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dos
antis
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Direção De
dicionário
dos
antis
A Cultura Portuguesa em Negativo
CoorD enaç ão De
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Imprensa Nacional
é a marca editorial da
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A.
Av. de António José de Almeida
1000-042 Lisboa
www.incm.pt
www.facebook.com/INCM.Livros
prelo.incm.pt
editorial.apoiocliente@incm.pt
Título
Dicionário dos Antis: A Cultura Portuguesa em Negativo – Volume 1
Direção
José Eduardo Franco
Coordenação
Adelino Cardoso, Aida Sampaio Lemos,
António Castro Henriques, Carlos Fiolhais,
Helena Mateus Jerónimo, João Relvão Caetano,
Joaquim Pintassilgo, José Carlos Lopes de Miranda,
Luís Machado de Abreu, Luiz Eduardo Oliveira,
Manuel Curado, Manuel Marques, Micaela Ramon,
Pedro Barbas Homem, Ricardo Ventura
Design, Capa e Paginação
António Rochinha Diogo | ARD-Cor
Edição e Revisão
Maria José Figueiredo (coord.),
Álvaro Almeida, Milene Alves, Vanda Figueiredo
Impressão e Acabamentos
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
1.ª edição
Setembro de 2018
isbn
978-972-27-2716-7
Depósito Legal
443944-18
Edição
1020391
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SUMÁRIO
NOtA EDItORIAL
Duarte Azinheira
vii
PREFÁCIO
Fabrice d’Almeida
ix
ORGANIGRAMA
xiii
ABREVIAtURAS E SIGLÁRIO
xxv
INtRODUÇÃO
xxxi
DICIONÁRIO
1
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vi
ELUCIDÁRIO
DE CONCEItOS E CORRENtES AFINS
1945
À LAIA DE ANtIPREFÁCIO
António Araújo
2299
ÍNDICE GERAL
2305
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NOTA EDITORIAL
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viii
Duarte Azinheira
Diretor da INCM
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pREfÁcIO
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xii
Fabrice d’Almeida
Professor catedrático da Université Paris II,
Panthéon-Assas
Antigo diretor do Institut d’Histoire
du temps Présent de Paris
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ORGANIGRAMA
DIREçãO:
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xiv
SEcRETARIADO EXEcUTIVO:
Carolina Soares
Cristiana Lucas Silva
Helena Costa Carvalho
Luís Pinheiro
Mariana de Soveral Gomes da Costa
Rita Balsa Pinho
Sofia A. Carvalho
Vanda Figueiredo
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xvi
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TÁBUA DE AUTORES
E fILIAçãO INSTITUcIONAL
Anamarija MARINOVIC
Ana Caldeira FOUtO
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa/
(tHD, Faculdade de Direito, universidade de Lisboa) Faculdade de Filologia, universidade de Belgrado)
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xviii
Diogo DUARtE
Beatriz MIRANDA
(universidade nova de Lisboa/iHC, Faculdade de Ciências
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) sociais e Humanas)
Bruno VENÂNCIO
Ernesto RODRIGUES
(ieF, universidade de Coimbra/CLePuL, Faculdade de
Letras, universidade de Lisboa) (CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
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xix
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TÁBUA DE cONSULTORES
E fILIAçãO INSTITUcIONAL
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xxiv
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ABREVIATURAS
E SIGLÁRIO
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INTRODUçãO
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as imagens que têm de nós os que menos nos querem e apreciam; ou ainda,
como se recebêssemos a nossa biografia negativa, uma narrativa produzida
por aqueles que nos detestam. Parece uma obra estranha. É verdade. to-
davia, o negativo também faz história, também faz cultura, e não podemos
desconhecê-lo nem desconsiderá-lo, pois ele é um elemento constitutivo do
processo de construção da nossa identidade, quando não parte integrante
da mesma.
Com efeito, aquilo que estudiosos como François Hartog bem designa-
ram como a “retórica da alteridade” é uma componente estruturante da
construção das culturas da identidade, onde o outro se constitui como con-
traponto, o espelho necessário e instrumental do processo de mapeamento
do nós. Com melhores palavras reflete Hartog sobre este papel fundamen-
tal e fundante da alteridade: “Dizer o outro é enunciá-lo como diferente – é
enunciar que há dois termos [...]. Desde que a diferença é dita e transcrita,
torna-se significativa, já que é captada nos sistemas da língua e da escri-
ta. Começa então esse trabalho, incessante e indefinido como o das ondas
quebrando na praia, que consiste em levar do outro ao próprio. A partir
da relação fundamental que a diferença significativa instaura entre os dois
conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das nar-
rativas” (HARtOG, 2014, 243).
Este Dicionário pretende, pois, apresentar o resultado da investigação
e da análise crítica das correntes e dos discursos centrados numa perce-
ção negativa dos outros (o judeu, o padre, o inglês, o muçulmano, o caste-
lhano...) na história de Portugal, desde o séc. xii até aos nossos dias; esta
abordagem permitirá compreender em que medida tais discursos criaram e
demonizaram diferenças. trata-se de apresentar a história da cultura numa
imagem em negativo, para empregar uma metáfora fotográfica.
Como acontece com as nações mais antigas, a cultura e a história de
Portugal conheceram numerosos discursos e práticas que antagonizavam
outros. Apesar dos seus diferentes veículos e impactos, todos estes discur-
sos (que designamos por anti) têm recorrido a diversas estratégias para
apresentar a mundividência, o estilo de vida, as crenças e a ideologia de
outros como ameaças aos valores positivos de cada sociedade. Na medida
em que respondem a debates ideológicos em curso ou a conflitos e tensões
existentes entre grupos, classes, etnias, géneros e religiões, estes discursos
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estes casos, existe uma perceção em negativo do outro que deriva de uma
compreensão positiva do nós.
Há pouco anos, Umberto Eco fez uma tentativa brilhante de desconstru-
ção de algumas correntes de complô célebres, que prosperaram no séc. xix
e nos princípios do séc. xx. O seu romance O Cemitério de Praga e o livro de
ensaios complementar, Construir o Inimigo, relevam o sucesso e a prolifera-
ção de uma cultura de combate e dos seus discursos, que fundam as teorias
da conspiração da história moderna e contemporânea. Eco argumenta que
a queda e a ascensão de regimes, a sucessão de correntes culturais e ideoló-
gicas, o nascimento de novas instituições em concorrência com instituições
seculares, a hegemonia de umas etnias e confissões religiosas sobre outras
suscitaram poderosos discursos de construção do inimigo como estratégia
de afirmação, de diferenciação identitária, de legitimação e de conquista
de espaço social, político e simbólico. Os discursos de complô e o recurso
intensivo que se tem feito a esta estratégia propagandística nas sociedades
modernas e contemporâneas colocam o imaginário construído em torno
do inimigo como um património cultural importante que também faz parte
inseparável da história do outro, objeto de ataque e de mitificação. Escreve
Eco que o inimigo é um elemento instrumental incontornável: “Parece que
não se pode passar sem o inimigo. A figura do inimigo não pode ser abolida
dos processos civilizacionais. A necessidade é congénita, mesmo no homem
brando e amigo da paz. Nos nossos dias, a imagem do inimigo é transferida
sobretudo de um objeto humano para uma força natural ou social, que de
algum modo nos ameaça e que tem de ser vencida, seja ela a exploração
capitalista, a poluição ambiental, a fome no terceiro Mundo. Mas, mesmo
que estes sejam casos ‘virtuosos’, como nos recorda Brecht, também o ódio
à injustiça desfigura o rosto” (ECO, 2011a, 31).
Os discursos anti no seu conjunto permanecem território desconhe-
cido. Um primeiro ensaio de estudo dos mais familiares (Antissemitismo,
Anticlericalismo, Anti-islamismo, Antijesuitismo, Antifeminismo, Antilibe-
ralismo, Antiprotestantismo, Antimaçonismo, Anticomunismo, Antiame-
ricanismo) encontra-se no livro coordenado por António Marujo e José
Eduardo Franco. Esta obra permitiu usar como base para a análise dos estu-
dos de caso portugueses caminhos hermenêuticos propostos por obras fran-
cesas e inglesas sobre teorias de conspiração, demonização, representação
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este assunto. Para além de se ter tornado impensável uma opinião alternati-
va, muitos países ocidentais vivem problemas complicados devido à presen-
ça de imigrantes provenientes de outras partes do mundo, já para não falar
do modo como outras partes do mundo entram de modo sub-reptício no
quotidiano destes países, por influência dos meios de comunicação social.
A proximidade das questões, por um lado, e a impossibilidade de as pensar
com a profundidade necessária, por outro, impedem qualquer avaliação
sábia do passado histórico que essas problemáticas revelam. É pouco pro-
vável que se consiga ler hoje com a necessária sabedoria os documentos de
épocas passadas que assinalaram a questão do papel social da mulher.
temos consciência de que o desafio, sem dúvida ambicioso, de reconsti-
tuição da densa e complexa rede de argumentos e de atitudes que se digla-
diaram e/ou se influenciaram mutuamente numa linha histórica de longa
duração não está isenta de dificuldades. Elas derivam, antes de mais, da
dependência que a abordagem ao negativo parece manter em relação às
abordagens ao positivo, não só em termos conceptuais, mas também meto-
dológicos. O confronto, por vezes desigual, com uma longa tradição histo-
riográfica positiva (que nunca poderia, obviamente, ser desconsiderada); a
tentação de identificar o negativo com a exceção ou com uma parte mar-
ginal da história, para que possamos devolvê-lo prontamente à unidade da
grande história; a escassez de fontes – eis alguns dos problemas com que
depararam os autores das diversas entradas deste Dicionário.
Com efeito, um elemento que irmana as diferentes áreas temáticas é a
dificuldade do acesso documental. Um caso particular merece ser desta-
cado. Desde o séc. xvii, uma boa parte dos debates intelectuais em Portu-
gal aconteceu nas páginas das publicações periódicas. Ora, a falta de um
programa nacional de digitalização completa dessas publicações periódicas
faz com que a investigação das problemáticas seja difícil e até mesmo im-
possível em muitos casos. É também manifesto que as famílias de muitas
figuras que tiveram intervenção pública de relevo não foram boas guardiãs
dos espólios literários dos seus familiares. Muito há ainda a fazer para a
localização, a inventariação e o estudo desses conjuntos documentais. Uma
rede nacional dos espólios literários poderia auxiliar estudos futuros mais
desenvolvidos. O número elevado de documentos relevantes para a história
cultural portuguesa que estão em países estrangeiros aconselharia também
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O presente estudo dicionarial, com fito de sistematicidade dos discursos
anti na longa duração, permite responder a uma carência concreta da histo-
riografia portuguesa e europeia. Com efeito, não existe, que saibamos, ne-
nhum trabalho de investigação semelhante em países como o Reino Unido,
a França e a Alemanha. O carácter inédito do projeto assegura-lhe desde já
indiscutível relevância internacional, uma vez que, de acordo com alguns
consultores externos e membros estrangeiros da equipa de trabalho, come-
ça a ser precursor de tentativas semelhantes noutros países.
Este carácter pioneiro implicou uma reflexão metodológica e epistemo-
lógica sobre o anti. Desde logo, “anti” é um prefixo operatório, que remete
para operações diversas: a mais óbvia é o trabalho do negativo ou a contra-
posição, mas poderá igualmente assumir a forma de um exercício crítico
de problematização ou, mesmo, de um processo de autoquestionamento.
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Bibliog.: impressa: aBreu, Luís machado de (coord.), O Anticlericalismo Português: História e Dis-
curso, aveiro, Centro de Línguas e Culturas, 2002; Id., Ensaios Anticlericais, Lisboa, roma editora,
2004; antunes, manuel, Obra Completa, vol. i, t. ii, coord. guilherme d’oliveira martins, Lis-
boa, FCg, 2008; araÚjo, antónio de, Jesuítas e Antijesuítas no Portugal Republicano, Lisboa, roma
editora, 2004; aZeveDo, Carlos moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, 4 vols.,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2000-01; Id. (dir.), História Religiosa de Portugal, 3 vols., Lisboa, Círculo
de Leitores, 2000-02; Curto, Diogo ramada, O Discurso Político em Portugal (1600-1650), Lis-
boa, edições 70, 1988; eCo, umberto, O Cemitério de Praga, Lisboa, gradiva, 2011; Id., Construir
o Inimigo e Outros Escritos Ocasionais, Lisboa, gradiva, 2011a; FouCauLt, michel, La Naissance de
la Clinique, Paris, PuF, 1963; Id., L’Archéologie du Savoir, Paris, gallimard, 1969; FranCo, josé
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xlii
eduardo, O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX), 2 vols., Lisboa, gra-
diva, 2006-07; gearY, Patrick, The Myth of Nations, Princeton, Princeton university Press, 2002;
Hartog, François, O Espelho de Heródoto: Ensaio sobre a Representação do Outro, Belo Horizonte,
editora da universidade Federal de minas gerais, 2014; Herman, edward s., e CHomsKY,
noam, Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media, new York, Pantheon Books,
1998; KuHn, thomas s., The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, Chicago university Press,
1962; LeroY-BeauLieu, anatole, Les Doctrines de Haine: l’Antisemitisme, l’Antiprotestantisme, l’An-
ticléricalisme, Paris, Calmon Lévy, 1902; marujo, antónio, e FranCo, josé eduardo (coords.),
Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores/temas e Debates, 2009;
digital: CuraDo, manuel, “o mito da tradução automática”, conferência proferida no coló-
quio a Cultura na galáxia da Pós-modernidade, Braga, 19 out. 1999: https://repositorium.
sdum.uminho.pt/bitstream/1822/7740/1/o%20mito%20Da%20traDuCao%20automa-
tiCa%20repositorium.pdf (acedido a 30 ago. 2017).
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Dicionário
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direito presente no ser da sua vontade, na execução como um ritual litúrgico, como
sua ação” (HEGEL, 1998, 180). Por outro cerimónia cúltica de expiação, e o cada-
lado, considera o Estado como um ente falso como “um altar” onde se realiza o
superior aos indivíduos, que a ele podem rito que resgata a humanidade (MAIS-
ser legitimamente sacrificados, inclusiva- TRE, s.d., 27).
mente com a pena de morte. Esta posição antiabolicionista foi segui-
Joseph de Maistre (1753-1821), cam- da por alguns; mas houve também mui-
peão do pensamento antirrevolucioná- tos autores do catolicismo liberal que se
rio, denuncia o que considera ser a raiz afastaram da tradição antiabolicionista, e
irreligiosa e ateia do iluminismo, ao mes- mais concretamente de Maistre, propon-
mo tempo que combate a ideia de que o do, a partir dos valores evangélicos, um
poder soberano vem do povo, se opõe à repensamento da moralidade e legitimi-
teoria do contrato social e se coloca na dade da pena de morte.
linha da teoria tradicional. Ao príncipe Um grande adversário da pena de mor-
compete promover a correção e o castigo te foi Victor Hugo (1802-1885) que, em-
do malfeitor, incluindo, evidentemente, bora sem se referir explicitamente à fé,
a pena de morte. “Tendo Deus querido apela muitas vezes aos valores cristãos
governar os homens por meio de ho- da misericórdia, do amor e do perdão,
mens, ao menos exteriormente, conce- recordando a pena de morte sofrida por
deu aos soberanos a eminente prerroga- Cristo na cruz. Hugo congratula-se com a
tiva da punição dos crimes. É nisto que abolição da pena de morte em Portugal
são principalmente seus representantes”. em cartas a dois amigos: Eduardo Coelho,
Este pensador apresenta o processo da em 2 de julho de 1867, e Pedro de Brito
Aranha, em 15 do mesmo mês e ano.
Cesare Beccaria (1738-1794). O movimento geral que alastrava pela
Europa, com origem na filosofia ilumi-
nista, chegou também a Portugal e pro-
vocou uma evolução na conceção da lei
penal, levando à superação do direito vi-
gente que previa, além de penas rigorosas
e cruéis, a pena capital, mesmo para cri-
mes banais. Alexandre Herculano (1810-
-1877), e.g., em 1838, distancia-se das teses
de Joseph de Maistre, cujo nome cita ex-
pressamente, e insurge-se contra a pena
de morte. À acusação que lhe foi feita “de
alimentar nos criminosos a esperança da
impunidade”, responde dizendo que no
“código criminal” se encontram outras
penas “para livrar a sociedade dos ho-
mens que a ofendem, e fazer sentir a es-
tes o castigo dos seus crimes”. Na linha de
Beccaria, propõe a substituição da pena
capital por “trabalhos públicos”, mesmo
nas “colónias da África deserta” (HERCU-
LANO, 1984, 33 e 35).
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6 AntiAbolicionismo
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AntiAbolicionismo 7
não fuzilamento; outros são publicados mento lastimoso” (NAVARRO, 1874, 21).
em sentido contrário. De entre estes, so- E mais adiante: “Armar novamente os go-
bressai o de Cunha Barbosa, um dos dois vernantes com um gládio de dois gumes,
deputados que, em 1867, tinham votado perigoso sempre, pode ser de funestíssi-
contra a proposta de abolição, advogan- mas consequências. Não é uma questão
do que a pena de morte “aplicada mili- individual; é uma questão social. Não se
tarmente”, é não só “de direito e legal”, fuzila António Coelho, fuzila-se a tradi-
mas também “necessária” e, em geral ção, um princípio e esse princípio envol-
“legítima”. Argumenta ainda que “agora ve o presente e o futuro” (Id., Ibid., 39).
e sempre se reconheceu que para conter Contra a pena de morte é também An-
em rigorosa disciplina uma aglomeração tónio Falcão Rodrigues que escreve: “A
de homens de tão diversas índoles e ins- consciência, a razão e o direito procla-
tintos, são necessárias leis especialíssimas, mam bem eloquentemente a inviolabili-
para o que não basta a lei comum ou civil” dade da vida humana, o mais sagrado de
(BARBOSA, 1875, 14-15); e acentua os todos os nossos direitos. A luta está, pois,
efeitos repressivos da pena: “parece-nos travada. A pena de morte é uma afronta
axiomático que nada mais eficaz poderá ao progresso, à civilização e ao direito.
conter o homem perverso e de instintos A pena de morte é um ultraje à humani-
ferozes, do que o temor e a certeza da dade. O nobre ministro da justiça Sr. Bar-
perda infalível da sua vida. Ao contrário, jona de Freitas fundamentou em bons
a pena do degredo, que não deixa de ser argumentos, a proposta que apresentou,
grave, é para muitos (a quem escasseiam abolindo a pena de morte ‘pela sua inuti-
os meios de transporte) uma vantagem lidade’. Foi, pois, abolida a pena de mor-
e até incitamento ao crime, mormente te para crimes civis. O soldado é um cida-
para alguns soldados maus que, constran- dão. Existe, porém, um artigo de guerra
gidos na vida militar, assim se eximem que impõe a pena de morte nos crimes
do serviço e recuperam a liberdade, na militares! É admirável!!!” (RODRIGUES,
esperança ainda, que a todos consola e 1874, 17).
risonha acena, de um potosi inesgotável No mundo literário destacam-se Guer-
que só proporciona a emigração, embora ra Junqueiro (1850-1923), contra, e
para a África” (Id., Ibid., 18-19). Ramalho Ortigão (1836-1915), a favor.
O opúsculo é uma resposta a Emídio Aquele escreveu, a propósito do solda-
Navarro (1844-1905), que se mostrara do António Coelho, o poema “O crime”,
contrário. A sua posição é a seguinte: dedicado “ao Senhor Barjona de Freitas,
“Aceitamos em tese a legitimidade da ministro da justiça”, que termina assim:
pena de morte. Para nós a inviolabilidade “Eu que prescrevo o algoz, eu exigi-lo-ei/
da vida humana não é um princípio abso- para enforcar somente esse bandido: a
luto. […] Mas não aceitar como princípio lei” (JUNQUEIRO, 1895, 29). Por sua
absoluto a inviolabilidade da vida huma- vez, Ramalho Ortigão, em “A disciplina
na, reconhecer em tese a legitimidade da militar e a pena de morte; o caso do sol-
pena de morte, não equivale a conceder dado António Coelho”, não aceita a dis-
à sociedade o direito de a inscrever livre- tinção entre disciplina e jurisprudência
mente nos seus códigos, ou de usar dela civil e militar, observando: “Esta distin-
quando bem lhe pareça fazê-lo, porque ção, diz-se, tem por fim salvaguardar a
lho reclame um capricho partidário ou disciplina do exército. Como se a disci-
a impressão apaixonada de um aconteci- plina fosse exclusivamente militar! Como
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AntiAbolicionismo 11
abolição. […] A prisão perpétua é uma dos se declaravam favoráveis à sua reintro-
pena de morte escondida” (FRANCIS- dução. O semanário Expresso, por sua vez,
CO, 23 out. 2014, II.a). Esta posição foi publicava, no dia 5 de outubro de 1996,
reafirmada, com mais vigor e desenvolvi- os resultados de outra sondagem em que,
mento, em carta de 20 de março de 2015, à pergunta: “Que agravamento da pena
ao presidente da Comissão Internacional máxima?”, 13,5 % dos inquiridos respon-
contra a Pena de Morte. A 24 de setem- deram: “A pena de morte”. Uma consulta
bro de 2015, em discurso no Congresso da estação televisiva SIC, tornada públi-
dos Estados Unidos da América, afirmou: ca no dia 29 de setembro de 1996, dava
“a regra de ouro [‘o que quiserdes que como favoráveis à pena de morte 81,8 %.
vos façam os homens, fazei-o também a Esta consulta foi considerada, pela gene-
eles’, Mt 7, 12] põe-nos diante também ralidade dos especialistas em estudos de
da nossa responsabilidade de proteger e opinião, não credível cientificamente, de-
defender a vida humana em todas as fases vido à metodologia utilizada.
do seu desenvolvimento. Esta convicção No espaço lusófono não há nenhum
levou-me, desde o início do meu ministé- país onde vigore a pena de morte. Causou
rio, a sustentar a vários níveis a abolição embaraço, sobretudo em Portugal, o pedi-
global da pena de morte” (FRANCISCO, do de adesão da Guiné Equatorial, onde
24 set. 2015). Por ocasião do 25.º aniver- tal pena está prevista, à Comunidade dos
sário da publicação do Catecismo da Igreja Países de Língua Portuguesa, sendo-lhe
Católica, Francisco voltou a reforçar esta colocada, entre outras condições, “a ado-
ideia, afirmando que a pena de morte “é ção da moratória da pena de morte até à
uma problemática que não pode ficar re- sua abolição”. Na altura da admissão, 23
duzida a uma mera recordação histórica de julho de 2014, foi reafirmada a necessi-
da doutrina” pois trata-se de uma “pena dade da prossecução da abolição total.
que lesa gravemente a dignidade huma-
na. Deve afirmar-se energicamente que
a condenação à pena de morte é uma Bibliog.: impressa: BARBOSA, Cunha, Duas
medida desumana […] que humilha a Palavras sobre o Opúsculo do Sr. Navarro, os Fu-
dignidade pessoal. Em si mesma é con- zilamentos. Militarmente: o Direito e a Necessida-
trária ao Evangelho. […] Nunca homem de; Em geral: a Legitimidade da Pena de Morte,
algum, nem sequer o homicida, perde a Coimbra, Imprensa da Universidade, 1875;
sua dignidade pessoal” (Id., 11 set. 2017). BECCARIA, Cesare, Dos Delitos e das Penas,
Esta posição foi vivamente recusada por Lisboa, FCG, 1998; BRUNO, Sampaio, Por-
tuenses Ilustres, vol. ii, Porto, Livraria Maga-
alguns sectores sociais e eclesiais.
lhães e Moniz, 1907; Catecismo da Igreja Cató-
Em Portugal não são conhecidos movi- lica, 1.ª ed., s.l., s.n., 1992; 2.ª ed., s.l., s.n.,
mentos que explicitamente proponham a 1997; CATTANEO, M., “Morale e politica nel
reintrodução da pena de morte. É muito dibattito dell’Illuminismo”, in La Pena di Morte
raro que pessoas com responsabilidade nel Mondo, Marietti, Casale Monferrato, 1983,
social, política e cultural se tenham pro- pp. 105-133; CRUZ, Guilherme Braga da, “O
nunciado publicamente em perspetiva movimento abolicionista e a abolição da pena
de morte em Portugal (resenha histórica)”, in
antiabolicionista.
Pena de Morte. Colóquio Internacional Comemora-
A nível de opinião pública, não existem tivo do Centenário da Abolição da Pena de Morte em
muitos dados. A 7 de julho de 1996, o jor- Portugal, vol. ii, Coimbra, Faculdade de Direito
nal Público dava conhecimento de uma da Universidade de Coimbra, 1967, pp. 427-
sondagem em que 26,3 % dos interroga- -557; FERNANDES, R., “A pena de morte
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12 AntiAbolicionismo
em Portugal”, Revista da Ordem dos Advogados, Agostinho sobre a pena de morte: a Intercessio
vol. xxxi, jan.-jun. 1971, pp. 3-52; FERREIRA, Episcopalis entre o direito e o evangelho”, Di-
L. M. Marrecas, A Pena de Morte; Extrato da Re- daskalia, vol. xli, fasc. 1, 2011, pp. 191-220;
vista de Sciencias Militares, Lisboa, Typographia digital: FRANCISCO, “Discurso à delegação
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res de, A Reforma das Cadeias em Portugal, Coim- Pena de Morte”, 20 mar. 2015: http://w2.va-
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ris/Lisboa, Livrarias Aillaud e Bertrand, 1920; nuova-evangelizzazione.html (acedido a 20
MAISTRE, Joseph de, Les Soirées de Saint-Peter- nov. 2017); JOÃO PAULO II, “Mensagem urbi
sburg ou Entretiens sur le Gouvernement Temporel et orbi”, Natal de 1998: http://w2.vatican.va/
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VARRO, Emídio, Os Fusilamentos; o Direito, a cuments/hf_jp-ii_mes_25121998_urbi.html
Política, a Ordem Social, Lisboa, Typographia do (acedido a 16 maio 2016); Id., “Angelus”,
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Farpas, 6.ª ed., vol. vii, Lisboa, Empresa Literá- john-paul-ii/pt/angelus/1999/documents/
ria Fluminense, 1928; PERES, Damião, Histó- hf_jp-ii_ang_12121999.html (acedido a 16
ria de Portugal, vol. vii, Barcelos, Portucalense, maio 2016).
1935; PINA, L., “O Porto, a reforma das pri- Jerónimo Trigo
sões e a abolição da pena de morte”, in Pena
de Morte. Colóquio Internacional Comemorativo do
Centenário da Abolição da Pena de Morte em Por-
tugal, vol. ii, Coimbra, Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, 1967, pp. 399-409;
RAMOS, Rui, A Segunda Fundação, in MATTO-
SO, José (coord.), História de Portugal, vol. vi,
Lisboa, Estampa, 1994; RODRIGUES, Antó-
nio Falcão, Qual É o Princípio Que Fundamenta
a Pena de Morte?, Coimbra, Imprensa Comer-
cial e Industrial, 1874; SAVEY-CASARD, P.,
La Peine de Mort; Esquisse Historique et Juridique,
Genève, Librairie Droz, 1968; TELES, Basílio,
As Ditaduras; o Regime Revolucionário, Coimbra,
Atlântida, 1975; TRIGO, Jerónimo, “Santo
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AntiAbortismo 13
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14 AntiAbortismo
O ponto alto da sua intervenção pública beradamente” (GALVÃO, 2005, 55). Esta
foi a campanha que culminou na vitória tese é reforçada por um conjunto de prin-
do não à despenalização do aborto no re- cípios que afirmam o valor incondicional
ferendo de 28 de junho de 1998. A inver- da vida e o carácter especial do vínculo
são dos resultados, com a vitória do sim entre a mãe e o nascituro. Assim: o crime
à despenalização no referendo de 11 de do aborto constitui uma prepotência, tan-
fevereiro de 2007, não silenciou a voz de to mais condenável quanto é praticado
um movimento muito forte na sociedade por quem tem o dever de proteger uma
portuguesa de começos do séc. xxi, na criança indefesa; a prática do aborto é um
qual existem mais de vinte instituições atentado contra a dignidade humana que
antiabortistas, na sua maioria de carácter não admite exceções, nomeadamente em
associativo, que, a par da defesa do valor função do grau de desenvolvimento bio-
da vida, prestam apoio a mães e crianças, lógico; o aborto rompe o vínculo especial
entre elas: Ajuda de Mãe, Ajuda de Ber- entre mãe e filho, que, em circunstância
ço, Ponto de Apoio à Vida, Vida Norte alguma, pode ser tratado como um intru-
e Associação de Defesa e Apoio da Vida so; o ato de abortar traz sequelas psíqui-
Coimbra. A exigência de um novo refe- cas à mulher que o pratica, pelo que a
rendo é, pois, um dos pontos da agenda legalização do aborto não só não protege
do movimento pró-vida. a mulher como a fragiliza; usar o aborto
O debate entre abortistas e antiabortistas como meio de compensar eventuais falhas
tem a ver com aspetos práticos, nomeada- de meios contracetivos é uma atitude irres-
mente com as condições indignas em que ponsável; a legalização do aborto é um re-
a população com menores recursos prati- trocesso civilizacional, em especial no que
ca o aborto clandestino, no caso da sua cri- respeita aos direitos humanos.
minalização. Mas é sobretudo um conflito Para o antiabortismo, a defesa do abor-
de princípios e de valores. Tais princípios to é parte intrínseca de uma cultura que
e valores são comuns ao movimento pró- não respeita a vida e a integridade da
-vida na Europa e nos Estados Unidos da pessoa humana. O Papa João Paulo II
América e inspiram-se em conceções reli- reafirmou-o muito claramente, assumin-
giosas e políticas em do os termos da constituição pastoral
Capa de Evangelium
Vitae, de João Paulo II.
que a doutrina da Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II:
Igreja Católica e o “Tudo quanto se opõe à vida, como seja
legado político da toda a espécie de homicídio, genocídio,
direita conservado- aborto, eutanásia e suicídio voluntário;
ra têm um peso con- tudo o que viola a integridade da pessoa
siderável. humana, como as mutilações, os tormen-
A tese fundamen- tos corporais e mentais e as tentativas
tal do movimento para violentar as próprias consciências;
antiabortista é a de tudo quanto ofende a dignidade da pes-
que o aborto é sem- soa humana, como as condições de vida
pre moralmente er- infra-humanas, as prisões arbitrárias, as
rado, já que, como deportações, a escravidão, a prostitui-
defende Stephen D. ção, o comércio de mulheres e jovens; e
Schwarz, “o aborto é também as condições degradantes de tra-
primariamente um balho, em que os operários são tratados
ato de matar” “deli- como meros instrumentos de lucro e não
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AntiAbrilismo 15
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16 AntiAbrilismo
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18 AntiAbsolutismo
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24 AntiAbsolutismo
entre liberais e ultramontanos. O olhar Junta dos Três Estados em 1807: “Dig-
retrospetivo de quem, no final de Oito- nando-se o imortal Napoleão patentear-
centos, aferia a experiência do século, é -nos a sua vontade por órgão dos nossos
perspicaz na identificação dos fatores de deputados, quer que sejamos livres […].
perturbação da antiga ordem: “Os deuses Pedimos uma constituição e um rei cons-
desceram do Olimpo; humanizaram-se. titucional, que seja príncipe de sangue
Os reis, entrando no constitucionalismo, da vossa real família” (SORIANO, 1870,
ficaram reduzidos á pompa efémera das 2.ª época, t. i, 212-214). As circunstâncias
grandes galas. Só Deus ficou onde esta- políticas do país após a derrota das forças
va, apesar de alguns bons racionalistas e francesas, não só económicas e adminis-
de alguns maus teólogos” (PIMENTEL, trativas, mas em que o estatuto de colónia
1893, IX). pesava cada vez mais notoriamente, preci-
O período que se seguiu a 1789 refletiu pitaram a revolução de 1820, proclaman-
a inquietação com o curso da Revolução do-se no Manifesto da Nação Portuguesa aos
em França e, também por isso, o debate Soberanos, e Povos da Europa que “O Povo
em torno do projeto do Código do Direi- Português terá uma justa liberdade, por-
to Público foi visto como potencialmente que a quer ter”. Se na longa exposição de
perigoso. Ficou a reforma legislativa sem motivos do Manifesto se apela à situação
efeito (“O projeto de um novo Código de desgoverno do país, à dignidade ferida
tem sido empreendido em diversos rei- do reino e à “justa liberdade” e às “verda-
nados, porém impossível fazer-se cousa deiras e sãs noções do Direito Público”,
boa sem uma revolução, que quebrasse as proclamando igualmente “a mais firme
bases dos Direitos estrangeiros e do feu- adesão ao seu Rei”, o propósito de rutura
dalismo, adotadas para o nosso regime, e é também claro: “o de uma nova ordem
que suplantasse os caprichos e preocupa- de coisas” (Manifesto…, 15 dez. 1820, 9).
ções, com que sempre se queria proceder Ainda assim, o propósito de rutura
nesta matéria” [CARNEIRO, 1821, 12]), convive inicialmente com a recuperação
e agravou-se o controlo censório, num da antiga doutrina política que o pom-
esforço de tranquilização social que, to- balismo combatera. É o que se retira de
davia, não foi suficiente para reprimir a textos fundamentais dos primeiros mo-
circulação de ideias e a leitura de obras mentos do liberalismo, como as Bases
proibidas, nem o debate que se desenvol- da Constituição Política da Monarquia
via desde o final do reinado de D. José, Portuguesa, estabelecidas pelos deputa-
não apenas em círculos intelectuais mais dos constituintes em 9 de março de 1821
notórios, como fora o da marquesa de (dec. n.º 23, de 13 de março de 1821),
Alorna ou o da sociedade literária Grupo ou a Constituição de 1822, que no preâm-
da Ribeira das Naus, os de Coimbra ou bulo identificam a origem das “desgraças
Valença do Minho, mas de forma relativa- públicas” que caracterizaram o período
mente disseminada socialmente. anterior “no desprezo dos direitos do
Será este o esteio cultural, avesso ao ab- cidadão e no esquecimento das leis fun-
solutismo, de parte importante das elites damentais da monarquia”, que deveriam
portuguesas, quando as tropas napoleó- ser restabelecidas, ampliadas e reforma-
nicas invadem o reino, e que explica em das. Na Proclamação da Junta Provisional do
parte o acolhimento das ideias dos ocu- Governo Supremo do Reino, feita no Porto
pantes, manifestado paradigmaticamen- em 24 de agosto de 1820, invocam-se os
te na “Súplica dirigida a Napoleão” pela “foros e direitos” violados e os “louváveis
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26 AntiAbsolutismo
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28 AntiAcAdemismo
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34 AntiAfricAnismo
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Traficantes de escravos árabes e seus cativos ao longo do rio Rovuma. Autor desconhecido, c. 1870.
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36 AntiAfricAnismo
sua cosmovisão ou nas suas tradições cul- administradores coloniais e as suas desas-
turais, a que chamamos cultura africana trosas consequências para as populações
ou legado cultural africano. africanas. Poucas vezes as contendas tive-
Se é consensual que o colonialismo ram como resultado diminuir o espaço
resultou da concorrência económica e político dos administradores coloniais.
do expansionismo dos países europeus, Tomando como instrumento teórico as
vale a pena incorporar como dimensão análises de Hannah Arendt, é possível
própria desses processos algumas con- observar que as práticas políticas criam
siderações apresentadas por Hannah e mantêm relações sociais fundadas na
Arendt. A autora identifica três aspetos assimetria, na hierarquia e na extrema
fundamentais do alegado imperialismo desigualdade entre europeus e nativos.
colonial europeu, na sua fase de 1884 Um dos elementos fundamentais de en-
a 1914, apresentando-os como prefigu- raizamento e sustentação desse domínio
rações dos fenómenos totalitários do é o racismo. Nessa elaboração, o racismo
séc. xx, como o nazismo e o estalinismo. advém da quebra do valor atribuído ao
A novidade da argumentação de Arendt ser humano – no caso, o negro, que per-
reside na afirmação de que o imperia- de a possibilidade de ser tratado como
lismo colonial apresenta como traços semelhante. As experiências históricas
fundamentais o expansionismo, a buro- efetivas demonstram que o imperialismo
cracia colonial e o racismo. Conforme colonial dispôs de mecanismos ideológi-
a autora observa, pela distância e pela cos que levaram as massas a identificar-
dispersão geográfica dos impérios, faz- -se com o Estado e a nação imperiais,
-se necessário exportar o poder político, conferindo justificação e reconhecendo
obedecendo a um processo no qual os legitimidade ao sistema político e social
instrumentos da violência do Estado – a do seu país. As exposições universais
polícia e o exército – são separados das apresentaram manifestações culturais
demais instituições e promovidos à po- de afirmação dos grandes impérios, com
sição de representantes nacionais nas representação de si próprios como per-
colónias, tendo por função controlá-las. tencentes a um mundo civilizado e dos
Sob essas condições, o imperialismo co- outros povos como pertencentes a um
lonial instrumentaliza o poder político mundo exótico, selvagem, bárbaro, per-
da burguesia, inventando a burocracia petuando, assim, uma historiografia eu-
colonial como o seu corpo político, ao rocêntrica e antiafricanista.
mesmo tempo que lhe atribui o exercí- A conceção de antiafricanismo ar-
cio da violência e da força como essên- ticula-se, muitas vezes, com as noções
cias da ação política. de imperialismo e de neocolonialismo.
Em relação aos totalitarismos, no im- O neocolonialismo dividiu África em
perialismo colonial há, segundo Arendt, fronteiras artificiais, de acordo com os
um pequeno controle exercido por par- interesses europeus. Desse modo, tribos
te dos representantes do fator imperial, aliadas foram separadas e tribos inimigas
composto pelo Parlamento e pela livre foram unidas. Essa divisão ocorreu em
imprensa. A história dos imperialismos 1884-1885, na Conferência de Berlim,
(britânico, francês, belga, alemão e por- que instituiu normas para a ocupação de
tuguês) tem inúmeras referências de África. As potências coloniais negocia-
conflitos nos quais os representantes do ram a divisão de África, propondo a não
fator imperial criticam a dominação dos invasão de áreas ocupadas por outras
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AntiAfricAnismo 37
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AntiAgostiniAnismo 45
e dimensões, fios, muitas vezes díspares, alvo de inumeráveis críticas e mote para
nos quais reverberam as disposições e polémicas que persistem pelo menos até
tonalidades que animaram os diferentes ao início do séc. xxi, como a sua conce-
séculos. ção do pecado original – Agostinho foi o
S.to Agostinho, também conhecido como responsável pela elaboração teológica do
o bispo de Hipona, é autor de uma vas- conceito de pecado original, embora não
ta e plural obra que não se confina nos pela sua introdução no corpo dogmático
limites do domínio teológico, espraian- da Igreja: “Não fui eu quem inventou o
do-se ao solo filosófico, nomeadamente à pecado original, que a fé católica susten-
gnosiologia, à metafísica, à antropologia ta desde tempos antigos”, observa em
filosófica e à ética, razão pela qual surge De Nuptiis et Concupiscentia –, a defesa da
como um dos maiores vultos da patrística. natureza corrompida do Homem (massa
A sua matizada produção literária denota damnata), o lugar que atribui à graça, a
uma estreita relação com o seu percurso tese da iluminação da mente pelo Mestre
biográfico, úbere em vivências e meta- Interior ou a sua conceção da Cidade de
morfoses, o que se revela não apenas no Deus.
conjunto de temas que foi tratando, mas
também no facto de as suas obras serem
o palco de uma reflexão pautada pelos
A queReLA CoM o PeLAGIAnISMo
seus próprios dramas individuais, espe- O primeiro grande movimento de oposi-
cialmente pela sua jornada espiritual e ção ao pensamento de Agostinho surge
pela sentida necessidade de salvação. Tal ainda durante a sua vida. Trata-se do pe-
gesto adquire maior sentido se tivermos lagianismo, uma corrente cristã represen-
em consideração que, para Agostinho, o tada por Pelágio e pelos seus discípulos,
caminho da interioridade é aquele pelo como Celéstio e Juliano de Eclana, contra
qual, ao mesmo tempo, o Homem se en- os quais escreverá Agostinho várias obras
contra a si mesmo e a Deus. (entre 412 e 416 contra Pelágio e entre
Tendo seguido os preceitos maniqueís- 418 e 430 contra Juliano de Eclano): So
tas durante cerca de nove anos, Agosti- bre a Culpa e sobre a Remissão dos Pecados e
nho irá, por influência do neoplatonis- sobre o Batismo dos Meninos (412), A Graça
mo – mais especificamente das Enéadas de Cristo e o Pecado Original (418) e A Pre
de Plotino, dos textos de Mário Vitorino destinação dos Santos e O Dom da Perserve
e das explicações de Simpliciano e Ponti- rança (428/429), entre várias outras. As
ciano, em Milão –, de sua mãe S.ta Móni- razões que espoletam a querela derivam
ca, uma convicta cristã, e sobretudo do das diferentes conceções antropológicas
poder oratório de S.to Ambrósio, o bispo propostas por Agostinho e pelos pelagia-
de Milão, abandonar tal teoria e conver- nos, mais especificamente do entendi-
ter-se, em 386, ao cristianismo, inaugu- mento diverso que têm da relação entre
rando uma disruptiva viragem no seu a liberdade e a salvação, temática que
modo de vida, tecido de longos anos de convocará as noções de livre-arbítrio, pe-
dissoluta devoção às paixões da carne, e cado original e graça, em torno das quais
no seu pensamento, tornando-se padre e, se desenvolverá, ao longo dos séculos, o
depois, bispo e Doutor da Igreja. São fru- debate por excelência entre agostinianos
to desta mudança os principais conceitos e antiagostinianos no Ocidente.
e teses que associamos a S.to Agostinho, Pelágio, um monge bretão, tornou-se
precisamente aqueles que viriam a ser conhecido em Roma, no dealbar do séc. v,
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disputas que se prolongam até à filoso- desenvolverão uma teoria que tem na no-
fia contemporânea. Sofrendo a influên- ção de abstração a sua pedra de toque. De
cia do neoplatonismo, nomeadamente uma forma geral, defendiam que as ideias
da teoria platónica da reminiscência e nem são inatas nem são essências capta-
da noção de Deus como sol do espírito, das por intuição intelectual, resultando
Agostinho irá desenvolver a tese da ilu- antes de um processo pelo qual abstraí-
minação da mente pelo Verbo, o Mestre mos elementos universais das coisas indi-
Interior, em obras como O Mestre (389), viduais e concretas, o inteligível a partir
A Doutrina Cristã (396-426) e A Trindade do sensível.
(399-419). Animado pelo desejo, expres- Os grandes representantes desta dou-
so já nos Solilóquios (386-387), de apenas trina na Idade Média foram, desta for-
conhecer Deus e a alma, Agostinho de- ma, os escolásticos, especialmente S. To-
fenderá que se trata de uma só e mesma más de Aquino, monge dominicano do
investigação. Desta forma, o filósofo cris- séc. xiii, que assume especial relevo neste
tão irá propor que o mais elevado conhe- contexto, na medida em que a sua pers-
cimento se encontra no “coração” ou no petiva foi a que exerceu maior influência
homem interior, pelo que, pelo processo em autores posteriores, como o portu-
de interiorização, que nos leva da razão à guês João de S. Tomás e o cardeal Cae-
fé e destas ao amor, e de confissão (enten- tano, tendo sido igualmente acolhida
dida simultaneamente como admissão de pela neoescolástica, particularmente por
culpa e como louvor a Deus), o indivíduo Jacques Maritain. Procurando conciliar o
poderá transcender-se e aceder às mais empirismo aristotélico e o cristianismo,
altas verdades universais, vivendo, assim, S. Tomás de Aquino elabora uma dou-
uma vida beata e feliz. Neste sentido, à in- trina gnosiológica e antropológica que,
contornável questão de saber como é que contrariamente ao pensamento platóni-
uma alma temporal pode produzir verda- co-agostiniano, concebe que todo o co-
des eternas, responderá Agostinho que é nhecimento parte da perceção sensível,
Deus, enquanto Mestre Interior, que ilu- considerando que é apenas a partir dela
mina tais verdades na mente. A verdade é que se pode extrair depois, no plano da
ser que se revela e fala ao Homem, coin- abstração inteligente, não só as repre-
cidindo, assim, com o Logos ou Verbo de sentações abstratas, como um conjunto
Deus, que é sempre e simultaneamente de teses que encerram em si a verdade.
revelação e transcendência. Neste pro- É, pois, a partir do plano da experiência
cesso, a dúvida adquire um valor positivo, sensível do mundo, das coisas concre-
convertendo-se no fundamento de uma tas, que é possível, segundo S. Tomás de
certeza: a de que pensamos e assumimos Aquino, subir até à certeza de Deus, o seu
a peleja pela verdade, o único caminho Criador, e às verdades universais. Neste
de acesso ao conhecimento verdadeiro, sentido, o mestre dominicano recupera
filosofema que será o ponto de partida de a distinção aristotélica entre intelecto
Descartes e da filosofia moderna. ativo e intelecto passivo, afirmando que
Esta perspetiva do conhecimento será o intelecto ativo ou agente atua sobre as
posteriormente atacada por autores que, imagens recolhidas pelos sentidos exter-
animados pela questão dos universais nos e trabalhadas pelos sentidos internos,
(e sua contestação pelo nominalismo), como a imaginação, elaborando, a partir
que dominou toda a escolástica, e sob a delas, imagens abstratas ou representa-
influência do pensamento aristotélico, ções inteligíveis, libertando das imagens a
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48 AntiAgostiniAnismo
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AntiAgostiniAnismo 49
Papae (1075) de Gregório VII e na bula çar a salvação –, passou a ser olhada com
Unam Sanctam (1302) de Bonifácio VIII, suspeita pelos católicos, sendo algumas
que havia de acabar por fundar a teoria das suas teses acusadas de caucionar a Re-
da “plenitudo potestatis papalis in rebus forma protestante. É, pois, neste sentido
temporalibus” [plenitude do poder papal que a Contrarreforma saída do Concílio
nas coisas temporais], clara deturpação de Trento, privilegiando em boa medida
do pensamento agostiniano que se viu o pensamento de S. Tomás de Aquino
reproduzida por teólogos como Tiago em detrimento do de S.to Agostinho, irá
de Viterbo na obra De Regimine Christia identificar e reafirmar os principais dog-
no (1301), Egídio Romano na obra De mas da Igreja Católica, advogando a fé e
Ecclesiastica Sive de Summi Pontificis Potes as boas obras como o dúplice meio para
tate (1302), e Álvaro Pais na Epistula ad a salvação (sendo recusada a ideia de pre-
Quosdam Cardinales de Auctoritate Papae destinação e o livre exame da Bíblia), a
(1328) e em De Statu et Planctu Ecclesiae Tradição religiosa como fonte dos dog-
(1330-1340), entre outros. É, pois, por via mas religiosos e a Igreja Católica como o
desta pluralidade de vozes, na qual se in- único hermeneuta e transmissor de tais
tegra também o agostiniano Henrique de verdades sagradas. Esta tendência confir-
Ghent (1217-1293), que S.to Agostinho se ma-se nos séculos seguintes nas diretrizes
constituirá como um incontornável alvo emanadas do Concílio Vaticano I (1869-
daqueles que defendiam a independên- -1870) e do Concílio Vaticano II (1962-
cia do poder temporal face ao espiritual. -1965), nos quais o tomismo é assumido
como filosofia oficial da Igreja Católica,
ainda que o segundo represente, segun-
CRíTICAS à TeoLoGIA AGoSTInIAnA do alguns autores, um concílio mais de
enTRe oS SÉCuLoS XIV e XVI crise que de confirmação no que respeita
No séc. xiv, a crítica ao papado surge à proposta tomista.
simultaneamente como uma crítica aos
agostinianos que defendiam a subordina-
ção do rei ao papa, como Egídio Romano
AGoSTInho nA MoDeRnIDADe
e o seu discípulo Tiago de Viterbo, dois O período que medeia entre a segunda
grandes teóricos da hierocracia. Tal con- metade do séc. xvi e os finais do séc. xvii
ceção conhecerá aguerridas críticas por representa um “século de ouro” para o
parte de vários teóricos, como Marsílio estudo e a assimilação do pensamento de
de Pádua e Guilherme de Ockham, que, Agostinho, sendo várias as compilações,
diferentemente, advogavam a diferença traduções e publicações da sua obra e vas-
primacial entre lei humana e lei divina, ta a plêiade de seguidores do seu pensa-
razão e fé, e, assim, a separação entre po- mento filosófico e teológico. No entanto,
der espiritual e poder temporal. é interessante notar que a Modernidade
No séc. xvi, também o Concílio de tanto é agostiniana como antiagostinia-
Trento e os seus mentores não deixaram na, incorporando fervorosamente alguns
de lançar suspeitas sobre o pensamento dos pressupostos do filósofo cristão e
de Agostinho. Tendo a sua obra consti- colocando outros sob cerrada suspei-
tuído uma importante inspiração para ta, de tal forma que é precisamente no
o protestantismo – nomeadamente as séc. xvii que a peleja entre agostinianos
ideias da relação direta entre crente e e antiagostinianos assume contornos mais
Deus e da suficiência da fé para se alcan- agudos. Vemos, assim, que, por um lado,
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Alegoria do vintismo.
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60 AntiAlfAbetismo
(Colecção da Legislação Portuguesa…, 1987, o povo não deve ser ilustrado porque pre-
613). A maioria da população, segundo tenderia ser mais do que é […]. Outros
se acreditava, não necessitava da leitura e repetem, sem saberem o que dizem, que
da escrita para as tarefas do seu quotidia- os conhecimentos superficiais, únicos
no. A integração social ficava garantida possíveis para o comum dos cidadãos, são
por via da transmissão oral dos valores coisa muito danosa”. A posição do histo-
e das regras subjacentes ao catolicismo, riador a este respeito é clara: “É esta uma
e pela prática regular dos seus rituais. ficção que hoje ninguém poderia susten-
Numa sociedade simbolicamente hie- tar” (FERREIRA, 1971, I, 151-152). Apa-
rarquizada e imaginada como estável, as rentemente, os argumentos provenientes
referidas aprendizagens de base podiam do séc. xviii mantêm-se, provavelmente
ser propiciadoras de fenómenos de mobi- no seio da corrente tradicionalista, legi-
lidade social, o que era considerado inde- timista e contrarrevolucionária, que co-
sejável do ponto de vista da preservação nhece um primeiro afloramento com o
dos equilíbrios sociais. miguelismo e que manterá uma presença
O antialfabetismo é, por outro lado, discreta ao longo do séc. xix, conduzin-
uma realidade muito próxima do anties- do, já no primeiro quartel do séc. xx, ao
colarismo, não obstante serem expressões Integralismo Lusitano. De resto, esses
com sentidos diferentes. No caso portu- mesmos argumentos aflorarão de forma
guês, como já foi notado, tendo sido in- clara, como veremos, na transição da Re-
cipientes as modalidades de alfabetização pública para o Estado Novo.
fora do âmbito escolar, ao contrário do Em alguns casos, não se trata de uma
que aconteceu no Norte da Europa, os recusa da alfabetização, mas, antes, da re-
dois processos acabaram por se desen- lativização da sua importância. É isso que
volver de forma paralela. A escola foi o parece estar subjacente à posição mani-
lugar por excelência da alfabetização dos festada, em 1886, por Oliveira Martins
Portugueses. Pela mesma razão, não é no âmbito de uma polémica travada com
fácil destrinçar os discursos que recusam Bernardino Machado, um inequívoco de-
ou desvalorizam a alfabetização dos que fensor da corrente alfabetizadora. Na óti-
tomam idêntica posição em relação à es- ca do autor da História de Portugal, “fazer
colarização. do ensino o fito primário das nossas am-
A prevalência de uma retórica alfabe- bições é inadequado, porque não se pode
tizadora ao longo dos períodos liberal aprender quando se tem fome que é má
e republicano é nítida, e faz com que o conselheira”. E acrescenta um argumen-
antianalfabetismo pareça ser o único to a que outros autores darão desenvolvi-
discurso legítimo nessas circunstâncias. mento futuro: “O ensino sem educação,
Mesmo assim, podemos encontrar pon- as letras sem os costumes, o saber sem o
tualmente manifestações de sentido dife- carácter, são absolutamente estéreis, são
rente, o que nem sempre significava de até anárquicos e perniciosos” (FERNAN-
sentido contrário, por vezes através de DES, 1985, 34-35).
referências indiretas dos seus opositores. Foi entre as últimas décadas do séc. xix
É o que acontece no texto de Alexandre e as primeiras do séc. xx que se desen-
Herculano “Da educação e instrução das volveu um dos mais importantes debates
classes laboriosas”, inserto em Composições sobre a temática da alfabetização. Foi este
Várias (1838), onde o autor começa com um dos grandes momentos, sob o influ-
a seguinte afirmação: “Há quem diga que xo do republicanismo, de difusão dos
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fixa, de forma bem expressiva, alguns dos mas nacionais têm de ser resolvidos, não
principais lugares-comuns do pensamen- pelo povo, mas pelas elites enquadrando
to conservador relativamente à alfabetiza- as massas” (Id., Ibid., 183).
ção: o receio do abandono dos campos e O contexto pós-guerra e as políticas
do favorecimento da mobilidade social; de fomento económico que ele possibili-
o medo das más leituras e, em particular, ta deixam menos espaço para este olhar
do seu potencial subversivo; a idealização ruralista e conservador, dando um novo
do bom povo português, simples, feliz e fôlego aos discursos em prol da alfabeti-
analfabeto. No entanto, como sabemos, zação que vão conhecer um novo clímax
essa não foi a opção oficial do Estado já nos anos 50, no quadro do Plano de
Novo, que procurou usar a alfabetização Educação Popular.
como estratégia para a inculcação dos
valores do salazarismo e como forma de
contribuir para a preservação do regime. Bibliog.: CAMPOS, Agostinho de, Educar. Na
O próprio António de Oliveira Salazar Família, na Escola e na Vida, Lisboa/Rio de Ja-
tem, nas famosas entrevistas a António neiro, Livrarias Aillaud e Bertrand/Francisco
Ferro, afirmações de alguma ambiguida- Alves, 1918; CANDEIAS, António, “Moderni-
de a respeito da alfabetização popular. dade e cultura escrita nos séculos xix e xx em
Na quarta entrevista, realizada no final Portugal”, in CANDEIAS, António (coord.),
Modernidade, Educação e Estatísticas na Ibero-Amé-
de 1932, ao abordar o “problema da ins-
rica dos Séculos XIX e XX, Lisboa, Educa, 2005,
trução” e referindo-se concretamente ao pp. 53-108; COELHO, F. Adolfo, Cultura e
analfabetismo, Salazar afirma que “não Analfabetismo, Porto, Renascença Portuguesa,
podemos cruzar os braços diante desse 1916; Colecção da Legislação Portuguesa desde a
grande problema” e proclama: “ensinar Última Compilação das Ordenações: 1763 a 1774,
toda a gente a ler, escrever e contar” é vol. v, Lisboa, Ministério da Educação e Cul-
um “degrau essencial para a educação tura, 1987; FERNANDES, Rogério, Bernardi-
no Machado e os Problemas da Instrução Pública,
cívica de um povo”. A solução que apre-
Lisboa, Livros Horizonte, 1985; FERREIRA,
senta, “a única forma prática de resolver Alberto, Antologia de Textos Pedagógicos do Século
o problema” segundo afiança, baseia-se XIX Português, 3 vols., Lisboa, FCG, 1971-75;
naquilo a que chama “o método dos paí- FERRO, António, Entrevistas de António Fer-
ses pobres”, do qual fazem parte a cria- ro a Salazar, Lisboa, Parceria António Maria
ção de “postos de ensino”, mantidos “à Pereira, 2003; MÓNICA, Maria Filomena,
custa de uma pequena gratificação” em “‘Deve-se ensinar o povo a ler?’: A questão
“todas as aldeias, povoações escondidas do analfabetismo (1926-39)”, Análise Social,
vol. xiii, n.º 50, 1977, pp. 321-353; RAMOS,
e inacessíveis” (FERRO, 2003, 70-71). No
Rui, “Analfabetismo”, in BARRETO, Antó-
entanto, na sétima entrevista, datada já nio, e MÓNICA, Maria Filomena (coords.),
de 1938, Salazar tem afirmações um pou- Dicionário de História de Portugal, vol. vii, sup.,
co mais equívocas sobre o tema do anal- Lisboa/Porto, Figueirinhas, 1999, pp. 95-100;
fabetismo, que dão bem conta da sua vi- SÉRGIO, António, Obras Completas. Democra-
são elitista do mundo: “O nosso grande cia: Diálogos de Doutrina Democrática; Alocução
problema, responde o chefe do Governo aos Socialistas; Cartas do Terceiro Homem, Lisboa,
Sá da Costa, 1974; Id., Ensaios sobre Educação,
português – é o da formação de elites,
Lisboa, INCM, 2008.
que eduquem e dirijam a Nação […].
Considero até mais urgente a constitui- Carlos Manique da Silva
ção de vastas elites do que ensinar toda Carlos Beato
a gente a ler. É que os grandes proble- Joaquim Pintassilgo
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rejeitava a alquimia, considerando-a de- Outro tanto fez Benito Jerónimo Feijoo
rivar fundamentalmente de práticas dia- (1676-1764), tido como um dos maiores
bólicas. Sem refutar a possibilidade e as filósofos e ensaístas do seu tempo, no seu
virtudes da pedra filosofal e do elixir da Theatro Critico Universal (1726). Não teve
longa vida, consta que, tendo herdado a grande repercussão no meio dos adeptos
pedra filosofal confecionada por seu mes- e demais cultores da alquimia o tratado
tre Alberto Magno, logo que este morreu, alquímico Ennœa ou Applicação do Enten
ele próprio a destruiu, desaprovando dimento sobre a Pedra Filosofal (1732-33) da
com veemência todo o tipo de experiên- autoria do português Anselmo Caetano
cias alquímicas que se dizia haviam sido Munhós de Abreu, que refutava os argu-
realizadas por Alberto Magno. E lembre- mentos avançados por estes dois “Reve-
se também o queixume de uma alma da rendíssimos Padres” contra a Ars Magna.
Divina Comédia de Dante Alighieri (1265- Não se pode igualmente deixar de re-
-1321) que, no oitavo círculo do Inferno, ferir o caso de James Price (1752-1783),
o círculo dos alquimistas, se lamentava de químico inglês da Real Sociedade de
que “foi meu crime a alquimia traiçoeira” Londres. Em 1782, vários relatos tor-
(XXVII, 120). nados públicos davam conta de que ele
Mestre muito respeitado por papas, im- teria solidificado uma certa porção de
peradores, príncipes e prelados, o Jesuí- mercúrio e, logo de seguida, a teria trans-
ta alemão Atanásio Kircher (1602-1680), mutado em ouro, operação que afirmava
no seu tratado Mundo Subterrâneo (1664), ter realizado por duas vezes, na presença
não negando embora a possibilidade da de várias testemunhas, e prontificando-
pedra filosofal, impugnou com todos os se para que os equipamentos que usara
argumentos possíveis o que era conside- para o efeito fossem examinados pelo seu
rado o grande mistério da Ars Magna. público, que incluía três membros da Câ-
mara de Lordes, quatro altos dignitários
da Igreja e dois mestres refinadores. Pri-
Ilustração de eugène Delacroix (1798-1863)
para Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe. ce quebrou o cadinho em que efetuara a
operação na sua presença, e dentro dele
havia de facto uma pepita de ouro puro,
confirmada pelos testes dos refinadores.
Intrigados com tais relatos, vários mem-
bros da Real Sociedade decidiram pedir-
lhe que lhes apresentasse algumas amos-
tras do ouro e da prata produzidos, bem
como dos pós transmutadores. O quími-
co alegou ter gastado todas as reservas do
pó na experiência que fizera, e declarou
que estava demasiadamente exausto para
realizar novamente qualquer tipo de
trabalho alquímico. Joseph Banks, que
presidia à Real Sociedade, insistiu, ame-
açando expulsá-lo da Sociedade caso ele,
no prazo de um ano, não apresentasse as
provas que lhe haviam sido pedidas. Ja-
mes prometeu que o faria na primavera
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ordem liberal, passando a escola a ser vis- diminuição […]. A escola há de vencer.
ta como o local privilegiado para essa for- […] Dissipar-se-ão as trevas sem que a or-
mação. O exercício do direito, simulta- dem se perturbe, antes sendo a instrução
neamente um dever, de voto nos regimes que alumie a paz entre os homens basean-
representativos pressupõe a existência de do-se no princípio religioso, na liberdade,
cidadãos conscientes dos seus direitos e no amor de todos” (Id., Ibid., 211-212).
deveres, e essa consciência decorre, acre- Nas últimas décadas do séc. xix, os
dita-se na época, de um patamar mínimo discursos centrados na questão do anal-
de conhecimentos que só a escola pode fabetismo vão subir de tom e conhecer
proporcionar, em particular ao nível da uma nova fase, desencadeada pelo co-
leitura e da escrita. nhecimento dos resultados dos primeiros
Mas não é só a cidadania que se constrói censos populacionais. É a partir de 1864
na escola. A esse respeito, D. António da e, de forma mais clara, de 1878, que a
Costa é ainda mais radical. É a própria hu- elite intelectual do país toma verdadei-
manidade que existe em cada um de nós ramente consciência de que a esmaga-
que resulta do contacto com a cultura es- dora maioria da população portuguesa
crita: “O ignorante é um vidente, não é um não sabe ler nem escrever. Como nota
homem […]. A instrução eleva o homem António Nóvoa, “a partir deste momen-
pela dignidade pessoal” (Id., Ibid., 211). to histórico, o analfabetismo é encarado
Encontramos, no pensamento do autor, como um ‘problema’ e passa a ser objeto
uma imagem profundamente negativa do de uma construção teórica e discursiva”
analfabeto, que vai perdurar ao longo das (NÓVOA, 2005, 59). É a partir daí que o
décadas de transição entre os sécs. xix “combate” contra essa “vergonha nacio-
e xx, e que o associam à barbárie ou à nal”, tal como muitas vezes é designada,
animalidade. Só a instrução permitiria o toma verdadeiramente forma. A energia
acesso pleno à civilização. Encontramos, que está na base de múltiplas iniciativas
na verdade, no pensamento de D. Antó- é, com regularidade, contrabalançada
nio da Costa algumas das mais cândidas pelo desânimo resultante da real dificul-
e genuínas manifestações de uma cren- dade, sentida pelos atores da época, em
ça absoluta no poder quase miraculoso inverter a situação. O espanto sentido no
da educação para conduzir ao aperfei- confronto com esses números chocan-
çoamento económico, cultural e moral tes é bem visível em palavras como as de
da sociedade. As palavras que se seguem José Simões Dias: “Isto lê-se e não se com-
são um exemplo claro desse idealismo preende; é preciso ler-se segunda e ter-
profundo e sincero, muito marcado pela ceira vez para se acreditar […] dos 5 mi-
crença otimista no progresso da humani- lhões de habitantes achados no reino em
dade por via da instrução: “É facto averi- 1890, só um milhão sabe ler” (Id., 1989,
guado que a instrução diminui os crimes e xi). Na primeira linha do combate vai es-
restringe a miséria. A cadeia, o desterro, a tar o republicanismo, que usa esses dados
matrícula da prostituição, a casa corretiva, como arma de combate político contra a
todo esse complexo de instituições que o monarquia, reatualizando, por ironia do
hábito nos faz considerar modelos civili- destino, os argumentos antes invocados
zadores da organização social e que são pelos liberais monárquicos contra o ab-
unicamente o exemplo vivo do vagaroso solutismo: “À monarquia convém a igno-
caminhar da humanidade, encontrará na rância e o boçalismo do povo […] com a
escola um elemento vigoroso para a sua República e com a liberdade está sempre
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por um lado, à consciência cívica que se como “povo”, “massas trabalhadoras”, en-
apela e, por outro, à já referida dimensão tre outras, expressões cuja abrangência,
de participação ou de intervenção cívica. não obstante o seu carácter vago, torna
No entanto, a fronteira entre a chama- possível concitar consensos e mobilizar
da revolução cultural e os processos de vontades. O discurso pedagógico, como
inculcação ideológica surge como muito o político, reverencia essa espécie de en-
ténue. No Esquema de Anteprojeto fala-se, tidade suprema e de força redentora. As
e.g., da necessidade de uma “consciencia- campanhas de alfabetização desenvolvi-
lização política de todo o povo português, das pelos estudantes dão conta, frequen-
que o leve a determinar-se positivamente temente, da enorme aprendizagem re-
na via de transição para o socialismo” ou, sultante do contacto com o povo. Numa
também, da pretensão de que o Plano Na- entrevista coletiva a estudantes partici-
cional de Alfabetização “se torne um dos pantes na campanha de alfabetização do
pilares da mobilização popular necessária verão de 1974, um dos jovens afirma que
para uma autêntica revolução socialista” “fundamentalmente, quem aprendeu
(Esquema de Anteprojeto…, 1975, 11). Con- com as campanhas fomos nós, os estu-
vém chamar a atenção para a importân- dantes. Aprendemos as condições de vida
cia que a noção de “mobilização popular” do povo” (“Campanhas de alfabetização”,
tem nos discursos de uma época cuja vida 1974, 35).
pública estava muito marcada por uma in- Não obstante esta retórica e a corres-
tensa politização. A tese de que a política pondente mitificação da figura discursi-
e a ideologia são fenómenos transversais, va “povo”, os textos – como é o caso do
estando presentes em todos os domínios Esquema de Anteprojeto – não deixam de
da vida social, era assumida sem comple- ser expressão de um outro olhar, menos
xos. Não obstante o apelo à “mobiliza- idealizado, sobre a realidade do povo e
ção”, podemos, naturalmente, perguntar da cultura popular. O documento con-
se não foi a componente doutrinadora sidera que “o analfabetismo português
que acabou por prevalecer (ou não) re- está concentrado nas zonas rurais” e que
lativamente à proclamada vontade de for- esses “ambientes analfabetos” – assentes
mar cidadãos participativos, ativos e cons- numa “cultura baseada na tradição oral”
cientes. A finalidade do referido projeto – são “fundamentalmente conservadores
alfabetizador era inquestionavelmente a do passado”, possuindo “uma consciên-
construção de uma sociedade socialista. A cia mítica, mágica ou ingénua de toda a
escola não era, nessa ótica, nem poderia realidade”. Apesar de também se consi-
ser, neutral. É o que se afirma, igualmen- derar essa cultura como “coerente, rica
te, num manual de alfabetização já do e impregnada de reais valores”, o que
final do período: “Assim, julgamos fun- prevalece é um olhar desvalorizador so-
damental a origem de classe, a opção de bre o mundo rural, que sublinha o seu
classe, a militância, a ideologia daqueles atraso, a prevalência da ignorância e dos
que querem fazer um trabalho de alfabe- preconceitos, e a ausência de hábitos de
tização. Para nós a alfabetização como a higiene, situação cuja responsabilidade é,
educação é um ato político e consequen- no entanto, atribuída ao regime anterior
temente não há monitores neutros” (Ma (Esquema de Anteprojeto…, 1975, 1-2). É
nual de Alfabetização…, 1977, 36). esse diagnóstico que está na base da op-
Outro dos traços marcantes do discurso ção por fazer incidir as campanhas dessa
revolucionário é o uso retórico de noções fase (1974 e 1975) no interior norte de
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mo. O período em que nos focaremos países, como por representar o expoente
será o que compreende a sua emergência mais radical dessas correntes ideológicas.
e o seu desaparecimento quase total da Em Portugal este tipo de referência é im-
sociedade portuguesa, indo portanto do portante, pois a presença do socialismo,
último quartel do séc. xix à déc. de 30 mesmo entre alguma da intelectualidade
do séc. xx. urbana, pautou-se recorrentemente por
É importante distinguir as diferentes uma influência libertária, mais do que
formas em que as expressões antianar- pelo marxismo (com a obra de Marx a ser
quistas podem ser encontradas. Em al- quase sempre lida em segunda mão ou su-
guns casos, estas visam específica e ex- perficialmente até aos anos 20 do séc. xx,
plicitamente o anarquismo, através da como demonstrou Alfredo Margarido em
crítica teórica e ideológica, através de A Introdução do Marxismo em Portugal). Por
leis e da criação de polícias ou corpos tudo isto, não é possível deixar de identi-
repressivos especializados, ou, também, ficar alguns dos exemplos de antissocia-
através da organização de manifestações lismo deste período como expressões de
e protestos ou mesmo de eventos com antianarquismo.
uma ambição maior, como os encontros A primeira expressão de antianarquis-
secretos antianarquistas que reuniam de- mo com grande simbolismo surge preci-
zenas de representantes governamentais samente no campo político que o anar-
e polícias de diferentes países com o pro- quismo disputava com outras ideologias
pósito de definir estratégias para melhor políticas, ou seja, o do socialismo. Em
combater e erradicar o anarquismo (e.g., 1872, como consequência das divergên-
a Conferência Anti-Anarquista de Roma, cias quanto ao caminho a seguir para
em 1898, que durou um mês, e uma con- alcançar a revolução, dá-se uma cisão
ferência semelhante realizada em São entre os partidários de Karl Marx e os
Petersburgo, em 1904). No entanto, o partidários de Mikhail Bakunin, culmi-
antianarquismo não pode ser procurado nando com a expulsão destes últimos da
apenas nas expressões que lhe são exclusi- Primeira Internacional. Nesse período,
vamente dirigidas, já que há muitos casos percebe-se que um sentimento antianar-
em que se procura combatê-lo através de quista começa a disseminar-se pelas mais
medidas com uma maior abrangência ou diversas culturas políticas e sectores da
com um carácter mais difuso. Apesar das sociedade. Em Portugal, nos primeiros
suas particularidades e idiossincrasias, as anos da déc. de 1870 e quase em simul-
fronteiras do anarquismo confundem-se, tâneo, representantes da Primeira Inter-
muitas vezes, com ideologias e culturas nacional visitavam Lisboa, aconteciam
políticas com as quais partilha certos valo- as Conferências do Casino e chegavam
res mundividenciais, como acontece com com estrondo as notícias da Comuna de
o socialismo, o comunismo ou certas for- Paris. As elites e os poderes instituídos as-
mas de sindicalismo. Muitos deputados, sustavam-se com a propagação das ideias
intelectuais e figuras religiosas, quando socialistas no país e os “internacionais”
se referiam à ameaça sindical ou socialis- eram vigiados e perseguidos. Em Portu-
ta, incluíam nesses termos o anarquismo gal, a cisão entre marxistas e anarquistas
e até podiam tê-lo como alvo principal não teve um impacto visível e imediato.
sem nunca o nomear diretamente; não Foram, no entanto, as ideias federalistas
só pela sua preponderância entre os ope- de Proudhon que ganharam, desde cedo,
rários e as classes populares de alguns maior popularidade entre as elites inte-
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AntiAnArquismo 99
uma grande violência dar-se-lhes destino reprimidas com brutalidade pela polí-
idêntico” àquele que a lei de 21 de abril cia, levando inclusivamente à morte de
de 1892 dava aos primeiros. Além disso, alguns operários, e o divórcio com o re-
em sintonia com as principais teorias da gime é definitivo. O confronto entre a
criminologia então em voga, defendia república e o movimento operário, cada
que os anarquistas eram “indivíduos que vez mais dominado por sindicalistas re-
os antropologistas classificam de degene- volucionários e anarquistas, levaria, ao
rados, desequilibrados e destituídos de longo dos 16 anos de duração do regi-
senso moral” e não aspiravam a mais do me, a perseguições e prisões por vezes
que “às trevas do barbarismo estúpido tão arbitrárias quanto as dos tempos da
das tribos selvagens” (Ibid., 257). No fim, monarquia. Nos últimos dias de janeiro
provavelmente convencidos pelos escla- de 1912, era declarada greve geral em
recimentos dos ministros proponentes, solidariedade com os trabalhadores ru-
todos retiraram as propostas de alteração rais eborenses. Em resposta, as autorida-
sugeridas e aprovaram a lei. A sua força des entregavam o governo do distrito de
seria sentida até à eclosão da Primeira Re- Lisboa às autoridades militares e eram
pública, em 5 de outubro de 1910, apesar suspensas as garantias individuais, encer-
das críticas que recebeu, vindas de todos rada a Casa Sindical (fundada no final
os quadrantes políticos, ao longo da sua de 1911, após a realização do 2.º Con-
vigência, e apesar também de todas as gresso Sindicalista, era a casa da União
ações organizadas no sentido de revogá dos Sindicatos de Lisboa, entre outras
-la. Até à revolução republicana, seriam organizações operárias, bem como, des-
deportadas centenas de pessoas; algumas de então, do importante jornal O Sindi
nunca regressariam à metrópole, outras calista), presos centenas de sindicalistas,
regressaram apenas após a sua revogação, e o ministro da Justiça, António Maciei-
em 1910. ra, submetia à aprovação da Câmara dos
Nos últimos anos da monarquia, os Deputados uma lei excecional, que en-
anarquistas participam em força no mo- tregava os detidos a tribunais militares.
vimento operário e aproximam-se dos Para o referido ministro, “Lisboa tinha
republicanos, colaborando em diversas sentido a verdadeira anarquia” (Diário
atividades, como a Liga Contra a Lei de da Câmara dos Deputados, 1 fev. 1912, 10)
13 de Fevereiro. Por via da forte repres- e predominava entre a grande maioria
são a que estavam sujeitos, participam em dos deputados a tese de que essa “cons-
organizações clandestinas, como a carbo- piração” tinha origem numa conjugação
nária, e assumem um papel fundamental de esforços entre anarquistas e agitado-
no sucesso da Revolução de outubro de res monárquicos infiltrados nas organi-
1910. Mas, apesar de todas as esperanças zações operárias, acusação recorrente
depositadas no novo regime, os conflitos nos anos seguintes. Em junho de 1913,
cedo emergem. no seguimento de um atentado à bom-
Em dezembro de 1910, chegava a an- ba, a Casa Sindical era novamente en-
siada lei que regulava o direito à greve: cerrada. Afonso Costa declarava que se
era a primeira grande desilusão e a lei fechava um “foco de perturbações de ca-
ficaria conhecida como o “decreto-bur- rácter sindicalista e anarquista” e procu-
la”, motivando a oposição de todo o rava distinguir estes operários do “bom
movimento operário. Ao longo de 1911, e ordeiro trabalhador” (SAMIS, 2009,
algumas das greves que acontecem são 328-329). O Partido Socialista, pela voz
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AntiAntropocentrismo 103
protetora da verdade e não da mentira. e o Sol nasce, se põe e volta ao seu lu-
Almeida argumentava com a opinião gar, gira pelo meio-dia e se revolve nos
do P.e Honoré Fabri, penitenciário do seus círculos (Ecl 1, 4-6). Teodoro de
Sumo Pontífice, que afirmava que mais Almeida destacava que muitas outras
de uma vez fora perguntado aos corifeus proposições semelhantes das Sagradas
da nova astronomia se tinham alguma Escrituras, relativas ao movimento apa-
demonstração que provasse o movimen- rente e quiete aparente, eram entendidas
to da Terra, e estes nunca se tinham pelos copernicianos no sentido natural
atrevido a dizer que sim. Logo, não exis- e comum à inteligência das gentes (AL-
tia impedimento para que a Igreja en- MEIDA, 1762, 242). Deus não quis en-
tendesse e declarasse que as passagens sinar astronomia na Sagrada Escritura;
da Escritura deviam ser entendidas em os sagrados escritores apenas se acomo-
sentido literal. Se os astrónomos mo- davam ao senso comum e à inteligência
dernos viessem um dia a excogitar uma dos povos. Se na Escritura se afirmasse
demonstração convincente em contrá- que a Terra anda pelos seus círculos, e
rio, a Igreja não hesitaria em declarar o Sol está firme e imóvel no seu lugar
que as referidas passagens da Escritura imóvel, como poderiam os povos que
se deviam entender em sentido figura- lessem, ou ouvissem ler, os livros sagra-
do e impróprio; assim, encontrando-se dos entendê-los sem primeiro recebe-
razões físicas que tornassem evidente o rem lições de astronomia? Certamente
movimento da Terra, rever-se-ia o signi- ficariam espantados. E, como Deus não
ficado das passagens da Escritura onde tem empenho em que sejam todos astró-
se diz que a Terra está quieta e firme nomos, acomoda-se à inteligência dos
homens e fala no sentido e segundo a
opinião comuns.
Giovanni Battista Ricciolo (1598-1671). Enquanto não surgisse prova em con-
trário, a Igreja considerava-se detentora
da “literal e rigorosa inteligência dos fac-
tos”. Enquanto não houvesse um motivo
“urgentíssimo” que a obrigasse à aceitação
de um argumento oposto, considerado va-
lidamente reconhecido, não havia razão
para que os argumentos teológicos não
prevalecessem sobre os outros. Enquanto
persistissem dúvidas em relação à validade
de um modelo explicativo do sistema do
mundo, quer fosse no âmbito dos estudos
da astronomia, quer fosse por argumenta-
ções matemáticas, ou ainda pelas leis da
física, a atitude deveria ser de respeitosa
acomodação à “literal inteligência” das
passagens da Escritura. No entanto, logo
que os argumentos físico-matemáticos se
revelassem isentos de quaisquer dúvidas
e recomendassem outra alternativa que
não a defendida pela Igreja, deveriam ser
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AntiAntropocentrismo 105
aos argumentos teológicos, deveria ser o nha feito, isso tenho obrigação de saber
preferido pelos astrónomos. Ao explicar como Filósofo, e a isto satisfaço explican-
o sistema de Copérnico, Almeida come- do um e outro sistema; porquanto em
çava por expressar a sua posição cautelo- ambos eles se explicam os efeitos, que
sa, manifestando as suas preocupações: observamos nos Céus” (Id., Ibid., 228).
“Eu tenho embaraço para o seguir, que é O poder divino era infinito e, se Deus
a autoridade e preceito da Inquisição de tivesse pretendido criar um sistema he-
Roma, que por motivos mui justos proi- liocêntrico, tê-lo-ia sem dúvida feito.
biu que se seguisse como tese; e só deu Neste caso, poderia estar em conformi-
licença para se seguir como hipótese” dade com as opiniões dos copernicianos.
(ALMEIDA, 1762, 228). Assim, admitindo-o como hipótese, não
Sobre as virtudes do sistema coper- se iria contra as determinações da Inqui-
niciano, e com o sentido rigoroso que sição Romana. Almeida não tinha dúvi-
pretendia dar às palavras “tese” e “hipó- das em afirmar que, se a Terra na reali-
tese”, Almeida justificava as suas conside- dade se movesse, como dizia Copérnico,
rações sobre os sistemas do mundo fun- nenhuma diferença seria percebida por
damentadas no modelo heliocêntrico um observador que a acompanhasse nes-
de Copérnico e na filosofia newtoniana se movimento. Procurou dar uma ideia
esclarecendo que seguir uma opinião do sistema coperniciano ponderando os
como tese seria dizer que assim sucedia argumentos que se podiam considerar
na realidade; segui-la como hipótese a favor e contra este sistema. Analisou
seria, pelo contrário, fazer só uma su- os argumentos da Escritura, bem como
posição sem dizer se, na realidade, era apresentou e desenvolveu comentários
assim ou não era. Quem afirmasse que a acerca de alguns argumentos físicos con-
Terra se movia como um planeta à roda tra o sistema coperniciano, pretendendo
do Sol, e que isto era assim na realidade, demonstrar a sua fragilidade. Apenas os
não diria bem, porque não havia argu- argumentos teológicos o podiam condi-
mento evidente que o provasse. Todos cionar. Não deixou, no entanto, de pon-
os efeitos astronómicos e físicos obser- derar as razões físicas que favoreciam
vados poderiam acontecer estando ela o sistema heliocêntrico, colocando em
quieta. O poder e a sabedoria de Deus evidência a belíssima concordância que
são infinitos, e muito grande a ignorân- este sistema tinha com as leis do movi-
cia e equivocação humana, mesmo nas mento observadas nos corpos terrestres,
coisas palpáveis, quanto mais nas re- as quais admiravelmente Newton tinha
motíssimas, como são os astros. Porém, descoberto. Afirmava que, falando com
afirmar-se apenas em suposição que a sinceridade cristã, não sabia verdadeira-
Terra se move e o Sol está quieto expli- mente os segredos de Deus, nem o suma-
cava belissimamente tudo quanto se ha- mente engenhoso maquinismo com que
via descoberto na física e na astronomia, foi concebido o movimento dos astros.
discorrendo prudentemente nessa base. Porém, se Deus concebesse o movimen-
Isto era o que permitia a Inquisição Ro- to dos corpos celestes de acordo com as
mana. Almeida defendia-se afirmando mesmas leis de movimento que estabele-
o seguinte: “O que Deus fez, não o sei; ceu nos terrestres, então os movimentos
e não é só essa a coisa que eu ignoro; e dos astros haveriam de ser como se su-
mais não me envergonho de o confessar põe no sistema newtoniano. Ressalvava,
em público: o que pode ser que Deus te- porém, que, como os corpos celestes dis-
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AntiApriorismo 107
No entanto, a noção não se circunscre- diferentes, mas aquele que mais decisi-
ve a argumentos, mas diz também res- vo foi na teorização do a priori foi Kant.
peito a tipos de proposição, a modos de Ao despertar do chamado sono dogmá-
conhecimento e ao estatuto das ideias (a tico com a leitura das análises de David
saber, à forma como são adquiridas e em Hume, Kant instituiu a sua revolução co-
que medida dependem ou não da expe- pernicana, descrita no prefácio à 2.ª edi-
riência). Na Modernidade, como se sabe, ção da Crítica da Razão Pura (B16-17), e
a noção recebeu especial acolhimento que segue o modelo astronómico de Co-
por parte dos racionalistas, dos empiristas pérnico: são os objetos que se devem con-
e dos idealistas, no contexto das longas formar ao nosso conhecimento e não o
e intrincadas discussões epistemológicas contrário, é o sujeito cognoscente que é o
que promoveram. Será seguro dizer que o ponto fixo, não os objetos conhecidos. Só
problema central dessas discussões – sobre assim, pensa Kant, se poderá explicar em
se existe um conhecimento (ou uma fonte que medida é possível um conhecimento
do conhecimento) a priori – tem origem, independente da experiência, que prevê
de alguma maneira, na teoria da anam- e determina as propriedades de certos
nese de Platão. Nalguns passos relevantes objetos anteriormente à sua intuição.
do corpus platonicum, discute-se com serie- A questão fundamental é a de saber como
dade a possibilidade de a psyche humana são possíveis juízos sintéticos a priori, quer
extrair de si, a partir de si, determinados dizer, juízos em que o predicado acres-
conhecimentos pré-existentes, anteriores centa efetivamente algo ao sujeito, ao
ao contacto com a realidade fáctica. O invés de ser uma mera análise do nome,
exemplo, já clássico, é o do diálogo es- mas de forma inteiramente independen-
tabelecido entre Sócrates e o escravo no te da experiência; o exemplo clássico é
diálogo Ménon (82b-84a), no decurso do aquele que o próprio Kant apresenta na
qual, por mera interrogação maiêutica, o primeira Crítica: “tudo o que acontece
escravo consegue resolver um problema tem a sua causa” (A9/B13). Kant preten-
geométrico sem possuir, aparentemente, de aplicar este modelo à metafísica, como
quaisquer rudimentos de geometria. In- também à matemática e à geometria, que
dependentemente de o mito platónico entende que são ciências puras (cujos
da pré-existência da psyche ter alguma ver- princípios são determinados a priori). Só
dade ou não, o que a teoria da anamnese por meio do a priori se explica que exis-
pretende pôr em evidência é que existem tam juízos que beneficiam de universali-
conhecimentos ou maneiras de chegar a dade e necessidade – duas características
certos conhecimentos que não podem de- essenciais de muitos dos nossos juízos –,
pender da aprendizagem empírica. ao invés de estarem limitados pela par-
Descartes popularizou esta questão ao ticularidade e contingência resultantes
perseguir o seu fundamento certo e in- da experiência. De acordo com o pensa-
concusso para todo o saber, e ao encontrá mento crítico kantiano, o nosso conheci-
-lo (pretensamente) no cogito, onde desco- mento depende de formas a priori, quer
briu ideias inatas que não poderiam ser da sensibilidade (tempo e espaço), quer
provenientes, em caso algum, dos eventos do entendimento (categorias), formas
sensoriais (ideias adventícias), nem da essas que são aquilo que permite que a
imaginação (ideias factícias). Seguiram- multiplicidade do fenómeno – i.e., o ob-
-se-lhe, como é também sabido, Espino- jeto indeterminado da intuição empíri-
sa e Leibniz, ainda que com abordagens ca – seja ordenada segundo determinadas
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tuída por cativos trazidos de diversas par- um autor português de que temos conhe-
tes do império ou fugidos da perseguição cimento.
em Espanha, que se tinham convertido Nas décadas que se seguiram, o estudo
ao catolicismo e que se ocupavam de ofí- do árabe desenvolveu-se em diferentes
cios subalternos e de baixa remuneração. cidades do país por intermédio da Or-
Os seus hábitos quotidianos estavam sob dem Terceira, que trouxe para Portugal
a vigilância do Tribunal do Santo Ofício, religiosos estrangeiros habilitados para o
e o recurso à língua árabe não era exce- efeito, como o padre maronita Paulo Ho-
ção, enquanto indício de que eram man- dar e o barbadinho Fr. João de Sousa, na-
tidas práticas rituais muçulmanas. Apesar tural de Damasco, um dos protagonistas
disso, as autoridades eclesiásticas não pa- mais salientes desse processo.
recem ter investido demasiados esforços Na apresentação do seu Compendio da
no estudo da língua árabe ou na catequi- Grammatica Arabica, publicado em 1795,
zação dos mouriscos. Fr. João de Sousa faz notar que o árabe
Na sua “Epístola aos Cristãos de como era então uma língua pouco cultivada no
se deve instaurar o ensino do árabe e reino e que os instrumentos disponíveis
organizar a cruzada contra Mafoma”, Ni- para a sua aprendizagem eram ainda defi-
colau Clenardo, humanista oriundo de cientes. E acrescenta que a aprendizagem
Diest, na região de Lovaina, narra o estu- do árabe servia diversos propósitos: para
do empreendido em Évora sob a orienta- além de permitir uma melhor compreen-
ção de António Filipe, um médico dessa são da etimologia de diversas palavras
cidade, que possuía uma biblioteca de portuguesas, era útil no comércio, na di-
livros árabes e era um bom conhecedor plomacia e na evangelização, por permi-
da língua, com o intuito de se preparar tir analisar e refutar o Corão.
uma missão de evangelização dos mouros Durante o séc. xix, a utilidade do co-
de Marrocos. Apesar de Clenardo não ter nhecimento da língua árabe nos domí-
alcançado minimamente os seus objetivos nios da diplomacia e do comércio levaria
e de não conhecermos qualquer testemu- a que o estudo se desenvolvesse em con-
nho dos materiais que ele terá prepara- texto laico, com alguns cultores. Todavia,
do, a sua curiosidade acerca da língua e as condições ideais para a constituição de
de fontes árabes, bem como do Corão, uma tradição continuada de estudos ára-
constitui um caso ímpar na cultura portu- bes em contexto académico parece nun-
guesa do seu tempo. ca terem estado plenamente reunidas.
Só no séc. xviii, no contexto das re- Com efeito, só em 1914 viria a ser criada,
formas pombalinas e da importante ação na Univ. de Lisboa, a cadeira de Língua
cultural de Fr. Manuel do Cenáculo, se- e Literatura Árabe, que ficou a cargo de
riam lançadas as primeiras raízes dos es- David Lopes.
tudos arábicos em Portugal, com a inclu- Os estudos árabes estão, hoje, presen-
são, pelo futuro bispo de Beja, do estudo tes em diversas instituições científicas
da língua árabe no plano de estudos da portuguesas e são incomparavelmente
Ordem Terceira da Penitência de S. Fran- mais atendidos por estudiosos de diferen-
cisco, no ano de 1768. As aulas tiveram tes áreas científicas. Todavia, a recupera-
início em 1772. O lente, Fr. António do ção do atraso de séculos na constituição
Rosário Baptista, viria a publicar, no ano de uma tradição de estudos árabes em
de 1774, Instituições da Lingua Arabiga, a Portugal implicará, provavelmente, um
primeira gramática de árabe escrita por redobrado investimento.
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114 AntiArcAdismo
filósofo estagirita, define a poesia como século de Camões o século de ouro das
“uma narração com que um representa letras portuguesas, pretendem resgatar a
a outro, ou por meio das ações ou pelo simplicidade e delicadeza dos seus auto-
da voz” (FREIRE, 1748, 25). Na poesia res, eliminando para tal as excrescências
dos árcades, esta relação entre narração do ornato despido de conteúdo, comum
e representação é fundamental. Justifica no barroco tardio. A pretexto disso, têm
a defesa da naturalidade no verso, que se como lema a frase Inutilia truncat (“Cor-
traduz na busca de um maior concretis- ta o inútil”).
mo no dizer poético, e logo numa maior Desde julho de 1757, momento em
abertura aos elementos do quotidiano e que é feito o juramento dos estatutos,
às atividades que o preenchem; determi- até cerca de 1760, as sessões da Arcá-
na também a introdução do verso bran- dia Lusitana são frequentes e alcançam
co, que visou pôr fim aos limites da rima prestígio na sociedade lisboeta pós-ter-
e do consoante, e uma apologia do uso ramoto. Depois dessa data, e após sofrer
exclusivo da língua portuguesa na poesia. várias dissensões internas, a atividade da
Enquanto escola literária, o arcadismo academia tende a paralisar-se, vigoran-
inicia-se, oficialmente, com a fundação do, apesar disso, até 1774. Várias foram
da Arcádia Lusitana, em Lisboa, em as associações literárias que, na segunda
setembro de 1756. Presidiram à elabo- metade de Setecentos, seguiram o seu
ração dos seus estatutos três juristas de modelo organizativo. Notabilizou-se par-
profissão, António Diniz da Cruz e Silva, ticularmente a Academia das Belas-Le-
Manuel Nicolau Esteves Negrão e Teo- tras (1790-94), fundada em Lisboa por
tónio Gomes de Carvalho. Seguindo o Domingos Caldas Barbosa, depois cha-
modelo da Arcádia Romana (1690), a mada Nova Arcádia. Dela foram mem-
Arcádia Lusitana tinha como fim último bros Curvo Semedo, Bocage, José Agosti-
a instrução pública, considerada indisso- nho de Macedo e Francisco José Bingre.
ciável da recuperação do verdadeiro gos- As convenções da estética arcádica per-
to da poesia. No intuito de levar a cabo manecem nas obras de Paulino António
uma reforma das belas-letras em Portu- Cabral, mais conhecido como Abade de
gal, foi constituído um grupo de censo- Jazente, e João Xavier de Matos, mem-
res cuja atividade passava por examinar bros da Arcádia Portuense. E vigoram
com exatidão as obras dos membros igualmente na poesia de Nicolau Tolen-
associados, visando separar “o bom do tino e de Filinto Elísio, ambos dissidentes
defeituoso” (“Estatutos da Arcádia…”, da Arcádia Lusitana, o último, fundador
Jornal de Coimbra, 1820, 134). Este proce- do grupo da Ribeira das Naus, por volta
dimento reflete o teor eminentemente de 1760. O arcadismo continua presente
prescritivo da sua atitude face à criação também nas obras de José Anastácio da
poética. A poesia é feita de regras que Cunha e da marquesa de Alorna. Junta-
é necessário observar: os membros da mente com Bocage e Xavier de Matos,
Arcádia legislam sobre estas, redigindo estes dois autores evidenciam traços de
dissertações nas quais fazem censura se- uma dramaticidade, visível não só num
gundo os ditames horacianos. Nas com- anseio de exibir a dor, como também
posições métricas, procuram imitar os numa ênfase ao nível da expressão do eu
clássicos e os seus melhores seguidores que prenuncia o romantismo.
(Homero e Virgílio, Camões e Ariosto, Mau grado o excesso de regulamen-
Racine e Voltaire, etc.). Considerando o tação que o caracteriza, o programa
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AntiArcAdismo 115
poético dos árcades contribuiu para o linhas de força que demonstram a for-
estabelecimento de uma nova forma de mação de um pensamento contrário aos
expressão, com efeitos no lirismo mo- princípios da crítica clássica setecentista.
derno. Desde a fundação da academia Esse pensamento é evidente sobretudo
lisboeta até à data da publicação do poe- no âmbito da afirmação do romantismo,
ma Camões (1825), de Almeida Garrett, mas também, de forma significativa, du-
em que se fixa, habitualmente, o início rante o período de funcionamento da
do período romântico em Portugal, a Arcádia Lusitana. Para fazer uma carto-
Arcádia compreende um momento de grafia da oposição ao arcadismo, há que
grande efervescência literária, quer pe- considerar as vozes que reagiram contra
las sucessivas agremiações que suscitou, os procedimentos dessa mesma crítica.
quer pelo debate literário a que deu A época arcádica da literatura portu-
lugar, quer ainda pelas transformações guesa primou por uma acentuada aten-
que sofreu, enquanto corrente, ao longo ção às questões de teorização literária,
de várias gerações de poetas. A reação de que dão conta as numerosas publica-
ao arcadismo carece ainda, no começo ções da Arte Poética de Horácio e o ele-
do séc. xxi, de um estudo sistematiza- vado número de discursos, dissertações
do, o que se deve, em parte, ao facto de doutrinárias e até mesmo poemas mar-
não ter constituído um movimento or- cados pela referência aos códigos e às au-
ganizado, como foi, em certa medida, a toridades do classicismo. A “apreciação
oposição dos árcades à prática literária justalinear das obras, fazendo de cada
do gongorismo (&Antibarroquismo). palavra pretexto para larga e erudita
Não obstante, é possível divisar algumas dissertação” (FIGUEIREDO, 1916, 98),
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Discípulo” (Ibid., fl. 139). Mais além do crítica romântica irá privilegiar. Neste
despeito, há que atender ao modo como caso, sobrepõe a capacidade de intuir
Pina e Melo perspetiva traços definido- e expressar o sentimento humano, figu-
res do neoclassicismo nas críticas que rado no “coração”, à urgência de cum-
adereça aos árcades. Em primeiro lugar, prir os preceitos da poética. Igualmente
a importação da cultura francesa: “este Garção, um dos mais ilustres poetas da
ajuntamento é uma Francesada que in- academia lisboeta, em “Sátira sobre a
tentou passar a moda dos vestidos para a imitação dos antigos” (1760), atenta na
Eloquência” (Ibid.). Tendo as suas éclo- atitude de conservadorismo e falta de
gas sido atacadas por Cruz e Silva, por originalidade perante a receção da he-
atribuir aspetos de rusticidade ao falar rança clássica. Rejeita, pois, a imitação
dos pastores, aponta com sarcasmo o servil dos poetas quinhentistas, fazendo
idealismo das convenções da estética ar- uma apologia da atualização das práticas
cádica, em que “até as saloias possam ser poéticas e linguísticas (“Camões dizia
espirituosas, e discretas” (Ibid.). Por fim, imigo, eu inimigo”), em suma, da adoção
no soneto, satiriza a introdução do ver- do “gosto livre” e da “frase nova”, na ida-
so branco na poesia portuguesa, do qual de das Luzes. À ironia de Garção não
diz: “não pode haver mais escuro” (Ibid., escapa ainda o simplismo dos árcades
fl. 140). “Fracos”, “espíritos opacos”, no recurso aos códigos do bucolismo:
“coisa nenhuma”, “cascavelada”, são ou- “Bastam as pinturas/de quatro bagate-
tros tantos epítetos que dão forma ao an- las: uma fonte, um bosque, um rio, um
tiarcadismo de Pina e Melo, visivelmente campo” (LAPA, 1941, 3 e 5).
ressentido pela falta de reconhecimento Embora social e politicamente forjado
que a sua poesia e idade provecta obtêm na matriz iluminista, o romantismo irá
junto dos poetas da segunda metade do afirmar-se em toda a Europa através de
séc. xviii. uma ofensiva contra os limites do racio-
Em 1759, um dos sócios da Arcádia Lu- nalismo clássico e as imposições de uma
sitana, José Caetano de Mesquita, enume- estética com raízes greco-latinas, alheia
ra alguns “vícios” do Arcadismo, em ses- ao particularismo das culturas nacionais.
são pública da academia. Na Oração sobre Nessa medida, à exaltação do sentimen-
a Restauração dos Estudos das Bellas Letras to, antítese do pretenso intelectualismo
em Portugal, faz referência ao “excesso na dos árcades, soma-se então um interes-
crítica” como algo de que o cultor das se pela pesquisa dos elementos góticos
belas-letras se deve precaver (FIGUEI- do mundo medieval cristão, anterior à
REDO, 1916, 201-202). Em consonância, afirmação quinhentista do classicismo
considera perniciosa a elaboração de humanista. Também às lendas e contos
prolixos documentos sobre questões de populares próprios do folclore nacional,
oratória clássica; e crê ser inútil a busca prenhes de um maravilhoso “inculto”,
obstinada das qualidades da harmonia e se passará a dedicar atenção. Expressivo
da suavidade em poesia, quando o que da rutura ocorrida na transição de uma
verdadeiramente importa é “o como se época para a outra, o romance Dona
hão de conhecer os homens” e como Branca, de Almeida Garrett, publicado
se lhes “há de ler o coração” (Id., Ibid., em 1826, funda-se na asserção de uma
202). À semelhança de Melo, também renúncia ao paganismo clássico, simbo-
Mesquita reage ao formalismo da poesia lizado na lira, insígnia da poesia antiga.
neoclássica apelando para valores que a O poeta propõe uma substituição deste
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instrumento e do seu canto pelo “alaú- natureza, que não pelos cálculos da arte,
de romântico” e pelas “coplas do amigo e operações combinadas do espírito”
trovador”, que se ouvem na “nossa terra” (Id., 1825, V).
(GARRETT, 1857, 2). Já a “Noticia” que Os artigos de Alexandre Herculano
precede o volume da Lyrica de João Mi publicados na revista Repositorio Litterario,
nimo (1829) começa com uma crítica ao em 1834 e 1835, respetivamente, “Qual
ambiente intelectual vivido em Lisboa é o estado da nossa litteratura? Qual é
nas décadas iniciais do séc. xix, e às con- o trilho que ella hoje tem a seguir?” e
siderações dos neoclássicos em torno das “Poesia: imitação – bello – unidade”, são
heréticas discrepâncias na poesia. Gar- os textos que melhor espelham uma ten-
rett lamenta serem poucos os tipos de tativa de analisar os princípios que nor-
composição poética permitidos pela “le- teiam a crítica clássica à luz da poética
gítima, pura e ortodoxa poesia lusitana” romântica, bem como a pretensão de
(Id., 1829, II). Educado no racionalismo assumir, definitivamente, um novo rumo
iluminista, e grande apreciador de Gar- nas letras portuguesas. No primeiro, tal
ção e da poesia dos primeiros árcades, como Garrett, Herculano comenta o es-
o autor considera negativamente, sobre- tado de decadência da crítica portugue-
tudo, a fase decadente do arcadismo, a sa do final do séc. xviii e primeiras dé-
partir do final de Setecentos. Estabelece cadas do séc. xix. Elogiando o trabalho
assim uma diferenciação entre o servilis- de recuperação do gosto levado a cabo
mo dos que se contentam em ser imita- pelos membros da Arcádia, atribui-lhes
dores de Horácio e de Byron, clássicos no entanto a responsabilidade pelo pre-
ou românticos, fazendo “odes com senso sente. Adverte, nomeadamente, para a
comum” (Id., Ibid., VII), e poetas como impotência da crítica clássica para travar
Bocage e Filinto, a quem a formação a erupção de sucessivos litígios em torno
arcádica não privou de fervor e talen- da qualidade das obras. A querela mais
to, que os tornou capazes de sacudir “o significativa, neste âmbito, diz respeito
jugo da imitação” para seguir “um trilho ao debate travado em torno da receção
novo” (Id., 1904, 358). Enquanto pionei- da epopeia O Gama, da autoria de José
ro do romantismo em Portugal, Garrett Agostinho de Macedo, refundida em
defende igualmente a originalidade e 1814 sob o título O Oriente. Pretendendo
a liberdade de expressão do indivíduo. o seu autor igualar em excelência Os Lu
Na “Advertência” que antecede Camões, síadas, não se abstém de emitir comentá-
enfatiza a índole “absolutamente nova” rios depreciativos sobre a sua qualidade
deste poema. Opondo-se ao modo de lei- poética, o que vem a provocar acesas
tura da crítica clássica, e colocando em reações por parte de Pato Moniz (Exame
causa o calculismo que define o seu ideal Analytico e Parallelo do Poema Oriente do
de criação poética, refere sobre Camões: Reverendo José Agostinho de Macedo com a
“Conheço que ele está fora das regras; e Lusiada de Camões, 1815) e do Morgado
que, se pelos princípios clássicos o qui- de Mateus (nova edição de Os Lusíadas,
serem julgar, não encontrarão aí senão 1817), entre outros. Nesta troca de argu-
irregularidades, e defeitos. Porém decla- mentos, evidencia-se já um desgaste da
ro desde já que não olhei a regras, nem poética neoclássica, que tem ademais
a princípios, que não consultei Horácio, subjacente uma afirmação dos valores
nem Aristóteles; mas fui insensivelmen- de uma leitura romântica da obra de Ca-
te de pôs o coração, e os sentimentos da mões. Segundo Ofélia Paiva Monteiro, o
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imperante nas práticas literárias dos só- Alcipe e a Sua Época, Lisboa, Colibri/Funda-
cios da academia lisboeta se manifesta- ção das Casas de Fronteira e Alorna, 2003,
ram. Em termos gerais, esses autores rea- pp. 9-19; FIGUEIREDO, Fidelino de, Historia
da Critica Litteraria em Portugal da Renascença á
gem contra o excesso de preceituação e
Actualidade, 2.ª ed. rev., Lisboa, Livraria Clássi-
de crítica, a imitação servil dos antigos
ca, 1916; FREIRE, Francisco José, Arte Poetica,
e o francesismo que se apoderavam da ou Regras da Verdadeira Poesia em geral, e de To-
literatura portuguesa. Em Garção, esta das as Suas Especies Principaes, Tratadas com Juizo
contestação denota uma atitude incon- Critico: Composta, e Dedicada ao Senhor Filippe de
formista, que dá lugar a uma obra origi- Barros de Almeida, Cavalleiro da Insigne Ordem Mi-
nal no seio da academia. litar de S. Joaõ de Malta, &c., Lisboa, Officina
O interesse romântico pela estética do de Francisco Luiz Ameno, 1748; GARRETT,
Almeida, Camões, Poema, Paris, Livraria Na-
sublime reveste-se do intento de devol-
cional e Estrangeira, 1825; Id., Lyrica de João
ver a literatura aos grandes temas do hu- Minimo, Londres, Sustenance e Stretch, 1829;
mano. Na senda de uma elevação do lite- Id., Dona Branca, 3.ª ed., Lisboa, Imprensa
rário acima da pequenez do quotidiano Nacional, 1857; Id., Obras Completas de Almei-
(recorde-se o desprezo de Quental pela da Garrett, ed. pref., rev., coord. e dir. Teófilo
descrição dos expedientes da vida or- Braga, vol. 2, Lisboa, H. Antunes Livraria Edi-
dinária), institui-se uma relevante opo- tora, 1904; HERCULANO, Alexandre, Opuscu-
los, 3.ª ed., t. ix (t. i), Lisboa, Bertrand, 1889;
sição aos valores da simplicidade e do
LAPA, Manuel Rodrigues, Poetas do Século XVIII
objetivismo que os árcades procuraram (Árcades e Pre-Românticos), Lisboa, s.n., 1941;
resgatar na poesia. Contudo, a procura MONTEIRO, Ofélia Paiva, “Camões e o ro-
da autenticidade do sentir, que anima mantismo português”, in SILVA, Vítor Aguiar
os poetas românticos, não está tão longe e (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa,
como parece a Herculano e à crítica ro- Caminho, 2011, pp. 176-182; QUENTAL, An-
mântica do princípio de verdade que os tero de, Causas da Decadência dos Povos Peninsu-
neoclássicos perseguem desde Boileau. lares nos Últimos Três Séculos: Discurso Pronunciado
na Noite de 27 de Maio, na Sala do Casino Lisbo-
A mudança essencial residirá na substi-
nense, Porto, Tip. Comercial, 1871; SARAIVA,
tuição de um conceito de representação A. J., e LOPES, Óscar, História da Literatura Por-
baseado na razão, e na imitação como vi- tuguesa, 17.ª ed., Porto, Porto Editora, 2005.
são, por um ideal de poesia que implica
Marta Marecos Duarte
o sujeito poético, e toda a exaltação do
sentimento que lhe é inerente, no repre-
sentado.
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de estipular a dúvida orientada pela razão que se processavam nos sécs. xvii e xviii,
como o método científico de descoberta não podemos deixar de referir o contri-
da verdade; depois ainda de Newton com- buto dos Descobrimentos portugueses
provar a gravidade como uma lei mecâni- no séc. xvi, que, através da observação
ca da natureza na qual concorriam diver- direta dos territórios, punham em causa
sas forças que explicariam o movimento as conceções ptolemaicas que vinham
dos corpos; depois também de John Lo- da Antiguidade. Como aponta Silva Dias
cke afirmar a importância dos sentidos, (1982), não se tratava ainda de um empi-
responsáveis por prover a mente da infor- rismo, cujo método as academias haviam
mação necessária ao trabalho da razão, li- de adotar e veicular, mas de um experien-
mitando e fazendo depender esta última cialismo no sentido em que a validação
dos dados empíricos, os paradigmas cien- dos factos se fazia essencialmente pela
tíficos de então não poderiam manter-se vivência ao longo das expedições, espole-
inalterados. Para além deste périplo me- tadas, é certo, por outros motivos que não
ramente ilustrativo das transformações os científicos.
A Modernidade interpelou o Homem
e fê-lo colocar em causa o saber que as-
Aristóteles, pormenor de A Escola de Atenas,
de Rafael Sanzio (1483-1520). sumia como seguro. É neste sentido que
a reação contra a escolástica foi, antes
de mais, uma tomada de posição relati-
vamente à alegada aceitação acrítica de
uma autoridade, em que a figura de Aris-
tóteles se reveste de uma importância ím-
par. Na verdade, a filosofia do Estagirita
tinha sido alvo de contestação na Europa
ainda na Idade Média, como atestam as
proibições de Paris, com a carta apostó-
lica de Gregório IX dirigida em 1231 à
Faculdade de Artes daquela cidade, em
que manda corrigir ou purgar os textos
aristotélicos, ou ainda as condenações
do bispo Estêvão Tempier, que, em 1270
e 1277, censura novamente Aristóteles.
Contudo, como lembra Carlos Silva, “a
maior parte destas condenações não teve
tanto consequências impeditivas [...],
quanto foi sintoma de uma mudança de
perspetiva em relação ao agostinianismo
(mesmo bonaventuriano) e até indutor
de um aturado estudo de Aristóteles a
partir do período do papado de Urbano
IV e das traduções do texto grego do Esta-
girita realizadas por Guilherme de Moer-
beke e Tomás de Aquino” (SILVA, 1989,
426). As consequências mais coercivas e
irreversíveis relativamente ao legado do
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reduziu-a a uma espécie de “teoria geral só expressiva e ilustrativa, mas que tem
da ciência, incidindo quer sobre os seus como alvo primordial mais os próprios
fundamentos subjetivos (ao investigar o escolásticos do que o filósofo que inspira
modo de conhecer das primeiras verda- o novo vocábulo. Na sua quarta “Dispo-
des ou princípios), quer sobre a estrutura sição”, pode ler-se sobre Aristóteles que
da realidade conhecida (ao expor as ver- “este Filósofo, émulo da gloria de Isocra
dades fundamentais comuns às diversas tes, ainda que algumas vezes fosse escuro;
ciências)”, como recorda Amândio Coxi- outras prolixo; outras malicioso, e ímpio;
to (CAEIRO et al., 1989, 448). Também a com tudo em diversas Obras ostentou a
filosofia natural, na qual se destaca a obra sua agudeza eloquentemente; e ensinou
monumental de Teodoro de Almeida, se coisas úteis” (CENÁCULO, 1776, I, 6-7).
assume como o estudo dos corpos natu- Alegam ainda os autores pombalinos
rais baseado em dados empíricos e recusa do Compêndio Histórico da Universidade de
quaisquer especulações vãs que não te- Coimbra que o filósofo grego teria inten-
nham suporte experimental. cionalmente criado uma filosofia e uma
As três linhas de leitura do antiaristo- moral com vista à corrupção dos jovens.
telismo português que temos vindo a Esse plano magistral do Estagirita fora
sintetizar ganham especial elã com a in- somente posto a descoberto na Moder-
tervenção do marquês de Pombal e o seu nidade, sendo todos aqueles que o le-
programa político de expulsão dos Jesuí- cionaram, transmitiram ou admiraram
tas, ao instrumentalizá-las e transferi-las cúmplices confessos desse perverso de-
do foro filosófico para o político. Na vas- sígnio. Por este motivo, lê-se no mesmo
ta literatura preparada ou orientada pelo Compêndio: “Aristóteles, filósofo ateísta
valido de D. José, surge uma imagem de que nenhuma crença teve em Deus e na
Aristóteles negativamente retratada, que vida eterna, que em vez de ditar princí-
teria maquinado a pior de todas as frau- pios para a probidade interior do ânimo
des da cultura ocidental. São exemplos e para a justiça natural, foi autor de um
expressivos desta construção sombria a sistema estofado de máximas dirigidas a
Relação Abreviada (1757), a Dedução Crono formarem o áulico das cortes de Filipe,
lógica e Analítica de José de Seabra da Silva de Alexandre e um hipócrita armado
(1767-1768), a Origem Infecta da Relaxação contra a inocência dos crédulos com
da Moral dos Denominados Jesuítas (1771), virtudes externas e fingidas”, ou ainda
o Compêndio Histórico do Estado da Univer “Aristóteles não só faltou com sementes
sidade de Coimbra (1771) e os Estatutos da à terra, mas em lugar do limpo bom tri-
Universidade de Coimbra (1772), estes dois go lançou nela cizânia e joio para con-
últimos escritos pela então criada Junta taminá-la e fazer nocivas as suas produ-
de Providência Literária, onde se destaca ções. Este é o crime mais atroz, por que
o papel de Fr. Manuel do Cenáculo, cuja se deveria ter desterrado dos Estatutos
orientação escolástico-aristotélica dos da nossa Universidade a Moral que ele
primeiros anos de vida intelectual viria ensinou” (FRANCO e PEREIRA, 2008,
a alterar-se posteriormente em conso- 101 e 246). O resultado desta contenda,
nância com o espírito iluminista e, mais sem possibilidade de contraditório por
particularmente, pombalino. Ainda que uma das partes, resultaria na elimina-
de forma mais moderada, Cenáculo não ção de Aristóteles dos novos Estatutos da
deixaria de criticar os escolásticos ao acu- Univ. de Coimbra, mesmo com a criação
sá-los de “aristotelomania”, palavra por si da nova Faculdade de Filosofia.
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Sousa (1951), e do Organon, por Pinha- Bibliog.: ABREU, Luís Machado de, Ensaios
randa Gomes (1985-1987). De salientar o Anticlericais, Lisboa, Roma Editora, 2004;
projeto de edição e publicação das Obras ANDRADE, António Banha de, Vernei e a
Completas de Aristóteles pela Imprensa Cultura do Seu Tempo, Coimbra, Universidade
de Coimbra, 1966; Id., A Reforma Pombalina
Nacional-Casa da Moeda, sob a coordena-
dos Estudos Secundários (1759-1771): Contri-
ção de António Pedro Mesquita, autor de buição para a História da Pedagogia em Portugal,
um volume introdutório de valor inesti- Coimbra, Universidade de Coimbra, 1981;
mável para o estudo desta personalidade, CAEIRO, Francisco da Gama, Frei Manuel do
publicado em 2005. Cenáculo: Aspectos da Sua Actuação Filosófica,
A exaltação dos valores iluministas vi- Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1959; Id.
ria a criar imagens antagónicas, caracte- et al., “Aristotelismo em Portugal”, in Logos,
rísticas de posições extremadas: ao mes- vol. 1, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1989,
cols. 433-454; CALAFATE, Pedro (dir.), His-
mo tempo que se defendia a liberdade
tória do Pensamento Filosófico Português, vol. iii,
do Homem, instigava-se a centralização
Lisboa, Caminho, 2001; CENÁCULO, Ma-
de poderes na figura inatacável do rei, nuel do, Disposições do Superior Provincial para
cuja soberania provinha diretamente de a Observancia Regular, e Literaria da Congregação
Deus e permitia, sem contestação, algu- da Ordem Terceira de São Francisco Destes Rei-
mas das ações mais repressivas; ao mes- nos, Feitas em os Anos de Mil Setecentos Sessenta
mo tempo que se entronizava a razão e Nove, e Setenta, 2 t., Lisboa, na Regia Of-
e o espírito crítico, repudiava-se acriti- ficina Typografica, 1776; CERQUEIRA, Luís
camente um legado cultural através de Alberto (org.), Aristotelismo e Antiaristotelis-
mo: Ensino da Filosofia, Rio de Janeiro, Ágora
uma representação denegrida e pouco
da Ilha, 2000; COXITO, Amândio, Estudos
devedora da racionalidade. Como lem- sobre Filosofia em Portugal na Época do Iluminis-
bra Umberto Eco, “ter um inimigo é mo, Lisboa, INCM, 2006; DIAS, J. S. da Sil-
importante, não apenas para definir a va, Portugal e a Cultura Europeia: Sécs. XVI-XVIII,
nossa identidade, mas também para ar- Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953;
ranjarmos um obstáculo em relação ao Id., Os Descobrimentos e a Problemática Cultural
qual seja medido o nosso sistema de valo- do Século XVI, Lisboa, Presença, 1982; ECO,
res, e para mostrar, no afrontá-lo, o nos- Umberto, Construir o Inimigo e Outros Escritos
Ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011; FRANCO,
so valor. Portanto, quando o inimigo não
José Eduardo, O Mito dos Jesuítas em Portugal,
existe, há que construí-lo” (ECO, 2011,
no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX), 2 vols.,
12). A construção de uma imagem nega- Lisboa, Gradiva, 2006-07; Id., e PEREIRA,
tiva de Aristóteles consolidou-se e teve Sara Marques (coords.), Compêndio Históri-
maior expressão precisamente no perío- co da Universidade de Coimbra, Porto, Campo
do pombalino, no seio de um discurso das Letras, 2008; MESQUITA, António Pe-
iluminista que, para se afirmar, teve de dro, Aristóteles: Obras Completas – Introdução
produzir alguns mitos negros como o do Geral, Lisboa, INCM, 2005; PATRÍCIO, Ma-
Jesuíta, o do medieval ou, no que aqui nuel Ferreira, “O anti-aristotelismo explícito
de Leonardo Coimbra: contribuição para o
respeita, o do filósofo corruptor. Com
estudo do problema”, Revista Portuguesa de
efeito, a reforma pombalina da Univer- Filosofia, vol. 39, 1983, sep.; SILVA, Carlos,
sidade e a produção de textos profun- “Aristotelismo”, in Logos, vol. 1, Lisboa/São
damente depreciativos sobre a herança Paulo, Verbo, 1989, cols. 408-433; VERNEY,
aristotélica tiveram como principal des- Luís António, Lógica, introd. e trad. Amândio
fecho para o séc. xix o desaparecimento Coxito, Coimbra, Imprensa da Universidade
do filósofo grego como uma das figuras de Coimbra, 2010.
centrais da discussão filosófica. Paula Carreira
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cessou a mudança nas políticas sociais ao substituição dos seguros sociais estabele-
longo dos sécs. xix e xx, inicialmente na cidos na Primeira República, apesar de
vertente mutualista, com a fundação da restrita no universo e nos riscos que co-
Sociedade dos Artistas Lisbonenses, em bria, procurava soluções de compromis-
1839, a primeira de muitas de idêntica ín- so entre as reivindicações dos trabalha-
dole operária, seguindo depois o modelo dores e o poder controlador do Estado.
bismarckiano dos seguros sociais. O re- A reforma da previdência social de 1962,
trato que uma parte substantiva do país considerada por alguns autores como um
apresentara em 1827, em resposta à por- momento chave do desenvolvimento do
taria de 7 de julho de 1827, relativamen- Estado-providência português, alargava a
te aos recursos assistenciais existentes, incidência social dos cuidados de saúde,
mostrara o peso de um sistema que conti- sem no entanto os tornar universais. Tal
nuava dependente das misericórdias, das como então foi redesenhado, este regime
rodas e de um conjunto indefinido de manteve-se até à Revolução de 1974, evo-
instituições que designava por hospitais. luindo daí para a Lei da Segurança Social
Neste documento, as primeiras (à exce- de 1984, assente em princípios de univer-
ção das misericórdias de alguns dos prin- salidade e solidariedade. Não escaparam,
cipais centros urbanos) encontravam-se contudo, a críticas antiassistencialistas
falidas, vivendo muitas delas de esmolas determinadas políticas de carácter so-
que recolhiam de gente pobre para as dis- cial desenvolvidas neste enquadramento.
tribuírem por outros ainda mais pobres; Foi o caso, e.g., do rendimento mínimo
na sua maioria, os hospitais estavam mais garantido, acossado, por um lado, como
próximos dos medievos hospitais do que promotor de estigmatização dos utentes
da moderna clínica, que então despon- e fomentador de sentimentos negativos
tava um pouco por toda a Europa; e as que, por sua vez, podem ser catalisadores
rodas chegavam a consumir mais recur- de reações sociais de contestação; e por
sos que muitas misericórdias e hospitais outro, por poder funcionar como meio
em conjunto, sem que tal se traduzisse de apoio ao ócio e à dessocialização.
em resultados reais, porque os índices da
mortalidade das crianças abandonadas
se mantinham elevadíssimos, indepen-
dentemente das somas alocadas a este
serviço assistencial. Pretendendo alguma
segurança que este sistema não lhes dava,
as associações de socorros mútuos que
surgiram na década de 1830 continham
valores antiassistencialistas. Bibliog.: ABREU, Laurinda, Pina Manique: Um
Consagrada a assistência pública na Reformador no Portugal das Luzes, Lisboa, Gradi-
va, 2013; CASTEL, Robert, Les Métamorphoses
Constituição de 1911, o apoio social man-
de la Question Sociale. Une Chronique du Salariat,
teria, no entanto, muitas das característi- Paris, Fayard, 1995; COUTINHO, Rodrigo de
cas anteriores, reservando o Estado para Sousa, Textos Políticos, Económicos e Financeiros.
si um papel meramente supletivo no que 1783-1811, introd. e dir. Andrée Mansuy Diniz
concernia às questões sociais; para os Silva, t. i, Lisboa, Banco de Portugal, 1993;
teóricos do regime, a pobreza continua- ROSANVALLON, Pierre, La Nouvelle Question
va eivada de uma valorização moral. A Sociale, Paris, Points, 1995.
previdência social, surgida em 1935 em Laurinda Abreu
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dos Direitos do Homem e das Liberdades de assuntos fora do seu âmbito, i.e., de
Fundamentais de 1950 acrescenta ainda terem uma natureza política.
que “toda a pessoa tem direito à liberda- É apenas com a Implantação da Repú-
de de reunião pacífica e à liberdade de blica e posteriormente com a Constitui-
associação, incluindo o direito de fundar ção de 1933 que o direito de associação
com outras pessoas sindicatos e de se fi- obtém reconhecimento definitivo, em-
liar neles para a defesa dos seus interes- bora o Estado corporativo tenha garan-
ses” (art. 11.º). tido esse direito com severas restrições
Quanto a Portugal, há um momento e existam diferenças substanciais entre
decisivo para se perceber a transição das o associativismo livre e o corporativismo,
formas de organização corporativas para que fazem com que este último funcione
as formas de organização associativas, que quase por oposição ao primeiro. Como
é quando o decreto de 7 de maio de 1834 afirma um autor de um libelo a favor
vem abolir as antigas corporações de ar- deste direito, “não basta a constituição
tes e ofícios; estas eram uma forma de reconhecer ao homem o direito de asso-
organização de interesses e de proteção ciação como corolário de um direito de
de classes profissionais do Antigo Regi- liberdade”, continuando: “com efeito o
me, de traços corporativos, incompatíveis art. 8.º no seu § 2 vem atirar pela janela
com o novo pensamento liberal. o que deixara entrar pela porta. Aí se diz:
Em termos constitucionais e legislati- ‘leis especiais regularão o exercício da li-
vos, a Revolução Liberal de 1820 acarre- berdade de expressão do pensamento, do
ta uma Constituição que vem reconhe- ensino, de reunião e de associação’”, pos-
cer direitos fundamentais aos cidadãos. to que “a garantia muda de natureza – de
Mas também em Portugal o reconheci- constitucional passa a governamental. Fa-
mento da liberdade de associação é fei- cilmente se imaginam as consequências”
to de intermitências. D. João VI, após (MARTINS, 1969, 9-11).
a Vila-Francada e a Abrilada, restaura O tipo de associativismo que vingou
a monarquia absoluta, antagónica ao na segunda metade do séc. xix em Por-
direito de associação. Apesar de a Car- tugal foi o defendido pela ala reformista
ta Constitucional de 1826, de D. Pedro liberal, de pendor burguês e não tanto
IV, repor a monarquia constitucional, operário, como vem a vingar mais tarde,
a liberdade do direito de associação e durante o séc. xx, de onde surge também
reunião só volta a ser preconizada pela o movimento sindical. No séc. xix e no
Constituição de 1838. O Código Civil de séc. xx da Primeira República, prolife-
1867 classifica o direito de associação ram defensores e teóricos da associação,
como natural. A 15 de junho de 1870, mais facilmente detetáveis do que autores
sai um decreto que proclama a liberda- que se tenham posicionado a desfavor da
de de associação independentemente mesma. Aliás, essa posição de oposição
da licença da autoridade pública, mas, passa muito mais por um pensamento e
como seria de esperar, foi revogado logo uma ação estatais, mais ou menos ideo-
no ano seguinte. Entre 1890 e 1894, há lógicos, mas sobretudo jurídicos e cons-
finalmente um fôlego legislativo que se titucionais, do que propriamente por um
dedica em exclusivo às associações. No pensamento individual.
entanto, impõem-se inúmeras restrições É possível determinar quatro grandes
ao livre associativismo, inclusivamente a núcleos de pensadores portugueses a
que impede as associações de tratarem favor da associação: 1) o grupo dos in-
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146 AntiAssociAtivismo
Por seu lado, Proudhon, em Capacité tativa que garanta formas de correção de
Politique des Classes Ouvrières, distingue desigualdades e devolva ao trabalhador
dois tipos distintos de mutualismo. Con- os resultados do seu trabalho sob forma
sidera as associações de socorros mútuos de proteção económica e social.
como simples organizações de caridade,
que, tal como os montes de piedade, as
lotarias de beneficência ou seguros de
Bibliog.: BAPTISTA, Eduardo Correia, Os Di-
vida, são “uma verdadeira sobrecarga reitos de Reunião e de Manifestação no Direito Por-
imposta ao trabalhador que não quer ser tuguês, Coimbra, Almedina, 2006; BARROSO,
exposto ao abandono no caso de doença Ivo Miguel, “A ausência geral de positivação
e desemprego”. Por outro lado, chama das liberdades de reunião e de associação
verdadeiro mutualismo aquele que nega no direito português, entre 1820 e 1870”, in
“qualquer possibilidade de especula- MIRANDA, Jorge et al. (coords.), Estudos em
ção”, e “tende a organizar sistematica- Memória do Professor Doutor António Marques
dos Santos, vol. ii, Coimbra, Almedina, 2005,
mente o princípio da justiça numa série
pp. 173-202; Id., “A descontinuidade da po-
de deveres positivos” na qual “é prome- sitivação da liberdade de reunião no direito
tido e assegurado o serviço pelo serviço, francês (1789-1868)”, in PINTO, Eduardo Ve-
o valor pelo valor, crédito pelo crédito, ra-Cruz (org.), Estudos em Homenagem ao Profes-
a garantia pela garantia” (PROUDHON, sor Doutor Marcello Caetano no Centenário do Seu
1982, III, 132). Assim, o autor valoriza Nascimento, vol. i, Lisboa/Coimbra, Faculdade
uma forma de mutualismo que deve ser de Direito da Universidade de Lisboa/Coimbra
Editora, 2006, pp. 537-582; GARCIA, Santos,
voluntária, decorrente de princípios de
Do Associativismo Livre à Organização Corporativa
justiça, e não uma espécie de obrigação da Agricultura, Évora, Gráfica Eborense, 1938;
jurídica que transforma o risco numa GOODOLPHIM, Costa, A Associação – Histó-
possibilidade de lucro. Proudhon carac- ria e Desenvolvimento das Associações Portuguesas,
teriza o papel do crédito nestas institui- Lisboa, Seara Nova, 1974; LOBO, António de
ções que têm em vista o lucro, como no Sousa Silva, O Estado e a Liberdade de Associação,
caso das caixas económicas e associações Coimbra, Imprensa da Universidade, 1864;
MARTINS, Alfredo Soveral, O Direito de Asso-
de socorros mútuos, que é a “ocultação
ciação, Coimbra, Associação Académica de
e a exploração sem reciprocidade do
Coimbra, 1969; PROUDHON, Pierre-Joseph,
trabalho pelo capital”, o que propaga e Oeuvres Complètes, vols. 1 e 3, Genève, Slatki-
perpetua a miséria, levando a um fosso ne, 1982; ROUSSEAU, Jean-Jacques, Contrato
cada vez maior entre o capitalista e o Social, Lisboa, Presença, 1977; SÁ, Victor, Do
trabalhador (Id., 1982, I, 128-129), algo Associativismo ao Sindicalismo em Portugal, Coim-
com consequências lesivas tanto para a bra, Imprensa de Coimbra, 1977; VENTURA,
sociedade como para o indivíduo. Re- Maria da Graça A. Mateus (coord.), O Asso-
ciativismo: das Confrarias e Irmandades aos Movi-
fere mesmo que a caridade é da família
mentos Sociais Contemporâneos, Lisboa, Colibri/
do crédito, e que para existir equilíbrio Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2006;
de rendimentos e mais-valias resultantes VERDE, Rui et al., Direito da Liberdade – Discus-
do trabalho é necessária uma organiza- sões de Filosofia, Lisboa, Estúdios Côr, 2002; VI-
ção do trabalho em si, o que faz com CENTE, Ana, “Direito à liberdade de reunião
que ataque frontalmente determinadas e de associação”, in RIBEIRO, Almeida et al.,
formas de associativismo subsidiárias da Repensar a Cidadania: nos 50 Anos da Declaração,
Lisboa, Notícias, 1998.
prossecução de lucro, ao mesmo tempo
que favorece um conceito de mutualis- José Bernardino
mo que respeite uma equivalência pres- Ana Catarina Rocha
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Antiateísmo
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150 AntiAteísmo
Idade Moderna
O ateísmo moderno está muito relaciona-
do com a redescoberta dos autores clás-
sicos num contexto sociocultural menos
favorável à fé: desenvolvimento de uma
classe burguesa independente, indivi-
dualista e letrada; ambiente cortesão de
grande libertinagem e costumes dissolu-
tos; atmosfera de guerra religiosa, motivo
para o ceticismo (uso da dúvida; De Arte
Dubitandi, de Castellio) e para a crítica à
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AntiAteísmo 151
Providência divina; generalização do sen- Curieuse des Beaux Esprits de ce Temps (1623):
timento anticlerical; desencantamento identificação de Deus com a natureza;
com a natureza e surgimento de ideias negação da transcendência, dos milagres,
panteístas; descoberta do atomismo epi- da imortalidade da alma e do destino ul-
curista e questionamento da imortalida- traterreno; substituição do livre-arbítrio
de da alma. e da responsabilidade individual por um
Como refere Gavin Hyman, trata-se tal- determinismo naturalista; acusação aos
vez, simplesmente, do aparecimento da religiosos de serem uns oportunistas, e
incredulidade ou descrença em relação aos padres uns impostores. Por esta altu-
ao cristianismo, que depois tomará várias ra, no contexto da guerra das religiões, as
figuras: o deísmo (e o livre pensamen- críticas à religião tradicional fazem emer-
to), o ateísmo (propriamente dito) e o gir um deus não antropomórfico (ser su-
agnosticismo, preparados pelos céticos e premo), totalmente oposto à divindade
libertinos. O certo é que, ao contrário do despótica e cruel do que estes pensado-
que aconteceu na Antiguidade, em que o res consideram ser a religião supersticio-
ateísmo foi defendido apenas por alguns sa dos padres. Na segunda metade desse
indivíduos, na Modernidade desenvolver- mesmo século, começam a rejeitar a ideia
se-á como ideologia, alcançando grupos de uma revelação sobrenatural, tendo as
cada vez maiores. religiões reveladas por imposturas, inven-
Quando John Cheke usa o termo tadas para controlar o povo. A primeira
“ateísmo”, em 1540, numa tradução de metade de Setecentos foi o momento
Sobre a Superstição de Plutarco, dá-se uma da negação de toda a intervenção do ser
situação curiosa: embora Plutarco o use supremo e imutável no mundo, e dos es-
em referência àqueles que pensam que critos contra os milagres. Nascia assim a
os deuses não existem, na tradução de religião racional do séc. xviii, oposta a
J. Cheke o termo surge como uma espé- toda a revelação sobrenatural, que “exal-
cie de acusação contra aqueles que ne- tava um Deus arquiteto do universo, au-
gam a doutrina específica da Providência tor das leis inerentes ao mundo e alheio
divina, i.e., aqueles que não acreditam a qualquer manifestação sobrenatural, tal
que os deuses possam intervir no mundo. como pregavam os sacerdotes” (MARTí-
Este uso do termo “ateísmo” torna-o qua- NEZ, 2011, 319).
se sinónimo de “heresia”. E por isso não é O ateísmo propriamente dito (séc. xviii)
de estranhar que ele seja então usado re- e o agnosticismo (séc. xix) têm também
toricamente nas controvérsias entre cató- a sua própria genealogia.
licos e protestantes, tanto por uns como A do agnosticismo é mais fácil de des-
por outros, para acusar o adversário de crever. Os três primeiros agnósticos con-
incredulidade. fessos são conhecidos: Herbert Spencer,
O deísmo (e o livre pensamento) dos Thomas H. Huxley e Leslie Stephen.
sécs. xvii e xviii lança as suas raízes no Huxley foi mesmo o inventor do termo
teísmo naturalista da Antiguidade greco “agnosticismo” – inspirando-se na passa-
-romana, redescoberto em Quinhentos. gem dos Atos dos Apóstolos onde se fala
Esse deísmo tem início em variadíssimas do “Deus desconhecido” (agnosto theo)
manifestações de libertinos em Itália, (At 17, 23) – para expressar a falta de
França e Inglaterra, e é reconhecível em certeza epistemológica relativa à existên-
várias características já apresentadas pelo cia de Deus. Contudo, este agnosticismo
Jesuíta François Garrasse em La Doctrine confesso foi preparado pelas filosofias
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filósofos naturalistas gregos que punham Ateus, Epicuristas, Pagãos, Judeus, Maome
em causa as explicações religiosas popu- tanos e Outros Infiéis, 1581), Antoine Pos-
lares, e que por isso eram satirizadas nas sevin (Livro sobre as Seitas Ateias do Nosso
grandes comédias gregas dos sécs. v-iv a.C. Tempo, 1586) e Pierre Charron (As Três
O primeiro a fazê-lo foi o conservador Verdades, 1593). No séc. xvii, sobressaí-
Aristófanes, nas comédias As Nuvens ram François Garasse (A Doutrina Curiosa
(423 a.C.) e, mais tarde, em Os Pássaros dos Bons Espíritos deste Tempo, 1622-1623)
(414 a.C.), em que satiriza e ataca os argu- e Marin Mersenne (Impiedade dos Deístas,
mentos sofistas e as inovações da filosofia Ateus e Libertinos deste Tempo, 1624). No sé-
natural, e acusa Sócrates de exercer uma culo seguinte, apenas merece referência
influência nefasta sobre a sociedade; foi a obra História das Heresias e Sua Refutação,
imitado pelos outros dois grandes drama- ou o Triunfo da Igreja (1768), de Afonso de
turgos atenienses, Êupolis (Os Bajulado Ligório.
res, 421 a.C.) e Crátino (Os Omnividentes, Na Antiguidade, Platão foi um dos que
c. 423 a.C.). Na Modernidade também mais se opôs à difusão do ateísmo, con-
não faltarão os prospetos e panfletos, com siderando-o intrinsecamente perigoso e
o seu estilo satírico, polémico, difama- defendendo que era necessário comba-
tório e violento, para atacar as ideias dos tê-lo fosse por meios persuasivos (argu-
livres pensadores (libertinos) e ateístas. mentação), fosse até por meios repressi-
No início da era cristã, os primeiros cris- vos (com sanções proporcionais ao grau
tãos foram muitas vezes acusados de ateís- de culpabilidade). Os meios persuasivos
mo, por se recusarem a prestar culto aos consistiam, por um lado, na apresentação
deuses romanos. Na maioria dos casos, de provas acerca da existência de Deus
essa acusação não era mais do que expres- e, por outro, na enfatização do carácter
são retórica contra o outro. Mas tornou- imoral e vulgar dos ímpios. Segundo
se tão frequente que os apologistas cris- G. Minois, Platão estaria na origem da
tãos se viram forçados a reagir. Por volta opinião negativa que marcou o ateísmo
do ano 200, Tertuliano refuta a acusação até ao séc. xix, a saber, o seu carácter
de ateísmo e argumenta que os deuses pa- vulgar e imoral, ou anticívico. A apologé-
gãos não passam de demónios. Clemente tica moderna sublinhará estes dois tipos
de Alexandria e Orígenes defendem que de argumentação. Por um lado, há uma
o politeísmo pagão é que é ateu, porque preocupação constante de uma parte (a
não acredita em (no verdadeiro) Deus e cristã) em provar a existência de Deus,
na sua Providência. Surpreendentemen- como da outra (a cética) em desfazer es-
te (e retoricamente), a apologética cristã sas provas. Por outro lado, a insistência
reabilita os ateus canónicos (das antigas de uma parte (os apologistas) em des-
listas gregas), porque foram os primeiros mascarar a imoralidade e incivilidade dos
a reconhecer a loucura da religiosidade libertinos e céticos (e.g., Garasse), como
popular greco-romana. também da outra em afirmar a indepen-
A partir de meados do séc. xv, vai nascer dência da moral em relação a qualquer
também uma nova apologética cristã para religião (e.g., d’Holbach).
combater quer a heresia (dos reformado- Face aos novos e agressivos desenvolvi-
res), quer o ateísmo dos céticos, liberti- mentos neoateístas, têm também surgido
nos e incrédulos em geral. No séc. xv, novas maneiras mais ou menos dialogan-
destacaram-se Philippe de Duplessis-Mor- tes de tentar responder-lhe racionalmen-
nay (Da Verdade da Religião Cristã contra os te (cf. Juengel; Mcgrath; Fergusson).
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em defesa da civilização cristã, ameaçada, Rise and Fall of Disbelief in the Modern World, New
como diz Salazar, ‘pelas desordens e peri- York, Doubleday, 2004; MINOIS, Georges,
gos mentais, morais e sociais trazidos pelo História do Ateísmo, Lisboa, Teorema, 2004; Id.,
The Atheist’s Bible. The Most Dangerous Book That
falso liberalismo, pelo socialismo, pelo
never Existed, Chicago/London, The Universi-
comunismo, pelo ateísmo, pelo materia-
ty of Chicago Press, 2012; ONFRAY, Michel,
lismo e pelas revoluções’” (CARVALHO, Contre-Histoire de la Philosophie, 9 vols., Paris,
2009, 3). Por outras palavras, a Concorda- Grasset, 2006-13; RODRIGUES, Luís F., His-
ta significava o reconhecimento público tória do Ateísmo em Portugal. Da Fundação ao Final
da hegemonia católica em Portugal. do Estado Novo, Lisboa, Guerra e Paz, 2010;
SHEPPARD, Kenneth, Anti-Atheism in Early Mo-
dern England, 1580-1720. The Atheist Answered
and His Error Confuted, Leiden, Brill, 2015; SIL-
VA, Carlos H. do C., “Agnosticismo”, in AZE-
Bibliog.: impressa: BREMMER, Jan N., VEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de His-
“Atheism in Antiquity”, in MARTIN, M. (org.), tória Religiosa de Portugal, vol. i, Lisboa, Círculo
The Cambridge Companion to Atheism, Cam- de Leitores, 2000, pp. 25-27; Id., “Ateísmo”, in
bridge, Cambridge University Press, 2006, AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de
pp. 11-26; CARVALHO, Rita Maria C. A. de, História Religiosa de Portugal, vol. i, Lisboa, Cír-
A Concordata de Salazar. Portugal-Santa Sé 1940, culo de Leitores, 2000a, pp. 159-161; digital:
Dissertação de Doutoramento em História GAMA, Manuel, “Percursos da secularização
Contemporânea Institucional e Política de em Portugal: Basílio Teles e Sampaio Bruno”,
Portugal apresentada à Universidade Nova de Braga, Centro de Estudos Humanísticos da
Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2009; CA- Universidade do Minho, 2005: http://reposi-
TROGA, Fernando, “O laicismo e a questão torium.sdum.uminho.pt/handle/1822/28426
religiosa em Portugal (1865-1911)”, Análise (acedido a 29 dez. 2016).
Social, vol. xxiv, n.º 100, 1988, pp. 211-273;
FERGUSSON, David, Faith and Its Critics. A Con- Porfírio Pinto
versation, Oxford/New York, Oxford University
Press, 2009; FERREIRA, António Matos, “An-
ticlericalismo”, in AZEVEDO, Carlos Moreira Na redação desta entrada, o seu autor contou
(dir.), Dicionário de História Religiosa de Portu- com a colaboração muito proveitosa do colega
gal, vol. i, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, José Carlos Lopes de Miranda, a quem deixa
pp. 79-82; GOMES, J. Pinharanda, Teodiceia aqui exarado o seu mais penhorado reconhe-
Portuguesa Contemporânea (Estudo e Antologia), cimento.
Lisboa, Sampedro, 1974; HYMAN, Gavin,
A Short History of Atheism, London/New York,
I. B. Tauris, 2010; JUENGEL, Eberhard, God
as the Mystery of the World. On the Foundation of
the Theology of the Crucified One in the Dispute
between Theism and Atheism, London, Blooms-
bury, 2014; LUCAS, Juan de Sahagún, Fenome-
nología y Filosofía de la Religión, Madrid, Biblio-
teca de Autores Cristianos, 1999; MARQUES,
João Francisco, “Apologética”, in AZEVEDO,
Carlos Moreira (dir.), Dicionário de História Re-
ligiosa de Portugal, vol. i, Lisboa, Círculo de Lei-
tores, 2000, pp. 82-102; MARTÍNEZ, María
Lara, Procesos de Secularización en el Siglo XVII y
Su Culminación en el Pensamiento Ilustrado, Cuen-
ca, Universidad de Castilla-La-Mancha, 2011;
MCGRATH, Alister, The Twilight of Atheism. The
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158 AntiAtomismo
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cularam em Espanha e Itália sem suscitar lar insistência a partir de 1623. Cordeiro
reações da Inquisição, mas não tiveram não escapou à admoestação dos seus su-
grande impacto em Portugal. periores, tendo sido obrigado a retratar-
No final do séc. xvi, e em consequên- se de algumas das suas posições e mes-
cia da Contrarreforma, pontificava em mo afastado do ensino em Coimbra. Em
Portugal no ensino da filosofia o Curso 1739, o Jesuíta António Vieira, professor
Conimbricense, um conjunto de comentá- no Colégio de Santo Antão, em Lisboa,
rios a textos de Aristóteles da autoria de atacou quem pretendia estudar a lógica
um coletivo de Jesuítas do Colégio das por “Renato (Descartes), Gassendo, Ma-
Artes, que incluía Manuel de Góis, Bal- riotte, Isaac Newton” (ANDRADE, 1965,
tazar Álvares e Sebastião do Couto. Os 156), por contrariar a boa teologia. Em
Jesuítas de Coimbra foram violentamen- Coimbra, o Jesuíta Silvestre Aranha dis-
te acusados pelo marquês de Pombal de tinguiu-se no ataque ao atomismo, con-
reacionarismo intelectual; mas o facto é siderado herético na medida em que
que, numa fase tardia desse movimento contrariava a filosofia aristotélica. No
neoescolástico, se verificaram algumas seu Disputationum Physicarum adversus
tentativas de renovação do curso. O Je- Atomisticum Systema, afirmou que se esta-
suíta Francisco Soares Lusitano tentou va a subverter a ordem natural das coisas
introduzir alguns elementos de Descar- ao separar a filosofia da teologia. A proi-
tes, escrevendo em 1651, no seu Cursus bição do atomismo mantinha-se a meio
Philosophicus in Quatuor Tomos Distribu do séc. xviii, como revela o decreto de
tus: “Agradamme as coisas verdadeiras, 1746 do reitor do Colégio das Artes, que
porque verdadeiras; desagradamme as proibia “nos exames ou lições, conclu-
falsas, porque falsas. Porque não me ar- sões públicas ou particulares se [não]
rasta a beleza da novidade, ou o peso da ensine defesa ou posições novas pouco
antiguidade, mas sim a Verdade das coi- recebidas ou inúteis para o estudo das
sas” (GOMES, 2012, 34). Porém, o Jesuí- Ciências maiores como são as de Renato
ta que, sem renegar totalmente Aristóte- Descartes, Gassendi, Newton e outros, e
les, avançou mais na defesa do atomismo nomeadamente qualquer Ciência que
foi António Cordeiro, autor do Cursus defenda os átomos de Epicuro ou negue
Philosophicus Conimbricensis, de 1714. In- a realidade dos acidentes Eucarísticos
fluenciado por ideias modernas sobre a ou outras quaisquer conclusões opostas
natureza da luz, escrevia: “a luz, tomada ao sistema de Aristóteles, o qual nestas
Física e entitativamente, não é mais do escolas se deve seguir, como repetidas
que pequeníssimas partículas de fogo vezes se recomenda nos estatutos deste
lançadas do próprio fogo ou do Sol ou Colégio” (Id., Ibid., 154).
dum astro aceso” (GOMES, 2012, 52). Nessa altura, a formação dada pelos
Cordeiro pode ser considerado o pri- Oratorianos na Casa das Necessidades,
meiro autor português a tratar o atomis- em Lisboa, era mais atualizada do que o
mo moderno, distinguindo-o do antigo dos Jesuítas no que respeita ao ensino da
e aceitando-o, pelo menos parcialmente. física, sendo aqueles considerados eclé-
Foi muito clara nos sécs. xvi e xvii, na ticos por apresentarem tanto os antigos
escola conimbricense, a rejeição do ato- como os modernos. Uma referência dos
mismo, assim como das ideias cartesia- Oratorianos foi o P.e João Baptista que,
nas a respeito das partes da matéria. Essa em 1736, introduziu a orientação gas-
condenação ocorreu aliás com particu- sendista; mas, entre Descartes e Newton,
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162 AntiAutoritArismo
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168 AntibAirrismo
sendo assim, o bairrismo não seria senão santos populares; por outro lado ainda,
um inflacionar de qualidades ou caracte- havia aí uma certa evocação das marchas
rísticas de valor diminuto. militares, em especial as marches aux flam-
Em segundo lugar, e mesmo se ou beaux, etc. Em suma: correspondiam a
quando motivado por um interesse de uma ação e expressão de propaganda sa-
fortalecer as relações entre os habitantes lazarista e, portanto, estavam integradas
do bairro, o bairrismo tem sempre um num programa de legitimização de um
quantum de exclusão de todos os que não modelo ruralista, localista e nacionalista,
são do bairro. Quer dizer: mesmo num que se afirmava e se reproduzia através de
sentido positivo, de integração, o núcleo usos e costumes da cultura popular.
do bairrismo nunca deixa de ser compos- Ora, há sinais na sociedade portuguesa
to de centramento e exclusividade – no de um certo antibairrismo que acentua e
caso, um centramento que exclui todos que critica precisamente os aspetos que
aqueles que não são do bairro, que não agora vemos. A saber: por um lado, criti-
partilham as suas vivências, para quem o ca ao bairrismo a sua história, i.e., o facto
bairro não tem este significado central, de o bairrismo e uma das suas expressões
etc. Em certos casos, a exclusão pode mais populares terem cunho salazarista;
até ir mais longe e pode passar por não por outro lado, critica ao bairrismo o fac-
aceitar a presença no bairro daqueles que to de corresponder a uma demarcação
não são do bairro ou não têm no bairro a territorial restritiva e portanto, à escala,
sua raiz – o que vale ao bairrismo a crítica o facto de corresponder a uma variante
de ser uma modalidade de resistência à cultural do protecionismo.
mudança, de tradicionalismo, de conser- Estes avanços permitem-nos dar conta
vadorismo ou, no limite, de xenofobia. de uma outra aceção de bairrismo – e, na
Em terceiro lugar, decorre dos dois sequência, de um novo ataque antibairris-
aspetos anteriores um fator de conflito. ta que nos interessa, ainda que de forma
Assim, a conjugação do aspeto do cen- muito breve, mencionar.
tramento e da exclusão do outro com o Há uma aceção que fala de bairrismo,
aspeto da exaltação e comemoração das de forma figurada, para significar uma
características de um bairro conduz a estrita e redutora ligação a uma fação.
que os mais diversos bairrismos se cons- O que está em causa nesta aceção de bair-
tituam em adversários entre si. Quer di- rismo é ainda a forma de centramento
zer: conduz a casos ou a eventos em que que vimos atrás – neste caso concreto, a
dois bairrismos de naturezas similares se consequência é o horizonte estar reduzi-
confrontam, procurando fazer prevalecer do aos limites da fação, de tal modo que
o seu bairro sobre outro (e, na verdade, não se considera e que se desvaloriza
sobre todos os outros). todo o horizonte para lá da fação ou que
O exemplo paradigmático deste aspe- se adere, de forma acrítica, às ideias, aos
to do bairrismo são as marchas popula- valores, etc., de uma fação.
res. As marchas populares têm origem Há múltiplos casos de bairrismos desta
na déc. de 30 do séc. xx e a ideia que as natureza: religiosos, culturais, desporti-
origina terá por base três ou quatro ob- vos, partidários, etc. O que mais vezes terá
jetivos mais ou menos declarados: por sido visado pelo antibairrismo foi uma
um lado, a constituição de um concurso certa ligação conformista, provinciana
semelhante aos concursos de ranchos po- e etnocêntrica à terra ou ao país de ori-
pulares; por outro, a comemoração dos gem. A crítica antibairrista, neste sentido,
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172 AntibAndArrismo
a sentença que lhe fora atribuída pelo vas tiveram neste entrecho: veja-se o Ma-
Tribunal da Inquisição, o que nos parece nifesto do Reino de Portugal, de Pantaleão
muito inverosímil. Estas razões levam-nos Rodrigues Pacheco (1643) em que, na
a considerar que se trata de um texto pos- tentativa de convencer Urbano VIII da le-
terior a Bandarra, escrito e anexo às Tro- gitimidade de D. João IV e da necessidade
vas para servir as virtudes de D. João de de se acolher a embaixada de D. Miguel,
Portugal, premiando a sua ação no movi- bispo de Lamego, se usam, como escreve,
mento de resistência a Filipe II e dando os “mal limados e toscos versos daquele
ao texto uma tonalidade reativa que nun- poeta, que tanto tempo de antes declara-
ca mais perderia. va o ano de sua restituição”; a Lusitânia
Apesar da inevitável polémica com os Liberata de António de Sousa de Macedo,
sebastianistas ortodoxos, fiéis às suas es- editada em Londres em 1645, em que se
peranças proféticas e messiânicas, as pro- traduzem algumas trovas de Bandarra; a
fecias plasmadas nas trovas terão também correspondência de Francisco de Sousa
um papel fundamental no surgimento e Coutinho, embaixador em Holanda que,
na consolidação do movimento restau- numa carta de 8 de agosto de 1648 para
rador. É esta uma outra apropriação da o marquês de Niza, revela encontrar nas
autoridade profética do sapateiro ao trovas sinais de que o infante D. Duar-
serviço de uma corrente messiânica – ou te, preso em Milão, viria a comandar as
de um sebastianismo agora “heterodo- forças unidas da cristandade e vencer o
xo” – que privava já de qualquer prota- Império Turco; ou, ainda, a Vox Turturis
gonismo político o rei desaparecido em Portugalia Gemens de Nicolau Monteiro,
África. É neste contexto, aliás, cerca de prior de Cedofeita e depois bispo do Por-
100 anos depois da condenação inquisi- to, publicada em 1649 (AZEVEDO, 1984,
torial, que a reputação do valor profético 67-70). Mas o empreendimento de maior
dos textos de Bandarra atinge o zénite. O vulto seria cometido por D. Vasco Luís da
P.e António Vieira – o principal bandar- Gama, embaixador em Paris, então con-
rista heterodoxo da linha restauracionis- de da Vidigueira e mais tarde marquês de
ta –, no seu processo inquisitorial, fala Niza, que, em 1644, manda imprimir, em
da forma como, no dia da aclamação de Nantes, à sua custa, as Trovas de Bandarra.
D. João IV, o arcebispo consentiu que a E nesta edição abundam acenos de novos
imagem de Bandarra fosse posta num al- acrescentos e delapidações. De facto, das
tar da Sé sem que ninguém protestasse. trovas que dão corpo ao segundo e ter-
Em Trancoso, procuraram-se os restos ceiro sonhos não se encontram indícios
mortais do “profeta” e transferiram-se nas muitas versões que D. João de Castro
para um lugar nobre da igreja matriz. O consultou e usou. Para além de não ser
governador das armas da Beira, D. Álvaro despicienda a sua asserção de as Trovas se-
de Abranches, mandou fazer o túmulo, e rem constituídas por um “prólogo” e um
João de Saldanha de Sousa, seu sucessor, “sonho”, na sua obra – com exceção das
teria mandado que se lavrasse a inscrição trovas 135, 158 e 159, que são as últimas –
que dizia: “Aqui Jaz Gonçalo Eannes Ban- não há qualquer sinal dessas 59 (da 98 à
darra, natural desta vila, que profetizou 157) que, na referida edição de 1644, apa-
a restauração deste reino, e que havia de recem ininterruptas. Para além disto, há
ser no ano de 1640, por el-rei D. João IV, nos versos supracitados uma clara confor-
nosso senhor”. E não faltam exemplos midade semântica com a restauração da
para sustentar a importância que as tro- independência, ao propalar-se a chegada
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AntibArroquismo 179
consegue estabelecer ligações entre obje- do Parnaso” – poema que integra a cole-
tos à partida totalmente desconexos, sur- tânea A Fenis Renascida, ou Obras Poeticas
preendendo assim o leitor; mais do que dos Melhores Engenhos Portuguezes; P.e An-
enunciar figuras de retórica, espera-se tónio Vieira, no texto que endereça ao
dotá-las da subtileza do conceito. São cé- leitor no volume i dos Sermões, e no “Ser-
lebres poetas Marino (inspirador do ma- mão da sexagésima”. Face ao hermetismo
rinismo), em Itália, e Calderón de la Bar- cultista, privilegiam a expressão clara e
ca e Quevedo, em Espanha. Em Portugal, direta, e põem a descoberto a obsessão
destaca-se a poesia de Fr. António das dos cultores do estilo pela metáfora e pe-
Chagas (1631-1682) e Fr. Jerónimo Baía los jogos sinestésicos, procurando emular
(1620/30-1688), e a oratória de Fr. José os seus procedimentos retóricos, através
Caetano, autor de Divini Verbi Hierologia da enunciação de imprevistas analogias,
(1730-35), assim como de inúmeros ou- sugestivas da exuberância e frivolidade
tros que figuram nas compilações Fénix do léxico que utilizam. São de sublinhar,
Renascida (1716-1728) e Postilhão de Apolo neste âmbito, as expressões de que se so-
(1761-1762). corre Vieira, com a finalidade de expor
Porém, deve sublinhar-se que a crítica os erros dos pregadores do seu tempo –
iluminista não discrimina entre barroco “lisonjear precipícios”, “derreter cristais”,
e barroquismo. Tem como alvo os exces- “desmaiar jasmins” (VIEIRA, 1679, 76).
sos formais da literatura do séc. xvii, e A partir do final do séc. xvii, e duran-
a sua sobrevivência no séc. xviii, de um te as primeiras décadas do seguinte, uma
modo genérico, reduzindo-a aos traços maior ênfase na teorização surge a par da
que, segundo Hatzfeld, definem o barro- elaboração de discursos de pendor satíri-
quismo. Mais do que visar o barroquismo, co, por parte de autores cuja produção
enquanto fase de decadência do estilo, literária se insere, ainda, nos cânones do
encara o período de vigência das formas barroco. É o que acontece no Serão Polí-
barrocas, no seu todo, como momento de tico de Fr. Lucas de Santa Catarina (pu-
decadência da literatura nacional e, por blicado em 1704, embora escrito antes de
extensão, do país. 1695, com o pseudónimo Felix da Cas-
As primeiras críticas ao formalismo tanheira Turacem), em especial na sec-
da literatura de Seiscentos surgem, na ção em que parodia a poesia dos cultos,
primeira metade do séc. xvii, sob o sig- chamados “meninos órfãos do Parnaso”
no de uma reação ao estilo cultista e aos (TURACEM, 1704, 143-148). A Nova Arte
imitadores de Góngora. Por vezes com de Conceitos (1718-1721), de Francisco Lei-
um elevado tom de sarcasmo, apontam tão Ferreira, muito embora elabore uma
a afetação no uso de palavras pomposas teoria da eloquência devedora dos ensina-
e pensamentos aéreos, o comprazimen- mentos de Tesauro e de Gracián, frisa já
to na expressão do difícil. Veja-se, e.g., a importância da simplicidade do ornato
“Discurso contra a poesia dos cultos”, de retórico e da verosimilhança do conceito,
Manuel Pires de Almeida – presente no advertindo para a premência de cercear
terceiro volume da História Crítica da Lite- as exuberâncias da fantasia e do empola-
ratura Portuguesa de Maria Lucília Pires e mento com a luz do entendimento. Mas
José Adriano de Carvalho; Domingos Pe- é o texto de Valadares e Sousa utilizando
reira Bracamonte, em Banquete Que Apolo o pseudónimo Diogo de Novais Pacheco,
Hizo a los Embaxadores del Rey de Portugal Exame Critico... (1739), que, ao fazer a
Don Iuan Quarto; o autor de “O pegureiro análise de uma elegia contemporânea, da
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180 AntibArroquismo
autoria de Caetano José Souto Maior, fixa lhos, deturpando inclusivamente o sig-
o início da época de restauração levada nificado exato das palavras da Vulgata,
a cabo por Verney e pelos árcades. Apre- para estabelecer analogias destituídas
senta, com efeito, uma primeira teoriza- de verosimilhança.
ção fundada nos princípios do neoclassi- Já na carta 7.ª, dedicada ao ensino da
cismo e na influência da crítica francesa, poesia, Verney veicula a noção de que a
reclamando a necessidade de submeter o poesia dos “cultos” se compraz, exclusiva-
engenho poético à censura dos críticos mente, ora em fúteis contemplações do
prudentes, cujo parecer é determinante real, ora na tentativa de enunciar o inve-
na formação do novo cânone literário. rosímil. Assim, reduz a temática barroca a
É sobretudo nas cartas 5.ª, 6.ª e 7.ª do alguns motivos preciosistas presentes na
Verdadeiro Metodo... que assistimos a um poesia de Chagas, tais como “a Dama que
ataque direto aos modos de discursar e deixou cair a luva em terra” ou “um sinal
de poetar barrocos, numa elaboração que se despegou do rosto” (Id., Ibid., 246),
que se propõe definir e ensinar a boa re- cujo significado assume relevo no âmbito
tórica, a boa eloquência e a boa poesia. performativo da poesia de circunstância
Em termos gerais, sobressai a crítica ao e academicista. Esta carta estrutura-se
carácter grandíloquo do “estilo dos Seis- em torno de quatro eixos: 1. definição
centos”, assim intitulado pejorativamente da poesia; 2. caracterização do estilo dos
pelo Barbadinho, que o faz corresponder poetas portugueses contemporâneos; 3. o
à idade sombria dos “séculos da ignorân- que falta aos poetas portugueses; 4. quais
cia”, i.e., do final do séc. xvi em diante os modelos a seguir e a não seguir.
(VERNEY, 1746, 75 e 211). O autor atri- De notar a afirmação de um ideal de
bui em grande medida a deturpação das poesia assente na sujeição do lirismo às
regras da boa eloquência ao desejo de leis da retórica. A poesia é “uma Eloquên-
singularização que norteia os autores bar- cia mais ornada”, “uma retórica mais flo-
rocos, pois, desprezando a simplicidade rida”, afirma (Id., Ibid., 216 e 236). O pri-
e naturalidade no escrever, procuram a mado da retórica, e da razão, tem como
todo o custo exibir argumentos estranhos consequência natural a aproximação da
e conceitos despropositados. poesia à prosa. Na dissecação de poemas
Nas cartas 5.ª e 6.ª, dedicadas ao en- que leva a cabo, é evidente o intento de
sino da retórica, o Barbadinho subli- fazer submeter a elaboração poética à
nha a necessidade de fundar o uso do coerência da prosa, referindo que “o que
ornamento e, em última instância, o nada significa em proza, muito menos
discurso, na verdade, sendo que a boa significa no verso” (Id., Ibid., 240).
eloquência terá que passar pelo uso Entre os defeitos imputados aos “verse-
adequado dos princípios retóricos da jadores” portugueses, destacam-se alguns
disposição, do decoro e da invenção. Os aspetos fundamentais. Em vez de funda-
sermões de Vieira servem-lhe de exem- rem o seu estilo no uso da razão e do juí-
plo, como fonte de galantarias pelas zo, de onde decorre o “verdadeiro enge-
quais se deixaram arrebatar e persuadir nho”, exercitado na leitura dos melhores
os homens (sem juízo, refere) do seu modelos da Antiguidade (Homero, Vir-
tempo. O Barbadinho aponta, entre ou- gílio, Catulo, Horácio; Cícero, Quintilia-
tros defeitos, a falta de profundidade e no, Dionísio Longino), preferem poetar
de rigor teológico do jesuíta, que baseia segundo a força da sua imaginação. As-
o seu discurso em sucessivos trocadi- sim, fazem uso quer do “falso engenho”,
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AntibArroquismo 181
faculdade corrupta que o autor associa à “na busca ansiosa de lumes e formosuras,
proliferação de formas poéticas como os que fazem do seu Lampadário de Cristal a
anagramas, os cronogramas, os labirintos mais vistosa girândola nessa competição
e os enigmas, e que considera “fantásti- pirotécnica que é a Fénix Renascida” (CI-
cas imaginações” (Id., Ibid., 229), quer do DADE, 1968, viii). As metáforas da luz
“engenho misto”, i.e., da metáfora, cujo e do fogo de artifício servem assim para
uso imoderado censura, aludindo indire- conotar a transbordante e vívida explosão
tamente ao tratado de Gracián, Agudeza y de analogias e conceitos engenhosos que
Arte de Ingenio (1648), e à teoria barroca atravessam as formas barrocas extremas,
que atribui genialidade à capacidade de a que não é possível ficar-se indiferente.
criar correlações harmónicas entre con- No Verdadeiro Metodo... figura um conjun-
ceitos divergentes. to de expressões que, além de conotarem
Por fim, o Barbadinho relaciona o des- a noção de bizarria, são sugestivas da ani-
virtuamento da poesia portuguesa com madversão que essas composições, poten-
a influência castelhana (&Anticastelha- cialmente inspiradoras dos jovens poetas,
nismo). A importação da arte poética geraram entre os intelectuais portugueses
do país vizinho ter-se-ia traduzido na in- em meados de setecentos (de notar a pu-
capacidade de criar um estilo nacional e blicação de Postilhão de Apolo, posterior à
no pouco incentivo para se escrever em do tratado de Verney e à fundação da Ar-
língua portuguesa. Por oposição, confere cádia Lusitana, sintoma do interesse pela
importância ao parecer dos “estrangeiros poesia barroca, ainda na segunda metade
de juízo” sobre este assunto (Id., Ibid., do século). Tal como Cidade, o Barbadi-
223), uma nota do estrangeiramento de nho comenta o seu carácter bombástico,
Verney, que apela assim ao abandono de notando o desprezo dos escritores pela
regras de poetar que já não vigoram nos simplicidade, pois que não produzem
países mais cultos da Europa, como Fran- palavra “que não acabe em estoiro, como
ça e a Itália. Por razões que se prendem uma bomba. [...] desprezam tudo, o que
com a observância dos princípios da re- não é estrondoso” (VERNEY, 1746, 165).
tórica e poética clássicas, segundo a leitu- Com ironia, compara ainda o estilo des-
ra neoclássica dos mesmos, a censura do ses autores ao provinciano que “comia as
Barbadinho ao mau gosto estende-se tam- uvas com o garfo”, para mostrar que tivera
bém ao séc. xvi e a Camões, bem como boa educação (Id., Ibid., 161); e atribui ao
a alguns autores antigos, entre os quais seu discurso designações como “mexero-
Teócrito, Séneca e Marcial. sadas” (Id., Ibid., 154) e “Partos monstruo-
A dimensão joco-séria que perpassa as sos” (Id., Ibid., 160), além de discorrer de
invetivas de que se compõe o discurso do forma hiperbólica acerca dos seus efeitos:
antibarroquismo constitui uma particula- “em vez de agradar, fazem náusea” (Id.,
ridade relevante a anotar. O intento de Ibid., 240), “tem alucinado infinita gente”
descrever o excesso ornamental próprio (Id., Ibid., 172-173).
da escola gongórica levada ao seu limite Na reação ao chamado “Seiscentismo”,
redunda com frequência num discurso por parte dos autores iluministas, quer
fortemente estereotipado. Para tal, re- na esfera da crítica literária quer na da
corre-se a enfáticas metáforas. Ao definir filosofia, em que se destacaram, além
a evolução da poesia do Renascimento de Verney, nomes como Teodoro de Al-
para a do barroco, Hernâni Cidade colo- meida (1722-1804) e Fr. Manuel do Ce-
ca o seu culminar em Fr. Jerónimo Baía e náculo (1724-1814), sedimentaram-se os
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AntibArroquismo 183
manifesta a sua antipatia pela poesia seis- poéticas vanguardistas. Neste sentido,
centista e setecentista com expressões de teve especial impacto o estudo minucio-
praxe como “nojentas frioleiras” e “ver- so dos recursos estilísticos, lexicais e sin-
salhada retorcida e parvoinha de poetas- táticos de Góngora levado a efeito por
tros trocadilhistas e trocatintas” (JORGE, Dámaso Alonso, em La Lengua Poética
1920, 443). de Góngora (1927), tanto mais porque, à
No volume i da História da Poesia Por- época, e por vicissitudes análogas das que
tuguesa (1955), João Gaspar Simões refe- explicam o desinteresse pelos autores do
re também com agrado a proximidade barroco, no contexto português, o autor
do bucolismo de Lobo à poesia de qui- de Soledades era não só pouco conheci-
nhentos, a “época áurea das nossas letras” do como marginalizado. A capacidade
(SIMÕES, 1955, 478). Intitula o capítulo de intuir uma “realidade misteriosa” e
dedicado ao barroco de “Degenerescên- inefável, que Henri Bremond associou à
cia barroca” e, num último fôlego crítico, essência da poesia, ou poesia em “estado
em que é visível a emergência da corrente puro”, terá sido, de acordo com Celina
positivista no seu pensamento, estabelece Sabor de Cortázar, um dos traços funda-
uma oposição entre o “corpo saudável mentais pelos quais a obra de Góngora
da realidade” e a “balofa carnação que constituiu uma fonte de inspiração para
adquirem os espíritos que se negam ao as vanguardas.
exame dos fenómenos e à observação Animado pela influência do estudo de
da vida” (Id., Ibid., 478). Gaspar Simões Eugenio d’Ors (Du Baroque, 1935), Cida-
distingue assim a vitalidade das correntes de, em O Conceito de Poesia como Expressão
classicistas, segundo o estereótipo que da Cultura, realiza uma defesa da poéti-
delas se formou durante o Iluminismo (a ca barroca. Porém, fá-lo enaltecendo as
realidade, a observação, o imediato), do composições de poetas que souberam
deturpado uso da imaginação que fazem conter a expressão rebuscada “nos limites
os autores do barroco, entre outros que da razão”, como Lobo, e elogiando a cria-
se inserem nessa linha de pendor antirra- ção de modelos de clareza e de elegante
cionalista (&Antirracionalismo). simplicidade, de que foi capaz a prosa
O interesse pela recuperação dos auto-
res do período barroco faz-se notar, no
João Gaspar Simões (1903-1987).
entanto, a partir de meados do séc. xx,
em parte graças ao influxo da crítica lite-
rária espanhola e alemã. Simbólica, neste
âmbito, foi, com efeito, a homenagem a
Luis de Góngora, que teve lugar no Ate-
neu de Sevilha, em 1927, por ocasião do
terceiro centenário da morte do poeta.
Organizada na circunstância do primeiro
encontro do grupo de escritores que vi-
ria a ser chamado Geração de 27, de que
fazem parte, entre outros, García Lorca,
Jorge Guillén e Dámaso Alonso, a recor-
dação do poeta cordovês assume-se como
marco representativo de uma redesco-
berta estética do barroco no domínio das
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Antibiblismo 189
judaica, em seu entender, é inferior à cris- Bíblia, a partir dos originais, o que já
tã; os seus textos, abomináveis; o seu Mes- não acontecia desde S. Jerónimo.
sias, um mero guerreiro, muito diferente Mas, ao mesmo tempo, cresce a descon-
do Jesus cristão; etc. Enfim, o seu antibi- fiança em relação à leitura livre do texto
blismo (enquanto rejeição do AT) perma- sagrado. As primeiras proibições aconte-
neceu em muitos movimentos cristãos. cem ainda nos sécs. xiii e xiv, quando
Desde logo, na mesma área geográfica, os Concílios de Toulouse (1229) e Tar-
foi herdado pelo paulicianismo; depois, ragona (1233), primeiro, e Carlos IV da
na Idade Média, pelo movimento cátaro Boémia (Maiestas Carolina, 1350), depois,
do Sul da França; e nos tempos moder- proibiram a tradução e leitura da Bíblia
nos, de modo residual, pelos meios ger- em língua vulgar por parte dos heréticos,
mânicos antissemitas. Adolf von Harnack, já que estes se apropriavam dos textos
um grande estudioso de Marcião, era si- bíblicos para divulgar as suas ideias hete-
multaneamente seu admirador. rodoxas. A invenção da imprensa e a tra-
dução da Bíblia em língua vulgar, por Lu-
tero, vieram aumentar essa desconfiança.
O AnTiBiBliSMO CATóliCO Em 1490, com grande pompa, o car-
A especificidade da exegese cristã está na deal Torquemada, inquisidor-geral de
leitura alegórica ou tipológica dos tex- Espanha, organizava em Salamanca um
tos veterotestamentários, aplicando-os a auto de fé onde foram queimados muitos
Cristo. Foi assim que ela se definiu após livros judaicos, entre os quais algumas Bí-
a crise marcionita. Embora alguns Padres blias hebraicas. Em 1515, o Papa Leão X
da Igreja se tenham preocupado com a estabelecia a censura prévia e a proibição
hebraica veritas (quer dizer, o sentido his- de imprimir livros sem a autorização do
tórico e literal dos textos sagrados), a bispo. Depois, surgem os índices de livros
maioria privilegiava claramente o senti- proibidos, primeiro, o de Henrique VIII
do espiritual. Só a partir do séc. xii, em (1529), depois, os das Universidades de
França (na abadia de S. Victor, na escola
catedral de Paris e, depois, entre os Do- Papa leão X (1475-1521).
minicanos e os Franciscanos), se voltou a
valorizar o sentido literal das Escrituras.
Sintomático deste volte-face foi o de-
creto do Concílio de Viena (1311-1312),
propondo a criação de cátedras de Gre-
go e das línguas orientais nas princi-
pais universidades europeias. Todavia,
isso não ocorreria senão no início do
séc. xvi, com a criação do Collegium
Trilingue nas Universidades de Alcalá,
Lovaina e Paris (de onde sairiam as fa-
mosas Bíblias poliglotas). Os sécs. xv
e xvi, portanto, são férteis em cristãos
hebraístas, profundos conhecedores da
gramática hebraica e defensores do sen-
tido literal das Escrituras. São eles que
estão na génese de novas traduções da
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Antibigbrotherismo 195
D.R.
de conversa, sob a égide de um conceito
de policiamento preditivo e preventivo. Tom Cruise em Relatório Minoritário,
Face à reação inflamada da opinião pú- de Steven Spielberg (2002).
blica e às sucessivas acusações de violação
de privacidade, o programa TIA durou de sistemas da CIA e consultor da NSA,
apenas, pelo menos formalmente, até denunciou o alcance abusivo dos progra-
ao final de 2003, altura em que o Sena- mas de vigilância da NSA e da agência
do americano decidiu deixar de apoiar britânica Government Communications
financeiramente o IAO. No entanto, ape- Headquarters, provando, através da divul-
sar dos vários gestos e tentativas de oposi- gação de vários documentos secretos, que
ção, a verdade é que muitos dos projetos estas violavam flagrantemente o direito
do IAO, bem como de outros organismos civil à privacidade ao espiarem, sem reser-
afins fora dos EUA, continuaram, e conti- vas, cidadãos e líderes políticos em todo
nuam, o sonho da vigilância total, finan- o mundo. No dia 6 de junho de 2013, na
ciados, quando não pelos Estados, por sequência de tal denúncia, os jornais The
grupos de interesse privado. Washington Post, nos EUA, e The Guardian,
No entanto, as malhas do bigbrotheris- no Reino Unido, publicaram reportagens
mo, na vertente que se liga à questão da sobre a monitorização de milhões de pes-
vigilância, não são já urdidas apenas pe- soas que a NSA estava a levar a cabo atra-
los governos ou grandes organismos, mas vés do acesso às redes sociais e outros sites,
também pelos vários sites que se servem bem como da recolha de dados e registos
do perfil e da atividade dos seus utiliza- de chamadas realizadas a partir de dis-
dores para traçar padrões de comporta- positivos móveis. As reportagens revelam
mento, de forma a antecipá-lo e a mani- que a NSA teve acesso direto aos sistemas
pulá-lo. Conhecendo os gostos e o perfil do Google, do Facebook e da Apple, en-
comportamental de cada utilizador, tais tre outros, através de um programa de
sites selecionam de uma forma inteligente vigilância global, Planning Tool for Re-
a publicidade que lhes será dirigida, bem source Integration, Synchronization and
como as sugestões de produtos que fa- Management (PRISM), mantido secreto
zem. São exemplo disso a famosa livraria desde 2007, que permitiu a recolha de
virtual Amazon e redes sociais como o Fa- dados confidenciais dos cidadãos, como
cebook, cuja receita deriva precisamente o conteúdo do histórico das pesquisas,
da publicidade que vende. das mensagens eletrónicas e das conver-
As reações antibigbrotheristas adquiri- sas em chat.
ram novo fulgor e sentido em 2013, quan- A violenta perseguição a que Snowden
do Edward Snowden, ex-administrador passou a estar sujeito ajuntou à questão
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196 Antibigbrotherismo
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Antibigbrotherismo 197
lidades”, como “animais num zoológico” a sua violação foi representada como um
(ANDRINGA, 24 Horas, 20 jul. 2001, 5) degrau que assinala a “escada” por onde
e “gladiadores televisivos” (CARDOSO, desce a degradação humana (FLORES,
Público, 19 maio 2001, 53), por sua vez o DN, 21 maio 2001, 10). Sendo o fenóme-
reality show foi apreciado como uma “casa- no do reality show apontado como uma es-
-prisão” (TORRES, Público, 25 nov. 2002, preitadela “pela fechadura da TV para as
37) e entendido como um programa que intimidades de meia dúzia de portugue-
“reduz o pensamento ao mínimo e que, ses” (PINA, Visão, 31 maio 2001, 104), os
no entanto, dá, e muito, que pensar – críticos consideram que não se trata ape-
sobre a pobreza das nossas vidas” (POR- nas da privacidade explorada e perdida,
TAS, DN, 31 maio 2001, 9); foi ainda feita mas do voyeurismo que reduz o valor da
uma conotação com a “sociedade rasca” intimidade ao preço do mercado.
(MOURA, DN, 30 maio 2001, 9). Entre Os patrocinadores deste género de
linhas, o enredo foi contextualizado no entretenimento defendem que se trata
caldo cultural do Maio de 1994, no qual de um ato consciente e de participação
emergiu a crítica à geração que Vicente voluntária. Além das audiometrias lhes
Jorge Silva cunhou como rasca, num edi- darem razão – 90 em cada 100 telespecta-
torial do jornal Público. Tratava-se, à épo- dores terão assistido ao final da primeira
ca, de uma crítica ao protesto estudantil edição do “Big Brother” –, a seu ver a evo-
que, além de exibir à então ministra da lução do número de candidatos às edições
Educação alguns traseiros despidos nos seguintes – 10, 35 e 150.000, respetivamen-
quais se lia “não pagamos”, havia sido, no te – é demonstrativa de que o programa
ver do jornalista, um desfile de palavrões dá ao público aquilo que este procura.
e obscenidades. Nesta linha, alguns vislumbraram uma “te-
O antibigbrotherismo considera inacei- ledemocratização”, argumentando que,
tável o modo como este género de entre- mediante a “transformação dos espetado-
tenimento explora “de uma maneira mi- res em atores do próprio entretenimento”
serável sentimentos e emoções da esfera (BARROS, DN, 30 maio 2001, 52), o públi-
privada, transformando-os num espetácu- co pôde aceder à televisão.
lo público deplorável”, revelando ainda Se para uns era importante problema-
uma preocupação com as “consequências tizar a qualidade dos conteúdos, para
psicológicas nefastas” para os concorren- outros importava deixar funcionar a lei
tes (BARROSO, DN, 26 maio 2001, 8). da oferta e da procura, e a liberdade de
Em contrapartida, alguns argumentam dar aos consumidores um produto pro-
que “as televisões, como outros meios de curado pela maioria. Assim, as discussões
comunicação, não são ONG’s, são empre- ficaram mais atidas à questão da devassa
sas que estão no mercado para dar lucro. da intimidade e aos termos da violação da
Devem regular-se pelas leis gerais do mer- privacidade daqueles que participaram
cado e da concorrência, e servir o públi- neste género de concursos televisivos do
co à medida do interesse e do gosto des- que à reflexão sobre o voyeurismo con-
se público” (“Outra vez …”, DNA, 2 jun. sentido pelos concorrentes e as implica-
2001, 7). Embora, para a geração BB (big ções que aquela “experiência de condi-
brother), a privacidade possa ser enten- cionamentos psicológicos em humanos”
dida como um bem negociável, para os (PEREIRA, Público, 4 jan. 2001, 10) e de
antibigbrotheristas, a privacidade como longa clausura teria quando regressassem
dignidade deve ser inalienável, pelo que às suas vidas.
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200 AntibiogrAfismo
(vol. iii), reage violentamente tanto con- to pressupõe, para além de uma notável
tra a “emoção absurda” provada pelos autonomização da linguagem poética na
seus escritos – reflexo de uma crítica pra- sua vertente material (dimensão plástica
ticada em “ambiente acanhado – tão pro- e sonora do significante), um autêntico
vinciano e de compadrio, tão charlatanes- auto de fé dos autores que uma promís-
co, e tão bafiento” (SÉRGIO, 1980, 8-9) –, cua e falaciosa tradição literária erguera
como contra a crítica exercida para “sim- ao estatuto de cânone: “Só nós somos o
ples uso dos autores criticados” (Id., Ibid., rosto do nosso tempo. O clarim do tempo
19). Daí advogar, nas suas “Anotações”, ecoa através de nós pela arte da palavra.
que, por ter como principal vocação “pôr O passado é estreito. A Academia e Pou-
a obra em relação com o público”, a críti- chkine são mais incompreensíveis que os
ca pode “dispensar-se, absolutamente, de hieróglifos. Lancemos Pouchkine, Tols-
pensar o autor. A obra, uma vez criada, toi, etc., etc., fora das margens do tempo
existe por si, independentemente do au- atual […]. Lavai as mãos do contacto ab-
tor; e não só a Crítica, mas a História da jeto e viscoso dos livros escritos por todos
Arte, poderia dispensar-se de falar em no- esses inúmeros Leónidas Andréev” (RO-
mes” (Id., Ibid., 19-20). Anos mais tarde, BEL, 1972, 13), exultava, em dezembro
na 18.ª das Cartas do Terceiro Homem, data- de 1912, um grupo vanguardista liderado
da de 27 de janeiro de 1954, Sérgio volta por Bourlinov.
a lamentar a verve pseudocrítica lusíada Não sendo nem o primeiro nem caso
que tende a discutir “muito dos homens único neste vasto e intrincado processo,
[…] e quase nada das ideias”, fazendo é, no entanto, com Marcel Proust e o seu
com que “todos se aferr[e]m sobre nugas célebre Contra Sainte-Beuve publicado em
mínimas que não chegam a valer coisa al- 1954 – conjunto de ensaios que consti-
guma” (Id., 1954, 26). tui um verdadeiro campo experimental
A modernidade crítica e literária, en- onde a linguagem crítica experimenta
quanto fenómeno paradoxal marcado formas, processos e figuras que virão, al-
simultaneamente pela perda da trans- guns anos mais tarde, a alimentar a céle-
parência da linguagem, como refere bre obra Em busca do Tempo Perdido –, que
William Marx, e pela extrema “valoriza- o antibiografismo assume uma expressão
ção da escrita como ato estruturador do doutrinária mais nítida e incisiva. No ca-
sujeito” e do mundo (REIS, 1995, 52-53), pítulo viii, no qual parte em busca dos
emerge assim de um desejo mais ou me- “pecados” de Sainte-Beuve e do seu mé-
nos violento de rutura face à superiori- todo – “uma espécie de análise botânica
dade ontológica e metafísica do Homem praticada sobre os indivíduos” (PROUST,
sobre a linguagem e a obra que põe em 1954, 123) –, através do qual foi incapaz
causa os fundamentos epistemológicos de reconhecer o génio de Baudelaire ou
da própria conceção clássica da autorida- de Flaubert e considerou “francamen-
de, em temáticas de Leclerc. Tal desejo te detestáveis” os romances de Stendhal
encontra na crítica antibiográfica uma (Id., Ibid., 128), Proust enuncia aquela
vítima expiatória e um terreno particu- que virá a ser a vulgata teórica dos moder-
larmente fértil para se expandir. Este nismos: um livro – que não seja um “tra-
processo, decerto já patente na poética tado de geometria pura” (Id., Ibid., 127)
pré-modernista de um Stéphane Mallar- – não resulta da soma da relação entre
mé, e.g., acentua-se consideravelmente o homem e a obra; “é o produto de um
com os formalistas russos, cujo manifes- outro eu diferente daquele que manifes-
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todas as condições para que aquele se foi prontamente recusado pelas Cortes,
configurasse como Estado autónomo, que desejavam que a carta constitucional
como veio depois a ocorrer, mas também fosse a mesma para toda a “nação portu-
instilou nos parlamentares portugueses guesa”. Vendo todas as suas pretensões
um preconceito em relação aos seus co- recusadas pela maioria, os deputados bra-
legas brasileiros, embora este viesse mis- sileiros perceberam que o Brasil, já alça-
turado com certa inveja pela condição do à condição de reino em 1816, estava
de corte e reino que fora outorgada à prestes a voltar a ser uma mera colónia
antiga colónia. Seguindo o exemplo dos governada por Lisboa, o que significava
vizinhos espanhóis, cujos comandantes a restituição de alguns monopólios e a
do exército concentrado em Cádis, em ja- perda de liberdade comercial. Nesse sen-
neiro de 1820, se revoltaram, obrigando tido, esta revolução tinha um carácter em
Fernando VII a restaurar a Constituição muitos aspetos restaurador quando posta
de 1812, Portugal preparou, no mesmo em confronto com a anterior, uma vez
ano, a sua revolução, embora pacífica e que, ao recusar o “brasileirismo” da mo-
sem mortos ou feridos. Jovens e velhos, narquia, recusava também o legado de
frades e seculares, incluindo os fidalgos D. Rodrigo de Sousa Coutinho, e sobretu-
das províncias do Norte que se aliaram do o seu sistema liberal de comércio. De
ao governo revolucionário, optaram por qualquer forma, os liberais portugueses,
uma atitude tradicionalista, vendo a in- ao optarem pelo modelo espanhol, não
compatibilidade entre o “amor de uma agiam subversivamente, mas buscavam
liberdade ilimitada” e a “verdadeira feli- pôr em execução as “leis fundamentais”
cidade do homem” (RAMOS, 2009, 464). e os “direitos universais” que haviam
No entanto, tal concertação pode ser aprendido na reformada Univ. de Coim-
igualmente vista como uma rutura, pois bra. Muitos desses liberais, que exerciam
as Cortes, agora compostas por 100 de- a profissão de advogados, médicos e mi-
putados eleitos em Portugal, 65 no Brasil litares, eram maçons ou estavam ligados
e 16 de outras possessões, não eram so- à maçonaria, também no Brasil, estando
mente consultivas, mas também sobera- além disso envolvidos na publicação de
nas e integradas por deputados eleitos periódicos, muito prolífica à época, e na
por sufrágio universal, como acontecia formação do que passou a considerar-se a
em Espanha. Entre os dias 8 de fevereiro “opinião pública” – mesmo com a exclu-
e 9 de março, as bases da Constituição – são do “baixo povo”, que, como afirmava
que entrariam em vigor a 23 de setembro o embaixador espanhol em Lisboa, José
de 1822, 16 dias, portanto, depois de ser Maria de Pando, permanecia “na mais
proclamada a independência do Brasil estúpida apatia” perante as revoluções e
– foram discutidas e votadas. Os artigos proclamações da época –, tanto em Por-
então aprovados mudaram radicalmente tugal como no Brasil (Id., Ibid.).
a estrutura da monarquia portuguesa, Convém observar que, ao contrário do
embora mantivessem o catolicismo como modelo inglês, em que a monarquia não
religião do Estado. se confundia com a nação, a afirmação
Mas o aspeto principal dessa transfor- da soberania nacional pelos deputados
mação da monarquia portuguesa foi a portugueses rompia a unidade da mo-
separação do Brasil. Em fevereiro de narquia, que era, nos termos de Benedict
1821, o Rei havia proposto que o Brasil Anderson, uma “comunidade dinásti-
tivesse uma constituição própria, o que ca”, e não uma “comunidade imaginada
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nacionalmente” (ANDERSON, 2008). Por “se o Brasil não quer unir-se a Portugal,
outras palavras, todos poderiam ser vassa- como tem estado sempre, acabemos uma
los do Rei, mas nem todos poderiam ser vez com isto: passe o Sr. Brasil muito bem”
Portugueses, sobretudo num momento (RAMOS, 2009, 471-472). Nesse contex-
em que as narrativas políticas, historio- to, e perante a decisão das Cortes de re-
gráficas e literárias de Portugal procura- gressar a Portugal, D. Pedro, que já havia
vam estabelecer, em moldes românticos, dito a seu pai que Portugal era um Estado
uma identidade nacional portuguesa. No de quarta ordem, e que só o Brasil pode-
Brasil – apesar do movimento separatista ria sustentar a casa dos Bragança, decidiu
que dominava a América espanhola, e dos ficar no Brasil, declarando a indepen-
levantes emancipacionistas ocorridos em dência a 7 de setembro e sendo aclama-
várias localidades do país desde o final do do Imperador a 12 de outubro de 1822,
séc. xviii (como a breve experiência re- pelo que se tornou uma das personagens
publicana em Pernambuco, em março de mais fascinantes da história do Brasil e da
1817) –, somente em 1822 é que os apelos Europa da primeira metade do séc. xix,
à independência se tornaram mais cons- sobretudo quando se tornou moda dis-
tantes na imprensa, como consequência cutir a causa de D. Maria II (1819-1853)
da atitude dos deputados portugueses e os problemas da sucessão em Portugal,
nas Cortes de Lisboa. Um dos notáveis nos quais estavam envolvidos intelectuais
brasileiros da época, o visconde de Cairu, franceses e portugueses, entre eles dois
e.g., tinha a Europa por “mestra da civi- jovens que, tendo-o como salvador da
lização no Novo Mundo” e defendia na pátria, se alistaram nas tropas sob seu co-
imprensa, e perante as Cortes de Lisboa, mando: Almeida Garrett (1799-1854) e
a unidade do Reino Unido, no que con- Alexandre Herculano (1810-1877).
cordava com o juramento, prestado pelo Uma representação do Brasileiro como
príncipe D. Pedro a 26 de fevereiro, da o novo-rico sem bom gosto, enriquecido
Constituição que se elaborava em Lisboa, com o tráfico negreiro ou com negocia-
sugerindo a Constituição inglesa como ções não menos ilícitas, consagra-se nas
modelo a ser seguido por Portugal, pois narrativas de Eça de Queirós, sobretudo
via na França um perigo para a ordem so- em Os Maias, mas já aparece em Júlio
cial (KIRSCHNER, 2009). Dinis. Convém ressaltar que, no caso de
Para os deputados portugueses, con- Eça, tal aspeto da sua obra aparece apesar
tudo, a preponderância brasileira no de o autor ter uma relação afetiva com o
Reino Unido era insuportável. Ademais, país, ao qual era ligado pela parte pater-
embora o Brasil fosse a principal fonte de na. Tido como o romancista das famílias,
riquezas e rendas de Portugal, acreditava- Júlio Dinis pode ser considerado como a
-se que, sem Portugal, o país seria dissol- expressão literária da Regeneração, uma
vido, numa situação paralela à da Amé- vez que a sua obra novelística é permeada
rica espanhola, ou mesmo assolado pela pela ideia de harmonia universal, que se
revolta dos escravos, como acontecera no expressa nos enredos sentimentais e no
Haiti no século anterior, uma vez que o final feliz, coroado pelo nivelamento de
contingente africano compunha mais de dois namorados económica e socialmen-
80 % de toda a população. Foi levado por te desiguais. Tal é o caso de Uma Família
essa crença que o deputado Manuel Fer- Inglesa (1868). Como o próprio narrador
nandes Tomás (1771-1822) afirmou, a 22 confessa no final do capítulo ii, a ação
de março de 1822, nas Cortes de Lisboa: do romance flui quase desimpedida de
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lei de 1389 destinada a garantir aos Ingle- importante porto marroquino. No tocan-
ses o mesmo tratamento que era recebido te à aliança com Inglaterra, o que pertur-
pelos genoveses, privilégio que muito de- bava as relações entre os dois reinos eram
sagradava aos mercadores do Porto, uma as dívidas contraídas pela Coroa portu-
vez que estes jamais haviam tido esse tipo guesa, algo que foi lembrado por Henri-
de facilidade em Inglaterra. Deste modo, que IV, em resposta a uma das reclama-
os comerciantes portugueses passaram ções de D. João I quanto às condições de
a exigir do Rei o direito de se apodera- tratamento dos mercadores portugueses,
rem dos bens dos mercadores ingleses mesmo depois da participação de tropas
em Portugal, como forma de compensar portuguesas nos conflitos de 1404 e 1405,
as perdas sofridas na Inglaterra. Com que tiveram lugar no Norte da Europa.
a deposição de Ricardo II, em 1399, e a Na costa portuguesa, as mercadorias in-
ascensão ao trono inglês de Henrique IV glesas eram também capturadas, o que
(1367-1413), irmão de D. Filipa, as rela- motivou cartas do Monarca inglês a sua
ções entre os dois reinos melhoraram. irmã, para que esta interviesse em tais
Como para estreitar os laços familiares e questões. Estes conflitos comerciais per-
comerciais com a monarquia portuguesa, maneceram durante os dois restantes rei-
o Rei inglês nomeou, em 1400, D. João I nados da dinastia de Lencastre, apesar de
como cavaleiro da Ordem da Jarreteira Henrique V (1386-1422) e Henrique VI
e ratificou, em 1403, o Tratado de Wind- (1421-1471) manterem a tradição de in-
sor. Contudo, os mercadores portugueses cluir membros da Casa de Avis na Ordem
continuaram a apresentar queixas junto da Jarreteira.
das autoridades inglesas, sem sucesso, Os acordos matrimoniais continuaram,
pois até mesmo os embaixadores e emis- com D. Beatriz (1386-1447), filha bastar-
sários régios estavam sujeitos aos maus da de D. João I, a casar-se, em 1405, com
tratamentos dos aliados na costa inglesa. Thomas Fitzalan, 12.º conde de Arundel,
Disso testemunham as cartas especiais bem como os auxílios militares, tanto
emitidas por Henrique IV para garantir contra Castela quanto na expedição de
aos embaixadores portugueses a liberda- Ceuta. No final da Guerra dos Cem Anos,
de de abandonar Inglaterra. Portugal também auxiliou os Ingleses,
Por outro lado, os conflitos e a rivali- com a participação no conflito de alguns
dade com o reino de Castela continua- nobres, como D. Álvares Vaz de Almada
ram mesmo depois de celebrada a paz (1340-1449), que se tornou depois conde
definitiva, em 1411, o que fez com que o de Avranches, na Normandia, e cavaleiro
Monarca português optasse, como ponto da Jarreteira. Com a morte de D. João I,
de fuga da crise que não parava de cres- em 1433, D. Duarte manteve a aliança,
cer, pela conquista de novos territórios que perdurou até 1470, quando Portugal
além-mar, na esperança de encontrar os declarou guerra a Inglaterra e renunciou
produtos e as riquezas de que carecia. aos tratados entre os dois reinos. Contu-
O movimento de expansão territorial re- do, Eduardo IV (1442-1483) revalidou o
lacionava-se também com o ideal cruza- Tratado de Windsor e, mesmo com as fre-
dístico, que permaneceu até, pelo menos, quentes queixas dos comerciantes e mo-
ao final do séc. xvi, pois intentou inicial- narcas de ambos os reinos, a aliança man-
mente tomar o reino islâmico de Grana- teve-se até à União Ibérica, em 1580. No
da ou de uma cidade no Norte da África, período da expansão portuguesa, con-
acabando a escolha por recair em Ceuta, tudo, Inglaterra, em crise com a Guerra
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das Duas Rosas, absteve-se dos problemas dio da morte de D. Sebastião num cam-
internacionais, o que facilitou ainda mais po de batalha de Alcácer Quibir. O Rei,
o fortalecimento dos reis católicos e a he- cuja morte, tendo consternado todos os
gemonia política espanhola. portugueses, simboliza o fim de uma era,
Mas a aliança com Inglaterra, que já se mesmo depois de o seu suposto cadáver
achava, de certa forma, relacionada com ter sido achado em Ceuta, em 1578, e
o momento de fundação de Portugal, no sepultado por Filipe I (1527-1598), em
Cerco de Lisboa de 1147, teve, com a re- 1582, no Mosteiro dos Jerónimos, viria
fundação do reino, implicações culturais a ressuscitar, tomando vida na forma de
muito significativas, passando a povoar um messianismo que passou a fazer par-
o imaginário popular através de narrati- te da consciência nacional, uma vez que
vas de tradição oral, como a história dos irrompe recorrentemente na história
“Doze de Inglaterra”, e a fazer parte inte- portuguesa. Com efeito, Oliveira Martins
grante do repertório literário da elite le- (1845-1894), na sua História de Portugal,
trada da época, mediante os romances do vislumbra uma espécie de proto-sebastia-
ciclo arturiano e os textos dos cronistas nismo na figura de D. João I, no papel de
e poetas dos sécs. xv e xvi. Em tal pro- messias salvador destinado a impedir que
cesso de mitificação, destaca-se a figura Portugal perdesse a independência.
de D. Filipa de Lencastre, cuja imagem,
vinculando-se não somente à “ínclita ge-
ração” e à tomada de Ceuta, mas também
a cOnsOlidaçãO da anglOfObia:
à divinização dos soberanos, teve uma
da restauraçãO aO ultimatO
funcionalidade ideológica que merece Durante o período da Restauração
ser ressaltada, sobretudo no modo como (1640-1668), as relações anglo-portugue-
se apresenta em três importantes obras sas conheceram um novo aspeto, pois,
do período: a Chronica de el-Rei D. João I, com a série de regalias e vantagens que
de Fernão Lopes, a Crónica da Tomada de foram concedidas aos Ingleses, passaram
Ceuta por el-Rei D. João I, de Gomes Eanes a configurar uma espécie de colonialismo
Zurara (1410-1474), e o Leal Conselheiro, informal. Depois de legitimada a dinastia
de D. Duarte (1433-1438). dos Bragança pelas Cortes convocadas
A União Ibérica, ou o período de do- em 1641, e dos vários empreendimen-
minação filipina, como às vezes é cha- tos historiográficos e literários para a
mado, que durou de 1580 a 1640, muito construção da memória da aclamação de
mais do que uma situação de ocupação D. João IV (1604-1656), Portugal passou
de Portugal por uma potência estrangei- por um período de guerra permanente,
ra – como faz crer toda a literatura anti- para o qual contou com um significa-
castelhana (&Anticastelhanismo) produ- tivo contingente de soldados mercená-
zida no séc. xvi, bem como os manifestos rios estrangeiros, muitos deles ingleses.
de defesa e preservação da língua portu- Mesmo assim, a situação de insegurança
guesa nos diálogos e gramáticas da época, fazia com que surgissem planos visioná-
e ainda certa historiografia dos começos rios para a salvação do reino, como o da
do séc. xxi –, representa a integração do transferência de D. João IV para o Brasil,
reino numa poderosa monarquia católi- conforme propunha o P.e António Vieira
ca que abrangia todo o espaço ibérico. (1608-1697), ou para a África.
A sua associação posterior a uma idade A aliança inglesa teve vários episódios
de ferro prende-se com o mítico episó- nessa época. A 29 de janeiro de 1642, foi
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que com o governo de Londres. Foi este se, em junho de 1960, o Times publicou
pensamento que determinou a adesão do uma série de artigos enviados pelo seu
país ao Plano Marshall, em 1948, ao Pacto correspondente em Angola, David Hol-
do Atlântico, no ano seguinte, e ao Acor- den (1924-1977), dando conta das ten-
do de Defesa luso-americano, em 1951. sões político-raciais no território, o que
Assim, depois da Segunda Guerra Mun- chegou a provocar um certo desconforto
dial, o principal eixo das relações diplo- diplomático, logo apaziguado pela inter-
máticas portuguesas passou a ser Lisboa/ venção do embaixador britânico em Lis-
Washington, e não mais Lisboa/Londres. boa, Charles Stirling, que fez com que
Contudo, a preponderância norte-ame- o Ministério dos Negócios Estrangeiros
ricana não chegou a eclipsar a influên- britânico pedisse à direção do Times para
cia britânica em Portugal, não somente demitir o jornalista. O ingresso de Por-
porque a aliança que uniu os dois países tugal na ONU, contudo, obrigou o go-
no séc. xiv continuava formalmente em verno de Salazar a agir com mais cautela
vigor, mas também porque os Britânicos nas questões coloniais, uma vez que a sua
ainda eram os maiores parceiros comer- política deixaria de passar despercebida
ciais de Portugal, e Salazar demonstrava, nos fóruns internacionais. Em 1961, no
ao menos publicamente, a sua estima e o entanto, quando o foco da Guerra Fria
seu apreço em relação à Grã-Bretanha. recaiu sobre o Terceiro Mundo, as rela-
Além disso, as relações diplomáticas en- ções luso-britânicas chegaram a um novo
tre os dois países, que tinham em comum impasse. Num dia em que foram votadas
a manutenção e administração dos seus na ONU matérias relativas a Portugal,
impérios coloniais em África, foram de o representante britânico, Frederick
fundamental importância para que Por- Douglas-Home (1903-1995), absteve-se
tugal ingressasse em organizações como no julgamento da política ultramarina
a NATO, em 1949, a ONU, em 1955, e a portuguesa, que se recusava a acatar as
EFTA, em 1960. novas diretrizes adotadas pelos países-
Com o agravamento das tensões en- -membros, em oposição à propaganda
tre os Governos de Salazar e o estadista soviética, retirando assim o apoio de que
indiano Sawaharlal Nehru (1889-1964) Portugal precisava, o que fez com que a
a propósito de Goa, que culminariam velha aliança fosse, mais uma vez, posta
na ocupação de territórios portugueses em cheque.
por ativistas indianos, a política colo- Apesar da relativa estabilidade econó-
nial portuguesa sofreu severas críticas mica, uma série de crises internas e ex-
na imprensa britânica, sobretudo em ternas deu início à derrocada do Estado
artigos assinados por um dos mais cáusti- Novo, que culminaria nos anos de 1974
cos inimigos do regime de Salazar: Basil e 1975. A derrota na Índia, bem como
Davidson (1914-2010). As suas primeiras a oposição dos exilados políticos, como
matérias foram publicadas na revista New Henrique Galvão (1895-1970), capitão
Statesman, em maio de 1954, e depois na do Exército e explorador naturalista que
West Africa, mas o colunista alcançou a ficou internacionalmente famoso por
consagração numa longa reportagem ter organizado, naquele mesmo ano de
da Harper’s intitulada “Africa’s modern 1961, um assalto ao paquete Santa Maria,
slavery”, numa referência direta ao li- numa tentativa de provocar uma crise
vro de Henry Nevinson, Modern Slavery, política contra o regime de Salazar, pa-
publicado em 1904. Como se não bastas- recia atestar este facto. Para completar
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o cenário crítico, os conflitos pela inde- ram reviver a atmosfera do Ultimato, foi
pendência de Angola, iniciados no mes- uma questão de dias.
mo ano, alcançaram os grandes meios Após o afastamento de Salazar, em
de comunicação social, sendo comenta- 1968, Marcelo Caetano (1906-1980) as-
dos e debatidos em programas de rádio sumiu o governo, conseguindo manter
e televisão da BBC. A queda de Goa e internacionalmente a imagem de Portu-
a guerra de Angola só foram suplanta- gal como uma ditadura moderada, algo
das na grande imprensa pela Guerra do que trabalhou com certa segurança de-
Vietname, que tinha mais atrativo popu- pois da visita que lhe fizera o speaker do
lar pelo facto de os Estados Unidos es- Parlamento inglês, que o aconselhara
tarem nela envolvidos. A reação inicial a não suprimir a censura da imprensa.
do governo de Salazar provocou um A questão do ultramar não lhe trouxe
breve surto de manifestações de anglo- grandes problemas no início da sua go-
fobia em Lisboa. Num relatório enviado vernação, apesar das denúncias, pela im-
para Londres, o embaixador britânico à prensa inglesa, do estado de escravidão
época, Archibald Ross, dizia-se assustado dos negros das colónias portuguesas em
com a agressividade dos manifestantes, África, que provocaram manifestações
que queimaram a fotografia de Nehru públicas aquando da sua visita a Ingla-
e arrastaram pelo chão as bandeiras da terra, em 1973, para celebrar os 600 anos
Inglaterra e dos Estados Unidos, com da aliança luso-britânica, e de algumas
slogans antibritânicos e antiamericanos. manifestações antibritânicas que tive-
Daí aos panfletos propondo um boicote ram lugar em Lisboa. Para a diplomacia
aos produtos britânicos e norte-america- inglesa, a maioria da população portu-
nos, aos editoriais e artigos dos jornais guesa era contrária à independência das
afeitos ao governo português, que fize- colónias. E, apesar de o Papa Paulo VI
ter recebido em audiência privada os
O mapa que deu origem ao Ultimato. líderes das guerrilhas independentistas,
em julho de 1970, o Vaticano não tomou
nenhuma providência a esse respeito.
O governo dos Estados Unidos, conven-
cido de que o domínio branco se perpe-
tuaria na África portuguesa, continuou a
vender armamentos a Portugal e a treinar
oficiais portugueses. A partir de 1972,
contudo, o regime passou a sofrer insis-
tentes críticas da juventude politizada e
dos novos membros do PCP, o que fez
com que a censura e a repressão aumen-
tassem consideravelmente. Com efeito,
a circulação e divulgação das informa-
ções de outros países, a revolução com-
portamental e cultural promovida pelas
barricadas de Paris, em 1968, e pelo rock
inglês e norte-americano, fizeram com
que a juventude se sentisse apta a mani-
festar-se contra o regime e reivindicar os
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seja descrito, justamente por Fr. Dinis, tos, indicando, tipicamente, uma vida
como um suicídio moral. tranquila e sem preocupações. A falta
A Revolução Industrial, porém, com a de ideais e de convicções profundas e a
decorrente necessidade de capital inten- entrega a um pragmatismo utilitarista
sivo para o estabelecimento de unidades serão, na verdade, elementos inerentes à
de transformação onde a grande manufa- caracterização do burguesismo enquanto
tura ganhava relevo, conferiu uma nova modo de vida ao longo desta fase, rece-
dimensão aos detentores desse capital, bendo um tratamento paradigmático em
vindo o termo “burguesia” a designar o Alves & C.ª, de Eça de Queirós, sátira na
empregador, o negociante, o patrão, ou qual um adultério, o de Lulu, mulher do
seja, quem dispusesse dos meios neces- pacato Godofredo Alves, com o seu sócio,
sários à remuneração do trabalho ou à Machado, acaba por ser perdoado ape-
aquisição da produção, ainda que deste nas para que a vida possa regressar à sua
grupo pudessem fazer parte membros da anterior normalidade, exibindo as perso-
nobreza ou mesmo do clero. Será, aliás, nagens, acima de tudo, o desejo de usu-
durante a primeira metade do séc. xix fruírem do tranquilo conforto proporcio-
que o termo “capitalista” irá progressiva- nado pelos lucros gerados pela empresa
mente impor-se, sendo frequentemente que dá o título à obra e se encontra no
associado a “burguesia” para designar, cerne do seu enredo.
inúmeras vezes pela negativa, o detentor A ausência de valores e o comodismo
de capital próprio que não participava di- associados à burguesia em tais figurações
retamente no processo de produção. continuariam a ser alvo da hostilidade de
De facto, já nos séculos precedentes, o inúmeros artistas, escritores e pensado-
sucesso dos membros da burguesia fora res ao longo do séc. xx, nomeadamente
aferido pela sua capacidade de viverem durante o período das vanguardas histó-
apenas dos lucros dos seus investimen- ricas, que elegerão a assim denominada
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apesar de muito ter contribuído para essa -se James Burnham (1905-1987; trotskista
centralização e burocratização do Estado americano e posteriormente neoconser-
e da sociedade soviéticos, expressou des- vador) e, partindo do modelo de Weber,
de cedo o seu antiburocratismo (TRO- embora com discordâncias mais ou me-
TSKY, 1924, 88ss.), linha de pensamento nos profundas, David Riesman (1909-
que veio a desenvolver posteriormente -2002), Robert Merton (1910-2003), Her-
(Id., 1977, 247-250), enquanto o burocra- bert Simon (1916-2001), Philip Selznick
tismo soviético continuava em crescendo (1919-2010) e Alvin W. Gouldner (1920-
em todos os sectores do Estado e da pro- -1980). Na Europa, podem referir-se, no
dução. burocratismo coletivista, Antonio Grams-
O tema da burocracia e do burocratis- ci (1891-1937), Bruno Rizzi (1901-1977),
mo foi investigado com maior distancia- Milovan Đilas (ou Djilas, 1911-1995), e,
mento e numa abordagem científica por numa linha weberiana, embora crítica,
Max Weber, que analisou a burocracia Edgar Morin (n. 1921), Michel Crozier
enquanto instrumento “racional” de do- (1922-2013), Shmuel Eisenstadt (1923-
mínio e de equilíbrio ao serviço de outros -2010), Claude Lefort (1924-2010) e
interesses que se servem da mesma (logo, Alain Touraine (n. 1925), entre outros.
a burocracia é uma “forma” a que podem Posteriormente, podem ser elencados
corresponder diferentes conteúdos). Na como autores de referência, e.g., Donald
obra de Weber, a burocracia deve ser P. Warwick, Martin Albrow ou Fred Riggs.
entendida num âmbito mais amplo que Para identificar o antiburocratismo na
abrange toda a sociedade contemporâ- cultura portuguesa, interessa apurar de
nea: organização político-administrati- que forma estes movimentos e linhas de
va, partidária, empresarial, eclesiástica, reflexão se manifestaram em Portugal.
militar, etc. A burocracia pode então ser As conceções liberais estavam, nesta
entendida num sentido positivo, como a matéria, fortemente marcadas por duas
expressão de uma administração racional linhas. Em primeiro lugar, a oposição à
e garantística, no seio das sociedades de- forma de atuação do Estado do Antigo
mocráticas. Regime e à sua pesada estrutura buro-
O modelo weberiano foi ponto de par- crática, associada, em especial, ao Esta-
tida para vários autores que, ao longo da do absoluto “sem direito administrativo”
primeira metade do séc. xx, pensaram a (GARCIA, 1994, 291), i.e., ao “Estado
burocracia, quer desenvolvendo critica- de polícia”, entendida esta última como
mente este modelo, quer afastando-se ou “toda a ação do Príncipe dirigida a pro-
rejeitando o mesmo. mover o bem-estar e a comodidade dos
A burocracia tornou-se um tema po- vassalos”, semelhante à posterior “admi-
pular no final do séc. xix e no início do nistração pública” (CAETANO, 1973,
séc. xx, abordado logo na época de We- 385). Em segundo, a defesa da liberdade
ber, e.g., por Robert Michels (autor da lei individual, em confronto com o Estado,
de bronze da oligarquia, em 1876) e Gae- exigindo uma regulação da atividade des-
tano Mosca (Elementi di Scienza Politica, te último, de forma a impedir os abusos,
1896 – traduzido e divulgado como The como se comprova, e.g., em Almeida Gar-
Ruling Classes, que identificava a burocra- rett e em Alexandre Herculano, e nas dis-
cia como a classe dirigente e referia mes- cussões em Cortes.
mo um “absolutismo burocrático”). Um A própria centralização e uniformiza-
pouco mais tarde, nos EUA, destacaram- ção política e administrativa – adversas
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1982, de 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e A consciência de uma excessiva bu-
2005, sempre no art. 267.º, alterado em rocratização funcional e procedimental
1982 e 1997, mas sem pôr em causa os (que podemos caracterizar como um
princípios referidos. Aliás, o Código do antiburocratismo social) e de uma maior
Procedimento Administrativo (dec.-lei maturidade democrática criaram na so-
n.º 442/91, de 15 de novembro) veio ciedade e nos grupos político-partidários
também reiterar os mesmos e, no seu e governativos uma mentalidade propícia
art. 10.º (Princípio da desburocratização à desburocratização e simplificação admi-
e da eficiência), afirma-se: “A Administra- nistrativa, o que se traduziu na criação de
ção Pública deve ser estruturada de modo comissões específicas (Comissão para a
a aproximar os serviços das populações e Qualidade e Racionalização da Adminis-
de forma não burocratizada, a fim de asse- tração Pública, 1992; Comissão de Acesso
gurar a celeridade, a economia e a eficiên- aos Documentos Administrativos, 1993)
cia das suas decisões” (no novo Código do e na elaboração de estudos e inquéritos
Procedimento Administrativo, aprovado (e.g.: Renovar a Administração: Um Desafio,
pelo dec.-lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, e Uma Aposta: Relatório da Comissão para a
atualmente em vigor, o princípio da “boa Qualidade e Racionalização da Administra-
administração” consta do art. 5.º). ção Pública, 1993-1994; Lei do Acesso aos Do-
Porém, estes princípios não acarretaram cumentos Administrativos: Avaliação da Sua
uma simplificação administrativa. Perma- Execução pela Administração Pública, 2000).
neceram e até se agravaram a dispersão le- A face mais recente no combate à bu-
gislativa, a falta de uniformização e a com- rocracia através da simplificação adminis-
plexidade de procedimentos e o excesso trativa e legislativa concretizou-se no pro-
de burocratismo no acesso aos serviços grama denominado Simplex, criado em
públicos por cidadãos e empresas, embora 2006, que visa “alterar processos e sim-
em muitos casos com um deslocamento, plificar ou eliminar procedimentos cons-
a nível local, dos serviços governamentais tantes das leis e regulamentos em vigor,
para os serviços autárquicos. com base numa avaliação negativa sobre
Logo em 1978, o mais célebre discípulo os seus impactos ou a sua pertinência”
de Marcelo Caetano, Freitas do Amaral, e assume-se como “o resultado de uma
comparava a administração pública du- consciência, por parte da própria Admi-
rante o Estado Novo, que fora “politica- nistração, da desadequação da oferta e
mente condicionante e economicamente da consequente desconfiança generaliza-
condicionada”, com a mesma administra- da em relação às instituições e aos modos
ção pública após 1974, que era “politica- de fazer gestão pública, conotados com
mente condicionada e economicamente burocracia, desperdício, lentidão e falta
condicionante”, com um reforço claro das de transparência” (“O que é o Simplex?”,
garantias do cidadão “contra os comporta- Simplex, s.d.).
mentos ilegais ou injustos da Administra- Outros programas, mais específicos, in-
ção” (AMARAL, 1978, 120), característica, tegram-se também no processo de desbu-
aliás, associada ao modelo de Estado social, rocratização: Empresa na Hora, programa
consagrando “instrumentos de salvaguarda a funcionar desde 2005; Legislar Melhor
da coincidência do poder com o direito”, (aprovado pela resolução do Conselho
onde também se enquadram as “normas de Ministros n.º 63/2006, de 18 de maio,
para a ação administrativa aberta à partici- onde se inclui, e.g., a publicação eletrónica
pação dos cidadãos” (GARCIA, 1994, 677). do Diário da República, com valor oficial e
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entre fações opostas, mas que dividiu, como ficou claro num discurso que pro-
mais do que uniu, os Portugueses. Vigo- feriu a 10 de agosto desse ano na Câ-
rou, de novo, a Constituição histórica, mara dos Deputados, Costa Cabral não
com a escolha de D. Miguel, como Rei valorizava a coerência na política. Disse
absoluto, pelas Cortes Gerais de 1828, então as seguintes palavras, que ficaram
até que os setembristas, da ala esquerda célebres: “Quem há aí que possa dizer-se
do regime liberal, retomaram, em 1838, sempre coerente em política desde 1820
a Constituição de 1822, com algumas al- até hoje? Levante o dedo para o ar que
terações. O país real, em grande parte eu vou fazer-lhe a devida anatomia”.
afeto ao exilado D. Miguel e capaz de se A 10 de fevereiro de 1842, D. Maria II
deixar incendiar por intuitos irracionais, restaurou a Carta Constitucional de
teimava em querer a paz, que se afigura- 1826, instigada por um golpe de génio
va improvável ou mesmo impossível. As de Cabral, que, a 27 de janeiro desse
insubordinações e as revoltas tornaram- ano, constituiu e liderou no Porto uma
se frequentes e com grande impacto po- Junta de Governo, com o intuito subver-
lítico. A Constituição setembrista – não sivo de substituir o Governo em funções.
fugindo à regra – durou pouco tempo. Como esperado, a manobra suscitou de
Foi neste contexto político e social imediato apoios de peso a Cabral, com o
que Costa Cabral apareceu, logo se fa- duque da Terceira a ir propositadamen-
zendo notar pela sua capacidade de in- te ao Porto para lhe garantir o seu apoio,
tervenção política, que impressionou a o mesmo tendo feito outros políticos in-
opinião pública. Enquanto administra- fluentes da época. Em Lisboa, os antica-
dor de Lisboa, nomeado por um Gover- bralistas protestaram contra a jogada po-
no setembrista, Costa Cabral destacou-se lítica de Cabral. No jogo das aparências
na repressão dos movimentos contesta- que é a política, D. Maria II procurou
tários da ação do Governo. Nos inícios ser salomónica na gestão dos interesses
de 1842, foi nomeado ministro dos Ne- antagónicos que estavam em causa, mas,
gócios Eclesiásticos e da Justiça de um na verdade, Costa Cabral emergiu, nesse
Governo ordeiro, i.e., de um Governo momento, como o novo chefe político
moderado, centrista, que pretendia con- da nação, com o apoio da Monarca. For-
ciliar o cartismo com o setembrismo. Aí malmente, a Rainha não nomeou Costa
se destacou, mais uma vez, na defesa da Cabral como líder do Governo, mas este
ordem há muito ansiada pelo povo. Era passou a ser efetivamente quem manda-
reconhecidamente um grande orador, va e era reconhecido como tal.
mas sentia-se, sobretudo, como um ho- Logo no dia seguinte à restauração da
mem de governo, e tornou-se grão-mes- Carta, o cartista moderado Luís Mouzi-
tre da maçonaria, a qual haveria de lhe nho de Albuquerque concedeu pode-
ser muito útil. Envolveu-se na política res constituintes aos deputados. Porém,
até ao extremo das suas forças e da sua no dia 5 de março, o novo ministro do
inteligência, com um plano claro, prepa- Reino (Cabral) fez aprovar um decreto
rado para enfrentar todas as dificulda- que retirou capacidade constituinte aos
des que lhe surgissem. parlamentares. Apostado em garantir, a
A 24 de fevereiro de 1842, Costa Ca- todo o custo, a ordem financeira e poli-
bral assumiu as funções de ministro do cial que o país exigia, Costa Cabral, mui-
Reino de um Governo cartista. Os car- to hábil politicamente, procurou e obte-
tistas opunham-se aos setembristas, mas, ve os meios de que precisava para tal.
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Francisco de Almeida Portugal. Teve política, que fora a chave do seu sucesso
também a oposição do Mar. Saldanha, no passado. Entre os novos opositores
seu antigo aliado. Concitou ainda a opo- do cabralismo estavam os que haveriam
sição da alta aristocracia e dos principais de pontificar na política portuguesa no
pares do reino, com o duque de Palme- terceiro quartel do séc. xix, que para o
la (a psicologia continuou a falar alto) efeito tiveram de derrotar definitivamen-
em destaque. Os intelectuais cartistas e te o marquês de Tomar, o novo título de
ordeiros, como Alexandre Herculano, Costa Cabral outorgado por D. Maria II.
Almeida Garrett e António de Oliveira Foi acesa a luta política no Parlamen-
Marreca, assim como os setembristas pa- to, o novo palco da ação política nacio-
tuleias, eram também anticabralistas. nal. O homem que colocara o Governo
A diferença em relação a tempos pas- no centro do sistema político português
sados é que quando Cabral regressou tornou-se um orador parlamentar vio-
ao poder, em 1849, a elite política por- lento. Cabral era então o único empeci-
tuguesa tinha-se renovado. Os setem- lho para que o sistema político mudasse,
bristas que em 1844 se revoltaram, em o que anunciava o fim do seu tempo.
Torres Novas, contra o Governo de Sal- Perante a incapacidade de o sistema
danha, foram os primeiros que em 1848 mudar por dentro, segundo as regras
se afirmaram republicanos. O país entra- democráticas, mudou pela força das ar-
ra numa nova fase política, que estava a mas. Chefiou o golpe contra Cabral, dito
criar os seus próprios protagonistas, di- regenerador, em homenagem ao autên-
ferentes e mais fortes do que os do passa- tico espírito liberal, nem mais nem me-
do, e defensores de novas ideias. Cabral nos do que um velho aliado da Rainha e
não foi então capaz de controlar a classe do próprio Cabral, mas que agora estava
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muito que faça ouvir a sua voz de pode- sempre me pareceu foi que o adjetivar
roso novelista e de polemista implacável, de científicos os tais processos era um
Camilo não consegue conter o avanço desvanecimento um tanto charlatão
hegemónico da nova escola. A doutrina por parte dos inovadores. A canalha,
realista implanta-se e começa a produzir porém, reputando-se privilegiada na
consensos e, logo, a coordenar compor- forma, na fraseologia realista, chamava
tamentos estéticos. O mesmo é dizer, a à coisa científica para espavorir os igno-
novelística de Camilo entra fatalmente rantes da minha casta, os macróbios do
em crise e em rápida debilitação, não romanticismo lacrimoso” (Ibid.). Nota-se
obstante os esforços do novelista em sen- uma nítida reserva perante a nova esco-
tido contrário. la literária, pois Camilo está longe de se
É certo que, em privado, Camilo não render aos hipotéticos rigores do natura-
desconsidera o merecimento literário da lismo, embora não suficiente para justi-
prosa queirosiana, valorizando, por ex- ficar uma declarada postura antirrealista
tensão, o novo feitio romanesco, como e antinaturalista.
comprovam estas linhas de uma carta Todavia, em público, i.e., nas polémi-
enviada ao visconde de Ouguela: “Este cas e no interior das suas novelas, Ca-
rapaz vem tomar a vanguarda de todos milo compraz-se, e não sem ironia, em
os romancistas. É um admirável obser- provocar a novidade (a “ideia nova”,
vador e com quanto faça pouco caso das como se dizia então). Em novelas onde
imunidades da língua tem a arte de fa- – note-se – não é necessária especial
zer admiráveis defeitos” (COSTA, 1923, clarividência crítica para perceber uma
204). E, de resto, é bem conhecida tanto flagrante apropriação de certos códigos
a sua amizade, como o seu apreço lite- propalados pelo realismo-naturalismo.
rário por outra figura maior da nova es- “Maria Moisés”, uma das narrativas de
cola, Teixeira de Queirós (Bento More- Novelas do Minho, e.g., parece lançar
no), a quem, em carta (inédita), refere: mão do modelo realista. O texto não
“Faça-me justiça. Eu, se hostilizam a sua envergonha os leitores adeptos da fic-
escola, não lhe tinha dado a V. Ex.cia um ção realista, nem embaraça os leitores
público testemunho de preito aos seus treinados na ficção de Camilo, e acaba
escritos” (MJD, “Carta de Camilo Caste- numa interpelação a Tomás Ribeiro,
lo Branco…”). a qual não acrescenta nada ao enre-
Mas uma coisa é reconhecer valor, ou do, mas revela-se pertinente por fazer
algum valor, à nova escola; outra coisa ressaltar a “agressividade polémica”
bem diferente é aceitar com espírito (BAPTISTA, 1992, 12) de Camilo nesta
acrítico os pressupostos, as crenças e questão da emergência da escola realis-
as exigências dessa nova escola, em es- ta: “Tomás Ribeiro, com o teu coração,
pecial quando a novidade realista-natu- se tens nele uma lágrima, imagina este
ralista, à conta de “canalha”, como que quadro e descreve-o, se podes, que eu
relega o novelista (e os românticos, em não posso, nem quero, porque o último
geral) para um lugar de ignorância, o feitio das novelas é não pintar, com o
de quem representa práticas literárias colorido gótico dos românticos, os qua-
desusadas. Eis o início da carta: “Eu não dros comoventes que rutilam na alma a
me propus zombar da escola naturalista. faísca do entusiasmo. Agora somente se
V. Ex.cia algumas vezes me ouviria dizer pintam as gangrenas com as cores roxas
que os processos me deleitavam. O que das chagas, e com as cores verdes das
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“fui mau, mas fui castigado. Assim que, da iminente decadência nacional (Os Lu-
só para mim/anda o mundo concertado” síadas, canto x, vv. 145-146) –, destinatá-
(“Ao desconcerto do mundo”). Desde rios das veementes censuras que o épico
os primeiros biógrafos, Mariz e Severim, ergue ao abrigo da exploração reversa
e também Faria e Sousa, se refletiu por dos temas da excelência nas armas e le-
escrito as dúvidas, desabonatórias para tras e do valor do canto poético, em es-
Camões, sobre o cariz da nomeação pelo pecial nas estrofes finais do canto v de Os
governador da Índia, Francisco Barreto, Lusíadas, parecendo particularizar essa
para o cargo de provedor dos defuntos objurgatória na alusão aos descendentes
na China. Com efeito, uma pertinaz cor- de Vasco da Gama, e nas pungentes es-
rente de opinião entendia esse ato como tâncias finais do canto vii sobre as misé-
degredo a que se movera Francisco Bar- rias e desgraças que devastavam uma vida,
reto por zelo de justiça perante excessos em grande parte por causa da ingratidão
satíricos de Camões, ou para satisfazer de “aqueles que eu cantando andava”,
“queixas dos motejados” na “zombaria ignorantes (porque “quem não sabe a
que fez sobre alguns homens a que não arte, não/na estima”, canto v, v. 97) ou
sabia mal o vinho” e na “ficção de umas injustos perante o alto valor de um canto
festas em Goa, por introduzir nelas certos a “quem o não mereça”.
homens viciosos”. O certo é que, mesmo Não menos adversas a Camões se mos-
encarcerado, Camões reincide no vezo tram a dinâmica coeva do campo literá-
satírico com os “Disparates da Índia” e rio e a inerente conflitualidade. Camões
continua a alimentar despeitos e ímpetos não foi cultor do género da epístola poé-
de detratores. Depois, vieram as dúvidas tica; e essa ausência de cartas em verso,
ou reprovações acintosas sobre a forma mais do que entendida como lacuna do
como se desempenhara do cargo de pro- espectro genológico do seu estro lírico,
vedor dos defuntos na China e sobre as veio sendo apontada como reflexo da
razões por que voltara para a Índia sob sua singular (e marginal) posição na
prisão. Vieram também as sequelas da dinâmica epocal do campo literário e
oscilante situação de Camões em Goa, indício do menor apreço pela sua perso-
com vida de necessidades e dívidas, que nalidade e de desfavorecimento da sua
uns justificariam lisonjeiramente como poesia. Não é claro, porém, se Camões
resultantes da sua liberalidade perdulária era marginalizado ou se queria à mar-
e outros evidenciavam condenatoriamen- gem do círculo mirandino dos poetas
te como desastrosas consequências da sua que mutuamente se endereçavam textos
vida dissoluta – embora acontecimentos epistolares, se incentivavam e elogiavam
posteriores tenham vindo confirmar a (António Ferreira, João Roiz de Sá de
asserção de Severim de Faria de que Ca- Meneses, D. Manuel de Portugal, Pero
mões era muito estimado “de toda a fidal- de Andrade Caminha, Diogo Bernardes,
guia da Índia”. etc.); mas tem de admitir-se que essa
Forma perniciosa de anticamonismo, condição de existência literária terá en-
pelo menos passivo, constituiu o com- tão pesado negativamente no destino de
portamento nem mecenático, nem en- Camões e na fortuna crítica da sua obra.
comiástico, dos poderosos do tempo de É particularmente estranho o desconhe-
Camões – “gente surda e endurecida” na cimento mútuo a que as escritas de Ca-
cobiça mercantil e na sede de poder, pri- mões e de Sá de Miranda, polarizador
meiramente, e na “apagada e vil tristeza” ascendente da dinâmica coeva do campo
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“Nunca manhã suave”, tida por dema- cionais da obra de Camões, vários textos
siado curta). Díspar terá sido a receção de apologia, defesa ou polémica denun-
de clássicos quinhentistas e neoclássicos ciam a contrario outras tantas posições de
setecentistas às facetas camonianas de anticamonismo.
desvio tópico e retórico relativamente aos Logo em 1595, no “Prologo ao leytor”
modelos canónicos, particularmente das das Rhythmas (1.ª edição da lírica de Ca-
éclogas perante a tradição bucólica (mor- mões), o poeta e advogado Fernão Rodri-
mente na “intitulada dos Faunos”). gues Lobo Soropita faz certo desvio para
Em contrapartida, não tardou essa for- o “estilo heroico” e o “poema épico” a fim
ma ambígua de notoriedade que provém de desautorizar preventivamente críticas,
da paródia. Se é que por 1576, na carta que já deviam circular e que viriam a avul-
xxxii de O Lima Diogo Bernardes não tar no séc. xvii, quanto ao não respeito
terá ambiguamente parodiado alguns pelas normas do género épico e ao em-
passos de Os Lusíadas, já cerca de 1589 a prego da mitologia clássica.
paródia burlesca se exercitava, pois qua- Naturalmente, foram à época conhe-
tro estudantes de teologia em Évora trata- cidos e chamados à colação com intuitos
ram em tom jocoso e linguagem desbra- emulativos ou depreciativos os dados que
gada de “Festas bacanais: conversão do estudiosos como Hélio Alves têm vindo
primeiro canto d’Os Lusíadas do grande a recapitular, carrear ou valorizar com
Luís de Camões vertidos do humano ao intencionalidade retificativa perante a
de-vinho por uns caprichosos autores”, tradição ou a inércia da afirmação este-
arrancando com o argumento “Borra- reotipada da originalidade plena, da pre-
chas, borrachões assinalados”. Mas, desde cedência cronológica, da singularidade
este rasgo inicial, que conheceu grande ideotemática e/ou técnico-formal da epo-
repercussão até aos finais do séc. xix, a peia camoniana ao emergir no séc. xvi.
receção paródica de Camões – ora rebai- Antes da publicação de Os Lusíadas “exis-
xando o estilo, ora vulgarizando o assunto tiam já poemas narrativos em língua la-
(sobretudo subvertendo o arquitexto do tina produzidos por eminentes autores
canto i ou dos episódios do Adamastor, portugueses, demonstrando bem o facto
de Inês de Castro, do Velho do Restelo), de que muitas das mesmas estratégias de
mais frequentemente com intuito de sáti- carácter retórico, imitativo e estilístico
ra político-social – raramente terá assumi- (para não falar da pura informação histó-
do intuito anticamonista de depreciação rica e mitológica), prestes a transparecer
ou ridicularização, antes se abonava com na epopeia de Camões, eram conhecidas
o espírito que ainda nas celebrações tri- e praticadas anteriormente”, aduz com
centenárias de 1880 se explicitava na ree- razão Hélio Alves, para depois deduzir
dição do texto goliardesco dos estudan- que, logo até ao final de Quinhentos, a
tes eborenses: “As honras da paródia só tradicionalmente proclamada diferença
às obras do génio costumam conceder-se” de natureza do poema camoniano vê-se
(MARTINS, 2011, 660). Confirma-o o fac- desmentida pela proliferação de, pelo
to de o apologeta Faria e Sousa destacar menos, outras “epopeias retóricas de imi-
essas paródias como tributos à genialida- tação” (ALVES, 2011a, 346).
de de Camões. Alguns desses poemas não se eximem
No quadro de uma minoria culta apos- a glosar pontual ou extensivamente Ca-
tada em enaltecer o modelo épico portu- mões, mas também não se coíbem por
guês e em defender as qualidades exce- vezes de visar com humor alusivo ou iro-
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de ordem moral a exclusão das voltas ao Portugal e no Brasil, esta é alvo todavia de
mote alheio “Caterina bem promete”, das juízos mais severos dos seus méritos esté-
trovas “Esses alfinetes vam”. tico-literários, pela pena de Manuel Pires
É certo que a alteração, durante os de Almeida e de D. Marcos de S. Louren-
prolongados anos de composição de Os ço; e dá origem por vezes à receção ambí-
Lusíadas (e da lírica), do contexto histó- gua da paródia (e.g., nas cartas de Fr. Lu-
rico-social e do ambiente cultural, com o cas de S.ta Catarina no Anatómico Jocoso e
avolumar de fatores de crise e o adven- noutros textos conhecidos, sem terem
to de um clima intelectual e espiritual chegado aos prelos). Além disso, como
de inseguranças e de medos, agravado observou Mafalda Ferin da Cunha, vários
pela ação censória, punitiva ou dissuasó- poemas épicos ou heroicos “afastam-se
ria da Inquisição, não deixou de marcar da poética que rege Os Lusíadas, mas se-
Camões e a sua escrita. Permanece, to- guem bastante mais de perto a da Jerusa-
davia, matéria controversa a submissão a lém Libertada de Tasso, uma feliz confluên-
interferências de entidades religiosas na cia da precetiva aristotélica e dos ideais
redação ou remodelação de passos dos contrarreformistas” e, por consequência,
últimos cantos da epopeia e no “estilo diferenciam-se do discurso camoniano na
tardio” de alguns grandes poemas líricos. medida em que “recusam o maravilhoso
Mas essas interferências aventadas ou da- mitológico e adotam o cristão ou proso-
das por certas teriam constituído, peran- popeico, abrem espaço à ficção verosímil,
te um poeta a que se assacavam também buscam a unidade de ação, relacionando
as oscilações no concernente ao decoro vários episódios bélicos e amorosos com
da maiestas tua/humilitas mea, outra mo- o nó central do poema, e comprometem-
dalidade de anticamonismo quinhentista se, ainda mais do que Os Lusíadas, com
e como tal foram enfatizadas no séc. xx a celebração da fé cristã. Por outro lado,
por antecessores e seguidores de Aquili- nalgumas delas […] a influência de Os
no Ribeiro. Lusíadas parece secundarizar-se face à in-
Consolidada ao longo do séc. xvii, a fluência mais marcante, em termos estru-
canonização de Camões (na mitificante turais, das epopeias de Homero e da Enei-
fusão de sua personalidade, seu destino da, enquanto outras, como a Insulana,
e sua obra) manifesta-se até ao início que constituem extensos panegíricos de
do séc. xviii em citações e comentários, um mecenas e da sua família, se afastam
glosas e paráfrases poéticas, edições e tra- do valor formativo e universal da epopeia
duções da epopeia e do inflacionado cor- de Camões” (CUNHA, 2011, 176).
pus lírico, que parecem querer também A primeira grande edição comentada
corrigir e compensar o descaso com que de Os Lusíadas, pelo Lic. Manuel Correia
os contemporâneos de Camões o teriam (1613), com resgate póstumo das suas ano-
deixado viver e morrer pobre e misera- tações por Pedro de Mariz, em ambígua
velmente (apesar de, logo na pioneira interferência, mostra-os a ambos, como
biografia de Mariz, não se rasurar a culpa assevera com autoridade Isabel Almeida,
que também cabia a Camões no desam- “empenhados em refutar o que denun-
paro mecenático e no facto de ter regres- ciam como um coro mais ou menos difuso
sado ao reino “capitulado”). No séc. xvii, de críticas às ousadias do poeta (desde a
sem embargo da predominante boa re- liberdade linguística traduzida nos neo-
ceção crítica e criativa que maneiristas e logismos, até ao teor de seus juízos e fic-
barrocos dispensam à obra de Camões em ções)” (ALMEIDA, 2011, 297). É com esse
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Camões para figurar no cânone euro- artigo “Camões” (1811), e na sua senda
peu, pois “querê-lo comparar a Homero, Simonde de Sismondi, com seu contra-
como fazem muitos, ou querê-lo colocar pontado balanço em A Literatura do Sul da
sobre os das outras nações todas […] não Europa (1813) em que ainda acompanha
deixa de ser temeridade”. Voltaire na censura da inverosimilhança
Os juízos de Verney acomodavam à do relato ao rei de Melinde e ao excesso
pragmática da sua intervenção reforma- de alegorização. Staël e Sismondi prepa-
dora, num Portugal periférico e tido por ram o impacto da edição parisiense do
atrasado no processo de modernização Morgado de Mateus (1817), de novas ver-
europeia, as considerações que – situan- sões em francês e dos comentários que
do-se aliás na senda de R. Papin, para difundem com grande sucesso a visão
quem “os versos dele [Camões] são tão melodramática da vida de um Camões
obscuros que poderiam passar por misté- heroico e mal-amado, e das análises e ver-
rios […]. É altivo e faustoso na compo- sões líricas de Ferdinand Denis que, sem
sição, mas tem pouco discernimento e esconder aspetos que julga defeituosos,
pouca retidão” (PAPIN, 1674) – Voltaire contribui para crescente convívio com o
inscrevera no seu Essai sur la Poésie Épi- verso e o mito camonianos – que passa
que: o encanto com o episódio de Inês de depois por lances bizarros como o da tra-
Castro e a alta admiração pela criação do dução em verso de Os Lusíadas por Fran-
Adamastor não bastam para atenuar, na çois-Félix Ragon (1842), que não se coíbe
perspetivação racionalista da estética aris- de expurgar trechos que julga cheios de
totélica e do seu princípio axial da vero- defeitos (embora os traduza em nota).
similhança, a condenação racionalista da Num mesmo sentido confluíram, antes
promiscuidade entre religião católica e e depois do arcadismo, atitudes críticas
mitologia greco-latina – “um maravilhoso condicionadas pela reação antibarroquis-
tão absurdo desfigura a obra toda no juí- ta e desamparadas do (ainda não formu-
zo dos leitores sensatos” – e “tais dispara- lado) conceito estilístico-periodológico
tes” (VOLTAIRE, 1775, 329) de uma mais de maneirismo e dos seus préstimos
alta pecha de inverosimilhança (além da hermenêuticos e críticos, mas gradativa-
inadequação do título a um poema cujo mente reafeiçoadas por mais equilibrada
herói Voltaire considera ser o Gama). equação estética de racionalidade e sensi-
Se nessas e noutras depreciações – ina- bilidade, com crescente exigência heurís-
dequação do título, construção defeituo- tica e ecdótica e mais rigorosa crítica de
sa e expressão obscura, visão inaceitavel- fontes (como se vê, e.g., nos opúsculos da
mente orgulhosa da nação portuguesa, polémica provocada pela edição das Obras
etc. – Voltaire atualiza a ótica de Rapin, pelo P.e Tomás José de Aquino, entre os
por seu turno, o seu pronunciamento so- quais um, publicado pelo oratoriano José
bre Camões difundiu-se por Juvenal de Valério em 1784, ostenta um título, Camões
Carlencas, Abbée Delille, etc., e toldou Defendido, ambivalentemente indiciante
duradouramente a receção de Camões, da oscilação da fortuna crítica do poeta).
mas viu-se também equilibrado no Abbée É então matizada ou mesmo contra-
Prévost e em Montesquieu, e contrariado pontada, se não antinómica, a desenvo-
por Desfontaines, Duperron de Castera, lução dos estudos e comentários, críticas
etc., em contraste com o infamante La e controvérsias, que sob o novo signo
Harpe (1776, 1820). Até que chega M.me da estética neoclássica se centram na
de Staël, com seu seduzido e sedutor compreensão e apreciação da obra de
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Gomes Leal, não há grande brecha para Etérea de Nemésio), com o rebate cívico
veleidades de anticamonismo. O que da crise do Ultimato e das crises subse-
mais se poderia aproximar disso seriam as quentes, não foram naturalmente propí-
refrações negativas da controvérsia histo- cias a veleidades de anticamonismo. Mas,
ricista de Antero e Oliveira Martins con- curiosamente, não se eximiram a inculcar
tra a construção por Teófilo da mitografia a ambiguidade na mais vasta receção cria-
camoniana com fito de propaganda repu- tiva de Camões através do registo paródi-
blicana e com base no nacionalismo étni- co que proliferou numa produção antes
co e cultural, e o desagrado polémico que de mais trazida à ribalta por Trindade
algum aspeto das comemorações oficiais Coelho no famoso In Illo Tempore (1902)
de “o triste centenário de Camões” (MA- que recolhe ou refere textos de troça
CEDO, 1880) provocou na comunidade emergentes na academia coimbrã – A
portuguesa do Brasil, originando textos Niveleida de António Cabral, A Bolha (Res-
como Desabafo Patriótico de Ferraz de Ma- posta à Niveleida…) de Ângelo Ferreira,
cedo, ou mesmo o galeguismo político de A Casaqueida do luso-brasileiro Pinto da
Manuel Murgía contrapontando o elogio Rocha –, cuja arma da troça artilhada so-
global com severas críticas à “incorreção” bre o molde dos imortais Lusíadas como
de Camões nas odes e sobretudo nas can- que dão o tom a outros poemas causti-
ções, ou involuntariamente a tradução in- cadores da estirpe bacharelática (como
glesa de Os Lusíadas por R. F. Burton, que o que, segundo Júlio Vilhena, o próprio
prejudicou a atração dos leitores à escrita Rei D. Luís terá intentado com uma Pa-
poética de Camões na medida em que, ródia ao Primeiro Canto dos Lusíadas), no
com o intuito de máxima aproximação quadro mais lato dos múltiplos exercícios
ao idioleto do poeta português, acabava parodísticos na viragem para Novecentos
por criar aos leitores coevos estranheza registados e/ou transcritos por Alberto
e grande dificuldade perante um texto Pimentel e por Ferreira Lima. Note-se
linguisticamente distanciado do seu hori- que, também no Brasil, desde os finais
zonte de expectativas. do séc. xviii até ao tricentenário, se fora
As virtualidades apoteóticas e os riscos formando e consolidando uma tradição
reversos dessa campanha multipolar de de experiências satíricas e humorísticas
apropriação mitificante e militante de apoiadas na reescrita de passos camonia-
Camões atingem patamar cimeiro com as nos, ao mesmo tempo que se implanta,
comemorações, em 1880, do já mencio- a par da tradição culta sobre os valores
nado tricentenário da morte de Camões, clássicos de Camões, uma tradição popu-
abrindo caminho, de par com o incre- lar de camonismo faceto, que, segundo
mento e a alteração dos estudos camonia- Gilberto Mendonça Teles, assimila e mo-
nos, para a institucionalização académica difica a referida tradição, através de paró-
(e, em Portugal como no Brasil, para o dias, paráfrases e poemas herói-cómicos,
aproveitamento didático quase sempre a partir de uns quantos sonetos da lírica
massacrante e, por isso, contraproducen- e, na maioria dos casos, das primeiras es-
te para o camonismo intencional), culmi- trofes do poema épico, com o objetivo de
nante por alturas do quarto centenário aproveitar o texto de Camões para fins de
do nascimento de Camões (1924-1925). humor ou pastiches comerciais; aqui se in-
No campo literário, essas décadas domi- cluem as narrativas em prosa e em verso
nadas pelo decadentismo, o simbolismo das peripécias de um tal Camonge, e até
e o neorromantismo (até à primicial Nave de um Camongo.
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e a dado trecho, não só se refere a Ca- de Camões a que procede Aquilino Ri-
mões com apelidos tão contrastantes beiro em 1949-1950 (tão cativante quan-
com o teor multissecularmente canóni- to unilateral ao serviço de uma imagem
co dos epítetos – “nosso não menos [do iconoclasta de Camões cujo desagravo
que Cervantes] miles gloriosus e ainda Hernâni Cidade de imediato encabeçou:
mais desditado Trinca-Fortes, mirolho de “Nobreza de Camões – A hierárquica e
Marrocos” – que provocou espanto ou in- a moral”), e depois, a exploração dessas
dignação perante o que parecia ir além cartas por Helder Macedo no sentido de
da dessacralização ou desmitificação da consagrar a componente dionisíaca no
figura do vate nacional e degradá-la no retrato aberto de “o Camões para quem
desdenhar chocarreiro, mas também põe a contradição é a norma” (MACEDO,
em causa ironicamente a superestrutura 2006, 27), personalidade em que convi-
ideológica e historiosófica a que se teria veriam “o sublime poeta” e “o malandro
rendido o épico – “obnubilado por fu- malcomportado” (Id., Ibid., 31).
mos da índia, enrouquecido de epopeia e Formas de atingir a relação admirativa
destemperado de lira renascente e impe- com Camões pela crescente distanciação
rial” –, e ainda mais, subentendidamente irónico-crítica são os recorrentes estra-
à luz da sua cristologia e da sua interven- tagemas da reescrita com diferença no
ção evangélica, põe sob caução a autenti- trânsito do neomodernismo – com o con-
cidade cristã da estrutura mundividente e tundente ethos iconoclasta e político de
ética sob a retórica católica e nacionalis- Jorge de Sena no conto “A Grã-Canária”
ta: “valeria bem a pena analisar algum dia – para o pós-modernismo – com a difu-
a epopeia nacional ou mesmo não apenas sa modelização romanesca na Tetralogia
Os Lusíadas mas toda a lírica camoniana Lusitana de Almeida Faria, em As Naus
[…] à luz do Evangelho eterno, a ver o (1988) de A. Lobo Antunes, em Jangada
que ficava de válido. Mais valerá porém de Pedra (1986) de José Saramago, etc.
não começar, nem sequer começar”. Nesse âmbito se inscrevem também mais
As poucas cartas em prosa que nos ostensivas ou estruturantes transposições
restam de Camões puderam ser lidas paródicas do poema épico camoniano.
contrapontadamente ao longo dos tem- Primeiro, em ciclo de resistência polí-
pos, nuns casos como testemunhos inte- tica e subversão ideológica, Camões vê-se
ressantes, até pela linguagem pícara, de envolvido na intencionalidade de corro-
temperamento faceto e vivências próprias são antinacionalista e rutura da retórica
de humanidade pujante em idades e cir- épico-imperial, com As Quybycas: Poe-
cunstâncias desconcertadas, noutros ca- ma Ethyco… Que Corre como Sendo de Luís
sos como contraprovas de baixa educação Vaaz de Camões em Suspeitíssima Atribuição/
e comportamento desregrado. Por outro Frey Ioannes Garabatus (1972) de Antó-
lado, se, na receção criativa pela novelís- nio Quadros/João Grabato Dias (sátira
tica, pelo teatro e pelo cinema, esses ele- burlesca que, enquadrada por divertida
mentos vulgares ostentados pelas cartas e engenhosa mistificação metatextual e
puderam ser refundidos como fator lison- paratextual, através da paródia de passos
jeiro de pitoresco e de humor aureolan- de Os Lusíadas, atinge menos Camões do
do a personalidade irreverente do génio, que a leitura salazarista da gloriosa lusita-
na receção crítica ressaltam, primeiro, a nidade a que se referia o camonista Jorge
releitura em clave de subversão picaresca de Sena no prefácio, “Um imenso inédito
da ordem tradicional do lado dionisíaco semicamoneano, e o menos que adiante
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se verá”), e com os lusíadas (1974), ro- – que de tempos a tempos lhe apontavam
mance em parceria autoral de Manuel da o atraso científico da conformidade com
Silva Ramos e de Alface, que carnavaliza as teses ptolomaicas na feição astronómi-
em experimentalismo verbal e metagráfi- co-astrológica da sua representação poéti-
co o discurso camoniano e procede a um ca do universo no canto x de Os Lusíadas
abjecionista esvaziamento do conteúdo encontram nova recidiva na turbulência
épico da história lusíada. progressista que então se apodera do dis-
Depois, em ciclo de irónico ceticismo, curso académico de Silva Dias (Camões no
a obra-prima pós-moderna Viagem à Índia Portugal de Quinhentos, 1981).
– Melancolia Contemporânea (Um Itinerário) Nos começos do séc. xxi, nos centros
(2010) de Gonçalo M. Tavares, que se internacionais de estudos camonianos,
afasta da glosa burlesca do texto camonia- fizeram-se sentir na reapreciação de Ca-
no em favor de uma translação histórica mões e, em particular, de Os Lusíadas os
do avançar pelo desconcerto do mundo, pressupostos ideológicos, se não de todas
em que se degradam os paralelos con- as vertentes do que Harold Bloom de-
temporâneos de episódios e tópicos do nunciou como a escola do ressentimento,
poema épico matricial. No mesmo senti- pelo menos de correntes de estudos pós-
do, cultores pós-modernos da literatura coloniais e de new historicism ou cultural
infantojuvenil adotam ocasionalmente o materialism, dando por adquirido e con-
registo paródico, curiosamente com par- denável que o renascimento ocidental se
ticular gosto pela figura do Adamastor, traduziu em estratégias de poder classista
amachucado pela constipação em A Nau e de dominação imperialista, atuando as
Mentireta (1991) de Luísa Ducla Soares, e suas grandes figuras culturais e os seus
pela dor de dentes em “A porta dos sete grandes criadores artísticos como coones-
mares” (2004) de Miguel Miranda. tadores desses interesses e movimentos.
De algum modo, a deriva da paródia Nessa perspetiva, é especialmente Baco
militante para a paródia reconversora quem vai representar aquilo e aqueles
não colide, mas também não se confun- que não tinham lugar no ecumenismo
de, com o devir da fortuna de Camões legitimador da expansão imperial portu-
após o 25 de Abril – desde o anticamo- guesa (do poder ocidental e da religião
nismo no período convulso do Processo católica) e também as classes sociais que
Revolucionário em Curso (dos dislates em Portugal (e na civilização cristã da Eu-
discursivos e distúrbios recetivos às tenta- ropa) eram desfavorecidas, desprestigia-
tivas de despromoção no cânone literário das, marginalizadas ou silenciadas.
e de afastamento do cânone escolar) até Sem requisitório de tendência, não po-
ao progressivo processo de reabilitação demos deixar de focar, no âmbito dos es-
através de renovadas leituras da obra tudos académicos sobre ou em torno de
épica e lírica de Camões – em que cedo Camões, as posições de Luís de Oliveira e
participa alguma esclarecida intelectuali- Silva. Julgando apenas suposta a vocação
dade comunista, mormente pela criação universalista dos Portugueses e opinan-
da revista Camões, sob a direção intergera- do que estes “com tanta expansão nunca
cional de Óscar Lopes e Manuel Gusmão. deixaram de ser dos povos mais pobres e
Por essa altura, as críticas – eivadas de incultos da Europa”, considera que Ca-
anacronia, falhas de rigor exegético e ce- mões, mero grand rhétoriqueur – enleado,
gas à coerência epistemológica e estético aliás, no que seria a “máscara” do “estoi-
-literária do discurso poético de Camões cismo cristianizado” contra o que seria “o
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ta, logo de entrada, algo supérfluo, seja Além disso, Camões cairia em mais de-
qual for o seu indiscutível valor orna- sacertos “ignorando o papel fulcral de
mental” (Id., Ibid., 293). Enfim, Oliveira Mercúrio, patrão dos negotiatores, banali-
e Silva conduz a sua depreciação até ao zado no poema como moço de recados
comprazimento irrisório: “[Vénus] já tra- de Júpiter”, ao passo que afinal “Vasco da
balhou a tempo inteiro na Eneida e agora Gama, na sua viagem de descobrimento,
obrigam-na a desempenhar de novo uma além de se constituir em mera prótese
mesma missão. E aceita com entusiasmo funcional da autoridade monárquica, foi,
o novo encargo. Já conhece o libreto” (Id., sobretudo, um capitão da marinha mer-
Ibid., 291). De resto, Oliveira e Silva con- cante que quase nunca se viu obrigado a
sidera que Camões escreve enredado nas recorrer às armas. A eminente identida-
teias de um nacionalismo missionário, de épica, hiperbolicamente realçada, não
“sabendo muito pragmaticamente que tem, pelo menos na sua vertente militar,
agora a evangelização garante e sacraliza grande base fáctica de sustentação na mo-
a soberania”, mas não podendo obstar a nótona viagem de descobrimento” (Id.,
que o “universalismo cristão colide com 2011c, 344-345). Para Oliveira e Silva, a
a retorização desaforadamente patrióti- condição desadequada do protagonista
ca, e paradoxalmente universalista, dos Vasco da Gama evidenciaria que “a mise en
factos” (Id., 2011c, 342) e a imaginação intrigue do poema resulta assaz estranha,
camoniana, «aparentemente mimética», porque permite uma solução de conti-
sobrepõe “à identidade rural, piscatória nuidade entre factualidade histórica, ve-
e mercantil, própria dos ‘verdadeiros rosimilhança e maravilhoso inverosímil.
Portugueses’, uma suposta identidade O poema sofre de um evidente desajuste
épica de projeção universalista que lhe conteudístico e mereológico” (Id., 2011d,
permitirá encontrar um alter ego subli- 395), aliás agravado pela indefinição do
mado e heroicizado, quem sabe se de “peito ilustre lusitano” que Camões se
carácter plenamente metamórfico” (Id., propõe cantar e à luz da qual o Gama “ca-
Ibid., 345). Por outro lado, se o “Impé- rece de espontaneidade e de verdadeira
rio quinhentista transoceânico […] só se capacidade proairética” (Id., Ibid., 396).
concebe sob a férula do Catolicismo, veí- Por seu turno, o discurso de renovação
culo universal de salvação tão indiscutí- dos estudos camonianos introduzido por
vel como a Monarquia e imbricado nas Hélio Alves (para quem Camões escreve
suas práticas”, acresce que no parecer Os Lusíadas com base nos esquemas de
pejorativo de Oliveira e Silva “os heróis compreensão e composição codificados
de 1498, vistos por Camões, têm um ana- pelas teorias retóricas para o sistema épi-
crónico e solene talante contrarreformis- co-demonstrativo renovado, hegemónico
ta” (Id., Ibid., 343). Igualmente enredado antes do paradigma aristotélico-tassiano;
estaria Camões na inviável conciliação logo, Camões escreve Os Lusíadas num
entre o exercício do livre-arbítrio, a von- quadro primordialmente oratório e mo-
tade de Deus e a ditadura do destino, a ral, com seu discurso epidíctico e suasó-
tal ponto que – sendo tão augustiniano rio, à luz do qual promove uma axiologia
na épica e na lírica – a solução única pela do heroico a que afinal os supostos he-
omnipotência da Providência Divina fi- róis portugueses da viagem muitas vezes
caria hipotecada pela consideração desse não correspondem…) não se coíbe de
Deus como entidade incógnita e ininteli- questionar ou inferiorizar múltiplos aspe-
gível (X, 80). tos de Os Lusíadas, por comparação com
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de Camões, Lisboa, Caminho, 2011, pp. 172- Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Lisboa,
-176; DELILLE, Maria Manuela, “Receção de Ática, 1980a; Id., Correspondência (1923-1935),
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Aguiar e (coord.), Dicionário de Luís de Camões, tonio Sabio, La Critica a “Os Lusíadas” en Portugal
Lisboa, Caminho, 2011, pp. 740-754; FERRO, (1571-1987), Granada, s.n., 1990; PIRES, Ma-
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1987; FRANCO, Márcia Arruda, “Cânone li- boa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
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Lisboa, Caminho, 2011, pp. 219-228; HUE, 1992; RIBEIRO, Aquilino, Camões, Camilo, Eça
Sheila Moura, “Rhythmas de Luís de Camões e Alguns Mais, Lisboa, Bertrand, 1949; Id., Luís
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reflete a criação, em Portugal, de uma que luta contra “um capitalismo anti-
economia de mercado; além disso, o fim democrático” (SANTOS, Visão, 12 jan.
da Guerra Fria retira ao discurso dos par- 2012, 24). Curiosamente, estas palavras
tidos de esquerda o tradicional antago- parecem anunciar uma reconciliação
nismo ao imperialismo americano, para entre os socialistas oitocentistas, preocu-
o centrar na crítica às injustiças do capi- pados com o capital, e os comunistas do
talismo. Não se pode dizer que esta mu- séc. xx, unidos contra o imperialismo.
dança representa um regresso à matriz
ideológica da esquerda partidária, uma
vez que a sua hostilidade, ao longo do
séc. xx, se exprimiu nas esferas geopo-
lítica (contra o imperialismo), política
(contra o fascismo) e cultural (contra a Bibliog.: ALMEIDA, António José de, Diario
estética burguesa), e só secundariamen- da Camara dos Senhores Deputados, 2 fev. 1907;
te na esfera económica. BASTOS, Teixeira, A Dissolução do Regimen Ca-
Em finais do séc. xx, o termo “antica- pitalista, Lisboa, Companhia Nacional Edito-
ra, 1897; CARQUEJA, Bento, O Capitalismo
pitalismo” tornou-se recorrente nas críti-
Moderno e as Suas Origens em Portugal, Porto,
cas à globalização económica e tornou-se Livraria Chardron de Lello e Irmão, 1908; Id.,
moeda corrente numa grande variedade O Capitalismo. Seu Passado, Seu Presente, Seu Fu-
de movimentos (incluindo o feminismo turo, Lisboa, Academia das Ciências, 1933;
e o ecologismo), assumindo mais noto- CONSTÂNCIO, Francisco Solano, Leituras e
riamente o significado de opressão e de Ensaios de Economia Política (1808-1842), in-
predomínio dos interesses económicos trod. e dir. José Luís Cardoso, Lisboa, Banco
de Portugal, 1995; FUSCHINI, Augusto, Dia-
sobre os demais. Nesta literatura polé-
rio da Camara dos Senhores Deputados, 7 maio
mica salienta-se, a nível internacional, 1889; HERCULANO, Alexandre, Opúsculos,
a figura do sociólogo coimbrão Boaven- t. viii, Lisboa, Tavares Cardoso & Irmão Edi-
tura de Sousa Santos. A partir dos seus tores, 1901; MADEIRA, João, Os Engenheiros
circuitos portugueses e brasileiros, este de Almas. O Partido Comunista e os Intelectuais
autor opõe duas globalizações: a “hege- (dos Anos Trinta aos Inícios de Sessenta), Lisboa,
mónica”, que se identifica com o libera- Estampa, 1996; MARTINS, J. P. de Oliveira,
Teoria do Socialismo, Lisboa, P. Plantier, 1872;
lismo, com as grandes empresas e com
Id., Portugal e o Socialismo, Lisboa, P. Plantier,
as grandes economias de mercado, e a
1873; Id., História da República Romana, Lis-
“contra-hegemónica”, que se define con- boa, Bertrand, 1885; Id., Diario da Camara dos
tra a anterior, ou seja, “é de carácter an- Senhores Deputados, sup., 7 abr. 1888; MARX,
ticapitalista” (SANTOS, 2001, 61). Sou- Karl, e ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido
sa Santos evidencia a existência de um Comunista, Lisboa, Avante, 1984; NEVES, José,
confronto dialético entre globalização Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política,
capitalista e o seu oposto, representado Cultura e História no Século XX, Lisboa, Tinta da
China, 2010; PATRIARCA, Fátima, A Questão
pelas ONG, pelos países periféricos e
Social no Salazarismo. 1930-1947, vol. i, Lisboa,
pelo Fórum Económico Mundial, sendo INCM, 1995; SANTOS, Boaventura de Sousa,
que o segundo claramente se define, na “Os processos da globalização”, in SANTOS,
sua essência, como o anti do primeiro. Boaventura de Sousa (org.), Globalização. Fa-
Num texto de intervenção publicado na talidade ou Utopia, Porto, Afrontamento, 2001,
imprensa generalista, a “Quarta carta às pp. 31-106; Id., “Quarta carta às esquerdas”,
esquerdas”, Boaventura de Sousa Santos Visão, 12 jan. 2012, p. 24.
fala de uma “democracia anticapitalista” António Castro Henriques
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segunda década do séc. xxi, a estabele- cultivo. Destas práticas, surge a ideia de
cer agências de microcrédito em países a saúde e a educação das populações ne-
em desenvolvimento, tendo crescido cessitadas de assistência serem presente
330 % entre 2010 e 2015 e ocupado um e unilateralmente decididas por dadores
lugar cimeiro num grupo crescente de que têm interesses corporativos e capi-
negócios que fazem lucro a combater a talistas, não havendo espaço para o diá-
pobreza global. logo com os recetores da assistência hu-
As acusações de anticaritativismo a manitária ou da caridade, os primeiros
fundações filantrópicas deste género interessados.
sugerem a existência de lucros escondi- Esta mudança de rumo no papel das
dos nestas doações corporativas, já que fundações filantrópicas interessadas no
as fundações esperarão alguma recom- negócio da pobreza vai destruindo o seu
pensa para os seus investimentos. Lem- intuito primeiro – o de ajudar os que vi-
bram ainda que a maioria dos gastos fi- vem em situações de violência, sem abri-
lantrópicos do séc. xxi não é dirigida a go, sem alimentos e sem instrução – e
indivíduos com baixo rendimento, mas enraíza-se no pensamento de Adam Smi-
a universidades abastadas, a instituições th, Andrew Carnegie, Charles Wilson,
culturais frequentadas pelas classes so- das elites do Fórum Económico Mun-
ciais mais ricas e a instituições religiosas dial, e posteriores investidores e estu-
que, legalmente, têm o poder de juntar diosos da gestão e da economia, que de-
riqueza sem pagar impostos e de não a fendem que a expansão dos mercados é
distribuir, ao invés do que a moral da um processo naturalmente filantrópico,
maioria das religiões aconselharia. que contribui para a melhoria do nível
Relativamente à Bill & Melinda Gates de vida em termos globais, e que, deste
Foundation, as críticas que identificam modo, as doações isentas de impostos a
o cariz anticaritativo da fundação indi- empresas ricas não deveriam ser questio-
cam que esta só recentemente começou nadas, mas promovidas. Esta intromissão
a denotar preocupação com a melhoria do capitalismo nos conceitos de carida-
dos sistemas de saúde primária das po- de, generosidade e bondade, que a filo-
pulações carenciadas e que ajudou mul- sofia e as religiões foram inculcando, ao
tinacionais americanas, como a Mon- longo de milénios, na humanidade, para
santo, a crescer em países africanos em que esta pudesse ser civilização, derruba
desenvolvimento, facto que tem conse- o próprio conceito de civilização e de
quências gravosas nas economias locais, humanidade, corroendo internamente
especialmente no caso dos agricultores as práticas do caritativismo, como acon-
africanos dessas regiões, que, ao invés tece no caso das experiências com micro-
de serem ajudados a melhorar a sua pro- crédito em países em desenvolvimento,
dutividade, através da tecnologia e dos que se revelaram ineficazes no combate
conhecimentos dos norte-americanos, à pobreza na déc. de 90 do séc. xx e nas
foram convencidos a comprar produtos décs. de 00 e de 10 do séc. xxi, mas que
da Monsanto e outros, que não têm ca- continuam a ser louvadas.
pacidade financeira de pagar, mas que Nascido na déc. de 90 do séc. xx no
ficaram como que obrigados a comprar Bangladeche, a partir do sucesso obti-
anualmente de modo a continuarem a do no banco comunitário de Grameen,
cultivar as suas terras, como é o caso da fundado pelo economista Muhammad
disseminação das sementes híbridas para Yunnus, que recebeu, em 2006, o Prémio
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te, para o anticarnivorismo, uma vez que animais como seres que não deveriam ser
apresentou uma soma dos conhecimen- sacrificados. O confronto de posições,
tos acerca da opção verde do passado e iniciado com Pitágoras e resumido por
parece ter sido um dos pioneiro na defesa Porfírio, após diversos contributos, esta-
do vegetarianismo ético, ao considerar a va em vias de hibernar. A conversão do
nulidade dos sacrifícios animais para cul- imperador Constantino (272-337), desfa-
tuar os deuses. Não atacou todos os sacri- vorável ao vegetarianismo de inspiração
fícios, mas apenas os que implicavam a moral, e o entendimento pelos teólogos
morte de animais. Isto é, não procurou e pelos Padres da Igreja da abstinência da
reformar a religião vigente mas poupar os carne como uma superstição, não foram
bichos. Considerou que privar o animal favoráveis a este tipo de opção (LARUE,
da vida era afim à prática de homicídio 2015, 76-78).
por razões cruéis e inúteis, pois o Homem O Judaísmo, o Cristianismo e o Isla-
poderia dispor de plantas e de frutos para mismo sempre mostraram aversão à vio-
sobreviver (DIAS, 2012, 81-92). Mais do lência inerente à morte dos animais, o
que salientar as qualidades do regime ver- que não significou a adesão dos crentes
de, Porfírio criticou o consumo de carne. ao vegetarianismo (DAVIDSON, 2003,
Para o autor, os animais eram dotados de 114-130). As três religiões entende-
logos prophorikos (linguagem que atesta os ram que os animais eram meios para
estados de alma), independentemente de os humanos obterem fins. Logo, o re-
os humanos nem sempre os compreende- gime omnívoro seria o adequado. Se
rem, expressavam-se, logo, não deixavam para o islão, a alimentação com carne
de ser objeto de direito. Salientou ainda se apresenta como um ato para servir
que os animais eram úteis aos homens o Homem, também pode ser entendida
uma vez que os ajudavam diretamente no como uma forma de predação. Diver-
trabalho e lhes forneciam bens para a ali- gências e discussões de interpretação
mentação e para o vestuário, em alguns foram permanentes, mas duas constan-
casos, dependiam do próprio Homem tes se salientaram: a necessidade de cui-
para sobreviver (SPENCER, 2016, 103- dar dos animais e a morte destes de for-
-106; RAUW, 2015, 9-11; LARUE, 2015, ma rápida e com o menor sofrimento
63-66). possível (MARONGIU-PERRIA, 2015,
Na Antiguidade clássica não houve con- 309-324). Para judeus e cristãos, a absti-
senso acerca das relações entre o Homem nência de carne foi defendida enfatica-
e os animais, o mesmo é dizer que a opção mente, não por compaixão ou respeito
vegetariana teve adeptos e adversários. As pelos animais, mas como uma forma
várias escolas filosóficas pronunciaram- de enfraquecimento do corpo visando
se de maneiras diferentes, sobre o papel refrear os desejos carnais. Progressi-
do Homem no universo, o entendimento vamente, os jejuns foram instituídos,
dos animais, a religião, a pureza, a moral tornando-se clara a existência de dias
e o direito. Se para uns o Homem era a fi- gordos, ou de carne, em paralelo com a
nalidade do universo enquanto os outros forte presença de dias magros ou de je-
seres eram meros meios de honrar os deu- jum e abstinência, numa dinâmica com-
ses através da oferenda de sacrifícios; ou- plexa e variável ao longo dos tempos.
tras posições entenderam que o Homem Efetivamente, no início do Cristianismo
era uma parte de um todo a par de outras a matéria foi dada a alguma confusão:
criaturas, sendo adequado considerar os um indivíduo que se abstinha de carne
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anos, Fabri não conseguiu evitar ser acu- gem fosse o Sol ou o fogo, mais não era
sado de ter adotado a filosofia de Descar- do que um eflúvio substancial, corpóreo
tes. Entre as muitas referências apresen- e perene do próprio fogo elementar ou
tadas por Cordeiro nos documentos que solar. Por conseguinte, a luz não deve-
deixou, merecem destaque as que fez so- ria ser considerada uma “qualidade físi-
bre as ideias de Kepler, Galileu, Descartes ca entitativa”, nem sequer um acidente,
e Gassendi. como pretendiam as conceções aristoté-
Acerca do processo das sensações e da licas, mas sim uma substância corpórea
sua natureza, e influenciado pelo sistema do fogo. Esta opinião tinha a prova da
filosófico de Descartes, Cordeiro defen- experiência, uma vez que os raios de luz
dia que toda a ação dos objetos externos aqueciam, queimavam, iluminavam, etc.,
consistia em provocar um movimento nas como se verificava através do espelho us-
extremidades dos nervos que se encon- tório. Esses raios, mesmo quando disper-
travam nos diversos órgãos dos sentidos sos, não deixavam de ser fogo. A cor não
e que os ligavam diretamente ao cére- era uma qualidade permanente e real do
bro; esse movimento era transmitido ao corpo, que pudesse ser adequadamente
cérebro, estimulando a glândula pineal considerada distinta da luz. De acordo
e fazendo com que a alma experimentas- com esta ideia, a “cor transeunte e apa-
se a correspondente sensação. Assim, as
sensações visuais não eram causadas se- René Descartes (1596-1650).
não pela ação dos próprios raios de luz
emanados do objeto e que se dirigiam
para a vista; as sensações auditivas seriam
causadas pela ação do ar “atirado contra
os ouvidos”, em movimentos “trémulos e
ondulatórios”; por sua vez, as sensações
odoríferas resultavam das emanações,
ou evaporações substanciais, do corpo
odorante, enquanto as gustativas estavam
associadas à impressão, afetação ou infor-
mação gustativa: o sabor era proveniente
da ação das partículas do corpo saboroso
que impressionavam o órgão gustativo.
Para Cordeiro, as espécies impressas que
estavam na origem das sensações eram
tenuissima corpuscula, ou eflúvios substan-
ciais corpóreos.
António Cordeiro afirmava que, no
que respeita à sua definição formal, não
havia dúvida de que a luz era aquilo que
tornava os objetos claros e manifestos;
e, constando isto pelos sentidos e pela
experiência, não precisava de outra pro-
va de razão. A luz não era mais do que
um elemento corpóreo e substancial do
fogo. Toda e qualquer luz, quer a sua ori-
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de direitos individuais dos governados. tismo dos liberais mais radicais, avessos às
O rumo e a inspiração liberais assumidos cedências da Carta e obreiros da Consti-
pela Carta Constitucional pretendiam-se, tuição setembrista, que com aquela have-
porém, temperados por um espírito de ria de disputar a vigência, depois de 1838.
moderação que fosse capaz de conciliar a Na base do anticartismo coexistiram, fru-
ideologia liberal com o respeito pela insti- to de intensas lutas políticas, convicções e
tuição monárquica e pela dignidade real, ideais diferentes. A divergências progra-
segundo os usos e as tradições da nação. máticas quanto à condução política e eco-
Pretendia-se, também, pragmaticamen- nómica do país juntaram-se divergências
te estabelecer um compromisso entre ideológicas. Procuraremos atender a to-
os dois extremos ideológicos em tensão das, embora privilegiando um esboço do
(realistas ou tradicionalistas e partidá- anticartismo como ideário.
rios do liberalismo), viabilizando a paz
pública, a estabilidade e o progresso do
reino. A feição revolucionária, de rutura,
PARTICuLARIDADES DA CARTA
que a Constituição de 1822 apresentava
ConSTITuCIonAL DE 1826 SoBRE AS QuAIS
foi substituída por uma solução de pro-
InCIDIRá A oPoSIção
gresso gradual e pela coexistência entre A primeira e mais fundamental particula-
a novidade e a herança. Podemos desde ridade da Carta Constitucional é anterior
já compreender porque é que o anticar- à sua aprovação, consistindo no facto de
tismo foi um fenómeno com duas mani- não ter sido elaborada e votada por uma
festações radicalmente opostas, nos dois assembleia representativa, mas outorgada
polos ideológicos cuja conciliação a Carta pelo Rei, promovendo, assim, uma posi-
procurava: tínhamos, por um lado, o an- ção própria quanto à questão basilar da
ticartismo dos partidários das instituições soberania: esta reside, é certo, na nação,
tradicionais, e, por outro lado, o anticar- na medida em que a Carta cria órgãos
representativos do povo, atribuindo-lhes
nomeadamente o poder legislativo, e con-
D. Pedro IV e D. Miguel a Lutar pela Coroa sagra os direitos individuais dos cidadãos
Portuguesa, de Honoré Daumier (1833). portugueses; mas pertence também, de
modo inegável, ao rei, de quem proma-
na, não carecendo de outra legitimação.
O contrato social como fonte única do
poder legítimo não foi, portanto, inteira-
mente assumido pelos liberais partidários
da Carta, manifestando estes, se quiser-
mos ir mais longe, uma reserva perante o
voluntarismo e a total imanentização do
poder propugnados pelo ideário da Re-
volução Francesa. Alguns aspetos da Car-
ta concretizam coerentemente a opção
de não reservar ao rei a função de uma
mera representação simbólica da nação.
Como principais exemplos, são de referir:
a participação do rei no processo legis-
lativo através do direito de veto absoluto
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identidade dos povos. Pouco mais de 30 ções e da alternância de vigência das duas
anos haviam passado sobre a Revolução leis fundamentais (a Carta, de 1826, e a
Francesa, mas os seus efeitos persistiam Constituição de 1822, reformada).
em toda a Europa. Uma das motivações comummente
Um aspeto comum à Carta, de 1826, e apontadas para a Revolução de Setembro
às Constituições de 1822 e de 1838, relati- prende-se, não com o conteúdo da Carta,
vamente ao qual não houve divergência, mas com o fenómeno da eleição sistemá-
foi a consagração dos direitos individuais tica dos mais ricos e a fixação de uma oli-
dos cidadãos portugueses como finali- garquia legitimada pela vigência da Carta.
dade e orientação da governação. Pelo É também amplamente consensual en-
menos não houve divergência quanto à tre os autores que a matriz liberal comum
formulação em si mesma, tanto que fora a ambas as fações permitiu uma conver-
usada por D. João VI na proclamação ré- gência mais significativa entre elas do que
gia de 1824 pela qual restaurara a vigên- uma oposição, e que esta se deveu, mais
cia das instituições tradicionais. do que a diferendos de natureza constitu-
Cronologicamente, este anticartismo cional, a divergências programáticas e à
tradicionalista existiu enquanto existiram competição pelo acesso ao poder.
em Portugal opositores declarados do re- A prova de que existiam divergências
gime constitucional liberal. Falamos dos programáticas está no facto de os revolu-
partidários de D. Miguel, cuja ação políti- cionários de setembro terem promovido o
ca se estendeu para além da derrota defi- restabelecimento da Constituição de 1822
nitiva de D. Miguel, em 1834. a título provisório, com vista à elaboração
de um novo texto constitucional, que foi
aprovado e entrou em vigor em 1838.
AnticArtismo setembristA Desde logo, os setembristas, apresentan-
A monarquia constitucional instalou-se do-se como liberais mais radicais, discor-
definitivamente em Portugal, alicerçada davam da Carta quanto à questão da so-
na Carta, depois da derrota de D. Miguel berania, por entenderem que esta residia
(1834), primeiro sob a regência de D. Pe- unicamente na nação. Nesta perspetiva,
dro e, depois, sob o reinado de D. Ma- toda a lei, e especificamente a lei funda-
ria II. Num período de grande instabili- mental, seria legítima enquanto fosse ex-
dade política, motivada pela divergência pressão da vontade do povo. Desse modo,
constante entre as duas câmaras do reino, a Constituição teria de ser elaborada e
foi ganhando forma e capacidade de in- votada por uma assembleia constituinte
fluência uma fação política que questio- representativa. Coerentemente, a impor-
nava a vigência da Carta Constitucional. tância e o papel do rei foram encarados de
No plano ideológico, essa fação opunha- maneira distinta do que acontecia na Car-
se à feição moderadora da Carta e rejei- ta Constitucional. A Constituição de 1838
tava os recuos que esta alegadamente deixou de reconhecer ao rei o direito de
representava face à Constituição de 1822, veto absoluto sobre a legislação aprovada
na perspetiva da implantação do regime pela câmara representativa, assim como
liberal. Tal oposição concretizou-se na deixou de reconhecer a sua participação
Revolução de Setembro de 1836, dando indireta nos outros poderes (diferentes do
início a um aceso combate político entre poder executivo) como decorrência do
cartistas e setembristas, acompanhado da seu poder moderador (nomeadamente, o
alternância do poder entre ambas as fa- poder de nomear os membros da Câmara
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AnticArtismo 319
dos Pares). Que o setembrismo era expres- confundiu-se com a contestação ao minis-
são de um liberalismo menos monárquico tro e a rejeição da feição centralizadora e
do que era o cartismo, tal parece claro. De autoritária do seu Governo.
facto, se a monarquia constitucional – o O anticartismo setembrista situa-se cro-
regime político comummente propugna- nologicamente entre a Revolução de
do por cartistas e setembristas – procura- 1836 e a promulgação do Ato Adicional à
va conciliar o princípio monárquico com Carta – à Carta Constitucional cuja vigên-
o princípio democrático, é inegável que cia acabou por vingar –, que pretendia
para os cartistas que o eram por convic- adaptá-la às principais objeções dos seus
ção aquele primeiro princípio adquiria opositores e conciliar, tanto quanto possí-
uma importância que não tinha para os vel, as duas fações em confronto.
setembristas, que procuravam integrá-lo
mais pelos condicionamentos da época Bibliog.: BONIFÁCIO, Maria de Fátima, Seis
do que por crerem nos seus benefícios. Estudos sobre o Liberalismo Português, Lisboa,
Além deste aspeto, e com ele relacionado, Estampa, 1991; BRANCO, Joaquim António
Lemos Seixas e Castelo, Mais Huma Toza nos
o igualitarismo mais patente no espírito
Liberaes ou Verdadeiras Idéas de Hum Realista Por-
setembrista rejeitava a persistência dos pri- tuguez Puro em que Se Evidencêa e Prova, sem mais
vilégios hereditários veiculada pelo carác- Recursos que a Historia, e Refutando as Perniciosas
ter vitalício dos membros da Câmara dos Doutrinas da Demagogia e Maçonismo, Lisboa,
Pares. Imprensa Régia, 1831; MADRE DE DEUS,
Apesar destas divergências de princí- Faustino José da, Justificação da Dissidencia Por-
pios, a assinalável mobilidade das pessoas tugueza contra a Carta Constitucional, Lisboa,
s.n., 1828; MATTOSO, José, “O liberalismo”,
entre os dois partidos dá sustento à tese
in MATTOSO, José (coord.), História de Portu-
de que a luta pelo poder foi a motivação gal, vol. v, Lisboa, Estampa, 1988, pp. 68-120;
mais significativa da divisão entre eles. No NEVES, Pedro Almiro et al., História de Portu-
palco do antagonismo entre cartistas e se- gal. Textos e Documentos, Porto, Porto Editora,
tembristas, que ultrapassava claramente 1985; REIS, A. do Carmo, O Liberalismo em Por-
o plano da ordem constitucional postula- tugal à Reconquista do Poder, Vila do Conde, Edi-
da, os cartistas eram, no discurso setem- ções Linear, 1982; Id., A Imprensa Periódica do
Porto na Primeira Metade do Século XIX. Cartismo
brista, os oportunistas gananciosos que
e Setembrismo, Dissertação de Doutoramento
pretendiam servir-se dos cargos públicos
em História Moderna e Contemporânea apre-
para encher os bolsos com os bens do sentada à Universidade do Porto, Porto, texto
reino, e que, por isso, foram apelidados policopiado, 1993; RODRIGUES, António Si-
de devoristas. À orientação programática mões (coord.), A História de Portugal em Datas,
patriótica protecionista a que ficou asso- Lisboa, Círculo de Leitores, 1994; SERRÃO,
ciado o setembrismo, que pretendia o in- Joel et al., “Regeneração e setembrismo”, in
cremento da indústria nacional acima do SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de
Portugal, vol. 3, Lisboa, Iniciativas Editoriais,
comércio e da agricultura como via para
1968, pp. 553-558; SERRÃO, Joel, e MAR-
a independência económica do país, so- QUES, A. H. de Oliveira (dirs.), Nova História
bretudo face à hegemonia britânica, li- de Portugal, vol. 9, Lisboa, Presença, 2002;
gava-se uma descrição dos cartistas como SOARES, Mário, “Carta Constitucional”, in
Portugueses pouco patriotas, subservien- SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de
tes aos interesses e ao poder dos Ingleses. Portugal, vol. 1, Lisboa, Iniciativas Editoriais,
Quando Costa Cabral tomou o poder, 1971, pp. 494-497.
em 1842, restaurando a vigência da Car- João Relvão Caetano
ta Constitucional, a oposição ao cartismo Beatriz Miranda
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enperador vijnha com muym grandepo- mente, essa preocupação distintiva inau-
der dAragam e de Castella e de Leom e gurará, igualmente no reinado de D. Di-
de Galliza E quando chegou ally o prinçi- nis, a historiografia portuguesa, a partir
pe pos lhe a batalha” (Anais, Crónicas…, de uma nova abordagem factual e linguís-
1968, 132). tica dos eventos peninsulares. A tradução
Será, portanto, na Idade Média que se da Crónica do Mouro Rasis pelo clérigo Gil
elaborarão os ideologemas e estruturas Peres, (1315), além de ser o primeiro do-
institucionais essenciais ao suporte do cumento integralmente escrito em por-
edifício ideológico de uma nação. E, por tuguês desde que D. Dinis decretou que
sua vez, será nas crónicas portuguesas pri- assim deveriam ser todos os documentos
mitivas, e até nos livros de linhagens, que régios, introduz uma série de inovações
se encontrarão os aspetos diferenciadores à versão original, procurando distinguir
da identidade portuguesa relativamente a importância dos Portugueses no tem-
à castelhana. Tendo ainda em conta a fi- po da Reconquista. Mais do que rivalizar
gura de D. Afonso Henriques como parte culturalmente com Castela, esta cons-
do mito fundacional, a implementação e ciência histórica prepara os mitos funda-
evolução do milagre de Ourique teve uma cionais que mais tarde nos distinguiriam
importância messiânico-providencialis- cultural, religiosa e politicamente no
ta, sacralizando o imaginário coletivo da plano hispânico. É tendo isto em conta
nação e catalisadora na confiança da ex- que António Quadros afirma que é com
cecionalidade portuguesa em tempos de D. Dinis que poderemos falar já de uma
crise, assumindo-se como um dínamo so- pátria portuguesa (QUADROS, 1986,
ciopolítico. Não será ocasional o facto de 13). Apesar de os conflitos políticos com
a primeira versão do milagre ter apareci- Castela não marcarem ainda, diretamen-
do durante a crise de 1383-1385, embora te, a construção cultural da identidade
Isabel Buescu aponte relatos da ocorrên- nacional portuguesa, existem exemplos
cia do milagre nas Crónicas dos Vinte Reis, explícitos que relatam não só o começo
obra em que se relatam as consequências de uma preocupação política indepen-
das diversas iniciativas régias de autono- dentista, como também o de uma noção
mização da participação portuguesa na de ameaça permanente que as fronteiras
Ordem de Santiago de Espada. As várias recentemente definidas ainda não ha-
versões do milagre, feitas até 1632, data viam neutralizado. O Livro de Linhagens
da Terceira Parte da Monarchia Lusitana, de do conde D. Pedro Afonso de Barcelos
Fr. António Brandão, representam o po- relata o modo como D. Dinis, depois dos
der legitimador que o relato deste mila- esforços diplomáticos para garantir a paz
gre teve na evolução da história política e com D. Fernando e da construção de
cultural do país. António Marques Bessa fortalezas fronteiriças, “entrou per Cas-
vai mais longe e afirma que o mito terá tela ataa Valladolide” (MATTOSO, 1983,
contribuído para a separação entre Portu- 217) para assegurar a sua superioridade
gueses e Castelhanos “conquanto no pla- e domínio militares. Na linha de uma
no da fé se pudessem confundir, enquan- tradição portuguesa de livros de linha-
to todos católicos” (BESSA, 1988, 60-61), gens, já inaugurada em finais do séc. xiii,
atribuindo um carácter sagrado à predes- o Livro de Linhagens, ou Livro Terceiro, do
tinação portuguesa de, com a proteção conde D. Pedro (1343-1344) iniciou a
divina, prosseguir o alargamento do seu exaltação dos Portugueses, relatando os
território religioso e político. Simbolica- feitos dos filhos de alguns e introduzindo
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a genealogia dos reis e das principais fa- português. Perante as intenções de Afon-
mílias nobres portuguesas como parte so XI, a crónica reproduz pormenoriza-
de um conjunto universalmente bíblico. damente a correspondência entre os dois
No entanto, será pela Crónica Geral de Es- reis, procurando espelhar a desconfiança
panha, de 1344, inspirada na crónica ho- de D. Afonso IV perante as intenções do
mónima de Afonso X, que D. Pedro Afon- inimigo castelhano, num discurso direto
so inaugurará a primeira história geral do e incisivo que culmina nestas palavras do
reino que dirime diretamente a tese afon- Monarca: “sabee sem duvida que tres cou-
sina sobre a primazia castelhana no pro- sas nunqua portugueses reçearom, con-
cesso cruzadístico da reconquista cristã, vem a saber, usar de luyta e averem gue-
além de manifestar uma declarada hosti- ra com castelhanos e demandar de boa
lidade relativamente à linhagem da casa mente molheres” (Crónica de Portugal…,
real castelhana. O autor encontrará na 1998, 241). Até à crise sucessória deixa-
vitória da Batalha do Salado a chave para da por D. Fernando, podemos considerar
a diferenciação e exaltação da participa- que os conflitos entre Portugal e Castela
ção portuguesa nesse processo, sobretu- foram pontuais, sobressaindo, ainda que
do do ponto de vista da solidariedade dos do ponto de vista romanesco, o episódio
nobres portugueses, que permitiram aos da morte de Inês de Castro, revelador
fidalgos participar nas guerras. das políticas protecionistas de Afonso IV,
A partir de meados do séc. xiv, o gra- só mais tarde ultrapassadas pela rutura
dual avanço da autonomização política definitivamente declarada de D. João I.
portuguesa tornou-se, contudo, propor- Porém, mesmo numa obra de índole as-
cional aos conflitos diplomáticos espole- cética como O Horto do Esposo se poderão
tados por Castela, quer através de uma antever os novos contornos historiográ-
dinâmica de aproximação sinuosa por ficos que permitiram ao povo participar
uniões sanguíneas de mútuo interesse, nos acontecimentos históricos. As tensões
quer pela intenção declarada de reivindi- políticas espoletadas pela crise sucessória
cação integracionista por parte dos Cas- deixada por D. Fernando representam
telhanos. A Crónica de Portugal de 1419, uma mudança no paradigma histórico
além de retomar a preocupação messiâni- dos acontecimentos, encarados não já
co-religiosa da legitimidade da fundação como fruto das decisões de responsabi-
do reino de Portugal, dando continuida- lidade governativa exclusivamente régia
de à historização do grande reinado de ou cortesã, mas como janela do alcance
D. Afonso Henriques, relata as tensões di- social das mudanças políticas de um país
plomáticas entre Afonso IV e Afonso XI, com uma consciência nacionalizante mais
além de alguns episódios cavaleirescos alargada e convicta. Juntamente com os
que prefaciam os acontecimentos mais eventos que deram lugar à resolução da
importantes dos conflitos entre as duas crise de 1383-1385, D. João I inaugurará
Coroas. Antes da crise sucessória, em um ponto de viragem na conceção da na-
1383-1385, já Afonso XI de Castela difi- cionalidade portuguesa, inspirando seu
cultara as relações de concórdia e violara filho D. Duarte a encetar um programa
os tratados de paz com Portugal quando, cronístico de legitimação da independên-
depois de se divorciar de D. Constança cia de Portugal e da dinastia que presidiu
Manuel, se recusara a entregá-la nova- a uma nova era na história portuguesa.
mente a seu pai, D. Afonso IV, na intenção As Crónicas de Fernão Lopes constituem,
de assegurar as suas pretensões ao trono de facto, um dos mais relevantes pilares
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disputa constante, uma pela possibilida- manha coisa como era a ser jurado por
de de um dos dois reinos ocupar o trono príncipe de Castela de tamanhos reinos
do vizinho e outra, que com ela se cruza, e senhorios” (Id., Ibid., 467-468); este pa-
pela descoberta, conquista e posse de no- rece ser um episódio dos conflitos entre
vos territórios ultramarinos. as várias nacionalidades submetidas a
Findo o conflito que se seguiu à ascen- Castela. Na “Miscellanea”, é tratada com
são de D. João I ao trono, com o acordo particular destaque a gesta marítima, mas
de paz de 1411, os dois reinos confrontar- notam-se ecos da relação entre os dois
se-iam novamente quando D. Afonso V, reinos, desde logo com a defesa da ideia
seguindo a utopia de reunir as Coroas de que “portugueses, castelhanos/não os
peninsulares na cabeça de um rei portu- quer Deus juntos ver” (Id., Ibid., 545). No-
guês, invade Castela para se envolver na te-se como, quando confronta os tempos
questão sucessória aberta pela fraqueza áureos de Portugal com uma certa deca-
do Rei Henrique IV. Garcia de Resende, dência, que se sente no momento em que
no seu Livro das Obras, explorará muitas escreve a “Miscellanea”, Garcia de Resen-
das questões relevantes deste período. de refere que “de granadis, de africanos/
Em “Vida e feitos d’el Rei D. João II” faz de andaluzes, castelhanos/era Portugal o
sobressair a imagem do Príncipe Per- cume” (Id., Ibid., 570). Castela é o único
feito durante os conflitos com Castela, reino europeu referido na tentativa de su-
quer enquanto defensor inexcedível das periorização de Portugal.
fronteiras ameaçadas, quer enquanto Em Gil Vicente, as questões são seme-
guerreiro vitorioso no auxílio ao pai, du- lhantes. A par do destaque dado aos fei-
rante a Batalha de Toro. Assim, destaca tos dos Portugueses, já que o dramaturgo
o seu importante papel no Tratado das escreve no momento de maior grandeza
Alcáçovas e, sobretudo, mesmo duran- do Império Português, encontram-se
te o período em que existia um possível também alguns exemplos da contrapo-
projeto de união ibérica motivado pelo sição entre Portugueses e Castelhanos,
casamento do herdeiro, D. Afonso, com culminando na superiorização dos lu-
a filha dos Reis Católicos, a prudência sos. A peça mais significativa será o Auto
e antecipação dos acontecimentos po- da Fama, na qual Gil Vicente identifica a
líticos de que o Rei sempre deu provas, Fama de Portugal com uma mocinha da
mandando “prover, fortalecer e reparar Beira que será tentada por um Francês,
todas as cidades, vilas e castelos dos ex- um Italiano e um Castelhano, recusando
tremos de seus reinos” (RESENDE, 1994, todos eles e sobrepondo às glórias e ri-
258). Na “Entrada de el-Rey Dom Manoel quezas de que se gabam os feitos dos Por-
em Castella” – a segunda possibilidade de tugueses no além-mar. No caso do Caste-
sucesso da procurada união peninsular –, lhano, embora a moça reconheça a sua
descrevem-se as divergências entre os grandeza, procura mostrar como os feitos
Portugueses quanto à entrada do Ventu- dos Portugueses superam os do seu povo.
roso em Castela para ser aclamado como Gil Vicente constrói a imagem de um Cas-
herdeiro: alguns consideram arriscada telhano arrogante, palrador, gabarolas e
essa ideia, tendo em conta os “casos que gingão (o mesmo que compõe, no Auto
podiam sobrevir a rei fora de seus reinos da Índia, para definir o Castelhano que
e em reino alheio em poder de outro se encontra com a mulher do Português
rei”, enquanto outros aconselham o Rei enquanto este viaja para o Oriente), mas
a prosseguir com a ideia, “pois hia a ta- que no final enaltece, como os outros, a
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uma proximidade cultural que veio reve- portuguesa, não poderemos deixar de as-
lar-se contraditória nas suas manifesta- sinalar que certas áreas literárias sucum-
ções passivo-agressivas: o sentimento his- biram ao poderio cultural espanhol. Foi o
pânico era tratado, em alguns casos, com caso do teatro, que, depois de Gil Vicen-
uma ironia que espelhava a inevitabilida- te, decaiu consideravelmente, ao inspirar-
de da subjugação à superioridade do país -se com menos originalidade nos motivos
vizinho ou, noutros casos, procurando e no estilo provenientes de Espanha.
fazer sobressair os interesses portugueses Ainda assim, mesmo que pontualmente
no contexto da unidade hispânica. Uma contrariando a opressão cultural do país
das melhores comunhões epocais entre vizinho, o gosto pelo teatro em Portugal
o panegírico da língua materna e a di- não diminui, tendo-se criado a nossa pri-
plomacia política é Origem da Língua Por- meira companhia em 1591. Simão Ma-
tuguesa, de Duarte Nunes de Leão, obra chado é exemplo do génio dramático da
dedicada a D. Filipe III e escrita em por- época, escrevendo duas peças bilingues
tuguês. A tentativa de equilíbrio entre o nas quais procurou oferecer uma melhor
português e a sua língua de origem, o cas- possibilidade de divulgação, A Comédia do
telhano, resulta numa curiosa imparciali- Cerco de Dio e A Comédia da Postora Alfea
dade derivada dos processos panegíricos (1601). Mesmo sob a censura castelhana,
de compensação da apologia das línguas o autor logrou deixar o rasto da sua veia
hispânicas e da defesa do português, in- nacionalista ao atribuir aos inimigos dos
submissível e original. Particularizando Portugueses, mouros e índios, a língua
alguns vocábulos portugueses que exem- castelhana. Embora posterior ao domínio
plificam as ligações ao castelhano, mas filipino, o Auto do Fidalgo Aprendiz (1646),
ainda sensível ao tumulto político-cultu- de Francisco Manuel de Melo, continua
ral de que esta obra procura ser media- ainda a ser considerado a melhor peça do
dora, Leão esclarece que o empréstimo séc. xvii português. A adoção da língua
vocabular foi modesto tendo em conta castelhana por parte de alguns autores,
“tanta vizinhança, comércio e parentesco que caracterizara algumas produções de
com os Castelhanos” (LEãO, 1975, 73), vultos tão representativos como Gil Vi-
justificando que “se alguns vocábulos se cente, Sá de Miranda ou Camões, man-
agora acharem tomados dos Castelhanos, teve-se mesmo depois da Restauração, o
será depois que nos unimos com eles, e que demonstra singularmente que o sen-
somos todos de um mesmo príncipe timento anticastelhanista não se ancorava
e de um governo” (Id., Ibid., 74). O último particularmente na Espanha e na evidên-
parágrafo da obra prepara um dos seus cia de uma raiz hispânica comum, reivin-
capítulos mais arriscados e panegíricos, dicada por muitos Portugueses, mas na
intitulado “Que não é falta da bondade entidade política constituída por Castela,
da língua portuguesa não ser comum a de resto contestada desde sempre por
tantas gentes da Europa como a castelha- outras identidades culturais particula-
na”. Ao mesmo tempo que superioriza o res englobadas no todo espanhol. Sur-
castelhano ao reconhecer a proliferação gia nesse momento, também, uma nova
do seu uso, justifica com factos políticos oportunidade de celebrar e reconhecer a
a sua vulgarização (Id., Ibid., 82). língua portuguesa através das sátiras res-
Neste contexto, e apesar destas mani- peitantes ao domínio filipino, igualmen-
festações que procuravam defender a ori- te acompanhadas de uma intensíssima
ginalidade e a potencialidade da língua parenética apologética da Restauração e
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vezes, que os próprios interesses em jogo rados responsáveis, quer pelo sucedido
no conflito. Veja-se, exemplarmente, a em Alcácer Quibir, quer por terem ali-
reação de soldados portugueses ao serem ciado D. Filipe II a apossar-se do trono
confrontados com a necessidade de não português, favorecendo as intenções que
pilhar as terras espanholas por onde iam este Monarca castelhano já tinha. Nas
passando e de respeitarem os soldados Memórias Secretíssimas, Pombal recorre ao
espanhóis que defendiam a mesma causa exemplo do vizinho espanhol sobretudo
do arquiduque Carlos: “E desgostosos os para caracterizar os efeitos da influência
soldados, muitos destacaram para Portu- inglesa que se seguiu a 1640: “Depois da
gal blasfemando da forma e política desta sua revolução ficou Portugal mais escravo
guerra em que tão pouco se aproveitaram da Inglaterra do que alguma vez o foi de
do muito que acharam, e este sentimen- Espanha” (POMBAL, 1984, 156).
to se ajuntava à ira da impiedade de ve- Começa a verificar-se um acentuado de-
rem que aos doentes das salvaguardas se clínio do uso do castelhano em Portugal,
lhes faltaram com os remédios, e que a em benefício do francês, a partir de finais
estes ímpios Castelhanos tinham deixado do séc. xvii e inícios do séc. xviii, vati-
de tomar o que lhe acharam, tratando- cinando o futuro declínio político-cultu-
-os como bons amigos sendo os maiores ral da Espanha, começando também a
inimigos, como sempre foram e seriam” editar-se várias gramáticas e dicionários
(POVOLIDE, 1990, 140). Já D. Luís da franceses, bem como obras de referên-
Cunha tem uma visão mais marcada rela- cia que ensinavam a ler e a escrever essa
tivamente à posição que Portugal deveria língua, como Arte da Língua Franceza
assumir perante a Guerra da Sucessão: para facilmente e brevemente Aprender a Ler,
a aliança com a Inglaterra era a aposta Escrever e Falar essa Língua, a primeira
mais benéfica para os interesses econó- gramática francesa, da autoria de João
micos e políticos, uma vez que existia o da Costa, ainda de finais do séc. xvii, e
perigo de uma retaliação espanhola, mes- Grammatica Franceza ou Arte para Aprender
mo dentro da opção da neutralidade e da Ofrancez por meyo da Língua Portuguesa, de
aliança com a França. Numa carta para a Caetano de Lima. O aparecimento de
Secretaria de Estado, em 1735, defende livreiros franceses (Pedro Faure, Joseph
o reforço das fronteiras entre Portugal e Reycend, Jean Joseph Guibert, familiar-
Espanha, caso fosse necessário levantar mente ligados com a Bertrand) marcou
resistências contra uma possível invasão igualmente a divulgação da cultura fran-
ou assegurar o país contra uma eventual cesa em Portugal, vindo a manifestar-se,
guerra ou um conflito. Uma das ideias e.g., na influência do teatro francês, que
mais importantes acerca do pensamen- rapidamente eclipsou o antigo impacto
to político deste diplomata é a noção de do teatro espanhol em Portugal; Molière,
fronteira, singularmente moderna pela Racine e Voltaire começaram a publicar-
conceção de pertença a um espaço euro- -se com regularidade, ainda que o teatro
peu. O marquês de Pombal desenvolveu espanhol tivesse os seus defensores, como
também uma leitura muito particular da D. Francisco de Portugal e Castro que,
situação de Portugal face ao contexto eu- em 1739, publicou um Discurso Apologéti-
ropeu. No que respeita ao reino vizinho, co em defesa do Theatro Hespanhol. Porém,
sobretudo face ao período de subjugação o aspeto cultural que melhor caracteriza
filipina, a sua perspetiva cruza-se com a o cosmopolitismo português oitocentis-
sua visão deturpada dos Jesuítas, conside- ta é a valorização renovada das línguas
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nacionais. Uma vez que o latim começa- dade entre os ideais iluministas e a tor-
va a ficar restringido à missa e à Bíblia, o rente vocabular pré-romântica, Bocage
português e as outras línguas vivas, com sempre manifestou o seu patriotismo
destaque para o francês, começam a ser anticastelhanista, tendo como pedra de
alvo de divulgação e estudos, com a publi- toque o marco histórico restauracionis-
cação de gramáticas e dicionários. José de ta: “Cesarões, Viriatos, Apimanos,/Vós
Macedo, no Antídoto da Língua Portuguesa, que, brandindo vingadora espada,/Ten-
não se coíbe de afirmar que o português tastes sacudir da Pátria amada/O vil, o
é superior ao castelhano. Luís António férreo jugo dos Romanos./Surgi, vede-a
Verney foi um dos principais responsá- no sangue de tiranos/Inda piores outra
veis pela revolução das conceções filosó- vez banhada,/E a nossa liberdade edifica-
fico-pedagógicas da língua e da literatura da/No estrago dos intrusos Castelhanos”
portuguesas. Em O Verdadeiro Método de Es- (BOCAGE, 2008, 214).
tudar, a apologia à língua nacional pren- A passagem do séc. xviii para o
de-se com a sua intenção de retratar uma séc. xix dá-se por via da preparação de
série de defeitos que não deveriam coin- novos conflitos entre os dois reinos ibé-
cidir com a superioridade da língua e ricos, no contexto mais vasto da rápida
literatura portuguesas, até mesmo relati- transformação política europeia. Estando
vamente à castelhana: “dos espanhóis [os Portugal desde há muito em aliança com
defeitos] o aprenderam os portugueses; a Inglaterra e encontrando-se a Espanha
e comummente se persuadem que quem na órbita francesa, as circunstâncias difi-
subtiliza melhor e diz coisas menos vero- cultaram sempre um entendimento dura-
símeis é melhor poeta” (VERNEY, 1991, douro. Em Planos Espanhóis para a Invasão
144). Por contraponto com a retórica e de Portugal, 1798-1801, António Ventura
a poesia castelhanas, Verney valoriza e analisou cuidadosamente os preparativos
incentiva o estudo e o cuidado no trato de Espanha para a invasão de Portugal,
com a língua portuguesa, na medida em em 1801, na sequência da participação
que o conhecimento da língua nacional conjunta dos dois reinos no Rossilhão,
permitiria potenciar a sua cultura e a sua contra a França de Napoleão Bonaparte,
literatura. Daí que afirme que grande e da aparente traição da Espanha, que
parte dos erros se prenda com a má mi- acordou a paz e posterior aliança com
mese, ideia que pode conjugar-se com a Bonaparte, deixando Portugal à mercê
de Filinto Elísio, que, na “Carta ao amigo das exigências francesas. Gabriel Maga-
Brito”, desenvolve uma defesa da língua lhães, em Garrett e Rivas..., defende que
portuguesa, centrando as suas atenções os sucessos do iníco do séc. xix contri-
na subjugação da língua portuguesa à buíram para alterar o modo como Portu-
francesa, chegando a considerar que foi gal e Espanha passaram a relacionar-se,
Filipe II o responsável por abrir a primei- aproximando-se. Se nos parece defen-
ra das “duas largas portas/Por onde a sável esta leitura, comprovada, e.g., no
corrupção entrou lavrando/No corpo da modo como os autores portugueses pro-
linguagem Portuguesa,/E lhe estragou a curaram acompanhar os desenvolvimen-
compleição sadia” (ELÍSIO, 1998, 59-60). tos políticos e ideológicos em Espanha
Paralelamente, um dos escritores por- (e vice-versa), assim como no pendular
tugueses com mais afinidades relativa- aparecimento de discursos tendentes à
mente a França é, naturalmente, Bocage. união ibérica, também é verdade que um
Seguindo a sua idiossincrática bipolari- sentido muito diferente percorre todo o
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Portugueses ao serviço do poder castelha- os afetos, que amamos ainda mais por ser
no, sendo por esse ato considerado um desgraçada, porque o dedo misterioso da
Português digno desse nome, até mesmo providência lhe arrancou da fronte a co-
por Telmo Pais, representante do Portu- roa que fez tremer o mundo” (Id., Ibid.,
gal antigo que até ali não o colocara no 58), Lopes de Mendonça introduzirá,
mesmo patamar de D. João de Portugal. contudo, nestes textos, um dos temas com
Alexandre Herculano também dedicou maior eco nas gerações subsequentes, dos
especial atenção ao período de domínio dois lados da fronteira: a possibilidade de
da terceira dinastia, perscrutando no tex- uma federação ibérica: “[c]ontanto que
to “Cogitações soltas de um homem obs- exista em cada estado independência ad-
curo” os motivos que teriam permitido a ministrativa […], que possuamos os nos-
surpreendente sobrevivência de Portugal sos foros e garantias, que a nossa língua,
ao longo dos séculos, independentemen- os nossos costumes e tradições, existam
te do impacto que nela teve a influência vivos, e indestrutíveis, pensamos que a
europeia – sobretudo a dos interesses nossa nacionalidade se não perdeu” (Id.,
ingleses –, defendendo que os Portugue- Ibid., 81-82).
ses sempre possuíram um espírito de re- Permitindo eloquentes afirmações de
sistência que os animou mesmo quando identidade nacional e de oposição ao
subjugados. No artigo “Pouca luz em mui- ideal de união ibérica, esta questão foi
tas trevas”, procurará também analisar o debatida um pouco por todos os grandes
processo vicioso que conduziu Filipe II ao vultos da cultura portuguesa do séc. xix,
trono português. Mas mais relevante ain- desde que D. Pedro chegou a ser visto pe-
da será a polémica que alimentará com los liberais de ambos os lados da fronteira
Lopes de Mendonça, em 1853, a respei- como um bom candidato ao trono ibéri-
to do desenvolvimento dos caminhos de co, passando pelas acesas discussões das
ferro que uniriam Portugal e Espanha. décs. de 60 a 80, pelo reacender aquando
Herculano começa por considerar que do Ultimato de 1890 e pelo prolonga-
“os caminhos de ferro tendem a destruir mento, ao começo do séc. xx, concluin-
as divisões entre os povos, a uniformizar do com a ascensão dos governos fascistas.
as ideias e os costumes e a igualar as di- O opúsculo Um Voto contra a União Ibérica,
versas civilizações” (MÓNICA, 1996, 25), de Augusto Sousa Lobo, é representativo
resumindo todos os seus receios desde o dessa voz patriótica que recusa qualquer
primeiro artigo desta série, nos quais de- possibilidade de união ibérica, a par de
senvolveria também a defesa da sua tese Sim: Opúsculo Ibérico (1865), de Luciano
municipalista. Cordeiro, dos Quadros da Independência
Lopes de Mendonça, jovem ciente da Nacional (1873), de Andrade e Almeida,
necessidade de Portugal percorrer em de Aspirações de Espanha à Posse de Portugal
igualdade de circunstâncias com as ou- (1877), de Leite Machado, e de um vasto
tras nações, nomeadamente com Espa- leque de sermões relativos à celebração
nha, o rumo da civilização moderna, de- intensa do 1.º de Dezembro, que inspi-
fenderá a ideia oposta, mostrando como raria mesmo um movimento patriótico
não depende do progresso a manutenção integrado, entre outros, por Alexandre
ou não da nacionalidade. Concentran- Herculano.
do a sua ideia de nacionalidade “no seio A abrir a déc. de 70, merece especial
desta terra, que amamos porque é nossa, destaque a leitura que José de Andrade
porque nos ligam a ela as recordações e Corvo faz da situação de Portugal no
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grupos radicais ibéricos, Portugal ainda é tinente e mesmo entre os vários blocos
encarado como território que foi capaz que, numa era em que a globalização e a
de concretizar o que para eles nunca foi concorrência desenfreada espelham uma
possível; as ligações, ao fim de tantos sé- acérrima luta pela afirmação internacio-
culos, pairando ainda na boca dos de um nal, se foram formando para colmatar a
lado e de outro da fronteira, entre Portu- impossibilidade de um Estado permanen-
gal e a Galiza; determinados problemas li- temente isolado sobreviver na avalanche
gados aos recursos naturais e energéticos, política contemporânea.
nomeadamente à água e à eletricidade,
surgindo sempre Espanha como prejudi- Bibliog.: ALBUQUERQUE, Martim de, A Cons-
cial aos nossos interesses económicos; ou, ciência Nacional em Portugal, Lisboa, s.n., 1974;
e.g., o recurso ao vizinho espanhol como Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz
de Coimbra, ed. lit. António Cruz, Porto, Bi-
estratégia de combate político, por parte
blioteca Pública Municipal, 1968; BARROS,
da população de Valença, que colocou João de, Gramática da Língua Portuguesa, Lis-
bandeiras espanholas nas janelas pro- boa, Faculdade de Letras da Universidade de
testando contra o encerramento de um Lisboa, 1971; BESSA, António Marques, “As
Serviço de Atendimento Permanente, em dormentes matrizes”, in BESSA, António Mar-
abril de 2010. ques et al., A Identidade Portuguesa. Cumprir Por-
Também são de destacar obras peculia- tugal, Lisboa, Instituto Dom João de Castro,
1988, pp. 53-64; BINGRE, Joaquim, Obras.
res de um imaginário paródico relativa-
Epístolas/Odes, vol. 3, Porto, Lello, 2002; BO-
mente a Espanha, como Como Tourear os CAGE, Manuel Barbosa du, Obra Completa.
Espanhóis e Sair em Ombros, do humorista Sonetos, vol. 1, Porto, Caixotim, 2008; BRO-
Marco Horácio. Neste sentido, pode tal- CHADO, José da Cunha, Cartas, Lisboa, Sá da
vez pensar-se que a questão das rivali- Costa, 1944; CIDADE, Hernâni, Lições de Cul-
dades peninsulares terá sido remetida tura e Literatura Portuguesas, Coimbra, Coimbra
também para o espaço humorístico das Editora, 1959; Comemorações do V Centenário da
Morte do Infante Dom Henrique, vol. 4, Lisboa,
anedotas com permanência na cultura
Comissão Executiva das Comemorações do
portuguesa, perdendo alguma da sua
Quinto Centenário da Morte do Infante D.
concretude ideológica. Ao fim de séculos Henrique, 1963; CORVO, João de Andrade,
de ligação, Portugal e Espanha conti- Perigo. Portugal na Europa e no Mundo, Porto,
nuam gémeos desavindos, ou melhor, Fronteira do Caos, 2005; Crónica de Portugal de
mantêm o complexo de Édipo peninsular 1419, ed. lit. Adelino Almeida Calado, Aveiro,
do filho que fugiu à alçada parental e é Universidade de Aveiro/Fundação João Jacin-
olhado com inveja por alguns irmãos pe- to de Magalhães, 1998; ELÍSIO, Filinto, Obras
Completas, Braga, Associação Portuguesa de
ninsulares obrigados a permanecer por
Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental,
casa eternamente. Mesmo que a tendên- 1998; FERREIRA, António, Poemas Lusitanos,
cia atual pareça de diálogo mais amplo Lisboa, FCG, 2000; FRANCO, José Eduardo,
e aberto, verifica-se que, em muitas das O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal
suas manifestações mais violentamente e a Sua Função Política, Lisboa, Roma Editora/
expressas, as relações entre Portugal e Fundação Maria Manuela e Vasco de Albu-
Espanha foram caminhando lentamente querque d’Orey, 2000; GARRETT, Almeida,
Obras Completas, vol. 14, Lisboa, Discolivro,
para um maior entendimento mútuo ou,
1984; GODINHO,Vitorino Magalhães, Portu-
pelo menos, para a diluição dos aspetos gal. A Emergência de Uma Nação, Lisboa, Colibri,
mais conflituosos, tendo em conta o novo 2004; GÓMEZ, Hipólito de la Torre, Do “Perigo
âmbito dos contactos mantidos entre Es- Espanhol” à Amizade Peninsular. Portugal-Espanha
tados fronteiros, Estados do mesmo con- (1919-1930), Lisboa, Estampa, 1998; LEÃO,
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Duarte Nunes de, Origem da Língua Portuguesa, Gradiva, 1998; SENA, Jorge de, Amor e Outros
ed. lit. Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lis- Verbetes, Lisboa, Edições 70, 1992; SILVA,
boa, Livraria Clássica, 1975; LOPES, Fernão, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura
Crónica de D. João I, 2 vols., Porto, Civilização Portuguesa e Brasileira, vol. 1, Lisboa, Âncora,
Editora, 1990-91; LOUREIRO, João Bernardo 2000; VENTURA, António (org.), Planos Es-
da Rocha, Memoriais a D. João VI, Paris, Cen- panhóis para a Invasão de Portugal. 1798-1801,
tro Cultural Português, 1973; MACEDO, José Lisboa, Livros Horizonte, 2006; VERNEY,
Agostinho de, Os Sebastianistas, Lisboa, Offici- Luís António, O Verdadeiro Método de Estudar,
nas Antonio Rodrigues Galhardo, 1810; MA- Lisboa, Presença, 1991; VICENTE, António
CEDO, José de, Antídoto da Língua Portuguesa, Pedro, Espanha e Portugal. Um Olhar sobre as Re-
Amsterdam, Em Casa de Miguel Diaz, 1710; lações Peninsulares no Século XX, Lisboa, Tribuna
MAGALHÃES, Gabriel Augusto, Garrett e Ri- da História, 2003; VICENTE, Gil, As Obras de
vas. O Romantismo em Espanha e Portugal, Lisboa, Gil Vicente, dir. científica José Camões, 2 vols.,
INCM, 2009; MARTINS, Oliveira, Dispersos II, Lisboa, INCM, 2002; VIEIRA, António, “Es-
Lisboa, Biblioteca Nacional, 1924; Id., Temas peranças de Portugal. Quinto Império do
e Questões, Lisboa, INCM, 1981; MATTOSO, mundo. Primeira, e segunda vida del-Rei Dom
José (org.), Narrativas dos Livros de Linhagens, João Quarto. Escritas por Gonçaliannes Ban-
Lisboa, INCM, 1983; Id., A Identidade Nacional, darra”, in FRANCO, José Eduardo, e CALAFA-
Lisboa, Gradiva, 1998; MIRANDA, Francisco TE, Pedro (dirs.), Obra Completa Padre António
de Sá de, Poesia e Teatro, introd., sel. e notas Vieira, t. iii, vol. iv, Lisboa, Círculo de Leitores,
Silvério Augusto Benedito, Lisboa, Ulisseia, 2014, pp. 63-106; Id., “Livro anteprimeiro da
1989; MÓNICA, Maria Filomena (org.), A Eu- História do Futuro”, in FRANCO, José Eduardo,
ropa e Nós. Uma Polémica de 1853. A. Herculano e CALAFATE, Pedro (dirs.), Obra Completa Pa-
contra A. P. Lopes de Mendonça. Antologia, Lisboa, dre António Vieira, t. iii, vol. i, Lisboa, Círculo de
Instituto de Ciências Sociais, 1996; OLIVEIRA, Leitores, 2014, pp. 61-432.
Fernão de, A Gramática da Linguagem Portuguesa, Sofia Santos
Lisboa, INCM, 1975; PASSOS, John dos, Por- Rui Sousa
tugal. Três Séculos de Expansão e Descobrimentos,
Amadora, Ibis, 1970; PIMENTEL, Alberto, A
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C.ª, 1885; POMBAL, Marquês de, Memórias
Secretíssimas do Marquês de Pombal e Outros Es-
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POMBO, Manuel Ruela, União Ibérica: Oriente
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Prosas Sócio-Políticas, Lisboa, INCM, 1982;
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FCG, 1994; SARAIVA, António José, A Cultura
em Portugal, vol. 1, Lisboa, Bertrand, 1985; Id.,
O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Lisboa,
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e hedonista, já tinham 50 edições no ano testador era lutar para vir a ser reconhecido
de 1705. E, quando a edição impressa era como homem honrado e autónomo, “que
proibida, logo pululavam, na clandestinida- sabe o que tem de fazer, sem perguntar ao
de, os escritos, sob a forma de cópias ma- Deus dos cristãos, e que sabe ser honesto,
nuscritas, tão sôfrega era a curiosidade dos sem precisar de pedir conselho à Igreja”
interessados na sua leitura. (GROETHUYSEN, 1977, 290).
Também os avanços do conhecimento A instituição católica, que foi atacada,
científico trouxeram descrédito a alguns de maneira rude e demolidora, pelos en-
elementos nucleares da doutrina cristã e ca- ciclopedistas e intelectuais sedentos de
tólica. A observação da natureza, potencia- emancipação doutrinal e instruídos pelas
da por novos instrumentos de observação, evidências da observação empírica e pelas
como o telescópio e o microscópio, se, por luzes da razão, sofreu também gravíssimas
um lado, fazia crescer o sentimento de ad- crises internas. O jansenismo, contra o qual
miração e louvor pelas maravilhas do mun- interveio a suprema autoridade eclesiástica,
do natural, obra do Criador, de que se ocu- mostrou-se obstinado nas suas posições, de-
pava a teologia física, punha cada vez mais safiando o magistério papal e assumindo,
em causa a letra da história bíblica, sobretu- no séc. xviii, uma forte opção política de
do a criação em seis dias e o dilúvio, narra- teor galicano, insistindo em reivindicações
dos no livro do Génesis. É verdade que cerca conciliaristas e de reforço dos poderes epis-
de metade dos naturalistas de Setecentos copais. Nikolaus von Hontheim, vulgarmen-
eram eclesiásticos e pastores protestantes, te chamado Febrónio, é autor do De Statu
mas isso não impediu a colisão da história Ecclesiae (1763), obra que defende poderes
natural com a teologia. Desse modo, se “a e prerrogativas papais para cada bispo na
história natural no século xviii é em grande sua diocese, e que reitera a doutrina da su-
parte uma ciência eclesiástica, estamos cer- premacia dos concílios ecuménicos sobre a
tos que o século xix fez dela uma ciência autoridade do papa. Ao mesmo tempo que
laica” (MORNET, 1911, 71). assim se punha em causa a universalidade
Depois do questionamento evangélico à do poder da Igreja de Roma, não faltavam
Igreja de Roma por parte dos reformado- sinais de ostentação, nepotismo, mediocri-
res, foi-se avolumando o questionamento dade doutrinal e pastoral, e de transigên-
social e religioso, por parte do espírito bur- cias com os interesses dos monarcas, que
guês, aos dogmas e às práticas do catolicis- enfraqueciam o catolicismo.
mo tradicional. Esse espírito crítico, tantas O galicanismo teve grande repercussão
vezes insolente, desafiava e punha a ridículo em Portugal. No âmbito da teologia e do di-
grande parte das crenças católicas. A neces- reito canónico, encontrou no padre orato-
sidade de questionar a doutrina da Igreja riano António Pereira de Figueiredo (1725-
acompanhou o progressivo emergir do es- -1797) um seguidor de grande notoriedade.
pírito burguês, que minava a credibilidade Em obras de alta erudição, como Tentativa
da cultura eclesiástica. Entre os simples Teológica (1766) e Demonstração Teológica
fiéis, que sabiam crer sem levantar grandes (1768), procurou fundamentar doutrinal-
problemas, e os teólogos, guardiães e defen- mente e servir as práticas regalistas seguidas
sores qualificados do discurso da fé, surgia pela política pombalina.
assim um agente desestabilizador. Era o gru- Foi principalmente nos países de tradi-
po dos contestadores de Deus e da doutrina ção católica que, desde o final do séc. xviii
católica, prontos a investigar, discutir e jul- até meados do séc. xx, a vida cultural e
gar antes de acreditar. A ambição do con- política se caracterizou por manifestações
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O pós-concílio viu surgir um novo modo Latina, ao mesmo tempo que desafiavam
de ser cristão, o cristão revolucionário. Ao a credibilidade do anúncio da mensagem
contrário de muitos outros, este cristão não cristã aos explorados, interrogavam a soli-
está disposto a desertar. Mantém-se dentro dez e a adequação dos alicerces do discurso
da Igreja para fazer nela a revolução que teológico tradicional. Tornava-se claro que
deveria resultar inevitavelmente das ideias e a reflexão teológica tinha de deixar de ser
ações concretas que se sucederam ao encer- uma elaboração teórica e de gabinete, para
ramento do Vaticano II. se basear na análise da realidade social,
A vontade de renovar a Igreja, manifes- onde se joga a dignidade da pessoa, e para
tada por muitos teólogos e padres concilia- tomar uma clara opção pelos pobres. Vinha
res, esbarrou muitas vezes em resistências aí a Teologia da Libertação, que tantas des-
vindas da Cúria romana e de um grande confianças e dissídios haveria de provocar
número de bispos e de fiéis conformistas no seio da Igreja.
e conservadores. Contra estas resistências, Na velha Europa, irradiou da França cató-
por toda a parte se levantaram núcleos con- lica uma sequência vertiginosa de desafios
testatários, mais ou menos radicais. O catoli- radicais vindos de fileiras cristãs de primeira
cismo holandês gerou, bem cedo, propostas linha. Foi mais uma profunda crise interna
teologicamente ousadas, que ameaçavam a do que um assalto apostado na demolição
doutrina tradicional em matérias de fé e de da robusta fortaleza do catolicismo. Mas
moral, de liturgia e de pastoral. O Catecismo os danos causados foram consideráveis, e
Holandês, publicado com a autorização do convergentes com o mais agressivo antica-
cardeal Alfrink, foi por este apresentado, tolicismo.
em 1966, “a todos aqueles que atualmente Em maio de 1968, jovens cristãos revolu-
estão atentos ao que a Igreja tem para lhes cionários reunidos na Sorbonne, colocaram
dizer” (GOFFIN, 1969, 87). Sobre ele caiu, no mesmo plano de ação a Bíblia e a revolu-
de imediato, tenebrosa tempestade, que de- ção. Em setembro, a publicação da encícli-
sassossegou a Igreja por toda a parte. ca Humanae Vitae desencadeou um coro de
As desigualdades sociais e a exploração contestações. Como protesto, alguns cris-
dos pobres exigiam, à luz do evangelho, o tãos decidiram escrever ao Papa uma carta
empenho da Igreja quer no combate em aberta. E pretendiam que a carta fosse uma
prol da justiça social e da solidariedade, espécie de encíclica escrita pelas bases. Com
quer na ação junto dos poderosos. D. Hél- os contributos recebidos, redigiram um tex-
der Câmara (1909-1999), bispo de Olinda e to, ácido e contundente, que denunciava
Recife, fazia-se porta-voz da revolução estru- situações consideradas escandalosas: falta
tural, necessária tanto ao mundo desenvol- de respeito pelo povo na maneira como a
vido como ao mundo em vias de desenvolvi- Igreja exercia o magistério, uso continua-
mento, e apelava ao respeito pela memória do de formas de coação, recusa em seguir
dos revolucionários Camilo Torres e Che o exemplo de Cristo, que convidava à prá-
Guevara. Defendia a não violência; todavia, tica da pobreza, e perversão da “Igreja-Fra-
à violência instalada nas estruturas políticas ternidade” pela rigidez das estruturas insti-
respondiam, na América Latina, padres e tucionais da “Igreja-Sociedade” (“Carta ao
militantes católicos, com a sua participação Papa…”, 1969, 132). No mês de dezembro
nas lutas revolucionárias, travadas em várias do mesmo ano, assistiu-se a uma insurreição
frentes, ao lado de marxistas e esquerdistas. clerical: 120 padres remetiam aos bispos e
Pela mesma altura, os gritantes proble- ao clero em geral uma carta reivindicativa
mas sociais e políticos vividos na América que rompia com a tradição clerical e com
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O
cial, Braga, Bezerra Editora, 2000; DREWER- anticentralismo é o conjunto de
MANN, Eugen, Funcionários de Deus: Psicograma
manifestações políticas, ideológicas
de Um Ideal, Mem Martins, Inquérito, 1989;
GARNEL, Rita, “A polémica sobre o celibato e culturais tendentes a pôr em causa o sis-
eclesiástico (1820-1911)”, Penélope, n.º 22, tema centralista do Estado. São principais
2000, pp. 93-116; HERCULANO, Alexan- vetores desta luta anticentralista o muni-
dre, Eurico, o Presbítero, ed. crítica dirigida cipalismo, o regionalismo administrativo
por Vitorino Nemésio, Lisboa, Bertrand, s.d.; e autonómico, o parlamentarismo e a li-
HOUTIN, Albert, Courte Histoire du Célibat Ec- vre expressão democrática. O pensamen-
clésiastique, Paris, Éditions Rieder, 1929; Les
to iluminista europeu, na sua generalida-
Inconvéniens du Célibat des Prêtres, Prouvés par
des Recherches Historiques, Genève, J. L. Pellet, de, está na base deste combate, podendo
1781; MIGNOT, Elisa, Amours Interdites des Prê- citar-se alguns nomes representativos de
tres et des Femmes Parlent, Paris, Fayard, 2012; tal pensamento, como Guizot, Thierry e
PEREIRA, Martinho Rocha, A Questão do Ce- Tocqueville.
libato no Anticlericalismo Português (1820-1911), O municipalismo, enquanto forma de
Dissertação de Mestrado em Estudos Portu- intervenção dos cidadãos no poder local,
gueses apresentada à Universidade de Aveiro, ocupa lugar cimeiro na história de Portu-
Aveiro, texto policopiado, 2003; VEIGA, José
gal, entroncando a sua origem na herança
Manoel da, Memoria sobre o Celibato Clerical Que
Deve Servir de Fundamento a Uma das Theses dos romana, germânica e árabe. Assim, na de-
Actos Grandes de Seu Autor, Coimbra, Imprensa signação de Alexandre Herculano (1810-
da Universidade, 1822. -1877), os concelhos perfeitos tiveram ori-
gem no sistema jurídico-administrativo de
Luís Machado de Abreu
Roma, tendo sido assimilados pelos visigo-
dos, enquanto os imperfeitos ou rudimen-
tares foram formados durante o processo
da Reconquista cristã aos mouros.
Concedidos pelo instrumento jurídico
do foral, ou carta de foro, os concelhos
receberam o seu incremento ainda antes
da nacionalidade portuguesa, por moti-
vos ligados ao povoamento. Foi o que
ocorreu com os de Guimarães (1095-
-1096) e de Coimbra (1111). Assim, en-
tre 1096 e 1128, D. Henrique e D. Te-
resa concederam 11 forais, enquanto
os conferidos por D. Afonso Henriques
entre 1128 e 1185 somaram 31. Dos
monarcas seguintes, D. Afonso III, con-
quistador do Algarve, foi o maior outor-
gante de forais (92 entre 1246 e 1275),
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o Antigo Regime, ressurgindo com a sua 1976, que repôs a legalidade democráti-
vitalidade democrática com o novo re- ca na sequência do 25 de Abril de 1974.
gime. Para ele, “entre todos os povos da Após o Estado Novo e a Reforma do Có-
Europa central e ocidental, somente os digo Administrativo de Marcelo Caetano
da Peninsula escaparam ao jugo de ferro (1936-40), que procedeu à nomeação
do feudalismo”, apresentando uma união dos presidentes de Câmara e dos rege-
de “interesses e sentimentos” entre “no- dores de freguesia pelo poder central, a
bres e populares” na Idade Média, sendo Constituição do regime democrático, no
“a coroa dos reis” “mais um símbolo bri- seu art. 237.º, consagrou a autonomia
lhante do que uma realidade poderosa” financeira e administrativa dos municí-
(QUENTAL, 1926, 96). Assim, com o pios e das freguesias, com as respetivas
advento do séc. xvi, “a vida municipal assembleias, embora, na prática, o poder
afrouxa gradualmente: […] As institui- autárquico continuasse dependente do
ções locais, cerceadas por todos os lados, Governo. A lei n.º 1/79, de 2 de janeiro,
sentem faltar-lhes em volta o ar, e o chão estabeleceu a autonomia das finanças
debaixo de si. Quem poderá jamais con- locais, mas essa autonomia viria a ser li-
tar com essas invasões surdas, insensiveis mitada por leis posteriores, como a lei
do poder real no terreno do povo, essas n.º 98/84, de 24 de março. No entanto,
lutas subterraneas, as abdicações sucessi- a lei n.º 1/87, de 6 de janeiro, conferiu
vas da vontade nacional nas mãos dum à Associação Nacional dos Municípios
homem, as resistencias infelizes, a longa Portugueses a representação dos inte-
e cruel historia do desaparecimento dos resses municipais. A dificuldade de ob-
fóros populares?” (Id., Ibid., 125). tenção de recursos financeiros próprios
No entanto, o esforço de controlo da e a crise económica que se instalou nos
administração política a partir do Terrei- começos do séc. xxi foram, nesta fase, os
ro do Paço constituiu um obstáculo prá- principais obstáculos à plena autonomia
tico ao municipalismo do país no regime financeira e administrativa do poder lo-
liberal, como se continuasse o seu ante- cal. A reformulação das freguesias pela lei
cessor absolutista. Exemplo desta práti- n.º 56/2012, de 8 de novembro, causou
ca é o relatório que precedeu o Código grande celeuma, por obrigar à fusão de
Administrativo de 1886, reconhecendo grande parte daquelas autarquias.
a anarquia financeira de muitos municí- O regionalismo administrativo foi in-
pios e o excesso fiscal. Somente o Código troduzido em 1832 pelo governo liberal
de 1878 pretendeu a “vivificação da admi- no exílio nos Açores, com as Juntas Gerais
nistração local” (PINTO, 1996, 40). Por (provinciais), tendo vigorado até 1892,
isso, o I Congresso de Municípios, reali- data em que aquelas foram substituídas
zado em Lisboa, em 1909, com a adesão pelas Juntas Distritais, que se mantiveram
de 158 autarquias, 87 das quais se fizeram até à instauração da república. Apesar da
representar, reivindicou “para os municí- consagração das regiões administrativas
pios do país as liberdades e franquias de na Constituição de 1976, esta nunca foi
que sucessivamente foram sendo desa- implementada, tendo mesmo sido refe-
possadas por uma repressão centralizado- rendada negativamente em 1998.
ra” (MACHADO, 2004, 17). O regionalismo autonómico foi con-
Introduzida a noção de poder local sagrado primeiramente em relação aos
na Constituição republicana (1911), a Açores (dec. de 2 de março de 1895) e
mesma foi retomada na Constituição de depois em relação à Madeira (dec. de 8
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366 AntichArlAtAnismo
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Anticientismo
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na procura da verdade, mas está decidi- maior parte do tempo, de António de Oli-
damente longe de satisfazer aos maiores veira Salazar e, depois, de Marcelo Caeta-
desejos humanos. Estas ideias antimate- no. Só assim se poderão compreender as
rialistas (kAntimaterialismo) e antipo- purgas que atingiram um grande número
sitivistas (kAntipositivismo) renasceram de cientistas portugueses antes e depois
na Primeira República, em 1912, com da Segunda Guerra Mundial, respetiva-
a chamada renascença portuguesa, um mente em 1935 (Abel Salazar e Aurélio
movimento filosófico-literário de pendor Quintanilha) e 1947 (Mário Silva e Ruy
nacionalista e até sebastianista que inte- Luís Gomes, entre vários outros). Salazar,
grou, entre outros, o poeta Teixeira de o professor de direito da Univ. de Coim-
Pascoaes, diretor da revista A Águia, pu- bra que começou a sua carreira governa-
blicada no Porto, e o filósofo Leonardo tiva em 1926 como ministro das Finanças,
Coimbra, que em 1912 tentou conciliar almejava um país rural, projetado em
de um modo bastante original ciência e ideais históricos, como se viu em 1943,
espiritualidade na sua obra O Criacionis- nas Comemorações do Duplo Centenário
mo, tese do seu concurso para professor da Nacionalidade (fundação e restaura-
universitário, para a qual não obteve ção). Já Marcelo Caetano, o professor de
aprovação. Surgiram depois os seguido- direito da Univ. de Lisboa e político que
res do neopositivismo, inspirados pelo lhe sucedeu em 1968 na Presidência do
círculo de Viena, criado nos anos 20, mas, Conselho de Ministros, reconhecia rele-
como num novo balanço do pêndulo, vância à investigação científica, mas mais
logo irrompeu entre nós, em 1943, o mo- nas colónias e não tanto na metrópole.
vimento chamado da Filosofia Portugue- Escrevia ele nos anos 50, após ter ocupa-
sa, animado por Álvaro Ribeiro (o autor do o cargo de ministro das Colónias: “No
de O Problema da Filosofia Portuguesa), José Ministério da Educação Nacional, a in-
Marinho e António Quadros, com um vestigação científica pode, na ordem das
claro pendor antipositivista, na esteira preocupações, ocupar o quarto, o quinto,
das ideias de Sampaio Bruno e Leonardo o sexto lugar; no Ministério das Colónias
Coimbra. Aos valores da universalidade trata-se de uma preocupação de primei-
proporcionados pela ciência e pela mo- ro plano” (BERNARDO, 2013, 297). Por
dernidade, obtida com a ajuda da técni- sua vez, Alberto Franco Nogueira, minis-
ca, estes pensadores opunham outros va- tro dos Negócios Estrangeiros de Salazar,
lores: o nacionalismo e a tradição. afirmou em 1969: “Buscou-se na ciência
Ainda no quadro da filosofia, deve e na técnica a resposta aos anseios inso-
acrescentar-se que ideias pós-modernas fridos. A ciência e a técnica, todavia, são
como as que foram apresentadas pelo monopólio dos povos ricos e altamente
sociólogo Boaventura de Sousa Santos desenvolvidos” (Id., Ibid.).
nos seus livros O Discurso sobre as Ciências Com a Revolução de 25 de abril de
e Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna 1974, e mais ainda com a integração de
constituem uma forte crítica à ciência Portugal na União Europeia em 1986, o
moderna. anticientismo de cariz político desvane-
Do ponto de vista político, se a Primeira ceu-se. Quanto ao anticientismo de ca-
República se afirmou favorável à ciência, riz religioso, já há muito tempo se havia
já o mesmo não se poderá dizer do Estado desvanecido. No começo do séc. xxi, não
Novo, o regime que vigorou entre 1933 e era difícil reconhecer que o cientismo
1974, sob a forte liderança, primeiro e na deixara de fazer sentido e que a ciência é
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374 AnticlAssicismo
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também debate, em tom irónico, o uso é o poeta futurista que canta a beleza das
da mitologia clássica (cap. vi). Elogia a máquinas na “Ode triunfal”.
poesia da natureza, que nem os melhores Em contrapartida, o fascínio da cultu-
poetas clássicos, como Teócrito e Virgí- ra clássica ressurge nos sécs. xx e xxi em
lio, traduziram nos seus versos. Aprecia poetas e romancistas vários, como Miguel
o “sublime da montanha”, o “augusto do Torga, Sophia de Mello Breyner Andre-
bosque” e o “ameno do vale”, geralmente sen, Natália Correia, Manuel Alegre, Da-
descritos nos cenários clássicos, mas tam- vid Mourão Ferreira, Jorge de Sena, Ana
bém o rochedo “na gandra erma e selva- Hatherly e Teolinda Gersão, entre muitos
gem” e a charneca romântica, embora outros.
peça a Deus que o livre de ser romântico, Classicismo e anticlassicismo, nas cur-
“ao menos, o que na algaravia” do tempo vas e contracurvas da história, sucedem-se
se entendia por tal termo (cap. viii). em dialética disputa de valores civilizacio-
Eça de Queirós, no conto “Perfeição”, nais, transcendendo o tempo e o espaço.
glosa o tema da morada de Ulisses na ilha
de Calipso, durante sete anos; mas, no
Bibliog.: BUESCU, Maria Leonor Carvalhão,
romance Os Maias, a decadência trágica
Literatura Portuguesa Clássica, Lisboa, Univer-
que atingiu a família dos protagonistas é sidade Aberta, 1992; FERREIRA, António,
simbolizada pelo jardim, que apresenta- Poemas Lusitanos, t. ii, Lisboa, Typ. Rollandia-
va “a melancolia de um retiro esquecido, na, 1829; GARÇÃO, Pedro António Correia,
que já ninguém ama” e pela estátua de Obras Poeticas de Pedro Antonio Correa Garção,
Vénus Citereia, cujos membros eram co- Lisboa, Regia Officina Typografica, 1778;
bertos por “uma ferrugem verde” (QUEI- GARRETT, Almeida, Viagens na Minha Terra,
Lisboa, Typ. Gazeta dos Tribunais, 1846; Id.,
ROZ, s.d., 710). No interior do Rama-
Doutrinas de Estética Literária, 2.ª ed., Lisboa,
lhete, a passagem do tempo é evocada, s.n., 1961; MONIZ, António Manuel de An-
entre outros objetos, pelos “bufetes da drade, “A sociedade setecentista n’O Hissope,
Renascença italiana, recordando a alegre de Cruz e Silva”, in CASTRO, Aníbal Pinto de,
casa dos Olivais que tinham ornado” (Id., et al. (coords.), Alcipe e as Luzes, Lisboa, Coli-
Ibid., 708). bri, 2003, pp. 189-206; QUEIROZ, Eça de,
A degradação social do final do Os Maias, Lisboa, Livros do Brasil, s.d.; SILVA,
séc. xix, tema caro ao decadentismo, sur- Antonio Diniz da Cruz e, O Hyssope. Poema He-
rói-Comico, London, s.n., 1802; VERDE, Cesá-
ge simbolizada na poesia de Cesário Ver-
rio, Obra Completa, 2.ª ed., Lisboa, Portugália,
de. Entre outras, na própria personagem 1970.
do professor de Latim, índice dos valores
culturais do classicismo, também eles em António Moniz
decadência: “E, nas esquinas, calvo, eter-
no, sem repouso,/Pede-me sempre es-
mola um homenzinho idoso,/Meu velho
professor nas aulas de Latim” (VERDE,
1970, 69).
Se Ricardo Reis é o poeta clássico e
horaciano da galeria heteronímica de
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, por
oposição, em alternativa à estética herda- Parte desta entrada foi anteriormente publica-
da do classicismo, representada pelos gre- da em http://edtl.fcsh.unl.pt/business-direc-
tory/5951/humanismo-/.
gos Ésquilo e Platão e pelo latino Virgílio,
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por outro lado, não apenas o sistema de etc. – o que, eventualmente, deu lugar à
castas apresenta uma hierarquia vertical, sociedade de estados, que por natureza é
como não há possibilidade de trânsito mais dinâmica.
entre castas – o estilo de vida de uma No caso português, esta transição de pa-
casta é preservado por via hereditária e, radigmas fica bem desenhada no séc. xv.
do ponto de vista individual, pertencer a As diversas ordenações que então se pu-
uma casta depende do nascimento, de tal blicaram mostram, por um lado, uma
modo que a passagem a outra casta repre- divisão que é, em muitos aspetos, tripar-
sentaria uma violação da lei tradicional. tida; porém, mantendo a integridade do
Consideremos de seguida a ordem ou o sistema senhorial e assentes numa estru-
estado. Ordem ou estado são os modelos tura social implantada que se mostrava,
de hierarquia social associados ao regime lato sensu, relativamente estável, e mesmo
feudal. Naquilo que interessa sublinhar tendo em atenção que poderiam não ter
neles para compreender a classe, não nos imediata tradução no quotidiano e nas
importam tanto as disparidades que efeti- instituições, essas diversas ordenações
vamente se detetam entre os dois mode- também constituem já, por outro lado,
los – a mais fundamental das quais será esboços legais da divisão em estados – di-
a forma como a ordem evoca o sagrado, visão assente sobre os princípios de rique-
se apresenta como expressão de uma lei za, estatuto, ofícios ou profissões, graus
divina, etc., por oposição ao estado, que ou situações, etc. – e capazes de acolher
tem natureza profana e horizontal; são as mudanças sociais em curso.
mais significativas as semelhanças. Ora, o que é decisivo nas ordens ou nos
O sistema de ordens e o sistema de esta- estados, naquilo que os distingue das cas-
dos são tipos de agrupamento em que os tas e naquilo que nos interessa sublinhar
seus membros se distribuem por catego- neles para compreender a classe, é preci-
rias hierarquizadas relativamente estan- samente este aspeto. Ainda que devamos
ques. O pressuposto em que se fundam é ter claro que falamos de sociedades com
o de haver uma desigualdade hierárquica hierarquias estanques; que a transição de
e sociopolítica fundamental, cabendo a uma sociedade de ordens para uma socie-
cada ordem ou estado dentro do sistema dade de estados é uma mera reação ao di-
estabelecido uma função específica e em namismo social e à sua velocidade; e que,
que cada ordem ou estado adquire o seu portanto, se trata de uma forma de pre-
valor ou a sua posição hierárquica dentro servação do status quo contra eventuais
do sistema correspondente através do va- propostas alternativas de organização
lor e da importância da função desempe- social – devemos ter claro também que a
nhada. De facto, aquilo que à partida se passagem e o trânsito entre ordens ou es-
verifica é que a desigualdade hierárquica tados não estão à partida excluídos. Quer
da sociedade de ordens se estendeu para dizer: sociedades de ordens e estados têm
a sociedade de estados; porém, verifica-se ainda características de endogamia, justa-
também uma incapacidade de a socie- mente na medida em que a endogamia
dade de ordens acompanhar a velocida- é uma modalidade de preservação de po-
de de transformação da realidade socio- der ou, no mínimo, de evitar a sua dis-
lógica, em especial no que diz respeito persão; e daqui resulta a dificuldade em
ao desenvolvimento urbano, à divisão alterar a classe a que se pertence, resulta
e especialização das atividades produti- um grau mínimo de mobilidade possível,
vas, à afirmação da burguesia comercial, etc. No entanto, o facto é que abrem a
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está situada num ou noutro nível da hie- para o exterior das classes. Alguns autores
rarquia, etc. defendem que, em certo sentido, isso se
Ora, aquilo que é decisivo numa socie- deve ao advento da burguesia, que indi-
dade de classes, o que a distingue de to- cam como primeira classe. A justificação
das as formas anteriores de organização para esse entendimento está no pressupos-
social a que atrás se fez menção, é o fator to de que o advento da burguesia quebrou
da mobilidade. A rutura que uma socie- a hierarquia criada pela sociedade de es-
dade de classes vem introduzir e que a faz tados. E isso não apenas por a afirmação
substituir a sociedade de estados associa- da burguesia desestabilizar a ordem tripar-
da ao regime feudal passa por impor uma tida mas, mais concretamente, porque a
mobilidade aberta e absoluta, i.e., pela afirmação da burguesia veio acompanha-
absoluta recusa de quaisquer normas da de reivindicações de direitos de cidada-
formais e institucionais que estabeleçam nia, da necessidade de repensar os crité-
critérios para haver trânsito entre classes. rios de classificação social ou os critérios
Dito por outras palavras: numa socieda- de distribuição do poder (e.g., acentuando
de de classes, não há nenhum obstáculo o valor do dinheiro), etc.
formal à passagem de uma classe para ou- Não cabe neste artigo perseguir esta li-
tra – e isto quer no sentido ascendente nha; o que efetivamente interessa a este
(de uma subida na hierarquia), quer no artigo é compreender que todos estes de-
sentido descendente (de uma descida na senvolvimentos geraram as condições ne-
hierarquia). cessárias ao aparecimento de movimentos
Todos estes desenvolvimentos permi- que, partindo do pressuposto da existên-
tem-nos já identificar o momento históri- cia de classes, as vêm contestar e vêm pro-
co em que o conceito operativo de classe por um modelo de sociedade alternativo e
se instala no património universal; e são igualitário – i.e., um modelo de sociedade
também estes desenvolvimentos que nos em que não haja lugar a classes. E é des-
preparam para compreender os movi- ses movimentos, e em particular dos mo-
mentos que contestam ou questionam o vimentos anticlassistas portugueses, que
papel das classes na organização social e nos devemos por fim ocupar.
os fundamentos que virão a invocar. De Para a análise do anticlassismo em
facto, em sentido estrito, só se pode falar Portugal, é especialmente relevante con-
de classes no seguimento das chamadas siderar o período de transição entre os
revoluções burguesas, que têm o seu cul- sécs. xix e xx, começando pelo papel
minar no séc. xix. O que está em jogo da chamada geração de 70. Tendo como
então é, de modo muito sucinto e subli- ponto de partida o conjunto das ideias
nhando apenas aquilo que interessará ter liberais e o lema da Revolução France-
presente na continuação, o declínio das sa (“liberdade, igualdade, fraternida-
sociedades agrárias, o papel da proprie- de”), aquela que ficou conhecida como
dade na distribuição dos papéis sociais e a geração de Coimbra terá encontrado
a necessidade de igualdade dos cidadãos e procurado gerar na realidade social
perante a lei. portuguesa as condições para o estabele-
De facto, o que se verifica é que é em cimento de uma nova prática social que
especial nas democracias das sociedades visava a igualdade entre os homens.
industriais modernas ocidentais que é atri- Não nos é possível fazer um retrato
buída uma grande importância à possibili- completo da geração de 70, dos seus
dade de mobilidade social – no interior e ideais e das suas desavenças internas;
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mente em curso uma tentativa de repres- conceito, uma consciência de classe im-
são dos movimentos operários, na forma plica dois fatores centrais. O primeiro é
duma perseguição aos agitadores. De que por “consciência de classe” se deve
tudo isto resulta a oposição dos proletá- entender tanto a exploração do homem
rios ao regime republicano, concretizada pelo homem como a vontade de supri-
em alianças com a oposição monárquica mir essa exploração. O segundo é que a
e com elementos da extrema-direita – o consciência de classe só se aplica à classe
que lhes valeu serem acusados de favore- oprimida. E isto por dois motivos: porque
cer os inimigos da república. as classes diferem quanto ao âmbito e ao
É neste cenário de profunda divisão en- grau de mobilidade social ascendente
tre proletariado e burguesia que o mar- possível e o proletariado está no degrau
xismo entra em cena. Não nos cabe aqui mais baixo da hierarquia social; e, sendo
fazer um estudo aprofundado do mar- assim, porque cabe ao proletariado um
xismo, da sua implantação em Portugal, papel privilegiado e histórico: o papel de
nomeadamente nesta época concreta; o reconhecer as privações e as desigualda-
que cabe aqui é apenas um breve levan- des sociais, e de iniciar a rebelião ou a
tamento de alguns princípios marxistas, revolução que lhes ponha termo.
enquanto o marxismo é também uma Ora, na tese marxista, a luta de classes
forma de anticlassismo e, porventura, a leva necessariamente a uma fase de dita-
forma de anticlassismo em que este não é dura do proletariado. Essa fase passa por
apenas um momento ou uma tese de um compreender que um sistema de classes
programa político mais vasto mas é, de abertas seria uma contradictio in terminis e
facto, o núcleo central de todo o progra- que qualquer transformação social que
ma político, sobre o qual todas as outras proponha uma nivelação social iguali-
teses se edificam. E para compreender a tária dos indivíduos só se pode obter
natureza anticlassista do marxismo, im- através da tomada de posse dos meios
porta dar atenção a quatro etapas, no fim de produção e do fim dos privilégios da
das quais o marxismo pretende ter obtida burguesia.
uma sociedade sem classes. No entanto, por fim, esta ditadura não
Na primeira fase, o marxismo parte da é mais do que uma fase transitória e que
existência de classes e identifica-a com o tem em vista uma sociedade sem classes.
acesso diferenciado à produção e à pro- O que fundamenta a necessidade de uma
priedade dos meios de produção. O que ditadura do proletariado é, portanto, na
o marxismo desenha é, portanto, uma tese marxista, o facto de ela ser um meio
organização social em duas classes prin- necessário contra uma fase de eventual
cipais: a classe que tem os meios de pro- divisão social – i.e., um meio necessário
dução e beneficia deles, e a classe que, para prevenir a esperada reação da bur-
não tendo os meios de produção, fica à guesia, que tentará recuperar os seus pri-
mercê da que tem. À primeira o marxis- vilégios, e para impor o fim da proprieda-
mo chama burguesia e à segunda chama de privada dos meios de produção.
proletariado. Acontece que a entrada em cena das
Num segundo momento, o proletaria- ideias marxistas de organização social
do toma consciência da opressão e alie- coincide, em Portugal, com a participa-
nação social em que se encontra, e entra ção na Primeira Guerra e, em especial
numa luta de classes com a burguesia. com a oposição popular à Guerra e à
Isto significa que, no sentido marxista do subida do custo de vida. “O terceiro ga-
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386 AnticlAssismo
binete Afonso Costa tentou (sem o con- dizer uma última palavra sobre outras va-
seguir) obter o apoio dos trabalhadores riantes de anticlassismo.
para o seu esforço de guerra. Num dis- Na abordagem que aqui seguimos, e
curso de julho de 1917, por exemplo, o que segue a maioria dos autores, o que
chefe de Governo mostrava a sua simpa- está em causa quando se fala de classe
tia para com a luta de classes e inclina- (ou classe social) são desigualdades de
va-se para as teses marxistas. Condenava natureza social. No entanto, há desigual-
a exploração do trabalho pelo capital e dades que, não tendo à partida natureza
declarava compreender a necessidade social, adquirem relevância na sociedade
de greves. Mas em boa verdade havia e se convertem em desigualdades sociais:
pouco que o seu governo, ou os dos seus diferenças de sexo, raça, religião mas
sucessores, pudesse fazer para resolver o também diferenças quanto à riqueza, ao
problema. Os aumentos de salários não grau de instrução, às relações de família,
conseguiam acompanhar o aumento do a maneiras ou ao estilo de vida, etc. Em
custo de vida e a desvalorização da moe- especial, estas desigualdades tornam-se
da” (MARQUES, 1975, 50-51). socialmente relevantes quando se estabe-
Nos anos seguintes, vários ministérios lecem como critérios para atribuição dos
adotaram medidas a favor do proleta- vários papéis sociais e expressam sempre
riado e do baixo funcionalismo público. os princípios por que uma dada a socie-
No entanto, as medidas adotadas revela- dade se rege.
ram-se incapazes de refrear a contestação Ora, a enunciação do princípio de
social: uma greve geral em 1919 obteve que todos os cidadãos têm a mesma dig-
algum sucesso e há notícias de atentados, nidade social ou de que ninguém pode
lutas individuais e assassinatos. Como ser privilegiado ou privado de direitos (e
efeito secundário, estas medidas ainda isento de deveres) em razão da ascendên-
serviram para fazer dispersar o apoio cia, do sexo, da raça, da língua, do territó-
tradicional ao regime garantido pela rio de origem, da religião, das convicções
burguesia – que, sentindo-se desampara- políticas ou ideológicas, da instrução, da
da, para se opor àquilo que entendia ser situação económica, da condição social,
uma subversão em curso da ordem e da da orientação sexual, etc. – tal como
organização social, procurou aumentar a preveem as alíneas do art. 13.º da Cons-
sua coesão e a sua força social com a fun- tituição Portuguesa de 1976 – não quer
dação de novas associações, de que são de modo nenhum dizer que tenham
exemplo a Confederação Patronal (em desaparecido as desigualdades e as clas-
1920) e a União dos Interesses Económi- ses sociais; na verdade, quer dizer que as
cos (em 1924). classes e as desigualdades entre as classes
Esta breve batida pelas origens do an- não estão excluídas mas que nada obsta,
ticlassismo português, com especial inci- do ponto de vista meramente formal, ao
dência no fim do séc. xix e no início do trânsito entre classes e a que se ultrapas-
séc. xx, não corresponde senão a uma sem essas desigualdades.
breve amostra do que se seguiria ao lon- De facto, vendo bem, boa parte dos mo-
go do séc. xx e que este artigo não pode vimentos sociais do séc. xx partiu de um
perseguir; o que se procurou foi apenas reconhecimento da existência de classes
compreender os mais rudes fundamen- prejudicadas e do facto de haver uma
tos do anticlassismo português. Porém, relação entre esse prejuízo e os poderes
e como forma de epílogo, importa ainda dominantes em exercício, e constituiu-se,
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escrever que “a Igreja, a religião, a pró- núncia tenta alertar para contradições
pria divindade são palavras que não de- existentes entre os altos ideais evangéli-
signam senão o sacerdócio encarado sob cos proclamados e os compromissos de-
diferentes pontos de vista. A Igreja é um masiado terrenos, sem esquecer a falta
nome coletivo para designar o corpo dos de dignidade e mesmo imoralidade de
nossos guias espirituais […]. Numa pala- comportamentos e de ações praticadas.
vra, Deus, a religião, a Igreja são a mes- Temos, deste modo, o chamado anticle-
ma coisa que os padres. É desta trindade ricalismo crente ou interno que, nas acu-
que resulta o ser único a que chamamos sações mais ou menos severas dirigidas
clero” (HOLBACH, 2006, 23). É claro a clérigos e membros de ordens e con-
que esta eclesiologia iluminista de com- gregações, não põe em causa a Igreja,
bate reflete uma conceção redutora mui- pois visa, acima de tudo, a reforma e o
to difundida na ortodoxia católica, e que aperfeiçoamento moral e espiritual da-
se prolongou até ao séc. xx, em que a queles que, como ministros da Igreja e
Igreja aparece praticamente confinada pessoas consagradas, constituem a elite
à hierarquia eclesiástica, entidade que eclesial. Para além disso, temos também
exerce a mediação entre Deus e os fiéis. o que podemos qualificar como anticle-
O anticlericalismo político teve, desde ricalismo social ou de costumes, em que
o séc. xix, múltiplas manifestações, so- se atacam e ridicularizam formas antisso-
bretudo em países como França, Itália, ciais e extravagantes de comportamento
Espanha e Portugal, onde a presença do em elementos individuais ou no coletivo
catolicismo tinha estado estreitamente de ordens e congregações, sem que no
articulada com Estados governados por entanto se pretenda que essas corpora-
monarquias de poder absoluto. E situa- ções sejam eliminadas, como acontece
ção análoga verificou-se também em paí- nas reivindicações do anticlericalismo
ses da América Latina, designadamente político mais radical. Nessa situação, não
no Brasil e no México. Note-se que, em se trata já de corrigir costumes e práticas
Estados onde predominam confissões por iniciativa de críticos que são crentes
religiosas não católicas, as manifestações e têm confiança na Igreja. A iniciativa
de anticlericalismo foram ou são apenas pertence agora, sobretudo, a observa-
residuais. Em Portugal, a época de Pom- dores que encontram, nos institutos re-
bal, meados do séc. xviii, ficou marcada ligiosos e no clero em geral, comporta-
por políticas de radicalismo antijesuí- mentos e costumes tidos por insólitos e
tico, expressão de um anticlericalismo exóticos, e que reagem à sua presença na
político seletivo bem individualizado. sociedade, ora denunciando estilos de
Foi, porém, a partir da afirmação das vida contrários à mentalidade moderna
políticas liberais que essa ostracização e apresentados como nocivos à educação
de iniciativa pombalina se generalizou, das novas gerações, ora explorando o có-
primeiro ao universo congreganista e, mico das situações e zombando de tais
depois, também ao clero secular. comportamentos.
Devemos notar, no entanto, que exis- Esta diversidade de manifestações an-
tem outros planos nos quais a crítica e ticlericais tem coexistido ao longo dos
oposição ao universo clerical e às cor- séculos, embora o peso de cada uma de-
porações religiosas se manifestou com las na vida da sociedade se tenha modi-
grande vigor protestativo. Abundam os ficado segundo as épocas e os contextos
casos em que a firme contestação e de- culturais. Se as perspetivarmos em ter-
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ça da Igreja. Entendia que para isso era Alguns abraçaram o ministério como
necessário defender e consolidar a lai- pastores ao serviço de comunidades pro-
cidade republicana, promover o ensino testantes. Assim sucedeu, e.g., com Gui-
laico e libertar a mulher da subalterni- lherme Dias da Cunha (1844-1907), da
dade e da manipulação clerical. Estes ob- Diocese do Porto, e com Joaquim dos
jetivos obedeciam ao superior propósito Santos Figueiredo (1865-1937), da Dio-
de dignificar o laicismo com uma nobre cese de Coimbra, entre muitos outros.
qualificação moral e social, oposta à san- Desta deserção fundada em razões de
tidade cristã. O livro por ele publicado natureza pessoal e doutrinal, acompa-
em 1957 com o título Agiológio Rústico nhada de transição para formas variadas
visava, através de breves retratos morais de militância contra a Igreja, há exem-
de figuras do meio rural, laicizar os cos- plos noutros países de tradição católica,
tumes, democratizando e naturalizando nomeadamente em França. Nestes casos,
o padrão teológico da santidade eclesial. o anticlericalismo toma a configuração
O anticlericalismo antirreligioso e mi- de antirromanismo, na medida em que
litante de Tomás da Fonseca evidencia visa preferentemente o Vaticano e as de-
um percurso cultivado desde os tempos cisões doutrinais e canónicas emanadas
de seminário, i.e., no interior da pró- dos seus dicastérios.
pria Igreja. São numerosos os casos de Como fenómeno social e cultural, o
membros do clero que, em Portugal, anticlericalismo possui uma longa his-
tendo desertado dos compromissos do tória iniciada muito antes de ter sido
ministério sagrado, se converteram em criado o vocabulário específico que o
ativos militantes anticlericais. Nem to- designa. Este vocabulário terá surgido
dos passaram a adotar formas radicais de apenas em meados do séc. xix, depois
anticristianismo ou de antirreligiosismo. de decorridos muitos séculos de crítica
e ataque à instituição clerical e à vida
Tomás da Fonseca (1877-1968). monástica e mendicante. Quando pro-
curamos perceber quais os contextos
históricos em que a pulsão anticlerical
se torna mais conflituosa e ameaçadora
para a harmonização da existência re-
ligiosa com as organizações políticas e
sociais, verificamos que eles coincidem
com fases de transformação profunda
ou rutura de padrões institucionais vi-
gentes. É no quadro da mobilização co-
letiva para a mudança que se assiste ao
agravamento das atitudes e dos compor-
tamentos anticlericais. Lembremos, e.g.,
que as origens da Reforma protestante
foram acompanhadas da denúncia de
práticas eclesiásticas baseadas em orien-
tações dimanadas da Roma papal e tidas
por contrárias ao evangelho. O espírito
reformador, empenhado nas mudanças a
introduzir na vida da Igreja, considerava
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AnticlericAlismo 395
Fotografia de grupo de Jesuítas detidos no forte de Caxias por ordem do Governo Provisório da Repú-
blica, Ilustração Portuguesa, 7 nov. 1910.
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402 AnticoloniAlismo
termos do n.º 2, o direito à livre determi- ca, influenciada pelo eixo afro-asiático.
nação, podendo, através dela, promover A defesa dos princípios anticolonialistas
livremente o seu desenvolvimento eco- torna-se dominante.
nómico, social e cultural. Com a resolução 1514, o princípio
Para a concretização destes objetivos, da autodeterminação dos povos passa a
a Assembleia Geral das Nações Unidas fazer parte do ius cogens, ou seja, torna-
defende o cessar de “toda a ação armada -se um princípio imperativo de direito
ou toda e qualquer medida repressiva de internacional, pelo que a sua violação
qualquer índole dirigida contra eles [os constitui uma negação dos direitos fun-
povos colonizados]” e que “deverá res- damentais do Homem. Fica estabelecido
peitar-se a integridade do seu território que todos os povos têm direito a esco-
nacional” (n.º 4). lher o seu estatuto político e a promover,
Para a ONU, todos os povos têm direito de forma livre, o seu desenvolvimento
à autodeterminação, e esta é alcançada económico, social e cultural.
através da independência. A independên- As Nações Unidas não defendem a in-
cia constitui a concretização da liberdade dependência dos territórios coloniais a
dos povos. A assunção, feita pelas Nações qualquer preço, mas mediante a auscul-
Unidas, de que apenas há autodetermina- tação dos povos coloniais, por meio de
ção através da independência dos povos referendos ou de plebiscitos, ou através
traduz-se, como referem André Gonçal- da concordância dos movimentos de li-
ves Pereira e Fausto de Quadros, numa bertação de um determinado território,
heterodeterminação da ONU no futuro que, em princípio, exprimem a vontade
de um determinado povo. do povo.
A resolução 1514 constitui um avanço Complementam a resolução 1514 as
interpretativo no conceito de autodeter- resoluções 1541 e 1542, de 15 de dezem-
minação dos povos presente no art. 1.º, bro de 1960.
n.º 2, da Carta da ONU. Em 1945, quan- Em 1962, a Assembleia Geral das Na-
do a Carta é assinada na Conferência ções Unidas emite a resolução 1803
de São Francisco, o princípio da auto- (XVII), de 14 de dezembro, acerca da
determinação dos povos não é ainda soberania permanente sobre os recursos
entendido como um princípio de inde- naturais, com especial incidência nos
pendência, mas tão só de autonomia dos novos Estados soberanos saídos da des-
territórios coloniais, no âmbito de um colonização. Prevê a resolução que “o
mundo em que os impérios coloniais direito dos povos e das nações à sobera-
– inglês, francês, belga, português – se nia permanente sobre as suas riquezas e
mantinham presentes. A Carta das Na- recursos naturais deverá ser exercido no
ções Unidas faz, nesta matéria, afirma- interesse do respetivo desenvolvimento
ções programáticas. nacional e do bem-estar do povo do Es-
A mudança de entendimento das Na- tado em causa”. Acrescenta a resolução
ções Unidas, como referido, ocorre por que “a violação dos direitos dos povos
pressão do bloco de Leste e pela ade- e das nações à soberania sobre as suas
são, às Nações Unidas, de Estados asiá- riquezas e recursos naturais é contrária
ticos e africanos. Com efeito, a adesão à ao espírito e aos princípios da Carta das
ONU, na sessão de 1960, de 17 Estados Nações Unidas e prejudica o desenvolvi-
africanos resultantes da descolonização mento da cooperação internacional e a
dá origem a uma nova orientação políti- manutenção da paz”.
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plo, sob influência da Internacional Co- Internacionais, vol. ii, Lisboa, Ática, 1961; FREI-
munista, apoia os diversos movimentos TAS, Pedro Caridade de, Portugal e a Comuni-
de libertação que surgem nos territórios dade Internacional na Segunda Metade do Século
XIX, Lisboa, Quid Juris, 2012; GIRAULT, René
ultramarinos portugueses, com especial
et al., La Loi des Géants. 1941-1964. Histoire des
destaque para os da Guiné, Angola e Mo-
Relations Internationales Contemporaines, Paris,
çambique. Éditions Payot & Rivages, 2005; HOMEM,
Com os movimentos de libertação dos António Pedro Barbas, e FREITAS, Pedro Ca-
povos africanos, surge o binómio nacio- ridade de, Textos de História das Relações Inter-
nalismo/anticolonialismo. Se, por um nacionais, Lisboa, Associação Académica da
lado, se ergue a bandeira da contestação Faculdade de Direito de Lisboa, 2012; KIS-
à presença colonial europeia no conti- SINGER, Henry, Diplomacia, Lisboa, Gradiva,
1996; MACEDO, Jorge Borges de, “Descolo-
nente africano, por outro desenvolve-
nização”, in Polis, vol. 2, Lisboa, Verbo, 1984,
se um nacionalismo africano – no caso pp. 134-161; MAXWELL, Kenneth, “As coló-
português, um nacionalismo angolano nias portuguesas e a sua descolonização”, Re-
e moçambicano – com o intuito de de- vista Crítica de Ciências Sociais, n.os 15-17, maio
terminar as especificidades de um de- 1985, pp. 529-547; MOUGEL, François-Char-
terminado povo, enquanto comunidade les, e PACTEAU, Séverine, Histoire des Relations
linguística, histórica e racial. Sob a égi- Internationales. XIXe et XXe Siècles, Paris, PUF,
2006; PEREIRA, André Gonçalves, e QUA-
de desta unidade nacional, defende-se a
DROS, Fausto de, Manual de Direito Internacio-
criação de um Estado que aglutine uma nal Público, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2002;
pretensa unidade cultural. QUEIRÓ, Afonso Rodrigues, “Colonialismo”,
Na realidade, nem sempre é possível in Polis, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1983, pp. 982-
isolar essa unidade cultural e ideoló- -985; SANTOS, Aurora Almada e, “A ONU e
gica nos vários Estados que se formam as resoluções da Assembleia Geral de dezem-
no continente africano, atendendo à di- bro de 1960”, Relações Internacionais, n.º 30,
versidade das características étnicas em jun. 2011, pp. 61-69.
presença. Mais do que diante de movi- Pedro Caridade de Freitas
mentos nacionalistas, estamos perante
um internacionalismo africano, ou seja,
uma influência externa das potências
mundiais no desenrolar dos movimentos
de libertação e no destino dos povos co-
lonizados.
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tico-económica neoliberal (que teve no li- Desta visão metafísica do eu como an-
vro de John Rawls, A Theory of Justice, publi- terior à situação do sujeito concreto, bem
cado em 1971, uma formulação decisiva) como da inerente afirmação de uma racio-
e os seus principais críticos, agrupados sob nalidade universal como fundamentação
a designação de comunitaristas, apesar da bastante da organização da vida em co-
sua muito significativa heterogeneidade. mum e da precedência da justiça em rela-
Depois de identificados estes aspetos ção ao bem decorre, segundo os autores, a
anticomunitaristas da doutrina neoliberal incapacidade de integrar e de reconhecer,
e do Estado liberal moderno, deter-nos- no Estado liberal, a) a noção de um bem
-emos um pouco nas formas de anticomu- propriamente comum e portanto o fenó-
nitarismo particularmente reconhecíveis meno da prossecução não egoística de
em Portugal. bens, em comum; b) a identidade comum,
partilhada, na qual está necessariamente
integrada a identidade individual real, que
é forjada no seio de grupos, de tradições
AnticomunitArismo tornAdo e, em última análise, de uma linguagem
pAtente pelo debAte entre liberAis partilhada; c) as conceções abrangentes
e comunitAristAs. de bem dos indivíduos, constitutivas dessa
AnticomunitArismo ontológico identidade, que não se atêm a uma noção
Antes de mais, é, então, manifesta nas naturalística ou reducionista da realização
obras dos autores que se têm chamado co- e felicidade humanas, e que se pronun-
munitaristas uma perspetiva ontológica, ciam sobre o bem comum mas que são
ou onto-antropológica, oposta àquela que deixadas à margem da vida pública.
denunciam estar subjacente ao neolibe- Decorrente desta perspetiva onto-antro-
ralismo. Segundo autores como Michael pológica anticomunitarista subjacente ao
Sandel e Charles Taylor, o neoliberalismo Estado liberal, aflora, então, um antico-
proposto por Rawls numa senda kantia- munitarismo prático, manifesto, por um
na pressupõe uma noção desencarnada, lado, no âmbito da economia, mas tam-
não situada, do sujeito humano, que está bém, mais generalizadamente, no âmbito
implicada na posição original a partir da das políticas e das leis, mormente as que se
qual Rawls propõe que os indivíduos de- relacionam com a questão da identidade.
terminem as normas de funcionamento
da sociedade, em condição de ignorância
em relação às suas próprias preferências
e valores. Nesta posição original, estaria
AnticomunitArismo
em condições de operar uma racionalida-
no âmbito dA economiA
de universal (e instrumental) depurada No que diz respeito à economia, a pers-
dos condicionalismos circunstanciais de petiva comunitarista sublinha a existência
cada indivíduo, de cada grupo e cultu- de bens que são comuns por natureza, e
ra, bastando para tal uma noção mínima a que portanto os indivíduos não podem
do bem que todos os indivíduos querem aceder senão prosseguindo-os em comum,
com certeza prosseguir igualmente em tal como defende Charles Taylor em Sour-
sociedade. Esta neutralidade em relação ces of the Self, bem como a possibilidade
à questão do bem é, para Rawls, constitu- humana de potenciar o bem individual
tiva da justiça, porque esta precede o bem pela procura do bem de todos. A limita-
e é independente dele. ção ou restrição da procura individual de
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bem mais difíceis, em que a própria cultu- modernos (grupos antissemitas, anti-islâ-
ra minoritária atente contra direitos e li- micos, mesmo anticristãos), os quais exer-
berdades individuais essenciais. Quanto a cem pressão e violência – ainda que vio-
este último tipo de questões importa dizer lência não física – sobre as comunidades
que os autores designados comunitaristas em causa, nomeadamente pelo ataque
não se afirmam relativistas culturais – estes violento (não argumentativo) da sua tra-
não afirmam que as respostas éticas válidas dição religiosa. No uso da prerrogativa da
o sejam apenas para a comunidade espe- liberdade de expressão para o exercício
cífica que as adota e porque esta as adota. desta pressão e desta violência encontra-
A sua resposta a estes dilemas (explícita, -se uma demonstração da oportunidade,
e.g., em C. Taylor) aponta no sentido da para as sociedades liberais, da proposta de
ponderação dos bens humanos em cau- uma ética de reconhecimento (assim de-
sa, em vez da consideração da liberdade signada por Taylor) e de aceitação do ou-
individual como um absoluto ou infinito. tro na sua integralidade – a qual inclui a
A compreensão da liberdade como a pos- sua identidade comunitariamente forjada
sibilidade de um bem permitiria, assim, e as suas conceções abrangentes do bem,
discernir quais os casos legítimos e quais sem outro limite que não o do respeito
os ilegítimos de restrição de liberdade em pela mesma dignidade humana na qual se
função dos bens que a sua restrição permi- funda tal aceitação. As mesmas situações
tisse ou sacrificasse, bem como a distinção denunciam, além disso, o gérmen de vio-
entre as práticas culturais admissíveis e as lência e conflito presente numa conceção
não admissíveis por lesivas de bens huma- anticomunitarista da liberdade como con-
nos essenciais. Esta resposta valoriza, no ceito absoluto ou, deste ponto de vista, va-
fundo, o liberalismo como tradição – tra- zio, i.e., sem referência ao bem humano.
dição essa que coloca entre as demais –, Por fim, refira-se uma implicação da pre-
mas denunciando a feição personalista de tensão de neutralidade da tradição liberal,
que ele se reveste, já que o critério deixa que é a solução de determinadas questões
de ser o sujeito individual desencarnado, éticas e jurídicas de importância crucial,
passando a ser a pessoa concreta e as ne- e.g., as que hoje são chamadas fraturan-
cessidades da sua natureza. tes, com base nessa racionalidade pública
Outro tipo de questões é bem ilustrado e universal, i.e., pela rejeição a priori da
pelos exemplos da proibição de crucifixos contribuição das visões abrangentes (não
nas escolas nos países de tradição católica reducionistas) do Homem presentes nas
e pela do uso da burca pelas mulheres mu- diversas tradições, e identificando o papel
çulmanas em contexto público nos países da lei com a adoção de uma posição neu-
ocidentais – casos em que a manifestação tra, obedecendo a um critério científico.
pública de uma tradição religiosa é consi- Opondo-se a esta cientifização (fictícia) da
derada atentatória da neutralidade do es- ética e mesmo do direito, a perspetiva co-
paço público, mesmo sem estar em causa munitarista avança que, sobre questões que
qualquer lesão a um outro concreto. dizem respeito ao bem, é a partir de uma
Outro tipo ainda de questões, claramen- razão situada, enraizada numa tradição e
te revelador de um movimento antico- que arrisca uma compreensão integral do
munitarista no seio da sociedade liberal, Homem que se devem buscar as respostas,
manifesta-se na existência de grupos hos- sem renunciar à via do diálogo e do con-
tis a determinadas comunidades culturais fronto entre as diferentes – mas não intra-
e religiosas que coexistem nos Estados duzíveis nem incomunicáveis – tradições.
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Anticonceptismo
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Anticonceptismo 417
assento que não quis ser entendido; e plo de Sá de Miranda, António Ferreira e
em tal caso, procuro fazer-lhe a vontade, Diogo Bernardes neste sentido, os quais
e não o leio. Com esta sorte de homens, seguiram “Os versos mais canoros e cor-
faço o mesmo que com os labirintos e rentes,/A sisuda dicção, a frase pura;/
enigmas, etc., os quais nunca me cansei Aquele Ático sal que não conhece/Quem
a decifrar. Eles que o fazem, que se divir- nunca viu o Pórtico de Atenas” (Id., Ibid.,
tam com isso” (Id., Ibid., 244). 150).
Adotando, no capítulo ii, o emblema A sátira de Nicolau Tolentino de Almei-
do podão, cuja função é cortar os ramos da (1741-1811) à arte da retórica, disci-
secos das árvores, os Estatutos da Arcádia plina de que ele próprio foi mestre, pode
Lusitana preconizam o princípio estético considerar-se uma crítica não apenas à
anticultista e anticonceptista da simplici- poesia cultista e conceptista, mas também
dade, expresso na epígrafe Inutilia trun- às limitações estéticas dos árcades: “Arte
cat (corta o que é inútil). O capítulo xiv infeliz, Retórica chamada,/Ensino as tuas
reprova os assuntos forçados, que violen- leis, mas não as creio;/Ou nunca ergues-
tam o génio poético, impedindo que se te fogo em peito alheio,/Ou tu já hoje
ache nas composições dos seus criadores estás degenerada” (ALMEIDA, 1801, 60).
“aquele gosto, facilidade e delicadeza que Filinto Elísio (1734-1819), do grupo
caracterizam as da antiga Grécia e as dos da Ribeira das Naus, na “Carta ao ami-
Romanos do século de Augusto” (BUES- go Brito” (Francisco José Maria de Brito,
CU, 1992, 306). secretário da legação portuguesa na Ho-
Fiel a este princípio, Correia Garção landa), põe na boca de Garção, reerguen-
(1724-1772), na sua “Dissertação III”, elo- do-se do sepulcro, a crítica aos poetas,
giando nos antigos Gregos “o verdadeiro tanto seiscentistas como setecentistas, i.e,
génio, a que o vulgo chama Veia Poética e seus predecessores e contemporâneos.
os doutos Entusiasmo”, critica nos poetas A apologia da frase concisa expressa indi-
seiscentistas o seguimento de outros prin- retamente o anticonceptismo de Filinto,
cípios estéticos: “poucos foram os que enquanto o repúdio do hipérbato se en-
penetraram semelhante mistério, de que quadra no seu anticultismo (“o enleado/
são miseráveis testemunhas as Obras dos Hipérbato, que embaça a inteligência”
Setecentistas” (GARÇãO, 1778, 328-329). – ELÍSIO, 1836, I, 68): “Calai-vos, tolos
Comparando os poetas aos navegantes, (o Garção responde)/A elocução é tudo.
que seguem a agulha de marear para evi- Uma sentença,/Que tosca refugais por
tar os naufrágios, aplica tal prática à imi- desagrado,/Se com frase concisa, orna-
tação adequada, não servil, dos Antigos: da e culta,/Vem ferir na alma, o ouvido
“O Poeta, que não seguir aos Antigos, amaciando,/Abalados ficais, ficais ab-
perderá de todo o norte, e não poderá sortos,/Namorados da sua formosura”
já mais alcançar aquela força, energia, e (Id., Ibid., 65-66).
majestade, com que nos retratam o for- Depois de salientar que a “língua é
moso e angélico semblante da Natureza. como a moda./A novidade lhe dá gala e
[…] Os Poetas devem ser imitados nas fá- primor” (Id., Ibid., 62), ironiza “as cediças
bulas, nas imagens, nos pensamentos, no frases/Do caduco Lucena, aguado Bar-
estilo; mas quem imita, deve fazer seu o ros” (Id., Ibid., 63), aplicando ao discur-
que imita” (Id., Ibid., 331). so “delambido” a metáfora da moda no
Na “Sátira II”, insiste na condenação da vestuário, “para adorno guapo e sécio/
imitação servil, apontando o bom exem- enrocados mantéos, golpeadas calças”
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418 Anticonceptismo
(Id., Ibid.). Nem Camões escapa à crítica o cultismo, com os seus “Anagramas,/
dos latinismos (“palavras fastiosas/Dos Labirintos, Acrósticos, Segures,/E mil
velhos alfarrábios com bafio” – Id., Ibid., espécies de medonhos Monstros” (SIL-
65): “Tão peco é o Camões, quando des- VA, 1802, 2). Comum ao anticultismo e
creve/do estelífero polo os moradores,/e a ao anticonceptismo é a ridicularização
belígera gente?” (Id., Ibid., 106). No entan- dos estereótipos da banalidade poética
to, são os quinhentistas os preferidos de (“ricos tesouros”, “Concha”, “Borboleta”,
Filinto Elísio – “Afortunada idade de Qui- “estranha Flor”, “listrado Iris” – Id., Ibid.,
nhentos,/Quando os teus te põem nó- 2ss.), do pseudo-eruditismo gramatical
doa, alheios te honram” (Id., Ibid., 144) –, (“se se deve/A Conjunção unir ao Verbo,
enquanto os seiscentistas são apelidados ou Nome,/Que marcham antes dela no
de “néscios” e postos a correr – “Correi- discurso” – Id., Ibid., 3), da servil depen-
vos, Seiscentistas, ou Pacóvios,/Que nés- dência dos poetas aos políticos e mecenas
cios motejais do que é de preço:/Do que (compõem “Aos vaidosos Magnatas, mil
não entendeis julgais a esmo” (Id., Ibid., Sonetos,/Mil Pindáricas Odes, e Epigra-
145) –, motejo, considerado “insulso” e mas,/A que apenas de olhar eles se dig-
“parvo” o riso, desafiados que são a não nam” – Id., Ibid.).
se virar tal riso contra eles: “Quais flechas
no ar viradas que se encravam/Em quem
as disparou” (Id., Ibid.).
O poema herói-cómico Hissope de An- Bibliog.: ALMEIDA, Nicolau Tolentino de,
tónio Dinis Cruz e Silva (1731-1799), Obras Poeticas de Nicoláo Tolentino de Almeida,
Lisboa, Regia Officina Typografica, 1801;
uma das mais veementes expressões do
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, Literatura
zelo vernaculista da Arcádia Lusitana, de Portuguesa Clássica. Textos Complementares, Lis-
que foi cofundador, satiriza, no canto i, boa, Universidade Aberta, 1992; ELÍSIO, Fi-
linto, Obras de Filinto Elysio. Nova Edição, 22 t.,
Lisboa, Typographia Rollandiana, 1836;
Filinto Elísio (1734-1819).
GARÇÃO, Pedro António Correa, Obras Poe-
ticas de Pedro Antonio Correa Garção, Lisboa,
Officina Typografica, 1778; MONIZ, António
Manuel de Andrade, “A sociedade setecentis-
ta n’ O Hissope, de Cruz e Silva”, in CASTRO,
Aníbal Pinto de et al. (coords.), Alcipe e as Lu-
zes, Lisboa, Colibri/Fundação das Casas de
Fronteira e Alorna, 2003, pp. 189-206; PIRES,
Maria Lucília G., “Conceptismo”, in Biblos,
Lisboa, Verbo, 1995; SÉRGIO, António, En-
saios, 2.ª ed., t. v, Lisboa, Sá da Costa, 1955;
SILVA, António Dinis da Cruz e, O Hyssope.
Poema Herói-Comico de Antonio Diniz da Cruz e
Silva, Londres, s.n., 1802; TORRES, Amadeu
(Castro Gil), Antologia Literária dos Séculos XVIII
e XIX, Braga, Humanitas, s.d.; VERNEY, Luís
António, Verdadeiro Metodo de Estudar, 2 t.,
Valensa, Officina de Antonio Balle, 1746;
VIEIRA, António, Sermões, vol. i, Porto, Lello
e Irmão, 1959.
António Moniz
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424 AnticongregAnismo
mostra que nas ordens regulares, tirados de Os Frades Julgados no Tribunal da Razão
os padres mestres (e alguns não se deve- (1814), que identifica com pertinência a
riam tirar), tudo o mais são bolónios, ter- deslocação do ataque às ordens, em ter-
mo que, no dicionário fradesco, significa mos teológicos e morais, para o terreno
ignorantes” (Id., Ibid., 357). da contestação de cunho político, levada
Acerca da utilidade das ordens re- a cabo sobretudo pelos filósofos moder-
gulares para o Estado e para a Igreja, nos. É particularmente significativa e ino-
D. Fr. Alexandre desenvolve, no texto vadora a reflexão que faz acerca da natu-
“Religiões (sobre os frades)”, um verda- ral diminuição do número de monges e
deiro cálculo de custo-benefício, dele frades no país: entende o autor que o es-
extraindo a conclusão de serem mui- perado progresso, regular e constante, da
tos os malefícios oriundos do excesso agricultura, do comércio e das artes úteis
de mosteiros em Portugal. Admitia que há de trazer como normal consequência
“nos primeiros tempos da Monarquia, essa redução.
talvez que fosse conveniente fazer algu- Perante a excessiva quantidade de ca-
mas destas fundações […]. Mas como sas e institutos religiosos e, mais ainda,
o sal, a pimenta, ainda o açúcar e todos o deprimente espetáculo de desgoverno
os irritantes do paladar em certas medi- material e espiritual, nomeadamente no
das são convenientes e em sendo dema- concernente à vida em comunidade, vá-
siados enjoam e prejudicam a saúde do rias entidades mostraram, em finais do
corpo, assim estas piedosas fundações séc. xviii, grande preocupação. Foi para
dentro de justos limites seriam úteis mas responder a muitas dessas perturbações
o seu excesso é nocivo à saúde do Estado que, no dia 21 de novembro de 1789,
e da Igreja” (Id., Ibid., 327). E, referin- D. Maria I criou a Junta do Exame do
do o que foi o aumento desses mosteiros Estado Atual, e Melhoramento Tempo-
masculinos e femininos, exemplifica o ral das Ordens Regulares. A Junta tinha
que se passou num deles: o seu cresci- dois objetivos principais: inquirir sobre a
mento foi tal “que chegou a ter cem e situação real e o estado das casas religio-
mais freiras supranumerárias; porque de sas e fazer propostas sobre melhoramen-
uma parte a mania dos pais e de outra a tos a empreender, incluindo as uniões ou
cobiça dos conventos enchiam de mise- supressões de conventos a realizar. Dos
ráveis vítimas estes (alguém diria – serra- inquéritos que entretanto foram feitos
lhos – mas eu direi) cárceres. O mesmo resultou um retrato do estado calamito-
aconteceu em proporção nos mosteiros so em que as casas religiosas se encon-
de homens por efeito de um bigotismo travam, quase sem vida de comunidade,
que tarde se extinguirá entre nós. […] com faltas ao coro, ausências prolonga-
Assim o Estado está sustentando milha- das dos conventos, conflitos e parcialida-
res de ventres secos, que o não ajudam des entre membros do mesmo instituto,
temporalmente” (Id., Ibid., 330). disputas por causa de precedências, reli-
Este quadro, pintado em tons de claro giosas com criadas ao seu serviço, a ponto
-escuro, teve opositores que contra ele se de só “comerem no Refeitório alguns dias
bateram, firmes na apologia de conventos ao jantar, mas cada uma da sua particular
e mosteiros, rebatendo cada uma das acu- panelinha”, como se diz das professas do
sações levantadas contra a sua existência. Convento de Santa Clara, de Vila Real
Distinguiu-se, na tarefa de contrariar a (CORREIA, 1974, 105). Numa palavra, a
onda anticongreganista, o autor anónimo vida religiosa havia chegado, em muitos
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conventos do reino, a um estado deveras de que as ordens devem ser extintas, por
confrangedor. serem desnecessárias à Igreja e incompa-
Embora dos inquéritos feitos no final tíveis com os princípios iluministas e as
do século das Luzes se tenha apurado um bases modernas da vida em sociedade.
acentuado decréscimo do número de re- É na época do vintismo que a questão
ligiosos, o tema da nocividade provenien- congreganista se converte num dos nós
te do excesso de frades e freiras no reino mais difíceis, que a política liberal está
vai prolongar-se, tornando-se ensurdece- empenhada em desatar urgentemente.
dor nos tempos que precederam e acom- Nem antes nem depois o assunto foi ob-
panharam a instauração do liberalismo. jeto de confronto tão apaixonado entre
Não só se vai repetindo que prejudicam apologistas das ordens e adversários obs-
o serviço da nação por retirarem braços tinadamente apostados em cavar-lhes a
à agricultura, à indústria, ao comércio e sepultura. A razão efetiva de tão animosa
à defesa das fronteiras, como também se disputa não a encontramos nas infâmias
defende que levam à ruína os Estados que que os críticos iluministas lhes atribuí-
os admitem e conservam. Prepara-se por ram, por nelas não encontrarem utilida-
esta via a opinião pública para a extin- de social, acusando-as de obscurantismo,
ção das ordens, que não tardaria muito opressão da liberdade, repressão dos
a ser decretada. Expressão vigorosa dessa mais íntimos impulsos da natureza e hi-
animosidade contra as ordens regulares pocrisia. Talvez nada disso fosse bastante
e o estatuto social dos seus membros, de para adquirir a relevância política que o
clara inspiração iluminista, encontra-se vintismo conferiu ao problema congrega-
em O Investigador Portuguez dos meses de nista. A razão de fundo que mobiliza a ar-
maio e junho de 1814, que se publicava gumentação contra as congregações não
em Londres, onde se pode ler uma “Me- se nos afigura ser outra senão a descober-
moria sobre a extincção, e supressão das ta da cidadania cuja institucionalização
ordens religiosas, sua necessidade eccle- na sociedade portuguesa agita os revo-
siastica, e civil”, em que são abordadas lucionários liberais. Foi Manuel Borges
matérias como a origem, o desenvolvi- Carneiro, na sessão parlamentar de 1 de
mento, a decadência, as tentativas de re- fevereiro de 1821, quem primeiro levou
forma, a relaxação e a situação de letargia às Cortes Constituintes a questão congre-
em que caíram as ordens. Tinham falha- ganista. E logo aí apresentou uma pro-
do todas as tentativas de reforma. Perante posta que prima pela lição de liberdade
a riqueza de que dispunha grande parte e de exercício de cidadania, onde se diz:
das ordens monacais e a vida de pedinte a “Todos os Regulares do sexo masculino
que se dedicavam as ordens mendicantes, que quiserem sair dos conventos o pode-
o Estado não devia tolerar quem pareces- rão fazer, precedendo licença pontifícia,
se viver na ociosidade ou à custa das es- cuja expedição o Governo protegerá: e
molas de quem trabalhava. Além disso, se ficarão os egressos hábeis para servir ofí-
a Igreja vivera e florescera durante os três cios, e outras ocupações civis ou eclesiás-
primeiros séculos sem ordens religiosas, ticas, como outros quaisquer Cidadãos”
é porque, não só elas não foram instituí- (Id., Ibid., 1974, 140). Ao mesmo tempo
das pelo fundador do cristianismo, como que se vão repetindo argumentos já bem
este pode existir perfeitamente sem elas. conhecidos, como o do número excessivo
Depois destas considerações, a conclusão de frades “contrário ao sistema constitu-
a que chega o autor da “Memoria…” é cional e à felicidade da Nação”, outros
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vão surgindo. Vejamos o que diz José An- posto por frades e clérigos recrutados no
tónio Guerreiro, deputado constituinte, Minho, maldosamente chamado “Sagra-
acerca da formação, que incapacita os re- do”, integrou mesmo o exército do prín-
gulares para o exercício do conveniente cipe absolutista. Como era de esperar, lá
discernimento democrático: “Todos eles vinha o argumento económico, de que
são tendentes a uma cega obediência, se faz eco o relatório, datado de 30 de
seja a qualquer mandado despótico; por maio de 1834, que fundamenta e explica
isso têm contraído hábitos que os tornam o decreto de extinção. Com a supressão
incapazes de aconselhar a um rei consti- das ordens, diminuíam os celibatários e
tucional” (Id., Ibid., 146). aumentava a população, diminuíam as
Antes de a legislação liberal anticon- terras de mão-morta e lucrava o Estado
greganista ter declarado a extinção dos as receitas provenientes do melhor apro-
institutos regulares, por decreto de Joa- veitamento dos terrenos, com vantagens
quim António de Aguiar, ministro da no progresso da agricultura, do comércio
Justiça, com data de 28 de maio de 1834, e da indústria. Os bens dos conventos
já o governante liberal José da Silva Car- extintos ficavam incorporados nos bens
valho tinha, por decreto de 5 de agosto próprios da Fazenda Nacional. A violen-
de 1833, proibido as admissões a ordens ta expropriação dos bens dos conventos,
sacras e aos noviciados monásticos de agora decretada, já tinha sido objeto de
qualquer ordem e natureza. Esta decisão argumentação, assumida em Cortes por
era completada, a 9 de agosto, por novo Manuel Fernandes Tomás, em sessão de
decreto, que obrigava as casas religiosas 24 de julho de 1821. O grande revolucio-
de ambos os sexos com mais de 12 mem- nário liberal alegava então o princípio se-
bros a comunicarem anualmente ao bis- gundo o qual “os frades possuem os bens
po da Diocese a eleição de um prelado como donatários, bens que são da nação e
ou superior, com obrigação de este pres- que ‘ela os pode assumir, quando julgar
tar obediência ao respetivo bispo. Quan- conveniente’” (Id., Ibid., 1974, 148).
to às casas com número inferior, ficavam Nesta altura, uma das raríssimas exce-
os seus membros obrigados a ingressar ções à fúria do anticongreganismo liberal
noutro convento, revertendo para a Fa- foi a Companhia das Filhas da Carida-
zenda Nacional os bens dos conventos de, fundada no séc. xvii por S. Vicente
por esse motivo encerrados. O decre- de Paulo e autorizada em Portugal por
to de Joaquim António de Aguiar, com alvará de D. João VI de 14 de abril de
data de 28 de maio, i.e., apenas dois dias 1819. As Cortes de 1821 aceitaram-nas
depois de assinada a Convenção de Évo- com simpatia e doaram-lhes uma casa em
ra Monte, mostra como, havia muito, Lisboa: as obras de beneficência a que
estava a ser pensado, e era desejado por se dedicavam, cuidando dos enfermos
sectores liberais intransigentes, o fim das e instruindo a infância desvalida, torna-
ordens na organização social e religiosa vam-nas beneméritas e utilíssimas à socie-
do país. À diminuta qualidade moral de dade. Por outro lado, pertenciam a uma
muitos frades e freiras tinha-se juntado, congregação em que não se faziam votos
para maior desaire, a sua resistência à li- solenes, apenas votos simples e temporá-
berdade e às ideias modernas, ao mesmo rios; não eram, por isso, abrangidas pelo
tempo que, em notória maioria, vinham decreto de 28 de maio de 1834. A fúria
apoiando o partido de D. Miguel. No ano do radicalismo liberal atingiu-as duas dé-
de 1834, o batalhão exclusivamente com- cadas mais tarde, quando, em resposta
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Assembleia nacional Constituinte francesa, abertura dos Estados Gerais em 5 de maio de 1789.
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crítica do texto de 1812, não raro em humana (para eles, o verdadeiro sujeito
nome da religião: pensem-se nos escri- constituinte seria Deus), a questão era,
tos de Francisco Alvarado (1756-1814), no campo das cartas ou das constituições
dominicano, que elaborou, no seu exílio outorgadas, se “il re non avesse disposto
em Tavira, as Cartas Críticas Que Escribió el su una materia indisponibile da parte di
Filósofo Rancio, ou de Fr. Rafael de Vélez, qualunque autorità terrena e se, quindi,
em Apología del Altar y del Trono o Historia non avesse cosí messo in gioco la sua le-
de las Reformas Hechas en España en tiem- gittimità [o rei não tivesse disposto sobre
po de las Llamadas Cortes, e Impugnación de matéria indisponível por parte de alguma
Algunas Doctrinas Publicadas en la Consti- autoridade terrena e se, por isso mesmo,
tución, Diarios y Otros Escritos contra la Reli- não tivesse posto em causa a sua legitimi-
gión y el Estado (1818), que publicara an- dade]” (ZAGREBELSKY, 1996, 67).
teriormente Preservativo contra la Irreligión, Na Alemanha do séc. xix, antes da
o los Planes de la Filosofía contra la Religión unificação, encontramos posições clas-
y el Estado, Realizados por la Francia para sificadas como anticonstitucionais, re-
Subyugar la Europa, Seguidos por Napoleón lacionadas quer com uma “democracia
en la Conquista de España y Dados a la Luz anticonstitucional”, quer com um “an-
por Algunos de Nuestros Sábios (ANDRÉS- ticonstitucionalismo antidemocrático”
GALLEGO e PAZOS, 1999, 86; contudo, (BEYME, 2002, 188).
em 1812, a posição de Vélez afigura-se O anticonstitucionalismo democrático
distinta: LÓPEZ-BREA, 2002, 9-10). É o parte da ideia de igualdade, criticando
tempo da contraposição entre servis, en- a tese da limitação da vontade do povo.
quanto anticonstitucionalistas, e liberais Em termos gerais, estamos perante a ten-
(NOVALES, 2008, 21). Trata-se de um são oitocentista entre liberalismo (cons-
elemento que se consolida com a Confe- titucionalismo liberal) e democracia (so-
rência de Viena de 1815 e com a famo- berania).
sa Santa Aliança. A crítica ao parlamen- Refira-se que, na Rússia do séc. xix,
tarismo, e.g., é vista como um aspeto de o uso da palavra “constituição” (“kons-
anticonstitucionalismo, desconstruindo titoetsija”), em reuniões políticas ou no
uma metanarrativa emancipatória da Mo- teatro, alarmava a censura e a polícia po-
dernidade que assenta numa escatologia lítica czaristas (TANG, 1998, 169). Teria
meramente horizontal e intramundana. de se esperar por 1905 para se eleger um
Como sublinha Martin Kriele, “o parla- Parlamento (a Duma).
mentarismo está ligado de tal maneira à Noutro uso, considerando os totalitaris-
esperança do progresso que o pessimismo a mos do séc. xx, o termo “anticonstitucio-
respeito do progresso dá lugar frequen- nalismo” surge como chapéu conceitual
temente a reações antiparlamentares, em que cobre quer o marxismo-leninismo
especial fascistas e autoritárias” (KRIELE, soviético, quer o nacional-socialismo. Con-
1980, 258). A par da crítica ao parlamen- tudo, se este é um “anticonstitucionalismo
tarismo, o chapéu conceitual do anticons- antidemocrático”, o primeiro foi apresen-
titucionalismo compreende ainda outros tado como “anticonstitucionalismo demo-
antis, como o antiliberalismo (&Antilibe- crático”, entendida a expressão “democra-
ralismo; veja-se LEAL, 2009) e o antiplu- cia” no sentido de defesa da igualdade dos
ralismo (BACKES, 2006a, 36). Registe-se cidadãos e do primado da vontade popu-
que, para os autores que recusavam que lar, enquadramento que é extremamente
a constituição pudesse ser uma criação controverso, reconhecendo Backes, em
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ARAÚJO, 2007; para uma síntese da po- co, assistimos a uma linha que, no limite,
sição dos integralistas, veja-se QUINTAS, defendia a rutura com a Constituição de
2004, em especial 40-41). 1976. Do ponto de vista ideológico, foi
A Constituição de 1933 surge como pi- usada como fronteira entre os que de-
lar do Estado Novo, numa linha de nor- fendiam e atacavam Abril (lembre-se a
malização em que o constitucionalismo revista Fronteira, que assumia como lema
se degrada em legalismo. O texto cons- a frase de Piteira Santos: “A Constitui-
titucional de 1933 foi objeto de crítica, ção é uma linha de defesa e de combate:
quer quanto à génese (procedimento uma fronteira entre abril e as oposições
constituinte direto, sendo submetido a a abril”). No entanto, repare-se que, ao
um plebiscito), quer quanto ao conteú- menos para alguns, se tratou de uma
do, censurando-se, e.g., a possibilidade alteração, pois na mesma área houve
de vários direitos e garantias poderem quem antes desvalorizasse a legalidade
ser subvertidos por via legislativa (art. e a Constituição – instrumentos da bur-
8.º/§ 2.º; criticamente, com uma com- guesia –, contrapondo-lhe o processo
paração com a solução constitucional revolucionário em curso (Lucas Pires
vigente depois de 1976, CANOTILHO, fala de um “binómio Constituição-Re-
1979, 94). Registe-se que, mesmo entre volução” [PIRES, 1988, 146]; sobre este,
os protagonistas de 28 de maio de 1926, no quadro das discussões na Constituin-
houve oposição específica ao projeto te, veja-se MIRANDA, 1978, em especial
constitucional. Com efeito, José Vicente 32-37), tendo pairado no ar a possibili-
de Freitas criticou o projeto, tendo envia- dade de não terminar o procedimento
do uma exposição ao Presidente Óscar constituinte. Assim, a aprovação do tex-
Carmona, o que levou a que fosse demi- to foi vista como “fronteira da democra-
tido do cargo de presidente da Comissão cia” contra as forças revolucionárias que
Administrativa da Câmara Municipal de apontavam para a dissolução da Assem-
Lisboa. Nesse documento, que foi publi- bleia Constituinte (MELO et al., 1981,
cado pelo jornal O Século (12 fev. 1933), 23). A linha de defesa da Constituição
afirma-se partidário de uma corrente como baluarte das conquistas de Abril,
“francamente republicana, que, sem de claramente assumida pelo Partido Co-
nenhuma maneira defender o regresso à munista Português (PCP) (paradigma-
ordem política criada pela Constituição ticamente, Álvaro Cunhal recusa que o
de 1911, é francamente liberal e demo- Partido se tivesse anteriormente oposto
crática” (p. 1) (uma síntese de outras crí- à Assembleia Constituinte e à Consti-
ticas pode ver-se em MATOS, 2004, 321, tuição [CUNHAL, 1976], polémica não
n.º 29, referindo posições da “ultradirei- extinta: BRITO, 2010, 200-201, 204-210;
ta e do republicanismo conservador”; al- contra, JARA, 2013), teve tradução no
guns subsídios para o tema podem ver-se discurso político-constitucional. Após as
também em FARINHA, 2002). eleições de 2 de dezembro de 1979, que
Quanto à atual Constituição, nascida levaram à vitória da Aliança Democráti-
da Revolução de Abril, uma corrente mi- ca, Vital Moreira recusa que as eleições
noritária começou por criticá-la, tendo, pudessem ser lidas como um “referendo
inclusivamente, faltado unanimidade na anticonstitucional”, isto na sequência da
sua aprovação (veja-se a posição do CDS afirmação de um dos dirigentes da coli-
(Centro Democrático Social)). Em ter- gação vencedora, que disse que “a Cons-
mos de anticonstitucionalismo específi- tituição passou à oposição” (MOREIRA,
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450 Anticonsumismo
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Anticonsumismo 451
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AnticorporAtivismo 457
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458 AnticorporAtivismo
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460 AnticorporAtivismo
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AnticorporAtivismo 461
franceses da ciência corporativa, que foi travado em torno da opção por sindicatos
sobretudo aplicada às organizações pro- mistos ou separados, ou seja, mais ou me-
fissionais e a alguns sectores da atividade nos corporativos.
económica. Embora tenha imitado algum Enquanto ideia em movimento no
discurso italiano e mantido o culto pelo contexto histórico de superação autori-
sociologismo católico antimoderno de tária do Estado liberal, o corporativismo
Albert de Mun e de René de La Tour du despertou um entusiasmo internacional
Pin, durante esses anos o corporativismo expresso em inúmeras publicações e
francês construiu a sua própria doutrina. conferências. A associação do corporati-
Autores como Maurice Bouvier-Ajam e o vismo ao fascismo, sendo uma evidência
referido Gaetan Pirou, ambos professores histórica e não um facto acidental, foi o
de Direito, juntamente com o economis- argumento fundamental do anticorpora-
ta católico François Perroux (traduzido tivismo, oposição que se enquadra no âm-
em Portugal), ocuparam-se não apenas bito mais vasto do antifascismo (&Antifas-
da questão operária e da corporação em cismo), que supõe ele próprio toda uma
si mesma, mas também das organizações memória social da ideologia corporativis-
patronais e do conceito de “empresa cor- ta e da prática política dos seus agentes e
porativa”. das suas instituições.
O ralliement do corporativismo com o
princípio autoritário e totalitário das vá-
rias direitas europeias que subscreveram
a ideia de uma terceira via foi politica- Bibliog.: ALMODOVAR, António, e CARDO-
mente eficaz, porque invocou os riscos SO, José Luís, “Corporatism and the econo-
do individualismo e do materialismo, a mic role of government”, in MEDEMA, Ste-
anomia social denunciada pelos solidaris- ven G., e BOETTKE, Peter (orgs.), The Role of
Government in the History of Economic Thought,
tas, o parlamentarismo estéril e a insidio-
Durham/London, Duke University Press,
sa ideia de nação inventada pelas revolu- 2005, pp. 333-354; BORTOLOTTO, Guido,
ções liberais. Denunciando estes alegados Politica Corporativa, Milano, Hoepli, 1934;
vazios, ergueram-se, em primeiro lugar, o CAETANO, Marcello, Lições de Direito Corpora-
catolicismo social e a intransigência pa- tivo, Lisboa, Oficina Gráfica, 1935; Id., Proble-
pal, em contingente aliança. Já na déc. de mas da Revolução Corporativa, Lisboa, Editorial
1870, em França e na Bélgica, fora pro- Acção, 1941; DENIS, Henri, La Corporation,
posto um retorno à ordem cristã, a única Paris, PUF, 1941; DONZELOT, Jacques, L’In-
vention du Social. Essai sur le Déclin des Passions
suscetível de assegurar a paz social, recu-
Politiques, Paris, Seuil, 1994; FERNANDES,
perando o valor moral e profissional do António Júlio de Castro, O Corporativismo Fas-
trabalho. Igualmente se defendia uma cista, Lisboa, Editorial Império, 1938; HALL,
ordem política de raiz tomista, assente na Peter A., e SOSKICE, David (orgs.), Varieties of
representação dos corpos intermédios, Capitalism. The Institutional Foundations of Compa-
ideia que muito se animou no final desse rative Advantage, New York, Oxford University
século. Porém, esse sistema sociopolítico Press, 2003; KAPLAN, Steven L., e MINARD,
Philippe (dirs.), La France, Malade du Corporatis-
antirrevolucionário e antidemocrático
me? XVIIIe-XXe Siècles, Paris, Belin, 2004; LEITE,
não poderia funcionar sem um Estado João Pinto da Costa (Lumbrales), A Doutrina
forte e capaz de tornar obrigatórias as Corporativa em Portugal, Lisboa, Livraria Clás-
corporações, embora algumas correntes sica, 1936; LUCENA, Manuel de, A Evolução
corporativistas cristãs as tenham recla- do Sistema Corporativo Português, 2 vols., Lis-
mado livres. Um debate semelhante foi boa, Perspectivas & Realidades, 1976; MAN,
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462 Anticosmopolitismo
“C
Vital, Auto-Regulação Profissional e Administra-
osmopolita” e “cosmopolitismo”
ção Pública, Porto, Almedina, 1997; NUNES,
Adérito Sedas, Situação e Problemas do Corpora- são termos antigos que apontam
tivismo, Lisboa, Gabinete de Estudos Corpora- para uma realidade complexa e evolutiva
tivos, 1954; PEREIRA, Pedro Teotónio, A Ba- no espaço e no tempo, a saber, o modo
talha do Futuro. Organização Corporativa, 2.ª ed., como os cidadãos de uma determinada
Lisboa, Livraria Clássica, 1937; PERROUX, comunidade política, de carácter na-
François, Capitalisme et Comunnauté de Travail, cional, supranacional ou infranacional,
Paris, Librairie du Receuil Sirey, 1937; PINTO, constroem e percecionam as suas relações
João Manuel Cortez, A Corporação. Subsídios com os outros, que não são cidadãos ou
para o Seu Estudo, 2 vols., Coimbra, Coimbra estão ligados a outras partes do mundo.
Editora, 1955; PIROU, Gaétan, Éssais sur le “Cosmopolita” tem origem etimológica
Corporatisme, Paris, Librairie du Recueil Si- no termo grego “kosmopolitês”, compos-
rey, 1938; Id., Néo-Libéralisme, Néo-Corporatis-
to por “kosmós”, que significa mundo, e
me, Néo-Socialisme, 4.ª ed., Paris, Gallimard,
por “politês”, que significa cidadão, sen-
1939; ROSAS, Fernando, e GARRIDO, Álvaro
(orgs.), Corporativismo, Fascismos, Estado Novo,
do pois cosmopolita aquele que se vê a
Coimbra, Almedina, 2012; ROSENSTOCK- si mesmo como cidadão do mundo, que
FRANCK, L., L’Économie Corporative Fasciste en gosta do mundo e, por isso, se abre ao
Doctrine et en Fait. Ses Origines Historiques et Son mundo.
Évolution, Paris, Gamber, 1934; SANTOMAS- Com a mesma origem etimológica, cos-
SIMO, Gianpasquale, La Terza Via Fascista. Il mopolitismo é a doutrina político-filosó-
Mito del Corporativismo, Roma, Carocci, 2006; fica que defende o princípio e a prática
SCHMITTER, Philippe C., “Still the century of de abertura ao mundo pelos cidadãos.
corporatism?”, in SCHMITTER, Philippe C., e O termo “cosmopolitismo” expressa ain-
LEHMBRUCH, Gerhard (orgs.), Trends towards da a atitude favorável a uma presença de
Corporatist Intermediation. Contemporary Political pleno direito das pessoas no mundo.
Sociology, vol. i, London, Sage Publications,
São, assim, elementos essenciais dos
1979, pp. 7-52; Id., Portugal: do Autoritarismo
conceitos de cosmopolita e de cosmopo-
à Democracia, Lisboa, Imprensa de Ciências
litismo a atitude de abertura ao mundo
Sociais, 1999; SPIRITO, Ugo, Princípios Funda-
mentais de Economia Corporativa, Lisboa, Livra- protagonizada pelos cidadãos de uma
ria Clássica, 1934; TORGAL, Luís Reis, Estado determinada comunidade política e a de-
Novo, Estados Novos, 2 vols., Coimbra, Impren- cisão dos poderes públicos dessa comuni-
sa da Universidade de Coimbra, 2009; WIAR- dade política, visando garantir essa aber-
DA, Howard J., Corporatism and Development: tura como desígnio histórico. Com efeito,
the Portuguese Experience, Amherst, The Univer- atos tão comuns ou plausíveis como viajar,
sity of Massachussets, 1977; WILLIAMSON, dar trabalho a um imigrante ou acolher
Peter J., Corporatism in Perspective. An Introduc- um refugiado não dependem apenas de
tory Guide to Corporatist Theory, London, Sage decisões individuais, mas da existência de
Publications, 1989. uma cultura político-jurídica que garanta
Álvaro Garrido que isso é possível. Faz toda a diferença
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Anticosmopolitismo 463
um país aceitar ou não imigrantes, assim uma impossibilidade, dado que a UE não
como reconhecer-lhes ou não direitos. é uma nação; só que a UE foi construída
E, no caso de se reconhecerem direitos, como sendo portadora de valores e inte-
é significativo saber que direitos se reco- resses que, tendo origem e justificação
nhecem, como se reconhecem e porque nacional, ligam harmonicamente várias
se reconhecem. O mesmo vale para os nações.
deveres. O Tratado da União Europeia, de 1992,
A abertura cosmopolita é particular- ao consagrar a cidadania europeia, estabe-
mente evidente em períodos históricos leceu que são cidadãos europeus apenas
marcados pela liberdade de circulação os cidadãos nacionais dos Estados mem-
das pessoas para lá das suas fronteiras bros da UE. Essa posição foi confirmada
nacionais ou naturais. Na União Euro- pelos tratados posteriores a 1992, que al-
peia (UE), e.g., no início do séc. xxi, a teraram os tratados europeus iniciais. To-
liberdade de circulação de pessoas é não davia, a partir de 1992, e de forma cada
apenas uma liberdade de facto, mas uma vez mais intensa, na prática, quer a UE,
liberdade política e jurídica. Nesse senti- quer os Estados membros da UE passaram
do, a UE é, nos alvores desse século, palco a reconhecer aos cidadãos de Estados ter-
de uma verdadeira cidadania cosmopoli- ceiros mais direitos do que era usual, num
ta – consagrada no seu direito –, aberta processo evolutivo que tendeu a reconhe-
não só aos cidadãos nacionais dos Estados cer os mesmos direitos a todas as pessoas,
membros, mas a pessoas originárias de independentemente da sua origem ou
Estados terceiros que, em determinadas proveniência, com a consequente altera-
condições, gozam de direitos de cidada- ção da interpretação e aplicação dos prin-
nia muito semelhantes aos dos cidadãos cípios de cidadania ativa.
da UE. Para além de ser um substantivo que
Sem prejuízo de outras influências, a expressa a qualidade de pertença de
noção de cosmopolitismo do séc. xxi in- uma pessoa a uma comunidade política
corpora principalmente elementos mo- – convindo não esquecer que, na França
dernos e pós-modernos, que estão pre- revolucionária, as pessoas foram tornadas
sentes no conceito de cidadania europeia cidadãs à força, como forma de acentua-
definido no direito da UE. É verdade que ção de um ideal nacional expresso, e.g.,
existiam cidadãos nas sociedades clássicas numa língua própria e única –, “cidadão”
grega e latina, mas o conceito de cidadão é também um adjetivo que expressa a
que chegou aos sécs. xx e xxi é moder- qualidade de participação na vida da co-
no, com origem na Revolução Francesa, munidade política. É o caso da participa-
identificando cada indivíduo com uma ção cidadã ou da participação política das
nação e um Estado específicos. Sendo pessoas como membros de comunidades
esse conceito ainda operacional no plano plurais, nas quais as diferenças entre as
político-jurídico, ajustou-se às exigências pessoas são significativas. Esta vontade
de sociedades pós-modernas e pós-mate- e este desejo, quer dos governos, quer
rialistas como são tipicamente as socie- dos partidos políticos, quer ainda dos
dades europeias de finais do séc. xx e movimentos cívicos e dos cidadãos elei-
princípios do séc. xxi. Para os revolucio- tores, de maior participação política vale
nários franceses, cidadão era o cidadão principalmente, nos primeiros anos do
nacional, pelo que, à luz deste princípio séc. xxi, para os cidadãos nacionais dos
nacionalista, a cidadania europeia seria Estados membros da UE, mas está para
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464 Anticosmopolitismo
além deles, como se comprova pela cres- oportunidades, enquanto luta contra os
cente inclusão, durante esse período, nos desafios que tem pela frente. Esta políti-
Governos nacionais de alguns Estados da ca – atualmente em desenvolvimento – é
UE (e.g., Suécia, Portugal, França, Alema- construída na solidariedade e na respon-
nha e Itália) de cidadãos originários de sabilidade. Ela terá a vantagem de dar
Estados terceiros, ainda que entretanto uma contribuição valiosa para o desenvol-
tenham adquirido a cidadania nacional. vimento económico da União Europeia e
Poderia pensar-se que prevalecem, no para o seu desempenho a longo prazo”
início do séc. xxi, na Europa e no mundo, (EUROPEAN COMMISSION, MIGRA-
ideologias e atitudes cosmopolitas, de bra- TION AND HOME AFFAIRS, 2016). Se a
ços abertos aos outros, mas não é assim, vontade política de fomento da mobilida-
ou não é necessariamente assim. À luz do de de pessoas e de atração de imigrantes
dia ou no subterrâneo das mentalidades, o parecia clara, verificaram-se no entanto,
anticosmopolitismo surge, neste período, de modo consistente, em vários Estados
como uma expressão de comportamentos membros, sentimentos individuais e po-
individuais e como uma ideologia políti- líticas públicas contrários a essa vontade.
co-social contrárias à abertura referida. Como interpretar este facto?
É o caso, e.g., das atitudes xenófobas em A rejeição de abertura ao mundo pró-
relação a pessoas de outras culturas e das pria do anticosmopolitismo tanto pode
ideologias promotoras de leis restritivas da ser uma rejeição de princípio – contra
imigração, que podem ser verificadas em o relacionamento generalizado entre
muitos países europeus. pessoas de diferentes proveniências ou
É um facto que a mobilidade humana culturas – como pode ser uma rejeição
foi garantida, pelo menos para determi- mitigada – em função do contexto. Foi
nados efeitos, pelos direitos nacionais e esta última situação que se verificou na
pelo direito internacional – nomeada- Europa, onde muitos políticos, por ra-
mente, o reconhecimento, pelo direito zões eleitorais, se comportaram – e.g., em
da UE, da cidadania europeia a todos os relação aos imigrantes ou aos refugiados
cidadãos dos Estados membros da União – em função da perceção que as pessoas
e, em função de determinados requisi- tinham do que se passava à sua volta, mes-
tos, aos originários de Estados terceiros. mo que isso fosse contrário aos proclama-
Quanto a estes últimos, as políticas de dos princípios de abertura cosmopolita.
imigração dos Estados nacionais e da UE A tortuosa política europeia de princí-
foram complementadas por ações de sen- pios do séc. xxi em relação aos imigran-
sibilização, visando garantir a sua mobili- tes justificaria, só por si, a necessidade
dade em todo o território europeu. Nas de estudar os comportamentos anticos-
primeiras décs. do séc. xxi, a UE precisa- mopolitas em função de um conceito de
va de profissionais qualificados e não qua- anticosmopolitismo capaz de abranger
lificados e, por isso, procurava atraí-los e a nova realidade. Mas existiu uma razão
reconhecer-lhes direitos. Num documen- adicional para que isso fosse feito. A evo-
to de 2016 da Comissão Europeia, dizia-se lução das relações políticas, sociais e cul-
que “uma maior mobilidade traz consigo turais num mundo em mudança exigiu
oportunidades e desafios”, e acrescenta- um aperfeiçoamento do manancial teó-
va-se: “Uma política de imigração equi- rico e o desenvolvimento de novos con-
librada, abrangente e comum vai aju- ceitos. Na primeira metade do séc. xix,
dar a União Europeia a aproveitar essas Alexis de Tocqueville (1805-1859), num
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482 AnticruzAdismo
sus Cristo na véspera da Batalha de Ouri- políticas não existiam na Idade Média, a
que, que sabemos não ter passado de um mesma que produziu a jihad e a cruzada:
fossado próprio da guerra de fronteira, o Mediterrâneo não se detinha perante
derrota cinco reis mouros, também eles os conflitos. A Hispânia, o Norte de Áfri-
inexistentes na conjuntura do al-Andalus ca, a Sicília, o Sul de França, as cidades
em 1139. Esta narrativa será com frequên- italianas e o Oriente mantinham intensas
cia repetida como argumento a favor da trocas comerciais. E, nas naves do comér-
independência de uma nação forjada cio, viajavam livros, sábios e peregrinos,
pelo favor divino e pela bravura militar. que faziam circular a cultura e a religião
Será assim com o Estado Novo no séc. xx. por todas as costas do mare nostrum.
A imagem de Ourique é tão poderosa,
que tanto a Monarquia como a República
a mantiveram no escudo da bandeira de
um Portugal que se definia por oposição
ao elemento muçulmano (mas também
castelhano).
Bibliog.: AFONSO X, Siete Partidas, Madrid,
Esta ideologia ditará, de resto, o atraso Real Academia de la História, 1807; BAR-
do nosso país na descoberta dos estudos ROS, Maria Filomena Lopes de, Tempos e Es-
de cariz orientalista a partir do séc. xix. paços de Mouros. A Minoria Muçulmana no Reino
Apesar de uma escola de arabistas ainda Português (Séculos XII a XV), Lisboa, FCG/FCT,
no séc. xviii, resultante da política pom- 2007; COELHO, António Borges, Portugal
balina de relações com o reino de Mar- na Espanha Árabe, Lisboa, Caminho, 2008;
FARINHA, António Dias, Os Portugueses em
rocos, e de, já no séc. xx, nomes como
Marrocos, Lisboa, Instituto Camões, 1999;
David Lopes (1867-1942) se terem cor-
FERNANDES, Hermenegildo, Entre Mouros
respondido com os grandes estudiosos e Cristãos: a Sociedade de Fronteira no Sudoeste
do seu tempo, terá sido a publicação de Peninsular Interior (Séculos XII e XIII), Disserta-
Portugal na Espanha Árabe por António ção de Doutoramento em História Medieval
Borges Coelho, uma coletânea de excer- apresentada à Universidade de Lisboa, Lis-
tos de fontes muçulmanas medievais de boa, texto policopiado, 2001; GOITEIN, S.
que emerge o território português dos D., A Mediterranean Society, 5 vols., Berkeley/
Los Angeles/London, University of California
começos do séc. xxi, a funcionar como
Press, 1999; KEEGAN, John, Uma História da
a pedra que agita as águas do charco. Guerra, Lisboa, Tinta da China, 2006; LAGAR-
A fronteira começava a diluir-se, mas seria DÈRE, Vincent, Les Almoravides. Le Djihad An-
necessário esperar pelo pós-revolução de dalou 1106-1143, Paris, L’Harmattan, 1998;
1974 para que a historiografia começasse LOURINHO, Inês, 1147: Uma Conjuntura Vista
a dar passos mais seguros nesta área. Com a partir das Fontes Muçulmanas, Dissertação de
o tempo, o discurso oficial passou a ser de Mestrado em História Medieval apresentada
recuperação do elo com o Mediterrâneo. à Universidade de Lisboa, Lisboa, texto poli-
copiado, 2010; MATTOSO, José, Identificação
Mas os discursos nem sempre coinci-
de Um País – Ensaio sobre as Origens de Portugal,
diram com as práticas. Na obra A Medi- 2 vols., Lisboa, Estampa, 1995; NICOLAU V,
terranic Society, composta a partir dos do- Dum Diversas, 1452; SERRÃO, Joel, e MAR-
cumentos descobertos junto à sinagoga QUES, A. H. Oliveira, Nova História de Portugal,
de Fustat, no antigo Cairo, S. D. Goitein vol. iii, Lisboa, Presença, 1996; VILÁ, Jacinto
refere que, ao ler esses textos – cartas Bosch, Los Almorávides, Granada, Editorial
comerciais, contratos, peças religiosas –, Universidad de Granada, 1998.
fica com a impressão de que as fronteiras Inês Lourinho
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da ordem clerical para pessoas titulares de turo, mas para as dioceses ditas antigas, do
benefícios eclesiásticos, a restrição severa continente, a Santa Sé continuou a evitar
do direito papal de decretar dízimos a clé- usar essa expressão, chamando à nomeação
rigos e igrejas locais, e a obrigatoriedade de enviada pela Coroa “súplica” – nos termos
os clérigos usarem as vestes próprias da sua usados por Alexandre VI – e, aqui ou ali,
ordem. quando o Rei demorava demasiado tempo
Vale a pena considerar, à luz deste esboço a prover alguma diocese, a nomear por ini-
do cenário histórico, um caso típico de lon- ciativa própria, sem mais.
ga disputa entre a Monarquia Portuguesa Neste contexto, generalizável a quase
e o Papa e a Cúria romana, bem inserido, toda a Europa, a Santa Sé sempre reservou
aliás, no contexto geral europeu do crescen- para si a averiguação da idoneidade dos
te e cada vez mais generalizado regalismo candidatos, e a Cúria romana mostrava-
ao longo da Idade Moderna, a saber, a es- -se especialmente ciosa da prerrogativa de
colha e nomeação dos bispos, por misturar que o inquérito não lhe saísse das mãos.
em si fatores de ordem vária, desde os po- No Concílio de Trento, essa resistência foi
litico-eclesiásticos até aos puramente finan- visível, mas os cânones sobre a matéria aca-
ceiros. A solução final dada por Alexandre baram por se inclinar para a proposta de
VI ao conflito provocado pela nomeação do que tal inquérito, remetido, é certo, para
cardeal de Alpedrinha, D. Jorge da Costa, a Cúria, seria feito sob modelo emanado
para arcebispo de Braga passou a ser invo- desta, mas realizado no país ou na região
cada pela Monarquia Portuguesa como fun- do candidato. Naturalmente que o final do
damento para a institucionalização do que processo, com a proclamação da eleição e a
viria a ser, no padroado, a apresentação do bula de nomeação/confirmação, ficava su-
bispo por parte da Coroa e a sua confirma- jeito ao pagamento – por parte do eleito,
ção papal. O Papa prometia no breve Cum nuns casos, de quem o apresentava, noutros
te in Praesentia de 22 de maio de 1503 que, – das anatas, despesa nada negligenciável.
quando novamente vagasse o arcebispado, A totalidade das despesas podia chegar à
o proveria “personae idoneae, pro qua Sua dimensão dos rendimentos anuais de uma
Magestas nobis suplicaverit” (PAIVA, 2006, diocese das mais pequenas, pelo que o Rei
42). Tratava-se, afinal, da formalização de não poucas vezes mobilizou os cabidos para
um costume que já vinha da segunda dinas- ajudarem a tal pagamento.
tia, mas que nunca tinha tomado aparato A Coroa portuguesa nunca se conformou
jurídico estável, nunca tendo abdicado, no com aquela distinção entre súplica e apre-
entanto, a Santa Sé de liderar o processo sentação que a Santa Sé manteve, respeti-
conducente à averiguação e ao reconheci- vamente, em relação às dioceses antigas e
mento da idoneidade dos candidatos apre- às do ultramar, particularmente D. João V,
sentados. Quando, com a bula Praeclara que, no contexto do amplo plano de unir
Charissime de 30 de dezembro de 1551, de o trono e o altar, não descansou enquanto
Júlio III, se deu perpetuamente aos Reis de não conseguiu, em 1740 – à custa inclusi-
Portugal a administração do mestrado das ve de corte de relações diplomáticas –, que
três grandes ordens militares (Cristo, Avis e a Santa Sé formalizasse unicamente pela
Santiago) e com isso chegou à plena matu- apresentação o que na realidade já vinha
ridade o direito de padroado para todo o sendo praticado ao longo de três séculos.
Império, a apresentação dos bispos por par- É neste contexto que é muito ilustrativa
te da Coroa foi formalizada para as dioceses do espinho anticurialista encravado no pé,
ultramarinas já existentes e a fundar no fu- por assim dizer, da monarquia moderna e
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absolutista portuguesa a notícia que o pró- tra as usurpações e vícios dos curiais roma-
prio D. João V deixou numa carta a Pedro nos […]. Grande prova do magnânimo es-
da Mota e Silva, secretário de Estado dos pírito de Gerson! Levantar a voz e levantá-la
Negócios Interiores do Reino e irmão do bem alto contra uns direitos que a cúria ro-
cardeal da Mota, de que, por ocasião da no- mana, aproveitando-se da inércia de alguns
meação de vários prelados simultaneamen- Príncipes seculares e da indiscreta incredu-
te, “já tinha enviado um agente seu a casa lidade do Povo, queria fossem respeitados
do patriarca por causa da ‘ladroeira dos gas- e obedecidos como Direitos divinos, como
tos chamados dos processos’” (Id., Ibid., 86). máximas do Evangelho” (SANTOS, 1982,
Uma versão mais plurifacetada de aversão 176). Os censores da Tentativa Theológica
à Cúria romana, pelo que esta significa de unanimemente recomendaram a sua pu-
centralização romana que ofuscou a digni- blicação pela virtude teológica de recordar
dade original do bispo, reduzido à condição o valor original do ministério episcopal,
de funcionário do Papa, pelo que isso sig- conforme a tradição eclesial mais antiga
nifica, conexamente, de barreira às preten- evidencia, entretanto ofuscado pela excessi-
sões regalistas e, finalmente, pela imagem va reserva de atos ministeriais por parte do
final de boca sugadora de dinheiro, como Papa e da Cúria. Vale a pena, para o nosso
símbolo da humilhação infligida por um tema, transcrever um deles, Fr. João Baptis-
poder desprovido de autoridade, encon- ta de S. Caetano, que chama a atenção para
tramos, pouco mais tarde, nas declarações uma verdadeira caricatura da centralização
dos censores da Tentativa Theológica, publi- sustentada pela Cúria romana: “Pretende
cada em 1766, do P.e António Pereira de alguém casar, não importa que seja nobre
Figueiredo, o teólogo oficial do regalismo ou mecânico, que tenha causa ou que não
pombalino. O impedimento do recurso à tenha causa para a dispensa, porque dinhei-
Sé Apostólica era o corte em curso das rela- ros já entram no número dos motivos dela
ções diplomáticas entre Portugal e a Santa […]. Pede a dispensa e tão breve envia a
Sé, devido, entre outras razões, à recusa pa- remessa, como vem a expedição, porque se
pal em que os Jesuítas, já extintos aqui, fos- o banqueiro avisa que há dificuldade, já a
sem julgados exclusivamente por Portugal. praxe tem ensinado que estas palavras, na
O próprio P.e Figueiredo invoca como seu frase daqueles contratadores, significam:
modelo Jean Gerson (1363-1429), impor- que vá mais dinheiro. Vem o Breve. Mas em
tante teólogo e autor espiritual do tempo que forma? Virá a causa julgada, averigua-
do Cisma do Ocidente e por cuja solução dos os motivos e feita a graça? Nada menos:
muito lutou e escreveu (especialmente Do há já muitos anos que o estilo da cúria está
Modo de Se Conduzir num Tempo de Cisma e em passar estes Breves em forma comissória
De Restitutione Obedientiae, escritos ambos a e não em forma graciosa e é o mesmo que
partir de 1397). Neste autor, que sustentou vir licença para que o Bispo dispense sendo
a superioridade do concílio-geral em re- a causa certa. Nada se averigua em Roma:
lação ao Papa e participou na elaboração todo o conhecimento desta causa mais tor-
dos famosos quatro artigos do Concílio de na para o Bispo a quem se ordena que dis-
Constança, a futura carta do galicanismo, pense; em Roma ficaram os dinheiros e cá
encontra o P.e Pereira de Figueiredo uma hão de fazer os processos” (Id., Ibid., 181).
teologia “sempre regulada pelas máximas Na realidade, o contexto histórico, am-
da antiguidade. Por isso, discorria sempre plamente ideológico-político, em que o
com solidez; nunca se deixava arrastar por discurso anticurialista confessadamente se
novidades. Declamou como ninguém con- comprometeu com o poder civil regalista,
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começos do séc. xxi, o ordenamento ca- Papa Bento XVI (n. 1927).
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Europa Central obteve um controlo progra- Necessidade dos Súbditos, Lisboa, Officina de
mado e consciente da Cúria romana, fazen- Miguel Rodrigues, 1766; HOLMES, J. Derek,
do substituir praticamente todo o trabalho e BICKERS, Bernard W., História da Igreja Ca-
preparatório do Concílio por ela realizado. tólica, Lisboa, Edições 70, 2006; KNOWLES,
David, e OBOLENSKY, Dimitri, A Idade Média,
E foi essa substituição o motor da direção
in ROGIER, L.-J. et al., Nova História da Igreja,
teológica de fundo. vol. ii, Petrópolis, Editora Vozes, 1983; MAR-
Esta oposição entre episcopados e Cúria COS, Rui Manuel Figueiredo, A Legislação Pom-
romana não foi, no entanto, esvaziada pela balina. Alguns Aspectos Fundamentais, Coimbra,
“derrota” sofrida pela segunda no Concí- Almedina, 2006; MONDIN, Battista, Dizio-
lio, antes continuou e está na base de uma nario Enciclopedico dei Papi. Storia e Insegnamenti,
das bandeiras do pontificado de Bento XVI Roma, Città Nuova Editrice, 1995; OLIVEIRA,
Miguel, História Eclesiástica de Portugal, ed. rev. e
(2005-2013), que ele explicitou como a ne-
atualizada por Artur Roque de Almeida, Mem
cessidade de uma apropriação e receção do Martins, Europa-América, 1994; ORLANDIS,
Concílio numa “hermenêutica de continui- José, Historia de las Instituciones de la Iglesia Ca-
dade”, i.e., uma hermenêutica que lance tólica, Pamplona, Ediciones Universidad de
um olhar sobre o Concílio supondo-o numa Navarra S.A., 2005; PAIS, Álvaro, Estado e
completa integração na longa, longínqua e Pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), esta-
perene Tradição da Igreja, em vez de o su- belecimento do texto e trad. Miguel Pinto de
Meneses, introd. João Morais Barbosa, vol. i,
por como uma solução de continuidade em
Lisboa, Instituto Nacional de Investigação
relação a essa mesma Tradição.
Científica, 1983; PAIVA, José Pedro, Os Bispos
de Portugal e do Império: 1495-1777, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 2006; SANTOS,
Cândido dos, “António Pereira de Figueire-
do, Pombal e a Aufklärung: ensaio sobre o
Bibliog.: BARBOSA, David Sampaio Dias, regalismo e o jansenismo em Portugal na
“Santa Sé e Portugal”, in AZEVEDO, Carlos 2.ª metade do século xviii”, Revista de Histó-
Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa ria das Ideias, vol. iv, t. i, 1982, pp. 167-203;
de Portugal, vol. 4, Lisboa, Círculo de Leito- SEABRA, João, O Estado e a Igreja em Portugal
res/Centro de Estudos de História Religiosa no Início do Século XX. A Lei da Separação de 1911,
da Universidade Católica Portuguesa, 2001, Cascais, Principia, 2009.
pp. 155-164; BENTO XVI, “Discurso aos car-
Pedro Carlos Lopes de Miranda
deais, bispos e prelados da Cúria romana na
apresentação dos votos de Natal”, Roma,
22 dez. 2005; FELÍCIO, Manuel da Rocha,
Portugal e a Definição Dogmática da Infalibilidade
Pontifícia. Teologia, Magistério e Debate Público,
Viseu, Instituto Superior de Teologia, 2000;
FERREIRA, Manuel de Pinho, A Igreja e o Es-
tado Novo na Obra de D. António Ferreira Gomes,
Dissertação de Doutoramento em Direito Ca-
nónico apresentada à Universidad Pontificia
de Salamanca, Salamanca, texto policopia-
do, 2004; FIGUEIREDO, António Pereira de,
Tentativa Theológica em que Se Pretende Mostrar
Que Impedido o Recurso à Sé Apostólica Se Devolve
aos Senhores Bispos a Faculdade de Dispensar dos
Impedimentos Públicos do Matrimónio e de Prover
em Todos os Mais Cazos Reservados ao Papa to-
das as vezes que assim o Pedir a Pública e Urgente
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