uma vez que aquela
representativos estão Arnaldo de Miran- diz respeito à “auto reflexão do espírito
da Barbosa, Francisco Lopes Vieira de que tem os pensamentos por objeto e por
Almeida, Vitorino Magalhães Godinho e instrumento” (Id., Ibid., 42). No entanto,
Edmundo Curvelo. o autor coimbrão não deixa de sublinhar
O professor coimbrão Miranda Barbo- que o seu pensamento sobre a lógica não
sa posicionou-se entre os defensores do implica que esta se tenha de construir no
antipsicologismo na sua tese de licencia- vácuo; nas suas palavras, “interpretar esta
tura de 1940. É talvez o autor português independência como uma verdadeira
que se refere ao assunto de modo mais ‘tábua rasa’ é imaginar o maior absurdo
sistemático; começa por apresentar o concebível” (Id., Ibid., 65).
ponto de vista psicologista, e acaba, pos- A posição defendida por Miranda Bar-
teriormente, por refutá-lo. Com influên- bosa constitui uma formulação clara do
cia de Husserl, Miranda Barbosa defen- problema que está em causa no debate
deu que, para analisar e sistematizar os entre psicologismo e antipsicologismo.
pensamentos, é necessário atender às Por um lado, verifica-se que a racionali-
condições a que a lógica pura deve obe- dade que se manifesta na lógica é bastan-
decer. No seu entender, essas condições te diferente das outras manifestações da
são três: 1) não depender de nenhuma mente humana. Compreender o princí-
outra ciência; 2) diferenciar entre o pro- pio da identidade e o princípio da não
blema lógico e a gnosiologia; e 3) tratar contradição revela, e.g., uma capacidade
de problemas próprios, não os confun- da inteligência que se distingue da ca-
dindo com problemas afins. pacidade de apreciar um perfume. Por

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Antipsicologismo 1567

outro lado, Miranda Barbosa compreen-


de que as estruturas de racionalidade ló-
gica não podem existir num vazio mental.
Significa isto que poderá existir uma lógi-
ca mais profunda na mente humana que
explique a interligação entre as capaci-
dades lógicas, matemáticas, fenoménicas
e linguísticas? De facto, uma lógica tão
profunda que até explique as estruturas
do imaginário, as crenças religiosas e as

D.R.
experiências místicas? Deste ponto de
vista, a crítica ao psicologismo seria me- Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011).
ramente regional, consistindo em afir-
mar que um silogismo não tem que ver
com a capacidade de ver as cores do pôr to. Esta limitação foi afastada, quando
do sol. Esta crítica, contudo, apesar de se compreendeu que a lógica “deve des-
localizada, tem a vantagem de auxiliar a prezar por completo toda e qualquer
compreender estratos mais profundos da referência a um conteúdo pensado para
mente humana. Fica em aberto, como é atender exclusivamente à forma comum
evidente, um grande conjunto de ques- a todos os conteúdos”, e que, em conse-
tões, nomeadamente a possibilidade de quência, “deve eliminar do seu campo as
provar a existência dessa lógica profunda, considerações de carácter psicológico”
a sua localização no interior da mente, a (GODINHO, 1940, 53-54). Na sequência
sua eventual relação com as estruturas da crítica à pretensão de fundamentar a
do cérebro, e a sua hipotética existência lógica na psicologia, Magalhães Godinho
autónoma fora da mente humana, num critica o positivismo lógico, pois, do seu
também hipotético mundo platónico. ponto de vista, essa escola filosófica estava
Vitorino Magalhães Godinho, no capí- refém de uma doutrina empírica do co-
tulo 2 da sua tese de licenciatura, desen- nhecimento. Não podia, por conseguin-
volveu uma resenha histórica sobre a evo- te, postular a existência autónoma de
lução do pensamento lógico a partir do um mundo lógico, nem uma consciência
séc. xix, sublinhando as cinco teses que transcendental ao modo kantiano. Subli-
explicitam a contribuição de Kant para a nhando a contradição fatal aí implícita,
lógica contemporânea, abordagem que o futuro historiador concluía: “A filosofia
torna clara a ideia de que a lógica é inde- empírica não pode fundamentar outra
pendente da psicologia. As cinco teses são lógica que não seja uma determinada ma-
as seguintes: a lógica é estritamente for- neira de pôr um problema psicológico”
mal; a lógica é independente da psicolo- (Id., Ibid., 63).
gia; todo o conteúdo provém da intuição; Francisco Lopes Vieira de Almeida
a matemática não deriva da experiência; também salientou várias críticas ao psico-
e a matemática é uma ciência formal. No logismo. O professor lisboeta deu o seu
entanto, ao interpretar o contributo de acordo a argumentos de Husserl. Os seres
George Boole, e.g., Godinho considera ideais (essências, princípios lógicos, etc.)
que ainda existe um sentido psicológico estão fora do tempo e têm validade abso-
no cálculo puramente formal porque luta, o que faz com que sejam diferentes
este manifesta a marcha do pensamen- de tudo o que depende da organização

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1568 Antipsicologismo

mental do indivíduo. Para Vieira de Al- traposição ao psicologismo forte e ao


meida, o vício capital é o “‘psicologismo’, antipsicologismo. O psicologismo fraco
a tendência para explicar as relações usa dados da psicologia empírica como
fundamentais em função da psicologia” ponto de partida, mas vai muito além da
(ALMEIDA, 1987, 278). Ora, o pensa- simples descrição psicológica. Atribui um
mento lógico não se coaduna com esta lugar central à psicologia, a ciência neces-
teoria frágil dos fundamentos da lógica. sária para se compreender o ser humano,
Esta é a ciência dos princípios certos e mas afasta a ideia de reduzir todos os do-
indubitáveis, dos raciocínios válidos; em mínios científicos à mesma. Se há alguma
consequência, afirma, “um princípio lógi- crítica que deva ser feita às ideias de Cur-
co não recebe validade do facto de o ho- velo, é a de excesso de logicismo, e não
mem não poder pensar o contrário, antes a de excesso de psicologismo. O projeto
é absolutamente válido, ainda quando filosófico de Curvelo consiste em funda-
ninguém o exprimisse” (Id., Ibid., 279). mentar todas as ciências na psicologia,
De modo que a lógica, também para este e esta, por sua vez, na lógica, e não o
autor, não se pode fundamentar na psi- contrário.
cologia, uma vez que esta é uma ciência O cientista filósofo, como se designava,
construída a partir da indução de dados adota uma posição ambivalente entre a
hauridos da experiência. lógica e a psicologia, que considera mais
Edmundo Curvelo repensou as rela- vantajosa para compreender a constru-
ções entre a lógica e a psicologia. De ção de todo o conhecimento humano.
acordo com o seu pensamento, todo o co- O conhecimento psicológico não é o fim
nhecimento deriva da consciencialização da investigação. As leis psicológicas não
que o ser humano faz do mundo e de si. subordinam todas as outras leis científi-
Ou seja, qualquer atividade lógica acon- cas. Todos os objetos poderão ter um ca-
tece no seio de um fluxo de consciência. rácter psicológico, na medida em que são
A proximidade do autor ao neopositivis- percebidos por uma mente humana, mas
mo, e, principalmente, à ideia de fazer há objetos psicológicos subjetivos, que se
depender os conceitos lógicos de intui- referem ao mundo interior dos sujeitos,
ções-dado relacionáveis com a experiên- e objetos psicológicos objetivos, que refe-
cia sensível, poderia fazer crer que o seu rem – o autor alentejano utiliza o termo
pensamento padecia de psicologismo. “postulam” – objetos que localizamos fora
Porém, cedo este lógico português se do sujeito. As leis que regem um e outro
apercebeu deste risco, e tratou de salien- tipo de objetos são diferentes, o que não
tar que os princípios lógicos não depen- significa que se possa aceitar a “pré-exis-
dem da intuição psicológica dos seres hu- tência do plano puramente lógico”, ideia
manos, mas das necessidades próprias da que o autor entende como metafísica (Id.,
análise lógica. Neste sentido, curiosamen- Ibid., 141). É o processo de abstração que
te, ainda que o autor alentejano defenda cria o plano da lógica pura, e, consequen-
uma relação muito próxima entre lógica, temente, a psicologia é indubitavelmente
epistemologia e psicologia, não aceita o um aspeto a ter em conta na construção
psicologismo, afirmando que não cultiva do conhecimento. Os princípios lógicos
uma “confusão entre lógica e psicologia” são relações úteis e não leis absolutas,
(CURVELO, 2013, 1161). pelo que poderão alterar-se conforme as
Pode depreender-se que Curvelo ad- conveniências das construções científicas
vogava um psicologismo fraco, em con- que se pretendam. Lapidarmente, “não

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Antipsicologismo 1569

há, para os homens, outra lógica que não pelos sentidos (têm, e.g., a ideia de triân-
seja lógica humana” (Id., Ibid.). Sendo gulo perfeito, sem nunca o terem visto
o homem a medida de todas as coisas, a pelos sentidos), conclui Azevedo Fortes:
mente humana é o assunto que importa “Do que se segue que a nossa alma tem
investigar; contudo, se deve ocorrer algu- operações intelectuais que de nenhu-
ma redução epistemológica, é da psicolo- ma sorte dependem do corpo, nem dos
gia à lógica, e não o contrário. sentidos” (Id., Ibid., 97). Dando algumas
Chegando a este ponto, é importante ilustrações disto mesmo, as regras da
ter noção de dois aspetos que permitem matemática não se confundem com as
enquadrar o debate entre o psicologismo do conhecimento sensível; as paixões da
e o antipsicologismo: primeiro, é preciso alma, que impedem que se julgue bem o
ter em conta que qualquer época é o futu- que é verdadeiro e falso, não se confun-
ro de todos os seus passados, e que todos dem com os atos puros do espírito, como
os futuros equacionarão problemas que as ideias de perfeição e de regularidade,
podem ter sido intuídos anteriormente; garantidas, em última análise, por Deus.
segundo, não se pode esquecer que os Não será forçado ver aqui uma tese inci-
debates intelectuais dificilmente se acan- piente de antipsicologismo, pelo que há
tonam às épocas e às áreas disciplinares todo um trabalho a fazer para rastrear
que os viram nascer. as antecipações ao debate de Frege e de
É justo reconhecer que este debate Husserl em autores portugueses antigos,
localizado no tempo foi antecipado por de Silvestre Aranha e António Cordeiro,
muitos autores nacionais. De facto, todos até Silvestre Pinheiro Ferreira e Manuel
os autores que se dedicaram a questões Pinheiro de Almeida e Azevedo.
ligadas à mente humana tiveram de ter, Este debate não se conteve dentro dos
ainda que de forma tácita, uma teoria so- muros da academia, evidentemente. Os
bre as relações entre lógica e psicologia. autores de compêndios liceais contribuí-
Manuel de Azevedo Fortes, e.g., parece ram para difundir a alegada evidência de
ter intuído os termos principais do futu- que a lógica deve ser apartada da psico-
ro debate. Na sua Lógica Racional (1744), logia. Um dos mais claros exemplos dis-
afirma que nada podemos conhecer com so encontra-se no manual de filosofia de
evidência sem previamente nos conhecer- Eugénio Aresta, discípulo de Leonardo
mos a nós mesmos: “As nossas ideias são Coimbra. Aparecido em 1933, e adotado
a base e fundamento de todo o conheci- como livro único em 1950, este manual
mento […] e sem nos conhecermos a nós abordava o que na altura era conhecido
mesmos não poderemos adquirir conhe- como psicologia racional. Numa breve
cimento algum com evidência e clareza. secção sobre a relação entre a psicologia
E assim, primeiro nos devemos examinar e a lógica, o autor salienta que compete
interiormente para saber o que somos e o à psicologia estudar “toda a vida do espí-
que podemos e deste exame havemos de rito, tal como ela se revela à observação
tirar os mais sólidos fundamentos, regras e à experiência, nos seus três aspetos, o
e preceitos, assim da lógica como de to- cognitivo, o sensitivo e o volitivo”, e que
das as mais ciências” (FORTES, 2002, 76). compete à lógica estudar as “operações
Seguindo à letra esta recomendação, de- do conhecimento intelectual, procuran-
ver-se-ia adotar o psicologismo. Pelo con- do as suas condições de validade e legiti-
trário, depois de ponderar que os seres midade e o seu valor de investigação e de
humanos têm ideias que nunca passaram prova” (ARESTA, 1954, 12). Tratando-se

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1570 Antipsicologismo

de um manual liceal, percebe-se que o Costa Torres, que, perguntando se a ló-


antipsicologismo se tornara uma doutri- gica constitui “um simples capítulo da
na influente na educação nacional. psicologia”, responde negativamente,
Outro exemplo é O Pequeno Manual de “porque diferente é o ponto de vista com
Filosofia, de Vasco de Magalhães-Vilhe- que os problemas são considerados numa
na, que afirma igualmente “a autonomia e noutra” (TORRES, 1953, 23). Seguindo
da lógica em relação à psicologia” (MA- as linhas gerais do pensamento de Kant
GALHÃES-VILHENA, 1956, 274). Este e de Husserl, o autor defende que a inte-
manual foi editado em 1942, e adotado ligência humana tem a capacidade de se
pelos liceus da Guarda e de Angra do He- desdobrar e de julgar os próprios pensa-
roísmo em 1943. Todavia, em 1956, a se- mentos. Conclui afirmando que “a razão
gunda edição do manual foi amplamen- lógica parece, portanto, uma realidade
te revista e aumentada de acordo com o independente e superior à razão atuante”
programa oficial aprovado em 1954. Esta (Id., Ibid., 24).
edição foi muito criticada por António A reflexão que os filósofos portugue-
de Magalhães, em 1957, na Brotéria. Di- ses desenvolveram contra o psicologismo
ferentemente, este manual revisto e am- tem pontos em comum com o debate cro-
pliado foi apreciado positivamente por nologicamente anterior desenvolvido por
M. S. Lourenço num artigo sobre o ensi- teorizadores literários e beletristas sobre
no da lógica no liceu, publicado na revista o valor do romance psicológico.
O Tempo e o Modo, em 1964. Curvelo procurou descobrir a estrutura
Na secção do manual dedicada à re- lógica do fluxo de consciência (stream of
lação entre a lógica, a gramática e a psi- consciousness) de William James, que foi
cologia, Magalhães-Vilhena defende que uma das grandes influências na criação
“a lógica só retém as operações men- do romance psicológico, um género lite-
tais que se efetuam no plano superior rário em que se notabilizaram escritores
do espírito e quando tem por escopo a como Marcel Proust, James Joyce, Virgi-
verdade”, e que a psicologia “não pode nia Woolf e William Faulkner. Tratava-se
descurar qualquer aspeto dos fenómenos de descrever com o maior rigor possível
psíquicos” (Id., Ibid., 273). Explicitando o todos os conteúdos de que um sujeito
seu pensamento afirma que “do ponto de tem consciência numa determinada altu-
vista da psicologia não há a considerar se ra da sua vida: experiências sensíveis, me-
os juízos ou os raciocínios, por exemplo, mórias, intenções, cócegas, emoções, etc.
são verdadeiros ou falsos, se as conse- A opinião de que em Portugal não terá
quências decorrem necessariamente das havido um grande interesse pela escrita
proposições iniciais e em conformidade intimista não tem fundamento, já que a
com os princípios lógicos. O que cumpre escrita intimista foi, desde tempos recua-
ao psicologista estudar é a maneira como dos, um dos instrumentos usados pelos
as operações mentais se realizam, não as diretores espirituais dos conventos e mos-
suas estruturas formais” (Id., Ibid.). To- teiros para acompanhar o progresso na
davia, apesar da distinção que sublinhou devoção dos religiosos a seu cargo; exem-
entre a lógica e a psicologia, Magalhães­ plo disso é a Autobiografia de Antónia
‑Vilhena estava ciente das muitas contro- Margarida de Castelo Branco. O objetivo
vérsias que existiam em torno da mesma. dessa biblioteca vasta, ainda não suficien-
Nos anos 50, este debate mereceu um temente estudada, não era literário, mas
capítulo no Tratado de Lógica de Raul da de orientação espiritual. Os religiosos

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Antipsicologismo 1571

não procuravam publicar esses escritos de


aperfeiçoamento pessoal; mas também é
verdade que outras obras importantes do
Ocidente foram publicadas sem autori-
zação dos respetivos autores, das Medita-
ções, do Imperador Marco Aurélio, até às
obras de Kafka. Fora do âmbito religioso,
e dentro deste tipo de escrita, destaque
para a autobiografia Fortuna, de Manuel
de Faria e Sousa, escrita em castelhano, e
para o Espelho da Vida Humana, de Uriel
da Costa, escrito em latim.
No período em que o debate europeu
em torno da tese filosófica do psicologis-
mo e da estética literária psicologista mais
se desenvolveu, nas primeiras décadas do
D.R.

séc. xx, apareceram muitas obras que re-


José Régio (1901-1969).
sultavam da preocupação de registar os
movimentos mais subtis da alma huma-
na. Gaspar Simões, em 1929, publica Elói, dades superiores que conseguem manter
que talvez seja o primeiro romance psico- uma ligação estreita com a sua própria
lógico português. A este título haverá que intimidade. Neste sentido, estes homens
acrescentar várias outras obras, como a de sensibilidade, inteligência e imagina-
Bússola Doida (1932), de Aleixo Ribeiro; ção superiores conseguem aceder a uma
O Jogo da Cabra Cega, de José Régio, de fonte de criatividade intemporal, tornan-
1934, mas que já tinha sido anunciado em do-se exemplares para o resto da socieda-
agosto de 1929 na revista Presença; Vidas de. Segundo Régio, Gil Vicente, Camões,
São Vidas (1966), do mesmo autor; A Cria- Antero e António Botto conseguiriam
ção do Mundo (1937-39), de Miguel Torga, atravessar os séculos devido à sua força ín-
Nome de Guerra (publicado em 1938, mas tima. A seguinte frase resume o seu ideá-
escrito em 1925), de Almada Negreiros; rio estético: “Literatura viva é aquela em
Caminhos Magnéticos (1938), de Branqui- que o artista insuflou a sua própria vida, e
nho da Fonseca; e Solidão (1939), de Ire- que por isso mesmo passa a viver de vida
ne Lisboa, publicado sob o pseudónimo própria” (Id., Ibid., 2).
João Falco. Como seria de esperar, este ideário
A atenção aos movimentos mais subtis estético motivou fortes reações da par-
da alma também foi adotada como obje- te dos defensores do neorrealismo e de
tivo pelos colaboradores da revista Presen- pensadores politicamente comprometi-
ça. No primeiro editorial da revista, José dos com a transformação social por altu-
Régio afirma que a arte viva e original ra do início da Segunda Guerra Mundial
só pode derivar do que “provém da par- (1939­‑1940). Numa curiosa polémica que
te mais virgem, mais verdadeira e mais Régio manteve com Álvaro Cunhal, na
íntima duma personalidade artística” revista Seara Nova, em 1939, o programa
(RÉGIO, 1927, 1). Não se trata, eviden- do romance psicológico foi colocado em
temente, de autobiografia, nem de me- causa. Pareceu a este crítico que uma esté-
morialismo. Régio aponta para personali- tica exclusivamente dedicada à descrição

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1572 Antipsicologismo

dos movimentos íntimos dos afetos e das cologismo, a cultura portuguesa parece
ideias dos artistas pecava por excesso de ter estado ciente da relevância dos funda-
atenção ao próprio umbigo, e por não mentos psicológicos para o conhecimen-
corresponder aos apelos e necessida- to do mundo e do ser humano. A  psi-
des de partes significativas da sociedade cologia experimental, ainda que com
(&Antissolipsismo). Régio, denunciando um ligeiro atraso, foi uma ciência bem
a existência de um “timorato ou ressen- acolhida pela universidade portuguesa.
tido ódio do português pela psicologia”, É digno de nota o facto de o movimento
defendia um ideário de conhecimento contra o psicologismo ter surgido numa
aprofundado do Homem, objetivo que, época de renascimento filosófico e cientí-
do seu ponto de vista, não se confunde fico em Portugal, e também numa época
com o conhecimento de particularismos, em que se reclamou a reorganização do
subjetivismos ou individualismos (Id., ensino universitário e a autonomia de al-
1939, 6). gumas áreas, concretamente a psicologia
Este debate foi reiterado pelos cola- e a lógica. No confronto entre as duas
boradores da revista Vértice no início da áreas científicas, os autores portugueses
Guerra Fria. Manuel Campos Lima, João parecem oscilar entre psicologismo e an-
José Cochofel e outros pronunciaram­ tipsicologismo, como acontece claramen-
‑se contra o que consideravam ser um te com Miranda Barbosa e Curvelo. Nesta
excesso de protagonismo da psicologia fase do debate, a psicologia é entendida
na literatura. Raúl Gomes, em junho de como um todo; os críticos não enfatizam
1949, referindo-se aos “indivíduos que a questão das escolas e das tendências
vão buscar também a uma ciência como a dentro dessa ciência (introspeção, psica-
psicologia alimento para as suas criações nálise, Jung, psicologia humanista, cogni-
literárias”, pergunta se “serão as ciên- tivismo, etc.).
cias psicológicas mais compatíveis com No que diz respeito à essência do de-
a literatura do que as ciências sociais?” bate, cumpre deixar claro que não se
(RAMOND, 2008, 381). Opondo cons- descobriu ainda o modo de conciliar as
ciência a realidade, este colaborador da questões ligadas à mente com a descrição
Vértice equivoca-se ao associar a questão fisicista e matemática do mundo. Coloca­
das ciências à criação literária; esta não ‑se, pois, a questão: este debate trata de
depende da psicologia nem das ciências um problema datado ou perene? Vê-se,
sociais. Diferentemente, pode ter interes- por esta súmula da cultura portuguesa,
se em abordar a realidade psíquica ou a que há sinais de que a segunda opção é
realidade social. Para este colaborador, mais fiel aos eventos. O problema conti-
“o risco do psicologismo […] está em dar­ nua em aberto, e é provável que ultrapas-
‑nos a realidade tomada do ponto de vista se a capacidade humana de o solucionar.
particular, pessoal, de uma consciência”
(Id., Ibid., 382). Em consequência, para
a literatura representar com fidelidade a Bibliog.: ALMEIDA, Francisco Lopes Vieira
realidade social, teria de ser depurada do de, Obras Filosóficas, org. Joel Serrão e Ro-
gério Fernandes, vol. ii, Lisboa, FCG, 1987;
excesso de psicologismo.
ANDRADE, João Pedro de, “Psicologismo na
Apesar de José Régio ter considerado literatura portuguesa”, in COELHO, Jacinto
que o Português tinha aversão à psicolo- do Prado (dir.), Dicionário de Literatura, 3.ª ed.,
gia, e apesar das afirmações que foram vol. iii, Porto, Figueirinhas, 1987, pp.  876­
feitas por alguns intelectuais contra o psi- ‑878; ARESTA, Eugénio, Noções de Filosofia,

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Antipsiquiatrismo 1573

2.ª pt., Porto, Marânus, 1954; Barbosa, A.


de Miranda, Obras Filosóficas, org. Alexandre
Antipsiquiatrismo
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vol. v, Lisboa, Caminho, 2000, pp. 327-419;
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mo, definiu-se como um fenómeno
não só de negação da psiquiatria oficial
CURTO, Diogo Ramada, Cultura Escrita (Sécu- como também, sendo um movimento
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Raul da Costa, Tratado de Lógica, Lisboa, ed. do Hospital Psiquiátrico de Vaucluse, em
Autor, 1953. França, dá conta da radicalidade das po-
Manuel Curado sições defendidas e dos argumentos usa-
José António Alves dos na contestação antipsiquiátrica.
Será interessante perceber as origens
e a evolução histórica do fenómeno no
plano internacional. O movimento de
contestação radical à psiquiatria oficial
teve o seu começo na déc. de 1960, em
Inglaterra, sob a liderança ideológica dos
psiquiatras David Cooper, Ronald Laing
e Aaron Esterson. Um grupo de médicos
com uma longa prática psiquiátrica, quer
como psiquiatras em hospitais públicos,
quer como psicanalistas, começa a reu-
nir-se semanalmente em Londres. Todos
são movidos pela mesma convicção: o sa-
ber e a prática da psiquiatria revelam-se

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1574 Antipsiquiatrismo

D.R.
Visita de Mahatma Gandhi a Kingsley Hall (1930).

inadaptados e desajustados ao problema médicos psiquiátricos. Move-os também


da doença mental. o desejo de, a partir da análise crítica da
As suas referências culturais são diversas psiquiatria, chegar a um novo modelo de
e vão desde as obras de sociólogos e psi- compreensão da doença mental, e a um
quiatras americanos, com destaque para novo, e radicalmente diferente, modo de
Maxwell Jones e Erving Goffman, à obra prestação de cuidados de saúde.
de Michel Foucault, filósofo e historiador Inspirando-se nas comunidades tera-
francês, à fenomenologia e a certos filóso- pêuticas de Maxwell Jones, Cooper cria
fos existencialistas, tais como Kierkegaard, um primeiro local, a partir do qual possa
Heidegger e Sartre. Poderia dizer-se que interrogar a posição ortodoxa: funda em
as suas ideias, agrupadas sob o termo “an- Shenley, um grande hospital psiquiátrico
tipsiquiatria”, introduzido por David Coo- londrino, um serviço, a Villa 21, onde
per, se situam no cruzamento de várias agrupa doentes jovens com o diagnósti-
correntes filosóficas e sob a influência da co de esquizofrenia e aí estabelece o que
psicanálise e do marxismo. designa por “lugar de vida”: um serviço
Todos os intelectuais que participam radicalmente alterado do ponto de vista
de alguma forma neste movimento par- dos procedimentos, das normas, da hie-
tilham um forte sentimento de repúdio rarquia, da disciplina e das práticas mé-
da perspetiva médica, quer quanto à dicas. Este núcleo hospitalar comunitário
compreensão da doença mental grave funciona sem problemas relevantes de
(por eles designada pelo termo genérico 1962 a 1966, mas a contestação por parte
de loucura), quer quanto ao tratamento dos outros serviços é enorme e Cooper
e à organização dos hospitais e serviços vê-se forçado a desistir.

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Antipsiquiatrismo 1575

Em 1965, antipsiquiatras fundam a Phi- underground anglo-americano. Aí, Laing


ladelphia Association, associação filantró- e Cooper não limitam as suas ideias ao
pica e de investigação científica. Entre campo da psiquiatria, mas empreendem
os objetivos dessa associação podem ser um trabalho político de denúncia e de
destacados como principais os seguintes: subversão ideológica do status quo. Pro-
“libertar a doença mental, em particular põem a criação de comunidades infor-
a esquizofrenia, de todas as descrições”; mais e não institucionalizadas, espaços de
“empreender a investigação das cau- denúncia e de libertação à escala micros-
sas das doenças mentais e os meios de social, que conduzirão à transformação
as prevenir e tratar”; e “organizar locais da sociedade, dando uma clara priorida-
de acolhimento para pessoas sofrendo, de à “revolução cultural”.
ou tendo sofrido, de doenças mentais”. Em Portugal, o percurso do fenómeno
Nesse mesmo ano, a Philadelphia Asso- começou em 1972, com o aparecimento
ciation abre um centro comunitário em das traduções das obras de Laing e de
Londres, o Kingsley Hall. O relatório de Cooper. Com o advento do 25 de Abril e
atividades de 1969 afirma que este centro a profunda transformação política então
é “um lugar de preparação, um cadinho operada, abriu-se um campo de reflexão
onde muitas, senão todas as nossas teses e um espaço para a contestação ao quo-
iniciais sobre as experiências e o compor- tidiano português, que não podia deixar
tamento do normal e do anormal, do são de englobar a psiquiatria praticada no
de espírito e do louco foram analisadas”. nosso país.
Foram depois abertos outros dois centros Neste novo contexto, um grupo multi-
semelhantes. disciplinar de pessoas, incluindo intelec-
Em 1967, um grupo de antipsiquiatras tuais regressados a Portugal e que tinham
liderado por Cooper e Laing organizou
o Congresso Internacional de Dialéctica Ronald Laing (1927-1989).
da Libertação, onde, segundo os orga-
nizadores, se procurou “desmistificar a
violência humana sob todas as suas for-
mas, os sistemas sociais dos quais ela pro-
vém, e explorar novas formas de ação”
(SCHATZMAN, 1970). Participaram nes-
te Congresso sociólogos, psicanalistas,
psicólogos, economistas, artistas e repre-
sentantes do Living Theatre, da Univ. Li-
vre de Nova Iorque, e de várias organi-
zações políticas e culturais, bem como
intelectuais prestigiados, nomeadamen-
te Herbert Marcuse, J. Gerassi e Stokely
Carmichael, sendo este último um dos
líderes da organização americana Black
Panther Party. Do Congresso saiu, e foi
publicado em 1970, o livro Counter Cul-
ture: the Creation of An Alternative Society,
expressão próxima, quer a nível do título
quer a nível do conteúdo, do movimento
D.R.

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1576 Antipsiquiatrismo

Em outubro de 1974, o GODIP orga-


nizou importantes debates públicos em
que estiveram presentes David Cooper,
Franco Basaglia, Stanislaw Tomkiewicz,
Robert Castel, Erich Wulff, Ramon Garcia
Lopez, Valentín Corcés, Leonardo Vagin
e Gian Franco Minguzzi. As várias partici-
pações encontram-se publicadas no livro
Psiquiatria e Anti-Psiquiatria em Debate, que
foi coordenado por Manuela Fleming,
um dos membros fundadores do GODIP.
O livro foi publicado em 1977 pela Edi-
D.R.
tora Afrontamento, sediada no Porto, e
constituiu-se como um importante veí-
Maud Mannoni (1923-1998).
culo de conhecimento e de divulgação
das ideias propostas pela corrente da
tido contacto com o fenómeno da an- antipsiquiatria.
tipsiquiatria em França e em Inglaterra, As expressões sociais do fenómeno do
e outros que, não sendo estrangeirados, antipsiquiatrismo são várias. Com efeito,
se opunham ao silêncio e à repressão a desde a sua génese, o movimento da an-
que o Estado Novo tinha submetido o tipsiquiatria assumiu-se como um projeto
sector da Psiquiatria, iniciou uma série de transformação radical da vida, não se
de encontros no Porto, com o objetivo confinando ao domínio da psiquiatria e
de discutir a problemática das institui- às suas instituições. O que os seus mento-
ções asilares. Desses encontros resultou res questionavam todo um modo de vida
a criação de uma associação designada gerador de relações alienantes e opressi-
Grupo Organizador de Debates sobre as vas. Tal ficou bem patente no Congresso
Instituições Psiquiátricas (GODIP), com Internacional de Dialéctica da Liberta-
sede no Porto, e que viria a ter grande ção, já referido. O livro Counter Culture
importância na divulgação e extensão estimulou a criação de “zonas livres” (co-
do movimento de antipsiquiatria em munidades, anti-universidades, imprensa
Portugal. paralela, teatro livre, etc.) que se uniam
Aproveitando a vinda a Portugal de num claro apelo à revolução cultural.
alguns psiquiatras e outros profissionais Esta, de acordo com os seus mentores,
oriundos de vários países da Europa, que não se faria pelo afrontamento violento
periodicamente se reuniam para fazer das classes sociais, mas pela transforma-
uma análise da situação psiquiátrica a ção das relações interpessoais sob a in-
nível internacional, o GODIP promoveu fluência da mudança radical de ideias e
debates públicos que tinham, em síntese, de valores culturais.
o seguinte objetivo principal: “Denunciar O fenómeno antipsiquiátrico vai por-
e suscitar a reflexão pública sobre a situa- tanto buscar os seus fundamentos ideoló-
ção asilar das nossas instituições psiquiá- gicos ao movimento social mais abrangen-
tricas, encetar uma luta por uma melho- te designado por “sociedade paralela”.
ria das condições de vida dos internados, Este, surgido nos Estados Unidos e em
analisar modelos institucionais alternati- Inglaterra nos anos 60, coincide com o
vos” (FLEMING, 1977, 5). aparecimento do movimento hippy, do

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Antipsiquiatrismo 1577

movimento psicadélico (ao qual Laing pa no Hospital Psiquiátrico de Gorizia,


se sente muito ligado), e do movimento uma pequena cidade do Norte de Itália,
místico que levou centenas de jovens ao foi a máxima expressão do movimento
Oriente, à procura de novas experiências neste país. Neste país, o movimento foi li-
(o próprio Laing partiu para a Índia e derado pelos psiquiatras Franco Basaglia
para o Ceilão em 1972, onde viveu duran- e Giovanni Jervis. O livro L’Institution en
te um ano isolado e em meditação). Négation: Rapport sur l’Hopital Psychiatrique
A antipsiquiatria suscitou em França, de Gorizia, coordenado por Basaglia e que
onde as obras deste movimento come- será publicado em França em 1970, cons-
çaram a ser publicadas a partir de 1970, titui-se na altura como uma referência
uma viva polémica que envolveu dezenas incontornável da ideologia antipsiquiátri-
de artigos publicados em revistas psiquiá- ca italiana. Em outubro de 1974, aquan-
tricas, literárias e filosóficas, e em jornais do da sua estadia em Portugal, a convite
da imprensa tradicional e paralela, onde do GODIP, Basaglia e Franco Minguzzi
se exprimiam correntes marginais ou divulgaram os princípios e objetivos do
minoritárias. movimento Psiquiatria Democrática, cuja
Em 1970, depois de uma estadia em ideologia foi divulgada em Portugal atra-
Kingsley Hall, a prestigiada psicanalista vés do seu “Documento programático”
francesa Maud Mannoni afirma num dos (FLEMING, 1976, 136-138).
seus livros: “A antipsiquiatria, ao inscre-
ver-se num projeto político, visa a desmis-
tificação do papel que a sociedade atribui
à psiquiatria. Esta desmistificação preten-
de atingir o fundamento ideológico do
saber psiquiátrico” (MANNONI, 1970,
17). Deve então perguntar-se: em que Bibliog.: BASAGLIA, Franco, L’Institution en
consiste esta desmistificação? Manuela Negation, Paris, Seuil, 1970; Id., Che Cos’ È la
Fleming responde: “Ao pôr em questão Psychiatria?, Torino, Einaudi, 1973; COOPER,
precisamente o estatuto de doença men- David, Psychiatrie et Antipsychiatrie, Paris, Seuil,
tal atribuído pela sociedade à loucura, 1970; Id., La Mort de la Famille, Paris, Seuil,
1972; Id., Une Grammaire à l’Usage des Vivants:
e ao propor um outro modelo de expli-
Essai sur les Actes Politiques, Paris, Seuil, 1976;
cação, em que a loucura é considerada ESTERSON, Aaron, Les Feuilles Nouvelles, Dia-
como fenómeno social, cuja definição é lectique de la Folie, Paris, Payot, 1972; FLE-
imposta pela sociedade, os antipsiquia- MING, Manuela, Ideologias e Práticas Psiquiátri-
tras reduzem a psiquiatria a uma simples cas, Porto, Afrontamento, 1976; Id. (coord.),
emanação e a um instrumento desta mes- Psiquiatria e Antipsiquiatria em Debate, Porto,
ma sociedade, tendo por função a manu- Afrontamento, 1977; LAING, Ronald, e ES-
TERSON, Aaron, L´Équilibre Mental, la Folie
tenção e a defesa de uma certa ‘norma-
et la Famille, Paris, Maspéro, 1971; LAING,
lidade’ adaptada à ordem estabelecida” Ronald, La Politique de la Famille, Paris, Stock,
(FLEMING, 1976, 79). 1972; Id., Raison et Violence, Paris, Payot, 1974;
O movimento antipsiquiatria expande­ MANNONI, Maude, Le Psychiatre, Son Fou et la
‑se pela Europa e reforça em Itália corren- Psychanalyse, Paris, Seuil, 1970; SCHATZMAN,
tes contestatárias já existentes. A criação, M., Counter Culture: the Creation of An Alternati-
no início dos anos 60, de uma comuni- ve Society, London, Peter Owen Ltd. and Fire
dade terapêutica a partir das profundas Books, 1970.
transformações levadas a cabo pela equi- Manuela Fleming

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1578 Antipurismo

Antipurismo purismo era assumido e praticado essen-


cialmente por latinistas com diferentes
graus de purismo, como professores,
educadores e tradutores da Bíblia, cujas
atividades eram relativamente isoladas.
Essa tendência já é evidente no séc. xviii,
no contexto húngaro, e.g., em que a Com-

N um sentido lato, o termo “purismo”


designa uma tendência segundo
a qual se defende a manutenção, sem
panhia de Jesus se esforçou por adaptar o
vocabulário científico à língua húngara.
Todavia, o papel principal das institui-
mudanças ou concessões, de um deter- ções no movimento purista é desempe-
minado costume, pensamento, modelo, nhado pelas academias, desde a Accade-
doutrina, etc., sendo particularmente mia della Crusca (1572, Florença) e da
relevante nos campos da linguística, lite- Académie Française (1635) até às acade-
ratura, arquitetura e arte. Por seu lado, o mias do séc. xix estabelecidas na Europa
antipurismo manifesta-se como a antítese de Leste e à Academia Pérsica (1935). Es-
desta ideologia. tas, porém, foram incapazes de influen-
No campo da linguística, os discursos ciar grandemente o desenvolvimento do
e as práticas puristas têm como objetivo vocabulário segundo os seus princípios,
definir um determinado estado de língua com exceção, até certo ponto, da presti-
como sendo o mais puro. O purismo ma- giada Académie Française e da Academia
terializa-se em atitudes conservadoras em Húngara (1830).
relação às mudanças linguísticas que ine- O purismo linguístico mantém uma
vitavelmente afetam as línguas naturais. relação próxima com a noção de políti-
Na ideologia purista, a língua necessita ca linguística, aqui considerada como
de ser protegida de elementos suscetíveis o conjunto de diligências burocráticas
de a modificarem nos seus diferentes ní- exercidas por entidades oficiais responsá-
veis, tais como a fonética, a morfologia, veis pela codificação, pelo ensino e pela
a sintaxe e a semântica. De entre os fe- promoção da língua, escrita e falada.
nómenos que desencadeiam o purismo As atividades da Académie Française no
linguístico, destacam-se a utilização de séc.  xviii constituem um exemplo para-
estrangeirismos (&Antiestrangeirismos), digmático de uma política linguística ten-
o surgimento de neologismos, de desvios dencialmente purista, de onde surgiram
e novas construções sintáticas, as mudan- discursos com o objetivo de preservar a
ças de significado das palavras e aspetos pureza e a eloquência da língua, nomea-
de codificação da língua, em particular as damente restringindo a introdução de
reformas ao nível da ortografia. anglicismos e de elementos exteriores à
O pano de fundo institucional foi de- língua francesa tida como norma escrita
terminante para o surgimento dos mo- e falada. As políticas de língua, mais ou
vimentos puristas, de que são exemplos menos explícitas, podem influenciar a
não só as academias, mas também as es- consciência individual dos falantes da
colas religiosas ou ministérios. O objeti- comunidade linguística, que acabam por
vo principal de tais instituições era o de evitar o uso desses elementos. No entan-
criar uma norma para uma determinada to, as políticas de língua têm muitas vezes
atividade, i.e., para o ensino, para a ad- o efeito contrário, i.e., geram sentimentos
ministração, etc. Nos sécs. xvi e xvii, o antipuristas de incómodo com ações que

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Antipurismo 1579

tendem para o prescritivismo em detri- ro e sedutor, e acima de tudo ideológico.


mento do descritivismo. Nesta perspetiva, a modalidade escrita
À luz das diferentes posições em torno definia-se pela inspiração em autores de
das mudanças linguísticas, o purismo lin- reconhecido valor, bem como pelo uso
guístico apresenta contornos de um tabu de formas arcaicas com as quais se obti-
que reflete as funções unificadora e sepa- nha o estilo poético e se mantinha a tra-
radora inerentes à língua. Por um lado, a dição literária.
língua é idealizada como um instrumen- Pese embora o facto de serem elemen-
to codificado e normalizado que confere tos autorizados enquanto figuras de esti-
homogeneidade a uma comunidade de lo num determinado género literário, os
falantes, unindo-os sob uma noção de barbarismos, dialetismos, neologismos e
posse e de controlo de um património estrangeirismos foram objeto de crítica
cultural. A noção de controlo da língua de alguns dos escritores mais represen-
reflete-se nomeadamente na tentativa de tativos dos sécs. xvi e xvii em Portugal,
polir e aperfeiçoar a língua como se de por se enquadrarem numa ideologia an-
uma questão de higiene verbal se tratas- tipurista. Nos séculos seguintes, Castilho,
se. Por outro lado, a língua é permeável à Herculano e Garrett esforçaram-se por
inevitável mudança linguística, o que aca- manter o idioma português livre do uso
ba por reduzir o seu papel codificador, exagerado de palavras e construções es-
originando opiniões divergentes quanto trangeiras. De entre os escritores que me-
ao seu estatuto normativo (&Antinorma- lhor podem simbolizar o antipurismo na
tivismo). Na ideologia antipurista, a pos- literatura, José Saramago (1922-2010) foi
sibilidade de separar a língua dos seus dos que mais se destacou, pela polémica
agentes protetores e de controlo liberta-a que a sua escrita aparentemente simples
dos escrúpulos excessivos na pureza da despoletou na opinião pública. Com um
linguagem, ao mesmo tempo que amplia estilo muito próprio, marcado por frases
a sua força criativa e revela a heterogenei- e parágrafos compridos, em que as vír-
dade de pensamentos que dela podem gulas substituem os pontos finais, numa
emanar. Nesta linha de pensamento, o escrita cujo fluxo nem sequer os diálogos
desenvolvimento das ciências da lingua- alteram, Saramago desmontou uma pre-
gem contribuiu de certo modo para a tensa pureza da língua portuguesa. No
ideia de antipurismo, ao mitigar a ideia Brasil, os expoentes do purismo são Gon-
de uma língua perfeita, de objeto sacra- çalves Dias, João Francisco Lisboa e Ma-
lizado, tornando-a um objeto científico e chado de Assis. Em oposição à perspetiva
mais imune a juízos de valor. purista da língua, uma forma de antipu-
O purismo liga-se também ao cuida- rismo linguístico surgiu com Lima Barre-
do excessivo na preservação da língua to (1881-1922), jornalista e escritor bra-
literária, com origens bem demarcadas sileiro inconformado com o preconceito
nos princípios greco-latinos da retórica vernáculo e objetor dos aspetos artificiais
de Aristóteles, intimamente relacionada da literatura brasileira e do excessivo po-
com a elaboração do discurso, a elocutio. der da elite intelectual, cuja linguagem
De facto, na literatura, o purismo surge seguia o modelo luso do império. A pro-
por via de um cultismo exagerado dos dução escrita deste autor manifesta incoe-
princípios retóricos, utilizados inicial- rências gramaticais que estabelecem um
mente como instrumento do escritor e antípoda do ofício minucioso e artesanal
orador na produção de um discurso cla- dos académicos puristas. Uma definição

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1580 Antipurismo

de antipurismo, neste sentido, privilegia antipuristas – teriam perdido. Enquanto


a função comunicativa da língua, assim referências dessa perfeição, surgem a no-
como a criatividade espontânea que o pu- ção de máquina e as composições quase
rismo desencoraja. sempre retratando naturezas-mortas.
Na medida em que o antipurismo de- A realização mais significativa do purismo
safia as regras do sistema linguístico, a concretiza-se na obra arquitetónica de
literatura afigura-se como campo privile- Jeanneret (Le Corbusier).
giado e seguro para a criação de desvios à No contexto italiano, “purismo”, termo
norma, ainda que a aceitação desses des- cunhado em 1833 por Antonio Bianchi-
vios como elementos de inovação possa ni, um helenista e latinista, denomina
não ser imediata. um movimento pictórico do Ottocento
O diálogo entre as noções de purismo italiano, que surgiu sob a influência dos
e antipurismo estendeu-se também à arte pintores nazarenos, uma comunidade de
e à arquitetura. No campo da arte, mais artistas que se uniram para concretizar,
concretamente no âmbito da pintura, o através da pintura, os ideais de vida prati-
purismo surgiu como um movimento cados nas comunidades religiosas da Ida-
estético por volta de 1918, nascido do de Média. O Quattrocento foi o seu modelo
manifesto Après le Cubisme (1918), tendo de referência estética, o qual considerava
expressão teórica na revista L’Esprit Nou- a pintura na sua forma mais pura e procu-
veau (1920-25). Os traços puristas carac- rava recuperar a pureza dos artistas italia-
terizam-se por uma ausência de emoção e nos tidos como pioneiros (Cimabue, Ra-
uma acentuação da razão e do rigor, algo fael, Fra Angelico, Giotto). Em analogia
que pode ser explicado pelo facto de ter com este movimento, também no campo
surgido no período do pós-Guerra. Os das letras italianas surge um movimento
objetivos do purismo passariam por res- purista que procura recuperar formas ex-
taurar uma perfeição plástica que o cubis- pressivas puras, inspiradas no Trecento tos-
mo e outros movimentos – porventura cano. Em 1842, é publicado o manifesto
oficial deste movimento, Dell Purismo nelle
Arti, da autoria de Bianchini e subscrito
Villa Savoy, em Poissy (1928–1931), pelo pintor Tommaso Minardi, pelo es-
de Le Corbusier. cultor Pietro Tenerani e pelo nazareno
Frederik Overbeck. Na déc. de 1860, o
purismo italiano floresceu em plenitude,
refletindo o gosto por estilos que tenta-
vam restabelecer a identidade nacional
italiana e o seu acervo cultural.
No campo da arquitetura, o termo “pu-
rismo” designa a fase inicial de um estilo
desenvolvido entre 1530 e 1560 no con-
texto renascentista espanhol. Juntamente
com o estilo plateresco e a arquitetura
herreriana, o purismo formou o grupo
das principais manifestações da arquite-
tura renascentista em Espanha. Em con-
traste com o decorativismo do estilo pla-
teresco, o purismo procurou formas mais
D.R.

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Antipurismo 1581

se refugiam, quer para refutar dogmas


religiosos, quer para reivindicar novos
modelos de prática religiosa.

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na verdade, a inexistência de um ideal B. H., e SHAPIRO, M. J. (orgs.), The Politics of
de pureza pré-determinado no segun- Language Purism, Berlin/New York, Mouton de
do caso, a ausência de dogmas sobre Gruyter, 1989, pp. 211-223; PALMER, Allison
mudança, evolução, verdade ou perfei- Lee, Historical Dictionary of Romantic Art and Ar-
ção. A este propósito, importa referir o chitecture, Plymouth, Scarecrow Press, 2011;
THOMAS, George, Linguistic Purism, London/
campo da religião como aquele em que,
New York, Longman, 1991.
frequentemente à luz de atitudes exacer-
badas na preservação e defesa dos prin- Sérgio Barros
cípios e valores que compõem as doutri-
nas religiosas, a noção de purismo acaba
por se confundir com a noção de funda-
mentalismo (&Antifundamentalismo).
A combater esta atitude, surge por vezes
a noção de antipurismo, na qual os in-
divíduos ou comunidades da sociedade

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1582 Antipuritanismo

Antipuritanismo agricultura e das manufaturas originava


também um forte puritanismo.
Nada na vida dos homens e das insti-
tuições é linear e, por isso, a sociedade é
composta de puritanismo e antipuritanis-
mo (como reação ao puritanismo), num
mesmo tempo e lugar, numa convivência

P ara se entender o antipuritanismo


torna-se necessário contextualizar a
Revolução Puritana, ocorrida em Ingla-
camuflada mas real, num jogo de forças
entre a ordem estabelecida e a emergên-
cia de novidade a nível social, político e
terra (1641-1649), que está na origem moral. A história é o reconhecimento de
da constituição de uma república sob a que o passado não evolui em linha reta
liderança de Oliver Cromwell. Em Ingla- para o presente e de que não é possível
terra, o puritanismo político teve como prever completamente ou anunciar profe-
grande precursor o defensor da Com- ticamente o futuro. Neste sentido, a dinas-
monwealth (1649-1660). Mas o purita- tia Stuart iria tentar fortalecer novamente
nismo é, também, uma corrente calvinis- o poder régio e o da nobreza tradicional,
ta do anglicanismo (1560), que pretende bem como o rigorismo anglicano, perse-
purificar a religião de todos os vestígios guindo os puritanos calvinistas e promo-
católicos a partir de um rigorismo ético. vendo a insatisfação com o seu Governo.
No séc. xvii, passou a designar os gru- O antipuritanismo atingiria o seu ápice no
pos protestantes separados da Igreja An- reinado de Carlos I, com a assinatura da
glicana oficial. Eram igrejas livres e for- Petição dos Direitos (1628) e o autocratis-
mavam pequenas comunidades. A seguir mo político. No entanto, no contexto da
à restauração da monarquia e da Igreja Revolução Puritana, continuou a reagir­
Anglicana estatal, o puritanismo perdeu ‑se e a fazer-se frente ao antipuritanismo,
membros, mas ganhou interioridade re- originando-se uma guerra civil violenta e a
ligiosa, com uma disciplina rigorosa, a emergência de uma força religiosa prove-
santificação do domingo, o biblicismo e niente da Revolução Puritana.
um forte espírito de trabalho. O purita- De facto, no confronto entre purita-
nismo insere-se, portanto, num dos prin- nismo e antipuritanismo será inevitável
cipais momentos da Revolução Inglesa, a ocorrência de uma guerra civil que
cuja principal consequência foi a conso- opõe os protagonistas das duas corren-
lidação do regime político monárquico tes: a burguesia urbana, os mercadores e
parlamentar e o fim do absolutismo na artesãos que professavam o puritanismo,
Inglaterra. fundamento das crenças protestantes e
Se o antipuritanismo coexiste, natu- do presbiteranismo, e a nobreza aristo-
ralmente, com a Revolução Puritana, irá crática, os funcionários do Estado e o
ficando mais invisível à medida que a pró- clero, que lhe contrapunham o antipuri-
pria sociedade emergente do capitalismo tanismo anglicano. A guerra terminaria
inglês prospera e tem como consequên- em 1646, com a derrota de Carlos I e da
cia a alteração da hierarquia das classes corrente antipuritana e o consequente
sociais, pela ascensão de uma burguesia triunfo de Cromwell e do puritanismo.
forte e pelo declínio da nobreza. O for- A corrente antipuritana seguiria o seu
talecimento económico da burguesia rumo, na direção de um pragmatismo
proveniente do comércio marítimo, da político consumado numa contrarrevo-

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Antipuritanismo 1583

e que não deixava de ser uma expressão


ideológica da burguesia. Nesse contex-
to, a salvação das almas estava depen-
dente da sua vida terrena, numa esfera
religiosa longe da institucionalização da
Igreja, ao contrário do que acontecia no
antipuritanismo.
A cultura portuguesa seria herdeira
destas duas visões da vida, dos homens e
das instituições, numa dialética entre pu-
ritanismo e antipuritanismo, que coexis-
tiram e marcaram a história de Portugal.
Uma história que continua a refletir-se
naqueles que defendem um purismo ra-
dical e nos que escolhem a tolerância. Do
seu diálogo pacífico ou do seu confronto
radical nascem a paz ou a guerra. A crise
da cultura portuguesa, tanto de valores
como espiritual, para além da evidente
crise económica, mostra a urgente neces-
sidade de repensar o rumo para Portugal,
nomeadamente a partir dos paradigmas
apresentados, no sentido de contribuir
para uma sociedade pacífica.

Carlos I de Inglaterra (1629), de Daniel Mijtens. Bibliog.: AMARAL, Diogo Freitas do, História
das Ideias Políticas, Coimbra, Almedina, 2010;
ASTLEY, Maurice, Oliver Cromwell and The Pu-
ritan Revolution, London, English Universities
lução, dando origem ao fim da república Press, 1958; CARVALHO, Paulo Archer de, e
e à restauração da monarquia, com a su- CATROGA Fernando, Sociedade e Cultura Portu-
bida de Carlos II ao trono. Foi o fim da guesas II, Lisboa, Universidade Aberta, 1994;
república puritana e o dealbar de uma RUSS, Jacqueline, A Aventura do Pensamento Eu-
monarquia constitucional liberal, nasci- ropeu. Uma História das Ideias Ocidentais, Lisboa,
da da Revolução Gloriosa de 1688, que Terramar, 1997; TAVARES, Maria José Ferro,
Sociedade e Cultura Portuguesas I, Lisboa, Univer-
viria a garantir o desenvolvimento do
sidade Aberta, 1990.
capitalismo.
É interessante verificar que os movi- Isabel Baltazar
mentos sociais, culturais e religiosos inte-
ragem na sociedade e que não é possível
dissociar a religião da política: afinal, os
preceitos religiosos ligados ao antipurita-
nismo da Igreja Anglicana influenciaram
decisivamente a ordem social e política
inglesa, uma ordem antipuritana que
coexistia com a contraordem do purita-
nismo expresso pelo calvinismo inglês,

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1584 Antiqueirosianismo

Antiqueirosianismo mo, impondo-se no panorama artístico:


elaboraram os seus programas estéticos
impulsionados pela evolução científica
da segunda metade do séc. xix, motivo
pelo qual é o realismo que cede terre-
no e não os seus autores a título indivi-
dual (&Antirrealismo). Na ótica e na

O termo implica o que, em rigor, não


se pode assinalar na cultura portu-
guesa: uma teoria consistente, com con-
fenomenologia da perceção, os avanços
distinguirão o observável e o observado,
a inovação técnica das tintas e do papel
tinuidade e com algum histórico signifi- industrializados fez sair a pintura dos
cativo de crítica e oposição a uma outra ateliês e analisar a observação sempre
designada pelo radical. diferente do real, a emergência da psi-
Na realidade, há críticas a Eça de canálise obrigará a reavaliar as questões
Queirós (1845-1900) e polémicas causa- do sujeito, da identidade e relacionadas
das pela sua obra, assim como uma tradi-
ção de confronto crítico entre a sua obra
Eça de Queirós, de David.
e a camiliana (contemporâneas, domina-
ram a cena literária e geraram linhagens
e cultores), alguns tópicos recorrentes,
bem como admiradores e seguidores, mas
não há propriamente uma tese consisten-
te e prolongadamente defendida contra
a sua escrita e as suas propostas. Vejamos,
brevemente, as razões desse facto.
Em primeiro lugar, no contexto da cli-
vagem entre o realismo e os seus detrac-
tores (&Antirrealismo), Eça surge como
um dos autores mais representativos da
Nova Escola, mas não é o alvo.
Os primeiros foram os românticos, ali-
nhados, desde a Questão Coimbrã, no
sentimento de desatualização: a Nova Es-
cola emergiu em sintonia com a dinâmica
europeia, culturalmente prestigiada em
Portugal, sendo, apesar das críticas e das
polémicas, observada e, às vezes, assimila-
da (Camilo, começando por caricaturá-la
em Eusébio Macário e A Corja, acabou por
manifestar algumas nuances naturalistas
na ficção posterior), atraindo, sim, críti-
cas cerradas quando assumia uma feição
mais naturalista, com temas ao arrepio da
moralidade conservadora da época.
Depois, foram as/os correntes/movi-
mentos/escolas que contestaram o realis-

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Antiqueirosianismo 1585

(incluindo o autobiografismo, o biogra- realistas, podemos assinalar a combina-


fismo, o confessionalismo, entre outros), ção e a coexistência de manifestações
etc. Dessa reconceptualização do real, da das diversas tendências estéticas, com
perceção e do que delas decorre resul- descrições impressionistas, tipos sociais
tarão os novos programas estéticos, cuja de recorte realista, temas e referências
coerência e consistência se constituíram românticos, devaneios e imagens simbo-
por diferença e oposição relativamente listas e decadentistas, etc. Por outro lado,
ao realista, contrastivamente: o simbolis- a sua escrita sofre transformação, regis-
mo, centrado no sujeito, na sua psique e tando diferentes fases na sua evolução,
na perceção, sonho ou alucinação por ela num itinerário que chega a antecipar o
promovidos; o impressionismo, centrado modernismo e que vai seguindo a evolu-
na consciência da mediação multissenso- ção da literatura, acompanhando as suas
rial percetiva do real conjuntural e dinâ- tendências e anunciando outras.
mico; o decadentismo, dominado pelo Enfim, apesar deste panorama, convirá
sentimento decadente e/ou catastrofista referir alguns tópicos e intervenientes re-
de fim-de-século, quer de abrangência lativamente constantes na crítica a Eça de
geral, quer nacional. Dessa oposição de Queirós.
ideário ao realismo decorreram também, Em vida do autor, a acusação de imo-
logicamente, as retóricas textuais e dis- ralidade a alguma da sua ficção, em par-
cursivas correspondentes que caracteri- ticular O Crime do Padre Amaro (nas suas
zaram a produção mais representativa de sucessivas versões: 1875, 1876, e 1880) e
qualquer destes movimentos. O Primo Basílio (1878), qualquer das obras
Em segundo lugar, a relação entre a alvo de cerrada censura, até de correligio-
ficção queirosiana e as (suas) propostas nários da geração de 70, como Antero de
programáticas realistas (desde “Literatu- Quental e Jaime Batalha Reis, e no Brasil,
ra nova” e “O realismo como nova expres- com Machado de Assis (em “Eça, discí-
são da arte”, no ciclo das Conferências do pulo de Zola” e “Os defeitos de O Primo
Casino, de 1871), sendo estreita, não é Basílio”, ambos de 1878).
de colagem: embora elabore algumas das Também contemporânea ao autor foi
suas ficções a partir de ideias defendidas a censura aos seus alegados anticlerica-
(em especial, na cronística) ou em conso- lismo, antinacionalismo e estrangeiris-
nância com projetos anunciados (“Cenas mo, devido ao modo como põe em cau-
da vida portuguesa”, projeto para   uma sa, ficcionalmente, o comportamento
série de 12 volumes de novelas), a verda- do clero e alguns aspetos da sociedade
de é que a sua escrita, muito mais com- portuguesa.
plexa, excede sempre os limites desse Outras críticas foram motivadas pela
ideário. relação entre Eça e Flaubert (1821-1880),
A terceira razão pela qual será difícil especialmente pela proximidade entre
afirmar a consistência, a duração e a esta- O Primo Basílio (1878) e Madame Bovary
bilidade de um antiqueirosianismo radi- (1857), dividindo-se a crítica, desde a
ca nas próprias características da obra de edição da obra queirosiana, entre a afi-
Eça de Queirós, tomada no seu conjun- nidade e a influência, até ao limite da
to. Por um lado, confluem na sua escrita acusação de plágio (Machado de Assis),
as diferentes tendências estéticas do seu apesar de haver algum consenso no reco-
tempo (do romantismo ao simbolismo e nhecimento da feição autoral da obra e
ao decadentismo): mesmo nas obras mais da personagem.

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1586 Antiquietismo

Em Portugal, desde o tempo dos auto-


res, a leitura tendeu a dividir-se, quanti-
Antiquietismo
tativa e qualitativamente, entre Camilo e
Eça, apesar de estes evitarem o confron-
to directo, a guerrilha literária, como
lhe chamou A. Campos Matos; em rigor,
Camilo não dirige censuras a Eça, mas
tão só à Escola Nova que ele representa-
va, e Eça critica o romantismo, mas não
Camilo, a quem não envia uma carta de
C orrente espiritual que buscava a
união com Deus através de um estado
de passividade total, de contemplação e
reprovação escrita em 1887 (em resposta oração mental, em pleno recolhimento na
a Anastácio das Lombrigas, um pseudó- presença de Deus, atenuando ou negando
nimo de Camilo), só postumamente co- a responsabilidade pessoal. Na oração de
nhecida. A opção entre ambos os autores quietude e de estado contemplativo, não
fez tradição na crítica, com o culto de um há já atos de virtude nem de vontade, pois
em detrimento do outro através de gru- a alma é guiada pela graça e pelo Espíri-
pos de estudos, revistas e instituições (os to Santo; o Homem é capaz de reduzir a
estudos camilianos e os queirosianos), nada todas as suas potências. O desejo pes-
numa clivagem de confronto que chegou soal de mostrar-se ativo na vida espiritual
a configurar algum clubismo. A passiona- representava uma ofensa a Deus.
lidade, o subjetivismo, a espontaneidade De certa maneira, a questão quietista
e o provincianismo referencial português surge como uma reação à forte orienta-
do universo ficcional camiliano vs. a ra- ção voluntarista da ascética, defendida
cionalidade, a esteticização calculada e o pelos Jesuítas, ao formalismo religioso, ao
europeísmo referencial da obra queiro- temor de Deus e às questões que iam sur-
siana têm sido, em geral, os valores e as gindo sobre a justificação e o livre-arbí-
censuras de parte a parte, justificando a trio. Neste claro confronto de doutrinas
universalidade e a tradutibilidade (Eça) e temores diversos existentes na época,
ou a falta dela (Camilo). o movimento quietista será acusado de
favorecer, através das suas orientações es-
Bibliog.: MATOS, A. Campos, Dicionário de Eça pirituais, o desvio dos valores morais, mis-
de Queiroz, Lisboa, Caminho, 1993; Id., Suple- turando-o com o falso misticismo.
mento ao Dicionário de Eça de Queiroz, Lisboa, O quietismo – movimento de natureza
Caminho, 2000; Id., A Guerrilha Literária Eça de
mística que ocorre no séc. xvii, no seio
Queiroz/Camilo Castelo Branco, Lisboa, Parceria
A. M. Pereira, 2013. do catolicismo – é por vezes designado de
iluminismo místico ou espiritual, com o in-
Annabela Rita tuito de englobar de forma mais coerente
as diversas orientações singulares de cada
um dos grupos a ele afetos. Na realidade, a
tendência quietista atravessa a história e as
civilizações: há elementos quietistas no cris-
tianismo, no bramanismo, no budismo, no
estoicismo e no platonismo, nas doutrinas
gnósticas, maniqueístas e montanistas, nos
begardos, nos fraticelli, na mística renana,
carmelita, franciscana, nos alumbrados, etc.

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Antiquietismo 1587

O quietismo ganha uma significativa


expressão no séc. xvii em três regiões da
Europa: Itália, Espanha e França. Em cada
uma destas regiões, distintas figuras, por
diferentes razões, estiveram no centro da
polémica que envolve esta doutrina.
Uma das principais figuras do quietismo
em Itália é Miguel de Molinos, teólogo e
místico espanhol, que nasceu em Munie-
sa (Teruel), em 1628. Faz os seus estudos
em Valência, no Colégio de S. Paulo dos
Jesuítas, sendo ordenado presbítero em 21
de dezembro de 1652. Nesta cidade, foi ca-
pelão de monjas e clérigo da paróquia de
S.to André. É por volta desta altura que terá
contactado com ambientes pré-quietistas.
Em representação dos três estados do rei-
no de Valência, é nomeado delegado em
Roma pela igreja de S.to André, para pro-
mover a causa da beatificação de Francisco
Simón de Rojas (m. 1612). Miguel de Mo-
Miguel de Molinos (1628-1696).
linos vai gradualmente ganhando notorie-
dade, quer pela sua eloquência, quer pela
sua espiritualidade, quer ainda pelo núme- do em Roma no mesmo ano e Defensa de
ro de devotos, muitos deles pertencentes la Contemplación (Roma, 1680), obra onde
à classe nobre de Roma e arredores. Em faz referência a S. João da Cruz.
idêntico crescendo surgia a desconfiança No Guía Espiritual, encontramos um as-
por parte de alguns párocos, que se ques- sinável resumo da sua doutrina. Molinos
tionavam sobre o conjunto de ações que tinha como preocupação a salvação das
desenvolvia (longas conversas que man- almas. Através de uma atitude de total
tinha com alguns dos fiéis, as conferências abandono, passividade e perfeita contem-
espirituais a algumas mulheres devotas, a plação, o devoto poderia chegar ao gozo
ausência de ação de graças após a missa). do amor de Deus. A meditação, segundo
Uma das obras que não deixará de es- este místico, conduz à contemplação ad-
tar no centro das ideias quietistas e de quirida, ou recolhimento interior, e am-
toda a polémica em torno do quietismo bos conduzem a Deus. Molinos procura
é Guía Espiritual Que Desembaraza el Alma y clarificar as diferenças entre contempla-
la Conduce por el Interior Camino para Alcan- ção infusa e passiva ou imperfeita, ativa
zar la Perfecta Contemplación y el Rico Tesoro e adquirida, afirmando nesta ordem de
de la Interior Paz, publicada pelo mesmo ideias que qualquer devoto pode alcançar
Molinos em Roma, em 1675. Para além esta última através do esforço humano,
da extraordinária aceitação em Itália, esta com intervenção da graça divina, que aju-
obra conhece diversas traduções, impres- da a alma a entender a oração contempla-
sões e reimpressões em diversos países da tiva, através de sinais claros como a incapa-
Europa. O aragonês escreve ainda Breve cidade para meditar, a procura da solidão,
Tratado de la Comunión Cotidiana, publica- o desejo de perseverar na oração,  etc.

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1588 Antiquietismo

Para se entregar à contemplação será ne-


cessário que a alma permaneça quieta,
calma e imutável, nada faça por si mes-
ma, não fale muito nem utilize imagens,
se liberte de qualquer preocupação (re-
compensas, punição, céu, inferno, mor-
te, eternidade, etc.), numa entrega total
à vontade de Deus. As almas não devem
procurar entender Deus, mas procurar
amá-lo como Ele é. Deus agirá no espírito
humano, iluminando e purificando as al-
mas, segundo a sua vontade. A resignação
através do silêncio possibilitará o amor
perfeito. Logo, as inquietações humanas,
a devoção sensível e a mortificação dei-
xam de ter razão de existir.
Não tardaram a surgir suspeitas de he-
terodoxia em diferentes círculos de perso- Cardeal César d’Estrées (1628-1714).
nalidades da época e entre o próprio cle-
ro espanhol, culminando num processo seguidores e amigos, mas também a indig-
acusatório. É conhecida a oposição clara à nação e o questionamento da acusação
doutrina molinista por parte de Francesco de heresia. Em março de 1687, são con-
Buonavalle, com a obra Ristretto della Dottri- denadas 68 das suas proposições hetero-
na de’ Moderni Quietisti (1685) e de Paolo doxas. Molinos recebe a sentença de não
Segneri (1624-1694), com Concordia tra la se confessar mais do que três vezes ao ano
Fatica e la Quiete nell’Oratione (1680). Moli- (no Natal, na Páscoa e no dia de Todos os
nos, por sua vez, procurando defender-se, Santos), de comungar segundo as orien-
escreve Cartas a Un Caballero Español Desen- tações do seu diretor espiritual, de rezar
gañado para Animarle a Tener Oración Mental diariamente o Símbolo dos Apóstolos e o
(1676) e a já referida Defensa de la Contem- rosário, assim como de envergar o sambe-
plación, bem como uma série de cartas ao nito, caso proceda à abjuração. Em 20 de
P.e Oliva, geral dos Jesuítas, as únicas que novembro de 1687, o Papa Inocêncio XI
sobreviveram do seu epistolário. publica a bula Caelestis Pastor, condenando
Porém, o cardeal César d’Estrées, envia- as doutrinas de Molinos. O místico arago-
do de Luís XIV a Roma, para tratar de as- nês morre em 21 de dezembro de 1696.
suntos religiosos com a Santa Sé, denuncia Em meados do séc. xvii, Itália vivia um
a obra molinista ao Tribunal da Fé. Miguel ambiente rico em literatura espiritual,
de Molinos é preso na sua residência em tanto em quantidade quanto em quali-
Dei Monti, em 18 de julho de 1685, pelo dade. O país contava também com várias
Santo Ofício. No período imediatamente figuras social e espiritualmente influen-
subsequente e ao longo do seu demorado tes, como, para além de Molinos, Falconi,
processo de defesa, as reações multipli- Malaval e Petrucci. Na região de Veneza e
cam-se quer em Roma, quer nas restantes da Lombardia, os chamados filipinos ou
cidades europeias, variando nas suas diver- pelaginos desenvolviam uma espirituali-
sas posições: a incredulidade, o silêncio, dade que valorizava de forma primordial
o abandono por parte de muitos dos seus e veemente a oração de quietude ou de

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Antiquietismo 1589

e Antonio Maria Leoni, dois irmãos de


Cabiaglio, Diocese de Como, são aprisio-
nados a 3 de outubro de 1685 e a 23 do
mesmo mês, respetivamente, já durante
o processo de Molinos. Nesta altura, o
bispo de Savona publica uma interdição
sobre este modo de orar e tanto os pra-
ticantes como os não denunciadores de
tais práticas espirituais passam a estar su-
jeitos à excomunhão.
No decorrer da oposição às práticas
quietistas, o Index enche-se de obras en-
tendidas como de substrato quietista,
como: Riflesso dell’Uomo Interiore de Ti-
berio Malfi (Nápoles, 1650), Modo Facile
per Far Acquisto dell’Orazione di Quiete, de
Giovanni Antonio Solazzi (Roma, 1671);
Papa Inocêncio XI (1611-1689). Passi dell’Anima per il Camino della Pura
Fede (Veneza, 1677), de Giovanni Paolo
silêncio, em detrimento da oração vocal Rocchi e 11 obras de Michele Cicogna
e de uma devoção mais externa. A prática (condenadas entre 1667 e 1684).
e as orientações espirituais desta corrente O cardeal italiano Pier Matteo Petrucci
não correspondiam às comumente assu- (1636-1701) é outra das figuras em des-
midas na época, o que suscitava suspeitas taque quando se fala de quietismo em
relativamente a esta forma de espiritua- Itália. Petrucci não deixa de incutir com
lidade. As oposições não tardaram. Por vigor a doutrina sobre a contemplação e a
sua vez, a região do Piemonte, a grande aniquilação das potências, especialmente
região genetlíaca das ideias quietistas, é na oração, integrando o grupo dos novos
o centro da comunicação entre quietistas mestres contemplativos. As suas obras
italianos e franceses. Lettere e Trattati Spirituali e Mistici (1676­
Em 29 de abril de 1676, em resposta a ‑1678) e I Mistici Enigmi (1680) emergem
um pedido de explicações, por parte do nesta polémica, bem como Della Contem-
bispo de Savona, o Santo Ofício refere platione Mistica Acquistata (1681). Nesta
que o que está em causa não é o valor da última, Petrucci, para além de apoiar Mo-
oração mental, mas as declarações que linos, responde à Concordia de Paolo Seg-
reprovam a oração vocal e os exercícios neri, um Jesuíta italiano, que ripostará ao
de piedade. cardeal na sua Lettera di Risposta al Signor
Entre 1671 e 1676, o Santo Ofício con- Ignazio Bartalini (1681). Esta divergên-
dena Giacomo Lombardi, María de la cia de ideias leva Petrucci a escrever ao
Encarnación e Maurizio Scarampi. São P.e  Oliva, procurando colocá-lo ao corren-
ainda condenadas outras figuras associa- te da situação. Apesar de o superior dos
das ao quietismo, como Giacomo Casòlo, Jesuítas lhe ter respondido, enunciando a
Marcantonio Riccaldini, Antoine Girar- sua preocupação no sentido de se apurar
di, médico francês denunciado ao Santo toda a verdade referente a esta questão,
Ofício, pelo inquisidor de Casale Monfer- Petrucci vê-se na necessidade de se defen-
rato, nos inícios de 1671. Simone Leoni der, embora sem êxito, argumentando

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1590 Antiquietismo

que a sua doutrina referente à oração se- quietistas. Destacaram-se François Mala-
guia a mesma linha mística de S.ta Teresa val, místico de Marselha, defensor da ora-
de Ávila. O Papa Inocêncio XI chega a ção de quietude, do qual se destacam as
solicitar ao cardeal Brancati de Láuria a seguintes obras: La Belle Ténèbre. Pratique
redação de um livro sobre esta polémica, Facile pour Élever l’Âme à la Contemplation
mas nada parecia pôr cobro às divergên- (1670); Poésies Spirituelles (1671); Instruc-
cias sobre o modo novo de orar. tions Familières sur l’Oraison Mentale en
Apesar de haver uma atenção especial Forme de Dialogue (1685). Por sua vez, M.me
e objetiva à identificação de eventuais fo- Guyon, Jeanne-Marie Bouvier de la Motte
cos de quietismo, estes não desaparecem (1648-1717), viúva e mãe de três filhos, de
de todo. São disso exemplo os centros da ascendência nobre e discípula de Moli-
Lombardia, o centro das Marcas, ligado nos, torna-se uma das grandes referências
ao Oratório de S. Filipe de Neri e a Pe- do chamado semiquietismo. Para o im-
trucci, os de Matelica, Jesi, e Fermo, em pulsionamento destas ideias no seio das
Veneza, onde eram abundantes as publi- classes dirigentes francesas, muito contri-
cações de obras identificadas como sen- buíram os seus escritos, como Le Moyen
do quietistas. O arcebispo de Nápoles, Court et Autres Écrits Spirituels (1685), Les
cardeal Carraccioli, faz chegar ao Papa Torrents Spirituels (1682). A sua doutrina,
Inocêncio XI, em 30 de janeiro de 1682, muito apoiada pelo seu amigo barnabita
uma carta relatando a existência de prá- Francisco Lacombe, incide de forma pro-
ticas de quietismo na sua Diocese. Atra- funda sobre a oração de silêncio e o amor
vés do cardeal Cybo, o Santo Ofício, em puro ao chamamento universal à salvação
1687, comunica aos bispos italianos que é e à relação íntima com Cristo, ao desejo
conhecedor da prática do quietismo em de união com Deus através de diversas ex-
diversas regiões de Itália. periências e vários estádios.
Naturalmente, instala-se em Itália um Os bispos franceses, contrários às ideias
ambiente de temor perante as denúncias de M.me Guyon, pedem-lhe que se recolha;
e acusações que amiúde vinham a pú- a senhora chega a ser enclausurada num
blico, algumas delas feridas de exagero. convento, em 1688 (ano em que também
Alvos claros destas acusações são Ângelo é condenado Lacombe). Em 1696, os bis-
Elli, Sixto Cucchi, Pablo Manassei de Ter- pos condenam formalmente a sua doutri-
ni, Juan Andrés Alberti, a M.e Paola Ma- na. Não menos importante, em matéria de
ria di Gesù, etc. Tal contexto propiciou antiquietismo, foi a polémica entre o arce-
a publicação da designada literatura anti- bispo de Cambrai, o teólogo François de
quietista. No início do séc. xviii, surgem Salignac la Mothe Fénelon (1651-1715),
diversos tratados com essas característi- e Jacques Bénigne Bossuet (1627-1704),
cas, como os de Domenico Ricci (Homo bispo de Meaux, e grande opositor de
Interior Juxta Doctoris Angelici Doctrinam M.me Guyon. Esta controvérsia deflagra no
Ad Explodendos Errores Michaelis de Molinos decorrer das conversações de Issy (1694­
Damnatos, 1709-12) e de Nicola Terzago ‑1695), onde são julgadas as doutrinas de
(Theologia Historico-Mystica adversus Vete- Guyon, num caso designado por alguns
res et Novos Pseudomysticos Quorum Historia como o caso dos místicos, que de certa for-
Texitur et Errores Confutantur, 1784). ma origina o fim do quietismo em França.
Também a sociedade francesa conhe- Bossuet, em Instruction sur les États
cia figuras importantes propugnadoras d’Oraison (1697), contesta a obra de Féne-
e impulsionadoras das ideias e práticas lon, Explication des Maximes des Saints sur

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Antiquietismo 1591

la Vie Intérieure (1696). O caso chega ao bem patente nas obras, nos sermões dos
seu término com o apoio de Luís XIV a grandes mestres da espiritualidade e nas
Bossuet. O Papa Inocêncio XII, em 12 de próprias orientações espirituais. “Para que
março de 1699, com o breve Cum Alias, nos comecemos a unir com Deus é neces-
condena 23 proposições de teor quietis- sário entrar no Horto da Oração”, afirma-
ta de Fénelon. A forte oposição às ideias va, e.g., Fr. António das Chagas (CHAGAS,
quietistas no território francês não dei- 1684, 2). Este costume de oração deverá
xava de ter presente as acusações feitas à ser reverente, ou seja, de joelhos, solitária,
doutrina quietista na bula Caelestis Pastor. devota e perfeita. A oração mais elevada é
A Espanha do séc. xvi – o designado Sé- “estar sempre em contínuo acto de amor
culo de Ouro espanhol – vê emergir figu- de Deus, sem afligir o entendimento com
ras marcantes da mística, que afirmavam discursos demasiados” (Id., Ibid., 5). Este
de forma viva e rigorosa a valorização de frade franciscano, em Cartas Espirituais,
uma espiritualidade assente na oração, na orienta espiritualmente para a oração e o
contemplação, na aniquilação, na exigên- estado de quietude, com mortificação da
cia de descoberta do essencial, com vista à natureza para os gostos da graça, para ven-
união com Deus, tais como S. João de Ávi- cer as paixões da tristeza, da raiva e da me-
la, Fr. Luís de Granada, Fr. Luís de Leão, lancolia e estar em Deus. Para entrar em
S.ta Teresa de Ávila, S. João da Cruz, entre união com Deus é fundamental viver “sem
outros. Se, por um lado, estes mestres da criaturas no Pensamento, sem discursos
mística espanhola elevavam aos mais altos
graus a espiritualidade dos fiéis, por outro
Fr. António das Chagas (1631-1682).
experimentaram por diversas vezes, ao
longo da sua vida, suspeitas e acusações
de heresia. Estes místicos, porém, transfor-
mar-se-iam inevitavelmente na reconhe-
cida fonte de inspiração para as grandes
figuras do quietismo do séc. xvii, que os
citavam em muitas das suas obras, embora
de pouco isso lhes tenha valido nos seus
processos de condenação.
Nos autores místicos portugueses, como
D. Manoel de Portugal, D. Gaspar de
Leão, Fr. Heitor Pinto, Fr. Tomé de Jesus,
Fr. Amador de Arrais, Fr. Agostinho da
Cruz, Fr. António das Chagas, P.e Manuel
Bernardes, entre outros, encontramos, de
forma clara, o valor da interioridade, da
contemplação, da oração, da entrega total
isenta de qualquer amor, gosto ou vontade
própria, sem desejo de consolação sensí-
vel, num desejo absoluto do amor unitivo
com Deus, em entrega total ao dom da
graça. Esta orientação para o divino, her-
dada e fortemente vivida, imbuía a vida
espiritual dos fiéis desta época; ela estava

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1592 Antiquietismo

no Entendimento, sem outro amor na do Sacramento e a Carmelita Teresa Ma-


Vontade, mais que o amor de Deus: e que ria de S. José, que doutrinava um centro
juntamente andem sempre os sentidos de orientação quietista, a quem é dada
como pasmados nas maravilhas de Deus, a pena de açoites, reclusão nos cárceres
em tudo o que se puser diante do sentido do Santo Ofício e deportação para a ilha
em oração contínua” (CHAGAS, 1762, I, de São Tomé durante 10 anos.
19). Contudo, continuavam a ser publica-
Também Fr. Agostinho de S.ta Maria, das várias obras de espiritualidade que
do Colégio das Mercês dos Agostinhos valorizavam a oração de quietude, a
Descalços, em Évora, através da sua obra contemplação e o amor puro, repletas
Adeodato Contemplativo, de 1676, não dei- de orientações práticas para um verda-
xa de se empenhar na elevação dos devo- deiro processo de caminho místico, uma
tos a uma vida de oração para o alcance verdadeira interioridade na busca da
de uma relação amorosa com Deus. Bem união com Deus, apesar do receio pa-
inseridas nesta ambiência de teologia tente de incorrer nos designados erros
mística estão as obras de autores portu- quietistas. Os estatutos da Congregação
gueses como Fr. António do Espírito San- do Oratório aludem ao valor da oração,
to, Directorium Mysticum (Lyon, 1676) e da quietude da alma, da perfeição e do
Fr. José do Espírito Santo, Cadena Mystica ensino. O P.e Manuel Bernardes (1644­
Carmelitana (Madrid, 1678). ‑1710), presbítero desta Congregação,
Os vários centros quietistas que se fi- faz diversas menções, nas suas obras, ao
xaram no território português não esta- valor da oração mental, que considera
vam, de facto, alheados de uma vivência ser superior à oração vocal, muito embo-
espiritual com a qual comungavam. À se- ra não descure esta forma de orar nem
melhança, no entanto, do que aconte- os exercícios espirituais. “Porém se estais
ceu em Itália, França e Espanha, muitos posto no tal acto simples e quieto, não
dos que doutrinavam e praticavam o vos tireis dele para descer a discursos, ou
quietismo em Portugal foram acusados quaisquer outras ponderações, por altas,
e deles condenados pelo Tribunal da delicadas e doutrinais que vos pareçam;
Fé em diferentes regiões do país, como porque maior é o tesouro que lograis
testemunham os processos inquisitoriais naquela quietação ou silêncio”, afirma
que ocorreram em cidades como Coim- (BERNARDES, 1991, I, 251). Este mes-
bra, Lisboa, Évora e Viseu no séc. xvii. tre espiritual elege como um dos pontos
Assim, e.g., o P.e António da Fonseca, fundamentais dos “meios para uma alma
que dirigia o centro de recolhimento se conservar na graça de Deus” o “dar-se
feminino de Midões, foi condenado a ao exercício quotidiano da Oração men-
prisão perpétua; 29 pessoas da Diocese tal” (Id., 1990, 97); e acrescenta: “Ter
de Viseu, entre as quais Manuel da Silva em cada dia meia hora, ao menos, de
Santiago, meio-cónego da Sé de Viseu, Oração Mental meditando na gravidade
foram condenadas por práticas desta dos pecados, na Morte, Juízo, Inferno,
doutrina, segundo os autos de fé celebra- ou na Paixão de Cristo, passo por pas-
dos a 16 de junho e 7 de julho de 1720, so.” (Id., Ibid., 104). Em Luz e Calor, Ber-
em Coimbra. No auto de fé de 6 de julho nardes chama a atenção para a impres-
de 1732, na igreja de S. Domingos, em cindível importância da observância do
Lisboa, são condenadas 79 pessoas, en- silêncio para a oração mental, explici-
tre as quais Fr. João de S.ta Teresa, Josefa tando o que entende por contemplação

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Antiquietismo 1593

adquirida e infusa, e que ambas, mesmo (1750), de António de S. Boaventura.


nas suas diferenças, visam a comunhão Em Portugal, a Companhia de Jesus sur-
com Deus. Falando da “oração de quie- ge como referência na posição de oposi-
te”, afirma que há “dois modos de quie- tora ao antiquietismo. Na linha de Pedro
te: uma puramente infusa, e esta é um Vilas Boas Tavares, este facto ganha ain-
grau mais perfeito de contemplação da mais clareza se tivermos em atenção
infusa, e muito próximo à União; outra a publicação de Crisis Theologicae in Qua
adquirida em parte (suposto que Deus é contra Michaelem de Molinos et Recentissime
quem dá); e esta é o grau mais subido Exortos et Damnatos Caco-Mysticos, Eucaris-
da contemplação adquirida. Outros lhe ticè Transubstanciatos, Sublimiora Theolo-
chamam Oração de Fé pura e outros de gia Mysticae Arcana… (Lisboa, 1719), de
Silêncio; outros de Presença de Deus, e Carlos Casnedi, Jesuíta do Santo Ofício
outros também de Recolhimento” (Id., português, para combate às proposições
1991, I, 220), descrevendo cada uma da mística molinosiana.
delas nas páginas seguintes. Nesta eluci- Tanto o Guía Espiritual de Molinos
dação, o P.e Manuel Bernardes não deixa como a sua condenação são um marco
apontar os “erros dos Iluminados” que importante no manancial de literatura
o “detestável Miguel de Molinos” reno- antiquietista que surge nesta altura, uma
vou, recordando que o autor espanhol vez que se encontram publicações que
fora condenado por Inocêncio XI, que antecedem estes factos e outras que lhe
“proibiu e censurou respectivè como he- sucedem. A campanha antiquietista da
réticas, suspeitosas, erróneas, escanda- primeira fase procura sobretudo impug-
losas, blasfemas, ofensivas dos ouvidos nar de forma directa autores concretos,
pios, sediciosas e destrutivas da doutrina caracterizando-se pelo “tom áspero que
Cristã” (Id., Ibid., 209) as suas teorias. os faz sair dos limites prudenciais e até
Nas 30 páginas seguintes, explicita deta- da exatidão doutrinal” (VIRGEN DEL
lhadamente todos os “sinais por onde se CARMEN, 1969, 374). Uma importan-
diferença quies desta oração e de outras te obra é Il Pregio e l’Ordine dell’Orazioni
quietações falsas”, passando de seguida Ordinarie e Mistiche (Módena, 1678), do
às indicações de “quando se há de recor- Jesuíta Gottardo Bell’Huomo, que apre-
rer a atos particulares e discursivos” (Id., senta a doutrina tradicional sobre medi-
Ibid., 250), sem deixar de referenciar tação, contemplação adquirida e infusa,
santos, místicos e autores espirituais di- assim como a necessidade de orientação
versos que valorizavam tal modo de orar espiritual. Apesar de Bell’Huomo não
(S.to Alberto Magno, S. Pedro de Alcân- nomear nenhum dos principais quietis-
tara, S. Francisco de Sales, S.ta Teresa de tas, estes sentiram-se alvo da sua obra,
Ávila, Baltasar Alvarez, S. João da Cruz). pois as alusões claras que nela eram fei-
Outras obras de orientação antiquie- tas poucas dúvidas levantavam. A obra
tista surgem, nesta altura, nomeadamen- do Jesuíta é levada ao Santo Ofício. Não
te Vindícias da Virtude (1725-1726), de sofrendo condenação da primeira vez,
Fr.  Francisco da Anunciação; Consultas acaba por integrar a lista dos livros proi-
Espirituais em que conforme a Verdadeira Teo- bidos em 26 de novembro de 1681, após
logia Mística, e Moral, Se Responde às mais a insistência dos acusadores, incitados
Frequentes Dúvidas Que Ocorrem na Vida do pelos quietistas.
Espírito (1745), de Afonso dos Prazeres; Nesta mesma data, é condenada a já
e Itinerário Místico de Uma Alma para o Céu referida obra Concordia tra la Fatica e la

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1594 Antiquietismo

Quiete nell’Oratione, de Pablo Segneri, que linos, posição que o distanciava totalmente
se centrava na apresentação da natureza dos restantes cardeais.
e das condições da verdadeira contempla- Após o processo de Molinos, surgem,
ção, face ao brotar da doutrina da falsa no quadro desta polémica, diversos im-
oração. As extensas citações de Guía Es- pugnadores escudados triunfalmente na
piritual por parte de Segneri não deixa- bula pontifícia de condenação. Uma das
vam grandes dúvidas quanto a quem se primeiras obras opositoras a Molinos des-
opunha este famoso orador jesuíta, muito te período é a do P.e de Vaucel, Breves Con-
embora não mencionasse qualquer figura siderationes in Doctrinam Michaelis de Moli-
da ala quietista. No ano seguinte, Segneri nos et Aliorum Quietistarum, que surge em
vê ainda a sua Lettera di Risposta al Signor Colónia (1688). La Verdad en Su Centro y
Ignazio Bartalini ser condenada pelo San- Clara Luz en Su Horizonte, obra do pároco
to Ofício. As obras de Segneri acabaram de S. Ginés de Madrid, é um claro ataque
por ser retiradas do Index, sorte que não a Molinos. O pároco teve de se resignar
teve Alexandre Regio com a obra Clavis ao silêncio, fruto de uma intervenção por
Aurea Qua Aperiuntur Errores Michaelis de parte da Inquisição que proibiu tal publi-
Molinos (Veneza, 1682), na qual visava im- cação quando esta se encontrava ainda na
pugnar Molinos, a quem acusa de repetir fase de composição tipográfica.
as doutrinas dos begardos, expondo e re- A ação da Inquisição assentou na ideia
futando uma série de textos do Guía Espi- de que a força e autoridade reside mais
ritual que, segundo o seu ponto de vista, na proibição do que nas diversas refuta-
se opõem ao pensamento de S. Tomás e ções que surjam. Mais ainda, no entender
aos decretos de Viena. do Santo Ofício, o decreto de Sua San-
Sob o pseudónimo de Francesco Buona- tidade indicava que estas proposições e
valle surge outra obra já mencionada, Ristre- doutrinas não deviam ser controvertidas,
tto della Dottrina de’ Moderni Quietisti, que dá mas que tanto a sua memória como a do
claro indícios de se estar perante um autor respetivo autor deviam ser sepultadas.
jesuíta. Trata-se de uma obra cujo intuito era Refutando Molinos e os seus erros sur-
condensar e refutar a doutrina dos grandes gem Homo Interior, iuxta Doctoris Angelici Doc-
mestres quietistas, nomeadamente Malaval, trinam necnon Sanctorum Patrum Epositus, ad
Molinos, Petrucci e Menghini. Segundo Explanandos Errores Michaelis Molinos (Ná-
este autor, os quietistas erram ao considera- poles, 1709), do Dominicano Domingos
rem a contemplação sem imagens, ânsia e Ricci, e Theologia Historico-Mystica adversus
esperança de prodígios, ao fazerem oração Veteres et Novos Pesudo-Mysticos Quorum His-
mental sem atenção, ao excluírem o uso de toria Texitur et Errores Confutantur (Veneza,
imagens santas. Não se inibe de suster a sua 1764) de Nicolás Tergazo. Em 1691, mais
refutação recorrendo a S. Tomás e a S.ta Te- duas obras surgem a ocuparem-se das pro-
resa de Ávila. Outra publicação é a do car- posições de Molinos: Lucerna Mystica pro
deal Brancati de Láuria, membro do Santo Directoribus Animarum, Quae Omnia Prorsus
Ofício, Opuscula Acto de Oratione Christiana Difficilia et Obscura Quae in Dirigendis Ani-
eiusque Speciebus in Tironum Gratiam Edita mabus Evenire Solent Mira Dexteritate Clarifi-
(Roma, 1685), que, neste quadro de oposi- cat..., de José López Ezquerra (Saragoça,
ção quietista, surge como uma obra de ca- 1691), e, de Francisco Barambio Descal-
riz mais neutro e brando relativamente ao zo, Discursos Filosóficos, Teológicos, Morales
Guía Espiritual. Brancati, Franciscano con- y Misticos contra Proposiciones del Doctor Mi-
ventual, chegou a defender a obra de Mo- guel de Molinos (Madrid, 1691). Esta obra

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Antiquietismo 1595

compara cada uma das proposições com a que o processo de Petrucci foi, de entre
doutrina considerada tradicional, refutan- os grandes processos do tempo, o único
do-as à luz das ciências referidas no título fundado em proposições retiradas dos
da obra. Combate ainda a designada falsa livros publicados, sendo que os restantes
doutrina do quietismo a obra de Francisco se baseavam em testemunhos orais, con-
Posadas, Triunfos de la Castidad contra la Lu- selhos, cartas e documentos esotéricos.
juria Diabolica de Molinos (Córdova, 1868). Classifica ainda como um exagero a con-
Este Dominicano de Córdova apenas refu- denação de Ângelo Elli, levado ao Index
ta as proposições 41-53 de Molinos, que se em 1714, que, segundo afirma, mais do
referem à violência diabólica e respetivas que quietista é um begardista; e as de
consequências morais, por considerá-las, Sixto de Cucchi, observante reformado,
dentro do quietismo, as mais perigosas admirador dos místicos flamengos, e de
para uma espiritualidade sã. Pablo Manassei de Terni, condenado em
Várias outras obras se inserem nesta 1689. Daí resulta o questionamento e a
luta contra os modernos contemplativos oposição à ideia de se supor que estes
e a sua doutrina e práticas de oração de homens, como tantos outros (Falconi,
quietude. Consultas y Confutación de las Malaval, Cicogna, etc.), são quietistas.
Principales Proposiciones del Ímpio Molinos Na verdade, diversos fatores de diferen-
(Madrid, 1702), de Martín Torrecilla; tes naturezas influenciaram a conde-
Desengaños Misticos a las Almas Detenidas o nação do quietismo, dos seus autores e
Engañadas en el Camino de la Perfección (Za- das suas obras. Contam-se eles a falta de
ragoza, 1706), de Fr. Antonio Arbiol Diez; fundamento, as citações retiradas do seu
Quodlibeta Divi Thomae Aquinatis, Doctoris contexto, questões de natureza política,
Angelici, ad Mysticas Doctrinas Applicata… o simples facto de constarem no Index,
(Sevilha, 1719), do Dominicano Pedro o receio de que doutrinas e práticas de
Sánchez; Bellum Theologicum adversus Dia- natureza mística se propagassem, tor-
bolicas Violentias circa Externa de se Prava et nando-se acessíveis a todos os fiéis, com
Turpia (Pamplona, 1745), de Diego Gon- a possibilidade de fazer emergir outra
zález Mateo; Opúsculos y Prácticas Que para natureza de problemas espirituais, como
el Gobierno Interior y Dirección de las Almas..., o falso misticismo, a sensualidade e a
(Logronho, 1754), do Jesuíta Pedro Anto- fenomenologia extraordinária (visões,
nio Calatayud, e, pelo Oratoriano Vicente êxtases). A extensão desta ação antiquie-
Calatayud, Opusculum Mystico-Dogmaticum tista por parte dos defensores da fé, nem
Pseudo-Mysticorum Anathematizatas Proposi- sempre objetiva e ponderada, destinou
tiones Confodiens... (Valencia, 1756). muitos dos mestres espirituais e místicos,
Diferentes autores valorizam hoje uma assim como as suas obras, ao silêncio e
revisão histórica da designada doutrina ao desaparecimento.
heterodoxa do quietismo. Importa não A oração de quietude ou de silêncio, a
ficar preso à noção de que os únicos contemplação, a entrega total de si mes-
responsáveis pelo clima quietista são as mo, no sentido de alcançar o amor uniti-
obras proibidas. Estudos mais recentes vo com Deus formava o núcleo doutrinal
não identificam como quietistas muitas e prático do quietismo. As suspeitas, acu-
das figuras que surgem no seio desta sações e polémicas em torno desta ques-
polémica, mas como grandes mestres es- tão trouxeram consigo consequências
pirituais e místicos. O P.e Eulogio de la nefastas para a espiritualidade e a mística
Virgen del Carmen sublinha claramente católica. Neste sentido, os antiquietistas

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1596 Antiquietismo

são responsáveis por uma certa descredi- 2014; FIORANI, Luigi, “Per la storia dell’anti-
bilização da mística no seio do catolicis- quietismo romano, il padre Antonio Caprini e
mo. No entender de alguns historiadores, la polemica contro i ‘moderni contemplativi’
como o já referido Eulogio de la Virgen tra il 1680 e il 1890”, in L’Uomo e la Storia: Studi
Storici in Onore di Massimo Petrocchi, vol. i, Roma,
del Carmen, “toda a literatura antiquie-
Edizioni di Storia e Letteratura, 1983, pp. 299­
tista é de uma monotonia aplanadora” ‑344; GOUVEIA, António Camões, “Quie-
(VIRGEN DEL CARMEN, 1969, 377). tismo”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.),
Uma outra plataforma de questões rela- Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. iv,
cionadas com o antiquietismo prende-se Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp.  87­‑90;
com o próprio desenvolvimento da espi- MAGAZ, José María, Los Riesgos de la Fe en la So-
ritualidade no seio do catolicismo. O nas- ciedad Española, Madrid, Ediciones San Dámaso,
cimento de uma nova forma de entender 2014; MARCOCCHI, Massimo, La Spiritualità
tra Giansenismo e Quietismo nella Francia del Seicen-
a espiritualidade colide fortemente com a
to, Roma, Studium, 1983; MARTINS, António
escassez de tratadistas sistemáticos de teolo- Coimbra, “Quietismo”, in SERRÃO, Joel (dir.),
gia espiritual, fazendo emergir contestatá- Dicionário de História de Portugal, vol.  v, Porto,
rios de doutrinas erróneas no que se refere Figueirinhas, 1992, pp.  221­‑224; MODICA,
à espiritualidade ortodoxa, como é o caso Marilena, Infetta Dottrina: Inquisizione e Quieti-
do quietismo e do jansenismo, entre ou- smo nel Seicento, Roma, Viella, 2009; PACHO,
tras. Toda esta celeuma fragilizou a mística, Eulogio, “Quietismo”, in ANCILLI, Ermano,
lançou um clima de desconfiança da vida Diccionario de Espiritualidad, vol. iii, Barcelona,
Herder, 1984; Id., Storia della Spiritualità Moder-
contemplativa, empobreceu a dimensão da
na, Roma, Teresianum, 1984; Id., El Apogeo de la
oração junto dos devotos e afastou da vida
Mística Cristiana: Historia de la Espiritualidad Clási-
do catolicismo grandes mestres da mística ca Española 1450-1650, Burgos, Editorial Monte
e da espiritualidade, assim como obras de Carmelo, 2008; TAVARES, Pedro Vilas Boas,
valor extraordinário nesta matéria. “Papel dos Jesuítas no anti-quietismo em Por-
tugal”, in A Companhia de Jesus na Península Ibérica
nos Sécs. XVI e XVII. Actas do Colóquio Internacional,
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Fortunato, His- vol. i, Porto, Humbertipo, 2004, pp. 487-503;
tória da Igreja em Portugal, nova ed. preparada Id., “Vícios privados, públicas virtudes. Quietis-
e dirigida por Damião Peres, 4 vols., Porto/ mo e ética”, Peninsula-Revista de Estudos Ibéricos,
Lisboa, Portucalense, 1967-71; BALUST, Luis n.º 3, 2006, pp. 201­‑212; VILANOVA, Evange-
Sala, “Los autores espirituales españoles con- lista, Historia de la Teología Cristiana, vol. ii, Bar-
temporáneos de Feijoo y las violencias diaboli-
celona, Herder, 1989; VIRGEN DEL CARMEN,
cas”, Salmanticensis, vol. 5, n.º 1, 1958, pp. 197­
Eulogio de la, “Literatura espiritual del Barroco
‑206; BERNARDES, Manuel, Pão Partido em
y de la Ilustración”, in DUQUE, Baldomero Ji-
Pequeninos, Porto, Lello e Irmão, 1990; Id., Luz
ménez et al., Historia de la Espiritualidad, Barcelo-
e Calor, vols. i-ii, Porto, Lello e Irmão, 1991;
na, Juan Flors, 1969, pp. 350­‑381; ZAGHENI,
BRUN, Jacques le, “Quietismo”, in VILLER,
Guido, La Edad Moderna: Curso de Historia de la
M. et al., Dictionnaire de Spiritualité, t. xii, Paris,
Iglesia, vol. iii, Madrid, San Pablo, 1997; digital:
Beauchesne, 1986, pp. 2756-2842; CHAGAS,
ZOVATTO, Pietro, “Quietismo e la Chiesa in
António das, Obras Espirituais Póstumas, Lisboa,
Italia”, in PALMA, Luigi Michele de, e GIAN-
Officina de Miguel Deslandes, 1684; Id., Car-
NINI, Massimo Carlo, Dizionario Storico Temati-
tas Espirituais, vols. i-ii, Lisboa, Officina Ignacio
co la Chiesa in Italia, vol. i, Roma, Associazione
Nogueira Xisto, 1762; ENTRAMBASAGUAS,
dei Professori di Storia della Chiesa, 2015:
Joaquín de, Miguel de Molinos, Siglo XVII, Madrid,
http://www.storiadellachiesa.it/glossary/quie-
Manuel Aguilar, 1940; ESCALADA, Juan José
Tuñón, Espiritualidad e Inquisición en Asturias en tismo-e-la-chiesa-in-italia/ (acedido a 9 jan.
el Siglo XVIII: el Proceso del Obispo José Fernández 2018).
de Toro, Valladolid, Universidad de Valladolid, Eugénia Magalhães

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Antirracionalismo 1597

Antirracionalismo de explicação unitária de toda a diversi-


dade de manifestações do real, reconhe-
cendo ao mesmo tempo a especificidade
de cada esfera da atividade do espírito. O
autor da Fenomenologia do Espírito (1807)
elabora uma síntese grandiosa, em que o
real e o racional, a história e o absoluto,

A razão é o órgão fundamental do tra-


balho científico, no sentido amplo
deste termo. Com efeito, a emergência da
o sujeito e o objeto constituem uma uni-
dade dinâmica.
O antirracionalismo é uma corrente de
filosofia grega faz-se contra o mito, i.e., a pensamento que, sob diversos matizes, re-
narração de feitos exemplares num tem- cusa a identidade hegeliana entre o real
po imemorial, sem a exigência de prova. e o racional, afirmando a radical hetero-
Enquanto se submete a exame e funda- geneidade entre a vida ou a existência e a
menta as suas asserções, toda a ciência razão. É uma das correntes mais marcan-
é de algum modo racional. No entanto, tes do séc. xix, tendo como representan-
aqui vamos fazer um uso mais preciso do tes pensadores tão distintos como Arthur
termo “racionalismo”. Schopenhauer, Søren Kierkegaard e Frie-
O racionalismo é uma corrente filosó- drich Nietzsche. Cada um deles assume
fica que está no cerne da modernidade como instância fundadora da sua filoso-
instaurada a partir do Renascimento, e fia alguma forma de realidade que escapa
cuja vigência durou, pelo menos, até ao ao domínio da razão, seja ela a vontade,
séc.  xix. No essencial, o racionalismo a existência cristã ou a vontade de poder.
pressupõe que a estrutura do universo e No caso português, o antirracionalismo
dos seres que o compõem é ordenada e não tem uma expressão filosófica forte,
inteligível, à medida da inteligência hu- mas corresponde à sensibilidade cultu-
mana. Por conseguinte, os instrumentos ral de uma parte da elite portuguesa na
de abordagem e os procedimentos ado- primeira metade do séc. xx, constituindo
tados pela ciência nova dos modernos se- uma linha estruturante da obra de poe-
guem o modelo da matemática. O intento tas-filósofos como Teixeira de Pascoaes e
de quantificar e medir com o máximo de Fernando Pessoa.
rigor possível os fenómenos é igualmen- A poesia de Pascoaes apresenta uma di-
te assumido pela corrente empirista, que mensão claramente reflexiva, na procura
defende o primado da experiência na de um novo modo de habitar a Terra e ex-
génese dos nossos conhecimentos, mas pressar a genuína realidade do ser huma-
partilha o empreendimento de racionali- no. O que resulta é uma filosofia poética,
zação do campo do saber. que, pela via do sentimento, visa penetrar
No séc. xvii, pensadores como Descar- no mistério do próprio ser, culminando
tes, Espinosa e Leibniz dão ao racionalis- num misticismo naturalista. De facto,
mo a sua fórmula canónica, expressa no para o poeta da saudade, num sentido
esforço de constituir uma mathesis univer- metafísico-antropológico, o essencial não
sal através de um raciocínio rigoroso, de pode ser apreendido pelo entendimento,
tipo dedutivo, assente em verdades sim- identificado com o exercício comum da
ples e evidentes. razão: “O que se entende não vale nada.
Na transição do séc. xviii para o séc. xix, O que vale é o que é para além do enten-
Hegel leva ao limite o ideal racionalista dimento” (PASCOAES, 1984, 81).

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1598 Antirracionalismo

é um antropomorfismo em todos os sis-


temas” (PESSOA, 1994, i, 8). O antropo-
morfismo significa tomar o Homem por
critério e medida do sentido ou do não
sentido das coisas. Daí que nos conduza
a uma simplificação da complexidade do
real: “Querer encontrar às coisas um ín-
timo sentido […] é querer simplificá-las”
(Id., Ibid., 9). A via entreaberta para uma
renovação da filosofia consistiria em as-
sumi-la como obra de arte no quadro de
um neopaganismo apto a reconhecer a
pluralidade insuperável das figuras da
verdade: “Ele [o neopagão] admite to-
das as metafísicas como aceitáveis, exa-
tamente como o pagão aceitava todos os
deuses na larga medida do seu panteão”
(Id., Ibid., 81).
O antirracionalismo constituiu uma
resposta à pretensão de enclausurar a rea-
lidade multiforme das coisas nos cânones
de uma razão totalizadora. Ora, razão e
desrazão têm entre si uma ligação inter-
na, convocando-se mutuamente: cada
forma de razão transporta uma margem
Teixeira de Pascoaes (1923), de António Carneiro. de desrazão que simultaneamente a re-
força e questiona.

No caso de Fernando Pessoa, toda a


sua obra é um exercício de afirmação-ne-
Bibliog.: CALAFATE, Pedro (dir.), História do
gação, compondo um texto densamente
Pensamento Filosófico em Portugal, vol. v, t. i, Lis-
complexo, em que várias camadas de boa, Caminho, 2004; HEGEL, G. W., Prefá-
sentido se apelam e repelem mutuamen- cios, trad., introd. e notas M. Carmo Ferreira,
te, num exercício intelectual que rompe Lisboa, INCM, 1990; KIERKEGAARD, Søren,
com a linearidade do discurso racional O  Desespero Humano, São Paulo, Martin Cla-
e, mesmo, com uma razão dialética, ávi- ret, 2001; NIETZSCHE, F., Assim Falava Zara-
da de síntese. Para Pessoa, a dualidade e tustra, trad. M. de Campos, Mem Martins,
Europa­‑América, 1978; PASCOAES, Teixeira
a heterogeneidade são a terra natal do
de, S. Paulo, Lisboa, Assírio e Alvim, 1984; Id.,
pensamento que não cede às armadilhas O Homem Universal, Lisboa, Assírio e Alvim,
filosóficas do “antropomorfismo” e da 1993; PESSOA, Fernando, Textos Filosóficos,
simplificação redutora. São essas as duas estabelecidos e prefaciados por António Pina
marcas fundamentais da racionalidade Coelho, 2 vols., Lisboa, Ática, 1994; SCHOPE-
moderna que Pessoa denuncia nos seus NHAUER, Arthur, O Mundo como Vontade e como
escritos filosóficos como intrínsecas à Representação, trad. Jair Barboza, São Paulo,
Universidade Estadual Paulista, 2005.
própria filosofia. Desde logo, e principal-
mente, o antropomorfismo: “A filosofia Adelino Cardoso

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Antirracismo 1599

Antirracismo processo de legitimação da sua imple-


mentação que se jogam noções de “raça”
e (in)fidelidade religiosa. Argumenta-se
que a perceção europeia dos africanos
como categoria homogénea e inferior
contribuiu para a cristalização de um
hierarquia racial, reafirmada nas bulas

E screver uma história abreviada da luta


antirracista em Portugal é necessaria-
mente falar de um movimento de luta
papais de 1452 e 1454. Enquanto o pri-
meiro documento conferia ao Rei Afon-
so V o direito de Portugal de escravizar
pelo reconhecimento e pela memória, na todos os “infiéis” na África Ocidental, o
tentativa de abertura de um debate públi- segundo proclamava e encorajava o direi-
co sobre “raça”, racismo, colonialismo e to dos europeus a conquistar e escravizar
violência que carece, ainda hoje, de visi- as populações a sul do cabo Bojador, sob
bilidade no seio da sociedade portugue- o pretexto de uma “missão civilizadora”.
sa. Entender a incipiência do fenómeno As proposições racistas que justificavam
antirracista em Portugal, considerando o a escravatura eram visíveis através da lin-
racismo enquanto processo estrutural e guagem (e.g. português), uma vez que os
ontológico na formação dos Estados-Na- escravos africanos eram distinguidos dos
ção europeus, implica revisitar aquilo que mouros pelo termo “negro”, sendo que
aqui se entende por racismo nas socieda- o termo “mouro negro” implicaria uma
des contemporâneas. dupla outrificação baseada em critérios
Kwame Ture e Charles Hamilton são raciais e religiosos. Assim, na segunda
pioneiros na sistematização da dimensão metade do séc. xv, na península Ibérica,
institucional (e colonial) do racismo. Ex- o termo “negro” era equivalente a “es-
plicam que esta dimensão, quando com- cravo”, embora, posteriormente, a escra-
parada com a sua expressão individual, é vatura se tenha alargado também às po-
muito menos condenada publicamente. pulações indígenas. Denote-se que esta
Ela encontra-se diretamente implicada conceção de “raça” operacionalizada no
na ativação e na reprodução de relações séc. xv em alguns países mediterrâneos
de poder desiguais. Neste sentido, é in- como Portugal e Espanha “rapidamente
viável reduzir o racismo ao seu carácter viria a marcar a Europa, bem como as di-
excecional, já que a ideia de “raça” serviu tas sociedades coloniais e imperiais, espe-
de matriz para designar quem pertence- cialmente aquando da construção da so-
ria ao “corpo da nação” e quem seriam os berania do Estado e da centralização da
seus “estrangeiros”, sendo, consequente- função da guerra ao encargo do mesmo”
mente, transversal aos diversos espaços e (GOLDBERG, 2009, 3).
processos sociais. A ideia da manutenção das boas rela-
Portanto, o racismo pode ser entendi- ções raciais – que se torna mais eviden-
do como legado histórico do colonialis- te na Europa e em Portugal no período
mo e da escravatura, e não como mero pós­‑Segunda Guerra Mundial – pareceu
desvio ao iluminismo ocidental. De servir, essencialmente, para evitar que os
acordo com James Sweet, a escravatura não europeus (e, acrescente-se aqui, eu-
transatlântica vem alterar os termos do ropeus não brancos) se tornassem racial-
debate sobre “raça” e relações raciais na mente conscientes da sua subordinação
Europa, uma vez que é no decorrer do e exploração. É através da eliminação da

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1600 Antirracismo

demonstração pública de sentimentos ra- processos de violência física e simbólica


cistas e da opção por um comportamen- do projeto colonial, enfatizando a ideia
to diplomático que emerge o que Furedi da (boa) relação, forjada fora do espaço
apelidou de “protocolo silencioso” aplica- europeu – da nação e da república – nos
do, neste caso, às relações raciais (GOLD­ trópicos. Este discurso prolongou-se para
BERG, 2009, 144-145), estádio a partir do lá das independências, tornando-se parte
qual “racism no longer dares to appear wi- do senso comum, integrando as repre-
thout disguise” (FANON, 1969, 26). sentações da nacionalidade portuguesa,
Assim, o racismo deve ser entendido e definindo, em grande parte, o discurso
como um dos processos de opressão atra- pós-colonial sobre as relações raciais em
vés do qual se têm operacionalizado e Portugal. Importa ainda salientar que,
legitimado (in)visivelmente relações de à imagem do que aconteceu com os ne-
poder e processos de violência relativa- gros – construídos politicamente como
mente ao outro colonizado ou ao outro o outro colonizado –, os ciganos foram
europeu. À imagem do que afirmara Aní- também diferenciados através de opera-
bal Quijano, a classificação de pessoas a ções que os constituíram como o outro
partir de critérios “raciais”, que serviu europeu, o que, conjuntamente, devol-
inicialmente para guiar e legitimar o veu a Portugal e à Europa a imagem de
projeto colonial e a escravatura, “per- espaços geopolíticos e identitários.
me[ou] as dimensões mais importantes Em concordância, foi construído em
do poder global, incluindo a sua racio- Portugal um corpo legislativo de exceção
nalidade específica: o eurocentrismo”. para as populações ciganas que remonta
Este eixo racial provou ser mais estável e ao séc. xvi. G. Pereira Bastos, numa in-
duradouro do que o próprio colonialis- cursão genealógica a este contexto, de-
mo e, consequentemente, “o modelo de monstra que estas leis se estenderam da
poder que é hoje hegemónico pressupõe monarquia ao fascismo, persistindo no
um elemento de colonialidade” (QUIJA- espaço democrático. Este quadro legal,
NO, 2000, 533). bem como as representações racistas que
No contexto português, a relação his- foram surgindo no discurso público e na
tórica entre racismo e colonialismo – tal literatura, produziram sistematicamente
como noutros regimes coloniais – é os ciganos como não europeus, assen-
(re)cons­ truída ideológica e discursiva- tes num limbo cambiante de nacionais­
mente, particularmente após a conferên- ‑estrangeiros.
cia de Bandung, em 1955, uma vez que Desta forma, o séc. xx viu crescer, em
esta promoveu uma discursividade inter- geral, uma narrativa hegemónica sobre
nacional anticolonial. O Estado Novo rea- Portugal como espaço democrático e to-
ge, adotando um discurso lusotropicalista lerante, barricado em espaços particula-
que vem reificar a crença no mito civili- res da história e da memória. Não obs-
zacional do colonialismo português, ana- tante, começam a chegar a Portugal em
lisado por M. Bandeira Jerónimo e por meados do séc. xx os discursos antirracis-
M. Paula Meneses. A matriz eurocêntrica tas, profundamente relacionados com a
na qual se enquadra o lusotropicalismo resistência ao colonialismo. E.g., quando
– tese eleita para narrar a excecionalida- foi criada a Casa de Estudantes do Impé-
de do Modo Português de Estar no Mundo, rio pelo Estado Novo, em 1944, o seu ob-
como lhe chama Cláudia Castelo – ten- jetivo inicial foi subvertido, uma vez que
de a tornar oclusos ou a naturalizar os cedo se tornou num foco de resistência

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Antirracismo 1601

ao colonialismo e à ditadura salazaris-


ta. Aliás, é a partir deste encontro que
é posteriormente constituído o Centro
de Estudos Africanos, e que se fortalece
o movimento de luta pela independên-
cia. Deve sublinhar-se ainda que o cres-
cimento dos movimentos anticoloniais,
designadamente dos movimentos pela
independência de Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau e Cabo-Verde, vieram con-
tribuir fortemente para a crítica da opres-
são racial/colonial e para a emergência
de um discurso antirracista, pelas vozes
de um conjunto de intelectuais, tais como
a poetisa Noémia de Sousa, Amílcar Ca-
bral, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto
e Mário Pinto de Andrade, entre outos.
São discursos que se relacionam, de certa
forma, com uma esquerda anticolonialis-
ta em Portugal, que, ainda timidamente,
é também responsável pela edição de al- Capa de A Audacia dum Tímido,
de Mário Domingues.
guns textos antirracistas, como os Boletins
Anti Coloniais, que se posicionavam pela
autonomia dos povos contra o projeto co- mento das vozes antirracistas e anticolo-
lonial português, e denunciando uma re- nialistas impossibilitaram de forma deter-
lação tácita entre colonialismo e racismo. minante a abertura de um debate público
Interessa também relembrar um caso sobre um fenómeno que se cria não exis-
com contornos de excecionalidade na tir: o racismo. E como, aparentemente,
imprensa portuguesa a este respeito, que não havia racismo, não seria necessário
se relaciona com a história política do um movimento antirracista.
jornalista e escritor Mário Domingues. É somente com a chegada da déc. de
Jornalista de origem são-tomense, foi 90 do séc. xx que se experimenta uma
responsável pela escrita de artigos forte- mobilização social contra o racismo em
mente antirracistas e anticoloniais desde Portugal. Alguns fatores contribuíram
a Primeira República até ao início da Se- decisivamente para esta dinâmica. Nesse
gunda Guerra Mundial. No entanto, após período, sucede um conjunto de fenó-
o início da ditadura, o autor vê-se obri- menos de índole racista. O homicídio
gado a escrever sob pseudónimo e ado- do militante de extrema-esquerda José
ta um pendor irónico, mas antes disso a Carvalho, em 1989, e o espancamento de
matriz dos seus textos é clara e determi- um estudante angolano, posteriormente
nada. Apesar disso, à imagem daquelas preso aos carris da linha de comboio, em
supracitadas, a sua voz foi silenciada no 1990, foram a expressão máxima da vio-
espaço público do seu tempo, e mesmo lência galopante da extrema-direita que
no pós-25 de Abril. se tornava cada vez mais visível no espa-
Assim, a construção da memória sobre ço público, designadamente nas claques
a história do colonialismo e o silencia- de futebol e no registo urbano, através

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1602 Antirracismo

da pintura de assinaturas e de símbolos um debate entre Fernando Ka e Demé-


nas paredes. É neste contexto que se vê trio Alves em 1993, centrado no direito
nascer o Movimento SOS Racismo, que dos imigrantes à habitação, que teve visi-
viria a jogar um papel fundamental na bilidade mediática e que contribuiu para
inscrição do (anti-)racismo em Portugal. a consciencialização da desigualdade en-
Posteriormente, deve assinalar-se o assas- frentada pelos imigrantes em Portugal.
sinato do cabo-verdiano Alcino Monteiro, É ainda neste contexto que é criada uma
também perpetrado por elementos da ex- Comissão Nacional para a Legalização
trema-direita, a 10 de junho de 1995, no Extraordinária, que dá origem a dois pro-
Bairro Alto. Destaca-se ainda a constitui- cessos de regularização extraordinária
ção de milícias populares racistas contra de imigrantes (1992-1993 e 1996). Estes
as comunidades ciganas em Vila Verde fenómenos contribuíram, por seu lado,
(1996) e em Francelos (1997-1999). para a mobilização imigrante.
Os episódios referidos, claramente mo- No final dos anos de 1990, é de assina-
tivados por um racismo com contornos lar a génese da Rede Antirracista (1999)
claros na sociedade portuguesa, vieram que juntou pela primeira vez numa só
asseverar a necessidade de discussão e de estrutura de trabalho associações de dife-
luta antirracista no país. A contribuição rente índole: de imigrantes, antirracistas,
do Movimento Associativo Imigrante do de direitos humanos, de desenvolvimen-
final dos anos de 1980 e no início dos to, de bairro e ciganas, tendo sido respon-
anos de 1990 (e.g. Associação Aguinen- sável pela organização de diversas mani-
so de Solidariedade Social, Associação festações pela legalização dos imigrantes
Cabo-Verdiana, Unidos de Cabo Verde, e pela Festa da Diversidade. Assinale-se
entre outras) foi essencial para a mobi- igualmente, em setembro do mesmo ano,
lização pelos direitos dos imigrantes, em a formação do Coletivo Mumi Abu-Jamal,
particular, através de um conjunto de ma- que, desde então, contribuiu com um
nifestações, nos anos de 1990, de apelo conjunto de ações de solidariedade com
à regularização. Não obstante, a primeira Mumia Abu-Jamal e outros presos, sobre-
e uma das únicas manifestações antirra- tudo denunciando a violência policial.
cistas realizadas até hoje em Portugal foi Paralelamente, uma agenda antirracis-
realizada em resposta ao assassinato de ta institucional no contexto europeu leva
Alcino Monteiro, em 1995. ao surgimento de campanhas oficiais de
Denote-se que é também no início dos combate à discriminação racial, como a
anos de 1990 que a imigração passa a Campanha do Conselho da Europa To-
ocupar um espaço de destaque nos meios dos Diferentes, Todos Iguais, em 1994; o
de comunicação social e na discussão po- Ano Europeu da Juventude contra o Ra-
lítica. O facto de uma grande parte dos cismo, o Antissemitismo e a Intolerância,
imigrantes residir em bairros informais em 1995; e o Ano Europeu contra o Ra-
e degradados tornou-se visível com o de- cismo, em 1997.
bate sobre as condições de habitação em A realização da Exposição Mundial de
Portugal, que de resto resultou na maior Lisboa (Expo’98), que comemorou os
política de habitação social no país, o 500 anos da viagem de Vasco da Gama à
Programa Especial de Realojamento. Índia – símbolo central dos Descobrimen-
É neste contexto que se põe em causa pu- tos portugueses –, joga também um papel
blicamente o realojamento dos não na- importante nesta discussão. O Estado e
cionais. Entre outros momentos, houve as instituições acabaram por reproduzir

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Antirracismo 1603

semelhanças com o discurso monumen-


talizador da Exposição do Mundo Por-
tuguês em 1940, através de publicações,
da construção e da nomeação de monu-
mentos enfatizando a nação colonizadora
com suposta eficácia governativa e civili-
zacional, em que se celebrou o descobri-
mento e se naturalizou a violência colo-
nial. Este contexto e a forte presença de

D.R.
imigrantes nas escolas, onde os manuais
escolares mantinham a narrativa nacional Pavilhão de Portugal na Expo’98 (Lisboa).
hegemónica, levam a academia a começar
a discutir, sobretudo no campo da antro- cos de Lisboa, Porto e Setúbal. Porém, a
pologia, da sociologia e evidentemente na introdução e, sobretudo, a manutenção
história, os pressupostos do colonialismo da discussão mediática do racismo deve-
português e a sua herança no presente. se em grande parte ao movimento SOS
Começam então a ser realizados alguns Racismo, criado em 1990, e que nas pri-
trabalhos sociológicos, desde os de Fer- meiras décadas do séc. xxi permanece
nando Luís Machado aos de João Filipe como uma das únicas associações com
Marques (2007). É incontornável o tra- intenção declarada de combate ao racis-
balho de Miguel Vale de Almeida, que mo. Oficialmente, de acordo com a lista
restabelece os termos do debate sobre existente na Comissão para Igualdade e
o racismo no campo da antropologia, Contra a Discriminação Racial, existem
abrindo uma discussão sobre colonia- três associações antirracistas: SOS Ra-
lismo, luso-tropicalismo e racismo. Na cismo, Olho Vivo e Frente Antirracista.
história são centrais trabalhos, como os Além destas, destaca-se o trabalho da Am-
de José Ramos Tinhorão e Isabel Castro nistia Internacional, essencial na monito-
Henriques, que tratam a presença e a he- rização e denúncia de casos de discrimi-
rança africana e negra em Portugal, assim nação racial institucional e a Associação
como a obra de V. Alexandre (2000), que Portuguesa de Apoio à Vítima através da
analisa o nacionalismo imperial, devendo Unidade de Apoio à Vítima Imigrante e
referir-se também C. Castelo a respeito da de Discriminação Racial ou Étnica, que se
temática do lusotropicalismo. Juntamen- debruça, essencialmente, sobre o acom-
te com M. Jerónimo), que aborda o mito panhamento de casos individuais.
civilizador, estes autores contribuem para No início dos anos 2000, em particular
a desconstrução do lusotropicalismo e do no contexto da construção dos estádios
mito civilizador. Recentemente, salien- do Euro 2004, com a intensificação de
te-se o trabalho de Marta Araújo e Silvia fluxos migratórios vindos do Brasil e de
Rodríguez Maeso, que contribuem para o alguns países do Leste europeu, como a
estudo do antirracismo na epistemologia Ucrânia, a Roménia e a Rússia, dá-se uma
moderna, essencialmente a partir de uma nova mediatização do fenómeno da imi-
análise crítica da produção académica gração. Imediatamente a seguir, em 2001,
em Portugal. inicia-se um processo extraordinário de
A história da luta antirracista confun- regularização, desta vez com títulos de
de-se com a história do movimento asso- permanência temporários, mais precá-
ciativo imigrante e dos bairros periféri- rios do que os anteriores, o que leva a

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1604 Antirracismo

uma nova mobilização das associações de da Cova da Moura ter sido brutalmente
imigrantes. Paralelamente, reaparece o espancado na esquadra da PSP de Alfragi-
discurso em torno do perigo dos gangues de (Amadora) uma semana antes. A ma-
da periferia, de uma segunda geração nifestação, organizada por moradores e
desintegrada, que responderia com a de- movimentos sociais, reverberaria ainda
linquência. Estes processos contribuem num outro protesto, intitulado “Vidas
amplamente para um conjunto de repre- Negras Importam”, no Lg. de São Domin-
sentações sociais e culturais negativas as- gos, a 21 de março. De acordo com o tex-
sociadas a bairros já de si segregados. to que convocava a concentração, além
Os casos de violência policial, alguns de assinalar o Dia Internacional para
dos quais resultando na morte de jovens, a Eliminação da Discriminação Racial,
como o caso de Manuel António Pereira este evento, à imagem da manifestação,
(Tony), no Bairro da Belavista, em Se- reivindicava: i) o final das operações do
túbal (2002), de Elson Sanches (Kuku), Corpo de Intervenção Rápida nos bair-
na Amadora (2009), e de Nuno Rodri- ros; ii) a criminalização (penal) dos atos
gues (Mc Snake), em Chelas (2010), de tortura e ódio racial; iii) a demissão
levantam novas questões sobre a forma imediata de todos os agentes envolvidos
como o Estado se relaciona com as po- nas atos de tortura ocorridos na esquadra
pulações negras e ciganas, ressaltando o de Alfragide.
papel da polícia nesta mediação. Note-se Salientamos ainda o constante papel
que é também por esta altura que a notí- do rap na denúncia e na discussão sobre o
cia de um arrastão na praia de Carcavelos racismo na sociedade portuguesa, assina-
em 2005 levanta, uma vez mais, um dis- lado inicialmente pela voz de General D,
curso anti-imigrantes na sociedade por- mas continuado por muitos outros. Parte
tuguesa. Paralelamente, é neste contexto desta produção musical contribuiu, pois,
que surgem novas associações de jovens para a denúncia da relação entre colonia-
residentes em bairros segregados, como é lismo, racismo e desigualdades sociais e
o caso da Associação Khapaz e, posterior- políticas na sociedade portuguesa em ge-
mente, da Plataforma Gueto. Esta última ral e, em particular, nas periferias.
realizou um conjunto de manifestações Focamos agora o nível institucional do
e iniciativas para denunciar a violência combate ao racismo. A área do racismo é
policial nos bairros, o racismo institucio- assegurada por um organismo específico,
nal e o discurso político. Promoveu ain- que junta a área da imigração e da popu-
da a formação especializada e encontros lação cigana. O Alto Comissariado para a
com o objetivo de debater o racismo e o Imigração e Minorias Étnicas foi criado
colonialismo, apresentar movimentos e em 1995 pelo Governo socialista de en-
pensadores do pan-africanismo, da ne- tão, mantendo-se nos governos seguintes
gritude, das lutas pela independência e com algumas alterações, sendo a prin-
do movimento negro. Estas iniciativas so- cipal em 2007, quando passa a instituto
maram contributos importantes ao movi- público e vê o seu nome alterado para
mento antirracista em Portugal e trouxe- Alto Comissariado para a Imigração e o
ram novo fôlego ao discurso antirracista. Diálogo Intercultural (ACIDI). Em feve-
Assinala-se a realização de uma Mani- reiro de 2014, a instituição sofre novas al-
festação contra o Racismo e a Violência terações, e é criado um novo organismo,
Policial, a 12 de fevereiro de 2015, depois o Alto Comissariado para as Migrações
de um grupo de jovens do Bairro do Alto (ACM) para substituir o ACIDI, com um

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Antirracismo 1605

acréscimo de competências ligadas à imi- e culturais em razão da pertença a de-


gração e à emigração. O ACIDI, depois terminada “raça”, cor, nacionalidade ou
ACM, tem tido um papel de promoção de origem étnica. Através da sua regulamen-
um discurso de interculturalidade através tação (lei n.º 111/00, de 4 de julho), a
da celebração da etnicidade e, ao mesmo lei estabelece um procedimento e regime
tempo, da relativização do racismo, pro- punitivo e contraordenacional para atos
movendo a ideia de que este é produto discriminatórios. Cabe à Comissão para a
da ignorância individual, sendo desprovi- Igualdade e Contra a Discriminação Ra-
do de contornos institucionais. Contudo, cial (CICDR) o registo e a organização
é de realçar o seu papel na publicação dos dados das entidades a quem foram
de um conjunto de trabalhos académi- aplicadas coimas e sanções acessórias.
cos que têm contribuído para um maior Esta lei foi inicialmente apresentada
conhecimento das populações ciganas e em 1997 no Parlamento pelo Partido So-
imigrantes em Portugal. cialista, após a entrega de uma petição
Finalmente, importa nomear as prin- promovida pelo SOS Racismo para que
cipais alterações legislativas que contri- fosse criada uma lei contra a discrimina-
buem para uma melhor perceção das ção racial. O abaixo-assinado foi entregue
consequências da luta antirracista em em 1996 e continha as bases da lei. A lei
Portugal. A Constituição da Repúbli- só é aprovada depois de uma nova discus-
ca Portuguesa consagra o princípio da são, desta vez promovida pelo Partido Co-
igualdade de todos os cidadãos através do munista, em 1999.
art. 13.º, e refere, no art. 26.º, o direito à Importa notar que o quadro legislativo
não discriminação. português nesta matéria recebe grande in-
Em matéria de foro penal, o Código Pe- fluência das diretivas da União Europeia,
nal (lei n.º 48/95, de 15 de março, com em particular da diretiva 2000/43/CE de
última alteração na lei n.º 60/2013, de 23 29 de junho, também apelidada de Direti-
de agosto) contempla várias normas cri- va “Raça”, que aplica o princípio da igual-
minalizadoras de comportamentos discri- dade de tratamento entre pessoas, sem
minatórios. Permite agravar a pena para distinção de origem étnica ou racial. Foi
homicídio qualificado (art. 132) e ofensa parcialmente transposta através do Códi-
à integridade física qualificada (art. 145). go de Trabalho em 2003 (lei n.º 99/03 de
O Código prevê ainda, no seu artigo 27 de agosto), que visa assegurar a igualda-
240.º, o próprio crime de discriminação de de acesso ao trabalho e ao emprego, e
racial, religiosa ou sexual. Contudo, não através da lei n.º 18/2004 de 11 de maio,
existe uma norma autónoma que esta- que tem por objetivo estabelecer um qua-
beleça que a motivação racista constitui dro jurídico para o combate à discrimina-
circunstância agravante para a prática de ção baseada em motivos de origem racial
todos os crimes. Fica assim à considera- ou étnica no acesso à segurança social, à
ção dos tribunais considerar a motivação saúde, a benefícios sociais, à educação e
racista como agravante ou não. Ainda ao fornecimento de bens e serviços, in-
antes da diretiva sobre igualdade racial, é cluindo a habitação. Apesar de a lei ter
aprovada em Portugal a lei n.º 134/99 de sido regulamentada em 2000, a CICDR
28 de agosto, que visa prevenir e proibir não publica dados concretos sobre o pon-
a discriminação racial e sancionar a prá- to de situação das queixas apresentadas.
tica de atos que se traduzam na violação De acordo com um estudo realizado para
de quaisquer direitos económicos, sociais a Amnistia Internacional pelo centro de

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1606 Antirracismo

investigação Númena, o número de quei- the genealogy of a concept”, in LAW, I. et al.,


xas acumuladas era, em finais de 2007, de Institutional Racism in Higher Education, London,
cerca de 300, mas “infelizmente o número Trentham Books, 2004, pp. 131-147; JERÓNI­
MO, Miguel Bandeira, Livros Brancos, Almas
de sanções aplicadas continua a ser mui-
Negras. A “Missão Civilizadora” do Colonialismo
to baixo” (PEIXE et al., 2008, 15). Este Português c. 1870-1930, Lisboa, Imprensa de
número de queixas corresponde, necessa- Ciências Sociais, 2009; MACHADO, Fernando
riamente, a uma parte daquilo que serão Luís, Contrastes e Continuidades – Migração, Etnici-
as situações de racismo. Esta última nota dade e Integração dos Guineenses em Portugal, Oei-
sintetiza o estado do antirracismo em Por- ras, Celta, 2002; MAESO, Silvia R., e ARAÚJO,
Marta, “‘Civilising’ the roma/gypsies. Public
tugal. Ou seja, apesar de ser um fenómeno
policies, ‘employability’ and the depoliticisa-
real, o racismo tem vindo a ser amenizado tion of (anti-)racism in Portugal”, Working Pa-
discursivamente e secundarizado no de- per elaborado no âmbito do projeto TOLERA-
bate público, em particular, ao nível insti- CE, Centro de Estudos Sociais da Universidade
tucional. A contrario, algumas associações, de Coimbra, 2011; QUIJANO, Anibal, “Colo-
coletivos e indivíduos têm vindo a jogar o niality of power, eurocentrism, and Latin Ame-
papel de promoção de debate e de cons- rica”, Nepantla: Views from South, n.º 1, vol.  3,
2000, pp. 533-580; ROCHA, E. et al., Lisboa
ciencialização social do fenómeno do ra-
Africana, Porto, ASA, 1993; SWEET, J., Collective
cismo em Portugal. Degradation: Slavery and the Construction of Race,
Connecticut,Yale University New Haven, 2003;
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Miguel Vale de, TINHORÃO, José Ramos, Os Negros em Portu-
Um Mar da Cor da Terra. Raça, Cultura e Política da gal: Uma Presença Silenciosa, Lisboa, Caminho,
Identidade, Oeiras, Celta, 2000; ARAÚJO, Mar- 1997; TURE, Kwame, e Hamilton, Charles,
ta, e MAESO, Silvia (orgs.), Eurocentrism, Racism Black Power – The Politics of Liberation, New York,
and Knowledge. Debates on History and Power in Vintage Books, 1967; digital: ALMEIDA, Mi-
Europe and the Americas, London, Palgrave Mac­ guel Vale de, “On the lusophone postcolony:
millan, 2012; BASTOS, José Gabriel Pereira, ‘culture’, ‘race’, ‘language’”, Rutgers Univer-
“Que futuro tem Portugal para os Portugueses sity, Department of Spanish and Portuguese
ciganos”, in MONTENEGRO, Mirna (org.), Ci- Studies, 2006: http://miguelvaledealmeida.
ganos e Cidadanias, Setúbal, Instituto das Comu- net/wp-content/uploads/2008/05/on-the-lu-
nidades Educativas, 2007; CASTELO, Cláudia, sophone-postcolony1.pdf (acedido a 16 jan.
«O Modo Português de Estar no Mundo»: o Luso-Tro- 2017); CARLOS, João, “Casa dos Estudantes
picalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa, Porto, do Império: berço de líderes africanos em Lis-
Afrontamento, 1998; FANON, Franz, Toward boa”, DW África, 13 fev. 2012, http://www.
the African Revolution – Political Essays, New York, dw.de/casa-dos-estudantes-do-imp%C3%A-
Grove Press, 1969; FRADIQUE, Teresa, Fixar 9rio-ber%C3%A7o-de-l%C3%ADderes-africa-
o Movimento. Representações da Música Rap em nos-em-lisboa/a-16233230 (acedido a 16 jan.
Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 2001; FURE- 2017); MENESES, Maria Paula, “O ‘indígena’
DI, Frank, Politics of Fear: beyond Left and Right, africano e o colono ‘europeu’: a construção
London, Continuum, 2005; GARCIA, José da diferença por processos legais”, E-Cadernos
Luís, “Um mulato contra o Império Português. CES, n.º 7, 2010, pp. 68-93: http://www.ces.
Descobrir Mario Domingos no século  xxi”, in uc.pt/e-cadernos/media/ecadernos7/04%20
GASPAR, Carlos, et al. (orgs.), Estado, Regimes -%20Paula%20Meneses%2023_06.pdf (acedi-
e Revoluções, Lisboa, Imprensa de Ciências So- do a 16 jan. 2017).
ciais, 2012, pp. 457-483; GOLDBERG, David Ana Rita Alves
T., The Threat of Race: Reflections on Racial Neo- Rita Cachado
liberalism, Massachusetts/Oxford, Blackwell Ana Cruz
Publishers, 2009; HENRIQUES, Isabel Castro,
A Herança Africana em Portugal – Séculos XV-XX,
Este artigo foi concluído pelas autoras no fi-
Lisboa, CTT Correios de Portugal, 2009; HES-
nal de 2014.
SE, Barnor, “Discourse on institutional racism:

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Antirrealismo 1607

Antirrealismo e sistemático, analítico, assente no princí-


pio da mimêsis aristotélica: se a brevidade
e simplicidade esquemática da novela e
a excecionalidade são expressivas do pri-
meiro caso, será expressiva do segundo a
complexidade do romance (e em série),
com a sua dimensão de representação

O conceito de antirrealismo foi


cunhado por  Michael Dummett
(1963) na revisão do longo debate filo-
social abrangendo as diferentes classes,
situações e protagonistas do quotidiano.
O  conceito de realidade está, pois, in-
sófico entre realismo e idealismo (nomi- formado pela elaboração conceptual do
nalismo, realismo conceitual, idealismo, real: contempla a dimensão sistémica des-
fenomenalismo, etc.). Para melhor o en- te, compreendida pelo observador.
tender, há que esclarecer o conceito do O ideário realista de representação ana-
radical a que se opõe na própria forma- lítica, sistémica e sistemática da realidade
ção lexical. corresponde, pois, a um contexto cultu-
O realismo foi um movimento estético ral da segunda metade de Oitocentos, em
que emergiu, se desenvolveu e dominou especial, marcado pela evolução científi-
a segunda metade do séc. xix europeu, a ca (da filosofia às ciências naturais, da fí-
começar por França, e, por sua influên- sica à química e à medicina, da psicologia
cia, com expressão noutros continentes, à sociologia) e pela racionalidade positi-
prolongando-se pelo naturalismo. vista (Proudhon, Quinet, Taine, Renan)
Surgiu por reação ao que se conside- impulsionada pelas Revoluções Francesa
rou ser a artificialidade do neoclassicis- e Industrial e conformada pelo modelo
mo idealista e a passionalidade egocên- biológico (Charles Darwin). Lembramos
trica do romantismo, e o esgotamento alguns indicadores epocais: criaram-se
dos seus modelos e das suas retóricas e as associações para o progresso da ciên-
será contestado pelo ideário dos movi- cia, os museus e as escolas politécnicas;
mentos sob o signo dos diferentes ismos multiplicaram-se as publicações científi-
modernistas. No contexto da ascensão cas; iniciaram-se as exposições universais;
da pequena burguesia, que se afirma assinalam-se os avanços na ótica, na teo-
em relação à aristocracia e à alta e mé- ria do calor e da eletricidade, as leis do
dia burguesia, os anteriores programas magnetismo, as ondas eléctricas (Hertz),
artísticos, marcados, respetivamente, a bacteriologia (Pasteur), a invenção do
pela esticização idealista e pela emocio- telégrafo eletrónico e do aparelho trans-
nalidade subjetivista e psicofânica, dão missor, etc.
lugar à valorização de uma representação Em Portugal, a Questão Coimbrã (1865)
sistémica e fidedigna do real. O antorrea- assinala o início da contestação sistemática
lismo substitui o princípio da veridição, do romantismo, cabendo às Conferências
da verdade, reclamado pelo romantismo, (Democráticas) do Casino (1875) a elabo-
pelo da verosimilhança, com consequên- ração das linhas de força programáticas
cias notáveis nos modelos artísticos. E.g., do realismo na arte nacional, assentes
a sectorialidade do recorte casuístico sin- na rejeição da artificialidade, da for-
gular (amoroso, biográfico, etc.), justifi- malidade e dos exageros  de uma sen-
cado pela sua invocada veracidade, cede timentalidade mórbida para que o ro-
ao projeto representativo mais sistémico mantismo se tinha orientado, perdido

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1608 Antirrealismo

o ideário iluminista da sua primeira europeia. Acompanharam as Confe-


geração. rências e continuaram para além delas
A Questão Coimbrã (1865), ou Ques- As  Farpas: Crónica Mensal da Política, das
tão do Bom Senso e Bom Gosto, foi a Letras e dos Costumes, folhetos mensais de
polémica literária que confrontou duas Ramalho Ortigão  e  Eça de Queirós (de-
fações e gerações literárias portuguesas, pois, só de Ramalho e com publicação
representadas, respetivamente, por An- mais assistemática), cujo subtítulo expri-
tónio Feliciano de Castilho e Antero de me bem o projecto analítico da realida-
Quental. No posfácio ao  Poema da Mo- de que informou a produção realista em
cidade  (1965), de Pinheiro Chagas, inti- todas as áreas artísticas. Eça de Queirós é
tulado “Carta ao Editor António Maria a maior referência literária da escrita rea-
Pereira”, Castilho criticou um grupo de lista, mas, na sua escrita, confluem as dife-
jovens de Coimbra  (em especial, Teófilo rentes tendências estéticas do seu tempo
Braga, com a Visão dos Tempos e Tempesta- (do romantismo ao simbolismo e ao de-
des Sonoras, e Antero de Quental, com as cadentismo), num itinerário que chega a
Odes Modernas), nomeadamente a falta antecipar o modernismo.
de bom senso e de bom gosto das suas Ora, se a valorização do pensamento
opções de escrita (exibicionismo, obscu- científico conduziu ao programa realista,
ridade e temática alheia à poesia), facto serão os avanços científicos e a sua asso-
que causou a reação de Antero de Quen- ciação ao sentimento finissecular, trau-
tal numa Carta Aberta (“Bom senso e bom maticamente estimulado pelo Ultimato
gosto: carta ao excelentíssimo senhor An- inglês (1890) em Portugal, a originar as
tónio Feliciano de Castilho”) censurando correntes estéticas que porão em causa o
o anacronismo, a futilidade e a insignifi- realismo e que promoverão a reconcep-
cância daquilo a que chamou a escola de tualização da arte em diversos sentidos:
elogio mútuo, do status quo, que envolvia decadentismo, simbolismo, impressionis-
Castilho, imediatamente acompanhado mo, etc.
por Teófilo Braga, com o folheto  Teocra- Assim, os conhecimentos da ótica e
cias Literárias. Seguem-se intervenções da perceção distinguirão e questionarão
alinhadas de parte a parte, anunciando o observável e o observado, da mesma
o amadurecimento reflexivo e estético forma que a inovação técnica das tintas
sobre as ideias de modernidade e atuali- e do papel industrializados favoreceu a
dade europeias que solidarizarão os seus pintura ao ar livre e, com ela, as séries de
defensores nas Conferências, mais tarde diferentes observações da mesma realida-
designados por geração de 70 (apesar da de. Na psicologia, os conceitos de incons-
diversidade etária). ciente e da constelação a ele associada
Em 1871, já em Lisboa, o grupo reuni- (sonho, etc.) farão reavaliar as questões
do no Cenáculo, sob a liderança de An- de sujeito, da identidade e relacionadas
tero, promoverá as Conferências no Casi- (incluindo autobiografismo, biografismo,
no Lisbonense, que se verá oficialmente confessionalismo, etc.).
encerrado para impedir a realização da Enfim, estes e outros conceitos foram
série prevista. A segunda, “Causas da decisivos para a definição de novos pro-
decadência dos povos peninsulares” (27 gramas estéticos cuja coerência e consis-
de maio de 1871), de  Antero de Quen- tência se constituíram por diferença e
tal, tornou-se uma referência decisiva do oposição relativamente ao realista, con-
pensamento sobre a história da cultura trastivamente: o simbolismo, centrado no

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Antirreducionismo 1609

sujeito, na sua psique e na perceção, no


sonho ou na alucinação por ela promovi-
Antirreducionismo
dos (e.g., Charles Baudelaire, Paul Verlai-
ne, Arthur Rimbaud, Stéphane Mallarmé,
e, em Portugal, Camilo Pessanha e Eugé-
nio de Castro, em especial, na literatura,
Gustave Moreau, Odilon Redon, Maurice
Denis,  Paul Sérusier  e Gustav Klimt, nas
artes plásticas, etc.); o impressionismo,
centrado na consciência da mediação
O reducionismo é uma tendência
marcante da ciência moderna, que
está de algum modo inscrita no seu có-
multissensorial percetiva do real conjun- digo genético. O paradigma do simples,
tural e dinâmico (na pintura, destacaram­ expresso na segunda regra do método
‑se Claude Monet, Edouard Manet, Edgar cartesiano e que orienta sistemas tão di-
Degas e August Renoir, entre muitos); o versos como o de Thomas Hobbes ou o
decadentismo, dominado pelo sentimen- de Leibniz, conduziu frequentemente a
to decadente e/ou catastrofista de fim um exercício de simplificação. O redu-
de século (Schopenhauer, etc.), quer de cionismo pode ser definido como uma
abrangência geral, quer nacional (na lite- conceção segundo a qual os fenómenos
ratura portuguesa, António Nobre e Raul e as estruturas complexos podem decom-
Brandão, e.g.). Dessa oposição de ideário por-se nos seus elementos mais elemen-
ao realismo decorreram, logicamente, as tares e ser explicados por eles. A nível
retóricas textuais e discursivas correspon- temático, o reducionismo tem visado
dentes, que caracterizaram a produção principalmente o domínio dos fenóme-
mais representativa de qualquer destes nos biológicos, que nada acrescentariam
movimentos. aos processos físico-químicos, e o dos fe-
nómenos psicológicos, assumidos como
Bibliog.: BARTHES, Roland et al.,  Literatura e mera refiguração de funções orgânicas:
Realidade. Que É o realismo?, Lisboa, Dom Qui- um pensamento nada mais seria do que
xote, 1984; DUMMETT, Michael,  Truth and uma certa atividade cerebral.
Other Enigmas, Harvard, Harvard University
Em termos históricos, deve-se a La Met­
Press, 1963; OKASHA, Samir, Philosophy of
Science: A Very Short Introduction,  Oxford, Ox- trie, em L’Homme-Machine (1751), a elabo-
ford University Press, 2002; RORTY, Richard, ração do primeiro sistema filosófico-cien-
A Filosofia e o Espelho da Natureza, Lisboa, Dom tífico assumidamente reducionista, em
Quixote, 1998. que as funções superiores da mente são
Annabela Rita explicadas pelo funcionamento da má-
quina do corpo: “Se eu confundo a alma
com os órgãos corporais é porque todos
os fenómenos me determinam a fazê-lo”
(LA METTRIE, 2004, 112). Para este
materialista clássico, nem os fenómenos
psicológicos nem os fenómenos culturais
têm uma natureza distinta dos fenóme-
nos físicos, pelo que a sua explicação é
mecânica. Neste quadro, a fisiologia reco-
bre toda a ciência do homem, cuja natu-
reza é a mesma que a de qualquer outro

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1610 Antirreducionismo

animal: “Apesar de todas estas prerrogati- Na segunda metade do séc. xx, o an-
vas do homem sobre os animais, colocá-lo tirreducionismo é uma linha orientado-
na mesma classe que eles é uma forma de ra da obra de Egdar Morin, que assumiu
o honrar” (Id., Ibid., 61). a complexidade como o ponto de vista
A tendência reducionista é um dos tra- adequado à ciência moderna. Nature-
ços marcantes da ciência do séc. xix, bem za, homem e cultura não são entidades
patente em autores emblemáticos como atómicas, mas realidades mutuamen-
James C. Maxwell ou Charles Darwin. Na te interdependentes; donde a recusa,
fórmula condensada de Ernst Haeckel, tanto do “biologismo”, como do “an-
divulgador das doutrinas evolucionistas, tropologismo”: “O que é irremediavel-
“todo o fenómeno tem uma causa mecâ- mente atingido é a conceção insular do
nica” (HAECKEL, 1902, 313). homem.  […]  O que também rebenta é
No panorama científico-cultural portu- o conceito insular da vida, já semique-
guês, o reducionismo assume o estatuto brada. Não é tão­‑só o homem que não
de verdadeiro paradigma, com uma fi- pode ser reduzido à biologia, é a própria
losofia, um método e um sistema de va- biologia que não pode ser reduzida ao
lores, na obra de Miguel Bombarda, em biologismo” (MORIN, 1973, 50).
especial em Consciência e Livre Arbítrio, de No âmbito da ciência portuguesa, so-
1898. Para este médico-filósofo, a ciência bressai a voz de Barahona Fernandes,
declina-se no singular, não fazendo ne- que insistiu numa estratégia de olhar que
nhum sentido a distinção entre ciências fizesse a ponte entre um holismo vago
da natureza e ciências humanas. Neste e a fragmentação das diferentes ordens
quadro de naturalização do homem e da de fenómenos que se cruzam no “todo
sociedade, psicologia e sociologia são mo- complexo, heterogeneamente organiza-
dalidades da biologia: “São leis naturais do” que constitui o homem integral: “A
as que regem as ações humanas e os desti- apreensão desta estrutura não pode, por
nos sociais” (BOMBARDA, 1900, 17). Do enquanto, deixar de se fazer pela análise
ponto de vista metodológico, a operação dos seus vários aspectos materiais, bioló-
típica da ciência é a simplificação/redu- gicos, anímicos e espirituais. De contrá-
ção: “Simplificar o conhecimento dos rio, cai-se num ‘globalismo’ difuso, ou
fenómenos, reduzi-los à sua mais singela em vagas antropologias espiritualistas,
expressão, é a tarefa de toda a ciência” amputando o homem do Cosmos mate-
(BOMBARDA, 1898, XXI). rial e biológico, a que também pertence”
No meio intelectual português, a ofen- (FERNANDES, 1998, 390). Sem perder
siva antirreducionista tem a sua expressão de vista a unidade do homem todo, B.
lapidar na obra de Leonardo Coimbra, Fernandes aposta no pluralismo antirre-
para quem a matéria nas suas formas mais ducionista: “Nessa base voltamos a rejei-
elementares tende para o grau superior tar as perspetivas ‘divergentes, unilaterais
de realidade, identificado com a ativida- e parcelares’ que hoje se consideram
de da consciência: “A vida consciente na como ‘reducionistas’, tanto materialistas
sua plena manifestação, isto é, a pessoa, é como espiritualistas” (Id., Ibid., 764).
a realidade mais verdadeira e completa” No início do séc. xxi, a situação atual
(COIMBRA, 2004, 316). Sob a designação é de certo modo ambivalente, como bem
de criacionismo, o autor concebe a sua fi- ilustra a obra de António Damásio. Na sua
losofia como uma síntese filosófica, articu- obra emblemática, O Erro de Descartes, Da-
lando espiritualismo e ciência exata. másio recusa veementemente o dualismo

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Antirreducionismo 1611

mente/corpo, tal como o dualismo pen-


samento/emoção; no entanto, substitui o
dualismo por um reducionismo, em que
a componente psíquica é vista como um
mero desenvolvimento do funcionamen-
to orgânico: “Do meu ponto de vista, o
que se passa é que a alma e o espírito, em
toda a sua dignidade e dimensão huma-
na, são os estados complexos e únicos de
um organismo” (DAMÁSIO, 1994, 257).
A aproximação que Damásio faz à fi-
losofia de Espinosa traduz, sem dúvida,
a preocupação de responder ao intento
espinosano de uma concepção unitária D.R.
António Damásio (n. 1944).
do ser humano. Não obstante, os termos
em que assume o espinosismo implicam
uma inflexão deste numa direção organi- O antirreducionismo tem a sua expres-
cista, ao aplicar a noção de conatus essendi são mais elaborada na crítica do sistema
(esforço de ser), entendido como a ten- formado pela economia, a política e a
dência a perseverar no seu próprio ser, ciência no quadro das sociedades tec-
ao organismo e não ao todo individual: nologicamente avançadas, em que a ca-
“Tudo isto teria sido mais do que suficien- pacidade de manipulação das estruturas
te para alimentar a minha curiosidade so- elementares dos seres vivos, e nomea-
bre Espinosa, mas encontrei muito mais. damente dos genes, leva a isolar certos
Para ele, os organismos tendem natural e elementos, e.g. os genes, abstraindo da
necessariamente a perseverar no seu pró- complexa teia de relações em que eles
prio ser. Essa tendência necessária cons- se desenvolvem e agem. A articulação
titui a essência desses seres” (DAMÁSIO, entre bioeconomia (apropriação de
2003, 27). Com efeito, o desafio que Es- constituintes do ser vivo através nomea-
pinosa colocou aos seus contemporâneos damente da concessão de patentes sobre
e à posteridade é o de pensar o homem a “invenção” de estruturas e funções or-
como unidade primordial, expressa na gânicas reconstruídas em laboratório) e
copertença entre mente e corpo, que biotecnologia (manipulação dos dispo-
são, uma e outro, dimensões incindíveis sitivos inerentes ao ser vivo através de
de uma mesma totalidade. Damásio con- instrumentos técnicos altamente sofisti-
torna a dificuldade, procedendo como se cados) faz-se acompanhar de “conceções
o organismo contivesse seminalmente a reducionistas e mecanicistas, partilhadas
unidade do humano, no qual assentaria a sobretudo pelos membros da comuni-
componente psíquica do nosso ser. Ora, dade da biotecnologia cujo terreno de
é justamente isso que Espinosa questio- investigação não exige um nível de abs-
na: a redução unilateral do humano à sua tração teórica muito elevado” (GARCIA,
base física ou psicológica e, obviamente, 2006, 986). Os trabalhos de Hermínio
a separação entre elas. A persistência da Martins e José Luís Garcia são parti-
tendência reducionista poderá funcionar cularmente relevantes na crítica de uma
como um convite a reinventar um monis- visão redutora dos organismos vivos,
mo da complexidade? incluindo o corpo humano, que ignora

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1612 Antirreformismo educativo

o contexto relacional em que a vida, e


mormente a vida humana, se desenrola,
Antirreformismo
no intuito de isolar objetos manipuláveis educativo
e passíveis de exploração económica:
“Neste âmbito [da medicina e da saúde
em geral] procuro sustentar como, guia-
da por uma interpretação teórica redu-
cionista da vida, a bioeconomia procura
a exploração quase ilimitada de todas as
possibilidades de reconstrução dos orga-
nismos vivos e, inclusive, a intervenção
antropotécnica” (Id., Ibid., 982).
P ara um autor como Larry Cuban, o
facto de as reformas educativas se su-
cederem indicia que as mesmas falharam
na eliminação dos problemas que preten-
Bibliog.: BOMBARDA, Miguel, A Consciencia diam resolver. E adianta: “although there is
e o Livre Arbitrio, Lisboa, Livraria António Ma- motion, there is no change [embora haja
ria Pereira, 1898; Id., A Biologia na Vida Social,
movimento, não há mudança]” (CUBAN,
Lisboa, Sociedade das Sciencias Medicas de
2008, 93). Como quer que seja, as refor-
Lisboa, 1900; COIMBRA, Leonardo, Obras
Completas, vol. i, t. ii, Lisboa, INCM, 2004; DA- mas educativas “foram manifestações con-
MÁSIO, António, O Erro de Descartes, Emoção, cretas e potencialmente transformadoras
Razão e Cérebro, Mem Martins, Europa-Améri- de um determinado presente­‑passado”,
ca, 1994; Id., Ao encontro de Espinosa. As Emoções encerrando, ao mesmo tempo, uma certa
Sociais e a Neurologia do Sentir, Mem Martins, idealização e expectativa quanto ao futu-
Europa-América, 2003; FERNANDES, H. Ba- ro (MAGALHÃES, 2010, 77). No entanto,
rahona, Antropociências da Psiquiatria e da Saúde
esses processos de mudança (ou de tenta-
Mental, vol. i, Lisboa, FCG, 1998; GARCIA,
José Luís, “Biotecnologia e biocapitalização tiva de mudança) provocaram, em maior
global”, Análise Social, vol.  xli, n.º 181, 2006, ou menor escala, reações antagónicas.
pp. 981-1009; HAECKEL, Ernst, Les Enigmes Afigura-se, aliás, com particular interesse,
de l’Univers, Paris, Sleicher Frères, 1902; MAR- na linha da investigação de João Barroso,
TINS, Hermínio, Experimentum Humanum. Civi- analisar as reformas “à  luz do confronto
lização Tecnológica e Condição Humana, Lisboa, entre diferentes lógicas e atores políti-
Relógio d’Água, 2011; LA METTRIE, Oeuvres
cos, correntes pedagógicas ou estratégias
Philosophiques, Paris, Coda, 2004; MORIN,
Edgar, Le Paradigme Perdu: La Nature Humaine,
de mudança” (BARROSO, 2000, 75). Ao
Paris, Seuil, 1973. abordar o tema do antirreformismo no
campo educativo, não se pretende tanto
Adelino Cardoso
explicar o sucesso ou o insucesso das re-
formas, ou seja, perceber o que mudou ou
acabou por permanecer, mas sim, à luz do
anunciado confronto, identificar de for-
ma contextualizada que medidas fixadas
nas reformas educativas provocaram resis-
tência ativa dos reformados. Pretende-se
opor a vontade de perpetuar à vontade de
transformar.
O percurso desta investigação começa
no momento em que se assiste em Por-
tugal à institucionalização do sistema de

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Antirreformismo educativo 1613

ensino de Estado concebido pelos re- da parte de mestres particulares, natural-


formadores pombalinos. As reformas de mente prejudicados com a abertura de
1759 e de 1772 lançam as bases de um aulas régias gratuitas. Note-se também
sistema estatal de ensino, antecipando que o subsídio literário suscitou contes-
a própria ideia de instrução pública nos tação da parte das populações. De facto,
moldes em que seria desenvolvida após a já no reinado de D. Maria I são apresen-
Revolução Francesa. Na ação reformado- tadas várias representações no sentido da
ra de Pombal, há dois aspetos que mere- criação de cadeiras, justamente fundadas
cem particular atenção, os quais, de resto, no “contraste entre a obrigação generali-
suscitaram contestação e resistência, por zada de pagamento do imposto e os cri-
via direta ou indireta: i) a substituição da térios discriminatórios de lançamento da
tutela religiosa pela do Estado; ii) a im- rede escolar” (FERNANDES, 1994, 142).
posição de um imposto especial – o sub- Por fim, importa assinalar, numa perspe-
sídio literário – exclusivamente destinado tiva mais abrangente, que a oposição às
às escolas régias e ao pagamento dos seus reformas pombalinas tem raiz num con-
docentes (permitindo, dessa forma, criar fronto que radica num fator de apego à
um corpo profissional de professores di- permanência e consequente rejeição de
retamente dependente do Estado). qualquer tipo de mudança ou de inova-
No primeiro caso, importa referir a crí- ção, assim como no saudosismo do ensi-
tica à ação educativa de D. José I veicu- no jesuítico.
lada pela hierarquia eclesiástica, receosa, Resistências porventura mais estrutu-
em função do processo de estatização do rais são sentidas no período histórico
ensino, da perda de influência na organi- em que se institui, nacionaliza e forma-
zação e direção dos estudos. Sem embar- liza uma cultura escolar – o liberalismo.
go, a única oposição digna desse nome Trata-se, com efeito, do momento a partir
(excecional, portanto) terá sido a que foi do qual a cultura e ação escolares concre-
protagonizada pelo arcebispo de Braga, tizam um historicismo pátrio agregador
D. Gaspar Bragança, que, no início dos dos cidadãos, sendo que os sistemas que
anos de 1760, ignorou as estruturas esta- visam a inclusão nunca são universais. As-
tais de direção, prosseguindo a emissão sim, e não obstante as mudanças amplas
de licenças para ensinar. No entanto, o que se operam no quadro do regime li-
antagonismo então gerado esbater-se-ia beral (designadamente, nos domínios do
no decurso da citada década, tanto por conhecimento e da cidadania), a verda-
via da intervenção firme e autoritária do de é que, por via de diversos obstáculos
marquês de Pombal (obviando a preten- (analfabetismo, limitações na formação
sos desvios), como pelo protagonismo do do professorado, inexistência de espa-
diretor geral de Estudos, cuja atitude mo- ços físicos adequados, entre outros), os
derada encorajou a adesão da hierarquia resultados ficarão aquém da idealização
religiosa e, dessa forma, o progressivo contida nos vários projetos reformadores.
acesso da mesma ao monopólio que fora Recorde-se, por outro lado, que alguns
detido pelos Jesuítas (expulsos do país autores (como Yasemin Soysal e David
em 1759). No segundo caso, o subsídio Strang) referenciam o sistema educativo
literário, ao possibilitar a criação de um português no séc. xix como uma constru-
corpo profissional de professores tutela- ção retórica da educação.
dos pelo Estado, gerou, como faz notar Valerá a pena centrar a atenção em al-
Áurea Adão, algumas reações negativas gumas das reformas implementadas no

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1614 Antirreformismo educativo

decurso de Oitocentos que tiveram espe- tudos médicos). E é, de modo muito par-
cial significado histórico, para perceber ticular, em relação à reforma dos estudos
em que medida tais reformas procuraram superiores que se observam reações de
transformar a realidade; importa, ao mes- hostilidade em Coimbra e, mesmo, nas
mo tempo, avaliar que confrontos foram províncias do Norte; algo que se com-
suscitados pelas estratégias de mudança preende se tivermos em linha de conta
que elas encerravam. Considerem-se, no que o que estava a ser posto em causa não
período imediatamente subsequente às era apenas a influência da referida aca-
guerras liberais, as disposições reforma- demia. Com efeito, a ação de Rodrigo da
doras de Rodrigo da Fonseca Magalhães, Fonseca Magalhães visava, em primeira
a quem coube a pasta dos Negócios do instância, defender os interesses da bur-
Reino (a instrução estava cometida a este guesia industrial de Lisboa (daí a aposta
ministério) em julho de 1835. A sua ati- nas escolas de aplicação em detrimento
vidade durante os quatro meses em que das faculdades universitárias). Assim, há
dirigiu o ministério incidiu em diversos um conjunto de forças políticas, sociais e
sectores do sistema de ensino, destacan- culturais com representantes na Univer-
do-se, entre outras medidas: i) a criação sidade que se opõe ao movimento refor-
do Conselho Superior de Instrução Públi- mador em questão. Dessa forma, não se
ca (dec. de 07/09/1835); ii) a publicação estranha que, para além das reclamações
do Regulamento Geral da Instrução Pri- do professorado, os próprios habitantes
mária (decreto dessa mesma data); iii) a da cidade de Coimbra tenham represen-
criação do Instituto das Ciências Físicas e tado à Rainha “rogando não consentisse
Matemáticas (dec. de 07/11/1835). Deve no desmembramento da Universidade e
dizer-se que parte substancial das suas re- na criação de estudos superiores noutros
formas não é posta em causa. Aquilo que, pontos do reino” (FERNANDES, 1983,
enquanto estratégia de mudança, vem a 239). Interessa dizer que os citados de-
ser alvo de oposição é o objetivo de exclu- cretos de 7 de setembro e de 11 de no-
são da Univ. de Coimbra do processo de vembro de 1835, entre outros diplomas,
negociação que a reforma pressupunha; foram suspensos por decreto de 2 de
mais, é claro o intento de retirar da tutela dezembro do mesmo ano, subscrito por
da academia de Coimbra a responsabili- Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque:
dade de conduzir a vida escolar do país. dava-se fundamento às reações desfavo-
Na verdade, o Conselho Superior de Ins- ráveis da opinião pública e aos protestos
trução Pública, sediado na capital e com da Univ. de Coimbra (sendo que, por sua
atribuições no respeitante aos diversos vez, o decreto de Mouzinho gerou uma
níveis de ensino (primário, secundário e onda de censura na capital).
superior), vinha substituir a Junta da Di- Apesar de o contexto político que en-
retoria Geral dos Estudos, que tinha a sua volveu a ação de Rodrigo da Fonseca Ma-
sede em Coimbra, junto da Universidade galhães ter sido complexo, é útil retirar
(a qual, de resto, ficava sob a égide do re- algumas ilações no que concerne à forma
ferido Conselho). Por outro lado, o novel como foram concebidas e implementa-
Instituto das Ciências Físicas e Matemá- das as suas disposições reformadoras e,
ticas previa a existência de escolas supe- consequentemente, às reações observa-
riores de aplicação em Lisboa e no Porto, das (que impediram, no fundo, que a
alternativas, sublinhe-se, às de Coimbra ação reformadora tivesse prosseguido),
(limitadas a escolas preparatórias dos es- que poderão ajudar a compreender o

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Antirreformismo educativo 1615

insucesso de outras tentativas de reformas


globais. Sublinhe-se, com base na obra de
João Barroso: i) a conceção normativa
de mudança, ignorando a especificidade
dos contextos e a autonomia dos atores
envolvidos; ii) o caráter exógeno da ela-
boração da reforma, não contemplando,
na verdade, qualquer processo participa-
tivo e negocial, traduzindo-se na sua im-
posição. Talvez por essas mesmas razões
a descontinuidade introduzida por uma
reforma rapidamente suspensa ou anula-
da, como a que foi referida, seja tão in-
consequente como a permanência dada
por um diploma – a lei de 20 de setembro
de 1844 (reforma de Costa Cabral) – que,
entre 1844 e o início da déc. de 1880, re-
gulou a instrução primária, decretando a
obrigatoriedade escolar e gerando, por
Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858).
essa via, reações adversas (&Antiescola-
rismo). Tratou-se de uma medida sem
efeitos práticos. De facto, em 1875, a taxa 1838, o Conselho Geral Diretor do Ensi-
de analfabetismo cifrava-se, em Portugal, no Primário e Secundário, instado pelo
nos 80 %. Governo a elaborar um projeto de lei
Em síntese, o que interessa enfati- no sentido de melhorar o referido dec.
zar  –  algo, aliás, que é particularmente de 1836, vinha reconhecer que se havia
verdadeiro para o séc. xix português – é criado os liceus “sobre um plano tão vas-
a incapacidade de, como bem viu Larry to, e superior às forças, e necessidades
Cuban, as reformas provocarem mudan- da Nação, que por isso mesmo se tornou
ças fundamentais. Ou seja, o seu efeito no inexequível. Entretanto fazendo conce-
sistema é epidérmico, e decorre mais da ber esperanças a uns e deixando outros
forma e da estratégia de execução das re- receosos do seu resultado, desarranjou o
formas do que propriamente do seu con- que havia antigo, e colocou as Autorida-
teúdo, e mesmo das resistências que elas des no estado de perplexidade e apatia,
acabam por gerar; de resto, as oposições que é a consequência necessária da ver-
e os antagonismos prendem-se amiúde satilidade das Leis” (ANTT, Ministério do
com a inadequação das reformas aos con- Reino, mç. 2126). Numa perspetiva mais
textos, uma vez que a sua especificidade abrangente, a da reforma da instrução se-
é ignorada. cundária, é muito interessante que, pelo
Pense-se agora no ensino liceal en- menos desde os anos de 1840, alguns
quanto via para a educação secundária e parlamentares procurem estabelecer
formação de uma elite. É bem conhecida um corpo de teorização sobre qualquer
a dificuldade por que passou a instalação intento reformador que se apresentasse.
dos primeiros liceus, criados ao abrigo do É nesse sentido que, em 1883, o deputa-
dec. de 17 de novembro de 1836 (refor- do republicano Manuel de Arriga coloca
ma de Passos Manuel). Na verdade, em o seguinte conjunto de questões: “Como

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1616 Antirreformismo educativo

fazer uma reforma de instrução secun- no período posterior à publicação do


dária, séria, viável, verdadeira, introdu- dec.  de 14 de agosto de 1895 (o regula-
zindo-lhe elementos novos de doutrina, mento da citada reforma) que a contesta-
sem acompanharmos paralelamente esta ção sobe de tom. E, não obstante a natu-
inovação de uma reforma no professora- reza diversa dos ataques que então foram
do, para que nos garanta a proficuidade desferidos pelos críticos do texto refor-
do ensino? Como fazê-la sem pedirmos mador de Jaime Moniz – em razão, por
ao tesouro os recursos pecuniários indis- exemplo, do aumento do nível de exigên-
pensáveis para a pôr em prática? Como cia aos alunos, da imposição do compên-
fazê-la sem que um maduro exame na ex- dio único, do novo regime de exames, da
periência de anos anteriores, e a opinião própria definição da rede de liceus nacio-
dos homens competentes a indiquem e a nais e centrais (que suscitará questões de
reclamem?” (ADÃO, 2001, 9). É sintomá- interesses locais) –, as manifestações são
tico, de resto, que, no decurso dos anos particularmente reativas: i) às “ideias cen-
de 1880, sejam publicadas três reformas tralizadoras que informavam o regime de
do ensino liceal: 1880, 1886 e 1888. Neste classe” (uma das transformações mais im-
último ano, José Luciano de Castro, no portantes e que procurava dar unidade às
preâmbulo da reforma que então assina, diferentes peças curriculares); ii) à cren-
aponta como males do ensino liceal o ça, logo anunciada em 1894, de que seria
“demasiado fracionamento de algumas possível reformar o sistema sem a adesão
disciplinas” e a “excessiva vastidão de ou- dos docentes (Id., Ibid., 262). Mais do
tras” (CARVALHO, 1996, 621). que elencar críticas (o seu teor e a pro-
Não obstante toda a retórica e as in- veniência social e profissional de quem
tenções mais ou menos voluntaristas, a as veicula), interessa enfatizar a conceção
verdade é que as reformas se sucedem normativa de mudança e a forma dirigis-
sem cumprirem os objetivos anunciados. ta de estruturar o sistema de ensino, bem
Mesmo a reforma de Jaime Moniz (1894­ expressas na seguinte passagem: “Adolfo
‑1895) – que para alguns atores coevos, Coelho ao defender as imposições didá-
e.g. Silva Cordeiro, acabou por se impor ticas da reforma optava por um mode-
pela circunstância de ter sido decretada lo dirigista em que a transformação do
em ditadura – padeceu de um conjunto ensino era imposta de cima para baixo,
de problemas aos quais já nos referimos, isto é, através da prescrição legal do cum-
nomeadamente a conceção normativa da primento de determinados programas e
mudança. Com efeito, logo após a publi- métodos didáticos chegar-se-ia à modifi-
cação do diploma reformador (dec. de cação da atuação dos professores e, con-
27/12/1894), um articulista anónimo sequentemente, do ensino na sua globali-
tecia na Revista dos Liceus várias críticas dade” (PROENÇA, 1997, 278).
ao mesmo, sublinhando o facto de os Passando para o período da Primeira
professores não terem sido implicados na República, constata-se que o esforço re-
reforma, e argumentando que só com a formador na área da educação procurou
sua “responsabilização” direta se poderia situar-se numa dinâmica de rutura face
inverter a sequência de reformas “cada aos últimos anos da monarquia. Mas,
vez mais mal pensadas” (Ó, 2003, 261). como notou António Nóvoa, trata-se de
A  questão, como apontou Jorge Ramos uma reação/oposição que não se fun-
do Ó, radicava na inexistência de uma da essencialmente numa questão peda-
discussão especializada. Mas é sobretudo gógica. De facto, o olhar niilista para o

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Antirreformismo educativo 1617

passado monárquico – o “espírito de pre- ao ensino primário superior). Atente-se


sente” orientado para um “horizonte de numa passagem do diploma que determi-
expetativa”, nas expressões de Justino Ma- na a referida extinção, onde a legitimação
galhães (MAGALHÃES, 2012, 11) – pren- que se procura obter para encerrar as es-
de‑se com a ideia de que a república só colas primárias superiores reivindica a he-
seria possível “através de uma outra edu- rança republicana: “Reconhece o Gover-
cação, pois as instituições revolucionárias no, como foi reconhecido pelo Governo
não podem constituir-se a partir de um Provisório em 1911, a necessidade da criação
sistema escolar do passado” (NÓVOA, de um ensino complementar primário. Por isso
1989, X). Porém, não obstante o diagnós- mesmo se torna necessário proceder à
tico que foi feito da situação educacional sua ponderada organização em bases ra-
portuguesa, sem esquecer a constituição cionais e científicas […]. Para tal se con-
de um corpo legislativo contemplando seguir, convém, antes de tudo, eliminar
todos os sectores de ensino (tenha-se em as causas perturbadoras dessa iniciativa.
conta que no ano de 1911 são publicadas E  as Escolas Primárias Superiores como
mais de três dezenas de diplomas legais), se encontram representam, além de um
e dado que os sistemas educativos mudam grave prejuízo para a marcha do ensino,
a um ritmo muito lento, a via reformista um motivo constante de crítica, infeliz-
adotada – apostar em medidas fortes e mente justa, que em nada concorre para
pontuais – não gerou mudanças funda- a dignificação da República” (dec. 11.730,
mentais, exatamente pelo facto de não de 15 de junho de 1926; itálico acrescen-
ter criado as condições que permitissem tado). Posteriormente, a Constituição de
“uma evolução tendencial num sentido 1933 limitará a obrigatoriedade escolar ao
positivo” (Id., Ibid., XIII). A este respeito, ensino primário elementar (três anos de
o insucesso do combate ao analfabetismo duração).
é eloquente. No decurso do séc. xx, foi ensaiado um
No período imediatamente posterior conjunto de reformas que gerou algumas
a 1926, correspondente à instituciona- mudanças; o que acabou, porém, por
lização do Estado Novo, assiste-se à neu- permanecer, em função da matriz gené-
tralização da escola republicana, com o tica do modelo escolar, foi a classe (que
objetivo de tentar apagar tudo o que não tornou possível o ensino coletivo – en-
pudesse ser acolhido na intenção naciona- sinar a muitos como se fossem um só).
lista do regime. É clara a clivagem entre a Ou seja, “as reformas encontraram nesta
orientação republicana da educação – fo- matriz e nas suas estruturas uma notável
cada na formação e na participação dos força de atrito que reduziu o seu impacto,
cidadãos – e o modelo de escola única do desviou a sua trajetória, ou até, mesmo,
Estado Novo (minimum cultural naciona- bloqueou os seus efeitos” (BARROSO,
lista). Sem embargo, algumas ações são 2000, 65). De resto, as críticas à organi-
justificadas como estando na continui- zação da escola em classes residiram, des-
dade daquelas que haviam sido tomadas de o início, no facto de o modelo não ter
pelo regime republicano, às quais o novo em devida conta as diferenças individuais
poder se opõe. É exemplo a extinção, dos alunos; como nota ainda João Barro-
em 1926, do ensino primário superior, so, todas as utopias pedagógicas passam
porventura uma das medidas mais signi- pela visão de uma “escola sem classes”
ficativas da República (estava em causa a (Id., Ibid., 77). Por outro lado, um autor
luta por uma integração escolar extensiva como Larry Cuban, reconhecendo que a

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1618 Antirreformismo educativo

escola da segunda metade do séc. xx aca- boração da reforma; iii) a aplicação da


bou por se adaptar aos alunos, não dei- reforma através de um processo de “in-
xa, porém, de ser contundente: “the core tegração normativa”. Tal sucedeu “com
processes, what we might think of as the as principais ‘reformas globais’ que mar-
DNA of the graded school – labeling, se- caram a história recente da educação
gregating, and eliminating those who do em Portugal (Galvão Teles, 1963; Veiga
not fit – have largely endured in the per- Simão, 1973; Roberto Carneiro, 1987)”
sisting practices of testing, ability grou- (BARROSO, 2000, 83-84).
ping, differentiated curricula, and perio- Um dos problemas que alguns auto-
dic promotions [os processos essenciais, res encontram no reformismo escolar é
aquilo a que podemos chamar o ADN da o facto de ele ser permanente, a ponto
escola – etiquetar, segregar e eliminar os de se poder falar de uma tirania da mu-
que não se adaptam –, continuaram em dança, como se o funcionamento da es-
grande medida presentes nas atividades cola fosse sempre insatisfatório. Sublinha
desenvolvidas, como os testes, a organi- F. Iglesias: “Todos los gobiernos quieren
zação por competências, a introdução de reformar total o parcialmente la educa-
currículos diferenciados e as promoções ción, y, si nos atenemos a la cantidad de
periódicas]” (CUBAN, 2008, 76). No caso iniciativas, podríamos pensar que asisti-
português, mas não apenas, a falência de mos a una constante renovación y mejo-
uma série de reformas levadas a efeito ra de la enseñanza, aunque lo único que
na segunda metade do séc. xx prende­ queda claro es que los jóvenes prolongan
‑se com a sua externalidade, uma vez que en el tiempo su estancia en la institución
deixaram de fora o “núcleo central” que escolar, retardando cada vez más su incor-
é a sala de aula (o ADN da escola de que poración al mundo del trabajo [Todos os
fala Cuban). Tome-se o exemplo da cons- governos querem reformar, total ou par-
trução de escolas de área aberta (tipo P3), cialmente, a educação, e, se atentarmos
nos anos de 1970-1980, cujo pressuposto à quantidade de iniciativas que promo-
era o de acabar com a noção espacial de vem, temos a sensação de que estamos a
sala de aula; veja-se, por outro lado, a in- assistir a uma constante renovação e a um
trodução do regime de fases no ensino permanente melhoramento do ensino,
primário, cujo objetivo era o de supri- quando a única coisa que é manifesta é
mir a seleção anual dos alunos. Medidas que os jovens prolongam cada vez mais o
que não surtiram o efeito desejado, seja tempo da sua estadia na instituição esco-
pelo facto de terem contado com forte lar, atrasando a sua entrada no mundo do
oposição, designadamente da parte dos trabalho]” (IGLESIAS, 2005, 9).
docentes, seja também por terem sido
implementadas fora do enquadramento
de uma política sistemática de apoio à Bibliog.: manuscrita: ANTT, Ministério do
divulgação de princípios inovadores. Mas Reino, mç. 2126, 1838; impressa: ADÃO,
o insucesso das reformas também ficou a Áurea, Estado Absoluto e Ensino das Primeiras Le-
dever-se a outros fatores, nomeadamente tras: as Escola Régias (1772-1794), Lisboa, FCG,
1997; Id., As Políticas Educativas nos Debates Par-
a adoção de um mesmo modelo formal
lamentares. O Caso do Ensino Secundário Liceal,
que tem como principais características: Lisboa, Assembleia da República/Afronta-
i) a conceção determinista da mudança mento, 2001; BARROSO, João, “O século da
(através da regulação do poder central); escola: do mito da reforma à reforma de um
ii) o caráter exógeno do processo de ela- mito”, in AMBRÓSIO, Teresa, et al., O Século

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Antirreformismo linguístico 1619

da Escola. Entre a Utopia e a Burocracia, Porto,


Asa, 2000, pp. 63-94; CARVALHO, Rómulo
Antirreformismo
de, História do Ensino em Portugal. Desde a Fun- linguístico
dação da Nacionalidade até ao fim do Regime de
Salazar-Caetano, 2.ª ed., Lisboa, FCG, 1996;
CORDEIRO, Silva, A Crise em Seus Aspectos
Morais, Coimbra, F. França Amado, 1896;
CUBAN, Larry, Frogs into Princes. Writings on
School Reform, New York, Teachers College
Press, 2008; FERNANDES, Rogério, “Luís da
Silva Mouzinho de Albuquerque e as reformas
do ensino em 1835-36”, Boletim da Biblioteca da
O antirreformismo linguístico consti-
tui uma atitude ou um movimento
de contestação a uma proposta, ou con-
Universidade de Coimbra, vol. 38, 1983, pp. 221­
junto de propostas, que visa(m) a altera-
‑304; Id., Os Caminhos do ABC. Sociedade Portu-
guesa e Ensino das Primeiras Letras, Porto, Porto ção de alguns aspetos de uso de um dado
Editora, 1994; IGLESIAS, F. Javier Merchán, idioma. Chega a ter, muitas vezes, um
“Editorial”, Con-Ciencia Social, n.º 9, 2005, carácter social, cultural e até político. Os
pp. 7-14; MAGALHÃES, Justino, Da Cadeira antirreformistas, normalmente, apontam
ao Banco. Escola e Modernização (Séculos XIX-XX), essa reforma como um prejuízo para o fu-
Lisboa, Educa/Unidade de I&D de Ciências turo da língua em causa, chegando mes-
da Educação, 2010; Id., “República e regi-
mo a reputá-la como “assassinato”, apre-
mentação: o estatuto fundante da i reforma
republicana do ensino primário”, in ADÃO, sentando argumentos, ora efetivamente
Áurea et al.  (orgs.), O Homem Vale, sobretudo, científicos, ora de carácter emocional,
pela Educação Que Possui. Revisitando a Primeira para travar essa mudança.
Reforma Republicana do Ensino Infantil, Primário e Trata-se de um fenómeno geral e que
Normal, Lisboa, Instituto de Educação, 2012, ocorre, quer no plano nacional, quer in-
pp.  11­‑21; NÓVOA, António, “A república e ternacional, sempre que se desenha uma
a escola. Das intenções generosas ao desen-
eventual reforma linguística. Outrora
gano das realidades”, in Reformas de Ensino em
Portugal. Reforma de 1911, t. ii, vol. i, Lisboa,
difundidas essencialmente pela escola e
Instituto de Inovação Educacional, 1989, nos meios mais cultos, os meios de comu-
pp. ix-xxxiv; Ó, Jorge Ramos do, O Governo de nicação vigentes no começo do séc. xxi
Si Mesmo. Modernidade Pedagógica e Encenações tornaram possível uma maior divulgação
Disciplinares do Aluno Liceal (Último Quartel do Sé- de informações, pelo que as reformas
culo XIX – Meados do Século XX), Lisboa, Educa, linguísticas em curso são facilmente co-
2003; PROENÇA, Maria Cândida, A Reforma nhecidas antes de vigorarem efetivamen-
de Jaime Moniz: Antecedentes e Destino Histórico,
te. Deste modo, tornou-se possível partir
Lisboa, Colibri, 1997.
para a contestação, quer através da escrita
Carlos Manique da Silva
em jornais, redes sociais, blogues, ou pela
Carlos Beato
Joaquim Pintassilgo publicação de livros, quer ainda recor-
rendo a petições, cartas abertas e abaixo­
‑assinados, ou pedidos de audiência par-
lamentar, gerando movimentos culturais
e simultaneamente sociais, mas também
políticos (se a reforma partiu de uma de-
terminada filiação partidária, e.g.) e até
jurídicos, se houver razões legais para a
não aplicação das reformas acordadas e
vertidas em lei.

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1620 Antirreformismo linguístico

a mudanças e que tem em conta também


a língua coloquial. Esta última gramática é
descritiva, mais reformista, e passou desde
então a ser utilizada no ensino da língua,
nomeadamente também no da língua não
materna, aceitando, e.g., enunciados como
“Ele é mais alto que o irmão”, enquanto
a gramática normativa só aceitaria “Ele é
mais alto do que o irmão”. Outro alvo de
reforma, esta mais pontual, e que se pren-
de muitas vezes com a globalização, a emi-
gração/imigração, o contacto entre lín-
guas, etc., é o vocabulário (por vezes com
influência na estrutura gramatical). Não é
raro ouvir-se, nos começos do séc.  xxi e
em Portugal, expressões como: “Foi aí que
eu realizei o que se passava” ou “Ele é su-
posto ser o patrão”, em que se confere a
estas palavras um sentido decalcado do in-
glês, as quais, umas décadas antes, seriam
veementemente condenadas.
Das reformas linguísticas, as que têm
“O outro acordo”, Aterozóide, 12 maio 2011.
implicações mais gerais (uma vez que as
que ocorrem em estruturas sintáticas ou
O antirreformismo pode ser motivado no vocabulário podem, ou não, ser utili-
por uma recusa do abandono de deter- zadas pelos falantes no universo de cada
minados elementos, e.g. gráficos, que – ao língua) são as que se referem à ortogra-
serem eliminados – podem desvirtuar as fia. E são estas, também, por esse motivo,
raízes de um idioma (por exemplo, a subs- as que criam maior preocupação (e até
tituição, ocorrida em início do séc. xx, de elevado empenho) antirreformista.
<ph> por <f>, como em “farmácia”, ou de O antirreformismo linguístico é já visí-
<ch> por “qu”, em “química”; ou a perda vel antes do séc. xx: uma polémica seme-
das consoantes não articuladas “c” e “p” lhante às que ocorreram ao longo deste
em “actual” e “adopção”, entre outros, século foi a suscitada pela publicação do
estipuladas no Acordo Ortográfico de Verdadeiro Método de Estudar, de Luís Antó-
1990  (AO 90)) ou por uma ideia de cor- nio Verney, em 1746. A sua ortografia as-
reção linguística, na procura da perfeição sentava em critérios meramente fonéticos,
personificada na escrita dos autores consa- em lugar do critério etimológico muito ao
grados, como fazia a gramática mais pres- gosto da época, e tinha como objetivo uma
critiva (e mesmo a normativa, que ensina simplificação da escrita. Contra ela se le-
as regras de correção de uma variedade vantaram inúmeras vozes, em especial a do
prestigiada de uma dada língua, a chama- Jesuíta José de Araújo, com o qual Verney
da “norma” ou “língua padrão”), que vigo- manteve um aceso debate por escrito – e
rou massivamente até depois de meados que, a partir de determinado momento,
do séc. xx, depois gradualmente substituí- passou do plano científico para o ataque
da por uma gramática de usos, mais aberta pessoal –, debate esse que se estendeu a

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Antirreformismo linguístico 1621

outros Jesuítas, mas também a leigos, e


que somente terminou em 1759, com a
Reforma dos Estudos.
Geraram ainda movimentos antirrefor-
mistas os seguintes projetos de alteração
da ortografia, no caso específico da lín-
gua portuguesa: 1911, 1943 (Brasil), 1945
(Portugal), 1971 (Brasil) e 1973 (Portu-
gal) – embora estas últimas não suscitas-
sem muita controvérsia – e, já no final do
século, o AO 90. Muito sumariamente, se-
guem-se as principais reformas propostas
e respetiva contestação.
Desde os primeiros ortografistas da lín-
gua portuguesa, nos finais do séc. xvi, até “Acordo Ortográfico”, de Cid,
Expresso-Revista, 1 jun. 1991.
ao início do séc. xx, a ortografia portu-
guesa era caracterizada pela sua evidente
aproximação à etimologia. Após a Im- embrião na independência ocorrida em
plantação da República Portuguesa, em 1822, que as imposições provenientes de
1910, foi preocupação dos governantes Portugal iriam exacerbar.
proceder a uma reforma ortográfica que Não tendo essa primeira reforma entra-
simplificasse a escrita, de pendor acen- do em vigor no Brasil, as diferenças entre
tuadamente etimológico, na esteira de as duas nações acentuaram-se, chegando
propostas apresentadas, 25 anos antes, a haver um acordo em 1931, que não foi
em Bases da Ortografia Portuguesa, por A. seguido e veio depois a resultar no For-
Gonçalves Viana e Vasconcelos Abreu, mulário Ortográfico de 1943 e, posterior-
e, mais tarde, em 1904, com a Ortogra- mente, no Acordo Ortográfico de 1945,
fia Nacional: Simplificação e Uniformização que vigorou em Portugal até 1990 e aboliu
Sistemática das Ortografias Portuguesas, do alguns acentos e também o uso do trema.
mesmo Gonçalves Viana, que, com a cola- Este acordo passou a regulamentar a orto-
boração de uma comissão que integrava grafia de Portugal e das, à época, suas coló-
nomes como Carolina Michaëlis de Vas- nias – Angola, Cabo Verde, Guiné(-Bissau),
concelos, Leite de Vasconcelos, Cândido Índia, Moçambique, São Tomé e Príncipe
de Figueiredo, José Joaquim Nunes, en- e Timor –, que sempre optaram por seguir
tre outros, conduziu à reforma de 1 de a ortografia de Portugal, mesmo após a sua
setembro do ano seguinte. A contestação própria independência. No Brasil, tam-
antirreformista não se fez esperar, alegan- bém este Acordo foi aprovado no último
do que se cortavam os elos entre a língua mês de 1945, sem contudo ter sido ratifica-
e as suas origens, ou ainda por questões do, sendo, posteriormente, revogado, pelo
emocionais ou estéticas. Contavam-se na que se continuou, nesse país, a praticar o
fação antirreformista, entre outros, Tei- estipulado no Formulário de 1943, origi-
xeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, que nando grandes diferenças ortográficas.
manifesta inequivocamente o seu ódio à Em abril de 1971, os dois países, através
nova grafia. No Brasil, o antirreformismo das respetivas Academias (Brasileira de
foi ainda mais duro e apelou, inclusiva- Letras e das Ciências de Lisboa), proce-
mente, a um maior nacionalismo, já com deram a uma uniformização gráfica no

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1622 Antirreformismo linguístico

tocante, sobretudo, ao uso da acentua- ratificassem e viabilizando a sua entrada


ção, que entra em vigor em 1973. É como em vigor. São Tomé e Príncipe assina em
consequência deste acordo que se omi- 2008, e o Acordo entra em vigor no Brasil
tem os acentos, por exemplo, em palavras no ano seguinte, onde também conheceu
com sufixo -zinho e -zito ou nos advérbios vários movimentos de contestação antir-
de modo terminados em -mente. reformista, vindos de personalidades liga-
Na déc. de 80 do séc. xx, os represen- das à linguística e à filologia, que condu-
tantes dos países de língua oficial por- ziram à sua suspensão nesse país.
tuguesa – Angola, Brasil, Cabo Verde, Embora posteriormente ratificado tam-
Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e bém por Timor-Leste e Guiné-Bissau, o
São Tomé e Príncipe – voltam a encon- AO 90 ainda não tinha sido, em 2016, aí
trar-se no Brasil, sendo apresentado o aplicado. Na mesma época e em Portugal,
Memorando sobre o Acordo Ortográfi- apesar de estar em fase final o período
co da Língua Portuguesa. Dele resulta de adaptação, continuavam as ações po-
o Acordo Ortográfico de 1986, que foi pulares, não raras vezes encabeçadas por
amplamente debatido e contestado, so- personalidades incontornáveis da cultura
bretudo pela comunidade de linguistas, nacional, pertencentes às mais variadas
dadas as medidas extremas e radicais que áreas e de diversos sectores da sociedade,
propunha. Este Acordo nunca foi aprova- com vista à sua revogação.
do e abriu uma acalorada polémica, com O antirreformismo opõe-se, portanto,
várias ações antirreformistas, somente ao reformismo linguístico, que é, sinteti-
equiparada à que conhecerá o AO 90, zando, um projeto de alteração de uma
que, com algumas correções e alterações, determinada língua, que pode traduzir-se
mas sem a discussão pública expectável, (com o intuito de facilitar o seu empre-
se aguardava que entrasse em vigor em ja- go) numa simplificação ou regularização
neiro de 2004, após a sua ratificação por de usos, quer no plano da gramática,
todos os Estados lusófonos. Essa ratifica- quer no do léxico, quer ainda, mais ge-
ção ocorreu somente um ano depois, por ralmente, no da ortografia (se o portu-
parte de Portugal, Brasil e Cabo Verde, guês sofreu as reformas de 1911, 1945,
o que conduziu a dois protocolos modi- 1973 e o AO 90, também outros idiomas
ficativos, permitindo que menos países o as conheceram: o espanhol, em Setecen-
tos, conseguindo evitar a existência de
grafias divergentes entre Espanha e a
Fotografia de graffiti alusivo ao Novo Acordo América do Sul; o alemão, nos primeiros
Ortográfico.
anos do séc. xx e, mais tarde, em 1996 e
2004-2006; o turco, por razões de maior
facilidade gráfica, mas também por moti-
vos políticos, no final da déc. de 20 desse
século; ou o dinamarquês, em finais dos
sécs.  xviii e xix e, posteriormente, em
1948, por exemplo). Outras vezes, como
aconteceu ao longo da história linguística
do português, o intuito foi a aproximação
à origem do idioma, dando-lhe uma confi-
guração considerada mais culta. Esse pro-
jeto pretende abarcar o uso linguístico de

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Antirreformismo linguístico 1623

todos os falantes do idioma que é objeto


de reforma.
O fulcro da caracterização do movi-
mento reformista alvo é associá-lo a algo
lesivo para o idioma em apreço, reunin-
do todos os argumentos que justificam a
sua suspensão. Tomando como exemplo
o AO 90, foi amplamente criticada a fa-
cultatividade ortográfica, que, mais do
que não conduzir à tão desejada unidade
gráfica, subverte o próprio conceito de
“ortografia” (pois esta impõe regras cla-
ras e gerais) e promove o caos linguístico. Cartaz do Partido Nacional Renovador.
Tem-se aduzido ainda que: muitos dos
pressupostos (como é o caso da perda das mesma já não é possível, como o próprio
consoantes ditas mudas) irão conduzir a documento reconhece; e, por fim, a falha
uma maior redução das vogais átonas do na relação com as restantes línguas da
português europeu, afastando ainda mais família românica e até germânica, dado
as duas variedades (e, simultaneamente, também que o inglês, o francês e o espa-
criando divergências gráficas antes ine- nhol continuam a manter as suas grafias
xistentes) ou (também no caso da acen- etimológicas. Em suma, esta caracteriza-
tuação) criando dificuldades na distinção ção negativa é baseada em razões científi-
de sentido em vários vocábulos; os dicio- cas, apontadas não apenas por linguistas
nários de língua, apresentando duas gra- e filólogos, mas ainda por personalidades
fias para a mesma palavra, em nada auxi- da política e da cultura (tradutores, ju-
liam o falante nacional ou estrangeiro; a ristas, escritores, alguns jornalistas, pro-
incoerência dos critérios utilizados para fessores), escolas, universidades e uma
cada caso (ou etimologia, ou pronúncia, parte da população em geral. No sentido
ou uso e tradição, etc.) não pode mere- de conduzir à sua revogação, fizeram-se
cer aceitação; o facto de o AO 90 não ter incontáveis petições e abaixo-assinados
sido ratificado unanimemente pelos Esta- e escreveram-se livros, artigos científicos
dos lusófonos e ter sido mesmo recusado e/ou de opinião, pareceres linguísticos,
(como ocorreu no Brasil) afasta qualquer procedimentos e pareceres jurídicos, di-
credibilidade internacional (aliás, defen- vulgados em blogues, etc.
de-se que esse mesmo facto constitui uma Outros motivos emocionais aduzidos,
inaceitável imposição aos Estados não alguns falaciosos, como a presunção de
aderentes, evidenciando um enorme des- que se “vai passar a falar como os brasi-
respeito pelos mesmos); o próprio Acor- leiros” ou o facto de Portugal estar a ser
do enferma de erros que provam não ter subserviente ao Brasil, uma vez que a lín-
sido revisto e aprovado por especialistas gua veio da Europa para os restantes paí-
em linguística, como se exigiria; o por- ses lusófonos, não tinham qualquer base
tuguês não é prejudicado pelo facto de real. Como não a tinha o alegado número
ter duas grafias (como é o caso do inglês, de falantes, que levaria a uma hegemonia
e.g.), mas sim por este Acordo, que cria de outros países sobre Portugal, uma vez
vários casos de poligrafia; não pode haver que, fora do território nacional, grande
um acordo de unificação, uma vez que a parte do mundo lusófono tinha ainda

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1624 Antirreformismo linguístico

levassem à motivação do comportamen-


to linguístico, respetivamente, a favor e
contra as modificações. As incoerências e
ências arbitrariedades não facilitam a aceitação,
acei- pelo que as novas normas teriam que ser
eriam rigorosas e inequívocas, o que não acon-
o que tecia com o AO 90, dando argumentos
argu- fáceis aos antirreformistas. Como conse-
Como quência da polémica mencionada, surgiu
nada, também uma imensidão de cartoons, ca-
“Acordo Ortográfico gera desacordo”,
e car- ricaturas e publicidade, quase exclusiva-
É Triste Viver de Humor, 13 jan. 2009.
se ex- mente antirreformistas, tanto em Portu-
o em gal como no Brasil.
elevada percentagem de analfabetismo.
Outra razão prendia-se com a evidência
de haver já vários precedentes de acordos
Bibliog.: AGUIAR, Monalisa dos Reis, “As
que não foram cumpridos por uma das reformas ortográficas da língua portuguesa:
partes, pelo que se podia perfeitamente uma análise histórica, linguística e ideoló-
recuar na sua aplicação. gica”, Filologia e Lingüística Portuguesa, n.º 9,
s, “As
Como efeitos mobilizadores da cons- 2007, pp. 11-26; CASTRO, Ivo et al.  (orgs.),
guesa: A Demanda da Ortografia Portuguesa. Comentário do
trução da imagem negativa das reformas,
deoló- Acordo Ortográfico de 1986 e Subsídios para a Com-
n.º 9, invocavam-se ainda aspetos económicos
preensão da Questão Que Se Lhe Seguiu, Lisboa,
gs.), A (custos e prejuízos elevados, numa época
Edições João Sá da Costa, 1987; EMILIANO,
ário do de crise económica mundial grave), tanto António, Uma Reforma Ortográfica Inexplicável.
a Com- mais que havia que despender dinheiro Comentário Razoado dos Fundamentos Técnicos do
isboa, com a aplicação da reforma na adminis- Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)
ANO, tração, na legislação, na produção de li- [parecer], Lisboa, Faculdade de Ciências So-
licável. ciais e Humanas da Universidade Nova de Lis-
vros de texto, gramáticas e dicionários,
icos do boa, 2008; Id., Foi Você Que Pediu Um Acordo
1990) na publicidade, na difusão/reeducação
da população, na edição de novos livros Ortográfico? Apologia do Desacordo Ortográfico:
as So- Textos de Intervenção em Defesa da Língua Portu-
de Lis- e manuais didáticos, etc., no sentido de
guesa contra o Acordo Ortográfico de 1990, Lisboa,
Acordo oficializar a norma e legislar a sua apli- Verbo, 2010; HACKEROTT, Maria Mercedes
gráfico: cação. Estes prejuízos acrescentavam-se Saraiva, “A ortografia de Verney (1746): um
Portu- aos linguísticos já enunciados, sendo dos detalhe relevante”, Revista do Grupo de Estudos
isboa, Linguísticos do Estado de São Paulo, vol. 7, n.º 1,
mais propagados o “caos ortográfico” e
(org.), 2010 pp. 71-89; MOURA, Vasco Graça (org.),
mentos,
as “consequências nefastas” (recorde-se
o manifesto assinado por mais de duas Estão a Assassinar o Português! 17 Depoimentos,
fico. A Lisboa, INCM, 1983; Id., Acordo Ortográfico.
2008; centenas de figuras da cultura nacional
A Perspectiva do Desastre, Lisboa, Alêtheia,
a, “A em janeiro de 2013 e as petições enviadas 2008; SILVA, Maurício, “Reforma ortográfica
he Re- ao Governo e ao ministério que regula a e nacionalismo lingüístico no Brasil”, Revis-
uísticos cultura e a educação). ta Philologus, ano 5, n.º 15, 1999, pp. 58-67;
10 pp. Como há uma tendência social para VIANA, Aniceto dos Reis Gonçalves, Ortografia
ográfi- Nacional. Simplificação e Uniformização Sistemática
não aceitar as eventuais alterações linguís-
Revis- das Ortografias Portuguezas, Lisboa, Viúva Tava-
58-67; ticas, as duas fações (reformista e antir-
res Cardoso, 1904.
ografia reformista) tiveram de mobilizar meios,
mática inclusivamente sociais e psicológicos, que Maria Carmen de Frias e Gouveia
Tava-

uveia

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Antirreformismo político/administrativo 1625

Antirreformismo Ainda próximo do conceito de reformis-


mo, encontramos o termo “revisionismo”
político/ (na sua aceção política), também este fre-
administrativo quentemente (e de forma errada) usado
como sinónimo do primeiro. Não obs-
tante, o revisionismo, enquanto doutrina
(e de acordo com as ideias defendidas pelo
seu principal teorizador, Edouard Berns-
tein), preconiza essencialmente a existên-
cia de revisões ao programa do marxismo

O conceito de reformismo inclui uma


pluralidade de aceções que não se
resumem às vertentes políticas e adminis-
em função da não verificação de deter­
minadas hipóteses ou teses marxistas.
Todos estes termos, histórica e concep-
trativas, uma vez que a sua origem etimo- tualmente diferentes entre si, têm sido
lógica se encontra na palavra “reforma” utilizados em Portugal de forma similar
e no sufixo “ismo”, i.e., o conceito de e, consequentemente, imprecisa, o que
reformismo constitui uma doutrina, um nos obriga a enquadrar o antirreformis-
sistema, uma tendência ou uma corrente mo tendo em conta esta premissa.
que assenta na “ação ou efeito de refor- Tendo em consideração a proximida-
mar” (HOUAISS e VILLAR, 2003, 3124), de nocional entre os conceitos de refor-
sendo que reformar significa reconstruir, mismo e revisionismo, os movimentos
corrigir, emendar. com expressão político-cultural que se
Na sua vertente política, o reformismo lhes opõem acabam, em muitas circuns-
assume-se como uma doutrina através tâncias, por diluir a diferença existente,
da qual se defende que a transformação fazendo na crítica um indiscriminado e
da sociedade se efetuará no quadro das pouco rigoroso uso do discurso.
instituições, existentes através de um Assim, o antirreformismo (ou revisio-
conjunto de mudanças graduais e não re- nismo) aparece como uma reação orto-
volucionárias, negando, nesse sentido, a doxa às tentativas de revisão, modificação
violência como instrumento de transmu- ou abandono de princípios fundamentais
tação social. das teorias revolucionárias próprias do
Esta doutrina, que se vai modificando marxismo-leninismo. Dentro do movi-
com o passar do tempo, foi-se aproxi- mento internacional, um particular des-
mando, na sua prática, do que habitual- taque vai para o Albanês Enver Hoxha e
mente se designa por social-democracia, para a sua ortodoxia filosófica.
termo que contudo, do ponto de vista A definição e o enquadramento do an-
histórico e teórico, não se sobrepõe ao tirreformismo e do antirrevisionismo em
conceito de reformismo. A errada uti- Portugal faz-se através dos movimentos
lização como sinónimos dos conceitos que se opõem ao Partido Comunista Por-
de social-democracia e de reformismo tuguês (PCP), que, em especial a partir da
pressupõe que entre o reformismo “e a déc. de 50 (com Nikita Krustchev, na se-
posição oposta do socialismo revolucio- quência do XX Congresso do Partido Co-
nário” não existe espaço intermédio, munista da União Soviética e como conse-
“justamente aquele que a social-demo- quência das alterações políticas no PCP),
cracia pretende ocupar” (SETTEMBRI- aceitou, de acordo com certas interpre-
NI, 2004, 1188). tações, alguns pressupostos revisionistas

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1626 Antirreformismo político/administrativo

(que são na realidade reformistas), como como objetivo a luta contra as “calúnias e
foi o caso da política da transição pacífica denúncias dos reformistas e revisionistas”
e da problemática relacionada com a con- (“Resolução sobre a fundação do MRPP
tinuidade da luta de classes. e a criação do Comité Lenine”), manifes-
No entanto, o antirreformismo e o tando-se desta forma o cariz antirrefor-
antirrevisionismo também se constroem mista deste partido político.
por intermédio do próprio PCP, sobretu- Em 1975, nasceu também o Partido Co-
do através da reação, no início dos anos munista Português (Reconstruído), com
50, contra a política de solução pacífica o objetivo de lutar contra o revisionismo
oriunda do campo de concentração do daquelas que consideravam ser as orga-
Tarrafal, e, mais tarde, já na déc. de 60, nizações burguesas, onde se incluíam,
através das críticas de Álvaro Cunhal ao no entendimento dos partidários do
designado desvio de direita dos anos de PCP(R), muitos dos que se autoprocla-
1956-1959. mavam de marxistas-leninistas. O PCP(R)
Não obstante as críticas emergentes apresentava como publicação oficial o
no seio do PCP aos desvios da doutrina jornal Bandeira Vermelha.
marxista-leninista, foram surgindo, a par- Uma nota final para a designada Or-
tir da déc. de 60, numerosos movimentos ganização Comunista Proletária (Marxis-
esquerdistas. ta-Bolchevique) de Portugal, criada em
O primeiro destes – e um dos mais des- 1994. As suas origens encontravam-se no
tacados movimentos de génese marxista Comité Marxista-Leninista Português e a
-leninista – surgiu em 1964 em resultado Organização tinha como objetivo reagru-
de uma cisão no PCP. Designava-se Comi- par todas as forças antirrevisionistas, por
té Marxista-Leninista Português e tinha forma a elaborar um programa revolu-
no Revolução Popular o seu periódico, jor- cionário que contivesse os objetivos das
nal no qual se encontram os principais massas.
textos críticos ao propalado revisionismo Por outro lado, o reformismo adminis-
do PCP. trativo (que terá sempre uma natureza
Posteriormente, destaque para a União política em função do facto de as funções
Democrática Popular, movimento surgi- administrativas estarem na dependência
do em 1974 a partir de três grupos (o Co- das opções políticas) pressupõe uma ou-
mité de Apoio à Reconstrução do Partido tra dimensão, associada aos significados
Marxista-Leninista, os Comités Comunis- modificar, reorganizar, corrigir, melhorar
tas Revolucionários Marxistas-Leninistas da palavra “reformar”, construindo-se o
e a Unidade Revolucionária Marxista-Le- seu anti, não meramente através da crítica
ninista) profundamente críticos do que à modificação do status quo, mas antes por
consideravam a ação revisionista do PCP. intermédio da negação (ainda que justi-
Relevo ainda para o Movimento Reor- ficada) da atividade reformadora. O  an-
ganizativo do Partido do Proletariado tirreformismo administrativo constitui,
(MRPP) surgido em 1970 em crítica di- como todos os antis, uma corrente que
reta ao PCP, que consideram ser “a ex- surge indissociável da ação reformadora.
pressão política e ideológica da pequena­ Ao longo da história portuguesa, fo-
‑burguesia”, “agente da burguesia no seio ram vários os momentos em que se veri-
do proletariado” pretendendo apenas ficaram reformas de cariz administrativo
“arrastá-lo atrás dos objetivos reformistas (com especial destaque para as reformas
daquela”, ao mesmo tempo que apontam oitocentistas) sem que todas elas tenham

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Antirreformismo político/administrativo 1627

suscitado a existência de um movimento lisações e outras formas de contestação,


generalizado ou significativo contrário surgindo ao mesmo tempo um conjunto
à sua implementação, sendo certo, po- de movimentos de oposição a estas me-
rém, todo o período entre a Monarquia didas, entre os quais a Plataforma Nacio-
Constitucional e a Primeira República nal Contra a Extinção de Freguesias e o
ser marcado por um intenso confronto Movimento Freguesias SIM Pela Nossa
entre processos de centralização e de Terra (que chegou mesmo a apresentar
descentralização. na Assembleia da República uma petição
Não obstante o facto de na maioria pedindo a revogação da lei n.º 22/2012).
dos casos terem existido resistências às
diversas reformas efetuadas, tal não sig-
nifica que essas oposições resultassem Bibliog.: AMARAL, Diogo Freitas, Curso de
do não reconhecimento da necessidade Direito Administrativo, vol. i, Coimbra, Almedi-
de reformar, mas antes de um desacordo na, 2012; CAETANO, Marcello, A Codificação
relativamente ao conteúdo das reformas Administrativa em Portugal: Um Século de Experiên-
a implementar, conforme podemos veri- cia, 1836-1935, Lisboa, Empresa Nacional de
Publicidade, 1934; Id., História do Direito Portu-
ficar através da evolução dos sucessivos
guês (Sécs. XII-XVI), Lisboa, Verbo, 2000; COR-
códigos administrativos em Portugal. REIA, Helder Manuel Bento, “Comité Marxis-
Um especial destaque vai para o mo- ta-Leninista Português. Breve história de uma
vimento antirreformista que surgiu na organização política (1964-1975)”, ensaio
sequência da aprovação do Memorando apresentado no Seminário de História de Por-
de Entendimento sobre as Condicionalidades tugal, Mestrado em História Contemporânea
de Política Económica, assinado em 17 de da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa,
texto policopiado, 2000; FERREIRA, Rita,
maio de 2011, e em especial do seu ponto
“Socialismo democrático”, in ROSAS, João
3.44, através do qual o Governo se obriga-
Cardoso, e FERREIRA, Rita (orgs.), Ideologias
va a desenvolver um plano de consolida- Políticas Contemporâneas, Coimbra, Almedina,
ção para reorganizar e reduzir o número 2013; HOUAISS, Antônio, e VILLAR, Mauro
de municípios e freguesias. de Salles, Dicionário Houaiss da Língua Portugue-
Para além da resistência da Associação sa, vol. iii, Lisboa, Temas e Debates, 2003;
Nacional de Freguesias e da Associação PEREIRA, José Pacheco, Álvaro Cunhal – Uma
Nacional de Municípios Portugueses Biografia Política. O Prisioneiro (1949-1960),
vol. iii, Lisboa, Temas e Debates, 2005; SET-
(confirmada por vários comunicados so-
TEMBRINI, Domenico, “Social-democracia”,
bre a temática e pela convocação de ma- in BOBBIO, Norberto et al., Dicionário de Polí-
nifestações), multiplicaram-se as tomadas tica, 12.ª ed., vol. ii, Brasília, Editora Universi-
de posição públicas por parte de alguns dade de Brasília, 2004, pp. 1188-1192.
partidos políticos e numerosos autarcas
Filipe Arede Nunes
(bem como dos órgãos autárquicos, no-
meadamente das assembleias municipais
e das assembleias de freguesia) no sen-
tido contrário à reforma, sendo que em
muitos casos várias foram as autarquias
que interpuseram ações judiciais tendo
em vista impedir a sua extinção.
Paralelamente, os sindicatos (como foi
o caso do Sindicato dos Trabalhadores da
Administração Local) promoveram para-

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1628 Antirregalismo

Antirregalismo só os párocos, os seus vigários e o bispo


são reconhecidos, sendo drasticamente
diminuídos os poderes do último, agora
completamente nas mãos de um conse-
lho episcopal, que, além disso, o priva
de qualquer ligação efetiva ao papa, que,
por sua vez, nem mesmo o poder de con-

A expressão “antirregalismo” preten-


derá evitar a generalização da ex-
pressão “ultramontanismo”, esta outra
firmar os bispos conserva (este poder foi
confiado aos arcebispos), perdendo as-
sim, na República Francesa, todo o poder
dependente da área geográfica e cultu- propriamente atual sobre a Igreja; os sa-
ral em que foi cunhada, a França afeta- lários do clero serão administrados pelo
da pelo jansenismo e pelo galicanismo, Estado; enfim, era criada uma verdadeira
como expressões de uma espécie de força Igreja de Estado nacional.
centrífuga em relação ao Papa e à Cúria Em Portugal, se é certo que o regime
romana. monárquico constitucional liberal saído
Mutatis mutandis, e para facilitar a com- da revolução de 1820 amadureceu toda a
preensão do significado da expressão, estatização da Igreja promovida desde o
podemos dizer que esta recupera atual- consulado do marquês de Pombal e já du-
mente, em termos práticos, um ultra- rante a 4.ª dinastia a estrutura clerical era
montanismo – um antirregalismo práti- confundida com um departamento es-
co e sofrido. Na China, a Igreja Católica tatal confiado à Secretaria dos Negócios
clandestina é-o por se recusar a prescin- Eclesiásticos – haja em vista o famoso dec.
dir da sua comunhão e submissão direta de 2 de janeiro de 1862, que regulava o
e sem peias com e ao papa para se colocar acesso aos benefícios eclesiásticos  –,  é
nas mãos da República Popular da China também na Primeira República que a Lei
como sua administradora ou tutora. Essa da Separação leva às últimas consequên-
recusa não é, naturalmente, apenas prag- cias a sua inspiração na Constituição civil
mática ou política, mas sobretudo con- do clero francês: não só o clero foi com-
corde com o cânone da fé, em tudo o que pletamente assumido pelo Estado através
em relação à Igreja isso implica. da proposta de pensões, como o próprio
A Revolução Francesa, com a constitui- culto passava a estar sob administração
ção civil do clero de 12 de julho de 1792 das comissões civis e laicas do culto, as
e o Juramento Constitucional imposto a condensadamente designadas por “cul-
todo o clero em 24 de novembro do mes- tuais”; os seminários ficaram sob a alça-
mo ano, mostrou o fruto mais maduro da do Ministério da Justiça, quer quanto
e genuíno de toda a tendência regalista à sua simples existência, quer quanto ao
que caracteriza as relações entre a Igreja número de candidatos a admitir; enfim,
e o Estado em França desde a Baixa Ida- todos os bens da Igreja foram confisca-
de Média: as velhas circunscrições dioce- dos. O resultado foi semelhante ao fran-
sanas são extintas em favor duma total cês: a esmagadora maioria do clero não
coincidência com os departamentos da aderiu e desobedeceu de forma pacífica,
administração civil; os votos religiosos e com a cumplicidade da generalidade
a sua capacidade para sustentar um esta- dos fiéis, demonstrada pela discrição e
do eclesiástico próprio e reconhecido ci- rapidez com que a Igreja portuguesa se
vilmente são proscritos; de entre o clero, adaptou à nova realidade de completa

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Antirregalismo 1629

ausência de arrecadação de impostos ultamontanismo, i.e., do antirregalismo


propriamente dita, criando novas formas português. Com efeito, pode definir-se o
de os fiéis assegurarem a manutenção do contributo da apologética ultramontana
culto e a sustentação dos seus ministros. como o emergir duma nova consciência
Seria ingénuo pensar que esta capa- da autonomia ontológica da Igreja em
cidade de reação despontou de uma só relação à sociedade agora dita civil e ao
vez e de forma espontânea no contexto próprio Estado – que mais por inércia do
da Primeira República. Na realidade, o que por qualquer outra coisa continua
séc. xix assistiu a uma progressiva cons- a dizer-se católico – consolidada exata-
ciencialização do catolicismo laical portu- mente a partir da afirmação da potência
guês, à semelhança, aliás, do que se pas- espiritual e profética da Santa Sé. Quer
sava na generalidade da Europa católica. dizer, é ali, e não no nacionalismo e nos
Os grandes mentores do ultramontanis- príncipes católicos, que os crentes vão en-
mo foram leigos: Joseph-Marie, conde de contrar as fontes da verdadeira identida-
Maistre (1753-1821) e François-René de de católica.
Chateaubriand (1768-1848), para falar O debate público em torno do Concílio
apenas dos mais significativos. As corren- Vaticano I e do dogma da infalibilidade
tes verdadeiramente dinâmicas dentro do pontifícia vem a revelar-se intenso, carac-
catolicismo oitocentista português foram terizado já pela importância dos órgãos
geralmente caracterizadas pela mesma fi- de comunicação social, de modo que é
delidade aos ideais devedores do amplo preciso procurar aí, na rua, e não na uni-
espírito da reforma católica e das ondas versidade, os discursos antitéticos mais
de efeito que por consequência se fize- fortes e carregados – isto apesar da ade-
ram sentir e se adequaram à evolução do são pacífica dos professores da Faculdade
contexto histórico, reforçadas pelo pro- de Teologia ao dogma, na sequência de
tagonismo de um Papa de personalidade um crescente discurso moderado, de fa-
tão forte quão longo foi o seu pontifica- vorecimento da autoridade pontifícia em
do, o Papa Pio IX, do Syllabus dos erros do relação ao concílio geral e aos príncipes.
modernismo (encíclica Quanta Cura, de 8 Os protagonistas pelo lado antirrega-
de dezembro de 1864), da definição do lista foram jornais como Eco de Roma, de
dogma da Imaculada Conceição (1854),
do Concílio Vaticano I, e do dogma da in-
falibilidade pontifícia (1870-1871). Não Concílio Vaticano I (1869-1870).
é que não houvesse oposição igualmente
laical, protagonizada pelos chamados li-
berais e defensores duma Igreja lusitana
baseada num certo episcopalismo e num
assumido regalismo; mas, nesta verdadei-
ra bipolarização, venceram os que acre-
ditavam que eram verdadeiros católicos,
i.e., como se é católico em Roma.
É precisamente no contexto da rece-
ção do Concílio Vaticano I em Portugal,
e do seu fruto mais ousado, o referido
dogma da infalibilidade pontifícia, que se
pode elaborar o quadro mais sugestivo do

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1630 Antirregalismo

título tão sugestivo para o efeito, União onde se transmitiam as doutrinas corruptas
Católica, O Direito, ou Bem Público. Algu- do galicanismo laical e onde, desde há mais
mas personalidades de relevo intelectual de um século, se vinha ensinando a con-
e político tiveram um papel determinante siderar o papa como uma autoridade estran-
no desenvolvimento do debate, tais como geira e que os bispos são escravos do papa.
Francisco de Azeredo Teixeira de Aguiar Por sua vez, o país natural, constituído
(1828-1918), o conde de Samodães, par pela esmagadora maioria dos portugue-
do reino, ministro e secretário de Estado ses, segundo o mesmo Eco de Roma, crê
honorário, e Francisco Lopes de Azevedo que o papa é infalível quando ensina e deseja
Velho da Fonseca (1809­‑1876), 1.º conde que se defina como dogma de fé a doutrina da
de Azevedo, que presidiram, em dezem- infalibilidade pessoal do papa, como já é um
bro de 1871, ao 1.º Congresso Católico, dogma da história e da filosofia” (FELÍCIO,
realizado no Porto. Tem ainda de referir­ 2000, 204).
‑se António de Almeida (1821-1900), Não deixa de ser muito interessan-
doutorado em direito por Coimbra, que te reconhecer no ambiente eclesiásti-
era um antiliberal indefetível – não acei- co português do pós-Segunda Guerra
tou nunca qualquer cargo que significas- Mundial uma nova versão desta bipola-
se dependência do regime  –  e um com- rização, por causa sobretudo da questão
batente incansável, através da escrita pela colonial. Como é sabido, a Concordata
liberdade do papa e da Igreja, e que con- entre Portugal e a Santa Sé, celebrada
siderava qualquer oposição ao papa uma em 7 de maio de 1940, incluiu uma es-
oposição à Igreja, à religião, e, exatamen- pécie de anexo destinado a especificar
te por isso, à própria sociedade. É que o que mais geralmente foi definido nos
liberdade do papa e da Igreja significa, arts. 26 a 28 da mesma Concordata acer-
neste contexto, a possibilidade de o papa ca da vida da Igreja no Ultramar, o cha-
intercomunicar livremente com os bispos mado Acordo Missionário, que, como
e com os fiéis, independentemente do ali mesmo se diz, mantém “firme tudo
significado político nacional das matérias quanto tem sido precedentemente con-
religiosas e espirituais. vencionado a respeito do Padroado do
É do primeiro jornal da breve lista de Oriente” (Preâmbulo). Isto é, não só o
imprensa católica acima referida uma su- novo texto concordatário não substituía
cinta e sugestiva descrição da bipolariza- nada do que a história das relações entre
ção ideológica e eclesiástica do Portugal Portugal e a Santa Sé já tinha adquiri-
de então, assim resumida por Manuel do quanto às missões no Oriente, como
Felício: “É vantajoso, com o jornal da também se pode deduzir que o espírito
época Eco de Roma, distinguir entre o país do Acordo Missionário é ainda o do regi-
legal e o país natural, como duas sociedades me de padroado. O Acordo Missionário
justapostas. A sociedade do país natural é, portanto, o sinal mais imediato e ma-
era a mais numerosa e, na sua quase to- terializado da tão posteriormente repro-
talidade, profundamente católica. A so- vada e combatida simbiose entre catoli-
ciedade do país legal era uma minoria e cismo e Estado Novo.
caracterizava-se pela sua indiferença face Quando, já a partir da encíclica Pacem
às matérias religiosas e pela hostilidade in Terris, de João XXIII, e depois da Po-
para com a Igreja Católica. Considera-se pulorum Progressio, de Paulo VI, os papas
que a fonte inspiradora deste país legal se começam a alinhar uma visão católica
encontrava na universidade de Coimbra, positiva sobre o amplo movimento da

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Antirregalismo 1631

descolonização, quando, sobretudo a CRUZ, Manuel Braga da, A Igreja Católica e o


partir da invasão da Índia portuguesa, Estado Novo, Lisboa, Bizâncio, 1999; FELÍCIO,
e pouco depois da detonação da guerra Manuel da Rocha, Portugal e a Definição Dog-
mática da Infalibilidade Pontifícia. Teologia, Magis-
em Angola e nas restantes colónias afri-
tério e Debate Público, Viseu, Instituto Superior
canas, as relações do Estado Novo com
de Teologia, 2000; FERREIRA, Manuel Pinho
a Santa Sé se foram tornando cada vez de, A Igreja e o Estado Novo na Obra de D. An-
mais tensas por causa do acolhimento tónio Ferreira Gomes, Salamanca, Universidad
moral da diplomacia vaticana aos movi- Pontificia – Facultad de Derecho Canónico,
mentos de libertação, uma nova bipola- 2004; FONTES, Paulo F. de Oliveira, “Im-
rização eclesiástica e eclesial emerge na prensa católica”, in AZEVEDO, Carlos Mo-
sociedade portuguesa, já não no foro reira  (dir.), Dicionário de História Religiosa de
Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores/Centro
dogmático-eclesial e suas incidências
de Estudos de História Religiosa da Univer-
políticas, mas no foro subsidiário, mas sidade Católica Portuguesa, 2001, pp.  423­
significativamente relevante, das inci- ‑428; HOLMES, J. Derek, e BICKERS, W.,
dências políticas da doutrina social da História da Igreja Católica, Lisboa, Edições  70,
Igreja. Com efeito, podemos ver nos ca- 2006; MARCOS, Rui Manuel Figueiredo, A Le-
tólicos identificados com o Estado Novo gislação Pombalina. Alguns Aspectos Fundamen-
e que se sentem confortáveis nele inseri- tais, Coimbra, Almedina, 2006; MONDIN,
Battista, Dizionario Enciclopedico dei Papi. Storia
dos a nova versão dos católicos liberais
e Insegnamenti, Roma, Città Nuova Editrice,
oitocentistas, capazes de sacrificar ao 1995; OLIVEIRA, Miguel, História Eclesiástica de
nacionalismo o catolicismo. E, nos cató- Portugal, ed. rev. e atualizada por Artur Roque
licos que defendiam a paz nas colónias, de Almeida, Mem Martins, Europa-América,
a descolonização, a libertação do isola- 1994; RAMOS, Luís de Oliveira, “Regalismo”,
mento português neste âmbito, e a de- in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário
mocracia, os defensores do ultramonta- de História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo
nismo. Estes últimos são os que querem de Leitores/Centro de Estudos de História Re-
ligiosa da Universidade Católica Portuguesa,
estar com o Papa, na altura Paulo VI,
2001, pp. 96-98; ROGIER, L. J. et al., Nova His-
com quem se identificam e no magisté- tória da Igreja, vol. ii, Petrópolis, Vozes, 1984;
rio do qual encontram a sua inspiração e SANTOS, Cândido dos, “António Pereira de
a sua força, sendo capazes, portanto, de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung”, Revista de
sacrificar o nacionalismo ao catolicismo. História das Ideias, n.º 4, 1982, pp. 167-203;
O antirregalismo ou o ultramontanis- SEABRA, João, A Igreja e o Estado em Portugal
mo revelam a juventude perene do prin- no Início do Séc. XX. A Lei da Separação de 1911,
Cascais, Principia, 2009.
cipal munus da Sé de Pedro, tanto intra­
‑eclesial como extra-eclesial: a profecia, Pedro Carlos Lopes de Miranda
vista enquanto iluminação da efemerida-
de e finitude de todo e qualquer contex-
to e realização histórica pela luz perene e
atemporal do evangelho.

Bibliog.: BARBOSA, David Sampaio Dias,


“Santa Sé e Portugal”, in AZEVEDO, Carlos
Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa de
Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores/Centro de
Estudos de História Religiosa da Universida-
de Católica Portuguesa, 2001, pp. 155­‑164;

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1632 Antirregionalismo

Antirregionalismo que as manifestações de regionalismo são


mais significativas numa região do que
noutra.
O movimento regionalista foi uma
manifestação que ganhou forma no pri-
meiro quartel do séc. xx e que chegou a
toda a periferia de Portugal. Foi a força

O antirregionalismo tem diversas


expressões, quantas as definições
que existem para o seu contrário, o re-
vivificadora das regiões, da identificação
e afirmação da sua cultura e dos seus va-
lores, face a um Estado autocrático que
gionalismo. Trata-se de um conceito po- fazia do Terreiro do Paço, em Lisboa, o
lissémico, a exemplo de outros, como seu umbigo, o centro do mundo.
insularidade, que, nas suas abordagens A região é uma forma de olhar e criar
nos diversos ramos do conhecimento, o espaço. É uma construção do discurso
gera realidades distintas. Aquilo que, à científico e político, que se pode materia-
partida, parece um conceito operatório lizar num espaço geográfico e que se afir-
da geografia que todos entendem como ma por critérios objetivos da história, da
a mesma realidade vai, na prática, assu- linguística, da economia, da política e da
mir-se como algum diverso, de acordo etnografia. Daqui resulta a multiplicida-
com cada ramo do conhecimento. Para de das variantes do discurso do regiona-
entendê-lo, partimos da sua definição na lismo e do antirregionalismo. Atente-se
geografia e acompanhamos as distintas a que, no debate científico e no discurso
formas de expressão, de acordo com os académico, a ênfase vai para o regiona-
diversos ramos do conhecimento, para lismo político, literário, arquitetónico e
chegarmos aos discursos contrários da económico. Enquanto os primeiros fa-
sua presença e afirmação na sociedade, zem apelo ao local, à região, no sentido
na política e nas ciências. restrito, este movimento, que se afirmou
Se é certo que o antirregionalismo é um a partir da déc. de 80 do séc. xx, apela à
movimento que parte do centro, da capi- formação de grupos regionais de países,
tal do Estado, do distrito ou do arquipé- no sentido de estabelecer políticas eco-
lago, no sentido de estabelecer um poder nómicas de coordenação que favoreçam
autocrático, o regionalismo aparece nas o comércio à escala regional, atuando
periferias como revolta face às distâncias como uma forma de coesão económico­
que o separam dos centros de decisão, de ‑social dos Estados envolvidos.
progresso e bem-estar. Onde as dificulda- No campo da literatura e da língua,
des do meio geográfico definem formas temos ainda de distinguir aquilo que se
acentuadas de isolamento que faz apagar entende por regionalismos, i.e., palavras
destes espaços a presença dos decisores e expressões com assento e criação local,
políticos, há um movimento de contesta- do regionalismo como produção literá-
ção, de afirmação das identidades locais ria, que se afirma nas diversas formas de
cimentadas por uma elite cultural e polí- expressão pela valorização do local e das
tica. Imperam as fronteiras humanas que suas formas de expressão.
contribuem para uma construção diversa Paul Bois afirma que a região é uma
do discurso político e dos seus elementos construção da história e não da geogra-
materiais e espirituais diferenciadores. fia. Desta forma, o regionalismo é o me-
Por outro lado, não é correto afirmar canismo histórico que está na origem e

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Antirregionalismo 1633

na afirmação da região, entendida como de região, mas é este processo da aldeia


espaço simbólico, definido pelo Homem, global que apela ao olhar de dentro
delimitado pela política e que se constrói para fora, criando aquilo que se chama
no tempo, pela sua ação diferenciadora neorregionalismo.
das demais regiões que o delimitam ou Em primeiro lugar, devemos ter em
com as quais se enfrenta. conta que a ideia de região não se con-
O discurso regional é a construção e funde com a de território, no sentido de
identificação da região através da língua que está para além desta situação físico­
ou dos dialetos, dos usos, das tradições ‑geográfica, que lhe serve de base e assen-
e dos costumes. São eles que fazem a es- tamento. A região nem sempre aparece
sência da regionalidade. Expressa-se no formalizada na presença do território,
combate político pela defesa dos inte- como se poderá verificar pelas comuni-
resses do espaço em questão, do esbater dades de emigrantes, cujo epicentro se
das barreiras da centralização, através de encontra quase sempre nas chamadas
formas políticas de administração inter- casas regionais. Estas são, no território
média que, em termos institucionais, se nacional, nomeadamente na capital do
materializam em municípios, províncias, país, uma forma de expressão de uma
regiões autónomas ou estados federados. entidade mais cultural e histórica do que
Desta forma, apresenta-se como uma ma- física, que se expande e afirma em qual-
nifestação clara contra as desigualdades, quer espaço ou território. Desta forma, a
uma política de revolta contra o Estado região deve ser entendida como comuni-
central e, enfim, a diabolização do cen- dade e espaço vivido que se diferencia das
tro. A consciência regional constrói-se e demais por fatores de ordem histórica e
afirma-se através dos movimentos e gru- cultural. Daí que a região não se defina
pos regionais, das políticas de afirmação apenas por uma homogeneidade de con-
da região através da história regional e lo- dições ecossistémicas, sendo acima de
cal, dos congressos regionalistas, da cria- tudo uma realidade sentida e vivida pelos
ção literária enfocada na região, na cria- seus habitantes.
ção de espaços culturais e museológicos. Neste contexto, consideramos que é a
O antirregionalismo surge assim como ilha, e não o arquipélago, que se assume
a desconstrução da região, pela afirma- como uma região particular, com fron-
ção da nação ou do mundo globalizado, teiras perfeitamente definidas, o que não
que, na prática, se afirma pela sua centra- acontece nos continentes, onde estas sur-
lidade em relação à periferia. Em Portu- gem muitas vezes por imposições políticas,
gal, há um peso muito evidente do campo económicas e culturais, dispondo de uma
da política na afirmação do antirregiona- identidade própria e afirmando-se como
lismo, pelo facto de ser um país jacobino uma unidade social, económica e política.
e marcadamente centralista. A política A ilha assume-se como uma região parti-
centralista do Estado embate permanen- cular, com uma fronteira perfeitamente
temente contra as aspirações de ordem definida em termos geográficos, o que lhe
administrativa, política e geográfica das propicia uma identidade própria. É, no
regiões, o que poderá significar um pro- entender de Lucien Febvre, um pequeno
cesso de progresso e afirmação para além quadro natural. Ela é, por si só, uma unida-
das suas fronteiras, reais ou formais. Pa- de social, económica e política, constituin-
rece contraditório que, no mundo cada do uma forma singular de mundo. O mar,
vez mais globalizado, se insista nesta ideia fator de aproximação e de isolamento, é o

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1634 Antirregionalismo

principal gerador da individualização. Por A região é o elo aglutinador destas gen-


tudo isto, é possível falar do mundo insu- tes que nasceram ou que vivenciaram por
lar, assente numa singular personalidade, algum tempo o mesmo espaço, atuando
numa particular cosmovisão, ou, melhor como destacado elo de coesão social.
ainda, numa forma de ser e estar no mun- Partindo para a expressão dos discursos
do, em que o regionalismo ganha uma di- contrários, donde emana quase sempre o
mensão particular. antirregionalismo, vemos tais atitudes in-
A ideia do espaço vivido, estabeleci- dividuais ou coletivas serem a expressão
da por André Frémont, proporcionou a de provincianismo, que se cola a grupos
nova e mais abrangente noção de região. menos escolarizados ou entendidos como
Tal como afirmámos, a história e a cultu- menos cultos. A partir daqui, há diversas
ra são a argamassa fundamental da cons- formas de expressão e vivência da região,
trução e afirmação desta estrutura, pois, levando a que se estabeleçam fronteiras
como muito bem assinala Juan Beneyto, a entre grupos da mesma origem, mas com
história é o cimento da solidariedade. Por formação cultural e intelectual distinta.
isso, aquilo que a define, mais do que as É comum ver-se entre os grupos ligados ao
condições de uniformidade e delimitação meio universitário e cultural, que se enten-
do espaço, é a consciência coletiva daí re- dem como integrados e cidadãos do mun-
sultante. A região é uma totalidade espá- do global, múltiplas expressões de oposi-
cio-humana, onde há um espaço e uma ção a esta forma de região. A expressão do
cultura que são apreendidos por todos os antirregionalismo está patente na negação
nascidos e residentes, que se cola à pele e das origens e na identificação cultural e so-
à imagem, e que se vai reformulando ou cial com o espaço de acolhimento. É uma
reforçando com o tempo. atitude estranha, tanto mais que a formu-
As comunidades de emigrantes são um lação dos discursos do regionalismo surge
meio importante para a sua afirmação e no seio dos intelectuais e políticos. É no
visualização. Fora das fronteiras do país Canadá e nos Estados Unidos da América,
e da região, esta diferenciação é, muitas países construídos pela força destes emi-
vezes, reforçada, como um vínculo senti- grantes, que mais sentimos esta expressão
mental que os prende e amarra ao local dos regionalismos. No Canadá, inclusiva-
de nascimento. Até mesmo aí as frontei- mente, a política de acolhimento dos emi-
ras estão bem definidas e se expressam grantes passou durante algum tempo pela
pela preservação dos usos e costumes, promoção e o reforço destas identidades
nomeadamente os gastronómicos e fol- e culturas regionais, através do chamado
clóricos, assim como através de estruturas multiculturalismo.
institucionais, com a criação de casas, as- É claro que a afirmação da região não
sociações de emigrantes da mesma região se estabelece por decreto, mas faz-se
que perpetuam a cultura regional e os através da cultura e da história, que são
amarram. Por vezes, são visíveis as frontei- os elementos geradores da consciência
ras físicas, determinadas pela sociedade e regional e do sentimento de pertença
pela política ou como resultado de um a uma comunidade. Por outro lado, a
mecanismo de apropriação do espaço, identidade expressa-se através de símbo-
que lhes atribui segurança emocional e los, como o hino e a bandeira, e de ma-
cultural, com a guetização das comunida- nifestações culturais, que são os fatores
des de emigrantes, tão popularizadas com potenciadores da unidade. A definição
os bairros e as ruas que os identificam. e formulação do discurso regional, assim

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Antirregionalismo 1635

como a região, entendida como identida- região nordestina, como o seu manifesto
de própria, é uma criação de intelectuais de 1926. Na verdade, foi um movimento
e políticos e assume, quase sempre, uma que impregnou o discurso político entre
dimensão particular no plano do debate finais do séc. xix e princípios do séc. xx,
político e institucional. e que contribuiu para que se entendesse
O regionalismo, tal como hoje o co- a expressão territorial do poder e esta
nhecemos, teve as suas primeiras mani- passasse a ter importância no quadro dos
festações em França, a partir de 1863, Estados e das nações.
mas vulgarizou-se no debate político Em Espanha, as regiões afirmam-se em
francês a partir de 1892, afirmando-se oposição ao nacionalismo, indo buscar a
com Jean Charles-Brun (1870-1948), e legitimação ao discurso histórico. A título
alargando-se, depois, a toda a Europa. de exemplo, refira-se o debate na Catalu-
É um movimento aberto a todos os sec- nha, em que se destacam os contributos
tores políticos e sócio-profissionais da de Miguel Dels Sants Olivier (1864-1920)
sociedade, que pretende defender os e Lluis Durem i Ventosa (1870-1954).
interesses da região, a sua diferenciação O primeiro, desde Maiorca, aproveitou a
cultural, através da promoção da cultura conjuntura de 1898, marcada pelo desas-
e da história. Daí certamente a adesão a tre colonial, para afirmar o regionalismo
este movimento de diversos sectores da insular em “La questió regional” (1899).
sociedade. Talvez por isso, a escola dos O debate em Barcelona conduzirá ao
Annales desenvolveu, a partir dos anos aparecimento de um movimento políti-
50 do séc. xx, um forte movimento de co, a Liga Regionalista (1898-1904). Na
afirmação da história regional, um dos Galiza, o movimento foi protagonizado
promotores evidentes da regionalidade
no território francês.
Miguel Dels Sants Oliver (1864-1920).
As atenções de políticos e cientistas vi-
raram-se para a identificação e criação da
região. O movimento regionalista espa-
lhou-se por toda a Europa, de forma evi-
dente em Espanha, na Alemanha, em Itá-
lia e em Portugal – onde se confunde, na
Madeira e nos Açores com o discurso da
autonomia –, com manifestações diversas
no combate político e na sua expressão
institucional. Grupos de intelectuais jun-
taram-se em partidos, movimentos e as-
sociações, reclamando atenção e poder
para o seu espaço de nascimento ou de
labuta. O regionalismo assumiu-se como
uma construção ideológico-cultural. No
pós-Segunda Guerra Mundial, afirmou­
‑se pela reivindicação e a afirmação de
formas práticas de expressão na política
e na administração. E chegou também
à América do Sul, surgindo, no caso do
Brasil, Gilberto Freire como o arauto da

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1636 Antirregionalismo

por Manuel Antonio Martínez Murguía Superior do Regionalismo Português. As


(1833-1923). casas regionais e os congressos regionais
A partir de finais do séc. xix, o regio- integram-se no Estado Novo unitário e
nalismo é a expressão chave do debate convertem o discurso regionalista à ideia
político sobre a descentralização gover- de unidade da nação, numa forma disfar-
namental. Este combate em torno da çada de antirregionalismo. Esta interven-
questão regional manteve-se vivo até aos ção do Estado Novo reformula o regiona-
anos 30 do séc. xx, congregando políti- lismo, não apenas em termos políticos e
cos e intelectuais. No campo político, fi- institucionais, mas também em termos da
cou marcado por uma insistente reclama- arquitetura, surgindo a casa portuguesa
ção contra o centralismo, e pelo desafio ou regional de Raul Lino, como expres-
da descentralização como resposta às in- são do falso regionalismo no movimento
sistentes reclamações. Este combate teve arquitetónico.
por palco as Cortes e o Parlamento, mas É certamente nas ilhas que esta expres-
acima de tudo foi nas páginas da impren- são do regionalismo mais se torna visível.
sa local e, por vezes, nacional que ganhou Há um discurso insular da regionalidade
maior fôlego. Aquilo que mais sobressai que se afirma pela presença do mar, pela
é o carácter repetitivo das intervenções definição clara das fronteiras que o mar
e uma insistência obsessiva em chavões, traçou. Este ganhou diversas formas de
como orfandade, abandono, sangria expressão e reforça-se ainda mais em es-
financeira. paços arquipelágicos, como as Canárias e
O regionalismo é o discurso da peri- os Açores. Dentro do arquipélago, cons-
feria, em combate com os macrocéfalos troem-se vários discursos de centralidade
centros de decisão e domínio. É por isso que conduzem a múltiplos afrontamentos
que se afirma e se exacerba em espaços e à dificuldade em construir uma unidade
ou regiões mais periféricos, afastados arquipelágica; são expressões exacerba-
do centro ou isolados da demais envol- das de regionalismo, ou então uma forma
vência social e política. Daí a sua forte disfarçada de antirregionalismo, uma vez
expressão transmontana e insular. Não que pretende afirmar a centralidade de
será por acaso que as primeiras casas re- uma ilha em relação às demais. Esta ideia
gionais aparecem como expressão desta de centralidade, que estará na origem
periferia na capital. Em 1905, foi criada dos conflitos inter-ilhas, que se agudizam
a casa de Trás-os-Montes e Alto Douro e, nos sécs. xix e xx, aparece documentada
passados dois anos, a da ilha da Madeira; na obra de Gaspar Frutuoso, de finais do
a presença da casa da Madeira chega até séc. xvi, quando afirma: “A ilha de Tene-
Lourenço Marques, onde teve expressão rife dizem que foi a quarta conquistada e
entre 1937 e 1969. Nos anos de 1920, a é logo a segunda ilha depois de Gran Ca-
exacerbação do regionalismo gerou no- naria, mais principal de todas as outras,
vas casas, contando com o apoio do ma- ainda que La Palma o seja nas escalas das
deirense José Vicente de Freitas, então armadas e navegações, como entre estas
presidente da câmara de Lisboa. Cedo o ilhas dos Açores, a mais rica e principal
Estado Novo se apercebeu da sua impor- é esta ilha de São Miguel, pois ela rende
tância, convertendo-as em sustentáculo só mais que todas as outras juntas, mas a
do nacionalismo e da unidade nacional, ilha Terceira, além de ser mais principal
integrando-as no movimento corporativo por ser a cabeça do bispado, o é também
através da criação, em 1945, do Conselho por a razão das escalas, armadas e navega-

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Antirregionalismo 1637

ções que ali vão terem diversos tempos”


(FRUTUOSO, 1966, 91). Atente-se a que
esta conflitualidade pela capital foi evi-
dente nos Açores, no período de 1766 a
1833, e, nas Canárias, entre 1833 e 1927,
altura em que Angra, na Terceira, e Santa
Cruz, em Tenerife, assumiram a posição
de cidades capitais do governo em cada
um destes arquipélagos. É neste quadro
que deverão situar-se os múltiplos afron-
tamentos entre a Terceira e São Miguel,
como entre Tenerife e Gran Canária, que
ganham expressão prática no quadro po-
lítico e institucional. A situação não é de
hoje, nem fruto da evolução do quadro
político e económico do séc. xix, apre-
sentando raízes ancestrais.
Esta forma de insularismo ou bairrismo José Vicente de Freitas (1869-1952).
exacerbado tem expressão em múltiplas
vertentes da cultura, da sociedade e da história e da cultura e procuraram aí o
economia. Também entendemos ser esta cimento para a consolidação das suas as-
uma expressão diferenciadora e única no pirações. Momentos políticos ou efeméri-
quadro do regionalismo porque, na ver- des são aproveitados para promover esta
dade, é uma luta entre dois espaços pela opção, como foi o caso da Madeira com
definição do centro, espaço que materia- as comemorações do IV Centenário do
liza a antirregião. Todos lutam apenas de Descobrimento do arquipélago, que de-
forma individual para trazer o centro até correu nos anos de 1922 e 1923. Ligado
si e cortar todas as amarras que os pren- a isto, esteve a publicação, por Fernando
dem aos centros políticos e económicos Augusto da Silva, do Elucidário Madeirense
que a construção do Estado e da nação (1921-22), que se afirma como um repo-
estabelecem. Também aqui há uma des- sitório do saber madeirense, e que con-
construção da região, uma forma metafó- tribuiu para reforçar a imagem e a ideia
rica de antirregionalismo. de região.
Não se pretende afirmar que existem A promoção dos estudos literários,
afirmações distintas de regionalismo nos etnográficos e históricos foi uma reali-
espaços insulares e nos espaços continen- dade no primeiro quartel do séc. xx e
tais. Não obstante as ilhas terem muito aconteceu um pouco por todo o lado,
vincada esta marca geográfica das fron- confundindo-se, muitas vezes, com os
teiras, isto não se expressa em formas combates pela autonomia ou descen-
diferentes de expressão do regionalismo. tralização. A  estrutura de afirmação do
A afirmação do movimento regionalis- discurso regionalista assenta em jornais
ta não se firmou apenas no combate pela ou noutro tipo de publicação periódica,
autonomia ou descentralização político­ e em instituições culturais com carácter
‑administrativa. Os seus arautos, porque local ou regional. A partir da déc. de 30,
intelectuais, foram personalidades que se o regime alimentou esta ideia de cultura
destacaram no estudo e na promoção da da região apenas no discurso cultural,

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1638 Antirregionalismo

gastronómico e folclórico, como forma zes, com o da autonomia. A constatação


de matar qualquer aspiração descentrali- da necessidade de autonomia parte de
zadora, que a política e a administração algumas situações fundamentais que ali-
contrariam. Elas são a perfeita manifesta- cerçam o discurso, como o tratamento
ção do antirregionalismo, atrofiando as colonial a que os arquipélagos foram su-
tendências regionalistas do movimento jeitos ao longo da história, materializado
municipalista, e transferindo para o pla- no abandono e na espoliação dos recur-
no virtual e das manifestações culturais a sos financeiros. Daqui resultam idênticas
ideia de região. motivações para os espaços continentais,
Mas a autonomia é a materialização da que reclamam uma identidade própria,
dimensão regional e a via mais imedia- definida num espaço, numa cultura ma-
ta para a solução dos problemas locais. terial e num discurso político, porque, na
Ela fundamenta-se na história, afirma-se verdade, as fronteiras reais ou imaginá-
pela consciencialização política e cultural rias ou existem ou são criadas pelas elites.
dos intervenientes e projeta-se no pleno Dentro das correntes do regionalismo,
exercício dos órgãos de governo pró- aparece a expressão política da ideia de
prio. A ilha assume-se como uma região Estado regional, uma entidade intermé-
particular com uma identidade própria: dia entre o Estado federal e o unitário.
é uma unidade social, económica e po- A designação surge pela primeira vez na
lítica, constituindo uma forma singular Constituição italiana de 1948, para ca-
de ser mundo. O discurso regionalista racterizar a forma intermédia de poder
afirma-se sempre em conjunturas de cri- definida pela garantia constitucional de
se. As dificuldades de ordem económica autonomia política da região. A defini-
evidenciam o sentimento de orfandade ção ajusta-se ao regime constitucional da
da região em relação ao poder central e Itália do pós-Segunda Guerra Mundial,
revelam impotência na solução dos pro- afirmando-se em França a partir de 1972,
blemas locais. sendo seguida por Portugal, em 1976,
O discurso regionalista não era original apenas para a Madeira e Açores, e por
na produção ideológica, fazendo assentar Espanha em 1978, alargada a todo o terri-
toda a argumentação na oposição entre tório peninsular e insular.
o continente e a ilha, ou entre esta e o Em Portugal, não foi possível avan-
Governo da nação. Daqui resultava uma çar com um projeto de regionalização,
situação de orfandade ou abandono, que seguindo o exemplo dos demais países
apelava aos sentimentos. A pátria era ma- europeus. É certo que, em 1991, se pu-
drasta e a relação com a ilha denunciava blicou uma Lei-Quadro das Regiões,
essa situação. São raras as vezes em que mas o referendo sobre a regionalização
o discurso político se fundamenta na realizado em 1998 suspendeu o proces-
identidade própria da região como justi- so de regionalização. Foi então manifes-
ficação para uma forma de autogoverno to um movimento antirregionalista que
capaz de solucionar os principais proble- partiu do centro para a periferia, e que
mas dos madeirenses. Todo ele assenta conseguiu reforçar os mecanismos polí-
no confronto aberto com o governo, si- tico-institucionais da centralidade. Este
tuando-se, por isso, os seus arautos entre discurso apresentou-se por diversas vezes,
os grupos da oposição. na comunicação social e no Parlamento,
Para a Madeira e os Açores, o discur- como uma manifestação de anti-autono-
so regionalista confunde-se, muitas ve- mia dos Açores e da Madeira, criando e

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Antirregionalismo 1639

exacerbando imagens dos espaços insula- Regionale Identitat, Saint-Saphorin, Editions Ge-
res despesistas como a antevisão do que orgi, 1981; BENEYTO, Juan, El Poder Regional
seria o país. en España, Madrid, Siglo XXI España Editores,
1980; BLANCHE, P. Vidal de la, “Régions fran-
Será numa Europa comunitária das
çaises”, Revue de Paris, 15 dez. 1910, pp. 821­
regiões, que ganha forma institucional,
‑849; BODINEAU, Pierre, La Régionaliza­tion,
primeiro com o Conselho das Regiões Paris, PUF, 1995; BOIS, Paul, Paysans de
(1985), depois com a Assembleia das Re- l’Ouest. Des Structures Économiques et Sociales aux
giões (1987) e, finalmente, com o Comité Options Politiques depuis l’Époque Révolutionnaire,
das Regiões (1994), e onde, desde 1975, Paris/Haia, Mouton, 1960  ; BONORA, Pao-
as políticas de desenvolvimento se orien- lo, Regionalitá. II Concetto di Regione nell’Italia del
tam para as regiões, que se encontrarão Secondo Dopoguerra (1943-1970), Milano, Fran-
co Angeli, 1984; BOURDIN, Alain, A Questão
os caminhos certos para um enquadra-
Local, Rio de Janeiro, DP&A, 2001; BURKE,
mento adequado das chamadas regiões Peter, A Escola dos Annales (1929-1989): a Revo-
continentais portuguesas. lução Francesa da Historiografia, 2.ª ed., São Pau-
O quadro político-administrativo que lo, Editora da Universidade Estadual de São
vigora no país no começo do séc. xxi é Paulo, 2010; CABRAL, Júlio, “Regionalismo”,
uma demonstração do antirregionalismo Acção Regional, n.º 4, dez. 1931; CHARLES­
dominante em Portugal, sendo o Terrei- ‑BRUN, Jean, “Pourquoi nous sommes régio-
nalistes”, L’Action Régionaliste, vol. 8, n.os 1-2,
ro do Paço – local simbólico do centro da
1909, pp. 1-4; Id., Le Regionalisme, Paris, Bloud,
governação – a imagem figurada de um 1911; CHEVALLIER, J. et al., Le Pouvoir Régional,
país que se pensa como uma periferia da Paris, PUF/Groupement de Recherches Coor-
Europa plantada à beira-Tejo, na esperan- données sur l’Administration Locale, 1982;
ça do encontro de novos mundos. Neste CORDEIRO, Carlos, Nacionalismo, Regionalis-
quadro, pode-se afirmar que o antirregio- mo e Autoritarismo nos Açores durante a I Repúbli-
nalismo é uma força dominante e preva- ca, Lisboa, Salamandra, 1999; COURTOIS,
lecente no discurso histórico nacional, e Luc (dir.), Les Identités Régionales et le Facteur Ré-
gionale dans l’Histoire, Louvain-la-Neuve, Fon-
que se firmou pela pretensa necessidade
dation Wallonne, 2004; FERNANDO, Manuel
de afirmação de uma unidade conside- Garcia, Regionalismo y Autonomia en España,
rada necessária para uma expansão para 1975/1979, Madrid, Centro de Investigacio-
além das suas fronteiras. nes Sociológicas, 1982; FLORY, Thiébaut, Le
Mouvement Régionaliste Français: Sources et Dé-
veloppements, Paris, PUF, 1966; FRÉMONT,
Bibliog.: impressa: AMADE, Jean, L’Idée Re- André, A Região Espaço Vivido, Coimbra, Alme-
gionaliste, Perpignon, Bibliothéque Catalane, dina, 1980; FREYRE, Gilberto, “Manifesto
1912; ANDERSON, P., The Invention of a Re- regionalista de 1926/1952”, in TELLES, Gil-
gion 1945-50, EUI Working Paper EUF, 1994; berto Mendonça, Vanguarda Européia e Mo-
ANDRADE, Manuel C. de., “Territorialida- dernismo Brasileiro, Petrópolis, Vozes, 1997,
des, desterritorialidades, novas territorialida- pp.  343­‑345; FRUTUOSO, Gaspar, Saudades
des: os limites do poder nacional e do poder da Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madei-
local”, in SANTOS, Milton et al., Território: ra, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues
Globalização e Fragmentação, 4.ª ed., São Pau- de Azevedo, vol. ii, Ponta Delgada, Instituto
lo, Hucitec, 1998, pp. 213-220; AZCÁRATE, Cultural de Ponta Delgada, 1966; GOOCH,
Gumersindo de, Municipalismo y Regionalismo, R. K., Regionalisms in France, New York, Uni-
Madrid, Instituto de Estudios de Administra- versity of Virginia, 1931; GRAS, Christian, e
ción Local, 1979; BALDI, B., Stato e Territorio. LIVET, Georges (orgs.), Régions et Regionalisme
Federalismo e Decentramento nelle Democrazie en France du XVIIIe Siécle à Nos Jours, Paris, PUF,
Contemporanee, Roma/Bari, Laterza, 2006; 1977; GRAVIER, Jean-François, La Question
BASSAND, Michel (org.), L’Identité Régionale. Régionale, Paris, Flamarion, 1970; JENSEN,

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1640 Antirrelativismo

Merrill (org.), Regionalism in America, Madison,


University of Wisconsin Press, 1951; LEN-
Antirrelativismo
CIONI, Sandra, Região e Geografia, São Paulo,
Editora da Universidade de São Paulo, 1999;
LIZOP, R., Pourquoi le Régionalisme, Toulouse,
Ed. de l’Archer, 1938; MARTIN, F. Fernandez,
Iles et Régions Ultraphériphériques de l’Union Eu-
ropéenne, Marseille, Éditions de l’Aube, 1999;
MELO, Daniel, “Regionalismo, associativismo
regionalista e Estado no Portugal novecentis-
ta”, Congresso Internacional de História Território,
O antirrelativismo filosófico não con-
siste numa posição de confronto
com a teoria da relatividade. Embora essa
Culturas e Poderes, Braga, Instituto de Ciências teoria tenha tido os seus adversários, quer
Sociais da Universidade do Minho, 2007,
no plano da física (nomeadamente a cha-
pp.  621­‑639; OLIVER, Miquel dels Sants, La
Questió Regional, Barcelona, Edicions de la mada física alemã, ou ariana, movimento
Magrana, 1987; PACHECO, Eduardo, Regio- de alemães que, nos anos 30 do séc. xx,
nalismo e Estado das Autonomias, Dissertação se opunha aos trabalhos da física moder-
de Doutoramento em Filosofia apresentada na, conhecida como física judaica), quer
à Universidade dos Açores, Ponta Delgada, no plano da filosofia (onde se destacou
texto policopiado, 1997; PERAZA, Marcos o filósofo francês Henri Bergson, que
Guimera, El Pleito Insular, Santa Cruz de Tene-
expôs as suas dificuldades com a conce-
rife, Servicio de Publicaciones de la Caja Ge-
neral de Ahorros de Santa Cruz de Tenerife,
ção einsteiniana de tempo), todos os fí-
1976; REIS, M. Pestana, “Regionalismo. A au- sicos passaram, com o curso dos anos, a
tonomia da Madeira”, in Quinto Centenário do ser relativistas. Em Portugal, a oposição
Descobrimento da Madeira, Funchal, Comissão às ideias de Albert Einstein (1879-1955),
de Propaganda e Publicidade do Centenário, físico suíço nascido na Alemanha, mani-
1922, pp. 36-38; SILVA, Vera Alice Cardoso, festou-se tanto dentro da Academia – foi
“Regionalismo: o enfoque metodológico e a o caso de Francisco da Costa Lobo, lente
concepção histórica”, in AMADO, Janiana, e
de Matemática da Univ. de Coimbra que,
SILVA, Marcos (orgs.), República em Migalhas:
História Regional e Local, São Paulo, Marco Zero, nos anos 20 do séc. xx, rejeitou a teoria
1990, pp. 43-49; STORM, Eric, “Regionalism da relatividade em favor de uma teoria
in history, 1890-1945: the cultural approach”, heterodoxa, para não dizer mesmo pseu-
European History Quarterly, vol. 33, n.º  2, abr. docientífica, de sua lavra – como fora da
2003, pp. 251-267; WRIGHT, Julian, The Re- Academia – foi o caso do Alm. Gago Cou-
gionalist Movement in France, 1890-1914: Jean tinho (o pioneiro da travessia aérea entre
Charles-Brun and French Political Thought, Ox-
a Europa e a América do Sul), que se re-
ford, Oxford University Press, 2003; digital:
MELO, Daniel, “Regionalismo, sociedad civil velou um defensor tenaz do newtonianis-
y Estado en el Portugal del siglo xx”, Hispania mo –, tendo alguns prosélitos de Einstein
Nova. Revista de História Contemporanea, vol.  7, respondido quer dentro (como o físico
2007: http://hispanianova.rediris.es/7/arti- Mário Silva e o químico Egas Pinto Bas-
culos/7a012.pdf (acedido a 17 jul. 2017). to, em 1932, ao seu colega Costa Lobo no
… Alberto Vieira seio da academia coimbrã), quer fora da
universidade (vários artigos em revistas
culturais do matemático Ruy Luís Gomes
e do médico Abel Salazar contra Gago
Coutinho).
O significado mais comum de “relati-
vismo” em filosofia é, porém, o de dou-

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Antirrelativismo 1641

trina filosófica segundo a qual a verdade só verdades mas também valores absolu-
depende do ponto de vista, não existindo tos, no sentido de valores de aceitação
verdades absolutas e universais que pos- geral. Uma das técnicas utilizadas pelos
sam ser partilhadas por todos com base autores pós-modernos, tanto na análise
em certos critérios. Esta noção contraria filosófica como na análise literária, técni-
a visão da ciência, que persegue um saber ca desenvolvida especialmente por Der-
universalmente acessível, que resulta da rida, foi o chamado descontrucionismo:
interrogação da natureza usando o méto- a opinião de uma pessoa qualquer é, para
do científico e a crítica pelos pares (peer esses autores, um ponto de vista tão vá-
review). Embora não se possa falar de ver- lido como a opinião de qualquer outra
dade absoluta em ciência, no sentido em pessoa, mesmo que esta seja especialista
que esta tem um carácter cumulativo, não no assunto em causa. Há várias formas
terminando nunca, pode falar-se de erro de relativismo, podendo a sua adoção ser
e até, como fez o filósofo austríaco Karl mais radical ou mais moderada. No rela-
Popper (1902-1994), afirmar que a ciên- tivismo cultural, por exemplo, recusa-se
cia é a forma de conhecimento na qual uma visão do mundo e da vida centrada
é possível a admissão do erro (critério de no Ocidente, aceitando-se a coexistência
falsificabilidade). Escreveu Popper em de vários etnocentrismos. No relativismo
Conjecturas e Refutações. O Desenvolvimento moral, por outro lado, o bem e o mal são
do Conhecimento Científico (1963): “A his- determinados por cada cultura e mesmo
tória da Ciência, tal como a história de por cada pessoa, não existindo de uma
todas as ideias humanas, é uma história forma universal. Esta ideia foi, como não
de sonhos irresponsáveis​​, de obstinação podia deixar de ser, criticada pela Igreja
e de erro. Mas a Ciência é uma das mui- Católica, nomeadamente em discursos
to poucas atividades humanas – talvez a dos Papas João Paulo II e Bento XVI.
única – em que os erros são sistematica- Entre os filósofos contemporâneos que
mente criticados e frequentes vezes corri- se revelaram adversários da ciência advo-
gidos com o tempo. É por isso que pode- gando o relativismo e ganhando assim a
mos dizer que, em Ciência, aprendemos apreciação dos pós-modernos destaca-se
frequentemente com os nossos erros, e o austríaco Paul Feyerabend, um discí-
é por isso que podemos falar, clara e ju- pulo de Popper que se distanciou do seu
diciosamente, em fazer progressos nela” mestre, autor dos livros Diálogo sobre o Mé-
(POPPER, 2003, 295). todo, Contra o Método e Adeus à Razão, todos
As filosofias pós-modernas, que surgi- eles traduzidos em português no início
ram em França nos anos 40 do séc. xx in- dos anos 90. Escreveu Feyerabend neste
fluenciadas pelo pensamento de autores último livro: “Atualmente, muitos inte-
germânicos como Friedrich Nietzsche, lectuais entendem que o conhecimento
Edmund Husserl e Martin Heidegger, e teórico ou ‘objetivo’ é o único conheci-
em oposição à filosofia analítica, de ori- mento digno de ser considerado. O pró-
gem anglo-saxónica, tiveram como princi- prio Popper fomenta a crença difamando
pais mentores os filósofos franceses Jean o relativismo. Assim sendo, este conceito
Baudrillard,  Jean-François Lyotard,   Ja- não teria fundamento se os cientistas e os
cques Derrida, Gilles Deleuze e Michel filósofos que procuram um conhecimento
Foucault. Estes pensadores contribuíram universal e objetivo e uma moralidade uni-
para a disseminação do relativismo, na versal e objetiva conseguissem a primeira
medida em que pretendiam recusar não e persuadissem, em vez de obrigarem, as

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1642 Antirrelativismo

Neste quadro, deve ainda ser feita refe-


rência a outro filósofo norte-americano,
Richard Rorty, autor de Filosofia e o Espelho
da Natureza (1979), para quem a filosofia
oferece um vocabulário que as pessoas
podem adotar ou abandonar conforme a
utilidade que nele encontrem (noção que
ficou conhecida como pragmatismo).
Em Portugal, ocorreu na primeira dé-
cada do séc. xx uma polémica na qual o
relativismo era um dos ingredientes. Em

D.R.
1986, o sociólogo Boaventura de Sousa
Karl Popper (1902-1994).
Santos, professor na Univ. de Coimbra,
proferiu o discurso de abertura do ano
culturas opostas a adotar a última. Não é letivo nessa Universidade, intitulado Um
este o caso” (FEYERABEND, 1991, 199­ Discurso sobre as Ciências e inspirado nas fi-
‑200). Poder-se-á objectar dizendo que losofias pós-modernas; transformado em
os cientistas não procuram uma “morali- livro, o Discurso conheceu ampla circula-
dade universal e objectiva”. De facto, os ção, não só em Portugal mas também no
livros de Feyerabend foram acendendo Brasil. A relativização do conhecimento
polémicas. científico foi aí exposta desta maneira:
Mas, além de Feyerabend, também Tho- “A ciência moderna não é a única explica-
mas Samuel Kuhn, historiador e sociólo- ção possível da realidade e não há sequer
go da ciência norte-americano, autor de qualquer razão científica para a conside-
Estrutura das Revoluções Científicas (1962), rar melhor que as explicações alternativas
é apreciado pelos pós-modernos. Nessa da metafísica, da astrologia da religião,
obra, Kuhn enfatiza os rompimentos que da arte ou da poesia. A razão porque pri-
a ciência concretiza quando, em certos vilegiamos hoje uma forma de conheci-
momentos, põe em causa um “paradig- mento assente na previsão e no controlo
ma” vigente (o termo, adotado por Kuhn, dos fenómenos nada tem de científico.
fez escola). Dito assim, parece que em É um juízo de valor” (SANTOS, 1988,
ciência o progresso só se concretiza com 52). O autor, ao denunciar uma crise no
mudanças revolucionárias que, ao colo- “paradigma dominante” (uma expressão
carem em causa os resultados anteriores, kuhniana), procurava uma aproximação
qualificam como precário o conhecimen- da ciência àquilo a que chamava o sen-
to científico acumulado até certa data, o so comum, na linha das ideias relativistas
que está longe de ser o caso: mesmo nos (Feyerabend era naturalmente referido).
momentos em que a descontinuidade é Essa tese foi espraiada em Introdução a
aparente, há uma clara continuação na Uma Ciência Pós-Moderna e em A Crítica
evolução científica. De qualquer modo, a da Razão Indolente: contra o Desperdício da
obra de Kuhn conduziu a um conjunto Experiência, duas obras de maior fôlego.
vasto de estudos sociológicos e culturais Embora com algum atraso, as afirmações
sobre o conhecimento científico, que de Sousa Santos originaram algumas re­
alargaram o nosso conhecimento sobre a ações, em particular de dois livros do físico
natureza da ciência e o seu modo de fun- e divulgador de ciência António Manuel
cionamento. Baptista, O  Discurso Pós-Moderno contra a

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Antirrelativismo 1643

Ciência. Obscurantismo e Irresponsabilidade e


Crítica da Razão Ausente. Na primeira des-
sas obras, António Manuel Baptista consi-
derava O Discurso sobre as Ciências um “Dis-
curso contra a Ciência”, interrogando-se
com espanto: “Mas tem [Boaventura de
Sousa Santos] sérias dúvidas de que as ex-
plicações científicas dos fenómenos natu-
rais não são melhores do que as da metafísi-
ca, da astrologia, da religião, da arte ou da
poesia? Como é possível escrever isso nos

D.R.
nossos dias?” (BAPTISTA, 2002, 81). Sou-
Boaventura de Sousa Santos (n. 1940).
sa Santos viu-se obrigado a responder na
praça pública, tendo, para além de acusar
o seu antagonista de proferir insultos, tro- valiosa componente da cultura humana”
cado com ele alguns argumentos em jor- (DEUS, 2003, 115).
nais nacionais de grande circulação. Mais Essa polémica portuguesa em torno da
tarde o professor de Coimbra organizou ciência e da sua justificação não era mais
um espesso volume coletivo em que pro- do que uma réplica, um pouco tardia, da
curava, por meio de convites dirigidos a “guerra das ciências” que tinha tido lugar
vários autores, não só reapreciar a sua nos anos 90 do século anterior, nomeada-
Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna, mas mente a partir do chamado Caso Sokal,
também discutir a natureza e os limites da do nome do físico norte-americano Alan
ciência. O título – bastante original – que Sokal, que em 1996 conseguiu publicar
escolheu para esse volume foi Conheci- um embuste na revista Social Text, apre-
mento Prudente para Uma Vida Decente: Um sentando textos culturais pós-modernos.
Discurso sobre as Ciências Revisitado. Al- Os editores desta revista consideraram
guns cientistas, como o físico Jorge Dias digno de publicação um arrazoado sem
de Deus, do Instituto Superior Técnico, sentido, intitulado “Uma transgressão
também tomaram posição sobre esta de fronteiras: em direcção a uma her-
“guerra das ciências” em português. Em menêutica transformativa da gravidade
Da Crítica da Ciência à Negação da Ciência, quântica”,  que usava de forma inadequa-
embora admitindo como salutar a crítica da e absurda uma variedade de termos
da ciência, Jorge Dias de Deus chamou a da ciência (curiosamente, Boaventura
atenção para alguns equívocos dos auto- de Sousa Santos era citado nesse artigo).
res pós-modernos no que respeita à apre- A  paródia foi revelada pelo autor após
ciação da ciência, para concluir referindo a publicação do artigo, quando já vários
os limites e a confiança no conhecimento comentadores tinham apreciado o texto,
científico: “Portanto, a ciência não deve, tomando-o por sério. Este caso provocou
e nem pode, prometer futuros radiosos, uma enorme polémica intelectual, dando
sejam estes terrestres ou celestiais. Como ensejo ao surgimento de numerosos arti-
todas as coisas humanas, o conhecimen- gos e livros. Os ecos dessa discussão che-
to que a ciência produz é falível e pere- garam a Portugal ainda antes dos livros de
cível. Mas, nem por isso a ciência deixa António Manuel Baptista, com a publica-
de ser um impressionante movimento de ção, em 1999, de Imposturas Intelectuais, da
libertação do espírito e de constituir uma autoria de Sokal e de outro físico, o belga

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1644 Antirreligiosismo

Jean Bricmont, que contém em apêndice


o artigo publicado na Social Text.
Antirreligiosismo
No início do séc. xxi, assente a poeira
da “guerra das ciências”, pode dizer-se que
as ideias relativistas deixaram de ser tão
atrativas como foram no passado, tanto no
mundo como em Portugal. As ideias pós­
‑modernas, tal como foram apresentadas,
e.g., por Jacques Derrida (designadamente
na sua frase “tout le text est un hors-text”,
A análise da cultura dos tempos mo-
dernos e da época contemporânea
mostra que a interpretação do fenómeno
querendo significar que um texto valia religioso se constituiu muitas vezes de ma-
tanto como qualquer interpretação que neira conflituosa e enredada em tensões
dele se pudesse fazer), deixaram de estar teológico-políticas, e marcada por movi-
tão na moda nos Estados Unidos e, por ar- mentos heréticos e reformistas. São di-
rasto, na cultura ocidental. versas as razões invocadas para sustentar
críticas, tensões, desconfianças, ataques e
Bibliog.: BAPTISTA, António Manuel, O Dis- a oposição sistemática e devastadora com
curso Pós-Moderno contra a Ciência. Obscurantis- que as instituições religiosas foram e con-
mo e Irresponsabilidade, Lisboa, Gradiva, 2002; tinuam a ser visadas pela moderna men-
Id., Crítica da Razão Ausente, Lisboa, Gradiva,
talidade secular. Ciência, racionalidade,
2004; DEUS, Jorge Dias de, Da Crítica da Ciên-
cia à Negação da Ciência, Lisboa, Gradiva, 2003; liberdade, tolerância, autonomia e prazer
FEYERABEND, Paul, Adeus à Razão, Lisboa, são apenas algumas das muitas motivações
Edições 70, 1991; FIOLHAIS, Carlos (coord.), alegadas, nos mais diversos contextos e
Einstein entre Nós, Coimbra, Imprensa da Uni- épocas, para fundamentar a contestação
versidade, 2005; POPPER, Karl, Conjecturas e ao fenómeno religioso e à sua influência
Refutações: o Desenvolvimento do Conhecimento na vida social e política. Reteremos alguns
Científico, Coimbra, Almedina, 2003; RORTY,
desses fundamentos e apontaremos os
Richard, A Filosofia e o Espelho da Natureza,
Lisboa, Dom Quixote, 1988; SANTOS, Boa- protagonistas mais representativos que,
ventura de Sousa, Um Discurso sobre as Ciên- baseando-se neles, elaboraram doutrinas
cias, 2.ª  ed., Porto, Afrontamento, 1988; Id., e construíram cenários de confronto que
Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna, Porto, sistematizam o polemismo e a rejeição
Afrontamento, 1989; Id., A Crítica da Razão In- tanto da experiência religiosa, como das
dolente: contra o Desperdício da Experiência, Porto, instituições que a reivindicam como sua
Afrontamento, 2000; Id., Conhecimento Pruden- razão de ser. Antes de prosseguir, regista-
te para Uma Vida Decente: Um Discurso sobre as
mos a distinção entre antirreligiosismo e
Ciências Revisitado, Porto, Afrontamento, 2003;
SOKAL, Alan, e BRICMONT, Jean, Imposturas irreligiosismo. Enquanto na antirreligião
Intelectuais, Lisboa, Gradiva, 1999. prevalece o sentido radical de oposição
combativa que visa a extinção das reli-
Carlos Fiolhais
giões, na irreligião declara-se o que seria
apenas um dado historicamente verificá-
vel, a gradual dissolução das instituições
religiosas. É neste sentido que se chega
a admitir, não sem paradoxo, que “a ir-
religião […] pode ser considerada como
um grau superior da religião e da própria
civilização” (GUYAU, 1890, xv).

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Antirreligiosismo 1645

Foi a grande irradiação cultural das


críticas filosóficas de Karl Marx (1818­
‑1883), Ludwig Feuerbach (1804-1872) e
Friedrich Nietzsche (1844-1900) que, ao
submeterem o fenómeno religioso à im-
piedosa desconstrução, o fizeram descer
do céu da transcendência à terra, onde
os homens constroem a história e partici-
pam no nascimento de deuses e religiões.
Para uns será o ideal de perfeição, pleni-
tude e felicidade, que o homem, frágil e
insatisfeito com os seus limites, projeta
fora e acima de si na figura da divinda-
de. Para outros, a luta de classes é a lei da D.R.

história, em que a consciência humana, Bertrand Russell (1872-1970).


em vez de procurar nas condições mate-
riais da sociedade o motor da praxis de científico nas diferentes áreas de saber
quem luta pela transformação do mundo, geraram conquistas no campo das téc-
se refugia em Deus e espera da religião nicas que, ao modificarem as condições
conforto e remédio para os seus males. de vida, melhorando-as de maneira gra-
Segundo outros ainda, a interiorização dual, reforçaram a confiança no poder
da culpa incutida pelo pecado e o medo da razão e a vontade de autonomia no
do castigo eterno, ao mesmo tempo que governo da vida individual e coletiva.
afastam o ser humano da experiência, A ciência, vista às vezes como de conci-
exaltante e espontânea, da vida, subju- liação difícil, ou até impossível, com a
gam-lhe a consciência, ao oprimi-la com fé, com a revelação bíblica e os dogmas,
práticas supersticiosas e códigos de com- passou a estar na origem de grandes ata-
portamento religioso. Ilusão, alienação, ques à legitimidade e aceitabilidade das
medo, eis três títulos de antirreligiosis- crenças religiosas.
mo postos a correr pelos filósofos que Relativamente às religiões e às crenças
acabamos de referir e ainda persistentes religiosas, Bertrand Russell (1872-1970)
na mentalidade contemporânea. A este adota uma posição que, sintetizando ar-
quadro de suspeição contra a religião, gumentos já antigos, se constituiu em
devemos acrescentar a inevitável descons- paradigma do antirreligiosimo de fun-
trução psicanalítica a que Sigmund Freud damentação científica. Segundo Russell,
(1856-1939) submeteu o fenómeno reli- na origem das religiões está o medo em
gioso, que, ao apresentá-lo como neurose face das forças da natureza, de outros
obsessiva universal, o remeteu para o uni- homens quando mais fortes e poderosos,
verso das ilusões. e, ainda, da violência cega das próprias
O dealbar da ciência moderna trouxe paixões. Mesmo que alguns benefícios
um dos mais poderosos fatores de per- a elas se possam dever, os prejuízos ex-
turbação da religiosidade tradicional, cedem largamente as vantagens. Russell
pondo em causa, em nome da razão, a entende também que na atitude religio-
cosmovisão teocêntrica hegemónica na sa prevalecem a cobardia e a resignação,
sociedade europeia medieval. Os pro- ao fazer depender da vontade de Deus a
gressos alcançados pelo conhecimento superior condução dos acontecimentos

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1646 Antirreligiosismo

da história. Além disso, a obsessão criada consideram apoditicamente sustentadas,


pela necessidade de cumprir os deveres como sucede no pensamento contem-
religiosos perturba a retidão do racio- porâneo de Richard Dawkins (n. 1941),
cínio, levando a não dar verdadeira im- Michel Onfray (n. 1959) e Raoul Vanei-
portância ao que é mais urgente. Donde gem (n. 1934), coexistem com fórmulas
a firme rejeição de todas as religiões por em que o antirreligiosismo, embora fale
Russell, que as considera falsas e noci- de saída da religião, continua a mostrar
vas, tanto para os indivíduos como para interesse pelo religioso, o que é notório
a coletividade. Falsas porque nenhum na reflexão filosófica e sociológica de
dos argumentos habitualmente invoca- Luc Ferry (n. 1951) e de Marcel Gau-
dos pela tradição escolástica e teológica chet (n. 1946).
resiste às leis da lógica e do conhecimen- A posição antirreligiosa de Dawkins
to científico. Russell alega, além disso, assenta na sua convicção militante da
que “o mal causado pelas religiões é de não existência de Deus. Como ateu de
duas espécies; uma depende do género facto, a caminho de se tornar ateu con-
de crença que exige e outra dos dogmas victo, i.e., ateu que “sabe que Deus não
particulares que a compõem” (RUSSELL, existe” (DAWKINS, 2007, 78), baseia-se
1967, 8). Da crença ou fé requerida pela na refutação das cinco vias da tradição
atitude religiosa só se pode esperar o fa- tomista e do argumento ontológico,
natismo. Da aceitação das crenças resulta e ainda na figuração de Deus como
a sujeição da liberdade e do espírito críti- construção fantástica e absolutamente
co à imposição de dogmas e normas que, improvável. A refutação do argumento
com frequência, se revelam socialmente que fundamenta a existência de Deus
nocivos. Daí a deformação da capacidade na ideia de desígnio inteligente leva
para avaliar de modo correto as situações, Dawkins a concluir que recorrer a esse
que o filósofo exemplifica com dois casos princípio explicativo da complexidade
históricos. Quando a decadência do Im- das coisas, especialmente dos seres vivos,
pério Romano anunciava a proximidade exigiria que esse princípio fosse igual-
do colapso final, as autoridades eclesiás- mente explicado, gerando assim uma
ticas preocuparam-se mais com a defesa cadeia de regressões ad infinitum. Nada
da virgindade do que se esforçaram por neste percurso antirreligioso traz verda-
evitar a queda do Império. Em pleno deira novidade, a não ser a perspetiva
séc. xx, para muitos responsáveis da Igre- darwiniana em que inscreve a origem,
ja, foi mais importante a questão dos mé- natureza e sobrevivência do fenómeno
todos de contraceção e de inseminação religioso, e o cenário biológico em que,
artificial do que garantir a paz no mundo, em sucessivos capítulos, o desfecho é o
evitando uma guerra mundial de efeito total descrédito de todas as crenças reli-
devastador. Por isso, para Russell, as re- giosas. Mas a existência social do fenó-
ligiões em geral, e a cristã em particular, meno religioso postula uma explicação.
continuam a ser as inimigas principais da Com esse propósito, defende a tese que
racionalidade da ciência e do progresso faz da religião um “subproduto aciden-
moral da civilização. tal – um tiro falhado de algo útil” (Id.,
De semelhante teor polémico são as di- Ibid., 231) na evolução biológica e cultu-
vergências quanto ao significado e mani- ral. Esse subproduto acaba por se propa-
festação histórica do fenómeno cultural gar através de uma deriva cultural equi-
da irreligião. Modalidades radicais que se valente à deriva genética. À semelhança

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Antirreligiosismo 1647

dos genes, os memes, i.e., as unidades de


memória cultural, explicam o processo
evolutivo e multiplicador das formas di-
ferenciadas do fenómeno religioso.
No Tratado de Ateologia, Michel Onfray
pretende abrir caminho à superação efe-
tiva daquilo a que chama clericalismo
ateu. O livre-pensamento, que foi poder
em França durante a Terceira República,
continua a militar em pleno séc. xxi sob
a forma de ateísmo cristão. Assim desig-
na Onfray o ateísmo que, negando Deus,
afirma a excelência da moral e dos valo-
res cristãos. A esta posição, contraditória D.R.

e inadmissível, deve, segundo ele, opor­ Raoul Vaneigem (n. 1934).


‑se o ateísmo pós-moderno, i.e., o ateísmo
que elimina qualquer referência teológi-
ca, o ateísmo ateológico. Os objetivos vi- intolerância anticlerical, mas que recebe
sados pela ateologia são a desconstrução juros de uma companhia cujo negócio é
dos três monoteísmos – judaísmo, cris- o trato de escravos africanos?” (Id., Ibid.,
tianismo, islamismo – e das teocracias. 16). Afirma ainda, repetidamente, que
Só depois de desmontadas, em teoria e não devemos esperar que seja a repres-
na prática, estas construções ideológicas, são e violência contra as religiões a liber-
será possível encontrar as condições de tar a sociedade da desumanidade fun-
uma ética pós-cristã em que o mundo damental das doutrinas e organizações
não mais será um vale de lágrimas, nem religiosas. Essa libertação virá quando
será pecado sentir prazer, nem catás- se estabelecer uma “nova aliança” que
trofe experimentar a aventura de viver. seja “reconciliação do indivíduo con-
O ensaio de Raoul Vaneigem sobre a creto com a sua natureza de ser vivo e
desumanidade da religião acrescenta a perfectível” (Id., Ibid., 185). Só a vontade
outros tipos de antirreligiosismo algu- de viver, despida de miragens míticas e
mas notas que merecem atenção. Ao promessas de paraísos celestes, e eman-
mesmo tempo que professa um antirre- cipada da economia capitalista, pode
ligiosismo radical e impenitente, dedica restituir ao ser humano as condições que
algumas linhas a “examinar o que em lhe garantem a satisfação da natural as-
nós subsiste de comportamentos religio- piração à felicidade neste mundo.
sos” (VANEIGEM, 2000, 15). Reconhe- O processo moderno de laicização da
ce, além disso, a existência de crentes vida social, política e cultural saldou-se
que se comportam com mais generosi- pelo enfraquecimento da presença da
dade, ternura, vitalidade e compreensão religião nas dinâmicas da sociedade con-
do que numerosos revolucionários mili- temporânea e acarretou a experiência
tantemente antirreligiosos e sublinha as assinalada por Max Weber (1864-1920)
contradições de ideólogos empenhados como desencantamento (Entzauberung)
na luta contra a instituição religiosa. Per- do mundo. Assistiu-se, de facto, ao gra-
gunta, por exemplo, “que pensar de um dual emergir de uma mundividência em
Voltaire que trava justo combate contra a que a tradicional impregnação religiosa,

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1648 Antirreligiosismo

tanto da vida pública como da vida pri- tindo a forma da ambição, com laivos
vada, se dissipou a benefício da reivindi- de orgulho” (SLOTERDIJK, 2009, 29).
cada autonomia e autarcia do homem. Abraão, pai do monoteísmo abraâmico,
Podemos perguntar se a religião, que en- ao colocar Deus, o Altíssimo, acima das
tretanto desaparecia do espaço público, divindades a que prestam culto os povos
ia sendo também obliterada na consciên- vizinhos, afasta estas divindades e confe-
cia dos indivíduos. É precisamente na re ao Altíssimo o estatuto de Deus único.
resposta a esta questão que as propostas Deste modo, fica patente que a afirma-
de Luc Ferry e Marcel Gauchet se encon- ção monoteísta na história das religiões
tram e divergem. Encontram-se, porque resulta de uma competição em que há
reconhecem ambos que noções e valores partes em conflito à procura de hege-
próprios do código religioso tradicio- monia. A  defesa intransigente de Deus
nal estão agora vertidos no humanismo único faz-se acompanhar da mais inexo-
laico, território da nova transcendência rável violência que não recua perante a
e vínculo da cultura do mundo ociden- decisão de exterminar os infiéis. É o que
tal. Divergem, porém, porque enquanto podemos ver na celebração idolátrica do
Luc Ferry se mostra recetivo à conceção bezerro de ouro contra a qual reage a
do humanismo contemporâneo como cólera monoteísta de Moisés, ao ordenar
humanismo do homem-Deus, Marcel o homicídio dos infratores: “mate cada
Gauchet lhe contrapõe simplesmen- um a seu irmão, a seu amigo e a seu vizi-
te o humanismo do homem sem Deus. nho” (Ex 32, 27). A morte dos idólatras,
O primeiro pode anunciar a verdadeira mesmo que sejam os seres mais próxi-
religião como algo em aberto diante de mos, tem o valor de sacrifício oferecido
nós, perfilando-se como horizonte ainda pelos fiéis como desagravo pela ofensa
a descobrir. Gauchet, pelo contrário, vê grave contra o Deus único e como selo
o processo de enfraquecimento do vín- da aliança com o povo de Israel.
culo religioso como fatal e irreversível. O monoteísmo cristão desprende-se
O  transcendente subsiste, mas configu- do judaísmo pondo em causa o carácter
rado agora como absoluto terrestre va- étnico da aliança do Deus único com o
zado em formas que ainda não se encon- povo único. Na sua missão universalista,
tram identificadas. Paulo de Tarso assume a constituição
Em A Loucura de Deus, de Peter Sloter- do novo Israel, em que a fé e o batismo
dijk (n. 1947), as religiões monoteístas abrem a todos os povos sem distinção,
descem do plano teológico da transcen- sejam gregos ou judeus, escravos ou
dência para o terreno da ciência das civi- homens livres, homens ou mulheres,
lizações, no qual se procura determinar a pertença ao mesmo povo de Deus da
a origem da experiência do transcen- Nova Aliança. Com o aparecimento do
dente e do Deus único. Para essa inda- monoteísmo islâmico, há o retorno ao
gação são convocados os contributos das passado de guerra contra os ídolos dos
ciências humanas e sociais e, em parti- politeísmos empreendido pelo povo he-
cular, a psicologia “timótica”, tida pelo breu. Para o islão, é abominável o judaís-
autor como apropriada para dar conta mo, que ele acusa de hipocrisia por não
das potencialidades polemológicas dos ter escutado e tomado a sério as procla-
monoteísmos. O termo “thymos” desig- mações e invetivas dos profetas. Quanto
na, na antropologia grega, “o centro de ao cristianismo, reprova-o por ter falsi-
excitação dos impulsos da psique reves- ficado o monoteísmo, ao transformar

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Antirreligiosismo 1649

o profeta Jesus em filho de Deus, e por o mundo dos monoteísmos, mas com
ainda agravar mais a falsidade com a grande abertura para a ética da ciência
teologia da Trindade. Em suma, “se o universal da civilização, resta como tare-
reforço monoteísta advindo em S. Paulo fa o longo caminho da educação para os
gerou a passagem do universalismo de- direitos humanos.
fensivo ao ofensivo, o reforço islâmico Nesta travessia sumária de algumas
gerou o desenvolvimento do universalis- modalidades de oposição ao fenómeno
mo ofensivo que passou de uma forma religioso, devemos ainda acrescentar
de expansão missionária a uma forma dois tipos muito particulares de antirre-
de expansão político-militar” (SLOTER- ligiosismo, a chamada religião natural e
DIJK, 2009, 39). São defensivos os com- o antirreligiosismo de raiz protestante.
bates travados pelo monoteísmo judaico Da longa história da religião natural,
porque estão ao serviço da separação dos que remonta pelo menos ao estoicismo
judeus relativamente aos outros povos. antigo, decorre a conclusão que faz dela
Visa assegurar por essa via a preservação uma espécie de religiosidade estranha,
do estatuto singular de povo eleito. Por distanciada, que se afirma de maneira
sua vez, os monoteísmos cristão e islâmi- crítica em relação às religiões socialmen-
co, por força do expansionismo que a te instituídas. Das muitas peculiaridades
atividade missionária e proselitista pro- que a religião natural mostrou em dife-
move, definem-se como universalismos rentes épocas e na reflexão de quantos
ofensivos. Tanto nas cruzadas como na a ela se referem, ressaltam algumas ca-
guerra santa, encontram-se expressões racterísticas comuns a todas as formula-
culminantes desse combate de expansio- ções. A aceitação da existência de Deus
nismo ofensivo. e a presença do bem e do mal moral no
A identificação do efeito monoteísta mundo constituem o máximo denomi-
nas formas históricas, efeito que se re- nador comum das suas mais variadas ma-
veste de violência exercida em nome do nifestações. Por outro lado, o conceito
Deus único, e que cada uma das três re- de revelação divina ou é simplesmente
ligiões abraâmicas reivindica para si, de- negado como sucede no deísmo, ou
sacredita, segundo análise de Sloterdijk, mantido em suspenso, sem ser rejeitado
a eficácia esperada do diálogo inter-reli- nem claramente afirmado como aconte-
gioso. Com a jihad atual em mente, este ce nos teísmos. Além disso, a racionali-
autor acredita que “o código religioso zação do sentido religioso produzida no
serve exclusivamente para pôr em texto âmbito da especulação filosófica afasta a
uma tensão existencial raivosa, ligada a esfera da religião natural das chamadas
condições sociais, e que exerce pressão religiões positivas. E é, acima de tudo, a
para se descarregar. […] O que pare- estas que se opõe o antirreligiosismo, ou
ce ser uma nova questão religiosa é, na mais apropriadamente o irreligiosismo.
realidade, a repetição da questão social Como no final do séc. xix foi lembrado,
ao nível de uma biopolítica global” (Id., “uma religião sem mitos, sem dogmas,
Ibid., 138). O devir cheio de conflitos do sem culto nem ritos, é tão só a religião
fenómeno religioso surge, nesta leitura natural, coisa algo bastarda que acaba
da história natural dos monoteísmos, por se resolver em hipóteses metafísicas”
como revelador do enredo demasiado (GUYAU, 1890, xiii).
humano que envolve a transcendência A filosofia da linguagem, a filosofia
do Deus único. Aos desencantados com analítica e o incremento das ciências da

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1650 Antirreligiosismo

linguagem criaram ao discurso religio- “‘religião’ significa o intento do homem


so e aos termos em que ele se enuncia de se elevar com as suas próprias forças,
exigências na determinação do sentido mediante os seus próprios méritos (pe-
que, em casos extremos, se traduziu em lagianismo que oculta muitas vezes o
“ateísmo semântico”. (ANTISERI, 1970, seu próprio nome), até Deus; […] A ‘re-
16-17). Para Rudolf Carnap (1891-1970) ligião’ opõe-se assim à ‘fé’ tal como a
e os neopositivistas do Círculo de Viena, ‘obra’ do homem [se opõe] ao ‘dom’
o discurso teológico consta de pseudo- de Deus” (ARANGUREN, 1971, 128).
conceitos expressos por termos desti- A  tematização antirreligiosa baseada
tuídos de sentido em virtude de não no princípio da sola fides conheceu, no
obedeceram às regras da significação, séc. xx, considerável visibilidade graças
nomeadamente à regra de verificação à reputação de teólogos como Karl Bar-
empírica. Esta filosofia unilateral e re- th (1886-1968), Rudolf Bultmann (1884­
dutora começou a ser ultrapassada por ‑1976), Dietrich Bonhöffer (1906-1945),
Wittgenstein (1889-1951), que procura a Paul Tillich (1886-1965), John Robinson
significação dos termos no uso que deles (1919-1983), Harvey Cox (n. 1929) e
fazemos e não na sua verificabilidade.
outros. Com matizes teológicos muito
Além disso, é abandonada a pretensão
diversos e diferentes graus de radicali-
da linguagem unificada e universal do
dade, estes autores inscrevem-se numa
programa neopositivista e introduzida a
leitura secular da experiência religiosa
teoria dos jogos de linguagem. Abriam­
que, na sociedade contemporânea, re-
‑se, assim, novas pistas ao estudo do
conhece a existência de lugar para a fé,
discurso religioso, acompanhadas de
mas não para a religião.
renovada complexidade. A tarefa foi
executada em contexto anglo-saxónico,
onde floresceu uma teologia radical ou
Bibliog.: ANTISERI, Dario, Foi sans Métaphysi-
da morte de Deus na qual participaram
que ni Théologie, Paris, Cerf, 1970; ARANGU-
representantes da teologia protestante.
REN, José Luís, A Crise do Catolicismo, Coimbra,
Entre estes, Paul van Buren (1924-1998), Almedina, 1971; BACOT, Jean-Pierre, Une Eu-
que, perante o contexto civilizacional rope sans Religion dans Un Monde Religieux, Paris,
contemporâneo no qual a ideia de um Cerf, 2013; DAWKINS, Richard, A Desilusão de
Deus transcendente se tornou irrelevan- Deus, Lisboa, Casa das Letras, 2007; FERRY,
te, começou a orientar a atenção para a Luc, e GAUCHET, Marcel, Le Religieux après la
pessoa de Cristo, dela fazendo tema cen- Religion, Paris, Grasset, 2004; GUYAU, Jean
tral da reflexão teológica. Nesta reflexão, -Marie, L’Irréligion de l’Avenir. Étude Sociologique,
os enunciados deixam de ser cognitivos, Paris, Félix Alcan, 1890; LAGRÉE, Jacqueline,
La Religion Naturelle, Paris, PUF, 1991; ON-
como pretendiam ser os da teologia tra-
FRAY, Michel, Traité d’Athéologie, Paris, Gras-
dicional, e passam a exprimir os aspetos
set, 2005; RUSSELL, Bertrand, Porque não Sou
humano, histórico e ético do homem Je- Cristão e Outros Temas Afins, Porto, Brasília Edi-
sus de Nazaré e do evangelho. No mun- tora, 1967; SLOTERDIJK, Peter, A Loucura de
do secular e pós-cristão, resta apenas a Deus. Do Combate dos Três Monoteísmos, Lisboa,
fé no homem vivida à imagem da liber- Relógio d’Água, 2009; VANEIGEM, Raoul, De
dade, contagiante e libertadora, do mo- l’Inhumanité de la Religion, Paris, Denoël, 2000;
delo que é Jesus. No antirreligiosismo de Id. (dir.), L’Art de ne Croire en Rien suivi de Livre
alguma teologia protestante, como su- des Trois Imposteurs, Paris, Rivages, 2002.
blinha José Luis Aranguren (1909­‑1996) Luís Machado de Abreu

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Antirrepublicanismo 1651

Antirrepublicanismo podiam misturar-se, gerando um regime


misto, também justo. O regime é reto, ou
justo, quando o poder é exercido para o
bem de todos. Nos termos pós-kantianos,
os regimes retos são autónomos, sendo os
magistrados, entre os quais o rei, simples
executantes dos interesses do conjunto

O antirrepublicanismo foi uma pai-


xão e é um conceito; a paixão mor-
reu ou hibernou, analisaremos o conceito
da polis; os regimes injustos – a tirania, a
oligarquia e a demagogia – são heteróno-
mos, pois atuam em nome dos interesses
que é a um tempo filosófico e histórico. próprios dos governantes, diferentes dos
Só há antirrepublicanismo, porém, se dos governados.
houver república, tanto nos conceitos Em 1748, Montesquieu ainda usa a
como na prática social – mas só invoca- palavra “república” no sentido clássico:
remos esta na medida em que esclareça “Quando numa república o povo como
aquela. Com efeito, o antirrepublicanis- corpo tem a potência soberana, há uma
mo é o inimigo da república, e a querela democracia. Quando a potência soberana
articula-se com a questão helénica do me- está nas mãos de uma parte do povo, exis-
lhor regime político. Por isso, para com- te uma aristocracia” (MONTESQUIEU,
preendermos o antirrepublicanismo na 1892, ii). A república é então a forma de
teoria e na luta políticas, temos antes de governo de uma organização política jus-
compreender a república, ou pelo menos ta. A monarquia é uma forma de repúbli-
a república cujos antis conhecemos. ca. Eis o primeiro sentido cronológico do
A “república” contemporânea tem um conceito, que designaremos por “repúbli-
sentido diferente do que lhe era dado ca1”. Este sentido não gera antis.
até à Revolução Francesa. Com efeito, a A definição de Montesquieu contém
etimologia da palavra “república” é enga- implícita uma caraterística muito signi-
nadora, pelo que devemos começar por ficativa: a república não está necessaria-
ela. Os romanos usavam a designação res mente dotada de um rei, e, portanto, de
publica – a coisa pública, em tradução li- um rei hereditário. Daqui emerge o se-
teral – como sinónimo do que a Grécia gundo sentido de república: é uma forma
clássica tinha identificado como politeia, de governo cujos poderes são exercidos
a organização da polis, a cidade-Estado, a por magistrados escolhidos pelos eleito-
organização política civilizada, que hoje res, como era, ou se imagina ter sido, o
designaríamos por Estado democrático caso das cidades-Estado de Roma e da
de direito. Na Antiguidade clássica, a res Grécia clássicas, pois a sorte como mé-
publica é a organização política justa, ao todo de escolha de governantes quase
passo que a nossa república é uma forma desapareceu no Estado moderno. Este se-
de Estado; para Aristóteles e Cícero, a for- gundo conceito de república, a “repúbli-
ma de Estado era situada no paradigma ca2”, crucial na Revolução Francesa, será
do número dos detentores do que mais depois desprezado pela teoria política e
tarde foi chamado soberania, cruzado valorizado pela luta política.
com a justiça do seu funcionamento; daí Daqui decorre o terceiro conceito de
resultavam três formas de Estado justas: república, uma forma de organização
a monarquia, a aristocracia, e a democra- política de um território dotada apenas
cia. Estas três formas puras, ou duas delas, de magistrados eletivos, como no caso

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1652 Antirrepublicanismo

um veto suspensivo sobre as leis votadas


na Assembleia eleita (cap. iii, sec. iii). Se
o Rei Luís XVI não tivesse sido apanhado
em Varennes, a 20-21 de junho de 1791,
em flagrante delito de fuga, acreditando
assim a versão da traição e obrigando ao
estabelecimento da república, a Revolu-
ção Francesa teria continuado monárqui-
ca como a sua colega britânica. Apesar
da traição de Luís XVI, a república só é
proclamada em setembro de 1792, depois
de a guerra ter radicalizado a Revolução.
Esta tese é provada a contrario por Jean­
‑Jacques Rousseau, o filósofo da Revolu-
ção Francesa, ter perfilhado antes dela a
noção clássica de república: “Qualquer
governo regido pela lei” (Du Contrat So-
cial, liv. ii, cap. vi). O desenrolar da Revo-
Oliver Cromwell (1599-1658).
lução, e não a filosofia, instituiu o regime
republicano. Os Estados Unidos nasce-
da  “república2”, que por ser contratual ram como república (1776), mas esta
não depende de uma etnia, nem de ne- característica, influente na América ao
nhuma outra singularidade social, e, por sul do rio Grande, não impressionou as
isso, pode administrar um território me- potências europeias, que viam a indepen-
nor do que um reino, como os cantões dência das possessões americanas como
suíços, ou maior do que um império, um momento de rivalidade colonial, que
como no caso dos Estados Unidos, país lhes interessava apenas por afetar o equi-
cujo nome oficial não contém uma re- líbrio do poder no Velho Continente; por
ferência concreta à América, pelo que isso a França monárquica apoiou pelas ar-
beneficia potencialmente de condições mas a independência dos Estados Unidos
para associar todas as nações da terra, republicanos, que lhe interessava pois en-
i.e., para ser a organização política da fraquecia a sua rival britânica.
humanidade. Antes da Revolução Americana, as re-
A república contemporânea, como públicas existentes eram pequenas cida-
forma de Estado, nasce da Revolução des-Estado, e, por isso, no mercado do
Liberal; mas tece com ela uma relação governo ideal, a república não competia
apenas acidental. Com efeito, em Ingla- com a monarquia; não só no plano da
terra, a Revolução Liberal arrancara com ação, mas também no da teoria, pois era
a república autocrática (1640-1660) de desconhecida a representação pelo man-
Oliver Cromwell, e só estabilizara na Re- dato-delegação, razão pela qual a unani-
volução Gloriosa (1688), uma monarquia midade da doutrina política acreditava
assente no compromisso de os reis reina- que os Estados grandes tinham de ser
rem sem governar. Também a Revolução monarquias. As repúblicas do medioevo
Francesa começa por ser monárquica, e nos Países Baixos, na Itália, nas cidades
monárquica foi a sua primeira Constitui- eleitoras do Sacro Império Romano-Ger-
ção, a de 1791, que dava mesmo ao rei mânico e nos cantões suíços eram então

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Antirrepublicanismo 1653

riado, e que convergem com o legitimis-


mo na recusa do Estado liberal nascido
da Revolução Francesa.
Estes antirrepublicanismos mergulham
as suas raízes na identidade república­
‑Revolução, e é por isso que a república
“aparece como um regime de exceção,
ligado à guerra e comprometido pelo ter-
ror” (NORA, 1992, 401). É também por
isso que são violentos. O primeiro aspeto
desta violência é atribuir à conspiração
a origem da Revolução. Logo em 1798,
o P.e Barruel publicou a famosa Mémoire
pour Servir à l’Histoire du Jacobinisme, na
qual garantia que, na Revolução France-
sa, tudo tinha sido previsto, meditado e
combinado, incluindo os piores crimes.
A república tem uma origem tão cons-
Rei Luís XVI (1754-1793).
piratória como a sua mãe Revolução.
A  conspiração era por necessidade obra
mais assemelhadas a municípios podero- de uma sociedade secreta – a qual o an-
sos, como o de Lisboa, do que ao gran- tirrepublicanismo em breve identificaria
de Estado-nação, que começara então a com a maçonaria. Assim, a república é
formar-se. o mal e o mal são os outros; por isso, a
O antirrepublicanismo é múltiplo: per- república será vista também como obra
siste o legitimista, para o qual o novo re- de judeus. Portanto, para derrubar a re-
gime nunca será de direito pois nasceu pública, a conspiração e o golpe de força
sem ele (os posteriores, de algum modo, parecem lícitos a muitos. Por tudo isso,
aceitam a Revolução); surge o monárqui- na Europa, a república penará para forjar
co liberal, para o qual o rei é o melhor um consenso nacional; em França, só o
garante das liberdades individuais; man- terá conseguido depois da Primeira Guer-
tém-se o napoleónico, que salientará as ra Mundial. Nas Américas, a “república2”
vantagens do imperador plebiscitado e não gerou anticorpos.
semiautoritário (sociais por ele ser um Distinguiremos três tipos de antirre-
pai, e políticas por o Estado ter uma só publicanismo: o estatal, o católico e o
cabeça); renova-se o anarquista, quando teórico. E resumiremos a sua genealo-
Pierre-Joseph Proudhon escreve como úl- gia, e não a sua história. O antirrepubli-
tima frase do seu influente Idée Générale canismo estatal, que provocou paixões
de la Révolution au xixe Siècle “a revolução mais generalizadas, centra-se no Estado e
está acima da República”, porque só a consiste na “questão do regime”, que é a
aceita se ela for “o regime dos contratos, oposição doutrinal monarquia-república.
substituído ao regime das leis” (PROU- A república emerge como a herdeira da
DHON, 1851, 216); sucedem-se-lhes au- Revolução (Francesa), e é nessa medida
toritários, fascista, nazi e comunista, que que granjeia inimigos; os primeiros con-
consideram a república uma forma de Es- trarrevolucionários franceses declaram
tado contra a nação, o Volk ou o proleta- a república ilegítima, por a organização

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1654 Antirrepublicanismo

política ser régia pela natureza imutável


da organização política. O antirrepubli-
canismo nasce, pois, como uma varian-
te da contrarrevolução, e só mais tarde
se torna um conceito técnico do direito
constitucional e da sociologia política.
O antirrepublicanismo católico está
mais próximo do filosófico do que do esta-
tal; resultou de a Santa Sé nunca se ter re-
conciliado por completo com a Revolução
Francesa; apesar da concordata napoleó-
nica, o Vaticano aceitava a república como
uma mera situação de facto. No séc. xix,
o monarquismo dos católicos franceses
era de tal modo generalizado, que prefe-
riam combater a república a defender o
catolicismo. Por isso, tem que ser o Papa
Leão  XIII a impor-lhes em 1892 o rallie-
ment (a adesão) à República Francesa; esta Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865).
imposição será renovada em 1926.
Estas motivações estatais do catolicismo
eram fundamentadas numa eclesiologia ciência social. Retomando uma expressão
centrada no poder pessoal do Papa, con- de Friedrich Nietzsche, Zeev Sternhell
siderado representante de um Deus régio, identificou uma discutível tradição dos
e numa interpretação da filosofia política anti-Luzes, que remontaria a Giambattis-
de S. Tomás de Aquino que lhe punha na ta Vico, a Johann Gottfried von Herder e
boca a apologia da monarquia. Charles a Edmund Burke, situando no historicis-
Maurras perfilhou o neotomismo como mo o cerne dessa “modernidade irracio-
doutrina oficial da Action Française e ane- nalista” que desde o séc. xviii combateria
xou o Aquinatense: com os de Aristóteles, o racionalismo individualista e liberal do
os seus ensinamentos “recomeçariam a Iluminismo (STERNHELL, 2010, 39).
civilizar a nossa Europa” (HUGUENIN, O  primeiro fundamento filosófico do
2011, 363). Para a melhor doutrina, à antirrepublicanismo é a visão da organi-
época minoritária entre os católicos, o zação social como novo deus, um leviatã,
Aquinatense não estaria mais próximo da na metáfora de Hobbes; o historicismo é
monarquia de Maurras do que da Consti- uma concretização do sociologismo. Na
tuição republicana dos Estados Unidos. realidade, o antirrepublicanismo católico
A filosofia política do tomismo é mar- é um antiliberalismo, e, por essa via, é um
ginal à problemática central do antirre- tradicionalismo, um conceito que englo-
publicanismo filosófico. Esta situa-se na ba o legitimismo.
afirmação do primado da organização O antimaçonismo oferecia ao antirre-
política sobre a vontade individual dos publicanismo uma vantagem estratégica:
reformadores; ao voluntarismo republi- no Sílabo dos Erros (1864), o Papa Pio IX
cano, o antirrepublicanismo de Joseph não mencionara a república mas con-
de Maistre e de Louis de Bonald opõe as denara as associações secretas. Ora, os
leis inelutáveis do que será mais tarde a inimigos da maçonaria acusavam-na de

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Antirrepublicanismo 1655

ao republicanismo, que aparece como o


fim da história. O antirrepublicanismo
considerava a monarquia mais capaz de
evitar os perigos da democracia do que a
república.
Num certo sentido, a luta estatal que
teve lugar no continente europeu da
Revolução Francesa à Segunda Guerra
Mundial é dominada pela “questão do
regime”, e, portanto, pelos antirrepubli-
canismos e pelos antimonarquismos. Ve-
jamos alguns episódios dessa luta.
No final do séc. xix, só pouco a pouco
a república se firma em França, graças a
um programa mais civilizacional (Lei do
Divórcio, laicização da escola pública,
etc.) do que estatal, pois, no plano insti-
tucional, essa Terceira República identifi-
Charles Maurras (1868-1952).
ca-se com o parlamentarismo de Assem-
bleia; aliás, a república nunca conquistou
uma “verdadeira unanimidade” da opi-
integrar esta categoria, o que ela, aliás, nião pública (NORA, 1992, 411). Com
recusava, declarando-se “discreta”. O an- efeito, boa parte dos Franceses continua-
timaçonismo aliava os católicos aos não ram antirrepublicanos, e entre as duas
católicos antirrepublicanos. Grandes Guerras apoiaram a monarquia
O antirrepublicanismo filosófico põe liberal ou o “nacionalismo integral” de
em evidência outro elemento do antirre- Charles Maurras, monárquico, antirrepu-
publicanismo: a defesa do singular con- blicano, antimaçónico e antissemita. Nos
tra o universal. Tal como o tomismo, mas anos de 1930, a sua Action Française elo-
de outro modo, o Iluminismo recusava giou a aliança com a Alemanha nacional­
a singularidade e o concreto em benefí- ‑socialista e com a Itália fascista, e apoiou
cio da universalidade, e, portanto, tinha o État Français do Mar. Philippe Pétain,
de recusar as monarquias europeias, por que, sem ser monarquia, se recusou a ser
natureza históricas, e, por isso, singula- república e retomou os inimigos tradicio-
res; se não as recusasse, alimentava com nais de boa parte do antirrepublicanismo
elas uma relação tensa; aceitava-as, po- autoritário: o parlamentarismo, os parti-
rém, quando o rei punha o seu poder ao dos políticos, os judeus, os maçons.
serviço das Luzes: Voltaire, carteando-se A situação francesa é modelar para os
com o Rei da Prússia, é talvez o melhor Estados da Europa latina e a portuguesa
símbolo da adesão do Iluminismo conti- é comparável com ela. A Revolução Libe-
nental à monarquia absoluta e iluminada. ral portuguesa não nasceu republicana
Mas só a aceitava na medida dessa ilumi- em 1640, mesmo quando “uma parte da
nação, que lhe permitia vencer os incon- assembleia dos conspiradores [os 40 res-
venientes da singularidade. A síntese do tauradores] se inclinava para o governo
Iluminismo com o positivismo de Littré republicano, muito semelhante ao da Ho-
dará mais tarde uma dimensão finalista landa” (VERTOT, 1734, 44). A Revolução

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1656 Antirrepublicanismo

de 1820 foi monárquica. O nexo entre 1890). No seu romance A Capital, na cé-
a Revolução Liberal e o republicanis- lebre cena da sessão do centro republica-
mo será profundo em Portugal, mas, tal no, Eça apresentou os participantes como
como em França, é acidental. Talvez por ingénuos e ignorantes, ou invejosos e me-
isso, a geração de 70, autora das Confe- díocres, todos desprovidos de uma ideia
rências do Casino, foi antirrepublicana, positiva para Portugal.
e talvez monárquica; Teófilo Braga foi o Abonando-se nas frases anteriores, algu-
seu único republicano militante. Antero ma propaganda monárquica apresentou
do Quental só foi republicano na primei- Antero e Eça como inimigos da repúbli-
ra mocidade; mais maduro, a 2 de feve- ca. Sê-lo-iam? Antero nunca vacilou no
reiro de 1873, escrevendo na sua revista republicanismo teórico, sobre o qual Eça
Pensamento Social sobre a república em evitou definir-se. Ambos criticam os re-
Espanha, um acontecimento traumático publicanos, e não a república, e, mesmo
para os Portugueses, considerou-a apenas assim, só em privado. As declarações são
“uma experiência empírica”, recusando-a quase todas proferidas na sequência da
“se não for mais do que a continuação da sangrenta Comuna de Paris e da violenta
monarquia com outro nome” (CARREI- Primeira República espanhola. A “balbúr-
RO, 1948, i, 340 e 448). Nas cartas aos dia sanguinolenta” é da vaga da Comuna
amigos, Antero foi cáustico sobre os repu- revolucionária, que ambos os nossos re-
blicanos: em abril de 1873, informava J. P. volucionários condenavam em privado
Oliveira Martins que tinha “ultimamente e poupavam em público. Eça insere esta
visitado” centros republicanos onde en- expressão num estudo sobre Ramalho Or-
contrara “ilusões senis” e “frase velhas”, tigão, a quem a atribui, pois escreve em
mas nem “um homem nem uma ideia”; discurso indireto livre; pede por ela “des-
como Martins tivesse anunciado que acei- culpa à nobreza e ao povo” e esclarece que
tava uma candidatura a deputado socialis- o “dever do artista” o obriga a interessar-se
ta pelo Porto, prevenia-o contra os repu- pelos políticos apenas enquanto tipos so-
blicanos, seus rivais eleitorais: eram “uma ciais, “todos igualmente explicáveis, todos
raça pérfida” (Id., Ibid., 340). igualmente interessantes”; pensava, por
Terá Eça de Queirós passado da revolu- certo, na referida cena de A Capital. Eça
ção proletária à monarquia liberal? Veja- não só enjeitava a autoria moral da frase,
mos o que ele escreveu e publicou sobre como a escrevera numa missiva datada de
a república e os republicanos. A  25 de 25 de fevereiro de 1878, quando a recorda-
fevereiro de 1878, Eça enviou de Newcas­ ção sangrenta da Comuna de Paris ainda
tle uma carta a Joaquim de Araújo onde estava viva (QUEIRÓS, 1928, 48). A Capital
afirmava que em Portugal a república é dessa série influenciada pela Comuna e
seria “uma balbúrdia sanguinolenta” parece romancear a frase de Antero sobre
(QUEIRÓS, 1928, 33). Logo a seguir ao os centros republicanos; foi escrita a partir
Ultimato de 1890, num texto anónimo da de 1877, embora só publicada em 1925, já
Revista de Portugal, de início atribuído a depois de ter sido retocada pelo filho, José
J. P. Oliveira Martins, Eça previu três regi- Maria; um especialista em Eça assinalou
mes futuros para Portugal, pois “a nação como origem dessa cena outras de Hono-
perdeu totalmente a fé no parlamentaris- ré de Balzac, e classificou a sua “intenção”
mo”: autocracia militar, “concentração de de “escarninha”, mas não de antirrepubli-
força na Coroa” e república, que “seria a cana (MARTINS, 1967, 314). Escrevendo
confusão, a anarquia, a bancarrota” (Id., duas décadas depois sobre as violências

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Antirrepublicanismo 1657

revolucionárias da Comuna, Eça teme que e publicou nesse livro as fotografias dos
a república traga a Portugal a confusão e a que assim qualificava, como prova visual
bancarrota, mas não a sangueira. de pertença genético-cultural. O estilo
A popularidade da frase “balbúrdia san- era o de Charles Maurras: intelectualismo
guinolenta” como sinónimo da república verbalizado com violência.
em Portugal sugere que o antirrepublica- Em meados dos anos de 1920, boa par-
nismo se acentuou depois de proclamada te do antirrepublicanismo português era
a Primeira República. O Rei D. Manuel II republicano, pois, a Primeira República
afirmou até morrer a validade da Carta traíra as esperanças. Fora essa a atitude
Constitucional, tendo a República Por- de Antero.
tuguesa por uma rebelião inconstitucio- O Estado Novo firmara a natureza re-
nal, apesar de o concerto internacional publicana do Estado, mas António de
a reconhecer; até 1919, esta convicção Oliveira Salazar, o seu mais duradouro
ensimesmada autorizou-o a encorajar chefe de Governo, abafou a “questão do
encapotadamente revoltas monárquicas regime”, que dividia a opinião conserva-
armadas. O Integralismo Lusitano toca- dora, divisão que permitira a implantação
va alguns dos temas tradicionais do an- e a sobrevivência da Primeira República.
tirrepublicanismo autoritário: acusava a O Estado Novo não produziu antirrepu-
Primeira República de ser um regime de- blicanismo, embora perfilhasse alguns
sorganizador da nação, dominado pelos dos seus temas, como a crítica ao parla-
partidos políticos, pela maçonaria, pela mentarismo, e preferisse uma república
plutocracia e pelos judeus. As repúblicas surda. O jornal O Debate, semanário da
“como sistemas de governo” eram “má- Causa Monárquica, procurava criticar as
quinas de burocracia congestiva, em que instituições republicanas, mas, por demé-
as oligarquias, tanto partidaristas como rito próprio e mérito da censura admi-
plutocráticas, asfixiam as livres iniciativas, nistrativa prévia, não era brilhante nem
não só dos indivíduos como da coletivi- acutilante.
dade” (SARDINHA, 1929, 279); “ontem Os católicos portugueses, tal como os
o liberalismo [da monarquia], agora a franceses, oscilavam entre a sua fé e a da
democracia [da Primeira República], não monarquia. Nos anos de 1930, o cardeal
são senão as fachadas de um poder oculto Cerejeira evitará também essa “questão
que, no subsolo da política a manobra a do regime”, que dividira o catolicismo
seu belo prazer [...]. Tal poder é o da Ma- português e desautorizara os bispos.
çonaria, inimiga desde sempre de tudo Pode concluir-se que o antirrepublica-
quanto seja para Portugal o renascimento nismo foi intenso, sobretudo nos países
das suas velhas qualidades de fé e de dis- da Europa latina, no Brasil e na Argenti-
ciplina” (Id., 1978, 64-65). A mítica iden- na, mas não durou dois séculos. O seu fim
tificação do judaísmo e da maçonaria é ocorre com a Segunda Guerra Mundial,
concretizada pelo Integralismo: “O  ma- cujos vencedores integram repúblicas ou
çonismo e a retórica do Progresso não monarquias liberais e cujos derrotados
são senão o sucedâneo da antiga aspira- agrupam os totalitarismos singularizantes,
ção messiânica do Judeu” (Id., 1926, 21). que se contavam entre os mais poderosos
O modernista Mário Saa produziu um an- impulsionadores do antirrepublicanismo.
tissemitismo republicano de igual brutali- Em Itália, a monarquia cai, em França,
dade: ataca A Invasão dos Judeus, que teria desaparece como ameaça estatal, e na
ocorrido durante a Primeira República, Índia os rajás enfrentaram uma morte

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1658 Antirrepublicanismo

a prazo, embora a monarquia subsista pp. 13-88; FURET, François, e DENIS, Richet,
no Reino Unido, na Holanda, na Bélgi- La Révolution Française, Verviers, Marabout,
ca, nos países escandinavos, no Japão, na 1979; HOOP, Jean-Marie d’, “La France dans
Tailândia, além de algumas monarquias la Seconde Guerre Mondiale”, in DUBY, Geor-
árabes. Seria simplista atribuir o fim do ge (org.), Histoire de la France, Paris, Larous-
se, 1995, pp. 849ss.; HUGUENIN, François,
antirrepublicanismo à derrota do totalita-
L’Action Française, Paris, Perrin/Tempus, 2011;
rismo nacional-socialista. Esse fim resulta
MARTINS, António Coimbra, Ensaios Queiro-
do enfeixar de um conjunto de vetores a
sianos, Mem Martins, Europa-América, 1967;
que devemos chamar secularização políti- MATOS, Luís Salgado de, O Estado de Ordens,
ca. Enumeremos os principais: o aumen- Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004;
to da instrução formal minava a durabili- Id., Como Evitar Golpes Militares, Lisboa, Impren-
dade da governação heterónoma, o que sa de Ciências Sociais, 2008; Id., A Separação do
facilitava a “república1”; excluídas as mo- Estado e da Igreja, Lisboa, Dom Quixote, 2011;
narquias tradicionais contemporâneas, MÓNICA, Maria Filomena, Eça de Queirós,
os países nascidos da descolonização Lisboa, Quetzal, 2001; MONTESQUIEU, Es-
raramente possuíam uma família real, prit des Lois; NORA, Pierre,  “République”, in
facilitando a “república2”, o que mais OZOUF, Mona (org.), Dictionnaire Critique de la
acirrava o antirrepublicanismo estatal; na Révolution Française, Paris, Flammarion, 1992,
radiomensagem do Natal de 1944, o Papa pp. 391-413; PIO  IX, Sílabo dos Erros, 1864;
PRÉLOT, Marcel, e Lescuyer, Georges, His-
Pio XII explicita a adesão do catolicismo
toire des Idées Politiques, 13.ª ed., Paris, Dalloz,
à democracia, o que significava o fim da
1997; PROUDHON, Pierre-Joseph, Idée Gé-
monarquia como regime preferencial e
nérale de la Révolution au xix  Siècle, Paris, Gar-
para os católicos; a “república3” é facili- nier Frères Libraires, 1851; QUEIRÓS, Eça de,
tada pela multiplicação de organizações “Novos factores da política portuguesa”, Re-
funcionais de cooperação internacional, vista de Portugal, vol. ii, abr. 1890, pp. 526-541;
como a União Internacional de Teleco- Id, Notas Contemporâneas, Porto, Lello e Irmão,
municações (1865), alargada a todas as 1928; Id., A Capital, introd. José Maria Eça de
funções estatais com as Nações Unidas Queirós, 9.ª ed., Porto, Lello e Irmão, 1971;
(1945), organização cuja designação pre- RIALS, Stephane, “La contre-révolution”, in
ter-republicana era a mesma da coligação ORY, Pascal (org.), Nouvelle Histoire des Idées Po-
vencedora da Segunda Guerra Mundial. litiques, nova ed. rev. e aum., Paris, Hachette,
1987; ROUSSEAU, Jean-Jacques, Du Contrat
Social; SAA, Mário, A Invasão dos Judeus, Lisboa,
Libânio da Silva, 1925; SARDINHA, António,
Bibliog.: BOUTHILLON, Fabrice, L’Illégitimité Na Feira dos Mitos. Idéas & Factos, Lisboa, Livra-
de la République, Paris, Plon, 2005; CARLYLE, ria Universal de Armando J. Tavares, 1926; Id.,
R. W., e CARLYLE, A. J., A History of Mediae- Purgatório das Ideias. Ensaios de Crítica, Lisboa,
val Political Theory in the West, 2.ª impressão, Ferin, 1929; Id., Ao Ritmo da Ampulheta. Crítica
vol. vi, Edinburgh/London, William Blackwood & Doutrina, 2.ª ed., Lisboa, QP, 1978; STER-
& Sons, 1950; CARREIRO, José Bruno, Antero NHELL, Zeev, Les Anti-Lumières Une Tradition du
de Quental. Subsídios para a Sua Biografia, 2 vols., XVIIIe Siècle à la Guerre Froide, ed. rev. e aum.,
Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Paris, Gallimard, 2010; VALETTE, Geneviève,
Delgada, 1948; CATROGA, Fernando, Ensaio
e BOUILLON, Jacques,  Munich 1938,  Paris,
Republicano, Lisboa, Fundação Francisco Ma-
Armand Colin, 1986; VERTOT, René Aubert,
nuel dos Santos, 2011; DENIS, Michel, “Que
Histoire des Révolutions de Portugal, 4.ª ed. rev.,
faire de la Révolution Française?”, in SIRI-
NELLI, Jean-François  (org.), Histoire des Droi- Haia, Henri Scheurleer, 1734.
tes en France, vol. 1, Paris, Gallimard, 2006, Luís Salgado de Matos

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Antirrestauracionismo 1659

Antirrestauracionismo Salústio (Regni Reparatio Plebi Sua Jura Res-


tituere). O duque de Bragança, aclamado
Rei de Portugal, restituiu a independên-
cia política ao reino. Para António Cae-
tano de Sousa, o duque foi o “valoroso
autor da liberdade da Pátria” (SOUSA,
1740, 50). A situação é concreta e data do

S e o confronto com as noções filosófi-


cas de restauracionismo e antirrestau-
racionismo, aplicadas à situação estatal
1.º de Dezembro de 1640.
O termo “restauração” aparece no
frontispício da obra Usurpação, Retenção
gerada no 1.º de Dezembro de 1640, re- e Restauração de Portugal (1642), atribuí-
presenta um irrecusável desafio, nem por da a João Pinto Ribeiro. O autor, agen-
isso invalida a necessidade de se produ- te da casa de Bragança em Lisboa e um
zir a história do conceito de restauração, dos conjurados de 1640, defendia a tese
condição prévia para evitar o pecado do de que nenhum reino podia ter, contra
anacronismo: nasceu ele no 1.º de De- sua vontade, um rei estrangeiro. Mas a
zembro de 1640? Se nasceu depois, quan- palavra “restauração” limita-se a surgir na
do? Qual o entendimento dessa noção? epígrafe da obra e não será retomada no
Só então será legítimo começarmos a texto. Os próprios censores preferiram o
apor-lhe um “ismo”. Mas, nesse caso, tere- termo “restituição”: o direito das gentes
mos de perguntar se o restauracionismo não podia ser violado, pelo que o reino
era uma corrente doutrinal, e se a orga- devia ser devolvido ao seu senhor natural.
nização social em causa (a do séc. xvii) Por sua vez, um deles, Francisco Brandão,
admitia doutrinas políticas abstratas e mi- foi também autor de um discurso intitula-
litantes, como os “ismos” dos sécs. xix e do Discurso Gratulatorio sobre o Dia da Felice
xx. De que sentido se reveste esse “ismo”
que nos é proposto? Em potência, há um Aclamação de D. João IV,
“ismo” para cada nome próprio. Por isso, de Veloso Salgado (1864-1945).
questiona-se a sua produtividade. A esta
luz, examinaremos alguns comportamen-
tos concretos, e, sem anacronismo, quali-
ficá-los-emos de antirrestauracionistas ou
não. Só assim poderemos verificar a eficá-
cia do conceito e do seu oposto.
Qual o significado do termo “restaura-
ção” no séc. xvii?
Duarte Ribeiro de Macedo, numa obra
sobre as causas da prosperidade de Fran-
ça e do declínio de Castela (1680), apli-
cava a palavra à restauração de Espanha
graças à reconquista cristã. Rafael Blu-
teau indicou para a palavra o sentido de
“restituição ao primeiro estado”, expli-
citando com os exemplos “da fortuna”,
“da saúde” e “do reino” (BLUTEAU,
1712­‑28), neste caso remetendo para

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1660 Antirrestauracionismo

Restituiçaõ, & Acclamaçaõ da Magestade del nhias de comércio, e o desenvolvimento


Rey D. Joam IV (1642). No ano seguinte, da Marinha Mercante nacional (FARIA,
temos a publicação da Restauração de Por- 2005, 335).
tugal Prodigiosa, de Gregório de Almeida, Dez anos depois da assinatura da paz
para quem o destino profético de Portu- luso-espanhola, o conde da Ericeira tinha
gal estava gravado nas sagradas escrituras, já o distanciamento suficiente para con-
confirmado pela visão de D. Afonso Hen- siderar Portugal Restaurado (1679) como
riques e reafirmado através da “gloriosa fruto de um processo histórico de afirma-
restauração de Portugal pela aclamação e ção e de consolidação da independência
restituição dos seus reinos” a D. João IV (1640-1668/1669), mas a palavra “restau-
(ALMEIDA, 1643, 1.ª pt.). ração”, quase exclusiva desse conceito his-
Ainda era cedo para alargar o conceito tórico, não aparecerá tão cedo. Em 1689,
de restauração de forma a poder abran- René de Vertot publicou a Histoire de la
ger um processo histórico de mais ampla Conjuration de Portugal. O imenso suces-
dimensão temporal. Para o P.e António so obtido encorajou-o a ampliar a obra,
Vieira, o termo tem o sentido de restau- que, em 1711, veio a lume com o título
ração da cidade (na Carta Anua, de 30 Histoire des Révolutions de Portugal. Na pri-
de setembro de 1626, referia-se à recon- meira versão, o termo “conjura” aplica-se
quista de São Salvador da Baía, que tinha apenas a um contexto em que a Coroa é
sido ocupada pelos Holandeses em 1624) restituída a um príncipe que é encarado
ou de restauração da Igreja (numa carta como um herdeiro legítimo, enquanto na
de 11 de abril de 1650, aludia ao destino nova versão trata as várias mudanças polí-
profético de D. João IV). Na correspon- ticas ocorridas na Monarquia Portuguesa,
dência que mantém com o diplomata desde a morte de D. João III à deposição
Duarte Ribeiro de Macedo entre 1671 e de D. Afonso VI, aplicando um dos senti-
1675, ambos referem a “restauração da dos que, de acordo com Bluteau, a pala-
Índia e da costa de África”, a “restaura- vra “revolução” tem nos sécs. xvii e xviii:
ção do perdido” (na Índia pelas conquis- “revolução no Estado”, isto é, “mudança,
tas dos Holandeses), e a “restauração do nova forma de governo”.
Reino e suas conquistas”. No Discurso sobre No período das invasões francesas, te-
a Introdução das Artes (1675), o diplomata mos referências à restauração do Porto e
considerava que sendo impossível voltar à restauração do Algarve (1809); após a
atrás, aos tempos de prosperidade, Portu- Guerra Civil, também há referências à res-
gal só tornaria a prosperar quando mere- tauração de Portugal, que ocorreu graças
cesse a ajuda divina, ou melhor, quando a D. Pedro IV, duque de Bragança, con-
Deus “nos tiver escolhido por restaurado- forme a legenda de uma gravura de Mau-
res, como nos escolheu por descobrido- rício Sendim (1839). O significado de
res ou conquistadores” (MACEDO, 1974, “restauração”, nestes casos, é ainda o de
183). Numa carta datada de 12 de maio regresso à forma anterior. Só na segunda
de 1670, referia-se a uma restauração metade do séc. xix, reagindo à polémi-
da economia portuguesa, ainda longe ca provocada pelas propostas iberistas, é
de acontecer, para o que aconselhava a que o termo aparece diretamente colado
promoção do trabalho, “fazer das pedras aos acontecimentos do 1.º de Dezembro
pão”, com o aproveitamento das maté- de 1640, como símbolo da independên-
rias-primas existentes no país, o fomento cia nacional. Porém, antes de ter sido
manufatureiro, a fundação de compa- apropriado pelos historiadores, surgiu

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Antirrestauracionismo 1661

primeiro em opúsculos, sermões, discur- 1640. Tratava-se de agir preventivamen-


sos e romances históricos (1868, 1876, te, tal como fez o Beneditino João Cara-
1879, 1919). Note-se que, mesmo Rebelo muel Lobkowitz (1639) com o seu Filipe
da Silva, que entrou no debate e reagiu o Prudente […] Demonstrado Legítimo Rei de
com a publicação da História de Portugal Portugal, Algarve, Índia, Brasil, publicado
nos Séculos XVII e XVIII (1859-71), se limi- em latim, ao qual António de Sousa de
tou a expressões como “revolução”, “acla- Macedo irá contrapor a Lusitania Liberata
mação” ou “separação”. Oliveira Martins ab Injusto Castellanorum Domínio (1645).
(1879) preferiu o adjetivo “restaurado”. Pode considerar-se que as primeiras
Pinheiro Chagas (1899-1909) aplicou o manifestações contra a Restauração ocor-
termo “restauração” ao contexto militar: reram em Espanha. Efetivamente, quan-
usou a expressão para se referir à guerra do, uma semana depois, a notícia de que
da restauração, mas também à restaura- o movimento do 1.º de Dezembro tinha
ção de Pernambuco ou de Angola. Tam- sido vitorioso chegou a Madrid, a pertur-
bém é esse o sentido que Fortunato de bação foi de tal ordem que se publicou
Almeida lhe dá nos seus manuais escola- uma lei que proibia, sob pena de morte,
res (1899), embora na História de Portugal falar do que acontecera em Lisboa. Oli-
(1922-29) se refira à Restauração como vares qualificou o duque de Bragança
o movimento que se iniciou a 1 de de- como “bruto e irracional”, e renegou em
zembro de 1640. Temos, finalmente, um público sua prima, D. Luísa de Gusmão,
substantivo próprio. É legítimo escrevê-lo convertida em Rainha. Chamou os no-
com letra maiúscula. Justificará o “ismo” bres portugueses com funções na corte
que agora lhe juntamos e o “anti” que lhe de Madrid e a cada um pediu um pare-
antepomos? cer por escrito sobre os meios mais ade-
Comecemos pela análise das repre- quados para conduzir o reino sublevado
sentações contemporâneas do aconteci- novamente à obediência (VALLADARES,
mento. Do ponto de vista da produção 1998, 45). Criou uma junta designada
de literatura política – desde tratados Inteligência Secreta, a quem confiou a
teóricos a obras de carácter histórico, de tarefa de promover a contrarrevolução
gazetas informativas a panfletos justifi- em Portugal, decretou um bloqueio eco-
cativos, de panegíricos a peças de teatro nómico contra os “rebeldes”, e avisou
ou poesias –, o período que podemos as potências europeias de que qualquer
apelidar de Restauração foi uma época acordo com os Portugueses seria conside-
especialmente fecunda. Era necessário rado uma afronta e teria pesadas conse-
justificar a insurreição contra a dinastia quências.
de Habsburgo, tanto para convencer os Para o Rei e para o Conselho de Estado
Portugueses mais hesitantes, nomeada- espanhol, perder Portugal significava per-
mente os nobres que se encontravam em der uma Monarquia inteira, um grande
Madrid, como para conseguir o apoio das reino, domínios e riquezas, e a ilusão da
potências inimigas de Espanha. Mas, se inteireza política da geografia peninsular,
em Portugal os escritores favoráveis à res- e não apenas um pedaço maior ou menor
tituição da Coroa a uma dinastia nacional de terra, como nas guerras da Flandres, da
são numerosos e de todos os quadrantes Catalunha ou de Itália. Havia a sensação
sociais, já no estrangeiro encontramos de que seria quase impossível Espanha re-
publicações contrárias, promovidas pela cuperar a sua grandeza. Tanto nas instru-
propaganda castelhana mesmo antes de ções aos embaixadores como através de

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ações de propaganda na divulgação dos presença de um poder central mais pró-


seus direitos dinásticos, Filipe IV tudo fez ximo. Eventualmente, alguns poderiam
para tentar impedir que houvesse apoios sentir frustradas as suas expectativas, pelo
à causa portuguesa e para divulgar as facto de D. João IV ter mantido a maior
conspirações ou as simples dissidências parte das nomeações anteriores. Outros,
ocorridas na corte de Lisboa. Durante o ainda, viam prejudicados os seus negó-
Congresso de Vestefália (1644-1648), os cios. São estas algumas das razões com
plenipotenciários espanhóis receberam as quais se tenta explicar as conspirações
ordens para se manterem inflexíveis na contra D. João IV, que envolveram mem-
recusa em reconhecer os ministros envia- bros do alto clero e da Inquisição, muito
dos por Portugal, que, sem salvo-conduto favorecidos pelos Monarcas espanhóis; da
espanhol, se limitaram a integrar o séqui- grande nobreza, receosa de se ver subme-
to dos Franceses ou dos Suecos. A mesma tida a um dos seus, o duque de Bragança;
intransigência se repetirá nos Pirenéus, e da endinheirada minoria de mercado-
quando se negociou a paz franco-espa- res ligada ao tráfego com a Espanha, so-
nhola (1659). Nessa ocasião, circulou um bretudo asentistas cristãos-novos.
manifesto em que Filipe IV proclamava Poucos dias depois da aclamação de
vingança pelo mal que lhe tinham feito: D.  João IV e do juramento do príncipe
o reino de Portugal tinha-lhe sido “usur- herdeiro, D. Teodósio (Cortes de Lisboa,
pado” e o “pretendido rei de Portugal” 28 de janeiro de 1641), vários fidalgos,
tinha-se “tirado” da sua obediência para nomeadamente o conde de Tarouca e os
se fazer soberano (British Library, Ma- filhos do marquês de Montalvão, receosos
nuscripts, Add. 15194, fl. 19). Depois da de perderem os seus bens na eventualida-
morte do Monarca (1665), o Governo de de de uma derrota do duque de Bragan-
Madrid não deixou de fomentar intrigas ça, fugiram para Espanha, juntando-se aos
e conspirações, mesmo após a assinatura Portugueses que aí permaneceram após a
da paz luso-espanhola (1668). Restauração. Foram recebidos pelas auto-
Em Portugal, a Restauração não foi ridades espanholas com grande pompa às
aceite de forma unânime, e os seus opo- portas de Madrid. O povo aplaudiu-os nas
sitores não tardaram a manifestar o seu ruas e Filipe IV premiou-os com genero-
descontentamento, exilando-se em Ma- sas (e calculistas) mercês. Em Portugal, a
drid ou conspirando contra o novo poder notícia provocou fortes tumultos popula-
em Lisboa. Algumas hipóteses explicati- res. Chegou a temer-se uma guerra civil,
vas podem ser ponderadas, relacionando que só traria vantagens aos Espanhóis. Pu-
a mudança política com a situação pri- blicaram-se editais a moderar os ânimos e
vilegiada de que determinadas camadas os fugitivos foram sentenciados à revelia,
sociais gozavam no seio do Império Espa- de acordo com as sanções estabelecidas
nhol. Mas não são de excluir as posições pelo alvará de 19 de dezembro de 1640,
individuais e as rivalidades particulares. que impunha pena de morte e confis-
Fazia parte da diplomacia espanhola ga- co de bens a quem passasse sem licença
rantir os foros regionais; porém, ao favo- para Castela. Os cúmplices, em Portugal,
recer o regionalismo e as autoridades lo- foram todos presos. Em abril foram en-
cais, Espanha habituara grande número carcerados nove partidários do Rei espa-
de senhores a uma quase perpétua falta nhol que tentavam fugir. Alguns militares
de assistência régia. A larga autonomia de e servidores do paço foram desterrados
que gozavam entrava em choque com a por suspeita de conspiração. Nos Açores,

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Antirrestauracionismo 1663

Angra levou mais de um ano a capitular. Pedro de Baeça, irmão do asentista Jorge
No Norte de África, Ceuta permaneceu da Paz, que operava em Madrid, outros
unida a Espanha e o conde de Sarzedas, negociantes de grosso trato (Diogo Ro-
governador de Tânger, não manifestou drigo de Lisboa e Simão de Sousa Ser-
obediência à nova dinastia portuguesa. rão), funcionários municipais, oficiais da
Acabou por ser deposto pelos moradores, corte e magistrados. O plano para matar
em finais de 1643. Contudo, foi posterior- o Rei e restituir o reino a Castela era vas-
mente perdoado por D. João IV. to e abrangia gente de vários quadrantes
A mais significativa de todas as conjuras sociais. A ramificação da conspiração che-
contra o Rei restaurador foi a de 1641, gou ao contador da Fazenda, Luís Pereira
que ainda não está totalmente esclareci- de Barros. Este era próximo de Miguel de
da. Uma exaustiva e rigorosa investigação Vasconcelos, mas acabava de sair absolvi-
sobre fontes primárias mostra que o ale- do da prisão, pelo que foi o primeiro a
gado envolvimento do marquês de Vila delatar a conspiração, cujos rumores al-
Real e do duque de Caminha, seu filho, cançaram também o conde de Vimioso,
é, no mínimo, controverso: por falta de recém-chegado da campanha do Alen-
móbil dos acusados; por haver uma de- tejo. Todos os acusados foram presos,
manda judicial ainda não resolvida sobre nomeadamente Matias de Albuquerque,
a sucessão que pendia na casa Vila Real mais tarde perdoado, assim como muitos
(a passagem para Castela invalidaria as outros. D. João IV andava num “labirinto
pretensões do marquês face ao rival de ideias”, pelo que, segundo o conde da
D. Carlos de Noronha); e por haver moti- Ericeira, “era-lhe necessário não se fiar
vos de interesse político (a casa Vila Real,
com a Restauração, tornava-se na segun- Rei D. João IV (1604-1656).
da maior do reino).
O conde da Ericeira atribui a conce-
ção da trama ao arcebispo de Braga, que,
“querendo pagar a El-Rei Católico os
benefícios que havia recebido daquela
coroa” (ERICEIRA, 1945, I, 297), teria
explorado os ressentimentos do presu-
mível representante de uma das casas
mais ilustres e mais antigas da monar-
quia. O marquês sentir-se-ia ultrapassado
nas honras por indivíduos muito abaixo
da sua grandeza e queixara-se da ingra-
tidão de D. João IV, o que teria atraído
alguns cúmplices: D. Miguel de Noronha,
2.º duque de Caminha – o menos culpa-
do de todos, pois, mesmo na época, de-
monstrou ser contrário à conjura, não
a tendo denunciado por mero respeito
filial –, o conde de Armamar, sobrinho
do arcebispo, outros fidalgos da primei-
ra nobreza do reino, o inquisidor geral,
D. Francisco de Castro, o rico mercador

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1664 Antirrestauracionismo

de todos, nem mostrar que desconfiava fé de 1 de dezembro de 1652, realizado


de alguns dos seus vassalos, atenção de na presença do Soberano. O inquisidor
que muitas vezes lhe resultava seguir o geral era ainda D. Francisco de Castro, a
parecer dos indiscretos por confidentes, quem D. João IV perdoara o envolvimen-
outras dos mal afetos por entendidos” to na conspiração de 1641.
(Id., Ibid., 293). Por alegado crime de lesa-majestade
Alterou-se o povo e de nada serviram foi também decapitado o secretário de
os pedidos de clemência e protestos de fi- Estado Francisco de Lucena (1643), em-
delidade face à necessidade de afirmação bora sempre se tenha proclamado ino-
do poder por parte do Monarca. Aque- cente. Acusavam-no de ser responsável
les que os juízes consideraram como os pelo cativeiro do infante D. Duarte (en-
principais culpados foram sentenciados à tregue pelo Imperador aos Espanhóis)
morte e ao confisco de bens pelo “atrocí- e de manter correspondência secreta
ssimo crime de lesa-majestade de primei- com Castela (tentava a libertação do fi-
ra cabeça” (Id., Ibid., 317). As execuções lho, preso em Espanha). Foi também
realizaram-se no Rossio a 28 de agosto executado o escrivão Domingos Leite
de 1641: quatro decapitações (marquês Pereira (1647), acusado de tentar assas-
de Vila Real, duque de Caminha, conde sinar o Rei a soldo dos Espanhóis. Ha-
de Armamar e D. Agostinho Manuel) e via suspeitas de que um nome da Casa
quatro enforcamentos (Pedro de Baeça, de Aveiro (o marquês de Porto Seguro,
Belchior Correia da Franca, Diogo de Bri- filho do 3.º duque), juntamente com o
to Nabo e Manuel Valente). O inquisidor conde de Figueiró, estivesse ligado a esta
geral esteve preso na torre de Belém, sen- tentativa de regicídio arquitetado para o
do solto em 1643. O arcebispo de Braga, dia da procissão do Corpo de Deus. Em-
encarcerado na torre de S. Julião, acabou bora a suspeita não tivesse passado disso
por morrer aí. A importante casa de Vila mesmo, a jovem dinastia brigantina não
Real foi incorporada na Coroa, dando se dava por tranquila face às grandes ca-
origem à casa do Infantado. sas senhoriais, que, tal como a de Bra-
Segundo D. Francisco Manuel de Melo, gança, também descendiam dos reis de
ao saber do processo e da execução, Fili- Portugal. Se, por um lado, havia indícios
pe IV teria exclamado: “Agora sim, agora de resistência ao novo regime por par-
é que o duque de Bragança se fez rei!” te da duquesa de Aveiro, que evitou que
(SILVA, 1869, iv, 406). A propaganda os filhos participassem na aclamação de
espanhola considerou-os heróis, “cuyo D. João IV, por outro, não será de excluir
sangre dá testimonio de su fidelidade a hipótese de que ao Rei interessava tê­
[cujo sangue dá testemunho da sua fide- ‑los do seu lado. Nas Cortes de 1653,
lidade]” (LOBKOWITZ, 1642, “Al que tendo já falecido D. Teodósio, chegou
leyere”, [8, 9]). O contraditório surgiu a propor-se uma união entre as duas ca-
quase de imediato (Anticaramuel, 1643), sas através do casamento do 4.º  duque,
pela pena de um homem de negócios D. Raimundo de Lencastre, com D. Ca-
afeiçoado à causa portuguesa, o cristão­ tarina de Bragança, mas a ideia não teve
‑novo Manuel Fernandes de Vila-Real. seguimento. D. Raimundo acabou por
Contudo, a sua dedicação a D. João  IV deixar Portugal (1659) durante a re-
não evitou que tivesse sido preso pela In- gência de D. Luísa de Gusmão, dada a
quisição, sob a acusação de judaizar. Saiu recusa sistemática da Rainha em conce-
condenado à pena de morte no auto de der licença para o casamento, tanto ao

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Antirrestauracionismo 1665

próprio duque como aos seus irmãos. baixador e um antimanifesto – em caste-


Efetivamente, tal atitude punha em peri- lhano e francês – que o acusava de agir
go a continuidade da casa, pois, sem o ne- como espião a soldo de Filipe IV.
cessário consentimento régio, nenhuma Mesmo depois de assinada a paz com
ligação matrimonial seria legítima. Em Espanha, os atentados, as intrigas e as
Espanha, recebeu vários títulos, cargos e conspirações não deixaram de constituir
terras (duque de Maqueda, marquês de um perigo para a segurança da Restau-
Montemaior e marquês de Elche, adian- ração. O acontecimento mais grave terá
tado-mor do reino de Granada e alcaide­ sido uma conjura contra o príncipe re-
‑mor de Toledo) e foi nomeado general gente e futuro D. Pedro II, descoberta
da Armada, tendo combatido nas costas em finais de setembro de 1673. O plano
de Portugal. Considerado desertor, foi era vasto e complexo, embora não esteja
decapitado em estátua sob acusação de totalmente esclarecido. Pretenderiam o
crime de lesa-majestade, traição, rebe- apoio de Inglaterra para libertar D. Afon-
lião e conspiração. A Casa de Aveiro foi so VI, preso em Angra; em troca, teriam
incorporada na Coroa (1663), embora prometido a cedência das ilhas ou outras
mais tarde tivesse sido devolvida a D. Pe- terras na Índia, em África e na Améri-
dro de Lencastre (5.º duque e inquisidor ca. A  ideia seria casar o Rei de Portugal
geral entre 1671 e 1673), para ser defini- com a Rainha viúva de Castela e D. João
tivamente extinta em 1759, na sequência José de Áustria com a filha bastarda de
da acusação ao 8.º duque de envolvimen- D. João IV (a infanta D. Maria, recolhida
to no atentado a D. José. no mosteiro de Carnide). Mas parece que
A regência de D. Luísa de Gusmão tam-
bém ficou marcada por outro episódio Rei Filipe IV (1605-1665).
de traição, protagonizado desta vez por
D. Fernão Teles de Faro, embaixador ex-
traordinário nos Estados Gerais das Pro-
víncias Unidas com instruções para con-
cluir as negociações de paz após a derrota
e posterior retirada dos Holandeses do
Brasil. Abandonou a embaixada e passou
para o lado espanhol quando se tornou
claro que a questão portuguesa não seria
incluída no Congresso dos Pirenéus. Fili-
pe IV concedeu-lhe o título de conde de
Arada, na Flandres. Acusado de crime de
lesa-majestade, foi condenado à morte vil
por garrote, ao confisco de bens e à de-
claração de infâmia para os seus descen-
dentes. A execução foi feita em estátua e
a representação do seu corpo foi puxada
por cavalos e arrastada pelas ruas (agosto
de 1659). O conde da Ericeira dá-o como
agente duplo, e na Europa circulou – em
castelhano, francês e neerlandês – um
manifesto justificativo da atitude do em-

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1666 Antirrestauracionismo

os conspiradores não se entendiam. Uma entendimento com os vizinhos, tal como


das fações quereria a morte da família se verificou nos últimos reinados de Avis.
de D. Pedro, outra contentava-se com a Depois de um período de interrupção
prisão e entrega dos príncipes e da sua das relações diplomáticas entre os dois
filha ao Governo de Madrid. Descoberta Estados peninsulares, devido ao envolvi-
a trama, que contava com o apoio do em- mento de Portugal, ao lado das potências
baixador espanhol, foram presos cerca de marítimas, na Guerra de Sucessão de Es-
40 conjurados, entre os quais se contavam panha, estabeleceu-se uma nova aliança
fidalgos, letrados e gente de menor condi- dinástica (1729), selada pelo duplo casa-
ção social. Os principais cabecilhas foram mento dos príncipes portugueses (D. José
condenados à morte e executados publica- e D.  Maria Bárbara) com os infantes de
mente no Rossio em maio de 1674: deca- Espanha (D. Mariana Vitória e D. Fernan-
pitação para os fidalgos Fernão de Masca- do). D. Maria I (1785) imitou a opção do
renhas, João de Melo, Gaspar Maldonado avô (casamentos de D. João com D. Car-
e seu filho; enforcamento para António lota Joaquina e de D. Mariana Vitória
Parajos Cachopim, José Pessanha Pereira com D. Gabriel). Também D. João VI foi
e Diogo de Lemos; e decapitação em efí- a Espanha buscar casamento para três das
gie para Francisco de Mendonça Furtado, suas filhas, uma delas (D. Maria Isabel)
que conseguiu fugir para Espanha, onde com o próprio Rei Fernando VII (1816).
foi agraciado com o título de marquês Os movimentos ideológicos e as altera-
de Frexenal. Contudo, como judiciosa- ções políticas internacionais de finais do
mente observou Alexandre da Paixão séc. xviii despertam novamente a ideia
(1662­‑1680), “na forma da culpa não há de uma união peninsular, que depois se
certeza, porque tudo são inferências de dividiu em duas correntes bem distintas:
algumas circunstâncias, em que redunda uma, na linha dos interesses dinásticos
o segredo que se observa nos ministros” tradicionais; outra, virada para um ideá-
(PAIXÃO, 1939, 101-102). rio progressista e republicano. No pri-
Poderemos ainda encarar como oposi- meiro caso, temos: a proposta de D. Car-
ção à Restauração a ideia de casar a única lota Joaquina como regente de Espanha,
filha de D. Pedro, jurada princesa her- apresentada nas Cortes de Cádis (1812);
deira (Cortes de Lisboa, 1674), com Car- o conceito de uma nova união com D. Pe-
los II de Espanha? Os argumentos foram dro (IV), que junta três Coroas (Portugal,
pouco convincentes e, além do núncio Brasil e Espanha); e a sugestão de um ca-
quase não granjearam adeptos na corte samento entre os herdeiros de Espanha
de Lisboa. Embora, após a paz de 1668, e de Portugal (D. Isabel II e D. Pedro V).
os Espanhóis tenham levado mais de 15 Na segunda metade do séc. xix, a ideia
anos a retirar as armas de Portugal da de uma união de tipo monárquico era
sua heráldica, podemos considerar que, apoiada pelos liberais progressistas, que
à medida que a nova dinastia se foi con- desejavam realizar a integração ibérica
solidando e que as relações com o país sob a monarquia liberal constitucional.
vizinho se estabilizaram, os movimentos Do ponto de vista do liberalismo, en-
conspirativos a favor de uma união po- contramos soluções de tipo federalista,
lítica abrandaram ou chegaram mesmo nomeadamente no Aviso al Pueblo Es-
a desaparecer. Talvez esta segurança ex- pañol (1792), do afrancesado Marchena,
plique a tendência da diplomacia joani- em alguns dos jornais publicados em
na para retomar a prática de um bom Londres, como em O Campeão Português,

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Antirrestauracionismo 1667

e em certas organizações secretas penin- que fosse responsável por fazer a propa-
sulares. Também o círculo do Club Ibéri- ganda desta ideia: a Ibéria.
co de Paris, dos Portugueses e Espanhóis A união deveria ser pacífica. O ponto de
emigrados, influenciado pela revolução partida do catalão Sinibaldo de Más era o
de 1848, advogava uma federação ibéri- conceito de progresso, nomeadamente o
ca republicana. A ideia de uma ligação progresso material das comunicações, que
entre Portugal e Espanha apareceu na o fontismo também defendia, pretenden-
Revista Militar espanhola (abril de 1849) do ligar o progressismo português ao seu
e foi transcrita na sua congénere portu- congénere espanhol. Achava ele que os
guesa em julho desse ano. O republica- pequenos Estados se deviam fundir com
no Henriques Nogueira defendeu a fe- as grandes nações com quem tinham cer-
deração dos povos da península nos seus tas afinidades de origem, raça, linguagem
Estudos sobre a Reforma em Portugal (1850) e tradições históricas, no sentido de se
e na Revista del Médio Dia advogava a mes- evoluir para a constituição de uma verda-
ma proposta. Em 1852, apareceu a pri- deira humanidade. Os jornais O Progresso
meira edição de um panfleto da autoria (1854-56), O Leiriense (1854) e a Revista
de Sinibaldo de Más, Ibéria, acompanha- Peninsular (1855-56) apresentaram com
da de um prefácio do jornalista e lente insistência esse ideário em artigos assina-
da Escola Politécnica de Lisboa, José dos por José de Torres, Henriques Noguei-
Maria Latino Coelho. Defendiam o prin- ra, Latino Coelho, Lopes de Mendonça e
cípio da superioridade de organizações Amorim Viana. Fundada por Carlos José
políticas mais vastas do que as nações, o Caldeira (que conheceu Sinibaldo de Más
que traria a redução dos encargos dos em Macau e era proprietário de uma tipo-
povos, e, consequentemente, a diminui- grafia), a Revista Peninsular pretendia con-
ção dos impostos. Supondo ser difícil tribuir para um conhecimento mútuo de
conseguir para toda a Europa uma situa- ambos os países, embora alguns dos cola-
ção unificada, a que se atribuía grandes boradores não manifestassem grande sim-
vantagens, propunha-se que fosse a pe- patia pela ideia ibérica (como era o caso
nínsula Ibérica a aproximar-se dessa de- de Alexandre Herculano).
sejável unidade, pois tinha mais condi- A polémica não tardou. O órgão migue-
ções do que a própria Itália para formar lista A Nação reagiu violentamente contra
uma só nação. A separação de Portugal esse tipo de propostas, assim como o polí-
e Espanha (1640) era vista como uma tico progressista e católico José Maria Ca-
verdadeira calamidade, e como o acon- sal Ribeiro e o jornal A Imprensa, de que
tecimento de onde provinha um “reino Rebelo da Silva era redator principal. Este
raquítico rodeado de grandes nações”, não só atacou energicamente a ideia em
que “sem grandes forças contra o golpe si mesma como chamou a atenção para
de mão que a Espanha intente e por con- a necessidade de a analisar também em
seguinte sempre temeroso dela, tem tido termos históricos, concluindo por uma in-
que lançar-se nos braços da Inglaterra” contestável vivência nacional anti-iberista.
(SANS, 1853, 12). As inúmeras razões de A sua História de Portugal nos Séculos XVII
ordem económica invocadas para a liga- e XVIII (1859-71), patrocinada por D. Pe-
ção de Portugal a Espanha concluíam dro V, correspondia a uma necessidade
que seria ótimo para um Português fa- cultural e pública. A experiência desses
zer parte de uma nação seis vezes maior. séculos não devia ser omitida da memó-
A proposta era formar uma sociedade ria nacional sob o pretexto de o regime

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1668 Antirrestauracionismo

político ser absolutista. Apresenta-se a lítica de cooperação despida de esperan-


perda da independência não como uma ças recíprocas de absorção pelo processo
solução, mas sim como um fenómeno de das ultrapassadas alianças matrimoniais
decadência e de ausência de elites compe- dinásticas.
tentes, enquanto a Restauração é paten- António Sardinha propôs que se subs-
teada como uma temeridade feliz. tituíssem os conceitos negativistas através
Igualmente reagindo às ideias iberis- dos quais se apreciava a história dos dois
tas, formou-se a Associação Nacional países peninsulares, defendendo o hispa-
1.º de Dezembro de 1640, com estatutos nismo como fórmula de aproximação de
aprovados pelo Ministério do Reino a duas pátrias unidas pelo “sentido exato
1  de dezembro de 1869. Em manifesto, da sua admirável alma criadora” (SARDI-
a comissão fundadora (1861) defendia NHA, 1924, 320). Citando um dos artigos
a comemoração anual do 1.º de Dezem- de Oliveira Martins em O Paíz – “união de
bro e a construção de um monumento pensamento e de ação, independência de
em homenagem aos restauradores. Inau- governo; eis a nosso ver, a fórmula atual,
gurado em 1886, e erguido graças a uma sensata e prática de iberismo” –, conside-
subscrição pública, a obra testemunha a rava que essa ideia coincidia com o seu
rejeição nacional das ideias ditas antirres- próprio conceito de “peninsularismo”,
tauracionistas. Data dessa época o hino que defendia uma aliança, mas nunca
1640 ou a Restauração de Portugal, de Eugé- uma incorporação (Id., Ibid., 77). Con-
nio R. Monteiro de Almeida, que sugere cordou com a leitura proposta dos Lu-
já uma relação direta entre o termo e a si- síadas – o “testamento de Espanha” (Id.,
tuação concreta e decisiva, havendo uma Ibid., XIV) –, advertindo que “espanha”
colagem da palavra a uma data específica. derivava do romano “hispânia”, que en-
Oliveira Martins considerou a come- tão traduzia não apenas uma significação
moração do 1.º de Dezembro uma “in- geográfica mas também um estado de
venção”, um “espetáculo ridículo da consciência coletiva. Encarava uma re-
fanfarronice mais disparatada”, e um ciprocidade de responsabilidades – “se
pretexto para “discursos apopléticos de existiu um perigo espanhol para Portugal,
uma retórica plebeia” (MARTINS, 1979, existiu igualmente para Castela um peri-
297). Na sua História da Civilização Ibérica go português” (Id., Ibid., VII) – devido ao
(1879) tinha ignorado as diferenças cul- sonho de grandeza imperialista de ambas
turais, encontrando nos Lusíadas “clara e as nações. Porém, considerava que os Es-
perfeitamente definida a essência do gé- panhóis eram os mais prejudicados com
nio peninsular”. A tese fundamental é a a Restauração. Não puderam resistir à
de que “a constituição de Espanha é toda reação europeia contra a política tradi-
de espanhóis […]. Um só corpo anima- cional dos Áustrias, enquanto Portugal,
do por um mesmo espírito”, cuja deca- sem poder naval que ajudasse a manter
dência se pode resumir em três palavras a integridade, já bastante abalada, do seu
“individualismo, jesuitismo e conquistas” vasto Império, se viu obrigado a nego-
(MARTINS, 1984, 247), conforme Antero ciar novas alianças adversas “ao decoro e
de Quental defendeu em Causas da Deca- à conveniência da Península” (Id., Ibid.,
dência dos Povos Peninsulares (1871). Mas, 66). Negou o iberismo  – “aventesma in-
no fundo, o que Oliveira Martins advoga- consistente […] saído dos conventícu-
va para as duas Monarquias peninsulares los maçónicos da Revolução” (Id., Ibid.,
era o regresso à tradição de Avis: uma po- 64)  –  como doutrina unitarista a cada

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Antirrestauracionismo 1669

passo desmentida pela geografia e pela (lei n.º 8/2016, de 1 de abril). Celebrar a
história, e a ideologia arcaica que impos- Restauração será uma forma simbólica de
sibilitava a aproximação de Portugal e afirmar a nacionalidade, mas a sua capa-
Espanha, condição imprescindível para cidade mobilizadora fica em aberto.
o seu desejado ressurgimento. A alterna-
tiva seria o peninsularismo – expressão Bibliog.: manuscrita: British Library, Ma-
de “solidariedade afetuosa […], uma in- nuscripts, Add. 15194, 4 nov. 1658, fl. 19;
dicação constante da mesma Geografia e impressa: ALMEIDA, Fortunato de, História
da mesma História” (Id., Ibid., 23) –, para de Portugal, Coimbra, Imprensa Académica,
que através de uma aliança peninsular se 1899; Id., Curso de História de Portugal, 6.ª ed.,
pudesse restaurar o sentido perdido da Coimbra, F. de Almeida, 1919; Id., História
de Portugal, 6 vols., Coimbra, F. de Almeida,
antiga unidade hispânica.
1922-29; ALMEIDA, Gregório de, Restauração
Encontram-se ideias iberistas e federa-
de Portugal Prodigiosa, Lisboa, ed. António Al-
listas em pensadores portugueses (Teófi- varez, 1643; ÁLVAREZ, Fernando Bouza, Por-
lo Braga, Sampaio Bruno e, pouco mais tugal no Tempo dos Filipes. Política, Cultura, Repre-
tarde, Ana de Castro Osório) e espanhóis sentações (1580-1668), Lisboa, Cosmos, 2000;
(Miguel de Unamuno, Ignasi Ribera i ANDRADE, Luís Oliveira, e TORGAL, Luís
Rovira e Joan Maragall). Mais recente- Reis, Feriados em Portugal. Tempos de Memória e
mente, estes ideais aparecem em Miguel de Sociabilidade, Coimbra, Imprensa da Univer-
sidade, 2012; AZEVEDO, J. Lúcio de, Épocas
Torga, Fernando Lopes-Graça e José Sa-
de Portugal Económico, Lisboa, Livraria Clássica,
ramago. Mas existirá nestes pensadores a 1929; BLUTEAU, Rafael, Vocabulário Portuguez
noção de antirrestauracionismo? A per- e Latino, 10 vols., Coimbra, Colégio das Artes
gunta a fazer às novas gerações é sobre a da Companhia de Jesus, 1712-28; BOCAGE,
Restauração como conceito histórico. Co- Carlos Roma du, Subsídios para o Estudo das Re-
nhecem-no? Que sentido lhe atribuem? lações Exteriores de Portugal em Seguida à Restaura-
O que representa a história da pátria na ção. 1640-1649, Lisboa, Academia das Scien-
cias de Lisboa, 1916; BRANCO, Francisco R.
sua formação humana e nas suas opções
de Oliveira Castello, Os Homens de 1640 ou a
como cidadãos? A jovem República tinha Restauração de Portugal, Lisboa, Typ. da Biblio-
proclamado a data da Restauração como theca Universal, 1879; BRAZÃO, Eduardo,
feriado nacional, determinando que fos- A Restauração: Relações Diplomáticas de Portugal
se solenizado como Festa da Bandeira Na- de 1640 a 1668, Lisboa, Bertrand, 1939; CA-
cional (Diário do Governo, 24 nov. 1910). TROGA, Fernando, “Nacionalistas e iberis-
O facto de ter sido extinto praticamen- tas”, in MATTOSO, José (dir.), História de Por-
te um século depois (lei n.º 23/2012, de tugal, vol. v, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993;
CHAGAS, Manuel Pinheiro, História Alegre de
25 de junho, art. 234), juntamente com
Portugal, 4.ª ed., Lisboa, Imprensa Literária
outros três feriados, evidencia a reduzida Universal, 1880; Id., História de Portugal: Popular
importância que o poder político atri- e Ilustrada, 3.ª ed., 14 vols., Lisboa, Empreza da
bui ao significado nacional da data. Este Historia de Portugal, 1899-1909; COSTA, Leo-
acontecimento levou a vários protestos, nor Freire, e CUNHA, Mafalda Soares, D. João
nomeadamente da Sociedade Histórica IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; ERICEI-
da Independência de Portugal, abaixo RA, Conde da, História de Portugal Restaurado,
4  vols., Porto, Civilização, 1945; FARIA, Ana
-assinados e petições, bem como à for-
M. H. Leal de, Duarte Ribeiro de Macedo. Um Di-
mação do Movimento 1.º de Dezembro, plomata Moderno. 1618-1680, Lisboa, Ministério
liderado por José Ribeiro e Castro, todos dos Negócios Estrangeiros, 2005; FERRÃO,
empenhados na reposição da festa pa- António, A Restauração de 1640: como Se Perdeu
triótica, como de facto veio a acontecer e Se Reconquistou a Independência (1580-1668),

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1670 Antirrestauracionismo

Lisboa, Tip. Empresa Diário de Notícias, 1919; Retiré de la Haye, et Pris le Parti d’Espagne. Tra-
FRANCO, José Eduardo, e CALAFATE, Pedro duits de la Langue Castillane en François. 1659,
(dirs.), Obra Completa Padre António Vieira, t.  i, Cologne, 6 jun. 1659; A Restauração de Portugal
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BARNE, Manuel Fraga, Don Diego de Saavedra y Nacional, 1868; RIBEIRO, João Pinto, Uzur-
Fajardo y la Diplomacia de Su Época, Madrid, Ar- pação, Retenção e Restauração de Portugal, Lis-
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Caramuel, Philippus Prudens Caroli V. Imp. Filius Id., Anatomia delli Regni di Spagna nella Quale
Lusitaniae Algarbiae, Indiae, Brasiliae Legitimus Rex Si Dimostra l´Origine del Dominio la Dilatatione
Demonstratus, Antuerpiae, Officina Plantiniana delli Stati la Sucessione delle Linee de Suoire con
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Pretendo Justificar à Don Fernando Tellez de Faro,
nuel Fernandes de,  Anticaramuel, o Defença del
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Faro, Ambassadeur Extraordinaire de Portugal au- D. Afonso VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006.
pres les Estats Generaux des Provinces Unies S’Est Ana Leal de Faria

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Antirromantismo 1671

Antirromantismo tornou, não sofre dúvida, um modelo


prodigioso (que no plano literário, em Le
Rouge et le Noir, um Julien Sorel tentará
decalcar, entre outros) de quanto pode
atingir a ambição infinita num indivíduo
pautado pelo selo da genialidade.
Como se percebe sem custo, os acon-

P eríodo literário não pouco comple-


xo, porque assaz heterogéneo, o ro-
mantismo, cujas manifestações estético-li-
tecimentos sociopolíticos por que pas-
sou a Europa em finais de Oitocentos
contribuíram decisivamente para que a
terárias e ideológico-culturais remontam literatura clássica (intelectual, racional,
ao séc. xviii, despontou e difundiu-se de equilibrada) sofresse uma crise letal. Os
modo diverso pela Europa. Até porque, preceitos advogados pelo cânone clássico
como muito bem assinala Umberto Eco, não se coadunam, com efeito, mais com
“‘Romantismo’ é um termo que não de- o cataclismo de episódios que varrem a
signa tanto um período histórico ou um Europa e que são indicativos de uma or-
movimento artístico preciso, mas antes dem nova desajustada da razão e de um
um conjunto de caracteres, de atitudes e entendimento mecanicista da realidade
de sentimentos, cujas peculiaridades resi- e das coisas. São ilustrativos de uma de-
dem na sua natureza específica e, sobre- clarada rejeição, como diria Vítor Manuel
tudo, nas suas relações originais” (ECO, de Aguiar e Silva, “de uma conceção bur-
2003, 299). guesa, capitalista, utilitarista e instrumen-
Em todo o caso, existem evidentemen- tal da vida económica e da organização
te fatores de natureza socio-histórica es- social, bem como da conceção a-históri-
senciais para se perceber a irrupção e a ca, atemporal e atópica da cultura e das
disseminação do imaginário romântico artes”. Ou seja: “o Romantismo elabora
nas suas diversas latitudes e nos seus múl- [em contrapartida] uma conceção orga-
tiplos registos. É seguramente o caso, no nicista do mundo, da natureza e da so-
plano político-militar, das guerras que ciedade, enraizada em ideias filosóficas e
se seguiram à proclamação dos ideais religiosas de matriz platónica e neoplató-
da Revolução Francesa. Após o Império, nica, inspirada em formas de religiosida-
com a ascensão e a queda de Bonaparte, de panteística e em ideais mágico-religio-
que, em nome de uma pretensa unidade sos” (SILVA, 1997, 490).
republicana, devastou a Europa, a rutu- Como quer que seja, é sempre de no-
ra com o passado afigurou-se inevitável. tar que embora a mutação de mentali-
E isto, logo à partida, porque, inspirados dades conducente ao romantismo não se
na filosofia das Luzes, os jacobinos não fizesse, como é claro, sem decisivas mu-
pestanejaram na hora de ratificarem, em danças históricas e sociopolíticas, como
nome da liberdade, o óbito do Antigo foi o caso das guerras napoleónicas, não
Regime. Napoleão, é certo, reprimiu essa é menos seguro o facto de a singularida-
mesma liberdade; porém, em compensa- de (histórico-cultural) de cada nação ter
ção, não deixou de conferir forma real a feito com que o romantismo fosse absor-
muitas das pretensões enunciadas pela vido de um modo particular nas suas di-
Revolução; mais: concretizou um trajeto versas modalidades estético-expressivas e
pessoal fulgurante, aquele pelo qual, bem ideológico-doutrinárias. O que diz bem
ao gosto do individualismo romântico, se do romantismo enquanto manifestação

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1672 Antirromantismo

avessa a qualquer horizonte de homoge- ênfase no sentimento de liberdade, refor-


neidade cultural. çado pela condição insular do território,
Assim, sacrificada por impiedosas guer- sem esquecer a forte ligação dos Ingleses
ras religiosas e desprovida de uma cultu- às tradições, foram tudo condicionantes
ra clássica tão acentuada como noutras decisivas para a implementação de um ní-
coordenadas sociogeográficas, pode di- tido espírito romântico.
zer-se que a Alemanha, até certo ponto, Em França, a novidade romântica, pré­
não foi tão sensível, ao inverso do que ‑anunciada por uma primeira geração de
sucedeu noutras paragens, à formação re- sensíveis e melancólicos (Marivaux, Des-
nascentista. Em contrapartida, é de refe- touches, La Chaussée e, na segunda meta-
rir o facto nada despiciendo de os ideais de do séc. xvii, Diderot, Abbé Prévost e o
da Revolução Francesa, em virtude do incontornável Rousseau), cuja linguagem
antinapoleonismo germânico, não se te- da sensiblerie será prolongada (tal como a
rem sedimentado com particular ênfase evocação de certos quadros e topoi) pela
no espírito alemão. Todavia, isso não sig- literatura romântica, fez-se igualmente
nifica que o romantismo não se tenha in- sentir com vigor. E não é possível negar
cisivamente incrustado na pátria de Goe- que, com o Génie du Christianisme, de Cha-
the, como é evidente. Não apenas por teaubriand, se operará, em definitivo, o
o país ter escapado aos espartilhos mais triunfo do romantismo a partir de 1802.
cerrados do formalismo classicista, mas Quanto a Portugal, o romantismo, na
também (e talvez sobretudo) pelo forte sua génese, não é explicável fora da órbi-
sentimento de liberdade, em diapasão ta das lutas civis envolvendo miguelistas
com o sentimento de exaltação da gran- e liberais, desde logo por muitos partidá-
deza épica das origens, que se foi dissemi- rios de D. Pedro se terem visto forçados
nando. Antes da violenta explosão emo- ao exílio, o que possibilitou a dois deles,
cional dos jovens Stürmer und Dränger Alexandre Herculano e Almeida Garrett,
(“Tempestuosos e Impetuosos”), autores longe da pátria (em França e em Ingla-
como Herder, Lessing, Schiller, Haller, terra), lançarem as bases de uma nova
Klopstock, Gessner ou Novalis, com Hym- literatura: aquela pela qual, na senda
nes an die Nacht (1800), e, sem dúvida, o de escritores como W. Scott e Byron, se
mais conceituado de todos, Goethe, que privilegiaria doravante o nacional e o po-
no ano de 1774 publica Die Leiden der Jun- pular. Convirá não esquecer que já circu-
gen Werther, manifestavam já um notório lavam razoavelmente, antes disso, textos
repúdio pelo modelo clássico. pré-românticos e românticos de autores
No tocante à Inglaterra, boa porção do ingleses e alemães. Contudo, terá sido a
impacto do romantismo deveu-se indubi- publicação, em 1825, do poema Camões,
tavelmente aos autores do pré-romantis- de Garrett, o termo a quo da cronologia
mo inglês durante a chamada age of sensi- do romantismo no nosso país – embora
bility: Thomson, Richardson, Gray, Ossian se possa, em boa verdade, também fixar
e Young, este último, muito emblema- o início do romantismo em 1836, data
ticamente, com a obra The Complaint, or correspondente à publicação de A Voz
Night-Thoughts on Life, Death and Immortali- do Profeta, de Alexandre Herculano. Para
ty (1742-1745). O triunfo da burguesia so- além disso, fatores como a desaceleração
bre uma nobreza cada vez mais decaden- das lutas liberais, a reforma do teatro por-
te, mas igualmente o apego a mitologias tuguês empreendida por Garrett (com
nórdicas contrapostas às greco-latinas, a a qual surgiu um repertório dramático

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Antirromantismo 1673

nacional inspirado no drama romântico) Furst: “Aqui surge a distinção entre o sen-
e a proliferação de um assinalável con- timentalismo dos meados do séc. xviii
junto de revistas apostadas em propala- e aquele dos românticos: enquanto o
rem os novos valores estéticos (Panorama, primeiro foi largamente generalizado
Ramalhete, Revista Literária, Revista Estran- a um conjunto definido de respostas, o
geira, Universo Pitoresco, O Mosaico, Museu último foi – ou visa ser – essencialmente
Pitoresco, Revista Universal Lisbonense) con- pessoal, emergindo da experiência numa
tribuíram determinantemente para a rá- confissão autobiográfica” (FURST, 1972,
pida sedimentação do ideário romântico. 219). Ou, como diria Michel Meyer,
Como seria de esperar, o romantismo “o romantismo torna-se uma espécie de
não deixou de engendrar um homo ro- universalismo do sentimento, mas tam-
manticus. Homo romanticus configurado bém da afirmação de si; o que permitiu
substancialmente por um combate sem que se dissesse que Nietzsche, por exem-
tréguas, colocado sob a égide do anticlas- plo, devia vir do romantismo” (MEYER,
sicismo, pelo resgate de uma mentalida- 1994, 234). E tornar-se “universalismo do
de que podemos, com Isaiah Berlin, de- sentimento” é, acima de tudo, começar
finir assim: “o sofrimento era mais nobre por romper, em instância literária, com as
do que o prazer, o fracasso era preferível práticas literárias precedentes de matriz
ao sucesso mundano, que continha em si neoclássica – radicadas no culto da razão,
algo de vil e oportunista e que só podia do equilíbrio e da contenção, na discipli-
ser obtido à custa do atraiçoamento da na formal, tudo a bem de uma expressivi-
própria integridade, independência, da dade fundada na clareza e na ordenação;
chama interior, da visão ideal e íntima” como dizia, em fórmula lapidar, Boileau­
(BERLIN, 1999, 336). Consequentemen- ‑Despréaux: “O que se concebe bem
te, deu-se uma nova maneira de ver e de enuncia-se claramente e as palavras para
pensar o mundo, que já se não confundia dizê-lo aparecem facilmente” (BOILEAU­
com aquela através qual a salvação do ho- ‑DESPRÉAUX, 1815, 6).
mem assentaria na fé do conhecimento Não é possível, por isso, não aceitar o
racional e científico, na prosperidade co- romantismo enquanto poderosa estética
mercial e económica, e na tranquilidade ao serviço da expressão amorosa. Foi, não
social (nas instituições, nas leis, nos costu- se duvide, por intermédio dessa expres-
mes e nas conveniências). Para os român- são do amor que, historicamente, o ro-
ticos, tudo isto são critérios que aferem mantismo reprimiu o racionalismo ilumi-
limitações inaceitáveis. O esforço român- nista. Só que se trata, na verdade, de um
tico vai no sentido de harmonizar um amor abstrato e desmesurado, querendo
ideal que subscreve a repugnância pelo isto significar, tomando de empréstimo
emparcelamento social e a hipertrofia do palavras de Louis Maigron, o seguinte:
eu. O eu pelo qual se privilegiam a fluên- “Chegámos muito rapidamente ao dese-
cia da imaginação e da sensibilidade, e jo em si mesmo, independentemente de
que se caracteriza por pender para um qualquer objeto específico ao qual ele se
assombroso pessimismo, aspirando, in- pudesse aplicar” (MAIGRON, 1910, 263).
definível e vagamente, ao infinito. Numa Convém também esclarecer o facto de
palavra, exprime-se uma visão do mundo a cosmovisão romântica do amor se afi-
cuja força histórica se reconhece na ênfa- gurar indissociável de uma consciência
se dada à livre expressão dos sentimentos. (romântica) radicada na busca de uma
Como observa, com inteira justeza, Lilian unidade primordial com o absoluto.

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1674 Antirromantismo

Por outras palavras, amar não raro se


confunde com um irreprimível desejo
de infinito. Eis, nas Contemplations, as
palavras de Victor Hugo: “a existência
humana saída do enigma do nascimento
e conduzida ao enigma da morte. O es-
pírito que anda de luz em luz, deixando
atrás de si a juventude, o amor, a ilusão,
a luta, o desespero, e que para pertur-
bado à beira do infinito” (HUGO, 2002,
249). Lamartine, para quem o infinito
se confunde com Deus (veja-se “L’infini
des cieux”, Harmonies Poétiques et Religieu-
ses, de 1830), dirá numa das suas cartas:
“Quanto ao consolo retirado da ordem
humana, não se enuncia em mim. Nunca
depositei as minhas esperanças […] no
filho do homem. São demasiado ele- Victor Hugo (1802-1885).
vadas” (LAMARTINE, 1942, 29). Não
admira que Michel Brix, referindo-se à
geração romântica, escreva: “Um grande Em suma, ao arrepio do gosto pela in-
número de escritores difunde nas suas teligência e pelas abstrações e a despeito
obras conceções idealizadas do amor, da razão, os românticos, contrapondo-se
que apresentam genericamente como ideologicamente ao racionalismo ilumi-
um sentimento etéreo e que conduz ao nista, impuseram progressivamente a
céu” (BRIX, 2001, 391). O misticismo dominante temática de uma formulação
amoroso, sentimento e subjetividade do sentimental do amor até então inédita.
absoluto, mais não é, portanto, que a Aquela pela qual se concede prioridade
oportunidade de procurar a unidade su- ao pendor confessional através de um sen-
prema e infinita com Deus. Em Os Miserá- timentalismo sem empecilhos baseado na
veis, podemos ler: “Redução do Universo (sobre)excitação emotiva, sendo o amor
a uma só criatura, dilatação de uma só elevado à esfera de sublime transcenden-
criatura até Deus, eis definido o amor” tal. Eis o que nos diz sobre a mística amo-
(HUGO, 1999, 773). rosa romântica Javier Hernández-Pache-
No fundo, tanto as palavras de Lamar- co: “a reelaboração erótica do Idealismo,
tine como estas de Victor Hugo, tudo própria dos românticos, não implica uma
bem considerado, traduzem o chamado desvalorização empírica da subjetivida-
mal romântico: aquele mal definível por de transcendental, mas uma elevação do
se querer o inalcançável. Como observa, amor à magnitude transcendental, essen-
com acutilância, Fernando Pessoa em cial a toda a construção objetiva, acerca
Livro do Desassossego: “O mal romântico é de tudo o que contém de absoluto” (HER-
este: é querer a lua como se houvesse ma- NÁNDEZ‑PACHECO, 1995, 113).
neira de a obter” (PESSOA, 1982, 203). Em termos filosóficos, a oposição ro-
Ou, então, em registo lacaniano: “Tal não mântica às prescrições rasteiras do quo-
mais é do que o desejo de desejar” (LA- tidiano e à prisão que é a sensatez dos
CAN, 1986, 357). sofismas burgueses por via de um estado

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Antirromantismo 1675

ca, não é, já agora, impertinente notar


outra filiação de peso: o individualismo.
Trata-se de um aspeto basilar da consciên-
cia romântica, que Novalis claramente
contrasta com o pensamento do classicis-
mo (“Apenas interessa o indivíduo, por
isso, tudo o que é clássico não é indivi-
dual” [NOVALIS, 1981, 335]). Estampa-
do através de um notório egocentrismo,
vemos esse individualismo no prólogo do
manuscrito de Mémoires de Ma Vie (ma-
nuscrito que está na origem de Mémoires
d’Outre-Tombe), de Chateaubriand, quan-
do o escritor, reportando-se à razão que o
impeliu a escrever a obra, afirma perento-
riamente: “escrevo, principalmente, para
me tornar compreensível perante mim
Alphonse de Lamartine (1790-1869). próprio” (CHATEAUBRIAND, 1976, 12).
Como seria inevitável, depois de um
período áureo, situado em Portugal por
de espírito ansioso por um absoluto amo- altura de 1840, o romantismo entra em
roso colheu a sua base filosófica no idea- declínio. Tal como os primeiros românti-
lismo alemão despontado na déc. de 90 cos se entediavam com a retórica afetada
do séc. xviii. Destacam-se, neste contex- da literatura neoclássica, à qual respon-
to, especialmente Schelling, Schlegel e derão, e.g., com a representação da cul-
Fichte. O primeiro vem dizer que a na- tura ou do espírito popular, também a
tureza mantém uma analogia com o es- eloquência romântica sofreu um desgas-
pírito por intermédio da qual se afigura te fatal. Como? Digamos, para sintetizar,
possível pensar o infinito e que na arte se que não é possível dissociar a decadência
encontra o absoluto manifestado, o que do romantismo português da segunda ge-
quer dizer que a relação entre a nature- ração romântica, e isto por se ter tratado
za e o espírito se resolve através da esté- da geração composta por nomes como,
tica. O segundo, que a arte, resultado do entre outros, João de Lemos (1819-1889),
génio criador do artista, i.e., daquele ser Soares dos Passos (1826-1864), Tomás
único e predestinado que desempenha Ribeiro (1831-1901) e Gonçalves Dias
a elevada missão de propagar o infinito, (1823-1864). Isto é, autores apostados,
consubstancia uma síntese entre o finito cada um a seu modo, na radicalização
e o infinito. O terceiro propõe nada me- dos traços definidores do romantismo,
nos do que o conceito de eu absoluto ou o que desembocou, é legítimo dizê-lo,
puro, que os românticos apressadamente num certo empobrecimento da estética
confundiram com o eu individual e que romântica. Este período – melhor dizen-
trasladaram para o domínio amoroso. do: subperíodo –, por vezes apelidado
Mas, se o surto de infinito a que aspira de ultrarromantismo (designação pro-
todo o amante romântico se correlacio- posta por Teófilo Braga para dar conta
na indesmentivelmente com a influência de certos poetas situados entre 1838 e
exercida pela filosofia idealista germâni- 1865, data da Questão Coimbrã), levou

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1676 Antirromantismo

a (sobre)excitação emotiva romântica loucura – não é sem traduzir uma degra-


ao extremo. Não somente por converter dação do romântico.
a livre e subjetiva sentimentalidade amo- Neste contexto, o realismo (designação
rosa num sentido marcadamente disfó- primeiramente aplicada ao estilo pictórico
rico, mas especialmente por agudizar de Courbet e depois usada, por Champ­
sem concessões o culto do egocentrismo. fleury, para caracterizar a narrativa de
Egocentrismo, como vimos, instigado por Flaubert) veio significar um regresso, no
uma angústia metafísica exagerada, que fundo, à realidade. A realidade da con-
não deixou de propiciar autoanálises e cretude empírica e não tanto a do sen-
ensimesmamentos que bem depressa res- timentalismo etéreo e volúvel. De outro
valaram para sentimentos tétricos. Sen- modo: o modelo romântico esgotou-se.
timentos negativos como a melancolia Consequentemente, gerou-se um senti-
e o intimismo pessimista, associados ao mento antirromântico, o qual decorre,
lirismo contemplativo, compaginaram-se em Portugal, sob o signo de dois aconte-
drasticamente com o pronunciado gosto cimentos incontornáveis, na medida em
pelo fúnebre. que, pode dizer-se, foi a partir deles que
Assim, se nas composições dos ultrarro- o antirromantismo alcançou verdadeira e
mânticos reencontramos as marcas distin- explicitamente forma: a famosa Questão
tivas do romantismo, sob a forma de um Coimbrã (1865); e as não menos célebres
flagrante apreço por certas temáticas (pa- Conferências do Casino (1871).
triotismo exaltado, contextos medievais, A crer em Teófilo Braga, a Questão
com os seus templos e ruínas, a ênfase no Coimbrã constituiu nada menos do que
folclore, reivindicações de carácter social, a dissolução do romantismo. Se a afirma-
tendência para a poesia marcadamente ção peca certamente por excesso, não há,
triste e, como tal, assaz lacrimosa na ex- em todo o caso, dúvida de que se tratou
pressão temático-emocional do amor), de um abalo bem significativo nas con-
não é menos verdadeira a presença de venções românticas. Tudo começou com
uma muito vincada predileção pelo ma- um prefácio de Feliciano de Castilho ao
cabro (o locus horrendus em substituição Poema de Mocidade, de Pinheiro Chagas,
do locus amoenus). É decerto um tanto que indispôs Teófilo Braga e Antero de
excessivo afirmar que, ao lançarem mão Quental, o qual não se inibiu de reagir,
do fantasmagórico a compasso com o atacando Castilho, com certa rudeza, em
sentimentalismo exaltado (como aconte- Bom Senso e Bom Gosto (1865) – desenca-
ce, paradigmaticamente, em “O noivado deando assim a referida Questão. Tra-
do sepulcro”, de Soares dos Passos), os tou-se de uma polémica que separou em
ultrarromânticos mais não fizeram que trincheiras opostas várias personalidades
deslizar para o terreno do convencional. do campo literário. Os indefetíveis de-
Mas a verdade é que, pela sua dimensão fensores do romantismo, por um lado, à
excessiva, o ultrarromantismo, apegado cabeça dos quais Camilo Castelo Branco,
a temáticas mórbidas e funéreas servidas com Vaidades Irritadas e Irritantes; e, por
por uma imaginação doentia, represen- outro, os apóstolos da reforma literária,
tou, como é forçoso, uma degenerescên- como foi o caso, em Teocracias Literárias,
cia da estética e do imaginário românti- de Teófilo Braga.
cos. O enfatuamento literário dos textos Estava assim lançado o antirromantis-
– nutridos de símbolos tétricos em atmos- mo, definível nestes termos: o esforço por
feras tintadas de gótico, pressentimentos, rebater todas as patologias românticas de

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Antirromantismo 1677

que a leitura dos textos ultrarromânticos ragga e Teófilo Braga), que nos ajuda a
dá mostras, i.e., insistir no facto de o ro- perceber o que estava em jogo: “ligar Por-
mantismo, sobretudo na sua variante ul- tugal com o movimento moderno, fazen-
tra, já não fazer sentido em função de não do-o assim nutrir-se dos elementos vitais
dispor do estatuto pragmático, histórico de que vive a humanidade civilizada [...];
e referencial daquilo que se entende ser procurar adquirir consciência dos factos
Portugal por essa altura. Tratar-se-ia, so- que nos rodeiam na Europa [...]; agitar
bretudo nas suas zonas mais contaminadas na opinião pública as grandes questões
pelo macabro, de uma escola saturada de da filosofia e da ciência moderna [...];
ilusões fantasmagóricas sobre a realida- estudar as questões da transformação po-
de. E isso é o mesmo que reconhecer na lítica, económica e religiosa da sociedade
segunda geração romântica uma inépcia portuguesa” (CABRAL, s.d., 9-10).
ontológica ao nível da representação, por Não surpreende, dado o cariz revolu-
causa da sua convencionada natureza anti- cionário das conferências, que apenas
mimética (mimese avaliada no sentido da quatro fossem efetivamente levadas a
verosimilhança, entenda-se). efeito. As de Antero de Quental (“Causas
No que se reporta às Conferências do da decadência dos povos peninsulares,
Casino, ou melhor, às Conferências De- nos últimos três séculos”), Augusto Soro-
mocráticas do Casino Lisbonense, não é menho (“Literatura portuguesa contem-
impertinente considerá-las, pelo fôlego porânea”), Eça de Queirós (“Realismo
que deram às doutrinas do realismo ex- como nova expressão da arte”) e Adolfo
postas nos folhetos da Questão Coimbrã, Coelho (“Questão do ensino”). Da res-
o segundo grande momento antirromân- ponsabilidade de Salomão Sáragga, a
tico. Ocorridas sob o signo da liberda- quinta conferência (“Historiadores crí-
de de pensamento, visaram apresentar ticos da vida de Jesus”), prevista para o
renovação em matéria de pensamento, dia 26 de junho, não chegou a ocorrer,
literatura e arte. Melhor dizendo, Ante- proibida que foi pelo marquês de Ávila
ro, que entretanto adquirira algum cos-
mopolitismo viajando pela França e pela
América, propôs-se organizar uma série
A partir da esquerda: Eça de Queirós, Oliveira
de conferências repletas de consequên- Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão
cias, na medida em que esperava assim e Guerra Junqueiro (1884).
debater (como diria, em carta, a Teófilo
Braga) as grandes questões contemporâ-
neas à luz do positivismo. Propósito por
certo ambicioso e não menos responsabi-
lizador na sua amplitude. Em A Revolução
de Setembro, do dia 18 de maio de 1871,
a finalidade das conferências vem enun-
ciada com mais especificidade num ma-
nifesto (assinado, além Eça de Queirós,
por Antero de Quental, Adolfo Coelho,
Augusto Soromenho, Augusto Fuschini,
Germano Vieira de Meireles, Guilherme
de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira
Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sa-

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1678 Antirromantismo

e Bolama na qualidade de presidente do Momentos possuídos pela ambição, não


Ministério. Nem as restantes, que seriam obstante a magnitude da tarefa, de mo-
proferidas por Batalha Reis (“O socialis- dernizar a literatura em conformidade
mo”), Antero de Quental (“A república”), com as novas tendências estético-expres-
Adolfo Coelho (“A instrução primária”) e sivas. Tendências que darão pelos nomes
Augusto Fuschini (“Dedução positiva da de realismo e naturalismo.
ideia democrática”).
A conferência de Eça, antirromântica
por excelência, foi uma clara tentativa de Bibliog.: BERLIN, Isaiah, A Apoteose da Von-
tade Romântica, Lisboa, Bizâncio, 1999; BOI-
legitimar conceptual e institucionalmente
LEAU-DESPRÉAUX, Nicolas,  L’Art Poétique,
a escola realista como arte. Eça é bastan- Paris, De L’Imprimerie D’AUG Delalain, 1815;
te claro na explicitação dos propósitos da BRIX, Michel, Éros et Littérature. Le Discours
escola realista: “É a negação da arte pela Amoureux en France au XIXè Siècle, Louvain/Pa-
arte; é a proscrição do convencional, do ris/Sterling, Éditions Peeters, 2001; CABRAL,
enfático e do piegas. É a abolição da re- Avelino Soares, O Realismo. Eça de Queirós e
tórica considerada arte de promover a “Os Maias”, s.l., Edições Sebenta, s.d.; CHA-
emoção, usando da inchação do período, TEAUBRIAND, René de, Mémoires de Ma Vie,
ed. crítica J. M. GAUTIER, Genève, Librairie
da epilepsia da palavra, da congestão dos
Droz, 1976; ECO, Umberto, Sobre a Literatura,
tropos. É a análise com o filtro na verda- Algés, Difel, 2003; FURST, Lilian, Romanticism
de absoluta. Por outro lado, o realismo é in Perspective. A Comparative Study of Aspects of the
uma reação contra o romantismo: o  ro- Romantic Movements in England, France and Ger-
mantismo era a apoteose do sentimento; many, 2.ª ed., London/Basingstoke, The Mac-
o realismo é a anatomia do carácter, é a Millian Press, 1972; HERNÁNDEZ-PACHE-
crítica do homem. É a arte que nos pin- CO, Javier, La Consciencia Romántica, Madrid,
Editorial Tecnos, 1995; HUGO, Victor, Os Mi-
ta os nossos olhos – para condenar o
seráveis, 2.ª ed., Mem Martins, Europa-Améri-
que houver de mau na nossa sociedade”. ca, 1999; Id., Œuvres Complètes, Paris, Robert
E ainda, numa passagem que tem tanto de Laffont, 2002; JÚNIOR, António Salgado,
incisivo como de pragmático: “A norma História das Conferências do Casino, Lisboa, Ti-
agora são as narrativas a frio, deslizando pografia Cooperativa Militar, 1930; LACAN,
como as imagens na superfície de um es- Jacques, Le Séminaire. L’Éthique de la Psychana-
pelho, sem intromissão do narrador. O ro- lyse. Livre VII, Paris, Seuil, 1986; LAMARTINE,
Alphonse de, Lettres des Années Sombres, 1853­
mance tem de nos transmitir a natureza
‑1857, Fribourg, Éditions de l’Université de
em quadros exatíssimos, flagrantes, reais” Fribourg, 1942; MAIGRON, Louis, Romantisme
(JÚNIOR, 1930, 55-56). Creio que será et les Mœurs. Essai d’Étude Historique et Sociale
difícil produzir mais antirromantismo do d’après des Documents Inédits, Paris, Librairie
que nestas duas passagens. Segundo Eça, H. Champion Éditeur, 1910; MARTINI, Fritz,
a arte realista devia, muito ao inverso do História da Literatura Alemã, vol. ii, Lisboa, Es-
que acontecia com o romantismo, basear­ túdios Cor, 1972; MEYER, Michel, O Filósofo e
as Paixões, Porto, ASA, 1994; NOVALIS, Wern-
‑se nas leis científicas, condição imprescin-
ke, Herausgegeben und Kommentiert von Gerhard
dível para revolucionar a sociedade. Se os Schultz, Berlin, Verlag C. H. Beck, 1981; PES-
românticos operaram uma revolução por SOA, Fernando, Livro do Desassossego, vol.  i,
intermédio do coração, Eça e os realistas Lisboa, Ática, 1982; SILVA, Vítor Emanuel
tentaram-na pela via da razão (científica). Aguiar e, “Romantismo”, in BUESCU, Helena
A Questão Coimbrã e as Conferências Carvalhão (org.), Dicionário do Romantismo Por-
do Casino foram assim dois momentos tuguês, Lisboa, Caminho, 1997, pp. 487-492.
pioneiros e maiores do antirromantismo. Sérgio Guimarães de Sousa

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Antirrusselismo 1679

Antirrusselismo

N uma abordagem ampla, o russelis-


mo surge como movimento mile-
narista e anticlerical fundado em 1879.
É considerado uma heresia, o que signi-
fica que defende pressupostos e dogmas
contrários aos ensinamentos teológicos
subjacentes do catolicismo e do protes-
tantismo ortodoxos. Charles Taze Russell (1852-1916).
Charles Taze Russell (1852-1916), edu-
cado como presbiteriano pelos pais, Jo­ exímias gravações musicais, pinturas e
seph L. e Eliza Birney Russell, revela, desde esboços, que narram a história da criação
a adolescência, interesse pelo adventis- até ao reino milenar de Cristo. O segun-
mo, e, ainda que influenciado pelo espí- do, construído a partir dos mesmos prin-
rito racionalista epocal, junta-se à igreja cípios doutrinários, direciona-se para um
congregacionalista local. Eivado pelo sen- público mais rústico. São ambos inovado-
tido de busca e compreensão do mistério res e encarados como uma verdadeira ala-
divino, reúne um grupo de amigos com o vanca de proselitismo massificador.
fito de estudar a Bíblia, tornando-se líder Fundador do que veio a ser a Watch
religioso e sendo, não poucas vezes, vis- Tower Bible and Tract Society, foi um di-
to como the Laodicean messenger – o líder fusor doutrinário, cujas bases propedêu-
espiritual da sétima Igreja da Revelação. tico-teocráticas se encontram nos ensi-
Mentor e precursor americano do que namentos da International or Associated
se entende por russelismo, não deixa de Bible Students, assim designados até 1931
apontar as origens da sua linhagem espiri- e, posteriormente, apelidados de Teste-
tual em figuras como George Stetson, mi- munhas de Jeová, sofrendo, na altura da
nistro do Advento Cristão, George Storrs, Segunda Guerra Mundial, apreensões,
um dos edificadores da Life and Advent prisões e proscrições.
Union (União da Vida e do Advento), Jose- Coube a Joseph Franklin Rutherford
ph A. Seiss, pastor luterano e editor de Pro- (1869-1942), promissor advogado e con-
phetic Times e Nelson H. Barbour, pregador sultor jurídico da Sociedade Torre de Vigia
adventista e editor de Herald of the Morn­ e Tratados (Estados Unidos da América),
ing, salientando os mais proeminentes. a consolidação e divulgação do movimen-
Orador hábil e engenhoso, atento ao to, cuja residência oficial, construída em
poder persuasivo da imagética animada, 1929, ficou conhecida por Bete­‑Sarim,
Russell apresenta em Nova Iorque, em a “Casa dos Príncipes”. O sucessor, Na-
1914, o “Fotodrama da criação”, e, passa- than Homer Knorr (1905-1977), foi cor-
dos oito meses, o “Drama Eureka”. O pri- responsável pela publicação da revista
meiro é uma apresentação de diapositi- Idade de Ouro, mais comummente conhe-
vos, contendo 96 discursos fonográficos, cida como Despertai! Este movimento foi

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1680 Antirrusselismo

difundido, sobretudo, no Brasil, em An- Em última análise, o russelismo defende,


gola e Moçambique e, desde 1925, em por um lado, que as Igrejas cristãs são cor-
Portugal, embora fosse proscrito oficial- ruptas, encarando-as, numa formulação
mente durante o Estado Novo. esotérica, como a verdadeira Babilónia, e
advoga, por outro, que a figura do papa
e a sua inerente hierarquia eclesiástica sur-
Crenças e fundamentos teológicos gem como agentes do anticristo. O russe-
Charles Taze Russell, ainda que cônscio lismo é portanto considerado, como já se
dos pressupostos do adventismo, apon- referiu, quer pelo catolicismo, quer pelo
ta para uma destrinça fundamental ao protestantismo, uma visão dissidente e
advogar o advento de Cristo, não tanto blasfema da religião, cujos dogmas se ba-
num sentido corpóreo ou num domínio seiam em três dispensações heterodoxas:
visível, mas mais como acontecimento do a primeira, que abarca os acontecimentos
domínio espiritual invisível. que vão da criação ao dilúvio; a segunda,
É assim que vaticina, datando-o, o re- os que vão da idade patriarcal (Abraão,
gresso de Cristo (parousia) em momentos Isaac e Jacob), passando pelo judaísmo,
periodológicos sucessivos: a primeira da- até à doutrina de Cristo; e a terceira, que,
tação, cuja não verificação frustra a ma- congregando a perfeição do Reino de
terialização crística defendida, é de 1874; Cristo, emergirá como a nova era ou taber-
a segunda predita o advento para 1878; náculo da Infinita Glória Divina.
por fim, a terceira, recuperando a primei-
ra datação, e numa inequívoca tentativa
de consolidação da profecia, defende, Bibliog.: BROWN, J. A., The Even-Tide or Last
efetivamente, o regresso de Jesus Cristo Thriumph of the Blessed and Only Potentade, the
no ano de 1874, ainda que no domínio King of Kings, and Lord of Lords; Being a Develop-
ment of the Mysteries of Daniel and St. John, and the
incorpóreo, aditando o pressuposto salví-
Ten Prophecies Respecting the Renovated Kingdom
fico de que os eleitos seriam conduzidos of Israel, London, s.n., 1823; MILLER, Edith
para o Reino de Deus em 1914. Starr, “The russellites
or the international Bi-
Este princípio pressagiador encontra­ ble students”, in Occult Theocrasy, vol. ii, s.l., F.
‑se intimamente ligado com a crença e Paillart, 1933, pp. 530-540; “Noruega”, 2012:
a clara defesa do apocalipse, enquanto Anuário das Testemunhas de Jeová, Pennsylvania,
acme teleológico que, aquilatando as Watch Tower Bible and Tract Society, 2012,
pp. 120-127; “Uma obra prima”, Sentinela,
falhas pecaminosas da vida terrena, con-
15 jan. 2001, pp. 8-9; PARTRIDGE, Christo-
duziria, numa batalha maniqueísta, cata- pher (org.), Encyclopedia of New Religions, New
clísmica e escatológica entre o bem e o Religious Movements, Sects and Alternative Spirit-
mal, a um momento supra-histórico de ualities, Isle of Man, Lion Hudson, 2004; PEN-
revelação do plano divino pela edificação TON, M. James, Apocalypse Delayed: the Story of
reestruturante de um novo reino na ter- Jehovah’s Witness, 2.ª ed., Toronto, University
ra e nos céus, a par da consequente der- of Toronto Press, 1997; ROSS, J. J., Some Facts
rota, do julgamento e da destruição do and More Facts about Self-Styled ‘Pastor’ Charles T.
Russel (of Millennial Dawn Fame), Philadelphia,
mundo presente (as visões milenaristas
School of the Bible Inc., 1912; RUSSEL, C. T.,
defendem, outrossim, esta tipologia visio- Millenial Dawn: The Plan of Ages, vol. I, Allegheny
nária). Note-se, porém, que Russell siste- PA., Tower Publishing Co., 1886; Id., The Fin-
matiza o que já houvera sido defendido ished Mystery, A Helping Hand for Bible Students,
e explanado por J. A. Brown na sua obra New York, Peoples Pulpit Association, 1917.
The Even-Tide, de 1823. Sofia A. Carvalho

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Antissalazarismo 1681

Antissalazarismo mica e oposição à sua pessoa. Homem de


educação e princípios católicos bem ci-
mentados, destacava-se desde a sua juven-
tude pelo conservadorismo que expunha,
em comparação com a fervente república
que há pouco havia surgido. Filipe Ri-
beiro de Meneses nota-lhe o saudosismo

E ntende-se por antissalazarismo toda a


ação, o comentário ou o intento feito
contra a figura e a política de António de
acentuado quando, em 1912, escreve um
artigo defendendo a sua posição contra
o divórcio (instaurado pelos republica-
Oliveira Salazar, ditador português entre nos) e contra a emancipação feminina
1932 e 1968. Líder de um regime político em geral, argumentando que a mulher
que se caracteriza como autoritário, pode deverá unicamente servir para cuidar do
considerar-se inato à natureza humana lar e dos filhos, nada mais além disso po-
que a oposição, proibida a priori, flores- dendo ser da sua competência. Apesar do
ça espontaneamente, desde o início. Na conservadorismo acentuado, que encon-
verdade, existe antissalazarismo desde trou nos seus pares no Centro Católico
que Salazar se tornou uma figura pública, Português, Salazar beneficiou da instabi-
primeiro a nível local, com as suas inter- lidade dos governos republicanos e dos
venções nos meios católicos de Coimbra, estragos económico-sociais da Primeira
no início da déc. de 1910, depois a nível Guerra Mundial, que estavam a arrastar o
nacional, com a sua eleição como depu- país para uma crise sem precedentes. Em
tado pelo Círculo Católico, nos inícios da 1921, foi eleito como deputado ao Parla-
déc. de 1920, e com a tomada da pasta mento pelo círculo de Guimarães, cargo
das Finanças em 1928, mais agudamente que ocupou pouco tempo, não pela ra-
com a presidência do Conselho, a partir zão veiculada pela lenda fabricada pela
de 1933.
António Oliveira Salazar (1889-1970), António de Oliveira Salazar (1889-1970).
nascido numa família humilde de Santa
Comba Dão, completou os seus estudos
no Seminário de Viseu e na Univ. de
Coimbra. Desde novo se destacou entre
os seus pares e facilmente atingiu o re-
conhecimento académico, tanto que foi
chamado a liderar a pasta das Finanças
do Governo formado após a Revolução
de 28 de maio de 1926, com apenas 37
anos. Mais tarde, em 1932, ascendeu a
presidente do Conselho de Ministros,
fundando a ditadura (civil, pois antes
era de natureza militar) do Estado Novo,
oficializada com a nova Constituição em
1933 e que durou até ao dia 25 de abril
de 1974.
Desde que Salazar começou a ter algu-
ma notoriedade pública que houve polé-
D.R.

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1682 Antissalazarismo

propaganda da ditadura – de que achou como com uma greve dos estivadores,
o Parlamento fútil e voltou para Coim- entre outras manifestações de desagrado
bra no mesmo dia –, mas porque, pouco que continuaram ativas até ao dia 9 de fe-
depois da sua tomada de posse, se deu a vereiro. Nesse mesmo ano de 1931, a 14
Noite Sangrenta, em que foram assassina- de abril, houve um levantamento militar
dos o então primeiro-ministro, António contra o Governo da ditadura nacional,
Granjo, bem como outros elementos do que acabou por alastrar para os Açores
partido do Governo. A par da atividade e para a Guiné portuguesa. Esta revolta
política, escrevia amiúde na imprensa, foi levada a cabo por militares opositores
onde debatia com os anticlericais repu- ao regime e apoiada pela Liga de Paris,
blicanos na defesa do catolicismo, que constituída por republicanos exilados na
considerava superior a qualquer pendor capital francesa.
político, e que, portanto, deveria convi- O final da Segunda Guerra Mundial,
ver em harmonia com qualquer regime. em 1945, colocou Salazar num estado
Com a Revolução de 1926, Salazar é de isolamento que rapidamente chamou
chamado ao poder na Ditadura Militar. a atenção dos Aliados e fragilizou a po-
Nesse mesmo ano, a 8 de outubro, dá-se sição do país no contexto internacional.
a revolta de João de Almeida, que consis- Portugal tornou-se o único país europeu
tiu num desentendimento interno entre com um regime totalitarista de direita.
os homens do 28 de Maio, cujo motivo Declaradamente país neutro no conflito,
pousava precisamente sobre Salazar: João não eram desconhecidas as boas relações
de Almeida e José Vicente de Freitas, com que o regime salazarista manteve com os
simpatias nacional-sindicalistas, opõem­‑se países do Eixo, antes e durante o confli-
à presença de Salazar no Governo, princi- to, principalmente com a Alemanha e
palmente pelo carácter conservador que com a Itália. Provavelmente uma das me-
lhe era conhecido, e a estes juntam-se ou- didas mais polémicas do ponto de vista
tros. Tudo terminou com a prisão de João internacional foi a colocação da bandei-
de Almeida, em julho do ano seguinte. ra portuguesa a meia haste aquando da
Várias pequenas revoltas semelhantes à morte de Hitler. Foi também no rescaldo
que nomeámos tiveram lugar entre 1926 desta fragilização que ocorreu a fundação
e 1933, sendo o ano de 1931 o de gestão do Movimento de Unidade Democráti-
mais complicada. Uma das mais impor- ca (MUD), numa altura em que Salazar se
tantes revoltas deste ano foi a Revolta da vê obrigado a permitir alguma abertura
Farinha ou Revolta da Madeira, a 5 de política, por pressão internacional e pe-
fevereiro. Na origem deste levantamento los ventos democráticos que embalam a
popular no Funchal esteve o dec. 19.273, Europa do pós-guerra, chegando mesmo
o chamado decreto da fome, uma das a acreditar-se que o processo de democra-
mais austeras medidas económicas do mi- tização do país estava em marcha. Duran-
nistro das Finanças, que visava terminar te dois anos, o novo movimento granjeou
com a livre importação do trigo e das fa- apoios de vários sectores da sociedade
rinhas, criando um regime de monopó- inconformados com a falta de liberdade
lio e, consequentemente, aumentando de associação e de imprensa, entre outros
o preço do pão. A revolta manifestou-se protestos. Ainda que o Partido Comunis-
essencialmente na cidade do Funchal, ta não estivesse inicialmente ligado à for-
com alguns motins e o encerramento de mação, em 1946, as forças fundiram-se e
vários estabelecimentos comerciais, bem já se contavam nas camadas dirigentes do

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Antissalazarismo 1683

movimento nomes desse Partido, como As décs. de 50 e 60 revelaram-se cruciais


Bento de Jesus Caraça e Alves Redol. e muito desgastantes para o ditador por-
Contudo, a ilusão de uma oposição livre tuguês, com uma oposição ativa e insis-
durou pouco tempo. Como a popularida- tente, que punha cada vez mais em causa
de do MUD crescesse de forma inusitada, o regime político por ele fundado. Muita
o Governo rapidamente colocou em mar- da oposição era interna, nomeadamente
cha mecanismos para neutralizar a onda com origem no Exército, a instituição
oposicionista que se formava. Depois de à qual Salazar era mais suscetível e que
algumas prisões por acusações de conspi- mais temia. Foi nesta altura também que
ração e atos ilícitos contra o regime, em o antissalazarismo mais manifestamen-
janeiro de 1948, o MUD é oficialmente te atravessou as fronteiras do Império
ilegalizado e muitos dos seus dirigentes Português, mormente devido à questão
são presos sob a acusação de ligações ao das colónias africanas, cuja independên-
Partido Comunista. Ainda assim, a can- cia era recomendada pela ONU e pela
didatura oposicionista à Presidência da NATO, e que Salazar lhes negava. A pres-
República do Gen. Norton de Matos, em são vinha em grande parte da Assembleia
abril de 1948, é essencialmente apoiada Geral das Nações Unidas, dominada pe-
por elementos do movimento já extinto. los chamados países do Terceiro Mundo,
No seguimento da campanha de Nor- que deliberou contra a política colonial
ton de Matos, praticamente clandes- de Salazar.
tina, surge no final dos anos 50 a can- Em 1961, deflagrou o conflito arma-
didatura à Presidência da República do com as milícias independentistas em
do Gen.  Humberto Delgado, com largo Angola, que alastrou mais tarde para
apoio popular e chamando muito a aten- Moçambique e Guiné-Bissau. Apesar de
ção a nível internacional, principalmen- não ter existido conflito armado em São
te pela violência opressiva que Salazar Tomé e Príncipe nem em Cabo Verde,
fazia descer sobre os apoiantes de Del- existiam militantes independentistas nes-
gado. Tratou-se da primeira campanha tas ilhas, que se juntaram à atividade do
de massas a ocupar espaços públicos e Partido Africano para a Independência
a organizar comícios, sendo a sede de da Guiné e Cabo Verde, na Guiné.
campanha em plena Av. da Liberdade. Em 1953, no sentido de contornar a
Uma das promessas de campanha de pressão anticolonialista do pós-guerra,
Delgado (e das mais populares), além da Salazar havia redefinido conceitos, con-
de restabelecer as liberdades essenciais, siderando os territórios africanos não
foi a de demitir o presidente do Conse- como colónias, mas como províncias
lho. Em 1958, deram-se as eleições, às ultramarinas, ou seja, não menos portu-
quais concorreram o candidato oficial, guesas que o Algarve ou o Alentejo. Esta
Craveiro Lopes, e o da oposição, Hum- redefinição terminológica foi um proces-
berto Delgado. Os votos foram contados so longo e trabalhoso, que começou em
no Ministério do Interior, sem qualquer 1951 através de diplomas – em geral em
fiscalização da oposição, tornando possí- forma de portaria – e que culminou na lei
vel a fraude. Humberto Delgado perdeu n.º 2066/53, de 27 de junho (Lei Orgâni-
as eleições e acabou por morrer em fe- ca do Ultramar Português). Todavia, esta
vereiro de 1965, vítima de um atentado redefinição não foi considerada suficien-
alegadamente ordenado por Salazar e te e a oposição internacional continuou
executado por agentes da PIDE. durante os conflitos. Como em outras

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1684 Antissalazarismo

situações ao longo da história do Estado declarações à NBC de Inglaterra, Henri-


Novo, foi a sua ágil estratégia diplomática que Galvão (um dos principais responsá-
que permitiu a Salazar não ser vítima de veis pelo golpe) invocou a sua condição
uma intervenção internacional mais radi- de combatente político, contrariando as
cal, levando, e.g., à deposição do regime, palavras de Salazar, que, em comentário à
hipótese presente em alguma documenta- situação, havia dito que este era um mero
ção da política internacional americana. ato de pirataria. Após algumas vicissitu-
Com efeito, apesar de os Estados Unidos, des, em vez de aportar em África como
particularmente a administração Kenne- planeado, o navio chegou ao Brasil, onde
dy, serem um dos grandes apoiantes da os revolucionários receberam asilo polí-
descolonização africana, a importância tico. Esta ação político-militar haveria de
militar da base aérea das Lages para os inspirar, entre outros, Luís de Sttau Mon-
americanos acabou por amenizar as ten- teiro na elaboração da sua peça de teatro
sões e ditar uma diminuição das pressões Felizmente Há Luar. Embora a peça seja so-
para a descolonização – pelo menos apa- bre as lutas liberais do início do séc. xix
rentemente, já que é hoje sabido que as em Portugal, metaforiza, em 1961, o espí-
forças independentistas africanas tinham rito revolucionário que começa a ebulir,
o apoio dos Estados Unidos ou da Rússia. os ataques do regime à liberdade, a voz
Ainda no que diz respeito à visão nega- do povo que se levanta, tendo por isso a
tiva do salazarismo no plano internacio- sua representação sido proibida pela cen-
nal, a fundação da Amnistia Internacio- sura. Com um diálogo escondido, mas
nal (AI) em 1961 por Peter Benenson foi provocador, como era o da arte interven-
inspirada numa situação de desrespeito tiva, Sttau Monteiro faz alusão no próprio
pelos direitos humanos na Lisboa salaza- título à constituição da Liga de União e
rista. Segundo testemunho do próprio, Acção Revolucionária, fundada por Pal-
Benenson, já bastante envolvido em ativi- ma Inácio na consequência do assalto ao
dades de defesa dos direitos humanos, de- navio Santa Maria.
cidiu finalmente fundar uma associação Ainda durante o annus horribilis de
(que mais tarde se tornou a AI) depois de 1961, Salazar foi alvo de uma conspira-
ler a notícia de que dois estudantes por- ção interna liderada pelo Gen. Botelho
tugueses tinham sido presos pela polícia Moniz, que ficou conhecida como a Abri-
política apenas por estarem a brindar à lada. Esta conspiração, que consistiu na
liberdade num café lisboeta. mobilização de alguns militares contra
Naquele que é hoje considerado o ano Salazar, principalmente a propósito da
de todos os desastres para Salazar, 1961, situação em África, acabou por se diluir
ocorreu uma das maiores ações contra o com um contra-ataque mais rápido do
regime: o assalto ao navio Santa Maria, a presidente do Conselho. Consciente da
22 de janeiro. Apesar de o plano não ter crescente oposição no Exército, Salazar
efetivamente resultado, a verdade é que rapidamente assumiu a pasta da Defesa
um dos principais objetivos foi atingido: e reformulou alguns dos cargos mais im-
chamar a atenção internacional. Acorre- portantes do ministério, com o apoio de
ram repórteres de todo o mundo, os úni- Américo Tomás.
cos que poderiam narrar o sucedido clara A imagem de Salazar foi uma das maio-
e abertamente, já que, com a censura em res preocupações propagandísticas do
Portugal, a informação chegou aos Por- regime. O ditador encarnava o pastor
tugueses bastante deturpada. Assim, em que apascentava o rebanho, o pai que

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Antissalazarismo 1685

trabalhava em prol da família, o frade turantes na estratégia de controlo de


que cuidava dos seus humildes irmãos no Salazar. Apesar de existirem hoje provas
mosteiro rico e austero. Se para muitos irrefutáveis, foi estratégia do Governo
esta imagética resultava num reconfor- negar, e.g., a existência de prisões políti-
tante sentido de proteção, para outros cas como o Tarrafal, em Cabo Verde, e os
incitava sentimentos de revolta, por se desaparecimentos e as torturas provoca-
assemelhar demasiado a uma prisão. As dos pela PIDE, assim como, mais tarde,
liberdades comedidas ou proibidas, o na Guerra Colonial, as condições em que
mote propedêutico do regime, “Deus, os militares portugueses morriam eram
Pátria e Família”, eram os alicerces que omissas à família e à imprensa, transmi-
fundavam a casa acolhedora de uns e as tindo sempre a ideia (falsa) de que a si-
barras da cela onde recluíam outros. Ao tuação estava controlada e de que o país
longo do tempo em que Salazar ocupou o caminhava para a vitória. Esta estratégia
poder, muitas foram as vozes que usaram de negação provocava revolta em muitas
a experiência seminarista do líder para pessoas, que, por informação concreta
alimentar a crítica à sua volta, nomeada- ou por simples dedução, compreendiam
mente a natureza das suas relações com a que tudo não passava de propaganda de
Igreja em geral e com o cardeal Cerejeira, um regime que, aos poucos, entrava em
seu amigo próximo, em particular. Houve decadência.
até mesmo alguns testemunhos de polí- Existem vários textos literários de natu-
ticos estrangeiros que o predicavam com reza antissalazarista, tendo muitos deles
adjetivos como “austero”, “medieval” ou permanecido clandestinos até ao término
“clérigo escolástico”. da ditadura. Na impossibilidade de refe-
O fechamento ao estrangeiro, e em rir todos, serão apontados apenas alguns
particular a toda a profusão cultural que exemplos mais demonstrativos. Nos anos
os anos de 50 e 60 trouxeram ao mundo 1990, foram trazidos a público alguns tex-
ocidental, atrasou Portugal várias déca- tos inéditos de Fernando Pessoa, em pro-
das em relação a outros países europeus. sa e em verso, sobre a figura de Salazar.
Na verdade, as limitações à liberdade Se na altura da Revolução Nacional e nos
características do regime, a par de uma anos seguintes o poeta dizia “confiar no
filosofia de negação, tornavam-se estru- Professor Salazar”, no início da déc. de
30 a sua voz tornou-se bastante crítica da
O paquete Santa Maria durante o assalto ação do ditador, nomeadamente no que
de 1961. à limitação da liberdade dizia respeito,
apelidando-o de “o grande equívoco”, ou
escrevendo versos como “Coitadinho/do
tiraninho!”, “Este senhor Salazar/É feito
de sal e azar”, e ainda “E o Salazar, arte-
facto/[…] Vive na orgia do exato/Man-
da o país penhorado/Por uma estrada
melhor” (PESSOA, Arquivo Pessoa).
Por outro lado, a fábula Dinossauro Ex-
celentíssimo, de José Cardoso Pires (1972),
é digna de registo, pela peculiaridade
de construir todo o discurso antirregi-
me a partir da figura pessoal de Salazar,

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1686 Antissalazarismo

o “dinossauro”. Na obra, tudo reverte lazar. Por outro lado, em 2007, no con-
para uma personagem, o Mestre Impera- texto da possibilidade de construção de
dor, causador de todos os males, mesmo um museu dedicado a Salazar e ao Estado
quando já moribundo. Há uma caricatu- Novo, em Santa Comba Dão, houve uma
rização como poucas da figura de Salazar, petição com 16.000 signatários contra a
que vai evoluindo ao longo da obra (e do construção do referido museu. Como um
tempo), ficando mais corcunda, mais sur- dos argumentos da petição, os signatários
da, as mãos a encurvarem e a terminarem afirmavam recear que o local pudesse tor-
em garras, os lábios a desaparecerem até nar-se destino de romarias de elementos
restar apenas uma fenda como boca. De da extrema-direita e de neonazis. À parte
cariz agudamente crítico, esta obra é não o facto de esta preocupação poder tor-
só contra o salazarismo como política, nar-se realidade ou não, a verdade é que
mas também contra Salazar como pessoa. até hoje o museu – uma instituição que se
Igualmente num registo literário e efa- pretende histórica e não de propaganda,
bulatório surge o curto, mas pungente, saliente-se – não foi construído.
poema “O velho abutre”, de Sophia de
Mello Breyner Andresen, confessamente
inspirado na figura de Salazar: “O velho
abutre é sábio e alisa as suas penas/A po-
dridão lhe agrada e seus discursos/Têm Bibliog.: impressa: ANDRESEN, Sophia de
o dom de tornar as almas mais peque- Mello Breyner, “O velho abutre”, in ANDRE-
nas” (ANDRESEN, 1998, 151). Ainda no SEN, Sophia de Mello Breyner, Obra Poética II,
âmbito da produção artística, mais espe- 3.ª ed., Lisboa, Caminho, 1998; GIL, José,
cificamente no campo da chamada mú- Salazar: a Retórica da Invisibilidade, Lisboa, Reló-
gio d’Água, 1995; MARINHO, António Luís,
sica de intervenção, encontramos vários
1961: o Ano Horrível de Salazar, Lisboa, Temas
exemplos de antissalazarismo; alguns dos e Debates/Círculo de Leitores, 2011; MATOS,
mais emblemáticos são da autoria de José Helena, Salazar: a Construção do Mito (1928­
Afonso. Em 1972, já dois anos depois do ‑1933), Lisboa, Temas e Debates/Círculo de
falecimento do ditador, o cantor aveiren- Leitores, 2010; MENESES, Filipe Ribeiro de,
se edita o álbum Vou Ser como a Toupeira, Salazar: Uma Biografia Política, 3.ª ed., Lisboa,
onde surge a música “O avô cavernoso”, Dom Quixote, 2010; NOGUEIRA, Alberto
Franco, Salazar, 6 vols., Coimbra, Atlântida,
em memória satírica da figura do ditador.
s.d.; PINTO, António Costa, O Fim do Império
No séc. xxi, ainda se sentem algumas Português. A Cena Internacional, a Guerra Colonial
manifestações de antissalazarismo. Refe- e a Descolonização (1961-1975), Lisboa, Livros
riremos apenas duas, a título de exem- Horizonte, 2001; PINTO, Jaime Nogueira, Sa­
plo. Em 2005, Mário Soares, numa me- lazar: o Outro Retrato, 2.ª ed., Lisboa, A Esfera
diática campanha para a Presidência da dos Livros, 2007; PIRES, José Cardoso, Dinos­
República, declarou-se “anti-Salazar”, a sauro Excelentíssimo, ilust. de João Abel Manta,
propósito do recebimento do doutora- Lisboa, Arcádia, 1972; ROSAS, Fernando, e
BRITO, J. M. Brandão de, Dicionário de Histó­
mento honoris causa da Univ. de Coimbra,
ria do Estado Novo, vols. i e ii, Lisboa, Bertrand,
instituição do antigo ditador. De facto, a 1996-97; digital: PESSOA, Fernando, “Antó-
comparação entre os dois seria irónica, nio de Oliveira Salazar”, Arquivo Pessoa: arqui-
por todo o passado de oposição do líder vopessoa.net/textos/4357 (acedido a 15 nov.
socialista durante os anos de ditadura, e 2016).
a resposta esteve à altura do seu percur- João Relvão Caetano
so, sempre em sentido inverso ao de Sa- Rosa Maria Fina

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Antissaramaguianismo 1687

Antissaramaguianismo Literatura (1998). De assinalar igualmen-


te o facto de, em 1994, a destacada figura
da crítica literária mundial Harold Bloom
ter integrado Saramago (com Memorial do
Convento, de 1982) na sua profecia de câ-
none ocidental futuro, opinando, depois
da morte do autor, sobre a sua definitiva

O antagonismo revelado na socieda-


de portuguesa em relação à figura
e obra de José Saramago pode conside-
inclusão nesse cânone; de realçar ainda,
no que toca à aceitação e canonização da
sua obra, a sua integração no curriculum
rar-se paradigmático na medida em que escolar, com a obra Memorial do Convento.
revela não só uma identificação da obra A obra saramaguiana é conhecida em
com o seu autor empírico, mas também todo o mundo e foi traduzida em mais
e sobretudo uma parcelar, mas recorren- de 25 línguas, tendo tal sido necessaria-
te, reação cultural adversa à obra e ao seu mente reforçado com a atribuição do
autor. Poderia mesmo dizer-se que esse Nobel. O mesmo se passa com a figura
antagonismo espelha ou revela, em nega- e personagem do autor José Saramago,
tivo, algumas características marcantes da quer por via da atribuição desse prémio,
sociedade da época em que se desenvol- quer pelas suas reiteradas presença e de-
ve, como sucede com a reação a tópicos clarações conexas com eventos e questões
conexos com a moral sociopolítica, cul- político-ideológicas por todo o globo e
tural e religiosa dominante no país, bem sobretudo na América latina. A valoração
como a que se desenvolve relativamente a de Saramago, nomeadamente em Portu-
estratégias técnico-compositivas do estilo gal (e, por via do mais acentuado inter-
do autor e ao seu carácter de novidade. câmbio cultural permitido pela língua
No entanto, algumas das mais veemen- comum, também um pouco no Brasil),
tes críticas centram-se, numa ou noutra revela alguma polarização negativa, que
das vertentes assinaladas, na figura do poderá eventualmente relacionar-se com
autor empírico, do cidadão-escritor José traços recorrentes da obra saramaguiana
Saramago. e da construção da figura do seu autor.
Caracterizar o saramaguianismo no
sentido da valoração da obra ou do seu José Saramago (1922-2010).
autor parece desnecessário, dada a mui-
to significativa aceitação de ambos, tan-
to a nível nacional como internacional.
Ainda assim, e no que respeita à crítica
especializada, para além da aceitação pra-
ticamente unânime da sua obra no pano-
rama nacional, devem ser realçados os
prémios concedidos, com destaque para
os grandes prémios da Associação Portu-
guesa de Escritores (Grande Prémio de
Romance e Novela, em 1991, com a obra
O Evangelho segundo Jesus Cristo, e Grande
Prémio Vida Literária, em 1993), o Pré-
mio Camões (1995) e o Prémio Nobel da
D.R.

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1688 Antissaramaguianismo

Esta valoração negativa, recorrentemente ra entre o estilo saramaguiano e a tradi-


centrada tanto na figura autoral como na ção compositiva nacional, o que colocará
obra, permite, portanto, a emergência de também questões particulares à leitura
um termo e conceito como o de antissa- crítica. Para além dos tópicos assinalados,
ramaguianismo, radicando sobretudo na tornaram-se também significativas as valo-
estreita identificação do narrador sara- rações negativas do seu posicionamento
maguiano com o autor da obra, operada ideológico, “comunista”, e da sua afinida-
quer pela técnica construtiva, quer pela de com o Partido Comunista Português,
teorização crítica acerca dessas estraté- bem como apreciações críticas meramen-
gias, quer ainda pela própria crítica lite- te atinentes à valoração ética de episódios
rária, que não se pode escusar a tais estra- biográficos. A narrativa desta vertente
tégias e apreciações críticas. particular do antissaramaguianismo ca-
Para tal, concorrem também a ex- racterizou assim a figura do autor como
posição mediática da figura autoral e “um comunista que escreve mal”, sendo o
a dimensão ideológica transversal à da seu crescente renome acompanhado da
personagem pública e à do narrador circulação de informação relativa à sua
interventivo e opinante em relação à atuação como agente do saneamento do
sua obra, bem como um claro posicio- Jornal de Notícias (1975), e, num outro âm-
namento ideológico desse autor e desse bito, da valoração negativa da dimensão
narrador, fraturante face a certa(s) ideo- ético-ideológica da sua personagem auto-
logia(s) dominante(s). Do mesmo modo, ral (que, naturalmente, se estendeu à sua
e no que mais particularmente respeita à obra); a estas veio a acrescer o tópico de
obra, cabe destacar que a singularidade e “espanhol”, com conotações de traição à
as características do estilo saramaguiano pátria, originadas pela sua decisão de, em
são igualmente fator de conflito, nomea- 1993, ir viver para Lanzarote e intensifica-
damente no campo literário português, das pelas suas declarações públicas após
e no que, mais particularmente, se liga à a manifestação de censura ideológica por
valoração social do autor enquanto tal e à parte do Governo de Cavaco Silva. Acres-
correlativa receção da obra; tal não ocor- cem a estas, e nesta específica dimensão,
re relativamente à receção crítica, que, pontuais, mas frequentes, acusações so-
quando se pronuncia sobre tal especifici- bre a inconsistência ético-ideológica da
dade, o faz geralmente no âmbito de uma figura do autor.
valoração positiva. No que toca à dimensão institucional
Assim, pode detetar-se uma corrente de no seu sentido mais lato, i.e., à crítica,
antissaramaguianismo (não institucional, às instâncias políticas e às instituições
informal e transversal no panorama so- religiosas, o antissaramaguianismo assu-
ciocultural português), fortemente pre- miu, relativamente a estas últimas, foros
sente no discurso do dia a dia e percetí- de polémica pública e mesmo de escân-
vel sobretudo na blogosfera e nas caixas dalo, tanto no plano nacional como no
de comentários de sítios de notícias; são internacional.
fontes elucidativas de declarações, cujos A situação do autor no campo literário
tópicos mais significativos são os de que terá sido marcada por uma relativamen-
“Saramago escreve mal”, “não usa pon- te tardia focalização por parte da crítica,
tuação”, entre outros, sendo tais tópicos que só lhe teria prestado verdadeiramen-
igualmente visíveis, por negação, no sara- te atenção após a publicação de Levantado
maguianismo. Tal aponta para uma fratu- do Chão (1980). Não obstante, Fernando

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Antissaramaguianismo 1689

Venâncio assinala apenas um caso isolado ticos portugueses, e mesmo na sequência


de valoração negativa da crítica, depois da sua morte, em 2010. De assinalar ain-
da publicação do Memorial, que atribui a da que o autor foi acusado de antissemi-
“um propósito do crítico de distanciar-se tismo e considerado persona non grata em
duma demasiado entusiasmada corrente Israel (2003), na sequência de declara-
de fundo” (VENÂNCIO, 2000, 64). Ainda ções sobre a situação dos Palestinianos.
segundo Venâncio, a publicação do pri- A informação sobre Saramago nas di-
meiro volume dos Cadernos de Lanzarote versas páginas da Wikipédia regista clara-
(1994) desencadeará críticas que se po- mente o fenómeno de antissaramaguia-
dem considerar antissaramaguianas na nismo, consagrando mesmo, em algumas
medida em que incidem sobre dimensões delas, uma titulação à etiqueta “polémi-
éticas, ainda que – e sobretudo como – co- cas”, com destaque para a originada pelas
nexas com a construção da figura do au- suas declarações e obras correlacionadas
tor; a este respeito, Venâncio refere ainda com a estrutura e os dogmas da Igreja
a polémica anticriticista de resposta por Católica.
parte de Saramago, em declarações públi-
cas ou no âmbito dos sucessivos volumes Bibliog.: impressa: BLOOM, Harold, O Câno­
da diarística saramaguiana. ne Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 1997;
O antissaramaguianismo institucional LAGO, Maria Paula, A Face de Saramago, Por-
sobrevém com a publicação de O Evange- to, Granito Editores e Livreiros, 2000; REIS,
lho segundo Jesus Cristo (1991). Por parte Carlos, Diálogos com José Saramago, Lisboa,
Caminho, 1998; VENÂNCIO, Fernando, José
dos católicos, a obra deu origem a uma
Saramago. A Luz e o Sombreado, Porto, Cam-
verdadeira chuva de invetivas, abran- po das Letras, 2000; digital: O ARQUITEC-
gendo obra e autor, sendo numerosas as TO, “Ideias rascas, absurdas e estúpidas”,
vozes, nacionais e não só, que considera- O Arquitecto da Câmara Municipal de Lisboa e não
ram a obra como ofensiva dos costumes e só…, 12 mar. 2010: http://oarquitectodacml.
identidade nacionais e cristãos. A atitude blogspot.pt/2010/03/ideias-rascas-absurdas
do subsecretário de Estado da Cultura -e-estupidas.html (acedido a 18 abr. 2016);
BLOOM, Harold, “José Saramago”, Time,
do Governo cavaquista, Sousa Lara, de
5 jul. 2010: http://content.time.com/time/
vetar a candidatura a um prémio euro- magazine/article/0,9171,1999441,00.html
peu (1992) e a consequente decisão do (acedido a 18 abr. 2016); Id., “Person of the
autor de viver em Lanzarote constituem­ year: José Saramago”, Time, 2010: http://con-
‑se como polarizadoras e agregadoras do tent.time.com/time/specials/packages/arti-
antissaramaguianismo – é a partir deste cle/0,28804,2036683_2036477_2036518,00.
html (acedido a 18 abr. 2016); BRÁS, Afonso,
momento que se cristaliza e completa a
“O ano da morte de José Saramago”, Nota Final,
caracterização negativa da personagem 20 jun. 2010: http://notafinal2010.blogspot.
de Saramago, na qual se consolidará o pt/2010/06/o-ano-da-morte-de-jose-sarama-
epíteto de “ateu”, com conotação negati- go.html (acedido a 18 abr. 2016); CARVALHO,
va de desrespeito pelo seu país e por uma Frederico Duarte, “Os segredos de Saramago”,
religião que faria parte da identidade na- Para Mim Tanto Faz, 29 abr. 2004: http://pa-
cional. Neste particular, foram também ramimtantofaz.blogspot.pt/2004/04/os-se-
gredos-de-saramago.html (acedido a 18 abr.
notórias as declarações do Vaticano so-
2016); “José Saramago”, Wikipedia [versão
bre a obra e personalidade de Saramago, mirandesa], 11 mar. 2013: http://mwl.wikipe-
repetindo-se com a publicação de Caim dia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago (acedido
(2009), que desencadeou uma nova ava- a 18 abr. 2016); “José Saramago”, Wikipedia
lanche de críticas por parte dos eclesiás- [versão italiana], 27 mar. 2016: http://it.wiki-

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1690 Antissaudosismo

pedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago (ace-
dido a 18 abr. 2016); “José Saramago”, Wiki­
Antissaudosismo
pedia [versão espanhola], 6 abr. 2016: http://
es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
(acedido a 18 abr. 2016); “José Saramago”,
Wikipedia [versão inglesa], 6 abr. 2016: http://
en.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
(acedido a 18 abr. 2016); “José Saramago”,
Wikipedia [versão portuguesa], 11 abr. 2016:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Sa-
ramago (acedido a 18 abr. 2016); LOUREN-
P ara indagar a razão de ser de um pen-
samento antissaudosista, convém co-
meçar por situar a problemática em torno
ÇO, Graça, “Saramago: o rei vai nu!”, None
da saudade e do saudosismo. Tanto quan-
Nova, 2 nov. 2009: http://nonenova.blogspot.
pt/2009/11/saramago-o-rei-vai-nu.html (ace- to nos é dado saber, a palavra “saudade”
dido a 18 abr. 2016); MARQUÊS, “Que faço é quase tão antiga quanto a fundação da
aqui?”, Uma Fatia de Pão e Um Copo de Vinho, 11 nacionalidade portuguesa. Já a encontra-
dez. 2013: http://umafatiadepaoeumcopo- mos proferida num sermão que o bispo
devinho.blogspot.pt/2013/12/que-faco-aqui. portuense D. Pedro Pitões, em 1147, diri-
html (acedido a 18 abr. 2016); MIGUEL, Afon- giu aos cruzados que se propunham con-
so, “A dúvida sobre Saramago”, Semper Idem,
quistar Lisboa, e, a partir de então, apare-
27 ago. 2009: http://semperidem.blogs.sapo.
pt/a-duvida-sobre-saramago-78681 (acedido ce com frequência no léxico português.
a 18 abr. 2016); MORENO, Júlio, “Saramago e D. Duarte (1391-1438), 11.º Rei de Portu-
a Bíblia, o Alcorão... e que mais?”, Must Be, 19 gal, apresenta-a como um sentimento liga-
out. 2009: http://mustbe.blogs.sapo.pt/6811. do ao coração e oposto à razão, com tra-
html (acedido a 18 abr. 2016); SAMUEL, “José dução apenas no léxico galaico-português,
Saramago (1922-2010)”, Cantigueiro, 18 jun. sendo, então, recorrente nas cantigas de
2010: http://samuel-cantigueiro.blogspot.
amigo, em Bernardim Ribeiro (c. 1482-
pt/2010/06/jose-saramago-1922-2010.html
(acedido a 18 abr. 2016); “Saramago era ‘po- -c. 1552), Agostinho da Cruz (1540-1619),
pulista extremista’, afirma obituário no jornal Francisco Manuel de Melo (1608-1666) e
do Vaticano”, Globo, 19 jun. 2010: http://g1. Almeida Garrett (1799-1854), que, em ple-
globo.com/pop-arte/noticia/2010/06/sara- no romantismo, lhe traçou um lugar espe-
mago-era-populista-extremista-afirma-obitua- cial no imaginário português ao defini-la
rio-no-jornal-do-vaticano.html (acedido a 18 como “gosto amargo” e “delicioso pungir”.
abr. 2016); SEPÚLVEDA, Torcato, “José Sara-
Mas foi Leonardo Coimbra (1883-1936)
mago critica responsáveis da Cultura”, Público,
10 maio 1992: http://static.publico.pt/docs/ que a pensou através dos elementos ét-
cmf/autores/joseSaramago/terceiraVezCensu- nicos, religiosos e filosóficos que foram
rado.htm (acedido a 18 abr. 2016); SILVA, Gil, sendo lançados na tradição especulativa
e MOURÃO, Paulo, “Padre Ângelo Minhava por aqueles que ajudaram a fundar e a
[entrevista]”, Eito Fora: Jornal de Vilarelho, n.º 9, fundamentar as características do homem
ago.-set. 1999: http://www.trasosmontes. português, em comum com o seu irmão
com/eitofora/numero9/perfil.html (acedido a
galego, do qual, desde o início da nacio-
18 abr. 2016).
nalidade, se mantém afastado. O galego
… Paula Lago Ramon Piñeiro (1915-1990) tratou-a en-
quanto categoria existencial que se opõe à
razão e se liga ao sentimento e à emoção,
impondo-se como característica distintiva
de uma filosofia única, confinada a um
povo dividido em duas parcelas, a Galiza e

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Antissaudosismo 1691

Portugal. A saudade assim pensada repre- cas: a dor romena, a anyoranza catalã, a nos-
senta o desejo de retorno a essa idade pri- talgia, a tristeza, a angústia, a melancolia.
mordial que foi quebrada pela força. Com um percurso tão arreigado às origens
Contudo, o grande teorizador da sauda- da nacionalidade e ao torrão com o qual
de foi Teixeira de Pascoaes (1877-1952), passámos a fazer fronteira, a Galiza, com-
que ajudou a dar corpo ao movimento da preende-se melhor que a saudade se ligue
renascença portuguesa e que, na ressaca ao mais íntimo sentimento de Portugueses
da instauração da república em 1910, se e galegos.
propunha renovar Portugal, colocando Foram os próprios saudosistas que
a saudade como conceito ontológico pri- em torno da saudade ajudaram a criar
mordial da portugalidade que importava um pensamento contraditório. Teixei-
desbravar. O poeta amarantino consi- ra de Pascoaes, meses antes de morrer
derava que na saudade se encontravam (15/03/1952), na conferência intitulada
fundidos o paganismo e o cristianismo, “Da saudade”, fazia saber: “A Saudade é
união esta que caracterizava o essencial do um sentimento universal, mas, só na alma
homem galaico-português. Fusão entre o lusitana, atinge as alturas supremas da
desejo carnal, pagão, e a dor espiritual, se- Poesia, contendo uma conceção da vida
mita e cristã, um pouco a lembrar o Eros e da existência. E alcançamos também,
platónico, filho de Poros e Penia, junção por virtude dela, o estado místico perfei-
do espírito divino, encarnado nos heróis, to, que é a saudade de Deus personalizada
e do desleixo humano que se arrasta no em nós, substituindo-se completamente
comum dos existentes: pelo desejo a sau- ao nosso ser, elevado num êxtase sem fim”
dade é esperança, pela dor é lembrança (Id., 1988, 243). Daqui retiramos que a
(PASCOAES, 2007, 89-91), e, sendo assim, saudade é um sentimento universal e não
o Universo é a expressão cósmica da sau- particular que atinge o seu auge na poe-
dade (Id., 1919). Entendida desta forma, a sia lusitana, sendo mais uma característica
saudade é mais uma estética do que uma poética do que racional. O autor de Marâ-
ontologia, representada pela phronêsis, ou nus tinha, portanto, evoluído no seu pen-
sabedoria prática, mas não pela sophia samento, pois não era, agora, tão restrito
enquanto espaço utópico de agregação como 40 anos antes, em 1912, quando, em
de todas as coisas sob o trabalho exigente “O espírito lusitano ou o saudosismo”, afir-
da reflexão filosófica. Porque assim é, foi mava que “Nós somos, na verdade, o úni-
ganhando forma na poesia de Pascoaes, co povo que pode dizer que na sua língua
Afonso Lopes Vieira, António Correia existe uma palavra intraduzível nos outros
de Oliveira, António Patrício, Augusto idiomas, a qual encerra todo o sentido da
Casimiro, Jaime Cortesão, Mário Beirão, sua alma coletiva” (Id., Ibid., 51). No ano
Américo Durão, Anrique Paço d’Arcos, seguinte, em 1913, em plena disputa inte-
Domingos Monteiro, Florbela Espanca, lectual com António Sérgio sobre o novo
António Nobre, entre muitos outros. Pas- enfoque filosófico dado à saudade, sem
coaes deu-lhe, então, incontornável forma nunca deixar de ligar o sentimento saudo-
poética e literária, tentando, também, fun- so ao profundo sentir do povo português
damentá-la no campo filosófico da antro- e galego, Pascoaes confinava a saudade a
pologia e da ontologia, enquanto dimen- uma expressão marcadamente subjetiva,
são identitária do sentimento próprio de de carácter existencial: “A Saudade, como
Portugueses e galegos, distinto de termos ela é hoje compreendida […] representa,
de outras latitudes com conotações idênti- portanto, a raça lusitana na sua expressão

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1692 Antissaudosismo

subjetiva; é o seu íntimo perfil eterno e


original. O povo português criou um sen-
timento suscetível de se tornar um alto cri-
tério orientador” (Id., Ibid., 110).
É por isso natural que um pensamento
poético, mais do que filosófico, teológico
mais do que racional, tivesse levado de
imediato a severas reações por parte dos
seguidores do cientismo racionalista e po-
sitivista que continuava a reinar entre boa
parte dos intelectuais da república recém­
‑instalada.
O psiquiatra Júlio de Matos perguntava:
“Em que se baseia essa renascença? Na
Saudade? Mas isso pode lá ser. A saudade é
por sua natureza um sentimento depressi-
vo. A saudade é a recordação de uma pes-
soa querida que nos faltou. Cultivar a sau-
dade é amarrar-se ao passado, é alimentar
um estado mórbido, é ajudar a definhar Aquilino Ribeiro e Raul Proença.
mais a raça” (PROENÇA, 1988, 267).
E continua: “O saudosismo é uma espécie
de sebastianismo. Mas os sebastianistas “o que veio a predominar na Águia não
ainda têm fé num messias, ainda têm um foi o lado intelectual da Renascença, mas
ideal por que lutam. Os lamechas que só a sua falange emotiva, mística, amorosa
têm saudades... Não têm mais nada” (Id., de sonho e de mistério. Por culpa dos
Ibid., 268). Desta forma, Júlio de Matos elementos do Sul, a poesia tinha tomado
associava a glorificação da saudade a uma posse da Águia, da primeira página até
atitude de regressão ao passado, negadora à última […]. O ‘saudosismo’ a que se
do progresso, que amarrava o povo portu- refere o Sr. Dr. Júlio de Matos foi assim
guês às crendices populares e à exaltação um elemento sur-ajouté e de modo algum
de um tempo que já não volta. orgânico e primitivo da Renascença. Tem
Raul Proença, sem desdenhar o alto plena razão, quando diz, que a Saudade
valor e a originalidade da poesia e litera- é um sentimento depressivo, incapaz de
tura dos “renascentes”, nomeadamente revigorar uma raça” (Id., Ibid., 272).
Teixeira de Pascoaes, esclarece Júlio de António Sérgio também tinha estado
Matos, observando que a renascença, na na fundação da renascença portuguesa e
sua origem, tinha um núcleo do Norte, colaborado em A Águia, e, pese embora a
de poetas e estetas, e um grupo do Sul, admiração que nutria pelo trabalho poé-
de racionalistas e “pessimistas”, onde tico de Teixeira de Pascoaes, desferiu du-
ele se incluía. O grupo do Norte acabou ros golpes contra a saudade, reduzindo-a
por tomar conta da orientação da revista aos instintos mais primários, e o saudosis-
A Águia e o grupo do Sul desistiu de mo à vinculação de um povo ao passado,
contribuir com um pensamento mais ra- que se queria ultrapassar por ser um obs-
cional para o seu conteúdo. Proença e táculo ao progresso que se buscava. Tal
outros afastaram-se do movimento, pois como Proença, Sérgio, irmanado no ideal

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Antissaudosismo 1693

(Id., Ibid., 100). A  saudade amarra-nos


ao passado e cria resistência à mudança.
Quanto ao facto de se exprimir por um
termo só existente em Portugal, Sérgio
contraria Pascoaes e os outros saudosistas
esclarecendo que “o  galego tem soleda-
des, soedades, saudades; o catalão anyoran-
sa, anyoramento; o italiano, desio, disio; o
romeno, doru ou dor; o sueco, saknad; o
dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor”
(Id., Ibid., 101). Tudo o que os saudosistas
afirmavam vinha agora o racionalista An-
tónio Sérgio negar. Nem o nacionalismo,
nem o sentimentalismo religioso, ainda
que de uma religiosidade pagã, conven-
ciam as mentalidades racionalistas e po-
sitivistas. A saudade lembrava o destino
messiânico associado ao povo português,
e tal facto ainda criava mais repulsa em
Capa de A Águia, n.º 1. Sérgio, que afirmava em Regeneração e Tra-
dição, Moral e Economia: “sou cético a res-
peito de muita ideia, como as virtudes da
racionalista, separara-se do “saudosismo saudade e as profecias do Bandarra” (Id.,
e outras misticices de igual jaez que por Ibid., 120). A firme rejeição da nova filo-
volta de 1910 bretoejaram a inteligência sofia proposta pelos “renascentes” apare-
portuguesa” (CARDIA, 1972, 266), escre- ce também em Explicações Necessárias do
vendo na Epistola aos Saudosistas: “O que Homem da Espada de Pau ao Arcanjo da Es-
caracteriza a saudade é um certo quê de pada dum Relâmpago: “O Saudosismo [...]
sentimento. Por isso Garrett, o poeta, a decretou que os tempos de depois vieram
definiu bem, e Duarte Nunes, o jurista, antes, que os predecessores e precedentes
a definiu mal” (PASCOAES, 1988, 97). foram sucessores e consequentes. Todo o
Contudo, o “Saudosismo sustenta que a Saudosismo é uma série de sonhos decre-
verdadeira definição não é a de Garrett, tados […]: o que o caracteriza, ao Saudo-
mas sim a do jurista: ‘lembrança de algu- sismo, é a audácia de olhos puros, o san-
ma cousa como desejo dela’”; e Pascoaes to descaramento da invenção” (Id., Ibid.,
propõe esta: “a velha lembrança gerando 146). Mais à frente, conclui de forma
o novo desejo” (Id., Ibid., 97-98). O autor jocosa: “Ainda o Saudosismo descobrirá
dos Ensaios achava que Pascoaes definia a que uma das sublimes originalidades dos
saudade não como característica humana, Portugueses é ter pernas, tronco, braços
quanto mais portuguesa, mas como um e cabeça. Para poder dizer que uma dada
rude facto geral de toda a animalidade: qualidade é característica dum povo, faz­
“O saudosismo representa [...] uma ideia ‑se mister estudar os outros povos” (Id.,
artificial e convencional da literatura” Ibid., 147).
(Id., Ibid., 98). A saudade é “imobilismo, Mas não foram só pensadores racio-
inércia, contemplação do passado, amor nalistas e positivistas que se insurgi-
de cristalizar ou mumificar o que já foi” ram contra a saudade e o saudosismo.

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1694 Antissaudosismo

O integralista António Sardinha também a uma estreita conceção patriótica ou


criticou fortemente esta corrente de pen- nacionalista segundo a qual a saudade re-
samento, escrevendo que o saudosismo dentora, e assim também o messianismo
é “a insuficiência dos cânones artísticos, profético para um futuro além dos tem-
em que o lirismo nos aparece confundido pos, eram pertença exclusiva e avara dos
com subjetivismo. A natureza é deste modo Portugueses”, porque, pensa ele, “hoje
pervertida pelo saudosismo, como espécie podem e devem dizer-se formas universais
de ideologia sentimental, mistura doen- de assumir o enigma e o mais profundo
tia de ‘racionalismo e imaginação’” (BO- mistério enigmático num povo extremo
TELHO e TEIXEIRA, 1986, 250-251). da Ibéria, povo extremo, cabe longamen-
O  monárquico Fidelino de Figueiredo, te pensá-lo, não da Europa, mas da Eurá-
em 1917, também se manifestava contra o sia, povo que recusa por igual, num sen-
saudosismo: “como da saudade sentimen- tido, a contraposição de Apolo e Dioniso,
to se passa para essa vasta arquitetura do e, noutro sentido, a mística absorta ou o
Saudosismo, não é fácil explicar, porque grandioso drama humanizado, mas sem
coerência lógica e transparente nitidez saída, de D. Quixote e Sancho Pança”
não são características desta doutrina” (MARINHO, 1976, 228).
(Id., Ibid., 251-252). Agostinho da Silva, possuidor do pen-
A mesma reação cética em relação samento especulativo mais paradoxal do
a uma filosofia da saudade encontra­ panorama português, que acompanhou
‑se ainda em autores como Joaquim de os “renascentes” saudosistas e os “searei-
Carvalho, que, no ensaio Problemática da ros” racionalistas e positivistas, nas lon-
Saudade (1950), reconhece que, sendo o gas reflexões sobre o destino do nosso
séc. xix o tempo dos romantismos e por povo não se coibiu de manifestar o seu
isso propenso ao saudosismo, em opo- antissaudosismo. Entendendo a saudade
sição ao longo período de domínio do enquanto sentimento geral e não parti-
cientismo positivista, só por si, “a corre- cular, associou o saudosismo ao declínio
lação com as situações espirituais epocais de Portugal, entendendo que em Portu-
não significa que a temática da saudade gal a saudade serve apenas para manter
seja una e constante” (Id., Ibid., 218). o povo triste e preso a um passado áureo
A  saudade enquanto característica on- que se tinha esfumado com o nevoeiro
tológica identificadora de um povo não de Alcácer Quibir. Para ele, era o Portu-
parecia ao professor da Univ. de Coimbra guês do Brasil, alegre e descontraído, o
poder ser uma marca específica do povo Português do samba e não o do fado, que
português: “A consciência saudosa, como era preciso ressuscitar: “quando qualquer
manifestação do sentido de estar no Mun- pessoa vai por essa carreira do sentimen-
do, não creio que seja princípio bastante talismo português e do fado, etc. [...] Vou
e suficiente de uma explicação metafísica em cima disso, que são coisas que eu de-
da realidade que se vive, mas a explicação testo!” (SILVA, 2000, 157). De uma forma
total da realidade que se vive não pode dramática, entre Amália e Eusébio, não
menosprezar os ensinamentos e as corre- hesitava em escolher o segundo: “o Eusé-
lações implícitas na consciência saudosa” bio valia muito mais do que o fado! Mui-
(Id., Ibid., 225-226). tíssimo mais! Pelo menos [...] dava ponta-
José Marinho, próximo de Pascoaes e pés direitos e para um determinado fito!
de Leonardo Coimbra, é assertivo quan- Com o fado não” (Id., Ibid., 157). Amá-
do afirma que “viram certo os opositores lia até podia ser uma excelente cantora,

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Antissaudosismo 1695

contudo, “o que se canta bem pode ser as filiações, não se tem inibido de alertar
uma porcaria. A música dolente, terrível, para as insuficiências de um pensamento
e o palavreado, as desgraças que sucedem saudosista que sirva de suporte a um res-
a cada um e que põem em tanto portu- surgir da nacionalidade no seu esplendor
guês o gosto do desastre!” (Id., Ibid., 157). máximo. Só por trazerem algum realismo
O fado saudosista prende ao passado, en- e manterem um elevado diálogo intelec-
quanto o samba libertador renova o tem- tual em torno de uma categoria que está
po, transportando-nos para um futuro de longe de agregar todos os Portugueses,
esperança e alegria. Saudade só a deve- vale a pena ter em conta os seus argu-
mos sentir pelo futuro. O samba é a ca- mentos e refletir nas abundantes críticas
racterística do “português à solta”, aquele que vão formulando. O devir, tal como
que se quer libertar dessas amarras a um pretendem os saudosistas, é o resultado
passado penoso de desgraça e destruição de diversas sínteses para as quais os an-
e ser agente participativo na construção tissaudosistas vão dando um importante
de um futuro radioso. contributo.
Numa análise estritamente filosófica,
José Barata-Moura, ao analisar a tradição Bibliog.: BARATA-MOURA, José, “Peso, pê-
saudosista, eivado de uma filosofia da prá- same, pesadelo – para um sopesamento (não
saudosista) da saudade”, Philosophica, n.º 10,
xis, conclui que o saudosismo “dualiza,
1997, pp. 3-27; BOTELHO, Afonso, e TEIXEI-
não dialetiza; estetiza, não trabalha efe- RA, António Braz (coords.), Filosofia da Sauda­
tivamente pelo pensamento e pela ação de, Lisboa, INCM, 1986; BOTELHO, Afonso,
possibilidades reais; consagra (lavrando Da Saudade ao Saudosismo, Lisboa, Instituto de
enevoados protestos), não revolucio- Cultura e Língua Portuguesa, 1990; CARDIA,
na materialmente” (BARATA-MOURA, Sottomayor (org.), Seara Nova – Antologia, pela
1997, 13). O saudosismo promove o re- Reforma da República, vol. ii, Lisboa, Seara Nova,
1972; COIMBRA, Leonardo, Obras Completas,
gresso a tempos idos e inibe a produção
vol. i, t. ii e vol. v, t. ii, Lisboa, INCM, 2004 e
do novo. Serve-se do presente para ali- 2009; COSTA, Dalila L. Pereira da, e GOMES,
mentar um passado que não retorna. Mas Pinharanda, Introdução à Saudade, Porto, Lello e
também, “do ponto de vista ontológico, Irmão, 1976; Logos, vol. iv, Lisboa, Verbo, 1992;
o saudosismo desatende (e procura ilu- LOURENÇO, Eduardo, Portugal como Destino
dir, começando por iludir-se) a unidade Seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva,
material do ser, mistifica a historicida- 1999; MARINHO, José, Verdade, Condição e Des­
tino no Pensamento Português Contemporâneo, Por-
de” (Id., Ibid., 24). Para este pensador, to, Lello e Irmão, 1976; PASCOAES, Teixeira de,
“a abordagem saudosista […] vem eivada Os Poetas Lusíadas: Conferências Realizadas no Insti­
de insalubridade, ao instalar-se numa órbi- tut de Estudos Catalans da Cidade de Barcelona, em
ta de comovida restrição da historicidade Junho de 1918, Porto, Tipografia Costa Carre-
ao revisitar (ainda que ‘intenso’ e, no gal, 1919; Id., A Saudade e o Saudosismo – Disper­
limite, até ‘milenarista’) de um passado sos e Opúsculos, org. Pinharanda Gomes, Lisboa,
Assírio e Alvim, 1988; Id., Arte de Ser Português,
idealizadamente (re)construído como
Lisboa, Assírio e Alvim, 2007; PROENÇA,
penhor de uma matriz nostálgica de futu- Raul, Polémicas, org. Daniel Pires, Lisboa, Dom
ro” (Id., Ibid., 26). Quixote, 1988; SILVA, Agostinho da, O Império
Ora, se bem que sem tantos seguidores Acabou. E agora? Entrevista a Antónia de Sousa, Lis-
quantos aqueles que ao longo dos tem- boa, Notícias, 2000; VASCONCELOS, Caroli-
pos se têm dedicado à gesta do estudo do na Michaëlis de, A Saudade Portuguesa, Lisboa,
saudosismo, a corrente antissaudosista, Guimarães Editores, 1996.
pela voz de diversos pensadores, de todas Artur Manso

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1696 Antissebastianismo

Antissebastianismo Ciclos de lendas com grande voga po-


pular, como o arturiano e o carolíngio,
foram também trazidos à colação. Todos
estes elementos, amassados com o cimen-
to da ideologia de cruzada, da ideologia
imperialista, formulada mais visivelmente
em Portugal desde os finais do séc. xv, e

F enómeno de origens incertas e difu-


sas, com expressões diversas – nem
sempre públicas ou bem documenta-
das pretensões autonomistas pré-moder-
nas, de que era exemplo mais próximo
a revolta dos comuneros, que ocorreu sob
das – ao longo de alguns séculos, o se- a égide do Encubierto, durante o reina-
bastianismo deparou-se igualmente com do de Carlos I de Espanha, constituíram
uma oposição bastante variada, em fun- um painel complexo em que a face de
ção dos contextos históricos e sociocultu- D. Sebastião emerge como mero signo.
rais em que atuava. Para mais, à dispersão do sebastianismo
Com efeito, parece unânime, junto dos por diferentes meios culturais e sociais
inúmeros estudiosos que se dedicaram acresce o seu estatuto indefinido asso-
à temática sebastianista, que a esperan- ciável, entre outros elementos, à crença
ça messiânica em torno da figura do Rei religiosa e à ideologia política, ao autono-
português desaparecido nas areias de mismo e ao imperialismo, à interpretação
Alcácer Quibir em 1578 foi acolhida por profética e à superstição, à ideologia de
elementos de diferentes meios culturais e corte e a círculos domésticos de devoção,
sociais. Intelectuais fidalgos ou próximos a um motivo artístico e a anedotas e ditos
da fidalguia, sapateiros profetas, religio- quotidianos.
sos que aliavam a fé católica a esta espé- Tal como será tarefa complexa encon-
cie de “religião da pátria”, e visionários trar traços comuns e consistentes que
plebeus são alguns dos exemplos mais unam as diferentes expressões do fenó-
visíveis de um fenómeno que durante meno sebastianista ao longo de mais de
séculos e em função das circunstâncias quatro séculos, é árduo, senão mesmo
políticas do reino foi revelando a sua pre- impossível, unificar as campanhas, perce-
sença persistente, pelo menos enquanto ções e atitudes avessas ao sebastianismo
facto cultural. sob um só fio condutor. À partida, como
Quem se debruce sobre este tema num identificou António Machado Pires, na
âmbito geral defronta-se, portanto, com esteira de João Lúcio de Azevedo, poder­
várias dificuldades óbvias, e.g. com o facto ‑se-iam identificar focos antissebastianis-
de o corpus sebastianista, ainda bastante tas que responderam a vagas messiânicas
difuso, compreender diferentes géneros que ocorreram em momentos-chave da
de texto, como tratados de interpretação história política de Portugal. Acrescen-
profética e versos repentistas, lendas e tando alguns elementos a esta proposta,
crónicas, entre outros. Para além disso, associaríamos estas vagas ao período da
foram integrados neste corpus, lidos, glo- crise sucessória, que conduziu à perda
sados e alterados por afetos à esperança da independência da Coroa portuguesa e
sebastianista, diversos textos provenien- ao jugo filipino, à Restauração da Inde-
tes de outras tradições messiânicas ou pendência, ao Governo pombalino, às in-
proféticas, emergentes no seio do ju- vasões francesas e à Primeira República.
daísmo, do islamismo e do cristianismo. Todavia, tentaremos não nos limitar, na

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nossa colação, a uma visão macro-históri- ter ainda convergido, de alguma manei-
ca ou centrada nos grandes factos e tex- ra, com formas de religiosidade conserva-
tos, procurando integrar elementos cir- das junto de elementos das comunidades
cunstanciais e prestar a atenção possível cristãs-novas.
a diversos níveis, mais ou menos ocultos Aquele que é provavelmente o princi-
e mais ou menos eruditos, de cultivo e de pal texto canónico da crença sebastianis-
combate ao sebastianismo. ta, as Trovas, de Gonçalo Anes Bandarra,
Para melhor compreendermos a oposi- sapateiro de Trancoso, terá emergido des-
ção ao sebastianismo, é útil ter em conta te fermento (&Antibandarrismo). A  sua
alguns fenómenos anteriores à Batalha ambiência messiânica e judaizante, e a
de Alcácer Quibir que acima referimos sua forte difusão chamaram a atenção do
sucintamente e que integram inequivoca- recém-criado Tribunal do Santo Ofício.
mente o substrato da crença messiânica Bandarra ouviu a sentença no auto de fé
em D. Sebastião. Entre eles, encontra-se a de 23 de outubro de 1541. Considerado
miríade de motivos que, desde o começo um homem simples e de poucas letras,
do séc. xv, foram compondo aquilo a que foi-lhe imposto, sob pena de castigo, “que
poderíamos chamar ideologia imperial não se entremeta mais a responder nem
portuguesa. Adaptando elementos da tra-
dição medieval de toda a Europa ao con-
texto português e emprestando à história Rei D. Sebastião (1554-1578).
de Portugal e à sua empresa expansionis-
ta um significado sagrado, esta ideologia
foi reforçando a esperança de que a Co-
roa portuguesa estivesse predestinada a
encabeçar um movimento de conquista
e cristianização de todo o mundo, supos-
tamente profetizado nas Escrituras. Com
efeito, a cruzada contra o islão, e o plano
de recuperação da Terra Santa e de pleni-
ficação da cristandade por via da aliança
com o Preste João, aos olhos de muitas
figuras maiores do séc. xvi português,
parecem ter sido objetivos mais plausíveis
e legitimadores da empresa ultramarina
que o comércio da Ásia.
Todavia, a exposição e fundamentação
destes motivos não estava isenta de ris-
cos e excessos doutrinais. A ligação deste
ideário aos pensamentos de Joaquim de
Fiore e de autores franciscanos refor-
madores, como Ubertino da Casale, de
ortodoxia muito duvidosa, no alvor da
reforma tridentina, foi já objeto de estu-
dos relevantes, mas aguarda ainda novos
aprofundamentos. Para mais, a compo-
nente profética e exegética desta parece

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escrever nenhuma cousa da Sagrada Es- Compreensivelmente, seria após a Ba-


critura nem tenha nenhuns livros dessa talha de Alcácer Quibir e o começo do
maneira, salvo sendo o Flos Sanctorum ou domínio filipino que surgiriam as pri-
Evangeliorum” (ANTT, Tribunal do Santo meiras manifestações de crença messiâni-
Ofício…, proc. 7197, fl. 13). Para além da ca em torno de D. Sebastião. Os quatro
ordem de proibição da leitura das Trovas, casos conhecidos de falsos D. Sebastião,
foi também divulgado publicamente que ocorridos ainda antes do séc. xvii, teste-
todos aqueles que possuíssem um exem- munham não só que esta esperança vigo-
plar destas deviam entregá-lo à Inquisição raria junto das populações, mas também
no prazo de três dias. que ela era ferreamente combatida pelas
Ainda que a Inquisição não tenha per- autoridades. O primeiro destes, o “rei de
seguido os sebastianistas enquanto tal, Penamacor”, foi preso e enviado para
dado que este desvio pertencia à alçada as galés em 1584, sem que dele tenham
civil e não à religiosa, há notícia, como ve- restado mais notícias, depois de espalhar
remos, de réus sebastianistas julgados no pelo vulgo histórias prodigiosas acerca
Santo Ofício pelas suas asserções e práti- do seu suposto desempenho na Batalha
cas proféticas ou messiânicas, considera- de Alcácer Quibir. O segundo, Mateus
das de cariz herético e/ou judaizante. Álvares, o “rei da Ericeira”, espalhou o
O Desengano de Perdidos (1573), de Gas- tumulto na zona saloia e terá chegado a
par de Leão, primeiro arcebispo de Goa, organizar um exército de 800 homens.
pode também ser considerado um an- Preso em 1585, depois de o seu exército
tecedente da perseguição inquisitorial ter sido desbaratado, declarou que o seu
às ideias messiânicas sebastianistas. No intuito era fomentar a revolta dos Portu-
prólogo da obra, à semelhança de outros gueses contra o jugo castelhano e que,
autores do seu tempo, como Camões, depois de conquistar Lisboa, lhes permiti-
Pêro Andrade de Caminha e Diogo Ber- ria escolherem o rei que lhes aprouvesse.
nardes, Gaspar de Leão assinala o nasci- O terceiro caso, o de Gabriel Espinosa, o
mento “maravilhoso” de D. Sebastião e “pasteleiro do Madrigal”, teve contornos
atribui­‑lhe grandes feitos futuros, no con- de conspiração palaciana. Apoiando-se
texto da Liga Católica contra o Império nas semelhanças físicas e na desenvoltura
Otomano, após a Batalha de Lepanto. do pasteleiro em falar várias línguas e em
Porém, em conjunto com as proposi- montar a cavalo, Fr. Miguel dos Santos,
ções de teologia mística unitiva e com a um monge português, terá procurado
temática geral do livro – polémica dou- casá-lo com D. Ana de Áustria, filha ilegí-
trinal anti-islâmica ou anti-herética, tam- tima de D. João de Áustria, e elevá-lo ao
bém desaconselhada neste período pela trono de Portugal. Descoberta a conjura-
Inquisição –, as asserções proféticas da ção em 1595, D. Ana acabaria por ser sen-
primeira parte, ecoando motivos do fran- tenciada a quatro anos de prisão; Fr. Mi-
ciscanismo espiritual, terão movido Fran- guel dos Santos e Gabriel Espinosa foram
cisco Foreiro – relator do Index de 1581, e enforcados e expostos em praça pública.
autor do Iesaiae Profhetae Vetus & Nova ex Marco Túlio Catizone, o D. Sebastião de
Hebraico Versio, tradução e comentário do Veneza ou o “cavaleiro da cruz”, o quarto
livro de Isaías, em que perfeitamente se caso conhecido de um falso D. Sebastião,
conjugam ideologia imperial e ortodoxia terá merecido o apoio da fidalguia portu-
pós-tridentina – a incluir o Desengano de guesa exilada, nomeadamente de D. João
Perdidos na lista de livros proibidos. de Castro.

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D. João de Castro pode ser considera-


do com justiça o primeiro grande codifi-
cador e ideólogo do sebastianismo. Nos
seus livros encontra-se compilada boa
parte dos textos proféticos que as hostes
sebastianistas cultivavam e que seriam re-
lidos e glosados durante séculos.
Após a derrota, em 1583, do partido de
D. António, prior do Crato, que D. João
de Castro integrava, este autor exilou-se
em Paris, onde se dedicou ao estudo e à
compilação de profecias que fundamen-
tassem a crença no regresso de D. Sebas-
tião. Perante a adversidade das circuns-
tâncias políticas e bélicas no seu reino,
D. João de Castro procurava nas profecias
indícios de uma mudança que parecia
cada vez mais remota. O Tratado da Quin-
ta Monarquia, redigido em latim em 1597,
ainda inédito, foi o primeiro resultado D. João de Castro (1500-1548).
deste esforço.
A partir de 1598, o autor encontrou
finalmente um depósito para as suas de dar uma resposta profética aos desa-
esperanças em Marco Túlio Catizone. fios que as circunstâncias e as evidências
A publicação do Discurso da Vida do sempre factuais colocavam, contrariando as suas
Bem Vindo, e Apparecido Rey D. Sebastião e esperanças. Todavia, mesmo tendo em
da Ajunta do Discurso (1602), bem como conta a ambiência conspirativa, por vezes
de uma edição comentada das Trovas alucinada, de boa parte dos escritos de
de Bandarra, Paraphrase e Concordancia D. João de Castro, eles trazem alguma luz
(1603), pertenceram ao esforço de legi- sobre a perseguição movida aos sebastia-
timação das esperanças no alegado rei. nistas durante o período filipino.
Após a execução da sentença de morte de Na obra de Manuel Bocarro Francês
Catizone, emitida pelas autoridades caste- também encontramos claros testemunhos
lhanas em 1603, em Sanlúcar, D. João de da perseguição movida aos sebastianistas
Castro procurou, na sua Aurora da Quinta durante o período filipino. Nascido em
Monarquia e nas obras que se seguiriam, Lisboa no seio de uma família cristã-nova
apresentar este episódio como mais um sefardita, em finais do séc. xvii, Manuel
artifício castelhano para encobrir o rei Bocarro estudou Medicina, Astronomia,
legítimo de Portugal, ao mesmo tempo Matemática e Filosofia nas universidades
que ampliava o esforço de compilação e de Coimbra, Alcalá de Henares e Mont­
comentário de fontes proféticas. pellier. Regressado a Portugal em 1619,
A obra de D. João de Castro mantém exerceu o ofício de médico com distin-
uma relação profunda com a vivência do ção, ao mesmo tempo que se dedicou à
seu autor. Forjada persistentemente ao redação das suas congeminações astroló-
longo de cerca de 45 anos de exílio, ca- gicas e proféticas. Nas suas Anacephaleoses
racteriza-se por uma tentativa constante da Monarchia Luzitana, publicadas em

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1700 Antissebastianismo

1624, encontram-se três partes (anacefa-


leoses) compostas por conjuntos de oita-
vas em que se conjugam uma exaltação
do passado da monarquia portuguesa e
uma especulação astrológica que prome-
tia ainda maiores glórias futuras. Todavia,
o projeto original era mais vasto e arro-
jado. Na sua Luz Pequena, Lunar e Esteli-
fera da Monarchia Luzitana, publicada em
Roma no ano de 1626, Manuel Bocarro
explica que em 1624, durante o proces-
so de impressão das suas Anacephaleoses,
os castelhanos tinham ordenado ao in-
quisidor Gabriel Pereira de Castro a sua
prisão sob o pretexto de criptojudaísmo.
Na sequência destas diligências, os ori-
ginais e os exemplares impressos ainda
não vendidos tinham sido apreendidos.
A quarta anacefaleose, em que Bocarro
se referia mais explicitamente à vinda do
Encoberto, identificando-o com D.  Teo-
dósio de Bragança, fora censurada, por
Folha de rosto de Anacephaleoses da Monarchia
alegadamente incitar o povo português
Luzitana, de Manuel Bocarro Francês (1588-1668).
à revolta contra o Rei. Liberto após mais
de dois meses de prisão no tronco, Ma-
nuel Bocarro fugiu para Roma, onde o sebastianismo. Todavia, no âmbito des-
publicou Luz Pequena, um pequeno livro te estudo, é sobretudo importante notar
onde acrescenta à publicação da quarta que em Bocarro se encontram algumas
anacefaleose, antes censurada, algumas das primeiras expressões de uma nova
considerações de cariz biográfico e profé- sensibilidade emergente no seio do sebas-
tico. De Roma, partiria para Amsterdão, tianismo durante as primeiras décadas do
onde terá retomado os costumes judaicos séc. xvii, que entendia ser possível conce-
junto da comunidade sefardita portugue- ber o Encoberto como outra pessoa que
sa, iniciando uma trajetória que conjuga não D. Sebastião. Na obra Luz Pequena
trabalho diplomático, científico, médico lemos: “E com isto explicarei o equívoco
e astrológico. dos Sebastianistas, que ainda que enten-
Como alguns autores assinalaram, nem demos os que o somos que El­‑rei D.  Se-
sempre é fácil encontrar um nó comum bastião não morreu na batalha de África
entre as diversas camadas identitárias e (pois temos disso demonstrativa certeza),
culturais que Bocarro acumulava e a que contudo não esperamos por ele para o
deu expressão, por vezes simultaneamen- domínio de Portugal. Rei temos nele; por
te, na sua obra. Algumas delas, como o El-Rei D. Sebastião entendemos seu san-
patriotismo português, o messianismo gue” (BOCARRO, 1626, fl. 5v.).
judaico e a astrologia, e.g., pertencem, in- Apesar de sebastianismo e restaura-
dubitavelmente, ao substrato cultural he- cionismo se encontrarem estreitamente
teróclito e heterogéneo de onde emergiu unidos durante as primeiras décadas do

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séc. xvii, eles tornar-se-iam, em certa de contornos religiosos é um aspeto bas-


medida, incompatíveis a partir de 1640. tante relevante e inovador do tratado de
Segundo livros como Restauração de Portu- Paiva, identificável em discursos e ma-
gal Prodigiosa (1643-44), de Gregório de nifestações futuras do fenómeno sebas-
Almeida (pseudónimo), Discurso Gratu- tianista, em contexto marginal ou não
latório (1642), de Fr. Francisco Brandão, hegemónico. Com efeito, à semelhança
e Ressurreição de Portugal e Morte Fatal de de outros escritos sebastianistas do seu
Castela (1645), de Fr. Manuel Homem, tempo, e.g. o poema heroico Monarquia
o novo Rei aclamado, D. João IV, devia Luzitana, de Inácio de Guevara (pseudó-
concentrar em si todas as esperanças que nimo?), ou o Reino de Portugal, Sua Creação
antes eram depositadas em D. Sebastião. e Sucessos, de Fr. João da Cruz, o Tratado da
Com efeito, em boa parte dos casos, os Quinta Monarquia não chegou ao prelo.
autores joanistas recorriam ao repertório Em relação a outros escritos, como Tra-
profético já disponível entre as hostes se- tado em que Se Mostra e Se Confirma a Espe-
bastianistas, nomeadamente às Trovas de rança da Suspirada Vinda do Sereníssimo Rei,
Bandarra, adaptando-o à nova realidade. o Senhor Dom Sebastião, que chegou a ser
Começava assim uma nova fase de opo- atribuído, erroneamente, ao P.e António
sição ao sebastianismo, em que este já Vieira, ou Livro das Cousas mais Notáveis
não se confrontava com uma oposição Que Tenho Lido acerca dos Fundamentos Que
estrangeira, mas sim com compatriotas Têm os Sebastianistas para Afirmarem Que É
que, aliás, se expressavam em termos mui- Vivo e Há-de Vir o Sereníssimo Rei D. Sebas-
to semelhantes. Como antes, os motivos tião, para além de não terem sido impres-
desta perseguição eram sobretudo políti- sos, não conhecemos ainda a quem se
co-religiosos, mas o enfoque da contenda deve a sua autoria.
transferira-se da questão da independên- Todavia, a perseguição ao sebastianis-
cia nacional para a discussão interna dos mo não se limitou à polémica escrita en-
destinos da nação e do império. tre autores sebastianistas e joanistas. De
O Tratado da Quinta Monarquia, concluí- facto, a Inquisição continuou, durante
do por Fr. Sebastião de Paiva em 1641, é este período, a perseguir os excessos da-
um dos mais explícitos exemplos de um queles que, arvorando-se de santos, pro-
texto sebastianista ortodoxo que, em ple- fetas ou visionários, advogavam a vinda
no período da Restauração, visava oblite- de um novo messias, o advento de uma
rar as novas esperanças para reafirmar a nova idade ou a reformação da Igreja. Os
crença antiga no regresso do Rei desapa- dois casos apresentados por Jacqueline
recido em Alcácer Quibir. Recuperando Hermann na obra No Reino do Desejado, o
o património compilado por D.  João de de Joana da Cruz e o de Maria de Mace-
Castro e adicionando-lhe diversos recur- do, constituem bons exemplos do modo
sos eruditos, Paiva tem consciência de como a Inquisição operava nestes casos.
que a sua mensagem era, naquele tempo, Joana da Cruz, religiosa professa no
desacreditada por muitos, e não hesita Mosteiro de Jesus, em Viseu, afirmava, en-
em increpar, na abertura do seu tratado, tre outros prodígios, que Deus lhe revela-
aqueles que se acomodavam “mais aos ra que Roma seria abrasada e que o novo
sucessos presentes que à fé devida a seu papa proporia a canonização de D. Sebas-
Libertador” (PAIVA, 2006, 163). tião. Declarava ainda que a alma do Rei
A apresentação da crença messiânica lhe aparecia na figura de um porco ou de
em D. Sebastião enquanto fé e devoção pessoas. Foi condenada por fingimento

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de visões e de revelações ao degredo no que havia de vir a este reino, e outras


Brasil no ano de 1660. coisas que os sebastianistas afirmam, não
Maria de Macedo, conhecida como cometia culpa perante ao Santo Ofício”
a “vidente do Chiado”, era filha de um (HERMANN, 1998, 290-291).
violeiro do Rei e esposa do oficial maior De facto, mesmo que estas “coisas” que
do escrivão da Fazenda Real. Nos seus os sebastianistas afirmavam não perten-
transes, seria alegadamente transportada cessem à alçada da Inquisição, diversos
por cães e lagartos que se transformavam textos, bem como atitudes e práticas de
em homens (designados como turcos cariz religioso normalmente associáveis à
ou mouros encantados) até à Ilha Enco- crença sebastianista, continuavam a des-
berta. Segundo a reputada vidente, aqui pertar as suspeitas do Tribunal. A nova
reinaria D. Sebastião, que se encontrava sentença proferida pela Inquisição con-
casado com uma princesa da Dinamarca, tra Gonçalo Anes Bandarra em 1665, um
de quem teria seis filhos. A sua corte era ano antes do caso de Maria de Macedo,
composta por vários fidalgos portugueses demonstra não só que as Trovas continua-
igualmente desaparecidos com o Rei na vam a ser bastante lidas, como também
Batalha de Alcácer Quibir. Num dos seus que, mesmo não se ocupando da com-
passeios com D. Sebastião, Maria de Ma- ponente política do sebastianismo, a In-
cedo teria ainda testemunhado o encon- quisição continuava a perseguir textos e
tro deste com o Rei Artur e com Jaime condutas que lhe estavam associados.
de Aragão na igreja de Nossa Senhora da O processo inquisitorial movido contra
Ilha Encoberta, também designada por o P.e António Vieira entre 1663 e 1667
Paraíso Terreal, onde compareceram em não será, de todo, alheio à emissão desta
corpo S. João Evangelista e os profetas sentença contra Bandarra. As suspeitas da
Enoque e Elias. Ainda segundo Maria de Inquisição basear-se-iam em proposições
Macedo, o Rei regressaria a Portugal em contidas na famosa carta Esperanças de Por-
data incerta numa frota com mais de 270 tugal, Quinto Império do Mundo, remetida
navios, para assumir o trono e iniciar a ao P.e André Fernandes, bispo do Japão
conquista da Terra Santa e a destruição e confessor da Rainha regente D. Luísa
dos turcos. Aqui reinaria 120 anos, sendo de Gusmão, em 1659. Segundo Vieira,
depois o seu corpo depositado junto ao Bandarra era um verdadeiro profeta, que
Santo Sepulcro. tinha profetizado que D. João IV, já então
Depois de estar presa durante um mês, falecido, iria realizar grandes feitos ainda
Maria de Macedo foi condenada, a 4 de não cometidos, e, portanto, o Rei iria res-
abril de 1666, a sair em auto de fé com suscitar.
vela acesa na mão, a ser açoitada publica- Ainda que as esperanças de Vieira se
mente e a cinco anos de degredo em An- concentrassem em D. João IV, e não em
gola. O texto da sentença deixa, porém, D. Sebastião, este processo inquisitorial
claro que a vidente não tinha sido con- permite-nos, pelo menos, perceber que,
denada enquanto sebastianista, mas sim na déc. de 60 do séc. xvii, o ambiente
por “fingir milagres, ter visões de santos, religioso e político português se tornara
revelações de coisas incógnitas e futuras, cada vez menos propício às congemina-
proferir proposições temerárias”. É ainda ções messiânico-proféticas que tinham
dito que “se a ré somente por discursos grassado no período da Restauração.
vulgares dissera que el-rei D. Sebastião Como José Pedro Paiva demonstrou
era vivo, que estava na Ilha Encoberta, num artigo recente, é possível identificar

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Antissebastianismo 1703

causas “remotas” do processo de Vieira de pelo menos dois tratados proféticos


que nos remetem para o contexto dos de cariz sebastianista: o Thesouro Descuber-
conflitos políticos na corte daquele tem- to, terminado por volta de 1685, e o Liber
po, e para contendas institucionais em Unicus, Exposição do XI, XII, & XIII Capítu-
que o padre jesuíta se viu implicado (PAI- los do IV Livro do Propheta Esdras, concluí-
VA, 2011, 151). do em 1687.
Para além da perseguição política e O Thesouro Descuberto consiste numa
inquisitorial, os messianistas, tanto sebas- compilação de profecias comentada por
tianistas como joanistas, deparavam-se Félix da Costa, que acrescenta novas fon-
neste tempo com inúmeras adversidades. tes ao corpus reunido por D. João de Cas-
As perdas de possessões imperiais, sobre- tro. Apesar de nunca ter sido impresso, o
tudo no Oriente, face à emergência de tratado terá merecido grande voga entre
novas potências, e a evidente degradação as hostes sebastianistas, conhecendo-se
do papel que Portugal desempenhava três cópias, das quais a mais recente, pre-
na cruzada contra os turcos, associadas sente na Torre do Tombo (Manuscritos
à pesada demora da vinda anunciada da Livraria, n.º 1111), é posterior a 1736.
do Encoberto, constituíam, no final do No testemunho existente na Biblioteca
séc. xvii, evidências demasiado gritantes Nacional de Portugal, o copista acrescen-
para que o messianismo continuasse a ser tou, em anexo, diversos documentos, dos
cultivado tão abertamente como fora no quais aqui destacamos uma carta de um
reinado de D. João IV. Gradualmente, o “herege dos bens de Portugal e do mun-
sebastianismo foi sendo transferido do do”, i.e., de um antissebastianista, com a
horizonte da ideologia político-religiosa data de 1659. Num tom jocoso, o “here-
para o domínio de uma crença ou devo- ge” acumula argumentos contra o credo
ção doméstica. Remetido a este reduto, sebastianista, explicando, e.g., que, mes-
uma posição não necessariamente mi- mo que D. Sebastião fosse remotamente
noritária, mas por certo distante em re- vivo, ser-lhe-ia difícil levar a cabo grandes
lação às grandes hegemonias culturais, feitos bélicos com a idade de 105 anos.
o fenómeno sebastianista conservar-se-ia Perto da conclusão, onde o autor faz re-
disponível para emergir em expressões ferências caricaturais à exuberância do
populares e eruditas pontuais em mo- imaginário sebastianista, acrescenta-se
mentos-chave da história de Portugal. ainda: “Que os que o viram o desejem,
Redigida durante a penúltima década do é saudade de velhos; que os que o não
séc. xvii e inédita até aos nossos dias, a viram o esperem, é pretensão de novos;
obra profética de Félix da Costa Meesen que os que se prezam de doutos expli-
oferece uma imagem suficientemente quem os profetas antigos sobre o que não
esclarecedora acerca do contexto e dos falam, não lho aprovo; que cada um é se-
modos em que um sebastianista erudito nhor de sua vontade, se pode, e talvez o
operaria neste tempo. quer ser das alheias sem poder” (COSTA,
Filho de Luís da Costa Meesen, pintor Thesouro Descuberto…, 113).
com provável origem flamenga, Félix Incluída na compilação com o propó-
da Costa era próximo da corte, tendo sito de introduzir uma longa réplica se-
pertencido ao séquito que acompanhou bastianista, esta carta de um opositor per-
D. Catarina à corte de Carlos II de Ingla- mite-nos, no entanto, reconstituir alguns
terra. Regressado a Portugal, antes de termos da polémica existente ao longo da
1676, Félix da Costa dedicou-se à redação segunda metade do séc. xvii. Para além

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1704 Antissebastianismo

disso, à semelhança, e.g., dos tratados de George Kubler refere, entre outros da-
D. João de Castro, todo o Thesouro Descu- dos relativos à biografia do pintor, a sua
berto parece ter sido composto num tom participação, em 1676, como testemu-
de polémica e de resposta a objeções nha abonatória, no processo inquisi-
várias. Esse contexto implicava ainda torial de António Serrão e Castro, dro-
cautelas diversas por parte do autor, que guista e cristão-novo. Daqui se retiram
reiteradamente procura conciliar as suas algumas informações sobre o quotidiano
conclusões com a ortodoxia católica. tanto do réu como de Félix da Costa cer-
Consistindo num comentário a um li- ca de uma década antes da redação dos
vro deuterocanónico muito utilizado por seus tratados proféticos. Refere o pintor
autores sebastianistas, Esdras 4, o Liber no seu testemunho que Serrão e Castro
Unicus implicava cuidados acrescidos. frequentava a casa de seu pai na antiga
O intuito geral do tratado consistia em R. dos Calafates, depois R. do Século,
apresentar uma nova interpretação alegó- no Bairro Alto, que eram amigos de in-
rica de um episódio de Esdras 4 em que fância, e que tinham em comum o gosto
um leão sai da selva para destruir uma pela leitura e pelo debate de livros de
águia que assolava o mundo. De acordo temática religiosa. Através de outros pa-
com Félix da Costa, a interpretação até péis anexados ao processo, ficamos tam-
então desenvolvida por outros autores bém a saber que a loja de Serrão e Castro
sebastianistas e joanistas, segundo a qual era frequentada por poetas e artistas de
a águia seria o Império Romano e o leão teatro, entre outras figuras da boémia
o Encoberto, estaria errada. Propõe, por lisboeta de então. A estas acrescentam­
seu turno, à luz dos acontecimentos do ‑se figuras religiosas, como Fr. Miguel de
cerco de Viena, de 1682, e das campa- Jesus Maria, Agostinho Descalço, Fr. José
nhas posteriores, que a águia deve ser Delgado, Trinitário, e os padres Manuel
interpretada como figura do Império Pereira e Francisco Leonardo, nomea-
Otomano, e o leão como o Encoberto, dos autores das composições poéticas
D. Sebastião, que voltaria para encabeçar que abrem o Thesouro Descuberto elogian-
o movimento de destruição final dos tur- do o labor de Félix da Costa.
cos (&Antiotomanismo). Mesmo sem arriscar demasiado, é pos-
Félix da Costa procurava, assim, à se- sível aferir daqui alguns elementos acer-
melhança do P.e António Vieira, em algu- ca do contexto em que Félix da Costa se
mas cartas que redigiu neste tempo, dar movia e em que redigiu os seus tratados
vantagem a Portugal em relação à Poló- proféticos. Aparentemente, o pintor per-
nia numa competição profética pela pri- tenceria a um grupo de fiéis à crença se-
mazia na cruzada contra os turcos. Mas o bastianista que mantinha práticas comu-
que é interessante para esta nossa aborda- nitárias que, provavelmente, incluíam a
gem é o facto de Félix da Costa entregar o leitura e a discussão de textos proféticos.
comando dessa cruzada final a D. Sebas- O grupo de Félix da Costa movimentar­
tião, a quem dedica devotamente todo o ‑se-ia na zona do Bairro Alto e parece ter
tratado: “desejoso de vos ver e beijar vos- tido ligações ao Convento da Trindade,
sas plantas, ainda que indigno, Félix da local de onde provém a cópia mais anti-
Costa” (Id., Liber Vnicus…, fls. 2-2v.). ga do Thesouro Descuberto que chegou aos
No estudo que acompanha a edição nossos dias (anterior a 1689; Biblioteca
da Antiguidade da Arte da Pintura, tratado da Ajuda, 52-VIII-52), e que tinha algu-
concluído por Félix da Costa em 1692, ma tradição sebastianista, se tivermos em

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Antissebastianismo 1705

conta, entre outros dados, a filiação reli-


giosa de Fr. Sebastião de Paiva.
Com mais certeza, podemos também
afirmar que as ligações intermitentes que
Félix da Costa manteve com a corte do
reino não lhe permitiram imprimir os
seus tratados proféticos nem o seu trata-
do de pintura, que ficaram assim remeti-
dos a uma transmissão incerta.
O caso de Félix da Costa é ilustrativo do
contexto popular e, nesse sentido, relati-
vamente obscuro em que o sebastianismo
terá operado após a Restauração, o que
explica em parte as dificuldades que os
estudiosos têm em recolher dados sobre
o fenómeno. Remetido pela maior parte
da elite intelectual de então para o domí-
nio da crendice anedótica e do obscuran-
tismo, a partir daqui o credo sebastianista
só seria visível em primeira voz através de
cartapácios em que se compilam profe- Diogo Barbosa Machado (1682-1772).
cias, livros de cordel e poemas soltos que
nunca receberam honra de impressão.
Bastante demonstrativas da voga popu- vros não têm composto e que profecias
lar e, ao mesmo tempo, do estatuto de- não têm junto, canonizando aos seus au-
preciado que a crença sebastianista teria tores por homens de virtude abalizada,
já no decorrer do séc. xviii são as con- tocando com um religioso medo e su-
siderações tecidas por Diogo Barbosa persticiosa veneração qualquer fragmen-
Machado no prólogo das suas Memórias to dos seus vaticínios? [...] Preocupados
para a História d’el-Rei D. Sebastião. Após com a expectação de futuras felicidades,
enumerar eruditamente várias fontes a suspiram que chegue aquele tempo, em
que recorreu para elaborar o volume, que se verá restituída a Portugal a idade
Machado introduz a temática sebastia- de ouro, não reparando estes cronológi-
nista, afirmando que o principal pro- cos alquimistas que todas as suas espe-
blema com que se confrontara durante ranças se desvanecem em ar e resolvem
a sua investigação fora o da morte do em fumo” (MACHADO, 1736, rv).
Rei. Discorrendo sucintamente sobre os Décadas mais tarde, os sebastianis-
testemunhos dos autores que afirmam tas encontrar-se-iam sob a vigilância da
que o Rei morrera na batalha de África governação pombalina. O peculiar pro-
e sobre os testemunhos dos autores que cesso do padre salmantino Luís Antó-
garantiam a sua sobrevivência, Machado nio Cardoso (ANTT, Tribunal do Santo
mostra-se inclinado, com várias reservas, Ofício…, proc. 9067) constitui um inte-
para a segunda opinião. Todavia, no que ressante testemunho, não só dos termos
respeita especificamente à crença dos se- em que o sebastianismo era perspetiva-
bastianistas, o autor é inequívoco: “Para do neste tempo, como também da ati-
autorizarem as suas esperanças, que li- tude do Tribunal durante a governação

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1706 Antissebastianismo

pombalina. Detido em 1761, o réu terá crónica apologética encomendada a José


passado cerca de sete anos nos cárceres de Seabra da Silva por Pombal. Em ter-
inquisitoriais. As denúncias acusavam-no mos resumidos, os padres inacianos são
de, após a expulsão da Companhia de aqui acusados de, após terem instilado
Jesus, em 1759, ter começado a divulgar em D. Sebastião os delírios de glória que
publicamente os seus prognósticos de o conduziram à morte, terem promovi-
ruína do reino e de regresso de D. Se- do ao longo de décadas a superstição
bastião, para restauração da pátria e es- sebastianista e bandarrista nas mentes
tabelecimento de uma grande cruzada mais crédulas do povo português, com
contra os turcos. Entre os papéis deste o intuito de o imobilizar e manter sob
longo processo, encontram-se reportadas o seu jugo perverso. Entre os principais
com bastante detalhe as suas elucubra- promotores desta crença encontrar-se-ia
ções proféticas, que, segundo o próprio, o P.e António Vieira, cujos textos Pombal
resultariam de vários anos de estudo de- mandou compilar sob o título de Maqui-
dicado. Face ao comportamento instável nações de António Vieira. Significativamen-
do réu e à sua renitência em se retratar te, nesta compilação foram atribuídos a
ou reconhecer qualquer crime nos seus Vieira escritos sebastianistas de autores
atos, o Tribunal considerou-o inimputá- anónimos e adicionados comentários
vel por sofrer de loucura. Tendo ainda que visavam denunciar os seus ardis. Sob
ponderado repatriá-lo, os inquisidores diversos aspetos, a versão dos aconteci-
optaram, por fim, no ano de 1768, pelo mentos formulada na Dedução Cronoló-
seu internamento numa enfermaria do gica marcaria indelevelmente a arte e a
Hospital de Todos os Santos. No mesmo historiografia portuguesas pelo menos
ano, coincidentemente, a Real Mesa Cen- até às primeiras décadas do séc. xx. No
sória emitiu um edital em que ordenava a que respeita ao sebastianismo, ela emitia
censura e a queima de livros que contives- um sinal inequívoco de que essa crença
sem profecias ou apologias sebastianistas. era incompatível com os conceitos de ra-
O caso de Luís António Cardoso pode zão e ilustração que deviam orientar um
ser compreendido à luz da instrumenta- Portugal moderno.
lização política do Tribunal do Santo Ofí- As invasões francesas motivariam, ape-
cio no tempo da governação pombalina. sar de tudo, uma nova vaga sebastianista
Com efeito, a manifesta simpatia do pa- no começo do séc. xix. A ocupação es-
dre salmantino pela Companhia de Jesus, trangeira, o tumulto dos exércitos, a pro-
confirmada pelas constantes referências fanação de igrejas e a ameaça à indepen-
a autores inacianos (António Vieira, Ma- dência nacional constituíram elementos
nuel da Veiga e Fernão de Queirós, entre suficientes para exacerbar as esperanças
outros) ao longo do interrogatório, não messiânicas e apocalíticas latentes junto
terá sido alheia à sua detenção. da população.
A invenção e a divulgação do sebas- Neste contexto, a perseguição ao se-
tianismo eram conspirações que Pom- bastianismo teria, porém, contornos
bal adicionava ao vasto rol de culpas da menos violentos e repressivos do que
Companhia de Jesus em Portugal (&An- outrora, e seria protagonizada sobretu-
tijesuitismo). Os meandros desta alega- do por cidadãos indignados com a per-
da trama encontram-se detalhadamente sistência da velha superstição. Inocên-
formulados nas divisões vi-ix da primei- cio da Silva registou 33 peças de uma
ra parte da Dedução Cronológica e Analítica, polémica travada entre sebastianistas

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Antissebastianismo 1707

e antissebastianistas no período com- à “inércia” e à “apatia” num “tempo em


preendido entre 1808 e 1811. que deve atear-se a maior atividade” (Id.,
A publicação que terá dado início à Ibid., 71-89); por fim, “IV. Um sebastianis-
polémica, redigida por autor anónimo e ta é o maior de todos os tolos”, porque
intitulada Anti-Sebastianismo ou o Antidoto não se governa pela lei divina nem pela
contra Varios Abusos (1809), consiste numa lei natural, mas sim por disparates (Id.,
apologia serena e ponderada que coloca Ibid., 90-114).
o sebastianismo lado a lado com outras No mesmo ano de 1810, José Agos-
superstições e extravagâncias persistentes tinho de Macedo leva à cena, no teatro
no Portugal de então, apelando aos cida- da antiga R. dos Condes, uma comédia
dãos para que ajudem a prover as tropas intitulada O Sebastianista Desenganado à
para a guerra, ao invés de esperarem um Sua Custa, cujo texto seria publicado ape-
Rei com 230 anos de idade. nas em 1823. Entretanto, multiplicam­
No mesmo ano de 1809, foi publicado ‑se os escritos contra e a favor da apolo-
o Exame e Juizo Critico sobre o Papel Intitu- gia de Macedo, e também os daqueles
lado Anti-Sebastianismo, em que o autor, que desvalorizam a polémica, de que é
também anónimo, desvaloriza a conten- exemplo o jocoso Tratado de Paz entre os
da, argumentando que “o tal Anti-Sebas- Sebastianistas, o Seu Critico, e os Apologistas
tianismo é muito mais próprio para fazer da Crença Sebastica; Ordenado pela Alta Po-
uma nova criação de sebastianistas, do tencia Medianeira a Excelentissima Senhora
que para desenganar do seu erro aos que D. Prudendia [...] Ratificado e Assignado pe-
já o eram” (Exame e Juizo Critico..., 1809, los Representantes Respectivos, e Dado à Luz
22), e concluindo: “Deixemos pois em para Acabar as Inuteis Questões Que Reinam,
paz aos pobres sebastianistas, que no seio publicado também em 1810 e assinado
da calamidade geral se confortam com por Carlos Vieira da Silva.
aquela esperança, que não prejudica a De facto, os termos em que esta polémi-
pessoa alguma, e voltemos todas as nossas ca é travada confirmam que, no começo
armas contra os napoleonistas, escânda- do séc. xix, o fenómeno sebastianista já
los da razão, abortos da natureza, pestes não teria a gravidade de outrora. Ainda
da sociedade, desonras da pátria, enxo- que, para uma imensa minoria, o sebas-
valhos da espécie humana, opróbrios e tianismo permanecesse como prática
ignomínia da Santa Religião” (Ibid., 50). devocional, doravante ele seria perspeti-
Num livro mais longo, contundente e vado sobretudo como símbolo ou tópico
sistemático, Os Sebastianistas, publicado literário e cultural. A partir deste momen-
em 1810, José Agostinho de Macedo en- to, pode-se considerar que a aversão ao
cetou uma campanha contra o que ele sebastianismo já não se concretizava sob
denominava “ridícula seita”. A sua apo- a forma de repressão ou de censura de
logia resume-se em quatro proposições manifestações da crença, mas sim através
principais: “I. Um sebastianista é um mau da associação deste a atitudes e a dinâmi-
cristão”, porque blasfema ao seguir falsos cas que os autores pretendiam combater
profetas e ao considerar canónicos textos no seu tempo.
que não o são (MACEDO, 1810a, 15-40); É com esta face que o sebastianismo
“II. Um sebastianista é um mau vassalo”, é aludido, e.g., em Frei Luís de Sousa, de
porque se sujeita a um rei que já não exis- Almeida Garrett. Aqui, a solenidade do
te (Id., Ibid., 41-70); “III. Um sebastianista género trágico e a simpatia do escritor
é um mau cidadão”, porque se entrega pelo imaginário popular, suas lendas e

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1708 Antissebastianismo

tradições, afastam à partida o tom de Azevedo, ou as congeminações histórico­


chasqueio dos seus antecedentes. A Bata- ‑filosóficas de Sampaio Bruno – para ele-
lha de Alcácer Quibir é o acontecimento var o sebastianismo ao estatuto de mito
que introduz o drama doméstico, elevado poético simultaneamente universal e ca-
gradualmente a drama nacional. Através racterizador da alma portuguesa. De for-
das personagens Telmo Pais e Maria de ma diversa, mas também eminentemente
Noronha, Garrett parece associar o sebas- ideológica, os integralistas António Sar-
tianismo a uma atitude passadista, imobi- dinha e Carlos Malheiro Dias encontra-
lizadora, senão mesmo mortal, que con- vam no sebastianismo um reservatório de
trasta com a atitude heroica de Manuel valores morais e políticos que poderiam
de Sousa Coutinho. Todavia, a mensagem inspirar os Portugueses, nomeadamente
de Garrett emerge, dúbia e subtil, de uma os mais jovens, para o futuro.
trama que, na sua exaltação de virtudes A última grande polémica acerca do
patrióticas, estava à altura de satisfazer se- sebastianismo terá sido suscitada pela
bastianistas e não sebastianistas. Mais do reação de António Sérgio ao “filo-sebas-
que um texto contra ou a favor da crença, tianismo” de alguns meios culturais e po-
Garrett parece ter edificado aquela que é, líticos das primeiras décadas do séc. xx
provavelmente, a primeira reflexão acer- em Portugal. Em alguns dos seus escritos,
ca do sebastianismo enquanto símbolo como “Interpretação não romântica do
ou mito disponível para pensar a condi- sebastianismo” e “Virtudes fundamentais
ção do povo português face à sua história. da reforma da educação”, António Sérgio
Sugerida pelos românticos, a ideia de apresentava uma versão resumida das li-
que o sebastianismo constitui um traço ções históricas positivistas para sustentar
fundamental da mentalidade portugue- as suas convicções, de acordo com as
sa seria formulada em termos ensaísticos quais o sebastianismo era representativo
por Oliveira Martins, na sua História de de uma mentalidade retrógrada e irracio-
Portugal e na sua História da Civilização Ibé- nalista, inimiga do progresso do país. Os
rica. Aqui, no estilo subjetivo e psicologis- termos a que Sérgio recorreu para carac-
ta que o caracteriza, o escritor identificou terizar o Rei foram suficientemente con-
o sebastianismo ao mesmo tempo como tundentes para acossar a sensibilidade de
uma “loucura” doentia despertada por Carlos Malheiro Dias. Na sua Exortação à
um acontecimento histórico sombrio e Mocidade, o escritor integralista respon-
como uma “manifestação do génio natu- deu a Sérgio apodando-o de “insultador
ral íntimo da raça” (MARTINS, 1882, 82). de heróis” e afirmando que o “Raciona-
Mesmo que a intenção de Oliveira Mar- lismo é incapaz de suprir na sua agude-
tins pudesse ser outra, a sua formulação za o dom do Sentimento” (DIAS, 1925,
terá sido suficientemente dúbia para que LXXIII). Estas considerações suscitariam
diversos autores das primeiras décadas do uma breve polémica, decorrida ao longo
séc. xx operassem, nela inspirados, uma de 1925, em que ambas as partes se mos-
revalorização do sebastianismo. trariam irredutíveis. Como acontecera no
Teixeira de Pascoaes e Fernando Pes- princípio do séc. xix, o tema sebastianis-
soa, e.g., conciliaram a tese identitária de ta voltava a agitar os escritórios. Porém,
Oliveira Martins com elementos prove- desta vez, as partes implicadas discutiam
nientes de outras perspetivas manifesta- um conceito ideológico de sebastianis-
mente críticas – como a historiografia po- mo, que se afastava das manifestações his-
sitivista de Costa Lobo e de João Lúcio de tóricas da crença.

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Antissebastianismo 1709

De facto, a transformação do fenóme- sebastianismo uma certa representação


no de crença em mito, operada entre o fi- coletiva dos Portugueses: “O Encoberto é
nal séc. xix e começo do séc. xx, atribuiu a imagem da ignorância de nós mesmos
ao sebastianismo o estatuto equívoco de refletida num espelho complacente” (Id.,
mito nacional. Esta atribuição sustenta­ Ibid., 59-60).
‑se na ideia de que a crença sebastianista Anos antes, no seu livro Do Sebastianis-
foi cultivada pela população portuguesa mo ao Socialismo em Portugal, publicado em
durante vários séculos, de forma suficien- 1969, Joel Serrão encontraria as origens
temente constante, ampla e homogénea do sebastianismo no “desespero de viver”
para poder ser vista como um elemento (utilizando uma expressão de Braudel)
identitário, caracterizador ou, simples- experienciado pelas populações mediter-
mente, agregador. rânicas sujeitas à tirania e à miséria im-
A perspetivação do sebastianismo como postas pelo Antigo Regime. Explica ainda
mito nacional contaminaria as aborda- a sua persistência ao longo dos séculos
gens de quase todos os autores que ao como “a resposta popular portuguesa
longo do séc. xx e no começo do séc. xxi mais ou menos tradicional à permanên-
apresentaram perspetivas críticas acer- cia das causas que lhe deram origem”
ca do sebastianismo. Esta matriz é parti- (SERRÃO, 1969, 30).
cularmente evidente nas considerações Perante a exiguidade de manifestações
tecidas por Eduardo Lourenço, quando genuínas da crença, o antissebastianismo
associa ao sebastianismo um “irrealismo foi remetido, durante mais de um século,
prodigioso” (LOURENÇO, 1978, 17) es- para o domínio de um combate intelec-
pecífico dos Portugueses, que os afasta tual com evidente alcance político-ideo-
das formas de viver e de sentir da Euro- lógico. Quer para Joel Serrão, ainda an-
pa desenvolvida. Também segundo Mi- tes da Revolução dos Cravos (1974), quer
guel Real, o sebastianismo, tendo origens para Boaventura Sousa Santos, o sebas-
históricas negativas, constitui uma reser- tianismo é uma figuração de causas his-
va ética dos Portugueses, que os força a tóricas que pesam dolorosamente sobre a
acreditar num futuro melhor. Assim, em sociedade portuguesa e que determinam
ambos os autores, ainda que com resul- um fosso sempre demasiado fundo entre
tados diferentes, o sebastianismo é visto as elites e os cidadãos.
como um mito com um enraizamento e Em Il Faut Défendre la Société, Foucault
com uma operatividade assinalável junto demonstrou-nos que, inquirindo os dis-
da população portuguesa, influenciando cursos da “guerra infinita” e da “guerra
a forma de se percecionar a si e ao seu de raças” – onde se inclui a narrativa do
futuro. “Rei de Portugal, perdido nas areias de
Assumindo uma perspetiva sensivel- África, que regressará para uma nova
mente diferente, Boaventura Sousa San- batalha, para uma nova guerra, e para
tos procura desmontar a ideia do mito uma vitória que, desta vez, será definiti-
nacional, atribuindo lucidamente a for- va” (FOUCAULT, 2001, 41-42) –, é possí-
mulação e divulgação da ideologia sebas- vel surpreender os elementos discursivos
tianista a elites distanciadas dos cidadãos, que, reorganizados, comporiam mais tar-
que a escutaram passivamente (SANTOS, de os discursos de poder do Estado.
1994, 69). Todavia, em certos trechos, ao Nessa medida, a continuação do tra-
declarar as intenções que presidem à sua balho antissebastianista poderá passar
reflexão, o autor mostra reconhecer no também por uma abordagem discursiva e

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1710 Antissebastianismo

metódica, à semelhança do que Fernan- MACHADO, Diogo Barbosa, Memorias para a


do Gil nos propõe, ao analisar epistemo- Historia de Portugal, Que Comprehendem o Gover­
logicamente o famoso silogismo de Vieira no del Rey D. Sebastiaõ, vol. i, Lisboa, Officina
de Joseph António da Sylva, 1736; MARTINS,
acerca das profecias de Bandarra.
J. P. Oliveira, História de Portugal, vol. i, Lisboa,
Bertrand, 1882; PAIVA, José Pedro, “Revisi-
Bibliog.: manuscrita: ANTT, Tribunal do San- tar o processo inquisitorial do padre António
to Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 7197, Vieira”, Lusitania Sacra, 2.ª sér., t. 23, 2011,
Processo de Gonçalo Annes Bandarra, 1541; Ibid., pp. 151-168; PAIVA, Sebastião de, Tratado da
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lis- Quinta Monarquia, Lisboa, INCM, 2006; PIRES,
boa, proc. 9067, Processo do Padre Luís António António Machado, Dom Sebastião e o Encuber­
Cardoso, 1761-68; impressa: ANTAS, Miguel d’, to, Lisboa, FCG, 1971; REAL, Miguel, Nova
Os Falsos D. Sebastião, Odivelas, Europress, Teoria do Sebastianismo, Lisboa, Dom Quixote,
1988; AZEVEDO, João Lúcio, A Evolução do 2014; SANTOS, Boaventura Sousa, Pela Mão
Sebastianismo, Lisboa, Clássica Editora, 1918; de Alice: o Social e o Político na Pós-Modernidade,
BOCARRO, Manuel, Luz Pequena, Lunar e Es­ Porto, Afrontamento, 1994; SÉRGIO, Antó-
telifera, Roma, s.n., 1626; CARVALHO, José nio, Ensaios, vol. i, Lisboa, Sá da Costa, 1971;
Adriano de Freitas, “Achegas ao estudo da SERRÃO, Joel, Do Sebastianismo ao Socialismo
influência da Arbor Vitae Crucifixae e da Apo­ em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1969;
calypsis Nova no século xvi em Portugal”, Via SILVA, Inocêncio da, Diccionario Bibliographico
Spiritus, vol. i, 1994, pp. 55-109; CASTRO, Portuguez, vol. vi, Lisboa, Imprensa Nacional,
João de, Aurora da Quinta Monarquia, Por- 1888; THOMAZ, Luís Filipe, “Descobrimen-
to, Centro de Investigação Transdisciplinar tos e evangelização: da cruzada à missão
Cultura, Espaço e Memória/Afrontamento, pacífica”, in Actas do Congresso Internacional de
2011; COSTA, Félix da, Liber Vnicus. Exposição História: Missionação Portuguesa e Encontro de Cul­
do XI, XII, & XIII Capítulos do IV Livro do Propheta turas, vol. i, Braga, Universidade Católica Por-
Esdras, Washington, Library of the Congress, tuguesa/Comissão Nacional para as Come-
P-7-36; Id., Thesouro Descuberto. Discurso em morações dos Descobrimentos Portugueses/
que Se Mostra por Resões Claras, e Evidentes Quem Fundação Evangelização e Culturas,  1993,
He o Rey Encuberto Que Ha de Restaurar Hyeru­ pp. 81-129; VENTURA, Ricardo, D. Gaspar de
salem do Poder dos Infieis, Biblioteca Nacional Leão e o Desengano de Perdidos: Estudo Histórico­
de Portugal, cód. 12987; DIAS, Carlos Ma- ‑Cultural, Dissertação de Mestrado em Cultu-
lheiro, Exortação à Mocidade, Lisboa, Portugal­ ra Portuguesa apresentada à Universidade de
‑Brasil, 1925; Exame e Juizo Critico sobre o Papel Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2006; VIEI-
Intitulado Anti-Sebastianismo, Lisboa, Imprensa RA, António, Obra Completa, vols. iii-iv, Lisboa,
Régia, 1809; FOUCAULT, Il Faut Défendre la Círculo de Leitores, 2014.
Société, s.l., Association pour le Centre Michel
Ricardo Ventura
Foucault, 2001; GIL, Fernando et al., Viagens
do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renas­
cimento Português, Porto, Campo das Letras,
1998; HERMANN, Jacqueline, No Reino do De­
sejado. A Construção do Sebastianismo em Portugal
(Séculos XVI e XVII), São Paulo, Companhia das
Letras, 1998; KUBLER, George, Antiquity of the
Art of Painting, New Haven/London, Yale Uni-
versity Press, 1961; LOURENÇO, Eduardo,
O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Desti­
no Português, Lisboa, Dom Quixote, 1978; MA-
CEDO, José Agostinho de, Justa Defensa do Livro
Intitulado os Sebastianistas, Lisboa, Impressora
Régia, 1810; Id., Os Sebastianistas, Lisboa, Offi-
cina de António Rodrigues Galhardo, 1810a;

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Antissegredismo 1711

Antissegredismo membros do clero a laicos, de familiares


do Santo Ofício a judeus emigrados e de
homens de ciência a homens de negócio”
(DIAS, 2012, 13). Como releva este autor,
o negócio dos segredos tinha aspetos ino-
vadores no que respeita à produção em
série de medicamentos e à sua publicita-

A importância do segredo na vida cor-


rente está bem atestada na consa-
grada expressão “o segredo é a alma do
ção. De facto, os anúncios publicitários a
segredos tinham expressão significativa
na Gazeta de Lisboa e em múltiplos folhe-
negócio”. De acordo com o texto bíbli- tos sob a forma de notícias, advertências
co, a fiabilidade de alguém estaria dire- e recados ao público.
tamente ligada à capacidade de guardar Na primeira metade do séc. xviii, fo-
segredo: “O intriguista revela os segredos, ram segredistas figuras de primeiro pla-
mas o que é fiel de espírito encobre-os” no da medicina portuguesa: João Curvo
(Pr 11, 13). De igual modo, o segredo faz Semedo, Jacob de Castro Sarmento, João
parte da deontologia de diversas profis- Mendes Sachetti Barbosa.
sões, mormente da profissão médica. O antissegredismo começa por assumir
No quadro da medicina, segredismo e a forma de uma defesa da tradição hipo-
antissegredismo remetem para um con- crático-galénica, de que é exemplo a Apo-
texto específico dos sécs. xvi-xviii, com logia Medico-Racional dos Remedios do Syncope
especial incidência no séc. xviii, em que Estomatico das Febres do Estio, e dos Abusos
alguns médicos e, sobretudo, pessoas sem da Quinaquina em ordem a Evitar-Lhe Re-
formação médica se dedicavam à produ- cahidas, de António Dias Inchado (1735).
ção e à administração de mezinhas cuja
composição não revelavam, jogando com João Curvo Semedo (1635-1719).
o fascínio que o mistério e o oculto têm
nas mentes crédulas. Estavam em jogo
questões de foro institucional.
A relevância do fenómeno segredista
em Portugal, no período do racionalismo
e do Iluminismo, foi bem sintetizada por
J. P. Sousa Dias: “É muito grande o núme-
ro de segredos medicinais vendidos em
Portugal nos séculos xvii e xviii, conhe-
cidos por denominações de fantasia ou
pelo nome dos seus fabricantes. De entre
todos sobressaem dois grupos que, pela
sua difusão e longevidade, são os mais re-
presentativos do conjunto dos remédios
secretos: os preparados do médico João
Curvo Semedo, os chamados Remédios
Curvianos, e a Água de Inglaterra. En-
tre os fabricantes dos remédios secretos,
encontra-se uma multiplicidade de tipos
sociais, que vai de nobres a plebeus, de

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1712 Antissegredismo

No entanto, o conflito entre segredistas ta à fundação hipocrática da medicina


e antissegredistas é muito mais complexo acompanhando-a ao longo dos tempos,
do que uma simples controvérsia entre mencionando, além de Hipócrates, Ascle-
antigos e modernos, envolvendo outro píades, Harvey, Boerhaave, Paracelso, van
tipo de questões, como aquelas que dizem Helmont. Segundo o autor, é preciso con-
respeito ao valor da medicina popular e à trariar esta prática, tão perniciosa como
legitimidade dos seus agentes em face da frequente: “Finalmente muitos outros
medicina erudita, reconhecida por meio Médicos, assim estrangeiros como nacio-
de títulos académicos e do seu estatuto nais, levados como os Sacerdotes gentíli-
profissional legalmente enquadrado. Efe- cos da vanglória, e do interesse, fingiram
tivamente, a ofensiva antissegredista está ter remédios desconhecidos, e composi-
articulada com a reforma do curso de ções particulares, que conservavam em
Medicina da Univ. de Coimbra e com um segredo, manipularam em suas casas, e
maior peso da saúde pública no quadro venderam ao público, que sempre está
das instituições políticas. pronto para acreditar o que se lhe pinta
De entre os antissegredistas, destacam­ raro e extraordinário” (Id., Ibid., 17-18).
‑se duas figuras cimeiras do Iluminismo, À medida que o séc. xix avança, o se-
que, sendo estrangeiradas, não deixaram gredismo tende a tornar-se residual, por
de se interessar pelo estado de coisas em efeito conjugado da sensibilidade ilumi-
Portugal e cujas posições, neste como nista e do novo credo científico represen-
noutros domínios, tiveram um eco muito tado pelo positivismo.
forte: Luís António Verney (1713-1792)
e António Nunes Ribeiro Sanches (1699­
‑1783). Referindo-se aos “mezinheiros” Bibliog.: ABREU, Laurinda, Pina Manique. Um
“segredistas ou inventores de segredos”, Reformador Português das Luzes, Lisboa, Gradiva,
Verney afirma contundentemente: “Eu 2013; BARREIROS, Bruno, Concepções do Corpo
não distingo esta gente dos Charlatanos” no Portugal do Século XVIII: Sensibilidade, Higiene
(VERNEY, 1952, IV, 51). Não menos vigo- e Saúde Pública, Dissertação de Doutoramento
rosa é a denúncia de Ribeiro Sanches: os em História, Filosofia e Património da Ciência
segredos “não só são perniciosos às vidas e da Tecnologia apresentada à Universidade
Nova de Lisboa, Lisboa, texto policopiado,
dos Cidadãos, mas muito mais à arte da
2014; DIAS, José Pedro Sousa, O  Segredo In­
Medicina, e por último ao bem público” glês. Paludismo e Terapêutica em Portugal no Sé­
(SANCHES, 1966, 76). Para ambos os culo  XVIII, Casal de Cambra, Caleidoscópio,
autores, o segredismo não é compatível 2012; FERREIRA, José Henriques, Discurso Crí­
com o ideal iluminista de uma república tico em que Se Mostra o Damno Que Tem Feito aos
das letras, assente no debate público e no Doentes, e ao Progresso da Medicina em Todos os
livre exame de cada um. Tempos, a Introdução, o Uso de Remedios de Segre­
do, e Composições Ocultas, não só pelos Charlatães,
José Henriques Ferreira compôs um
e Vagabundos, mas também pelos Médicos, Que os
longo Discurso Crítico em que visa mostrar Tem Imitado, Lisboa, Officina de Filipe da Silva
o dano provocado pelo “uso de segredos” e Azevedo, 1785; SANCHES, António Nunes
aos doentes e à ciência médica. Apesar de Ribeiro, Obras, vol. ii, Coimbra, Biblioteca
especialmente dirigida contra os “empíri- Geral da Universidade de Coimbra, 1966;
cos, ambiciosos, charlatães e impostores”, VERNEY, Luís António, Verdadeiro Método de
esta obra considera que a tendência se- Estudar, org. António Salgado Júnior, 5 vols.,
gredista, qualificada como uma “peste da Lisboa, Sá da Costa, 1949-52.
República” (FERREIRA, 1785, 9), remon- Adelino Cardoso

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Antisseiscentismo 1713

Antisseiscentismo modernos que à dos antigos, mais favo-


ráveis ao empirismo que à escolástica de
filiação dita aristotélica.
Em 1746, Verney, em Verdadeiro Método
de Estudar, dará a esta ânsia de rutura uma
narrativa coerente, em que pormenores
como o título dos livros se tornam exem-

O antisseiscentismo é a expressão
coletiva de repúdio do séc. xvii,
melhor dizendo, do que ele representa:
plares: “Entende V.P. que, lendo-se estes
títulos, poderá um homem adivinhar o
que contêm estes livros? […] E isto é mui-
um paradigma cultural de decadência to frequente nas escolas da Companhia; e
das elites, de ignorância das massas e de não faltou já quem me dissesse que eram
degeneração nacional. O “ismo” apro- títulos engenhosos. […] Os seiscentistas
xima-o da ideologia. É por isso distinto são os que caíram nesta ridicularia; os
de uma corrente, já que o conceito tem antigos doutos todos a evitaram. […] Os
uma transversalidade temporal, emerge e modernos doutos, quando não são anóni-
imerge ao longo da historiografia, desde mos que querem brincar, servem-se de
o séc. xviii até aos nossos dias. Embora títulos sisudos, breves e claros, e nisto é
se possa ver nele um sentimento coleti- em que hoje se cuida” (VERNEY, 1991,
vo, convém também distingui-lo de uma 93-94). O texto de Verney é subtil, se o
crença, já que, no antisseiscentismo, o compararmos com os da polémica que
pathos nunca prescinde de argumentos vai provocar: mais do que uma época, o
científicos, ainda que paralógicos, entre a seiscentismo passa a designar um modo
razão/logos e a autoridade/ethos. Enquan- negativo de ser, de pensar, falar, escrever.
to tópica ou sistema de argumentos retó- Documentos como o Testamento Político
ricos, consideraremos nele três aspetos de Luís da Cunha, livros como a Deducção
nucleares: (i) o antisseiscentismo é uma Chronologica e acontecimentos como a ex-
organização mítica da história; (ii) o an- pulsão dos Jesuítas ajudam a compreen-
tisseiscentismo é uma variante de para- der o Compendio Historico do Estado da
digmas cognitivos, existentes antes e de- Universidade de Coimbra (1771), em que o
pois do séc. xvii; (iii) o antisseiscentismo antisseiscentismo se confunde com o an-
é retoricamente eficaz porque pressupõe tijesuitismo. Ao constatar “a decadência”
uma argumentação verosímil, baseada no e “as ruínas” em que as artes e ciências
entimema, nas premissas subentendidas, foram precipitadas na Univ. de Coimbra
nem sempre explícitas. pelas “maquinações dos denominados
(i) Enquanto organização mítica da jesuítas”, ao restabelecer os “cursos cien-
história, o antisseiscentismo é uma in- tíficos” e os “métodos”, “depois de mais
venção do setecentismo. Nada como de um século”, a Junta procurava reparar
as “luzes” do séc. xviii para fabricar as “a destruição de todas as leis, regras e mé-
“trevas” do séc.  xvii. Na primeira meta- todos que haviam regido as Universida-
de do séc. xviii, ele atravessa suavemen- des” (CALAFATE, 2006, II, 266-267).
te alguns textos (como os de Ribeiro de A guerra mais feroz é aquela em que os
Macedo, Rafael Bluteau, Alexandre de argumentos são morais, em que a luz en-
Gusmão, João Baptista de Castro e Luís frenta as trevas. Do lado das trevas, os seis-
da Cunha), na medida em que anunciam centistas, os afetados, os engenhosos e os
novos tempos, mais afeitos à filosofia dos cultores dos equívocos, os da Companhia

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1714 Antisseiscentismo

de Jesus, os peripatéticos, os escolásticos, centos é a do Siglo de Oro, político e


os tomistas, os frequentadores das tertú- literário, em Portugal a lenda negra era
lias literárias, os ignorantes das ciências verosimilmente demonstrada pela cres-
experimentais e desprezadores das artes cente invisibilidade de Portugal na Euro-
mecânicas, os historiadores do futuro, pa: reis em comum com a Espanha, vida
afeitos ao estilo profético de D. Sebastião, de corte em Madrid, revigorada impor-
do milagre de Ourique ou dos emblemas tância da expressão literária em língua
cabalísticos, identificáveis pela futilidade castelhana e sob a influência de escritores
dos temas e pelo rebuscado da forma. Do de língua castelhana, ausência de política
lado das luzes, os modernos, os experi- cultural própria, crises de sucessão antes
mentais, os cultores do método, os que e durante a dinastia dos Braganças, perda
ouvem a voz da razão, os críticos de Aris- dos territórios ou da influência política
tóteles, os denunciadores de Vieira, os au- em África, na América e na Ásia… Ape-
tores de uma nova pedagogia empirista, sar do esforço diplomático de D. João V,
e também os que, sob a falsa retórica dos cresce, ao longo do séc. xviii, este sen-
Jesuítas, descobrem um plano de malícia timento de vergonha nacional, que per-
e fabricação, o assalto ao poder que teria passara já nas palavras de Duarte Ribeiro
começado com a expulsão dos mestres de Macedo, ao promover as manufatu-
de Bordéus e a entrega do Colégio das ras em Portugal em finais do séc. xviii:
Artes aos Jesuítas ainda no reinado de “Não se rirão de nós os estrangeiros que
D.  João  III (CENÁCULO, 1776). Cada comummente nos estimam por índios da
parte corresponde ao todo, por analogia, Europa” (SÉRGIO, 1926, 24). Mas é in-
e o conceito depressa define três tempos suportável para os Portugueses em 1780,
míticos: a) uma Idade do Ferro, passado quando Teodoro de Almeida, na oração
próximo: o seiscentismo; b) uma Idade de abertura da Academia das Ciências,
do Ouro, passado remoto: o quinhentis- e regressado do exílio, evoca o ponto
mo; c) e um presente utópico, véspera de de vista do estrangeiro: “Quando lá fora
uma nova Idade do Ouro. casualmente aparece algum português
Com a visibilidade crescente dos rela- de engenho medíocre, admirados se es-
tos dos viajantes e dos académicos sete- pantam como de fenómeno raro: e como
centistas, quando a renovação ia (muito assim? (dizem) de Portugal? do centro
lentamente) tomando a forma da revo- da ignorância? assim o cheguei a ouvir.
lução, se contrapõem dois passados. Por E onde estão os vossos livros? me pergun-
um lado, a memória de um paraíso per- tavam; onde os vossos Autores? as vossas
dido: os sécs. xv-xvi, época dos Descobri- Academias? os vossos descobrimentos? As
mentos, aquele tempo em que, segundo gazetas literárias, que correm, guardam
Garcia de Orta, se aprendia mais com os do vosso Portugal o mesmo silêncio que
Portugueses num dia do que em 100 anos de Marrocos” (BORRALHO, 2001, 219).
com os romanos. Por outro lado, a dos O discurso de Teodoro de Almeida não
sécs. xvi-xvii, quando a perda de sobe- é publicado pela Academia. Mas a ques-
rania política coincide com a lenda negra tão ecoa num texto em francês de José
da península Ibérica, comum na Europa Anastácio da Cunha: “Perguntais-me que
das Luzes: Portugal fazia parte daquela grandes homens os Portugueses podem
Espanha dos autos de fé e dos costumes referir a par dos que as ciências e as belas
árabes, arquitetonicamente gótica, e por artes devem à Itália, à França, à Inglaterra
isso bárbara. Ora, se a Espanha de Seis- e à Alemanha: o catálogo não é lá muito

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Antisseiscentismo 1715

longo. […] Tivemos no século xvi (que Marini, como à perda de influência polí-
consideramos com razão o nosso século tica dos Estados italianos face ao domínio
de ouro) um bom geómetra, alguns bons dos Habsburgos, sujeitos que ficaram à
homens de letras, alguns bons latinistas, invasão dos exércitos austríaco e francês.
simples eruditos” (CUNHA, 2006, 302 e A associação entre o séc. xvii e a deca-
304, trad. nossa). Depois do séc. xvi, o dência da nação (portuguesa) parece ser
silêncio. um dos mais significativos pontos de en-
(ii) O antisseiscentismo é variante de contro entre Verney e Cândido Lusitano,
paradigmas cognitivos, existentes antes autor da Ilustração Crítica, de 1751 (CAS-
e depois do séc. xviii. Para a dimensão TRO, 2008, 472). Sublinhamo-lo porque
afetiva das estruturas dicotómicas tinha as conotações políticas seriam responsá-
já Aristóteles alertado, desde logo no veis por uma maior visibilidade do antis-
“Livro dos afetos”, o segundo da Retó- seiscentismo português, intenso em grau
rica, mas sobretudo na Metafísica (e.g., e extenso em duração. A avaliar pelos
986a). A oposição entre a luz e as trevas textos antisseiscentistas, o século dos seis-
reproduz generalizações metafóricas que centistas portugueses estender-se-ia pelos
depois lemos por analogia: a luz e a re- sécs. xvi e xviii. Começaria em 1578,
gularidade lidas como bem, as trevas e a com a morte de grande parte da aristo-
irregularidade como mal. A historiogra- cracia em Alcácer Quibir (se não se con-
fia (literária ou não, nacional ou euro- siderasse a chegada dos Jesuítas ao Colé-
peia) vive primariamente de pertinências gio das Artes ou a progressiva influência
estéticas: áticos e asiáticos (Antiguidade); do Santo Ofício, pedidas por D. João III
antigos e godos (séc. xvi); antigos e mo- em meados do séc. xvii). E duraria, pelo
dernos (séc. xvii); quinhentistas e seiscen-
tistas (séc. xviii); clássicos e românticos
Francisco José Freire, que adotou o pseudónimo
(séc. xix), etc. Seria ingénuo pensar que
de Cândido Lusitano (1719-1773).
o antisseiscentismo é um conceito exclu-
sivamente português, ou que ele se obser-
va apenas no séc. xviii. A periodologia
literária é obra do séc. xix, e conceitos
como Renascimento ou Barroco seriam
sobretudo oponíveis a partir dos traba-
lhos de Wölfflin (Renascimento e Barroco,
de 1888, e Conceitos Fundamentais da His-
tória de Arte, de 1915). A própria raiz do
conceito de seiscentismo pode encontrar­
‑se facilmente nos textos setecentistas ita-
lianos, e a ideia de decadência das letras
durante o séc. xvii encontra-se, talvez an-
tes das demais, na historiografia italiana,
desde logo em Della Perfetta Poesia Italia-
na (1706), e Riflessioni sopra il Buon Gusto
nelle Scienze e nell’Arti (1708), de Muratori.
Também logo aí as ideias de decadência
e barbárie são associadas, não só à futili-
dade dos concetti dos poetas da escola de

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1716 Antisseiscentismo

menos, até 1720, data da fundação da


Academia de História, quiçá até 1756,
quando a foice da Arcádia Lusitana surge
para cortar as ervas inúteis: “inutilia trun-
cat”. O seiscentismo, quando visto pela
historiografia do séc. xix, é uma con-
tinuidade do antisseiscentismo do séc.
xviii: quase nada há a estudar nele, mas
agora porque quase tudo nele é exemplo
da degeneração política, um produto na-
tural do meio, do momento e da raça, se
A foice da Arcádia Lusitana.
aplicarmos a terminologia de Taine. Teó-
filo Braga, ao falar dos seiscentistas na sua depois do luminoso século xvi, desde o
História da Literatura Portuguesa, repete fim do reinado de D. João III até D. João V,
ainda a narrativa setecentista: “O carácter não tivéssemos literatura digna de história
decadente das literaturas ocidentais no sé- e de estudo” (BRANCO, 1876, II, 7).
culo xvii, por isso que é comum e simul- (iii) A retórica do antisseiscentismo
tâneo, revela também esta causa comum. funciona porque evidencia uma tópica
Os Jesuítas foram diretores exclusivos da polimórfica, verosímil, de meias verdades
cultura literária ou humanista” (BRAGA, com mentiras inteiras. Por analogia ou
2005, 12). Os textos de Antero de Quen- por sinédoque, por elipse ou por metalep-
tal (1871) e ainda os de Oliveira Martins se, o antisseiscentismo torna-se uma pedra
sobre as causas da decadência dos povos de toque, um ponto de apoio para vastas
peninsulares (1881), pese embora a disse- argumentações que querem levantar um
melhança, são ainda devedores da mesma mundo coeso de oposições político-estéti-
historiografia antisseiscentista, ainda que co-morais. Ao longo do séc. xx, confunde­
agora entre os excessos individualistas ‑se com as palavras sinónimas, hipónimas
dos conquistadores e a narrativa de uma ou hiperónimas: “antibarroco”, “antibar-
“decomposição geral” da península: “No roquismo”, “antijesuitismo”, antigongo-
princípio do séc. xvii, quando Portugal rismo”, “antiabsolutismo”, “antidogma-
deixa de ser contado entre as nações, e tismo”, “anti-iberismo”, “anticasticismo”,
se desmorona por todos os lados a mo- “republicanismo” e com a crítica à dinas-
narquia anómala, inconsistente e desna- tia dos Braganças. Em Portugal, como na
tural de Filipe II; quando a glória passada Europa, justifica discursos nacionalistas
já não consegue encobrir o ruinoso do e/ou europeístas, reflexões teológicas
edifício presente” (QUENTAL, 2001, 25). e/ou anticlericais, argumentos literários
Camilo Castelo Branco será dos poucos e/ou passionais, quase sempre imbuídos
historiadores literários a denunciar esta de muitas considerações científicas. A tí-
continuada visão mítica na historiografia tulo de exemplo, podem-se referir duas
nacional: “Os diversos historiadores mar- querelas da segunda década do séc. xx,
caram com seu arbítrio os períodos em quando começa a impor-se o conceito de
que as letras se manifestaram com diversa barroco na história de arte na Europa. No
feição, quer progressiva, quer decadente. contexto de uma exposição de pintura
Alguns, abrindo profundas barreiras entre seiscentista e setecentista organizada por
as quadras literárias, estremaram os perío- Ugo Ojetti (1922), significativamente em
dos em idade de ouro e de ferro, como se, Florença, Giorgio de Chirico escreve um

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Antisseiscentismo 1717

artigo intitulado “La mania del Seicento”: tteratura Portugueza por Camillo Castelo Branco.
critica o projeto, já que o séc. xvii é o me- Continuação e Complemento do Curso de Litteratu­
nos italiano dos séculos e o estilo seiscen- ra Portugueza por José Maria de Andrade Ferreira,
2 vols., Lisboa, Livraria Editora de Mattos Mo-
tista simboliza o início da decadência da
reira & Co.ª, 1875-76; CALAFATE, Pedro, Co­
arte (CHIRICO, 1921, 60). Em Portugal, nhecimento e Método. A Crise das Filosofias da His­
António Sérgio escreve sobre O  Seiscentis- tória e as Imagens do “Seiscentismo” em Portugal,
mo (1926), procurando responder a acu- Dissertação de Mestrado em Filosofia apre-
sações de vilipêndio e à dissertação de sentada à Universidade de Lisboa, Lisboa,
licenciatura de Manuel Múrias, O Seiscen- texto policopiado, 1985; Id. (org.), Portugal
tismo em Portugal (1923). Sustentava Múrias como Problema, 4 vols., Lisboa, Público/Funda-
ção Luso-Americana, 2006; CASTRO, Aníbal
que “o Seiscentismo é desprezado por ser
Pinto de, Retórica e Teorização Literária em Por­
desconhecido à maioria dos que incons- tugal. Do Humanismo ao Neoclassicismo, Lisboa,
cientemente o atacam” (MÚRIAS, 1923, INCM, 2008; CENÁCULO, Manuel do, Me­
12). Respondia Sérgio que “o século de mórias Históricas do Ministério do Púlpito, Lisboa,
Seiscentos representa, com efeito, a inva- Regia Officina Typografica, 1776; CHIRICO,
são da Estupidez (como disseram depois Giorgio de, “La mania del Seicento”, Valori
e antes de José Agostinho [de Macedo] to- Plastici, n.º 3, 1921, pp. 60-62; CUNHA, José
Anastácio da, Obra Literária, org. Maria Luísa
dos os homens cultos de Portugal)” (SÉR-
Malato Borralho e Cristina A. de Marinho,
GIO, 1926, 8). A questão descamba em vol. ii, Porto, Campo das Letras, 2006; DIAS,
ambos para o preconceito político. Escre- J. S. Silva, “Seiscentismo e renovação em Por-
verá António Sérgio: “E que vemos então? tugal no século xviii: estudo de um processo
NADA [sic]. Caímos dos altos para o nível inquisitorial”, Biblos, n.º 36, 1961, sep.; Id.,
zero” (Id., Ibid., 27). Tinha escrito Múrias: O Ecletismo em Portugal no Século XVIII. Génese
“Ainda hoje os judeus são, como sempre e Destino de Uma Atitude Filosófica, Coimbra,
Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagó-
foram, motivo de desordem e propulso-
gicos, 1972; FIGUEIREDO, António Pereira
res da desorganização social” (MÚRIAS, de, Carta de Hum Amigo a Outro Amigo na Qual
1923, 40). Será necessário o avanço do Se Defendem os Equivocos contra o Indiscreto Juizo,
séc. xx para ir introduzindo a verdade do Que delles Faz o Moderno Critico, Author da Obra
oximoro, a evidência do “ecletismo” filo- Intitulada, Verdadeiro Methodo de Estudar,
sófico (DIAS, 1972) ou a possibilidade de Paris, s.n., 1751; MONCADA, L. Cabral de,
um “iluminismo católico” (MONCADA, Estudos de História do Direito. Século XVIII: Ilumi­
nismo Católico, Vernei, Muratori, Coimbra, por
1950). Condição indispensável para obser-
ordem da Universidade, 1950; MURATORI,
var a verdade que existe num Vieira, que L. A., Riflessioni sopra il Buon Gusto nelle Scienze e
proclama a clareza do estilo (“Sermão da nell’Arti, Venezia, Niccòlo Pezzana, 1752; MÚ-
sexagésima”, de 1655), e num António Pe- RIAS, Manuel, O Seiscentismo em Portugal, Lis-
reira de Figueiredo, que defende o valor boa, s.n., 1923; QUENTAL, Antero de, Cau­
dos equívocos (FIGUEIREDO, 1751). sas da Decadência dos Povos Peninsulares, Lisboa,
Guimarães Editores, 2001; SÉRGIO, António,
O Seiscentismo. Reprodução do Artigo em que, segundo
Dizem os Que Me Odeiam, Insultei Um Morto e Fal­
Bibliog.: BORRALHO, Maria Luísa Malato, sifiquei Textos, Lisboa, Seara Nova, 1926; VER-
“Teodoro de Almeida. Entre as histórias da NEY, Luís António, Verdadeiro Método de Estudar.
história e da literatura”, in Estudos em Home­ Cartas sobre Retórica e Poética, org. M. Lucília
nagem a João Francisco Marques, vol. i, Porto, Fa- Gonçalves Pires, Lisboa, Presença, 1991; VIEI-
culdade de Letras da Universidade do Porto, RA, António, Parenética, coord. João Francisco
2001, pp. 211-227; BRAGA, Teófilo, História Marques, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013.
da Literatura Portuguesa, vol. iii, Lisboa, INCM,
2005; BRANCO, Camilo Castelo, Curso de Li­ Maria Luísa Malato

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1718 Antissemitismo

Antissemitismo aos judeus. Por outro lado, para além da


realidade ideológica que comummente
designamos como antissemitismo, temos
de ver o lastro de aspetos de mentalidade
que durante séculos criaram as condições
para o fenómeno de discriminação a que
se assistiu no séc. xx, que muitas vezes im-

S egundo o Dicionário Houaiss da Língua


Portuguesa, a palavra “antissemitismo”
surge na língua portuguesa em 1899, no
plicou perseguição e morte.
Apesar de, em sentido estrito, ser uma
realidade específica do séc. xx, o antis-
quadro do chamado caso Dreyfus – capi- semitismo é produto de uma maturação
tão francês condenado quatro anos antes lenta, com raízes numa panóplia de sen-
por espionagem. Este verdadeiro drama timentos antijudaicos que vem desde o
judicial inflamaria a sociedade francesa, mito cristão do povo deicida, terminan-
marcaria de forma irrevogável a causa sio- do nas questões de limpeza de sangue
nista, e deixaria marcas e criaria ecos em da época moderna, aliadas às visões de
grande parte da sociedade europeia. Por- domínio da economia e da finança. No
tugal não seria diferente, tendo acolhido séc.  xix, este milenar antijudaísmo ga-
o novo vocábulo muito depressa. De fac- nha corpo teórico numa visão biológica
to, a acesa luta entre os que defendiam que é alimentada por sentimentos de
essa condenação, sem olhar de forma sé- medo e de fobia com base em precon-
ria para as provas coligidas, seguindo, no ceitos rácicos.
fundo, uma culpa por Dreyfus ser judeu, Assim, o tema do antissemitismo em
e os que defendiam uma nova análise do Portugal merece que se olhe para a his-
processo, recusando essa condenação tória, quer das ideias, quer das mentali-
claramente marcada por fraudes várias, dades, procurando o chão onde tal movi-
chegaria aos jornais nacionais, sendo pas- mento se materializou com formas muito
to para acaloradas discussões, em tudo se- específicas, especialmente na visão antir-
melhantes ao que se passava em França. republicana e antimaçónica.
De resto, as primeiras décadas do O caso português tem de ser analisado
séc.  xx, marcadas por movimentos cul- à luz dos aspetos quase inconscientes que
turais, sociais e ideológicos nacionalistas a língua, o léxico, evidencia. O adagiário
e integristas no seguimento da revolução mostra como um certo antijudaísmo se
republicana, iriam dar ao prelo um sig- encontra fortemente marcado na forma
nificativo grupo de obras claramente an- de sermos e de nos expressarmos. Fala-
tissemitas, imagem de sectores nacionais mos comummente em “fazer judiarias”
fechados, em franca sintonia com os mais ou ser “rabino” sem perceber onde se vai
cruéis regimes europeus da época. buscar o vocabulário. De resto, as marcas
Contudo, um olhar mais rigoroso para antijudaicas na história de Portugal são
esta temática que tantas paixões suscitou antigas e remontam, pelo menos, ao cli-
implica alguns cuidados prévios de deli- ma que de forma genérica atravessou a
mitação do próprio objeto. Por um lado, Europa no final do séc. xv e que resul-
é necessário definir de forma clara vocá- tou em inúmeras matanças em judiarias.
bulos no confronto entre as várias moda- Em Portugal, ficou registada uma tentati-
lidades de recusa e de oposição social e va do género em 1383, com várias repe-
cultural que a Europa criou em relação tições em diferentes cidades no século

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Antissemitismo 1719

seguinte. A vinda para Portugal de mais implica uma posição antissemita. Um dos
de uma centena de milhar de judeus em “anti” é de natureza rácica, o outro é de
1492 iria incendiar o já instável equilíbrio natureza política.
social numa cultura em que se aprimora- Mas nada neste campo das mentalida-
va um clima de intolerância que teria um des é linear. Transversalmente, há ainda a
dos seus momentos mais altos no massa- ideia de antissionismo, conceito de mais
cre de Lisboa de 1506, com a morte de, difícil definição. O moderno sionismo
possivelmente, 4000 pessoas. nasce no séc. xix e tem como objetivo o
O trabalho sistemático do Tribunal do restabelecimento de uma pátria judaica
Santo Ofício faria mais mossa no campo no espaço do antigo Israel. De facto, mui-
da criação de um clima de medo e de to do antissemitismo do séc. xix nasce
delação que no número de mortos. A In- por oposição às linhas de poder de gran-
quisição deixou a Portugal uma pesada des famílias judias que fomentaram esse
herança na forma como as comunidades discurso de regresso à Palestina.
de criptojudeus que chegaram ao séc. xx O olhar português para este fenómeno
a muito custo se deram a conhecer, por é bastante recente e centra-se num escas-
vezes quase 150 anos depois de a mesma so grupo de trabalhos, especialmente de
Inquisição ter sido extinta, o que é revela- João Medina e de Jorge Martins, sendo
dor do medo latente. este o investigador seguido mais de perto
Regressando à definição de conceitos, neste texto.
historicamente o antijudaísmo nasceu Os primeiros laivos verdadeiramente
primeiro. Baseado na ideia de que os antissemitas, na mais correta aceção da
judeus mataram Jesus, o Cristo, o Deus palavra, estão próximos de um quadro
Vivo, criou uma mácula que se estendeu ideológico e nacionalista muito específi-
por dois milénios. Culpados do deicídio, co de Portugal, a saber, nos grupos que
os judeus foram perseguidos por prati- se vão organizando, na déc. de 10 do
carem uma religião que conduziu a esse séc.  xx, contra a Implantação da Repú-
crime máximo, sendo constantemente blica, grupos monárquicos, antiliberais e
considerados um dos males do mundo. antimaçónicos.
O antissemitismo difere desta noção por- Jorge Martins considera os opúsculos
que perdeu a carga religiosa, abrindo-se Os Meus Cadernos (1913), da autoria de
ao horizonte cultural e mesmo biológico. Mariotte, i.e., do P.e Amadeu de Vasconce-
Um antissemita não persegue um judeu los, confesso “monárquico antiparlamen-
porque ele pertence a uma religião, a tar, antiliberal e antijudeu” (MARTINS,
um grupo humano, que optou por matar 2010, 91), a primeira obra antissemita
Jesus. O antissemitismo existe porque vê portuguesa. Desta “raça maldita”, Ama-
nos judeus uma raça inferior. deu de Vasconcelos aponta Guerra Jun-
Diferindo do antissemitismo, a noção queiro como a prova de judaísmo da
de anti-israelismo é a que mais rigoro- República Portuguesa. Na sua obra, e pe-
samente se aplica a todos os que não se rante a inexistência em Portugal de uma
reveem no Estado de Israel. Este campo comunidade judaica de monta que desse
já pouco tem que ver com a religião ou corpo a algum perigo efetivo, afirmava:
com a visão de raças inferiores, tendo “devemos vigiá-los com cautela porque no
tudo que ver com uma delimitação de primeiro conflito entre o interesse nacio-
um Estado, a definição das fronteiras e as nal português e o interesse cosmopolita
resoluções da ONU. Ser anti-israelita não do judaísmo, esses fingidos portugueses

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1720 Antissemitismo

pôr-se-ão ao lado dos seus irmãos de raça


contra nós” (Id., Ibid.).
O ano de 1914 seria um ano bastan-
te importante na formulação do antis-
semitismo português. Hipólito Raposo
publicava a Nação Portuguesa e António
Sardinha, em edição do autor, a obra
O  Sentido Nacional de Uma Existência/An-
tónio Thomaz Pires e o Integrismo Lusitano.
Sardinha vocifera contra toda a mistura
de gentes que os Descobrimentos impli-
caram, dando especial destaque à “porca
infeção hebraica, de que não escapá-
mos incólumes” (SARDINHA, 1914, 41).
Como é natural, este “paladino do antis-
semitismo lusitano” defende o Monarca
D. João III na sua luta pela instalação da
Inquisição e demonstra a necessidade
e vantagens desse tribunal religioso pe-
rante as “influências do morbo judengo”
(MARTINS, 2010, 92). Capa de O Sentido Nacional de Uma Existência,
No ano seguinte, em 1915, Sardinha de António Sardinha (1887-1925).
daria ao prelo a obra O Valor da Raça.
Nesta obra, que se destinava a concurso
para professor da Faculdade de Letras de identidade, bem como o liberalismo de
Lisboa, Sardinha revelava uma total igno- ser uma “forma espiritual do semitismo”
rância da história judaica, assim como da e o capitalismo uma “inegável extração
própria pré-história humana, que aqui talmúdica” (Id., 1940, xxii-xxiv). Tal
usava para definir uma raça lusa. Mis- como o P.e Amadeu de Vasconcelos, tam-
turando referências à Atlântida, referia bém Sardinha, na obra Durante a Fogueira,
o chamado “Homem de mugem” para de 1917, vocifera contra Guerra Junquei-
defender uma homogeneidade étnica e ro: “Duas vezes judeus, por origem fami-
territorial com base na mais distante anti- liar e formação mental” (Id., 1917, 140).
guidade. No ano seguinte, reforçaria esta De resto, são inúmeras as obras deste
tese com o texto “O território e a raça” autor em que abunda o seu ódio racista e
incluído na obra A Questão Ibérica, no qual antissemita, negando qualquer aspeto po-
defendia mais veementemente a origem sitivo do judaísmo na história de Portugal
atlante da raça lusitana. Mais tarde, no e associando-o a tudo o que passou a con-
Glossário dos Tempos, diria que a raça lusa siderar-se marcas da contemporaneidade.
era a última barreira ao “alastramento se- É este o percurso que faz nas obras já ci-
mita” (SARDINHA, 1942, 162). tadas e, ainda, em: Ao Ritmo da Ampulheta
No seu ideário, Sardinha associava os (1925), Feira dos Mitos (1926), Da Era nas
judeus à maçonaria, e.g., no livro Ao prin- Colunas (1928) e Prol do Comum (1934).
cípio Era o Verbo, acusando Pombal de ser Citamos o fim de um seu soneto, “Ma-
a origem de toda uma linha de degene- dre Inquisição”, retirado da obra Pequena
rescência e de assalto à natureza cristã da Casa Lusitana, na medida em que mostra

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Antissemitismo 1721

da melhor forma o pensamento radical Mostrando o sentido da sua argumen-


de Sardinha: “Ó santa Inquisição, acende tação, começava o seu texto afirmando:
as chamas!/E no fulgor terrível que der- “Uma coisa espantosa está acontecendo
ramas,/Vem acudir à pátria portuguesa!” em toda a Europa que ameaça abraçar
(Id., 1937, 122). o mundo inteiro: essa coisa espantosa é
Durante a longa influência ideológi- a invasão dos judeus! […] Eis a invasão
ca de Sardinha, vários outros autores e que não faz rinchar cavalos, nem rodar
obras florescem nas hostes monárquicas artilharias nas montanhas, mas que che-
conservadoras. Francisco Pereira de Se- ga, entretanto, silenciosa, furtiva e gigan-
queira prefaciaria, em 1923, a edição por- tesca, a abalar as instituições seculares”
tuguesa dos célebres Protocolos dos Sábios (SAA, 1925, 7).
de Sião, uma muito conhecida falsificação Referindo apenas alguns dos mais im-
antissemita originária da polícia política portantes momentos históricos caracteri-
russa e publicada em 1903. Apesar de zados por Mário Saa, citemos, e.g., a for-
desde cedo ter sido apontada como uma ma como qualifica a expulsão dos judeus
fraude, esta obra foi, durante dezenas de decretada por D. Manuel I em 1496 como
anos, a bíblia ideológica do antissemitis- uma “grosseira balela” que “trouxe o aces-
mo, a prova da conspiração judaico-ma- so dos judeus à vida pública” (MARTINS,
çónica para dominar o mundo. No caso 2010, 108). Diz ainda que o batismo for-
português, esta obra encaixar-se-ia per- çado foi uma vitória judaica e que até a
feitamente nos ventos que em Portugal instalação da Inquisição tinha trazido
se faziam sentir depois da Revolução de vantagens para os judeus, uma vez que os
outubro de 1917, a que se juntou, ainda, defendeu da “justiça do povo” (Id., Ibid.,
o fantasma, recuperado de uma década 109) Obviamente, para este autor, “Pom-
antes, da possibilidade de o regime repu- bal fora a primeira afirmação dos judeus
blicano oferecer parte de Angola para a no poder”, tendo aberto o caminho à Re-
criação de um Estado judaico. Eco já de volução Liberal e, depois, à Republicana.
uma maturação ideológica perfeitamente A Revolução de 1910 era vista da seguinte
consentânea com uma leitura enviesada maneira por Mário Saa: “com a revolução
da história e da cultura portuguesas, a dos cristãos-novos, em 1910, estava histo-
edição portuguesa desta obra alterou a ti- ricamente resolvida a vingança que havia
tulação, antepondo uma nova expressão de tomar aos cristãos-velhos dos sucessos
ao título mais conhecido, numa tentativa de 1506, aquela célebre matança […]”
manifesta de provocar no leitor uma fo- (Id., Ibid.).
bia política muito mais clara. O título de Argumentando contra a presença so-
1923 era: Os Planos de Autocracia Judaica. cial dos judeus nas capitais europeias,
Protocolos dos Sábios de Sião. Saa dizia ainda: “esses centros [teatros,
Na senda das mossas feitas pela obra clubes, cafés] são verdadeiras Sinagogas!
anterior, Mário Saa editava, em 1925, Os nossos amigos que entram e saem são
A Invasão dos Judeus. Esta obra encontra-se os conversos de 1496, os cativos de ou-
organizada em cinco partes, que corres- trora e os sobreviventes da matança de
pondem a cinco patamares de domínio São Domingos”. Por outro lado, afirman-
dos judeus sobre a sociedade portuguesa: do a perigosidade da raça, defendia: “o
I – A invasão do sangue; II – Assalto à ri- judeu é um revolucionário de qualquer
queza; III – Assalto ao Estado; IV – Assalto maneira: este é até, um sistema psicoló-
à religião; V – Assalto à vida mental. gico de reconhecer a priori um cristão­

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1722 Antissemitismo

‑novo” (Id., Ibid.). Da estética modernista advieram ao mundo desde a Revolução


ou futurista à Revolução Russa, tudo era, Francesa de 1789.
em sua opinião, obra judaica proposita- Profundamente ligado a um catolicis-
damente orientada para a destruição da mo fora de época, para Paulo de Tarso
identidade europeia. a “questão judaica” resolvia-se de uma
Outro marco notável na panóplia re- forma simples através do Código Penal:
tórica do antissemitismo em Portugal “é fácil expulsar os judeus como os ex-
encontra-se na obra do homónimo do pulsou D. Manuel I; […] não lhes aper-
grande difusor do cristianismo, o apósto- tar as mãos, escorraçá-los dos nossos clu-
lo dos gentios. Assim em 1924, Paulo de bes, dos nossos cafés, do nosso convívio.
Tarso – pseudónimo de António Peralta, Devem os governos pô-los na fronteira,
assumido na sequência de uma conver- pô-los à margem como indesejáveis”.
são da maçonaria ao cristianismo – ter- Mais, “É necessário fazer guerra sem
minava o seu livro Crimes da Franco-Ma- tréguas aos judeus […] fechem-lhes as
çonaria Judaica, obra que só seria editada lojas maçónicas e fechem-lhes as suas Si-
em 1928, já em plena ditadura militar, nagogas […] a nossa tolerância, a nossa
porque, segundo o autor, não conseguiu caridade é que tem feito mal” (Id., Ibid.,
apoios pelo medo que os seus poten- 124). Paulo de Tarso estende a sua críti-
ciais mecenas sentiam. Declarava Paulo ca aos novos desportos que na altura se
de Tarso sobre o assunto: “Parece que implantavam por toda a Europa. Deste
a nossa sociedade burguesa e aristocrá- modo, o futebol, e.g., para além de ser
tica está apavorada diante do papão de apontado como fator de desenvolvimen-
barbas postiças de lã de borrego, que to da tuberculose, é por ele visto como
é a corte maçónico-judaica” (TARSO, “desnacionalizador” e contrário aos “de-
c. 1928, 11). veres de bom chefe de família e de bom
Juntando maçonaria e judaísmo, Paulo católico” (Id., Ibid., 127).
de Tarso considera urgente um discurso Paralelamente ao percurso bibliográ-
panfletário que esclareça a população: fico de quase todas estas personagens,
“Somente queremos mostrar ao públi- entre 1923 e 1933 foi publicado o Serviço
co o mal que vai invadindo o mundo, o d’el-Rey, órgão oficial das juventudes mo-
perigo judaico, cuja força reside na ma- nárquicas conservadoras, revista dos na-
çonaria” (MARTINS, 2010, 109). As acu- cionalistas nortenhos, editada no Porto,
sações de pertença à maçonaria ou de se que tinha como dirigentes António Mar-
ser judeu repetem-se ao longo da obra, ques da Cunha, redator principal, e Fran-
aliás profusamente pontilhada de ima- cisco Pereira de Sequeira, diretor. Esta
gens e frases incendiárias recolhidas por publicação integrista, na qual se encon-
Jorge Martins: os judeus são a “raça pros- tram textos a elogiar Mussolini e Primo
crita”, a “raça viperina”, o “maior mal de Rivera, clama por um ditador portu-
da terra”, o “assassino”, o “parricida”, o guês. Defendendo nas suas páginas a che-
“estrangulador”, o “incendiário”, o “cri- gada rápida de uma ditadura, é constante
minoso” (Id., Ibid., 19-20), etc. Entende a relação que estabelece entre a demo-
Paulo de Tarso que, para conseguirem cracia e o fim da identidade dos povos,
os seus objetivos, os judeus criaram a ma- entre o crime e o fim do peso da Igreja
çonaria e abominam a monarquia, assim Católica, tudo isto catalisado e potencia-
como a Igreja Católica, sendo, pois, os do pela “raça maldita de Deus” ou pelo
responsáveis por todas as desgraças que “polvo semítico que Roma exterminara

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Antissemitismo 1723

em Cartago”, nas palavras de um dos seus que marcou a historiografia nacional,


articulistas, César d’Oliveira. apresenta desta forma a perseguição aos
Em 1925, no seguimento de um opús- judeus, como que a justificá-la: “Muito
culo publicado por Adolfo Benarus con- impropério se tem escrito contra estes úl-
traditando o Protocolo dos Sábios de Sião, timos atos de D. João II, crueldades dita-
António de Carvalho Cyrne questiona das aliás por um sincero motivo de fé reli-
Benarus sobre o facto de os judeus ainda giosa; mas os que assim vociferam deviam
não terem construído a sua terra prome- antes louvar a memória do monarca, pois
tida. Para Cyrne, a manutenção da iden- esses seus atos, proclamados cruéis, pou-
tidade e da coesão judaicas são a prova param afinal muitos infelizes a horrores
da existência de um plano maior, de uma bem maiores, tais como os sofridos pe-
maquinação para dominar as sociedades los que entraram em Marrocos, onde os
cristãs. Usando a imagem da nódoa no muçulmanos, movidos apenas dos mais
melhor pano, afirma Cyrne: “o judeu, baixos e vis sentimentos – o latrocínio e a
onde quer que caia, não se deixa absor- luxúria – lhes infligiram uma incontável
ver” (Id., Ibid., 144). série de assassinatos, de roubos e de abo-
No que respeita à concretização de um mináveis sevícias” (PERES, 1929, 171).
ideário antissemita, a história portuguesa Mas o preconceito é ainda mais subtil.
não é, apesar de tudo, muito rica. Rapi- Como Jorge Martins aponta num estu-
damente engolidos e recriados pelo sala- do publicado pela Cátedra de Estudos
zarismo, os meios monárquicos e migue- Sefarditas Alberto Benveniste em 2006,
listas mais fechados perderam o escasso “A história dos judeus portugueses tem
espaço político e social que conquistaram sido uma história invisível. Com efeito, os
durante a Primeira República. De resto, judeus foram praticamente obliterados
Salazar iria gorar os desejos e anseios des- da nossa história enquanto povo, o que
te sector: não anulou a legislação relativa se pode constatar facilmente através dos
à separação entre o Estado e a Igreja, tal manuais escolares de História do ensino
como nunca abriu a possibilidade de um básico e secundário” (MARTINS, 2006,
regresso da monarquia, por mais defe- 223). De facto, ainda hoje é difícil per-
rência que tenha manifestado em relação ceber o escasso espaço que os programas
à família real exilada. e manuais escolares dão à herança que
Contudo, não sendo rica em momen- Portugal recebeu das suas comunidades
tos, obras e discursos claramente antis- judaicas. Continua a ser, em termos de
semitas, a história contemporânea por- memória coletiva, algo que se prefere es-
tuguesa é herdeira do antijudaísmo e do conder, escamotear, ao invés de valorizar.
antissemitismo em diversos aspetos. As Uma fatia imensa da responsabilidade
obras de balanço da visão portuguesa do por esta situação reside, sem dúvida, na
passado apenas recentemente deram al- comunidade académica. Continuando a
gum lugar à parte judaica da nossa cultu- seguir Jorge Martins, “Uma boa parte da
ra. Só as histórias de Portugal coordena- responsabilidade deve-se à frágil investi-
das por Oliveira Marques e João Medina gação portuguesa em torno da ‘questão
no último quartel do séc. xx apresentam judaica’ em Portugal, o que se reflete no
capítulos ou volumes centrados nos sefar- nosso sistema educativo” (Id., Ibid.). Com
ditas. Ao contrário, já em pleno séc. xx, efeito, em 2016 existe apenas um centro
Damião Peres (1889-1976), professor de investigação universitário dedicado à
universitário em Coimbra e historiador temática sefardita: a Cátedra de Estudos

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1724 Antissetembrismo

Sefarditas Alberto Benveniste, fundada


em 1996, que continua plenamente soli-
Antissetembrismo
tária no seu trabalho, de filigrana cultu-
ral e de paciência mental, de recolocar a
memória sefardita num lugar de isenção,
de respeito e de conhecimento no meio
académico e cultural nacional.

A s revoluções e os movimentos insur-


recionais tornaram-se uma constante
na vida europeia nas décadas que se se-
guiram à Revolução Francesa. Portugal
não foi exceção e os momentos revolu-
cionários repetiram-se entre 1834 e 1851.
Entre estes, os acontecimentos do mês de
Bibliog.: CALHEIROS, Pedro, “L’impacte de setembro de 1836 constituíram-se como
l’affaire Dreyfus au Brésil et au Portugal”, in um dos mais marcantes da história do li-
Portugal, Brésil, France: Histoire et Culture. Actes du
beralismo português.
Colloque, Paris, 27-27 Mai. 1987, Paris/Lisboa,
Centre Culturel Portugais/FCG, 1988, pp. 89­ Ao contrário do que havia sucedido an-
‑133; MARTINS, Jorge, “Literatura antijudai- teriormente, a luta política não se travou
ca em Portugal”, História, n.º 53, fev. 2003, entre liberais e absolutistas, mas dentro
pp. 40­‑47; Id., “A questão judaica em Portu- da própria família liberal, que em pouco
gal: bibliografia essencial comentada”, Clio, tempo já se havia separado em grupos po-
n.º 9, 2003, pp. 143-188; Id., “O moderno líticos antagónicos, demonstrando a sua
anti-semitismo em Portugal”, Vária Escrita,
complexidade, num quadro de crescente
n.º 11, 2004, pp. 291-336; Id., “Os judeus nos
manuais escolares”, Cadernos de Estudos Sefardi­ polarização de fações. Estas desenharam­
tas, n.º 6, 2006, pp. 223-255; Id., A República e ‑se logo após a vitória do miguelismo, du-
os Judeus, Lisboa, Nova Vega, 2010; MEDINA, rante o período em que ocorreu a emigra-
João, “O caso Dreyfus em Portugal”, Revista da ção para Londres e Paris. Cresceram não
Faculdade de Letras, n.os 16-17, 1994, pp. 115­ só em torno de visões políticas divergen-
‑231; PERES, Damião, História de Portugal, vol. ii, tes, mas também de notórias antipatias
Barcelos, Portucalense, 1929; PINTO, Paulo pessoais e de interesses económicos diver-
Mendes, “Memória – Ideologia – Imagens: os
sos, apoiados por grupos sociais distintos.
sefarditas na historiografia portuguesa recen-
te”, Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 6, 2006, Estes antagonismos viriam a concentrar­
pp. 205-221; SAA, Mário, A Invasão dos Judeus, ‑se particularmente nas questões consti-
Lisboa, Libânio da Silva, 1925; SARDINHA, tucionais, dividindo os liberais em duas
António, O Sentido Nacional de Uma Existência/ grandes fações: os defensores da Consti-
António Thomaz Pires e o Integrismo Lusitano, s.l., tuição de 1822, reposta aquando da Re-
ed. do Autor, 1914; Id., Durante a Fogueira, Lis- volução de Setembro, e os que pugnavam
boa, Livraria Universal, 1917; Id., Pequena Casa
pela manutenção da Carta Constitucional
Lusitana: Sarcasmos, Esperanças e Elegias, Porto,
Livraria Civilização, 1937; Id., Ao princípio Era de 1826, outorgada por D. Pedro IV. Este
o Verbo, 2.ª ed., Vila Nova de Famalicão, Mi- grupo é geralmente designado como car-
nerca, 1940; Id., Glossário dos Tempos, Porto, tista e, após a Revolução de Setembro de
Imprensa Portuguesa, 1942; TARSO, Paulo 1836, constituiu largamente o espectro
de, Crimes da Franco-Maçonaria Judaica, Guarda, político antissetembrista.
Empresa Veritas, c. 1928. A Revolução de Setembro de 1836, para
Paulo Mendes Pinto além de afastar do poder o grupo mais

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Antissetembrismo 1725

conservador do liberalismo, que o domi- absoluto, convocar as Cortes ou dissolver


nava desde a Convenção de Évora-Monte, a Câmara dos Deputados. O Rei seria as-
logrou igualmente repor a Constituição sim “o árbitro decisivo do processo polí-
de 1822. O período que se seguiu, desig- tico” (BRANCO, 2013, 33). Este grupo
nado na historiografia portuguesa como englobou sempre sectores sociais diversos
setembrismo, teve nos nomes de Passos e, até à ascensão plena do cabralismo, fo-
Manuel e do marquês de Sá da Bandei- ram vários os seus epítetos, desde “amigos
ra os seus principais representantes, que de D. Pedro” a “ordeiros” ou “cabrais”;
desenvolveram uma política de cariz re- embora a sua designação fosse variando
formador, tendo na reforma do ensino consoante a época e a figura política mais
uma das suas grandes conquistas. Este proeminente do grupo à altura, “cartistas”
movimento foi também impulsionado foi o termo mais duradouro.
pela conjuntura internacional, pois em Após a Revolução de Setembro, a con-
França a Revolução de Julho de 1830 co- flituosidade entre setembristas e cartistas
locou os Orleans no trono, inspirando continuou. Tal facto levou a Rainha a
fortemente os exilados portugueses que tentar um compromisso que teria como
aí se encontravam. Na vizinha Espanha, base os dois textos constitucionais, o de
durante o mês de agosto de 1836, houve 1822 e o de 1826. Deste intento nasceu,
igualmente um movimento revolucioná-
rio, que precedeu o setembrismo portu- José da Silva Passos (1800-1863).
guês em apenas algumas semanas.
Os setembristas, pertencendo a uma
ala considerada mais radical, defendiam
uma constituição resultante da soberania
nacional, em que o poder do Rei era di-
minuto. A soberania residia unicamente
na nação e exercia-se nas Cortes através
dos representantes eleitos para esse fim.
Homens como Passos Manuel olhavam
para a monarquia como uma instituição
própria do absolutismo, passível de ser
eliminada através do progresso. Ainda
em 1831, foram precisamente os irmãos
Passos que apresentaram por escrito um
pedido de revisão da Carta, considera-
da por eles como contrária à soberania
popular.
Os sectores mais moderados do libera-
lismo, designados de antissetembristas,
defendiam particularmente o sufrágio
indireto, e sobretudo o grande poder mo-
derador da Coroa, pois, ao contrário da
Constituição de 1822, a Carta tinha sido
concedida pelo Monarca, tendo assim este
um papel mais forte na vida política, po-
dendo sancionar leis com poder de veto

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1726 Antissetembrismo

em 1838, uma Constituição que suprimiu reclamação dos antissetembristas, a Car-


a Câmara dos Pares e instituiu um Sena- ta, ainda que reformada, permitiu isolar
do. No entanto, a Coroa continuaria a ter o radicalismo setembrista, mas também
poder de veto e poder para dissolver as o cabralismo, e assim criar as condições
Cortes. para o desenvolvimento económico, ma-
Esta solução teve curta duração, vigo- terial e social pelo qual ficaria conhecida
rando apenas até 1842, mas por meio a Regeneração.
dela tentou-se, de algum modo, expressar
uma via de consenso na vida política por- Bibliog.: BONIFÁCIO, Maria de Fátima,
tuguesa. Este consenso seria suportado “A Revolução de Setembro de 1836”, Análise
através de figuras mais moderadas, como Social, vol. xviii, n.º 71, 1982, pp. 331-370; Id.,
“Em busca do setembrismo perdido – proble-
Rodrigo da Fonseca. Todavia, tal intento
mas em torno da análise de formações pro-
foi particularmente difícil de executar, topartidárias”, Análise Social, vol. xxiii, n.º 98,
sobretudo a partir de 1839, aquando da 1987, pp. 761-774; Id., “A guerra de todos
ascensão do homem que dominaria a contra todos: ensaio sobre a instabilidade
cena política nos anos seguintes: Costa política antes da Regeneração”, Análise So­
Cabral. cial, vol. xxvii, n.º 115, 1992, pp. 91-134; Id.,
A restauração da Carta foi conseguida “O setembrismo corrigido e actualizado”, Pe­
nélope, n.os 9-10, 1993, pp. 309-321; Id., Uma
através de um pronunciamento militar
História de Violência Política. Portugal de 1834 a
ocorrido no Porto em 1842, auxiliado 1851, Lisboa, Tribuna da História, 2009; Id.,
pela adesão do Exército em Lisboa. A ala Um Homem Singular. Biografia Política de Rodrigo
mais conservadora do liberalismo regres- Fonseca Magalhães (1787-1858), Lisboa, Dom
sava assim em pleno ao poder, apagando Quixote, 2013; BRANCO, Rui, “A vida políti-
significativamente o ciclo iniciado pelo ca”, in PINTO, António Costa, e MONTEIRO,
setembrismo, pois Costa Cabral recu- Nuno Gonçalo (dirs.), História Contemporânea
de Portugal, 1808-2010, vol. 2, Carnaxide/Ma-
sou sempre entendimentos com Passos
drid, Objectiva/Fundación MAPFRE, 2013,
Manuel e contou sempre com o apoio
pp. 31-74; FERREIRA, Fátima Sá e Melo, “A lei
decisivo da Rainha. Este movimento foi, das indemnizações de 1835 e a violência polí-
também ele, propiciado pela conjuntura tica depois da guerra civil”, Ler História, n.º 15,
internacional, particularmente por Fran- 1989, pp. 55-82; SÁ, Victor de, A Revolução de
ça e Espanha, países onde, ao contrário Setembro de 1836, 3.ª ed., Lisboa, Livros Hori-
do que sucedera aquando da instaura- zonte, 1978; VIEIRA, Benedicta Maria Duque,
ção do setembrismo, o conservadorismo A Revolução de Setembro e a Discussão Constitucio­
nal de 1837, Lisboa, Salamandra, 1987.
dominava.
Estes episódios devem ler-se no con- Maria Luísa Gama
texto político, cultural e socioeconómi-
co das primeiras décadas do liberalismo
português, em que os pronunciamentos,
as insurreições e as mudanças frequentes
no ordenamento constitucional geraram
uma conflituosidade política endémica.
A vida política nacional só seria estabiliza-
da com a nova ordem conseguida com o
processo iniciado na Regeneração e com
a imposição do Ato Adicional de 1852.
Este pacto político, assente na principal

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Antissexismo 1727

Antissexismo cia de Paiva, sem esquecer as navegantes


do tempo de Vasco da Gama. Em 1521,
alguns decretos das Ordenações Manueli-
nas ditavam: “Que o marido nom pos-
sa litiguar em Juizo sobre bens de raiz
sem outorgua de sua molher” (liv. 3,
tít. xxxii), e “Como a molher fica em

O antissexismo compreende um con-


junto de iniciativas individuais e de
movimentos coletivos que operam no sen-
posse e cabeça de casal per morte de seu
marido” (liv. 4, tít. vii). A obra de 1540
Espelho de Casados, de João de Barros, era
tido de alterar o enviesamento de género um tratado sobre o amor e o casamento
dentro de uma sociedade. A temática tem que destruía os preconceitos baseados
um cunho ocidental, ultrapassando o âm- nos que seriam os principais defeitos da
bito da cultura portuguesa. Caracteriza-se natureza feminina (ignorância, inconsis-
por ser um projeto claramente filosófico tência e inconstância).
de alteração da sociedade, com raízes Durante a Inquisição, em perseguição
que remontarão à Antiguidade clássica. da mulher-bruxa, coligada às forças do
A combinação de fina sensibilidade e de mal, algumas mulheres portuguesas dis-
visão compenetrada permitiu que Platão farçaram-se de homens para entrarem na
se adiantasse ao seu tempo, sugerindo em universidade, vestiram as vestes eclesiásti-
A República, livro v, uma proposta de for- cas e escreveram livros proibidos.
mação igualitária e a participação femini- A primeira obra de cariz feminista
na na esfera pública e em cargos direti- foi redigida em português – não em la-
vos. De modo que, não sendo redutível tim – por Rui Gonçalves, no ano de 1557,
aos movimentos feministas, o antissexis- com dedicatória à Rainha D. Catarina,
mo bebe da influência de mulheres – e de afirmando que se equivocavam os que fa-
homens – que, num ímpeto de ousadia lavam contra as mulheres porque “como
não sem perigos, romperam convenções ha muitas cousas em que os homẽs sam de
e cânones e contribuíram para mudanças millor condiçam, assi outras muytas tem as
sociais profundas. molleres mayores & mais supremas præro-
Ao longo da história portuguesa, mulhe- gativas que os homẽs” (GONÇALVES,
res corajosas evidenciaram-se pelos seus 1557, 4). Com o século das Luzes, o livro
feitos, desde poderosas dirigentes, ainda teve uma 2.ª edição, em 1785, dedicada
no séc. xii, como D. Teresa de Aragão, à à Rainha D. Maria I, por J. A.  Presbit  S.
frente do Condado Portucalense, e D. Dul- No prólogo, argumenta-se que muitas
ce Berenguer de Barcelona (e Aragão), a mulheres “viciosas” são-no por impulso
quem foram outorgados documentos de dos homens, que as mulheres são aptas
gestão do reino. No dealbar do séc. xiii, a para os conhecimentos científicos e “su-
Rainha S.ta Isabel destacou-se pelas ações blimes”, e que a própria Igreja Católica
diplomáticas e fundou hospitais, abrigos lhes reconhece qualidades como a devo-
para os pobres e mosteiros. No séc. xiv, dá­ ção e a piedade. Atribui-se-lhes, também,
‑se a regência de D. Leonor Teles, primeira a vergonha e o pudor, “pedra preciosa
Rainha nascida em Portugal, e D. Filipa de dos costumes” (Id., 1785, 7). Enfatizam-se
Lencastre chega a representar o poder real. os exemplos de mulheres cultas e virtuo-
Pelo séc. xv passaram Leonor de Me- sas, contrariando a ideia reproduzida de
nezes, a infanta D. Beatriz e a capitã Mé- sujeição, passividade, pouca inteligência

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1728 Antissexismo

e confinamento às atividades domésticas.


A Biblioteca Nacional de Portugal prepa-
rou, em 1992, uma reedição fac-similada
do livro de Rui Gonçalves.
É possível contrapor a imagem da mu-
lher maliciosa, perversa, sedutora, raiz
dos males – Pandora e Eva – à da mulher
pura, virtuosa e mãe, cujo símbolo é, na
tradição judaico-cristã, Maria, mãe de Je-
sus. É notório, aliás, “um movimento geral
da Igreja para o culto mariano […] que
afetou a sociedade portuguesa” (CALA-
FATE, 2003, 535).
Na Descripção do Reino de Portugal, de
Duarte Nunez do Leão, em 1610, há três
capítulos dedicados ao género feminino:
“Da honestidade & recolhimento das mu-
lheres portuguesas, & de suas perfeições”, Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805).

“Do valor & ânimo das mulheres portu-


guesas” e “Da habilidade das mulheres Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, que per-
portuguesas para as letras & artes liberais”. maneceriam durante décadas na clandes-
Em 1626, é publicado Jardim de Portugal, em tinidade, com destaque para “Epístola a
que Se Da Noticia de Algũas Sanctas, e Outras Marília (pavorosa ilusão da eternidade)”.
Molheres Illustres em Virtude, as Quais Nas- O estilo de vida insurreto e este poema
ceram ou Viveram, ou Estão Sepultadas neste resultaram no seu encarceramento. Nele,
Reino, & Suas Conquistas, de Fr. Luís dos entre outras coisas, consciencializava as
Anjos. Já em 1715, Paula da Graça escreve mulheres (representadas em Marília) da
A Bondade das Mulheres Vindicada e Malícia sua situação de subalternidade, legitima-
dos Homens Manifesta, colocando em causa da pela rígida estrutura social e divisão
o papel tradicional das mulheres. de papéis, incitando-as a rejeitar o poder
No ano de 1734, surge Portugal Ilustrado patriarcal e a reclamar para si os prazeres
pelo Sexo Feminino, Notícia Histórica de Mui- carnais a que tinham direito.
tas Heroínas Portuguesas, Que Floresceram em Em 1846, dá-se a Revolta da Maria da
Virtude, Letras e Armas, de Diogo Manuel Fonte, dirigida por mulheres, contra o
Aires de Azevedo, e, entre 1736 e 1740, Governo de Costa Cabral. O primeiro Có-
Damião de Froes Perim publica os dois vo- digo Civil a contemplar os direitos legais
lumes do Theatro Heroíno, Abecedário Históri- das mulheres data de 1867. Em 1881, ins-
co, e Catálogo das Mulheres Ilustres em Armas, taura-se a maçonaria feminina em Portu-
Letras, Acções Heróicas e Artes Liberais. Em gal, com a Loja Feminina de Adoção, ins-
1782, Verney difunde o Verdadeiro Método de tituída por Adelaide Cabete, e, em 1889,
Estudar, reservando o último capítulo aos Elisa de Andrade é a primeira a licenciar­
estudos no feminino. Em 1790, criam-se ‑se em Medicina. Em 1905, Ana de Castro
as primeiras escolas para meninas. Ainda Osório publica As Mulheres Portuguesas,
no séc. xviii, o indómito Bocage escanda- notável manifesto feminista, e, em 1909,
lizava a sociedade da época, cenário de um funda-se a Liga Republicana das Mulhe-
puritanismo limitador, escrevendo as suas res Portuguesas, extinta em 1918.

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Antissexismo 1729

Com a proclamação da república, em na Vida Económica e Social, presidido


1910, ratificam-se novas leis do casamento por Maria de Lurdes Pintasilgo, e, em
e da filiação, bem como a Lei do Divórcio. 1972, são publicadas as Novas Cartas Por-
Em 1911, aprova-se a Constituição republi- tuguesas, por Maria Velho da Costa, Maria
cana e a separação de poderes; é permiti- Isabel Barreno e Maria Teresa Horta. No
do às mulheres trabalhar na função públi- ano seguinte, cria-se a Comissão para a
ca, e a ousadia de Carolina Beatriz Ângelo Política Social Relativa à Mulher, que, a
obriga à alteração da lei de voto. Carolina partir de 1975, se chamará Comissão da
Michaëlis de Vasconcelos é a primeira mu- Condição Feminina, sendo substituída,
lher numa cátedra universitária, e apare- em 1991, pela Comissão para a Igualdade
ce a Associação de Propaganda Feminista e para os Direitos das Mulheres.
(1911-1918). Em 1924, dá-se o I Congresso Após o 25 de Abril, as mulheres ace-
Feminista e de Educação. Teresa Leitão de deriam à carreira administrativa local, à
Barros publica Escritoras de Portugal. Génio diplomacia e à magistratura. Em 1975,
Feminino Revelado na Literatura Portuguesa. altera-se a Concordata e os casados pela
Em 1930, publicará Vidas Que Foram Ver- Igreja obtêm a possibilidade de se di-
sos. Conferência, salientando como Camões vorciarem civilmente. Portugal participa
exaltou, nos vultos femininos, o seu amor oficialmente no Ano Internacional da
pela pátria: “Camões andou sempre pro- Mulher, promovido pela Organização das
curando matar nos olhos das mulheres a Nações Unidas (ONU). A nova Constitui-
sua única paixão sem arrependimento: ção da República Portuguesa é aprovada
a  adoração da Pátria” (BARROS, 1930, a 2 de abril de 1976, promovendo os prin-
19). No início do séc. xx, Iva Guerreiro foi cípios da universalidade e da igualdade.
a primeira portuguesa a voar, seguindo­ Entre 1976 e 1985, decorre a Década das
‑se-lhe as paraquedistas e as aviadoras da Nações Unidas para as Mulheres. Maria
Guerra do Ultramar.
Com o Estado Novo, a situação da mu- Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925).
lher regride. Só as mulheres que têm for-
mação secundária ou superior podem vo-
tar. A nova Constituição política de 1933
advoga a igualdade dos cidadãos perante
a lei, mas ressalva as “diferenças resultan-
tes da natureza” da mulher (art. 5.º, pt. i,
tít.  i). Em 1935, são eleitas as primeiras
deputadas à Assembleia Nacional e as pri-
meiras procuradoras à Câmara Corporati-
va. Em 1937, surge a Obra das Mães pela
Educação Nacional, de ideologia oficial,
e, em 1940, é assinada a Concordata entre
Portugal e a Santa Sé. Em 1967, entra em
vigor o novo Código Civil, que reconhece
ao marido o lugar de chefe de família. In-
troduz‑se, em 1969, na legislação nacional
o princípio do salário igual para trabalho
igual. Em 1970, institui-se um Grupo de
Trabalho para a Participação da Mulher

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1730 Antissexismo

Teresa Horta publica, em 1977, Mulheres de por Portugal relativamente a instâncias


Abril, que “pretende ser […] a denúncia internacionais como a ONU, o Conselho
[…] do devastador, aniquilador quotidia- da Europa, a União Europeia e a Comu-
no das mulheres portuguesas, mas tam- nidade dos Países de Língua Portuguesa.
bém da mudança já, da esperança e da Finalizando, o antissexismo não preten-
luta por um mundo novo: sem diferenças derá nem o nivelamento forçado nem a di-
de classe e de sexo” (HORTA, 1977, 13). luição da identidade, mas antes o respeito
Em 1978, o Código Civil é revisto e de- pelas características próprias e idiossincrá-
saparece a figura do chefe de família. No ticas que promovam quer a singularidade,
ano seguinte, a Assembleia Geral da ONU quer a complementaridade.
aprova a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres, ratificada por Por- Bibliog.: ARMADA, Fina d’, Heroínas Portugue­
tugal em 1980. Cria-se a Comissão para sas. Mulheres Que Enganaram o Poder e a História,
a Igualdade no Trabalho e no Emprego, Lisboa, Ésquilo, 2012; BARROS, Theresa Lei-
tão de, Vidas Que Foram Versos. Conferência, Lis-
de natureza governamental, e Maria de
boa, Oficinas Gráficas de Bertrand (Irmãos)
Lurdes Pintasilgo é a primeira mulher Lda., 1930; BOCAGE, J. M. B., Obra Completa,
no cargo de primeiro-ministro. Em 1995, ed. lit. Daniel Pires, vol. vii, Porto, Caixotim,
realiza-se, em Pequim, a IV Conferência 2004; CALAFATE, Pedro (dir.), História do Pen­
Mundial das Nações Unidas sobre as Mu- samento Filosófico Português, vol. v, t. i, Lisboa,
lheres, da qual emana uma plataforma Círculo de Leitores, 2003; COMISSÃO PARA
de ação e uma declaração, que Portugal A CIDADANIA E A IGUALDADE DE GÉNERO,
Igualdade de Género em Portugal 2012, Lisboa,
subscreve.
Comissão para a Cidadania e Igualdade de
Em 1996, gera-se a figura do alto-co- Género, 2013; DIREÇÃO-GERAL DA SEGU-
missário para as Questões da Promoção RANÇA SOCIAL, A Mulher em Portugal. Alguns
da Igualdade e da Família, e, em 1997, é Aspetos do Evoluir da Situação Feminina na Legis­
aprovado o I Plano Global para a Igual- lação Nacional e Comunitária, vols. i-ii, Lisboa,
dade. A lei constitucional n.º 1/97, de 20 Núcleo de Documentação e Divulgação da
de setembro, sublinha que é tarefa maior Direção-Geral da Segurança Social, 2014;
do Estado a promoção da igualdade de GOMES, Pinharanda, Dicionário de Filosofia
Portuguesa, 2.ª ed. aum., Lisboa, Dom Quixo-
género.
te, 2003; GONÇALVES, Rui, Dos Privilegios &
Pela lei orgânica n.º 3/2006, de 21 de Prærogativas Q̃ho Genero Feminino Tẽ por Direito
agosto, estabelece-se a Lei da Paridade. Comũ & Ordenações do Reyno mais Que ho Ge­
Em 2007, é celebrado o Ano Europeu da nero Masculino, Lisboa, Oficina João Barreira,
Igualdade de Oportunidades para Todos, 1557; Id., Dos Privilegios & Prærogativas Q̃ho Ge­
e aprova-se o funcionamento da Comis- nero Feminino Tẽ por Direito Comũ & Ordenações
são para a Cidadania e Igualdade de Gé- do Reyno mais Que ho Genero Masculino, 2.ª ed.,
dedicatória e prólogo J. A. Presbit S., Lisboa,
nero, integrada na Presidência do Conse-
Oficina de Filippe da Silva e Azevedo, 1785;
lho de Ministros. Id., Dos Privilegios & Prærogativas Q̃ho Genero
Nos começos do séc. xxi, o Quadro de Feminino Tẽ por Direito Comũ & Ordenações do
Referência Estratégico Nacional dedicou Reyno mais Que ho Genero Masculino, apres. Elisa
o seu eixo prioritário 7 à igualdade de gé- Maria Lopes da Costa, Lisboa, Biblioteca Na-
nero, vigorando também o V Plano Na- cional, 1992; HORTA, Maria Teresa, Mulheres
cional para a Igualdade de Género, Cida- de Abril, Lisboa, Caminho, 1977; PLATÃO,
A República, Lisboa, FCG, 2001.
dania e Não Discriminação (2014-2017),
ajustado aos compromissos assumidos Ana M. Bijóias Mendonça

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Antissidonismo 1731

Antissidonismo gem provocada pela fratura de um sonho


demoliberal que derivou no longevo pe-
ríodo salazarista.
O que interessa aqui destacar é o regis-
to das vozes e das penas que salientaram
o negativo do personagem e da experiên-
cia política que ele protagonizou e que

A decantada posição de charneira do


artilheiro, lente coimbrão e “Presi-
dente-Rei” Sidónio Bernardino Cardoso
terminou tragicamente com a sua vida.
O antissidonismo congregou republi-
canos democráticos e evolucionistas e
da Silva Pais (1872-1918), ocorrida, de alguns unionistas, assim como monárqui-
forma assaz efémera, após a Implantação cos intransigentes, gente suficiente para
da República, em 5 de outubro de 1910, alimentar na opinião pública uma ima-
e a grave erosão político-institucional e gem anti daquele que apareceu a muitos
socioeconómica favorecida pela eclosão como salvador, como reconciliador da
da Primeira Guerra Mundial, em meados massa conservadora com a república que
de 1914, foi atravessada por narrativas se instalara agressivamente no país, como
diversas, opostas e contrapostas, muitas o anunciador de um novo e glorioso des-
delas situadas entre as res factae e as res fic- tino para Portugal. Para uns, Sidónio Pais
tae. As múltiplas interpretações urdidas,
em momentos distintos e segundo ten- Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais
dências historiográficas opostas, parecem (1872-1918).
convergir no entendimento de se tratar
de um ponto de viragem, situado a meio
da experiência republicana portuguesa.
Há, assim, várias nuances na fase históri-
ca de 1917-1918: a viragem da república
velha para a nova república velha através
de uma efémera e atribulada república
nova; a viragem de uma república forte
para uma república fraca por intermédio
de um frustrado e frustrante ensaio auto-
crático, que antecipa ou se assemelha à
ditadura militar imposta pelo movimento
militar de 28 de maio de 1926; a viragem,
mais subtil, do sistema liberocapitalista e
parlamentar, em crise aguda, para um au-
toritarismo protofascista que desemboca
no fascismo estado-novista de Salazar; a
viragem no confronto sem tréguas entre
radicais jacobinos e moderados, entre ci-
dade e campo, entre o caixeirismo jacobi-
no pequeno-burguês e a acidental alian-
ça de camponeses, proprietários, classe
média, sector da importação-exportação
e alta burguesia industrial; enfim, a vira-

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1732 Antissidonismo

foi o cavaleiro da providência, generoso do Burnay redigiu, em janeiro de 1918,


e protetor dos infelizes, o líder heróico uma espécie de carta aberta ao “inclito e
aclamado por uma nação desesperada; invicto restaurador da ordem”, completa-
para outros, um ambicioso, um exibicio- da posteriormente por um sentido pane-
nista, um falso republicano, enfim um gírico intitulado Um Ano depois... a Mor-
mero aprendiz de tirano. A morte brusca te! Na carta aberta de janeiro, há, entre
a tiro de revólver por um pretenso lou- outras, algumas referências intencionais
co – José Júlio da Costa –, que se julgava a Napoleão Bonaparte – o corso que, de
incumbido da suprema missão de resti- militar ao serviço da Primeira República
tuir a república aos próceres democrá- francesa, chegou a Imperador da França
tico-parlamentares e guerristas expulsos e senhor de um vasto domínio imperial
pelo dezembrismo – Bernardino Ma- do Atlântico à Ásia, tendo sido, por isso,
chado, Afonso Costa, Norton de Matos, comparado a Sidónio Pais pelo arcebispo
etc. –, fez dele, entre os que o choraram, de Évora, D. Augusto Eduardo Nunes,
um mártir, um grande morto, quase um em discurso proferido por ocasião da vi-
santo, enquanto os que inconfessada- sita presidencial a essa cidade em 15 de
mente queriam vê-lo morto puderam fevereiro. Burnay louvou a coragem de
respirar de alívio. Sidónio ao expulsar os democráticos ou
Logo após o golpe de 5-8 de dezembro afonsistas da esfera do poder, mas não es-
de 1917, surgiu o combate contra a situ- condeu a sua apreensão a propósito dos
ação dezembrista/sidonista, incluindo na indefinidos contornos ideológicos e polí-
mesma trincheira, não apenas os demo- tico-institucionais da proclamada repúbli-
cráticos de Afonso Costa e os evolucio- ca nova. Com efeito, era, no mínimo, em-
nistas de António José de Almeida, cul- baraçoso o apoio dos monárquicos a um
pabilizados pelas graves consequências regime ordeiro, mas republicano. A solu-
económicas e sociais da política interven- ção proposta por Sidónio parecia tombar
cionista adotada em 1916, mas, em pou- num equívoco e num abismo. E Alfredo
co tempo, os próprios unionistas de Brito Pimenta apontou-o, sem rodeios e à guisa
Camacho que, de inspiradores e apoian- de premonição, numa conferência profe-
tes, passaram a adversários da situação. rida na Liga Naval, em 26 de fevereiro de
Na imprensa, e apesar do restabele- 1918: “Esta Republica Nova tem um am-
cimento da censura em abril de 1918, biente conservador e tem por coopera-
tinham eco os primeiros ataques contra dores os elementos monarquicos. É, por
o novo homem forte da política portu- consequencia, uma republica de caracter
guesa: Sidónio Pais deixara-se seduzir paradoxal, contra a qual os verdadeiros
pela miragem do poder pessoal; dera azo republicanos se apresentam em acto de
a um excessivo militarismo; entregara a hostilidade, não tendo ainda entrado
república na mão dos monárquicos; im- no caminho das violencias, porque tem
provisara perigosamente ao propor uma medo; mas fa-lo-ao, quando virem que o
república nova de contornos de todo in- Sr. Sidonio Pais enfraquece” (PIMENTA,
definidos; etc. 1918, 32).
A par destas e de outras críticas, lança- Um equívoco fatal, denunciado tam-
das do campo republicano, os monárqui- bém por António Sardinha nas páginas
cos e integralistas, tidos na gíria da época do jornal A Monarquia, diante do féretro
por conservadores, não se inibiram de do malogrado presidente: “Montou Sido-
formular inquietações e reservas. Eduar- nio Pais um dia a cavalo e, rapidamente,

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Antissidonismo 1733

ei-lo transitando duma penumbra mais temunhos e nos ensinamentos da ciência


que discreta para os destaques ruidosos do seu tempo – sem paralelo com Antó-
da notoriedade. Logo um equivoco la- nio Aurélio da Costa Ferreira –, pegou
mentavel se estabeleceu e esse equivoco no bisturi e predispôs-se a dissecar o caso.
levou Sidonio Pais á sepultura. [...] A tara Servido por uma base biográfica lacunar,
da Republica é o demagogismo e a Repu- pobre e salpicada de imprecisões gra-
blica não se melhora, senão destruindo­ ves – a ausência de uma biografia exausti-
‑se. Tentou melhorá-la Sidonio Pais. Com va e rigorosa de Sidónio Pais atravessará,
isso não fez mais do que armar o braço aliás, o séc. xx, com prejuízo manifesto
que o abateu. Até na sua morte Sidonio de todos os ensaios interpretativos conhe-
Pais morreu republicano” (SARDINHA, cidos até ao começo do séc. xxi –, con-
1926, 277-278). fessou-se fascinado pelo “estado de alma
A mesma ideia seria, aliás, glosada pelo coletivo formado em torno do presidente
monárquico constitucionalista Luís de Sidonio Pais”, que considerou “um dos
Magalhães a abrir a sua defesa intitulada fenomenos de psicologia coletiva mais
Perante o Tribunal e a Nação, bem como na interessantes que se têm dado em Portu-
extensa análise política de Anselmo Viei- gal” (GARCIA, 1921, 5), e esboçou uma
ra, com um capítulo consagrado à repú- análise estribada na formação jacobina
blica nova e ao seu mentor, escrito para e positivista recebida por Sidónio Pais
“desfazer parvoíces” e reduzir a ação de em Coimbra, nas implicações da escolha
Sidónio às suas merecidas proporções. que o maçon Sidónio fizera, para nome
Vieira critica, por isso, “quem, movido a simbólico, de Thomas Carlyle e na meta-
rebates de lisonja, ou impelido pela auda- morfose vivenciada em Berlim, onde ab-
cia da ignorancia, comparasse ao grande sorvera o germanismo, o militarismo e a
Napoleão o pequeno mas bem intencio- propensão ditatorial. A conclusão essen-
nado Sidonio Pais” e indigna-se por se cial é óbvia: típico herói carlyleano, repu-
ter chegado a “bacorejar que o chefe da blicano seduzido pelas fórmulas monár-
republica nova, não querendo inaugurar quicas, incapaz, porém, de se empenhar
a dinastia sidonica, ficaria muito lisonje- numa verdadeira política conservadora
ado, se D. Manuel II, restituido ao trono dado o seu estigma revolucionário, Si-
de seus antepassados, lhe concedesse um dónio Pais não deixou uma obra política
titulo de Duque e suficientes meios para válida, mas uma herança simbólica de in-
manter o prestigio da honraria” (VIEIRA, delével significado: “A beleza que o povo
1926, 408). Somando páginas de miúda informou numa lenda dourada, mística e
apreciação da frustrada e frustrante ação sentimental, que cerca com um nimbo de
sidonista, assevera, em jeito de remate fi- poesia terna e saudosa, essa ultima flor de
nal, que Sidónio Pais foi deificado e posto Cavalaria, que surgiu na boa terra Portu-
num pedestal superior às suas capacida- guesa, onde se redigiu a primeira histo-
des intelectuais e políticas, vaticinando, ria de Amadis, o lendario reparador de
por isso, que se tivesse sobrevivido ao agravos e endireitador de tortos, em que
atentado “seria desastrosa a sua queda” germina talvez já uma ideia fundamente
(Id., Ibid., 437). arreigada na consciencia nacional: o mes-
Por seu turno, o médico setubalense sianismo, que a faz esperar persistente e
Fernando Garcia, sem conseguir disfar- pacientemente o seu Desejado, galopan-
çar um forte antijacobinismo e um nítido do vagamente numa atmosfera nevoenta”
monarquismo, refugiou-se em alguns tes- (Id., Ibid., 56-57).

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1734 Antissidonismo

Aos olhos dos monárquicos e dos inte- empenhados na causa da guerra, foi en-
gralistas, era naturalmente agradável esta tregue a quem não reunia os requisitos
maviosa perceção de um intenso messia- adequados; o corpo de aviação, a operar
nismo, tipicamente português, projetado em conjunto com a força aérea francesa,
na figura cavaleiresca de Sidónio Pais, foi dissolvido e integrado no CEP; o co-
assim como lhes eram caras a defesa da municado português de guerra foi supri-
ordem, a perseguição aos democráticos mido e a censura agravada, no sentido de
ou a atitude de pendor neutralista face à abafar textos de apoio ao intervencionis-
Grande Guerra. mo português; e a dissolução, por decre-
No entanto, para os adeptos ferrenhos to, do Museu da Grande Guerra, criado
da intervenção militar de Portugal no pelo Governo anterior, simbolizava ple-
front e do retorno ao poder dos partidos namente os preconceitos antiguerristas
da república velha, “o consulado sidonis- dos novos governantes. Mas estas e outras
ta foi um equívoco político de graves con- medidas deixam também perceber uma
sequências”, segundo a expressiva síntese diferença óbvia quanto à autonomia e à
de um artigo anónimo publicado anos importância do efetivo português no qua-
depois, no suplemento Extra do jornal dro das forças aliadas: Norton de Matos
A Capital de 5 de dezembro de 1969. Nos e a equipa de guerra conferira-lhe um
anos da Primeira Guerra, a questão do estatuto elevado, mais próprio de uma
Corpo Expedicionário Português (CEP) potência beligerante equiparável, técni-
e da conduta de guerra gerida pelos go- ca, financeira e militarmente, à Inglater-
vernos de Sidónio Pais animou um deba- ra ou a França, enquanto Sidónio Pais e
te público determinado mais por razões os seus colaboradores, herdeiros de uma
de ideologia e de estratégia política que situação consumada, contra a qual mui-
por um exclusivo apuramento da verda- tos deles haviam proposto a neutralida-
de histórica. Em Paris, a Ligue pour la de, optaram por uma assunção discreta
Défense de la République Portugaise à e realista dos compromissos assumidos,
l’Étranger, composta por figuras cimei- especialmente com a velha aliada. Dois
ras da equipa de guerra, como Bernar- diferentes modos de estar no front que os
dino Machado, João Chagas e Alexandre guerristas converteram habilmente num
Braga, editou o opúsculo La Vérité sur le conflito insanável entre o bem e o mal.
Portugal e o ex-presidente da República, Uma boa conduta de guerra, de acor-
deposto pelo golpe dezembrista, expen- do com a argumentação de Paulo Osório,
de aí, tal como reproduz na coletânea de era tudo menos germanófila e defetista,
notas e de documentos avulsos intitulada ou seja, teria efetuado o roulement das tro-
No Exílio, a ideia de que a revolução sido- pas, concederia as licenças estipuladas,
nista culminou um processo urdido pelos manteria o corpo de aviação e recusaria a
sectores germanófilos para, através da de- redução do CEP a uma única divisão mili-
posição do Governo de Afonso Costa, ani- tar. O contrário disto era “O desastre” – tí-
quilarem por completo o esforço militar tulo do seu segundo artigo em A Capital,
português no teatro europeu. Em abono de 12 de março de 1919, precedido por
desta contundente afirmação, aponta vá- “Portugal na guerra”, publicado no dia
rias medidas da governação sidonista que anterior. Era, enfim, o enfraquecimento
sugeriam uma diferente orientação das do CEP, a trágica derrota no Lys e uma
autoridades de Lisboa: o estado-maior do humilhante subalternização de Portugal
CEP, formado por oficiais experientes e nas negociações da Conferência de Paz.

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Antissidonismo 1735

A toada crítica estava pronta a ser repe- dos Deputados de 27 de junho de 1919,
tida onde mais conviesse. No Parlamento, publicado com o título O Dezembrismo e a
Leote do Rego, deputado democrático Sua Política na Guerra e que inclui dados
e antigo comandante da Divisão Naval coligidos pelo órgão do seu partido du-
de Lisboa, dava o seu contributo para o rante 1918 e alguma documentação ofi-
processo do sidonismo lembrando que cial escolhida para reforçar as suas teses
Portugal entrara na guerra a pedido de políticas. O precedente tinha sido, aliás,
Inglaterra e em auxílio dos Aliados, que aberto com a publicação na imprensa do
o CEP funcionara em pleno até ao sido- memorando inglês de 10 de outubro de
nismo e que, em Lisboa, os Governos 1914 que convidava Portugal a colaborar
sidonistas haviam feito o jogo das forças no esforço de guerra, o que se entendia
monárquicas, reacionárias e germanófi- ser um convite formal de Inglaterra para
las, em conluio indecoroso com a propa- a entrada no conflito e a refutação de
ganda e a espionagem alemãs. Reclama- que Portugal se fizera convidado. Aceder
va, por isso, um inquérito parlamentar e a provas documentais será, a partir de en-
a indispensável – e depois efetiva – publi- tão, um dos trunfos de peso na pendula-
cação do Livro Branco da Grande Guer- ção vitoriosa do debate.
ra, numa palavra, o julgamento político Augusto Casimiro, combatente nas trin-
dos factos e da alegada traição de Sidó- cheiras, admirador de Norton de Matos
nio Pais, fogueira para a qual o deputado e responsável pela organização do Livro
evolucionista (o partido de António José Branco, entrou na polémica fomentada
de Almeida secundara, como se sabe, a por Cunha e Costa, através de um con-
política de guerra, embora longe da una- junto de artigos saídos no jornal A Vitória,
nimidade) Eduardo de Sousa, diretor do entre final de julho e inícios de outubro
jornal República, lançara mais umas achas de 1919, reunidos pouco depois em livro,
com o seu discurso na sessão da Câmara recheado de documentos e acrescido de

Sidónio Pais Derrota Afonso Costa (1918).

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1736 Antissidonismo

uns incisivos depoimentos emitidos por alegadas vantagens da entrada do país no


outros soldados, “todos camaradas e ir- teatro europeu da guerra, revelando outra
mãos nas amarguras e nas alegrias doloro- realidade: as fragilidades organizativas do
sas da Flandres” (CASIMIRO, 1919, 335). CEP; as crescentes dificuldades económi-
Um deles, o moderado António Granjo, cas e alimentares; uma opinião pública
soube sintetizar o lema que uniu, desde cada vez mais dividida quanto ao embar-
o unionismo ao democratismo afonsista, que para a Flandres; a indisponibilidade
a campanha antissidonista: “O sidonismo de Inglaterra, a partir de meados de 1917,
baldeou a Nação como uma tempestade para assegurar transporte naval ao roule-
baldeia uma folha. As prisões atulharam­ ment das tropas portuguesas, preterido
‑se; fez-se o espírito de ódio e retaliação; em favor da intervenção dos americanos
dividiram-se as classes e os homens; redu- no conflito. Podemos dizer que Augusto
ziu-se a opinião pública ao critério poli- Casimiro cumpriu o seu papel, enquanto
cial; consagrou-se a delação; cultivou-se a outros parceiros de barricada assumiram
violência; animaram-se os sentimentos de também o seu dever político-partidário.
cobardia e defeção; e, quando estávamos Eurico de Campos, inspetor da Polícia
em guerra com país estrangeiro, refreou­ de Investigação Criminal de Coimbra,
‑se a impulsividade heróica da raça. O si- preso na sequência da intentona demo-
donismo foi, sob o ponto de vista interno, crática de 12 de outubro de 1918, verteu
a aliança com os monárquicos; sob o pon- no papel a sua total discordância em re-
to de vista da guerra, a aliança com os ger- lação às investigações oficiais efetuadas
manófilos. A primeira aliança só podia e avançou com as suas próprias para
conduzir-nos a este resultado – a restaura- concluir, mais por efeito de inferências
ção monárquica; a segunda só nos podia vagas do que pela adução de provas con-
trazer esta consequência – a derrota. Efe- cludentes, que a morte de Sidónio Pais
tivamente, a monarquia foi restaurada no só interessava aos monárquicos, pelo que
Porto; efetivamente, sofremos o desba-
rato de la Lys” (Id., Ibid., 339). Era, pois,
Assassinato de Sidónio Pais
isto que importava repetir até à exaustão, na Estação do Rossio (1919).
ajeitando as provas e acentuando patrio-
ticamente a tal diferença subjetiva entre
uma boa e uma má conduta de guerra.
Augusto Casimiro não escondeu, aliás,
no seu libelo, que o grande erro de Si-
dónio Pais, a quem não ousa mimosear
de germanófilo, foi o de dar cobertura a
uma política fraca: “O governo dezembris-
ta passou a vida a concordar com os ou-
tros. O erro da sua política internacional
é o de uma pavorosa abdicação perante a
política inglesa. Por ele pagará na história,
sr. Cunha e Costa” (Id., Ibid., 98). De fac-
to, pagou e pagou durante muito tempo.
E só volvidos quase 80 anos a historiografia
portuguesa de cariz científico começou,
embora algo titubeante, a questionar as

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Antissidonismo 1737

“foram os monárquicos, só os monárqui- um generoso e desinteressado empurrão


cos, que armaram o braço que assassinou camachista.
o Dr. Sidónio Pais” (CAMPOS, 1919, 31). Entretanto, nos escaparates das livra­
E aponta um suspeito: o chefe da polícia rias, não tardou a aparecer um livro
do Porto, o controverso Sollari Allegro, pequeno, de uma centena de páginas,
que, nas vésperas da viagem ao Norte de escrito por um novelista temível, que se
Sidónio Pais, sabendo que este o iria de- havia celebrizado com o popular roman-
mitir, teria concebido e mandado execu- ce O Marquez da Bacalhôa, violenta diatri-
tar o crime. be contra os últimos Braganças, editada
Sem comparável esforço dedutivo (e es- em Paris e entusiasticamente acolhida
peculativo), Tomás da Fonseca, escritor em Portugal. António de Albuquerque,
republicano e anticlerical ferrenho, che- de seu nome completo António de Albu-
fe de gabinete do ministro do Fomento querque do Alardo de Amaral Cardoso e
do Governo Provisório da República, Barba de Meneses e Lencastre, nascido
António Luís Gomes, e implicado no em Viseu, educado e instruído em Fran-
complô de Mortágua associado ao 12 de ça, anarquista e monarcómaco, boémio
outubro de 1918, limitou-se a narrar em e snob, cosmopolita irrequieto (saltitara
estilo diarístico a sua experiência de pri- pela Europa, partira à descoberta de Áfri-
sioneiro político nos cárceres do sidonis- ca e daí rumara ao Brasil), amigo de Clau-
mo, engrossando-a com impressões sobre de Farrère, Anatole France, Paul Brulat,
o carácter discricionário das autoridades entre outros escritores e intelectuais fran-
sidonistas, as levas de prisioneiros ino- ceses, retornou à pátria, instalou-se per-
centes, o “odio profundo pelos republi- to da capital e dispôs-se a singrar como
canos” evidenciado por “este Sidonio e a escritor de sucesso junto dos seus com-
sua quadrilha” e ainda com certos para- patriotas – ainda que César dos Santos,
lelismos históricos – para os seus “carce- seu biógrafo, venha a retratá-lo, em 1925,
reiros”, Sidónio era o retrato atual de “D. como O Despresado, num ensaio generoso
Miguel – o da forca e do cacete” (FONSE- de reabilitação do amigo, falecido a 2 de
CA, 1919, 186). junho de 1923. No ano anterior, António
E a detração, cada vez mais caudalosa, de Albuquerque tinha dado ao prelo Si-
seguiu pelo seu leito – na imprensa e fora dónio na Lenda. Estudo Critico, com uma
dela. Nas páginas de A Lucta, Brito Ca- advertência curiosa: “Este livro, escrito ha
macho, ex-amigo e ex-chefe político de mais dum ano e que só agora lanço à pu-
Sidónio Pais, mostrou ter digerido mal o blicidade, pelas imensas dificuldades com
percurso a solo do pupilo, após o 8 de de- que travei luta e me venceram para a sua
zembro de 1917, que culminou na eféme- imediata publicação, visa apenas o estudo
ra república nova. Vazou, por isso, alguns do homem público, ditador e revolucio-
meses volvidos sobre o assassinato de nário, que de direito pertence ao crítico
Sidónio, um breve depoimento memo- e ao historiador. Se, muito ao de leve, me
rialístico sob o inócuo e singelo título de refiro a algumas pessoas da família de
“À margem”, misturando, num tom hábil Sidónio Pais é apenas para demonstrar
e convincente, factos, omissões e distor- a sua degeneração e desiquilibrio atávi-
ções, tudo isto para vincar bem a perene cos; e isso mesmo o faço com constrangi-
subalternidade do malogrado quarto Pre- mento e por absoluta necessidade” (AL-
sidente da República, que só teria chega- BUQUERQUE, 1922, 6). Deduz-se que
do à ribalta política por ter contado com lhe era necessário, imperioso mesmo,

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autopsiar a lenda de popularidade, do na origem”, “Sidónio megalómano”, “Si-


heroísmo e do assomo messiânico tecida dónio conspirador”, “Sidónio pacifista”,
à volta de Sidónio Pais, homem de carne “Sidónio ditador”, “Sidónio diplomata”,
e osso, com taras e defeitos, poses e fan- “Sidónio orador”, “Sidónio morto”, “Tra-
tasias. E donde vinha tal necessidade? Do gicomédia” e “Palavras de dois notáveis
compromisso com o seu ideário político? homens de letras a respeito de José Júlio
Ou de uma razão inconfessável e mesqui- da Costa, executor de Sidónio Pais”. Esses
nha? Em 18 de janeiro de 1918, António dois homens de letras eram o anarquista
de Albuquerque escreveu num exemplar Manuel Ribeiro, que entrevistara o assas-
de O Marquez da Bacalhôa (5.ª ed.) a se- sino para o jornal A Batalha, e o jornalista
guinte dedicatória: “Ao Dr. Sidonio Paes Bourbon e Menezes, chefe de gabinete
libertador de Portugal em 5 de Dezembro de Bernardino Machado e declarado
de 1917. Homenagem ao seu talento e ra- antissidonista. António de Albuquerque,
ras qualidades de caracter” (Arquivo Pes- apoiando-se em dados biográficos e em
soal de Sidónio Pais, ALBUQUERQUE, outras informações (veiculadas pela im-
1912, dedicatória). Justamente por essa prensa ou oralmente) imprecisas, distor-
ocasião, tentara ser recebido pelo novo cidas e até bizarras, inaugurou, ao invés
chefe da nação, segundo o relato algo ne- de Maria Feio, a desconstrução da lenda
buloso, a meias cores, de César dos San- do Grande Morto, do Libertador, do Herói
tos, insistindo para tal com o seu parente, e Mártir, subentendida vulgarmente por
Alf. Bernardo de Albuquerque, membro mito; por sua vez, Fernando Garcia não
da entourage presidencial, mas sem êxito; enfatizou nem desconstruiu o mito, limi-
sendo-lhe negada a entrevista, jurava vin- tando-se a tentar fazer a anatomia possí-
gança nos salões de Belém e proclamava vel do fenómeno.
irado: “Pois bem. Querem a luta? Para a Albuquerque conduziu, de facto, uma
luta iremos. Já destronei um rei. Facil me recolha de dados, apressada e intencio-
é destruir um Presidente. Adeus, Bernar- nalmente dirigida para as eventuais fra-
do” (SANTOS, 1925, 16). Podemos duvi- quezas da personagem, acolhendo o que
dar desta versão, mas a dedicatória, acima pelos cafés e esquinas se contava do seu
transcrita, contrasta imenso com o teor passado, mais e menos recente, ou o que
da sua demolidora charge antissidonista, ia transparecendo na imprensa, e.g., a
concluída na Praia das Maçãs, aos 30 de passagem de Sidónio Pais pelos primeiro
agosto de 1919. e segundo Governos constitucionais da
Impressionado com aquilo que desig- República e, sobretudo, a sua estada em
nou por “fenómeno de loucura coletiva”, Berlim como diplomata, que foram alvo
ou seja, com a idolatria que a “socieda- de comentários pouco lisonjeiros e que
de portuguesa há tanto dementada, Albuquerque reproduziu sem se esque-
subserviente e incultamente crédula” cer de referir “que foi assíduo frequenta-
consagrara a Sidónio Pais em vida e, so- dor de bares dissolutos e casas suspeitas”
bretudo, diante da sua morte, António (Id., Ibid., 14).
de Albuquerque não se conteve e puxou Revelações de equiparável quilate fê­‑las,
da pena para uma diatribe séria, em po- entretanto, João Chagas nas páginas do
ses de dever da lucidez e do bom-senso seu famoso Diário, editado em 1930. Este
(ALBUQUERQUE, 1922, 8-9). Desen- talentoso publicista, que se distinguira nos
volveu-a sob um punhado impressivo de tempos da aguerrida propaganda contra a
epígrafes – “Sidónio na lenda”, “Sidónio monarquia constitucional agonizante, sal-

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Antissidonismo 1739

tou para a ribalta política com o 5 de Ou-


tubro. Entrou na governação do país e foi
encarregado da missão de representante
diplomático em Paris, atividade que mui-
to estimou e considerou talhada ao seu
perfil, comportando-se, por isso, como
uma espécie de príncipe dos diplomatas
da República. Não obstante as suas críti-
cas de intelectual refinado e cosmopolita,
partilhadas, aliás, pelo seu grande amigo
José Relvas, e endereçadas ao comporta-
mento demagógico dos afonsistas e radi-
cais do novo regime, manifestou-se, com
o deflagrar da Primeira Guerra Mundial,
um intervencionista indefetível e, nessa
medida, tratou a situação dezembrista/
sidonista com total repulsa e sarcasmo. Caricatura de 1910 de João Chagas, de Alberto
Note-se, contudo, que quase ninguém, de Sanches de Castro.
Manuel de Arriaga a Bernardino Macha-
do, foi poupado, para grande indignação vola ironia, que de Teixeira Gomes, de
de Bourbon e Meneses, machadista sensí- Sidónio e de Eusébio Leão (“do especia-
vel e antissidonista. lista das vias urinárias que nos representa
Para João Chagas, o major matemáti- em Roma”) nada sabia sobre os respeti-
co, autoproclamado chefe da nação em vos desempenhos político-diplomáticos,
finais de 1917, foi obviamente um rema- embora soubesse algumas coisas censurá-
tado cúmplice da corrente germanófila, veis: “O Oliveira [...] informou-se de que
monárquica, reacionária e antipatriótica Eusébio Leão, que está separado da sua
e autor de uma sedição – a de dezem- mulher, vive na cidade dos Cesares em
bro – “feita contra a guerra e para que companhia de uma concubina. O mes-
não fossem mais soldados para a guerra” mo, segundo parece, sucede ao Sidonio
(CHAGAS, 1930, III, 192). Espantou-se, Pais, em Berlim. O Vasconcelos, em Ma-
porém, com o “delirante pranto” que se drid, dispensa a companhia da mulher e
seguiu à sua morte e ironizou perante o vive num hotel, como vive num hotel o
“subito enternecimento dos reacionarios Teixeira Gomes em Londres. Dos efeitos
portugueses pela viuva e filhos de Sidonio moraes de semelhante situação não se
Pis” (Id., Ibid., 411-412), dizendo que não forma o menor juizo em Portugal” (Id.,
sabia se dos filhos ele se ocupara, mas que 1929, II, 90); em 24 do mesmo mês refere
da mulher se achava separado há muito que recebeu a visita em sua casa do jorna-
tempo. A partir de 1919, as alusões di- lista Hermano Neves, o qual lhe referira
retas a Sidónio Pais surgem associadas à como autêntico que “a amante do minis-
instabilidade vivida até à aventura restau- tro de Portugal em Berlim, uma francesa,
racionista, enquanto, para trás, as poucas teria sido por este motivo expulsa da Ale-
detetáveis se prendem com o seu discreto manha” (Id., Ibid., 105); em 23 de feve-
e isolado desempenho diplomático em reiro de 1916, não evitou uma alfinetada
Berlim. Nas impressões relativas a 12 de no diplomata Sidónio: “Desempenhou-se
outubro de 1915, desabafou, com malé- o Sidonio Pais desta missão? Deve ter sido

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curiosa a sua entrevista na chancelaria escritor Joaquim Paço d’Arcos, filho do


imperial. Este Sidonio Pais é um heroi. Com. Henrique Correia da Silva, que co-
Se serve o país por dedicação no posto mandou o pequeno cruzador Ibo de 1915
de Berlim, merece as coroas cívicas” (Id., a 1919 – será bem mais contundente nas
Ibid., 203); e, nos registos de 14 e de 15 Memórias da Minha Vida e do Meu Tempo:
de março de 1916, ocupou-se por inteiro “Dez dias depois as balas dum assassino
do colega forçado pela guerra a retirar prostravam na Estação do Rossio o Pre-
de Berlim que, de passagem em Paris no sidente Sidónio Pais. Julgara ele traçar a
regresso à Pátria, vinha “magro como um Portugal rumo que o seu idealismo fixa-
cão” (Id., Ibid., 223). ra. E mais não deixou atrás de si do que
O interesse deste testemunho tão abra- confusão e miséria” (ARCOS, 1973, 149).
sivo excede o seu conteúdo, ao ajudar-nos Mais mitigado, embora crítico, é o re-
a perceber o papel relevante da escrita trato esboçado por Urbano Rodrigues
diarística e memorialística no reforço e no seu estudo biográfico consagrado,
na eficácia dos discursos hagiográfico e em jeito de homenagem, a Teixeira Go-
de detração, bem como a sua influência, mes, demitido logo após 8 de dezembro,
muitas vezes acrítica, no ofício historio- em conversa com Sidónio, registada nas
gráfico. E mesmo a descrição alegada- páginas de um diário publicado postu-
mente objetiva, factual e cronológica, mamente por Castelo Branco Chaves.
sóbria e sucinta, ilustrada pelo volume Urbano Rodrigues retrata Sidónio, após
Regímen Republicano da coleção Portu- o seu regresso de Berlim, como uma figu-
gal Histórico, dirigida por A. Duarte de ra muda, apagada e desinteressante, uma
Almeida, no qual se sucedem, sem com- inteligência seletiva, opaca fora do domí-
prometedoras adjetivações, os principais nio hermético das matemáticas (RODRI-
eventos, que vão do golpe de dezembro GUES, 1946, 139-140).
à Revolta de Monsanto, não está imune Os comentários de Urbano Rodrigues
ao efeito modelador das narrativas, quer não igualam, porém, o azedume nem a
de cunho monográfico e assumidamente condenação veemente assumida por Nor-
parcial, quer de difusa evocação memo- ton de Matos no 5.º volume das suas Me-
rialística, ambas permeáveis à apologética mórias e Trabalhos da Minha Vida, concebi-
ou à demonização. do para justificar perante a história uma
Umas quantas memórias, porventura opção política e demonstrar a má-fé e a
menos lidas e citadas do que as de Raul falta de patriotismo dos antiguerristas, ou
Brandão, as quais, como é sabido, incluem pelo seu correligionário e camarada de
um capítulo dedicado a Sidónio no 3.º vo- armas Sá Cardoso. Figuras proeminentes
lume, Vale de Josafat, condensam um leque de 14 de maio de 1915 e da equipa de
interessante de variações impressivas so- guerra que o dezembrismo triunfante su-
bre a personagem e o seu enredo. jeitara ao opróbrio da prisão e do exílio.
Carlos Eugénio Correia da Silva (Paço Das prisões saíram, entretanto, sindi-
d’Arcos), na sua Vita Brevis, recorda o dia calistas e operários, vítimas dos protestos
27 de maio de 1926 como “o último dia contra as restrições do período de guerra,
de sol da república velha, daquela que queixosos da atuação governativa de afon-
Sidónio Pais há oito anos julgava ter pi- sistas e almeidistas e esperançados num
sado aos pés e que afinal, assassinado o amanhã diferente. Não tardaram, porém,
ditador, renascera como a hidra de Ser- segundo o testemunho de Alexandre Viei-
na” (SILVA, 1934, 40). O seu parente – o ra, a confrontar-se com “o critério estreito,

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Antissidonismo 1741

banal e vazio com que Sidónio Pais se mani-


festou então acerca dos assuntos sobre que
a entrevista versara e a altivez do chefe do
Governo – que contrastava singularmente
com a quase meiguice do chefe da insur-
reição, quando com ele, acompanhado de
Aurélio Quintanilha (que fora seu discípu-
lo na Universidade de Coimbra), contac-
táramos no Parque Eduardo VII – deixou
pessimamente impressionados os delega-
dos da U.O.N. [União Operária Nacio-
nal], que a seguir faziam minucioso relato
ao respetivo Conselho Central” (VIEIRA,
1974, 121-122). A atitude do presidente e
o agravamento da carestia de vida terão ar-
refecido os entusiasmos e imposto um ine-
vitável afastamento, convertido em rutura
na fracassada greve geral de 18 de novem-
bro de 1918. O Governo sidonista – conta
Alexandre Vieira – aproveitou, então, para
Sebastião de Magalhães Lima (1850-1928).
deportar, sem julgamento, trabalhadores
rurais e prender os militantes sindicalistas
mais conhecidos, entre os quais figuravam à atitude de seu amigo Rocha Martins,
ferroviários do Sul e Sudeste. E essas arbi- “honesto e laborioso jornalista e escri-
trariedades tornaram-se mais graves após tor”, carecido, porém, segundo as suas
o atentado na estação do Rossio. próprias palavras, “de reais virtudes de
O grão-mestre Magalhães Lima foi historiador”. E tanto no livro Eu, os Polí-
uma das vítimas que sofreram a ira das ticos e a Nação, como em As Minhas Memó-
autoridades e de muitos populares em rias, assinalou os excessos e defeitos do
busca de mais presumíveis criminosos e chefe ou “efémero Condutor da Grei”, a
conspiradores, como deixou escrito nos quem atribuiu uma alegada capacidade
Episodios da Minha Vida, sob a epígrafe mimética, patenteada durante a sua esta-
“Dezembrismo. Aquela noite!” (LIMA, da em Berlim: “[...] era, por assim dizer,
1928, 316). uma crisálida germânica a querer per-
Esses angustiosos e conturbados mo- furar o casulo democrático camachista,
mentos viveu-os também Cunha Leal, para dar lugar, mais tarde, por mero fe-
mas da bancada dos apoiantes da go- nómeno de mimetismo, a uma borboleta
vernação sidonista, para onde fora pa- de asas irizadas em que, debalde, tenta-
rar pela amizade fraternal de Machado vam conciliar­‑se tintas ideológicas opos-
Santos: “Mas ninguém – a começar por tas” (Id., Ibid., 68). Neste quadro, não ad-
ele próprio – me poderia considerar mira que a situação política subsequente
seu sequaz, embora sem quebra da mais tenha atingido a raia do trágico-cómico:
perfeita lealdade” (LEAL, 1967, 72). Re- “A situação dezembrista estava convul-
clama-se, por isso, de uma inquebrantá- sionada pela epilepsia da perseguição.
vel independência, assim como de uma O  medo dos governantes fazia-lhes re-
“estrita imparcialidade”, que contrapõe cear a própria sombra” (Id., s.d., 13).

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1742 Antissidonismo

Uma situação, sem dúvida difícil e com- Outro militar, que, ao contrário do
plexa, que Luís Cabral de Moncada, lente anterior, se distinguirá pela oposição ao
coimbrão, amigo e admirador de Salazar, Estado Novo, João Sarmento Pimentel,
caracterizou, do ponto de vista político, nomeado em 1918 comandante do es-
em poucas linhas: “O sidonismo foi um quadrão da Guarda Republicana do Por-
homem, Sidónio, e nada mais. Faltou-lhe to e impossibilidado pela pneumónica de
um programa e uma fórmula teórica má- exercer, durante alguns meses, essas fun-
gica, com raízes em qualquer sólida tra- ções, reassumidas na fase da Monarquia
dição, e sobretudo faltaram-lhe colabo- do Norte, contra a qual combateu, acu-
radores. [...] Sidónio Pais chegou, pelo sou os monárquicos irredutíveis de terem
menos, oito anos mais cedo do que devia traído a excessiva confiança de Sidónio
ter chegado para a sua obra valer alguma Pais, figura evocada, aliás, com simpatia
coisa; antes disso, essa obra tinha em si nas Memórias do Capitão. Segundo Sar-
mesma as razões da sua própria insubsis- mento Pimentel, em entrevista a Norber-
tência” (MONCADA, 1992, 118). to Lopes, o fracasso da república deveu­
Para quem participou fardado nessa ‑se, em parte, a Sidónio, por ter confiado
obra, como foi o caso de Jorge Botelho demasiado na seriedade dos monárqui-
Moniz, um dos cadetes do Sidónio, o cos, e aos próprios republicanos que se
“Chefe” – termo empregue com entu- “recusaram a colaborar com ele. Os re-
siasmo e veneração – era essencialmente publicanos estavam, porventura, eivados
um militar e comandou um punhado de de teorias utópicas, mas eram firmes nas
moços voluntaristas, patriotas exaltados, suas decisões, diga-se em abono da ver-
desdenhosos da república e dos políti- dade” (PIMENTEL, 1976, 113). Conven-
cos, que o seguiram fascinados. Sidónio ceram-se que “o Sidónio tinha traído a
Pais agigantara-se, pois, aos olhos de Bo- República, tinha traído a liberdade”; no
telho Moniz e dos companheiros, pela entanto “ele era sinceramente republica-
sua inteligência, o seu saber e a sua visão, no. A sua ação foi muito criticada. Depois
pelo seu projeto regenerador e nacional. da sua morte, porém, escreveu-se acerca
Afinal, ele tinha um projeto e era o seu dele muita coisa que não corresponde à
animador, o homem superior indispen- verdade” (Id., Ibid.).
sável à concretização do mesmo: “O mal A referida sinceridade republicana de
da situação de Sidónio Pais não era, ao Sidónio Pais foi corroborada por Gon-
contrário do que se tem dito, estar con- çalo Pereira Pimenta de Castro, alega-
substanciada num só Homem. As ditadu- damente monárquico, mas comprovada-
ras, como todos os grandes movimentos mente republicano unionista, que tinha
reformadores, estão sempre na mão dum ideias muito claras sobre qual deveria ser
Homem. O mal residia na heterogeneida- a atitude da república e que evoca nas
de dos elementos que a apoiavam. Na fal- suas curiosas memórias episódios castren-
ta dum novo chefe de prestígio”. Estas as ses que deixam transparecer a preocupa-
razões do fracasso de uma obra pioneira ção do Presidente da República com a
que anteciparia o fascismo italiano se não situação militar e o bom relacionamento
tivesse “morrido a vontade principal”, im- que manteve com a oficialidade. O então
perando “a luta das vontades secundárias, comandante de Infantaria 16 resumiu as
das pequeninas e baixas vontades, das co- suas impressões pessoais num trecho mui-
vardias, dos ódios, das ambições” (MO- to favorável ao malogrado Presidente:
NIZ, 1926, 8). “Era um Chefe de Estado bem preparado,

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Antissidonismo 1743

com ilustração, talento e até coração. Era trabalho, a índole esmoler, a comoven-
um Chefe de Estado completo, como não te solidariedade para com as vítimas da
é vulgar encontrar-se, porém, como di- pneumónica, a atitude teatral que en-
zia Alexandre Herculano, ‘nenhum país louquecia multidões, entre outras carac-
quer um bom governo!’ O seu consulado terísticas. Fora de palco, i.e., na “intimi-
foi tão benigno, que nem mesmo se de- dade era calmo, e sereno nos momentos
fendeu. Ao seu coração bondoso repug- de perigo, ainda que tivesse assomos de
navam vinganças ou perseguições. Como cólera. Vivia modestamente” e cumpria
republicano, desde os bancos do liceu, um programa diário que começava pelas
era verdadeiramente liberal e tolerante, 8.00 h, quando se levantava, até à noite,
não desejando um Governo imposto pela nunca se deitando antes das 3.00 h, por
violência. Queria a completa liberdade estar a trabalhar ou a receber visitas tar-
religiosa e política, mas também e acima dias. Fumava quatro maços de cigarros
de tudo o respeito pela lei. Só desta for- “baunilha” e, antes de se deitar, tomava
ma a República devia atrair e impor-se” um copo de leite para desintoxicar. Não
(CASTRO, s.d., 56). constava que alguma senhora tivesse per-
Imagem de tolerância e de bondade noitado no palácio. Vital Fontes repete
retocada, também, pela memória do che- ainda a decantada analogia com D.  Pe-
fe da polícia Pereira dos Santos, vertida dro  V, a propósito das fugas de Sidónio
em letra impressa por Manuel Nunes. Pais para o palácio da Pena, em Sintra,
O  episódio contado seguiu-se à revolta mandado construir pelo pai daquele
frustrada de marinheiros no couraçado popular monarca. Alude à sua matriz
Vasco da Gama, em janeiro de 1918, e ti- profundamente republicana, evidencia-
nha a ver com o destino a dar aos detidos. da através do breve episódio dos retra-
O ministro do Interior, Machado Santos, tos com dedicatória de D. Luís Filipe e
convocara à sua presença o juiz Joaquim de D.  Manuel achados no dito palácio.
Crisóstomo e o então agente policial Pe- E deixa clara a presença em seu redor de
reira dos Santos, para lhes transmitir ins- muitos oficiais jovens, de entre os quais o
truções sobre o processo dos 460 revol- mais cuidadoso em matéria de expedien-
tosos, pelos quais sentia a camaradagem te era o alferes miliciano Bernardo de Al-
de marinheiro: “Coitados, são todos uns buquerque, enquanto o capitão Camei-
exaltados, mas amam sinceramente o seu ra, “sempre muito irritado com todos,
país, embora nem sempre vejam bem as até com o sr. Botelho Moniz” (FONTES,
coisas, nem ao que se expõem! E após 1945, 106), assumia o papel de homem
uma pausa: – Um, como juiz, outro, como de total confiança do presidente.
agente, arranjam as coisas de forma que Um fragmento memorialístico, conci-
os presos sejam, pouco a pouco, restitu- so, mas impressivo por nos apresentar um
ídos à liberdade. É esse o desejo do dr. Sidónio Pais agastado pelo cansaço e pela
Sidónio Pais!” (NUNES, 1945, 87). sucessão vertiginosa de problemas e de
Ao esboço do político compreensivo conspirações, confrangedoramente só e
e generoso juntou Vital Fontes, chefe desiludido, em luta desigual contra a ad-
do pessoal do palácio de Belém, o per- versidade, foi redigido como editorial do
fil de um Sidónio Pais que “mal dormiu seu Diário de Notícias por Augusto de Cas-
durante todo o tempo que esteve em tro, jornalista, escritor e natural apoian-
Belém”. Da narrativa composta por Ro- te do Estado Novo, com o título literário
gério Perez, ressalta a entrega estoica ao “Uma noite com Sidónio”.

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Tomé José de Barros Queirós, republi- que a galante figura de Sidónio, “os des-
cano histórico, unionista da primeira li- files militares, as brilhantes receções, sus-
nha, durante anos envolvido na vida polí- citando toda a espécie de adesões” davam
tico-administrativa da Câmara Municipal uma tonalidade especial, embora ao seu
de Lisboa, deputado, gestor e ministro regime faltassem “os necessarios quadros
da República, não deixou escritas as suas para executar o seu programa, pois os re-
memórias, mas deixou papéis, que seu fi- publicanos em breve o abandonariam”.
lho, Vasco de Barros Queirós, compilou e E  daí a sua queda rápida e inexorável
ordenou numa narrativa filialmente apo- (MAGALHÃES, s.d., 30-31).
logética e alinhada por um democratis- Na literatura, e descontado o romance
mo primário em nome do qual a repúbli- Le Prêtre Jean, de Pierre Benoit, que enfa-
ca nova é reduzida ao epíteto de ditadura tiza em Sidónio Pais a ressurgência mes-
criminosa e irresponsável. siânico-sebastianista, o leque de imagens
No lado oposto, quer por colaborar não é variado, mas é muito esclarecedor
com o sidonismo, quer por ser monárqui- quanto ao estereotipismo reducionista
co, esteve o polémico António Adalberto que lhe serviu de legendagem.
Sollari Allegro, que também não terá es- No romance Moleque Ricardo, de José Lins
crito memórias, encarregando-se o filho do Rego, uma personagem – Seu Alexan-
de redigir uma espécie de biografia polí- dre, emigrante português, trabalhador,
tica justificativa da ação controvertida de avarento e dono de uma padaria – evoca
seu pai, especialmente antes e durante a Sidónio Pais como o “endireita” do país,
Monarquia do Norte. exclamando: “Que homem enérgico, que
Significativa é a amostra dos testemu- administrador de mão cheia” (REGO,
nhos memorialísticos em que é flagrante s.d., 180). Exclamação que se repete na
o contraste das representações da figura boca do tenente, cadete do ditador, per-
de Sidónio Pais e da sua república nova. sonagem de O Milagre segundo Salomé, de
Um contraste que se repete nos poucos José Rodrigues Miguéis, e na boca do pa-
textos literários (romances e contos) que drasto da Missa in Albis, de Maria Velho da
conhecemos, enquanto nos manuais do Costa: “‘Ah o Sidonio, que homem’, diz o
ensino primário oficial e liceal aprovados padrasto ‘nunca mais o país levantou ca-
durante a governação salazarista e marce- beça como nesses dias, lembras-te, jóia?’”
lista predomina e prevalece a mensagem (COSTA, 1989, 111-112). Em Trabalhos e
do precursor dos governos de autoridade Paixões de Benito Prada, de Fernando Assis
em rutura com o descrédito do parla- Pacheco, aparece a “figura enigmática”
mentarismo e a anarquia social para es- do “dr. Sidónio Bernardino da Silva Pais,
tabelecer a tranquilidade e o trabalho, a nascido em Coimbra – assim rezam as
ordem e o progresso, antecipando assim Enciclopédias e os Dicionários Ilustrados
a reacção nacionalista da Revolução de acessíveis a escritores... – mas com ante-
28 de Maio. E, no pós-25 de Abril, os ma- cedentes no Minho” (PACHECO, 1993,
nuais do ensino primário de Meio Físico 112), cuja morte o Jorge Ourives previa
e Social são tão lacónicos e redutores que às mãos de um pistoleiro “acirrado pelos
Sidónio e o sidonismo pura e simples- inimigos”, que eram “todos os outros,
mente desaparecem, emergindo, aqui e sem esquecer os monárquicos e os cató-
além, ou como precursor do fascismo, ou licos, que são de uma só ninhada e ele
como algo política e socialmente justifica- traz na palma da mão, esse parvo” (Id.,
do pelo contexto de crise e de guerra, a Ibid., 112-113). Opinião partilhada pelo

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Antissidonismo 1745

folhetinista de Vila Velha: “Passadas umas Autor, 1960; ALBUQUERQUE, António de,
semanas, foi a vez de cair, fulminado por Sidónio na Lenda, Lisboa, Lumen Empresa Inter-
um atentado, o major-presidente, de seu nacional Editora, 1922; ALLEGRO, José Lucia-
no Sollari, Para a História da Monarquia do Norte,
nome Sidónio Pais. Morto a tempo, quan-
s.l., ed. do Autor, 1988; ALMEIDA, A. Duar-
do a estrela redentora começava a em-
te, Regímen Republicano, Lisboa, João Romano
palidecer, teve funerais nacionais que se Torres, 1936; AMADO, José Carlos, História de
transformaram no adeus a outro encober- Portugal, vol. 2, Lisboa, Verbo, 1966; ARCOS,
to. Segundo as testemunhas vila-velhenses Joaquim Paço d’, Memórias da Minha Vida e do
que expressamente se deslocaram a Lis- Meu Tempo, vol. i, Lisboa, Guimarães & Cª,
boa, a urna balouçava num mar de gente 1973; BARRETO, Garcia, A Cidade dos Lacraus,
salpicado de cenas de histeria e tiroteio Lisboa, Editorial Escritor, 1994; BRANDÃO,
Raul, Memórias, vol. iii, Lisboa, Seara Nova,
esparso. O defunto deixava os monárqui-
1933; BURNAY, Eduardo, Sete Anos depois...
cos ao assalto do poder” (GUERRA, 1982, A Republica Nova. Carta ao Sr. Sidonio Paes, Incli­
34). O defunto revelara-se, afinal, o covei- to e Invicto Restaurador da Ordem, Lisboa, Lamas
ro da República, segundo a confissão de Mota e Cª, s.d.; Id., Um Ano depois... a Morte!,
Carlos Rebello de Gualdym, arrependido Lisboa, Tipografia Universal, 1918; CAMPOS,
sidonista e autor do diário ficcional, com Eurico de, Quem São os Assassinos do Dr. Sidónio
início em dezembro de 1917 e fim a 14 de Pais? (Estudo de Investigação Criminal), Coimbra,
dezembro de 1918, que Artur Villares des- Livraria Editora Francisco França Amado,
1919; CARDOSO, Sá, Memórias duma Época
cobriu e editou. Um ano de morte e ódio,
e Apontamentos Politicos, Lisboa, ed. do Autor,
de prisões e de lacraus, alcunha dos civis 1973; CASIMIRO, Augusto, Sidónio Pais (Algu­
armados, pretensamente ao serviço do mas Notas sobre a Intervenção de Portugal na Grande
sidonismo, que perseguiram e mataram Guerra), Porto, Livraria Chardron, 1919; CAS-
democráticos. Estes se espalharam pela TRO, Augusto de, “Uma noite com Sidónio”,
cidade e semearam o terror. O alter‑ego in CASTRO, Augusto de, Homens e Sombras,
de Garcia Barreto, protagonista e narra- Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade,
1958; CASTRO, Gonçalo Pereira Pimenta de,
dor, encerrou um ano de agitada vivência
As Minhas Memórias, vol. 2, Lisboa, Expansão
política com esta tirada: “Horas depois
Gráfica Livreira, Limitada, s.d.; CHAGAS,
soube que o Presidente expirava após ter João, Diario, 4 vols., Lisboa, Parceria Antonio
chegado ao Hospital de S. José. ‘Morro Maria Pereira, 1929-32; Correspondência Lite­
bem! Salvem a pátria!’, terá dito quando rária e Política com João Chagas, 3 vols., Lisboa,
sentiu a vida abandoná-lo. Últimas pala- Notícias/Empresa Nacional de Publicidade,
vras de que tomei conhecimento através 1957-58; COSTA, Maria Velho da, Missa in
dos jornais do dia seguinte. Senti um alí- Albis, Lisboa, Círculo de Leitores, 1989; FON-
SECA, Tomás de, Memorias do Carcere (Subsidios
vio difícil de explicar. Tinha sido outro a
para a Historia Contemporanea), Coimbra, Fran-
concluir com eficácia e alguma loucura o ça & Armenio, 1919; Id., Memórias dum Chefe
gesto que me fora indicado por um rei de de Gabinete, Lisboa, Livros do Brasil, 1949;
espadas. Antes assim” (BARRETO, 1994, FONTES, Vital, Servidor de Reis e de Presidentes,
249-250). comp. Rogerio Perez, Lisboa, Marítimo-Co-
lonial Lda, 1945; GARCIA, Fernando, Sidonio
Paes. Um Ensaio de Psychologia Politica, Setúbal,
Bibliog.: manuscrita: Arquivo Pessoal de Si- Associação Setubalense de Caridade, 1921;
dónio Pais, ALBUQUERQUE, António de, GUERRA, Álvaro, Café República. Folhetim do
O Marquez da Bacalhôa (Escândalos da Côrte do Rei Mundo Vivido em Vila Velha (1914-1945), Lisboa,
Carlos), 5.ª ed., Lisboa, Livraria Brazileira de O Jornal, 1982; LEAL, Cunha, Eu, os Políticos e
Monteiro & Cª, 1912; impressa: ABREU, Gas- a Nação, Lisboa, Portugal-Brasil, s.d.; Id., Coi­
par de, Memórias Políticas, vol. i, Braga, ed. do sas dos Tempos Idos. As Minhas Memórias, vol. 2,

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1746 Antissidonismo

Lisboa, ed. do Autor, 1967; LIMA, Sebastião Que Veio a Portugal Ganhar a Vida, Porto, ASA,
de Magalhães, Episodios da Minha Vida. Memo­ 1993; PIMENTA, Alfredo, A Situação Política.
rias Documentadas com Fotografias e Caricaturas, Conferencia Realisada no Salão Nobre da Liga Naval
vol. i, Lisboa, Livraria Universal de Armando Portugueza, na Noite de 26 Fevereiro de 1918, Lis-
J. Tavares, 1928; LOPES, Norberto, O Exilado boa, Livraria Ferreira, 1918; PIMENTEL, João
de Bougie. Perfil de Teixeira Gomes, Lisboa, Parce- Sarmento, Memórias do Capitão, Porto, Inova,
ria António Maria Pereira, 1942; MACHADO, 1974; Id., Sarmento Pimentel ou Uma Geração
Bernardino, La Vérité sur le Portugal, Paris, Ligue Traída (Diálogos de Norberto Lopes com o Autor das
pour la Défense de la République Portugaise Memórias do Capitão), Lisboa, Editorial As-
à l’Étranger, 1919; Id., No Exílio. O Perigo Ale­ ter, 1976; QUEIRÓS, Marques de, Epitome de
mão em Portugal, Famalicão, Tipografia Miner- História de Portugal (segundo os Novos Programas),
va, 1922; MAGALHÃES, J. Aires de, Primeiras 10.ª ed., Porto, s.n., s.d.; QUEIRÓS, Vasco de
Perguntas sobre História de Portugal. A Primeira e a Barros, Episódios da Vida do Político Thomé José de
Segunda República, Lisboa, Círculo de Leitores, Barros Queiroz, Lisboa, Eva D.L., 1985; REGO,
s.d.; MAGALHÃES, Luís de, Perante o Tribunal José Lins do, O Moleque Ricardo, Lisboa, Livros
e a Nação. A Monarchia do Norte e o Julgamento do Brasil, s.d.; RODRIGUES, Urbano, A Vida
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bra Editora, 1925; MASCARENHAS, Arsénio do da Sua Personalidade e da Sua Obra, Lisboa,
Torres de, Ensino Primário Oficial. História de Marítimo-Colonial, Lda, 1946; SANTOS, Cé-
Portugal. Edição Ilustrada Remodelada e Ampliada sar dos, O Despresado. A Sua Conversão. Carta a
de Harmonia com os Principios de Orientação Edu­ S. M. a Rainha D. Amelia. O Regicidio e os Politi­
cativa do Estado Novo por João Afonso de Miranda, cos. Quem Instigou o Marquez da Bacalhoa? Cartas
Advogado, Oficial do Exército e Antigo Professor do e Autografos Sensacionais, Lisboa, ed. do Autor,
Colégio Militar. Aprovada oficialmente, Lisboa, 1925; SARDINHA, António, E agora? Na Feira
Livraria Pacheco, 1937; MATOS, Norton de, dos Mitos. Idéas & Factos, Lisboa, Livraria Uni-
Memórias e Trabalhos da Minha Vida, 4 vols., Lis- versal de Armando J. Tavares, 1926; SILVA,
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Coimbra, Imprensa da Universidade de Coim- Henrique Corrêa da (Paço d’Arcos), Memó­
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Vencida, 2.ª ed., Lisboa, Casa Ventura Abran- & Cª, 1926; VILLARES, Artur, A Leva da Morte,
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Agente da Polícia. O Chefe Pereira dos Santos Con­ Armando Malheiro da Silva
tou-me a Sua Vida, Lisboa, Marítimo-Colonial,
Lda, 1945; OSÓRIO, Helena Sanches, Um só Este verbete foi extraído, em parte, de um
Rosto, Uma só Fé. Conversas com Adelino da Palma artigo publicado pelo Autor intitulado “Sidó-
Carlos, Lisboa, Edições Referendo Lda, 1988; nio e sidonismo entre a história e a literatu-
PACHECO, Fernando Assis, Trabalhos e Paixões ra”, Revista de História das Ideias, vol. 21, 2000,
pp. 307-388.
de Benito Prada, Galego da Província de Ourense,

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Antissimbolismo 1747

Antissimbolismo bre. A ser possível isolar um poema que


seja ele próprio exemplo do simbolismo,
a escolha poderia recair sobre uma com-
posição de Eugénio de Castro, no livro
Horas, de 1891: “Todo vestido de linho,
vou para a Torre do Conceito. Fui o Fraco
e o Negligente e o Diamante de Golcon-

C omo escola estética – e, principal-


mente, literária – o simbolismo
pode ser entendido como a doutrina
da engastado em zinco: hoje sou o Beato
e o Mago. Não tenteis compreender-me:
não me compreenderíeis” (CASTRO,
formulada no fim do séc. xix segundo 1912, 42). A última frase foi vastamente
a qual a obra de arte vale, não enquan- criticada, começando logo pelos contem-
to expressão fiel de uma realidade que porâneos Fialho de Almeida e José de
lhe é exterior, mas por si mesma, como Lacerda.
a música, na medida em que é sugestiva As críticas incidiram sobretudo no ar-
de sentimentos ou de pensamentos. En- tificialismo verbal dos poetas simbolistas,
quanto movimento, o simbolismo surge acusados de confundirem o vago com o
em França, onde remonta a Baudelaire, símbolo. Eça de Queirós, num texto re-
Mallarmé, Verlaine e Moréas. A este úl- colhido nas Últimas Páginas, pronuncia-se
timo, ateniense de nascença, se deve a sobre a questão dizendo que, apesar do
autoria do manifesto “O simbolismo”, de seu talento, falta alma à poesia simbolis-
1886. Publicado no suplemento literário ta: “Estes poetas não têm poesia, e, en-
do jornal Le Figaro, este manifesto pro- tre tantos talentos, não há uma só alma”
punha um movimento artístico inimigo (QUEIRÓS, 1911, 411). Guerra Junquei-
do pedantismo, da declamação, da fal- ro, no prefácio a O Livro de Aglaïs, de Júlio
sa sensibilidade e da descrição objetiva, Brandão, de 1892, acusa este programa
que procurava estruturar a ideia através estético de ser uma forma de arte que
da analogia, em vez de tentar formulá-la apenas visa o imprevisto e os efeitos de
em si mesma: “Ne jamais aller jusqu’à ritmo, cor e novidade. Ainda em 1892,
la conception de l’Idée en soi [Nunca Cândido de Figueiredo não deixa de sa-
avançar para a conceção da Ideia em si]” tirizar também a nova sensibilidade esté-
(MORÉAS, Le Figaro, 18 set. 1886, 150). tica. No seu Lisboa no Ano Três Mil, descre-
Bania-se qualquer tentativa de mostrar os ve o Império dos Nefelibatas como uma
detalhes da natureza, da ação humana e seita próxima do budismo asiático, cujos
dos fenómenos concretos. adeptos se entregavam “a misteriosas con-
Em Portugal, as revistas precursoras do templações, e, nos momentos de êxtase,
movimento simbolista foram Os Insubmis- pairavam em espírito sobre as nuvens do
sos e Boémia Nova, de 1889, mas foi qua- Tejo e de Cacilhas” (FIGUEIREDO, 1892,
tro anos depois, nas páginas da revista Os 99). Júlio Brandão, ele próprio um sim-
Novos, que Armando Navarro, no estudo bolista, critica sobretudo, na Revista de
intitulado “Dos novos e da sua poesia”, hoje, de 1895, a poesia chegada de Fran-
apresentou de modo mais desenvolvido o ça, cujas tristezas e cujos requintes diz
novo ideário estético. Na prosa e na dra- não perceber. No ano seguinte, D. Alber-
maturgia, destacaram-se Raúl Brandão e to Bramão faz no seu livro A Rir e a sério
António Patrício; na poesia, Eugénio de a caricatura dos novos poetas, na figura
Castro, Camilo Pessanha e António No- de um tal Alberto Cantagalo, um pobre

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1748 Antissimbolismo

de espírito, além das crónicas que publi- um loirito, que aliterasse, cesurasse, sim-
cou nas Novidades e no Universal. O tom bolizasse, rosa-cruzasse” (Id., Ibid., 115).
geral da caricatura do “estranho nefeliba- O tom estava dado. A homossexualidade
ta”, filho improvável de um cavaleiro da do marquês era publicamente conhecida,
Normandia e de uma chinesa que foram depois do escândalo da Trav. da Espera,
viver para Fornos de Algodres, represen- em 1881; além disso, Fialho estava den-
ta o simbolismo como uma manifestação tro do assunto porque Abel Botelho lhe
patológica: desarranjo na bola, loucura enviara pessoalmente o seu O Barão de
mansa, atonia inconsciente, melancolia Lavos, de 1891, que o cronista dos Gatos
implacável, doença moral, desequilíbrio anotara a lápis. O que causava surpresa
mental, enfim, “uma degenerescência in- era a junção de uma figura ligada a um
telectual furtada aos manicómios pela be- escândalo de costumes a uma crítica a um
nevolência da polícia” (BRAMÃO, 1896, novo movimento estético. A 30 de junho
102). desse mesmo ano, Fialho descreve Mo-
A crítica mais violenta terá sido indu- réas como um “poeta misterioso, carbo-
bitavelmente a de José Valentim Fialho noso e mesmo chato” (ALMEIDA, 1923,
de Almeida. A atenção ao detalhe da vida V, 295). Para Fialho, o simbolismo não
concreta e a riqueza da construção lite- passava de uns “ramalhetes de frases inin-
rária que este escritor de formação mé- teligíveis” (Id., Ibid., 297). A interpretação
dica sempre apreciou chocavam com o mordaz chega a diagnosticar insociabili-
ideário simbolista e decadentista. No ca- dade nos nevropatas, sintomas de neuras-
pítulo “Em fevereiro” do livro Vida Iróni- tenia e exibicionismo. Prestando atenção
ca, de 1892, Fialho conta uma conversa redobrada aos “simbolistas e decadistas
(real ou inventada) que terá tido com o cá de casa”, desfere um ataque ad homi-
marquês de Valada, famoso pederasta da nem demolidor que atribui a esses autores
época, a propósito dos “novos”. Usando falta de experiência de vida, culpando-os
com mestria a ambiguidade entre os no- de viverem à sombra dos rendimentos
vos apreciados pelo marquês e os novos dos pais da classe média, lentes, médicos
poetas simbolistas, Fialho pergunta ao e proprietários, pois “são uns rapazinhos
seu interlocutor “entre os nefelibatas e joviais e bem portados, com a digestão fá-
os sósistas, o sr. marquês por onde se de- cil, a alegria pronta, e o coração sujeito
cide?” (ALMEIDA, 1920, 113). Com “ne- a um tic-tac de que nenhuma comoção
felibatas”, a ironia de Fialho referia-se ao violenta altera o ritmo”. Do seu ponto
modo pelo qual eram conhecidos os sim- de vista, estes nevropatas “evitaram sem-
bolistas, jovens poetas que pareciam viver pre queimar a carcaça no auto de fé dos
nas nuvens devido ao seu gosto aristocrá- excessos de labor cerebral”. Em sintonia
tico; o nome havia sido dado por Manuel com o que Eça dirá nas Últimas Páginas,
Pinheiro Chagas, num artigo no Correio Fialho concede por misericórdia algum
da Manhã, de fevereiro de 1892. Com talento às composições simbolistas, mas
o termo “sósistas”, Fialho referia-se aos nega que sejam originais, porque os seus
leitores do Só, de António Nobre. As res- autores, “seres íntegros, bem comidos e
postas do marquês são, como se esperava, bem tratados, de inteligências conspí-
eivadas de lubricidade, acabando por sus- cuas, não criadoras, senão repetidoras […],
pirar dengosamente que o que mais lhe jamais conseguirão sair da nobre media-
dói “é que nenhum dos poetinhas seja loi- nia literária que o talento menstrua” (Id.,
ro”, porque “gostava tanto de jantar com Ibid., VI, 66). Estes literatos inexperientes,

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Antissimbolismo 1749

parecendo ter saído do hospital de Ri- esgotados do cérebro, uns deprimidos,


lhafoles, tornavam a literatura “numa com inibição da vontade, e assim incapa-
espécie de palimpsesto, meio obsceno, zes do enorme esforço do pensamento
meio religioso, onde o sentido é incom- nítido, arrastando-se na rêverie oca por
preensível” (Id., Ibid., 69). Resumindo a menos custosa” (Id., Ibid., 58). A come-
sua opinião sobre o simbolismo, afirma çar o séc. xx, o médico e escritor Júlio
Fialho que se trata de “arte sem ideais, Dantas olha também para o movimento
nem seivas, nem filosofia, nem encanto” estético do ponto de vista da doença men-
(Id., Ibid., 88). tal, afirmando que “o simbolismo, quási
Na mesma linha de interpretação clí- inseparável da mentalidade paranóica, é
nica deste movimento artístico estavam uma característica de invalidade psíquica”
muitos outros médicos que se dedicaram (DANTAS, 1900, 37). Um ano depois, o
a diagnósticos civilizacionais; tratava-se de médico José Caetano de Sousa e Lacerda,
um caso particular da ambição médica fi- irmão do músico Francisco de Lacerda e
nissecular tornar assunto médico tudo o amigo do Dr. Sousa Martins, dedicava um
que acontece numa sociedade, até mes- capítulo dos seus Esboços de Patologia Social
mo a religião e as manifestações do sagra- a criticar as opções estéticas de um Eugé-
do. A inspiração veio indubitavelmente nio de Castro, mas também de Verlaine,
do estrangeiro. O sionista Max Nordau, Mallarmé e de muitos outros. Para o au-
e.g., na sua obra Degenerescência, de 1892, tor de Os Neurasténicos, o simbolismo não
classifica os simbolistas de degenerados. era só a “mais interessante e pinturesca
Surgiram em Portugal, na viragem do das extravagâncias literárias” (LACERDA,
século, alguns estudos acerca desta ques- 1901, 128); mais grave ainda, era uma das
tão. Na tese inaugural O Simbolismo como causas do mal-de-viver seu contemporâ-
Manifestação de Degenerescência, defendida neo (Id., Ibid., 141). A representação de
na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em caracteres decadentes teria alegadamente
1899, o médico José Coelho Moreira Nu- o efeito mimético de corromper a socie-
nes classificava o simbolismo como uma dade. Em abril de 1901, na Revista Nova,
manifestação patológica, uma aberração de Lisboa, o médico Manuel Laranjeira
mórbida, um sinal de degenerescência, criticava “as celebridades do momento”,
afirmando, de modo muito enfático, que porque “confundem deploravelmente
“é doença o Simbolismo!” (NUNES, 1899, símbolo com mistério, com tudo o que há
16). Do seu ponto de vista, este movimen- de vago e nebuloso” (LARANJEIRA, 1993,
to artístico mais não era do que um en- 282). Na linha de Fialho e de Bramão, La-
tretenimento de “homens que passavam ranjeira também vê na obra dos simbolis-
toda a noite no seu café, sem ocupação tas o produto de cérebros desordenados.
séria, com a ideia fixa de fazer-se conhe- No final deste ciclo de interpretação,
cidos, embora reformando a poesia” (Id., também Mendes Correia, em O Génio e
Ibid., 17). Moreira Nunes atribuía a causa o Talento na Patologia, de 1911, insere os
deste mal a uma fuga do real, a um desejo autores simbolistas na sua análise médica
de crer sem compreender, a um descon- da história da criatividade artística, por-
tentamento e mal-estar da vida coletiva. que, do seu ponto de vista, “o médico
Em consequência, o diagnóstico afirmava tem uma especial autoridade para fazer
que os simbolistas, “roídos de ambições, a crítica literária e artística”, e até mesmo
querendo armar à glória, desiludidos, para apreciar “todas as mais manifesta-
quando não gastos pelos excessos, são uns ções da atividade humana” (CORREIA,

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1750 Antissimbolismo

1911, 28). Com estas credenciais que se dá diferença perante a alegada urgência de
a si mesmo, Mendes Correia assevera que transformação social (&Antissolipsismo).
“a maior parte dos simbolistas […] en- Mas, não obstante as várias – e, por vezes,
tram no domínio da patologia”, porque as ferozes – críticas ao simbolismo, a verda-
suas obras “têm tantos requintes de arte de é que algumas das suas características
como sinais de doença” (Id., Ibid., 68). não foram enjeitadas por movimentos
O comportamento dos magnicidas, crimi- estéticos posteriores. Na avaliação de Fer-
nosos que atentam contra pessoas ilustres nando Guimarães, e.g., Fernando Pessoa
ou eminentes, figuras públicas com poder “nunca deixou de muito explicitamente
mais simbólico do que real, mereceu vá- referir o modo como o simbolismo, em
rios estudos de médicos portugueses, seja Portugal, contribuiu para o desenvolvi-
a propósito dos regicidas, seja a propósito mento das correntes modernistas” (GUI-
do assassinato no cais de Lisboa do barão MARÃES, 1994, 98).
de Baligand, ministro da Alemanha em Para concluir, é importante ponderar o
Portugal. A leitura médica da ação políti- significado deste movimento contra um
ca acompanhava a leitura médica da civi- ideário estético, atenuando nessa pon-
lização ocidental como um todo, ou mais deração as circunstâncias epocais que o
especificamente da arte e da religião. viram nascer. Muitos argumentos que se
Num pequeno opúsculo com o título avançaram contra o simbolismo são hoje
Os Nefelibatas, publicado com o pseudóni- inaceitáveis. A degenerescência de Morel,
mo Luís de Borja, os simbolistas rejeitam tantas vezes invocada no último quartel
o nome ofensivo que lhes foi atribuído, do séc. xix fora do campo psiquiátrico, é
contando a história dos seus encontros um exemplo infeliz de uma classificação
periódicos às terças-feiras à noite na sem fundamento médico. A crítica da for-
casa da Sé, e afirmando o objetivo que ma de viver dos próprios autores e da sua
os movia, o de amar e rezar à “Arte, ao juventude, como modo de apoucar o va-
Amor, ao fugidio Ideal” (BORJA, 1992, lor das suas obras, seria hoje inaceitável.
9). Curiosamente, com a proclamação As insinuações pederastas são manifesta-
do seu desprezo heroico pela Terra e da mente deselegantes. Como é evidente, se
sua estima pelo satanismo, este texto co- a bondade dos argumentos dos críticos
letivo de 1892 alude à “nevrose esquisita do simbolismo desapareceu, é necessário
de quase todos”, dando sinal das muitas compreender de outro ângulo a animo-
críticas que tentaram diminuir o valor sidade que o simbolismo proporcionou.
do movimento estético devido a alegadas Talvez o modo como o simbolismo trata
características patológicas dos seus mem- os símbolos, diferente de outras produ-
bros (Id., Ibid., 6). ções artísticas, seja o fator decisivo des-
Bastaria pensar na imagem do solitá- sas críticas. Se cada época se revê na sua
rio artista simbolista – o sósista de Fia- arte, é justo reconhecer que os autores
lho – deleitando-se na composição da sua de símbolos são escrutinados com uma
complexa obra pessoal, para se perceber indulgência pouco generosa. Sinal disto
a inadequação, a resistência, e até a rejei- são as disposições legais contra o desres-
ção do simbolismo. Poucos anos depois, o peito de símbolos coletivos, que sempre
romance psicológico irá sofrer críticas de existiram. Assim, o art. 11.º da Constitui-
índole semelhante às que o simbolismo ção da República Portuguesa, de 1976
mereceu, sendo acusado de excesso de (atualizada de acordo com a lei constitu-
“adoração do próprio umbigo” ou de in- cional n.º 1/2005, de 12 de agosto), deli-

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Antissimbolismo 1751

mita a bandeira, o hino e a língua oficial Bibliog.: ALMEIDA, J. V. Fialho de, Vida Irónica
(português) como símbolos nacionais. (Jornal dum Vagabundo), 4.ª ed., Lisboa, Livraria
Os emblemas de partidos políticos não Clássica, 1920; Id., Os Gatos. Publicação Mensal
de Inquérito à Vida Portuguesa, 5.ª ed., vols. v e vi,
podem ser confundíveis com os símbolos
Lisboa, Livraria Clássica, 1923; BORJA, Luiz
nacionais (art. 51.º). A verificação da lega-
de, Os Nephelibatas, Guimarães, Sociedade
lidade dos símbolos dos partidos compe- Martins Sarmento, 1992; BRAMÃO, Alber-
te ao Tribunal Constitucional (art. 223.º, to, A Rir e a sério. O Cantagalo (História Verídica
n.º 2, al. e). A legislação acerca do regi- de Seus Feitos), Lisboa, Livraria António Maria
me dos símbolos nacionais compete ex- Pereira, 1896; BRANDÃO, Raul, A Pedra ainda
clusivamente à Assembleia da República Espera Dar Flor. Dispersos 1891-1930, org. Vas-
(art. 164.º, al. s). Complementarmente, o co Rosa, Lisboa, Quetzal, 2013; CASTRO, Eu-
génio de, Horas, 2.ª ed., Coimbra, Francisco
n.º 1 do art. 332.º do Código Penal refe-
França Amado Editor, 1912; CORREIA, Antó-
re que “quem […] ultrajar a República, nio Augusto Mendes, O Génio e o Talento na Pa­
a bandeira ou o hino nacionais, as armas tologia (Esboço Crítico), Porto, Imprensa Portu-
ou emblemas da soberania portuguesa, guesa, 1911; DANTAS, Júlio, Pintores e Poetas de
ou faltar ao respeito que lhes é devido, Rilhafoles, Lisboa, Livraria Editora Guimarães,
é punido com pena de prisão”. Este tipo Libânio e C.ia, 1900; FIGUEIREDO, Cândido
de medidas contra meros sons, meras co- de, Lisboa no Ano Três Mil (Revelações Hipnóticas),
Lisboa, Livraria Ferreira, 1892; GUIMARÃES,
res, meras formas, meros tecidos e outros
Fernando, Os Problemas da Modernidade, Lis-
materiais banais revela bem que a questão boa, Presença, 1994; HOWES, Robert, “Con-
dos símbolos se liga a dimensões muito cerning the eccentricities of the marquis of
profundas da alma humana. Os muitos Valada: politics, culture and homosexuality in
séculos em que a cultura portuguesa com- fin-de-siècle Portugal”, Sexualities, vol. 5, n.º  1,
bateu a utilização mágica dos símbolos são 2002, pp. 25-48; LACERDA, José de, Esboços
também indicadores da complexidade da de Patologia Social e Ideias sobre Pedagogia Geral.
questão simbólica (&Antifeiticeirismo). Estudos de Biologia, Lisboa, Livraria de José
A. Rodrigues, 1901; LARANJEIRA, Manuel,
Os símbolos parecem simplificar o real,
Obras, org. José Carlos Seabra Pereira, vol. ii,
tal como um mapa de estradas simplifica Porto, ASA, 1993; MORÉAS, Jean, “Le sym-
o território, mas há que acrescentar que bolisme. Un manifeste littéraire”, Le Figaro,
essa simplificação é benéfica porque tam- 18  set. 1886, p. 150; NUNES, José Coelho
bém contribuem para ampliar o que se dá Moreira, O Simbolismo como Manifestação da
na experiência quotidiana. É impensável, Degenerescência, Famalicão, Tipografia Mi-
pois, a ausência dos símbolos da vida dos nerva, 1899; QUEIRÓS, Eça de, “O france-
sismo”, in QUEIRÓS, Eça de, Últimas Páginas
seres que já foram precisamente carac-
(Manuscritos Inéditos), Porto, Lello e Irmão,
terizados como uma espécie simbólica. 1911, pp. 383-411.
Está-se muito longe de uma teoria final,
Manuel Curado
qualquer que seja a sua natureza (arque- Armando Magalhães
típica, computacional, cognitiva, evolu-
tiva, linguística, etc.), que esgote de vez
um assunto infinito. É provável, por con-
seguinte, que muitos outros movimentos
que reclamem a capacidade de expressar
mais fielmente a profundidade da alma
humana, a beleza da ordem do mundo e
o mistério do divino venham a surgir no
futuro, bem como os seus detratores.

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1752 Antissindicalismo

Antissindicalismo ou mesteres, de origem medieval, que


eram hierarquizadas, agrupavam mestres
artesãos e assalariados, e tinham funções
profissionais, económicas, sociais e polí-
ticas distintas. No entanto, os problemas
de regulamentação do trabalho relativos
a remuneração, horário, aprendizagem,

P or antissindicalismo entende-se a
oposição às doutrinas ou práticas do
sindicalismo (trade unionism, syndicalisme),
direitos, concorrência, etc., com que li-
daram os dois tipos de organização apre-
sentavam, de facto, muitas similaridades,
entendido este como o movimento de de- pelo que é por vezes difícil, até à segunda
fesa ou representação dos interesses dos metade do séc. xix, estabelecer uma linha
trabalhadores associados em sindicatos, de fronteira nítida entre organização cor-
inicialmente ditos em Portugal associa- porativa e organização sindical – ambas,
ções de classe. O sindicato é, na aceção afinal, alvos do ataque do liberalismo eco-
predominante da palavra em começos do nómico. O aparecimento dos sindicatos
séc. xxi, uma associação de trabalhadores deu-se, por regra, à margem de qualquer
assalariados. Com este preciso sentido, o quadro legal, sendo umas vezes apenas
termo começou gradualmente a ser usa- tolerados, outras vezes considerados ile-
do em Portugal, em vez de “associação gais e perseguidos, sobretudo quando
de classe”, nos primeiros anos depois da desenvolviam ações concertadas. As com-
Implantação da República, refletindo a binações, convenções e coligações de
influência do sindicalismo francês; con- trabalhadores no âmbito dessa atividade
tudo, em 1926, a maioria das 428 associa- associativa foram também, por regra, cri-
ções de assalariados existentes ainda usava minalizadas (em França, pela lei Le Cha-
a designação antiga. Foram os proprietá- pelier de 1791; em Inglaterra, pelo Com-
rios rurais, com os seus sindicatos agrí- bination Act de 1799; e, em Portugal, pelo
colas (criados a partir de 1893-1994, na Código Penal de 1852), a pretexto de
peugada dos syndicats agricoles franceses), atentarem contra a liberdade de trabalho
os primeiros a usar em Portugal, no âm- e comércio. O reconhecimento legal dos
bito do associativismo, a designação “sin- sindicatos ou associações de classe ocor-
dicato”, até o regime corporativista lhes reu na Europa durante a segunda meta-
impor, em 1937, a designação de “grémios de do séc. xix, quando o seu número se
da lavoura”. O Estado Novo extinguiu a havia multiplicado e a sua ação, apesar de
denominação “associação de classe”, im- desenquadrada da lei, começara a gene-
pondo, durante 40 anos, a de “sindicato ralizar-se na prática, a ponto de o poder
nacional”, expressão que, sob o regime político os não poder ignorar nem per-
democrático posterior, perdeu a adjetiva- seguir. Em Inglaterra, a ação concertada
ção nacionalista. dos trabalhadores, antes qualificada como
Os sindicatos de trabalhadores sur- combinação para limitar a liberdade de
giram com a revolução industrial e a comércio, foi descriminalizada em 1867,
concentração de massas operárias dela os sindicatos legalmente reconhecidos
resultante, inicialmente em Inglaterra e em 1871, e os piquetes de greve admiti-
depois, gradualmente, por toda a Euro- dos por lei de 1875. Em França, a greve
pa, e distinguiam-se mais ou menos clara- foi descriminalizada pela lei Ollivier, de
mente das antigas corporações de ofícios 1864, e os sindicatos reconhecidos pela

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Antissindicalismo 1753

lei Waldeck-Rousseau, de 1884, ambas por sindicalismo revolucionário ou anar-


revogando no seu âmbito a lei anticorpo- co-sindicalismo, que se opunha ao refor-
rativa de Le Chapelier. Em Portugal, a or- mismo, à colaboração de classes, à demo-
ganização de associações de classe foi pela cracia parlamentar e ao próprio Estado,
primeira vez permitida e regulamentada preconizando aquilo que designava por
pelo dec. de 9 de maio de 1891 (do Gover- “ação direta” e “greve geral revolucioná-
no de José Luciano de Castro), que revo- ria”, que deveriam conduzir à tomada do
gou tacitamente o preceituado no dec. de poder pelos trabalhadores organizados.
7 de maio de 1834, que abolira a organi- A expansão desta corrente em vários paí-
zação corporativa a pretexto de eliminar ses europeus inspirava-se na orientação
os “estorvos á indústria nacional”, mas a da central sindical francesa Confédéra-
descriminalização da greve só ocorreria tion Générale du Travail, do primeiro
em dezembro de 1910, após a instauração quarto do séc. xx (cujo marco é a Carta
da república. Como se pode observar nos de Amiens de 1906), e em doutrinários do
três casos referidos, a legislação que tinha sindicalismo e críticos da chamada demo-
servido para proibir as associações de clas- cracia burguesa como Georges Sorel, Hu-
se e os sindicatos visava essencialmente bert Lagardelle ou Robert Michels, que
eliminar o entrave à liberdade económica mais tarde se aproximaram do fascismo
que elas constituiriam, não estabelecendo ou inspiraram a sua doutrina.
distinção entre as antigas corporações e as Independentemente das variantes de
novas associações de assalariados. sindicalismo e da sua ligação a partidos ou
O termo “sindicalismo” teve historica- correntes políticas, o antissindicalismo é,
mente sentidos específicos, divergentes e antes de mais, uma reação de oposição às
por vezes opostos entre si, depois caídos funções primordiais ou clássicas dos sindi-
em desuso. Assim, na obra de Léon Du- catos, ou seja, a formas de ação tendentes
guit, o conceito de sindicalismo aproxima- a regular ou condicionar o mercado de
va-se do que mais tarde se designaria por trabalho. São elas: a defesa ou melhoria
“corporativismo de associação”, ou seja, coletiva das condições de trabalho dos as-
uma doutrina interclassista que preconi- salariados (remuneração, horário, férias,
zava a coordenação das diferentes classes regalias, direitos, ambiente e segurança
sociais entre si, reduzindo a conflitualida- do trabalho, etc.); a condução, o enqua-
de social e garantindo simultaneamente dramento ou a prevenção dos conflitos
proteção contra as arbitrariedades do po- laborais através da negociação, da realiza-
der político. Por sua vez, o nacional-sindi- ção de greves e boicotes e de outras ações
calismo surgido na Espanha e no Portugal coletivas; a promoção da disciplina e da
dos anos de 1930 abrigou sob essa desig- solidariedade entre os trabalhadores de
nação movimentos essencialmente políti- uma profissão, de uma empresa ou de um
cos de ideologia corporativista, nacionalis- ramo de atividade; a regulação da concor-
ta e antiliberal, opostos à luta de classes, rência e a prevenção do desemprego e
que precederam os regimes corporativos das crises de trabalho. Outras vertentes da
e autoritários dos respetivos países. No ação sindical são a prestação de serviços
polo teoricamente oposto, o termo “sin- aos associados (função que foi, tradicio-
dicalismo” foi, em França, Itália, Espanha, nalmente, a menos suscetível de oposi-
Portugal e outros países europeus, a de- ção), a coordenação intersindical e a pres-
signação abreviada da corrente sindical são junto do Estado para a obtenção de
revolucionária, comummente designada regulamentação ou legislação de trabalho

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1754 Antissindicalismo

favorável. Esta última função entra já na um discurso antissindicalista ancestral,


categoria de ação política (em sentido renovado desde os anos de 1980 pelo ad-
lato) dos sindicatos, no âmbito da qual vento do neoliberalismo, que consiste em
as organizações sindicais frequentemen- atacar as funções clássicas dos sindicatos,
te se articulam, estratégica ou organi- com a justificação de que qualquer ação
camente, com movimentos ou partidos artificial exercida sobre o mercado de
políticos (socialistas, comunistas, social­ trabalho, em particular sobre o valor do
‑cristãos, etc.) ou, em alternativa, defen- salário, vicia as condições de uma sã eco-
dem posições políticas autónomas. nomia, resultando em prejuízos para as
A tendência para as organizações sin- empresas, para os trabalhadores, para os
dicais desenvolverem diversas formas de consumidores e, em geral, para os países
ação política – desde a simples atividade com legislação favorável ao sindicalismo.
de lóbi junto do poder executivo ou legis- Nessa argumentação é visada a alegada in-
lativo até à ação revolucionária visando a compreensão, por parte dos sindicalistas,
queda do poder – fez com que o antissin- da lógica de funcionamento do mercado e
dicalismo desde cedo assumisse também dos problemas económicos em geral. Para
uma faceta diretamente política. A poli- o histórico mentor do neoliberalismo, o
tização dos sindicatos e a sua articulação economista Friedrich Hayek, “os poderes
com movimentos ou partidos políticos que os sindicatos se arrogam constituem
decorriam em boa parte da necessidade uma grave ameaça às bases da nossa so-
amplamente sentida de ultrapassar a es- ciedade livre”, pois “tornam o sistema de
treiteza e o imediatismo das lutas pela me- mercado ineficaz” e “impedem a concor-
lhoria das condições de trabalho de cer- rência de actuar como um efectivo regu-
tos grupos de assalariados e de conjugar lador da alocação de recursos” (HAYEK,
essas lutas com objetivos sociopolíticos 1960, 269, 272-273). A solução, segundo
mais amplos, mais permanentes e menos este autor, estaria num Estado forte, capaz
particularistas, sob o lema geral da eman- de anular a legislação abusiva conquistada
cipação das classes trabalhadoras. A  luta pelos sindicatos e de os privar do poder
nacional e internacional por legislação de interferência na economia.
que consagrasse o descanso semanal ou Podem considerar-se vários tipos de an-
as oito horas de trabalho para todos os tissindicalismo, consoante a oposição ao
assalariados são exemplos dessas lutas sindicalismo provenha dos meios econó-
abrangentes e solidárias, tendencialmen- micos (patrões, administradores e acionis-
te mais politizadas. Um dos tipos mais fre- tas de empresas, associações patronais),
quentes de discurso antissindicalista toma do poder político (tendencialmente sin-
precisamente como alvo a ação política tonizado com os meios patronais) ou do
do sindicalismo, em particular a politiza- seio dos próprios trabalhadores.
ção doutrinária dos seus líderes, seja ela O antissindicalismo patronal, apoiado e
de tipo reformista ou revolucionário, e as justificado pelas teses dos defensores do
suas eventuais ligações partidárias, sem, liberalismo económico, radica tipicamen-
contudo, pôr em causa, pelo menos aber- te na atitude de rejeição dos direitos co-
tamente, as funções clássicas dos sindica- letivos dos trabalhadores e na defesa do
tos, destinadas, como se disse, a influir livre-arbítrio dos proprietários e dirigen-
diretamente sobre o mercado de trabalho tes empresariais, ainda que possa consti-
numa dada profissão, numa empresa ou tuir também uma reação a comportamen-
num ramo de atividade. Há, no entanto, tos radicais ou agressivos dos sindicatos.

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Antissindicalismo 1755

Tanto nos meios patronais como entre as admissão numa empresa (sistema de clo-
massas de assalariados, a adesão ao apelo sed shop). As origens dessa atitude de resis-
associativo, quando voluntária, foi sempre tência são diversas: receio de discrimina-
função de uma avaliação das vantagens e ção e represálias por parte das entidades
desvantagens da associação. Certos meios patronais contra os sindicalizados, recusa
patronais são recetivos aos benefícios da disciplina sindical e do comportamen-
tanto da associação patronal como da to solidário com os colegas de trabalho,
sindicalização dos trabalhadores, vendo recusa do pagamento da quotização, não
nesses dois processos paralelos úteis ins- reconhecimento dos benefícios da ação
trumentos de paz social e prevenção de coletiva, divergências relacionadas com
conflitos, regulação da concorrência e a orientação política do sindicato, etc.
coordenação dos interesses comuns pe- A queda das taxas de sindicalização que
rante o Estado. Uma parte do patronato, começou a verificar-se por quase toda
porém, mostrou-se sempre relutante em a Europa, Portugal incluído, e América
abdicar das suas prerrogativas e estraté- do Norte a partir da déc. de 1970 é, em
gias individuais, recusando-se a negociar parte, expressão crescente desse antissin-
com representantes sindicais, discrimi- dicalismo dos trabalhadores, a que alguns
nando e perseguindo os trabalhadores sociólogos chamaram já sindicatofobia.
filiados em sindicatos, respondendo com O declínio da sindicalização é, todavia, re-
ações punitivas às reivindicações, greves lacionável também com uma variedade de
e violências sindicais e, inclusivamente, causas estruturais verificadas no mundo
criando sindicatos alternativos controla- ocidental na segunda metade do séc. xx:
dos pelos patrões (os chamados sindica- diversificação e recomposição técnica da
tos amarelos). A rejeição do sindicalismo força de trabalho, predomínio do sector
conduziu em vários países à criação de terciário e declínio acentuado do sector
organizações antissindicalistas, destina- industrial, flexibilização e precarização
das sobretudo ao combate às greves. Em do vínculo laboral (no quadro da cha-
Portugal, no período pós-Primeira Guerra mada globalização da economia mundial
Mundial, que coincidiu com o apogeu do e sob a influência das políticas económi-
sindicalismo anarquista e comunista, sur- cas liberais que a defendem), bem como
giu em 1920 uma Confederação Patronal o forte crescimento dos contingentes de
chefiada pelo ex-sindicalista revolucioná- mão de obra imigrante, tradicionalmen-
rio Sérgio Príncipe, um antigo ferroviário te menos reivindicativa. Não em último
que seis anos antes havia organizado uma lugar, a dessindicalização é também um
violenta greve dos caminhos de ferro. Ins- produto indireto do acrescido papel do
pirada também nos métodos repressivos Estado na regulamentação socio-laboral,
da milícia catalã Somatén, a Confedera- facto que em alguns países tornou a ação
ção Patronal contribuiu eficazmente para sindical menos decisiva para a defesa dos
o insucesso de várias greves, até o seu lí- trabalhadores. Sobre este fenómeno es-
der ser alvo, em 1923, de um atentado da creveu o sociólogo Pierre Bourdieu, refe-
organização terrorista Legião Vermelha, rindo-se não só às condições de trabalho,
acusado de traição à classe operária. mas igualmente aos sistemas de segurança
De modo idêntico, entre os trabalhado- e proteção social do trabalhador: “Só apa-
res houve sempre uma relutância, maior rentemente será paradoxal considerar­
ou menor, à sindicalização, exceto quan- ‑se o declínio do sindicalismo como um
do ela constituía condição obrigatória de efeito indirecto e diferido do seu triunfo:

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1756 Antissindicalismo

numerosas reivindicações que tinham da aprendizagem, e.g.) e a resultante con-


animado as lutas sindicais no passado corrência fizera cair os salários. A mesma
passaram hoje ao estado de instituições” ótica dita saudosista dominaria ainda por
(BOURDIEU, 2001, 63) várias décadas as reivindicações dos artis-
Já a posição do poder político perante tas das várias indústrias em Portugal, que
o associativismo operário e o sindicalismo tiveram de ceder perante os dogmas do
evoluiu, como vimos, desde os alvores do livre-arbítrio patronal e da livre concor-
liberalismo na Europa, de uma atitude rência, defendidos pelo Estado liberal.
de não reconhecimento das associações As novas ideias associativas, importadas
de trabalhadores e da proibição de co- de França, Inglaterra e outros países eu-
ligações operárias (i.e., greves) para um ropeus, preconizando nomeadamente a
gradual reconhecimento e legalização de celebração de convénios (i.e., contratos
ambas. Em Portugal, a lei Le Chapelier coletivos) para as diferentes profissões,
foi imitada pelo dec. de 7 de maio de negociados entre representantes dos pa-
1834, do ministro liberal Bento Pereira trões e dos trabalhadores, ainda tiveram
do Carmo, em nome da “liberdade de de fazer um longo caminho em Portugal,
trabalho” – se bem que as afinidades po- em razão do menor desenvolvimento da
líticas miguelistas da antiga organização indústria e do operariado industrial. So-
corporativa (Casa dos Vinte e Quatro, juí- bretudo a partir da déc. de 1870, uma
zes e procuradores do povo, corporações característica do novo associativismo ope-
dos vários ofícios) e a sua alegada incom- rário português – meramente tolerado
patibilidade com o sistema representativo pelas autoridades, dada a sua indefinição
liberal tivessem igualmente concorrido legal – foram as suas afinidades com o
para essa medida. O decreto de 1834 foi ideário socialista, então representado na
posteriormente invocado para proibir as Europa pela Associação Internacional
coligações de trabalhadores e a forma- dos Trabalhadores. Algumas dezenas de
ção de quaisquer associações operárias associações de trabalhadores envolveram­
cujo fim fosse o de lutar pelos chamados ‑se então na fundação da efémera Frater-
melhoramentos e não exclusivamente a nidade Operária (1872) e do primeiro
prestação de socorros mútuos. As associa- Partido Socialista (1875). Reconhecidas
ções de empresários foram mais toleradas legalmente as associações de classe em
pelo liberalismo em Portugal, pois, logo 1891, foi sobretudo no primeiro quartel
em 1834, foram fundadas a Associação do séc. xx que o sindicalismo conheceu
Comercial de Lisboa e a Associação Co- em Portugal um persistente surto orga-
mercial do Porto. A Sociedade dos Ar- nizativo e reivindicativo, traduzido por
tistas Lisbonenses, primeira associação uma maior cobertura associativa, pelo
de trabalhadores da época liberal, for- forte aumento do número de conflitos e
malmente um montepio, mas exercendo greves, já desde os anos finais da monar-
também, sob essa capa, funções de defesa quia, e pela formação, entre 1914 e 1919,
dos interesses dos assalariados, foi funda- de estruturas confederais, como a União
da em 1838. Esta agremiação foi acusada Operária Nacional e a sua sucessora, a
de saudosista, pois envidou esforços no Confederação Geral do Trabalho (CGT).
sentido da restauração de uma regula- No regime republicano, o radicalismo do
mentação geral dos ofícios pelo Estado, movimento sindical, crescentemente ins-
argumentando que a liberdade abusiva pirado, em detrimento da anterior pre-
desregulamentara as profissões (o regime ponderância socialista, no sindicalismo

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Antissindicalismo 1757

revolucionário francês (facto observável


na referida mudança de nome de muitas
associações de classe para sindicatos, ou
na denominação da CGT portuguesa, ho-
mónima da francesa), alimentou um con-
flito agudo e permanente com os gover-
nantes republicanos. O reconhecimento
histórico do direito de greve, em dezem-
bro de 1910, por um decreto do ministro
do Fomento Brito Camacho, logo apeli-
dado pelos sindicalistas de “decreto-bur-
la”, e as medidas repressivas de Afonso
Costa contra a onda de violência sindical
verificada em 1912-1913, que valeram ao
político o epíteto de “racha-sindicalistas”,
foram episódios que, desde cedo, enve-
nenaram as relações entre o movimento
sindical e a Primeira República, situação
que não se alterou até ao fim desta, em
1926. Os sindicatos livres, dominados
pelas correntes anarco-sindicalista e co-
Caricatura de Afonso Costa.
munista, não sobreviveram muito tempo
ao fim do regime parlamentar que tanto
atacaram, sendo finalmente extintos pelo (1997-2007), em busca de um maior con-
Estado Novo em 1933. senso social, se distanciasse das antigas
Ao longo do séc. xx, nos países de políticas sindicais e laborais dos trabalhis-
democracia liberal, numerosas leis re- tas, caminhando para o que foi rotulado
gularam o exercício da atividade dos como uma variante social-democrática do
sindicatos, umas vezes reforçando ga- neoliberalismo.
rantias e ampliando direitos, inclusive o Nos regimes autoritários de entre as
de participação institucional em órgãos duas guerras mundiais e nos regimes co-
tripartidos, outras vezes, pelo contrário, munistas, a liberdade sindical e o direito
estabelecendo apertadas condições de re- de greve anteriormente existentes foram
conhecimento (certificação) ou restrin- abolidos ou drasticamente restringidos.
gindo o âmbito de atividade, os direitos Sob o fascismo italiano, o salazarismo, o
e o poder dos sindicatos. Destas últimas franquismo ou o regime francês de Vi-
são exemplo, nos Estados Unidos, a lei chy, as organizações sindicais tornaram-se
Taft-Hartley, de 1947 e, na Grã-Bretanha organismos unicitários de direito públi-
dos anos 1970-1990, a legislação dos go- co, de filiação tendencialmente obriga-
vernos conservadores. Em particular, o tória e dependentes do poder político.
Governo de Margaret Thatcher desenca- Reclamando-se do corporativismo, estes
deou uma persistente ofensiva contra o regimes pretenderam recuperar o sindi-
poderoso movimento sindical britânico, calismo, em que viam uma estrutura de
precipitando-o numa duradoura fase de representação de interesses oposta ao
declínio e fazendo, indiretamente, com parlamentarismo, mas depurando-o da
que o governo New Labour de Tony Blair filosofia da luta de classes e integrando-o

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1758 Antissindicalismo

no Estado corporativo. Para esse fim, abo- dos assalariados e do associativismo, de


liram o sindicalismo livre e impuseram que estes se valeram para combater ou
organizações detentoras do monopólio compensar os desequilíbrios sociais pro-
de representação (sindicatos ditos fascis- duzidos pelo livre funcionamento do
tas, nacionais ou verticais, corporações, mercado. Só a evolução dessas relações
etc.), vocacionadas para a colaboração de trabalho, no sentido da desproletari-
entre classes e a cooperação com o poder. zação, do reequilíbrio e da justiça social,
Na Alemanha nacional-socialista, os sindi- poderão constituir o antídoto mais decisi-
catos foram extintos, os seus bens confis- vo para o sindicalismo.
cados e as greves banidas. Os sindicatos
alemães foram substituídos por uma úni- Bibliog.: BARRETO, José, “Os tipógrafos e o
ca organização pluriclassista subordinada despontar da contratação colectiva em Por-
ao partido nazi, a Frente Alemã do Tra- tugal – I”, Análise Social, vol. xvii, n.º 66, 1981,
balho, que não desempenhava as funções pp.  253­‑291; Id., A Formação das Centrais Sindi­
cais e do Sindicalismo Contemporâneo (1968­‑1990),
clássicas do sindicalismo, como a nego-
2 vols., Dissertação apresentada à prova de
ciação de salários e de contratos coleti-
acesso à categoria de investigador auxiliar do
vos (igualmente abolidos), dedicando-se Instituto de Ciências Sociais da Universidade
basicamente à prestação de serviços aos de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 1991;
associados e à propaganda política. Por BOURDIEU, Pierre, Contre-Feux, Paris, Liber,
sua vez, nos regimes comunistas, com 1998; Id., Contre-Feux 2, Paris, Liber, 2001;
a abolição da liberdade de associação e DUGUIT, Léon, Le Droit Social, le Droit Individuel
do direito de greve, os sindicatos foram et la Transformation de l’État, Paris, Félix Alcan,
1908; Id., “Le syndicalisme”, Revue Politique
transformados em organismos coadju-
et Parlementaire, jun. 1908, pp. 472-493; GA-
vadores da administração e correias de RELLO, J. et al., Cinq Questions sur les Syndicats,
transmissão do partido comunista, para Paris, PUF, 1990; HAYEK, Friedrich A., The
a realização dos objetivos da produção Constitution of Liberty, Chicago, University of
(como o cumprimento dos planos e a ele- Chicago Press, 1960; MICHELS, Robert, Socio­
vação da produtividade) e a mobilização logia del Partito Politico nella Democrazia Moderna,
dos trabalhadores para tarefas políticas e Turim, Unione Tipografica Uditrice Torinese,
1912; PAIS, José Machado, “Sérgio Príncipe
fins propagandísticos. Nos regimes auto-
e a Confederação Patronal – história de um
ritários e totalitários pode, assim, falar-se atentado”, in PINTO, A. Costa et al. (orgs.),
de consagração, na prática, de um mode- O Fascismo em Portugal, Lisboa, A Regra do
lo antissindicalista de enquadramento e Jogo, 1982, pp. 287-315; PEREIRA, Miriam
arregimentação política dos trabalhado- Halpern, Do Estado Liberal ao Estado-Providência:
res, fundado na espoliação da liberdade Um Século em Portugal, Bauru, Editora da Uni-
de associação e do direito de greve. versidade do Sagrado Coração, 2012; SMITH,
Não foi nem vai tão longe o antissin- Paul, “New Labour and the common sense of
neoliberalism: trade unionism, collective bar-
dicalismo de sinal contrário, assente nos
gaining and worker’s rights”, Industrial Rela­
postulados do liberalismo económico, na tions Journal, vol. 40, n.º 4, 2009, pp. 337-355;
medida em que se submete aos princípios SOUSA, Manuel Joaquim de, O Sindicalismo em
do Estado democrático de direito. Foram Portugal. Esboço Histórico, Lisboa, Comissão Es-
as relações de trabalho historicamente colar e Propaganda do Sindicato do Pessoal
criadas pelo capitalismo que estiveram na de Câmaras da Marinha Mercante Portugue-
origem não só da proletarização maciça sa, 1931; ULRICH, Rui Enes, Legislação Operá­
ria Portuguesa, Coimbra, França Amado, 1906.
do mundo laboral, como indiretamente
também da comunidade de interesses José Barreto

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Antissinismo 1759

Antissinismo O Portugal quinhentista questionava


as coisas da China, tudo queria conhecer
sobre o mundo chinês. Começando a dar
corpo às vontades de D. Manuel I e às
vastas possibilidades de bons negócios no
Império da China, o mercador português
Jorge Álvares, ido de Malaca, chegava em

O relacionamento luso-chinês, inicia-


do em Malaca nos primórdios do
séc. xvi e logo depois continuado na re-
1513 a bom porto na baía de Toumun
(屯门), a Tamão das crónicas e escritos
quinhentistas, depois território de Hong
gião do delta do rio das Pérolas, no sul Kong; ia em busca de conhecer e, sobre-
do Império da China, revestiu-se, ao lon- tudo, do trato, do comércio, da veniaga.
go de quase cinco séculos, de mil afetos Iniciava-se um prolongado e frutuoso re-
e fascínios, de incontáveis e viscerais mal­ lacionamento de quase cinco séculos en-
‑entendidos, de singulares incompreen- tre Portugueses e Chineses, que em breve
sões recíprocas, fruto sobretudo de idios- se estenderia ao estabelecimento de uns
sincrasias diversas, de lastros culturais tantos expatriados lusitanos na península
diferentes, do mútuo desconhecimento de Macau e depois a um longo, sinuoso e
do outro. muitas vezes pontual relacionamento en-
D. Manuel, logo em 1508, entregava a tre Portugal e a China, concretizado tam-
Diogo Lopes de Sequeira, que ia “a des- bém na fixação de missionários em Pe-
cobrir Malaca”, o chamado regimento de quim e em algumas províncias chinesas,
Almeirim, porque outorgado na vila riba- e continuado pelo trabalho diplomático
tejana: “Em todas as terras em que che- fruto das três grandes embaixadas portu-
gardes perguntareis pelos Chins, e de que guesas ao Império do Meio, nos sécs. xvii
partes vêm, e de quão longe, e de quanto e xviii.
em quanto vêm a Malaca, ou aos lugares Entre 1512 e 1515, em Malaca, o boti-
em que tratam, e as mercadorias que tra- cário Tomé Pires (1465?-1540?) escrevia a
zem e quantas naus deles vêm cada ano, sua Suma Oriental, no dizer de Armando
e pelas feições de suas naus, e se tornam Cortesão “a mais importante e comple-
no ano em que vêm e se têm feitores ou ta descrição do Oriente produzida na
cassas em Malaca, ou em outra alguma primeira metade do século xvi” (COR-
terra, e se são mercadores ricos, e se são TESÃO, 1978, 3), já com rigorosas refe-
homens fracos, se guerreiros, e se têm ar- rências ao mundo chinês. Logo em 1516,
mas ou artilharia, e que vestidos trazem Tomé Pires seguiria para a China como
e se são grandes homens de corpos, e embaixador português junto da corte
toda a outra informação deles, e se são imperial. Percalços de toda a ordem ha-
cristãos, se gentios ou se é grande terra a veriam de conduzir à prisão da comitiva
sua, e se têm mais de hum rei entre eles, lusitana, à morte de alguns dos seus mem-
e se vivem entre eles mouros ou outra al- bros, ao longo sofrimento em cárceres
guma outra gente que não viva na sua lei chineses e ao desaparecimento do pró-
ou crença e, se não são cristãos em que prio Tomé Pires.
creem ou a que adoram, e que costumes É nas chamadas Cartas dos Cativos de
guardam, e para que parte se estende sua Cantão – os primeiros testemunhos pre-
terra, e com quem confinam” (Cartas de senciais sobre a China escritos por eu-
Afonso…, 1903, 403-419). ropeus após o Livro de Marco Polo, que

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1760 Antissinismo

datam provavelmente de 1534 e 1536, virem rugir uma bombarda hão de se ir


saídas da pena de Cristóvão Vieira e Vas- pôr nos outeiros e olhar o que querem
co Calvo, dois dos homens que acom- fazer os portugueses” (Id., Ibid., 94). Tão
panharam o embaixador Tomé Pires e débil seria o poder militar sínico, que Vas-
foram condenados às fétidas prisões do co Calvo chega a antever a conquista da
império do Meio – que encontramos os ilha de Hainan (海南) situada em frente
relatos iniciais do que poderemos consi- ao Vietname: “Estas ilhas e cidades não
derar antissinismo, a denúncia extrema- têm, senhor, nenhuma maneira de socor-
da e crítica de usos e costumes do mundo ro, fazendo-se uma fortaleza na principal
chinês, que, por norma, tratava mal os cidade com quinhentos homens estantes
seus súbditos e condenava os estrangeiros nela, e com muita fustalha que corra o
a inenarráveis sofrimentos. Diz Cristóvão braço de mar, com outros quinhentos ho-
Vieira sobre os mandarins, a propósito do mens, ficam submetidas a obedecerem a
ofício de julgar e de mandar: “Nenhum el-rei nosso senhor” (Id., Ibid.).
julgador da China não faz verdade, por- Por volta de 1540, os Portugueses eram
que não olha pelo bem da terra, senão acusados, em monografias locais chinesas
por furtar porque não é natural dela e e, depois, na própria Crónica da Dinastia
não sabe quando o hão de mudar para Ming, de raptar crianças de tenra idade
outra governança. Daqui vem não terem e de as comer cozidas ou assadas. O cro-
lianças nem préstimos donde governam, nista João de Barros (1496-1570), muito
nem têm amor à gente; não fazem senão bem informado sobre as coisas da Chi-
roubar, matar, açoitar, pôr tormentos ao na, que nos deixou, na Terceira Década da
povo. É o povo mais maltratado destes Ásia, escrita por volta de 1550, páginas
mandarins do que é o diabo no inferno” exemplares de rigoroso entendimento
(VIEIRA e CALVO, 1992, 43). do mundo chinês, refere-se ao assunto:
As diferentes maneiras de executar um “Diziam que nós comprávamos moços e
condenado à morte são também objeto moças furtadas, filhos de pessoas honra-
de exemplar descrição: “A mais cruel é das, e que os comíamos assados, as quais
posto na cruz; ali lhe tiram três mil fatias cousas eles criam ser assim, porque de ser
estando vivo, e depois o abrem e tiram­ de gente que nunca tiveram notícia e éra-
‑lhe a fressura para os algozes comerem, mos terror e medo a todo aquele Orien-
e fazem todos em pedaços e dão-na aos te. Não era muito de crer-se que fazíamos
cães que ali estão para isso. A segunda é estas cousas, porque outro tanto cremos
cortar a cabeça e a sua natura cortada e nós deles, e de outras nações tão remotas,
metida na boca, e o corpo feito em sete e de que temos pouco notícia” (BARROS,
pedaços” (Id., Ibid., 44-45). 1946, 306).
Antissinismo, mas também o com- Os Portugueses, bárbaros, barbudos,
provar de práticas de morte existentes malcheirosos, assavam leitões e cabritos
no velho império, mas que não pode- em espetos improvisados junto às praias,
riam ser generalizadas a toda a China em baías e enseadas onde ancoravam as
quinhentista. suas naus. Comiam com as mãos, entre
Nestes primeiros textos, surgem igual- gritos de alegria e satisfação. Os Chineses
mente referências à fragilidade bélica dos receavam aproximar-se de tão “detestável
Chineses e à possibilidade de conquista. gente”. À distância, para um vulgar Chi-
Vasco Calvo diz que “nesta gente [da Chi- nês, um leitão a rodar num espeto não
na] não há nenhuma defensão; como ou- corresponderia a um porco pequenino,

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Antissinismo 1761

mas por certo a uma criança de tenra ida-


de raptada por estas execráveis criaturas
vindas dos confins dos mares do Ociden-
te. E será de notar que, embora raro, o
canibalismo existia na China, há muitos
séculos.
De João de Barros acrescento uma fra-
se lapidar: “Os chins dizem que eles têm
dois olhos de entendimento acerca de to-
das as coisas, nós, os da Europa, depois
de nos comunicarem, temos um olho,
e todas as outras nações são cegas” (Id.,
Ibid., 93).
Definitivamente instalados em Macau,
a partir de 1553-1556, os Portugueses sou-
beram, durante mais de quatro séculos,
dar a entender a Portugal e ao mundo
que a cidade de Macau lhes havia sido
doada pelo Imperador da China como
recompensa pelo auxílio prestado na luta
contra os piratas, capitaneados por um tal
Chang Tsi-lao. Houve de facto combates
entre Portugueses e piratas chineses, com Frontispício de Da Asia, Decada Primeira,
benefícios pontuais para as gentes da de João de Barros (1496-1570).
província de Guangdong (广东) e para
os lusitanos, mas os Chineses sempre os de Guangdong, lugar de abertura do Im-
consideraram como fazendo igualmen- pério para o mar, onde alguns Portugue-
te parte da grande mancha dos wokou ses e mais uns tantos estrangeiros, devi-
(倭寇), a complexa pirataria, sobretudo damente controlados, pagavam elevados
japonesa, mas também chinesa e portu- impostos pelo comércio marítimo e po-
guesa, que infestou as costas do sul da diam permanecer, para bem das finanças
China no séc. xvi. Ainda em 1947, Oli- do Império e para bem de todos.
veira Salazar pedia insistentemente que Este diferente entendimento sobre a
fossem descobertas nos nossos arquivos real natureza do território de Macau tem
as lendárias “chapas sínicas” que, pensa- levado a multisseculares equívocos. A po-
va‑se, atestavam a concessão pelo Impe- pulação chinesa de Macau, bem mais nu-
rador da China do território de Macau. merosa do que a portuguesa e macaense,
António da Silva Rego (1905-1986) pro- foi no passado frequentemente olhada
curou nas bibliotecas e nos arquivos, mas de soslaio, com um certo sentimento de
nada encontrou: as famosas chapas síni- superioridade por parte dos “reinóis”,
cas, o édito imperial que nos concederia os Portugueses nascidos no reino, e dos
a posse de Macau, não existiam (ABREU, “filhos da terra”, os macaenses, resultado
2004, 64). Bem diferente, mais correto e do cruzamento étnico de sangue portu-
mais próximo da verdade foi o entendi- guês com sangue chinês, javanês e até
mento chinês da natureza da cidade de indiano. Os macaenses assumiram-se ao
Macau, terra chinesa no sul da província longo dos séculos, quase sempre, como

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1762 Antissinismo

gente informada, laboriosa, orgulhosa admiração e o pasmo face a tudo o que


da sua pequena cidade e da ligação com os Portugueses encontraram no mundo
Portugal. O que não acontecia com mui- chinês, também são curiosas e exempla-
ta da população chinesa que nascera para res algumas opiniões e descrições. Diz o
além das Portas do Cerco, com um nível padre Pimentel: “Têm muitas grandezas
cultural baixo, que considerava a China no Império e cidades mas as casas pare-
como a pátria mãe e Macau apenas como cem currais; são muito ricos, mas há en-
um bom lugar para se lutar por uma vida tre eles infinitos pobres que não têm ou-
melhor. A própria divisão dos espaços da tra cousa de seu mais que a pobreza; são
Macau tradicional, com a “cidade cristã”, muito limpos mas os pratos que serviam
habitada por Portugueses e macaenses, e nos três dias, em três banquetes, nunca se
logo depois a “cidade chinesa”, mostra, lavavam” (PIMENTEL, 1942, 24).
para além da segregação e das divisões O Jesuíta acrescenta um comentário
linguísticas, como não se favorecia, salvo e a narração de uma situação deveras
umas mãos cheias de honrosas exceções, original, como seja a surpresa da corte
um conhecimento mútuo, profícuo, cria- chinesa diante dos negros – que faziam
tivo, multiétnico. parte da comitiva portuguesa –, obser-
No séc. xvii, com a fixação de missio- vados pela primeira vez na corte de Pe-
nários, sobretudo Jesuítas, na China e na quim: “São estes Tártaros [os manchus]
corte de Pequim, as cartas e as obras li- tão feios, tão enormemente gordos e de
terárias de maior fôlego sobre o mundo feições tão grosseiras que entre eles bem
chinês começaram a aparecer. O padre podiam os nossos correr por gentis-ho-
jesuíta Álvaro Semedo (1585-1658), na- mens. […] Também aqui os nossos cafres
tural de Niza, escreveu uma interessan- [os negros] representaram sua figura,
tíssima Relação da Grande Monarquia da porque o imperador [Kangxi (康熙), o
China; o P.e António de Gouveia (1592­ soberano, com apenas 16 anos] os fez
‑1677), originário de Gouveia, elaborou a chegar junto de si, mandou-lhes que
sua Ásia Extrema, um repositório de vas- abrissem a boca e mostrassem os den-
tas informações sobre a missionação e o tes: perguntou que comiam, que tudo o
mundo chinês; o também jesuíta Gabriel que comiam os homens comiam muito
de Magalhães (1609-1677), nascido em bem, e bebiam muito melhor, mandou
Pedrógão Grande, redigiu a Nova Relação logo dois mandarins que fossem lavar os
da China. Obras fundamentais, mas que, cafres em um ombro porque suspeitou
tal como os muitos capítulos dedicados à que aquela cor preta era postiça. Deram
China na Peregrinação de Fernão Mendes fundamento a esta suspeita, dois médicos
Pinto – só publicada em 1614 –, podem que vieram curar ao Senhor Embaixa-
ser lidos como textos onde transparece dor, os quais curaram tão bem em nossa
muito mais a sinofilia, o entusiasmo e casa a um moço natural de Baçaim que
exaltação positiva por tudo o que diz res- este, com a doença, ainda que não se fez
peito à China, do que a sinofobia ou o branco contudo ficou menos preto e um
antissinismo. tanto pálido; porque os naturais da Índia
Em 1667, Portugal envia a sua segun- não são tão negros e escuros como os de
da embaixada à corte de Pequim. Pos- Moçambique, logo foram dizer ao impe-
suímos a Relação da Jornada, escrita pelo rador que aquele negro parecia que, com
padre Francisco Pimentel, e, se é uma a doença se ia fazendo branco, e por con-
quase constante da prosa do Jesuíta a seguinte que aquela cor negra não era

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Antissinismo 1763

natural; daqui nasceu a curiosidade de os original “Plano para a conquista da Chi-


mandar lavar” (Id., Ibid., 23-24). na”, que é um espantoso repositório de
Da embaixada de D. João V ao Impera- impossíveis soluções. Face às constantes
dor Yongzheng (雍正), com o embaixa- prepotências dos mandarins chineses em
dor Alexandre Metelo de Sousa e Mene- Macau, Fr. Hilário já havia escrito em 1749:
ses, que se estendeu pelos anos de 1725 “Não há para nós dia sem susto, nem noi-
a 1728, possuímos uma Abreviada Relação te em que prudentemente não receemos
da pena do P.e Francisco Xavier da Rua. muito não amanhecer”. Agora sugere:
O antissinismo também quase não surge, “Mandar V. Majestade uma armada bem
mas existe uma preocupação constante equipada e provida de boa gente militar,
na descrição dos contactos com as auto- e armas com todos os apetrechos da guer-
ridades chinesas desde a chegada do em- ra, a qual chegando a Macau procure logo
baixador português a Macau, em junho ocupar toda a ilha de Ansão […] e invadir
de 1726. Os poderes sínicos queriam con- e tomar a cidade de Cantão, porto princi-
siderar esta embaixada como vinda de pal da China para o comércio da Europa”.
um reino tributário que se deslocava ao E continua: “Deste novo estado se poderá
Império do Meio para prestar tributo e ir por mar e invadir, se for necessário, as
render vassalagem ao Imperador chinês, principais províncias da China, como são
soberano do mundo, pelo que as negocia- Fujian, Nanquim e Pechili [onde se situa
ções, em Macau e em Cantão, foram com- Pequim], porque ficam junto ao mar. E os
plicadas. Alexandre Metelo queria tratar chinas, que têm tanto de soberbos como
o Imperador chinês como um monarca de fracos, gente sem ânimo e sem valor,
semelhante ao seu Rei de Portugal, e não atemorizados do nosso poder, facilmente
era esse o entendimento que os manda- se determinarão a conservar a paz durável
rins tinham das embaixadas estrangei- connosco” (AHU, Macau, cx. 5, doc. 31).
ras, e do mundo. A comitiva portuguesa Na verdade, Portugal não possuía capa-
parece ter acabado por ser recebida na cidade militar para invadir qualquer par-
corte chinesa sem o ultrajante estigma de te do território chinês e fazer exigências
D. João  V ser considerado um humilde aos “temerosos” poderes chineses. O pró-
vassalo do Imperador Yongzheng. prio procurador da Coroa comentou e
A última grande embaixada portuguesa escreveu na margem do documento: “Os
à China, em 1752-1753, é a de Francisco meios de violência e poder não são con-
de Assis Pacheco de Sampaio, embaixador sideráveis em um país em que não temos
do Rei D. José ao Imperador Qianglong. mais que uma povoação, por emprésti-
Na narrativa da viagem, do Jesuíta francês mo” (Ibid.). A cidadezinha emprestada
Jean Neuvialle, e nos próprios textos e car- era Macau.
tas do embaixador Pacheco de Sampaio, Nos sécs. xvii e xviii, os missionários
é sempre exaltada a magnificência do Im- portugueses na corte de Pequim autoin-
pério e a faustosa receção que tiveram por titulavam-se “grandes mandarins” e, na
parte do Imperador Qianlong (乾隆), um correspondência enviada para a Euro-
dos mais majestosos e brilhantes monarcas pa, assumiam-se frequentemente como
da longa história da China. No entanto, “presidentes do Tribunal das Matemáti-
dois anos antes da partida desta embaixa- cas”, quando, na realidade, eram simples
da, Fr. Hilário de Santa Rosa (1693-1764), inspetores ou diretores do Qin Tian Jian
bispo franciscano de Macau, regressava a (欽兲監), o departamento imperial de
Portugal e apresentava ao Rei D. José um astronomia, a funcionar no Guan Xiang

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1764 Antissinismo

Tai (观象台), o velho Observatório de ver em Portugal, as vagas de emigração


Pequim. Lisboa tinha ideias erradas so- oriundas da China só chegariam à Euro-
bre o labor e a importância dos seus pa no séc. xx e, ao contrário de Inglater-
missionários na China. Um exemplo: ra ou de França, regista-se uma fixação
o Franciscano D. Fr. Alexandre de Gou- reduzida de chineses em Portugal. Os
veia (1751-1808), bispo de Pequim, partiu Portugueses em geral associariam os Chi-
em 1783 para a sua Diocese com rigorosas neses a uns exóticos personagens de rabi-
instruções da corte portuguesa sobre o cho e olhos em bico, com hábitos estra-
que devia fazer, como atuar junto dos po- nhos, que usavam uma língua de trapos
derosos da corte e do próprio Imperador e eram infatigáveis comedores de arroz.
Qianlong. Solicitava-se, entre muitas ou- No séc. xix, o Império do Meio entrou
tras exigências, que Pequim reconhecesse num longo e penoso processo de dege-
a soberania lusitana sobre Macau e con- nerescência social e atraso. Ao contrário
cedesse aos Portugueses os “privilégios, do Japão, que se modernizara e avança-
isenções e liberdades” (Instrução…, 1988, va rumo ao futuro, a China, no dizer de
10) supostamente concedidos no passa- Venceslau de Morais, citado por Camilo
do. Em 23 anos de presença em Pequim, Pessanha, era “o escárnio do mundo, na
até à sua morte, em 1808, não é conheci- misérrima condição da sua plebe e na
da nenhuma conversa de D. Fr. Alexandre opulenta infâmia dos seus nobres, des-
de Gouveia com o Imperador Qianlong, prestigiada e indefesa à cobiça das gen-
que soberbamente o ignorou; e, ao con- tes, aos homens loiros da Europa que não
trário do que se pensava em Lisboa e em tardariam a vir espezinhá-la” (PESSA-
Macau, o bispo jamais pôde defender, NHA, 1944, 21).
junto da corte chinesa, os interesses de Eça de Queirós, na sua obra, faz várias
Portugueses e macaenses em Macau. Em referências à China. Só em Os Maias, a
carta a Martinho de Mello e Castro, secre- China surge por cinco vezes, uma de-
tário de Estado da Marinha e do Ultramar, las numa citação lapidar: “Os anos vão
em maio de 1785, o próprio bispo explica passando e com o passar dos anos, a
porquê: “1.º Na falta de carácter público não ser a China, na terra tudo passa”
de que eu era destituído para falar com os (QUEIRÓS, 2000, 236). Na sua novela
Ministros do Imperio. 2.º Nas leis da Chi- O Mandarim, Teodoro, amanuense do
na as quais proíbem q. estrangeiro algum Ministério do Reino, mata à distância
residente no Império se intrometa em ne- um velho mandarim rico, fica-lhe com a
gócios q. não lhe sejam pessoais. 3.º No fortuna e depois, arrependido, viaja para
perigo q. correria a cidade de Macau se os China a fim de, sem sucesso, devolver o
mandarins de Cantão, perguntados pelo dinheiro à família do defunto. Nestas
Imperador, não respondessem segundo as páginas, não propriamente antissínicas,
minhas representações”. E D. Frei Alexan- impera a ironia queirosiana. Numa das
dre de Gouveia acrescenta: “Em Lisboa, Cartas de Paris, escrita em 1894 para o
em Goa nada, absolutamente nada se jornal brasileiro Gazeta de Notícias, Eça
sabe da China. O mesmo Macau ignora o de Queirós desenvolve uma série de
sistema deste Império” (AHU, Macau, cx. ideias sobre a China e os Chineses. Diz:
17, doc. 46). “A China é um povo de quatrocentos mi-
No Portugal do séc. xviii, muito pou- lhões de homens […] de uma actividade
co se conhecia sobre o Império do Meio; formigueira, de uma persistência de pro-
não existiam praticamente chineses a vi- pósitos e tenacidade só comparável à dos

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Antissinismo 1765

buldogues, de uma sobriedade quase as- quotidianos de Macau, recomeçaram a


cética e com inacreditável capacidade de entrar mais por dentro da China. Existe
aturar e de sofrer. Os europeus que ha- uma embaixada residente em Pequim
bitam e visitam a China acrescentam que desde 1905, encerrada em 1949, reaberta
eles são, além disso, muito falsos, muito em 1979, embora os testemunhos sobre
mentirosos, muito covardes, muito lará- a China sejam escassos e nem sempre
pios e muito sujos. Mas estes europeus, rigorosos.
verdadeiramente, da China só conhe- Na sociedade portuguesa, nos anos 40
cem a orla marítima, os portos abertos e 50 do séc. xx, encontramos a imagem
ao comércio europeu, as ‘concessões’, do humilde Chinês que vendia gravatas
Hong Kong e Xangai” (Id., s.d., 202). pelas ruas do centro de Lisboa e do Porto
Camilo Pessanha chegou a Macau em expostas numa banqueta portátil, a bom
1894 e lá morreu em 1926. Da China só preço, deixando a impressão de uns des-
conheceu Hong Kong e Cantão, e era ditosos filhos da estranhíssima e longín-
vasto o seu desencanto e o seu desamor qua terra do dragão. Eram homens bai-
pelos Chineses, pese embora alguma ad- xos – quase todos provenientes do sul do
miração pela cultura e a arte do Império velho Império, por isso de estatura mais
do Meio. Em 1912, escreveu o prefácio ao baixa –, sorridentes e afáveis, mas consi-
livro Esboço Crítico da Civilização Chinesa, derados frequentemente pelo vulgar ci-
de J. Moraes Palha, médico em Macau. dadão português como uma espécie de
A obra vale sobretudo pela acuidade e raça inferior.
exuberância da extensa introdução de Nos finais do séc. xx e princípios do
Pessanha, na qual o poeta extravasa o seu séc. xxi, 20 a 30.000 naturais da Repúbli-
antissinismo e nos dá uns tantos retratos ca Popular da China fixaram-se em Por-
dos Chineses, em negativo: “Milionários tugal; outros tantos por aqui terão passa-
ou indigentes, letrados ou analfabetos, do. Oriundos quase todos da província
poderosos ou oprimidos, todos os chinas de Zhejiang – a região abaixo de Xangai,
se parecem nos processos paradoxais da que tradicionalmente mais facilita a emi-
sua inteligência e na desproporção entre gração de gente da China para o estran-
a sua sensibilidade estética e a sua afecti- geiro –, dedicaram-se em geral aos ne-
vidade moral, como se parecem no aspec- gócios, abrindo restaurantes e lojas que
to dois grãos da mesma qualidade de ar- vendem todo o género de produtos. Por
roz. Todos têm a mesma indiferença sem esta altura, a perceção que os Portugue-
entranhas pelo sofrimento alheio, todos ses tinham destes Chineses era, em geral,
praticam o squeeze, todos acreditam com de aceitação e simpatia, embora com lai-
igual cegueira nas influências misteriosas vos de antissinismo: estes comerciantes
e absurdas do fong-soi, todos atraiçoam a eram acusados de não pagarem impos-
palavra empenhada recorrendo aos mes- tos e de falsificarem os produtos que
mos sofismas grosseiros, expostos com o vendiam a preços baixos, concorrendo
mesmo impassível ar de seriedade, todos deslealmente com o pequeno comércio
são capazes de perder a cara pelos mesmos português. Exemplo de um antissinismo
motivos fúteis e de tornar a ganhar a cara primário seria o mito que corria de que
por via das mesmas invenções estapafúr- – dado que não se viam funerais de Chi-
dias” (PESSANHA, 1944, 21). neses – os seus cadáveres eram retalhados
No séc. xx, os Portugueses, para além e a carne utilizada nos pratos elaborados
das vivências desdobradas pelos múltiplos nos restaurantes.

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1766 Antissoarismo

Bibliog.: manuscrita: Arquivo Histórico Ultra­


marino, Macau, cx. 17, doc. 46, Carta
Antissoarismo
de Martinho de Melo e Castro; Ibid., Macau,
cx. 5, doc. 31, Plano para a Conquista da China;
impressa: ABREU, António Graça de, “Ma-
cau, o arrábido mafrense frei Hilário de San-
ta Rosa e o seu fantástico plano para a con-
quista da China”, Boletim Cultural da Câmara
Municipal de Mafra’92, 1993, pp. 202-204; Id.,
D. Frei Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim, Lis-
boa, Universidade Católica, 2004; Id., Toda a
M ário Soares é uma figura incontor-
nável no panorama político por-
tuguês do séc. xx. Sem de modo algum
China, Lisboa, Guerra e Paz, 2013; BARRETO, querer fazer uma biografia completa,
Luís Filipe, Macau: Poder e Saber, Lisboa, Pre- apontamos alguns marcos importantes da
sença, 2006; BARROS, João de, Ásia. Terceira vida deste político.
Década, Lisboa, Agência Geral das Colónias, Nasceu em Lisboa em 1924 e foi um
1946; BRASÃO, Eduardo, Apontamentos para a dos resistentes ao Estado Novo. Foi preso
História das Relações Diplomáticas de Portugal com
mais de uma dezena de vezes e deportado
a China, Lisboa, Agência Geral das Colónias,
para São Tomé e Príncipe em 1968. Che-
1949; Cartas de Affonso de Albuquerque, t. ii, Lis-
boa, Academia das Ciências de Lisboa, 1848; gou a Lisboa a 28 de abril de 1974 vindo
Cartas de Afonso de Albuquerque, Lisboa, Acade- do exílio de Paris. A 30 de abril, desfilou
mia das Ciências de Lisboa, 1903; CORTE- lado a lado com Álvaro Cunhal, líder do
SÃO, Armando (ed. lit.), A Suma Oriental de Partido Comunista Português (PCP), mas
Tomé Pires, Coimbra, Universidade de Coim- as suas posições políticas acabariam por
bra, 1978; GOUVEIA, António de, Ásia Extre­ afastá-los e colocá-los em lados diferentes
ma, 3 vols., Lisboa, Fundação Oriente, 1995­ da barricada durante o período do Pro-
‑2005; Instrução para o Bispo de Pequim, Macau, cesso Revolucionário em Curso, e Mário
Instituto Cultural de Macau, 1988; LOUREI-
Soares conseguirá para o Partido Socia-
RO, Rui Manuel, Fidalgos, Missionários e Manda­
lista (PS), de que tinha sido cofundador
rins – Portugal e a China no Século XVI, Lisboa,
Fundação Oriente, 2000; MAGALHÃES, Ga- em 1973, uma vitória crucial para as elei-
briel de, Nova Relação da China, Macau, Funda- ções da Assembleia Constituinte de 1975.
ção Macau, 1997; PESSANHA, Camilo, China, Foi primeiro-ministro em três Governos
Estudos e Traduções, Lisboa, Agência Geral das constitucionais (i, ii e ix) tendo sido o
Colónias, 1944; PIMENTEL, Francisco, Breve subscritor da adesão de Portugal à Comu-
Relação da Jornada Que Fez à Corte de Pekim o Se­ nidade Económica Europeia (CEE) em
nhor Embaixador Manoel de Saldanha, Embaixador 12 de julho de 1985. Eleito por duas ve-
Extraordinário del Rey de Portugal ao Imperador da zes consecutivas Presidente da República
China e Tartária (1667-1670), Macau, Impren-
foi, na primeira vez, em março de 1986,
sa Nacional de Macau, 1942; QUEIRÓS, Eça
o primeiro civil a sê-lo por sufrágio direto
de, Cartas de Paris, Lisboa, Livros do Brasil,
s.d.; Id., Os Maias, Lisboa, Biblioteca Visão, e universal. Foi ainda deputado ao Parla-
2000; SANTARÉM, Visconde de, Memória so­ mento Europeu (1994-2004) e candidato
bre o Estabelecimento de Macau, Lisboa, Impren- a presidente desse órgão, tendo perdido a
sa Nacional, 1879; SEMEDO, Álvaro, Relação eleição para Nicole Fontaine. Em 2013, foi
da Grande Monarquia da China, Macau, Notícias eleito personalidade do ano pela impren-
de Macau, 1956; VIEIRA, Cristóvão, e CAL- sa estrangeira radicada em Portugal.
VO, Vasco, Cartas dos Cativos de Cantão, Macau, Não obstante as inúmeras condeco-
Instituto Cultural de Macau, 1992. rações em Portugal e no estrangeiro, e
António Graça de Abreu uma vastíssima obra escrita, entre livros e

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Antissoarismo 1767

acontecimentos de 1975 em Portugal, em


que se opôs veementemente ao rumo que
a revolução portuguesa estaria a levar.
O chamado verão quente de 1975 resul-
tou da tensão crescente entre grupos de
esquerda e direita, durante os iv e v Go-
vernos provisórios, chefiados por Vasco
Gonçalves, mas compostos por elementos
do PS, PSD, PCP, entre outros, e que teve
como catalisador o caso do jornal Repúbli-
ca. Com a mobilização de diversas mani-
festações e o alinhamento, por um lado e
pelo outro, das chefias militares, o ambien-
te político endureceu, enquanto a Assem-
bleia Legislativa trabalhava para a elabora-
ção de uma nova Constituição. Marcante
foi então a posição do PS de Mário Soares,
que convocou dois comícios, um no Porto
(Antas) e outro em Lisboa (Alameda-Fon-
te Luminosa) nos dias 18 e 19 de julho,
que se tornam manifestações gigantescas
Capa de Contos Proibidos (1996), de Rui Mateus.
contra o chefe do Governo provisório,
que se demitirá em agosto; Vasco Gonçal-
artigos, Mário Soares nunca foi uma figu- ves ainda voltará, à frente do V Governo,
ra consensual, apesar de obter nas urnas mas a sua liderança durou pouco mais de
importantes vitórias com resultados signi- um mês. O poder tinha mudado e, a partir
ficativos. O antissoarismo poderá conside- dessa data, esteve, alternadamente ou em
rar-se sob dois aspetos: como oposição à fi- conjunto, nas mãos do PS e do PSD.
gura e ao legado político de Mário Soares Se estes acontecimentos granjearam a
e como corrente política dentro do PS. Mário Soares alguma simpatia à direita e
Mas podemos descobrir as raízes do an- ao centro do espetro político português,
tissoarismo em passados mais distantes e nem mesmo isso foi capaz de amenizar a
ainda durante o Estado Novo. De realçar animosidade que os chamados retornados
o episódio que colocou a circular a notícia (Portugueses brancos, por vezes de segun-
de que Mário Soares tinha, numa manifes- da geração, que abandonaram as colónias
tação em Londres e aquando de uma visita africanas na sequência das respetivas in-
a este país do presidente do Conselho de dependências, retornando à então metró-
Ministros do Governo português, Marcelo pole) lhe devotavam, responsabilizando-o
Caetano, pisado a bandeira portuguesa. pela descolonização que diziam ter sido
Desmentida e reafirmada muitas vezes, mal realizada, não respeitando os interes-
esta notícia ou boato foi outras tantas ve- ses de Portugal e deixando zonas, outrora
zes utilizada em apaixonadas discussões prósperas, como autênticas zonas de guer-
entre os pró-soaristas e os antissoaristas. ra. Este regresso de mais de meio milhão
É quase unânime na sociedade portu- de pessoas, sobretudo provenientes de
guesa, por apoiantes e detratores, o pa- Angola e Moçambique, e que chegaram
pel desempenhado por Mário Soares nos em condições precárias, teve um enorme

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1768 Antissoarismo

impacto na vida social, política e económi- um lado, pela consolidação da Revolução


ca do país. Foram organizados pelo Estado de 25 de abril, com a qual não concorda-
diversos esquemas de ajuda à integração, ram, e, por outro, pela descolonização,
que é considerada internacionalmente que interferiu diretamente, no caso dos
um caso de sucesso. No entanto, a respon- retornados, na sua vida pessoal. Um ou-
sabilização de alguns políticos portugue- tro tipo de antissoarismo advém das lutas
ses pelo sucedido, nomeadamente Mário internas do PS português, em que Mário
Soares, cultivou nestes Portugueses uma Soares encabeçaria, nunca assumidamen-
animosidade que se prolongou por várias te, uma determinada corrente em desfa-
gerações, e que se tornou uma das princi- vor de outras. Para terminar, referimos um
pais fontes de antissoarismo. antissoarismo alternativo e menos eviden-
Dentro do PS também podemos descor- te, da parte de uma esquerda mais extre-
tinar um antissoarismo, que se enraíza na mista, que viu em Mário Soares o principal
disputa pela sucessão de Mário Soares na impedimento à concretização de um ideal
presidência do partido quando ainda é revolucionário que se poderia ter implan-
Presidente da República: apesar de afas- tado em Portugal em 1975.
tado das lides partidárias, é acusado de O antissoarismo é assim um fenóme-
querer influenciar a vida interna do seu no de rejeição de uma figura de perso-
partido. Aliás, a acusação de querer ser o nalidade muito vincada, que, suscitando
“patrono e condutor” do PS é a mais re- muitas paixões, atravessou indelevelmen-
corrente entre os antissoaristas do próprio te a vida política portuguesa na segunda
partido. Convém, no entanto, notar que o metade do séc. xx.
antissoarismo nunca foi declarado como
corrente dentro do PS onde poucos assu-
Bibliog.: impressa: BRITO, José Maria Bran-
mirão publicamente qualquer hostilidade dão, Do Marcelismo ao fim do Império, 3 vols.,
contra o fundador do partido. Lisboa, Notícias, 1999; CASTAÑO, David,
O livro Contos Proibidos. Memórias de Um Mário Soares e a Revolução, Lisboa, Dom Quixo-
PS Desconhecido, de Rui Mateus (um dos te, 2013; DACOSTA, Fernando, O Botequim da
fundadores do PS, deputado e ligado ao Liberdade, Lisboa, Casa das Letras, 2013; MA-
chamado caso do faxe de Macau, entretan- TEUS, Rui, Contos Proibidos. Memórias de Um
PS Desconhecido, Lisboa, Dom Quixote, 1996;
to retirado da vida pública e a residir no
RAMOS, Rui (coord.), História de Portugal,
estrangeiro), é considerado pelos antissoa-
Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009; SOARES,
ristas uma espécie de bíblia antissoares. Mário, Um Mundo Inquietante, Lisboa, Temas e
Existe mesmo uma suspeita de que o livro Debates, 2003; Id., Um Político Assume-se. En­
foi impedido de ser republicado, depois de saio Autobiográfico, Político e Ideológico, Lisboa,
ter esgotado no primeiro dia da sua edição Temas e Debates, 2011; VIEIRA, Joaquim,
pela Dom Quixote (caso único nas edições Mário Soares. Uma Vida, Lisboa, A Esfera dos
em Portugal), por pressões soaristas. O li- Livros, 2013; YASTRZHEMBSKIY, Sergei, Má­
rio Soares e a Democracia Portuguesa Vistos da
vro circula na Internet e é muito apreciado
Rússia, Lisboa, Temas e Debates, 2008; digi-
por alguns antissoaristas mais convictos. tal: GUARDIOLA, Nicole, “La ‘guerra’ por la
Como é atrás referido, podemos então sucesión de Mario Soares divide a los socialis-
distinguir dois tipos de antissoarismo, em- tas portugueses”, El País, 4 abr. 1986: http://
bora podendo receber contribuições um elpais.com/diario/1986/04/04/internacio-
do outro. Um, enraizado numa certa di- nal/512949618_850215.html (acedido a 7
reita portuguesa, mais radical, que sempre out. 2017).
viu em Mário Soares o responsável, por Fernando Mendonça Costa

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Antissofismo 1769

Antissofismo tio Oratoria, XI, 3). Diversos estudiosos


contemporâneos procuram demonstrar
que o movimento sofístico contribuiu
de modo importante para a história oci-
dental da educação e da cultura, mas o
ponto de vista platónico-aristotélico foi
influente e continua a sê-lo. O trabalho

A acusação dirigida a alguém de ser


sofista e de recorrer a sofismas para
fraudulentamente enganar os outros
erudito de recolha dos fragmentos dos
sofistas e dos testemunhos antigos a seu
respeito, bem como a sua tradução para
atravessa a cultura portuguesa. A repre- línguas modernas, têm contribuído para
sentação que Platão fez dos diálogos de enriquecer a perspetiva que, durante
Sócrates com os sofistas (Górgias, Hí- muitos séculos, se teve desses vultos da
pias, Pródico, Protágoras, Trasímaco, cultura grega (vejam-se, e.g., os traba-
etc.) formou a perceção que a posteri- lhos de Solana Dueso, Sprague, Un-
dade teve dos mestres e professores que tersteiner). Os críticos portugueses de
ensinavam as elites da Grécia Antiga. De Platão e de Aristóteles recorreram, com
modo justo ou injusto, o sofista passou ênfases diferentes, à questão sofística;
a ser a pessoa que tem a intenção de, no caso do antiplatonismo português,
com jogos de linguagem e argumenta- as referências são marginais (&Antipla-
ção falaciosa, parecer mais sábia do que tonismo); no caso do antiaristotelismo,
realmente é ou de enganar o seu interlo- as acusações de o próprio Aristóteles ser
cutor. Aristóteles, no tratado do Organon um autor de livros sofísticos são frequen-
intitulado Refutações Sofísticas, que alguns tes (&Antiaristotelismo).
especialistas consideram o nono livro Encontram-se exemplos antigos da
dos Tópicos (entre 360 e 340 a. C., depen- utilização de conceitos próximos ao de
dendo dos estudiosos), define a sofística sofisma nas letras portuguesas. O autor
como algo que se parece com a sabedo- do Horto do Esposo, da primeira metade
ria, mas que de facto não é (165a20). do séc. xv, refere-se à sofistaria, com o
Se, para Aristóteles, a discussão recorre significado de dialética, e à sofisma, com
a quatro géneros de argumentos (didá- o de subtileza. Gomes Eanes de Zurara,
ticos, dialéticos, críticos e erísticos), a ar- na Crónica da Tomada de Ceuta, terminada
gumentação sofística procura subverter em 1450, alude às gentes da cidade que
o modo correto de utilizar estes géneros; “mouiam amtre ssy grandes perfias sofis-
para isso, a argumentação sofística recor- mando cada huu a fim daquela embaxa-
re à refutação, à falsidade, ao paradoxo, da” (ZURARA, 1915, 55). Num poema
à incorreção e faz parecer que o interlo- do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende,
cutor está a falar de modo vão, obrigan- de 1516, de Álvaro de Brito Pestana, re-
do-o a dizer muitas vezes a mesma coisa comenda-se que “alympemos brasfemar,
(165b10). As interpretações platónica e // alympemos negrygençyas // & sefis-
aristotélica inserem-se numa polémica mas //de falso pronosticar, // & mou-
cultural e filosófica que marcou a histó- riscas gyomançyas, // seytas, çysmas”
ria da Europa. Muitos tratados de lógica, (RESENDE, 2006, 308). Até mesmo o
de oratória e de retórica que lhes são bardo Camões, na redondilha “Sôbolos
posteriores tomaram-nas como ponto rios que vão”, se refere aos afetos que ca-
de referência (e.g., Quintiliano, Institu- tivam o coração como “Sofistas que me

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1770 Antissofismo

ensinaram // Maus caminhos por direi- abordasse o silogismo sofístico, i.e., “as
tos” (RODRIGUES e VIEIRA, 1932, 47). argumentações falaciosas e vãs dos sofis-
No período da Restauração, também o tas” (CARVALHO, 2010, 57).
autor da Arte de Furtar alude à racionali- As ciências estão irmanadas pela bus-
dade enganosa, quando descreve como a ca da verdade. A identificação de erros
malícia procede, calando o que não lhe de pensamento, ou sofismas, é apanágio
interessa, representando apenas o que sa- tradicional da história da lógica filosófi-
tisfaz o seu intento e “paliando tudo com ca. No entanto, seria possível estudar a
razões afetadas e sofísticas, até dar caça luta continuada contra os sofismas na ad-
ao que pretende em favor da parte que vocacia, na magistratura e na medicina.
lhe toca” (Arte…, 1744, 184). Cada um O  Médico Político, de Rodrigo de Castro,
destes exemplos comporta uma crítica de 1614, dedica, aliás, um capítulo à com-
implícita ao uso do sofisma, mas também paração entre a jurisprudência e a medi-
a convicção de que o engano deliberado cina, e também adverte contra os falsos e
e a aparência de sabedoria são factos da os verdadeiros médicos. Do seu ponto de
vida humana. vista, o falso médico é destituído de uma
Os usos linguísticos do conjunto voca- cultura sólida, tem uma estulta presunção
bular em torno do conceito de sofisma de erudição, tentando conseguir “a ad-
são preciosos para acompanhar a sua his- miração da massa ignorante”, sobretudo
tória na cultura portuguesa. É importan- “junto de mulheres crédulas” (CASTRO,
te, contudo, isolar os pensadores que, de 2011, 229). O comportamento verbal
modo ostensivo, se pronunciaram contra censurável e os muitos erros de ciência
modos de fazer cultura que seriam, do identificam-se facilmente na “conversa às
seu ponto de vista, sofísticos e despro- vezes embrulhada, que pode cair para um
vidos de valor. Momentos importantes lado ou outro” (Id., Ibid., 230). A sabedo-
da história da educação, da ciência, da ria do Dr. Rodrigo de Castro só é frágil
cultura e da filosofia portuguesas foram quando apouca o papel do mau médico
marcados por acusações de recurso a junto de quem acredita nele, não expli-
sofismas. Há um movimento antissofista cando por que razão, ao longo de tantos
da cultura intelectual portuguesa, ten- séculos, se continua a solicitar os serviços
do a palavra sido dicionarizada em 1871 dos sofistas clínicos. A questão, especial-
(VIEIRA, 1874, V, 591). mente delicada, manifesta-se também na
O conimbricense Sebastião do Couto história da medicina, porque qualquer
comentou o tratado aristotélico Refu- século posterior a uma época que se se-
tações Sofísticas. No proémio do seu co- lecione terá uma medicina melhor do
mentário, começa por justificar o estudo que a medicina do melhor dos médicos
dos argumentos sofísticos, assunto com do passado. Com esta perspetiva históri-
o seu melindre, porque falar sobre as ca, pode acontecer que o clínico sofístico
coisas erradas poderá influenciar outros seja indistinguível do mais sábio dos clíni-
a seguir por esse caminho. Contudo, Se- cos (à luz de uma sabedoria futura). No
bastião do Couto mostra por analogia contexto dos sofismas da argumentação
que, para se conhecer os costumes, em e da lógica, perante uma verdade futura,
ordem a aperfeiçoar a vontade, não só qualquer verdade do passado parecerá
há necessidade de estudar as virtudes, as uma manifestação de erro ou de incom-
boas disposições e as leis, mas também os pletude. O Perfeito Advogado, uma obra de
vícios. Esta é a razão para que Aristóteles 1743 de Jerónimo da Silva Araújo, é outro

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Antissofismo 1771

exemplo do debate sobre a utilização moderação dos comportamentos e na no-


de sofismas em áreas profissionais. Silva breza do seu patrocínio a quem precisa
Araújo, apesar de estar totalmente con- dos seus ofícios.
vencido de que “a mentira é geral e o pró- A obra de Luís António Verney é um
prio mundo uma oficina dela”, adverte os vasto programa intelectual para alcançar
seus pares contra o recurso à mentira: a clareza da expressão com respeito pela
“A mentira faz do homem um diabo, e a ética do discurso. A carta que escreveu ao
verdade, um semideus” (ARAÚJO, 1969, marquês de Valença, em abril de 1748, ex-
99). Tentando conciliar a contradição põe os objetivos principais do método do
entre um mundo em que reina a menti- trabalho intelectual que procurava reali-
ra e um ideal de jurista com estima pela zar e que recomendava aos outros: brevi-
verdade, Silva Araújo mostra que o advo- dade (eliminar as questões inúteis), dis-
gado mentiroso irá de mentira em men- cernimento (distinguir as razões naturais,
tira até à sua perdição final (expulsão do humanas e divinas), método (sequência
tribunal, pecado, tormentos, etc.). Este racional dos assuntos), ética (não iludir
esforço de conciliação é suscetível de ge- ninguém), modéstia (comentar com res-
neralização a outras áreas científicas. Pa- peito os erros de outros autores) e cole-
receria evidente, num mundo mentiroso, gialidade científica (referenciar os auto-
treinar a inteligência do futuro advogado res mais importantes de cada assunto).
ou do futuro cidadão para dominar a A  conceção que Verney tinha da lógica
arte da aparência da verdade. Contra esta era a de uma disciplina científica total-
evidência, Silva Araújo espanta-se com o mente dedicada a, “em qualquer espaço
elogio dos inimigos da verdade por parte e tempo, atingir a verdade” (CURADO,
de intelectuais notáveis, continuado ao 2009, 32). Era esta também a compreen-
longo de séculos (do Gláucon que, na são que tinha da oratória e da responsa-
República de Platão, defende a injustiça, bilidade ética de se tomar a palavra em
até Erasmo, com a sua defesa da loucu- público. No Verdadeiro Método de Estudar
ra, entre muitos exemplos que dá). Silva afirma, a este respeito, que “orar não é en-
Araújo não tem um conceito agonístico ganar; é sim introduzir no ânimo alguma
da verdade que se pode alcançar num verdade importante” (VERNEY, 1950, II,
tribunal, tal como não o tem da verdade 143). O sofisma, ou paralogismo, é, neste
que é arrancada arduamente num com- contexto, o vício do discurso e do pensa-
bate contra os seus opositores em outras mento que pode ser evitado, um “engano
áreas da vida, ou da que procura conquis- coberto com aparência de verisimilitu-
tar-se nos processos de canonização, em de”, que não chegará a causar danos (Id.,
que a missão do  promotor fidei, popular- Ibid., III, 39). Os seus Seis Livros de Lógica
mente conhecido como advocatus diaboli, para Uso dos Jovens Portugueses, de 1769,
era a de descobrir problemas na causa denunciam as “ninharias e sofismas” dos
dos santos (desde 1587). Contribuindo aristotélicos, e até mesmo do matemáti-
para que os advogados disciplinem a na- co Euclides, de tal modo que, “por ele
tural tendência para o engano, O Perfeito ter exposto tantos sofismas, é indigno da
Advogado recomenda-lhes que não sejam arte lógica” (Id., 2010, 69). A censura aos
imoderados, imodestos, palavrosos, pro- escolásticos peripatéticos é baseada nas
lixos, vociferantes. Para dizê-lo de outro alegadas depravações que cometeram sis-
modo, a virtude da inteligência do advo- tematicamente, considerando Verney as
gado reside na brevidade da locução, na dificuldades que colocaram à liberdade

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1772 Antissofismo

de filosofar: a dificuldade de não se te- configuração das partículas da matéria);


rem ocupado do método para alcançar os que têm gosto pela inovação como
a verdade nem do critério para a identi- um fim em si mesmo, e que acabam por
ficar, a de terem abordado assuntos que produzir hipóteses paradoxais; os que
não se compreendem e que não têm utili- ajuízam levianamente sobre os escritos
dade, a de terem usado termos que nada dos outros; os que não reparam em que
significam e, finalmente, a dificuldade de de facto não sabem nada; os que aparen-
a sua lógica não ter o objetivo da verdade. tam ser entendidos em todos os assuntos,
Um aspeto especialmente importante da tendo-se limitado a passar os olhos pelos
denúncia dos sofismas dos seus adversá- índices dos livros, pelos catálogos das bi-
rios ideológicos é a crítica menos datada bliotecas e pelos resumos das matérias;
que faz à linguagem. Atravessa o discurso os que recusam as ciências em que não
de Verney a atenção aos vocábulos con- foram treinados; os que são incapazes de
fusos e a aspiração a uma linguagem que tolerar opiniões diferentes; e os que estão
possa rivalizar com a forma de pensar obcecados com as consequências futuras
dos geómetras, acreditando o expatria- dos assuntos, por receio de se pronuncia-
do português que estes dificilmente dis- rem sobre a verdade presente desses as-
cutem entre si. A crítica aos filósofos de suntos e de afrontarem os autores de tex-
palavras ocas é complementada por uma tos sobre os mesmos. A causa dos sofismas
recomendação: “O filósofo deve servir­ dos pedantes filosóficos reside “no gosto
‑se dos vocábulos em conformidade com de ajuizar de modo perverso e [n]a ca-
o uso comum de falar” (Id., Ibid., 229). rência de uma verdadeira filosofia” (Id.,
Voltando-se para o seu próprio percurso Ibid., 615). Esta agenda intelectual é da-
educativo e intelectual, Verney confessa, tada em alguns aspetos, mas é surpreen-
pesaroso: “Também eu fui por vezes sofis- dentemente contemporânea em muitos
ta e aprovado com louvor durante muito outros.
tempo sob a bandeira dos peripatéticos” Fr. Manuel do Cenáculo, um dos ex-
(Id., Ibid., 155). O capítulo “Extirpação poentes das Luzes em Portugal, nas suas
do pedantismo filosófico”, do De Re Logi- Memórias Históricas do Ministério do Púlpito,
ca, resume o programa de Verney contra de 1776, recupera o espírito da reflexão
os sofismas derivados do mau método de que o P.e António Vieira já havia feito so-
pensar. O que se deve extirpar ou rejeitar bre a arte do pregador no Sermão da Sexa-
é: o recurso aos argumentos de autorida- gésima, pregado no penúltimo domingo
de; os que se dedicam a subtilezas lógicas, antes do início da Quaresma de 1655, e da
sem prestarem atenção à essência do que que Verney também já havia feito no seu
se discute e, sobretudo, à sua utilidade; exame da oratória de púlpito do Verdadei-
os que se dedicam a uma só disciplina ro Método de Estudar (cartas v e vi). Numa
científica, sem nada saberem das outras; obra destinada a formar o pregador e a
o excesso de erudição e a vaidade na con- identificar os vícios da pregação, Cená-
vicção de que podem esclarecer todos os culo ataca “a filosofia astuta” que cobre
assuntos; os que discorrem com voz forte “debaixo de prestígios insubsistentes a ín-
sobre assuntos que não entendem; os que dole da mentira” (CENÁCULO, 1776, 7).
se dedicam a assuntos que alegadamente A crítica que faz à “filosofia antirreligio-
nunca poderão vir a ser compreendidos nária” destaca um aspeto que caracteri-
pela razão humana (e.g., os poderes da za todas as polémicas em que as acusa-
mente, a união da mente e do corpo, a ções de sofisma são feitas: o problema

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Antissofismo 1773

da vontade. O que está em causa na filo- matérialiste présomptueux. Il explique


sofia dos deístas, e que repugna ao eru- même des dogmes qui semblaient être
dito bispo de Beja, são as “vontades mal inaccessibles à toute explication [o sono
animadas e refratárias”, que fazem com lúcido consolida a demonstração da exis-
que os frutos da razão desses autores es- tência da causa primeira e corrói até
tejam em desacordo com o sentido co- aos fundamentos a monstruosa quimera
mum dos seres humanos (Id., Ibid., 8). do ateísmo […] e enche de confusão o
Cenáculo não entra em reflexões metaló- presunçoso materialista nos seus miserá-
gicas, procurando explicar por que razão veis sofismas, e chega mesmo a explicar
é possível que filosofias tão sofisticadas dogmas que pareciam inacessíveis a toda
possam estar em desacordo com o pen- a explicação]” (FARIA, 2005, 41). O aba-
samento habitual das sociedades, nem de de Faria não está preocupado com a
chama à colação outras formas normais forma lógica do pensamento materialista;
de desacordo (e.g., entre o conhecimento o que justifica as palavras duras de “mi-
físico do mundo dos cientistas e a perce- sérables sofismes [miseráveis sofismas]” é
ção do mundo das pessoas do povo, ou a perceção de uma má vontade, de um
entre a arte dos boticários e farmacêu- desejo deliberado de não querer ver uma
ticos e o resto da humanidade, que não descoberta nova.
sabe nada de medicamentos). A ques- Poucos anos antes, e ainda nos come-
tão, do seu ponto de vista, reside na má ços do séc. xix, José Agostinho de Mace-
vontade que orienta os filósofos que não do, nas muitas polémicas que teve contra
aceitam as verdades religiosas reveladas. adversários políticos, referiu-se aos filóso-
Depois do século das Luzes, e na tradição fos modernos, aos enciclopedistas e aos
da lógica aristotélica e estoica, os erros membros da maçonaria como sofistas.
de argumentação foram estudados siste- No seu Sermão contra o Filosofismo, compa-
maticamente, produzindo-se verdadeiros ra os “redentores da opressa razão”, que
catálogos de falácias e sofismas. O que fi- conhecem todas as coisas sem terem ne-
cou sempre por explicar é a zona cega da cessidade da fé – i.e., os sofistas –, com os
inteligência: a vontade, e a lista longa das verdadeiros crentes, que estão apartados
suas doenças e caprichos, incluindo a má do espírito da dúvida (MACEDO, 1811,
vontade, a má-fé e o autoengano. 12). Comentando o turbilhão de revolu-
É neste espírito que o português de Goa ções políticas da Europa do seu tempo,
que foi residir para França, José Custódio atribui a causa última das mesmas ao mau
de Faria, o abade de Faria, entusiasmado uso da razão natural, um uso que, do seu
pela descoberta do sono lúcido (o hipno- ponto de vista, perturbou a sociedade e
tismo, como virá a ser conhecido), acusa a ordem normal das coisas, de tal modo
os materialistas, no seu De la Cause du Som- que se começou a procurar uma felicida-
meil Lucide, de 1819, de sofismarem por de fantástica. Tudo isso foi preparado pe-
não aceitarem a existência da alma nem las “sofísticas ideias de igualdade e de li-
as manifestações da mente humana in- berdade”, que deram origem ao “caos em
consciente: “Le sommeil lucide […] con- que se afundaram todas as hierarquias,
solide la démonstration de l’existence de todas as classes, todas as instituições, to-
la première cause, et sape jusque dans das as leis, que o peso dos séculos, e a
ses fondements la monstrueuse chimère vontade unânime e universal dos homens
de l’athéisme […] et couvre de confu- haviam sancionado” (Id., Ibid., 69-70).
sion dans ses misérables sophismes le As críticas aos “soberbíssimos e eruditís-

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simos sofistas” é feita num registo polé-


mico tão intenso que nem o P.e António
Vieira escapa: “Nunca mais o detestável
Vieira” (Id., Ibid., 5). Apesar deste registo,
Macedo equaciona problemas filosóficos
intemporais, como o da procura do me-
lhor uso das faculdades intelectuais, o da
dúvida sobre se o discurso racional pode-
rá acreditar de modo ilimitado nas suas
próprias verdades, o dos limites da razão
humana, ou ainda a questão tormentosa
da má vontade da inteligência humana.
Macedo reparou com perspicácia que a
dinâmica da Europa oitocentista deriva-
va em grande medida do debate intelec-
tual setecentista; considerando que parte
desse legado está baseado em sofismas,
Estátua de José Custódio de Faria, abade de Faria
denuncia os danos que o discurso inte- (1756-1819).
lectual entregue a si mesmo pode cau-
sar a uma sociedade que não participa
dele. Atravessa a sua crítica aos sofistas da Estremoz, segue José Agostinho de Ma-
época a intuição duradoira de que as ati- cedo nos seus ataques aos filósofos que
vidades intelectuais de uns (bem como, estariam na origem das perturbações ao
relacionadas com elas, o seu prazer, o seu corpo social. Copiando parcialmente o tí-
emprego, etc.) acabam por prejudicar a tulo O Triumpho da Verdade, obra de 1808
vida das pessoas que não têm interesse do P.e Mateus Augusto, um dos instalado-
nenhum nelas; esta é uma forma manifes- res do Conselho Conservador de Lisboa,
tamente tortuosa de afirmar que os inte- como informa Inocêncio no seu Dicciona-
lectuais têm uma responsabilidade ética, rio Bibliographico (VI, 164; XV, 10), o livro
porque nenhum autor poderá controlar de Padilha, O  Triumpho  da  Verdade  con-
o uso e a interpretação que vier a ser dada tra o Sophisma, de 1847, que publicou com
aos seus textos e ideias. A recomendação as iniciais J. J. C. B. D. P., compara esses
ética que deriva da crítica à soberba dos filósofos a animais rastejantes, elencando
intelectuais que se ufanam do alegado os danos causados pela falta de fé e pela
valor dos seus argumentos filosóficos é “sofística obstinação”: atentados à tradi-
de aceitação difícil, se bem que seja even- ção dos povos, ao vaticínio dos profetas,
tualmente verdadeira. Propõe Macedo à autoridade dos doutores e à decisão dos
que, para se ser feliz, é preciso ser igno- concílios da Igreja. Padilha considera ser
rante, porque a felicidade está mais perto dever do filósofo cristão criticar o labirin-
da ignorância do que da sabedoria. to de sofismas dos “pretendidos filósofos
Os representantes do Portugal mais dos séculos derradeiros” (P[ADILHA].,
conservador opuseram-se às reformas 1847, 13). Os sofismas são descritos como
da sociedade, recorrendo muitas vezes ocos, aparentes, revestidos de falsas co-
à denúncia dos sofismas alegadamente res, cheios de frases eloquentes, tendo
usados pelos reformistas. Um tal Padilha, adornos fantásticos e máscaras engana-
e.g., que prefacia o seu livro estando em doras. Pela descrição, rapidamente se vê

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Antissofismo 1775

que está em causa um sucedâneo do fal- e Azevedo propõe regras gerais para se
so médico de Rodrigo de Castro, do ad- evitar ser convencido pelos sofismas dos
vogado palavroso de Silva Araújo ou do outros: a prevenção contra a obscuridade
mau pregador de Vieira, de Cenáculo e dos termos, observar escrupulosamente
de Verney. Para mostrar a perigosidade as regras do raciocínio e chamar a exame
letal desses sofismas, o autor compara-os o conteúdo das premissas, sempre que
à cicuta entre as plantas. Curiosamen- pareçam viciosas ou incertas. Nas edições
te, a ênfase do autor não é colocada na seguintes do manual, com novo título e
questão política, mas nos problemas filo- significativamente aumentado, o capí-
sóficos mais substantivos, como a imor- tulo dedicado a sofismas e paralogismos
talidade da alma (lição ii) ou as provas é mais desenvolvido. O professor braca-
da sua existência, deduzidas da natureza rense acreditava que é possível dominar
humana (lição iv). Encontra-se, em mui- suficientemente bem as regras da lógica,
tos outros autores da época, esta conexão controlar as paixões que possam toldar o
entre problemas filosóficos fundamentais pensamento e defender com empenho a
e felicidade pessoal, ou entre aqueles e os verdade; este conjunto é um “preservati-
hipotéticos danos causados por eles a um vo seguro contra todos os mencionados
modelo conservador de sociedade. A sua sofismas e paralogismos”, só desculpando
denúncia, muitas vezes inflamada, dos so- os que cometem essas faltas quando as
fismas dos filósofos modernos não deve causas do erro são inevitáveis (Id., 1872,
ser interpretada apenas como ataque aos 147). Apesar de ter estudado sistemati-
autores visados, mas também como alerta camente a questão da argumentação so-
contra possíveis perigos pessoais e sociais. fística, o professor Pinheiro d’Almeida
O professor nortenho P.e Manuel da Con- não se apercebe de como, ao considerar
ceição e Barros mostra esta conexão nos como sinais patológicos as teorias filosó-
seus Elementos de Metafísica, de 1854, quan- ficas de outros autores, está ele próprio
do adverte que fala “da verdadeira Filoso- a sofismar: “a existência de Deus, a espi-
fia […] e não da Sofística e Quimérica, ritualidade e a imortalidade da alma, e a
que, longe de aperfeiçoar a razão, antes necessidade da religião, que, sendo ver-
a corrompe, e por conseguinte é contrá- dades certíssimas em si, têm sido […] ata-
ria à nossa felicidade” (BARROS, 1854, cadas por um pequeno número de ho-
59). O professor bracarense Manuel Pi- mens, ou alucinados ou perversos” (Id.,
nheiro d’Almeida e Azevedo, com quem 1843, 62). Interpretando estas alegadas
o P.e Conceição e Barros manteve uma verdades, que nada têm de evidente, pe-
polémica em relação à qual Inocêncio los seus próprios critérios, a dúvida reside
escreveu que “fora de desejar não existis- apenas em saber se houve erro inevitável
se” (VI, 86), dedicou uma atenção conti- ou não, ou, dizendo-o de outro modo, se
nuada aos sofismas nos seus manuais para a vontade teve algum papel na expressão
o ensino liceal. Nas Noções Elementares de dessas críticas. Joaquim Alves de Sousa,
Psicologia e Ideologia, o professor de ideo- professor em Coimbra, oferece uma ti-
logia aparta o sofisma do paralogismo, pologia de sofismas e paralogismos com
definindo este último como um sofisma uma orientação muito próxima da de Pi-
que “se funda na ignorância e boa-fé nheiro d’Almeida e Azevedo. O seu Curso
do sujeito que o emprega” (AZEVEDO, de Filosofia Elementar conclui a exposição
1843, 93). Depois de analisar casos con- deste tema afirmando que os paralogis-
cretos de sofismas, Pinheiro d’Almeida mos podem ter alguma desculpa, mas os

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1776 Antissofismo

sofismas nunca se devem empregar, de- tóteles faria a primeira sistematização


vendo “ser sempre rebatidos por quem se do assunto. Para além das recolhas dos
preze de amar a verdade” (SOUSA, 1873, teóricos da argumentação correta e fala-
299). Perspetiva diferente teve o médico ciosa, é necessário complementar esses
Manuel Bento de Sousa, que, em O Doutor trabalhos fundamentais com estudos da
Minerva, faz uma crítica demolidora ao pragmática da utilização dos sofismas em
papel da lógica no ensino. Para o clínico contextos científicos, educativos, foren-
com estima pela escrita, a lógica, como ses, mediáticos e políticos. É nestes con-
arte de bem pensar, é uma ilusão, e o es- textos que todo o alcance dos sofismas se
forço para alcançar esse fim é um traba- revela, bem como no âmbito da voz da
lho perdido. Do seu ponto de vista, “nun- consciência íntima, em que cada um con-
ca a lógica levará a pensar direito quem ta a si próprio a narrativa que o convence
nasceu para pensar torto, nem quem bem de alguma coisa. As grandes polémicas
dotado é para pensar bem virá pela arte portuguesas são atravessadas por acusa-
a pensar melhor” (SOUSA, 1894, XXVI). ções de práticas sofísticas. Como muitas
Em consequência, denuncia a inutilida- delas ocorreram em publicações perió-
de do ensino liceal da filosofia, da mo- dicas por estudar, ainda há um campo
ral, da metafísica e da psicologia. Na sua muito rico a explorar sobre o sofismo e o
obra humorística A  Parvónia, publicada antissofismo portugueses. A que opôs, no
sob pseudónimo, esta denúncia foi ge- final do séc. xix, o alienista Miguel Bom-
neralizada a toda a produção científica barda ao P.e Manuel Fernandes de Santa-
das academias portuguesas. O médico na, e.g., é rica em denúncias de erros de
portuense considerava essa ciência como argumentação perpetrados por uma edu-
mera vaidade, não tendo grande sentido. cação cristã. Bombarda mimoseia o seu
A ciência humana “todos os dias vai re- opositor com acusações impressionistas:
novando as doutrinas efémeras de que se entre ser executante de “franca logoma-
compõe, substituindo cada hipótese, que quia”, “subtilezas e argúcias escolásticas”,
se faz velha, por um novo erro” (PINTO, “palhaçadas filosóficas” e ser “falsifica-
2007, 153). Deste ponto de vista, a identi- dor de textos e falsificador até ao termo
ficação de sofismas é um entretenimento da calúnia mortal”, muito haveria que
inconsequente, porque mesmo a ciência inventariar, não esquecendo o conside-
considerada mais certa está condenada rar-se como patologia psiquiátrica a opi-
ao erro e à efemeridade. nião diferente dos outros. O diretor de
Os sistematizadores setecentistas e oito- Rilhafoles contribuiu para a história da
centistas da lógica e da retórica tiveram lista das doenças mentais com a fantástica
um papel pioneiro. A recolha de falácias, patologia da “loucura jesuítica” (BOM-
erros lógicos e paradoxos é uma atividade BARDA, 1900, 46, 95, 187). Muitos outros
das ciências da lógica, da lógica informal, exemplos de polémicas intelectuais que
do pensamento crítico, da teoria da argu- marcaram a história da cultura portugue-
mentação, da psicologia do pensamento, sa neste aspeto poderiam ser dados. Im-
entre outras, que permanece em aberto. põe-se, contudo, uma pergunta sobre o
No seu tempo, Verney considerava que seu significado. A procura continuada de
a recolha inicial dos sofismas teria sido métodos que possam evitar os vícios do
feita de modo casual, tendo alguém des- pensamento não tem apenas o significa-
coberto um erro de pensamento, e mais do filosófico que a lógica procurou fixar:
alguém descoberto outro, até que Aris- evitar os erros de argumentação de modo

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Antissofismo 1777

a alcançar a verdade. Há séculos que se MACHADO, Fernando Augusto et al. (orgs.),


recolhem sistematicamente os sofismas e Caminhos de Cultura em Portugal. Homenagem ao
que as universidades dão cursos sobre as Professor Doutor Norberto Cunha, Ribeirão, Hú-
ciências do pensamento correto. Tantos mus, 2009, pp. 23-42; DUESO, José Solana,
Los Sofistas. Testimonios y Fragmentos, Madrid,
séculos de esforço são, aparentemente,
Alianza, 2013; FARIA, Abbé, De la Cause du
inúteis ou quixotescos, porque cada épo- Sommeil Lucide ou Étude de la Nature de l’Homme
ca criará os seus próprios sofismas, olvi- (1819), Paris, L’Harmattan, 2005; MACEDO,
dada de tentativas passadas de os evitar. José Agostinho de, Sermão contra o Filosofismo
Essa procura aponta para uma dimensão do Século XIX, Lisboa, Impressão Régia, 1811;
profunda da alma humana, porque reve- Id., Cartas Filosóficas a Ático, Lisboa, Impres-
la a saudade de um mundo (futuro ou são Régia, 1815; P[ADILHA]., J. J. C. B. D.,
passado, pouco importa) em que já não O  Triumpho  da  Verdade  contra  o  Sophisma  ou  Li­
ções Moraes e Philosophicas ao alcance da Mocida­
existam inteligências a utilizar sofismas
de, Lisboa, Typ. de José Baptista Morando,
ou com necessidade de se acautelarem 1847; PINTO, Marcos (pseud.), A Parvónia.
deles, um mundo de pensamento santo. Recordações de Viagem, Lisboa, Frenesi, 2007;
RESENDE, Garcia de, Antologia do Cancionei­
ro Geral, Lisboa, Verbo, 2006; RODRIGUES,
José Maria, e VIEIRA, Afonso Lopes (ed. crí-
tica), Lírica de Camões, Coimbra, Imprensa
Bibliog.: impressa: ARAÚJO, Jerónimo da Sil- da Universidade de Coimbra, 1932; SOUSA,
va de, “O perfeito advogado”, Boletim do Mi­ Joaquim Alves de, Curso de Philosophia Elemen­
nistério da Justiça, 1969, sep.; Arte de Furtar, Es­ tar para Uso das Escholas Comprehendendo Psycho­
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Schagen, 1744; AZEVEDO, Manuel Pinheiro Minerva (Crítica do Ensino em Portugal), Lisboa,
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mentos, dos Sentidos e dos Sophismas, Servindo de
Hackett, 2001; UNTERSTEINER, Mario, Les
Correcção e Ampliação ao Compêndio de Lógica d’A.
Sophistes, 2 vols., Paris, Vrin, 1993; VERNEY,
Genuense, Braga, Tip. Bracarense, 1843; Id.,
Luís António, Verdadeiro Método de Estudar,
Compendio de Philosophia Racional e Moral e Prin­
ed. lit. António Salgado Júnior, vols. ii-iii, Lis-
cipios de Direito Natural, Contendo Um Curso Ele­
boa, Sá da Costa, 1950; Id., Lógica, Coimbra,
mentar Completo  e methodicamente Coordenado
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010;
das Disciplinas Que Fazem o Objecto da Respectiva
VIEIRA, Domingos, Grande Diccionario Portu­
Cadeira nos Lyceus Nacionaes  e Estabelecimentos
guez ou Thesouro da Lingua Portugueza, 5 vols.,
Analogos  de  Instrucção, constantemente Elucidado
Porto, Editores E. Chardron e Bartolomeu
com Notas Explicativas do Texto, 3.ª ed., Porto,
H. de Moraes, 1871-74; ZURARA, Gomes
Typographia Pereira da Silva, 1872; BOM-
Eanes de, Crónica da Tomada de Ceuta por el-Rei
BARDA, Miguel, A Ciência e o Jesuitismo. Répli­
D. João I, ed. lit. Francisco Maria Esteves Perei-
ca a Um Padre Sábio, Lisboa, Parceria António
Maria Pereira, 1900; BARROS, Manuel da ra, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa,
Conceição e, Elementos de Metaphysica, Braga, 1915; digital: CARVALHO, Mário Santiago
Typographia Lusitana, 1854; CASTRO, Ro- de (introd.), Comentários a Aristóteles do Curso
drigo de, O Médico Político, ou Tratado sobre os Jesuíta Conimbricense (1592-1606). Antologia de
Deveres Médico-Políticos, Lisboa, Colibri, 2011; Textos, Coimbra, Linguagem, Interpretação e
CENÁCULO, Manuel do, Memórias Históricas Filosofia, 2010: http://www.uc.pt/fluc/lif/co-
do Ministério do Púlpito, Lisboa, Regia Offici- mentarios_a_aristoteles1 (acedido a 18 dez.
na Typografica, 1776; CURADO, Ana Lúcia, 2016).
“Carta de Verney ao marquês de Valença”, in Manuel Curado

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1778 Antissolipsismo

Antissolipsismo ter sido tocadas; além disso, todos os seres


humanos sonham com assuntos que pare-
cem ter existência própria. A sensação de
realidade e a impressão de evidência que
acompanham estas experiências são co-
muns a todas as pessoas. Se a experiência
normal de uma pessoa parece real e evi-

O solipsismo é a tese filosófica que de-


fende que só existe o eu e as suas
representações, não tendo estas corre-
dente, não há meio de distinguir as expe-
riências que têm correlato em objetos ex-
teriores das experiências imaginativas ou
lação alguma com entidades ou objetos alucinatórias que não têm correlato na
que possam ter uma existência autónoma realidade. Dividindo as propriedades dos
fora do sujeito. Esta tese é importante nos corpos em primárias (extensão, solidez e
debates filosóficos na área da metafísica, outras semelhantes) e secundárias (cor,
da teoria do conhecimento e da filosofia sabor e outras semelhantes), Malebran-
da mente. Muitos outros problemas filo- che repara que os seres humanos se en-
sóficos estão relacionados com o solipsis- ganam frequentemente a respeito destas
mo, nomeadamente o problema das ou- propriedades. Como os corpos não pro-
tras mentes, o problema da referência, a duzem nos seres que os percecionam ne-
questão da evidência, o problema da cau- nhum outro tipo de experiências, segue­
salidade mental, o problema da comuni- ‑se que não se pode ter a certeza absoluta
cação entre indivíduos, e o problema dos da existência autónoma de qualquer coi-
conteúdos da experiência consciente. Os sa fora do que é percecionado. Esta dúvi-
movimentos contra o solipsismo procura- da é reforçada com a impossibilidade de
ram tornar ostensivas as suas fragilidades garantir que a causa das sensações seja de
teóricas, se bem que nunca conseguissem facto um corpo; poderá, ser, e.g., um espí-
abalar a experiência fundamental daque- rito maligno. A reforçar estes argumentos
le que nele crê, a experiência da natureza existe ainda a dificuldade representada
fundamentalmente irreal ou onírica da pelas outras mentes, i.e., a impossibilida-
vida humana. de de provar que o que as outras pessoas
e os outros povos afirmam é o mesmo que
a nossa pessoa e as pessoas do nosso povo
O debate filosófico
estão a afirmar. Verney revê pacientemen-
A crítica mais sistemática do pensamen- te estes argumentos, mostrando que são
to português contra a versão filosófica apenas jogos de palavras e de ideias sem
do solipsismo foi desenvolvida por Luís grande sentido. Assim, acusa Malebran-
António Verney, no seu De Re Metaphysica, che de menosprezar a espécie humana e
de 1765. Verney revê sistematicamente os de ir contra a evidência e o senso comum,
argumentos de Malebranche, de Bayle afirmando, em registo pessoal: “nunca vi
e de Berkeley. Estes autores lançaram a nenhum dos que pretendem ser consi-
dúvida sobre a existência autónoma de derados verdadeiros céticos que se abs-
corpos fora do campo da perceção. Male- tivesse de alguma atividade por duvidar
branche, e.g., fundamenta a dúvida recor- se existe, se tem um corpo e se existem
rendo a testemunhos de pessoas que, es- outras pessoas. […] Portanto, eles de-
tando de boa saúde e acordadas, afirmam monstram pelo seu procedimento não
ter ouvido vozes, visto coisas estranhas e parecerem possuir nenhum valor e não

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Antissolipsismo 1779

vel ao que exige muitos recursos. Deste


modo, as impressões alegadamente origi-
nadas por corpos exteriores poderiam ter
sido originadas por Deus. Segue-se que
a totalidade do mundo poderia ser uma
ilusão gerada por um poder superior ao
dos seres humanos. Verney litiga com
mestria. Tomando para si mesmo o argu-
mento da parcimónia, afirma que os sen-
tidos humanos revelam uma minúcia e
uma ordem admiráveis, que só podem ser
explicadas se se presumir que através de-
les se procura obter uma finalidade. Caso
contrário, a complexidade da estrutura
sensorial humana violaria a parcimónia
da natureza. Este grande investimento
orgânico não teria sido necessário. Deste
modo, a convicção de Bayle de que “a na-
tureza nada faz inutilmente” obriga a que
a manifesta complexidade da estrutura
sensorial humana tenha sido organizada
Folha de rosto de De Re Metaphysica (1753), com o fim de “obter as ideias dos corpos,
de Luís António Verney.
pelo que a criação dos sentidos externos
demonstra com clareza a existência dos
produzirem nenhuma eficácia os seus corpos” (Id., Ibid.).
argumentos, dado não os impedirem de Berkeley é o filósofo idealista mais cri-
aceitar o que é evidente e de agir como ticado por Verney. Para o filósofo por-
as outras pessoas” (VERNEY, 2008, 138). tuguês, “se tem algum valor o modo de
Há ainda a dificuldade de se considerar argumentar de Berkeley, ele vale sobre-
que todo o género humano está a delirar, tudo por dar ensejo a inferir conclusões
e apenas os céticos compreendem o dra- frívolas que, se fossem expostas, serviriam
ma da condição humana. Verney recusa para fazer troça de todas as pessoas” (Id.,
a pertinência deste alargamento do pro- Ibid., 154). É neste tom que os diversos
blema, porque é improvável que “tantas argumentos do bispo irlandês são re-
pessoas de diferentes idades e costumes vistos, nomeadamente o que defende
e vivendo em épocas e regiões distintas se que as impressões dos sentidos não são
persuadam totalmente de factos incom- suficientes para provar a existência de
patíveis com o que na realidade aconte- corpos exteriores e o que mostra que os
ce” (Id., Ibid., 142). estados oníricos e delirantes apresentam
Pierre Bayle também avançou com ar- ao espírito ideias que não têm correspon-
gumentos em defesa de um idealismo dência com objetos exteriores. Apesar de
extremo. Para este filósofo, a lei geral Verney argumentar com minúcia contra
do mundo é a da parcimónia, porque “a Berkeley, a sua crítica caracteriza-se por
natureza nada faz inutilmente” (Id., Ibid., um desalento. Em última análise, os pro-
144); sendo assim, o que se pode fazer ponentes destes argumentos falaciosos,
com recurso a poucos meios é preferí- como Verney os considera, só poderão

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ser chamados à razão através de métodos do povo português, e cujo conservado-


pouco racionais. Assim, Verney afirma rismo advogava a reforma da Inquisição
que só é “possível refutar Berkeley e ou- mas não a sua abolição total, não pode-
tros disputadores do mesmo género tor- ria desenvolver esta suspeita marginal
turando-os à fome e à sede durante três sobre as consequências das limitações
dias, fechados num cubículo”. Quando cognitivas dos seres humanos. A conse-
esses sofistas, que querem demonstrar as quência óbvia seria a de que os discursos
teorias mais implausíveis, implorassem dos seres humanos sobre a ordem geral
por alimentos e por bebida, diz Verney, das coisas dizem mais sobre eles próprios
poder-se-ia responder-lhes “muito candi- do que sobre as coisas. A racionalidade
damente não existirem comida nem be- humana enferma do defeito original de
bida, nem nenhuma pessoa exterior às tentar interpretar uma realidade que ela
suas mentes que pudesse vir socorrê-los”. própria não criou e de ter uma lógica in-
A conclusão previsível deste argumento terna que também não foi ela a produzir.
baculino é a de que “pelo tormento físico Está, pois, duplamente limitada. Deste
refutá-los-íamos com maior facilidade do ponto de vista, infelizmente não explo-
que se recorrêssemos a muitos argumen- rado por Verney, a cultura humana está
tos” (Id., Ibid., 172). condenada a mendigar o conhecimento
Apesar da crítica sistemática que é feita do mundo e a promover os seus próprios
aos principais proponentes do idealismo, interesses. Há, pois, alguma razão para
e da defesa de um realismo fundamen- se continuar a ter estima por um solipsis-
tado na existência de Deus, Verney tem mo moderado.
considerações que se aproximam de um O solipsismo não teve vida feliz no
solipsismo muito moderado. A convicção pensamento português, acompanhando
de que o poder das faculdades humanas o diminuto interesse pelo memorialis-
está seriamente limitado faz com que mo ou pela narrativa autobiográfica nas
Verney considere implausível o conhe- letras portuguesas. Existem, contudo,
cimento último dos objetos do mundo. movimentos de ideias que expressam a
No seu livro Logica, afirma que “a nossa dúvida sobre a possibilidade epistémica
mente está circunscrita a estreitos limi- de se conhecer algo de interessante e de
tes, não discernindo com clareza as cau- verdadeiro sobre o mundo, bem como
sas das coisas, mesmo daquelas que são sobre a possibilidade ética de a vida hu-
familiares. Quem conhece de facto a na- mana ser mais do que um entretenimen-
tureza do seu espírito? E a máquina do to inconsequente e sem sentido último.
corpo humano?” (Id., 2010, 361 e 363). A literatura sapiencial portuguesa que
Num mundo em que “os seres huma- foi influenciada pelo Elogio da Loucura,
nos […] ignoram coisas quase em núme- de Erasmo de Roterdão, desenvolveu
ro infinito” (Id., Ibid., 375), e em que o ser de modo sistemático esta dúvida, defen-
humano “entende de modo tão obscuro dendo que a vida humana mais não é do
que dificilmente pode acreditar-se” (Id., que uma loucura controlada, um gozo
Ibid., 403), é muito forte a dúvida sobre carnavalesco, uma passagem rápida pela
se as representações que os seres huma- terra homérica dos lotófagos ou uma co-
nos têm do mundo e de si mesmos serão, leção vasta de sonhos e ilusões. Destaca­
em última análise, relevantes e verda- ‑se a obra do humanista aveirense Aires
deiras. Como se esperaria, um pensador Barbosa, com o seu manifesto Contra a
comprometido com a reforma educativa Loucura, de 1536; o Sermam Funebre para

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as Exequias dos Trinta Dias, do Insigne, ta que o ser humano tem em relação a
Eminente, e Pio Hahan e Doutor R. David si próprio e ao mundo, conclui de modo
Netto, de 1724, e a epopeia As Viríadas, memorável dizendo que “o maior Filóso-
do médico Isaac de Sequeira Samuda, fo é um pedaço de asno” (Id., Ibid., 320).
deixada incompleta à data da sua morte Na carta xix, “Sobre ser o Homem o obje-
em 1729, de que o canto v é um manifes- to mais ignorado pelo mesmo Homem”,
to eloquente da vida humana como ilu- descreve-se uma vida humana totalmente
são total; o Anti-Maquiavelismo, ou Nova solipsista, porque “o homem se adora a
Ciência, e Arte, para Cada Um dos Homens si mesmo quando consideramos no bem
Possa Escapar os Detrimentos da Sociedade, que ele a si mesmo sente” (Id., Ibid., 252).
de João Pedro do Vale, de 1760, que de- Apesar de ter tido uma vida rica em polé-
fende que a melhor forma de alguém ser micas com os seus contemporâneos, José
bem sucedido é a de fingir que é louco; Agostinho de Macedo associa a ideia de
a obra vasta do folhetinista José Daniel uma vida sábia ao afastamento em relação
Rodrigues da Costa, nomeadamente o às coisas do mundo. Comparando a vida
Barco da Carreira dos Tolos, de 1803, e Hos- humana a um manuscrito totalmente in-
pital do Mundo, de 1805; e o Da Loucura e compreensível (Id., Ibid., 248), a peque-
das Manias em Portugal, do novelista Júlio na felicidade possível reside no emprego
César Machado, de 1871. dos sentidos e no entretenimento com
O séc. xix não esqueceu a questão do questões eruditas. O seu imponente tra-
solipsismo. A abrir o século, por altura das tado de antropologia filosófica, O Homem
invasões francesas, José António de Sá, ou os Limites da Razão: Tentativa Filosófica,
na obra Defesa dos Direitos Naturais e Reais de 1815, reitera, na tradição erasmiana,
da Monarquia Portuguesa, irmanava o so- a denúncia da impotência da razão, con-
lipsismo ao ateísmo prático de Napoleão, siderando que “não há uma só opinião
“a verdadeira causa dos infames e inaudi- dos Filósofos que se não possa conside-
tos procedimentos do Tirano de França rar uma verdadeira loucura” (Id., 1815a,
e de seus Sequazes” (SÁ, 1810, 72). Na 5). Como se esperaria, José Agostinho de
segunda edição da sua obra, de 1816, ca- Macedo escreveu muitos dos seus textos
racteriza o sistema político napoleónico sob a forma de solilóquios, reunidos nos
como um solipsismo absoluto (Id., 1816, quatro volumes do Motim Literário, de
289). Por essa mesma época, José Agosti- 1811.
nho de Macedo descreve uma humanida- Na segunda metade do séc. xix, vários
de voltada sobre as suas próprias paixões pensadores pronunciaram-se contra o
e interesses, ignorante da sua natureza úl- solipsismo. O jurista Vicente Ferrer Neto
tima e da ordem do mundo. Algumas das Paiva considera que o solipsismo revela
suas Cartas Filosóficas a Ático, de 1815, são um cálculo económico deficiente. Do seu
especialmente cáusticas. Denunciando a ponto de vista, o egoísta não deve pensar
impotência do pensamento racional, afir- que, “trabalhando pela felicidade dos
ma que “a reflexão não contribui para a outros, prejudica os seus interesses [...].
felicidade natural! Não só não contribui, O próprio solipsismo, se calcular bem as
mas antes a empece” (MACEDO, 1815, suas conveniências, há de encontrar gran-
93). O ponto alto da crítica corrosiva é de interesse na igualdade das obrigações
atingido na carta xxvii, “Sobre os pou- para connosco e para com os outros, ape-
cos conhecimentos do Homem”, em que, sar de parecer totalmente desinteressado”
depois de descrever a ignorância absolu- (PAIVA, 1856, 230). José de Lacerda, por

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seu lado, irmana o solipsismo aos alega-


dos vícios da religião protestante, como a
indiferença, a hesitação, o desleixamento
e a incredulidade. Pensando no idealis-
mo, uma versão extrema do solipsismo,
Antero de Quental, em carta a António
de Azevedo Castelo Branco, considera-o
uma “estreita filosofia” que não concebe
“senão uma medida exata para a verdade
e para o bem e além desse limite inflexí-
vel via tudo miséria e erro” (QUENTAL,
1989, I, 96). Em carta a Jaime Batalha
Reis, Antero apresenta o seu projeto filo-
sófico como a recondução do idealismo
“da região vaga por onde tem andado
para um terreno [...] positivo” (Id., Ibid.,
II, 762). Este registo epistolar enrique-
ce o que Antero publicou sobre o tema.
Em A Filosofia da Natureza dos Naturalistas,
de 1886, esboça o plano de uma síntese
Antero de Quental (1842-1891).
entre a ciência e a especulação, um ma-
terialismo idealista. Em 1890, nas Tendên-
cias Gerais da Filosofia na Segunda Metade espécie de egoísmo, obedecendo aos úni-
do Século XIX, voltaria a este projeto, de- cos ditames da sapiência” (Id., Ibid., 610).
signando-o de “espiritualismo idealista”, Mesmo a começar o novo século, o mé-
conciliado com “o tronco robusto do dico Manuel Laranjeira, que se interessou
materialismo” (Id., 1989a, 168). Em todas amplamente pelo Nirvana budista, aparta
estas posições há uma crítica às versões o egoísmo do egotismo, nas páginas da
mais extremadas de solipsismo e de idea- revista portuense A Arte, caracterizando a
lismo. O diplomata e teósofo Visconde de personalidade egotista como “um ser em
Figanière enriqueceu este debate com re- conflito com a sociedade, em luta com
flexões que desenvolveu nos seus Estudos a espécie, porque obedece cegamente
Esotéricos: Submundo, Mundo, Supramundo, às suas forças orgânicas mal dirigidas”
de 1889. As personalidades solipsistas re- (LARANJEIRA, 1993, 272). A patologia
velam um egoísmo que terá repercussões do egotismo define-se como um “exage-
depois da morte do indivíduo. O apego ro da consciência do Eu, e a atrofia da
que têm às coisas faz com que não consi- consciência do Não-Eu” (Id., Ibid., 273).
gam progredir na senda da purificação. A categoria nosológica do egotismo, deri-
Descrevendo um dos locais da sobrevida, vada da categoria da degeneração, não se
Figanière afirma que “o maior empenho aplicava, para Laranjeira, aos indivíduos
dessas almas miserandas é manterem co- solitários em luta justa contra a socieda-
mércio com o mundo que os absorve e que de, como é o caso dos grandes criadores,
lhes fica tão vizinho” (FIGANIÈRE, 1889, que são habitualmente mal compreendi-
491). A personalidade totalmente destituí- dos pelos seus contemporâneos. O egos-
da das limitações solipsistas é o “mahatma, tista, pelo contrário, “não pode tentar
um ente destituído de toda e qualquer nada em prol da humanidade, porque

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Antissolipsismo 1783

esta não existe para ele, está fora da sua Schlick, mostra que a questão do solipsis-
esfera sensorial” (Id., Ibid., 274). Tam- mo perdurou no seio do pensamento
bém o filósofo Sampaio Bruno criticaria epistemológico mais avançado do séc. xx.
Berkeley, temendo que, se se atingisse o O pensamento português não foi insen-
idealismo puro, se seguiria o niilismo in- sível a estes debates epistemológicos do
tegral (BRUNO, 1998, 19). Numa época círculo de Viena. A crítica ao solipsismo
de grande paixão pelo detalhe, pela his- atingiu o seu maior desenvolvimento em
tória, e pela ciência aplicada à técnica, língua portuguesa na filosofia da psico-
qualquer sugestão de idealismo seria for- logia de Edmundo Curvelo. O professor
temente criticada. Depois de condenar o da Faculdade de Letras de Lisboa tinha
“ódio pela realidade externa”, Sampaio o projeto filosófico de cartografar todas
Bruno conclui que esta metafísica é “sa- as estruturas mentais possíveis através
crílega e ímpia” (Id., Ibid., 23). da utilização de símbolos lógicos. Este
A receção do pensamento do círculo projeto hercúleo levou-o a questionar-se
de Viena em Portugal deu origem a de- sobre questões filosóficas muito comple-
bates públicos sobre problemas filosó- xas, como a da existência autónoma do
ficos tradicionalmente reservados aos mundo exterior e a da possibilidade de
académicos. Nas suas crónicas intituladas se aceder aos estados mentais de outras
“O pensamento positivo contemporâneo”, pessoas. Para Curvelo, a realidade fun-
publicadas no jornal O Diabo, o médico damental não é o cogito cartesiano, o “eu
e filósofo Abel Salazar equacionou o pro- penso”; do seu ponto de vista, o cogito é já
blema do dado, i.e., do critério para dife- uma construção de uma realidade ante-
renciar o exterior e o interior. Na cróni- rior e mais fundamental, que só poderá
ca de 16 de janeiro de 1938, afirma que, ser descrita de modo impessoal, como um
“para discutir sobre o mundo exterior, é “pensa-se”. Na sua obra mais importante,
preciso saber distinguir entre exterior e os Fundamentos Lógicos da Psicologia, do fi-
interior; o que não pode ser atingido se- nal da Segunda Guerra Mundial, Curvelo
não na medida em que o ‘dado’ é consi- faz ruir o que denomina “trincheira do
derado como ‘conteúdo’ de consciência solipsismo”, afirmando que a aparência
por um ou muitos indivíduos que o têm de inexpugnabilidade do solipsismo de-
recebido” (SALAZAR, 2012, 183). Para riva da “convicção de que o eu penso, de
Abel Salazar, a questão do dado à cons- que o meu pensamento, é o dado imediato
ciência é decisiva para o pensamento e único, e com isso me fica vedado falar
epistemológico do positivismo lógico, no- do teu pensamento, do tu pensas, pois tudo
meadamente para se aquilatar o valor dos quanto exprimir é sempre pensamento
seus ataques à metafísica tradicional. De meu; inclusivamente, o tu só existe como
acordo com o autor, a equação do pro- pensamento meu”. O golpe decisivo ao so-
blema é a seguinte: “se apenas se admite lipsismo é dado logo de seguida, porque
o dado próprio a cada um, é então o so- “o eu não é dado imediato e único, e a
lipsismo; se se admite a sua distribuição mesma operação que segrega o eu segre-
por muitos indivíduos, é o idealismo de ga o tu, desaparece a irredutibilidade
Berkeley. O positivismo tornar-se-ia assim metafísica, a irracionalidade, entre mim
idêntico à antiga metafísica idealista” (Id., e qualquer mundo (domínio) distinto de
Ibid.). Este resumo sucinto dos dilemas mim” (CURVELO, 2013, 276). A essência
metafísicos que enfrentavam os pensado- do solipsismo deriva de uma aparente im-
res do círculo de Viena, nomeadamente possibilidade: a descrição que cada indi-

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víduo faz da sua consciência não se pode cologia nunca poderá existir como ciên-
aplicar à consciência de mais ninguém. cia autónoma. Num resumo do proble-
Esta questão acompanhou Curvelo ma, Curvelo afirma que, “se admitirmos
desde o primeiro livro que publicou, a como dado, para a estruturação da psi-
Introdução à Lógica, de 1943. Para descre- cologia, a descrição da consciência [...] ou
ver a impossibilidade total de existir uma negamos, implicitamente, a possibilidade
tradução verdadeira, Curvelo representa da psicologia, ou entramos na metafísi-
dois indivíduos (A e B) que ouvem um de- ca, o que é, da mesma maneira, negar a
terminado som (a), cada um deles ao seu psicologia como ciência” (Id., Ibid., 280).
modo. A impossibilidade de tradução deri- Um exemplo eloquente do modo como
va da incapacidade de se provar que o som Curvelo tentou acabar com o solipsismo
que A e B ouvem é o mesmo. É inútil pedir é a relação amorosa entre duas pessoas.
a cada um dos indivíduos que descreva o O amor coloca muitas vezes os problemas
som ou que o represente através de um si- terríveis do solipsismo e da tradução: será
nal, porque não há forma de verificar se que o que ela está a sentir é o que eu es-
o que A traduz pelo sinal é o mesmo que tou a sentir? Quando ele me disse “amo­
B traduz pelo sinal (Id., Ibid., 138-139). Os ‑te”, queria dizer o mesmo que eu sinto,
mesmos sinais poderão corresponder a ou queria de facto dizer “empresta-me
sons radicalmente diferentes. Não ape- dinheiro”? Nos termos de uma das mais
nas sons, evidentemente, mas qualquer importantes obras de Curvelo, a Funda-
conteúdo da consciência, como as cores. mentação Epistemológica da Psicologia, de
O indivíduo A poderá dizer que está a ver 1951, “quando dois indivíduos se amam,
a cor vermelha; o indivíduo B poderá ter por exemplo, eu digo que não há um
aprendido a representar a cor de laranja amor (individual, próprio, fechado no
que vê através da palavra “vermelho”. Não indivíduo) de um lado, e outro amor (in-
há forma de se ter a certeza do que qual- dividual, próprio, fechado no indivíduo)
quer outra pessoa está a sentir. Curvelo do outro lado. Digo que os estados amo-
enfrenta, como se vê, o momentoso pro- rosos de ambos são subestruturas corre-
blema filosófico do solipsismo. lativas condicionadas por uma estrutura
Uma parte significativa da sua obra mais geral; a estrutura ‘estado amoroso’.
intelectual fulgurante foi uma tentativa Eu julgo, poeticamente, que cada um de
de resposta ao problema de um univer- nós é como uma nota numa sinfonia”.
so constituído por seres conscientes que Num resumo preciso que se segue ime-
não conseguem saber com certeza o que diatamente a esta descrição da solidão
os outros seres conscientes estão a sen- dos amantes, conclui Curvelo que “o so-
tir. A multidão é feita de seres solitários, lipsismo e o individualismo psicológico
e a comunicação que estabelecem entre são incompatíveis com esta maneira de
si é um espetáculo triste de pessoas que ver” (Id., Ibid., 1200).
se iludem com a crença de que poderão Qual é, pois, o fator decisivo da des-
expressar aos outros o que estão a sentir, construção que Curvelo faz da aparente
desconhecedoras que são do facto inelu- impossibilidade de se vencer a solidão
tável da impossibilidade de tradução. As de milhões de vidas solipsistas, que só
vidas humanas são solipsistas, a menos conseguem falar de si mesmas e criar a
que exista uma consciência universal da ilusão de que comunicam com os outros,
qual cada consciência individual é uma quando isso nunca poderá acontecer?
parte. Este solipsismo implica que a psi- Para Curvelo, ninguém tem um amor, ou

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Antissolipsismo 1785

tem um significado na sua mente; antes à sua volta e a obra de Deus” (CURADO,
do indivíduo, há uma teia de relações. 2011, 27). A questão solipsista que este
O seu projeto filosófico contra o solipsis- ponto de vista equaciona não depende de
mo é intelectualmente ambicioso e, num estados mentais; diferentemente, procu-
paradoxo aparente, de natureza idealista. ra explicar que a atividade humana é um
Viu-se anteriormente, nas críticas de Ver- empreendimento solipsista em conflito
ney a Malebranche, Bayle e Berkeley, que contra a natureza e contra outros even-
o idealismo é uma versão de solipsismo; tuais poderes que existam na ordem do
Curvelo recusaria esta identificação, pois mundo. Neste conflito multissecular, o
apresenta um projeto filosófico idealista solipsismo manifesta-se também nos pan-
contra o solipsismo. Do seu ponto de vis- teões das diversas religiões, sendo a re-
ta, primeiro há uma sinfonia a acontecer, presentação de entidades sobrenaturais
e só depois acontece uma nota determi- modos de amplificação da realidade e
nada. Dizendo de modo menos literário, das necessidades humanas. Para Manuel
os seres humanos são subestruturas de Curado, o solipsismo é o único modo de
estruturas globais. Como é evidente, será os seres humanos realizarem os seus inte-
necessário demonstrar como é que uma resses mais fundamentais. Como se vê, o
nota se pode apropriar do ponto de vis- debate filosófico em torno do solipsismo
ta da sinfonia, ou uma consciência indi- está longe de terminar.
vidual do ponto de vista da consciência
universal. Ainda antes dessa demonstra-
ção, Curvelo pretende apenas demons-
O debate literário
trar que o solipsismo deixou de ser pen- Utilizando uma expressão de Hernâni Ci-
sável, deixou de poder ser equacionado. dade, é possível afirmar que as letras por-
Resumindo as conclusões do seu ataque tuguesas tiveram desde sempre um “in-
ao solipsismo, Curvelo afirma que “dou- teresse pelo mundo interior” (CIDADE,
trinas metafísicas como o solipsismo ou 1939, 53). O lirismo é uma das manifesta-
problemas como o da comunicação entre ções mais elevadas do espírito português.
consciências diversas [...] deixam de ser, O solipsismo é a tese filosófica que defen-
já não digo aceitáveis, mas inteligíveis” de que a expressão lírica é mais vasta do
(Id., Ibid., 1199). que o género literário que é classificado
A questão do solipsismo não desapare- habitualmente desse modo, porque, em
ceu do pensamento filosófico português. última análise, tudo o que os seres hu-
Manuel Curado propôs um estudo exaus- manos fazem literariamente é uma mani-
tivo da produção cultural e científica tal festação da sua subjetividade inalienável.
como ela se manifesta na atividade edi- Como é evidente, o problema filosófico
torial ou em instituições como as univer- não se confunde com a atividade literá-
sidades. Analisando, e.g., os catálogos de ria. Contudo, alguns movimentos esté-
cursos universitários do ponto de vista ticos e de crítica literária conduziram a
dos estudos de “coisas que são feitas pelos debates muito interessantes em torno do
seres humanos” e dos estudos de “coisas solipsismo na literatura (&Antipsicologis-
que estão lá fora à espera de ser estuda- mo). Os dinamizadores de revista Presença
das”, concluiu que “os seres humanos in- defenderam, nos anos 20, a necessidade
teressam-se sobretudo por si próprios; de de o escritor mergulhar na sua vida inte-
modo residual e meramente simbólico, rior mais profunda. No manifesto “Litera-
os seres humanos investigam a natureza tura viva”, de março de 1927, José Régio

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1786 Antissolipsismo

defende uma arte que provenha “da par- tórico que se vivia nem com a necessária
te mais virgem, mais verdadeira e mais transformação da sociedade, e que, pelo
íntima duma personalidade artística” contrário, se dedicavam a analisar os seus
(RÉGIO, 1927, 1). João Gaspar Simões, estados psíquicos e a escrever sobre eles.
dando conta da importância de uma li- O livro As Encruzilhadas de Deus, de José Ré-
teratura que contribua para a descoberta gio, foi a causa próxima da crítica. Cunhal,
da dimensão mais profunda da pessoa, ao definir a “incómoda posição” deste es-
equaciona o problema do valor univer- critor, destaca alguns versos do livro: “Ver-
sal de obras marcadas por uma agenda go a cabeça sobre o peito/Concentro os
estética assinaladamente individualista: olhos sobre o umbigo”, do poema “Mitolo-
“Como se converterá, no entanto, em gia”. Para Cunhal, este tipo de literatura é
universal esta criação estritamente indivi- “uma expressão dolorosa da fuga, do can-
dual? Que espécie de osmose se realizará saço, da renúncia, daqueles que não têm
entre o individual e o universo, para que força e sensibilidade para permanecerem
os seus rasgos subjetivíssimos alcancem corajosamente onde se digladiam as multi-
uma eterna universalidade?” (SIMÕES, dões”. A pouco mais de três meses do iní-
1927, 1). Para Gaspar Simões, a universa- cio da Segunda Guerra Mundial, o jovem
lidade da obra individual fundamenta-se Cunhal dava sinal das tensões da época
precisamente “em que todos os homens e exigia o empenhamento dos criadores
a contemplarão e sofrerão o choque hu- artísticos no processo histórico. Para ele,
maníssimo da sua vitalidade” (Id., Ibid., “é inútil um talento que se limita a ado-
2). Deste ponto de vista, a boa notícia é rar o próprio umbigo” (CUNHAL, 1939,
a de que um trabalho artístico sobre a 286). Estava lançada a polémica do “umbi-
própria consciência do artista será reco- licalismo”. Cunhal respondia assim a uma
nhecido pelos outros seres humanos, que das “cartas intemporais do nosso tempo”,
identificarão nesse trabalho traços da sua em que Régio refletiu sobre a literatura
própria vida interior; a má notícia é a de brasileira contemporânea, marcada cla-
que o artista só descobre o que já lá está ramente pelo neorrealismo. Nesse texto
e o que é comum a outros homens. Tanto publicado na revista Seara Nova, Régio de-
uma quanto outra significam que nada fendia que “todo o chamado mundo exte-
de novo será proposto à humanidade. rior não é motivo de arte senão interiori-
A possibilidade de reconhecimento pelos zando-se no artista” (RÉGIO, 1939, 169).
outros não significa que o solipsismo te- Procurando um símbolo para representar
nha sido vencido; significa apenas que se a essência do trabalho de criação literária,
amplificou. O indivíduo fala apenas de si. Régio avança com a árvore coberta de ni-
Em relação aos tempos em que D. Duar- nhos, simbolizando as forças contrárias
te, príncipe de Avis e Rei de Portugal, das raízes históricas do artista e da aspira-
descrevia a sua melancolia no Leal Conse- ção a voar. Longe de recusar qualquer li-
lheiro, no distante séc. xv, não parece ter gação do artista à sociedade e ao processo
havido um progresso significativo. histórico, Régio reclamava apenas “uma
Em maio de 1939, surgiu uma polémi- imaginação psicológica pronta a animar
ca literária muito interessante sobre um todas as criações” (Id., 1939, 204).
aspeto da questão do solipsismo. Álvaro A resposta de Régio é dada em 10 pon-
Cunhal criticou abertamente os escritores tos no mês seguinte, no artigo “Defino
portugueses que, do seu ponto de vista, posições”. Elogiando as declarações de
não se comprometiam com o tempo his- Cunhal, Régio começa por recusar que

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Antissolipsismo 1787

a criação artística seja limitada por con- Cunhal afirmam afinal estar contra o so-
siderações meramente pragmáticas e por lipsismo da adoração do próprio umbigo.
um exclusivismo que ataque a divisão O primeiro afirma o seu amor pelos deser-
do trabalho e a variedade das vocações. dados da terra, se bem que confesse que
Afirmando sem ambiguidade que não é pouco tem feito por esses deserdados (RÉ-
partidário da adoração do próprio um- GIO, 1939a, 8). O segundo reclama uma
bigo, Régio acusa Cunhal de ter retira- ação solidária e a participação no esforço
do alguns versos do contexto, e de não coletivo para melhorar a sorte dos mes-
ver a natureza dialética do vasto poema, mos. O primeiro defende a importância
que culmina na “superação do homem da observação psicológica, mas procura a
particular, todo enrolado em caracol enfer- sua superação numa intimidade já pouco
mo, pelo Homem, alargando-se na intui- humana, porque aberta a Deus. O segun-
ção e no amor de Deus” (Id., 1939a, 7). do denuncia as limitações da análise psico-
O argumento decisivo de Régio assenta na lógica para o conhecimento do Homem,
divisão do trabalho social e na importân- afirmando a necessidade de se conhecer
cia de se respeitar as diferentes vocações o meio e as condições de vida (CUNHAL,
que se realizam no trabalho intelectual 1939a, 153). Como se vê, as posições de
ou artístico: “não admito que se pretenda ambos complementam-se. Irmanados na
impor nada a um trabalhador intelectual. crítica ao umbigo, não se aperceberam
Amo a liberdade do espírito criador, do da dimensão mais profunda do problema
espírito especulativo, do espírito crítico, em causa: tanto a abertura a Deus, de Ré-
do espírito científico” (Id., Ibid., 8). Em gio, quanto a abertura à praça pública, de
agosto, a poucos dias do início da Segun- Cunhal, são coisas que se passam na mente
da Guerra Mundial, Cunhal volta ao as- das pessoas; pode acontecer que essas re-
sunto no artigo “Ainda na encruzilhada”. presentações não tenham correlato. Deste
Recusando discutir a sinceridade dos en- ponto de vista, tais representações são um
volvidos na polémica, reclama “discutir a cinema interior inconsequente. Afinal, os
justeza das posições sinceras” (CUNHAL, conteúdos desse cinema não dependem
1939a, 151). O debate centra-se na ques- de cada ser humano, porque, a correr na
tão quase etérea de se apurar se a arte mente das pessoas, sempre existiu um fil-
deve estar ou não isolada da vida. Cunhal me que fala dos outros, do que se passa
rejeita uma arte isolada e escritores que na praça pública e da busca da transcen-
não possam acompanhar a multidão. dência. O  filme é monótono e tem uma
A atitude mística, muito apreciada por estrutura relativamente estável desde os
Régio, é entendida por Cunhal como um registos humanos mais antigos. Seria pos-
modo de realçar a vida solitária, a vida sível encontrar as posições de Régio e de
longe do terreiro e da praça pública. Cunhal nos personagens dos poemas ho-
O significado perene desta polémica méricos; os aedos Haliterses e Teoclímeno
merece ser ponderado. São muitos os as- poderiam interpretar-se como expressan-
petos datados da controvérsia: o momento do a tese do primeiro, enquanto Aquiles e
histórico especialmente dramático que se Ulisses reclamariam a necessidade de estar
vivia na Europa, a situação política portu- “onde se digladiam as multidões”. Nada
guesa, os atritos normais entre programas de novo, pois, sob o sol. Faltou a Régio
estéticos. As posições em confronto dis- e a Cunhal a dúvida filosófica acerca dos
tanciam-se menos uma da outra do que correlatos da representação. Afinal, como
na altura pareceria. Tanto Régio quanto se pode ter a certeza de que os assuntos

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1788 Antissolipsismo

que aparecem no fluxo de consciência ter um horizonte de figuras (Deus, a his-


apontam para qualquer coisa com existên- tória, o Homem) que bem poderão ser
cia autónoma fora da mente consciente? ilusões da sua mente profunda. Afinal,
Além disto, escapou a ambos o enigma an- se não se deu a si própria a existência, se
tropológico. Tanto Régio quanto Cunhal sente a urgência de agir como estranha, e
tentam transmitir a mensagem de que se o que povoa o seu horizonte pode ser
toda a arte tem o objetivo nobre de repre- meramente decorativo, continuam for-
sentar a dimensão mais profunda do ser tes os elementos em favor do solipsismo.
humano. Alfredo Pereira Gomes, irmão José Régio compreendeu, talvez como
do escritor neorrealista Soeiro Pereira Go- ninguém, no seu “Cântico negro”, o que
mes, nas suas “Considerações à margem está em causa: “Não, não vou por aí! Só
duma discussão”, resume este ponto afir- vou por onde/Me levam meus próprios
mando que “arte tem de ser a exata estatu- passos…” (RÉGIO, 2005, 47).
ra do Homem” (GOMES, 1939, 213).
O problema com os três referidos pon-
tos de vista é o de se considerar o ser Bibliog.: BRUNO, Sampaio, A Ideia de Deus,
humano como espectador da sua pró- pref. Pinharanda Gomes, Porto, Lello Editores,
pria realidade, como turista estrangei- 1998; CIDADE, Hernâni, Tendências do Lirismo
ro numa terra de riqueza inesgotável. Contemporâneo: Do “Oaristos” às “Encruzilhadas
Haveria uma consciência que assistiria de Deus”, 2.ª ed., Lisboa, Portugália, 1939;
CUNHAL, Álvaro, “Numa encruzilhada dos
ao espetáculo da parte mais importante
homens (a propósito das Cartas Intemporais de
de si mesma. A busca da autenticidade José Régio publicadas na Seara Nova n.os 608
faz com que não seja apenas a realidade e 609)”, Seara Nova, n.º 615, 27 maio 1939,
exterior que se distancia da consciên- pp.  285­‑287; Id., “Ainda na encruzilhada”,
cia, mas também uma parte significativa Seara Nova, n.º 626, 12 ago. 1939a, pp.  151­
da realidade humana. A questão é esta: ‑154; CURADO, Manuel, “Introdução”, in DU-
ninguém sabe qual é a exata estatura do QUE, Eduardo et al. (coords.), Deus na Univer­
sidade: o Que Pensam os Universitários Portugueses
Homem. Cunhal, ao defender que a ên-
sobre Deus?, Porto, Fronteira do Caos, 2011,
fase da obra artística deve ser colocada na pp. 9­‑33; CURVELO, Edmundo, Obras Comple­
ação histórica, acaba por afirmar que há tas, org. Manuel Curado e José António Alves,
uma essência que só se descobrirá desse Lisboa, FCG, 2013; FIGANIÈRE, Visconde de,
modo. Régio, por seu lado, procurando a Estudos Esotéricos: Submundo, Mundo, Supramun­
dimensão mais perene do humano, acaba do, Porto, Livraria Internacional de Ernesto
também por afirmar que há uma essência Chardron/Casa Editora Lugan & Genelioux,
1889; GOMES, Alfredo Pereira, “Considera-
a que só se acederá de um modo especial.
ções à margem duma discussão”, Seara Nova,
O elemento comum é a solidão radical de n.º 629, 2 set. 1939, pp. 212­‑213; LACERDA,
uma consciência que tem de procurar e José de, Exame das Viagens do Doutor Livingstone,
de realizar a sua própria natureza; deste Lisboa, Imprensa Nacional, 1867; LARANJEI-
ponto de vista, o debate sobre o umbigo RA, Manuel, “Psicologia do egotismo”, in LA-
é ele próprio um argumento forte em RANJEIRA, Manuel, Obras de Manuel Laranjeira,
defesa do solipsismo. Seja a procura de org. José Carlos Seabra Pereira, vol. ii, Porto,
Asa, 1993, pp. 272-275; MACEDO, José
Deus, seja a realização na história, seja
Agostinho de, Cartas Filosóficas a Ático, Lisboa,
a procura da exata estatura do Homem, na Impressão Régia, 1815; Id., O Homem, ou
uma consciência solitária sente que tem os Limites da Razão: Tentativa Filosófica, Lisboa,
de agir; o drama da situação deriva de na Impressão Régia, 1815a; PAIVA, Vicente
sentir algo que não se deu a si própria e Ferrer Neto, Curso de Direito Natural, Coimbra,

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Antissovietismo 1789

Imprensa da Universidade, 1856; QUENTAL,


Antero de, Cartas, org. Ana Maria Almei-
Antissovietismo
da Martins, 2 vols., Lisboa, Comunicação,
1989; Id., Filosofia, org. Joel Serrão, Lisboa,
Comunicação, 1989a; RÉGIO, José, “Lite-
ratura Viva”, Presença, n.º 1, 10 mar. 1927,
pp. 1-2; Id., “Cartas intemporais do nos-
so tempo xi: a um moço camarada, sobre
qualquer influência do romance brasileiro na
literatura portuguesa”, Seara Nova, n.º 608,
4 abr. 1939, pp. 151-153; n.º 609, 15 abr.
É difícil dissociar o antissovietismo de
outros antis – comunismo, leninismo,
bolchevismo. Podemos entendê-lo em
1939, pp. 167-169; n.º 611, 29 abr. 1939,
dois sentidos, um mais restrito, relacio-
pp. 203-205; Id., “Defino posições”, Seara
Nova, n.º 619, 24 jun. 1939a, pp. 5-8; Id., nado com a crítica aos sovietes, e outro
“Página indiscreta (divagação mais ou me- mais lato, ligado ao sistema soviético ins-
nos pessoal sobre uma ‘blague’ do Sr. Álvaro taurado depois da criação da União das
Cunhal, uma citação do Dom Casmurro, uma Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
opinião de José Bacelar, o anexim preso por ter No primeiro caso, os sovietes, i.e., os con-
cão, preso por não ter e outras miudezas que o selhos de operários e soldados, têm a sua
leitor verá”, Presença, n.º 1, 2.ª sér., ano xii,
pré-história na Comuna de Paris de 1871,
nov. 1939b, pp. 59-61; Id., As Encruzilhadas de
Deus, 4.ª ed., Lisboa, Portugália, 1960; Id., uma primeira experiência mais significa-
Poemas de Deus e do Diabo, 2.ª ed., Vila Nova tiva durante a Revolução Russa de 1905,
de Famalicão, Quasi, 2005; SÁ, José Antó- com os comités de greve nas fábricas, e
nio de, Defesa dos Direitos Naturais e Reais da manifestam-se depois nas Revoluções
Monarquia Portuguesa, Lisboa, Impressão Ré- Alemã de 1918 e Húngara de 1919, ocor-
gia, 1810; 2.ª ed., 1816; SALAZAR, Abel, rendo também, pontualmente, em Itália.
O Pensamento Positivo Contemporâneo, ed. An-
Sobre os conselhos operários escreveram
tónio Zilhão, Vila Nova de Famalicão, Hú-
mus, 2012; SIMÕES, João Gaspar, “Indivi- Rosa Luxemburgo e Anton Pannekoek,
dualismo e universalismo”, Presença, n.º 4, entre outros. Mas foi durante a Revolu-
8 maio 1927, pp. 1-2; n.º 5, 4 jun. 1927, ção Russa de 1917 que esses conselhos
pp. 4 e 8; VERNEY, Luís António, Metafísi­ (sovietes) adquiriram uma dimensão que
ca, introd. e trad. Amândio Coxito, fixação nunca alcançaram nas experiências ante-
do texto latino Sebastião Tavares de Pinho riores e imediatamente posteriores, todas
e Andria Patrícia Seiça, Coimbra, Imprensa
elas derrotadas.
da Universidade de Coimbra, 2008; Id., Ló­
gica, introd. e trad. Amândio Coxito, fixação Naquele ano, surge na Rússia um poder
do texto latino Sebastião Tavares de Pinho e alternativo em relação às estruturas esta-
Filipa Medeiros, Coimbra, Imprensa da Uni- tais existentes mesmo depois da queda da
versidade de Coimbra, 2010. monarquia. Lenine potenciou e ampliou
Manuel Curado as estruturas revolucionárias que tinham
surgido por inspiração dos bolcheviques,
transformando-as num sistema que tinha
como base os sovietes de fábricas, nas ci-
dades, ou de aldeias. Criaram-se depois
níveis superiores, os sovietes de distrito e
de província. No topo estava o Congres-
so de Sovietes de Operários, Soldados
e Camponeses, órgão supremo e sobe-
rano, que elegia um Comité Executivo,

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1790 Antissovietismo

que, por seu turno, designava o governo Associação dos Professores de Portugal,
do país, o Conselho dos Comissários do foi convidado pela Confederação Pan­
Povo. Era esta a fórmula sintetizada por ‑Russa dos Trabalhadores do Ensino para
Lenine com a frase: “Todo o poder aos contactar com as instituições escolares rus-
sovietes”. No entanto, depois do perío- sas. Dessa digressão fez um relato no livro
do da Guerra Civil, com a consolidação A  Rússia, hoje e amanhã. Uma Excursão ao
do poder soviético, era necessário esta- País dos Sovietes (1929). Carlos Santos, que
bilizar a situação. Em 1922, foi criada a esteve na Rússia em agosto de 1926, escre-
URSS. A  Constituição de 1924 instituiu veu uma série de crónicas para o Jornal de
o Congresso dos Sovietes da URSS como Notícias. Este professor do ensino secundá-
principal órgão, donde a identificação rio e crítico de arte publicou o livro Como
do termo “soviético” com o regime, con- Eu Vi a Rússia (1927), obra que teve um
siderado como sinónimo de “russo” e de grande sucesso, com várias edições, e que
“comunista”. Falar em antissovietismo constitui um olhar relativamente objetivo
era, portanto, falar de anticomunismo sobre a realidade soviética. O jornalista
em geral, e de anticomunismo russo em Herlânder Ribeiro viajou pela Rússia e pu-
particular. blicou diversas crónicas no Diário de Lisboa,
Desde muito cedo, surgiram em Portu- reunidas em 1927 no volume Crónicas da
gal publicações onde se pretendia atacar Rússia Soviética. Procurando ser objetivo,
a experiência soviética, pondo em causa, não esconde as críticas. Referindo-se ao
e.g., a capacidade de os trabalhadores e comissário Tchitcherine, sublinha que “na
soldados administrarem a coisa pública. Moscovo da igualdade, vivia em luxuosa
O Diário de Notícias escrevia, a 1 de dezem- casa e tinha seis secretários” (RIBEIRO,
bro de 1917, que “um simples soldado 1927). Ribeiro de Carvalho publicou, em
foi nomeado comandante das tropas da 1932, o livro O Que Era a Rússia antes dos
região de Moscovo, um alferes e um as- Bolchevistas, no qual, sem julgar o regime
pirante vice-comandantes, um aspirante bolchevista, caracteriza a opressão czaris-
intendente-geral, dois alferes inspetores ta, concluindo que o povo espoliado “foi
de artilharia e engenharia”, e que os dele- mais generoso do que os seus antigos car-
gados russos às conversações de paz com rascos” (CARVALHO, 1932). A mesma
a Alemanha compreendiam “um soldado editora deu à estampa, no ano seguinte, a
e um marinheiro que apenas sabem ler”. obra O Que É a Rússia com os Bolchevistas,
Noutro artigo (15 jan. 1918), escrevia-se de Schlesinger, procurando fornecer in-
que “esses mujiques e soldados bêbados formação precisa, incluindo legislação e
queimam bibliotecas, espatifam tudo. As- o texto da Constituição: “algumas pessoas
sassinam os professores primários, as par- veem nos bolchevistas os salvadores da Hu-
teiras, os estudantes, porque são intelec- manidade e outros veem neles bandos de
tuais, sabendo ler e escrever e podendo criminosos e de loucos” (SCHLESINGER,
por isso enganar o pobre povo”. 1933, 7). Muito favorável foi também o li-
Também surgiram livros com uma visão vro de Henri Barbusse, Rússia, publicado
positiva sobre a realidade russa resultantes em 1931 em Coimbra pelo Instituto de
de viagens ali realizadas por Portugueses, Estudos Livres, uma organização de estu-
como A Rússia dos Sovietes (1924), de Car- dantes republicanos contrários à ditadura.
los Rates. César Porto, professor e diretor Os primeiros anos da experiência soviética
da Escola Oficina n.º 1, um dos entusiastas foram também tema para o livro do ale-
da escola nova em Portugal e dirigente da mão Artur Feiler, que emigrou, em 1933,

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Antissovietismo 1791

para os Estados Unidos da América. A Ex-


periência do Bolchevismo (1932), cujo título
original era Das Experiment des Bolschewis-
mus (1929), foi traduzido por Osório de
Oliveira, e pretendia ser “uma exposição
absolutamente imparcial e objetiva do
que se passa na URSS” (FEILER, 1932, 5).
Com um intuito informativo, assinalamos
o volume organizado pelo jornalista João
Paulo Freire (Mário), a Rússia Bolchevique
(1936), que, segundo o autor, “nem é con-
tra a Rússia bolchevique, nem a favor da
Rússia bolchevique” (FREIRE, 1936, 5).
Predominavam, no entanto, as obras de
sinal contrário, entre as quais se destaca o
livro de Guy Moinès, que escreveu uma re-
portagem para o semanário francês Je Suis
partout, publicada depois em livro com o
título De Chepetovka à Vladivostock: Choses
Vues. A edição portuguesa é de 1936, com
o título sugestivo de O Inferno Vermelho.
Coisas Vistas. A capa apresenta uma cavei-
ra com a foice e o martelo, e o seu conteú- Capa de Comment On Vit en U.R.S.S., de Émile
do não podia ser mais hostil à realidade Schreiber (1888-1957).
soviética. O mesmo sucede com a obra
de Émile Schreiber Como Se Vive na Rússia temos que sucumbir à luta com esta nova
dos Sovietes (1933) – cujo título original é barbárie que, vinda do Oriente, tenta
Comment On Vit en U.R.S.S. (1931) –, que invadir tudo, então sucumbamos, mas
mostra alguma compreensão pelas medi- combatendo…” (BAPTISTA, 1933, 302).
das tomadas naquele país: “é possível que A segunda, A Mentira Comunista (1937),
um regime de força seja ainda hoje indis- apela à luta contra a “peste comunista”
pensável na Rússia, para a reorganização (Id., 1937, s.p.). Durante a Guerra Civil
daquele enorme país de população tão de Espanha, o antissovietismo intensifi-
diversa e tão pouco adiantada” (SCHREI- cou-se, animado pelo regime salazarista e
BER, 1933, 298). No entanto, considera pelos sectores nacionalistas. Em 1937, a
que tal seria incompreensível em França, Editorial Império publicava o livro A Es-
por acarretar “a perda total de liberdade” panha Vermelha contra Portugal, no qual
(Id., Ibid.). Aquele jornalista da revista denunciava, no subtítulo, os Portugueses­
Vu viajou pela Rússia acompanhado pela ‑Traidores ao lado dos Sinistros Obreiros das
mulher, Denise Schreiber, e pelo médico Repúblicas Soviéticas da Ibéria. A mesma
Reymond Lebovici. editora deu à estampa, em 1936, duas
Henrique Baptista, autor de três volu- publicações anticomunistas de A. Viei-
mes sobre a história do socialismo, dedi- ra, O Meu Depoimento sobre o Comunismo e
cou à Rússia duas obras, ambas profun- Moscovo por Um Antigo Funcionário do Ko-
damente antissoviéticas. Na primeira, mintern. A coleção Gládio, de orientação
Rússia Bolchevista (1933), escrevia: “Se nacionalista, publicava o livro de Bento

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1792 Antissufragismo

Coelho da Rocha, URSS, do Marxismo de


Lenine ao Totalitarismo de Estaline. Muito
Antissufragismo
significativo foi o livro A Nova Rússia, de
Henri Massis, publicado em 1945, com
duas edições nesse mesmo ano, em que
terminava a Segunda Guerra Mundial e
a URSS assumia um protagonismo nunca
antes tido; a tradução era de Domingos
Mascarenhas. Profundamente anticomu-
nista e católico, Henri Massis, antigo mi-
O sufragismo foi um movimento so-
cial iniciado em finais do séc. xix
com o objetivo de reivindicar o direito
litante da Action Française, colaborador universal de voto, num contexto em que
próximo de Charles Maurras e apoiante apenas os homens tinham o direito de
do Governo do Mar. Pétain visitou Portu- manifestar as suas preferências em elei-
gal em 1938, conhecendo Salazar, sobre ções. Reconhecer o direito ao voto, lato
quem escreveu o livro Salazar Face a Face. sensu, era uma causa assumida como vá-
Trois Dialogues Politiques (1961). Ao longo lida e partilhada pela grande maioria das
do tempo, os conceitos de antissovietis- e dos intelectuais; o sufragismo torna-se
mo e de anticomunismo acabaram por se uma questão fraturante quando é equa-
fundir num mesmo plano semântico. cionada a absoluta universalidade do
mesmo direito. Pensar numa definição
para antissufragismo implica necessaria-
Bibliog.: Baptista, Henrique, Rússia Bolche­ mente chamar à colação os movimen-
vista, Porto, Figueirinhas, 1933; Id., A Mentira tos sociais que o enformam. Resulta, no
Comunista, Porto, ed. do Autor, 1937; Bar-
entanto, óbvio que, em Portugal, esses
busse, Henri, Rússia, Coimbra, Instituto de
Estudos Livres, 1931; Carvalho, Ribeiro
mesmos movimentos estiveram marcados
de, O Que Era a Rússia antes dos Bolchevistas, Lis- por fações, também elas refletindo con-
boa, Editorial República, 1932; Feiler, Artur, vicções emanadas de grupos internacio-
A Experiência do Bolchevismo, Lisboa, Empresa nais. Assim, o movimento antissufragista
Nacional de Publicidade, 1932; Freire, João no nosso país reconhecia por válidos os
Paulo (Mário), Rússia Bolchevique, Lisboa, Gui- argumentos difundidos além-fronteiras,
marães, 1936; Massis, Henri, A Nova Rússia, sobretudo além-Mancha, como observou
Porto, Livraria Tavares Martins, 1945; Id., Sa­
Isabel Lousada em “Vozes e ecos de sufra-
lazar Face a Face. Trois Dialogues Politiques, Paris,
La Palatine, 1961; Porto, César, A Rússia, gistas britânicas em Portugal”.
hoje e amanhã. Uma Excursão ao País dos Sovietes, O antissufragismo surgiu em Portugal
Lisboa, Livraria Peninsular, 1929; Ribeiro, no âmbito do antifeminismo emergente
Herlânder, Crónicas da Rússia Soviética, Lisboa, na Primeira República, chamando a aten-
Gráfica Limitada, 1927; Santos, Carlos, ção para a manipulação a que estavam
Como Eu Vi a Rússia, Porto, Livraria Civilização, sujeitos grupos sociais como as mulheres
1927; Schlesinger, Alfred Ludvic, O Que
e os analfabetos, especialmente à mercê
É a Rússia com os Bolchevistas, Lisboa, Editorial
República, 1933; Schreiber, Émile, Como Se dos interesses político-religiosos domi-
Vive na Rússia dos Sovietes, Porto, Figueirinhas, nantes. Para compreender este antife-
1933; Vieira, A., O Meu Depoimento sobre o Co­ minismo, torna-se necessário objetivar as
munismo, Lisboa, Editorial Império, 1936; Id., vozes mais expressivas do feminismo nas-
Moscovo por Um Antigo Funcionário do Komintern, cente no dealbar da Primeira República e
Lisboa, Editorial Império, 1936. as vozes de defesa dos direitos das mulhe-
António Ventura res subjacentes aos movimentos sociais

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Antissufragismo 1793

a feminismos de feição anticlerical e laica,


subjacentes à própria ideologia republi-
cana. O antifeminismo de cariz religioso
opõe-se ao movimento de emancipação
feminina, que considera antinatural, e
valoriza o papel tradicional das mulheres,
muito particularmente na família, contra
o feminismo que pretende a integração
plena das mulheres na sociedade. A este
propósito, lembramos a atitude pioneira
de Ana de Castro Osório (1872-1935),
presidente da Liga Republicana das Mu-
lheres Portuguesas (LRMP), na análise
“Propaganda feminista por bilhete-postal”, que faz da condição das mulheres em
A Capital, 24 dez. 1910, p. 1. 1905, de onde conclui ser premente um
maior investimento na educação, alicerce
que a protagonizam. É neste complexo para a afirmação feminina da mulher na
contexto que se revelam também as vozes sociedade.
conservadoras antifeministas, nas quais Tanto feministas como antifeministas
convergem ainda antissufragistas de ori- eram prudentes na defesa da atribuição
gens sociais muito diversas e diferentes do voto a cerca de metade da população,
idiossincrasias políticas. Na expressão de em virtude de reconhecerem as grandes li-
Maria Regina Silva, “a pouco e pouco de- mitações deste grupo social para o exercí-
senha-se um movimento e uma corrente cio desse direito. São as próprias defenso-
de tom nitidamente feminista que, embo- ras do sufragismo feminino, entre as quais
ra elitista no tipo de mulheres que reú- as militantes da LRMP e da Associação de
ne, se reveste de um significado notável Propaganda Feminista (APF), que aca-
pelos esforços que congrega, pela ideolo- bam por defender grandes restrições ao
gia que difunde, pela unidade visível de voto nas suas reivindicações. Assim, uma
objetivos e aspirações que traduz, e pelas mulher como Carolina Beatriz Ângelo
expressões e ações concretas que assume (1878­‑1911), a primeira mulher a votar em
e realiza enquanto movimento organiza- Portugal (fê-lo em 1911), apresentava pro-
do” (SILVA, 1983, 875). Este feminismo postas muito redutoras a este propósito,
é influenciado pelo que se passa no resto como nota João Esteves. Também Maria
da Europa e na América, que inspira em Veleda (1871-1955) reconhece a necessi-
Portugal o movimento de emancipação dade de distinguir a LRMP da APF, notan-
da mulher no seio do qual emergem rea- do que fora esta a pedir o sufrágio femi-
ções antifeministas. Refira-se que, em In- nino, o que não significava que a LRMP
glaterra, a Women’s National Anti-Suffra- não trabalhasse por ele. Em carta dirigida
ge League esteve ativa durante 10 anos, ao diretor de A Capital a 28 de julho de
de 1908 a 1918, representando porventu- 1911, Maria Veleda defende a Liga dos ata-
ra a mais importante organização neste ques que lhe haviam sido recentemente
domínio. infligidos na Câmara dos Deputados, afir-
A resistência ao sufragismo é um sinal mando que o direito ao voto deveria tra-
de antifeminismo latente. São observáveis duzir, antes de mais, o empenho na educa-
alguns matizes, nomeadamente a reação ção progressiva da mulher; este episódio

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1794 Antissufragismo

corporiza o antifeminismo republicano O inquérito que O Século (4-19 abr.


de cariz marcadamente político, como 1911) realizou, questionando “Deve con-
assinalado por Natividade Monteiro. Na ceder-se o direito de voto à mulher por-
verdade, deu-se uma clivagem no seio da tuguesa?”, revelou traços eminentemente
Liga, que expressava o confronto entre a antissufragistas, apoiados por parte do
posição advogada pelas sufragistas, as livre­ universo a quem se dirigia, surpreenden-
‑pensadoras, e as sócias da LRMP, que, não temente até por mulheres, espelhando
sendo adversas ao sufrágio, pugnavam em o conservadorismo da sociedade portu-
primeiro lugar pela emancipação integral guesa coeva. A recusa em conceder-lhes
da mulher, considerando perigosa a sua o voto era justificada pela desorganização
eventual interferência na vida política do social que adviria uma vez deslocada a fi-
país enquanto não estivesse inteiramente gura feminina do núcleo familiar para o
liberta da tutela religiosa. social e político, aludindo-se, no limite, à
Imediatamente a seguir à proclamação sua perda de feminilidade.
da república (1910), a questão do sufrá- Apesar dos seus rasgos antissufragistas,
gio assume preponderância. A militância Carolina Beatriz Ângelo não desistiu da
de Carolina Beatriz Ângelo pelo sufrágio causa em prol do sufrágio feminino, ale-
universal é feita gradualmente e, por isso, gando não ser legítimo recusar o voto às
os próprios ecos antissufragistas mostram mulheres nos casos em que estas tivessem
uma das mais interessantes polémicas fe- condições para o exercer. Aliás, a conten-
ministas e sociais. Subliminarmente, a as- da entre feministas e sufragistas não se
censão ao poder de um grupo social não resolveu pacificamente, sendo possível
organizado e numeroso era visto como acompanhar o seu tom discordante nas
uma espécie de “assalto à tribuna”. publicações, quer da APF, quer da LRMP.
O que terá levado, em última análise, à
“O voto livre... das mulheres...”, saída de Adelaide Cabete (1867-1935),
Os Ridículos, 1911. acusada de ser mais republicana do que
feminista.
O aceso debate pelo sufragismo em
Portugal atingiu o seu ponto culminan-
te nas primeiras tentativas de elaboração
dos cadernos eleitorais (1911) com base
na recusa do voto a mulheres e indigen-
tes, colocando-os praticamente em pé de
igualdade. A sentença judicial que per-
mitiu a Carolina Beatriz Ângelo votar era
sustentada no facto de ela ser uma exce-
ção, na medida em que cumpria os requi-
sitos expressos na lei: era maior de idade,
tinha uma profissão e, pelo facto de ter
enviuvado meses antes, tornara-se chefe
de família (apesar de ser mulher).
A Assembleia Nacional Constituinte vi-
ria a consagrar o direito de voto para as
mulheres diplomadas com curso supe-
rior e as chefes de família que também

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Antissufragismo 1795

O peso da história dificultava a rutu-


ra com os preconceitos e estereótipos
que confinavam as mulheres aos papéis
tradicionais. Apesar do anticlericalismo
generalizado, a tradição ligada ao con-
servadorismo, também religioso, ganha-
va uma força impossível de ser alterada
pela força de decretos. Teoria e práxis
excluíam-se mutuamente e o próprio fe-
minismo republicano é incoerente entre
princípios exarados e prática vigente ou,
por outras palavras, é muito ambicioso
nos ideais e muito limitado nas práticas,
favorecendo o antifeminismo e antissu-
fragismo nascentes.
A propaganda republicana sobre a
emancipação da mulher acentua a ideia
da libertação dos preconceitos religiosos
e das superstições; atentemos, nomeada-
“O Parlamento do futuro”, in “O feminismo
mente, na promulgação da Lei da Sepa-
d’eles”, A Madrugada, 31 ago. 1913. ração do Estado das Igrejas e na criação
do Grupo das Treze, ambos de 1911. Em
soubessem ler e escrever, tendo o tema suma, registem-se as disputas a favor e
do sufragismo sido discutido pela primei- contra o sufrágio, em Portugal, que se
ra vez em 14 de julho de 1911, e encarada desenrolaram durante muito mais anos.
a sua perigosidade, visto que se corria o Contrariamente ao esperado, a lei pro-
risco de dar a possibilidade de escolha mulgada em 1913 é mais limitativa do
a pessoas “reacionárias”. Mesmo os que que aquela que permitira o voto a Caro-
defendiam o voto da mulher, como o de- lina Beatriz Ângelo, nela se explicitando
putado Djame de Azevedo, acabam por ser única e exclusivamente permitido aos
ser pouco convincentes ao reconhecer cidadãos do sexo masculino exercer o di-
que, para exercer o direito de voto, é ne- reito de voto.
cessário saber votar, ou seja, possuir um Registe-se a alteração legal que possi-
grau de instrução que permita decidir, e bilitou às mulheres votar em pleno Es-
que as feministas mais reacionárias eram tado Novo (1933), apesar do carácter
na sua grande maioria mulheres pouco restritivo – aplicava-se somente àquelas
instruídas. O que parecia estar em causa que possuíssem curso superior, tivessem
não era a legitimidade democrática do independência económica e/ou família a
voto, ou seja, o valor do voto per se, mas seu cargo. É neste quadro que se assiste
as consequências sociais e políticas que à entrada para a Assembleia Constituin-
provinham desse sufragismo. Do lado das te de Maria Guardiola, Cândida Parreira
mulheres, tanto feministas como antife- e Domitila de Carvalho, fazendo jus aos
ministas tinham dúvidas sobre as capaci- receios latentes nos ideólogos da Primei-
dades políticas das suas pares, daí hesita- ra República, pois tratava-se de mulhe-
rem em propor a igualdade de direitos res com posições políticas consideradas
políticos entre homens e mulheres. conservadoras.

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1796 Antissurrealismo

Com a instauração do direito univer-


sal de voto, na sequência da Revolução
Antissurrealismo
de 25 de abril de 1974 e da instauração
da Terceira República, o antissufragismo
deixou de ter expressão em Portugal.

Bibliog.: Baltazar, Isabel, “Vozes anti-


feministas na Primeira República. Ecos de
oposição ao feminismo”, in Castro, Zília
et al.  (coords.), Mulheres na 1.ª República: Per­
C onfigurando-se o surrealismo como
um movimento estético que advoga
o reencantamento do real pelo recurso à
cursos, Conquistas e Derrotas, Lisboa, Colibri,
2011, pp. 47-78; Esteves, João, As Origens imaginação criadora e ao culto vivificado
do Sufragismo Português. A Primeira Organização da liberdade, em larga medida concretiza-
Sufragista Portuguesa: a Associação de Propaganda dos pela força alquímica da linguagem, o
Feminista (1911-18), Lisboa, Bizâncio, 1998; antissurrealismo representa, no fundo, o
Lousada, Isabel, “Carolina: por entre os iti- conjunto de práticas e movimentos esté-
nerários da memória e da ciência”, Gaudium ticos contra os quais o surrealismo lutou
Scendi, n.º 2, jul. 2012, pp. 108-117; Id., “Vo-
ativamente, no seu esforço por concretizar
zes e ecos de sufragistas britânicas em Portu-
gal”, Gaudium Scendi, n.º 8, jul. 2015, pp. 122­ uma dinâmica de profunda renovação do
‑143; Monteiro, Natividade, Maria Veleda: sistema semiótico literário. Historicamen-
1871­‑1955, Lisboa, Comissão para a Igualda- te, o surrealismo foi um complexo e po-
de dos Direitos das Mulheres, 2004; Silva, lifacetado movimento de vanguarda, ativo
Maria Regina Tavares da, “Feminismo em Por- em França, no período compreendido en-
tugal na voz de mulheres escritoras do início tre a Primeira e a Segunda Guerras Mun-
do século xx”, Análise Social, vol. xix, n.os 77-79, diais, que teve como vozes dominantes An-
1983, pp. 875­‑907; Souza, Maria Reynolds,
dré Breton na literatura, Antonin Artaud
A Concessão do Voto às Portuguesas: Breve Aponta­
mento, Lisboa, Comissão para a Igualdade dos no teatro, Luis Buñuel no cinema e Max
Direitos das Mulheres, 2006; Vicente, Ana, Ernst, René Magritte e Salvador Dalí no
“Antifeminismo: a resistência ao evidente”, in campo das artes plásticas.
MARUJO, António, e FRANCO, José Eduar- Em nome da imaginação, André Bre-
do (orgs.), Dança dos Demónios. Intolerância em ton critica fortemente a atitude realista,
Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2009, denunciando a sua falta de espírito crí-
pp. 433­‑483.
tico e científico. Reduzindo tudo aquilo
Isabel Lousada que pudesse configurar o desconhecido,
Isabel Baltazar
o insólito e o misterioso a uma simples
e elementar explicação, acreditando e
fazendo crer que a realidade pode ser
dada a ver linearmente e que esta per-
ceção se traduz diretamente pela pró-
pria linguagem (cf. o célebre enunciado
“La marquise sortit à cinq heures”), a
atitude realista é, no dizer de Breton, o
exemplo paradigmático daquilo que, em
termos estéticos, deve ser ostensivamen-
te rejeitado. A abordagem ingénua das
relações linguagem-realidade, associada
ao elevado grau de sedimentação e de

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Antissurrealismo 1797

da pelo sonho e pela imaginação, André


Breton recusa igualmente uma retórica as-
sociada à sintaxe, à rima ou à codificação
estrita do sentir e pulsar poéticos. A ima-
gem surrealista, desautomatizando inten-
cionalmente as relações habituais entre os
objetos, torna-se fonte de prazer e, simul-
taneamente, fonte de informação, apelan-
do indiscutivelmente, pelo seu carácter de
estranheza, de singularidade, mas também
de possibilidade de elevada polissemia, a
uma maior disponibilidade interpretativa
por parte da instância recetora.
Sob a designação de antissurrealismo,
podemos igualmente localizar a figura
do criador individual, inspirado pela for-
ça das musas, que dedica o seu tempo
La Reproduction Interdite (1937),
de René Magritte. a burilar os textos. Contrariando ativa-
mente aquilo que possa configurar uma
cristalização a que tinham chegado as sedimentação das experiências semióti-
experiências semióticas tituladas por esta cas, o surrealismo responde com o jogo,
técnica, equiparáveis, em larga medida, com a fruição, com a inovação e o labor
àquelas que consubstanciavam o mero criativos do sistema herdado, porquanto
relato jornalístico, fazia com que a lei do só concretizando uma autêntica atitude
menor esforço acabasse por se impor, ori- poiética, i.e., uma incessante e contínua
ginando uma profusão de romances cuja reinvenção e revitalização da linguagem,
capacidade de geração de significativos é que o Homem poderá adquirir a cons-
efeitos perlocutivos era claramente posta ciência de que a perfeita liberdade não
em causa. Caracterizando os aspetos mais pressupõe um conhecimento da estrutura
depreciáveis desta escrita – a saber, as suas necessária do real e a sua adaptação a ela.
marcas de verosimilhança, a psicologia Atente-se, neste sentido, na afirmação de
das personagens e a organização da ação Breton no prefácio à Exposição Interna-
(no fundo, as três convenções maiores cional do Surrealismo na Checoslováquia:
do romance) –, André Breton, nos textos “EM ARTE, NENHUMA INSPIRAÇÃO,
que seriam compilados em Manifestos do VENHA DE ONDE VIER!” (Cesariny,
Surrealismo, conclui, irreverentemente, 1977, 371). Inspirados pela afirmação de
que a única faculdade que, enquanto Lautréamont de que “a poesia deve ser
margem de exercício de uma liberdade feita por todos, não por um” (Ducasse,
semiótica, resta ao leitor é a de recusar s.d., 291), os surrealistas concretizam di-
o texto, na sua globalidade. Assim, o sur- versas técnicas lúdicas de criação coletiva,
realismo busca criar uma realidade nova, como o cadavre exquis, os provérbios sur-
através de uma transfiguração dos objetos realistas, os diálogos automáticos, as co-
pela perda do seu sentido usual, pela re- lagens, o l’un dans l‘autre, os inventários
cusa do prosaico e do trivial. e as enumerações caóticas. Contestando
Assumindo a reinvenção da poesia e en- a conceção da assinatura como marca di-
tendendo-a como forma de ação fertiliza- ferencial, intrinsecamente identificadora

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1798 Antitabagismo

de uma determinada propriedade, com


um valor supremo e insubstituível, este
Antitabagismo
movimento estético assume a defesa de
uma escrita autenticamente coletiva. De
igual modo, são convocados materiais,
técnicas e procedimentos até então pro-
tegidos do seu âmbito de intervenção
enquanto arte: veja-se, e.g., a cedência a
“materiais brutos”, na aceção que Theo-
dor Adorno dá a esta expressão (ADOR-
S egundo as estimativas da Organização
Mundial de Saúde (OMS), morrem
anualmente, em todo o mundo, cerca de
NO, 1982, 288); a substituição do produ- 5.000.000 pessoas devido ao consumo
to artístico pelo próprio processo da sua de  tabaco e cerca de 600.000 não fuma-
produção; e ainda a apologia, numa linha dores devido à exposição ao fumo. Se
tipicamente dadaísta, do não conformis- nada for feito, os números globais pode-
mo, do escândalo, da inconveniência, do rão atingir os 8.000.000 na déc. de 2030.
desrespeito, da derisão, da provocação e Na Europa, estes números correspondem
da blasfémia. A escrita automática cons- a cerca de 1.600.000 mortes por ano, mais
titui um dos procedimentos mais paródi- de 25 % do número global de mortes,
cos destas práticas de desintegração e de apesar de a região possuir apenas 14 % da
contestação. Efetivamente, à atitude ativa população mundial. As mortes atribuíveis
de observação e de perscrutação atenta ao tabaco correspondem assim a 16 % do
da realidade, característica das técnicas total do número anual de mortes na Eu-
do escritor realista, o surrealismo contra- ropa. Em Portugal, as estimativas da OMS
põe a passividade absoluta e a quase le- referem que, em 2004, cerca de 1 em
targia daquele que escreve obedecendo à cada 10 mortes acima dos 30 anos foi cau-
técnica do automatismo verbal. sada pelo consumo de tabaco. Os últimos
Assim, sob a designação de antissur- dados nacionais indicam que o consumo
realismo incluem-se não apenas os movi- de tabaco foi responsável pela morte de
mentos estéticos que, de alguma forma, cerca de 12.600 pessoas em 2005, 11,7 %
impuseram determinadas formas de es- do total de mortes nesse ano.
truturação do objeto artístico, codificando Enquanto isso, a indústria do tabaco,
normativamente a experiência literária ou globalizada e com receitas superiores às
artística, mas também os procedimentos de alguns países, continua a fazer esfor-
técnicos e retóricos que consubstanciaram ços para influenciar e contrariar as ini-
esses movimentos estéticos. ciativas de saúde pública e as orientações
legislativas, a fazer lóbi conjuntamente
Bibliog.: Adorno, T., Teoria Estética, Lis- com parceiros comerciais e alguns atores
boa, Edições 70, 1982; Breton, A., Ma­ sociais, e a procurar confundir a opinião
nifestos do Surrealismo, 4.ª ed.,  Lisboa,  Sala- pública e os meios de comunicação, pon-
mandra,  1993; Cesariny, M. (org.), Textos do em causa as evidências científicas e as
de Afirmação e Combate do Movimento Surrealista
mensagens preventivas antitabágicas. Os
Mundial, Lisboa, Perspectiva & Realidades,
1977; Ducasse, I., Oeuvres Complètes de Isi­ Estados continuam a usufruir de receitas
dore Ducasse, Comte de Lautréamont. Les Chants avultadas decorrentes dos impostos sobre
de Maldoror. Poésies. Lettres, Paris, Flamma- o tabaco, permitindo alguma margem de
rion, s.d. manobra e benefícios à indústria, apesar
Fernando Azevedo de os danos sociais e de saúde causados

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Antitabagismo 1799

pelo tabaco serem superiores às receitas.


A sociedade civil organizada luta pela
sensibilização das autoridades e popula-
ções, e pela implementação de medidas
de saúde pública que reduzam o consu-
mo de tabaco e a exposição ao fumo. Os
atuais movimentos tabagista e antitabagis-
ta possuem faces bem diferentes dos an-
teriores, que importa conhecer e analisar
no longo prazo dos contextos cultural, “Fumadores de começos do séc. xvii”.
social, económico e político.
No séc. xvi, alguma literatura botânica
e médica promoveu a utilização de tabaco
Das origens à descoberta e utilização para a resolução de problemas de saúde.
do tabaco nos séculos xv e xvi Em 1560, Jean Nicot de Villemain, em-
Não há registo histórico de que tenha baixador francês em Portugal, escreveu
existido hábito de consumo de tabaco sobre as propriedades medicinais do ta-
no mundo antigo. Sabe-se, no entanto, baco, recomendando o seu uso a Catari-
que existia um tipo de tabaco, a nicotiana na de Médicis; a planta do tabaco foi, por
africana, conhecida por povos ancestrais isso, batizada com o seu nome: nicotiana.
do Médio Oriente e de África. A planta O tabaco não foi, no entanto, bem rece-
do tabaco, tal como a conhecemos atual- bido pelos devotos do cristianismo, que,
mente, é originária das Américas, há cer- de início, o consideraram um mal que se
ca de 6000 anos. Foram identificadas duas apossava das pessoas.
espécies de plantas de tabaco de cultivo:
a nicotiana tabacum, espécie utilizada pe-
los nativos na América Central e do Sul,
Séculos xvii e xviii:
e que resulta do cruzamento de duas es-
da disseminação aos monopólios
pécies selvagens, e a nicotiana rustica, com No início do séc. xvii, tanto a planta
maior concentração de nicotina e culti- como o seu uso já faziam parte do quoti-
vada na América do Norte. Os primeiros diano, com diversos países a legalizar e ta-
dados indicativos de utilização nativa do xar a importação, bem como a definir em
tabaco remontam ao período de 100 a.C. que colónias se podia produzir tabaco, a
O hábito de fumar evoluiu e espalhou-se desenvolver publicidade sobre o produto
pela América do Norte, entre os Astecas e a comercializá-lo. Aparecem, no entan-
e outras tribos índias, a partir do seu uso to, os primeiros alertas sobre o facto de o
pelos Maias nas cerimónias religiosas rea- fumo do tabaco poder provocar doenças
lizadas nas Antilhas, na América Central e respiratórias semelhantes às que afetavam
no México. A planta do tabaco foi usada, os limpa-chaminés e de a interrupção do
desde então, de forma alargada pelos ha- seu consumo poder provocar um estado
bitantes do continente americano, tendo depressivo e de apatia.
sido disseminada pelo mundo, a partir do Houve outros países onde foram apli-
final do séc. xv, através das descobertas cadas políticas antitabagistas, como a
e do contacto regular dos europeus, so- proibição de plantio e de consumo na
bretudo Portugueses e Espanhóis, com China (de 1610 até 1912) e na Rússia
culturas nativas das Américas. (de 1613 até 1689), envolvendo penas

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1800 Antitabagismo

severas, em que se destacam a pena de ções. A este regime somou-se, em 1647, a


morte, imposta pelos turcos em 1633, o proibição do cultivo na metrópole e a tri-
chicoteamento, o corte do nariz e o envio butação centralizada nas alfândegas, com
para a Sibéria, bem como a execução de a consequente garantia da produtividade
reincidentes na Rússia e a decapitação de e capacidade de tributação efetiva ao ex-
tabagistas na China. clusivo estatal. No final deste século, uma
Em Inglaterra, o Rei James I, talvez o boa parte da receita pública do Estado
primeiro antitabagista da história, escre- português já era oriunda dos direitos do
veu, em 1604, um tratado contra o tabaco tabaco, que continuariam a crescer expo-
(A Counterblaste to Tobacco), onde censura- nencialmente no século seguinte, sendo
va aqueles que se entregavam à imitação suplantados apenas pelos direitos adua-
dos costumes dos índios da América do neiros. Estes impostos e os monopólios
Norte, que qualificava de ímpios e selva- foram tão lucrativos ao longo do tempo
gens. Numa tentativa de dificultar o seu que, em muitos países, perduraram até o
uso, aumentou as taxas sobre o mesmo séc. xx, como foi o caso de Portugal.
em cerca de 4000 %, mas recuou na deci- A partir do séc. xviii, a par da imple-
são quando percebeu que os grandes fun- mentação de medidas menos proibitivas
dos provenientes do comércio do tabaco por todo o mundo, assiste-se ao aumento
se tinham reduzido substancialmente. do consumo do tabaco, bem como das
Foi o primeiro exemplo da ligação estrei- fábricas do sector e ainda da produção
ta entre receitas dos Estados e o comércio e do comércio do produto. A produção
do tabaco. Em 1614, apercebendo-se da destas fábricas correspondia ao tabaco
dimensão do mercado de tabaco em In- picado de cachimbo ou tabaco enrolado
glaterra, o mesmo Soberano determinou em charutos. Apesar de ainda se utilizar
que a importação de tabaco seria um mo- uma tecnologia pouco avançada no trata-
nopólio real, cuja concessão impunha o mento das folhas do tabaco, são instituí-
pagamento alfandegário de taxas anuais, dos o controlo de qualidade e a legislação
tendo, em 1620, proibido o seu cultivo que regula a produção e o comércio do
em território inglês, de forma a controlar tabaco. Este início do processo de indus-
melhor a fiscalização e o comércio exis- trialização estender-se-ia da segunda me-
tente através da importação. tade do séc. xviii até à última metade do
No mesmo ano de 1614, em Espanha, séc. xix. Em 1758, é construída a Fábrica
o Rei Filipe III definiu que o entreposto Real de Sevilha. Em Portugal, as primei-
comercial de todo o tabaco espanhol se- ras fábricas datam da segunda metade do
ria em Sevilha. Os colonos das Américas séc. xviii, numa época em que estava em
que não enviassem toda a produção exce- vigor o monopólio estatal, sendo conces-
dentária para este entreposto corriam o sões ao comércio limitadas aos contrata-
risco de condenação à morte. Em 1629, dores. Aproximadamente em 1788, em
Richelieu, em França, definiu impostos Portugal, havia duas manufaturas taba-
aduaneiros sobre a importação de taba- queiras, uma em Lisboa e outra no Porto.
co para aquele país e, em 1674, seria a A importância económica da produção
vez de Luís XIV estabelecer também um e do comércio do tabaco na generalida-
monopólio do tabaco. Em Portugal, no de dos países ocidentais tornou-se uma
primeiro quartel do séc. xvii, a Coroa realidade, e a dependência dos Estados
instituiu igualmente o monopólio do ta- desta fonte de rendimento cresceu rapi-
baco, após um período inicial de tributa- damente, influenciando mesmo as suas

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Antitabagismo 1801

iniciativas e ações, como já se referiu. vam na publicidade, potenciando a venda


Um bom exemplo disso foi a Guerra da alargada no mercado e o crescimento de
Independência americana (1775-1783), a uma burguesia e de um lóbi poderoso.
qual ficou conhecida também por Guerra Em Portugal, desde o final do séc. xviii
do Tabaco, uma vez que o produto esteve que o exclusivo da importação, do fa-
na base do seu financiamento e do paga- brico e da comercialização do tabaco
mento das dívidas no pós-guerra. permanecia nas mãos de um número
reduzido de famílias conhecidas, como
os Cruz Sobral, os Braamcamp, os Quin-
Do século xix ao presente: da tela. Em 1793, a edificação do Teatro de
industrialização à globalização S. Carlos, em Lisboa, marcou o começo
No séc. xix, o consumo de tabaco torna­ de uma série de gestos excêntricos que
‑se definitivamente um hábito na cultura os dinheiros ganhos por alguns com os
ocidental, incentivando mudanças na so- contratos do tabaco permitiriam fazer.
ciedade, algumas invenções e avanços tec- Outros exemplos, durante o séc. xix,
nológicos. As primeiras mulheres a fumar foram a construção do Hospital Conde
em público (prostitutas francesas) come- de Ferreira, o restauro do Convento dos
çam a fazê-lo logo no início do século. Em Jerónimos, a construção do Prq. Eduar-
1809, em França, Louis Nicolas identifica do  VII e a plantação das árvores do
e isola a nicotina do fumo de tabaco, e, Campo Grande, além da constituição e
em 1828, na Alemanha, Ludwig Reimann aquisição de uma grande quantidade de
e Wilhelm Heinrich Posselt isolam a subs- propriedades em Lisboa e arredores. Na
tância na sua forma pura, identificando-a verdade, em meados desse século, os im-
como um veneno perigoso. Em 1832, du- postos indiretos e as receitas dos mono-
rante a guerra entre o Egito e a Turquia, pólios ascendiam a cerca de 3/4 dos ren-
um soldado egípcio cria a alternativa de dimentos do Estado português. De 1844
enrolar tabaco em papel, inventando o ci- a 1876, as fábricas proliferam, abrindo
garro. Poucos anos antes, em 1827, havia cerca de seis unidades.
sido criado o primeiro palito de fósforo Paralelamente, quase nenhuma das
(em 1855, é patenteada a caixa de fósfo- ações contra o consumo de tabaco produz
ros). Em 1881, surge a máquina de enrolar efeitos até meados do séc. xix. Destaca­
cigarros, que vai contribuir para populari- ‑se, historicamente, o movimento norte­
zar ainda mais o consumo de tabaco e que ‑americano de índole proibicionista que,
constitui um marco na industrialização em 1830, começa a manifestar-se contra
do produto e na implementação das mar- o consumo livre do tabaco, por o associar
cas. Surge então a vocação comercial do ao consumo de álcool, fortemente com-
tabaco, já associada ao glamour, à sensuali- batido por esse movimento. Em 1855, o
dade e à inocuidade; para Amanda Amos Annual Report of the New York Anti-Tobacco
e Margaretha Haglund, a massificação da Society relata que o tabaco é um veneno
produção de cigarros, permitida pela sua da moda, alertando para a dependência
industrialização, teve um efeito profun- que causa e para o facto de metade das
do não só no consumo, mas também no mortes de fumadores com idades entre
lugar ocupado pelo tabaco na sociedade. 35 e 50 anos se dever ao consumo de ta-
No final do séc. xix, as grandes empresas baco. Em 1856 e 1857, a revista médica
e marcas de tabaco estavam instituídas, britânica Lancet abre um debate sobre o
tinham uma imagem comercial e aposta- tabaco e seus efeitos na saúde. Assim, no

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1802 Antitabagismo

decorrer dos sécs. xix e xx, a abordagem na cultura, e envolvendo figuras públicas,
moral do antitabagismo vai cedendo lu- que apareciam a fumar. O objetivo des-
gar a uma perspetiva de saúde pública, tas campanhas era, em parte, combater
ambas justificativas da atitude social e das a imagem negativa associada aos danos à
intervenções dos Estados. saúde provocados pelo consumo do taba-
No início do séc. xx, as fusões e incor- co. Em contrapartida, em 1954, foi criada
porações tinham-se instalado no merca- nos EUA a Comissão de Investigação da
do liberalizado. As empresas dos EUA e Indústria do Tabaco (que, em 1964, viu o
de Inglaterra dominavam 80 % do mer- seu nome alterado para Conselho para a
cado mundial de tabaco. É o começo das Investigação do Tabaco), que promoveu
empresas multinacionais, que criaram uma campanha incisiva contra os estudos
um mercado global ao longo do séc. xx que estabeleciam uma relação causal entre
e granjearam uma influência significa- o tabaco e o cancro do pulmão. Durante os
tiva junto dos governos e da sociedade. anos que se seguiram, a indústria do taba-
Em Portugal, as políticas protecionistas co, para negar os danos à saúde associados
da indústria do tabaco continuaram a ser ao consumo, fez publicidade e patrocinou
discutidas desde esse final do séc. xix até estudos, cujas conclusões eram manipu-
1927, quando foi decidida a reorganiza- ladas, ocultadas ou mesmo eliminadas,
ção do monopólio, a fim de conciliar os quando apresentavam resultados desfavo-
superiores interesses do Estado com o lu- ráveis. Esta prática corporizou, aliás, um
cro honesto e moderado. dos maiores escândalos do final do séc. xx,
A Primeira Guerra Mundial constituiu quando um enorme conjunto de docu-
um marco no crescimento do consumo mentos confidenciais da indústria veio a
de tabaco, associado à imagem dos solda- público, o que contribuiu decisivamente
dos e à crise de 1929, bem como aos pre- para a luta antitabágica, alargando o foco
ços baixos e a uma grande concorrência do combate contra o tabaco e os seus ma-
entre marcas. Durante a Segunda Guerra lefícios à indústria do tabaco, pela sua falta
Mundial, o consumo de tabaco tornou-se de ética e responsabilidade social. Poste-
o maior de todos os tempos e, com o Pla- riormente, graças a um acordo estabeleci-
no Marshall, cerca de 93.000 t de tabaco do, em 1998, entre os procuradores-gerais
foram enviadas gratuitamente pelos EUA de 46 estados e 5 territórios dos EUA e a in-
para a Alemanha. Foi ainda entre os anos dústria do tabaco, cerca de 14.000.000 de
de 1920 e 1940 que uma série de preo- documentos internos (com 80.000.000 de
cupações relacionadas com a possível páginas), produzidos pelas grandes empre-
ligação entre o tabaco e as doenças co- sas de tabaco e relacionados com assuntos
ronárias e determinados tipos de cancro e casos paradigmáticos, como as estratégias
(como o do pulmão, da boca e dos lábios, da indústria para a publicidade, o fabrico,
em fumadores, e do pulmão em esposas o marketing e as vendas, bem como com a
não fumadoras) começaram a surgir de sua intervenção na investigação científica,
forma consistente no meio científico, a entre outros, foram reunidos numa base
ponto de se sobreporem aos lóbis insta- de dados online de acesso aberto.
lados e à força da publicidade do tabaco. Foi ainda na déc. de 1950 que as provas
Nos anos de 1950, a publicidade às mar- científicas sobre a relação entre diversas
cas de tabaco e as suas atividades de patro- doenças e o uso de tabaco cresceram de
cínio atingiram o seu auge, disseminando­ forma significativa. Destaca-se a importân-
‑se na televisão, no cinema, no desporto e cia de uma série de estudos de Richard

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Antitabagismo 1803

Doll e Brandford Hill, que adquiriram defendiam os direitos dos não fumadores,
grande relevância na luta contra o taba- por um lado, e uma reação da indústria
gismo. Em 1955, a Comissão Federal de com campanhas públicas contra esses mo-
Comércio dos EUA começou a regular a vimentos, por outro. Durante este perío-
publicidade aos cigarros, proibindo qual- do, a indústria tabaqueira foi intensamen-
quer alusão aos supostos benefícios do te investigada, tendo negado qualquer
tabaco para a saúde. Nesta época, assistiu­ conhecimento das propriedades induto-
‑se também à introdução dos primeiros de ras de dependência da nicotina. No en-
muitos processos apresentados em tribu- tanto, as investigações apontavam não só
nal nos EUA por fumadores e seus paren- para o seu conhecimento, como também
tes contra a indústria tabaqueira, devido a para os esforços da indústria em potenciar
doenças provocadas pelo uso prolongado essas propriedades. Apontavam também
do tabaco e ao desconhecimento das con- para o uso de estratégias pouco éticas
sequências do mesmo para a saúde. para ludibriar o público e induzir mulhe-
Na déc. de 1960, o Governo britânico de- res e jovens a fumar. Muitos países proi-
cretou que os produtos derivados do taba- biram os anúncios publicitários às marcas
co deviam ter avisos sobre os riscos poten- de tabaco. A Comunidade Económica Eu-
ciais associados ao seu consumo e proibiu ropeia vinha, desde 1981, advertindo para
a publicidade a cigarros na televisão. Em a necessidade de proteger a saúde dos
Portugal, data de 1959 a primeira proibi- consumidores no que respeita ao tabaco
ção de fumar dentro de recintos fechados e, durante essa década, encetou diversas
e de 1968 a primeira proibição de fumar iniciativas antitabágicas nas suas políticas,
nos transportes públicos urbanos. Entre destacando-se a proibição de fumar em es-
1965 e 1969, o Congresso dos EUA adotou paços públicos, a rotulagem dos produtos
legislação sobre a aplicação de advertências
nos maços de tabaco, a proibição da publi- Cartaz antitabagismo.
cidade na rádio e na televisão, e a obrigação
de o Governo produzir um relatório anual
sobre as consequências do consumo do
tabaco. No decorrer da década seguinte,
um pouco por todos os países ocidentais,
foi publicada legislação no mesmo sentido.
Assistiu-se, assim, a uma diminuição
na venda de cigarros até à déc. de 1970.
A partir daí, as vendas voltaram a aumen-
tar, principalmente entre os adolescentes
e jovens adultos, sobretudo do sexo femi-
nino; nos EUA, a publicidade a cigarros
nas revistas e nos jornais superava todas
as outras. Em 1970, a OMS tomou uma
posição pública contra o tabagismo, e,
nos EUA, foi pela primeira vez comemo-
rado o Dia sem Tabaco. Em 1987, a OMS
instituiu o Dia Mundial sem Tabaco.
No início da déc. de 1980, existiu uma
pressão dos grupos da sociedade civil que

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1804 Antitabagismo

de tabaco e a proibição da publicidade mente do sexo feminino, no que parecia


na televisão, que foram concretizadas até ser uma tendência mundial.
1989. Em Portugal, foi proibida a publici- Na déc. de 2000, a OMS assumiu um
dade ao tabaco na televisão e na rádio, e papel fundamental e agregador da luta
restringida nos outros canais publicitários contra o tabaco. A partir do trabalho ini-
em 1980, e, em 1982, foi aprovada a Lei de ciado em 1996, aprovou em Assembleia
Prevenção do Tabagismo, que abordava Mundial, em 21 de maio de 2003, a Con-
questões ligadas à rotulagem e à proibição venção Quadro para o Controlo do Taba-
de fumar, entre outras, ocupando nesta co. Portugal assinou o documento em 9
altura um lugar de vanguarda nestas polí- de janeiro de 2004 e aprovou-o através do
ticas no contexto europeu. dec. n.º 25-A/2005, de 8 de novembro.
A partir de meados dos anos de 1980, A  lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, deu
a indústria começou a implementar no- execução ao disposto nesta Convenção,
vas estratégias de marketing indireto para estabelecendo normas para a proteção
ultrapassar as proibições que lhe foram dos cidadãos da exposição involuntária ao
impostas, atuando no campo do merchan- fumo do tabaco e medidas de redução da
dising, dos patrocínios e da promoção de procura relacionadas com a dependência
eventos, distribuindo amostras gratuitas, e a cessação do consumo. Em 2012, a luta
inserindo a marca noutros produtos e contra o tabagismo foi reiterada no con-
dissimulando a sua aparição em jogos de texto da estratégia Saúde 2020, da OMS.
computador e séries televisivas. No plano Portugal considerou o tabagismo um
internacional, desenhou-se uma reação a problema de saúde prioritário, criando o
esta tendência da indústria, com o cresci- Programa Nacional para a Prevenção e o
mento de uma luta organizada, quer na Controlo do Tabagismo 2012-2016.
área da saúde, quer na área social, contra Face às campanhas do movimento an-
a indústria tabaqueira e as suas estraté- titabágico, a indústria procurou adaptar­
gias, e o consumo de tabaco. Os benefí- ‑se às mudanças, de forma a manter a sua
cios da cessação tabágica começaram a posição dominante no mercado global,
ser eficazmente avaliados, demonstrando adotando estratégias do mercado como o
os ganhos de saúde dos indivíduos que lançamento de novos produtos derivados
paravam de fumar. Em 1993, nos EUA, a do tabaco, que prometem minimizar os
Agência de Proteção Ambiental conside- riscos para a saúde dos consumidores e
rou o fumo do cigarro como um produ- das pessoas expostas ao fumo, como é o
to carcinogénico da classe A (risco mais caso dos cigarros eletrónicos, que dividi-
elevado); e, em 1995, a Direção‑Geral de ram as opiniões do público e dos especia-
Medicamentos e Produtos Alimentares listas sobre as suas vantagens e intenções.
declarou que a nicotina era uma droga.
Em 1996, o Conselho Europeu publicou Bibliog.: impressa: AMOS, Amanda, e HA-
uma resolução visando a redução do ta- GLUND, Margaretha, “From social taboo to
bagismo através da elaboração de uma torch of freedom: the marketing of cigarettes to
estratégia específica, que seria reeditada women”, Tobacco Control, vol. 9, 2000, pp. 3-8;
periodicamente a partir daí. BORGES, Margarida et al., “Carga da doença
atribuível ao tabagismo em Portugal”, Revista
Apesar de estas iniciativas terem re- Portuguesa de Pneumologia, vol. 15, n.º 6, 2009,
duzido o consumo de tabaco nos países pp. 952-1004; FERREIRA-BORGES, Carina, e
desenvolvidos, no final do séc. xx aquele FILHO, Hilson Cunha, “Caracterização e evolu-
ainda crescia nos adolescentes, nomeada- ção histórica”, in FERREIRA-BORGES, Carina, e

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Antitaylorismo 1805

FILHO, Hilson Cunha, Tabagismo: Manual Técnico,


Lisboa, Climepsi, 2004, pp. 3-8; FROTA, Mário,
Antitaylorismo
“Evolução da legislação”, in FERREIRA-BOR-
GES, Carina, e FILHO, Hilson Cunha, Tabagismo:
Manual Técnico, Lisboa, Climepsi, 2004, pp. 103­
‑129; Id., Do Ordenamento Jurídico do Tabaco e dos
Seus Produtos na União Europeia – Reflexos em Por­
tugal, Lisboa, Mar da Palavra, 2007; HUBER,
Gary, e PANDINA, Robert, “The economics of
tobacco use”, in BOLLIGER, Christoph T., e
FAGERSTRÖM, Karl Olov, The Tobacco Epidemic,
A o longo dos sécs. xviii e xix, Portu-
gal manteve-se afastado do desenvol-
vimento descrito como Revolução Indus-
Basel, Karger, 1997, pp. 12-63; MILBY, Jesse,
A  Dependência de Drogas e Seu Tratamento, São trial, facto que teve profundos reflexos
Paulo, Pioneira, 1988; MÓNICA, Maria Filo- na industrialização do país até meados do
mena, “Negócios e política: os tabacos (1800­ séc. xx. Em particular, só tardia e lenta-
‑1890)”, Análise Social, vol. xxvii, n.os 116-117, mente a máquina a vapor chegou à indús-
1992, pp.  461­‑479; SLADE, John, “Historical tria portuguesa, mudando os índices de
notes on tobacco”, in BOLLIGER, Christoph T.,
produtividade.
e FAGERSTRÖM, Karl-Olov, The Tobacco Epide­
mic, Basel, Karger, 1997, pp. 1-11; VASQUES, A 6 de fevereiro de 1742,  na Gazeta de
Sérgio, “Impostos de vício, vícios do imposto: Lisboa, foi publicada a notícia da apre-
história clínica da tributação do tabaco”, Revista sentação de duas máquinas a vapor, ins-
Fisco, n.os 80-81, ano ix, jan.-fev. 1997, pp. 13-32; taladas numa das casas reais de campo,
digital: BORIO, Gene, “The tobacco timeline”, em Belém, sob a supervisão técnica de
Daily Tribune News, 29 abr. 2011: http://www.
Bento de Moura Portugal, superinten-
dailytribune.com/20100429/the-tobacco-time-
line (acedido a 3 ago. 2017); DIREÇÃO-GERAL dente e conservador das Fábricas Reais
DA SAÚDE, Portugal Prevenção e Controlo do Taba­ da Fundição da Artilharia da comarca de
gismo em Números – 2013, Direção de Serviços
de Informação e Análise, Direção-Geral da Saú-
de, 2013: file:///C:/Users/MariaJos%C3%A9/ Máquina a vapor de Bento de Moura Portugal
Downloads/i019563.pdf (acedido a 3 ago. descrita em Philosophical Transactions (1751-1752).
2017); “Legacy tobacco documents library”, Li-
brary and Center for Knowledge Management,
University of California, São Francisco, 2002­
‑14: http://legacy.library.ucsf.edu/ (acedido a 1
jun. 2014); “Monopólio do tabaco”, in Infopé­
dia, s.d.: http://www.infopedia.pt/$monopolio-
do-tabaco (acedido a 17 jul. 2013); WHO, His­
tory of the WHO Framework Convention on Tobacco
Control, OMS, 2009: http://whqlibdoc.who.int/
publications/2009/9789241563925_eng.pdf
(acedido a 15 jul. 2013); WHO, WHO Global Re­
port Mortality Attributable to Tobacco, OMS, 2012:
http://www.who.int/tobacco/publications/sur-
veillance/rep_mortality_attibutable/en/ (acedi-
do a 15 dez. 2013); WHO EUROPE, European
Tobacco Control Status Report 2014, OMS, 2014:
http://www.euro.who.int/en/health-topics/di-
sease-prevention/tobacco/publications/2014/
european-tobacco-control-status-report-2014
(acedido a 3 jun. 2014).
Hilson Cunha Filho

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1806 Antitaylorismo

Tomar. Em 1751-1752, foi publicado, nas ropa. Em 1820, José Acúrsio das Neves,
Philosophical Transactions da Royal Society na Memoria sobre os Meios de Melhorar a
de Londres, um relatório do engenheiro Industria Portuguesa, Considerada nos Seus
inglês John Smeaton sobre a máquina a Diferentes Ramos, lastimava o estado em
vapor de Bento de Moura Portugal, que que Portugal se encontrava, denuncian-
se baseava no modelo da máquina de do que tudo se fazia à força de braços e
Savery. de animais, enquanto nos outros países
Avançando para o séc. xix, na sessão quase se dispensava o esforço humano
pública da Academia Real das Ciências nos trabalhos mais pesados, aumentando
de Lisboa de 18 de janeiro de 1805, Cons- prodigiosamente os frutos da indústria.
tantino Botelho de Lacerda Lobo, profes- Assim, ao passo que, numa grande parte
sor do Gabinete de Física Experimental da Europa e nos Estados Unidos, já os rios
da Univ. de Coimbra, apresentou a “Me- e até os mares eram navegados por ação
mória sobre um novo modo de aplicar ao do fogo, sem mastros, velas ou remos, em
movimento das máquinas a força de va- Portugal, não havia uma única máquina a
por d’agua fervendo”, que foi publicada vapor nas indústrias.
no Jornal de Coimbra em 1812 (fig. 2). A industrialização portuguesa no séc. xix
Apesar da notícia da instalação da má- procedeu a um ritmo bastante lento. Os
quina a vapor ainda na primeira metade industriais portugueses iam recorrendo
do séc. xviii, Portugal não acompanhou, à energia hidráulica graças à abundância
ao longo do séc. xix, o desenvolvimento de recursos hídricos e ao aperfeiçoamen-
industrial que se ia observando na Eu- to da roda e da turbina hidráulicas. Só
no fim deste século começaram a apare-
cer alguns indicadores, embora ténues,
Máquina a vapor de Constantino Botelho de de arranque industrial, pois predomi-
Lacerda Lobo, Jornal de Coimbra, 1812.
nava a mão de obra não especializada.
A gestão científica do trabalho foi pro-
posta pelo engenheiro norte-americano
Frederick Taylor,  nas décs. de 1880 e
1890, com o objetivo de promover uma
melhoria na eficiência económica das in-
dústrias transformadoras. Mas já decorria
o ano de 1917 quando foi publicado em
Portugal o primeiro estudo advogando as
virtudes do taylorismo, da autoria de An-
tónio Mendes Correia, médico e antropó-
logo, professor da Faculdade de Ciências
da Univ. do Porto, onde se defendia a
aplicação desta doutrina não apenas na
reeducação dos mutilados da Primeira
Guerra Mundial, mas como modelo geral
para a prosperidade do trabalho nacional
(CORREIA, 1917). Nesta época, os tex-
tos de Taylor começaram a ser discutidos
entre nós, servindo de referência para a
análise do trabalho, a estandardização, a

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Antitaylorismo 1807

organização da produção e os processos definia as linhas mestras do projeto de in-


de seleção e formação profissionais. De- dustrialização adotado pelo Estado Novo.
fendia-se uma articulação entre as inves- Após a reorientação política definida em
tigações científica e tecnológica e a orga- 1934, caracterizada pelo anti-industrialis-
nização da indústria. Alguns advogavam a mo (&Anti-industrialismo) e pela repres-
relevância dos engenheiros como promo- são do movimento operário, as doutrinas
tores da inovação tecnológica e da racio- relativas à organização científica do traba-
nalização organizacional, ressaltando que lho deixaram de ter relevo, ficando o país
estes técnicos e especialistas deveriam condenado ao subdesenvolvimento, que
instruir e autodisciplinar a classe laboral, dominou na primeira metade do séc. xx,
aplicando o método de Taylor com vista a ao contrário do que se observou na Euro-
obter um maior rendimento laboral dos pa e nos Estados Unidos.
operários, com economia de esforços.
Apesar de algumas manifestações favo-
ráveis à organização científica do traba-
lho no quadro do taylorismo, desponta-
ram também fatores condicionantes da
sua difusão e aprofundamento em Portu- Bibliog.: CORREIA, António Mendes, “Taylo-
gal. Os propósitos inovadores e reformis- rismo e reeducação profissional”, Portugal Mé­
tas decorrentes da Implantação da Repú- dico, 3.ª sér., vol. iii, n.º 8, 1917, pp. 469­‑479;
blica apontavam para o desenvolvimento LIMA, Marinús Pires de, “Notas para uma
industrial do país, ao mesmo tempo que história da organização racional do trabalho
defendiam a remodelação do ensino e em Portugal (1900-1908) – alguns resultados
preliminares de uma investigação em cur-
aconselhavam a aplicação das técnicas
so”, Análise Social, vol. xviii, n.os 72-74, 1982,
da racionalização do trabalho. Contudo, pp. 1299­‑1366; LOBO, Constantino António
a crise política e económica da Primeira Botelho de Lacerda, “Memória sobre um novo
República comprometeu qualquer proje- modo de aplicar ao movimento das máquinas
to inovador e reformista. Posteriormente, a força de vapor d’agua fervendo”,  Jornal de
durante o Estado Novo, a reação ao apro- Coimbra, vol. i, n.º 4, 1812, pp. 255­‑263; NE-
fundamento do projeto racionalizador, a VES, José Acúrsio das, Memoria sobre os Meios
de Melhorar a Industria Portuguesa, Considerada
desvalorização da força de trabalho e a
nos Seus Diferentes Ramos, Lisboa, Officina Si-
repressão dos movimentos operários esti- mão Thaddeo Ferreira, 1820; “Portugal”, Ga­
veram na base da reação e suspensão do zeta de Lisboa, 6 fev. 1742, p. 71; REIS, António
taylorismo, que se estendeu, pelo menos, Estácio dos, Gaspar José Marques e a Máquina a
até ao fim da Segunda Guerra Mundial. Vapor: Sua Introdução em Portugal e no Brasil,
O taylorismo foi defendido em alguns Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2006;
textos publicados até meados da déc. de ROSAS, Fernando, “Estado Novo e desen-
volvimento económico (anos 30 e 40): uma
30, que discutiam as limitações da indús-
industrialização sem reforma agrária”, Análise
tria nacional, e algumas iniciativas contri-
Social, vol. xxix, n.º 128, 1994, pp. 871-887;
buíram para alimentar o ideal do desen- SMEATON, John, “An engine for raising wa-
volvimento industrial: o I Congresso dos ter by fire, being an improvement of Savery’s
Engenheiros, em 1931, a Grande Expo- construction, to render it capable of working
sição da Indústria Portuguesa, em 1932, itself, invented by Mr. de Moura of Portu-
e, em 1933, o I Congresso da Indústria; gal, F.R.S.”, Philosophical Transactions, vol. 47,
mas só em 1945 foi publicada a Lei de 1751-52, pp. 436-439.
Fomento e Reorganização Industrial, que Décio Ruivo Martins

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1808 Antitecnologismo

Antitecnologismo de química e da suspeita de que as aplica-


ções técnicas da ciência podem ser muito
perigosas, não teve grande repercussão
no país. Mas tal pode dever-se também
ao facto de que o seu autor, Francisco
Teixeira de Queirós, médico, político e
escritor da Primeira República, permane-

A s máquinas começaram a chegar ao


meio fabril português aproxima-
damente no último quartel do séc. xix.
ceu na sombra de escritores como Eça de
Queirós e Camilo Castelo Branco.
Contudo, embora nem sempre tal seja
Como aconteceu com outros fenómenos, reconhecido pelos historiadores, exis-
a mecanização chegou mais tarde que a tem em Portugal registos de episódios
países como a Inglaterra, a França ou a de insurgência contra as máquinas seme-
Alemanha. Apesar disso, a Revolução In- lhantes aos associados ao ludismo inglês.
dustrial portuguesa permitiu a substitui- Entre as classes profissionais que se revol-
ção de instrumentos rudimentares por taram estiveram as ligadas às indústrias
máquinas e o aumento da produção. Tal de chapelaria e tecelagem, tabaco, con-
agradou sobretudo a patrões e a empre- servas, pesca, cortiça, construção civil e
gadores, mas não tanto a artesãos e a ope- vidro. Os episódios de resistência face à
rários, cujo trabalho passou a ser ritmado introdução da mecanização incluem gre-
pela velocidade da máquina e foi, em par- ves e quebra e destruição de máquinas,
te, substituído por ela, ameaçando assim tendo os tecelões da Covilhã chegado a
os seus postos de trabalho e o seu nível de incendiá-las. Apesar de em algumas áreas
remuneração. As reações contra as má- profissionais, como as dos chapeleiros e
quinas e as tecnologias em geral não se dos tecelões, se terem registado mais epi-
fizeram esperar. sódios de insurgência, e em outras áreas
Existem exemplos de movimentos lu- a ameaça não ter sido tão imediata ou
distas, i.e., de resistência à utilização de evidente, não significa que nestas não te-
máquinas no meio fabril, em todo o mun- nham ocorrido.
do, mas a sua ocorrência foi estudada so- A resistência à tecnologia surge tam-
bretudo no Reino Unido, pois foi aí que bém em debates ligados à ideologia do
terão surgido inicialmente (no princípio anarquismo, embora algumas corren-
do séc. xix) e com mais impacto. Por ou- tes deste pensamento defendam que a
tro lado, foram também as lutas desenca- tecnologia pode ser libertária. Segundo
deadas contra a utilização de máquinas alguns críticos da tecnologia, esta au-
no meio fabril que conduziram à consti- menta o poder do ser humano enquan-
tuição da classe operária. Estas eram um to membro da sociedade, mas diminui
meio adicional de fazer pressão sobre os o seu poder enquanto indivíduo. A má-
empregadores e de garantir a solidarieda- quina industrial, e.g., permite produzir
de entre os trabalhadores. mais, mas reduz o poder e a autonomia
É comum afirmar-se que em Portugal do indivíduo comparativamente com o
não existiram movimentos ludistas. Além que acontecia nas modalidades artesa-
disso, as manifestações literárias do pro- nais. No entanto, a tecnologia permitiu
grama ludista não são abundantes. A no- diminuir o esforço exigido por muitas
vela A Grande Quimera, que se desenrola tarefas – tanto no contexto fabril, como
em torno da explosão de um laboratório no doméstico –, potenciou um aumento

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Antitecnologismo 1809

os métodos laborais devem respeitar a


dignidade do ser humano. Por seu turno,
o filósofo e lógico Edmundo Curvelo, um
dos introdutores em Portugal do estudo
científico das condições de trabalho, es-
creveu sobre o ideário da psicotécnica.
No texto “Máquinas e homens” (1952)
apresenta uma visão comunitária do tra-
balho e das organizações que não deriva
de qualquer ideologia política ou religio-
sa, mas da investigação psicológica. Para
Curvelo, é possível identificar “quais são
as melhores aptidões de cada ser huma-
no e utilizar esse conhecimento para me-
lhorar o desempenho das organizações”
(CURADO e ALVES, 2013, 31), como é
o caso de uma fábrica. Assim, considera
que amiúde os trabalhadores ficam insa-
tisfeitos apenas pelo facto de não estarem
Francisco Teixeira de Queirós (1848-1919).
a ocupar o lugar que mais lhes convém e
que as teorias psicológicas podem contri-
de produção e alcançou, em alguns casos, buir para um melhor funcionamento das
um aperfeiçoamento no resultado final. organizações. Deste modo, embora os
O trabalho industrial foi objeto de re- sentimentos de antitecnologismo sejam
flexão de alguns teóricos portugueses da muitas vezes associados a manifestações
primeira metade do séc. xx. Foi o caso contra o desemprego, alguns teóricos
do político e médico João Camoesas portugueses identificaram outros fatores,
(1887-1951), que, enquanto ministro da como o desequilíbrio entre o esforço e os
Instrução Pública, em 1923, apresentou a resultados, a falta de humanização, a de-
Proposta de Lei sobre a Reorganização da sadequação e a falta de preparação para
Educação Nacional, inspirada na obra do o desempenho de determinadas tarefas.
engenheiro mecânico Frederick Taylor O combate à tecnologia e às suas con-
(1856-1915). Este último defendeu que o sequências pode ser encontrado ain-
trabalho devia ser sujeito a um processo da em vários movimentos pacifistas e
de observação, planificação e sistemati- ambientalistas. Cada vez mais se exige
zação, no sentido de melhorar a eficá- aos engenheiros e a outros responsá-
cia operacional no meio industrial. João veis – técnicos, políticos e decisores, na-
Camoesas foi ainda autor de O Trabalho cionais e mundiais – que sejam pondera-
Humano (1927), considerada a primeira dos nas suas criações, evitem a utilização
obra portuguesa sobre o taylorismo que de equipamentos poluentes e privilegiem
tinha por base a fisiologia do esforço. o uso de energias renováveis e materiais
Numa fase pós-Segunda Guerra Mun- recicláveis.
dial, o teórico Manuel Canhão, chefe da As motivações antitecnologismo tam-
oficina de fundição de tipos da Imprensa bém podem surgir relativamente à utiliza-
Nacional, publicou a obra Humanização ção de novas tecnologias (que exigem um
do Trabalho (1946), na qual defende que período de adaptação); à incorporação

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1810 Antitecnologismo

de robôs ao nível científico, fabril, mas teragirem em quase permanência, tendo


também quotidiano; e à utilização de cal- para isso contribuído a própria Internet,
culadoras nas escolas. As novas tecnolo- que lhes permite comunicar ao mesmo
gias de informação têm-se desenvolvido tempo, independentemente do país ou
sobretudo ao nível da comunicação e do do fuso horário em que se encontrem.
entretenimento, e é nestes campos que Por outro lado, e ao contrário do verifi-
têm surgido inúmeras reações antitec- cado aquando da introdução de mecani-
nologismo, por se considerar que se têm zação nas fábricas, que reduziu postos de
verificado, e.g., cada vez mais comporta- trabalho, no caso das novas tecnologias,
mentos de dependência face a aparelhos têm surgido, cada vez mais, novas áreas
digitais portáteis. A difusão da Internet profissionais e especialidades. Assim, e
terá contribuído para essa ligação. apesar de alguns postos de trabalho pode-
Tem aumentado a preocupação, sobre- rem estar em risco pelo facto de parte da
tudo com crianças e jovens, mas também mão de obra poder ser substituída pelas
com adultos, relativamente a certos com- máquinas, a tecnologia, sobretudo ao ní-
portamentos considerados excessivos. vel das novas tecnologias, tem permitido
Entre as preocupações, estão aspetos re- também a criação de novas áreas de tra-
lacionados com o desenvolvimento dos balho, o desempenho de algumas tarefas
jovens que, devido ao tempo despendido em menos tempo e uma maior disponibi-
no contacto com os dispositivos eletróni- lidade para investir em outras atividades.
cos, parecem não ter disponibilidade Ou seja, a máquina não deverá ser vista
para ler, comunicar, praticar desportos apenas como substituta do Homem, mas
ou outras atividades, ou ainda dedicar-se sobretudo como forma de o libertar, per-
a questões sociais. Além disso, parecem mitindo a canalização das suas energias
não ter respeito pela propriedade intelec- para outros afazeres. Todavia, e apesar de
tual e denunciam reações violentas susci- vivermos rodeados por tecnologia, que se
tadas também pelos jogos virtuais. manifesta em várias formas, continuam
Outra crítica relaciona-se com a omni- a registar-se vários receios dessa presen-
presença da tecnologia de observação e ça – vista como ameaçadora, potencial-
controlo em espaços públicos e privados, mente destrutiva e antissocial –, perspe-
como na própria Internet, e a consequen- tivando-se que tal venha a aumentar nos
te perda de privacidade. As desaprovações próximos anos.
estendem-se ainda ao facto de a Internet
conter ameaças que assustam, sobretudo
pelo facto de não serem previsíveis, nem
Bibliog.: Araújo, Vera, A Internet em Portugal.
fáceis de detetar. Os críticos da Internet 2009, Lisboa, Observatório da Comunicação,
consideram que esta pode conduzir ao 2009; Camoesas, João, O Trabalho Humano,
isolamento social, mas vários especialistas Lisboa, Oficina Fernandes, 1927; Canhão,
defendem que o relacionamento presen- Manuel, Humanização do Trabalho, Lisboa, Por-
cial ainda continua a ser o privilegiado, tugália, 1946; Castro, Armando de, “Ta-
tanto por adultos como por jovens. Toda- baco, Indústria do”, in SERRÃO, Joel (dir.),
Dicionário de História de Portugal, vol. iv, Lisboa,
via, apesar do isolamento social aparente,
Iniciativas Editoriais, 1971, p. 105; Cura-
devido ao foco na relação entre indivíduo do, Manuel, e ALVES, José António, Um Gé­
e dispositivo tecnológico, tem-se regista- nio Português: Edmundo Curvelo (1913-1954),
do, no caso das novas tecnologias, uma Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013;
necessidade de os seus profissionais in- Curvelo, Edmundo, “Máquinas e homens”,

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Antitecnoutopismo 1811

O Mundo Ilustrado, n.º 3, 1952, pp. 4-18; Fer-


guson, Eugene S., Engineering and the Mind’s
Antitecnoutopismo
Eye, Cambridge, Massachusetts Institute of Te-
chnology Press, 2001; Freire, João, Anarquis­
tas e Operários. Ideologia, Ofício e Práticas Sociais:
o Anarquismo e o Operariado em Portugal, 1900­
‑1942, Porto, Afrontamento, 1992; Fróis,
Catarina, “Não mais estaremos sozinhos… A
globalização do controlo”, in CARMO, Re-
nato et al. (coords.), A Globalização no Divã,
Lisboa, Tinta da China, 2008, pp. 203-216;
O discurso utópico é tão antigo como
a própria ciência. Em Nova Atlântida
(1627), o filósofo inglês Francis Bacon fala
Griffiths, Mark, “Excessive Internet use: im-
de um lugar dominado pela ciência e pela
plications for sexual behavior”, Cyberpsychology
& Behavior, vol. 3, n.º 4, 2000, pp. 537-552;
técnica, uma ilha utópica habitada por
Hobsbawm, Eric J., Labouring Men: Studies in uma comunidade avançada, onde os seus
the History of Labour, London, Weidenfeld and princípios da filosofia natural eram pra-
Nicholson, 1952; Marques, Emília Margari- ticados sob a orientação do Estado. Essa
da, Os Operários e as Suas Máquinas: Usos Sociais prática era realizada na chamada Casa de
da Técnica no Trabalho Vidreiro, Lisboa, FCG, Salomão por uma sociedade de sábios que
2009; Mercê, Célia Fidalgo, Conceções e Práti­
pretendia alcançar, nada mais, nada me-
cas Letivas dos Professores de Matemática do 2.º Ci­
clo em relação à Calculadora: Contributos da For­
nos do que o “conhecimento das causas,
mação para a Reflexão, Dissertação de Mestrado e movimentos secretos das coisas; e a ex-
em Educação apresentada à Universidade pansão das fronteiras do Império Huma-
de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2008; no para efetuar todas as coisas possíveis”
Mónica, Maria Filomena, Artesãos e Ope­ (BACON, 2008, 90-91).
rários, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, A modernidade das descrições é im-
1986; Pereira, Joana Dias, A Produção Social
pressionante, pelo que se pode conside-
da Solidariedade Operária: o Caso de Estudo da
Península de Setúbal (1890-1910), Dissertação
rar que a Nova Atlântida é a primeira obra
de Doutoramento em História apresentada de ficção científica, que antecipa diversos
à Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, texto aspetos do funcionamento de sociedades
policopiado, 2013; Queirós, Francisco Tei-
xeira de, A Grande Quimera, Lisboa, Parceria Francis Bacon (1561-1626).
António Maria Pereira, 1919; Savage, Mike,
“Classe e história do trabalho”, in Batalha,
Cláudio et al., Culturas de Classe, Campinas,
Editora da Universidade de Campinas, 2004,
pp. 25-48; Tapscott, Don, Grown up Digital:
How the Net Generation is Changing Your World,
New York, McGraw-Hill, 2009; Taylor, Fre-
derick Winslow, The Principles of Scientific Mana­
gement, New York/London, Harper & Brothers,
1911; Thompson, Edward Palmer, A Forma­
ção da Classe Operária Inglesa, Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1987; Timm, Maria Isabel, Elaboração
de Projetos como Estratégia Pedagógica para o Ensi­
no de Engenharia, Dissertação de Doutoramen-
to em Informática na Educação apresentada
à Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, texto policopiado, 2005.
Patrícia Ferraz de Matos

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1812 Antitecnoutopismo

futuras, de que são exemplos o cultivo de prestidigitação, falsas aparições, impostu-


árvores nos jardins e o crescimento das ras e ilusões, bem como as suas falácias”
flores “mais rapidamente do que no seu (Id., Ibid., 100), as quais podem ser asso-
curso natural” (Id., Ibid., 94). Além disso, ciadas à simulação computacional e à rea-
afirma Bacon: “Também graças à nossa lidade virtual.
arte fazemos as árvores crescer muito mais O Rei D. João V consultou o médico
do que é da sua natureza; assim como os estrangeirado Jacob de Castro Sarmento
seus frutos são maiores e mais doces, e de pedindo-lhe opinião sobre o desenvolvi-
sabor, cheiro, cor e forma diferentes, do mento das ciências; este respondeu-lhe
que seriam por geração natural. E muitos que uma das prioridades era a tradução
deles são assim ordenados para terem uso das obras de Francis Bacon, a mais impor-
medicinal” (Id., Ibid., 94), numa antecipa- tante das quais era o Novum Organum, que
ção das futuras genética e biotecnologia. pretendia substituir a obra de Aristóteles.
O que foi dito para o reino vegetal apli- Este projeto, porém, nunca chegou a vin-
ca‑se também ao reino animal: “Descobri- gar. Note-se que a Nova Atlântida só viria a
mos meios de fazer misturas e cruzamen- ser traduzida em Portugal em 2008.
tos de diferentes tipos, que produziram Apenas no final do séc. xix, após o
muitas espécies novas [...]. Nada disto é triunfo da Revolução Industrial (quan-
feito ao acaso, mas sabemos de antemão do as esperanças e os medos associados à
de que matéria e cruzamento resultarão ciência e à técnica aumentaram enorme-
as várias espécies de criaturas” (Id., Ibid., mente), voltaram a aparecer livros de fic-
95); havia fornos de vários tipos, que guar- ção científica que viam o futuro do nosso
davam “uma grande variedade de calores ou de outros planetas habitado pela ciên-
[...]. Mas sobretudo imitamos os calores cia. São clássicos os textos do escritor fran-
do Sol e dos corpos celestes”, existindo cês Jules Verne, que veio duas vezes a Por-
ainda “instrumentos que geram calor tugal, e do inglês Herbert George Wells,
pelo simples movimento” (Id., Ibid., 95); que passou uma temporada em Sintra em
vêm-nos à mente os posteriores meios recuperação de uma doença. Verne foi
de produção de energia, incluindo a fu- muito apreciado pelos Portugueses, mas
são nuclear, que, de facto, imita na Terra é curioso que o romance onde é mais
a produção de energia no Sol. Noutras nítida a tecnoutopia, acompanhada por
casas, preparavam-se “engenhos e instru- desculturização, Paris no Século XX, escrito
mentos para todos os tipos de movimen- em 1863 (um dos seus primeiros livros),
to” (Id., Ibid., 99). Bacon refere também só tenha sido publicado em 1989, após o
instrumentos de guerra, “misturas e com- manuscrito ter sido encontrado por um
posições novas de pólvora, fogos gregos bisneto do escritor; no romance Fora dos
que ardem na água e inextinguíveis, toda Eixos, de 1869, ao expor as aventuras de
a variedade de fogo de artifício”. “Imita- um grupo que queria alterar o eixo de
mos também o voo de aves; alcançámos rotação da Terra, Verne critica, de uma
alguns sucessos na prática do voo no ar; forma irónica, o excesso de ciência e de
temos navios e barcos para navegar debai- racionalismo. Por sua vez, Wells escreveu
xo de água” (Id., Ibid., 100), descrição a A Modern Utopia (1905), onde descre-
que pode associar-se a tecnologia militar ve um mundo dominado pela máquina
que emergiu no futuro. Havia casas que e em que há paz social, e The World Set
encerravam ilusões dos sentidos, onde Free (1914), onde prevê as armas nuclea-
se representava “todo o tipo de atos de res do futuro. Na sequência destas obras,

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Antitecnoutopismo 1813

um fenómeno que só teve início no úl-


timo quartel do séc. xx. Entre os vários
autores que cultivaram esse género entre
nós merecem referência Romeu de Melo
e João Barreiros. Nalguns desses textos,
assoma o tecnoutopismo, ou utopismo
técnico, que consiste na moderna recria-
ção da Nova Atlântida e de algumas das
obras de Jules Verne e H. G. Wells, natu-
ralmente com recurso às tecnologias da
informática, da biotecnologia, da genó-
mica e da nanotecnologia.
Não sendo a tecnoutopia, pela sua
própria definição, um ideal realizável, é
difícil detetar claramente adversários do
Jules Verne (1828-1905). tecnoutopismo. É bom notar que a uto-
pia portuguesa prevalecente em Portugal
não é nem nunca foi de carácter técnico.
o escritor inglês Aldous Huxley publicou,
em 1932, Admirável Mundo Novo, um ro- Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Onésimo Teo-
mance cuja ação se passa em Londres, no tónio, Pessoa, Portugal e o Futuro, Lisboa, Gra-
ano de 2540, sendo as personagens con- diva, 2014; BACON, Francis, Nova Atlântida e a
Grande Instauração, introd. e trad. Miguel Mor-
dicionadas biológica e psicologicamente.
gado, Lisboa, Edições 70, 2008; FIOLHAIS,
Essas obras acabariam por ser publica-
Carlos, “Saber e poder ou a modernidade em
das em Portugal, bem como outras, com Sir Francis Bacon”, in As Ciências. Balanços e Pers­
elas aparentadas, pela pena de autores pectivas, Actas dos 3.os Cursos Internacionais de Verão
portugueses, embora muito longe de te- de Cascais – 1996, Cascais, Câmara Municipal
rem obtido o mesmo impacto junto do de Cascais, 1997, pp. 155-174; HUXLEY, Al-
público. Assim, e.g., em 1859, foi publi- dous, Admirável Mundo Novo, Lisboa, Livros do
cado O Que Há-de Ser do Mundo no Anno Brasil, 1962; MACHADO, Marta Gracinda
Pinto, Lisboa do Ano 2000. Dois Projectos para Um
Tres Mil, tradução e adaptação, provavel-
Futuro da Cidade de Há 100 Anos, Braga, Univer-
mente de Sebastião José Ribeiro de Sá, de sidade do Minho, 2013; MATOS, José de Melo,
Le Monde Tel Qu’Il Sera, romance assinado Lisboa no Ano 2000, Almada, Apenas, 1998;
por Émile Souvestre (um precursor de Ju- O Que Há-de Ser o Mundo no Anno Tres Mil, Lisboa,
les Verne) e saído em Paris em 1846, por J. M. Corrêa Seabra & T. Quintino Antunes,
sua vez inspirado em Apothegmas, obra de 1859; RIOT-SARCEY, Michèle et al., Dicionário
1718, da autoria de Pedro José Supico de das Utopias, Lisboa, Edições Textografias, 2009;
VERNE, Júlio, Fora dos Eixos, Lisboa, Compa-
Morais. E José de Melo Matos escreveu,
nhia Nacional, 1890; WELLS, H.G., A Modern
em 1906, Lisboa no Ano 2000, uma narra- Utopia, London, Chapman et al., 1905; Id., The
tiva em que a energia elétrica alimenta as World Set Free, London, Macmillan and Co.,
tecnologias das redes de transportes em 1914; digital: HOLSTEIN, Álvaro, Breve História
Lisboa, incluindo um comboio subterrâ- da Ficção Científica Portuguesa: http://pt.scribd.
neo entre as margens norte e sul do Tejo, com/doc/26791184/BREVE-HISTORIA-DA-
projeto que nunca foi concretizado. FICCAO-CIENTIFICA-PORTUGUESA (acedido
Apesar destas obras pioneiras, a litera- a 1 jul. 2016).
tura de ficção científica foi, em Portugal, Carlos Fiolhais

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1814 Antiteísmo

Antiteísmo relação ao mundo. Por último, a oposição


à terceira perspetiva defende essencial-
mente que, mesmo que se pudesse admi-
tir uma realidade correspondente à pala-
vra “Deus”, e mesmo que essa realidade
fosse transcendente em relação ao mun-
do, ela não se relacionaria com o mundo

A qualificação de uma posição inte-


lectual ou prática como antiteísta
depende, por um lado, da definição do
e, por isso, não seria possível conhecê-la.
Esta posição acabará por se definir como
agnosticismo teórico e prático.
conceito de teísmo e, por outro, da sua O antiteísmo pode, portanto, assumir
distinção em relação a posições seme- manifestações significativamente diferen-
lhantes. Genericamente, teísta é a pers- tes, consoante se enquadra numa destas
petiva de quem afirma a existência real três perspetivas. É o que se pode constatar
de uma entidade – pessoal ou não – cor- no panorama do pensamento português,
respondente à palavra “Deus”, tal como é sobretudo a partir de meados do séc. xix,
usada na linguagem humana. Ao afirmar com a penetração do pensamento moder-
a existência real dessa entidade, pressu- no. As posições mais extremas – que po-
põe a sua diferença em relação a tudo o dem ser consideradas ateístas – manifes-
resto, o que significa que Deus é, na pers- taram-se sobretudo como positivismo, seja
petiva teísta, algo ou alguém não identi- militantemente antirreligioso, seja como
ficável com o resto do mundo, sendo-lhe releitura do fenómeno religioso em ter-
por isso transcendente. Este seria um mos imanentes. Teixeira Bastos, que pode
sentido mais estrito do teísmo, que pode ser apresentado como exemplo do posi-
tornar-se ainda mais preciso quando de- tivismo radical e militante, contrapõe a
fende que essa entidade divina se relacio- ideia positivista de progresso ao obscuran-
na com o mundo, agindo no seu interior, tismo da religião, com a correspondente
como ente entre os entes. negação da referência a Deus, por se tra-
No sentido mais genérico, à posição tar de um conceito ilusório. O progresso
teísta – afirmação da existência de uma positivista assentaria numa interpretação
realidade correspondente à palavra materialista do real, que contradiria por
“Deus” – opor-se-ia simplesmente toda a completo a ideia de que Deus existe, en-
posição que recuse a existência de uma quanto realidade distinta da matéria. Do
realidade correspondente a essa palavra. ponto de vista da crítica à posição teísta,
O ateísmo é, de certo modo, a mais clara destaca-se sobretudo Miguel Bombarda,
forma de oposição ao teísmo genérico, que aplica o positivismo psicológico à
uma vez que nega explícita e positiva- ideia de Deus, relacionada com as noções
mente esse teísmo. A oposição à segunda de consciência e de liberdade. A redução
perspetiva – que afirma a transcendência da religião – e correspondente ideia de
de Deus em relação aos entes – pode assu- Deus – a um fator social, por isso comple-
mir várias formas, sendo a mais radical o tamente analisável pela sociologia, é ela-
panteísmo, pois identifica Deus com tudo borada essencialmente por Teófilo Braga
aquilo que é; não recusa, portanto, a re- e por Manuel de Arriaga.
ferência da palavra “Deus” à realidade, Em Arriaga, vislumbra-se já não sim-
só não permite identificar essa realidade plesmente a negação de Deus, mas a
através de uma diferença específica em substituição da alusão a um Deus pessoal

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Antiteísmo 1815

riamente indeterminada de Deus, pensa­


‑se a história humana como queda dessa
situação originária e como processo de
recuperação da mesma, pela dissolução
de toda a diferença (aparente) particular
no todo divino inicial e final. A autono-
mia da história e da humanidade, pres-
suposto fundamental do teísmo estrito, é
assim colocada em questão, numa leitura
em que a diferença entre Deus e o mun-
do, sobretudo entre Deus e os humanos,
se torna ambígua.
A terceira dimensão do teísmo, que
identifica Deus como um ente com inter-
venção direta no mundo, à semelhança e
ao lado de outros entes e da sua ação pró-
pria, é contradita, por um lado, pela crí-
tica à possibilidade da existência de mi-
lagres, de que Pedro de Amorim Viana é
um saliente representante. Nessa perspe-
tiva, a direta intervenção de Deus, como
Manuel de Arriaga, de Rafael Bordalo Pinheiro, um fator imanente ao mundo, não só não
Álbum das Glórias, maio 1882.
faria sentido, como contradiria o próprio
conceito de Deus. Por outro lado, e a par
e transcendente pela referência a ideais desta crítica racionalista de uma possível
“divinos”, como o de beleza e o de per- compreensão do teísmo, desenvolveu-se
feição. Anuncia-se assim a posição mais uma posição teísta assumidamente católi-
frequente e genuína do pensamento ca, muitíssimo mais mitigada em relação
português dos últimos dois séculos, que à pura afirmação da existência de Deus
foi antiteísta sobretudo no segundo sen- como ente que intervém diretamente na
tido, i.e., opondo-se à transcendência de história. Essa posição surgiu seja por in-
Deus, entendida como diferença radical fluência do conceito tomista de analogia,
entre Deus e o mundo, incluindo a his- seja já na receção do debate fenomenoló-
tória como processo. Há uma espécie de gico e existencialista.
panteísmo ou panenteísmo latente – que, No primeiro caso, trata-se do desenvol-
paradoxalmente, nega o ateísmo estri- vimento do movimento tomista, como
to –, segundo o qual todo o processo efeito, também em Portugal, da encíclica
histórico da natureza e da humanidade Aeterni Patris (1879). O principal contri-
é manifestação da divindade em realiza- buto deste movimento localizou-se em
ção. As influências do idealismo hegelia- alguns seminários diocesanos, com desta-
no, mas sobretudo de correntes místicas e que para Coimbra. Se é certo que a po-
gnósticas, conduziram pensadores como sição é essencialmente teísta, não deixa
Teixeira de Pascoaes e Sampaio Bruno de ser um teísmo moderado, que corres-
a uma compreensão da realidade como ponde a uma noção analógica de ser e de
acontecimento em que se realiza o pró- ente, não permitindo a compreensão de
prio Deus. Partindo de uma ideia origina- Deus como mero ente, contraposto ao

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1816 Antiteologismo

mundo, com capacidade de intervenção


milagrosa arbitrária no mesmo.
Antiteologismo
No segundo caso, destaca-se o pensa-
mento de Diamantino Martins, que apli-
ca à compreensão do conceito de Deus
os elementos resultantes do debate com
a fenomenologia, sobretudo de origem
alemã e francesa. A relação entre o con-
ceito de Deus e o conceito de ser permite
esclarecer ambiguidades que certo teís-
O conceito de antiteologismo foi for-
jado por Mikhail A. Bakunin na sua
obra Federalismo, Socialismo e Antiteologismo
mo ingénuo poderia levantar, e que terão (1867), que constitui a primeira tentativa
originado, precisamente, o deslocamento de síntese das suas ideias políticas e filo-
da questão de Deus para campos raciona- sóficas, precisamente na altura em que o
listas e mesmo gnósticos em muitos pen- filósofo e sociólogo russo se instalava na
sadores portugueses do séc. xix. Suíça. Em si mesmo, o conceito aponta
para uma mundividência deliberadamen-
Bibliog.: ARRIAGA, Manuel de, Harmonias te oposta (anti) à cristã (teologismo), a
Sociais, Coimbra, Francisco França Amado partir de uma perspetiva anarquista, ou
Editor, 1907; BASTOS, Teixeira, Progressos do seja, claramente ateia e antirreligiosa (ou
Espírito Humano, Lisboa, Tip. Luso-Espanho- melhor, antieclesiástica).
la, 1879; BOMBARDA, Miguel, A Consciência O termo é usado pelos estudiosos de
e o Livre Arbítrio, Lisboa, Livraria de António Emmanuel Levinas para caracterizarem a
Maria Pereira, 1898; BRAGA, Teófilo, Tra­
sua conceção da divindade (e.g., Peñalver
ços Gerais da Filosofia Positiva Comprovados pelas
Descobertas Científicas Modernas, Lisboa, Nova Gómez e Salanskis). Assim, o sentido do
Livraria Internacional, 1877; BRUNO, Sam- conceito de Deus não se encontraria no
paio, A Ideia de Deus, Porto, Livraria Chardron, horizonte do ser – tal como fora desenvol-
1902; CALAFATE, Pedro (dir.), História do Pen­ vido a partir da escolástica –, mas numa
samento Filosófico Português, vol. iv, t. i, Lisboa, prova de pura passividade diante do rosto
Caminho, 2004; DEUSDADO, M. A. Ferreira, de outro – a prova do “autrement qu’être
A Filosofia Tomista em Portugal, Porto, Lellos,
[mais do que ser]” –, que não seria senão
1978; MARTINS, Diamantino, O Problema de
Deus, Braga, Livraria Cruz, 1957; RIBEIRO, Ál-
outra maneira de nomear Deus. Apenas
varo, Os Positivistas. Subsídios para a História da a relação ética daria sentido, e um sen-
Filosofia em Portugal, Lisboa, Livraria Popular de tido único, aos conceitos teológicos fun-
Francisco Franco, 1951; ROCHA, Afonso, damentais, como revelação, inspiração,
“A filosofia da religião no pensamento portu- eleição, religião, profetismo e santidade.
guês da segunda metade de Oitocentos”, Re­ Em seguida, apenas teremos em conta
vista Portuguesa de Filosofia, vol. 67, n.º 2, 2011, o conceito de Bakunin, que certamente
pp. 207-230; SOARES, António Sepúlveda,
terá influenciado os autores posteriores
“Um caso paradigmático do enfrentamen-
to ciência e fé no séc. xix: Miguel Bombarda na crítica a uma certa mundividência
e P.e  Manuel Santana”, in O Pensamento Luso­ cristã.
‑Galaico-Brasileiro (1850-2000): Actas do I Con­ O antiteologismo de Bakunin é uma
gresso Internacional, vol. ii, Lisboa, INCM, 2009, conceção do mundo e da humanidade
pp. 111-136; VIANA, Pedro de Amorim, De­ radicalmente oposta à visão teológica do
fesa do Racionalismo ou Análise da Fé, Lisboa, universo e da existência humana, e que
INCM, 1982.
não é apenas teórica. Como justamente
João Manuel Duque refere Jean-Christophe Angaut, as refle-

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Antiteologismo 1817

no entanto, “a história demonstra­‑nos


que os padres de todas as religiões, me-
nos os das Igrejas perseguidas, foram os
aliados da tirania” (Id., Ibid., 31). Deste
modo, as religiões contribuem (ideolo-
gicamente) para a manutenção do domí­
nio tirânico: “A menos que se deseje a
escravidão, não podemos nem devemos
fazer a mínima concessão à teologia,
pois […] quem quer adorar a Deus, deve-
rá renunciar à sua liberdade e à sua digni-
dade de homem: Deus existe, portanto o
homem é escravo. O homem é inteligen-
te, justo, livre, portanto Deus não existe”
(Id., Ibid., 31).
O princípio de autoridade tem, pois,
uma dimensão teológica, e é a teologia
Mikhail A. Bakunin em 1843.
que enforma toda e qualquer domina-
ção tirânica. Por isso, diz Bakunin, “é-nos
xões de Bakunin são contemporâneas muito importante libertar as massas da
do aparecimento, em França, do termo superstição religiosa […] para salvar a
“laicité [laicidade]” e da primeira tenta- nossa liberdade e a nossa segurança” (Id.,
tiva de separação da Igreja e do Estado Ibid., 33). Isso é possível através de dois
(com a Comuna de Paris). E não é tudo: meios: a ciência racional e a propaganda
Bakunin fala tanto ou mais de Deus do do socialismo.
que de religião, da qual, aliás, tem um A propaganda do socialismo permite
conceito bastante matizado. Isso talvez extirpar a superstição religiosa na medi-
explique o facto de ter preferido criar o da em que, por meio da revolução social,
termo “antiteologismo”, em vez de usar que o socialismo advoga, se combaterá o
conceitos como ateísmo (referente à sofrimento das populações em que se ar-
questão de Deus) ou antirreligião (relati- raiga a crença religiosa. Quanto à ciência
vo à questão religiosa). racional, motor da emancipação intelec-
Que é que motivava Bakunin? Não era tual da humanidade, esta não se reduz
apenas o ateísmo e o combate anticlerical à demonstração da inexistência de Deus
(ou antirreligioso). Não, para ele, a luta ti- (propagação do ateísmo), mas diz respei-
nha de ser contra a teologia, onde discer- to sobretudo ao modo como surgiram,
ne o fundamento do princípio de autori- na história do pensamento humano, as
dade, e que, na polémica contra o patriota ideias de um mundo sobrenatural e do
italiano G. Mazzini, chega a denominar divino.
de “teologia política” (ANGAUT, 2014). As fontes de Bakunin são A Essência
Se se concebe “o Estado fundado sobre o do Cristianismo, de Ludwig Feuerbach, e
direito divino e pela intervenção de um o Curso de Filosofia Positiva, de Auguste
Deus qualquer […] [o poder será exer- Comte. Sinteticamente, Bakunin integra
cido] inicialmente pelos padres, depois as considerações de Comte sobre o lugar
pelas autoridades temporais consagradas das religiões na história do desenvolvi-
pelos padres” (BAKUNIN, 2012, 73); mento do espírito humano, bem como

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1818 Antiteologismo

a sua célebre lei dos três estádios, na fi- escrito programático – Programa de Uma
losofia de Feuerbach, para quem as reli- Sociedade Internacional Secreta da Emanci-
giões não são senão momentos necessá- pação da Humanidade (1864) –, Bakunin
rios pelos quais a humanidade se revela a afirma que a Revolução Francesa “procla-
si própria, constituindo o cristianismo o mou uma nova religião, a verdadeira reli-
cume dessa autorrevelação. A dependên- gião, não celestial, mas terrestre, não divi-
cia inicial do Homem relativamente ao na, mas humanitária: a da realização dos
mundo exterior, que é causa de sofrimen- destinos humanos na terra” (BAKUNIN,
to e temor, levou-o, progressivamente, a 2014, 86). Dois anos mais tarde, no Ca-
recorrer a forças naturais (fetichismo), tecismo Revolucionário, propõe substituir
aos deuses (politeísmo) e, finalmente, à “o culto de Deus pelo respeito e pelo amor
suprema abstração que constitui o Deus à humanidade” (Id., 2009, 18). E, em Fe-
judaico-cristão (monoteísmo). Essa abs- deralismo, Socialismo e Antiteologismo, refe-
tração divina é, depois, enriquecida com re o socialismo como “a nova religião do
aquilo de que se despoja a humanidade povo” (Id., 2012, 27).
(a liberdade, a justiça, etc.). A imagem Em segundo lugar, utiliza os conceitos
ou o fantasma divino é uma abstração mi- de religião e de sagrado para designar
santropa, aviltante da humanidade, que é uma relação especial com um ideal, seja
necessário combater e suprimir. ele patriótico (e.g., o do seu opositor Maz-
Todavia, como dissemos, em Bakunin a zini) ou revolucionário (o dele próprio).
religião tem um carácter ambivalente; há Para Bakunin, a paixão revolucionária é
nele também uma série de utilizações po- pensada à maneira de uma religião, onde
sitivas do conceito de religião. Em primei- não falta também o postulado de um
ro lugar, no contexto da revolução e do mundo novo que importa instaurar.
socialismo, concebe uma espécie de re- Por último, apesar do seu constante
ligião humanitária ou religião da huma- apelo à abolição do “serviço e culto da
nidade, antiteológica. No seu primeiro divindade”, Bakunin tem consciência das
crenças religiosas dos seus contemporâ-
neos, e respeita-as (ANGAUT, 2014). To-
Manuel da Silva Mendes (1867-1931).
davia, quando se trata de organizações re-
volucionárias por si criadas, não deixa de
exigir a todos os que a elas aderem que
sejam expressamente ateus. No quadro
da Internacional, contudo, diverge de ou-
tros revolucionários (e nomeadamente
de Marx), manifestando-se contra a parti-
darização e a ideologização do programa
da Internacional e defendendo a liberda-
de de expressão e discussão. Para ele, a
Internacional tem por objetivo organizar
a solidariedade dentro da classe trabalha-
dora e não formar um partido político.
Em Portugal, o maior defensor e divul-
gador das ideias de Bakunin foi Manuel
da Silva Mendes, no seu Socialismo Liberta-
rio ou Anarchismo, um livro aclamado por

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Antiterceiro-mundismo 1819

Sampaio Bruno e um texto de referência


na matéria. Nesta obra, pioneira em Por-
Antiterceiro-mundismo
tugal – a primeira história do socialismo
libertário elaborada no país –, Silva Men-
des manifesta as suas preferências pelo
pensamento de Proudhon e de Bakunin,
e coloca uma influência oriental (Lao
Tse) na origem das teorias socialistas li-
bertárias, que em Portugal, nessa altura,
ainda tinham pouca expressão. Contudo,
Q uem inventou o conceito de Tercei-
ro Mundo foi o demógrafo francês
Alfred Sauvy (1898-1990), que se inspi-
tendo viajado para Macau em 1901, Silva rou, para o efeito, no conceito de terceiro
Mendes é mais conhecido pelos seus estu- estado, criado, em vésperas da Revolução
dos culturais sobre o Oriente do que pela Francesa, por Emmanuel Joseph Sieyès
sua extraordinária obra libertária. (1748-1836), por muitos considerado
arauto da Revolução e uma das pessoas
que mais a influenciaram.
A expressão “Terceiro Mundo” foi uti-
Bibliog.: ANGAUT, Jean-Christophe, “Bakou- lizada pela primeira vez por Sauvy num
nine contre Dieu. Enjeux contemporains de artigo publicado, a 14 de agosto de 1952,
l’antithéologisme”, in PELLETIER, Philippe no jornal L’Observateur, intitulado “Trois
(coord.), Actualité de Bakounine. 1814-2014, mondes, une planète”, no qual dizia: “Esse
Paris, Les Éditions du “Monde Libertaire”, Terceiro Mundo, ignorado, explorado,
2014, pp. 109-128; ARESTA, António, “Ma-
desprezado, tal como o terceiro Estado,
nuel da Silva Mendes, professor e homem de
cultura”, Administração, vol. xv, n.º 58, 2002, também quer ser alguma coisa”. A inspira-
pp. 1351-1374; BAKUNIN, Mikhail A., Catecis­ ção de Sauvy nas ideias de Sieyès é eviden-
mo Revolucionário. Programa da Sociedade da Revo­ te. Na sua obra Qu’Est-Ce Que le Tiers État?,
lução Internacional, org. Plínio Augusto Coêlho, publicada primeiramente em janeiro de
São Paulo, Imaginária, 2009; Id., Federalismo, 1789, em continuação do seu Essai sur les
Socialismo e Antiteologismo, s.l., União Popular Privilèges, saído a público em 1788 (obras
Anarquista, 2012; Id., De Baixo para Cima e da que, desde inícios do séc. xix, passaram a
Periferia para o Centro. Textos Políticos, Filosóficos e
ser publicadas em conjunto), o abade de
de Teoria Sociológica de Mikhail Bakunin, org. An-
drey C. Ferreira e Tadeu B. de S. Toniatti, Sieyès teorizou sobre os fundamentos do
Niterói, Alternativa, 2014; CABRITA, Maria Estado-nação. No ensaio introdutório do
João, “MENDES, Manuel da Silva, Socialismo Essai sur les Privilèges, o autor reflete critica-
Libertário ou Anarchismo”, Cultura, vol. 26, 2009, mente sobre a origem, a natureza e os efei-
pp. 307-310; GILSON, Étienne, “Theologism tos dos privilégios na sociedade. Segundo a
and philosophy”, in The Unity of Philosophical sua definição, “o privilégio é uma dispensa
Experience, New York, Charles Scribner’s Sons,
para quem o obtém e desencorajamento
1950, pp. 31-60; GÓMEZ, Patricio Peñalver,
Argumento de Alteridad. La Hipérbole Metafísica de para os outros”; e prossegue: “Se assim é,
Emmanuel Lévinas, Madrid, Caparrós Editores, convireis que é uma invenção sem mereci-
2000; MENDES, Manuel da Silva, Socialismo mento, a dos privilégios. Imaginemos uma
Libertario ou Anarchismo. Historia e Doutrina, sociedade o mais bem constituída e feliz
Coimbra, s.n., 1896; SALANSKIS, Jean-Mi- possível; não é claro que, para a subverter
chel, Levinas Vivant. II: L’Humanité de l’Homme, completamente, bastará dispensar uns e
Paris, Klincksieck, 2011.
desencorajar outros?” (SIEYÈS, 1788, 1).
Porfírio Pinto O terceiro estado era, para Sieyès, o povo,

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1820 Antiterceiro-mundismo

mas não só o povo. Era também um proje- dos. Por exemplo, o Tratado que instituiu
to político e social global (nesse sentido, a Organização do Tratado do Atlântico
moderno), subversivo, visando pôr ter- Norte (NATO), de 1951, foi explícito na
mo aos privilégios na sociedade france- afirmação de que os EUA e o Reino Uni-
sa de finais de Setecentos. Fazendo uma do respeitariam as formas de governo
reflexão original sobre o terceiro estado, dos países signatários do Tratado e o livre
Sieyès dizia que este era toda uma nação exercício da sua soberania, não havendo
(a França), que ainda não existia, mas que qualquer pressão americana ou britânica
ele pedia que existisse (entenda-se, de um sobre as potências coloniais para que des-
modo radicalmente diferente do que vigo- colonizassem as suas colónias, nem aque-
rara até então). las imaginavam que a descolonização esti-
Também o Terceiro Mundo ainda não vesse iminente. Já a União das Repúblicas
existia quando Sauvy escreveu “Três mun- Socialistas Soviéticas (URSS), como refere
dos, um planeta”, em 1952. Ele mesmo o Wallerstein, desconfiava de qualquer mo-
diz; e ele mesmo pede que passe a existir. vimento nacional, ainda que de influência
Para o efeito, advoga a subversão do mun- comunista, a menos que as tropas soviéti-
do saído da Segunda Guerra Mundial, ca- cas estivessem no país em questão. Wallers-
racterizado pela derrota dos fascismos, mas tein dá como exemplos da sua tese o aban-
também, paradoxalmente, pela deletéria dono dos comunistas gregos pela União
aliança americano-soviética, que impedia Soviética, durante a Guerra Civil (1946­
a libertação dos povos. Segundo Sauvy, os ‑1949), assim como os conselhos de pru-
dois blocos dominantes (o pró-americano dência dados pela nomenclatura soviética
e o pró-soviético) precisavam um do outro aos comunistas chineses, em 1951, suge-
para existirem e ignoravam o resto do mun- rindo-lhes um acordo com o nacionalista
do, maioritariamente subdesenvolvido. Chang Kai-chek, que Mao (o líder da rebe-
A leitura da realidade feita por Sauvy lião comunista) ignorou. Contra a União
estava correta, dado que, à época, os Es- Soviética, revoltou-se Tito, na Jugoslávia,
tados Unidos e a União Soviética não se um país comunista onde não havia tro-
interessavam pelos países subdesenvolvi- pas soviéticas. Até meados da déc. de 50,
para os EUA e a URSS, de acordo com a
Josip Broz Tito (1892-1980). fórmula de John Foster Dulles, secretário
de Estado norte-americano (1953-1959),
num discurso de 9 de junho de 1955,
“o neutralismo [que viria a ser marca do
terceiro-mundismo] era imoral”.
A perceção das duas grandes potências
relativamente aos autodenominados paí-
ses do Terceiro Mundo só mudaria mais
tarde, após a criação do Movimento dos
Não Alinhados, em 1955, promovida por
Tito, que agregou a maioria dos líderes
dos novos Estados independentes. Na
génese do terceiro-mundismo está a con-
testação da ordem bipolar que vigorava
neste tempo, mas rapidamente foi ele
também contestado.

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Antiterceiro-mundismo 1821

Entre os pensamentos de Sieyès e de


Sauvy, encontramos semelhanças, mas
também diferenças, que são mais impor-
tantes do que as afinidades. Os dois pen-
saram a ação política a curto prazo, com
manifestos que tiveram impacto na socie-
dade francesa (Sieyès) e na sociedade in-
ternacional (Sauvy). Sieyès formulou, pe-
dagogicamente, um conjunto de petições
visando a igualdade de tratamento do ter-
ceiro estado em relação aos estratos privi-
legiados da população (nobreza e clero),
segundo um novo enquadramento políti-
co-constitucional. No processo revolucio-
nário francês, as suas ideias triunfaram; a Alfred Sauvy (1898-1990).
nação fez-se pela força, com a atribuição
do estatuto político-jurídico de cidadão a tados independentes, mas as divergências
todos os habitantes do território político. entre estes eram muito significativas.
Mais ainda, as suas ideias rapidamente se É importante fazer uma clarificação
difundiram na Europa continental, pro- conceptual. Como vimos, para Sieyès, o
movendo a modernização e a democrati- terceiro estado era o povo e era tudo, ou
zação das instituições políticas. seja, era o próprio processo de transfor-
O que aconteceu com o Terceiro Mun- mação política e social. Não havia, nesse
do foi diferente. Georges Balandier es- sentido, um primeiro e um segundo esta-
creveu um livro intitulado precisamente dos. Como fruto de um novo equilíbrio, a
Terceiro Mundo, para o qual Sauvy escreveu nobreza e o clero franceses deixaram de
o prefácio. Em pouco tempo, a expressão existir como existiam. Sieyès usou uma
foi adotada por muitos intelectuais e por linguagem política profética, cujos efeitos
parte da sociedade internacional, na se- se prolongam nos começos do séc. xxi.
quência da Conferência de Bandung Nas palavras de José Gil, “o próprio texto
(1955) e da criação do já referido Movi- [das declarações de Sieyès] reproduz a
mento dos Não Alinhados. Sauvy teorizou temporalidade específica do profetismo
sobre uma nova sociedade internacional, que, mais ou menos subterraneamente,
alicerçada nos valores da liberdade, da transporta consigo: o presente banal dis-
cooperação e do desenvolvimento econó- solve-se, criando-se um presente intensivo,
mico e social. Seria essa a tarefa de um suspenso, inteiramente virado para o fu-
novo direito internacional, desenhado turo que trará a epifania (a utopia) anun-
para criar a paz entre as nações. À seme- ciada (uma sociedade governada pela
lhança do que haviam feito os revolucio- nação). É a totalidade do presente (e da
nários franceses de finais do séc. xviii, os vida individual e social) que se suspende,
Estados do Terceiro Mundo deveriam, se- intensificando a pulsação da temporalida-
gundo o autor francês, tomar consciência de profética” (GIL, 2009, 15-16). Também
do seu papel na história, unir-se e fazer para Sauvy, o Terceiro Mundo eram os paí-
uma revolução. As palavras de Sauvy tive- ses saídos dos processos de descolonização
ram eco em parte significativa dos inte- e mais do que isso: era a transformação da
lectuais e nos governantes dos novos Es- sociedade internacional, na qual os novos

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1822 Antiterceiro-mundismo

Estados procurariam o lugar que lhes dos Países Exportadores de Petróleo au-
pertencia de pleno direito, suplantando mentou o preço do petróleo e provocou
a dicotomia entre os blocos políticos e uma crise mundial de grandes propor-
militares existentes. ções, o Terceiro Mundo rejubilou, pois
Estava instalada a Guerra Fria. Suposta- concentrava as principais reservas de pe-
mente, os Estados do Terceiro Mundo não tróleo do mundo.
estariam implicados no processo, porque Curiosamente, a China, em meados
não seriam comunistas nem liberais. A ver- da déc. de 70, num contexto de más re-
dade é que, além de irritarem os Estados lações com a URSS, e visando garantir a
ocidentais com a sua retórica marxista e a sua liberdade de ação (por definição con-
sua ação contra os seus interesses, nomea- trária a quaisquer alianças), arrogou-se o
damente na Assembleia Geral das Nações estatuto de potência neutral, como país
Unidas, não lograram a aceitação de todos do Terceiro Mundo, mediante a explíci-
os outros, dada a sua estratégia de alianças ta invocação da visão dos três mundos de
e as políticas por eles prosseguidas. Isso foi Mao. Henry Kissinger – que, enquanto
muito evidente na Conferência de Ban- secretário de Estado norte-americano, as-
dung, na qual se criou o Movimento dos sistira à emergência do Terceiro Mundo
Não Alinhados, como anteriormente refe- – descreveu a situação como interessan-
rido. Antes da Conferência, tinham-se rea- te, dado poder ser explorada pelos EUA,
lizado alguns importantes encontros entre mas letal para o futuro do Movimento dos
Estados – com destaque para a cimeira Não Alinhados. O futuro deu-lhe razão.
entre a China e a Índia –, que condiciona- O posicionamento ideológico marxis-
ram os passos seguintes. Os organizadores ta do Movimento dos Não Alinhados foi
da Conferência – Nehru, da Índia, Nasser, contestado pelo Ocidente. E, por ser não
do Egito, Tito, da Jugoslávia, Kofélawala, alinhado com a URSS, mereceu a con-
do Sri Lanca, e Sukarno, da Indonésia, o testação desta e dos seus aliados. E nem
anfitrião – convocaram a China, o Japão o seu ideário de conquista do poder do
e os dois Vietnames, mas não convidaram Estado e de transformação do mundo,
as Coreias. A União Soviética manifestou que merecera o apoio entusiástico de
vontade em participar, mas não foi convi- pensadores e partidos de esquerda no
dada. Mesmo depois do XX Congresso do Ocidente, ficou incólume às críticas. Em
Partido Comunista da União Soviética e 1978, Jacques Julliard escreveu, no Nouvel
do relatório de Krutchev, de fevereiro de Observateur, um texto intitulado “Le tiers
1956, em que a URSS deixou de conside- monde et la gauche”, no qual denunciou
rar os novos Estados independentes como a corrupção e a repressão de muitos re-
burgueses e reacionários, e passou a consi- gimes do Terceiro Mundo, concluindo
derá-los “regimes socialistas em gestação”, que “o direito dos povos [se tornara] o
a maioria dos Estados Não Alinhados con- principal instrumento de estrangulamen-
tinuou a rejeitar a União Soviética como to dos direitos humanos” (JULLIARD, Le
membro do bloco. Nouvel Observateur, 5 jun. 1978, 39). Em
Até finais da déc. de 60, o Movimento 1979, o jornal promoveu a publicação de
dos Não Alinhados floresceu e passou um livro com diferentes perspetivas sobre
a ter a maioria na Assembleia Geral das o terceiro-mundismo. As conclusões de
Nações Unidas, o que lhe permitiu com- Jacques Julliard não poderiam ser mais
bater o colonialismo e encontrar novos pessimistas, ao afirmar que o terceiro­
aliados. Quando, em 1973, a Organização ‑mundismo falhara como “sucedâneo de

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Antiterceiro-mundismo 1823

uma escatologia socialista, hoje arruina- tugal, exceto numa ocasião, em que foi
da” (Id., 1979, 37). muito utilizado: na campanha presiden-
A maior parte dos novos Estados inde- cial de 1986, a candidata Maria de Lurdes
pendentes acabou por se ligar a um dos Pintasilgo foi criticada por ser terceiro­
blocos geopolíticos dominantes e, pos- ‑mundista; os seus adversários políticos,
teriormente, aos EUA. A influência do fundamentalmente à direita (o candidato
Movimento dos Não Alinhados, que se Freitas do Amaral), mas não só (também
autointitulara representante do Terceiro o candidato socialista Mário Soares), fala-
Mundo e reivindicara políticas alternati- ram do seu suposto ideário terceiro-mun-
vas às dos dois blocos, diminuiu drastica- dista. Curiosamente, nessas eleições, o
mente. A profunda transformação da or- único partido que apoiou formalmente a
dem internacional, que fora anunciada, candidata Maria de Lurdes Pintasilgo foi
não ocorreu. a União para a Democracia Popular, par-
Após o colapso da URSS e dos regimes tido de matriz marxista e maoista, desali-
de socialismo real, com os quais muitos nhado do Partido Comunista Português,
dos países ditos não alinhados tinham afi- e que simpatizava com o Movimento dos
nidades ideológicas, pelo menos na sua Não Alinhados.
oposição aos países capitalistas, a expres- Maria de Lurdes Pintasilgo rejeitou o
são “Terceiro Mundo” foi progressiva- epíteto dos seus adversários. De facto,
mente substituída pelas expressões “paí- nunca fora terceiro-mundista, embora o
ses em vias de desenvolvimento” e “países seu percurso político e cívico fosse singu-
emergentes”. lar. Católica e feminista, fora procurado-
Como perspetiva política e doutriná- ra à Câmara Corporativa durante o Esta-
ria, o terceiro-mundismo logrou alguma do Novo. Afirmava-se de esquerda e foi,
institucionalização no plano das organi- em democracia, a primeira mulher – e,
zações internacionais e da ação política pelo menos até aos começos do séc. xxi,
internacional, mas ela foi incomparavel- a única – que exerceu, em Portugal, as
mente inferior à verificada em França funções de primeira-ministra.
no período revolucionário. Por um lado,
porque a multiplicidade de Estados ter-
ceiro-mundistas dificultou o consenso.
Bibliog.: GIL, José, “Introdução”, in SIEYÈS,
Por outro lado, porque a feição ideoló- Emmanuel Joseph, O Que É o Terceiro Estado?,
gica antiliberal e anticapitalista do ter- Lisboa, Círculo de Leitores, 2009, pp. 11-39;
ceiro-mundismo suscitou a sua rejeição. JULLIARD, Jacques, “Le tiers monde et la gau-
O terceiro-mundismo é derrotado pela che”, Le Nouvel Observateur, 5 jun. 1978, p. 39;
política externa norte-americana de com- Id., “Le tiers monde et la gauche”, in DANIEL,
bate ao comunismo. Jean, e BURGUIÈRE, André (orgs.), Le Tiers Mon­
A defesa dos valores ocidentais contra de et la Gauche, Paris, Seuil, 1979, pp. 36-40;
KISSINGER, Henry, Da China, Lisboa, Quetzal,
as várias feições do comunismo interna-
2011; SAUVY, Alfred, “Trois mondes, une planè-
cional constitui a marca por excelência te”, L’Observateur, 14 ago. 1952, p. 14; SIEYÈS,
do antiterceiro-mundismo, sem que, po- Emmanuel Joseph, Essai sur les Privilèges, s.l., s.n.,
rém, o mundo tenha acolhido os valores 1788; Id., Qu’Est-Ce Que le Tiers État?, s.l., s.n.,
ocidentais, como se comprova, e.g., com 1789; WALLERSTEIN, Immanuel, “De Bandung
o fenómeno do terrorismo internacional. à Seattle. ‘C’était quoi, le tiers-monde  ?’”, Le
Raramente o termo “terceiro-mundis- Monde Diplomatique, ago. 2000, pp. 18-19.
mo” foi usado no debate político em Por- João Relvão Caetano

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1824 Antiterrorismo

Antiterrorismo A reivindicação e contrarreivindicação


dessa legitimidade está, aliás, no centro
do combate antiterrorista: por isso é que,
ao longo dos tempos, desde a Antiguida-
de greco-romana, passando pela teologia
cristã, foi sendo teorizado o direito de
resistência dos povos ao despotismo e

O antiterrorismo, enquanto resposta


do Estado aos crimes de terrorismo
contra a sua segurança, a dos seus cida-
mesmo a legitimidade do tiranicídio, seja
em nome da polis, de Deus ou da própria
história. Este diálogo de forças contrárias
dãos e a ordem pública em geral, surge está também presente na história do país.
relativamente tarde na legislação portu- Progressivamente – e como reação ao
guesa: no Estado Novo, apenas de forma exercício da justiça de forma privada por
parcial, e, de uma forma mais completa, parte da nobreza –, os monarcas portu-
depois de iniciada a Terceira República, gueses reclamaram para si o ius puniendi,
no último quartel do séc. xx. Isso não sig- ou a capacidade de exercício do poder
nifica que aquilo que caracteriza o fenó- punitivo. De todos os crimes, os mais gra-
meno terrorista – sabotagens, atentados ves, de acordo com o estipulado nas cole-
contra propriedade e pessoas, uso da in- tâneas de leis (ou Ordenações), eram os
timidação e da violência para fins políti- de lesa-majestade, que constituíam uma
cos – não tivesse ocorrido na sociedade afronta e ameaça grave à ordem existen-
portuguesa ou que as autoridades não te, personificada na pessoa do rei e da
respondessem com dureza a esses crimes; sua família. As Ordenações Filipinas classi-
apenas não era classificado como tal, e ficam a lesa-majestade – a traição come-
a própria palavra não fazia parte do vo- tida contra a pessoa do rei ou o seu Es-
cabulário comum. Na verdade, apenas a tado – como o mais grave e abominável
partir do séc. xix, por influência da Revo- crime, o qual, nas suas implicações mais
lução Francesa e do movimento contrar- extremas (como o regicídio, a morte de
revolucionário, a palavra “terror” passou familiares ou conselheiros e representan-
a ser mais utilizada pelas elites nacionais. tes do rei), era punido com a morte e o
De qualquer forma, e não obstante a au- confisco dos bens. Com a exceção deste
sência durante longo tempo da palavra tipo de crimes, a prática penal portugue-
“terrorismo”, as pessoas que estavam por sa do Antigo Regime caracterizava-se,
detrás de atos classificados como terroris- no que concerne à aplicação da pena
tas foram invariavelmente classificados e de morte, sobretudo pela complacência.
perseguidos como inimigos do status quo A repressão penal, contudo, iria intensifi-
e da ordem estabelecida. Independente- car-se, particularmente no tempo do ab-
mente do regime (monárquico, republi- solutismo régio de meados do séc. xviii.
cano, ditatorial ou democrático), a ques- Neste contexto, a noção de lesa-majesta-
tão do terrorismo implica sempre uma de foi ampliada para incluir todos os atos
relação dinâmica – assente na violência de “confederação, ajuntamento, vozes
política – entre os poderes estabelecidos sediciosas, e tumultos”, criminalizando­
e os poderes insurgentes, que, em dife- ‑se assim com a pena máxima qualquer
rentes épocas e por diferentes razões, se resistência ao poder régio (SOARES,
digladiam e disputam a legitimidade da 2013, 181). A execução pública, em 1759,
autoridade e do poder sobre a sociedade. das famílias acusadas de envolvimento e

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Antiterrorismo 1825

conjura no atentado contra D. José inse- petradores louvados. A partir de 1910, a


riu-se dentro desta visão mais implacável preocupação com a defesa do novo regi-
do crime de lesa-majestade. me republicano contra tentativas restau-
Embora já durante a Monarquia Cons- racionistas levou ao aparecimento de leis
titucional Oliveira Martins dedique um repressoras dos crimes e atentados contra
capítulo do seu Portugal Contemporâneo a segurança do Estado e, pontualmente,
ao “terror” da perseguição miguelista aos de tribunais especiais. Seria ainda duran-
liberais, o crime de terrorismo continua te a Primeira República – e inicialmente
ausente da legislação portuguesa. Não por iniciativa ditatorial de Sidónio Pais,
obstante, é neste período histórico – mar- durante a sua “República Nova” – que se
cado, a nível internacional, pela primeira criaria, pela primeira vez em Portugal,
grande vaga de anarquismo que assolou a uma polícia política, ou seja, uma “polí-
Europa e os Estados Unidos, com sabota- cia preventiva” encarregada da vigilância,
gens e atentados de todo o tipo – que se da prevenção e da investigação relativas
reforçam as leis de criminalização políti- a todas as tentativas de crimes políticos
ca, especialmente dirigidas aos anarquis- ou sociais. Com o agravamento da insta-
tas e influenciadas quer pelo clima de agi- bilidade social e o aumento de atentados
tação popular interna quer pelo contexto (como os da Noite Sangrenta, que, entre
externo. Em 1896, durante o Governo outros, vitimou o primeiro-ministro An-
em ditadura de João Franco, foi aprovada tónio Granjo), os poderes desta polícia
uma lei antissubversiva (classificada pela seriam reforçados, de forma a “prevenir e
oposição como “lei celerada” ou crimino- evitar os malefícios dos inimigos da socie-
sa) que condenava ao degredo todos os dade e da ordem pública” (CARDOSO,
que defendessem “atos subversivos quer 1980).
da existência da ordem social, quer da A ditadura militar, a par de um clima
segurança das pessoas ou da proprieda- de revoltas e de guerra civil latente, irá
de”, sendo a imprensa proibida de fazer a reforçar a repressão dos crimes de natu-
cobertura jornalística de quaisquer “aten- reza política, nomeadamente através da
tados de anarquismo” (lei n.º 37, de 13 crescente militarização da justiça (com
fev. 1896). É certo que esta preocupação o recurso, ainda que temporário, a tri-
de defesa do Estado – presente de forma bunais militares extraordinários), abrin-
contínua – se acentua em ocasiões em do assim o caminho para o quadro legal
que a sobrevivência do regime está em de repressão da “delinquência política”
causa ou então nos momentos em que o que vai caracterizar o Estado Novo, após
regime recém-chegado tenta impor a sua a promulgação da Constituição de 1933.
autoridade. Assim ocorreu nos últimos Nesse sentido, o crime político e a sua re-
tempos da monarquia, contra os que de- pressão sofrem uma nova sistematização
fendiam a sua ilegitimidade. O regicídio e tipificação. Do rol de crimes políticos
de 1908, um crime que seria de lesa-ma- passam a fazer parte a “propaganda, in-
jestade no Antigo Regime (punido com citamento ou qualquer meio de provo-
a pena de morte, entretanto abolida em cação à disciplina social e à subversão
1867) e que cairia dentro da definição violenta das instituições e princípios
posterior de terrorismo, foi visto pelos fundamentais da sociedade” (dec.-lei
sectores mais radicais antimonárquicos, n.º 23.203, de 6 nov. 1933). Enquanto
entre eles a carbonária, como um ato le- crimes de exceção, as “infrações de carác-
gítimo de tiranicídio, sendo os seus per- ter político” passam a estar sujeitas a um

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1826 Antiterrorismo

A Morte de António Granjo (1921).

tribunal militar especial e a ser também em 1937, o deputado José Cabral chegou
alvo de penas especiais. No tratamento a propor – sem sucesso –, na Assembleia
dos “delitos políticos”, a recém-formada Nacional, o restabelecimento da pena de
Polícia de Vigilância e Defesa do Estado morte nos “crimes contra a segurança do
(PVDE) assume um papel fundamental, Estado”, a fim de fazer face “sem huma-
que inclui a possibilidade de detenção nitarismos suicidas” à “guerra do interior
privativa. Até 1945, a maior parte dos [interna]” que assolava o povo português
presos políticos era encarcerada devido (Diário das Sessões…, 6 dez. 1937, 211-213).
a participação em revolução, a propagan- Após a Segunda Guerra Mundial, o re-
da subversiva, a pertença a organizações gime encetou uma maior formalização da
partidárias proibidas, a desrespeito pela justiça política com a extinção dos tribu-
autoridade ou ao uso e porte de armas nais militares especiais e a sua substitui-
e explosivos proibidos. Neste período, ção por tribunais plenários, assim como
a categorização destes crimes como de com a criação da Polícia Internacional
terrorismo ainda não era regularmen- e de Defesa do Estado (PIDE), em subs-
te praticada, embora os alvos da política tituição da PVDE, com amplos poderes
repressora fossem identificados invaria- para a repressão e prevenção dos crimes
velmente como subversivos, extremistas contra a segurança interior e exterior do
e revolucionários, sendo vistos, na sua Estado. Será sobretudo a partir da segun-
maioria, como comunistas ou simpatizan- da metade do séc. xx que a descrição,
tes; no fundo, como elementos perturba- na legislação penal do Estado Novo, de
dores da ordem. No seguimento do aten- certos crimes como “terrorismo” terá
tado falhado contra o chefe do Governo, tendência a crescer, embora sempre de

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Antiterrorismo 1827

uma maneira ocasional e avulsa, e nunca ção do ultramar português da seguinte


numa perspetiva integrada de combate forma: “Terrorismo e negritude – corpo
ao terrorismo ou de contraterrorismo. e espírito, afinal – orientam-se para o es-
Logo em 1945, o governo decretou uma tabelecimento do divórcio entre as raças
amnistia que abrangia todos os crimes em presença, condição indispensável da
contra a segurança do Estado, com ex- derrota de Portugal” (Diário das Sessões…,
ceção, como dizia o diploma, “dos aten- 11 jan. 1962, 317).
tados pessoais, dos crimes de rebelião Com a derrota do Estado Novo e o iní-
armada e dos que tomaram a forma de cio de um novo regime, democrático, Por-
terrorismo político” (ROSAS et al., 2009, tugal irá, a partir de abril de 1974, pela
98). O “terrorismo político” é assim visto primeira vez e de uma maneira gradual,
como um crime especialmente grave, me- dotar-se de um enquadramento legal do
recedor de medidas excecionais. Os pre- terrorismo, passando o seu combate a
sos políticos acusados da prática de terro- fazer parte do ordenamento jurídico na-
rismo eram alvo de atenção especial por cional. Inicialmente, a acusação de terro-
parte da PIDE, nomeadamente através do rismo muda de lado, invertendo-se os pa-
encarceramento nas suas prisões privati- péis: logo em 1975, a lei de punição dos
vas. Em 1956, foi decretado pelo Governo responsáveis pela Direção-Geral de Segu-
que todos os que tivessem sido acusados rança (que, em 1969, tinha substituído a
de ter utilizado “o terrorismo como meio PIDE), saída do Conselho de Revolução,
de atuação” podiam ficar detidos quase classifica as polícias políticas do anterior
indefinidamente, por períodos sempre regime como “organizações de terroris-
prorrogáveis (dec.-lei n.º 40.550, de 12 mo político e social”, acusadas de “crimes
mar. 1956). De salientar que, já na par- contra o povo português” (lei 8/75, de
te final do regime, e principalmente du- 25 jul.). Mas a evolução do antiterroris-
rante o Marcelismo, surgem grupos opo- mo na Terceira República Portuguesa irá
sicionistas de luta armada, que era cada passar fundamentalmente por três fases,
vez mais vista favoravelmente por muitos que irão contribuir para uma estratégia
sectores da oposição ao regime – como a nacional alargada de defesa do Estado
Liga de Unidade e Ação Revolucionária, e da sociedade contra o fenómeno do
a Ação Revolucionária Armada, ligada ao terrorismo.
Partido Comunista Português, e as Briga- Numa primeira fase, que abrange o
das Revolucionárias –, partilhando um período pós-revolucionário até ao final
ideário anti-imperialista e anticolonialis- do séc. xx, a legislação antiterrorista
ta, e sendo responsáveis por operações será motivada pela eclosão do terroris-
de sabotagem, assaltos e destruição de mo doméstico, inicialmente sobretudo
propriedade militar. Paralelamente, no de extrema-direita, e, a partir de inícios
âmbito da política externa, era prática da déc. de 80, de extrema-esquerda. As-
comum do regime designar os movimen- sim, contra a ameaça da “sovietização” do
tos e os grupos guerrilheiros autóctones país e por uma “cruzada branca” contra
que emergiram, a partir do início dos a “opressão vermelha” (na linguagem
anos 60, nas então designadas províncias usada neste período), emergiram grupos
ultramarinas de África como terroristas, contrarrevolucionários como o Exército
debatendo-se Portugal com um “surto de de Libertação de Portugal e, depois, o
terrorismo”. José Pinheiro da Silva, depu- Movimento de Libertação de Portugal,
tado da União Nacional, resumia a situa- assim como os Comandos Operacionais

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1828 Antiterrorismo

de Defesa da Civilização Ocidental, que Assembleia da República, que será incluí-


foram responsáveis por uma campanha da no novo Código Penal de 1982 (e pos-
bombista contra alvos inimigos (princi- teriormente no Código Penal de 1995).
pal, mas não exclusivamente, o Partido Nela, constam normas relativamente aos
Comunista Português), e que contaram crimes de “organização terrorista” e de
com um significativo levantamento po- “terrorismo”, estabelecendo-se as penas
pular no Norte do país, denominado a cumprir, nomeadamente em crimes
Maria da Fonte, que realizou uma série “contra a vida, a integridade física, ou a
de assaltos a sedes partidárias da extre- liberdade das pessoas”, assim como “con-
ma-esquerda. Na mesma altura, as Bri- tra a segurança dos transportes”, através
gadas Revolucionárias (já associadas ao de “bombas, armas de fogo, e meios in-
Partido Revolucionário do Proletariado) cendiários de qualquer natureza” (lei
assumiram, na clandestinidade, a luta n.º 24/81, de 20 ago.). Também os servi-
pela “vigilância” da Revolução contra a ços e as forças de segurança foram adap-
ameaça “fascista”. De notar, também nes- tados ao novo contexto antiterrorista: em
ta altura, a defesa da violência política 1979, (dec.-lei n.º 506/79, de 24 dez.),
por movimentos separatistas nas regiões no Ministério da Administração Interna
autónomas dos Açores (Frente de Liber- (MAI), no âmbito da Polícia da Seguran-
tação dos Açores) e da Madeira (Frente ça Pública (PSP), fundou-se o Grupo de
de Libertação do Arquipélago da Madei- Operações Especiais, conhecido como
ra), ambos acusados de “terrorismo” na unidade antiterrorista, e, em 1980, no Mi-
Assembleia da República. A ação, a partir nistério da Justiça, no interior da Polícia
de 1980, de um grupo terrorista autode- Judiciária, foi criada a Direção Central de
nominado Forças Populares 25 de Abril Combate ao Banditismo, dedicada à pre-
(FP-25), inserido no Projeto Global, que venção e investigação da “criminalidade
visava, através de assaltos a bancos (para de alta violência praticada por grupos ar-
se financiar), da luta armada e de atenta- mados” (dec.-lei n.º 235/80, de 18 jul.),
dos, tomar o poder, fez aumentar ainda que seria extinta na primeira década do
mais a sensibilidade social e política re- séc. xxi e substituída pela Unidade Na-
lativamente ao fenómeno do terrorismo, cional Contra o Terrorismo. Também
assim como a necessidade de legislação e no organograma do MAI foi criado, em
de serviços de segurança apropriados ao 1984, um novo serviço de informações,
seu combate. o Serviço de Informações de Segurança
Também por esta altura, Portugal foi (SIS), com competências na prevenção
palco de atentados terroristas por coman- do terrorismo e de todos os atos que
dos estrangeiros, nomeadamente às em- “possam alterar ou destruir o Estado de
baixadas de Israel e da Turquia. Em 1981, direito constitucionalmente estabeleci-
como um sinal de novos tempos em ma- do” (lei n.º 30/84, de 5 set.), que, a partir
téria de terrorismo, a Assembleia da Re- de 2004, ficaria na dependência direta do
pública aprovou e ratificou a Convenção primeiro-ministro.
Europeia para a Repressão do Terrorismo Nesta primeira fase, e depois da reação
(de 1977), tendente a agilizar a coorde- organizacional e penal por parte do Es-
nação dos Estados signatários nesta ma- tado à eclosão do terrorismo, o tema es-
téria (lei n.º 19/81, de 18 ago.). Nesse bate-se e perde relevância pública, com
ano, surge a primeira lei especificamente exceção de dois casos: o prolongado e
antiterrorista em Portugal, aprovada pela complexo julgamento dos operacionais

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Antiterrorismo 1829

e autores morais das FP-25, que foram uma organização internacional (art. 3).
também julgados por terrorismo, sendo Para além do endurecimento das penas,
condenados em 1987, mas amnistiados a nova lei também consagrou a respon-
em 1996 (com a oposição dos partidos sabilização criminal das pessoas coletivas
de centro-direita, que reclamaram a in- e entidades (como é o caso de possíveis
constitucionalidade da lei); e a morte do grupos transnacionais). De registar, tam-
primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, bém nesse ano, o reforço da cooperação
em dezembro de 1980, cuja tese oficial horizontal entre forças e serviços de segu-
de acidente foi sendo, com o passar dos rança, através da criação da Unidade de
anos, posta em causa, reforçando-se na Coordenação Antiterrorismo (UCAT),
opinião pública a suspeita de atentado exclusivamente dedicada à problemática
(e por conseguinte, de um ato terrorista). do terrorismo e com representantes da
A segunda fase do antiterrorismo do Autoridade Marítima, do Serviço de Es-
Estado português no regime democrático trangeiros e Fronteiras, da PSP, da GNR,
foi impulsionada pelos ataques do terro- do SIS e, em anos posteriores, do Serviço
rismo islâmico, primeiro nos Estados Uni- de Informações Estratégicas de Defesa e
dos e depois em território europeu. Foi do Ministério Público, refletindo assim a
sobretudo a partir de 2001 que a União procura de uma estratégia integrada, no-
Europeia (UE) fez do contraterrorismo meadamente a cooperação civil-militar,
uma prioridade, em vez de ser fundamen- contra um terrorismo também cada vez
talmente, como até então, uma questão mais integrado e complexo. É durante
de política interna de cada Estado; até este período que Portugal, como a maior
essa data, apenas 6 países, entre os quais parte dos Estados membros da UE, vai
Portugal, num total de 15 Estados mem- adotar, de forma a alertar a opinião pú-
bros, tinham legislação especificamente blica, um sistema de classificação – numa
antiterrorista. Em 2002, a UE aprovou escala de 1 a 5 – do nível de ameaça, defi-
uma decisão-quadro, a ser ratificada por nido pelo SIS, de um atentado terrorista,
todos os membros, relativamente à luta que pode ou não ser alterado de acordo
contra o terrorismo, destinada a harmo- com o contexto internacional. A partir
nizar as políticas e a cooperação a nível desta segunda fase – e tendo em conta
comunitário. Esta nova política euro- a intensificação do terrorismo transna-
peia foi cumprida, em Portugal, com cional –, o enfâse legislativo vai incidir
a aprovação pela Assembleia da Repú- cada vez mais na interdependência exis-
blica da Lei de Combate ao Terrorismo tente entre a segurança interna do país
(lei n.º 52/2003, de 22 ago.), criando-se e as componentes internacionais e de se-
assim um novo regime jurídico. A ideia gurança externa. É nessa perspetiva que
de que o terrorismo rompia fronteiras a UE, no seguimento dos atentados da
e era transnacional – nas suas fontes de Al Qaeda em Madrid, adota, em 2005, a
financiamento, nos seus apoios, na sua sua estratégia antiterrorista, a qual, para
mobilidade operacional e nos seus al- além de promover a coordenação entre
vos – constituiu uma das ideias mestras políticas e agências de segurança a nível
da nova lei, que acrescentava o crime de europeu, acentua a necessidade da “pre-
terrorismo internacional (art. 5) e, em venção” do terrorismo doméstico, no
“outras organizações terroristas”, todas sentido de conter a crescente radicaliza-
as situações em que os agentes pudessem ção e recrutamento para ações terroristas
ter como alvo um Estado estrangeiro ou que se verificava no interior dos Estados

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1830 Antiterrorismo

membros como consequência de ideo- lei de combate ao terrorismo; lei de es-


logias e apelos transnacionais. Portugal trangeiros; Código de Processo Penal; lei
seria o último Estado membro a aprovar da nacionalidade. O Código de Processo
esta nova estratégia: ao fim de cinco anos, Penal foi atualizado, de forma a incluir na
em 2010, adotaria finalmente a Estratégia sua definição de terrorismo o crime de fi-
Nacional de Combate ao Terrorismo, de nanciamento do terrorismo; a lei de com-
acordo com as diretrizes da UE. bate ao terrorismo passou a criminalizar a
Na terceira fase do combate ao terro- apologia pública do terrorismo e a viagem
rismo em Portugal no início do séc. xxi, para a adesão a organizações terroristas
assistiu-se ao reforço de dinâmicas fun- (um dos requerimentos fundamentais da
damentais presentes anteriormente, tais resolução da ONU); também a lei da na-
como o alargamento do sistema de segu- cionalidade incluiu mais um critério para
rança interna para incluir novos riscos (fí- a concessão de naturalização: a inexistên-
sicos e virtuais) em matéria de terrorismo cia de ameaça, por parte do requerente, à
e a cada vez maior interligação entre a se- segurança nacional (e o mesmo se aplica
gurança interna do país e o contexto eu- agora à concessão de vistos de residência);
ropeu e internacional. A emergência do e a mudança na lei das ações encobertas
autoproclamado Estado Islâmico (EI) e a aumentou a capacidade operacional das
participação no seu jihadismo de milhares forças de segurança, ao permitir a possi-
de combatentes de uma multiplicidade de bilidade de infiltração em organizações
países (entre os quais Portugueses e luso- terroristas. Finalmente, reforçaram-se as
descendentes) levou o Conselho de Segu- competências da UCAT, quer em termos
rança das Nações Unidas, na sua resolu- estratégicos quer em termos da coopera-
ção de setembro de 2014 (2178/2014), a ção internacional, entendida como cada
instar os Estados membros a reforçarem vez mais prioritária no combate ao ter-
a coordenação antiterrorista, a troca de rorismo. A utilização do ciberespaço por
informações e o controlo das suas frontei- terroristas (ciberterrorismo) e o crescente
ras, de modo a travarem a mobilidade e a relevo da Internet no domínio da radica-
circulação dos combatentes estrangeiros lização, do recrutamento e da apologia
e a sua adesão ao EI (assim como a ou- do terrorismo levaram os Estados, nomea-
tros grupos terroristas). No seguimento damente o português, a desenvolver uma
desta resolução, após discussão com to- estratégia de cibersegurança. Foi nessa
dos os partidos com assento parlamentar, ótica que se delineou a Estratégia Nacio-
o Governo português preparou um novo nal de Segurança da Informação, a qual
pacote de medidas antiterrorismo, ratifi- compreende o Centro Nacional de Ciber-
cando, em Conselho de Ministros, uma segurança (resolução do Conselho de Mi-
revisão da Estratégia Nacional de Comba- nistros n.º 12/2012), que tem como uma
te ao Terrorismo, aprovada na Assembleia das suas funções a remoção e o bloqueio
da República, em março de 2015, na sua de sites radicais de apologia da violência e
totalidade, pelos deputados do PSD/CDS­ do terrorismo.
‑PP e do PS, e apenas parcialmente pelos Em resumo, a história do antiterroris-
outros grupos parlamentares. Esta revisão mo em Portugal (mesmo quando não era
implicou a alteração de oito leis – lei da de terrorismo que se falava) é a história da
criminalidade organizada; lei das ações adaptação do Estado português, em cada
encobertas; lei de segurança interna; lei período histórico, aos riscos, às ameaças
de organização e investigação criminal; e aos desafios colocados por aqueles que,

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Antitomismo 1831

de acordo com a conjuntura histórica, fo-


ram vistos como inimigos da sua autorida-
Antitomismo
de e da sociedade portuguesa.

Bibliog.: ARGOMANIZ, Javier, The EU and


Counter-Terrorism: Politics, Polity and Policies after
9/11, London, Routledge, 2012; BARREIROS,
José António, “Criminalização política e defe-
sa do Estado”, Análise Social, vol. xviii, n.os  72­
‑74, 1982, pp. 813-828; BEBIANO, Rui, “Con-
Q uando se considera o termo “anti-
tomismo”, há dois elementos que
necessariamente têm de ser tomados em
testação do regime e tentação da luta armada
linha de conta. São eles a formação do
sob o Marcelismo”, Revista Portuguesa de His­
tória, n.º 37, 2005, pp. 65-104; CARDOSO, tomismo enquanto escola filosófica que
Pedro, “As informações em Portugal”, Revista segue as doutrinas expostas por Tomás
Nação e Defesa, ano v, n.º 15, jul.-set. 1980, de Aquino, por um lado, e, por outro, as
pp.  143-177; CATROGA, Fernando, “Em correntes filosóficas, doutrinas ou escolas
nome de... A heroicização do tiranicídio”, in que se lhe opõem. Entendido deste modo,
MACHADO, Fernando Augusto et al. (orgs.), tomismo e antitomismo são conceitos ge-
Caminhos de Cultura em Portugal: Homenagem ao
rados pela compreensão de um problema
Professor Doutor Norberto Cunha, Vila Nova de
Famalicão, Húmus, 2009, pp.  125­‑160; CE- originado num contexto historiográfico
REZALES, Diego Palacios, Portugal à Coronha­ bem definido, a saber, o da fundação das
da: Protesto Popular e Ordem Pública nos Séculos universidades na Europa Ocidental e, em
XIX e XX, Lisboa, Tinta da China, 2011; Diário concreto, o das disputas de poder entre
da Assembleia da República, i sér., n.º 53, 29 mar. Dominicanos, Franciscanos e seculares na
1978; Diário da República, i sér., n.º 27, 7 fev. Univ. de Paris, no início do séc. xiii. A 7
2012; n.º 36, 20 fev. 2015; Diário das Sessões
de março de 1277, no intuito de pôr fim
da Assembleia Nacional, n.º 150, 6 dez. 1937;
n.º 13, 11 jan. 1962; GERALDES, Ana Vaz, à controvérsia doutrinal que vinha amea-
“Ciberterrorismo: cenário de materialização”, çando a Faculdade das Artes da Univ. de
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Paris praticamente desde a sua fundação,
Lisboa, vol. liii, n.os 1-2, 2012, pp. 41-94; HES- Etienne Tempier, bispo de Paris, condena
PANHA, António Manuel, “A resistência aos 219 teses defendidas em Filosofia, julgadas
poderes”, in MATTOSO, José (coord.), Histó­ heterodoxas e danosas para o ensino da
ria de Portugal, vol. iv, Lisboa, Estampa, 1993,
Teologia. O nome de Tomás de Aquino
pp. 451-459; MARTINS, Oliveira, Portugal
Contemporâneo I, Lisboa, Círculo de Leitores, ficará para sempre ligado a este texto con-
1987; MILLER, Martin Alan, The Foundations denatório, dado que um conjunto de teses
of Modern Terrorism: State, Society and the Dyna­ aí referendadas abrangia o ensino do fra-
mics of Political Violence, Cambridge, Cambridge de dominicano. O seu nome surge igual-
University Press, 2013; PEREIRA, Rui, “Terro- mente, na sua época, ligado à receção da
rismo e insegurança: a resposta portuguesa”, obra de Aristóteles no Ocidente latino e
Revista do Ministério Público, ano 25, n.º 98,
ao comentário das obras do Estagirita no
abr.-jun. 2004, pp. 77-110; ROSAS, Fernando
et al., Tribunais Políticos: Tribunais Militares Espe­ contexto do plano de estudos da Filosofia
ciais e Tribunais Plenários durante a Ditadura e o da Univ. de Paris. A sua obra vastíssima,
Estado Novo, Lisboa, Temas e Debates, 2009; em extensão e diversidade, abrange aná-
SOARES, Teresa Luso, “O crime de lesa-ma- lises a praticamente toda a obra de Aris-
jestade humana na legislação portuguesa”, tóteles, bem como às Sentenças de Pedro
Jurismat, n.º 3, 2013, pp. 167-184. Lombardo, comentários teológicos, obras
José Pedro Zúquete de polémica, grandes sumas de teologia,

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1832 Antitomismo

epístolas e até pequenos opúsculos sobre de St. Pourçain. Para o restabelecimento


a ação oculta da natureza, a influência da autoridade do Aquinate como referen-
dos astros, a escolha baseada na sorte ou te de ortodoxia, terão contribuído alguns
o segredo em matéria de consciência e factos: a sua canonização em 1323, e a
de religião, estes últimos redigidos quase revogação, em 1325, da condenação de
sempre a propósito de alguma consulta 1277, pelo bispo de Paris, agora Etienne
solicitada sobre os assuntos de que ver- Bourret; a substituição, na Univ. de Paris,
sam. Tomando em conta a obra de Tomás já ao longo do séc. xv, do comentário às
de Aquino e a sua estratégia de ensino, é Sentenças de Pedro Lombardo, pela Suma
justo destacar a ousadia e até uma certa de Teologia de Aquino, como manual de
genialidade do Aquinate, no seu tempo base para o ensino da Teologia – prática
e no seu contexto histórico, dado que faz importada por Francisco de Vitória para
uso do sistema filosófico de um autor es- a Univ. de Salamanca, já no séc. xvi, e se-
tranho ao cristianismo para nele suportar guida pelas universidades portuguesas de
doutrinas filosóficas que servirão de base Coimbra e Évora desde as respetivas fun-
à compreensão da teologia cristã. E, como dações; a proclamação, em 1567, de Aqui-
se não bastasse, ainda usa os comentários no como doctor Ecclesiae, pelo Papa Pio V,
ao Estagirita saídos da mente e da pena no contexto da luta, em matérias teológi-
de filósofos hostis ao cristianismo, como é cas, contra as teorias defendidas pela Igre-
o caso dos filósofos árabes, a quem o Oci- ja reformada; a recomendação feita pelo
dente deve a receção das obras maiores Concílio de Trento de que a doutrina de
do corpus aristotelicum. Tomás de Aquino fosse seguida no ensino
Regressemos às condenações de Paris da Teologia, indicação corroborada pelo
em 1277, e ao facto de elas abrangerem texto da Ratio Studiorum da Companhia de
teses defendidas por Tomás de Aquino. Jesus (cuja primeira edição impressa, para
Evidenciemos que no mesmo ano, em revisão interna, data de 1586, sendo a fór-
Oxford, teses de inspiração tomista fo- mula final de 1599), contendo as normas
ram condenadas por Robert Kilwardby, para o ensino nos colégios e universida-
arcebispo da Cantuária, dominicano, con- des dos Jesuítas.
denação reiterada pelo seu sucessor, em Os factos até agora reportados mos-
1284, Jean Pecham, membro da Ordem tram, antes de mais, a complexidade de
dos Frades Menores. Estas sucessivas con- identificar o conceito de tomismo, esta-
denações, unidas à ascensão dos mestres belecendo para ele uma definição exata
da ordem mendicante nos cargos e na e circunscrevendo claramente as suas
docência, nas universidades de Paris e de fronteiras semânticas. Ora, se assim é, a
Oxford, gerou em torno do Aquinate um definição do conceito que se lhe opõe,
ambiente de controvérsia e mesmo de sus- antitomismo, padece da mesma dificul-
peição de ortodoxia. No séc. xiv, alguns dade. Se assumirmos por tomismo a cor-
seus correligionários, entre os quais se des- rente filosófica e doutrinal que segue a
taca a figura de Hervé de Nedellec, lutam doutrina de Tomás de Aquino, e a ela cir-
pela reabilitação da autoridade de Tomás cunscrevermos um conjunto de autores,
de Aquino, contudo não sem enfrentar mesmo assim enfrentaremos as dificulda-
obstáculos, mesmo vindos de outros mem- des que decorrem do facto de, ao menos
bros da ordem, que preferiam a doutrina em alguns aspetos, a própria doutrina do
filosófica e teológica de linha franciscana, Aquinate ser controversa, como ocorre
como é o caso do Dominicano Durando com alguns tópicos particulares, e.g., a

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Antitomismo 1833

encerram doutrinas e escolas, e os res-


petivos debates, disseminados ao longo
de séculos, bem como de definir os seus
contrários é o facto de alertar para visões
simplificadas dos mesmos, tornando pos-
sível corrigir perspetivas e afinar a análise.
Poderíamos considerar, e.g., o antitomis-
mo como as doutrinas daqueles autores
que se colocam explicitamente contra
uma filosofia de escola, baseada no ensi-
no do aristotelismo e deste comentado a
partir de Tomás de Aquino. Encontraría-
mos, então, nos filósofos humanistas, a ex-
pressão de uma corrente de pensamento
antitomista. Tal facto comprova-se histo-
ricamente com base nos documentos da
época: o humanismo renascentista italia-
no, desde Petrarca a Marcilio Ficino, pas-
São Tomás de Aquino (c. 1395), sando por Lorenzo Valla, Pomponazzi ou
Fra Angelico. Salutati, caracteriza-se por ser crítico do
saber escolástico, que identifica com uma
afirmação segundo a qual a natureza hu- compreensão do mundo e do homem
mana enquanto tal estaria destinada a ver cristalizada em torno de uma metafísica e
Deus por essência no estado de beatitude teologia fundadas na lógica de Aristóteles.
eterna, tema que dá origem a uma enor- Paradigmático, a este propósito, é o dis-
me polémica já no séc. xiv e nos subse- curso proferido por Valla na festa litúrgi-
quentes, conduzindo à divisão de escolas; ca do Angélico, em 1457, Encomion Sancti
o mesmo ocorre com a posição acerca da Thome Aquinatis, a pedido dos padres do-
origem, natural ou positiva, do conceito minicanos de Roma. Neste discurso, Valla
de ius gentium – direito dos povos – que, reconhece as qualidades intelectuais e
no séc. xvi, assume proeminência nas morais de Aquino, e louva-o amplamente
discussões originadas a propósito da con- por elas. Contudo, com plena consciência
quista das Américas. Discutido no âmbito de se dirigir aos mais altos representan-
do ensino de Teologia Moral nas univer- tes da escolástica tardia, tece uma crítica
sidades de Salamanca, Coimbra e Évora, clara ao seu paradigma antropológico e
torna-se, ao menos do ponto de vista teó- teológico, dele se distanciando e com ele
rico, um verdadeiro foco de dissensão; entrando em aberta divergência. Huma-
ou, no domínio estritamente teológico, nismo renascentista, erasmismo e lutera-
a negação da sentença provável, defendi- nismo serão doravante expressões de di-
da pela escola franciscana, da imaculada vergência ou de itinerários intelectuais de
conceição de Maria, Mãe de Cristo, tópico recusa e crítica aberta ao modelo mental
que daria lugar a um sem-fim de disputas, que, segundo Valla, predomina e molda o
como veremos mais adiante. pensamento ocidental, de Boécio à época
Uma das virtualidades inerentes ao sua coeva. Assim sendo, é consensual en-
ensaio de delimitar conceitos tão am- contrar no humanismo renascentista um
plos como aqueles aqui em causa, que movimento intelectual de repulsa ou, ao

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1834 Antitomismo

menos, de divergência e crítica para com Barbo (ou Paulo Soncinas) e Crisóstomo
o modelo medieval de matriz aristotélico­ Javelli. Ora, estes comentadores de Aris-
‑tomista, em particular no que se refere tóteles segundo a mente de Tomás de
ao seu modo de conceber a teologia e a Aquino não podem ignorar o movimento
filosofia, criticando, especificamente, na- humanista e as novas posições filosóficas e
quela, a metodologia de exegese bíblica teológicas por ele aportadas. Deste modo,
e a conceção de moralidade, e nesta, a é possível observar alguma penetração da
metafísica e a lógica. Por antitomismo en- corrente humanista na própria escolástica
tende-se, desde esta perspetiva, uma visão de filiação tomista e, embora não possa-
do mundo conectada com o movimento mos falar de um antitomismo que a afete,
humanista da renascença, com o seu cri- é certo que o próprio ensino escolástico
ticismo do modelo escolástico medieval, de orientação tomista em alguns momen-
a abertura à ciência da época e à matriz tos se abrirá efetivamente à novidade.
antropológica aí veiculada, concretamen- Esse facto denota-se manifestamente no
te no que se refere à ciência médica, mas ensino da Teologia Moral e do Direito,
também à matemática e à física; o apreço originado na Univ. de Salamanca no iní-
pelas línguas e textos clássicos e a opção cio do séc. xvi, sobretudo quando a men-
por um modelo de conceção do mundo te dos grandes mestres se confronta com
de matriz platonizante. novas realidades antropológicas e cultu-
Contudo, mesmo no que à crítica ao rais, como as que derivam dos contactos
pensamento escolástico diz respeito, é com os povos indígenas, a sua religião e
preciso não deixar de ter em considera- cultura, e com os problemas éticos e polí-
ção que nem todo o ensino escolástico ticos derivados da conquista das Américas
é de linha e filiação tomista, convivendo pelas coroas espanhola e portuguesa. As-
esta com outras correntes, tais como o petos de compenetração entre escolástica
escotismo e o nominalismo, ambas de fi- tomista e humanismo podem verificar-se,
liação franciscana e platónica-agostiniana. por influência de teólogos como Francis-
Sendo assim, não obstante estas últimas co de Vitória, Domingo de Soto e Mel-
serem também doutrinas de escola, por- chor Cano, já no séc. xvi e na península
que ensinadas nas universidades, também Ibérica, nomeadamente no movimento
elas se podem considerar antitomistas, na que se designa por Escola de Salamanca.
medida em que não seguem as doutrinas As características deste movimento, que
ontoepistemológicas e teológicas de To- costumo designar por escolástica huma-
más de Aquino e, por vezes, a elas aberta- nista, originado em contexto académico
mente se opõem. Inversamente, convém de modelo escolástico e de orientação
ter presente que o movimento designado tomista, que soube assimilar aspetos de
por humanismo renascentista não elimi- novidade e estar atento à mudança dos
na o ensino escolástico de filiação tomista, tempos, surtem um efeito colateral curio-
que permanece ligado, nomeadamente so nos autores mais fiéis ao tomismo, que
ao longo do séc. xv, sobretudo ao ensino vem a ser o de uma maior preocupação de
universitário regido pela Ordem dos Pre- proximidade doutrinal ao fundador Aqui-
gadores. Entre os comentadores italianos no, verificada, e.g., na obra de teólogos da
deste período que são fiéis à doutrina designada segunda Escola de Salamanca,
de Tomás de Aquino destacam-se nomes como Bartolomeu de Medina, Domingo
como Francisco Silvestre ou de Ferrara, Bañez e, mais tarde, já em pleno contexto
Tomás de Vio (cardeal Caetano), Paulo contrarreformista, João Poinsot, alias, de

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Antitomismo 1835

S. Tomás. O excurso que aqui levo a efeito


acerca da relação entre tomismo e anti-
tomismo tem como objetivo evidenciar a
complexidade da definição de fronteiras
claras entre escolas e de matizar o próprio
conceito de uma escolástica de filiação
tomista, pois mesmo dentro desta tradi-
ção filosófica e teológica encontramos, se
não um antitomismo, no sentido de uma
doutrina de rejeição dos pressupostos to-
mistas e da mundividência que eles supor-
tam, certamente uma abertura de mente
e uma liberdade de interpretação à qual
nem sempre a historiografia faz jus, quan-
do, e.g., são considerados, sob o mesmo
conceito de tomismo, autores com posi-
Francisco Suárez (1548-1617).
ções deveras díspares.
Para a península Ibérica, sobretudo nos
sécs. xvi e xvii, é reconhecida a função dina, António de S. Domingos, Tomás de
decisiva da Ordem dos Pregadores e da S. Domingos e João de S. Tomás).
Companhia de Jesus na estruturação do Em suma, a autoridade de Tomás de
ensino da Filosofia e da Teologia nas uni- Aquino aparece quase sempre conotada,
versidades e colégios das ordens. Do lado no que se refere à teologia católica, com a
português, aquela última exerce uma fun- ideia de ortodoxia. Assim é no caso da re-
ção determinante nas universidades de comendação do Concílio de Trento para
Coimbra e Évora, no que ao saber filosófi- o estudo do seu pensamento teológico
co e teológico diz respeito. É sabido que o no contexto das escolas católicas. Assim
Ratio Studiorum, na versão de 1599, deter- é no caso da Ratio Studiorum dos Jesuítas,
minava, no parágrafo 5 do capítulo sobre procurando concretizar aquela indica-
a instrução para os professores de Teolo- ção conciliar. Assim é, já no séc. xix, no
gia, que se seguisse o que a Companhia caso da encíclica de Leão XIII e mesmo
determina quanto ao estudo de Tomás no caso, mais recente, da carta de João
de Aquino, no exercício dos comentários Paulo II Fides et Ratio. Este facto não dei-
teológicos da Suma de Teologia. Contudo, xa de ser relevante: na verdade, a auto-
uma aproximação aos textos, impressos ridade de Aquino surge, na história do
e manuscritos produzidos nesse período pensamento filosófico e teológico, por
em contexto universitário de regência je- uma causa de certo modo extrínseca ao
suítica permite verificar, mesmo entre os próprio dinamismo das ideias, ao debate
teólogos jesuítas, alguma liberdade de in- conceptual e ao curso vivo do pensamen-
terpretação no uso dos textos e das doutri- to, indissociáveis da condição histórica
nas de Tomás de Aquino (e.g., Fernando do ser humano e da sua racionalidade.
Pérez, Luis de Molina ou Francisco Suá- Associado à ideia de uma philosophia peren-
rez). Inversamente, uma maior fidelidade nis – e apesar da tentativa da sua recupe-
à doutrina tomista pode ser verificada em ração por parte dos movimentos neoesco-
teólogos pertencentes à própria Ordem lásticos, a que estão ligados nomes como
dos Pregadores (e.g., Bartolomeu de Me- Étienne Gilson, Jacques e Raïssa Maritain;

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ou, mais perto de nós e atuando em áreas De acordo com o exposto, enunciaremos
de ponta, como a ética e a bioética, a que de seguida algumas nótulas identificativas
se ligam nomes como Edmund Pellegrino de uma forma outra de sentir e de pen-
e David Thomasma –, o tomismo é contes- sar, em obras de autores portugueses que
tado pelas filosofias e teologias que privi- agiram no contexto da instituição univer-
legiam a historicidade da razão e atendem sitária, numa época em que a doutrina de
a uma conceção do homem e da natureza Tomás de Aquino era proposta e assumi-
essencialmente dinâmica, validadas pelos da pelas autoridades competentes como
desenvolvimentos contemporâneos da fí- aquela que deveria ser seguida no ensino
sica e da ciência médica, com consequen- da Filosofia e da Teologia.
tes repercussões éticas, antropológicas e Tal época histórica coincide com o en-
sociológicas. sino ministrado, no séc. xvi, nas univer-
De quanto até agora expusemos acerca sidades portuguesas de Coimbra e Évora.
do tomismo, deduziremos o horizonte se- Contudo, o ensino da Teologia e da Filo-
mântico do conceito de antitomismo, tal sofia em Portugal neste período, no que
como aqui o iremos considerar. A abor- se refere ao plano de estudos e ao inter-
dagem que aqui se fará será direcionada câmbio de docentes, está intimamente re-
para os autores que agiram em Portugal, lacionado como o mesmo ensino nas de-
e o âmbito semântico do conceito será es- mais universidades da península Ibérica
clarecido à luz dos seguintes parâmetros: e, mesmo, com o projeto de ensino para
1) correntes filosóficas e teológicas de além deste espaço geográfico, haja em vis-
filiação agostiniana-franciscana, atuando ta as relações, nomeadamente, com Fran-
no contexto institucional das universida- ça e com Itália, numa primeira fase, e, já
des; 2) correntes de pensamento ligadas no séc. xvii, mesmo com os territórios de
ao movimento intelectual designado por além-mar, sobretudo a Oriente, como o
humanismo renascentista; 3) doutrinas Japão e a China. O movimento ligado à
filosóficas e teológicas associadas com filosofia ética e política iniciado por Fran-
o movimento da Reforma; 4) tópicos de cisco de Vitória, em Salamanca, está hoje
controvérsia explícita. amplamente estudado e documentado
Mais do que mediante uma controvér- e nele se podem verificar características
sia aberta ou um enfrentamento de esco- daquilo que já antes designámos como
las, que não são características essenciais humanismo escolástico. Apesar do apa-
da identificação do conceito no contex- rente paradoxo que envolve a expressão,
to português, exceto porventura para a ela dá conta de uma escolástica aberta ao
discussão teológica em torno da piedosa diálogo com as descobertas científicas do
doutrina acerca da conceção imaculada tempo, às posições teóricas dos humanis-
da Virgem Maria – que adiante glosare- tas e a uma nova conceção antropológica
mos –, antitomismo significa, na nossa e cosmológica, que emerge necessaria-
abordagem, a adoção de um conjunto mente no confronto com a realidade
de proposições no domínio filosófico e humana e até mesmo cósmica que deriva
teológico divergentes das explicadas por do encontro da cultura ocidental conti-
Tomás de Aquino e pelos seus comenta- nental com o Novo Mundo. Assim, é por
dores, menos próximas da lógica e da me- iniciativa do próprio Francisco de Vitória
tafísica aristotélicas e mais consonantes que – à semelhança do que se praticava
com outras correntes ou escolas filosófi- em Paris e já em diversos colégios de or-
cas, e/ou carismas de profissão religiosa. dens religiosas, mesmo em Espanha – o

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Antitomismo 1837

ensino da Teologia passa a ser ministrado do Pérez, Fernando Rebello, em Évora;


com base no comentário à Suma de Teo- António de S. Domingos, Manuel Soares
logia de Tomás de Aquino, substituindo e Pedro Barbosa, em Coimbra; Francisco
esta o comentário às Sentenças de Pedro de Toledo, Francisco Suárez e Juan de Sa-
Lombardo. Do lado português, é atribuí- las, em Roma; Francisco Maldonado, em
da a Martinho de Ledesma a inserção da Paris, e Gregório de Valencia, em Dilinga
mesma novidade no plano de estudos (PEREÑA, 1982, 149-150).
da Univ. de Coimbra. Isto não obstante, No que se refere concretamente ao
nesta primeira metade do séc. xv, os co- conceito de ius gentium e à discussão sobre
mentários a Tomás de Aquino denotarem a sua condição natural ou positiva, pro-
em alguns lentes de ambos os quadrantes blema que, na exposição que ocorre na
da península Ibérica uma leitura crítica e Suma de Teologia de Tomás de Aquino, está
aberta, com o objetivo de que a doutrina envolto em ambiguidades e cujo esclare-
ensinada pudesse dar conta, em termos cimento se torna decisivo no séc. xvi, a
teóricos, mas sobretudo na sua aplicação discussão mostra que, tanto do lado espa-
prática, dos problemas emergentes sobre nhol como do português, há hesitações e
a dignidade humana dos povos indíge- preferências por doutrinas e autores, e no
nas, sobre a legitimidade da ocupação e debate pode ver-se que, mesmo entre Do-
expropriação dos territórios das Améri- minicanos, há posições divergentes acer-
cas, sobre a escravatura, a guerra justa e ca do que teria querido ensinar Tomás de
a liberdade religiosa. Estes são alguns dos Aquino, assumindo Vitória e Soto uma
temas que são objeto de controvérsia no posição da qual, em Coimbra, António de
período a que nos referimos. Analisando S. Domingos irá dissentir, enquanto Fer-
o debate gerado em torno a eles no con- nando Pérez, em Évora, procurará conci-
texto do ensino universitário salmantino liar a doutrina dos primeiros com o sentir
e verificando a influência deste do lado de Aquino. Este é apenas um tópico em
português, poderá lançar-se alguma luz discussão à época, que, se bem que não
sobre a aceitação ou rejeição das doutri- evidencie um antitomismo declarado de
nas tomistas ao propósito. Nas notas in- cariz polemicista, dá conta de uma inter-
terpretativas da edição da obra de Juan pretação crítica da doutrina do Aquinate
de la Peña, Luciano Pereña afirma estar que não permite colocar sob a mesma de-
convencido de que na Univ. de Salamanca signação de tomismo um conjunto de no-
existia um programa de investigação e de mes como os antes referidos sem analisar
ensino corporativo cujo objetivo era o de as subtilezas das doutrinas de cada autor
analisar em profundidade a legitimidade e afinar as posições em debate. Estamos
da empresa espanhola nas Américas e de perante um período que alguma vez ca-
que havia um plano de disseminação das racterizei como denotando um excesso de
doutrinas da Escola de Salamanca pelas realidade, marcado por transformações
universidades de Coimbra e Évora, entre rápidas e por uma enorme confluência
outras. Segundo este especialista, diretor de doutrinas, também assinalado por um
do projeto de edição da coleção de fontes acesso a novas fontes cuja divulgação se
designada por Corpus Hispanorum de Pace, torna mais célere e abrangente devido à
o projeto fez escola em Salamanca e de- sua publicação impressa; e pelos encon-
pois foi divulgado através do magistério tros conciliares, que desde sempre se ca-
universitário de professores de Teologia racterizaram por serem momentos de in-
e Filosofia como Luis de Molina, Fernan- tercâmbio de ideias e de culturas.

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1838 Antitomismo

Esta confluência de fatores torna de ex- ção entre estes e o direito dos povos. Na
trema complexidade a nossa compreen- verdade, Vitória e Soto abrem o caminho
são de um período da história das ideias para a consideração de um direito subje-
e das culturas ainda pouco estudado e tivo, e o nosso Dominicano, professor em
envolto em obscuridade, dependente de Coimbra, dá conta, no seu comentário,
fontes ainda amplamente ignoradas, a dos riscos da influência desta nova inter-
maior parte delas subsistente em latim e pretação nos domínios ético e político.
sob forma manuscrita. No manuseamento O tomismo de Suárez também deixa mui-
de fontes que pude realizar até à data, no to a desejar, razão pela qual foi criticado já
âmbito de alguns projetos de investigação no seu tempo pelos correligionários. Luis
que dirigi ou em que participei, verifi- de Molina é, por seu turno, um leitor assí-
quei divergências, por vezes subtis, face à duo de Agostinho de Hipona e adota de
doutrina de Aquino, sobretudo no que se perto as suas doutrinas no que se refere
refere a questões envoltas em ambiguida- à natureza da liberdade, à concordância
de na exposição do próprio Angélico. Da desta com a presciência e ao problema
análise feita, tenho dificuldade em inscre- da predestinação. O facto de todos estes
ver, sem mais, sob designação de tomistas autores serem comentadores de S. Tomás
posições de teólogos como António de de modo algum permite considerá-los to-
S. Domingos, Francisco Suárez, Egídio da mistas, sendo, contudo, necessário identi-
Apresentação, Cristóvão Gil, Luis de Mo- ficar até que ponto as suas doutrinas em
lina, Fernando Pérez, entre muitos que, questões particulares, ou no todo, se apro-
por vezes, encontramos colocados sob a ximam ou divergem, por vezes mesmo
mesma designação. Assim, e.g., no estudo abissalmente, das posições do Angélico.
comparativo que realizei sobre a questão Por sua vez, cremos que se esses pontos de
específica vtrum ius gentium sit idem cum divergência não permitem classificar aber-
iure naturali – se o direito dos povos é o tamente as doutrinas destes autores como
mesmo que o direito natural –, que cor- antitomistas – pois, na maior parte dos
responde ao comentário à Suma de Teolo- casos, não se trata de um afastamento no
gia, II-IIæ, q. 57, a.3, verifiquei a crítica de âmbito de controvérsia, mas sim no exer-
António de S. Domingos, Dominicano, a cício da liberdade do pensar e na procura
Vitória e a Soto, também Dominicanos, de encontrar a melhor explicação racio-
por, na opinião daquele primeiro, estes nal para os desafios da época –, permitem
se afastarem do sentir de Aquino, por um ao menos uma melhor compreensão do
lado; e a divergência entre Fernando Pé- que se produziu nas universidades portu-
rez, sj, e António de S. Domingo, por ou- guesas, da liberdade de pensamento em
tro, pela maior abertura da interpretação exercício e da confluência de correntes
do Jesuíta, quando confrontada com a do filosóficas e teológicas, num contexto ins-
Dominicano, no que diz respeito à defesa titucional onde o ensino da Filosofia e da
da radicação do conceito de ius gentium no Teologia estava fortemente dependente
direito natural. António de S. Domingos da Coroa e da instituição eclesiástica, com
critica abertamente Soto, pois afirma que normas didáticas e doutrinais pouco flexí-
considerar o direito dos povos como um veis e cujo incumprimento foi, em alguns
direito positivo levaria à subjetivização de casos, ocasião de fortes penalizações para
um conjunto de normas que só Deus pode os que a ele se atreveram.
revogar, como as que estão nos manda- A par desta atividade dos teólogos que
mentos do decálogo, pela estreita vincula- agiram em contexto universitário, os

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Antitomismo 1839

quais ensinaram também, o mais das ve- ligadas de um aristotelismo de filiação


zes, no curso de Filosofia, no mesmo pe- tomista. É o caso do Dominicano André
ríodo existe uma produção literária consi- de Resende, autor de uma famosa oração
derável por parte de homens de Igreja ou de sapiência, Oratio Pro Rostris, proferida
letrados que atuam principalmente fora em 1536 no Estudo Geral de Lisboa, que
das instituições de ensino ou cuja ativida- consiste num discurso laudatório sobre a
de não se vincula a estas de modo sistemá- necessidade das disciplinas e artes liberais
tico, atuando em contexto palaciano, ou na renovação do estudo e na compreen-
assumindo cargos políticos ou eclesiásti- são da Sagrada Escritura. O mesmo Re-
cos, como confessores da corte ou bispos. sende é autor de um discurso de elogio
É o que sucede com nomes ligados ao hu- a Erasmo de Roterdão, Encomium Erasmi,
manismo português como André de Re- que o aproximaria de erasmistas e lutera-
sende e Jerónimo Osório, ou mesmo com nos, associação que, como escreve Pedro
nomes ligados ao exercício de outras artes Calafate, terá influenciado D. João III na
e ofícios que não a teologia, como João decisão de entregar o Colégio das Artes
de Barros, para a historiografia, Francisco de Coimbra aos Jesuítas, “expulsando a
de Holanda, para a pintura e a arquite- verdadeira guarda avançada do humanis-
tura, e Pedro Nunes para a matemática, mo português” (CALAFATE, 2001, 64) e
cosmografia e astronomia. O contributo optando por uma formatação do ensino
destes nomes para a filosofia em Portugal e das mentalidades de matriz escolástica.
foi estudado na obra coletiva dirigida por O caso de Jerónimo Osório, bispo de Sil-
Pedro Calafate, História do Pensamento Filo- ves, é também paradigmático, se tivermos
sófico Português; mais recentemente, desta- em conta, a título de exemplo, o seu Tra-
ca-se o projeto de investigação realizado tado da Justiça. Inúmeros são os tratados
na Univ. de Aveiro sobre humanismo, De Iustitia et Iure redigidos em contexto
diáspora e ciência nos sécs. xvi e xvii (ve- académico, comentando a Suma de Teolo-
ja-se a obra de António Andrade), com re- gia de Aquino. Porém, e não obstante a
sultados que paulatinamente contribuem formação académica e salmantina de Osó-
para compreender esta relação entre en- rio, o seu tratado nada tem de próximo
sino universitário de matriz escolástica e com aqueles outros. É antes quase uma
humanismo no espaço português. Para o narração da condição humana à luz dos
estudo de Francisco de Holanda, são re- princípios bíblicos da criação, da queda
ferência incontornável as inúmeras obras original e da salvação, uma espécie de
de Sylvie Deswartes-Rosa. Os nomes an- análise e descrição da história e da econo-
tes referidos estão conotados com o hu- mia da salvação do género humano. O es-
manismo português seiscentista, tendo tilo linguístico e os recursos literários são
todos eles (à exceção de Pedro Nunes, os da retórica humanista, não obstante
que nunca saiu de Portugal) um percurso desta obra não se ausentar inteiramente
cosmopolita e de contacto com homens o modelo aristotélico e tomista, sobretu-
de cultura e de arte desde Espanha até ao do no que se refere à análise dos fins do
Centro e Norte da Europa, ou mesmo a homem, da liberdade e das virtudes. Uma
Inglaterra. Todos eles podem, ao menos leitura livre de preconceitos em nada co-
de modo transversal, ser estudados no âm- nota os conteúdos da obra com as heresias
bito de um conceito como o antitomismo, de Lutero, bem pelo contrário, pois Osó-
na medida em que as suas obras denotam rio é aí crítico feroz do heresiarca. E, con-
uma opção por conceções do mundo des- tudo, para além de motivos originados

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1840 Antitomismo

pelo contexto histórico, terá sido também


por se esgrimir à estrita observância do
modelo expositivo e da doutrina tomista,
preferindo filiar-se por vezes nas corren-
tes antropológicas de matriz agostiniana,
que a obra foi apontada pela Inquisição
e introduzida, no período pós-tridentino,
no Índice dos Livros Proibidos. Precauções
de alinhamento com a ortodoxia verifi-
cam-se, no mesmo período, na atitude de
Francisco de Holanda, as quais se podem
ler sobretudo na dedicação da sua magna
obra, De ætatibus Mundi Imagines (HO-
LANDA, 1983, 8), onde o pintor renas-
centista faz uma profissão de fé e de obe-
diência à autoridade eclesiástica que não Francisco de Holanda (1517-1585).
se encontra nas obras do período anterior
às determinações conciliares em matéria do que temos vindo a analisar, de diversos
de iconografia sacra, marcadas pelo hu- modos e por escolas diversas. Prova disso,
manismo renascentista italiano, como é o e para o período que estamos a tomar
caso de A Pintura Antiga e dos Diálogos de como referência, é a existência, no seio
Roma. das universidades em Espanha e Portugal,
Com este excurso através de alguns de um conjunto de cátedras menores, nas
nomes paradigmáticos do humanismo quais as outras vias que não a tomista, a
português, evidenciando o modo como saber as nominalista e escotista, encontra-
as suas obras foram compreendidas pelos vam também o seu lugar, como é o caso
seus contemporâneos, pretendi mostrar das cátedras de Durando, Gabriel Biel e
como o tomismo se foi progressivamente Escoto. Assim, é minha convicção que a
identificando, ao menos na consciência autoridade de Tomás de Aquino se impõe
coletiva, por um lado, com uma certa como doutrina de escola por exigências
ideia de ortodoxia – i.e., um modo de extrínsecas à própria verdade teológica
pensar os temas e problemas da filosofia e ou filosófica que ela transmite, mais se
da teologia conforme à doutrina da Igreja justificando pelo contexto histórico, por
Católica; e, por outro, com o conceito de razões pedagógicas ou de operatividade e
teologia escolástica, esta entendida como comodidade do ensino. E assim, mesmo
a explicação científica, i.e., baseada num no contexto do ensino universitário jesuí-
raciocínio demonstrativo, da doutrina tico, denota-se que a observância da indi-
cristã, à luz dos princípios da filosofia e cação conciliar expressa na normativa do
teologia tomistas. Como já se referiu, este Ratio Studiorum é seguida com liberdade e
facto tem origem num movimento ex- por vezes mesmo ignorada.
trínseco à própria doutrina de Tomás de Este facto verifica-se na leitura dos tex-
Aquino e é alheio à essência do saber filo- tos resultantes do ensino da Filosofia e da
sófico e teológico, o qual, mesmo dentro Teologia nas universidades portuguesas
dos autores escolásticos cujas doutrinas de Coimbra e Évora no séc. xvi e torna­
são consideradas ortodoxas, sempre foi ‑se mais evidente quanto confrontamos
explicado, desde o medievo até ao perío- textos de épocas muito próximas e de

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Antitomismo 1841

autores pertencentes ao mesmo círculo. Este comentário e, em particular, esta


Assim, e.g., se compararmos o comentário definição, influenciam profundamente a
ao De Anima de Aristóteles, sobrevivente monumental obra de Francisco Suárez,
no cód. 2399 da Biblioteca Geral da Uni- Disputações Metafísicas, a qual em nada se-
versidade de Coimbra, pertencente à Li- gue o modelo tomista para a estruturação
vraria do Noviciado de Coimbra, datado dessa ciência, bem pelo contrário. O caso
de 1559 e atribuído a Pedro da Fonseca, de Francisco Suárez é, aliás, paradigmá-
sj, com o comentário de um dos seus tico para evidenciar este modo livre de
discípulos, Pedro Luís, sj (escrito certa- seguir a autoridade de Tomás de Aquino,
mente depois de 1567 e provavelmente ou, na tese que defendemos, a autorida-
antes de 1574, data em que passa a ensi- de eclesiástica que aponta aquela como
nar Teologia), pertencente à livraria do itinerário a seguir no ensino da Filosofia
Colégio de Évora, verificamos que ambos e da Teologia. Suárez é, já no seu tempo,
comentam o texto de Aristóteles a partir reconhecido como autoridade incontestá-
da tradução latina renascentista de João vel, consultor do Papa e do Rei, e reno-
Argiropoulos e seguem o mesmo méto- mado professor de Filosofia e Teologia.
do de comentário. Porém, as referências Contudo, a sua obra usa com liberdade
a Tomás de Aquino, como autoridade, argumentos de filiação escotista, tomista
são escassas, no caso do primeiro autor, e mesmo outros próximos dos nominales,
enquanto no caso do segundo elas são valendo-lhe o atributo de pensador ecléti-
recorrentes e surgem constantemente co, assim considerado sobretudo pelos co-
como suporte da argumentação. E se o mentadores do final do séc. xx, no intuito
primeiro comentário é mais problemati- de, ao não ser possível alinhar o seu pen-
zante, debatendo abertamente doutrinas samento com o de Aquino, lhes permitir
de adversários como Agostinho Nifo e Pe- enquadrá-lo dentro da conveniente orto-
dro Pomponazzi, o segundo evita temas doxia e da correspondente fidelidade ao
de controvérsia, caracterizando-se por ser quarto voto jesuítico. Porém, os próprios
mais expositivo. Não deixa de ser curio- confrades seus contemporâneos o acusam
so, note-se de passagem, que mesmo para de desvio e desalinhamento do tomismo
os comentários à obra de Aristóteles per- recomendado. Isso mesmo se pode ler em
tencentes ao curso de Filosofia, como é o palavras do próprio Suárez numa carta es-
caso destes dois textos, se verifique que cusatória, dirigida ao geral da Companhia
é prática comum assumir como referên- de Jesus, Everando Mercuriano (Vallado-
cia o texto da Suma de Teologia do Doutor lid, 2 jul. 1579), em defesa da acusação de
Angélico e não os comentários do santo antitomista que lhe dirigiu o visitador Die-
à obra de Aristóteles, os quais, a avaliar go de Avellaneda, na base da qual estaria
pelo escasso uso que deles é feito, não um comentário à primeira parte da Suma
terão sido considerados como textos de de Teologia, sobre a predestinação divina:
referência para o estudo da filosofia. No “El modo de leer que yo tengo, que es di-
caso do comentário de Pedro da Fonse- ferente de lo que los más usan por acá,
ca à Metafísica de Aristóteles, e.g., é ainda porque hay costumbre de leer por carta-
mais evidente esta liberdade de interpre- pacios, leyendo las cosas más por tradi-
tação, quando amplia o objeto desta ciên- ción de unos a otros que por mirallas hon-
cia ao ente real per se, incluindo nele não damente y sacallas de sus fuentes, que son
apenas o ser de uma essência, mas tam- la autoridad sacra y la humana y la razón,
bém de tudo aquilo que se ordena a ela. cada cosa en su grado. Yo he procurado

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salir deste camino y mirar las cosas más de emerge para cada problema. Afinal, é
raíz, de lo cual nace que ordinariamente esta atitude que louvamos nos grandes fi-
parece llevan mis cosas algo de novedad, lósofos e é ela que se verifica na leitura
quier en la traza, quier en el modo de de- da obra de Suárez. Assim é quando adota
clararlas, quier en las razones, quier en a conceção escotista da univocidade do
las soluciones a las dificultades, quier en conceito objetivo de ente como base da
levantar algunas dudas que otros no tra- sua metafísica, a qual se torna inconciliá-
tan de propósito, quier en otras cosas que vel com a tradicional tese tomista da dis-
siempre se ofrecen; y de aquí pienso que tinção real entre essência e existência; as-
resulta que, aunque las verdades que se sim é quando no seu De Passionibus rejeita
leen no sean nuevas, se hagan nuevas por a taxonomia das paixões da alma, promul-
el modo, o porque salen algo de la verdad gada por Aquino na Suma de Teologia, cri-
de los cartapacios [o modo de ler que eu ticando-a e à posição que lhe subjaz sobre
tenho [...] é diferente dos que usam os a natureza do composto humano, optan-
outros por cá, porque há o costume de ler do explicitamente pela divisão escotista e
por cartapácios, lendo as coisas mais por pela antropologia que, para o caso parti-
tradição de uns a outros do que olhando­ cular, lhe está subjacente; assim é quando
‑as profundamente e tirando-as das suas debate a possibilidade do conhecimento
fontes, que são a autoridade sacra, a hu- racional da destinação do homem a um
mana e a razão, cada coisa segundo o seu fim último sobrenatural no seu De Fine
grau. Procurei sair deste caminho e olhar Ultimo Hominis, discutindo a controversa
as coisas mais de raiz, donde resulta que, possibilidade, postulada por Aquino, de
ordinariamente, parece que as minhas tal conhecimento. É este paradigma de
coisas têm alguma novidade, quer no tra- um pensar aberto e em diálogo com a tra-
ço, quer no modo de as declarar, quer nas dição que aqui aproximamos da conceção
razões, quer nas soluções às dificuldades, de um antitomismo. Ao menos no caso de
quer no levantamento de algumas dúvidas Suárez, foi assim que tal posição foi en-
que outros propositadamente não tratam, tendida pelos seus contemporâneos. Com
quer em outras coisas que sempre se apre- ela se indica a atitude filosófica e teológi-
sentam. Considero que o resultado disto ca de construção do saber e de resposta
é que, apesar de as verdades que se leem aos desafios do tempo, aberta às melhores
não serem novas, se tornem novas pelo interpretações e em busca delas, que de-
modo, ou porque fogem um pouco à ver- notam tantos escritos filosóficos produzi-
dade dos cartapácios]” (PONCELA, 2000, dos no período que nos ocupa. Afinal, é
100-101). nesse período que a dicotomia tomismo/
A raiz da defesa de Suárez contra a antitomismo porventura mais se eviden-
acusação de antitomista é justamente o cia, ao menos no que se refere à cultura
princípio da liberdade de pensamento, portuguesa.
inerente a uma leitura crítica e reflexiva Neste contexto, mas agora a partir de
da história da filosofia e da teologia, a uma questão claramente de sede teoló-
profundidade de análise dos argumentos gica, importa referir a polémica que, en-
e objeções e, mesmo, o arrojo de colocar quanto tal, i.e., em contexto de efetiva
em causa argumentos de autoridade, mes- controvérsia doutrinal, mais dividiu os to-
mo os proferidos por Aquino, quando se mistas de outras escolas, nomeadamente
comprova que, abandonados estes, uma a escotista. Aqui, podemos falar com pro-
conceção dotada de sentido mais amplo priedade de uma doutrina antitomista,

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Antitomismo 1843

sendo um facto que, nomeadamente em dissocia, no tempo, estes dois momentos.


contexto português, a controvérsia teve as Assim, a conceção é um processo que su-
consequências mais nefastas, sobretudo, põe, como o da geração de toda a substân-
no caso concreto, para os mestres domi- cia, a informação de uma matéria; e, dada
nicanos – o que não deixa de causar per- a natureza caída que afeta todas as subs-
plexidade, tendo em conta o que foi dito tâncias, a conceção dá origem à existência
sobre as indicações de Trento para as es- de uma substância corrupta, porque afeta-
colas teológicas. Referimo-nos à polémica da de matéria corruptível, dado o estado
gerada na Univ. de Coimbra no séc. xvi pós-lapsário não só da natureza humana,
em torno da adoção da então considerada mas de toda a natureza. Nessa substância
proposição provável acerca da imaculada animada corruptível é depois infundida
conceição da Virgem Maria, Mãe de Cris- por Deus uma alma humana, no momen-
to. O assunto foi já objeto de estudos vá- to em que, pelo desenvolvimento natural
rios, de entre os quais referimos o texto do embrião, este se torna uma substância
correspondente à conferência de Fernan- apta para receber aquela forma superior.
do Taveira da Fonseca, proferida a 8 de Tomás de Aquino aplica este modo de en-
dezembro de 2003 no Centro de Estudos tender as substâncias (retirado da Física
de Democracia Cristã. Trata-se de um de Aristóteles e entroncado na doutrina
texto bem documentado e que incide so- cristã do pecado original) ao entendimen-
bre os principais pontos da controvérsia, to da conceção de Maria, Mãe de Cristo.
do ponto de vista do seu enquadramen- Daí deriva a conclusão necessária de que
to quer historiográfico quer doutrinal, o ela está submetida ao estado da matéria
que torna esta exposição uma excelente na condição pós-lapsária, que se caracte-
síntese do assunto em questão. Para com- riza, portanto, por ser corruptível e estar
preender esta polémica no que à defini- sujeita às consequências do pecado origi-
ção de antitomismo diz respeito, e a sua nal. O mundo descrito na Física aristoté-
influência nos destinos da universidade lica corresponde a um universo marcado
portuguesa, nos sécs. xvi e xvii, é neces- pela necessidade e, ao adotá-lo na sua an-
sário compreender em primeiro lugar a tropologia, Tomás de Aquino não pode
divisão doutrinal entre escolas, tomista conceder uma exceção, no plano natural,
e escotista, ao respeito. Depois, a adesão para a criatura humana que é Maria, pois
de prestigiadas instituições universitárias, os processos naturais submetem-se ao de-
como Paris, Oxford e Cambridge, já desde terminismo do movimento dos corpos.
o séc. xiv e claramente a partir do séc. xv, Curiosamente, Escoto estaria de acordo
à doutrina imaculista. E, finalmente, as com esta última afirmação: o reino da phy-
repercussões deste itinerário na Univ. de sis é, também para o Franciscano, o reino
Coimbra nos sécs. xvi e xvii. da necessidade. Porém, acima dele está o
Do ponto de vista doutrinal, duas teses reino da liberdade e da graça, que abre a
opostas acerca da conceção da humanida- natureza a todos os possíveis. E se isto é
de de Cristo por meio de Maria estão em verdade já na liberdade humana, mais o
confronto. Por um lado, a de Tomás de é na de Deus, autor da natureza. Por isso,
Aquino, que, aderindo à filosofia aristo- no caso da geração da criatura que é Ma-
télica para explicar o composto humano, ria, Mãe de Cristo, Escoto raciocina a par-
adota, no que se refere à conceção do cor- tir da omnipotência absoluta de Deus, da
po humano e ao problema da animação sua suprema bondade e do domínio que o
do embrião humano, uma doutrina que Ser supremo tem do curso dos tempos em

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ordem à realização de um plano salvífico. cas, devendo o Reitor contribuir para elas
Assim, o Doutor Subtil considera a conve- com uma participação monetária” (Id.,
niência da geração imaculada da criatura Ibid.).
humana Maria, Mãe de Cristo, e raciocina Porém, no início do séc. xvii, a polémi-
do seguinte modo: em ordem à sublime ca entre defensores da tese imaculista e
perfeição de Cristo, Verbo de Deus incar- seus opositores reacende-se em Portugal
nado, e, portanto, sem pecado, é adequa- – então sob administração espanhola – e
da e conveniente a perfeição imaculada em Espanha, e o problema torna-se uma
de sua Mãe. Deus pode criar um ser não espécie de causa do reino, tomando pro-
sujeito ao pecado original. Se pode criar porções políticas e ideológicas. Como
tal ser; e se criar tal ser é um ato mais per- evidencia Fonseca, esse reacender da con-
feito do que não o criar, então cria. trovérsia leva Filipe III a solicitar a todas
Ambas as doutrinas, não podendo, por as universidades da península que escre-
sua própria natureza, ser demonstradas vam ao Papa explicitando a sua opinião
por evidência racional apodítica, são ad- neste assunto. Em Coimbra, o pedido foi
mitidas como sentenças prováveis. Ora, bem aceite, à exceção, naturalmente, dos
como nota Taveira da Fonseca, a univer- professores dominicanos Vicente Aranha
sidade parisiense é a primeira a adotar a e João Aranha. Da consulta ao Claustro
tese de Escoto, decretando a celebração Pleno e em resposta ao Rei resultou uma
da festa, “no que é seguida pelas de Ox- forma diplomática de contornar a exigida
ford e Cambridge e, mais tarde por esta- posição formal por escrito. Basicamente,
tuto de 1496, ordena que todos os seus a carta emanada da reunião da Junta de
doutores façam juramento de defender Lentes, presidida pelo reitor, mas à qual
perpetuamente o mistério da Imaculada faltaram aqueles dois professores domini-
Conceição e determina não admitir aos canos, sugeria ao Soberano que, em vez
graus quem não fizer tal voto e juramento. de ser a Universidade a dar o seu parecer
No seguimento de Escoto, numerosos teó- sobre a matéria ao Papa, a pedido do Rei,
logos, sobretudo da Ordem franciscana, fosse o Rei a solicitar ao Papa que fizesse
tornaram-se defensores deste privilégio o pedido à Universidade. A deliberação
da Virgem Maria [...] A Ordem religiosa sobre o conteúdo da resposta à consulta
que constituía exceção era a dos Domini- do Rei acerca da posição da Universidade
canos que, na convicção de se manterem em matéria teológica sobre a imaculada
na esteira de Santo Tomás, negavam a conceição seria a seguinte: a Universidade
conceição imaculada” (FONSECA, Centro sempre defendera, desde a sua fundação,
Académico…, 8 dez. 2003). que a Virgem Maria foi preservada do pe-
Na Univ. de Coimbra, a doutrina imacu- cado original e esse era o sentir de todos
lista fora explicita ou implicitamente ado- os doutores presentes na Junta (VASCON-
tada e, ainda segundo o mesmo erudito, CELOS, 1904, 77). Por então, a situação
os Estatutos de 1559 e os de 1597 (ratifica- ficou nestes termos, mas a polémica iria
dos em 1653), “confirmavam a celebração reacender-se no período posterior à Res-
da festa de Nossa Senhora da Conceição, tauração, quando alguns membros da or-
deslocando-se, na véspera e no próprio dem franciscana portuguesa, porventura
dia, todos os membros da comunidade no calor da decisão do Monarca de en-
universitária, sub poena praestiti iuramenti, tronar a Santíssima Conceição padroeira
ao Colégio de Tomar, da Ordem de Cris- de Portugal, em ato solene realizado a 25
to, para participar nas celebrações litúrgi- de março de 1646 nos Paços da Ribeira,

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Antitomismo 1845

insistem junto de D. João IV para que da Fonseca e na bibliografia que aí refere.


obrigue a Univ. de Coimbra a exigir como Quem os lê verifica facilmente que, mais
condição necessária à concessão de título do que uma controvérsia de doutrinas,
o juramento de adesão à tese imaculista. que é pretexto e ponto de partida, é um
Porém, o Claustro de Coimbra, na se- conflito de poderes políticos e religiosos
quência da decisão antes tomada, aduziu que essencialmente aqui se evidencia.
razões de prudência para não introduzir Nesta exposição, atribuí ao termo “an-
essa cláusula. A reação do Monarca foi a titomismo” um largo espectro semântico.
de uma maior insistência no juramen- Trata-se de um conceito que tem de ser
to, ordenando à Universidade que assim definido a partir do esclarecimento do
procedesse, apresentando, entre outros próprio tomismo, o qual, por sua vez, in-
argumentos, o facto de que, na Univ. de tegra um enorme conjunto de autores e
Salamanca, esse juramento era imposto comentadores de Aquino, agindo em mo-
aos graduados. Ora, se a Universidade no mentos diversos da história do pensamen-
seu Claustro obedeceu, os Dominicanos to, que nem sempre possuem doutrinas
novamente não compareceram a este ju- convergentes. Da mesma forma, o con-
ramento solene. Na sequência deste ato, o ceito de antitomismo foi aqui definido a
Rei obrigou-os a responder ante o reitor partir de algumas coordenadas, sem que
e, por ordem do Monarca, a Ordem dos de forma alguma se considere que o seu
Pregadores – que desde sempre esteve li- conteúdo fica exaustivamente explanado
gada ao ensino da Filosofia e Teologia em e, menos ainda, se pretenda que esta pers-
Coimbra – ficou, desde essa ocasião, pri- petiva seja unidimensional. Por antitomis-
vada das suas cátedras e de fazer parte do mo, e de modo particular no que à cultura
corpo universitário. Os detalhes da con- portuguesa diz respeito, entendo as posi-
trovérsia podem ler-se no artigo de Taveira ções teóricas que divergem do tomismo e

Cartaz do Estado Novo alusivo à fundação de Portugal e à restauração da independência.

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1846 Antitomismo

que, direta ou obliquamente, se opõem às mente, uma filosofia de escola orientada


do Doutor Angélico. O que tenho como para o ensino eclesiástico. A nossa cultura
certo é o facto de o tomismo, na história e as suas expressões filosóficas são, contu-
da filosofia e da teologia – enquanto dou- do, expressão mesma da forma mentis do
trina cuja autoridade se impõe a partir de povo que as produz e, por isso, mais do
um movimento que lhe é extrínseco e até, que serem expressão manifesta de antito-
de certa forma, alheio –, emergir em mo- mismo, que nelas não se verifica, são sim
mentos chave da história do pensamen- manifestações do estado de maturação de
to, caracterizados principalmente como uma cultura onde o pensamento é livre e
períodos de mudança e transição. A obra se realiza desvinculado de um contexto
e doutrina de S. Tomás, no séc. xiii, na eclesiológico ou mesmo ideológico, sen-
sua genuinidade e correspondendo ao do esta uma nota dominante da hodierna
momento histórico em que é produzida, produção filosófica em Portugal.
não se identifica com os itinerários que
lhe são posteriores, os quais se encon- Bibliog.: manuscrita: Biblioteca Geral da
tram em estreita ligação com preocupa- Universidade de Coimbra, cód. 239, Pedro
ções de ortodoxia doutrinal teológica ou da Fonseca (?), In Aristotelis De Anima, 1559,
com a organização do ensino dos Studia fls. 1­‑82; Biblioteca Nacional de Portugal, re-
Generalis das diversas ordens religiosas e servados, cód. 5512, António de S. Domingos,
das universidades católicas, no período De Iustitia, 1580, fls. 2v.-7; Ibid., reservados,
cód. 2623, Fernando Pérez, De Iustitia et Iure,
da Contrarreforma. O que parece certo é
1588, fls. 2­‑4; Ibid., reservados, cód. 2513, Pe-
que correntes filosóficas como o tomismo dro Luís, In Libros De Anima, 1567, fls. 84-99;
surgem ligadas ao ensino da Filosofia e da impressa: ANDRADE, António et al.  (orgs.),
Teologia ministrado sob a égide eclesiás- Humanismo, Diáspora e Ciência (Sécs. XV e XVI),
tica, facto que se pode comprovar ainda Porto, Biblioteca Pública Municipal do Por-
no final do séc. xix, na recomendação do to/Universidade de Aveiro, 2013; BONI, Luis
Papa Leão XIII, preocupado com o sub- Alberto de, A Entrada de Aristóteles no Ocidente
Medieval, Porto Alegre, EST, 2010; CALAFATE,
jetivismo modernista, de que o ensino da
Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico
Teologia e Filosofia nas escolas católicas Português, vol. ii, Lisboa, Caminho, 2001; CER-
regresse a Tomás de Aquino, tendo orde- QUEIRA, Luis Alberto (org.), Aristotelismo e An­
nado e impulsionado, em 1880, uma nova tiaristotelismo: Ensino da Filosofia, Rio de Janeiro,
edição das obras do Aquinate. Estas indi- Ágora da Ilha, 2000; FEINGOLD, Lawren-
cações, sempre proferidas em contexto ce, The Natural Desire to See God According to
eclesiástico, dão origem à obra 24 Teses To- St. Thomas Aquinas and His Interpreters, Florida,
Sapientia, 2010; FONSECA, Pedro da, Com­
mistas, elaborada por um conjunto de teó-
mentariorum in Libros Metaphysicorum Aristo­
logos ligados à Igreja Católica, bem como telis, t. i-iv, Hildesheim, Georg Olms, 1964;
ao renovado interesse, que se prolongou HISSETTE, Rolland, Enquête sur les 219 Articles
por todo o séc. xx, pelo estudo da obra Condamnés a Paris le 7 Mars 1277, Louvain/Pa-
e das doutrinas do Aquinate e, em geral, ris, Louvain Publications Universitaires/Van-
pela recuperação do património medieval der-Oyes, 1977; HOLANDA, Francisco de, De
como uma parte importante e inalienável ætatibus Mundi Imagines, Lisboa, Comissariado
para a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciên-
da produção intelectual e da história da
cia e Cultura, 1983; LOWE, Elisabeth, The
humanidade. Assim sendo, formas con- Contested Theological Authority of Thomas Aqui­
temporâneas de antitomismo, no que à nas: the Controversies between Herveus Natalis and
cultura portuguesa se refere, seriam todas Durandus of St. Pourçain, New York, Routledge,
as que rejeitam, implícita ou explicita- 2003; MEIRINHOS, José, e SILVA, Paula Oli-

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Antitradicionalismo 1847

veira e (orgs.), As Disputações Metafisicas de Fran­


cisco Suárez. Estudos e Antologia de Textos, Porto/
Antitradicionalismo
Famalicão, Universidade do Porto/Húmus,
2011; O’MALEY, John et al. (orgs.), The Jesuits:
Culture, Sciences and the Arts (1540-1773), To-
ronto/Buffalo/London, University of Toronto
Press, 1999; OSÓRIO, Jerónimo, Tratado da
Justiça, Lisboa, INCM, 1999; PEÑA, Miguel
Anxo, La Escuela de Salamanca. De la Monarquía
Hispánica al Orbe Católico, Madrid, Biblioteca
de Autores Cristianos, 2009; PEREÑA, Lucia-
P or desejo de afrontar os costumes
ou de quebrar o consenso, por ge-
nuíno espírito criativo ou imperativo de
no, “Glosas de interpretación”, in PEÑA, Juan
consciência, em nome de um qualquer
de la, De Bello contra Insulanos. Intervención de Es­
paña en América, Corpus Hispanorum de Pace, vol. x, desiderato de eficácia ou tão-somente,
Madrid, Consejo Superior de Investigaciones talvez, por uma necessidade psicológica
Científicas, 1982, pp.149-153; PONCELA, de mudar, não de todo desnatural dada a
Angel, Francisco Suárez, Lector de Metafísica Γ y historicidade inerente à vida da pessoa e
Δ, Leon, Celarayn, 2000; PONTES, José Maria da sociedade, acontece que um indivíduo
Cruz, “Tomismo em Portugal” in Logos, vol. v, ou grupo se levante contra o habitual e
Lisboa/São Paulo, Verbo, s.d., cols. 221-228;
o estabelecido. Posto o problema nestes
RAMALHO, A. C., Para a História do Humanismo
em Portugal, vol. i, Coimbra, Instituto Nacional moldes, por demais latos, aconselha a
de Investigação Científica, 1988; SILVA, Paula prudência que se abarque sob a epígra-
Oliveira e, “A doutrina suareziana sobre a na- fe de antitradicionalismo apenas aquelas
tureza das paixões. Antecedentes medievais e manifestações de anseio do diferente ou
prenúncios de modernidade”, Cauriensia, vol. de repúdio do herdado que assumem um
vii, 2012, pp. 175-184; Id., e CALVÁRIO, Pa-
nítido recorte de explicitação ideológica.
trícia, “‘Utrum ius gentium sit idem cum iure
Por conseguinte, nem todos os posiciona-
natural’. A natureza do direito das gentes em
alguns comentários seiscentistas à Suma de Teo­ mentos que visam alterar um certo estado
logia de Tomás de Aquino, II-IIae, q. 57, a. 3”, de coisas, nem todas as ideias inovadoras,
in ROSA, José Maria Silva (org.), Da Autonomia nem todos os revolucionarismos de or-
do Político: entre a Idade Média e a Modernidade, dem política ou outra, por sedutores que
Lisboa, Sistema Solar/Instituto de Filosofia se nos afigurem, são aqui pertinentes.
Prática, 2012, pp. 289-309; STEGMÜLLER, Ao mesmo tempo, na ponderação do
Friedrich, Filosofia e Teologia nas Universidades de
que quer que o conceito de antitradicio-
Coimbra e Évora no Séc. XVI, Coimbra, Universi-
dade de Coimbra, 1954; TORREL, Jean-Pier- nalismo recubra (expomos abaixo algu-
re, Initiation à Saint Thomas d’Aquin, Paris, Cerf, mas restrições), é avisado evitar dois equí-
2002; VALLA, Lorenzo, Encomion Sancti Thome vocos. Passa o primeiro por reconhecer
Aquinatis, Edizione Nazionale delle Opere di Lo­ quão tentador é, porque a tal induzem os
renzo Valla, vol. iv, Milano, Polistampa, 2008; valores dominantes da cultura hodierna,
VASCONCELOS, António de, O Mystério da tomar partido pelos ímpetos antitradicio-
Immaculada Conceição e a Universidade de Coim­
nalistas, presumivelmente devido a uma
bra: Memória Histórica Apresentada ao Congresso
Universal Mariano de Roma, Coimbra, Impren- convicção relativa à marcha do progresso
sa da Universidade, 1904; digital: Fonseca, que radica no período das Luzes – e de
F. T., “A Imaculada Conceição e a Universi- cuja ampla divulgação resulta a circuns-
dade de Coimbra”, Centro Académico de Demo­ tância de o apodo de “antiprogressista”
cracia Cristã, 8 dez. 2003: http://www.cadc.pt/ envolver sempre um sentido reprobató-
padroeira.html (acedido a 11 jan. 2017). rio, ao contrário de ser antitradicionalis-
Paula Oliveira e Silva ta, ou como tal apelidado, que tanto pode

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1848 Antitradicionalismo

corresponder a uma marca negativa como nante no séc. xviii, e no caso português
a uma imagem positiva, e que em alguns consolidada pelos liberalismos da centú-
casos equivale, de facto, a um eufemismo ria seguinte, pode emergir um antitradi-
que sufraga os posicionamentos radicais, cionalismo.
moderando-lhes os paroxismos sectários Este depende, portanto, de um qua-
e efetuando uma sorte de saneamento dro de pensamento moderno no qual
ideológico (&Antiprogressismo). Porém, prevalece uma perspetiva de historicida-
esse pendor característico, que quase de, i.e., uma diagnose da ação no (e do)
instintivamente nos condiciona, gera lei- tempo referida primordialmente aos seus
turas desistoricizantes, tingidas de pressu- agentes (e sujeitos) intrínsecos – indiví-
postos nossos contemporâneos, que em duos, classes, nações, etc., e, por outro
muitos casos não contribuem para uma lado, ideologias, projetos, aspirações. Só
abordagem lúcida e objetiva dos fenóme- numa perspetiva de linearidade históri-
nos a descrever no plano das transforma- ca, que admite a liberdade dos agentes
ções sociais e das mentalidades. em face de todas as suposições de carác-
Reside o segundo equívoco em supor ter teleológico, se torna possível encarar
que uma atitude antitradicionalista cor- o passado como outra coisa que não uma
responde por definição a uma apologia do prefiguração determinativa do presente.
novo, quando pode bem tratar-se de – ou Essa transformação mundividencial sur-
apresentar-se como – um revivalismo, um ge-nos indiciada no termo “revolução”,
integralismo, um saudosismo, um funda- que evoluiu de um sentido relaciona-
mentalismo, que contrapõe tradição a tra- do com a ideia de retorno, conforme
dição, que convoca ortodoxia contra or- ao étimo latino (o re-volver, uma curva
todoxia. Aliás, é plausível que a oposição fechada, a ciclicidade da revolução dos
de tradicional a novo e/ou a moderno, orbes celestes), para vir a designar uma
hoje corrente e quase imediata, fosse con- alteração súbita e profunda, uma cesura
traintuitiva, e porventura absurda e cho- histórica, sentido que na atualidade usu-
cante, até à Idade Contemporânea, quer frui de maior realce. Não dispomos de
dizer, a uma viragem situada algures nos um dicionário histórico da língua portu-
sécs. xviii­‑xix. De acordo com esta hipó- guesa, mas é provável que a reierarqui-
tese, um antitradicionalismo, em sentido zação de significados tenha ocorrido na
próprio, apenas se torna pensável adentro viragem para o séc. xix (parece indicá­
de um entendimento linear e, sobre isso, ‑lo o Dicionário de Moraes). Pode-se ainda
secular da temporalidade humana e civili- conjeturar que outros termos atinentes à
zacional, pois é em semelhante contexto possibilidade de fratura temporal e à re-
que a rutura pode verdadeiramente con- lação com o passado tenham vindo a exi-
ceber-se. Na persistência de conceções da bir derivações semânticas análogas. No
história ancoradas em qualquer tipo de caso da palavra “radical”, que etimologi-
providencialismo, em particular se este as- camente remete para “raiz”, sugerindo
sumir contornos profético-apocalípticos, integridade e fidelidade a uma ideia ma-
e enquanto imperam conceções cíclicas tricial, veio a predominar o sentido de
da história, um antitradicionalismo não mudança extrema, de corte e até de abu-
passa de uma contradição lógica ou retó- so, desvio ou corrupção de uma noção
rica, um capricho do pensamento ou do originária. E mesmo o termo “ortodo-
verbo. Só na modernidade instaurada à xia”, nomeadamente em contextos que
escala europeia pelo Iluminismo culmi- se prendem com o controlo institucional

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Antitradicionalismo 1849

das ideologias, tem deixado muitas vezes taram na formação das Igrejas Ortodoxas
de descrever aqueles que são detentores a partir do séc. xi e dos protestantismos
de uma certa verdade, e da verdade cer- dos alvores da Idade Moderna. Anuncian-
ta, para denunciar aqueles que exercem do fidelidade a um passado onde se pos-
impositivamente uma autoridade castra- tula encarnada a verdade, a avocação de
dora e inflexível: àqueles que têm (ou ti- ortodoxia e de reforma nos nomes pelos
nham) a faculdade de caucionar outros quais ficaram conhecidas as igrejas assim
foi retirada a caução no uso corrente do fundadas é sintomática do argumento,
idioma. Como nos casos anteriores, a que as animou, de recuperação de uma
aceção expressiva da continuidade e da autenticidade perdida. Em rigor, a retó-
permanência cedeu a primazia à valori- rica do novo – uma atitude assumida de
zação de uma mudança extrema. antitradicionalismo – tem especial falta
Adotando um ângulo de visão mais de cabimento nesse contexto.
aberto, é proveitoso sublinhar que a As reticências quanto ao avançar osten-
cultura portuguesa não é excecional a sivo de rasgadas novidades intelectuais
este respeito. Os cognatos de revolução, são notoriamente duradouras. No âmago
radical e ortodoxia sofreram evoluções do Iluminismo, ainda, quando Descartes,
semânticas similares em outras línguas, na iv parte do Discurso do Método (1637),
como o inglês e o francês. O dado rele- enuncia a regra da evidência, está a con-
vante é que o vocabulário do puro e sim- trapor o seu método à evidência daquele
ples enfrentamento da tradição tardou a senso comum que empiricamente nos
estabelecer-se, decerto porque as barrei- indica que o Sol se move em torno da
ras colocadas à plena admissibilidade des- Terra, enquanto, por outro lado, glosa a
se desiderato, no plano das mentalidades, terminologia da escolástica. Preterindo
só foram derrubadas no dealbar da Idade uma eventual substituição do vocabulá-
Contemporânea. O problema insere-se, rio a uma sua mera modulação, o filósofo
pois, no domínio das representações: não francês parece querer deixar virtualmen-
tendo escasseado polémicas e ruturas em te incólume a autoridade de um quadro
períodos anteriores, é característica de epistemológico que, neste ponto em
épocas recentes a possibilidade de enten- particular, ousa pôr em causa apenas de
der e exprimir o sentido desses desenvol- forma camuflada. Empregando uma lin-
vimentos em termos fortemente polari- guagem moderada, Descartes perfila-se
zados e subordinados a um princípio de como um pensador que interfere num
exclusão. O que caracteriza os períodos contínuo cujo curso não pretende alte-
anteriores é a invocação de tradição con- rar de modo significativo, quando, sob o
tra tradição. Os movimentos de contesta- verniz, está a introduzir novidades subs-
ção afirmam-se mais verdadeiros do que tantivas. A prova disto é que, ao contra-
os adversários, que impugnam por cor- por uma racionalidade analítica e espe-
ruptos. São novas – ditas – ortodoxias que culativa ao senso comum empírico, lança
questionam as ortodoxias vigentes, visan- uma pedra angular de outra tradição de
do tomar o seu lugar. Já nós vivemos num pensamento.
tempo que aprecia o heterodoxo. No domínio das artes, e em especial da
Exemplos de tradição (dita pristina) literatura, também na extensa querela
contra tradição (alegadamente decaída dos Antigos e dos Modernos – e debates
ou adulterada) são os grandes cismas dog- adjacentes, como a polémica do Cid, em
mático-eclesiais da cristandade, que resul- França, e a controvérsia entre Gottsched

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1850 Antitradicionalismo

e Lessing, na Alemanha – a linguagem


utilizada denota tipicamente que os con-
tendores têm em vista soluções de com-
promisso. Rivalizando, em última análise,
pelo título de mais lídimos representan-
tes dos valores éticos e estéticos legados
pela Antiguidade, discutindo a pertinên-
cia da absolutização desses valores ou de,
pelo contrário, deles se apropriarem com
flexibilidade, os partidários de Antigos e
Modernos empenham-se na disputa do
mesmo jogo, aspirando a nele triunfar
sem lhe tentarem mudar as regras.
A querela, claro está, é transversal à
cultura do classicismo em vários países e
disciplinas artísticas. Entre nós, tem um
reflexo frouxo. Não deixa de se repercu-
tir na polémica entre D. Francisco de Por-
tugal e Castro, 2.º marquês de Valença,
e Alexandre de Gusmão, nos anos 30-40 Pedro António Correia Garção (1724-1772).
do séc. xviii – defensor, aquele, do teatro
espanhol, advogado, este, do teatro fran-
cês –, mas o seu aspeto mais vincado reside que o latino “tanto é exato, e copioso em
nas ambivalências em torno do problema suas regras, revestidas de ar poético, que
da originalidade e do critério da vernacu- ainda hoje da observância delas depende
lidade detetáveis em autores como Cor- inteiramente a bondade, e merecimento
reia Garção e Cândido Lusitano. de qualquer Poema” (HORÁCIO, 1758,
Perante a Arcádia Lusitana, de que é XIII). A questão que se levanta, pois, em
um dos mais distintos membros, Pedro face de tão perentórias asserções é a da
António Correia Garção profere, em contemplação da indesmentível diversi-
1757, a sua “Dissertação terceira sobre dade e da variabilidade histórico-cultu-
ser o principal proveito para formar hum ral das experiências, dos gostos, das in-
bom poeta, procurar, e seguir sómente a clinações, das mundividências e até dos
imitação dos melhores authores da Anti- próprios idiomas. Trata-se, no fundo, da
guidade”, onde, entre muitas declarações desafiadora problemática dos universais,
enfáticas, adverte: “O Poeta, que não se- na esfera da cultura e bem assim no pla-
guir aos Antigos, perderá de todo o nor- no antropológico. Tanto Garção como
te, e não poderá já mais alcançar aquela Freire se mostram cientes de uma espé-
força, energia, e majestade, com que nos cie de aporia. O primeiro é capaz de de-
retratam o formoso, e angélico semblante cretar: “Muito pode o espírito humano!
da Natureza” (GARÇÃO, 1778, 331). Ou- Mas nunca terá força para subir tão alto,
tro membro daquela academia, Francisco senão for pela estrada que trilharam os
José Freire, mais conhecido pelo criptó- Antigos Poetas, e Oradores” (GARÇÃO,
nimo de Cândido Lusitano, no “Discurso 1778, 329). Porém, vê-se na necessidade
preliminar do traductor” à Arte Poetica de de admitir que, por via de uma fecun-
Horácio, por ele vertida em 1758, declara da “imitação dos Antigos, [...] o Poe-

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Antitradicionalismo 1851

ta [...] pode largar as velas à sua fantasia, do (os artigos da disputa foram coligidos
e voar até descobrir novos Mundos. Feliz por Maria Filomena Mónica em A Europa
aquele, que não só imita, mas excede ao e Nós). Vive-se sob o consulado do Mar.
seu Original” (Id., Ibid., 333). Por seu tur- Saldanha e ainda no rescaldo da Grande
no, Cândido Lusitano também tempera Exposição de Londres de 1851, que pa-
aquele absolutismo crítico aquando da tenteou, no Palácio de Cristal, as mais
reescrita de um clássico de segunda or- recentes maravilhas da técnica. O minis-
dem, pois que não dimana da Antiguida- tro das Obras Públicas, Fontes Pereira
de, sendo embora suposta personificação de Melo, quer renovar profundamente
da mesma norma. Inflete na tradução as vias de ligação terrestre à Europa pela
de Racine, cuja Athalie traslada em 1762, construção de linhas de caminho de fer-
quanto conveniente para uma profícua ro (o primeiro troço seria inaugurado em
e demonstrada vernaculidade, que aliás 1856). Escrevendo no diário O Portuguez,
arguiu numa “Dissertaçaõ do traductor” Herculano interroga o rumo de um pro-
e em copiosas notas, ele que é denoda- gresso que teme ponha em risco a inde-
do teórico da língua portuguesa e mui- pendência de Portugal, ameaçado de ab-
to porfia contra a sua estrangeirização. sorção por Espanha. A seu ver, o caminho
O purismo linguístico é revelador de um de ferro “é o coveiro que abre a sepultura
contexto em que todos recusam uma pu- das nações” mais pequenas (MÓNICA,
tativa categorização como antitradiciona- 1996, 27). Replicando em A Revolução de
listas, vindicando, ao invés, a sua fidelida- Septembro, Lopes de Mendonça aplaude
de a patrimónios herdados. sem reservas aquela que entende ser a es-
A peleja entre filintistas e elmanistas, a trada para desenvolver social e economi-
jusante no mesmo século e espraiando-se camente o país e para o civilizar, quer por-
como uma bifurcação do gosto por poe- que se torne assim mais próspera e culta a
tas de gerações subsequentes, trava-se população, quer porque com a via férrea
ainda pelo confronto entre os preceitos chegará a “carta de alforria” que fará de
de um rigorismo formal e de uma linha cada homem, convertido ao bem-estar,
mais transigente em matéria de inovação “um apóstolo dos princípios liberais”
estilística. Com um Almeida Garrett e um (Id., Ibid., 29). Mendonça reclama para
António Feliciano de Castilho, já na cen- o seu lado “a abnegação, o patriotismo”
túria seguinte, o próprio romantismo não (Id., Ibid., 43). Declara-se contra “a misé-
dá mostras de pretender votar ao esqueci- ria” e “o estacionamento” (Id., Ibid., 60).
mento a tradição dos clássicos, incluindo Clama de passo contra “os governos rea-
os debates críticos que permitem mantê­ cionários da Europa” (Id., Ibid., 31) e diz
‑la operacional na praxis literária. que se sente “o horror invencível às trans-
Diverso é o sentido da polémica entre formações económicas” (Id., Ibid., 30).
Alexandre Herculano e António Pedro Com ironia, chama “ordeiros” e “idealis-
Lopes de Mendonça em 1853, e não tas” aos adversários, acusando-os de per-
apenas, nem sobretudo, por se reportar manecerem alheados dos problemas da
a uma vertente diversa da vida social. época, quando não de serem hipócritas
O timbre do debate é agora distintamente (Id., Ibid., 41-44, 63-64, 66-68). No calor
outro, por não hesitar Lopes de Mendon- da refrega jornalística, não desdenha exa-
ça em declarar a sua crença indefetível gerar e deformar a posição conservadora,
no progresso e por reivindicar as vanta- dirigindo-se aos antagonistas com total
gens de um corte decidido com o passa- desassombro: “Que conclusões quereis

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1852 Antitradicionalismo

tirar daí? Que devemos comprar a nos- 1850, e no debate com o P.e Francisco
sa nacionalidade, à custa da nossa civili- Recreio – aparece como confutador de
zação? Que devemos ser miseráveis para ideias arraigadas, como um desmistifica-
ser livres? Que para conservarmos uma dor. Em Herculano, o rosto do tradicio-
tradição, devemos permanecer isolados, nalista e o do antitradicionalista são um
bisonhos, selvagens, estranhos a todos e o mesmo: são as circunstâncias que os
os progressos, excomungados de todas fazem, que os posicionam. E podemos
as ideias que transformam as sociedades dizê-lo também de outra maneira: o con-
modernas?” (Id., Ibid., 32). Trata-se de ceito de tradição não designa um todo
uma interpelação falaciosa e caricatural. homogéneo; (co)existem tradições, no
Decerto não é em Herculano que se acha plural – a do municipalismo, a da apari-
a apologia de uma nação “selvagem”. ção de Cristo a D. Afonso Henriques –, e,
Herculano tem, aliás, o caminho de ferro portanto, (co)existem tradicionalismos
por útil e inevitável. O que o preocupa e antitradicionalismos, seja a marcar a
é a inexistência de medidas que acaute- fisionomia individual de um dado inter-
lem a defesa da individualidade nacional, veniente, seja nos acentos informadores
ameaçada de fundir-se com a de Espanha de uma época.
em resultado do reforço dos interesses O democrata Lopes de Mendonça abra-
comuns. A seu tempo, no decurso da ça jubilosamente o epíteto lançado pelo
contenda, Herculano vem a especificar interlocutor e empolga-se na visão de uma
uma medida de salvaguarda: a descentra- nova era: “São medidas de guerra estas.
lização administrativa, com a restauração Guerra contra a barbaridade, contra a
do municipalismo, porquanto crê nos miséria, contra a ignávia, contra a pregui-
patriotismos locais como fundamento do ça. [...] Estamos agora também empenha-
patriotismo nacional. O historiador faz, dos numa grande conquista: a conquista
deste modo, uma profissão de fé política da civilização” (Id., Ibid., 45). O tom exal-
que remete palpavelmente para o passa- tado é uma marca dos artigos de Mendon-
do, declarando-se, em simultâneo, muni- ça. É também uma marca do mais extrava-
cipalista e não democrata. gante movimento de repúdio da tradição,
É interessante ressaltar ainda dois as- o futurismo de inícios do séc. xx. Pelo Por-
petos desta controvérsia que relevam de tugal Futurista, de que saiu número único,
um modo mais geral para o nosso tema. em 1917, dirigido por Carlos Filipe Porfí-
Em primeiro lugar, é brandida de par- rio, desfilam as mais retumbantes procla-
te a parte a palavra “revolução”, com o mações contra todos os tipos de nostalgias
sentido que se nos tornou mais familiar, e venerações. Numa colagem feita por Be-
de processo transformador ou de “uma tencourt-Rebelo, que reúne fragmentos
ideia que anula, que mata a ideia ante- de textos de Marinetti e de outros futuris-
rior” (Id., Ibid., 109). Este dado dá teste- tas italianos, pode ler-se: “O homem como
munho de que se encontra consumada a um divino génio do mal emancipa-se da
deslocação semântica que acima referi- tutela vergonhosa do Passado e da Tradi-
mos. Em segundo lugar, importa não eli- ção” (BETENCOURT­‑REBELO, 1917, 6).
dir o carácter multifacetado da interven- O enunciado atinge uma dimensão onto-
ção intelectual e cívica de Herculano, lógica quando visiona a possibilidade de
que em outras ocasiões – notoriamente quebrar “a hostilidade aparentemente
na questão do Milagre de Ourique, hi- irredutível que separa a nossa carne hu-
postasiada no opúsculo Eu e o Clero, de mana do metal dos motores. Depois do

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Antitradicionalismo 1853

reino animal, eis o reino mecânico que e o experimentalismo gráfico veiculam


começa! Pelo conhecimento e amizade uma iconoclastia que declara nulos ou ul-
da matéria, de que os sábios apenas po- trapassados todos os conseguimentos pre-
dem conhecer as noções físico-químicas, téritos da cultura. Sendo, antes de mais,
preparamos a criação do homem mecânico uma corrente artística, o futurismo assu-
nas partes substituíveis. Libertar-nos-emos me feição abertamente política e moral
assim da ideia da morte, e portanto da ao pronunciar-se com inusitado arrojo e
própria morte” (Id., Ibid., 8). A ideia da veemência sobre a guerra, excitadamente
libertação da morte reflete em clave algo aclamada, e contra uma sociedade que vê
alucinada a ânsia de alijar o peso do pas- conformada ao marasmo. É, em toda a li-
sado. Como declara Almada Negreiros no nha, uma corrente da rutura e do abalo,
“Ultimatum futurista ás gerações portu- do choque e do escândalo.
guezas do seculo xx”, publicado na mes- São iniludíveis as ressonâncias patrió-
ma revista: “Hoje é a geração portuguesa ticas do termo “ultimatum”, chamado
do século xx quem dispõe de toda a força por Almada e Álvaro de Campos para os
criadora e construtiva para o nascimento seus manifestos (o deste último também
de uma nova pátria inteiramente portuguesa inserido no Portugal Futurista), palavra
e inteiramente atual prescindindo em ab- que no contexto português reenvia para
soluto de todas as épocas precedentes” o episódio da chantagem britânica de
(NEGREIROS, 1917, 36). Do mesmo pas- 1890. O futurismo inscreve-se num cam-
so, incita a “destruir este nosso atavismo po de interações discursivas no qual, em
alcoólico e sebastianista de beira-mar” rigorosa contemporaneidade, se confron-
(Id., Ibid., 37). ta uma diversidade de nomenclaturas
Almada leu o seu manifesto numa con- programáticas que ora apontam para o
ferência que teve lugar a 14 de abril de passado, ora remetem para o futuro: a re-
1917 no Teatro da República, posterior nascença portuguesa, o saudosismo, o In-
Teatro Municipal São Luiz. A sublinhar tegralismo Lusitano, a Cruzada Nun’Ál-
o cariz provocatório da performance, en- vares Pereira, o modernismo – e que, de
vergou para a ocasião um fato de piloto­ forma mais ou menos militante, acolhem
‑aviador, com calculada incongruência, e ou correspondem a projetos de ressurgi-
contou com a colaboração de Santa-Rita mento nacional, nalguns casos nimbados
Pintor, que, a partir de uma frisa, fazia de exaltação mística. Verifica-se, aliás, um
como que de maestro, arbitrando as in- paradoxo político na índole reacioná-
tervenções do público. O evento, dividi- ria do futurismo. Almada é muito claro
do entre o palco e a plateia, é caracterís- na condenação do regime republicano
tico do derrubar de fronteiras praticado e deixa-se arregimentar sem dificuldade
pelos moços futuristas. Explorando com pelo Estado Novo, que, mormente ao
singular diligência as potencialidades da abrigo da política do espírito, lhe enco-
tipografia, também da página fazem eles menda numerosos trabalhos, entre gran-
um espaço de performance. Ao mesmo des frescos, vitrais, cartazes e o desenho
tempo, os pronunciamentos assumem de selos de correio. A Pessoa, desconta-
tonalidades exclamativas que se diria vin- das as oscilações e ambiguidades em que
culá-los mais a formas de oratória do que é fértil, pouco repugnam os ditadores, a
a formas de escrita. O tom panfletário começar pelos que mais de imediato lhe
revela-se intrínseco ao processo criativo. relevam, Pimenta de Castro e o Presi-
O estilo febricitante, a sintaxe vertiginosa dente-Rei Sidónio Pais. Pouco há nessas

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1854 Antitradicionalismo

cumplicidades que surpreenda, se aten- publica o manifesto Nós, faz jus àquela
tarmos no percurso político dos futuris- condição, ainda que por essa altura os
tas de outros países, que compactuaram, correligionários do futurismo tenham já
e por vezes arrebatadamente, com os to- morrido (Santa-Rita e Amadeu de Sousa
talitarismos emergentes e/ou instalados, Cardoso em 1918) ou se dediquem a ex-
fornecendo a Itália e a União Soviética perimentar trajetórias divergentes (Pes-
os exemplos mais notórios. De resto, as soa e Almada). Encenando na página
ambivalências são óbvias, em especial no um tenso diálogo entre Eu e a Multidão,
terreno do nazi-fascismo. Esses regimes, o autor de Nós profere afirmações como:
que se querem energicamente progres- “O passado é mentira, o passado não exis-
sistas, desenvolvem um imaginário e ado- te, é uma calúnia...” e “Um comboio que
tam simbologias nos quais reverbera uma passa é um século que avança. Os com-
memória histórica mais ou menos falsi- boios andam mais depressa do que os
ficada: os fasci, a suástica, a saudação de homens. Sejamos comboios, portanto!”
braço estendido, Siegfried e os Nibelun- (FERRO, 1987, 149). Saído das fileiras do
gos, o mito da raça ariana. Numa verda- modernismo, Ferro entusiasma-se com
deira duplicidade de Jano, a ditadura de reais ou putativos ditadores (Filomeno da
Mussolini organiza uma Mostra Augustea Câmara, Gabriele d’Annunzio) e, fazen-
della Romanità, por ocasião do bimilená- do nome como jornalista, tem a oportu-
rio de Augusto César, em 1937, capitali- nidade de entrevistar alguns dos homens
zando a favor do império a haver a evoca- fortes da política europeia. Publicadas
ção do império da Antiguidade. inicialmente em jornais como o Diário
Há, nos gestos e nas políticas, paralelos de Notícias, muitas dessas entrevistas vêm
com o paradoxo de um Estado que entre a ser coligidas sob a forma de livros: Via-
nós se diz Novo e que é constitutivamen- gem á volta das Ditaduras, de 1927, onde
te retrógrado e nostálgico, preconizando se plasma um especial fascínio por Mus-
oficialmente não a rejeição, mas a revisão solini e onde figuram vultos como Primo
da história. Encarado deste ponto de vis- de Rivera, Kemal Atatürk e Pio XI; Praça
ta, o percurso de um António Ferro con- da Concórdia, de 1929, onde são entrevis-
sistiu menos na passagem da condição tados Foch e Pétain; e as conversas com
de modernista à condição de apologeta Salazar, saídas em 1933 com o título Sa-
do salazarismo do que na manifestação lazar – o Homem e a Sua Obra. Sendo-lhe
de faces contrastantes cuja coexistência nesse ano confiada a direção do Secre-
é congruente com a fatura paradoxal de tariado da Propaganda Nacional (SPN)
posicionamentos ideológicos coetâneos (a partir de 1944, Secretariado Nacional
em outros países. da Informação, Cultura Popular e Turis-
Em 1915, Ferro surge em lugar de mo (SNI), que superintendia aos serviços
evidência precoce no mundo das letras de censura), cargo que abandona apenas
como editor de Orpheu, onde sai a “Ode em 1949, Ferro giza uma longa campa-
marítima” de Pessoa-Campos, poema em nha pelo bom gosto e pela moral. Sob a
que se descortinam traços futuristas. Fer- sua chefia, o SPN/SNI assume uma fun-
ro pouco ou nada terá contribuído para ção agregadora dos artistas de vanguar-
a revista, mas vê-se cooptado para o esta- da, visando neutralizar-lhes o potencial
tuto nominal de editor por ser, enquanto subversivo e pondo a sua criatividade ao
menor, legalmente inimputável. De qual- serviço de uma certa ideia de pátria, de
quer modo, quando, seis anos mais tarde, conformidade e bons costumes. Através

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Antitradicionalismo 1855

do patrocínio de exposições, publicações no ao estatuto de Património Cultural


e prémios, o organismo recria – e com Imaterial da Humanidade, reconhecido
frequência cria – usos e tradições para os pela UNESCO, respetivamente, em 2011
quais reclama pergaminhos de autentici- e 2014.
dade etnográfica. A política do espírito
desdobra-se em iniciativas como o con-
curso para apurar a aldeia mais portugue- Bibliog.: BARATA, José Oliveira, “A drama-
turgia portuguesa seiscentista e setecen-
sa de Portugal (1938-1939) e a inaugura-
tista: uma encruzilhada de influências”, in
ção do Museu de Arte Popular (1948), CASTRO, Francisco Lyon de (dir.), História
que a invenção das marchas populares de da Literatura Portuguesa, vol. iii, Lisboa, Alfa,
Lisboa, em 1932, antecipou, a par de uma 2002, pp. 197-261; BETENCOURT-REBELO,
multiplicidade de filmes, entre eles o jo- “O futurismo”, Portugal Futurista, n.º 1, 1917,
vial Aldeia da Roupa Branca de Chianca de pp. 6-9; CABRAL, Manuel Villaverde, “A esté-
Garcia, financiado pelo SPN e estreado tica do nacionalismo: modernismo literário e
em 1938. Ferro torna-se assim ideólogo autoritarismo político em Portugal no início
do século xx”, in TEIXEIRA, Nuno Severiano,
e impulsionador de iniciativas culturais
e PINTO, António Costa (coords.), A Primeira
não apenas patrióticas mas (pseudo)revi- República Portuguesa entre o Liberalismo e o Auto­
valistas e regionalistas, engendrando ou ritarismo, Lisboa, Colibri/Instituto de História
dinamizando ideias que se revelam em Contemporânea da Universidade Nova de
plena sintonia com outras realizações da Lisboa, 2000, pp. 181-211; FERRO, António,
época, como é o caso do Portugal dos Pe- Intervenção Modernista. Teoria do Gosto, s.l., Ver-
quenitos de Bissaia Barreto, figura cimei- bo, 1987; GARÇÃO, Correia, Obras Poeticas de
Pedro Antonio Correa Garção, Lisboa, Na Regia
ra da União Nacional, aberto ao público
Officina Typografica, 1778; HORÁCIO, Arte
em 1940. Poetica de Q. Horacio Flacco, Traduzida, e Illustrada
É curioso que a este conservadorismo em Portuguez por Candido Lusitano, Lisboa, Na
ruralista, e talvez se possa mesmo dizer Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno,
integralista, do Estado Novo tenha sobre- 1758; MÓNICA, Maria Filomena (org.), A Eu­
vivido, após a Revolução de 1974, como ropa e Nós: Uma Polémica de 1853 (A. Herculano
que o direito do povo – do povo real, que contra A. P. Lopes de Mendonça). Antologia, Lis-
boa, Instituto de Ciências Sociais/Quetzal,
é o que está subentendido – de tomar de
1996; NEGREIROS, José de Almada, “Ulti-
assalto a televisão, preenchendo progra-
matum futurista ás gerações portuguezas
ma atrás de programa com os seus ran- do seculo xx”, Portugal Futurista, n.º 1, 1917,
chos folclóricos, o seu artesanato e as suas pp. 36­‑38; RAIMUNDO, Orlando, António Fer­
romarias. Pelos mesmos anos tardios de ro: O Inventor do Salazarismo. Mitos e Falsificações
70 e inícios de 80 do séc. xx, uma série de do Homem da Propaganda da Ditadura, Alfragide,
monografias da editora Terra Livre apre- Dom Quixote, 2015.
sentava-se com cariz corretivo, levando a Jorge Bastos da Silva
cabo um reconhecimento das regiões de
Portugal, obviamente tido por necessá-
rio. A história dessas brochuras e o balan-
ço do seu significado contra o pano de
fundo da ação do SPN/SNI encontram-se
ainda por fazer, mas elas serão decerto
sintomáticas da tibieza de sentimentos
antitradicionalistas que viriam a tratar
de promover o fado e o cante alenteja-

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1856 Antitridentismo

Antitridentismo tes ideológicos. O séc. xix laico, embora


tenha enfatizado até à exaustão o papel
decadentista atribuído centralmente aos
padres da Companhia de Jesus e à sua
ação, designada pelo conceito de jesuitis-
mo, diversificou, através de alguns auto-
res de referência, os atores da decadência

O século das Luzes, com a sua estra-


tégia de querer afirmar uma idade
luminosa, progressiva, afirmou uma cons-
portuguesa (sendo certo, todavia, que
por detrás de todos estes estaria o jesuitis-
mo a inspirar a sua ação negativa, demo-
ciência de tempo novo por oposição a um lidora do vigor progressivo de Portugal);
tempo velho, obscuro e ultrapassado, que é o caso do Concílio de Trento. Neste
se desconsidera, vitupera e desvaloriza. verbete destacaremos, para efeito de aná-
Impõem-se, desde então, no discurso cul- lise, as leituras decadentistas do impac-
tural, os valores e toda uma terminologia to deste Concílio em Portugal, a fim de
ligados à ideia de progresso que dualis- determinar a argumentação utilizada na
ticamente define o seu negativo, o uni- justificação do Concílio de Trento como
verso da degeneração, da decadência, da afirmação de uma Igreja ultramontana,
idade de ferro, cujos resquícios se tomam suportada pela Companhia de Jesus e
como objeto de depuração. A cultura ilu- pela infalibilidade pontifícia – uma Igreja
minista é a criadora do mito do progresso estrangeira, portanto, que intenta dirimir
em Portugal e lança, ao mesmo tempo, as as liberdades tradicionais da Igreja nacio-
bases para afirmar uma ideia mitificada nal e imiscuir-se nos assuntos temporais.
do tempo e dos autores da decadência Há gestos, há factos, há acontecimentos
portuguesa que os grandes produtores e, no caso que vamos tratar, há reuniões
da cultura laica do séc. xix vão, depois, que influenciaram a história. O percurso
enfatizar. da Igreja tem sido marcado pela realiza-
A utopia do progresso e as metas e mo- ção de concílios, que estabelecem novas
delos estabelecidos para atingi-la impli- fases na sua história, na sua teologia, na
cam concomitantemente a identificação sua forma de olhar o mundo, com im-
dos tempos, dos modos e dos agentes pacto na cultura dos povos. Os chamados
principais que impediram Portugal de concílios ecuménicos, assembleias que
nivelar-se pelos patamares de transfor- apelam à reunião de todos os bispos da
mação que se queria atingir. A ideologia Igreja à volta do papa, para tomar deci-
do progresso e o seu reverso necessário, sões importantes do ponto de vista do go-
a ideologia da decadência, estabeleceram verno e da doutrina católica, têm desde a
uma geografia e uma temporalidade ade- história antiga definido quer o patrimó-
quadas à leitura da história, cujo ritmo é nio doutrinal da Igreja que se torna a re-
marcado por ambos os andamentos bino- ferência do seu magistério, quer a forma
miais de avanços e recuos, de ascensão e de se relacionar com o mundo, com os
queda. Estados, com a sociedade e com as outras
A geografia da decadência portuguesa, religiões. Por isso, os concílios costumam
estabelecida pela ideologia iluminista do ter um impacto que transvasa a própria
progresso, estabelece de forma variável Igreja; foi o caso de dois concílios que
o tempo e os atores dessa decadência, marcaram a história ocidental: o mais re-
consoante os discursos e os seus referen- cente, o Concílio Vaticano II (1962-1965),

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Antitridentismo 1857

muito aplaudido pela cultura contempo-


rânea pela marca de abertura e diálo-
go que deixou; e o Concílio de Trento,
realizado no séc. xvi, que ficou famoso
por ter impulsionado a chamada Contrar-
reforma católica, por reação à chamada
Reforma protestante.
O protestantismo nascente a partir do
gesto de Lutero, que enunciou por escri-
to e pregou, a 31 de outubro do ano de
1517, na porta da catedral de Wittenberg,
as 95 teses críticas à situação da Igreja na-
quele tempo, agudizou o sentimento de
necessidade de reforma da Igreja Católi- Fr. Bartolomeu dos Mártires (1514-1590).
ca, reclamada por muitos homens e mu-
lheres de fé profunda desde há várias dé-
cadas, no contexto de afrouxamento da visto, pois permitiria levar o evangelho
exigência de vida cristã nas sociedades do a todos os cantos da Terra, cumprindo
tempo do Renascimento. Foi nesta con- plenamente o mandato de Cristo deixa-
juntura que se convocou o XIX Concílio do aos apóstolos antes da sua ascensão ao
Ecuménico da Igreja, realizado, depois Céu: “Ide por todo o mundo e anunciai
de várias tentativas falhadas para reunir a boa nova” (Mc 16, 15). Noutra frente,
a assembleia eclesial, na cidade de Tren- a Igreja precisava urgentemente de res-
to – com uma parte das sessões feitas em ponder ao desafio do protestantismo e à
Bolonha (em 1547 e 1548) – entre os necessidade de renovação, de regresso às
anos de 1545 e 1563. fontes da fé e de fomento de uma vida
O Concílio, encerrado a 4 de dezembro mais profunda, mais coerente, mais con-
de 1563, com decretos confirmados pelo sentânea com os ditames do evangelho.
Papa Pio IV a 26 de janeiro de 1564, des- O Concílio reviu e reafirmou doutrinas
pertou a Igreja para a necessidade de se fundamentais para a Igreja; promoveu
mobilizar para os novos desafios da evan- uma formação mais sólida do clero atra-
gelização universal suscitados pelas via- vés de seminários diocesanos e de currí-
gens marítimas promovidas pelos reinos culos mais exigentes e profundos; reviu,
da península Ibérica. Portugal foi, com reforçou e refundou a missão dos bispos
efeito, dos primeiros reinos a sancionar na Igreja à frente das igrejas locais, as dio-
os decretos do Concílio e a promover sí- ceses; estabeleceu orientações para com-
nodos provinciais e diocesanos para ade- bater a função episcopal como lugar de
quar as normas reformistas conciliares, promoção e prestígio social, como cargo
no que se veio a destacar Fr. Bartolomeu mais honorífico e menos vocacional, im-
dos Mártires, arcebispo de Braga e mode- pondo a obrigatoriedade da fixação de re-
lo de bispo tridentino apostado na rege- sidência dos bispos nas suas dioceses, da
neração da sua diocese. prática de visitas pastorais às paróquias,
Os chamados Descobrimentos (de no- do acompanhamento da ação dos padres,
vos espaços, novos povos, novas culturas) do cuidado com a formação do clero.
tinham oferecido à Igreja um campo de De facto, entendeu-se que uma das cau-
anúncio da mensagem de Cristo nunca sas da decadência da Igreja passava pelo

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1858 Antitridentismo

desvirtuamento da nobre missão episco- únicas para explicar movimentos de deca-


pal, que deveria ser configurada à imagem dência e progresso dos povos.
de Cristo pastor, que cuida do seu reba- Neste empenho em fazer o diagnóstico
nho. Trento foi também um Concílio de da decadência, destacou-se a famosa ge-
união interna da Igreja frente à consuma- ração de 70, denominação geracional por
ção da fratura no seio do cristianismo, frag- que ficou célebre um brilhante grupo de
mentado pelas correntes protestantes; o intelectuais e que conheceu o seu mo-
reforço da Igreja deu-se pela afirmação do mento simbólico de fundação e primeira
sacerdócio e, com ele, pelo fortalecimento grande afirmação na realização, em 1871,
da hierarquia da Igreja, ao mesmo tempo das Conferências do Casino, que geraram
que mobilizou o catolicismo para uma uma longa polémica com significativo im-
dinâmica de renovação interna e de rea- pacto político-cultural. Estas conferências
ção ao avanço do movimento protestante. instituíram um momento importante de
Todavia, além do estudo da influên- produção de ideologia antijesuítica, mui-
cia efetiva das decisões tomadas nestas to prestigiada no universo da cultura pro-
assembleias conciliares com implicações gressista liberal, ideologia que encontra-
fortes nos países de tradição católica, não mos patente na documentação produzida
são de somenos importância as leituras pelos seus mentores e intervenientes.
feitas em diferentes contextos e por dife- No âmbito do grupo interventor e pro-
rentes correntes acerca dos efeitos da sua motor, sobressaiu a figura de Antero de
receção. Com efeito, se dentro do catoli- Quental (1842-1891), que se tornou uma
cismo institucional a leitura do impacto espécie de mestre inspirador deste movi-
renovador do Concílio foi positiva, quer mento cultural, o guru intelectual do gru-
pela sua doutrina quer pela sua eficácia po. No dia 27 de maio de 1871, Antero de
depois de várias tentativas reformistas lo- Quental pronunciou a sua conferência in-
gradas, a imagem que dele ficou impressa titulada “Causas da decadência dos povos
na cultura portuguesa laica não foi sem- peninsulares nos últimos três séculos”.
pre a melhor, nomeadamente a partir do Neste texto, que se tornou emblemático e
século de Oitocentos, em linha com as o mais conhecido no quadro desta inicia-
leituras antitridentinas que começavam a tiva político-cultural, Antero escalpelizou
vingar na Europa, por sua vez associadas a três principais causas da nossa “incontes-
uma já consolidada tradição antijesuítica. tável” decadência: o absolutismo, as con-
Especialmente a partir do séc. xix, as quistas, e a decadência moral, esta última
interpretações decadentistas de autores eleita como a “causa culminante” e deri-
emblemáticos do sector laico e antica- vada da “transformação do Catolicismo
tólico atribuem de forma simplista à in- pelo Concílio de Trento”. Além do inten-
fluência do catolicismo de Trento a deca- to de perscrutar as causas conducentes a
dência dos povos ibéricos, em contraste um estado de “abatimento e insignificân-
com o progresso dos povos protestantes cia”, pretendia Antero indicar o caminho
do Centro e do Norte da Europa. Esta da regeneração, indo assim ao encontro
tese, que aparece quase sempre, como já das ideias apresentadas no programa das
se referiu, acompanhada da responsabili- Conferências Democráticas (QUENTAL,
zação dos Jesuítas e do neocatolicismo ul- 1982, 269-270).
tramontano pelo atraso português, deve Na conceção anteriana do catolicismo
ser olhada na sua inscrição ideológica da tridentino, pela qual a Igreja se teria dis-
corrente que procurava encontrar causas tanciado da dita autenticidade do catoli-

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Antitridentismo 1859

cismo medievo, bebendo aqui da visão de obedientes e imbecis; foi a isto que leva-
Alexandre Herculano, que fazia da Idade ram as famosas Missões do Paraguai; o Pa-
Média a era dourada da nacionalidade, os raguai foi o reino dos céus da Companhia
Jesuítas tinham tido parte fundamental de Jesus, perfeita ordem, perfeita devo-
na sua ideação. Este catolicismo da Con- ção; uma só coisa faltava, a alma, id est, a
trarreforma, caracterizado como estando dignidade e a vontade, o que distingue o
marcado por uma sede de poder ilimitado homem da animalidade” (Id., Ibid., 280).
de natureza teocrática, é definido como Subjacente a esta visão está a matriz míti-
um “ultramontanismo invasor”, que tre- ca dos Jesuítas estabelecida por Pombal,
pou por cima de todas as legitimidades que atribuiu a estes padres o colossal pla-
nacionais e desencadeou o “protesto das no de formar um reino independente na
Igrejas da Península” (Id., Ibid., 272-276). América do Sul, à custa do cerceamento
Esta Igreja peninsular é descrita à luz do das possessões portuguesas e espanholas
carácter atribuído à raça hispânica, que daquele continente.
lhe confere um especial espírito de au- Na ótica anteriana, o catolicismo pós­
tonomia em relação ao poder centralista ‑tridentino, moldado pelos Jesuítas, é ca-
da cúria papal; na Igreja ibérica, ver-se-ia racterizado pela sua natureza ultramon-
um cristianismo genuíno, contraposto tana, logo, cerceadora das liberdades
ao cristianismo imposto pela normativi- nacionais. De facto, ao tornar as ordens
dade dogmática e disciplinar de Trento, religiosas independentes dos bispos e
congeminada pelos Jesuítas e ordenada mais dependentes de Roma (por sua vez
de acordo com o seu tirânico sistema de dominada pelos Jesuítas), ao “impor aos
obediência, monolítico e centralista. povos a polícia romana”, ao “apagar os
Deste modo, ao sistema jesuítico que últimos vestígios das Igrejas nacionais”,
caucionou Trento é atribuída a dege- ao determinar a superioridade do papa
neração histórica para que os povos pe- sobre os concílios, o concílio tridentino
ninsulares foram arrastados, acrescen- tornava o catolicismo uma instituição ul-
tando-se-lhe, para efeitos de ampliação tramontana, estrangeira: “o concílio dei-
exemplificativa a nível internacional, xava de ser universal: era simplesmente
a responsabilidade pelo desencadear e italiano; nem italiano, romano apenas”
prolongar da sangrenta Guerra dos Trin- (Id., Ibid., 274-276).
ta Anos, o desmembramento do terri- Por outro lado, este escritor, hiperbo-
tório da nação polaca e as ameaças que lizando ao extremo o papel dos Jesuítas
pairavam sobre a recente união da nação na restauração católica, responsabiliza
italiana. Antero desenvolve uma consi- esse novo catolicismo, a sua doutrina e
derável operação analítica no sentido educação pela decadência política e so-
de exautorar aquilo que qualifica como cial dos Estados ibéricos, tecendo essa
sendo a “funesta moral jesuítica” e o seu visão também à luz do mito de complô.
inerente ideal de educação, que está sem- A sua posição antijesuítica insere-se no
pre na base do enfraquecimento do vigor quadro do anticlericalismo liberal que
criativo e transformador dos povos que os pugnava pela não interferência do clero,
Jesuítas fazem suas vítimas. O resultado conservador e ultramontano, na esfera
desta ação educativa apresenta como pro- política e noutras esferas que não eram
duto modelar mais acabado os amerín- específicas da sua missão religiosa, reme-
dios civilizados nas célebres reduções do tendo a sua ação para o cubículo restrito
Paraguai: “É um povo de crianças mudas, das sacristias.

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1860 Antitridentismo

A intervenção de Antero nas Conferên- estratégicos do exército ultramontano


cias do Casino acabou por ter um impacto sob o comando do geral dos jesuítas, e o
modelar de longo alcance temporal. A sua pensamento da assembleia celebrada em
teorização da causalidade da decadência Trento há trezentos anos tende sempre,
portuguesa, feita por um simpatizante de com mais ou menos fortuna, à sua com-
uma república social ideal que perfilhava pleta realização. O absolutismo na Igreja
uma visão evolutiva da história de inspira- é como o pródromo do absolutismo na
ção hegeliana, acabou por se tornar um sociedade civil, santificado pelo Syllabus
lugar paradigmático de referência para com os anátemas à liberdade. Depois fun-
a sedimentação das diversas teses deca- dindo‑se ambos numa última evolução, a
dentistas que se vinham desenvolvendo sua síntese definitiva seria o poder ilimi-
e divulgando na época. Com efeito, este tado e omnímodo do papa, do pontífice­
antijesuíta opera uma espécie de “síntese ‑deus, sobre a existência interior e exte-
a partir da qual se devem compreender rior, espiritual e temporal dos povos; seria
alguns aspetos da consciência histórica a monarquia universal, o despotismo teo-
do republicanismo: o anticlericalismo, o crático sonhado pela ambição de Gregó-
antiabsolutismo e a valorização do povo rio VII” (HERCULANO, 1982, I, 62).
na história” (MATOS, 1995, 449). Anos antes, entre 1865 e 1866, Hercu-
Esta conferência de Antero de Quen- lano preparara uma série de cartas e de
tal começou por gerar uma forte celeu- estudos sobre o casamento civil, no âm-
ma – que acabaria por conduzir à su- bito da elaboração do Código Civil pelo
pressão governamental das Conferências visconde de Seabra, de cuja comissão
do Casino –, em que se destacaram os revisora foi membro. A questão do ca-
ataques intensos dos jornais legitimistas samento civil foi uma das maiores polé-
e católicos, como A Nação e o Bem Públi- micas do seu tempo (depois da célebre
co. A interrupção abrupta desta iniciativa Questão Coimbrã, ou do Bom Senso e
acabaria por granjear para os organizado- Bom Gosto) e foi a última polémica em
res apoios de peso, como o de Alexandre que Herculano participou antes de se
Herculano (1810-1877), que tornariam retirar definitivamente para Vale de Lo-
estas conferências, pelo seu projeto de bos. A sua importância prende-se com a
transformação de mentalidade, um acon- badalada questão do âmbito dos poderes
tecimento cultural da maior relevância temporal e espiritual, que se queriam
na história da cultura portuguesa. separados, e, sobretudo, com a proble-
Foi no opúsculo “A supressão das Con- mática em torno da liberdade religiosa
ferências do Casino”, redigido em 1871, e de consciência. É  neste contexto que
que o historiador, aproveitando a temá- Herculano condena o facto de as doutri-
tica, encetou uma crítica implacável à nas e as disciplinas do Concílio de Trento
infalibilidade pontifícia, ao ultramonta- prevalecerem, ainda, “como princípios
nismo, ao absolutismo e, como causas ou axiomas fundamentais da constituição
primárias destes, ao jesuitismo e ao “pen- civil da sociedade temporal”, fazendo das
samento da assembleia celebrada em “nações constituídas congregações ecle-
Trento há trezentos anos”, desenvolvendo siásticas” (Id., 1987, 71). Já nos Estudos
assim a sua invetiva: “Roma homologou, sobre o Casamento Civil (1866), o mesmo
substituindo­‑o à constituição da Igreja, o autor, a respeito do casamento civil nas
instituto da Companhia, porque assim são leis e nos costumes de Portugal depois
mais precisos e pontuais os movimentos do Concílio de Trento, associa o carácter

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Antitridentismo 1861

obscuro e ilógico da redação dos cânones


e decretos matrimoniais promulgados
no sínodo tridentino ao ultramontanis-
mo e ao jesuitismo (representado pelo
padre geral Laínez), uma vez que a irre-
vogabilidade, em Portugal, da disciplina
estabelecida em Trento (por influência
jesuítica, segundo Herculano) fez ruir as
leis e os costumes do país que vigoravam
anteriormente. No mesmo opúsculo, cha-
ma também a atenção para o facto (mais
tarde também sublinhado por Antero)
de o Concílio de Trento ter submetido o
episcopado ao poder pontifício, ter acor-
rentado “o presbiterado aos pés do epis-
copado” e ter reconhecido e consagrado
“o absolutismo do mundo católico”, o
“absolutismo papal” (Id., 1987, 159).
Esta crítica contundente de Herculano Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894).

recobra a corrente eclesiológica conciliá-


ria reforçada no tempo de Pombal pelo o Individualismo, o Jesuitismo e as Con-
P.e António Pereira de Figueiredo, em quistas” (MARTINS, 1994, 288). O jesuitis-
que se defendia a valorização da colegia- mo é compreendido por Oliveira Martins
lidade do poder episcopal, onde o papa como uma filosofia de pensamento e ação
seria apenas o garante da unidade da que extravasa os limites da ordem religio-
Igreja, sem a supremacia que Trento veio sa enquanto tal, constituindo tanto uma
consolidar sobre os outros bispos sucesso- teoria político-social e moral, como um
res dos apóstolos. O axioma doutrinal de modelo existencial e de comportamen-
que todos os bispos detinham a mesma to, tendo como componentes uma peda-
autoridade, delegada por sucessão apos- gogia e uma metodologia de educação
tólica, legitimaria um exercício do poder que promove os valores antinómicos da
episcopal como se cada bispo fosse um autonomia, da liberdade, da criatividade
papa à frente da sua diocese. Esta corren- e da iniciativa pessoal, típicos do espírito
te afirmou-se com a difusão do galicanis- moderno e herdeiros da Revolução Fran-
mo francês e do regalismo ibérico, que cesa, esses sim, promotores e garantes do
reivindicavam uma maior autonomia das progresso social. Assim sendo, Oliveira
igrejas nacionais face ao poder de Roma. Martins invetiva, em sintonia com Antero,
O historiador Joaquim Pedro de Oli- os preceitos ligados à obediência cadavé-
veira Martins (1845-1894), nas obras his- rica dos Jesuítas e a ditadura da direção
toriográficas que produziu, também in- das consciências pela confissão e pela di-
tegrou o jesuitismo na tríade causal que reção espiritual: “O Jesuitismo ou antes o
teria originado o processo de involução movimento místico donde ele saíra, foram
dos povos ibéricos: “Se quisermos resumir a íntima fibra, a mola interior da energia
em poucas palavras as causas da desorga- peninsular – e agora é apenas uma religião
nização da sociedade peninsular, achamos de obediência e uma escola de sistemática
três que nos dão a chave do problema: perversão” (Id., Ibid., 288).

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1862 Antitridentismo

A trajetória da história portuguesa teria de obediência, bem expresso nas palavras


resultado, em grande medida, da acei- de Loiola: “Sejamos como corpo morto
tação em Portugal do “dogma espanhol que de si não tem movimento, ou como
que os teólogos jesuítas fizeram vencer o bordão de um cego” (Id., 1994, 302).
no Concílio de Trento, [que] era o da Esta foi, para o historiador, a verdadeira
revelação da Ordem universal no espírito reforma tridentina, constituindo Loiola
dos homens e da existência de uma justi- o “fundador do novo catolicismo” resul-
ça absoluta expressa por via das ações e tante do Concílio de Trento e propagado
das virtudes humanas” (Id., 1981, 302). nos séculos seguintes por uma educação
Portanto, a jesuitização do país foi de al- mutilada pelos padres da Companhia,
gum modo equivalente à sua espanholi- “ceifando tudo o que se elevava acima da
zação, que degenerou, como aconteceu mediocridade” (Id., Ibid., 227).
com as experiências políticas de domina- Também Eça de Queirós não poupou
ção castelhana, na asfixia das potenciali- o Concílio de Trento ao seu reconhecido
dades nacionais. sarcasmo. No romance O Crime do Padre
Apesar desta visão altamente deprecia- Amaro, publicado em 1875, onde encon-
tiva do modus procedendi dos Jesuítas e do tramos o anticlericalismo como compo-
jesuitismo, é de realçar um aspeto original nente fundamental da narrativa, o autor
da visão antijesuítica martiniana, que se explica, através de uma conversa entre o
distancia da apreciação negativa radicali- Dr. Gouveia e o abade Serrão decorrida
zada de Antero de Quental e do antijesui- na sequência do parto de Amélia, no que
tismo que se viria a tornar predominante consistiu o Concílio de Trento: “Uma as-
no seu tempo. Oliveira Martins distingue sembleia sublime. O Concílio de Trento
os Jesuítas dos primórdios da Companhia e a Convenção foram as duas mais prodi-
de Jesus daqueles que depois se perverte- giosas assembleias de homens que a terra
ram e se tornaram os fautores do jesuitis- tem presenciado”; e como os cânones por
mo, lembrando de alguma maneira a vi- ele instituídos (especificamente a respei-
são de uma fase da construção pombalina to da importância do batismo e da impo-
do mito jesuíta codificada na Dedução Cro- sição do celibato ao clero) contribuíram
nológica. Ao historiador não repudia en- para a decadência da própria Igreja e da
contrar valor nos primeiros Jesuítas, dado sociedade: “A Igreja fora a Nação; hoje
o seu investimento na razão e na ciência, era uma minoria tolerada e protegida
preferindo-os até aos protestantes. Neste pelo Estado. Dominara nos tribunais,
sentido, considera que, contra o “misti- nos conselhos da Coroa, na fazenda, na
cismo protestante tinham os Jesuítas de- Armada, fazia a guerra e a paz; hoje um
fendido em Trento a razão e a ciência”. deputado da maioria tinha mais poder
No entanto, ainda nos primórdios da sua que todo o clero do reino. Fora a ciência
existência os Jesuítas acabaram por se je- no país; hoje tudo o que sabia era algum
suitizar, isto é, acabaram por se degene- latim macarrónico. Fora rica, tinha pos-
rar devido à incorporação de elementos suído no campo distritos inteiros e ruas
ideológico-programáticos estranhos ao inteiras na cidade; hoje dependia para o
seu progressivo ideário original. Jesuitiza- seu triste pão diário do ministro da Justi-
dos, os Jesuítas passaram a jesuitizar tudo ça, e pedia esmola à porta das capelas. Re-
aquilo aonde chegava a inoculação da crutara-se entre a nobreza, entre os me-
sua influência. Esta degenerescência era lhores do reino; e hoje, para reunir um
devida, segundo Oliveira Martins, ao voto pessoal, via-se no embaraço e tinha de o

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Antitridentismo 1863

ir buscar aos enjeitados da Misericórdia. da questão religiosa se adensa e assume


Fora a depositária da tradição nacional, foros de processo e perseguição políticos.
do ideal coletivo da pátria; e hoje, sem co- Os referidos argumentos responsabili-
municação com o pensamento nacional zadores e lugares-comuns da moda pa-
(se é que o há) era uma estrangeira, uma tentes no ataque aos Jesuítas e aos ultra-
cidadã de Roma, recebendo de lá a lei e o montanos tridentinos podem ler-se tanto
espírito” (QUEIRÓS, 2000, 971). na grande literatura de Eça e de Camilo,
Alexandre Herculano, Antero de Quen- como na propaganda das lojas maçónicas
tal, Oliveira Martins e Eça de Queirós e dos centros republicanos, espraiadas na
hiperbolizaram, à luz de uma óptica historiografia e nos manuais escolares do
nacionalista e anti-internacionalista ou tempo.
antiultramontana, a eficácia da teia cons- Como emblemático desta cristalização
pirativa da Companhia de Jesus, que da imagem e de recursos a esta espécie
acreditavam ser o cérebro-motor do ca- de constelação explicativa da nossa deca-
tolicismo tridentino e responsável pelo dência regista-se, entre outros, o livro de
distanciamento herético em relação à Alexandre Barbas dedicado precisamen-
autenticidade de uma visão idílica da te a condensar as invetivas antitridentinas
Igreja da Idade Média: “A política ambi- para explicar o atraso português em rela-
ciosa, maquiavélica e anticristã da Corte ção à Europa protestante. Com o título
Romana, dirigida então (e de então para O Concílio de Trento e a Civilização Moderna,
cá) pela influência dos Jesuítas, em cujas esta obra sintetiza os vetores estruturan-
mãos os papas fanáticos ou corruptos do tes da aparelhagem argumentativa da
século xvi [...] não passavam de instru- corrente antitridentina. Primeiro, o lou-
mentos de agentes políticos”. Daqui te- vor do cristianismo que resultou da refor-
ria resultado a criação, pelo Concílio de ma de Lutero contra a supremacia papal
Trento, de um “catolicismo particular, e a doutrina definida por Roma: “O pro-
diverso do catolicismo da Idade Média testantismo substituía, como vimos, uma
e diversíssimo do catolicismo primitivo”. autocracia pontifícia, por uma Fé mais
Esse novo catolicismo jesuiticamente en- ampla, de horizontes rasgados aos senti-
formado, definido como um “catolicismo mentos individualistas” (BARBAS, 1914,
absoluto”, aparece, no âmbito de uma 107). Nesta linha, lamenta-se a inibição
teoria da causalidade decadentista mar- na sociedade portuguesa, pelo Index, pelo
cada por uma visão liberal e nacionalista Santo Ofício e pelos Jesuítas, da assunção
bem patente, como a causa principal da dos debates intelectuais que ocorreram
“ruína da Península, porque despótico e nos países da Reforma protestante: “Não
estrangeiro” (MEDINA, 1984, 166). fomos despertados pelos pregadores da
Esta imagiologia do catolicismo de reforma, que haviam já espalhado as prin-
Trento e dos Jesuítas, entendidos como cipais teses de Lutero pelo norte da Euro-
disciplinadores e tampões bloqueadores pa e na França estabelecido o Calvinis-
da entrada em Portugal do movimento mo” (Id., Ibid., 123-124).
europeu do progresso, encontra-se dis- A Companhia de Jesus é apresentada
seminada nos mananciais caudalosos da pelo autor como uma organização ultra-
“literatura de combate” anticlerical, anti- montana, contrária aos interesses nacio-
jesuítica, anticongreganista e anticatóli- nais, responsabilizada pela aplicação e
ca com maior incidência na viragem do formatação da cultura, da política e da
séc. xix para o séc. xx, em que a chama- sociedade portuguesas pelas normas de

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1864 Antitridentismo

Trento, sendo essa a causa do nosso des- organizações religiosas obedientes ao po-
calabro. Alexandre Barbas ataca também der central de Roma, que o movimento
a supremacia das ordens e congregações jurisdicional canónico pós-tridentino ti-
religiosas, como frente avançada do cato- nha sobremaneira valorizado. Estávamos
licismo de Trento, que divulgaram uma no tempo do esplendor das nações. Tren-
religião da submissão e da vassalagem à to e o internacionalismo da Igreja ga-
Cúria romana; e dedica capítulos aos paí- rantido pelas ordens e congregações, de
ses que considera modelares da Europa do que os Jesuítas eram o modelo mais me-
progresso, antíteses de Portugal e da Espa- diático, são apontados como o inimigo a
nha, nomeadamente os países escandina- temer e a combater. Hoje em dia, com a
vos, a Alemanha, a Inglaterra, os Países valorização das dinâmicas e das redes in-
Baixos e a França, que se teriam deixado ternacionais no quadro da globalização
inspirar pelos ares das correntes da refor- total, as organizações multinacionais da
ma protestante, considerando a influência Igreja e a própria Igreja, com a sua ma-
protestante causa de uma maior abertura cro-organização transnacional, acabaram
destas sociedade do Centro e do Norte da por integrar-se de forma mais pacífica nas
Europa para a liberdade de pensamento e democracias contemporâneas, sendo a
para um cristianismo mais autêntico. sua cooperação em vários planos da cons-
Em suma, a corrente antitridentina em trução social bem aceite. Por isso, o inter-
Portugal desenvolveu uma apreciação nacionalismo de Trento é hoje mais bem
muito negativa da receção de Trento e compreendido do que o era no séc. xix.
atribuiu-lhe força suficiente para mudar
a orientação do país e a sua dinâmica
social, fazendo-o voltar as costas ao pro- Bibliog.: ANTUNES, Manuel, “O Concílio de
gresso e à prosperidade. O antitridentis- Trento na perspectiva do Vaticano II”, Broté­
ria, vol. lxxvii, n.º 6, dez. 1963, pp. 497-503;
mo é promovido por intelectuais e por
BARBAS, Alexandre, O Concílio de Trento e a Ci­
correntes que defendem uma releitura vilização Moderna, Lisboa, Impresso no Centro
da história portuguesa, a avaliação das Tipográfico Colonial, 1914; HERCULANO,
suas diferentes épocas e o papel relativo Alexandre, Opúsculos, org., introd. e notas
das forças em presença (ou em ausência) Jorge Custódio e José Manuel Garcia, 6 vols.,
para favorecer o projeto de afirmação de Lisboa, Presença, 1982-87; MARTINS, Olivei-
Portugal à luz de modelos europeus de ra, Temas e Questões. Antologia de Textos, pref.,
org. e notas Guilherme de Oliveira Martins,
autonomia e progresso. Por isso é que à
Lisboa, INCM, 1981; Id., História da Civilização
cultura negativa propugnada pela cor- Ibérica, 12.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores,
rente de depreciação de Trento temos de 1994; MATOS, Sérgio Campos, Memória e Na­
ligar necessariamente a promoção, por ção, Dissertação de Doutoramento em Histó-
alguns, do mito luminoso do catolicismo ria apresentada à Universidade de Lisboa, Lis-
medieval por contraste com o moderno, boa, texto policopiado, 1995; MEDINA, João,
a defesa da vantagem da opção protestan- As Conferências do Casino e o Socialismo em Por­
te frente à católica afirmada pelo concílio tugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984; QUEIRÓS,
Eça de, O Crime do Padre Amaro, ed. crítica
tridentino, e uma perspetiva de valoriza-
coord. por Carlos Reis, Lisboa, INCM, 2000;
ção de tudo o que é nacional no quadro QUENTAL, Antero de, Prosas Sócio-Políticas, pu-
de uma lógica de afirmação dos estados­ blicadas e apresentadas por Joel Serrão, Lis-
‑nação que dominava as elites culturais e boa, INCM, 1982.
políticas laicas e anticlericais. Estas abo- José Eduardo Franco
minavam todo o internacionalismo das Cristiana Lucas Silva

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Antitroikismo 1865

Antitroikismo Comissão Europeia, e uma internacional


com intervenção mundial, o Fundo Mo-
netário Internacional. Estas instituições
foram chamadas a intervir em países eu-
ropeus com dificuldades financeiras resul-
tantes da crise do subprime nos EUA, em
2008, que contagiou os bancos europeus;

O antitroikismo é um movimento so-


cial? Esta será talvez a primeira per-
gunta a colocar-se. Touraine condiciona
a sua intervenção consistiu em negociar as
condições ditas de resgate financeiro na
Grécia, em Chipre, na Irlanda e em Por-
a classificação como movimento social à tugal. Aqui, a primeira missão da Troika
criação de condições que ambicionem chegou em abril de 2011, anunciada por
transformações sociais com alguma pere- um “Comunicado à imprensa do FMI”, em
nidade. Por outro lado, Alberoni explica 10 de abril desse ano, onde se dizia: “Em
os movimentos sociais pelo acumular de resposta a um pedido das autoridades por-
tensões que se expressam no entusias- tuguesas, os peritos do FMI vão juntar-se às
mo da mudança, depois de terem tido equipas da Comissão Europeia e do Banco
expressão na depressão. Assim, parece Central Europeu para uma avaliação téc-
que o denominador comum de um mo- nica da situação atual da economia por-
vimento social será a transformação e, tuguesa esta terça-feira, 12 de abril. Esta
nessa bitola, o antitroikismo passa como avaliação servirá de base para as discussões
movimento social. sobre políticas que começarão na segun-
Relembre-se que a palavra “troika” pro- da-feira seguinte, 18 de abril.”
vém do russo e designa, originalmente, Dando expressão a um movimento que
um grupo de três, referindo-se aqui ao não aceitava a solução para os problemas
conjunto das instituições intervenientes. financeiros e económicos de cada país
A designada Troika consiste num grupo proposta pela Troika, começaram a dese-
de três instituições internacionais: duas nhar-se, nos países sob assistência finan-
europeias, o Banco Central Europeu e a ceira, movimentos anti-Troika.

Manifestação, Braga, 2 de março de 2013.

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1866 Antitroikismo

Em Portugal podemos encontrar a sua Este movimento volta a ter visibilidade


génese no movimento Geração à Rasca, pública na interrupção do discurso do
que convoca uma grande manifestação primeiro-ministro Passos Coelho no Par-
para o dia 12 de março de 2011, altura lamento, em fevereiro de 2013, e nas ma-
em que José Sócrates ainda era primeiro­ nifestações de março desse ano, já com o
‑ministro (demitir-se-ia em 23 desse mês). apoio da central sindical CGTP e de mui-
Utilizando as redes sociais, este movimen- tos deputados do PS, PCP e BE.
to consegue juntar, segundo a comunica- Podemos considerar que os movimen-
ção social, entre 200 e 300.000 pessoas tos anti-Troika apresentam características
em Lisboa, para além de grandes mani- algo difusas e tendem a agregar múltiplos
festações noutras cidades portuguesas e, por vezes, antagónicos argumentos. De
e em frente a muitas embaixadas portu- qualquer forma, o antitroikismo provoca
guesas em diversos países do mundo. Os um novo tipo de clivagem política em
organizadores da Geração à Rasca (nome Portugal, embora ainda com contornos
inspirado numa expressão usada pelo jor- mal definidos e onde a divisão esquerda/
nalista Vicente Jorge da Silva, em 1994, a direita não é totalmente nítida. Também
propósito das dificuldades sentidas então na forma como são convocadas as mani-
pelos jovens portugueses) fundam, um festações este movimento é inovador, ser-
mês depois dessas grandes concentra- vindo-se, quase exclusivamente, das redes
ções, o Movimento 12 de Março, que se sociais, das telecomunicações móveis e do
diz apartidário, laico e pacífico, e elege a passa-palavra.
precariedade no trabalho como um dos Não podemos, no entanto, reduzir o
grandes problemas a combater. Em 15 de antitroikismo a estes movimentos, já que
maio de 2011, a plataforma Democracia ele pode ser classificado como um senti-
Real Já, inspirada nos movimentos por- mento de aversão à Troika que é difuso
tugueses e no livro Indignai-vos, de Sté- na sociedade. O apelo à participação cí-
phane Hessel, convoca grandes manifes- vico-política fora do enquadramento sin-
tações em Espanha. Em maio de 2011, o dical ou partidário é também inovador e
Movimento 12 de Março cria a iniciativa representará um descontentamento ge-
Auditoria Cidadã à Dívida Pública, que neralizado em relação à classe política e
tem como objetivo principal perceber às instituições do regime político.
como a dívida pública portuguesa é cria- Até meados de 2013, era nítido o apoio
da, quais os responsáveis por ela e quais do Governo e dos teorizadores a ele liga-
as diferentes formas de a pagar. dos às medidas da Troika em Portugal;
De denominação explicitamente anti­ no início da intervenção destas três insti-
‑Troika é o movimento criado em junho tuições, o próprio Governo elegeu como
de 2012, Que Se Lixe a Troika! Queremos seu o programa da Troika. Apesar disso, o
as Nossas Vidas!, que convoca manifesta- sentimento percebido na população era
ções em cidades portuguesas e noutras, de antitroikismo, ainda que se aceitas-
como Paris, Londres, Fortaleza e Bruxe- se a sua inevitabilidade. No entanto, em
las, utilizando as redes sociais e obtendo dezembro de 2013, durante o congresso
uma enorme e diversificada adesão (os da Juventude Centrista, o vice-primeiro­
organizadores e alguns media falam de ‑ministro, Paulo Portas, foi chamado a
500.000 manifestantes em Lisboa e de inaugurar um relógio digital que contava
cerca de 1.000.000, se juntarmos todos os os meses, dias, horas, minutos e segundos
locais onde se realizaram manifestações). até à saída dos credores internacionais,

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Antiultramontanismo 1867

parecendo significar uma viragem, pelo


menos de discurso, no apoio à teoria po-
Antiultramontanismo
lítico-económica subjacente ao programa
da Troika para Portugal.
Entende-se assim o antitroikismo de
um ponto de vista duplo: por um lado,
como um movimento social que, fazen-
do oposição à presença e discordando da
teoria económico-política da Troika no
contexto do resgate financeiro de países
O termo “ultramontanismo” terá a
sua origem no adjetivo francês
“ultramontain”, que terá surgido pela
com problemas de dívida externa, agrega primeira vez em 1690 para designar,
em movimento social, utilizando as novas no âmbito da história religiosa, o par-
tecnologias de informação e comunica- tidário do poder absoluto do papa so-
ção, diversas forças com expressão na so- bre a Igreja em França, por oposição
ciedade civil; e, por outro lado, como um a “galicano”. De acordo com o Grande
sentimento geral e difuso presente nas so- Dicionário da Língua Portuguesa de An-
ciedades onde a Troika atua, que se mani- tónio de Morais Silva, o adjetivo “ultra-
festa em conversas e atitudes pessoais ou montano”, definindo “o que está para
de pequenos grupos não organizados e além dos montes” – em oposição a “cis-
com uma certa expressão nos media con- montano” –, reporta “às doutrinas teo-
vencionais e nas redes sociais. lógicas ou peculiares à corte de Roma,
No início de 2014, tanto os movimen- quanto ao poder eclesiástico” e qualifica
tos antitroikistas como o sentimento anti­ também o “indivíduo que deseja que o
‑Troika referido atrás perderam fulgor poder temporal e espiritual do papa se
em Portugal, talvez pela aproximação da torne mais extensivo”; quanto ao subs-
data que determinou a saída deste grupo tantivo homónimo, significa “aquele
de instituições do país (jun. de 2014). que professa, defende ou propaga o
absolutismo papal no ponto de vista
Bibliog.: impressa: ALBERONI, Francesco, temporal ou espiritual; aquele que se-
Movement and Institutions, Columbia, Columbia gue o ultramontanismo” (SILVA, 1958,
University Press, 1984; BESSA, António Mar- 393). O Dicionário da Língua Portuguesa
ques, Elites e Movimentos Sociais, Lisboa, Uni-
Contemporânea da Academia das Ciências
versidade Aberta, 2002; MORAIS, Ricardo, e
SOUSA, João Carlos, “Do envolvimento asso- de Lisboa apresenta o substantivo “ul-
ciativo à mobilização cívica: o potencial das tramontanismo” como o “conjunto das
redes sociais”, in Actas dos Ateliers do VII Con­ doutrinas teológicas que, especialmente
gresso Português de Sociologia, Porto, Associação em França, são favoráveis à supremacia
Portuguesa de Sociologia, 2012, pp. 1-15; da Igreja Romana e ao poder absoluto
TOURAINE, Alain, Poderemos Viver Juntos? Iguais do papa, nos domínios temporal e espi-
e Diferentes, Petrópolis, Vozes, 2003; digital:
ritual, em reação ao movimento galica-
FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL,
“IMF country report nr. 16/302”, set. 2016: no e outras correntes da época”; e o ad-
http://www.imf.org/external/lang/portugue- jetivo “ultramontano” como “relativo ao
se/NP/sec/pr/2011/pr11126p.pdf (acedido a movimento de obediência ao Papa ou
12 out. 2017); Que Se Lixe a Troika! Queremos as que defende, de forma intransigente, a
Nossas Vidas: http://queselixeatroika15setem- autoridade absoluta do Papa e a infali-
bro.blogspot.pt/ (acedido a 12 out. 2017). bilidade pontifícia” (ACADEMIA DAS
Fernando Mendonça Costa CIÊNCIAS DE LISBOA, 2001, 3669).

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1868 Antiultramontanismo

O substantivo “ultramontanismo” está


associado, portanto, à doutrina que de-
fende a tese da infalibilidade pontifícia,
consagrando a obediência e devoção ao
papa nos campos doutrinal, jurisdicio-
nal, político e religioso; mas também a
supremacia de Roma relativamente aos
demais estados católicos. Segundo Vítor
Neto, as origens do ultramontanismo em
Portugal estão patentes na obra de Fr. An-
tónio de Jesus, Analyse da Carta Constitu-
cional da Monarchia Portugueza, Decretada,
e Dada por D. Pedro Imperador do Brasil aos
29 de Abril de 1826, nos Artigos Que Tocam
em Religião, publicada em 1863, na qual
o autor refuta o princípio da soberania
popular e defende uma conceção jusdi-
vinista e teocrática do poder, sustenta-
da pela antiga aliança entre o trono e o
Joseph de Maistre (1753-1821).
altar. Daqui se depreende que o ultra-
montanismo, em Portugal, terá surgido
como reação às práticas regalistas adota- tismo e, por oposição a estes, regalismo.
das pelos governos liberais, na sequência O dogma da infalibilidade pontifícia afir-
da política pombalina e das novidades ma como absolutamente infalíveis as de-
veiculadas pela Revolução Francesa. Jo- liberações do sumo pontífice proferidas
seph de Maistre terá sido o grande ins- ex cathedra em matéria de fé e de moral
pirador das doutrinas ultramontanas, ao religiosas, tornando-as também dogmas
defender, na obra Du Pape (c. 1817), a da Igreja. Remonta ao séc. xi a tese da
autoridade absoluta e ilimitada do papa supremacia do papa sobre os domínios
sobre a Igreja. Assim, se associarmos o espiritual e temporal exposta em Dictatus
antiultramontanismo em Portugal às te- Papae (1075), um conjunto de 27 propo-
ses e práticas regalistas a favor da auto- sições atribuídas a Gregório VII. Apesar
nomia e independência nacionais contra de o tema da infalibilidade pontifícia
o poder romano, então assumimos que ter sido objeto de discussão ao longo da
aquele não surgiu como reação ao ultra- história da Igreja, apenas na segunda me-
montanismo, como o antepositivo “anti-” tade do séc. xix, durante o pontificado
poderia supor, mas precedeu-o. Trata-se, de Pio IX, a doutrina da autoridade ab-
portanto, de um movimento anacrónico, soluta do papa em matéria religiosa foi
que, apoiando-se nas teses regalistas de efetivamente definida e tornada dogma,
inspiração galicana, jansenista e febro- nomeadamente através das encíclicas
nianista, assumiu uma feição essencial- Inter Multiplices (1853) e Quanta Cura
mente anticurialista e antijesuítica, e, (1864), as quais foram acompanhadas
progressivamente, secularista e laicista. do documento Syllabus, uma enumera-
São conceitos subsidiários de ultra- ção dos “erros do tempo” que suscitou
montanismo os de infalibilidade pontifí- polémica e exaltou a oposição contra
cia, curialismo romano, papalismo, jesui- a Igreja Católica, da carta apostólica

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Gregório VII

Antiultramontanismo 1869

to ultramontano, a aliança da Igreja às


fações mais conservadoras e os cada vez
mais acérrimos ataques contra as ideias
modernas levaram a que a mesma Igreja
se tornasse o alvo preferencial dos ideó-
logos defensores do progresso, que a
acusaram de ser inimiga das pátrias.
Os conceitos de curialismo romano e
de papalismo podem ser tidos como con-
ceitos-pais do de infalibilidade pontifícia,
dos quais deriva o mais genérico de ul-
tramontanismo; o de jesuitismo constitui
um caso especial, na medida em que se,
por um lado, procede dos conceitos an-
teriores, por outro ultrapassa-os na sua
dimensão ideológica a partir do momen-
to em que traduz a defesa dos poderes
e prerrogativas da Cúria romana e do
papa, ou seja, o ultramontanismo. A Cú-
Papa Gregório VII (1020-1085).
ria romana, sendo o principal organismo
governativo e administrativo da Igreja
Aeterni Patris (1868) e da constituição Católica, concentrou em si poderes que
dogmática Pastor Aeternus, promulgada não raras vezes concorriam com os do
na sessão iv do Concílio Vaticano I, de próprio sumo pontífice, ultrapassando­
18 de julho de 1870. ‑os. Esta sobreposição acontecia sempre
A definição dogmática da infalibilida- que a dimensão burocrático-institucional
de do papa foi vivamente debatida na da Cúria se tornava dominante. Uma vez
esfera pública, colocando em confronto que constituía uma das prerrogativas da
a eclesiologia ultramontana e a eclesio- Cúria romana a gestão dos assuntos rela-
logia de inspiração galicana – chame- cionados com o episcopado, compreen-
mos-lhe antiultramontana. Se a primeira de-se que as doutrinas episcopalistas
colocava em evidência a autoridade ab- fossem essencialmente anticurialistas.
soluta do papa e o carácter irreformável O  papalismo, ou teocracia papal, en-
das suas definições, a segunda recusava quanto expressão da absoluta autoridade
veementemente a concessão de tal prer- pontifícia, defendia a hiperconcentração
rogativa a um único homem – que por do poder nas mãos do papa, sobrepon-
natureza é falível –, considerando, para do-se a todos os outros polos do poder,
mais, que a defesa da infalibilidade do nomeadamente ao considerado órgão
papa constituía um atentado contra a in- máximo da Igreja, o concílio. A partir do
falibilidade da própria Igreja, os direitos séc. xviii, a dimensão internacionalista da
legítimos dos bispos e a superioridade do Igreja entra em conflito com os projetos
concílio, representando, em última ins- de edificação dos estados nacionais, origi-
tância, uma “indevida ingerência estran- nando reações antipapalistas com sólida
geira em assuntos de ordem interna da fundamentação teórica. É o caso da Aná-
nação” (FELÍCIO, 2000, 364). O dogma lise da Profissão da Fé de Pio IV (1791), de
da infalibilidade pontifícia e o movimen- António Pereira de Figueiredo, na qual o

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1870 Antiultramontanismo

teólogo examina cada um dos artigos do de Carvalho e Melo, visava desmascarar


chamado “Credo piano” para demons- as verdadeiras intenções da Companhia:
trar não somente o primado do corpo aniquilar o poder dos estados e instau-
episcopal, mas “a afirmação do poder da rar o poder universal da Companhia de
Igreja Lusitana de aceitar ou recusar os Jesus, uma obediência ultramontana,
atos, ainda dogmáticos, do Pontífice Ro- através de uma política de deseduca-
mano” (FELÍCIO, 2000, 401). Caso para- ção, ou seja, de obscurecimento mental
digmático de antipapalismo é o manifes- e intelectual. Na verdade, a Companhia
tado por Francisco Xavier de Oliveira, ou de Jesus alcançou na sociedade portu-
Cavaleiro de Oliveira. Na sua Recreação guesa uma enorme preponderância ao
Periódica, começada a publicar em 1751, nível cultural, pedagógico e económico,
este estrangeirado rendido ao luteranis- sendo considerada um poder absoluto
mo faz remontar o ato de beijar os pés dentro de um Estado que se queria tam-
do sumo pontífice ao paganismo roma- bém absoluto, ou seja, uma unidade que
no, comparando o papa ao Imperador concorria com outra unidade. No pla-
Calígula, “de todos os soberanos pontí- no político-ideológico, os Jesuítas eram
fices o primeiro que praticou a audácia críticos da conceção do poder absoluto
de dar o pé a beijar”, e concluindo que do rei recebido direta e imediatamente
“o fausto mundano e a grandeza tempo- por Deus, e defensores da mediação po-
ral dos papas não faz mais que suceder ao pular. Daí que sejam considerados como
fausto e grandeza do Soberano Pontífice um contrapoder que tenta enfraquecer
ou Sacrificador magno da Roma antiga” o Estado e as suas instituições, corroen-
(CAVALEIRO DE OLIVEIRA, 1922, 40). do-as. Segundo Zília Osório de Castro, o
Assim, apesar das diferenças entre curia- jesuitismo reconhecia “a soberania papal
lismo e papalismo, os argumentos que como única, superior e absoluta tanto
justificavam a reação contra estas corren- no temporal quanto no espiritual”, o
tes pouco divergiam, sendo concordan- que significava uma sujeição a uma au-
tes na defesa das teses episcopalistas e toridade estrangeira (CASTRO, 2009,
conciliaristas e da autonomia das igrejas 122-123). De facto, no plano estrutural, a
nacionais. Companhia de Jesus organizava-se como
Dentre as correntes paladinas do pri- um governo monárquico, no qual o su-
mado papal ou romano, o jesuitismo perior-geral ocupava o lugar de soberano
constitui um caso específico enquanto absoluto, libertando os Jesuítas de quais-
“contrapoder do regalismo” (CASTRO, quer outros laços de sujeição. Assim, a
2009, 113). Com o significado de “Dou- obediência devida ao geral e, por via de
trina, sistema moral, atitude, modo de um quarto voto, ao papa levaram a que
proceder que caracteriza os jesuítas”, fossem tidos pelos seus críticos como au-
o conceito de jesuitismo adquiriu uma tómatos, seres sem vontade própria, pri-
conceção negativa em virtude da campa- vados de liberdade de pensamento e de
nha eximiamente organizada contra este ação, o que os colocava nos antípodas do
instituto religioso, passando a ser sinóni- ideário das Luzes.
mo de “hipocrisia”, “fanatismo, faccio- Verificamos, assim, que o movimento
sismo” (ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE antiultramontano não pode ser dissocia-
LISBOA, 2001, 2187). Tal campanha, do das práticas regalistas colocadas ao
iniciada em Portugal de forma mais siste- serviço do reforço do poder do rei ou do
mática sob a orientação de Sebastião José Estado, que pressupunham a recusa da

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Antiultramontanismo 1871

infalibilidade pontifícia e o repúdio pela sob a dependência ou tutela dos sobera-


interferência de um poder ultramonta- nos ou dos Estados. Esta dupla aceção,
no, extranacional, mesmo nos assuntos à qual se deve aditar uma crescente ten-
eclesiásticos. Neste sentido, podemos dência de secularização da sociedade e
afirmar que o antiultramontanismo se das instituições, traduzida na libertação
constituiu como uma configuração do do Estado do poder temporal da Igreja
regalismo e que as práticas regalistas e com vista a uma maior autonomia e
vieram a sustentar a oposição ideológica independência do primeiro em relação
contra a Igreja ultramontana, também à segunda, explica o carácter heterodo-
chamada jesuítica. xo do regalismo português e a razão por
A definição de regalismo deve a sua que não se confina a uma mera defesa
complexidade às várias nuances que o en- do “domínio do profano sobre o sagra-
formam, dependentes quer do contexto do” (Id., 1987, 359).
em que é formulado e praticado, quer Considera-se que o regalismo conhe-
da orientação ideológica que preside a ce as suas primeiras manifestações em
essas formulação e prática, quer ainda Portugal com a institucionalização do
das necessidades e interesses específicos beneplácito régio, por D. Pedro I, entre
a que o regalismo obedece. Quer isto 1355 e 1358 – embora os conflitos entre
dizer que, aceitando a sua existência re- os reis e a Igreja fossem anteriores, visan-
mota, a prática regalista não obedeceu do mormente questões relativas aos bens
sempre aos mesmos critérios nem foi temporais de certas entidades eclesiásti-
pautada pelos mesmos princípios e ob- cas. A partir de então, as práticas rega-
jetivos; assim, o regalismo operado, e.g., listas começaram a assumir um carácter
na Modernidade (regalismo ortodoxo) de reivindicação, pela Coroa, de regalias
foi muito diverso do praticado a partir que pertenciam ao foro temporal do
do século das Luzes (regalismo hetero- papa: a partir de Quatrocentos, introduz­
doxo). De forma mais generalizada, po- ‑se a possibilidade de os monarcas no-
demos definir o regalismo como a defesa mearem os bispos; a criação da Mesa de
das regalias do soberano ou do Estado Consciência e Ordens, em 1532, permite
contra as pretensões da Igreja, mediante ao monarca inspecionar e intervir em
a interferência do poder civil nos assun-
tos eclesiásticos, sendo esta, grosso modo,
a definição que encontramos em dicio- Rei D. Pedro I (1320-1367).
nários linguísticos e nos autores que dis-
correram sobre o tema. A complexidade
da definição de regalismo está, portanto,
na leitura que se faz dessa interferência
(se é legítima ou não), nos suportes jus-
tificativos a que se recorre para a defen-
der ou acusar, e na conjugação das suas
práticas com os condicionalismos histó-
ricos, políticos e sociais envolventes. As
políticas regalistas pressupõem o bem­
‑estar e a felicidade dos súbditos ou cida-
dãos, e ainda a defesa da própria Igreja,
que, para o efeito, deveria permanecer

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1872 Antiultramontanismo

questões ligadas às ordens militares, às O registo antiultramontano encontra­


reformas religiosas e aos assuntos da uni- ‑se especialmente disseminado, na cultu-
versidade, seguindo-se o estabelecimento ra portuguesa, a partir da segunda me-
da Inquisição em Portugal, em 1536, e a tade de Setecentos, prolongando-se nos
incorporação na Coroa dos mestrados sécs. xix e xx, mercê da ameaça consti-
das ordens militares, em 1551; durante a tuída pela Igreja Católica na sua vertente
monarquia dual, as tendências regalistas internacionalista, enquanto influência
conhecem um desenvolvimento quando, estrangeira sobre o destino de Portugal.
na sequência da crítica de Francisco Suá- Sobretudo durante o reinado de D. José,
rez a determinadas práticas regalistas em as manifestações antiultramontanas de-
Portugal, expressa na obra Defensio Fidei vem ser interpretadas à luz de um pro-
(1613), Gabriel Pereira de Castro publi- jeto político que visava a centralização
ca o tratado De Manu Regia (1622), obra do poder no Estado, no quadro do cha-
de fundamentação teórica do regalismo mado despotismo esclarecido, sistemati-
que antecedeu De Imperio Summarum Po- zado em discursos teológico-canónicos
testatum in Sacra (1647) de Hugo Grócio, e histórico-juridicistas, nomeadamente
que é considerado um dos teorizadores na Doctrina Veteris Ecclesiae de Suprema Re-
doutrinários do regalismo e iniciador gum etiam in Clericos Potestate (1765), de
do processo de secularização da ideia de António Pereira de Figueiredo, na De-
direito. Com a independência do reino, dução Cronológica e Analítica (1767-68),
em 1640, em virtude de a Santa Sé se publicação atribuída a José de Seabra da
recusar a prover bispos para as dioceses Silva, e no De Sacerdotio et Imperio (1770),
portuguesas vacantes (pelo facto de não de António Ribeiro dos Santos. Estas
reconhecer a nova dinastia portuguesa), obras constituirão o fundo doutrinal
o regalismo adquire maior expressão e que marcará as relações entre o Estado
agudiza-se à medida que o poder do rei português e a Igreja Católica, não só na-
se torna cada vez mais absoluto. De facto, quele período, mas também nos tempos
é no reinado de D. João V que é restabe- futuros. Emerge, neste contexto, a ideia
lecido o beneplácito régio, por ocasião de soberania como poder único, indivisí-
do corte de relações de Portugal com vel e imediato, excluindo-se a mediação
Roma, e é durante o governo de D. José pontifícia (origem divina do poder atra-
que o regalismo se manifesta de forma vés do papa) ou popular (origem divina
mais ativa e adquire carácter doutrinário, do poder através do povo), bem como a
com toda uma fundamentação teórica interferência do papa em assuntos tem-
que o legitima, também à luz das práti- porais com fins espirituais, e apenas se
cas regalistas europeias, que, embora sob aceitando o princípio de que os poderes
designação diversa, postulavam projetos espiritual e temporal têm origem divina
semelhantes: galicanismo em França, e são transmitidos, diretamente, ao papa
jurisdicionalismo no reino de Nápoles (sobre a espiritualidade) e aos reis (sobre
e na república de Veneza, leopoldismo a temporalidade), por igual. Neste senti-
na Toscânia, erastianismo na Inglaterra, do, o poder do sumo pontífice deixa de
josefismo na Áustria, febronianismo na ter qualquer primazia sobre o do rei. Tra-
Alemanha e, com características próprias ta-se de uma sacralização do poder tem-
e sem uma delimitação geográfica espe- poral, que justifica assim a infalibilidade
cífica porque cobrindo várias realidades, do rei e a obediência que todos lhe de-
jansenismo. vem, sem resistências, sob consideração

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Antiultramontanismo 1873

de crime de lesa-majestade, ao mesmo gem do poder dos papas, pressupunha


tempo que faz emergir uma nova unida- a separação e independência dos pode-
de “liberta de um poder externo e dota- res temporal e espiritual, o que parece
da de um poder específico” (Castro, contrariar a ingerência do civil sobre
2009, 116), o Estado. Foi, efetivamente, os assuntos eclesiásticos decorrente da
durante o período de governação jose- política regalista. Todavia, esta aparente
fina que o regalismo se tornou política incoerência resolve-se quando se pensa
de Estado. Traduzido num processo de na Igreja como um corpo constituído
secularização da sociedade, o regalismo por fiéis (subordinados ao papa) que são
dito pombalino, ao afirmar a primazia também súbditos e, como tal, vinculados
do rei sobre todos os súbditos e a autono- à sociedade civil (sujeitos ao rei) e quan-
mia do poder civil, e ao cercear qualquer do se pensa no rei como detentor do
possibilidade de ingerência eclesiástica poder soberano temporal e como cristão
nos assuntos temporais, não só libertava “defensor e protetor do corpo místico”
o Estado do poder temporal da Igreja, (Id., 1987, 396). Estes princípios, defen-
como libertava os bispos da tutela curial. didos por Gaspard de Réal de Curban,
Esta dupla libertação encontrava justifi- em La Science du Gouvernment  (1764),
cação na origem direta e imediata do po-
der dos soberanos e na recuperação do Rei Luís XIV (1638-1715).
poder original dos bispos, o mesmo que
fora atribuído por Cristo aos apóstolos.
O Estado passaria, pois, a tutelar todos
os assuntos de cariz temporal, mesmo
aqueles do foro eclesiástico – como a no-
meação de bispos em situação de vacatu-
ra –, dando assim resolução aos proble-
mas suscitados pelos cortes de relações
com a Cúria romana.
O ministro de D. José assumiu uma
política religiosa fundamentada num
sistema regalista que já lhe era anterior,
e que ele pôs em prática sem qualquer
inibição. De facto, a política eclesiástica
assumida por Pombal assume uma im-
portância particular e indubitável no pla-
no geral da sua ação política, devendo ser
apreendida à luz da tendência, verificada
nas monarquias católicas, de supremacia
absoluta do poder régio, representada na
conhecida fórmula atribuída a Luís XIV:
“L’État c’est moi”. Donde se infere que
as práticas regalistas assumidas pelos so-
beranos constituíram o fundamento do
seu despotismo.
A origem divina, direta e imediata do
poder dos soberanos, ao igualar a ori-

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1874 Antiultramontanismo

legitimavam a intervenção do soberano fice, a separação das esferas de jurisdição


nos assuntos eclesiásticos, tanto exter- temporal e espiritual e a autoridade dos
nos (políticos, por direito de soberania) reis no domínio temporal, que revelam a
como internos (místicos, por direito de comunhão de Pereira de Figueiredo com
proteção). Atendendo aos ideais ilumi- as teses febronianistas, jansenistas e ga-
nistas e à doutrina cristã, o poder do licanas, que, não obstante as diferenças
soberano tinha como objetivo último entre elas, partilham do impulso comum
o bem-estar da sociedade e a felicidade contra as “ideias e doutrinas ultramon-
dos seus membros, que não abdicavam tanas, então, as dominantes” (Id., 1990,
dos valores religiosos. Precisamente, a 369), nomeadamente a da infalibilidade
importância da Igreja e do múnus re- pontifícia.
ligioso na sociedade – para assegurar a As práticas regalistas assumidas neste
ordem social – justificava a tutela do Esta- período devem ser compreendidas não
do sobre os assuntos eclesiásticos, o que somente no âmbito de uma política ecle-
implicava a perda de imunidades e isen- siástica, mas à luz de um projeto político
ções do clero, bem como do seu domínio mais vasto, no qual se enquadra, e.g., a
ideológico, político, económico e jurí- preferência dada à criação de monopó-
dico, com vista à reforma e purificação lios, a limitação do poder da nobreza e
da Igreja, mas também à centralização a proteção da burguesia, a restruturação
do poder político. Reforma da Igreja e do exército, a centralização dos poderes
autonomia do Estado – traduzidos como no Estado e o seu controlo por pessoas
descentralização do poder eclesiástico de confiança, a reforma do ensino, a in-
e centralização do poder político – são, terdição da escravatura na metrópole, a
portanto, o mote do regalismo doutriná- proibição da distinção entre cristãos-no-
rio do governo josefino, que se apresenta vos e cristãos-velhos e a própria expulsão
assim como um regalismo heterodoxo da Companhia de Jesus. A colocação das
com fundamentação teórica baseada, na doutrinas regalistas ao serviço deste pro-
sua essência, nas doutrinas jansenistas e jeto explica a sua natureza heterodoxa e
galicanistas, mas também febronianistas a sua diferença relativamente às doutri-
(no seu episcopalismo e conciliarismo). nas congéneres europeias. Mais do que
Coube ao oratoriano José Pereira de Fi- a reforma da Igreja ou a autonomia e
gueiredo a fundamentação teórica do libertação do clero nacional, as práticas
regalismo pombalino, através da com- regalistas assumidas durante o ministério
posição e publicação de obras que pre- pombalino obedeceram a um desiderato
conizavam a substituição do primado de fortalecimento, soberania e indepen-
de autoridade do papa pelo primado de dência do Estado face a qualquer inter-
função (enquanto primum inter pares), a ferência estrangeira ou mesmo nacional.
dignidade dos bispos e a defesa da sua Assim se justifica também a expulsão da
jurisdição sobre os fiéis das respetivas Companhia de Jesus, “coluna da política
dioceses, a superioridade dos concílios ultramontana” (RAMOS, 1988, 14), em
ecuménicos sobre o papa e o respeito e a 1759, e o antijesuitismo pombalino – que
obediência aos cânones deles emanados, pode ser entendido como manobra para
a subordinação do papa à Igreja univer- divisão do clero e consecutivo enfraque-
sal, a união do rei e dos bispos no proje- cimento das estruturas eclesiásticas ultra-
to de reforma da Igreja, a autonomia das montanas; a restauração do beneplácito
igrejas locais em relação ao sumo pontí- régio, em lei de 6 de abril de 1765, na

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Antiultramontanismo 1875

sequência do corte de relações diplo- cios de uma teorização laicista, que visa
máticas com a Santa Sé em 1760, com o restringir os poderes temporal e espiri-
intuito de rejeitar em Portugal o breve tual aos domínios que lhes são especí-
Apostolicum Pascendi, de Clemente XIII, ficos. Não se trata de submeter a Igreja
pelo qual se reafirmava a importância da ao domínio do Estado, como pretendia
Companhia de Jesus; a criação da Real Pombal, mas de manter uma e outro in-
Mesa Censória por alvará de 5 de abril de dependentes, promovendo assim o valor,
1768, transferindo para o Estado a fiscali- tão caro a Ribeiro Sanches, da tolerância.
zação das obras que poderiam ser publi- Apesar de um certo retraimento da
cadas em Portugal – função até então a política regalista durante o reinado de
cargo da Inquisição – e o poder de negar D. Maria I, a sua prática intensificou-se
o beneplácito aos índices romanos de a partir do vintismo e, embora inscrito
livros proibidos; a secularização do Tri- num tempo de revolução, o regalismo
bunal do Santo Ofício, tornado tribunal liberal caracterizou-se por uma conti-
régio em 1769, o que implicava, e.g., que nuidade do regalismo pombalino, cujo
os bens confiscados aos condenados pas- fundo doutrinário serviu de fundamen-
sassem a ser propriedade do erário régio, tação. De facto, D. João VI reforçou o
e a reforma do Regimento da Inquisição regalismo herdado do governo josefino,
(1774); e a elaboração dos novos Estatu- intensificando o controlo da Coroa sobre
tos da Universidade de Coimbra (1772), que os assuntos eclesiásticos e restringindo o
constituem um manifesto das doutrinas domínio ou ingerência da Cúria roma-
regalistas, de cerceamento dos poderes na nos assuntos da igreja nacional. Com
do papa e de exaltação dos poderes ré- a Revolução Liberal e à luz dos novos
gios, mas também o molde que enforma- ideais veiculados pela Revolução France-
rá o pensamento liberal. sa sob a fórmula “liberdade, igualdade,
O estrangeirado António Nunes Ri- fraternidade”, semeados em Portugal na
beiro Sanches foi um dos autores que sequência das invasões francesas e das
denunciaram a supremacia do poder es- Cortes de Cádis de 1812, firmou-se uma
piritual sobre o temporal, expressa por rutura com o Antigo Regime e o regalis-
um abuso do poder ultramontano, e de- mo foi assumido como política ao serviço
fenderam, em contraposição, a remoção do Estado-nação, já não do poder abso-
dos privilégios de que o clero foi sendo luto e indivisível do rei, e adquiriu um
dotado ao longo dos séculos e que contri- teor anticongreganista, em função do
buíram para o estado de degeneração de qual foi aproveitada toda uma constru-
Portugal. Nas suas Cartas sobre a Educação ção discursiva antijesuítica herdada do
da Mocidade (1760), a fim de demonstrar pombalismo. Com toda uma fundamen-
os danos causados pela educação ecle- tação teórica já elaborada sob a supervi-
siástica ministrada à mocidade e de com- são pombalina, a doutrina regalista libe-
provar a competência do monarca para ral constitui-se mais como prática do que
reformar os estudos universitários, Ri- como teoria. Os próprios autores liberais
beiro Sanches procede a uma refutação que se detiveram a teorizar, defender e
do ultramontanismo e, mediante uma legitimar os princípios regalistas fizeram­
fundamentação pactualista da origem ‑no tendo por base os textos produzidos
do poder, a uma defesa da secularização no século precedente e tendo em Antó-
das instituições e sobretudo do ensino. nio Pereira de Figueiredo um mestre.
Encontramos em Ribeiro Sanches indí- De facto, o deputado Manuel Borges

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1876 Antiultramontanismo

Carneiro, um dos principais teorizadores dade. Todas as demais medidas tomadas


do regalismo liberal, partilhava muitos durante a vigência do regime são de na-
dos princípios defendidos pelo padre ora- tureza anticongreganista e anticlerical,
toriano na sua Tentativa Teológica (1766), numa reação contra as ordens religiosas
nomeadamente quanto à valorização dos e o ultramontanismo, tidos como ameaça
bispos e à defesa da sua autoridade apos- ao projeto político liberal e, por isso, um
tólica em detrimento da supremacia do alvo a abater.
poder pontifício. Na linha do regalismo O longo debate antiultramontano que
pombalino de feição episcopalista, Bor- atravessa todo o liberalismo e conflui na
ges Carneiro concorda que determina- lei de 20 de abril de 1911 radica-se, por
das prerrogativas que por direito perten- um lado, na contestação das ordens re-
ciam aos bispos haviam sido usurpadas ligiosas e na sua responsabilização pelo
pelo papa. De facto, em grande medida, atraso em que Portugal se encontrava
as bases teóricas que enformam o rega- mergulhado e, por outro lado, na obje-
lismo liberal são de teor episcopalista. ção à influência exercida pelo papa so-
Pelos princípios do liberalismo, a mun- bre a Igreja nacional. Se o regalismo que
dividência teológica daria lugar a uma encontramos na produção legislativa do
mundividência antropológica e a moral vintismo assume uma natureza político­
religiosa a uma moral social, operando­ ‑eclesiástica, a partir do momento em
‑se uma “dessacralização da vida política, que se fundamenta em bases simultanea-
económica e social” (CASTRO, 1990, mente económicas, políticas e morais
74-75), ou seja, uma secularização da assume uma natureza anticongreganista:
sociedade e das consciências. Por outro por um lado, o poder económico detido
lado, sem se pretender um afastamento pelo clero, sobretudo pelas ordens regu-
da religião pelos motivos já enunciados, lares, e os privilégios de que ainda goza-
defendia-se o episcopalismo enquanto va contrariavam a ideia de igualdade e
baluarte da Igreja nacional contra as in- o princípio de concorrência defendidos
vestidas ultramontanas. De certa forma, é pelo liberalismo, o qual pressupunha
possível resumir a prática regalista liberal a destruição das hierarquias e dos pri-
à assunção pelo Estado do direito de no- vilégios sociais; por outro lado, a Igreja
meação dos bispos e de provimento dos ultramontana continuava a defender a
benefícios eclesiásticos, e do direito de pretensão de D. Miguel ao trono; e, na
conceder ou negar o beneplácito régio ordem moral, estava em causa a relaxa-
aos documentos pontifícios e episcopais, ção dos costumes e o ingresso nas ordens
e aos decretos conciliares. Não se trata- e congregações por motivos não religio-
va já de uma defesa das regalias do po- sos. Não bastava, portanto, submeter a
der civil contra a ingerência da Igreja na Igreja à tutela do Estado, era necessário
temporalidade, mas de um controlo dos manietá-la de forma a impedir a aliança
assuntos eclesiásticos pelo Estado, com entre absolutistas e ultramontanos con-
vista à centralidade da soberania e à edi- tra o regime constitucional.
ficação do Estado-nação. Para o efeito, Na segunda metade do séc. xix, com
seria necessário adequar o aparelho ecle- o fim do sonho regenerador, veio a cons-
siástico à ordem constitucional e garan- ciência de que os problemas nacionais
tir que a Igreja cumpriria a sua função persistiam, assim como a necessidade de
de difusão dos valores do cristianismo, justificar o fracasso, através da afirmação
assegurando a orientação ética da socie- convicta de que o clero era o responsável

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Antiultramontanismo 1877

pela situação de atraso generalizado do Alexandre Herculano foi uma das vo-
país, como consequência de uma tradi- zes antiultramontanas de Oitocentos.
ção de intolerância e violência alimenta- O historiador, como acérrimo defensor
das pela Igreja num passado ainda recen- do regime liberal e arrojado crítico do ul-
te. A mobilização de energias católicas, tramontanismo, considerava que a Igre-
em defesa dos seus interesses e como rea- ja não deveria interferir na vida política
ção ao regime vigente – traduzida na ten- do país nem tão-pouco na liberdade de
tativa de reintrodução de ordens e con- consciência individual. São estes pressu-
gregações religiosas, na dogmatização da postos que perpassam parte considerável
infalibilidade pontifícia e na condena- da sua obra e que encontramos espe-
ção por Pio IX das ideias liberais, numa cialmente desenvolvidos em alguns dos
dupla e simultânea atitude defensiva e seus escritos de natureza mais polemista,
contraofensiva, e numa organização po- como A Reacção Ultramontana em Portugal
lítico-social do catolicismo português e ou a Concordata de 21 de Fevereiro (1857), o
respetiva intervenção na cena política Manifesto da Associação Popular Promotora
através da composição partidária –, de- da Educação do Sexo Feminino. Ao Partido
terminou um anticlericalismo sistemáti- Liberal Português (1858), sobre o signifi-
co e uma resistência ideológico-política cado da presença e ação das Irmãs da Ca-
à Igreja ultramontana. Se a definição do ridade francesas em Portugal, as Cartas
dogma da Imaculada Conceição, pela sobre o Casamento Civil (1865-66), em Es-
bula Ineffabilis Deus (8 de dezembro de tudos sobre o Casamento Civil. Por ocasião do
1854), a publicação da encíclica Quanta Opúsculo do Sr, Visconde de Seabra sobre este
Cura, acompanhada da declaração Syl- Assunto (1866), em A Supressão das Con-
labus Errorum (1864), e a definição do ferências do Casino (1871) e ainda em Da
dogma da infalibilidade pontifícia, no Origem e Estabelecimento da Inquisição em
contexto do Concílio Vaticano I (1870), Portugal – Tentativa Histórica (1854-59).
geraram uma forte reação no meio polí- Outra figura relevante para o estudo
tico-intelectual, outros eventos provoca- do antiultramontanismo na cultura por-
ram um inflamado nacionalismo anticle- tuguesa é Antero de Quental, mormente
rical e antiultramontano que alcançou o através do texto da célebre conferência
domínio popular, ganhando forte com- “Causas da decadência dos povos penin-
ponente ideológica: a questão das Irmãs sulares nos últimos três séculos”, pronun-
da Caridade francesas (1857-1862), a ciado no dia 27 de maio de 1871, na qual
Concordata sobre o Padroado Português apresentou a sua teoria da causalidade
(1857), o regresso paulatino das ordens e decadentista mediante uma análise dos
congregações religiosas (entre as quais a motivos que terão conduzido a nação
Companhia de Jesus) e, posteriormente, portuguesa, em poucos anos, de uma
o caso das Trinas, do assassinato de Sara situação de “grandeza”, “importância”
de Matos (1891) – episódio empolado e “originalidade”, a um estado de “aba-
pela crise provocada pelo Ultimatum in- timento e insignificância” (QUENTAL,
glês – e o rapto de Rosa Calmon (1901). 1871, 7). Segundo Antero, o motivo
Estes acontecimentos foram interpreta- de ordem moral que estava na origem
dos, no seu conjunto e à luz da teoria do de uma tão grande disparidade entre
complô, como obra dos Jesuítas, guarda a grandiosidade de Portugal durante
avançada do ultramontanismo contra a o “primeiro período da Renascença”,
liberdade e o progresso na nação. “toda a Idade Média” e “os últimos anos

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1878 Antiultramontanismo

da Antiguidade” (Id., Ibid., 25) e a sua de- Este processo dessacralizador operou-se
cadência nos sécs. xvii, xviii e xix era a destruindo determinadas estruturas que
transformação do catolicismo pelo Con- conferiam à religião católica um estatuto
cílio de Trento. Este, ao tornar as ordens social proeminente, nomeadamente pela
religiosas independentes dos bispos e secularização dos ritos de passagem (so-
mais dependentes de Roma (que o autor bretudo o matrimónio) e pela contesta-
considerava dominada pelos Jesuítas), ao ção do celibato e da confissão auricular:
“impor aos povos a polícia romana, apa- tido como contrário ao direito natural e
gando implacavelmente por toda a parte causa da decadência dos princípios mo-
os últimos vestígios das Igrejas nacionais” rais do cristianismo, o celibato seria usa-
(Id., Ibid., 28) e ao determinar a superio- do pelo ultramontanismo para um con-
ridade do papa sobre os concílios, torna- trolo mais apertado do clero nacional; já
va a Igreja Católica uma instituição ultra- a confissão auricular serviria igualmente
montana, ou seja, estrangeira. Antero de os propósitos ultramontanos, como meio
Quental não parece colocar em causa o de controlo da população e de manipula-
facto de o catolicismo ser religião oficial ção das consciências.
do Estado, mas a sua tendência absolu- Não obstante a tradição antiultra-
tista e, sobretudo, o facto de a Igreja ser montana que remontava ao tempo do
romana e não nacional, estando por isso marquês de Pombal, o catolicismo man-
dependente de um soberano estrangei- teve em Portugal uma autoridade que
ro cujas deliberações infalíveis tinham os republicanos vieram a considerar in-
em vista o interesse de Roma, não de compatível com o chamado “princípio
Portugal. de soberania nacional” (CATROGA,
À reação católica representada pela po- 2010, 202). O antijesuitismo de Pom-
sição assumida por Pio IX e, mais tarde, bal, o anticongreganismo dos liberais,
pela política de ralliement de Leão XIII o anticlericalismo dos republicanos e as
correspondeu uma reação dos sectores práticas regalistas que lhes são comuns
defensores do laicismo e o anticlerica- derivam de um mesmo sentimento, que
lismo foi explorado ao limite, sobretudo foi recrudescendo ao sabor das novas
pelos partidos de oposição à monarquia, ideias, contra o poder e a influência da
constituídos maioritariamente por livres­ Igreja romana sobre a sociedade civil,
‑pensadores e republicanos, assumindo sendo as ordens religiosas em geral e a
como chave argumentativa a natureza Companhia de Jesus em particular a re-
estrangeira da Igreja ultramontana e a presentação metonímica desse poder
incompatibilidade desta com o progres- extranacional. Tendo sempre em vista o
so, a liberdade e a igualdade. Fundado progresso do país e baseada num ideário
em 1876, o Partido Republicano Portu- nacionalista, a propaganda republicana
guês tornou o laicismo o seu emblema de reivindicava a laicização do Estado e da
campanha. Recuperando a matriz secu- sociedade e a erradicação da influência
larizadora do pombalismo e do liberalis- da Igreja na vida dos Portugueses, ape-
mo e imprimindo-lhe um carácter mais lando a uma Igreja nacional ou, de for-
radical, a propaganda laicista teve como ma mais radical, a uma religião civil, com
objetivo dessacralizar o estatuto do pa- a criação de toda uma simbologia laica,
dre e da Igreja mediante a multiplicação com a substituição da religião pela ciên-
dos discursos antijesuíticos e anticleri- cia exata, com a negação, em casos mais
cais herdados dos períodos precedentes. extremos, da própria existência de Deus,

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Antiultramontanismo 1879

em defesa de uma total dessacralização


da existência humana. Os adeptos deste
movimento, autointitulados livres-pensa-
dores, defendiam a substituição do culto
religioso pelo culto cívico da pátria e das
suas instituições. Mais do que por asso-
ciações, panfletos ou discursos anticleri-
cais ou antijesuíticos, entendiam que a
transformação e modelação mental da
sociedade tinha de ser feita pelo ensino
e pela educação. A escola, além de lugar
de instrução, era encarada como espaço
de “regeneração e integração social efi-
caz”, dela dependendo “as possibilidades
do progresso moral e material do país” Papa Pio IX (1792-1878).
(MATOS, 1997, 85), e como espaço ge-
nesíaco da consciência nacional, onde se
valorizava o culto dos valores da pátria e “fantasma jesuítico” enquanto símbolo
da ideia de cidadão livre e responsável. das “forças que, em nome dos interesses
A libertação da escola do controlo jesuíti- de Roma, estariam a impedir a definitiva
co significava, em última análise, a liber- consolidação de uma consciência nacio-
tação da pátria do jugo estrangeiro. Foi nal prioritária e dominantemente pola-
neste contexto que foram criadas asso- rizada pelo culto da Pátria e da Nação”
ciações liberais, comissões antijesuíticas (Id., 2010, 227). O Jesuíta assumiu, as-
e agremiações anticlericais que visavam, sim, o estatuto de sinédoque, constituin-
como afirma Fernando Catroga, “prolon- do a parte que representa, num primeiro
gar a luta iniciada por Pombal, Joaquim momento, a totalidade do clero regular
António de Aguiar e pelos agitadores do e, depois, todo o fenómeno religioso. Os
caso das Irmãs da Caridade e dos Laza- filhos de Loiola tornaram-se, em Portu-
ristas e obstar a que se consolidasse o re- gal, os representantes do poder temporal
gresso das ordens religiosas, legalmente do papa. Uma vez implantada a repúbli-
proscritas. E faziam-no por motivos na- ca, Afonso Costa, por decreto de 8 de
cionalistas – aquelas eram estrangeiras e outubro, repôs as leis pombalinas contra
exteriores à autoridade da igreja nacio- os Jesuítas e as de Joaquim António de
nal” (CATROGA, 1988, 213). Aguiar relativas às comunidades religio-
A separação do Estado das igrejas sas, a que se seguiram várias medidas em
preconizada pelo republicanismo não matéria religiosa com vista à completa
era compatível com a permanência no laicização do Estado, cujo vértice foi a
país das ordens e congregações religio- Lei da Separação do Estado das Igrejas,
sas – cuja atividade, sobretudo ao nível da de 20 de abril de 1911.
educação e da assistência, constituía um A Primeira República e as medidas que
elo entre a Igreja e a sociedade civil –, ti- culminaram com a separação do Estado
das como portadoras e instrumento das das igrejas consubstanciaram o último
doutrinas ultramontanas que se queriam estado positivista – o científico. A ques-
derrubadas. Neste sentido, os republica- tão religiosa era herdeira de uma tradi-
nos fizeram uso, na sua propaganda, do ção de práticas regalistas transformadas

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1880 Antiultramontanismo

pelas grandes revoluções humanas e civili-


zacionais ocorridas sobretudo a partir da
Reforma protestante e do Renascimento
e que deram origem à mudança de uma
conceção teológica do mundo para uma
conceção antropológico-científica firma-
da pelas Luzes. Desta efetiva alteração,
operada mediante uma dessacralização
da sociedade, da cultura, da política e
da consciência em prol da emancipação
do saber científico, dependia a concre-
tização da felicidade e da liberdade do
indivíduo. Este processo dessacralizador,
apontando para a instauração do estado
científico, realizava-se simbolicamente
através da extirpação do jesuíta subsisten-
te no interior de cada indivíduo. Assim,
o anticlericalismo sistemático partilhado
pelos republicanos já não era só uma re­
ação a um poder extranacional, mas uma
consequência natural das “análises filo-
sóficas, antropológicas e históricas acer-
ca do cristianismo” e da “reapropriação
antropocêntrica das criações religiosas”
(Id., 1988, 256) a que o positivismo com- Sebastião de Magalhães Lima (1906),
tiano deu força, associadas à tradição re- de Alfredo Cândido.
galista, anticongreganista e antijesuítica,
que emprestou à campanha laica todo o Magalhães Lima deriva a decadência
tecido discursivo ideológico e propagan- dos povos peninsulares da soberania ul-
dístico; para efeitos de campanha, a Igre- tramontana e despótica da Santa Sé, in-
ja era vista como grupo de pressão que compatível com o princípio de liberdade
se destacava pelo seu internacionalismo, pelo qual os republicanos pugnavam.
com as consequências já referidas – aspe- Daí considerarem que a única via para
tos entendidos como fatores de desnacio- o progresso seja a da separação: dar a
nalização da população, que era maiori- Deus o que é de Deus, e a César o que é
tariamente católica. de César, numa referência a Mc 12, 17.
O republicano Sebastião de Magalhães Na sua opinião, apenas a separação dos
Lima emergiu como um dos maiores poderes temporal e espiritual permiti-
críticos antiultramontanos. No opúscu- ria o triunfo da ciência e da liberdade
lo O Papa perante o Século – Refutação do (de consciência, de culto, de religião):
Ultramontanismo (1874), Magalhães Lima “É isto o que manda a história; é isto que
levantara um conjunto de questões rela- o progresso reclama” (LIMA, 1874, 52);
cionadas com a soberania do papa, apre- só assim, conclui o autor, a imagem de
sentando de seguida os seus argumentos Cristo permaneceria, os vícios de Roma
contra o ultramontanismo. À semelhan- seriam extirpados, o clero seria moraliza-
ça de Antero de Quental, Sebastião de do e a república seria possível. Entre os

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Antiultramontanismo 1881

artigos mais ilustrativos do seu antiultra- teza quanto às relações entre o Estado e
montanismo encontram-se “Livre pensa- o Vaticano, sobretudo devido à questão
mento em Portugal”, de 27 de abril de premente do Padroado do Oriente, mas
1908, no qual defende a separação do também de alguma tensão entre católicos
Estado da Igreja e a laicização da socie- e laicos apoiantes do regime, de que foi
dade como antídotos para combater o figurativa a crise política suscitada pela
ultramontanismo; “Política católica”, de portaria dos sinos, de junho de 1929.
24 de abril de 1910, onde critica a inter- Apesar de católico, Salazar soube se-
ferência do clero nos assuntos políticos e parar a questão religiosa da questão po-
o uso despudorado, pela Igreja, da reli- lítica. Por isso, em 1928, assumiu como
gião para influenciar a opinião pública; prioridade o saneamento financeiro do
“Consequências do clericalismo”, de 8 de país e, a partir de 1933, a consolidação
maio de 1910, um artigo antijesuítico e do Estado Novo tornou-se o foco da sua
antiultramontano, escrito em memória ação política, o que explica a celebração
de Alexandre Herculano; e “Jesuitismo tardia de uma concordata entre o seu
em Portugal”, de 18 de novembro de Governo e o Vaticano, efetivada somente
1882, no qual o jesuíta surge como re- em 1940 e após longa discussão pautada
presentante simbólico da Igreja Católica, por avanços e recuos. Na verdade, nem
cujos membros Magalhães Lima declara mesmo quando Salazar acumulou a pasta
inimigos da pátria e da liberdade. Os ar- dos Negócios Estrangeiros, em 1936, con-
tigos mencionados têm em comum não trariando as expectativas, a concordata se
apenas a crítica ao catolicismo na sua efetivou. A sua estratégia era muito clara:
vertente ultramontana, mas a associação a concordata era a única coisa que po-
deste ao regime monárquico, fazendo-os dia oferecer aos católicos e, por não estar
aliados numa conspiração contra a liber- disposto a grandes cedências nem a criar
dade e contra a pátria. conflitos internos entre republicanos lai-
A Lei da Separação do Estado das cos e católicos, havia que protelar o mais
Igrejas não resolveu a chamada questão possível essa oferta, embora não eterna-
religiosa e manteve latente o sentimen- mente, pois dela também dependia a
to antiultramontano. Assumindo a sua conservação do Estado Novo. É conhe-
neutralidade religiosa, o Estado e a Igre- cida a sua declaração ao jornal Novida-
ja tornam-se, na teoria, duas realidades des, no dia seguinte ao da sua nomeação
independentes, não fosse a permanência como ministro das Finanças, que sinteti-
de um certo regalismo que tendia a ins- za bem a sua estratégia político-religiosa:
trumentalizar a Igreja e a religião, quer “Diga aos católicos que o meu sacrifício
para a pacificação da sociedade, quer me dá o direito de esperar deles que se-
para a consolidação nacional e interna- jam, de entre todos os portugueses, os
cional do regime, quer ainda para a defe- primeiros a pagar os sacrifícios que lhes
sa do império ultramarino e do Padroa- peça e os últimos a pedir os favores que
do Português no Oriente, preocupações eu lhes não posso fazer” (CRUZ, 1997,
estratégicas que continuaram a regular 431). Apesar de a sua ascensão política se
as relações entre o Estado e a Igreja du- ter concretizado no seio de um partido
rante o regime ditatorial. A nomeação de católico, o Centro Católico Português,
António Oliveira Salazar como ministro Salazar esforçou-se por cercear a auto-
das Finanças em 26 de abril de 1928 coin- nomia política dos católicos, temendo
cidiu com um período de grande incer- que estes pudessem vir a constituir um

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obstáculo ao seu projeto de construção readquiriu, em Portugal, o estatuto de


de um Estado forte, autónomo e autori- religião de Estado. A atividade política de
tário. Salazar via o Vaticano como um Es- Salazar no Centro Católico Português, a
tado estrangeiro, igual a qualquer outro adoção do lema “Pátria, Deus, Família” e
e sujeito às mesmas regras de diplomacia a sua conceção católica da educação leva-
movida por interesses próprios – realpoli- ram a que o seu Governo fosse entendido
tik. Por isso, a sua atitude perante o Vati- como de base católica – um nacionalis-
cano, que não diferia da sua atitude pe- mo católico –, o que não é exato. Se o
rante outra nação estrangeira, assentava homem era católico, o estadista era laico,
na defesa da autonomia e autoridade do pelo que procurou salvaguardar sempre
Estado. Logo, também nas relações com o princípio de separação do Estado da
a Igreja Católica, a estratégia política de Igreja, sendo este a base da Concordata
Salazar foi pautada por um nacionalismo de 1940, numa política, como designou
autoritário. Manuel Braga da Cruz, de “separação
Firmada a 7 de maio de 1940, a Concor- concordatada” (CRUZ, 1999, 12). Este
data entre o Estado português e a Santa seria o único meio de garantir a união de
Sé encerrou a questão religiosa herda- católicos e laicos sob o compromisso de
da do regalismo pombalino, estimulada consolidação do regime e de estabiliza-
pelo liberalismo e tornada “pedra angu- ção da sociedade. Não foi uma casualida-
lar das questões educativas e de cidada- de que a celebração da Concordata tives-
nia” (CATROGA, 2010a, 97) durante o se ocorrido um mês antes do início das
republicanismo. A Igreja viu reconhecido comemorações centenárias da nacionali-
o princípio da liberdade religiosa e re- dade, cujo programa deslindava o cunho
cuperou parte significativa das prerroga- marcadamente ideológico e propagan-
tivas extintas pela legislação da Primeira dístico que Salazar pretendia dar a este
República. Por sua vez, o Acordo Missio- evento. As comemorações de 1940, de
nário celebrado na mesma data resultou que a Exposição do Mundo Português foi
da necessidade de desenvolver as normas o momento mais elevado, tiveram como
relativas à atividade missionária presen- desiderato revisitar o passado grandioso
tes nos arts. 26 e 27 da Concordata, a fim de Portugal e projetá-lo para o presente,
de regular as relações entre a Igreja e o fazendo do Estado Novo um regime de
Estado em matéria missionária. Não obs- regeneração nacional e de Salazar o res-
tante, encontramos na Concordata traços taurador da glória de Portugal. É neste
de nacionalismo e de regalismo que tor- âmbito que se compreende o papel que a
nam evidente que o Governo português Igreja em geral e a Concordata e o Acor-
pretendia manter um controlo velado do Missionário em particular desempe-
sobre a Igreja. Nem outra atitude seria nharam no contexto comemorativo: a re-
expectável de um regime vincadamente ligião constituía um elemento identitário
nacionalista e protecionista, para o qual da nacionalidade, estando intimamente
a Igreja Católica representava, apesar de ligada à história da fundação, consolida-
tudo, um poder estrangeiro e uma amea- ção e expansão de Portugal. Neste sen-
ça iminente, pela influência que exercia tido, a assinatura da Concordata entre a
na sociedade portuguesa, que era neces- Santa Sé e a República Portuguesa sim-
sário colocar ao serviço do Estado Novo. bolizava a reconciliação de Portugal com
Ao contrário do que aconteceu na o seu passado, permitindo a sua regene-
Espanha de Franco, o catolicismo não ração; o Acordo Missionário, ao mesmo

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Antiultramontanismo 1883

tempo que firmava a cooperação entre o 266), ou seja, de um “neorregalismo”,


Estado e a Igreja no projeto missionário, associado a um constante jogo de equi-
constituía uma herança ainda visível dos líbrios entre católicos e laicos, resultan-
tempos gloriosos de expansão marítima do naquilo a que Manuel Braga da Cruz
e a prova de que esse tempo não era pre- chama “catolaicismo” (CRUZ, 1999, 15)
térito mas ainda presente e futuro. No e que consiste, lato sensu, em preservar
fundo, tratava-se de uma instrumenta- o princípio de separação do Estado da
lização da Igreja e da religião para fins Igreja e conservar o nome de Deus fora
político-ideológicos. da Constituição, ao mesmo tempo que
Apesar da relação de colaboração en- se exerce um controlo sobre a Igreja, ao
tre o Estado Novo e a Santa Sé, subsis- proporcionar-lhe liberdades aparentes e
tiu um clima de desconfiança bilateral. ao conceder-lhe certas prerrogativas que
O ambiente era de concórdia mas, tam- lhe tinham sido subtraídas pela Primei-
bém, de vigilância. A tensão foi crescen- ra República, garantindo desta forma o
te a partir da Segunda Guerra Mundial, apoio dos sectores católicos ao regime
momento em que se operou uma vira- e ao próprio Salazar. Neste sentido, po-
gem na relação não só entre Portugal e de-se falar de um antiultramontanismo
o Vaticano mas, também, entre o regime camuflado numa necessária relação de
e os próprios católicos. A democratização harmonia como parte imprescindível de
da Europa e do próprio catolicismo, asso- um complexo jogo de interesses bilate-
ciada ao processo de descolonização que rais. Símbolo expressivo deste antiultra-
então se iniciou e que a Igreja Católica montanismo preventivo foi a inaugura-
apoiou, foi entendida pelo regime sala- ção da estátua do marquês de Pombal,
zarista, antidemocrático e nacionalista, em 1934, e o tardio reconhecimento
como uma ameaça ao projeto sonhado da Companhia de Jesus como corpora-
para Portugal, como um Estado forte e ção missionária, somente ocorrido pelo
pluricontinental. Por outro lado, a cla- decreto de 5 de abril de 1941, em que
ra influência da Santa Sé no movimen- foi promulgado o Estatuto Missionário.
to católico português, nomeadamente Por outro lado, coexistiu aquilo a que
na Ação Católica, levaram a que Sala- podemos chamar antiultramontanismo
zar suspeitasse de uma politização deste contrarrevolucionário partilhado pelos
movimento e da possibilidade de emer- sectores laicos críticos do regime vigen-
gência de partidos católicos, na linha te, associando-o ao ultramontanismo e
do que vinha acontecendo na Europa. ao jesuitismo. Este carácter pluriforme
Logo, a liberdade religiosa anunciada do antiultramontanismo é revelador do
na Concordata apenas existia enquanto poder e da resistência no tempo das re-
não interferisse no ideário nacionalista e presentações mitificadas e o facto de este
antidemocrático do regime salazarista e antiultramontanismo assumir a forma de
a Igreja se mantivesse disponível para co- antijesuitismo é sintoma da eficácia da
laborar com esse mesmo regime. Tratava­ propaganda organizada contra a Com-
‑se, portanto, de uma “mentalidade rega- panhia de Jesus ao longo dos séculos
lista, ainda que um regalismo de última anteriores.
instância, menos rígido e legalista do que João Ameal, na sua História de Portu-
o regalismo tradicional stricto sensu, e que gal (1940), considera um dos maiores
vinha ao de cima apenas quando a Igreja acontecimentos de vulto do reinado de
não aceitava certos limites” (REIS, 2006, D.  Pedro I a instituição do beneplácito

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1884 Antiultramontanismo

régio, confirmado pelas Cortes de Elvas harmonização entre os poderes temporal


de 1361: “O Beneplácito Régio torna-se e espiritual foi a mudança de atitude da
lei da Nação” (AMEAL, 1940, 138-139). própria Igreja face aos tempos moder-
A prática regalista tornara-se uma carac- nos, passando a assumir o papel de alia-
terística muito própria da política reli- da, já não de inimiga, no que teve espe-
giosa portuguesa e um elemento de de- cial relevância o Concílio Vaticano II.
fesa contra a ingerência estrangeira. No Portanto, a ortodoxia radical que se
séc. xviii, o antiultramontanismo assu- verificara no passado (de um lado, uma
mira a forma de antijesuitismo; também Igreja que tornara a infalibilidade pon-
no séc. xix e inícios do séc. xx, para se tifícia um dogma e o modernismo uma
impor em Portugal o ideário liberal, so- heresia, e, do outro, um Estado que, de
cialista ou republicano houve que “iden- antijesuítico, passou a anticatólico) deu
tificar adversários e concorrentes, mobi- lugar àquela moderação que já Guerra
lizando, depois, recursos e instrumentos Junqueiro, Basílio Teles e Sampaio Bru-
para lhes dar luta” (ABREU, 2004, 38). no, entre outros, haviam defendido, per-
As ordens e congregações religiosas em mitindo que uma clivagem que parecia
particular e o catolicismo em geral assu- irreversível desse lugar a uma relação de
miram o papel de adversários do ideário mútuo respeito, como a que se verifica
republicano, não só devido à influência hodiernamente, caracterizada por um
que exerciam e ao poder que sempre espírito de tolerância e integração das
detiveram – um contrapoder –, mas tam- instituições religiosas na sociedade.
bém pelo facto de essa influência e esse
poder provirem do estrangeiro, do ou-
tro lado dos montes. Bibliog.: ABREU, Luís Machado de, Ensaios
Luís Machado de Abreu refere, no en- Anticlericais, Lisboa, Roma Editora, 2004;
saio “Anticlericalismo”, que, apesar de os ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA, Di­
temas que alimentaram os discursos anti- cionário da Língua Portuguesa Contemporânea,
vol. 2, Lisboa, Verbo, 2001; AMEAL, João,
clericais no séc. xix estarem, atualmente,
História de Portugal, Porto, Livraria Tavares
ultrapassados, tal não significa que o an- Martins, 1940; AZEVEDO, Luís Gonzaga de,
ticlericalismo não subsista. Simplesmen- “O regalismo e a sua evolução em Portugal
te, assumiu novos contornos e uma to- até ao tempo do P. Francisco Suárez”, Broté­
nalidade mais matizada, própria de uma ria, vol. 24, 1937, pp. 292-303; CASTRO, Zília
era democrática. Compreende-se que Osório de, “O regalismo em Portugal: Antó-
a ocorrência de duas guerras mundiais nio Pereira de Figueiredo”, Cultura – História e
Filosofia, vol. vi, 1987, pp. 357-411; Id., Cultura
na primeira metade do séc. xx, interme-
e Política. Manuel Borges Carneiro e o Vintismo,
diadas pelos episódios das aparições ma- vol. ii, Lisboa, Instituto Nacional de Investiga-
rianas, e a afirmação no poder de uma ção Científica/Centro de História da Cultura
figura emergida dos círculos católicos, da Universidade Nova de Lisboa, 1990; Id.,
António de Oliveira Salazar, em muito ti- “Sob o signo da unidade. Regalismo vs. jesui-
vessem contribuído para uma revivescên- tismo”, Brotéria, vol. 169, n.os 2-3, ago.‑set.
cia da Igreja Católica em Portugal, para 2009, pp. 113-134; CATROGA, Fernando,
o reatar das relações diplomáticas entre a “Laicismo e a questão religiosa”, Análise Social,
vol. xxiv, n.º 100, 1988, pp. 211-273; Id., Entre
Igreja e o Estado e para o ressurgimento
Deuses e Césares. Secularização, Laicidade e Religião
das ordens e congregações, que depressa Civil: Uma Perspectiva Histórica, Coimbra, Alme-
multiplicaram as suas fundações no país. dina, 2006; Id., O Republicanismo em Portugal:
Todavia, o que efetivamente permitiu a da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 3.ª ed.,

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Antiuniversalismo 1885

Alfragide, Casa das Letras, 2010; Id., “O repu-


blicanismo português (cultura, história e po-
Antiuniversalismo
lítica)”, Revista da Faculdade de Letras. História,
iii sér., vol. 11, 2010a, pp. 95-119; CAVALEI-
RO DE OLIVEIRA, Recreação Periódica, t. 1, Lis-
boa, Biblioteca Nacional, 1922; CRUZ, Ma-
nuel Braga da (org.), Inéditos e Dispersos,
vol. i, Venda Nova, Bertrand, 1997; Id., O Es­
tado Novo e a Igreja Católica, Lisboa, Bizâncio,
1999; FELÍCIO, Manuel da Rocha, Portugal e
a Definição Dogmática da Infalibilidade Pontifícia.
N o plano filosófico, o universalismo é
a doutrina que considera a realida-
de como um todo do qual todos os seres
Teologia, Magistério, Debate Público, Dissertação humanos participam, independentemen-
de Doutoramento em Teologia Histórica apre-
te do tempo ou lugar em que vivam. Se-
sentada à Universidade Católica Portuguesa,
Lisboa, texto policopiado, 2000; FRANCO, gundo esta perspetiva, os indivíduos ape-
José Eduardo, O Mito dos Jesuítas em Portugal, nas podem ser separados por abstração,
no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX), 2 vols., porque comungam dos mesmos valores
Lisboa, Gradiva, 2006; LIMA, Sebastião de ou, pelo menos, são capazes de reconhe-
Magalhães, O Papa perante o Século, Porto, cê-los como vinculantes, nas suas próprias
Imprensa Litterario-Commercial, 1874; MA- vidas e na vida social. Estudos filosóficos
TOS, Sérgio Campos, “Política de educação e
e antropológicos como os levados a cabo
instrução popular no Portugal oitocentista”,
Clio, vol. 2, 1997, sep.; NETO, Vítor, O Estado,
por Jean Lauand sustentam a universali-
a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), dade dos valores humanos em sociedades
Lisboa, INCM, 1998; QUENTAL, Antero de, tão diferentes e distantes como as socie-
Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos dades europeias, brasileira e japonesa.
Ultimos Tres Seculos, Porto, Tipografia Comer- No plano religioso, o universalismo
cial, 1871; RAMOS, Luís A. de Oliveira, Sob o cristão é a crença segundo a qual todos os
Signo das «Luzes», Lisboa, INCM, 1988; REIS, homens, sem exceção, estão destinados
António do Carmo, O Liberalismo em Portugal
a procurar a Salvação, tendo Jesus Cristo
e a Igreja Católica. A Época de Sua Majestade Im­
perial e Real D. Pedro, Lisboa, Notícias, 1988; morrido por todos e não só pelos eleitos:
REIS, Bruno Cardoso, Salazar e o Vaticano, Lis- a doutrina de Cristo é universal, porque
boa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006; “Ul- se dirige a todos os homens.
tramontano”, in SILVA, António Morais da, No plano político-jurídico, são univer-
Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 10.ª ed., salistas as doutrinas que generalizam uma
rev. e aum., vol. 11, Lisboa, Confluência, ideia, um princípio ou um sistema, e.g., a
1958, p. 393.
ideia de democracia, o princípio do Esta-
Cristiana Lucas Silva do de direito ou o sistema de direito con-
tinental. No mesmo plano, a ideia de co-
munidade internacional apoia-se numa
perspetiva universalista segundo a qual
existem valores comuns a toda a humani-
dade, que tornam possível a convivência
e a cooperação entre as nações. Da ideia
de comunidade internacional, decorre a
existência de organizações internacionais
de âmbito universal, e.g., as Organização
das Nações Unidas (ONU), cuja Assem-
bleia Geral aprovou, em 10 de dezembro

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de 1948, a Declaração Universal dos Di- trinas universalistas, de que as declara-


reitos do Homem ou Declaração Uni- ções universais de direitos são expressão,
versal dos Direitos Humanos (DUDH); com a pós-modernidade verificou-se uma
tendo como redator principal John Pe- rutura com esse pensamento. Os primei-
ters Humphrey, do Canadá, a elaboração ros autores pós-modernos, ou que se afir-
da DUDH contou com contributos de maram como tal, podem ainda ser vistos
pessoas de todo o mundo. Embora não como universalistas. É o caso do teólogo e
goze de força vinculativa geral, este do- filósofo alemão Romano Guardini, perse-
cumento está na base de dois tratados da guido pelo regime nazi, que, na sua obra,
ONU sobre direitos humanos que gozam procurou conciliar o melhor da moderni-
de força obrigatória geral: o Pacto Inter- dade com o imperativo do respeito pela
nacional dos Direitos Civis e Políticos e dignidade humana.
o Pacto Internacional sobre os Direitos Contudo, o pensamento pós-moder-
Económicos, Sociais e Culturais, que no – da filosofia e das artes à política e
correspondem a entendimentos comple- ao direito –, que se tornou dominante
mentares do que são e para que servem em muitas áreas das ciências humanas e
os direitos humanos na organização das sociais, caracteriza-se por ser maioritaria-
sociedades políticas. As suas regras são mente antiuniversalista, ao não reconhe-
aplicadas por autoridades internacionais cer a existência de princípios ou valores
e nacionais, sendo estudadas e debatidas universais e/ou ao enfatizar antes a pre-
em todo o mundo. valência do particular e do diverso.
Na resolução n.º 217 A (III) da Assem- Note-se que as doutrinas universalistas
bleia Geral da ONU, de 10 de dezembro não negam necessariamente a existência
de 1948, que aprovou a DUDH, pode ler­ da diversidade, mas subordinam-na ao
‑se que esta constitui “o ideal comum a que é comum à humanidade, e.g., à ideia
ser atingido por todos os povos e todas as de bem comum e de uma moral comum.
nações, com o objetivo de que cada indi- A doutrina da unidade do género huma-
víduo e cada órgão da sociedade, tendo no desenvolvida por autores católicos
sempre em mente esta Declaração, se es- apoia-se nessa perspetiva.
force, através do ensino e da educação, Apesar de se ter afastado do univer-
por promover o respeito a esses direitos salismo cristão em pontos essenciais, o
e liberdades, e, pela adoção de medidas positivismo oitocentista era também uni-
progressivas de carácter nacional e inter- versalista. Esta perspetiva está presente
nacional, por assegurar o seu reconhe- em instrumentos jurídicos básicos como
cimento e a sua observância universal e o Código Civil francês de 1804 e todos
efetiva, tanto entre os povos dos próprios aqueles que este influenciou, nomeada-
Estados membros, quanto entre os po- mente o Código Civil português de 1867.
vos dos territórios sob sua jurisdição”. É com base na verificação de que a
A DUDH está traduzida na maior parte Europa foi sempre um mosaico de di-
das línguas, existindo mais de 400 tradu- ferenças e regras enredadas, e não uma
ções disponíveis. realidade harmónica, que André-Jean
Às doutrinas universalistas opõem-se as Arnaud fala de uma polissistemia disjun-
doutrinas antiuniversalistas, que, na se- tiva, não simultânea, incompatível com
gunda metade do séc. xx, ganharam im- as pretensões universalistas. Cada comu-
portância, em particular na Europa. Com nidade política, por menor que seja, afir-
efeito, se a época moderna produziu dou- ma Arnaud, tem as suas regras jurídicas

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Antiuniversalismo 1887

próprias e deve ser fundamentalmente


considerada na sua diferença, não na sua
unidade (ARNAUD, 1995, 91). Enquan-
to o universalismo se apoia na possibili-
dade – e necessidade – de um consenso
filosófico, político e jurídico sobre a uni-
dade do género humano, na diferença de
situações, o antiuniversalismo enaltece
as diferenças irrenunciáveis entre povos
e modelos de interpretação do mundo
e organização da vida política e social,
como assinala M. Rozinek.
A doutrina clássica do direito natural e
as teorias jusnaturalistas modernas esta-
beleceram, por via indutiva ou dedutiva,
modelos gerais e regras comuns de con- André-Jean Arnaud (1936-2015).
vivência para toda a humanidade. Ainda
em finais do séc. xx, vários autores, en-
tusiasmados com os avanços no proces- ceito político de Ocidente foi uma inven-
so de integração europeia, defenderam ção conveniente à imposição das regras
a criação de um Código Civil europeu. das potências europeias ao resto do mun-
Segundo esses autores, existia já um ius do e que, por isso, o seu universalismo
commune europaeum (direito comum euro- mal disfarça o seu caráter antidemocráti-
peu) aplicável em matéria contratual (lex co… É de registar que Arnaud não con-
mercatoria). Na prática, os adeptos do pro- testa os avanços técnicos e substanciais de
jeto reconhecem a existência de grandes alguns instrumentos de unificação jurídi-
dificuldades no processo de unificação ca, e.g., as declarações universais de direi-
jurídica europeia, procurando por isso tos, mas sim a sua captura pelos interesses
vias de compromisso, mas não deixam de nacionais e centralistas conflituantes com
advogar a necessidade de uma aborda- a ideia de democracia e de direitos das
gem universalista. pessoas.
Em contrapartida, Arnaud alega que a É justamente em defesa da democracia
política nacional e a política internacio- e dos direitos humanos que as correntes
nal se construíram, ao longo da história, antinuniversalistas da segunda metade
sob o império das necessidades práticas, do séc. xx e dos inícios do séc. xxi con-
o que fez com que cada território, por testam a pretensão da existência de uma
razões contingentes, tivesse adotado as natureza humana comum e de um códi-
suas próprias regras de convivência, ape- go moral vinculativo para toda a huma-
sar dos esforços de universalização. Este nidade. Na sua veemente contestação ao
pensador critica a uniformidade política, projeto universalista à outrance corporiza-
social e jurídica imposta pela Revolução do pelas Comunidades Europeias e, pos-
Francesa, na linha do que foi o espírito teriormente, pela União Europeia, como
universalista do direito romano, recebi- projeto de nações com valores comuns,
do na Europa, no período medievo, por afirma Arnaud que “se as coisas mudam
S. Tomás de Aquino. As suas críticas vão […], é menos a partir de práticas vividas
ainda mais longe, ao defender que o con- do que por uma vontade vinda de cima,

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1888 Antiuniversalismo

baseada em princípios, em concebidos” reito europeu na Modernidade, em que


(Id., Ibid., 95). a criação de catálogos de direitos univer-
Para os opositores do pensamento po- sais embate numa racionalidade jurídica
lítico e jurídico universalista, este deixou positivista, que nacionaliza e fecha o que
de vir das pessoas e da sociedade para deveria ser universal.
ser um produto de tecnocratas, que não Da Europa, diz por sua vez Paulo Fer-
tomam o pulso do povo, antes decidem reira da Cunha, um autor universalista,
autoritariamente, apoiando-se em prin- que “é uma magnífica eutopia (utopia
cípios irreais, não sentidos pelas pessoas. benfazeja, positiva)”, apesar dos burocra-
E no entanto os caminhos pessoais con- tas que a querem transformar numa “Ba-
fluem onde as doutrinas divergem. Com bel distópica”. Alguns dos efeitos da uto-
efeito, André-Jean Arnaud foi discípulo pia negativa da Europa são, segundo este
de um dos maiores defensores do univer- autor, “a plastificação das relações inter-
salismo no séc. XX, Michel Villey, autor nacionais e o desprezo de outros laços”;
de obras como La Formation de la Pensée referindo a lusofonia como exemplo
Juridique Moderne: Cours d’Histoire de la Phi- dos laços que não se devem perder, para
losophie du Droit, 1961-1966 e Le Droit et les bem das pessoas. Diz ainda que “a luso-
Droits de l’Homme, de 1983. Em nome de fonia é mito, mito no sentido positivo.
um universalismo apoiado em S. Tomás E tudo menos utopia babélica, distopia.
e no direito romano clássico, e também Além da simples proximidade geográ-
muito crítico dos rumos do processo de fica com a Europa, os Portugueses têm
integração europeia, Villey defendeu a ju- uma proximidade histórica e de espírito
risprudência em detrimento da lei como também noutras direções. Há corredores
fonte do direito e meio mais próximo na da alma” (VIEIRA, 2006). As perspetivas
defesa dos direitos das pessoas. destes dois autores, ao qual podemos as-
No final da sua vida, Villey afirmaria sociar Villey, são convergentes na defesa
que, apesar do acentuado afastamento da democracia e no respeito e acolhi-
académico entre ambos, Arnaud fora o mento das diferenças.
seu maior discípulo. Num artigo intitu- Voltando a Arnaud, este jurista e cien-
lado “Michel Villey: une tolérance insi- tista social defende que não é possível
nuante. Portrait d’un maître”, Arnaud garantir a unidade europeia a qualquer
retoma as considerações do mestre sem- preço, o que significa que o direito euro-
pre estimado, num exercício que quase peu deve procurar uma reabilitação siste-
chega a ser de autocrítica, pela forma mática da experiência erudita e não eru-
como reconhece a influência de Villey dita, com vista à produção de uma efetiva
na sua obra. Queremos com isto dizer regulação. Dever-se-á, nas suas palavras,
que, na oposição entre universalismo “cortar com o elitismo sem renunciar ao
e antiuniversalismo, existe uma dimen- profissionalismo” (ARNAUD, 1995, 270),
são de convicção pessoal, não só sobre o e dá exemplos práticos da forma como
modo como se vê a realidade e a ação das os cidadãos podem resistir a pretensões
pessoas no mundo, mas também sobre o do poder político que consideram in-
modo como se perspetiva a realidade e justas e impor a sua própria agenda de
se entende que as pessoas deveriam ser prioridades, segundo razões que só eles
e agir. Como crítico do projeto de inte- conhecem e devem conhecer. Propõe
gração europeia, Arnaud contesta, em igualmente uma utilização eclética de
particular, o processo de formação do di- fontes, visando a aproximação do direito

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Antiuniversalismo 1889

às necessidades e interesses das pessoas, Não por acaso, o projeto de constru-


porque «a Europa será aquilo que nós ção europeia está no centro da discussão
dela fizermos. A sociedade é o reflexo das sobre se existem ou não valores univer-
nossas ansiedades. Queremos construir sais. Assim como há quem veja no proje-
a Europa; mas construir é, em primei- to de integração europeia a retomada do
ro lugar, estar bem consigo mesmo, ter ideário do Império Romano, com uma
transcendido os próprios medos, os este- liderança única e princípios uniformes,
reótipos, o passado; é aceitar que a histó- que podem pôr em causa os direitos dos
ria não seja de forma alguma linear, mas povos, há também quem defenda que
feita de ruturas, de descontinuidades, de não se pode ignorar o papel da cultura
crises; que o futuro seja em grande parte e, em particular, da cultura de matriz ju-
incerto” (Id., Ibid., 271). E destaca o pa- daico-cristã e greco-latina na Europa e
pel do juiz que não se limita a ser “a boca no mundo.
da lei”, mas um dispensador de equidade A realidade é complexa e não se com-
na vida jurídica (Id., Ibid., 109). padece com juízos precipitados. De for-
É um facto que os sistemas filosóficos mas diferentes tem soprado o vento, que
modernos são universalistas, na medida é o Espírito, na história humana. Nos iní-
em que procuraram impor uma unifor- cios do séc. xxi, a Europa e o mundo de-
midade às sociedades em nome de um bateram-se com problemas que puseram
princípio de autoridade. O positivismo em causa certezas passadas no domínio
oitocentista, fruto desses sistemas, foi uni- da organização política e social: a crise
versalista ao destacar a posição das pes- económico-financeira; o terrorismo; os
soas em contexto social. Auguste Comte e fluxos migratórios imprevistos; a crise nas
os seus próceres não se cansaram de elo- lideranças políticas mundiais; a falta de
giar a família burguesa, constituída por confiança nas instituições nacionais. Da
mulher, marido e filhos como o cúmulo reconfiguração das relações internacio-
da perfeição e realidade eterna. nais até à projetada ampliação dos catálo-
É por isso que a oposição entre dou- gos dos direitos humanos, passando pela
trinas universalistas e antiuniversalistas persistência de velhos e emergência de
deve ser relativizada, na linha do diálogo novos problemas sociais, assistiu-se ao fim
amistoso entre Villey e Arnaud. Claro que de uma idade.
existem diferenças profundas, que, em Como diz Arnaud (1995, 272; 1999,
certa medida, até se alargaram, no tempo 55ss.), apesar de subsistirem grandes pe-
pós-moderno, mas é necessário fazer um rigos, na Europa e no mundo, é preciso
esforço “ecuménico” de aproximação de soltar um pouco as rédeas do cavalo, para
posições, como forma de garantir a paz e poder discutir os assuntos que verdadei-
a justiça. ramente interessam à humanidade. A de-
Nos princípios do séc. xxi, discutiu-se mocracia não é o ponto final no caminho
a pertinência de uma referência às raízes da humanidade, mas é ainda o ponto
cristãs da Europa no preâmbulo da Cons- mais estável para se discutir o futuro da
tituição europeia. Essa pretensão caiu na humanidade. A realidade é superior à
Convenção Europeia sobre o Futuro da ideia (Francisco, 2013, 230).
Europa (2001-2003) que aprovou o proje- Pode-se argumentar que é um falso
to de Constituição Europeia, assim como problema saber se existem ou não exis-
este projeto caiu às mãos dos eleitores tem valores e direitos universais. Na ver-
franceses e holandeses, em 2005. dade, existem diferenças sobre quais são

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1890 Antiuniversalismo

os valores e os direitos mais importantes Bibliog.: impressa: ARNAUD, A.-J., O Pensa­


e qual é o seu conteúdo. Assim, e.g., na mento Jurídico Europeu, Lisboa, Editora Interna-
ONU, o grande debate em torno da de- cional, 1995; Id., O Direito entre Modernidade
e Globalização. Lições de Filosofia do Direito e do
fesa dos direitos humanos faz-se entre
Estado, Rio de Janeiro, Renovar, 1999; Id., “Mi-
quem defende a primazia dos direitos, chel Villey: une tolérance insinuante. Portrait
liberdades e garantias e quem defende d’un maître”, Revista da Faculdade de Direito da
a primazia dos direitos económicos, so- Universidade de São Paulo, vols. 106­‑107, dez.-
ciais e culturais. É uma negociação difí- -jan. 2011-12, pp. 867-879; CUNHA, Paulo
cil, mas, apesar de pequenos, fizeram­‑se F. da, Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico­
alguns avanços nas últimas décadas. ‑Constitucional nas Utopias Políticas, Coimbra,
Boletim da Faculdade de Direito da Universi-
Por outro lado, nos países ditos oci-
dade de Coimbra/Coimbra Editora, 1996; Id.,
dentais, assiste-se a uma progressiva Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2006;
diferenciação na definição e interpre- FRANCISCO, Evangelii Gaudium, 2013; GOZ-
tação dos direitos humanos. Pessoas de DECKA, D., e KMAK, M., Europe at the Edge of
áreas geográficas politicamente opostas Pluralism (Ius Commune Europaeum), s.l., Inter-
convergem em interpretações próximas sentia, 2015; GUARDINI, R., O Fim dos Tem­
dos mesmos direitos (e.g., no significa- pos Modernos, Lisboa, Moraes Editora, 1954;
Id., Ethik. Vorlesungen an der Universität München,
do do direito à vida), ao mesmo tem-
Mainz, Matthias-Grünewald-Verlag, 1993; JE-
po que se diverge no plano europeu e MIELNIAK, J., e MIKLASZEWICZ, P. (orgs.),
nacional. Interpretation of Law in the Global World: from
Observa Arnaud: “uma Europa jurídi- Particularism to a Universal Approach, Berlin/Hei-
ca e uma Europa pós-moderna estão em delberg, Springer-Verlag, 2010; JOÃO XXIII,
elaboração lado a lado. A racionalidade Pacem in Terris, 1963; LAUAND, J., Filosofia,
de uma coincide com os princípios de Linguagem, Arte e Educação. 20 Conferências sobre
Tomás de Aquino, São Paulo, Factash Editora,
racionalidade da outra. A Europa jurí-
2007; Id., Filosofia e Linguagem, São Paulo, Seg-
dica só o será se se apoderar do plura- mento, 2014; MORIN, Edgar, Penser l’Europe,
lismo e da complexidade que, desde a Paris, Gallimard, 1987; PAULO VI, Populorum
origem, foram inscritos na sua história” Progressio, 1967; RATZINGER, Joseph, Europa.
(Id., Ibid., 273). Aparentemente, o autor Os Seus Fundamentos, hoje e amanhã. Lisboa,
francês aposta na força inelutável dos Paulus, 2005; ROUGEMENT, D. de (org.),
factos para referir que só há um cami- Vingt-Huit Siècles d’Europe. La Conscience Euro­
péenne à travers les Texts, d’Hésiode à Nos Jours,
nho. Todavia, um olhar atento mostra
Paris, Payot, 1961; ROZINEK, M., A Philoso­
que Arnaud apela a uma via de diálogo phy of Nationhood and the Modern Self, London,
e de convergência de posições, forjada Palgrave-Macmillan, 2017; VILLEY, M., La
num esforço conjunto de compreensão Formation de la Pensée Juridique Moderne: Cours
da complexidade da realidade existente. d’Histoire de la Philosophie du Droit, 1961-1966,
Não é possível ignorar os factos, é neces- Paris, Montchrestien, 1968; Id., Le Droit et les
sário conhecê-los, sabendo que qualquer Droits de l’Homme, 2.ª ed., Paris, PUF, 2016;
digital: “Resolution 217 A (III). Universal De-
julgamento da realidade é ilusório, por-
claration of Human Rights”, UNDocuments:
que a realidade se faz das pessoas e para http://www.un-documents.net/a3r217a.
as pessoas. Voltando aos clássicos gre- htm (acedido a 4 ago. 2017); VIEIRA, Fáti-
gos, primeiros autores universalistas e ma, “Entrevista a Paulo Ferreira da Cunha”,
antiuniversalistas declarados, o segredo E-Topia, n.º 5, 2006: http://ler.letras.up.pt/
está em fazer com que as pessoas vejam uploads/ficheiros/1650.pdf (acedido a 4
a realidade pelos seus próprios olhos ou ago. 2017).
a sua razão. João Relvão Caetano

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Antiuniversitarismo 1891

Antiuniversitarismo ‑se sobre o tema a reflexão modelar de


Martin Heidegger, que denuncia a disci-
plinaridade especializada, o primado do
método, o abandono do saber essencial,
a tecnicização da ciência, e a progressiva
confusão entre universidade e indústria
de conhecimentos. O ontólogo recomen-

É incindível a unidade bifacial entre a


filosofia e a pedagogia, consubstan-
ciada na ideia de escola filosófica integral.
da que a universidade tome como sua a
radicalidade própria da filosofia, não se
esquivando a interrogar-se sobre a sua
Todavia, o trânsito da enkyklios paideia essência, de modo a promover uma co-
para o enciclopedismo iluminista mere- munidade de educação fundamental (de
ceu de diversos comentadores a leitura uma condução espiritual no ser-com-ou-
de uma degenerescência de princípios tros, superando a existência inautêntica),
pedagógicos fundamentais, inextricavel- pois que esta radicalidade interrogativa
mente unida a uma decadência espiri- conduz a uma aproximação à essência do
tual, intelectual e civilizacional. Entretan- ser. Importante é atender que Heidegger,
to, a escola como interpretação particular que retoma a noção platónica do filósofo­
da unidade (considerem-se, neste sentido ‑rei como cumprimento de uma vocação
exemplar, as escolas helenísticas como in- profunda e que perspetiva a refundação
terpretações particulares da lição univer- da universidade alemã ao serviço de um
sal de Sócrates) vira-se institucionalizada povo histórico-espiritual, oferece parale-
em agregado conveniente e funcional lismos vários com o que vem a suceder
através da Universidade (studium genera- no grupo da filosofia portuguesa, cujo lu-
le). No alegado itinerário degenerescen- socentrismo se descobre centrífugo a ju-
te, dir-se-ia em aproximação a uma cíclica sante, sendo uma radicação no particular
Idade do Ferro, muitos foram os que pre- com vista a melhor atingir a universalida-
tenderam regenerar o sentido prístino, de visada.
ou áureo, dessa ideal pedagogia filosofal Se o reformismo pedagógico de expres-
(veja-se, inclusivamente, como Giorgio são antiuniversitária é, não raramente,
Colli, em La Nascita della Filosofia, decla- alentado por um propósito regenerador
ra que a própria filosofia nasce já do re- decorrente do diagnóstico de uma deca-
conhecimento de tal decadência, que se dência civilizacional, ou de um incum-
traduz em movimento restaurador). No primento essencial no devir histórico, o
entanto, foi nos sécs. xix e xx que mais caso português destaca-se como exemplo
notória e sistematicamente se verificaram flagrante desta tendência, pois que a sua
propostas de reforma pedagógica, cuja sede motriz, a Faculdade de Letras da
expressão antiuniversitária é inequívoca. Univ. do Porto (FLUP) sob o magistério
Encontramos equacionamentos funda- de Leonardo Coimbra, é muitas vezes
mentais sobre a essência da Universidade tida como órgão institucional do movi-
por parte de Kant, Fichte e W. Humboldt, mento da renascença portuguesa. Este
e ainda através de críticas acerbas à ins- nexo entre regeneração e reforma peda-
tituição elaboradas por Schopenhauer, gógica é assim resumido por Pascoaes:
pelo grupo dos hegelianos de esquerda, “a Renascença Portuguesa tem dois fins:
por Nietzsche e, mais tarde, por Paul Ni- um imediato, de educação nacional; e ou-
zan ou por Jean François Revel. Destaca­ tro mediato: o advento da Era Lusíada”

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1892 Antiuniversitarismo

(PASCOAES, 1914, 1). A pedagogia em da transdisciplinar sabedoria, e, sobretu-


causa, para Pascoaes e para os demais do, do abandono da vocacionalidade no
renascentes, haveria de ter em conta a mister professoral: “Este descalabro do
caracterologia lusa, tendo de se pensar ensino resulta do recrutamento empíri-
o ensino segundo a “doutrina confirma- co e casual do professorado. O professor
tiva da verdade portuguesa” (Id., 1915, é procurado, não entre aqueles que ga-
13). O movimento da renascença portu- rantam o mérito pedagógico por provas
guesa é, ademais, indesligável da reali- concretas dadas num proveitoso curso de
zação das Universidades Populares, que ensino, mas entre aqueles que, em fantás-
serviam o desígnio de transportar o co- ticas provas públicas, apresentarem maior
nhecimento para além da circunscrição número de conhecimentos quantas vezes
elitista institucional, numa campanha de fortuitos e acidentais” (COIMBRA, 1907,
manifesto apoio social segundo os ideais 3). É este pecúlio reflexivo, é esta visão
republicanos de então. Para tal, Jaime pedagógica reformista que Leonardo
Cortesão fomenta “o ensino da história Coimbra transporta para a FLUP que tem
e da história da literatura, como meio por inaugural o ano letivo de 1919­‑1920,
educativo nacionalizante” (CORTESÃO, mas que, logo em 1923, sofre ameaça
1914, 9). Se o reformismo pedagógico se de extinção com alegada justificação fi-
fundamenta na recuperação de uma au- nanceira, porém com evidente interesse
rea aetas, dir-se-ia num domínio utópico ideológico: era o seu modelo antisseben-
e sem tempo, não deixa de ser significa- tista, filosofante, radicalmente indagativo
tivo o carácter concreto da FLUP lide- e livre (a heterodoxia da faculdade não
rada por Leonardo Coimbra, que já na permitia que o aparelho burocrático-ad-
revista Nova Silva explicitara a sua visão ministrativo tolhesse a excelência cientí-
pedagógica inconformista. Esta revista de fica e filosófica demandada, a qual exigia
tendência anarquista acompanha, no ano procedimentos meritocráticos) que pro-
da sua fundação, os acontecimentos da vocava desaprovação e temor nos demais
greve académica de 1907, lendo-se num académicos. Acaba por ser decretada a
texto não assinado: “Maldita seja essa sua supressão em 1928, sendo permitido
Universidade em que se quebram tantas aos alunos matriculados terminarem os
energias e se desvirtuam tantas intenções! cursos. Assim, a instituição encerra em
Que seja arrasada, incendiada, demolida 1931, não sem que antes o programa de
pedra a pedra, e sobre as odiadas ruínas Leonardo, nas mãos dum corpo docen-
dessa Bastilha dos cérebros que se erga, te de qualidade (contando com Damião
como supremo escárnio, a legenda que o Peres, Teixeira Rego, Francisco Torrinha,
povo de Paris escreveu sobre as ruínas da Aarão de Lacerda e Newton de Macedo),
outra: - ‘Aqui dança-se’” (Nova Silva, n.º 3, tenha indelevelmente marcado a cultura
1907, 9). Contudo, a publicação equacio- portuguesa, despertando vocações. De
na a pedagogia e a universidade, além da facto, são dignos de nota, pelos seus fru-
circunstância político-ideológica coim- tos, discípulos como Álvaro Ribeiro, José
brã, e Leonardo nota que, sobre a crise Marinho, Agostinho da Silva, Sant’Anna
momentânea, importa pensar a validade Dionísio, Afonso Botelho (aluno de Leo-
do ensino oficial, infirmando a didática nardo já no Liceu) e Delfim Santos, que
escolástica, promotora de acríticas erudi- depois espalham a liberdade magistral
ções enciclopedistas, de especializações leonardina com a formação do Grupo da
desligadas da pluralidade dos saberes e Filosofia Portuguesa, aduzindo membros

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Antiuniversitarismo 1893

como Pinharanda Gomes, António Qua- ma pedagógica com primeiro impacto


dros, Orlando Vitorino, António Telmo, no plano universitário, já que é dele que
Dalila Pereira da Costa e Francisco da saem aqueles capazes de exercer uma
Cunha Leão, entre outros. Este Grupo efetiva transformação no domínio social,
constitui a prova de quanto pode uma desde logo nos demais graus de ensino.
pedagogia universitária corrigida, pois A despeito das propostas diferenciadas,
que se trata, afinal, do único conjunto de o problema pedagógico é o que mais cla-
filósofos portugueses que, até ao come- ramente consolida e unifica este grupo,
ço do séc. xxi, produziu obra filosófica sendo através dele que vem a nascer uma
efetivamente filosofante. E, a despeito pluralidade de perspetivas filosóficas dis-
de teorizações pedagógicas anteriores tintas mas complementares, como dão
(veja-se, e.g., o lavor de Mota Veiga ou de conta as obras publicadas a título particu-
Ferreira Deusdado), a obra em causa tem lar, mas também as publicações conjun-
como fundamento filosófico o problema tas, a colaboração em revistas como Acto,
pedagógico em Portugal (donde, o tor- 57, e Escola Formal, e ainda a formação de
nar-se numa filosofia reconhecivelmen- movimentos como o Movimento da Re-
te portuguesa). Um dos poucos que em novação Democrática, e o Movimento da
Portugal, fora do Grupo, produziu obra Cultura Portuguesa.
filosofante e não meramente filosofada, A figura socrática de Leonardo induz
por sinal cabalmente tética, Raul Leal, a perceção de que a sofística pervertida
declara significativamente: “Por isso eu, havia tomado a Academia. O grupo or-
que ingenuamente pretendi, quando es- ganiza-se fora dos recintos universitários,
tudante, alcançar a cátedra, acabei por preferencialmente em cafés, readotando
reconhecer que voava alto de mais para o modelo de escola sófica tradicional, de
conseguir a realização deste meu legítimo discurso direto de mestre para discípulo,
desejo. Portugal não é a Alemanha onde e não de docente para discente. Para estes
os génios poderosos como Kant, Hegel e autores, há uma inefabilidade intrínseca
Einstein podem realmente professar em à filosofia portuguesa, que resulta das
cátedras universitárias. Aqui são, antes, hermenêuticas desadequadas com que é
arrastados na lama, vítimas do chasco da historiada, irredutível que é a ser vazada
população mais reles, a quem o Estado em conceitos positivistas, racionalistas,
paga as vis assuadas” (LEAL, 1989, 144). modernos. Entende-se a filosofia como
desafetada das formas habituais, fazendo
livre uso da imaginação e da criatividade,
O Grupo da Filosofia Portuguesa e revestindo-se de uma intenção tética,
Em 1943, Álvaro Ribeiro escreve: “Quem desembaraçada da compendiária herme-
diz escol, diz escola. O problema da filo- nêutica com que a produção universitária
sofia portuguesa é, por agora, o proble- se teria confundido, estimulando menos
ma do ensino. Instituir a escola superior a inteligência do que a memória. Di-lo
onde a filosofia se liberte e aproxime da José Marinho: “Temos lutado, quanto
vida, adquira a expressão atual, se de- podemos, é o momento de claramente
senvolva autonomicamente e exerça a o dizer, contra o preconceito da filoso-
influência no domínio que lhe compe- fia como coisa sapiente e livresca” (MA-
te, – tal é o ato prévio que se propõe a RINHO, 1972, 10). Defende-se, assim, a
quem vise diretamente o essencial” (RI- filosofia em ato ao invés da sua historiza-
BEIRO, 1943, 22-23). Visa-se uma refor- ção, um pensamento filosofante mais do

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1894 Antiuniversitarismo

que filosofado, e um processo concessor


de identidade autónoma em substituição
da mera visitação ao alheio que não cons-
titui nem doa. Assim se opõe instrução
(transmissão de conhecimentos) a educa-
ção, e didática retórica a pedagogia dialó-
gica, com a pretensão de transpor a pers-
petiva funcional do utente para quem a
universidade é instrumental, utilitária, e
entendida numa dinâmica de possibilida-
de aquisitiva, através de uma transmissão
comunicacional e não comunal, hori-
zontal e não vertical, quantitativa em vez
de qualitativa. Por isso, declara António
Quadros: “A chamada crise da Universi-
dade corresponde acima de tudo, quanto
a mim, ao vazio deixado pelo desapareci-
mento das antigas funções culturais que
D.R.

lhe competiam. A Universidade abando-


nou a Verdade para servir a Utilidade” António Quadros (1923-1993).
(QUADROS, 1956, 125). Tende-se assim
a visar o momento fundacional da univer-
sidade como modelo a cumprir: “O pano- sem o conhecer, a Universidade escon-
rama atual, se se pode chamar panorama de‑o e a Crítica repudia-o” (QUADROS,
àquilo que apenas nas pedras e nos sím- 1957, 6). Porque a filosofia portuguesa se
bolos recorda a Universidade, é a própria organiza em torno de uma reforma pe-
oposição do que, outrora, a Universidade dagógica e porque esta requer a superior
portuguesa foi” (BOTELHO, 1955, 88). radicalização do que seja a filosofia em si
Para além disso, a revolução pedagógi- mesma, este repúdio é entendido como
ca em causa deve reconduzir a filosofia sendo uma escusa da própria filosofia:
em Portugal até uma filosofia irrevoga- “Não é da filosofia portuguesa que têm
velmente portuguesa: “Como é possível medo os que negam, já a sua existência,
conciliar o sentido universal da filosofia já a possibilidade de ela vir a existir; de
com o conceito de uma filosofia radica- quem na verdade esses têm medo, é da
da? O problema equivale a este: Se a ave própria FILOSOFIA” (GOMES, 1972, 7).
tem asas, como se compreende que te- É assim que estes autores reclamam que,
nha pernas?” (MARINHO, 1981, 9-10). de facto, haja filosofia nas aulas de filo-
A descoincidência com o ideal corpora- sofia, bem como filósofos no lugar de
tivo da universidade enquanto universi- retransmissores de história das ideias; diz
tas magistrorum et scholarium é entendida António Quadros: “O que é necessário,
como uma progressiva perda do carácter o que parece por enquanto utópico, é
português: “Quem pense portuguesmen- eliminar todo o esquema historicista do
te, quem ouse ter ideias próprias e não curso de Filosofia e passar a estudar dire-
imitadas dos pensadores estrangeiros, tamente, filosofando-os, os grandes temas
assina desde logo um atestado de conde- de pensamento. Mas tal só poderá ser fei-
nação social. Sem o ler, sem o considerar, to por autores de filosofia, por filósofos, e

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Antiuniversitarismo 1895

não por divulgadores de compêndios, ca- A proposta pedagógica do Grupo da Fi-


tedráticos ou não” (Id., Ibid., 25). A falta losofia Portuguesa, na sua característica
de radicalidade da filosofia na universida- expressão antiuniversitária, é denotativa,
de, disciplina estruturante nesta perspeti- afinal, não tanto de um mero contrapon-
va pedagógica, permite a degeneração da to a procedimentos, processos, escolas
unidade que a universidade houvesse de ou correntes de pensamento adstritas à
garantir, pela constelação de especialis- instituição (ou a um dado momento his-
mos, o que conduz Afonso Botelho a de- tórico-social, como o querem ver alguns
clarar: “Rigorosamente, a Universidade hermeneutas), mas antes de uma moção
de hoje não deveria chamar-se universida- tética que supõe uma reconfiguração da
de mas ‘diversidade’” (BOTELHO, 1995, universidade e demais graus de ensino,
12). Fundamentalmente, estes autores em aproximação a uma paideia radical,
opõem-se ao modelo universitário pom- atinente aos princípios da portugalida-
balino que creem ter vigorado através de de, mas também ao que a universitas es-
um positivismo funcionalista cristalizado, sencialmente é enquanto primeiro cen-
reivindicando-se como os mais capazes tro filosofal. O problema pedagógico da
regeneradores da instituição e, assim, de filosofia portuguesa, na sua expressão
Portugal: “Só os filósofos, afastados quase reformista, descobre-se como privilegia-
sempre da máquina administrativa, po- do exercício metafilosófico, permitindo
deriam ter visto o defeito positivista do uma leitura unitária da filosofia lusa em
ensino superior da filosofia, criticá-lo e torno da sua proposta pedagógica e, ain-
corrigi-lo” (RIBEIRO, 1943, 26). da, uma imprevista revisão do que é a
Contudo, porque o grupo estava arre- filosofia como experiência integralmen-
dado da universidade, surge, dentre vá- te vivida, de exigência metanoica, como
rias propostas reformistas (com elencos meio para um fim (sófico) e não como
programáticos integrais que haveriam fim em si mesma. Exige, portanto, a
ainda de ser considerados), a mais extre- reontologização do magistério filosófico,
ma das ideias, replicação, afinal, do que já a interrogação sobre o ser, a radicaliza-
fora advogado por Leonardo Coimbra – a ção da experiência filosofal com vista a
extinção da universidade: “Condição pré- uma sua vivência integral, denunciando
via indispensável é a extinção das atuais a perversão iluminista, conservadora,
faculdades e institutos de ensino ou in- positivista, racionalista, historicista, le-
vestigação que lhes são inerentes Esta ex- galista, mnemotécnica, estrangeirada e
tinção, preconizada por Leonardo Coim- culturalista da universidade agnósica e
bra, foi justificada por Delfim Santos nos agnóstica. Esta teria esquecido a imagi-
seguintes termos: ‘A extinção, só por si, nação, a criatividade, a espiritualidade e
valorizará imenso a nossa cultura; desapa- a moção tética, próprias da filosofia, e da
recerá assim um valor negativo que infe- filosofia portuguesa em particular. Assim
rioriza grandemente os possíveis valores se defende a filosofia em ato ao invés da
positivos da cultura nacional. Qualquer historização museológica da disciplina,
outra solução nos parece incapaz de con- um pensamento filosofante mais do que
sequências proveitosas. As reformas não um pensamento filosofado, e um proces-
conseguirão nada. A criação ou extinção so concessor de identidade autónoma.
de cadeiras de nada valerá. Depois far-se­ A crítica estende-se ainda à sociedade
‑á a organização da nova universidade’” tecnocrática e desumanizada, oposta à
(SANTOS, 1934, 22-23). vocacionalidade como moção do ato, da

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1896 Antiuniversitarismo

qual a universidade seria motor primeiro Bibliog.: Acto – Fascículos de Cultura, n.os 1-2,
e reflexo maior e, assim, à hierarquiza- 1951-52; BAPTISTA, Pedro, O Milagre da
ção superficial, aparente ou de critérios Quinta Amarela – História da Primeira Faculdade
de Letras da Universidade do Porto (1919-1931),
funcionais. Impõe-se um programa de
Porto,  Universidade do Porto, 2012; BOTE-
reportugalização da filosofia universi- LHO, Afonso, O Drama do Universitário, Lisboa,
tária, desde logo pela constituição de Cidade Nova, 1955; CALAFATE, Pedro, “Edu-
uma disciplina de Filosofia Portuguesa cação em Portugal”, in Logos, vol. v, Lisboa,
que assumidamente o seja, pressupon- Verbo, 1992, pp. 858-871; COIMBRA, Leo-
do que só na assunção de uma filosofia nardo, “Professores”, Nova Silva, ano 1, n.º 5,
particular radical se torna possível a ele- 1907, p. 3; Id., O Problema da Educação Nacional,
Porto, Maranus, 1926; Id., Obras de Leonardo
vação ao universal (sobretudo quando a
Coimbra, vol. i, Porto, Lello e Irmão, 1983;
radicalidade em causa é tão claramente CORTESÃO, Jaime, “Nacionalismo e cosmo-
universalista). A expressão antiuniver- politismo”, A Vida Portuguesa, n.º 22, 10 fev.
sitária desta reforma pedagógica terá 1914, p. 9; DIONÍSIO, Sant’Anna, A Filosofia
decerto relações com o anticlericalismo como Objecto de Pedagogia, Lisboa, Seara Nova,
português, com as características anti-ins- 1952; DUARTE, Miguel Bruno, Noemas de Filo­
titucionais e inconformistas pátrias, bem sofia Portuguesa – Um Estudo Revelador de como a
Universidade É o Maior Inimigo da Cultura Lusíada,
como com a tradição quinto-imperista,
São Paulo, É Realizações, 2013; Escola Formal,
e com a liberdade extrema de pensar e n.os 1-6, 1977-78; GASSET, José Ortega y, Mis­
viver – assim como há uma espiritualida- são da Universidade, Lisboa, Seara Nova, 1946;
de transteológica, há aqui, notoriamen- GOMES, Pinharanda, Inquérito sobre a Filosofia
te, um pensamento metaformal. Talvez Portuguesa, Belo Horizonte, Editora Pax, 1972;
por isso a filosofia portuguesa se tenha MANSO, Artur, Filosofia Educacional na Obra de
dedicado a meditar sobre as condições Agostinho da Silva, Braga, Universidade do Mi-
nho, 2007; MARINHO, José, Filosofia – Ensino
de possibilidade do estabelecimento de
ou Iniciação, Lisboa, FCG, 1972; Id., “Filosofia
uma filosofia desprendida das ancilosa- portuguesa e universalidade da filosofia”, in
das formas hermenêuticas. A proposta MARINHO, José, Estudos sobre o Pensamento
de um retorno à educação comunal, con- Português Contemporâneo, Lisboa, Biblioteca
siderando a universidade como comu- Nacional, 1981; Nova Silva, ano 1, n.os 1-5,
nidade de estudantes, de compromisso 1907; PASCOAES, Teixeira de, “Renascença
existencial, senão metafísico, inscreven- portuguesa”, O Comercio da Póvoa do Varzim,
1 maio 1914, p. 1; Id., Arte de Ser Português,
do-o na tradição lusa, concita a pensar
Porto, Renascença Portuguesa, 1915; QUA-
a universitas como uma outra ilha dos DROS, António, A Angústia do Nosso Tempo e
amores, na anulação iconoclasta das for- a Crise da Universidade, Lisboa, Cidade Nova,
mas pela experiência da reintegração 1956; Id., “Inquérito aos pensadores portu-
essencial. Isto não resultaria num qual- gueses. O testemunho de Álvaro Ribeiro”,
quer passadismo, mas antes num exercí- 57: Folha Independente de Cultura, n.os 3-4,
cio de autenticação futurante através de dez. 1957, p. 6; RIBEIRO, Álvaro, O Problema
da Filosofia Portuguesa, Lisboa, Inquérito, 1943;
uma arqueologia essencial. Por isso, o
SANTOS, Delfim, Linha Geral da Nova Universi­
inconsciente, a memória, a saudade são dade, Lisboa, Cadernos de Cultura Democra-
valorizados como vias essenciais. Tendo tista, 1934; VILELA, António Lobo, A Crise da
isto em conta, o antiuniversitarismo será, Universidade, Figueira da Foz, Renovação De-
afinal, um pró-universitarismo que para mocrática, 1933; VITORINO, Orlando, Exal­
esse renovo intenta depor o que se julga tação da Filosofia Derrotada, Lisboa, Guimarães
degenerado, permitindo o trânsito da di- Editores, 1983.
versidade à universidade. Pedro Vistas

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Antiurbanismo 1897

Antiurbanismo boração de planos urbanísticos). Apesar


de existirem planos de cidade no perío-
do romano e no Renascimento, e de em
Portugal se destacar o plano de recupe-
ração da Baixa Pombalina pós-terramo-
to de 1755 – que introduziu ruas largas,
em quadrícula, instalando-se a primeira

O antiurbanismo surge associado a vá-


rias disciplinas, como a filosofia, a
sociologia, a literatura, as artes plásticas
rede de saneamento público do país e
apresentando inovações arquitetónicas
como a gaiola pombalina (estrutura em
(na crítica à vida urbana), a arquitetura madeira revestida em alvenaria que per-
e o urbanismo (na forma de projetar a mite dissipar a energia transmitida du-
cidade), tendo também expressão nos rante um sismo e evitar estragos signifi-
estudos de género. Radica numa crítica cativos no edifício), bem como paredes
à industrialização e aos efeitos que esta corta-fogo – ou, em França, o plano do
trouxe à forma de vida citadina, pelo barão Haussman para a cidade de Paris
crescimento exponencial da população (1852-1870) – que reorganizou a cidade
e dos bairros operários de condições in- inteira em termos funcionais, técnicos
salubres, a par da crescente associação e administrativos, através da criação de
da cidade a fonte de vícios, doenças e avenidas largas, numa rede de orienta-
pobreza. Mantém a sua fecundidade, so- ção simétrica, com as avenidas cortadas
bretudo ao nível da reflexão teórica, na por ruas diagonais, ladeadas por árvores
afirmação da necessidade de se repensa- e edifícios regulares, de cinco a sete an-
rem os paradigmas da planificação e da dares, introduzindo iluminação de rua a
edificação, a par de uma crítica aos as- gás, jardins públicos e restruturando o
petos culturais da vida urbana, e à forma sistema de esgotos, com grande impacto
como a civilização industrial ocupou os e repercussões a nível internacional –, o
territórios, descaraterizando as cidades e termo “urbanismo”, no âmbito da ar-
os campos em prol da modernização e do quitetura, surge apenas nos inícios do
progresso, com graves consequências ao séc. xx. Não obstante o seu surgimento
nível do indivíduo, da sociedade e da pai- tardio, tornou-se a disciplina de estudo,
sagem. A industrialização terá sido assim regulação, controlo e planeamento da ci-
o processo que desencadeou o discurso dade. Grosso modo, o urbanismo moder-
antiurbano, pela forma como a célere no, que tem como figura chave o arquite-
urbanização desregulada, característica to Le Corbusier (1887-1965), defende a
das cidades industriais, agitou profunda- racionalização do espaço, a higienização
mente a moral tradicional e potenciou o da cidade, a divisão e especialização dos
mal-estar urbano. espaços segundo as diferentes funções e
O urbanismo, por seu lado, refere-se à ocupações dos indivíduos, independen-
transformação e à organização do espaço temente do local e da cultura onde se
físico da cidade, tendo uma vertente teó- inserem (veja-se em especial a Carta de
rica (cujas raízes se podem encontrar em Atenas, manifesto resultante do IV Con-
Platão, no pensamento sobre a forma de gresso Internacional de Arquitectura Mo-
organização da cidade ideal) e uma ver- derna, em 1933, onde se discutiu a cida-
tente prática (centrada na estruturação de funcional). Um dos princípios básicos
e remodelação da cidade, através da ela- do modernismo foi o rompimento com

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1898 Antiurbanismo

a história da arquitetura, o uso racional do campo, e associam a grande cidade


dos materiais e a eliminação do ornamen- à imoralidade, à corrupção e à doença.
to, seguindo as máximas: “menos é mais” Também Edgar Allan Poe (1809-1849),
(Mies van der Rohe) e “a forma segue a Herman Melville (1819-1891), Nathaniel
função” (Louis Sullivan). Hawthorne (1804-1864), W. D. Howells
O antiurbanismo tem grande expres- (1837-1920) e Henry James (1843-1916)
são nos Estados Unidos da América, ra- criticam o caos, o excesso e mesmo a feal-
dicando-o alguns autores, como Morton dade das cidades, denunciando o poder
e Lucia White ou Steven Conn, já em das massas para subjugar, bem como o
Thomas Jefferson (1743-1826), que, em- sentimento de alienação psicológica e de
bora admirasse cidades como Paris (o seu terror induzidos pela vida urbana, ligan-
charme, elegância e incentivo às artes), do ainda a cidade ao comércio, ao crime,
e de vir (em idade avançada) a aceitar a às multidões e ao convencionalismo.
grande cidade por razões de necessidade O filósofo e sociólogo Georg Simmel
estratégica de defesa, temia a centraliza- (1858-1918), em A Metrópole e a Vida do
ção de poderes (cultural, político e eco- Espírito, debruçou-se sobre os efeitos que
nómico) das capitais europeias e tinha a passagem da pequena cidade à grande
horror aos efeitos (e ao espírito) da urba- metrópole têm na vida do indivíduo, atri-
nização, vendo as grandes cidades como buindo-lhe um pendor trágico: é na cida-
pestilenciosas para a moral, a saúde e as de que a afirmação do indivíduo (ser in-
liberdades do homem. Esse sentimento dependente, protagonista) mais se pode
antiurbano, que se manteve em grande realizar; contudo, e contraditoriamente,
parte até hoje, tem na cidade e no urba- é a cidade que sujeita o indivíduo ao pe-
no um atentado ao modo de vida ameri- rigo de soçobrar na massa anónima; na
cano (que seria fundado na propriedade grande cidade, ele enfrenta o risco do
privada, na habitação e no transporte uni- isolamento, do anonimato e da dissolu-
familiar, etc.), tendo eco nos ideais repu- ção entre as massas. A uniformização e o
blicanos, que celebrariam a comunidade nivelamento do homem, a especialização
(em lugar da sociedade), a propriedade e divisão do trabalho, a quantificação e
privada e a participação individual no go- redução do homem, a par do excesso de
verno popular – para a qual é necessária estímulos, seriam as raízes da atitude blasé
uma comunidade relativamente peque- do citadino como forma de preservação
na, mais comum nas vilas e áreas rurais da vida subjetiva. A organização social e
do que na grande cidade. Rejeitando não cultural na metrópole do virar do sécu-
só a densidade, a sobrelotação e as con- lo seriam então consequência direta da
dições de vida, mas também a diversida- reunião de grandes agregados populacio-
de racial e social, bem como o carácter nais, i.e., haveria uma relação direta entre
coletivo da vida pública urbana, o antiur- as características físicas das cidades e as
banismo conheceu grande disseminação características sociais dos seus habitantes.
com o romantismo da natureza dos trans- Esta leitura influenciará várias análises da
cendentalistas do séc. xix. Ralph Waldo cidade, tendo nomeadamente impacto
Emerson (1803-1882), que considerava na sociologia da escola de Chicago, par-
que as cidades drenavam o país da me- ticularmente nos estudos de sociologia
lhor parte da sua população, e Henry Da- urbana (em Urbanism as A Way of Life de
vid Thoreau (1817-1862) são autores que Louis Wirth, e.g., sublinha a relação entre
elogiam a pequena cidade, a vida simples proximidade e anonimato, já que a exis-

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Antiurbanismo 1899

tência de maiores oportunidades para na zona costeira do Sul de Espanha, cor-


interação social leva, paradoxalmente, a relacionando a sobre-exploração da costa
uma maior superficialidade e instrumen- com a destruição da paisagem (tornada
talização desses encontros). A sociologia assim banal e monocórdica). Alerta ain-
contemporânea tende a ver o crescimen- da para a promiscuidade entre os órgãos
to das cidades e as várias formas de socia- que concedem licenças de urbanização e
lização que nelas ocorrem como conse- quem constrói, apontando a especulação
quências da emergência das sociedades e a lavagem de dinheiro como motivos
industriais modernas, rejeitando assim o para a alta rentabilidade do negócio imo-
antiurbanismo. biliário. A relação entre poder e constru-
No plano filosófico, destaca-se Rosario ção mancha de corrupção o crescimento
Assunto (1915-1994), que, nos anos 70 urbano: o modelo de financiamento das
do séc. xx, vê na crescente industrializa- autarquias está diretamente relaciona-
ção – patente nos processos quer de cons- do com a regulação do crescimento ur-
trução das cidades e dos subúrbios, quer bano (posto em mãos de promotores
da produção agrícola e pecuária – a mar- privados), fazendo com que a cidade se
ca da morte da paisagem pela urbaniza- tenha tornado um imenso mercado de
ção total, criticando a forma como o olhar solo edificável (algo que terá sido inicia-
industrializador reduziu a paisagem a do em cidades como Pittsburg, Filadélfia
mera superfície destituída de substância e Boston, mas que se estendeu a outros
ontológica: um espaço limitado à geome- países, como Espanha e Portugal). Os
tria e ao espelho de uma visão do homem reflexos negativos da urbanização são vi-
como simples produtor/consumidor. síveis ainda no estado de abandono dos
A megalópole seria assim, contrariamente bosques, na destruição das paisagens (e o
à cidade, não mais uma imagem da tem- consequente perigo de incêndios e salini-
poralidade da história, mas uma simples zação dos aquíferos), tendo-se a agricul-
territorialidade (ou extensão e quantida- tura tornado um subsector da indústria
de, por oposição a duração e qualidade), agroalimentar, contribuindo (como toda
onde o presente se repete continuamen- a industrialização e urbanização) para a
te, sem relação com passado e futuro. produção excessiva de resíduos e para o
Assunto enaltece a cidade, mas é absolu- elevado consumo de água e energia. A ur-
tamente contra a expansão urbana que banização total do território seria assim
tudo devora e que se transforma em espa- um sinónimo de destruição planificada e
cialidade atemporal. Também o historia- uma consequência direta do capitalismo:
dor espanhol Miguel Amorós (n. 1949), o modo de vida urbano é consumista,
em “La urbe totalitaria” e em “Urbani- predador e individualista. Por seu lado, o
zación y destruicción”, tece uma dura geógrafo Augustin Berque (n. 1942) criti-
crítica ao urbanismo, correlacionando-o ca o espraiamento da conurbação (a reu-
com a destruição, o capitalismo e o totali- nião, numa só metrópole, de milhões de
tarismo. Para o ensaísta, a construção da habitantes) e o ideal a que chama “urba-
urbanização total apresenta um carácter no difuso”, em que cidadãos essencial-
mais violento que o próprio destruir, pela mente citadinos preferem viver fora da ci-
forma como invade o território, aniquila dade para estarem perto da natureza (em
a paisagem, desperdiça recursos e conta- moradias unifamiliares, dependendo em
mina o ambiente. Amorós faz uma extensa grande parte de transportes individuais),
análise do aumento de áreas urbanizadas chamando a atenção para o paradoxo em

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1900 Antiurbanismo

causa: esta forma de urbanização em lu- considera uma influência nefasta; Mahat-
gar de beneficiar a natureza aumenta a ma Gandhi (1869-1948), que estabeleceu
pressão humana e o impacto sobre o am- na África do Sul uma comunidade rural
biente (causando assim a destruição do a que chamou Quinta Tolstoi (por ser
próprio objeto de desejo). influenciado por este) e que elogiou a
Para a geografia cultural, o antiurba- preferência dos seus antepassados india-
nismo define-se como um discurso de nos por pequenas cidades ou vilas, consi-
medo da cidade, radicado na industria- derando as cidades armadilhas (onde os
lização e na forma como esta destitui a pobres são roubados por ricos), lugares
ideia de cidade como lugar para a vida onde as pessoas não podem viver felizes;
boa (Aristóteles), tornando-se, ao invés, e o escritor nigeriano Cypriar Ekwensi
suja, ameaçadora, anónima e populosa, (1921-2007), que faz uma leitura aves-
opondo-se-lhe o ideal campestre. O geó- sa à cidade na sua obra People of the City
grafo urbano Tom Slater (n. 1975) dá (1954), em que o protagonista, tendo
como exemplo paradigmático de antiur- vivido demasiado tempo na cidade, já
banismo o pintor Edward Hopper (1882­ não se importa com o bem ou o mal,
‑1967), pelas suas representações de in- contando que o seu fim pretendido seja
divíduos isolados, deslocados e mesmo alcançado.
alienados face ao espaço urbano, onde Em Portugal, é sobretudo na literatu-
se encontra evidenciada, segundo Slater, ra que se podem encontrar críticas ao
uma marcada crítica à metrópole. modo de vida urbano, ou uma dicoto-
No âmbito dos estudos queer, o termo mia entre a cidade (os seus habitantes
“antiurbanismo” tem vindo a ser utilizado e modo de habitar) e o campo. Eça de
para questionar a associação da identida- Queirós (1845­‑1900), em especial em
de queer à urbanidade. O conceito, pro- As Cidades e as Serras, critica a sociedade
posto por Scott Herring em Another Coun- da época e a vida na metrópole – opu-
try: Queer Anti Urbanism, problematiza o lenta, corrupta e artificial – opondo-lhe
suposto imaginário gay, no qual a cidade o mundo rural – puro e bucólico; em
é associada à tolerância, por oposição ao Viagens na Minha Terra, de Almeida Gar-
campo que seria associado à perseguição, rett (1799-1854), é notória a descrição
senão mesmo à ausência de homossexua- elogiosa das paisagens naturais ou ru-
lidade, identificando formas de resposta rais e dos seus habitantes, por oposição
rurais a uma mentalidade centralizada na à descrição crítica das cidades, tanto no
cidade e constituindo assim uma crítica que toca à arquitetura, como aos monu-
aos ideais de metronormatividade. mentos, ao modo de habitar a cidade e à
Walter Moss, em An Age of Progress?, dá sociedade urbana (nacional) da época.
conta da amplitude internacional de vi- No Brasil, a divergência entre uma vi-
sões antiurbanistas, referindo, para além são da grande metrópole como marca de
dos autores norte-americanos já mencio- desenvolvimento (importada dos mode-
nados, exemplos como o poeta William los da Europa e da América do Norte) e
Wordsworth (1770-1850), no Reino Uni- a visão antiurbanista (que apresenta o ru-
do, para quem a metrópole é corruptora, ral como essência nacional) acompanha
enlaçando e aprisionando os inocentes; a procura de uma identidade nacional,
Leo Tolstoi (1826-1910), na Rússia, um sobretudo durante a primeira metade
adepto da vida simples próxima da na- do séc. xx. Assim, na literatura brasi-
tureza, crítico severo da vida urbana que leira do início do século, autores como

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Antiurbanismo 1901

Euclides da Cunha (Os Sertões, 1902) e sor da cidade, critica os excessos urba-
Graça Aranha (Canaã, 1902) fazem o elo- nos que a tornam uma prisão, onde não
gio da ruralidade (por oposição à urba- se manifestam nem pensamentos claros,
nidade), denunciando o esquecimento, nem sentimentos sãos, preferindo a pe-
pela República, do interior face ao lito- quena cidade rural onde a vida é mais
ral. O planeamento urbano acompanha natural (importa referir que defende e
a discussão política, ora defendendo-se elogia os arranha-céus se implantados
a moradia individual (identificada com em espaços abertos ou rodeados por
uma vocação rural e tradicional), ora elo- jardins). Tirando partido da descentra-
giando‑se a urbanização para uma trans- lização tornada possível pelo sistema
formação positiva do país. de autoestradas, pela grelha de energia
Lewis Mumford (1895-1990), grande elétrica e pela transmissão eletrónica de
historiador da cidade, embora não se informação, desenvolveu um projeto de
possa apelidar simplisticamente de an- cidade em que esta já não necessita de se
tiurbanista, argumenta que a uniformi- aglomerar em torno de um centro, mas
zação e a homogeneização através da se pode espalhar pelo campo: a broadacre
dispersão urbana – ou conurbação – des- city (1932), que aliava uma proposta de
troem por completo as formas sociais da planeamento a uma proposta de índole
cidade (a sua variedade de núcleos de social e política, estabelecendo a criação
cultura e de reunião social e individual). de unidades funcionais, desviando-se de
No desenho urbano e na arquitetura, um excesso de urbanização por forma a
surgem várias vozes críticas à grande possibilitar uma vivência em pleno num
cidade como modelo urbanístico e ar- ambiente propício ao desenvolvimento
quitetónico, entre as quais Frank Lloyd mútuo do indivíduo e da comunidade,
Wright (1869-1959), que, acompanhan- com uma relação próxima com a terra
do a crítica à cidade de William James, (ou o direito natural à terra), acreditan-
John Dewey e Jane Adams – sobretudo à do que só a proximidade e o contacto
forma como os habitantes da cidade são com a natureza desenvolveria harmonio-
oprimidos e incapazes de desenvolver a samente a pessoa humana na sua totali-
sua vida ao máximo –, critica a cultura do dade (com acesso a ar fresco, luz e ter-
arranha-céus nas cidades já de si sobrelo- ra). Esta descentralização pode ser vista
tadas, classificando-a como uma “mons- como o fim da cidade (mais do que o fim
truosidade” moral, económica, estética da necessidade da cidade, o fim efetivo
e ética. Declara que, se se tivesse em desta).
consideração os direitos do cidadão que Mais recentemente, Alberto Magna­
habita nos andares inferiores, não existi- ghi (n. 1941), fundador da escola territo-
riam edifícios tão altos, não se insistiria rialista italiana, propõe a regeneração da
na “perpendicularidade”. Wright conde- qualidade urbana a partir de um desen-
na a estreiteza das ruas e o consequente volvimento local autossustentável e critica
congestionamento de trânsito, o cons- o modelo de desenvolvimento que reduz
tante ensombramento provocado pela o território a mera extensão, transformá-
verticalidade da construção, que aprisio- vel pela técnica e por perspetivas econo-
na o cidadão e o desrespeita, concluindo micistas, alertando ainda para a destrui-
que o sentido da proporção humana é ção irreversível de tais modelos. Por sua
fatalmente perdido devido aos excessos vez, Pier Luigi Cervellati (n. 1936), sen-
da urbanização. Apesar de ser um defen- do um defensor da cidade, elabora a sua

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1902 Antiurbanismo

proposta por forma a repensar os exces- 2 vols., Napoli, Giannini, 1973; BERQUE, Au-
sos do urbanismo. Este arquiteto defende gustin, “Mythologie de l’urbain diffus”, Annals
a demolição sempre que seja necessário, de Géographie, n.º 704, abr. 2015, pp.  351­
‑365; BONESIO, Luisa, “Elogio della conser-
de modo a recuperar as formas anterio-
vazione”, in Oltre il Paesaggio: I Luoghi tra Este­
res à barbárie modernista e industrialista,
tica e Geofilosofia, Casalecchio, Arianna, 2002,
opondo-se à construção de novas cidades pp. 3­‑26; BROOKS, H. Allen (org.), Writings on
ou de grandes obras de infraestruturas. Já Wright: Selected Comment on Frank Lloyd Wright,
o novo urbanismo (new urbanism) promo- Cambridge, Massachusetts Institute of Tech-
ve a criação de bairros essencialmente pe- nology Press, 1981; Campos, Cândido Mal-
destres, onde tudo pode ser encontrado à ta, “Urbanismo e anti-urbanismo no debate
distância de 10 min, com predominância nacional brasileiro, 1900-1945”, Seminário de
História da Cidade e do Urbanismo, vol. 6, n.º 1,
de espaços públicos e de elementos de
2000; CHOAY, Françoise, O Urbanismo, Utopias
natureza na cidade. O urbanismo de pai- e Realidades. Uma Antologia, São Paulo, Editora
sagem (landscape urbanism), por sua vez, Perspectiva, 2005; CONN, Steven, Americans
propõe a organização da cidade a partir against the City: Anti-Urbanism in the Twentieth
do todo, integrando grandes infraestru- Century, New York, Oxford University Press,
turas, habitação e parques urbanos. 2014; Herring, Scott, Another Country: Queer
Note-se que, na arquitetura e no pla- Anti-Urbanism, New York/London, New York
University Press, 2010; MAGNAGHI, Alber-
neamento urbano, uma visão antiurbanis-
to, Il Projetto Locale, Torino, Bolati Boringhieri,
ta não é necessariamente uma recusa da 2000; MOSS, Walter G., An Age of Progress?:
cidade, mas uma procura de novos mo- Clashing Twentieth-Century Global Forces, New
delos de organização que façam face ao York, Anthem Press, 2008; Mumford,
crescimento sem limites, às condições de Lewis, The City in History: Its Origins, its Trans­
vida precárias e ao ruir da própria ideia formations and its Prospects, London, Penguin
de cidade. Para o arquiteto e urbanista Books, 1961; SIMMEL, Georg, “A metrópole
argentino contemporâneo Jorge Mário e a vida mental”, in VELHO, Otávio Guilher-
me (org.), O Fenômeno Urbano, Rio de Janeiro,
Jáuregui, que alcançou reconhecimento
Zahar, 1977, pp. 10-24; SLATER, Tom, “Fear
internacional com o seu trabalho em fa- of the city 1882–1967: Edward Hopper and
velas do Rio de Janeiro, antiurbanismo é the discourse of anti-urbanism”, Social & Cul­
a forma de ocupação não sustentável do tural Geo­graphy, vol. 3, n.º 2, 2002, pp.  135­
território; é um atentado aos processos ‑154; Id., “Anti-urbanism”, in KITCHIN, R.,
vitais da vida em sociedade, posto em prá- e THRIFT, N. (orgs.), International Encyclope­
tica pela especulação imobiliária, guiada dia of Human Geography, vol. 1, Oxford, Else-
vier, 2009, pp. 159-166; White, Morton, e
pelo consumismo e pelo individualismo,
White, Lucia, The Intellectual versus the City,
e que resulta da falta de estratégias e de Cambridge, Harvard University Press, 1962;
políticas urbanas. WRIGHT, Frank Lloyd, Writings and Buildings,
Cleveland, World Publishing, 1961.
Moirika Reker
Bibliog.: AMORÓS, Miguel, “Urbanización
y destruicción”, in CONTRA EL URBANISMO:
Apuntes Sobre las Ciudades como Espacio de Domi­
nación, Bioregión Valle Maipo, Editorial Germi-
nal, 2011, pp. 39­‑49; Id., “La urbe totalitaria”,
in CONTRA EL URBANISMO: Apuntes Sobre las
Ciudades como Espacio de Dominación, Bioregión
Valle Maipo, Editorial Germinal, 2011, pp. 31­
‑38; Assunto, Rosario, Il Paesaggio e l’Estetica,

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Antiusurismo 1903

Antiusurismo parte do direito canónico até meados do


séc. xx, embora neste contexto mais tar-
dio o sentido fosse mais lato e não apenas
relativo ao juro em si mesmo. Esta con-
denação assentava em três pressupostos:
em primeiro lugar, fundava-se no princí-
pio deuteronómico de não cobrar juro

A condenação da usura (ou onzena)


foi um traço marcante no pensa-
mento económico português até ao tem-
ao “irmão”, confirmado pelo Novo Tes-
tamento: “Emprestai, sem nada esperar
em troca” (Lc 6, 35); este apelo moral era
po presente. A usura implica e implicou conciliável com a influente teorização
a condenação moral ou legal de certas aristotélica, nomeadamente com a ideia
práticas creditícias consideradas abusivas; da esterilidade do dinheiro, ou seja, com
contudo, a linha que separava os contra- a ideia de que o dinheiro não podia criar
tos legal e moralmente admissíveis dos mais dinheiro – enquadramento teórico
outros variou desde o séc. xii ao xxi. Em- que rejeitava a capacidade multiplicado-
bora as instituições de crédito se tenham ra do investimento; por fim, do entendi-
alterado drasticamente e o próprio ter- mento de que o tempo pertencia a Deus,
mo “usura” tenha sofrido uma evolução resultava a ideia de que a cobrança de
semântica considerável, o seu carácter juros por um empréstimo implicava uma
depreciativo manteve-se ao longo dos sé- venda de algo que não era propriedade
culos, como aconteceu com termos como do prestamista. Como tal, o pecado da
“despesismo” e “economicismo”. Não há usura era aplicável às duas partes envol-
defensores da usura (ou onzena), e, por vidas no empréstimo, mas, nos cânones,
isso, o próprio termo implica desde logo as condenações por usura eram dirigidas
a existência de antagonismo. sobretudo aos credores, e não aos toma-
Desde os primeiros usos num contexto dores. Com efeito, ao presumir-se que a
português e europeu que existe alguma procura do crédito era motivada pela po-
ambiguidade no termo “usura”. Em la- breza e não pela vontade de investimen-
tim, usura significava juro, ou seja, a re- to, só os usurários seriam culpáveis pelos
compensa do credor por emprestar o seu pecados da avareza e da cobiça.
capital a outrem. Com o direito canóni- As ordens mendicantes em Portugal di-
co, “usura” passou a designar um pecado vergiram quanto à condenação da usura,
equiparado à cobiça. No entanto, a con- como mostram os casos do Dominicano
denação da usura nem sempre equivalia Fr. Paio de Coimbra (c.1195-c.1249) e do
à proibição pura e simples de remunerar Franciscano S.to António. O primeiro faz
um empréstimo. Em vários contextos, o equiparar a usura ao roubo ou à fraude,
termo “usura” designava a cobrança de e afirma que os frutos destes três pecados
um juro acima de um limite legal ou mo- são os manjares servidos à mesa do de-
ralmente razoável. mónio; para este autor, assim como para
O direito civil e canónico coincidiam S.to António, o carácter pecaminoso da
na proibição da prática de juros excessi- onzena reside na avareza dos usurários,
vos por toda a cristandade. A condena- que se aproveitavam da sua posição de
ção da usura sob pena de excomunhão força para enriquecer ao mesmo tempo
ficou definida no can. 14 do II Concílio que empobreciam os mais miseráveis.
de Latrão, de 1139, e continuaria a fazer Esta vitimização do devedor às mãos do

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1904 Antiusurismo

credor também está presente na legislação um retorno de 9 % (ou seja, pagaria 11


sinodal portuguesa. O Sínodo de Lisboa para 1, sendo possível associar outra rela-
de 1307 penalizava com a excomunhão ção com o latim: uncia, que deu origem à
os usurários cuja voracidade “devorava a medida de peso onça). De notar que esta
alma [do credor] e esgotava as forças [do lei se dirige aos judeus, que, naturalmen-
devedor]” (GARCIA, 1982, 309). te, estavam fora da alçada da lei canónica.
Os cânones conciliares foram reitera- No séc. xiv, contra alguns canonistas
dos pela Igreja portuguesa e mesmo pelas e contra a prática corrente, a proibição
autoridades civis. O Sínodo Bracarense da usura foi reafirmada de forma clara e
de 1281 considerou que os usurários rein- mais precisa. Em 1326, o Sínodo da Ar-
cidentes, depois de três admoestações, quidiocese de Braga repetia o que fora já
deviam ser expulsos das suas freguesias, decidido no Concílio de Viena de 1311,
da mesma guisa que incestuosos ou adúl- designadamente que era herética a tese
teros. Esta recomendação foi repetida no que defendia que a usura não era um
Sínodo de Valença de 1444 (Id., Ibid., 15 pecado (GARCIA, 1982, 55). A legisla-
e 432). Por esta razão, em várias instân- ção civil também refletiu este reforço da
cias, os costumes locais (foros) seguiam condenação moral e canónica da usura.
o direito eclesiástico ao estipular a exco- Em 1349 e em 1350, Afonso IV emite
munhão e outras penas espirituais aos duas novas leis contra a usura, nas quais
cristãos onzeneiros. Nos concelhos portu- reitera a perspetiva canónica: “contractos
gueses, denunciar um usurário constituía husureyros he contra ho mandado de
um dever de todos os vizinhos. deus e em dampno daqueles que del hu-
Desde os inícios do séc. xiii que a le- sam E em astragamento daqueles contra
gislação civil portuguesa condenou com que se husa” (RODRIGUES, 1971, 444).
graves penas (incluindo a morte) a usura O combate à usura não era meramente
(ou onzena). As importantes Leis Gerais doutrinário: para o legislador, o dinheiro
de Afonso II, proclamadas em 1211, são emprestado implicava a ruína de nobres,
as primeiras a repudiar a prática da onze- lavradores e mesteirais; “ricos e ffectos”
na (ou usura) levada a cabo pelos oficiais perdiam as suas fazendas e, como tal, não
ao serviço do Rei. No entanto, a usura cumpriam as suas funções, o que compro-
continuava a ser matéria essencialmente metia o “prol da terra” e o “serviço do rei”
canónica, e não civil, como reconheceu (Id., Ibid., 444).
Sancho II perante o Papa Gregório IX. Embora a proibição legal fosse igual-
Por isso, tem grande importância a lei mente aplicável a judeus e muçulmanos,
emitida por Afonso III em 1254 – “lei dos a linguagem empregue na legislação re-
stromentos dos judeus que nom cresçam levante indica que a usura era considera-
mais do cabo” –, à qual a posteridade cha- da antitética ao cristianismo. Assim, logo
mou “contra a usura” (ALBUQUERQUE em 1254, a prática da usura é atribuída
e NUNES, 1988, 282). Neste caso, era ape- à maleza (malícia) dos judeus; é por isso
nas proibida a exigência de um pagamen- que as designações de “judeu” e “usurá-
to de juros superior ao principal (o cabo rio” se confundiam, ainda que a usura
ou o capital); dito de outra forma, de um fosse também condenada pelas leis de Is-
juro total superior a 100 %. O facto de rael. Numa queixa trazida pelos Povos às
o termo “onzena” ter coexistido na his- Cortes de 1331, esta relação é claríssima:
tória a par do termo “usura” faz pensar “Jtem agrauam se dos judeus porque san
que o credor asseguraria habitualmente stragados per eles. Porem pedem uos por

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Antiusurismo 1905

mercee que lhis defendades que nom on- COSTA, 2004, doc. 19). Vários outros epi-
zenem ou que temperedes a onzena per sódios quatrocentistas mostram o mesmo
tal guisa que nom Seia tam danosa nem espírito acomodatício, que reinava a des-
tam grande como he” (MARQUES, 1982, peito das condenações canónicas e civis.
35). Assim, quando em 1352 D. Pedro I Esta maior tolerância relativa às práti-
reafirmou a proibição de contratos crip- cas creditícias do séc. xv continuaria pelo
to-usurários, fez coincidir o cristianismo século seguinte. Nas constituições sino-
com a renúncia à usura: “Saluo aquelles dais bracarenses de 1497 não há conde-
que de directo deuem fazer e que os fe- nações da usura, e tão-pouco se conhece
zessem como boons mercadores e ver- qualquer nova legislação. As Ordenações
dadejros christãos” (RODRIGUES, 1971, Manuelinas de 1514 (liv. iv, tít. xiv) rei-
458-462). Ou seja, o recurso à usura era teram a condenação da usura de acordo
um atentado à ética mercantil, por não com o direito civil e canónico, mas abrem
respeitar a equivalência entre coisas com- a porta a um conjunto de exceções (letras
pradas e vendidas, e à ética religiosa, por de câmbio; atrasos em pagamentos de do-
ser um pecado. tes; atrasos na entrega dos imóveis; etc.).
As proibições enfáticas nos dois tipos O espírito desta lei está bem patente no
de direitos contrastam com a indiferença seu nome: “Das Usuras, como são defe-
ao tema nos textos literários dos sécs. xiii sas. E em que maneira se podem levar”.
e xiv. Os termos “usura” e “onzena” (e os A própria escolástica, com o professor
seus derivados) estão ausentes das Can- de Évora Tomas de Molina à cabeça, co-
tigas galaico-portuguesas, dos Livros de meçou a aceitar a existência de juros em
Linhagens e das primeiras crónicas. É no- nome da lei natural. No Concílio Provin-
tável que a usura tenha escapado à zom- cial Bracarense de 1566 entende-se por
baria dos trovadores e aos jograis, que, usura não o juro per se mas o juro injusto,
aliás, se empenharam bastante em criti- i.e., aquele que está acima da taxa de re-
car a avareza e a ganância nas cantigas de torno de uma compra de rendas.
escárnio e maldizer. Ao contrário do que acontecera nos
Tal como a indiferença dos textos li- sécs. xiii e xiv, em que a usura era proi-
terários sugere, as afirmações terminan- bida pelas leis mas escapava aos juízos
tes da legislação eram temperadas com morais expressos na literatura, os auto-
algum pragmatismo. A necessidade de res quinhentistas expressam amiúde a
crédito conduziu a uma disposição mais sua repulsa pela onzena. As condenações
complacente perante a cobrança de ju- da usura surgem por todo o lado: no púl-
ros, visível não tanto na legislação como pito, no palco e nos prelos. O onzeneiro,
em decisões concretas. Em 1330, Afon- a quem o diabo trata como parente che-
so IV transigia ao pedido do concelho gado, é uma personagem assídua no tea-
de Bragança para regular e não proibir tro vicentino. O Auto da Barca do Inferno
os empréstimos feitos por judeus, por- é também claro quanto à onzena: “Ó on-
que a proibição seria ainda mais gravosa zena, como és feia e filha de maldição!”
para a comunidade: “Nom podya scusar (vv. 222-223). Em certa medida, Gil Vi-
que nom ouvessem de tirar enprestado cente e alguns poetas do Cancioneiro Ge-
dos judeus polas pressas e menguas que ral de Garcia de Resende parecem reagir
avyam que se o assy nom fezessem que se à disseminação dos negócios financei-
lhis tornarya en mayor dano que aquelo ros. Na descrição moral de Lisboa feita
que os judeus levaryam deles” (CUNHA e por Álvaro de Brito, poeta do Cancioneiro

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1906 Antiusurismo

que escreve em 1496-1500, é referida a


agiotagem: “As onzenas d’onzeneiros,
usuras e simonias nos desmedem”. Para
Luís da Silveira, a onzena é uma metá-
fora para a perdição, e a troco de uma
ninharia: “Onzena conhecida [que foi]/
levardes por um ducado/todo o bem da-
questa vida”.
A monarquia manejou com admirável
pragmatismo as suspeitas morais que pen-
diam sobre o juro. Manuel I utilizou uma
das poucas brechas na proibição da usura
para construir o seu sistema de dívida pú-
blica baseado nos chamados padrões de
juro; alegou que a venda de uma recei-
ta fiscal equivalia à venda de um direito
sobre uma terra (jus, juris). Os negócios
relacionados com a compra de rendas so-
bre a terra beneficiaram da complacência
dos direitos civil e canónico. O compra- Rei D. Manuel I (1469-1521).
dor de um padrão (documento) estava a
adquirir uma receita fiscal que era consi- Génova. Argumentos semelhantes, no-
derada um juro, i.e., uma renda da terra. meadamente as análises feitas por pessoas
Como tal, em 1500, na primeira operação de letras e consciência, foram usados em
de dívida pública, D. Manuel I declara 1614 para reduzir o juro a pagar pelos pa-
que pessoas de ciência e consciência o in- drões de juro. Em 1743, João  V também
formaram de que a venda de rendimen- usou o argumento de que o juro de 6,25 %
tos a 14 por 1 (na prática por um juro de (i.e., a 16 o milheiro) não era justo.
7,14 %) não era pecaminosa. De resto, a O entendimento da usura como um
língua portuguesa conhece um interes- juro excessivo acabou por contribuir para
sante fenómeno semântico que a separa uma legislação mais pragmática e equili-
das principais línguas latinas, germânicas brada. Como tal, a partir do período fili-
e outras. Nestas, vingaram derivados do pino, vigorou de facto o juro máximo de
termo tardo-latino “interesse” (que desig- 5 % para empréstimo, exceto para alguns
na precisamente o direito do credor so- tipos de negócio (como os chamados
bre o devedor), enquanto na designação “negócios da China”, ou seja, o comér-
portuguesa o termo “juro” remete para os cio de longa distância em que risco e a
direitos sobre a terra. rentabilidade eram muito mais elevados).
A utilização do antiusurismo por parte Neste quadro legal, seria possível reduzir
do poder central voltou a ocorrer diversas a taxa de juro, continuando a existir em-
vezes. A bancarrota portuguesa de 1560, préstimos sem qualquer remuneração,
que afetava sobretudo a banca genovesa, pelo menos expressa contratualmente.
foi justificada pela regente D.  Catarina A legislação régia encontrou assim um
como descargo de consciência, uma vez equilíbrio entre as condenações morais
que os teólogos tinham considerado ile- da usura e a necessidade de mercados de
gítimo o juro exigido pelos tratadores de crédito funcionais.

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Antiusurismo 1907

Nos sécs. xviii e xix, o termo “usura” mente, as proibições pombalinas foram
passou a designar contratos de emprésti- revertidas nos reinados seguintes. Em es-
mo em que as condições eram muito exi- pecial, a gravosa proibição da liberdade
gentes para o devedor, e não apenas um de juro no comércio com a Ásia foi anu-
empréstimo onerado por juros. Como tal, lada em 1810 por D. João VI, invocando
a acusação de contrato usurário servia de o “direito natural” e as vantagens que um
fundamento para se anularem contratos mercado de capitais ativo proporcionava
que prejudicavam a economia familiar ao “bem público” (SILVA, 1826, 875).
das grandes casas. No séc. xix, a usura e a onzena conti-
Nos sécs. xviii e xix, o termo “usura” nuam a animar a discussão política. No
passou a designar contratos de emprésti- entanto, surgem acompanhadas e mesmo
mo em que as condições eram muito exi- contaminadas por um novo conceito, o
gentes para o devedor, e não apenas um de agiotagem. Com efeito, o regime libe-
empréstimo onerado por juros. Como ral libertou a usura da sua proibição civil
tal, a acusação de contrato usurário ser- e canónica, mas a desconfiança relativa-
via de fundamento para se anularem mente às práticas creditícias continuou
contratos que prejudicavam a economia muito presente no discurso político. Os
familiar das grandes casas. No plano das debates parlamentares a partir dos anos
ideias, havia já defensores da legitimida- de 1830 mostram como o conceito de
de dos juros, como se deduz por algumas usura ultrapassara o seu berço canónico
obras polémicas do séc. xviii (FONSE- para se tornar uma arma retórica. Usu-
CA, 2012, 106); na verdade, no último ra e onzena passaram a ser uma forma
quartel desse século, a legitimidade dos depreciativa de designar o juro elevado,
juros ainda era em Portugal objeto de mas sem grande elaboração conceptual e
“acalorado debate” (MONTEIRO, 1992, quantitativa. Estas duas palavras consagra-
281). Este equilíbrio sofreu um grande das passaram a confundir-se com a agio-
sobressalto com o reformismo pombali- tagem, que significava um predomínio
no. Foi ainda a velha condenação da prejudicial da especulação sobre a produ-
usura que levou o marquês a interferir, ção. Assim, a “agiotagem desenfreada” na
em 1757, numa das mais importantes banca portuguesa (CORDEIRO, 1999) e
áreas de liberdade (o crédito para co- os agiotas dos mercados internacionais
mércio a longa distância com a Ásia) e acabam por se confundir com o conceito
a impor-lhe o juro máximo reduzido de mais restrito de usura. Nas duas câmaras
5 %. Na verdade, a intenção do estadista do liberalismo português, as acusações de
era direcionar os capitais disponíveis no onzena e de onzeneiro (termos arcaicos)
mercado financeiro português para as conhecem nova vida a partir de 1888.
companhias majestáticas. Esta ordem de Ainda que a tradição legal portuguesa
razões levou o mesmo legislador, alegan- culpasse as duas partes envolvidas em con-
do de novo a usura, a proibir a conces- trato ferido de usura, o termo “usurário”,
são de  crédito por parte da Santa Casa com a sua carga negativa, acabou por de-
da Misericórdia de Lisboa. Uma histo- signar o credor abusivo. A linguagem cor-
riadora contemporânea classificou esta rente conservou esta assimetria. As dificul-
medida, entre outras, como “um exem- dades financeiras do Estado português em
plo acabado de manipulação doutrinal” inícios do terceiro milénio emprestaram
feito contra a prática geral e a legislação um novo fôlego ao termo “usura”. A ve-
régia (LOPES, 2008, 150). Sintomatica- lha ideia de que o empréstimo depredava

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1908 Antiusurismo

o devedor, clara desde os sermões de Autores Católicos, 1982; JUNTA DO CRÉDI-


S.to António e do Fr. Paio de Coimbra, era TO PÚBLICO, Collecção de Leis de Divida Publica
retomada, mesmo num contexto de gran- Portugueza, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883;
LOPES, Maria Antónia, “A intervenção da
de disseminação do empréstimo para
Coroa nas instituições de protecção social
consumo. Ou seja, tal como nos pregado-
de 1750 a 1820”, Revista de História das Ideias,
res mendicantes, a condenação incidia na vol. 29, 2008, pp. 131-176; MARQUES, A. H.
desgraça material dos mais fracos e não de Oliveira (org.), Cortes Portuguesas. Reinado
apenas na avareza dos ricos. Se entender- de D. Afonso IV (1325-1357), Lisboa, Instituto
mos as alocuções na Assembleia da Re- Nacional de Investigação Científica, 1982;
pública como uma caixa de ressonância MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “O endivida-
do discurso político português, podemos mento aristocrático (1750­‑1832): alguns as-
pectos”, Análise Social, vol. xxvii, n.os 116-117,
verificar que o termo “usura” se revigo-
1992, pp. 263­‑283; PEDREIRA, Jorge Miguel,
rou nos últimos anos. A pesquisa feita “Tratos e contratos: actividades, interesses
aos registos dos debates parlamentares e orientações dos investimentos dos nego-
comprova que, entre o ano de 2008 e o ciantes da praça de Lisboa (1755-1822)”,
ano de 2015, o termo “usura” (ou termos Análise Social, vol. xxxi, n.os 136­‑137, 1996,
seus derivados, como “usurário” e “usu- pp. 355­‑379; Resposta de Um Amigo a Outro,
rária”) foi mencionado em tantas sessões Que Lhe Pergunta: Se o Contrato entre Nos Cha­
mado de Dinheiro a Ganho... de Que o Tal Sujeito
(60) quanto o tinha sido nos 21 anos an-
Una Será Manchado de Usura, Lisboa, Officina
teriores (1986-2007). Tanto os mercados de António Rodrigues Galhardo, 1785; RO-
financeiros como os bancos foram repe- DRIGUES, Maria Teresa Campos (org.), Li­
tidamente increpados de serem usurários vros das Leis e Posturas, pref. Nuno J. Espinosa
devido às exigências que faziam aos seus Gomes da Silva, Lisboa, Faculdade de Direi-
credores, ou seja, ao Estado português e to da Universidade de Lisboa, 1971; SILVA,
aos devedores de crédito à habitação. António Delgado da, Compilação da Legislação
Portugueza desde a Última Compilação das Orde­
nações Oferecida a el-Rei Nosso Senhor pelo De­
sembargador Antonio D. da Silva, vol. v, Lisboa,
Bibliog.: ALBUQUERQUE, Martim de, e NU- Typographia Maigrense, 1826; SILVA, José
NES, Eduardo (ed. lit.), Ordenações del-Rei Justino de Andrade, Collecção Chronologica da
Dom Duarte, Lisboa, FCG, 1988; BARATA, Legislação Portugueza (1620­‑1627), Lisboa, Im-
Filipe Themudo, “Negócios e crédito: com- prensa de J. J. A. Silva, 1855; VICENTE, Gil,
plexidade e flexibilidade das práticas cre- Auto da Barca do Inferno.
ditícias (século xv)”, Análise Social, vol. xxxi,
António Castro Henriques
n.os  136­‑137, 1996, pp. 683-709; CARDO-
SO, José (org.), O IV Concílio Provincial Braca­
rense e D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Braga,
Associação de Pais e Amigos do Cidadão De-
ficiente Mental, 1994; CORDEIRO, Joaquim
António da Silva, A Crise em Seus Aspectos Mo­
rais, 2.ª ed., Lisboa, Cosmos, 1999; CUNHA,
Cristina, e COSTA, Paula Pinto (orgs.), Trás­
‑os-Montes Medieval e Moderno. Transcrição de
Fontes Documentais, Bragança, Arquivo Distri-
tal de Bragança, 2004; FONSECA, Fernan-
do Taveira da, “Usura: doutrinas e práticas:
uma síntese”, Biblos, vol. x, 2012, pp. 76­‑104;
GARCIA, Antonio Garcia y (org.), Synodicon
Hispanum. II. Portugal, Madrid, Biblioteca de

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Antiutilitarismo 1909

Antiutilitarismo torna incomensuráveis –, a partir do qual


seriam julgadas as vantagens preferíveis
de cada bem; assim sendo, e uma vez que
tal avaliação teria de ser prévia à ação e
condição para ela, uma vez mais, o sujeito
moral fica impossibilitado de tomar uma
decisão quanto ao que deve fazer.

O utilitarismo é a corrente doutrinal


representada por autores como
Bentham, Stuart Mill e Spencer, que tive-
Outra crítica apontada ao utilitarismo
é a ideia de que a noção de bem e de mal
se dilui na exterioridade das ações, uma
ram um forte domínio em Inglaterra nos vez que estas só podem ser avaliadas pelas
sécs. xviii e xix. Este utilitarismo teve suas consequências. Desse modo, torna­
como precursores Gassendi, d’Holbach, ‑se possível que ações geralmente consi-
Helvetius, Hobbes e Locke, entre outros, deradas condenáveis (como o assassínio
sendo Sidgwick considerado o último de um inocente e a violação de crianças,
autor utilitarista. Todos eles formularam e.g.) sejam consideradas boas por um juí-
uma ética normativa segundo a qual uma zo utilitarista, se delas for afirmado que
ação é moralmente correta se promover produzem bem-estar e felicidade para o
a felicidade e moralmente condenável se maior número. Estas ações tornar-se-iam
originar a infelicidade. O fim último de assim, não apenas aceitáveis do ponto de
uma ação é sempre conseguir atingir o vista ético, mas até obrigatórias.
máximo do bem-estar para um máximo Já no domínio da aplicação social e po-
de indivíduos. O utilitarismo define o lítica desta doutrina, os antitutilitaristas
conceito de utilidade em função da pro- argumentam que ela torna impossível,
moção de mais ou menos bem-estar na e.g., a defesa das minorias, uma vez que
sociedade; ou seja, uma ação não é avalia- o critério de satisfação do maior núme-
da pelas suas qualidades intrínsecas, mas ro de pessoas permite anular os direitos
apenas pelos efeitos que tem sobre ou- dos grupos mais pequenos da sociedade
tros. Este critério é aplicado às decisões quando estes põem em causa o bem-estar
políticas, económicas e sociais. dos outros membros da mesma socieda-
O antiutilitarismo surge como crítica de. Aplicando-se a doutrina utilitarista,
ao utilitarismo, e recorre a vários argu- deixa portanto de haver direitos inalie-
mentos: por um lado, a ideia de que um náveis de indivíduos ou grupos – que po-
sujeito moral não consegue prever nem dem ser eliminados, se tal contribuir para
avaliar com objetividade o grau de bem­ a felicidade da maioria – e toda a discus-
‑estar alcançado ou de felicidade propor- são se centra na contagem dos votos.
cionada com a ação que vai praticar, o A cultura portuguesa seria forte e de-
que significa que lhe é impossível julgar cisivamente influenciada por estas ideias
se uma ação é boa ou má, e portanto fica durante o período liberal, substituindo
paralisado e incapaz de agir. um antiutilitarismo monárquico por um
Por outro lado, argumentam os antiu- utilitarismo liberal. O pensamento liberal
tilitaristas que é igualmente impossível português, na linha de Jeremy Bentham,
encontrar um critério que permita defi- viria a defender a propriedade e a iniciati-
nir a relação entre os múltiplos prazeres va privada na economia, e a autorregula-
e as variadas ideias de felicidade dos se- ção económica através do mercado, com-
res humanos – cuja heterogeneidade os batendo o intervencionismo do Estado

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1910 Antiutopismo

em todos os domínios e fomentando a


iniciativa individual geradora do desen-
Antiutopismo
volvimento da riqueza para todos. Estas
teses são a aplicação à economia dos prin-
cípios fundamentais do utilitarismo social
de Jeremy Bentham.
John Stuart Mill também seria lido
pelos intelectuais portugueses que de-
fendiam que a sociedade deve procurar
promover as melhores oportunidades de
A ntiutopia é o processo discursivo ba-
seado numa ficção cujo valor repre-
senta a antítese da utopia ou, por outras
desenvolvimento pessoal e social para palavras, uma utopia negativa.
todos, ao mesmo tempo que só deve in- Etimologicamente, o vocábulo “utopia”
tervir quando os indivíduos não forem ca- [do grego: “ou” (não) + “topos” (lugar)]
pazes de promover o bem-estar individual refere-se a um lugar imaginário demasia-
e social através de uma educação para os do bom para ser praticável, “uma socieda-
valores. Na cultura portuguesa, ao longo de ideal, fundamentada em leis justas e
da história, o utilitarismo e o antiutilita- instituições comprometidas com o bem­
rismo vão-se alternando, consoante uma ‑estar da comunidade” (HOUAISS, 2003).
maior ou menor liberdade/autoridade Como esse mundo não existe, a utopia
estatal. mais não é que um não lugar. Como sua
antítese, a antiutopia refere-se igualmen-
te a um lugar imaginário, um não lugar
demasiado mau para ser praticável, uma
sociedade em que não é possível um fim
Bibliog.: AMARAL, Diogo Freitas do, História feliz, permeada por um clima inteiramen-
das Ideias Políticas, Lisboa, ed. do Autor, s.d.; te pessimista em que não há as mínimas
BOUCHE, Jean-François, “De l’utilité dans condições para a afirmação pessoal do in-
la révolution”, Revue du Mauss, n.º 8, 1990, divíduo, um lugar ou uma sociedade ima-
pp. 142-162; CAILLÉ, A., “Le juste, l’utile et ginários, caracterizados pela mais absolu-
l’agréable: l’utilitarism dans la Republique de ta miséria humana e aberrante opressão.
Platon”, Revue du Mauss, n.º 6, 1990, pp. 69­
A utopia original, a sociedade perfeita
‑96; Id., “Esquise d’une critique de l’économie
de la pratique”, Cahiers du Lasa, n.os 8-9, 1992,
onde tudo estava certo, foi imaginada, ao
pp. 103-214; CARVALHO, Paulo Archer de, e longo dos tempos, por variados filósofos,
CATROGA, Fernando, Sociedade e Cultura Por­ com especial relevo para Platão com os
tuguesas, Lisboa, Universidade Aberta, 1994; seus diálogos sobre a Atlântida. Mas fo-
DOMENECH, Jacques, L’Étique des Lumières, ram as chamadas utopias científicas do
Paris, Vrin, 1988; MILL, John Stuart, Utilitaria­ séc. xvii que lhe deram projeção e consa-
nism, on Liberty, Considerations on Representative graram o tema no pensamento moderno.
Government, London, Everyman, 1993; PARIJS,
Neste sentido, foi Thomas More (1478­
Philippe van, Qu’Est-Ce Qu’Une Société Juste?,
Paris, Seuil, 2007; RUSS, Jaqueline, A Aventura ‑1535) quem melhor consagrou o seu
do Pensamento Europeu. Uma História das Ideias discurso. Fê-lo no seu tratado De Optimo
Ocidentais, Lisboa, Terramar, 1997; TAVARES, Rei Publicae Statu, deque Nova Insula Uto-
Maria José Ferro, Sociedade e Cultura Portu­ pia, Libellus vere Aureua, nec Aureus, ne Mi-
guesas, 2 vols., Lisboa, Universidade Aberta, nus Salutaris Quam Festivus, primeiramen-
1990. te publicado em latim, em Lovaina, em
Isabel Baltazar 1516, e traduzido para inglês por Raphe

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Antiutopismo 1911

adequada formatação. O discurso da uto-


pia é o discurso dos mitos da felicidade
eterna, do paraíso terreal, da terra das
maravilhas. A ideia jacente e o grande
objetivo deste discurso seria transformar
o ser humano e a sociedade, no sentido
da sua plena realização. Esta ideia criou
maravilhas, mas não passou incólume a
um grande número de horrores, perce-
bidos como efeitos indissociáveis do pro-
gresso proposto – e estes rapidamente
deram origem a um discurso de sentido
contrário.
Com efeito, já em 1600 o bispo inglês
Joseph Hall publicava o seu Mundus Alter
et Idem, sive Terra Australis Antehac semper
Incognita, obra na qual descrevia as terras
de Crapulia, Vivagina, Moronia e Laver-
nia, onde reinava o caos, a desordem, a
anarquia e a tirania sob o domínio de ho-
mens horrorosos, glutões, tolos e ladrões,
Primeira página de Utopia (1516),
em que o viver seria o oposto do éden
de Thomas More.
bíblico.
Em 1868, num discurso no parlamento
Robinson, que o tornou público no seu britânico, John Stuart Mill, referindo-se
país em 1551. Nele descreve uma ilha aos lugares de caos, anarquia e tirania,
imaginada, cuja capital era Amarautum, considerava demasiado elogioso chamar­
situada a cerca de 15.000 passos do conti- ‑lhes utópicos. Em seu entender, esses lu-
nente, nas margens do rio Anyder, onde gares deveriam ser chamados distópicos
a maré se fazia sentir para além de várias (dis-, do gr. antigo: “dificuldade; dor”) ou
milhas da cidade e as cidades, os serviços caco-tópicos (caco-, do gr. antigo: “mau;
públicos, a produção, o trânsito, a eco- ruim”). Se o que é comummente cha-
nomia, o sistema jurídico, a política e a mado utopia é demasiado bom para ser
religião eram os de uma sociedade ideal. praticável, os lugares da antiutopia ou da
O discurso sobre a utopia dominou a distopia (de acordo com a terminologia
cultura do Ocidente durante toda a Ida- proposta, em 1952, por G. Negley e J. M.
de Moderna, na ciência, na moral, na re- Patrick) seriam de igual modo demasiado
ligião, na arte e, na sequência de Thomas ruins para terem qualquer viabilidade.
More, a Cidade do Sol (1602), de Tomás Usando qualquer uma destas designa-
Campanella, a Fama Fraternitatis (1614), ções, a literatura interessada e mesmo
dos rosas-cruzes, a Idade do Ouro Restaurada centrada na análise destes lugares de
(1616), de Ben Jonson, a Atlanta Fugiens caos, anarquia e tirania ganhou parti-
(1618), de Michael Maier, a Cidade Cristã cular interesse no séc. xx e começos do
(1619), de J. Valentim Andreae, e a Nova séc. xxi. No seu conteúdo moral, proje-
Atlântida (1626), de Francis Bacon, entre ta o modo como os dilemas morais deste
outros tratados do género, deram-lhe a tempo prospetam o futuro da sociedade.

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1912 Antiutopismo

É o discurso da antiutopia, cuja cultura é


o antiutopismo.
Como representação ou descrição de
uma organização social futura caracteri-
zada por condições de vida insuportáveis,
com o objetivo de criticar tendências da
sociedade coeva ou parodiar utopias, aler-
tando para os seus perigos, o discurso do
antiutopismo, ou da utopia no negativo,
assumiria um papel significativo em parti-
cular na obra News from nowhere (1890), de
William Morris, e, no decorrer do séc. xx,
nas obras de alguns romancistas, nomea-
damente em Nós (1924), de Y. I. Zamya-
tin, em Brave New World (1932) e Ape
and Essence (1948), de Aldoux Huxley, e
sobretudo nas obras de George Orwell,
Animal Farm (1945) e 1984 (1949), bem John Stuart Mill (1816-1873).
como em One (1953), de David Karp, e
em Wanting Seed (1963) e Clorkwork Oran-
ge (1965), de Anthony Burgess. só não parece ser a salvação do homem
Trata-se de um discurso pessimista, que e da sociedade, como contém em si a
antecipa e descreve sociedades a que se semente de novos e grandes problemas
chegou pela ação ou falta de ação huma- para os quais não parece ter a solução,
na, por mau comportamento ou por igno- mostrando-se antes como parte deles.
rância, em que não aparecem janelas de O antiutopismo é, pois, o discurso em
esperança; de um discurso muito crítico que o mundo é visionado e descrito como
de um poder mantido por elites que pou- um lugar indiscutivelmente pior do que
ca ou nenhuma atenção dão às carências aquele em que se vive, um lugar aterra-
e privações do indivíduo, em sociedade dor e arrepiante. Assim considerada, a li-
em que a violência é generalizada e bana- teratura antiutópica tornou-se num géne-
lizada; de um discurso encandeado pelo ro literário em que o escritor exprime o
totalitarismo, pelo autoritarismo, em que negativo do tempo em que se coloca. Na
a tecnologia é usada como ferramenta sua narração, há sempre alguém – uma
de controlo opressivo da sociedade, seja organização ou o próprio Estado – que
pelo Estado, seja pelas instituições. tudo controla. As regras ditadas são rígi-
Na sua origem está a desilusão trazi- das e, alegadamente criadas para o bem
da pelos efeitos negativos da Revolução comum, apenas favorecem uma minoria,
Industrial, evidenciados na contínua ex- segregando a maioria.
ploração e no consequente empobreci- O discurso da antiutopia pretende as-
mento das classes mais baixas, que nem o sim exprimir a crise da esperança histó-
sistema capitalista nem o sistema marxis- rica, proclamando a insensatez da luta
ta foram capazes de evitar. A crise social revolucionária que visa eliminar o mal
gerada por um e outro mostrou que o do seio da vida em sociedade, conside-
desenvolvimento tecnológico para o qual rando que ele não é de todo eliminável;
sempre apontou o discurso da utopia não nem o desenvolvimento da ciência, nem

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Antivacinismo 1913

o desenvolvimento da técnica o consegui-


rão fazer algum dia e, em vez de contri-
Antivacinismo
buírem decisivamente para a resolução
dos problemas globais e para a criação de
um regime social justo, ciência e técnica
fomentarão, segundo o discurso da antiu-
topia, a crescente escravidão do homem e
a hostilidade face à cultura.
Em 1923, no seu ensaio “O sentido his-
tórico da teoria de Einstein”, Ortega y
O s discursos que colocam em causa a
legitimidade e os efeitos da vacina-
ção adquiriram, no começo do séc. xxi,
Gasset relacionou o antiutopismo com a uma visibilidade assinalável. Um artigo de
exacerbação do racionalismo e da menta- Andrew Wakefield, publicado em 1998 na
lidade utópica, considerando ter sido esta revista The Lancet, reacenderia um deba-
mentalidade que, desde Platão, na Grécia te, supostamente resolvido, em torno des-
Antiga, arrastou a cultura do mundo oci- tas questões, estabelecendo uma alegada
dental para uma apreciação frívola dos relação entre o autismo e a vacina trípli-
fatores elementares da vida. Incapazes ce, preventiva do sarampo, da rubéola e
de aceitar alegremente o nosso destino, da papeira. Conclusões que, motivando
deixamo-nos arrastar por interpretações inquietações coletivas de sempre e am-
caprichosas e derrotistas, com que pre- pliadas pelos media um pouco por todo o
tendemos suplantar os nossos mais pro- mundo, estiveram na base de um movi-
fundos desejos. mento em prol da liberdade de escolha
nestas matérias que foi adquirindo ex-
pressão na cultura do seu tempo, e que as
acusações de fraude e de manipulação de
dados, endereçadas ao autor, não pare-
cem abalar. Mas o que tornou a vacinação
Bibliog.: GASSET, Ortega y, “O sentido his- um objecto particularmente inquietante?
tórico da teoria de Einstein”, in GASSET, E o que nos ensina a história sobre os fun-
Ortega y, Obras Completas, t. 3, Madrid, damentos deste debate?
Alianza, 1983, pp. 232-242; HOUAISS, An-
Uma leitura atenta da literatura médica
tônio et al. (dirs.), Dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa, Lisboa, Temas e Debates, 2003; do séc. xviii permite constatar que a afir-
HUXLEY, Aldous, O Macaco e a Essência, Lisboa, mação histórica dos movimentos de ino-
Livros do Brasil, 1965; Id., O Admirável Mundo culação, primeiro, e de vacinação, depois,
Novo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1977; JACO- não se fez sem dificuldade. E não foram
BY, Russell, Imagem Imperfeita: Pensamento Utó­ razões de natureza exclusivamente médi-
pico para Uma Época Antiutópica, Rio de Janeiro, ca que estiveram no cerne da desconfian-
Civilização Brasileira, 2007; KROTZ, Esteban,
ça de médicos e populações em relação a
Utopía, México, Universidade Autónoma Me-
tropolitana Iztapalapa, 1988; MORUS, Tho- estas práticas preventivas. Na sua Ilustra-
mas, De Optimo Rei Publicae Statu, deque Nova ção Médica (1761), Duarte Rebelo de Sal-
Insula Utopia, Libellus vere Aureua, nec Aureus, danha ilustra bem esta apreensão perante
ne Minus Salutaris Quam Festivus, Louvain, s.n., a inoculação das bexigas, isto é, a intro-
1516; ORWELL, George, O Triunfo dos Porcos, dução da matéria purulenta, extraída de
Lisboa, Europa­‑América,1990; Id., 1984, Lis- um indivíduo doente, num corpo sau-
boa, Antígona, 1991.
dável com intuito profilático. Para este
António M. Amorim da Costa facultativo, a incerteza médica quanto

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1914 Antivacinismo

à eficácia desta prática era reforçada pela cional. De acordo com estes pressupos-
sua incompatibilidade com o direito na- tos, seria criado na déc. de 1790 o Hospi-
tural e divino, já que estava em causa a tal da Inoculação das Bexigas, instituição
sujeição do corpo a “uma doença certa e sediada nas imediações de Arroios, em
presente, para evitar um dano incerto, e Lisboa, e financiada pelo erário públi-
futuro” (SALDANHA, 1761, I, 356). “Pri- co, onde concorreriam crianças de todo
mum non nocere [antes de mais, não fa- o país, tendo em vista a inoculação e o
zer mal]” – eis o princípio que sintetiza acompanhamento da evolução de todo
estas preocupações, e que importava não o processo. No caso português, tal es-
subverter. paço hospitalar deverá ter contribuído
As palavras do autor de Ilustração Mé- para que a inoculação se fosse firmando,
dica caracterizam bem o quadro mental entre a classe médica, como a estratégia
que tornava a inoculação uma prática ao mais eficaz para debelar uma doença res-
mesmo tempo desafiadora e inquietan- ponsável pela dizimação das populações
te. Talvez por isso se justifique a fraca e pela deformação crónica dos corpos.
adesão a este procedimento num perío- Legitimada pelas autoridades sanitá-
do histórico em que a varíola constituía, rias, a profilaxia da varíola estender-se-ia
desde há muito, um mal fortemente um pouco por todo o país, mesmo após
arreigado e endémico. Em meados do a extinção, provavelmente em 1804, do
séc. xviii, na sua Balança Intelectual, o Hospital da Inoculação, onde é aliás de
poeta e polemista Francisco de Pina e admitir que se tenha realizado a vacina-
de Mel teria mesmo oportunidade de ção, substituto daquele método e feita a
proceder a uma breve descrição das te- partir da matéria morbosa do gado va-
rapêuticas mais difundidas para fazer cum. Nas primeiras décadas do séc. xix,
face às bexigas, sem referir a inoculação, vários médicos e filantropos empreen-
talvez por se tratar de um método pro- deram esforços para a difusão da vaci-
filático. Como sublinhava este homem nação. Tais esforços filantrópicos, que
de letras, “uns sangram, outros proí- preparavam caminho para a Instituição
bem a sangria; uns pretendem dar mais Vacínica, fundada em Portugal quase
agilidade ao sangue, outros a hebetam; uma década depois, em 1812, não dei-
há quem promova a transpiração, e há xaram de encontrar nos poderes locais
quem a embarace. Já houve médico de e nas populações importantes obstáculos
grande nome que mandava meter os be- que importa assinalar. Era o caso de um
xigosos em água fria, outro em azeite”, médico de Abrantes, um exemplo entre
e por fim rematava: “em tanta confusão outros que, em abril de 1804, lograva
de opiniões, quem descobrirá o acerto?” “principiar pelos enjeitados a pôr em
(MELO, 1752, 173-174). prática a inoculação da vacina, como
Em finais do séc. xviii, os poderes pú- substituto e preservativo das bexigas”,
blicos não foram indiferentes a estas dú- mas cujas diligências eram impedidas
vidas e incertezas. A Junta do Protome- pelo “juiz de fora da mesma vila [que]
dicato e a Intendência-geral da Polícia lho não quisera permitir” (ANTT, Inten-
articularam então esforços para, em pri- dência-Geral da Polícia, liv. 7, fl. 277v.).
meiro lugar, determinar cabalmente a Nas primeiras décadas do séc. xix, a
eficácia da prática de inoculação na pre- vacinação é ainda um tópico controver-
venção da varíola e, depois, para alargar so e as incertezas do passado não se en-
o procedimento a todo o território na- contram totalmente dissipadas. Razões

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Antivacinismo 1915

que justificam a proliferação de alguns contra uma ideia, que considera “tão ex-
papéis e opúsculos arguindo os prós e travagante”, de “livrar a humanidade de
os contras da vacina, que conduziram uma moléstia […] por meio de uma ma-
ao pedido de uma consulta pública ao téria morbosa, originada em um animal
corpo académico da Faculdade de Me- de uma natureza tão diferente, a vaca”
dicina da Univ. de Coimbra, à Junta do (CARNEIRO, 1808, VIII). Argumentos
Protomedicato e aos médicos e cirur- que acentuavam a desconfiança e resis-
giões mais reputados e da melhor nota tência das populações em relação a tais
(como então se dizia) da cidade de Lis- procedimentos.
boa, por parte da Intendência­‑Geral da Nas inúmeras descrições médicas pu-
Polícia. A necessidade de um parecer blicadas no Jornal de Coimbra nas primei-
acreditado que esclarecesse a eficácia ras décadas do séc. xix, podemos ler al-
da vacina decorria, em primeiro lugar, guns lamentos em relação à reticência
da proliferação de iniciativas no senti- dos pais de família perante a vacinação
do de difundir a profilaxia da varíola que médicos e cirurgiões procuravam
um pouco por todo o país e, em segun- introduzir nas aldeias e vilas do reino.
do, da intensificação das resistências Em 1818, Manuel Albano de Morais e
dos poderes locais e das populações, António Manuel Garcia, médico e cirur-
que obrigavam frequentemente as au- gião do partido da Câmara de Torre de
toridades policiais a intervir e mediar Moncorvo, asseguravam mesmo que os
os conflitos, um aspeto que não se al- seus esforços na sensibilização da popu-
terará substancialmente com o avanço lação local para os efeitos benéficos da
na centúria de Oitocentos. Oposição vacina eram, a todo o momento, subver-
reiterada, que aumentava à medida tidos por um sem número de “pessoas
que ia havendo notícia, como sucedeu idiotas com seus impostores e falsos
em Chaves em agosto de 1818, de que discursos, […] causa de os habitantes
“têm morrido de bexigas algumas crian- desta vila não gozarem o bem que lhes
ças que tinham sido vacinadas” (Ibid., podia provir deste benéfico remédio”
Intendência-Geral da Polícia, liv. 17, (“Conta de Manuel…”, Jornal de Coim-
fls. 281v.-282). bra, 1818, 29).
Não obstante a sentença favorável de No mesmo relatório, o médico e o ci-
um número cada vez maior de médicos rurgião de Torre de Moncorvo não dei-
e cirurgiões portugueses, tais circunstân- xavam de sublinhar que alguns casos de
cias sociais impediam o consenso em tor- morte por varíola na sequência de uma
no da vacinação e se, nas primeiras dé- vacinação mal conduzida e da má qua-
cadas de Oitocentos, estamos longe dos lidade geral da matéria vacínica haviam
argumentos extraídos do direito civil e mesmo estado na base desta resistência
divino tematizados por Duarte Rebelo popular, que havia sido reforçada pela
de Saldanha no século anterior, a ques- circulação, entre o povo, do opúsculo de
tão da eficácia do método persiste como Heliodoro Jacinto Carneiro que correu
ponto de discórdia entre partidários e “até por pessoas que não sabem ler, mas
opositores do novo método profilático. a quem a vista das 4 estampas horrori-
Eram aliás estas as razões que levavam zou, e convenceu prontamente; e fez a
Heliodoro Jacinto Carneiro, nas suas dita obra a sepultura de um ente tão útil,
Reflexões e Observações sobre a Prática da e tão proveitoso à humanidade!” (Ibid.,
Inoculação da Vacina (1808), a afirmar-se 29-30) (figs. seguintes).

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1916 Antivacinismo

nica com que haviam sido inoculados


os indivíduos. Neste particular, a cultu-
ra visual acentuava a angústia popular
perante tais procedimentos clínicos,
dando forma e conteúdo tenebrosos aos
rumores que circulavam sobre casos de
vacinações ineficazes ou mortais, e cons-
tituindo um obstáculo assinalável à pro-
pagação de tais procedimentos. Perante
estas resistências populares, os faculta-
tivos foram reclamando a intervenção
dos poderes públicos e a promulgação
de medidas coativas, única estratégia
considerada adequada para debelar este
clima de oposição. Num exemplo entre
vários, um médico de Espadaneira, em
Coimbra, numa exposição endereçada
às Cortes Gerais, Extraordinárias e Cons-
tituintes salientava a urgência de insistir
no alargamento da vacinação a todo o
território nacional e, para tal, solicita-
va enquadramento legal que conferisse
“aos corregedores das comarcas o poder
de compelir os pais […] com alguma
pena contra os remissos” (OLIVEIRA,
1992, 54).
A solução disciplinar surgia como úl-
timo reduto de um moroso e difícil pro-
cesso de sensibilização das populações
para os benefícios da vacinação. Estraté-
gia tanto mais pertinente quanto os nú-
Estampas em prol do antivacinismo. meros disponibilizados pela Instituição
Vacínica de Lisboa nos permitem cons-
tatar que, mesmo na capital do reino,
Ampliando a crença na ineficácia da as resistências populares dificultavam a
vacina e exacerbando a dimensão emo- averiguação da real eficácia da vacina.
tiva do que estava em causa, as estampas Para meados da déc. de 1830, informa
veiculadas pelo opúsculo de Heliodoro o Jornal da Sociedade das Ciências Médi-
Jacinto Carneiro ilustravam dois exem- cas de que, em 636 casos de indivíduos
plos de úlceras que teriam sobrevindo vacinados na cidade de Lisboa, haviam
às crianças vacinadas, estabelecendo resultado 187 casos de vacina legítima e
um nexo causal entre a morfologia dos consequente, 83 de vacina nula, 2 casos
tumores morbosos que afetavam os se- de vacinação duvidosa, 1 caso falso e,
res humanos e as pústulas e feridas que por último, 363 casos cujo desfecho não
acometiam o gado bovino e suíno, de era possível averiguar por falta de com-
acordo com a origem da matéria vací- parência das crianças vacinadas perante

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Antivacinismo 1917

a instituição. Números que, por si só, Bibliog.: manuscrita: ANTT, Intendência-Ge-


ilustram as dificuldades na condução de ral da Polícia, livs. 5, 6, 7, 17, Livros de Registo
todo o projeto de vacinação. E se, à me- de Secretarias – Contas para o Governo; impres-
sa: Anais do Conselho de Saúde Pública do Reino,
dida que nos aproximamos de meados
Lisboa, Tipografia de R. D. Costa, 1838-42;
do séc. xix, se intensifica a campanha
CARNEIRO, Heliodoro Jacinto, Reflexões e Ob­
em prol da vacinação e do seu alarga- servações sobre a Prática da Inoculação da Vacina,
mento por parte da classe médica e ci- e as Suas Funestas Consequências, Feitas em Ingla­
rúrgica (entre os doutores do corpo, os terra, Londres, Impressão de Mr. Cox, filho e
detratores da vacina serão cada vez mais Baylis, 1808; CARVALHO, Augusto da Silva,
raros), a desconfiança das populações “Pina Manique: ditador sanitário”, Arquivo de
perante tal método permanecerá por Medicina Legal, 1939, sep.; “Conta de Manuel
Albano de Morais, e António Manuel Garcia,
mais algumas décadas. Repugnância
médico, e cirurgião dos partidos da Camara
invencível das populações (como então de Vila da Torre de Moncorvo”, Jornal de Coim­
se dizia) que, segundo relatam os Anais bra, t. 12, 1818, pp. 29-30; “Conta da vaci-
do Conselho de Saúde Pública, levou este nação praticada na Instituição Vacínica de
Conselho a idear propor ao governo Lisboa durante o ano de 1836, pelo Sr. Paulo
um plano de vacinação que cobria todo Patrício do Couto, cirurgião da mesma insti-
o território nacional e que previa, não tuição”, Jornal da Sociedade das Ciências Médicas,
t. v, jan., 1.º sem. 1837, pp. 93-96; MELO,
só a vacinação obrigatória e compulsiva
Francisco de Pina e de, Balança Intelectual em
de todos os indivíduos, mesmo aque- que Se Pesava o Merecimento do Verdadeiro Método
les que padecessem varíola, mas tam- de Estudar, Lisboa, Oficina de Manuel da Sil-
bém a revacinação 10 ou 12 anos após va, 1752; OLIVEIRA, Luísa Tiago de, A Saúde
a primeira inoculação. Estas estratégias Pública no Vintismo. Estudos e Documentos, Lis-
eram consideradas pelas autoridades sa- boa, Sá da Costa, 1992; SALDANHA, Duarte
nitárias as mais adequadas para dissipar Rebelo, Ilustração Medica, Ético-Política, Históri­
as incertezas sobre a eficácia de um mé- co-Sistemática, Céptico-Eclética, Físico-Analítica, e
Teórico-Prática, ou Reflexão Critica ás Considerações
todo que, dadas as dificuldades gerais
Medicas sobre o Método de Conhecer, Curar, e Pre­
no acompanhamento da evolução clíni- servar as Epidemias, ou Febres Malignas, Podres,
ca dos vacinados, eram impossíveis de Pestilenciais, Contagiosas, 2 vols., Lisboa, Ofici-
averiguar cabalmente. Dúvidas acentua- na Silviana, 1761.
das por outras questões médicas, como
Bruno Barreiros
a do efeito temporário ou perpétuo da
vacinação, que permaneciam por esta-
belecer. No seu conjunto, estes aspetos
permitem-nos circunstanciar as dificul-
dades em impor a vacina às populações.
Ainda em meados de Oitocentos, a es-
colha do povo para o tratamento da
varíola podia recair sobre as mezinhas
oriundas das medicina popular, como
sucedia aliás em Viana do Castelo, onde
um médico constatava mesmo que “a
maior parte da gente do povo dá sem-
pre o vinho, dizendo que ele faz sair as
bexigas” (Anais do Conselho de Saúde Pú-
blica, 1839, 103-104).

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1918 Antivaticanismo

Antivaticanismo severo para com o centro geográfico do


papado, onde reinava a burocracia ecle-
siástica e donde emanaram condenações
implacáveis de importantes conquistas
da civilização moderna. Ao considerar-se
prisioneiro no Vaticano, Pio IX assumiu
uma posição que só viria a terminar cer-

E nquanto sede dos sumos pontífi-


ces, sucessores do apóstolo Pedro,
e centro administrativo do catolicismo,
ca de 60 anos mais tarde. É interessante
notar que o acordo de Latrão, datado de
11 de fevereiro de 1929, que pôs termo
o Vaticano sempre foi atração fértil da à chamada Questão Romana, se deveu
curiosidade e alimento inesgotável do ao empenho do fascista Benito Mussoli-
imaginário tanto religioso como antirre- ni. A fórmula que ficou consagrada para
ligioso. Com os seus inúmeros segredos e designar a situação política da Santa Sé a
mistérios, a que acrescem, por vezes, ca- partir desse acordo foi “Città del Vatica-
sos e escândalos, a atmosfera que envol- no”; cunhou-a Mussolini, quando muitos,
ve os dicastérios romanos nunca primou no interior da cúria papal, mostravam
pela transparência. Da complexa teia de preferência pela designação de “Roma
funções e organismos que constituem o vaticana” (LECOMTE, 2011, 47). Mas as
Vaticano deve, porém, distinguir-se tanto tréguas do anticlerical Mussolini com a
o ministério papal como o conjunto da Cidade do Vaticano não duraram mais
Igreja Católica romana. Ainda que fre- de três meses. No dia 13 de maio desse
quentemente associadas a tudo o que se mesmo ano, perante o Parlamento, já ele
passa dentro dos seus muros, nem a ins- desferia um ataque violentíssimo contra
tituição papal nem o catolicismo se con- a Igreja e alegava que do poder temporal
fundem com a administração da Cidade dos papas apenas tinha deixado a porção
do Vaticano. de terra necessária para os enterrar de
Críticos persistentes de todos os pode- vez. E pouco depois convidava acintosa-
res absolutos, os filósofos iluministas, no- mente o papa a deixar Roma e a regressar
meadamente D’Holbach, Diderot, Hel- a Avinhão.
vétius e Pierre Claude Charles Daunou, O antivaticanismo tem sido alimentado
autor do Essai sur la Puissance Temporelle por vários casos, logo repercutidos com
des Papes et sur l’Abus Qu’Ils Ont Fait de Leur grande brado pelos inimigos da Igreja,
Ministère Spirituel (1799), fizeram do Vati- que deixam perplexos e sem conforto
cano, capital da suprema autoridade ca- os próprios fiéis. Bastará lembrar as ma-
tólica, apostólica, romana, alvo habitual nobras táticas desenvolvidas a partir das
do combate contra os poderes tirânicos e cúpulas do Vaticano tendo em vista orien-
as teocracias. Com outras motivações mas tar os trabalhos que haviam de conduzir
equivalente repúdio, os políticos regalis- à condenação por Paulo VI das práticas
tas e galicanos mantinham posições de contracetivas, contrariando a tendência
distanciamento e aversão relativamente que se foi afirmando ao longo de cinco
às pretensões, às iniciativas e aos atos de anos de estudo e de debates por teólogos,
poder emanados do Vaticano. Também médicos e casais. No final de julho de
o longo processo de unificação italiana, 1968, a encíclica Humanae Vitae causava a
que pôs fim ao poder temporal dos papas, maior deceção no mundo católico junto
promoveu um olhar hostil especialmente de quantos com boas razões esperavam

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Antivaticanismo 1919

que a contraceção fosse aprovada ou, pelo mente cansado e desejando passar o tes-
menos, não hostilizada pelo documento temunho a quem se sentisse com energia
do magistério papal. Foi também ampla- para enfrentar a situação alarmante que
mente explorado pela opinião pública o se vivia no Vaticano, Bento XVI decidiu
estranhíssimo caso da morte inesperada resignar em fevereiro de 2013.
do Papa João Paulo I, anunciada no dia O antivaticanismo traduz uma visão
29 de setembro de 1978, notícia logo crítica alimentada frequentemente por
acompanhada de toda a espécie de sus- preconceitos a que o secretismo da insti-
peitas de conspiração envolvendo os seus tuição romana, as intrigas palacianas e as
colaboradores mais próximos. A credibi- suspeições conferem enorme vigor. Con-
lidade do Vaticano sofreu igualmente for- ta o teólogo Hans Küng que o superior
te abalo em 1982, quando o Banco Am- de uma ordem religiosa, no momento em
brosiano abriu falência, em virtude das que ambos entravam por uma das portas
ligações perigosas com ele mantidas pelo do Vaticano, lhe confidenciou: “Agora,
Istituto per le Opere di Religione (IOR) benzer-nos-emos para que Deus nos pro-
presidido por Mons. Paulo Marcinkus. teja das más tentações, enquanto estiver-
As irregularidades do IOR continuaram mos lá dentro” (BLASCHKE, 2014, 41).
a levantar suspeitas sobre operações fi- Na verdade, se o antivaticanismo expri-
nanceiras que conotavam esta instituição me sempre uma atitude de desconfiança,
com procedimentos próprios de paraísos desprezo e hostilidade de quem olha de
fiscais. O caso levou, em 2010, a Justiça fora o que se passa na Cidade do Vatica-
italiana a investigar o IOR por suspeita de no, essa atitude tem sido, vezes sem con-
violação das normas do sistema financei- ta, alimentada por comportamentos an-
ro contra lavagem de dinheiro. O Papa tievangélicos e por tenebrosos escândalos
Bento  XVI viu-se mesmo obrigado a ex- praticadas dentro de portas.
pulsar o respetivo presidente, Ettore
Gotti Tedeschi, membro do Opus Dei, Bibliog.: BLASCHKE, Jorge, Francisco, os Jesuítas
organização que, sob a proteção do Papa e os Pecados da Igreja, Lisboa, Clube do Autor,
João Paulo  II, havia alcançado posições 2014; COUTO, Sérgio Pereira, Os Arquivos Se­
relevantes na administração do Vaticano. cretos do Vaticano, Barcarena, Marcador Edito-
ra, 2015; DAUNOU, Pierre Claude Charles,
As maquinações urdidas nos meios
Essai sur la Puissance Temporelle des Papes et sur
mais próximos de Bento  XVI, em que l’Abus Qu’Ils Ont Fait de Leur Ministère Spirituel,
o mordomo Paolo Gabriele traiu a con- s.l., Éditions Coda, 2007; I MILLENARI, O Va­
fiança do Papa, fotocopiando documen- ticano contra Cristo, Lisboa, Notícias, 2000; LE-
tos secretos e correspondência privada e COMTE, Bernard, Les Secrets du Vatican, Paris,
passando-os à comunicação social, revela- Perrin, 2011; POUPARD, Paul, O Vaticano Ac­
ram jogos de interesses, ambição de po- tual, Lisboa, Livros do Brasil, 1968.
der, corrupção, escândalos sexuais e até Luís Machado de Abreu
rumores de próximo atentado contra o
Papa. O caso, conhecido como Vatileaks,
inundou a opinião pública com revela-
ções repugnantes, que se juntaram aos
crimes de pedofilia praticados por ecle-
siásticos de vários países, amplamente di-
fundidos e comentados pelas trombetas
da comunicação social. Doente, notoria-

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1920 Antivegetarianismo

Antivegetarianismo o Buda, e Asoka, o imperador budista que


proibiu o sacrifício de animais.
Mas foi no Egito que, por volta de
3200 a.C., o vegetarianismo, adotado por
grupos religiosos, foi associado pela pri-
meira vez a um poder cármico que facili-
tava a reencarnação.

O regime vegetariano, que se abstém


da alimentação de carne, peixe e
derivados, é tão velho como a humani-
Com terrenos propícios à produção de
cereais e legumes, a China e o Japão an-
tigos (séc. III a.C.) cedo seguiram o re-
dade. O homem pré-histórico não era gime vegetariano, sendo as propriedades
predador, mas presa de outros animais. medicinais das ervas e o aproveitamento
A necessidade de escapar aos animais fe- dos produtos agrícolas para o fabrico de
rozes incentivou a capacidade intelectual roupas e utensílios ensinados por Fu Xi,
e a linguagem. Foi a descoberta do fogo o primeiro profeta-rei chinês. Lao Tzu
que originou o consumo da carne, mas o (c. 500 a.C.), autor do Tao Te Ching e fun-
crescimento do cérebro humano ocorreu dador histórico da religião mais antiga da
muito antes de esse consumo fazer parte China, também foi vegetariano, prática
regular da sua dieta alimentar. que os monges, seus discípulos, ainda
Como expressão cultural, o vegeta- seguem.
rianismo tem a sua origem na tradição Fundado no valor do trigo, da vinha e
indiana, na qual assume um significado da oliveira, o regime alimentar da Grécia
religioso, ligado à noção de pureza ou e da Roma antigas contrastava com o con-
não contaminação, em oposição ao con- sumo de carne, imagem de luxo, festa e
sumo de carne e seus derivados. Assim se privilégio social. Hesíodo, no poema Tra-
explica que Mahavira, fundador histórico balhos e Dias (vv. 116-119), relaciona a ida-
do jainismo, tenha sido um rigoroso ve- de de ouro com o vegetarianismo. O filó-
getariano, bem como Sidarta Gautama, sofo Pitágoras (c. 570-490 a.C.) também

Cenas de atividades agrícolas no Egito.

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Antivegetarianismo 1921

advogava tal regime com base na crença expressamente assumida por tal ou tal
na metempsicose ou reencarnação. Pla- autor e, não obstante, tem uma força assi-
tão identificou (cf. República e Leis) a car- nalável na vida cultural contemporânea.
ne com a luxúria, enquanto Aristóteles, Tal deve-se a que a atitude antivegetaria-
reconhecendo nos animais apenas o va- na corresponde ao senso comum e à mais
lor do instinto, sustentou que eles deviam comum ortodoxia médica. Seguidamen-
ser dominados (cf. As Partes dos Animais). te, vamos elencar alguns dos argumentos
Ovídio (cf. Metamorfoses) põe na boca de mais relevantes dos antivegetarianos.
Pitágoras a condenação da alimentação Os antivegetarianos são defensores do
carnívora, como fizeram os ciclopes. Por- regime omnívoro, sustentando diversos
fírio (c. 232-c. 304), filósofo neoplatónico argumentos contra a insuficiência dos
e discípulo de Plotino, escreveu uma Vida cereais e legumes no regime alimentar
de Pitágoras e um tratado a favor do vege- humano, quer em proteínas, quer em di-
tarianismo, com o título Da Abstinência do versas vitaminas.
Alimento Animal. A demitização do valor da soja, designa-
Na Idade Média, a carne era privilégio damente a geneticamente modificada, é
da classe senhorial, considerando a Igreja um dos principais cavalos de batalha nes-
que a abstinência do seu consumo era um sa argumentação. Com efeito, tais defen-
meio de evitar as tentações sensuais. sores relevam a deficiência da soja, seja
Grande parte dos humanistas do Re- em aminoácidos sulfurosos, como a me-
nascimento, redescobrindo o pitagoris- tionina e a cistina, seja em cálcio e vitami-
mo, condenava a crueldade para com os na D, necessários para a saúde dos ossos.
animais e incentivava o vegetarianismo, Por outro lado, afirmam que a vitamina
o mesmo sucedendo, no séc. xviii, com B12 (cobalina), que previne problemas
o Iluminismo, ao invés de Descartes, que cardíacos e é essencial para a manuten-
considerava os animais meros autómatos, ção do sistema nervoso e o metabolismo
não vendo, por isso, qualquer problema celular, não pode ser assimilada da soja
no consumo de carne. Apesar de conside- pelo corpo humano; pelo contrário, essa
rar que há uma finalidade imanente aos ingestão causa maior necessidade desse
vivos, Immanuel Kant, em Lições de Ética, composto vitamínico. A negação do valor
chamava a atenção para a inconsciência da soja como preventivo contra as doen-
dos animais, sendo eles meros meios ao ças cancerígenas e a osteoporose é outra
serviço do homem. faceta dessa argumentação; assim, defen-
A partir do séc. xix, surgem as asso- dem que as isoflavonas são agentes que
ciações de vegetarianismo, como a Ve- rompem o equilíbrio do sistema endócri-
getarian Society, fundada na Inglaterra no e podem estimular o crescimento das
em 1847, a qual reivindicou ter criado células cancerígenas. O elevado teor de
a própria palavra “vegetarian” (“vegeta- estrogénio na soja pode causar também o
riano”), do latim “vegetus”, que significa crescimento de tumores e o seu deficit no
“vivo”. A União Vegetariana Internacio- funcionamento da tiroide pode originar
nal foi fundada em Dresden, Alemanha, deficiência na menopausa. Reconhecem
em 1908, enquanto no Porto foi consti- nela a possibilidade de reduzir o coleste-
tuída a Sociedade Vegetariana de Portu- rol, mas negam a relação entre as doen-
gal em 1911. ças cardíacas e o aumento do colesterol.
O antivegetarianismo não constitui pro- Identificam a infertilidade nos animais
priamente uma corrente de pensamento com o consumo da soja e o crescimento

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1922 Antivieirismo

de cabelos em homens de meia­‑idade


com a redução da testosterona. Relacio-
Antivieirismo
nam também o consumo de tofu com a
doença de Alzheimer. Por último, denun-
ciam que a difusão da produção e comer-
cialização da soja toma o lugar dos produ-
tos tradicionais, originando lucros para as
multinacionais.
Em suma, os antivegetarianos defen-
dem que o cálcio exige o consumo de
O Padre António Vieira (1608-1697)
é hoje, com significativo consenso,
uma das figuras maiores da história lite-
leite e seus derivados e que o ferro é mais rária, política e religiosa de Portugal e
dificilmente absorvido das plantas do que do Brasil. Nos últimos 50 anos, o Jesuíta
dos animais. A dificuldade de absorção tem sido reconhecido internacionalmen-
da vitamina B12 diretamente dos vegetais te como escritor, pensador e homem de
é contraposta à da carne bovina, que de- ação, sobretudo em alguns meios de sa-
tém o valor mais elevado deste composto ber universitários dedicados ao estudo
vitamínico, cuja ausência ou deficiência da língua e da cultura portuguesas, com
causam anemia. Além disto, os produtos destaque para a Alemanha, a Espanha, os
de origem animal apresentam todas as Estados Unidos da América, a França, a
vitaminas lipossolúveis, como a A, D, E Holanda, a Itália e o México.
e K, e as hidrossolúveis do complexo B. De entre os admiradores de Vieira,
Deste modo, sustentam que a carne só é salientam-se, a título ilustrativo, Camilo
nociva quando ingerida abusivamente ou Castelo Branco, Oliveira Martins, Fernan-
quando está contaminada com substân- do Pessoa e José Saramago. Oliveira Mar-
cias estranhas. tins, no séc. xix, refere-se a Vieira como
um “homem superior que está à frente
do moderno Portugal, como o guia, o
mestre, o fundador; multiforme na ca-
pacidade, omnímodo na ação missioná-
ria e diplomática, financeira e estadista
Bibliog.: BERRY, Rynn, Famous Vegetarians,
e, por isso, filósofo, moralista e literato”
New York, Pythagorean Publishers, 2003;
(CRISTÓVÃO, 1972, 75). Saramago, no
HART, Donna L., e SUSSMAN, Robert W.,
Man the Hunted: Primates, Predators, and Human séc. xx, deixou evidente a sua admiração
Evolution, New York, Westview Press, 2008; ao cantar este Jesuíta como um artista da
KANT, Emmanuel, Crítica da Faculdade do Juí­ língua portuguesa e ao ter até gizado um
zo, Lisboa, INCM, 1992; Id., Leçons d’Éthique, plano de escrever um romance sobre este
Paris, Livre de Poche, 1997; PHELPS, Norm, pregador, cujos sermões mantinha na sua
The Longest Struggle: Animal Advocacy from Pytha­ mesa de cabeceira para leitura regular.
goras to PETA, New York, Lantern Books, 2007;
No entanto, também surgem em torno
SPENCER, C., Vegetarianism: A History, New
York, Four Walls Eight Windows, 2002; WAL- de António Vieira poderosos e ativos críti-
TERS, Kerry S., e PORTMESS, Lisa (orgs.), cos. O estilo e o impacto da sua pregação,
Religious Vegetarianism: from Hesiod to the Dalai bem como as suas ideias e o seu modelo
Lama, New York, State University of New York de ação, são exaltados por muitos, que o
Press, 2001; WILLIAMS, Howard, The Ethics of apreciam com quase devoção, mas con-
Diet, Illinois, University of Illinois Press, 2003. denados acerrimamente por outros, que
António Moniz se empenham em combatê-lo, sobretudo

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Antivieirismo 1923

pelo carácter fogoso e frontalmente re- são racional do ser humano, a partir do
probatório com que denuncia as injusti- qual a leitura da história passa a ser con-
ças e o que considera necessário reformar dicionada e, inclusivamente, instrumen-
social e politicamente. talizada pelo ideário dos mentores da
Com efeito, Vieira gera uma verdadei- dita era da razão, opondo-se, claramen-
ra corrente de hostilidade e de oposição. te, à leitura, igualmente dogmática, da
Um verdadeiro antivieirismo, manifesta- história sagrada. Assim, à dialética bem/
do, desde logo, na tentativa de limitar a mal e divino/diabólico desta contrapõe­
sua ação e na recusa do seu pensamento ‑se a dialética iluminista racionalidade/
sobre o presente e o futuro de Portugal irracionalidade, progresso/decadência,
na relação com a sua teologia da história clareza/obscuridade, que marca signifi-
de matriz cristã. Assim, na segunda me- cativamente a hermenêutica do passado,
tade do séc. xvii, além do antivieirismo dividindo-o radicalmente, ao nível da in-
físico, Vieira é confrontado com um anti- terpretação, entre os fautores individuais
vieirismo político e, posteriormente, teo-
lógico-religioso e literário. Este antiviei-
Padre António Vieira (1608-1697).
rismo deve entender-se em articulação
com a “lenda negra” jesuítica, ou seja,
com as formulações que, no contexto
de um discurso anticlerical e laico, visam
particularmente a Companhia de Jesus,
com tal distorção ideológica que tendem
a incorporar elementos da morfologia
do discurso do complô, caracterizado,
essencialmente, pela transformação de
factos em mitos. Daí que em Portugal,
pelo menos até ao final da Primeira Re-
pública, as críticas aos Jesuítas sejam, ge-
ralmente, pouco explícitas, desenvolvidas
e fundamentadas, reduzindo-se a simples
alusões.
No respeitante à relação entre o anti-
vieirismo e a “lenda negra” antijesuítica,
importa referir três situações distintas:
a) a dos promotores do complô, que in-
tegram a condenação de Vieira nesse
contexto; b) a dos promotores do mito
antijesuítico, que apenas o mencionam, o
ignoram ou, surpreendentemente, o elo-
giam; c) a dos promotores de um julga-
mento estético antibarroco, nem sempre
associado ao antijesuitismo.
A depreciação da Companhia de Jesus
compreende-se no quadro do sistema fi-
losófico e socio-histórico do Iluminismo,
e da consequente enfatização da dimen-

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1924 Antivieirismo

e coletivos da luz ou das trevas, do pro- te irracionalidade e, mais ainda, de carac-


gresso ou da decadência. terísticas mitológicas. A feição mitológica
No âmbito da análise dualista de feição é facilmente entendível no quadro da
iluminista, os discípulos de S.to Inácio necessidade de recorrer ao poderoso ins-
surgem do lado tenebroso da história trumento da mitogenia para afirmar uma
enquanto os mais importantes protago- nova mundividência. Daí o pombalismo
nistas da decadência. A sua ideologia, a representar simbolicamente o jesuitismo
sua atividade religiosa e sociocultural e o como o grande obstáculo, o negativo por
seu modus vivendi e faciendi são definidos excelência, elevando-o ao estatuto de
e inscritos no quadro de um movimento fantasma do decadentismo, que se deve
endógeno declinacionista por eles inau- exorcizar e aniquilar.
gurado, o jesuitismo. Sob essa designa- Ora, António Vieira, como um dos
ção, atribui-se-lhes uma configuração ti- maiores, senão o maior vulto da Compa-
pológica de índole sectarista, autocrática, nhia de Jesus em Portugal, não pode ficar
ultramontanista e, portanto, entendida imune a esta figuração mítica deprecia-
como antinacional. Além disso, conside- dora. Ao invés, a sua fama fá-lo um dos
ra-se que os seus objetivos são velados, principais alvos da literatura pombalina.
teatralmente disfarçados e adaptados às Como assinala José van den Besselaar:
circunstâncias sociopolíticas, em vista de “Os inimigos que Pombal visava eliminar
uma demanda maquiavélica por um po- efectivamente [...] eram [...] os jesuítas.
der de influência sobre os centros deci- Entre eles se achava [...] o Padre Antó-
sórios políticos e culturais, para chegar nio Vieira [...]. O Marquês tinha-lhe um
ao domínio, cada vez mais universal, de ódio implacável, considerando-o como a
subversão das consciências. epítome da perfídia jesuítica, que urgia
É neste enquadramento que se consti- espalhar por todos os ventos [...]. Com o
tui o chamado mito jesuítico, cuja génese fim de o desmascarar, o ministro mandou
pode atribuir-se ao marquês de Pombal e copiar vários escritos do famoso prega-
aos seus seguidores, os quais, inspirados dor: autênticos e apócrifos, proféticos e
na revolução iluminista, mais especifica- políticos, bem como as polémicas e sáti-
mente na linha do despotismo esclarecido ras dirigidas contra ele” (BESSELAAR,
de inspiração josefista austríaca, e aprovei- 1987, 157). Textos publicados nos sete
tando a polémica antijesuítica em torno da volumes de Maquinações de António Vieira
questão jansenista, elegem a Societas Iesu Jesuíta, uma coletânea documental com-
e a sua ascendência cultural e política em plementar da Dedução Cronológica que, to-
Portugal como bode expiatório, emblema mando António Vieira por arquétipo do
de um passado decadente que se pretende Jesuíta, procura comprovar os defeitos, os
corrigir, para se afirmar, consequentemen- excessos e os abusos da ordem da qual é
te, uma nova ideologia de poder, regalista membro.
e nacionalizadora. Para isso, era indispen- Na Dedução Cronológica e Analítica, obra
sável eliminar as forças ultramontanas que progenitora da “lenda negra” dos Jesuítas
possam resistir, de algum modo, à ascen- em Portugal, reconhece-se a atividade e a
são de um Estado centralizante, despótico influência de Vieira, bem como a sua im-
e todo-poderoso). portância na história nacional. Contudo,
Importa abrir um parêntesis para real- a sua ação e obra são apresentadas como
çar o carácter paradoxal desta leitura, maléficas e desprestigiantes para o país.
pelo facto de estar eivada de uma flagran- O Padre António Vieira é apresentado

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Antivieirismo 1925

como genial, mas tumultuoso, gerador Voltando à campanha pombalina anti-


de desordem. Além disso, é interpretado jesuítica, é de salientar o Último Regimento
como uma personagem teatral, posta na da Inquisição, elaborado por ordem e com
cena política do seu tempo pela Compa- a supervisão do marquês de Pombal. No
nhia de Jesus, com vista à prossecução dos livro iii, título xi, sobre os “Feiticeiros,
seus interesses secretos, ou seja, à concre- sortílegos, adivinhadores, astrólogos e
tização do desejo de chegar a um poder judiciários maléficos”, o Padre António
de carácter transnacional e, portanto, Vieira ilustra a manifestação histórica do
enfraquecedor da soberania real. Neste diabólico e do mal, sendo caracterizado
sentido, Vieira é qualificado como um como um homem de ambição mórbida e
maquinador, um inventor de intrigas e de sem escrúpulos; um manipulador dos ho-
enganos para servir os intentos da ordem mens do seu tempo, pela exploração da
e, por conseguinte, arruinar o reino. ignorância e do fanatismo; herético e ju-
Do mesmo modo, J. de Seabra da Silva daizante; com obras proféticas eivadas de
caracteriza a produção literária vieiriana ideias perigosas para a ortodoxia católica
de cariz utópico como “delirante”, atri- e para a ordem social; com uma ativida-
buindo a António Vieira a autoria das de política responsável pelo fracasso dos
“obscuras” trovas do Bandarra (SILVA, negócios do reino. Mais: Vieira é com-
1767, 204, 207). A condenação de Sea- parado a feiticeiros e a outras entidades
bra da Silva incide, igualmente, sobre a esotéricas, nomeadamente por recorrer a
parenética, onde acusa o pregador de, ao meios e a artes pagãs e mágicas para fazer
invés de criar uma obra dignificante das triunfar o seu nome e para aumentar a
letras vernáculas, contribuir para a deca- sua influência sociocultural e política, le-
dência da homilética em Portugal, por se vando à desgraça do país.
afastar da ortodoxia de estilo dominica- Inspiram-se nesta linha de pensamento
no e clássico e inaugurar um novo esti- pombalino as primeiras obras nas quais
lo sermonológico, definido pelo excesso se formula uma leitura da história por-
de recursos linguísticos e literários, bem tuguesa de índole liberal. Aliás, um dos
como pela valorização da forma em de- elementos comuns e mais frequentes nos
trimento do conteúdo; e por subverter a historiadores liberais é, precisamente, o
exegese bíblica, porque tem como propó- antijesuitismo e, geralmente, a adesão ao
sito último iludir os seus contemporâneos discurso do complô.
para servir os seus intentos de domínio e Neste contexto, José Liberato Freire
engano, de modo a expandir a sua fama de Carvalho, no Ensaio Histórico-Político,
e a da Companhia de Jesus. Neste ponto, de 1830, subscreve a ideia da responsabi-
releva referir que J. Seabra da Silva de- lidade jesuítica pelo naufrágio nacional
senvolve a matriz de análise neoclássica e de Alcácer Quibir e formula o essencial
antibarroca já estabelecida por Luís An- da tese explicativa da decadência nacio-
tónio Verney. Em 1747, na “Carta quinta nal (retomada, ao longo do século, por
sobre a retórica” do Verdadeiro Método de grande parte dos intelectuais liberais),
Estudar, quando se dedica à parenética, atribuindo-a a uma “liga ímpia” entre
Verney critica de forma cerrada António “o poder absoluto e o poder jesuítico-inqui-
Vieira, acentuando a fragilidade das pro- sitorial”, responsável por desferir “os últi-
vas da sua argumentação e considerando mos golpes em a nossa liberdade, e por
os seus sermões como “um mero jogo de fim até em a nossa própria independên-
palavras” (VERNEY, 1991, 60). cia” (CARVALHO, 1830, 37). De modo

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1926 Antivieirismo

semelhante, ainda que com muito menos Almeida Garrett, contemporâneo de


ardor polémico, Coelho da Rocha, em Alexandre Herculano, trata a questão de
1841, acusa a Companhia de Jesus de do- António Vieira de maneira diferente, es-
minar os negócios públicos através de ter- sencialmente literária. Ao contrário dos
ríveis maquinações, insistindo na relação críticos já mencionados, Garrett refere­
entre a Companhia de Jesus e a tenebrosa ‑se à figura do pregador sem aludir, pelo
Inquisição. menos explicitamente, ao jesuitismo, re-
Coelho da Rocha é um dos autores mais conhecendo, contrariamente, a sua inte-
elogiados por Alexandre Herculano. Daí ligência e o seu mérito linguístico – mas
que na sua obra, mais especificamente na para melhor criticar o seu dito gongoris-
História das Origens e do Estabelecimento da mo. Assim, no capítulo v de Bosquejo da
Inquisição em Portugal e em vários opús- História da Poesia e da Língua Portuguesa,
culos, Herculano ataque a Companhia introduz a Quarta Época (período entre
de Jesus em Portugal, apontando-a como a segunda metade do séc. xvii e meados
a principal causa, juntamente com a In- do séc. xviii), à qual, seguindo a tipologia
quisição, da decadência portuguesa, e clássica das Idades, confere os atributos
como principal obstáculo à regeneração negativos da Idade do Ferro, responsabi-
da pátria. Neste ponto, a carta A Supres- lizando-a pela aniquilação da literatura e
são das Conferências do Casino, publicada da língua portuguesas. E destaca o contri-
em 1873, é o seu texto mais significati- buto de Vieira para essa degradação.
vo, no qual explica o desvio cismático da Passando da geração de Alexandre
Igreja Romana e da Igreja Católica em Herculano à chamada geração de 70,
Portugal através da tese do complô jesuí- destaca-se o intelectual português Ante-
tico. No entanto, Alexandre Herculano ro de Quental, mais concretamente a sua
é um dos primeiros a perceber António análise das “Causas da decadência dos po-
Vieira como uma das figuras portuguesas vos peninsulares”. Neste escrito, Antero
que mais sofre o desgaste da publicidade aponta a decadência moral como a causa
antijesuítica do panfletismo ideológico máxima do declínio, identificando-a com
pombalino, recordando-o como uma das o catolicismo tridentino, de formulação e
vítimas “desse sistema de Baixo-Império, obediência jesuítica. Segundo ele, o jesui-
o despotismo esclarecido absolutista” tismo cria os “sofismas mais deploráveis a
(HERCULANO, 1983, II, 191). Talvez que jamais desceu a consciência religio-
este reconhecimento possa explicar-se sa” (QUENTAL, 1926, 121). Quanto ao
pela natural identificação de Alexandre papel de Vieira, há no texto uma referên-
Herculano com um génio das letras per- cia explícita e uma implícita. A primeira,
seguido, o que o leva a ignorar a sua qua- ao atribuir-lhe erroneamente (erro, aliás,
lidade de jesuíta e a valorizar, ao invés, a bastante frequente na época) a autoria da
sua grandeza literária. Em todo o caso, o Arte de Furtar e ao apontar a sua escrita
autor de Eurico, o Presbítero exemplifica a como exemplo literário da forma como
dificuldade crescente de lidar, a partir da “O espírito peninsular descera degrau
matriz pombalina, com o valor literário em degrau até ao último termo da depra-
de António Vieira no contexto linear e vação” (Id., Ibid., 107). Implicitamente,
maniqueísta duma tese de complô. Por Vieira é abrangido pela rejeição radical
isso, opta por alternar entre os ataques dos sermonários da época, pois, apesar
jesuíticos e os elogios (implicitamente de Antero não evocar o nome do prega-
desculpabilizantes) a Vieira. dor, também não o exclui. Concluindo:

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Antivieirismo 1927

o poeta português é essencialmente de-


terminado pela tese do complô, vendo
António Vieira a essa luz.
Na mesma senda, Oliveira Martins
aponta o jesuitismo como um dos ele-
mentos de uma tríade causal do atraso
dos povos peninsulares. Uma maneira
de estar e de educar os homens antinó-
mica da autonomia e da liberdade, da
livre iniciativa e da criatividade. Na ver-
dade, a lei da obediência cadavérica e a
direção dos espíritos são, para Oliveira
Martins, em consonância com Antero
e com Herculano, a pedra de toque da
crítica do modus procedendi dos Jesuítas.
É neste quadro mental e cultural que
Oliveira Martins integra António Vieira,
atribuindo ao meio, no sentido do termo
alemão Weltanschuung, a culpa da não
otimização do seu valor. A associação de
Vieira ao jesuitismo faz-se no capítulo iii Alexandre Herculano (1810-1877).
da História de Portugal, intitulado “Portu-
gal restaurado”, no qual Vieira é descrito
como detentor de um grande poder de liberais, tolerantes e seguidores do livre­
influência política, capaz, inclusivamen- ‑pensamento, violam esses princípios.
te, de manipular D. João IV, levando-o a Teófilo Braga surge como exemplo
conceder-lhe salvo-conduto para a con- paradigmático desta contradição entre a
cretização dos interesses jesuíticos que profissão do livre-pensamento e a conce-
representa; e, além disso, como uma per- ção de liberdade religiosa, o que se deve,
sonagem obsessiva, disposta a abando- essencialmente, ao seu cada vez mais
nar a sua pátria para servir a realização marcado posicionamento positivista e à
da sua etérea e delirante utopia. Toda- posição de destaque ocupada na formu-
via, Vieira não deixa de ser considerado lação ideológico-política do republicanis-
“genial” (MARTINS, 1972, 410). No que mo português. Efetivamente, a tendência
respeita concretamente à obra vieiriana, fortemente anticlerical do sistema ideoló-
Oliveira Martins caracteriza-a depreciati- gico republicano, que Teófilo partilha e
vamente, sublinhando o seu estilo obeso difunde, permite-nos compreender a sua
e teatral. admiração incondicional pelo marquês
Ainda no panorama da geração de 70, de Pombal e, consequentemente, a sua
convém referir o facto de Eça de Queirós opinião de Vieira, sobretudo da sua ação
adotar o tom antijesuítico que temos vin- e pensamento políticos, fundamentada
do a identificar (QUEIRÓS, 1905, 26-27), nas teses pombalinas. É assim que descre-
apesar de não se referir ao Padre António ve muito parcialmente a carreira secular
Vieira nesses termos. Toma como modelo de Vieira, como conselheiro real e como
a tese do complô, mas reprova a contra- diplomata, destacando a sua filiação à
dição daqueles que, assumindo-se como Companhia de Jesus e a sua ação em

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1928 Antivieirismo

nome dos interesses da ordem. Na verda- nebre do seu túmulo), exemplifica cla-
de, à semelhança de Pombal, Teófilo tem ramente a centralidade da questão edu-
a preocupação constante de mostrar, por cativa nos ataques jesuíticos, sobretudo
um lado, que a ação do Padre António por julgar que “OS JESUÍTAS NÃO SÃO
Vieira, assim como a de todos os Jesuí- SÁBIOS” (GRAÍNHA, 1891, 145). Assim,
tas, visa a realização de um plano secreto apesar de reconhecer algumas exceções a
(transnacional e ultramontano) oposto esta regra, como António Vieira (margi-
aos interesses nacionais; por outro, que nalizado e hostilizado pela ordem à qual
a Companhia de Jesus se rege por uma pertence), defende a proibição do exercí-
lógica maquiavélica, segundo a qual os cio do ensino pelas congregações religio-
seus objetivos justificam o uso de todos sas ou, mais ainda, a sua expulsão.
os meios, nomeadamente a manipulação, Miguel Bombarda é quem, de entre os
sendo Vieira um exemplo do recurso a três nomes referidos, reveste as suas acu-
esta estratégia (BRAGA, 1916, 629-634). sações jesuíticas de um invólucro mais
Neste âmbito, refiram-se agora os dou- estritamente positivista, o que se reflete
trinadores e propagandistas do anticleri- na defesa da importância de denunciar
calismo de finais do séc. xix e inícios do a violação à sacrossanta lei dos três está-
século seguinte, pelo seu alinhamento dios praticada pela educação jesuítica,
com a ortodoxia antijesuítica pombalina. da qual resultam “cabeças fora do seu
Além de autores mais esclarecidos e mais tempo [...] cabeças híbridas que, enchar-
fundamentados em termos ideológicos, cadas na ciência prática, que utilizam e
como o positivista Miguel Bombarda, des- gozam, não concebem sequer o espírito
tacam-se alguns publicistas antijesuíticos profundo que a enlaça” (BOMBARDA,
mais empíricos, e hoje desconhecidos ou 1900, 33). Bombarda esclarece, logo de
pouco conhecidos, como José Caldas e seguida, que esse é o espírito positivista,
Manuel B. Graínha. afirmando que, se a religião, na Idade Po-
José Caldas, contrariamente a Eça de sitiva sua contemporânea, é uma fraude,
Queirós, ilustra claramente o paradoxo “ninguém praticou a falsificação com mais
dos autointitulados livres-pensadores ao entusiasmo e menos escrúpulo do que os
chamar a atenção para o facto de faze- jesuítas” (Id., Ibid., 35). Neste contexto,
rem da essência desse livre-pensamento recupera as acusações pombalinas relati-
o assumir de posições extremamente vamente à figura de Vieira, defendendo
autoritárias e repressivas no campo re- a utilidade de recolher as “pias fraudes”:
ligioso, considerando, comparativamen- “a Arte de Furtar precisa de ser irmanada
te, “D. José mais liberal que D. Carlos I” com a arte de falsificar e António Vieira que
(CALDAS, 1901, 4). No respeitante ao tanto sabia de casa, devia ter-nos presta-
discurso do complô jesuítico, constrói-o do esse serviço que tão fácil lhe era” (Id.,
associando os elementos fundamentais Ibid., 39). Finalmente, propõe duas solu-
do ataque pombalino a elementos do ções para resolver o problema jesuítico:
organicismo positivista, representando o “para os jesuítas sinceros, o manicómio,
Jesuíta como um vírus. E refere-se parti- porque sofriam de loucura religiosa em
cularmente a António Vieira como um elevado grau; para os não sinceros o exí-
agente do complô. lio numa ilha onde se juntariam a todos
Manuel B. Graínha, fiel inimigo da os criminosos comuns, assim impedidos
Companhia de Jesus (característica que de contaminar com a doença hereditária
faz anunciar no epitáfio do mármore fú- do crime gentes de bem” (Id., Ibid., 188).

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Nesta senda, Lino da Assunção sobres- Jesus faz um “uso sistemático, diabolica-
sai como uma das vozes mais críticas e mente habilidoso” da influência política
ferozes em relação à presença da Com- e religiosa, daí derivando o nome jesui-
panhia de Jesus em Portugal, especial- tismo. E acrescenta: “Em biologia o mes-
mente na sua História Geral dos Jesuítas, mo fenómeno tem o nome científico de
escrita a partir da teoria do complô, com mimetismo” (COIMBRA, 1994, 27). Do
uma formulação cientista e organicista. mesmo modo, explica o predomínio dos
É assim que Assunção define alegori- Jesuítas em Portugal em função de de-
camente os Jesuítas, apresentando-os terminados interesses políticos e como
como uma espécie de vírus endógeno uma espécie de enfermidade hereditária
com características epidémicas impossí- realçada pela educação, dominada por
veis de combater, devido à sua natureza uma conspiração de abrangência uni-
remanescente. Leia-se o excerto em cau- versal: “Em toda a parte entrou o jesuíta.
sa: “Como as epidemias, cujos micróbios Ele está nas escolas, desde a instrução
não são absolutamente extintos, e que, primária até aos cursos superiores, o en-
deixados em meio apropriado, se de- sino dogmaticamente estúpido e incha-
senvolvem, crescem e de novo infetam, do, oco como a cabeça de um deputado
assim acontece com os jesuítas, cujo fer- da maioria, verbalista e canhestro” (Id.,
mento amaldiçoado fica escondido até Ibid.).
ao momento, que eles julgam propício Ainda relativamente ao antijesutitismo
para nova invasão” (ASSUNÇÃO, 1901, republicano, mas agora numa formula-
606). Os Jesuítas são apelidados de fin- ção mais cultural que cientificista, im-
gidos, desleais, manipuladores, ambi- porta destacar Sampaio Bruno e Simões
ciosos, promovedores da decadência... Dias. Aquele, na obra O Encoberto, apesar
E António Vieira, apesar das suas quali- de considerar o jesuitismo, à semelhan-
dades pessoais, é um agente ao serviço ça de Antero de Quental e de Oliveira
dos interesses da Companhia, totalmen- Martins, como um dos fatores determi-
te opostos aos da nação. Lino da Assun- nantes do decadentismo das nações ca-
ção é talvez quem melhor exprime uma tólicas peninsulares, apelida Vieira, a
dificuldade comum a vários intelectuais propósito da pretensa autoria de Notícias
antijesuíticos: a dificuldade de lidar, no Recônditas do Modo de Proceder a Inquisi-
âmbito de uma crítica extremadamente ção com os Seus Presos, de “nosso insigne
nacionalista, com o ultramontanismo e Pe. António Vieira” (BRUNO, 1983, 45).
os seus agentes jesuítas, por um lado, Não obstante, mais à frente, no capítu-
e, por outro, com uma glória literária lo “O restaurado”, qualifica de loucas as
nacional: “Portugal não é tão rico de deduções do pregador acerca das prosas
glórias literárias que possa repelir esta, de Bandarra e da sua prurida aplicação à
embora envolta na roupeta de jesuíta. realidade histórica sua contemporânea.
Diremos mais: se tal homem não tives- Já Simões Dias, na sua História da Li-
se envergado tal sotaina, seria um dos teratura, apresenta Vieira relacionando-o
maiores do seu tempo” (Id., Ibid., 480). comparativamente com o declínio cul-
A crítica antijesuítica de pendor cien- tural do séc. xvii, caracterizado pelo ar-
tificista continua com Leonardo Coim- tificialismo do excesso, da desmesura e
bra. Este republicano afirmou, num co- da teatralidade do barroco. A literatura,
mício realizado em 1909, na Pç. 24 de tal como a história política e económi-
Agosto, no Porto, que a Companhia de ca, é definida como banal e decadente,

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e a oratória sagrada como a expressão a avaliação de António Vieira não é tão


mais fiel da mentalidade decadente do negativa como se esperaria, mas em re-
seiscentismo. Assim, não obstante reco- lação às suas obras, lidas à luz da degra-
nhecer as capacidades de Vieira e a sua dação intelectual do séc. xvii, afirma o
preparação intelectual, desconsidera sig- seguinte (muito na linha verneyana): “li-
nificativamente a obra vieiriana, por a mita-se o espírito do homem que escre-
avaliar como expressão do contexto e do ve aos afãs mesquinhos dos artifícios do
ambiente cultural. A riqueza estilística e estilo [...]. Perde-se a intensidade do in-
pictórica de Vieira, bem como a geniali- teresse humano; não há profundeza de
dade do jogo de conceitos e de imagens emoção ou ideia; cai-se no bonito e no
são reduzidas à condição de verbosida- ornamental. [...] O homem é de génio: a
de; e a arte de adaequatio da literatura pa- obra, não” (SÉRGIO, 1972, 50).
renética à realidade sociopolítica, bem O juízo de Hernâni Cidade no concer-
como a crítica sagaz à contemporaneida- nente à vida e obra de Vieira é muito se-
de, são entendidas negativamente como melhante ao de António Sérgio (até na
politiquismo. invocação de Verney). Na sua biografia
À medida que se avança no tempo, do Padre António Vieira, escreve que o
a influência destas formulações de ca- facto de o pregador não chegar à altura
rácter essencialmente cultural torna-se dos mais abalizados criadores do pen-
mais forte e, consequentemente, mo- samento europeu de Seiscentos se deve
dera-se substancialmente o seu caráter à “escola” onde é formado: a corrente
antijesuítico. É o caso de António Sérgio cultural do seu século e a escola jesuítica
e de Hernâni Cidade. António Sérgio, (CIDADE, 1940, 181).
distante, em termos políticos, dos últi- Traçada esta linha diacrónica do anti-
mos autores mencionados, aproxima-se vieirismo, importa fazer algumas consi-
da análise negativa do período histórico derações finais. Se é evidente que a ava-
vieiriano, concordando com a ideia da liação negativa do Padre António Vieira
má influência do meio no pregador. Efe- é determinada, sobremaneira, pela ava-
tivamente, no ensaio significativamen- liação negativa – de cariz pombalista e
te intitulado “O reino cadaveroso ou o anticlerical – da Companhia de Jesus,
problema da cultura em Portugal”, de- isso não significa uma estrita fidelida-
dicado à reflexão sobre o seiscentismo de a essas matrizes nem uma completa
e sobre a personalidade e a obra do Pa- homogeneidade. No entanto, é possível
dre António Vieira, António Sérgio pers- encontrar, nos vários intelectuais ana-
petiva a história de Portugal na ótica do lisados, suficientes elementos comuns
binómio progresso/decadência (visão para chegar a uma síntese que considere
herdada dos raros racionalistas portu- a diversidade.
gueses anteriores ao séc. xix; note-se, Quanto aos que se inscrevem, de fac-
e.g., que a expressão “reino cadaveroso” to, na teoria do complô jesuítico, será
é retirada do texto Dificuldades Que Tem adequado elaborar uma breve tipologia,
Um Reino Velho em Emendar-se, de Ribei- com base na de R. Girardet., cujos tra-
ro Sanches, um intelectual para quem ços característicos serão: a ideia de uma
Portugal surge como um império da de- pirâmide estritamente hierarquizada,
cadência): o séc. xvi representa o pro- devotada a uma obediência cega e es-
gresso, enquanto o séc. xvii representa a terilizante; a força de uma organização
decadência. Considerando esta posição, paralela e secreta, omnipresente, mas

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Antivieirismo 1931

ameaçadoramente invisível (ou melhor, Quanto a Vieira, todos aqueles que


escondida atrás de uma fachada aparen- o mencionam, e apesar das diferenças
temente inocente), visando alcançar um apontadas nos três tipos referenciados no
poder total e global, recorrendo, para início (os que integram Vieria no com-
isso, a todos os meios. plô jesuítico; os antijesuíticos que prati-
Esta semelhança com a tipologia defi- camente não o mencionam, o ignoram
nida por R. Girardet resultará, em gran- ou até elogiam; os antibarrocos que lhe
de medida, da influência dos escritores desferem uma crítica estética), reconhe-
franceses em Portugal, especialmente de cem os seus dons, criticando-o por os ter
Michelet, Quinet e Eugène Sue. Mas há desperdiçado em nome da Companhia
uma diferença relativamente ao discurso de Jesus.
francês do complô, nomeadamente na Poder-se-á concluir que a visão atual,
tentativa de usar as formulações antije- bem mais ponderada e complexa, da
suíticas para explicar (no contexto de obra de Vieira, se deve, principalmente,
uma mentalidade histórica acentuada- ao suavizar das formulações religiosas
mente moralizante e judicativa, de atri- e anticlericais e a uma tendência para a
buição de culpas) a decadência nacional, marginalização das teses do complô, na
esse grande topos da cultura portuguesa sequência do Holocausto (o que não sig-
do séc. xix e da primeira metade da nifica a extinção total da propensão para
centúria seguinte, geralmente associa- o dualismo simplificador nós/outros,
do, numa tríade causal, ao absolutismo valorização/desvalorização). Mas deve­
e à Inquisição. Neste sentido, a ação da ‑se igualmente, agora em termos inte-
Companhia de Jesus é concebida em ter- lectuais, à desvalorização da pertinência
mos fantasmáticos, resultando, como re- explicativa da tese da decadência; a uma
ferimos no início, de uma passagem do tendência para relevar a contextualiza-
real para a fantasia. ção como tópico explicativo da história
Não sendo possível ignorar esta dis- e, portanto, da história literária; a uma
torção de natureza mítica, também não revalorização, em termos de polémica fi-
pode ignorar-se o fundo real das acusa- losófica, do barroco, no contexto do pós­
ções antijesuíticas, por revelar o conflito ‑modernismo.
que as motiva: a oposição da conceção Claro que não podemos esquecer o pa-
regalista ao esforço crescente da Cúria pel de Fernando Pessoa na reabilitação
romana para estender a sua autoridade. da figura de António Vieira, designada-
E, neste contexto, a questão do controlo mente ao classificá-lo como “imperador
da educação, fundamental quer para as da língua portuguesa” (PESSOA, 1985,
correntes seculares e anticlericais, quer 82), isto no contexto de uma procura da
para a Igreja. identidade nacional, depois de destruí-
Em ambos os casos, os Jesuítas são um do o mito da grandeza imperial de uma
alvo privilegiado: pelo seu quarto voto, nação que se quer pluricontinental, o
descrito pelos adversários como de obe- que implica, necessariamente, a valori-
diência cega ao papa; pelo seu peso e zação da língua e da cultura nacionais.
prestígio em termos educativos, associa- Curiosamente, a reabilitação do Pa-
dos ao ultramontanismo; pelo seu papel dre António Vieira passa, precisamente,
relevante na Reforma tridentina; pela re- pelo reconhecimento de diversos aspe-
formulação leonina, contemporânea de tos anteriormente criticados (designa-
algumas destas críticas. damente num séc. xix obcecado por

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1932 Antivieirismo

um pretenso rigor absoluto da ciência Lisboa, Presença, 1989; ELIADE, Mircea, As­
e por um certo puritanismo generaliza- pectos do Mito, Lisboa, Edições 70, 1989; GAR-
do): a sua aventurosa vida, o lado parado- RETT, Almeida, Bosqueijo da História da Poesia e
Língua Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores,
xal e controverso de muitas das suas posi-
1983; GIRARDET, Raoul, Mythes et Mythologies
ções, a heteronomia do seu pensamento,
Politiques, Paris, Seuil, 1986; GOFF, Jacques
o seu empenho na defesa dos índios, a Le, “Decadência”, in Enciclopédia Einaudi, vol. i,
sua produção utópica e o seu valor literá- Lisboa, INCM, 1984, pp. 393-424; GRAÍ-
rio. Aspetos que esvaziaram, portanto, os NHA, Manuel B., Os Jesuítas e as Congregações
fundamentos das apreciações negativas Religiosas, Porto, Tip. da Imprensa Literária e
do antivieirismo físico, político e teológi- Tipográfica, 1891; HERCULANO, Alexandre,
co-religioso em torno desta figura maior Opúsculos, vols. i-ii, Lisboa, Presença, 1982-83;
MACEDO, Jorge Borges de, “Despotismo es-
do séc. xvii português.
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Nossos Dias, Lisboa, Empreza da História de e Nação: Historiografia Portuguesa de Divulgação
Portugal, 1901; BESSELAAR, José van den, e Nacionalismo (1846-1898), Dissertação de
O Sebastianismo - História Sumária, Lisboa, Ins- Doutoramento em História apresentada à
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BOMBARDA, Miguel, A Ciência e o Jesuítismo. piado, 1995; PESSOA, Fernando, Mensagem,
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Gilbert, As Estruturas Antropológicas do Imaginário,

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Antivintismo 1933

Antivintismo de uma revolução dirigida pela burgue-


sia, um grupo ainda minoritário em Por-
tugal, “reduzindo a dimensões ínfimas a
base de apoio do liberalismo legislado”
(DIAS, 1981, I, 21) e criando condições
para o apoio maciço à contrarrevolução,
que, passada a unanimidade inicial, cedo

O movimento contrarrevolucionário
que a historiografia registou sob
a designação de antivintismo surgiu no
se perfilou no horizonte.
Nas Cortes Constituintes, a palavra
“contrarrevolução” foi referida, expressa-
próprio momento em que, no Porto, mente, pela primeira vez, em 10 de abril
se verificou, sob a ação determinada de de 1821, pelo deputado João Castelo
Manuel Fernandes Tomás, José da Silva Branco, quando, ao defender a adoção
Carvalho e José Ferreira Borges, a revolu- de providências pela regência, reconhe-
ção de 24 de agosto de 1820. Defenden- ceu que “os povos estão entusiasmados,
do para o país uma reforma guiada pela mas a paciência acaba, e nós teremos
razão e pela justiça, a primeira procla- necessariamente uma contrarrevolução”
mação dos revolucionários, datada desse (Diário das Cortes…, 1821, 526). Uma cer-
mesmo dia, termina com vivas às cortes, teza ditada pelos primeiros percalços, en-
à Constituição “que assegure os nossos tre os quais se destaca a recusa do cardeal
direitos” (Documentos para a História…, patriarca, D. Carlos da Cunha e Meneses,
1883, 6) e ao Rei D. João VI. Constituin- próximo da Rainha Carlota Joaquina que
do a “expressão de uma coalizão de des- virá também a assumir a mesma atitude,
contamentos generalizados aos diversos em aceitar jurar integralmente as bases
núcleos da população” (DIAS, 1981, I, constitucionais definidas pelas Cortes,
21), a revolução alastrou a todo o país, um ato simbólico de grande significado
impondo-se vitoriosamente no início de para o poder vigente, reforçado, no ano
outubro. Num país que sentia a humi- seguinte, pelos rumores da organização
lhação da subalternização face ao Brasil, de uma conspiração que ficou conhecida
onde o Monarca insistia em permanecer, pela “conspiração da rua Formosa”, de
e da presença dominadora dos Ingleses, contornos mal conhecidos.
poucos foram os obstáculos a vencer. O sentimento de desconfiança acentua-
Tanto mais que de Espanha, a viver des- va-se, devido aos boatos em circulação so-
de janeiro de 1820 a segunda experiência bre uma eventual intervenção militar em
liberal, vinha uma motivação acrescida. Portugal da Europa restauracionista da
A construção da nova ordem política que Santa Aliança. Entretanto, para as Cortes
os revolucionários vinstistas defendiam Ordinárias de 1822-1823, foram eleitos
seria, no entanto, mais difícil. Por várias alguns homens bem conhecidos pela sua
razões. Joel Serrão destacou a ambigui- oposição ao regime, como José Agostinho
dade entre a mudança e a conservação de Macedo, que não chegou a tomar pos-
que caracterizou a ação e o discurso dos se, e Acúrsio das Neves. Este último, em
novos homens no poder, presos de com- meados de 1822, publica as Cartas de Um
promissos vários. José e Graça Silva Dias Português aos Seus Concidadãos sobre Diferen-
sublinharam a incapacidade dos revolu- tes Objectos de Utilidade Geral e Individual, nas
cionários em “gerir a conjuntura” (DIAS quais, apesar de reconhecer que o exercí-
e DIAS, 1980, II, 573) e a inviabilidade cio do direito de expressão, proclamado

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1934 Antivintismo

como uma das bases fundamentais do se apresentava como símbolo da ordem


novo pacto social, é um perigo “quando e da religião. Em maio de 1822, o apare-
os espíritos se acham em fermentação” cimento em Carnaxide de uma imagem
(NEVES, 1822, 5), alerta para a gravidade de N.a S.a da Conceição, apresentado
da situação económica e para o facto de como um milagre, foi politicamente uti-
da miséria nascer “o descontentamento, lizado para “fazer um chamamento à re-
que é o primeiro passo das revoluções” generação católica da pátria” (SARDICA,
(Id., Ibid., 7). Nas Cortes, as suas interven- 2002, 142). O fosso entre a hierarquia
ções debruçaram-se principalmente sobre eclesiástica, cada vez mais próxima das
questões económicas, tendo, no entanto, forças políticas conservadoras, e o regime
assumido especial protagonismo na defesa vintista acentuou-se. Os militares, defrau-
da Rainha Carlota Joaquina aquando da dados por uma revolução que não sou-
recusa desta em jurar a Constituição de bera corresponder às suas expectativas,
1822. Na indicação que apresentou em 11 estavam disponíveis para assumir novos
de dezembro de 1822, acusou o Governo compromissos. A nobreza, pese embora
liberal de prepotência e ilegalidade na for- a participação ativa de alguns elementos
ma como tratou a Rainha. Pela argumen- no movimento revolucionário de 1820,
tação utilizada, e apesar de a referida indi- mostrava-se disponível para defender a
cação ter sido rejeitada, a intervenção de manutenção dos seus privilégios. Nos
Acúrcio das Neves constitui um momento campos, os camponeses mostravam-se
significativo na atuação política contrarre- descontentes com a moderação das me-
volucionária após 1820. didas antissenhoriais. Internamente, esta-
A oposição ao regime constitucional in- vam assim criadas as condições para uma
tensificou-se no ano seguinte. Em 1823, investida das forças de oposição ao vintis-
à má situação económica e financeira, mo. Externamente, também. A Europa
agravada pela independência do Brasil restauracionista da Santa Aliança autori-
no ano anterior, juntava-se também a des- zou a invasão de Espanha para que Fer-
crença num regime incapaz de proceder, nando  VII pudesse repor o absolutismo,
em bases sólidas e consensuais, a uma re- o que vem a acontecer, com o apoio do
novação nacional, e o afastamento do ce- exército francês, em abril de 1823. O cer-
nário político dos liberais conservadores. co ao liberalismo peninsular apertava-se.
O descontentamento generalizado insta- A “agonia do vintismo”, nas palavras
lou-se entre os diversos sectores da socie- de Reis Torgal, que estudou o fenóme-
dade, mesmo aqueles que inicialmente se no contrarrevolucionário em curso entre
tinham colocado ao lado da revolução. 1820 e 1823, tornou-se irreversível, tendo
Tal como Castelo Branco vaticinara, a a imprensa antivintista desempenhado,
paciência esgotou-se. Os ataques ao li- como demonstrou o mesmo historiador,
beralismo por parte do clero, sobretudo um papel essencial na contrução de uma
do clero regular, aproveitavam a sensibi- “consciência derrotista relativamente às
lidade religiosa da população para, e.g., novas instituições e à situação do país, atra-
atribuir as más colheitas e os desastres na- vés das suas críticas, das suas insinuações
turais a um castigo do Céu pelas heresias e dos seus boatos” (TORGAL, 1980, 285).
das Cortes. A partir do púlpito, enraizava­ Desprovido de uma dimensão construtiva
‑se a ideia de que o regime liberal resulta- ou teórica, o discurso antivintista apresen-
va da ação da maçonaria irreligiosa e de ta-se essencialmente crítico e polémico,
cariz satânico, enquanto o antigo regime assumindo, junto da opinião pública, um

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Antivintismo 1935

Cortes gerais, extraordinárias e constituintes de 1821.

papel desmoralizador. Na verdade, o in- parvoíces” (MACEDO, 1821, 32-33). Nesse


cremento do movimento jornalístico em mesmo ano, com a mesma virulência ver-
Portugal após a revolução de 1820 rapi- bal, Agostinho de Macedo publica ainda
damente fez perceber aos opositores do Cordão da Peste ou Medidas contra o Contágio
liberalismo que a imprensa, além de ser Periodiqueiro, e Reforço do Cordão da Peste; a
um importante meio de propaganda e partir de maio de 1821, foi coeditor, jun-
combate contra o novo regime, era, pela tamente com Joaquim José Pedro Lopes,
abundância de títulos liberais em circula- da Gazeta Universal, periódico que, embora
ção com impacto junto da população, comedido no ataque, se assumiu, até mar-
um dos seus principais adversários. Em ço de 1823, como um dos mais importan-
fevereiro de 1821, José Agostinho de Ma- tes órgãos do antivintismo. Em 1821, pu-
cedo, considerado o criador, em Portugal, blicaram-se ainda, em Londres, O Zurrague
do panfleto político, publicou Exorcismos Político das Cortes Novas e, supostamente,
contra Periódicos e Outros Malefícios, no qual, A Navalha de Figaró ou a Palmatória do Pa-
com recurso a uma linguagem violenta, se dre Mestre Inácio Administrada aos Seus Dis-
refere à “praga periodiqueira” que assolou cípulos, periódico que, na realidade, era
o país após o 24 de Agosto de 1820, refe- editado em Lisboa. Apesar do anonimato
rindo expressamente que os jornais “men- com que se resguardavam os seus redato-
tem, tanto dizem, tão mal, tão fora do res, sabe-se que o primeiro era redigido
tempo querem propor coisas, demolindo por José Anselmo Correia Henriques e o
em lugar de consertar, que o povo alucina- segundo, que se destacou pela sua grande
do [...] cuida que se obra no governo e no combatividade, por Almario Mendes Ga-
congresso, como os periodiqueiros falam, veta. Tal como se fizera contra os invaso-
que têm as mesmas ideias incendiárias, res durante a guerra peninsular, em 1821
subversivas, destampadas, que há impres- foram afixados pasquins em alguns locais
sas nos periódicos. São verdadeiramente do país, como Elvas, Braga, Vila do Con-
os inimigos da causa e revoltam ou deso- de e Lisboa. Utilizando a polémica como
rientam a Nação com os escândalos dos arma, as críticas centravam-se, sobretudo,
seus discursos. Isto é anunciar a ordem na atuação política das Cortes e na Consti-
pública, e a segurança individual, que são tuição que estava a ser redigida.
os dois fins públicos a que se propuseram Em 1822 e 1823, aproveitando o re-
os que acudiam ao edifício público?”, para fluxo revolucionário propiciado por um
concluir logo depois que “é justo ganhar regime liberal cada vez mais fragilizado
dinheiro, mas uma folha de papel pardo e por uma situação externa desfavorável
por três vinténs… [...] três vinténs por à manutenção dos regimes liberais na

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1936 Antivintismo

península Ibérica, a imprensa antivintis- lismo contrarrevolucionário foi reformu-


ta, reforçada por novos títulos, demons- lado com base em novas circunstâncias,
trou, quer ao nível da linguagem, quer como o virá a ser de novo, nos inícios do
dos argumentos, maior agressividade. séc. xx, pelo movimento integralista.
Mais do que a informação objetiva, a
ironia, o sarcasmo e o insulto tornam-se Bibliog.: CARDOSO, António Monteiro, A Re­
as armas de um combate sem tréguas. volução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834):
o Povo e as Elites, Porto, Afrontamento, 2007;
A propaganda contrarrevolucionária ga-
Diário das Cortes Geraes e Extraordinarias da Na­
nha, desta forma, um novo dinamismo, ção Portugueza, Lisboa, s.n., 1821; DIAS, J. S.
radicalizando-se a ideia que identificava da Silva, “A Revolução Liberal portuguesa:
os liberais como predreiros-livres, irreli- amálgama e não substituição de classes”,
giosos e satânicos. A imprensa antivintista in O Liberalismo na Península Ibérica na Primei­
contou ainda, entre 1821 e 1823, com al- ra Metade do Século XIX, 2 vols., Lisboa, Sá da
guns panfletos publicados com uma certa Costa, 1981, pp. 21-24; Id., e DIAS, Graça da
Silva, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal,
regularidade, e.g., O Brás Corcunda ou o
4 t., Lisboa, Instituto Nacional de Investiga-
Verdadeiro Constitucional, O Brás já sem Cor- ção Científica, 1980; Documentos para a Histo­
cunda, Já Fui Corcunda, Ambrósio às Direitas ria das Cortes Geraes e Extraordinarias da Nação
e Zanga dos Periódicos. Portugueza, t. i, Lisboa, Imprensa Nacional,
A partir de 1822, o movimento anti- 1883; MACEDO, José Agostinho de, Cordão
vintista demonstrou capacidade de se da Peste ou Medidas contra o Contágio Periodiquei­
mobilizar em ações desestabilizadoras do ro, Lisboa, Officina da viúva de Lino da Silva
regime constitucional. Nas eleições para Godinho, 1821; Id., Exorcismos contra Periódicos
e Outros Malefícios, Lisboa, Officina da viúva
as primeiras Cortes ordinárias, que se rea-
de Lino da Silva Godinho, 1821; Id., Reforço
lizaram em agosto e setembro de 1822, os ao Cordão da Peste, Lisboa, Officina da viúva
absolutistas participaram ativamente no de Lino da Silva Godinho, 1821; MESQUITA,
intenso debate político que então se veri- António Pedro, “A contra-revolução”, in CA-
ficou e fizeram eleger alguns deputados. LAFATE, Pedro (dir.), História do Pensamento
No início do ano seguinte, em fevereiro Filosófico Português: o Século XIX, vol. iv, t. 2, Lis-
de 1823, a revolta do conde de Amarante boa, Círculo de Leitores, 2004, pp. 255-334;
NEVES, José Acúrsio das, Cartas de Um Portu­
em Trás-os-Montes constituiu a primeira
guês aos Seus Concidadãos sobre Diferentes Objec­
tentativa para pôr fim ao sistema constitu- tos de Utilidade Geral e Individual, Lisboa, Typ.
cional, embora deva ser vista mais como de Simão Thaddeo Ferreira, 1822; SARDICA,
um pronunciamento militar e menos José Miguel, “O vintismo perante a Igreja e o
como o levantamento generalizado da catolicismo”, Penélope, n.º 27, 2002, pp. 127­
população contra o regime vintista. Por ‑157; SERRÃO, Joel, “Vintismo”, in SERRÃO,
razões várias, a revolta fracassou e parte Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal,
das forças sublevadas retirou para Espa- vol. vi, Porto, Figueirinhas, 1981, pp. 321-329;
SILVA, Armando B. Malheiro da, Miguelismo:
nha, no mesmo dia em que o exército
Ideologia e Mito, Coimbra, Minerva Histórica,
francês passou a fronteira com o propósi- 1993; Id., “Tradicionalismo”, in AZEVEDO,
to de aí repor o absolutismo. Finalmente, Carlos Moreira (dir.), Dicionário da História
na noite de 26 para 27 de maio, a Vila­ Religiosa de Portugal, vol. 3, Lisboa, Círculo de
‑Francada coloca no centro do palco po- Leitores, 2001, pp. 297-303; TORGAL, Luís
lítico o infante D. Miguel, a quem cabe, a Reis, “A contra-revolução e a sua imprensa no
partir de então, a liderança do movimen- vintismo: notas de uma investigação”, Análise
Social, vol. xvi, n.os 61-62, 1980, pp. 279-292.
to contrarrevolucionário em Portugal.
Começava o miguelismo. O tradiciona- Isilda Braga da Costa Monteiro

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Antivitalismo 1937

Antivitalismo dos movimentos do ser, explicando-se o


movimento por uma causalidade natu-
ral intrínseca (e não por virtude das leis
mecânicas e matemáticas do Universo).
O vitalismo conhece alguns desenvol-
vimentos na filosofia e na medicina do
séc. xviii – em Portugal, destacam-se

C orrente de pensamento que encon-


tra na ciência, designadamente na
física e na química, resposta para todas
António Ribeiro Sanches (1699-1783),
Teodoro de Almeida (1722-1804) e José
Rodrigues de Abreu (1682-1752) –, ga-
as questões sobre a vida, opondo-se assim nhando particular importância no final
ao vitalismo, a doutrina segundo a qual do séc. xix, como reação ao materialismo
aquela não pode ser cabalmente explica- científico. Para os vitalistas, a vida consiste
da numa base material, i.e., por recurso em movimento e devir, sendo orgânica – e
aos processos e forças físicas ou quími- não mecânica – a realidade dos seres vi-
cas, sendo necessário admitir um princí- vos. Assim, conhece-se a vida através da
pio, dito vital, exterior ao âmbito físico­ experiência empírica e da intuição, não
‑químico. através de conceitos e da lógica. O vitalis-
Embora, em termos genéricos, se possa mo enfatiza a diversidade e o pluralismo
qualificar de vitalista qualquer visão do da vida, defendendo que os organismos
mundo que conceba todas as entidades vivos são fundamentalmente diferentes
por analogia com os seres vivos (neste dos entes não vivos, uma vez que contêm
grupo inclui-se grande parte das doutri- um elemento não físico. De acordo com
nas gregas), o vitalismo surge, em sentido essa conceção, a matéria não pode expli-
estrito, na segunda metade do séc. xvii, car, por si só, o desenvolvimento da vida;
contrariando a dessacralização do corpo esta compreensão opõe-se, assim, àquela
posta em prática pelo paradigma mecani- segundo o qual tanto os animais como
cista, que procurava explicar o organismo
meramente através de leis científicas – o
vitalismo visa, ao invés, recuperar a me- Francis Glisson (1597-1677).
tafísica, buscando um princípio espiritual
que esclareça a vida e os fenómenos do
organismo. Neste contexto, deve men-
cionar-se a obra De Natura Substantiantiae
Energetica, de Francis Glisson, na qual se
afirma a especificidade da vida e dos fe-
nómenos vitais contra o mecanicismo de
tipo cartesiano; para este autor, a vida é
perceção originária de si mesma, princí-
pio de composição e elemento primor-
dial, ou a própria essência. Se todas as
substâncias são vivas, aquilo que todos os
entes têm em comum é a vida: os seres
comunicam no facto de serem vivos, sen-
do cada ser a atualização de uma mesma
vida. A vida é então o princípio interno

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1938 Antivitalismo

o ser humano seriam automata, quer di- conjuntamente com James Watson e Mau-
zer, dispositivos mecânicos distintos dos rice Wilkins, com o Prémio Nobel de
artificiais apenas pelo seu grau de com- Fisiologia ou Medicina em 1962. Crick
plexidade. Na filosofia, encontram-se procurou – unicamente através da ciên-
entre os seus principais defensores: Frie- cia – estender os limites do conhecimen-
drich Nietzsche (1844-1900), para quem to biológico, declarando-se antipatizan-
o real se identifica com a própria vida (e te tanto das ideias dos antigos vitalistas
esta, sendo intuível, não pode ser reduzi- (como Driesch e Bergson), como das
da a um objeto da ciência); Hans Driesch conceções de vitalistas mais recentes
(1867-1941), para quem a vida de um or- (como os filósofos Michael Polanyi e Tei-
ganismo seria explicada através da entelé- lhard de Chardin). Considerou que uma
quia, ou seja, de um princípio ou de uma conceção da vida segundo a qual esta é
força vital que controlaria os processos gerada e dirigida por uma força que não
orgânicos; e Henry Bergson (1874-1948), está sujeita às leis da física e da química, e
que defendeu a existência do élan [impul- que não pode ser verificada por meio de
so] vital, o qual justificaria a superação da experiências científicas (noutros termos,
resistência da matéria inerte à formação que é metafísica), não tem suficiente ri-
de corpos vivos, e rejeitou a superiorida- gor e não pode, por conseguinte, ser leva-
de do conhecimento racional (sustentou, da a sério. Pelo contrário, defendeu que a
pelo contrário, a possibilidade de um co- origem da vida e os processos implicados
nhecimento direto da realidade). Apesar nela (incluindo a consciência e o livre-ar-
de existirem diversas formas de vitalismo, bítrio) podem ser explicados apenas de
é-lhes transversal a rejeição de toda a um ponto de vista racional e científico.
possibilidade de redução do orgânico ao No seu livro Of Molecules and Men, procu-
inorgânico. rou levar os mais recentes conhecimentos
O antivitalismo  exprime-se  sob distin- da biologia a um público de leigos na ma-
tas formas, sendo as críticas ao vitalismo téria e expor-lhes a explicação material e
oriundas sobretudo das ciências ditas científica do Homem. Numa crítica decla-
“duras”. Em 1847, Hermann von Hel- rada ao vitalismo, propôs mesmo o aban-
mholtz (1821-1894), fisiologista e físico, dono da preocupação com a definição de
estabeleceu a Lei da Conservação da “vivo” – sugerindo que o foco de estudo
Energia, postulando que a energia não deveria antes ser o “biológico” (por oposi-
é criada nem destruída – que, portan- ção ao sintético ou tecnológico, como um
to, não são necessárias forças vitais para computador ou uma meia de nylon) – já
mover um órgão ou corpo –, indo assim que, segundo o autor, a explicitação do
contra algumas das ideias vitalistas; na termo coloca diversos problemas, desig-
mesma época, Julius von Mayer e James nadamente quando o opomos a “morto”,
Joule chegavam, por diferentes vias, à o que pressupõe que o que agora está
mesma conclusão. Já no séc. xx, o físico morto esteve antes vivo, além de que a dis-
Henry Margenau (1901-1997) apontou tinção tradicional entre animais, vegetais
às teorias vitalistas o defeito de se confi- e minerais não nos permite compreender
narem a um campo muito reduzido, não se um vírus é ou não uma entidade viva.
sendo extensíveis a outras zonas da rea- Procurou, ainda, delimitar as fronteiras
lidade. Mais claramente antivitalista foi entre orgânico e inorgânico e justificar
Francis Crick (1916-2004), físico, biólogo o fenómeno da consciência numa base
molecular e neurocientista, galardoado, puramente científica, servindo-se da

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Antivitalismo 1939

polémica em torno da existência da alma. padronizadas aos resultados de processos


Esta temática foi extensamente abordada físicos. Esses campos derivariam dos cam-
no seu livro The Astonishing Hypothesis, de pos associados a sistemas precedentes (os
1994 (publicado em português com o tí- campos dos sistemas anteriores tornar­
tulo A Hipótese Espantosa), no qual propôs ‑se-iam presentes em qualquer sistema
a substituição da ideia de alma, algo não semelhante, atravessando, portanto, tan-
material, por uma conceção materialista to o espaço como o tempo). As posições
segundo a qual a mente é produzida pelo de Sheldrake encontraram forte oposição
cérebro (argumentando que, para se no seio da comunidade científica, sendo
compreender a consciência e em ordem consideradas pseudocientíficas pela sim-
ao conhecimento próprio, é preciso per- ples razão de os referidos campos não te-
ceber a forma como os átomos, as molé- rem correspondência experimental; pelo
culas e os iões funcionam nas células do contrário, as ideias de Sheldrake encon-
cérebro e conhecer o comportamento e traram eco no movimento New Age, que
as interações das células nervosas). é estranho à ciência.
Recusando a redução da vida às leis físi- Outras críticas ao vitalismo podem
co-químicas, alguns organicistas apontam, ser encontradas em autores como Ray
no entanto, críticas ao vitalismo (e.g., a Brassier, Iain Hamilton Grant, Adrian
inexistência de comprovação experimen- Johnston, Catherine Malabou, sendo as
tal). Rupert Sheldrake (n. 1942) concluiu suas conceções por vezes agrupadas sob
que os organismos vivos não podem ser a designação genérica de realismo espe-
explicados com base nas ciências do ina- culativo. Malabou (n. 1959) apresenta-se
nimado, da mesma forma que as proprie- como neomaterialista, argumentando
dades de um átomo, ou de uma molécula, que o ser se autoexplica e afirmando
não podem ser totalmente clarificadas que, como nada existe para além do ser,
pelo estudo isolado das suas partes, nem ele não pode ser explicado por nada que
tão-pouco pela soma destas (o mesmo se lhe seja exterior (pretende recusar, assim,
passando em cada nível de complexidade uma alteridade transcendente). Brassier
orgânica). Encontrando deficiências na (n. 1965), seguindo Wilfrid Sellars (1912­
explicação vitalista, propôs a substituição ‑1989), defende que a nossa relação con-
do conceito de enteléquia por uma teoria nosco mesmos não é fundamentalmente
dos campos mórficos ou morfogenéticos. distinta da que estabelecemos com outros
A grande diferença desta teoria relativa- objetos e fenómenos (opondo-se assim a
mente ao vitalismo consiste em que os Bergson, para quem apenas conhecemos
fatores causais que estão na origem dos inquestionavelmente a nossa própria
fenómenos não se restringem à esfera existência e, relativamente a qualquer
da vida, mas dizem também respeito ao outro objeto, só podemos ter perceções
inorgânico. De modo a ultrapassar as teo- superficiais).
rias mecanicistas, apresentou a tese dos Na medicina, o chamado materialismo
campos morfogenéticos, ou hipótese de biomédico defende que o ser se reduz
causação formativa, segundo a qual os a elementos ou mecanismos indepen-
referidos campos, uma realidade física, dentes, que se podem separar e voltar a
são responsáveis pela forma e pela orga- unir, condenando um essencialismo vital.
nização de sistemas materiais (não só de A biomedicina opõe-se, assim, à medicina
organismos vivos, mas também de cristais, tradicional chinesa e a outras medicinas
moléculas e átomos), ao impor restrições tradicionais, baseadas na ideia de uma

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1940 Antivitalismo

energia vital que anima os corpos e se- siderou que o cientista devia cingir-se à
gundo as quais a doença não tem origem realidade fenoménica, em vez de se ocu-
nos órgãos, mas é o resultado de um dese- par de causas últimas.
quilíbrio na energia que circula no corpo
(“qi”). Bibliog.: BERGSON, Henri, Ensaio sobre os Da­
No panorama português, um dos pri- dos Imediatos da Consciência, Lisboa, Edições 70,
meiros autores a criticar o vitalismo (mas 2011; BOMBARDA, Miguel, A Consciência e o
Livre Arbítrio, Lisboa, Parceria António Maria
também o materialismo, que acusa de ge-
Pereira, 1902; BRASSIER, Ray, Nihil Unbound.
neralizar uma doutrina por dedução, ao Enlightment and Extinction, Chippenham/East­
considerar alguns atos do organismo su- bourne, Palgrave Macmillan, 2007; CALAFA-
bordinados às leis físicas e químicas, sem TE, Pedro, “Filosofia e medicina: iatromecani-
que os factos sejam verificáveis, ou sem cismo, vitalismo e animismo”, in CALAFATE,
que estas leis consigam explicar grande Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófi­
parte dos fenómenos vitais) foi António co Português, vol. iii, Lisboa, Caminho, 2001,
pp.  159­‑167; CARDOSO, Adelino, “Filoso-
Augusto da Costa Simões (1819-1903),
fia e história das ciências: a inteligibilidade
médico, professor e reitor da Univ.  de científica no Portugal oitocentista”, in CALA-
Coimbra. No seu livro Elementos de Phy- FATE, Pedro (dir.), História do Pensamento Filo­
siologia Humana, Costa Simões declarou sófico Português, vol. iv, t. 2, Lisboa, Caminho,
que a vida se manifesta por intermédio 2004, pp. 13-41; Id., O Trabalho da Mediação no
dos fenómenos dos campos organizados, Pensamento Leibniziano, Lisboa, Colibri, 2005;
mas sublinhou que nada sabemos acerca CRICK, Francis, Of Molecules and Men, Seatle,
University of Washington Press, 1966; Id.,
daquilo em que consiste a sua essência.
A Hipótese Espantosa. Busca Científica da Alma,
Critica o vitalismo pela falta de demons-
Lisboa, Edições Piaget, 1998; GLISSON,
tração, por meio de factos, das suas teo- Francis, De Natura Substantiantiae Energetica,
rias, considerando que há questões que London, Flesher, 1672; JOHNSTON, Adrian,
se situam na esfera da metafísica (e.g., se a Prolegomena to Any Future Materialism, vol. 1,
vida é uma causa ou um efeito, ou se é um Evanston, Northwest University Press, 2013;
só o princípio que serve de agente mo- MALABOU, Catherine, L’Avenir de Hegel. Plas­
tor de todos os atos de uma vida). Dada ticité, Temporalité, Dialectique, Paris, Vrin, 1996;
MORA, José Ferrater, “Vitalismo”, Dicionario
a natureza insolúvel dos problemas meta-
de Filosofia, vol. 4, Madrid, Alianza Editorial,
físicos, conclui ser estéril a sua discussão, 1982, pp. 3444-3446; SHELDRAKE, Rupert,
e inútil à medicina. O cientista, também A New Science of Life. The Hypothesis of Formative
ele médico, que mais combativamente se Causation, London, Blond and Briggs, 1981;
opôs ao vitalismo foi Miguel Bombarda SIMÕES, António Augusto da Costa, Elemen­
(1851-1910), em especial na sua obra A tos de Physiologia Humana com a História Corres­
Consciência e o Livre Arbítrio, onde defen- pondente, vol. 1, Coimbra,  Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra, 1861.
deu claramente a redução da vida aos
fenómenos físicos e químicos. Para este Moirika Reker
médico, a consciência é tão-só um resulta-
do físico-químico do cérebro, da mesma
forma que a origem do Homem é uma
consequência de um processo mecânico,
e não o reflexo da vontade divina. Bom-
barda rejeitou, assim, a ideia de alma, ne-
gando haver diferenças qualitativas entre
o homem e os outros seres. Ademais, con-

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Antixenofobismo 1941

Antixenofobismo opiniões preconcebidas sobre determina-


dos grupos ou coletividades, por pura fal-
ta de informação sobre eles. Este repúdio
também pode provir de conflitos ideo-
lógicos que envolvem crenças em atrito,
causados por um choque conceitual, por
motivações políticas e outros tantos fato-

E ntende-se por antixenofobismo o


conjunto de atitudes que procuraram
combater ou erradicar atitudes negativas
res. É polémico, porém, em alguns casos,
definir se há preconceito ou xenofobia,
como no caso do nazismo. Como aconte-
e violentas contra estrangeiros. Uma vez cimento histórico, o nazismo na Alema-
considerada doença, vários especialistas nha, antes e durante a Segunda Guerra
se debruçaram sobre o tratamento dos Mundial, envolveu grupos e culturas di-
seus sintomas. ferentes, violência e crimes hediondos,
O xenofobismo é classificado como desencadeados por um grupo que se
a desconfiança em relação a pessoas es- encontrava no poder contra pessoas que
tranhas ao meio daquele que as julga ou julgava diferentes e inferiores. Estes in-
que vêm de fora do seu país. A xenofo- divíduos não foram apenas mortos, mas
bia pode manifestar-se de várias formas, torturados, manipulados geneticamente
envolvendo as relações e perceções do e utilizados como cobaias em experiên-
endogrupo em relação ao exogrupo, in- cias terríveis, o que descarta a presença
cluindo o medo de perda de identidade, de simples fatores político-sociais, e dá a
a suspeição acerca das suas atividades, a este acontecimento um carácter doentio.
agressão e o desejo de eliminar a sua pre- O nazismo caracteriza-se pelo pangerma-
sença para assegurar uma suposta pureza. nismo, pelo racismo, pelo coletivismo,
À xenofobia opõe-se o conceito de xeno- pela eugenia, pelo antissemitismo ou an-
filia ou xenofilismo (amor a pessoas ou tijudaísmo, pelo anticomunismo, pelo to-
coisas estrangeiras). talitarismo e pela oposição ao liberalismo
O xenofobismo é um dos fenómenos económico e político.
mais presentes na história e também um Em Portugal, é difícil saber a verdadei-
dos mais característicos da sociedade. ra extensão do xenofobismo e dos danos
Numa definição mais geral, pode-se dizer causados, mas a existência de estereóti-
que é uma aversão pelo que é diferente, pos e atitudes preconceituosas leva a crer
pelo outro. É também um termo usado que os grupos minoritários se encontram,
para denominar um transtorno psiquiá- à partida, numa situação de desvantagem,
trico que gera um medo excessivo, sem num mercado de trabalho que assenta na
controle algum, ao que é desconheci- competição. No entanto, existem outras
do – objetos ou pessoas. Este conceito formas de discriminação, como é o caso
também se estende, de forma um tanto da decisão de contratação, promoção ou
polémica, a qualquer discriminação de despedimento no emprego. Verificam-se
ordem racial, grupal – em referência a situações de desvantagem estrutural, uma
grupos minoritários – ou cultural. vez que certos grupos de imigrantes ocu-
O repúdio de culturas diferentes geral- pam, sistematicamente, os lugares mais
mente traz na sua essência o ódio, a ani- desfavoráveis da estrutura ocupacional,
mosidade e o preconceito, embora este com os empregos menos qualificados e
possa ter também outras raízes, como mais mal pagos. A concentração sectorial

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1942 Antixenofobismo

dos trabalhadores imigrantes indica que discriminação racial, mudanças essas alta-
existe uma marca da segmentação étnica mente subsidiárias da produção de novas
do mercado de trabalho português, com disposições legais a nível europeu. Entre
os imigrantes oriundos dos países africa- as disposições legais, assumem especial
nos de língua oficial portuguesa, da Eu- significado as diretivas do Conselho Euro-
ropa de Leste e do Brasil a trabalharem, peu, aprovadas no ano 2000. No entanto,
maioritariamente, na construção civil, na convém dizer que, entre os instrumentos
hotelaria e no turismo ou em trabalhos legais para a luta contra o racismo e a dis-
não qualificados. São também empregos criminação racial ou étnica se incluem
de risco e ocupações com menor segu- normas penais, civis e administrativas,
rança laboral, onde a probabilidade de bem como normas internacionais e co-
ocorrência de acidentes incapacitantes munitárias, ratificadas ou transpostas
ou mesmo mortais é maior, como é o caso para a ordem jurídica interna, anteriores
da construção civil. Verifica-se uma maior ao ano de 2000.
precariedade e, portanto, uma maior vul- O art. 15.º da Constituição da Repúbli-
nerabilidade às flutuações da conjuntura ca Portuguesa baseia-se no princípio da
económica. É ainda necessário acrescen- dignidade humana, prevendo um leque
tar que a desvantagem estrutural em que de direitos, liberdades e garantias que de-
se encontram os imigrantes face ao mer- vem ser aplicados de acordo com o prin-
cado de trabalho em Portugal se apro- cípio de que todos os cidadãos são iguais
funda quando se olha para a situação perante a lei (art. 13.º). Muitas outras
das mulheres imigrantes, para as quais a normas constitucionais são baseadas no
discriminação étnica ou racial se junta à princípio da igualdade e na luta contra
discriminação de género. A desigualda- a discriminação. Há outros diplomas le-
de em que se encontram os imigrantes gais que incluem normas antidiscrimina-
consegue ser ainda aferida por aquilo a tórias, como o Código de Procedimento
que se pode chamar desqualificação obje- Administrativo, a Lei dos Partidos Polí-
tiva em relação ao seu nível de instrução ticos, o Código da Publicidade, a Lei de
(PEIXE et al., 2008, 36). Cooperação Judiciária Internacional em
Será ainda necessário dizer que os tra- Matéria Penal e o Estatuto das Institui-
balhos mal remunerados e pouco qualifi- ções Particulares de Solidariedade Social.
cados associados, no imaginário popular, O Código Penal português inclui vá-
a algumas camadas de imigrantes e, em rias normas criminalizadoras de com-
parte, confirmados pelos estudos e pelos portamentos discriminatórios, entre elas
dados oficiais ocupam um lugar estrutu- a norma que tipifica como homicídio
ral na economia portuguesa. Numa al- qualificado aquele que é motivado por
tura em que há uma pressão para a fle- ódio racial, religioso ou político, consi-
xibilização (e precarização) da mão de derando-se que este reveste especial cen-
obra, os empregadores encontram nos surabilidade ou perversidade. Não existe,
trabalhadores imigrantes a força de tra- no entanto, uma norma geral que esta-
balho flexível que as novas regulamen- beleça que a motivação racista constitui
tações laborais querem impor a todos os circunstância agravante para a prática de
trabalhadores. todos os crimes. Assim sendo, em relação
Nos últimos anos do séc. xx, houve, em aos restantes crimes, é a decisão judicial
Portugal, importantes mudanças no qua- que considera a motivação racista como
dro legal e institucional da luta contra a agravante ou não. Desde o ano de 1996,

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Antixenofobismo 1943

o ordenamento jurídico prevê, no caso lesa-humanidade e como afronta à digni-


de crimes cuja motivação resulte de atitu- dade humana. Esta conferência mundial
de discriminatória em razão da raça ou da indicou a formulação e a inclusão, por
nacionalidade, a constituição de assistên- parte dos Estados membros, de medidas
cia, em processo penal, das associações tendo em vista a melhoria das condições
de comunidades de imigrantes, antirra- de vida das mulheres e dos homens sub-
cistas ou defensoras dos direitos huma- metidos a graves desigualdades econó-
nos, salvo expressa oposição do ofendido. micas em razão da discriminação racial.
No plano mundial, desde 1963 que a A Segunda Conferência Mundial para o
Organização das Nações Unidas (ONU) Combate ao Racismo e à Discriminação
vem reconhecendo que a discriminação Racial ocorreu em Genebra, em 1983.
baseada na raça, cor ou origem étnica O objetivo da sua realização foi reafirmar
continua a ser causa de graves proble- a erradicação mundial do racismo e da
mas internos em diversos países, além discriminação racial.
de perturbadora das boas relações in- Em junho de 1986, o Conselho Euro-
ternacionais. A assinatura da Declaração peu, o Parlamento Europeu e a Comis-
das Nações Unidas para a Eliminação de são Europeia aprovaram a Declaração
Todas as Formas de Discriminação Racial Conjunta contra o Racismo e a Xenofo-
insistiu para que os Estados membros en- bia. Em 1989, a Carta Social Europeia
vidassem esforços no enfrentamento e na mencionava a importância de combater
erradicação das formas contemporâneas toda e qualquer discriminação com base
de discriminação racial. no sexo, na cor, na raça, nas opiniões e
A III Conferência Mundial Contra o Ra- nos credos. Em maio de 1990, o Conse-
cismo, Discriminação Racial, Xenofobia lho aprovou uma resolução relativa à luta
e Intolerância Conexa foi realizada em contra o racismo e a xenofobia. Em 1992,
setembro de 2001, em Durban, na África o Comité Económico e Social aprovou
do Sul, e contou com mais de 16.000 par- uma resolução sobre o racismo, a xeno-
ticipantes de 173 países. A conferência re- fobia e a intolerância religiosa. No seu
sultou numa declaração e num programa parecer sobre o Livro Branco sobre Política
de ação que expressavam o compromisso Social, de 1994, o Comité Económico e So-
dos Estados na luta contra a xenofobia. cial declarou haver necessidade de consa-
Antes da conferência de Durban, outras grar os direitos dos cidadãos através da in-
duas conferências mundiais foram reali- clusão no Tratado de uma disposição de
zadas pela ONU. A primeira, em Gene- proibição da discriminação com base no
bra, na Suíça (1978), para o Combate ao sexo, na cor, na raça, nas opiniões e nos
Racismo e à Discriminação, reafirmava credos. O Comité Europeu das Regiões,
que todas as formas de discriminação ba- no seu parecer sobre o mesmo Livro Bran-
seadas na teoria de superioridade racial, co da Comissão, acentuou o papel crucial
exclusividade ou ódio eram uma violação das autoridades locais e regionais na luta
dos direitos humanos fundamentais e contra o racismo e a xenofobia.
prejudicavam as relações amigáveis entre Na sequência de uma proposta de
povos, bem como a cooperação entre as Pádraig Flynn, comissário europeu res-
nações, a paz e a segurança internacio- ponsável pelos Assuntos Sociais e pelo
nais. O apartheid – regime de segregação Emprego, a Comissão Europeia adotou a
racial da África do Sul que durou até Comunicação sobre Racismo, Xenofobia
1991 – foi considerado como crime de e Antissemitismo, acompanhada de uma

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1944 Antixenofobismo

proposta ao Conselho no sentido de de- Declaração Conjunta sobre a Prevenção


signar 1997 como Ano Europeu Contra o da Discriminação Racial e da Xenofobia
Racismo. O objetivo da Comunicação foi e a Promoção da Igualdade de Tratamen-
o de reunir as atividades da Comissão na to no Local de Trabalho. A declaração foi
luta contra o racismo, a xenofobia e o an- elaborada com o apoio técnico da Comis-
tissemitismo, bem como delinear a ação são. No início de 1996, esta publicou uma
que a mesma pretendia empreender fu- versão atualizada do seu relatório de 1992
turamente neste domínio. A Comunica- sobre instrumentos legais implementa-
ção resultou de um compromisso assumi- dos pelos Estados membros de combate
do no Programa de Ação Social a Médio ao racismo e à xenofobia, que continuou
Prazo (entre 1995 e 1997). Na sua ela- a atualizar.
boração, foram tidos em consideração o As iniciativas de carácter antixenofo-
relatório da comissão consultiva Racismo bista continuaram no séc. xxi. No dia
e Xenofobia, constituída pelo Conselho 21 de abril de 2009, mais de 100 países
Europeu de Corfu, e os recentes traba- aprovaram uma declaração da ONU que
lhos desenvolvidos pelos Conselhos dos pedia o combate mundial à intolerância
Assuntos Sociais, Educação e Juventude e e à xenofobia. A versão final do texto da
da Justiça e Assuntos Internos. De igual Conferência Mundial sobre o Racismo foi
modo, propôs dar resposta a repetidos adotada por consenso.
apelos por parte do Parlamento Europeu
para que a Comissão intensificasse a sua
ação nesta área. A Comunicação apresen-
tava os motivos para que se continuasse a
desenvolver uma resposta europeia com
vista a complementar as ações a nível na-
cional para fazer face aos problemas do Bibliog.: impressa: BOLAFFI, Guido et al. (orgs.),
racismo, da xenofobia e do antissemitis- Dictionary of Race, Ethnicity and Culture, London,
mo na sociedade. Em especial, apontou Sage Publications Ltd., 2003; COMISSÃO
para a necessidade de construir os funda- EUROPEIA, Política Social Europeia. Como Avan­
mentos de uma comunhão mais vasta e çar na União, Luxemburgo, Serviço de Publi-
cações Oficiais das Comunidades Europeias,
profunda entre povos que, tantas vezes,
1994; DIRECÇÃO GERAL DE ESTUDOS, ES-
se opuseram entre si em conflitos violen- TATÍSTICA E PLANEAMENTO, A Mobilidade
tos. De um modo geral, o objetivo seria Ocupacional do Trabalhador Imigrante em Portugal,
mostrar a luta contra o racismo e contra Lisboa, Direcção-Geral de Estudos, Estatísti-
a xenofobia como parte inseparável da ca e Planeamento, 2006; PEIXE, Bruno et al.,
identidade europeia. O Racismo e Xenofobia em Portugal, Oeiras, Am-
Quanto à questão da legislação a nível nistia Internacional, 2008; SCHÜLER, Ar-
europeu, a Comissão incluiu propostas naldo, Dicionário Enciclopédico de Teologia, Por-
to Alegre, Universidade Luterana do Brasil,
de legislação futuras em áreas de compe-
2002; digital: MATEUS, Elizabeth do Nasci-
tência da Comunidade, como uma cláu- mento, “A proteção internacional contra a
sula proibindo a discriminação, inspirada discriminação racial”, Revista Âmbito Jurídico,
no art. 14.º da Convenção Europeia para ano xiv, n.º 84, jan. 2011: http://www.ambi-
a Salvaguarda dos Direitos Humanos e to-juridico.com.br/site/index.php?n_link=re-
das Liberdades Fundamentais. vista_artigos_leitura&artigo_id=8856 (acedi-
Em outubro de 1995, em Florença, os do a 20 set. 2017).
parceiros sociais adotaram a importante Fernanda Santos

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 1945

Elucidário
de conceitos e correntes afins

NOTA INTRODUTÓRIA
Como remate final deste dicionário, apresentam-se sínteses críticas sobre conceitos,
correntes, produções críticas, tendências que não se configurando como
movimentos anti consagrados pelo “ismo” são-lhes afins, fazendo parte do
domínio de compreensão que pretendemos abarcar com esta obra
e revelando-se significativos em ordem à mapização do campo negativo.
Não se trata de um elenco exaustivo, mas apenas de verbetes
com carácter exploratório e ilustrativo, podendo ser completados em projetos
posteriores que estamos a promover nesta nova área de investigação
de banda mais larga intitulada “Culturas em negativo”.

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1946 

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Abjeção 1947

Abjeção a consciência da nossa própria instância


biológica, com tudo o que nela também
motivará a repugnância e que, portanto,
se define como excrescência, dejeto ou
fluído indesejável, i.e., como algo que,
pertencendo-nos e sendo parte indispen-
sável da nossa natureza e do nosso funcio-

C onceito que remete para o amplo


leque dos domínios que são conside-
rados impuros, repugnantes, degradantes,
namento, é ao mesmo tempo um objeto
estranho e potencialmente enquadrado
nos domínios do obsceno, categoria pró-
infames ou nefastos a uma determinada xima da abjeção.
leitura do corpo humano e da interação O obsceno, como o abjeto, ocupa esse
que se estabelece entre os diferentes sujei- domínio difícil de definir que está reser-
tos de uma estrutura social com um deter- vado ao espaço entre, à zona de contacto
minado sistema de valores. Como sublinha entre corpos, identidades e estruturas de
Carlos Ceia, “a moral ocidental considera valores que mutuamente se estranham e
abjetos certos aspetos como a droga, a se encaram como impróprios, ou à expe-
blasfémia, o incesto, crimes de sangue, riência de situações limite, como a sexuali-
perversões sexuais, dejetos animais, o ca- dade, a doença e a morte – e poderíamos,
nibalismo, etc.” (CEIA, s.d.). Aqueles que a este respeito, remeter para as associa-
incorrem nesse tipo de comportamentos ções que pensadores como Georges Batai-
ou que interpretam de um modo distinto lle e Michel Foucault estabelecem entre a
esse padrão de valores são considerados pulsão de vida e de morte que a sexualida-
seres abjetos, encarados como exemplos de comporta em si mesma, ou pensar no
deformados do que se entende como pró- modo como tabus transversais a várias cul-
prio do humano e, portanto, produtos de turas remetem justamente para os univer-
uma determinada anormalidade, deficiên- sos do sexo – ao longo do tempo, práticas
cia ou patologia, ou de uma absoluta cor- tão diversas como o onanismo, o incesto,
rupção dos valores morais. a homossexualidade e a pedofilia foram
Em Pouvoirs de l’Horreur – Essai sur l’Ab­ tidas como desvios a enquadrar e a punir
jection, Julia Kristeva ilustra os diferentes com a máxima severidade – e da relação
sentidos por via dos quais o abjeto se as- com a morte, quer enquanto expressão de
sume como constituição essencial de uma um crime, quer na sua vertente corporal,
recusa e de uma demarcação de frontei- uma vez que o cadáver é a vertente última
ras entre o plano do ser e o amplo domí- do estranhamento humano face ao seu
nio das coisas que são encaradas como próprio suporte biológico. Como observa
exteriores e, portanto, potencialmente Márcio Seligmann-Silva, “sublime e abje-
ameaçadoras e desconhecidas, propicia- to lidam com o inominável e sem-limites,
doras de uma náusea identitária. Kristeva mas falando esquematicamente o sublime
começa por identificar o momento da ex- remete ao sublime espiritual – e o abjeto
periência da criança em contacto com o ao nosso corpo. Ambos são conceitos de
corpo da mãe como o primeiro exemplo fronteira marcados pela ambiguidade e
da dualidade entre a atração/fascínio e que nos abalam: o abjeto nos remete para
a repugnância pelo que intrinsecamente baixo – cadáver vem do latim cadere, cair:
não nos pertence; tal permite simultanea- um corpo que cai” (Seligmann-Silva,
mente definir a corporeidade alheia e 2005, 40).

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1948 Abjeção

O estranhamento identitário é uma for- a abjeção pessoal e sobretudo a abjeção


ma individual de viver a experiência da de classe pressupõem a coação. A proibi-
abjeção, por reconhecimento das distin- ção de contacto pela qual os nobres con-
tas pulsões e emanações físicas do próprio sagram a abjeção dos miseráveis mais não
corpo ou como expressão de um quoti- é que uma sanção consecutiva à alteração
diano existencial considerado baixo e vil que resulta da coação]” (Bataille, 1970,
ou apenas marcado pelo tédio que, como 217). Ditada pela perspetiva daqueles que
salienta Carlos Ceia, é uma “variante sen- definem os outros como estando além
sitiva da abjeção” (CEIA, s.d.). de um certo ideal, a categoria da abjeção
Uma vertente importante da tradição aponta para a permanência do contacto
artística moderna reconhecerá na abjeção com aquilo que se desejaria eliminar, mas
um domínio essencial para o seu incessan- que permanece: “l’abjection humaine ré-
te questionamento do real e sobretudo sulte de l’incapacité matérielle d’éviter le
para um alargamento da consciência do contact des choses abjectes; elle n’est que
Homem sobre si próprio, que implica a l’abjection des choses communiquées aux
recusa da redução de valores implementa- hommes qu’elles touchent [a abjeção hu-
da pela sociedade e pelos seus padrões de mana resulta da incapacidade material de
gosto dominantes. Ortega y Gasset obser- evitar o contacto com as coisas abjetas; ela
va, em A Desumanização da Arte, que uma é a abjeção das coisas comunicadas aos
das técnicas mais recorrentes da arte mo- homens que tocam nelas]” (Bataille,
derna consiste em submeter o real quo- 1970, 219). Impossíveis de definir clara-
tidiano a uma forma de infrarrealismo, mente, as coisas abjetas correspondem
que procura, numa minuciosa observação ao amplo domínio de tudo aquilo que é
aproximada, trazer para o domínio do es- descrito pelo ato imperativo da exclusão,
tético o que normalmente era considera- estando, portanto, aqui implicada uma di-
do obsceno e impróprio. mensão de negatividade e de recusa.
No ensaio “L’abjection et les formes O emergir do feio como domínio au-
misérables”, Goerges Bataille integra a tónomo no âmbito das diferentes artes
abjeção numa dinâmica de oposições acompanha de perto a revolução de pa-
sociais e sobretudo de isolamento e con- drões promovida pelo romantismo, subs-
trolo de determinadas camadas dentro tituindo a supremacia dos ideais canóni-
dessa sociedade, consideradas nocivas ao cos de beleza e de harmonia por outros
funcionamento normal da comunidade. valores como o peculiar, o extravagante,
Afirma o ensaísta que “le processus de o estranho e, sobretudo, o interessante.
segmentation de la société qui sépare les Paolo d’Angelo sintetiza essa transição
hommes nobles et les hommes misérables que “acentua aquilo que é irrepetível, úni-
n’est donc pas un processus simple: l’ab- co, aquilo que individualiza, e nesta pro-
jection personnelle et surtout l’abjection cura não se detém perante os aspetos de-
d’une classe supposent la contrainte. La sagradáveis, nem as imperfeições, nem os
prohibition de contact par laquelle les defeitos” (Angelo, 1998, 130). Na sua
nobles consacrent l’abjection des miséra- História do Feio, Umberto Eco relaciona
bles n’est qu’une sanction consécutive à esse impulso romântico com o momen-
l’altération qui résulte de la contrainte to em que, no final do séc. xix, “o artista
[o processo de segmentação da sociedade decide tornar-se diferente, marginalizado,
que separa os nobres dos homens mise- aristocrático ou ‘maldito’” e se refugia no
ráveis não é, pois, um processo simples; culto da decadência e na procura de uma

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Abjeção 1949

vida ligada à beleza artística, mesmo quan- e humana com que conviviam quotidiana-
do próxima dos “abismos do mal e do mente e desse modo adotaram uma ati-
horror” (Eco, 2007, 350). As tendências tude que, suicidária por vezes, constituiu
satânicas e demoníacas dominantes entre uma forma de refúgio e de sobrevivência.
muitos dos artistas finisseculares, assim Como observa Julia Kristeva, a literatu-
como o culto do vício, do excesso e da de- ra moderna é riquíssima em sucessivas
formação sexual influenciarão profunda- formas de derrisão que, explorando as
mente o uso que as vanguardas farão do fronteiras do socialmente aceitável, pro-
feio, do abjeto, do obsceno, da quebra do curaram desconstruir a retórica homo-
tabu sexual, das transgressões estéticas, es- geneizante e desse modo conquistar, por
truturais e genológicas, dos próprios con- via do excesso artístico, uma catarse com-
ceitos de arte e de antiarte. As vanguar- pensadora do real diminuído. Em 1963,
das tratariam esses aspetos como parcelas na heteróclita antologia Surrealismo/Abjec­
ativas do desejo de abarcar artisticamente cionismo, organizada por Mário Cesariny,
todas as dimensões do humano e da busca percebe-se na diversidade dos autores e
de uma nova linguagem poética, mais am- mesmo dos percursos estéticos que lhes
pla e viva, usando-os também como armas subjazem a uniformidade de uma mesma
de arremesso capazes de chocar e de mos- denúncia, concentrada em torno de um
trar o verdadeiro rosto de uma sociedade entendimento do quotidiano enquanto
castradora, hipócrita, fundada em valores emanação de abjeções.
violentos e na opressão constante dos ver-
dadeiros instintos do Homem.
Em Portugal, o abjecionismo, vertente
em torno da qual se reuniram as expres-
sões artísticas heterogéneas dos herdeiros Bibliog.: impressa: Angelo, Paolo d’, A Es-
do surrealismo, tendo como mote a icóni- tética do Romantismo, Lisboa, Estampa, 1998;
ca pergunta de Pedro Oom: “o que pode Bataille, Georges, “L’abjection et les formes
fazer um homem desesperado, quando misérables”, in Bataille, Georges, Oeuvres
o ar é um vómito e nós seres abjetos?” Complètes, II. Écrits Posthumes, Paris, Gallimard,
(Cesariny, 1997), terá configurado a 1970, pp. 217-221; Id., O Erotismo, Lisboa, An-
tígona, 1988; Cesariny, Mário (org.), Surrea-
mais relevante expressão de recusa e de
lismo/Abjeccionismo, Lisboa, Minotauro, 1963;
resistência conflituosa, emergindo como Id. (org.), A Intervenção Surrealista, Lisboa, As-
expressão não apenas da escolha estética sírio e Alvim, 1997; Eco, Umberto (dir.), His-
dos domínios socialmente identificados tória do Feio, Miraflores, Difel, 2007; Fou-
como abjetos, mas também da abjeção re- cault, Michel, História da Sexualidade, 3 vols.,
presentada pelo Estado Novo e pela sua Lisboa, Relógio d’Água, 1994; Gasset, José
menorização dos potenciais individuais e Ortega y, A Desumanização da Arte, Lisboa,
coletivos do povo português. À semelhan- Vega, 1996; Kristeva, Julia, Pouvoirs de l’Hor-
reur: Essai sur l’Abjection, Paris, Seuil, 1983; Se-
ça do termo “decadentes” com que os ar-
ligmann-Silva, Márcio, O Local da Diferença:
tistas do final do séc. xix caracterizaram a Ensaios sobre Memória, Arte, Literatura e Tradução,
sua rutura face aos valores dominantes da São Paulo, Edições 34, 2005; digital: Ceia,
civilização ocidental, destacando-se dela Carlos,  “Abjeção”,  in CEIA, Carlos (coord.),
para nela reconhecerem especularmente E-Dicionário de Termos Literários, s.d.: http://
a decadência que lhes servia de epíteto edtl.fcsh.unl.pt/business-directory/6537/ab-
crítico, os abjecionistas definiram-se pela jeccao/ (acedido a 31 ago. 2015).
consciência da degradação social, cultural Rui Sousa

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1950 Alternativa Zero

Alternativa Zero sar das profundas mudanças em curso


e em toda a linha, continuava mergu-
lhado numa apatia bucólica suportada
por um arco socioeconómico e cultural
deprimido e ainda muito dividido entre
o último fôlego do que restava das insti-
tuições do Estado Novo e a vontade de

A exposição Alternativa Zero – Ten-


dências Polémicas na Arte Portu-
guesa Contemporânea, organizada por
abraçar os novos impulsos provenientes
do exterior. Foi, neste sentido, notável o
trabalho realizado por Ernesto de Sou-
Ernesto de Sousa (1921-1988), um artis- sa, que consistiu no recrutamento de
ta multidisciplinar (cineasta, investiga- jovens artistas nacionais com experiên-
dor, artista plástico, curador, e crítico de cia internacional, cujo labor artístico
arte), decorreu nas instalações da antiga plasmava eficaz e revolucionariamente
Galeria Nacional de Arte Moderna, em as tendências e as correntes acima des-
Belém, na cidade de Lisboa, em 1977. critas, traduzindo-se na emergência em
Ernesto de Sousa procurou, atra- Portugal de uma nova dimensão visual e
vés deste evento, introduzir em Portu- expressiva, com recurso às reconfigura-
gal um conjunto de práticas artísticas ções operadas, sobretudo, no eixo ger-
oriundas do revigorado ambiente que mano-americano, que demonstravam
se respirava internacionalmente, despo- as novas categorias artísticas e os novos
letado pela déc. de 1960 e fortemente meios de expressão (e.g.: instalação, fil-
marcado pela contestação das institui- me e vídeo-instalação, ou a renovada
ções, num tempo em que a cultura, em performance filmada).
particular, se projetava através de um Fizeram parte da odisseia pioneira que
fértil e vasto território. Neste contexto foi a exposição Alternativa Zero: Helena
se enquadraram as tomadas de posição Almeida,  João Brehm, Júlio Bragança,
dos artistas emergentes no panorama Alvess, André Gomes, Armando Azeve-
internacional da época, como foi o caso do, Vitor Belém,  Fernando Calhau,  Al-
de Wolf Vostell (1932-1998) e de Joseph berto Carneiro, José Carvalho,  Manuel
Beuys (1921-1986), com quem Ernesto Casimiro, Graça Pereira Coutinho, E. M.
de Sousa conviveu, que adotaram tri- de Melo e Castro, Pedro Andrade, Noro-
lhos alternativos capazes de provocar nha da Costa, Melo Castro, Da Rocha,
fortes ruturas. Este carácter militante Lisa Chaves Ferreira, Robin Fior, Ana
deu lugar a inúmeros coletivos artísti- Hatherly,  Álvaro Lapa, Clara Mené-
cos vocacionados para a abordagem de res, Albuquerque Mendes,  João Vieira,
temáticas até então arredadas da produ- Leonel Moura, António Palolo, Jorge
ção cultural vigente: a guerra, os direi- Peixinho, Jorge Pinheiro, Vítor Po-
tos do Homem, a condição da mulher, mar, José Rodrigues,  Sena da Silva, Joa-
o uso e o comércio das drogas, entre na Rosa,  Túlia Saldanha, José Conduto,
outros. Portugal, após o período revolu- A. F. Alexandre, Julião Sarmento, Artur
cionário iniciado em abril de 1974, ain- Varela, António Sena, Joaquim M. Maga-
da se encontrava muito distante destas lhães,  Lagarto & Nigel Coates, Ernesto
práticas e destas atitudes, em virtude da de Sousa, Mário Varela, Ana Vieira, Pires
existência de um panorama sociocultu- Vieira, Hélder M. Ferreira, João Miguel
ral herdado do seu passado, que, ape- F. Jorge e Ângelo de Sousa.

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Anti-antiutopia 1951

Bibliog.: Alternativa Zero, Tendências Polémicas da


Arte Portuguesa, Lisboa, Secretaria de Estado
Anti-antiutopia
da Cultura, 1977; ANTELO, Iñaki Martínez,
Outras Alternativas: Novas Experiências en Portu-
gal, Vigo, Museo de Arte Contemporaneo de
Vigo, 2003; Arte Portugués Contemporáneo/Argu-
mentos de Futur, Colección Museo Extremeño
e Iberoamericano de Arte Contemporáneo,
Badajoz, Museo Extremeño e Iberoamericano
de Arte Contemporáneo, 1998; Dan Graham
Works, 1965-2000, Porto, Fundação de Ser-
O termo “anti-antiutopia” é criado a
partir da palavra-raiz “utopia”, vocá-
bulo que já havia originado outros neolo-
ralves, 2001; FOSTER, Stephen C., “Historical gismos, tais como “eutopia”, “ecotopia”,
design and social purpose: a note on the rela-
“distopia” e “antiutopia”.
tionship of fluxus to modernism”, in FRIED-
MAN, Ken (org.), The Fluxus Reader, Chicester/ A palavra “utopia” apareceu no título
West Sussex/New York, Academy Editions, do livro escrito por Thomas More em
1998; HENDRICKS, Geoffrey, Critical Mass: 1516, e, desde esta data, o conceito de
Happenings, Fluxus, Performance, Intermedia, and utopia tem sido utilizado com diferentes
Rutgers University, 1958-1972, Massachusetts, significados por autores de obras utópicas
Rutgers University Press, 2003; HENDRIKS, ao longo dos séculos. More, Campanella
Jon, Fluxus Codex, New York, Harry N. Abrams,
e Andreae descrevem cidades imaginá-
1988; MELO, Alexandre, Arte e Artistas em Por-
tugal, Lisboa, Instituto Camões, 2007; PÉREZ,
rias, isoladas e desconhecidas, construí-
Miguel von Hafe (coord.), Anamnese – o Livro, das em não lugares, de acordo com o
Porto, Fundação Ilídio Pinho, 2006; Perspec- sentido etimológico da palavra “utopia”.
tiva: Alternativa Zero, Porto, Fundação de Ser- As utopias escritas no séc. xviii mostram
ralves, 1997; SANTOS, David, “1900-1960: a possibilidade da aplicação de planos de
modernismo sem vanguarda”, Arte Ibérica, melhoramento nas sociedades existentes,
n.º 32, fev. 2000, pp. 8-16; SARDO, Delfim, na esperança de que as suas vidas possam
“Alternativa Zero. Quando o zero existia”,
ser realmente mudadas, com o objetivo
Arte Ibérica, n.º 7, ago.-set. 1997, pp. 18-19;
SOUSA, Ernesto de, “The living theatre – sempre de alcançar uma sociedade ideal. Na se-
inadequado”, Colóquio Artes, n.º 33, jun. 1977, gunda metade do séc. xix, a teoria mar-
pp. 32-39; Id., “Uma criação consciente de xista provocou nova modificação do con-
situações”, Colóquio Artes, n.º 34, out. 1977, ceito de utopia. O marxismo defendia a
pp.  32­‑37; SOUSA, Rocha de, “1976. Ano capacidade de alcançar a utopia socialista
favorecido no exterior, desfavorecido no inte- através dum percurso, cientificamente
rior”, Opção, n.º 36, dez.-jan. 1977, p. 56.
determinado, que levasse a sociedade ao
Pedro Cabral Santo colapso histórico do sistema capitalista.
Globalmente, todas estas obras utópicas
procuravam estabelecer, através do sonho
ou da esperança, uma sociedade ideal, pro-
jetada no futuro, onde imperasse a felicida-
de, o bem-estar e a harmonia entre os seus
membros. Mas a utopia tem, em si mesma,
um sentido antitético que leva a que o
projeto da sociedade ideal, no futuro, seja
impossível de realizar, fazendo com que a
expectativa do paraíso, quando inalcançá-
vel, se venha a tornar um inferno. Ou seja,

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1952 Anti-antiutopia

Paris, maio de 1968.

ligado à utopia está o lado antiutópico da como mais representativas as seguintes:


ação, equivalente a uma narrativa negativa, Nós, de Ievgueni Zamiatine, 1984, de Geor-
ou crítica, elaborada com os conhecimen- ge Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Al-
tos adquiridos na própria utopia e que é dous Huxley. Contudo, existe um período
o seu reflexo negativo, quando o sucesso de exceção, surgido nos anos 60 desse sé-
utópico desejado não é atingido. culo, quando o Maio de 1968, na perspe-
O sentimento de desacreditação da tiva dum futuro melhor, abriu uma janela
utopia intensifica-se no séc. xix, quan- de esperança para mudar a sociedade exis-
do o Homem começa a entender que a tente. Restringida a este período, a utopia
construção utópica tem limites a vencer, volta a assumir-se como uma ferramenta
impossíveis de ultrapassar pela vontade de análise, permitindo que os respetivos
humana. Ganha força a inconsistência do autores se inspirem em novas atitudes ou
sonho utópico, aumenta o negativismo e, políticas alternativas. Neste sentido, os tex-
com a chegada do séc. xx, acaba a visão tos utópicos relacionam-se com anseios e
otimística do futuro. O fim do encanta- preocupações vividas pelas sociedades des-
mento em relação ao progresso, bem sa época, como são exemplo os desastres
como os trágicos acontecimentos das ambientais causados pelo Homem, que
duas guerras mundiais precipitam a de- então começavam a ser divulgados. Neste
ceção das ideologias utópicas surgidas no caso concreto, acompanhando o apareci-
séc. xix. É o tempo de mudança, abando- mento técnico das medidas mitigadoras
nando definitivamente os objetivos utópi- para a resolução dos estragos ecológicos,
cos das sociedades ideais descritas na lite- surge um género literário utópico conhe-
ratura do Renascimento, do Iluminismo cido como ecotopia, consagrado às obras
e do socialismo do séc. xix. que descrevem a vida das sociedades eco-
Estava aberto o caminho para a escrita logicamente ideais. Reagindo ao cenário
das distopias do séc. xx, considerando da deterioração ambiental, próprio duma

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Anti-antiutopia 1953

distopia catastrófica, estes autores recriam na exclusão dos erros cometidos nas fa-
uma sociedade futura, sem problemas am- ses anteriores, renovando a esperança das
bientais, fundamentada no regresso ao idí- ambicionadas felicidade e prosperidade.
lio naturalista e no retorno à mãe nature- Como referência, o termo “anti-antiu-
za. Como exemplo de obras deste género, topia” aparece citado na edição de 1979
referem-se Ecotopia, publicada em 1975, da da obra Voyages aux Pays de Nulle Part, de
autoria de Ernest Callenbach (1929-2012), Raymond Trousson (1936-2013), num
e Mai 86, de Jacques Sternberg (1923­ trecho em que o autor se refere às uto-
‑2006), publicada em 1978. Através da in- pias ecológicas ou ecotopias, preconiza-
trodução de medidas que impeçam ou ate- doras dum futuro melhor ao recusarem a
nuem a utilização dos meios responsáveis forma de progresso baseado numa indus-
pela ocorrência de desequilíbrios ecológi- trialização maciça a qualquer custo, com
cos, as sociedades projetadas nestas obras os consequentes danos ambientais.
encontram-se livres dos danos ambientais Duma forma mais abrangente que o
conhecidos nessa época. Ou seja, é a partir exemplo da ecotopia referido por R. Trous­
do conhecimento do mal que se vão elabo- son, a anti-antiutopia poderá identificar­
rar as medidas mitigadoras dos problemas ‑se com o renascimento da vontade utó-
ambientais existentes, permitindo o apa- pica do Homem, quando a utopia inicial
recimento dum mundo novo, onde exista o atirou para o inferno, em vez de o ter
uma relação harmoniosa entre o Homem conduzido ao paraíso. Não foi atingido
e a natureza. Segundo este procedimento, o paraíso almejado pela propensão utó-
os ensinamentos, obtidos na procura utó- pica, mas esse percurso mostrou os erros
pica da sociedade ideal do bem-estar e da cometidos, funcionando como uma learn­
felicidade, são aproveitados para corrigir ing curve. Na tentativa utópica seguinte,
os males encontrados e reequacionar o foram já introduzidas as medidas mitiga-
objetivo utópico inicialmente delineado. doras que evitam o retorno ao inferno an-
É nisto que consiste a anti-antiutopia. terior. É nesta visão estratégica, que impe-
A anti-antiutopia revela, portanto, um de o Homem de cair nos mesmos erros,
processo dinâmico para a realização que se fundamenta a anti-antiutopia. Re-
duma estratégia de reconstrução. Esta es- presenta, assim, a forma de renovar a es-
tratégia permitirá reativar o espírito utó- perança, construindo um novo caminho,
pico, após o desalento encontrado, num consolidado por via da aprendizagem das
primeiro estádio, com o aparecimento da ações que motivaram o insucesso do so-
antiutopia gerada como reflexo do objeti- nho utópico inicial.
vo utópico não conseguido. Trata-se dum Regressando à procura de referências
processo faseado no tempo, cumprindo na literatura quanto ao uso do vocábulo
a seguinte ordem: primeiro, a afirma- “anti-antiutopia”, o crítico literário Fre-
ção, a seguir, a negação, para se chegar, dric Jameson (n. 1934) emprega este
finalmente, à negação da negação. A pri- termo para descrever a única forma de
meira fase corresponde à utopia inicial- utopismo que aparece a seguir ao pe-
mente projetada, enquanto a segunda ríodo de proliferação do antiutopismo
compreende o período de desilusão por iniciado com a Guerra Fria. Na linha
não terem sido alcançados os objetivos da sua teorização, este crítico ameri-
previstos. A terceira e última fase, iden- cano designa como anti-antiutopistas
tificada com a anti-antiutopia, equivale um grupo de escritores americanos de
ao começo dum novo projeto, edificado ficção científica do pós-modernismo

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1954 antiarte

nascidos no período entre 1924 e 1933,


juntando-lhes o escritor Samuel R. De-
Antiarte
lany, nascido em 1942. Pode então con-
cluir-se que a denominação “anti-antiu-
topia”, ventilada por Fredric Jameson,
aparece associada, no tempo, ao perío-
do do Maio de 1968, quando surgem as
ecotopias – um género de configuração
literária do conceito de anti-antiuto-
pia –, como acima referido.
A arte foi conquistando terreno, me-
tro quadrado. Anteriormente, estava
centrada na técnica – naquilo que o ou-
tro, o homem comum, o não artista, não
sabia fazer. Era arte expressa por via das
Bibliog.: impressa: ANTUNES, Manuel, Obra mãos e dos movimentos – o artesanato
Completa, coord. científica Luís Filipe Barre- raro, o gesto insólito, o objeto afastado
to, t. i, vol. iv, Lisboa, FCG, 2007; BACON, do comum.
Francis, Nova Atlântida, a Grande Instauração,
Mas tudo foi sendo absorvido. Tudo o
Lisboa, Edições 70, 2008; CALLENBACH, Er-
nest, Ecotopia, New York, Bantam Dell, 1975; que era não arte ou contra a arte foi devo-
CAMPANELLA, Tomás, A Cidade do Sol, Lis- rado: o normal, o real, o tédio, o silêncio,
boa, Guimarães Editores, 1996; HUXLEY, a linguagem animalesca, a natureza. Não
Aldous, Admirável Mundo Novo, Lisboa, Livros interessa o objeto, o movimento, o que
do Brasil, 1932; KUMAR, Krishan, Utopia and se faz. Nada ficou de fora. Tudo pode ser
Anti-Utopia in Modern Times, Oxford, Basil Bla- convertido. O último reduto é a vontade.
ckwell, 1987; MANUEL, Frank, e MANUEL,
A vontade basta. Se a intenção é artística,
Fritzie, Utopian Thought in the Western World,
Oxford, Basil Blackwell, 1979; MINOIS, Geor-
é arte. Podemos, enquanto espectadores,
ges, História do Futuro (dos Profetas à Prospectiva),
Lisboa, Teorema, 2000; MORE, Thomas, Uto-
pia, introd. José V. de Pina Martins, ed. crítica
e anot. Aires do Nascimento, Lisboa, FCG, Árvores empacotadas (1998),
2006; MORRIS, William, News from nowhere de Christo e Jean-Claude.
and Other Writings, org. Clive Wilmer, London,
Penguin Books, 2004; MUMFORD, Lewis,
História das Utopias, Lisboa, Antígona, 2007;
ORWELL, George, Nineteen Eighty-Four, Lon-
don, Penguin Books, 2013; RIOT-SARCEY,
Michèle et al., Dicionário das Utopias, Lisboa,
Texto & Grafia, 2009; STERNBERG, Jacques,
Mai 86, Paris, Albin Michel, 1978; TROUS-
SON, Raymond, Voyages aux Pays de Nulle Part,
Bruxelles, Éditions de l’Université de Bruxelles,
1979; VIEIRA, Fátima, “The concept of uto-
pia”, in CLAEYS, Gregory (org.), The Cam­bridge
Companion to Utopian Literature, Cambridge,
Cambridge University Press, 2010; digital:
GLENN, Joshua, “Anti-anti-utopians: 1934­
‑43”, HiLobrow, 30 set. 2009: http://hilobrow.
com/2009/09/30/the-anti-anti-utopians/
(acedido a 6 jun. 2017).
António Pereira

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Antiautonomia 1955

gostar menos ou gostar mais, isso não é a


questão.
Antiautonomia
Todas as artes chegaram ao seu zero e
continuaram a ser arte: silêncio na músi-
ca, quadro branco na pintura, imobilida-
de e mudez no teatro, escultura efémera,
etc., etc. Não há nada que seja o lado
oposto à arte. A arte devora aquilo que se
lhe opõe, é omnívora.
O que fica, então, de fora? O que é a
A autonomia é um conceito muito am-
plo, mas é no debate político, no qual
aparece a partir do séc. xix, que é mais
antiarte? considerado. Todavia, a sua ausência no
A antiarte talvez esteja apenas também vocabulário histórico não implica que os
na intenção, na declaração: “não aceito insulares não tivessem plena consciência
que o que fiz seja considerado arte”. da sua importância no quotidiano, no-
Porém, no limite, até essa intenção meadamente nas formas de governo.
pode ser desrespeitada, pode ser engolida. Esta forma de expressão do poder go-
A antiarte é, então, aquilo que abre o vernativo pode definir-se no território de
apetite da arte – é o seu futuro alimento. forma unitária ou descentralizada. A des-
Por vezes, até, estranhamente, o seu futu- centralização do poder assume, pelo me-
ro centro. nos, três níveis: constitucional, em que é
atribuída liberdade constitutiva e auto-
nomia normativa com carácter político,
Bibliog.: CABANNE, Pierre, Marcel Duchamp,
como acontece com o Estado federado,
Engenheiro do Tempo Perdido: Entrevistas com
Pierre Cabanne, Lisboa, Assírio e Alvim, 1990; em que estamos perante uma divisão de
ECO, Umberto, Obra Aberta, Lisboa, Difel, decisões e funções de governo; político,
1989; MIRANDA, José Bragança de, Teoria em que é retirada a liberdade constituti-
da Cultura, Lisboa, Século XXI, 2002; SILVA, va, ficando apenas a liberdade de dispor
Paulo Cunha e, O Lugar do Corpo – Elementos da possibilidade da autonomia normati-
para Uma Cartografia Fractal, Lisboa, Instituto va, condicionada ao estabelecido no es-
Piaget, 1998.
tatuto e na Constituição; administrativo,
Gonçalo M. Tavares o nível mais simples de descentralização,
baseado apenas na área administrativa do
território. A segunda forma de descentra-
lização – nível político – dá lugar ao Esta-
do regional, que surge como uma forma
intermédia entre o federal e o unitário.
De acordo com Jorge de Macedo, a tra-
dição de ampla autonomia dos poderes
políticos periféricos é antiga e está enrai-
zada na história portuguesa, como na es-
panhola e italiana. Aliás, o nascimento de
Portugal radica-se na opção autonomis-
ta, de que o município era considerado
uma das expressões máximas. Mas a his-
tória política nacional revela uma opção
nitidamente antiautonomista, que fará

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1956 Antiautonomia

desenvolver o centralismo do Terreiro do


Paço, assim como o atraso das regiões da
metrópole, dos espaços insulares atlânti-
cos e das colónias.
A questão da autonomia coloca-se, a
partir do séc. xx, apenas para os espaços
insulares. A principal diferença entre o
processo autonómico nos Açores e na Ma-
deira radica na fraca dimensão do movi-
mento político-cultural que lhe serviu de
base entre os políticos madeirenses. Nos
Açores, a sua expressão, sob a forma de
bairrismo das ilhas ou distritos do arqui-
pélago, favoreceu a discussão e a elabora-
ção de uma autonomia administrativa em
1895, o mesmo acontecendo com o deba- O Patriota Funchalense, n.º 1.
te sobre a divisão administrativa do arqui-
pélago desde a Revolução Liberal. serão aliás, ontem e hoje, o principal pro-
Entendemos que o princípio da de- blema político das autonomias e constitui-
finição da autonomia, em termos insti- rão um dos principais fundamentos da de-
tucionais, terá começado com a criação fesa da antiautonomia que se estabeleceu
do senhorio em 1433, que mereceu uma a partir da déc. de 30, com o discurso do
oposição centralizadora por parte de Estado Novo, e continuou no período da
D. Manuel, responsável pelo fim desta es- conquista da nova autonomia política, a
trutura em 1497, ao apostar numa política partir de 1976.
de centralização régia que implicou uma A vulgarização do conceito de autono-
perda de poder por parte dos capitães do mia acontece apenas a partir de 1821,
donatário. sendo de realçar, no caso madeirense, a
Desta forma, podemos afirmar que a imprensa escrita, nomeadamente o jor-
primeva expressão do discurso antiauto- nal O Patriota Funchalense (1821-23), que
nomia se expressa em D. Manuel, quando define a autonomia como um discurso
faz reverter a posse das ilhas para a Co- de afrontamento à metrópole, simboliza-
roa, justificando esta atitude em relação da pelo Terreiro do Paço. É, porém, nos
à Madeira com a importância económica finais do séc. xix que estas ideias voltam
da ilha para o reino: “he huma das princi- de novo à ribalta e ganham lugar cativo
paes e proveitozas couzas que noz, e real no dicionário do debate político nacional
coroa de nosso reyno temos para ajudar, e regional, como forma de contestar o
e soportamento de estado real, e encar- centralismo da Regeneração. Esta contes-
gos de nossos reynos” (“1497-abril-27…”, tação tem um momento importante em
1973, 363-364). Sacrifica-se, assim, a auto- 1882, com a eleição do primeiro deputa-
nomia insular, para que o acesso do reino do republicano pelo Funchal, o açoriano
à riqueza da ilha não mereça qualquer Manuel de Arriaga.
contestação ou obstáculo. Em 1895, tivemos o primeiro estatuto
Nesta época e nas que se seguem, é a autonómico para os distritos de Ponta Del-
questão financeira a fundamentar a opção gada e Angra do Heroísmo, que foi adap-
antiautonomista. As questões financeiras tado em 1901 à Madeira. A Implantação

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Antiautonomia 1957

da República foi, depois, uma esperança,


pelos propósitos de descentralização polí-
tica, que não aconteceram, na medida em
que o combate pela autonomia parecia
ser entendido como uma reação antirre-
publicana – o que quererá dizer que a Re-
pública foi antiautonomista.
Nos primeiros anos da segunda déca-
da do séc. xx (1922-1923), o movimento
autonomista insular continuava cada vez
mais ativo, mas tinha contra si os grupos
antiautonomia que acusavam os insula-
res de separatismo ou independentismo.
Com o Estado Novo, o movimento auto-
nomista reaparece, ainda que por pouco
tempo, surgindo, na Madeira, a Liga Re- João Abel de Freitas (1893-1948).
gionalista e um jornal do visconde do Por-
to da Cruz com um título provocatório: aplicação de capitais e do imposto de tran-
Independência. sações seriam receita da Junta e seriam
É evidente que o discurso antiautono- usados em benefício da região, ficando
mista se expressa quase sempre no te- o Estado com apenas 1 % para despesas
mor de que a concessão de mais amplos de cobrança. A 31 de julho, porém, com
poderes às regiões insulares conduza à o dec.-lei n.º 35.805, voltou a alterar-se a
independência e a um discurso antisse- situação. Este decreto, assinado pelo en-
paratista, o que obrigou os insulares a tão ministro das Finanças, Oliveira Salazar,
procurarem desfazer, por diversas for- que pode ser considerado um dos mais
mas, esse discurso. Assim, em 1917, no evidentes antiautonomistas, juntamente
editorial do jornal A Verdade, do Funchal, com Marcelo Caetano, marca o princípio
afirma-se que “A descentralização não do fim do combate autonomista das ilhas.
aliena a qualidade de português, mas dá à Antes, aumentara-se a receita dos distritos;
região descentralizada foros de se gover- agora, impõem-se novos encargos, com o
nar por si mesma, sem tutela de governos alargamento da descentralização a serviços
que nem sempre estão a par das neces- dependentes dos ministérios do Comér-
sidades das diversas regiões” (“Editorial”, cio, Agricultura e Instrução, Governo Civil,
A Verdade, 19 nov. 1917, 1). Polícia Cívica, Saúde, Assistência e Previ-
A Revolução de 28 de maio de 1926 dência. Sem capacidade para acabar com
foi saudada, no caso madeirense, por a autonomia, Salazar acedeu às aspirações
muitos sectores da sociedade, porque autonomistas, transferindo alguns serviços,
depositaram nela as suas esperanças de que conduziram à asfixia financeira das
mudança. A primeira alteração ocorreu Juntas. As reformas do Governo não satisfi-
com o dec.-lei n.º 15.035 de 16 de feverei- zeram a ambição dos regionalistas.
ro de 1928, que ia ao encontro de algu- A Constituição, aprovada em 11 de abril
mas reivindicações no campo financeiro. de 1933, estabelecia para as ilhas uma ad-
Os valores que resultavam da cobrança ministração especial (art. 124, § 2.º), só
da  contribuição predial rústica e urbana, regulamentada pela lei n.º 1967, de 30
da contribuição industrial, do imposto de de abril de 1938, que está muito distante

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1958 Antiautonomia

destes propósitos. No preâmbulo da lei, É aqui que o atual discurso da antiauto-


refere-se que a geografia obrigou a esta nomia começa a ganhar força na ideia de
descentralização e desconcentração, “em despesismo insular, que se reafirma com
benefício dos povos e com vantagem para Marcelo Caetano: “Eu ainda sou partidá-
a boa administração”. As reclamações dos rio da manutenção do regime autonómi-
insulares levaram a que o Governo intro- co. Mas a autonomia tem de ser um pro-
duzisse, em 1928, alterações significativas, cesso de facilitar a administração e a vida
através da descentralização de muitos ser- económica do arquipélago, e não um tra-
viços. De novo, choveram reclamações, vão”. Por outro lado, a opinião de Caeta-
porque as receitas eram insuficientes, con- no é pouco abonatória da classe política
tinuando o legislador a negar a possibili- madeirense: “para que haja descentraliza-
dade de usufruto total das receitas fiscais: ção é preciso existirem recursos financei-
“Formam as ilhas adjacentes um todo com ros e gente capaz de os gerir”. A propó-
o continente, é o mesmo o seu sistema de sito da sua visita às ilhas, em relatório ao
administração e governo, como o mesmo ministro do Interior, afirmava que “O es-
é o grau de, civilização dos habitantes e de col madeirense só agora começa a reve-
progresso social: seria, pois, contrário ao lar alguns dirigentes dignos desse nome.
bem comum consagrar uma forma egoís- Até aqui a política local era de puro es-
ta de plena autonomia financeira que pa- tilo antigo, feita para consolidar influên-
recesse realizar a desintegração do Estado cias à custa dos favores pessoais. [...] os
de uma parte do seu território metropo- caciques deixavam-se levar na torrente e
litano”. Acusa-se as anteriores medidas, arvoravam-se em procuradores de todos
dizendo-se que “foi excessiva a liberdade os descontentamentos junto do Poder
conferida às juntas em 1928” (LEITE, Central”. E rematava: “O distrito do Fun-
1987, 295), pois a descentralização sem a chal suporta, em tese, a autonomia, mas a
tutela governamental podia ser um prin- sua grande carência é de escol dirigente”
cípio de má gestão. Deste modo, manteve­ (ENES, 2005, s.p.).
‑se a descentralização existente, passando, Com o 25 de Abril de 1974, abriu-se
todavia, a ser fiscalizada pelo Governo Ci- uma nova etapa para a autonomia dos
vil e tutelada pelo Governo central. espaços insulares. Mesmo assim, as difi-
Recorde-se, ainda, que em carta de 23 culdades foram muitas. Rapidamente se
de maio, de resposta a outra de João Abel ateou um discurso antiautonomista, as-
de Freitas, Salazar insinua a ideia de auto- sente na ideia de que os insulares eram
nomia despesista, como consistindo “sim- despesistas. O estigma de Salazar e Cae-
plesmente na liberdade de gastar, dando tano retorna e conquista o imaginário
o Poder Central quanto fosse necessário nacional, nomeadamente nos debates na
para isso”. Desta forma, a autonomia era Assembleia da República, na comunica-
entendida “[não como] a autonomia de ção social escrita e, de forma especial, na
gastar mas a de administrar um patrimó- televisão, alimentando assim o discurso
nio ou uma receita, tirando de um ou da antiautonomista.
outra o maior rendimento. Do facto de a Na verdade, desde o séc. xix que a prin-
receita não chegar para tudo o que apete- cipal questão no debate e reivindicação
ce ou há mesmo necessidade de fazer, não da autonomia se prende com as finanças.
se segue que é ao Governo que incumbe A questão financeira continua ainda a
cobrir as diferenças. E este sobre quem as estar na origem do principal contencio-
havia de lançar?” (VIEIRA, 2003, 319-323). so das autonomias insulares. A cobrança

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Antiautonomia 1959

dos impostos e a aplicação do produto dos Açores, 1987; MACEDO, Jorge Braga de,
líquido não revertem em benefício da re- História Diplomática Portuguesa: Constantes e Li-
gião, que tanto deles necessita. Esta ideia nhas de Força. Estudo de Geopolítica, Lisboa, Ins-
tituto da Defesa Nacional, 1987; REIS, Ma-
persiste e domina o debate, chegando à
nuel Pestana, “Regionalismo. A autonomia da
Assembleia pela voz de Manuel José Viei-
Madeira”, in Quinto Centenário do Descobrimento
ra, em intervenção de 7 de maio de 1883: da Madeira, Publicação Comemorativa, Funchal,
“sabemos que fazemos parte do reino de Comissão de Propaganda e Publicidade do
Portugal única e exclusivamente para qui- Centenário, 1922; VERÍSSIMO, Nelson, “Em
nhoarmos nos encargos que se renovam 1917, a Madeira reclama autonomia”, Atlânti-
ou batizam com nomes diferentes, mas co, n.º 3, 1985, pp. 229-232; Id., “A nossa auto-
que sempre se acrescentam” (VIEIRA, nomia: um inquérito de Armando Pinto Cor-
reia”, Atlântico, n. º 19, 1989, pp. 197-202; Id.,
1883, 6).
“O alargamento da autonomia dos distritos
Se no séc. xv foi a necessidade de usu- insulares: o debate na Madeira (1922-1923)”,
fruto das receitas e a riqueza dos espaços in Actas do II Colóquio Internacional de História da
insulares que levou a Coroa a travar a Madeira, Funchal, Direção Regional dos As-
continuidade do processo de pseudoau- suntos Culturais, 1990; Id., “Autonomia in-
tonomia com o senhorio das ilhas, a par- sular: as ideias de Quirino Avelino de Jesus”,
tir da déc. de 20 do séc. xix, o discurso da Islenha, n.º 7, jul.-dez. 1990, pp. 32-36; Id.,
“Autonomia insular. O debate na primavera
autonomia destes espaços assume como
marcelista”, Islenha, n.º 9, jul.-dez. 1991,
principal bandeira a utilização dos meios pp.  10­‑11; VIEIRA, Alberto, A Autonomia XX.
financeiros gerados nas regiões em seu Aniversário. Breves Notas Históricas, Funchal,
favor. Passado um século, o discurso da Secretaria Regional de Educação, 1996; Id.,
antiautonomia assenta na negação destes História e Autonomia da Madeira, Funchal, Se-
meios e na ideia de regiões insulares po- cretaria Regional de Educação, 2003; VIEI-
liticamente incapazes e muito gastadoras. RA, Manuel José, Discurso Proferido na Câmara
Este discurso manteve-se até ao séc. xxi dos Senhores Deputados na Sessão de 7 de Maio de
1883, Lisboa, Typ. do Diário da Manhã, 1883;
e tornou-se a principal bandeira dos par-
digital: ENES, Carlos, “Açores e Madeira vis-
tidários da antiautonomia, ganhando tos por Marcello Caetano em 1938”, Bole-
expressão nas bancadas do Parlamento e tim do Núcleo Cultural da Horta, n.º 14, 2005:
nos meios de comunicação. http://www.nch.pt/biblioteca-virtual/bol-n-
ch14/n14-7.html (acedido a 14 dez. 2016).
Bibliog.: impressa: “1497-abril-27: carta
… Alberto Vieira
régia”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xvii,
1973, pp. 363-364; Autonomia e História das
Ilhas. Seminário Internacional, Funchal, Centro
de Estudos de História do Atlântico, 2001;
CARREIRO, José Bruno, A Autonomia Admi-
nistrativa dos Distritos das Ilhas Adjacentes, Ponta Algumas partes desta entrada foram anterior-
mente publicadas em:
Delgada, Jornal da Cultura, 1994; CORDEI-
http://www.academia.edu/26559254/VIEI-
RO, Carlos, Nacionalismo, Regionalismo e Autori- RA_Alberto_AUTONOMIA_INSULAR._AL-
tarismo nos Açores durante a I República, Lisboa, GUNS_DADOS_PARA_OUTRA_LEITURA;
Salamandra, 1999; “Editorial”, A Verdade, 19 h t t p : / / w w w. a c a d e m i a . e d u / 2 5 6 0 1 3 2 4 /
nov. 1917, p. 1; JANES, Emanuel, Nacionalismo VIEIRA_Alberto_AO_ENCONTRO_DAS_
e Nacionalistas na Madeira nos Anos Trinta (1928­ MEM%C3%93RIAS_E_DOS_DISCURSOS_
‑1936), Funchal, Centro de Estudos de Histó- DA_AUTONOMIA_INSULAR_O_ARQUIP%-
C3%89LAGO_DA_MADEIRA;
ria do Atlântico, 1997; LEITE, José Guilherme
Reis, Autonomia dos Açores na Legislação Portu- http://aprenderamadeira.net/autonomia-e-
financas/.
guesa 1892-1947, Horta, Assembleia Regional

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1960 Antítese eslava

Antítese eslava eslavos, sendo mais visível na criação


poética dos eslavos balcânicos. No fol-
clore búlgaro, esta figura não aparece
no início do poema, como uma fórmula
introdutória, como é o caso dos poemas
sérvios. Encontra-se sempre no meio do
texto poético e em forma dialogada, em

A antítese eslava (em sérvio, “slo-


venska antiteza”) ou o paralelismo
negativo é uma figura de estilo caracte-
que um dos intervenientes expõe a sua
pergunta e o outro responde, primeiro
negativamente, para depois dar a sua ex-
rística da poesia lírica, épica e lírico-épi- plicação da questão.
ca, sobretudo da tradição oral dos povos Apesar da opinião generalizada entre
eslavos, embora também possa existir em os especialistas de que esta figura de es-
outras culturas. O primeiro autor que es- tilo é uma criação tipicamente eslava,
creveu sobre esta figura de estilo e que Mehmed Nezirovic, no seu artigo “Se
lhe deu o nome foi o estudioso alemão a antítese eslava é verdadeiramente es-
Jakob Grimm, que aprendeu a língua lava”, descarta a teoria da origem esla-
sérvia para poder traduzir a poesia épica va desta figura, afirmando que existem
(na qual esta antítese é um elemento im- exemplos idênticos na literatura sefardi-
portante) para alemão. Investigadores ta da Bósnia, na literatura hispano-árabe
sérvios como Dragisa Vitosevic, Radmila e até nas literaturas provençal e portu-
Pesic e Nada Milosevic-Djordjevic usam guesa. Nesta linha de pensamento, a au-
este nome, enquanto entre os teóricos tora russa Elena A. Kalashnikova, no seu
russos há preferência pela denominação artigo “Para a investigação da estilística
“paralelismo negativo” (“Otritsatel’ny comparada do folclore: o funcionamen-
paralelizm”), embora “antítese eslava” to da ‘antítese eslava’ e do ‘paralelismo
também exista como termo. Trata-se de negativo’ no material folclórico de di-
um paralelismo baseado numa compa- versas etnias”, afirma que nos poemas
ração negativa. Consiste em três partes: épicos finlandeses, inclusive no Calévala,
uma pergunta ou constatação, uma res- se encontram exemplos desta figura de
posta negativa e uma conclusão afirmati- estilo. Este recurso estilístico encontra­
va, importante para o desenvolvimento ‑se nas obras poéticas dos romenos e
do poema. Um acontecimento impor- gregos, que, não sendo eslavos, parti-
tante na vida humana compara-se a um lham algumas referências culturais bal-
fenómeno natural, um episódio da vida cânicas. Tendo em conta que a Moldávia
animal, etc. Tal como na literatura sér- não é um país eslavo, embora seja mui-
via, na Rússia esta figura de estilo come- to influenciado pela cultura russa, nos
çou a ser usada no folclore e na poesia poemas populares moldavos, sobretudo
lírica popular. Essas comparações eram nos de Natal, encontram-se exemplos da
feitas porque antigamente o Homem era antítese eslava em forma de diálogo. Na
muito mais próximo da natureza e a sua cultura albanesa, que não é eslava mas
sabedoria baseava-se na observação e no marcadamente balcânica, existem exem-
registo de experiências quotidianas, cos- plos de poemas épicos com esta figura
tumes e tradições. de estilo. Iremos citar exemplos apenas
A antítese eslava está presente na poe- das literaturas populares sérvia e russa,
sia de expressão oral de todos os povos sendo estas as línguas eslavas que domi-

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Antítese eslava 1961

namos. Dificilmente se pode dizer em introduzidas pela antítese eslava. Por


qual destas poesias populares o conceito seu turno, no romanceiro português, a
se gerou primeiramente, devido à orali- primeira parte deste recurso estilístico
dade como meio de transmissão da lite- pode ser uma frase declarativa em vez de
ratura popular. uma pergunta. Leia-se, e.g.: “Escutae se
Nos dicionários de termos literários q’reis ouvir/Um rico doce cantar!/De-
portugueses, não se menciona a designa- vem de ser as marinhas/Ou os peixinhos
ção “antítese eslava”, nem sequer “parale- do mar./Ele não são as marinhas,/Nem
lismo negativo”. As entradas lexicais “antí- os peixinhos do mar,/Deve de ser Dom Do­
tese” e “paralelismo” oferecem definições ardos,/Que aqui nos vem visitar” (Id.,
de outros conceitos, diferentes destes. No Ibid., 271-272).
romanceiro tradicional português, sobre- Neste trecho do poema, um dos pro-
tudo nos romances de conteúdo históri- tagonistas constata que tinha ouvido um
co ou novelesco, pode encontrar-se um “doce cantar”, expondo as suas suposi-
recurso estilístico muito semelhante à ções relacionadas com a origem dessa
antítese eslava. Assim, e.g., no romance voz. A sua interlocutora nega-as e expli-
intitulado O Caçador e a Donzila, o diálo- ca a verdadeira origem do canto, a pre-
go entre os protagonistas tem a estrutura sença do seu pretendente, D. Doardos.
desta figura de estilo: “Tu ou te ris do ca- Tal como nos poemas criados nas cultu-
valo/Ou da sua selaria?/Não me rio do ras eslavas, a antítese inicial é apenas um
cavalo/Nem da sua selaria:/Rio-me do ponto de partida para o desenvolvimen-
cavaleiro,/Da sua má covardia/Achou to dos acontecimentos: a fórmula in-
a ninha no campo,/Não a quis por sua trodutória anuncia a rivalidade entre o
amiga” (BRAGA, 1982, 187). protagonista e o namorado da sua filha,
Nesta passagem do romance tradicio- dando um teor dramático ao poema. Por
nal, estão presentes todos os elementos estes exemplos e pelos que iremos citar
do mecanismo literário que nas línguas (da poesia popular sérvia), não é pos-
e culturas eslavas se denomina antítese sível distinguir muito claramente se de
eslava: a pergunta com duas hipóteses de facto se trata da mesma figura de estilo
resposta (se a razão para o riso da meni- (que no espaço cultural português teria
na é o aspeto do cavalo ou a sua sela), eventualmente outro nome) ou se são
a resposta negativa que descarta as duas dois mecanismos poéticos muito seme-
opções e a terceira parte em que surge lhantes que enriquecem o discurso dos
a explicação do motivo de a donzela se intervenientes num poema.
rir (a covardia do cavaleiro). A respos- O esquema é sempre o mesmo: na pri-
ta final poderia terminar com a palavra meira premissa, coloca-se uma questão
“covardia”, embora esta imagem possa ou constata-se um determinado estado
ser um pouco ampliada com as palavras de coisas, para na segunda parte a ideia
da protagonista, explicitando as razões inicial ser negada ou descartada como
da covardia do rapaz. possibilidade, sendo na terceira e última
Nos poemas dos povos eslavos, a res- parte dada uma espécie de desfecho da
posta que consta na terceira parte da primeira ideia. Geralmente serve como
figura pode oferecer uma reflexão adi- fórmula introdutória para um poema,
cional, não sendo esta parte obrigatória, podendo aparecer também no meio
uma vez que o resto do poema irá expli- com a mesma função: a de ampliar a
car a importância da imagem ou ideia estrutura do poema, introduzindo um

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1962 Antítese eslava

elemento importante para o seu conteú- componente estética, desenvolvendo ao


do. Na posição final, este recurso estilís- mesmo tempo o interesse pela sonorida-
tico parece ser a resolução definitiva de de das palavras e pelos efeitos visuais que
um problema ou o desfecho da história a figura de estilo produz. Milica Micic Di-
narrada no poema. movska vê nesta figura a introdução dos
A investigadora sérvia Tanja Popovic participantes do acontecimento, já anun-
é da opinião de que estas repetições de ciado pela imagem expressa na antítese.
elementos, quer no sentido positivo, Com esta figura, e especialmente me-
quer no negativo, apenas sublinham as diante a oposição negativo/positivo, ob-
semelhanças entre o objeto que se com- tém-se a sensação de uma maior tensão
para e o desconhecido que é introduzi- emocional e expressam-se os estados de
do. Servem para manter a atenção do alma dos intervenientes: os seus medos,
público, para salientar a beleza da ima- as suas inquietações e as suas alegrias. Na
gem descrita e são um fio condutor para poesia épica ou lírico-épica, a antítese es-
o que realmente é importante no poe- lava é frequentemente indicadora de um
ma. A sua origem está relacionada com acontecimento menos desejável: doença
a adivinha e a sua estrutura de pergun- ou morte de um dos protagonistas, a ce-
ta e resposta faz lembrar precisamente lebração que os Turcos fazem por terem
este género popular. Dejan Ajdacic, no posto em cativeiro muitos escravos sér-
seu artigo “As cores na poesia popular”, vios, o ferimento de um herói no campo
analisando esta figura de estilo em fun- de batalha, etc. Na poesia lírica, porém, a
ção das cores na poesia popular sérvia, antítese eslava esclarece as dúvidas do ra-
observa que ela aumenta o valor poético paz apaixonado acerca dos sentimentos
das imagens que se descartam e da ima- da amada, é sinal de sabedoria do sujeito
gem final, atribuindo um carácter lírico do poema e tem um cariz mais otimista.
a todo o poema. Para Miodrag Maticki, Leia-se o poema “O rapaz e a rapariga”:
citado por Ajdacic, com a introdução da “Ó, cavaleiro, meu sol brilhante!/Nem
resposta negativa, a comparação passa a crescia para o pinheiro olhando,/Nem
ser metáfora. De facto, este recurso es- para a bétula fina orgulhosa/Nem para
tilístico é mais próximo de metáfora do o teu irmão mais novo,/Mas eu jovem
que de comparação, uma vez que carece cresci em direção a ti” (DJURIC, 1958,
do nexo “como”, obrigatório nas compa- 53, tradução nossa).
rações. Como elementos de comparação, Na balada popular sérvia “Hasana-
podem ser usados os animais, as plantas, ginica” [“A esposa de Hassan-agá”], o
a espuma do mar, as nuvens, a neve, os exemplo introdutório da antítese eslava,
objetos do quotidiano. Se a comparação a imagem da tenda do agá turco e a sua
é feita com os elementos da natureza, brancura, contrapõe-se à suposta falta
contribui para a visão de uma imagem de honra da sua esposa, razão pela qual
quase pastoril, idealizada. Muitas vezes, foi cruelmente expulsa de casa: “O que
como partes da comparação, podem en- é que se branqueia na floresta verde?/
contrar-se entidades do mundo superior Será a neve, ou serão os cisnes?/Se fosse
(fadas, Deus), o que dá uma dimensão a neve, já se derretia,/Se fossem os cisnes,
mais transcendental à imagem com- já voariam,/Nem é a neve, nem são os cis-
parada e ao poema na sua totalidade. nes,/Senão a tenda do agá Hassan-agá./
A enumeração dos elementos que se com- Ele padece de graves feridas./Visitam-no
param na antítese eslava tem uma forte a mãe e a irmãzinha,/Mas a esposa não

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Antítese eslava 1963

pôde por vergonha” (“Hasanaginica”, to nos épicos ou lírico-épicos a resposta


Basta Balkana, s.d., tradução nossa). surge diretamente após a negação. Para
A figura em si termina quando se des- além da poesia popular, a antítese eslava
cartam as possibilidades de solução para aparece na poesia de alguns autores eru-
tanta brancura na montanha verde: a ditos, como Momcilo Nastasijevic, Matija
neve e os cisnes. Se a montanha é ver- Beckovic, Vasko Popa e Ljubomir Simo-
de, o tempo em que acontece a ação do vic, poetas inspirados na tradição oral.
poema é a primavera, portanto a hipóte-
se da neve é automaticamente negada.
Bibliog.: impressa: BRAGA, Teófilo, Cantos Po-
Os cisnes, pela sua beleza e elegância
pulares do Arquipélago Açoriano, Ponta Delgada,
em muitas culturas, tal como a neve, Universidade dos Açores, 1982; DIMOVSKA,
simbolizam a pureza. Através da dupla Milica Micic, Od A do S, Vodic kroz Knjizevne Izra-
negação e do destaque da brancura da ze i Pojmove za Ucenike Osnovnih i Srednjih Škola,
tenda, salienta­‑se ainda mais a possibi- Novi Sad, Stevan Beljanski, 1989; DJURIC,
lidade da desonestidade da esposa e da Vojislav (org.), Antologija Spskih Narodnih lLrskih
pureza moral do agá, enquanto parte Pesama, Novi Sad-Beograd, Matica Srpska/
Srpska knjizevna zadruga, 1958; POPOVIC,
considerada ofendida. Como se vê, a an-
Tanja, Recnik Knjizevnih Termina, Beograd, Logos
títese eslava nunca é uma descrição está- Art, 2007; VITOSEVIC, Dragisa, Teorija Knjize-
tica, isenta de juízos de valor implícitos. vnosti sa Teorijom Pismenosti, Beograd-Sarajevo,
Neste exemplo, a figura é ampliada com Naucna knjiga/Svjetlost, 1988; digital: AJDA-
algumas reflexões acerca da neve e dos CIC, Dejan, “Boje u narodnojpoeziji”, Ras-
cisnes, que explicam a linha do raciocí- tko, s.d.: http://rastko.rs/rastko/delo/10040
nio; porém, nem sempre respeita esta es- (acedido a 9 jan. 2017); “Hasanaginica”,
trutura, porque à pergunta segue-se logo Basta Balkana, s.d.: http://www.bastabalkana.
com/2013/03/hasanaginica-tekst-pesme-pisa-
a resposta negativa e a sequência esclare-
ni-sastav-i-skolska-lektira/ (acedido a 7 jan.
cedora. Nos poemas lírico-épicos e épi- 2017); KALASHNIKOVA, Elena A., “исслед
cos, a antítese eslava tem uma estrutura ованиюсравнительнойстилистикифольк
bastante mais narrativa, enquanto nos лора: функционирование‘славянскойан
líricos segue uma estrutura dialogada, титезы’и‘отрицательногопараллелизма’
em que um dos intervenientes expõe as вразноэтническомфольклорномматериа
suas dúvidas e o outro responde, primei- лe”, Rastko, s.d.: http://www.rastko.rs/cms/
files/books/49dbb2c62c025 (acedido a 5 jan.
ro de forma negativa, para depois dar a
2017); NEZIROVIC, Mehmed, “Dalijeslaven-
sua visão afirmativa da situação. Veja-se, kaantitezazaistaslavenska?”: http://preporod.
e.g., o poema “A rapariga sérvia” (tradu- ba/wp-content/uploads/godisnjak-2006.pdf
ção nossa): “Ó, Milica, nossa amiga,/Ou (acedido a 9 jan. 2017).
és louca, ou sábia demais/Sempre olhas
Anamarija Marinovic
para a relva verde,/E não olhas connos-
co para as nuvens/Relâmpagos a perse-
guirem-se pelas nuvens?/Mas Milica ra-
pariga começa a falar:/Nem sou louca,
nem sábia demais,/Nem sou fada para
as nuvens juntar,/Mas sou rapariga para
em frente olhar” (DJURIC, 1958, 32-33).
Nos poemas líricos, as premissas da
antítese eslava estão separadas pela in-
terpelação de quem responde, enquan-

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1964 Ateísmo

Ateísmo a ser usado para referir os indivíduos e os


grupos que manifestavam publicamente
descrença ou ceticismo em relação à fé
religiosa da maioria, a respublica christiana.
E mais recentemente, no limiar do tercei-
ro milénio, o chamado neoateísmo tem-se
afirmado cada vez mais como contra deus

O termo grego “a-theos” significa sem


deus e foi aplicado na Antiguida-
de – com uma conotação negativa – aos
(antiteísmo), num claro combate militan-
te contra toda e qualquer forma religiosa.
Não vamos aqui fazer a história do ateís-
que rejeitavam, pelo menos aparentemen- mo (&Antiateísmo), mas importa lembrar
te, os deuses venerados pelo conjunto da que, de um fenómeno individual que era
sociedade de então. Desde o início da na Antiguidade – concernente apenas a
Modernidade, o mesmo termo começou alguns indivíduos que ousaram exprimir
crenças divergentes acerca dos deuses ou
Égalité (1793), de Jean-Guillaume Moitte. propuseram algumas teorias estranhas
acerca da origem da religião –, se transfor-
mou numa ideologia generalizada e prá-
tica (com consequências evidentes para a
própria prática religiosa). Como negação
teórico-prática da existência de Deus, o
ateísmo tem múltiplas manifestações: ne-
gação explícita de Deus, agnosticismo,
ateísmo positivista (cientismo, neopositi-
vismo) ou existencialista (niilismo), indife-
rença religiosa, antiteísmo agonista (revol-
ta contra o mal no mundo) e racionalista
(a divindade como uma criação mental do
Homem), idolatria, etc.
Na raiz do moderno fenómeno do
ateísmo está, certamente, a descoberta
da autonomia do ser humano, enquan-
to afirmação sobretudo da sua liberdade
fundamental (cuja obra de referência é
a Oratio de Hominis Dignitate [1486] de
Giovanni Picco della Mirandola): o ser
humano não só possui a liberdade, mas é
a liberdade; uma liberdade que se expres-
sa como não dependência de terceiros e
como compromisso em prol da transfor-
mação do mundo e da história, tendo
assumido vários avatares ao longo da Mo-
dernidade (o sujeito cartesiano, a vonta-
de coletiva hegeliano-marxista, a liberta-
ção psicanalista freudiana e a afirmação
de liberdade absoluta em Nietzsche

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Ateísmo 1965

e Sartre), ou ainda como emancipação ria com as questões humanas” (GRÓCIO,


da tutela religiosa (secularização e laici- 2005, I, 89). Esta progressiva consciência
dade). Por outro lado, a afirmação da li- está bem sintetizada nas conhecidas pala-
berdade humana é acompanhada por um vras do teólogo luterano D. Bonhoeffer,
compromisso concreto a favor da liberta- em carta de 16 de julho de 1944: “E a úni-
ção histórica da humanidade, expressão ca via de ser honesto é reconhecer que
da igualdade entre os seres humanos (a temos de viver neste mundo etsi deus non
maior conquista da Revolução France- daretur. […] Deus mostrou-nos que deve-
sa, como bem exprime a gravura Égalité mos viver como homens que se podem
[1793] de Jean-Guillaume Moitte), don- dar muito bem sem Ele. O Deus que está
de deriva a crítica à religião, como ópio connosco é o Deus que nos abandona
do povo e como elemento sociopolítico (Mc 15, 34)” (Bonhoeffer, 1959, 163).
ao serviço de um sistema injusto. Todavia, olhando ainda para o slogan da
A partir destes dois aspetos, Piero Coda Revolução Francesa (que aqui nos acom-
pode afirmar que o ateísmo moderno é panha em pano de fundo), devemos dizer
simultaneamente humanista e postula- que há um elemento ainda por realizar: a
tório: enquanto humanismo, funda-se fraternidade. E é talvez aí que se deve re-
na aspiração à liberdade e libertação do pensar a relação com o ateísmo contem-
ser humano, emancipado e adulto; mas, porâneo, como propõem vários autores.
ao mesmo tempo, nasce do postulado P. Coda, já citado, fala da necessidade de
de que, para que o ser humano goze de passar de uma lógica de conflito para uma
autonomia e alcance a libertação, tem lógica do amor. Em seu entender, na raiz
de se libertar de Deus e denunciar a re- do ateísmo moderno há um problema
ligião como perpetuadora da injustiça. fundamental: o ser humano é permanen-
Isto tornou-se possível pela progressi- temente tentado a interpretar a sua rela-
va emancipação do direito natural em ção com Deus numa lógica conflituosa, ou
relação à teologia, onde se confundia o ser humano (o eu) ou Deus (o outro);
com a vontade de Deus (uma vez que porém, parece existir aí uma imagem alie-
era tido também como dom divino ao nante de Deus, cunhada sobre um falso
Homem), muito por ação de Francisco modelo antropológico, pois, à semelhança
Suárez (ponto de chegada da Escola de do ser humano, também Deus se autoafir-
Salamanca) e Hugo Grócio. O primeiro maria contra o mesmo ser humano. Mas se
funda-se numa passagem de Gregório de passarmos a uma lógica do amor, tornar­
Rimini para sublinhar, em De Legibus, II, ‑se-ia possível a afirmação simultânea
6, 3, a validade permanente da lei natu- dos dois. O teólogo checo Tomás Halik,
ral: “mesmo que Deus não existisse […], preocupado pelo eclipse de Deus na Mo-
existindo no homem o mesmo ditame da dernidade (na expressão de M. Buber),
reta razão […], tal ditame teria o carác- fala da substituição do Deus bíblico por
ter de lei que tem hoje” (SUÁREZ, 1944, um deus banal, sendo precisamente este
190). E é precisamente isso que afirmará deus aquele que os ateus criticam e do
o segundo em De Iure Belli ac Pacis, com qual anunciam a morte, como ocorre com
ampla repercussão na Europa iluminista: Nietzsche e com muitos outros pensadores
“Aquilo que eu disse [relativamente ao do séc. xx. O amor ao próximo, que Jesus
direito natural] será importante supondo colocou no centro do seu ensinamento,
mesmo […] que Deus não existisse [etsi seria então o caminho da redescoberta
deus non daretur], ou que não se importa- do Deus imanente e próximo, como base

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1966 Anticinema

de diálogo com os descrentes. Do mes-


mo modo, o filósofo francês Luc Ferry,
Anticinema
um descrente assumido, não se cansa de
anunciar um segundo humanismo – o da
revolução do amor – que é o humanismo
da fraternidade e da simpatia (ou o huma-
nismo da transcendência do outro e do
coração), e que, como ele próprio afirma,
não estaria muito longe da mensagem de
Jesus no sermão da montanha. Aliás, para
P odem considerar-se três aceções do
termo: a primeira relacionada com
um movimento de oposição e de censu-
Ferry, Jesus é o Homem-Deus por excelên- ra às artes, a segunda relacionada com
cia, ou seja, o sagrado com rosto humano. os movimentos artísticos que contraria-
Concluindo, o humanismo, levado às ram as convenções do cinema clássico e a
suas últimas consequências, não é neces- terceira relacionada com um movimento
sariamente antiteísta – contra Deus –, mas crítico de oposição à escola portuguesa
pode ajudar crentes e não crentes a um do cinema.
diálogo fundamental sobre os valores sa- O movimento de oposição às artes
grados da vida em comum: a fraternidade prende-se com a regência da moral. No
tão desejada por todos. livro iii da República, Platão argumento
que a arte deve ser excluída do Estado
ideal, pelos seus efeitos nocivos na alma
Bibliog.: BONHOEFFER, Dietrich, Prisoner for dos jovens. O filósofo grego temia que a
God: Letters and Papers from Prison, New York, poesia e a música pudessem alimentar o
The MacMillan Company, 1959; Bremmer,
medo da morte e dos deuses, o destempe-
Jan N., “Atheism in Antiquity”, in Martin,
M. (org.), The Cambridge Companion to Atheism, ro, a ira e a indolência. Uma vez que só
Cambridge, Cambridge University Press, a filosofia constituía um caminho válido
2006, pp. 11-26; Bullivant, Stephen, “De- de procura da verdade, todas as outras
fining ‘atheism’”, in Bullivant, S., e Ruse, formas de pensar ou de discursar sobre a
M. (orgs.), The Oxford Handbook of Atheism, Ox- realidade seriam análogas às de um imita-
ford, Oxford University Press, 2013, pp. 11-21; dor, oferecendo a aparência de verdade,
Coda, Piero, “Ateísmo”, in PacomiA, L. et
mas sem estar na posse do conhecimento
al., Diccionario Teológico Enciclopédico, Estella, Ver-
da natureza do objeto em causa. Enquan-
bo Divino, 1995; Ferry, Luc, On Love: A Phi-
losophy for the Twenty-First Century, Cambridge/ to a filosofia devia ser exultada por fazer
Malden, Plity Press, 2013; GRÓCIO, Hugo, The o pleno uso da razão, sem qualquer intro-
Rights of War and Peace, org. R. Tuck, 3 vols., In- missão das paixões, a poesia devia ser ex-
dianapolis, Liberty Fund, 2005; Halík, Tomás, tinta por elevar as piores partes da alma, a
Quero Que Tu Sejas: Podemos Acreditar no Deus saber, a concupiscente e a irascível.
do Amor?, Prior Velho, Paulinas Editora, 2016; Segundo o filósofo, a estética é subal-
HYMAN, Gavin, A Short History of Atheism, Lon-
terna da moral, i.e., deve servi-la. Platão
don/New York, I. B. Tauris, 2010; SUÁREZ,
Francisco, Selections from Three Works, vol. 2, Ox- propunha que se impedisse os poetas de
ford/London, Clarendon Press/Humphrey Mil- representarem o vício, a intemperança,
ford, 1944; Zenk, Thomas, “New atheism”, in a baixeza e a indecência. Dizia ainda ser
Bullivant, S., e Ruse, M. (orgs.), The Oxford desejável a proibição de todos os estilos
Handbook of Atheism, Oxford, Oxford University musicais à exceção do dórico e do frígio,
Press, 2013, pp. 245-261. cuja gravidade conviria ao espírito dos
Porfírio Pinto guerreiros. Dever-se-ia banir a tragédia,

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Anticinema 1967

cujos acordes chorosos poderiam amole- a ser progressivamente validado pelos es-
cer o coração, e banir a comédia, e até critores e pelos intelectuais.
o riso, que ficam mal à dignidade que Segundo Terri Ginsberg e Chris Li-
os guardiões devem conservar. O objeti- ppard, este tipo de oposição ao cinema,
vo era o de secar o poderio das paixões com base na moralidade, ocorreu tam-
na nossa alma e o de rejeitar os prazeres bém na Arábia Saudita, desde 1980 até
intensos, como a arte com ritmos orgiás- 2008. No país, o cinema era proibido
ticos e o sexo homossexual (que visava o em solo religioso e não havia salas de ci-
prazer e não a procriação), por terem um nema comerciais. Apenas se podia ir ao
carácter violento e destemperado e por cinema em cidades periféricas, onde se
serem, por isso, o oposto da disciplina, da anunciavam visionamentos pedagógicos
moderação e da submissão ao logos, i.e., ou espetáculos visuais, para não chamar
ao discurso do ser. a atenção dos grupos anticinema, que
Em 1907, 12 anos após a invenção do consideravam que o cinema promovia
cinema, teve começo, na Bélgica, segun- comportamentos sórdidos, decadentes e
do Daniel Biltereyst, um grande movi- imorais.
mento anticinema impulsionado por Em Portugal, em 1898, segundo Bér-
vários grupos conservadores, dentre os nard da Costa, famigerado diretor da
quais se destacava a Igreja Católica. Antes Cinemateca Portuguesa, partilhava-se a
das invasões alemãs da Primeira Guerra ideia de que o cinema tivesse pouco méri-
Mundial, grupos como a Ligue contre to artístico, tendo o público começado a
l’Immoralité, a Ligue du Cinéma Moral desinteressar-se pelo cinema e a fartar-se
e a Société Belge de Pédotéchnie faziam “‘da novidade’ e de receitas repetidas mo-
ouvir os argumentos de que o cinema era notonamente de programa em progra-
uma escola do vício, do crime e da imora- ma, como aliás aconteceu em toda a par-
lidade, e pediam que a questão fosse leva- te”. Por isso, “o País manteve-se quase por
da ao Parlamento. No entanto, o regime completo alheio ao primeiro ‘boom’ do
de censura, no cinema, viria apenas com cinema. Passados os anos da ‘novidade’,
a ocupação alemã. nem Portugal descobriu o cinema nem
Algo de semelhante ocorreu em Espa- o cinema descobriu Portugal” (COSTA,
nha, segundo Mark Garrett Cooper, onde, 1991, 12-13).
a partir de 1908 e até à déc. de 20, espe- Em Portugal, o cinema foi tido como
cialmente na Catalunha, houve campa- uma curiosidade, não tendo granjeado
nhas anticinema conduzidas pela Igreja um estatuto artístico. “Quadros vivos é de-
Católica e por intelectuais como Eugeni signação apropriada a esses filmes (1 a 2
d’Ors e Ramond Rucabado. As imagens minutos de duração) que, como as obras
em movimento foram acusadas de enco- contemporâneas de Paz dos Reis, se limi-
rajar o comportamento imoral, de causar taram a acrescentar movimento à fotogra-
doenças oftálmicas, e de ter pouco mérito fia, na mesma busca de efeito de real que
artístico. Só os filmes não narrativos foram no mesmo ano encontramos nos milha-
defendidos como tendo alguma utilidade. res de obras análogas rodadas por todo
No entanto, a partir de 1915, a revista o mundo pelos operadores dos Lumière,
España, editada pelo filósofo Ortega y de Paul, de Edison, de Skalandanowski,
Gasset, passou a incluir uma secção para etc. Chegadas de comboios, saídas e en-
crítica cinematográfica, o que fez com tradas de operários, festas populares,
que, a partir de então, o cinema passasse bombeiros extinguindo fogos, bebés

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1968 Anticinema

salvos no ‘último minuto’, vistas célebres, Com a evolução da linguagem cinema-


etc., etc.” (Id., Ibid., 12). tográfica, ocorre a primeira tentativa teó-
De facto, como diz João Mário Grilo, rica, com algum grau de sistematicidade,
nos seus primórdios, o cinema era en- de legitimação do cinema como disposi-
tendido como um mero mobilizador do tivo artístico. Riciotto Canudo, o respon-
olhar, como uma forma de fazer embar- sável pela classificação convencional do
car o olhar no movimento que o cinema cinema como sétima arte, procurou, a
cria. O fascínio pelo cinema não vinha de partir de 1911, identificar o que o cinema
“uma representação altamente deficitária tinha de específico que o distinguisse de
de uma realidade desinteressante (preto todas as outras formas de expressão ar-
e branco, mau desfilamento da película, tística. “Canudo procura, neste manifes-
cenas com um poder de atração duvido- to, situar o cinema na configuração das
so…)” (GRILO, 2007, 24-25), mas sim da artes, entre as chamadas artes do espaço
fisiologia, do espetáculo de ver imagens (arquitetura, escultura e pintura) e as
a mexer. artes do tempo (música, dança, poesia);
Segundo João Mário Grilo, “é esta sétima arte, o cinema pertenceria, simul-
via – a vida do movimento – que estabili- taneamente, a estas duas ordens, promo-
zará nos anos subsequentes as regras es- vendo a sua síntese e fusão numa nova es-
senciais do dispositivo cinematográfico pécie de racionalidade e representação:
moderno. Quer dizer, das imagens em ‘quadros em movimento, arte plástica,
movimento do cinematógrafo Lumière desenvolvendo-se segundo as formas da
e do quinetoscópio Édison, o cinema arte rítmica’” (Id., Ibid., 48). “Ao opor
irá aprender a mobilizar o próprio mo- cinema e teatro (como mais tarde Dulac
vimento, a autonomizá-lo da represen- e Epstein oporão cinema e literatura),
tação e a concebê-lo” (Id., Ibid., 25, Canudo chama diretamente a atenção
26). O cinema viria, assim, segundo para esta natureza específica do cinema,
Deleuze, a dar à luz um novo tipo de que é a de produzir um mundo imaterial,
imagens, uma imagem verdadeiramen- cujo elemento decisivo é menos o jogo
te cinemática, ou melhor, viria a dar à da cena, da personagem ou da situação,
luz o verdadeiro cinema. Em oposição e mais o próprio jogo dos materiais es-
às imagens em movimento da origem pecificamente cinematográficos: a luz e
do cinema, surgiria a consciência das o movimento” (Id., Ibid., 49). O cinema
imagens como uma unidade móvel de é uma arte, distinguindo-se de todas as
articulação de um movimento imagi- outras por possuir elementos próprios
nário sobre a representação do real, as como a luz e o movimento, e caracteriza­
imagens-movimento, i.e., em oposição ‑se pela plasticização do tempo. “Com o
às imagens de coisas a mexer, surgiriam cinema, o tempo e o ritmo, que pareciam
as imagens que produzem um movi- ser apanágio de um certo tipo de expres-
mento transcendental sobre a realida- são artística (a música), divorciada de
de filmada, um movimento que afeta o coordenadas espaciais (a não ser no caso
tempo, ou seja, a duração percecionada da dança), passam a encontrar uma re-
de um plano na dimensão imaginária solução plástica e concreta nas imagens,
do espectador, quer seja pela mise en scè­ na sua alternância e alteridade e na durée
ne, pela découpage, pelo ritmo ou estilo (um novo conceito operatório, que o ci-
da montagem, pela partitura ou pelo nema ajudará a formalizar e a materiali-
movimento maquinal da câmara. zar)” (Id., Ibid., 53).

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Anticinema 1969

Louis Delluc, no seguimento do tra-


balho de Canudo, importa pela sua pro-
posta de sistematização e codificação da
linguagem cinematográfica. “Criado por
Delluc, este conceito de fotogenia pro-
curava, justamente, designar o estado
de concordância entre a matéria e a sua
imagem. Para Delluc, o cinema não junta
nada à beleza do mundo, nem a fabrica,
permite apenas percebê-la melhor. A fun-
ção do cinema é pôr em relevo a própria
natureza que, por mais inerte que esteja,
se animará consoante a forma como a
utilizar o ‘compositor do filme’. A foto-
genia nasce, assim, da relação, no espaço
e no tempo, dos elementos significantes”
(Id., Ibid., 51). Para Delluc, é a conceção
arquitetónica do filme, tanto pelo espa-
ço do plano, como pelo ritmo conferido Animatógrafo do Rocio (Lisboa), inaugurado
pela montagem, o jogo de alternância de em 1907.
escala dos planos, dos ângulos e das dura-
ções, que dá a beleza à obra. O cinema é Este trabalho de legitimação do cine-
belo por o seu olhar revelar a beleza das ma importou muito para que a sétima
coisas; acima de tudo, acima da interpre- arte deixasse “de ser, efetivamente, uma
tação dos atores (deslocados da abstração ‘curiosidade de feira’, para ser o ins-
do palco), há a realidade, que é filmada trumento de uma nova representação
com um olhar que lhe confere uma perti- e de um novo conhecimento do mun-
nência e um sentido. do, de um novo estado de compreensão
Grilo refere ainda o trabalho de Germai- do real, ‘um novo estado de inteligên-
ne Dulac na defesa do estatuto artístico do cia’” (Id., Ibid., 56-57), como defenderá
cinema. Dulac propõe a ideia de que o ci- Epstein.
nema seja uma sinfonia visual e defenderá A aceitação do cinema, em Portugal,
um rumo para o cinema, a saber, o rumo veio um ano após a declaração de guerra
de “um cinema das essências, um cine- que Portugal fez à Alemanha, entrando
ma da emoção pura, por oposição a um na Primeira Guerra Mundial. “Criaram­
cinema teatral que se organiza em torno ‑se os Serviços Cinematográficos do
dos meios exteriores ao cinematógrafo, Exército e foram estes que, juntamente
um cinema que mais depressa se dirige à com os produtores nacionais, assegura-
sensação e à sensibilidade, do que ao sen- ram os inúmeros documentários que até
timento” (Id., Ibid., 52); i.e., que o cinema ao armistício procuraram trazer quase
seja um movimento sem literatura, uma semanalmente ao País notícias da Fren-
sinfonia de imagem ritmadas, que seja um te. Não podiam chegar em hora mais
movimento das coisas visto através de um oportuna: o público que acorria para ver
estado de alma, que o centro do cinema os ‘nossos rapazes’ e as imagens ‘vivas’
não seja uma personagem, mas a relação das terras onde combatiam familiariza-
das imagens entre si. va-se também com as grandes produções

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1970 Anticinema

(sobretudo italianas e americanas) que o acesso condicionado à realidade repre-


por esses mesmos anos foram projetadas sentada, que o mesmo é dizer, expondo a
em Lisboa. A cinefilia, como fenómeno mediação de um estilo, de uma voz ativa,
de massas, começava. E dela iriam ser de uma interpretação.
arautos – como aconteceu em tantos O autor apoia-se na sistematização de
outros países – os primeiros intelectuais Peter Wollen dos valores do cinema clássi-
e artistas conquistados para o cinema” co americano para definir a forma do an-
(COSTA, 1991, 21). ticinema, a saber: o nexo de causalidade
Em Portugal, haveria ainda uma tenta- na estrutura narrativa; a identificação do
tiva falhada de colocar o cinema nacional espectador com a personagem principal;
ao serviço de um ideário linear para a a transparência do dispositivo; a singula-
cultura, por parte de António Ferro, en- ridade diegética; a obra ser fechada em
quanto estava na chefia do Secretariado si mesma, sem citações e referências; o
de Propaganda Nacional, aquilo a que proporcionamento de prazer; a noção de
chamava a “política do espírito”. No en- ficção.
tanto, segundo João Bérnard da Costa, Na escola francesa, “o cinema partici-
“não encontramos, no regime salazarista, pa, também, de uma conjuntura moder-
ao contrário de outros totalitarismos da na, marcada pela ideia de uma instabili-
época, uma política cultural monolítica dade essencial do universo, instabilidade
que permita rever a arte desse período essa impossível de experimentar por um
como o reflexo de um aparelho de pro- sistema de coordenadas puras e fixistas
paganda […] – os raros exemplos de um (como já para os impressionistas a forma
cinema português parafascista – nunca era qualquer coisa de absolutamente in-
foram […] os produtos dominantes e é separável da luz e da cor, do movimento
ousado ver nos que o foram a expressão generalizado das moléculas). Tudo passa
dessa ideologia” (Id., Ibid., 37). a ser instabilidade, movimento. E como
Epsteins afirma no final de Le Cinema du
Diable: ‘o cinematógrafo só retém a for-
Anticonvenções do cinema clássico ma enquanto forma de um movimento’”
O termo “anticinema” é, em alguns casos, (GRILO, 2007, 57). O cinema seria uma
usado para referir os estilos de cinema expressão do devir, seria a representação
que contrariam as convenções do cinema da instabilidade, em oposição às con-
clássico americano. Assim, e.g., Yoshishige venções do cinema clássico americano:
Yoshida escreve sobre o anticinema do ci- o tempo é flutuante, o acesso à ação, por
neasta maior que é Ozu e Oliver C. Speck meio da montagem, é frágil, as normas
escreve sobre Haneke e Godard utilizan- de representação do espaço e tempo são
do a mesma expressão, “anticinema” ou incertas, a causalidade na narrativa é os-
“contracinema”. cilante, e há descontinuidade a todos os
O anticinema seria, então, um movi- níveis de representação. A representação
mento moderno de contracultura. O an- do espaço no cinema moderno seria a
ticinema, um cinema autoral, assume o afirmação de uma representação de um
dispositivo cinematográfico, i.e., torna espaço acidental, não configurado pelas
claro que o filme é um filme e assume as regras da geometria arcaica, os planos
suas formas de “mentira”, i.e., de repre- suceder-se-iam no espaço da ação com di-
sentação, contrariando a norma de trans- ferentes escalas e pontos de vista, poden-
parência do cinema clássico e expondo do associar-se arbitrariamente de acordo

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Anticinema 1971

com uma ordem interna subjetiva. A re- deixaram nada igual ao que estava” (Id.,
presentação do tempo no cinema seria a Ibid., 123).
representação de um tempo relativo, sem Bénard da Costa diz que o filme Os
meridianos e pontos de referência, um Verdes Anos, de Paulo Rocha, inaugural
tempo maleável, perspetivado e sensível. do novo cinema português, “faz de qua-
Em suma, o cinema moderno da escola se todos os melhores dos filmes poste-
francesa seria, segundo Grilo, “um instru- riores seus herdeiros”, um filme em que
mento de uma ciência da incerteza, do existe “um amor total aos personagens
relativismo e da probabilidade que, de que se exprime num erotismo difuso e
resto, o pensamento científico da moder- nada físico, numa espécie de ‘saudade
nidade (a física e a matemática modernas, de os amar’ e de ‘tudo amar’ que, re-
por exemplo) trabalha ao mesmo tempo. cuperando um imaginário típico da li-
O real é coisa problemática, incerta, ma- teratura romântica (da novela popular
leável; o cinema é, simultaneamente, o ao Amor de Perdição) cortam com o lado
modo de o figurar e a forma mais rentá- queirosiano de que o cinema portu-
vel de traduzir essa maleabilidade” (Id., guês tinha sido quase sempre involun-
Ibid., 71). tário herdeiro, para o religar a uma tra-
Em Portugal, ainda antes do 25 de dição fantomática em que o fatalismo é
Abril, segundo Bénard da Costa, teve lu- o único fio condutor [...]. Verdes Anos é
gar uma grande contenda em relação ao o filme que melhor dá a ver Lisboa e
rumo que havia de tomar o novo cinema Portugal como espaços de frustração,
português, após o crescimento económi- espaços claustrofóbicos, sem saídas,
co da déc. de 50. “Aos defensores de ‘um onde tudo se frustra e tudo se agoniza
cinema moral’, ‘um cinema de raízes de- numa morte branda” (Id., Ibid., 120).
mocráticas, enquadrado na mais genuí- Fernando Lopes, em Belarmino, outro
na ortodoxia neorrealista’, começaram filme pioneiro do cinema novo portu-
a opor-se vozes que proclamavam um guês, caracterizar-se-ia também pelo
cinema afim da ‘nouvelle vague’ fran- fatalismo, ao filmar um boxeur em deca-
cesa e que se reclamam das teorias dos dência que interpreta o seu próprio pa-
Cahiers du Cinéma e da visão ‘auteurista’ pel, e que se “tivesse vivido noutro país,
do cinema. […] E o ‘cinema novo’ nasce talvez fosse um grande campeão”. Esta
no meio dessa ‘polémica? que caracte- afirmação, feita no filme, faz passar Be­
rizou, com separações e ruturas, toda a larmino “do fait-divers para a tragédia”
década de 60” (COSTA, 1991, 114). Na (Id., Ibid., 121). Manoel de Oliveira,
déc. de 60 nasceria, então, o cinema figura central do cinema português,
novo português, um cinema moderno, “escreveu José Manuel Costa, eregia
de rutura com as convenções do cinema ‘a ultrapassagem da convenção como
clássico, mas um cinema que viria a ter postulado’ e longe de proceder a uma
uma identidade própria, ao invés de ser reconstituição fílmica ‘enunciava sobre
uma duplicata de uma corrente estilística uma matéria pré-existente (o texto tea-
internacional. Destacam-se, na configu- tral) um universo imaginário’ em que
ração do caminho português do cinema, mais uma vez a função do cinema era
os realizadores Manoel de Oliveira, com repensada” (Id., Ibid., 122). Segundo o
Acto da Primavera e A Caça, Paulo Rocha, fundador da Cinemateca Portuguesa,
com Os Verdes Anos, e Fernando Lopes, Acto da Primavera e A Caça eram obras
com Belarmino, quatro filmes que “não demasiado inovadoras para serem com-

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1972 Anticinema

preendidas na época e só mais tarde que se tratava de uma obra-prima do ci-


foram compreendidas como consistin- nema mundial, incompreendida pelos
do nos “fundamentos de uma das mais Portugueses.
totalizantes aventuras do imaginário
deste século” (Id., Ibid., 123).
Bibliog.: ABEL, Richard, Encyclopedia of Early
Cinema, London, Routledge, 2010; AMIEL,
Crítica à Escola Portuguesa Vicente, Estética da Montagem, Lisboa, Texto &
Grafia, 2011; BILTEREYST, Daniel et al., Cine-
Haveria muito a dizer sobre a corrente de ma, Audiences and Modernity, London, Routled-
opinião, que existe em Portugal desde a ge, 2011; COSTA, João Bénard da, Histórias do
déc. de 80, contra a escola do cinema por- Cinema, Lisboa, INCM, 1991; CRUCHINHO,
tuguês e, mais especificamente, Manoel Fausto, Recepção Crítica de Amor de Perdição de
Manoel de Oliveira, Coimbra, Editora da Uni-
de Oliveira. Esta corrente de opinião,
versidade de Coimbra, 2001; GINSBERG, Ter-
não compreendendo os fundamentos do ri, e LIPPARD, Chris, Historical Dictionary of Mid­
cinema moderno, diagnostica o cinema dle Eastern Cinema, Lanham, Scarecrow Press,
português como moribundo, obsoleto e 2010; GRILO, João Mário, As Lições do Cinema,
absurdo e defende a extinção de um ci- Lisboa, Colibri, 2007; GUTHRIE, W. K. C.,
nema autoral, que diz só interessar a uma A History of Greek Philosophy, vol. iv, Cambridge,
minoria de intelectuais sem público, e Cambridge University Press, 1992; PLATÃO,
A República, 10.ª ed., Lisboa, FCG, 2010; SPE-
um regresso ao cinema comercial. Afirma
CK, Oliver C., Funny Frames, the Filmic Concepts
que, pelo facto de o cinema ser subsidia-
of Michael Haneke, London, Bloomsbury Aca-
do pelo Estado, deve estar ao serviço das demic, 2010; YOSHIDA, Yoshishige, Ozu’s
massas, dos interesses de entretenimento Anti-Cinema, Michigan, University of Michigan
da população portuguesa. Press, 2003.
Uma das vozes mais importantes que Ricardo Franco
se insurgiram contra a escola do cinema
português foi a da escritora Natália Cor-
reia, na receção ao filme Amor de Perdição
de Manoel de Oliveira. Natália Correia
dizia: “quanto ao famigerado ‘Amor de
Perdição’ o menos que se pode dizer é
que transformar Camilo num objeto de
riso é crime de lesa-cultura. Camilo é de
todos. Mas a TV que todos pagam, rou-
ba-o, apalermando-lhe o génio, aviltando­
‑lhe a força da paixão numa fantochada
filmada, cujos intérpretes papagueiam
em desconsolado ‘ralenti’ as intensidades
discursivas do genial estilista”. João Bé-
nard da Costa respondeu-lhe num artigo
de jornal, dizendo: “uma escritora menor
(Natália Correia) chama a um cineasta
maior (Manoel de Oliveira) palerma e
fantoche. E é fartar vilanagem perante
o silêncio ou a apatia de quase todos”
(CRUCHINHO, 2001, 13), defendendo

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Anti-Coca-Cola 1973

Anti-Coca-Cola

A Coca-Cola é um refrigerante carbo-


nado, produzido por The Coca-Cola
Company, sediada em Atlanta, Estados
Unidos da América, e uma marca regista-
da desde 1893. Inventada em 1884, após
a Guerra Civil, por John Pemberton, foi
originalmente concebida como remédio,
sendo comprada pelo empresário Asa
Griggs Candler, cujas táticas publicitárias
levaram a bebida ao domínio do merca-
do de refrigerantes no mundo inteiro ao
longo do séc. xx.
Num contexto de movimento puritano
antiálcool, a Pemberton’s French Wine
Coca foi anunciada como uma bebida
intelectual, vigorante do cérebro e tónica
para os nervos, sendo, inicialmente, uma Anúncio da Coca-Cola do final do séc. xix.
mistura de folhas de coca, grãos de noz­ “O tónico ideal para o cérebro”.
‑de-cola e álcool.
Na Primeira Guerra Mundial, a Coca-Co-
la já se tinha tornado a maior consumido- noz-de-cola, corante caramelo iv e ácido
ra de açúcar do mundo na fabricação dos fosfórico (acidulante INS 338), sendo um
seus produtos. Na Segunda Guerra Mun- produto não alcoólico, sem glúten e sem
dial, a Companhia enviou fábricas móveis quantidades significativas de proteínas,
para as frentes de batalha, com técnicos gorduras totais, gorduras saturadas e fi-
que garantiam a produção e a distribuição bras alimentares.
da bebida para os soldados, facto aprova- Tem tido destaque em inúmeros filmes,
do pelo Gen. Eisenhower, comandante canções e programas de televisão, per-
das Forças Armadas dos Estados Unidos. manecendo como um dos símbolos mais
A Companhia decidiu arcar com os eleva- importantes do consumismo capitalista e
dos custos de produção, numa tática de da cultura de massas, principalmente no
marketing, vendendo o refrigerante ao mes- mundo ocidental. É menos popular em
mo preço praticado nos Estados Unidos. países do Médio Oriente e na Ásia, assim
Esta estratégia abriu caminho à internacio- como nos territórios palestinianos e na
nalização do produto americano, que aca- Índia, devido ao sentimento antiociden-
bou por se tornar um símbolo patriótico. tal, e em reação à sua popularidade em Is-
O refrigerante normal tem como in- rael. Nos últimos anos, a Meca-Cola, uma
gredientes aromatizantes naturais água versão islâmica da Coca-Cola, tem feito
gaseificada, açúcar, cafeína, extrato de grande sucesso no Médio Oriente.

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1974 Anti-Coca-Cola

A Coca-Cola tem sido criticada com 1920, alegando que a acidez da bebida é
argumentos de diversa ordem: os efeitos perigosa, não foi detetado pelos investiga-
adversos para a saúde humana; as suas dores qualquer dado nesse sentido.
agressivas campanhas publicitárias diri- Desde 1980, nos Estados Unidos, tem
gidas a crianças; as práticas de explora- sido utilizado na Coca-Cola, em vez de
ção laboral; os altos níveis de pesticidas açúcar de cana, xarope de milho, que
utilizados; a construção de fábricas na é rico em frutose, o que pode provocar
Alemanha nazi, que empregavam mão de obesidade e diabetes.
obra escrava; a destruição ambiental; as Na Índia, há uma controvérsia sobre
práticas comerciais monopolistas; a con- a existência de pesticidas e outros pro-
tratação de unidades paramilitares para dutos químicos nocivos em produtos
assassinar dirigentes sindicais. engarrafados, incluindo a Coca-Cola.
Em outubro de 2009, num esforço para Em 2003, o Centre for Science and En-
melhorar a sua imagem, a Companhia fez vironment (CSE), uma organização não
uma parceria com a Academia America- governamental de Nova Deli, denunciou
na de Médicos de Família e doou 500.000 que as águas gaseificadas produzidas por
dólares à promoção da educação com vis- fabricantes de refrigerantes na Índia, in-
ta a uma vida saudável. A parceria gerou cluindo gigantes multinacionais como a
fortes críticas sobre ambos os parceiros, PepsiCo e a Coca-Cola, continham toxi-
por parte de médicos e nutricionistas. nas, como lindano, DDT, malatião e clor-
Por sua vez, a Bolívia anunciou, em ja- pirifós, podendo tais pesticidas contribuir
neiro de 2013, que iria proibir a venda da para o desenvolvimento de doenças can-
Coca-Cola no seu território. cerígenas e o colapso do sistema imuno-
Há estudos indicadores de que os re- lógico. Após estas acusações, as vendas da
frigerantes e as bebidas açucaradas são a Coca-Cola na Índia diminuíram 15 %. Em
principal fonte de calorias na dieta ame- 2004, uma comissão parlamentar indiana
ricana, o que leva a maioria dos nutricio- apoiou as descobertas do CSE e uma co-
nistas a alertar para os seus efeitos nocivos, missão nomeada pelo Governo foi encar-
quando consumidos em excesso, desig- regada de desenvolver padrões de pestici-
nadamente por crianças. Outros estudos, das para refrigerantes produzidos no país.
como o de Michael Jacobson, evidenciam A empresa The Coca-Cola Company tem
que os consumidores regulares de refrige- respondido que utiliza água filtrada para
rantes possuem um menor consumo de remover contaminantes potenciais, que os
cálcio, magnésio, ácido ascórbico, ribofla- seus produtos são testados para verificar a
vina e vitamina A. A cafeína utilizada na existência de pesticidas, e que cumpre as
bebida também pode provocar dependên- normas mínimas de segurança sanitária.
cia física. Foi demonstrada, nomeadamen- A Companhia também foi acusada de uso
te por Katherine Tucker, a existência de excessivo de água na Índia.
uma relação, a longo prazo, entre a inges- Em 1928, Fernando Pessoa escreveu o
tão regular dessa bebida e a osteoporose slogan de lançamento da Coca-Cola em
em mulheres mais velhas, devido à presen- Portugal: “Primeiro, estranha-se. Depois,
ça de ácido fosfórico, tanto na bebida com entranha-se”. A Coca-Cola viria a ser in-
cafeína como na descafeinada, e tanto na terditada pelas autoridades por, alegada-
açucarada como na não açucarada. To- mente, se tratar de um produto suscetível
davia, apesar de vários processos judiciais de criar habituação. De facto, o então
contra The Coca-Cola Company, desde diretor de Saúde do Governo português,

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Anticorpo 1975

Ricardo Jorge, mandou apreender todo o


produto existente no mercado e deitá-lo
Anticorpo
ao mar, argumentando que, se dele fazia
parte a coca, da qual é extraído um estu-
pefaciente, a cocaína, a mercadoria não
podia ser vendida ao público; se, pelo
contrário, o produto não continha coca,
anunciá-lo com esse nome era uma burla,
o que igualmente justificava a sua proibi-
ção comercial. Perante o slogan de Fer-
O corpo, apesar da sua aparente ob-
viedade biológica, é uma categoria
(re)criada social e culturalmente pelo
nando Pessoa, o médico entendia que ele Homem, sobressaindo desde sempre no
reconhecia a toxicidade do produto: pri- mapa mental do Ocidente. De facto, en-
meiro estranhava-se e depois entranhava­ quanto parte integrante do sistema cultu-
‑se, uma ilustração do que acontece com ral e, por conseguinte, da experiência hu-
todos os estupefacientes, os quais, após a mana, a noção de corpo tem sido (além
estranheza inicial, acabam por habituar de fonte de inquietação) objeto de cons-
os seus consumidores. tante reflexão e (re)formulação, espelho
Em 1953, a fadista Amália Rodrigues da relevância que assume para o homem
foi apresentada no programa americano ocidental.
de televisão “Coca-Cola time”, apresen- Deste modo, tratando-se, em grande
tado por Eddie Fisher, interpretando a medida, de uma construção humana, dis-
canção “April in Portugal”, contribuindo correr acerca da corporeidade – e, como
para a difusão internacional do fado. Em tal, da anticorporalidade – implica, por
1977, a Coca-Cola entra oficialmente em um lado, atentar em circunstâncias cultu-
Portugal, depois de ter sido proibida até rais, ideológicas, filosóficas, sociológicas
1974. Em 2007, a bebida comemorou os e históricas (até porque as transforma-
30 anos de distribuição legal no país com ções sofridas pelo conceito de corpo es-
um desfile em Lisboa. tão relacionadas com questões de poder),
e, por outro lado, considerar a noção de
Bibliog.: impressa: JACOBSON, Michael, Li- persona.
quid Candy: how Soft Drinks are Harming Americans’ Na medida em que o corpo se constitui
Health, Washington, D.C., Center for Science in como uma extensão do sujeito – refle-
the Public Interest, 2005; TUCKER, Katherine
tindo uma visão particular do indivíduo
et al., “Colas, but not other carbonated beve-
rages, are associated with low bone mineral acerca de si mesmo –, as conceções de eu
density in older women: the Framingham os- e de identidade condicionam significati-
teoporosis study”, American Journal of Clinical vamente a forma de perceber e de expor
Nutrition, vol. lxxxiv, n.º 4, 2006, pp. 336-342; a corporalidade (o que se manifesta cla-
VERGARA, Rodrigo, “Drogas: o que fazer a res- ramente no domínio artístico, designada-
peito?”, Super Interessante, n.º 172, jan. 2002, mente na literatura e nas artes plásticas
pp. 40-50; VICTOR, Jorge, “Entrevista: José
e visuais). Na verdade, com base no pen-
Alberto Antunes, marketing manager da Coca­
‑Cola”, HiperSuper, 7 set. 2007, pp. 10-17; di- samento de Jean-Luc Nancy, percebe-se
gital: MEDEIROS, Cristina, “Cola-Cola é isso inequivocamente que o corpo é, por ex-
aí”, Super Interessante, n.º 41, fev. 1991: http:// celência, um lugar ontológico a partir do
super.abril.com.br/saude/cola-cola-e-isso-ai/ qual se enuncia uma presença, a partir do
(acedido a 4 jan. 2017). qual se pode dizer e ser eu. Neste senti-
António Moniz do, a ideia de corpo, enquanto signo da

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1976 Anticorpo

interioridade pessoal e da individualida- desenvolve igualmente um permanente


de, será o fundamento para entender e trabalho de aperfeiçoamento (através da
para definir a anticorporalidade. política, da música, da poesia, entre ou-
Do ponto de vista contextual, interessa tras atividades semelhantes). Porém, ape-
recuar ao mundo primitivo. Nas comuni- sar do entendimento de que a excelência
dades arcaicas, onde se enaltece a vivên- do homem grego pressupõe a unidade
cia grupal em detrimento da particular, (e a simetria) entre o corpo e a alma,
predomina a ideia de corpo comunitário, sobressai uma interpretação que refuta
como aquele que reúne e abarca a tota- a perspetiva unitária. Platão funda, com
lidade dos elementos do cosmo. Assim base nos alicerces da razão, o dualismo
sendo, o indivíduo, parte integrante da corpo vs. alma, destacando esta em detri-
sociedade, da qual não se diferencia, não mento daquele. Em conformidade com o
existe na sua singularidade e, portanto, filósofo grego, o corpo, da ordem do sen-
não possui uma matéria corporal que o sível, associa-se ao material; noutros ter-
caracterize isoladamente. mos, à fragilidade e à ilusão. Assim, cabe
Importa ressaltar o facto de as socie- ao ser humano controlar os seus desejos
dades primitivas serem instituições livre- e as suas paixões e libertar-se deles, para
mente dispostas, com uma harmoniosa ascender ao plano verdadeiro das ideias.
dinâmica funcional afastada da coação e Dizendo de outra maneira: é essencial su-
da imposição. Neste ambiente, o corpo bordinar o corpo à alma.
aparece como uma entidade plena, que O dualismo platónico remete para ou-
não obedece a regras nem a convenções, tra corrente de pensamento da Antigui-
constituindo um símbolo intenso e abso- dade: o gnosticismo, movimento religio-
lutamente expressivo, cuja significação se so que assenta na ideia de gnose por a
expande vigorosamente, sem quaisquer li- considerar o único meio para a salvação
mitações, atravessando o tecido social. Tra- do Homem relativamente a um universo
ta-se de uma sociedade do e para o corpo. degradado e corrompido, caracterizado
A cultura de hipervalorização da cor- pela malícia. Isto porque a queda de uma
poreidade estende-se à Antiguidade clás- divindade superior deu origem a uma di-
sica, época durante a qual predomina vindade inferior, criadora de um espaço
um ideal de perfeição corpórea. Na po­ de trevas, afastado do mundo e do deus
lis, o cidadão grego dedica-se continua- luminoso, do qual restam somente vestí-
mente ao exercício e ao melhoramento gios, encarcerados no corpo do Homem.
do seu corpo. O ideal do corpo perfei- O real, lugar do deus inferior, contrasta,
to – belo, harmonioso, proporcional, portanto, com o transcendente, lugar do
vigoroso, saudável – está presente e é deus luminoso; o corpo, entidade infe-
glorificado diariamente em cerimónias rior, contrasta com a superioridade da
e festas públicas (recorde-se, a propósi- alma. Neste sentido, para reascender e
to, a importância dos Jogos Olímpicos), regressar ao tempo primordial, é necessá-
assim como em obras de arte (nomeada- rio libertar a alma do cárcere corporal, o
mente na pintura e nas imponentes es- que só é possível através do conhecimen-
culturas que representam magistralmen- to – mais propriamente, do conhecimen-
te o corpo humano). to próprio, que se alia à feição luminosa e
Note-se, a este respeito, que o elemento autêntica do ser: a espiritual.
físico é entendido em completa simbio- Ainda no que concerne à conceção
se com o intelecto, em relação ao qual se clássica de corporalidade, há que subli-

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Anticorpo 1977

Não obstante a base helénica do con-


ceito cristão de corpo – que se reflete,
nomeadamente, numa conceção dicotó-
mica da corporeidade –, importa ressal-
tar o facto de a helenização da mensa-
gem cristã não ter apagado radicalmente
a ideia judaica acerca do Homem e do
seu corpo. Assim sendo, ao invés dos dois
elementos da antropologia helénica, a
antropologia hebraica consta de três, a
saber, o espírito (ruah), a alma (néfesh) e
o corpo (basar), como se lê, e.g., na segun-
da carta aos Tessalonicenses (2Ts 5, 23).
O ser é perspetivado como uma entidade
criada conjuntamente por Deus (espí-
rito) e pela consciência pessoal (alma),
ligado ao mundo e aos seus semelhantes
através do corpo ou da carne. Destaque­
‑se, a esse propósito, a relevância da ideia
segundo a qual a matéria corpórea está
em relação com a criação. De facto, a li-
teratura bíblica proclama o corpo cristão
como um corpo de união, de comunhão.
Discóbolo, de Míron. Daí que o Novo Testamento, por influên-
cia do judaísmo, celebre a unidade dos
nhar o facto de o cristianismo a ter re- homens em Deus, cujo símbolo máximo
tomado. Efetivamente, a doutrina cristã é a incarnação de Cristo.
baseia-se no modelo grego para instituir Após um longo período notoriamen-
a noção de corporalidade: o corpo cris- te marcado pelo culto do corpo, segue­
tão também é um corpo perfeito, neste ‑se, na história ocidental, um momento
caso, por ter como modelo o seu Criador de acentuada desvalorização do mesmo.
(mesmo que o corpo divino não seja fi- A Idade Média é o tempo do anticorpo.
gurável); um corpo extraordinariamen- Se, inicialmente, o Ocidente medieval
te belo quando segue a vontade e as leis segue a noção cristã de corpo glorioso
sobrenaturais. É sobejamente conhecida (o que mostra a influência dos textos sa-
a passagem bíblica do Génesis: “Faça- grados), logo se verifica uma substituição
mos o homem à nossa imagem, à nossa da exaltação do corpo pela depreciação e
semelhança” (Gn 1, 26), a partir da qual pela renúncia ao corpóreo (atitude que
se pode inferir que o corpo humano tem reflete a influência da filosofia clássica,
uma natureza divina e, por conseguinte, sobretudo do platonismo).
transcendente. Daí que, segundo a tradi- É de notar que esta transformação es-
ção judaico-cristã, o corpo, lugar privile- pelha uma particularidade do mundo
giado de união com o Criador, deva ser medievo, nomeadamente a de ser atra-
glorificado, como se lê na primeira carta vessado por inúmeras tensões e contradi-
aos Coríntios: “Glorificai, pois, a Deus no ções. Um dos seus paradoxos exprime-se,
vosso corpo” (1Co 6, 20). precisamente, na noção de corpo, que

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1978 Anticorpo

der-se-á concluir que o ser humano tem


uma natureza simultaneamente corporal
e espiritual; é composto de carne e de
espírito. À carne, associada ao pecado e
à fragilidade (sobretudo devido à inevita-
bilidade da morte), sobrepõe-se o espíri-
to – daí que a vivência do homem cristão
deva reger-se pelas leis do espírito e não
pelas do corpo, e pela renúncia aos ape-
tites inimigos da carne –, contraste clara-
mente evidenciado no livro bíblico, mais
concretamente na epístola aos Romanos,
de S. Paulo (Rm 13, 11-14).
Adão e Eva são expulsos do Paraíso. A propósito da conduta de controlo e
Iluminura inglesa do séc. xii.
de privação corporais em nome da per-
feição espiritual, recorde-se o montanis-
apresenta duas feições. Por um lado, obra mo, movimento nascido e desenvolvido
divina, conforme ao seu Criador, é um or- sob o signo do ascetismo, assente nos va-
ganismo a preservar e digno de louvor. lores do sacrifício e da disciplina, como
No entanto, este corpo, enquanto mora- se depreende através de alguns dos seus
da sublime, dá lugar ao corpo enquanto preceitos: a rejeição das segundas núp-
sede do pecado, espaço desprezível e a cias e, por vezes, do matrimónio; o conse-
desprezar, ao qual se opõe uma entidade lho de que os casais se separem ou vivam
completamente distinta, porque grandio- em abstinência; o elogio exagerado da
sa: a alma. Recorde-se, a título ilustrativo, virgindade; a condenação do adultério;
a descrição do corpo feita pelo Papa Gre- a determinação frequente de momentos
gório Magno: “um abominável vestuário prolongados de xerofagia ou de jejum; a
da alma” (GOFF, 1984, 120). proibição de lutar ou de fugir durante as
Em síntese, a conceção dos primórdios perseguições (ações consideradas como
do cristianismo contrasta com o ideário uma forma de apostasia); o incentivo à
do cristianismo medieval, do qual resul- autodenúncia. Ao rigorismo montanista
ta a dicotomia corpo/alma, de forte raiz associa-se uma atitude fortemente puniti-
platónica. Todavia, saliente-se que, na va, espelhada, e.g., nos tratados de Tertu-
doutrina cristã primitiva, não obstante a liano, nomeadamente quando o autor se
magistralidade associada à corporalida- refere à incapacidade de a Igreja perdoar
de, parece surgir já um raciocínio diver- os pecados mais graves.
gente, no sentido em que aponta para a O pensamento agostiniano acentua
contraposição entre o espiritual e o cor- terminantemente o ponto de vista dua-
poral. No livro do Génesis, lê-se o seguin- lista anteriormente referido. Seguindo
te: “O Senhor Deus formou o homem do o princípio de que a história da humani-
pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o dade tem início com um acontecimento
sopro da vida, e o homem transformou-se que determina para sempre a existên-
num ser vivo” (Gn 2, 7). Ou seja: o cor- cia humana – o pecado de Adão e Eva
po é uma substância material – simples- e a resultante expulsão do Jardim do
mente pó – à qual se junta um elemento Éden  –, S.to Agostinho entende que o
imaterial, que lhe dá vida. Portanto, po- pecado original, transmitido geracional-

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Anticorpo 1979

mente, faz do Homem um ser culpado e Bragança de Miranda, “a rudez da car-


débil, eternamente condenado à morte. ne emergiu contra a ‘imagem’ de Deus
Não obstante, o seu fim último consiste que a alma era” (MIRANDA, 2012, 19).
em alcançar Deus e o Céu, pretensão que No fundo, o anseio do domínio da car-
implica o alheamento relativamente à ne expressa o propósito de elevar a es-
esfera mundana. Este ditame orientador piritualidade acima da materialidade, o
da conduta do homem cristão é precisa- que se traduz, por sua vez, no desígnio
mente a origem da distinção agostinia- de fuga à mundanidade. Um exemplo
na corpo vs. alma, exposta pelo teólogo paradigmático desta evasão é o monas-
em Trindade (XII, 1.1.). A diferenciação ticismo (preponderante no Ocidente
é clara: o exterior – o corporal (ou seja, medieval), opção existencial que sur-
o físico, o sensório) – é o que temos em ge, precisamente, da confrontação com
comum com os animais irracionais, ao a dualidade corpo/alma, ou mundo/
passo que o interior – o espírito (ou a Deus. O monge, optando pelo divino e
alma) – é o que é próprio do Homem. Do pelo espiritual, refugia-se na solidão da
primeiro, o sensível, que “rebaixa o espí- reflexão, da contemplação, da oração – e
rito”, deve o ser humano manter-se afasta- mais, na penitência, que implica a rejei-
do, de forma a centrar-se unicamente no ção da carne. O cenobita – anacoreta
seu interior. Na ótica de S.to Agostinho, e asceta – liberta-se completamente do
a alma – “a melhor parte de nós” –, no- corpo (que era, recorde-se, o principal
meadamente a ação de o ser se debruçar objeto de penitências – algumas bastante
sobre ela e de sobre ela refletir, é o meio severas – para os cristãos).
para atingir um patamar superior: Deus Ainda no que concerne à “descarnifi-
(AGOSTINHO DE HIPONA, 2007, 773). cação” (TUCHERMAN, 2012, 53), subli-
A filosofia agostiniana ilustra signifi- nhe-se que a reprovação da carne é “um
cativamente o antagonismo corpo/alma tema verdadeiramente obsessivo” na Ida-
que caracteriza a Idade Média, e a partir de Média cristã (MATTOSO, 2009, 18).
do qual é possível compreender a atitude Não só pelo facto de a carne significar o
anticorporal da época. Efetivamente, da distanciamento de Deus, mas, igualmen-
ideia de que o Homem herda do peca- te, por aparecer ao Homem como uma
do original um “corpo de morte”, como lembrança constante da sua fraqueza e
o denomina S. Paulo (Rm 7, 24), resulta efemeridade. Em suma: a sociedade me-
a noção de corpo vulnerável e impuro, dieval reprime o corpo por o perspetivar
lugar da doença, da dor, da tentação, do enquanto carne, matéria orgânica, o que
desregramento, do impróprio. Daí ser justifica a anticorporalidade.
imperioso os cristãos dedicarem-se ao Neste sentido, regendo-se o Ocidente
aperfeiçoamento da alma, que consiste medievo, fundamentalmente, pela espiri-
em controlar as emoções, os desejos, os tualidade cristã, o mandamento anticor-
prazeres e os afetos, i.e., o que tem tradu- poral estende-se à esfera social (que vê
ção ao nível do corpo. e interpreta o corpo segundo as leis da
Dito de outro modo: estamos perante religião católica), participando da ideolo-
uma “antropologia espiritualista” (ECO, gia institucional. Deste modo, o sistema
2014, 382). Exige-se o controlo espiri- organizacional assenta numa estratégia
tual da carne, que “é fraca”, assim des- de apagamento do corpo, especialmente
crita por Jesus Cristo na Sagrada Escri- porque se pretende erguer um edifício
tura (Mt 26, 41), porque, como explica social lógica e racionalmente construído,

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1980 Anticorpo

perfeitamente ordenado, passível de um Ibid., 37), o que leva o escritor português


rigoroso controlo. a identificar o rei como uma “dignidade
O Estado tem um papel crucial no en- alta e suprema” que “ao reino convém”
cobrimento do corpo, considerando-o (Id., Ibid., 36) – do rei depende o equilí-
uma forma de proteção do espaço públi- brio da vida comunitária.
co. Assim, através de um austero conjun- Neste contexto, convirá ainda referir
to de regras, ao qual se associam severas que a metáfora orgânica é igualmente
penas, regulam-se e estandardizam-se os aplicada à cidade, nomeadamente para a
comportamentos corporais, garantindo­ conceber como espaço lógico, distribuí-
‑se a sua supressão quando são transpos- do hierarquicamente. Recorde-se, e.g., o
tas as barreiras impostas (códigos estatais comentário de José Mattoso ao título de
que remetem para uma linha de ação uma obra de S.to Agostinho. De acordo
indagada, algumas centúrias mais tarde, com o historiador, em A Cidade de Deus a
pela biopolítica foucaltiana). Tudo em polis é uma zona ordenada segundo crité-
nome da coerência e da harmonia do rios racionais, na qual os cidadãos se re-
corpo social. lacionam entre si disciplinarmente (MA-
Na Idade Média, a ordenação socie- TTOSO, 2009, 429) e onde o soberano,
tal e política é frequentemente pensada representante de Deus, é o sustentáculo
a partir da metáfora do corpo humano. do equilíbrio estável do corpo citadino.
Num texto de 1156, João de Salisbury, Efetivamente, na Idade Média, entende­
depois de caracterizar o aparelho gover- ‑se que o poder real provém do divino,
namental como um corpo hierarquizado, sendo, por isso, “uma autoridade eterna e
decompõe-no em governante, conselhei- sagrada” (Id., 2013, 118) – logo, indispen-
ros, comerciantes, soldados, camponeses sável e indubitável.
e trabalhadores, associando-os, respetiva- O ponto de vista apresentado remete
mente, ao cérebro, ao coração, ao estô- para a já mencionada perspetiva negati-
mago, às mãos e aos pés. Isto significa que va e depreciativa da Idade Média sobre a
a nação, à semelhança do corpo físico, é corporeidade: o corpo exige um contro-
composta por elementos com proprieda- lo máximo, que passa por despojá-lo do
des e funções específicas; é um todo cujas emocional, do impulsivo, do irracional.
partes estão coerentemente dispostas e Atitude semelhante requer a nação ou a
em sintonia. cidade – ambas devem ser administradas
Percebe-se, deste modo, que o gover- equilibradamente, com base no uso da ra-
nante seja o cérebro do Estado, da mes- zão. Há, portanto, uma característica que
ma forma que o órgão cerebral, lugar da sobressai: a subjugação da corporeidade.
razão, comanda o corpo humano. O rei Noutras palavras: na Europa medieval, o
medieval, suporte do poder e garante corpo é, acima de tudo, anticorpo.
da sustentabilidade e da ordem comu- Apesar de o ideário anticorporal – in-
nitárias, dirige cerebralmente o corpo trínseco à ideologia da Igreja e do Es-
social. Ou seja: o monarca está para o so- tado – ser dominante na Idade Média,
cial como o cérebro está para o corporal. opõe-se-lhe uma outra tendência de
A carta “a El-Rei D. João”, de Francisco escape às normas impostas e que tra-
Sá de Miranda, ilustra claramente a visão duz a intenção de viver o corpóreo em
medieva segundo a qual “sem cabeça, toda a sua dimensão (o que reflete o
o corpo é vão” (MIRANDA, 1977, 36), carácter contraditório deste período da
pois “a cabeça os membros manda” (Id., história ocidental, em parte resultante

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Anticorpo 1981

da mescla entre o paganismo e o cris-


tianismo). O corpo livre das manifesta-
ções populares contrapõe-se, assim, ao
corpo ordenado da cultura religiosa e
da doutrina sociopolítica, oposição ex-
pressa, e.g., na obra A Luta entre o Car­
naval e a Quaresma, de Pieter Bruegel, o
Velho. A festa stultorum, o risus paschalis,
a festa do burro, o carnaval, ao invés das
festas litúrgicas, são alguns dos momen-
tos em que se celebra o corpo, tornado
visível desde os mais variados planos e
nos mais diversos atos.
Trata-se do corpo grotesco (como es-
creve Mikhail Bakthin numa obra dedi-
cada a François Rabelais), que aparece
como um organismo “escancarado”,
pois são dadas a ver as partes por meio
das quais “se ultrapassa, atravessa os
seus próprios limites” (BAKTHIN, 1987,
277). Aberto para o exterior, o corpo
grotesco distingue-se pela exposição de
alguns dos seus órgãos (designadamente
da boca, do nariz, do ventre, dos órgãos
genitais) e da nudez, das necessidades
A Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559),
fisiológicas, das relações sexuais, etc. de Pieter Bruegel, o Velho.
Neste sentido, é possível afirmar que o
anarquismo corpóreo triunfa sobre a
anticorporalidade. o Velho, é uma pintura a óleo em que se
Exemplo evidente da transgressão gro- exibe grotescamente o corpóreo: figuras
tesca é o tríptico O Jardim das Delícias, de incompletas e imperfeitas, corpos enfer-
Hieronymus Bosch. No painel central, mos e mutilados, deformados e despro-
figuram homens e mulheres nus em co- porcionados. Em suma: as pinturas põem
munhão com a natureza – rodeados de às avessas uma realidade que se quer per-
árvores e de animais, comem frutos e ba- feita; simbolizam a subversão do universo
nham-se nas águas cristalinas dos lagos do medieval e, por conseguinte, dos valores
jardim, numa atmosfera de puro e intenso corporais vigentes na época.
deleite. A cor clara dos seus corpos fá-los Todavia, convém ter em consideração
sobressair por entre a paisagem, nomea- que a libertação do corpo é um desvio
damente enquanto amantes sexualmente somente transitório. O anticorpo pre-
envolvidos. O quadro do pintor holandês valece no Ocidente medievo, sendo, in-
consiste, pois, numa representação das clusivamente, um conceito mais tarde
delícias dos sentidos, das delícias carnais, recuperado. A modernidade reinterpreta
numa clara violação das leis divinas e dos a dicotomia corpo/alma e, a partir dela,
códigos socialmente aceites. Na mesma intensifica a atitude de desprezo pela
senda, Os Mendigos, de Pieter Bruegel, corporeidade.

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1982 Anticorpo

O despontar da moderna conceção de de um saber de cariz anatómico. Uma


corpo depende de um vasto conjunto de centúria depois, Andreas Vesalius, na obra
fatores – entre eles, o desmoronamento De Humani Corporis Fabrica, estabelece um
da visão teocêntrica do universo. Até ao modelo anatómico a partir do qual se ins-
séc. xvi, o Homem assenta a sua existên- titui o corpo da ciência, que vem substi-
cia no pilar seguro da transcendência, re- tuir a imagem teológica e cristã do corpo
gendo-se exclusivamente por princípios (de natureza anticorpórea).
sagrados, considerados estáveis e inques- Do estudo da corporeidade deriva uma
tionáveis. No entanto, na sequência do consequência notória e bastante rele-
pensamento racional e científico (funda- vante, porque absolutamente inovadora:
mental na mundividência renascentista), o corpo torna-se uma entidade indepen-
vê-se confrontado com uma nova ordem, dente. O ser humano passa a ter um cor-
que implica a renúncia à orientação di- po, acessório da diferença.
vina. Querendo assumir o governo de si Esta mutação relativamente à corpo-
e do mundo, de forma a dirigir e a con- ralidade está em estreita relação com o
trolar os fenómenos, o Homem baseia-se nascimento do sujeito moderno. O indi-
afincadamente nos princípios do raciona- víduo deixa de existir apenas enquanto
lismo, por entender que, através da razão, membro de uma comunidade e emerge,
se observam e avaliam adequadamente os ao invés, na sua singularidade, distinguin-
acontecimentos do quotidiano, podendo do-se dos seus semelhantes. Neste senti-
inferir-se preceitos verdadeiros, incontes- do, o corpo constitui-se como núcleo de
táveis e fidedignos. Assim, vive mergulha- diferenciação entre o eu e o outro.
do na ilusão da sua grandeza, julgando-se Portanto: a antropologia racionalista e
o centro do universo. cientificista, associada ao individualismo,
À quebra do vínculo com Deus asso- modifica significativamente a condição e
cia-se, por outro lado, uma alteração no a significação do corpo, nomeadamente
modo de perceber a história. A humani- por fazer dele um objeto. Consecutiva-
dade perde o seu carácter transcenden- mente, a matéria corporal fica “do lado
te, que a fazia estável e eterna, e torna­ das ‘coisas’” (GIL, 1997, 175). Ou seja:
‑se mutável, transitória e progressiva. a perspetivação da corporalidade como
Isto porque se descobre a linearidade e, realidade objetiva faz desconsiderar
principalmente, a irreversibilidade do (mais uma vez) tudo o que é da ordem
tempo – ou, melhor dizendo, porque o do subjetivo (as sensações, as emoções, as
conceito de tempo cíclico dá lugar ao experiências, etc.).
conceito de tempo linear, histórico. Esta No séc. xvii, com o assentamento dos
transformação na compreensão do tem- fundamentos da Revolução Francesa e do
po revela-se crucial para a construção do Iluminismo, a civilização ocidental reco-
que virá a ser o conhecimento e a inter- nhece ainda mais poder ao império da
pretação modernos do corpo. razão, da ciência e da verdade, conjuntu-
Neste contexto antropocêntrico e pro- ra em que se acentua a objetificação do
fundamente racionalista, em que a ciên- corpo e se intensifica, consequentemen-
cia assoma como valor central, revolucio- te, a sua perceção negativa. René Descar-
na-se o olhar sobre o corpo. No séc. xv tes contribui preponderantemente para a
ocidental, as primeiras dissecações ofi- construção de uma imagem anticorporal.
ciais, feitas com o propósito único da ob- No Discurso do Método, ao enunciar a con-
servação científica, motivam a formação quista da certeza como alicerce do seu

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Anticorpo 1983

método, o filósofo francês está a enalte- sentimento, da vontade, dos desejos,


cer a faculdade racional, considerando-a das paixões.
como a única fonte da clareza, essencial O rigor corporal do séc. xvii manifesta­
para o conhecimento da verdade. ‑se igualmente na esfera de ação religiosa;
Ora, de acordo com Descartes, a ca- é disso exemplo o jansenismo, movimen-
pacidade racional – o pensamento – é, to nascido no seio do cristianismo. De
precisamente, a essência do ser humano. acordo com Jansénio, a queda de Adão e
O pensamento fundamenta a perceção Eva fez do Homem um ser absolutamen-
do indivíduo como existência. Daí a cé- te frágil, inevitavelmente inclinado para
lebre conclusão do filósofo: “Penso, logo o pecado e para o mal, cuja absolvição e
existo” (DESCARTES, 1981, 28) – um dos salvação dependem unicamente da graça
principais princípios da filosofia carte- divina. Deste modo, a doutrina jansenis-
siana, a partir do qual se edifica a noção ta caracteriza-se pela austeridade moral,
de sujeito moderno. Através do cogito, que pressupõe o domínio do corpo e das
René Descartes muda a forma de pensar suas exigências, na medida em que só a
a subjetividade: o indivíduo é um ser in- pureza da alma conduzirá ao perdão e à
dependente, estável e uno, organizado redenção divinos.
e orientado com base na lógica. Assim, Note-se que a proeminente tendência
o corpo é também um mecanismo logi- para a restrição corpórea resulta, em
camente organizado – até porque, como grande medida, da moderna distinção
realça David Le Breton, “les conceptions entre espaço público e espaço privado,
du corps son tributaires des conceptions que faz do corpo, como se lê em A Condi­
de la personne [as conceções de corpo ção Humana, de Hannah Arendt, “o úni-
são tributárias das conceções de pessoa]” co bem que o indivíduo jamais poderia
(BRETON, 1995, 8). Mas o corpóreo só compartilhar com outro, mesmo que
atua efetivamente como máquina quan- desejasse fazê-lo” (ARENDT, 2001, 136).
do controlado, i.e., se o intelecto se so- Na verdade, considera-se o corpo como
brepuser à vontade e ao sensório, porque algo de exterior à pessoa, como um sinal
estes são elementos enganadores – e, por material do limite individual – numa pa-
isso, desestabilizadores do real funciona- lavra: como um invólucro da carne. Por
mento do organismo corporal. isso, não sendo possível eliminá-lo, há
Depreende-se que a lógica cartesiana que ocultá-lo nos momentos em que ele
vinca a dicotomia corpo/mente (que se se torna visível na sua vulnerabilidade e
traduz na oposição sensorial/racional), na sua privação (contrariando o seu pre-
bem como a valorização do intelectual sumido carácter técnico e mecanicista).
em detrimento do corporal. Nessa linha Concluindo: no Ocidente moderno, o
de compreensão, a sociedade da Idade corpo permanece uma entidade esque-
Moderna persiste em rejeitar quaisquer cida, controlada (apesar de evidente), e,
manifestações desviantes de um padrão mais do que isso, apagada. O corpo é so-
corporal uniformizado e institucional- mente anticorpo.
mente estabelecido – a doença física, Importa realçar que a conceção anti-
a deficiência, a loucura, a velhice, a corporal prepondera no séc. xix, ao ser
morte (nomeadamente através da mar- afirmada e enfatizada pelo sistema posi-
ginalização e do isolamento em espaços tivista, de forte pendor racionalista, cien-
especialmente criados com esse propó- tificista e progressista. No entanto, em
sito) –, ou tudo que for do domínio do meados do século, a filosofia nietzschiana

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1984 Anticorpo

dá a conhecer uma nova proposição: o seu esplendor, espelho transparente de


mais do que ter um corpo, este é signo um sujeito em permanente (re)constru-
da individualidade do homem. Como ção corporal. Trata-se do corpo em de-
observa Nietzsche: “‘Todo eu sou corpo vir; esse devir é drasticamente enfatizado
e nada mais’” (NIETZSCHE, 2007, 50). com o triunfo irrestrito da tecnologia e
Esta descoberta origina uma mudança de a consequente emergência da realidade
paradigma no que à noção e ao tratamen- tecno-digital. O corpo perde a sua vo-
to do corpóreo diz respeito: extingue-se cação estritamente física e adquire uma
a dualidade corpo/alma por se perceber suplementaridade tecnológica (pela qual
que, afinal, os dois elementos, indissociá- o ser humano, fazendo uso quase perma-
veis, pertencem à mesma instância – ao nente das tecnologias, não anda longe do
eu. Assim sendo, ao invés de se esconder imaginário ciborgue). Tanto mais que a
o corpo, é-lhe reservado um lugar de des- revolução tecnológica supõe um progres-
taque. Suspendem-se os anteriores códi- sivo – e, dir-se-ia, inelutável – avanço, no
gos regulamentadores (e condicionado- sentido de converter o corpo físico, com
res) do seu aparecimento, abolindo-se as suas diversas imperfeições e com o seu
as restrições quanto à sua exibição. Esta fatal desgaste, em corpo protésico. Ou
atitude culmina, no séc. xx, com a liber- seja, o corpo adquire um carácter bióni-
tação do corpo, que no séc. xxi continua co e diluem-se cada vez mais as fronteiras
a renunciar ao espaço marginal que lhe que outrora separavam em trincheiras ra-
havia sido destinado. zoavelmente intransponíveis a realidade
De notar que o renovado entendimen- biológica da tecnologia.
to da corporeidade se reflete no campo Finalmente, convirá assinalar outro as-
artístico. Na produção de modernistas, peto decisivo: a hipersexualização do cor-
vanguardistas e pós-modernistas, são co- po nas sociedades ocidentais contempo-
muns os motivos da doença, da loucura, râneas. O corpo deixou de ser o lugar da
da morte, e assomam imagens que sim- repressão do desejo e converteu-se no in-
bolizam o novo ser em ruínas, na ambi- verso, dada a permanente insistência na
guidade que o caracteriza – os duplos, os injunção do prazer. O corpo – tatuado,
corpos desmantelados (e, no auge, dece- escultural, sensual ou flácido – é assim o
pados), a máscara, o clown, os autómatos, espaço de todos os gozos (alimentares, se-
os manequins. Recordem-se algumas das xuais, desportivos, entre outros). Trata­‑se,
fotografias de Joel-Peter Witkin, nas quais enfim, do corpo do gozo. O senão deste
o corpo é exposto excessiva e subversiva- apelo constante à fruição (segundo o
mente; as ficções de Fialho de Almeida e qual a felicidade lhe é inerente) mede-se
de Raul Brandão, ainda nos primórdios por castrações subliminares – que, de um
do séc. xx; a fragmentação e o desmante- modo assaz subtil, apelam a uma conten-
lamento dos poemas de Mário de Sá-Car- ção destinada a preservar o corpo, a fim
neiro e de Edmundo de Bettencourt, ou de o manter razoavelmente intacto para
dos romances de António Lobo Antunes; deleites futuros, e que têm que ver com as
a figura do clown nas pinturas de Almada medidas tomadas para prolongar o mais
Negreiros; ou os manequins fotografados possível a vida do corpo.
por Fernando Lemos.
Já desde o final do séc. xix se dava a ver Bibliog.: AGOSTINHO DE HIPONA, Trin-
o corpo como o espaço ontológico que é. dade, Prior Velho, Paulinas, 2007; ARENDT,
O anticorpo torna-se então corpo em todo Hannah, A Condição Humana, Lisboa, Relógio

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Anticristo 1985

d’Água, 2001; BAKTHIN, Mikhail, A Cultura


Popular na Idade Média e no Renascimento. O Con-
Anticristo
texto de François Rabelais, São Paulo, Hucitec,
1987; BRETON, David Le, Anthropologie du
Corps et Modernité, Paris, PUF, 1995; DELEUZE,
Gilles, e GUATTARI, Félix, O Anti-Édipo. Capita-
lismo e Esquizofrenia 1, Lisboa, Assírio e Alvim,
2004; DESCARTES, René, Discurso do Método.
As Paixões da Alma, Lisboa, Sá da Costa, 1981;
Id., Regras para a Direcção do Espírito, Lisboa,
Edições 70, 1989; ECO, Umberto (dir.), Idade
A figura do anticristo é uma das mais
complexas e mais metamórficas de
todas as figuras em negativo da cultura
Média. Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos, Alfragi-
ocidental. Se, na base, nela é represen-
de, Dom Quixote, 2014; GIL, José, “Corpo”,
in Enciclopédia Einaudi, vol. 32, Lisboa, INCM, tado o reverso do projeto cristão para a
1995, pp. 201-266; Id., Metamorfoses do Corpo, transformação da história em ordem à
Lisboa, Relógio d’Água, 1997; GOFF, Jacques construção da sociedade ideal assente nos
Le, A Civilização do Ocidente Medieval, vol. ii, valores do Evangelho inspirada e liderada
Lisboa, Estampa, 1984; Id., Uma História do pela figura de Cristo, já a sua identifica-
Corpo na Idade Média, Lisboa, Teorema, 2005; ção assumiu vários nomes e identidades
KÜNG, Hans, O Cristianismo. Essência e História,
ao longo dos dois milénios de história
Braga, Círculo de Leitores, 1994; MARZA-
NO, Michela (org.), Dicionário do Corpo, São cristã. Se o livro do Apocalipse associa o
Paulo, Edições Loyola/Centro Universitário anticristo à grande Besta que apoquen-
São Camilo, 2012; MATTOSO, José, Naque- tará os cristãos e os desviará do caminho
le Tempo. Ensaios de História Medieval, Rio de do bem, os textos do Novo Testamento,
Mouro, Círculo de Leitores, 2009; Id., Poderes em geral, permitem identificá-lo com a
Invisíveis. O Imaginário Medieval, Lisboa, Temas expressão personalizada do maligno, que
e Debates/Círculo de Leitores, 2013; MIRAN-
tem as suas raízes veterotestamentárias
DA, Francisco Sá de, Obras Completas, fixação
de texto, pref. e notas Rodrigues Lapa, vol. ii, na figura do contraditor de Deus, perso-
Lisboa, Sá da Costa, 1977; MIRANDA, José nificada em Lúcifer ou Satanás. Portanto,
A. Bragança de, Corpo e Imagem, Lisboa, Nova o anticristo é o negativo de Cristo, o ad-
Vega, 2012; NANCY, Jean-Luc, Corpus, Lisboa, versário por excelência da construção da
Vega, 2000; New Catholic Encyclopedia, vols. vii Igreja cristã, o sedutor que atrai de modo
e ix, New York, McGraw-Hill, 1967; NIETZS- inexorável os seguidores de Cristo para
CHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, Lisboa,
o mundo do mal, testando a firmeza da
Guimarães Editores, 2007; PRIGOGINE, Ilya,
O Nascimento do Tempo, Lisboa, Edições 70, fidelidade dos crentes ao depósito da fé.
2008; REAL, Miguel, Nova Teoria do Mal, Alfra- É, em suma, a grande figura oponente
gide, Dom Quixote, 2012; TAYLOR, Charles, por excelência, símbolo do reino do mal,
Sources of the Self. The Making of the Modern Iden- que procura hipotecar a cada momento
tity, Cambridge, Cambridge University Press, os planos salvíficos de Deus para a huma-
2009; TUCHERMAN, Ieda, Breve História do nidade no teodrama da história. As narra-
Corpo e de Seus Monstros, Lisboa, Vega, 2012;
tivas do anticristo, desde a matriz bíblica,
VESALIUS, Andreas, De Humani Corporis Fabri-
ca. Libri Septem, s.l., Ebrisa, 1997. passando pelas elaborações medievais e
modernas, pintam-no com cores apoca-
Vanda Figueiredo
lípticas e apresentam-no em combate
permanente. Esta figura escatológica só
será vencida, segundo a perspetiva da
teodiceia cristã, na parusia, com a última
vinda de Cristo para julgar os vivos e os

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1986 Anticristo

mortos e consumar soteriologicamente a teste à autenticidade e à fortaleza dos que


história, consolidando a título definitivo aderiram ao Senhor da história.
a vitória sobre o mal. De acordo com a exegese que mais
À figura do anticristo como protagonis- fortuna teve em contexto de elaboração
ta do mal ligam-se correntes proféticas doutrinal ortodoxa estabelecida pelo pen-
que perspetivam horizontes e cenários de samento teológico de intelectuais cristãos
desfecho do tempo e da história. Sobres- da Igreja antiga, os 1000 anos de cristifi-
sai neste domínio do profetismo escato- cação do mundo são um período longo
lógico o grande tema do milenarismo e a que corresponde ao tempo da Igreja, in-
possibilidade de um reinado intermédio terpretação perspetivada de forma estabi-
de Cristo. Este criará uma nova ordem lizadora por S.to Agostinho na sua famosa
cósmica ao estilo do milénio de paz e Cidade de Deus. Este período começaria
santidade apresentado em Apocalipse 20, com a incarnação e seria o tempo neces-
afrontando e esmagando a liderança avas- sário para a construção e perfeição da
saladora da personagem do anticristo no Igreja. A Igreja terminaria com a vinda
teatro da história humana. do anticristo, com a última batalha a pre-
Os fundamentos deste mito do anticris- ceder o Juízo Final e a parusia, ou seja, a
to encontram-se nas profecias de Daniel última vinda de Cristo Salvador. Ao longo
(cap. 2) e do Apocalipse (caps. 13 e 20), da história cristã, com variações e matizes
mas também nas duas cartas de S. Paulo de país para país e de cultura para cul-
aos Tessalonicenses. No pensamento dos tura, e atendendo às diferentes épocas
Padres da Igreja Antiga verifica-se um cla- históricas, o anticristo foi identificado
ro desenvolvimento na caracterização da com figuras que assumiram a liderança
grande vedeta maligna do fim do mundo.
Assistimos à configuração desta persona-
Apocalipse (1496‑1498), “Os quatro cavaleiros
gem diabólica que representa a antítese do Apocalipse”, de Albrecht Dürer.
da utopia cristã, em S.to Irineu no final
do séc. ii, em S.to Hipólito de Roma no
início do séc. iii, em Lactâncio no início
do séc. iv, entre outros. Clébert sintetiza
assim o intento principal do opositor por
excelência do Filho de Deus: “Segundo os
pais da Igreja, este Anticristo opõe-se ao
Cristo e dedicar-se-á a arruinar a sua obra.
Levanta-se contra Deus, fazendo edificar
o seu palácio na montanha de Apadno,
de que fala o profeta Daniel e onde se
imagina que seja o monte das Oliveiras,
estabelece-se no templo e na cidade de Je-
rusalém, onde se fará adorar” (CLÉBERT,
1995, 19). O anticristo é, assim, um dos
elementos mais marcantes do lado negro
da história finimundista. Ele é a própria
negação da história cristã. Mas é na sua
anti-história, na sua ação desordenadora
e caótica, que é feito o último e decisivo

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Anticristo 1987

de movimentos e campanhas devastado- Neste campo, a história cultural portu-


ras. Este tinha como antídoto a esperança guesa regista uma data relevante – 1666 –,
na vinda do imperador dos últimos dias para a qual muitos comentadores e pro-
ou de um rei ou monarca salvador, qual fetas vaticinaram a realização do “ano da
novo messias terreno com uma agenda Besta”. Em Portugal esta foi prevista como
política, ainda que ao serviço da defesa a data milenarista do nascimento de 1000
da cristandade. anos de felicidade sob a égide de Portu-
Há um manancial de profecias que co- gal por um dos génios proféticos mais
locam o anticristo em cenários pré-apoca- brilhantes da nossa história. O P.e António
lítpicos, ou a anteceder a consumação da Vieira profetizou para 1666 a inauguração
história, imaginando-o a tomar o poder do milénio cristão previsto no Apocalip-
em instituições inesperadas, mas decisivas se, determinado e definido em termos de
para realizar a degeneração universal de realização espaciotemporal e política prin-
tudo o que é bom e digno. De tempos a cipalmente em Esperanças de Portugal, em
tempos são alegadas profecias temerárias História do Futuro e em Clavis Prophetarum.
anunciando a eleição de um papa negro, Esta renovatio temporum, que deveria ser
personificação do anticristo, que se sen- precedida por terríveis “dores de parto”,
tará no Trono de S. Pedro e subverterá a daria início ao famoso Quinto Império,
missão essencial da Igreja de Cristo, pro- que é o nome simbólico desta história
curando destruí-la. milenar do futuro, do reino de Cristo con-
Na cultura portuguesa, o anticristo as- sumado na terra (De Regno Christi in Terris
sumiu as feições das lideranças quer do Consumato). Esta utopia era essencialmen-
infiel muçulmano, quer dos otomanos, te um projeto protoecuménico universal,
até à atribuição deste estatuto à figura do- embora de base cristológica, que preten-
minadora de Napoleão Bonaparte, já nas dia estabelecer uma nova ordem global
primeiras duas décadas do séc. xix. Por que pusesse termo aos conflitos mundiais.
seu lado, a esperança na chegada de um Estes tinham surgido no contexto da pro-
rei cristão restaurador do império cristão toglobalização das relações entre os povos,
universal, que seria inaugurada com uma fruto de um movimento de planetarização
vitória sobre o anticristo, foi depositada, protagonizado pelas potências cristãs eu-
quer em D. Sebastião, quer em D. João IV, ropeias então desavindas.
quer na figura de outros monarcas e líde- O anticristo representa o reverso de um
res que lutaram contra inimigos sérios da projeto de harmonia para a comunidade
cristandade europeia e em prol de pro- dos crentes, mas também para a humani-
jetos políticos decalcados deste ideário dade em geral. Fazendo apelo a uma leitu-
matricial. ra religiosa, ele assume a face do inimigo
A iminência da chegada do anticristo percecionado consoante o lado da barri-
foi profeticamente projetada para datas cada em que nos situemos. Mesmo dentro
redondas ou numericamente simbólicas, do cristianismo ele assumiu várias faces: se,
associadas à ideia do advento de uma do lado católico, o encontraremos num lí-
grande transformação da história. Desde der protestante, do lado da reforma lute-
o ano 1000, passando pelos finais de sécu- rana e calvinista, vê-lo-emos espelhado no
lo, até ao fim do segundo milénio cristão, papa ou num líder político afeto à Igreja
sinais e figuras negativas foram interpre- de Roma. Até pode acontecer que o an-
tadas pelos crentes e fabricadores de pro- ticristo, em polémica e propaganda inter-
fecias como o tempo do anticristo. nas, seja identificado com determinadas

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1988 Anticultura

instituições ou grupos étnicos, como os


judeus, ou até com a Companhia de Jesus,
Anticultura
na perspetiva dos antijesuítas mais radi-
cais. Estes ter-se-iam inspirado no teólogo
dominicano de Salamanca Fr. Melchior
Cano, que, na déc. de 40 do séc. xvi, acu-
sou os Jesuítas de precursores do anticris-
to, imagem terrível que em Portugal o
marquês de Pombal recuperou na segun-
da metade do séc. xviii para justificar a
A noção de anticultura depende natu-
ralmente da forma como definimos
cultura. Como defendeu lapidarmente
expulsão da Companhia de Jesus. Edgar Morin, o conceito de cultura é ver-
É sempre a dicotomia entre o fascínio dadeiramente caleidoscópico, razão pela
e a repulsa que o anticristo encerra, en- qual o caracterizou como um “camaleão
quanto protagonista mais destacado da conceptual” (MORIN, 2008, 19). Se defi-
longa história de atração do que é conside- nirmos cultura, na esteira de Manuel An-
rado desagregador da ordem estabelecida. tunes, como aquilo “que torna o homem
Em suma, o anticristo, além do conteúdo plenamente homem” (ANTUNES, 2007,
religioso profético que lhe é associado nas 86), ou seja, como aquilo que o dignifi-
leituras estritamente teológicas, também ca numa relação harmónica com os seus
aparece como supermetáfora personifica- semelhantes e com a natureza, então po-
dora dos medos mais assustadores da hu- deremos definir anticultura como todas
manidade: o medo da dominação do mal, as criações humanas que atentam contra
da subjugação a uma infelicidade geral, este ideário de plenificação humana. To-
e do fim da história humana, entendida dos os atentados contra a vida humana,
como trajeto para uma consumação feliz. a sua liberdade, a sua unicidade, etc.,
podem ser tidos como anticultura e, na
Bibliog.: CLÉBERT, Jean-Paul, História do Fim mesma linha, como anticivilização, pois
do Mundo, Mem Martins, Europa-América, os dois conceitos são interdependentes.
1995; FRANCO, José Eduardo, e FERNAN- O P.e Manuel Antunes, pensador maior
DES, José Manuel, O Mito do Milénio, Lisboa, da cultura, escreveu um texto emblemá-
Edições Paulinas, 1999; FRANCO, José tico sobre este assunto, preocupado que
Eduardo, e MOURÃO, José Augusto, Influên- estava com as derivas contemporâneas da
cia de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa, sociedade de consumo, da globalização e
Lisboa, Roma Editora, 2005; Franco, José
da tecnicização do mundo, de que extraí-
Eduardo, e Calafate, Pedro (dirs.), Obra
Completa Padre António Vieira, t. iii, , vols. i, mos esta passagem nuclear para a aceção
v e vi, Lisboa, Círculo de Leitores, 2013-14; do que se entende aqui por anticultura:
MCGINN, Bernard, Antichrist: Two Thousand “Mas não é só a cultura tradicional, lite-
Years of the Human Fascination with Evil, New rário-humanística a única a ser contesta-
York, Harper SanFrancisco, 1994; MEDINA, da, apesar das provas dadas ao longo de
João, “O sebastianismo – exame crítico dum quase três milénios, apesar dos desenvol-
mito português”, in Medina, João (dir.),
vimentos, que ela proporciona, do ‘esprit
História de Portugal, vol. vi, Amadora, Clube
Internacional do Livro, 1995, pp. 270-271; de finesse’ e apesar dos conhecimentos,
PAIVA, Sebastião de, O Tratado da Quinta que ela faculta e estimula, da realidade
Monarquia, coord. José Eduardo Franco, Lis- humana, na sua diversidade, complexida-
boa, INCM, 2006. de e riqueza. Não é só, dizíamos, a cultura
José Eduardo Franco tradicional a única a ser contestada pelos

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Ceticismo 1989

protagonistas da anticultura. Também a


cultura moderna, tecnocientífica, pro-
Ceticismo
digiosamente desenvolvida, sobretudo a
partir de 1900, o é. Porventura até com
maior fúria e encarniçamento do que as
investidas contra a cultura literário-hu-
manística. Apesar dos largos benefícios e
das reais comodidades por ela trazidos à
espécie humana. Reprova-se no seu cres-
cimento – cumulativo ou simplesmente
C om origem no verbo grego “skeptes-
thai” (pensar, refletir), o termo terá
sido introduzido ou vulgarizado na lín-
revolucionário – uma série de malefícios gua portuguesa a partir do termo francês
que, mesmo não pretendendo atingir “scepticisme”. Até meados do séc. xviii, a
a exaustividade, não é difícil enumerar: atitude de dúvida perante a possibilidade
a poluição do meio ambiente; a destrui- de se conhecer a verdade seria designada
ção de espécies animais e vegetais; a ‘ro- mais genericamente a partir das suas ma-
botização’ do ser humano; a promoção, a nifestações doutrinárias. Assim, termos
hipertrofia e a unilateralização de certas como “heresia” ou “infidelidade” expres-
faculdades do animal rationale; a fealdade sariam a sua inadequação relativamente
de tantas das suas construções em largas a um quadro gnosiológico dominante
zonas em que intervém; a coisificação do em que a fé e a doutrina católicas, racio-
homo sapiens em tantas realidades que só nalmente demonstradas pela escolástica,
o alienam, o objetivam e o pervertem; a forneciam inquestionáveis fundamentos
racionalização do irracional e a geome- da verdade. Em contextos mais eruditos,
trização de tantos aspetos irredutíveis à a doutrina da dúvida persistente era tam-
linha e à figura geométrica” (Id., Ibid., bém designada por pirronismo, doutrina
203-204). de Pirro de Élis (c. 360 a.C.-c. 270 a.C.),
No fundo, a anticultura representa filósofo gentio que os letrados da Moder-
uma tendência contemporânea e, ao nidade conheceriam sobretudo a partir
mesmo tempo, um estado de espírito de da obra Vidas e Opiniões dos Filósofos Ilustres
fim de civilização que tende a pôr em cau- de Diógenes Laércio (c. séc. iii), onde se
sa, a derruir e a anular toda uma herança narravam anedoticamente os exageros
cultural de natureza humanista promoto- e as imprudências a que Pirro teria sido
ra da dignidade e da plenificação do ser conduzido pelas suas reflexões. O desa-
humano. Este conceito negativo de anti- certo entre a atitude cética e o contexto
cultura interliga-se necessariamente com mental e cultural português dos primei-
outros conceitos que lhe são subsidiários, ros séculos da Modernidade poderá,
como a anticivilização, o anti-humanis- aliás, ajudar a explicar as aceções valorati-
mo, a contracultura, entre outros. vas que os termos “pirrónico” e “pirronis-
mo” ainda hoje têm na língua portugue-
sa, enquanto sinónimos de “teimoso” e
“teimosia”, “arrogante” e “arrogância”, as
quais, tanto quanto pudemos confirmar,
Bibliog.: ANTUNES, Manuel, Obra Completa, não se verificam no inglês, francês, espa-
t. i, vol. iv, Lisboa, FCG, 2007; MORIN, Edgar, nhol ou italiano, onde os mesmos termos
L’Esprit du Temps, Paris, Armand Colin, 2008. parecem remeter apenas para a doutrina
José Eduardo Franco de Pirro.

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1990 Ceticismo

Descartes, mas sem estender a dúvida ao


indivíduo que questiona ou à existência,
De Que Nada Se Sabe é, pelo menos, um
importante testemunho das operações de
pensamento que integraram o processo
de formulação da ciência moderna.
Vinculado ao espírito da ciência moder-
na e ao seu método de conhecimento, o
conceito de ceticismo foi sendo associado
a atitudes e a correntes que questionaram
dogmas, crenças, superstições ou suposi-
ções em prol de uma explicação fundada
em provas empíricas cabais. Assim, distan-
ciado das suas origens filosóficas radicais,
em que se afirmava a impossibilidade da
certeza, o ceticismo científico adquiriu
extensões ideológicas diversas, das quais
o agnosticismo e o ateísmo são exemplos.
Pirro de Épiro (319-272 a.C.).
Em Portugal, foi sobretudo em perío-
dos em que o poder político, a cultura
Perante este quadro, não é espantoso e o ensino se distanciaram da influência
que a figura portuguesa mais represen- eclesiástica, como foi o caso das reformas
tativa do ceticismo filosófico durante a pombalinas, da Revolução Liberal e da
Modernidade, Francisco Sanches (1550­ Implantação da República, que parece
‑1622), tenha sido um médico marrano ter havido uma divulgação mais acentua-
nascido em Tui e batizado em Braga, que da de ideias associáveis ao ceticismo.
aos 12 anos partiu para Bordéus. Concluí-
dos os seus estudos de medicina em Itália Bibliog.: CALAFATE, Pedro, “Prefácio”, in
e na Univ. de Montpellier, Francisco San- SANCHES, Francisco, Obra Filosófica, Lisboa,
INCM, 1999, pp. 7-36; CARVALHO, Joaquim
ches fixou-se em Toulouse, onde exerceu
de, “Introdução”, in SANCHES, Francisco,
medicina durante 39 anos, dedicando-se Opera Philosophica, Coimbra, Universidade de
depois à docência, na Escola de Artes de Coimbra, 1955, pp. 7-72; SÁ, Artur Morei-
Toulouse, durante 25 anos, e na Faculda- ra de, Francisco Sanches: Filósofo e Matemático,
de de Medicina, durante 11 anos. 2 vols., Dissertação de Doutoramento em Fi-
No seu Quod Nihil Scitur [De Que Nada Se losofia apresentada à Universidade de Lisboa,
Sabe], Francisco Sanches desenvolve uma Lisboa, texto policopiado, 1947.
reflexão acerca das formas e dos limites Ricardo Ventura
do conhecer, que tem por base uma sepa-
ração radical dos domínios da teologia e
da filosofia natural, e uma crítica à conce-
ção aristotélica do conhecimento através
de definições, à qual contrapõe o conhe-
cimento empírico. O tratado não consis-
te, pois, numa glosa dos céticos gregos,
nem parece ser essa a fonte de inspiração
do autor. Antecedendo, em certa medida,

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Contracultura 1991

Contracultura outras artes tenham integrado a atitude


desafiadora de convenções, normas e
modelos existentes, foi o género musical
rock, nas suas diversas correntes, que teve
maior impacto como meio amplificador
do discurso sem deferências da contracul-
tura em diversificados contextos.

O termo “contracultura” designa, fun-


damentalmente, uma sensibilidade
reivindicadora de novas vivências e novos
Theodore Roszak retratou este pul-
sar numa obra de 1969, The Making of a
Counter Culture, a assinalar pelo valor de
entendimentos da capacidade humana de “testemunho de um momento alto da ex-
experiência e do seu poder de conheci- pressão da dor no interior da crise da ex-
mento e transformação. Com anteceden- periência” (ROSA, 2001, 73). O autor viu
tes nos anos 50 do séc. xx, desenvolveu-se no modo de avaliar a validade da mun-
na segunda metade da déc. de 60, nos Es- dividência científica convencional a linha
tados Unidos da América, e foi principal- unificadora da contracultura, a feição
mente conduzida por jovens, assumindo que a distinguia mais nitidamente do es­
os movimentos estudantis universitários tablishment: para os jovens contestatários,
um papel catalisador, em articulação com aquela validade apresentava-se esgotada,
alguns intelectuais e artistas. O conceito sem poder regenerador; para as gerações
de contracultura tem sido aplicado a ma- anteriores, mantinha pleno vigor en-
nifestações de cultura dita alternativa ou quanto alicerce do progresso tecnológi-
marginal e associado a ideias e a práticas co. Já então eram apontados os variados
contra-hegemónicas. matizes do inconformismo transportado
Escreveu Ortega y Gasset que “Eu sou
eu e a minha circunstância, e se não a sal- José Ortega y Gasset (1883-1955).
vo a ela, não me salvo a mim”, significan-
do “circunstância” o “sector da realidade
circundante [que] forma a outra metade
da minha pessoa” (GASSET, 1967, 52).
É uma ideia que ressoa também nas ex-
pressões da contracultura, pois esta força
dissidente defendia a urgência de mu-
danças em várias esferas – economia, arte,
ciência, política, cultura, família e sexua-
lidade –, consideradas portadoras de sal-
vação e libertação para os tantos “eus” e
as suas realidades circundantes. A contra-
cultura manifestou radical rejeição dos
fundamentos da economia capitalista,
atribuindo-lhe o efeito de produção de
sistemas repressores de liberdades indivi-
duais, sistemas com a forma da sociedade
da abundância como refere Kenneth Gal-
braith e da sociedade de consumo apon-
tada por Herbert Marcuse. Ainda que
D.R.

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1992 Contracultura

pela contracultura, bem como algumas O uso da categoria “contracultura” na


tensões, visíveis no contraponto entre hi­ análise de processos de produção, difusão
ppies e beatniks, de um lado, e ativistas po- e consumo cultural nas últimas décadas do
líticos das novas esquerdas, de outro. Tal séc. xx e nas primeiras do séc. xxi requer
variedade de causas e de grupos sociais ressalvas, tal como sucede com a noção de
envolvidos na vaga revoltosa da contra- subcultura. Isto porque, nas sociedades
cultura confere ao conceito um carácter contemporâneas a estes movimentos, as
genérico, remetendo para um mosaico apropriações individuais de recursos e re-
de atividades e ideologias que terá tido ferências culturais específicos geram uma
uma voz comum num breve período do pluralidade e complexidade de modos de
final dos anos 60. vida cuja legibilidade e cujo alcance fi-
Em Portugal, o surgimento e a afir- cam reduzidos por via do recurso a dico-
mação de uma nova cultura juvenil, nos tomias como alternativo/mainstream, do-
anos 60, tiveram como cenários quase minado/dominante, novo/velho. Além
exclusivos o universo estudantil e os cír- disso, a contracultura não deixou, por
culos universitários. A centralidade do mais dissidente que se declarasse, de se
papel destes contextos e dos movimentos expor às regras e dinâmicas da socieda-
estudantis na disseminação de ideologias de de consumo – cada vez mais uma so-
de protesto acentuou-se à luz de uma ciedade de consumidores, na opinião de
peculiar combinação: além de o campo Robert Rochefort –, tendo vindo a parti-
escolar propiciar o encontro intelectual cipar de fenómenos de mercantilização e
com experiências de outros países, a de integração por discursos hegemónicos
pouco expressiva concentração urbana e convencionais. O caso dos festivais de
e as restrições, resultantes da ausência música da linhagem rock, que foram ban-
de democracia, à difusão de informação deira da contracultura nas décs. de 60 e
e ao consumo limitavam a experiência 70, proporciona uma possível ilustração
e a adesão a estilos de vida alternativos. desta tendência: ao mesmo tempo que
A contracultura e o modo como a juven- mantêm e reelaboram a moldura e o
tude e as crises universitárias lhe deram dispositivo cénico – paisagens maiorita-
voz foram apropriados muito por via do riamente bucólicas, tendas de campismo
especial contacto com França, contendo como habitação nómada, palcos improvi-
esta relação um efeito revelador de rea- sados, ainda que tecnologicamente efica-
lidades mais diversificadas e complexas. zes –, evoluíram para um enquadramento
França, sobretudo Paris, representava, na muito diverso das primeiras versões deste
déc. de 60, o território de que as elites es- tipo de evento, em consequência também
tavam culturalmente mais próximas; era, das mutações que a digitalização operou
ainda, o principal destino não apenas de nos modos de produzir e aceder a bens
novos emigrantes como também de exi- culturais e artísticos, incluindo a expe-
lados políticos, com presença significati- riência de ver espectáculos ao vivo. Mar-
va de jovens. A imprensa oposicionista, tin Elbourne, programador deste tipo de
sobretudo a de periodicidade semanal e eventos há várias décadas, afirmava, em
mensal, e algumas editoras constituíam 2014, que os festivais de música “deixa-
igualmente, nesses anos, canais relevan- ram de ser contraculturais, são a cultura”
tes para a difusão e receção de ativida- (LOPES, Público, 15 mar. 2014, 30). Refe-
des, obras artísticas e debates de marca ria-se à perda do seu carácter excepcio-
contracultural. nal e ao esbater da celebração partilhada,

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C r i s t ã o s - n o v o s e l i m p e za d e s a n g u e 1993

por públicos e bandas, da diferença e de


um estatuto marginal; e aludia a outra
Cristãos-novos
forma de conhecimento à distância, sem e limpeza de sangue
a prévia e massiva apresentação das ban-
das aos espectadores, pela mão larga da
web e, logo, a uma diversa mistura de ex-
pectativas rondando aquela experiência.

A s sociedades tuteladas pelas monar-


quias ibéricas foram atravessadas,
desde o dealbar da modernidade, por
Bibliog.: BEBIANO, Rui, O Poder da Imagina-
ção. Juventude, Rebeldia e Resistência nos Anos 60, um dilema assente numa divisão social
Coimbra, Angelus Novus, 2003; BENNETT, consubstanciada na emergência dos con-
Andy, “Pour une réévaluation du concept de ceitos de cristão-velho e de cristão-novo.
contre-culture”, Volume!, n.º 1, vol. 9-1, 2012, Configurava este último um estatuto ne-
pp. 19-31; CARDINA, Miguel, “Movimentos gativo, estigmatizado, correspondendo
estudantis na crise do Estado Novo: mitos
ao que hoje designaríamos de cidadão de
e realidades”, E-Cadernos Ces, n.º 1, 2008,
pp. 67­‑90; CLECAK, Peter, America’s Quest for segunda. Esta distinção infamante afir-
the Ideal Self: Dissent and Fulfilment in the 60s and mou-se em Espanha e em Portugal, na
70s, Oxford, Oxford University Press, 1983; sequência do estabelecimento da Inquisi-
ESTANQUE, Elísio, e BEBIANO, Rui, Do Ac- ção moderna e centralista e no contexto
tivismo à Indiferença. Movimentos Estudantis em das perseguições e expulsões dos judeus,
Coimbra, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, obrigando os que não queriam partir a
2007; FERREIRA, Paulo Rodrigues, Culturas de
receberem batismo cristão. Por seu lado,
Protesto em Portugal na Imprensa Periódica (1968­
‑1970), Dissertação de Mestrado em História a rejeição da existência de diversidade de
Contemporânea apresentada à Universidade crenças religiosas pela criação de bairros
de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2009; mouros e judaicos autónomos (moura-
GALBRAITH, John Kenneth, The Affluent So- rias e judiarias), prática que vigorava na
ciety, New York, New American Library, 1958; Idade Média, resultou da imposição de
GASSET, José Ortega y, Meditações do D. Quixo- uma leitura teológica muito propalada
te, São Paulo, Libro Ibero Americano, 1967;
pela parenética cristã, nomeadamente
GUERRA, J. P. Miller, e NUNES, A. Sedas,
de pregadores mendicantes dominica-
“A crise da universidade em Portugal: reflexões
e sugestões”, Análise Social, vol. vii, n.os 25-26, nos e franciscanos, que estereotipava
1969, pp. 5-49; LOPES, Mário, “Os festivais generalistamente os judeus como povo
de música deixaram de ser contraculturais, deicida, por terem matado Cristo, e os
são a cultura”, Público, 15 mar. 2014, pp. 30­ islâmicos por serem infiéis, hereges e
‑31; MARCUSE, Herbert, One-Dimensional inimigos ativos dos cristãos. Em Portu-
Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial gal, D. Manuel  I, apesar da sua política
Society, Boston, Beacon Press, 1964; ROCHE-
de tolerância, acabou por ceder à políti-
FORT, Robert, La Societé des Consommateurs,
Paris, Odile Jacob, 1996; ROSA, Jorge Lean- ca espanhola de depuração de judeus e
dro, “A contracultura: o ponto vazio no ciclo mouros dos seus territórios no quadro do
da cultura ocidental”, Revista de Comunicação e seu interesse em firmar casamento com a
Linguagens, n.º 30, out. 2001, pp. 67-76; ROS- filha dos Reis Católicos, D. Isabel. Apesar
ZAK, Theodore, Para Uma Contracultura, Lis- de ter decretado a expulsão de judeus e
boa, Dom Quixote, 1971. mouros em 1507, acabou por manter no
Teresa Duarte Martinho território os que aceitaram ser batizados e

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1994 C r i s t ã o s - n o v o s e l i m p e za d e s a n g u e

decretou que este novos cristãos tivessem cida “Proposta feita a el-Rei D. João IV em
os mesmos direitos que os velhos cristãos. que se lhe representava o miserável esta-
Todavia, esta igualdade legal foi perver- do do reino e a necessidade que tinha de
tida pelo estigma social que no reinado admitir os homens de nação mercadores”
seguinte, de D. João III, refreou a política (FRANCO e CALAFATE, 2014, 33-48).
de equiparação e acentuou cada vez mais Neste opúsculo, depois de apresentar o
uma discriminação que a implantação estado realmente miserável do país e sua
do Santo Ofício em 1536 acabaria por vulnerabilidade relativamente à vizinha
institucionalizar. Espanha, Vieira procura demonstrar que
A criação da Inquisição espanhola no somente pelo incentivo, proteção e de-
séc. xv e da portuguesa no séc. xvi, vigo- senvolvimento do comércio poderia Por-
rando durante três séculos, estabeleceu tugal fortalecer a economia e assegurar
as bases de vigilância para garantir a con- a sua independência, e, para o efeito, os
solidação de uma sociedade monolítica, judeus e cristãos-novos teriam um papel
de uma só fé e de pensamento único. Os fundamental. O padre jesuíta retomou
judeus e mouros que permaneceram na o tema noutros escritos, como “Propos-
península Ibérica, com a condição de ta que se fez ao sereníssimo Rei Dom
aderirem à fé cristã, acabaram por ficar João IV a favor da gente de nação, pelo
sob o labéu da suspeição e da limitação padre António Vieira, sobre a mudança
de direitos no acesso a cargos políticos e dos estilos do Santo Ofício e do Fisco.
religiosos. Neste contexto, estabeleceu-se 1646”, “Razões apontadas a el-Rei Dom
o estatuto de limpeza de sangue, defini- João IV a favor dos cristãos-novos”, “Papel
do através de inquéritos para averiguar a que fez o padre António Vieira, estando
existência, até à sexta geração, de ascen- em Roma, a favor dos cristãos-novos, no
dentes judeus ou mouros de um candida- tempo em que o príncipe regente Dom
to a cargos públicos e eclesiásticos – e.g., Pedro tinha mandado publicar uma lei
a bispo, a membro de ordens religiosas, de vários castigos contra eles, movido do
a juiz, etc. — ou de um arguido da In- roubo, que se fez ao sacramento da paró-
quisição. Estes inquéritos de limpeza de quia de Odivelas, o qual papel se deu ao
sangue determinavam se um indivíduo príncipe, sem nome em 1671”, “Desen-
era cristão-velho e detentor de todos os gano católico sobre o negócio da gente
direitos sociais, políticos e religiosos, ou de nação hebreia” e “Memorial a favor da
cristão-novo, limitado na sua condição de gente de nação hebreia sobre o recurso
cristão e considerado mais susceptível de que intentava ter em Roma, exposto ao
trair a fé e enveredar pelo caminho da he- príncipe Dom Pedro”, entre outros títu-
resia e da apostasia. los que encontramos reunidos no volume
O padre António Vieira destacou-se Escritos sobre os Judeus e a Inquisição, da sua
como uma das vozes mais fortes na ten- Obra Completa (2015).
tativa de acordar a consciência do Rei, Em meados do séc. xviii, emergiu
então D. João IV, relativamente à ques- no seio da classe intelectual portuguesa
tão judaica. O missionário jesuíta foi um uma especial atenção sobre o lugar dos
homem de visão, dividido entre a selva cristãos-novos na sociedade, traduzida
e a corte, entre os assuntos espirituais e em produção literária que ficou gravada
os temporais. Intimamente preocupado na história como divisa de tolerância em
com o presente e com o futuro de Portu- Portugal, e que acabaria por ter eco nas
gal, o Jesuíta compôs, em 1643, a conhe- medidas posteriormente tomadas por

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C r i s t ã o s - n o v o s e l i m p e za d e s a n g u e 1995

Sebastião José de Carvalho e Melo a res- tornando-o tribunal régio, estavam cria-
peito da mesma temática. Referimo­‑nos das as premissas que determinariam a li-
particularmente aos textos Testamento mitação da atividade daquela instituição,
Político (1747-49), de D. Luís da Cunha, o que veio a acontecer na sequência da
embora algumas das suas posições já es- promulgação do alvará de 1 de setembro
tivessem expostas na sua Instrução Política de 1774, que aprovava o novo Regimento
para Marco António de Azevedo Coutinho da Inquisição, restringindo a sua autori-
(1736), e Cristãos Novos e Cristãos Velhos em dade e poderes, designadamente quanto
Portugal (1748), de António Nunes Ribei- à sua forma de atuar — com a abolição,
ro Sanches. Nestes textos, é recuperada a e.g., dos autos de fé públicos e particula-
argumentação utilizada na defesa de ju- res, a regulação do sistema das denún-
deus e cristãos-novos por António Vieira, cias e a limitação do recurso à tortura.
para justificar a necessidade de suprimir Por fim, no ano de 1773, foi aprovada e
a distinção entre cristãos-novos e cristãos­ publicada a carta de lei de 25 de maio,
‑velhos, de limitar a ação da Inquisição, que decretava a revogação dos estatutos
de revogar as inquirições de sangue e os de pureza de sangue e a abolição da dis-
autos de fé públicos e privados e de elimi- tinção entre cristãos-novos e cristãos-ve-
nar os Róis de Fintas (listas com o registo lhos, e impunha pesadas penas impostas
dos cristãos-novos usadas para a cobrança contra aqueles que desobedecessem à lei
de impostos especiais e outros fins discri- insistindo no uso dos termos distintivos
minantes e persecutórios), medidas con- cristão-novo e cristão-velho, e em 1775,
sideradas essenciais para a preservação da com a carta de lei de 15 de dezembro,
independência portuguesa, para o reflo- D. José I completava as disposições legais
rescimento do comércio e da indústria, anteriores ao proteger os cristãos-novos
para a promoção de uma melhor imagem do confisco dos bens pela Inquisição.
de Portugal no estrangeiro e para a defe- Sebastião José de Carvalho e Melo, o
sa da religião católica. ministro por detrás de toda esta arquite-
Foi durante a governação pombalina tura legislativa, é considerado “o primei-
que os cristãos-novos portugueses viram ro legislador a favor dos judeus que abriu
finalmente conquistada a paridade re- as portas à sua completa emancipação”
lativamente à demais população cristã. (MARTINS, 2010, I, 222). Um dos argu-
Data de 2 de maio de 1768 a primeira lei mentos utilizados para apoiar esta ilação
decretada, neste contexto, em defesa dos prende-se com o facto de ter sido Pom-
cristãos-novos, pondo fim aos chamados bal a estabelecer como lei aquilo que era
Róis de Fintas. No mesmo ano, um alva- “apenas uma corajosa ideia defendida à
rá confidencial de 5 de outubro abolia o boca pequena” (Id., Ibid., 224) por Antó-
puritanismo da nobreza, ou seja, perante nio Vieira, D. Luís da Cunha ou Ribeiro
a recusa da nobreza em “misturar o seu Sanches. Outros há que justificam a legis-
sangue” e maculá-lo com o sangue con- lação pombalina em matéria judaica à luz
siderado impuro dos judeus, obrigava os de uma política de promoção da burgue-
chefes das famílias chamadas “puritanas” sia e de controlo da nobreza, bem como
a casar os seus filhos com elementos de no quadro da campanha antijesuítica que
famílias consideradas “não puritanas”. levou, também no ano de 1773, à publi-
Quando, a 20 de maio de 1769, D. José cação da bula de expulsão universal da
assinou um alvará a dotar o Tribunal do Companhia de Jesus, Dominus ac Redentor
Santo Ofício com o título de Majestade, Nostri Jesus, pelo papa Clemente XIV (PE-

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1996 C r i s t ã o s - n o v o s e l i m p e za d e s a n g u e

a felicidade e o bem-estar dos súbdi-


tos – fórmula que encontramos em todos
os diplomas legais executados, ao lado da
afirmação do poder absoluto do rei.
A recuperação da expressão “cristãos­
‑novos”, dotada de um sentido pejorativo
e difamatório, sucedeu no séc. xx, no âm-
bito de campanhas antissemitas, de que
Mário Saa foi um dos promotores, no-
meadamente através do libelo A Invasão
dos Judeus (1925), no qual, com recurso a
um aparelho difamatório-argumentativo
excessivo, apresenta uma interpretação
da história de Portugal à luz da conspira-
ção judaica levada a cabo pelos cristãos­
‑novos. Ao longo de cinco capítulos, cuja
nomeação indicia a linha orientadora
seguida (“A invasão do sangue”, “Assalto
à riqueza”, “Assalto ao Estado”, “Assalto
à religião” e “Assalto à vida mental”), o
escritor pretende provar que a invasão
judaica de Portugal é uma realidade ir-
reversível, silenciosamente organizada
durante séculos, que a Implantação da
Rei D. José (1714-1777).
República foi a consagração dessa inva-
são e que Portugal é, no séc. xx, uma na-
REIRA, 1988, 7-11). Sem descurar as lei- ção judaica governada por cristãos-novos
turas acima apontadas, consideramos que (SAA, 1925, 129). Paralelamente, intenta
o fim da distinção entre cristãos-novos e demonstrar a exclusividade do elemen-
cristãos-velhos poderá ser interpretado à to suevo na formação da raça lusitana e
luz das práticas regalistas que visavam a como é esse elemento, remanescente nos
criação de um estado forte, autónomo, poucos Portugueses cristãos-velhos que
e no qual a religião cristã, colocada ao subsistem, que lhes confere o desejo pela
serviço do Estado, exercia um papel fun- independência. Para Mário Saa, a situa-
damental enquanto elemento unificador. ção de domínio absoluto dos cristãos-no-
A legislação adotada não pretenderia vos sobre os cristãos-velhos representa o
promover a liberdade religiosa, nomea- culminar de um longo processo iniciado
damente de culto judaico, mas passar à pela conversão forçada decretada por
Europa uma imagem mais polida de Por- D. Manuel I, impulsionado pela persegui-
tugal e, porventura, evitar a proliferação ção inquisitorial e impossível de reverter
do criptojudaísmo resultante da discrimi- com as leis pombalinas que impuseram
nação e perseguição social e religiosa de o fim daquela distinção entre cristãos­
que os cristãos-novos eram vítimas. Por ‑novos e cristãos-velhos e do puritanismo
outro lado, a mesma legislação não pode da nobreza. Porque os descendentes dos
deixar de ser entendida no âmbito dos casamentos mistos foram os ideólogos e
pressupostos iluministas, que previam executores das revoluções de 1820 e de

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C r i s t ã o s - n o v o s e l i m p e za d e s a n g u e 1997

1910, o escritor considera o marquês de sociedade tradicional, liderada pela no-


Pombal “a primeira afirmação dos judeus breza. O historiador considera, assim, que
no Poder” (Id., Ibid., 44). O autor atribui ao abolir a distinção entre cristãos-novos
ainda à falta de uma identidade religiosa e cristãos-velhos e os estatutos de limpe-
dos cristãos-novos a razão da emergência za de sangue, o governo pombalino não
do anticlericalismo republicano: ao se só permitiu o crescimento da burguesia
afastarem do judaísmo, mas sem se pren- e “arrancou o poder [...] à nobreza tradi-
derem efetivamente ao cristianismo, os cional” (Id., Ibid., 210), como levou a que
cristãos-novos não praticavam na verdade se desvanecesse “o mito dos Cristãos-no-
qualquer religião, cultivando o indiferen- vos [...] sem deixar rasto” (Id., Ibid.). Efe-
tismo religioso (Id., Ibid., 242). tivamente, com a exceção de Mário Saa,
João Lúcio de Azevedo assoma como cuja obra e cujo pensamento não tiveram
uma das fontes principais desta obra especial repercussão cultural e mental, a
de apologética antijudaica, sobretudo distinção entre cristãos-novos e cristãos­
através da sua História dos Cristãos-Novos ‑velhos parece ter perdido uso e relevân-
Portugueses (1921). Embora a sua orien- cia, para o que contribuiu a legislação
tação não seja de defesa dos judeus ou pombalina, mas também a reescrita da
dos cristãos-novos, todavia, encontramos história sob a orientação do Estado Novo.
no conjunto da sua obra uma tentativa Quanto a esta matéria, não deixa de ser
de compreensão da mentalidade judaica indicativo que autores afetos ao regime,
e, ao mesmo tempo, de justificação da como Alfredo Pimenta, nos seus Elemen­
aversão dos cristãos-velhos relativamen- tos da História de Portugal (1934), e João
te àqueles. Num contexto tão marcado Ameal, na sua História de Portugal (1940),
por ideologias diversas, a História dos tivessem omitido ou relativizado determi-
Cristãos-Novos Portugueses surge como a nados episódios mais representativos da
primeira obra historiográfica sobre a te- perseguição e marginalização dos cris-
mática judaica que pode ser considerada tãos-novos, e que maculavam uma certa
pela sua imparcialidade. De facto, é sob imagem que se pretendia passar do país.
o princípio de que, “Em toda a persegui- João Ameal, e.g., apesar de imputar nos
ção, se há de ter em conta a parte com judeus a responsabilidade pela ação per-
que, para ela, concorrem os persegui- secutória de que foram alvo – justificada
dos” (AZEVEDO, 1922, IX), que Lúcio por uma superior razão de Estado –, evita
de Azevedo constrói a sua História, o que descrever os contornos da expulsão dos
parece ter passado ao lado dos ideólogos judeus durante o reinado de D. Manuel,
antissemitas que o tomaram como mes- por se tratar de uma “questão demasiado
tre, interpretando a sua obra pela parte complexa e nebulosa para lhe poder ser
e não pelo todo. consagrado aqui longo exame” (AMEAL,
António José Saraiva recuperou o tema 1940, 281); e, ao defender o estabeleci-
dos cristãos-novos nos estudos A Inquisi­ mento do Tribunal do Santo Ofício em
ção Portuguesa (1956) e A Inquisição e Cris­ Portugal como um ato de acatamento da
tãos-Novos (1969), afirmando que “a raça “vontade geral”, salientando que os por-
dos cristãos-novos era um mito criado tugueses foram “os últimos a lançar mãos
pelos próprios inquisidores e pelas forças de tão radicais providências” (Id., Ibid.,
de que eles eram os agentes” (SARAIVA, 300), está a mitigar a responsabilidade
1964, 125; Id., 1994, 210), por razões so- da Inquisição portuguesa e, por essa via,
ciais e não religiosas, em defesa de uma a deslocar aquela que era a “pedra no

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1998 C r i s t ã o s - n o v o s e l i m p e za d e s a n g u e

sapato” da versão oficial da história de Bibliog.: impressa: AMEAL, João, História


Portugal que o Estado Novo pretendia de Portugal, Porto, Livraria Tavares Martins,
difundir por ocasião das comemorações 1940; AZEVEDO, João Lúcio de, História
dos Cristãos-Novos Portugueses, Lisboa, Livraria
do oitavo centenário da fundação da na-
Clássica, 1922; FRANCO, José Eduardo, e
cionalidade e do terceiro centenário da
TAVARES, Célia Cristina, Jesuítas e Inquisição:
Restauração da Independência. Nesta Cumplicidades e Confrontações, apres. Ignacio
perspetiva, consideramos que se realizou Pulido Serrano e pref. Ronaldo Vainfas, Lis-
um exercício de apagamento da memó- boa, Sinais de Fogo, 2012; FRANCO, José
ria através de uma reescrita da história. Eduardo, e CALAFATE, Pedro (dirs.) Obra
Apesar do interesse que a história do Completa Padre António Vieira, t. iv, vol. ii, Lis-
judaísmo e dos cristãos-novos em Portu- boa, Círculo de Leitores, 2014; MARTINS,
Jorge, Portugal e os Judeus, 2 vols., Lisboa, Nova
gal tem despertado nos últimos anos na
Vega, 2010; OLIVAL, Fernanda, “Rigor e inte-
comunidade académica e científica exis- resses: os estatutos de limpeza de sangue em
te, ainda há todo um trabalho de des- Portugal”, Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 4,
mistificação e de desconstrução histórica 2004, pp. 151-182; PEREIRA, Isaías da Rosa,
por fazer. Jorge Martins, após uma aná- Considerações em torno da Carta de Lei de D. José I,
lise dos manuais escolares de diferentes de 1773, Relativa à Abolição das Designações de
ciclos de ensino, verificou que a presen- «Cristão-Velho» e «Cristão-Novo», Lisboa, s.n.,
1988; RICOEUR, Paul, A Memória, a História, o
ça da história dos judeus e cristãos-novos
Esquecimento, trad. Alain François, Campinas,
nos mesmos é exígua (MARTINS, 2010, Universidade Estadual de Campinas, 2007;
I, 102), o que se compreende, conside- SAA, Mário, A Invasão dos Judeus, s.l., s.n.,
rando que nas próprias histórias de Por- 1925; SARAIVA, José António, A Inquisição Por-
tugal mais recentes (e posteriores ao re- tuguesa, 3.ª ed., s.l., Europa-América, 1964;
gime do Estado Novo), que servirão de Id., A Inquisição e Cristãos-Novos, 6.ª ed., Lisboa,
apoio aos mesmos manuais, o tema não Estampa, 1994; SARTRE, Jean Paul, Reflexões
tem recebido a atenção merecida – com sobre o Racismo, São Paulo, Difusão Europeia do
Livro, 1968; SCHWARZ, Samuel, Os Cristãos­
a exceção da História de Portugal dirigi-
‑Novos em Portugal no Séc. XX, Lisboa, Cotovia,
da por João Medina, que lhe reserva 2010; digital: FRANCO, José Eduardo, e TA-
um espaço mais considerável –, como VARES, Célia Cristina, “Cristãos-novos, Jesuí-
se o legado judaico ou as perseguições tas e Inquisição: uma relação controversa (sé-
sofridas fossem de somenos importân- culos xvi-xvii)”, Revista Navegações, vol. 9, n.º 1,
cia. Não obstante os pedidos de perdão 2016, pp. 48-58: http://revistaseletronicas.pu-
aos judeus, quer pela Igreja Católica crs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/
view/25096/14751 (acedido a 24 jan. 2018).
(através da declaração Nostra Aetate, de
26 de outubro de 1965, e do Papa João José Eduardo Franco
Cristiana Lucas Silva
Paulo II, em 2000), quer pelo Governo
português (em 1989, pelo Presidente da
República Mário Soares), entendemos
que somente o preenchimento desta la-
cuna na historiografia e o justo reconhe-
cimento da tradição judaica como parte
fundamental de uma herança cultural e
como elemento da identidade nacional
produzirão, segundo a lição de Paul Ri-
coeur, um “apaziguamento da memória”
(RICOEUR, 2007, 465).

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anti-design 1999

Anti-design Manifestando-se como expressão de


contracultura, o anti-design revelou o con-
flito ideológico existente entre o domí-
nio profissional e a responsabilidade so-
cial, bem como o seu significado e o seu
propósito. A sua maior preocupação não
foi a conceção de objetos e produtos, mas

E
Ra­
ste movimento, também designa-
do como Disegno Radicale [Design
dical], resultou da deceção gerada
a elaboração de uma filosofia autocrítica.
Ao procurar desembaraçar-se da tradição
funcionalista, criou um enquadramento
pelo modernismo e deu resposta a esta que permitia projetar de forma mais des-
desilusão, ao manifestar-se como um contraída e irreverente, e elaborar pro-
protesto contra essa tendência estética, jetos através de fotomontagens, filmes e
afirmando-se simultaneamente como exposições, o que também correspondia
proposta alternativa aos ditames do mo- a uma crítica ao ideário modernista.
dernismo. A expressão “anti-design” foi Se o modernismo conferiu ao design
uma das primeiras expressões a crista- valores como a eficácia, a permanência,
lizar-se neste campo disciplinar na pós­ a conjugação de formas puras, o respeito
‑modernidade. Nas décs. de 50 e de 60 pelas propriedades intrínsecas dos mate-
a desilusão face ao modernismo gerou riais, e uma paleta onde o preto, o bran-
acesos debates na Trienali di Milano co e o cinzento predominavam, o anti­
[Trienal de Milão]. Vários membros da ‑design preferiu o efémero e o que era
vanguarda italiana não concordavam veiculado pela Arte Pop, interrogando
com o facto de o designado Italian Style o consumismo e usando o ornamento e
[Estilo Italiano] ser o fundamento do de­ a exuberância da cor. O anti-design rejei-
sign nesse país, apesar do enorme pres- tou muitas vezes as preocupações habi-
tígio que a linea italiana ou o bel disegno tuais do design, que passam pela utilida-
tinha adquirido no mundo ocidental, de, pela funcionalidade, e pelo carácter
associado a uma cultura urbana capita- prático, para fabricar, ao invés, objetos
lista e sofisticada. Foram esses debates absurdos, incoerentes, e que, portanto,
que estiveram na origem do anti-design, ficavam fora dos padrões comuns. Para
mas o seu nascimento enquanto tendên- tal, brincava com a escala, usava o hu-
cia localiza-se em Itália, na déc. de 60 do mor, a ironia, ou o kitsch, atingindo, em
séc. xx, dissolvendo-se nos anos 80. Teve alguns casos, o dadaísmo no design. Estas
pois como pano de fundo, a contestação opções decorriam de um pensamento
ideológica em que esses anos foram fér- sobre a própria disciplina num mundo
teis. Os objetivos do modernismo, que hiperindustrializado e consumista. O de­
se tinham transformado num mero ins- signer já não era um agente que transfor-
trumento de marketing, fizeram com que mava a casa num lugar aprazível, mas sim
o anti-design consolidasse a sua posição aquele que fazia pensar e estimulava pa-
inconformista; os seus promotores não drões de comportamento, contribuindo
aceitavam nem a perda do idealismo da para uma consciência social plena, para
democratização, nem o desprezo quan- um novo equilíbrio de valores, e para
to ao contributo específico para a reso- denunciar a alienação gerada pelo con-
lução dos problemas da sociedade que o sumo compulsivo, lembrando ao mesmo
design pode dar. tempo que o indivíduo concentra em si

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2000 anti-design

todo um potencial criativo, que pode e


deve explorar.
O design manufaturado foi alvo de uma
revisitação e sublinhou-se muitas vezes o
conteúdo simbólico, a referência históri-
ca, e o teor afetivo dos objetos. Este foi
um dos momentos que contribuiu para
que o design e as artes visuais estabeleces-
sem uma relação mais estreita, cruzando­
‑se recursos da Arte Pop, do Minimalis-
mo, da Arte Conceptual e da Arte Povera.
Assistiu-se a diversas associações entre o
artesanato, a produção em série, a série
limitada o experimentalismo, o que deu
origem ao chamado “design de autor”.
Ao novo tipo de edição correspondeu
também um novo tipo de exposição e de
transação. Pretendia-se realizar o ideal da
democratização do design, desvinculando­
‑o da eminente associação especulativa
ao serviço da indústria, tal como William
Morris (e outros) desejara no séc. xix.
Campbell’s Soup Cans (1962), de Andy Warhol.
O mobiliário Pop, que Ettore Sottsass
(1917-2007) exibiu na Trienal de Milão
em 1966, foi um dos motes do movimen- Archigram, a vanguarda vienense, com os
to, que adotou a via da experimentação projetos fantásticos do arquiteto austría-
como caminho a seguir. Como observa co Hans Hollein (1934-2014), os meta-
Penny Sparke, Sottsass inspirou-se em al- bolistas japoneses, e a banda desenhada,
gumas ideias de artistas americanos que que imaginava tempos futuros.
trilhavam os caminhos da Arte Pop, como Marcado pela ação de diversos gru-
Andy Warhol (1928-1987) e Roy Lichtens- pos, como o Archizoom e o Superstu-
tein (1923-1997), e nos escultores mini- dio, o anti-design procurou causar danos
malistas Sol LeWitt (1928-2007) e Donald no capitalismo através de criações que
Judd (1928-1994). Os objetos que Sottsass propunham mundos utópicos alter-
concebia refletiam e transmitiam ideias nativos, onde as necessidades da vida
sobre a renovação das formas, a atração quotidiana eram satisfeitas mediante
gerada pelos produtos na cultura de mas- o uso de tecnologia autossustentável,
sas, a irrelevância do gosto e a ideologia o que permitia que cada um ganhasse
da neutralidade dos objetos. O design de simultaneamente o espaço e o tempo
Sottsass foi particularmente significativo necessários para redescobrir o seu ina-
porque pôs em comum um debate que to potencial criativo. Libertos das res-
pertencia às revistas especializadas, com- trições e imposições do consumo e da
binando a prática e a crítica do design. Os economia de mercado, participando
vários grupos italianos que compõem este em exposições, manifestos e ambientes,
movimento tiverem igualmente como re- podiam tirar partido inspirador de uma
ferência o grupo de arquitetos ingleses vasta gama de referências culturais. Este

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anti-design 2001

movimento não se dissociou da cultura


de massas, reunindo um público subs-
tancial que consumia a sua contracultu-
ra. Nem todos consideravam que pode-
riam operar uma efetiva mudança social
com o seu envolvimento no processo do
design, mas procuraram comunicar as
suas ideias através dele.
Observem-se alguns desses coletivos Poltrona Marilyn, de Hans Hollein.
com um pouco mais de detalhe.
O Archizoom Associati (Archizoom),
constituído em Florença, em 1966, é marcante deste grupo é o Fauteuil Mies
considerado por muitos o grupo funda- (1969), que surgiu como homenagem e
dor do anti-design. Era formado por qua- crítica a Mies van der Rohe e à sua famo-
tro arquitetos, Andrea Branzi (n. 1938), sa afirmação: “a forma segue a função”.
Paolo Deganello (n. 1940), Gilberto Cor- As Dream Beds, o divã Safari e a No-Stop
retti (n. 1941), e Massimo Morozzi (1941­ City foram outros projetos icónicos da
‑2014), e por dois designers, Dario Bartoli- crítica ao modernismo.
ni (n. 1943) e Lucia Bartolini (n. 1944). O Superstudio também foi funda-
Os seus membros concentraram-se no do em Florença, em 1966. Adolfo Na-
antifuncionalismo e adotaram formas talini (n. 1941) e Cristiano Toraldo di
da cultura popular e do kitsch. Na Trie- Francia (n. 1941) reuniram à sua volta
nal de Milão de 1968, encerrada mais um grupo de jovens arquitetos radicais
cedo que o previsto devido a greves, o e muito ativos até ao final dos anos 70.
Archizoom apresentou o projeto Centro Em 1969, num texto intitulado “Design
di Cospirazione Eclettica, que ironizava d’invenzione e design d’evasione”, publi-
sobre determinadas instâncias políticas cado na revista Domus, apresentaram uma
e que se inspirava em processos usados alternativa ao bel disegno, o design clássico
pelos artistas James Rosenquist (n. 1933) italiano que se tinha imposto. A poesia e
e Robert Rauschenberg (1925­‑2008). a assunção da irracionalidade foram os
Este ateliê tinha como objetivo destruir métodos que permitiram fabricar o “de­
o carácter fetichista dos objetos e opor­ sign como evasão”. Este manifestava uma
‑se à exibição do estatuto social através fuga ao consumismo mundano e pensava
do consumo de moda, design e arquite- os objetos como alvo de contemplação;
tura. Apesar de se terem dissolvido em o que colocou definitivamente em causa
1974, exerceram uma influência inegá- o mito do racionalismo, que dominara o
vel sobre outros ateliês, como o Studio design durante muitos anos. Um dos seus
Alchimia e o Grupo Memphis, que nos projetos mais célebres foi o Il Monumento
anos 80 retomaram parte das conceções Continuo, que transmitia a ideia de algo
que o grupo de Florença tinha aborda- a expandir-se infinitamente, como se de
do. Uma das peças mais celebradas do uma gigantesca Merzbau de Kurt Schwit-
Archizoom é o canapé modular Superon­ ters (1887-1948) se tratasse. Associado ao
da (1966), que, ao brincar com a forma Superstudio, o grupo florentino 9999 ge-
e sugerir posturas pouco convencionais, riu uma escola privada para promover a
retira seriedade aos divãs, aos sofás e às arquitetura conceptual. Este coletivo, for-
chaise-longues tradicionais. Outra peça mado por Giorgio Birelli, Carlo Caldini,

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2002 anti-design

Fabrizio Fiumi e Paolo Galli, estava espe- vimento foi relevante para o futuro deste
cialmente interessado no papel do teatro campo disciplinar e que a sua complexi-
como lugar de arte e de arquitetura. Re- dade continua a marcar todos os que en-
corde-se a organização de um happening tendem o projeto como um manifesto.
na Ponte Vecchio e a conceção, em Flo-
rença, de um interior de discoteca que
seguiu a fantasia da ficção científica. Bibliog.: BÜRDEK, Bernhard E., History, Theo-
O Gruppo Strum, formado em Turim ry and Practice of Product Design, Boston/Berlin,
Birkhäuser Basel, 2005; COLES, Alex, e ROS-
no final dos anos 60, usava a arquitetura
SI, Catharine (orgs.), The Italian Avant-Garde:
como meio de transmissão de propagan- 1968-1976, Berlin, Sternberg Press, 2013; ER-
da política. Dos seus membros destacam­ LHOFF, Michael, e MARSHALL, Tim (orgs.),
‑se Giorgio Ceretti (1932), Pietro Derossi Design Dictionary, Boston/Berlin, Basel
(1933), Carlo Gianmarco, Riccardo Ros- Birkhäuser, 2008; FERREIRA, Patrícia, Design
so e Maurizio Vogliazzo. O seu memo- Conceptual na Era Pós-Industrial: “A Forma Segue
rável projeto de assento, Pratone (1971), o Conceito”, Lisboa, Faculdade de Arquitetu-
ra da Universidade Técnica de Lisboa, 2010;
materializa perfeitamente o movimento
FUAD-LUKE, Alastair, Design Activism: Beauti-
anti-design. Este grupo concebeu mobi- ful Strangeness for a Sustainable World, London,
liário versátil com diversas associações ao Earthscan, 2009; LEES-MAFFEI, Grace, e
universo naïf. O uso de espuma de poliu- FALLAN, Kjetil, Made in Italy: Rethinking a Cen-
retano, um material novo naqueles anos, tury of Italian Design, London, Bloomsbury
induziu à criação de uma série de objetos Publishing, 2013; MARGOLIN, Victor (org.),
com presença escultórica em ambientes Design Discourse: History, Theory, Criticism, Chi-
domésticos. cago, The University of Chicago Press, 1989;
MORTEO, Enrico, Petite Encyclopédie du Design,
Pode ainda referir-se a ação do Gruppo
Paris, Édition Solar, 2009; RAIZMAN, David,
DAM (Designer Associati Milano) e do History of Modern Design: Graphics and Products
coletivo UFO. since the Industrial Revolution, London, Laurence
Muitas das propostas radicais dos ar- King Publishing, 2003; SPARKE, Penny, Italian
quitetos e designers italianos da déc. de Design, 1870 to the Present, London, Thames
1960 e do início da déc. de 1970 foram and Hudson, 1988; Id., 100 Ans de Design,
exibidas na exposição de referência Paris, Octopus, 1998; SUDJIC, Deyan, The
Language of Things, London, Penguin, 2009;
Italy: The New Domestic Landscape, que
WOODHAM, Jonathan M., Twentieth-Century
ocorreu em 1972 e teve lugar no Museu Design, Oxford/New York, Oxford University
de Arte Moderna de Nova Iorque. Esta Press, 1997.
exposição foi organizada por Emilio
Sandra Leandro
Ambasz e mostrou não só o bel disegno
de Mario Bellini (1935), Joe Colom-
bo (1930-1971), Richard Sapper (1932­
‑2015) e Marco Zanuso (1916-2001), mas
também o design de contracorrente do
Archizoom, do Superstudio, do Strum
e do 9999. Ao expor tendências opostas
que coexistiam naquela época, Ambasz
sublinhou a diversidade e o dinamismo
do design italiano.
Colocando o design fora da ordem mo-
dernista, pode considerar-se que este mo-

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Decadência 2003

Decadência veira Martins desconstrói igualmente o


mito do progresso social e moral: “Ora eu
desafio quem quer que seja a provar-me
o nosso progresso intelectual e moral. Eu
vejo – não veem todos? – uma decadência
no carácter e uma desnacionalização na
cultura” (MARTINS, 1981, 18).

O termo “decadência” é um neologis-


mo introduzido no latim do final da
Idade Média para designar o estado de en-
Num quadro intelectual distinto, F. Niet-
zsche, nas suas últimas obras, publicadas
também na déc. de 80 do séc. xix – O Cre­
fraquecimento e declínio de uma pessoa púsculo dos Ídolos, O Anticristo, O Caso Wag­
ou instituição. Até ao séc. xviii, é usado ner, Ecce Homo –, bem como nos escritos
principalmente para caracterizar a fase de póstumos sobre a vontade de poder, assu-
desagregação do Império Romano. me a decadência como um fenómeno en-
Na segunda metade do séc. xix, o senti- démico à cultura europeia, que teve início
do do termo alarga-se a todo o processo de em Sócrates: “diagnostiquei em Sócrates e
declínio de pessoas ou instituições, como Platão sintomas de decadência, considero­
contraponto à visão iluminista da perfecti- ‑os instrumentos da decomposição grega”
bilidade do ser humano e à compreensão (NIETZSCHE, 1973, 20). A decadência
da história como sucessão de etapas na significa, para o filósofo alemão, a nega-
senda do progresso material e moral. ção da vida e do impulso criador, a anula-
Nas últimas décadas do séc. xix, a de- ção da vontade, o niilismo.
cadência torna-se uma noção-chave para No plano estético-literário, é ainda nes-
o diagnóstico e a crítica da sociedade e ta década que se afirma o decadentismo,
da cultura vigentes. Antero de Quental, em oposição ao parnasianismo e aos valo-
no célebre discurso de 27 de maio de res burgueses.
1871 sobre as causas da decadência dos Ao longo do séc. xx, em especial nas
povos peninsulares, condensa no termo primeiras décadas, há uma reflexão abun-
“decadência” o essencial dos males que dante sobre a decadência em diferentes
afetam a sociedade portuguesa desde fi- áreas da cultura, nomeadamente na li-
nais do séc. xvi: “A decadência dos povos teratura, na história, na sociologia e na
da Península nos três últimos séculos é psicologia. Muitos autores subscreveriam
um dos factos mais incontestáveis, mais certamente a asserção pessoana segundo
evidentes da nossa história: pode até di- a qual o essencial do progresso é deca-
zer-se que essa decadência, seguindo qua- dência. A obra que teve mais impacto, e
se sem transição a um período de força que continua a alimentar o debate sobre
gloriosa e de rica originalidade, é o úni- a racionalidade tecnológica, foi A Deca­
co grande facto evidente e incontestável dência do Ocidente, de Oswald Spengler,
que nessa história aparece aos olhos do publicada entre 1918 e 1922. O autor visa
historiador filósofo” (QUENTAL, 1871, elucidar as razões endógenas do declí-
5). “Decadência” significa, para Antero, nio e da queda do Ocidente a partir das
abatimento, insignificância, impotência, suas próprias bandeiras, fazendo das suas
atonia, depravação dos costumes. Trata­ forças fraquezas: ciência e técnica, surgi-
‑se de um fenómeno universal, exigindo das do impulso criador do Homem, vão
um sobressalto das consciências entorpe- sobrepor-se ao próprio Homem e criar
cidas. No início da década seguinte, Oli- uma situação monstruosa. Numa obra

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2004 Decadentismo

Decadentismo

A partir de 1882 fala-se em Paris dos dé­


cadents, que Maurice Barrès diz discí-
pulos de Baudelaire; em agosto de 1885,
Jean Moréas chama ao seu grupo Les
Décadents, buscando “le pur Concept et
l’éternel Symbole [o puro conceito e o
eterno símbolo]”, embora a crítica deves-
se “les appeler plus justement des symbo­
Oswald Spengler (1880-1936).
listes [chamar-lhes, mais adequadamente,
simbolistas]”; Le Temps de 18 de setembro
posterior, O Homem e a Técnica, Spengler de 1886 intitula a nova escola Le Symbo-
condensa o essencial da sua mensagem, lisme. Esta confusão leva Anatole Baju e
frisando que a dinâmica interna da civi- Maurice du Plessys a criarem, em abril
lização tecnocientífica não tem outra “al- de 1886, a revista Le Décadent Littéraire et
ternativa” que o seu inevitável e “trágico” Artistique. O décadisme (barbarismo sauda-
declínio (SPENGLER, 1980, 128). do por Verlaine, iniciador-mor, e não só
Pela sua própria amplitude, recobrindo pelo verso “Je suis l’Empire à la fin de la
de algum modo os conceitos de declínio, décadence [Eu sou o Império no fim da
degenerescência e decrepitude, a noção decadência]”, a par de Mallarmé e Rim-
de decadência mantém uma grande po- baud) sobrepunha-se a nomes concor-
tencialidade heurística na análise filosófi- rentes ­– maudits, déliquescents… –, anteci-
ca e histórico-sociológica. pando-se a La Décadence (1 out. 1886), de
René Ghil, votada à “école symbolique et
harmoniste [escola simbólica e harmonis-
Bibliog.: BARZUM, Jacques, Da Alvorada à ta]”, que multiplica publicações e absorve
Decadência: de 1500 à Actualidade – 500 Anos
temas daquele.
de Vida Cultural do Ocidente, Lisboa, Gradiva,
2003; MARTINS, Oliveira, Portugal Contem- Baju conta essa aventura em L’École Dé­
porâneo, Porto, Lello e Irmão, 1981; MON- cadente, a partir de Les Fleurs du Mal, em
TESQUIEU, Considérations sur les Causes de cuja “Notice”, de Gautier, surge o termo
la Grandeur des Romains et de Leur Décadence, “décadence”. Lamenta a literatura “véna-
Amsterdam, Jacques Desbordes, 1734; NIET- le, stérile et terre à terre [venal, estéril e
ZSCHE, F., O Crepúsculo dos Ídolos, Lisboa, Pre- terra a terra]” de Zola e o naturalismo,
sença, 1973; QUENTAL, Antero de, Causas da
“qui fait les délices du bourgeois sans
Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três
Séculos, Porto, Typographia Comercial, 1871; âme [que faz as delícias do burguês sem
SPENGLER, Oswald, A Decadência do Ocidente: alma]”; numa sociedade cansada, de
Esboço de Uma Morfologia da História Universal, spleen incurável apelando à morte e ao
Rio de Janeiro, Zahar, 1973; Id., O Homem e nada, urgia a “universalisation du Beau
a Técnica, Lisboa, Guimarães Editores, 1980. [universalização do Belo]” (BAJU, 1887,
Adelino Cardoso 2-3). O capítulo “Le décadisme” lança

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Decadentismo 2005

um programa: refletir a imagem deste A lista seria numerosa, até Mário de Sá­
mundo spleenático; nada de descrições, ‑Carneiro e Álvaro de Campos, que des-
ou tão-só uma súmula rápida, dando a trinça entre ser e estar decadente: “Fui
impressão dos objetos. Não pintar, fazer em tempos poeta decadente [em “Opiá-
sentir; dar a sensação das coisas, seja por rio”]; hoje creio que estou decadente, e
construções novas, seja por símbolos evo- já o não sou” (CAMPOS, 1922).
cando a ideia, com uso mais intenso da Luís de Montalvor resume, em “Tenta-
comparação. Sintetizar a matéria, mas tiva de um ensaio sobre a decadência”:
analisar o coração. “Ser-se doente é ser-se doente espiri-
Essencialmente do foro lírico, esta arte tualmente, é ser-se superior! A arte é a
conjuga morte, noturnidade, homosse- doença imortal dos pálidos de Deus e da
xualidade, morbidez, histeria, nevrose, Beleza. A arte profunda alimenta-se das
como o soneto de Miguel Fernandez, “Dé- lágrimas ínfimas da dor universal”. Mui-
générescence”, título da tradução fran- tos cultivaram este ponto; receosos, culti-
cesa do clássico de Max Nordau (1894), varam menos a androginia, o equívoco se-
desejando provar que as modernas ten- xual, diluídos num ideal de beleza: “Ah!
dências artísticas e literárias tinham ori- ser-se decadente é ser-se lindo de gestos,
gem na degenerescência dos autores: é ser-se débil e femininamente o sistema
a fortiori, os decadentistas eram objeto nervoso de todas a sensações, de todas a
de estudo. Para Baju, “tout décade [tudo emoções, de todos os pensamentos, de
decai]”; mas, na civilização da abundân- todas as inferioridades, de todas as gran-
cia de um próximo Jacinto queirosiano, dezas, de todas as imoralidades, de todos
da qual esteticamente se desconfia – não os ascetismos, da convulsão espasmódica
associar, porém, decadência e decaden- e mediúmnica do nosso século!”. A sín-
tismo –, escreva-se com delicadeza (mar- tese, com aceno a Baju e 1886, 30 anos
ca de instabilidade), elevação (sinal de antes, poderia estar nestas linhas: “Somos
artifício) e o refinamento de olhar par- os decadentes do século da Decadência.
cial (fragmentação) que gere novidoso Vamos esculpindo a nossa arte na nossa
estilo; o efeito, preciosista, é não raro indiferença. A vida não vale pelo que é,
ininteligível. mas pelo que dói... Só a Beleza nos inte-
Entre a imprensa estrangeira que adere ressa... Se nos apelidamos ou nos apelida-
ao movimento surge o nome de Xavier de ram caracteristicamente de decadentes,
Carvalho, correspondente de A Província é porque temos um sentido próprio de
(Porto), que saúda Baju e aí insere “As decadência” (MONTALVOR, 1916).
anémicas” (set. 1886), além de outros
poemas em várias folhas, tornando-se in-
trodutor do  decadentismo  em Portugal.
Mau grado a convocação de grupos dís-
pares (nefelibatas, soístas [do Só nobria-
no], pré-expressionistas), conviria não ir Bibliog.: BAJU, Anatole, L’École Décadente, Pa-
muito além de nomes e títulos que ora ris, Léon Vanier, 1887; CAMPOS, Álvaro de,
entenebrecem o spleen de Cesário, ora “Carta a José Pacheco”, Contemporânea, n.º 4,
correm a doenças psicológicas e à morte, 1922; MONTALVOR, Luís de “Tentativa de
num tardio dandismo: Júlio Dantas, Ma- um ensaio sobre a decadência”, Centauro,
nuel Penteado, José Duro, algum Gomes n.º 1, out. 1916.
Leal ou Fialho, Raul Brandão, e outros. Ernesto Rodrigues

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2006 Dissidência

Dissidência doutrina ou norma ordenadora – e vali-


dado pelo peso da tradição é muitas vezes
considerada como uma ameaça à unidade
que se pretende manter tão estavelmente
quanto possível (e, portanto, como sinto-
ma de uma determinada loucura ou como
propensão provocatória para o desvio, a

A titude assumida por todos aqueles


que, por diversos motivos, optam
por divergir ou distanciar-se de um de-
criminalidade e a desordem, com os quais
todas as formas de diálogo devem ser in-
terrompidas em nome de uma pureza
terminado modelo, considerado próprio doutrinária que urge proteger).
do statu quo. Dependendo do âmbito que Na categoria da dissidência integram-se
tomarmos em consideração, poderemos os movimentos de denúncia, de desacordo
referir-nos a dissidências religiosas, sociais, e de crítica que conduzem, muitas vezes, à
políticas, estéticas, etc., expressando todas transformação das sociedades (encontran-
as formas de dissidência uma mesma atitu- do expressão num determinado imaginá-
de de “adesão negada a um conceito po- rio juvenil de renovação cultural) ou que
tencialmente ou atualmente normativo” se aproximam dos discursos utópicos sub-
(STRADA, 1996, 36). Num certo sentido, jacentes ao desejo de implantação de socie-
a dissensão é expressão de um equilíbrio dades futuras (terão, também elas, autoin-
dialogante entre dois pontos de vista; dis- terpretações das quais emanarão ideias e
tingue-se, por um lado, da uniformidade aporias de que resultarão movimentos dis-
e da homogeneidade e, por outro, de si- sidentes). Vittorio Strada lembra que “a he-
tuações em que um dos planos absorve resia é criada, como potencialidade, pela
por completo o espaço do outro ou em ortodoxia e guarda a marca não só pelo
que se estabelece uma relação de puro seu valor opositor, mas pela sua própria as-
conflito. Caracterizada por uma rutura piração afirmativa: pela sua tendência a ser
expressamente reconhecível, que se ma- por sua vez ortodoxia, transformando-se,
nifesta negativamente se considerarmos em sentido organizativo, de seita em Igre-
como positivos os padrões das comunida- ja” (Id., Ibid., 37).
des, instituições, doutrinas ou os sistemas É neste âmbito que deveremos integrar
dominantes de valores que são por ela as vanguardas artísticas das primeiras déca-
recusados, a atitude dissidente é encara- das do séc. xx que, começando por negar
da pela comunidade com um equivalente a arte cristalizada, i.e. encerrada nos mu-
distanciamento. Em casos extremos, que seus e feita refém do discurso académico,
rompem com a compreensão de dissi- tenderam normalmente a ser absorvidas
dência anteriormente apresentada, esta pela mesma sociedade cujos valores pro-
oposição pode gerar reações violentas curaram combater e, depois de sofrerem
tanto da parte dos dissidentes, que con- ruturas internas e de experimentarem de-
ferem às suas opiniões o cunho de arma rivações, acabaram também por se fixar
de combate, como do lado das ortodoxias, como parte da instituição artística. Em Los
que excomungam, segregam ou perse- Hijos del Limo, Octavio Paz associa à moder-
guem os responsáveis pelas manifestações nidade a tendência para o sucessivo ques-
de dissidência. A decisão de romper com tionamento e a renovação de pressupos-
um determinado modelo instalado – ha- tos, ligando de modo particular o conceito
bitualmente encarado como verdadeira de tradição de rutura, expressão exemplar

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Dissidência 2007

desse ambíguo movimento, ao percurso dele seguindo uma lógica de autoexclu-


iniciado com o romantismo e prosseguido são que impõe a independência cultural
pelas vanguardas da primeira metade do como valor supremo, e que parece muitas
séc. xx; aquela locução permite exprimir vezes implicar uma certa convicção da pró-
o facto de os artistas tomarem como pon- pria superioridade moral das suas opções.
to de referência alguns representantes da Poderíamos compreender a dissidência
tradição, tidos por precursores, ao mesmo como um fenómeno implicado numa de-
tempo que se consideram dissidentes do terminada leitura das organizações sociais,
sistema de valores com que esses ante- a qual pressupõe o diálogo entre os defen-
passados coexistiram, e com o qual estes sores de um conjunto de valores consoli-
tinham já tido divergências. Cícero Gale- dados e os movimentos que o questionam
no Lopes observa que “o desenvolvimento (revelando assim as zonas de sombra da-
da literatura de dissidência, paralelo ao quele e as suas próprias opções, divergen-
da literatura de escola, lhe dá carácter de tes dele ou inconformistas), e enquadra
resistência diacrónica (ideológica e discur- socialmente a transgressão e o desacordo.
siva) e peculiariza o veio dessa literatura” Nesse sentido, o conceito de dissidência é
(LOPES, s.d.). De algum modo, a ideia da equivalente ao de heterodoxia, conforme
existência de uma tradição que se funda- exprime Flocel Sabaté: “La disidencia he-
menta no desenvolvimento de grupos de terodoxa, por lo que comporta de posibi-
individualidades dissidentes – cujos ar- lidades de renovación en las perspectivas
tistas eram tidos como representantes de de interpretación de la realidad, puede
uma espécie de maldição comum –, a qual turbar el orden establecido y, por ello,
é particularmente recorrente sobretudo a debe ser reprimida por atentar contra una
partir do romantismo, constitui uma das ortodoxia identificada con la homogenei-
mitologias fundamentais da cultura mo- dad y con el gregarismo [A dissidência
derna. Jorge de Sena considerou que “fa- heterodoxa, na medida em que admite
lar do que é proibido, exibir-se cada qual possibilidades de renovação das perspe-
como réprobo, estadear através das artes tivas de interpretação da realidade, pode
o mais escatológico do inconsciente coleti- perturbar a ordem estabelecida, devendo
vo, que foi ou é tido por ‘maldito’, nunca por isso deve ser reprimida por atentar
constituiu impedimento para a tácita ofi- contra uma ortodoxia identificada com
cialização” (SENA, 1977, 177), sublinhan- a homogeneidade e o gregarismo]” (SA-
do assim que é por via desses autores, en- BATÉ, 2006, 111-112). Poderíamos, com
carados como exceções necessárias, que se Yves Bonnefoy, identificar a dissidência
define o padrão da normalidade. De facto, com o próprio potencial do negativo, na
na maior parte dos casos, os artistas ditos medida em que se entenda que “le mythe
dissidentes assumem-se ou definem-se de demande l’assentiment, il ne peut être
acordo com uma certa ideia de anormali- qu’une représentation collective, dont ont
dade (e.g., o génio, o excêntrico, o dândi, vérifiera dans les fêtes qu’elle est toujours
o boémio, entre outros), mesmo quando vive et sans faille. Et dès qu’une fraction
confundida com outros conceitos, procu- de la collectivité a dit non, quand une so-
rando a diferenciação ou perfazendo uma ciété s’est défaite, pluralisée, ou quand la
minoria marginal; esta minoria constitui­ science prend forme, c’est le crépuscule
‑se, do ponto de vista identitário, como du mythe, il se dégrade en superstition,
alteridade negativa face a um padrão por et voici comment, peu à peu, la pensée
ela reconhecido, e posiciona-se diante du ‘positif’ se dissipe, ou plutôt change

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2008 Dualismo

de forme [o mito exige o consentimento,


não pode deixar de ser uma representa-
Dualismo
ção coletiva que – como se verifica nas fes-
tividades – permanece sempre viva e sem
perturbações. Mas, quando uma parte da
coletividade o recusa, quando uma socie-
dade se desfaz, pluralizada, ou quando a
ciência ganha forma, dá-se o crepúsculo
do mito, que se degrada em superstição; e
é assim que, pouco a pouco, o pensamen-
O dualismo é uma doutrina que afirma
a existência de dois princípios opos-
tos e irredutíveis. A versão mais extrema é
to ‘positivo’ se dissipa, ou antes, muda de a do dualismo ontológico substancial, que
forma]” (BONNEFOY, 1988, 12 e 13). encontramos especialmente nos sistemas
Percebe-se, portanto, que existe um sig- gnósticos e na doutrina maniqueia dos
nificativo grau de negatividade em todas primeiros séculos da era cristã. Mas pode
as manifestações de dissidência, que, em assumir historicamente várias formas mais
diferentes escalas e com distintos resulta- circunscritas, com o dualismo antropoló-
dos no que respeita à transformação das gico (corpo/alma; homem velho/homem
ideias no decorrer da história de uma cul- novo; res extensa/res cogitans, etc.), o dua-
tura, coloca em causa os mitos predomi- lismo cosmológico (trevas/luz; matéria/
nantes. Assim, evidencia-se de que modo a espírito), o dualismo gnosiológico (co-
generalidade dos valores resultou de uma nhecimento pelos sentidos, dóxa/conhe-
criação humana – passível de ser ques- cimento pela razão, epistéme), dualismo
tionada e desconstruída, modificada e, cristológico (o Jesus histórico/o Cristo da
eventualmente, substituída por outro pa- fé; a existência de duas pessoas em Cristo,
radigma – e não de algo definitivamente conforme o nestorianismo), etc.
descoberto. Como termo técnico, a sua origem é
recente: surge pela primeira vez na obra
de Thomas Hyde, Veterum Persarum et Par­
Bibliog.: impressa: BONNEFOY, Yves, “Il reste thorum et Medorum Religionis Historia, pu-
à faire le négatif...”, in Pouvoirs du Négatif dans blicada em Oxford, em 1700, no âmbito
la Psychanalyse et la Culture, Paris, Erreur Peri-
da explicação das doutrinas mazdeístas de
mes, 1988, pp. 11-20; PAZ, Octavio,  Los Hijos
del Limo, Barcelona, Seix Barral, 1990; SABA- Zoroastro, onde encontramos um dualis-
TÉ, Flocel, “Reflexiones de conjunto sobre los mo teológico: Ormuz ou Ahura Mazda, o
heterodoxos”, in  CASTILLO, Santiago, e OLI- Deus Bom, senhor da sabedoria, contra
VER, Pedro (coords.), Las Figuras del Desorden. Ahriman, o Deus Mau, príncipe das tre-
Heterodoxos, Proscritos y Marginados, Madrid, Si- vas (a coleção de textos sagrados conhe-
glo XXI de España, 2006, pp. 111-131; SENA, cidos por Avesta é a fonte primária para
Jorge de, Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa,
este estudo; embora certas fontes refiram
Edições 70, 1977; STRADA, Vittorio, “Con-
que Ahura Mazda e Ahriman eram afinal
senso/Dissensão”, in RUGGIERO, Roma-
no (coord.), Enciclopédia Einaudi, vol. 22, Lisboa, irmãos e filhos de um deus maior, Zervan,
INCM, 1996, pp. 36-47; digital: LOPES, Cícero o Tempo, do qual seriam como que dois
Galeno, “Dissidência”, in CEIA, Carlos (coord.), ombros ou duas faces…). Para o dua-
E-Dicionário de Termos Literários, s.d.:  http://edtl. lismo ontológico ou metafísico, tudo o
fcsh.unl.pt/business-directory/7002/dissiden- que existe exprime uma oposição básica
cia/ (acedido a 21 abr. 2016). e mais fundamental anterior ao ser e ao
Rui Sousa tempo. Podemos dizer que, como teoria

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Dualismo 2009

estes não traduzam de modo algum uma


doutrina dualista, mas antes a consciên-
cia de uma dualidade essencial sempre
em movimento e a relação de dois princí-
pios presentes em todas as coisas. Já não
assim na filosofia indiana samkhya, uma
das seis escolas consideradas ortodoxas,
que é rigorosamente dualista, afirmando
a oposição a todos os níveis da realidade,
da consciência (purusha) e da matéria
(prakrti). Tal orientação radicalmente
dualista de certas correntes de pensamen-
to na Índia encontra-se também aprofun-
dada na doutrina dvaíta (dois) da filo-
sofia vedanta, na eterna oposição entre
atma (alma) e Brahman (divino absoluto).
Na filosofia grega nascente, encon-
tramos tal tensão declinada entre uno e
Thomas Hyde (1636-1703). múltiplo, limitado e ilimitado, aparências
e ser, etc., que descobriu logo aí soluções
explicativa, ele representa o extremar contraditórias, quer monistas, quer dua-
mental das experiências de dualidade ou listas, quer ainda pluralistas. Pense-se na
polaridades que decorrem da situação do célebre tábua dos opostos dos pitagóricos
Homem no cosmos: o dia e a noite, o ma- (finito/infinito, par/ímpar, reto/curvo,
cho e a fêmea, o céu e a terra, a direita macho/fêmea, etc.) e no dualismo órfico
e a esquerda, o movimento e o repouso, entre alma e corpo; na oposição dia/noi-
o quente e o frio, a vida e a morte, etc. te, verdade/opinião, ser/aparências, em
Como se a própria consciência, na sua ori- Parménides de Eleia; no ódio e no amor
gem, não pudesse deixar de ser dualista como forças determinantes da relação
e maniqueizante, só se apreendendo a si entre terra, ar, água e fogo, em Empédo-
mesma em ato de divisão/distinção, que cles de Agrigento, etc., e tem-se um pri-
logo pretende superar dialeticamente. meiro quadro, a traço grosso, de como a
A mitologia, a teologia e a filosofia filosofia acolheu este problema, que por
apropriaram-se, depois, destas tensões vi- muitas vias, opostas ou compósitas, tenta-
vidas e tentaram justificá-las a seu modo. rá solucionar.
Os primeiros mitos conhecidos da huma- Costuma dizer-se que, na tradição oci-
nidade (e.g., o poema babilónico da cria- dental, o mundo bíblico, em razão da
ção, o Enuma Elish) dramatizam exem- narrativa da criação no livro do Génesis,
plarmente essa luta primordial entre dois desconhece o dualismo. Parece-nos corre-
deuses (no caso, a luta entre Marduk e ta a afirmação. Mas importa ainda assim
Tiamat), conflito que depois se propaga a notar que a enigmática afirmação de Gé-
toda a realidade que há de vir. É fácil en- nesis 1, 2 de que, antes de Deus criar a luz
contrar paralelos noutros contextos mí- (Gen 1, 3), a terra era “vazia e informe”
tico-religiosos. No Oriente (China), são (tohu wa bohu; inanis et vacua) deu lugar
bem conhecidas as doutrinas do yin (fe- a releituras gnósticas segundo as quais
minino) e do yang (masculino), embora desde sempre haveria Deus e o seu outro:

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2010 Dualismo

a matéria primordial incriada. Embora tais tendências jamais desapareceram na


este dualismo metafísico nos pareça ine- cultura ocidental, permanecendo subter-
xistente no mundo bíblico, este apresen- râneas e aparecendo em vagas sucessivas,
ta-se-nos narrativamente cheio de pola- na Idade Média, e.g., nos cátaros, nos val-
ridades: Deus/mundo, Deus/Satã (e.g., denses, nos bogomilos, ou ainda, de certo
em Job), verdade/mentira, aliança/des- modo, na dramatização muito agostinia-
confiança, pastores/agricultores, monta- na (do último Agostinho: 425-430, contra
nha/vale; etc., pares que correspondem os pelagianos, ou do Agostinho da Cidade
dramaticamente ao sentimento de uma de Deus e da Cidade do Diabo) de Inácio de
existência quebrada, desgarrada. Tais po- Loiola entre Jerusalém e a Babilónia, e de
laridades encontram-se do mesmo modo Lutero, no que se refere à oposição radi-
no Novo Testamento, especialmente no cal entre a natureza e a graça, oposição
evangelho de S. João e em S. Paulo: estar que, entre outras, ainda encontramos fi-
no mundo/ser de Deus, carne/espírito, losoficamente transmutada, em Kant, en-
trevas/luz, morte/vida, lei/promessas, tre a necessidade da natureza e a liberda-
obras/fé, etc. de da vontade, entre razão pura e razão
Tal fundo mitológico, religioso, filosó- prática, entre outras.
fico, teológico, numa palavra, cultural irá O chamado dualismo cartesiano é ou-
cruzar-se e recruzar-se ao longo dos sé- tro veio importante para compreender os
culos, no Ocidente, gerando geometrias rumos filosóficos e teológicos da moder-
muito variáveis. Logo no séc. ii, entre nidade. Se em Descartes este dualismo é
uma legião de tendências gnósticas, ve- sobretudo antropológico (alma como coi-
mos Marcião de Sínope, inspirado nessa sa pensante/corpo como coisa extensa) e
mesma gnose e em narrativas orientali- gnosiológico, ele encontrará também ex-
zantes, opor de forma radical o Deus Mau pressões cosmológicas, e.g., na harmonia
do Antigo Testamento ao Deus Bom e pré-estabelecida de Leibniz, e no deísmo
todo amor pregado por Jesus (e.g. na pa- do séc. xviii, onde Deus e o mundo, de-
rábola do filho pródigo). Tal dualismo na pois do “piparote” inicial, não mais têm
leitura da Bíblia cava-se de forma abissal qualquer relação entre si. No âmbito da
com o maniqueísmo pregado por Manés, literatura, e.g., tal dualismo cripto-gnós-
no séc. iii, doutrina que tanto seduzirá, tico permanece como corrente subter-
no séc. iv, o jovem Agostinho, angustia- rânea de muita literatura portuguesa
do com o mal que “parecia brotar da sua (e.g., Sampaio Bruno, A Ideia de Deus).
substância” (Confissões, II, 3, 8). Algumas linhagens da fenomenologia
Na península Ibérica, por esta mesma contemporânea, apesar do intento inicial
altura, grassa a seita dualista de Priscilia- de Husserl, não conseguem fugir ao fascí-
no, chamada Priscilianismo, que retoma nio do dualismo, reconhecendo não ser
e adapta ao contexto hispânico os ele- possível superar a duplicidade ou bifidez
mentos gnósticos e maniqueus: demoni- primordial do aparecer: o aparecer do
zação da matéria, angústia com o mal no mundo para a consciência, e o aparecer
mundo, insistência na salvação da alma, da vida para si mesma (e.g. M. Henry).
etc. E apesar do combate que, por todos Afirmam muitos, criticamente e não sem
os meios, a Igreja Católica empreenderá razão (e.g., J. Cerqueira Gonçalves), que
contra os dualismos (o Agostinho con- o dualismo e o maniqueísmo foram, e
vertido foi nisso exemplar para muitos, são, as grandes tentações do pensamento
e.g., S. Bernardo de Claraval), vemos que e da cultura ocidental. Angustiado com

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Antiepopeia 2011

o mal no mundo e dentro da vontade,


divido entre interior e exterior, cindido
Antiepopeia
entre a perfeição moral e o pecado/fa-
lha, separado entre o querer e o poder,
esmagado pela experiência do tempo e o
anelo de eternidade, vivendo o relativo e
almejando o absoluto, a perene tentação
é pensar a preto e branco, fugir do mun-
do, demonizar a matéria. Tentação sem-
pre recorrente, aliás: as muitas formas de
N ão chegando a definir-se como um
género, a antiepopeia tem as suas
especificidades, quase se diria um estatu-
maniqueísmo, de neognoses e de new age to ontológico próprio que se compõe de
estão aí para o provar. O dualismo é sem- uma diversidade de géneros e subgéne-
pre muito tentador. “De Nazaré pode vir ros que literariamente a configuram – o
alguma coisa boa?” (Jo 1, 46). narrativo, o lírico, o dramático, a elegia,
a sátira –, com a dissolução tendencial
Bibliog.: AGOSTINHO DE HIPONA, Confis-
das suas fronteiras e consequente fluidez
sões; Brisson, Luc, Orphée et l’Orphisme dans
l’Antiquité Gréco-Romaine, Norfolk, Variorum, semântico-pragmática. A esta volubilida-
1995; Gonçalves, Joaquim Cerqueira, “Fi- de genológica corresponde uma inversa
losofia e relação. Interpretação cristã da ca- (e relativa) invariabilidade de temáticas
tegoria grega”, Biblos, n.º 56, 1980, pp. 183­ e conteúdos de incidência marítima e
‑194; Henry, Michel, Encarnação. Uma Filosofia viajante. Tal como acontece com a epo-
da Carne, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001; peia (todo o anti tem o seu modelo), a
Pétrement, Simone, Le Dieu Séparé. Les Ori-
antiepopeia tem o seu travejamento ima-
gines du Gnosticisme, Paris, Cerf, 1984; Puech,
gético e metafórico, as suas tonalidades
Henri-Charles, En torno a la Gnosis I. La Gnosis
y el Tiempo y Otros Ensayos, Madrid, Taurus, léxicas – que vão dos tons brandamente
1978; Rosa, José Maria Silva, Em busca do melancólicos ao negro sólido – e os seus
Centro. Investigações sobre a Noção de Ordem em procedimentos, entre os quais se conta o
Santo Agostinho (Período de Cassicíaco), Lisboa, uso dessa forma privilegiada de reescrita
Universidade Católica Editora, 1999; Id., “Da que é a paródia, apta a fabricar contrafa-
fealdade e da beleza do/no mundo. Gnose, ções negativas.
antignose e monstros em Santo Agostinho”,
Lugar de desencanto, deceção, crítica
in Herreros, José Luis Fuertes, e Gonzá-
lez, Ángel Poncela (orgs.), De Natura. La Natu- desalentada e outras figuras da negativi-
raleza en la Edad Media, vol. i, Porto/Vila Nova dade, mas também de desafio e receção
de Famalicão, Instituto de Filosofia da Univer- criativa, a antiepopeia, contemporânea
sidade do Porto/Húmus, 2015, pp. 183-209; da consciência épica, é um mundo de
Runciman, Steven, The Medieval Manichee: polimórficas manifestações, como desde
A Study of the Christian Dualist Heresy, Cambridge, logo indicia o leque das denominações
Cambridge University Press, 1947; Tardieu,
congéneres: não epopeia, epopeia impos-
Michel, e Dubois, Jean-Daniel, Introduction a la
Littérature Gnostique I. Collections Retrouvées avant
sível, contraepopeia, epopeia às avessas,
1945, Paris, Cerf/Centre National de la Re- epopeia ao contrário, epopeia em nega-
cherche Scientifique, 1986; Tresmontant, tivo, microepopeia, epopeia por defeito.
Claude, La Métaphysique du Christianisme et la Estas designações, na diversidade das suas
Naissance de la Philosophie Chrétienne: Problèmes de motivações semânticas e dos seus sentidos
la Création et de l’Anthropologie des Origines a Saint denotativos e conotativos, expressam um
Augustin, Paris, Seuil, 1961. sentir contraditório que, podendo ter lu-
José Maria Silva Rosa gar fora de qualquer textualização, é por

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2012 Antiepopeia

meio dela articulável em todas as formas dição entre o canto de grandeza e glória,
particulares de expressão: um sentimento exigidas pela tradição homérica e pela
nacional de grandiosidade heroica e de convenção épica, e o canto que parece
orgulho confiante, que transparece de rejeitar uma e outra – o canto da condi-
forma modelar em Os Lusíadas, na fala de ção humana –, sempre atraiu a atenção
Vasco da Gama ao Rei de Melinde (III, dos estudiosos. O mantuano, mais atento
20); um sentimento de rejeição dessa à grande e desventurada família huma-
grandeza e de quanto com ela se cruza: na que a heroísmos rutilantes, mostra-se
do tom inflamado e grandiloquente, à incapaz de seguir com rigor os poemas
figura de Camões, metonimicamente homéricos. Esta impossibilidade originou
associada ao destino coletivo português, um novo modelo de epopeia que veio a
passando pela mitologia engrandecedora ter larga fortuna nas múltiplas literaturas
e providencialista, com destaque para o ocidentais, nomeadamente na literatu-
sebastianismo. São, em boa verdade, dois ra portuguesa. Camões, ajustando a sua
retratos de Portugal que em cada uma epopeia a circunstâncias históricas natu-
das designações se confrontam: o Portu- ralmente diversas das que caracterizam a
gal descobridor, imperial e dourado, o epopeia latina, acolhe esta dimensão pa-
mesmo que Camões, em estrofes de tensa radoxal como reflexo de um novo modo
altivez, anuncia no limiar do seu poema; de sentir, próprio da cultura portuguesa
o Portugal da “apagada e vil tristeza” (X, de Quinhentos, católica, missionária, a
145) que leva o canto épico camoniano a transitar da ufania imperial para a melan-
dialogar com a sua própria negação. colia do sic transit e da vanitas vanitatum
As variantes épicas e antiépicas, tantas característicos do maneirismo e do barro-
vezes em contrastante convívio no mes- co. Os clamores de desalento, as vozes de
mo autor e na mesma obra, reflexo do reprovação e os indícios de pessimismo
claro-escuro que simbolicamente resume que o épico quinhentista não se exime a
a gesta marítima portuguesa, a que tem introduzir no poema glorificador da ges-
sido sujeita a interpretação da história ta portuguesa ganham foros de desassom-
de Portugal, são uma evidência que não brada primazia em distintos testemunhos
carece de prova. Já Manuel de Faria e literários do tempo e posteriores, com
Sousa, no séc. xvii, parecia intuir as particular incidência na segunda metade
contradições existentes em Os Lusíadas, do séc. xx, muito por força do contex-
referindo-se, no “Juízo do poema” que to sociopolítico que o caracteriza, onde
introduz a edição madrilena do mesmo, não é de somenos o desfazer do Império
de 1639, a um “mistério guardado”. Mais colonial.
modernamente, uma corrente de inter- Ainda Camões não trouxera ao prelo
pretação do poema camoniano, parti- o seu opus magnum, e já por Lisboa cir-
cularmente atenta às críticas do narrador culavam alguns dos relatos de naufrágios
à sociedade do seu tempo e à presença que no séc. xviii o bibliófilo Bernardo
da voz pessoal do poeta, tem sublinhado Gomes de Brito haveria de reunir sob o
a dimensão paradoxal de Os Lusíadas. título de História Trágico-Marítima. Rela-
A presença de episódios como o do Velho ções de desastres marítimos ocorridos du-
do Restelo e de múltiplas notas subjeti- rante a segunda metade do séc. xvi que
vas dissonantes reforçam os laços com o põem em evidência o lado mais sombrio
modelo épico subjacente: a epopeia vir- e desastroso dos Descobrimentos, nomea-
giliana. A Eneida, na sua essencial contra- damente a ambição e cobiça dos merca-

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Antiepopeia 2013

dores portugueses, cuja insofrida cupidez tiépico de uma história trágico-marítima.


de lucro e riquezas leva não raras vezes ao Assim soçobram os alicerces do heroísmo
afundamento de bens e vidas sem conta. luso, dando lugar ao aparecimento de
Nestes textos “rebentam as ondas da an- um anti-herói acometido pelas ondas do
tiepopeia” (CUSTÓDIO, 1992, 2) e, em infortúnio, vítima de uma epopeia trági-
vez do homem triunfante e vitorioso, en- ca ou de uma tragédia épica, com Ada-
grandecido pelos cronistas oficiais, paten- mastor triunfando sobre o povo lusitano,
teia-se o homem vulnerável, fustigado pe- numa odisseia em reverso, feita não de
las intempéries e sujeito aos desmandos glórias mas de desventuras. Topoi como
humanos a que tão longas e arriscadas o desengano da vida e a transitoriedade
viagens o submetiam. O sucesso destas re- terrena, o acento no carácter dramático
lações, vincadamente realistas e emotivas, e angustiante da existência humana, que
por força do seu pendor trágico, avalia­ marcam profundamente a cultura seis-
‑se pela existência de inúmeras contrafa- centista, encontram a mais alta expressão
ções, sendo igualmente sintoma do olhar no rudimentar e vívido discurso da Histó­
cético e desencantado com que a socie- ria Trágico-Marítima. Nesse sentido, a pro-
dade passava a olhar os Descobrimentos lífera disseminação destes relatos indicia
à medida que ia ganhando consciência o “afundamento” do paradigma descobri-
das nefastas contrapartidas do movimen- mentista e do seu modelo literário por ex-
to expansionista e dos prejuízos que tão celência – não há mais lugar para “armas
arrojada empresa marítima acarretava e barões assinalados” (I, 1) –, constituin-
para o país. Em conformidade com os do-se como o melhor exemplo do fim de
preceitos ideológicos e estéticos próprios um século, de um cânone, e o prenúncio
da mundividência maneirista, o gosto do de uma nova realidade.
leitor seiscentista reclamava uma imagem Pesem embora as inúmeras tentativas,
mais verosímil e convincente do nave- debalde a produção literária do séc. xvii
gante lusitano, trazendo para o centro e seguintes tentará embocar a tuba “cano-
dos seus interesses o que em Os Lusíadas ra e belicosa” (I, 5) camoniana. Poemas
apenas se prenunciara, e a contracorren- como a Ulisseia, a Ulissipo, a Insulana, o Vi­
te, pela voz profética do Gigante Ada- riato Trágico, As Viríadas, a Malaca Conquis­
mastor, do Velho do Restelo e do sujeito tada ou a Zargueida não granjearão mais
poético, em considerações pessoais ou na que um pálido reflexo do sublime poema
descrição das “perigosas cousas do mar” de Camões. Abandonado o modelo épico
(V, 16). Entre devastadoras e impiedosas e heroico renascentista, impõe-se o para-
tempestades, o marinheiro português do digma do homem barroco, derrotado pelo
séc. xvi é um homem sofredor e débil, medo e pelo pessimismo. Já imbuído desta
a desfalecer de cansaços e fadigas, causa- mentalidade, o próprio discurso historio-
das por décadas de navegações, batalhas gráfico assume um timbre mais realista,
e descobertas. À imagem apolínea e lu- fruto da experiência in loco, como se cons-
minosa do herói renascentista, veiculada tata na História do Descobrimento e Conquista
por Camões e por João de Barros na Ásia, da Índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes
poderoso no seu estatuto de semideus, de Castanheda, e em As Lendas da Índia, de
vencedor das adversidades, contrapõe-se Gaspar Correia. No entanto, o acentuado
doravante a do navegante abatido pelas tom antiépico e censório transbordante
forças da natureza, desprovido da mão na História Trágico-Marítima reflete-se nou-
protetora dos deuses, protagonista an- tras obras literárias da época.

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2014 Antiepopeia

O Soldado Prático e as Décadas, de Diogo


Couto, amigo de Camões, já comunga-
vam desse espírito crítico e crepuscular
pós-Alcácer Quibir, dividindo-se o autor
entre elogios ao passado e censuras ao
presente da nação. Observador atento da
realidade circundante, não deixa o cro-
nista de denunciar males crónicos como
o nepotismo, a vaidade, a corrupção, a
prepotência e as injustiças de vice-reis e
governadores, a cobiça e a luxúria dos
capitães, a indisciplina dos soldados, a
intromissão do poder religioso no poder
temporal, a negligência do rei e a sua fal-
ta de equidade. As suas críticas haveriam
de torná-lo uma pessoa incómoda para os
poderosos do reino, tendo pagado a sua Diogo Couto (1542-1616).
ousadia com o boicote e roubo de algu-
mas das suas obras.
Naufrágios, pilhagens, batalhas e reve- culturais, políticos, sociais e religiosos
ses de toda a ordem fazem da extraordiná- que caracterizaram esse período proble-
ria Peregrinação (1614) de Fernão Mendes mático da história nacional: a corrupção
Pinto um flagrante reverso da imagem dos responsáveis pela manutenção do
heroica da ação dos Portugueses em ter- grande império ultramarino português,
ritórios asiáticos. O relato autodiegético a catástrofe de Alcácer Quibir, o drama
sublinha o carácter picaresco do viajante, da dominação espanhola e a angústia dos
homem das sete partidas, a oscilar entre que, como o próprio Fernão Álvares, se
o pecado e o arrependimento, ao mesmo viram forçados a viver as consequências
tempo que apresenta uma visão pouco de tão dolorosos acontecimentos. Num
eufórica da expansão, patente nas alusões registo predominantemente moralista, o
disfóricas à intervenção lusa no Oriente, autor denuncia as várias crises de que en-
na subtil crítica à contradição entre os ferma a nação, e que afetam dimensões
valores cristãos e as ações dos povos oci- como o patriotismo, os valores morais, a
dentais em contraste com os orientais, na literatura, a religião, as classes sociais, o
degenerescência de um ideal cristão de matrimónio, e até a própria vida, propon-
conquista para a conversão que redunda do para cada uma destas moléstias um an-
em violência e corrupção. tídoto reparador.
A novela pastoril Lusitânia Transforma­ Contemporâneo de Fernão Álvares
da (1607), de Fernão Álvares do Orien- e também como ele participante na de-
te, também configura uma visão crítica sastrosa expedição de Alcácer Quibir,
da expansão ultramarina, pintando um Jerónimo Corte-Real acentua o lado de-
Oriente de assombro e espanto, fonte de sastroso das viagens mercantilistas, ao glo-
riqueza mas também de tragédia e ruína. sar, num dos seus poemas épicos, o terrí-
O poeta, profundo conhecedor das rotas vel naufrágio prenunciado pelo Gigante
marítimas e das praças portuguesas do Adamastor e relatado na História Trágico­
Oriente, reage a uma série de problemas ‑Marítima. O Naufrágio e Lastimoso Sucesso

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Antiepopeia 2015

da Perdição de Manuel de Sepúlveda (1594) vestem ainda de uma positividade épica.


simboliza, para este humanista, a ascen- É assim que, para reforçar a degradação
são e queda do sonho imperial português moral, política e económica coeva, o au-
e o decair do poderio militar nacional. tor põe em confronto as atitudes do seu
Se antes, quando se tratava de exaltar o Sepúlveda com as do malogrado homóni-
heroísmo dos nobres lusos no Sucesso do mo. Perante o infortúnio, o empresário
Segundo Cerco de Diu (1574), compusera contemporâneo cede com facilidade à
22 cantos em decassílabos brancos e he- cobardia e vileza, ao passo que o merca-
roicos, impregnados de informação histó- dor quinhentista manteve sempre uma
rica mais conforme ao género cronístico atitude corajosa e íntegra.
que à epopeia, a mudança para um tema A obra de Graça Moura surge a par de
já por si contaminado de tristeza leva-o outras que no pós-25 de Abril procura-
a refrear sobremaneira o furor épico, ram, consciente ou inconscientemente,
optando por intercalar nos decassílabos responder ao apelo de Eduardo Louren-
brancos tercetos de natureza mais lírica. ço por uma expurgação do irrealismo
O carácter antiépico destes poemas leva e do misticismo nacionalista do retrato
mesmo Fidelino de Figueiredo (FIGUEI- hiperbólico que os Portugueses foram
REDO, 1993, 372-373) a suspeitar de um ao longo dos séculos construindo de si
anticamonismo latente. próprios. Tratava-se de combater o que o
O referido episódio trágico-marítimo, ensaísta português denunciava em O La­
os seus protagonistas e o seu glosador, cuja birinto da Saudade (1978) como a obsessão
esposa era efetivamente prima de Lianor
de Sá (mulher de Manuel de Sepúlveda), Folha de rosto de Peregrinacam (1614),
reverberam homonimicamente no pecu- de Fernão Mendes Pinto.
liar tratamento literário de Vasco Graça
Moura, em Naufrágio do Sepúlveda (1988).
Símbolo do naufrágio contemporâneo
da nação e da perda do império colonial,
o Sepúlveda de Vasco Graça Moura, en-
volto numa tempestuosa crise financeira
em vésperas da Revolução de 25 de abril,
está em constante diálogo intertextual e
paródico com a História Trágico-Marítima
e com a epopeia de Jerónimo Corte-Real,
realçando por essa via o lado melancólico
e o destino dramático das personagens, e
por sinédoque da própria nação. A alusão
ao conhecido tríptico de Vieira da Silva,
evocado pelo narrador de forma ecfrásti-
ca, favorece a interpenetração dos vários
códigos semióticos aglutinados em torno
da mesma isotopia, contribuindo para
reforçar a ideia de contraepopeia. No
entanto, a glosa de Graça Moura agudiza
o processo antiépico até ao paroxismo,
revertendo traços que no intertexto se re-

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2016 Antiepopeia

lusa de sonhar o passado e o futuro: o artística levaram o romantismo à mitifi-


passado ufano e imperial da aventura cação ou interpretação lendária da figura
colonial; o futuro utópico e glorioso de de Camões, doravante erguido ao esta-
Portugal à cabeça e um imenso império tuto de figura tutelar da nação. Garrett,
terrestre e espiritual. Para esta hipertro- um dos responsáveis pelo estatuto mítico
fia da identidade nacional muito contri- que Camões veio a adquirir no imagi-
buíram os retratos de artistas, historiado- nário moderno português, delineia, em
res, romancistas e poetas. Saliente-se o Viagens na Minha Terra, a sintomatologia
profetismo milenarista e messiânico que de um Portugal enfermo que lhe destro-
o génio do P.e António Vieira outorga à ça os sentidos; à efervescência da Lisboa
reerguida nação portuguesa, vertido nos quinhentista opõe o autor o imobilismo
sermões, mas principalmente nos seus es- em que surpreende o país. Com o leitor
critos proféticos, Clavis Prophetarum e His­ partilha as dores e alguns antídotos para
tória do Futuro. O género épico, a epopeia uma “geração de vapor e de pó de pedra”
camoniana e a própria figura mitificada (GARRETT, 1983, 96) que se indigna de
do poeta desempenharam igualmente ver sacrificar o espírito à matéria.
um papel relevante na formação irrea- O realismo naturalista, essencialmente
lista e idealista da identidade nacional, anti-heroico, abandona definitivamente
de forma mais impressiva em épocas de o molde épico renascentista, e Fidelino
elevada crise identitária ou política. Não de Figueiredo considera o ano de 1862,
porque o poeta de Os Lusíadas assim o te- data de publicação de D. Jaime, de Tomás
nha querido ou fomentado, ainda que se Ribeiro, como o termo ad quem da epo-
não pudesse pôr em causa a sua legitimi- peia de recorte camoniano. Coincidindo
dade, visto o contexto histórico-cultural no tempo, a geração de 70 configura a
que cauciona e enforma a sua visão, mas primeira e mais alta tentativa, no plano
porque o impacto do seu texto na cultura cultural, de criticismo patriótico. Portu-
portuguesa foi de tal ordem que jamais se gal revela-se, na balança da Europa, um
pôde desligar o sentimento nacional dos país atrasado e subalterno, alvo da ironia
versos do génio quinhentista. A epopeia e do sarcasmo de um Antero e de um
camoniana aparece-nos assim, por um Ramalho, e da pena escarninha de um
lado, como uma obra benéfica enquanto Eça de Queirós. No episódio final de Os
cristalizadora de mitos nacionais e en- Maias – romance onde perpassa um Por-
quanto força unificadora, mas, por ou- tugal decadente e enxovalhado –, o pas-
tro, exageradora das glórias passadistas, seio de Carlos e Ega pela baixa lisboeta
quando tomada como voz do hermetis- encarrega-se de mostrar a decrepitude, a
mo nacionalista. Por conseguinte, é nor- ociosidade e a inoperância do tempo. Ca-
mal que o barroco seiscentista, através da mões, testemunha do brilho de Portugal
prolífera publicação de epopeias, logras- e do brio português, é agora uma estátua
se no exalçamento épico dos feitos histó- triste fixando o seu olhar, mais e mais de-
ricos internos e ultramarinos o principal sencantado, no adormecimento social do
argumento do orgulhoso e reivindicativo país. É com a mesma tristeza da estátua
espírito autonomista, com particular ên- de Camões que Eça sobrepõe ao passado
fase e desígnio no período filipino. Já as épico a pobreza ideológica e cultural do
aspirações de reconstrução da pátria, por tempo presente, esquecido dos valores
aquele tempo submetida ao jugo migue- nacionais. Prova-o a resposta pronta de
lista, e o desejo de liberdade política e Carlos da Maia, questionado sobre se já

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Antiepopeia 2017

o invadira o desejo de regressar a Portu- antigo regime, fizeram-no recorrendo a


gal: “Não! Paris era o único lugar da Ter- dispositivos retóricos e técnico-literários
ra congénere com o tipo definitivo em eminentemente antiépicos. Sem surpre-
que ele se fixara: ‘o homem rico que vive sa, a partir da segunda metade do séc. xx,
bem’” (QUEIRÓS, s.d., 713). são várias as obras do vasto corpus ficcional
Os partidários do republicanismo, des- que tentam despojar a história portugue-
peitados pelo traumático Ultimato não sa da aura épica do passado ou descons-
deixaram, por sua vez, de utilizar o ter- truir a imagem presunçosa da identidade
ceiro centenário da morte do poeta como nacional, escrevendo, como disse Jorge
pedra de arremesso contra a monarquia de Sena no prefácio às Quybyrycas, “Os Lu­
e a reivindicação de uma nova ordem síadas que o seu tempo merece”.
política. Aqui fermentará o exacerbado Alguns dos maiores autores da língua
patriotismo jacobino que mais tarde a portuguesa tentaram, com assinalável
república converterá em fervor religioso êxito, mostrar o reverso do imperialismo
ao serviço da nação personificada: “he- luso, pondo a descoberto o provincianis-
róis do mar/nobre povo/nação valente e mo lusitano, a face menos heroica das
imortal”. viagens marítimas e do império colonial.
A proposta ideológica republicana iria Talvez nenhum outro autor se tenha em-
ser extravasada pela desmedida e alie- penhado tanto nesta lide como António
nante ficção nacionalista, engendrada Lobo Antunes. A guerra ultramarina, a
pela propaganda fascista para promover subversão de figuras e factos essenciais da
e impor uma lusitanidade exemplar, mas história de Portugal, a decadência e o fim
completamente irreal. Mais uma vez, a dos domínios colonizados são temas re-
tentativa de cristalizar o documento ca- correntes da sua extensa produção literá-
moniano em monumento volvia-se em ria. Títulos como Os Cus de Judas (1979),
perigosa estratégia de poder, a que o Es- Fado Alexandrino (1983), O Esplendor de
tado Novo e os seus apaniguados soube- Portugal (1997), entre outros, acentuam
ram muito bem deitar a mão, no afã de com rara transparência e crueza as ten-
vender a ideia de um país idílico, com um sões raciais e bélicas nas colónias africa-
passado grandioso e um futuro messiâni- nas, e atrocidades aí cometidas, como a
co. O discurso épico camoniano via-se, subjugação e exploração dos negros. Os
desta forma, associado à apologia colo- horrores da guerra colonial também se
nial e às ideologias políticas então vigen- encontram visceralmente expostos na Au­
tes, e elevado à condição de breviário do tópsia de Um Mar de Ruínas (1984), de João
patriotismo. Em contrarreação, a literatu- de Melo. A pícara Peregrinação de Barnabé
ra do último quartel do séc. xx tentará a das Índias (1997), da inventiva de Mário
todo o custo atacar a quimera, chamando Cláudio, e até mesmo as romanceadas in-
a sociedade portuguesa à razão da reali- cursões históricas de João Morgado pelas
dade nua e crua dos factos, combatendo vias marítimas dos Descobrimentos ofere-
o ensimesmamento memorialista. cem-nos uma imagem em contraluz das
As leituras às avessas que no pós-25 de viagens e dos seus heróis. Romances de
Abril tentaram subverter a todos os níveis José Saramago como O Ano da Morte de
a mitologia cultural lusíada, reformulan- Ricardo Reis (1984) e A História do Cerco de
do em termos literário-simbólicos a ima- Lisboa (1989) adotam matéria histórica e
gem da aventura nacional e do próprio recriam ambientes do passado de forma
Camões, confabulada e propalada pelo disfórica e amiúde fantasiosa para fazer

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2018 Antiepopeia

vir à tona o verosímil invisível. Projetando 1344 e dos Livros de Linhagens que pude-
a história de um ponto de vista não oficial mos chegar ao seu conhecimento. Tratar­
nem triunfalista, o autor aplica a um de- ‑se-ia fundamentalmente de composições
terminado contexto histórico escalas am- resultantes da tradição oral, compostas
plificadas pela ficção, que lhe permitem em verso épico de timbre jogralesco, con-
pôr em evidência os ignorados da his- centradas sobretudo em afirmar a uni-
toriografia e as versões nunca contadas, dade cultural do Ocidente hispânico e a
mas porventura mais próximas do real. autonomia étnica dos Portugueses. Estas
Por esse prisma, pode ver-se no Memo­ composições estão na génese das célebres
rial do Convento (1982) a antiepopeia da canções de gesta, nas quais se inscreve,
pedra. Também a Trilogia Lusitana (mais em contexto peninsular, o Cantar de Mio
tarde tetralogia Lusitânia) de Almeida Cid, e em Itália darão forma aos poemas
Faria, particularmente o terceiro volume, heroicos de cavalaria como Orlando In­
Lusitânia (1980), investe simbolicamente namorato de Boiardo e Orlando Furioso de
contra um Portugal arcaico e desconcer- Ariosto, que prenunciam o género épico
tante, impugnando um imaginário pátrio renascentista. Na epopeia quinhentista
ancestralmente instituído. Num romance confluem, pois, quer a tradição medieval
epistolar impregnado de alusões à poesia quer a greco-romana de celebrar os he-
do nosso Épico, ressoa a veneranda voz róis fundamentais da nação. A dimensão
do velho lusíada denunciando os naufrá- histórica constitui-se como um dos eixos
gios e as catastróficas penas do Império. estruturantes de Os Lusíadas, e o poeta
Pela malha do texto perpassa um “ímpe- não poupa nos encómios que tece a figu-
to antiépico” com o qual o autor intenta ras como D. Afonso Henriques, Nuno Ál-
desfazer as sucessivas interpretações cal- vares Pereira, infante D. Henrique, D. Se-
cificadas de Os Lusíadas, responsáveis por bastião, Diogo Cão, Bartolomeu Dias,
visões eufóricas de messianismo nacional Vasco da Gama.
e pela elevação da epopeia à categoria de A reação antiépica pré e pós-colonia-
“bíblia do destino português” (REBELO, lista, apostada em subverter as imagens
2014, 19). Deste modo, o quotidiano po- de exaltação nacionalista do passado,
bre e sem nobreza das personagens des- em prol de uma autognose que melhor
mente e contrasta com o discurso épico correspondesse à verdadeira identidade
parodiado. nacional, glosa negativamente este mo-
Antecedendo Os Lusíadas, é possível delo de herói medieval e renascentista,
assinalar a existência de toda uma tradi- portador de qualidades exacerbadas:
ção épica medieval que ainda não se regia denodado espírito guerreiro, detentor
pelos cânones do modelo clássico, mas das melhores virtudes morais, cavaleiro
seguia as características estéticas dos poe- perfeito, expoente de cortesia e devoção
mas épicos castelhanos, cantando figuras religiosa, paladino do amor. Destacamos,
e feitos histórico-lendários da jovem na- a este título, a Torre de Barbela (1965), de
ção. A lenda do Rei Ramiro, a lenda de Ruben A., e As Naus (1988), de António
Egas Moniz, o relato da Batalha do Sala- Lobo Antunes. Ambas as obras visam
do e um ciclo narrativo sobre D. Afonso criticamente a ladainha nacionalista da
Henriques faziam parte deste corpus li- identidade pátria, por intermédio de um
terário, do qual, infelizmente, nenhum engenhoso mecanismo técnico-retórico
texto chegou aos nossos dias. Foi pela in- assente na fusão surrealista de persona-
terposta via da Crónica Geral de Espanha de gens e coordenadas espácio-temporais

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Antiepopeia 2019

reais com categorias narrativas oníricas. espécie de epopeia às avessas, Lobo An-
A Torre de Barbela apresenta-se como uma tunes reconta as suas vidas em África,
trama fantasmagórica, passada em dois diferentes em todos os sentidos das ver-
níveis narrativos distintos, um que remete sões consagradas, e coloca-os, ao longo
para o reino dos vivos mortos no Portugal de uma trama híbrida, como híbridos
contemporâneo entre Douro e Minho, e são os tempos e os lugares, no papel de
outro, para um submerso reino de mor- jogadores de cartas, bêbedos, proxenetas
tos viventes, onde personagens de resso- e oportunistas. As suas desventuras trági-
nâncias históricas se encontram e desen- cas, frequentemente burlescas, oferecem
contram em diálogos e comentários que uma releitura deturpada e caricaturada
catapultam a diegese para o nível simbó- quer do passado quer do presente da
lico da história de Portugal. Em foco, a nação, com Lisboa a ser, por sinédoque,
ancestral paixão de Portugal pela nação o centro aglutinador das catástrofes pes-
francesa e pela sua cultura, encarnada soais e nacionais, cidade em cujas ruí-
metonimicamente na paixão do Cavalei- nas, em cujo desregramento e em cuja
ro de Barbela e dos restantes e ilustres ha- imundície se representa o passado e o
bitantes da Torre de Barbela pela prima presente ruinoso, caótico e imoral destes
Madeleine. O espírito tacanho e tímido anti-heróis, intérpretes do requiem pela
dos Barbelas contrasta com o sensualismo queda do Império, protagonistas de um
descomplexado de Madeleine. A um Por- acentuado arrefecimento da inflamada
tugal isolado, retrógrado e provinciano representação coletiva da história pátria.
opõe-se uma Paris aberta, evoluída e ple- A epopeia camoniana ressoa na evocação
na de vivacidade. Os Barbelas represen- simbólica das tágides, que “moléstias ri-
tam o Portugal petrificado, que foi sendo beirinhas” praticamente extinguiram e
motivo de críticas mais ou menos veladas agora se apresentam “reduzidas a um pe-
nos romances de Ruben A. queno cardume de sereias grisalhas que
Com grande liberdade criativa, porten- se alimentavam dos esgotos de Chelas”,
tosa imaginação e verve crítica, António “tágides a quem as hérnias da coluna mal
Lobo Antunes desconstrói em As Naus a consentiam nadar”, “tágides sem força
tradição épica portuguesa e o discurso para lutar contra as marés” (ANTUNES,
histórico oficial, recorrendo a elementos 1988, 118ss.). A decrepitude das tágides
satíricos, paródicos, cómicos e grotescos, reforça a intenção assumida do autor de
desmistificando personalidades históri- fazer desta obra sobre o retorno o decres-
cas do coletivo nacional através do seu cendo que falta a Os Lusíadas.
rebaixamento. A interpenetração de dois Como é sabido, a epopeia de Luís de
tempos históricos distintos no tempo da Camões viria a determinar a formação
ação narrativa traz para o séc. xx figuras de um extenso veio de poesia heroica,
egrégias do séc. xvi ligadas à expansão sempre muito influenciada pela matriz
marítima em situação de retornados do camoniana, mesmo quando se visava
ultramar: Pedro Álvares Cabral, Francis- destronar o poeta do seu primado, como
co Xavier, Luís de Sepúlveda, Luís de Ca- foi o caso de Oriente (1814), do P.e José
mões, Diogo Cão, Fernão Mendes Pinto, Agostinho de Macedo. A maior parte
Vasco da Gama regressam desiludidos a desta vasta produção corresponde, como
“Lixboa” no rescaldo da colonização. Re- temos dito, a composições de inspiração
tratando-os como pessoas comuns, com patriótica e interesse nacional. Subjacen-
os seus vícios e as suas fraquezas, nesta te a estes, em muitos casos, pouco mais

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2020 Antiepopeia

que arremedos, está o mesmo objetivo çando o desejado efeito cómico. No caso
de exaltação de ações, ideias e agentes, e de Os Lusíadas, o anacronismo burlesco é
todos tentam de algum modo aproximar­ uma das mais frequentes técnicas de car-
‑se do arquétipo camoniano seja por via navalização paródica.
do “tecnicismo literário”, da “virtuosida- Alberto Pimentel, na obra Poemas He­
de da língua como verbo heroico” ou da rói-Cómicos Portugueses (1922), inventariou
“persistência do gosto épico” (FIGUEI- mais de 100 destes poemas caricaturais
REDO, 1993, 24). A partir do romantis- do género épico. Trata-se de um autên-
mo, o modelo clássico entra em declínio. tico catálogo humorístico-literário, cujos
A adaptação ao novo contexto social, títulos bastam para suscitar de imediato
político, cultural e literário obriga à sua o riso e deixar adivinhar a temática satíri-
reformulação, com a aplicação de novos ca e hilariante latente: Batoteida; Bisnaga
metros, novo ritmo e nova estrutura. Nos Escolástica; Cabulogia; Calouríados; Cebolía­
poemas narrativos Camões e Dona Branca das; Fradalhada; Narigueida, etc. Um dos
(1826) de Almeida Garrett, a narrativa primeiros, mais conhecidos e também
cede lugar ao lirismo. Dissociado o tom mais relevantes no corpus da literatura
épico laudatório da intriga romanesca nacional é o Hyssope (1802), de António
e do modo narrativo, perde pertinência Diniz, que foi proibido e constantemente
a classificação de epopeia, optando-se reeditado. De assinalar também a Agosti­
por poema épico, caracterizado por uma nheida (1817), de Nuno Pato Moniz, pelo
grande flexibilidade formal e temática: seu efeito literário e heroico-humorístico,
o positivismo imprimir-lhe-á temas de ín- que se cifra numa acintosa sátira pessoal
dole científica e filosófica; os inícios do contra o maledicente, devasso e egocên-
séc. xx oscilarão entre o misticismo mes- trico P.e José Agostinho de Macedo, o tal
siânico e o misticismo panteísta. que pretendeu destronar Camões da cá-
Paralelamente ao processo de imitação tedra dos épicos e, pelo que fica dito na
séria, fez o seu caminho a mimese cari- Agostinheida, também da cátedra dos amo-
catural e paródica, que é outra forma de res. A maior parte destas composições jo-
antiepopeia ou de menorização épica. cosas contém desbragadas paródias mais
Há registo de numerosos poemas herói-­ ou menos extensas a passos de Os Lusía­
‑cómicos e burlescos que procuraram das. Com efeito, as paródias de poemas
caricaturar o gosto épico como forma de épicos, e por maioria de razão da obra de
crítica satírica a pessoas, acontecimen- Camões, conheceram grande fortuna em
tos e costumes. As estratégias estilísticas Portugal, havendo registo delas a partir
próprias da convenção épica servem aqui do séc. xvi. Henrique Lima apresenta
para agigantar à escala heroica defeitos, uma resenha significativa no seu ensaio
falhas humanas e sociais, prestando ao bibliográfico intitulado As Paródias na Li­
mesmo tempo reconhecimento a um su- teratura Portuguesa (LIMA, 1930, 29-42).
premo valor estético e moral: o conceito As mais comuns vão desde as Festas Baca­
épico ou heroico da vida. O contraste có- nais (1589), paródia do primeiro canto de
mico resulta precisamente dessa distân- Os Lusíadas, feita por um grupo de escola-
cia acentuada entre o modo formal e o res de Évora, a Os Lusíadas do Século XIX,
assunto, sendo que, a partir do momento Poema Heroi-Cómico (1865), de Francisco
em que a forma épica renascentista cai de Almeida, e às Republicaniadas (1913),
em desuso, a sua posterior reutilização de Marco António (pseud. de António
passa a ser vista como anacrónica, alcan- Correia Pinto de Almeida), sátira cruel

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Antiepopeia 2021

aos primeiros homens da república, feita épica) do poeta, como sucede, e.g., logo
em rigoroso paralelismo com Os Lusíadas. na abertura (onde se evoca o passo em
Do outro lado do Atlântico são igualmen- que o épico descreve o mapa da Europa
te inúmeras as adaptações cómicas da e traça o perfil de Portugal – “Onde a ter-
epopeia camoniana, até O Canguleiro Joca ra se acaba e o mar começa” [III, 20]),
(1956), testemunho maior dessa tradição não existem neste romance, salvo raríssi-
parodística que vem comprovada no estu- mas exceções, passagens a remeter para
do de Gilberto Mendonça Teles Camões e passos determinados da epopeia lusíada,
a Poesia Brasileira. nem tão-pouco um claro e prolongado
De toda a sorte de émulos, parodistas rasto citacional camoniano que possa ser
incluídos, que Camões inspirou, salien- seguido. Qual fantasma, Camões aparece
te-se, no domínio da ficção portuguesa e desaparece, de modo nunca apreendi-
contemporânea, pela sua originalidade, do, deixando-nos a ilusão de uma sequen-
uma singular parceria literária: Manuel cialidade e coesão discursiva. É no cerzir
da Silva Ramos e Alface, pseudónimo li- de alusões, breves incrustações do texto
terário (e extraliterário) de João Carlos camoniano, por vezes fugidios signos lite-
Alfacinha da Silva. Obra experimental rários que se sobrepõem formando uma
devedora da revolução narrativa de Ja- espécie de mescla camoniana – flashs li-
mes Joyce, os lusíadas de Manuel da Silva terários –, que se revela o fantasma do
Ramos e Alface combinam com agressivi- autor de Os Lusíadas, patente em vários
dade paródico-satírica temáticas diversas, passos atentamente analisados por Teresa
discursos fraturados e cheios de hiatos Carvalho (2007).
que operam um esvaziamento do conteú- As Quybyrycas de Fr. Ioannes Garabatus
do épico presente em Os Lusíadas de Luís (pseud. literário do pintor António Qua-
de Camões, subvertendo a prática roma- dros) é o título do “poema éthico em oi-
nesca tradicional e suas categorizações es- tavas”, publicado em 1972, para coincidir
téticas, numa ação destruidora que ques- com os 400 anos da primeira edição de
tiona a existência da literatura, do livro Os Lusíadas, e impõe-se no panorama da
e da própria língua nacional. O romance literatura nacional como enorme sátira
inaugura uma trilogia, genericamente burlesca da epopeia camoniana, para a
denominada Tuga, que se constitui como qual contribui grandemente o “rial pri-
“uma espécie de meditação ficcional so- vilégio de Jorge de Sena”, autor do bri-
bre Portugal” (CARVALHO, 2007, 346) e lhante prefácio, pleno de erudição, ironia
onde se incluem ainda As Noites Brancas e sarcasmo. Nunca o jogo de imitação
do Papa Negro (1982) e Beijinhos (1996), paródica da obra, das suas coordenadas
o romance que a completaria com o ideotemáticas e do contexto de crítica
“adeus, ditado pelo fim do império, pelo hermenêutica e ecdótica que a encer-
acabar da aventura planetária, com o ra conseguiu simultaneamente uma tão
consequente regresso à fonte matricial grande aproximação e um tão grande
de retornados e emigrantes” (Id., Ibid.). distanciamento. Aproximação na imita-
Num livro cujo alvo paródico primeiro é ção do estilo, na tentativa de reprodução
o famoso dístico “fé e império”, Camões, da linguagem épica, à qual os arcaísmos
o cantor maior desse Império, é um dos dão o seu cunho realista, na estrutura
grandes fantasmas a exorcizar. Apesar de formal, na matéria, até na ostentação do
existirem alusões diretas e referências célebre grifo na portada da obra. A pró-
parodísticas à figura e obra (não apenas pria mistificação da autoria, com o autor

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2022 Antiepopeia

real a tentar atribuir a Camões a “suspei- dependentemente da paródia esparsa de


tíssima” autoria do texto, joga a favor da alguns passos do poema renascentista, a
colagem com o intertexto. As Quybyrycas intenção de Fr. Garabatus cifra-se acima
seriam a continuação de Os Lusíadas, e de tudo num “aprofundamento crítico
estes apenas o prólogo da decadência do seu lado humanístico, o rompimento
nacional iniciada em Alcácer Quibir e com a sua escrita e uma meditação do ca-
rematada no salazarismo. É no plano rácter ético e filosófico sobre um período
das ideias que o texto se organiza como de graves repercussões na vida nacional”
um negativo do intertexto, ao pretender (Id., Ibid., 28). O carácter ético do poema
exorcizar os fantasmas da história oficial. advém-lhe do seu lado utópico, propulsor
Com efeito, narrando a vida de D. Se- de uma tábua ideal de axiomas contrários
bastião do nascimento até ao seu trágico à ideologia expressa ou latente na épica
desaparecimento em Alcácer Quibir, pre- camoniana e na cultura do tempo, como
tende o falso Camões desmascarar o mito a igualdade entre raças, credos, homens
sebástico que nutriu a nação portuguesa e mulheres; a fraternidade e tolerância
durante quatro séculos e a crença asso- entre os povos; a rejeição da guerra, da
ciada no Encoberto que milagrosamente escravatura, do materialismo capitalista,
surgiria do meio da névoa para nos socor- do despotismo político; o desejo de se
rer em momentos de aflição. O reverso aproximar do outro, do inimigo, para o
ostenta-se também na recusa de invocar tornar seu amigo. Há em toda a estratégia
os deuses, preferindo o autor invocar-se a estilística e intertextual das Quybyrycas,
si próprio; na consciencialização do povo ainda no dizer de Luís de Sousa Rebelo,
para o erro do sonho imperialista, que o intuito de “subverter o discurso épico
nos fez perder o Rei e a independência; camoniano por dentro” (Id., Ibid., 26),
no rebaixamento do herói da epopeia, o que passa desde logo pela derrogação
D. Sebastião, bem como da falsa ideia de dos cânones formais, como, e.g., a rima,
grandeza da nação e do poderio maríti- que amiúde são alvo de apartes metarre-
mo português, metaforicamente repre- flexivos claramente depreciativos. Para
sentado na imagem das naus carcomidas; além disso, a vulgaridade discursiva,
na ridicularização do clero, apontado contrastando com a nobreza das figuras,
como principal responsável pela inicia- contribui para o burlesco antiépico, tal
tiva bélica; na crítica feroz à Inquisição como o retrato caricatural do Rei e da
e às suas práticas cruéis, realisticamente sua entourage.
descritas. Engrossa o tom antiépico a ex- De forma mais ou menos explícita, as
posição precisa e repugnante dos efeitos analogias com o discurso camoniano fo-
da peste; a descrição pouco heroica do ram repercutindo-se noutros textos ao
quotidiano dos soldados; e o relato ingló- longo das últimas décadas do séc. xx e
rio e muito humano da morte e do en- primeiras do séc. xxi. Uma Viagem à Ín­
terro do Rei. Comentando a obra, Sousa dia de Gonçalo M. Tavares constitui uma
Rebelo considera que “o demasiadamen- original e importante revisitação da epo-
te humano torna-se na matéria do canto, peia do génio quinhentista. Apresentan-
um poema-outro, antiépico por natureza do uma versão lúdica e paródica do texto
na ordem dos géneros literários” (REBE- de base, cujo fio diegético continua a ser
LO, 1987, 23). De facto, As Quybyrycas, a viagem ao Oriente, o autor transcen-
justifica o mesmo autor, transcendem em de, como é seu apanágio, a dimensão
muito o arremedo paródico tout court. In- nacional para mergulhar no imaginário

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Antiepopeia 2023

mitológico, cultural e literário de todo


o Ocidente, inventando um novo senti-
do para a viagem: o espiritual ou meta-
físico. A divisão da obra em 10 cantos e a
arrumação do conteúdo em estrofes não
é mais do que simulação formal, permitin-
do ao leitor estabelecer uma relação ime-
diata com o intertexto. No entanto, não se
aplica qualquer princípio métrico, rítmi-
co ou fónico. A versificação é um artifício
visual paródico, insuficiente para iludir a
predominância da prosa. A  classificação
genológica furta-se a convenções narra-
tológicas: género híbrido, fusão de ro-
mance, ensaio e aforismos. Nota-se igual-
mente uma inversão dos planos internos
de Os Lusíadas, com as considerações do
poeta a ganharem terreno à narrativa. Da
história de Portugal e dos deuses, só indí-
cios e por vias travessas. Da cegarrega do
nacionalismo, só sinais negativos, porque
“amar um país seria ato ligeiramente per-
verso” (TAVARES, 2010, 126). “Deixemos Capa de As Quybyrycas.

então patriotas exaltados prepararem


guerras,/tratados, a nossa campa e a es- épicas da Viagem que inventámos e que
tátua deles,/e falemos do importante: é sempre, ao fim e ao cabo, a não-viagem
o meu avô John John Bloom” (Id., Ibid., que nós próprios somos” (Id., Ibid., 15).
127). A diegese é claramente inspirada Muitas são as alusões ao intertexto camo-
em Camões, mas estilhaçada e recom- niano, seja a personagens, seja ao bestiá-
posta, desconstruída e reconstruída em rio disperso pelos símiles, seja a episódios
modo burlesco e amalgamado, com um (a Ilha dos Amores é transferida para um
Bloom homicida reincarnando um D. Pe- bordel em Paris), seja a ideias, mas tudo
dro em fuga para a Índia, depois de ter as- revem reinventado e revestido de uma
sassinado o pai, vingando-se, por esta via, linguagem e de uma novidade reflexiva
do assassínio da namorada, Mary-D. Inês. inacessíveis à forma mentis do homem re-
Ficção despojada de qualquer enlevo épi- nascentista, só pensável na cabeça de um
co, a resvalar para uma melancolia e para grande autor do nosso tempo.
uma penumbra sem precedentes, a qual Para selar esta análise distendida so-
Eduardo Lourenço, no prefácio, não he- bre um campo de objetos literários em
sita em qualificar de “negrura absoluta” modo narrativo ficcional e ensaístico que
(LOURENÇO, 2010, 19). É do mesmo nos parecem sobremaneira significativos
ensaísta a sentença que melhor nos pa- e representativos da antiepopeia na cul-
rece sintetizar o espírito da obra: “con- tura portuguesa, justifica-se a menção a
traepopeia, ao mesmo tempo luminosa, outros títulos que não desmerecem figu-
paródica e burlesca, de um herói de tudo rar no catálogo dos antiépicos, sejam eles
como nada que subverte todas as versões de inspiração (anti)camoniana ou não.

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2024 Antiepopeia

Sem pretensões de exaustividade, assina- de tom antiépico, dominadas pela jocosa


la-se: André Brun, A Malta das Trincheiras superficialidade e pelas alusões cautela-
(1919); Armando da Silva Carvalho, Por­ res, abrem caminho às frontais formu-
tuguex: Romance Esquizo-Histórico (1977); lações críticas de Francisco de Sá de Mi-
Augusto Abelaira, Sem Tecto entre Ruínas randa, não raras vezes (indevidamente)
(1978); José Saramago, Levantado do Chão apresentado como o exemplo acabado
(1980); Alberto Pimenta, Bestiário Lusita­ do poeta antiépico.
no (1980); José Cardoso Pires, Alexandra Autor de uma poesia tão atenta aos
Alpha (1987); Lídia Jorge, A Costa dos problemas do indivíduo como aos da so-
Murmúrios (1988); Manuel Alegre, Jorna­ ciedade e da política do seu tempo, com
da de África (1989); Mário de Carvalho, Os momentos de profundo empenhamento
Alferes (1989); Hélder Macedo, Partes de ideológico, moral e social, Sá de Miran-
África (1991), Mário Cláudio, Tocata para da é um observador crítico e desalentado
Dois Clarins (1992); Fernando Dacosta, Os do movimento expansionista, ou de uma
Infiéis (1992), Teolinda Gersão, Paisagem visão parcial dele. Em cartas endereçadas
com Mulher e Mar ao Fundo (1996). a vários amigos e ao próprio Rei, exibe a
Concluída a digressão sob as coorde- sua face negativa e denuncia uma socie-
nadas da narrativa, voltamos o olhar para dade caminhando para a ruína que ela
a poesia portuguesa, indicando sucinta- própria precipitara. A energia expres-
mente as referências poéticas fundamen- siva – de claro tónus patriótico – com
tais para o tema em análise. que o poeta da Tapada ergue a sua voz
Ainda o poema épico de Camões não reprovadora harmoniza com a tradição
triunfara da indiferença com que inicial- moral e social que defende e exalta. Os
mente foi acolhido, tão-pouco se con- elogios que lhe merecem a expansão ma-
cluíra essa notável peça de arquitetura rítima saldam-se em coisa pouca quando
consagrada à epopeia dos Descobrimen- comparados com os contundentes juízos
tos que é o Mosteiro dos Jerónimos, e já críticos que não contém. O poeta admira
abundantemente se falava não apenas a coragem e a ousadia com que os seus
nas consequências do afluxo de riquezas contemporâneos sulcaram os mares, mas
ao reino, e nos seus efeitos nefastos sobre insurge-se, com pessimista lucidez, contra
a índole nacional, mas também, de for- o estonteamento que a Índia e “o cheiro
ma destacada, na degradação moral que da canela” geraram (“Carta a António Pe-
alastrava ao Império do Oriente. Crescia reira”), despovoando o reino, entretanto
assim o espírito da antiepopeia, de há desviado da sua vocação agrícola, para
muito literariamente animado pelas vo- perseguir sonhos vãos. Assim se lê em
zes de alguns poetas representados no passos claramente antiépicos da Carta a
Cancioneiro Geral (1516) e pela do próprio António Pereira, Senhor do Basto, que cons-
Garcia de Resende, cujo sentir profundo titui, além de um desabafo de amizade,
a respeito do empreendimento expansio- um catálogo de apreensões, quando não
nista estava longe de coincidir com os di- de maus presságios, a antecipar a fala do
zeres de exaltação nacionalista que fixou Velho do Restelo, cujo perfil moral e pro-
no prólogo da coletânea, a qual abriga fético parece decalcado da imagem de Sá
várias peças satíricas sobre as alterações de Miranda, como bem notou José V. de
sociais, a dissolução dos costumes e o im- Pina Martins. Nas oitavas bem conheci-
pulso desenfreado da cobiça resultantes das que encerram o canto iv do poema
dos Descobrimentos. Estas composições camoniano, “dir-se-ia que Sá de Miranda

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Antiepopeia 2025

desce de Entre Douro e Minho a Belém, o pretensiosismo, a mania nobiliárqui-


para incarnar no paradigmático anti-he- ca, desfere ali Camões duros golpes, não
rói que é o Velho do Restelo” (MAR- amenizados pela ironia e pela tonalidade
TINS, 2012, 157). satírica que percorrem o discurso destas
Voz emblemática inscrita na caute- trovas com endereço, à altura facilmente
la impotente e no temor do risco e do identificável.
perigo, a veneranda figura camoniana Durante o período do esplendor na-
atravessa a poesia portuguesa moderna cional, os valores condenados da cobiça
e contemporânea sob os mais variados insaciável, do enriquecimento fácil e da
figurinos e variações antiépicas, do “Mar corrupção da tradição foram pedras ar-
salgado” de Fernando Pessoa à pessimis- remessadas contra as janelas fechadas da
ta Terceira Idade (1982) de Mário Dioní- “gente surda” em que a nação se transfor-
sio, de Os Poemas Possíveis (1966) de José mara, mais interessada nos novos modos
Saramago, a Giraldomachias (1999) de de viver, de adquirir e de ostentar que
Vasco Graça Moura, que o faz aparecer em dar ouvidos a receios e pessimismos.
num poema que assinala o logro que foi O Doido que Guerra Junqueiro coloca
a expansão marítima e cujo título, “Des- em cena no poema Pátria (1896), um ho-
forra”, é já todo um irónico programa de mem que tendo sido “cavaleiro e pastor,
sinal antiépico: “andámos séculos a mon- lavrador e soldado” (JUNQUEIRO, 1968,
tar a história em pelo/e o que tivemos 55) enlouquecera há cerca de três sécu-
deixámos já de tê-lo./[…] nem império, los, depois de partir numa barca para per-
nem nada” (MOURA, 2012, II, 225). seguir um sonho que o faz esquecer-se da
O episódio do Velho do Restelo é a sua própria alma, alegoriza esse espírito
única sequência abertamente antiépica nacional que ilusoriamente buscava a se-
de Os Lusíadas, mas outros existem que gurança na riqueza.
assentam na figura da contradição. Se A partida constante de levas de ho-
Camões épico faz coexistir a tendência mens, quantas vezes rumo a um destino
idealizante do mundo heroico com uma de desfecho trágico – fenómeno que não
realidade imediata de falha e de perda, escapa ao olhar de António Ferreira, o
temperando assim os versos de glória mais nacionalista dos poetas humanistas
com a voz da crítica e da reprovação, Ca- portugueses –, é uma imagem que mar-
mões lírico não procede de modo diver- ca a literatura da época das Descobertas.
so. E disso nos falaria suficientemente o Como marcará também, com sinal an-
cotejo de alguns sonetos de feição épica tiépico mais carregado, alguns discursos
com as trovas conhecidas pelo nome bem poéticos dos anos 60 e 70 do séc. xx,
sugestivo de Disparates da Índia, espécie confrontados com cenários de obrigató-
de canto satírico do desapontamento e ria partida: a Guerra Colonial ou o exí-
da deceção. Movido por um manifesto lio, a emigração. Um bom exemplo é o
propósito de denúncia e de censura, o poema “Barcas novas” de Fiama Hasse
autor das Rimas, à altura na Índia, sufo- Pais Brandão, que tem por base o poema
cado por uma atmosfera nada exemplar medieval de João Zorro. Desenhando um
onde transparecia a ilusão das riquezas arco temporal que vai desde a esperança
inesgotáveis, expõe ali ao ridículo a pre- dos inícios até a uma consciência de fim,
sença portuguesa no Oriente num qua- sem a possibilidade de qualquer começo
dro de vaidade em exibição caricata. ou renovo, esgotado que estava o proje-
Contra a corrupção, o luxo desmedido, to ultramarino, o poema refaz, em sinal

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2026 Antiepopeia

contrário, uma história de partidas que rico que Álvaro de Campos fixou nos co-
convergem não já no “cais de uma sauda- nhecidos versos de “Opiário”: “Pertenço
de de pedra” de Álvaro de Campos, mas a um género de portugueses/Que depois
num cais de desastre e de calamidade. De de estar a Índia descoberta/Ficaram sem
assinalar também uma série de poemas trabalho. A morte é certa”.
de Manuel Alegre, autor que estabelece Quando, depois de um breve tirocínio
com os códigos da epopeia uma relação na sombria capital de um império arrui-
de atração-repulsa e para quem a aventu- nado, Manuel Maria Barbosa du Boca-
ra ultramarina determinara uma inflexão ge parte para o Oriente, em 1786, em
no caminho do “Portugal terra e raiz”, busca de um ideal que o elevasse acima
servindo de limiar a um longo ciclo de da mediocridade dominante do Portu-
consequências funestas. À semelhança do gal de Setecentos, leva no olhar o vulto
poema camoniano, também na poesia de de Camões, cujos passos parece querer
Manuel Alegre boa parte da história de seguir. Mas a viagem em que Bocage se
Portugal se torna imagem. Ela não é, po- acha embarcado não podia oferecer-lhe
rém, um painel polícromo de aventuras mais que um presente decetivo, contrá-
que abalaram o mundo, como Os Lusía­ rio sombrio desse passado heroico que
das, mas um quadro sombrio e rumoro- Camões cantou. A Índia onde pôs o pé
so de andanças em que nos perdemos. não estava já coberta por um véu de mis-
“Vão-se os homens desta terra”, “Portugal tério e sedução, mas por um manto de
em Paris”, “Pátria expatriada”, “Trova do soturna ruína que mais não podia que
emigrante”, “Lusíada exilado”, poemas acabrunhar quem a pisava. “Das terras a
que integram a antiepopeia que é O Can­ pior tu és, ó Goa”, escreve, numa sátira
to e as Armas (1967), gravariam no nosso implacável onde a história ressurge sob a
imaginário a dimensão trágica da diáspo- forma de fantasma: “Lusos heróis, cadá-
ra portuguesa, magoadamente revisitada veres cediços,/Erguei-vos de entre o pó,
pelo poeta no Livro do Português Errante sombras honradas,/Surgi, vinde exercer
(2001). Neste contexto, destaque ain- as mãos mirrada/Nestes vis, nestes cães,
da para o poema “L’été au Portugal” de nestes mestiços” (BOCAGE, 2004, soneto
Jorge de Sena, publicado em Exorcismos 195). Por outro lado, as imagens de cor e
(1972), a traçar o retrato desapiedado de de aventura relatadas na epopeia camo-
um Portugal esvaziado, em fim de ciclo: niana, que o poeta sadino guardava na
camponeses e artesãos que partem para retina, não tinham correspondência no
as Europas, rapazes estropiados regressa- séc. xviii, realidade que a sua obra poéti-
dos de uma guerra anacrónica. ca atesta em muitos lugares. Tinham ad-
Em meados do séc. xvi, a imagem triun- quirido novas formas, novos contornos,
fal da pátria, entretanto abatida, moral- ao estilo da época. As façanhas grandio-
mente prostrada, esvaída pela miragem sas da era de Quinhentos deram lugar a
da Índia, só em Os Lusíadas se encontra- saborosas aventuras de alcova. Tinham
va. O séc. xvii viu 15 edições do poema revertido os sucessos guerreiros em fortu-
camoniano juntarem-se às 5 edições feitas nas sem grandeza, exibidas por uma aris-
ainda no século anterior, no qual atuam tocracia cada vez mais arredada da vida
como antídoto às humilhações sofridas militar. As próprias musas, agora fáceis e
face ao domínio filipino e à ideia de de- buliçosas, deixaram de ser invocadas para
cadência que se vivia. Começava então a serem aplaudidas no botequim, espaço
desenhar-se a ideia de desemprego histó- onde se agitavam as ideias iluministas,

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Antiepopeia 2027

os versos improvisados e os copos nunca a intenção de estabelecer um contraste


vazios. O ideal que o leva a perseguir o nítido entre a grandiosidade da empresa
sonho da Índia há de reverter naquilo camoniana e o desprezo a que o épico é
que poderíamos designar por “frustração votado, assim se confirmando a condição
da epopeia”, desesperança e desalento de de poeta maldito que Garrett chama tam-
ecos camonianos: “Não mais, Dor, Fado bém a si.
meu, Dor, meu costume” (Id., Ibid., sone- Impossível de fazer sobreviver e im-
to 131). A voz tutelar que, no seu timbre possível de matar, este Camões dester-
épico inconfundível, lhe avivara a cons- rado e errante por ditame de um fado
ciência de “ser prole de varões assinala- implacável, perseguido pelo infortúnio
dos” ganha, na sua voz de anti-herói, por e incompreendido pelos contemporâ-
fim já cansada e rouca, acentos de funda neos, protagonista de uma magoada não
e desistente tristeza. epopeia, haveria de regressar por ocasião
Centrado no regresso do vate à Pátria, das comemorações do terceiro centená-
Camões (1825), o poema narrativo que rio da morte do Épico, em 1880, a um
começou a consagrar Almeida Garrett, poema de Gomes Leal, A Fome de Camões
vinha confirmar a impossibilidade de acli- (1880), para morrer de novo – de fome,
matar a epopeia de inspiração clássica à literalmente de fome, num leito miserá-
atmosfera de liberdade criativa que a vira- vel de hospital, amortalhado num lençol
gem para o romantismo começava a con- conseguido através de esmolas. Poema
quistar e que a sensibilidade de Bocage épico-alegórico constituído por quatro
acusava já. A divisão do poema em 10 can- cantos em oitava rima, ditado pela “musa
tos, cada um composto por um número da Revolta”, A Fome de Camões põe em evi-
irregular de estrofes, a presença dos mo- dência a fome alegórica da pátria de que
mentos fundamentais da epopeia – pro- Camões é o símbolo. No tom carregada-
posição (implicitamente representada), mente sombrio que se ajusta ao estado da
invocação, dedicatória, narração in medias pátria decadente, compõe com detalhes
res, cumprindo rigorosamente as funções sinistros o autor de Claridades do Sul a
que já possuíam em Os Lusíadas – e até um mais lúgubre antiepopeia do séc. xix.
clima lexical e estilístico de claro sabor Matar Camões (para que ele retorne
camoniano apresentam­‑se como compo- outro) e o seu poema épico, eis o projeto
nentes clássicos de uma epopeia impossí- literário de Fernando Pessoa, que desde
vel, aos quais o autor junta elementos de 1912 tinha em mente o aparecimento de
perscrutação humana para compor um um supra-Camões que, manifestamente,
poema marcadamente original. Aos sig- seria ele mesmo. São numerosos, aliás,
nos luminosos da epopeia responde a sen- os críticos que têm visto no poema épico
sibilidade romântica de Garrett com uma que a Mensagem (1934) pretende ser um
atmosfera lírica e elegíaca, onde abun- “Anti-Lusíadas”, na expressão de Eduar-
dam as metáforas noturnas, à canora tuba do Lourenço (LOURENÇO, 2001, 115).
camoniana com a “extenuada lira” – a Os O mesmo ensaísta sublinhou igualmente
Lusíadas responde o autor de Falar Verdade o carácter perturbante e paradoxal de
a Mentir com o poema possível ao seu tem- “tão estranha epopeia, se o poema mere-
po, reverso trágico da viagem dos heróis ce este nome” (Id., 1993, xxi). Afastado
do poema camoniano. Por outro lado, a do nacionalismo estreitamente interpre-
paráfrase de Os Lusíadas, que comparece tado, da épica clássica e das próprias coor-
já perto do desenlace do poema, deixa ler denadas luminosas da epopeia, Mensagem

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2028 Antiepopeia

deixava a descoberto uma contraditória no mundo antiépico, bem distanciado do


forma de sentir Portugal e a sua história. bestiário clássico que povoa as epopeias.
A amplitude do feixe luminoso com que Na Cena do Ódio, anti-heróis cantam feitos
ali se douram os velhos heróis mostra­ anti-heroicos: “Hei de Alfange-Mahoma/
‑se claramente insuficiente para retirar cantar Sodoma na Voz de Nero!” (Id.,
das sombras os Homens por cumprir do Ibid., 23-24), ou “hei de Átila, hei de Nero,
presente. Pessoa expressa o seu desalen- hei de Eu,/cantar Átila, cantar Nero, can-
to por constatar o abandono em que se tar Eu!” (Id., Ibid., 27-28).
encontra o Portugal terreno, na ânsia de O poemeto de 1931 “Luís, o poeta, sal-
uma redenção, aparentemente já inalcan- va a nado o poema”, do mesmo Almada
çável. O pessimismo crescente do poeta Negreiros, oferece-nos um Camões sem
sobre a vida nacional levou-o, aliás, a auréola nem aura épica, reduzido ao
compor uma Elegia na Sombra (1935). Per- nome próprio, transformado num portu-
corrida pelo vento frio de uma desgraça guês comum, digno representante de um
próxima, dir-se-ia o reverso da Mensagem Portugal de carne e osso. Perdida a sua
ou do Quinto Império, espécie de canto qualidade de imortal, o Grande Poeta,
fúnebre pela pátria. agora libertado da carga mítica acumula-
Sobre a desumanizada “pátria onde da ao longo dos séculos, ficava assim apto
Camões morreu de fome/e onde todos a protagonizar momentos humanos de
enchem a barriga de Camões” (NEGREI- trivialidade doméstica. Em “Camões na
ROS, 1985, 319-320) haveria de investir Ilha de Moçambique”, poema de Jorge
Almada Negreiros com agressividade de Sena, vamos encontrar o cantor má-
paródica nas estrofes dessa extensa e ad- ximo das glórias de Portugal, desprovi-
mirável peça vanguardista que é a Cena do de louros, “num recanto em cócoras
do Ódio (1923), a apelar ao imaginário marinhas”, escandalosamente nu e numa
mítico e histórico-cultural português e desconcertante produção (ao alcance de
ocidental. Ao discurso épico e laudatório um qualquer Luís) destinada às ninfas.
de Os Lusíadas opõe Almada um discurso Com De Manhã Vamos Todos Acordar
rizomaticamente antiépico onde não há com Uma Pérola no Cu (1981) – um títu-
lugar para formas canonizadas, figuras e lo que parece obedecer a um programa
saberes instituídos, tão-pouco para os mo- de riqueza distribuída, quando não a
numentos basilares do cânone ocidental: um irónico plano de salvação nacional, a
a Bíblia, A Divina Comédia e Os Lusíadas. ecoar o “esplendor de Portugal” em re-
O poema camoniano – tratado com rara duzida versão irónica – prosseguiria Jorge
violência verbal – é alvo de críticas fero- Sousa Braga o deslizamento da grandeza
zes que destroem, por inversão, o valor do Poeta para um território humanizado,
épico dos feitos dos Portugueses. Por ou- mais consentâneo com o da sua vida boé-
tro lado, as Descobertas, a expansão ul- mia e desregrada, mas agora transportan-
tramarina e as invenções decorrentes do do a marca da vulgaridade dos homens
desenvolvimento científico e tecnológico do séc. xx. Neste mesmo livro, que abre
não tiveram, para o autor do Manifesto An­ significativamente com uma “História trá-
ti-Dantas, outros resultados que não o da gico-marítima” que se dá a ler como um
globalização da “chatice” e da multiplica- canto do cisne do próprio país, se inclui o
ção desse parasita público que é o “chato”, poema “Portugal”, expressão de uma re-
não certamente alheio ao bestiário pouco lação de amor-ódio, celebrizada pela voz
convencional que comparece por vezes de Mário Viegas.

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Antiepopeia 2029

O abaixamento da pátria, dos heróis corrosivo cuja força explosiva procurava


ligados à época áurea da história portu- estilhaçar as bases da mitologia cultural
guesa e de Camões, que os cantou, alvos do regime. Nada escapa ao olhar antiépi-
sempre apetecíveis dos procedimentos co dos surrealistas e à sua ação reformis-
menorizantes da antiepopeia, conheceu, ta. Nem o próprio Fernando Pessoa, de
ao longo do séc. xx, importantes capítu- quem não deixariam de aproveitar as li-
los. De assinalar aquele que foi escrito, ções temáticas de incidência marítima.
com tintas dessacralizadoras de vigor pro- Em Louvor e Simplificação de Álvaro de
vocatório, pelos surrealistas portugueses, Campos (1953), propõe Mário Cesariny
ativos demolidores de símbolos, mitos e uma viagem de pequena dimensão que
ideologias normativas. Apostados na des- parece obedecer a um traçado que intui-
mistificação de “uma certa ideia de Por- tivamente nos confronta com a rota das
tugal”, sem correspondência no quadro caravelas das Descobertas e, concreta-
acanhado e pardacento da realidade por- mente, com a viagem inaugural de Vasco
tuguesa dos anos 50 e 60, investem, com da Gama à Índia, símbolo maior da aven-
raro poder de corrosão e de denúncia, tura portuguesa nos mares: a da vida quo-
sobre reis, conquistadores e navegadores, tidiana do “Funcionário cansado” de que
edificadores do velho reino e sobre todos fala António Ramos Rosa, que atravessa
aqueles que, de algum modo, pratica- o rio no cacilheiro do Barreiro a Lisboa
ram “obras valerosas” (Os Lusíadas, I, 2). para mergulhar na mesmice dos traba-
Assim, a pátria heroica volve-se no “país lhos e das horas e nele regressar à rotina
do eufemismo”, no “Reino de Pacheco” cinzenta que é a sua vida. No “proletário
(Alexandre O’Neill, “O país relativo” e dos mares” (Ode Marítima), onde não bate
“No reino do Pacheco”), no “pátrio mijo” sombra da mítica glória das caravelas ou
(Pedro Oom), no “torrão florido mesmo mesmo da modernidade dos vapores de
à beira-mar plantado” (António Maria Álvaro de Campos, viaja gente miserável.
Lisboa), “numa coisa sem solução” (Má- Incapaz de dobrar a pequenez, compõe,
rio Cesariny). O esplendor de Portugal dia após dia, essa (anti)epopeia do real
reverte em “Hino triste sem melodia” e vil quotidiano. A poesia de José Gomes
(Fernando Lemos). Ferreira, empenhada na dignificação de
Os lances heroicos de excecional valor um quotidiano que não se cansou de
dão lugar aos dias regulares, rasteiros e reinventar, expressa justamente a cons-
burocráticos, feitos de insatisfação e de ciência (anti)épica de que o extraordiná-
tristeza resignada, como claramente ex- rio se repete na criação de todos os dias.
pressa o poema justamente célebre “Um A geração neorrealista, também desig-
adeus português”, de Alexandre O’Neill. nada por “geração da epopeia impossí-
À ditadura da memória, alimento subs- vel” (Eduardo Lourenço), tinha já mos-
tancial da epopeia, sobrepunha o surrea- trado não haver matéria para epopeias.
lismo o desejo de inovação e de rutura, A  sequência de poemas que tem por
apontado assim no sentido de uma épica título “Terra”, com a qual Fernando Na-
perdida. Dir-se-ia que os nossos surrea- mora inaugura o Novo Cancioneiro, deixa
listas, prosseguindo a linha de reflexão claramente perceber que às figuras que
iniciada por Camões e agudamente con- nela se movem cabe tão-só o papel de
tinuada sobretudo a partir de Garrett e peões numa (anti)epopeia telúrica ou de
da geração de 70, compõem, juntos, uma figurantes remetidos à sua condição de
antiepopeia iconoclasta de raro humor “almas rústicas, agrestes,/pintadas a cal

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2030 Antiepopeia

e a vinho,/a arder nas penas celestes/da rett (“Formosa Magalona”, a “Nau Catri-
térrea paz de um caminho” (NAMORA, neta”, o naufrágio do vapor Perseverança).
1989, 103). Curiosamente, o António Nobre que atri-
O Aviso à Navegação (1941) lançado bui ao mar uma dimensão antiépica é o
por Joaquim Namorado, um ano após as mesmo poeta que em 1898 – ano do quar-
comemorações dos Centenários da Inde- to centenário da viagem à Índia – afirma
pendência de Portugal e da sua Restau- com amargo desencanto: “Realmente só
ração, de cujo programa sobressai a Ex- acredito que sou compatriota de Vasco da
posição do Mundo Português, é o dobre Gama e de Luís de Camões quando olho
de finados da aura mítica que envolvia este nosso mar. País perdido! Para sem-
as navegações e o discurso historicista, pre! E sem prestígio nenhum” (MATTO-
exclusivamente ancorado em momen- SO, 1981, 306).
tos notáveis do passado da nação, com Manuel Alegre, o autor que no contex-
destaque para o período áureo das Des- to da poesia portuguesa contemporânea
cobertas quinhentistas. “O mar é fundo, mais explora a face desastrosa da gesta
as ondas são altas, o lenho é podre”, lê-se portuguesa nos mares, introduz no seu
no “Manifesto à tripulação” (NAMORA- espaço poético descrições enumerativas
DO, 1941, 23), poema em que a pátria se desse sepulcro sem fundo, pleno de “sal-
constitui como uma comunidade afun- sugens restos naufrágios” (“Canção da
dada sob o peso de erros cuja soma é o praia ocidental”), que poetas como An-
absoluto reverso da gesta lusa. Aos signos tónio Nobre, Gomes Leal ou Camilo Pes-
antiépicos do naufrágio, da perdição e da sanha diversamente exploraram. O mar,
desorientação, em clara contraposição a mais importante via da ação épica por-
com os da aventura marítima portuguesa, tuguesa – prontamente conspurcada por
vem juntar-se o signo da morte, sendo o Cesário Verde, num inédito gesto antiépi-
poema o registo dos seus sinais. co: “Escarro, com desdém, no grande
Deste tempo sem barcos nem epopeias mar!” (“Heroísmo”) –, volve-se, na poesia
nos fala também Portugal (1950) de Mi- de Alegre, em caminho fatal, alcançando
guel Torga, um livro no qual o mar viril a dimensão simbólica moldada ao substra-
das Descobertas se confronta com o mar to ideológico que alimenta a antiepopeia.
fatal, que ali adquire o rosto da enganosa “Canção da praia ocidental” é um poema
sereia “rouca e triste” (“Mar”), imprimin- que reflete bem o reverso histórico do re-
do às reflexões do poeta um efeito gra- lato heroico camoniano. Muito embora
duado em valores de tragédia. À história o mar das Descobertas exerça sobre esta
contada na Exposição do Mundo Portu- poesia um forte poder de sedução, o poe-
guês, um dos eventos culturais mais des- ta revela-se incapaz de deter a voz desse
tacados do Estado Novo, contrapunham outro mar que deixa falar os mortos que
assim algumas poéticas desta época a que compõem a sua contraepopeia e no qual
aí não tivera lugar: a história trágico-ma- se espelha a angústia de um presente de
rítima dos “heróis que jazem insepultos” perda e de desesperança coletiva.
(NAMORADO, 1941). A lírica de Antó- Com o “barco-Portugal” dialoga Praça
nio Nobre dera já insistente expressão à da Canção (1965) e a “epopeia por de-
imagem trágica do mar-jazigo, acusando feito” que é O Canto e as Armas, um dos
a memória intertextual dos relatos de mais emblemáticos títulos do poeta, que
naufrágios, mas também de alguns ro- ali pede emprestada a Camões a figura
mances do Romanceiro Português, de Gar- do Velho do Restelo, cuja voz se ergue

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Antiepopeia 2031

por duas vezes sob a forma de epígrafe,


colaborando fortemente na atmosfera
antiépica que domina todo o volume.
Ao longo de oito cantos, é o português
errante que desfila. Aos destemidos mari-
nheiros de Camões respondem os “lusía-
das do avesso” de Manuel Alegre, frágeis,
vulneráveis, batidos pelas ondas do infor-
túnio e descrentes do futuro. Aos vigoro-
sos guerreiros de Os Lusíadas respondem
os involuntários Pedros Soldados, jovens
sem nome desperdiçados num enredo in-
glório que mais não podia dar-lhes que a
sombra do anonimato, tragicamente exi-
bida no célebre poema “O menino de sua
mãe”, de Fernando Pessoa. O campo de
batalha não é, na poesia de Alegre, um
palco de explosão das energias necessá-
D.R.

rias a impor a vontade heroica de triunfo Manuel Alegre (n. 1936).


e a ambição de glória, próprias do can-
to épico, mas um espaço de dano e de
morte onde se cruzam o sopro dos ventos síadas do avesso” – ALEGRE, 1997, 479),
de Alcácer Quibir e a aragem do “plaino dão conta do lugar vazio deixado pelo
abandonado” (“O menino de sua mãe”). passado áureo num tempo que o próprio
A Batalha de Alcácer Quibir, que é para define, glosando a “Canção IX” de Ca-
o poeta a causa primordial do desastre mões, como “seco duro estéril”. Ao home-
e da miséria final de Portugal, é tratada nagear o épico numa coletânea publicada
com notável relevo em Vésperas de Batalha em 1992, Com Que Pena – Vinte Poemas para
(1989), um livro construído com nítidas Camões, Manuel Alegre certifica, num mis-
reminiscências camonianas onde em to de desalento e indignação, a “apagada
momento algum se nomeia o Rei D. Se- e vil tristeza” (Os Lusíadas, X, 145): “Com
bastião, com o objetivo de matar de vez o que voz nos dirias com que voz/de lira já
mito autorizador da guerra colonial. Cui­ cansada e enrouquecida?/A gente cega e
dar dos Vivos (1963) e Viagens na Minha surda somos nós/o tempo se mudou mas
Guerra (1972) de Fernando Assis Pache- não a vida, (ALEGRE, 1997, 602).
co, livros anticolonialistas, tecem também A segunda metade do séc. xx conhece-
com particular intensidade essa antiepo- ria ainda, no domínio da poesia, uma im-
peia de uma geração das sete partidas, sa- portante contraepopeia que, empenhada
crificada numa guerra sem sentido. na reconstrução discursiva da Poesia 61,
Coletâneas poéticas de Manuel Alegre, vinha rever toda uma linhagem patriar-
como Atlântico (1981), Babilónia (1983), cal, de Camões a Pessoa: Dezanove Recan­
Chegar aqui (1984), insistentemente per- tos (1969) de Luiza Neto Jorge, poeta que
corridos pelas figuras do desastre, da sempre teve numa mão a pena e na outra
ausência e da perda, e por formas nega- o aço temperado das palavras, meio de re-
tivas e disfóricas (“já não passam carave- sistência e arma de ataque contra a opres-
las [...] em nenhum mar as rotas velas/Lu- são do tempo que lhe coube viver. Desta

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2032 Antiepopeia

“Epopeia sumária” (assim a designa o cho da terra tão pequeno” (Os Lusíadas,
irónico subtítulo) não se conhece notícia I, 106). Na sua variedade de ecos camo-
de solicitação persistente, mas a verdade nianos, é um livro que se move na esfera
é que o Portugal politicamente repressivo dos pequenos formatos domésticos que
e discriminatório, produtor de quadros transportam no seu curso a nossa histó-
de amedrontamento e suspeição, care- ria coletiva, pela remissão para alguns
cia de um livro que o refletisse. Centra- dos seus episódios e personagens simbo-
dos na vida comum, estes re-cantos, que licamente mais significativas. Os títulos
têm como significativo centro gravítico o das quatro partes de que se compõe o
verbo “contornar”, fazem infletir o mode- volume – “Poses do desconforto”, “Quei-
lo épico num sentido substancialmente xas ou resignações”, “Minha senhora de
novo, como o título desde logo indicia ao nada”, “Epopeias de luz” – são já todo um
aludir aos 10 cantos da epopeia camonia- programa de marca antiépica, sensível à
na “para logo os desequilibrar numa du- efemeridade e ao inane, mas também à
plicação imperfeita (dez mais dez menos construção de epifanias do quotidiano.
um)” (MARTELO, 2006, 93). As marcas Com mais ou menos visibilidade, Ca-
estáveis da epopeia clássica – proposição, mões e Os Lusíadas, modelo habitual das
invocação, dedicatória e narração difusa- poéticas reflexivas, mantêm-se na cena
mente exibidas –, a temática marítima e poética do séc. xxi, num eterno retorno
viajante, recontextualizada e desenvolvi- feito de repetição e de diferença. Lendas
da num fio diegético descontínuo e frag- da Índia (2011) de Luís Filipe Castro Men-
mentado, as reminiscências do discurso des, livro que recolhe a experiência da
épico camoniano apontavam no sentido passagem do poeta-diplomata por Nova
de uma epopeia do comum existir, cons- Deli, afasta-se dos píncaros épicos para
truída com humaníssima e íntima heroi- descer a um quotidiano olhado à luz do
cidade, mas capaz de interpelar o mundo efémero. O título do volume, tomado ao
público. livro homónimo do séc. xvi, bem como
Dissociada do modelo camoniano, a a epígrafe-advertência, subtraída ao mes-
“Epopeia privada” (Trirreme, 1978) de mo Gaspar Correia, criam desde logo a
A. M. Pires Cabral dá-se a ler como mis- atmosfera memorialista e melancólica,
to de arte poética e de autobiografia: preparando para a disforia que transcen-
“As armas e os barões/foi outra coisa.// de o plano individual para contaminar
Falo de mim e do/que em mim decor- o coletivo. A simbólica figura do Samo-
re.//[…] Minha epopeia/privada//pe- rim que comparece no poema “Calicute:
quenina. Nem sequer/ul/trapacear a Ta- aqui desembarcou Vasco da Gama”, mo-
probana!”. Nela se conta de um mundo dernizada e pragmática, expurgada de
sem heróis nem grandezas, refigurado à qualquer aura mítica, nada deve àquela
luz das asperezas do real imediato. outra que recebeu o capitão da frota por-
Longe da esfera pública se situam tam- tuguesa e que Camões acolheu nos seus
bém as Epopeias (1994) de Ana Luísa Ama- decassílabos. Intérprete privilegiado da
ral. E também elas não passam à margem temática da viagem, Castro Mendes de-
da história, escamoteada nas suas gran- senvolve neste livro um diálogo, por ve-
diloquências e heroísmos em favor dos zes distorcido, com a história portuguesa,
quadros da vida quotidiana, na variedade o intertexto camoniano e esse signo de
trivial das experiências prosaicas que ele natureza dúplice que é o Oriente, a um
oferece, e da luta diária do feminino “bi- tempo fonte de fascínios e de cansaços.

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Antiepopeia 2033

Percorrer as principais estações poé- Ensaio Bibliográfico, Lisboa, Solução Editora,


ticas da literatura portuguesa, do renas- 1930; LOURENÇO, Eduardo, “Da contra-epo-
cimento à pós-modernidade, com a an- peia à não epopeia: de Fernão Mendes Pinto a
Ricardo Reis”, Revista Crítica de Ciências Sociais,
tiepopeia ao leme, é descer do mais alto
n.os 18-20, fev. 1986, pp. 27-35; Id., “Sonho
cume ao mais fundo abismo, do cais de de império e império de sonho”, in PESSOA,
partida da armada de Vasco da Gama da Fernando, Mensagem. Poemas Esotéricos, ed. críti-
praia do Restelo a um “Sodré sem cais”, ca e coord. José Augusto Seabra, Madrid, Fun-
para usar o título de um poema de Antó- dação Engenheiro António de Almeida, 1993,
nio Franco Alexandre, que torna eviden- pp. xix-xxiv; Id., O Labirinto da Saudade. Psicanáli-
te a imagem de uma existência defetiva. se Mítica do Destino Português, Lisboa, Gradiva,
2001; Id., “Prefácio”, in TAVARES, Gonçalo
Caberia finalmente pôr em relevo, de
M., Uma Viagem à Índia, Lisboa, Caminho,
entre as obras poéticas que, na hetero- 2010; MARTELO, Rosa Maria, “Conquistar a
geneidade das suas propostas, expres- outra face de tudo (algumas notas para ler De-
sam um sentimento antiépico, Hematoma zanove Recantos)”, Relâmpago, n.º 18, abr. 2006,
(1961) e A Doença (1963) de Gastão Cruz, pp. 85-103; MARTINS, José V. de Pina, “Sá
Português Suave (1978) de Joaquim Pes- de Miranda e o Velho do Restelo”, in FERRO,
Manuel, e PEREIRA, Seabra (coords.), Actas
soa, Boleto em Constantim (1981) de A. M.
da VI Reunião Internacional de Camonistas, Coim-
Pires Cabral, Salsugem (1984) de Al Ber- bra, Imprensa da Universidade de Coimbra,
to, Oriente da Mágoa (Pranto de Luís Vaz) 2012, pp. 145­‑157; MATTOSO, José (coord.),
(1992) de José Jorge Letria, Ulisses já não História de Portugal, vol. vii, Lisboa, Círculo de
Mora aqui (2002) de José Miguel Silva. Leitores, 1981; MOURA, Vasco Graça, Poe-
sia Reunida, 2 vols., Lisboa, Quetzal, 2012;
NAMORA, Fernando, “Terra”, in TORRES,
Alexandre Pinheiro (org.), Novo Cancioneiro,
Bibliog.: ALEGRE, Manuel, 30 Anos de Poesia:
Lisboa, Caminho, 1989; NAMORADO, Joa-
Obra Poética Completa, Lisboa, Dom Quixote,
quim, Aviso à Navegação, Coimbra, Novo Can-
1997; ANTUNES, António Lobo, As Naus, Lis-
cioneiro, 1941; NEGREIROS, José de Almada,
boa, Dom Quixote/Círculo de Leitores, 1988;
Obras Completas, vol. i, Lisboa, INCM, 1985;
BOCAGE, Manuel Maria B. du, Obra Completa,
QUEIRÓS, Eça de, Os Maias, Lisboa, Livros do
vol. i, Porto, Caixotim, 2004; CABRAL, Antó-
Brasil, s.d.; RAMOS, Manuel da Silva e Alface,
nio Manuel Pires, Trirreme, Coimbra, Centelha,
os lusíadas, Lisboa, Assírio e Alvim, 1977; REBE-
1978; CAMÕES, Luís Vaz de, Os Lusíadas; Id.,
LO, Luís de Sousa, “‘As Quibíricas’ de Grabato
Rimas; CARVALHO, Teresa, “Epopeia, an-
Dias ou o discurso da ruptura”, Colóquio Letras,
tiepopeia e ‘HIP, HUP, EIA’: d’Os Lusíadas de
n.º 99, set. 1987, pp. 21-28; Id., “Prefácio”, in
Camões a os lusíadas de Manuel da Silva Ra-
FARIA, Almeida, Lusitânia, Lisboa, Assírio e Al-
mos e Alface”, Biblos, vol. 5, 2007, pp.  345­
vim, 2014, pp. 9-25; RIBEIRO, Margarida Ca-
‑366; Id., Epopeia e Antiepopeia: de Virgílio a Ale-
lafate, Uma História de Regressos: Império, Guerra
gre, Coimbra, Imprensa da Universidade de Colonial e Pós-Colonialismo, Porto, Afrontamento,
Coimbra, 2008; CUSTÓDIO, Pedro Balaus, 2004; SEIXO, Maria Alzira, e CARVALHO, Al-
A História Trágico-Marítima: do Herói ao Anti-He- berto (orgs.), A História Trágico-Marítima. Análises
rói, Dissertação de Mestrado em Literatura e Perspectivas, Lisboa, Cosmos, 1996; TAVARES,
Portuguesa apresentada à Universidade de Gonçalo M., Uma Viagem à Índia, Lisboa, Cami-
Coimbra, Coimbra, texto policopiado, 1992; nho, 2010; TELES, Gilberto Mendonça, Camões
FIGUEIREDO, Fidelino de, A Épica Portuguesa e a Poesia Brasileira, 3.ª ed., Rio de Janeiro, Livros
no Século XVI, Lisboa, INCM, 1993; GARRETT, Técnicos e Científicos, 1979; VERDE, Cesário,
Almeida, Viagens na Minha Terra, Lisboa, Estam- Poesia Completa 1855-1886, Lisboa, Dom Qui-
pa, 1983; Id., Camões, Lisboa, Comunicação, xote, 2001.
1986; JUNQUEIRO, Guerra, Pátria, Porto,
Lello e Irmãos, 1968; LIMA, Henrique de Cam- Martinho Soares
pos Ferreira, As Paródias na Literatura Portuguesa: Teresa Carvalho

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2034 Anti-escola nova

Anti-escola nova à idade adulta; e pela pedagogia experi-


mental, que sublinhava a importância de
pensar o ato educativo a partir de uma
base científica. Para não mencionar ou-
tros aspetos culturais, como o brotar de
novas ideias e a exploração das novas vias
de acesso ao conhecimento em diferentes
domínios como a filosofia, a psicanálise, a
O movimento da educação nova literatura, entre outros.
A  educação/escola nova foi um movi- É no prefácio a Une École Nouvelle en Bel­
mento de renovação do ensino que sur- gique (1915), obra do pedagogo português
giu no fim do  séc. xix e ganhou força Faria de Vasconcelos, que Adolphe Fer-
na primeira metade do séc. xx. Com nú- rière (presidente da Liga Internacional
cleos de grande expressão nos EUA e em Pró-Educação Nova) formula os 30 princí-
vários países do continente europeu, com pios inerentes à identificação de uma esco-
alguma incidência também em Portugal, la nova, considerando que “a […] escola
ganhou forma como meio de protesto e [do meu colega e amigo, professor Faria
oposição à escola dita tradicional. de Vasconcelos em] Bierges-les-Wavre na
O movimento da educação nova inscre- Bélgica […] era uma escola nova modelo”
ve-se numa conjuntura singular nos âmbi- (VASCONCELOS, 1915, 1).
tos político-económico, sócio-histórico e Sete anos mais tarde, em 1921, no Con-
científico-cultural. Por um lado, o forta- gresso da Liga Internacional para a Edu-
lecimento dos Estados-nação e a valoriza- cação Nova, são adotados os 7 princípios
ção da escola pelos regimes liberais, face da educação nova, sintetizados a partir
à necessidade da formação das elites, que dos 30 princípios. São eles os seguintes:
resultou na expansão da escolaridade e “1. O fim essencial de toda a educação
na consequente ascensão dos professores é preparar a criança para querer e reali-
enquanto classe social. Por outro lado, zar na sua vida a supremacia do espírito;
inspirados pelas ideias político-filosóficas por isso, qualquer que seja o ponto de
de igualdade entre os homens e do direi- vista em que se coloque o educador, deve
to de todos à educação, os intelectuais da ter em vista conservar e fazer crescer a
época viam num sistema estatal de ensino energia espiritual na criança.
público, livre e universal o único meio efe-
tivo de combate às desigualdades sociais. Faria de Vasconcelos (1880-1939)
Paralelamente, vivenciava-se uma ebuli- e Adolphe Ferrière (1879-1960).
ção científica marcada pelo higienismo
educativo, que evidenciava os malefícios
da escolarização organizada, contra as leis
naturais do desenvolvimento fisiológico e
psicológico; pela medicina pedagógica,
que realçava a importância da observação
do indivíduo e da consideração das suas
potencialidades físicas e mentais para o
processo de aprendizagem; pela psicolo-
gia, ciência emergente que demonstrava
a especificidade da infância em relação

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Anti-escola nova 2035

2. Deve respeitar a individualidade da trabalhar de forma crítica e criativa numa


criança. Esta individualidade só pode de- escola que valorizava a individualidade, a
senvolver-se por uma disciplina que con- cooperação e a participação (individual e
duza à libertação dos poderes espirituais grupal), as escolhas livres, a responsabili-
que estão nela. dade e a liberdade.
3. Os estudos e, duma maneira geral, a Com a educação nova, aparece tam-
aprendizagem da vida devem deixar em bém um conjunto de práticas pedagó-
liberdade os interesses inatos da criança, gicas inovadoras, inexistentes no ensino
quer dizer, aqueles que surgem esponta- tradicional: os trabalhos manuais, a cor-
neamente nela e que encontram a sua respondência escolar, a imprensa escolar
expressão nas atividades variadas de or- e o cinema educativo.
dem manual, intelectual, estética, social Paralelamente a estas inovações peda-
e outras. gógicas, outras foram sendo adotadas:
4. Cada idade tem o seu carácter pró- novas práticas curriculares (e.g., trabalhos
prio. Por isso, é necessário que a discipli- agrícolas, assembleias, trabalhos em gru-
na pessoal e a disciplina coletiva sejam po, planos de trabalho, etc.), atividades
organizadas pelas próprias crianças com escolares fora da sala de aula (e.g., aula­
a colaboração dos professores; devem ‑passeio, passeios pelo campo, visitas de
tender para reforçar o sentimento das estudo, excursões, acampamentos, etc.),
responsabilidades individuais e sociais. tempo livre para atividades geridas pelos
5. A competição egoísta deve desa- alunos (e.g., jogos, trabalhos de pesquisa,
parecer da educação e ser substituída preparação de conferências, etc.) e novos
pela cooperação que ensine a criança a espaços de participação social (e.g., asso-
pôr a sua individualidade ao serviço da ciações, clubes, jornais escolares, etc.).
coletividade.
6. A coeducação reclamada pela Liga
(coeducação significa ao mesmo tempo
O antiescolanovismo
instrução e educação em comum) exclui A escola nova tornou-se alvo de muitas
o tratamento idêntico imposto aos dois críticas e foi acusada principalmente de
sexos, mas implica uma colaboração que ser pouco ou nada exigente, de depre-
permite a cada sexo exercer livremente ciar os conteúdos tradicionais e de acre-
sobre o outro uma influência salutar. ditar ingenuamente na espontaneidade
7. A educação nova prepara, na crian- dos alunos. A leitura das obras e a aná-
ça, não só o futuro cidadão capaz de cum- lise das poucas experiências em que, de
prir os seus deveres para com os seus pró- facto, as ideias dos escolanovistas foram
ximos, a sua nação e a humanidade no experimentadas com rigor mostram que
seu conjunto, mas também o ser humano essas críticas apenas são legítimas para
consciente da sua dignidade de homem” interpretações distorcidas do espírito do
(MEIRELES-COELHO, 2010, 594). movimento. Todavia, é possível encontrar
Uma das premissas do movimento da aplicações concretas que corroboram hi-
educação nova era a educação integral do potéticos argumentos antiescolanovistas,
aluno, por forma a abranger as esferas in- que se explanarão de seguida. Impor-
telectual, artística, manual, física e social. ta evidenciar aqui que o movimento da
As aprendizagens deveriam proceder educação nova se insere ele próprio na
das experiências, vivências e interesses lógica dos antis, ao desenhar uma cultura
pessoais do aluno, que era conduzido a em negativo em relação aos adversários

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2036 Anti-escola nova

pedagógicos que combate e aos quais se no trabalho manual, na espontaneidade


opõe ativamente. das crianças, nos processos autonómicos
Inicialmente, a escola nova afirmou-se e nos métodos ativos” (NUNES, 2002,
pela contestação, pretendendo ser inova- 80). Mas, depois de ter contactado com
dora e criar uma escola alternativa. Cons- outras perspetivas pedagógicas, nomea-
tituiu a unidade das suas diversas tendên- damente depois de uma visita à Rússia,
cias na crítica do que lhe desagradava em 1925, e de ter aderido ao Partido Co-
na escola antiga, vulgo velha escola ou munista Francês, Freinet vai entrar em
escola tradicional ou escola sentada, a sa- rota de colisão com o movimento da edu-
ber: ensino simultâneo intelectualizado e cação nova. As suas principais críticas ao
centrado na memorização de conteúdos escolanovismo advêm de considerar que
ensinados em aulas magistrais, que uni- se trata de um movimento elitista e bur-
formizava programas, métodos e horários guês, cujas escolas serão de difícil acesso
(defendendo para si uma aprendizagem às camadas mais desfavorecidas da socie-
centrada na criança, nas suas necessida- dade. Assim, Freinet almeja a construção
des e nos seus interesses); ensino livresco de um projeto, que denomina uma escola
caracterizado pela transmissão de conhe- do povo, que rume a uma sociedade so-
cimentos por parte do professor-mestre cialista. Deste modo, o pedagogo francês
e pela explicação verbalista exaustiva das soma ao ideário dos escolanovistas uma
matérias (advogando que as crianças de- visão marxista e popular, tanto da organi-
vem ter um papel ativo, participativo e zação da rede de ensino como do próprio
crítico, constituindo-se como coconstru- processo de aprendizagem.
toras do seu processo de aprendizagem); Um outro ponto de discórdia baseava­
seleção entre os alunos baseada na com- ‑se no facto de Freinet considerar que,
petição (em oposição a comunidades de entre os pedagogos da educação nova, a
aprendizagem baseadas no trabalho co­ criança é percecionada como um ser abs-
operativo); e avaliação imposta pelo pro- trato, com uma natureza una e igualitária.
fessor com base em testes e exames (em Pelo contrário, Freinet concebia a criança
oposição a uma avaliação contínua ao como um ser individual, produto de uma
longo do ano, com base em autoavaliação dada conjuntura histórica e portadora de
e heteroavaliação, e individualização em uma cultura própria, o que influenciava
oposição à uniformização). de modo determinante o seu modo de
Célestin Freinet tornou-se um adepto ser, de pensar e de agir. Uma outra ru-
fervoroso das ideias e obras de Adolphe tura significativa face ao movimento da
Ferrière; aderindo ao movimento da edu- educação nova tem subjacente o facto de
cação nova em 1923, vai tentar introdu- Freinet não manifestar na sua proposta
zir os fundamentos escolanovistas na sua pedagógica, e ao contrário dos pedagogos
escola de Vence, na França. A conceção da educação nova, um grande entusiasmo
da escola Freinet corresponde às carac- pelo ideal da liberdade, procurando an-
terísticas das escolas novas, segundo os tes a ordem e a disciplina que o trabalho
critérios estabelecidos, em 1912, pelo Se- exige: é uma escola do trabalho, em que o
cretariado Internacional para a Educação trabalho e a cooperação vêm em primeiro
Nova: “uma escola de tipo internato, na plano, a ponto de Freinet clarificar: “não
prática da coeducação dos sexos, na ru- é o jogo que é natural da criança, mas sim
ralidade, no trabalho coletivo, no desen- o trabalho” (FREINET, 1969, 31). Trata­
volvimento do espírito crítico e científico, ‑se de uma busca pedagógica em prol de

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uma futura integração profissional, onde tora da mudança. Para os educadores


se encontre “o sentido vital profundo que libertários, a proposta era terminar de
estimula o homem e a criança a entrega- forma absoluta, como refere Fraenkel,
rem-se com todo o seu ardor, com todo o com uma “educação tradicional [...] em
seu coração às atividades que eles pensam crise profunda e que em parte alguma
essenciais” (NUNES, 2002, 97). funciona, a não ser na qualidade de de-
fender organizadamente os adultos con-
tra as crianças” (SCHMID, 1979, 13).
Pedagogias libertárias A sua relevância antiescolanovista cen-
As pedagogias libertárias procedem tra-se em três grandes momentos, que se
do movimento da escola nova e distin- pontualizam na Escola de Tolstoi, nas ex-
guem-se deste pela radicalização do periências de Hamburgo e, mais tarde,
princípio de liberdade e de autonomia na Escola de Summerhill. Na Escola de
das crianças. Aspeto este que será a Tolstoi, o seu patrono assumia o princí-
base da sua incisiva crítica à pedagogia pio da não intervenção e da liberdade,
escolanovista. dando ao aluno o direito à assiduidade,
De inspiração anarquista, as correntes à palavra, ao silêncio e à ordem. Este
libertárias têm como premissa a crença método não se expressa numa liberdade
na força da educação para libertar a hu- total, mas na negação de uma verdade
manidade, na medida em que promo- institucionalizada já adquirida, o que
ve a sua emancipação face à opressão, à proporciona à criança, através do seu
exploração, aos privilégios e à injustiça. livre desenvolvimento, um crescimento
A  proposta pedagógica dos anarquistas é moral, bem como uma outra amplitude
o antiautoritarismo. Neste contexto, con- pessoal.
cebem a educação enquanto processo de As comunidades de Hamburgo – a Es-
abolição progressiva da autoridade em cola de Telemanstrasse, a Escola de Wen-
benefício da liberdade, sendo o propósito derschule, a Escola Am Berlinertor e a
último da educação o desenvolvimento de Escola de Am Tieloh – são precursoras de
homens livres, imbuídos de sentimentos um movimento nascido no pioneirismo
de respeito e amor para com a liberdade de Hermann Lietz. São as experiências
dos demais. Assim, o objetivo de todo o mais radicalizadas das correntes liber-
processo educativo consiste em adquirir tárias: assiste-se à autonomia/liberdade
as competências necessárias para pensar completa dos estudantes, desconhecida
por si próprio, para não delegar a própria em outras escolas. Defendem, por isso,
capacidade de decidir e para ser dono dos que a escola não deve continuar a ser
próprios atos e de si próprio. uma preparação para a vida, mas assu-
Dada a sua radicalidade, e embora mir-se como a própria vida (Id., Ibid., 53).
apresentem premissas coincidentes com A este tipo de organização escolar pode
o escolanovismo, as correntes libertárias atribuir-se uma matriz identitária, carac-
apresentam descontinuidades em relação terizada por processos de uma “vida au-
àquele. Com efeito, definem-se como rei- têntica” (Id., Ibid., 40). Extremam-se as
vindicadoras de uma absoluta liberdade, relações aluno-professor, demarcando-se
invertendo o sentido dado a esta noção do conceito que mais tarde Lietz desig-
pela maioria dos pedagogos da educação naria de self-government [autogestão], pois
nova, que viam nos métodos e nas técni- consideravam-no uma cópia do modelo
cas a grande fonte de inspiração promo- existente na sociedade. Neste sentido, a

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escola terá de responder às necessidades sam-se a encontrar autores e professores


imediatas e não organizar-se em quadros como Cruz Filipe, Orbelino Geraldes Fer-
pré-concebidos para orientar, socialmen- reira, José Maria Gaspar, Octávio Neves
te e no futuro, os alunos. Dordonnat, José Eduardo Moreirinhas
As experiências de Summerhill são Pinheiro, Manuel Pestana, Francisco de
contemporâneas das anteriores. Procu- Sousa Loureiro e Domingos Evangelista.
rando demarcar-se das correntes alemãs, Os clássicos, como Dewey, Decroly, Mon-
a escola fundada por Niell nos subúrbios tessori, Claparède e Ferrière, não são re-
de Londres tem como princípio a total negados, ainda que sejam bastas vezes cri-
liberdade de expressão por parte dos alu- ticados. Mas são alvo de ressignificações
nos. “Para isso haveríamos de renunciar que, por um lado, esvaziam a doutrina e
a toda a disciplina, a toda a direção, su- os discursos escolanovistas da dimensão
gestão, moral preconcebida ou qualquer política ou social dos seus princípios fun-
tipo de instrução religiosa” (AVANZINI, damentais e dos projetos de transforma-
1979, 42). Por conseguinte, é possível ção social; e, por outro, suavizam o radi-
afirmar que Niell vê no sistema do self-go­ calismo pedagógico que lhes é imputado,
vernment um dos pilares da sua organiza- aproveitando apenas a didática inovadora
ção escolar. Por este motivo, a experiên- que deles decorre e que passa a circular,
cia de Summerhill foi muito criticada e dominantemente, por via da expressão
apelidada de anarquista pelos sectores “escola ativa” (Id., Ibid.).
mais tradicionais da educação. A pedagogia salazarista apropria-se do
ideal da formação integral dos jovens,
igualmente assumido pelas correntes re-
Pedagogia nacionalista novadoras do início do séc. xx, ainda que
A transição do regime republicano para o interpretado agora num quadro tradi-
Estado Novo, em Portugal, entre os anos cional e religioso. As preocupações, e.g.,
20 e 30 do séc. xx, trouxe consigo algu- com a educação física e a educação moral
mas reações antiescolanovistas, em linha mantêm-se, mas com objetivos e conteú-
com o que acontecia nos outros regimes dos parcialmente distintos.
ditatoriais e totalitários a nível internacio- No fundo, era a adaptação possível da
nal; assim teve lugar uma apropriação de educação nova às características do re-
sentido conservador e nacionalista desse gime político em vigor, selecionando os
movimento, que era plural e multifaceta- aspetos que podiam ser articulados com
do, e a subalternização ou o afastamento os valores da ideologia oficial salazarista,
dos educadores que tinham protagoniza- sem que esta os considerasse subversivos.
do, nos anos 10 e 20, a fase mais típica e A escola era considerada a sagrada oficina
intensa da escola nova portuguesa. das almas, a autoridade do professor e a
Esta articulação dos princípios esco- ordem social não se punham em causa, os
lanovistas com os valores ideológicos do valores e a moral católicos impregnavam
regime salazarista e com a tradição da pe- todos os contextos escolares e a compo-
dagogia católica dará origem ao que Nó- nente técnica do ensino era fortemente
voa designa por “pedagogia nacionalista” afirmada, num sentido disciplinar. A ação
(PINTASSILGO, 2013). No lugar de figu- antiescolanovista protagonizada pelo re-
ras como Adolfo Lima, António Sérgio, gime salazarista, em particular mediante
João de Barros, Álvaro Viana de Lemos, a ação dos pedagogos e docentes nacio-
Irene Lisboa, entre muitas outras, pas- nalistas, valeu-se de várias medidas para

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operacionalizar este movimento de con- fazia parte de um sistema de renovação


testação. Para desvelar a ação destrutiva educacional, que serviria em primeiro lu-
deste regime, não basta evocar o encerra- gar para reforçar a defesa de uma escola
mento das escolas do magistério durante nacionalista.
vários anos, a demissão dos seus professo-
res, os restritos horizontes dos seus currí-
culos. Importa igualmente decifrar o seu
Pedagogos católicos
ambiente. O conflito ideológico entre pedagogos
Quanto à Escola do Magistério Primá- católicos conservadores e escolanovistas
rio de Lisboa, é extremamente elucida- durante o governo do Estado Novo em
tiva a leitura do seu boletim, Educação, Portugal acarreta várias consequências,
onde Orbelino Geraldes Ferreira exalta nomeadamente algumas das já referidas
a escola portuguesa tradicional perante em parágrafos anteriores. Os intelectuais
a “doida correria do paganismo peda- católicos mostravam desconfiança crítica
gógico mundial” e critica severamente relativamente ao processo de laicização
Claparède e Dewey, o laicismo e a esco- do ensino e ao monopólio estatal do sis-
la nova. “É preciso efetivamente ler esses tema educativo e defendiam princípios
artigos para se compreender a que extre- ético-morais cristãos.
mos eram capazes de ir os ‘pedagogos’ O discurso antiescolanovista proferido
do regime na sua ânsia de destruição da pelos católicos assentava na crítica à ten-
escola nova” (FERNANDES, 1979, 12). dência laica da educação e na reivindica-
De igual modo, a revista Escola Portugue­ ção da reintrodução do ensino religioso
sa, Boletim do Ensino Primário Oficial foi um nas escolas, por considerarem que a edu-
instrumento de antiescolanovismo. Este cação teria vantagem em estar subordina-
periódico semanal, da responsabilidade da à orientação moral cristã. “As escolas
da Direcção-Geral do Ensino Primário, leigas só instruem, não educam”, estimu-
constitui-se como um importante veícu- lam o individualismo e neutralizam as
lo oficial da política educativa do Estado normas morais, incitando atitudes nega-
Novo, sendo um recurso usado pela tute- doras da convivência social e do espírito
la para a orientação pedagógico-didática coletivo. “Somente a escola católica seria
e ideológica dos agentes do ensino pri- capaz de reformar espiritualmente as
mário. No editorial do primeiro núme- pessoas como condição e base indispen-
ro, Braga Paixão, diretor-geral do ensino sável à reforma da sociedade” (SAVIANI,
primário, justifica a edição deste boletim 2008, 256). Os educadores católicos ten-
pela necessidade de existir um conve- cionavam garantir a manutenção da sua
niente serviço de orientação pedagógica presença nas instituições escolares em
e aperfeiçoamento do ensino primário. detrimento da atuação crescente do Esta-
Reforça que se tornava premente a exis- do nessa área. Defendiam que a educação
tência de um instrumento com a função consistia num dever da família e deveria
de inculcar a nova doutrina pedagógica pautar-se pelos valores do catolicismo e
do Estado Novo aos professores primá- da educação tradicional: “somente atra-
rios, bem como a necessidade de estes, vés de uma educação cristã será possível
por sua vez, a transmitirem aos seus alu- formar a personalidade do educando, por
nos e à comunidade local. O diretor-geral isso, é necessária a subordinação da for-
do ensino primário anunciava, assim, que mação física à formação intelectual, e esta
a publicação da revista Escola Portuguesa à formação moral” (SANTOS, 1942, 49).

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2040 Anti-escola nova

Além disso, defendiam a conservação da papal dedicada à educação cristã, a Divini


sua capacidade de intervenção para além Illius Magistri (publicada a 31 de dezem-
dos limites das suas igrejas e escolas, por bro de 1929), e contra aquelas correntes
meio da introdução do ensino religioso que pensavam a educação de maneira
nas escolas. diferente, em particular contra os defen-
Procurando relevar um estudo de caso, sores da escola laica. Aqui devemos re-
vamos dar atenção a uma das linhas críti- cordar, e.g., os artigos críticos da Brotéria
cas do pensamento pedagógico católico sobre o movimento da escola nova, sobre
antiescolanovista que se tornou bem pa- a educação sexual e a coeducação, sobre
tente num dos órgãos de imprensa cul- o ensino das línguas clássicas, etc.
tural mais emblemáticos dos periódicos Durante o Estado Novo, o pensamento
católicos – a revista Brotéria. Analisaremos broteriano evidencia alguma sintonia em
a reflexão de alguns pedagogos jesuítas relação às orientações e determinações
portugueses. pedagógico-legislativas do regime políti-
O movimento da escola nova foi ob- co vigente, o qual reproduzia e servia, em
servado por pedagogos e filósofos da larga medida, o mesmo modelo de pen-
educação da Companhia de Jesus, no- samento de inspiração cristã que presidia
meadamente Paulo Durão, Domingos à Brotéria. O Estado valorizava o papel da
Maurício e Costa Lima, que estudaram a religião (neste caso, da Igreja Católica)
teoria e os pressupostos deste movimen- como meio de ensino de um determina-
to pedagógico. Ao fazê-lo, valorizaram, do modelo de Homem e de sociedade,
por um lado, os aspetos que coincidiam e como instrumento de estabilidade e
com os valores da pedagogia inaciana; coesão sociocultural. Na déc. de 30, em
e criticaram, por outro, opções e práti- sintonia com Costa Lima, seu confrade
cas pedagógicas opostas aos princípios coetâneo, Paulo Durão publica na Broté­
educativos da doutrina católica vigente, ria uma série de artigos de análise crítica
mormente a sua neutralidade religiosa e sobre a chamada escola nova (assinados
a apropriação de agremiações laicas que, sob o pseudónimo José Gomes Braz), os
alegadamente, estariam a instrumenta- seus métodos e princípios ideológicos e
lizar ideologicamente este movimento pedagógicos, visando prevenir os leitores
educativo para se distanciarem, ou mes- para a possível expansão deste movimen-
mo se oporem à chamada educação de to em Portugal, à semelhança do que es-
inspiração católica. tava acontecendo na Europa. Recorde-se
O pensamento pedagógico da Brotéria que, entre as instituições apontadas, que
é ideologicamente definido pelas orien- se relacionam com as escolas novas, me-
tações doutrinais da pedagogia católica, rece especial menção por parte do autor
sendo a sua evolução, em grande medi- o Instituto J. J. Rousseau, fundado em
da, determinada pela evolução ou aber- Genebra, em abril de 1912, e agregado
tura dessas mesmas diretrizes doutrinais à universidade desta cidade em abril de
do magistério eclesiástico oficial. Na pri- 1929 com o nome Institut des Sciences de
meira fase da produção de doutrina pe- l’Education.
dagógica, o corpus ideológico é marcado O juízo global de Paulo Durão sobre o
por um sistema de reflexão de tom apolo- movimento da escola nova é, em parte,
gético, edificado na obediência à doutri- positivo, mas só em parte, pois apresen-
na eclesiástica vigente, particularmente ta diversas reservas e advertências que
aquela que foi consignada na encíclica tornam a apreciação tendencialmente

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Anti-escola nova 2041

negativa, nomeadamente devido à dita deste nome, se alcançar a atualização da


apropriação daquele movimento peda- personalidade dos seus educandos na
gógico por parte de agremiações antica- plenitude dos seus valores, em ordem à
tólicas e laicas, que acusa de sectárias e comunidade nacional, de que hão de ser
desvirtuadoras da moral cristã. Em “A ‘Es- membros” (BRAZ, 1947, 521). E conclui
cola Nova’”, artigo publicado na Brotéria apresentando os traços que entende se-
e assinado com o pseudónimo Alves de rem uma espécie de estatuto deontológi-
Lena, Durão avalia ainda como válidos os co do professor de uma escola nova em
princípios que informam os processos e Portugal, em sintonia com a ideologia
métodos pedagógicos das escolas novas: educativa do regime vigente: i) concomi-
espontaneidade, atividade, interesse e tantemente, o educador deve ser claro,
cooperação. Contudo, julga inaceitáveis profundo e interessante ao instruir o alu-
os tópicos orientadores desta pedagogia no; ii) deve aliar as convicções à simplici-
nova, que, em seu entender, partem de dade; iii) deve conduzir as inteligências a
uma “basilar conceção errónea da natu- caminhos fáceis; iv) deve ensinar a vencer
reza”, a saber: i) a apologia da bondade as dificuldades; v) deve educar com base
essencial da pessoa humana; ii) a coedu- em grandes modelos de sábios e cientis-
cação dos sexos de forma exagerada e tas; vi) deve valorizar as capacidades do
sem limites; iii) a defesa da necessidade aluno, mas moderando o seu orgulho;
da educação sexual nas escolas, “sem a vii) deve animar os alunos fracos a avan-
prudência e os resguardos que a Igreja çar no conhecimento; viii) deve ministrar
inculca”; iv) a neutralidade na educação uma educação integral, que vá desde os
religiosa e moral que os pedagogos da es- conhecimentos humanos aos valores mo-
cola nova reclamam (LENA, 1932, 81­‑87). rais considerados mais excelentes.
Denuncia também a origem acentuada- Outro intelectual jesuíta que se eviden-
mente laica da doutrina pedagógica da cia então na crítica ao movimento da es-
escola nova e a sua inspiração na filosofia cola nova é Domingos Maurício. Dotado
da educação de Rousseau, bem como em de uma grande cultura histórica e erudi-
outros pensadores de matriz ideológica ta, a sua reflexão pedagógica inspira-se
anticatólica. Em desacordo com os prin- nos princípios da tradição teológica cris-
cípios essenciais da escola nova propõe tã e segue as orientações ideológicas do
uma espécie de modelo alternativo, ao magistério pontifício, nomeadamente da
qual chama, em título de artigo publi- Divini Illius Magistri. Nesta linha, combate
cado na Brotéria em 1947, “O verdadeiro a prática da coeducação em artigo com
conceito de escola nova”. Aí, decreta o o mesmo título publicado na Brotéria em
que entende dever ser uma escola reno- 1940, com o pseudónimo de Gomes dos
vada e autêntica, numa tentativa de cor- Santos, bem como a sua introdução em
reção catolicizante e em sintonia com as Portugal, alegando razões de natureza
orientações político-pedagógicas do re- psicológica, física, social e cultural para
gime sobre este movimento pedagógico: fundamentar a consistência estratégi-
“A Escola Nova deve conseguir descobrir ca da separação pedagógica dos sexos,
o indivíduo a si mesmo e à sociedade, tese que reverá quando as evidências
tornando-o um membro útil da mesma. das orientações reformistas da educação
A Escola Nova deve ser, pois, uma escola, manifestarem globalmente seguir rumo
que consiga realizar este conceito de edu- contrário. Tanto nos artigos de história
cação [...]. A Escola Nova será [...] digna de educação como nos textos de crítica

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2042 Anti-escola nova

pedagógica, exalta e teoriza a consistên- personalidade como objetivo da educa-


cia da superioridade da pedagogia cristã ção, a conjunção da formação profissio-
comparativamente à educação moderna, nal com uma conjunção cultural ampla, a
considerando esta última responsável racionalização do ensino superior, a ges-
pela crise que a sociedade contemporâ- tão democrática do ensino” (FERNAN-
nea atravessa: “apesar de todas as subtis DES, 1979, 143). E a Brotéria contribui, a
indagações do subconsciente, é notória partir da segunda metade da déc. de 60,
a inferioridade formativa da pedagogia com reflexão avançada sobre os “movi-
moderna. A pavorosa crise moral que mentos de contestação ao paradigma es-
atravessamos, com todas as suas reper- colar” (NÓVOA, 1993, 110), bem como
cussões individuais e coletivas, constitui a sobre o processo de secularização da so-
mais perentória e insofismável contrapro- ciedade e do ensino público.
va, desfavorável à orientação pedagógica Os Jesuítas fizeram um esforço de adap-
da escola moderna”. E fundamenta a su- tação e distanciamento em relação a al-
perioridade da pedagogia cristã na “con- guns aspetos do pensamento das décadas
ceção superior, que a filosofia perene da anteriores ao Vaticano II. Em sintonia
Escola lhes oferece sobre a natureza do com a Igreja em geral, a Companhia de
homem e do universo que o rodeia”, ad- Jesus modernizou o sistema educativo em
vogando que esta pedagogia “consegue vigor nos seus colégios, desenvolvendo
dar à educação, sob todos os climas, entre um pensamento pedagógico aberto e dia-
todas as raças e graus de civilização, um logante com as correntes mais avançadas
sentido bem definido de indestrutível ló- da pedagogia contemporânea. Hoje em
gica e harmonia” (SANTOS, 1940, 349). dia, experiências pedagógicas de sucesso
Defende ainda a importância da associa- como o projeto educativo em execução
ção do professorado e promove-a como nos colégios jesuítas da Catalunha e as
meio para valorizar a missão educativa da experiências de pedagogia comunitária
classe docente, na defesa dos seus direi- e personalista do P.e Pierre Faure, sj, na
tos, no incremento da formação integral América Latina são exemplos do trabalho
contínua, de modo a assegurar a consecu- de atualização pedagógica da Companhia
ção dos objetivos educativos com compe- de Jesus. Trabalho esse que está em linha
tência e idoneidade moral. com boa parte das instituições educativas
No crepúsculo da ditadura, com a rea- da Igreja Católica, contribuindo com o
lização do Concílio Vaticano II (1962­ que tem de melhor, e aproveitando e in-
‑1965) e com o fervilhar emergente da tegrando no quadro do ideário inaciano
nova ideografia democrática que veio a fundante da educação católica o que de
desembocar no 25 de Abril e na instau- útil os seus antigos adversários escolano-
ração do regime democrático, emergem vistas preconizam, sem perder de vista
novas questões e problemáticas educati- o horizonte de compreensão cristã do
vas, em relação às quais a Brotéria marcou mundo e da vida.
uma atualização das suas posições, no-
meadamente sobre “o carácter científico
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tema da educação básica através da escola sophie de l’Éducation Nouvelle, Paris, PUF, 1973;
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dução, o desenvolvimento multilateral da de escola nova”, Brotéria, vol. xliv, fasc.  5,

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Anti-escola nova 2043

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2044 Antiestrangeiro

Antiestrangeiro Buescu, a consciência da identidade na-


cional formula-se “em torno de uma re-
flexão de tipo oposicional, que passa pela
identificação de uma entidade – pessoal
ou coletiva – e pela sua distinção de ou-
tras” (BUESCU, 1997, 103); Guilherme
d’Oliveira Martins fala-nos da necessi-

O estrangeirismo, no domínio da his-


tória das mentalidades, pode ser
definido, em sentido lato, como uma ad-
dade de compreendermos as diferenças
em ordem a uma melhor consciência da
identidade; segundo Rui Ramos, “todas
miração pelo que é estrangeiro, median- as identidades são construídas contra: so-
te a adoção de uma atitude mimética e mos uma coisa porque não somos outra
encomiástica. Logo, por antiestrangeiris- que existe ao lado” (FERNANDES, Públi­
mo entende-se a atitude inversa, ou seja, a co, 23 jan. 2010); François Hartog recorre
oposição e resistência ao que é estrangei- à noção de “retórica da alteridade” para
ro. Neste caso, o estrangeiro representa explicar a estratégia de afirmação pela di-
o inimigo e uma ameaça, inscrevendo-se ferença: sendo a diferente de b, deixa de
como elemento de uma alteridade que existir a e b, para existir somente a e não
joga contra a identidade nacional, ou a (HARTOG, 2014, 243-289); e, para Júlia
seja, que opera como o seu negativo. Kristeva, o estrangeiro é “o rosto oculto
O pedagogo e antropólogo Francisco da nossa identidade” (KRISTEVA, Julia
Adolfo Coelho afirmou, em texto publi- Kristeva, 1 out. 2014).
cado em 1916 com o título Cultura e Anal­ A identificação do estrangeiro com o
fabetismo, que “é sobretudo por oposição outro e com o inimigo é intuída a partir
que se forma a ideia de pátria” (COE- do seu sentido etimológico, da origem se-
LHO, 1993, 160-161). Trata-se de uma mântica em língua latina e da sua relação
formulação que tem vindo a ser aplicada com a conceção herodotiana de bárbaro.
ao processo de construção identitária por O étimo “estrangeiro” deriva do latim “ex-
investigadores da história, da literatura e traneus”, que significa de fora, estranho,
da filosofia, portugueses e estrangeiros, estrangeiro (“Extraneus…”, 2008, 274a).
que procuram nos mecanismos de con- Designa, portanto, não apenas o que não
fronto e de diferença as bases da afirma- é nacional, mas o que é diferente. Esta
ção de uma identidade nacional. Viriato dupla aceção é mais facilmente apreen-
Soromenho-Marques, e.g., num ensaio so- dida nos vocábulos franceses “étrange”
bre a expressão do antiamericanismo na (estranho) e “étranger” (estrangeiro), e
cultura portuguesa, escreveu que “O Ou- no vocábulo inglês “stranger” (estranho
tro funciona sempre como um elemento e estrangeiro). Mas encontramo-la, tam-
de confirmação ou recomposição de uma bém, no duplo sentido do vocábulo latino
dada ideia sobre aquilo que se é ou pre- “hospes” (hóspede e estrangeiro), que,
tende ser, sobre a identidade própria” por sua vez, segundo os linguistas Aldred
(MARUJO e FRANCO, 2009, 583); José Ernout e Alfred Meillet, deriva do vocá-
Mattoso concluiu, em A Escrita da His­ bulo latino “hostis”, cujo sentido original
tória, que na “difusão do sentimento de de anfitrião que acolhe o estrangeiro evo-
identidade” se encontra “a noção clara luiu para o de inimigo. Segundo Cícero,
da diferença cultural face ao estrangeiro” em De Officiis (I, XII), a palavra “inimi-
(MATTOSO, 1988, 162); segundo Helena go” significava, para os antigos romanos,

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Antiestrangeiro 2045

o que no seu tempo correspondia ao negativo de “bárbaros”, também impul-


termo “estrangeiro”. Esta sinonímia foi sionado pela experiência traumática das
recuperada por Rousseau, em O Contrato invasões persas. No contexto das guerras
Social, ao afirmar que “Os termos estran­ medo-persas, os Gregos uniram-se contra
geiro e inimigo foram durante muito tem- um inimigo comum em defesa da liber-
po sinónimos” (ROUSSEAU, 2008, 161). dade e unidade gregas. Segundo Pierre
Por outro lado, a noção de estran- Chantraine, foi sobretudo a partir das
geiro também corresponde a uma evo- batalhas de Maratona e Salamina que
lução semântica com origem no con- “bárbaro” adquiriu o sentido de brutal e
ceito grego de barbaros. Heródoto, no rude (CHANTRAINE, 1968, 165). Assim,
prólogo do livro i das suas Histórias, é a partir do séc. v a.C. que a oposição en-
estabelece uma visão dicotómica da hu- tre Gregos e bárbaros perde o seu sentido
manidade, dividida entre Gregos e não linguístico, passando a distinguir os que
Gregos, sendo estes os barbaroi. A partir têm acesso à cultura helénica dos que
desta obra clássica da literatura grega, permanecem fora dela, sendo os últimos
compreendemos que os Gregos tinham considerados, por isso, inferiores.
uma perceção muito clara de que um As manifestações de antiestrangeiris-
conjunto de características comuns os mo na cultura portuguesa são devedoras
distinguia dos povos não Gregos, e o do sentido primitivo do vocábulo latino
seu sentido de unidade verifica-se pelo “hostis”, consagrado em “hospes” – o es-
vincar desse mesmo conjunto de traços trangeiro que é acolhido e com o qual
distintivos. Quando se referem aos bár- mantemos boas relações –, mais tarde
baros, os Gregos reportam-se não só aos vulgarizado com o significado de ini-
povos primitivos e rústicos, mas tam- migo, e do conceito grego de barbaros,
bém a povos civilizados, como os Persas, cuja evolução semântica consagra em
os Egípcios e mesmo os Troianos. pleno a ideia de negativo presente no
O conceito de bárbaro sofreu uma evo- anteposto “anti-”. Esta relação e estreita
lução ao longo da história grega. O ter- identificação entre as noções de estran-
mo grego “barbaros” é geralmente aceite geiro, inimigo, alteridade e negativo está
como uma formação onomatopaica que bem representada na cultura portugue-
imita a maneira de falar das crianças ou sa, nomeadamente a partir das imagens
qualquer som ininteligível (“bar-bar”). negativas formuladas, em contextos es-
A partir daqui, o sentido de “bárbaros” pecíficos, contra os Ingleses (antibritani-
evolui para designar aquele que tem uma cismo), os Franceses (antifrancesismo),
linguagem estranha, incompreensível. os Espanhóis (antiespanholismo) e os
Este aspeto reveste-se de extrema impor- Castelhanos (anticastelhanismo), os Ale-
tância, uma vez que a unidade grega se mães (antigermanismo), os Americanos
reconhecia pela língua comum, sendo (antiamericanismo), os povos orientais
esta um fator determinante na distinção (antiorientalismo) e os africanos (antia-
entre Gregos e não Gregos: a língua bár- fricanismo) – a que podemos chamar
bara (a dos não Gregos) era ininteligível estrangeiros exógenos. Por outro lado, a
porque desprovida de sentido, de orga- leitura que é feita do estrangeiro como
nização, portanto, de logos, entendido um elemento adversário também se liga
enquanto discurso organizado, ou seja, à questão da singularidade da cultura
na sua dupla aceção de fala e de raciocí- portuguesa valorizada pelos chamados
nio. Desta relação deriva o sentido mais “castiços”, que interpretam a influência

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2046 Antiestrangeiro

e a emulação do estrangeiro como cor- Todavia, a noção de estrangeiro, numa


ruptoras da tradição, dos costumes, da perspetiva anti, torna-se mais complexa
língua e da cultura nacional. quando ultrapassa a questão da fronteira
A oposição ao mimetismo estrangeiro territorial e da influência cultural. De fac-
foi especialmente assumida pelo movi- to, além das imagens do estrangeiro exó-
mento 57 (ou movimento da cultura por- geno, a cultura portuguesa oferece-nos
tuguesa), de que António Quadros foi um acervo de imagens de uma outra ti-
arauto e impulsionador, com o argumen- pologia do estrangeiro, o endógeno – ou
to de que o problema crucial de Portugal “estrangeiro do interior”, segundo Antó-
estava na contínua dependência em rela- nio Sardinha e Mário Saa (SARDINHA,
ção a correntes e modelos estrangeiros e 1915, 107, 114; SAA, 1925, 161). As ima-
de que a dinamização da cultura apenas gens do estrangeiro endógeno na cultu-
seria possível mediante uma valoriza- ra portuguesa revelam a existência de
ção do que é genuinamente português. uma barreira mental, construída contra
O tema da especificidade da cultura por- grupos ou instituições entendidos como
tuguesa e da sua defesa face à influência estrangeiros porque integrados numa
estrangeira e a atitudes miméticas liga-se organização internacionalista infiltrada
a um outro que podemos considerar o te- na sociedade portuguesa, e tidos como
ma-chave da cultura portuguesa, o da de- unidades concorrentes detentoras, cada
cadência nacional, cuja causa primordial uma, de um projeto próprio que visa o
tende a ser imputada ao estrangeiro. controlo das instituições nacionais e das
A relação da cultura portuguesa com o consciências. Os Jesuítas, os judeus, os
estrangeiro exógeno pode ser entendida, maçons, os comunistas e os protestantes
ainda, numa outra perspetiva: a da ambi- são exemplos de estrangeiros exógenos
valência das imagens, ou seja, quando um com expressiva representação na cultu-
mesmo elemento estrangeiro é objeto ra portuguesa. Enunciados numa pers-
de admiração e de suspeição ou mesmo petiva anti (antijesuitismo, antijudaísmo
ódio. Neste caso, a perceção do estrangei- e antissemitismo, antimaçonismo, anti-
ro como o “olhar que nos ignora” (LOU- comunismo e antiprotestantismo), são
RENÇO, 2004, 101) e a sensação de de- apreendidos como o inimigo, como cor-
sengano, estimulada em determinados ruptores da sociedade e da moral, como
momentos de crise criadores de trauma uma ameaça à autonomia nacional, e são
(como o Ultimato de 1890), quando esse identificados como o bode expiatório.
estrangeiro que antes fora objeto de um Com recurso à estereotipia e a uma cam-
olhar fascinado ameaça a autonomia e a panha difamatória alimentada por mitos
identidade nacionais, são geradores de do complô, que visava a sua erradicação,
ressentimento. Segundo Marc Ferro, o foram acusados e publicamente condena-
ressentimento manifesta-se em situações dos pela decadência nacional.
de fraqueza e de humilhação e traduz, de A hipótese hermenêutica desenvolvi-
uma forma geral, um “complexo de infe- da por René Girard em obras como La
rioridade” (FERRO, 2009, 189). Jacinto Violence et le Sacré (1972), Le Bouc Émissaire
do Prado Coelho introduz este tema na (1982) e Les Origines de la Culture (2004)
cultura portuguesa ao alertar para o facto adequa-se ao processo de vitimização e
de o ressentimento tender a “enegrecer a condenação sacrificial do estrangeiro
visão das coisas ou exagerar verdades du- endógeno. Neste caso, opera-se uma sa-
ras” (COELHO, 1977, 33). cralização do inimigo, a quem é atribuída

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Antiestrangeiro 2047

a responsabilidade por um dado momen- a mitos do complô sustentados num sis-


to de crise, através de um ritual que se- tema explicativo unilateral, que Léon Po-
gue as seguintes etapas: 1) caos ou crise; liakov denomina de “causalidade diabóli-
2)  seleção do bode expiatório ao qual é ca” (POLIAKOV, 1991-92) – neste caso, o
imputada a responsabilidade pelo caos objeto mitificado é, também, sujeito a “sa-
ou crise; 3)  apresentação de provas e crifícios expiacionais” (FRANCO, 2006,
declaração de culpa; 4)  catarse (erradi- 287). Em ambos os casos, o mito, enquan-
cação do bode expiatório); 5)  restabe- to “sistema de comunicação” (BARTHES,
lecimento da ordem e da paz. O meca- 2007, 261), transmite uma determinada
nismo do bode expiatório também pode mensagem que, quando eficaz (quando
ser considerado uma consequência do passa por verdadeira), é codificada na
ressentimento, sendo revelador de uma cultura e fica inscrita na memória co-
incapacidade de lidar com um passado letiva, cabendo ao historiador a missão
que não se perdoa, uma questão desen- de a desmitificar. À luz do princípio da
volvida por Paul Ricoeur no epílogo da isenção, com distanciamento crítico e
sua obra A  Memória, a História, o Esqueci­ evitando a “história tribunal”, segundo a
mento, onde introduz a noção de “memó- lição de Lucien Febvre e de Marc Bloch
ria apaziguada” (RICOEUR, 2007, 479). (FEBVRE, 1953, 109; BLOCH, 1967, 69­
O ressentimento e o mecanismo do bode ‑72), importa apreender o fenómeno das
expiatório podem ser entendidos, assim, representações de elementos estranhos à
como uma estratégia de defesa de uma identidade nacional e a relação imbrica-
ordem que se pretende estabelecida ou da entre o imaginário e a estereotipia, e o
a vir a estabelecer e que o estrangeiro seu entrosamento na cultura portuguesa,
ameaça, enquanto a construção de “mi- gerador de entropias e tensões que a his-
tos negativos de feição ‘anti-’” (FRAN- tória tem o dever de apaziguar.
CO, 2006, I, 24) visa atacar e anular esse
estrangeiro através da manipulação das
consciências. De facto, as representações
do estrangeiro tendem a criar, de forma Bibliog.: impressa: BARTHES, Roland, Mito-
consciente ou inconsciente, uma rea- logias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa, Edi-
lidade imaginada, ou seja, partindo de ções 70, 2007; BLOCH, Marc, Apologie pour
factos reais, constroem uma mitologia l’Histoire ou Métier d’Historien, 6.ª ed., Paris,
que acaba por deturpar a realidade ori- Armand Colin, 1967; BUESCU, Helena Carva-
lhão, “Construções literárias da identidade na-
ginal, criando um mito. Neste sentido,
cional no romantismo”, in Actas dos 3.os Cursos
o mito pode ser interpretado como um Internacionais de Verão de Cascais (8 a 13 de Julho
transvio de um facto histórico. No que de 1996), vol. 4, Cascais, Câmara Municipal
diz respeito ao estrangeiro, este processo de Cascais, 1997, pp. 103-110; CHANTRAI-
de distorção ocorre em duas dinâmicas: NE, Pierre, “Barbaros”, in Dictionnaire Étymolo-
uma, a que Raul Girardet chama “dialé- gique de la Langue Grecque. Histoire des Mots, Pa-
tica dos contrários” (GIRARDET, 1987, ris, Klincksieck, 1968, pp. 164-165; CÍCERO,
De Officiis; COELHO, Adolfo, Obra Etnográfica,
15­‑16), sobrevém quando, dependendo
vol. ii, Lisboa, Dom Quixote, 1993; COELHO,
do contexto, um mesmo objeto é sujeito
Jacinto do Prado, Originalidade da Cultura Por-
a um processo de mitificação negativa ou tuguesa, Lisboa, Instituto da Língua e Cultura
luminosa – o que se liga, por sua vez, ao Portuguesa, 1977; ERNOUT, Alfred, e MEIL-
ressentimento; a outra está associada ao LET, Alfred, Dictionnaire Étymologique de la Lan-
fenómeno da conspiração, com recurso gue Latine. Histoire des Mots, Paris, Klincksiek,

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2048 Estrangeirados

2001; “Extraneus, a, um”, in Dicionário de


Latim-Português, 3.ª ed., Porto, Porto Editora,
Estrangeirados
2008, p. 274a; FEBVRE, Lucien, Combats pour
l’Histoire, Paris, Armand Colin, 1953; FERRO,
Marc, O Ressentimento na História, Lisboa, Teo-
rema, 2009; FRANCO, José Eduardo, O Mito
dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente
(Séculos XVI a XX), 2 vols., Lisboa, Gradiva,
2006; GIRARD, René, La Violence et le Sacré,
Paris, Éditions Grasset, 1972; GIRARDET,
Raul, Mitos e Mitologia Políticas, trad. Maria
D eve-se a António Sérgio a concep-
tualização do vocábulo “estrangei-
rados” e a sua dotação de um sentido
Lúcia Machado, São Paulo, Companhia das valorativo, contrariando, assim, a sua
Letras, 1987; HARTOG, François, O Espelho significação original. Semanticamente, o
de Heródoto. Ensaio sobre a Representação do Ou-
adjetivo “estrangeirado” significa “Que
tro, Belo Horizonte, Universidade Federal de
faz lembrar, que imita, na linguagem,
Minas Gerais, 2014; LOURENÇO, Eduardo,
Destroços. O Gibão do Mestre Gil e Outros Ensaios, na apresentação, nos hábitos e nos cos-
Lisboa, Gradiva, 2004; MARTINS, Guilher- tumes, os indivíduos de outra nação”;
me d’Oliveira, Portugal – Identidade e Diferença, “Que se afeiçoou às coisas ou aos indiví-
Lisboa, Gradiva, 2007; MARUJO, António, duos de outra nação” (ACADEMIA DAS
e FRANCO, José Eduardo (coords.), Dança CIÊNCIAS DE LISBOA, 2001, 1591b);
dos Demónios. Intolerância em Portugal, Lisboa, ou ainda “que age, se comporta como
Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2009;
um indivíduo estrangeiro ou que ado-
MATTOSO, José, A Escrita da História. Teorias e
ta, quase sempre intencionalmente, o
Métodos, Lisboa, Estampa, 1988; POLIAKOV,
Léon, A Causalidade Diabólica, 2 vols., São Pau- modo de vida, os costumes de país diver-
lo, Editora Pespectiva, 1991-92; POPPER, so daquele em que nasce”, “que procura
Karl, La Société Ouverte et Ses Ennemis, t. ii, Pa- falar ou fala como indivíduo de outra
ris, Seuil, 1979; RICOEUR, Paul, A Memória, nacionalidade” (“Estrangeirado”, 2003,
a História, o Esquecimento, trad. Alan François, 3621a). Estas aceções revelam, à partida,
Campinas, Universidade Estadual de Cam- uma carga semântica depreciativa, repor-
pinas, 2007; ROUSSEAU, O Contrato Social, tando-se àqueles que relegavam a pátria
trad. Manuel João Pires, introd. e notas João
natural em defesa de outra estrangeira.
Lopes Alves, Lisboa, Círculo de Leitores/Te-
mas e Debates, 2008; SAA, Mário, A Invasão Alguns dicionários apresentam também
dos Judeus, s.l., s.n., 1925; SARDINHA, Antó- a variante substantivada de “estrangeira-
nio, O Valor da Raça. Introdução a Uma Campanha dos” ou “estrangeirado”, usada no campo
Nacional, Lisboa, Almeida, Miranda & Sousa, da história, com as seguintes definições:
1915; digital: FERNANDES, José Manuel, “Portugueses eruditos, diplomatas... que
“Em Portugal o excesso de iluminismo pro- durante os sécs. xvii, xviii e xix, per-
duziu muitas vezes o obscurantismo”, Públi- maneceram no estrangeiro e foram am-
co, Caderno Ípsilon, 23 jan. 2010: https://
plamente influenciados pelas correntes
www.publico.pt/2010/01/20/culturaipsilon/
culturais e artísticas, bem como pelas
noticia/quotem-portugal-o-excesso-de-ilumi-
nismo-produziu-muitas-vezes-o-obscurantis- conceções estéticas, servindo de veículo
moquot-249107 (acedido a 14 dez. 2017); ao iluminismo e às ideias liberais euro-
KRISTEVA, Julia, “Réflexions sur l’étranger”, peias” (ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE
Julia Kristeva, 1 out. 2014: http://www.kriste- LISBOA, 2001, 1591b); “que ou aquele
va.fr/reflexions-sur-l-etranger.html (acedido a que, no sxviii [sic], seguia os princípios
14 dez. 2017). da razão iluminista, da filosofia das lu-
Cristiana Lucas Silva zes, tendo-os estudado quase sempre em

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Estrangeirados 2049

país estrangeiro” (“Estrangeirado”, 2003,


3621a).
O Dicionário Etimológico Nova Fronteira
da Língua Portuguesa faz remontar ao ano
de 1899 o primeiro registo do vocábulo
em língua portuguesa (“Estrangeirado”,
1982, 333a). Todavia, o Dicionário Hou­
aiss da Língua Portuguesa indica uma data
muito anterior, remetendo para uma
carta datada de 30 de agosto de 1758, de
Manuel Teles da Silva para Sebastião José
de Carvalho e Melo, na qual o então mi-
nistro e confidente da Imperatriz Maria
Teresa da Áustria menciona a sua “estran-
geirada família” e refere-se a si mesmo
como um “bom Português Austríaco”
(TAROUCA, 1955, 402). Encontramos, António Sérgio (1883-1969).
ainda, o mesmo vocábulo consagrado
em obras publicadas em data anterior a
1899, nomeadamente em Viagens na Mi­ Junqueiro, quando, nas últimas páginas
nha Terra (1846), de Almeida Garrett; em de Pátria, redige breves considerações
O Primo Basílio (1879), de Eça de Queirós; sobre a decadência da nação, identifica
em Portugal Contemporâneo (1881), de Oli- os Jesuítas como uma das causas dessa
veira Martins; e ainda na célebre obra trá- decadência e utiliza o adjetivo “estrangei-
gico-poética de Guerra Junqueiro, Pátria rado” para os qualificar, pelo que o sen-
(1896). Se nas duas obras primeiramente tido não poderia, portanto, ser mais de-
mencionadas o adjetivo “estrangeirado” preciativo (JUNQUEIRO, 1896, III). Mais
tem uma carga semântica algo aprecia- tarde, Eça de Queirós, em artigo datado
tiva, remetendo para algo que não é ou de 1899 mas publicado postumamente,
que não tem aspeto de ser português, nas reconhece o seu “francesismo” e afirma
restantes obras identificadas a mesma pa- ser acusado nos periódicos de “desaportu­
lavra surge imbuída de sentido negativo. guesar Portugal”, de ser “estrangeirado”
Assim, Oliveira Martins, no livro primei- (QUEIRÓS, 1917, 468).
ro do seu Portugal Contemporâneo, fazendo Este itinerário traçado leva-nos a veri-
um exame da situação portuguesa entre ficar que, originalmente, a noção de es-
1826 e 1828, apresenta-nos os liberais trangeirado não estava conectada a um
como estrangeirados, apodados pelo au- grupo específico de Setecentos. Essa re-
tor de “inovadores”, “ímpios”, “mações” lação foi primeiramente estabelecida por
e “ateus” (MARTINS, 1895, 61); e no li- António Sérgio quando colocara em evi-
vro terceiro da mesma obra, tratando da dência o papel desempenhado por alguns
Guerra Civil (1832-1834), o historiador homens na europeização e modernização
acusa D. Pedro por se fazer acompanhar da cultura portuguesa, aos quais chamou
de estrangeiros e estrangeirados durante estrangeirados. É em “O problema da
a sua empresa liberal, sendo o duque de cultura e o isolamento dos povos peninsu-
Palmela o mais alto representante dos úl- lares”, um texto publicado em 1914 mas
timos (Id., Ibid., 247). Quanto a Guerra preparado em 1913 para uma conferência

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2050 Estrangeirados

realizada no Rio de Janeiro, no âmbito de a Inglaterra ou a França, tiveram cons-


um encontro sobre a renascença, que An- ciência do isolamento do seu país (Id.,
tónio Sérgio explana o seu conceito, re- Ibid., 36). As mesmas ideias são retoma-
lacionando-o com aquele que considera das em textos posteriores, nomeadamen-
ser o objetivo primacial do movimento te nas suas Considerações Histórico-Pedagógi­
da renascença portuguesa: “granjear a cas (1915), obra na qual o autor adverte
colaboração da nossa Pátria na civilização para a urgência de uma reforma geral
da velha Europa” (SÉRGIO, 1914, 14). de todo o ensino como primeira medida
A formulação do conceito de estrangei- para uma eficaz regeneração do país e de-
rado está, então, correlacionada com a monstra como o elemento estrangeiro no
discussão acerca da decadência nacional território nacional foi vital e constituiu
decorrente do isolamento de Portugal presença efetiva na história portuguesa,
face à Europa, “após a época fulgurante – contrapondo-se ao isolamento persis-
e europeia – dos descobridores e humanis- tente que veio a tornar-se característico;
tas” (Id., Ibid.). Considerando o estado de numa conferência apresentada em 1926
decadência nacional no séc. xx uma con- intitulada “O reino cadaveroso ou o pro-
sequência da adoção de uma “educação blema da cultura em Portugal” (1929), na
guerreira” (sobreposta à educação inte- qual o ensaísta evidencia o papel de um
lectual) e de uma “política de transporte” número reduzido de homens – “a bela
(em detrimento da “política de fixação”), falange dos ‘estrangeirados’” (Id., 1977,
Sérgio questiona se será possível, volvidos 43) – que, no séc. xviii, ousaram quebrar
cerca de três séculos, uma regeneração, e os grilhões da ignorância; e na sua Breve
responde: “É, se tomarmos o exemplo de Interpretação da História de Portugal (1929),
alguns extranhos, – e para isso vencermos em capítulo intitulado “A intervenção re-
o Isolamento” (Id., Ibid., 17). Ora, na sua formadora dos ‘estrangeirados’”, no qual
opinião, essa operação foi primeiramente vislumbramos de forma mais clara e pre-
estimulada no séc. xviii por certos “pira- cisa o sentido sergiano de estrangeirados,
tas beneméritos”: “os ‘estrangeirados’” apresentados como “homens de superior
(Id., Ibid., 29), defensores e proponentes inteligência, que saíram do País para a
de uma reforma pedagógica que veio a Europa culta”, “homens de superior cul-
ser implementada com a “energia fera” tura”, “pioneiros de uma ideia nova”, “ilu-
de Pombal (ele próprio “estrangeirado” ministas”, homens com “generosidade de
pela experiência diplomática adquirida espírito”, com “horizonte mental”, com
em cortes estrangeiras). Com o afasta- “largueza de vistas” (Id., 1998, 121). No
mento deste ministro na sequência da seu entender, constituíram representan-
morte de D. José, retoma-se, então, o iso- tes maiores deste escol indivíduos como
lamento de Portugal, apenas brevemente Luís António Verney, Ribeiro Sanches,
travado pela criação e atividade da Acade- Jacob de Castro Sarmento, D. Luís da
mia das Ciências de Lisboa, embora sob Cunha e, quanto ao séc. xix, Almeida
o olhar atento do intendente-geral Pina Garrett, Alexandre Herculano e Antero
Manique. No entender do ensaísta, no de Quental, modelos do Homem novo ao
séc. xix, no contexto das lutas liberais, qual caberia protagonizar a regeneração
verificou-se uma nova tentativa de aproxi- de Portugal no séc. xx.
mar Portugal ao espírito da Europa, leva- O conceito de estrangeirados foi es-
da a cabo por políticos e intelectuais que, pecialmente problematizado a partir da
forçados a emigrar para destinos como segunda metade do séc. xx, coincidindo

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Estrangeirados 2051

com o debate sobre a existência de uma História de Portugal, Álvaro Dória em “Um
“Filosofia Portuguesa” e sobre o lugar de ‘estrangeirado’” (1966), Vítor de Sá na
Portugal e da sua cultura na Europa. De sua “Apresentação” (1971) à edição do
facto, data dos anos que intervalam a fun- opúsculo de Ribeiro Sanches Dificuldades
dação da NATO e o estabelecimento da Que Tem Um Reino Velho para Emendar-se
Comunidade Europeia do Carvão e do e Outros Textos, Diogo Ramada Curto no
Aço a publicação de alguns textos funda- artigo “Um lugar para os estrangeirados”
mentais para a apreensão do sentido do (2013) e Onésimo Teotónio Almeida no
conceito, nomeadamente: Heterodoxia I, ensaio “Estrangeirados – os valores do
de Eduardo Lourenço (1949); Portugal outro lado da nossa fronteira” (2017),
e a Cultura Europeia (Séculos XVI a XVIII), entre outros; e a que lhes imputa um sen-
de José Sebastião da Silva Dias (1952); tido negativo, sendo esta a atitude, e.g.,
e Alexandre de Gusmão e o Tratado de Ma­ Domingos Maurício, no verbete “Estran-
drid, de Jaime Cortesão (1952). A partir geirados” publicado na Enciclopédia Luso­
de então, vários textos foram publicados ‑Brasileira da Cultura, e dos mentores do
sobre este tema e a discussão sobre o uso movimento da filosofia portuguesa, como
e o valor do conceito de estrangeirados Álvaro Ribeiro e António Quadros, e, de
instalou-se, protagonizada pelos mais di- forma mais moderada, de Jaime Cortesão
versos e abalizados eruditos, oscilando na obra Alexandre de Gusmão e o Tratado
entre os que não concebem os estran- de Madrid (1952) e de Eduardo Louren-
geirados enquanto conceito operatório, ço no ensaio “Nacionalistas e estrangei-
como Jorge Borges de Macedo em Estran­ rados” (1988) publicado em Destroços.
geirados, Um Conceito a Rever (1974) e Luís O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, assu-
Filipe Barreto em “Ribeiro Sanches e o mindo ambos uma atitude crítica acerca
poder do saber” (1984); os que reconhe- da imagem luminosa que vinha sendo
cem o valor daqueles que são chamados traçada dos estrangeirados sem, todavia,
de estrangeirados embora sem asseverar colocarem em causa a relevância do seu
a sua unidade conceptual, como Hernâni legado.
Cidade no seu Ensaio sobre a Crise Mental A atitude dualista acima identificada
do Século XVIII (1929) e em “Uma revo- reflete uma visão maniqueísta da socie-
lução na vida mental da península no sé- dade e da cultura portuguesas, que se
culo xviii” (1934), e Eduardo Lourenço traduz no antagonismo entre castiços
no ensaio “Europa ou o diálogo que nos (representantes da tradição) e estrangei-
falta” (1949), publicado em Heterodoxia I; rados (representantes da rutura com essa
e os que aceitam e usam o conceito, regis- tradição), que Jaime Cortesão sintetizou
tando-se, por sua vez, quanto a este ter- da seguinte forma: “Dum lado, os que
ceiro grupo, duas atitudes antagónicas: defendem, a todo o custo, o pensamen-
a que, na senda de António Sérgio, con- to e a tradição do governo absoluto, se-
fere um sentido positivo aos estrangeira- veramente definido e vigiado na pureza
dos, posição adotada por Joaquim Bar- da fé pelo Santo Ofício; no ensino pela
radas de Carvalho em As Ideias Políticas e Companhia de Jesus; nas letras sagradas
Sociais de Alexandre Herculano (1949), José ou profanas, por um complicado sistema
Sebastião da Silva Dias em Portugal e a Cul­ de censura, e para os quais a salvação da
tura Europeia (Séculos XVI e XVIII) (1952), grei estava na preservação de toda a in-
António Coimbra Martins no verbete “Es- fluência estrangeira, e, mais que tudo, da
trangeirados” publicado no Dicionário de França e da Inglaterra. Do outro, os que

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entendiam, à uma, que era necessário movimento da filosofia portuguesa, que


libertar o País da ensimesmada reclusão teve Álvaro Ribeiro (um dos fundadores
em que vivia e abri-lo amplamente ao es- da renovação democrática) como seu
pírito científico moderno, embora alguns, principal mentor. A existência de uma
certamente, quisessem medir e talhar de- filosofia portuguesa será, precisamente,
masiadamente a pátria pelo exclusivo pa- contestada e analisada no contexto da
drão das novas ideias e regimes políticos herança da longa disputa entre castiços
e sociais, que, vindos da Holanda, da In- e estrangeirados. Cabral da Moncada,
glaterra e da França, começavam a inva- e.g., acusa o movimento da filosofia por-
dir a Europa” (CORTESÃO, 1984, 113). tuguesa de carretear uma preocupação
Trata-se de uma diferença que pode ser nacionalista “extravagante, fortemente
considerada herdeira da querela entre detratora das filosofias estrangeiras e qua-
antigos e modernos, que teve maior ex- se xenófoba” (MONCADA, 1960, 17-18).
pressão no séc. xviii, quando o valor atri- Eduardo Lourenço, por outro lado, ape-
buído à “autoridade” deixou de ter fun- sar de censurar o nacionalismo “desvaira-
damento e foi substituído pelo primado do” refletido pelo movimento, evidencia
da razão. Segundo Eduardo Lourenço, a e considera justificada a sua reação “con-
tensão entre castiços e estrangeirados é tra o pendor mimetista e o consequente
um produto da cultura pós-renascentista, descaso que ele implica de inatenção a
não exclusivamente portuguesa, e mani- nós próprios” (LOURENÇO, 1978, 73).
festa-se “sempre que a troca intelectual, A oposição ao mimetismo estrangeiro
artística ou ideológica aparece desequi- é empreendida pelo movimento 57 (ou
librada em favor de culturas alheias de movimento da cultura portuguesa), com
influência ou expressão hegemónicas” o argumento de que o problema crucial
(LOURENÇO, 2004, 141). Mas também de Portugal estava na contínua depen-
se manifesta, e porventura de forma mais dência em relação a correntes e modelos
incisiva, quando a identidade cultural se estrangeiros e de que a dinamização da
torna o motivo condutor de algo mais cultura apenas seria possível mediante
abrangente como a identidade nacional. uma valorização do que é genuinamente
A tensão entre castiços e estrangeirados português.
(ou tradição e inovação, nacionalismo e Encontramos, simbolicamente, em
universalismo, antieuropeísmo e euro- Álvaro Ribeiro e António Sérgio os re-
peísmo) está presente sempre que, em presentantes destas atitudes antagónicas
momento de “crise mental”, se questiona perante os castiços e os estrangeirados.
a identidade cultural portuguesa. Os inú- Ambas podem ser consideradas extre-
meros movimentos políticos e culturais, mistas, no sentido em que são formula-
representados em grupos ou publicações das no âmbito de uma ideologia especí-
periódicas, que irromperam no séc. xx, fica. Assim, se do lado tradicionalista se
no contexto de um nacionalismo mais ou condena a absorção dos sistemas estran-
menos exacerbado, são disso exemplo. geiros – o pensamento europeu de teor
Um desses grupos, a Renovação Demo- racionalista-positivista – e a consequente
crática, fundado em 1931 e marcado pelo desconsideração ou olvido do que é por-
pensamento de Leonardo Coimbra, pre- tuguês, mas também facilmente se alui
tendendo ser uma continuação do movi- num nacionalismo desmesurado; do lado
mento da renascença portuguesa em ple- universalista/europeísta, apesar de a ten-
no período ditatorial, será o alicerce do dência para de facto se valorizar o que

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Estrangeirados 2053

é estrangeiro – os escritores, os artistas,


os filósofos, os cientistas – em detrimen-
to do que é português, defende-se uma
participação numa cultura europeia com
vista à aquisição ou ao aprimoramento
de competências que o isolamento não
permite alcançar e à consequente moder-
nização e progresso do país. Neste senti-
do, a tensão entre os dois polos encontra
analogia com o debate entre progresso e
decadência, na medida em que cada gru-
po considera o outro responsável pelo
abatimento cultural e mental em que o
país está mergulhado. D.R.
Eduardo Lourenço (n. 1923).
Naturalmente, esta divisão maniqueís-
ta da sociedade portuguesa, ao excluir a
possibilidade de um meio-termo, suscita considera responsáveis por um desvirtua-
reações. Jorge Borges de Macedo, e.g., re- mento da cultura portuguesa (MARTINS,
futou esta delimitação da sociedade em 1981, 472b). O próprio Jaime Cortesão
dois grupos atuantes pelo facto de não reconhece que D. Luís da Cunha, apesar
considerar a possibilidade de cada um de ter sido o mais estrangeirado dentre
constituir uma unidade isolada: “Nem o todos, foi também o mais genuinamente
‘estar’ em Portugal trazia unidade, nem o português e que os conselhos, críticas e
viajar obrigava a opinião ou mudança de propostas que formulou se deveram, pre-
opinião” (MACEDO, 1974, 33). Ana Cris- cisamente, ao seu elevado patriotismo
tina Nogueira da Silva e António Manuel (CORTESÃO, 1984, 110).
Hespanha defendem que um e outro As diferenças de perspetiva aportadas
grupo criam na especificidade da cultu- traduzem, de forma exaltada, aquilo a
ra portuguesa, embora com manifesta- que Joel Serrão chama “dramática reali-
ções práticas bastante diversas: os castiços dade”: “cosmopolitismo e universalismo
concebiam uma identidade portuguesa que não enraízem no solo nacional es-
natural, com base na morigeração e no tarão irremediavelmente condenados a
providencialismo; os estrangeirados en- malogro; todavia, não o estará menos o
tendiam a identidade portuguesa em nacionalismo que não busque autonoma-
comunhão com a europeia, na esteira mente o caminho dos valores universais”
de um pensamento universalista (SILVA (SERRÃO, 1983, 212-213). O historiador
e HESPANHA, 1993, 19-20). António considera que estas diferenças só apa-
Coimbra Martins refere exemplos de in- rentemente são inconciliáveis, sugerindo
divíduos que, sem deixarem de ser casti- que a resolução do conflito se poderia
ços, foram também estrangeirados, entre encontrar no ecletismo cultural. António
os quais situa Filinto Elísio, a quem ape- Banha de Andrade adota uma posição
lida de “estrangeirado purista”, porque, igualmente conciliadora, ao afirmar que,
se, por um lado, admira e emula os fran- “se uns contribuíram mais fortemente
ceses, por outro, não deixa de censurar para o contacto mais amplo com a cultu-
o uso de galicanismos e a dependência ra europeia, outros deram precioso im-
desmesurada dos modelos franceses, que pulso para que a cultura nacional ficasse

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2054 Estrangeirados

menos desportugalizada” (ANDRADE, 2005; DIAS, José Sebastião da Silva, Portugal


1957, 10). e a Cultura Europeia (Séculos XVI a XVIII), Porto,
Embora a questão em torno da crítica Campo das Letras, 2006; DÓRIA, António
aos estrangeirados tenha perdido, atual- Álvaro, “Um ‘estrangeirado’”, Bracara Augusta,
vol. xx, fascs. 43-44, jan.-dez. 1966, pp. 416­
mente, alguma da acuidade, na sequên-
‑417; “Estrangeirado”, in CUNHA, António
cia da integração de Portugal na Europa Geraldo da, Dicionário Etimológico Nova Frontei-
e do progressivo esvaimento das frontei- ra da Língua Portuguesa, 2.ª ed., Rio de Janeiro,
ras, mas também devido ao fenómeno da Nova Fronteira, 1982, p. 333a; “Estrangei-
globalização potenciado pelos avanços rado”, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,
tecnológicos em larga escala, encontra­ t. viii, Lisboa, Temas e Debates, 2003, p. 3621a;
‑se, de certa forma, intuída nas expres- JUNQUEIRO, Guerra, Pátria, Porto, s.n., 1896;
sões episódicas de casticismo, mormente LOURENÇO, Eduardo, O Labirinto da Sauda-
de. Psicanálise Mítica do Destino Português, Lis-
em situações de crise que contrapõem os
boa, Dom Quixote, 1978; Id., Heterodoxia I e
interesses nacionais aos interesses euro- II, Lisboa, Assírio e Alvim, 1987; Id., Destroços.
peus. Por outro lado, o tema estrangei- O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Lisboa,
rados é, ainda, vítima de uma leitura da Gradiva, 2004; MACEDO, Jorge Borges de,
história como tribunal, permanecendo Estrangeirados, Um Conceito a Rever, Lisboa,
na memória cultural alguns preconceitos Edições do Templo, 1974; MARTINS, Antó-
relativos ao valor e significado do concei- nio Coimbra, “Estrangeirados”, in SERRÃO,
to, conforme atestam as atuais definições Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal, vol. ii,
Porto, Figueirinhas, 1981, pp. 466b-473b;
dicionarísticas.
MARTINS, Oliveira, Portugal Contemporâneo,
3.ª ed., t. i, Lisboa, Bertrand, 1895; MAURÍ-
CIO, Domingos, “Estrangeirados”, in Enciclo-
pédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. vii, Lisboa,
Verbo, s.d., pp. 1567a-1569a; MONCADA,
Luís Cabral de, “Para a história da filosofia
Bibliog.: ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE em Portugal no século xx”, Boletim da Faculdade
LISBOA, “Estrangeirado, a”, Dicionário da Lín- de Direito, vol. xxxvi, 1960, sep.; QUEIRÓS, Eça
gua Portuguesa Contemporânea da Academia das de, “O ‘francesismo’”, in QUEIRÓS, Eça de,
Ciên­cias de Lisboa, vol. i, Lisboa, Verbo, 2001, Últimas Páginas (Manuscritos Inéditos), 2.ª ed.,
p.  1591b; ALMEIDA, Onésimo Teotónio, Porto, Livraria Chardron, 1917, pp. 467-500;
A Obsessão da Portugalidade, Lisboa, Quetzal, SÉRGIO, António, O Problema da Cultura e o
2017; ANDRADE, António Alberto Banha de,
Isolamento dos Povos Peninsulares, Porto, Renas-
Filósofos Portugueses do Séc. XVIII, vol. i, Lisboa,
cença Portuguesa, 1914; Id., Ensaios, 2.ª ed.,
Edições da Revista “Filosofia”, 1957; BARRE-
t. ii, Lisboa, Sá da Costa, 1977; Id., Breve In-
TO, Luís Filipe, “Ribeiro Sanches e o poder do
terpretação da História de Portugal, Lisboa, Sá da
saber”, Prelo, n.º 4, jul./set. 1984, pp. 85-95;
Costa, 1998; SERRÃO, Joel, Temas de Cultura
CARVALHO, Joaquim Barradas de, As Ideias
Oitocentista, Lisboa, Livros Horizonte, 1983;
Políticas e Sociais de Alexandre Herculano, 2.ª ed.,
SILVA, Ana Cristina Nogueira, e HESPANHA,
Lisboa, Seara Nova, 1971; CIDADE, Hernâ-
António Manuel, “A identidade portuguesa”,
ni, Ensaio sobre a Crise Mental do Século XVIII,
in MATTOSO, José (coord.), História de Portu-
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1929;
gal, vol. iv, Lisboa, Estampa, 1993, pp. 19-37;
Id., “Uma revolução na vida mental da penín-
TAROUCA, Carlos da Silva, “Correspondên-
sula no século xviii”, Boletín de la Universidad de
cia entre o duque Manuel Teles da Silva e Se-
Santiago, ano vi, n.º 20, abr.-jun. 1934, sep.;
bastião José de Carvalho e Melo, 1.º marquês
CORTESÃO, Jaime, Alexandre de Gusmão e o
Tratado de Madrid, vol. iii, Lisboa, Livros Ho- de Pombal”, Anais da Academia Portuguesa de
rizonte, 1984; CURTO, Diogo Ramada, His- História, ii sér., vol. vi, 1955, pp. 277-422.
tória Política da Cultura Escrita, Lisboa, Verbo, Cristiana Lucas Silva

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Antifeminino 2055

Antifeminino menos acusam a marca de uma dada épo-


ca, de um país, de uma cultura ou de uma
classe social. Mas em todas elas se constata
a tese de uma supremacia masculina que
leva à consideração da mulher como um
apêndice do homem ou como uma ma-
nifestação inferior deste. Como diz Leo-

M asculino e feminino são catego-


rias classificativas que atravessam
praticamente todos os seres vivos. Por
nardo Boff, “A maioria das nossas criações
culturais possui uma linguagem sexista”
(BOFF, 1998, 42). E, na realidade, verifica-
isso, é vulgar aplicar estes conceitos aos mos que na maior parte das línguas o vocá-
humanos, usando-os de um modo neu- bulo “homem” é usado como sinónimo de
tro, como identificadores do sexo a que humano, abarcando, indiferenciadamen-
cada um pertence. Habituámo-nos a vê­ te, homens e mulheres.
‑los como itens constantes em bilhetes de A dualidade dos sexos foi sempre acom-
identidade, passaportes, cartas de con- panhada por uma diferença conceptual
dução e documentos afins, não sentin- quanto aos comportamentos esperados
do neles qualquer conotação valorativa. por parte de quem é homem e de quem
Contudo, se sairmos do âmbito biológico é mulher. Por isso, nas filosofias de géne-
e nos situarmos num terreno psíquico, ro, os termos “sexo” e “género” deixaram
ético ou sociológico, masculino e femini- de ser permutáveis. O primeiro define-se
no podem assumir outros significados e pelo biológico, em contraste com o se-
perder a sua neutralidade. Nos chamados gundo, que diz respeito ao representati-
Estudos de Género, uma disciplina que vo. Masculino e feminino surgem como
entrou na academia a partir dos anos 60 categorias de análise, como construções
do séc. xx, masculino e feminino não se intelectuais que se aplicam em contrapo-
interpretam como dados meramente bio- sição ao sexo.
lógicos mas sim como constructos sociais, Variáveis consoante os tempos, as cultu-
identificados com o conjunto dos com- ras e os grupos sociais, os conceitos de mas-
portamentos, das atitudes, dos interes- culino e de feminino forjaram-se numa
ses e dos modos de ser que as diferentes relação de oposição, por vezes agonística.
sociedades esperam dos homens e das Assim, para a filósofa Val Plumwood, as
mulheres. visões dicotómicas do real estão longe de
A diferença masculino/feminino é tra- ser inocentes, pois os elementos que com-
balhada pelas ciências humanas, dando­ põem os binómios conceptuais revelam
‑se-lhe particular relevo na sociologia, na uma visão hierárquica, sendo dominante
história, na antropologia, na filosofia e um dos elementos constitutivos do binó-
mesmo na teologia. E, se a dicotomia ho- mio, enquanto o outro tem o estatuto de
mem/mulher se aceita sem problemas na dominado. Tal acontece com os pares de
esfera biológica, o binómio masculino/ opostos cultura/natureza, forma/maté-
feminino assume uma forte carga cultural, ria, razão/paixão, homem/mulher, mas-
ligando-se a representações decorrentes culino/feminino, numa relação em que
de um imaginário popular, no qual são ní- o primeiro elemento predomina sobre o
tidas as ideias sobre o que pertence ao ho- segundo, que lhe é inferior.
mem e o que é próprio da mulher. Muitas A temática sexo/género ocupou um
dessas ideias são preconceituosas, ou pelo lugar central na maior parte das filosofias

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2056 Antifeminino

feministas do séc. xx. O modo como, luto: “Homem reina, mulher governa”,
a partir do biológico, aquilo que é mesmo que confira à esposa a orientação
dado, se construíram associações, de- do trabalho doméstico: “Na casa manda
terminações, expectativas e exigências ela mas nela mando eu”. É sobretudo nes-
preocupou muitas autoras. É por de- te plano que se espera a colaboração das
mais conhecida a posição de Simone mulheres enquanto trabalhadoras do lar,
de Beauvoir em Le Deuxième Sexe, uma contribuindo deste modo para o equilí-
tese que se transformou na bandeira de brio económico da família, visto que:
alguns feminismos radicais: “on ne naît “Mulher de bom recado, enche a casa até
pas femme, on le devient [uma pessoa ao telhado”. E essa qualidade é sobresti-
não nasce mulher, torna-se mulher]” mada em detrimento do próprio aspeto
(BEAUVOIR, 1949, II, 13). A obra em físico, uma vez que: “Formosura de mu-
causa impôs-se como referência nos lher não enriquece o homem”. A predo-
estudos de género, pela desconstrução minância masculina e a necessidade de se
operada ao conceito de feminino, uma encontrar um bode expiatório para com-
prisão que circunscreve as mulheres a pensar as desventuras ficam bem claras
um segundo plano, interditando-lhes o no ditado: “Faça-as quem as fizer, quem
acesso à realização plena a que todos os as paga é a minha mulher”.
humanos aspiram. Um dos estereótipos mais comuns as-
Aceitando que o conceito de feminino sociados ao conceito de feminino reside
está longe de ser neutro, analisar-se-á o na ligação das mulheres à família, na qual
modo como as mulheres foram represen- se reconhece a sua preponderância e se
tadas no imaginário cultural português a aceita o seu poder de gerir a lida domés-
partir de um conjunto de provérbios que tica. Por isso se aconselha: “Se queres
as retratam. Se analisarmos uma resenha uma boa filha escolhe uma boa mãe”.
de provérbios elaborada pela editora Nenhum afeto se compara ao amor ma-
Texto, verificamos que, relativamente ao ternal, tão grande, que tudo desculpa ou
tema da mulher, a visão predominante é mesmo ignora: “O amor de mãe é cego”.
negativa. Há um ou outro caso em que Tal amor nem sempre é acompanhado
a mulher/a figura feminina é tratada de alegria, sendo o sofrimento encarado
com benevolência, e.g., quando se afirma: como natural, e, inclusivamente, exigido
“Casa sem mulher lanterna sem chamas”, em certas circunstâncias, sob pena de fi-
ou quando se desaconselham compor- carem diminuídos os méritos da proge-
tamentos violentos: “Não se deve bater nitora: “Filho sem dor, mãe sem amor”.
na mulher nem com uma flor”. Mas são Note-se que nem sempre a relação ma-
adágios em que se pode descortinar um ternal é vista com bons olhos, pois a voz
paternalismo implícito, imediatamente do povo culpa a mulher quando as coisas
explicitado noutros, como: “Casa varrida correm mal: “Erros de filhos, culpas de
e mulher penteada, parece bem e não mães”. E o estereótipo da madrasta não
custa nada”. O ideal feminino é orienta- falta: “Madrasta, o nome lhe basta”. No
do para os trabalhos domésticos, a área que respeita às filhas, há que desconfiar
a que a mulher se deverá circunscrever, delas, tal como se desconfia das esposas:
pois: “Boa mulher nunca está ociosa”. Es- “Bela mãe e bela filha, disputas na famí-
tamos assim perante um imaginário po- lia”. A solução passa sempre pelo homem
pular declaradamente machista, no qual que é assim aconselhado: “Filha má, do-
o homem se assume como senhor abso- ta-a e casa-a”.

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Antifeminino 2057

A maldade é frequentemente vista Há adágios em que se adverte e acon-


como característica feminina: “Mulher selha: “Mulher formosa, doida ou pre-
boa, ave rara”, e manifesta-se mesmo nas sunçosa”; “Mulher doente, mulher para
mulheres aparentemente boas. Daí o sempre”; “Sinal no peito, mulher de res-
conselho: “Da mulher má te guarda e da peito”; “Mulher beata, mulher velhaca”;
boa não fies nada”. “Com a mulher e o dinheiro, não zombes
Se prosseguirmos na busca dos defeitos companheiro”; “A desconfiança é mãe da
femininos, constataremos que estes são segurança”; “Antes casada arrependida
profusamente considerados nos provér- que freira aborrecida”; e “Moça que en-
bios populares. As mulheres são palavro- tristece de amor adoece”. A ingenuidade
sas e maledicentes: “A língua das mulhe- e mesmo a ignorância são características
res é uma espada”, “Mulher de janela, diz apreciadas: “Mulher sabida é mulher per-
de todos e todos dela”. São naturalmente dida”; “Mulher séria não tem ouvidos”;
belicosas e imaturas: “A mulher e o rapaz e “Moça gabada, moça estragada”. A mu-
são pouco amigos de paz”. São dissimu- lher ideal não tem opiniões e muito me-
ladas: “A mulher ri quando pode e cho- nos as deverá mostrar, pois “Mulher hon-
ra quando quer”, “Lágrimas de mulher rada deve ser calada”.
valem muito e custam-lhe pouco”. São A comparação com animais é frequen-
dominadoras: “Não há como a mulher te, sendo o cão uma referência comum:
para fazer do homem quanto quer”; des- “Amor de mulher e amor de cão, nada
pudoradas: “Às romarias e às bodas vão valem se nada lhes dão”; “Mulher, cava-
as loucas todas”, “Mulher sem vergonha, lo e cão não se emprestam nem se dão”;
pior que peçonha”, “Homem casado, “Mulher e cão de caça procurai-os pela
nem bom marido nem bom soldado”; raça”; e “Não te fies em mulher que
e coléricas: “Mulher de pelo na venta não fala e cão que não ladra”. Aparte as
nem o diabo a aguenta”. Em quaisquer comparações canídeas, há outras aproxi-
circunstâncias em que se encontrem, elas mações zoológicas igualmente pouco li-
nunca respondem satisfatoriamente às sonjeiras: “A raposa tem manha por sete
exigências masculinas, pois, como diz o homens, a mulher tem manha de sete
povo: “As mulheres, onde estão, sobejam raposas”; “A mulher e o peixe do mar
e, onde não estão, faltam”. são difíceis de agarrar”; “É má como as
É extenso o rol de provérbios que cobras”; e “Bem sabe a burra, diante de
contemplam o aspeto físico. Alguns pre- quem zurra”.
tendem orientar a escolha masculina: Curiosamente, num país de fortes tradi-
“A mulher e a sardinha querem-se da ções vinícolas, não faltam adágios relacio-
mais maneirinha”; “Mulheres e sardi- nados com a bebida. Alguns revelam uma
nhas, querem-se pequeninas”. Noutros apreciação positiva: “De boa cepa, a vinha
criticam-se certos traços físicos: “Mulher e de boa mãe, a filha”, ou “Vinho de boa
de buço, nem qualquer um lhe apalpa cepa e filha de boa mãe”, mas a tónica
o pulso”; “Mulher de nariz arrebitado, negativa reaparece noutros, como: “Do
é levada do diabo”; “Mulher sardenta, vinho e da mulher, livre-se o homem … se
mulher rabugenta”; “Moças, chitas e fitas puder”; “A mulher e o vinho fazem errar
não há feias nem bonitas”. À laia de con- o caminho”; e “Vinho, mulheres e tabaco
solação, diz-se: “Toda a mulher bela tem põem o homem fraco”.
o seu defeito, e toda a feia o seu talento”, A vertente sexual é outra constante.
sendo todas as características valorizadas. Escolhemos alguns dizeres nos quais se

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2058 Antifeminino

evidenciam as críticas à destemperança Bibliog.: ARCHER, John, e LLOYD, Barbara,


feminina: “Bem canta Marta depois de Sex and Gender, Cambridge, Cambridge Uni-
farta”; “Morra Marta, morra farta”; “Ho- versity Press, 1985; BEAUVOIR, Simone de, Le
Deuxième Sexe, 2 vols., Paris, Gallimard, 1949;
mem velho e mulher nova dão filhos até
BOFF, Leonardo, O Rosto Materno de Deus, Pe-
à cova”; “Muito filho, mãe gulosa”; “Viúva trópolis, Vozes, 1998; BRAIDOTTI, Rosi, No-
rica, com um chora e com outro repeni- madic Subjects: Embodiment and Sexual Difference
ca”; e “Mulher que a dois ama aos dois in Contemporary Feminist Theory, New York, Co-
engana”. lumbia University Press, 1994; BUTLER, Judi-
Longe de pensarem como uma frente th, Gender Trouble, London, Routledge, 1990;
CAMPS, Victoria, O Século das Mulheres, Lis-
unida que se entreajuda na adversidade,
boa, Presença, 2001; FERREIRA, Maria Luísa
as mulheres são vistas como rivais entre si: Ribeiro, As Mulheres na Filosofia, Lisboa, Coli-
“Zangam-se as comadres, descobrem-se as bri, 2009; GODELIER, Maurice, “Du quadru-
verdades”; “Nas mulheres, acaba a amiza- ple rapport entre les catégories de masculin et
de onde começa a rivalidade”; e “Má vizi- de féminin”, in EPHESIA, La Place des Femmes.
nha à porta é pior que lagarta na horta”. Les Enjeux de l’Identité et de l’Égalité au regard des
Sciences Sociales, Paris, La Découverte, 1995,
As próprias relações de parentesco estão
pp. 439-442; HEKMAN, Susan, Gender and
longe de ser pacíficas, como demonstra Knowledge. Elements of a Postmodern Feminism,
o ditado: “É bem casada a que não tem Cambridge, Polity Press, 1990; IRIGARAY,
sogra nem cunhada”. Luce, “Femmes et hommes. Une identité ra-
A condição feminina é reconhecida pe- tionnelle différente”, in EPHESIA, La Place des
las próprias mulheres que sobre si mes- Femmes. Les Enjeux de l’Identité et de l’Égalité au
regard des Sciences Sociales, Paris, La Découverte,
mas interiorizam uma visão pouco aprazí-
1995, pp.  137­‑142; MACEDO, Ana Gabrie-
vel: “Mãe, que é casar? Filha, é fiar, parir la (org.), Género, Identidade e Desejo. Antologia
e chorar”. Por sua vez, constata-se que Crítica do Feminismo Contemporâneo, Lisboa,
a maternidade imprime carácter: “Mãe Livros Cotovia, 2002; MIDGLEY, Mary, “Sex
uma vez, mãe para sempre”. E a seguran- and personal identity”, in Utopias, Dolphins,
ça surge como ideal, uma vez que: “Mais and Computers: Problems of Philosophical Plum-
bing, London, Routledge, 1996, pp. 73-83;
vale filha mal casada que bem amanceba-
PLUMWOOD, Val, Feminism and the Mastery of
da” e “Mais vale ser mulher de ninguém Nature, London/New York, Routledge, 1993;
que amante de alguém”. Provérbios Populares Portugueses, Cacém, Texto
Ultimamente, as ciências humanas Editores, 2001; SILVA, Manuela, A Igualdade de
(nomeadamente os estudos de género) Género, Lisboa, Comissão para a Igualdade e
muito têm contribuído para a conside- para os Direitos das Mulheres, 1999.
ração social da mulher e a valorização Maria Luísa Ribeiro Ferreira
do conceito de feminino, respeitando
as suas especificidades e lutando pelo
seu reconhecimento. É um caminho ár-
duo, que começou a dar frutos, mas que
exige uma mudança de mentalidades.
Espera-se que dentro de pouco tempo
a maior parte dos provérbios aqui cita-
dos adquira um estatuto de tradições
ultrapassadas, ou seja, de curiosidades
interessantes que ninguém se lembre
de tomar como norma.

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Antifilosofia portuguesa 2059

Antifilosofia Associa-se a esta procura de uma distinção


e diferenciação no exercício do ofício do
portuguesa pensamento a afirmação da dissemelhan-
ça radical em relação a outros sistemas
filosóficos e até a sua superioridade, no-
meadamente em relação à internacional-
mente mais valorizada filosofia alemã.
Por seu lado, alguns dos cultores desta

A corrente da filosofia portuguesa é for-


mada essencialmente por intelectuais
que consideram que é possível circuns-
filosofia nacional consideram o pensa-
mento filosófico português como estan-
do patente tanto em obras filosóficas em
crever e produzir um pensamento tendo sentido estrito, como também, e sobrema-
por horizonte a definição de uma mundi- neira, na melhor poesia portuguesa, que
vidência a partir de uma ótica guiada por traduziria o ser de forma mais adequada
valores e princípios modelados no qua- do que um volumoso tratado de filosofia
dro da cultura e da mentalidade próprias pura. Esta filosofia tipicamente portugue-
do mapa identitário nacional português. sa brotaria da experiência nacional tradu-
Como escreveu um dos principais mestres zida no discurso cultural sobre o povo por-
desta corrente: “Se cada povo, ou cada tuguês, a sua história e a sua relação com
pátria é uma entidade espiritual, como a o mundo. E teria estado imune a qualquer
singularidade da língua demonstra, então corrente de pensamento estrangeiro. De-
corresponde-lhe, necessariamente, uma fi- fende-se, por isso, a absoluta originalida-
losofia própria” (RIBEIRO, 1943, 80). de do pensar português, que traduz um
Deste modo, é diferenciado, distingui- sentir português. Alguns pensadores ins-
do e singularizado um conjunto de con- critos nesta corrente tendem a destacar
ceitos, de chaves de leitura do mundo e também o carácter precursor do pensa-
do Homem, e de valores fundamentais, mento português em relação a marcas de
dados como próprios do povo português pensamento filosófico de outros países
e da sua cultura; com base neles, e com que terão grande fortuna posteriormente.
eles, é que se teria desenvolvido um pen- Paulo Borges, no artigo de síntese sobre
samento próprio, um modo único de pen- a problemática da filosofia portuguesa
sar e realizar, professando-se uma ontolo- publicado na enciclopédia Logos, chega a
gia essencialista de carácter nacional. caracterizar a filosofia portuguesa como
A filosofia portuguesa articula-se com uma antifilosofia, na medida em que se
correntes de valorização da cultura castiça, opõe aos cânones clássicos dos discursos
de promoção dos discursos de identidade filosóficos; e observa que, no contexto em
nacional que salientam as peculiaridades que esta corrente emerge em Portugal, o
e a intraduzibilidade de ideias, conceitos, seu modo de entender a filosofia afronta
sentimentos e palavras que dizem o modo as correntes internacionais dominantes,
de ser, pensar e estar português no espa- como o positivismo e o cientismo, herdei-
ço e no tempo, na relação com os outros ros exacerbados do racionalismo iluminis-
povos e com as outras culturas. Termos ta. Em grande medida, a filosofia portu-
como “saudade”, “nau”, “viagem” e “mar” guesa torna-se crítica do estrangeiramento
são apropriados e distinguidos como com- do pensamento português e do domínio
portando dimensões significadas absolu- do ensino universitário pela filosofia e
tamente singulares na ótica portuguesa. pela ciência vindas de além-Pirinéus. Em

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2060 Antifilosofia portuguesa

particular, os cultores da filosofia portu-


guesa reagem fortemente à hegemonia
de uma certa filosofia alemã niilista, mate-
rialista, positivista e psicologista, que teria
desnaturalizado o pensamento de outras
nações, nomeadamente europeias. Chega­
‑se mesmo a acusar a Alemanha de ser a
pátria mais antifilosófica de todas as pá- Ex-líbris da renascença portuguesa,
trias, ou a pátria de uma filosofia corrom- de António Carneiro (1872-1930).
pida e corruptora do melhor humanismo,
que teria estado na origem, nomeadamen- Estes consideram o pensamento filosófi-
te, de hecatombes humanas globais como co caracteristicamente universalista, não
a Segunda Guerra Mundial e a ideologia podendo ser capturado nem entrinchei-
nazi, que inspirou um dos mais devastado- rado no quadro restrito de uma fronteira
res genocídios do séc. xx. cultural, seja ela nacional ou regional; e
A corrente da filosofia portuguesa afir- defendem que a filosofia é por natureza
mou-se na viragem do séc. xix para o crítica e libertadora de todas as formas de
séc. xx e teve como mentores e figuras catalogação e apropriação por uma mun-
tutelares, algumas delas apropriadas mais dividência restritiva.
tarde, pensadores e poetas como Sam- Um dos mais emblemáticos textos crí-
paio Bruno, Fernando Pessoa, Teixeira ticos desta corrente foi assinado em 1957
de Pascoes, José Marinho, Álvaro Ribeiro pelo célebre professor jesuíta P.e Manuel
e Leonardo Coimbra. Os discípulos dos Antunes nas páginas da Brotéria. No seu
mestres fundadores e mentores foram artigo de forte análise crítica intitulado
denominados, a partir da segunda meta- “Haverá filosofias nacionais?”, o futuro
de do séc. xx, de grupo da filosofia por- diretor desta influente revista da Compa-
tuguesa, no qual pontificam pensadores nhia de Jesus desnacionaliza a filosofia e
como António Quadros, Afonso Botelho, aponta a inconsistência das tentativas da
António Telmo, Cunha Leão, Braz Teixei- sua adjetivação como meio operatório
ra, Pinharanda Gomes, entre outros. Cru- para a sua caracterização e para o seu
zam-se no seu ideário de demanda de uma encaixe numa trincheira nacional. Advo-
identidade filosófica própria da nação ga a universalidade e transversalidade do
portuguesa correntes literárias e de pen- pensamento filosófico, que, por natureza,
samento com revistas associadas, como tem de ser livre de qualquer vinculação
Renascença Portuguesa, Integralismo Lusita- rácica, geográfica ou mesmo linguística,
no, Águia, Nova Renascença, etc. Algumas para poder questionar livremente e pen-
publicações tornaram-se emblemáticas e sar o ser humano inscrito no espaço e no
até de algum modo orientadoras para o tempo para além dos quadros preconcebi-
cinzelar da identidade desta corrente, em dos. Manuel Antunes clarifica assim a sua
particular Acto 57 e Escola Formal. posição: “Não me parece legítimo poder
A filosofia portuguesa tem sido alvo, es- afirmar-se a existência de filosofias nacio-
pecialmente a partir dos finais dos anos 50 nais no sentido rigoroso dos vocábulos.
e, de forma mais intensa, a partir dos anos Ciência (sui generis, sem dúvida) do uni-
60 do séc. xx, da crítica dos pensadores versal, do universal enquanto universal,
portugueses mais europeístas e abertos às o qualificativo de grega, alemã, inglesa,
correntes de pensamento internacional. americana, etc., oposto, como determi-

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Antifilosofia portuguesa 2061

nação essencial do substantivo ‘filosofia’,


nega a própria filosofia: se é nacional não
é filosofia, e se é filosofia não é nacional”
(ANTUNES, 2008, 41). E, mais à frente,
a concluir o artigo, reconhece a possibi-
lidade de se considerar uma pátria para a
filosofia; porém, não uma pátria política,
nem ideológica, mas outro tipo de pátria:
“Sim: as filosofias têm uma pátria. Porém,
esta é muito mais que um espaço geográ-
fico, um espaço espiritual” (Id., Ibid., 47).
Além de um certo desdém a que foi vo-
tada esta corrente de filosofia nacional no
quadro da universidade, do seu ensino e
da sua pesquisa, outros críticos, situados na
área da história da cultura e das mentalida-
des, acompanharam Manuel Antunes nesta
refutação das pretensões da filosofia portu-
guesa. Além das muito conhecidas análises
críticas de Eduardo Lourenço, que acusava
a filosofia portuguesa de ser “a expressão
da ideologia nacional mais exorbitada”
(LOURENÇO, 1978, 37), merece aqui re- Capa de A Obsessão da Portugalidade (2017).
ferência Joel Serrão e o seu desacordo à
tese de intraduzibilidade de alguns termos área, aberta e indefinida, do pensamento
que transportam conceitos próprios, como humano que se interroga sobre questões
a mítica palavra “saudade”, que pensadores ou problemas universais. Essa área é vas-
como António Quadros defendem como ta e as perguntas filosóficas são de vária
sentido tipicamente português. ordem. Há as que se convencionou cha-
Posteriormente, Onésimo Teotónio de mar de ordem metafísica, epistemológica,
Almeida, na sua obra A Obsessão da Por- ética, estética, lógica, e cada uma dessas
tugalidade, dedica um capítulo à filosofia subáreas tornou-se um ramo independen-
portuguesa e à sua problematização, que te e já tem as suas subdivisões. Que cada
funciona como ponto de chegada de um filósofo ou grupo de filósofos de um país
longo debate e ensaia uma síntese de não possa libertar-se totalmente dos va-
meio século de polémicas. Posiciona-se lores éticos, estéticos da sua cultura nem
clara e radicalmente do lado dos críticos, dos condicionamentos da própria língua
carreando os argumentos dos cultores da é um facto, ainda que o grau dessa pre-
filosofia nacional para desconstruí-los de sença varie muitíssimo com a área em
forma abrangente. Afirmando a universa- causa [...]. O objetivo dela é universal e
lidade do pensamento filosófico como sua tem preocupado gerações sucessivas, em
característica inalienável, conclui que de- culturas e ambientes históricos diversíssi-
fender uma filosofia nacional é subverter mos” (ALMEIDA, 2017, 180-181).
os fins da mesma disciplina filosófica: “Po- Este é um debate que vai continuar, na
rém, o que tradicionalmente na História sua complexa oposição entre o enten-
universal se vem chamando filosofia é uma dimento académico e canónico da ideia

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2062 Antifisiocracia

de filosofia (sufragado pelo ensino e a


investigação universitários formalmen-
Antifisiocracia
te estabelecidos e validados pelos pares
académicos internacionais) e uma ideia
menos convencional de filosofia que mis-
tura a poesia, a razão, o sentimento e a
imaginação inscrita num horizonte de
compreensão do mundo. Este horizonte
hermenêutico acabou por ser uma forma
de resistência – que é subsidiária da defe-
F undada nos conceitos basilares de
ordem natural, liberdade económica
e na preponderância absoluta da agri-
sa de uma identidade cultural e pensan- cultura, a fisiocracia surgiu como uma
te circunscrita nacionalmente em tempo reacção ao colbertismo, na déc. de 50 do
de globalização – acelerada, que veio pôr séc. xviii, no quadro do amplo debate
a nu as porosidades invencíveis das fron- impulsionado pela Ilustração em torno
teiras nacionais, que, na verdade, nunca da economia política e da centralida-
foram totalmente impermeáveis na sua de reservada à análise das instituições e
longa duração. A afirmação ideográfica dos agentes económicos. Inspirado pelas
da filosofia portuguesa associa de algum ideias de Vauban (sobre a proporciona-
modo a crítica e até a negação de ideários lidade e transversalidade do imposto),
que lhe são opostos, fornecendo conteú- de Boisguilbert (acerca do papel prima-
dos argumentativos para engrossar outras cial da agricultura), de Hume (relativas
correntes anti como o antipositivismo, o à sociabilidade fundada na propriedade
anti­‑iluminismo, o antimaterialismo, o an- e no comércio, mas também à liberaliza-
tissociologismo, o antipsicologismo, a anti­ ção agrária), de Melon (subordinadas ao
globalização, o anticientismo, o antiuni- universalismo ético da ciência económi-
versitarismo, entre outros. ca), e de Cantillon (quanto às perspetivas
sobre o papel do comércio), o movimen-
to fisiocrático preconizava uma mundi-
vidência específica, de natureza política
Bibliog.: ALMEIDA, Onésimo Teotónio, A Ob‑ (assente no despotismo legal), económi-
sessão da Portugalidade, Lisboa, Quetzal, 2017;
ca (baseada na existência de um sistema
ANTUNES, Manuel, Obra Completa do Padre Ma‑
nuel Antunes, coord. José Eduardo Franco e
de produção e circulação de riquezas
Luís Machado de Abreu, t. i, vol. iii, 2.ª ed., regido por princípios gerais, tributários
Lisboa, FCG, 2008; BORGES, Paulo A. E., da ordem natural), e social (traduzida
“Problema da filosofia portuguesa”, in Logos, numa lógica tripartida, constituída por
Lisboa, Verbo, 1999, pp. 616-626; GANHO, classes cuja diferenciação resultava do
Maria de Lourdes Sirgado (coord.), Dicionário contributo respetivo para o produto lí-
Crítico de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Temas e quido). A François Quesnay (1694-1774),
Debates, 2016; GOMES, Pinharanda, Dicioná‑
fundador do referido movimento, autor
rio de Filosofia Portuguesa, 2.ª ed. aum., Lisboa,
Dom Quixote, 2014; LOURENÇO, Eduardo, dos artigos “Grains” (1756) e “Fermiers”
O Labirinto da Saudade, Lisboa, Dom Quixote, (1757) da Grande Encyclopédie, coube o ím-
1978; PASCOAES, Teixeira de, A Arte de Ser peto fundacional deste movimento com a
Português, Lisboa, Assírio e Alvim, 1998; RIBEI- publicação de Tableau Économique (1758,
RO, Álvaro, O Problema da Filosofia Portuguesa, reeditado em Analyse de la Formule Aritmé-
Lisboa, Inquérito, 1943. thique du Tableau Économique de la Distri-
José Eduardo Franco buition des Dépenses d’Une Nation Agrícole,

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Antifisiocracia 2063

1760), cujas ideias principais expunha do sistema fiscal francês considerado em


em Essai sur l’Administration des Terres 1790, no decurso do período revolucio-
(1759), e Droit Naturel (1765). Foi secun- nário. No espaço europeu, a fisiocracia
dado pelos trabalhos de, entre outros, obteve particular acolhimento junto de
Dupont de Nemours, De l’Exportation et de José II da Áustria, de Catarina, a Grande,
l’Importation des Grains. Memóire Lu à la So- da Rússia, de Estanislau, na Polónia, e de
ciété Royale d’Agriculture de Soissons (1764) Gustavo III da Suécia.
e Physiocratie ou Constituition Essentielle du Reconhecido como polémico, no con-
Gouvernement le plus Avantageux au Genre texto francês, o projeto fisiocrático não
Humaine (1767, antolologia, subordina- tardou em suscitar a crítica, surgida ini-
da aos trabalhos publicados por Quesnay cialmente aquando da receção das pri-
no Journal d’Agriculture, du Commerce et des meiras obras de Quesnay, consolidado a
Finances), Lemercier de La Rivière, Ordre partir de 1767. Na reação ao sistema fi-
Naturel et Essentiel des Sociétés Politiques siocrático, evidenciava-se François Veron
(1767), Abade Baudeau, Introduction à Forbonnois, autor de Elements du Commer-
la Philosophie Économique (1771), Abade ce (1754), que no ano de 1767 reforçou
Roubaud, Abrégé des Principes de la Science o seu contributo para a Encyclopédie, a
Économique (1771) ou Le Trosne, L’Intérêt propósito do comércio e da sua relevân-
Social, par rapport à la Valeur, à la Circula- cia para a estrutura económica francesa,
tion, à l’Industrie et au Commerce (1777). com a publicação de Principes et Observa-
A fisiocracia aspirava à materialização ins- tions Economiques, onde refutava as ideias
titucional da ordem natural intrínseca às subjacentes ao Tableau de François Ques-
sociedades humanas, da qual resultavam nay, em particular, a tese da condição
as dimensões de universalidade e imuta- estéril (em aceção não coincidente com
bilidade do modelo a instaurar. Com este, improdutiva) da indústria e das profis-
a fisiocracia propunha-se restaurar a soli- sões liberais, por oposição à ascendência
dez interna e o prestígio externo da mo- tutelar da agricultura. A este designado
narquia absoluta francesa através de uma principal adversário da fisiocracia, segun-
lógica governativa cuja essência implicava do Lemercier de la Rivière, juntavam-se
a mudança dos fundamentos políticos e outras figuras e outras fontes de contes-
sociais do Antigo Regime; fosse pelo pa- tação: Graslin destacava-se pela crítica
pel reservado à figura régia, responsável dos fundamentos fisiocráticos, aos quais
por identificar e adequar a ordem natural respondia na obra Essai sur la Richesse et
ao ordenamento jurídico do país (“As leis sur l’Impôt (1767), posição semelhante
positivas estão todas feitas; não podem ser à adoptada pelo abade Raynal. O abade
senão actos declarativos dos direitos na- Galiani, com Dialogues sur le Commerce des
turais”, [RIVIÈRE, 1767, 61]), fosse pelo Blés (1770), incidia as suas reservas sobre
seu impacto na estrutura social através da a fundamentação basilar do sistema geral
reforma do sistema tributário. Influen- fisiocrático, a ordem natural. Por exten-
te nas opções políticas e económicas da são, questionava a plausibilidade intrín-
França nas décs. de 60 e 70 do séc. xviii seca do conjunto de princípios abstratos,
(até 1776), as ideias fisiocráticas, em par- universais e imutáveis ambicionados pela
ticular, a salvaguarda da propriedade, o fisiocracia. A popularidade considerável
conceito de produto líquido e a incidên- obtida por esta obra resultou, parcial-
cia tributária proporcional sobre a terra mente, da projeção dada por Voltaire,
agrícola contribuíam para a definição que secundava as dúvidas e reservas de

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2064 Antifisiocracia

Galiani, de forma sarcástica, em L’Homme Richesses, 1814) e D. Ricardo acerca do sis-


aux Quarante Écus. Para Rousseau, a fisio- tema de repartição (Principles of Political
cracia antagonizava com a sua perspetiva Economy, 1817), revelava-se basilar para a
contratualista, embora convergisse no escola clássica.
reconhecimento de leis eternas propor- Em Portugal, os ecos da fisiocracia, co-
cionadas pela natureza e pela ordem. Di- mummente associados às Memórias Eco-
vergia, no entanto, na apreciação do inte- nómicas da Academia Real das Ciências de
resse e do dever individuais, entendendo Lisboa para o Adiantamento da Agricultura,
o primeiro em razão inversa do segundo, das Artes e da Indústria em Portugal e Suas
ao invés do pressuposto fisiocrático, de Conquistas (1789-1815) e a outras publica-
justaposição plena entre ambos. Mably, ções produzidas sob o signo da referida
por seu turno, incidia as suas críticas na instituição (como as Memórias Políticas
refutação do despotismo legal e perfi- sobre as Verdadeiras Bases da Grandeza das
lhava-se como partidário da ascendência Nações e principalmente de Portugal, da auto-
do poder legislativo sobre o executivo. ria de Joaquim José Rodrigues de Brito),
Diversa seria a oposição expressa por Ne- suscitaram entendimentos diferenciados
cker em La Législation et le Commerce des entre os teóricos do pensamento econó-
Grains, obra editada em 1775, favorável, mico português, como se aprecia nas aná-
entre outros aspetos, à regulamentação lises de Amzalak (1922), Castro (1980),
do comércio de cereais, uma medida que Cardoso (1989; 2001), e Santos (1993),
viria a instituir enquanto ministro de Es- entre outros. Dotado de um carácter in-
tado (1776-1778 e novamente entre 1788­ quiritivo e vocacionado para a identifi-
‑1790). No contexto europeu, a reacção cação das potencialidades económicas
à fisiocracia ganhava particular alento no existentes, inexploradas ou não inteira-
espaço alemão, onde o tema inspirou um mente aproveitadas, este memorialismo
elevado número de publicações entre os ocupava-se, indistintamente, dos espaços
anos de 1771 e 1832; neste movimento, portugueses, metropolitano e colonial,
evidenciava-se Johan Friedrich van Pfeif- segundo uma perspetiva de transversali-
fer, com a obra Der Anti-Physiocrat (1780). dade aglutinadora dos segmentos de ati-
Em Inglaterra, a reação à fisiocracia en- vidade acessíveis à iniciativa privada. Tal
contrava-se no pensamento de Adam exercício, longe de privilegiar um perfil
Smith, em Riqueza das Nações (1776). Sem económico específico, caracterizava-se
prejuízo do mérito reconhecido à siste- antes pelo esforço de diversificação, pa-
matização apresentada por Quesnay e da tente nos múltiplos estudos dedicados à
influência exercida pela mesma no tra- produção agrícola e industrial, aos com-
balho de Smith, este autor distanciava-se bustíveis, minérios e metais preciosos, aos
dos fisiocratas em matérias fundamentais, fluxos comerciais e respetiva organização,
como a origem do valor e, por extensão, a às aptidões económicas regionais, à evo-
política tributária, cuja transversalidade e lução verificada em alguns sectores e às
proporcionalidade deveriam aplicar-se ao relações entre demografia e desempenho
corpo social e não apenas a um segmento económico. Neste panorama, subscreve-
específico. Esta orientação, aprofundada ram contributos autores diversos como
nas análises de J. B. Say sobre a produ- Alexandre António das Neves Portugal,
ção de riqueza (Traité d’Économie Politique Alexandre António Vandelli, António
ou Simple Exposition de la Manière Dont Se Henriques da Silveira, António Barbosa,
Forment, Se Distribuent et Se Consomment les Constantino Botelho de Lacerda Lobo,

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Antifisiocracia 2065

Estêvão Cabral, Francisco Pereira Rebelo crítico da experiência económica con-


da Fonseca, Guilherme B. de Eschwege, duzida por Sully e pelas influências da
João António Júdice, João Botelho de Lu- visão construída por Manuel Severim
cena Almeida Beltrão, P. João Loureiro, de Faria. Aos olhos de Vandelli, o de-
João Manuel de Campos e Mesquita, João senvolvimento da indústria não deve-
Pinheiro de Freitas Soares, João da Silva ria pôr em causa as condições basilares
Feijó, Joaquim de Amorim e Castro, Joa- ao desempenho agrícola, sob pena de
quim Foyos, Joaquim Pedro Fragoso da comprometer não só a prosperidade
Mota Sequeira, José Pedro Gomes de Oli- geral como as possibilidades de sucesso
veira, José António de Sá, José Bonifácio industrial. Convicto da relevância pri-
de Andrade e Silva, José Henriques Fer- mordial da agricultura, na esteira dos
reira, José Inácio da Costa, José Jacinto de fisiocratas – “a fortuna do Estado está
Sousa, José Joaquim da Cunha Azeredo nas mãos dos cultivadores. A  produção
Coutinho, José Joaquim Soares de Barros, da terra é a única e verdadeira riqueza
José Martins da Cunha Pessoa, José Pinto e a cultura dela o único princípio da
Ribeiro, José Veríssimo Álvares da Silva, sobredita. Que o consumo, é o único
Luís António de Oliveira Mendes, Luís agente, que dá valor à produção, que a
Pinto de Sousa Coutinho, Manuel de Al- anima, e a estende e a multiplica” (VAN-
meida de Soveral de Carvalho e Vascon- DELLI, 1789, 248) –, o autor não excluía
celos, Manuel Arruda da Câmara, Manuel o cenário de desenvolvimento do sector
Dias Baptista, Manuel Ferreira da Câmara
Bettencourt e Sá, Rodrigo de Sousa Cou- François Quesnay (1694-1774).
tinho, Sebastião Francisco Mendo Trigo-
so, Tomás António de Vila Nova Portugal,
Vicente Coelho de Seabra Silva Teles.
Domingos Vandelli, considerado por
alguns teóricos do pensamento eco-
nómico português como “um dos mais
inteligentes representantes da escola fi-
siocrata” em Portugal (AMZALAK, 1922,
21), na esteira de Frederico Laranjo
e Marnoco e Sousa, ou antes, como o
memoralista revelador com maior ape-
tência à receção de conceitos-chave
da escola fisiocrática francesa, gran-
jeava particular projeção em finais do
séc. xviii. Sublinhe-se, no entanto, o ca-
rácter híbrido das opções assumidas por
Vandelli, conforme testemunhava na sua
“Memória sobre a preferência que em
Portugal se deve dar à agricultura sobre
as fábricas”. Neste trabalho, secundava a
via assumidamente heterodoxa do fisio-
crata Boefnier de l’Orne (De l’Esprit du
Gouvernment Économique, 1775), a qual de-
monstrava perfilhar, aduzido pelo balanço

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2066 Antifisiocracia

secundário português, cujo êxito depen- fesa dos interesses dos grandes proprie-
dia da adoção estrita do modelo inglês: tários. Igualmente crítico da fisiocracia,
“Queremos ser fabricantes, imitemos os José Acúrsio das Neves objetava à centra-
ingleses, e sigamos as suas normas. Eles, lidade atribuída à agricultura como fun-
no ano de 1689, excitando com prémios damento da riqueza nacional e contra-
a extracção de combustíveis, promove- punha-a à função original do trabalho.
ram a agricultura, depois aumentaram Defensor da liberdade comercial, Neves
o seu comércio e multiplicaram as fábri- demonstrava acolher os postulados de-
cas; e para que estas não prejudicassem fendidos por Jean Baptiste Say, de cuja
a agricultura, inventaram máquinas para aplicação ao contexto português resulta-
facilitar a mão de obra em aquelas fábri- va a ideia de atraso nacional, tributário
cas” (Id., Ibid., 250). A reflexão crítica de causas estruturais endógenas face ao
ao movimento memorialista inspirado desenvolvimento tecnológico das nações
pela Academia das Ciências de Lisboa industriosas. Em 1820, expandia estas
germinou, numa fase inicial, entre os premissas na sua Memória sobre os Meios
meios ligados ao comércio, mormente de Melhorar a Indústria Portuguesa Conside-
luso-brasileiro. Em 1821, eram conhe- rada nos Seus Diferentes Ramos, uma obra
cidas as considerações formuladas por onde procurava demonstrar os benefí-
M. J. R. (Manuel Joaquim Rebelo, co- cios dos sectores industrial e comercial
merciante da praça de Lisboa, segundo face à agricultura, condicionada pela
CARDOSO, 1989 e Economia Política…, fertilidade dos solos e extensão das áreas
1992) no ano de 1795. Neste opúsculo, de cultura. Por esse motivo, refutava o
enfatizava-se a relevância do desenvolvi- progresso agrícola como requisito pré-
mento técnico e a sua articulação com a vio ao desenvolvimento da indústria, à
atividade comercial. Mais, procedia-se à qual imputava efeitos multiplicadores,
demonstração dos benefícios resultantes também apreciados pela agricultura,
do investimento nos domínios da fiação nas áreas de implantação. Salientava,
e tecelagem de algodão, em Portugal. no entanto, a importância da circula-
Em 1803, Manuel Luís da Veiga dava à ção monetária e, subsequentemente, da
estampa Escola Mercantil sobre o Comércio criação de bancos. Igualmente promo-
assim Antigo como Moderno entre as Nações tor do desenvolvimento da indústria,
Comerciantes dos Velhos Continentes, assen- Francisco Solano Constâncio procedia a
te numa perspetiva de correlação dese- uma revisão crítica da obra de Acúrsio
jável entre o estímulo da atividade co- das Neves em The State of Portugal during
mercial e o desenvolvimento industrial. the Last Thirty Years. Aduziria reservas ao
No ano seguinte, José da Silva Lisboa pensamento de Adam Smith sobre as
rebatia os fundamentos da escola fisio- virtualidades do comércio externo, reco-
crática em Princípios da Economia Política, nhecidas unicamente face à inexistência
texto revelador da influência exercida de rivalidades entre as potências, assim
por Adam Smith no pensamento deste como críticas à visão de Malthus sobre
autor. Segundo Lisboa, o trabalho cons- evolução demográfica e subsistências.
tituía a origem e o fundamento de toda Entre os críticos da corrente fisiocrática
a propriedade e do valor, premissa onde na primeira metade do séc. xix, ponti-
radicava quer a defesa das nações co- ficaram também José Ferreira Borges,
merciais e manufatureiras, quer a crítica um assumido defensor das ideias de
à escola fisiocrática, conotada com a de- Adam Smith, e Silvestre Pinheiro Ferrei-

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Antifisiocracia 2067

ra cujo rebate aos “novos economistas” José Esteves Pereira, Lisboa, Banco de Portu-
não eximia o reconhecimento do seu gal, 1996; LARANJO, José Frederico, Econo‑
contributo para a economia política, o mistas Portugueses, 2.ª ed., Lisboa, Guimarães
Editores, 1976; LISBOA, José da Silva, Escritos
qual enfatizava em Pantólogo, de 1842, ao
Económicos Escolhidos (1804-1820), introd. An-
considerar a anterioridade da agricultu- tónio Almodovar, Lisboa, Banco de Portugal,
ra e das minas face à indústria que, por 1993; Memórias Económicas da Real Academia
seu turno, deveria ser exposta a um en- das Ciências de Lisboa, para o Adiantamento da
quadramento concorrencial livre, com Agricultura, das Artes e da Indústria em Portugal e
o objectivo de assegurar o progresso in- Suas Conquistas, 5 t., Lisboa, Oficina da Acade-
dustrial das economias nacionais. mia, 1789­‑1815; Memórias Económicas Inéditas
(1780­‑1808), ed. lit. José Luís Cardoso, Lis-
boa, Academia das Ciências de Lisboa, 1987;
Bibliog.: AIRIAU, Jean, L’Opposition aux Phy‑ Memórias Políticas sobre as Verdadeiras Bases da
siocrates à la Fin de l’Ancien Régime. Aspects Éco‑ Grandeza das Nações, principalmente de Portugal
nomiques et Politiques d’Un Libéralisme Écletique, (1803-1805), ed. lit. José Esteves Pereira, Lis-
Paris, Librarie Génerale de Droit et Jurispru- boa, Banco de Portugal, 1992; NEVES, José
dence, 1955; ALMEIDA, Manuel de, Compên‑ Acúrsio das, Memória sobre os Meios de Melhorar
dio de Economia Política (1821), ed. lit. Maria de a Indústria Portuguesa Considerada nos Seus Dife‑
Fátima Brandão, Lisboa, Banco de Portugal, rentes Ramos, ed. lit. Jorge Custódio, Lisboa,
1993; ALMODOVAR, António, A Institucio‑ Querco, 1983; Id., Variedades sobre Objectos
nalização da Economia Política Clássica em Portu‑ Relativos às Artes, Comércio e Manufacturas, Consi‑
gal, Porto, Afrontamento, 1995; AMZALAK, deradas segundo os Princípios de Economia Política,
Moses, A Economia Política em Portugal. O Fi‑ Porto, Afrontamento, 1987; PEDREIRA, Jor-
siocratismo. As Memórias da Academia e os Seus ge, “Agrarismo, industrialismo, liberalismo.
Colaboradores, Lisboa, s.n., 1922; ASTIGAR- Algumas notas sobre o pensamento econó-
RAGA, Jesús, e USOZ, Javier (orgs.), L’Econo‑ mico português (1780-1820)”, in Contribuições
mie Politique et la Sphère Publique dans le Débat para a História do Pensamento Económico em Por‑
des Lumières, Madrid, Casa Velazquez, 2013; tugal, Lisboa, Dom Quixote, 1988, pp. 63­‑83;
BORGES, José Ferreira, Princípios de Sintelologia Pensamento Económico Português (1750­ ‑1960).
(1831) e Instituições de Economia Política (1834), Fontes Documentais e Roteiro Bibliográfico, Lisboa,
ed. lit. António Sousa Franco, Lisboa, Ban- Centro de Investigação sobre Economia Por-
co de Portugal, 1995; CARDOSO, José Luís, tuguesa, 1998; RIVIÈRE, Paul-Pierre Lemercier
O Pensamento Económico em Portugal nos Finais de la, Ordre Naturelle et Constitution Essentielle du
do Séc.  XVIII (1789­‑1808), Lisboa, Estampa, Gouvernement le plus Avantageux au Genre Hu‑
1989; Id., História do Pensamento Económico Por‑ main, t.  ii, London, Chez Jean Nourse, 1767;
tuguês. Temas e Problemas, Lisboa, Livros Hori-
SANTOS, Rui, “A nuvem por Juno? O tema da
zonte, 2001; CASTRO, Armando de, “Fisio-
fisiocracia na historiografia do pensamento
cracia e fisiocratas”, in SERRÃO, Joel (dir.),
económico português”, Análise Social, vol. xviii,
Dicionário de História de Portugal, vol. iii, Porto,
n.º 21, 1993, pp. 423­‑443; SOUSA, Marnoco
Figueirinhas, s.d., pp. 42­‑45; Id., O Pensamen‑
e, Ciência Económica: Prelecções Feitas no Segun‑
to Económico no Portugal Moderno (de Fins do
do Ano Jurídico de 1908-1909, ed. lit. Maria de
Séc. XVIII a Começos do Séc. XX), Lisboa, Instituto
Fátima Brandão, Lisboa, Banco de Portugal,
de Cultura Portuguesa, 1980; CONSTÂNCIO,
1997; VANDELLI, Domingos, “Memória so-
Francisco Solano, Leituras e Ensaios de Economia
bre a preferência que em Portugal se deve dar
Política: 1808-1842, ed. lit. José Luís Cardoso,
à agricultura sobre as fábricas”, in Memórias
Lisboa, Banco de Portugal, 1995; Contribuições
Económicas da Academia Real das Ciências de Lis‑
para a História do Pensamento Económico em Por‑
boa, para o Adiantamento da Agricultura, das Artes,
tugal, Lisboa, Dom Quixote, 1988; Economia
e da Indústria em Portugal, e suas Conquistas, t. 1,
Política Feita em 1795 por MJR, ed. lit. Armando
Lisboa, Officina da Academia Real das Ciên-
de Castro, Lisboa, Banco de Portugal, 1992;
cias, 1789.
FERREIRA, Silvestre Pinheiro, Textos Escolhidos
de Economia Política e Social (1813-1851), ed. lit. Teresa Nunes

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2068 F i m da h i s tó r i a e h i s tó r i a f i n i m u n d i s ta

Fim da história zação desse fim do mundo ou da ordem


da história e do tempo (que estão na
e história base dos mais fabulosos mitos dos finais
finimundista de século e de milénio) ou em torno de
determinadas datas consideradas chave,
as quais surgem como um limite crono-
gráfico-histórico. A estes mitos do calen-
dário podemos chamar, em geral, mitos
do fim dos tempos ou do fim do mundo;
eles assentam na associação hermenêu-

A ideia de fim da história tem primei-


ramente na base uma compreensão
teológica do tempo e um entendimen-
tica do simbolismo dos números ao sim-
bolismo dos fenómenos, na sua relação
determinística com os textos proféticos
to da vida humana como marcada pe- fundadores que imprimiram no Homem
las fronteiras do nascimento e da mor- de uma dada cultura a consciência do
te. Esta doutrina bíblica influenciou a fim da história. A carga simbólica que
mundividência e a historiovidência da envolve a construção deste tipo de mito-
civilização ocidental de fundo judaico­ logia apresenta-se, quanto à metodolo-
‑cristão, mas também a civilização islâmi- gia processual, na linha da definição de
ca. Ambas concebem a história humana simbolismo desenhada por Gilbert Du-
balizada por uma protologia e por uma rand, como uma “espécie de gnose, isto
escatologia. No tempo protológico inau- é, um processo de mediação por meio
gural, teria acontecido a criação, por de um conhecimento concreto e expe-
Deus, do universo e dos seres humanos, rimental. Como entende a gnose, o sím-
que assim passaram a protagonizar o bolo é um ‘conhecimento beatificante’,
dealbar da história. Esta história cami- um ‘conhecimento salvador’ que, pre-
nharia irreversivelmente em direção a viamente, não tem necessidade de um
uma escatologia, ou seja, para a sua con- intermediário social, isto é, sacramental
sumação, ou o fim da história terrena e e eclesiástico” (DURAND, 1995, 31).
do Homem como ser perecível. Esta con- A cultura ocidental, assente nos três
ceção linear do tempo histórico bíblico grandes pilares da fé cristã, da raciona-
funda a ideia de progresso, na medida lidade grega e do direito romano, não
em que se entende que esse percurso é recebeu a ideia de fim da história apenas
ascendente e ordenado, com vista a uma da teologia de configuração monoteísta
perfeição maior. judaico-cristã. Também a cultura gre-
Só tendo como pano de fundo a visão co-romana refletiu e desenvolveu esta
bíblica do tempo é que se pode enten- ideia, tendo-a transmitido através das
der a teoria desenvolvida por Hegel no suas obras poéticas, filosóficas e dramá-
séc. xix relativa ao fim da história, aos ticas.
ciclos históricos, ou a uma estabilização Temos, como exemplo emblemático,
da história humana, livre de sobressaltos o caso do epicurista Lucrécio, que viveu
e mudanças, atualizada posteriormente no século precedente ao nascimento de
por Francis Fukuyama. Cristo, e que, em De Rerum Natura, apre-
Este tema não pode ser desligado das senta uma visão organicista da vida do
especulações, de fundo mítico e religio- cosmos, comparando-o a um ser mor-
so, em torno da datação e da caracteri- tal. Tito Lucrécio Caro chega mesmo

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F i m da h i s tó r i a e h i s tó r i a f i n i m u n d i s ta 2069

a definir a lei de um ciclo da morte do


universo: “Tudo o que foi enviado para
as praias da luz, de novo será recolhido
pelos espaços celestes; mesmo a grande
muralha que circunda o mundo se há de
abater, extenuada pelo tempo, e tornar­
‑se-á uma ruína em putrefação” (vv. 235­
‑350).
O autor exprime nesta espetacular des-
crição literária a tese do fim do mundo
que a filosofia estoica vai expor sistema-
ticamente desde os mitos hesiódicos das
idades da Terra, que perdurarão até ao
declínio do Império Romano, chegando
depois a Flore e Ammiano Marcellino.
Sendo certo que Zenão entende que a
substância universal não está condenada
a fenecer ou a degradar-se, não deixa de
ter consciência da sujeição da história
e do seu palco atual ao devir e ao fene-
cimento. A fé estoica na eternidade do
cosmos não impede a consideração da
De Rerum Natura, cópia feita, em 1483,
impermanência e da ruína da ordena-
por Girolamo di Matteo de Tauris para
ção presente na substância cósmica, or- o Papa Sisto IV.
ganizada nas suas mais diversas formas.
A realidade do fluir do tempo mostra
que o mundo está destinado a uma de- ao zoroastrismo e a outras influências.
sagregação; depois de esta ter sido con- Segundo a profecia de Zoroastro (ou
sumada, através do seu princípio mais Zaratustra), o mundo conheceria qua-
ativo, o fogo, operar-se-á um regresso ou tro idades, cada qual com 3000 anos, as
uma restauração do idílico estado primi- quais estariam divididas em três períodos
génio do cosmos. O prenúncio funda- iguais. No milénio final da quarta idade,
mental desta derrocada cósmica global viria um libertador, que executaria um
já está implícito profeticamente no mito julgamento geral e daria início a um
prometaico de Ésquilo, que tem na base mundo renovado. Hesíodo acrescenta­
uma visão circular do tempo. ‑lhe a idade da renovatio temporum, sendo
É certo que os mitos cosmogónicos a quarta a da raça dos heróis.
do fim do universo integram elementos As quatro idades que precedem a idade
de diversas religiões orientais, os quais da renovação são simbolizadas por qua-
foram absorvidos e reformulados pela tro metais de valor decrescente: ouro,
cultura clássica. Aqui tem um lugar im- prata, bronze e ferro. Naturalmente, a
portante o já referido mito das idades do desvalorização da qualidade dos metais
mundo. Uma variante mais conhecida representa a degenerescência progres-
deste é a que está consignada em Traba- siva da humanidade. O ouro é um me-
lhos e Dias, de Hesíodo (c. séc. viii a.C.), tal cujo brilho é comparável ao do sol,
mito que está, na sua génese, ligado símbolo do divino, do conhecimento

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2070 F i m da h i s tó r i a e h i s tó r i a f i n i m u n d i s ta

e da perfeição. Inferior a este é a pra- calipse 20, de S. João, temos um outro


ta, associada à ideia de purificação, mas do Antigo Testamento, também ele ma-
aposta ao solar-celeste e ao masculino­ tricial, que é uma versão judaica da dou-
‑ativo, pois brilha como o luar aquático trina grega das quatro idades: o texto
e representa o feminino-passivo. Nesta de Daniel, no capítulo 2 do livro com o
graduação decrescente aparece, em se- mesmo nome. O capítulo referido narra
guida, o bronze, que pertence ao do- o misterioso sonho de Nabucodonosor e
mínio das potências uranianas, como a sua interpretação pelo jovem judeu Da-
degeneração da prata. Como antítese da niel, depois das tentativas fracassadas de
idade brilhante de ouro, a idade de fer- explicação dos magos e sábios da corte.
ro emerge como a idade das trevas, com Este foi o sonho do rei: “Era uma está-
características infernais e apocalípticas: tua. Enorme, extremamente brilhante, a
o ferro é o instrumento diabólico da estátua erguia-se diante de ti, de aspeto
guerra e da mortandade, que propaga o terrível. A cabeça da estátua era de ouro
domínio da sombra e da noite. fino; de prata era o seu peito e os braços;
O tempo, cumprindo um círculo rei- o ventre e as coxas eram de bronze; as
terativo, regressaria, no fim do ciclo, à pernas eram de ferro; e os pés, parte de
idade de ouro inicial, que a palingenesia ferro e parte de argila. Estavas olhando,
da última idade representa. Este esque- quando uma pedra, sem intervenção de
ma de leitura do tempo e da história em mão alguma, se destacou e veio bater na
que não havia lugar para o novo, em que estátua, nos pés de ferro e de argila, e
a idade do ouro é uma espécie de cogno- os triturou. Então pulverizaram-se ao
me simbólico, ou de outro nome dos idí- mesmo tempo o ferro e a argila, o bron-
licos Campos Elísios na promessa feita a ze, a prata e o ouro, tornando-se iguais
Menelau no livro iv da Odisseia, significa à palha miúda na eira de verão: o ven-
o inexorável declínio do cenário do mun- to os levou sem deixarem traço algum.
do, que o conduz a um quebrantamento E a pedra que havia atingido a estátua
extremo, a um fim “intolerável”. Este fim tornou-se uma grande montanha, que
do mundo gritará eficazmente pela rege- ocupou a terra inteira” (Dn 2, 31-35).
neração; mas o fim não será mais do que Seguidamente, Daniel apresenta a des-
o cumprimento da promessa circular do codificação deste sonho, explicando ao
regresso ao estádio fabuloso das origens, soberano que a estátua constituída por
em que a Terra e o céu se desfazem em diferentes metais representava os reinos
simpatias, para felicidade do Homem. do mundo que se haviam de suceder um
Apesar das influências, em termos de a seguir ao outro; finalmente, chegaria
substrato cultural, dos mitos, oráculos e um reino (representado pela pedra que
conceções da cultura grega e romana, pulverizou a estátua) que aniquilaria os
predomina, na cultura ocidental, a visão reinos anteriores e os seus vestígios e
linear do tempo fornecida pela conce- subsistiria para sempre.
ção de temporalidade judaico-cristã. No Aqui está estabelecido o esquema bíbli-
quadro desta, os textos apocalípticos co que vai servir de base a especulações
canónicos e apócrifos vão estar na pri- sobre a sucessão das idades históricas e
meira linha para servir as mais diversas a sua aplicação concreta ao surgimento
especulações em torno da mensuração e decadência de diferentes impérios,
das chamadas idades do mundo. Além povos e civilizações. Temos disto um
do texto paradigmático e fontal do Apo- exemplo emblemático em Portugal,

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F i m da h i s tó r i a e h i s tó r i a f i n i m u n d i s ta 2071

que é o quarto metal, significava o Im-


pério dos Romanos, que foi e é o quarto
Império, que sucedeu aos três primei-
ros [...], assim como as pernas e pés são a
última parte do corpo humano” (FRAN-
CO e CALAFATE, 2013, 441-442). Findo
o Império Romano, surgiria um quinto
império, de carácter divino: “O Reino
dos Santos do Altíssimo”, de acordo com
o descrito na profecia de Daniel. Neste
quinto império, muitos intérpretes qui-
seram ver prefigurada profeticamente
a era milenar de Cristo sobre a Terra,
que Vieira, e.g., fez coincidir com o seu
utópico Quinto Império Português ou o
Reino de Cristo Consumado na Terra.
O pensamento utópico quintoimperalis-
ta de Vieira entendia que a nova era, a
era de vida harmónica e fraterna sobre
a Terra, implicaria fechar o ciclo clás-
Apocalipse (1496-1498), “Os quatro anjos sico das idades do mundo e inaugurar
da morte”, de Albrecht Dürer.
um novo ciclo histórico com uma nova
qualidade e um novo carácter. Chegou
o qual apresenta uma exegese deste pas- mesmo a profetizar que 1666, o ano da
so de Daniel na linha daquilo que era, Besta, identificada no livro do Apocalip-
em grande medida, corrente na exegese se com o número 66, seria a data desse
cristã tradicional. Com efeito, o P.e An- fim de ciclo; este ano de fronteira seria
tónio Vieira lê a história com base nes- marcado por convulsões e perturbações
ta grelha hermenêutica da sucessão de sociais e cósmicas, simbolizadas pela
idades, representadas pela vigência de significativa metáfora das dores de par-
grandes impérios: “A cabeça de ouro sig- to, para marcar essa passagem para um
nificava o Império dos Assírios, em que novo tempo de tranquilidade feliz.
Nabucodonosor naquele tempo reinava; A herança cultural portuguesa, à se-
e o princípio de todos os impérios, por melhança da ocidental no seu conjunto,
isso estava representado na cabeça, que está recheada de panfletos e tratados de-
é o princípio do corpo, e no ouro que é o dicados ao anúncio do fim da história,
primeiro entre todos os metais. A prata, quer em torno de datas redondas e de
que é o segundo metal, significa o Impé- significado simbólico, quer apresentan-
rio dos Persas, que foi o segundo depois do uma chave de leitura apocaliptista de
dos Assírios, e que se seguiu a eles, assim acontecimentos que inspiraram preocu-
como o peito e braços se seguem à cabe- pação e temor em parte da humanida-
ça. O bronze, que é o terceiro metal, sig- de ou na humanidade no seu conjunto.
nificava o Império dos Gregos, que foi o A título ilustrativo, recorde-se mais um
terceiro depois dos persas e se seguiu de- exemplo de um desses textos dedicados
pois deles, assim como o ventre se segue ao fim do mundo: História do Trágico
depois do peito. O ferro, finalmente, Drama dos Fins dos Tempos, assinado por

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2072 F i m da h i s tó r i a e h i s tó r i a f i n i m u n d i s ta

Alberto Lemos, que associa o tempo do


fim ao advento da figura protagonista
dessa etapa fatal; esta obra fala do apare-
cimento próximo do anticristo, com al-
gum mau gosto antissemítico, carregan-
do de negro o cenário do fim, o que não
deixaria de assustar os seus leitores mais
sensíveis: “O monstro surgirá no fim do
décimo nono século, ou no vigésimo,
assim o foi revelado pela Virgem Nossa
Senhora. O personagem a que se refere
a Virgem é sem sombra de dúvidas o An-
ticristo [...]. O Anticristo será o primeiro
Judeu reinando no mundo. Senhor de
toda a terra, escolherá para sua capital
a cidade, onde o Senhor foi crucificado,
isto é, Jerusalém. Logo que se julgue se-
nhor dos corpos e das almas, decretará
sua divindade e estabelecerá uma nova
religião. Assentar-se-á no templo de
Deus e declarar-se-á Deus. Será então se-
gundo o profeta Daniel: ‘A abominação
da desolação a se assentar no lugar san- Estátua do profeta Daniel, de António Francisco
Lisboa, “O Aleijadinho” (c. 1738-1814).
to’. Então por ordem do tirano, cessará
o sacrifício perpétuo. As Igrejas serão
destruídas, os vasos sagrados profana- tempo do fim do mundo está muito pró-
dos, e os sacerdotes condenados à mor- ximo, como os acontecimentos seus con-
te. O Anticristo comunicará o poder dos temporâneos indiciam, pois, “segue-se
seus milagres a seus emissários, que irão que nos encontramos na sexta e última
por toda a parte conquistar-lhe adorado- idade do Mundo” (Id., Ibid., 15).
res, usando para isso de todos os meios Cumpre-nos referir que à visão linear
humanos e diabólicos de que poderão do tempo judaico-cristã em que se fun-
dispor” (LEMOS, 1959, 3-49). Depois, dam as projeções proféticas do fim da
o autor não faz mais do que adaptar as história subjaz ínsita, no âmbito das mi-
profecias do Apocalipse, descrevendo tificações do fim da história, uma conce-
as ações fantásticas que o anticristo fará ção, em determinado sentido, circular.
para impressionar a humanidade, se E de uma circularidade triádica: a ideia
fazer adorar e obter o domínio univer- de que houve uma idade de ouro, à qual
sal; e conclui que, quando o mal tomar sucedeu um tempo de decadência; esta,
conta do mundo, Jesus Cristo virá para depois de baixar à mais funda degene-
cumprir o julgamento final. Alicerçan- rescência, conhecerá uma regeneração,
do-se num registo claramente messiâni- que acabará por ser a restauração da ida-
co-milenarista e proveniente da tradição de dourada dos primórdios. Restauração
profética cristã, que acredita na duração que deverá ser efetuada por um messias,
de 6000 anos para o mundo, aconselha um redentor ou um salvador, que inter-
os leitores à vigilância e avisa que este virá poderosamente sobre a história.

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F i m da h i s tó r i a e h i s tó r i a f i n i m u n d i s ta 2073

Esta circularidade triádica do tempo cumprida no passado, quer aquela que


é, no entanto, apanágio de praticamente é anunciada para o tempo escatológico.
todos os sistemas religiosos, quer das re- Assim sendo, como explica Daniel Boors-
ligiões cosmogónicas e geracionais, quer tin, “para cada homem, o acontecimento
das religiões criacionistas. Neste sentido, fundamental continua a estar contido na
como explica Maria Teresa Pinto Coe- promessa da história, que transportou a
lho, a profetização da catástrofe do fim Idade de Ouro dos clássicos do passado
do mundo é um elemento estruturante remoto para o futuro, remoto, mas cer-
de todas as religiões: “a catástrofe não to” (BOORSTIN, 1993, 74).
constitui um ato de destruição último
e definitivo, mas, não só permite, como
é condição necessária para a renovação Bibliog.: ATTALI, Jacques, Dicionário do Sé­
cíclica do universo, repetida ad infini- culo XXI, Lisboa, Notícias, 1999; BOORSTIN,
tum através do regresso a um illo tempore, Daniel J., Os Criadores. Uma História dos Heróis
a Idade dourada em que tivera lugar a da Imaginação, Lisboa, Gradiva, 1993; COE-
criação. Este é o tempo mítico das ori- LHO, Maria Teresa Pinto, Apocalipse e Rege‑
neração. O Ultimatum e a Mitologia da Pátria na
gens concebido como o tempo da per-
Literatura Finissecular, Lisboa, Cosmos, 1996;
feição” (COELHO, 1996, 25). Importa DURAND, Gilbert, A Imaginação Simbólica, Lis-
aqui ter em conta o que conclui Jacques boa, Edições 70, 1995; ELIADE, Mircea, Le
Le Goff, contextualizando: “A  maior Mythe de l’Eternel Retour: Archétypes et Répétition,
parte das religiões concebe uma idade Paris, Gallimard, 1949; FRANCO, J. Eduardo,
mítica feliz, senão perfeita, no início e FERNANDES, J. Manuel, O Mito do Milénio,
do universo. Por vezes, as religiões pers- Lisboa, Paulinas, 1999; FRANCO, José Eduar-
do, e CALAFATE, Pedro (dirs.), Obra Completa
petivaram outra idade feliz no fim dos
Padre António Vieira, t. 3, vol. i, Lisboa, Círculo
tempos, quer como o tempo da eterni-
de Leitores, 2013; FUKUYAMA, Francis, O Fim
dade, quer como a última época antes da História e o Último Homem, Lisboa, Gradiva,
do fim dos tempos” (GOFF, 1997, 311). 1999; GOFF, Jacques Le, “Idades míticas”, in
E acrescenta significativamente este his- Enciclopédia Einaudi, vol. i, Lisboa, INCM, 1997;
toriador francês: “Nalguns casos, parti- LEMOS, Alberto, História do Trágico Drama dos
cularmente nas grandes religiões e civi- Fins dos Tempos, s.l., Oficinas do Diário Insular,
lizações, as idades de ouro inicial e final 1959; LUCRÉCIO, De Rerum Natura.
estão ligadas por uma série de períodos. José Eduardo Franco
A evolução do mundo e da humanidade, José Manuel Fernandes
ao longo desses períodos, é geralmente
uma degradação das condições naturais
e morais da vida. A idade mítica final é,
muitas vezes, a repetição da inicial” (Id.,
Ibid.).
Com o judeo-cristianismo, e especial-
mente com o desenvolvimento doutrinal
fornecido pela filosofia cristã, com desta-
que para S.to Agostinho, a idade de ouro
pagã é, em certa medida, cristianizada
e transposta para o futuro. O aconteci-
mento central da história passa a ser a
vinda de Cristo, quer aquela que já foi

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2074 A n t i - Ga r r e t t

Anti-Garrett mais intensa entre o final dos anos de


1830 e o início de 1840, muito próximo
dos setembristas e em consonância com
a persistente convicção de que “o drama
é a expressão literária mais verdadeira do
estado da sociedade”, como reafirmará
na memória “Ao Conservatório Real”, em

A s manifestações episódicas ou persis-


tentes de espírito anti-Garrett inse-
rem-se no quadro da receção da obra li-
1843 [GARRETT, 2004a, 40]), proponen-
te de uma lei da propriedade literária e
promotor de jornais de teatro (Entreacto,
terária do “divino”, mas decorrem muitas Jornal do Conservatório) – e sempre criador
vezes da reação à sua notoriedade de ho- de uma literatura de intuitos, nas suas
mem público, à sua escrita de jornalismo três goetheanas formas naturais (lírica,
político e à sua eloquência parlamentar, narrativa, dramática), que, além de ob-
à sua conturbada vida de exílios e confli- viamente inserida na dinâmica coeva do
tos com instâncias de poder, bem como à campo literário e nos seus mecanismos
vida de relação (social, amorosa) pouco de disputa e conflitualidade, surge im-
convencional e à presença intensa, poli- bricada, pelas motivações e pelos efeitos,
facetada e controversa no espaço público com os interesses e as tendências atuantes
da incomum personalidade psicológico­ no movente contexto social e político da
‑moral do “janota”. primeira metade do séc. xix – e por igual
Inscrevem-se, pois, naquelas “contra- surge vinculada tanto à conceção cívica
riedades incessantes da vida” para que e pedagógica da literatura (que exprime
Garrett alertava realisticamente a filha naquele e noutros textos programáticos)
Adelaide, nos desencontros e confron- quanto às referidas características da sua
tos inerentes à existência de um invulgar personalidade e da sua trajetória existen-
homem de intervenção cívica e cultu- cial e, por consequência, indissociável da
ral – dramaturgo e ator na juventude, des- admiração e dos despeitos, da empatia e
de então poeta e articulista, cedo exilado das animadversões que elas suscitaram.
e expedicionário, logo legislador e depois Logo a publicação de O Retrato de Vénus,
diplomata, deputado de notáveis dotes em 1821, pela Imprensa da Universidade,
oratórios (sob diversas situações político­ desencadeou uma intensa polémica que
‑partidárias, mesmo na adversa ditadura acabou por levar o jovem Garrett a tribu-
de Costa Cabral) e mais tarde ministro nal, sob a acusação de ateísmo e imorali-
na dealbante Regeneração, cronista-mor dade (movida sobretudo pelo truculento
do reino e inspetor-geral dos Espetácu- verbo de José Agostinho de Macedo). Foi
los, vice-presidente ou diretor do Conser- ilibado, depois de assumir ele próprio a
vatório Real de Lisboa (que tentou dotar sua defesa.
equilibradamente de adequada bibliote- Tão consequente com o ethos de exem-
ca e tornar moderna escola de arte dra- plaridade interventiva de Catão (1822),
mática, rica de consequências sociocultu- depois modulado na constante de com-
rais, a que haveria de corresponder uma bate efabulado e figurado a tiranias e
dramaturgia atenta e reativa às realidades oportunismos (de Camões, 1825, a Um
coevas da vida portuguesa), fundador do Auto de Gil Vicente, 1838, de O Alfageme de
Teatro Nacional D. Maria II e renovador Santarém, 1842, às Viagens na Minha Terra,
da dramaturgia portuguesa (com fase 1843­‑45), o ímpeto ideológico da juvenil

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Em 1824, a seguir à Abrilada, vive se-


gundo exílio em Inglaterra, onde colabo-
ra em O Popular, e depois em França.
A Intendência Geral da Polícia emitiu
em 1825, para o ministro do Reino, um
parecer negativo sobre o pedido formula-
do por Garrett para anulação da proscri-
ção que sobre ele pesava. A Polícia dizia
que ele era de um carácter empreende-
dor e revolucionário, tinha pertencido às
sociedades secretas e continuava a pro-
pagar as doutrinas que publicara em di-
ferentes obras bem próprias do seu exal-
tado génio, em que se continham ideias
subversivas da monarquia.
Após a outorga da Carta Constitucio-
nal por D. Pedro (1826), à qual Garrett
Almeida Garrett (1799-1854).
aderiu, regressou ao país e colaborou em
dois importantes jornais, O Português e
O  Cronista (este, de 1827, quase inteira-
composição de poemas como “O campo mente redigido por ele), muito acusados
de Santana”, “A liberdade” e “Aniversá- pelos sectores absolutistas.
rio da Revolução de 24 de agosto” não Com a tomada do poder por D. Mi-
só identifica Garrett com uma posição guel, sofre prisão de alguns meses no Li-
política que o leva, por 1923 e na sequên- moeiro em 1828; e, de seguida, exila-se
cia da Vila-Francada, ao primeiro exílio, pela terceira vez, emigrando para Ingla-
mas abre a perene confrontação com a terra, onde em 1829 colabora no Chaveco
opinião legitimista (e suas sequelas anti­ Liberal.
‑Garrett em tempos póstumos). Em 1832, desloca-se para a ilha Tercei-
Entretanto, tudo quanto esse exílio e ra, onde se junta ao batalhão académico
o que virá após a Belfastada, bem como como “simples soldado raso”. Durante a
a seguinte carreira da emigração liberal, permanência nos Açores, colabora com
a caminho da ilha Terceira e do Mindelo, Mouzinho da Silveira na elaboração do
lhe proporciona de apropriação civiliza- quadro legislativo para a nova ordem
cional (modos e hábitos de traje e con- política, tornando-se mal visto quer pela
vívio, e.g.) e de enriquecimento cultural opinião reacionária, quer por certos sec-
(línguas e literaturas europeias) reverte- tores liberais.
rá em ambiguidade de estrangeirado, i.e., Após findar a Guerra Civil, com a vitó-
fecundo substrato do seu pensamento e ria liberal, Garrett é nomeado encarrega-
da sua obra, mas também traço idiossin- do de negócios ou cônsul geral na Bélgica
crático para uns estimável e para outros (1834). Queixa-se de falta de instruções
censurável (no fundo, para todos invejá- e de dinheiro. É acusado de despesas
vel e por todos associado ao gosto garret- excessivas e até fraudes, motivadas por
tiano pelo brilho na vida mundana e por gastos com fatuidades (roupas elegantes,
um dandismo que, em geral, era superfi- vida social intensa), e vê-se finalmente
cialmente entendido). demitido. Num ato desamistoso que terá

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a sede de honrarias e a ganância política


de Garrett.
Com o advento da Revolução de Se-
tembro, em 1836, Garrett adere, por en-
tre premonitórios receios. Os seus artigos
em O Português Constitucional haviam de
algum modo preparado o terreno para
essa viragem política – e, ao mesmo tem-
po, prenunciavam o caminho dos reinci-
dentes conflitos com o cabralismo.
Mais vastas, porém, serão as ambiva-
lentes consequências do relevante envol-
vimento, político e literário, de Garrett
com a nova ordem setembrista: encargo
de fundação e plano de organização do
Teatro Nacional, fomento do Conserva-
tório de Arte Dramática, motivação da
criação da Inspecção-Geral dos Teatros,
renovação da sua dramaturgia, etc.
Ganha então particular relevo na tra-
jetória de Garrett e no devir dos seus
agravos/gravames o início da vida par-
lamentar nas Cortes Constituintes. Con-
Primeira página de O Portuguez, n.º 1. solida aí os anúncios de fulgor oratório,
que doravante se tornará fonte principal
recidivas, a Rainha ordenou que o lugar da sua notoriedade pública – com as ine-
fosse dado a Luís da Câmara e o Governo rentes ambivalências de apreciação pelos
exonerou-o em janeiro de 1836 – lance que lhe são afetos ou adversos. Ao longo
que marca indelevelmente a sua relação de 1837-1838, as suas intervenções vão
com a situação cartista, de que se distan- definindo um perfil mais conservador,
cia, a ponto de se sugerir que o ressenti- propenso a um terceiro partido de com-
mento pessoal pesou, se é que não preva- promisso ordeiro, entre o setembrismo e
leceu, no ulterior alinhamento pro tempore o cartismo formal. Apesar de beneficiado
com o setembrismo. pela revolução setembrista com cargos,
Certo é que, de regresso a Lisboa, Garrett continua a motivar opiniões de-
desenvolve intensa atividade jornalísti- sencontradas, empatias e inimizades, en-
ca, sobretudo como redator principal caminhando-se até 1840 para a oposição.
de O Português Constitucional. Distingue-se Garrett vive então período de intensa
por posições críticas sobre a permanên- intervenção na vida pública, promoven-
cia do reacionarismo, as fações liberais do o espírito conciliador e o centro or-
e o regime de favores políticos. Em con- deiro, defendendo o ultramar, atacando
trapartida, se não lhe falta combativida- o anticlericalismo e a ganância agiota.
de (evidenciada, e.g., na oposição a Joa- Ironizado por inimigos de vários qua-
quim António de Aguiar), não minguam drantes como “poeta e utopista”, enfren-
também as animosidades à sua volta; e ta os dissabores oriundos de sectores me-
continuam a propalar-se acusações sobre nos emancipalistas do campo liberal, que

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continuaram a mostrar que não esque- “barão” denunciado nas Viagens) e pela
ciam o contributo que dera ao fomento sedução das falsas alternativas do “so-
da revolução setembrista. cialismo” e do “comunismo” (visados na
Acusado, por Costa Cabral e outros, nota K a O Arco de Santana).
de incoerência política, tanto sofre re- Se já Um Auto de Gil Vicente, em 1838,
moques nesse sentido de Costa Cabral inculca marcas de sintonia com a dinâmi-
e outros conservadores, quanto suporta ca do setembrismo no projeto de renas-
ataques em que se excede a divergência cença do teatro genuinamente português
progressista de opiniões perante o seu e sofre por isso maculações do seu valor
confronto parlamentar com José Estê- e alcance na difusa receção crítica, maio-
vão Coelho de Magalhães. O celebrizado res implicações empíricas, favoráveis e
“Discurso do porto Pireu”, o despique desfavoráveis a Garrett, terá o alongado
com José Estêvão e as objurgatórias con- processo de conceção (génese por 1832),
tra o radicalismo jacobino valeram a Gar- elaboração (avançada durante o cerco do
rett os protestos à esquerda contra a sua Porto), publicação originária do tomo  i
defeção, sem lhe merecerem a confiança (1845) e publicação do tomo ii (1850) de
dos conservadores que o olhavam como O Arco de Santana.
“filho bastardo da revolução”. Em consonância com o melhor en-
Em 1842, sobre a vida política por- tendimento romântico do historicismo
tuguesa e sobre a posição e a imagem e do medievalismo, o romance O Arco de
de Garrett no espaço público abate-se Santana não se quer narrativa de evasão
a “ordem feroz” de Costa Cabral, em no tempo, entregue ao pitoresco da cor
nome do cartismo puro e duro. Embo- histórica como sub-rogação do confronto
ra apoiado não apenas na vontade do com as questões da contemporaneidade
trono e no Exército, mas também numa do escritor, mas sim exercício de transpo-
maioria parlamentar disciplinada, o au- sição estética numa ficção interventiva,
toritarismo cabralista depressa foi tido em que a prepotência da personagem do
por ditatorial, tanto pelos ordeiros cen- bispo do Porto e a ação em torno dela de-
tristas como pelos radicais setembristas; senvolvida remetem iniludivelmente para
e Garrett sofreu de imediato as conse- a inaceitada situação política sob o auto-
quências, com a demissão compulsiva ritarismo cabralista e a recuperação da
dos cargos de inspetor-geral dos Teatros oligarquia eclesiástica, ao mesmo tempo
e de cronista-mor do reino. Essa atitude que certos passos denunciam a manipu-
persecutória não o impediu de pugnar lação demagógica das classes populares e
contra a chamada “lei das rolhas”, em dos protagonistas exaltados em situações
1849-1850. de crise similares. O prefácio programáti-
No plano ambivalente da manifestação co da 1.ª edição (não desautorizado pelo
da obra literária e teatral, um vetor pro- da 2.ª edição) apresenta o romance como
pício às receções contrapolares traça-se exemplo de prática política inconformis-
pelo nacionalismo de O Alfageme de Santa- ta, justiceira e retificadora, não se cingin-
rém (1842) e o portuguesismo de Frei Luís do à “Advertência ao benévolo leitor” de
de Sousa (1843), em conexão com o pa- que “O romance é deste século; se tirou
triotismo cívico da cidadania liberal e o o seu argumento do décimo-quarto, foi
ideal romântico de regeneração pátria escrito sob as impressões do décimo-no-
ameaçados pela degradação oligárqui- no”; naturalmente fez com que a crítica
ca do capitalismo burguês (o regime do da época impusesse a imagem parcial de

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Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão (1926), de Columbano.
Sala dos Passos Perdidos do Parlamento.

O Arco de Santana como romance da opo- de lamentam a explicitude do intuito in-


sição e obrigasse Garrett a defender-se na terventivo na alegoria política e a quebra
praça pública – surpreendido, aliás, pela da emoção, do dramatismo e, logo, da
acusação de ceticismo e riso corrosivo de persuasão, por causa do excesso didático
qualquer convicção, a que talvez dera azo ou humorístico no vaivém entre enredo
com a índole paródica de títulos capitula- da revolta popular do séc. xiv e reenvios
res e de abundantes páginas, mormente para o contexto político do séc. xix, afe-
visando o parlamentarismo coevo. tando o papel de inferência interpretati-
Por isso, se a crítica oitocentista não va do leitor e pondo em causa a seriedade
poupou Garrett e essa sua obra romanes- histórica e a seriedade ideológica.
ca a censuras de ordem estético-literária A consciência da fragilidade da intriga
com subentendidas motivações ideológi- e a sensibilidade às críticas ao volume  i
cas – deficiente reconstituição histórica, surgidas na imprensa terão levado Gar-
prática discricionária de anacronismos, rett a acrescentar nas sucessivas versões
excessos de sátira – e a receção posterior do romance, além de longos passos com
juntou às reservas perante a infração do maior densidade psicológica das perso-
código genológico e os desvios do mo- nagens, numerosos excursos (como a re-
delo consagrado na Europa e aclamado flexão metatextual que é o capítulo 19) e
entre nós no caso da obra de Alexandre apartes de humor.
Herculano, não estudando seriamente O conhecimento dos casos sentimen-
nem valorizando o que de extravagante tais que lhe povoavam a imaginação atra-
e vulnerável o próprio Garrett assumia vés da análise dos malogrados romances
como desrespeito das “severas regras do Memórias de João Coradinho, Duas Irmãs e As
romance histórico professo e confesso”, Três Cidras do Amor (levada a cabo por Ofé-
os estudos garrettianos da nossa atualida- lia Paiva Monteiro em Viajando com Garrett

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pelo Vale de Santarém) permite captar me- as desilusões e os agravos de quem lutara
lhor as valências semântico-pragmáticas por um moderado progressismo e um vi-
que a inserção num contexto sociopolíti- vaz patriotismo cívico na implementação
co de atualidade lhes traz identicamente do sistema representativo monárquico,
na obra-prima Viagens na Minha Terra. com tolerante conciliação de liberdade
Após composição ligada por contrapos- e tradição católica, com aquele módico
tos nexos às movimentações políticas do de crítica geracional e de autocrítica até
momento, a sua primeira publicação em onde o egotismo vaidoso lhe deixava ir.
folhetins da Revista Universal Lisbonense Garrett não rasura nesses vários registos
(1843) será temporariamente suspensa o sentimento de homem, cidadão e es-
por razões não de todo aclaradas, mas critor, que se julga ora incompreendido
decerto por causa da reação cabralista e mal-amado, ora atraiçoado e injustiça-
perante os drásticos comentários de Gar- do – no rescaldo da confiança depositada
rett à política rasteira de pragmatismo ga- no cartismo ilustrado de Rodrigo (e seu
nancioso. Retomada nesse periódico em ato adicional de 1852) entre a queda de
1845, para sair em livro um ano depois, Costa Cabral e a Regeneração, tal como
a obra não se quer narrativa de viagem da passagem pelo governo regenerador
e ficção novelesca de evasão no espaço, (entre março e agosto de 1852) e da pe-
entregue ao pitoresco da “cor local”, e de nosa saída do cargo.
amenização da aventura do eu romântico Com efeito, na sequência do pronun-
em deriva de escape sentimental, mas sim ciamento militar de Saldanha que, em
discurso multímodo de complexidade abril de 1851, põe fim ao segundo con-
ideológica e de dialogismo interpelativo sulado de Costa Cabral, Garrett apoia a
com fortes incidências de crítica sociocul- Regeneração, dominada pelo seu amigo
tural e política. Rodrigo da Fonseca Magalhães, e, se-
Ambas obras de inegável cariz políti- gundo alguns, desliza para a convenien-
co, O Arco de Santana e Viagens na Minha te complacência com a degradação dos
Terra refletem – em paralelo com a cor- ideais fundadores do liberalismo. O certo
respondência para vultos como Rodrigo é que a nova situação política se apressa a
da Fonseca Magalhães – a reprovação da favorecê-lo com honrarias e com lugares
Guerra Civil e a preocupada tentativa de de destaque, alguns dos quais afinal se
equilíbrio político num ardiloso jogo de tornaram (por forçadas razões e decisão
forças, que Garrett sabe não se reduzir própria) bem efémeros – logo em 1851,
à oposição entre miguelistas e liberais, é nomeado ministro plenipotenciário
antes se complica pelas tensas movimen- para a negociação da concordata com
tações entre cartistas puros (cabralistas), a Santa Sé, reintegrado na direção do
cartistas progressistas (os ordeiros de Ro- Conservatório e na Inspecção-Geral dos
drigo da Fonseca Magalhães) e setembris- Espetáculos, recolocado como cronista­
tas (polarizados por Passos Manuel, mas ‑mor do reino, agraciado com o título
com variadas tendências). de visconde, nomeado membro efetivo
Particularmente nas Viagens – em re- do Conselho Ultramarino; em 1852, ano
correntes desabafos do relato construído em que é admitido como membro efeti-
e no destino de Carlos, em boa parte pro- vo da Academia Real das Ciências, é feito
jeção ficcional de Garrett –, refletem-se par do reino (por empenho de Rodrigo
também já, como nas cartas dos anos 50 e e a contragosto da Rainha) e escolhido,
nos discursos finais na Câmara dos Pares, em março, para ministro dos Negócios

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Estrangeiros – mas, num ambiente de acu- apreço literário em que Garrett se tinha a
sações de incoerência política e de pou- si mesmo, cuja manifestação culmina na
ca honestidade nas diligências para um redação do prólogo de Viagens na Minha
tratado de comércio com a França, vê-se Terra, estrategicamente apresentado como
compelido a demitir-se logo em agosto. da autoria dos editores. Nessa conformi-
No que diz respeito às ligações femini- dade, “Garrett  tornara-se, ingenuamente,
nas de Garrett, muita maledicência. Nu- um joguete nas mãos de políticos experi-
merosas ligações passageiras – que nas mentados e ardilosos que, aproveitando-se
insinuações de adversários e despeitados da sua vaidade, exploravam os seus talen-
eram erroneamente feitas equivaler às si- tos”, como assinala o biógrafo José Calvet
tuações recorrentes nas obras literárias de de Magalhães (MAGALHÃES, 1998).
Garrett, em que “um homem, preso nas A versatilidade de espírito e discurso
malhas sociais, não sabe amar, causando que Garrett se apostou em patentear foi
com essa incapacidade o deperecimento duradouramente confundida com cami-
de quem se lhe dedicou integralmente” nhos sinuosos de um cético e ambicioso.
(MONTEIRO, 1987, 11). Essas características combinar-se-iam,
Quando, em 1836, se separa judicial- segundo os detratores de Garrett, tanto
mente de Luísa Midosi (com quem se ca- no gosto e brilho da sociabilidade espiri-
sara em 1822), correram insinuações mui- tuosa e elegante, quanto no pendor e no
to malévolas, que o discípulo e biógrafo talento para a teatralidade.
Gomes de Amorim procura destruir. Para Por outro lado, todos esses traços impu-
alguns, Garrett ter-se-á feito passar por tados à personalidade e ao projeto de vida
solteiro para conseguir conquistar Adelai- de Garrett surgiam associados à ardência e
de Pastor; e insinuações afins nem cedem mobilidade dos sentimentos amorosos; e,
perante a morte pungente de Adelaide, por seu turno, esse conjunto levava a uma
que lacera um trágico conflito íntimo de consideração superficial do seu dandismo.
Garrett e da sua obra (depois de Viagens A sua biografia revela uma relação mui-
e de Frei Luís de Sousa, dramaticamente to cuidada com a indumentária pessoal,
retomado por 1849 no fragmento de ro- que, à época, ora o fez ser olhado como
mance A Cruz e o Perjúrio). influente exemplo para janotas, ora lhe
A experiência passional com a viscon- acarretou o sarcasmo de “adamado” (traje
dessa da Luz aumentou a fama donjua- de afetada elegância, uso preocupado de
nesca de Garrett, mas acarretou novos postiços, etc.). Por isso, o editor do perió-
custos para a sua imagem pública. A liga- dico O Toucador foi subestimado; e a sua
ção adulterina com Rosa Montufar, que publicação foi redutoramente lida como
se reflete aliás na poesia de Folhas Caídas mero magazine sobre moda.
e particularmente na recorrência das pala- A publicação de Folhas Caídas (1853),
vras “rosa” e “luz”, foi mesmo objeto de ca- com poemas maioritariamente compos-
ricaturas nos jornais cabralistas, por vezes tos entre 1843 e 1850, origina desfocados
legendadas, como em A Matraca por 1848: ataques moralistas. Mas em verdade jus-
“Por largo campo, indómita e fremente / tifica reparos, por toldar a expressão do
Corre a revolução, / Da vossa Luz a rápida sentimento amoroso e do desejo erótico
torrente / Me alegra o coração”. com traços de mundanidade e de exibi-
Não ficaram sem consequências perni- cionismo – que também favorecem a lei-
ciosas ou ingratas a insofismável caracte- tura redutora do inegável donjuanismo,
rística idiossincrática de vaidade e o alto aliás fulcral na constelação ideotemática

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do melhor romantismo e em grandes tex- beleiras postiças, Gomes Leal, de casaco


tos garrettianos. de borracha e discursos de propaganda,
Depois, a imagem de Garrett “divino” e atinge o trágico…”) (Id., 1998, 84), quan-
“janota” viu-se contaminada pelo contras- to inverte, no emblemático artigo sobre
te entre a sua fama de frivolidade e a aura “O janota”, a visão da condição humana
de mestre austero e de referência moral que dá por subjacente à dita frivolidade
que Herculano conquistou. Mais novo, garrettiana: “Aí está por que não olho as
mais longevo, Herculano sobreviveu mui- futilidades de Garrett com o riso banal
tos anos à morte de Garrett e teve tempo de toda a gente. Através desses pequenos
de tirar partido do encenado retiro para ridículos pressinto, nem sei bem porquê,
Vale de Lobos e para daí acompanhar o um desespero enorme. Garrett sofreu
advento da geração de 70 – acentuando decerto com essas futilidades. […] Pois
um perfil que, por contraste, avivava a bem, sob a máscara do janota estava de-
suspeita de brilho frívolo que ficara a pai- certo um homem que sofria ao sentir-se
rar em torno da memória de Garrett. imensamente ridículo. […] Muitas vezes
A dimensão – disseminação e pervi- ao ler uma anedota sobre o janotismo de
vência – das glórias e dos purgatórios do Garrett imagino o que ele se desesperaria
“janota” Garrett ressalta bem, à distância, quando sozinho, fechado a sete chaves, se
num autor, Raul Brandão, que está nos an- encontrasse consigo mesmo. Oh essa fi-
típodas da frivolidade e que, no entanto, gura, que vejo ali na minha frente, escar-
resgata a imagem de Garrett à luz da sua necida, apesar da sua formidável grande-
convicção de que “é sempre com gozo que za, essa figura que desejaria talvez possuir
a humanidade rebusca as fraquezas dos energia suficiente para romper, para ar-
seus grandes homens, para os puxar até si, rancar de vez todos aqueles trapos inúteis
para sentir mais próximos aqueles a quem e bradar: – Sou assim! – Disforme, que
nunca perdoa a admiração que lhes votou” importa! mas com certeza maior. Vejo a
(BRANDÃO, O Século, 27 abr. 1903, 3). luta interior, o desespero, os risos pres-
A par da admiração pela sua obra – “Até sentidos, a mediocridade que procura
Garrett a literatura portuguesa era um abocanhá-lo – e ele passando, coração em
chão pedregoso e seco, onde cresciam carne viva e o riso na boca – cheia de den-
belas e estranhas árvores, é certo, mas a tes postiços. Adivinho a luta do homem
que faltava um não sei quê, murmúrios, que não soube fazer da velhice mais uma
sombras – talvez a Vida. Apareceu o gran- grandeza e a quem, não bastando o génio,
de escritor e dir-se-ia que naquela imensa foram necessárias as futilidades. Vejo-o
secura tudo se transformou, como se en- passar, mesmo na morte, janota e ridículo
tre as pedras e as raízes sequiosas tivesse como Brummel. […] Revivo o desespero
de súbito brotado um veio de água pura à medida que a velhice avança, e toda a
e límpida. As árvores deram logo mais tragédia feita de pequenas nótulas, que
sombra, a sombra maior frescura…” (Id., não chegam a ser gritos, mas que amon-
Semana d’Évora, 3 maio 1903, 2) –, Raul toadas lá vão bater à Dor. Essa figura pas-
Brandão tanto regista nas Memórias a ma- sa nos meus sonhos e em lugar de me fa-
nia caricata de Garrett: “A vida feroz tor- zer sorrir, enche-me de aflição. Juro-vo-lo
na-nos grotescos. Consegue tudo. Defor- por todos os santos da terra que me põe
ma-nos. O próprio sonho entra às vezes os cabelos em pé. Porque, quando um
no domínio da chacota. Onde, porém, janota qualquer finge que tem cabelos e
Garrett chega ao ridículo, com três ca- se aperta com um espartilho, não sofre:

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a futilidade dá-se bem com a futilidade. em Literatura já foi largamente experi-


Mas um homem de génio nunca desce, mentado, durante trinta largos anos, de
sem sentir que se rebaixa, a tratar desses 1830 a 1860 – e certamente não resultou
miúdos pormenores. […] Era um drama dele aquela renovação moral que Por-
íntimo que eu desejaria contar e que teve tugal necessita e que o meu amigo dele
um só espectador: narrativa ao mesmo espera […]”; “E, a propósito, o que é o
tempo dolorosa e cómica, com o cora- Neogarretismo? Estou com muita curio-
ção apertado num círculo de ferro; era a sidade de saber a que nova conceção do
história do deus que desce à praça públi- Universo, ou a que novo método cientí-
ca, expondo aos homens, sempre maus, fico, ou a que feitio original do espírito
as suas misérias secretas… […] As  ca­ crítico, deu o seu grande nome o mestre
beleiras de Garrett, os seus espartilhos, genial do Frei Luís de Sousa. Se o Neogar-
a carregação de malas com que entrou retismo é um sistema que nos habilitará,
em casa de Herculano, para passar um a todos, a fazer com facilidade Frei Luíses
único dia com o seu ilustre amigo – tudo de Sousa e Autos de Gil Vicente, então, por
isto me pareceria bem banal, se por trás Júpiter! sejamos todos neogarretistas com
não estivesse, como sempre, uma figura fervente entusiasmo!” (QUEIRÓS, 1983,
conhecida, uma velha amiga perante a II, 326-328). Mas nem Eça, aliás réu para
qual não há banalidade que resista, riso alguns de não assumir as dívidas da sua
que não se apague – a Dor” (Id., O Século, mestria estilística para com a revolução
27 abr. 1903, 3). que, na sequência da sua escrita jornalís-
Embora pudesse parecer aproximar-se tica, Garrett introduz na prosa literária
dos pendores neorromânticos de nacio- portuguesa com Viagens, poderá obstar
nalismo cultural e de lusitanismo literá- nem sequer ficar imune à ascensão do
rio, ou pelo menos da motivação de “rea- neorromantismo lusitanista e à difusão
portuguesar Portugal” que enaltece na da corrente neogarretista no centro da
famosa carta enviada em 26 de abril de sua vaga finissecular. Em breve o epíte-
1894 a Oliveira Martins, a propósito da to de “neo-Garrett” será alçapremado e
Vida de Nun’Álvares, Eça de Queirós con- disputado entre os paladinos desse tradi-
trasta inequivocamente o apreço pelo ta- cionalismo estético-ideológico, cabendo
lento literário de Garrett (pelo menos na especialmente a Afonso Lopes Vieira.
dramaturgia) e as severas reservas peran- Verifica-se então uma irónica inflexão na
te o vago projeto neogarrettista na mui- desequilibrada ou injusta prática de rece-
to conhecida carta a Alberto de Oliveira ção oitocentista, que depressa se rendera
(Paris, 6 de agosto de 1894), na receção ao génio dramático de Garrett, enquanto
de Palavras Loucas: “Enquanto às suas oscilava perante o seu legado poético e
ideias – não lhe parece que o Nativismo tardava em apreender e valorizar devida-
e o Tradicionalismo, como fins supremos mente a excelência na modernidade te-
do esforço intelectual e artístico, são um mático-formal da sua narrativa.
tanto mesquinhos? A humanidade não Todavia, as próprias iniciativas ceri-
está toda metida entre a margem do rio moniais e textuais de comemoração do
Minho e o cabo de Santa Maria – e um centenário do nascimento de Garrett não
ser pensante não pode decentemente rasuraram as ambiguidades do reconheci-
passar a existência a murmurar extatica- mento prestigioso. E até aquela linha de
mente que as margens do Mondego são consagração aurática conhecerá aspetos
belas! Por outro lado, o tradicionalismo perniciosos para a imagem do escritor,

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Antiglobalização 2083

que passam pelas empobrecedoras leitu-


ras antológicas e chegam à trivialização
Antiglobalização
escolar dos versos, em verdade magnífi-
cos e densos de sugestão de sentidos, de
poemas como “Barca bela”.

Bibliog.: AMORIM, Francisco Gomes de, Garre‑


tt. Memórias Biográficas, 3 vols., Lisboa, Imprensa
Nacional, 1881-84; BRANDÃO, Raul, “O jano-
O termo “antiglobalização” é utilizado
para denominar o movimento de
oposição ao fenómeno de globalização
ta”, O Século, sup. lit. Revista Literaria, Scientifica e que teve início da déc. de 1990.
Artistica, 27 abr. 1903, p. 3; Id., “Homenagem a
Tem sido denominado de globalização
Almeida Garrett”, Semana d’Évora, 3 maio 1903,
p. 2; Id., Memórias, ed. José Carlos Seabra Pe- o conjunto de transformações políticas,
reira, vol. i, Lisboa, Relógio d’Água, 1998; Id., económicas, sociais e culturais ocorridas
A Pedra ainda Espera Dar Flor, recolha de dis- no final do séc. xx e que permitem con-
persos, introd. e notas Vasco Rosa, Lisboa, siderar que o mundo se encontra inter-
Quetzal, 2013; GARRETT, Almeida, O Arco de ligado numa espécie de “aldeia global”.
Sant’Ana, ed. crítica Maria Helena Santana, Através do processo de globalização, as
Lisboa, INCM, 2004; Id., “Ao Conservatório
pessoas e os mercados de diversos países
Real”, in GARRETT, Almeida, Frei Luís de Sousa,
Porto, Caixotim, 2004a, pp. 35-56; Id., Cartas aproximam-se e interagem.
de Amor à Viscondessa da Luz, introd. e notas Sér- A globalização manifesta-se através do
gio Nazar David, Vila Nova de Famalicão, Qua- desenvolvimento económico, político,
si, 2007; Id., Viagens na Minha Terra, ed. crítica tecnológico e cultural. O processo de
Ofélia Paiva Monteiro, Lisboa, INCM, 2010; interação entre os Estados e as comuni-
Id., Correspondência Familiar, ed. introd. e anot.
dades nacionais promove a globalização
Sérgio Nazar David, Lisboa, INCM, 2012; Id.,
Correspondência para Rodrigo da Fonseca Maga‑
e permite defender a existência de comu-
lhães, introd. e anot. Sérgio Nazar David, Lis- nidades humanas universais.
boa, INCM, 2016; MAGALHÃES, José Calvet Não obstante considerar-se que o fenó-
de, Garrett. A Vida Ardente de Um Romântico, meno de globalização ocorre na última dé-
Lisboa, Bertrand, 1998; MONTEIRO, Ofélia cada do séc. xx, os Descobrimentos portu-
Paiva, Viajando com Garrett pelo Vale de Santarém, gueses e a Revolução Industrial são os seus
Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1966; Id., A For‑
antepassados mais remotos. Os Portugue-
mação de Almeida Garrett. Experiência e Criação,
2 vols., Coimbra, Centro de Estudos Român- ses foram, nas palavras de Martin Page, os
ticos, 1971; Id., “Introdução”, in GARRETT, criadores da “primeira aldeia global”.
Almeida, Frei Luís de Sousa, Porto, Civilização A globalização é facilitada pelo inter-
Editora, 1987, pp. 7-28; MORAIS-ALEXAN- câmbio económico e financeiro, pela di-
DRE, Paulo, Garrett e a Moda, Lisboa, Escola minuição ou abolição de barreiras adua-
Superior de Teatro e Cinema, 2001; QUEIRÓS, neiras, pela criação de blocos económicos,
Eça de, Correspondência, ed. Guilherme de Cas-
como a União Europeia e o Mercosul, pelo
tilho, 2 vols., Lisboa, INCM, 1983; SALGADO,
Maria Antonieta, A Polémica sobre ‘O Retrato de desenvolvimento tecnológico, nomeada-
Vénus’, Lisboa, INCM, 1980; SANTANA, Maria mente através da revolução informática e
Helena, “Um romance histórico heterodoxo: dos meios de comunicação, terrestres, aé-
O Arco de Santana”, in MONTEIRO, Ofélia Pai- reos e de massas, que, neste último caso,
va (coord.), Sociedade e Ficção, Coimbra, Centro permitem o acesso a informação global.
de Literatura Portuguesa, 2007, pp. 47-56. O incremento de um sistema mundial
José Carlos Seabra Pereira de livre comércio, com a diminuição da

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2084 Antiglobalização

presença dos Estados, centrado em em- acentuado as diferenças entre os países ri-
presas presentes numa diversidade de cos e os pobres, entre o hemisfério norte
países, tem potenciado os movimentos e o hemisfério sul. As assimetrias económi-
antiglobalização. A acumulação de capi- cas e regionais aumentaram nas últimas
tais e de lucros pelas grandes empresas décadas do séc. xx e primeiras do séc. xxi.
e a tentativa de criação de um mercado Os movimentos antiglobalização pre-
global é criticada pelos movimentos an- tendem criar um novo sistema interna-
tiglobalização, que se opõem também à cional, que valorize a cooperação entre
existência de empresas globais, que do- Estados e povos, e não a competição en-
minam o comércio mundial e atravessam tre eles. Defende-se uma revitalização das
os Estados, pondo-os em causa. comunidades locais como fator de cres-
Dentro do conceito de antiglobalização, cimento e de melhoria das condições de
encontramos uma pluralidade de movi- vida das populações, em especial as que
mentos que contestam a globalização eco- vivem em países subdesenvolvidos.
nómica, financeira, ambiental, cultural. Para algumas correntes, a globalização
Não obstante os diversos fatores de crítica, leva a um antinacionalismo, por defender
o acento tónico é sempre colocado no com- a superação das nações na criação de uma
bate à existência de um mercado global. sociedade mundial. Os ideais de defesa
Na contestação à globalização econó- dos nacionalismos podem também cons-
mica, tida como capitalista, encontramos tituir um movimento antiglobalização.
grupos socialistas, comunistas, anarquis- Entre os movimentos antiglobalização,
tas, ecologistas, católicos progressistas, encontramos ainda os ambientalistas, que
entre outros. Na génese do movimento, contestam os impactos negativos para o
encontra-se a oposição a determinadas meio ambiente provocados pela explo-
políticas económicas e a defesa de ideo- ração insustentável de matérias-primas
logias políticas anticapitalistas. (necessárias para responder às exigências
As críticas à globalização centram-se dos consumidores mundiais), pela polui-
também numa luta ideológica em que ção ligada à industrialização, pelas altera-
se “misturam sentimentos nacionalistas e ções climáticas, pela redução de camada
protecionistas, o ressentimento e a inveja de ozono e pelos desastres ambientais e
relativamente aos mais bem-sucedidos ou ecológicos decorrentes do denominado
ainda a luta pela hegemonia e a ambição sistema económico capitalista.
de poder” (COSTA, 2004, 448).
No domínio da especulação financeira, Bibliog.: COSTA, Miguel Dias, “Implicações éti-
as empresas de rating, que avaliam o risco co-políticas da globalização como ideologia”,
de concessão de créditos a entidades esta- Brotéria, vol. 159, n.º 5, nov. 2004, pp. 441-452;
duais e empresariais, constituem um sério PAGE, Martin, A Primeira Aldeia Global, Lisboa,
risco para a democracia e soberania dos Casa das Letras, 2008; PINHEIRO, Luís de Lima,
“Portugal, Europe and globalization in the priva-
Estados, gerando falências, desemprego,
te law perspective”, in Portugal, Europe and the Glo‑
pobreza, tumultos, tensões sociais, violên- balization of the Law, Lisboa, Faculdade de Direito
cia. Estas agências têm sido muito contes- da Universidade de Lisboa, 2015, pp. 46-57;
tadas, nomeadamente após a última crise QUADROS, Fausto de, “Portugal, Europe and
financeira mundial, iniciada em 2008. legal globalization”, in Portugal, Europe and the Glo‑
Os opositores dos movimentos de globa- balization of the Law, Lisboa, Faculdade de Direito
lização alertam para o facto de este sistema da Universidade de Lisboa, 2015, pp. 78-83.
ter posto em causa o Estado-providência e Pedro Caridade de Freitas

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Antigramática 2085

Antigramática que se desviam das diversas variedades


linguísticas de um dado idioma, haven-
do, portanto, um critério social, e não
linguístico, para a correção.
Associada a esta aceção de gramática
está a gramática funcional, que abarca
preocupações mais vastas do que as re-

C onstitui uma atitude ou uma corren-


te contrária ao estudo e, sobretudo,
ao ensino da gramática. Formado pela
gras gramaticais por si próprias e tem
em conta aspetos sociolinguísticos e
pragmáticos.
junção do prefixo grego “anti-”, contra, à A gramática dita intuitiva constitui um
forma “gramática”, que deriva igualmen- conjunto de regras que o falante conhece
te do grego “grammatiké”, i.e., arte de ler e domina e com as quais comunica, ainda
e escrever, mas difundida pela palavra do que a gramática prescritiva as considere
latim “grammatica”. viciosas. Ultrapassa a aprendizagem da lín-
O questionamento da utilização e/ou gua, pois considera inato o conhecimen-
do ensino da gramática baseou-se, so- to dos falantes sobre o funcionamento da
bretudo, no facto de este se revelar, por linguagem. Trata-se de uma teoria iniciada
vezes, inconsistente e apresentar a lacuna por Noam Chomsky – a gramática também
de não ter em conta todos os usos reais denominada gerativa –, que descreve um
da língua, já que uma gramática de tipo conjunto finito de regras que gerariam to-
prescritivo nada mais era do que um das as frases de uma língua.
amálgama de regras estritas a seguir, mui- Existem ainda a gramática contrastiva,
to desfasado da realidade da língua usada que compara duas ou mais línguas, e a
pelos falantes. gramática histórica, que traça a evolução
Nas décs. de 80 e 90 do séc. xx, esta e as transformações linguísticas sofri-
problemática levou a várias discussões das por um dado idioma ao longo dos
científicas, perspetivando-se uma visão di- tempos.
ferente, agora de uma gramática que ex- A gramática tem sido, para além de
plicasse, essencialmente, o funcionamen- trabalhos científicos e académicos, voca-
to das línguas, revolucionando-se, deste cionada para o ensino das línguas, quer
modo, o próprio conceito de gramática. maternas quer segundas ou estrangeiras.
Com efeito, a gramática normativa É certo que o objetivo primordial é ensi-
(também chamada tradicional) cinge-se nar a norma culta, uma vez que a apren-
aos aspetos da norma culta e aproxima-se dizagem da fala não é realizada na escola
muito da língua escrita (ou identifica-se e sim em casa, no meio familiar. No en-
até, não raras vezes, com ela), recusando tanto, isso não implica que não se aceite a
usos que divirjam dessa norma culta. variedade do aluno, desde que saiba usar
A aceção da gramática como descritiva, a língua adequadamente conforme as si-
contrariamente à anterior, já enuncia as tuações de comunicação.
regras com base no uso real da língua, Há autores que condenam o ensino da
descrevendo e explicando esse uso, sem gramática por esta atribuir maior valor à
prescrever regras incontornáveis e acei- língua escrita e por avaliar uma determi-
tando a variação que é natural em qual- nada variedade como a melhor, dando
quer idioma vivo. Para esta gramática, o primazia à variedade de uma elite e privi-
erro só ocorre nas formas ou estruturas legiando os escritos de autores consagra-

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2086 Antigramática

dos, ao mesmo tempo que não tem em mento, que apresentavam já pressupostos
conta usos da atualidade. e designações ainda hoje em voga.
A gramática, lê-se no Dicionário da Lín- As primeiras gramáticas portuguesas
gua Portuguesa Contemporânea, é a “descri- datam, como se sabe, do  séc. xvi: a de
ção dos princípios que organizam e re- Fernão de Oliveira, de 1536, a de João de
gem a fonologia, a morfologia e a sintaxe Barros, de 1540 , seguindo-se, a partir daí,
de uma língua; o sistema de regras que vários outros trabalhos, incluindo, tam-
atuam na construção dessa língua”. Entre bém – a partir do séc. xviii –, o ensino da
várias outras aceções, também é definida língua portuguesa a falantes estrangeiros
como “uso correto ou o bom uso de uma (franceses, italianos, etc.). Neste século
língua, tanto escrita como falada”. O con- há o advento da gramática comparativa,
ceito de gramática inclui, muitas vezes, a chegando-se à conclusão – através da aná-
ortografia da língua em causa. lise das características comuns entre lín-
Nascida no Oriente (Índia, nos sécs. vi guas de diferentes famílias – da existência
e v a.C.), no mundo ocidental a gramáti- de uma base comum à maior parte dos
ca desenvolve-se a partir do séc. iii a.C., idiomas: o indo-europeu.
na Grécia, constituindo um marco im- O séc. xx conhecerá a descrição gra-
portante a Arte da Gramática, atribuída a matical daí decorrente, desenvolvendo
Dionísio de Trácia, nos sécs. ii-i a.C. Com várias bases científicas para a descrição
base nos modelos gregos, surge a gramá- da estrutura e do funcionamento, do en-
tica latina, que está claramente na base sino e da abordagem das línguas. Com os
das gramáticas existentes até ao Renasci- vários estudos e investigações realizados
chegou-se à conclusão de que a noção do
que é correto e errado depende de vários
Folha de rosto da Grammatica da Lingoagem fatores, e de que mudança e permanên-
Portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira. cia se conjugam, exigindo-se regras que
definam os limites de aceitabilidade para
que a comunicação se possa efetuar.
No ensino das línguas e, nomeadamen-
te, no de uma língua segunda ou não
materna, houve sempre uma enorme tra-
dição gramatical, provinda do ensino do
latim como língua estrangeira, e que era
uma metodologia baseada na gramática
e na tradução, largamente utilizada até
finais do séc. xix. Tratava-se de uma gra-
mática prescritiva e também fundada na
dedução e memorização de regras e voca-
bulário, que são, aliás, importantes para a
aprendizagem de uma nova língua.
Já em finais de Oitocentos se começa
a questionar esse método e o facto de o
ensino de uma língua morta poder ser
aplicado a línguas vivas, criando-se uma
reação contra o modelo anterior. A esse
novo método, mais intuitivo e que dá

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Antigramática 2087

primazia à língua em estudo, chamou-se


também método antigramática.
Segue-se, com fundamento neste últi-
mo método, um outro, agora estruturalis-
ta, que vai entender a aprendizagem da
língua como um conjunto de hábitos que
são resultado de uma reação de estímulo­
‑resposta. A gramática surge maioritaria-
mente em capítulo à parte. A repetição
de estruturas que pressupunha foi muito
criticada e, a partir de Chomsky, com o ge-
rativismo – também ele não isento de for-
tes críticas, como a sua inaplicabilidade
a todas as línguas –, baseado numa pers-
petiva cognitiva e na teoria do inatismo,
a gramática passa a ser vista de maneira
indutiva, ao mesmo tempo que a pragmá-
tica coloca a ênfase na comunicação.
Após os anos 90 do séc. xx, deu-se gran-
de importância à realização das tarefas su-
geridas pelo Quadro Europeu Comum de
Referência para as Línguas – que foi apli-
Folha de rosto da Grammatica
cado ao ensino das línguas estrangeiras e da Lingua Portuguesa (1540), de João de Barros.
é estruturado por níveis de conhecimen-
tos e competências de cada aprendente,
que vão de A1 a C2, sendo este último o gua Portuguesa, 4 nov. 2001). Bagno cita,
nível mais elevado da aprendizagem, qua- neste contexto, o linguista brasileiro Ata-
se equivalente a falante nativo –, tarefas liba de Castilho, que nota que devem ser
essas que têm como principal objetivo o consideradas as variedades socioculturais
comunicar na sociedade. A  gramática é do português, sem preconceito ou des-
vista mais como útil do que como impres- criminação contra a fala do aluno, que,
cindível, parecendo ser mais necessária com o tempo, aprenderá a adequar-se às
na escrita. situações da comunicação. Segundo este
No seu texto a propósito da gramática linguista, “a gramática deixará de ser vista
tradicional, Marcos Bagno refere que a pelos alunos como a disciplina do certo
diferença essencial entre quem defende e do errado” (Id., Ibid.). Aliás, acusa-se a
o ensino da norma-padrão e os seguido- doutrina gramatical ensinada na escola
res da gramática tradicional está no facto de ter sido instrumento de discriminação
de haver já investigações que provam que e exclusão social, relegando para o esta-
“para aprender as formas mais padroniza- tuto de inculto, bárbaro e socialmente
das e prestigiosas da língua, não é neces- inaceitável quem não soubesse a língua,
sário conhecer a nomenclatura gramati- i.e., quem não conhecesse/dominasse na
cal tradicional, as definições tradicionais, perfeição as regras da gramática (nas suas
nem praticar a velha e mecânica análise várias vertentes: fonética, fonologia, mor-
lexical e muito menos a torturante análise fologia, sintaxe, ortografia, léxico, etc.)
sintática” (BAGNO, Ciberdúvidas da Lín- desse idioma.

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2088 Antigramática

pouco por todo o mundo, como mostram


as imagens acima.
Também as dificuldades associadas às
terminologias, às novas nomenclaturas, à
ortografia e à complexidade gramatical se
encontram retratadas em vários blogues e
caricaturas, assim como a crítica às pres-
crições gramaticais, tão do agrado dos de-
fensores da corrente antigramática.

“Para além da gramática”, Contra Impugnantes,


25 jun. 2014.

Bibliog.: impressa: BRITO, Ana Maria (org.),


Outro linguista, Celso Luft, combate Gramática: História, Teorias, Aplicações, Porto,
veementemente o ensino da gramática Centro de Linguística da Universidade do
Porto, 2010; CASTILHO, Ataliba Teixeira de,
na sala de aula, apontando “a maneira
A Língua Falada no Ensino de Português, São Pau-
tradicional e errada de ensinar a língua lo, Editora Contexto, 1998; Dicionário da Lín‑
materna, as noções falsas de língua e gra- gua Portuguesa Contemporânea da Academia das
mática, a obsessão gramaticalista, a inuti- Ciências de Lisboa, vol. ii, Lisboa, Verbo, 2001;
lidade do ensino da teoria gramatical, a MADEIRA, Fábio, “Crenças de professores de
visão distorcida de que ensinar a língua é português sobre o papel da gramática no en-
ensinar a escrever certo, o esquecimento sino de língua portuguesa”, Linguagem & En‑
a que se relega a prática linguística, a pos- sino, vol. viii, n.º 2, jul.-dez. 2005, pp. 17-38;
digital: BAGNO, Marcos, “Contra a doutrina
tura prescritiva, purista e alienada – tão
gramatical tradicional”, Ciberdúvidas da Língua
comum nas ‘aulas de português’” (SCAR- Portuguesa, 4 nov. 2001: https://ciberduvi-
TON, s.d., [1]). Defende ainda que o das.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/controver-
aluno, agora livre de preconceitos e do sias/contra-a-doutrina-gramatical-tradicio-
artificialismo das definições, nomenclatu- nal/1316 (acedido a 27 dez. 2016); PARDO,
ras gramaticais, etc., poderá desenvolver Jorge Juan Plaza, “En busca de la gramática
cabalmente o seu espírito crítico. perdida”, Revista Escuela Oficial de Idiomas de Ali‑
cante, n.º 6, jun. 2010: http://eoialicante.edu.
A atitude da corrente antigramática
gva.es/revista_eoi/?page_id=65 (acedido a 27
é, assim, fundamentalmente, uma fuga dez. 2016); SCARTON, Gilberto, “Um gramá-
à memorização, ao peso das definições tico contra a gramática”, Faculdade Alfredo Nas‑
e das teorias, ao artificialismo (baseado ser, s.d.: http://www.faculdadealfredonasser.
grosso modo em grandes autores de outros edu.br/files/pesquisa/MODELO%20DE%20
tempos) e a purismos linguísticos que ca- RESENHA%20(Um%20gram%C3%A1tico%20
racterizaram o ensino das línguas (mater- contra%20a%20gram%C3%A1tica).pdf (ace-
na e segunda) ao longo de vários séculos, dido a 27 dez. 2016).
não só em Portugal ou no Brasil, mas um Maria Carmen de Frias e Gouveia

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Glocalização 2089

Glocalização de dois poderosos movimentos da cultu-


ra humana: o fechamento num horizonte
restrito de compreensão e de vivência da
relação com a humanidade e com o cos-
mo; e um movimento globalista, homo-
geneizante dos valores e dos produtos e,
no limite, detrator das peculiaridades das

P ode ser considerado um conceito


atenuante da influência negativa do
globalismo e, neste sentido, ser defini-
culturas locais.

Bibliog.: ANTUNES, Manuel, Obra Completa,


do como um antiglobalismo moderado. vol. i, t. ii, coord. Guilherme d’Oliveira Mar-
“Glocalização” é um termo neologístico tins, Lisboa, FCG, 2008; FRANCO, Augusto,
Globalização, Glocalização, Localização, Belo Ho-
que funde de forma sincopada dois vocá-
rizonte, Aed, 2014.
bulos: “localização” e “globalização”; foi
criado no contexto da gestão e da econo- José Eduardo Franco
mia nos inícios da déc. de 80 do séc. xx,
pelo pensamento estratégico mercadoló-
gico japonês, e visava valorizar a inscrição
local das produções, com vista a atenuar
os efeitos perniciosos das derivas globali-
zantes, que desenraizavam as referências
de origem em favor da distinção da mar-
ca e do nome. Assim, procurou-se afirmar
o local e o diverso como fator de prestígio
e qualidade face à deriva homogeneizan-
te do global.
Em Portugal, já no início da déc. de
70 do séc. xx, em plena emergência da
dinâmica transformadora do xadrez
mundial que veio a ser chamada era da
globalização, o P.e Manuel Antunes de-
fendia que “duas forças antagónicas, cen-
trípeta e centrífuga, solicitaram os povos
na década que finda: o mundialismo e o
etnocentrismo” (ANTUNES, 2008, 121).
Estes dois movimentos pendulares acen-
tuaram-se em tensão permanente desde
a auspiciosa déc. de 60 até ao séc. xxi.
De facto, o incremento do processo de
globalização contribuiu para acicatar o
seu inverso, como forma de resistência
à massificação cultural uniformizadora
e diluidora das identidades locais, regio-
nais e nacionais. A glocalização acaba por
sugerir um ponto de equilíbrio, uma ter-
ceira via atenuante dos efeitos negativos

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2090 Anti-Herculano

Anti-Herculano Recreio, que defendiam o milagre como


um facto indiscutivelmente histórico.
Também Camilo Castelo Branco inter-
veio com um folheto anónimo onde pa-
rece refutar Herculano.

Bibliog.: BEIRANTE, Cândido, Alexandre Her‑

A vida multifacetada de Alexandre Her-


culano (1810-1877) foi sustentada por
várias polémicas (e.g., sobre a propriedade
culano. As Faces do Poliedro, Lisboa, Vega, 1991;
[BRANCO, Camilo C.], O Clero e o Sr. Alexandre
Herculano, Lisboa, Imprensa de Francisco Xa-
vier de Sousa, 1850; BUESCU, Ana, O Milagre
literária, com Garrett) que evidenciaram de Ourique e a História de Portugal, de Alexan‑
a sua cidadania empenhada, liberdade de dre Herculano. Uma Polémica Oitocentista, Lisboa,
pensamento e personalidade poliédrica, Instituto Nacional Investigação Científica,
deixando à posteridade um legado, tes- 1987; HERCULANO, Alexandre, Opúsculos,
temunha da sua convicção inabalável, do org., introd. e notas Jorge Custódio e José M.
seu talento argumentativo, da sua vasta Garcia, vol. iv, Lisboa, Presença, 1985; Id., His‑
tória de Portugal, vol. i, Lisboa, Bertrand, 2007;
cultura e de uma eloquência hábil.
JORGE, Teresa Margarida, Alexandre Herculano
As posições assumidas suscitaram vivas nos Seus Papéis. Estudo e Edição da Correspondên‑
reações anti-herculanianas. Na busca in- cia Autógrafa, 3 vols., Dissertação de Doutora-
cessante da verdade histórica, Herculano mento em Estudos Portugueses apresentada
desmistificou o milagre de Ourique (apa- à Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, tex-
rição de Cristo a Afonso Henriques antes to policopiado, 2009; LOPES, Óscar, Álbum
da batalha contra os mouros, em 1139) e de Família, Lisboa, Associação Portuguesa de
deu origem à sua mais longa controvérsia Escritores, 2001; MACEDO, Jorge Borges de,
Alexandre Herculano. Polémica e Mensagem, Ama-
pública, iniciada em 1846 (e terminando
dora, Bertrand, 1980; PONTES, Juvenália,
em 1857), com a publicação do livro ii da Alexandre Herculano e o Clero. O Ponto de Vista
História de Portugal, onde reduz a batalha de Herculano, Dissertação de Licenciatura em
a um “fossado” e o milagre a um docu- Ciências Filosóficas apresentada à Universida-
mento mal forjado. de de Coimbra, Coimbra, texto policopiado,
Já Damião de Góis (séc. xvi) e Luís A. 1965; TRINDADE, Manuel, “Herculano po-
Verney (séc. xviii) tinham questionado lemista”, in ANSELMO, Artur (dir.), As Gran‑
des Polémicas Portuguesas, vol. ii, Lisboa, Verbo,
o milagre, mas Herculano enquadra-o
1967, pp. 39-71.
“numa explicação global de nacionali-
dade” (BUESCU, 1987, 156). Só quando Teresa Margarida Jorge
Herculano é atacado particularmente
pelo clero, é que responde, em 1850,
com Eu e o Clero. Carta ao Ex.mo Cardeal
Patriarca (o primeiro de cinco opúsculos
até 1851), obra na qual apresenta a base
da sua intervenção e leitura da querela,
reacendendo a questão (cujo corpus é
constituído por 25 estudos), com uma as-
sinalável repercussão na imprensa e uma
acérrima campanha anti-Herculano, em
que se destacaram António Magessi Tava-
res, José Fonseca Pereira e o P.e Francisco

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Anti-herói 2091

Anti-herói explicados e justificados pelas circunstân-


cias sociais em que cresceu. As suas ações
negativas tornam-se menos reprováveis
quando se dá a entender a causa das mes-
mas (família, origem ou estatuto social).
Desta forma, os seus maus hábitos, os seus
pecados ou as suas transgressões causam

A inda que possa parecer recente, a


categoria literária do anti-herói tem
uma longa história, sendo os seus exem-
no público compaixão, consideração e,
por vezes, até desejo de identificação.
Incompreendido pela sociedade, rejei-
plos conhecidos desde o teatro clássico tado, marginalizado, inadaptado, supér-
greco-romano e a poesia épica oral em fluo – a tal ponto que, por vezes, se sente
muitos povos e culturas. Como perso- até um maldito –, o anti-herói não é um
nagem, aparece na poesia épica, no ro- ser repugnante, sujeito a uma forte con-
mance ou no teatro. Entre os primeiros denação moral. Ele é fruto da sua época,
anti-heróis da literatura universal, será carregando as limitações e os estigmas da
necessário mencionar a Antígona de Só- comunidade em que viveu e foi criado.
focles, que transgride a lei para mostrar o
amor pelo irmão, e o Rei Édipo, que mata Édipo e a Esfinge (1808), de Jean-Auguste
o próprio pai e se casa com a mãe, gestos Dominique Ingres.
dos quais deriva toda a sua tragédia pes-
soal e humana. Tristão, protagonista de
Tristão e Isolda, tem igualmente elementos
de anti-herói, porque entre o amor pela
sua dama e a lealdade ao seu Rei – mari-
do de Isolda – escolhe a primeira opção
e comete o adultério, pecado grave no
imaginário medieval, justificado pela sua
paixão avassaladora.
A investigadora sérvia Tanja Popović,
no seu dicionário Rečnik Književnih Ter-
mina (2006), trata os conceitos de “an-
ti-herói” e “herói negativo” quase como
sinónimos, referindo que o que os carac-
teriza é o facto de serem portadores de
traços de carácter que os contrapõem ao
herói idealizado, adornado com todas as
virtudes e excelentes capacidades. Ape-
sar da sua aparente identificação com
a personagem negativa, o vilão, é impe-
rioso salientar que o anti-herói não é o
adversário do protagonista, o seu inimigo
ou o seu alter ego, mas apenas o seu polo
oposto em termos de características psi-
cológicas ou morais. Os comportamentos
impróprios do anti-herói são muitas vezes

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2092 Anti-herói

Em alguns casos, o principal problema frustrações, inquietações e problemas,


desta personagem é o facto de estar de- sendo, muitas vezes, uma personagem de-
masiado à frente do seu tempo, propa- sacreditada e desqualificada, considerada
gando em seu redor ideias e atitudes até perdedora à partida, devido à demasiada
então impensáveis. banalização dos seus comportamentos,
Assim sendo, o anti-herói é uma perso- dos seus pensamentos ou das suas atitu-
nagem mais verosímil que o herói, pois é des. Joseph T. Shipley encara esta perso-
mais fácil acreditar na existência de uma nagem como revoltada contra as conven-
pessoa real, com os seus comportamen- ções, alguém que se desvia do padrão do
tos, os seus medos, as suas dúvidas, os seus herói. Para além da destruição e do ques-
rancores, a sua raiva, a sua indecisão ou a tionamento dos tabus e da manifestação
sua passividade. Massaud Moisés vê nesta das características negativas, o anti-herói
caracterização psicológica do anti-herói pode distinguir-se do herói pela sua não
a constante e crescente desmitificação e ação, pela sua passividade, pelo seu não
humanização da personagem principal. conflito com o mundo que o rodeia e
Defende o autor que, não sendo necessa- pela sua esperança de que tudo em seu
riamente marcado por um defeito físico redor se resolverá sem necessidade da sua
ou uma tara que possam condicionar o intervenção nos acontecimentos. Assim
seu desenvolvimento emocional, o anti­ sendo, Vladimir e Estragon, protagonis-
‑herói, muito simplesmente, “não alcança tas de À Espera de Godot de Samuel Becket,
emprestar altitude ao seu comportamen- seriam os anti-heróis por excelência do
to” (MOISÉS, 1978, 29-30). Quando en- drama do absurdo, sendo a passividade a
gana os demais ou comete outro erro do sua única e predominante qualidade.
ponto de vista ético, não o faz apenas por Na perspetiva de Carlos Reis e Ana Cris-
maldade, mas por ser influenciado por tina Lopes, a função do anti-herói dentro
diversos fatores, externos ou inerentes a de uma obra literária é exatamente a mes-
si, que o tornam uma personagem com- ma que a do herói, entendido no sentido
plexa, o que abre caminho para múltiplas tradicional da palavra: tal como o seu an-
interpretações. J. A. Cuddon, no The Pen- tecedente, também o anti-herói protago-
guin Dictionary of Literary Terms, ao consi- niza uma obra, polarizando as restantes
derar o carácter anti-heroico de alguns personagens em função das suas atitudes.
protagonistas, sublinha a sua vocação Tendo o mesmo poder de suscitar a sim-
para o fracasso, que é uma força quase su- patia dos leitores que o herói positivo,
perior a eles: estas personagens são acom- o anti-herói falha, no entanto, na reali-
panhadas pelo azar, são incompetentes, zação dos seus planos, parecendo não
desajeitadas, desprovidas de tato e, por estar à altura das tarefas. Na construção
vezes, pouco inteligentes. Devido a estas desta personagem, estão frequentemente
características, o anti-herói entra com fre- presentes elementos de paródia, ironia e
quência em situações que comprometem comicidade, embora não com o intuito
a sua honra, a sua reputação, o seu esta- didático de ridicularizar os seus vícios,
tuto social, a sua profissão, os seus rela- como era habitual nas obras literárias
cionamentos e, até, a sua saúde mental. do séc. xviii. Nas atitudes negativas que
Ross Murfin e M. Ray Supryia consideram o anti-herói manifesta, esconde-se uma
esta personagem demasiado ordinária e denúncia perspicaz de determinados fe-
desonesta para ser tida como uma figura nómenos sociais. Esta personagem não se
grande e admirável. É uma pessoa com enquadra no ambiente que a rodeia, quer

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Anti-herói 2093

por ser demasiado excecional (como é o de diferentes formas: as primeiras, com a


caso do D. Quixote de Cervantes), quer sua arte de galanteio; as segundas, com
por ser portadora de características que promessas de casamento, ridicularizando
a tornam trágica (como acontece com os as questões da honra, do carácter sagra-
protagonistas das obras românticas, es- do do vínculo matrimonial e até da sal-
pecialmente as de Lord Byron). José R. vação eterna da alma. Ainda na literatura
Valles Calatrava afirma que, no apareci- espanhola, os caracteres construídos por
mento dos anti-heróis na literatura, se re- Ramón de Valle-Inclán, António Buero
vela a “materialização de uma sociedade Vallejo ou Fernando Arrabal são outros
em crise” (CALATRAVA, 2002, 226) e a exemplos de anti-heroísmo literário. São
decadência de todos os preceitos morais pessimistas, anticonformistas, questio-
que adornavam o herói positivo. nam as autoridades – a escola, a família,
Na literatura espanhola, são considera- a religião – e procuram um sentido na
dos anti-heróis a personagem Celestina, vida. Desta forma, Emanu, protagonista
alcoviteira da célebre obra homónima de O Cemitério de Automóveis de Fernando
atribuída a Fernando de Rojas, os píca- Arrabal, é uma caricatura de Jesus Cristo,
ros, Lazarillo de Tormes, protagonista da sendo que o próprio nome “Emanu” em
obra com o mesmo nome de autoria des- hebraico significa connosco, enquanto
conhecida, e D. Pablos, o célebre buscón “Emmanuil” nessa mesma língua signifi-
de Francisco de Quevedo. Os dois últimos ca connosco Deus. Esta figura representa
são anti-heróis sobretudo na medida em uma sociedade consumista, laicizada, sem
que, embora consigam aparentemente Deus nem ideais em que acreditar.
realizar-se, na realidade representam, no Os anti-heróis literários em Portugal
contexto da Espanha seiscentista, marca- são, entre outros, António Faria, prota-
da pelos conceitos de honra, limpeza de gonista da Peregrinação de Fernão Mendes
sangue e desejo de ascensão social, a ca- Pinto, Calisto Elói de Silos e Benevides e
ricatura de um contexto histórico-social Barbuda, personagem central de A Que-
particular. O mais célebre anti-herói lite- da de Um Anjo de Camilo Castelo Branco,
rário, criado na literatura espanhola mas Teodorico Raposo, de A Relíquia de Eça
já reconhecido a nível mundial, é prova- de Queirós, e Tomás de Alencar, de Os
velmente Alonso Quijano El Bueno, que, Maias, também de Eça de Queirós, tal
depois de ter lido demasiados romances como algumas das personagens de José
de cavalaria, se tornou D. Quixote da Saramago e António Lobo Antunes. No
Mancha, alguém cujo idealismo e cujas espaço lusófono, vale a pena mencionar
virtudes se opõem ao pragmatismo e ao Jaime Bunda, criado por Pepetela, e o
materialismo do seu escudeiro Sancho próprio Gato Malhado de Jorge Amado,
Pança. Esta é, no entanto, apenas uma que, embora seja um animal, representa
das leituras possíveis do carácter, ao mes- uma personagem falhada: mal-humora-
mo tempo heroico e anti-heroico, desta da, marginalizada, de má fama, odiada
magnífica personagem literária. D. Juan por todos menos pela Andorinha Sinhá.
Tenório, personagem central do drama Na literatura russa, os anti-heróis mais
O Burlador de Sevilha e Convidado de Pedra, conhecidos são Eugénio Onegine, da
de Tirso de Molina, também cabe den- obra homónima de Pushkin, Perchorine,
tro desta categoria; pertencendo a uma protagonista de O Herói do Nosso Tempo
família nobre e prestigiada, este jovem de Lermontov, Raskolnikov, de O Crime
seduz as damas da corte e as camponesas e o Castigo de Dostoiévski, e algumas das

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2094 Heresia e ortodoxia

personagens de Bulgakov. No feminino,


certamente, o protótipo de anti-heroína
Heresia e ortodoxia
literária é a Anna Karenina de Tolstoi. Na
literatura francesa, o primeiro anti-he-
rói conhecido é Hylias, personagem da
obra L’Astrée de Honoré d’Ufré. Emma
Bovary de Flaubert e Merceau de Camus
pertencem também a esta categoria. Na
literatura islandesa, o anti-herói por ex-
celência é Páll, o jovem doente psiquiá-
O conceito de heresia remete para o
campo semântico das escolhas en-
tre caminhos possíveis, das opções em
trico que protagoniza a obra Os Anjos do jogo. A ideia de heresia codificou-se na
Universo, de Einar Már Gudmundsson. cultura ocidental de matriz cristã com a
Outros exemplos conhecidos da litera- noção de divergência e desvio em rela-
tura mundial são Dorian Gray, de Oscar ção a uma doutrina estabelecida como
Wilde, Willy Loman, o vendedor da obra ortodoxa por uma dada autoridade legi-
The Death of a Salesman de Arthur Miller, timadora. Portanto, a heresia constitui-se
Leopold Bloom, de Ulisses de James Joy- teologicamente e depois também cultu-
ce, Jozef K., de O Processo de Kafka, Har- ralmente como o negativo da ortodoxia,
ry Haller, de O Lobo da Estepe de Herman o seu lado crítico, irreverente, mas tam-
Hesse, e Mr. Hyde, personagem de Louis bém o seu lado derrotado nos debates
Robert Stevenson. teológicos.
A ortodoxia é a doutrina definida e pro-
Bibliog.: CALATRAVA, José R. Valles, Dicciona‑ clamada solenemente pela autoridade de
rio de la Teoría de la Narrativa, Granada, Alhu- um Concílio ou do Magistério da Igreja,
lia, 2002; CUDDON, J. A. (org.), The Penguin este exarado pelos detentores do poder
Dictionary of Literary Terms, London, Penguin
de definição doutrinal por sucessão apos-
Books, 1999; MOISÉS, Massaud, Dicionário
de Termos Literários, São Paulo, Cultrix, 1978; tólica: os bispos e o papa de Roma, no
MURFIN, Ross, e SUPRYIA, M. Ray, The Bed­ quadro confessional da Igreja Católica.
ford Glossary of Critical and Literary Terms, Bos-
ton, Bedford Books, 1997; POPOVIĆ, Tanja,
Rečnik Književnih Termina, Beograd, Logos Art, Execução de Anneken Hendriks, séc. xvi.
2006; REIS, Carlos, e LOPES, Ana Cristina,
Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina,
1994; SHIPLEY, Joseph T., Dictionary of World
Literary Terms, London, George Allen & Unwin,
1970.
Anamarija Marinovic

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Hipertexto e antitexto 2095

Se nos situarmos em campos divergentes


e opostos de outras igrejas cristãs, como
Hipertexto e antitexto
são o luteranismo ou o calvinismo, a cata-
logação das heresias será necessariamen-
te diversa.
A heresia é a afirmação de aspetos e
linhas doutrinais que não se coadunam
com a doutrina ortodoxa, desde o cam-
po da moral, passando pelos da teologia
da criação, da cristologia, da eclesiologia,
O hipertexto pode ser entendido
como uma tecnologia da inteli-
gência. Nas modalidades emergentes,
até à pneumatologia e à mariologia. As- segundo a perspetiva do conexionismo,
sim sendo, a ortodoxia é o ponto de ne- considera-se a problemática hipertextual
gação ou de anulação da heresia. como a simples conexão de palavras e de
A ortodoxia configura-se em modelos frases. O hipertexto é, pois, um híbrido
doutrinais, morais e éticos, definidos do ponto de vista informático. O hiper-
por uma autoridade competente como texto é um instrumento, uma provisão, e
os verdadeiros e conformes a uma ma- não uma visão excêntrica.
triz de validação da verdade originária, O hipertexto apresenta uma nova eco-
tendo por referência o livro dos livros logia cognitiva. Ao ser definido como
que é a Bíblia. um instrumento, é antes de mais um
Estamos perante um conceito que se instrumento mediático. O seu oposto é
desenvolveu no universo religioso cristão, o meio impresso. O hipertexto é destino
mas que depois foi aplicado, por exten- do pensamento. Se a organização hiper-
são semântica, a outros campos, como os textual deve ser pensada num quadro da
da política, da arte e da economia. Assim, pragmática do conhecimento, esta, por
se soa mais natural falar-se de ortodoxia sua vez, deve ser englobada num quadro
religiosa, com o tempo foi-se tornando mais lato: o de uma ecologia cognitiva do
habitual falar, e.g., de ortodoxia capitalis- ciberespaço, mobilizando três tipos de
ta, ou de comunistas ortodoxos no cam- agenciamentos – coletivos de enuncia-
po ideológico-político. ção (logosfera), maquínicos (mecanos-
Aos conceitos de heresia e ortodoxia fera) e de res (toposfera), podendo cada
devemos ajuntar, no seu universo semân- um deles ser considerado uma solução
tico, os conceitos de cisma, apostasia, he- hipertextual.
terodoxia, entre outros. Se o antitexto está associado à ideia de
texto alternativo, que se afirma contra o
estabelecido por um determinado câno-
ne tradicional, o hipertexto pode assumir
as características de antitexto no plano
formal, enquanto reação à tecnologia
da fixação do texto nos moldes estáticos
Bibliog.: JÚNIOR, João Ribeiro, Pequena His‑ tradicionais. Será, pois, um antitexto na
tória das Heresias, Campinas, Papirus, 1989; medida em que subverte o modo clássico
PIÑERO, Antonio, Los Cristianismos Derrotados: de entender a estabilização do conheci-
¿Quál Fue el Pensamiento de los Primeros Cristianos mento num suporte estático de papel,
Heréticos y Heterodoxos?, Madrid, Edaf, 2007. de pedra, ou outro. Assiste-se, pois, no
José Eduardo Franco hipertexto a uma desagregação da ideia

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2096 Iconoclastia

definitiva de texto tradicional enquanto


última palavra sobre um assunto, pas-
Iconoclastia
sando agora o mesmo a ser entendido
como uma realidade dinâmica, compó-
sita, metamórfica, que abre janelas para
uma caleidoscópica possibilidade de
complementos e acrescentos em espiral
inacabada.

Bibliog.: MOURÃO, José Augusto, Obra Seleta


A existência do pensamento e ação ico-
noclastas deve-se à avaliação da pala-
vra “imagem” enquanto significante de um
de José Augusto Mourão: o Vento e o Fogo; a Palavra conceito que acarreta traços semânticos de
e o Sopro; o Espelho e o Eco, Lisboa, INCM, 2017. tal forma expressivos e consequentes que
… José Augusto Mourão potenciam comportamentos humanos tra-
José Eduardo Franco dutores de significados ideológicos muito
fortes, não raramente consubstanciados
em posicionamentos políticos e religiosos.
Bastará aquilatar os universos semânticos
que a palavra “ícone” (do grego “eikon”)
carrega – e bem assim os universos semân-
ticos que acarretam os conceitos que dela
derivam (imagem, ídolo, fantasma) – para
percecionar a reação que estes ambientes
semasiológicos suscitam nas diferentes
conjunturas históricas, sempre assentes
em correntes filosóficas, múltiplas vezes
antinómicas.
O facto de a imagem se tomar como ele-
mento que apresenta uma realidade e que,
indissociavelmente, a representa fez com
que a imagem fosse lida como apropriação
da realidade, i.e., como mecanismo de co-
municação (visual, literária, etc.) pelo qual
se faz rosto da realidade, apresentando-a,
representando-a e tornando-a presente
(perenizando-a). Tais características mos-
traram-se incompatíveis com determinados
sistemas de pensamento, sendo tipicamen-
te demonstrativos disso os sistemas religio-
sos que assentam nas chamadas religiões
do livro, que pretendem revelar um Deus­
‑Criador que não pode ser apresentado-re-
presentado na forma matérica e, por isso,
representado por qualquer traço desenha-
do pela mão da criatura. Assim, a legislação
destas religiões é fortemente iconoclasta,
sobretudo apoiada na ideia de que as ima-

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Iconoclastia 2097

gens podem gerar ídolos que ataquem as


atenções do Deus ciumento descrito no
Pentateuco (Dt 4, 24; 5, 9; 6, 15). Não obs-
tante mantidas sob suspeita, as religiões,
mesmo as abraâmicas, usaram imagens e
consentiram – cada uma com especificida-
des próprias – na representação do mundo
sagrado, sobretudo quando este se enlaçava
com a vivência dos membros da grei. Antes
das atitudes iconoclastas que virão a flores-
cer no universo protestante já inaugurado
no contexto finimedieval, que tomam esta
questão como forte bandeira da sua prega-
ção (primeiramente John Wycliffe e depois
Lutero, Calvino, Zuínglio), é célebre na
história do cristianismo, já bem depois de
os cristãos terem assumido a destruição das John Wycliffe (1330-1384).
representações das divindades do panteão
greco-romano, o iconoclasmo, movimen- notados como amigos de Deus. Situação
to que, no séc. viii, destruiu imagens e as essa que se aplica a todas as religiões, mas
proibiu de forma perentória, não sem que que, pela dimensão da presença cultural,
a essa determinação subjazessem políticas claramente se observa na imagética cató-
relacionadas com a gestão de fiéis relativa- lica, tantas vezes antijudaica (lembre-se a
mente à cristandade de então. Este impor- representação, nos códices medievais, da
tante episódio só veio a ser vencido com sinagoga como figura alegórica que, de
a argumentação segura de vários Padres, olhos vendados, é apresentada sobre um
entre os quais João Damasceno, assente no jumento) ou antiprotestante (lembre-se
raciocínio segundo o qual o próprio pen- a alegoria que mostra o triunfo da Igreja
samento cristão só era possível a partir da sobre o mundo protestante, por vezes ex-
ideia de incarnação, e de que esta assumia posta sob a designação “a religião a açoi-
claramente a imagem de Deus com rosto tar a heresia”, nas figurações da Idade
humano e, portanto, passível de ser apre- Moderna), etc.
sentado e representado. Desta importância da imagem tiveram
A todos estes capítulos históricos subjaz completa consciência todos os sistemas po-
a importância conferida à imagem como líticos de governação que a ela recorreram
uma especial linguagem, que, não rara- para transmitir a sua forma de pensar e a
mente aliada aos cuidados e potencialida- forma de pensar que queriam fosse assu-
des da arte, faz transmitir ideais e, muitas mida pelos que governavam. Foi esta a ra-
vezes – se não todas as vezes –, não está zão que os fez usar não apenas a imagem,
inocente de propaganda. Por esta razão, mas a anti-imagem, porquanto, por diver-
a imagem se viu associada à transmissão sas razões, o poder instituído tem necessi-
da doutrina e, inexoravelmente, à trans- dade de condenar as imagens do sistema
missão das contracorrentes religiosas, por a que sucede. Os programas iconográficos
conseguinte, múltiplas vezes usada quer do poder são, assim, também, não raras
para dizer Deus, quer para pregar contra vezes, programas iconoclastas no sentido
os que, em cada conjuntura, foram co- da damnatio memoriae, quer por fazerem es-

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2098 Iconoclastia

quecer programas antigos, quer por faze- aconteceu não somente na pintura e na
rem a destruição de imagens anteriormen- escultura, mas também na própria arqui-
te reinantes, quer por fazerem acontecer, tetura, designadamente no universo da
através de novas imagens, outras narrativas arquitetura minimalista que vê na imagem
múltiplas vezes antinómicas, que configu- uma concorrente do discurso depura-
raram programas iconográficos ao serviço do que, também per se, pode ser avaliado
desse mesmo poder político. como um ícone.
Não estranha, por conseguinte, que a Paralelamente ao questionamento da
própria arte, quando, sobretudo na era arquitetura religiosa na segunda metade
contemporânea, se pretende libertar de de Novecentos – e, nalguns casos, numa
todos os preconceitos com que se enten- relação intelectual de causa-consequên-
deu enformada e com os quais se sentiu cia –, o próprio discurso eclesiológico do
aprisionada, haja querido lançar vivos catolicismo que a si próprio se reflete no
manifestos, também eles entendíveis no Concílio Vaticano II levou também a que
quadro do conceito de iconoclastia, a par- a atitude artística relativa aos espaços cul-
tir da forma de apresentar e representar o tuais gizada a partir da Sacrosanctum Conci-
mundo e os seus ideários, destruindo ima- lium os requeresse despojados de imagens
gens feitas e ideias preconcebidas do belo e a que os mesmos fossem tomados, por
que serviam determinados regimes socie- determinado sentir crítico, como icono-
tários. Assim, não raramente se veem, na clastas, não obstante a depuração formal
história da arte contemporânea, autores dessas igrejas pretender apresentar como
que, ao proporem novas reflexões artísti- ícone maior a ecclesia reunida.
cas, ao pretenderem negar a própria arte, Embora todas as conjunturas históricas
sobretudo nos seus valores academistas, se tenham usado a imagem, e por isso todas
mostram rebeldes relativamente a histori- elas se possam estudar a partir do uso que
cismos e subvertem, inclusivamente e atra- desta fizeram, a epistemologia tem dado
vés do uso de imagens de obras de arte, os à sociedade moderna, porventura inau-
paradigmas antigos, criando, outrossim, gurada com o século das Luzes – que, pa-
através do conceito de desconstrução e de radoxalmente, coabitou com a ambiência
destruição, novas linguagens, e reabilitan- barroca da sociedade do espetáculo e com
do, inclusive, temas arcaicos nessas épocas o seu sentido de horror vacui –, esse estatu-
entendidos como anticivilizacionais (ve- to de querer contrariar, através da fobia à
ja-se, cada um com a sua forma mentis, o imagem tantas vezes responsável pelo de-
cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, a arte sinvestimento nas artes figurativas, o axio-
povera, etc.). ma popularizado de que “uma imagem
Entendendo também que a imagem vale mais que mil palavras”.
pressupunha a figuração, a arte virá a Dentro da temática iconoclasta, pode
defender a abstração como antinomia ainda ser lido, quer na arte antiga (veja-se,
da imagem, do ícone, não obstante essas e.g., as representações dos marginalia dos
abstrações serem entendíveis, inexoravel- códices medievais), quer na arte contem-
mente, como verdadeiras imagens, não porânea, o uso dos assuntos interditos, de
raramente legendadas com a formulação que são exemplo a bandeira nacional e
“sem título”, que remete, também, para outros símbolos da comunidade (políticos
a negação da criação de uma imagem­ e religiosos): ou por serem institucionais,
‑apreensão única e que poderá fazer po- e, por isso, intocáveis (e.g., Manuel Casi-
tenciar a criação de outras imagens. Assim miro e Nikias Skapinakis sobre a bandeira

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Iconoclastia 2099

nacional; Júlio Pomar, Costa Pinheiro, comunicação e levada a cabo de modo


Bento Condado, Luís Macieira, João Abel consciente e com a argumentação que as
Manta, João Machado e André Carrilho sociedades legitimam.
sobre o busto oficial da República Por-
tuguesa; João Cutileiro sobre a temática
do 25  de Abril; e ainda as obras de Otto Bibliog.: impressa: ALTET, Xavier Barral i,
Muehl, M. K. Kaehne e Erwin Olaf); ou Dictionnaire Critique d’Iconographie Occidentale,
Renne, Presses Universitaire de Renne, 2003;
por serem demasiadamente populares
BARASCH, Moshe, Icon: Studies in the History of
e, por conseguinte, apartados do mundo An Idea, New York/London, New York Universi-
da crítica que tabela o que é estético (ve- ty Press, 1992; BOLDRICK, Tacy et al., Striking
ja-se Joana Vasconcelos); ou ainda por se- Images: Iconoclasms Past and Present, Surrey/Bur-
rem moralmente intocáveis (confronte-se lington, Taylor & Francis, 2013; BONOTTO,
O Menino de Sua Mãe, de Clara Menéres; Luigi et al., Sentieri Interrotti. Crisi della Rappresen‑
ou, em sentido contrário, as obras de Ru- tazione e Iconoclastia nelle Arti dagli Anni Cinquanta
dolf Herz e Piotr Uklansk e tantos exem- alla fine del Secolo. Vanished Paths. Crisis of Repre‑
sentation and Destruction in the Arts from the 1950s
plos que usam imagens relativas ao Holo-
to the end of the Century, Milano, Charta, 2000;
causto e aos seus protagonistas; as obras de CHEVALIER, Jean, e GHEERBRANT, Alain,
Damien Hirst, de Marina Abramović e do Dicionário dos Símbolos. Mitos, Sonhos, Costumes,
paradigmático Paolo Pasolini; ainda, e.g., Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números, s.l., Cír-
Jake e Dinos Chapman sobre a temática culo de Leitores, 1997; GASSET, José Ortega
escatológica e sexual e as barreiras do que y, A Desumanização da Arte, Lisboa, Vega, 1996;
pode ou não ser admitido à vista). HALL, Stuart, A Identidade Cultural na Pós-Mo‑
dernidade, Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2006;
Neste contexto, o exercício da icono-
LATOUR, Bruno, e WEIBEL, Peter, Iconoclash,
clastia tem sido levado a cabo também
London/Cambridge,  Massachusetts Institute
através da proibição da imagem, e da con- of Technology Press, 2002; MARTINS, Fausto
sequente ausência de imagem: através da Sanches, “As imagens das nossas igrejas”, in
utilização da imagem com sentido negati- I Congresso sobre a Diocese do Porto – Tempos e Lu‑
vo ou agressor – exposição de pianos par- gares de Memória. Homenagem a D. Domingos de Pi‑
tidos (Rebecca Horn), esqueletos que re- nho Brandão, Porto/Arouca, Centro de Estudos
zam aos quais são dados os nomes de anjos D. Domingos de Pinho Brandão/Universidade
Católica/Faculdade de Letras da Universida-
(Marc Quinn), líderes políticos que caem
de do Porto, 2002, pp. 211-221; PAPARONI,
(Maurizio Cattelan, Ciprian Muresan), Demetrio, Eretica. The Transcendent and the Pro‑
obras de arte antigas citadas com sentido fane in Contemporany Art, Milan, Skira Edito-
irónico (Andres Serrano); e através da des- re, 2007; PLATE, S. Brent, Blasphemy: Art That
tituição de imagens que, por si, cria novas Offends, London, Black Dog Publishing, 2006;
imagens (retirada da fotografia oficial de digital: Artis On, n.º 5, 2017: http://artison.
um ditador, retirada de esculturas institu- letras.ulisboa.pt/index.php/ao/issue/view/10/
cionais do espaço público e permanência showToc (acedido a 5 jan. 2018); DUARTE,
Marco Daniel, “As cores da crise: a iconografia
de determinadas figurações nas reservas
de Portugal e da Europa na arte dos inícios do
dos museus, ataque a obras de arte e a século xxi”, Portugal, Europa e Crise – Seminário de
património da humanidade com sentido Jovens Cientistas, Lisboa, Academia das Ciências
ideológico). de Lisboa, 2015, pp. 34-49: http://www.acad-
Na inesgotável perscrutação de sentido ciencias.pt/document-uploads/9663254_por-
que a iconoclastia encerra, este conceito tugal,-europa-e-crise-atas-do-coloquio-sjc.pdf
é, como a iconofilia, uma forma de pen- (acedido a 4 jan. 2018).
samento assente nas potencialidades da Marco Daniel Duarte

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2100 Ideologia

Ideologia

“I deologia” é um termo introduzido


por Destutt de Tracy (1754-1836)
para designar uma nova disciplina, tam-
bém denominada “gramática geral ou ló-
gica” (TRACY, 1801, 5), com um objetivo
específico: a formação e a associação de
ideias. A sua ambição é, em termos gené-
ricos, compreender o funcionamento do
espírito humano; daí que o termo “ideó-
logo” tenha sido usado para qualificar um Destutt de Tracy (1754-1836).
leque variado de pensadores: Condorcet,
Pinel, Laplace, Dupuis, Cabanis, Bichat, ocuparam um lugar significativo no espa-
Lamarck. ço público na déc. de 70 do séc. xx, em
Na segunda metade do séc. xix, Marx e especial no período imediatamente sub-
Engels conferem à ideologia uma conota- sequente ao 25 de Abril de 1974.
ção negativa, assumindo-a como um siste- Não sendo necessariamente ilusória, a
ma de representações socialmente vincu- ideologia carece de um estatuto teórico
lado a uma determinada classe, que tem respeitável. O seu âmbito compreende si-
como principal função mascarar a reali- multaneamente representações teóricas,
dade social e disfarçar o seu próprio con- práticas e valores. O fim das ideologias,
teúdo (de classe). A ideologia forneceria, proclamado por diversas vozes, sinaliza
pois, uma imagem invertida do mundo uma transformação do discurso político,
e das relações que os homens estabele- mas esquece a força da ideologia na or-
cem entre si: “E se em toda a ideologia ganização mental dos indivíduos de uma
os homens e as suas relações nos surgem população e na mobilização para a ação.
invertidos, tal como acontece numa câ-
mera obscura, isto é apenas o resultado do Bibliog.: BELO, Fernando, Notas para o Conceito
seu processo de vida histórico, do mesmo de Ideologia. Teoria e Prática, Lisboa, Regra do
modo que a imagem invertida dos objetos Jogo, 1977; MARX, Karl, e ENGELS, Friedrich,
que se forma na retina é uma consequên- A Ideologia Alemã, vol. i, Lisboa/São Paulo, Pre-
cia do seu processo de vida diretamente sença/Livraria Martins Fontes, 1974; PINTO,
José Madureira, “Ideologias: Inventário Crí-
físico” (MARX e ENGELS, 1974, 25 e 26).
tico dum Conceito (I)”, Análise Social, vol. xii,
No contexto dos inícios do séc. xxi, o n.º 45, 1976, pp.  127-152; Id., “Ideologias:
termo “ideologia” designa um sistema de Inventário Crítico dum Conceito (II)”, Análise
ideias e de valores frequentemente ligado Social, vol. xiii, n.º 49, 1977, pp. 97-144; TRA-
a um ideário ético-político. CY, Antoine-Louis-Claude Destutt de, Projet
Em Portugal, o debate ideológico e a d’Éléments d’Idéologie à l’Usage des Écoles Centrales
análise teórica da noção de ideologia, de la République Française, Paris, Didot, 1801.
bem como do seu lugar e da sua função, Adelino Cardoso

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Anti-insularidade 2101

Anti-insularidade ampla e mais aberta para este fenómeno,


certamente numa tentativa de afastar a
insularidade do fantasma do isolamento.
Entende-se ainda que a insularidade
não é um modo de ser, mas sim de estar.
Enquanto modo de ser, confunde-se com
a ilheidade (îléité, dos Franceses), concei-

D escobrir o contraditório ou o negati-


vo nos diversos discursos não se tor-
na tarefa fácil para a cultura portuguesa e
to mais amplo, na medida em que nele
se afirma a diferenciação de uma identi-
dade insular. Entendida como modo de
mesmo para a ocidental. As vozes são qua- estar, confunde-se com o isolamento. Mas
se sempre as do silêncio e atuam de for- aquilo que é mais importante na insulari-
ma velada e indireta, sem que tenhamos a dade não é a ideia ou a presença negativa
possibilidade de as descobrir em discurso do fenómeno geográfico do isolamento,
direto. Não é clara a nossa cultura do re- mas sim a permanência do mar, que es-
verso ou do negativo, como acontece com tabelece uma noção clara de finitude do
a cultura oriental, que tem, no símbolo espaço, de descontinuidade territorial,
do tao, a personificação da dualidade e a como também da capacidade (ou não)
ideia de que os opostos se completam e que o insular tem para o vencer ou do-
formam uma unidade. Mais difícil ainda minar. Nada disto colhe a atenção da no-
se torna definir os discursos e as expres- ção de continentalidade, onde quase só
sões da anti-insularidade, quando não é domina a ideia negativa do isolamento.
inequívoca a definição de insularidade e Tal como nos indicam os vários estudos
a sua insistente confusão com o isolamen- de que dispomos sobre o fenómeno, e
to, o que terá levado a que, no discurso referindo­‑nos aqui apenas aos espaços
político insular do séc. xix, a insularida- insulares, são vários os aspetos em que
de fosse assumida como sinónimo de in- ele se exprime e que contribuem para a
sulamento, o que tem gerado confusões sua definição. Desta forma, a maioria dos
com realidades como a continentalidade, discursos da anti-insularidade, nomea-
onde o isolamento também se faz sentir. damente no âmbito político, acontecem
O facto de a escola geográfica france- por oposição a continentalidade, interio-
sa estabelecer uma aproximação clara do ridade ou mesmo transmontanidade, no
conceito com o teor geográfico do isola- quadro português, nomeadamente quan-
mento leva a que não estabeleça qualquer do, a partir de 1976, se começou a medir
diferença com a continentalidade. Tam- a insularidade, como forma de retribui-
bém por tradição vimos a insularidade ção dos custos financeiros dos arquipé-
associada ao isolamento que, juntamente lagos da Madeira e dos Açores. A partir
com o provincianismo, é considerado a de então, estes conceitos entraram, de
parte negra da insularidade. Foi também forma abusiva, no discurso político e co-
com a escola francesa de geografia, a par- meçaram a ter uma forte influência, por
tir da déc. de 80 do séc. xx, que surgiram aquilo que significavam.
novas reflexões sobre esta realidade, bem Há ainda uma outra expressão nega-
como uma maior explicitação dos fato- tiva, “insularismo”, que, sendo tomada
res que definem o conceito, apelando-se como próxima de “regionalismo”, é en-
cada vez mais a uma utilização do concei- tendida como uma afirmação excessiva
to de ilheidade como uma expressão mais das especificidades insulares, uma plena

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2102 Anti-insularidade

afirmação da identidade cultural, como à relação íntima que se estabelece entre


se servisse de justificativo, no momento o Homem e o espaço e ao modo como
de buscar algum benefício ou alguma este condiciona o primeiro e o identifi-
vantagem no plano político. Nas Caná- ca na sua ação. Esta perceção – ou este
rias, a expressão define, ainda, os parti- modo de conquista – do espaço atua com
cularismos insulares das duas províncias clareza nas ilhas, e define uma forma dis-
(Tenerife e Gran Canária), que militam tinta de ser e de estar no mundo do in-
no sentido de ser o centro do arquipé- sular. Devemos entender, porém, que o
lago. Esta ideia pode, ainda, ser trans- conceito de insularidade só apareceu em
portada para os Açores, com expressão 1838, como um conceito operatório dos
da rivalidade distrital entre a Terceira e naturalistas que, desde o séc. xviii, estu-
São Miguel. Já em Inglaterra, é entendi- daram, de forma afincada, as ilhas. Com
do como expressão da anticontinentali- o tempo, o discurso construiu-se com
dade. E, por fim, na ilha de Porto Rico, nova terminologia: como insulamento,
significa o estado de isolamento mental na sua reafirmação com a subinsularida-
da sua população. A par disso, a atitude de, na sua negação com a hipoinsulari-
insular pode ser entendida como um dade ou, então, a visão exagerada com
mecanismo de resistência ao outro não o insularismo. Antonio Diegues, seguin-
insular, e como uma barreira às interfe- do de perto as ideias de Moles, Péron
rências externas que definem o proces- e Meisterheim, define a insularidade
so de globalização e que têm em vista como: “Fenómenos sociais resultantes
apagar a insularidade e abrir caminho do relativo isolamento dos espaços in-
à hipoinsularidade. Esta última é enten- sulares, que podem ser quantificados
dida como um discurso de negação da
insularidade, pelo simples facto de que Robinson Crusoé Avista Pegadas
pretende abater todas as fronteiras de dos Canibais (1894), de Walter Paget.
uma determinada ilha e continentalizar
os espaços insulares.
Pelo contrário, o turismo visa promo-
ver a reinsularização destes espaços. Há
nos continentes um desejo de ilha, que
domina o fenómeno turístico, associado
à ideia de isolamento, de um espaço per-
dido no tempo, como a ilha de Robinson
Crusoé, idealizada em 1719. Será isto a
negação do discurso da anti-insularidade
e o retorno forçado à ilha como espaço
marcadamente insularizado para usufru-
to dos continentais? Será isto o retorno
da Utopia de Thomas More, para cortar
de novo as amarras que prendem a ilha
ao continente e encontrar a sociedade
ideal, numa época de crise dos sistemas
políticos?
Não podemos esquecer que a insula-
ridade anda necessariamente associada

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Anti-insularidade 2103

(distância do continente, e etc.)” (DIE- por ser um dos principais centros da peri-
GUES, 1998, 51). E acrescenta: “A insu- feria europeia.
laridade refere-se à identidade cultural Não obstante as evidências da história,
do ilhéu diferenciada do continental, que clamam por um protagonismo e por
mas é resultante das práticas económicas uma afirmação dos espaços insulares,
e sociais em um espaço limitado, cerca- haverá ainda lugar para o discurso da
do pelo oceano. A ilheidade é um neolo- insularidade, aqui entendido como fator
gismo de origem francesa utilizado para resultante de um isolamento que a his-
designar as representações simbólicas e tória nega e que afirma, pela evidência
imagens decorrentes da insularidade e do seu curso, ter sido um espaço aberto
que se expressam por mitos fundadores ao mundo e bem posicionado nos eixos
das sociedades insulares e lendas que de influência dos impérios coloniais, ou
explicam formas de conduta, comporta- um espaço também aberto, desde muito
mento, etc.” (Id., Ibid., 93). cedo, ao turismo? Em certa medida, afir-
No quadro da biogeografia, a insula- mar este discurso da insularidade, como
ridade afirma-se pelos endemismos, na sinónimo de isolamento, não será negar
língua e na literatura, pelos arcaísmos, o processo histórico de algumas ilhas e,
enquanto na economia e na política é o de forma especial, da Madeira, que se
isolamento que conta, i.e., o afastamento construiu a partir do Funchal como um
dos centros de decisão e dos mercados. espaço do mundo e para o mundo?
O discurso histórico, quanto a isto, não Ainda neste contexto, deveremos ter
tem posição clara, fazendo sempre de- em conta a necessidade do recurso a ou-
pender a insularidade da dimensão do tros conceitos operatórios para entender
tempo, dos múltiplos enquadramentos os mecanismos que constroem ou des-
que se sucedem nos espaços insulares e troem a insularidade. Daí a operaciona-
das conjunturas e estruturas dos espaços lidade das noções de centro e periferia,
próximos ou de dominação, transmitindo bem como da mais recente reformulação
uma ideia de contacto e de permanente de perificidade e ultraperificidade, ou
interligação entre eles, em que o próprio do conceito de economia e política co-
Homem, através de diversos mecanismos, lonial. É no quadro deste conjunto de
pode reforçar a sua posição e contribuir relações de dependência e de subordina-
para a sua valorização, nos diversos corre- ção que se constrói a insularidade, o que
dores oceânicos. faz com que ela não seja uma realidade
Apela-se insistentemente à história permanente.
para referir o papel relevante que as ilhas Neste universo, é de assinalar a realida-
tiveram no desbravamento e na afirma- de que se afirma no espaço da ilha e dos
ção dos oceanos e dos impérios. Insiste­ arquipélagos, que obedece à mesma lógi-
‑se na sua abertura ao mundo e no seu ca. Daí as chamadas insularidades inter-
protagonismo, como que a dizer que a nas de cada ilha ou arquipélago, como se
insularidade terá desaparecido das ilhas pode verificar nos Açores e nas Canárias.
com os Descobrimentos europeus dos Vem a propósito uma opinião expressa
sécs. xv e xvi. Desta forma, o processo no jornal O Lidador de Angra, em 1863,
iniciado pelos Portugueses no séc. xv não que, face à localização do Tribunal da
só desinsularizou a Europa, mas também Relação dos Açores, em Ponta Delgada,
algumas ilhas oceânicas. Pela sua função reclamava: “Hoje os povos das ilhas estão
económica na navegação, estas acabaram mais relacionados com o continente que

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2104 Anti-insularidade

com a ilha de S. Miguel. Todos preferem Construir a insularidade com base no


um pronto expediente dos seus negócios conceito geográfico de isolamento será
em Lisboa a um expediente moroso na renegar a própria insularidade, porque
relação açoriana” (CORDEIRO, 1992, esta se constrói de múltiplas formas: pela
56). Perante isto, podemos afirmar que finitude e pela dimensão do espaço, pela
a fronteira não é definida pelo litoral da omnipresença do mar na vida das popula-
ilha, nem é o mar que a afasta do mundo, ções litorais, pela distância que as separa
mas é a atuação do Homem, a partir de dos continentes de que dependem polí-
dentro ou de fora da ilha, que contribui tica e economicamente, pela própria in-
para a sua definição e presença física es- tervenção do insular na valorização ou na
pecífica. Daí que Raul Brandão, ao visitar redução do impacto destes fatores, pela
os arquipélagos da Madeira e dos Açores, forma como os continentais “insulari-
em 1924, vá ser testemunha de múltiplas zam” ou “continentalizam” as populações
insularidades, e afirme o cosmopolitismo insulares. No caso português, o facto de a
da urbe do Funchal, ignorando a perife- Constituição de 1822 definir os arquipé-
ria que lhe está associada e que está mar- lagos da Madeira e dos Açores como ilhas
cada pelo estigma da insularidade. adjacentes atuou de forma clara no sen-
O mar, mais do que a terra, não obstan- tido de os continentalizar, procurando,
te as contingências das condições atmos- pela letra da lei, amarrá-los ao continen-
féricas ou da pirataria e do corso, atuou te, situação que, de facto, não sucedeu.
sempre como uma porta e como uma via Na verdade, aquilo que faz com que isso
de abertura ao mundo, fazendo apagar a aconteça é a definição de uma adequada
ideia de isolamento e de abandono, que política de transportes.
só surge por autocriação do Homem. Foi o turismo a mola propulsora da de-
O mar é uma porta que se abre e se fe- finição de uma política de aproximação e
cha de forma contínua. O ilhéu viveu de abertura ao mundo, fazendo com que
nesta permanente ambiguidade de aber- as ilhas entrassem num processo de mun-
tura ao exterior e de ensimesmamento, dialização. Assim, a insularidade pode ser
daí que haja um ritmo próprio das ilhas, entendida como algo do passado, sendo
que o turismo, as telecomunicações, no- que se fala da chamada aldeia global. Os
meadamente a Internet e a televisão, ao defensores da ideia de insularidade cha-
conduzi­‑las para a globalização, tendem, mam a atenção para o facto de esta não
porém, a fazer desaparecer. ser apenas uma questão de ordem física.
Nos começos do séc. xxi, o debate so- As múltiplas posições e os diversos dis-
bre o problema da insularidade tem fei- cursos da insularidade evidenciam que,
to finca-pé em questões que ultrapassam entre grande número de especialistas
a mera questão do isolamento, chaman- continentais, é maior a dificuldade em
do a atenção para a finitude e a peque- entender esta condição como uma espe-
na dimensão dos espaços insulares. Não cificidade insular. É no seio dos estudio-
será por acaso que, no discurso político, sos insulares ou insularizados que esta
a insularidade deu lugar à ultraperifici- compreensão se torna clara. Os geógra-
dade. Este conceito, que surgiu no qua- fos debatem-se, muitas vezes, com a exis-
dro político europeu a partir do Tratado tência ou a inexistência da insularidade;
de Amesterdão, é o que legitima a po- os estudiosos da literatura insularizam
lítica de ajudas europeias aos espaços aquilo que era habitualmente conheci-
insulares. do como regionalismo; e os economistas

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Anti-insularidade 2105

estabelecem modelos para medir os im- sociais e humanas há lugar para os discur-
pactos da insularidade nas economias sos da insularidade. As ilhas perdem o seu
insulares, optando declaradamente por significado específico e afirmam-se como
uma aceitação do fenómeno. Algumas um espaço entre outros. Daí as noções de
correntes da Geografia não atribuem par- ilhas de mar, ilhas urbanas, ilhas de terra,
ticular significado às ilhas, considerando­ sendo exemplo destas últimas os chama-
‑as apenas como um espaço igual ao con- dos oásis.
tinental, negando assim a insularidade. Se, no plano da biogeografia, os con-
Há que ter em linha de conta algumas ca- sensos são evidentes quanto à presença e
racterísticas incontornáveis do território à definição de insularidade, nos demais
insular, como a sua delimitação por uma ramos do conhecimento esta ideia não se
fronteira fixa natural e sempre presente, apresenta de forma tão clara, merecendo
assim como a sua exiguidade. A desconti- diferentes interpretações, nomeadamen-
nuidade territorial é aqui evidente, sendo te junto dos geógrafos. É aqui que vamos
uma das condicionantes mais significati- encontrar uma mais cuidada atenção por
vas no processo de desenvolvimento eco- parte dos especialistas ao tema da insu-
nómico, e, no quadro autonómico da Ma- laridade, mas também os discursos mais
deira e Açores, uma justificação para uma marcantes da anti-insularidade.
intervenção mais generosa do Estado do Os diversos discursos das ciências e da
ponto de vista financeiro. política trouxeram, na segunda metade
Passou-se da constatação daquela rea- do séc. xx, a insularidade para o primeiro
lidade à avaliação do seu impacto em plano no campo da sua conceptualização.
termos do desenvolvimento das socie- Alguns contrapõem a insularidade à con-
dades insulares, definindo-se mesmo os tinentalidade em sentido fraco (como
chamados “custos de insularidade”, que hipoinsularidade), enquanto outros a
justificam o valor das verbas que os Es- reforçam, enriquecendo o dicionário das
tados metropolitanos transferem para insularidades com novos conceitos como
estas regiões. Definem-se políticas anti­ hiperinsularidade, insulamento, ilheida-
‑insularidade, como que para compensar de, insularismo, ultraperiferia, ultraperi-
os insulares dos efeitos da insularidade. ficidade. No quadro das ciências, a ilhei-
Fala-se, até, no efetivo desaparecimento dade, como o modo de existir próprio das
da insularidade do quotidiano das ilhas, ilhas, substituiu a insularidade. Daí que
por força do desenvolvimento económi- Paulo Cunha seja forçado a afirmar que
co e social, resultante das grandes trans- a insularidade “é mais um estado de alma
formações ocorridas nos domínios dos que uma condição geográfica” (CUNHA,
transportes e das telecomunicações e da 2010, 74). É neste sentido que cada vez
afirmação das ilhas pelo turismo, ao pon- mais é entendida, apagando-se a ideia de
to de se questionar a utilização do termo isolamento e a carga negativa que sempre
“insularidade” e de se afirmar o fim dessa a acompanhou.
realidade. A chamada hipoinsularidade é uma for-
A partir da déc. de 60 do séc. xx, o de- ma de expressão do discurso da anti-in-
bate das ciências foi marcado, de uma sularidade novamente fundada na ideia
forma ou de outra, pela discussão em de isolamento. Daí certamente Thierry
torno da existência ou da inexistência da Nicolas apelar à necessidade de revisão
insularidade e do impacto da insularida- da noção de insularidade, e a progressiva
de. Em quase todos os ramos das ciências afirmação do conceito de ilheidade, que

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2106 Anti-insularidade

deputados. Seria necessário um sismo


nos Açores para que alguém, Sousa Me-
nezes, fosse à tribuna proferir, pela pri-
meira vez, a palavra “insularidade”, tendo
como característica típica a “saudade e o
regresso à vista imensa do mar” (ASSEM-
BLEIA NACIONAL, Diário das Sessões, 16
jan. 1951, 256). Depois, em 1952, outro
deputado, Amando Cândido, associa-a às
dificuldades que sentiam os insulares.
Aos poucos, o discurso da insularidade
começa a ecoar, com muita indiferença
continental, no espaço do Parlamento
Ilustração para Utopia, de Thomas More.
(esta indiferença poderá também ser en-
tendida como uma expressão negativa).
Os deputados insulares são o seu porta­
acaba por se tornar a envolvente concep- ‑voz. A insularidade começa a servir o
tual mais ajustada ao discurso científico discurso justificativo da autonomia, como
dos espaços insulares. em Ramiro Valadão, ou da afirmação de
É na política e nos discursos dos polí- uma condição especial, diferenciadora do
ticos que mais se faz sentir o discurso da espectro continental, que implica aten-
anti-insularidade. As mudanças políticas ções especiais no plano político, como su-
ocorridas em Portugal a partir de 1974 cede no discurso de Agostinho Cardoso,
transformaram o espectro político e de- de 11 de março de 1959. A insularidade
ram lugar a uma nova construção do é apresentada como algo negativo, que
espaço de administração institucional e afeta a vida dos insulares, e não como a
política, o que colocou em relevo o papel entidade metafórica e nostálgica dos poe-
dos espaços insulares, i.e., dos arquipéla- tas e pensadores. Cabe aos deputados
gos da Madeira e dos Açores. Portugal é insulares a chamada de atenção para os
agora constituído por uma faixa litoral da fatores nefastos da insularidade, hiper-
península Ibérica e pela Madeira e pelos bolizando os seus efeitos e a urgência de
Açores, que de ilhas adjacentes passam a medidas, nomeadamente nos sectores dos
regiões autónomas. É no relacionamento transportes. Nisto colhem quase sempre o
entre as ilhas e o continente que se ini- apoio da demais Câmara dos Deputados
ciam, em 1976, os discursos e afronta- (Id., 11 mar. 1959, 286). A assunção destes
mentos que evidenciam a plena afirma- custos pelo todo nacional também parece
ção do discurso da anti-insularidade. ser clara e nunca é posta em causa.
Por muito tempo, os discursos insulares Finalmente, na déc. de 70, o discurso da
foram de hipervalorização da distância insularidade e dos seus custos associados
real e da situação de abandono; do outro agarrou-se, de forma clara, ao discurso
lado, na metrópole, contrapunha-se com dos insulares no Parlamento e cativou a
o discurso da indiferença e da oposição, atenção e o apoio dos demais parlamen-
nunca expresso em palavras, mas quase tares. O motivo que despoletou esta situa-
só em omissões. A partir de 1822, a voz ção foi o debate em torno da lei n.º 5/70,
insular ganha extensão no espaço con- que estabeleceu a livre circulação de mer-
tinental, através das representações dos cadorias entre o continente e a Madeira.

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Anti-insularidade 2107

A insularidade entrara definitivamente no posta de lei n.º 8/73, de 26 de dezembro,


dicionário parlamentar e assumia-se como contemplava, no n.º 2, “os fortes condi-
um dado fundamental do discurso insular. cionalismos decorrentes da insularidade”,
Na ilha da Madeira, a insularidade era tendo contado, na sua aprovação, com a
vivida e sentida, mas raras vezes as auto- anuência clara de alguns deputados conti-
ridades, muitas vezes oriundas do conti- nentais, como foi o caso de Armando Júlio
nente em comissões esporádicas de ser- de Reboredo e Silva, natural de Meda. Mas
viço, se apercebiam dela, talvez para não as vozes dos discursos anti-insularidade fa-
sentirem o seu peso. Será apenas a partir zem-se ouvir e começam a ganhar relevo
da déc. de 60 do séc. xx que a palavra através da equiparação da insularidade
“insularidade” começa a andar na boca aos problemas derivados da interioridade
dos políticos locais ou dos membros do e continentalidade. Desta forma, o depu-
Governo de visita à Madeira. A ideia que tado Pinto Castelo Branco fala de uma “in-
ambos fazem desta realidade é clara: de sularidade das regiões interiores do conti-
um lado, os insulares reclamam das in- nente”. Foi uma das poucas vozes claras do
fluências negativas desta condição sobre discurso anti-insularidade, e mereceu uma
as suas vidas; do outro, os políticos de vi- atenuação nas palavras de outro deputa-
sita sentem a pressão política desta reali- do, Mendonça Morna, que afirmava que
dade e fazem tudo para minorar os seus “a insularidade dos Açores ou da Madei-
efeitos e acentuar a ação governamental. ra é bem diferente daquela outra que nos
A insularidade deixou de ser apenas afasta do nosso interior subdesenvolvido”
uma realidade vivida e sentida, para entrar (Id., Diário das Sessões, 14 dez. 1973, 327).
no debate político. Há, na verdade, um A partir daqui, entra no dicionário dos
conjunto de cumplicidades e silêncios que políticos regionais uma nova expressão,
marcam o quadro político e governamen- “os custos da insularidade” – os custos da
tal, bem como os discursos públicos, quan- insularidade confundem-se com os custos
do se enfrentam as autoridades madeiren- da soberania e serão o principal cavalo
ses e as continentais. Em 1973, foi notório de batalha dos tempos que se avizinham
o carácter anti-insularidade dos discursos com a Revolução de abril de 1974 e a con-
dos representantes governamentais de vi- quista da autonomia política dos espaços
sita. Nesse momento, porém, não se fez insulares de 1976. A Terceira República
sentir qualquer voz a reclamar a perspe- trará a autonomia quase plena à Madei-
tiva insular, por pudor ou cortesia. Paula- ra e aos Açores, mas será responsável por
tinamente, a insularidade sai da gaveta e uma importante clivagem política no en-
começa a assumir-se como uma arma rei- tendimento e na aceitação da insularida-
vindicativa dos políticos insulares. É a justi- de. Há uma marca muito visível do discur-
ficação dos atrasos ancestrais, assim como so da anti-insularidade quer nas múltiplas
o fundamento para a reclamação de mais intervenções parlamentares, quer na
apoios do Governo central. Parece haver imprensa nacional. Por diversas vezes se
uma consonância com o discurso dos de- levantam várias vozes a reclamar contra
putados na Assembleia Nacional. De uma os chamados custos da insularidade das
primeira fase de constatação dos proble- regiões autónomas, a opor a continenta-
mas e de reivindicação, passou-se à ação, lidade e a interioridade à insularidade.
de forma que, no IV Plano de Fomento, as O discurso da anti-insularidade, que se
questões da insularidade da Madeira e dos fazia de silêncios e atitudes cúmplices ao
Açores serão tidas em conta. Assim, a pro- nível governamental, ganha agora plena

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expressão e torna-se, por vezes, o cam- foi importante no reconhecimento dos


peão do debate político, incendiando as fatores adversos da insularidade e da ul-
tribunas, os microfones ou as páginas dos traperificidade no desenvolvimento das
meios de comunicação social. regiões insulares. Estas situações ficaram
O discurso da anti-insularidade é claro salvaguardadas apenas nos Tratados de
e assume-se em diversas frentes. Paulati- Maastricht (1992), Amesterdão (1998),
namente, vão-se esbatendo as clivagens, o Nice (2000) e Lisboa (2007). Recorde-se
desenvolvimento dos meios de comunica- que um estudo do Planistat Europe usava
ção com o exterior permite uma rápida o conceito de ultraperiferia como sinóni-
integração no quadro nacional e quase se mo de insularidade, no que foi criticado
anulam os fatores nefastos da adjacência, pelas Regiões Ultraperiféricas, situação
para se afirmar o princípio da continui- que foi ultrapassada mediante um reparo
dade territorial. A evolução do sistema da Madeira. Esta atitude pode também
de comunicações e telecomunicações ser encarada como uma manifestação an-
permite esta integração quase plena e ti-insularidade.
o esbatimento das clivagens, de forma Enquanto os caminhos do direito cons-
que o discurso da anti-insularidade e da titucional nacional e comunitário apon-
oposição entre insularidade e continen- tavam para a insularidade como fator
talidade ficou gasto e obsoleto, apesar específico dos espaços insulares, outros
de persistirem algumas das suas vozes. eram os caminhos do debate político-par-
O turismo interno foi um fator propicia- tidário, com expressão na imprensa e no
dor desta integração praticamente total e Parlamento nacional. À insularidade,
uma ponte entre o espaço continental e o aos respetivos custos e às reivindicações
insular (e, talvez, o elemento gerador da que lhe estavam associadas, por parte
unidade nacional que os políticos nunca dos Governos regionais e dos deputados
foram capazes de construir). insulares, opõe-se a continentalidade,
A Constituição de 1976 reconhece e argumentada por deputados do interior,
estabelece um estatuto especial para os nomeadamente do Nordeste Transmon-
arquipélagos da Madeira e dos Açores, tano, que pretendem chamar a atenção
em que as adversidades resultantes da para o atraso a que também as regiões do
insularidade têm um peso significativo interior estavam votadas.
nas responsabilidades financeiras do Es- A diferente interpretação da noção de
tado, no sentido de assegurar a unidade insularidade, ou a sua incompreensão, é
e a continuidade do território nacional, materializada na oposição de expressões
traduzindo-se no orçamento como “cus- como “ilhas do interior”, “continentalida-
tos de insularidade e desenvolvimento”. de”, “interioridade” e “transmontanida-
Estes princípios geram obrigações finan- de”, manifestações claras de um discurso
ceiras por parte do Estado, as quais de- da anti-insularidade quase permanente-
moram muito a ser medidas e sistema- mente presente, desde 1976, nas diver-
tizadas, ficando, por isso, à mercê das sas bancadas dos grupos parlamentares
negociações políticas entre os Governos da Assembleia da República. Atente-se à
regionais e central. Será esta mais uma atuação unânime dos deputados insulares
das formas de expressão negativa da dos diferentes partidos, no sentido de um
insularidade? correto entendimento da assunção, por
Por outro lado, a entrada de Portugal parte do Estado, dos custos da insularida-
na Comunidade Económica Europeia de, que parte de condições reais geradas

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Anti-insularidade 2109

pela insularidade e pela ultraperiferia, e interveio de diversas formas junto de poe-


não apenas da condição de isolamento. tas e escritores. Neles não é apenas a ideia
A par disso, justificam-se estes custos como de isolamento que domina, mas acima de
um meio de assegurar a continuidade ter- tudo o modo de ser e estar do insular, em
ritorial e a coesão social. que o mar e as fronteiras naturais estabe-
O primeiro grito de guerra foi lançado lecidas pela linha de costa são determi-
em 1979 pelo deputado Ferreira Lima nantes. Daí o debate em torno do concei-
e foi uma arma relevante em alguns de- to de açorianidade e, posteriormente, de
bates parlamentares nas dés. de 80 e 90. madeirensidade ou madeiridade. A ques-
E as vozes seguiram-se em catadupa. En- tão da definição de uma literatura insular
tre 1980 e 1990, esta dialética de con- específica para cada arquipélago esbarra
traoposição persiste em intervenções de com a universalidade da escrita e dos seus
Vital Moreira, Fernando Cardote, Almei- fazedores, sem nunca se estabelecerem
da Santos, Vilhena de Carvalho, César de fronteiras claras em termos dos discursos
Oliveira, Daniel Bastos, Pita Guerreiro, de afirmação ou negação da insularidade.
Abreu Lima, Armando Vara, Guerreiro O escritor ou poeta que nasceu ou vive
Norte. Na déc. de 90, parece ter aconte- na ilha parece preso ao estigma do regio-
cido uma pacificação no discurso anti-in- nalismo e da insularidade e procura, for-
sularista. Tirando as duas intervenções malmente, demarcar-se desta realidade
isoladas de António Martinho e Defensor que a sua experiência de vida constitui,
de Moura, não mais vimos a oposição dos apesar de o espaço-ilha estar sempre pre-
discursos da interioridade. sente e preso às suas palavras.
A anti-insularidade, quer na comuni- As insularidades madeirenses expres-
cação social, quer no Parlamento, muda sam-se tanto na poesia como na prosa,
de estratégia e transfere-se para o ataque mesmo dos escritores e poetas que vi-
às personalidades, realidades e situações vem fora da Madeira. Horácio Bento de
que fazem o discurso autonómico. Inci- Gouveia, em 1949, com Ilhéus, assume e
dem, abertamente, nas ideias dos espa- hiperboliza essa ligação ao espaço-ilha,
ços insulares como despesistas e dos seus que se resume quase por completo ao
governantes como maus utilizadores dos reduto da freguesia de Ponta Delgada.
dinheiros públicos ganhos à custa da in- Outros, como João França, seguem pelos
sularidade. Atente-se, e.g., nas inúmeras mesmos caminhos. Na poesia, a indigna-
vezes em que a figura do presidente do ção ou dita indiferença pela insularida-
Governo regional da Madeira foi levada, de, certamente uma formalidade atreita
pelas mais diversas razões, à tribuna. ao anti-insularismo, lutam por se afirmar
Embora o campo da política seja, em e justificar como globais, quando afinal
Portugal, o domínio mais fértil para não ultrapassam as fronteiras da ilha.
entender as formas de expressão da an- A par disso, alguns poetas, ainda que não
ti-insularidade, importa realçar que a identificados ou que não se identificam
insularidade e os seus opositores não se com a ilha, denunciam, em múltiplas si-
manifestam apenas aqui. São múltiplas tuações, uma forte influência e presença
as suas formas de expressão. Neste caso, da insularidade. As evidências vão de Ca-
deveremos realçar a literatura e a teoria bral do Nascimento a Herberto Helder
literária, onde quase sempre se confun- e José Agostinho Baptista. Nos Açores,
de insularidade com ilheidade. Quer na não se sente esta revolta formal com a
Madeira, quer nos Açores, a insularidade ilha nem esse apelo insistente à aldeia

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2110 Anti-insularidade

global, talvez porque o arquipélago se te- sité Bordeaux 3, 2002; CORDEIRO, Carlos,
nha mantido historicamente mais fecha- Insularidade e Continentalidade: os Açores e as
do ao mundo. Mesmo em escritores que Contradições da Regeneração, 1851-1870, Coim-
bra, Livraria Minerva, 1992; CUNHA, Paulo
ocupam lugar de relevo a nível nacional,
Ferreira da, “Direito, utopia e insularidade”,
como Vitorino Nemésio ou João de Melo,
Atlântida, vol. lv, 2010, pp. 73-82; DEPRAE-
há uma aposta plena na insularidade, TERE, C., “Le phénomène insulaire à l’échelle
que se assume como um traço claro de du globe: tailles, hiérarchies et formes des îles
diferenciação de uma identidade no qua- océanes”, L’Espace Géographique, t. xix-xx, n.° 2,
dro nacional. Também na poesia há uma 1991, pp. 126-134; DIEGUES, Antonio Car-
afirmação deliberada da insularidade, los, Ilhas e Mares. Simbolismo e Imaginário, São
sem qualquer medo ou vergonha, como Paulo, Hucitec, 1998; FEBVRE, L., La Terre
et l’Évolution Humaine, Paris, La Renaissance
podemos verificar em Roberto Mesquita
du Livre, 1922; FERNÁNDEZ, Martín, Islas y
ou Almeida Firmino. Regiones Ultraperiféricas de la Unión Europea,  La
A anti-insularidade é real e expressa-se Tour-d’Aigues, Éditions de L’Aube, 1999;
em diversas vozes. É quase sempre um FORT, C. Murillo et al., “El coste de la insula-
discurso marcado pela política partidária, ridad y la fragmentación territorial”, Papeles de
onde a fronteira entre as opções e ideias Economía Española, n.º 15, 1995, pp. 305-315;
se torna mais clara. A tribuna parlamen- FOSSIER, Arnaud, e GARDELLA, Édouard,
“Insularités théoriques. De la circulation
tar e os discursos foram e são a sua expres-
conceptuelle à la communication langagière
são, chegando, por vezes, à comunicação entre chercheurs”, Tracés. Revue de Sciences Hu‑
social. Mais do que vozes claras e assumi- maines, n.º 3, 2003, pp. 105-113; GODENAU,
das da anti-insularidade, sucedem-se dia- D., e MARTIN, R., “Insularidad: un concepto
riamente os murmúrios que a refletem e de relevância analítica?”, Estudios Regionales,
que fazem avolumar a sua dimensão na n.º 45, 1996, pp. 177-192; HENRIQUES,
cultura, na política e na sociedade. Daí Eduardo Brito, Distância e Conexão. Insularida‑
a dificuldade em medi-la e em descobrir de, Relações Culturais e Sentido de Lugar no Espaço
da Macaronésia, Lisboa, Instituto Açoriano de
as suas fontes. Tudo isto porque a nossa
Cultura/Centro de Estudos Geográficos da
tradição cultural é incapaz de estabelecer Universidade de Lisboa, 2009; JOÃO, Isabel,
balizas, fronteiras claras entre o positivo e “Reflexões sobre a insularidade e integração.
o negativo, o bem e o mal. O caso do arquipélago dos Açores”, Mare Li‑
berum, n.º 4, 1992, pp. 299-306; JOLLARD, P.,
El Tratamiento de la Insularidad em el Ámbito Euro‑
Bibliog.: impressa: ASSEMBLEIA NACIO- peo, Palma de Mallorca, Gobierno de Las Illes
NAL, Diário das Sessões, 16 jan. 1951, p. 256; Balears, 2001; MACARTHUR, R. H., e WIL-
3 mar. 1952, p. 369; 30 out. 1958, p. 1229; SON, E. O., The Theory of Island Biogeography,
11 mar. 1959, pp. 286 e 299; 14 dez. 1973, Princeton, Princeton University Press, 1969;
p. 327; 22 mar. 1979, pp. 1493-1494; BON- MARROU, Louis, “Ruralité et insularité dans
NEMAISON, J., “Vivre dans l’île, une approche l’archipel des Açores. Le cas de l’île de Corvo”,
de l’îléité océanienne”, L’Espace Géographique, Norois, n.º 186, 2000, pp. 187-200; MATIAS,
t. xix-xx, n.° 2, 1991, pp. 119-125; BRIGAND, J., “Açores – os custos de insularidade”, Eco‑
Louis, Îles, Îlots et Archipels du Ponant. De l’Aban‑ nomia & Prospectiva, n.os 13-14, jul.-dez. 2000,
don à la Surfréquentation. Essai sur la Question des pp. 111-121; MEISTERSHEIM, A., “Insularité,
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Anti-insularidade 2111

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Pétra, 2010; Id. et al., L’Insularité. Thématique té, 2001: http://archive.mcxapc.org/docs/
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pp. 11­‑17; SANTOS, Aquiles Celestino Vieira view/7/4 (acedido a 21 nov. 2016).
Almada e, A Insularidade e as Suas Condicionantes
… Alberto Vieira
Económicas. O Caso dos Pequenos Estados Insulares
em Desenvolvimento, Dissertação de Doutora-
mento em Geografia Humana apresentada à
Universidade de Lisboa, Lisboa, texto polico-
piado, 2011; SOULIMANT, Nina de, Faire face
au Changement et Réinventer des Îles, Dissertação
de Doutoramento em Geografia apresentada
à Université de La Rochelle, La Rochelle, texto
policopiado, 2011; STÉPHANE, Gombaud,
Iles, Insularité et Îléité. Le Relativisme dans l’Étude
des Espaces Archipélagiques, Réunion, Univer-
sité de la Réunion/Unité de Formation et de
Recherche de Geographie, 2007; TAGLIONI,
François, “Les petits espaces insulaires face à
la variabilité de leur insularité et de leur sta-
tut politique”, Annales de Géographie, n.° 652,
2006, pp. 664-687; Id., “Insularity, political
status and small insular spaces”, Shima. The In‑
ternational Journal of Research into Island Cultures,
vol. 5, n.º 2, 2011, pp. 45-67; Id. (dir.), Insula‑
rité et Développement Durable, Paris, Institut de
Recherche pour le Développement Éditions,

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2112 Anti-Internet

Anti-Internet Nos estudos académicos de matriz crí-


tica, inspirada na tradição marxista, a re-
flexão sobre as redes digitais e a Internet
retoma anteriores sensibilidades, por ve-
zes recombinadas.
Segundo Graham Murdock e Peter Gol-
ding a análise da teoria crítica visa a pro-

A Internet, face mais visível das redes


digitais de informação e comunica-
ção, representa uma assinalável inovação
cura de alternativas a uma ordem social
injusta. Douglas Kellner situa o desígnio
da teoria crítica na resistência à domina-
face aos meios que a precederam. ção e opressão, em nome de uma teoria
Germinou no projeto de mobilização de libertação. Nicolas Garnham precisa
das tecnologias da informação a partir a especificidade de diferentes enfoques
dos anos 80 do séc. xx, como motor de críticos: a economia política da comuni-
um amplo processo de mutação econó- cação considera “a classe – a estrutura do
mica, social e política, que conduziu à acesso aos meios de produção e a estru-
configuração do vasto sector da comu- tura da distribuição do excedente eco-
nicação, do conhecimento, da cultura e nómico – como a chave da estrutura da
da educação como novo ramo industrial dominação” (GARNHAM, 1998). Os es-
destinado a rentabilizar a mercadoria que tudos culturais entendem “género e raça,
é a informação. a par de outros potenciais marcadores de
A Internet e as outras redes possibilitam diferença, como estruturas de dominação
meios e modos de comunicação bidirecio- não determinadas pela classe” (Id., Ibid.).
nal mediatizada, diacrónica e sincrónica, Em termos das temáticas privilegiadas,
com vantagens face aos media precedentes, os estudos culturais incidem com maior
como assinala Feenberg: “Na radiodifusão ênfase sobre aspetos relacionados com
uma única fonte envia mensagens para a cultura, o entretenimento, o quotidia-
uma vasta audiência silenciosa. As redes no, a identidade e a comunidade. A eco-
de computadores restauram o padrão nor- nomia política da comunicação dedica
mal da comunicação humana, em que se atenção aos contornos e implicações das
ouve e fala alternadamente. [...] A Inter- novas indústrias culturais e criativas e ao
net possibilita a comunicação recíproca seu papel na mutação do capitalismo;
entre pequenos grupos. [...] É um avanço à globalização e concentração de rique-
importante” (FEENBERG, 2012, 6). As re- za e poder nas mãos de corporações pla-
des digitais geram atualizações do papel netárias (Google, Microsoft, Facebook,
da informação e da comunicação como Amazon, entre outras); discutindo a rele-
recursos do conhecimento e da ação so- vância de umas e outros nos planos eco-
cial, com repercussão em praticamente nómico, simbólico e ideológico, político
todos os planos da vida em sociedade. No e geopolítico.
debate dos seus contornos e implicações, Tendo presente que a sociedade em
os discursos apologéticos – fascinados pe- rede se desenvolve sob o regime capitalis-
los encantos e promessas dos novos media ta, Christian Fuchs refere a necessidade
– confrontam-se com diferentes aborda- de ligar a análise da Internet às caracterís-
gens céticas e críticas, por vezes em tom ticas do sistema económico e social, subli-
anti-Internet, tanto no plano académico, nhando que “os estudos críticos da Inter-
como na esfera pública. net se centram na análise do papel desta

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Anti-Internet 2113

no capitalismo […] e na procura de ma- fia da social-democracia face ao ideário


neiras de a usar para libertar os seres hu- neoliberal. Christian Fuchs conclui que
manos da opressão, da desigualdade e da as “redes de poder corporativo, domina-
exploração” (FUCHS, 2013, 215). Robert ção política e homogeneização cultural
McChesney complementa, notando que são a realidade da ‘sociedade em rede’”
a abordagem crítica “dedica uma particu- (FUCHS, 2007, 67-68). Robert McChes-
lar atenção à relação entre comunicação, ney precisa a questão afirmando que o
capitalismo e democracia. […] A tecno- enorme potencial democrático da Inter-
logia tanto pode ser destrutiva como ser net está a ser minado pelo controlo capi-
fator de progresso. […] O modo como o talista dos meios digitais.
capitalismo funciona determina o papel Relativamente aos temas da vigilância
que a Internet pode desempenhar na so- e da privacidade na época das redes di-
ciedade” (MCCHESNEY, 2013, 13 e 20). gitais, sobressai uma controvérsia crucial:
Analisando o capitalismo da era digi- privacidade para quem? Segundo Eran
tal, Eran Fisher assinala-lhe alguns tra- Fisher, evidencia-se um paradoxo: “En-
ços definidores: (a) é um tecno-capita- quanto o capitalismo está habituado à
lismo em rede, tomado como “pináculo exigência de privacidade (e.g., das contas
do progresso humano”, sob uma orien- e participações bancárias) para legitimar
tação marcada por “um mercado forte, a desigualdade de riqueza, promove a vi-
um Estado fraco, um empoderamento gilância dos trabalhadores para aumentar
individual e uma privatização da esfera o seu controlo e tornar o processo de acu-
social” (FISHER, 2010); (b) articula tec- mulação mais eficiente” (FISHER, 2012,
nologias e mercados, que deste modo 181). Do ponto de vista do interesse pú-
se pressupõe que serão mais eficientes, blico, “são desejáveis a vigilância pública
racionalizando a produção, a economia do rendimento dos ricos e das empresas,
e a sociedade entendida à imagem do e mecanismos que tornem a sua riqueza
mercado; (c) opera no quadro de uma transparente, ​​para tornar visíveis as dife-
globalização desregulada, dominada pe- renças de riqueza e rendimento no capi-
las grandes corporações transnacionais talismo, sendo também importante a pro-
e pelas elites que as dirigem; (d) disso- teção da privacidade dos trabalhadores e
cia a política e os Estados da direção da consumidores contra a vigilância das em-
economia globalizada; (e) segue uma presas” (ALLMER et al., 2014, 51).
orientação tecnocrática, dita apolítica, Tendo em vista não apenas criticar,
apoiada na visão de uma sociedade sem mas também propor alternativas à ordem
classes, segundo o postulado de que capitalista dominante, alguns autores
não há alternativa; (f) verifica-se num equacionam os parâmetros de uma visão
contexto em que o trabalho se torna diferente. Christian Fuchs propõe uma
flexível, precário, incerto e escasso, sob sociedade de informação participativa,
contratação individual (já não coletiva); cooperante e sustentável, que garanta
(g) apela a um sujeito humano de iden- uma vida boa para todos: “Como quali-
tidade e mente informacional e virtual, dades específicas da cooperação numa
a quem se propõe a liberdade individual PCSIS, podemos identificar a preservação
como alternativa à igualdade e solidarie- ambiental, uma tecnologia centrada no
dade social; (h) promove a fragilização ser humano, a equidade socioeconómica,
do Estado-providência, a inviabilidade a liberdade política, e a sabedoria cultu-
da democracia representativa e a atro- ral” (FUCHS, 2010, 43).

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2114 Anti-Internet

No debate público, a Internet surge fre- Em The Filter Bubble, Eli Pariser alerta
quentemente visada no questionamento para o risco da personalização exacerba-
de comportamentos viciantes e atuações da no uso da Internet, referindo os limi-
dolosas materializadas online, ou relacio- tes do acesso a informação ditados pelas
nada com outros efeitos sociais negativos, definições de motores de busca como o
e.g.: incremento da criminalidade em Google. Orientados por critérios comer-
geral e do cibercrime em particular; ex- ciais, estes isolam o utilizador em temas
ploração da violência e pornografia; risco e visões circunscritos aos seus interesses.
acrescido, para crianças e jovens, que se Para este autor, representam uma perda
encontram alegadamente desprotegidos da capacidade de inovação e da criativi-
face a conteúdos potencialmente agres- dade, da capacidade de enfrentar a in-
sivos. As visões céticas e negativas, ques- certeza e o desconhecido, de procurar
tionando as faces ocultas da Internet e soluções por si, favorecendo uma atitude
das redes digitais, apesar de surgirem em passiva. Tal contribui para o isolamento
contracorrente, registam notoriedade e intelectual, reduz o diálogo, a capacidade
ponderação pública. Não sendo aqui pos- discursiva e o confronto com opções dife-
sível fornecer mais do que uma nota abre- rentes, prejudicando a democracia, que
viada, compilam-se, de seguida, observa- exige “cidadãos capazes de pensar para
ções de algumas destas vozes críticas. lá do seu estrito interesse pessoal” (PARI-
Rebecca Mackinnon assinala e docu- SER, 2011).
menta os limites da atual gestão da In- Nicholas Carr, retomando contributos
ternet, sublinhando o controlo que as da psicologia e das neurociências, assi-
corporações e os governos sobre ela exer- nala, entre outros aspetos, que, a par das
cem, assim como a inação perante ques- suas vantagens, a Internet tem um pre-
tões críticas como a privacidade online, a ço: torna os seres humanos “escravos das
regulação da neutralidade da Internet, máquinas”; “altera o modo como lemos,
a proteção da liberdade de expressão, a pensamos e recordamos, e o modo como
proteção dos direitos de propriedade in- funciona o cérebro humano, transfor-
telectual, entre outras. mando a noção de humanidade” (CARR,
Shaheed Nick Mohammed salienta a 2010).
tendência de os utilizadores permanece- Jaron Lanier, investigador pioneiro na
rem ligados às suas comunidades tradi- área da realidade virtual, afirma que o
cionais, o que indicia desinteresse face a mais importante no que toca à tecnolo-
novas realidades. O uso da Internet con- gia é o modo como afeta as pessoas e as
tribui assim para a perpetuação do desco- suas vidas. Recorda que as posições críti-
nhecimento e da ignorância. cas não visam demonizar as redes sociais
Mark Bauerlein atribui à Internet par- ou a Internet, mas equacionar-lhes as
te da responsabilidade pelo desconhe- consequências, para prevenir usos inde-
cimento e desinteresse dos jovens pelas sejáveis e ineficientes. Questiona os con-
realidades sociais e políticas. Considera tornos da economia digital, a qual gera
que o uso intensivo desta está a tornar uma concentração de riqueza assimétrica
os jovens americanos “estúpidos e des- e injusta, em benefício de uma minoria,
leixados”, sem capacidade para contex- e que terá estado na origem dos proble-
tualizar e conhecer a história das ideias e mas financeiros sentidos a nível mundial
dos acontecimentos relevantes (BAUER- nos últimos anos do séc. xx e primeiros
LEIN, 2008). do séc. xxi. Apela a uma outra economia

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Anti-Internet 2115

digital, mais equilibrada e digna, obser- convencidos de que clicar numa petição
vando que uma parte do desafio reside no Facebook equivale a uma ação política
no facto de a maioria das pessoas não ter direta. Propõe, pois, um “ciber-realismo”
noção do valor dos seus dados. Sublinha que pondere as vantagens e os limites da
ainda os riscos da crença – muito parti- Internet para objetivos específicos e em
lhada – na sofisticação dos algoritmos de situações concretas (MOROZOV, 2011).
programação, quais bolas de cristal para As redes sociais e a Internet são, em
prever e antecipar o curso da realidade. muitos aspetos, apelativas e úteis. Interes-
É uma ilusão pensar que a automatização sa que se lhes possam discernir oportu-
do pensamento é infalível. Isso não se tem nidades e limitações, benefícios e riscos,
confirmado: “[As] empresas de gestão de acautelando os aspetos potencialmente
risco e os esquemas para gerir hipotecas negativos para que as abordagens críticas
já falharam” (LANIER, 2013). O Google e céticas sensibilizam.
e Facebook também podem falhar.
Andrew Keen, autointitulado “Anti- Bibliog.: impressa: ALLMER et al., “Social
cristo de Silicon Valley”, argumenta que networking sites in the surveillance society:
os media sociais estão a enfraquecer, de- critical perspectives and empirical findings”,
sorientar e dividir as pessoas, em vez de in JANSSON, André, e CHRISTENSEN, Miya-
se (orgs.), Media, Surveillance and Identity. So‑
contribuírem para o advento de uma
cial Perspectives, New York, Peter Lang, 2014,
nova era, mais comunitária e igualitária.
pp. 49­‑70; BAUERLEIN, Mark, The Dumbest
Assinala uma tensão entre a procura de Generation: how the Digital Age Stupefies Young
amizade e de ligação comunitária online e Americans and Jeopardizes Our Future (or, don’t
o etos individualista que a inspira: quanto Trust Anyone under 30), New York, Tarcher/Pen-
mais digitalmente conectados, mais sós e guin, 2008; CARR, Nicholas, The Shallows: how
menos soberanos somos. Noutro plano, the Internet Is Changing the Way We Think, Read
assinala a relação entre vigilância, privaci- and Remember, London, Atlantic Books, 2010;
FEENBERG, Andrew, “Introduction: toward a
dade e rentabilização de dados pessoais:
critical theory of the Internet”, in FEENBERG,
“os dados são o novo petróleo”, “os no- Andrew, e FRIESEN, Norm (orgs.), (Re)Invent‑
vos barões do séc. xxi são gente ligada à ing the Internet, Critical Case Studies, Boston,
rentabilização de dados”; “esta tentação Sense Publishers, 2012, pp. 3-17; FISHER,
exibicionista de difundirmos a nossa in- Eran, Media and New Capitalism in the Digital
timidade, globalmente, para o mundo Age, Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2010;
inteiro, dá cabo de nós” (KEEN, 2012). FUCHS, Christian, “Transnational space and
the ‘network society’”, 21st Century Society,
Evgeny Morozov questiona a euforia à
vol. ii, n.º 1, 2007, pp. 49-78; Id., “Theoret-
volta do papel democratizante da Inter- ical foundations of defining the participa-
net, nomeadamente face aos dados que tory, co-operative, sustainable information
mostram o controlo exercido por Estados society”, Information, Communication & Society,
e corporações sobre os utilizadores. Assi- vol. xiii, n.º 1, 2010, pp. 23-47; Id., “Class and
nala que muito do discurso apologético exploitation on the Internet”, in SCHOLZ,
combina um misto de utopia e ignorância, Trebor (org.), Digital Labor. The Internet as Play‑
ilustrado na crença de que a cultura da ground and Factory, New York, Routledge, 2013,
pp. 211-224; GARNHAM, Nicholas, “Political
Internet é inerentemente emancipatória,
economy and cultural studies: reconciliation
e de que as mais importantes questões so- or divorce?” in STOREY, J. (org.), Cultural
bre a sociedade e a política podem ser de- Theory and Popular Culture, Harlow, Pearson,
batidas online. E nota, ironicamente, que 1998, pp. 600-612; KEEN, Andrew, The Cult
alguns ativistas da Internet parecem estar of the Amateur: how Today’s Internet Is Killing Our

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2116 Anti-Junqueiro

Culture, New York, Currency, 2008; Id., Digi‑


tal Vertigo: how Today’s Online Social Revolution Is
Anti-Junqueiro
Dividing, Diminishing, and Disorienting Us, Lon-
don, Constable & Robinson, 2012; KELLNER,
Douglas, Critical Theory, Marxism and Modernity,
Baltimore, Johns Hopkins University Press,
1989; Id., Cultural Studies, Identity and Politics
between the Modern and the Postmodern, New
York, Routledge, 1995; LANIER, Jaron, You
Are not a Gadget: A Manifesto, New York, Alfred
A. Knopf, 2010; Id., Who Owns the Future?, New
G uerra Junqueiro (1850-1923), poeta
e persona poliédrica, foi porventura
a mais controvertida figura da história da
York, Simon & Schuster, 2013; MACKINNON, Modernidade portuguesa. Desde cedo a
Rebecca, Consent of the Networked: the Worldwide
obra do poeta de Freixo de Espada à Cin-
Struggle for Internet Freedom, New York, Basic
Books, 2012; MCCHESNEY, Robert, Digital ta suscitou vagas de entusiasmo e repulsa
Disconnect: how Capitalism Is Turning the Internet de igual vulto. E se as primeiras foram
against Democracy, New York, New Press, 2013; manifestamente mais ruidosas em vida,
MOHAMMED, Shaheed Nick, The (Dis)In‑ não significa que as segundas não fossem
formation Age: the Persistence of Ignorance, New audíveis; se as segundas ganharam peso
York, Peter Lang, 2012; MOROZOV, Evgeny, e altura após a sua morte, não é líquido
The Net Delusion: how not to Liberate the World,
que as primeiras deixassem de se ouvir.
London, Allen Lane/Penguin, 2011; Id., To
Save Everything, Click here: the Folly of Technologi‑
A crítica desenvolvida em torno do poe-
cal Solutionism, New York, Public Affairs Books, ta raramente é da ordem da prova. Extre-
2013; MURDOCK, Graham, e GOLDING, mada entre a apoteose e o repúdio, poucas
Peter, “Culture, communications and politi- vezes é verdadeira e raramente é honesta.
cal economy”, in CURRAN, James, e GURE- Parte substancial do que muitos sustenta-
VITCH, Michael (orgs.), Mass Media and Socie­ ram por escrito, de forma aparentemen-
ty, 4.ª ed., New York, Hodder Arnold, 2005, te especializada e isenta, tem por base a
pp. 60­‑83; PARISER, Eli, The Filter Bubble: What
superficialidade e a coerção de questiún-
the Internet Is Hiding from You, New York, Pen-
guin Press, 2011; digital: FISHER, Eran, “How culas políticas e religiosas. Julgamentos
less alienation creates more exploitation? circunstanciais, aparentemente efémeros
Audience labour on social network cites”, Tri‑ e simplistas, deitaram, não raro, raízes na
pleC, vol. 10, n.º 2, 2012, pp. 171-183: http:// posteridade. Esquecido o contexto em que
www.triple-c.at/index.php/tripleC/article/ emergiram, atribuiu-se-lhes valor de dado
view/392 (acedido a 4 set. 2017). adquirido ou irrefutável. Também por via
José Jorge Barreiros disso, Guerra Junqueiro foi sendo erodido
quase até ao esquecimento. Instaurar po-
sições de equilíbrio no estudo da obra e
seu autor, há décadas singularizado com o
nome de Guerra, é tudo menos fácil.
Com A Velhice do Padre Eterno (1885),
Guerra Junqueiro sentenciou, em parte,
o seu destino. Despertou a ira dos cató-
licos e desse modo ativou uma primeira
batalha. Com ele, em aplauso e servindo­
‑se daquela poesia como instrumento de
militância, estavam os anticlericais. Se os
católicos justamente reativos não viram

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Anti-Junqueiro 2117

na obra o grito destemperado de um cris-


tão, aos seus ruidosos apoiantes não era
pedido que o vissem.
Com Finis Patriae (1891) e Pátria
(1896), o poeta atacou a monarquia e a
plácida aliança entre o trono e o altar. Aos
contundidos monárquicos aliam-se os ca-
tólicos que há muito o tinham no ponto
de mira, e, assim, sem armistício da pri-
meira, mas bem como prolongamento,
Guerra Junqueiro abre uma segunda ba-
talha, porventura de consequências mais
pesadas. Com Junqueiro, em esdrúxula
aclamação, encontram-se os republicanos
e os anticlericais. Na iminência da Im-
plantação da República, encomendaram­
‑lhe, a ele e a Bruno, o texto que a devia
proclamar. O ideal exarado não se mos-
trava conforme ao pretendido por quem
o encomendara. O texto acabou por ser Guerra Junqueiro (1850-1923).
relegado.
Não era a primeira nota suspeita que o ças em conflito. Àquela atitude suspeita,
aparelho recebia provinda do aclamado os republicanos anticlericais somavam as
“poeta da Revolução”. Meses antes do 5 “Orações”, uma “infanda” nota aposta em
de Outubro, em contra curso à opinião certo texto das Prosas Dispersas, e, por fim,
dominante, Guerra Junqueiro defendera o declarado apoio de Guerra Junqueiro
a separação da Igreja e do Estado, mas à defesa do ensino religioso nas escolas.
“sem hostilidade para a Igreja e, reconhe- O ideal de pátria que Guerra Junqueiro
cendo que a Igreja tem uma missão social propunha assemelhava-se a panaceia de
importante a desempenhar na sociedade contrabandista para a latejante ferida mo-
portuguesa”. Em direção radicalmente nárquica. Por seu lado, aos católicos nada
oposta se avançou. A Lei de Separação parecia bastante para subtrair os agravos
do Estado das Igrejas remetia a prática infligidos com A Velhice do Padre Eterno e
religiosa ao foro privado e ao interior dos Pátria. No conjunto das duas obras liam
templos, interditando quaisquer manifes- “o evangelho do anticlericalismo em Por-
tações públicas dessa natureza. Daí que tugal” (NEVES, 1942, 47). Contudo, não
Junqueiro a impute de “lei monstruosa” se coibiam de fazer reverter em seu favor
e “satânica”. A sua república, bem como as posições da última fase do poeta.
a de alguns outros, era a liberdade, e al- De que lado se encontrava afinal o
gemavam-se os crentes; era a igualdade, e poeta? Do lado em que, com maior ou
escravizava-se a religião. menor justiça, mas em acordo com a sua
A Lei de Separação configurava um consciência, sempre esteve. O conheci-
ponto de cisão, mesmo dentro do Partido do juízo autodefinitório, seja ele original
Republicano. Sendo, à época, a questão ou retocado, segundo o qual “os políti-
religiosa a questão política por excelên- cos consideram-me um poeta; os poetas,
cia, nela chocavam de frente as duas for- um político; os católicos julgam-me um

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2118 Anti-Junqueiro

ímpio; os ateus, um crente”, traduz satis- zes numa conivência recíproca” (SEABRA,
fatoriamente o xadrez que tentámos es- JN, 2 jan. 1997, 42).
boçar (GUIMARÃES, 1942, 10-11). A questão propriamente dita do “caso
O poeta de Os Simples sabia que “o em- literário de Junqueiro” (LOPES e SA-
buste mais inacreditável, se o enxertarem RAIVA, 1982, 979), embora com raízes
com destreza num ódio político ou reli- longínquas, mas não despiciendas, no
gioso, tem logo seiva para alimento, deita texto de Moniz Barreto sobre a literatura
vergônteas e dá frutos” (JUNQUEIRO, portuguesa sua contemporânea (1889),
A Pátria, 23 abr. 1910, 3; Id., 1945, 133­ tem início na déc. de 20 do século pas-
‑193). Pior, “a cínica audácia das injúrias, sado, com “O caprichismo romântico na
além do prazer que desperta em todos os obra do Sr. Junqueiro”, célebre texto de
malandros, é acolhida, embora com vaga António Sérgio. O pensamento (e ação)
indecisão, por muitos ingénuos e igno- do seu autor, estruturado pela questão
rantes” (Id., Ibid., 135). Retrospetivamen- política, impôs-se como força motriz ex-
te, do ponto em que nos encontramos, tensiva a vários domínios, tendo sido na
vê-se que o poeta não podia ser mais cer- educação o pensador “que mais aceitação
teiro no diagnóstico que traçou. colheu junto da opinião pública portu-
À luz das duas questões apontadas há guesa pertinente” (PATRÍCIO, 2004, 31).
de pesar-se-lhe o passado e quase se lhe No caso de Junqueiro, não será exagero
hipoteca o futuro, uma vez que a própria dizer-se que a crítica sergiana se projeta
crítica literária feita à sua obra, se bem como sombra imensa por todo o séc. xx.
que desejavelmente autónoma, será tam- Nela enforma uma imagem global do
bém ali enxertada. Pequeno exemplo pa- autor. A subsequente apreciação ou uma
radigmático disso será o seu “caso” com certa crítica literária – mais intelectual e
Sena Freitas. Durante oito longas déca- de empenhamento (estético, político, fi-
das se disse que uma tal sátira foi vinga- losófico) do que especializada –, adotan-
tiva e vergonhosa retaliação de Guerra do-a como base racional teórica, nela há
Junqueiro à Autópsia operada por Sena de fermentar e ressumar.
Freitas em A Velhice do Padre Eterno. Ape- Um certo antijunqueirismo é caracte-
nas em 2005 se demoliu tal “adquirido”, risticamente presencista. Por outro lado,
provando-se que a controversa sátira foi deve notar-se que Fernando Pessoa, por-
escrita dez anos antes da Autópsia, à qual, ventura “o mais verdadeiro”, é aquele
aliás, Junqueiro nunca deu explícita res- que admirou Junqueiro, considerando­
posta; acresce que a sátira não foi escrita ‑o o poeta da obra “máxima” da nova
para ser publicada (como de facto, abu- poesia portuguesa.
sivamente o foi) e Junqueiro tudo fez, Gaspar Simões e Casais Monteiro,
chegando ao ponto de usar tesoura, para apontados como contestatários do ma-
que aqueles destemperados alexandrinos gistério sergiano, estavam, afinal, no
fossem esconjurados pelo silêncio. que toca a Junqueiro, em pleno acordo.
Com efeito, em Junqueiro se “cristaliza- Quanto a José Régio – indicado pelos
ram certas obsessões geracionais de sinal vá- seus pares como “o principal doutrinário
rio, alimentando falsas querelas, de que se da presença” (SIMÕES, 1977, 8) ou, de
aproveitaram as ortodoxias e os poderes forma mais genérica e consensual, como
em confronto, que as utilizaram como um “a grande figura que se avantaja no gru-
meio de congelar as leituras e interpreta- po da Presença” (SENA, 1977, 63) – não
ções das respetivas obras e ações, muitas ve- restavam dúvidas de que sintonizou com

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Anti-Junqueiro 2119

o ensaísmo de Sérgio. Prova-o, em 1925, não dispúnhamos, até há pouco, sequer


em As Correntes e as Individualidades na Mo- de uma cronologia segura ou de uma
derna Poesia Portuguesa e depois na Peque- bibliografia minimamente competente
na História da Moderna Poesia Portuguesa, capaz de conduzir uma investigação ho-
em 1941 e edições subsequentes. Mostrar nesta. Fez-se, entretanto, caminho e de-
que foi esta, bem como o “caprichismo” moliram-se renitentes “adquiridos”; con-
de Sérgio, a fonte privilegiada de Gaspar tinua, porém, a faltar uma justa, cuidada
Simões e Casais Monteiro seria fácil, mas, e necessária obra completa do poeta que
além de demorado, ocioso. aos olhos de Miguel de Unamuno foi um
Lendo com a devida atenção os críticos dos maiores do mundo.
visados e quantos, posteriormente, até
aos nossos dias, afinaram a crítica a Jun-
queiro pelo mesmo diapasão, apura-se
que nem um só argumento se aditou ao Bibliog.: GUIMARÃES, Luís de Oliveira, Jun‑
processo de “liminar depreciação” aber- queiro e o Bric-à-Brac, Lisboa, Gráfica Portugue-
to por Sérgio e Régio. Tudo fermenta e sa, 1942; JUNQUEIRO, Guerra, “A execução
de uma quadrilha”, A Pátria, 23 abr. 1910,
ressuma deles, afastando-se, contudo, do
p. 3; Id., Horas de Luta, Porto, Lello e Irmão,
foco crítico psicológico-social ou políti- 1945; LEONE, Carlos, e REAL, Miguel, “Qua-
co-filosófico visado pelo primeiro. Dito dro configurativo da recepção da obra de
de outro modo, e sob pena de repetição, António Sérgio: 1969-2001”, in Actas do Co‑
a “crítica estética unilateral e insuficiente” lóquio António Sérgio: Pensamento e Acção, vol. ii,
(SÉRGIO, 1950, 6/5-7) que poderia ser Lisboa/Porto, INCM/Universidade Católica
lida no remoto “Caprichismo” transfor- Portuguesa, 2004; LOPES, Óscar, e SARAIVA,
mou-se em crítica estética global, viçosa, António José, “Guerra Junqueiro”, in LOPES,
Óscar, e SARAIVA, António José, História da Li‑
inquestionável e duradoira.
teratura Portuguesa, 12.ª ed., corrig. e atualiza-
Que Sérgio e Régio leram e estudaram da, Porto, Porto Editora, 1982; NEVES, Mo-
a obra de Guerra Junqueiro não nos sus- reira das, Guerra Junqueiro: o Homem e a Morte,
cita qualquer dúvida. Parece-nos óbvio, Porto, Domingos Barreira, 1942; PATRÍCIO,
mesmo pelas influências, já sobejamente Manuel Ferreira, “O pensamento pedagógico
apontadas, que Junqueiro exerceu neste de António Sérgio”, in Actas do Colóquio António
último. Que Gaspar Simões e Adolfo Ca- Sérgio: Pensamento e Acção, vol. i, Lisboa/Por-
to, INCM/Universidade Católica Portuguesa,
sais Monteiro a tivessem lido e estudado,
2004, pp. 31-54; PEREIRA, Henrique Manuel,
na íntegra, queremos dizer, tal já não nos Guerra Junqueiro: Fragmentos de Unidade Polifóni‑
parece livre de suspeita. Deste ponto de ca, Porto, Cosmorama, 2015; SEABRA, José
vista, tendo no horizonte quantos se mos- Augusto, “A reabilitação de Junqueiro”, Jornal
traram seus meros repetidores, temos afir- de Notícias, 2 jan. 1997, p. 42; SENA, Jorge de,
mado o que a nossa história literária de- Régio, Casais, a “Presença” e Outros Afins, Por-
masiadas vezes testemunha: leem-se mais to, Brasília Editora, 1977; SÉRGIO, António,
“O caprichismo romântico na obra do Sr.
os críticos que o criticado, havendo muitos
Junqueiro”, in SÉRGIO, António, Ensaios,
críticos que, intencional ou distraidamen- vol. i, Rio de Janeiro, Anuário do Brasil, 1920,
te, não leem e outros tantos que apenas pp.  307­‑343; Id., Notas de Esclarecimento, Por-
leem os críticos que não leram. to, Edições Marânus, 1950; SIMÕES, João
Guerra Junqueiro encontrava-se, en- Gaspar, “Prefácio”, in RÉGIO, José, Páginas de
quanto objeto de crítica, fragmentado, Doutrina e Crítica da “Presença”, Porto, Brasília
misturado e confundido nas suas dimen- Editora, 1977, p. 8.
sões de poeta e homem. A seu respeito, Henrique Manuel Pereira

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2120 Anti-Lisboa

Anti-Lisboa senvolvida em relação ao, e eventualmen-


te à custa do, resto de Portugal. Dessa
situação se lamentava já Sá de Miranda,
em “Carta a António Pereira”: “Mas te-
mo-me de Lisboa/que, ao cheiro desta
canela,/o reino nos despovoa” (MIRAN-
DA, 2011, 187). A língua registou o facto

S ão muitas as razões pelas quais al-


guém pode adotar um discurso anti­
‑Lisboa. Lisboa pode ser atacada enquan-
na oposição capital/província e no dito,
erradamente atribuído a Eça, “Portugal é
Lisboa e o resto é paisagem”. Ao protesto
to realidade física, como cidade feia (ou contra a macrocefalia do país facilmente
desfeada), mas também, num discurso se associa um discurso crítico de Lisboa
investido em contrapor campo e cidade, e dos lisboetas, o qual, por seu lado, com
enquanto a cidade por excelência, dado naturalidade se conjuga com a revaloriza-
ser a maior de Portugal, ou ainda, por an- ção da terra de origem daquele que fala.
tonomásia, enquanto representação do Ilustração acabada deste fenómeno é o
poder central, nela sedeado. O discurso discurso anti-Lisboa popular no Norte e,
anti-Lisboa pode, além disso, assumir a em especial, no Porto.
forma de uma crítica à cultura local e ao A rivalidade entre as duas maiores ci-
jeito próprio de ser das gentes da capital dades do país é antiga. Dela nos dão um
ou ainda de um protesto contra o que é testemunho particularmente pitoresco
percecionado como uma atenção desme- uma crónica anónima de 14 de setembro
dida da parte do Estado à cidade que con- de 1855 do então recém-fundado O Co-
centra os principais órgãos de soberania, mércio [do Porto] (reproduzida em A Por-
e até, mais em geral, contra o prejuízo, ta Nobre, a 24 de novembro de 2013) e
real ou imaginado, infligido ao resto do dois nortenhos célebres que se mudaram
país em favor de Lisboa. Por último, o para a capital, Eça (QUEIRÓS, 2004,
discurso antilisboeta pode ser entendido 527) e Ramalho (ORTIGÃO, 1876, 32­
como resposta local ou regional à assun- ‑33). A tempos, as profundas diferenças,
ção corrente de que Lisboa é a primeira a todos os níveis, entre as duas urbes e,
entre as cidades portuguesas (pouco im- mais latamente, entre Norte e Sul acha-
porta o domínio em que a comparação é ram expressão política, em episódios
feita). Um discurso do género não tem de como a Revolta da Maria da Fonte (1846)
concluir necessariamente pela superiori- e a Monarquia do Norte (1919). Se é pos-
dade do espaço que contrapõe a Lisboa; sível, no séc. xxi, olhar com alguma bo-
basta-lhe que a primazia desta última saia nomia para o despique entre Porto e Lis-
relativizada. boa (QUEIRÓS e SANTOS, 2009), esta
Estas diferentes linhas de ataque não última surge ainda, no discurso de mui-
se excluem, muito pelo contrário: uma tos políticos durienses, como força ativa-
pode ser convocada em reforço de outra. mente contrária ao progresso do Norte.
Isso é particularmente visível na confu- Assim, e.g., na campanha para as eleições
são frequente entre algumas das últimas, autárquicas de 2013, Nuno Cardoso, can-
precisamente as privilegiadas por este didato independente à Câmara do Porto
verbete. De facto, Lisboa, quando objeto (da qual já fora o presidente), queixa-
de crítica na arena pública, é-o predomi- va-se de que “Lisboa não nos [ao Porto]
nantemente enquanto cidade sobrede- reconhece importância e vai decidindo

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Anti-Lisboa 2121

Torreão da Alfândega no Terreiro do Paço (Lisboa) na déc. de 1920.

sempre a seu bel-prazer” (PEREIRA, Por- contribuiu decisivamente para a proje-


to24, 12 set. 2013). O vencedor do sufrá- ção, nacional e internacional, da cidade
gio, Rui Moreira, reeleito em 2017, afina que lhe dá o nome. O obreiro-mor desta
pelo mesmo diapasão, confessando que transformação do clube, o seu presiden-
“também o Porto se sente, muitas vezes, te Jorge Nuno Pinto da Costa, assume
como a salsicha no meio da francesinha. frontalmente o papel político do FCP:
Entalada entre o fiambre da autonomia “Antigamente o país estava dividido entre
galega e o bife tenro do centralismo ca- o Norte e o Sul, mas agora está dividido
pital” (MOREIRA, CM, 21 fev. 2016, 29). entre Lisboa e o resto. É neste resto que
Acrescente-se que a própria eleição de o FC Porto se insere como baluarte da
Moreira foi lida por muitos como um si- luta contra o centralismo” (“Existe uma
nal da diferença da Invicta, uma afirma- divisão...”, JN, 4 mar. 2016). A rivalidade
ção do orgulho próprio da cidade, não entre o FCP e, em particular, o SLB tem
disponível para responder perante as li- ajudado significativamente a manter viva
deranças partidárias na capital. a animosidade nortenha contra a capital;
Neste contexto de alguma tensão, o recorde-se, a esse propósito, o cântico das
Futebol Clube do Porto (FCP) ascendeu claques portistas dos anos 90 do séc. xx:
ao estatuto de símbolo da resistência “Nós só queremos ver/Lisboa a arder!”.
portuense contra o centralismo lisboe- Não é apenas a norte, porém, que Lis-
ta. Sobretudo a partir do 25 de Abril, o boa é tida por uma cidade desatenta ao
FCP afirmou-se como um clube em tudo resto do país ou, pior, empenhada em tra-
a par dos dois grandes de Lisboa, o Sport var o desenvolvimento de outras regiões.
Lisboa e Benfica (SLB) e o Sporting Clu- No Centro do país e nas ilhas, e.g., são fre-
be de Portugal, permitindo ao Porto re- quentes os queixumes contra o centralis-
clamar o respeito que a cidade acredita mo lisboeta. Já em 1911, a promulgação,
que os habitantes da capital lhe sonegam. a 14 de março, de uma nova lei eleitoral
O FCP, com as suas vitórias sucessivas, que mantinha a divisão do território em

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2122 Anti-Lisboa

círculos plurinominais – contra o que o quanto a cidade sobrepujar as demais,


Partido Republicano Português (PRP), impondo-se como a referência imediata
então no poder, sempre havia defendi- contra a qual as outras, com razão ou sem
do – foi entendida pelos próprios mi- ela, se sentem obrigadas a medir-se.
litantes coimbrões do PRP como uma
afirmação violenta de Lisboa contra a
província, um exercício de centralismo Bibliog.: impressa: BRITO, Carlos de, Regio‑
que culminaria na escolha por parte do nalização. Uma Questão de Coragem, Cascais,
Rui Costa Pinto Edições, 2009; MIRANDA,
diretório nacional dos candidatos locais à
Francisco Sá de, Poesias, ed. Márcia Arruda
Constituinte (VALENTE, 2010, 180-182). Franco, Coimbra, Angelus Novus, 2011; MO-
Nas ilhas, por sua vez, Alberto João REIRA, Rui, “Ponte aérea centralista”, Correio
Jardim, ao longo dos seus 37 anos como da Manhã, 21 fev. 2016, p. 29; ORTIGÃO, José
presidente do Governo regional da Ma- Ramalho, As Praias de Portugal. Guia do Banhista
deira (1978-2015), foi particularmente e do Viajante, Porto, Magalhães e Moniz, 1876;
vocal nas suas críticas a Lisboa enquanto QUEIRÓS, António Eça de, e SANTOS, Antó-
nio Costa, Porto versus Lisboa, 2.ª ed., Lisboa,
símbolo do poder central, que acusava
Guerra e Paz, 2009; QUEIRÓS, José Maria de
repetidamente de cercear a autonomia Eça de, “À alma de D. Pedro IV, nos Elísios
do arquipélago: “Nós não somos separa- (agosto 1872)”, in ORTIGÃO, José Ramalho,
tistas, mas é altura de a Constituição por- e QUEIRÓS, José Maria de Eça de, As Farpas.
tuguesa não ser um conjunto de palavras Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Cos‑
que dá para os tribunais julgarem sempre tumes, coord. geral e introd. Maria Filomena
a favor de Lisboa e decidirem sempre Mónica, 2.ª ed., São João do Estoril, Prin-
contra o povo madeirense. [...] [N]ão há cipia, 2004, pp. 524-530; VALENTE, Vasco
Pulido, O Poder e o Povo. A Revolução de 1910,
que aceitar o colonialismo” (“Jardim con-
6.ª ed., Lisboa, Alêtheia, 2010; digital: “‘Exis-
tra ‘centralismo’…”, RTP Notícias, 2 jul. te uma divisão em Portugal entre Lisboa e o
2012). No seu discurso, a capital como resto’, diz Pinto da Costa”, Jornal de Notícias,
que ocupa um lugar análogo àquele que 4 mar. 2016: https://www.jn.pt/desporto/in-
Bruxelas tem num certo imaginário polí- terior/existe-uma-divisao-em-portugal-entre-
tico europeu (veja-se o argumentário dos lisboa-e-o-resto-diz-pinto-da-costa-5062094.
defensores da saída do Reino Unido da html (acedido a 13 fev. 2018); “Jardim contra
‘centralismo’ defende referendo sobre esta-
União Europeia).
tuto da Madeira”, RTP Notícias, 2 jul. 2012:
Mencione-se, por fim, a imagem ne- https://www.rtp.pt/noticias/politica/jardim-
gativa de Lisboa que perpassa nos deba- contra-centralismo-defende-referendo-sobre
tes em torno da regionalização, prevista -estatuto-da-madeira_n567113 (acedido a
na Constituição (arts. 255.º-262.º) mas 13 fev. 2018); PEREIRA, Ana Isabel, “Entre-
nunca levada a cabo (veja-se, por todos, vista a Nuno Cardoso: ‘No turismo, falta-nos
a obra de Carlos de Brito, Regionaliza- uma peça que é um grande centro de congres-
ção. Uma Questão de Coragem, e.g., pp. 39 sos nas Antas’”, Porto24, 12 set. 2013: http://
porto24.pt/autarquicas2013/2013/09/
e 93). É improvável que a eventual cria-
entrevista-a-nuno-cardoso-no-turismo-fal-
ção de regiões administrativas conduza a ta-nos-uma-peca-que-e-um-grande-centro-
um esvaziamento do discurso anti-Lisboa de-congressos/ (acedido a 13 fev. 2018);
aqui destacado, embora este tivesse, nes- “A rivalidade Porto-Lisboa”, A Porta Nobre,
se novo cenário, de se metamorfosear. 24 nov. 2013: https://aportanobre.blogspot.
Em qualquer caso, a animosidade contra pt/2013/11/a-rivalidade-porto-lisboa.html
a capital, que pode ter múltiplas razões (acedido a 13 fev. 2018).
na sua base, dificilmente esmorecerá en- João Diogo R. P. G. Loureiro

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Antiliterata 2123

Antiliterata De modo a evitar que, na narrativa da


humanidade, viesse a substituir o ho-
mem, a mulher era remetida ao silêncio.
A sua figura, toldada, não tinha devir
nem autonomia históricos. Receando
o poder social, em diferentes vertentes,
da mulher, era ela condicionada por um

E m posição de antagonismo, o antili-


terata assume-se expressão de uma
atitude conjunta contra quem se esforça
discurso alheio, que lhe relevava mais
os atributos físicos e menos, ou nada, as
competências intelectuais. Aliás, em vá-
por se notabilizar nas letras e denota pre- rios testemunhos ao longo da história,
disposição por se cultivar no caminho da a mulher é invariavelmente identificada
erudição. Ao contrário do iliterato, que pelo seu epíteto maternal e esponsal, que
não compreende o que lê, o antiliterata justifica qualquer orientação que sobre a
interpreta bem que uma mulher culta mesma se teça. Logo, a valorização exclu-
e que tivesse acesso à informação, por sivamente pessoal não era uma realidade
meio de uma educação decente, poderia considerada. Em resultado, ainda no final
destroná-lo de lugares até então vedados do séc. xx, incipientes são os estudos que
à perceção da sua extensa inteligência assinalam a mulher como igual protago-
feita de adorno. Resumidamente, a li- nista nas movimentações que operam
terata procura aceder a uma educação extraordinárias mudanças na história da
que a dote de instrumentos adequados humanidade. O séc. xviii inibiu-a na lei-
a conhecer, a interpretar e a intervir no tura e na escrita, sobretudo se produto de
mundo; o antiliterata é quem procu- meios rurais e de uma vivência de classe
ra desviar a mulher raciocinante desse social mais desfavorecida. O seu papel na
rumo. Tentando desmotivá-la a cultivar vida política, económica, cultural, educa-
a sua mente, baseava-se o antiliterata em cional é secundarizado em função da sua
diferenças fisiológicas que a distancia- gestão reprodutora de homens, a quem
vam desta capacidade, dada a sua natu- competiria exercer nesses domínios. Por-
reza e a sua configuração biologicamen- tanto, em qualquer análise que sobre a
te mais frágil, o que estaria na origem de mulher se faça, independentemente da
uma suposta intelectualidade inferior. temática, a sua condição de única disse-
Como tal, jamais se encontraria apta a minadora de corpos justifica o seu enco-
receber educação. Revelando-se este um brimento e apagamento da história e a
argumento insustentável, adotou-se um anulação de direitos, como o do acesso
outro tipo de abordagem: apercebendo­ igualitário à educação e à formação cultu-
‑se de que a mulher educada casava mais ral, e o do desempenho de funções nessas
tarde e tinha menos filhos, os médicos mesmas áreas. Não lhe sendo permitido
aduziam que o esforço implicado num relatar-se em espaço público, o exercício
processo de aprendizagem desviava a do livre-pensamento era-lhe vetado.
energia essencial dos ovários para o cé- Manuel de Figueiredo (1725-1801) foi
rebro, provocando fenómenos de este- dos poucos autores que, durante o perío-
rilidade. Outras instâncias optavam por do romântico e por meio das suas peças
um recurso moral, para justificar que o teatrais, denunciou o enclausuramento a
conhecimento conduzia à degradação que o género feminino, sedento por ser
comportamental das mulheres. mais que um corpo reprodutor e por se

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2124 Antiliterata

cultivar literariamente, se via sujeito, por de cordel de José Daniel da Costa, que, em
parte de quem o temia. cada um dos seus títulos versando sobre o
A reforma educacional do marquês assunto, desdenhava da mulher que aos es-
de Pombal não contempla o género fe- tudos se dedicava, apodando-a de inútil à
minino, com a criação de escolas para o sociedade. Luís António Verney consagra
efeito; pelo contrário, será através das or- no seu O Verdadeiro Método de Estudar (1746)
dens religiosas das Ursulinas e da Visita- um – atente-se no título – “Apêndice sobre
ção (ambas provenientes de França) que os estudos das mulheres”, no qual reflete
uma pequena percentagem terá acesso a que “Certamente que a educação das mu-
alguma formação, indubitavelmente con- lheres neste Reino é péssima; os homens
dicionada, porém, porquanto segundo quase as consideram como animais de
rígidos modelos de orientação mística e, outra espécie: e não só pouco aptas, mas
em alguns casos, visando aconselhamen- incapazes de qualquer género de estudo
tos para um bem sucedido matrimónio. e erudição” (RIBEIRO, 2002, 38). Talvez
Apenas no séc. xix surgem os primeiros esta meditação seja um indício do pensa-
estabelecimentos escolares femininos, re- mento que, em geral, atravessava a socie-
fletindo precisamente que, não existindo dade portuguesa, explicando a resistência
igualdade em termos de oportunidade, os à educação literária e cultural da mulher.
programas de ensino também apresenta- Em boa verdade, poucos eram os homens
vam diferenças no seu conteúdo, além de que se importavam com valores culturais,
que a construção desses edifícios depen- dedicando-se, por força de circunstâncias
dia do que sobrasse do subsídio literário exteriores que se prendiam com a própria
(imposto lançado por Pombal com o ob- sobrevivência, a matérias mais utilitárias e
jetivo de suportar as despesas aplicadas na imediatas. Ora, em função da mentalidade
sua reforma da instrução) e da disponibi- da época, fundamentava-se como válida a
lidade parca de um número, também re- premissa de que, não sendo o homem – ser
duzido, de mulheres profissionais na área. superior – alfabetizado, que argumen-
Acrescente-se que as professoras (mestras) tos explicariam que a mulher o fosse?
auferiam um salário inferior ao dos pro- O progresso e a edificação social estavam
fessores e tinham de sujeitar a sua condu- apenas reservados ao homem. Ignorando
ta pedagógica ao parecer e aprovação de o paradigma preconizado pelo racionalis-
superiores (maioritariamente religiosos), mo, segundo o qual a razão é uma faculda-
que também regulavam os conteúdos de de humana, a sociedade portuguesa não
aprendizagem. permitia, pois, que essa verdade se aplicas-
De um modo geral, a resistência à for- se à mulher. Ainda no contexto que se vi-
mação erudita da mulher era uma realida- via na época, Verney não diferia em muito
de evidente em Portugal, tanto por parte do pensamento reinante, na medida em
de homens quanto de outras mulheres, as que considerava essencial a educação da
que consideravam imorais e desproposi- mulher apenas para benefício do lar, pois
tadas as inclinações literárias de quem as dela dependia a educação dos filhos, a ges-
ambicionava, quando o seu lugar sempre tão doméstica, a serenidade do marido, a
fora o do canto do lar, o seu controlo, o agradabilidade no momento convivial.
do braço do marido/pai, e a sua voz, a do Neste caso, seria pertinente evitar que a
gesto do outro. As literatas eram, por isso, mulher nutrisse elevados pensamentos
motivo de crítica, explanada de vários mo- literário-filosóficos, e tentar que exercitas-
dos, nomeadamente através da literatura se competências mais concordantes com

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Antiliterata 2125

Alunos e uma aluna de curso médico.

matérias práticas. Outros autores também um cavalo de circo, e não lhes reconhecia
defendiam este princípio: seria imprete- sua capacidade para o raciocínio abstrato”
rivelmente importante que as mulheres, (Id., Ibid., 50). Considerava-as eficientes
especialmente porque futuras esposas e em armas de sedução, mas não em maté-
mães, afastassem o seu entendimento de rias de ciência enquanto acúmulo de co-
manifestações questionantes e existencia- nhecimento, julgando, depreciativamen-
listas que se pudessem revelar interventi- te, que a inteligência feminina só assim
vas e disruptivas de uma aparente estabi- era tida num país de muitos medíocres e
lidade emocional entre os dois géneros. poucos doutos, que excediam os entusias-
Ribeiro Sanches, e.g., em Cartas sobre a Edu- mos ante coisa rara, a de vislumbrarem
cação da Mocidade, vai mais longe no pre- uma mulher que compusesse belamente
conceito, afirmando que, no seu entender, umas frases.
a educação da mulher seria extremamen- Em síntese, “o discurso normativo que
te importante porque contribuiria para a a sociedade impingia [era o de que]: mu-
consequente educação do homem, na sua lher não deve ser letrada” (Id., Ibid., 51).
inequívoca função de mãe. I.e., embora se reconhecendo a importân-
Francisco Xavier (ou Cavaleiro) de Oli- cia de se libertar a mulher da submissão
veira, em muitos escritos seus, que relatam, cega e gratuita, a sociedade em geral, e até
de modo pitoresco, os costumes e ambien- superioras religiosas encarregadas de mi-
tes da época, “reputava a mulher incapaz nistrar a educação das mulheres em suas
de emitir um bom parecer”, fundando-se ordens, concordava em limitar esse anseio
nas mesmas ideias de Cícero, que “consi- nos moldes estatuídos nas alíneas de Ver-
derava uma mulher sábia tão inútil como ney, instruindo-as para serem regradas.

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2126 Anti-Luzes

Tudo o mais poderia revelar-se perigoso e


desnecessário para o único destino que se
Anti-Luzes
lhes traçava, realidade essa com presença
forte até à segunda metade do séc. xx.
A mudança forçada por um contexto
agreste de guerra e de necessidade de so-
brevivência a uma vida de esgotamento
paupérrimo levou muitas famílias a dinâ-
micas migrantes, que, por sua vez, apro-
ximaram mundos que já não se queriam
N a sua forma plural, o termo “luz”
pode adquirir uma aceção própria,
significando saber, conhecimento, instru-
distantes, e, no seu seguimento, a eman- ção, cultura: “Na ignorância ou nas luzes,
cipação da mulher, a vários níveis, deixa está ou deixa de estar a liberdade das
de tremer e ancora-se como um consegui- nações. […] Dai luzes ao povo e o povo
mento espalhado. Mais que não fosse por quererá ser livre” (GARRETT, 1985, 260 e
uma outra bizarria da incoerência gover- 261). Este sentido de “luzes” não tem um
nativa: na déc. de 70 do séc. xx, portanto, significado temporal. A sua forma plural
durante o regime do Estado Novo, vota- pode, todavia, ter outro significado, de-
vam somente as mulheres que soubessem signando a especificidade do pensamen-
ler e escrever, muito embora esse requisito to e da cultura do séc. xviii europeu, o
não se exigisse aos homens, os mesmos a “Século das Luzes”: as “Lumières” dos
que competia autorizar a sua esposa alfa- Franceses, o “Enlightement” dos Ingleses,
betizada a viajar. António Oliveira Salazar, a “Auffklärung” dos Alemães ou o “Ilumi-
em plena vigência de mandato, continuava nismo” dos Italianos (a última designação
a propugnar que, pela diferença de sexo, tem também uso em Portugal, a par de
era da responsabilidade dos homens o go- “Luzes” e de “Ilustração”). Usaremos aqui
verno da família feito a partir do exterior; as duas aceções, e estenderemos a análise
o do interior ficava a cargo das mulheres, dos fenómenos, na sua vertente anti em
que não deveriam concorrer socialmente Portugal, aos tempos que precederam o
com os seus esposos, pais e filhos, regres- século em cujo legado assenta indissolu-
sando, então, à proteção do lar. velmente o homem moderno e a moder-
nidade, prolongando-a até 1820, início da
nossa modernidade em liberdade.
Há peculiaridades nas histórias dos po-
Bibliog.: PINTO, Maria Teresa Valente, A For‑ vos que, pelo seu alcance, a sua duração
mação Profissional das Mulheres no Ensino Industrial e o seu carácter estruturante, se tornam
Público (1884-1910). Realidades e Representações, elementos fulcrais no grau e no sentido
Dissertação de Doutoramento em Estudos civilizacionais que os enformam, poden-
sobre as Mulheres apresentada à Universida-
do os seus efeitos persistir intensa e lon-
de Aberta, Lisboa, texto policopiado, 2008;
gamente. Pois bem, a ambiência anti­
RIBEIRO, Arilda Inês Miranda, Vestígios da Edu‑
cação Feminina no Século XVIII em Portugal, São ‑Luzes foi uma destas particularidades
Paulo, Arte & Ciência, 2002; VAQUINHAS, Ire- em Portugal – e, por sinal, uma das mais
ne, “Estudos sobre a história das mulheres em dramáticas da sua história. A ação ideoló-
Portugal: as grandes linhas de força no início gica, considerada enquanto aparelho jus-
do século xxi”, InterThesis, vol. 6, n.º 1, jan.-jul. tificador de projetos e programas de ação,
2009, pp. 241-253. na conceção de Destutt de Tracy, foi um
Susana Vieira campo fértil de construção e manutenção

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Anti-Luzes 2127

dessa atmosfera. Mas foram a Inquisição Alorna, e depois Garrett, Herculano, An-
e a censura os instrumentos primordiais tero de Quental, Eça de Queirós, António
responsáveis por ela. Pela sua eficácia, Sérgio, Jorge de Sena, Eduardo Louren-
violência e duração, elas haveriam de ço, entre outros. Teodoro de Almeida,
condicionar, negativa e indelevelmente, culto e viajado, lastimará, orando em ses-
toda a vida material e mental da nação. são de abertura da Academia das Ciências
E, se a sua eficácia e violência se tornaram de Lisboa, as humilhantes representações
notórias a nível internacional, a sua du- que de Portugal se faziam por essa Europa
ração foi impressionante. De facto, se ti- fora e que em tantas ocasiões o haviam fei-
vermos em conta os quase quatro séculos to corar de pejo e emudecer. E, se toda a
e meio que medeiam entre a criação do nação sofreu os efeitos desta degradação,
Santo Ofício da Inquisição (1536) – e, a intelectualidade foi um dos seus campos
consequentemente, o início da censura mais visíveis. Carrère sintetizou cruamen-
formal – e a Revolução de Abril de 1974, te a situação: quem queria manter-se tran-
verificamos que durante quase três sé- quilo no reino de Portugal calava-se e não
culos fomos sujeitos à primeira, a Inquisi- escrevia (CARRÈRE, 1797, 236). Entre os
ção, e que estivemos livres da segunda, a Portugueses, Teófilo Braga mudaria a fór-
censura, apenas durante cerca de um sé- mula, que não o sentido: “Não ter ideias
culo. As consequências daí provenientes era tino prático” (BRAGA, 1876, 82).
foram abundantemente assinaladas, em E quem queria tê-las e exprimi-las arrisca-
plena época das Luzes, não só por vozes va a tortura, a prisão, o exílio voluntário
do exterior, mas também internamente. ou forçado, a morte – os exemplos disso
Na primeira forma, encontramos nume- são incontáveis.
rosos registos de olhares que tiveram o Portugal abrira-se à realidade renas-
ensejo de contactar, nessa época, com a centista e tornara-se notado. A cultura
nossa realidade, desde J. Bourgoing e humanista adquirira raízes bem visíveis
Ange Goudar a J. B. F. Carrère ou ao com- e a literatura e a ciência legaram criado-
te d’Albon, a Dumouriez, M. Link, Carl res e criações de projeção internacional.
Ruders, Jacome Ratton, Ph. Stevens, e a Mas esta realidade começaria a inverter­
tantos outros. Em geral, pintaram Portu- ‑se ainda durante o séc. xvi. A Inquisi-
gal como império de frades e freiras, onde ção foi instituída em Portugal através da
moravam a ignorância, a imbecilidade e a bula Cum ad Nihil Magis (23 de maio de
barbaridade, a superstição e o fanatismo, 1536), depois de longas, persistentes e
a tirania opressiva e o mais sanguinário muito onerosas negociações com Roma.
tribunal inquisitório. Voltaire apodou a O interesse da Coroa portuguesa, cujo
nação portuguesa de a mais ignorante e território tinha especificidades parale-
fanática da Europa, e não deixou de cele- las ao da Espanha (onde se verificava a
brar com ironia a sorte de Newton, e com presença das heterodoxias judia e muçul-
ele a da razão, por não ter nascido em mana), era conseguir, para o reino, um
Portugal, livrando­‑se, assim, de ter de ves- modelo que favorecesse o amplo contro-
tir um sambenito e acabar queimado num lo da instituição pelo poder real, como o
auto de fé. Internamente, muitos pensa- que fora obtido pelos Reis Católicos em
ram o mesmo, e alguns o disseram, como 1478. Isso não se alcançou de imediato,
o P.e António Vieira, D. Luís da Cunha, mas em 1547 este controlo era já muito
Verney, Ribeiro Sanches, o Cavaleiro de significativo. Desta forma, uma institui-
Oliveira, Filinto Elísio, a marquesa de ção originariamente criada com intuitos

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2128 Anti-Luzes

religiosos tornava-se, em grande escala, ou de incumprimentos (quanto à posse,


uma instituição com forte tutela da Co- leitura, venda de obras, etc.); casas de im-
roa, sem menosprezar aqueles intuitos. pressão, livrarias, bibliotecas públicas e
Formalizava-se, assim, na península, um particulares, alfândegas e portos eram os
dos mais resistentes elos da cumplicidade seus alvos rotineiros.
europeia entre trono e altar. Combatia-se A censura era prática muito antiga.
a heresia religiosa para preservar a legiti- A Igreja exerceu-a desde os primeiros sé-
midade dos dois poderes; fortalecia-se o culos da sua existência. Os livros de Ario,
poder político para cimentar e fortalecer e.g., foram condenados em Niceia, em
a estrutura da dualidade convergente. 325. Em Portugal, nasceu formalmente
A cumplicidade tornou-se notória em nu- com a Inquisição, mas a sua prática foi
merosos campos. A sua ação estendeu-se anterior a ela. Recordem-se as providên-
à Índia em 1560, e aos restantes territó- cias prometidas por D. Manuel ao Papa
rios ultramarinos (Brasil e possessões em Leão X contra o luteranismo, em 1521,
África) no domínio filipino. e as cautelas reveladas pela participação
A jurisdição do Tribunal do Santo Ofí- de teólogos portugueses na assembleia de
cio era muito lata e servia motivações e Valhadolid, em 1527, para atuação contra
interesses de natureza vária, nomeada- a heterodoxia erasmiana. E, no mesmo
mente económicos. No entanto, se, na ano da criação da Inquisição, publica-se
primeira fase, a polimorfa e calculista Antimoria, de Aires Barbosa, uma obra
questão dos judeus e cristãos-novos era, de combate ideológico contra o Elogio da
de longe, a mais relevante e comum, não Loucura e o humanismo de Erasmo.
há dúvida de que a vertente da censura De início, investiu-se muito na censura
sempre se revestiu nele de uma importân- preventiva, e as suas formas evoluíram ra-
cia especial, acabando por se tornar uma pidamente. Uma das primeiras medidas
das matérias de maior proeminência em tomadas foi a concessão de privilégios de
termos de interesse e organizacionais. impressão e venda. Estes eram outorga-
Não é de admirar, pois tratava-se do ins- dos depois de analisados os escritos por
trumento que traçava o sentido evolutivo gente “de piedade e doutrina”, como se
da cultura e que controlava as mentali- dizia. O primeiro de que se conhece regis-
dades. Tendo em conta a sua natureza, a to foi concedido por D. João III ao escri-
sua organização e as suas formas de agir, tor e poeta madeirense Baltazar Dias, em
a censura aplicava-se de forma preventiva 1537. Em 1539, as obras Insino Christão, de
ou repressiva. A primeira tentava impedir autor anónimo, e Grammatica da Língua
a impressão ou a entrada no país de es- Portuguesa com os Mandamentos da Santa
critos que afrontassem a religião, o poder Mádre Igreja, de João de Barros, aparecem
político, a moral ou os costumes; inicial- ambas com chancela de autorização con-
mente, era exercida pelo Conselho Geral cedida pela Santa Inquisição, sendo que
do Santo Ofício e pelo ordinário da dioce- a primeira exibe também privilégio real.
se, mais tarde, também pelo Desembargo Entretanto, em 1540, as análises prévias
do Paço (1576), fazendo-se, mais uma vez, e outras incumbências passaram a ter
jus ao conluio trono-altar, e dificultando­ comissão fixa. Mas o grande salto qualita-
‑se ainda mais a liberdade de escrita e de tivo seria o da adoção dos índices, listas
leitura. A segunda era de natureza reme- muito extensas de livros cuja impressão,
diativa e exercia-se sobre prevaricações venda, compra, posse, leitura ou emprés-
decorrentes de ineficácias na prevenção timo estava interdita. Poupava-se, assim,

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Anti-Luzes 2129

muito esforço, aumentando-se a eficácia


do trabalho com a obrigação universal
de denúncia daquelas situações, sob pena
de severas penas face a omissões. O nos-
so primeiro Índice data de 28 de outubro
de 1547. Manuscrito, elaborado com base
noutros, tinha muitas lacunas e não cons-
tava nele qualquer obra de autores portu-
gueses. Depois aparecerão, já impressos,
o Rol dos Livros Defesos, em 1551, o Index
Auctorum et Librorum, em 1559, outro Rol
dos Livros Defesos, em 1561, o Index Libro-
rum Prohibitorum, nas edições de 1564, de
1581 e de 1597, e, finalmente, o exten-
síssimo Index Auctorum Dãnatae Memoriae,
tum etiam Librorum Qui vel Simpliciter vel
ad Expurgationem usque Prohibeentur vel De-
nique iam Expurgati Permittuntu, em 1624,
que se manterá em vigor até ao consula-
do pombalino. Cada um dos índices terá
mais obras proibidas que o anterior. O de
1551 já incluía vários autos de Gil Vicente, Folha de rosto de Index Auctorum
e com ele conquistaríamos – em volume, Dañatae Memoriae (1624).
minúcia e rigor – a vanguarda dos países
católicos, posição que não mais abando- da extensão da parte dedicada a obras em
naríamos. Este desvelo estendia-se aos róis língua portuguesa: 88 páginas. Lá, cons-
vindos de Roma que adotávamos, como o tam, e.g., Bernardim Ribeiro, Gil Vicen-
de 1759; considerado excessivo por mui- te, João de Barros, Jorge de Montemor e
tos países, Portugal acolheu-o com entu- Fr. Gaspar de Leão. Mas o afinco da Inqui-
siasmo e foi o único país que lhe conce- sição portuguesa não esmorecia e tentava
deu o privilégio de impressão própria; responder à cada vez mais fértil atividade
tinha 78 páginas e incluía uma lista de ti- possibilitada pela invenção de Gutenberg.
pografias. Esta diligência e a aquisição de Aparece, então, esse inultrapassável “mo-
competências que implicava tornaram-se numento repressivo” (REGO, 1982, 95), o
tão notórias que o autor do rol de 1561, Index Autorum Dãnatae Memoriae, de 1624,
Francisco Foreiro, se tornou um elemento da responsabilidade do P.e Baltazar Álva-
fundamental do Concílio de Trento nesta res, Jesuíta da escola conimbricense. Com
matéria, sendo levado por Pio IV a traba- mais de 1050 páginas, foi o suprassumo
lhar num novo Índice, o tridentino, que dos róis em Portugal e no mundo católico
sairia em 1564 e seria publicado também da época, e um apoteótico instrumento
em Lisboa, meses depois. Nele, figuram anti-Luzes. Lá permanecem, como nos an-
as célebres regras tridentinas, por aquele teriores, as regras tridentinas de Francisco
criadas, e que se tornaram uma espécie de Foreiro, bem como outros elementos nor-
pedagogia normativa censória de âmbito mativos, prescrições, penas ou indicações
universal. No Catalogo dos Livros Que Se de pedagogia censória. A parte i é uni-
Prohibem, de 1581, a nota mais saliente é a versal, a parte ii, com 119 páginas, trata

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2130 Anti-Luzes

dos livros proibidos especificamente em forma irreversível os vetores axiológico e


Portugal, e a parte iii, com mais de 850, político. As Luzes tornavam-se um valor
é sobre expurgações. Tudo se inscreve no e um ideal: os referenciais imanentes su-
combate ao novo, ao heterodoxo, à opi- plantavam os transcendentes, conciliava­
nião, e na necessidade de unicidade de ‑se o positivo com o racional, assistia-se a
pensamento, obtida mediante proibições, uma reação organizada contra os padrões
declarações, cortes de folhas, riscos de pa- políticos reinantes, a rigidez económica, a
lavras ou nomes, substituições de texto. estratificação social, o autoritarismo reli-
Lá estão Dante, Petrarca, Cervantes, Eras- gioso. O grupo dos enciclopedistas torna-
mo, a par de santos canonizados, papas, va-se líder no combate ideológico, a filoso-
clérigos, e de muitos livros e autores por- fia renascia das cinzas, afastado o império
tugueses, não tendo sequer escapado os da teologia, a Revolução Francesa mudava
consagrados e modelares censores Fran- a história da Europa e do mundo, a reli-
cisco Foreiro e Jerónimo de Azambuja. gião deixava de ser o principal elemento
É difícil enumerar as consequências, estruturante das sociedades, a Igreja per-
por vezes trágicas, da feroz e generaliza- dia protagonismo. Nesta base, perdia con-
da obstaculização à inteligência portu- sistência seguir um modelo isolacionista,
guesa na fase que se estende até meados por meio do qual se quisesse continuar a
do séc. xviii, tanto para essa época como controlar o país e a salvaguardar o trono e
para as posteriores. Mas podem imaginar­ o altar, e centrado num grupo de ideólo-
‑se, percorrendo parte da galeria dos no- gos de perfil teológico, numa Inquisição
mes que sofreram, por meio do cárcere e numa censura inquisitorial focadas no
e até da morte, os efeitos da sua própria combate às heresias e às impurezas da fé.
criação, do seu inconformismo, da sua A própria Igreja mostrava assimilar a ideia
apetência cultural, da sua abertura aos no- da necessidade de uma mudança, patente
vos padrões de pensamento: o humanista no largo espectro de intervenientes que
e poeta Diogo de Teive, o cronista Damião alimentaram a célebre polémica em torno
de Góis, o poeta Baltasar Estaço, o mate- do Verdadeiro Método de Estudar, de Verney,
mático André de Avelar, o jurisconsulto e na variedade de matérias aí envolvida.
Velasco de Gouveia, o erudito Cón. Vicen- Impunham-se o descentramento de alvos
te Nogueira, o Jesuíta P.e António Vieira, específicos e a mudança de modelo ins-
o poeta Serrão de Castro, o Cavaleiro de trumental no combate às variegadas hete-
Oliveira. Não ficámos alheios ao fervilhar rodoxias que das Luzes irradiavam.
das novas ideias da Europa transpirenai- No desencadear deste processo, inter-
ca, mas as aquisições conseguidas divul- feriu um acontecimento histórico e emer-
garam-se cá “tardiamente, algumas vezes giu um nome: a mudança de Monarca e
mal e quase sempre por portas travessas” a decorrente escolha de Sebastião José
(DIAS, 1953, 272). Não podia ser de outra de Carvalho e Melo, futuro marquês de
forma, com tais torniquetes. Pombal, para ministro. Lúcido e abran-
Quando se chega ao séc. xviii, os tem- gente reformador e lídimo tirano, Sebas-
pos são outros. A filosofia moderna entre- tião José foi uma figura incontornável da
laçara experiência e razão, permitindo a história portuguesa e também uma das
Newton configurar um novo e avassalador mais controversas quanto ao exercício do
paradigma epistemológico, que afrontou poder, muito pela forma como concebeu
e abalou os alicerces do velho edifício e encarou as Luzes, usou a Inquisição e
teológico, e cujo lastro contaminaria de reorganizou a censura. Relativamente às

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Luzes, o ministro de D. José colocou a Co- ‑Luzes da “seita”, vista como a primeira
roa portuguesa na esfera de outros países responsável pelo facto de o reino se achar
que se moviam no quadro do despotismo nos antípodas culturais de outrora e se
esclarecido, como a Áustria de Maria Te- ter afastado dos padrões de progresso da
resa, cuja corte havia frequentado. A sua Europa. Aliás, Verney – que fora formado
política cultural e as reformas pedagógi- na escola daquela Ordem e que era tão
cas que promoveu em todos os graus de acarinhado pelo ministro – já insinuara o
ensino foram emblemáticas e corajosas cá mesmo no Verdadeiro Método; idênticas de-
e muito admiradas no estrangeiro. Movi- núncias haviam sido feitas por alguns Ora-
do por uma ideologia secular e concentra- torianos e intelectuais, foragidos ou não.
cionária, ditou uma política regalista, teo- Semelhante atitude não ocultará o sen-
ricamente sustentada, em que participou tido concentracionário e despótico do seu
uma importante e esclarecida parcela da projeto político global, e este requeria,
intelectualidade do reino. Assim, ao mes- impreterivelmente, uma mudança radical
mo tempo que intentou retirar a Igreja no figurino dos Tribunais do Santo Ofício
portuguesa da alçada de Roma, moveu-se que seria estultícia o ministro dispensar.
no sentido da separação de poderes e da Era imperioso torná-los um instrumento
inversão dos pesos da balança na relação ao serviço do Estado, do “seu” Estado, e,
altar-trono. atente-se, torná-los menos sujeitos às “se-
A expulsão, em 1759, dos Jesuítas, que veras críticas, que as nações mais polidas,
dominavam a cultura e o ensino, tinham e cultas da Europa [lhes] têm feito” (lei
enorme poder político, económico e so- de 5 abr. 1768). Foi, então, esvaziando,
cial e eram elemento fundamental da enfraquecendo e descaracterizando o seu
instituição inquisitorial e censória, foi um antigo perfil, equiparando-os a tribunais
momento fulcral desta estratégia. As mo- régios. Dada a matriz filosófica e política
tivações do ato depreendem-se logo do dos novos tempos, retirou da alçada da-
conteúdo da lei da expulsão (3 set. 1759) queles tribunais a censura literária, já que
e do alvará de extinção de todas as esco- aí residiria um dos principais esteios de
las reguladas pelos seus métodos, mas o desenvolvimento e consolidação do seu
seu significado pleno entender-se-á mais projeto, gizando para esta censura um
cabalmente com o libelo da Deducção Chro- corpo próprio de natureza secular e crian-
nologica e Analytica (1767) e a subsequen- do a Real Mesa Censória (pela lei atrás re-
te lei de criação da Real Mesa Censória ferida). Desta forma, a censura persistia,
(1768), bem como, posteriormente, com mas pintada com as cores do seu pincel.
o célebre projeto que fundamentará os Es- Neste âmbito, tornou os antigos mento-
tatutos da Universidade de Coimbra (1772), res da Inquisição, os Jesuítas, seus alvos;
de sugestivo título: Compendio Historico do suspendeu a jurisdição do volumoso Index
Estado da Universidade de Coimbra no Tem- Expurgatório de 1624, do inaciano P.e Balta-
po da Invasão dos Denominados Jesuitas e dos zar Álvares, e proscreveu do reino as bulas
Estragos Feitos nas Sciencias e nos Professores, da Ceia do Senhor e todos os Índices Expur-
e Directores Que a Regiam pelas Maquinações, gatórios, que faziam residir a responsabili-
e Publicações dos Novos Estatutos por Elles Fa- dade executiva em censores “destituídos
bricados (1771). Na verdade, para além do das letras necessárias para conhecerem,
atentado ao Rei, a que Sebastião de Car- e julgarem as obras” (lei de 5 abr. 1768,
valho e Melo vinculou os Jesuítas, a expul- base i), que agiam de forma a “proibi-
são é sempre por ele ligada à ação anti­ rem-se os livros, que se deviam permitir”,

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e permitirem-se “os outros que se deviam nuar a ser, no reinado de D. Maria I – um


proibir” (Ibid.), e que precipitavam todos dos maiores quebra-cabeças para o poder
os “Vassalos de Portugal no inculpável, e reinante, quer em matérias de índole po-
necessário idiotismo” (Ibid., preâmbulo). lítica, quer religiosa. O primeiro alvo indi-
Nasciam agora os censores régios, que, cado da lei constituinte da Mesa Censória
servindo outros intentos e outro projeto era o controlo do conjunto de escritos
político, não divergiam afinal do sistema que já se achavam introduzidos ou que
precedente quanto às finalidades de ação: se pretendiam introduzir em Portugal.
velar contra os “estragos da Religião, do Constituíram-se, para isso, novos instru-
Trono, do sossego público” e pela “perfei- mentos legais e complexas e apertadas re-
ta harmonia entre o Sacerdócio, e o Im- des de controlo de entrada, posse e circu-
pério, para se ajudarem um ao outro nos lação, acompanhados de mecanismos de
casos ocorrentes” (Ibid., base i). repressão. A par de infindáveis e arrelien-
Além disso, não se diferenciavam dele tas censuras, havia os numerosos editais,
nos seguintes aspetos: incumbências ju- as obrigatórias denúncias, as devassas, os
risdicionais (censura sobre livros e papéis confiscos, a prisão, a tortura, o degredo,
já introduzidos no reino e nos domínios, e até a morte. Os perigosos fantasmas vin-
sobre os que nele entrassem pela primeira dos de fora, embrulhados naqueles livros
vez, sobre os que se pretendiam reimpri- e papéis, carregados de heresia religiosa,
mir, sobre os de nova composição, sobre social e política, e indutores de revolução,
impressores, mercadores e livreiros [Ibid., apoquentavam cada vez mais.
base ix]); ordenações de apreensões e Entre as medidas tomadas em prol da
sequestros (Ibid., base x); decisão de pe- contenção e eliminação de obras suspei-
nas criminais e emissão de normativos em tas, reportamos dois exemplos paradigmá-
nome real (Ibid., base xiii). Também não ticos: o da grande devassa nacional de 10
se alterou a ação nem a preocupação pe- de julho de 1769 e o do edital de 24 de se-
dagógica; esta está patente nos documen- tembro de 1770. Com a primeira, Pombal
tos anónimos Livros de Authores Estrangeiros projetava conhecer inteiramente a realida-
Que Devem Ser Prohibidos por Edital e na se- de do país, intimando a elaboração de um
gunda parte de Juizo sobre os Authores Im- catálogo fiel de todos os livros, impressos
pios, e Obscenos Que Devem Ser Condenados, ou manuscritos, que cada pessoa, orga-
ou pelo Index, ou pelo Edital desta Meza, Prece- nismo ou instituição tivessem. Tratava-se
dido de Alguas Reflexões sobre a Condenação e de uma obrigação, aprazada a seis meses,
Queima dos Livros, bem como em numero- de autocensura, de autodenúncia e, até, de
sas censuras concretas. autoflagelo, por sujeição à confiscação, a
A ação não se modificou na sua ampli- apertada vigilância e a ações persecutórias.
tude e na fúria censória sobre as ativida- Tal tentativa não terá surtido grande efeito,
des e a produção, tanto nacionais como pois, apesar dos cerca de 2420 catálogos en-
estrangeiras, como prova a vastidão de viados, é restrito o número de livros proibi-
processos existentes no Arquivo Nacional dos que neles se acha. Por sua vez, o edital
da Torre do Tombo (ANTT) e em outros de 1770 é uma enorme lista, a três colunas,
arquivos portugueses. Não escaparam as de “detestáveis escritos” e de autores que já
bibliotecas dos conventos, de bispos, pa- haviam feito soçobrar “os Países mais pró-
dres, civis, livreiros, impressores, leitores. ximos ao seu nascimento”, como consta na
Os escritos estrangeiros, em especial os introdução; urgia pois precaver dos funes-
franceses, eram – e haveriam de conti- tíssimos efeitos do seu disfarçado veneno,

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te a do período de D. Maria, em termos


de prevenção e repressão. É fecunda a
divisão da Real Mesa Censória do ANTT
que se ocupa dos processos instaurados
a impressores e livreiros, neles se encon-
trando referências a vastas confiscações
de obras aos Borel, Debeux, Reycend,
Rolland, a Paul Martin, a Francisco Sa-
bino dos Santos, mas também a muitos
conventos, nobres, intelectuais, cidadãos
comuns. As  Luzes europeias eram incen-
diárias. Os medos aumentavam proporcio-
nalmente à constatação das ineficácias da
rede de controlo. Os remedeios também.
Os autos de fé públicos, erradicados por
Pombal, voltaram a surgir com D. Maria,
como foram o de 1778, em Lisboa, onde
figuraram Anastácio da Cunha com mais
oito militares de Valença, ou o de 1781,
com carácter académico, em Coimbra,
onde desfilaram vários estudantes, como
Reprodução do edital pombalino Pereira Caldas, Melo Franco e Francis-
de 24 de setembro de 1770. co José de Almeida, com acusações, nos
dois casos, assentes na matéria em apreço.
e impedir a continuação da sua “inundação Tentou também a Rainha dar mais eficá-
monstruosa”, já que eles serviam “para ata- cia à Real Mesa Censória, reformulando-a
car os Princípios mais sagrados da Religião, e designando-a de Real Mesa da Comissão
para invadir os mais sólidos fundamentos Geral sobre o Exame e Censura dos Livros
do Trono, e para romper assim aqueles fe- (carta de lei de 21 jun. 1787).
licíssimos vínculos com que mutuamente Contudo, o fantasma dos livros estran-
se sustentam” (SILVA, 1844, 240). Nesse geiros continuava a pontificar. Nesta base,
edital, pede-se aos vassalos de qualquer es- o poder político, surpreendido e acos-
tado, qualidade ou condição, e a livreiros sado pela Revolução Francesa de 1789,
e impressores que “não detenham, comu- intensificou o cuidado com aqueles, em
niquem, vendam, introduzam, imprimam, detrimento do tido com livros nacionais,
distribuam, ou de qualquer modo espa- como bem mostra a advertência do minis-
lhem” as ditas obras que devem entregar tro da Justiça Seabra da Silva ao principal
(Id., Ibid., 244). Algumas eram destinadas Abranches nesse sentido (3 dez. 1789).
à fogueira na praça do Comércio. No tex- Mas isso não bastou. A “inutilidade” e a
to, são referidas muitas dezenas de títulos “ineficácia”, imputadas agora à Real Mesa
e nomes de ampla difusão, e.g., Argens, da Comissão, que continuava a possibili-
Bayle, Boulanger, La Mettrie, La Fontaine, tar a propagação de “novos, inauditos e
Hobbes, Morgan, Espinosa, Tindal, To- horrorosos princípios, e de sentimentos
land, Rousseau, Voltaire. Políticos, Filosóficos, Teológicos, e Jurídi-
Assim seria a toada até ao fim do con- cos”, seria argumento central para a sua
sulado pombalino – e não será diferen- cessação e a consequente ereção de uma

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censura tripartida (lei de 17 dez. 1794), isolados, “um atado” deles (MACHADO,
fórmula da velha Inquisição. O zelo e a 2000, 39). O “não é bom vassalo quem não
fúria censória exacerbaram-se com a exe- for bom cristão” convertia-se, por pena do
cução de Luís XVI e Maria Antonieta. Por cardeal patriarca D. José II numa pastoral,
isso, o recurso à ação policial, através da em “não é bom cristão quem não for bom
intendência de Pina Manique e das suas vassalo” (JOSÉ II, 1789). Bispos e clérigos
“moscas” (agentes que eram como que os reconheceram e seguiram, em geral, esta
olhos e os ouvidos do intendente e que, precedência do bom vassalo sobre o bom
de forma discreta, esquadrinhavam e de- cristão. A heresia política sobrepunha-se,
nunciavam elementos, pessoas e situações em gravidade e em penas, à heresia reli-
que lhes parecessem heterodoxos ou sub- giosa. O processo de Bocage demonstrará
versivos), bem como à hierarquia da Igre- muito bem isso.
ja e aos governos da Universidade (que, A agressividade censória e repressiva
por meio de editais e da ação, apelavam contra tudo o que punha em causa os
freneticamente à denúncia, mesmo que baluartes do status e contra a sublevação
secreta, de livros perigosos, pedreiros-li- política continuaram até à Revolução
vres, jacobinos, sectários e partidários dos Liberal de 1820. Mas as circunstâncias
Franceses), tornou-se uma prática obses- da Guerra Peninsular e da fuga da corte
siva. E, se a prevalência de alvos de natu- real para o Brasil, aliadas a uma progres-
reza filosófica e política já existia desde siva deterioração da eficácia inquisitorial
Pombal, agora tornava-se quase absoluta. a partir de Pombal, laxaram claramente
O influente ministro do Reino, Seabra da as capacidades de atuação censória con-
Silva, sintetizava esta situação em recado tra os novos e persistentes ventos que as
enviado ao vice-reitor da Univ. de Coim- Luzes traziam. Esta realidade foi tremen-
bra, sobre a necessidade de uma mudan- damente potenciada pela criação de nu-
ça curricular na formação dos regulares, merosos periódicos portugueses com sede
que continuava mergulhada em matérias no estrangeiro, e de alguns no reino, que
de religião e teologia: “Não têm os teólo- fintaram, em grande escala, a eficácia da
gos de combater Arianos nem Calvinistas. máquina obstaculizante. Fazia-se neles
Têm que combater Filósofos, que atacam eco dos novos saberes, das novas técnicas,
os governos e a política e zombam da Teo- das criações literárias, das novas filosofias,
logia” (BRAGA, 1898-1904, III, 735 e 736). dos novos valores, e até das novas práticas
Não era por acaso que o Contrato Social de políticas testadas no exterior. Enfim, fazia­
Rousseau, que antes da Revolução Fran- ‑se a pedagogia em vista da revolução que
cesa pouca atenção concitara – fosse de já se adivinhava.
sentido elogioso, fosse depreciativo –, era Para além da Inquisição e da censura,
agora profusamente achado por visitado- acolitadas por uma acutilante ação poli-
res e censores. Com efeito, entre as exis- cial e estruturadas por um forte edifício
tências encontradas em sede da Comis- normativo, também a ideologia foi, desde
são Geral sobre o Exame e Censura dos Pombal até ao liberalismo, um importan-
Livros, aquando da transformação deste te instrumento de contenção das Luzes
organismo na censura tripartida – Santo do século e de combate a elas. Conside-
Ofício da Inquisição, Ordinário e Mesa rado o seu recurso pouco pertinente,
do Desembargo do Paço –, por lei de porque pouco necessário, no período
D. Maria I, de 17 de dezembro de 1794, pré-pombalino, tornou-se muito intenso
descobriu-se, a par de outros exemplares a partir da segunda metade do séc. xviii.

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Assentou no protagonismo assumido Pedreiros­‑Livres, Cartas de Certa Mãe a Seu Fi-


pelos espaços religioso e civil – mais no lho, O Evangelho em Triunfo, A Voz da Natu-
protagonismo do primeiro – face à luta reza sobre a Origem dos Governos, entre mui-
premente que se impôs entre o religioso tas outras). Apesar do cuidado posto na
e o secular, entre a teologia e a filosofia, escolha das obras, não se dispensou, e fre-
entre a autoridade e a razão, entre o dog- quentemente, a ação dos “limpa-nódoas”
matismo e a opinião, enfim, entre a Igre- militantes, com adaptações, supressões,
ja e o século. É que agora a heterodoxia acrescentos e até adulterações às escanca-
também alastrava em Portugal, alimenta- ras e sem restrições. Mas há também obras
da sobretudo pelas novas ideias que pene- e autores da nação perfilados neste com-
travam através da literatura, acalentando bate: Francisco Coelho da Silva, França
curiosidades, inconformismos, desejos, e Galvão, Pedro Lopes, Agostinho de Mace-
até necessidades. Na Diocese de Coimbra, do, Lourenço Roussado, Francisco Leal,
e.g., antes de 1768 difundiam-se Rousseau, José Mayne, José Morato, José António de
Voltaire, Helvécio, d’Holbach, d’Argens, Sá, Teodoro de Almeida, António Soares
Hume, Marmontel, Dupin, Febrónio e a Barbosa, Mesquita de Quadros, o marquês
Encyclopédie, como atesta o seu bispo, Mi- de Penalva. A par disto, assistiu-se à ação
guel da Anunciação. Todos liam o proi- prescritiva, coativa, apelativa, pedagógica,
bido – sobretudo o proibido –, adquiri- punitiva e tremendamente eficaz do cor-
do muitas vezes após consulta dos róis e po eclesiástico – cardeais, bispos, vigários
editais de proibição. Existiam, até, escolas apostólicos, padres, frades –, em pastorais,
clandestinas de heterodoxia. E, muitas ve- na parenética, durante confissões e outros
zes, quando se lia a literatura apologética misteres. É certo que alguns exibiam uma
da ortodoxia era para, por via negativa, certa abertura à mudança, ainda que con-
contactar com a heterodoxia que lá se tida, sendo admoestados ou até persegui-
combatia, conhecê-la e entendê-la. dos por isso; mas a maioria mostrava-se
Ora, urgia contraditar, ao nível das inflexivelmente fechada numa ortodoxia
ideias, as impiedades, as heresias e os li- anacrónica.
bertinismos religiosos, morais e políticos A Inquisição foi banida de Portugal em
que avassalavam as mentes e a nação. março de 1821, e a Constituição de 1822
Era, contudo, exíguo o número dos indi- consagraria a “livre comunicação dos pen-
víduos apetrechados para tal. Eis a razão samentos” como “um dos mais preciosos
da fertilidade do recurso às obras estran- direitos do homem […] sem dependência
geiras. Elas constituíram a base mais só- de censura prévia” (art. 7.º). Com inter-
lida e abrangente para a preparação e a regnos até 1834, a liberdade de imprensa
consecução do combate aos “novadores tornar-se-ia definitiva a partir desta data.
do século”. Todas as obras significativas Tão longo e violento período de vigência
para esse efeito estavam disponíveis em deste e de outros organismos ou formas de
Portugal, como transparece das listas de inibição e repressão estiolou tanto a cria-
existências. As mais importantes recebe- ção como o florescimento da intelectuali-
ram o benefício da tradução, para facili- dade portuguesa. É certo que, apesar de
tar a sua difusão e alargar a sua eficácia: tudo, muitas fendas se abriram no muro
as de Bergier, Barruel, Formey, Caraccioli, que isolava Portugal, muito preito se fez às
Gérard, Jamin, Lamennais, Montals, Non- Luzes, e algumas brilharam – mas foram
notte, Burke, Peñalosa, mas também as de apoucadas e muito esforçadas e sofridas.
autores anónimos (e.g., Atalaia contra os Portugal foi, em grande escala, um país de

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estrangeirados, que cavou uma enorme ra europeia (sécs. xvi a xviii)”, Biblos, vol. xxviii,
distância da circunstância europeia além­ 1953, sep.; FRANCO, Francisco de Melo, Rei­
‑Pirenéus. E é claro que esta “fatalidade”, no da Estupidez. Poema, Paris, A. Bobée, 1818;
embora situada no tempo, deixou marcas GARRETT, Almeida, Obra Política. Escritos do
Vintismo (1820-1823), Lisboa, Estampa, 1985;
que se manifestavam ainda nos começos
HERCULANO, Alexandre, História da Origem e
do séc. xxi. O “país de cafres”, de acordo Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 3 vols.,
com o desabafo de Vieira (VIEIRA, 1970, Amadora, Bertrand, 1975; JOSÉ II, Pastoral
177) no séc. xvii, continuou a ser tido, no sobre a Defesa da Fé, Lisboa, Officina de Anto-
séc. xviii, como “cadaveroso reino” por nio Rodrigues Galhardo, 1789; MACHADO,
Ribeiro Sanches (SANCHES, s.d., 78), Fernando Augusto, Rousseau em Portugal. Da
ilustre exilado, e como “reino da estupi- Clandestinidade Setecentista à Legalidade Vintista,
dez” (FRANCO, 1818), refletido na nossa Porto, Campo das Letras, 2000; MARQUES,
Maria Adelaide Salvador, “A Real Mesa Cen-
universidade, pelo estudante Melo Franco
sória e a cultura nacional. Aspectos da geo-
(1881), depois famoso médico. Também grafia cultural portuguesa no século xviii”,
assim o apodaram, já no séc. xx, Antó- Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra,
nio Sérgio, seguindo Sanches, e Jorge de vol. xxvi, 1963, sep.; Id., “Pombalismo e cultu-
Sena, seguindo Franco. Sempre ao abrigo ra média – Meios para um diagnóstico através
da mesma razão: o fado anti‑Luzes. da Real Mesa Censória”, Brotéria, vol. 115,
n.os 2-4, ago.-out. 1982, pp. 181-208; MAR-
TINS, A. Coimbra, “Luzes”, in SERRÃO,
Bibliog.: manuscrita: ANTT, Real Mesa Cen- Joel  (dir.), Dicionário de História de Portugal,
sória, Censuras e Pareceres, cx. 3, n.º 22, vol.  iv, Porto, Figueirinhas, s.d., pp.  86­‑106;
Livros de Authores Estrangeiros Que Devem Ser RAMOS, Luís A. de Oliveira, Sob o Signo das
Prohibidos por Edital, s.d.; Ibid., Real Mesa Cen- “Luzes”, Lisboa, INCM, 1988; REGO, Raul,
sória, Censuras e Pareceres, cx. 3, n.º 23, Juizo Os Índices Expurgatórios e a Cultura Portuguesa,
sobre os Authores Impios, e Obscenos Que Devem Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portu-
Ser Condenados, ou pelo Index, ou pelo Edital desta guesa, 1982; RODRIGUES, Graça Almeida,
Real Meza, Precedido de Alguas Reflexões sobre a Breve História da Censura Literária em Portugal,
Condenação, e Queima dos Livros, s.d.; impressa: Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portu-
ALMEIDA, Teodoro de, “Oração na abertura guesa, 1980; SANCHES, A. N. Ribeiro, Dificul‑
da Academia das Sciencias em 1 de julho de dades Que Tem Um Reino Velho para Emendar-se e
1780”, in AIRES, Cristóvão, Para a História da Outros Textos, ed. lit. Vítor de Sá, Porto, Inova,
Academia das Sciências de Lisboa, Coimbra, Im- s.d.; SENA, Jorge de, O Reino da Estupidez, Lis-
prensa da Universidade, 1927, pp. 94-104; boa, Livraria Morais, 1961; SÉRGIO, António,
AZEVEDO, João Lúcio de, O Marquês de Pom‑ “O reino cadaveroso ou o problema da cultu-
bal e a Sua Época, Lisboa, Clássica Editora, ra em Portugal”, in SÉRGIO, António, Ensaios,
1909; BAIÃO, António, Episódios Dramáticos da t. ii, Lisboa, Sá da Costa, 1972, pp. 25-57; SIL-
Inquisição Portuguesa, 3.ª ed., 3 vols., Lisboa, VA, António Delgado da (comp.), Supplemento
Seara Nova, 1972-73; BRAGA, Teófilo, Bocage. á Collecção de Legislação Portugueza do Desembar‑
Sua Vida e Época Literária, Porto, Imprensa Por- gador Antonio Delgado da Silva pelo mesmo. Anno
tuguesa Editora, 1876; Id., História da Universi‑
de 1763 a 1790, Lisboa, Typ. de Luiz Correa
dade de Coimbra nas Suas Relações com a Instrução
da Cunha, 1844; TRACY, Antoine L. Claude
Pública Portugueza, 4 t., Lisboa, Typographia
Destutt de, Eléments d’Ideologie, Paris, Cour-
da Academia Real das Ciências, 1898-1904;
cier, 1804; VIEIRA, António, Cartas, coord. e
CARRÈRE, J. B. F., Tableau de Lisbonne, en 1796;
anot. J. Lúcio de Azevedo, t. iii, Lisboa, INCM,
Suivi de Lettres Écrites de Portugal sur l’État Ancien
1970; VOLTAIRE, “Newton et Descartes”, in
et Actuel de Ce Royaume, Paris, H. J. Jansen,
VOLTAIRE, Oeuvres Complètes de Voltaire, t. viii,
1797; COELHO, António Borges, Inquisição de
Paris, Furne, 1836, pp. 88-89.
Évora, 2 vols., Lisboa, Caminho, 1987; DIAS,
José Sebastião da Silva, “Portugal e a cultu- Fernando Augusto Machado

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Libertários 2137

Libertários que exprimem relativamente à lei, en-


quanto elemento coercitivo e normaliza-
dor, e aos sistemas governamentais.
O pensamento anarquista começou
provavelmente a dar que falar a partir
do diálogo em que, provocatoriamente,
Proudhon se autodefine: “O senhor é

S ão libertários aqueles que defendem


a filosofia política e social do liberta-
rismo, cujas raízes assentam no séc. xix.
democrata? – Não. – Constitucionalis­
ta? – Deus me livre! – Você é, portanto, aris-
tocrata? – De maneira nenhuma! – Você
Os libertários procuram introduzir na po- defende um governo misto? – Menos ain-
lítica a noção de que o Homem deve ser da. – Então o que é o senhor? – Eu sou
encarado antes de mais como um indi- anarquista” (PROUDHON, 1966, 296).
víduo autónomo, capaz de assumir deci- Proudhon era um homem que gostava
sões individuais e de escolher, à margem de expressões fortes, que percutiam in-
do que o sistema vigente lhe propõe, um tensamente as ideias feitas do seu tempo.
rumo para a sua vida, não constrangido Porém, apesar de Marx ter procurado
por qualquer tipo de autoridade e não menorizar (e quase ridicularizar) o pen-
interferindo, do mesmo modo, com a es- samento deste autodidata francês, a sua
fera alheia. obra económica, política e mesmo filo-
Tendo o movimento libertário como sófica iluminou os debates ideológicos
origem o socialismo anarquista, devere- do séc. xix, alguns dos quais discutiram
mos, no entanto, sublinhar que o liberta- problemas ainda hoje pertinentes. Ora,
rismo é uma noção plural, com vertentes Proudhon empregou a maior parte do
muito distintas e em alguns aspetos opos- seu tempo propondo formas radicais de
tas, existindo manifestações que se desig- renovação da sociedade em que vivia,
nam como libertárias por referência aos mas, simultaneamente, práticas, credíveis
princípios fundamentais do liberalismo e equilibradas: vejam-se os exemplos das
clássico, que propõem a recusa de todo suas posições perante a Revolução Repu-
o tipo de ideologias comuns, promoven- blicana de 1848 e o apoio a candidaturas
do a igualdade dos indivíduos em termos eleitorais operárias durante o consulado
de circunstâncias, de acordo com uma de Napoleão III, numa altura em que to-
lógica social, política e económica de li- dos pareciam fascinados pela grandeza
vre concorrência; e um modelo de liber- do novo império. Daí o facto de ser consi-
tarismo mais próximo de ideais socialis- derado um revolucionário, mas também
tas, que procura condicionar o próprio um reformador.
sistema capitalista e impor um centralis- Esta tensão original entre radicalismo
mo político mínimo, no caso dos minar- e pragmatismo vai prosseguir ao longo
quistas, ou mesmo abolir todas as formas de um século, pelo menos, na história
de governo, no caso das manifestações do movimento anarquista internacional.
anarquistas. O denominador comum de Outro exemplo eloquente do mesmo
todas estas noções reside na apologia da contraste encontra-se em Kropotkine,
liberdade individual como valor acima ou entre o Malatesta ousadamente revo-
de todos os constrangimentos e de todas lucionário e insurreto ao longo da maior
as autoridades, distinguindo-se depois os parte da sua vida e o Malatesta da matu-
movimentos pelo grau de desconfiança ridade, quando observou o fracasso das

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dirigentes e possidentes a entrarem em


igualdade de condições com o povo, na
tarefa de construção de uma sociedade
nova, feita de indivíduos livres e guiada
por princípios de solidariedade humana.
Esta visão otimista e positiva da bondade
das soluções propostas pelo anarquismo
tinha alguma correspondência na dos
defensores (sobretudo franceses) da pro-
paganda pelo facto – estes, porém, des-
crentes da eficácia da educação escolar,
da leitura e dos discursos proselitistas,
mas acreditando que, removidos alguns
obstáculos (por condenação à morte de
governantes e atemorização dos podero-
sos), as massas trabalhadoras assumiriam
com evidência o caminho da revolução
Errico Malatesta (1853-1932). social.
Assim se foi construindo entre certos
revoluções na Rússia e em Itália após segmentos do militantismo acrata a fixa-
1917 (e assistiu aqui ao advento do fas- ção de objetivos que, pela negativa, consti-
cismo de massas). O sindicalismo revo- tuíam a seu ver os principais impedimen-
lucionário francês e americano do início tos à “emancipação dos trabalhadores”
do séc. xx pode também ser visto como (conforme a expressão gravada no lema
uma tentativa interessante de operacio- da primeira Associação Internacional dos
nalizar os dois conceitos – a ideia de uma Trabalhadores, de 1864). Três desses obs-
rutura fundamental nos valores sociais táculos históricos foram objeto de uma
vigentes e uma preocupação de assun- quase unanimidade entre a larga varie-
ção de práticas promotoras de relações dade de tendências libertárias: o Estado
de sentido emancipatório entre os indi- (visto como uma instituição de opressão
víduos – através da ação quotidiana de e domínio de uns poucos sobre a gran-
associações de produtores guiadas pela de maioria da população de uma nação),
entreajuda, o envolvimento de todos os o capitalismo (enquanto mecanismo de
seus membros e a recusa do tribunismo exploração do trabalho pelos detentores
e do oficialismo. de propriedades produtivas) e as Igrejas
O movimento anarco-sindicalista espa- (que em geral justificavam as injustiças
nhol, pelo contrário, tendeu sempre a pri- existentes e as consagravam, em nome
vilegiar a perspetiva da insurreição eman- de um Deus suposto). Assim nasceram os
cipatória que, num acesso de entusiasmo três antis fundamentais que deram base
coletivo, procedesse à “liquidação social” doutrinária ao anarquismo: o antiestatis-
(como se escrevia por volta de 1890), i.e., mo (&Antiestatismo), o anticapitalismo
a “pôr a zeros” todo o contencioso his- (&Anticapitalismo) e o antiteologismo.
tórico das desigualdades económicas e Seria interessante investigar até que
sociais, resgatando as iníquas memórias ponto, nos processos de difusão social,
do passado e convidando (ou forçando, estas oposições conflituais propiciam
em caso de resistência) as antigas classes uma maior expansão de uma doutrina ou

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teoria, em alternativa a outras posições


mais viradas para o consenso, a tolerância
e a cooperação. Contudo, não há dúvida
de que escritos panfletários como Deus e o
Estado, de Bakunin (1871), tiveram muito
mais sucesso entre os ativistas posteriores
(e, simultaneamente, foram alvo de uma
oposição mais feroz) do que o Apoio Mú-
tuo, de Kropotkine (1902). Assim sendo,
o movimento anarquista tornou-se mais
conhecido pelas negações que propa-
gandeava e pelas ações violentas pratica-
das por alguns dos seus adeptos (muitas
vezes com a complacente hesitação de
muitos dos seus correligionários) do que
pelas propostas construtivas e iniciativas
benfazejas para a condição humana em
que também se empenharam inúmeros Piotr Kropotkine (1842-1921).

dos seus proselitistas. Mesmo a crítica ao


Estado moderno existente nos sécs. xix aos sistemas judiciais autoritários, ambos
e xx poderia ser mais compreensiva se muito marcados por aquilo que haviam
fosse acompanhada das alternativas de sido as experiências históricas mais re-
participação cidadã, controlo do poder e cuadas e que ainda predominaram até
federalismo que os ideólogos anarquistas ao dealbar do séc. xx. Do anticapitalismo
haviam também elaborado. E o mesmo se resultou um excesso de poder social do
diga das lutas anticapitalistas – destaque­ sindicalismo quando, sem que aos anar-
‑se, e.g., o americano Benjamin Tucker e a quistas tal possa ser imputado, passou a
defesa do anarquismo individualista, Tu- predominar o corporativismo e a moti-
cker que traduziu pela primeira vez para vação do “sempre mais poder aquisitivo”
inglês O Único e a Sua Propriedade, obra (Samuel Gompers), ou a sua instrumen-
escrita em 1845 por Max Stirner, que talização, onde vingou o modelo da “cor-
concebia o indivíduo como único e pro- reia de transmissão” leninista, Lenine
prietário de si próprio, assim liberto de que vivera obcecado com a perspetiva da
toda a autoridade alheia – e da crítica ao tomada do poder político. Do antiteo-
fenómeno religioso, com a indispensável logismo, promanou o anticlericalismo
referência a Tolstoi. (&Anticlericalismo) (compreensivelmen-
Nestas circunstâncias, aqueles três antis te, se pensarmos no séc. xix), que deu
fundamentais facilmente se desdobraram base ao avanço das maçonarias.
em outras oposições mais particulares. O caso do anarquismo português não
Da crítica ao Estado, derivou o antielei- foi substancialmente diferente dos con-
toralismo, o antiparlamentarismo (&An- tornos aqui enunciados, tendo em conta
tiparlamentarismo) e o antipartidarismo a preponderância tomada pelo sindica-
(&Antipartidarismo) – tudo processos lismo revolucionário, com alguns aflo-
que ainda hoje levantam problemas não ramentos de radicalismo individualista
resolvidos; e derivou também o antimi- e insuficiente extensão do educacionis-
litarismo (&Antimilitarismo) e a crítica mo – próximos de uma tendência mais

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2140 Libertários

Segundo o historiador António Ventu-


ra, a constituição da secção portuguesa da
Associação Internacional dos Trabalhado-
res, em 1871, é um marco fundamental
para a história do movimento anarquista
e libertário em Portugal; para além disso,
a presença do anarquista Elisée Reclus
em Portugal, em 1886 e 1887, terá ajuda-
do a dividir os socialistas portugueses em
sociais-democratas e anarquistas. Ventura
afirma, contudo, que “os nossos autores
foram, regra geral, meros retransmisso-
res de ideias deficientemente assimila-
das, marxistas que nunca leram Marx e
anarquistas que conheceram Bakunin e
Max Stirner (1806-1856). Kropotkine através das brochuras de pro-
paganda espanholas ou francesas” (VEN-
avançada do nosso republicanismo, que TURA, 2000, 79).
soçobrou com a ditadura militar e o Uma das facetas mais vincadas do
salazarismo. movimento libertário português foi a
O termo “libertário” surge dicionariza- constituição de grupos ou agrupamen-
do, provavelmente pela primeira vez em tos anarquistas libertários. Os primeiros
Portugal, em 1906, na Encyclopedia Portu- agrupamentos anarquistas portugueses
gueza Illustrada. Diccionario Universal, de foram o Grupo Comunista Anarquista
Maximiano Lemos, com a seguinte defi- O Revoltado, de Lisboa, e o Grupo Co-
nição: “Partidário da liberdade absoluta, munista Anarquista do Porto, formados
da abolição de toda a lei, de todo o gover- ambos em 1887, seguidos por muitos
no. O mesmo que anarquista” (LEMOS, outros. Entre 1893 e 1895, os libertários
1906, 470). começaram também a chegar às bases das
Um dos principais doutrinários portu- associações de classe, ou seja, a organis-
gueses do pensamento libertário no início mos criados autonomamente pelos dife-
do séc. xx foi Campos Lima. O seu contri- rentes ramos profissionais do operariado
buto para a teorização dos ideais anarquis- para defesa e proteção dos seus interes-
tas e libertários fortaleceu-se na primeira ses, seja porque eram operários, seja por-
vintena do séc. xx, com a publicação de que eram intelectuais que iam aderindo
A Revolução em Portugal (coletânea de tex- à causa específica da libertação do ope-
tos que incluía um capítulo e um subcapí- rariado. O grupo Germinal, fundado em
tulo dedicados aos libertários, bem como 1903 (Setúbal), durou até aos primeiros
a apresentação completa de um programa anos da Primeira República, tendo ou-
revolucionário) e a brochura A Teoria Liber- tro grupo homónimo sido fundado em
tária ou o Anarquismo. Juntam-se a Campos Lisboa, em 1915, mas durado apenas até
Lima, como intelectuais do libertarismo 1917. Por sua vez, o grupo Semeador este-
português, Silva Mendes, autor da obra ve em atividade de 1923 a 1927.
Socialismo Libertario ou Anarchismo: Historia Um importante grupo de divulgação
e Doutrina, e Eduardo Maia, com o livro Da das ideias libertárias foi o Grupo de Pro-
Propriedade (1873). paganda Libertária do Porto, criado em

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Libertários 2141

1904 e que existia ainda em 1925. Por


ele passaram militantes como Serafim
Cardoso Lucena, Manuel Joaquim de
Sousa, António Alves Pereira, Guilherme
Moreira Alves e outros, estando associado
a jornais libertários como A Vida, A Au-
rora, A Comuna. Efetivamente, também a
imprensa libertária era muito importante
para a divulgação dos ideais, destacando­
‑se os jornais Revolução Social (1887-88),
O Libertário (1895, com apenas um núme-
ro, sob a direção de Francisco Machado
Fontão), Propaganda (1895), A Ideia: Folha
do Socialismo Libertário (1902, dirigido por
Luís A. Gouveia), O Libertário: Semanário
de Propaganda Livre (1912-14, cujo dire- Samuel Gompers (1850-1924).
tor era António Sousa Palma), A Revolta:
Órgão da Federação Anarquista da Região do abrandou consideravelmente em relação
Sul (1913-18), sem esquecer A Sementeira às décadas anteriores. Aliás, tal atividade
(1908-17). Nos anos 70 e 80 do séc. xx, durante todo o período em que durou
surgiram publicações importantes, em este regime está ainda por conhecer em
Portugal e noutros países, mas por ini- pormenor.
ciativa de indivíduos e grupos libertários O movimento anarquista libertário
portugueses, como A Batalha (1974, ante- exerceu, mais do que se possa imaginar,
riormente publicada entre 1919 e 1927, uma contundente influência na forma de
mantendo alguns números clandestinos repensar a sociedade portuguesa, espe-
entre 1927 e 1974, ano em que regressa cialmente entre os anos de 1886 e 1936,
legalmente), Portugal Libertário (Meaux, conforme indica Carlos da Fonseca, não
1975), Satanás (Almada, 1976), Sabotagem apenas por ter provocado agitação com as
e Subversão Internacional (Lisboa, 1976) ou suas ações mais ou menos violentas con-
A Revolta (Leiria, 1986). tra as várias instituições e formas de auto-
Durante as primeiras décadas do séc. xx, ridade, mas também no campo das ideias,
as principais cidades do país criaram tam- deixando um legado no pensamento so-
bém federações ou uniões anarquistas e cialista antiautoritário português.
libertárias, à maneira de superestruturas De tudo isto se pode talvez concluir
capazes de dar uma unidade à atividade que, no plano do pensamento, as dou-
libertária: uma das primeiras foi a Fede- trinas anarquistas – de resto, como a
ração Socialista Livre (1902-1906); desta- maior parte das suas contemporâneas
cam-se ainda a Federação Anarquista da – procuraram articular uma visão crítica
Região do Norte (1907-1914), a União de certos aspetos da realidade histórica
Anarquista Portuguesa (1923­‑1927) e a que julgavam imperativo e urgente mo-
Aliança Libertária, fundada em 1931 e dificar profundamente, com modelos
que sobreviveu, em modo semiclandesti- conceptuais alternativos nos quais (como
no, durante os anos 30 e o Estado Novo. militantes sinceros e empenhados) acre-
Com o Estado Novo, no entanto, o rit- ditaram piamente, mas que em muitos ca-
mo de fundação e a atividade libertária sos não terão resistido ao confronto com

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a realidade. Essa é, porém, uma lição que


só os analistas posteriores foram capaz de
Libertinos
entender com clareza, já usufruindo de
condições suficientes de liberdade e bem­
‑estar para a tal se poderem dedicar sem
grandes constrangimentos.
Porém, no plano das percepções pú-
blicas, é plausível pensar que os ideais
libertários – indubitavelmente marcados
por valores de justiça e dignidade huma-
A diversidade de significados que o ter-
mo “libertino” tem conhecido, assim
como os diferentes contextos em que foi
na – tenham ficado prejudicados pelas utilizado ao longo dos tempos, dificultam
imagens de negação contidas nos dis- uma definição concisa do mesmo. No
cursos e em certos tipos de ação política. entanto, é possível encontrar um nexo
É, porventura, uma situação que ainda comum a partir da sua origem etimológi-
hoje perdura. ca, a palavra latina “libertinus”. Observa
Pierre Marlière que “l’étymologie latine
du nom a le mérite de nous renseigner sur
Bibliog.: CHORÃO, Luís Bigotte, Para Uma l’essence du libertinage. On découvre en
História da Repressão do Anarquismo em Portugal son cœur l’idée directrice de liberté qui
no Século XIX Seguido de “A Questão Anarquista” implique le passage d’un état à un autre,
de Bernardo Lucas, Lisboa, Letra Livre, 2015;
celui d’esclave à homme libre. Il y a à la
FONSECA, Carlos da, Para Uma Análise do
Movimento Libertário e da Sua História, Lisboa, racine du libertinage le principe premier
Antígona, 1988; FREIRE, João, “Os agentes d’affranchissement, un libertin serait
da ação libertária”, in FREIRE, João, Anarquis‑ donc avant tout un individu qui a su bri-
tas e Operários. Ideologia, Ofício e Práticas Sociais: ser les chaînes qui l’entravaient. Le dérè-
O Anarquismo e o Operariado em Portugal, 1900­ glement des mœurs qu’on lui attribue de
‑1940, Porto, Afrontamento, 1992, pp. 259­ nature n’est en fait que la conséquence
‑304; LEMOS, Maximiano, “Anarchismo”,
directe de cette double libération, autant
in Encyclopedia Portugueza Illustrada. Diccionario
Universal, vol. i, Porto, Lemos & C.ª, Sucessor, de corps que d’esprit [a etimologia latina
1900, p. 296; Id., “Libertario”, in Encyclopedia do nome tem o mérito de nos esclarecer
Portugueza Illustrada. Diccionario Universal, vol. vi, quanto à essência da libertinagem. Des-
Porto, Lemos & C.ª, Sucessor, 1906, p. 470; cobrimos no núcleo da mesma a ideia di-
LIMA, Campos, A Revolução em Portugal, Lisboa, retora de liberdade, que pressupõe a pas-
Edições Spartacus, 1925; Id., A Teoria Libertá‑
sagem de um estado a outro, do estado
ria ou o Anarquismo, Lisboa, Edições Spartacus,
1926; MENDES, Silva, Socialismo Libertario ou de escravo ao de homem livre. Na raiz da
Anarchismo: Historia e Doutrina, s.l., s.n., 1896; libertinagem, encontra-se o princípio pri-
PALMER, Tom,  Realizing Freedom. Libertarian meiro da libertação, pelo que um liberti-
Theory, History, and Practice, Washing­ton, Cato no é, antes de mais, um indivíduo que foi
Institute, 2009; PROUDHON, Pierre-Joseph, capaz de quebrar as cadeias que o limita-
Qu’Est-Ce Que la Propriété?, Paris, Garnier­ vam. O desregramento de costumes que
‑Flammarion, 1966; VENTURA, António,
Anarquistas, Republicanos e Socialistas em Portugal:
se lhe atribui por natureza mais não é, na
as Convergências Possíveis (1892-1910), Lisboa, verdade, do que uma consequência dire-
Cosmos, 2000. ta desta dupla libertação, tanto do corpo
João Freire como do espírito]” (MARLIÈRE, 2014,
Ana Catarina Rocha 10). Salientemos nesta definição, como
Rui Sousa em boa parte dos sentidos que o termo

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Libertinos 2143

conheceu no seu percurso, aspetos como


o impulso consciente para uma determi-
nada libertação, o carácter crítico e des-
construtivo de valores consagrados, a sua
vertente espiritual (e portanto, em de-
terminadas derivas, filosófica e artística)
e a posterior cristalização em torno dos
domínios do erótico, do pornográfico e
do obsceno. Este último sentido, longe
de corporizar a amplitude complexa do
conceito, é aquele que conhece particu-
lar expansão nos começos do séc. xxi, em
torno de reduções como a que identifica
Guillaume Apollinaire (1880-1918).
a libertinagem com a arte da sedução cal-
culista conforme expressa nos romances
libertinos do séc. xvii (de que Les Liaisons to (a libertas philosophandi dos libertinos
Dangereuses, de Choderlos de Laclos, seria eruditos estudados por René Pintard);
o grande exemplo, de acordo com a recu- o da liberdade de costumes, coincidente
peração novecentista de Roger Vailland); com a oposição aos dogmas religiosos e
está portanto relacionado com o violento com um entendimento essencialmente
exercício de derrisão comportamental e materialista da natureza humana; o da
sexual da obra do marquês de Sade, so- liberdade política, aspeto em que coin-
bretudo depois das releituras iniciadas, cide com estudiosos como Sergio Zoli,
no começo do séc. xx, com Guillaume Juan Velarde Fuertes e Péter Nagy, que
Apollinaire e prosseguidas pelo surrealis- pensam os diferentes sentidos da contri-
mo e por uma série de importantes filóso- buição libertina para o desenvolvimento
fos e teóricos da literatura, como Georges do conceito de razão de Estado na França
Bataille, Pierre Klossowski, Maurice Blan- de Richelieu, para a construção política,
chot, Jean-Jacques Pauvert, Roland Bar- social e económica da Europa moderna e
thes, Michel Foucault, Gilles Deleuze ou para o percurso ideológico que conduziu
Michel Onfray; ou com a associação entre ao contexto da Revolução Francesa; e, fi-
o comportamento libertino e o contexto nalmente, no domínio da literatura, a li-
da contracultura da segunda metade do berdade de procedimentos estéticos, que
séc. xx, em torno do imaginário da músi- corrobora considerações como a de Agos-
ca rock, da geração beatnik norte-america- tinho de Campos a respeito da anomalia
na e do movimento hippie. representada pelo soneto libertino. É de
Na Histoire du Libertinage, obra na qual reter também, quanto à atitude de opo-
Didier Foucault procura evidenciar as sição ao cristianismo, que será provavel-
raízes profundas da libertinagem, que mente a primeira preocupação sistemáti-
começa a manifestar-se com particular ca do pensamento libertino, a importante
impacto cultural a partir da transição do distinção que Didier Foucault estabelece
séc. xvi para o séc. xvii, o autor defende entre o conceito de libertino e outros
que a libertação procurada pelos liberti- conceitos que lhe poderiam parecer pró-
nos remete para os mais diversos domí- ximos, como os de herético e de pecador,
nios, entre os quais os da liberdade de pois, por um lado, não existe na ofensi-
consciência e da liberdade de pensamen- va libertina contra os interditos morais

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2144 Libertinos

e ideológicos do cristianismo qualquer como se impõem, no espelho invertido


intenção ou propósito de corrigir supos- destas alteridades, formas de identidade
tos desvios doutrinários e, por outro, a re- positiva, elas próprias necessariamente
sistência libertina é típica dos esprits forts, trabalhadas e afetadas pela alteridade li-
que assumem moral e intelectualmente a bertina]” (CAVAILLÉ, 2010, 24). Neste
sua dissidência. sentido, a alteridade libertina foi desli-
A pluralidade dos comportamentos, zando para designar, em momentos dis-
indivíduos e grupos que receberam o tintos, as igrejas protestantes; determina-
epíteto de libertinos, evidenciando a na- das derivas no interior do calvinismo; o
tureza de negativo por excelência que lhe pensamento de alguns filósofos hetero-
subjaz, está na base de outra considera- doxos italianos do séc. xvi, como Vanini
ção importante de Jean-Pierre Cavaillé, ou Giordano Bruno; o comportamento
um dos mais persistentes estudiosos da de seitas epicuristas inglesas do séc. xvii,
libertinagem nos começos do séc. xxi: como os Ranters; os pensadores dissiden-
“‘libertin’ est une qualité extrinsèque tes franceses seiscentistas, como Cyrano
aux sujets qu’il étude, une qualification de Bergerac, assim como os desregra-
externe à visée polémique, produite dans mentos comportamentais e sexuais da
les discours contemporains. Le libertin juventude aristocrática francesa no mes-
n’est libertin que dans un contexte social mo período, sendo o poeta Théophile de
qui le désigne comme tel. Pour envisa- Viau um icónico representante dos dois
ger une analyse sociale du libertinage, domínios; uma determinada expressão li-
il faut accepter de considérer qu’il n’est terária concretizada num discurso roma-
pas l’état d’esprit spécifique de ceux que nesco erótico e satírico com impacto no
l’on appelle ainsi, mais la manière dont decorrer do séc. xviii, em autores como
est à la fois perçue et construite sociale- Choderlos de Laclos, Crébillon Fils ou,
ment, dans le conflit et la dénonciation, na sua peculiaridade, Sade; ou mesmo as
une forme d’altérité négative. Il convient posturas heterodoxas de personalidades
d’être autant attentif à la manière dont singulares como lord Byron, Oscar Wilde,
s’imposent, dans le miroir inversé de ces Jean Genet e Pier Paolo Pasolini. Luiz Pa-
altérités, des formes d’identité positive, checo, em “O Sade aqui entre nós”, publi-
elles-mêmes nécessairement travaillées, cado em 1966 na controversa edição de
affectées par l’altérité libertine [libertino A Filosofia na Alcova, acentua a dimensão
é uma qualidade extrínseca aos sujeitos performativa que é própria da polémica
que estuda, uma qualificação externa de transgressão existencial dessas personali-
alcance polémico, produzida nos discur- dades: “[O libertino] é o que faz da sua
sos contemporâneos. O libertino só o é vida amorosa um espetáculo – por atitu-
num contexto social que o designa como des, palavras ou escritos; é o que gosta
tal. Para proceder a uma análise social da dela, em suma, por isso o proclama” (PA-
libertinagem, é preciso primeiramente CHECO, 1966, 18).
considerar que ela não é o estado de es- Implicado num permanente quadro de
pírito específico daqueles que são assim relações especulares, o libertino seria as-
designados, mas a maneira como é simul- sim o equivalente ao contexto do outro
taneamente percecionada e construída negativo das consolidações culturais de
socialmente, no conflito e na denúncia, cada momento, contribuindo para cin-
uma forma de alteridade negativa. Con- dir a realidade entre dois conjuntos de
vém prestar a mesma atenção à forma indivíduos consoante o seu suposto grau

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Libertinos 2145

de consciência ou de libertação relativa- de suportar a condição de ser livre sem


mente aos dogmas e mitos cristalizadores. experimentar a angústia inerente à li-
A tese defendida por José Cardoso Pires berdade. Nem desprezível nem sublime,
em A Cartilha do Marialva (1960), e.g., a existência humana pode ser vivida em
deriva desta segmentação, que no caso função do prazer, como simples jogo de
português seria entre o tradicionalismo possibilidades combinatórias, se nunca se
católico, machista, rural e antiprogres- perder de vista o nada que esvazia as ca-
sista dos marialvas e a atitude calculista, tegorias da ética e da moral, que destrói
sexualmente igualitária, empreendedo- o mundo das hierarquias e dos símbolos.
ra e cosmopolita dos libertinos. É nesse É precisamente nesta ausência radical de
sentido que Giovanni Lista, no livro Dada pathos que o dadá se afasta da realidade
Libertin & Libertaire, procura estabelecer histórica da anarquia e das vanguardas,
a relação direta entre o carácter negati- colocando-se do lado do trabalho crítico
vo da contestação libertina seiscentista dos libertinos que foram os fundadores
e o programa dissidente do movimento do pensamento negativista no seio da cul-
dadaísta, salientando as diferenças en- tura europeia. Efetivamente, o dadaísmo
tre este movimento e as outras vanguar- aparece como o único movimento liber-
das históricas das primeiras décadas do tino da vanguarda histórica]” (LISTA,
séc. xx: “Le nihilisme dadaïste se concré- 2005, 210).
tise plutôt dans une philosophie du com-
portement et dans uns conception totale-
ment mondaine de l’art et de la vie: Dada
envisage de rendre l’homme enfin ca-
pable de supporter la condition de l’être
Bibliog.: CAMPOS, Augusto de, Estudos sobre
libre sans éprouver l’angoisse inhérente o Soneto. Três Conferências, Coimbra, Coimbra
à la liberté. Ni méprisable, ni sublime, Editora, 1936; CAVAILLÉ, Jean-Pierre, “Liber-
l’existence humaine peut être vécue en tinisme et philosophie: catégorie historiogra-
fonction du plaisir, comme un simple jeu phique et usage des termes dans les sources”,
des possibilités combinatoires, si l’on ne Libertinage et Philosophie au XVIIe Siècle, n.º 12,
perd jamais de vue le néant qui vide les 2010, pp. 11-32; FOUCAULT, Didier, Histoire
du Libertinage. Des Goliards au Marquis de Sade,
catégories de l’éthique et de la morale,
Paris, Éditions Perrin, 2010; FUERTES, Juan
qui détruit le monde des hiérarchies et Velarde, El Libertino y el Nacimiento del Capitalis‑
des symboles. C’est précisément dans mo, Madrid, Pirámide, 1981; LISTA, Giovan-
cette absence radicale de pathos que ni, Dada Libertin & Libertaire, Paris, L’Insolite,
Dada se sépare de la réalité historique 2005; MARLIÈRE, Pierre, Variations sur le Liber‑
de l’anarchie et des avant-gardes pour re- tinage. Ovide et Sollers, Paris, Gallimard, 2014;
joindre le travail critique des libertins qui NAGY, Péter,  Libertinage et Révolution, Paris,
furent les fondateurs de la pensée néga- Gallimard, 1975; PACHECO, Luiz, “O Sade
aqui entre nós”, in SADE, Marquês de, A Filo‑
tiviste au sein de la culture européenne.
sofia na Alcova, Lisboa, Edições Afrodite, 1966,
Le dadaïsme apparaît en fait comme le pp. 11-25; PIRES, José Cardoso, A Cartilha do
seul mouvement libertin de l’avant-gar- Marialva, Lisboa, Dom Quixote/Círculo de Lei-
de historique [O niilismo dadaísta con- tores, 1989; VAILLAND, Roger, Laclos: par Lui­
cretiza-se principalmente numa filosofia ‑Même, Paris, Seuil, 1959; ZOLI, Sergio, Dall’
do comportamento e numa conceção Europa Libertina all’Europa Iluminista, Firenze,
toralmente mundana da arte e da vida; Nardine Editore, 1997.
o dadá pretende tornar o homem capaz Rui Sousa

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Lisboa Capital pela junta de freguesia e a viabilização da


iniciativa pelo Programa Operacional da
do Nada Cultura. No centro de tudo, esteve a pro-
– Marvila 2001 blemática da visibilidade social e da par-
ticipação das pessoas num território do-
tado de ricos património e história, mas
sofrendo de uma imagem pública em
que surge como desqualificado, excluí-
do, negativo. Note-se que nesta zona da

L isboa Capital do Nada (LXCN), even-


to promovido pela Associação Extra]
muros[ em 2001, ostenta uma designação
cidade, que em tempos alimentou Lisboa
através dos seus campos e quintas (Qt. do
Armador, Qt. da Bela Vista…), a identi-
que é uma operação metafórica, poética dade semirrural – simultaneamente semi­
e performática. Traduzindo uma filosofia ‑industrial, dadas as muitas fábricas e os
de intervenção urbana e cultural, núcleos armazéns ali existentes desde a segunda
de argumentação claros e específicos esti- metade do séc. xix – estava a desapare-
mularam uma concatenação efémera de cer, para ceder o protagonismo aos novos
vontades e contextos numa plataforma bairros sociais (bairro do Armador, bair-
colaborativa, cujo culminar foi um con- ro da Bela Vista…), agentes de uma nova
junto de experiências que entraram em identidade. Esta, por sua vez, via-se sujei-
complexa ressonância com o lugar – a ta a fortes tensões, como a decorrente da
freguesia de Marvila. A força interpelati- pressão imobiliária visando a ocupação
va de LXCN começa na ironia romântica normalizada dos muitos espaços vagos.
do título – a cidade do Porto era Capital Perante tal realidade de enormes con-
Europeia da Cultura; em Lisboa, Expo’98 trastes, o que esteve em causa foi pensar
e Lisboa’94 eram memórias relativamen- o destino urbano de uma freguesia mar-
te remotas. O subtítulo completa o sen- ginalizada e revelar o seu vasto potencial,
tido de aforismo urbano do título, com inclusive humano. Sofrendo a população
o território oriental de Marvila – situado local de uma “condição urbana proble-
entre o centro (Baixa) e a nova centrali- mática e periférica”, causada por uma
dade que viria a ser a zona do Parque das “elevada especialização do solo” (NUNES
Nações – conceptualizado como um nada e SEQUEIRA, 2011), a lógica da imple-
na/da capital. mentação do evento – metaforicamente
A partir da consciência de que se estava derrubando muros – colocou questões de
em presença de um contexto em que a espaço público e estimulou uma ampla
arte se faria sentir entre o excedente e o reflexão tanto sobre as partes (caso das
privilégio, o programa da ação-interven- obras de arte) como sobre o todo (en-
ção funcionou de modo ostensivamen- quanto dinâmica sociocultural). Como
te retórico, gerando um potencial de num espelho gigante e multifacetado,
conversação sobre o sentido da arte na um campo da intervenção cultural urba-
cidade. Sob o mote “criar, debater e in- na tornou-se visível através de momentos
tervir no espaço público”, foram criadas colaborativos in situ, que auscultaram a
as condições para uma rara cooperação cidade existente – um espaço vasto e frag-
entre instituições, associações culturais, mentado – para nela encontrar aspetos
grupos informais e a comunidade artísti- ou elementos aos quais se impunha dar
ca, destacando-se o enquadramento local ênfase. Tal envolvimento na leitura dos

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“territórios do nada” (ALVES et al., 2002, des simbólicas e físicas da forma urbana
53), digamos que porosos e híbridos, (modelada pela planificação urbana dos
aliado à abrangência dos discursos coleti- anos 60 do séc. xx, e depois pelos progra-
vamente produzidos a partir do quartel­ mas e políticas de habitação dos anos 70),
‑general instalado no bairro da Flamenga, de maneira a que as principais peças se
assegurou ao evento o cariz de aconteci- constituíssem como gestos não apenas de
mento. Dado o grau de abertura à impon- interpelação e interação participatórias,
derabilidade do relacional – uma partilha mas também coreográficos ou de sinaliza-
de vivências –, “foram momentos raros” e ção. Esta espetacular tradução do tecido
um “convite de dois gumes incitando para urbano em inovadoras situações sociais
o abismo” (CAMPINO, 2006, 196). assentou na capacidade de o projeto es-
Projetos off como a LXCN tentam supe- tabelecer objetivamente premissas para
rar constrangimentos formais de campos
e disciplinas. No plano de uma generosi-
dade militante e em favor da indecidibili- Porque É Que Existe o Ser em vez do Nada? (2001),
dade comunicacional, investigam registos de José Maçãs de Carvalho.
alternativos para uma consciência demo-
crática em que o contacto performático
com o real inscreve iluminações estéticas
que demonstram como certas coisas po-
deriam ser diferentes, sem jamais ceder
ao paternalismo reformista ou à provoca-
ção gratuita. A LXCN foi, portanto, anti
relativamente ao que os seus mentores
entenderam como redutoramente cultu-
ral (quando os aspetos mais profundos
da cultura são delimitados pelo habitus e
alienados pelas indústrias criativas e cul-
turais, também ao nível do território).
O que aconteceu foi assim a aplicação
direta de um modelo imanente de cons-
cientização urbana em toda a sua radica-
lidade, exemplaridade e complexidade
inerentes. Mais exploratória que labora-
torial, a ação atualizou aspetos do situa-
cionismo – um  movimento europeu de
crítica social, cultural e política reunindo
poetas, arquitetos, cineastas, artistas plás-
ticos e outros profissionais – num quadro
de grande cinismo perante sistemas e
aparelhos, fossem da arte, da arquitetura,
do urbanismo ou do design.
Monumental exercício de contacto com
a paisagem (problemática ecológica) e a
vida na cidade (problemática da coesão
social), a LXCN reagiu às descontinuida-

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o envolvimento e a empatia, logo uma no- “kunikós”), o embelezamento sensível


ção de pertença capaz de combater vários de espaços e atos performativos que de-
tipos de exclusão. Por outras palavras, a ram voz ao sítio; pelo seu rigor científico
LXCN operou retoricamente a partir de e pelo facto de a sua produção ter sido
uma ambígua noção do nada como vazio monitorizada e profusamente documen-
urbano, inaugurando um território dis- tada (na escola da arte conceptual),
cursivo, plástico e ético caracterizado pela permitiu que participantes, colabora-
atualização meta e transdisciplinar, no dores e outras posteridades passassem a
espaço público, de tensões criativas, tais ter da cidade um conhecimento vivido.
como: negativo vs. afirmativo; abertura O evento manteve em suspenso a questão
vs. fechamento; efémero vs. permanente; de como otimizá-lo em futuras ações de
processualidade vs. obra; ação vs. objeto; responsabilidade cívica, no quadro de
modernidade vs. modernismo. uma cidadania continuamente em cons-
O valor intrínseco da ação decorreu, trução, pois qualquer resposta seria con-
sublinhe-se, sobretudo da sua processua- tra a metaforologia que se encontrava no
lidade dialógica. Meses de encontros e cerne da sua narrativa crítica. Um legado
reuniões preparatórios com os mais di- da LXCN são, em suma, imagens icónicas
versos protagonistas locais afirmaram um que dizem mais sobre os paradoxos do
modus operandi sem preconceitos, com a projeto que muitos dos comentários por
equipa de coordenação sempre pron- este provocados.
ta a receber todo o tipo de contributos Nestes termos, a durée da LXCN e a sua
inesperados (no regime de trabalho em dimensão mítica permanecem como resi-
andamento), para além das intenções e liência a todos os fechamentos e referên-
da qualidade intrínseca de cada projeto cia, em Portugal, de uma arte extramu-
(autonomamente gerido por cada au- ros que, ao longo dos tempos – seja sob
tor). Ou seja, uma série de experiências as modalidades do antiobjetualismo ou
urbanas, através de processos abertos do anti-institucionalismo (&Anti-institu-
de reconstrução das mentalidades (ao cionalismo) –, jamais deixou de afirmar
invés do planeamento de alterações nas a sua potência. Na sua circunstancialida-
condições materiais do espaço público), de, a LXCN funcionou, portanto, como
induziu mudanças percetivas, desnatura- mais um recomeço na cultura portuguesa
lizando hábitos e padrões de comporta- (&Alternativa Zero). A novidade – a ori-
mento, estimulando novos repertórios de gem da sua espessura (espácio-)tempo-
práticas quotidianas capazes de contestar ral – foi a escala urbana, a eloquência
a mercantilização do corpo e da cidade. criativa de uma geração de artistas emer-
Enquanto prática de acesso ao espaço, gentes, a transparência da abordagem
logo no âmbito da efémera reconstrução organizacional, e uma atitude de projeto
simbólica de uma paisagem de difícil le- compassiva, promovendo o valor e a ex-
gibilidade, a LXCN não apenas prestou periência da comunidade. Neste quadro,
a devida atenção à memória social como, a LXCN atualizou antigas operatividades
ancorando-se nesse sentimento nostálgi- (vanguardas artísticas, animação socio-
co, propôs a legítima participação de to- cultural), ao mesmo tempo intuindo um
dos na metrópole do futuro. movimento global e contemporâneo de
O programa da LXCN integrou in- atenção à cidade – da arte pública crítica
terpretações originais da arte enquanto e/ou comunitária ao design urbano e aos
serviço, provocações cúnicas (do grego urbanismos radical e tático. Tratou-se de

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Antimemória 2149

um aggiornamento face ao panorama in-


ternacional, realizado nos seus próprios
Antimemória
termos, que evitou cair em vários logros
(o participativo, o político, o ativista),
restando saber em que medida acabou
por delimitar um nicho de autorreferen-
cialidade, ou se, pelo contrário, jamais
perderá um poder concreto, o de um
manifesto. A memória constitui um precioso con-
ceito que, desde há séculos, inspira
os mais profundos cuidados aos povos e as
mais estimulantes reflexões aos filósofos.
Neste verbete não nos aventuraremos nos
seus labirintos intelectuais, optando por
Bibliog.: impressa: ALVES, Teresa et al., Lis‑ não aprofundar a reflexão do seu signi-
boa Capital do Nada/Lisbon Capital of Nothing – ficado propriamente dito, centrando-nos
Marvila 2001. Criar, Debater e Intervir no Espaço antes na exploração do uso que dele tem
Público/Create, Debate, Intervene in Public Space,
sido feito ao longo dos séculos. Como tal,
Lisboa, Extra]muros[, 2002; BRASIL, Danie-
la,  Experimenting with the Urban Experience: Rio, partiremos de uma simples definição de
Lisbon and Weimar. A (Re)Search for Creative memória, esse “glorioso e admirável dom
Collaborations and Active Exercises of Citizenship, natural, através do qual reevocamos as
Dissertação de Doutoramento apresentada coisas passadas, abraçamos as presentes
à  Bauhaus-Universität Weimar, Weimar, tex- e contemplamos as futuras, graças à sua
to policopiado, 2011; CAEIRO, Mário, Arte na semelhança com as passadas”, nas pala-
Cidade. História Contemporânea, Lisboa, Círculo
vras de Boncompagno (GOFF, 2000, 36),
de Leitores/Temas e Debates, 2014; CAMPI-
NO, Catarina, “Anteprima Bovisa. Milano Eu- enquanto habilidade de lembrar o que
ropa 2000. Fine secolo: 1 semi del futuro. Pa- foi vivido, ou seja, “a capacidade que o
diglione d’Arte Contemporanea, Milão, Itália. ser humano apresenta de reter os factos
2011. Lisboa Capital do Nada. Marvila 2001. e experiências vivenciadas no passado e
Marvila, Lisboa. 2001”, in PÉREZ, Miguel von transmiti-los às novas gerações” (SAM-
Hafe (coord.), Anamnese. O Livro, vol. i, Porto, PAIO e OLIVEIRA, 2013, 39). Neste sen-
Fundação Ilídio Pinho, 2006, pp. 194-196;
tido, adotamos a conotação de memória
MILES, Malcolm, Para além do Espaço Público,
Lisboa, Associação Extra]muros[/Centro Por-
entendida em geral, enquanto memória
tuguês de Design, 2001; NUNES, João Pedro coletiva de um povo.
Silva, e SEQUEIRA, Ágata, “O fado de Marvi- Freud promoveu o início do debate so-
la. Notas sobre a origem citadina e o destino bre a memória no séc. xix, destacando
metropolitano de uma antiga zona industrial o seu carácter seletivo. De acordo com
de Lisboa”, Forum Sociológico, n.º 21, 2011, o neurologista, lembramo-nos das coisas
pp. 33­‑41; SANTOS, David, “Da singularida- de forma parcial, escolhendo as recorda-
de na condição pós-moderna, ou a mediação
ções que desejamos manter. Freud discor-
possível da arte contemporânea (a propósi-
to de um projecto de José Maçãs de Carva- ria ao nível psicológico, argumentando
lho)”, Arqa, n.º 13, 2002, pp. 72-79; digital: acerca das consequências de episódios
XAVIER, Sandra, “Arte fora de portas”, Home‑ traumáticos – sobretudo de natureza se-
less Monalisa. Arquivo, s.d.: http://homelessmo- xual – que o nosso subconsciente reprime
nalisa.com/arquivo/SandraXavier/arte_fora_ como mecanismo de autodefesa. No en-
de_portas.htm (acedido a 5 jul. 2017). tanto, à semelhança dos indivíduos, tam-
Mário Caeiro bém as sociedades filtram as memórias

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2150 Antimemória

que desejam manter, rejeitando as que res monumentais, como os cemitérios ou


não lhes são convenientes. O reflexo a arquitetura; lugares simbólicos, como as
deste mecanismo é salientado pela distin- comemorações, as peregrinações, os ani-
ção que Fernando Catroga aponta entre versários ou os emblemas; lugares funcio-
memória social e memória coletiva, que, nais, como os manuais, as autobiografias
segundo a tradição durkheiniana, fun- ou as associações: estes monumentos têm
damenta a distinção entre sociedade e a sua história” (NORA, 1978, 401). Pode-
sociedades. Assim, referindo-se aos dois ríamos acrescentar os lugares comunica-
tipos de memória, “enquanto que a pri- cionais, englobando os meios de comu-
meira se supõe ser uma criação social es- nicação social, as redes sociais e os mais
pontânea e eterna, a segunda refere-se ao tecidos onde ocorre a criação, a partilha e
modo concreto e histórico como os vários o consumo informacional em massa.
grupos constroem e transmitem o passa- Como consequência, estes lugares de
do comum” (CATROGA, 2001, 19). memória têm-se revelado, ao longo da
Neste sentido, as várias memórias co- história, como zonas de guerra que pro-
letivas fixam-se no tecido materno da vocam a perda ou a falta de património
memória social, da qual constituem uma cultural, com um tremendo impacto na
interpretação, dado que se trata de uma identidade coletiva. Como defende Ja-
construção operada pelos grupos sociais. cques Le Goff, “a memória coletiva foi
Por conseguinte, tal como todas as cons- posta em jogo de forma importante na
truções, é subjetiva. Maurice Halbwachs luta pelo poder conduzida pelas forças
exprime esta noção ao diferenciar memó- sociais. Apoderar-se da memória e do
ria coletiva e história, defendendo que esquecimento é uma das grandes preo-
existe uma história, mas muitas memó- cupações das classes, dos grupos, dos
rias. Encontramo-nos perante a questão indivíduos que dominaram e dominam
da subjetividade e parcialidade da histó- as sociedades históricas” (GOFF, 2000,
ria, segundo a qual a ideia que temos dos 12). Os silêncios e os esquecimentos que
episódios da ação humana nem sempre permeiam a história revelam-se com uma
traduz os acontecimentos. presença ausente que traduz a manipula-
Segundo Pierre Nora, no estudo “Bet­ ção da memória coletiva.
ween memory and history” (1989), entre Os Romanos denominaram este esque-
os aliados mais preciosos da memória na ma deliberado de orquestração de damna-
luta pela verdade histórica estão os docu- tio memoriae [condenação da memória].
mentos de arquivo, na medida em que, Se tanto a memória coletiva como a social
à sua natureza orgânica e funcional, en- são fundadas na comunicação, a conde-
quanto produto natural das atividades nação da memória assenta na erradicação
de uma entidade individual ou coleti- de todo e qualquer elemento que possa
va, é acrescentado um terceiro fator, de evocar a existência da figura censurada às
constituição de memória dessas mesmas gerações futuras. No seguimento das san-
atividades. Apesar disto, os arquivos cons- ções aplicadas pelo Senado romano, os
tituem apenas uma fração da panóplia hostes, os inimigos oficiais do Estado, viam
de elementos da transmissão cultural hu- o seu nome e os seus títulos retirados
mana. Segundo Nora, a história é feita a das listas oficiais; as suas representações
partir do estudo dos lugares da memória eram banidas dos funerais; às suas está-
coletiva: “lugares topográficos, como os tuas eram substituídas as cabeças, apro-
arquivos, as bibliotecas e os museus; luga- veitando os troncos para homenagear

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Antimemória 2151

outras figuras; os livros que haviam escri-


to eram confiscados e queimados; as suas
propriedades eram apreendidas; os seus
testamentos anulados; o dia do seu ani-
versário era assinalado como um dies ne-
fastus [dia nefasto] para o povo romano,
ao passo que a data da sua morte era ce-
lebrada com regozijo. Como é evidente,
tratava-se de um processo com uma de-
clarada intenção política e de exercício
de poder, em que o vencedor pretendia
erradicar da história a marca do vencido,
derrotando-o tanto no presente, como
nas crónicas do futuro. Assim, foram apa-
gadas estátuas de bronze de Domiciano e
Imperador Shi Huandi (259-210 a.C.).
de Sejano, bem como os retratos de Nero,
de Lucila e de Calígula, entre tantos ou-
tros. Os Romanos nutriam uma especial os seus sucessores apagaram o seu rosto
preocupação pela censura da memória, das estátuas e eliminaram o seu nome; na
uma vez que acreditavam que um indi- Grécia, no séc. v a.C., não só o próprio
víduo apenas desfrutava da vida depois Platão queimou poemas de Sócrates, na
da morte se fosse lembrado, pelo que a defesa da sua república ideal, de onde
abolição da sua memória representava a repudiava os poetas, como também o
destruição da sua essência como ser. Ape- tratado Dos Deuses, de Protágoras, foi con-
sar disto, esta prática estava longe de ser fiscado e queimado; na China, por volta
específica deste povo. de 210 a.C., o imperador Shi Huandi or-
Na verdade, a luta pela supressão dos denou que todos os livros que não fizes-
registos manifesta-se há 55 séculos. Quan- sem a apologia do seu regime, nos quais
do, há aproximadamente 5300 anos, sur- se incluíam escritos de Confúcio, fossem
giram os primeiros livros na Suméria, na confiscados e queimados numa pira; em
Mesopotâmia, logo começaram a ser alvo Roma, no ano 8, Augusto destruiu milha-
de destruição na sequência das guerras. res de obras alegando razões de Estado e
Já no hino a Ishbi-Erra, Monarca sumério proibiu a circulação da Ars Amatoria, de
que reinou entre 1953 e 1921 a.C., se de- Ovídio; na América do Sul, mais especi-
clarava o objetivo de “aniquilar a estrutura ficamente em Tezcoco, no México, em
cultural” dos inimigos (PEINADO, 1988, 1530, o frade espanhol Juan de Zumárra-
167). No momento em que se lançaram ga fez uma fogueira com todos os escritos
os dados da memória escrita, nasceram e ídolos dos Maias, com a clara intenção
incontáveis episódios que choveram tem- de apagar o passado e dar lugar a uma
pestuosamente sobre os frágeis baluartes nova etapa; em Washington, nos EUA,
calcários da memória. Traçando um pa- em 1814, as tropas inglesas atearam as
norama geral e diverso, começamos pelo chamas que consumiram a Biblioteca do
Egito, onde o Faraó Akhenaton (reinado Congresso e todo o seu património cultu-
de 1353 a 1336 a.C.) promoveu a destrui- ral; na África do Sul, o Governo eliminou,
ção de textos sagrados, como forma de entre 1990 e 1994, volumes consideráveis
consolidar a sua religião. Por vingança, de documentos de arquivo fundamentais

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2152 Antimemória

para a compreensão das lutas contra o tos de carácter religioso, substituídos por
apartheid. Mas a Europa dos últimos sé- declarações de honra; a supressão do
culos também não é exceção: na Renas- ensino da doutrina cristã nas escolas de
cença inglesa da primeira metade do séc. ensino primário; a erradicação das obri-
xvii, o poeta épico John Milton viu o seu gações religiosas da Univ. de Coimbra,
tratado Eikonoklastes transformar-se em tal como a extinção da sua Faculdade de
cinzas por atacar a hipocrisia religiosa; na Teologia; a introdução do divórcio na
Alemanha nazi, o Governo de Hitler ini- legislação portuguesa; a proibição de o
ciou uma campanha para incinerar os li- Exército intervir em cerimónias religio-
vros dos judeus. sas; e ainda de direitos sobre pessoas e
Em Portugal, um dos casos registados bens das congregações religiosas. Em
foi a dura política do marquês de Pombal síntese, a Primeira República buscava a
contra a presença e influência dos Jesuítas, supressão da vida religiosa, mais especi-
tendo logrado a sua expulsão do reino, a ficamente, da influência jesuítica na so-
suspensão das suas práticas pedagógicas e ciedade portuguesa. Para tal, sumarizou
a eliminação de todos os livros de sua auto- a época monárquica na sua vertente re-
ria, de sua pertença ou de seu uso. ligiosa e declarou guerra contra o con-
Além deste, é importante destacar tam- ceito do jesuíta, enquanto educação re-
bém três momentos marcantes do séc. xx ligiosa infrutífera, nefasta e deturpadora
português ao nível da manipulação da dos espíritos progressistas, encerrando
memória: a proclamação da república, nele todo um passado e todo um para-
por substituição da monarquia, a 5 de digma de sociedade e de Homem com o
outubro de 1910, o funcionamento do qual queria romper. Na sua essência, “o
Estado Novo, órgão único do poder entre jesuitismo significava a antirrepública”
1933 e 1974 e, finalmente, a instauração (MATTOSO, 1994, 353).
da democracia, a 25 de abril de 1974. Esta luta pelo apagamento dos traços
Com efeito, a transição para o regi- do adversário declarado não era isenta
me republicano esteve profundamente de um forte carácter político. Conforme
marcada pela questão religiosa. Após a destaca José Eduardo Franco, “o jesuitis-
Implantação da República, três dias bas- mo era nome da ameaça mais imaginada
taram ao novo Governo, na pessoa do mi- e imaginária que real, a face do inimigo
nistro da Justiça, Afonso Costa, para de- de que a República precisou ou que con-
cretar a expulsão dos Jesuítas e das demais tinuava a precisar para melhor mobilizar
congregações religiosas, repondo em vi- as massas populares e os diferentes secto-
gor a expulsão dos Jesuítas decretada pelo res ideológicos laicistas em favor da sua
Governo do marquês de Pombal. Além da causa” (FRANCO, 2007, II, 245). Trata-
extinção das congregações, o Governo va-se, em grande parte, de um fait-divers
presidido por Teófilo Braga ambicionava para desviar as atenções da opinião públi-
o fim da confessionalidade religiosa do ca dos reais e mais complexos problemas
país ou da religião oficial em termos cons- da política nacional. Convém recordar
titucionais, traduzido na separação oficial a profunda instabilidade deste regime:
da Igreja em relação ao Estado. entre 1910 e 1926, houve 7 parlamentos
Ao longo dos primeiros dois meses eleitos, 8 presidentes da República e 50
de governo, estes pontos programáticos governos, além dos frequentes motins mi-
traduziram-se numa pluralidade de me- litares e da forte desvalorização da moeda
didas, tais como a abolição dos juramen- após a Primeira Guerra Mundial.

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Antimemória 2153

Quanto ao Estado Novo, desenvolvido


a partir da Ditadura Militar, desde cedo
assentou fortemente no controlo das ma-
nifestações sociais, de que são exemplo o
estabelecimento da censura na imprensa
e nas artes, logo desde 1926; a criação do
Secretariado da Propaganda Nacional,
em 1933; a constituição da Polícia Inter-
nacional e de Defesa do Estado (PIDE)
e a reorganização das forças policiais de
modo a assegurar a vigilância e a repres-
são política dos indivíduos e das associa-
ções que fossem avessos à ideologia do
regime. O silenciamento de vozes contes-
tatárias, traduzido na eliminação das for- Destruição de livros por nazis.
ças da oposição política, era conseguido
através de dois poderosos mecanismos de décadas, traduzindo-se na dissolução
complementares: por um lado, a criação imediata da polícia política e prisão dos
de um monopólio de acesso aos cargos seus membros, na libertação dos presos
públicos através de um sistema eleitoral políticos, na extinção dos órgãos políticos
restritivo que apenas contemplava uma do regime, como a Legião Portuguesa e a
minoria elegível de homens que soubes- Mocidade Portuguesa, bem como no afas-
sem ler e escrever, e que nunca tivessem tamento imediato de todos aqueles que,
manifestado ideias adversas ao regime; associados à ditadura, ocupassem cargos
e, por outro, a dissolução de numerosas de relevância no Governo, em empresas,
organizações políticas e sindicais, incluin- em universidades, em jornais, etc. Assim,
do os partidos republicanos, implicadas segundo Fernando Rosas, “a Revolução
na reposição da legalidade constitucio- portuguesa de 1974/75 […] colocou
nal. A prisão ou o exílio foram os destinos imediatamente no centro dos seus dis-
de quaisquer opositores do regime cuja cursos e práticas, como fonte primeira de
atividade fosse descoberta. legitimação, a memória dos oprimidos,
O terceiro caso é o da passagem do re- dos perseguidos, dos torturados, dos hu-
gime salazarista para a primeira verdadei- milhados por quase meio século de dita-
ra democracia portuguesa, com eleições dura, isto é, a memória do antifascismo”
livres e sufrágio universal, que ocorreu (ROSAS, 2007, 16).
de uma forma socialmente mais agitada, Além destas grandes medidas políticas,
com um golpe militar que deu aso a uma também não se pouparam esforços nos
revolução social. Mais do que uma ação gestos simbólicos de atribuir novas de-
prolongada de repressão da memória da nominações a várias ruas do país, sobre-
ditadura, a rutura deu-se no instante em tudo da capital, substituindo os nomes
que foi proclamada a nova ordem social, de indivíduos relacionados com o sala-
procurando-se de imediato romper com zarismo pelos dos heróis da Revolução.
a memória do fascismo. As primeiras me- O caso mais emblemático é o da ponte
didas tomadas pelos democratas compor- 25 de Abril, sobre o Tejo, que assim viu
taram o restabelecimento das liberdades o seu antigo nome, Salazar, apagado da
recusadas ao povo português ao longo memória.

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2154 Antimemória

Todavia, não pensemos que depara- o mito do Seiscentismo. A conotação do


mos com práticas exclusivas do séc. xx. nosso imaginário do séc. xvii com uma
Já no séc. xxi, uma comunidade religio- idade negra onde nada de proveitoso
sa do Novo México, EUA, queimou uma aconteceu para a nação deve-se à bem-su-
série de livros da escritora britânica J. K. cedida campanha do marquês de Pombal
Rowling, que considerava um produto para ferozmente denegrir a influência e
do Diabo. Assistiu-se igualmente à des- o pensamento dos Jesuítas, identificados
truição, pelo Estado Islâmico, de valioso como ordem maliciosa que pretendia a
património museológico iraquiano, num destruição do Estado através de esque-
atentado ao património da memória cole- mas obscuros, causa única da decadência
tiva da humanidade. da outrora gloriosa nação portuguesa.
Os exemplos são numerosos e poten- Na verdade, é possível que a principal
cialmente infinitos, pois intermináveis origem deste profundo ódio radicasse no
são os episódios de destruição do pa- receio que José de Carvalho e Melo tinha
trimónio com vista à supressão de uma da ascendência dos Jesuítas sobre o Rei,
memória coletiva. Estes funestos aconte- com risco para a sua própria influência.
cimentos estendem-se por todo o mapa Em suma, um declarado interesse polí-
terrestre, permeando todas as eras. Em tico motivou toda uma manipulação da
comum partilham o facto de eliminarem memória coletiva. Por esta razão, Élio Es-
a memória de um determinado passado partano, um dos seis autores da História
de modo a servir a sua própria agenda Augusta, escreveu que: “É incomum e difí-
política, ideológica, religiosa ou cultural. cil fornecer um testemunho imparcial da-
Conforme argumenta Fernando Catroga, queles que têm sido caracterizados como
as noções de memória e de esquecimen- tiranos, tanto devido à vitória de outros,
to são indissociáveis, pelo que apenas se como pelo facto de que praticamente
pode recordar uma parte do que passou. nada sobre estes homens está correta-
A escolha dessa parte que se lembra não é mente preservado em monumentos ou
casual, sendo definida pelas necessidades em histórias. Na verdade, antes de mais,
contemporâneas que vão inscrevendo na os grandes acontecimentos que contri-
história a sua própria história. Assim, ao buíram para a sua honra estão indevida-
escrever uma “história social da memó- mente representados pelos historiadores,
ria”, deveríamos obrigatoriamente redi- enquanto outros são omitidos e, por fim,
gir uma “história social do esquecimen- não é dada grande diligência à explora-
to” (CATROGA, 2001, 55). Estas “formas ção dos seus antepassados ou das suas
institucionais do esquecimento”, como vidas, uma vez que parece suficiente re-
Paul Ricoeur as denomina (RICOEUR, velar a sua audácia, a batalha onde foram
2004, 452) ou, numa linguagem mais for- conquistados e punidos” (Pescennius Ni-
te, uma “state-imposed amnesia [amnésia ger, I, 1-2). Este historiador escrevia a pro-
imposta pelo Estado]” (HARRIS, 2002, pósito do Imperador romano Pescénio
205), representam os esforços daqueles Níger, como exemplo de imperadores e
que estão no poder para impor a sua vi- reis derrotados, mas o mesmo raciocínio
são do mundo, deturpando e/ou silen- pode ser alargado a entidades coletivas.
ciando as visões que não servem os seus O vencedor conquista o direito de inscre-
interesses. ver o seu nome nos anais da história. De
Um importante exemplo de falsea- modo a consolidar o seu domínio, declara
mento da memória coletiva portuguesa é datas de celebração nacional (como tão

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Antimemória 2155

frequentemente tem ocorrido na Europa modo mais particular, o património arqui-


desde o séc. xix), autênticas “manipula- vístico. Quer devido a causas acidentais,
ções ideológicas” (CATROGA, 2001, 33), como a falta de vigilância da preservação
que exacerbam as vitórias do passado, da informação, que redunda na incapaci-
apontando o caminho para o modelo de dade de acesso – um problema enfatizado
sociedade que pretende implementar no pela vulnerabilidade da informação di-
futuro. São eco desta intenção as palavras gital, que se torna ela própria inimiga da
de ordem que Joseph Goebbels, ministro memória na sua exacerbação do consumo
de Hitler, proferiu momentos antes de imediato, como se percebe pela nature-
se acender uma pira com livros judeus: za efémera da comunicação nas redes so-
“O passado recente perece nas chamas; ciais –, quer devido a incidentes intencio-
os novos tempos renascem dessas chamas nais, como a manipulação ou eliminação
que se queimam nos nossos corações” diretas da informação a fim de servir uma
(BAÉZ, 2009, 251). agenda específica, os lapsos de memória
A necessidade do momento histórico no percurso da nossa história são inevitá-
impôs, para a persecução dos objetivos veis. De certa forma, são parte da natureza
políticos, religiosos ou ideológicos, o humana, definindo épocas e mentalida-
fogo bibliófago. E ele, portanto, existiu, des na medida em que proclamam uma
dando origem a enormes silêncios. A su- memória coletiva pelo seu negativo. Por
pressão do apelido Távora num determi- outras palavras, quase paradoxalmente, a
nado momento histórico e a proliferação antimemória afirma­‑se como uma compo-
dos apelidos portugueses relativos a no- nente da história da cavalgada do Homem
mes de árvores, germinados aquando do no tempo, ela própria definidora da nossa
batismo forçado dos judeus em cristãos­ identidade.
‑novos, aos quais era exigido o recomeço
com uma nova identidade, são exemplos
notórios de manipulação intencional da
Bibliog.: impressa: BAÉZ, Fernando, História
memória coletiva através da modificação Universal da Destruição dos Livros. Das Tábuas
ou eliminação do verbo, de documentos Sumérias à Guerra do Iraque, Lisboa, Texto Edi-
e de práticas. tores, 2009; CATROGA, Fernando, Memória,
Por este motivo, a utopia dos arquivis- História e Historiografia, Coimbra, Quarteto
tas – o legado total – é isso mesmo: uma Editora, 2001; CRUZ, Manuel Braga da, As
utopia. Não é possível conhecer uma gran- Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo, Lis-
boa, Presença, 1980; FRANCO, José Eduar-
de parte da história universal da huma-
do, O Mito dos Jesuítas. Em Portugal, no Brasil e
nidade. Conhecemos porções, relances, no Oriente (Séculos XVI a XX), 2 vols., Lisboa,
visões fragmentadas narradas pelos vence- Gradiva, 2006-07; GOFF, Jacques Le, História
dores, que conquistaram o direito de ins- e Memória, vol. ii, Lisboa, Edições 70, 2000;
crever a sua versão na memória coletiva. HARRIS, Verne, “‘They should have destroyed
Conhecemos algumas histórias dos venci- more’. The destruction of public records by
dos por intermédio de outros autores, mas the South African State in the final years of
the apartheid, 1990-1994”, in COX, Richard,
desconhecemos os casos em que a supres-
e DAVID, Wallace (orgs.), Archives and the Pu‑
são teve sucesso absoluto, pois a nossa ig-
blic Good, Westport, Quorum Books, 2002,
norância é a prova vera da concretização pp.  205­‑208; MARQUES, A. H. Oliveira, e
desse objetivo. Por tudo isto, nunca iremos SERRÃO, Joel (dirs.), Nova História de Portu‑
ter preservado e disponível, de um modo gal, vol. xii, Lisboa, Presença, 1992; MATTO-
geral e completo, o património e, de um SO, José (coord.), História de Portugal, vol. vi,

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2156 Antimestiçagem

Lisboa, Círculo de Leitores, 1994; MEDINA,


João  (dir.), História do Portugal dos Tempos
Antimestiçagem
Pré-Históricos até aos Nossos Dias, vol. xii, Al-
fragide, Clube Internacional do Livro, 1995;
NORA, Pierre, “Mémoire collective”, in GOFF,
Jacques Le et al. (orgs.), La Nouvelle Histoire,
Paris, Retz, 1978, pp. 398-401; PEINADO, Fe-
derico Lara (ed. lit.), Himnos Sumerios, Madrid,
Tecnos, 1988; RICOEUR, Paul, Memory, History
and Forgetting, Chicago, University of Chicago
Press, 2004; ROSAS, Fernando, “Memória da
P or ocasião da fundação da naciona-
lidade, e tendo como fundamento a
fixação do povoamento no então terri-
violência e violência da memória”, in PIMEN- tório português, o primeiro Rei de Por-
TEL, Irene et al., Vítimas de Salazar. Estado Novo
tugal, Afonso Henriques (1109-1185),
e Violência Política, Lisboa, A Esfera dos Livros,
2007, p. 16; SILVA, Armando Malheiro da, e promoveu a convivência pacífica entre
RIBEIRO, Fernanda, Das ‹‹Ciências›› Documen‑ os cristãos, os judeus e os muçulmanos
tais à Ciência da Informação. Ensaio Epistemológico que habitavam a cidade de Lisboa, que
para Um Novo Modelo Curricular, 2.ª ed., Porto, foi conquistada em 1147. A partir dos
Afrontamento, 2008; SILVA, Kalina, e SILVA, sécs. xv e xvi, a época da expansão ma-
Maciel, Dicionário de Conceitos Históricos, 2.ª ed., rítima veio reforçar o contacto dos Por-
São Paulo, Contexto, 2009; SOUTELO, Lucia-
tugueses com grupos humanos de outros
na, “A memória pública sobre a Revolução e
a ditadura em Portugal. Da valorização do
continentes. Terá sido a partir deste mo-
antifascismo ao desenvolvimento do revisio- mento que se começou a construir um
nismo histórico”, in SOUTELO, Luciana et al., pensamento colonialista. Mas a questão
A Revolução de 1974-75. Repercussão na Imprensa da mestiçagem só passou a ser debatida
Internacional e Memória(s), Lisboa, Instituto de por cientistas e políticos, e a ser um foco
História Contemporânea, 2014, pp. 114-127; essencialmente importante, quando de-
VARNER, Eric, Mutilation and Transformation. correu o reforço colonial português em
Damnatio Memoriae and Roman Imperial Portrai‑
África, entre os finais do séc. xix e os
ture, Leiden, Brill, 2004; digital: NORA, Pierre,
“Between memory and history. Les lieux de mé- anos 30 e 40 do séc. xx, altura em que
moire”, Representations, n.º 26, primavera 1989, atinge o seu auge. O tema das relações
pp.  7-24: http://dx.doi.org/10.2307/2928520 raciais no contexto do império colonial
(acedido a 18 mar. 2017); SAMPAIO, Débo- português, nomeadamente até ao início
ra, e OLIVEIRA, Bernardina, “Memória, museus do séc. xix, foi estudado pelo historia-
e ciência da informação. Uma perspectiva in- dor inglês Charles Boxer (1967). Este as-
terdisciplinar”, Biblios, n.º 52, 2013, pp. 35-42:
sunto também foi importante no debate
http://biblios.pitt.edu/ojs/index.php/biblios/
article/view/121/174 (acedido a 15 jun. 2017); e no estudo sobre a nacionalidade bra-
STEWART, Katy, “Entre a memória e o seu apa- sileira (Skidmore, 1989). Apesar de
gamento. O ‘Grande Kilapy’ de Zézé Gamboa e o o elemento autóctone – o índio – con-
legado do colonialismo português”, Comunicação tinuar um pouco invisível na história do
e Sociedade, n.º 29, 2016, pp. 239-254: http:// Brasil, este país é descrito amiúde como
dx.doi.org/10.17231/comsoc.29(2016).2418 o das três “raças”. No período compreen-
(acedido a 18 mar. 2017). dido entre o final do séc. xix e meados
André Pacheco do séc. xx, a miscigenação foi vista como
uma ameaça e chegou a ser promovida
uma solução de branqueamento para o
Brasil. O Brasil sempre foi considerado
um país de democracia racial, mas isto

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Antimestiçagem 2157

é um mito que deve ser desconstruído e nistrar devidamente as suas colónias e


criticado. por ainda manter formas de escravatura
Após a sua independência (1822), e ou de trabalho forçado. Pensou-se nes-
sobretudo durante o Estado Novo (1933­ sa altura que a melhor forma de evitar
‑1974), o Brasil foi considerado a grande sanções seria forçar a abertura dos mer-
ex-colónia portuguesa e um exemplo de cados coloniais portugueses ao comér-
colonização a seguir nos territórios ultra- cio internacional. O Governo concedeu
marinos então ainda existentes, principal- então uma autonomia relativa a Angola e
mente em África (ALEXANDRE, 1993). a Moçambique, e prometeu desenvolver
Até essa altura, os Portugueses contacta- a administração colonial e incrementar
vam essencialmente com as populações a melhoria económica, social e cultural
que estavam próximas da costa e não com das populações nativas. A nomeação de
as que estavam no interior, e estas relações altos-comissários para essas colónias, em
eram sobretudo mercantis. Este panora- 1921, e a descentralização da administra-
ma manteve-se até aos finais do séc. xix. ção colonial e das finanças procuraram,
A corrida para África por parte das potên- pelo menos teoricamente, assegurar esses
cias europeias e a disputa pelos seus terri- objetivos. Neste contexto, a colonização
tórios intensificou-se a partir de 1880. Na de assentamento com famílias da metró-
Conferência de Berlim (1884-1885) e na pole também foi promovida pelo Gover-
Conferência Antiesclavagista de Bruxelas no, nomeadamente através da oferta de
(1890) as potências europeias dividiram bilhetes de barco para África. Contudo,
África e estabeleceram programas políti- no contexto da ocupação das primeiras
cos específicos para ocupar as terras. No duas décadas do séc. xx, a escassez de
início da Primeira Guerra Mundial, cerca forças militares, nomeadamente em An-
de 90 % das terras estavam sob o domínio gola, fazia emergir uma vulnerabilidade
dos países europeus, mas as guerras de nesse colonialismo que pressupunha a
ocupação prolongaram-se até ao início existência de famílias e, especificamente,
do séc. xx em alguns locais (Pélissier, de mulheres; com efeito, a presença do
1986). Foi durante este período que em elemento feminino europeu nesses locais
Portugal se assistiu ao despoletar de uma era considerada necessária para a do-
organização mais sistemática dos saberes, mesticação do Império, pois contribuiria
o que incluiu as categorizações e as classi- para um maior controle da sexualidade
ficações raciais, e à emergência e institu- dos homens, evitando-se a miscigenação
cionalização de várias ciências, incluindo com elementos locais, e para a afirmação
as que se debruçavam sobre o estudo do moral e identitária dos colonizadores.
ser humano e a sua diversidade. Além do Este colonialismo de povoamento de-
estímulo dado ao desenvolvimento de senvolveu-se em Angola desde os finais
estudos sobre os povos colonizados, ur- do séc. xix, e em Moçambique desde o
gia incutir na população da metrópole a séc. xx. Estes territórios constituíam, em
motivação para emigrar para as colónias. termos económicos, o núcleo central
Contudo, essa emigração podia levantar do Império; 90 % do total de migrações
problemas, uma vez que ficariam em con- para o ultramar destinava-se a estes países
tacto seres humanos muito distintos. (Castelo, 2007). A política de emigra-
Na Conferência de Paz de 1919, decor- ção apostou na seleção e no crescimen-
rida em Versalhes, o Governo português to da população branca em África, mas
foi criticado por não conseguir admi- a escolha dos colonos era importante.

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2158 Antimestiçagem

Enquanto Norton de Matos, ministro beiro, 1981, 155). Como descreve Ann
das Colónias e da Guerra (1915), gover- Laura Stoler (1995), a sexualidade nas
nador (1912-1915), e mais tarde alto­ colónias foi influenciada por fatores ra-
‑comissário de Angola (1921­‑1923), de- ciais e de classe social. A contaminação
fendeu a imigração de todas as famílias dos ricos pelos pobres, dos urbanos pelos
brancas que o desejassem, já Armindo rurais, dos saudáveis pelos doentes, e a
Monteiro, ministro das Colónias (1931­ suposta perturbação de hierarquias e das
‑1935), que na conferência dos governa- ordens instituídas seguiam a par e passo
dores coloniais (1934) sustentou a limi- com as ansiedades relacionadas com a
tação da imigração em África, defendeu miscigenação racial.
que os potenciais colonos só deveriam No campo literário, as representações
viajar com uma “carta de chamada”, pois parecem amiúde responsabilizar a falta
não se devia suscitar a ideia de que as de mulheres portuguesas pela miscige-
colónias eram habitadas por desempre- nação – vista como patológica e pertur-
gados ou fugitivos. badora pelos homens solteiros em África.
Os princípios orientadores da política Maria Lamas (1893-1983) escreveu duas
colonial portuguesa, expressos em 1930 novelas – Diferença de Raças (1923) e O Ca-
no Ato Colonial, onde é definido o im- minho Luminoso (1927) – que ilustram o
pério colonial português, onde são iden- modo como as mulheres burguesas foram
tificados os territórios que o constituem comprometidas no esforço por colonizar
e onde são descritos os seus habitantes, África, em alternativa à emigração para
ingressaram na nova Constituição aprova- o Brasil ou para os EUA. A mesma auto-
da pelo Estado Novo em 1933. As popu- ra, que viveu em Angola (1911-1913) na
lações que habitaram esse império foram qualidade de esposa de um militar repu-
idealizadas a partir de uma perspetiva blicano, esboçou os caracteres femininos
racial, e por vezes racista, influente entre moralmente fortes e religiosos considera-
o final do séc. xix e o início do séc. xx. dos necessários para que os Portugueses
A legislação discriminava sobretudo os mantivessem relações sociais e sexuais es-
“indígenas”, que não eram considerados tritamente endogâmicas, tanto no Novo
cidadãos portugueses, tendo para tal um Mundo como nos territórios africanos
fundamento racial, discriminatório do (Ferreira, 2012, 104). Por seu turno,
ponto de vista social, o que influenciou as Ana de Castro Osório defendeu a endo-
relações entre os diferentes habitantes do gamia na obra Mundo Novo (1927), onde
Império Português. trata a “colónia” portuguesa Nova Espe-
Os discursos antimestiçagem fortalece- rança, que ficava em São Paulo (Brasil).
ram-se principalmente no contexto das Maria Archer (1899-1982), colaboradora
referidas colónias de assentamento, mas do periódico Cadernos Coloniais, aborda
ocorreram também em outros territórios. as relações raciais na sociedade colonial
Alguns governadores coloniais, como e sugere que as “raças”, assim como as
Norton de Matos ou Vicente Ferreira, classes, devem permanecer separadas e
ministro das Finanças (1912-1913 e 1921) diferenciadas. Gastão de Sousa Dias tam-
e das Colónias (1923), não eram favorá- bém destaca a falta de mulheres brancas
veis à mestiçagem, embora fossem a favor na história da Angola colonial, e sugere
da “elevação social de pretos e mulatos”, que só a sua presença poderia evitar a
salvaguardando que estes constituíssem miscigenação e elevar o nível de civiliza-
“grupos cuidadosamente separados” (Ri- ção daquela colónia; para o autor, o grau

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Antimestiçagem 2159

de desenvolvimento que a colónia esta-


va a experienciar devia-se à presença de
mulheres brancas portuguesas. Porém,
também surgiram opiniões favoráveis à
mestiçagem, como a de José de Osório
Oliveira, que parece concordar com Gil-
berto Freyre (1900-1987), autor da tese
lusotropicalista, que defende que os Por-
tugueses não tinham problemas em mis-
cigenar-se com as populações nativas dos
trópicos, enaltecendo o fenómeno já na
déc. de 30 e inícios da déc. de 40, numa
altura em que o regime político portu-
guês ainda não a tinha adotado (OLIVEI- José Norton de Matos (1867-1955).
RA, 1934; 1934a; 1939).
No campo científico, uma das figuras em nome dos altos interesses da nação e
que mais contribuiu para a discussão so- da humanidade (Id., Ibid., 347).
bre a miscigenação foi Mendes Correia Eusébio Tamagnini (1880-1972), antro-
(1888-1960), um antropólogo e arqueó- pólogo com formação em medicina que
logo com formação em medicina, que foi ministro da Instrução Pública, defen-
foi deputado à Assembleia Nacional. Em deu o esforço para incutir nos Portugue-
1934, escreveu um texto que resultou de ses o desejo de emigrar para as colónias
um inquérito que elaborou no Instituto e de aí se fixarem definitivamente, mas
de Antropologia da Univ. do Porto, que alertou para os perigos da mestiçagem,
tinha como objetivo determinar o que pois, como notava o médico e eugenista
designou por “índice de eficiência racial” alemão Ernst Rodenwaldt (1878-1965),
(CORREIA, 1934, 334). No texto ficou era “um risco para todas as sociedades
registada a consideração de que, apesar humanas” e devia desaconselhar-se (TA-
de o número de mestiços estar a aumen- MAGNINI, 1934, 63). Tamagnini ques-
tar nas colónias, as investigações sobre os tionou se a alta capacidade colonizadora
cruzamentos com cabo-verdianos e com dos Portugueses não se deveria à fraca re-
chineses de Macau mostravam que, fisica- pugnância que manifestavam pelas apro-
mente, os mestiços eram mais parecidos ximações sexuais a elementos de outras
com os “negros” e com os “amarelos” do origens étnicas; para ele era indispensá-
que com os Portugueses. Este inquérito vel modificar radicalmente semelhante
sobre o mestiçamento e as “condições atitude, mesmo que ela existisse como
biológicas, psíquicas, morais e sociais dos característica étnica própria. Assim, desa-
mestiços em confronto com as raças ori- conselhou a mestiçagem, acrescentando
ginárias”, realizado a pessoas conhecedo- ainda que o mestiço assume uma posição
ras das colónias, levou Mendes Correia a social infeliz, uma vez que é rejeitado
concluir que o método que adotou, o de pelo lado materno e pelo lado paterno.
Porteus e Babcock, autores de um estudo Entre 10 de novembro e 8 de dezem-
feito em 1925 sobre diferenças raciais no bro de 1935, o escritor e historiador suí-
Havai, revelava “dificuldades e defeitos,” ço Gonzague de Reynold veio a Portugal,
e que a maioria dos inquiridos era con- e escreveu um livro sobre o país onde
trária ao favorecimento do mestiçamento afirmou que os pontos fracos deste eram

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2160 Antimestiçagem

1944a, 129). No mesmo artigo, refere que


os defeitos de muitos mestiços eram atri-
buíveis a condições educativas e sociais
desfavoráveis, embora tenha procurado
na genética fundamento para as suas
preocupações, defendendo que era um
domínio que merecia um estudo sério.
Nomeou ainda artigos de revistas como
a inglesa Nature, que publicou as conclu-
sões de um relatório acerca de casamen-
tos mistos na África do Sul; a comissão
que elaborou o relatório concluiu que a
indesejabilidade do produto do mestiça-
mento era de ordem social, económica e
política, e não de ordem biológica.
O tema da miscigenação volta a estar
em discussão nos Congressos do Mundo
Português (Lisboa, 1940). No seu âmbito,
Mendes Correia considera importante im-
pedir a “interferência social e política dos
Capa de Casa Grande & Senzala (1933), mestiços na vida portuguesa” e o desfigu-
de Gilberto Freyre.
ramento da “fisionomia tradicional da Pá-
tria” (Correia, 1940a, 121). Gonçalo de
os mesmos que os do povo português: Santa-Rita, professor da Escola Superior
falta de higiene, analfabetismo, ausência Colonial, também se revelou contrário à
de educação física e fraqueza da “raça”. existência de mestiços nas colónias (San-
Segundo o mesmo autor, o povo estava ta-Rita, 1940, 20-21). Todavia, em 1944,
muito miscigenado com raças exóticas, Mendes Correia (1944b) faz uma revisão
sobretudo a sul de Coimbra, e essa mistu- de O Mestiçamento, publicado em 1940;
ra de sangues teria prejudicado a nação. o texto revisto e publicado com o mesmo
Adiantava ainda que, por essa razão, o re- título defende a mestiçagem como uma
gime deveria tomar medidas urgentes em via subsidiária da manutenção e da con-
defesa da “raça”. solidação do Império, o que significa que
Num artigo publicado na revista Oci- o autor atualizou as suas ideias. O excer-
dente, onde foram editados inicialmente to introduzido em 1944 contempla ainda
os textos depois agrupados no seu livro a possibilidade de os mestiços ocuparem
Raízes de Portugal, Mendes Correia expõe cargos políticos e na administração, ideia
a tese de que a ciência não condena siste- que em 1940 tinha sido desaconselhada.
maticamente o mestiçamento. Contudo, Surgiram também formulações que,
ao reconhecer que os mestiços não são embora reconheçam a existência de mes-
idênticos física e psicologicamente às “ra- tiçagem, consideram que a mesma não
ças” de que descendem, aconselha, “em- terá destruído ou alterado o património
bora consagrando-lhes os melhores senti- genético português (Matos, 2010).
mentos de fraternidade e simpatia”, a que A ideia de raças puras é um mito com raí-
não lhes seja entregue a “suprema dire- zes longínquas. Alguns autores procura-
ção dos destinos nacionais” (Correia, ram provar que existia uma certa pureza

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racial entre os Portugueses; entre eles, de elementos heterogéneos podiam sur-


contam-se o ensaísta e político António gir resultados inesperados e pouco felizes
Sardinha; Lopo Vaz de Sampaio e Mello, (CORREIA, 1940a). Contudo, o que aca-
professor da Escola Superior Colonial; ba por destacar é apenas isso mesmo, a
Eusébio Tamagnini; e os médicos Joaquim imprevisibilidade do mestiçamento e a di-
Alberto Pires de Lima e Aires de Azevedo. luição de caracteres, não aprofundando
Este último apelou inclusivamente à defi- qualquer fundamentação científica que
nição urgente de uma política demográfi- estabeleça uma relação entre o mestiça-
ca para o país e ao aumento da população mento e a degenerescência (Id., 1940).
branca no Império (AZEVEDO, 1940). Embora raramente, surgiram no con-
Sobre este assunto, é importante des- texto português determinações relativas
tacar três elementos: o casamento inter­ ao casamento: o art. 4 do dec.-lei 31.107,
‑racial, a degenerescência e a segregação proveniente do Ministério da Guerra e
social. O estudo levado a cabo pela his- publicado no Diário do Governo a 18 de ja-
toriadora Maria Eugénia Mata (2007) neiro de 1941, definia que os oficiais do
sobre a relação entre o casamento e a exército que requeressem licença para
“raça” nas décs. de 40 e 50 do séc. xx, casar deveriam provar que “a futura con-
que teve como base de investigação os sorte é portuguesa originária, nunca ten-
anuários estatísticos das colónias portu- do perdido essa nacionalidade, filha de
guesas, permitiu concluir que existia um pais europeus, não divorciada”. Contudo,
preconceito social relativo ao casamento não se verificaram, em Portugal ou nas
inter-racial e que a homogamia racial era suas colónias, leis de segregação racial
predominante. A miscigenação foi consi- como as leis de Nuremberga (1935), apli-
derada em alguns momentos a responsá- cadas na Alemanha nazi, as leis do apar-
vel pela degenerescência biológica, que theid, aplicadas na África do Sul, ou as leis
poderia estender-se ao nível sociocultu- de Jim Crow (1876-1965), aplicadas nos
ral. Esta ideia encontrava uma referência EUA, que procuraram manter brancos e
crucial em Arthur de Gobineau (1816­ negros separados e em posições e circuns-
‑1882), e foi discutida nos EUA, na Améri- tâncias desiguais.
ca Central, na América do Sul, na Europa A posição dos autores que viram a mes-
e, especificamente, em Portugal. O escri- tiçagem como desestabilizadora, embora
tor José Maria Andrade Saraiva (1929) influente, não representou a totalidade
defendeu o estancamento da imigração dos discursos da época. Houve outros
para a Europa para travar a adulteração autores que contrastaram com estes, so-
da “raça branca”. Contudo, o médico Al- bretudo no período pós-Segunda Guerra
berto da Silva Germano Correia afirmou Mundial. A valorização da miscigenação
que as populações indo-portuguesas não está presente na obra Casa Grande & Sen-
sofreram “nem degenerescência, nem zala (1957 [1933]) onde Gilberto Freyre,
diversificação rácica na grei lusodescen- que se terá inspirado em Franz Boas e
dente” (Correia, 1940, 663). A possível noutros autores culturalistas, valoriza o
degenerescência também foi tratada pelo contributo das culturas africanas e ame-
já referido investigador Mendes Correia, ríndias na formação da sociedade do
que em 1940 apontou o mestiçamento Brasil, e defende que essa sociedade foi
como um possível fator degenerativo, favorecida pela miscigenação durante o
não porque o mestiço fosse necessaria- período colonial. Sendo um país conside-
mente inferior, mas porque da mistura rado livre de preconceito racial, o Brasil

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podia servir de exemplo para o resto do 1945, e a aprovação da Carta das Nações
mundo. Além da democracia racial, o au- Unidas, fizeram cair sobre Portugal uma
tor destaca a predisposição dos Portugue- pressão internacional pelo facto de pos-
ses para o contacto fraterno com as popu- suir territórios coloniais. Foi necessário
lações tropicais, o que talvez fosse devido proceder a uma reformulação da atitude
ao seu passado étnico e cultural de povo portuguesa, pelo que se assistiu a uma
indefinido, entre a Europa e a África. transformação da imagem imperial, o
Historicamente, também existiram in- que também aconteceu com países
divíduos a defender uma política de ca- como a França, a Inglaterra e a Holan-
samento misto. Afonso de Albuquerque, da. Foi neste contexto que Sarmento Ro-
governador da Índia, encorajou os seus drigues foi nomeado para a pasta do Ul-
homens a casarem-se com mulheres de tramar (1950-1955) e procedeu à revisão
origem ariana convertidas ao cristianis- da legislação. A expressão “colonização”
mo, embora não quisesse que eles se ca- passou a ser gradualmente substituída
sassem com mulheres negras de Malabar. pela expressão “integração”. Apesar dis-
Albuquerque procurava “criar uma raça so, o censo de 1950 indica que há uma
cristã legítima, porém mista, através do percentagem mínima da população das
casamento com mulheres hindus selecio- colónias a apresentar o estatuto de “civi-
nadas” (Boxer, 1967, 98-99). A sua visão lizada” ou “assimilada”. Mas o novo con-
político-militar, posta em prática no início texto internacional exigia a validação do
do séc. xvi, foi considerada inspiradora projeto colonial português e a aposta na
e precursora das ideias que se quiseram legitimação da sua diferença, e, nesse
pôr em prática nos territórios coloniais no sentido, defende-se uma nação pluri-
séc. xx. Num documento publicado por continental constituída por Portugueses
ocasião da Primeira Exposição Colonial de todas as raças, com a qual todos se
Portuguesa, realizada no Porto em 1934, identifiquem. As ideias discriminatórias
é mencionado o plano de Albuquerque, do Ato Colonial começam a ser aban-
que procurava levar sangue novo para a donadas. O termo “indígena” começa a
população da Índia portuguesa (Goa, Da- ser substituído por termos mais neutros,
mão e Diu). Todavia, a política de Albu- embora se continuem a utilizar estereó-
querque não chegou a aplicar-se nos ter- tipos para o identificar. Os argumentos
ritórios africanos. Além dos preconceitos sobre a “vocação imperial” alteram-se.
associados às populações nativas de África, Ao contrário de outros países, Portugal
como a crença de que eram culturalmente ter-se-ia caracterizado por uma coloniza-
inferiores, registaram-se, como se assina- ção desinteressada, baseada na transmis-
lou, vários discursos antimestiçagem, que são dos ideais cristãos e na procura da in-
chegaram a declarar, em alguns momen- tegração das populações colonizadas na
tos, a mestiçagem como uma ameaça à in- civilização ocidental. No dia 26 de abril
tegridade da nação. de 1951, Mendes Correia, enquanto de-
Com o fim da Segunda Guerra Mun- putado à Assembleia Nacional, pronun-
dial (1945) os sistemas coloniais, de um cia-se contra o “estatuto de indígena”,
modo geral, entraram em processo de defendendo que todos os habitantes
decadência. Na Ásia e em África surgi- do Império Português – metrópole e
ram novos movimentos nacionalistas e colónias – deveriam ser considerados
os já existentes foram reforçados. A fun- cidadãos portugueses. Ainda nesse ano,
dação da ONU, no dia 24 de outubro de afirma que os exemplos de mescla racial

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encontrados nas colónias testificam a que Adriano Moreira ocupava a pasta do


tolerância racial dos Portugueses (COR- Ultramar (1961-1962).
REIA, 1951); esta asserção também pres- A ideia de que a colonização portugue-
supunha a ausência de racismo no Bra- sa foi diferente encontra-se presente em
sil, que é muitas vezes encarado como o outros autores, como Ruth Benedict, uma
país da democracia racial e considerado antropóloga americana, que refere, talvez
um bom exemplo da colonização portu- por influência de Gilberto Freyre, que os
guesa. Mendes Correia passou a afirmar Espanhóis, os Portugueses e os Holan-
que o mestiçamento era “um dos agen- deses não partilhavam do horror que os
tes mais poderosos da expansão portu- Ingleses sentiam em relação à miscigena-
guesa” e que testemunhava a “ausência ção; estes últimos impuseram rígidas dis-
de preconceitos raciais” por parte dos tinções de casta, como nem os Franceses
Portugueses (Id., 1954, 258-259). o fizeram. Gerald Bender afirmou que
A resolução das Nações Unidas de 1948 tanto Portugal como o Brasil tentaram
sobre a abolição do preconceito racial, relacionar, no início dos anos 30, o seu
que depois permitiu à UNESCO difundir esplendor com o lusotropicalismo, acen-
um documento que considerava que as tuando a natureza positiva da mescla por-
misturas raciais não eram nefastas, con- tuguesa de raças nos trópicos; o mesmo
tribuiu para a mudança de pensamento e autor adianta ainda que, apesar de haver
para as reformulações que se registaram. diferenças na interpretação brasileira e
Uma vez que não existia evidência de que na interpretação portuguesa do lusotro-
ocorressem efeitos desvantajosos, não picalismo, o ponto central da ideologia
existia justificação biológica para impedir inerente às mesmas foi a existência de um
o casamento entre pessoas de diferentes colonialismo não racista e completamen-
“raças”. Nos anos 50 do séc. xx, a doutrina te sui generis (BENDER, 1980).
oficial do Estado Novo adotou de modo Como se mostrou noutro trabalho
geral a tese lusotropicalista de Gilberto (Matos, 2013), a sociedade colonial
Freyre. Nesta altura começam a aparecer era hierarquizada e, mesmo no período
títulos exemplificativos da nova perspeti- depois de 1945, continuou a verificar-se
va, como Muitas Raças, Uma só Nação, do um grande fosso entre brancos e negros;
historiador António Alberto de Andrade. em alguns casos chegou mesmo a haver
Durante a Conferência de Bandung, uma diminuição da mestiçagem, tendo
realizada na Indonésia no dia 18 de abril em conta o maior número de mulheres
de 1955, foi reafirmada a necessidade de que vinha da então metrópole (RIBEI-
se conceder a independência aos territó- RO, 1981). Estes aspetos comprovam
rios coloniais. Neste contexto, os povos que alguns discursos políticos, científicos
asiáticos começam a ganhar consciência e jornalísticos andavam desfasados das
do seu valor e da necessidade de se so- práticas que se registavam nas colónias.
lidarizarem com os africanos. Já na po- Como vários autores referiram, o luso-
lítica seguida pelo Estado Novo começa tropicalismo foi uma ideologia adotada
a alterar-se a legislação sobre a extinção pelo Estado para legitimar o colonialismo
das culturas obrigatórias (que implica- e manter as suas províncias ultramarinas.
vam contratos de trabalho pouco favo- Já o Brasil, ao ser visto como uma criação
ráveis aos nativos) e sobre o “estatuto do portuguesa, embora independente, aca-
indigenato”, abolido em 1961, na altura ba por ser uma representação subalterna
em que eclodiu a guerra em Angola e em de Portugal.

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A déc. de 60, durante a qual a segre- Existem trabalhos científicos sobre a


gação e a discriminação racial foram existência (ou inexistência) de racismo
declaradas ilegais nos EUA, beneficiou entre os Portugueses, que denunciam
do período pós-Segunda Guerra Mun- aquilo a que chamam racismo subtil
dial, no qual se desacreditou o racismo (VALA et al., 1999). A população portu-
científico. Contudo, mesmo neste con- guesa resulta de uma mistura de vários
texto pós-Segunda Guerra Mundial e da grupos, embora isso nem sempre seja
Guerra Fria, o regime sul-africano con- reconhecido e, muito menos, enaltecido.
seguiu manter-se, e em 1948 aprovar o Mas a ideia de que o lusotropicalismo e
apartheid. Em Portugal não existiu um re- a colonização portuguesa terão sido di-
gime de segregação instituído, mas isso ferentes e terão permitido uma coexis-
não significa que não se promovessem tência tolerante entre diferentes culturas
ou sugerissem separações. No caso das e religiões, tal como o afirmou Gilberto
colónias portuguesas, em alguns locais Freyre (1954, 1954a) embora tenha sido
públicos, como os passeios ou as salas alvo de descrédito científico, sobreviveu
de cinema, podiam registar-se situações ao período pós-independência das ex-co-
de segregação, embora esta não estivesse lónias portuguesas. Esta idealização pare-
fundamentada na lei. Quando começa- ce coadunar-se, segundo alguns historia-
ram a ocorrer as ameaças dos movimen- dores e antropólogos, com algumas ideias
tos de libertação nacional africanos, preconcebidas, nomeadamente sobre o
procurou-se reforçar o estabelecimento nacionalismo português, a identidade
de colonos em África e o “estilo de vida nacional e a adaptação dos Portugueses a
colonial”, assim como o seu papel em diferentes territórios. Nos anos 50, alguns
termos de missão e desenvolvimento. autores escreveram sobre a especial capa-
A partir de 1974, ano em que ocorreu cidade de adaptação dos Portugueses.
o golpe militar de 25 de abril que der- Jorge Dias (1971, 1990) tenta compreen-
rubou o regime ditatorial e em que se der a nação a partir da relação entre mis-
avançou para a descolonização, registou­ cigenação e identidade nacional. Todos
‑se um processo de restruturação que in- estes assuntos continuam a ser estudados
fluenciou tanto os países colonizadores e a constituir pistas de investigação no
como os países colonizados, assim como âmbito da naturalização da discrimina-
as relações entre os diferentes grupos so- ção racial e da cultura popular de massas.
ciais. O período pós-colonial passou por Pode concluir-se que a condenação da
várias fases: a nova lei da nacionalidade miscigenação esteve sobretudo relacio-
(1981), que privilegiava os laços sanguí- nada com o contexto colonial, no qual a
neos; a entrada de Portugal na Comu- desigualdade de poder e a manutenção
nidade Europeia (1986); e a criação e de hierarquias conduziram a uma forma
institucionalização da Comunidade dos racial de encarar as diferenças. Como re-
Países de Língua Portuguesa (1996). Es- feriu George Fredrickson (2004, 13), o
tes momentos permitiram a integração racismo não necessita do apoio do Estado
de distintos indivíduos em novas reali- ou de leis, nem de uma ideologia centra-
dades: de Portugal (e de quem tinha a da no conceito de desigualdade biológica
nacionalidade portuguesa) na Europa, para se manifestar. A questão da miscige-
mas também a manutenção das relações nação foi debatida, essencialmente, quan-
de Portugal com o Brasil e com os países do ocorreu o reforço colonial em África,
africanos. ou seja, após a conferência de Berlim e

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até aos anos 30 e 40 do séc. xx, quando


atinge o seu auge. Em geral, numa pri-
meira fase, a deslocação de europeus e de
Portugueses, especificamente para terras
africanas, foi estimulada (MATOS, 2016),
mas a miscigenação com as populações
locais não o foi. Apesar de alguns discur-
sos terem enaltecido a colonização portu-
guesa e os contributos da miscigenação, a
obra de Freyre não foi bem recebida em
Portugal na déc. de 30 e inícios dos anos
40. A ideia do renascimento do Império
estava ainda imbuída de imagens racistas,
onde não havia lugar para a visão cultura-
lista presente em Freyre, ou para o elogio
do mestiço. Além disso, discutia-se ainda
António Augusto Mendes Correia (1888-1960).
uma certa especificidade própria dos Por-
tugueses, em termos biológicos e de psi-
cologia coletiva, o que não dava espaço a fluência na sociedade portuguesa, como
uma valorização de elementos externos. o presidente da Câmara Municipal do
Nesta fase, entre outros, os discursos de Porto e deputado à Assembleia Nacio-
Mendes Correia alertam para os possíveis nal, Mendes Correia, ou o ministro da
malefícios da mestiçagem e valorizam co- Instrução Pública, Eusébio Tamagnini.
munidades onde os “elementos de cor”, Embora mais tarde Mendes Correia te-
como refere, não são a maioria social, po- nha considerado a miscigenação como
lítica e económica. via subsidiária da colonização, tal expo-
A questão da mestiçagem foi aborda- sição ocorre no contexto pós-Segunda
da no campo literário e científico, mas Guerra Mundial, no qual se verificou
também teve apropriações políticas. Não uma reformulação geral dos discursos,
se pode concluir que os políticos refe- que tinha como objetivo fazer face às
ridos não tomaram uma posição face à pressões internacionais.
miscigenação com base no facto de não O elogio da mestiçagem no contexto
terem existido leis que especificamente português nunca ocorreu efetivamente,
a proibissem, ou no facto de António de quer no que concerne ao seu território
Oliveira Salazar (1889-1970), enquanto europeu, quer, e muito menos, no que
chefe do Governo, não se ter pronun- se refere aos territórios ultramarinos que
ciado contra tal, ou ter referido até que outrora estiveram sob a sua administra-
os Portugueses defendem princípios de ção. O lusotropicalismo limitou-se a ser
igualdade racial (SALAZAR, 1951, 283), uma retórica falaciosa de propaganda
ou ainda que são habilidosos no que con- com motivações políticas. Provavelmente,
cerne à fusão de raças (GARNIER, 1952, e em certa medida, só terá sido aceite e fa-
147). Parte das pessoas que repudiaram cilmente difundido devido a duas razões:
ou desaconselharam a miscigenação vi- porque o debate sobre a miscigenação
nha do campo científico, mas algumas não chegou a ser suficientemente alarga-
também exerceram cargos políticos, e do e porque a conjuntura internacional
estas acabaram por ter uma grande in- que veio pressionar a política portuguesa

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a partir de 1945 conduziu à apropriação no Oriente”, Estudos Coloniais: Revista da Escola


de uma tese que, embora indevida, foi Superior Colonial, vol. ii, 1951, pp. 19-51; Id.,
muito oportuna. Antropologia e História, Porto, Imprensa Portu-
guesa, 1954; Dias, Gastão Sousa, “A mulher
portuguesa na colonização da Angola”, Por‑
tugal Maior. Cadernos Coloniais de Propaganda e
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do Império: Questão Nacional e Questão Colonial pole, 1947; Dias, Jorge, Estudos do Carácter
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Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1953; Lisboa, INCM, 1990; Ferreira, Ana Paula,
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su Colonización, México, Siglo Veintiuno Edi- História, Porto, Campo das Letras, 2004;
tores, Sa, 1980; Benedict, Ruth, Race and Freyre, Gilberto, Aventura e Rotina: Sugestões
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1983; Boxer, Charles, Relações Raciais no guesas de Carácter e de Acção, Lisboa, Livros do
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pp.  331-349; Id., “Fatores degenerativos na ‑111; Id., The Colours of the Empire: Racialized
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Congressos do Mundo Português. Congresso Nacio‑ Oxford/New York, Berghahn Books, 2013;
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Comissão Executiva dos Centenários, 1940, mientos de personas, propaganda de Estado
pp. 577-589; Id., “O mestiçamento nas coló- y imaginación del imperio colonial portu-
nias portuguesas”, in Congressos do Mundo Por‑ gués”, Studia Africana, n.º 24, sec. panorama,
tuguês. Congresso Colonial, vol. xiv, t. 1, sec. 1, 2016, pp. 11-28; Oliveira, José Osório de,
Lisboa, Comissão Executiva dos Centenários, “O negro: contribuição brasileira para o seu
1940a, pp. 113-133; Id., “O mestiçamen- estudo”, O Mundo Português, vol. 1, n.º 4,
to nas colónias portuguesas”, África Médi‑ 1934, pp. 135-138; Id., “A mestiçagem: es-
ca, n.º 12, 1944, sep.; Id., Raízes de Portugal. boço duma opinião favorável”, O Mundo
Portugal “Ex-Nihilo”!... Terra e Independência. Português, vol. 1, n.º 11, 1934a, pp. 367-369;
A Raça, Lisboa, Edição da Revista “Ocidente”, Id., “A suposta inferioridade do mestiço”,
1944a; Id., “A cultura portuguesa na África e O Mundo Português, vol. 6, n.º 62, 1939,

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Ma r g i n a l i d a d e 2167

pp. 57­‑60; Pélissier, René, História das Cam‑


panhas de Angola: Resistência e Revoltas (1845­
Marginalidade
‑1941), Lisboa, Estampa, 1986; Reynold,
Gonzague de, Portugal, Paris, Spes, 1936;
Ribeiro, Orlando, A Colonização de Angola e o
Seu Fracasso, Lisboa, INCM, 1981; Salazar,
António de Oliveira, “A nação portuguesa,
irmandade de povos (11 de julho de 1947)”,
in Salazar, António de Oliveira, Discursos e
Notas Políticas (1943-1950), vol. 4, Coimbra,
Coimbra Editora, 1951, pp. 281-284; San-
E ste conceito, e outros derivados, como
marginal ou marginalização, expres-
sam nos seus múltiplos sentidos uma mes-
ta-Rita, José Gonçalo de, “O contacto das ma bipolaridade. A margem constitui o
raças nas colónias portuguesas: seus efeitos
pólo entendido como negativo, para o
políticos e sociais, legislação portuguesa”, in
Congressos do Mundo Português: Congresso Colo‑ qual são remetidas todas as manifestações
nial, t. 2, sec. 2, Lisboa, Comissão Executiva contrárias ao paradigma dominante, par-
dos Centenários, 1940, pp. 13-70; Saraiva, tindo da leitura metafórica que entende
José Maria Andrade, Perigos Que Ameaçam a as organizações sociais como organismos
Europa e a Raça Branca, s.l., s.n., 1929; Skid- coerentes que funcionam de acordo com
more, Thomas, Preto no Branco: Raça e Na‑ determinados mecanismos e possuem
cionalidade no Pensamento Brasileiro, Rio de
determinados fins, emanados por um
Janeiro, Paz e Terra, 1989; “Statement on
the nature of race and race differences”, in
determinado centro, por contraste com
The Race Concept: Results of An Inquiry, Paris, o qual tudo quanto diverge ou contraria
UNESCO, 1952; Stoler, Ann Laura, Race os valores tidos por modelares é idealiza-
and the Education of Desire: Foucault’s History do como estando à margem do sistema.
of Sexuality and the Colonial Order of Thin‑ Seguindo de perto a leitura de Bronislaw
gs, Durham, Duke University Press, 1995; Geremek, perceberemos que o concei-
Tamagnini, Eusébio, “Os problemas da to de marginalidade pode aplicar-se aos
mestiçagem”, in Trabalhos do I Congresso Na‑
mais distintos contextos, que o autor re-
cional de Antropologia Colonial, Porto, Edições
da I Exposição Colonial Portuguesa, 1934, duz a quatro: a marginalidade económi-
pp.  39­‑63; Vala, Jorge et al., Expressões dos ca, típica dos que não contribuem para
Racismos em Portugal, Lisboa, Imprensa de um determinado sistema produtivo, que
Ciências Sociais, 1999. se torna especialmente relevante a partir
Patrícia Ferraz de Matos do triunfo do capitalismo; a marginalida-
de social, que circunscreve todos aqueles
que, não conseguindo aceder aos domí-
nios mais privilegiados de uma comunida-
de, ficam reduzidos a um amplo quadro
de precariedade social; a marginalidade
espacial ou ecológica, relativa aos grupos
que vivem à margem de um determinado
habitat organizado ou violam as determi-
nações de conservação que lhe estão as-
sociadas; e a marginalidade cultural, en-
quadrando a recusa de aceitar as atitudes,
os comportamentos, os valores religiosos
e morais, os cânones literários estabeleci-
dos pelas várias instituições veiculadoras

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2168 Ma r g i n a l i d a d e

dos ideais de cultura considerados essen- a sua insubmissão e o potencial crítico


ciais para a compreensão, a estabilidade da sua excentricidade face ao padrão, o
e a manutenção histórica de uma deter- que será especialmente relevante, e.g.,
minada comunidade. Geremek resume-o no desenvolvimento do imaginário ar-
considerando que “a condição marginal tístico moderno. Em reação a esse espí-
se caracteriza pela não-participação nos rito orientador que, de acordo com Eric
privilégios materiais e sociais, na divisão Landowski, segmenta a sua intervenção
do trabalho e na distribuição dos papéis em mecanismos de assimilação neutra-
sociais, nas normas e no ethos social domi- lizadora do diferente e de segregação
nantes na sociedade global” e acentuan- marginalizadora do que não é assimilável
do a sua tónica negativa, na medida em (LANDOWSKI, 1997, 21-22), deu-se mui-
que “se refere às realidades da sociedade tas vezes a conjugação de indivíduos em
global e às decisões desta última que de- comunidades que se estruturam em fun-
finem o que é nómico e o que é anómi- ção da proximidade da sua experiência
co, e consequentemente também quem é periférica, resultando, consoante as suas
marginal. São de facto as instituições da características, em seitas, grupos literá-
ordem estabelecida que procedem à ex- rios, gangues criminosos, entre outros.
clusão dos grupos e dos indivíduos con- Os tipos humanos considerados margi-
siderados como inúteis à ordem comum nais conhecem, como referimos, alguma
ou indignos” (GEREMEK, 1999, 190). variação consoante as culturas e as épocas
Sendo, portanto, uma noção resultante que tomemos como exemplos, uma vez
da perspetiva de um determinado núcleo que as tendências condenáveis e recusa-
definidor sobre o quadro que o envolve, das são arquétipos em que se conjugam os
os sentidos da marginalidade, e, por via contra-valores de um determinado ponto
dela, do que é considerado como anor- artificial idealizado, enquanto representa-
malidade, heresia, desvio, perversão, ção da ordem que se pretende alcançar.
patologia ou foco de contaminação, en- Segundo Geremek, “a marginalidade
tre outros sentidos possíveis da questão, supõe a existência de uma organização
diferem de sociedade para sociedade e, social que estabelece certas regras de
dentro de cada uma, acompanham os participação e certas normas de compor-
diferentes ritmos históricos e os pontos tamento cuja transgressão é considerada
de vista de cada época. Em todos os mo- como um ato hostil ao interesse coletivo”
mentos, os marginais são entendidos, de (GEREMEK, 1999, 191). Os tabus e os
acordo com um padrão algo maniqueísta, interditos, mesmo quando mantidos na
como o outro interno que, recusado, re- tradição cultural de uma determinada co-
primido ou segregado, é contudo indis- munidade, e conhecendo, portanto, dife-
pensável para a definição, por contraste, rentes expressões de uma mesma reação
do padrão universal a preservar do con- afim do contrapoder típico da atitude car-
tágio de influências nefastas que coloca- navalesca e do conceito de parte maldita,
riam em causa a sua reprodução ao longo cunhado por Georges Bataille, variam
dos tempos. Daí o peso decisivo dos gran- de intensidade e de enquadramento, en-
des aparelhos da ordem constituída – as quanto alguns tipos negativos são típicos
instituições da religião, da ideologia e do de cada momento histórico, contribuindo
poder político – na constituição de uma para inserir a marginalidade na história,
força repressiva que encara com parti- sofrendo “as suas disjunções e as suas des-
cular hostilidade aqueles que assumem continuidades” (Id., Ibid., 192).

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Ma r g i n a l i d a d e 2169

No decorrer da Idade Média, e.g., em lidade a partir da atribuição de um pré-


que os laços de reconhecimento pela mio da Associação ILGA Portugal a um
comunidade eram indispensáveis para banqueiro português que assumira pu-
a existência social, a condição marginal blicamente a sua opção sexual, atentava
era particularmente incómoda e os seus na necessidade de “lutar para que todos
alcances diversos e flutuantes, constituin- os indivíduos tenham a possibilidade e o
do, de acordo com Humberto Baquero direito de viver a sua sexualidade sem os
Moreno, “nuances contrastantes e refra- constrangimentos impostos pela normati-
tárias a um ordenamento social subor- vidade e pelo preconceito que excluem e
dinado a uma estratificação organizativa reprimem” (GUERREIRO, 2015, 31). De
desse mesmo corpo” (MORENO, 1985, facto, o universo da sexualidade foi um
32). Entre esses focos de divergência, dos que mais persistentemente cristalizou
contavam-se os camponeses que se afasta- os seus paradigmas, pelo menos desde o
vam das suas comunidades para procura- impulso de patologização de fenómenos
rem o espaço urbano, os pobres e os que como o onanismo e a homossexualidade,
não possuíam residência fixa ou caíam na largamente estudado por Michel Fou-
vagabundagem, os criminosos e os degre- cault em obras como História da Sexuali-
dados, as minorias religiosas, os acusados dade ou Les Anormaux.
de feitiçaria e de superstições heterodo- Também as manifestações de corren-
xas, e as vivências da sexualidade conside- tes literárias e artísticas contrárias aos
radas desviantes, da prostituição à concu- sucessivos paradigmas consagrados po-
binagem e à homossexualidade. A partir derão ser lidas de acordo com uma ideia
dos sécs. xvi e xvii, na sequência dos de marginalização cultural, coincidente,
Descobrimentos, dos movimentos refor- muitas vezes, com a oposição política e a
mistas e do progressivo peso cultural do leitura crítica dos principais motivos da
ceticismo, serão sucessivamente integra- atualidade política, religiosa e cultural, e
dos na proteiforme família dos marginais com um discurso que procurava repudiar
os estrangeiros, sobretudo os escravos, as e neutralizar as suas perspetivas hetero-
diferentes confissões protestantes, bem doxas, vanguardistas e renovadoras, por
como os representantes do amplo e mul- via da identificação entre a arte moder-
tifacetado domínio associado às ideias na, o ambiente de boémia e dissidência
libertinas, quer na componente filosofi- sócio-política e os respetivos comporta-
camente questionadora das ortodoxias mentos desviantes, a degenerescência e a
religiosas, sociais e morais, quer na ver- loucura. João Pedro George observa que
tente dos comportamentos sexualmente “a recusa do aburguesamento, símbolo
transgressivos. da renúncia aos valores comuns e às posi-
O universo do fado, e.g., foi um dos ções instituídas, conduziu a uma espécie
principais representantes do imaginário de marginalização assumida, senão mes-
da marginalidade portuguesa durante mo procurada” (GEORGE, 2013, 130),
décadas, conjugando a tradicionalmente que, conhecendo ecos desde o séc. xvi,
ambígua vivência da noite com a indi- se identificaria, a partir do séc. xix, com
gência, a criminalidade e a prostituição. a atitude dos chamados poetas malditos,
Uma crónica de António Guerreiro, de que elevavam a independência artística
9 de janeiro de 2015, na qual se pensava a um ideal de combate às instituições li-
a hipocrisia de determinados discursos terárias e ao pensamento académico e,
contemporâneos sobre a homossexua- mais tarde, designando outras realidades,

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2170 Ma r g i n a l i d a d e

serviria de expressão congregadora das mento especular típico do diálogo entre


produções de minorias étnicas, políticas alteridades conflituosas que mutuamente
e sexuais. Poderemos juntar a este âmbito se recusam e se configuram como outros
outros que têm sido estudados sistemati- radicais dos emblemas associados arqueti-
camente por Arnaldo Saraiva, em que picamente ao inimigo.
cabem obras que vão do texto anónimo,
do texto oral e da literatura dita popular Bibliog.: BALANDIER, Le Désordre: Éloge du
ao vasto domínio da literatura dita porno- Mouvement, Paris, Fayard, 1988; BASTOS,
gráfica, erótica e obscena, transgredindo Susana Pereira,  O Estado Novo e os Seus Va‑
dios, Lisboa, Dom Quixote, 1997; BATAILLE,
uma ideia de cânone enquanto “cataloga-
Georges,  A Parte Maldita Precedido de A Noção
ção [...] feita de acordo com a lógica me- de Despesa, Lisboa, Fim de Século, 2005; FOU-
cânica da tradição ou [...] simplesmente CAULT, Michel, História da Sexualidade, 3 vols.,
em nome de preconceitos” (SARAIVA, Lisboa, Relógio d’Água, 1994; Id.,  Les Anor‑
1995, 18). maux:  Cours au Collège de France (1974-1975),
Apesar da relativa alteração dos enqua- Paris, Gallimard/Seuils, 1999; GEORGE, João
dramentos e dos suportes ideológicos a Pedro,  O Que É Um Escritor Maldito?, Lisboa,
Verbo, 2013; GEREMEK, Bronislaw, “Margi-
partir dos quais evoluíram os discursos
nalidade”, in  Einaudi, vol. 38, Lisboa, INCM,
sobre a marginalidade, o impulso para a 1999, pp. 185-212; GUERREIRO, António,
“produção, repressão e regeneração de “Sexualidade e política”, Ípsilon, 9 jan. 2015,
uma identidade marginal com múltiplos p. 31; LANDOWSKI, Eric, Présences de l’Autre:
rostos” (BASTOS, 1997, 13) permaneceu Essais de Socio-Sémiotique ii, Paris, PUF, 1997;
ativo no imaginário português, concen- MORENO, Humberto Baquero,  Marginalida‑
trando-se ao longo do Estado Novo em de e Conflitos Sociais em Portugal nos Séculos XIV e
XV: Estudos de História, Lisboa, Presença, 1985;
tipos não muito distintos dos observáveis
PAIS, José Machado,  A Prostituição e a Lisboa
desde a Idade Média. Susana Pereira Bas-
Boémia do Século XIX aos Inícios do Século XX, Lis-
tos assinala “o papel das elites e de cer- boa, Querco, 1985; SARAIVA, Arnaldo, Litera‑
tos discursos dominantes na criação das tura Marginalizada: Vanguarda, Tradução, Crítica,
identidades desviantes e na sua exclusão Literatura Pobre, Linguagem e Política, Gralha: so‑
das malhas sociais”, analisando o meca- bre o Slogan “o Povo Unido jamais Será Vencido”,
nismo pelo qual os indigentes acumulam Porto, s.n., 1975; Id., “O conceito de litera-
os traços negativos tradicionais “de serem tura marginal”, Discursos, n.º 10, maio 1995,
pp. 15-23.
‘impuros’, ‘imorais’, ‘ociosos’, ‘perigo-
sos’” (Id., Ibid., 61). Rui Sousa
A moralidade, a inadequação a um
determinado ideal de produtividade ti-
picamente iluminista, o facto de repre-
sentarem potenciais focos de contágio,
e de a qualquer momento serem prová-
veis núcleos de contestação ideológica,
são certamente pilares constantes e que,
quando conjugados com o domínio das
artes, propiciam o desenvolvimento de
outro aspeto decisivo: a escolha da mar-
ginalidade como forma de combate ou
meramente de recusa individual ou cole-
tiva dos valores padronizados, num movi-

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Modernidade 2171

Modernidade para o que chamam Modernidade clás-


sica, que se prolongaria até ao início do
séc. xx, para Marshall Berman, ou até
ao começo da Primeira Grande Guerra,
em 1914, no caso de Eric Hobsbawm.
O filósofo Jean-François Lyotard encon-
tra no final da Segunda Grande Guerra e

D erivado do termo latino “moderni-


tas”, que, por sua vez, tem origem no
termo “modo” (traduzível por “desde já”,
na queda do Muro de Berlim os indícios
de uma nova idade, o pós-modernismo;
o sociólogo Anthony Giddens fala de
“neste momento”), “modernidade” desig- uma “alta Modernidade”; Zigmunt Bau-
na genericamente a qualidade daquilo man, de uma Modernidade líquida.
que é novo ou recente. Por isso, o concei- Grosso modo, as fronteiras da Moderni-
to é muitas vezes associado a fenómenos dade parecem depender da reflexão que
que determinado grupo ou indivíduo en- cada autor desenvolve acerca das deriva-
tendem como inovadores ou distintos. ções do projeto moderno ou de alguns
Nas ciências sociais e humanas, o dos seus aspetos, nomeadamente: a emer-
termo tem designado, mais ou menos gência de um pensamento individual e
consensualmente, o grande período his- autónomo, fundado na razão; o pensa-
tórico que sucede a Idade Média e se es- mento de uma política e de um direito
tende até ao séc. xx ou até ao séc. xxi. humanos, isentos da lei e do poder divi-
Entretanto, as fronteiras temporais atri- nos; o desenvolvimento tecnológico e a
buídas ao período variam amiúde, em industrialização; a emergência do sistema
função de inúmeros elementos, como de produção capitalista; a globalização.
o tempo histórico e a ideologia do au- Contudo, a crítica também alertou para
tor, a sua área de estudo, e as realidades os problemas que a periodização macro­
políticas, geográficas e culturais que ele ‑histórica encerra, apesar da sua manifes-
toma em consideração. Assim, o início ta utilidade pedagógica e propedêutica.
da Idade Moderna tem sido identificado Entre eles, encontra-se o facto de as suas
com fenómenos mais ou menos difusos categorias serem reproduzidas, muitas
no tempo, como os primeiros impulsos vezes de forma pouco escrutinada, por
da Reforma Cristã, a emergência da arte estudiosos de diferentes épocas, prolon-
renascentista, a conquista de Constan- gando preconceitos e visões deturpadas
tinopla pelo Império Otomano (1453), acerca de acontecimentos ou fases histó-
ou a chegada de Cristóvão Colombo à ricas, generalizando uns aspetos em detri-
América (1492). mento de outros, e elidindo fenómenos
No que respeita à delimitação deste de continuidade. Para além disso, esta
período, os autores dividem-se conside- periodização tem sido também criticada
ravelmente. Com base na historiografia por traduzir uma visão eurocêntrica do
positivista, ao longo do séc. xx tem sido mundo, que atribui aos grandes impérios
comum estabelecer-se a Revolução In- europeus um papel cimeiro na condução
dustrial ou a Revolução Francesa como dos desígnios de todos os humanos, ao
termo da Modernidade e início da Idade mesmo tempo que reproduz narrativas
Contemporânea. Outros autores, por seu de progresso e de civilização uniformiza-
turno, entendem a Revolução Francesa doras, que impõem uma lógica de com-
como momento marcante de transição petição entre nações.

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2172 Mundividência

A ponderação de uma Modernidade


portuguesa suscita também questões me-
Mundividência
todológicas específicas, quando olhada
à luz da Modernidade europeia. Muito
sinteticamente, ela implicará manter um
equilíbrio difícil entre o estudo da forma
como a intelectualidade e os poderes por-
tugueses interagiram com as ideias que
vigoravam na Europa, e a atenção à espe-
cificidade do contexto português.
N a sua obra Os Tipos de Concepção do
Mundo, Wilhelm Dilthey defende
que as diversas mundividências, apesar
do seu antagonismo e das suas diferen-
Bibliog.: BARRETO, Luís Filipe, Caminhos do ças – sublinhemos, aliás, que o termo
Saber no Renascimento Português: Estudos de His‑ “mundividência” é uma das traduções
tória e Teoria da Cultura, Lisboa, INCM, 1986; possíveis para Weltanschauung –, se cons-
BAUMAN, Zigmunt, Liquid Modernity, Cam­
troem segundo dois ou três momentos
bridge, Polity Press, 2000; BERMAN, Mar-
shall, All That Is Solid Melts into Air: the Experience diversos que se repetem em todas elas,
of Modernity, New York, Simon and Schuster, mesmo nas aparentemente mais afasta-
1982; BESSERMAN, Lawrence L. (org.), The das. Todas partem, em primeiro lugar,
Challenge of Periodization: Old Paradigms and New daquilo a que Dilthey chama “enigma da
Perspectives, New York/London, Garland Pub- vida”, que mais não é, de facto, do que
lishing, 1996; DIAS, José Sebastião da Silva, o enigma da finitude, ou seja, o facto in-
Portugal e a Cultura Europeia (Séculos XVI a XVIII),
compreensível da morte. Este enigma da
Porto, Campo das Letras/Fondazione Cassa-
marca, 2006; FRANCO, José Eduardo, e CA- vida, por sua vez, dá lugar ao que Dilthey
LAFATE, Pedro (orgs.), A Europa segundo Portu‑ intitula “disposições vitais” – que podería-
gal. Ideias de Europa na Cultura Portuguesa, Século mos colocar na esteira das afeções funda-
a Século, Lisboa, Gradiva, 2012; GIDDENS, mentais, das Stimmungen de Heidegger,
Anthony, e PIERSON, Christopher, Conversa‑ i.e., das diversas formas de afetividade
tions with Anthony Giddens: Making Sense of Mo‑ que abrem o mundo enquanto tal. Como
dernity, Stanford, Stanford University Press, afirma Dilthey: “Estas disposições vitais,
1998; GREEN, William A., “Periodization in
os inúmeros matizes da posição perante
european and world history”, Journal of World
History, vol. 3, n.º 1, 1992, pp. 13-53; HOBS- o mundo, constituem o estrato inferior
BAWM, Eric, A Era das Revoluções, Lisboa, Pre- para a formação das mundividências”
sença, 1985; LYOTARD, Jean-François, A Con‑ (DILTHEY, s.d., 14). No entanto, não
dição Pós-Moderna, Lisboa, Gradiva, 1989. chegam estas disposições afetivas para
Ricardo Ventura a formação das mundividências e é ne-
cessário o estabelecimento de todo um
conjunto de conexões que têm que ver
com a história, o clima, a região, a cul-
tura, etc., para que surja uma particular
cosmovisão: “Ao longo do percurso dos
estádios da conduta afectiva constitui-se,
por assim dizer, uma segunda camada na
estrutura da mundividência: a imagem
do mundo transforma-se em fundamento
da valoração da vida e da compreensão
do mundo” (Id., Ibid., 16).

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Mundividência 2173

metafísico, a poesia preenche uma função


necessária neles. É nela, defende Dilthey,
que se encontra condensado o enigma da
vida: “A poesia não pretende conhecer a
realidade como a ciência, mas deixar ver
o significado do acontecimento, dos ho-
mens e das coisas, que reside nas referên-
cias vitais; o enigma da vida concentra-se
aqui, pois, numa conexão interna dessas
referências vitais tecidas a partir dos ho-
mens, dos destinos e da ambiência da
vida” (Id., Ibid., 24).
Se a poesia, seguindo aqui Dilthey uma
tradição romântica, tem este lugar privi-
legiado em qualquer mundividência, é
igualmente certo que ela nos permite in-
terrogar mais de perto o próprio concei-
to de Weltanschauung. Porque, de facto,
este lugar privilegiado conferido à poesia
é algo de controverso: numa carta a Ver-
laine, Mallarmé, seguindo aliás uma pista
aberta por Baudelaire, fala da sua época
Stéphane Mallarmé (1842-1898). como “um interregno para o poeta que
não tem que se meter” (GUSMÃO, 2010,
Apesar de a abertura do mundo, o seu 17). Esta perda da auréola por parte do
desvelamento, já surgir no primeiro mo- poeta e da poesia – que se vê remetida
mento, é apenas neste segundo momento a um exílio, muitas vezes procurado ou
que o mundo enquanto tal surge e apare- desejado – vem abalar o próprio concei-
cem os seus modos de compreensão fun- to de mundividência, na medida em que
damentais – relacionados com determi- a poesia seria o ponto de articulação en-
nações éticas (como agir, o que é o bem, tre os acontecimentos singulares e a sua
etc.), com determinações ontológicas “confluência com o mundo circundante e
(qual o lugar do outro, e.g., o valor do real, com o destino (que se convertem nela, na
etc.), determinações epistemológicas, etc. experiência da vida) num saber objetual
“Esta (a mundividência) consiste sempre e universal” (Id., Ibid., 12). Na realidade,
numa conexão em que, sobre a base de depois de Baudelaire a poesia já não se co-
uma imagem cósmica, se decidem as ques- loca nesse lugar de transição que constitui
tões acerca do significado e do sentido da a experiência da vida, na medida em que
vida e daí deduzem o ideal, o sumo bem, foi a própria experiência que sofreu um
os princípios supremos da conduta da grande abalo. Como nos dá conta Walter
vida” (Id., Ibid., 15). Benjamin: “É cada vez mais manifesto o
Apesar de Dilthey reconhecer que as di- embaraço num grupo de pessoas quan-
versas mundividências se recortam segun- do alguém pede para ouvir uma história.
do três grandes tipos – religiosas, poéticas É como se uma valiosa capacidade que
e metafísicas – e de, de certa forma, confe- parecia inalienável, a mais segura entre as
rir um maior grau de generalidade ao tipo que eram seguras, nos tivesse sido retirada:

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2174 Não lugares

a capacidade de trocar experiências”


(BENJAMIN, 2015, 148).
Não lugares
Esta incapacidade de contar uma histó-
ria não diz respeito, apenas, a uma incapa-
cidade ficcional por parte da contempora-
neidade do poeta, mas diz qualquer coisa
em relação ao conceito de experiência em
geral, que se teria entretanto perdido, se-
gundo Walter Benjamin, nos escombros
da Primeira Guerra Mundial. E, com ela, é
Perspetiva da antropologia
a própria mundividência que se encontra A antropologia do próximo, atenta ao
em causa, já que, como vimos, esta apela quotidiano e ao mundo contemporâneo,
para uma primeira abertura do mundo. disciplina que foi objeto de construção e
Como refere Giorgio Agamben, ao falar de reflexão desde a déc. de 80 do séc. xx,
das Stimmungen: “A nossa sensibilidade, os obteve por parte do etnólogo e antropó-
nossos sentimentos, já não nos prometem logo francês Marc Augé (n. 1935) um for-
nada: sobrevivem ao nosso lado, fausto- te interesse, consistente com a sua atitude
sos e inúteis como animais domésticos analítica e inquiridora de campos e pon-
de apartamento. E a coragem – perante a tos de vista menos tradicionais, que não
qual o niilismo imperfeito do nosso tempo obtiveram, no início, a completa adesão
não cessa de bater em retirada – consistiria do mundo da antropologia clássica e his-
precisamente em reconhecer que já não tórica. Publicações como La Traversée du
temos estados de alma, que somos os pri- Luxembourg (1985), Un Ethnologue dans le
meiros seres vivos não afinados por uma Métro (1986) ou Pour Une Anthropologie du
Stimmung, os primeiros seres humanos, Monde Contemporain (1994), em conjunto
por assim dizer, absolutamente não mu- com os seus trabalhos sobre as sociedades
sicais: somos sem Stimmung, ou seja, sem sul-americanas e africanas, procuram fa-
vocação” (AGAMBEN, 1999, 87). zer convergir o interesse dos etnólogos
Esta ausência de mundo, que marcaria, do distante no tempo e no espaço com
não a nossa condição, mas o lugar onde se o interesse dos estudiosos do aqui, da
encontra o nosso tempo, tem também o proximidade.
seu reverso violento: só sob a forma de uma Augé analisa o mundano e a formação
radicalização é que, no começo do séc. xxi, dos processos de significação da socieda-
podemos abraçar mundividências. de, repensando os conceitos fulcrais da
antropologia e dotando esta ciência de
um novo campo de pesquisa, ainda que
Bibliog.: impressa: AGAMBEN, G., Ideia da Pro‑ complexo e com objetos de difícil estudo,
sa, Lisboa, Livros Cotovia, 1999; BENJAMIN,
dada a constante circulação, mobilidade
W., Linguagem, Tradução, Literatura, Lisboa, Assí-
rio e Alvim, 2015; GUSMÃO, M., Tatuagem & e transformação do mundo. Consideran-
Palimpsesto: da Poesia em Alguns Poemas e Poetas, do que as culturas são dinâmicas e que
Lisboa, Assírio e Alvim, 2010; digital: DIL- nenhum indivíduo é isento de alterida-
THEY, W., Os Tipos de Concepção do Mundo, s.d.: de, Augé defende que os indivíduos po-
https://www.lusosofia.net/textos/dilthey_ti- dem ser estudados como interdependen-
pos_de_concep_ao_do_mundo.pdf. (acedido tes, como verdadeiras totalidades, não
a 27 nov. 2017)
no sentido que lhe deu Marcel Mauss,
João Duarte de “fait social total [facto social total]”

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Não lugares 2175

(MAUSS, s.d., 102), mas como uma totali-


dade sem um espaço e tempo fixos e com
um sistema semiótico fechado, como ex-
plica Mark Matienzo. Assim, o aqui, a his-
tória e a identidade individual, o que está
próximo, por oposição ao que está longe,
as intersecções, as imagens e os olhares,
as fronteiras e os limites são conceitos en-
tendidos como passíveis de serem explo-
rados de forma válida pela antropologia
do próximo, no sentido de permitirem
retratar e compreender as práticas sociais
do homem moderno.
A análise da modernidade urbana, a D.R.

reflexão sobre os contributos para o pen-


samento do quotidiano de Michel de Cer- Marc Augé (n. 1935).
teau (1925-1986), em particular L’Inven-
tion du Quotidien. 1. Arts de Faire (1980), car no Homem um sentido de pertença e
conduzem Marc Augé ao desenvolvimen- de identidade e sem interação do indiví-
to da teoria dos não lugares, sobre a qual duo com os outros. Não são, no entanto,
publica, em 1992, Non Lieux. Introduction lugares vazios, abandonados, ou terrenos
à Une Anthropologie de la Surmodernité. Os desabitados, mas instalações dedicadas à
não lugares constituem os espaços carac- circulação acelerada das pessoas, pontos
terísticos da superestrutura da sobremo- de trânsito, espaços de ocupação provisó-
dernidade, marcada pelo excesso de tem- ria exigidos pelo (e cônsonos com o) vi-
po, de espaço e de individualidade, que, ver dos começos do terceiro milénio. No
no seu conjunto, cria e se manifesta numa sentido tradicional, o lugar antropológi-
conjuntura definida pela superabundân- co não só fixa a cultura num dado espaço,
cia, pela aceleração e pelo anonimato. Ao mas dá também significado e identidade
contrário da noção do lugar antropoló- a todas as entidades que nele residem.
gico, que representa um tempo passado Numa sociedade marcada pela saturação
(geográfico, histórico, relacional e iden- e exaltação, pelo consumismo e excesso,
titário), o não lugar acentua as transfor- os espaços apresentam limites fluidos,
mações que se operaram e ocorrem na pouco definíveis, o que os distingue dos
sociedade contemporânea, no presente e lugares antropológicos, marcados por li-
num provável futuro; i.e., se o lugar an- mites de identidade e de história. Os não
tropológico representa o que a sociedade lugares não podem, assim, ser definidos
e as relações entre os indivíduos foram, através de um ponto de vista relacional,
o não lugar retrata o que somos e o que histórico ou identitário (“un espace qui
poderemos vir a ser. ne peut se définir ni comme identitaire,
Vias rápidas, aeroportos, quartos de ni comme relationnel, ni comme histori-
cadeias de hotéis, grandes superfícies co- que se définira comme un non-lieu [um
merciais, restaurantes de cadeias de fast espaço que não se possa definir nem
food, campos de trânsito de refugiados são como identitário, nem como relacional,
não lugares da sobremodernidade, espa- nem como histórico será definido como
ços-tempo efémeros, sem o poder de evo- um não lugar]” [AUGÉ, 1992, 100]),

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2176 Não lugares

sendo apenas espaços criados para fins


específicos numa sociedade prevalente-
mente supermoderna, e que satisfazem
necessidades quer individuais quer sociais.
A relação de referência (social, históri-
ca, semiótica, de memória, e, por vezes,
de várias camadas de memória) com o
lugar deixa de existir nos não lugares,
ainda que não se possa ignorar o facto de
não existirem formas puras de não luga-
res, já que, como esclarece Augé, lugares
e não lugares interpenetram-se na reali-
dade concreta, e o Homem, geralmente,
move-se do não lugar para o regresso ao
lugar: “Le lieu et le non-lieu sont plutôt
des polarités fuyantes: le premier n’est
jamais complètement effacé et le second
D.R.

ne s’accomplit jamais totalement – pa-


Michel de Certeau (1925-1986).
limpseste où se réinscrit sans cesse le jeu
brouillé de l’identité et de la relation
[O lugar e o não lugar são antes polarida- 1984, XVII]), quer ainda dos lugares que
des fugidias: o primeiro nunca está com- se poderiam intitular de narrativa, os que
pletamente apagado e o segundo nunca contam uma história de interpelação, in-
se realiza totalmente – palimpsesto onde terpretação e inter-relação. Os homens
se reinscreve incessantemente o jogo tur- passam uns pelos outros nos não lugares
vo da identidade e da relação]” (Id., Ibid., sem se tocarem, sem interagirem, sendo
100-101). O conceito de não lugar afasta­ a maior parte das vezes levados de um es-
‑se quer do “lieu pratique [lugar prático]” paço para outro, numa superabundância
de Certeau, “selon lequel des éléments de elementos espaciais, temporais e iden-
sont distribués dans des rapports de coe- titários, num mundo sem sólidas referên-
xistence [segundo o qual há elemen- cias espaciais, que, portanto, não permite
tos que são distribuídos em relações de a inter-relação duradoura e significativa.
coexistência]” (CERTEAU, 1980, 208), A sobremodernidade encontra-se, para
quer do lugar “monumentalizado”, que Augé, marcada pela conceção do tempo
requer reconhecimento memorial, como como aceleração, e, por isso, incapaz de
os “lieux de mémoire [lugares de memó- funcionar como princípio de inteligibili-
ria]” de Pierre Nora (“un lieu de mémoi- dade, pelo excesso de eventos, momentos
re dans tous les sens du mot va de l’objet e estímulos, pela ideia da multiplicidade
le plus matériel et concret, éventuelle- e sobreposição de espaços – num mundo
ment géographiquement situé, à l’objet que possibilitou o conhecimento geográ-
le plus abstrait et intellectuellement cons- fico e antropológico, mas fez o planeta
truit [um lugar de memória, em todos os mais pequeno (“De l’excès d’espace nous
sentidos do termos, vai do objeto mais pourrions dire d’abord, là encore un
material e concreto, eventual e geografi- peu paradoxalement, qu’il est corrélatif
camente situado, ao objeto mais abstrato du rétrécissement de la planète: de cette
e intelectualmente construído]” [NORA, mise à distance de nous-mêmes à laquelle

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correspondent les performances des cos- cia simultânea do presente perpétuo e do


monautes et la ronde des satélites [Sobre reencontro de si]” [Id., Ibid., 132]). Ora,
o excesso de espaço, poderíamos dizer não sendo um lugar um aparato ou con-
em primeiro lugar, e também de forma ceito, algo pré-existente, que sirva como
um tanto paradoxal, que é correlativo do princípio de inteligibilidade para quem
encolhimento do planeta, desse distan- observa e de significado para quem o ha-
ciamento de nós próprios ao qual cor- bita, depende do profundo investimento
respondem os desempenhos dos cosmo- de um eu em conjunto com a comunida-
nautas e a ronda dos satélites]” [AUGÉ, de: de facto, são os atos coletivos da exis-
1992, 40]) –, em que a globalização, ao tência que o constroem e inauguram.
ir tornando obsoletas as oposições entre O homem da sobremodernidade vive
lugares, entre o eu e os outros e o aqui e uma crise de significados pela impossi-
o lá, transforma, ao mesmo tempo, o con- bilidade de compreender a totalidade
ceito de espaço próprio; este é mais indi- do presente, pelo excesso e pela supe-
vidualizado, no sentido de interiorizado rabundância. No entanto, o verdadeiro
de forma isolada, e menos coletivo. Os drama, como afirma ainda Augé, existe
não lugares, não podendo ser definidos porque o Homem sente a necessidade
como relacionais, históricos e com po- intrínseca e intensa de dar significado
tencialidade identitária, mantêm sempre ao mundo, de o imbuir de sentidos, mes-
uma relação com o indivíduo no que toca mo quando transita pelos não lugares:
ao usufruto de uma função – a mobilida- “Ce qui est nouveau, ce n’est pas que le
de, o comércio, o entretenimento –, mes- monde n’ait pas, ou peu, ou moins de
mo que esta seja marcada pela diminuta sens, c’est que nous éprouvions expli-
dimensão social, pela efemeridade fun- citement e intensément le besoin quo-
cional e pela aleatoriedade das relações tidien de lui en donner un: de donner
estabelecidas entre os homens. un sens au monde, non à tel village ou
Uma outra característica da supermo- à tel lignage. Ce besoin de donner un
dernidade e do não lugar é, justamente, sens au présent, sinon au passé, c’est la
a do domínio do ego, a par, singularmen- rançon de la surabondance événemen-
te, do anonimato. O indivíduo reconcep- tielle qui correspond à une situation que
tualiza-se no espaço: centrado nas suas nous pourrions dire de ‘surmodernité’
necessidades, o Homem procura os não pour rendre compte de sa modalité es-
lugares pela sua funcionalidade, mas, ao sentielle: l’excès [O que é novo não é
frequentá-los, fá-lo de forma solitária, às que o mundo não faça sentido, ou faça
vezes sem interação humana, sem inves- pouco ou menos sentido, mas que expe-
timento emocional e numa situação de rimentemos, explícita e intensamente, a
anonimato (“Assailli par les images que necessidade quotidiana de lhe conferir
diffusent surabondamment les institu- sentido: de conferir sentido ao mundo, e
tions de commerce, des transports ou não a esta ou àquela aldeia ou linhagem.
de la vente, le passager des non-lieux fait Esta necessidade de dar sentido ao pre-
l’expérience simultanée du présent per- sente, ou mesmo ao passado, é o resgate
pétuel et de la rencontre de soi [Assalta- da superabundância de acontecimentos
do pelas imagens que as instituições de que corresponde a uma situação a que
comércio, dos transportes ou da venda podemos chamar de ‘sobremodernida-
difundem de forma superabundante, o de’, para dar conta de sua modalidade
passageiro dos não lugares faz a experiên- essencial: o excesso]” (Id., Ibid., 40-42).

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Os não lugares, por isso, podem indu- que interpreta o não lugar como concei-
zir um sentimento de dissociação, de fal- to de transição, ambíguo, todavia aberto a
ta de coordenadas, de não construção de nova reflexão e a novos desenvolvimentos,
espaços concretos e simbólicos na vida in- na senda de Buchanan, Peter Osborne e
dividual e na vida coletiva, como adverte Bruno Bosteels. Neste último, o autor in-
Ian Buchanan. Não é, todavia, uma men- clui os que designa como expansionistas,
sagem negativa a análise de Marc Augé, aqueles pensadores e estudiosos que não
já que retrata a supermodernidade como limitam o não lugar à esfera dos espaços
possibilidade de união de antigo e novo de trânsito (Merriman, Ayse Boren, Chia-
e de coexistência de indivíduos distintos, ra Libera, Tim Gregory).
mas similares: “L’espace du non-lieu ne No seguimento da teoria dos não luga-
crée ni identité singulière, ni relation, res, vários estudiosos propuseram novas
mais solitude et similitude. Le non-lieu perspetivas, como o espanhol Manuel
est le contraire de l’utopie: il existe et Castells, com o conceito de espaços de
n’abrite aucune société organique. Néan- fluxos, desenvolvido em La Era de la In-
moins, l’errance individuelle, dans la formación, e centrado no mundo da in-
réalité d’aujourd’hui comme dans le my- formação em rede, e a Italiana Daniela
the d’hier, reste porteuse d’attente sinon Marcheschi, que, em 2013, propôs o con-
d’espoir [O espaço do não lugar não cria ceito de interlugar no I Simpósio Interna-
identidade singular nem relação, mas cional Que Saber(es) para o Século XXI?
solidão e semelhança. O não lugar é o História, Cultura e Ciência na/da Madei-
contrário da utopia: existe e não alberga ra, realizado no Funchal, e sobre o qual
uma sociedade orgânica. No entanto, a escreveu em 2015. Partindo da ideia de
errância individual, na realidade de hoje Augé, de que existem diversos graus de
como no mito de ontem, continua a ser relação, a estudiosa dialoga com o concei-
portadora de espera, e mesmo de espe- to de não lugar, admitindo a possibilidade
rança]” (Id., Ibid., 130). O perigo está na de lugares de trânsito ou de tantos outros
indiferença que possa intrometer-se en- espaços/tempos nos quais se estabelecem
tre estes indivíduos, i.e., em que que a sua relações – não próximas, mas ainda assim
interação não crie lugares. relações – durante as quais o Homem
O conceito de não lugar desenvolvido nunca deixa de ver, perceber e refletir.
por Marc Augé não teve uma receção úni- Esta condição antropológica de ligação
ca e homogénea por parte dos estudiosos, com o mundo permite que pensemos,
sendo por alguns considerado contraditó- imaginemos e sintamos o lugar como
rio e ambíguo. Erdem Üngür sistematiza base essencial de qualquer ação ou movi-
e divide as interpretações e o uso do con- mento: “Luoghi ed interluoghi non sono
ceito em três grupos: o grupo que enten- dunque polarità. Ma piuttosto proiezioni
de Augé como existencialista, no sentido incessanti del nostro Io corporeo [Luga-
heideggeriano, e como um metafísico res e não lugares não são, portanto, pola-
sedentarista, a que pertencem Ian Bucha- ridades, mas antes projeções incessantes
nan, Judith Okely e Ilke Tekin; o que o vê do nosso Eu corpóreo]” (MARCHESCHI,
como pioneiro no campo da antropolo- 2015, 31) que habita a Terra, lhe dá senti-
gia, abrindo caminho a novas possibilida- do e dela recebe sentido.
des na era da sobremodermidade, como Considerando as diversas reflexões,
defendem Tim Creswell e Buchanan; e análises, reconstruções e propostas que
um grupo, mais alargado e heterogéneo, o conceito de Marc Augé produziu no

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campo da antropologia, pode-se verificar existe na ausência, presença que se sente


a importância e centralidade da sua con- nas marcas, nos traços, nas sombras, nas
tribuição no que toca ao pensamento so- pegadas, na cinza e no pó, restos do que
bre o que nos está próximo, sublinhando foi. Se o génio do lugar evoca o poder
a centralidade da necessidade de enten- do lugar, as marcas do que ruiu, foi des-
der e analisar a contemporaneidade para truído, se queimou evocam o não lugar,
que se possa pensar o presente e o futuro. porque através dos traços deixados da
vida que já foi se pode entrever a vida do
lugar-antes. A partir da leitura das obras
Perspetiva das artes do artista italiano Claudio Parmiggiani,
Com o conceito de génio do lugar, Mi- autor de uma série de instalações inti-
chel Butor quis expressar o poder único tulada Delocazione, nas quais usa figuras
que uma cidade ou um lugar exerce no de tempo e ausência recorrendo ao pó,

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