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dicionário

dos

antis

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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA. NÃO É PERMITIDA A COMERCIALIZAÇÃO.
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Direção De

José Eduardo Franco

dicionário
dos

antis
A Cultura Portuguesa em Negativo

CoorD enaç ão De

Adelino Cardoso z Aida Sampaio Lemos


António Castro Henriques z Carlos Fiolhais
Helena Mateus Jerónimo z João Relvão Caetano
Joaquim Pintassilgo z José Carlos Lopes de Miranda
Luís Machado de Abreu z Luiz Eduardo Oliveira
Manuel Curado z Manuel Marques z Micaela Ramon
Pedro Barbas Homem z Ricardo Ventura

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Imprensa Nacional
é a marca editorial da
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A.
Av. de António José de Almeida
1000-042 Lisboa
www.incm.pt
www.facebook.com/INCM.Livros
prelo.incm.pt
editorial.apoiocliente@incm.pt

© Instituto Europeu de Ciências da Cultura P. Manuel Antunes (IECCPMA)


e Imprensa Nacional-Casa da Moeda

Título
Dicionário dos Antis: A Cultura Portuguesa em Negativo – Volume 1
Direção
José Eduardo Franco
Coordenação
Adelino Cardoso, Aida Sampaio Lemos,
António Castro Henriques, Carlos Fiolhais,
Helena Mateus Jerónimo, João Relvão Caetano,
Joaquim Pintassilgo, José Carlos Lopes de Miranda,
Luís Machado de Abreu, Luiz Eduardo Oliveira,
Manuel Curado, Manuel Marques, Micaela Ramon,
Pedro Barbas Homem, Ricardo Ventura
Design, Capa e Paginação
António Rochinha Diogo | ARD-Cor
Edição e Revisão
Maria José Figueiredo (coord.),
Álvaro Almeida, Milene Alves, Vanda Figueiredo
Impressão e Acabamentos
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
1.ª edição
Setembro de 2018
isbn
978-972-27-2716-7
Depósito Legal
443944-18
Edição
1020391

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SUMÁRIO

NOtA EDItORIAL
Duarte Azinheira
vii

PREFÁCIO
Fabrice d’Almeida
ix

ORGANIGRAMA
xiii

tÁBUA DE AUtORES E FILIAÇÃO INStItUCIONAL


xvii

tÁBUA DE CONSULtORES E FILIAÇÃO INStItUCIONAL


xxiii

ABREVIAtURAS E SIGLÁRIO
xxv

INtRODUÇÃO
xxxi

DICIONÁRIO
1

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vi

ELUCIDÁRIO
DE CONCEItOS E CORRENtES AFINS
1945
À LAIA DE ANtIPREFÁCIO
António Araújo
2299
ÍNDICE GERAL
2305

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NOTA EDITORIAL

E sta é uma obra singular, rara e inesperada no panorama editorial do


nosso país e, inclusivamente, a nível internacional.
A Imprensa Nacional entendeu apostar na preparação deste projeto ma-
nifestamente interdisciplinar, que envolve especialistas e investigadores das
mais diversas universidades públicas e privadas portuguesas, em articulação
com colegas de universidades internacionais, para o estudo sistemático e
exaustivo dos Antis e da cultura em negativo de que são expressão.
O Dicionário dos Antis constitui-se como uma espécie de história da
cultura portuguesa, olhada do ângulo dos dinamismos de oposição e de
contradição, que permite compreender-nos a partir de uma perspetiva
inabitual, abrindo caminhos de perceção da “diferença”, de uma forma
inovadora, mais abrangente e mais complexa. O escopo de abarcar as
mais diversas correntes, as várias áreas culturais e ideológicas, juntando
instituições e figuras, assim como novos campos de germinação de ideias e
abordagens da realidade, faz deste dicionário uma obra de conhecimento
crítico, em favor da construção de uma democracia mais sólida, capaz de
gerar uma cultura social mais integradora e plural. Para tal, é importante
desfazer, no plano das heranças culturais, os estereótipos simplificado-
res que criam barreiras de intolerância e que enfraquecem o espírito de
inclusão dos diferentes modos de pensar, de crer e de viver, no quadro
de um desígnio de cidadania livre, próprio das nossas sociedades abertas
mais avançadas.

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O Dicionário que o leitor tem nas suas mãos é, pois, o resultado de um


projeto científico que visa oferecer um conhecimento criticamente enqua-
drado das heranças negativas da nossa cultura que produziram e inspiraram
visões que, atualmente, podem impedir-nos de olhar o Outro ou Outros com
quem convivemos de forma acolhedora e respeitadora da diferença.
Assim, é de grande significado a edição, neste ano de celebração de
uma data histórica tão significativa para a Imprensa Nacional, desta obra
dicionarial com produção científica pioneira, através da qual se inaugura a
publicação dos resultados de um projeto de pesquisa financiado pela nossa
Instituição, e que começa a ser bem acolhido e a ter seguimento como linha
de investigação de ponta noutros países.

Duarte Azinheira
Diretor da INCM

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pREfÁcIO

F oi há sete anos. José Eduardo Franco estava em Paris e apresentou-me


o seu projeto de fazer uma história dos antis e da cultura em negativo
que estes produziram. Dada a diversidade de domínios que teria de abor-
dar, concluiu que só a forma de dicionário permitiria fazer justiça à ampli-
tude desta questão. A ideia seduziu-me imediatamente e, olhando para trás,
perguntei a mim próprio como era possível que tal projeto nunca tivesse
sido realizado. Estava diante de um daqueles conceitos simples e evidentes
que mudam o ângulo de interpretação de toda a evolução humana, mas de
cuja eficácia ainda ninguém se tinha apercebido. Existem, com efeito, nu-
merosas mobilizações e organizações que foram criadas unicamente para se
oporem a uma opção política, a uma ideologia, a uma religião; ou simples-
mente a uma lei, a um decreto; ou então a um espetáculo ou a uma moda.
Existem mesmo gerações inteiras de movimentos de oposição que forjaram
múltiplos vocábulos para assinalar a radicalidade do seu desacordo.
Para um historiador contemporâneo, surgem em primeiro lugar aque-
les que se ergueram contra os princípios que mudaram a sociedade em que
viviam: a contrarreforma, a contrarrevolução, que manifestam o desejo de
bloquear movimentos de transformação que colocavam em perigo, segun-
do os seus promotores, o equilíbrio do mundo. Ora, os que eram contra
esperavam uma erradicação completa desses processos destrutores.
No século xx, desenvolveram-se movimentos anti fortemente implicados
no terreno ideológico e partidário. É a grande época dos anticomunistas,

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dos antifascistas, dos antimarxistas, dos antinazis, dos antimaçónicos..., de


tal modo que estes termos entraram na linguagem corrente e se tornaram
tema de teses e de obras de investigação. Os antis têm como ponto comum
serem simétricos e pressuporem que os seus adversários se manterão ativos
durante muito tempo.
De algumas décadas a esta parte, houve um sufixo que entrou na lingua-
gem corrente para desqualificar um adversário: “fóbico”. Com os islamofó-
bicos, os homofóbicos e outros judeofóbicos, deixou de haver uma oposi-
ção racional; o que há é uma espécie de atribuição de loucura, de doença
mental, que obrigará à exclusão da sociedade dos “fanáticos” que fazem tais
discursos. Estamos perante um testemunho vivo daquela “eufemismização”
da violência pensada por Norbert Elias em La Dinamyque de l’Occident, onde
o pensador alemão profetizou, já antes dos anos de 1960, uma psicologiza-
ção das relações sociais, que iria ao ponto de transformar o debate público
numa polémica clínica...
A originalidade do dicionário que o leitor tem entre mãos consiste
em observar as práticas sociais de hoje e as suas representações em com-
portamentos e argumentações muito mais antigos. E porque não desde a
aurora da humanidade? Vemos assim que os antis não constituem apenas
uma história reduzida às oposições pontuais, mas uma história de cada
século, de tal modo que cada geração escreve a sua própria redefinição
intelectual e alimenta a criação de novas instituições para efeitos de con-
tradição e afronta.
Em suma, José Eduardo Franco e os seus colegas mostram-nos, atra-
vés dos antis, como se tem desdobrado uma dimensão negativa da cultura
desde a Antiguidade. Prolongando o seu propósito, compreendemos que
a crítica acabou por se tornar uma forma de arte: o confronto promove o
saber-fazer, modela maneiras de pensar que constituem uma afirmação. Um
olhar sobre o panorama dos antis permite observar as grandes questões da
civilização ocidental e as tensões que subjazem aos seus enredos. As entra-
das sobre ateísmo e antiateísmo ilustram bem esta perceção e lançam-nos
na longa duração, demonstrando que a atitude de pôr em causa as crenças
está relacionada com os sistemas religiosos de cada época.
O leitor pode usar este livro para tomar conhecimento dos verbetes sabo-
rosos que aguçam a sua curiosidade e navegar aleatoriamente na história;

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ou regalar-se, por assim dizer, lendo a entrada sobre anticarnivorismo


(antiantropofagia); ou ficar admirado ao ver o antidonjuanismo impor-se
como doutrina literária. As ilustrações pertinentes favorecem esta vagabun-
dagem ao sabor do humor, entre retratos de personagens importantes e
cenas inesperadas.
Mas este dicionário permite também uma leitura contínua, como quem
lê um ensaio, repleto de uma série de curtos capítulos ricos em aproxima-
ções entre os valores e os acontecimentos.
Desta leitura, podem retirar-se duas conclusões fundamentais. A primei-
ra é que o Dicionário dos Antis constitui uma verdadeira história pluridiscipli-
nar de Portugal, através de cujas entradas se revisitam as grandes rotações
do país: a reconquista, a afirmação do poder da monarquia, os movimentos
eclesiásticos, nomeadamente os Jesuítas, seguidos das tensões coloniais e
partidárias... também se pode observar de que modo filósofos, historiado-
res, juristas e sociólogos contribuíram, ao lado dos escritores e juntamente
com os políticos, para este movimento. As mudanças, até mesmo da língua
portuguesa, encontram-se nas obras pioneiras que influenciaram o futuro
do estilo académico e político. Por esta via, distingue-se claramente como se
formaram as normas do bem crer, do bem pensar, do bem agir.
Em segundo lugar, a obra ilustra de forma notável a grande utilidade
dos estudos globais aos quais se consagra a equipa responsável por este pro-
jeto. Ao longo das suas muitas páginas, este dicionário manifesta a extraor-
dinária conexão de Portugal com a história do mundo: reencontramos os
contactos aventurosos dos navegadores, bem como o desenvolvimento de
uma esfera lusófona onde circulam as palavras e os discursos de oposição;
viajantes e migrantes são os promotores de uma circulação transnacional
das ideias que aparecem depois com grande vitalidade em Portugal, provin-
das de paradigmas imaginados noutros países. É o caso, por exemplo, do
anticomunismo, cujas raízes remontam, no mundo ocidental, à luta con-
trarrevolucionária, que atingiu o seu cume após 1917; e do antifascismo,
que, nascido em Itália em 1919, se transplantou em seguida, ao ritmo da
radicalização europeia, para a península Ibérica.
No fundo, os antis não têm fronteiras. As bibliografias que concluem os
artigos são a maior prova da variedade de referências e da diversidade da
sua proveniência. O leitor constata de que modo os argumentos passam de

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um país a outro, ora alumiando um debate, ora relançando uma polémica,


ora inspirando certas ondas intelectuais em movimento perpétuo.
Não há dúvida, por outro lado, de que o Dicionário dos Antis vai suscitar
um vasto debate internacional. Não estamos em altura de denunciar este
ou aquele grupo, mas de entrar no laboratório do pensamento dialético,
que é uma maneira de estimular o espírito crítico quando o falso, o virtual
e o verdadeiro se misturam; que é pôr em causa os erros conspirativos e as
certezas abusivas deste mundo dividido entre manipulação e informação
que se tornou o nosso.

Fabrice d’Almeida
Professor catedrático da Université Paris II,
Panthéon-Assas
Antigo diretor do Institut d’Histoire
du temps Présent de Paris

Paris, 14 de fevereiro de 2018

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ORGANIGRAMA

DIREçãO:

José Eduardo Franco

cOORDENAçõES DAS ÁREAS cIENTífIcAS:

CiênCias BioméDiCas: Adelino Cardoso


Manuel Silvério Marques
CiênCias Da eDuCação: Joaquim Pintassilgo
CiênCias eConómiCas: António Castro Henriques
CiênCias juríDiCas: Pedro Barbas Homem
CiênCias Literárias: Micaela Ramon
CiênCias PoLítiCas: João Relvão Caetano
FiLosoFia e CuLtura: Luís Machado de Abreu
História: Ricardo Ventura
História Da CiênCia e Da teCnoLogia: Carlos Fiolhais
LinguístiCa: Aida Lemos
FiLosoFia Da mente, PsiCoLogia e esoterismo: Manuel Curado
soCioLogia: Helena Mateus Jerónimo
estuDos Da reLigião/teoLogia: José Carlos Lopes de Miranda

cOORDENAçãO DO pROjETO NO BRASIL:

Luiz Eduardo Oliveira

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cONSELHO cIENTífIcO cONSULTIVO INTERNAcIONAL:


Ana Gabriela Macedo
Arthur M. Melzer
Christine Vogel
Cristina Montalvão Sarmento
Francisco Proença Garcia
Guido Giglioni
Guilherme d’Oliveira Martins
Henrique Leitão
… Hermínio Martins
Isabel Morujão
Isaías Hipólito
Jean Lauand
João Paulo Oliveira e Costa
José Álvaro Moisés
José Ignacio Ruiz Rodriguez
… José Manuel Paquete d’Oliveira
Luís Miguel Bernardo
Maria do Carme Fernández Pérez-Sanjulián
Marcia Arruda Franco
Maria Isabel Morán Cabanas
Onésimo teotónio de Almeida
Paulo Ferreira da Cunha
Paulo Maria Bastos da Silva Dias
Pedro Calafate
Pierre Antoine Fabre
Robert W. Wallace
Rosa Sequeira
teresa Pinheiro
timothy Walker
Ursula Hoffmann-Lange
Valèrie Delivard

SEcRETARIADO EXEcUTIVO:
Carolina Soares
Cristiana Lucas Silva
Helena Costa Carvalho
Luís Pinheiro
Mariana de Soveral Gomes da Costa
Rita Balsa Pinho
Sofia A. Carvalho
Vanda Figueiredo

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CoorDenação De revisão: Maria José Figueiredo


equiPa De revisão: Álvaro Almeida
Bruno Venâncio
Helena Costa Carvalho
Joana Lima
Margarida Nobre Bábau
Milene Alves
Samuel Carvalhais de Oliveira
Sara Carvalhais de Oliveira

ENTIDADE pROMOTORA E fINANcIADORA:

Imprensa Nacional-Casa da Moeda

INSTITUIçõES cIENTífIcAS cOORDENADORAS:

Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos


e a Globalização (CIDH), Universidade Aberta (UAb)/Centro
de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras,
Universidade de Lisboa (CLEPUL-FLUL)
Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes

UNIDADES DE INVESTIGAçãO ASSOcIADAS:

Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (CEHUM)

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

Centro de Física da Universidade de Coimbra (CFisUC)

Centro de Humanidades – Universidade


Nova de Lisboa/Universidade dos Açores (CHAM-UNL/UAc)

Centro de Investigação teoria e História do Direito,


da Universidade de Lisboa (tHD-ULisboa)

Centro Nacional de Cultura (CNC)

Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP)

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL)

Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (IE-UL)

Instituto de História e teoria do Direito da


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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Centro de Investigação em Sociologia Económica


e das Organizações, Instituto Superior de Economia e Gestão
da Universidade de Lisboa (CSG/SOCIUS-UL)

Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro (CLLC-UA)

C.A. – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra (RÓMULO-CCVUC)

Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional de Braga (UCP-Braga)

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TÁBUA DE AUTORES
E fILIAçãO INSTITUcIONAL

Acílio da Silva Estanqueiro ROCHA Ana GONÇALVES


(CePs, instituto de Letras e Ciências Humanas, (iCs, universidade de Lisboa/Cria,
universidade do minho) isCte, instituto universitário de Lisboa)

Adelino CARDOSO Ana Leal de FARIA


(CHam, Faculdade de Ciências sociais e Humanas,
(CH, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
universidade nova de Lisboa)

Alberto VIEIRA Ana M. Bijóias MENDONÇA


(CeHa, Direção regional de Cultura, secretaria regional (CFe, Centre for Functional ecology: science for People &
do turismo e Cultura do governo regional da madeira) the Planet, universidade de Coimbra/Bolsa FCt – sFrH/
BD/116623/2016)
Alexandra Soares RODRIGUES
(escola superior de educação, instituto Politécnico de Ana María S. tARRÍO
Bragança/CeLga-iLteC, universidade de Coimbra) (CeC, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
Álvaro ALMEIDA
(ieF, Faculdade de Letras da universidade de Coimbra/
Ana Paula Beja HORtA
CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) (Cemri, universidade aberta)

Álvaro GARRIDO Ana RIBEIRO


(Ceis20, Faculdade de economia, universidade (CeHum, universidade do minho)
de Coimbra)
Ana Rita ALVES
Amélia POLÓNIA
(Ces, universidade de Coimbra)
(CitCem, Faculdade de Letras, universidade do Porto)

Anamarija MARINOVIC
Ana Caldeira FOUtO
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa/
(tHD, Faculdade de Direito, universidade de Lisboa) Faculdade de Filologia, universidade de Belgrado)

Ana Catarina ROCHA


André PACHECO
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade
de Lisboa/CLLC, universidade de aveiro) (CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

Ana Cristina ARAÚJO Annabela RItA


(CHsC, Faculdade de Letras, universidade de Coimbra) (CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

Ana CRUZ António Castro HENRIQUES


(movimento sos racismo) (Faculdade de economia, universidade do Porto)

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António Graça de ABREU Carlos Manique da SILVA


(Departamento de Ciências sociais, Políticas e do (uiDeF, instituto de educação,
território, universidade de aveiro) universidade de Lisboa)

António M. Amorim da COStA Carlos VIDAL


(Departamento de química, universidade de Coimbra) (Faculdade de Belas-artes, universidade de Lisboa)

António MONIZ Carolina Esteves SOARES


(CHam, Faculdade de Ciências sociais e Humanas, (CHam, Faculdade de Ciências sociais e Humanas/
universidade nova de Lisboa/CLePuL, Faculdade de Letras, CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa) universidade de Lisboa)

António PEREIRA Catarina Barceló FOUtO


(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) (King’s College London)

António VENtURA Cláudia FERNANDES


(CH, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) (ier, universidade de viena, áustria)

Armando MAGALHÃES Conceição Meireles PEREIRA


(iLCH, universidade do minho) (CePese, Faculdade de Letras, universidade do Porto)

Armando Malheiro da SILVA Cristiana Lucas SILVA


(CiC.Digital, Faculdade de Letras, universidade doPorto) (CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Artur Henrique Ribeiro
GONÇALVES Daniel GAMItO-MARQUES
(CiuHCt, Faculdade de Ciências, universidade de Lisboa)
(universidade do algarve/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Décio Ruivo MARtINS
Artur MANSO (CFC, universidade de Coimbra/Centro de geofísica da
universidade de Coimbra)
(ie, universidade do minho)

Diogo DUARtE
Beatriz MIRANDA
(universidade nova de Lisboa/iHC, Faculdade de Ciências
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) sociais e Humanas)

Bruno BARREIROS Enrico BORGHEttO


(CHam, Faculdade de Ciências sociais e Humanas,
(CiCs.nova, Faculdade de Ciências sociais e Humanas,
universidade nova de Lisboa)
universidade nova de Lisboa)

Bruno Cardoso REIS Ernesto Castro LEAL


(Cei-iuL, isCte)
(CH, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

Bruno VENÂNCIO
Ernesto RODRIGUES
(ieF, universidade de Coimbra/CLePuL, Faculdade de
Letras, universidade de Lisboa) (CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

Cândido dos SANtOS Eugénia MAGALHÃES


(Faculdade de Letras, universidade do Porto) (ieaC-go/CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade
de Letras, universidade de Lisboa/CH, universidade de
Lisboa)
Carlos BEAtO
(investigador independente)
Everton V. MACHADO
Carlos F. Clamote CARREtO (CeC, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
(ieLt, Faculdade de Ciências sociais e Humanas,
universidade nova de Lisboa) Fernanda SANtOS
(universidade Federal do amapá)
Carlos FIOLHAIS
(CFisuC, universidade de Coimbra/ rómulo-Centro Fernando Augusto MACHADO
Ciência viva da universidade de Coimbra) (CeHum, universidade do minho)

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Fernando AZEVEDO Isilda Braga da Costa MONtEIRO


(CieC.um, universidade do minho) (ese de Paula Frassinetti/CePese, universidade do Porto)

Fernando GRILO Jerónimo tRIGO


(artis, instituto de História da arte, Faculdade de Letras, (Faculdade de teologia, universidade Católica Portuguesa,
universidade de Lisboa) Lisboa)

Fernando Mendonça COStA Jesué Pinharanda GOMES


(isCsP-uL/CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de (academia Portuguesa da História)
Lisboa/universidade aberta)
Joana Balsa de PINHO
Filipe Arede NUNES (CLePuL, Faculdade de Letras da universidade de Lisboa/
(tHD, Faculdade de Direito, universidade de Lisboa) artis, instituto de História da arte, universidade de Lisboa)

Giuseppe MARCOCCI Joana LIMA


(exeter College, university of oxford, uK) (CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Gonçalo M. tAVARES
(Faculdade de motricidade Humana, universidade de João CAMBADO
Lisboa) (CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

Helena BACELAR-NICOLAU João Carlos Gonçalves SERAFIM


(isamB, Faculdade de medicina, universidade de Lisboa/ (CitCem, Faculdade de Letras, universidade do Porto)
Faculdade de Psicologia, universidade de Lisboa)
João Carlos GRAÇA
Helena Costa CARVALHO (soCius/Csg, iseg, universidade de Lisboa)
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
João Carlos LOUREIRO
Helena Isabel JORGE (ij, Faculdade de Direito, universidade de Coimbra)
(agrupamento de escolas Dr. antónio augusto Louro, seixal)
João Diogo R. P. G. LOUREIRO
Helena Mateus JERÓNIMO (CeCH, universidade de Coimbra)
(iseg, universidade de Lisboa & Csg/advance)
… João Francisco MARQUES
Henrique Manuel PEREIRA (CitCem, Faculdade de Letras, universidade do Porto)
(Citar, universidade Católica Portuguesa, Porto)
João FREIRE
Hilson Cunha FILHO (isCte, instituto universitário de Lisboa)
(CiCs.nova, Faculdade de Ciências sociais e Humanas,
universidade nova de Lisboa) João Manuel DUQUE
(Citer, universidade Católica Portuguesa/CeFH,
Ignacio Chato GONZALO universidade Católica Portuguesa)
(universidad de Zaragoza, i.e.s. “jaranda”, junta
de extremadura) João Oliveira DUARtE
(iHa, Faculdade de Ciências sociais e Humanas,
Inês LOURINHO universidade nova de Lisboa)
(CH, universidade de Lisboa)
João Pedro Silva NUNES
Isabel BALtAZAR (Faculdade de Ciências sociais e Humanas, universidade
(iHC, Faculdade de Ciências sociais e Humanas, nova de Lisboa)
universidade nova de Lisboa/Ceis20, universidade de
Coimbra) João PEIXE
(CeH, universidade do minho)
Isabel Drumond BRAGA
(CiDeHus, universidade de évora/Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
João PEIXOtO
(iseg, universidade de Lisboa)
Isabel LOUSADA
(CiCs.nova, universidade nova de Lisboa/ João Relvão CAEtANO
CLePuL, Faculdade de Letras, universidade (Cemri, universidade aberta/iji, Faculdade de Direito,
de Lisboa/CiDH-mCCLa) universidade do Porto)

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Joaquim BARRADAS Justino MAGALHÃES


(serviço nacional de saúde) (unidade de investigação e Desenvolvimento em
educação e Formação do ie, universidade de Lisboa/CH,
Joaquim PINtASSILGO universidade de Lisboa)

(ie, universidade de Lisboa)


Laurinda ABREU
Jorge Augusto MAXIMINO (CiDeHus, universidade de évora)

(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)


Luís Machado de ABREU
Jorge Bastos da SILVA (CLLC, universidade de aveiro)
(CetaPs, Faculdade de Letras, universidade do Porto)
Luís Salgado de MAtOS
Jorge Freitas BRANCO (CeHr, universidade Católica Portuguesa)
(isCte, instituto universitário de Lisboa/Cria-iuL)
Luísa Antunes PAOLINELLI
José Adelino MALtÊS (universidade da madeira/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
(instituto superior de Ciências sociais e Políticas,
universidade de Lisboa)
Luiz Eduardo OLIVEIRA
José António ALVES (núcleo de estudos de Cultura da universidade Federal de
(CeHum, universidade do minho) sergipe)

… José Augusto MOURÃO Manuel CORREIA


(Faculdade de Ciências sociais e Humanas, universidade (Ceis20, universidade de Coimbra)
nova de Lisboa)
Manuel CURADO
José BARREtO (CeHum, universidade do minho)
(iCs, universidade de Lisboa)
Manuel Silvério MARQUES
José BERNARDINO
(CFuL, universidade de Lisboa)
(CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Manuela FLEMING
José Carlos Lopes de MIRANDA (iCBas, universidade do Porto/sociedade Portuguesa de
Psicanálise)
(Faculdade de Filosofia e Ciências sociais, universidade
Católica Portuguesa)
Manuela SOBRINHO
José Carlos Seabra PEREIRA (agrupamento de escolas Fernando Pessoa – santa maria
da Feira)
(CieC, universidade de Coimbra)

José Eduardo FRANCO Marcelo G. OLIVEIRA


(universidade europeia/CLePuL, Faculdade de Letras,
(CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
universidade de Lisboa)

José Jorge BARREIROS Marco Daniel DUARtE


(Departamento de estudos do santuário de Fátima/
(isCte, instituto universitário de Lisboa)
CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

José Luís GARCIA Margarida SEIXAS


(iCs, universidade de Lisboa) (tHD, Faculdade de Direito, universidade de Lisboa)

José Manuel FERNANDES Maria Carmen de Frias e GOUVEIA


(ieP, universidade Católica Portuguesa) (CeLga-iLteC , Faculdade de Letras, universidade de
Coimbra)
José Maria Silva ROSA
(Faculdade de artes e Letras, universidade da Beira Maria João NOBRE
interior) (CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

José Pedro ZÚQUEtE Maria Luísa GAMA


(iCs, universidade de Lisboa) (CiDeHus, universidade de évora)

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Maria Luísa MALAtO … Paula LAGO


(iLCmL, Faculdade de Letras, universidade do Porto) (CeH, universidade do minho)

Maria Luísa Ribeiro FERREIRA Paula Oliveira e SILVA


(Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) (universidade do Porto)

Maria Manuela tavares RIBEIRO Paulo Drumond BRAGA


(Ceis20, universidade de Coimbra) (CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Mariana Gomes da COStA
(CiDH, universidade aberta/ CLePuL, Faculdade de Letras, Paulo Fernando Rocha ANtUNES
universidade de Lisboa) (CFuL, universidade de Lisboa)

Mário CAEIRO Paulo Mendes PINtO


(LiDa, escola superior de artes e Design de Caldas da (CiCPris, universidade Lusófona de Humanidades e
rainha, instituto Politécnico de Leiria/CeCC, Faculdade de tecnologias)
Ciências Humanas, universidade Católica Portuguesa)

Mário Lopes da SILVA Paulo R. C. JESUS


(Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) (inPP/universidade Portucalense & CF/universidade de
Lisboa)
Marta Marecos DUARtE
(CLP, universidade de Coimbra/CLePuL, Faculdade de Pedro Cabral SANtO
Letras, universidade de Lisboa) (CiaC, universidade do algarve)

Martinho SOARES Pedro Caridade de FREItAS


(universidade Católica Portuguesa/CeCH, universidade de (tHD, Faculdade de Direito, universidade de Lisboa)
Coimbra)

Micaela RAMON Pedro Carlos Lopes de MIRANDA


(escola de teologia e ministérios, Diocese de Coimbra)
(iLCH/CeH, universidade do minho)

Miguel REAL Pedro VIStAS


(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) (CeFi, universidade Católica Portuguesa/ CLePuL,
Faculdade de Letras, universidade de Lisboa/ Labcom.
iFP, universidade da Beira interior)
Míriam Afonso BRIGAS
(tHD, Faculdade de Direito, universidade de Lisboa)
Porfírio PINtO
Moirika REKER (CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
(CFuL, universidade de Lisboa)

Nuno DOMINGOS Rafael COUtINHO


(Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
(iCs, universidade de Lisboa)

Nuno MIRANDA Rafael MARQUES


(socius, Centro de investigação em sociologia económica e
(iPo de Lisboa Francisco gentil)
das organizações/iseg, universidade de Lisboa)

Orlando GROSSEGESSE Ricardo de BRItO


(CeH, universidade do minho)
(CH, universidade de Lisboa)

Orlando Miguel GAMA Ricardo FRANCO


(escola superior de educação-instituto Politécnico
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
de Bragança/CHam, Faculdade de Ciências sociais e
Humanas, universidade nova de Lisboa)
Ricardo VENtURA
Patrícia Ferraz de MAtOS (FCt/CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de
Lisboa)
(iCs, universidade de Lisboa)

Paula CARREIRA Rita Balsa PINHO


(instituto de educação da universidade de Lisboa,
(CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
universidade de Lisboa)

©
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xxii

Rita CACHADO Simão FONSECA


(Cies-iuL) (CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Rosa Maria FINA
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) Sofia A. CARVALHO
(Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
Rui FILIPE
(CLePuL, universidade de Lisboa/ PraXis-Practical
Sofia SANtOS
Philosophy) (CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

Rui Maia REGO Susana ALVES-JESUS


(CFuL, universidade de Lisboa) (CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Rui Manuel Grácio das NEVES
(ordem dos Pregadores – Dominicanos, Convento de são
Susana VIEIRA
Domingos de Lisboa) (CiDH, universidade aberta/CLePuL, Faculdade de Letras,
universidade de Lisboa)
Rui SOUSA
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)
teresa CARVALHO
(CeCH, universidade de Coimbra)
Sandra LEANDRO
(universidade de évora/universidade nova de Lisboa/
teresa Duarte MARtINHO
CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa) (iCs, universidade de Lisboa)

Sara AUGUStO teresa Margarida JORGE


(CPCLP/instituto Politécnico de macau) (agrupamento de escolas terras de Larus – seixal)

Sara Carvalhais de OLIVEIRA teresa NUNES


(CH, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa/iHC,
(CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de Lisboa/ieF,
universidade nova de Lisboa)
universidade de Coimbra)

tiago Rego RAMALHO


Sara tOttA
(iHC, universidade nova de Lisboa)
(CFuL/CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de
Lisboa)
Vanda FIGUEIREDO
(CeHum, universidade do minho/CiDH, universidade
… Sebastião FORMOSINHO aberta/CLePuL, Faculdade de Letras, universidade de
(universidade de Coimbra) Lisboa)

Sérgio BARROS Vera Rocha PRESCOtt


(CLunL, universidade nova de Lisboa) (Faculdade de Letras, universidade de Lisboa)

Sérgio Guimarães de SOUSA Viriato SOROMENHO-MARQUES


(CeHum, universidade do minho) (CFuL, universidade de Lisboa)

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TÁBUA DE cONSULTORES
E fILIAçãO INSTITUcIONAL

Ana Gabriela MACEDO … Hermínio MARtINS


(universidade do minho) (university of oxford/universidade de Lisboa)

António ARAÚJO Isabel MORUJÃO


(universidade de Lisboa) (universidade do Porto)

Arthur M. MELZER Isaías HIPÓLItO


(michigan state university) (universidade de Coimbra)

Christine VOGEL Jean LAUAND


(universidade de são Paulo)
(universität vechta)

João Paulo Oliveira e COStA


Cristina Montalvão SARMENtO (universidade nova de Lisboa)
(universidade de Lisboa)
José Ignacio Ruiz RODRIGUEZ
Fabrice d’ALMEIDA (universidad de alcalá de Henares)

(université de Paris ii Panthéon-assas)


… José Manuel Paquete d’OLIVEIRA
(instituto superior de Ciências do trabalho
Francisco Proença GARCIA e da empresa – instituto universitário de Lisboa)
(universidade Católica Portuguesa)

Luís Miguel BERNARDO


Guido GIGLIONI (universidade do Porto) 
(università di macerata)

Marcia Arruda FRANCO


Guilherme d’Oliveira MARtINS (universidade de são Paulo)
(Fundação Calouste gulbenkian)
Maria do Carme Fernández
Henrique LEItÃO PÉREZ-SANJULIÁN
(universidade de Lisboa) (universidade da Coruña)

©
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xxiv

Maria Isabel Morán CABANAS Pierre Antoine FABRE


(universidade de santiago de Compostela) (école des Hautes études en sciences sociales)

Onésimo teotónio Robert W. WALLACE


(northwestern university)
de ALMEIDA
(Brown university)
Rosa SEQUEIRA
(universidade aberta)
Patrick BOUCHERON
(Collège de France)
teresa PINHEIRO
(technische universität Chemnitz)
Paulo Ferreira da CUNHA
(universidade do Porto)
timothy WALKER
(university of massachussets-Dortmouth)
Paulo Maria Bastos
da Silva DIAS Ursula HOFFNANN-LANGE
(universidade aberta) (universität Bamberg)

Pedro CALAFAtE Valèrie DELIVARD


(universidade de Lisboa) (université Paris ii Panthéon-assas)

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ABREVIATURAS
E SIGLÁRIO

ABREVIATURAS: cor. coronel


corrig. corrigida
a.c. antes de Cristo cx. caixa
ac./acs. acórdão/acórdãos D. Dom/Dona
al. alínea d.c. depois de Cristo
Alf. alferes déc./décs. década/décadas
Alm. almirante dec. decreto
anot. anotada/anotação dec.-lei decreto-lei
apres. apresentação dir./dirs. diretor/dirigida/direção/diretores
art./arts. artigo/artigos doc. documento
atr. atribuído Dr. doutor
aum. aumentada
e.g. exempli gratia
Av. avenida
ed./eds. editor/edição/editores
Bibliog. bibliografia
ed. lit. editor literário
c. cerca
Eng.o engenheiro
cân. cânone
est. estrofe
cap./caps. capítulo/capítulos
et al. et alii
cc centímetros cúbicos
etc. et cetera
cf. conferir
fasc./fascs. fascículo/fascículos
cód./códs. códice/códices
fig./figs. figura/figuras
col./cols. coluna/colunas
fl./fls. fólio/fólios
com. comandante
fr. frei
coment. comentário
frag. fragmento
comp. compilador/compilação
cón. cónego g grama
coord./ coordenador/coordenação/ Gen. general
coords. coordenadores gr. grego

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xxvi

Ibid. ibidem q. questão


Id. idem Qt. quinta
i.e. id est R. rua
ilust. ilustração reimpr. reimpressão
introd. introdutória/introdução Rev. reverendo
Ir. irmão (religioso), irmã rev. revista
(religiosa) S. São
l litro s.d. sem data
lat. latim s.l. sem lugar
Lg. largo s.n. sem editor
Lic. licenciado s.p. sem página
liv./livs. livro/livros
S.to/S.ta santo/santa
m. morte
sec. secção
m2 metro quadrado
séc./sécs. século/séculos
M.e madre
sel. seleção
M. me
madame
sem. semestre
Maj. major
sep. separata
Mar. marechal
sér. série
Mons. monsenhor
Sr. senhor
mç. maço
ss. seguintes
ms. manuscrito
sup./sups. suplemento/suplementos
n. nascimento
sup. lit. suplemento literário
N.ª Sr.ª Nossa Senhora
t. tomo/tomos
n.o/n.os número/números
t tonelada
org./orgs. organizador/organização/
organizadores Tip./Typ. tipografia/typographia
ou typografia
p./pp. página/páginas
tít. título
p.e padre
trad. tradutor/tradução
pç. praça
port. portaria transcr. transcrição
pref. prefácio Trav. travessa
proc./ processo/ Univ. universidade
procs. processos v./vv. verso/versos
prq. parque verific. verificação
pseud. pseudónimo vol./vols. volume/volumes
pt./pts. parte/partes vs. versus
publ. publicadas §/§§ parágrafo/parágrafos

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SIGLAS: cEIS20 Centro de Estudos


Interdisciplinares do Século XX
AcIDI Alto Comissariado cELGA-ILTEc
para a Imigração e o Diálogo Centro de Estudos de Linguística
Intercultural Geral e Aplicada da Universidade
de Coimbra
AcL Academia das Ciências de Lisboa
cEMARI Centro de Estudos das Migrações
AcM Alto Comissariado para as
e das Relações Interculturais
Migrações
cEp Corpo Expedicionário Português
AHU Arquivo Histórico Ultramarino
cEpESE Centro de Estudos da População,
AI Amnistia Internacional
Economia e Sociedade
ANp Acção Nacional Popular
cEpS Centro de Ética, Política e
ANTT Arquivo Nacional da torre do Sociedade
tombo
cES Centro de Estudos Sociais
AO 45 Acordo Ortográfico de 1945
cfAERc Centro de Formação a Associação
AO 90 Acordo Ortográfico de 1990 de Escolas Rómulo de Carvalho
Apf Associação de Propaganda cfc Centro de Física Computacional
Feminista
cfE Centre for Functional Ecology:
ARp Acção Realista Portuguesa Science for People & the Planet
AT Antigo testamento cfisUc Centro de Física da Universidade
BAC Boletim Anti-Colonial de Coimbra
BAcL Biblioteca da Academia das cfUL Centro de Filosofia da
Ciências de Lisboa Universidade de Lisboa
BcE Banco Central Europeu cGT Confederação Geral do trabalho
BGUc Biblioteca Geral da Universidade cH Centro de História
de Coimbra
cHAM Centro de Humanidades
BME Biblioteca Municipal de Évora
cHSc Centro de História da Sociedade
BNE Biblioteca Nacional de Espanha
e da Cultura
BNp Biblioteca Nacional de Portugal
cIAc Centro de Investigação Arte e
cDc Código de Direito Canónico Comunicação
cEc Centro de Estudos Clássicos cIc.Digital
cEcc Centro de Estudos de Centro de Estudos em
Comunicação e Cultura Comunicação, Informação e
cEcH Centro de Estudos Clássicos e Cultura Digital
Humanísticos cIcDR Comissão para a Igualdade e
cED Comissão Europeia de Defesa contra a Discriminação Racial
cEE Comunidade Económica cIcpRIS Centro de Investigação em
Europeia Ciência Política, Relações
cEEN Comissão de Estudos de Energia Internacionais e Segurança
Nuclear cIcS.NOVA
cEfi Centro de Estudos de Filosofia Centro Interdisciplinar
de Ciências Sociais
cEHA Centro de Estudos de História do
Atlântico cIDEHUS Centro Interdisciplinar de
cEHUM Centro de Estudos Humanísticos História, Cultura e Sociedades
cEI-IUL Centro de Estudos cIDH Cátedra Infante Dom Henrique
Internacionais-Instituto cIEc Centro de Investigação em
Universitário de Lisboa Estudos da Criança

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xxviii

cIES-IUL Centro de Investigação e fEp Federação Espírita Portuguesa


Estudos de Sociologia - Instituto fLA Frente de Libertação dos Açores
Universitário de Lisboa
fLUp Faculdade de Letras da
cITAR Centro de Investigação em Universidade do Porto
Ciência e tecnologia das Artes
fp-25 Forças Populares 25 de Abril
cITcEM Centro de Investigação
fpLN Frente Patriótica de Libertação
transdisciplinar «Cultura, Espaço
Nacional
e Memória»
fT Faculdade de teologia
cITER Centro de Investigação em
teologia e Estudos da Religião GODIp Grupo Organizador de Debates
sobre as Instituições Psiquiátricas
cIUcHT Centro Interuniversitário de
História das Ciências e da GOL Grande Oriente Lusitano
tecnologia IAO Information Awareness Office
cLEpUL Centro de Literaturas e Culturas IcS Instituto de Ciências Sociais
Lusófonas e Europeias
IE Instituto de Educação
cLLc Centro de Línguas, Literaturas e
Culturas IEAc-GO Instituto de Estudos Avançados
em Catolicismo e Globalização
cLp Centro de Literatura Portugesa
IEf Instituto de Estudos Filosóficos
CM Correio da Manhã
IELT Instituto de Estudos de Literatura
cNL Centro do Nacionalismo Lusitano e tradição
cO2 anidrido carbónico IER Instituto de Estudos Românicos
cOpcON Comando Operacional do IHA Instituto de História da Arte
Continente
IHc Instituto de História
cpcLp Centro Pedagógico e Científico Contemporânea
da Língua Portuguesa
Ij Instituto Jurídico
cpLp Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa IL Integralismo Lusitano
cRIA Centro em Rede de Investigação ILcH Instituto de Letras e Ciências
em Antropologia Humanas
cRp Constituição da República INcM Imprensa Nacional-Casa da
Portuguesa Moeda
cSE Centre for Science and INpp Instituto de Desenvolvimento
Environment Humano Portucalense
DDT diclorodifeniltricloroetano IOR Istituto per le Opere di Religione
IpO Instituto Português de Oncologia
DN Diário de Notícias
IS Internacional Situacionista
DUDH Declaração Universal dos Direitos
Humanos ISAMB Instituto de Saúde Ambiental
EDp Eletricidade De Portugal IScSp Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas
EI Estado Islâmico
IScTE-IUL
ESE de paula frassinetti Instituto Superior de Ciências
Escola Superior de Educação Sociais e Instituto Universitário
de Paula Frassinetti de Lisboa
fcG Fundação Calouste Gulbenkian ISEG Instituto Superior de Economia e
fcp Futebol Clube do Porto Gestão
fcT Fundação para a Ciência e a ISESE Instituto Superior Económico e
tecnologia Social de Évora

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xxix

jEN Junta de Energia Nuclear pp Partido Popular


JN Jornal de Notícias ppD Partido Popular Democrático
LIDA Laboratório de Investigação em pREc Processo Revolucionário em
Design e Artes Curso
LRMp Liga Republicana das Mulheres pRISM Planning tool for Resource
Portuguesas Integration, Synchronization and
Management
LXcN Lisboa Capital do Nada
pRp Partido Republicano Português
MAI Ministério da Administração
Interna pS Partido Socialista
MDLp Movimento Democrático pela pSp Partido Socialista Português
Libertação de Portugal pUf Presses Universitaires de France
MDp/cDE pVDE Polícia de Vigilância e Defesa do
Movimento Democrático Estado
Português/Comissão
SARL Sociedade Anónima de
Democrática Eleitoral
Responsabilidade Limitada
MES Movimento de Esquerda
SEDES Associação para o
Socialista
Desenvolvimento Económico e
MfA Movimento das Forças Armadas Social
MIpEX Migrant Integration Policy Index SIS Serviço de Informações de
MjD Museu João de Deus Segurança
MLM Movimento de Libertação das Sj Societas Jesu/Sociedade de Jesus
Mulheres SLB Sport Lisboa e Benfica
MND Movimento Nacional SNI Secretariado Nacional de
Democrático Informação/Secretariado
MNS Movimento Nacional-Sindicalista Nacional da Informação, Cultura
Popular e turismo
MRpp Movimento de Reorganização do
Partido do Proletariado SOcIUS Centro de Investigação em
Sociologia Económica e das
MUD Movimento de Unidade Organizações
Democrática
SpD Partido Social-Democrata Alemão
MUNAf Movimento de Unidade Nacional
Anti-Fascista SpN Secretariado da Propaganda
Nacional
NSA National Security Agency
THD teoria e História do Direito
NT Novo testamento
TIA total Information Awareness
OMS Organização Mundial de Saúde
UcAT Unidade de Coordenação
ONG Organização Não Governamental Antiterrorismo
pcA Partido Comunista Alemão UDp União Democrática Popular
pcc Partido Comunista Chinês UEM União Económica e Monetária
pcp-ML Partido Comunista Português UIDEf Unidade de Investigação e
Marxista-Leninista Desenvolvimento em Educação e
pcp(R) Partido Comunista Português Formação
(Reconstruído) UN União Nacional
pcUS Partido Comunista da União UpM União do Povo da Madeira
Soviética USpD Partido Independente Social-
pEN Plano Energético Nacional -Democrata Alemão

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INTRODUçãO

Compreender já é princípio de cura.


José Augusto Mourão

O outro não ocupa mais que uma posição


comparável à minha, mas contígua e complementar;
é necessário à minha própria completude.
tzvetan todorov

A presentamos ao leitor uma obra inesperada, sem dúvida inusitada, mas


que não deixa, por isso, de ser fascinante. Propomos um olhar diferen-
te, um olhar sobre o avesso da cultura portuguesa, em articulação com os
dinamismos construtivos e disruptivos das suas congéneres internacionais.
Fomos habituados, na escola, a aprender fundamentalmente aquilo a
que podemos chamar a cultura positiva, a visão afirmativa da história. Este
dicionário, em contrapartida, propõe uma visão simétrica: uma viagem pe-
las correntes, as etnias, as religiões, as instituições, as figuras, mas a par-
tir do olhar do adversário, de quem discordou, de quem atacou, de quem
pensou o contrário. Algumas imagens podem ajudar-nos a compreender
esta obra. É como se entrássemos numa casa, a casa da cultura portugue-
sa, e deparássemos com um cenário inquietante, com os móveis de pernas
para o ar, os armários virados do avesso, as partes menos arrumadas e sujas
à vista de todos; ou como se acordássemos de manhã e víssemos no espelho

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xxxii

as imagens que têm de nós os que menos nos querem e apreciam; ou ainda,
como se recebêssemos a nossa biografia negativa, uma narrativa produzida
por aqueles que nos detestam. Parece uma obra estranha. É verdade. to-
davia, o negativo também faz história, também faz cultura, e não podemos
desconhecê-lo nem desconsiderá-lo, pois ele é um elemento constitutivo do
processo de construção da nossa identidade, quando não parte integrante
da mesma.
Com efeito, aquilo que estudiosos como François Hartog bem designa-
ram como a “retórica da alteridade” é uma componente estruturante da
construção das culturas da identidade, onde o outro se constitui como con-
traponto, o espelho necessário e instrumental do processo de mapeamento
do nós. Com melhores palavras reflete Hartog sobre este papel fundamen-
tal e fundante da alteridade: “Dizer o outro é enunciá-lo como diferente – é
enunciar que há dois termos [...]. Desde que a diferença é dita e transcrita,
torna-se significativa, já que é captada nos sistemas da língua e da escri-
ta. Começa então esse trabalho, incessante e indefinido como o das ondas
quebrando na praia, que consiste em levar do outro ao próprio. A partir
da relação fundamental que a diferença significativa instaura entre os dois
conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das nar-
rativas” (HARtOG, 2014, 243).
Este Dicionário pretende, pois, apresentar o resultado da investigação
e da análise crítica das correntes e dos discursos centrados numa perce-
ção negativa dos outros (o judeu, o padre, o inglês, o muçulmano, o caste-
lhano...) na história de Portugal, desde o séc. xii até aos nossos dias; esta
abordagem permitirá compreender em que medida tais discursos criaram e
demonizaram diferenças. trata-se de apresentar a história da cultura numa
imagem em negativo, para empregar uma metáfora fotográfica.
Como acontece com as nações mais antigas, a cultura e a história de
Portugal conheceram numerosos discursos e práticas que antagonizavam
outros. Apesar dos seus diferentes veículos e impactos, todos estes discur-
sos (que designamos por anti) têm recorrido a diversas estratégias para
apresentar a mundividência, o estilo de vida, as crenças e a ideologia de
outros como ameaças aos valores positivos de cada sociedade. Na medida
em que respondem a debates ideológicos em curso ou a conflitos e tensões
existentes entre grupos, classes, etnias, géneros e religiões, estes discursos

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são novos; no entanto, raramente originais e importando argumentos de


situações de confronto passadas, eles são também velhos. Por isso, a melhor
forma de compreender o seu alcance e significado é estudá-lo através da
história, mais exatamente através de uma história que atenda à longa du-
ração e a aspetos genealógicos. Assim, este estudo, que é necessariamente
interdisciplinar, deve ter em conta os arquivos, por vezes cronologicamente
profundos, a que os discursos anti recorrem.
Este projeto de vários anos pretendeu localizar, de forma precisa, tais
discursos e as práticas em que se fundam na sua espessura temporal, atra-
vés de uma série de monografias críticas de cada movimento anti identi-
ficado, que no seu conjunto constituem as entradas deste dicionário de
carácter enciclopédico. Além do seu contributo empírico, o Dicionário
possibilita uma reflexão mais profunda sobre os fundamentos teóricos das
produções discursivas anti, permitindo uma reflexão profunda sobre os
limites da modernidade. A opção metodológica pela longa duração reve-
la-se indispensável, porque permite testar as ruturas entre modernidade,
pré e pós-modernidade.
O período pré-moderno não ignorou a produção de discursos anti, que
podem ser compreendidos no quadro da chamada “civilização de combate”
(CURtO, 1988, 14): uma sociedade estruturada por uma ortodoxia, com
modelos religiosos e sociais fixos, afirmados em antagonismo com outras
sociedades. todavia, como mostraram Popper e Chomsky, estes tipos de
discurso permanecem nas sociedades abertas e estão genealogicamente li-
gados ao seu passado; e a modernidade, com as suas oposições ideológicas e
com profundas divisões religiosas e políticas, foi fértil em semelhantes mo-
vimentos. Mas importa também perceber as suas relações com construções
discursivas pós-modernas centradas num outro hostil, que constituía uma
ameaça real ou imaginária aos valores comunitários, construções essas que
foram essenciais para a criação de identidades mais amplas. E nem a atual
morte das ideologias erradicou práticas e discursos que demonizam ideias,
grupos e comunidades dentro da sociedade. Aliás, na chamada história do
tempo presente, têm-se desenvolvido novos discursos anti, sob a forma de
teorias da conspiração que alegam denunciar, quer a atividade de um ou-
tro maligno, quer riscos coletivos impessoais (é o caso do antiterrorismo e
do antitabagismo), bem como as chamadas questões fraturantes. Em todos

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estes casos, existe uma perceção em negativo do outro que deriva de uma
compreensão positiva do nós.
Há pouco anos, Umberto Eco fez uma tentativa brilhante de desconstru-
ção de algumas correntes de complô célebres, que prosperaram no séc. xix
e nos princípios do séc. xx. O seu romance O Cemitério de Praga e o livro de
ensaios complementar, Construir o Inimigo, relevam o sucesso e a prolifera-
ção de uma cultura de combate e dos seus discursos, que fundam as teorias
da conspiração da história moderna e contemporânea. Eco argumenta que
a queda e a ascensão de regimes, a sucessão de correntes culturais e ideoló-
gicas, o nascimento de novas instituições em concorrência com instituições
seculares, a hegemonia de umas etnias e confissões religiosas sobre outras
suscitaram poderosos discursos de construção do inimigo como estratégia
de afirmação, de diferenciação identitária, de legitimação e de conquista
de espaço social, político e simbólico. Os discursos de complô e o recurso
intensivo que se tem feito a esta estratégia propagandística nas sociedades
modernas e contemporâneas colocam o imaginário construído em torno
do inimigo como um património cultural importante que também faz parte
inseparável da história do outro, objeto de ataque e de mitificação. Escreve
Eco que o inimigo é um elemento instrumental incontornável: “Parece que
não se pode passar sem o inimigo. A figura do inimigo não pode ser abolida
dos processos civilizacionais. A necessidade é congénita, mesmo no homem
brando e amigo da paz. Nos nossos dias, a imagem do inimigo é transferida
sobretudo de um objeto humano para uma força natural ou social, que de
algum modo nos ameaça e que tem de ser vencida, seja ela a exploração
capitalista, a poluição ambiental, a fome no terceiro Mundo. Mas, mesmo
que estes sejam casos ‘virtuosos’, como nos recorda Brecht, também o ódio
à injustiça desfigura o rosto” (ECO, 2011a, 31).
Os discursos anti no seu conjunto permanecem território desconhe-
cido. Um primeiro ensaio de estudo dos mais familiares (Antissemitismo,
Anticlericalismo, Anti-islamismo, Antijesuitismo, Antifeminismo, Antilibe-
ralismo, Antiprotestantismo, Antimaçonismo, Anticomunismo, Antiame-
ricanismo) encontra-se no livro coordenado por António Marujo e José
Eduardo Franco. Esta obra permitiu usar como base para a análise dos estu-
dos de caso portugueses caminhos hermenêuticos propostos por obras fran-
cesas e inglesas sobre teorias de conspiração, demonização, representação

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do outro e estereótipos, em concreto os trabalhos de Léon Poliakov, Karl


Popper, Umberto Eco, Raymond Aron, René Rémon, Lucian Boia, Michel
Leroy, Michel de Certeau, Gilbert Durand e outros.
Já Manuel Antunes evidencia, nos anos do seu fecundo magistério na
segunda metade do século passado, que houve um grande interesse em mo-
vimentos rotulados como anti: “Nesta aparente e universal deriva de tudo
é que, em certos contextos, o uso linguístico da partícula “anti” atinge um
grau de significado histórico-cultural e sociocultural. É que, por mais que o
homem afirme a sua radical e inteira mortalidade, por mais que ele se de-
dique a todos os deuses e demónios do presente, existe, bem no fundo da
sua personalidade, algo que se recusa a desaparecer, algo que aspira a viver
e a previver além do horizonte do imediato, além do horizonte do tempo”
(ANtUNES, 2005, 75).
Existe também um conjunto significativo de estudos produzidos nas úl-
timas décadas sobre alguns movimentos e discursos anti, nomeadamente o
anticlericalismo e uma das suas manifestações, o antijesuitismo. O primeiro
foi campo de estudo, que merece ser assinalado, de uma equipa de pesquisa
do Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, dirigida por
Luís Machado de Abreu, de que resultaram duas publicações; e de vários
trabalhos do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Cató-
lica Portuguesa, publicados na revista Lusitania Sacra, no Dicionário de História
Religiosa de Portugal e na História Religiosa de Portugal. A prolixa corrente do
antijesuitismo na longa duração foi objeto de uma análise de José Eduardo
Franco. No seu conjunto, estes trabalhos podem servir de referências meto-
dológicas e teóricas para movimentos anti outros menos conhecidos.
Através de Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media,
de Herman e Chomsky, a teoria da comunicação deu outro contributo im-
portante. Estes autores cunharam o conceito de anti-ideologia (o anticomu-
nismo durante a Guerra Fria e o antiterrorismo hoje), que é a visão negativa
de um inimigo externo com a intenção de silenciar os críticos internos e
forçar um consenso. Neste modelo, a anti-ideologia é um filtro que perverte
a informação pública por ação consciente de um agente identificável (as eli-
tes), com o objetivo de forjar a anuência. Embora as relações entre os media,
a criação de antis e a manipulação consciente façam da anti-ideologia um
conceito útil, é evidente que estas são questões que se esbatem num projeto

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centrado no discurso. The Myth of Nations é, a este respeito, exemplar, ao


confirmar que os discursos nacionalistas extremamente agressivos foram
muitas vezes manipulações conscientes da memória, mas também conti-
nham elementos que permaneciam latentes nos arquivos e que não serviam
nenhum propósito imediato. Por oposição à compreensão dos antis a partir
da manipulação consciente, os conhecidos trabalhos empíricos e teóricos
de Foucault enfatizam a autonomia do discurso e dos seus arquivos, além de
escolherem o discurso (a clínica, a economia política, etc.) como unidade
metodológica para a historiografia, uma das ideias-base deste projeto – que,
uma vez que pretende compreender os discursos anti numa perspetiva mais
histórica e, em alguns casos, mesmo genealógica, atribui menor relevância
à questão da intencionalidade.
O propósito de pensar os antagonismos de movimentos ou correntes
nas suas concretizações histórico-discursivas favorece, não tanto uma crítica
às atitudes anti-ideológicas ou de consenso, mas sobretudo uma sucessão
de operações mais profundas, de recuperação do negativo enquanto prota-
gonista histórico. A opção de associar o sufixo “ismo” à designação de cada
anti não deve, pois, ser interpretada como mero formalismo. Pelo contrá-
rio, ela denuncia um intuito de valorização, e em certa medida de reessen-
cialização de atitudes e argumentos que, nas narrativas históricas positivas,
foram tendencialmente anulados, secundarizados ou remetidos para um
estatuto subalterno ou contingente.
O resultado da presente proposta de estudo sistemático de antis na
cultura portuguesa não deverá ser visto como uma tentativa de fazer a
história dos vencidos e dos silenciados, por oposição a uma crónica do-
minante, encomendada pelos vencedores, nem será muito consequente
procurar nela um tribunal moral das virtudes, das misérias e dos horrores
da história portuguesa. Mais adequadamente, pode ser lida como uma
história da dialética entre movimentos e correntes, que toma como ponto
de partida a negação.
Nessa medida, a nossa proposta ecoa alguns termos da reflexão de theo-
dor W. Adorno, na sua Dialética Negativa, no quadro da demolidora crítica
que o filósofo empreendeu à conceção hegeliana da história e ao projeto
de reformulação da dialética filosófica. Com propósitos naturalmente mais
limitados, este dicionário de história da cultura portuguesa em negativo

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procura explorar as virtudes de uma abordagem que valorize o antagonis-


mo, o particular, aquilo que é entendido como exceção, considerando que
eles são cruciais para uma compreensão mais vasta das dinâmicas de tensão
inerentes à transformação da realidade e às infinitas mediações concretas
verificáveis na transição entre paradigmas de pensamento.
O estudo do negativo revela-se, mais do que um pretexto para o estudo
das margens ou exceções das grandes correntes e dos grandes movimentos
históricos, uma metodologia possível para o aprofundamento do estudo
das mediações entre fases históricas e da intersecção entre grupos normal-
mente vistos como antagónicos. Estabelecem-se, assim, linhas de continui-
dade e de interdependência entre diferentes atitudes e correntes, como as
que – e limitando-nos aos começos da modernidade – Michel de Certeau
mostrou existirem entre heresia e ortodoxia, Robert Mandrou entre a Re-
forma protestante e o catolicismo, e Serge Ginzburg entre o europeu e o
outro americano e asiático.
Na sua componente discursiva, ao abordar as mutações e reformulações
de grandes tópicos identitários – como a fundação nacional, a legitimação
do império, a constituição étnica do povo português –, numa longa linha
histórica e em contexto de tensão ou de disputa entre correntes, o estudo
do negativo parece também instabilizar estas narrativas e devolvê-las à sua
historicidade. Ora, a dissecação dos elementos discursivos que compõem
estas narrativas identitárias, bem como a contextualização das suas repro-
duções, encerra diversos contributos para uma maior compreensão, não só
da mentalidade dos homens passados, mas também dos usos que delas são
feitos ainda nos nossos dias.
Por outro lado, há nesta obra um importante grupo de verbetes que se
caracteriza pela falta de distância histórica a respeito das problemáticas discu-
tidas. trata-se de temas que motivam as pessoas e a respeito dos quais ainda
não há uma identificação precisa da verdade que reside nas teses em conflito.
Assim, e.g., seguindo uma sugestão que Platão faz na República, as mu-
lheres têm hoje uma igualdade de direitos completa nos países ocidentais.
Esta igualdade está longe de estar assegurada noutras áreas civilizacionais.
A forte evidência de que o Ocidente detém a verdade sobre este assunto
implica necessariamente a recusa do ponto de vista de outras civilizações.
A história cultural interna do Ocidente impossibilita um olhar neutro sobre

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este assunto. Para além de se ter tornado impensável uma opinião alternati-
va, muitos países ocidentais vivem problemas complicados devido à presen-
ça de imigrantes provenientes de outras partes do mundo, já para não falar
do modo como outras partes do mundo entram de modo sub-reptício no
quotidiano destes países, por influência dos meios de comunicação social.
A proximidade das questões, por um lado, e a impossibilidade de as pensar
com a profundidade necessária, por outro, impedem qualquer avaliação
sábia do passado histórico que essas problemáticas revelam. É pouco pro-
vável que se consiga ler hoje com a necessária sabedoria os documentos de
épocas passadas que assinalaram a questão do papel social da mulher.
temos consciência de que o desafio, sem dúvida ambicioso, de reconsti-
tuição da densa e complexa rede de argumentos e de atitudes que se digla-
diaram e/ou se influenciaram mutuamente numa linha histórica de longa
duração não está isenta de dificuldades. Elas derivam, antes de mais, da
dependência que a abordagem ao negativo parece manter em relação às
abordagens ao positivo, não só em termos conceptuais, mas também meto-
dológicos. O confronto, por vezes desigual, com uma longa tradição histo-
riográfica positiva (que nunca poderia, obviamente, ser desconsiderada); a
tentação de identificar o negativo com a exceção ou com uma parte mar-
ginal da história, para que possamos devolvê-lo prontamente à unidade da
grande história; a escassez de fontes – eis alguns dos problemas com que
depararam os autores das diversas entradas deste Dicionário.
Com efeito, um elemento que irmana as diferentes áreas temáticas é a
dificuldade do acesso documental. Um caso particular merece ser desta-
cado. Desde o séc. xvii, uma boa parte dos debates intelectuais em Portu-
gal aconteceu nas páginas das publicações periódicas. Ora, a falta de um
programa nacional de digitalização completa dessas publicações periódicas
faz com que a investigação das problemáticas seja difícil e até mesmo im-
possível em muitos casos. É também manifesto que as famílias de muitas
figuras que tiveram intervenção pública de relevo não foram boas guardiãs
dos espólios literários dos seus familiares. Muito há ainda a fazer para a
localização, a inventariação e o estudo desses conjuntos documentais. Uma
rede nacional dos espólios literários poderia auxiliar estudos futuros mais
desenvolvidos. O número elevado de documentos relevantes para a história
cultural portuguesa que estão em países estrangeiros aconselharia também

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a que o Estado português promovesse diligências sistemáticas para realiza-


ção de cópias desses documentos estrangeiros, que pudessem ser arquiva-
das em Portugal. Há exemplos doutros países que poderiam ser seguidos a
este respeito, nomeadamente o de Israel. A contextualizar tudo isto há ain-
da a tormentosa, porque subtil, questão linguística. A associação imediata, e
não crítica, entre cultura e língua portuguesa impede que se veja a riqueza
vastíssima da cultura portuguesa que se expressou noutras línguas. No topo
dessa lista está obviamente o latim, mas haveria que acrescentar o hebraico,
o ladino e línguas modernas como o espanhol, o italiano e o francês. Faltam
programas públicos de tradução e edição de obras nessas línguas.
Note-se, por outro lado, que a história cultural trabalha sobretudo os
documentos que foram publicados. Contudo, quando se trata de questões
que afetam o presente de quem escreve, haveria outras fontes a que ir beber
para se ter uma perspetiva profunda destes assuntos. Com efeito, há uma
linha de fronteira muito ténue a apartar os diferentes movimentos que se
digladiam na defesa dos seus valores; assim, e.g., um ato de boa educação
para com a presença de uma senhora pode ser considerado uma atitude
sexista inaceitável para um defensor da total igualdade dos sexos; a defesa
de uma educação humanística baseada no livro pode ser considerada uma
atitude contra a tecnologia digital. E muitos outros atritos desta natureza
poderiam ser inventariados. É pois provável que as fontes de informação
mais interessantes para se compreender as áreas a respeito das quais ainda
não há suficiente distância histórica sejam de acesso problemático, porque
se confundem com muitos eventos da vida quotidiana desta época. O de-
bate intelectual e os processos culturais são apenas uma pequena parte do
que acontece no mundo; parte certamente interessante, mas cumpre afir-
mar sem ambiguidades que ainda se desconhece se essa parte é meramente
decorativa ou se conduz de facto o destino dos povos. todo o Ocidente se
alimentou da doce crença de que a cultura é decisiva na vida humana. Des-
conhece-se a sabedoria que permite ver claro a este respeito. É provável que
ela não exista, mas é certo que temos saudades dela.
Ainda assim, mesmo quando as dificuldades metodológicas se mostra-
ram praticamente insuperáveis, observamos que elas acabam por introduzir,
com alguma frequência, disrupções nas formas de entender as narrativas e
os “ismos” predeterminados, que não visam necessariamente a formulação

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e a cristalização de novas teses acerca de cada tema ou movimento históri-


co, mas a sua constante complexificação e problematização.
Somos filhos dos vencedores das polémicas antigas. Ao trabalhar em
história cultural e intelectual, é difícil vencer a sensação de se estar a trair
alguém, uma sensação incómoda que deriva do estudo dos movimentos
que foram contestados pelos próprios avós das pessoas que vivem na época
contemporânea. O olhar do presente sobre o mundo foi forjado nesses de-
bates antigos. Poderemos, para os nossos próprios debates, aprender muito
com os que já passaram. Contudo, reabrir feridas antigas, a benefício de
uma racionalidade curiosa, pode impedir que algumas delas sarem para
sempre, e, pior ainda, pode originar dores futuras que temos dificuldade
em antecipar. O verbo “compreender” sempre teve uma semântica positiva,
para não dizer bondosa; contudo, pode acontecer que abrir algumas dessas
feridas conduza a tragédias. “Compreender” pode significar, por vezes, que
é melhor esquecer. Em particular, compreender pode vir a significar trair
o respeito que devemos aos que lutaram contra demónios passados. Só há,
pois, um modo de compatibilizar estas tendências opostas da investigação.
Como tudo na vida humana, a história da cultura portuguesa em negativo
também deverá procurar a sabedoria que sempre nos escapa.


O presente estudo dicionarial, com fito de sistematicidade dos discursos
anti na longa duração, permite responder a uma carência concreta da histo-
riografia portuguesa e europeia. Com efeito, não existe, que saibamos, ne-
nhum trabalho de investigação semelhante em países como o Reino Unido,
a França e a Alemanha. O carácter inédito do projeto assegura-lhe desde já
indiscutível relevância internacional, uma vez que, de acordo com alguns
consultores externos e membros estrangeiros da equipa de trabalho, come-
ça a ser precursor de tentativas semelhantes noutros países.
Este carácter pioneiro implicou uma reflexão metodológica e epistemo-
lógica sobre o anti. Desde logo, “anti” é um prefixo operatório, que remete
para operações diversas: a mais óbvia é o trabalho do negativo ou a contra-
posição, mas poderá igualmente assumir a forma de um exercício crítico
de problematização ou, mesmo, de um processo de autoquestionamento.

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Enquanto objeto de estudo, o anti revela-se extremamente volátil: o que,


num determinado contexto, se afirma pela negativa pode conter o gérmen
de uma nova forma cultural. Por outro lado, o anti transporta uma estra-
tégia de olhar para aquilo a que se opõe: e.g., o antinaturalismo foca uma
determinada visão da natureza, levando porventura a uma recontextualiza-
ção e não a um apagamento da mesma. O negativo é, pois, uma forma de
inteligibilidade do positivo.
Esta é uma obra que assume o risco de ser, em boa medida, de carácter
exploratório e até laboratorial, tendo os seus responsáveis consciência dos
seus limites e da necessidade de continuar a reflexão e a pesquisa deste
que é mais um porto de partida. Importa, pois, deixar salvaguardado que
os diferentes domínios de especialidade científica em que as várias cor-
rentes anti são estudadas oferecem problemas de graus diversos, confor-
me a complexidade epistemológica e a maior ou menor dificuldade de
dispor de fontes razoáveis para permitir uma abordagem suficientemente
englobante.
todos eles oferecem porém, na sua pregante multiplicidade e também
devido ao facto de aparecerem como um conjunto, em que as forças e as
fraquezas se equilibram mutuamente, uma visão interessante de um mo-
mento, de um período, de um conceito, de uma tese, de uma atitude, cuja
análise se torna mais rica pelo facto de ser feita pelo seu lado surpreen-
dente: o lado negativo, que – à semelhança do que acontecia na fotografia
analógica –, sem ser uma negação, dá cor ao que a não tinha e retira colo-
rido ao que se impunha com veemência, abrindo portas insuspeitadas de
compreensão do mundo.

Bibliog.: impressa: aBreu, Luís machado de (coord.), O Anticlericalismo Português: História e Dis-
curso, aveiro, Centro de Línguas e Culturas, 2002; Id., Ensaios Anticlericais, Lisboa, roma editora,
2004; antunes, manuel, Obra Completa, vol. i, t. ii, coord. guilherme d’oliveira martins, Lis-
boa, FCg, 2008; araÚjo, antónio de, Jesuítas e Antijesuítas no Portugal Republicano, Lisboa, roma
editora, 2004; aZeveDo, Carlos moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, 4 vols.,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2000-01; Id. (dir.), História Religiosa de Portugal, 3 vols., Lisboa, Círculo
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Hartog, François, O Espelho de Heródoto: Ensaio sobre a Representação do Outro, Belo Horizonte,
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ticléricalisme, Paris, Calmon Lévy, 1902; marujo, antónio, e FranCo, josé eduardo (coords.),
Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores/temas e Debates, 2009;
digital: CuraDo, manuel, “o mito da tradução automática”, conferência proferida no coló-
quio a Cultura na galáxia da Pós-modernidade, Braga, 19 out. 1999: https://repositorium.
sdum.uminho.pt/bitstream/1822/7740/1/o%20mito%20Da%20traDuCao%20automa-
tiCa%20repositorium.pdf (acedido a 30 ago. 2017).

Direção e Coordenação da Obra

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Dicionário

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AntiAbolicionismo 3

Antiabolicionismo do séc. xviii. De entre os autores que pro-


puseram a sua abolição, sobressai Cesare
Beccaria (1738-1794) com a obra Dei Delitti
e delle Pene, de 1764. Pretende demonstrar
que a pena de morte “nem é útil nem ne-
cessária” (BECCARIA, 1998, 118), basea-
do em dois pontos: um filosófico, a doutri-

A questão da pena de morte, da sua le-


gitimidade moral e jurídica e da sua
oportunidade, resolvida em Portugal em
na do contrato social, e outro de natureza
utilitarista. A propósito daquele, Beccaria
considera que existe um pacto entre os ci-
1867, volta por vezes a colocar-se perante dadãos e a autoridade que os governa, que
crimes particularmente violentos, relan- só tem os direitos que os cidadãos nela de-
çando a questão do antiabolicionismo. legam; a origem da autoridade está neles.
Este debate é, evidentemente, maior a Ora, os cidadãos não podem delegar na
nível mundial. Em começos do séc. xxi, autoridade civil o que não têm, a saber, o
a tendência geral é pelo abolicionismo, direito sobre a sua vida e a dos outros, pois
mas há Estados em que se mantém e é ninguém pode dispor da vida. Por outro
aplicada. Mesmo nos países abolicionistas, lado, o autor relevava a inutilidade prática
há sempre grupos significativos que pro- de tal pena, considerando, com outros au-
põem o seu regresso para punir crimes tores, que a prisão perpétua em condições
particularmente graves. Por outro lado, vá- penosas, sendo mais cruel, é mais dissuaso-
rios organismos internacionais têm usa- ra e que, portanto, deve ser preferida por
do a sua influência em vista da abolição, ser mais útil.
nem sempre com sucesso.
A pena de morte foi justificada e apli- Ilustração de uma edição de Dei Delitti e delle
cada durante séculos, praticamente sem Pene, de Cesare Beccaria.
oposição. Assim, pode dizer-se que o con-
ceito de antiabolicionismo, por oposição
a abolicionismo, não tem grande razão
de ser referente ao passado, porque não
havia movimentos, fracos que fossem,
que lutassem pela abolição. Os grupos
e as pessoas que o fizeram eram muito
minoritários, quase desconhecidos e até
considerados marginais. Assim, de modo
genérico, todos eram antiabolicionistas,
porque todos defendiam a sua existência.
Era a linha da tradição fundamentada
numa amálgama de pressupostos e argu-
mentos culturais, filosóficos, teológicos e
jurídicos. O que variava era o uso e a in-
cidência que deles se fazia, e a extensão,
mais ou menos ampla, ao tipo de crimes.
A contestação à legitimidade moral e ju-
rídica da pena de morte e à sua utilidade
prática, surgiu no âmbito do iluminismo

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4 AntiAbolicionismo

res representantes da filosofia iluminista


afirmaram expressamente, e em termos
contundentes, a legitimidade da pena de
morte. É o caso de Immanuel Kant (1724-
-1804) e de Georg Hegel (1770-1831),
contemporâneos de Cesare Beccaria.
Kant defende e justifica a pena de mor-
te para garantir a igualdade e o equilíbrio
entre o crime e a punição, já que a medi-
da da pena não é dada por “nenhum ou-
tro [princípio], a não ser o princípio da
igualdade”. Não resta pois outra alterna-
tiva, a não ser erigir a lei de talião como
princípio da fixação das penas. “Só a lei
de talião (ius talionis) pode oferecer com
segurança a qualidade e a quantidade do
castigo; mas, claro está, no seio do tribu-
nal (não no teu juízo privado)” (KANT,
2004, 147). A falta pede uma expiação,
mesmo que esta não sirva de exemplo a
ninguém. “Se [alguém] cometeu assassi-
nato deve morrer. Não há nenhum equi-
valente que satisfaça a justiça. Não existe
equivalência entre uma vida, por penosa
Rosto de um exemplar de Dei Delitti e delle Pene, que seja, e a morte; portanto também não
de Cesare Beccaria, que pertenceu a John Adams. há igualdade entre o crime e a represália,
a não ser matando o culpado por disposi-
A pena de morte foi abolida no grão-du- ção judicial” (Id., Ibid., 148). Kant critica
cado da Toscânia, em 1786, 22 anos depois em termos ásperos a posição de Beccaria,
da publicação da obra, em 1786. A comis- “que defendeu que toda a pena de mor-
são encarregada de propor tal abolição te é ilegal”, considerando que deriva de
era presidida pelo próprio Beccaria. Mas “um sentimentalismo compassivo de uma
a experiência durou apenas quatro anos, humanidade afetada (compassibilitas)”, e
pois esta pena foi restabelecida em 1790. rebate o seu pensamento sobre o contra-
Começava assim o movimento abolicio- to social (Id., Ibid., 150).
nista que, de minoritário, com o passar Hegel é também partidário da pena
do tempo passou a maioritário. como retribuição e expiação, conside-
Os teólogos em geral continuavam a rando que castigar o malfeitor é honrá-lo
defender as teses tradicionais, sobretudo como ser racional, seguindo a lógica do
porque o grande pressuposto da nova seu ato, tendo em atenção a sua respon-
proposta, a teoria do contrato social, en- sabilidade e a sua liberdade. “A pena que
trava em conflito com a perspetiva teo- o criminoso sofre não é apenas justa em
lógica que, durante séculos, tinha sido si. Justa que é, é ao mesmo tempo o ser
defendida como legitimadora. Mas não em si da sua vontade, o ser da sua liberda-
foram apenas os teólogos que resistiram de; ela é o seu direito. Mas ela é também
à proposta de abolição. Alguns dos maio- um direito do criminoso como tal; i.e., um

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AntiAbolicionismo 5

direito presente no ser da sua vontade, na execução como um ritual litúrgico, como
sua ação” (HEGEL, 1998, 180). Por outro cerimónia cúltica de expiação, e o cada-
lado, considera o Estado como um ente falso como “um altar” onde se realiza o
superior aos indivíduos, que a ele podem rito que resgata a humanidade (MAIS-
ser legitimamente sacrificados, inclusiva- TRE, s.d., 27).
mente com a pena de morte. Esta posição antiabolicionista foi segui-
Joseph de Maistre (1753-1821), cam- da por alguns; mas houve também mui-
peão do pensamento antirrevolucioná- tos autores do catolicismo liberal que se
rio, denuncia o que considera ser a raiz afastaram da tradição antiabolicionista, e
irreligiosa e ateia do iluminismo, ao mes- mais concretamente de Maistre, propon-
mo tempo que combate a ideia de que o do, a partir dos valores evangélicos, um
poder soberano vem do povo, se opõe à repensamento da moralidade e legitimi-
teoria do contrato social e se coloca na dade da pena de morte.
linha da teoria tradicional. Ao príncipe Um grande adversário da pena de mor-
compete promover a correção e o castigo te foi Victor Hugo (1802-1885) que, em-
do malfeitor, incluindo, evidentemente, bora sem se referir explicitamente à fé,
a pena de morte. “Tendo Deus querido apela muitas vezes aos valores cristãos
governar os homens por meio de ho- da misericórdia, do amor e do perdão,
mens, ao menos exteriormente, conce- recordando a pena de morte sofrida por
deu aos soberanos a eminente prerroga- Cristo na cruz. Hugo congratula-se com a
tiva da punição dos crimes. É nisto que abolição da pena de morte em Portugal
são principalmente seus representantes”. em cartas a dois amigos: Eduardo Coelho,
Este pensador apresenta o processo da em 2 de julho de 1867, e Pedro de Brito
Aranha, em 15 do mesmo mês e ano.
Cesare Beccaria (1738-1794). O movimento geral que alastrava pela
Europa, com origem na filosofia ilumi-
nista, chegou também a Portugal e pro-
vocou uma evolução na conceção da lei
penal, levando à superação do direito vi-
gente que previa, além de penas rigorosas
e cruéis, a pena capital, mesmo para cri-
mes banais. Alexandre Herculano (1810-
-1877), e.g., em 1838, distancia-se das teses
de Joseph de Maistre, cujo nome cita ex-
pressamente, e insurge-se contra a pena
de morte. À acusação que lhe foi feita “de
alimentar nos criminosos a esperança da
impunidade”, responde dizendo que no
“código criminal” se encontram outras
penas “para livrar a sociedade dos ho-
mens que a ofendem, e fazer sentir a es-
tes o castigo dos seus crimes”. Na linha de
Beccaria, propõe a substituição da pena
capital por “trabalhos públicos”, mesmo
nas “colónias da África deserta” (HERCU-
LANO, 1984, 33 e 35).

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6 AntiAbolicionismo

A partir da década de 50 do séc. xix, a incluir a abolição total, ou seja, também


intensificou-se o movimento que levou à para crimes militares; nas suas palavras, o
abolição da pena de morte, do qual so- ministro “propõe apenas meia abolição”
bressaíram duas personalidades: Francis- (CRUZ, 1967, 543); mas tal moção não
co Ferrão (1798-1874) e António Aires de teve acolhimento. No dia 18 de junho de
Gouveia (1828-1916). As vozes contrárias, 1867, foi feita a votação nominal da pro-
a nível de estadistas, eram poucas, e in- posta do ministro. 90 deputados votaram
dicavam o grave risco para a segurança e a favor da abolição e 2 contra. A 26 de
garantia da vida e da propriedade dos ci- junho, a proposta foi aprovada, quase
dadãos. A favor, argumentava-se dizendo sem discussão, na Câmara dos Pares, e
que tal perigo não se verificava, e que a promulgada por D. Luís em 1 de julho
abolição era um ato de humanidade e de de 1867. Publicada a lei, surgiu a dúvida
progresso. se se aplicava também aos territórios ul-
Em Portugal, a pena de morte foi legal- tramarinos; ficou esclarecida com um de-
mente abolida para crimes políticos em creto com força de lei, de 9 de junho de
1852, no art. 16 do primeiro ato adicio- 1870, que diz no seu art. 1: “É abolida a
nal à Carta Constitucional de 1826; mas pena de morte nos crimes civis em todas
desde 1772 que não havia execuções de as províncias ultramarinas”.
mulheres, e desde 1846 de homens, por Restava a pena capital para crimes mi-
crimes comuns. litares. No debate que se gerou, aboli-
O primeiro projeto de abolição total, cionistas e antiabolicionistas tomaram as
portanto também para crimes militares, suas posições. O ambiente era favorável à
foi apresentado à Câmara de Deputados abolição, mas entretanto verificou-se um
em 1863, por Aires de Gouveia, que já em incidente que deu argumentos e fôlego
1860, num estudo sobre a reforma das aos contrários, e levou a que as coisas se
cadeias em Portugal, chamara à pena de orientassem de outro modo: a 18 de ou-
morte “assassinato jurídico” e “homicídio tubro de 1874, o soldado António Coelho
legal”, e propusera a substituição da “for- assassinou o alferes José Augusto de Bri-
ca para a morte” pela “penitenciária para to numa rixa. Dois crimes semelhantes
a vida” (GOUVEIA, 1860, 29). Contudo, tinham sido cometidos por outros dois
o projeto não vingou. soldados; em 1872, em Elvas, e em 1874,
A abolição para crimes civis deu-se na em Torre de Moncorvo. Segundo o Có-
sequência da proposta apresentada à digo de Justiça Militar, o soldado devia
Câmara dos Deputados pelo ministro ser fuzilado. Gerou-se grande comoção
da Justiça, Augusto Barjona de Freitas e amplo debate, em que a imprensa teve
(1834-1900), que, a 28 de fevereiro de um papel relevante. Tratava-se da necessi-
1867, propôs a reforma do sistema prisio- dade e conveniência da pena capital para
nal e penal: “Entre outras inovações no manter a disciplina no foro militar e, co-
sistema proposto ficavam abolidas a pena lateralmente, da pena de morte em geral
de morte, a de trabalhos públicos e ainda e da sua reintrodução.
a prisão maior celular perpétua, exceto As posições eram de ordem política,
quando aplicada para punição de crimes com o partido governamental a apoiar o
a que pela legislação anterior coubesse a movimento que pedia a pena de morte
pena de morte” (PERES, 1935, 372). para o assassino, e a oposição a manifes-
No debate, Aires de Gouveia propôs tar-se contra. Várias personalidades pu-
que o projeto fosse emendado, de modo blicam, em 1875, opúsculos apoiando o

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AntiAbolicionismo 7

não fuzilamento; outros são publicados mento lastimoso” (NAVARRO, 1874, 21).
em sentido contrário. De entre estes, so- E mais adiante: “Armar novamente os go-
bressai o de Cunha Barbosa, um dos dois vernantes com um gládio de dois gumes,
deputados que, em 1867, tinham votado perigoso sempre, pode ser de funestíssi-
contra a proposta de abolição, advogan- mas consequências. Não é uma questão
do que a pena de morte “aplicada mili- individual; é uma questão social. Não se
tarmente”, é não só “de direito e legal”, fuzila António Coelho, fuzila-se a tradi-
mas também “necessária” e, em geral ção, um princípio e esse princípio envol-
“legítima”. Argumenta ainda que “agora ve o presente e o futuro” (Id., Ibid., 39).
e sempre se reconheceu que para conter Contra a pena de morte é também An-
em rigorosa disciplina uma aglomeração tónio Falcão Rodrigues que escreve: “A
de homens de tão diversas índoles e ins- consciência, a razão e o direito procla-
tintos, são necessárias leis especialíssimas, mam bem eloquentemente a inviolabili-
para o que não basta a lei comum ou civil” dade da vida humana, o mais sagrado de
(BARBOSA, 1875, 14-15); e acentua os todos os nossos direitos. A luta está, pois,
efeitos repressivos da pena: “parece-nos travada. A pena de morte é uma afronta
axiomático que nada mais eficaz poderá ao progresso, à civilização e ao direito.
conter o homem perverso e de instintos A pena de morte é um ultraje à humani-
ferozes, do que o temor e a certeza da dade. O nobre ministro da justiça Sr. Bar-
perda infalível da sua vida. Ao contrário, jona de Freitas fundamentou em bons
a pena do degredo, que não deixa de ser argumentos, a proposta que apresentou,
grave, é para muitos (a quem escasseiam abolindo a pena de morte ‘pela sua inuti-
os meios de transporte) uma vantagem lidade’. Foi, pois, abolida a pena de mor-
e até incitamento ao crime, mormente te para crimes civis. O soldado é um cida-
para alguns soldados maus que, constran- dão. Existe, porém, um artigo de guerra
gidos na vida militar, assim se eximem que impõe a pena de morte nos crimes
do serviço e recuperam a liberdade, na militares! É admirável!!!” (RODRIGUES,
esperança ainda, que a todos consola e 1874, 17).
risonha acena, de um potosi inesgotável No mundo literário destacam-se Guer-
que só proporciona a emigração, embora ra Junqueiro (1850-1923), contra, e
para a África” (Id., Ibid., 18-19). Ramalho Ortigão (1836-1915), a favor.
O opúsculo é uma resposta a Emídio Aquele escreveu, a propósito do solda-
Navarro (1844-1905), que se mostrara do António Coelho, o poema “O crime”,
contrário. A sua posição é a seguinte: dedicado “ao Senhor Barjona de Freitas,
“Aceitamos em tese a legitimidade da ministro da justiça”, que termina assim:
pena de morte. Para nós a inviolabilidade “Eu que prescrevo o algoz, eu exigi-lo-ei/
da vida humana não é um princípio abso- para enforcar somente esse bandido: a
luto. […] Mas não aceitar como princípio lei” (JUNQUEIRO, 1895, 29). Por sua
absoluto a inviolabilidade da vida huma- vez, Ramalho Ortigão, em “A disciplina
na, reconhecer em tese a legitimidade da militar e a pena de morte; o caso do sol-
pena de morte, não equivale a conceder dado António Coelho”, não aceita a dis-
à sociedade o direito de a inscrever livre- tinção entre disciplina e jurisprudência
mente nos seus códigos, ou de usar dela civil e militar, observando: “Esta distin-
quando bem lhe pareça fazê-lo, porque ção, diz-se, tem por fim salvaguardar a
lho reclame um capricho partidário ou disciplina do exército. Como se a disci-
a impressão apaixonada de um aconteci- plina fosse exclusivamente militar! Como

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8 AntiAbolicionismo

se no resto da sociedade se dispensasse imediata necessidade o banir do código


a disciplina” (ORTIGÃO, 1928, 118). É esta pena, a qual não sofre gradação nem
em nome da defesa da ordem pública reparação. Em suma: a ninguém se pode
que defende a pena de morte, e consi- hoje afigurar como curial ao alistar-se um
dera “razões poéticas e sentimentais” os soldado nas fileiras, dizer-se-lhe que será
argumentos contrários. Protesta contra fuzilado se praticar este, aquele ou aque-
a incongruência de estar abolida para os loutro ato” (FERREIRA, 1911, 15).
crimes civis e continuar presente para os Um decreto com força de lei do Gover-
crimes militares: “A pena de morte apli- no Provisório, de 16 de março de 1911,
cada ao soldado António Coelho para de- determinava no seu art. 3: “É abolida, em
sagravo militar repugna-nos como absur- absoluto, a pena de morte”. A Constitui-
da: não nos repugna, porém, a aplicação ção de 1911 confirmou essa orientação.
da pena de morte como pena geral do O seu art. 3, n.º 22 estipula: “Em nenhum
homicídio” (Id., Ibid., 123). Noutro tex- caso poderá ser estabelecida a pena de
to, “As facadas”, de maio de 1872, Rama- morte”. Mas nem todos eram da mesma
lho Ortigão faz notar que “em Lisboa to- opinião. Havia quem fosse antiabolicio-
dos os dias” se dão facadas mortais pelos nista: “A República devia ser, acima de
motivos mais fúteis, e comenta: “a lei que tudo, moralização. Basílio Teles (1856-
aboliu a pena de morte está provado que -1923) chegou a imaginá-la como uma
não tem força para abolir a faca de pon- feroz ação redentora do Estado. Em maio
ta […]. Abolimos a morte por sentença, de 1911, com o aplauso de Machado dos
não podemos abolir a morte por facada” Santos (1875-1921), propôs o programa
(Id., Ibid., 224). de uma ‘ditadura revolucionária’ que in-
O soldado António Coelho foi conde- cluía a pena de morte” (RAMOS, 1994,
nado à morte em 1877, mas a pena foi-lhe 445). Em “Esclarecimento” a “O regime
comutada, pouco depois, pela de prisão revolucionário; súmula de decretos”, Ba-
celular perpétua. O Código de Justiça Mi- sílio Teles diz que o projeto que propõe
litar de 1875, que vigorou até à instaura- “foi entregue ao Dr. Teófilo Braga, em
ção da república, incluía a possibilidade mão própria, na manhã de sábado, 8 de
da pena de morte por fuzilamento num outubro de 1910, […] como contribuição
número considerável de crimes. indireta por me ter sido impossível dire-
Com a mudança de regime, debateu- tamente intervir para a obra revolucioná-
se a questão da pena de morte na justiça ria do Governo Provisório. […] Ele é a
militar. L. M. Marrecas Ferreira, a propó- expressão fiel do que deveria ter sido, a
sito da discussão no Parlamento sobre o meu ver, a revolução republicana na sua
projeto do novo Código de Justiça Militar, fase inicial. […] Trata-se de expropriar
apresenta os argumentos antiabolicionis- um regime funesto e de juntar elemen-
tas, assentes sobretudo na necessidade da tos preciosos para as grandes reformas a
disciplina militar e no exemplo de exérci- empreender na segunda fase” (TELES,
tos estrangeiros. O seu juízo é o seguinte: 1975, 44). Os n.os 11 e 12 da sua propos-
“Ponhamos já de parte todos os demais ta são claros: “Decreto suspendendo as
argumentos apresentados em prol da garantias por tempo não inferior a três
abolição, e, levando de vencida por uma meses, punindo com a pena de morte su-
força irresistível, os adversários dela, cin- mária quem quer que seja surpreendido
gindo-nos ao característico da espécie a roubar, a matar ou a forçar casa alheia”
sujeita, basta o referido para se julgar de (Id., Ibid., 48).

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AntiAbolicionismo 9

A entrada de Portugal na Primeira


Guerra Mundial obrigou a alterar o texto
constitucional. A lei 635, de 28 de setem-
bro de 1916, fixou a redação do art. 59/A
do seguinte modo: “A pena de morte
[…] não pode ser restabelecida em caso
algum, nem ainda quando for declarado
o estado de sítio com a suspensão total
ou parcial das garantias constitucionais.
§ único: Excetua-se somente o caso de
guerra com país estrangeiro, em tan-
to quanto a aplicação dessa pena seja
indispensável, e apenas no teatro da
guerra”. A  lei foi regulamentada pelo
dec.  n.º  2867, de 30 de novembro de
1916, estabelecendo o art. 5 que seria por
fuzilamento. No contexto da Primeira
Guerra Mundial, o soldado João Augusto
Ferreira de Almeida foi condenado por Joseph de Maistre (1753-1821).
crime de traição e foi fuzilado, na Flan-
dres, a 16 de Setembro de 1917. A Cons- dade, uma enérgica reação se manifestou
tituição de 1933, art. 8, n.º 11, manteve, por quase toda a parte proclamando alto
com alguns retoques de texto, a legisla- e claro a urgência de restabelecê-la, onde
ção anterior. A Constituição de 1976, diz ela tivesse sido suprimida, e de aplicá-la
simplesmente, no seu art. 25, 2: “Em caso rigorosamente” (Id., Ibid., 71-72). E con-
algum haverá pena de morte”. clui: “A execução capital dos indivíduos
Depois de 1916, só foi possível en- que aponto, efetivada nas condições que
contrar um autor com uma posição an- pretendo, não é injusta e aproveita à so-
tiabolicionista: João de Lebre e Lima ciedade, não ofendendo a natureza, nem
(1889-1959), que dá relevo às posições a ciência, nem o direito, nem a piedade
dos criminologistas Jean-Gabriel Tarde dos homens” (Id., Ibid., 124); trata-se de
(1843-1904) e Enrico Ferri (1856-1929), “liquidar de tal forma esses monstruosos
defendendo a “legitimidade do direito espécimes de uma fauna da qual eles são
de matar”: “Não se diga que também à os mais temíveis e odiosos representan-
sociedade não assiste o direito de exter- tes” (Id., Ibid., 125).
minar aquele dos seus membros que se No prefácio a este ensaio, José Caeiro
torne um elemento de desordem grave” da Mata (1877-1963) escreve: “Há mais
(LIMA, 1920, 65). Considera este autor de um século que se discute se é neces-
que “a pena de morte não constitui uma sário opor ao criminoso a indulgência ou
ofensa ao direito” (Id., Ibid., 66), e “que o rigor: discutia-se isto quando na clara
no século passado quando o movimento luz do céu de Itália, Beccaria glorificava
humanitarista se generalizou com maior a humanidade, ao mesmo tempo que,
intensidade, algumas nações europeias nas brumas de São Petersburgo, de Mais-
tomaram a iniciativa de suprimir a pena tre se pronunciava pelo algoz” (Id., Ibid.,
de morte dos seus códigos. Mas passada XVI-XVII). A sua opinião é a seguinte:
que foi a maré cheia de tão insensata pie- “Se defendo a sua legitimidade (como

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10 AntiAbolicionismo

contestá-la, se a pena de morte desempe- possibilidades de que a sociedade mo-


nha, no mais alto grau, a função elimina- derna dispõe para reprimir eficazmente
tória, realizando, pela forma mais eficaz e o crime”. A seguir refere o “problema da
mais rápida, a seleção social dos malfeito- pena de morte, à volta do qual se regis-
res?), não defendo a sua necessidade” (Id., ta, tanto na Igreja como na sociedade, a
Ibid., XXIX-XXX). tendência crescente para pedir uma apli-
Uma menção para a perspetiva da Igre- cação muito limitada, ou melhor, a aboli-
ja Católica na sua representação mais alta. ção da mesma” (JOÃO PAULO II, 1995,
A partir da tradição e dos grandes teólo- n.º 27). Mas não deixa de considerar que,
gos, a opinião unânime favorável à pena na punição dos crimes, “a medida e a qua-
de morte, dizendo que ela não é contrária lidade da pena hão de ser atentamente
ao mandamento que proíbe matar, ficou ponderadas e decididas, não se devendo
suficientemente consolidada. Se alguma chegar à medida extrema da execução do
divergência havia, era sobre a sua exten- réu senão em casos de absoluta necessida-
são e sobre a justeza ou não de a aplicar de, ou seja, quando a defesa da sociedade
em determinadas circunstâncias; não no não fosse possível de outro modo” (Id.,
princípio. Posições contrárias, abolicionis- Ibid., n.º 56). Esta posição mais mitiga-
tas, mesmo fundamentadas no evangelho da será recolhida numa edição posterior
e em alguns autores dos três primeiros sé- do Catecismo: “A doutrina tradicional da
culos da Igreja, não tiveram êxito. É o caso Igreja não exclui […] o recurso à pena de
dos valdenses e dos cátaros, nos sécs.  xii morte, se for esta a única solução possível
e xiii, que foram considerados hereges, para defender eficazmente vidas huma-
embora por outros motivos. A posição nas de um injusto agressor” (Catecismo…,
favorável à pena de morte enraizou-se de 1997, n.º 2267).
tal maneira, que foi considerada, durante Por outro lado, em várias ocasiões o
muito tempo, como doutrina definitiva. mesmo Papa pediu a sua abolição, e nou-
A situação alterou-se em meados do tros casos a clemência para os condena-
séc. xx, de tal maneira que causou al- dos. Assim, na mensagem urbi et orbi pro-
guma estranheza e até indignação na ferida no Natal de 1998, disse: “Do Natal
opinião pública que o Catecismo da Igreja recebe novo vigor no mundo o consenso
Católica, na sua 1.ª edição, afirme: “Re- quanto a medidas urgentes e adequadas
conhece-se aos detentores da autoridade para […] acabar com a pena de morte”
pública o direito e a obrigação de castigar (JOÃO PAULO II, Natal 1998, 5); e, em
com penas proporcionadas à gravidade 12 de dezembro de 1999, na alocução
do delito, incluindo a pena de morte em do Angelus: “Renovo o meu apelo para a
casos de extrema gravidade se outros pro- abolição da pena de morte” (Id., 12 dez.
cessos não bastarem” (Catecismo…, 1992, 1999, in fin.).
n.º 2266). A encíclica Evangelium Vitæ, de O Papa Francisco, em discurso à As-
João Paulo II (1978-2005), moderou esta sociação Internacional de Direito Penal,
posição, embora sem a alterar no funda- proferido a 23 de outubro de 2014, refere
mental. Começa por afirmar que entre os a encíclica e o Catecismo, que interpreta
“sinais positivos” da sociedade deste tem- como “condenação” da pena de morte, e
po, está “a aversão cada vez mais geral na diz: “Os argumentos contrários à pena de
opinião pública à pena de morte, mesmo morte são muitos e bem conhecidos. […]
vista só como instrumento de ‘legítima Todos os cristãos e homens de boa vonta-
defesa’ social, tendo em consideração as de estão chamados hoje a lutar pela sua

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AntiAbolicionismo 11

abolição. […] A prisão perpétua é uma dos se declaravam favoráveis à sua reintro-
pena de morte escondida” (FRANCIS- dução. O semanário Expresso, por sua vez,
CO, 23 out. 2014, II.a). Esta posição foi publicava, no dia 5 de outubro de 1996,
reafirmada, com mais vigor e desenvolvi- os resultados de outra sondagem em que,
mento, em carta de 20 de março de 2015, à pergunta: “Que agravamento da pena
ao presidente da Comissão Internacional máxima?”, 13,5 % dos inquiridos respon-
contra a Pena de Morte. A 24 de setem- deram: “A pena de morte”. Uma consulta
bro de 2015, em discurso no Congresso da estação televisiva SIC, tornada públi-
dos Estados Unidos da América, afirmou: ca no dia 29 de setembro de 1996, dava
“a regra de ouro [‘o que quiserdes que como favoráveis à pena de morte 81,8 %.
vos façam os homens, fazei-o também a Esta consulta foi considerada, pela gene-
eles’, Mt 7, 12] põe-nos diante também ralidade dos especialistas em estudos de
da nossa responsabilidade de proteger e opinião, não credível cientificamente, de-
defender a vida humana em todas as fases vido à metodologia utilizada.
do seu desenvolvimento. Esta convicção No espaço lusófono não há nenhum
levou-me, desde o início do meu ministé- país onde vigore a pena de morte. Causou
rio, a sustentar a vários níveis a abolição embaraço, sobretudo em Portugal, o pedi-
global da pena de morte” (FRANCISCO, do de adesão da Guiné Equatorial, onde
24 set. 2015). Por ocasião do 25.º aniver- tal pena está prevista, à Comunidade dos
sário da publicação do Catecismo da Igreja Países de Língua Portuguesa, sendo-lhe
Católica, Francisco voltou a reforçar esta colocada, entre outras condições, “a ado-
ideia, afirmando que a pena de morte “é ção da moratória da pena de morte até à
uma problemática que não pode ficar re- sua abolição”. Na altura da admissão, 23
duzida a uma mera recordação histórica de julho de 2014, foi reafirmada a necessi-
da doutrina” pois trata-se de uma “pena dade da prossecução da abolição total.
que lesa gravemente a dignidade huma-
na. Deve afirmar-se energicamente que
a condenação à pena de morte é uma Bibliog.: impressa: BARBOSA, Cunha, Duas
medida desumana […] que humilha a Palavras sobre o Opúsculo do Sr. Navarro, os Fu-
dignidade pessoal. Em si mesma é con- zilamentos. Militarmente: o Direito e a Necessida-
trária ao Evangelho. […] Nunca homem de; Em geral: a Legitimidade da Pena de Morte,
algum, nem sequer o homicida, perde a Coimbra, Imprensa da Universidade, 1875;
sua dignidade pessoal” (Id., 11 set. 2017). BECCARIA, Cesare, Dos Delitos e das Penas,
Esta posição foi vivamente recusada por Lisboa, FCG, 1998; BRUNO, Sampaio, Por-
tuenses Ilustres, vol. ii, Porto, Livraria Maga-
alguns sectores sociais e eclesiais.
lhães e Moniz, 1907; Catecismo da Igreja Cató-
Em Portugal não são conhecidos movi- lica, 1.ª ed., s.l., s.n., 1992; 2.ª ed., s.l., s.n.,
mentos que explicitamente proponham a 1997; CATTANEO, M., “Morale e politica nel
reintrodução da pena de morte. É muito dibattito dell’Illuminismo”, in La Pena di Morte
raro que pessoas com responsabilidade nel Mondo, Marietti, Casale Monferrato, 1983,
social, política e cultural se tenham pro- pp. 105-133; CRUZ, Guilherme Braga da, “O
nunciado publicamente em perspetiva movimento abolicionista e a abolição da pena
de morte em Portugal (resenha histórica)”, in
antiabolicionista.
Pena de Morte. Colóquio Internacional Comemora-
A nível de opinião pública, não existem tivo do Centenário da Abolição da Pena de Morte em
muitos dados. A 7 de julho de 1996, o jor- Portugal, vol. ii, Coimbra, Faculdade de Direito
nal Público dava conhecimento de uma da Universidade de Coimbra, 1967, pp. 427-
sondagem em que 26,3 % dos interroga- -557; FERNANDES, R., “A pena de morte

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12 AntiAbolicionismo

em Portugal”, Revista da Ordem dos Advogados, Agostinho sobre a pena de morte: a Intercessio
vol. xxxi, jan.-jun. 1971, pp. 3-52; FERREIRA, Episcopalis entre o direito e o evangelho”, Di-
L. M. Marrecas, A Pena de Morte; Extrato da Re- daskalia, vol. xli, fasc. 1, 2011, pp. 191-220;
vista de Sciencias Militares, Lisboa, Typographia digital: FRANCISCO, “Discurso à delegação
da papelaria Estevão Nunes, 1911; GERSÃO, da Associação Internacional de Direito Pe-
E., “Acerca da abolição da pena de morte nos nal”, 23 out. 2014: http://w2.vatican.va/con-
crimes militares”, in Pena de Morte. Colóquio tent/francesco/pt/speeches/2014/october/
Internacional Comemorativo do Centenário da Abo- documents/papa-francesco_20141023_as-
lição da Pena de Morte em Portugal, vol. ii, Coim- sociazione-internazionale-diritto-penale.html
bra, Faculdade de Direito da Universidade de (acedido a 16 maio 2016); Id., “Carta ao pre-
Coimbra, 1967, pp. 205-218; GOUVEIA, Ai- sidente da Comissão Internacional contra a
res de, A Reforma das Cadeias em Portugal, Coim- Pena de Morte”, 20 mar. 2015: http://w2.va-
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Georg, Principes de la Philosophie du Droit, Paris, documents/papa-francesco_20150320_le-
PUF, 1998; HENDRICKX, M., “Le magistère et ttera-pena-morte.html (acedido a 16 maio
la peine de mort: réflexions sur le catéchisme 2016); Id., “Discurso no Congresso dos Es-
et Evangelium Vitæ”, Nouvelle Revue Théologique, tados Unidos da América”, 24 set. 2015:
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HUGO, Victor, Écrits sur la Peine de Mort, Paris, francesco_20150924_usa-us-congress.html
Babel, 1992; JOÃO PAULO II, Evangelium Vitæ, (acedido a 16 maio 2016); Id., “Discurso aos
1995; JUNQUEIRO, Guerra, O Crime (a propó- participantes no encontro por ocasião do
sito do Assassinato do Alferes Brito), Porto, Lello xxv aniversário do Catecismo da Igreja Católica”,
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dos Costumes, pt.  i, Lisboa, Edições 70, 2004; francesco/pt/speeches/2017/october/docu-
LIMA, João de Lebre e, Da Pena de Morte, Pa- ments/papa-francesco_20171011_convegno-
ris/Lisboa, Livrarias Aillaud e Bertrand, 1920; nuova-evangelizzazione.html (acedido a 20
MAISTRE, Joseph de, Les Soirées de Saint-Peter- nov. 2017); JOÃO PAULO II, “Mensagem urbi
sburg ou Entretiens sur le Gouvernement Temporel et orbi”, Natal de 1998: http://w2.vatican.va/
de la Providence, vol. i, Paris, Garnier, s.d.; NA- content/john-paul-ii/pt/messages/urbi/do-
VARRO, Emídio, Os Fusilamentos; o Direito, a cuments/hf_jp-ii_mes_25121998_urbi.html
Política, a Ordem Social, Lisboa, Typographia do (acedido a 16 maio 2016); Id., “Angelus”,
Jornal O Paiz, 1874; ORTIGÃO, Ramalho, As 12 dez. 1999: http://w2.vatican.va/content/
Farpas, 6.ª ed., vol. vii, Lisboa, Empresa Literá- john-paul-ii/pt/angelus/1999/documents/
ria Fluminense, 1928; PERES, Damião, Histó- hf_jp-ii_ang_12121999.html (acedido a 16
ria de Portugal, vol. vii, Barcelos, Portucalense, maio 2016).
1935; PINA, L., “O Porto, a reforma das pri- Jerónimo Trigo
sões e a abolição da pena de morte”, in Pena
de Morte. Colóquio Internacional Comemorativo do
Centenário da Abolição da Pena de Morte em Por-
tugal, vol. ii, Coimbra, Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, 1967, pp. 399-409;
RAMOS, Rui, A Segunda Fundação, in MATTO-
SO, José (coord.), História de Portugal, vol. vi,
Lisboa, Estampa, 1994; RODRIGUES, Antó-
nio Falcão, Qual É o Princípio Que Fundamenta
a Pena de Morte?, Coimbra, Imprensa Comer-
cial e Industrial, 1874; SAVEY-CASARD, P.,
La Peine de Mort; Esquisse Historique et Juridique,
Genève, Librairie Droz, 1968; TELES, Basílio,
As Ditaduras; o Regime Revolucionário, Coimbra,
Atlântida, 1975; TRIGO, Jerónimo, “Santo

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AntiAbortismo 13

Antiabortismo O livro Aborto, Direito ao Nosso Corpo de M.ª


Teresa Horta, Célia Metrass e Helena de
Sá Medeiros, publicado em fevereiro de
1975 e que inaugura de certa maneira o
movimento abortista em Portugal, acen-
tua justamente essa articulação.
O antiabortismo é a atitude contrária

A transmissão natural da vida humana


pela fecundação de um óvulo por
um espermatozoide é um processo mui-
ao abortismo, que, de uma forma abso-
luta ou mitigada, defende a ilegitimidade
do aborto enquanto negação do direito à
tas vezes interrompido por causas natu- vida e cuja intervenção no debate públi-
rais e também pela ação deliberada do co se tornou marcante a partir dos anos
Homem. No primeiro caso, falamos de 80 do séc. xx. Com efeito, a posição anti-
aborto espontâneo; no segundo, de abor- aborto está expressa no juramento de Hi-
to voluntário. pócrates e na doutrina da Igreja Católica.
A prática do aborto é muito antiga, sen- No entanto, só nos finais do séc. xx é que
do diferentemente assumida e executada a temática do aborto se tornou objeto de
em função do quadro cultural. De facto, debate público, suscitando o confronto
as técnicas utilizadas (infusões, substân- de posições e levando à formação de mo-
cias químicas, cirurgia) variam com as vimentos culturais antagonistas, em que
tradições locais e com o contexto em que a componente ideológica e política joga
o aborto é praticado. Por seu lado, as mo- um papel muito importante. Tal não tem
tivações que levam à decisão de abortar nada de surpreendente porquanto, se o
revelam-se muito heterogéneas: intenção aborto espontâneo interpela a biologia e
de esconder uma relação sexual ilegíti- a medicina, o aborto voluntário interpela
ma, recusa de viabilizar a existência de a consciência humana, colocando ques-
um novo ser fruto de um ato de violação tões de ordem moral, religiosa, filosófica,
ou incesto, impossibilidade de garantir jurídica e política.
meios de sobrevivência ao nascituro, cor- No caso português, o movimento an-
reção de falhas nas técnicas contracetivas. tiabortista forma-se em larga medida
Em contexto médico, o aborto pode ser na luta contra o intento de introduzir
terapêutico ou não terapêutico, em fun- exceções na lei, em casos bem determi-
ção das razões que o justificam: terapêuti- nados: gravidez resultante de violação
co, quando a prática abortiva visa salvar a da mulher grávida; malformações graves
vida da mãe ou evitar o nascimento de uma no feto; risco de morte ou de lesão físi-
criança com malformações graves; não te- ca ou psíquica grave da futura mãe. De
rapêutico, quando os motivos que subja- facto, a lei n.º 6/84, de 11 de maio, ao
zem ao ato em causa não têm a ver com a legitimar o aborto, mesmo que em cir-
saúde ou a vida da mãe nem do nascituro. cunstâncias muito especiais, tem o efeito
O abortismo é a atitude favorável ao de relativizar a proibição incondicional
aborto voluntário, cujo impacto se fez sen- do aborto. O movimento pró-vida, com
tir em especial ao longo do séc. xx, muito forte impacto no espaço público a partir
especialmente a partir da revolução sexual de 1983-1984, assume a vida do nascituro
dos anos 60, em que o direito ao aborto como um princípio universal e absoluto,
surge como parte intrínseca do direito da que não deve ser posto em questão mes-
mulher a dispor do seu próprio corpo. mo quando está em causa a vida da mãe.

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14 AntiAbortismo

O ponto alto da sua intervenção pública beradamente” (GALVÃO, 2005, 55). Esta
foi a campanha que culminou na vitória tese é reforçada por um conjunto de prin-
do não à despenalização do aborto no re- cípios que afirmam o valor incondicional
ferendo de 28 de junho de 1998. A inver- da vida e o carácter especial do vínculo
são dos resultados, com a vitória do sim entre a mãe e o nascituro. Assim: o crime
à despenalização no referendo de 11 de do aborto constitui uma prepotência, tan-
fevereiro de 2007, não silenciou a voz de to mais condenável quanto é praticado
um movimento muito forte na sociedade por quem tem o dever de proteger uma
portuguesa de começos do séc. xxi, na criança indefesa; a prática do aborto é um
qual existem mais de vinte instituições atentado contra a dignidade humana que
antiabortistas, na sua maioria de carácter não admite exceções, nomeadamente em
associativo, que, a par da defesa do valor função do grau de desenvolvimento bio-
da vida, prestam apoio a mães e crianças, lógico; o aborto rompe o vínculo especial
entre elas: Ajuda de Mãe, Ajuda de Ber- entre mãe e filho, que, em circunstância
ço, Ponto de Apoio à Vida, Vida Norte alguma, pode ser tratado como um intru-
e Associação de Defesa e Apoio da Vida so; o ato de abortar traz sequelas psíqui-
Coimbra. A exigência de um novo refe- cas à mulher que o pratica, pelo que a
rendo é, pois, um dos pontos da agenda legalização do aborto não só não protege
do movimento pró-vida. a mulher como a fragiliza; usar o aborto
O debate entre abortistas e antiabortistas como meio de compensar eventuais falhas
tem a ver com aspetos práticos, nomeada- de meios contracetivos é uma atitude irres-
mente com as condições indignas em que ponsável; a legalização do aborto é um re-
a população com menores recursos prati- trocesso civilizacional, em especial no que
ca o aborto clandestino, no caso da sua cri- respeita aos direitos humanos.
minalização. Mas é sobretudo um conflito Para o antiabortismo, a defesa do abor-
de princípios e de valores. Tais princípios to é parte intrínseca de uma cultura que
e valores são comuns ao movimento pró- não respeita a vida e a integridade da
-vida na Europa e nos Estados Unidos da pessoa humana. O Papa João Paulo II
América e inspiram-se em conceções reli- reafirmou-o muito claramente, assumin-
giosas e políticas em do os termos da constituição pastoral
Capa de Evangelium
Vitae, de João Paulo II.
que a doutrina da Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II:
Igreja Católica e o “Tudo quanto se opõe à vida, como seja
legado político da toda a espécie de homicídio, genocídio,
direita conservado- aborto, eutanásia e suicídio voluntário;
ra têm um peso con- tudo o que viola a integridade da pessoa
siderável. humana, como as mutilações, os tormen-
A tese fundamen- tos corporais e mentais e as tentativas
tal do movimento para violentar as próprias consciências;
antiabortista é a de tudo quanto ofende a dignidade da pes-
que o aborto é sem- soa humana, como as condições de vida
pre moralmente er- infra-humanas, as prisões arbitrárias, as
rado, já que, como deportações, a escravidão, a prostitui-
defende Stephen D. ção, o comércio de mulheres e jovens; e
Schwarz, “o aborto é também as condições degradantes de tra-
primariamente um balho, em que os operários são tratados
ato de matar” “deli- como meros instrumentos de lucro e não

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AntiAbrilismo 15

como pessoas livres e responsáveis. To-


das estas coisas e outras semelhantes são
Antiabrilismo
infamantes; ao mesmo tempo que cor-
rompem a civilização humana, desonram
mais aqueles que assim procedem do que
os que padecem injustamente” (JOÃO
PAULO II, 1995, 3).
Abortismo e antiabortismo são movi-
mentos muito fortes no espaço público
europeu e português. No plano científi-
O antiabrilismo expressa um con-
junto de sentimentos, ideologias e
comportamentos existente na sociedade
co, permanece em aberto a questão críti- portuguesa no período posterior ao der-
ca: uma vida humana é, desde o momen- rube do Estado Novo (regime autoritário
to da fecundação, uma pessoa com os e nacionalista de direita) pelo Movimento
direitos que lhe são inerentes? Em caso das Forças Armadas (MFA), a 25 de abril
de resposta negativa, quando é que se de 1974, de rejeição da possibilidade de
pode assinalar uma verdadeira continui- instauração de um regime político de
dade entre os dois planos? A nível ético, tipo marxista-leninista. Essa possibilidade
a veemência do conflito entre abortistas existiu no período de vigência dos II, III
e antiabortistas decorre, em larga me- e IV Governos provisórios, liderados por
dida, do facto de o confronto envolver Vasco Gonçalves, até que o golpe militar
uma situação dilemática, na medida em de 25 de novembro de 1975 estabeleceu,
que, seja qual for a escolha, a decisão en- em definitivo, o caminho para uma de-
volve sempre uma dimensão problemá- mocracia de tipo ocidental.
tica, como bem diz Miguel Oliveira da O conceito de antiabrilismo integra as
Silva: “O ponto está em que a reflexão várias manifestações de rejeição de uma
sobre o aborto, traduzindo um conflito via marxista-leninista, mas não as preten-
direto entre a liberdade da mulher e o sões de regresso ao regime deposto pelo
direito do embrião, envolve dois seres golpe militar de 25 de abril de 1974, as
humanos que são e constituem fins em quais, tendo embora existido, tiveram
si mesmos” (SILVA, 2007, 13). pouco significado na política e sociedade
portuguesas. A maioria dos Portugueses,
Bibliog.: CANGIAMILA, Francesco, Embrio-
independentemente do seu posiciona-
logia Sacra, Palermo, Valenza, 1745; CRUZ, mento político anterior ao golpe militar
Manuel Braga da, “O aborto em Portugal”, de 25 de abril de 1974, aceitou como
Brotéria, vol. 146, fascs. 5-6, maio-jun. 1998, facto irreversível a mudança do regime e
pp. 591-595; GALVÃO, Pedro (org.), Ética do depressa se identificou com a promessa
Aborto. Perspectivas e Argumentos, Lisboa, Dina- do MFA de instauração de uma ordem
livro, 2005; HORTA, Maria Teresa et al., Abor- democrática pluripartidária, como ficou
to, Direito ao Nosso Corpo, Lisboa, Presença,
patente nos elevados níveis de participa-
1975; JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae, 1995;
REICH, Warren (ed.), Encyclopedia of Bioethics, ção nas eleições constituintes, parlamen-
2.ª ed., New York, Macmillan Publishing Com- tares, presidenciais e autárquicas de 1975
pany, 1995; SILVA, Miguel Oliveira da, Sete e 1976, que deram a vitória às forças polí-
Teses sobre o Aborto, Lisboa, Caminho, 2007; ticas moderadas.
TAVARES, Manuela, Aborto e Contracepção em O antiabrilismo é o contraponto do
Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 2007. abrilismo, enquanto tentativa de captura
Adelino Cardoso e dominação hegemónica, por uma parte

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16 AntiAbrilismo

do movimento revolucionário ligada ao no género literário da ficção alternativa,


Partido Comunista Português (PCP), do o golpe militar de 25 de abril de 1974 é
ideário da Revolução de Abril ou, sim- esmagado pelo regime existente, mas
plesmente, de Abril. este evolui para um sistema democrático
Pelo seu longo período de vigência, bipartidário. O livro mostra não só que o
primeiro como Ditadura Militar e, após a regime estava esgotado, mas também que
aprovação da Constituição de 1933, como a população portuguesa estava prepara-
Estado Novo, o regime saído do golpe da para uma transição democrática. Essa
militar de 28 de maio de 1926, que pôs transformação não foi realizada dentro
termo à Primeira República, marcou a so- do regime, mas contra o regime, tendo
ciedade portuguesa. Porém, nas décs. de sido explicitamente assumida pelo MFA
50 e 60 do séc. xx, o Estado Novo per- no seu programa político, sob o lema “de-
deu fulgor, acabando por cair, em 1974, mocratizar, descolonizar e desenvolver”.
dada a sua incapacidade de evolução para O MFA apoiou-se em militares de um vas-
uma democracia, como era exigido por to espectro político, nomeadamente cola-
parte significativa das elites portuguesas. boradores críticos do regime deposto, de
Falharam, e.g., na fase final do Estado que são exemplo os dois Presidentes da
Novo, os esforços, de carácter essencial- República do período de transição demo-
mente político-legislativo, da Ala Liberal, crática, António de Spínola e Francisco
constituída por um grupo de deputados Costa Gomes, que eram, à data de 25 de
independentes que, nas eleições legisla- abril de 1974, respetivamente, vice-chefe
tivas de 1969, no início da chamada pri- e chefe do Estado-Maior general das For-
mavera marcelista (período de abertura ças Armadas. O livro de Spínola Portugal e
política encetada por Marcelo Caetano o Futuro, publicado em fevereiro de 1974,
em 1968, quando substituiu Salazar como foi lido avidamente nos quartéis, sabendo
presidente do Conselho de Ministros), os militares que podiam contar com os
aceitou integrar as listas da União Nacio- seus chefes para promoverem um golpe
nal (braço parlamentar do regime) com de Estado que não só fosse vitorioso, mas
um ideário que visava a instauração de tivesse legitimidade aos olhos da popula-
um quadro de liberdades fundamentais e ção, por ser moderado e visar a instaura-
a transição para a democracia. ção de uma democracia de tipo liberal.
A Assembleia Nacional rejeitou, porém, O facto de o MFA integrar e se apoiar
discutir as propostas legislativas dos depu- em militares de um vasto espectro políti-
tados da Ala Liberal em matéria de direi- co-ideológico granjeou-lhe o apoio da po-
tos políticos, incluindo uma proposta de pulação e dos principais partidos políticos
revisão constitucional, o que motivou a e forças sociais, mas o novo regime, ainda
demissão, em 1973, de Sá Carneiro (líder em construção, rapidamente se transfor-
do grupo, após a morte de Leite Pinto) e mou num campo de acesa disputa entre,
de outros deputados. Falharam, também, por um lado, os defensores da instauração
as tentativas dos militares afetos ao Esta- de um modelo de democracia pluriparti-
do Novo que defendiam uma mudança dária de tipo ocidental e, por outro lado,
controlada do regime, se necessário pela os defensores da instauração de uma de-
força. No romance Alvorada Desfeita, de mocracia socialista, de partido único.
Diogo de Andrade (pseud. do professor Embora constituíssem uma minoria
da Faculdade de Direito de Lisboa Car- política e social, o PCP e os seus aliados,
los Blanco de Morais), que se inscreve com o apoio de um importante sector

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AntiAbrilismo 17

das Forças Armadas, conseguiram, no e as alternativas tornaram-se claras. A ges-


período dos denominados governos pro- tão dos sentimentos das pessoas e dos ato-
visórios (1974-1976), importantes vitórias res políticos constituiu um exercício nem
que agudizaram o combate político. A so- sempre bem sucedido. A direção política
ciedade portuguesa teve clara perceção no período revolucionário, com a repre-
do que se estava a passar e criaram-se sentação das diversas sensibilidades nos
dinâmicas contrárias, em torno do que governos provisórios, foi muito difícil e
ficou conhecido como o Processo Revo- desencadeou um novo golpe militar. Em
lucionário em Curso. todo o caso, a eleição da Assembleia Cons-
O imaginário simbólico, cultural e tituinte no tempo previsto e a aprovação
ideológico do período revolucionário de uma nova Constituição foram notáveis
revelou-se rico e variado, incorporando exercícios de subtileza política. Fizeram-
novas conceções e práticas não só sobre -se alianças contra a esquerda radical,
o modo de fazer política, mas também so- mas garantiu-se o pluralismo político-par-
bre os caminhos a seguir. tidário. A Constituição da República de
Ainda no plano simbólico, o antiabrilis- 1976 proibiu a existência de partidos fas-
mo representou a reação das forças políti- cistas, mas o PCP foi reconhecido como
cas e sociais moderadas contra as posições força politicamente relevante, logo no 25
do PCP e seus aliados. O sentimento an- de Novembro de 1975 (avultando aqui o
tiabrilista modelou o sistema político por- posicionamento de Melo Antunes, mem-
tuguês, nomeadamente o processo de im- bro do MFA e ideólogo do processo re-
plantação e comportamento dos partidos volucionário). A nova Constituição consa-
e agentes políticos. No Norte de Portugal, grou uma democracia de tipo ocidental
em particular no Minho, a região com com elementos específicos de um sistema
maior prática religiosa, o Partido Socialista político “à portuguesa”, alguns dos quais
(PS) tornou-se um aliado objetivo da Igre- em continuidade com a Constituição de
ja Católica contra o PCP, o que contribuiu 1933 (e.g., na definição do papel e fun-
para que aquele partido se tivesse torna- ções do presidente da República, ou ain-
do a principal força política da região nos da na previsão de amplas competências
primeiros atos eleitorais. De igual modo, legislativas para o governo).
uma parte das elites conservadoras urba-
nas viu no PS, pela sua moderação, a op- Fotografia da manifestação na Fonte Luminosa,
ção mais favorável para travar os excessos de 19 de julho de 1975.
revolucionários. A manifestação da Fonte
Luminosa, de 19 de julho de 1975, em Lis-
boa, convocada pelo PS e em que avultou
o discurso do seu secretário-geral, Mário
Soares, juntou mais de 100.000 pessoas,
constituindo uma vitória das forças mode-
radas, que abriria caminho para o golpe
de 25 de novembro de 1975, que pôs fim
às tentativas de controlo dos destinos da
revolução pelas forças da esquerda radical,
particularmente do Partido Comunista.
Como é típico de períodos políticos
conturbados, as posições extremaram-se
D.R.

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18 AntiAbsolutismo

O carácter programático da Constitui-


ção de 1976, inscrito no seu preâmbulo
Antiabsolutismo
e na definição do elenco dos direitos
económicos, sociais e culturais de uma
sociedade a caminho do socialismo, não
deve ser visto como um contraponto à de-
finição da estrutura democrática do Esta-
do e do catálogo dos direitos, liberdades
e garantias, mas como um compromisso
político-cultural entre posições ideológi-
A definição de absolutismo não é uní-
voca, mas encontra-se necessariamen-
te marcada pelo surgimento do próprio
cas diversas, no âmbito de uma democra- termo durante a Revolução Francesa,
cia de tipo ocidental. Curiosamente, na quando é usado para designar pejorati-
votação final da Constituição na genera- vamente o Antigo Regime. Recolhido da
lidade, o Partido do Centro Democrático célebre fórmula de Ulpiano “princeps le-
e Social (CDS), embora sendo defensor gibus solutus est”, fixada no Corpus Iuris
do modelo democrático prevalecente, vo- Civilis do imperador Justiniano (Digesto,
tou contra, por considerar o texto cons- 1, 3, 31), conhecida e desenvolvida pelos
titucional excessivamente socializante, ao jurisprudentes medievais, o termo “ab-
invés do PCP, que, apesar de estar contra solutismo” referia-se genericamente ao
pontos essenciais do novo texto, votou carácter ilimitado do poder do soberano
favoravelmente. Em termos político-cul- pela afirmação da sua não vinculação às
turais, este facto é um claro indicador de leis. Em termos mais restritos, o absolutis-
que a Constituição de 1976 se constituiu, mo seria identificado historiograficamen-
com base num determinado quadro de te com o modelo de poder que sucede
valores, num instrumento de compromis- ao feudalismo, e que se caracteriza pelo
so entre posicionamentos diferenciados fortalecimento e pela centralização do
que passaram a ter liberdade para se afir- poder régio, em detrimento das institui-
mar publicamente. Esses posicionamen- ções políticas que tradicionalmente sus-
tos persistiram, em torno do eixo que foi tentavam os privilégios estamentais. A par
a Revolução de abril de 1974. de elementos essenciais de natureza jurí-
dico-política, e a sustentá-los no plano
doutrinário, o absolutismo consolidou-se
Bibliog.: MAXWELL, Kenneth, “The consoli- historicamente com apoio na interpreta-
dation of political democracy: some unanswe- ção moderna de uma ideia medieval de
red questions”, Portuguese Studies, vol. 5, 1989, direito divino dos soberanos. Foi na nega-
pp. 161-177; Id., The Making of Portuguese De- ção destes elementos que se estruturaram
mocracy, Cambridge, Cambridge University as reações adversas ao modelo absolutista
Press, 1995; PINTO, António Costa, “Autho- do poder e é nela que se encontram de
ritarian legacies, transitional justice and State
forma mais particular as manifestações
crisis in Portugal’s democratization”, Demo-
cratization, vol. 13, n.º 2, abr. 2006, pp. 173- deste fenómeno anti na cultura portu-
-204; REZOLA, Maria Inácia, 25 de Abril. Mitos guesa.
de Uma Revolução, Lisboa, A Esfera dos Livros, Desta forma, verifica-se que a sistema-
2007; TORGAL, Luís Reis et al., História da His- tização dos princípios negadores do ab-
tória em Portugal. Sécs. XIX-XX, 2 vols., Lisboa, solutismo em Portugal ocorre em dois
Círculo de Leitores, 1998. momentos fundamentais, cronologica-
João Relvão Caetano mente associados à emergência e à deca-

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AntiAbsolutismo 19

dência deste modelo de poder. Além do Santos, a propósito do Novo Código de


mais óbvio momento histórico da crítica Direito Público, que pôs a claro como
liberal que a partir do final do séc. xviii as tensões presentes na “viradeira” pós-
começa a fazer-se sentir em Portugal, há -pombalina tinham, de facto, raízes mais
que recuar ao discurso jurídico-político profundas.
do séc. xvii para encontrar uma primei- Analisando o processo de consolidação
ra contestação moderna de formulações do absolutismo régio em Portugal, verifi-
teóricas de poder absoluto. ca-se que, depois de a doutrina jurídico-
Uma vez superadas as primeiras des- -política da Restauração se ter apoiado na
confianças inquisitoriais que incidiram formulação neoescolástica da soberania
sobre a doutrina do poder indireto dos popular – doutrina do poder limitado,
papas formulada por Belarmino, a dou- de origem divina, mas mediado pela co-
trina neoescolástica da soberania popu- munidade, e do direito de resistência à
lar torna-se um poderoso instrumento tirania (em que se sustentou largamen-
de afirmação do ethos político católico no te a atuação diplomática do reino após
quadro da Contrarreforma, usado desde 1640, com a edição de obras como Da
logo na contestação das doutrinas do po- Justa Aclamação do Sereníssimo Rei de Portu­
der divino e absoluto dos reis que haviam gal Dom João o IV [1644], de Francisco Ve-
(re)emergido com a rutura da Respublica lasco de Gouveia) –, a ação de D. Pedro,
Christiana e com as quais se pretendia, ainda enquanto regente, face ao papel
então como antes, afirmar a autoridade político das Cortes, marca uma viragem
régia contra quaisquer focos de interfe- substancial, tanto prática como teórica,
rência, temporal ou espiritual. Prova da
utilidade desta doutrina foi a refutação Rosto de Compendio Historico do Estado
das teses propugnadas por Jaime I de In- da Universidade de Coimbra.
glaterra pelo então teólogo da Univ. de
Coimbra Francisco Suárez, em 1613, por
incumbência papal, na sua Defensio Fidei
Catholicae et Apostolicae adversus Anglicanae
Sectae Errores. Assim se compreende como
a perseguição setecentista aos Jesuítas,
acusados pelos autores do Compendio His­
torico do Estado da Universidade de Coimbra
de serem “perturbadores dos tronos”,
“amotinadores dos povos” e de “arma-
rem os vassalos contra os seus soberanos”
(Compendio Historico…, 1771, 176 e 97),
respondia também ao ensejo de conso-
lidar a conceção política pombalina da
monarquia pura. É ainda o discurso ju-
rídico-político de Seiscentos que define
a primeira matriz teórica da contestação
dos postulados teóricos do absolutismo
e que está igualmente ainda latente no
debate ocorrido em 1789, entre Pascoal
de Melo Freire e António Ribeiro dos

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20 AntiAbsolutismo

adequada à sua estratégia de afirmação lítico da fundação da nacionalidade as


do poder régio depois do atribulado pro- teorias da soberania popular neoescolás-
cesso que o levara ao poder pelo afasta- tica – reveste-se de particular significado
mento de seu irmão D. Afonso VI. É num no processo de afastamento de uma ma-
contexto de instabilidade dinástica que triz teórica que tivera o seu lugar no ima-
deve ser entendido o fortalecimento da ginário político da nação e a sua utilidade
linha absolutista em detrimento do pa- na consolidação da independência após
pel das Cortes. A ausência de herdeiro 1640, em favor de uma conceção absoluta
varão estimulava a atuação diplomática do poder, mais eficaz para a solução dos
dos agentes de Espanha (que até muito problemas que o reino ainda enfrentava
tarde não desistiu de Portugal) e, entre na segunda metade de Seiscentos. A inde-
as alterações à lei sucessória saída das pendência do reino assegurara-se assim a
Cortes de 1697-1698 (as últimas até 1820) dois tempos, com recurso a duas distintas
que visavam garantir a posição da herdei- conceções políticas.
ra jurada nas Cortes de 1674, D. Isabel É apenas com o pombalismo que se pro-
Luísa Josefa, encontrava-se precisamen- move um verdadeiro projeto de doutrina-
te a limitação da capacidade eletiva das ção e se assume a importância da forma-
Cortes, reforçando-se as prerrogativas da ção ideológica das elites na consolidação
regência e dispensando-se a reunião dos do poder, tomando a reforma dos estudos
três estados. Para consolidar a legitimi- universitários como assunto de Estado, e
dade da infanta e a posição de Portugal com ela a necessidade de expurgar os ele-
no quadro geopolítico europeu, era ne- mentos perniciosos que se opunham ao
cessária a derrogação das Leis de Lame- ideário absolutista. Assim, o afastamento
go, documento mítico, mas fundamental da doutrina política da Restauração (che-
no discurso político-jurídico do Portugal gando Seabra da Silva a negar que fosse
restaurado. A preterição da doutrina ins- o ilustre jurista Velasco de Gouveia o ver-
crita naquele texto – através do qual se dadeiro autor de Da Justa Aclamação…) é
pretendera verter num (forjado) ato po- uma peça essencial no processo de afir-
mação do modelo da monarquia pura, ao
mesmo tempo que expõe, pela negação
Infante D. Afonso e Um Pajem Negro (c. 1653), dos seus contrários, os princípios funda-
de Avelar Rebelo, Museu de Évora.
mentais do absolutismo. É o que resulta
de obras como Deducção Chronologica e
Analytica (1768) ou Compendio Historico do
Estado da Universidade de Coimbra (1771),
em que se pretende expor claramente o
erro de interpretação histórica promovi-
da pelos teóricos da Restauração, quer das
Leis de Lamego (cuja autenticidade, toda-
via, só a partir do final do séc. xix será
questionada), quer das Cortes de 1385,
quer da própria aclamação de D. João IV,
ao identificarem estes momentos com a
materialização dos princípios teóricos
da teoria da soberania popular, que era
na sua essência uma teoria do poder

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AntiAbsolutismo 21

limitado. Como verdade, o pombalismo problema político, corporizando a Com-


apresentava o patriarcalismo regalista, panhia e os seus mais destacados dou-
a “benigna clemência de pais aos seus trinadores todos os erros e sedições, a
vassalos” (SILVA, 1767, I, 410) que não “mortífera peçonha” que tinha de ser re-
deixa dúvidas sobre o domínio absoluto movida para sossego e progresso dos po-
do soberano, liberto de quaisquer limi- vos. Neste aspeto, a ação pombalina foi
tações ou interferências temporais. Esta precursora da queda do Jesuítas na Euro-
negação de qualquer subordinação do pa, catalisada pela supressão da Compa-
poder do soberano exigia não só o afas- nhia de Jesus em França, em 1764.
tamento da ideia de que os reis haviam Além do contexto que previamente
recebido o poder por traslação dos povos enformou o desenvolvimento neoesco-
(da doutrina monarcómaca de que podia lástico das teorias de poder limitado, a
a comunidade determinar se o soberano sistematização de um corpo doutrinário
era ou não tirano e exercer o direito de antiabsolutista durante o período da mo-
resistência), mas também a demarcação narquia pura em Portugal é feita e divul-
clara da teoria do poder dos papas no gada eficazmente pelo próprio absolutis-
plano temporal, ainda que indireto e em mo. A título de exemplo, e entre as mais
ordem ao fim espiritual, eliminando a representativas deste fenómeno, encon-
sobreposição e confusão de jurisdições tram-se a Relaçaõ Abbreviada da Republica,
e assegurando, assim, a exclusividade do Que os Religiosos Jesuitas das Provincias de
poder régio sobre os seus súbditos, ele- Portugal, e Hespanha, Estabeleceraõ nos Do­
mento necessário à definição de um po- minios Ultramarinos das Duas Monarchias,
der absoluto, como o corte de relações e da Guerra Que Nelles Tem Movido, e Sus­
diplomáticas com a Santa Sé, em 1760, e tentado contra os Exércitos Hespanhoes, e Por­
talvez, mais ainda, a clarificação do Tri- tuguezes (1758); Josepho I Lusitanorum Regi
bunal do Santo Ofício como tribunal ré- Fidelissimo, Augusto, Invicto, Pio, Doctrinam
gio, em 1774, bem atestam. Veteris Ecclesiae de Suprema Regum Etiam in
É neste contexto que a Companhia Clericos Potestate (1765); Tentativa Theologi­
de Jesus se torna alvo da perseguição ca em Que Se Pretende Mostrar, Que Impedido
de Pombal. Encarada como inimigo po- o Recurso à Sé Apostolica Se Devolve aos Se­
deroso – fosse pela sua preponderância nhores Bispos a Faculdade de Dispensar nos
no plano do ensino universitário, fosse Impedimentos Publicos do Matrimonio, e de
pelo papel que historicamente assumira Prover Espiritualmente em Todos os Mais Ca­
na conformação doutrinária da Restau- zos Reservados ao Papa (1766); Demonstra­
ração, fosse ainda pela ligação de Por- ção Theologica, Canonica e Historica do Di­
tugal ao papado, que tornara o reino, reito dos Metropolitanos de Portugal (1769);
desde cedo, avesso à influência jansenis- Deducção Chronologica e Analytica (1768);
ta –, será sobretudo o poder da Ordem De Sacerdotio, et Imperio: Selectae Disserta­
nos territórios da América do Sul e a opo- tiones queis Premittitur Dissertato de Deo, de
sição que aí movia aos interesses da Co- Religione Naturali, ax Revelata, tanquam Ea­
roa portuguesa a motivar a perseguição rum Basis, et Fundamentum, pro Supremo Ju­
dos Jesuítas que, apoiada por um pode- ris Canonici Gradu Obtinendo, in Academia
roso e inovador processo de propaganda, Conimbricensi Publice Propugnandae (1770);
culminaria com a expulsão da Ordem o Compendio Historico do Estado da Univer­
em 1759. A questão fora assumida, des- sidade de Coimbra (1771); os Estatutos da
de o início e em toda a linha, como um Universidade de Coimbra (1772).

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22 AntiAbsolutismo

Ruínas da missão jesuíta de S. Miguel Arcanjo (Brasil), em 1846.

A ação pombalina não se repercutiu absolutismo, inspirada pelo espírito das


apenas numa conveniente revisão da Luzes, pela abertura demonstrada pela
história e da doutrina política portugue- nova Monarca e por alguma tolerância
sas. A orientação racionalista e empírica censória, mas ao mesmo tempo estimula-
que guiara a reforma do ensino no reino da pela manutenção do modelo político
trouxera consigo a difusão de métodos e e das estruturas de poder consolidados
ideias novas, incluindo as que começavam por Pombal. Além da circulação de pe-
a agitar nos espíritos do tempo o ideal riódicos estrangeiros, o ressurgimento da
da liberdade cívica contra os abusos do Gazeta de Lisboa em 1778 (depois da sua
despotismo e inspiravam as revoluções. suspensão em 1762) e a fundação do Jor­
Mesmo sob o controlo da Inquisição se- nal Enciclopédico, uma das primeiras revis-
cularizada por Pombal, divulgava-se a lei- tas filosóficas portuguesas, foram essen-
tura dos filósofos das Luzes, incluindo os ciais na formação de uma opinião pública
enciclopedistas – também os que estavam antiabsolutista, não só pela divulgação da
proibidos, e não raras vezes por especial doutrina de autores como os proscritos
autorização régia. Com a sucessão de Montesquieu, Voltaire ou Rousseau, mas
D. Maria I e a queda de Pombal, o perío- também pelas notícias que deram das
do da “viradeira”, época de “compromis- revoluções europeias e americana, e em
so do absolutismo” (CASTRO, 1993, 11) especial dos acontecimentos ocorridos
é marcado pela “descompressão” do abso- em França, de tal forma entusiastas, que
lutismo pombalino (RAMOS, 2007, 11), foram alvo da ação censória para impedir
de que a revisão dos processos políticos que continuassem a propagar o que se se-
e reabilitação dos condenados são exem- guiu no ano de 1789.
plo. Interessa particularmente este perío- O atrativo que a ideologia antiabsolu-
do porque é nele que se desenvolve uma tista exercia também sobre os círculos
importante corrente de contestação do intelectuais setecentistas tinha, pois, duas

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AntiAbsolutismo 23

raízes ideológicas distintas: a de uma con- litação do tradicional consensualismo


ceção de monarquia tradicional e a do re- do que de um novel ideário liberal, mas
formismo iluminista animado pelas expe- é também na confluência destas duas li-
riências revolucionárias. Estas tendências nhas que Melo Freire tenta demonstrar o
encontram-se ambas vertidas do debate perigo das propostas do censor no senti-
sobre o projeto do Novo Código de Di- do de reafirmar as prerrogativas das Cor-
reito Público concluído por Melo Freire, tes, mormente as legislativas (“não sendo
em 1789, no âmbito de uma tentativa de as leis fundamentais outra coisa mais que
reforma das Ordenações que procurava uma convenção e contrato entre os súb-
concretizar uma promessa de D. João IV. ditos e o imperante sobre a ordem da
A censura que lhe dirigiu Ribeiro dos sucessão e regimento do reino […] não
Santos é também ela ilustrativa do ânimo convinha nem política, nem economica-
reformador da “viradeira”: Ribeiro dos mente falando, que se chamassem à ca-
Santos, que fora um dos mais destacados pital do reino os povos para deliberarem
vultos teóricos do pombalismo e apoiante sobre assunto tão perigoso, delicado e
da sua ação na reorganização do ensino implicado. Que bulha não faria na Euro-
em Portugal, demarcara-se já no reinado pa um semelhante ajuntamento neste sé-
de D. Maria I dos abusos do marquês (“A culo! […] Basta lembrarmo-nos hoje das
primeira, principal e mais importante assembleias de França e das suas conse-
obrigação de um ministro que o príncipe quências” [SANTOS, 1844, 64-65]; “Se eu
põe à testa do governo, é manter a pri- não me engano, o censor ou quer fundar
meira lei constitucional e fundamental em Portugal uma monarquia nova e uma
de toda a sociedade civil, i.e., a da segu- nova forma de governo, ou quer tempe-
rança pessoal e real dos cidadãos, que foi rar e acomodar a atual aos seus desejos e
o por que os homens se ajuntaram em filosofia” [Id., Ibid., 85]; “o chamado pac-
sociedade […]. O marquês de Pombal to social é um ente suposto, que só existe
violou esta lei, em todo o tempo do seu na cabeça e imaginação alambicada de
governo” [DIAS, 1955, 445-446]) e reco- alguns filósofos”, [Id., Ibid., 8]).
nhecia agora a necessidade de superar as Melo Freire procurava detetar na cen-
insuficiências do seu projeto político e a sura de Ribeiro dos Santos os elementos
utilidade de o atualizar. A censura da rea- que permitiam associá-lo às consequên-
lização do Novo Código de Melo Freire cias temíveis de uma experiência revolu-
por parte de Ribeiro dos Santos demons- cionária de matriz teórica distinta. E um
tra como as duas linhas de contestação do desses elementos, além de os de nature-
modelo absolutista se posicionavam no za político-jurídica já referidos, era o do
novo momento político. À acusação de tratamento dado à religião, a propósito
que o projeto de Código de Direito Públi- do qual Melo Freire acusa também injus-
co falhava por não começar por definir tamente o lente de Cânones do filosofis-
as leis fundamentais do reino (entre as mo naturalista típico das Luzes que, nas
quais contava as das Cortes de Lamego), transigências racionalistas, fazia perigar
respondera Melo Freire com a denúncia a fé. Trata-se de uma observação espe-
do censor como monarcómaco. É ainda cialmente importante (ainda que insi-
a matriz discursiva definida pelo pomba- diosa), porque identifica o que será um
lismo que aqui se encontra. Ribeiro dos dos elementos mais característicos do an-
Santos era muito mais adepto da limita- tiabsolutismo do séc. xix português – o
ção do poder absoluto por via da reabi- laicismo, reconhecido traço da clivagem

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24 AntiAbsolutismo

entre liberais e ultramontanos. O olhar Junta dos Três Estados em 1807: “Dig-
retrospetivo de quem, no final de Oito- nando-se o imortal Napoleão patentear-
centos, aferia a experiência do século, é -nos a sua vontade por órgão dos nossos
perspicaz na identificação dos fatores de deputados, quer que sejamos livres […].
perturbação da antiga ordem: “Os deuses Pedimos uma constituição e um rei cons-
desceram do Olimpo; humanizaram-se. titucional, que seja príncipe de sangue
Os reis, entrando no constitucionalismo, da vossa real família” (SORIANO, 1870,
ficaram reduzidos á pompa efémera das 2.ª época, t. i, 212-214). As circunstâncias
grandes galas. Só Deus ficou onde esta- políticas do país após a derrota das forças
va, apesar de alguns bons racionalistas e francesas, não só económicas e adminis-
de alguns maus teólogos” (PIMENTEL, trativas, mas em que o estatuto de colónia
1893, IX). pesava cada vez mais notoriamente, preci-
O período que se seguiu a 1789 refletiu pitaram a revolução de 1820, proclaman-
a inquietação com o curso da Revolução do-se no Manifesto da Nação Portuguesa aos
em França e, também por isso, o debate Soberanos, e Povos da Europa que “O Povo
em torno do projeto do Código do Direi- Português terá uma justa liberdade, por-
to Público foi visto como potencialmente que a quer ter”. Se na longa exposição de
perigoso. Ficou a reforma legislativa sem motivos do Manifesto se apela à situação
efeito (“O projeto de um novo Código de desgoverno do país, à dignidade ferida
tem sido empreendido em diversos rei- do reino e à “justa liberdade” e às “verda-
nados, porém impossível fazer-se cousa deiras e sãs noções do Direito Público”,
boa sem uma revolução, que quebrasse as proclamando igualmente “a mais firme
bases dos Direitos estrangeiros e do feu- adesão ao seu Rei”, o propósito de rutura
dalismo, adotadas para o nosso regime, e é também claro: “o de uma nova ordem
que suplantasse os caprichos e preocupa- de coisas” (Manifesto…, 15 dez. 1820, 9).
ções, com que sempre se queria proceder Ainda assim, o propósito de rutura
nesta matéria” [CARNEIRO, 1821, 12]), convive inicialmente com a recuperação
e agravou-se o controlo censório, num da antiga doutrina política que o pom-
esforço de tranquilização social que, to- balismo combatera. É o que se retira de
davia, não foi suficiente para reprimir a textos fundamentais dos primeiros mo-
circulação de ideias e a leitura de obras mentos do liberalismo, como as Bases
proibidas, nem o debate que se desenvol- da Constituição Política da Monarquia
via desde o final do reinado de D. José, Portuguesa, estabelecidas pelos deputa-
não apenas em círculos intelectuais mais dos constituintes em 9 de março de 1821
notórios, como fora o da marquesa de (dec. n.º 23, de 13 de março de 1821),
Alorna ou o da sociedade literária Grupo ou a Constituição de 1822, que no preâm-
da Ribeira das Naus, os de Coimbra ou bulo identificam a origem das “desgraças
Valença do Minho, mas de forma relativa- públicas” que caracterizaram o período
mente disseminada socialmente. anterior “no desprezo dos direitos do
Será este o esteio cultural, avesso ao ab- cidadão e no esquecimento das leis fun-
solutismo, de parte importante das elites damentais da monarquia”, que deveriam
portuguesas, quando as tropas napoleó- ser restabelecidas, ampliadas e reforma-
nicas invadem o reino, e que explica em das. Na Proclamação da Junta Provisional do
parte o acolhimento das ideias dos ocu- Governo Supremo do Reino, feita no Porto
pantes, manifestado paradigmaticamen- em 24 de agosto de 1820, invocam-se os
te na “Súplica dirigida a Napoleão” pela “foros e direitos” violados e os “louváveis

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AntiAbsolutismo 25

lítico do novo regime (designadamente a


que opõe o jacobinismo ao reformismo
moderado), a primeira e mais vincada
das divisões – e que caracteriza o perío-
do que medeia entre 1820 e 1823 – foi a
que radicalmente se traçou entre absolu-
tistas e liberais. Ela havia de conformar o
carácter violento da experiência política
da primeira metade de Oitocentos, assu-
mindo a clara influência dos modelos
ideológicos revolucionários franceses e
afastando-se do modelo liberal contrar-
revolucionário de matriz anglo-saxónica.
Já o pensamento contrarrevolucionário
que se desenvolve em Portugal desde o
final do séc. xviii até à queda do regime
miguelista, em 1834, é também claramen-
te antiliberal, essencialmente de carácter
polémico ou apologético, assumindo o
As Cortes Constituintes de 1820,
de Óscar Pereira da Silva (1865-1939). mais das vezes carácter panfletário e sa-
tírico, e apoiando-se doutrinariamente
numa conceção anti-individualista de
costumes que nos caracterizavam sempre matriz corporativista, no que respeita à
desde o estabelecimento da monarquia” relação entre os indivíduos e a sociedade,
(Proclamação..., 24 ago. 1820). Os discur- divergindo internamente quanto à expli-
sos parlamentares fazem eco desta recu- cação da origem do poder, responden-
peração, pretendendo ver-se na própria do à proposta liberal com formulações
elaboração da Constituição em Cortes
um regresso às tradições políticas do rei- Mouzinho da Silveira (1780-1849).
no, surgindo ainda algo isoladas as reti-
cências que Silvestre Pinheiro Ferreira ou
Mouzinho da Silveira punham, na déc. de
30, a esta pretensa continuidade. Assim,
numa proclamada prolongação com o
consensualismo tradicional, o novo regi-
me afirma-se, pela negação, intrinseca-
mente antiabsolutista.
A identificação de uma corrente anti no
contexto da revolução de 1820 é tão mais
apropriada quanto é certo que o liberalis-
mo promoveu a criação da imagem ma-
niqueísta de uma sociedade dividida, ma-
nifestada na eleição, por oposição à ideia
de coesão típica do Antigo Regime. Além
das demarcações ideológicas que ao lon-
go do séc. xix se firmaram no campo po-

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26 AntiAbsolutismo

providencialistas, voluntaristas ou ainda de divina do poder. As dificuldades que


de contratualismo absoluto, de reconhe- se levantaram na compatibilização deste
cível raiz hobbesiana. entendimento com a consagração da tu-
De tal forma a detração do absolutis- tela civil da defesa da ortodoxia e da dis-
mo se instala no discurso político que o ciplina da Igreja Católica, que resultava
termo chega a ser usado com conotação do art. 10.º da Constituição de 1822 – que
pejorativa mesmo pelos que se considera- já em 1821 levara o cardeal-patriarca
vam antiliberais, devolvendo as acusações D. Carlos da Cunha e Menezes a recusar
de absolutismo àqueles que alguns anos jurar as Bases da Constituição e que faria
volvidos violavam as leis fundamentais e dos “negócios eclesiásticos” um assunto
se recusavam a respeitar a legitimidade de Estado e uma pasta ministerial num
de D. Miguel. A corporização daque- regime que se pretendia laico –, serão
las que acabaram como fações de uma objeto de uma das discussões mais persis-
sangrenta guerra civil na figura de dois tentes do liberalismo, mas permanecem
irmãos desavindos, que na disputa ideo- também no discurso dos adeptos da velha
lógica disputavam também o trono (por ordem como libelo acusatório de pro-
mais simplista e caricatural que fosse funda contradição. Além do problema
essa representação), acentuou e consoli- político da relação do Estado com as ins-
dou no imaginário político português a tituições eclesiásticas, o liberalismo tinha
demarcação clara e insuperável dos dois um projeto de reforma da religião (como
campos. atesta o debate em torno da utilidade so-
Elemento incontornável dessa demar- cial das ordens religiosas, com a suspen-
cação, que exige uma referência parti- são das admissões de noviços e noviças
cular pelo impacto que teve na conforma- em 1821 e em 1822), que se acentua com
ção do discurso e das práticas no séc. xix as movimentações reacionárias, sobretu-
em Portugal, foi o laicismo. O liberalismo do a partir da Vila-Francada, em 1823, e
assumiu a associação (que havia de ter da adesão de parte do clero ao partido
longa vida na cultura portuguesa) do tro- miguelista, em 1828, generalizando-se
no e do altar como imagem por excelên- a imagem do clérigo como antiliberal.
cia do absolutismo, a “tirania em nome O  anticlericalismo da ação liberal – ma-
do céu” nas palavras de Alexandre Hercu- terializado na figura de Joaquim António
lano, em carta a Oliveira Martins, datada de Aguiar – no contexto da Guerra Civil
de fevereiro de 1877 (MARTINS, 1895, II, que dura até 1834 (patente na extinção
326). A rápida extinção da Inquisição, em das ordens religiosas, na proibição de ad-
1821, era uma exigência do corte com o missão às ordens sacras e na integração
atavismo, ao mesmo tempo que preten- dos bens eclesiásticos na Fazenda Públi-
dia alterar a conceção, típica do Antigo ca, em 1834) reforça-se, assim, também
Regime, da religião como mecanismo de como fator distintamente antiabsolutista.
enquadramento social. Fenómeno com- O extremar das posições favoreceu
plexo que não cabe aqui desenvolver, a uma delimitação mais clara dos caracte-
relação do novo regime com a religião re- res essenciais do movimento liberal e o
flete as divisões que se cavam desde cedo absolutismo conhece a sua mais defini-
no seio do movimento liberal, mas gene- tiva e derradeira negação no consenso
ricamente caracteriza-se pela recondução que progressivamente se estabeleceu na
da vivência religiosa à esfera da liberdade sociedade portuguesa em torno de prin-
individual e pela negação da legitimida- cípios e doutrinas – como a proclamação

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AntiAbsolutismo 27

Bibliog.: CARNEIRO, Manuel Borges, Juízo


Crítico sobre a Legislação de Portugal ou Parabola
VIII Acrescentada ao Portugal Regenerado, Lis-
boa, Imprensa Nacional, 1821; CASTRO,
Zília Osório de, “Poder régio e os direitos da
sociedade. O  ‘absolutismo de compromisso’
no reinado de D. Maria I”, Ler História, n.º 23,
1993, pp. 11-22; Compendio Historico do Estado
da Universidade de Coimbra no Tempo da Invasao
dos Denominados Jesuitas e dos Estragos Feitos nas
Sciencias e nos Professores, e Directores Que a Re-
giam pelas Maquinações, e Publicações dos Novos
Estatutos por Eles Fabricados, Lisboa, Régia Offi-
cina Typografica, 1771; DIAS, Luís Fernando
de Carvalho, Luxo e Pragmáticas no Pensamento do
Século XVIII, Coimbra, Coimbra Editora, 1955;
Manifesto da Nação Portuguesa aos Soberanos Povos
da Europa, Lisboa, 15 dez. 1820; MARTINS, J.
P. de Oliveira, Portugal Contemporâneo, 2 vols.,
Lisboa, Livraria de António Maria Pereira Edi-
D. Carlos da Cunha e Menezes (1759-1825). tor, 1895; PIMENTEL, Alberto, A Última Corte
do Absolutismo em Portugal, Lisboa, Livraria Fe-
rin, 1893; Proclamação da Junta Provisional do Go-
de direitos naturais inalienáveis como a vernador Supremo do Reino, Porto, 24 ago. 1820;
liberdade, a propriedade e a segurança; RAMOS, José de Oliveira, D. Maria  I, Lisboa,
a igualdade dos cidadãos perante a lei e Círculo de Leitores, 2007; SANTOS, António
Ribeiro dos, De Sacerdotio et Imperio Selectae Dis-
a exclusão dos privilégios; o reconheci-
sertationes, Lisboa, Typografia Regia, 1770; Id.,
mento de princípios políticos como o da Notas ao Plano do Novo Codigo do Direito Publico
soberania nacional, o da representação de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universida-
política e o da separação de poderes; a de, 1844; SILVA, José de Seabra da, Deducção
afirmação dos princípios da tolerância Chronologica e Analytica Parte Primeira, na Qual Se
religiosa e da liberdade de pensamento Manifestão pela Successiva Serie de Cada Hum dos
Reynados da Monarquia Portugueza, Que Decorrê-
e de expressão; o reconhecimento de
rão desde o Governo do Senhor Rey D. João III até o
direitos de participação política –, que Presente, os Horrorosos Estragos, que a Companhia
formam um corpo identitário que sinte- Denominada de Jesus Fez em Portugal, e Todos os
tiza na experiência portuguesa o credo Seus Dominios por Hum Plano, e Systema por Ella
antiabsolutista. Inalteravelmente Seguido desde que Entrou neste Rey-
no, até que Foi delle Proscripta, e Expulsa pela Justa,
Sabia, e Providente Ley de 3 de Setembro de 1759,
3 vols., Lisboa, Officina de Miguel Manescal
da Costa, 1767-68; SILVEIRA, Mouzinho da,
“Memória sobre a reunião das Cortes”, in PE-
REIRA, Miriam Halpern (coord.), Obras, vol. i,
Lisboa, FCG, 1989, pp. 593-598; SORIANO,
Simão José Luz, História da Guerra Civil e do Es-
tabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal
Comprehendendo a História Diplomática Militar e
Política deste Reino desde 1777 até 1834, 2.ª épo-
ca, t. i, Lisboa, Imprensa Nacional, 1870.
Ana Caldeira Fouto

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28 AntiAcAdemismo

Antiacademismo rações mais novas e impulsionadoras de


valores estéticos de vanguarda contra o
edifício cultural e artístico vigente, acu-
sado de impedir o surgimento de novas
correntes estéticas.
Ao anticademismo poderíamos ain-
da estender a reação negativa contra as

N ão se encontra na história da cultura


portuguesa um corpo de ideias ou
teorias bem definidas que possam dar for-
academias e o espírito social (julgado
elitista) e literário (por alguns apodado
de fútil) por elas cultivado. Efetivamen-
ma e consistência a um conceito homo- te, as primeiras academias surgidas em
géneo de antiacademismo. Não obstante, solo luso, a partir do segundo quartel do
será lícito intuir atitudes e expressões cul- séc. xvii, onde figuram como pioneiras
turais que se afiguram como suscetíveis a Academia dos Singulares (1628) e a
de serem catalogadas como tal. Por essa Academia dos Generosos (1647), tinham
via, atente-se desde logo no âmbito da um cunho eminentemente humanista,
estética, donde emergiu o oposto, acade- expresso no incremento de atividades
mismo, significando a observância rígida literárias. A produção literária destas
e servil de preceitos estético-pragmáticos Academias foi vista como frívola pelos
estandardizados ou como transmitidos positivistas, à cabeça dos quais estava
pelo magistério académico. Daqui é legí- Teófilo Braga, mas também por parte de
timo inferir-se para o antiacademismo os figuras como Hernâni Cidade e outros,
vários conflitos que, no quadro histórico
da cultura portuguesa, opuseram discí- Teófilo Braga (1843-1924).
pulos a mestres ou membros de gerações
e sensibilidades ideológicas, estéticas e
literárias antagónicas. Assim, torna-se
oportuno evocar a consabida “questão
coimbrã”, designativa da querela estéti-
co-literária alimentada pelo jovem Ante-
ro de Quental e seus correligionários, da
corrente realista, contra toda uma escola
de índole academista e formalista de poe-
tas românticos, acobertados sob o ponti-
ficado de Feliciano de Castilho. De forma
desassombrada, cabe igualmente qualifi-
car de anticademista a famosa polémica
que opôs o jovem e irreverente Almada
Negreiros ao conservador Júlio Dantas,
consubstanciada no truculento e virulen-
to “Manifesto anti-Dantas” em que, pro-
curando abrir caminho para o futurismo,
Almada zurze o academismo instalado
e os valores tradicionais que pretendia
abalar. Em ambos os exemplos aduzidos,
assistimos a ataques de membros de ge-

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AntiAcAdemismo 29

que desvalorizaram o labor destas ins- Cultural  –  obras de intenção pedagógi-


tituições seiscentistas, considerando-as ca, vocacionadas para um público que
“escolas de puerilidade e de propagação extravasa em larga medida o mundo aca-
de um gosto decadente” (CALAFATE, démico, quando não em reação ao esoté-
1989, 48). Vai-se contemporaneamente rico intelectualismo universitário.
compreendendo que esse julgamento Ademais, a paródia à linguagem esoté-
era parcial e superficial, essencialmente rica, pomposa e enfadonha dos académi-
porque se ateve ao estritamente textual cos atinge por essa época um dos seus apo-
(que se tomou como má literatura) e geus na pena verrinosa e mordaz de Jorge
não atendeu à função convivencial e so- de Sena, revelando-nos uma outra faceta
cial das academias. possível do antiacademismo. O  prefácio
Abrindo o conceito para o domínio da do poeta e académico às Quybyrycas de
reação negativa ao saber ou ao ensino Fr. Ioannes Garabatus é um texto repleto
ministrado nas academias estatais ou uni- de ironia e sarcasmo que visa satirizar e
versidades, não é descabido inscrever no descompor o arquetípico discurso cientí-
âmbito do antiacademismo a iniciativa fico: hermético, enxundioso, sobrecarre-
republicana que levou ao surgimento das gado de erudição, notas e contrastantes
universidades livres e das universidades informações teóricas de domínio muito
populares em inícios do séc. xx, como restrito. Neste ponto, porém, anti-intelec-
alternativa ao ensino académico oficial tualismo e antiacademismo já convivem
assegurado pelo Estado. Com efeito, as em indiscernível fusão, estabelecendo os
universidades livres distinguiam-se clara- possíveis limites teóricos de um conceito
mente tanto das academias tradicionais ainda por validar.
como das universidades estatais. As aca-
demias, pelo seu elitismo, e por estarem
votadas a um saber mais teorético, eram
inacessíveis às camadas populares; as
universidades do Estado cumpriam uma Bibliog.: impressa: BORRALHO, M. L. Ma-
função acima de tudo profissionalizante, lato, e MELO, Gladstone Chaves de, “Acade-
seguiam vias de estudo bem delimitadas mias”, in Biblos, vol. i, Lisboa, Verbo, 1995,
e com elevado grau de complexidade. cols. 32-41; CALAFATE, Pedro, “Academias
As universidades livres, com um raio de em Portugal”, in Logos, vol. i, Lisboa, Verbo,
1989, cols. 47-49; FALCÃO, R., “Academias
ação muito mais amplo e democrático,
literárias”, Revista da Academia Fluminense de Le-
pautavam o seu ensino pela simplici- tras, vol. viii, 1954, pp. 183-194; FERREIRA,
dade, pela objetividade, pelo poder de J. Palma, Academias Literárias dos Séculos XVII
sugestão. Por conseguinte, faz sentido e XVIII, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1982;
especular sobre o anti-intelectualismo PITA, A. Pedro, “O poder de saber – compe-
e o antiacademismo latente na intenção tência e cultura nas universidades republica-
que preside à criação destas universida- nas de educação popular”, Revista Crítica de
des. O mesmo se pode indagar em ini- Ciências Sociais, n.os 27-28, jun. 1989, pp. 249-
-274; digital: CEIA, Carlos, “Academismo”,
ciativas posteriores de difusão científica
in CEIA, Carlos (org.), E-Dicionário de Termos
de abrangência popular, como as levadas Literários: http://edtl.fcsh.unl.pt/business-
a cabo por António Gedeão na famosa directory/6540/academismo/(acedido a 16
coleção Ciência para Gente Nova, ou nov. 2016).
por Agostinho da Silva através da pu- Martinho Soares
blicação dos Cadernos de Informação Teresa Carvalho

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30 AntiAcordismo

Antiacordismo argumentos antiacordismo prendem-se


com a sua pouca eficácia e com motivos
fonológicos, morfológicos, históricos,
educativos, sociológicos, diplomáticos,
económicos e da ordem da preservação
patrimonial.
Primeiramente, os antiacordistas ar-

C onjunto de posicionamentos con-


tra o Acordo Ortográfico de 1990
(AO  90) estabelecido entre os países de
gumentam que o AO 90 é pouco eficaz,
visto que, contrariamente ao seu intuito
de uniformização e devido à introdução
língua oficial portuguesa – Angola, Brasil, de dupla grafia em palavras escritas num
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, mesmo país, aumentou consideravelmen-
Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor- te o número de palavras que se escrevem
-Leste –, que teve por objetivo unificar or- de forma diferente. Segundo M.ª Regina
tograficamente as duas normas da grafia Rocha, 2691 palavras que se grafavam
do português de então, a escrita no Brasil diferentemente mantêm-se diferentes,
e a escrita nos restantes países referidos, enquanto 569 palavras que se escreviam
de forma a fortalecer a língua ao nível do de forma diferente se tornaram iguais, e
seu prestígio internacional e organizacio- 1235 palavras que se escreviam de forma
nal, ao estabelecer uma unidade ortográ- igual se tornaram diferentes (existindo
fica de 98 % entre estes países, ao con- cerca de 200 palavras desnecessariamen-
trário da anterior, de cerca de 96 %. Foi te alteradas em Portugal, como “aceção”,
inspirado pelo caso do castelhano, que, “conceção” ou “deceção”, que perderam
embora apresentando pronúncias e vo- a sua consoante muda <p>, quando, no
cabulários diferentes nos vários países de Brasil, esta e assim a grafia europeia de
língua oficial castelhana, tem uma orto- raiz latina se mantêm, continuando a
grafia comum a todos. Apesar de o acor- escrever-se “acepção”, “concepção” e
do ter sido elaborado por linguistas re- “decepção”). Na mesma linha de pensa-
presentantes de todos os países em causa mento, Isabel Pires de Lima caracteriza
(à exceção de Timor-Leste, que só aderiu o AO 90 como sendo um ato de unifica-
a ele em 2004), muitas foram as vozes que ção ortográfica demasiado permissivo,
se pronunciaram negativamente acerca que, ao possibilitar duplas grafias num
do mesmo, rejeitando-o completamente. só país, está a criar uma heterografia, e,
Este facto traduziu-se na publicação de consequentemente, a ir contra a norma-
diversos artigos de opinião em jornais e tividade inerente ao conceito de ortogra-
outros órgãos de comunicação apontan- fia; ideia igualmente defendida por Vasco
do os problemas do AO 90; e na criação Graça Moura e desenvolvida por António
do manifesto Cidadãos contra o “Acordo Emiliano, quando afirma que o uso ge-
Ortográfico” de 1990, assinado por 20.000 neralizado da dupla grafia relativamen-
pessoas, entre as quais famosos linguis- te à acentuação, às consoantes mudas e
tas, escritores, professores, artistas, bem à maiusculização, ao invés de contribuir
como cidadãos comuns, pedindo a des- para uniformizar a ortografia dos países
vinculação de Portugal desta norma or- lusófonos, compromete o uso, a difusão e
tográfica, em vigor desde 2009, dirigido o ensino da língua portuguesa.
às mais altas figuras do Estado e entregue Seguidamente, o antiacordismo pren-
na Assembleia da República em 2017. Os de-se com questões fonológicas, morfoló-

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AntiAcordismo 31

gicas e de história da língua portuguesa, Destes últimos exemplos, sobrevém


que têm consequências ao nível do ensi- uma nova crítica feita pelos que se po-
no, levantando os defensores do término sicionam contra o AO 90: o facto de o
ou da revisão do AO 90 vários problemas. português ser um produto histórico, eti-
Um deles é a a elevação das vogais áto- mológica e maioritariamente derivado
nas – característica do português euro- do latim, para além de ter raízes gregas
peu, que consiste no facto de, no caso e árabes e neologismos decorrentes da
de Portugal, a pronúncia das vogais <a>, expansão ultramarina, e de o acordo des-
<e> e <o> em posição tónica não ser truir, em parte, essa herança cultural no
igual àquela que têm em posição átona que diz respeito ao processo de derivação
(como se verifica nos primeiros <a> de de palavras. Com efeito, diversas palavras
“casa” e “casinha”, em que uma primeira derivadas de um étimo latino perderam
sílaba é tónica e a vogal aberta, e a outra a raiz deste último – como “nocturno” >
primeira sílaba é átona e a vogal fecha- “noturno”, que não deriva da portuguesa
da)  –,que era aprendida intuitivamente, “noite”, mas da latina “nox”, étimo que,
ou através do uso de acentos ou de le- com o AO 90, é apagado da história da
tras etimológicas que indicavam que as língua portuguesa, tornando-a patrimo-
vogais precedentes eram abertas (como nialmente mais pobre. Assim, critica-se,
em “nocturno”, “espectador” e “tractor”). para além da destruição de uma memó-
Com o AO 90, esta diferenciação entre a ria linguística e cultural, uma tentativa de
pronúncia fechada e aberta das vogais foi simplificação da língua.
grandemente dificultada, na medida em Estabelecendo-se a partir daqui uma
que foram retirados acentos a palavras maior dificuldade na sua aprendizagem
como “para” (2.ª pessoa do imperativo do pelos jovens que crescem com o AO 90,
verbo “parar”), que, passando a escrever- é igualmente apontado um problema so-
-se “para”, facilmente se confunde com a ciológico relacionado com o acordo, que
sua agora homógrafa “para” (preposição consiste no facto de os estudantes do ensi-
essencial); e em que as letras etimológi- no secundário de Portugal serem penali-
cas desapareceram da ortografia, passan- zados nas notas da disciplina de português
do a escrever-se “noturno”, “espetador” por escreverem com a ortografia do Acor-
e “trator”, gerando confusão ao nível da do Ortográfico de 45 (AO 45), segundo o
pronúncia, e, assim, um grande aumento qual aprenderam a escrever na primeira
das exceções a uma regra fonológica que década do séc. xxi (sendo-lhes desconta-
permitia uma leitura intuitiva das vogais e do 1 ponto em 200 por cada palavra escri-
que acaba por dificultar a aprendizagem ta com a grafia anteriormente em vigor,
da língua no 1.º ciclo de escolaridade. num teste ou exame nacional); ou por
Do mesmo modo, os antiacordistas escreverem de forma ortograficamente
apontam falta de coerência morfológica difusa, dada a confusão que já fora criada
a este acordo, que segue apenas a produ- pelo AO 45 (relativamente à acentua-
ção fonética das palavras, conduzindo a ção de vogais em advérbios, e.g.) e que
que, e.g., se passe a escrever “Egito” em foi acentuada pelo AO 90, potenciada
vez do anterior “Egipto”, mas que se con- ainda pelo uso simplificado da ortogra-
tinue a escrever “egípcio”, na medida em fia presente nas novas tecnologias, que
que o <p> é aqui pronunciado, perden- difunde exponencialmente esta dupli-
do-se totalmente a ligação gráfica entre o cidade, falta de apreensão das normas
nome do país e o povo que o habita. e confusão ortográfica, desmotivando

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32 AntiAcordismo

ainda mais para a aprendizagem da lín- a ratificação e entrada em vigor do AO


gua. Carlos Heitor Cony refere este pro- 90, escolheu manter a grafia do AO 45 e
blema sociológico, acrescentando que, à conseguiu vender 50.000 exemplares de
imagem das tentativas de acordo ortográ- um romance, ao contrário do que suge-
fico desenhadas por Getúlio Vargas ou ria a lógica de expansão editorial tida em
por António de Oliveira Salazar no pas- conta pelos especialistas que criaram o
sado, o AO 90 não prevalecerá, visto que AO 90.
são os povos que criam as línguas e não as
academias ou os governos. Bibliogr.: impressa: MOURA, Vasco Gra-
Para além destes argumentos antiacor- ça, Acordo Ortográfico: a Perspectiva do Desastre,
distas, salientam-se ainda as críticas teci- Lisboa, Alêtheia, 2008; digital: EMILIANO,
António, “Fixar o caos ortográfico”, Jornal de
das ao AO 90 devido a questões diplomá-
Notícias, 15 jun. 2008: http://emdefesadalin-
ticas e económicas. Estas sustentam que guaportuguesa.blogspot.pt/2008/06/fixar
o objetivo de uniformização ortográfica e -o-caos-ortogrfico.html (acedido a 14 jun.
consequente união cultural entre os paí- 2017); FERREIRA, Manuela Barros, “Nove
ses de língua oficial portuguesa não foi argumentos contra o Acordo Ortográfico
cumprido, na medida em que Portugal de 1990”, Expresso, 15 maio 2016: http://
terá imposto uma grafia com a qual nem expresso.sapo.pt/opiniao/2016-05-11-No-
ve-argumentos-contra-o-Acordo-Ortografi-
todos os países envolvidos terão concor-
co-de-1990 (acedido a 16 jun. 2017); LIMA,
dado, facto expresso na não ratificação Isabel Pires de, “Em favor da revisão do Acor-
do Acordo por Angola e Moçambique do Ortográfico: três ordens de razões cultu-
(apesar de estes países terem tido re- rais”, Diário de Notícias, 2 jun. 2008: http://
presentantes presentes na Academia das dn.sapo.pt/2008/06/02/artes/em_favor_re-
Ciências de Lisboa aquando da criação visão_acordo_ortografico.html (acedido a 14
do mesmo), que não foi tida em conta jun. 2017); MOTTA, Sérgio Barreto, “Brasil
também critica o Acordo Ortográfico”, Diário
por Portugal quando, ainda assim, deci-
de Notícias, 10 jun. 2009: http://www.dn.pt/
diu prosseguir com a imposição do Acor-
artes/livros/interior/brasil-tambem-critica-o
do, criando-se algum ruído diplomático -acordo-ortografico-1259098.html (acedido
entre Portugal e estes Países Africanos de a 14 jun. 2017); ROCHA, Maria Regina, “A
Língua Oficial Portuguesa, ao invés do falsa unidade ortográfica”, Público, 19 jan.
pretendido. Acrescentam que o AO 90 foi 2013: https://www.publico.pt/opiniao/jor-
criado não com o objetivo de fortalecer nal/a-falsa-unidade-ortografica-25921941
os laços lusófonos no mundo, mas com o (acedido a 15 jun. 2017); TEIXEIRA, Jerôni-
mo, “A riqueza da língua”, Revista Veja, 12 set.
de aumentar a venda de livros portugue-
2007: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/arti-
ses no Brasil, tornando obsoletas, e assim gos/rubricas/controversias/a-riqueza-da-lin-
desvalorizando, as bibliotecas lusófonas gua/1424 (acedido a 14 jun. 2017).
existentes. Argumentam que se tratou
Joana Lima
de um gesto capitalista, que é questiona-
do especialmente por cidadãos de países
de língua oficial portuguesa com menor
acervo bibliográfico e menores orçamen-
tos de Estado para a educação e a cultura;
e que os seus potenciais resultados positi-
vos são postos em causa pela experiência
empírica de autores como Miguel Sousa
Tavares, que, publicando no Brasil após

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AntiAfricAnismo 33

Antiafricanismo estadunidenses homossexuais. A catás-


trofe teria assim começado em África.
A tese de a doença incurável nascer em
território africano representa, para Son-
tag, a metáfora das visões pessimistas do
futuro do mundo.
Este quadro referencial antiafricanista

A distorção da história africana está


entre os maiores responsáveis pela
perpetuação da imagem equivocada dos
só pode ser contestado pela escrita de
uma nova história de África. Conforme
afirma Joseph Ki-Zerbo, a história de
africanos. O discurso eurocentrista e an- África conhecida até então não fora es-
tiafricanista condena os africanos e os crita por africanos, mas por estrangeiros
seus descendentes à condição de objetos, que acabaram por fixar uma visão sobre
e não de sujeitos, da sua história (NAS- África, aventando o autor a hipótese de
CIMENTO, 1996, 31). Outros discursos uma reescrita da história africana. Não
antiafricanistas foram produzidos ao lon- se trata de escrever uma história-revan­
go da história, como o relacionado com che, mas de mudar a perspetiva de uma
a questão do cativeiro e o estereótipo do historiografia eurocêntrica para uma
africano submisso. A questão religiosa é historiografia africana construída a par-
igualmente estereotipada, contrapondo tir de uma tomada de consciência autên-
as religiões cristãs às seitas ou crenças de tica sobre África. A visão da unidade e
origem africana, classificadas, muitas ve- diversidade africana apresentada por
zes, num plano inferior ao da religião. Ki-Zerbo é seguida por diversos outros
A autora Susan Sontag refere a cren- autores, particularmente por aqueles
ça, enraizada ao longo da história, de radicados na perspetiva teórica e episte-
que doenças contagiosas como a SIDA mológica entendida como africanismo.
teriam tido origem no continente afri- Já o panafricanismo é definido, do
cano, sendo consideradas infeções de ponto de vista conceptual, como um mo-
Terceiro Mundo, um flagelo que depois vimento político anti-imperialista que
se espalhara às restantes partes do globo. procura realizar o governo dos africanos,
Estes estereótipos racistas e antiafricanis- por africanos e para os africanos. Esta
tas provocaram reações por parte de mé- componente política, por sua vez, fun-
dicos, universitários e jornalistas africa- damenta a própria noção do conceito,
nos, que aventaram a hipótese de que o que significa todo o africanismo, expri-
vírus nada mais seria do que uma guerra mindo, deste modo, uma visão sociopolí-
bacteriológica desencadeada pelos EUA tica mundial, na medida em que busca a
com o objetivo de diminuir a natalidade unificação e elevação de todos os nativos
dos países africanos, ação que acabou e descendentes de africanos na diáspora
por atingir o continente dos seus perpe- como parte de uma comunidade africa-
tradores, como castigo. Uma versão afri- na. Sendo a mais importante corrente
cana refere a crença de que a enfermi- de pensamento político em África, o
dade teria tido origem num laboratório panafricanismo aparece como um movi-
da CIA, unidade de Maryland, e que daí mento teórico que sustenta um conjunto
o vírus teria sido enviado ao continente de ideias de aspirações à liberdade, rei-
africano e, depois, regressado ao país de vindicando a dignidade do africano no
origem, por intermédio de missionários quadro da política mundial, já definida

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34 AntiAfricAnismo

na Declaração dos Direitos do Homem continente, e outra África, negra e sel-


e do Cidadão. Embora a corrente pana- vagem, ao sul do Saara” (NASCIMEN-
fricana comece a dar os primeiros sinais TO, 1996, 31). A autora assevera que a
da sua formação nas primeiras décadas própria realidade do continente des-
do séc. xx, as suas manifestações só se mente tal hipótese, e que os povos que
tornaram notáveis nos anos 50, com as constituem as civilizações egípcias, e
frequentes conferências panafricanas outras da parte norte de África, são ne-
realizadas por grupos de intelectuais gros – núbios, cushitas, etc. A esta pers-
descendentes de africanos nas grandes petiva Joseph Ki-Zerbo chama “espelho
capitais europeias. Originalmente, o pa- de Narciso” (KI-ZERBO, 2010, XXXIII),
nafricanismo, enquanto movimento de ou seja, a construção do mundo à ima-
ideias, surgiu fora de África. gem e semelhança daquilo que a refe-
Os teóricos do panafricanismo coinci- rida visão eurocêntrica de sociedade
dem na ideia da defesa dos direitos dos consegue observar como reflexo da sua
africanos a disporem da sua terra mãe e própria imagem. Tal visão, radicada no
dos destinos desta, procurando, assim, colonialismo europeu, também intenta
a afirmação da autenticidade da perso- propagar uma divisão de África a partir
nalidade política de África, cuja autono- do Sara, separando a África localizada
mia constitui o objetivo da ideologia do acima da linha do deserto do Sara – su-
movimento, desde o início, tendo como postamente branca, dita civilizada e evo-
horizonte a fundação de um Estado so- luída, devido à sua proximidade com os
berano. Todas as formulações panafrica- povos europeus  – da África subsaaria-
nas que foram concebidas no quadro da na – supostamente negra, não civilizada,
presença europeia no continente africa- não evoluída, exatamente pela sua dis-
no têm como fim a construção desta per- tância dos povos ditos civilizados.
sonalidade política africana, consubs- Este pensamento atribui a um suposto
tanciada na ideia de um Estado. Dentro povo branco, não africano, o progresso
do debate panafricanista desenvolvido civilizatório da África do norte, negando
perto do começo do séc. xxi, destaca-se à África subsaariana o seu protagonismo
a figura de Frantz Fanon. Na sua vasta na construção de importantes civiliza-
produção bibliográfica, o autor defende ções e avanços científico-tecnológicos
o movimento da negritude e acabou por em todas as áreas do conhecimento. Pro-
influenciar, de forma significativa, como curou-se apagar das páginas da história
intelectual e ativista, os movimentos con- humana a memória de grandes centros
tra o racismo e o apartheid, na América e urbanos, caracterizados pela erudição
em África. e pela sofisticada organização política
A perspetiva antiafricanista de diver- de Estados e impérios soberanos como
sos pesquisadores nega a África uma Mali, Songai, Gana, Quíloa, Zimbabué,
unidade, buscando seccioná-la, tal como e tantos outros, estabelecidos na região
fizeram os colonialistas europeus no que compreende esta dita “África negra,
séc. xix, a partir de referências que não selvagem” (NASCIMENTO, 1996, 34).
condizem com as experiências forjadas Um primeiro grupo de pesquisadores
pelos negros africanos. Segundo Elisa a debruçar-se sobre os estudos africanos,
Nascimento, “a imagem difundida pelo a partir da conceção fundamentada no
eurocentrismo desenha a ideia de uma escravismo e nos estudos sobre a escra-
África branca e civilizada ao norte do vidão, foi formado por estudiosos que

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AntiAfricAnismo 35

Traficantes de escravos árabes e seus cativos ao longo do rio Rovuma. Autor desconhecido, c. 1870.

alicerçaram a ideia de que o escravo e ca pela África. Os estudos empreendidos


a escravidão de facto existiram e são in- por estes pesquisadores e historiadores
contestes, bem como determinantes nas não têm como foco o conhecimento do
relações entre África e Brasil, nos mais continente africano e das suas nuances,
de 300 anos de regime de escravidão. mas sim a confirmação de uma visão
Neste sentido, conhecer a origem dos preconcebida que, independentemente
escravos africanos e a sua posição na or- da realidade confrontada, terá sempre a
dem escravista é importante para enten- mesma conclusão.
der o lugar que os negros descendentes O quarto grupo fundamenta-se na
destes africanos escravos ocupam na so- conceção que intenta articular os conhe-
ciedade, no limiar do séc. xxi. cimentos e saberes das diversas culturas
Um segundo grupo é formado por e histórias do povo africano com os co-
aqueles que concebem uma África re- nhecimentos e saberes produzidos nas
presentada, sobretudo, pela costa da várias diásporas africanas pelo mundo,
Mina, pelo reino do Congo e pelo Be- entre as quais a diáspora afro-brasileira.
nim – lugares de entrepostos –, delimi- Estes pesquisadores compreendem que
tação imaginada e construída a partir a questão da unidade africana vai além
do mercantilismo europeu. A menção à das fronteiras territoriais do continente,
costa da Mina, ao reino do Congo e ao abrange as experiências das diásporas
Benim, muitas vezes, consiste em refe- do povo africano, independentemente
rências genéricas aos locais de entrepos- da pertença racial, étnica ou populacio-
tos e não à realidade africana e às suas nal. Compreendem que o africano é um
formações culturais, sociais, económicas ser diaspórico – a diáspora está impressa
e, principalmente, identitárias. na memória e na história individual e
O terceiro grupo é aquele que funda- coletiva de cada negro, descendente de
menta as suas conceções na ideia da Áfri- africano espalhado pelo globo, seja na

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36 AntiAfricAnismo

sua cosmovisão ou nas suas tradições cul- administradores coloniais e as suas desas-
turais, a que chamamos cultura africana trosas consequências para as populações
ou legado cultural africano. africanas. Poucas vezes as contendas tive-
Se é consensual que o colonialismo ram como resultado diminuir o espaço
resultou da concorrência económica e político dos administradores coloniais.
do expansionismo dos países europeus, Tomando como instrumento teórico as
vale a pena incorporar como dimensão análises de Hannah Arendt, é possível
própria desses processos algumas con- observar que as práticas políticas criam
siderações apresentadas por Hannah e mantêm relações sociais fundadas na
Arendt. A autora identifica três aspetos assimetria, na hierarquia e na extrema
fundamentais do alegado imperialismo desigualdade entre europeus e nativos.
colonial europeu, na sua fase de 1884 Um dos elementos fundamentais de en-
a 1914, apresentando-os como prefigu- raizamento e sustentação desse domínio
rações dos fenómenos totalitários do é o racismo. Nessa elaboração, o racismo
séc. xx, como o nazismo e o estalinismo. advém da quebra do valor atribuído ao
A novidade da argumentação de Arendt ser humano – no caso, o negro, que per-
reside na afirmação de que o imperia- de a possibilidade de ser tratado como
lismo colonial apresenta como traços semelhante. As experiências históricas
fundamentais o expansionismo, a buro- efetivas demonstram que o imperialismo
cracia colonial e o racismo. Conforme colonial dispôs de mecanismos ideológi-
a autora observa, pela distância e pela cos que levaram as massas a identificar-
dispersão geográfica dos impérios, faz- -se com o Estado e a nação imperiais,
-se necessário exportar o poder político, conferindo justificação e reconhecendo
obedecendo a um processo no qual os legitimidade ao sistema político e social
instrumentos da violência do Estado – a do seu país. As exposições universais
polícia e o exército – são separados das apresentaram manifestações culturais
demais instituições e promovidos à po- de afirmação dos grandes impérios, com
sição de representantes nacionais nas representação de si próprios como per-
colónias, tendo por função controlá-las. tencentes a um mundo civilizado e dos
Sob essas condições, o imperialismo co- outros povos como pertencentes a um
lonial instrumentaliza o poder político mundo exótico, selvagem, bárbaro, per-
da burguesia, inventando a burocracia petuando, assim, uma historiografia eu-
colonial como o seu corpo político, ao rocêntrica e antiafricanista.
mesmo tempo que lhe atribui o exercí- A conceção de antiafricanismo ar-
cio da violência e da força como essên- ticula-se, muitas vezes, com as noções
cias da ação política. de imperialismo e de neocolonialismo.
Em relação aos totalitarismos, no im- O neocolonialismo dividiu África em
perialismo colonial há, segundo Arendt, fronteiras artificiais, de acordo com os
um pequeno controle exercido por par- interesses europeus. Desse modo, tribos
te dos representantes do fator imperial, aliadas foram separadas e tribos inimigas
composto pelo Parlamento e pela livre foram unidas. Essa divisão ocorreu em
imprensa. A história dos imperialismos 1884-1885, na Conferência de Berlim,
(britânico, francês, belga, alemão e por- que instituiu normas para a ocupação de
tuguês) tem inúmeras referências de África. As potências coloniais negocia-
conflitos nos quais os representantes do ram a divisão de África, propondo a não
fator imperial criticam a dominação dos invasão de áreas ocupadas por outras

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AntiAfricAnismo 37

potências. No início da Primeira Guerra África foi incorporada na órbita da ju-


Mundial, 90 % das terras estavam já sob risdição dos impérios coloniais, processo
o domínio da Europa. A partilha foi feita formalmente legitimado pela já referi-
de maneira arbitrária, não respeitando da Conferência de Berlim, que ocorreu
as características étnicas e culturais de perto do termo do séc. xix. Em resulta-
cada povo. Os principais países partici- do, no final da Segunda Guerra Mun-
pantes da Conferência foram: Grã-Bre- dial, cerca de 800 etnias, falando mais de
tanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, 1000 idiomas, conviviam no continente
Holanda, Dinamarca, Suécia, Portugal. africano, que estava dividido em áreas
No caso português, as extensões terri- de exploração colonial pertencentes a
toriais africanas faziam parte de um con- França, Itália, Portugal, Alemanha, Espa-
texto histórico que remonta aos finais nha, Bélgica e Grã-Bretanha. Essas divi-
do séc. xv, com a expansão marítima eu- sões eram étnicas e as rivalidades tribais
ropeia. A presença de negros africanos aumentaram, acabando por beneficiar
em Portugal é uma consequência social os europeus, que as estimularam para
da política expansionista e um fruto dos melhor dominar os territórios. Na verda-
processos de desenvolvimento econó- de, os colonizadores dividiram os territó-
mico, o que resultou no crescimento rios segundo os seus interesses políticos
da área urbana da cidade de Lisboa. A e económicos, estabelecendo fronteiras
condição dessa presença faz parte de artificiais, que consistiam muitas vezes
um regime de escravidão imposto aos na reunião, em um mesmo território, de
derrotados em guerras, como a de Ceu- grupos étnicos inimigos, como notámos,
ta, e decorre da ação do comércio e da não respeitando as tradições nem a his-
pirataria, que Portugal conhece desde as tória desses povos. Mais tarde, na época
suas origens. No séc. xiv, havia postos de da Guerra Fria, começou a surgir um
vendas de escravos nas ruas de Lisboa e grande movimento de libertação nacio-
também já existia o tráfico. Muitos escra- nal em África. Como as antigas potências
vos de pele escura, como se dizia então, colonialistas já estavam desgastadas pela
entraram em Portugal em resultado da Segunda Guerra Mundial, não havia al-
troca de prisioneiros mouros. É difícil ternativas a oferecer aos movimentos
determinar o número de escravos que que lutavam pela independência desde
chegaram a Portugal desde o início do a primeira metade do séc. xx. Os EUA
séc. xv, uma vez que os Portugueses em- e a URSS, interessados em ampliar a sua
pregavam o termo “negro” para todos os influência no contexto da Guerra Fria,
tipos raciais de pele morena com quem também se posicionaram como favo-
se relacionavam, incluindo aí os mouros ráveis aos projetos de descolonização,
e todos os não cristãos. O trabalho es- mas os movimentos de independência
cravo só entra em declínio no séc. xviii, tiveram de conviver com essas divisões
quando se torna mais produtivo na ex- arbitrárias. No limiar do 3.º milénio, as
ploração do ouro brasileiro em Minas fronteiras fixadas pelos colonizadores
Gerais, ocorrendo, então, o desvio dessa foram preservadas, adiando a tarefa de
mão de obra para o Brasil. Na segunda redesenhar politicamente o continente
metade do séc. xix, Portugal empenha- de acordo com as suas tradições.
se em livrar-se dos excedentes de mão de Na questão geopolítica portuguesa,
obra através do degredo de pequenos in- o discurso colonial prevaleceu, tendo
fratores para as colónias africanas. em conta que Portugal foi um dos pri-

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38 AntiAfricAnismo

meiros, e também dos últimos países do Bibliog.: ARENDT, Hannah, “Imperialismo”,


continente europeu com um número in ARENDT, Hannah, Origens do Totalitarismo:
significativo de colónias. Perante a polí- Anti-Semitismo, Totalitarismo, Imperialismo, São
Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 146-
tica antiafricanista de Portugal, que não
-338; CAPOCO, Zeferino, O Nacionalismo e
reconhecia a independência aos países
o Estado: Um Estudo sobre a História Política de
africanos, a descolonização dos territó- Angola (1961-1991), Dissertação de Doutora-
rios ocupados não foi um ato voluntário mento em Ciência Política e Relações Interna-
do Estado português, declarando este a cionais apresentada à Universidade Católica
continuidade da sua jurisdição imperial de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2013;
em África. Durante o regime salazarista, FANON, Frantz, Pele Negra Máscaras Brancas,
o país retardou, por mais de uma déca- Salvador, Editora da Universidade Federal da
Bahia, 2008; HAMENOO, Michael, “África
da, o processo independentista, obrigan-
na ordem mundial”, in NASCIMENTO, Elisa
do as colónias a partirem para uma luta Larkin (org.), Cultura em Movimento: Matrizes
armada que confirmou a inflexibilidade Africanas e Ativismo Negro no Brasil, vol. 1, Rio de
do comando português. Janeiro, Editora da Universidade do Estado do
A construção de novos Estados africa- Rio de Janeiro, 1996, pp. 109-133; KI-ZERBO,
nos resultou da afirmação e da ação dos Joseph (org.), História Geral da África, 2.ª  ed.
movimentos nacionalistas anticoloniais, rev., vol. i, Brasília, UNESCO, 2010; NASCI-
MENTO, Elisa Larkin, “Sankofa: significado
que se formaram a partir do despertar
e intenções”, in NASCIMENTO, Elisa Larkin
da consciência, face ao impacto político (org.), Cultura em Movimento: Matrizes Africanas
-administrativo da soberania portuguesa. e Ativismo Negro no Brasil, vol. 1, Rio de Janeiro,
Neste sentido, deparamos com os cená- Editora da Universidade do Estado do Rio de
rios do nacionalismo africano desenvol- Janeiro, 1996, pp. 29-55; PAULA, Benjamin
vido pelos movimentos de libertação, Xavier de, “Os estudos africanos no contexto
por um lado; e, por outro, com a guerra das diásporas”, Revista Educação e Políticas em
desencadeada pelos mesmos movimen- Debate, vol. 2, n.º 1, jan.-jul. 2013, pp. 10-26;
SONTAG, Susan, Ilness as Metaphor, New York,
tos contra o poder colonial, rumo à con-
Farrar, Straus & Giroux, 1978; Id., AIDS and Its
quista da independência nacional, de Metaphors, New York, Farrar, Straus & Giroux,
acordo com a revolução empreendida. 1989; TINHORÃO, José Ramos, Os Negros em
No período pós-25 de Abril de 1974, fa- Portugal: Uma Presença Silenciosa, Lisboa, Cami-
mílias africanas provenientes das ex-co- nho, 1988.
lónias acompanharam o movimento de Fernanda Santos
retorno dos portugueses que aí residiam
e passaram a engrossar o contingente de
população africana que já tinha chegado
a Portugal, procedente de Cabo Verde,
na déc. de 60. Portugal e Brasil foram
os polos acolhedores dessa população
de africanos-portugueses emigrantes. A
transformação da ordem política, aliada
à modernização e à reorientação da po-
lítica exterior lusa permitiu a Portugal
restabelecer relações diplomáticas com
as suas ex-colónias de África entre 1986
e 1991, na sua crescente integração na
Comunidade Europeia.

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AntiAgnosticismo 39

Antiagnosticismo portugueses serão, nomeadamente, oposi-


tores do cientismo.
No contexto português, não parece ter
havido um debate explícito ou aberto
em torno do agnosticismo no interior do
qual pudessem emergir personalidades
que assumissem a defesa de teses antiag-

O termo “agnosticismo” foi cunhado


em 1869 pelo biólogo inglês Tho-
mas Henry Huxley, como resposta à
nósticas. Não significa isto, no entanto,
que o antiagnosticismo (ou a refutação
do agnosticismo) não tenha, de algum
pretensão de saber dos membros da Me- modo, perpassado a cultura portuguesa;
taphysical Society, que se apelidavam a pelo contrário, parece ter sido isso mes-
si mesmos gnósticos. Por meio daquela mo que aconteceu em finais do séc. xix e
noção exprime-se, em sentido lato, a inícios do séc. xx, em anos subsequentes
orientação de pensamento que afirma à publicação de três importantes textos
a incognoscibilidade das verdades me- papais: em 1864, a carta encíclica Quan­
tafísicas ou suprassensíveis, bem como o ta Cura, do Papa Pio IX, com o respetivo
conjunto de sistemas doutrinais em que apêndice, Syllabus Errorum, e, em 1907,
esta orientação se verte, que negam a
possibilidade de resolução do problema Papa Pio X (1835-1914).
da verdade enquanto tal, a conceção de
uma verdade absoluta. O domínio do co-
nhecimento fica, assim, restringido àqui-
lo que pode ser submetido a uma verifi-
cação objetiva (ou seja, sujeito a alguma
forma, logicamente válida, de compro-
vação). Não se trata, por conseguinte,
de uma corrente ou de um movimento
filosófico em sentido estrito; na realida-
de, existem perspetivas sobre a vida de
cariz agnóstico pelo menos desde a Gré-
cia Antiga.
Prenunciada pelo Iluminismo, na se-
quência da Reforma, a fratura entre a
razão e a fé, bem como a rejeição da pre-
cedência da teologia sobre a filosofia e
o enciclopedismo, abririam caminho para
uma filosofia “sem gnose”. No séc. xx, o
modernismo, ao circunscrever o domínio
da racionalidade ao âmbito meramente fe-
noménico, explicitará as suas bases agnós-
ticas. Em Portugal, a reforma pombalina
terá aberto a via ao positivismo e materia-
lismo filosóficos, afins do agnosticismo, na
medida em que cindiu a filosofia natural
da racional; os antiagnósticos oitocentistas
D.R.

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40 AntiAgnosticismo

a encíclica Pascendi Dominici Gregis, de agnosticismo – i.e., ao antiagnosticismo


Pio X. Contudo, o maior contributo para filosófico e ao antiagnosticismo teológico
um debate totalmente permeado por ou religioso – andam a par. De facto, o an-
uma conceção antiagnóstica da própria tiagnosticismo teológico (predominante
vida, no panorama cultural português, foi no contexto português) sustenta sempre,
dado, no séc. xx, pelo motu proprio Docto­ num certo sentido, um antiagnosticismo
ris Angelici, de Pio X, publicado em 1914, filosófico, na medida em que defende
sobre a centralidade do estudo de S. To- que a razão natural é capaz de verdade (o
más de Aquino (não esquecendo os im- que a torna apta a ter conhecimento de
portantes estímulos fornecidos tanto pela Deus). Embora esta seja uma delimitação
encíclica Aeterni Patris, de 1879, do Papa meramente abstrata, dado que ambos os
Leão XIII, na qual já se afirmava a impor- fenómenos se encontram historicamente
tância da filosofia tomista, como, com entrosados, ela pode ajudar a compreen-
pendor negativo, pela encíclica Pascendi der como, em Portugal, houve formas de
Dominici Gregis, que tinha denunciado o recusa do agnosticismo que se centraram
“modernista reformador” que pretendia ora na discussão filosófica, ora no âmbito
erradicar o pensamento escolástico). teológico.
Deste modo, embora não tenha havido, Não é de estranhar que, numa nação
na cultura portuguesa, um movimento historicamente ancorada no catolicismo,
que, em sentido estrito, assumisse como a receção de textos papais se tenha cons-
programa a refutação do agnosticismo tituído como a força motriz subjacente
enquanto tal, o horizonte no seio do qual a algumas iniciativas. A encíclica Quanta
surgiram algumas manifestações culturais Cura denunciava os “erros” modernos; o
portuguesas foi notoriamente antiagnós- sílabo que a acompanhava consistia na
tico. Neste sentido, o antiagnosticismo condenação de várias proposições ilus-
de alguns autores é meramente deduzido trativas dessas falácias (e.g., acerca do
de outras afirmações suas (bem como do racionalismo absoluto ou moderado, do
âmbito cultural concreto que habitual- indiferentismo, do latitudinarismo, etc.).
mente frequentavam); noutros termos, No ano seguinte à publicação destes do-
o que é próprio do panorama português cumentos pela Santa Sé, alguns mem-
não é tanto o puro antiagnosticismo, bros do clero de Braga, desafiando a lei
como são conceções reflexivas assentes do beneplácito régio – que poderia ser
em premissas antiagnósticas por vezes concedido ou negado pelo Monarca, e
não declaradas. sem o qual o texto seria tido como nulo
Convém, além disso, distinguir agnos- no espaço do reino  –, assinam um do-
ticismo filosófico de agnosticismo teoló- cumento, que remetem para o arcebispo,
gico ou religioso. Em termos genéricos, D. José Joaquim de Azevedo e Moura, no
poder-se-ia dizer que o agnosticismo fi- qual lhe manifestam o seu assentimento.
losófico suspeita da própria capacidade No domínio da imprensa periódica, são
racional do sujeito, ao passo que o ag- de destacar várias das edições do jornal
nosticismo religioso ou teológico suspen- católico Bem Público, que assumiu a defe-
de – na prática, recusa – qualquer fixação sa da carta encíclica. Além disso, foram
de sentido do que corresponda a “Deus”. diversos os prelados que escreveram
Esta oposição é de natureza formal, e tem sobre os textos emanados do magisté-
um carácter tão-só elucidativo. Natural- rio da Igreja, entre os quais D.  João de
mente, a oposição a ambas as formas de França Castro e Moura, bispo do Porto.

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AntiAgnosticismo 41

O Governo acabaria por permitir a di-


vulgação da encíclica, mas apenas na
sua versão truncada; não obstante, tanto
o jornal católico O Amigo da Religião como
o jornal liberal O Portuguez procederam,
desde o início de 1865, à publicação do
conteúdo integral do documento. Já a
Defesa da Carta Encíclica de Antero de
Quental, de 1865, na medida em que está
tomada de distanciamento irónico, não
pode, em sentido estrito, enquadrar-se
no conjunto dos escritos antiagnósticos.
No entanto, já em 1845, vários anos
antes do surgimento destes documentos,
o marquês de Saldanha, face à evolução
da ciência, tinha publicado a obra inti-
tulada Concordancia das Ciencias Naturais
e principalmente da Geologia com o Genesis,
numa tentativa de afirmar a compreen-
são – antiagnóstica – da realidade em
concordância com a fé. Roberto Guilher-
me Woodhouse pode ser aduzido como Miguel Bombarda (1851-1910).
outro exemplo de antiagnosticismo; o an-
glicano convertido ao catolicismo escre- forte tendência agnóstica que se vivia nos
ve, em 1875, A Sciencia Hodierna e o Dogma alvores do séc. xx. Essa inclinação era ex-
Christão, onde perfilha a ideia de que a plícita nos pontos de vista, de cariz cien-
rejeição de verdades absolutas conduzirá tista, de autores como Miguel Bombarda,
necessariamente ao estilhaçamento da so- que recusava a conceção metafísica da
ciedade, recusando quer o ateísmo, quer existência (e, consequentemente, qual-
um puro teísmo. quer causa final que estivesse na origem
Em 1907, a já mencionada carta encí- do próprio Homem) e afirmava que a
clica Pascendi Dominici Gregis, acerca das razão do existente corresponde ao limi-
doutrinas modernistas, condenaria expli- te do incognoscível. Manuel Fernandes
citamente o agnosticismo, no sentido em Santana, padre jesuíta, viria a contestar
que é portador da tese que reduz a capa- a cosmovisão determinista de Bombarda,
cidade da razão humana aos limites do recusando o materialismo mecanicista e
percetível, do fenoménico – desse modo, reconduzindo a realidade humana ao seu
é negada ao indivíduo a possibilidade de Criador. Numa série de artigos publica-
se relacionar com Deus e de conhecê-lo, dos no periódico Correio Nacional, poste-
não podendo Deus ser nem objeto da riormente editados em dois volumes sob
ciência nem da história; consequente- o título O Materialismo em face da Sciencia,
mente, o filósofo modernista (uma das fi- em 1899-1900, Fernandes Santana ataca-
guras analisadas pelo documento papal) ria veementemente o materialismo, em
acaba por ser, de facto, imanentista. geral, e o professor da Escola Médico-
Acresce ao impacto que estes textos po- Cirúrgica de Lisboa, em particular. Esta
deriam produzir no contexto português a acesa discussão configura um exemplo

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42 AntiAgnosticismo

do que se referiu anteriormente, a saber, fariam eco da mensagem tomista da Ae­


o facto de haver, no panorama português, terni Patris. A título de exemplo, refiram-
debates cujo tema não é expressamente se: a nível institucional, as conferências
o (anti)agnosticismo, que estão, não obs- da Academia de S. Tomás de Coimbra,
tante, pejados de teses (anti)agnósticas. fundada em 1881, que tiveram cariz for-
Os documentos emanados da Santa Sé, temente antimodernista – consequente-
em conjunto com o clima positivista e mente, estiveram em tensão com o ag-
cientista que grassava no meio intelectual nosticismo; noutro sentido, as reflexões
português, pareciam criar as condições do P.e Martins Capela, que considerava o
propícias para a emersão da denomina- ensino da filosofia tomista como sendo
da renascença católica, em forte tensão da maior utilidade para os indivíduos e
de oposição com a cultura dominante, também para as nações em que a fé se
a partir de finais do séc. xix. Um aspeto perdera, que “se afundam na descrença”
deste movimento católico, radicalmente (CAPELA, 1992, 165).
assente em pressupostos antiagnósticos, Em 1874, Manuel Eduardo da Mota
consiste na renovação escolástica – tam- Veiga, nas suas conferências religiosas,
bém designada neoescolástica ou terceira proferidas aos domingos de Quaresma
escolástica –, mais especificamente, no na Sé de Coimbra, fala contra a conceção
neotomismo: por seu intermédio, procu- da vida segundo a qual o fito do Homem
rou oferecer-se ao sistema de ensino por- se cinge ao âmbito do material; estas pre-
tuguês um modelo seguro de pensamen- leções destinavam-se sobretudo à popula-
to, i.e., uma via intelectual passível de ser ção universitária, mais sujeita ao influxo
posta ao serviço da busca da verdade. O das correntes filosóficas permeadas por
Progresso Católico publicaria, em 1879, um pressupostos agnósticos. O Congresso In-
texto do conde de Samodães, Francisco ternacional Católico, que teve lugar em
d’Azeredo Teixeira d’Aguilar, sobre a Ae­ Lisboa no ano de 1895, inscreve-se no âm-
terni Patris, onde se refere que as “novas bito da mobilização para o reavivar da fé
filosofias” obscureceram o método esco- católica e para torná-la operativa sob vá-
lástico “durante séculos” (D’AGUILAR, rias formas de organização institucional
1879, 234); de resto, já numa outra obra e social – tem, por isso, uma motivação
o conde se havia manifestado contra a “fe- radicalmente antiagnóstica.
bre de propagar a incredulidade”, sobre Especial menção merece ainda J. Sena
cujos alicerces nada é possível edificar Freitas, cuja crítica ao positivismo foi me-
(Id., 1872, 23-24). De facto, apenas dois dularmente antiagnóstica. Sena Freitas
meses volvidos sobre a carta encíclica, era considerava ser um “vício” do positivismo
criada no Seminário de Coimbra, uma – ao qual é inerente a atitude agnóstica –
aula de filosofia tomista. Luís Maria da o facto de “pretender ser mais que uma
Silva Ramos teria um importante papel filosofia das ciências” (FREITAS, s.d., 19).
neste domínio, tendo estado por detrás É curioso que ele próprio tenha frequen-
de revistas como Estrela d’Alva, de Braga, tado, em Londres (no South Kensigton
A Sciencia Catholica, de Coimbra, e A Ci­ Museum), as lições de Thomas Henry
vilização Catholica, do Porto, esta última Huxley – precisamente quem forjou,
fortemente inspirada pelo pontificado de como se referiu, o termo “agnosticismo”.
Leão XIII. Sena Freitas (em “O naturalismo na lit-
Também os periódicos A Palavra, A Or­ teratura”), bem como Joaquim Alves da
dem, O Amigo da Religião e Voz da Verdade Hora (numa edição do periódico Institui­

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AntiAgnosticismo 43

ções Christãs, de 1883), pronunciar-se-ão O fenómeno antiagnóstico prolonga-


sobre a finalidade da literatura: o primei- se no tempo, sendo uma realidade nos
ro, criticando uma das formas da escola começos do séc. xxi. Tal fenómeno está
naturalista, na medida em que proscreve patente em diversas iniciativas sociais,
o ideal; o segundo, rebatendo o realismo movimentos e publicações. Refira-se ape-
literário – que, a seu ver, dava ao ideal o nas, no âmbito da literatura impressa, a
estatuto de mera quimera – e condenan- edição da Revista Portuguesa de Filosofia,
do o materialismo na literatura e na arte. de Braga, fundada em 1945, que, não só
Refira-se, também, a constituição de pelas temáticas abordadas ao longo dos
associações várias, cujas diretrizes expri- anos (e.g., as relações entre fé e razão, a
mem as suas orientações antiagnósticas natureza humana, a filosofia e o cristia-
pela sua adesão à Igreja Católica, nomea- nismo, a bioética), como também pelo
damente entre os anos 70 do séc. xix e a seu projeto de fundo (de declarada ins-
déc. de 20 do séc. xx, e de que são exem- piração cristã), reflete, sem dúvida, uma
plo os arts. 3.º e 4.º dos estatutos da Asso- vincada preocupação em lutar contra o
ciação Católica em Portugal. agnosticismo.
No séc. xx, é ainda de salientar a Pas­
toral Collectiva do Episcopado Português, pu-
blicada menos de três meses depois da
Implantação da República, que, aludindo
às circunstâncias históricas suas contem-
porâneas, adverte para o carácter idólatra
de uma ciência divorciada da fé e para o
Bibliog.: CALAFATE, Pedro (dir.), História do
absurdo de uma vida humana assente em
Pensamento Filosófico Português, vol. iv, t. 1-2,
convicções materialistas. Posteriormente, Lisboa, Caminho, 2004; CAPELA, Martins,
o cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, Escritos Dispersos. Edição Comemorativa do 150.º
na sua obra A Igreja e o Pensamento Con­ Aniversário do Seu Nascimento, Terras de Bouro,
temporâneo, tentará combater o agnosti- Câmara Municipal de Terras de Bouro, 1992;
cismo (nomeadamente o spenceriano), D’AGUILAR, Francisco d’Azeredo Teixeira,
ao fornecer um esclarecimento sobre a Breves Reflexões sobre a Incredulidade, Porto,
Typographia de Manoel José Pereira, 1872;
linha divisória entre ciência e religião, as
Id., “Leão XIII e a encyclica”, O Progresso Catho-
quais não têm o mesmo objeto formal, e, lico, vol. i, n.º 24, 15 out. 1879, pp. 233-234;
simultaneamente, ao vincar que tanto a vol. ii, n.º 1, 30 out. 1879, pp. 1-2; FREITAS,
fé como a ciência proclamam a cognos- José Joaquim Sena, A Doutrina Positivista, Pó-
cibilidade da verdade, bem como a sua voa de Varzim, Livraria Povoense, s.d.; Id., “O
imutabilidade, afirmando, assim, o valor naturalismo na litteratura”, in FREITAS, José
da razão. Joaquim Sena, Luctas da Penna, Lisboa, Typo-
graphia Universal, 1901, pp. 204-212; HORA,
Nos anos posteriores ao termo da Se-
Joaquim Alves da, “O realismo na litteratura.
gunda Guerra Mundial, manteve-se o Sua influência na ordem moral e social”, Ins-
impulso de cariz neotomista no âmbito tituições Christãs, n.º 9, 5 maio 1883, pp. 243-
académico português; assim, terão sido -246; n.º 10, 20 maio 1883, pp. 267-270;
convicções antiagnósticas a estar, designa- HUXLEY, Thomas Henry, Collected Essays, t. v,
damente, na base da fundação da revista New York/London, D. Appleton and Com-
Filosofia, publicada entre 1954 e 1961, e pany, 1913; PIO IX, Quanta Cura, 1864; PIO X,
ligada ao Centro de Estudos Escolásticos, Pascendi Dominici Gregis, 1907.
radicado em Lisboa. Sara Carvalhais de Oliveira

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Antiagostinianismo do cristianismo no Ocidente. Contudo,


a tentativa de determinar o que será o
antiagostinianismo depara, desde logo,
com uma incontornável dificuldade: a
de delimitar o objeto teórico contra o
qual tal movimento se constitui, ou seja,
a de estabelecer com precisão o que é o

N uma definição genérica, diríamos


que o antiagostinianismo consis-
te num conjunto de movimentos que
agostinianismo. Em virtude da longa e
imbricada rede de leituras, apropriações
e deturpações do pensamento agostinia-
contestaram o pensamento de Aurelius no, teremos de assumir uma conceção
Augustinus (Tagaste, 354-Hipona, 430), de agostinianismo – e, por conseguinte,
mormente conhecido como S.to Agosti- de antiagostinianismo – que, na impossi-
nho, teólogo, filósofo, bispo e doutor das bilidade de pressupor um corpo teórico
Igrejas Católica e Anglicana, figura axial de claros contornos, se constrói no cru-
na história do pensamento filosófico e zamento de vários ângulos, perspetivas

Santo Agostinho Ensinando em Roma, de Benozzo Gozzoli (1420-1497).

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AntiAgostiniAnismo 45

e dimensões, fios, muitas vezes díspares, alvo de inumeráveis críticas e mote para
nos quais reverberam as disposições e polémicas que persistem pelo menos até
tonalidades que animaram os diferentes ao início do séc. xxi, como a sua conce-
séculos. ção do pecado original – Agostinho foi o
S.to Agostinho, também conhecido como responsável pela elaboração teológica do
o bispo de Hipona, é autor de uma vas- conceito de pecado original, embora não
ta e plural obra que não se confina nos pela sua introdução no corpo dogmático
limites do domínio teológico, espraian- da Igreja: “Não fui eu quem inventou o
do-se ao solo filosófico, nomeadamente à pecado original, que a fé católica susten-
gnosiologia, à metafísica, à antropologia ta desde tempos antigos”, observa em
filosófica e à ética, razão pela qual surge De Nuptiis et Concupiscentia –, a defesa da
como um dos maiores vultos da patrística. natureza corrompida do Homem (massa
A sua matizada produção literária denota damnata), o lugar que atribui à graça, a
uma estreita relação com o seu percurso tese da iluminação da mente pelo Mestre
biográfico, úbere em vivências e meta- Interior ou a sua conceção da Cidade de
morfoses, o que se revela não apenas no Deus.
conjunto de temas que foi tratando, mas
também no facto de as suas obras serem
o palco de uma reflexão pautada pelos
A queReLA CoM o PeLAGIAnISMo
seus próprios dramas individuais, espe- O primeiro grande movimento de oposi-
cialmente pela sua jornada espiritual e ção ao pensamento de Agostinho surge
pela sentida necessidade de salvação. Tal ainda durante a sua vida. Trata-se do pe-
gesto adquire maior sentido se tivermos lagianismo, uma corrente cristã represen-
em consideração que, para Agostinho, o tada por Pelágio e pelos seus discípulos,
caminho da interioridade é aquele pelo como Celéstio e Juliano de Eclana, contra
qual, ao mesmo tempo, o Homem se en- os quais escreverá Agostinho várias obras
contra a si mesmo e a Deus. (entre 412 e 416 contra Pelágio e entre
Tendo seguido os preceitos maniqueís- 418 e 430 contra Juliano de Eclano): So­
tas durante cerca de nove anos, Agosti- bre a Culpa e sobre a Remissão dos Pecados e
nho irá, por influência do neoplatonis- sobre o Batismo dos Meninos (412), A Graça
mo – mais especificamente das Enéadas de Cristo e o Pecado Original (418) e A Pre­
de Plotino, dos textos de Mário Vitorino destinação dos Santos e O Dom da Perserve­
e das explicações de Simpliciano e Ponti- rança (428/429), entre várias outras. As
ciano, em Milão –, de sua mãe S.ta Móni- razões que espoletam a querela derivam
ca, uma convicta cristã, e sobretudo do das diferentes conceções antropológicas
poder oratório de S.to Ambrósio, o bispo propostas por Agostinho e pelos pelagia-
de Milão, abandonar tal teoria e conver- nos, mais especificamente do entendi-
ter-se, em 386, ao cristianismo, inaugu- mento diverso que têm da relação entre
rando uma disruptiva viragem no seu a liberdade e a salvação, temática que
modo de vida, tecido de longos anos de convocará as noções de livre-arbítrio, pe-
dissoluta devoção às paixões da carne, e cado original e graça, em torno das quais
no seu pensamento, tornando-se padre e, se desenvolverá, ao longo dos séculos, o
depois, bispo e Doutor da Igreja. São fru- debate por excelência entre agostinianos
to desta mudança os principais conceitos e antiagostinianos no Ocidente.
e teses que associamos a S.to Agostinho, Pelágio, um monge bretão, tornou-se
precisamente aqueles que viriam a ser conhecido em Roma, no dealbar do séc. v,

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46 AntiAgostiniAnismo

que a liberdade e a possibilidade de fazer


o bem é apanágio de todos os homens
sem que seja necessária a intervenção de
algo exterior e eletivo, como seria a graça.
Quase concomitantemente, surge uma
corrente mais moderada que foi apelida-
da de semi-pelagianismo, não obstante, na
verdade, ser simpatizante de Agostinho e
não de Pelágio. João Cassiano foi o mais
destacado representante desta teoria teo-
lógica que, pretendendo fugir do radica-
lismo agostiniano, reafirmou o papel da
graça na salvação, aliando-a, no entanto, à
vontade e à iniciativa humanas enquanto
abertura essencial do Homem a Deus.
Agostinho, o homem convertido aos 32
anos por ação de uma força que só po-
Pelágio da Bretanha (350-423).
deria entender como graça e empenhado
em consolidar a sua Igreja, não poderia
como mestre espiritual de uma parte da aceitar os pressupostos pelagianos, clara-
aristocracia cristã. Tomando conheci- mente perigosos para os cânones ortodo-
mento da doutrina agostiniana da graça, xos da Igreja Católica, desde logo porque
sintetizada na célebre invocação que, nas colocavam em causa a universalidade
Confissões, Agostinho faz a Deus, “Conce- do sacrifício redentor de Jesus Cristo. É,
de-me o que ordenas e ordena-me o que pois, em virtude disso que pelagianos e
queres” (AGOSTINHO DE HIPONA, semi-pelagianos serão atacados e redu-
2000a, 29, 40), e, paralelamente, da sua zidos a um grupo de dissidentes, sendo
conceção do pecado original, Pelágio irá as suas teorias consideradas heréticas em
contrapor às propostas do bispo de Hipo- importantes concílios – Concílio de Éfeso
na uma visão otimista e voluntarista da na- (431) e Concílio de Orange (529), e.g. – e
tureza do ser humano e da sua liberdade. muitos deles condenados por tribunais
Neste sentido, contra a pessimista pers- episcopais. No entanto, será interessante
petiva agostiniana segundo a qual toda a notar que foi esta mesma querela, que
humanidade pecou em Adão, carregando terá ocupado Agostinho durante cerca
cada homem em si, desde o nascimento, de 20 anos, o fator que mais impulsionou
o pecado original, os pelagianos irão de- e determinou a sua escrita e o desenvol-
fender a contingência do mal e interpre- vimento dos seus pressupostos filosófico-
tar o ato adâmico apenas como um mau -teológicos.
exemplo que deve ser observado com vis-
ta a uma ação virtuosa. Por conseguinte,
contra a consequente ideia agostiniana de
CRíTICAS à TeoRIA
que a possibilidade de exercer a virtude e
Do ConheCIMenTo AGoSTInIAnA
o bem é apenas concedida pela graça divi- Também a teoria agostiniana do conhe-
na a alguns eleitos, sendo imperscrutáveis cimento, formulada em linha com a re-
as razões divinas para a predestinação de ferida convergência entre liberdade e
alguns homens, os pelagianos defenderão graça na alma humana, motivou longas

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disputas que se prolongam até à filoso- desenvolverão uma teoria que tem na no-
fia contemporânea. Sofrendo a influên- ção de abstração a sua pedra de toque. De
cia do neoplatonismo, nomeadamente uma forma geral, defendiam que as ideias
da teoria platónica da reminiscência e nem são inatas nem são essências capta-
da noção de Deus como sol do espírito, das por intuição intelectual, resultando
Agostinho irá desenvolver a tese da ilu- antes de um processo pelo qual abstraí-
minação da mente pelo Verbo, o Mestre mos elementos universais das coisas indi-
Interior, em obras como O Mestre (389), viduais e concretas, o inteligível a partir
A Doutrina Cristã (396-426) e A Trindade do sensível.
(399-419). Animado pelo desejo, expres- Os grandes representantes desta dou-
so já nos Solilóquios (386-387), de apenas trina na Idade Média foram, desta for-
conhecer Deus e a alma, Agostinho de- ma, os escolásticos, especialmente S. To-
fenderá que se trata de uma só e mesma más de Aquino, monge dominicano do
investigação. Desta forma, o filósofo cris- séc. xiii, que assume especial relevo neste
tão irá propor que o mais elevado conhe- contexto, na medida em que a sua pers-
cimento se encontra no “coração” ou no petiva foi a que exerceu maior influência
homem interior, pelo que, pelo processo em autores posteriores, como o portu-
de interiorização, que nos leva da razão à guês João de S. Tomás e o cardeal Cae-
fé e destas ao amor, e de confissão (enten- tano, tendo sido igualmente acolhida
dida simultaneamente como admissão de pela neoescolástica, particularmente por
culpa e como louvor a Deus), o indivíduo Jacques Maritain. Procurando conciliar o
poderá transcender-se e aceder às mais empirismo aristotélico e o cristianismo,
altas verdades universais, vivendo, assim, S. Tomás de Aquino elabora uma dou-
uma vida beata e feliz. Neste sentido, à in- trina gnosiológica e antropológica que,
contornável questão de saber como é que contrariamente ao pensamento platóni-
uma alma temporal pode produzir verda- co-agostiniano, concebe que todo o co-
des eternas, responderá Agostinho que é nhecimento parte da perceção sensível,
Deus, enquanto Mestre Interior, que ilu- considerando que é apenas a partir dela
mina tais verdades na mente. A verdade é que se pode extrair depois, no plano da
ser que se revela e fala ao Homem, coin- abstração inteligente, não só as repre-
cidindo, assim, com o Logos ou Verbo de sentações abstratas, como um conjunto
Deus, que é sempre e simultaneamente de teses que encerram em si a verdade.
revelação e transcendência. Neste pro- É, pois, a partir do plano da experiência
cesso, a dúvida adquire um valor positivo, sensível do mundo, das coisas concre-
convertendo-se no fundamento de uma tas, que é possível, segundo S. Tomás de
certeza: a de que pensamos e assumimos Aquino, subir até à certeza de Deus, o seu
a peleja pela verdade, o único caminho Criador, e às verdades universais. Neste
de acesso ao conhecimento verdadeiro, sentido, o mestre dominicano recupera
filosofema que será o ponto de partida de a distinção aristotélica entre intelecto
Descartes e da filosofia moderna. ativo e intelecto passivo, afirmando que
Esta perspetiva do conhecimento será o intelecto ativo ou agente atua sobre as
posteriormente atacada por autores que, imagens recolhidas pelos sentidos exter-
animados pela questão dos universais nos e trabalhadas pelos sentidos internos,
(e sua contestação pelo nominalismo), como a imaginação, elaborando, a partir
que dominou toda a escolástica, e sob a delas, imagens abstratas ou representa-
influência do pensamento aristotélico, ções inteligíveis, libertando das imagens a

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sua forma universal. Consequentemente,


contra a tese segundo a qual o corpo e os
sentidos têm essencialmente um efeito li-
mitante na alma, S. Tomás defenderá que
a alma é a forma substancial do corpo,
sendo este, portanto, essencial ao conhe-
cimento humano.
Neste diferencial que se abre entre as
perspetivas de S.to Agostinho e de S.  To-
más de Aquino encontrarão vários to-
mistas – e não o seu mestre – razões para
forjar uma oposição entre tomismo e
agostinianismo, que se constitui como
veio de diversas disputas que marcaram
os diferentes tempos da história da filo-
sofia e que subsistem até aos alvores do
séc.  xxi. Na Modernidade, são, pois, vá-
rios os autores que se ocuparão da ques-
Papa Bonifácio VIII (1230-1303).
tão da natureza do conhecimento e do
estatuto das ideias, ora tendendo mais
para a perspetiva agostiniana – Descar- vivem sem leis; no segundo, a humani-
tes, Leibniz, Husserl –, ora para a tomis- dade vive sob a lei; no terceiro, vive-se o
ta – Locke, Berkeley, Hume, Kant –, bem tempo da graça.
como no pensamento posterior, mais Embora o fito agostiniano fosse sobre-
avesso à ideia de abstração, como é visível tudo fazer uma reflexão teológico-filosó-
em Bergson e Heidegger. fica sobre a história da comunidade hu-
mana na sua relação com Deus e com a
possibilidade da graça, apartada de preo-
CRíTICAS à CIDADE DE DEUS
cupações ou fins políticos, a verdade é
Também a teoria defendida por Agos- que a obra em questão cedo foi alvo de
tinho na sua extensa e célebre obra Ci­ interpretações e extrapolações que a tor-
dade de Deus (413-427) não ficaria imune naram um importante marco da história
a variegadas apropriações, deturpações da política ocidental. Logo após a queda
e ataques. Tendo intentado descrever e do Império Romano do Ocidente, na se-
problematizar a evolução histórica da gunda metade do séc. v, uma visão de ca-
humanidade, o pensador cristão irá ins- riz político pretensamente inspirada no
crevê-la na mesma tensão entre carne e pensamento de Agostinho irá defender
espírito inerente ao homem singular, re- a primazia do poder espiritual sobre o
conhecendo na história da humanidade poder temporal, dominando nos séculos
uma luta entre duas cidades ou reinos: seguintes as instituições e as relações de
a cidade terrena ou cidade do diabo, o poder no Ocidente. Tal é visível em vários
reino dos ímpios, e a cidade celeste ou marcos históricos, como na carta do Papa
cidade de Deus, o reino dos justos. De- Gelásio (492-496) ao Imperador Anas-
senvolvendo-se sobre esta tensão, a his- tácio; na luta de Carlos Magno – leitor
tória humana divide-se em três períodos apaixonado da Cidade de Deus – por um
fundamentais: no primeiro, os homens novo império cristão; no célebre Dictatus

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Papae (1075) de Gregório VII e na bula çar a salvação –, passou a ser olhada com
Unam Sanctam (1302) de Bonifácio VIII, suspeita pelos católicos, sendo algumas
que havia de acabar por fundar a teoria das suas teses acusadas de caucionar a Re-
da “plenitudo potestatis papalis in rebus forma protestante. É, pois, neste sentido
temporalibus” [plenitude do poder papal que a Contrarreforma saída do Concílio
nas coisas temporais], clara deturpação de Trento, privilegiando em boa medida
do pensamento agostiniano que se viu o pensamento de S. Tomás de Aquino
reproduzida por teólogos como Tiago em detrimento do de S.to Agostinho, irá
de Viterbo na obra De Regimine Christia­ identificar e reafirmar os principais dog-
no (1301), Egídio Romano na obra De mas da Igreja Católica, advogando a fé e
Ecclesiastica Sive de Summi Pontificis Potes­ as boas obras como o dúplice meio para
tate (1302), e Álvaro Pais na Epistula ad a salvação (sendo recusada a ideia de pre-
Quosdam Cardinales de Auctoritate Papae destinação e o livre exame da Bíblia), a
(1328) e em De Statu et Planctu Ecclesiae Tradição religiosa como fonte dos dog-
(1330-1340), entre outros. É, pois, por via mas religiosos e a Igreja Católica como o
desta pluralidade de vozes, na qual se in- único hermeneuta e transmissor de tais
tegra também o agostiniano Henrique de verdades sagradas. Esta tendência confir-
Ghent (1217-1293), que S.to Agostinho se ma-se nos séculos seguintes nas diretrizes
constituirá como um incontornável alvo emanadas do Concílio Vaticano I (1869-
daqueles que defendiam a independên- -1870) e do Concílio Vaticano II (1962-
cia do poder temporal face ao espiritual. -1965), nos quais o tomismo é assumido
como filosofia oficial da Igreja Católica,
ainda que o segundo represente, segun-
CRíTICAS à TeoLoGIA AGoSTInIAnA do alguns autores, um concílio mais de
enTRe oS SÉCuLoS XIV e XVI crise que de confirmação no que respeita
No séc. xiv, a crítica ao papado surge à proposta tomista.
simultaneamente como uma crítica aos
agostinianos que defendiam a subordina-
ção do rei ao papa, como Egídio Romano
AGoSTInho nA MoDeRnIDADe
e o seu discípulo Tiago de Viterbo, dois O período que medeia entre a segunda
grandes teóricos da hierocracia. Tal con- metade do séc. xvi e os finais do séc. xvii
ceção conhecerá aguerridas críticas por representa um “século de ouro” para o
parte de vários teóricos, como Marsílio estudo e a assimilação do pensamento de
de Pádua e Guilherme de Ockham, que, Agostinho, sendo várias as compilações,
diferentemente, advogavam a diferença traduções e publicações da sua obra e vas-
primacial entre lei humana e lei divina, ta a plêiade de seguidores do seu pensa-
razão e fé, e, assim, a separação entre po- mento filosófico e teológico. No entanto,
der espiritual e poder temporal. é interessante notar que a Modernidade
No séc. xvi, também o Concílio de tanto é agostiniana como antiagostinia-
Trento e os seus mentores não deixaram na, incorporando fervorosamente alguns
de lançar suspeitas sobre o pensamento dos pressupostos do filósofo cristão e
de Agostinho. Tendo a sua obra consti- colocando outros sob cerrada suspei-
tuído uma importante inspiração para ta, de tal forma que é precisamente no
o protestantismo – nomeadamente as séc. xvii que a peleja entre agostinianos
ideias da relação direta entre crente e e antiagostinianos assume contornos mais
Deus e da suficiência da fé para se alcan- agudos. Vemos, assim, que, por um lado,

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Agostinho exerceu uma clara e decisiva


influência na viragem para a subjetivi-
dade que reconhecemos no pensamen-
to moderno e na configuração do cogito,
representadas sobretudo por Descartes.
A declaração agostiniana “si enim fallor
ergo sum” [se me engano, logo existo]
(AGOSTINHO DE HIPONA, 2000, XI,
26) terá, neste sentido, antecipado a fa-
mosa fórmula cartesiana “penso, logo
existo” (DESCARTES, 1637, pt. iv), e
a sua teoria da iluminação terá adianta-
do a noção de semina veritatis do filósofo
francês. Podemos dizer que encontramos
em Descartes, sobretudo nas Meditações
Metafísicas (1641), a instituição de um
agostinianismo metafísico fundado so-
bre os pressupostos da importância do
conhecimento de si (do cogito) e da evi-
dência da presença de Deus na alma. Ao
mesmo tempo, Agostinho será também
uma importante influência do Pascal an-
ticartesiano, nomeadamente da sua de- Blaise Pascal (1623-1662).

fesa da fé e das razões do coração como


meio fundamental para o conhecimento Jansénio, o que contribui não só para
da verdade, e de Malebranche e da sua aumentar o número e o ímpeto dos an-
teoria do ocasionalismo, segundo a qual tiagostinianos, como também para gerar
as ações da alma sobre o corpo e deste oposições entre os próprios agostinianos,
sobre a alma decorrem necessariamente sendo a querela entre Pascal e Fénelon,
da vontade divina. em torno da questão da relação entre li-
Por outro lado, como dizíamos, o pen- berdade e graça, um exemplo disso.
samento moderno também se constitui Neste sentido, a Modernidade será tam-
como agudamente antiagostiniano, sen- bém tempo de uma singular recusa das
do palco de aguerridos combates teóricos teses de Agostinho, particularmente em
que se centravam mormente na questão virtude da exaltação de um certo pelagia-
da conciliação entre a omnipotência de nismo moral, patente na ética de Kant,
Deus e a liberdade humana, tratada não mais especificamente na sua tematização
tanto com o intuito teológico de esclare- da razão prática. Ora, contrariamente a
cer a natureza de Deus, mas sobretudo Agostinho, Kant defende que a autono-
com o fito antropológico de interrogar a mia e a ação boa não coincidem nem
possibilidade da existência de uma vonta- resultam de nenhum elemento exterior,
de livre no ser humano. Neste contexto, seja ele a lei humana ou a graça divina,
várias foram as teorias que absorveram e mas tão-somente da razão, na medida em
radicalizaram as teses agostinianas, me- que esta não se deixar influenciar pelas
recendo destaque o jansenismo, parti- inclinações dos sentidos. Nesse sentido,
cularmente a obra Augustinus (1640) de ao conceber a liberdade e a moralidade

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como possibilidades que derivam exclu- nismo no pensamento contemporâneo.


sivamente da autonomia da vontade hu- Sentindo a necessidade de acrescentar ao
mana, a sua ética tem sobretudo um tom estudo dos seus professores existencialis-
pelagianista. Assim, ainda que Agostinho tas, Heidegger e Jaspers, o estudo de filó-
tenha sido o primeiro filósofo a discorrer sofos cristãos, a filósofa alemã dedicou a
sobre o livre-arbítrio da vontade, a von- S.to Agostinho a sua tese de doutoramen-
tade em Kant torna-se outra coisa, uma to, O Conceito de Amor em Santo Agostinho
faculdade distinta do desejo e da razão (1929), e fez dele um interlocutor privi-
teórica, ou seja, uma razão prática que é legiado ao longo da sua obra. Assim, ao
responsável por todo o agir moral. burilar a sua filosofia política, recuperou
essencialmente os conceitos agostinia-
nos de amor mundi, caritas e, sobretudo,
AGoSTInho no PenSAMenTo o de Homem como initium e principium,
ConTeMPoRâneo que serviram de pilares à sua conceção
No pensamento contemporâneo, avul- da polis enquanto lugar de novidade,
tam igualmente querelas em torno do abertura, pluralidade e diálogo. É possí-
pensamento agostiniano, embora estas vel encontrar ecos e referências também
adquiram um tom diferente. Na verdade, muito acolhedoras de Agostinho noutros
o séc. xx, e já antes o séc. xix com Søren autores, e.g. em Paul Ricoeur, que con-
Kierkegaard, haveria de confirmar o pen- fessa: “Agostinho sempre gozou, a meus
dor protestante da obra do teólogo, que olhos, de uma espécie de preferência”
se vê bastante apreciada por pensadores (RICOEUR, 1995, 212).
protestantes e por filósofos agnósticos Contudo, o pensamento contemporâ-
ou ateus, nomeadamente Albert Camus neo é também úbere em críticas ao edifí-
e Hannah Arendt, cujas teses de douto- cio teórico de Agostinho, provenientes,
ramento se debruçaram precisamente so- em grande parte, da filosofia da lingua-
bre Agostinho. gem e de defensores do pragmatismo,
Em virtude daquilo a que, retrospeti- como Wittgenstein, Austin e Peirce. Na
vamente, alguns chamam existencialis- obra Investigações Filosóficas (1953), tex-
mo cristão, patente sobretudo nas Confis­ to que condensa o essencial da segunda
sões enquanto reflexão biográfica sobre fase do seu pensamento, Wittgenstein
as condições da existência humana na irá opor-se à conceção agostiniana de
sua relação essencial com Deus, Agosti- linguagem e, de um modo geral, a toda a
nho é arrolado como um dos principais teoria clássica da linguagem, de inspira-
precursores da filosofia da existência. ção marcadamente platónica. Tal torna-
Camus é o filósofo em que melhor se se manifesto logo no início da referida
compreende esta linha de continuidade obra, quando o filósofo apresenta uma
entre o teólogo e o existencialismo, na citação das Confissões na qual Agostinho
medida em que, ao mesmo tempo que associa o significado de uma palavra à re-
assimila de Plotino a desconfiança face lação que esta estabelece com um objeto
à arbitrariedade da fé e a demanda da (I, 8), comentando-a da seguinte forma:
racionalidade, absorve de Agostinho a “Nestas palavras encontramos, parece-
inquietude e a angústia trágica que ex- me, uma certa imagem da essência da
plorará nas suas obras. linguagem humana, nomeadamente a
Também Hannah Arendt é um expres- seguinte: as palavras da linguagem de-
sivo exemplo da assimilação do agostinia- signam objetos. […] Nesta imagem da

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linguagem encontramos também as raí- A ReCeção De AGoSTInho nA CuLTuRA


zes da seguinte ideia: cada palavra tem e no PenSAMenTo PoRTuGueSeS
uma denotação. Esta denotação está em
Em espelho com o que aconteceu nou-
relação com a palavra. É o objecto que a
tros países da Europa, Agostinho surge,
palavra representa” (WITTGENSTEIN,
em Portugal, como o autor patrístico mais
1995, §1, 172). Contrariamente à pers-
lido, comentado e respeitado durante a
petiva semiótica que encontra em Agos- Idade Média e o Renascimento. O livro
tinho, Wittgenstein irá desenvolver uma Santo Agostinho na Cultura Portuguesa: Con­
conceção pragmática da linguagem as- tributo Bibliográfico dá-nos conta da existên-
sente na teoria do uso e na noção de jo- cia, em solo nacional, de mais de 900 tí-
gos da linguagem. Nesta medida, pondo tulos de edições e manuscritos do próprio
em causa as ideias de que o significado Agostinho e de estudos, biografias e ha-
decorre do próprio objeto que a palavra giografias que lhe foram dedicadas desde
substitui e que a relação entre objeto e a época medieval até ao início do séc. xxi.
palavra se dá através de um ato mental, A presença do filósofo cristão em contex-
Wittgenstein advoga que a significação to nacional é, nas palavras de Pinharanda
das palavras deriva do seu uso dentro Gomes, “multímoda, tanto por referência
de um determinado jogo de linguagem, à Igreja, como por referência fora do qua-
de contextos regidos por conjuntos de dro eclesial”, surgindo, assim, “nas áreas
regras comungadas por uma comunida- de saber mais inesperadas: na teologia mo-
de, de tal forma que as mesmas palavras nástica, na filosofia escolástica, na ascese
podem assumir diferentes usos e signi- e na mística, e também na política como
ficados em função dos vários grupos e fonte para o que se tem designado por
jogos. Ainda que o alvo do filósofo aus- augustinismo político” (GOMES, Agência
tríaco não fosse exatamente Agostinho, Ecclesia, 3 nov. 2004).
mas uma certa linhagem teórica, certo
é que a sua crítica, ao partir da citação
apresentada, não tem em consideração A questão prisciliAnA
a amplitude da conceção agostiniana da Em virtude da sua grande proximidade
linguagem que, na verdade, é bastante ao presbítero bracarense Paulo Orósio,
mais complexa e percorre várias obras. S.to Agostinho foi um importante ator na
Na contemporaneidade, muitas ou- patrística lusitana do séc. v. Orósio foi seu
tras são as correntes e as áreas nas quais discípulo em África e um acérrimo defen-
se desvelam críticas ou posições que in- sor das ideias do mestre em obras como
diretamente se afastam do pensamento Liber Apologeticus Contra Pelagianos (415) e
de Agostinho, sendo disso exemplo as Historiae adversus Paganos (416-417), livro
filosofias de Schopenhauer e de Niet- escrito por sugestão do próprio Agosti-
zsche e a sua exaltação da vontade en- nho. Retribuindo o apoio, o teólogo de
quanto vontade de poder, as éticas uti- Hipona interveio pessoalmente a favor de
litaristas, a psicanálise e o primado do Orósio aquando do confronto entre este e
inconsciente, os empirismos radicais, Prisciliano, um gnóstico cristão do ociden-
os ceticismos teístas e o niilismo. No te galaico-lusitano do séc. vi, fortemente
séc.  xxi, o antiagostinianismo é repre- inspirado pela gnose oriental e pelo mani-
sentado por nomes como Jacques Du- queísmo, em torno das questões da liber-
quesne e Kurt Flasch. dade, da graça, da fé e da gnose.

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Prisciliano defendia uma exigente vida influenciando decisivamente o combate


ascética, cristocêntrica, com forte dispo- da Igreja contra o priscilianismo.
nibilidade para a graça, que entendia Contudo, e não obstante a oposição de
como dom de Deus, ponto em que se Agostinho e o combate feroz da Igreja Ca-
aproxima do espírito agostiniano. Para tólica face a Prisciliano e a todos os que
além disso, advogava a salvação univer- depois falariam por ele, o priscilianismo
sal e um desprezo férreo relativamente estendeu-se por toda a península Ibérica,
às coisas mundanas, de carácter fugaz, chegando a França. Assim, paralelamen-
sendo-lhe também atribuída a leitura e te ao movimento oficial de eliminação de
assimilação de livros apócrifos – como o tal corrente, a verdade é que, na Galécia,
Memoria Apostolorum, que alumbra misté- eminentemente no seio da população ru-
rios teosóficos –, e uma apologia da astro- ral, continuou a reverberar nas práticas
logia, fazendo corresponder os 12 signos religiosas o culto astral, o panteísmo e a
às partes do corpo e, mais do que isso, aos ideia da redenção cósmica operada por
nomes dos patriarcas. Cristo. Neste contexto, apesar de ter in-
Com base na proposta doutrinal e as- gressado na lista católica das heresias, o
cética de Prisciliano, mas também muito priscilianismo persistiu na cultura galai-
para além dela, gerou-se um movimento co-portuguesa como uma espécie de crip-
que rapidamente se espalhou pela His- to-gnosticismo, latente e subterrâneo,
pânia, mais concretamente pela Galécia, que, no entanto, assomou muitas vezes
território que, a certa altura, se encontra nalguns dos maiores vultos do nosso pen-
claramente dividido entre os seguidores samento e da nossa literatura.
do priscilianismo e aqueles que, conside-
rando a sua doutrina avessa à ortodoxia,
a combatiam. Neste sentido, vários foram
Agostinho nA escolásticA
os protagonistas e os momentos que mar-
e nA segundA escolásticA portuguesAs
caram o combate ao priscilianismo, sen- Não obstante o peso que a obra de Agosti-
do de realçar o Concílio de Saragoça, em nho manteve na cultura (pré-)portugue-
finais de 380, o Concílio de Toledo, em sa, Portugal não ficou imune à influência
397, e o Concílio de Braga, em 561, no do pensamento de S. Tomás de Aquino
qual, e na senda dos anteriores, o comba- e à reabilitação do aristotelismo, tendo a
te ao priscilianismo haveria de culminar escolástica, logo no séc. xiii, feito eco das
em 17 anátemas que repudiavam a cren- novas propostas de pensamento que, na
ça na preexistência das almas, o dualismo altura, se espraiavam pela Europa.
bem/mal e a substancialidade do demó- Pedro Hispano, eminente filósofo, teó-
nio, a crença nos signos astrais e a doutri- logo e médico do séc. xiii, bem como
na sabeliana sobre a Trindade. o primeiro Papa português, terá sido
Ainda que S.to Agostinho só tenha con- colega, na Univ. de Paris, dos três gran-
tactado tardiamente com esta doutrina, des nomes da escolástica da época – Al-
não deixou de se pronunciar e rebater os berto Magno, Roger Bacon e Tomás de
princípios priscilianistas em obras como Aquino  –, tornando-se, como eles, alto
Contra Mendacium (420), nas quais denun- membro da Igreja. Seguindo o espírito
ciou a corrupção e o perjúrio que os ani- da época, também Pedro Hispano procu-
mavam, bem como a deturpação dos tex- rou conciliar a fé cristã com a lógica e a
tos bíblicos. Nesta medida, os seus escritos razão aristotélicas, o que é visível na sua
fizeram claro eco da posição da ortodoxia, obra filosófica maior, Summulae Logicales

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(c.  1245) e nos comentários que faz a


várias obras do filósofo grego. Assim, no
que respeita à teoria do conhecimen-
to, Pedro Hispano procurou conciliar o
(neo)platonismo com o aristotelismo,
advogando que o Homem tem ao seu dis-
por duas vias ou modos de conhecer: um
modo inato e superior, no qual se inscre-
ve o conhecimento que tem de Deus, do
bem e da sua própria alma, e um conheci-
mento adquirido, obtido per phantasmata,
perspetivado como inferior ao primeiro.
Para além disso, o autor cruzará a sua
perspetiva sobre a alma e o conhecimen-
to com o neoplatonismo e com a teoria
de Avicena da emanação e das inteligên-
cias, síntese que coteja o agostinianismo
avicenizante da primeira metade do séc.
xiii. Podemos assim dizer que, ainda que
Pedro hispano (1215-1277).
ecoe, muitas vezes, as teses de Agostinho,
o sincretismo de Pedro Hispano repre-
senta já uma ultrapassagem do quadro ches defendem que o filósofo seguiu um
agostiniano. realismo moderado coincidente com a
A influência aristotélico-tomista no tese que surpreende em Tomás de Aqui-
pensamento português tornar-se-á mais no, a de que os universais são abstrações
manifesta nos autores da chamada segun- intelectuais apoiadas na realidade.
da escolástica, como Pedro da Fonseca, Deve-se também a Pedro da Fonseca a
Luís de Molina e João de São Tomás. Pe- construção dos alicerces de uma doutri-
dro da Fonseca, à semelhança da maioria na original sobre a relação entre a ciên-
dos mestres conimbricenses, debruçou-se cia divina e a liberdade humana, que se
atentamente sobre a obra de Aristóteles, imporia nos meios académicos da Euro-
numa clara opção pelo tomismo em de- pa, e cujo desenvolvimento teria em Luís
trimento do agostinianismo, do escotis- de Molina o seu protagonista. Trata-se
mo ou do nominalismo, pois considera- da teoria da ciência média, uma doutri-
va-se que o pensamento do estagirita era na conciliadora da presciência, da provi-
o mais universal em diversas matérias. dência e da liberdade, que, ao procurar
Neste sentido, Pedro da Fonseca aproxi- abrir espaço para a liberdade humana
mar-se-á do tomismo em diversas ques- na salvação, ultrapassou a visão agosti-
tões, nomeadamente no problema dos niana, não obstante inspirar-se nela. Tal
universais, burilando uma teoria singular proposta haveria de dar origem a uma
que assenta numa interpretação inovado- acesa discussão entre duas escolas teoló-
ra do pensamento de S. Tomás de Aquino gicas, entre os finais do séc. xvi e inícios
e dos escolásticos. Assim, contrariamente do xvii: o banezianismo (Dominicanos),
ao que foi sobejamente proposto, que que advogava o primado da graça, e o
Fonseca seria defensor de um realismo molinismo (Jesuítas), que frisava o papel
radical, autores como Cassiano Abran- da ação da criatura.

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Luís de Molina, intelectual espanhol de desenvolverá uma original conceção


do séc. xvi que teve estreita relação com cujo eco se estendeu até ao séc. xx.
Portugal, onde viveu a maior parte da No entanto, é de ressaltar que, tendo
sua vida, preocupando-se sobretudo em Agostinho sido objeto de incontestável
estabelecer a distinção entre a dimensão respeito nas duas fases da escolástica (si
natural e sobrenatural dos atos humanos, Augustinus adest, sufficit ipse tibi [se Agosti-
de tal forma que a primeira fosse ade- nho está contigo, ele te basta]), a opção
quadamente valorizada, representará a por linhas de pensamento diversas, no-
mais radical na rejeição de algumas teses meadamente no que respeita à teoria do
agostinianas. Molina enfrentará as doutri- conhecimento e à relação entre salvação,
nas teológicas aceites na época e o pen- graça e liberdade, não é nunca avança-
samento agostiniano, ao defender que o da pelos vários pensadores como sendo
Homem é naturalmente bom e tem em si antiagostiniana – mesmo que, como vi-
capacidade e força suficiente para optar mos, acabe em muitos momentos por
pelo bem e assentir às verdades da fé sem ser –, mas tão-somente como uma prefe-
necessidade da iluminação interior ou da rência intelectual.
intervenção da graça, tão enfatizadas por
S.to Agostinho. Tais pressupostos conhe-
cerão o seu corolário na obra Concordia
o neotomismo ou A terceirA
(1588) e na sua teoria da ciência média,
escolásticA: A receção de
através da qual irá conciliar a liberdade
sAnto Agostinho nos séculos xix e xx
humana com a graça divina, questão que Se o séc. xviii está impregnado de S.to Agos-
já havia animado a querela pelagiana, tinho, de tal forma que os seus sermões
integrando-as num concursus simultaneus tinham de ser lidos na Faculdade de
[concurso simultâneo]. Teologia, no séc. xix, com o movimento
João de São Tomás, frade domini- restauracionista do tomismo  – o neoto-
cano, foi, nos sécs. xvi-xvii, um dos mismo ou, como é frequentemente desig-
grandes representantes do tomismo. nado, a terceira escolástica –, cujos alicer-
Conhecendo bem as teses de Pedro ces são firmados pelo Papa Leão XIII na
da Fonseca e de Luís de Molina, bem encíclica Aeterni Patris (1879), assistir-se-á
como o jansenismo, estudou e assimilou de novo a uma tensão entre os recetores
profundamente a obra de S. Tomás de de S. Tomás e os de S.to  Agostinho e a
Aquino, movido por princípios não só uma certa desvalorização do pensamento
de razão, mas também de fé, visto que do hiponense.
S. Tomás era, a par de Aristóteles e des- Tal nota-se na renovação do método to-
de o capítulo geral de Saragoça (1309), mista nos estudos regulares e nos cursos
o autor de base da formação filosófico- seminaristas, e na consequente rejeição
-teológica dos Dominicanos e, desde dos textos de Agostinho nos seminários,
1567, por ação de Pio V, Doutor da Igre- realidade que se estenderia até ao Con-
ja Católica. A recuperação de S. Tomás cílio Vaticano II, nos anos de 1960. Neste
de Aquino, em detrimento de S.to Agos- sentido, e seguindo o pensamento de Pi-
tinho, manifestar-se-á em vários capítu- nharanda Gomes, talvez tenhamos de di-
los do pensamento de João de São To- zer que, nesta terceira escolástica, a tradi-
más, destacando-se a importância que a ção agostiniana não se apresentou como
noção de abstração tem na sua filosofia escola própria, o que se explica pela res-
da linguagem, domínio no qual o fra- tauração tardia de algumas comunidades

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56 AntiAgostiniAnismo

agostinianas, ao contrário do que suce- Bibliog.: impressa: ABRANCHES, Cassiano,


deu com o tomismo e com o escotismo. “A teoria dos universais em Pedro da Fonse-
Não obstante, assistir-se-á, em Portugal, ca”, Revista Portuguesa de Filosofia, t. 12, n.º 3,
na primeira metade do séc. xx, a um mo- 1956, pp. 291-298; AGOSTINHO DE HIPO-
NA, O Mestre, introd. e coment. Maria Leonor
vimento de recuperação do pensamento
Xavier, Porto, Porto Editora, 1995; Id., A Ci-
de S.to Agostinho que contou com dois dade de Deus, 2.ª ed., Lisboa, FCG, 2000; Id.,
grandes vultos do clero secular: Manuel Confissões, Lisboa, Centro de Literatura e Cul-
da Trindade Salgueiro (1898-1965), arce- tura Portuguesa e Brasileira/INCM, 2000a;
bispo de Évora, e José Augusto Rodrigues Id., A Verdadeira Religião, Porto, Afrontamento,
Amado (1900-1974), presbítero e profes- 2012; BRÉHIER, Émile, Histoire de la Philoso-
sor do Seminário de Coimbra. Tendo am- phie, 3.ª ed., vol. i, Paris, Presses Universitaires
bos vivido no Seminário conimbricense, de France, 1985; CALAFATE, Pedro (dir.),
História do Pensamento Filosófico Português, vols. i‑v,
alvorar-se-á pela sua mão uma onda agos-
Lisboa, Caminho, 2000; DESCARTES, René,
tiniana no mesmo lugar onde, no século Discours de la Méthode, Leyde, Jan Maire,
anterior, tinha reinado o neotomismo. 1637; DEVILLAIRS, Laurence, “Augustin au
O estudo de Agostinho conheceu, assim, xvii siècle”, Le Magazine Littéraire, n.º 439, fev.
um renovamento tal, que se tem deno- 2005, pp. 44-45; DOMINGUES, Joaquim et
minado tal movimento por neoagostinia- al., “Agostinho (Santo)”, in Logos, vol. 1, Lis-
nismo, movimento que se estenderá pelo boa/São Paulo, Verbo, 1997, cols. 90-98;
séc. xx com motivos diversos. DUQUESNE, Jacques, Le Dieu de Jésus, Paris,
Desclée de Brouwer-Benard Grasset, 1997;
A recuperação da figura e do pensa-
GOMES, Jesué Pinharanda et al., Santo Agosti-
mento de S.to Agostinho – ainda que mui- nho na Cultura Portuguesa: Contributo Bibliográfico,
tas vezes como tema e não propriamente Lisboa, Fundação Lusíada, 2000; RICOEUR,
como filosofia seguida – será, assim, visível Paul, La Critique et la Conviction, Paris, Calmann-
nalguns autores fundamentais no pensa- Lévy, 1995; ROSA, José (org.), Da Autonomia
mento português da primeira metade do do Político: entre a Idade Média e a Modernidade,
séc. xx, como Leonardo Coimbra – aten- s.l., Instituto de Filosofia Prática/Documenta,
te-se na proximidade entre Confissões e O 2012; SALAMITO, Jean-Marie, “La controver-
se pélagienne”, Le Magazine Littéraire, n.º 439,
Homem às Mãos com o Destino – e Teixeira
fev. 2005, pp. 40-41; TOMÁS DE AQUINO,
de Pascoaes – que dedicará uma das suas Suma Teológica,  vols. i‑xvii, Madrid, La Edito-
biografias a S.to Agostinho –, importando, rial Católica, 1953; WITTGENSTEIN, Ludwig,
no entanto, sublinhar que, mesmo nesses Tratado Lógico-Filosófico/Investigações Filosóficas,
autores, o pensamento de Agostinho nos 2.ª ed., Lisboa, FCG, 1995; digital: GOMES,
é já dado na forma de um ecletismo espi- Jesué Pinharanda, “Santo Agostinho na cultu-
ritual no qual o hiponense, S.to Anselmo e ra portuguesa”, Agência Ecclesia, 3 nov. 2004:
S. Tomás de Aquino se mesclam. No http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/dos-
sier/santo-agostinho-na-cultura-portuguesa
séc.  xx, é ainda de destacar o escritor
(acedido a 2 nov. 2015); RICOEUR, Paul, O
Francisco Costa e os nove romances que Pecado Original: Estudo de Significação, Covilhã,
constituem o ciclo denominado “vida Universidade da Beira Interior, 2008: http://
portuguesa”, no qual a figura de S.to Agos- www.lusosofia.net/textos/ricoeur_paul_peca-
tinho é frequentemente evocada. Poste- do_original_estudo_de_significacao.pdf (ace-
riormente, a figura e o opus de Agostinho dido a 2 nov. 2015).
são indispensáveis para aceder a fundo ao Helena Costa Carvalho
pensamento de homens como Francisco
da Gama Caeiro, Manuel Barbosa da Cos-
ta Freitas e Joaquim Cerqueira Gonçalves.

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AntiAgrArismo 57

Antiagrarismo mente, ligados ao Brasil e aos interesses


mercantis). Conhecedores da teoria do
valor smithiana, contestam a ideia de que
apenas a agricultura cria riqueza, mos-
trando que a indústria é complementar à
agricultura. Uma crítica ainda mais clara
ao agrarismo surge com o já menciona-

O termo “antiagrarismo” foi cunhado


por Jorge Miguel Pedreira para des-
crever o conjunto de escritos polémicos
do José Acúrsio das Neves, que exalta a
capacidade multiplicadora da tecnologia
aplicada à indústria e arremete contra o
das duas primeiras décadas do séc. xix, predomínio da agricultura. Para Neves,
em que se reagia contra o predomínio da a posição dos memorialistas fisiocráticos
agricultura nas preocupações dos autores da Academia é anacrónica: “Não se espe-
portugueses de economia política liga- raria que houvesse ainda no século xix
dos à Academia das Ciências de Lisboa quem nos aconselhasse a renunciar à
(ACL). Com efeito, a designação “agraris- ideia de ter fábricas, para nos entregar-
mo” captura bem o eixo de preocupações mos somente à agricultura, como vejo em
deste grupo de autores, normalmente algumas memórias recentemente publi-
rotulados de “fisiocratas”. Títulos como cadas” (PEDREIRA, 1988, 77). Para ele,
“Memoria sobre a Preferencia Que em fábricas e lavoura eram complementares;
Portugal Se Deve Dar à Agricultura sobre observa mesmo que, nas vilas onde se
as Fabricas”, de Domingos Vandelli, são estabeleciam as primeiras (muitas vezes
eloquentes quanto aos objetivos desta es- por fundações pombalinas), prosperava
cola. Como refere Pedreira, as aspirações igualmente a segunda. No seu estilo vigo-
políticas dos autores ligados à ACL esta- roso, Acúrsio das Neves afasta o mito da
vam relacionadas com o restabelecimen- decadência portuguesa provocada pelas
to da primazia da agricultura, que enten- descobertas, alegando que, se as conquis-
diam como um regresso a uma idade de tas asiáticas fossem tão prejudiciais, não
ouro portuguesa, que corresponderia ao teriam suscitado tanta cobiça de Ingleses
período prévio às conquistas (anteriores e Holandeses. Este tipo de discurso volta
ao pretenso predomínio do comércio a ocorrer durante o Vintismo: as Cortes,
e da indústria, que teria deixado sem ecoando ainda o velho mito da decadên-
braços e sem capitais os campos portu- cia da terra causada pelas conquistas,
gueses). José Acúrsio das Neves (1766- aprovaram medidas protecionistas que
-1834), a principal referência no âmbito beneficiavam sobretudo a agricultura. É
do antiagrarismo português, observa que durante este período que ocorre um “al-
já no séc. xvi se verificara uma correla- voroço panfletário” (PEDREIRA, 1988,
ção entre a decadência da agricultura e o 79), provocado pelo confronto entre os
progresso de outras atividades (como faz adeptos do agrarismo e os seus críticos.
notar, e.g., o velho do Restelo). O antiagrarismo conheceu um segun-
O antiagrarismo é uma reação dire- do fôlego no séc. xx, quando aquilo a
ta à apologia da agricultura por parte que se pode chamar “ideologia agrarista”
dos memorialistas da ACL, sendo seus gozou de uma influência determinante
protagonistas os letrados Silva Lisboa, no aparelho do Estado Novo (ROSAS,
Azeredo Coutinho e Bacelar Chichorro 1988, 193-194). Ao contrário do que
(estando os dois primeiros, sintomatica- aconteceu no caso do agrarismo da ACL,

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58 AntiAgrArismo

Alegoria do vintismo.

que agregava funcionários, académicos e interesses agrários: os latifundiários des-


proprietários sem grande afinidade de in- confiavam da indústria e, para disfarçar o
teresses, a ideologia agrarista constituiu- interesse que tinham em manter os salá-
se como um sistema doutrinal, político e rios baixos, usavam argumentos estéticos
social com um discurso próprio que, na (a defesa do “bucolismo”), morais (a in-
prática política, constituía um autêntico dústria representava um “nível de vida in-
lóbi de latifundiários. A voz mais emble- ferior […] que por eufemismo se chama
mática desta ideologia foi Anselmo de sobriedade”) e ideológicos (a recusa da
Andrade, autor de Portugal Económico “agitação social”) (DIAS, 1945, 15). Ora,
(1918), que afirmava a incompatibilida- Ferreira Dias chega a afirmar em Linha de
de entre Portugal e a industrialização, Rumo – obra ao mesmo tempo apologética
exaltando as virtudes da economia ru- e programática – que os baixos rendimen-
ral. Em menor grau, aproximam-se deste tos da maioria dos lavradores impediam
novo agrarismo, ao afirmar a prioridade a procura de bens industriais modernos,
da agricultura sobre a indústria, autores cuja falta não poderia ser suprida pelo
como Oliveira Martins e a influente du- trabalho caseiro ou pelas manufaturas
pla composta por Quirino de Jesus e Eze- tradicionais. Na perspetiva assumida por
quiel de Campos. Ferreira Dias, a eletrificação, primeiro, e
O antiagrarismo será defendido por al- a industrialização, mais tarde, teriam de
guns engenheiros que foram ganhando romper este equilíbrio económico malsão.
peso na estrutura do Estado Novo, sendo O engenheiro clamava por uma interven-
José do Nascimento Ferreira Dias a sua ção “de cima para baixo”, indiferente aos
figura de referência. Para este defensor reduzidos níveis de procura da eletrifica-
acérrimo da eletrificação do país, Portu- ção e de produtos com maior intensidade
gal estava manietado pela primazia dos tecnológica. Esta atitude voluntarista pe-

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AntiAlfAbetismo 59

rante a estagnação do mercado faria esco-


la entre os engenheiros nos anos 40 e 50
Antialfabetismo
do séc. xx, no contexto da promulgação
da Lei do Fomento e da Reorganização
Industrial de 1945. Naturalmente, não
era contra a agricultura que se insurgiam
Ferreira Dias e os seus continuadores, mas
sim contra as poderosas influências que
afirmavam que a produção industrial por-
tuguesa era adequada e que a industriali-
O antialfabetismo desenvolveu-se como
realidade discursiva em contrapon-
to ao antianalfabetismo. Tratou-se, assim,
zação punha em causa a especialização da de um movimento ou tendência que pro-
economia portuguesa no sector da agri- curava contrariar, do ponto de vista da
cultura. Esta cruzada contra o ruralismo, retórica político-pedagógica, o processo
afirma Ferreira Dias em 1943, já subsecre- de alfabetização entendido como com-
tário de Estado do Comércio e da Indús- ponente essencial da construção da mo-
tria, teve como inimigos “o derrotismo de dernidade pedagógica em Portugal. Os
Oliveira Martins, o exclusivismo agrário de sectores que se manifestavam em prol da
Anselmo de Andrade e a mentira adulado- alfabetização tinham raízes iluministas e
ra dos que fazem, não sei com que convic- desenvolveram-se no Portugal oitocentis-
ção, o elogio da nossa estrutura económi- ta acompanhando a instalação e consoli-
ca” (BRITO, 1988, 222). dação do liberalismo. A posse dos funda-
mentos da cultura escrita por parte dos
Bibliog: BRITO, José Maria Brandão de, “Os então considerados cidadãos surgia como
engenheiros e o pensamento económico do um elemento central do processo de
Estado Novo”, in CARDOSO, José Luís (ed.),
construção da própria cidadania liberal e
Contribuições para a História do Pensamento Econó-
mico em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1988,
conduziu à consagração legal dos princí-
pp. 211-234; JÚNIOR, José Nascimento Fer- pios da obrigatoriedade e da gratuidade.
reira Dias, Linha de Rumo. Notas de Economia A par do que acontece com o anti-
Portuguesa, vol. i, Lisboa, Livraria Clássica, analfabetismo, cremos só se poder falar
1945; Memorias Economicas da Academia Real com propriedade de antialfabetismo a
das Sciencias de Lisboa para o Adiantamento da partir do séc. xix (&Antianalfabetismo).
Agricultura, das Artes, e da Indústria em Portugal
A ideia de que o ensino dos rudimentos
e Suas Conquistas, t. i, Lisboa, Academia das
Ciências, 1789; NEVES, Acúrsio das, Obras
da leitura e da escrita não tinha como des-
Completas, vol. i, Lisboa, SNI, 1946; PEDREI- tinatária a população em geral era, na ver-
RA, Jorge Miguel, “Agrarismo, industrialismo, dade, uma ideia corrente ainda em pleno
liberalismo – algumas notas sobre o pensa- séc. xviii, como pode ser ilustrado pelas
mento económico português (1780-1820)”, posições de um intelectual renovador
in CARDOSO, José Luís (ed.), Contribuições como era Ribeiro Sanches, ainda que se
para a História do Pensamento Económico em Por-
possam encontrar exceções, a mais ilustre
tugal, Lisboa, Dom Quixote, 1988, pp. 63-83;
ROSAS, Fernando, “As ideias sobre o desen- das quais é a protagonizada por Luís An-
volvimento nos anos  30: Quirino de Jesus e tónio Verney (&Antiescolarismo).
Ezequiel de Campos”, in CARDOSO, José Luís A reforma pombalina de 1772 plasma
(ed.), Contribuições para a História do Pensamento na lei uma ideia corrente na época, a de
Económico em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, que “bastariam às pessoas destes grémios
1988, pp. 185-208. [empregados nos serviços rústicos e nas
António Castro Henriques artes fabris] as Instruções dos Párocos”

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60 AntiAlfAbetismo

(Colecção da Legislação Portuguesa…, 1987, o povo não deve ser ilustrado porque pre-
613). A maioria da população, segundo tenderia ser mais do que é […]. Outros
se acreditava, não necessitava da leitura e repetem, sem saberem o que dizem, que
da escrita para as tarefas do seu quotidia- os conhecimentos superficiais, únicos
no. A integração social ficava garantida possíveis para o comum dos cidadãos, são
por via da transmissão oral dos valores coisa muito danosa”. A posição do histo-
e das regras subjacentes ao catolicismo, riador a este respeito é clara: “É esta uma
e pela prática regular dos seus rituais. ficção que hoje ninguém poderia susten-
Numa sociedade simbolicamente hie- tar” (FERREIRA, 1971, I, 151-152). Apa-
rarquizada e imaginada como estável, as rentemente, os argumentos provenientes
referidas aprendizagens de base podiam do séc. xviii mantêm-se, provavelmente
ser propiciadoras de fenómenos de mobi- no seio da corrente tradicionalista, legi-
lidade social, o que era considerado inde- timista e contrarrevolucionária, que co-
sejável do ponto de vista da preservação nhece um primeiro afloramento com o
dos equilíbrios sociais. miguelismo e que manterá uma presença
O antialfabetismo é, por outro lado, discreta ao longo do séc. xix, conduzin-
uma realidade muito próxima do anties- do, já no primeiro quartel do séc. xx, ao
colarismo, não obstante serem expressões Integralismo Lusitano. De resto, esses
com sentidos diferentes. No caso portu- mesmos argumentos aflorarão de forma
guês, como já foi notado, tendo sido in- clara, como veremos, na transição da Re-
cipientes as modalidades de alfabetização pública para o Estado Novo.
fora do âmbito escolar, ao contrário do Em alguns casos, não se trata de uma
que aconteceu no Norte da Europa, os recusa da alfabetização, mas, antes, da re-
dois processos acabaram por se desen- lativização da sua importância. É isso que
volver de forma paralela. A escola foi o parece estar subjacente à posição mani-
lugar por excelência da alfabetização dos festada, em 1886, por Oliveira Martins
Portugueses. Pela mesma razão, não é no âmbito de uma polémica travada com
fácil destrinçar os discursos que recusam Bernardino Machado, um inequívoco de-
ou desvalorizam a alfabetização dos que fensor da corrente alfabetizadora. Na óti-
tomam idêntica posição em relação à es- ca do autor da História de Portugal, “fazer
colarização. do ensino o fito primário das nossas am-
A prevalência de uma retórica alfabe- bições é inadequado, porque não se pode
tizadora ao longo dos períodos liberal aprender quando se tem fome que é má
e republicano é nítida, e faz com que o conselheira”. E acrescenta um argumen-
antianalfabetismo pareça ser o único to a que outros autores darão desenvolvi-
discurso legítimo nessas circunstâncias. mento futuro: “O ensino sem educação,
Mesmo assim, podemos encontrar pon- as letras sem os costumes, o saber sem o
tualmente manifestações de sentido dife- carácter, são absolutamente estéreis, são
rente, o que nem sempre significava de até anárquicos e perniciosos” (FERNAN-
sentido contrário, por vezes através de DES, 1985, 34-35).
referências indiretas dos seus opositores. Foi entre as últimas décadas do séc. xix
É o que acontece no texto de Alexandre e as primeiras do séc. xx que se desen-
Herculano “Da educação e instrução das volveu um dos mais importantes debates
classes laboriosas”, inserto em Composições sobre a temática da alfabetização. Foi este
Várias (1838), onde o autor começa com um dos grandes momentos, sob o influ-
a seguinte afirmação: “Há quem diga que xo do republicanismo, de difusão dos

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AntiAlfAbetismo 61

discursos contra o analfabetismo. Mas foi patriotismo e de todas as outras virtu-


também este o momento em que um con- des, assim como da capacidade prática”
junto importante de intelectuais e educa- (Id., Ibid., 12). Em face disso, apresenta
dores, acima de todos Adolfo Coelho e as seguintes duas conclusões: “que gran-
António Sérgio, se procurou distanciar des períodos da cultura da humanidade
dessa retórica, relativizando, de alguma foram possíveis sem o conhecimento da
maneira, a importância de tal combate. escrita, outros com conhecimento pou-
Não é, obviamente, adequado catalogar co vulgarizado dela”; e “que ainda hoje
as suas posições, que de resto primam é possível educação adequada a várias
pela complexidade, no quadro do antial- condições sociais ou nacionais sem esse
fabetismo, mesmo sendo adversários do conhecimento” (Id., Ibid., 49).
antianalfabetismo. Isso seria distorcer a Num sentido próximo, embora em tom
verdade. É, no entanto, impossível dei- mais radical, vão as posições de uma das
xar de apresentar neste lugar as posições mais ambivalentes figuras de entre as que
muito próprias destes educadores, na ten- percorrem o arco de mais de meio século
tativa de delimitar, de forma mais precisa, que liga a Monarquia Constitucional ao
os termos do debate. Estado Novo, passando pela República
A figura que mais profunda influência – Agostinho de Campos. Em Educar. Na
exerceu, neste como noutros terrenos, Família, na Escola e na Vida (1918), o autor
foi Adolfo Coelho. Em Cultura e Analfa­ refere-se ironicamente a uma das palavras
betismo (1916), edição que junta dois arti- de ordem então mais proclamadas pela
gos publicados em 1910, um deles “A cul- corrente alfabetizadora: “O cancro do
tura mental no analfabetismo”, ao qual analfabetismo! Ainda hoje vi escrito este
nos reportamos, o autor valoriza a cultura irritante lugar-comum, que veio ocupar,
daqueles a que chama “o povo analfabe- nas teologias ateístas da hora presente, os
to”, considerando que este “tem as suas lugares vagos do Diabo ou do Inferno de
artes, indústrias, saber, a sua educação e outros tempos. Cancro és tu – tu que es-
até a sua pedagogia reduzida a preceitos” creveste aquilo […]. Cancro é este jesui-
(COELHO, 1916, 20). Para argumentar tismo vermelho dos nossos dias” (CAM-
em prol do valor deste “saber popular” POS, 1918, 69-70). Agostinho de Campos
ou “tradicional” dá, entre outros, o exem- não é contrário à educação popular, mas
plo dos valiosos trabalhos agrícolas exe- também não acredita que o progresso da
cutados por analfabetos conhecedores sociedade resulte da instrução do povo.
dos “variados ramos da tecnologia rural Atribui, antes, um papel central às elites,
e das outras tecnologias” (Id., Ibid., 21- que, no entanto, critica profundamente,
-22). Também no terreno da estética, na considerando-as responsáveis pelo atra-
opinião de Adolfo Coelho, ser-se ou não so do país. Segundo o autor, “a doença
alfabetizado não demarcava uma linha nacional portuguesa não é o analfabetis-
de fronteira. O mesmo acontecia em re- mo intelectual dos governados, mas sim
lação à ideia de pátria ou à posse de co- o analfabetismo moral dos governantes”,
nhecimentos geográficos. Nessa confor- que não sabem dirigir nem educar a exce-
midade, o autor contesta a tese, assumida lente “matéria prima popular” que o país
como dogma, de que “o analfabetismo é possui (Id., Ibid., 73-74). Em face disso,
em si um grande mal, que urge extirpar, “mais valia ao povo ser cego e ser surdo”,
como se ler, escrever e contar fossem o consistindo a sua única defesa “em ser cé-
passaporte para o país da ciência, do tico e em ser analfabeto” (Id., Ibid., 69).

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62 AntiAlfAbetismo

Em jeito de provocação, adianta que a próximas das já indicadas chegaram a ser


escola primária do futuro deveria ensinar defendidas, entre outros, por Leonardo
as crianças “a evitar os inconvenientes e Coimbra e por Aquilino Ribeiro. Um ar-
os perigos de saberem ler” (Id., Ibid., 68). tigo deste último, “Do absurdo de criar
Outra das mais prestigiadas figuras de escolas”, publicado em 1927 no jornal O
entre as que questionaram publicamente Século, chegou a causar algum escândalo,
a crença simplista, então em voga, nas vir- por ter afirmado que “em toda a aldeia
tudes da alfabetização, sem que se possa que não seja servida, ao menos, pelo ma-
considerar um opositor da educação do cadame, a escola é vã e absurda” (MÓNI-
povo, bem pelo contrário, foi o ensaísta CA, 1977, 324), e valeu-lhe uma polémica
António Sérgio. No ensaio intitulado “O com César Anjo que lhe respondeu em
ensino como factor do ressurgimento A Federação Escolar. As duas correntes con-
nacional”, datado de 1918, o autor pro- tinuavam presentes no espaço público
clama: “extinguir o analfabetismo não num momento que era já de Ditadura
deve ser o nosso fim, porque é um meio”, Militar, e ambas usavam os recursos pro-
acrescentando a seguir: “a leitura na es- porcionados pela retórica.
cola primária há de ser o simples acom- A passagem dos anos 20 para os anos 30
panhamento de um treino científico e foi, de resto, um dos principais momen-
moral que tenda a fazer do educando um tos em que se manifestaram posições,
melhor produtor e um melhor cidadão” estas sim, já claramente passíveis de ser
(SÉRGIO, 2008, 227). Noutro texto, as catalogadas no âmbito do antialfabetis-
“Cartas do terceiro homem”, inserto na mo, tendo o debate então ocorrido sido
coletânea Democracia, Sérgio coloca reto- profundamente analisado por M.ª Filo-
ricamente a questão: “Combater o analfa- mena Mónica. Alguns intelectuais dos
betismo? Intenção louvável; mas pergun- sectores mais conservadores do regime
ta-se: deverá ter-se o alfabeto como um em fase de instalação fizeram afirmações
bem absoluto? Ensinar a ler e a escrever bem significativas a este propósito. Uma
como um fim em si? […] A mera alfabe- das mais paradigmáticas saiu da pena da
tização pode tornar-se um mal se não for escritora Virgínia de Castro e Almeida, e
um meio para aperfeiçoar o trabalho e o foi publicada em 1927 no jornal O Sécu­
trabalho um meio para a autolibertação lo: “Sabendo ler e escrever, nascem-lhes
do povo a respeito dos parasitas que no ambições: querem ir para as cidades ser
nosso país o esmagam” (SÉRGIO, 1974, marçanos, caixeiros, senhores; Querem
253 e 256). ir para o Brasil. Aprenderam a ler! Que
A questão decisiva é, pois, a que se re- leem? Relações de crimes; noções erradas
fere à distinção, segundo os termos da de política; livros maus; folhetos de pro-
época, entre instrução e educação. Nos paganda subversiva. Largam a enxada,
autores que temos vindo a analisar, a críti- desinteressam-se da terra e só têm uma
ca ao que consideravam ser a “superstição ambição: serem empregados públicos.
do alfabeto” (António Sérgio), fomenta- Que vantagens foram buscar à escola?
da pelos “cavaleiros do ABC” (Adolfo Nenhumas. Nada ganharam. Perderam
Coelho), surge associada a uma valoriza- tudo. Felizes os que esquecem as letras e
ção da educação em relação à instrução. voltam à enxada. A parte mais linda, mais
Assim se compreende a importância que forte e mais saudável da alma portuguesa
António Sérgio atribui, e.g., à educação reside nesses 75 por cento de analfabe-
cívica e à educação profissional. Posições tos” (MÓNICA, 1977, 327). Este excerto

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AntiAlfAbetismo 63

fixa, de forma bem expressiva, alguns dos mas nacionais têm de ser resolvidos, não
principais lugares-comuns do pensamen- pelo povo, mas pelas elites enquadrando
to conservador relativamente à alfabetiza- as massas” (Id., Ibid., 183).
ção: o receio do abandono dos campos e O contexto pós-guerra e as políticas
do favorecimento da mobilidade social; de fomento económico que ele possibili-
o medo das más leituras e, em particular, ta deixam menos espaço para este olhar
do seu potencial subversivo; a idealização ruralista e conservador, dando um novo
do bom povo português, simples, feliz e fôlego aos discursos em prol da alfabeti-
analfabeto. No entanto, como sabemos, zação que vão conhecer um novo clímax
essa não foi a opção oficial do Estado já nos anos 50, no quadro do Plano de
Novo, que procurou usar a alfabetização Educação Popular.
como estratégia para a inculcação dos
valores do salazarismo e como forma de
contribuir para a preservação do regime. Bibliog.: CAMPOS, Agostinho de, Educar. Na
O próprio António de Oliveira Salazar Família, na Escola e na Vida, Lisboa/Rio de Ja-
tem, nas famosas entrevistas a António neiro, Livrarias Aillaud e Bertrand/Francisco
Ferro, afirmações de alguma ambiguida- Alves, 1918; CANDEIAS, António, “Moderni-
de a respeito da alfabetização popular. dade e cultura escrita nos séculos xix e xx em
Na quarta entrevista, realizada no final Portugal”, in CANDEIAS, António (coord.),
Modernidade, Educação e Estatísticas na Ibero-Amé-
de 1932, ao abordar o “problema da ins-
rica dos Séculos XIX e XX, Lisboa, Educa, 2005,
trução” e referindo-se concretamente ao pp. 53-108; COELHO, F. Adolfo, Cultura e
analfabetismo, Salazar afirma que “não Analfabetismo, Porto, Renascença Portuguesa,
podemos cruzar os braços diante desse 1916; Colecção da Legislação Portuguesa desde a
grande problema” e proclama: “ensinar Última Compilação das Ordenações: 1763 a 1774,
toda a gente a ler, escrever e contar” é vol. v, Lisboa, Ministério da Educação e Cul-
um “degrau essencial para a educação tura, 1987; FERNANDES, Rogério, Bernardi-
no Machado e os Problemas da Instrução Pública,
cívica de um povo”. A solução que apre-
Lisboa, Livros Horizonte, 1985; FERREIRA,
senta, “a única forma prática de resolver Alberto, Antologia de Textos Pedagógicos do Século
o problema” segundo afiança, baseia-se XIX Português, 3 vols., Lisboa, FCG, 1971-75;
naquilo a que chama “o método dos paí- FERRO, António, Entrevistas de António Fer-
ses pobres”, do qual fazem parte a cria- ro a Salazar, Lisboa, Parceria António Maria
ção de “postos de ensino”, mantidos “à Pereira, 2003; MÓNICA, Maria Filomena,
custa de uma pequena gratificação” em “‘Deve-se ensinar o povo a ler?’: A questão
“todas as aldeias, povoações escondidas do analfabetismo (1926-39)”, Análise Social,
vol. xiii, n.º 50, 1977, pp. 321-353; RAMOS,
e inacessíveis” (FERRO, 2003, 70-71). No
Rui, “Analfabetismo”, in BARRETO, Antó-
entanto, na sétima entrevista, datada já nio, e MÓNICA, Maria Filomena (coords.),
de 1938, Salazar tem afirmações um pou- Dicionário de História de Portugal, vol. vii, sup.,
co mais equívocas sobre o tema do anal- Lisboa/Porto, Figueirinhas, 1999, pp. 95-100;
fabetismo, que dão bem conta da sua vi- SÉRGIO, António, Obras Completas. Democra-
são elitista do mundo: “O nosso grande cia: Diálogos de Doutrina Democrática; Alocução
problema, responde o chefe do Governo aos Socialistas; Cartas do Terceiro Homem, Lisboa,
Sá da Costa, 1974; Id., Ensaios sobre Educação,
português – é o da formação de elites,
Lisboa, INCM, 2008.
que eduquem e dirijam a Nação […].
Considero até mais urgente a constitui- Carlos Manique da Silva
ção de vastas elites do que ensinar toda Carlos Beato
a gente a ler. É que os grandes proble- Joaquim Pintassilgo

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64 AntiAlquimismo

Antialquimismo vam; e os segundos, autênticos charlatães


que, ignorando, na maioria dos casos, os
princípios fundamentais da Ars Magna
que diziam praticar, punham fosse o que
fosse nos seus cadinhos ou nas suas retor-
tas e procediam às mais extravagantes ex-
periências, impelidos pela insaciável sede

E ncontrar a pedra filosofal que per-


mitisse transformar os metais vis
em metais nobres e preparar o elixir da
do ouro e pela fama que de suas práticas
lhes podia advir.
À alquimia praticada pelos adeptos
longa vida que, ingerido, permitisse a na Idade Média, em particular, deve a
transformação do próprio Homem, de- ciência contributos muito positivos. Sem
cuplicando-lhe as faculdades intelectuais a confundir nunca com a ciência quími-
e espirituais, com pleno acesso ao verda- ca, podemos dizer que esta tem nela um
deiro conhecimento e ao segredo de se precioso precursor, sobretudo pelos mé-
ultrapassarem os contrários para fazer do todos de análise laboratorial que desen-
infinitamente pequeno a imagem exata volveu e aperfeiçoou. E muitos foram e
do infinitamente grande e para fazer do de grande valor os seus contributos para
Homem o reflexo perfeito do cosmos, foi a química médica, possibilitando a pre-
o grande objetivo da alquimia. Arte e reli- paração de mais e melhores medicamen-
gião, mistura de misticismo e espiritualis- tos, seja no âmbito da química galénica,
mo, servindo-se de uma prática que sem- seja no âmbito da iatroquímica. Já nos
pre usou, em grande medida, os métodos sécs. xiii-xiv, os alquimistas Roger Ba-
laboratoriais do labor científico, não é con (c. 1214-1292/94), Arnaldo Villanova
possível considerar a alquimia como uma (1235-1311) e John Rupescissa (?-c. 1362),
ciência. entre outros, haviam insistido na possibi-
Podemos referir a origem da alquimia lidade de prolongar o tempo médio da
remetendo-a para a Ars Magna difundida vida humana por recurso a drogas cada
entre Egípcios e Caldeus, que a atribuíam vez mais aperfeiçoadas e eficazes, obtidas
a Hermes Trismegisto, o três vezes gran- por meio das técnicas laboratoriais que
de, filósofo, príncipe e poeta, muitas ve- a alquimia estava a desenvolver, nomea-
zes identificado com o deus Thot, filho damente os processos e as técnicas de
de Zeus e da ninfa Maia, a quem tinham destilação; e o mesmo para prolongar e
como autor da Tábua de Esmeralda, o tex- manter a boa saúde e vitalidade do tem-
to base da alquimia islâmica e ocidental. po da juventude. Para eles, a prática da
O caráter holístico e místico do enten- alquimia podia e deveria ser usada para
dimento mágico-vitalista da natureza foi beneficiar a humanidade através de uma
o arcabouço propício ao seu desenvol- medicina cada vez mais eficaz.
vimento, quer na Antiguidade, quer ao No tratado Alchimia, que lhe é atribuí-
longo da Idade Média, na cultura que in- do, Alberto Magno (1206-1280) descreve
formou o mundo do Ocidente europeu. o perfil dos verdadeiros alquimistas como
A alquimia foi praticada durante mui- sendo homens cuja sabedoria estaria aci-
tos e muitos séculos por adeptos e por as- ma de toda a suspeita, modestos, sinceros
sopradores, sendo os primeiros pratican- e místicos. Era-lhes pedido que fossem
tes convictos do objetivo confessado e da silenciosos e discretos, abstendo-se de re-
eficácia das técnicas que para tanto usa- velar, fosse a quem fosse, o resultado das

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AntiAlquimismo 65

suas experiências. Deveriam habitar em


lugares afastados, longe das multidões,
reservando em suas casas três comparti-
mentos para as operações da obra e es-
colhendo muito judiciosamente o tempo
e as horas do seu trabalho. Havia muitas
razões para que os verdadeiros alquimis-
tas assim procedessem. Tidos por muitos
como autênticos “agentes do demónio”,
eles eram olhados com desconfiança pe-
los tribunais e por quantos se considera-
vam na obrigação de defender a ortodo-
xia da fé e dos costumes. Mais: votados à
obtenção do ouro puro a partir de metais
vis, arriscavam-se a ser vítimas indefesas
de príncipes e pretensos protetores, mui-
to menos interessados em promover a
ciência do que em usufruir e atulhar os
seus cofres, dominados por uma insaciá-
vel sede dum ouro fácil e maravilhoso que
alimentasse a sua fama e riqueza. Por isso
se compreende que os alquimistas pro-
priamente ditos, os verdadeiros adeptos
da arte da transformação dos metais vis
Rosto de Dictionnaire Mytho-Hermétique,
em ouro e da procura do elixir da longa
de Antoine J. Pernety.
vida, sempre se tenham tentado manter
no máximo anonimato, não só trabalhan-
do em lugares o mais recônditos possível, que aconteceu. Em atitude de denodada
como também escondendo cuidadosa- autodefesa, ao sentir as ameaças ao dog-
mente os seus pensamentos debaixo de matismo da visão mágico-vitalista de que
símbolos e metáforas, que conferiam aos se alimentava, a atividade alquimista re-
seus escritos um aspeto misterioso, quais crudesceu fortemente nos sécs. xv e xvi.
oráculos de interpretação múltipla. As obras de Marsilio Ficino (1433-1499),
Com o progressivo abandono da visão G. Pico della Mirandola (1463-1494), H.
mágico-vitalista do Universo, cedendo Cornelius Agrippa (1486-1535), G. della
lugar, a par e passo, a uma visão meca- Porta (1535?-1615) e Paracelso (1493-
nicista, em que o Universo é visto como -1541), bem como as coleções de velhos
uma grande máquina inanimada, expli- tratados alquímicos, são disso prova bas-
cável pelo racionalismo pragmático, com tante, em renhida luta de sobrevivência
o conhecimento científico da natureza a que um deficiente extremar das ativi-
cada vez mais dominado pelo empiris- dades científica, mística e mágica pro-
mo racional de que se tornaria expoen- porcionaria grande resistência ao longo
te máximo o Novum Organum de Francis dos sécs. xvii e xviii. As questões da Ars
Bacon (1561-1626), a prática da alquimia Magna suscitaram redobrada atenção
e a filosofia em que assentava pareciam com a impressão da extensa Bibliotheca
votadas ao desaparecimento. Não foi o Chemica Curiosa, em 1702, em Genebra,

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66 AntiAlquimismo

por Jean Jacques Manget (1652-1742), e


do Museum Hermeticum, em Frankfurt, em
1678; do princípio do séc. xviii até 1775,
os escritos alquímicos de Basílio Valen-
tim (1394-?) tiveram cinco edições; e em
1758, o abade beneditino Antoine J. Per-
nety (1716-1796) publicava, em Paris, o
Dictionnaire Mytho­Hermétique. Mas era por
demais evidente que, com o novo espí-
rito científico decorrente do empirismo
racionalista, dominado por uma filosofia
mecanicista, crescia, dia a dia, uma atitu-
de antialquimia. Preocupados cada vez
mais em conhecer a natureza quantitativa
e mecanisticamente, os filósofos naturais
passaram assumidamente a deixar de fora
a sacralidade da matéria.
As práticas laboratoriais dos alquimis-
tas e muita da aparelhagem que usavam
continuaram a ser tidas como contributos Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
dignos de serem considerados muito váli-
dos, o que levaria John Read a agraciar a
alquimia como um prelúdio para a quími- deiro. Estes mestres também a tinham
ca. Todavia, a alquimia, no seu conteúdo como em oposição frontal à doutrina teo-
místico-filosófico e tal como era praticada lógica dominante da Igreja, que nela via
pelos chamados assopradores, tornou-se um pacto com o Diabo.
cada vez mais objeto de uma forte atitude Recorde-se aqui o Fausto de Johann
de rejeição, desprezo e reprovação, em Wolfgang von Goethe (1749-1832): em-
assumidas tomadas de posição de antial- bora relativamente tardio ao período áu-
quimismo. Generalizaram-se atitudes que reo da alquimia, nele se conta a história
já não eram novas, mas que até então se de um doutor Fausto do séc. xvi que, evo-
restringiam a círculos relativamente pe- cando os espíritos, negoceia com Mefistó-
quenos. À imagem negativa da alquimia feles, o demónio, assinando com ele um
criada pelos maus feitos cometidos em contrato selado com o seu próprio san-
nome dela pelos assopradores, junta- gue, nos termos do qual, em troco da sua
ram-se com especial relevo e destaque as alma, o serviria durante todo um longo
posições de vários mestres tidos como os período em que ele lhe assegurasse viver
grandes defensores e fazedores de opi- sem envelhecer. Sabemos o que aconte-
nião nas grandes instituições de ensino, ceu: entregue aos prazeres durante todo
em particular as maiores universidades, esse tempo, no fim não se conseguiu li-
que consideravam que estava em oposi- bertar do pacto feito e foi levado para o
ção frontal à filosofia de Aristóteles, ao Inferno. Lembre-se de igual modo a po-
defender a possibilidade de transformar sição clara de S. Tomás de Aquino (1225-
uns metais noutros, pois não era possível -1274), o teólogo que tentou conciliar as
transmutar umas espécies noutras: o ouro pretensas contradições dos filósofos gre-
artificial nunca poderia ser ouro verda- gos com a dogmática da Igreja cristã. Ele

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AntiAlquimismo 67

rejeitava a alquimia, considerando-a de- Outro tanto fez Benito Jerónimo Feijoo
rivar fundamentalmente de práticas dia- (1676-1764), tido como um dos maiores
bólicas. Sem refutar a possibilidade e as filósofos e ensaístas do seu tempo, no seu
virtudes da pedra filosofal e do elixir da Theatro Critico Universal (1726). Não teve
longa vida, consta que, tendo herdado a grande repercussão no meio dos adeptos
pedra filosofal confecionada por seu mes- e demais cultores da alquimia o tratado
tre Alberto Magno, logo que este morreu, alquímico Ennœa ou Applicação do Enten­
ele próprio a destruiu, desaprovando dimento sobre a Pedra Filosofal (1732-33) da
com veemência todo o tipo de experiên- autoria do português Anselmo Caetano
cias alquímicas que se dizia haviam sido Munhós de Abreu, que refutava os argu-
realizadas por Alberto Magno. E lembre- mentos avançados por estes dois “Reve-
se também o queixume de uma alma da rendíssimos Padres” contra a Ars Magna.
Divina Comédia de Dante Alighieri (1265- Não se pode igualmente deixar de re-
-1321) que, no oitavo círculo do Inferno, ferir o caso de James Price (1752-1783),
o círculo dos alquimistas, se lamentava de químico inglês da Real Sociedade de
que “foi meu crime a alquimia traiçoeira” Londres. Em 1782, vários relatos tor-
(XXVII, 120). nados públicos davam conta de que ele
Mestre muito respeitado por papas, im- teria solidificado uma certa porção de
peradores, príncipes e prelados, o Jesuí- mercúrio e, logo de seguida, a teria trans-
ta alemão Atanásio Kircher (1602-1680), mutado em ouro, operação que afirmava
no seu tratado Mundo Subterrâneo (1664), ter realizado por duas vezes, na presença
não negando embora a possibilidade da de várias testemunhas, e prontificando-
pedra filosofal, impugnou com todos os se para que os equipamentos que usara
argumentos possíveis o que era conside- para o efeito fossem examinados pelo seu
rado o grande mistério da Ars Magna. público, que incluía três membros da Câ-
mara de Lordes, quatro altos dignitários
da Igreja e dois mestres refinadores. Pri-
Ilustração de eugène Delacroix (1798-1863)
para Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe. ce quebrou o cadinho em que efetuara a
operação na sua presença, e dentro dele
havia de facto uma pepita de ouro puro,
confirmada pelos testes dos refinadores.
Intrigados com tais relatos, vários mem-
bros da Real Sociedade decidiram pedir-
lhe que lhes apresentasse algumas amos-
tras do ouro e da prata produzidos, bem
como dos pós transmutadores. O quími-
co alegou ter gastado todas as reservas do
pó na experiência que fizera, e declarou
que estava demasiadamente exausto para
realizar novamente qualquer tipo de
trabalho alquímico. Joseph Banks, que
presidia à Real Sociedade, insistiu, ame-
açando expulsá-lo da Sociedade caso ele,
no prazo de um ano, não apresentasse as
provas que lhe haviam sido pedidas. Ja-
mes prometeu que o faria na primavera

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68 AntiAlquimismo

A bula Spondent, quas non Exhibent, publi-


cada pelo Papa João XXII em Avinhão,
em 1317, censurando e reprovando tudo
quanto devia ser tido como falso crime, é
um repositório completo das razões por
que a alquimia devia ser proibida e erra-
dicada, deixando aos tribunais inquisitó-
rios a missão de agir em conformidade.

Bibliog.: manuscrita: Biblioteca Nacional de


Madrid, ms. 6213, Bernardo Estrucio, Contra
Alchimistas, c. 1404, fl. 18; Bibliothèque Natio-
nale de Paris, ms. lat 3171, Nicolas Eymerich,
Contra Alchimistas, 1376, fl. 50; British Library,
ms. royal sig. 7-E-X, E. Friedberg, Corpus Juris
Canonici, II, 1879, fl. 47v. impressa: ABREU,
Anselmo Caetano Munhoz,  Ennœa  ou Appli-
cação do Entendimento sobre a Pedra Filosofal,
Capa de Ennoea, vols. 1-2, Lisboa, Officina Mauricio Vicen-
de Anselmo de Abreu. te de Almeida, 1732-33; AMORIM-COSTA,
António Marinho, Alquimia, Um Discurso Re-
ligioso, Lisboa, Vega, 1999; ELIADE, Mircea,
do ano seguinte, oferecendo-se para ir a Forgerons et Alchimistes, Paris, Flammarion,
1956; FEIJOO, Benito Jerónimo, Theatro Criti-
Londres e aí se reunir com os membros
co Universal, Oviedo, Colegio S. Vicente, 1726;
da Sociedade para com eles discutir o HOLMYARD, Eric John, Alchemy, Middlesex,
assunto. Porém, quando o dia marcado Penguin Books, 1957; HUTIN, Serge, A Alqui-
para o efeito chegou, James permaneceu mia, Lisboa, Livros do Brasil, s.d.; KIRCHER,
trancado no seu laboratório a escrever o Athanasius,  Mundus Subterraneus, Amsterdam,
seu testamento, após o que ingeriu uma apud Joannem Janssonium à Waesberge & fi-
dose letal de cianeto de hidrogénio que lios, 1664; READ, John, Prelude to Chemistry,
London, George Bell & Sons Ltd., 1936.
ele mesmo havia preparado, e morreu. O
acontecido redundou em crescente des- António M. Amorim da Costa
crença na alquimia por quantos se viram
envolvidos na situação.
A forte influência da Igreja contribuiu
também decisivamente para o crescer do
antialquimismo. Para proteger os seus
fiéis dos embusteiros e na tentativa de
evitar a disseminação de práticas e dou-
trinas que tinha como não ortodoxas e
de as extirpar do seu seio, a Igreja, des-
de muito cedo, interditou-as e proibiu
que os seus principais responsáveis a elas
recorressem, mesmo que em segredo, e
fossem os primeiros a delas tirar partido.

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AntiAmbientAlismo 69

Antiambientalismo ção e de expressão, por outro lado, a ur-


gência de lançar as fundações basilares
de uma sociedade democrática funcio-
nou como um fator de despromoção das
causas ambientais no processo social de
seleção de prioridades.

A preocupação com a natureza radica


profundamente na tradição cultu-
ral e filosófica portuguesa. A passagem
eM BuSCA De uM MoDeLo
De DeSenVoLVIMenTo
da ideia de natureza para o conceito de A primeira década de democracia é assi-
ambiente é, contudo, um processo tar- nalada, no plano do movimento ambien-
dio e complexo. Tanto a política públi- talista, por três questões fundamentais,
ca de ambiente como o ambientalismo a saber: a luta contra a opção nuclear;
enquanto movimento social refletem as a tentativa de estabelecer uma aliança
características da sociedade portuguesa, entre a herança rural e as correntes de
que chegou atrasada à Revolução Indus- contestação “pós-industrial” que chega-
trial, com um perfil fortemente rural, vam a Portugal provenientes da Euro-
uma população pouco escolarizada, sem pa e dos EUA; um estilo de intervenção
tradições de vida urbana e de participa- fortemente fragmentário, polivalente e
ção cívica. Também por isso se explica individualista. Em novembro de 1974, o
a fragilidade do antiambientalismo, que Eng.º Torres Campos, membro do Go-
nada tem de semelhante à dimensão em- verno provisório, colocava a opção nu-
presarial que assume, e.g., nos EUA. clear como um dos objetivos estratégicos
Quer a política de ambiente, quer o nacionais em matéria de luta pela auto-
movimento ambientalista nasceram ain- nomia energética nacional. Essa decla-
da durante o Estado Novo. A primeira, ração iniciava um processo de combate
com a criação da Comissão Nacional do cívico, que se desenrolaria ao longo de
Ambiente, liderada por José Correia da uma dezena de anos, atingindo grandes
Cunha. A segunda, com a fundação picos de atenção e mobilização públicas,
da  Liga para a Proteção da Natureza, como foi o caso do grande protesto em
em 1948, impulsionada pelo poeta Se- Ferrel (1978).
bastião da Gama e por um grupo de pro- A luta contra o nuclear foi o fator cata-
fessores universitários da Faculdade de lisador para o aparecimento de uma va-
Ciências da Univ. de Lisboa. A expansão riegada literatura em que – para além de
do movimento associativo ambientalis- se apresentarem os argumentos técnicos
ta exibe uma relação complexa com a clássicos sobre a insegurança das cen-
construção de um regime de democra- trais nucleares – se procuravam lançar
cia representativa após o processo revo- os fundamentos conceptuais, não ape-
lucionário iniciado com o  25 de Abril nas para a recusada opção nuclear, mas
de 1974. Se, por um lado, as alterações também para a sua compreensão como
constitucionais e institucionais propor- metonímia de um modelo de sociedade
cionadas pelo 25 de Abril criaram as considerada nefasta e percorrida por
condições de possibilidade para a cons- uma lógica interna de autodestruição.
tituição de organizações ambientalistas Afonso Cautela foi uma das figuras mais
em clima de plena liberdade de associa- salientes do associativismo ambiental no

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70 AntiAmbientAlismo

período da luta contra o nuclear. Jorna-


lista e orador de discurso firme e con-
vincente, Cautela representava a contes-
tação que voluntariamente se colocava à
margem do establishment. Ouçamo-lo, na
condição de diretor do órgão do Movi-
mento Ecológico Português, a propósi-
to da candente questão das alternativas
energéticas ao nuclear: “Não compete
ao militante ecológico arranjar soluções
para o sistema que ele a priori e radical-
mente rejeita. Ou apontar soluções para
as crises que o sistema capitalista engen-
dra […]; no caso da energia elétrica, se
problemas há, os técnicos que os resol-
Afonso Cautela (n. 1933).
vam” (CAUTELA, 1976, 6).
A luta antinuclear mobilizaria também
figuras do meio académico, como Del- 25 de Abril de 1974, torna-se num dos
gado Domingos, um dos mais jovens ca- principais obreiros do edifício jurídi-
tedráticos da Universidade portuguesa, co, administrativo e político do Estado
com uma vasta experiência internacio- democrático no domínio do ambiente
nal, sobretudo norte-americana. Delga- e do ordenamento do território, che-
do Domingos efetuou a mais pioneira e gando a ser ministro da Qualidade de
séria reflexão sobre o que se encontrava Vida durante a governação da coligação
em jogo na questão do nuclear. O enge- Aliança Democrática, na transição dos
nheiro ultrapassou o simples horizonte anos 70 para os anos 80, de que foi um
da razão instrumental para se alcandorar dos mentores e líderes. A grande tese de
à perspetiva do filósofo da civilização. A Ribeiro Telles consistia em considerar
energia nuclear colocava problemas de que o “atraso” económico de Portugal,
escala e de tempo de uma tal dimensão a sua ruralidade, a ausência de mecani-
que se desaconselhava por completo a zação generalizada poderiam constituir
sua adoção. um fator muito positivo no saltar da eta-
Outra figura proeminente, tanto da pa de degradação ambiental representa-
política de ambiente como do movi- da pela intensificação da industrializa-
mento ambientalista, é a do arquiteto e ção e da urbanização, típicas do modelo
professor Gonçalo Ribeiro Telles. O seu de crescimento das sociedades ociden-
percurso na causa ambiental tem raízes tais. A alternativa proposta por Ribeiro
muito anteriores ao período inaugu- Telles era a do “ecodesenvolvimento”.
rado pela revolução democrática. Em
novembro de 1967, ainda Salazar era
uM eSTILo FRáGIL e FRAGMenTáRIo
Presidente do Conselho de Ministros,
Ribeiro Telles ganhou notoriedade pú- Se comparamos o escasso grau de in-
blica pela sua denúncia do desordena- fluência do movimento ambientalista,
mento urbano, responsável pelas ter- no período de 1974 a 1985, com aquele
ríveis cheias de Lisboa, causadoras de de que viria a desfrutar a partir de 1990,
mais de 500 vítimas mortais. Depois do facilmente compreenderemos as razões

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AntiAmbientAlismo 71

que levam a afirmar que essa dificul-


dade em ganhar influência se prende
com a conjugação de dois fatores. Por
um lado, evidentemente, a vivência,
por parte da sociedade portuguesa, de
um estádio de amadurecimento ainda
muito precário no que concerne à te-
mática ambiental, numa época em que
as tarefas da refundação da democracia
e do combate à pobreza tinham toda a
prioridade. Por outro lado, contudo,
um estilo de intervenção do movimento
ambientalista fortemente individualis-
ta, fragmentário e desconexo, que di-
ficilmente sabia capitalizar os grandes
Gonçalo Ribeiro Telles (n. 1922).
investimentos de energia e de genero-
sidade cívicas envolvidos nas grandes
lutas desses anos aurorais, como foi o com influência nacional, e até interna-
caso, já aludido, da luta contra a opção cional, de que se destaca a Quercus, fun-
nuclear. dada em outubro de 1985.
Esse carácter fragmentário tornou o
movimento ambientalista uma presa
AmbientAlismo e sociedAde em
fácil daqueles que queriam usar a seu
portugAl: umA influênciA peculiAr
favor o prestígio que aquele começava
a ganhar além-fronteiras, em particular Em Portugal, o nível de participação e
depois de março de 1983, quando o par- envolvimento cívicos na causa ambiental
tido ambientalista alemão, Die Grünen, é incomparavelmente menor do que o
conseguiu entrar no Bundestag (Parla- registado na média dos países europeus.
mento alemão), vencendo a barreira Em meados da déc. de 90 do séc. xx,
constitucional de 5 % dos votos. Estra- apenas dois em cada 1000 Portugueses
nhamente, o principal ato de antiam- tinham filiação em alguma associação
bientalismo seria praticado nessa altura, ambientalista. Apesar disso, a capacida-
com a constituição artificial, numa atitu- de de influência desse movimento tinha
de de puro oportunismo político, de um crescido exponencialmente, comparati-
partido português com o mesmo nome, vamente com a situação nos anos 60 e
Os Verdes, mas que jamais disputou 70. O nível de formação científica e so-
eleições, sendo apenas um conveniente cial dos seus quadros, a capacidade de
satélite eleitoral do Partido Comunista trabalho sobre temas atuais de grande
Português (PCP). Entre 1984 e 1985, complexidade, a credibilidade junto do
dezenas de organizações ambientalistas, público, ganha ao longo de campanhas
reunidas na Foz do Arelho e depois em e lutas concretas, permitiram que algu-
Troia, tentaram federar-se, mas sem su- mas das organizações não governamen-
cesso. Contudo, a reunião nacional de tais (ONG), resultantes do processo de
Troia marcaria o começo do fim da frag- “seleção” do final da déc. de 80, se trans-
mentação, dando início ao aparecimen- formassem num fator de determinação
to de um menor número de associações da agenda ambiental portuguesa. ONG

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72 AntiAmbientAlismo

como a Quercus, a Liga para a Proteção encaminhar processos específicos para


da Natureza e o Grupo de Estudos de soluções de consenso construído); por
Ordenamento do Território e Ambiente último, no começo do séc. xxi, o aspeto
foram capazes, apesar da extrema fragi- mais insuficiente e o ponto mais fraco
lidade da sua base social de suporte, de das ONG portuguesas era a sua ainda
se afirmar através do desencadear de um insuficiente capacidade de aproveitar
conjunto de intervenções, onde o pro- algumas vitórias para arriscar ganhos
testo foi sempre acompanhado pela bus- institucionais mais duradouros (criar
ca de propostas visando alternativas con- rotinas democráticas, e.g. de conselhos
cretas. Elas foram capazes de ajudar a do Plano Diretor Municipal). Estas ca-
determinar a agenda da política ambien- racterísticas ajudam a compreender a
tal portuguesa em temas tão diferentes dificuldade de formação de um sólido
como: a política de resíduos (urbanos, movimento antiambientalista.
industriais, hospitalares), a qualidade A robustez académica das posições am-
de água para consumo humano, a saúde bientalistas, as suas profundas raízes no
ambiental, a qualidade do ar, a conserva- meio universitário e a sua influência so-
ção da natureza, a política do mar, as al- bre a comunicação social tornaram mui-
terações climáticas, a energia, as cidades to pouco recompensadora uma atitude
e a política de transportes, a diplomacia de direta hostilidade contra o movimen-
ambiental, entre muitos outros. to ambientalista. Alguns sectores, como
Salientam-se as seguintes caracterís- o das celuloses ou o das energias fósseis,
ticas, que ajudaram a definir um perfil tenderam a manifestar a sua discordân-
de intervenção ambientalista inovador, cia perante as propostas das ONG que le-
embora não isento de deficiências e fa- savam diretamente os seu interesses, mas
lhas: a importância da capacidade de sem ir mais longe do que isso.
iniciativa; a otimização do recurso a Nesta altura, o antiambientalismo sub-
todos os instrumentos legais no tempo sistia, pois, num registo nómada, indi-
oportuno; a capacidade de combinação, gente e individualista, como foi o caso
com imaginação e criatividade, de todos de Rui Gonçalo Moura (1930-2010),
os meios de intervenção disponíveis; o um engenheiro eletrotécnico que fun-
conhecimento exaustivo do enquadra- dou o blogue Mitos Climáticos contra os
mento jurídico dos temas em apreço; cientistas que trabalhavam na área das
a prioridade conferida à construção de alterações climáticas, em particular con-
redes seguras e transparentes de contac- tra Filipe Duarte Santos, o especialista
to com a comunicação social, condição nacional mais destacado nesse domínio.
essencial para que as ONG se pudessem Ou de Luís Mira Amaral (ministro com
tornar representantes indiretos do inte- várias pastas entre 1985 e 1995), que nos
resse público; a importância da prepara- anos 90 do séc. xx chamou aos eucalip-
ção técnico-científica de todas as campa- tos “o nosso petróleo verde” e, enquanto
nhas e da sua posterior monitorização, banqueiro, combateu reiteradamente
elemento essencial da credibilização da na imprensa todas as posições e perso-
intervenção das ONG; a afirmação da au- nalidades que defenderam as energias
tonomia das ONG perante os diversos in- renováveis e um modelo sustentável de
teresses em conflito (condição essencial desenvolvimento para Portugal.
para permitir às ONG o estatuto de me- Em síntese, num mundo em transi-
diadores em casos de atrito, procurando ção, numa época onde a reinvenção da

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AntiAmericAnismo 73

política era uma necessidade crescente,


embora de contornos incertos, o movi-
Antiamericanismo
mento ambientalista português, com to-
das as suas fragilidades e limitações, con-
tribuiu, desde os seus começos, para que
o país, também neste domínio vital, não
ficasse à margem de debates e opções ci-
vilizacionais inadiáveis.

Bibliog.: impressa: BARROS, Henrique de,


S e existe uma constante na história
comum de Portugal e dos EUA, é a
posição inversa que ambos os países vão
Economia e Ecologia. Dois Textos, Lisboa, Livros ocupando na balança do poder mundial.
Horizonte, 1981; BRUNO, Sampaio, A Ideia Com efeito, quando os norte-americanos
de Deus, Porto, Livraria Chardron de Lello e
arriscaram a afirmação da sua indepen-
Irmão, 1987; CABRAL, Francisco Caldeira,
Fundamentos da Arquitectura Paisagista, Lisboa, dência a 4 de julho de 1776, por entre as
Instituto de Conservação da Natureza, 1993; vicissitudes de uma guerra em que a rela-
CAUTELA, Afonso, “Para uma economia… ção de forças não augurava um sucesso fá-
económica”, Frente Ecológica, n.º 5, jan. 1976, cil, ou mesmo provável, Portugal era ain-
p. 6; CUNHA, José Correia da, Diário das Ses- da um império marítimo com dimensão
sões, n.º 97, 27 abr. 1971, pp. 1927-1932; mundial, ocupando um dos seis lugares
DOMINGOS, J. J. Delgado, Inteligência ou Sub-
de topo a nível europeu (o mesmo é dizer
serviência Nacional?, 2 vols., Porto, Afrontamen-
to, 1978; PESSOA, Fernando Santos, Ecologia e mundial), de acordo com uma escala da
Território. Regionalização, Desenvolvimento, Orde- autoria do abbé de Saint-Pierre, profeta
namento do Território numa Perspectiva Ecológica, setecentista da unidade europeia.
Porto, Afrontamento, 1985; SCHMIDT, Luí- Com o passar das décadas, todavia, Por-
sa, Portugal Ambiental. Casos e Causas, Lisboa, tugal vai perdendo fôlego, capacidade
Círculo de Leitores, 1999; SOROMENHO- de afirmação e energia para manter até
-MARQUES, V., Regressar à Terra. Consciência uma aparência de soberania, como foi o
Ecológica e Política de Ambiente, Lisboa, Fim de
caso de quase toda a primeira metade do
Século, 1994; Id., O Futuro Frágil. Os Desafios da
Crise Global do Ambiente, Mem Martins, Europa- séc. xix. Pelo contrário, os EUA cresce-
-América, 1998; Id., Metamorfoses. Os Desafios rão a um ritmo sem paralelo na história
da Crise Global do Ambiente. Entre o Colapso e o mundial, ocupando, primeiro, o papel
Desenvolvimento Sustentável, Mem Martins, Eu- determinante no seu hemisfério, e trans-
ropa-América, 2005; TELLES, Gonçalo Ribei- bordando depois para o centro da hege-
ro, Para além da Revolução, Lisboa, Salamandra, monia mundial, onde ainda se encontra-
1985; digital: MOURA, Rui Gonçalo, Mitos
vam no início do séc. xxi. A relação de
Climáticos, http://mitos-climaticos.blogspot.
com (acedido a 21 maio 2016). uma nação que caminha para o ocaso
com uma outra que se ergue para ocupar
Viriato Soromenho-Marques o seu zénite no firmamento da conturba-
da sociedade internacional parece conter
todos os ingredientes para a produção
de fenómenos de hostilidade ideológica.
Contudo, o estudo das representações
dos EUA na cultura portuguesa revela
que, mesmo nos momentos de maior ten-
são entre os dois países, ocorreram meca-
nismos de apaziguamento que não só ex-

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74 AntiAmericAnismo

plicam a ausência de conflito militar, mas


também ajudam a compreender o modo
como as clivagens foram rapidamente
colmatadas antes da atualização destruti-
va dessas tensões. Adaptação estratégica e
negligência conceptual conjugam-se para
produzir o nível muito baixo de hostili-
dade para com os Estados Unidos regista-
da em terras lusas desde o aparecimento
desse novo país. Ela foi sempre e apenas
funcional e conjuntural, dirigida aos inte-
resses divergentes. Jamais estrutural, co-
locando em causa a essência ontológica
do outro.

quAnDo PoRTuGAL eRA AMeRICAno


Portugal foi um dos três Estados (junta- Abade Correia da Serra (1750-1823).
mente com a França e a Holanda) que
reconheceram a independência dos EUA
mesmo antes de a Grã-Bretanha, o princi- uma personalidade longamente familiari-
pal aliado estratégico de Lisboa, ter acei- zada com a realidade política e cultural
tado a soberania das suas colónias rebel- dos EUA, amigo de muitos dos seus mais
des através da assinatura do Tratado de altos dirigentes políticos, entre os quais
Paris, em 1783. se contam Thomas Jefferson e James Ma-
Contudo, as relações entre Portugal e dison. Na sua estadia de oito anos em solo
o novo país estiveram longe de ser isen- americano (1812-1820), Correia da Serra
tas de dificuldades e tensões. Lisboa não estabeleceu mesmo uma relação parti-
poderia esquecer o risco por ele repre- cularmente afetuosa com o terceiro Pre-
sentado para o futuro do Brasil, a joia do sidente dos EUA. Com efeito, Jefferson
Império colonial Português, pelo possível reservava ao sábio português um quarto
alastramento do exemplo emancipador especial na sua mansão em Monticello,
dos EUA – como, de facto, viria a suceder que era conhecido como “the abbé’s
alguns anos mais tarde. Estavam lançados room” [“o quarto do abade”] (TEAGUE,
os dados estratégicos para um longo pe- 1997, 66).
ríodo de hostilidade funcional entre os A atitude determinada e confiante, tal-
dois países. No entanto, o que poderia ter vez em demasia, de Correia da Serra, na
sido uma rota de colisão acabou por ser véspera de ocupar o seu posto diplomá-
consideravelmente atenuado pela figura tico nos EUA, está bem patente na carta
do primeiro embaixador português nos pessoal, datada de 19 de julho de 1816,
EUA, o grande vulto intelectual do abade que envia ao Presidente James Madison.
Correia da Serra. Nessa missiva, Correia da Serra confessa a
Correia da Serra é uma das veneráveis sua esperança fundamental para o futuro:
figuras das Luzes, um verdadeiro estran- “Tenho a firme expectativa de que – du-
geirado, homem de múltiplos talentos, rante a minha missão, pelo menos – o mi-
botânico e naturalista de grande mérito, nistro português será tido pelos Estados

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AntiAmericAnismo 75

Unidos como uma espécie de ministro do modelo constitucional norte-america-


de família. As nossas nações são agora de no, federalista e republicano, seria objeto
facto ambas potências americanas e serão de múltiplas apreciações e comentários,
sempre as duas principais, cada uma na verdadeiramente transversais à sociedade
sua parte do Novo Continente” (MAGA- portuguesa. Desse entusiasmo comun-
LHÃES, 1991, 76). gam tanto José da Gama e Castro – mé-
O que Correia da Serra pretendeu en- dico pessoal do Rei D. Miguel, que fez a
tre 1816 e 1820, para além da gestão de primeira tradução da obra O Federalista
inúmeras crises relacionadas com ataques a partir do seu exílio brasileiro – como
de corsários e rivalidades comerciais, foi J. Félix Henriques Nogueira, Antero de
defender a visão grandiosa, mas insus- Quental e Sebastião de Magalhães Lima,
tentável, de um sistema internacional no cujas conceções estão marcadas por di-
Novo Mundo, onde os Estados Unidos e versas variantes de federalismo, onde o
Portugal seriam os dois fatores essenciais pano de fundo dos EUA não deixa de
de equilíbrio, o primeiro a norte e o se- ocupar um lugar importante.
gundo a sul. O rasgo de génio na avaliação lusa dos
EUA, reflexo de uma inteligência aguda,
capaz de avaliar para além do imediato,
uMA LonGA noRMALIDADe pertence, todavia, a João de Andrade
De LuzeS e SoMBRAS Corvo, ministro dos Negócios Estrangei-
O séc. xix marcaria, todavia, o início do ros da monarquia portuguesa. Em 1870,
progressivo distanciamento entre Por- um ano antes de ocupar a sua pasta no
tugal e os EUA. Sobretudo depois da in- Governo, Andrade Corvo escreve um en-
dependência do Brasil e do crepúsculo saio onde lança um olhar verdadeiramen-
do efémero império luso na América, o te profético sobre as relações entre Por-
Atlântico começou a ser mais um fator tugal e os Estados Unidos, antecipando a
de separação do que de unidade. Como futura intervenção desse país nas guerras
bem caracterizou um antigo embaixador europeias e o papel estratégico que o ar-
de Portugal em Washington, entrou-se quipélago dos Açores estava destinado a
no limbo da normalidade: “A normali- desempenhar, com benefício para as rela-
dade foi a nota dominante, sofrendo as ções entre Lisboa e Washington.
relações de uma certa monotonia, com os Mais profundamente crítica da comple-
Estados Unidos por vezes desatentos dos xa identidade norte-americana é a visão
sinais de amizade que partiam de Lisboa” que Eça de Queirós dela nos vai dando
(THEMIDO, 1997, 17). ao longo da sua obra. A sua perspetiva é
No Portugal do séc. xix, desapossado inaugurada por um trabalho jornalístico
do seu império, varrido pela paixão po- sobre um couraçado americano fundeado
lítica, mergulhado em sucessivas guerras no Tejo, que o escritor transforma numa
intestinas, não surpreende que também metonímia da própria alma, poderosa e
tivesse sido no domínio da semântica contraditória, dos EUA: a força terrível e
política que as alusões aos EUA e à sua ameaçadora do poderio técnico, aliada a
influência se tivessem feito sentir com uma manifestação de fria e intocável se-
maior incidência. Com efeito, a sombra renidade; uma força, ao mesmo tempo,
da América seria projetada essencialmen- artificial e transcendente. É uma América
te a partir do tema do federalismo. Num onde cabe quase tudo: a capacidade de
país em busca de um novo rumo, o êxito inovação técnica, o gosto pelas ciências

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76 AntiAmericAnismo

e mesmo reacionária, e, por outros, como


um alerta precursor da tragédia ambien-
tal em que a sociedade do séc. xxi virá a
encontrar-se mergulhada.
Muito próxima da visão de Eça de
Queirós é a de Natália Correia: o seu re-
lato de uma viagem aos EUA, em 1950,
revela a estrutura problemática e labirín-
tica da América para um europeu, bem
como a tendência para considerar a men-
talidade média do povo norte-americano
como estando marcada por uma “crise”
de “puberdade física e mental” (COR-
REIA, 2002, 196).

eça de queirós (1845-1900).


sAlAzAr: dA “hegemoniA plebiscitAdA”
à divergênciA diretA
positivas, o dinamismo industrial, a ex- O auge da manifestação de sinais de hos-
pansão urbana desregrada, a domina- tilidade funcional relativamente aos EUA,
ção impiedosa da natureza, um niilismo com alguns laivos de hostilidade estrutu-
axiológico caracterizado pela predomi- ral, ocorrerá no longo consulado de An-
nância do dólar como símbolo da avidez tónio de Oliveira Salazar. Dividiremos a
capitalista. Os EUA representam, assim, nossa breve consideração deste tema em
a exaltação do poderio moderno da tec- dois períodos. O primeiro, que vai até ao
nociência, uma cosmovisão que começa e final da déc. de 1940, será marcado pelo
termina com os valores materiais (matiza- conflito mundial e pelo início da Guerra
da, contudo, pela referência aos valores e Fria; o segundo será dominado pela ques-
ideais humanistas que se jogaram na en- tão da Guerra Colonial.
tão recentemente travada Guerra Civil). Assim, o Estado Novo olhará para os
A visão queirosiana dos Estados Unidos é, EUA sob o prisma da Realpolitik, contras-
assim, perfeitamente coerente com o fio tando com a Primeira República, em que
condutor da sua obra, a avaliação crítica as representações dos EUA são ainda for-
da Modernidade. Para o bem e para o temente idealizadas, quer devido ao pa-
mal, a América terá mesmo representado, pel do Presidente Wilson na construção
para o grande escritor luso, uma espécie da Sociedade das Nações, quer, igual-
de janela panorâmica sobre o futuro da mente, devido à receção, em Portugal, de
civilização. Deste modo, a reflexão sobre novas ideias e métodos, nomeadamente
os EUA contribuiu para o amadurecimen- educativos, desenvolvidos nos EUA.
to de uma visão do mundo já patente na Salazar era um conservador de raízes
obra de Queirós; reciprocamente, o olhar fundamentalmente nacionais. O seu rea-
do escritor português sobre a América lismo escondia um profundo pessimismo
ganha o sentido e a proporção adequa- acerca das capacidades nacionais e so-
da quando integrado na referida com- bretudo das disposições mais profundas
preensão. Trata-se de uma interpretação da condição humana. O seu horizonte
considerada por uns como conservadora político era o da estabilidade e não o do

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AntiAmericAnismo 77

progresso ou crescimento. Nessa medida,


a sua desconfiança em relação às ideolo-
gias totalitárias, alimentadas por uma es-
pécie de teologia invertida e profana, era
acompanhada por uma atitude de des-
conforto também em relação à sociedade
americana, com todo o seu frenesim dinâ-
mico e o seu culto da ideia de progresso
e exaltação da vontade individual e da li-
berdade. George Kennan, diplomata nor-
te-americano que ficaria conhecido para
a história como a personalidade que mais
depressa compreendeu o que se jogava es-
trategicamente na Guerra Fria, trabalhou
na Embaixada dos EUA em Lisboa duran-
te a Segunda Guerra Mundial. Num rela-
tório, datado de 4 de fevereiro de 1943,
Kennan traça um curioso esboço da perso-
nalidade política de Salazar: “Salazar tem
em relação ao mundo ocidental uma posi- António de oliveira Salazar (1889-1970).
ção simples mas conflituosa. Em primeiro
lugar conhece-o muito mal. A sua educa-
ção foi puramente continental e, quando Portugal e do seu império colonial, outro-
não foi clerical, seguiu o modelo francês ra ligados à Grã-Bretanha, passariam a es-
[…]. Nunca se sentiu verdadeiramente tar associados à nova grande potência ma-
à vontade com os ingleses […]. Para ele rítima, os EUA; e os Açores seriam a marca
a vitória da Rússia significa em primeiro deste duradouro vínculo estratégico. Em
lugar uma Espanha vermelha […]. A vi- 1946, Salazar efetua uma síntese da sua lei-
tória dos EUA, por outro lado, significa tura do mundo do pós-guerra, chegando
o triunfo do materialismo de Wall Street mesmo a cunhar uma designação para o
e da imoralidade de Hollywood, para já novo tipo de hegemonia que os EUA exer-
não falar na ameaça às ilhas do Atlânti- ciam, nomeadamente através da criação
co” (TELO, 1991, 112). Embora Kennan das Nações Unidas: “uma hegemonia ple-
possa ter razão, a verdade é que António biscitada” (SALAZAR, 1954, 311).
Ferro, o homem que mediatizou Salazar Se, como resultado da dupla crise ori-
tornando-o um líder com carisma simbó- ginada pela Segunda Guerra Mundial
lico, visitou os EUA e de lá trouxe muitas e pela eclosão da Guerra Fria, o regime
impressões positivas, particularmente português colocou de lado divergências
quanto à indústria de Hollywood. ideológicas, aproximando-se do sistema
Por muito grande que fosse a distância de poder construído a nível global pelos
ideológica de Salazar aos EUA, a verdade EUA, em favor do interesse superior da
é que ela nunca o impediu de ver clara- conservação da integridade territorial
mente as colossais mudanças nas relações do império colonial, seria precisamente
de força mundiais que a Segunda Guerra a integridade do império que estaria na
Mundial, mais do que despoletar, havia raiz de uma das duas mais graves crises
intensificado e esclarecido. Os destinos de no relacionamento entre os dois países.

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78 AntiAmericAnismo

sua génese. A implementação dessa es-


tratégia colocou a América em rota de
frontal colisão com o Império Português.
O terreno para uma escalada da hostili-
dade funcional em direção a patamares
mais elevados de antiamericanismo seria
facilmente criado. A ocasião surgiu com
a eclosão sangrenta dos ataques levados
a cabo pelos guerrilheiros da União dos
Povos de Angola, comandados do exte-
rior por Holden Roberto, no Norte de
Angola, em 15 de março de 1961. O ata-
que, de enorme violência – custaria a vida
a mais de 6000 pessoas, entre europeus
e africanos –, foi planeado para coincidir
com a discussão, em Nova Iorque, de uma
moção contra o colonialismo português,
apresentada pela Libéria, a que os EUA
dariam o seu voto favorável.
John F. Kennedy (1917-1963). A reação portuguesa não se fez espe-
rar. No dia 27 de março, a oposição aos
EUA, que vinha ecoando na comunica-
Uma crise que saltaria das chancelarias ção social, derramou-se para a rua. Mais
para a rua, ganhando os contornos de um de 20.000 manifestantes, entre os quais
antiamericanismo de massas, mesmo que muitos dignitários do regime, entoando
orquestrado pelo Governo de Salazar. palavras de ordem patrióticas e contra os
A subida ao poder do jovem Presiden- EUA, dirigiram-se à Av. Duque de Loulé,
te John F. Kennedy seria a causa direta na capital portuguesa, onde estava sedia-
da agitação nas relações entre Lisboa e da a representação diplomática dos EUA.
Washington (de acordo com o embaixa- Aí, os manifestantes quebraram 47 jane-
dor Marcelo Matias, Salazar várias vezes las à pedrada, para além de terem man-
terá afirmado que considerava Kennedy chado de negro a entrada do edifício.
“um garoto” (ANTUNES, 1991, 67)). A importância estratégica dos Açores e
Acentuando linhas de orientação já exis- a necessidade de não criar ondas de cho-
tentes na Casa Branca, Kennedy iniciou que no seio dos aliados da Organização
o seu mandato com a firme resolução de do Tratado do Atlântico Norte (NATO),
desenvolver uma política africana favorá- onde Lisboa contava com forte apoio
vel à descolonização, mesmo com o risco francês, em conjunto com as próprias
de hostilizar os seus aliados europeus, contradições no interior da adminis-
com um duplo objetivo de longo prazo: tração americana, acabaram por levar
a) retirar espaço de manobra aos Sovié- Washington a recuar na sua posição. A
ticos junto dos movimentos de libertação derrota da tentativa de pronunciamento
emergentes em África; b) vincular as no- palaciano de Botelho Moniz, um militar
vas elites africanas a uma imagem favorá- do regime fortemente ligado aos EUA,
vel dos EUA, como grande potência fiel acabaria por anular qualquer esperança
aos ideais de liberdade que estiveram na de mudança de rumo na política africana

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AntiAmericAnismo 79

de Lisboa. A normalização das relações


diplomáticas com os EUA acentuou-se
com a entrada na Casa Branca de Richard
Nixon, que era favorável à política africa-
na de Portugal. Nessa altura, o antiame-
ricanismo deslocou-se, progressivamente,
do regime para os círculos da oposição,
cada vez mais radicalizada e próxima de
diferentes orientações marxistas.

novos rumos e desAfios


Em 1999, dezenas de milhares de pessoas
voltariam a concentrar-se junto da Embai-
xada dos EUA em Lisboa. Desta vez, a ma-
nifestação não foi orquestrada pelo Go-
verno, embora muitas figuras de primeira
grandeza da sociedade portuguesa lá se
encontrassem. À semelhança de 1961, a
razão da manifestação estava relacionada álvaro Cunhal (1913-2005).
com o secular passado colonial de Por-
tugal, mas a parecença ficava por aí. O
desejado apoio da administração Clinton do que antiamericana. O próprio Partido
à causa da autodeterminação do povo de Comunista Português (PCP) limitou-se a
Timor-Leste (mesmo contra a lógica da um antiamericanismo ritual, completa-
usura geoestratégica, que levara Kissinger mente superficial e sem consequências,
e Ford, em 1975, a dar carta-branca à in- como pode ser testemunhado nas obras
vasão indonésia) é revelador das expecta- de Álvaro Cunhal. A margem de mano-
tivas portuguesas em relação aos EUA. Os bra do PCP estava altamente condiciona-
manifestantes de 1999 não pretendiam da pelo interesse da URSS em não pertur-
defender o Império Português, desapa- bar o processo de desanuviamento com
recido para sempre. O que pretendiam é os EUA, o que implicava a permanência
que os EUA estivessem à altura das ideias de Portugal na NATO, apesar da ameaça
e ideais universais que lhes foram confe- permanentemente lançada por Kissinger
rindo, em muitos lugares do mundo, um contra os frágeis governos provisórios.
capital simbólico suplementar. O alinhamento do Governo de Durão
Mesmo sem império, os Portugueses Barroso com a invasão do Iraque em 2003,
continuaram a ter fortes razões para liderada por George W. Bush, foi visto
olhar para os Estados Unidos com inte- mais como um motivo de vergonha nacio-
resse e expectativa. Tal como em épocas nal do que como uma razão para hostili-
anteriores, e mesmo no período revo- zar os EUA. Na mesma linha, a eleição do
lucionário, o antiamericanismo jamais Presidente Obama, em 2008, foi celebrada
ultrapassou o limiar da hostilidade fun- com entusiasmo em Portugal, numa altura
cional. De facto, nos anos do processo em que, face à incapacidade de resposta
revolucionário, a maioria das forças da aos problemas financeiros iniciados nos
extrema-esquerda era mais antissoviética EUA, se tornavam já visíveis as sementes da

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80 AntiAnAlfAbetismo

discórdia numa União Europeia incapaz


de resolver a crise quanto ao seu modelo
Antianalfabetismo
político. Maior preocupação geraria o de-
sinvestimento dos EUA na base aérea das
Lajes, em 2015, porque entendida como
um sinal de afastamento do mais forte alia-
do atlântico de uma nação que continuava
a perder terreno numa Europa ameaçada
pelo vírus da desintegração.
A relação de Portugal com os EUA ma-
A problemática do antianalfabetismo
só se começa a colocar como realida-
de discursiva no séc. xix. Embora alguns
nifesta bem como um povo antigo não autores, como é sem dúvida o caso pio-
precisa de diabolizar outro para reforçar neiro de Luís António Verney, já tivessem
a sua identidade. defendido antes posições em prol da ge-
neralização da educação, a posição maio-
Bibliog.: ANTUNES, José Freire, Kennedy e Sa- ritária ia no sentido da restrição da apren-
lazar. O Leão e a Raposa, Lisboa, Difusão Cul- dizagem das primeiras letras a alguns
tural, 1991; CORREIA, Natália, Descobri Que
sectores sociais. O articulado da reforma
Era Europeia, Lisboa, Notícias, 2002; CORVO,
João de Andrade, Perigos. Portugal na Europa e pombalina de 1772 é uma expressão clara
no Mundo, Lisboa, Fronteira do Caos, 2005; da conceção de que o ensino aí previsto
MAGALHÃES, José Calvet de, História das não se destinava a todos os Portugueses,
Relações Diplomáticas entre Portugal e os Estados dele sendo excluídos “os empregados nos
Unidos da América (1776-1911), Mem Martins, serviços rústicos” e nas “artes fabris”. A
Europa-América, 1991; QUEIRÓS, Eça de, instauração do Liberalismo em Portugal,
Prosas Bárbaras, Lisboa, Livros do Brasil, 2001;
entre os anos 20 e 30 de séc. xix, cria a
SALAZAR, António de Oliveira, Salazar, 1909-
1953. Discursos, Notas, Relatórios, Teses, Artigos e esse respeito uma situação nova, pelo me-
Entrevistas. Antologia, Lisboa, Vanguarda, 1954; nos do ponto de vista doutrinário. A edu-
SOROMENHO-MARQUES, Viriato, “Antia- cação passa a ser considerada um direito
mericanismo: a hostilidade improvável”, in daqueles que, a partir desse momento,
MARUJO, António, e FRANCO, José Eduar- ascendem à categoria de cidadãos. A uni-
do (coords.), Dança dos Demónios. Intolerância versalização potencial da educação assu-
em Portugal, Lisboa, Temas e Debates/Círcu- me, entre outras, finalidades de natureza
lo de Leitores, 2009, pp. 580-624; TEAGUE,
política. Trata-se de uma estratégia pri-
Michael (comp.), Abade José Correia da Serra.
Documentos do Seu Arquivo. 1751-1795. Catálogo vilegiada para integrar a população nos
do Espólio, Lisboa, Fundação Luso-Americana valores e nas regras da nova sociedade
para o Desenvolvimento, 1997; TELO, Antó- liberal. Se a gratuitidade já vinha sendo
nio, Portugal na Segunda Guerra (1941-1945), esboçada, marcando presença na Carta
vol. ii, Lisboa, Vega, 1991; THEMIDO, João Constitucional de 1826, a obrigatorieda-
Hall, “Portugal e os Estados Unidos. Dois de do ensino, elemento central da refe-
países predispostos para um bom relaciona-
rida estratégia, conhece uma primeira
mento”, in Relações entre Portugal e os Estados
Unidos da América na Época das Luzes, catálogo formulação na efémera reforma de 1835,
de exposição patente na Torre do Tombo, jan. de Rodrigo da Fonseca Magalhães, logo
-mar. 1997, Lisboa, Fundação Luso-America- retomada, no ano seguinte, pela reforma
na para o Desenvolvimento, 1997, pp. 17-21. de Passos Manuel. A reforma de Costa
Viriato Soromenho-Marques Cabral, de 1844, procura viabilizar a sua
consecução, ao prever penalidades para
as famílias que não enviassem os seus

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AntiAnAlfAbetismo 81

betismo, como retórica, integra-se numa


narrativa mais ampla que incorpora não
só a já referida consideração do papel
central da educação no sentido da cons-
trução da cidadania liberal como, muito
em especial, a assunção da crença, de
raiz simultaneamente iluminista e posi-
tivista, no carácter redentor do acesso às
primeiras letras, fonte de progresso e de
moralização social. Como vários autores
têm notado (António Candeias, em par-
ticular), os processos de alfabetização e
de escolarização, tendo naturezas dife-
rentes, no caso português, ao contrário
do que acontece em outros contextos,
surgem profundamente imbricados. Essa
consideração tem naturais consequências
numa tentativa de definição do conteú-
do do antianalfabetismo. A uma intensa
Luís António Verney (1713-1792). retórica em defesa da aprendizagem de
competências de leitura e de escrita por
filhos à escola. O eventual cumprimen- parte de todos os potenciais cidadãos,
to parcelar desta disposição não obstou junta-se a exigência da sua integração no
a que a obrigatoriedade permanecesse interior da instituição que passa a ser en-
num plano fundamentalmente retórico, tendida como o único espaço onde essas
sem grandes possibilidades de se plas- aprendizagens são possíveis, a escola. O
mar nas realidades sociais e educativas. antianalfabetismo surge, também, asso-
Os processos paralelos tendo em vista a ciado a um olhar antropológico. O acesso
alfabetização e a escolarização dos jovens
portugueses vão ter um percurso lento e Manuel da Silva Passos, conhecido por Passos
complexo na longa duração dos sécs. xix Manuel (1801-1862).
e xx, o mesmo acontecendo no que se re-
fere ao acesso à cidadania, sempre muito
limitada por circunstâncias várias, entre
elas o regime censitário e a exclusão de
amplos sectores sociais da participação
política por via do voto (mulheres e anal-
fabetos, em particular), para não falar
dos momentos futuros de autoritarismo.
O facto anteriormente enunciado não
obstou, no entanto, à proliferação, na
segunda metade do séc. xix, de discur-
sos que já caberão na categoria de que
aqui procuramos traçar uma genealogia,
os quais são protagonizados por intelec-
tuais e educadores liberais. O antianalfa-

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82 AntiAnAlfAbetismo

à cultura escrita aparece metaforicamen- Um dos intelectuais que, à volta de


te como a entrada na civilização, o que meados do séc. xix, mais batalharam pela
tem fortes implicações nas conceções que instrução do povo foi, inequivocamente,
se difundem, em particular na transição o poeta e educador António Feliciano
do séc. xix para o xx, sobre a figura do de Castilho. No capítulo xiii de Felicida­
analfabeto. O antianalfabetismo é, por de pela Agricultura (1854), intitulado “Sé-
fim, apropriado pelos discursos políticos, timo serão do casal”, no qual retoma o
surgindo como argumento no combate texto de uma conferência proferida nos
político, o que é especialmente visível no Açores em agosto de 1849, o autor pro-
caso do republicanismo. clama: “todos serão obrigados a cultivar o
Vejamos então, feita que está uma tenta- seu espírito”; “a todos se facilitarão meios
tiva paralela, ainda que breve, de contex- para o conseguirem” (CASTILHO, 1854,
tualização e de conceptualização, alguns 174). Referindo-se concretamente ao
momentos e alguns exemplos do percur- problema do cumprimento da escolari-
so do antianalfabetismo. A afirmação do dade obrigatória, à luz do estipulado na
papel fundamental a ser desempenhado reforma de 1844, encontramos a enérgica
pela educação, tendo em vista a constru- declaração que se segue: “Os castigos de-
ção da nova sociedade, está presente nos vem ser graves, e severamente aplicados:
discursos dos principais pensadores da as pequenas multas em dinheiro, arbitra-
época. É o caso de uma das grandes refe- das pela atual legislação, para os remis-
rências doutrinárias do Liberalismo por- sos, que não mandam os filhos à escola,
tuguês, Alexandre Herculano. No texto ainda quando à risca se executassem, não
“Da educação e instrução das classes la- seriam suficientes”. O autor sugere um
boriosas”, incluído em Composições Várias conjunto bem pesado de penas como o
(1838), o autor afiança que “antes de se não reconhecimento de direitos cívicos, o
haverem espalhado na Europa as luzes e impedimento do exercício de determina-
os conhecimentos, o povo nada era”, ten- das atividades, a proibição do casamento
do sido, na sua ótica, “a instrução quem ou a incorporação militar, o que, na sua
enobreceu certas classes, até aí abjetas e opinião, resolveria o problema: “Com o
grosseiras”. Partindo da pergunta retóri- medo e terror destes castigos, com a espe-
ca – “E, então, porque há de esta classe rança e cobiça daqueles prémios, e logo
produtora e laboriosa ser excluída dos por cima com todas aquelas paternais
benefícios da instrução e dos cómodos e assíduas exortações, havendo à mão
e satisfação que ela gera?” –, Herculano bons mestres, e sendo o ensino, como
rebate alguns dos principais argumentos pode e deve ser, breve, aprazível, e gra-
que, naquele como noutros momentos, tuito; quem duvida de que em cinquenta
procuravam contrariar a instrução do anos, em vinte e cinco, e em menos, com
povo: “Há quem diga que o povo não o dedo se apontaria homem ou mulher,
deve ser ilustrado porque pretenderia ser que não soubesse ler, e que não lesse?”
mais do que é […]. Outros repetem, sem (Id., Ibid., 180-181). Para além de elencar
saberem o que dizem, que os conheci- um conjunto de condições visando “pôr
mentos superficiais, únicos possíveis para a instrução ao alcance de todos” (Id.,
o comum dos cidadãos, são coisa muito Ibid., 179), Castilho manifesta, ao mesmo
danosa. É esta uma ficção que hoje nin- tempo, uma grande confiança, típica da
guém poderia sustentar” (FERREIRA, época, na concretização, no médio prazo,
1971, I, 150-152). desse desiderato.

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AntiAnAlfAbetismo 83

Mas nem todos os intelectuais do perío-


do se mostram tão crentes nas vantagens
decorrentes da penalização das famílias.
No artigo “Instrução pública”, publicado
no jornal A Época (1848), Rebelo da Silva
manifesta as suas dúvidas em relação a essa
estratégia, procurando focar a sua atenção
nas condições sociais e culturais necessá-
rias para que o projeto alfabetizador te-
nha sucesso: “A instrução não se inventa
também; não basta mesmo decretá-la e
assinar-lhe uma larga dotação. Duvidamos
até da eficácia tão gabada do método coer-
citivo. A violência cria sempre resistências
ou pelo menos repugnâncias e o ensino,
como todas as coisas humanas, para difun-
dir depende de duas condições essenciais:
facilidade de tempo e de estudo; utilidade
positiva ou prémio do que aprende” (FER-
REIRA, 1975, III, 78).
A crença nas potencialidades e no ca-
rácter transformador da educação vai
continuar a estar muito presente nos dis- Rosto de A Instrucção Nacional,
de D. António da Costa.
cursos difundidos ao longo da segunda
metade do séc. xix. D. António da Costa,
o primeiro, ainda que efémero, ministro valores – o da liberdade acima de todos
da Instrução Pública, e um dos grandes – no coração dos Portugueses, importa,
publicistas educativos do período, é um segundo o autor, formar verdadeiros ci-
dos autores onde os principais tópicos dadãos, desenvolvendo neles as compe-
associados a essa crença marcam presen- tências necessárias à participação cívica:
ça. É na obra A Instrução Nacional (1870) “Mas não basta só o amor à liberdade.
que podemos encontrar algumas das suas Nos governos livres, o povo é chamado
mais paradigmáticas afirmações a esse a realizar por si próprio a vida política.
propósito. Uma delas é a relativa à neces- É-lhe portanto indispensável conhecê-la
sária articulação entre a instrução e a li- e realizá-la. Sem instrução do povo não
berdade: “Concebe-se que o absolutismo pode haver cidadãos que a executem
é ignorante, e só ignorante se concebe. A […]. Na prática do sistema representati-
liberdade, essa não se pode conceber se- vo, o direito de eleger é o mais importan-
não inteligente […]. Amigos da instrução te […]. Como é que um povo ignorante
pública, lutai a favor da escola primária. pode desempenhar a sagrada missão do
Não há liberdade nacional sem instrução voto?” (Id., Ibid., 212-213).
nacional” (Id., 1971, I, 210 e 220). A afir- Eis aqui, pois, claramente enunciada a
mação e preservação da sociedade liberal principal preocupação dos doutrinadores
é assim vista como indissociável da difu- liberais quando pugnam pela difusão das
são da instrução e da promoção da edu- primeiras letras. A grande finalidade é a
cação. Mas, para além de instilar os novos de formar os cidadãos necessários à nova

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84 AntiAnAlfAbetismo

ordem liberal, passando a escola a ser vis- diminuição […]. A escola há de vencer.
ta como o local privilegiado para essa for- […] Dissipar-se-ão as trevas sem que a or-
mação. O exercício do direito, simulta- dem se perturbe, antes sendo a instrução
neamente um dever, de voto nos regimes que alumie a paz entre os homens basean-
representativos pressupõe a existência de do-se no princípio religioso, na liberdade,
cidadãos conscientes dos seus direitos e no amor de todos” (Id., Ibid., 211-212).
deveres, e essa consciência decorre, acre- Nas últimas décadas do séc. xix, os
dita-se na época, de um patamar mínimo discursos centrados na questão do anal-
de conhecimentos que só a escola pode fabetismo vão subir de tom e conhecer
proporcionar, em particular ao nível da uma nova fase, desencadeada pelo co-
leitura e da escrita. nhecimento dos resultados dos primeiros
Mas não é só a cidadania que se constrói censos populacionais. É a partir de 1864
na escola. A esse respeito, D. António da e, de forma mais clara, de 1878, que a
Costa é ainda mais radical. É a própria hu- elite intelectual do país toma verdadei-
manidade que existe em cada um de nós ramente consciência de que a esmaga-
que resulta do contacto com a cultura es- dora maioria da população portuguesa
crita: “O ignorante é um vidente, não é um não sabe ler nem escrever. Como nota
homem […]. A instrução eleva o homem António Nóvoa, “a partir deste momen-
pela dignidade pessoal” (Id., Ibid., 211). to histórico, o analfabetismo é encarado
Encontramos, no pensamento do autor, como um ‘problema’ e passa a ser objeto
uma imagem profundamente negativa do de uma construção teórica e discursiva”
analfabeto, que vai perdurar ao longo das (NÓVOA, 2005, 59). É a partir daí que o
décadas de transição entre os sécs.  xix “combate” contra essa “vergonha nacio-
e xx, e que o associam à barbárie ou à nal”, tal como muitas vezes é designada,
animalidade. Só a instrução permitiria o toma verdadeiramente forma. A energia
acesso pleno à civilização. Encontramos, que está na base de múltiplas iniciativas
na verdade, no pensamento de D. Antó- é, com regularidade, contrabalançada
nio da Costa algumas das mais cândidas pelo desânimo resultante da real dificul-
e genuínas manifestações de uma cren- dade, sentida pelos atores da época, em
ça absoluta no poder quase miraculoso inverter a situação. O espanto sentido no
da educação para conduzir ao aperfei- confronto com esses números chocan-
çoamento económico, cultural e moral tes é bem visível em palavras como as de
da sociedade. As palavras que se seguem José Simões Dias: “Isto lê-se e não se com-
são um exemplo claro desse idealismo preende; é preciso ler-se segunda e ter-
profundo e sincero, muito marcado pela ceira vez para se acreditar […] dos 5 mi-
crença otimista no progresso da humani- lhões de habitantes achados no reino em
dade por via da instrução: “É facto averi- 1890, só um milhão sabe ler” (Id., 1989,
guado que a instrução diminui os crimes e xi). Na primeira linha do combate vai es-
restringe a miséria. A cadeia, o desterro, a tar o republicanismo, que usa esses dados
matrícula da prostituição, a casa corretiva, como arma de combate político contra a
todo esse complexo de instituições que o monarquia, reatualizando, por ironia do
hábito nos faz considerar modelos civili- destino, os argumentos antes invocados
zadores da organização social e que são pelos liberais monárquicos contra o ab-
unicamente o exemplo vivo do vagaroso solutismo: “À monarquia convém a igno-
caminhar da humanidade, encontrará na rância e o boçalismo do povo […] com a
escola um elemento vigoroso para a sua República e com a liberdade está sempre

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AntiAnAlfAbetismo 85

a instrução”, chegou a afirmar António ção com a formação do cidadão: “Sem


José de Almeida num discurso parlamen- ela [instrução] – não há o homem que
tar de 1907 (Id., Ibid., ix). se possa considerar completo. E não há,
A transição do séc. xix para o xx foi, por conseguinte, o homem completo do
de resto, um período de intensas movi- mundo moderno – i.e., o cidadão” (Id.,
mentações associativas em prol da alfabe- 1979, 25-26). No entanto, no que se refe-
tização do povo, não só devidas ao repu- re ao debate, muito vivo na época, sobre
blicanismo mas também à maçonaria, ao a importância relativa da instrução e da
filantropismo liberal e ao operariado or- educação, o autor não toma uma posição
ganizado. Entre as iniciativas mais emble- exclusiva, sublinhando a importância de
máticas, encontramos as escolas móveis ambos os termos e a necessidade de os
pelo método João de Deus, dinamizadas conjugar: “A instrução não basta, porém.
por uma associação criada em 1881 por É fundamental, mas não basta. Não basta
Casimiro Freire e que virão a ser oficia- em parte nenhuma, e muito menos em
lizadas em 1913, já em plena República. Portugal, onde a iniciativa, a energia re-
A finalidade principal das respetivas “mis- fletida, a audácia criadora tanto faltam.
sões” era clara: “Combater o analfabetis- É preciso educar o carácter. É preciso
mo em localidades onde não houvesse fornecer à criança uma aprendizagem
frequência justificativa da criação duma moral – que a fará honesta; e uma apren-
‘escola fixa’” (SAMPAIO, 1969, 10). Mui- dizagem de energia – que a tornará forte
tas outras iniciativas foram, entretanto, e decidida” (Id., Ibid., 26).
desenvolvidas, tendo entre os seus ob- O que está aqui em causa é, também,
jetivos a alfabetização dos Portugueses, a importância do projeto de educação
como escolas operárias (destacando-se moral e cívica que a República procurou
entre elas a rede de escolas subordinadas desenvolver como alternativa laica rela-
à associação Voz do Operário, criada em tivamente ao papel integrador desempe-
1883 pelos manipuladores de tabaco), nhado até aí, segundo se acreditava, pelo
asilos, escolas anexas aos centros republi- catolicismo. É por via desse projeto que
canos, e cursos dominicais e noturnos. os republicanos intentam republicanizar
Os discursos de dirigentes políticos, a consciência e o coração dos Portugue-
intelectuais e educadores republicanos ses, transformando-os no sustentáculo do
estavam impregnados, tanto no perío- novo regime. Em todo o caso, o ponto de
do da propaganda como no da própria partida deve ser sempre, na sua opinião,
República, por slogans contra o analfa- a aprendizagem do abc. Sem essa base,
betismo. Para João de Barros, o grande a própria educação não seria possível.
ideólogo da “educação republicana”, “o É esta a razão que leva João de Barros a
primeiro dever [da República] consis- distanciar-se das posições dos autores que,
te, pois, em atacar o analfabetismo com como António Sérgio, Adolfo Coelho,
toda a violência e com toda a pertinácia Agostinho de Campos, entre outros, criti-
indispensáveis”. Na sua ótica, “extinguir cam o que consideram ser a “superstição”
o analfabetismo” deveria ser o “deside- ou o “fetichismo do alfabeto” (&Antialfa-
rato supremo”, “um dos mais queridos betismo e &Antiescolarismo). O inspetor
e insistentes da República” (BARROS, escolar Albano Ramalho, e.g., não obstan-
1916, 73-74). Noutra obra, João de Bar- te considerar o analfabetismo como “um
ros, na linha da tradição liberal já aqui inimigo” a abater, à semelhança do que
enunciada, procura articular a instru- já acontecera em toda a Europa, conclui

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o seguinte: “Destruir o analfabetismo é canismo, remete-nos para o otimismo de


útil, é alguma coisa, mas não é tudo. Te- base iluminista e positivista que carac-
mos pensado só em instruir e temo-nos terizou a ideologia republicana e que a
esquecido de educar, de fortificar a raça, conduziu a uma crença intensa no pro-
de a valorizar” (RAMALHO, 1918, 18). gresso resultante da difusão das luzes da
João de Barros não se situa nessa linha instrução. Além disso, o discurso então
de argumentação, como faz questão de difundido dramatizou até ao limite esse
sublinhar: “É por isso que eu entendo ser problema, pressupondo, na linha da tra-
um erro muito grave a afirmação de cer- dição liberal já aqui convocada, um olhar
tos escritores portugueses, aliás ilustres, acentuadamente desvalorizador sobre a
que, reclamando contra a nossa falta de figura do analfabeto, colocado na antecâ-
educação, acham ao mesmo tempo que mara da “civilização” e a quem era atri-
é pelo menos infantil a preocupação de buída uma espécie de menoridade cívica.
querer extinguir o analfabetismo (BAR- O analfabeto, pela sua incapacidade de
ROS, 1979, 25). aceder à cultura escrita, não estaria em
Não obstante, a posição típica do publi- condições de ser o cidadão eleitor, cons-
cismo republicano é bem mais extremada. ciente e participativo, almejado pela Re-
A luta contra o analfabetismo é aqui en- pública. Em artigo da Educação Nacional,
tendida como um combate e aquele como constata-se que o homem sem instrução
o inimigo a abater. No Terceiro Congresso “pouco difere dos irracionais” e, noutro
Pedagógico, de entre os realizados pela artigo, desta vez em A Federação Escolar,
Liga Nacional de Instrução, César da Sil- compara-se o homem sem instrução a
va manifestou a seguinte opinião: “A mais “um selvagem que o professor precisa ci-
imperiosa das necessidades, no momento vilizar” (PINTASSILGO, 2010, 132-133).
presente, é criar escolas, desenvolver a É este tipo de representações sobre a
instrução, combater o analfabetismo […]. figura do analfabeto que conduz os di-
Não tenhamos, pois, dúvidas e prepare- rigentes republicanos à exclusão daque-
mo-nos todos para a famosa cruzada em les do universo eleitoral, decisão que
prol do povo português, reclamando com não deixa de estar envolvida em alguma
toda a nossa energia que se criem escolas, polémica, até porque a propaganda re-
muitas escolas por essas ignoradas aldeias, publicana havia prometido o sufrágio
onde mal vislumbrou ainda a luz do pro- universal. A argumentação desenvolvida
gresso” (SILVA, 1913, 207). Outro autor, pelo campo republicano está presente,
Eusébio de Queirós, afirma o seguinte, em de forma bem clara, e.g., em alguns dos
artigo publicado em 1922: “O ABC – o se- discursos parlamentares de Afonso Costa
gredo da cultura de um povo! O ABC abre relativos ao período 1911-1914. Num fa-
as portas do futuro. Esse futuro é de luz, moso discurso proferido na sessão de 12
amor e felicidade! […]. O ABC é ilumina- de junho de 1913, esse proeminente diri-
do e vivificado pela grandeza dum ideal gente republicano afirmou, entre outras
[…]. O ABC é o símbolo da Humanidade” coisas, o seguinte: “A República não quer
(QUEIRÓS, 1922, 5-6). votos sem consciência; quer votos que
O abundante conjunto de metáforas signifiquem almas conscientes, definidas,
presente nos magníficos exemplares, an- crentes e refletidas […]. Indivíduos que
teriormente apresentados, daquilo que não sabem os confins da sua paróquia,
constituía a retórica antianalfabetismo, que não têm ideias nítidas e exatas de coi-
tal como foi interpretada pelo republi- sa nenhuma, nem de nenhuma pessoa,

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não devem ir à urna, para não se dizer


que foi com carneiros que confirmámos a
República. Por uma maneira precisa e ca-
tegórica, digo: se quiserem fazer eleições
com analfabetos, façam-nas os senhores,
porque eu quero fazê-las com votos cons-
cientes, quero que as eleições se façam
com o voto das pessoas que saibam o
que fazem; jamais quero seguir o mesmo
processo do regime de podridão que foi
a Monarquia” (COSTA, 1976, 532-533).
Noutro momento do mesmo discurso,
Afonso Costa reafirma a ideia anterior e
compara o analfabetismo a uma doença:
“Se o governo não quer fazer eleições
com analfabetos é porque ele, desde a
primeira hora, se tem preocupado com
essa doença que é a mais grave de todas
as doenças que nos legou a Monarquia”.
Na sua ótica, não se podem comparar, do Afonso Costa (1871-1937).
ponto de vista da participação cívica, os
que têm essa doença com aqueles “que
sabem o que fazem, que leem, que apre- maioria da população se mantinha no
ciam, que discutem, que selecionam”, ou analfabetismo. Não obstante este enorme
seja, que são detentores de competências investimento retórico, a taxa de analfabe-
resultantes da sua imersão no mundo da tismo conheceu uma redução bem mo-
escrita (Id., Ibid., 534). Noutro discurso derada no período republicano, cerca de
parlamentar, proferido no dia 29 de ju- 7  %. Como diz António Nóvoa, “o insu-
nho do mesmo ano, o tribuno faz as se- cesso do combate ao analfabetismo cons-
guintes proclamações enfáticas: “É neces- tituiu, sem margem para dúvidas, um dos
sário tirar todas as armas aos adversários grandes fracassos da República. Fracasso
da República […]. Acabe-se com os anal- tanto mais doloroso quanto as promessas
fabetos, que são o instrumento de toda a tinham sido grandiosas e, provavelmente,
reação” (Id., Ibid., 568). desmedidas” (NÓVOA, 1989, xiii). Esse
Os excertos anteriormente citados têm, insucesso não foi, e provavelmente não
entre outras, a enorme virtude de tornar poderia ter sido, compreendido na épo-
completamente transparentes as moti- ca, pelo menos na sua globalidade. Na
vações políticas do combate republica- verdade, o voluntarismo de um poder po-
no contra o analfabetismo. Desconfia-se lítico iluminado não era suficiente, como
dos analfabetos, vistos, potencialmente, nunca foi, para ultrapassar todo um con-
como “instrumento de toda a reação”, e junto de circunstâncias, de natureza di-
pretende-se, assim, “tirar todas as armas versa, mas profundamente enraizadas na
aos adversários da República”. É bem ex- nossa cultura, na nossa organização social
plícito o preconceito que é associado ao e na nossa vida económica, em especial
ser analfabeto, visto como uma “doença”, sendo o investimento educativo, na maior
isto numa época em que a esmagadora parte das vezes, insuficiente.

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Na tentativa de explicação do nosso de Portugal ao longo do séc.  xx, a par


ancestral analfabetismo, foram sendo in- da política minimalista do salazarismo,
vocadas razões como o atraso económico acabaram, paradoxalmente, por tornar
do país, a concentração da população no possível uma ultrapassagem, ainda que
mundo rural, a ausência da pressão re- gradual e limitada, desse problema.
ligiosa, em parte coincidentes com toda A Ditadura Militar, instaurada na se-
a Europa do Sul, mas que tiveram certa- quência do movimento de 28 de maio de
mente o seu papel, ainda que Portugal se 1926, e o Estado Novo que se lhe seguiu,
tenha manifestado, a este nível, como du- em particular na sua fase inicial, consti-
plamente periférico. Conforme têm su- tuíram um período de alguma complexi-
blinhado diversos autores, as razões prin- dade e ambiguidade no que diz respeito
cipais são, porventura, as de natureza aos discursos sobre a problemática do
cultural e, mesmo, antropológica, ainda analfabetismo. É inquestionável que en-
que em relação com as anteriores. Como tre as primeiras medidas tomadas, tendo
nota António Candeias, “a alfabetização em vista o desmantelamento da educa-
e a escola estão intimamente ligadas às ção republicana, constaram a redução
formas de vida e cultura das pessoas” da escolaridade obrigatória (primeiro
(CANDEIAS, 2001, 82). Segundo Rui Ra- para quatro e, depois, para três anos),
mos, a incapacidade para ler e escrever a par da redução dos conteúdos de en-
não era sentida como um problema pelo sino, da criação da figura da regente es-
povo português, por não o incapacitar colar, entre outras. Também é verdade,
para a vida e para o trabalho. Além disso, como foi amplamente demonstrado por
o analfabetismo era tão elevado que se M.ª Filomena Mónica, que encontramos,
perpetuava a si próprio (RAMOS, 1998, entre os anos 20 e 30, um conjunto vas-
46-48). A escola não era sentida como to de textos, produzidos por intelectuais
uma necessidade por comunidades mer- conservadores próximos do regime, de-
gulhadas numa cultura oral e que não fendendo as virtudes do analfabetismo e
vislumbravam essa mesma escola como os perigos da alfabetização (&Antialfabe-
veículo de promoção social. “Pelo con- tismo e &Antiescolarismo). A posição do
trário, é corrente que as comunidades a próprio Salazar parece dúbia. No entan-
vejam como uma imposição, como uma to, como nota António Nóvoa, é preciso
violência inútil” (NÓVOA, 2005, 38). não esquecer o outro lado da questão e,
Convém não esquecer ainda que essas em particular, as estatísticas (NÓVOA,
comunidades recorriam às suas crianças 2005, 97). O que estas mostram é que a
como mão de obra nas pequenas explo- taxa de analfabetismo vai baixando regu-
rações familiares. “De facto, em nome de larmente ao longo do Estado Novo, a um
que benefício iria uma família abdicar ritmo moderado, é certo, em todo o caso
de mais um instrumento de trabalho?” mais intenso do que nos períodos liberal
(CANDEIAS, 2005, 91). Fontes como e republicano. Além disso, continuamos
os relatórios de inspeção mostram-nos a encontrar, para esse mesmo período,
à evidência que essa foi, historicamen- manifestações bem visíveis da luta contra
te, uma das principais causas da fuga à o analfabetismo, de que é exemplo a cam-
escola, não resolvida por uma obrigato- panha desencadeada em 1931 pelo jornal
riedade retórica nem por punições que Diário de Notícias cujo anúncio proclama-
não passavam de letra de lei. As transfor- va, em tom grandiloquente, o seguinte:
mações económicas, sociais e culturais “A maior vergonha nacional. Vai começar

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o grande combate contra o analfabetis- Popular, inaugurado em 1952, e que teve


mo. A patriótica campanha do Diário de a si agregada uma Campanha Nacional
Notícias fará brevemente sentir os seus be- de Educação de Adultos. Os discursos de
néficos efeitos em todos os concelhos de mobilização contra o velho mal nacional
Portugal. […] Abaixo o analfabetismo; regressaram em força, agora com novos e
eis o grito de guerra que se repercute em inesperados atores. O grande propagan-
todas as aldeias e vilas de Portugal. É este dista da boa nova foi, então, o subsecretá-
o clamor da sagrada e patriótica revolta rio de Estado Henrique Veiga de Macedo,
que se ouve em toda a parte” (MÓNICA, o ideólogo da campanha, sendo ministro
1977, 329). da Educação Nacional Fernando Pires
Na verdade, mesmo dando conta de de Lima (1947-1955). Ambos se afastam,
algumas cautelas e sem assumir este tipo claramente, sem abandonar a ortodoxia
de retórica, a opção tomada pelo Estado do regime, das posições de desconfian-
Novo foi a de promover a escolarização ça e reserva em relação à alfabetização
dos Portugueses e, muito em particular, presentes na fase anterior. São de Veiga
a de aproveitar essa escolarização como de Macedo as seguintes palavras: “Não
estratégia para promover a interiorização enfileiramos com aqueles que, numa vi-
dos valores caros ao salazarismo e a mo- são superficial e deformada das coisas, se
delação dos comportamentos no sentido convencem de que os analfabetos cons-
da pretendida conformidade social. As tituem, por definição, reserva moral dos
referidas cautelas tiveram que ver, entre povos, como se a ignorância e o atraso
outras coisas, com a tentativa de travar intelectual fossem sinónimos de perfei-
processos de mobilidade social que pu- ção e de virtude” (NÓVOA, 2005, 97).
dessem abalar a ordem instituída. Antó- Pelo contrário, como salienta Rui Ramos,
nio Nóvoa refere-se a esta opção como para esses atores era o “baixo panorama
sendo uma manifestação clara do “prag- moral, material e cultural” que explicava
matismo do Estado Novo, orientado por “a falta de higiene, o alcoolismo, a im-
conceções de escolaridade mínima, de previdência, a ociosidade”. O Plano de
enquadramento moral e de controlo da Educação Popular visava, assim, sujeitar o
mobilidade social” (NÓVOA, 2005, 97). analfabetismo a um “tratamento de cho-
O próprio Salazar considerava essa opção que”, tendo sido prevista “a utilização de
alfabetizadora como sendo “o método grandes meios de propaganda (impren-
dos países pobres” (RAMOS, 1999, 97). sa, rádio, cinema, missões culturais), o
O contexto subsequente à vitória dos recurso a penalidades e à intervenção da
aliados na Segunda Guerra Mundial con- polícia, o estabelecimento de inibições e
duziu o regime a um esforço de adapta- incapacidades para os analfabetos” (RA-
ção às novas circunstâncias, designada- MOS, 1999, 99).
mente no que se refere a alguma abertura O discurso havia claramente mudado
internacional e a uma aposta, ainda que de tom. De alguma condescendência
moderada, no desenvolvimento econó- em relação ao analfabeto, mesmo que
mico. Em termos comparativos, o atraso acompanhada de um esforço visando a
continuava a ser o nosso estigma. O regi- escolarização, passa-se a uma crítica mais
me aposta, então, de forma mais visível e contundente da situação de analfabe-
decidida, no combate ao analfabetismo. tismo e a uma valorização das implica-
A iniciativa mais emblemática desenvolvi- ções económicas dos saberes escolares.
da nesse terreno foi o Plano de Educação Como em meados do séc. xix, em que as

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penalidades atingindo os analfabetos fo-


ram vistas como uma boa estratégia para
forçar a escolarização. Embora os objeti-
vos mais imediatos da campanha remetes-
sem para a aprendizagem da leitura, da
escrita e da aritmética, mantinham-se as
preocupações com a necessidade de um
forte enquadramento moral, de carác-
ter nacionalista, corporativo e católico,
e com a conveniência de não incentivar
estratégias de “mobilidade social e profis-
sional” (BARCOSO, 2002, 40). De acordo
com António Nóvoa: “Ao procurar asse-
gurar um investimento escolar, ainda que
limitado, sem contudo promover a mobi-
lidade social, o Estado Novo enuncia uma
equação que não tem solução” (NÓVOA,
2005, 97). Tratava-se de um equilíbrio
difícil e, a médio prazo, destinado ao
insucesso, como o percurso futuro mos-
Cartaz do estado novo.
traria. Mesmo assim, o regime conseguiu,
por esta e por outras vias, a escolarização
quase plena das crianças em idade es-
colar, embora se devam ter em conta os discursiva do período revolucionário foi
patamares limitados da época, tendo-se muito marcada – como, provavelmente,
permitido, na transição dos anos 50 para a de todas as revoluções da Modernida-
os anos 60, alargar a escolaridade obriga- de – por uma espécie de mitologia do
tória, que, em 1964, se fixou em seis anos novo. O ambicioso projeto de construir
para ambos os sexos. Não obstante as ten- uma sociedade nova, uma escola nova,
tativas de travagem do processo, encon- um homem novo está permanentemente
trávamo-nos já em pleno movimento de presente. A maioria dos discursos produ-
massificação. Continuava elevada a per- zidos no campo da alfabetização sublinha
centagem do analfabetismo adulto, mas, a necessidade de investir, por essa via, na
como nota com acuidade Rui Ramos, “es- referida construção. Afirma-se, de for-
perava-se porventura que o ‘decurso do ma veemente, que os cidadãos da nova
tempo’, como enfaticamente se disse em sociedade inaugurada pela revolução
1953, limparia as estatísticas. Os cemité- necessitavam de possuir competências
rios fariam aquilo que a escola não fez” mínimas ao nível da leitura, da escrita e
(RAMOS, 1999, 100). do cálculo para poderem intervir de for-
Não estando o tema do analfabetismo ma consciente e ativa na vida democráti-
no centro da agenda do debate suscitado ca. Nessa conformidade, viram a luz do
pelo voluntarismo reformista do ministro dia ações de natureza e origem diversas
Veiga Simão, recuperou alguma visibili- (movimento associativo estudantil, or-
dade e uma forte presença nos debates ganizações partidárias, Movimento das
políticos e pedagógicos com a Revolu- Forças Armadas (MFA), grupos católicos,
ção de 25 de abril de 1974. A produção organizações populares, etc.), total ou

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parcialmente dedicadas à alfabetização, terá como programa ‘levar o conheci-


com particular destaque para as Campa- mento ao povo’, porque a ‘liberdade está
nhas de Alfabetização e Educação Sanitá- intimamente ligada ao conhecimento’
ria, realizadas no verão de 1974, e para [Vasco Gonçalves]. Há de consistir funda-
o chamado Movimento Alfa, com expres- mentalmente numa tríplice alfabetização
são no verão de 1976, os dois movimentos – alfabética, cultural, política – mediante
mais mediáticos e polémicos a este nível, a qual todos os analfabetos aprenderão
se não contarmos com as campanhas de a ler, a escrever, a pensar, a escolher, a
dinamização cultural do MFA, em que intervir conscientemente na vida do seu
a componente de alfabetização era resi- país” (A. M., 1975, 20-21).
dual, ou, mesmo, com o serviço cívico es- Podemos destacar, em primeiro lugar,
tudantil, que também incluía a dimensão a articulação que aí é feita, curiosamen-
alfabetizadora. As iniciativas desenvolvi- te tendo por base uma citação de Vas-
das acabam por combinar, em graus dife- co Gonçalves, entre a “liberdade” e o
rentes, alfabetização e socialização políti- “conhecimento”. É a partir da tradição
ca, para além da educação sanitária e da iluminista, liberal e republicana que se
animação cultural, entre outras vertentes. considera este último – o “conhecimen-
Outra característica fundamental do to” – como essencial para o exercício da
discurso pedagógico do período revolu- liberdade cívica. Daí a relevância que
cionário, que entronca diretamente no os temas do analfabetismo e da alfabeti-
debate sobre o analfabetismo, é a ideia de zação assumiram nesses contextos. Ou-
que a revolução política – no caso, repre- tra das autoras presentes em O Professor,
sentada pelo 25 de Abril – não seria sufi- Helena Cidade Moura, chega mesmo a
ciente no sentido da construção da nova afirmar, bem na linha da referida tradi-
sociedade. Tornar-se-ia necessário desen- ção: “O analfabetismo é uma mancha mí-
cadear uma verdadeira revolução cultu- tica e fatalista na sociedade portuguesa,
ral. Esta tese surge amplamente afirmada é um nevoeiro sebastianista em que se
num documento produzido no contexto resguarda o real” (MOURA, 1977, 30). É,
de elaboração do plano nacional de alfa- igualmente, numa perspetiva iluminista
betização – o Esquema de Anteprojeto do Pro­ que se imagina – regressando ao texto
grama Nacional de Alfabetização (1975)  –, de A. M. – poderem ser os intelectuais
e.g., quando se diz, em jeito de síntese: (designadamente os estudantes) a “levar
“Numa palavra, a alfabetização deve ser o conhecimento ao povo”. Está aqui pre-
parte integrante da necessária revolução sente a ideia do “pedagogo esclarecido”
cultural” (Esquema de Anteprojeto…, 1975, que se identifica com o povo, para utilizar
8). Alfabetizar é importante, neste con- uma expressão colhida em Stephen Stoer
texto, não só especificamente por via da (STOER, 1986, 184). Muito interessan-
aquisição das competências necessárias te, finalmente, é o sentido complexo e
à leitura e à escrita, mas, particularmen- multifacetado atribuído à noção de alfa-
te, por ser parte integrante de um proje- betização, entendida como “tríplice alfa-
to mais vasto e ambicioso e que aponta betização – alfabética, cultural, política”.
para uma mudança das mentalidades. A Para além das tradicionais competências
questão é igualmente desenvolvida num ao nível da leitura e da escrita, associadas
artigo da revista O Professor, subscrito por a essa noção, ela é alargada, particular-
A. M., e significativamente intitulado “Re- mente, ao “saber pensar” e ao “intervir
volução cultural”: “A revolução cultural conscientemente na vida do seu país”. É,

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92 AntiAnAlfAbetismo

por um lado, à consciência cívica que se como “povo”, “massas trabalhadoras”, en-
apela e, por outro, à já referida dimensão tre outras, expressões cuja abrangência,
de participação ou de intervenção cívica. não obstante o seu carácter vago, torna
No entanto, a fronteira entre a chama- possível concitar consensos e mobilizar
da revolução cultural e os processos de vontades. O discurso pedagógico, como
inculcação ideológica surge como muito o político, reverencia essa espécie de en-
ténue. No Esquema de Anteprojeto fala-se, tidade suprema e de força redentora. As
e.g., da necessidade de uma “consciencia- campanhas de alfabetização desenvolvi-
lização política de todo o povo português, das pelos estudantes dão conta, frequen-
que o leve a determinar-se positivamente temente, da enorme aprendizagem re-
na via de transição para o socialismo” ou, sultante do contacto com o povo. Numa
também, da pretensão de que o Plano Na- entrevista coletiva a estudantes partici-
cional de Alfabetização “se torne um dos pantes na campanha de alfabetização do
pilares da mobilização popular necessária verão de 1974, um dos jovens afirma que
para uma autêntica revolução socialista” “fundamentalmente, quem aprendeu
(Esquema de Anteprojeto…, 1975, 11). Con- com as campanhas fomos nós, os estu-
vém chamar a atenção para a importân- dantes. Aprendemos as condições de vida
cia que a noção de “mobilização popular” do povo” (“Campanhas de alfabetização”,
tem nos discursos de uma época cuja vida 1974, 35).
pública estava muito marcada por uma in- Não obstante esta retórica e a corres-
tensa politização. A tese de que a política pondente mitificação da figura discursi-
e a ideologia são fenómenos transversais, va “povo”, os textos – como é o caso do
estando presentes em todos os domínios Esquema de Anteprojeto – não deixam de
da vida social, era assumida sem comple- ser expressão de um outro olhar, menos
xos. Não obstante o apelo à “mobiliza- idealizado, sobre a realidade do povo e
ção”, podemos, naturalmente, perguntar da cultura popular. O documento con-
se não foi a componente doutrinadora sidera que “o analfabetismo português
que acabou por prevalecer (ou não) re- está concentrado nas zonas rurais” e que
lativamente à proclamada vontade de for- esses “ambientes analfabetos” – assentes
mar cidadãos participativos, ativos e cons- numa “cultura baseada na tradição oral”
cientes. A finalidade do referido projeto – são “fundamentalmente conservadores
alfabetizador era inquestionavelmente a do passado”, possuindo “uma consciên-
construção de uma sociedade socialista. A cia mítica, mágica ou ingénua de toda a
escola não era, nessa ótica, nem poderia realidade”. Apesar de também se consi-
ser, neutral. É o que se afirma, igualmen- derar essa cultura como “coerente, rica
te, num manual de alfabetização já do e impregnada de reais valores”, o que
final do período: “Assim, julgamos fun- prevalece é um olhar desvalorizador so-
damental a origem de classe, a opção de bre o mundo rural, que sublinha o seu
classe, a militância, a ideologia daqueles atraso, a prevalência da ignorância e dos
que querem fazer um trabalho de alfabe- preconceitos, e a ausência de hábitos de
tização. Para nós a alfabetização como a higiene, situação cuja responsabilidade é,
educação é um ato político e consequen- no entanto, atribuída ao regime anterior
temente não há monitores neutros” (Ma­ (Esquema de Anteprojeto…, 1975, 1-2). É
nual de Alfabetização…, 1977, 36). esse diagnóstico que está na base da op-
Outro dos traços marcantes do discurso ção por fazer incidir as campanhas dessa
revolucionário é o uso retórico de noções fase (1974 e 1975) no interior norte de

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AntiAnAlfAbetismo 93

Portugal, onde “o processo revolucioná-


rio ainda não chegou”, sendo a popula-
ção influenciada por “caciques” (Ibid., 2).
Curiosamente é essa mesma situação
que legitima a inclusão de algumas refle-
xões críticas sobre as eleições entretanto
realizadas (em abril de 1975) para a As-
sembleia Constituinte, fazendo lembrar
– ainda que com outro envolvimento
ideológico – os discursos liberais e repu-
blicanos que historicamente procuraram
justificar a não atribuição do direito de
voto à população analfabeta. “Mas o que
está em causa é saber se os camponeses,
ligados a um pedaço de terra, a uma al- Cartaz do Movimento das Forças Armadas.
deia, a hábitos ancestrais, a uma tradição
bem definida, devem ser forçados a en-
trar num processo eleitoral que obedece tugal. Sendo residual, no caso português,
a uma cultura, mentalidade e lógica que uma alfabetização prévia à generalização
são o suporte da revolução burguesa […]. da escola, a luta contra o analfabetismo
Eleger representantes para um organis- foi entendida como uma estratégia essen-
mo nacional, através ainda de outros or- cial tendo em vista a escolarização dos
ganismos nacionais (os partidos), implica jovens. Para o combate ao analfabetismo
um sofisticado grau de consciência, que adulto recorreu-se, em geral, a modali-
um camponês vulgar dificilmente pode dades mais informais, mesmo assim com
ter” (Ibid., 4). características próximas do paradigma
Com a devida distância, não são pala- escolar (escolas móveis, escolas noturnas,
vras muito diferentes das proferidas seis cursos dominicais, etc.). A centralidade
décadas antes por Afonso Costa e já cita- assumida por esta campanha em momen-
das. Mantém-se a desconfiança em rela- tos vários dos sécs. xix e xx teve como
ção ao analfabeto e à sua cultura. Conti- um dos seus fundamentos uma forte
nua a não se acreditar na possibilidade de crença, inspirada nas Luzes, nos poten-
esses homens e mulheres desenvolverem ciais benefícios decorrentes da aprendi-
uma consciência cívica e, portanto, par- zagem das primeiras letras, entre eles o
ticiparem na vida pública. Permanece o desenvolvimento económico, a resolução
receio de que a sua ingenuidade possa ser dos problemas sociais, a regeneração mo-
aproveitada pelos então chamados agen- ral ou, mesmo, um progresso civilizacio-
tes da reação. Percorremos, ao fazer a ge- nal. As culturas tradicionais, de base oral,
nealogia do antianalfabetismo, momen- foram deslegitimadas, sendo o domínio
tos diferenciados nos quais foram sendo da cultura escrita visto como um indica-
atribuídos novos sentidos a esta categoria dor de modernidade. No caso dos regi-
e lançados novos temas para um debate mes representativos, como a monarquia
mais que secular. A produção discursiva constitucional ou a Primeira República,
em torno do antianalfabetismo acompa- o desenvolvimento de competências bá-
nhou, na verdade, o esforço de constru- sicas de participação política, tradicional-
ção da modernidade pedagógica em Por- mente por via do voto, surgia associada

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ao domínio da leitura e da escrita. Mas, 1911-1914, comp., pref. e notas A. H. de Oli-


acima de tudo, os dirigentes políticos en- veira Marques, Amadora, Livraria Bertrand,
tendiam a imersão no ambiente e no tra- 1976; Esquema de Anteprojeto do Programa Na-
cional de Alfabetização, Lisboa, Ministério da
balho escolar como uma oportunidade
Educação e Cultura, 1975; FERREIRA, Al-
privilegiada para integrar os futuros cida- berto, Antologia de Textos Pedagógicos do Século
dãos nos valores emergentes e nas regras XIX Português, 3 vols., Lisboa, FCG, 1971-75;
de comportamento social. De alguma ma- Manual de Alfabetização: para Quem Quer Apren-
neira, embora com objetivos e enquadra- der com o Povo, Lisboa, Edições Base, 1977;
mentos ideológicos muito diferenciados, MÓNICA, Maria Filomena, “‘Deve-se ensinar
a irrupção da retórica antianalfabetismo o povo a ler?’: a questão do analfabetismo
(1926-39)”, Análise Social, vol. xiii, n.º 50,
em alguns momentos do período sala-
1977, pp. 321-353; MOURA, Helena Cida-
zarista, assim como no período revolu- de, “Alfabetização: participação das popu-
cionário, poderá ser interpretada na sua lações”, O Professor, n.º 2 (nova sér.), 1977,
articulação com uma vontade política de p. 30; NÓVOA, António, “A república e a es-
integração e de mobilização social. cola: das intenções generosas ao desengano
das realidades”, in Reformas do Ensino em Por-
tugal. Reforma de 1911, t. I, vol. I, Lisboa, Ins-
tituto de Inovação Educacional, 1989, pp. ix‑
‑xxiv; Id., Evidentemente: Histórias da Educação,
Porto, ASA, 2005; PINTASSILGO, Joaquim,
Bibliog.: A. M., “Revolução cultural: do “Analfabetismo e educação popular”, in 25
exercício da alienação para o exercício da Olhares sobre a I República: do Republicanismo ao
liberdade”, O Professor, n.º 8, 1975, pp. 20- 28 de Maio, Lisboa, Público, 2010, pp. 129-
-21; BARCOSO, Cristina, O Zé Analfabeto -137; QUEIRÓS, Eusébio de, “No meu posto:
no Cinema: o Cinema na Campanha Nacional de Fémina”, Educação Portuguesa, ano ii, n.º  19,
Educação de Adultos de 1952 a 1956, Lisboa, 1922, pp. 5-6; RAMALHO, Albano, Ensino
Educa, 2002; BARROS, João de, Educação Primário e Educação Popular, Lisboa, Aillaud
Republicana, Paris/Lisboa/Rio de Janeiro/ & C.ª, 1918; RAMOS, Rui, “‘O chamado
São Paulo/Belo Horizonte, Livrarias Aillaud problema do analfabetismo’: as políticas de
e Bertrand/Livraria Francisco Alves, 1916; escolarização e a persistência do analfabetis-
Id.,“Campanhas de alfabetização”, O Pro- mo em Portugal (séculos xix e xx)”, Ler Histó-
fessor, n.os  4-5, out. 1974, pp. 30-36; CAN- ria, n.º 35, 1998, pp. 45-70; Id., “Analfabe-
DEIAS, António, “Educação e democracia”, tismo”, in BARRETO, António, e MÓNICA,
in A Pedagogia e o Ideal Republicano em João de Maria Filomena, (coords.), Dicionário de His-
Barros, sel. de textos Maria Alice Reis, nota tória de Portugal, vol. vii, sup., Lisboa/Porto,
introd. Joaquim Romero Magalhães, Lisboa, Figueirinhas, 1999, pp. 95-100; SAMPAIO,
Terra Livre, 1979, pp. 23-42; Id., “Processos José Salvado, “Escolas móveis (contribuição
de construção da alfabetização e da escolari- monográfica)”, Boletim Bibliográfico e Informa-
dade: o caso português”, in STOER, Stephen tivo: Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de
et al. (orgs.), Transnacionalização da Educação: Investigação Pedagógica, n.º 9, 1969, pp. 9-28;
Da Crise da Educação à Educação da Crise, Por- SILVA, César da, “A república e a instrução
to, Afrontamento, 2001, pp. 23-89; Id., “Mo- popular”, in Liga Nacional de Instrução: Terceiro
dernidade e cultura escrita nos séculos xix Congresso Pedagógico (Abril de 1912), Lisboa,
e xx em Portugal”, in CANDEIAS, António, Imprensa Nacional, 1913, pp. 195-208;
(coord.), Modernidade, Educação e Estatísticas na STOER, Stephen R., Educação e Mudança Social
Ibero-América dos Séculos XIX e XX, Lisboa, Edu- em Portugal: 1970-1980, Uma Década de Transi-
ca, 2005, pp. 53-108; CASTILHO, António ção, Porto, Afrontamento, 1986.
Feliciano de, Felicidade pela Agricultura, Ponta Carlos Beato
Delgada, Tipografia da Rua das Artes, 1854; Carlos Manique da Silva
COSTA, Afonso, Discursos Parlamentares: Joaquim Pintassilgo

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AntiAnArquismo 95

Antianarquismo carácter negativo que assume para outras


ideologias políticas. Se considerarmos o
primeiro momento em que Pierre-Joseph
Proudhon declara ser anarquista, verifi-
camos que esse gesto pioneiro surge pre-
cisamente enquanto subversão positiva
da negação representada pelo anarquis-

A s manifestações de oposição ao anar-


quismo são tão antigas quanto a sua
própria existência enquanto doutrina
mo ou pela anarquia. A coexistência que
persiste posteriormente entre um uso a
que podemos chamar banal (essencial-
política claramente identificada. Crítico mente negativo) e um uso que remete
de quase todos os pilares em que assen- para o conteúdo ideológico e doutrinário
tam muitas das diferentes conceções de das palavras “anarquia” e “anarquismo”
ordem social (como o Estado, a religião, permite-nos começar por apontar que
a família ou a propriedade privada), o muitas das expressões de antianarquis-
anarquismo sempre gerou antagonismos mo são mais comummente fundadas no
tão ferozes quanto a sua radicalidade crí- receio face a algo indefinido do que pro-
tica. Mas é possível ir mais longe e afir- priamente na oposição a um ideal ou a
mar que a oposição ao anarquismo ante- uma cultura política concreta. Tendo esta
cede a sua existência enquanto doutrina ambiguidade presente, torna-se necessá-
política. Desde a Revolução Francesa que rio esclarecer que, neste texto, “antianar-
se tornou recorrente usar “anarquia” quismo” remeterá, especialmente, para
e “anarquismo” num sentido bastante as expressões ou medidas que visaram
amplo para designar manifestações de anular ou combater, direta ou indireta-
violência, caos e desordem social. Portu- mente, a existência política do anarquis-
gal não foi exceção e é possível verificar,
ao longo de todo o séc. xix, o recurso a Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865).
essas palavras (por vezes através da invo-
cação dum partido anarquista) para ca-
racterizar situações, tanto de desordem
popular e social, como de desordem nas
instituições políticas (e.g., apontando a
anarquia financeira do Governo para
responsabilizá-lo pela frágil situação fi-
nanceira do país).
Uma análise do antianarquismo não é
possível sem ter presente estas manifesta-
ções prematuras. Não só porque nunca
desaparecerá por completo um entendi-
mento do anarquismo que é indiferente à
sua existência enquanto cultura política,
e que o vê como algo meramente destru-
tivo e, portanto, total ou essencialmente
negativo, mas também porque a própria
origem do anarquismo, enquanto doutri-
na política, não é totalmente alheia a esse

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96 AntiAnArquismo

mo. O período em que nos focaremos países, como por representar o expoente
será o que compreende a sua emergência mais radical dessas correntes ideológicas.
e o seu desaparecimento quase total da Em Portugal este tipo de referência é im-
sociedade portuguesa, indo portanto do portante, pois a presença do socialismo,
último quartel do séc. xix à déc. de 30 mesmo entre alguma da intelectualidade
do séc. xx. urbana, pautou-se recorrentemente por
É importante distinguir as diferentes uma influência libertária, mais do que
formas em que as expressões antianar- pelo marxismo (com a obra de Marx a ser
quistas podem ser encontradas. Em al- quase sempre lida em segunda mão ou su-
guns casos, estas visam específica e ex- perficialmente até aos anos 20 do séc. xx,
plicitamente o anarquismo, através da como demonstrou Alfredo Margarido em
crítica teórica e ideológica, através de A Introdução do Marxismo em Portugal). Por
leis e da criação de polícias ou corpos tudo isto, não é possível deixar de identi-
repressivos especializados, ou, também, ficar alguns dos exemplos de antissocia-
através da organização de manifestações lismo deste período como expressões de
e protestos ou mesmo de eventos com antianarquismo.
uma ambição maior, como os encontros A primeira expressão de antianarquis-
secretos antianarquistas que reuniam de- mo com grande simbolismo surge preci-
zenas de representantes governamentais samente no campo político que o anar-
e polícias de diferentes países com o pro- quismo disputava com outras ideologias
pósito de definir estratégias para melhor políticas, ou seja, o do socialismo. Em
combater e erradicar o anarquismo (e.g., 1872, como consequência das divergên-
a Conferência Anti-Anarquista de Roma, cias quanto ao caminho a seguir para
em 1898, que durou um mês, e uma con- alcançar a revolução, dá-se uma cisão
ferência semelhante realizada em São entre os partidários de Karl Marx e os
Petersburgo, em 1904). No entanto, o partidários de Mikhail Bakunin, culmi-
antianarquismo não pode ser procurado nando com a expulsão destes últimos da
apenas nas expressões que lhe são exclusi- Primeira Internacional. Nesse período,
vamente dirigidas, já que há muitos casos percebe-se que um sentimento antianar-
em que se procura combatê-lo através de quista começa a disseminar-se pelas mais
medidas com uma maior abrangência ou diversas culturas políticas e sectores da
com um carácter mais difuso. Apesar das sociedade. Em Portugal, nos primeiros
suas particularidades e idiossincrasias, as anos da déc. de 1870 e quase em simul-
fronteiras do anarquismo confundem-se, tâneo, representantes da Primeira Inter-
muitas vezes, com ideologias e culturas nacional visitavam Lisboa, aconteciam
políticas com as quais partilha certos valo- as Conferências do Casino e chegavam
res mundividenciais, como acontece com com estrondo as notícias da Comuna de
o socialismo, o comunismo ou certas for- Paris. As elites e os poderes instituídos as-
mas de sindicalismo. Muitos deputados, sustavam-se com a propagação das ideias
intelectuais e figuras religiosas, quando socialistas no país e os “internacionais”
se referiam à ameaça sindical ou socialis- eram vigiados e perseguidos. Em Portu-
ta, incluíam nesses termos o anarquismo gal, a cisão entre marxistas e anarquistas
e até podiam tê-lo como alvo principal não teve um impacto visível e imediato.
sem nunca o nomear diretamente; não Foram, no entanto, as ideias federalistas
só pela sua preponderância entre os ope- de Proudhon que ganharam, desde cedo,
rários e as classes populares de alguns maior popularidade entre as elites inte-

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lectuais portuguesas atraídas pelas ideias


socialistas. Entre os operários, apesar de
os referidos visitantes da Primeira Inter-
nacional serem próximos da linha an-
tiautoritária de Bakunin, dominou uma
certa indefinição ideológica, pelo menos
até à primeira década do séc. xx. Uma
das exceções às tendências libertárias no
terreno do socialismo foi Azedo Gneco,
um dos fundadores do Partido Socialista
Português (PSP) e o principal impulsio-
nador da linha marxista no Partido. Em
julho de 1896, Gneco marca presença no
Congresso Internacional Socialista, em
Londres, e, representando o PSP, vota
favoravelmente a expulsão dos anarquis-
tas. A relação sempre tensa entre ambos
os grupos atingia um novo nível e crescia
para lá das comuns acusações dirigidas Azedo Gneco (1849-1911).
pelos socialistas aos anarquistas de que
estes eram agentes provocadores ao ser-
viço da polícia. abertura de novas esquadras, e declaram
Mas se é nos anos 70 que geralmente as detenções de anarquistas já realizadas,
se identifica a chegada das teorias anar- todos os outros afirmam categoricamen-
quistas a Portugal, somente a partir de te não haver sinais de indivíduos ou as-
1886, depois da visita ao país do célebre sociações anarquistas nos seus distritos, o
geógrafo e teórico anarquista Élisée Re- que, no mínimo, revelava uma certa in-
clus, vemos o seu crescimento tornar-se significância dos anarquistas no contexto
visível e regular. Rapidamente aumenta o nacional.
número de periódicos e grupos que se re- Na última década do séc. xix, a relativa
clamam do anarquismo comunista e que indiferença que as autoridades portugue-
exprimem a ambição de destruir o Esta- sas votavam ao anarquismo deixa de ser
do, a religião e o capital para fundar uma possível; essa mudança de atitude foi im-
sociedade igualitária, solidária e horizon- pulsionada sobretudo por fatores de or-
tal. Uns anos antes, entre 1882 e 1883, as dem internacional. O anarquismo come-
autoridades espanholas agitavam-se com ça a espalhar-se pelo meio operário dos
as ações atribuídas à obscura organização grandes centros urbanos nacionais e a
Mano Negra, na Andaluzia, e as autorida- Europa é abalada por uma série de aten-
des portuguesas, alarmadas pelas notícias tados terroristas – muitos deles com o
que chegavam do país vizinho, em março propósito de assassinar chefes de Estado
de 1883 solicitam informações aos gover- – reclamados ou atribuídos a indivíduos
nadores civis para apurar se algo de se- anarquistas. Era o tempo da propagan-
melhante podia ocorrer em Portugal. À da pelo facto, o método privilegiado por
exceção dos governadores civis de Lisboa muitos militantes libertários num perío-
e do Porto, que pedem, respetivamente, do em que o anarquismo se definia ideo-
um aumento de reforços policiais e a logicamente e em que a opção pela parti-

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anarquismo” e “defender, aplaudir, acon-


selhar ou provocar, embora a provocação
não surta efeito, atos subversivos quer da
existência da ordem social, quer da segu-
rança das pessoas ou da propriedade”. A
imprensa ficava proibida de “ocupar-se
de factos ou de atentados do anarquismo”
ou “dar notícia das diligências e inqué-
ritos policiais e dos debates que houver
no julgamento de processos instaurados
contra anarquistas” (lei de 13 fev. 1896).
Os réus eram julgados sem direito a júri,
podiam ser presos sem culpa formada e a
lei tinha efeitos retroativos.
A aprovação da chamada “lei dos anar-
quistas” não se fez sem uma longa dis-
cussão, quer na Câmara dos Deputados,
quer na Câmara dos Pares do Reino. Os
críticos da mesma apontavam a sua severi-
Élisée Reclus (1830-1905). dade e revelavam-se receosos das suas po-
tenciais consequências pela amplitude e
pela arbitrariedade dos seus termos, sus-
cipação nas organizações e nos sindicatos cetíveis de abarcar indivíduos sem víncu-
operários ainda não era a mais generali- lo com as ideias anarquistas. Pediam o seu
zada. Em Portugal, se compararmos com adiamento ou a clarificação de alguns dos
outros países, a propaganda pelo facto só artigos, e afirmavam mesmo ser impossí-
residualmente se traduziu em atentados vel votá-la. Os seus defensores, ao mesmo
e o seu impacto foi tímido. Contudo, os tempo que descreviam a enorme ameaça
governos monárquicos nacionais apro- da “seita perigosa e nefasta do anarquis-
varam e subscreveram as medidas e os mo” (Diário da Câmara dos Senhores…, 10
acordos antianarquistas que lhes eram fev. 1896, 261) e comparavam o que acon-
sugeridos. Em 1893, Espanha propõe a tecia em Portugal com o que acontecia
diversos países uma ação coordenada em França, afirmavam, não sem alguma
contra o anarquismo e apenas Portugal, contradição, que a lei tinha um fim mais
a Áustria e a Rússia responderam positi- preventivo do que repressivo. Para refor-
vamente. É em sintonia com este tipo de çar a dimensão dessa ameaça, o anarquis-
iniciativas internacionais que é aprovada, mo era esvaziado de conteúdo político e
em 13 de fevereiro de 1896, pela mão de ideológico, equiparado a uma manifesta-
João Franco, uma das leis antianarquistas ção niilista e reduzido a uma expressão
mais violentas de todas as que surgiram criminal ou patológica. O ministro da Jus-
na Europa na mesma década. Nos seus tiça, António d’Azevedo Castelo Branco,
sete artigos, decretavam-se penas de pri- em resposta aos que criticavam a depor-
são correcional até seis meses, seguidas tação dos anarquistas por tempo indeter-
de deportação para as províncias ultra- minado, argumentava que “os vadios são
marinas, por período indefinido, para menos perigosos que os anarquistas” e
todo aquele que “professar doutrinas de não podia por isso considerar-se “como

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AntiAnArquismo 99

uma grande violência dar-se-lhes destino reprimidas com brutalidade pela polí-
idêntico” àquele que a lei de 21 de abril cia, levando inclusivamente à morte de
de 1892 dava aos primeiros. Além disso, alguns operários, e o divórcio com o re-
em sintonia com as principais teorias da gime é definitivo. O confronto entre a
criminologia então em voga, defendia república e o movimento operário, cada
que os anarquistas eram “indivíduos que vez mais dominado por sindicalistas re-
os antropologistas classificam de degene- volucionários e anarquistas, levaria, ao
rados, desequilibrados e destituídos de longo dos 16 anos de duração do regi-
senso moral” e não aspiravam a mais do me, a perseguições e prisões por vezes
que “às trevas do barbarismo estúpido tão arbitrárias quanto as dos tempos da
das tribos selvagens” (Ibid., 257). No fim, monarquia. Nos últimos dias de janeiro
provavelmente convencidos pelos escla- de 1912, era declarada greve geral em
recimentos dos ministros proponentes, solidariedade com os trabalhadores ru-
todos retiraram as propostas de alteração rais eborenses. Em resposta, as autorida-
sugeridas e aprovaram a lei. A sua força des entregavam o governo do distrito de
seria sentida até à eclosão da Primeira Re- Lisboa às autoridades militares e eram
pública, em 5 de outubro de 1910, apesar suspensas as garantias individuais, encer-
das críticas que recebeu, vindas de todos rada a Casa Sindical (fundada no final
os quadrantes políticos, ao longo da sua de 1911, após a realização do 2.º Con-
vigência, e apesar também de todas as gresso Sindicalista, era a casa da União
ações organizadas no sentido de revogá dos Sindicatos de Lisboa, entre outras
-la. Até à revolução republicana, seriam organizações operárias, bem como, des-
deportadas centenas de pessoas; algumas de então, do importante jornal O Sindi­
nunca regressariam à metrópole, outras calista), presos centenas de sindicalistas,
regressaram apenas após a sua revogação, e o ministro da Justiça, António Maciei-
em 1910. ra, submetia à aprovação da Câmara dos
Nos últimos anos da monarquia, os Deputados uma lei excecional, que en-
anarquistas participam em força no mo- tregava os detidos a tribunais militares.
vimento operário e aproximam-se dos Para o referido ministro, “Lisboa tinha
republicanos, colaborando em diversas sentido a verdadeira anarquia” (Diário
atividades, como a Liga Contra a Lei de da Câmara dos Deputados, 1 fev. 1912, 10)
13 de Fevereiro. Por via da forte repres- e predominava entre a grande maioria
são a que estavam sujeitos, participam em dos deputados a tese de que essa “cons-
organizações clandestinas, como a carbo- piração” tinha origem numa conjugação
nária, e assumem um papel fundamental de esforços entre anarquistas e agitado-
no sucesso da Revolução de outubro de res monárquicos infiltrados nas organi-
1910. Mas, apesar de todas as esperanças zações operárias, acusação recorrente
depositadas no novo regime, os conflitos nos anos seguintes. Em junho de 1913,
cedo emergem. no seguimento de um atentado à bom-
Em dezembro de 1910, chegava a an- ba, a Casa Sindical era novamente en-
siada lei que regulava o direito à greve: cerrada. Afonso Costa declarava que se
era a primeira grande desilusão e a lei fechava um “foco de perturbações de ca-
ficaria conhecida como o “decreto-bur- rácter sindicalista e anarquista” e procu-
la”, motivando a oposição de todo o rava distinguir estes operários do “bom
movimento operário. Ao longo de 1911, e ordeiro trabalhador” (SAMIS, 2009,
algumas das greves que acontecem são 328-329). O Partido Socialista, pela voz

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100 AntiAnArquismo

do deputado Manuel José da Silva, apro- um tribunal excecional), e era constante-


veitava a ocasião para se distanciar dos mente recordada a lei de 13 de fevereiro
anarquistas e afirmava que, se “o parti- de 1896, combatida sem concessões pelos
do republicano não houvesse sempre republicanos. Para o deputado Álvaro de
embaraçado o engrandecimento de um Castro, o Tribunal em questão era consti-
partido operário”, há muito que o país tuído “duma maneira tão excecional que
se teria livrado do “idealismo anárquico” ultrapassa[va] as excecionalidades da lei
(Id., Ibid., 326). Nos anos seguintes, nos de 13 de fevereiro” (Ibid., 6). A sua apro-
momentos de maior conflituosidade, as vação não foi unânime, apesar de todas as
estruturas sindicalistas e anarquistas con- alterações que sofreu. Até à extinção des-
tinuariam a sofrer ataques semelhantes, te Tribunal, em 19 de dezembro de 1923,
com os seus militantes a serem detidos e realizar-se-iam diversos protestos contra a
condenados, muitas vezes, à deportação. sua existência e para apelar à libertação
A Primeira Guerra Mundial tinha con- de diversos militantes anarquistas e co-
tribuído para a degradação das condi- munistas por ele condenados e detidos.
ções sociais e nem o seu termo tinha feito Foi também nos anos 20 que os anar-
abrandar os conflitos. A partir de 1920, quistas e os comunistas começaram a
voltou a crescer o número de atentados separar-se definitivamente. No mesmo
pessoais, nomeadamente contra polícias, período, fruto de uma dissidência pró
juízes e contra quem fosse considerado -bolchevique das Juventudes Sindicalis-
inimigo das classes trabalhadoras. Em 11 tas, surgia a Legião Vermelha, respon-
de maio de 1920, era aprovada a criação sável por pelo menos uma dezena de
de um tribunal especial, o Tribunal de atentados até ao seu desaparecimento
Defesa Social, para julgar “os fabricantes, em 1925. Apesar de frequentemente rela-
os portadores e os detentores de bombas cionada com os anarquistas pela impren-
explosivas” e aqueles que instigassem à sa e pelas autoridades da época, muitos
prática de crimes por esses meios. O Tri- militantes libertários distanciavam-se
bunal seria constituído por um “membro desta organização clandestina e repu-
da magistratura especial ou do Ministério diavam-na. Emídio Santana, militante
Público e por dois indivíduos formados anarco-sindicalista, recorda e reitera as
em direito, de nomeação do Governo” palavras de Neves Anacleto, então mem-
(lei n.º 969, de 11 maio 1920). No projeto bro do PCP, quando este afirmava que o
de lei sujeito a discussão no Parlamento primeiro motivo para a constituição da
em 15 de abril de 1920, a sua disposição Legião Vermelha tinha sido assassinar
era ainda mais arbitrária, propondo-se Manuel Joaquim de Sousa, anarquista
que o Tribunal fosse constituído “pelo Di- e secretário-geral da Confederação Ge-
retor da Polícia de Investigação Criminal, ral do Trabalho (SANTANA, 1987, 74),
pelo Diretor da Polícia de Segurança do embora os seus fins rapidamente se ti-
Estado e pelo Comissário Geral de Polí- vessem tornado mais ambiciosos. Numa
cia” (Diário da Câmara dos Deputados, 15 reportagem publicada no jornal das Ju-
fev. 1920, 5). Foram muitas as vozes que ventudes Sindicalistas, em maio de 1923,
se levantaram contra o projeto e o debate relatava-se um dos encontros secretos da
prolongou-se por várias sessões. Era apon- Legião e era descrito o discurso de um
tada a sua “barafunda jurídica” (Ibid., 7), dos participantes em que se falava de
que permitia que o detido fosse julgado “matar anarquistas e traidores à causa”
duas vezes (por um tribunal regular e por (Id., Ibid., 358). Para alguns comunistas,

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AntiAnArquismo 101

por outro lado, a organização era da res- dição de semiclandestinidade. Com a


ponsabilidade de militantes anarquistas constitucionalização do Estado Novo, em
e libertários. Não é possível confirmar 1933, essa clandestinidade tornava-se pra-
a veracidade dessas afirmações, nem se ticamente absoluta. O fracasso da greve
havia ou não anarquistas na Legião Ver- geral revolucionária de 1934 consagrava
melha, ou mesmo que parcelas do seu o fim do sindicalismo livre, e os anarquis-
“mito” eram alimentadas pela própria tas, já então debilitados, desapareceriam
polícia, mas estes exemplos indiciam a praticamente de cena nos anos seguintes,
animosidade crescente entre comunistas incapazes de estabelecer uma atividade
e anarquistas e um novo foco de antia- coletiva regular, com muitos dos seus
narquismo oriundo das fileiras do PCP. principais militantes enclausurados nas
As acusações de “traição” e “colaboracio- prisões políticas do regime ou entregues
nismo”, “primitivismo ideológico”, “sec- à morte lenta no campo de concentração
tarismo”, “aventureirismo” ou “peque- do Tarrafal. O seu último grito significa-
no-burguesismo” eram frequentemente tivo seria um eco dos atos de propaganda
arremessadas aos anarquistas na propa- pelo facto, popularizados décadas antes:
ganda e na imprensa ligada ao Partido. o atentado fracassado a António de Oli-
A gota de água na relação conflituosa veira Salazar, em julho de 1937.
entre os dois campos políticos chegaria
com a greve geral revolucionária de 18
de janeiro de 1934, que o histórico se- Bibliog.: CEREZALES, Diego Palacios, Estado,
cretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, Régimen y Orden Público en el Portugal Contempo-
consideraria uma “pura anarqueirada” ráneo (1834-2000), Dissertação de Doutora-
mento em Ciência Política apresentada à Uni-
(PATRIARCA, 2000, 73).
versidad Complutense de Madrid, Madrid,
Em 28 de maio de 1926, dava-se o golpe texto policopiado, 2008; Diário da Câmara dos
militar que instauraria uma ditadura mi- Deputados, 1 fev. 1912; 15 fev. 1920; Diário da
litar e colocaria um ponto final na Repú- Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portu-
blica que, segundo escreveu Salazar mais guesa, 10 fev. 1896; FREIRE, João, Ideologia,
tarde, tinha levado à “anarquia nas fábri- Ofício e Práticas Sociais: o Anarquismo e o Opera-
cas, nos serviços, na rua” (CEREZALES, riado em Portugal, 1900-1914, Porto, Afron-
tamento, 1993; JENSEN, Richard Bach, The
2008, 391). Com a ditadura os tribunais
Battle Against Anarchist Terrorism: an International
militares tinham-se tornado a regra e a History, 1878-1934, Cambridge, Cambridge
reorganização das polícias consolidava e University Press, 2014; MARGARIDO, Alfre-
estendia os poderes das polícias políticas do, A Introdução do Marxismo em Portugal (1850-
nascidas na Primeira República durante o -1930), Lisboa, Guimarães, 1975; PATRIAR-
período sidonista. Os anarquistas enfren- CA, Fátima, Sindicatos contra Salazar: a Revolta
tavam desde então uma forte repressão, do 18 de Janeiro de 1934, Lisboa, Imprensa de
com a prisão e perseguição a muitos dos Ciências Sociais, 2000; SAMIS, Alexandre,
Minha Pátria é o Mundo Inteiro: Neno Vasco, o
seus militantes e a censura e o encerra-
Anarquismo e o Sindicalismo Revolucionário em Dois
mento dos seus órgãos de imprensa. As Mundos, Lisboa, Letra Livre, 2009; SANTANA,
estruturas sindicais a que sempre tinham Emídio, Memórias de Um Militante Anarco-Sin-
estado ligados viam a sua ação seriamen- dicalista, Lisboa, Perspectivas & Realidades,
te dificultada pela ação do regime, situa- 1987; VENTURA, António, Anarquistas, Repu-
ção para a qual também contribuía a sua blicanos e Socialistas em Portugal: as Convergências
incapacidade de adaptação à crescente Possíveis (1890-1910), Lisboa, Cosmos, 2000.
influência dos comunistas e a uma con- Diogo Duarte

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102 AntiAntropocentrismo

Antiantropocentrismo ciolo apresentou 126 argumentos, 49


dos quais eram a favor do movimento
da Terra em torno do Sol e 77 a favor
de uma Terra estacionária. Este livro foi
considerado por Monteiro uma bibliote-
ca inteira de vastíssima erudição, tendo
constituído uma obra de referência para

N a Idade Média, o sistema matemá-


tico homocêntrico do Universo
tinha correspondência com uma inter-
muitas gerações de Jesuítas portugueses.
Nele se podiam encontrar todas as ob-
servações antigas e modernas, às quais
pretação antropocêntrica e teocêntrica foram acrescentadas as do próprio autor.
do mundo. A interpretação filosófica O sistema de Copérnico era o sistema
segundo a qual os seres humanos eram adotado por quase todos os astrónomos
as entidades centrais ou mais importan- deste tempo e nenhuma razão física ou
tes do mundo estava em harmonia com matemática convenceria Ricciolo da res-
os modelos cosmológicos que atribuíam petiva falsidade: não existiam argumen-
à Terra um lugar central no Universo. tos com base em causas naturais que o
Os fundamentos do antropocentrismo impugnassem com suficiente vigor. A
identificam-se com a interpretação teo- sua aceitação estava condicionada, em
cêntrica da criação narrada no Génesis, exclusivo, aos argumentos teológicos.
segundo a qual os seres humanos foram Esta opinião generalizou-se entre os as-
criados à imagem e semelhança de Deus trónomos e matemáticos portugueses no
e instruídos para subordinar a Terra, séc. xvii e início do séc. xviii. No seu
instalando o seu domínio sobre todos os Compendio dos Elementos de Mathematica,
outros seres vivos. Inácio Monteiro transcrevia textos da
A interpretação dos textos bíblicos Sagrada Escritura que, entendidos lite-
que colocava o Homem num lugar cen- ralmente, como os entendiam os Santos
tral no mundo está patente nas palavras Padres, eram muito assertivos contra o
do Jesuíta setecentista Inácio Monteiro, movimento da Terra.
que afirmava que a figura aparente do Sobre os argumentos com base nos
Universo é uma esfera, cujo centro sen- quais o sistema de Copérnico foi julga-
sível Deus destinou para nossa morada, do herético, Teodoro de Almeida, na
fazendo girar à nossa volta portentosos sua Recreasaõ Filozofica, afirmava ser ne-
e inumeráveis corpos, movidos com ad- cessário “fazer reflexão”. Não deixava
miráveis movimentos, diversas direções de afirmar que a doutrina que a Igreja
e grandíssima velocidade, tudo destina- romana entendia por herética ou falsa,
do a incompreensíveis fins que a mesma ou errónea, assim devia ser considerada
Providência nos ocultou. Estes movi- na realidade porque a Igreja não podia
mentos são um perpétuo despertador, errar; por conseguinte, ainda que pas-
que movem a curiosidade humana para sassem muitos séculos, tal doutrina não
os conhecer. poderia deixar de ser falsa, ou herética,
Contudo, a evolução da astronomia ou errónea. Se, no entanto, os astróno-
viria a mostrar um Universo diferente, mos encontrassem uma razão evidente
tendo o Homem sido retirado da posi- pela qual provassem o movimento da
ção geométrica central. No Almagestum Terra, a Igreja estaria pronta a consentir
Novum, o italiano Giovanni Battista Ric- nessa opinião, pois devia sempre ser a

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AntiAntropocentrismo 103

protetora da verdade e não da mentira. e o Sol nasce, se põe e volta ao seu lu-
Almeida argumentava com a opinião gar, gira pelo meio-dia e se revolve nos
do P.e Honoré Fabri, penitenciário do seus círculos (Ecl 1, 4-6). Teodoro de
Sumo Pontífice, que afirmava que mais Almeida destacava que muitas outras
de uma vez fora perguntado aos corifeus proposições semelhantes das Sagradas
da nova astronomia se tinham alguma Escrituras, relativas ao movimento apa-
demonstração que provasse o movimen- rente e quiete aparente, eram entendidas
to da Terra, e estes nunca se tinham pelos copernicianos no sentido natural
atrevido a dizer que sim. Logo, não exis- e comum à inteligência das gentes (AL-
tia impedimento para que a Igreja en- MEIDA, 1762, 242). Deus não quis en-
tendesse e declarasse que as passagens sinar astronomia na Sagrada Escritura;
da Escritura deviam ser entendidas em os sagrados escritores apenas se acomo-
sentido literal. Se os astrónomos mo- davam ao senso comum e à inteligência
dernos viessem um dia a excogitar uma dos povos. Se na Escritura se afirmasse
demonstração convincente em contrá- que a Terra anda pelos seus círculos, e
rio, a Igreja não hesitaria em declarar o Sol está firme e imóvel no seu lugar
que as referidas passagens da Escritura imóvel, como poderiam os povos que
se deviam entender em sentido figura- lessem, ou ouvissem ler, os livros sagra-
do e impróprio; assim, encontrando-se dos entendê-los sem primeiro recebe-
razões físicas que tornassem evidente o rem lições de astronomia? Certamente
movimento da Terra, rever-se-ia o signi- ficariam espantados. E, como Deus não
ficado das passagens da Escritura onde tem empenho em que sejam todos astró-
se diz que a Terra está quieta e firme nomos, acomoda-se à inteligência dos
homens e fala no sentido e segundo a
opinião comuns.
Giovanni Battista Ricciolo (1598-1671). Enquanto não surgisse prova em con-
trário, a Igreja considerava-se detentora
da “literal e rigorosa inteligência dos fac-
tos”. Enquanto não houvesse um motivo
“urgentíssimo” que a obrigasse à aceitação
de um argumento oposto, considerado va-
lidamente reconhecido, não havia razão
para que os argumentos teológicos não
prevalecessem sobre os outros. Enquanto
persistissem dúvidas em relação à validade
de um modelo explicativo do sistema do
mundo, quer fosse no âmbito dos estudos
da astronomia, quer fosse por argumenta-
ções matemáticas, ou ainda pelas leis da
física, a atitude deveria ser de respeitosa
acomodação à “literal inteligência” das
passagens da Escritura. No entanto, logo
que os argumentos físico-matemáticos se
revelassem isentos de quaisquer dúvidas
e recomendassem outra alternativa que
não a defendida pela Igreja, deveriam ser

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104 AntiAntropocentrismo

falso. Uns e outros se adiantam muito”


(Id., Ibid., 246).
Teodoro de Almeida apenas fez con-
siderações particulares sobre dois siste-
mas do mundo, os quais manifestavam,
na sua opinião, maior concordância com
a realidade. O sistema de Ptolomeu, se-
gundo o qual todos os astros se moviam
em círculos concêntricos à Terra, já não
era seguido por ninguém (&Antigeocen-
trismo). Neste sistema, a região do fogo
era colocada acima da do ar, seguida
da órbita da Lua, depois de Mercúrio,
Vénus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno,
todos eles movendo-se em circunferên-
cias, cujo centro comum era a Terra. A
falsidade deste sistema foi evidenciada
pelos Egípcios, os quais, observando os
movimentos de Mercúrio e Vénus, reco-
nheceram que estes revolviam em torno
do Sol e não da Terra. O mesmo viria a
conhecer-se depois a respeito dos movi-
mentos de Marte, Júpiter e Saturno, os
quais, nas suas revoluções, não tinham
por centro a Terra, mas o Sol. Este era,
sem dúvida, um dado adquirido e afirma-
do por todos os astrónomos. No sistema
idealizado pelo astrónomo dinamarquês
Tycho Brahe, o Sol aparecia como cen-
tro do movimento de todos os planetas,
exceção feita à Terra e à Lua. Em torno
do Sol revolviam Mercúrio, Vénus, Mar-
Rosto de Almagestum Novum, de Giovanni Battista te, Júpiter e Saturno, cada qual a uma
Riccioli. distância proporcionada e com períodos
de revolução bem determinados. Neste
sistema, a Terra permanecia imóvel e
aceites, embora com as devidas cautelas, firme no centro do firmamento ou Céu.
para não se cair em novo engano: “Se pelo À roda da Terra revolvia a Lua, seguin-
tempo adiante aparecer razão convincen- do-se o Sol, transportando em redor de
te; então faremos nestes lugares o mesmo, si como satélites os cinco planetas.
que se faz em outros, que se entendem O sistema de Brahe, além de ter sido
no sentido vulgar e aparente. Alguns de construído com base em observações
parte a parte adiantam-se demasiadamen- efetuadas por instrumentos mais evo-
te; uns dizendo que o sistema Copernica- luídos do que os de Copérnico, era o
no já está demonstrado; outros dizendo, que melhor se adequava aos preceitos
que com razões naturais se convence de antropocêntricos, pelo que, atendendo

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AntiAntropocentrismo 105

aos argumentos teológicos, deveria ser o nha feito, isso tenho obrigação de saber
preferido pelos astrónomos. Ao explicar como Filósofo, e a isto satisfaço explican-
o sistema de Copérnico, Almeida come- do um e outro sistema; porquanto em
çava por expressar a sua posição cautelo- ambos eles se explicam os efeitos, que
sa, manifestando as suas preocupações: observamos nos Céus” (Id., Ibid., 228).
“Eu tenho embaraço para o seguir, que é O poder divino era infinito e, se Deus
a autoridade e preceito da Inquisição de tivesse pretendido criar um sistema he-
Roma, que por motivos mui justos proi- liocêntrico, tê-lo-ia sem dúvida feito.
biu que se seguisse como tese; e só deu Neste caso, poderia estar em conformi-
licença para se seguir como hipótese” dade com as opiniões dos copernicianos.
(ALMEIDA, 1762, 228). Assim, admitindo-o como hipótese, não
Sobre as virtudes do sistema coper- se iria contra as determinações da Inqui-
niciano, e com o sentido rigoroso que sição Romana. Almeida não tinha dúvi-
pretendia dar às palavras “tese” e “hipó- das em afirmar que, se a Terra na reali-
tese”, Almeida justificava as suas conside- dade se movesse, como dizia Copérnico,
rações sobre os sistemas do mundo fun- nenhuma diferença seria percebida por
damentadas no modelo heliocêntrico um observador que a acompanhasse nes-
de Copérnico e na filosofia newtoniana se movimento. Procurou dar uma ideia
esclarecendo que seguir uma opinião do sistema coperniciano ponderando os
como tese seria dizer que assim sucedia argumentos que se podiam considerar
na realidade; segui-la como hipótese a favor e contra este sistema. Analisou
seria, pelo contrário, fazer só uma su- os argumentos da Escritura, bem como
posição sem dizer se, na realidade, era apresentou e desenvolveu comentários
assim ou não era. Quem afirmasse que a acerca de alguns argumentos físicos con-
Terra se movia como um planeta à roda tra o sistema coperniciano, pretendendo
do Sol, e que isto era assim na realidade, demonstrar a sua fragilidade. Apenas os
não diria bem, porque não havia argu- argumentos teológicos o podiam condi-
mento evidente que o provasse. Todos cionar. Não deixou, no entanto, de pon-
os efeitos astronómicos e físicos obser- derar as razões físicas que favoreciam
vados poderiam acontecer estando ela o sistema heliocêntrico, colocando em
quieta. O poder e a sabedoria de Deus evidência a belíssima concordância que
são infinitos, e muito grande a ignorân- este sistema tinha com as leis do movi-
cia e equivocação humana, mesmo nas mento observadas nos corpos terrestres,
coisas palpáveis, quanto mais nas re- as quais admiravelmente Newton tinha
motíssimas, como são os astros. Porém, descoberto. Afirmava que, falando com
afirmar-se apenas em suposição que a sinceridade cristã, não sabia verdadeira-
Terra se move e o Sol está quieto expli- mente os segredos de Deus, nem o suma-
cava belissimamente tudo quanto se ha- mente engenhoso maquinismo com que
via descoberto na física e na astronomia, foi concebido o movimento dos astros.
discorrendo prudentemente nessa base. Porém, se Deus concebesse o movimen-
Isto era o que permitia a Inquisição Ro- to dos corpos celestes de acordo com as
mana. Almeida defendia-se afirmando mesmas leis de movimento que estabele-
o seguinte: “O que Deus fez, não o sei; ceu nos terrestres, então os movimentos
e não é só essa a coisa que eu ignoro; e dos astros haveriam de ser como se su-
mais não me envergonho de o confessar põe no sistema newtoniano. Ressalvava,
em público: o que pode ser que Deus te- porém, que, como os corpos celestes dis-

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106 AntiApriorismo

tam muito da Terra, também os princí-


pios e leis dos seus movimentos podiam
Antiapriorismo
ser muito diversos dos movimentos dos
corpos terrestres (Id., Ibid., 237).
Comparando entre si os sistemas ty-
chonico e coperniciano, Teodoro de Al-
meida era de opinião de que, no sistema
de Tycho Brahe, não havia tanta beleza,
nem uniformidade, nem formosura (Id.,
Ibid., 237-239). Mas apenas como hipóte-
H istoricamente, no âmbito da tradi-
ção filosófica, a fixação técnica da
noção de a priori parece estar associada a
se podia adotar o sistema de Copérnico. Alberto da Saxónia (c. 1320-1390), que,
no seguimento de pensadores anteriores,
distinguiu entre dois tipos de demons-
trações argumentativas: demonstratio pro­
Bibliog.: ALMEIDA, Teodoro de, Recreasaõ cedens ex causis ad effectum e demonstratio
Filozofica, t. vi, Lisboa, 1762; MONTEIRO, procedens ab effectibus ad causas. A primei-
Inácio, Compendio dos Elementos de Mathemati- ra demonstração – demonstração pro-
ca, t. ii, Coimbra, Real Collegio das Artes da cedente das causas para o efeito – ficou
Companhia de Jesus, 1756. conhecida como demonstratio a priori, na
Décio Ruivo Martins medida em que se trata, logicamente, de
um argumento que antecipa de algum
modo o efeito a ser produzido por um
qualquer conjunto de causas identificá-
vel: pela causa conhece-se o efeito mes-
mo antes de ele ter lugar. A segunda de-
monstração – demonstração procedente
dos efeitos para as causas – ficou conhe-
cida como demonstratio a posteriori, na
medida em que se trata, logicamente, de
um argumento que parte da experiência
dos efeitos para a identificação da causa:
pelo efeito conhece-se a causa de manei-
ra retrospetiva (pensamento retrospeti-
vo). Estabelece-se assim, desde logo, uma
oposição entre um raciocínio a partir do
anterior ou do precedente (a priori) e
um raciocínio a partir do posterior ou do
consequente (a posteriori), ou seja, entre
aquilo que é anterior à experiência ou
independente dela, e aquilo que é pos-
terior à experiência ou dependente dela.
Num momento anterior, já Tomás de
Aquino tinha feito uma distinção entre
a demonstratio propter quid e a demonstratio
quia, uma que parte das causas e outra
que identifica o efeito.

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AntiApriorismo 107

No entanto, a noção não se circunscre- diferentes, mas aquele que mais decisi-
ve a argumentos, mas diz também res- vo foi na teorização do a priori foi Kant.
peito a tipos de proposição, a modos de Ao despertar do chamado sono dogmá-
conhecimento e ao estatuto das ideias (a tico com a leitura das análises de David
saber, à forma como são adquiridas e em Hume, Kant instituiu a sua revolução co-
que medida dependem ou não da expe- pernicana, descrita no prefácio à 2.ª edi-
riência). Na Modernidade, como se sabe, ção da Crítica da Razão Pura (B16-17), e
a noção recebeu especial acolhimento que segue o modelo astronómico de Co-
por parte dos racionalistas, dos empiristas pérnico: são os objetos que se devem con-
e dos idealistas, no contexto das longas formar ao nosso conhecimento e não o
e intrincadas discussões epistemológicas contrário, é o sujeito cognoscente que é o
que promoveram. Será seguro dizer que o ponto fixo, não os objetos conhecidos. Só
problema central dessas discussões – sobre assim, pensa Kant, se poderá explicar em
se existe um conhecimento (ou uma fonte que medida é possível um conhecimento
do conhecimento) a priori – tem origem, independente da experiência, que prevê
de alguma maneira, na teoria da anam- e determina as propriedades de certos
nese de Platão. Nalguns passos relevantes objetos anteriormente à sua intuição.
do corpus platonicum, discute-se com serie- A questão fundamental é a de saber como
dade a possibilidade de a psyche humana são possíveis juízos sintéticos a priori, quer
extrair de si, a partir de si, determinados dizer, juízos em que o predicado acres-
conhecimentos pré-existentes, anteriores centa efetivamente algo ao sujeito, ao
ao contacto com a realidade fáctica. O invés de ser uma mera análise do nome,
exemplo, já clássico, é o do diálogo es- mas de forma inteiramente independen-
tabelecido entre Sócrates e o escravo no te da experiência; o exemplo clássico é
diálogo Ménon (82b-84a), no decurso do aquele que o próprio Kant apresenta na
qual, por mera interrogação maiêutica, o primeira Crítica: “tudo o que acontece
escravo consegue resolver um problema tem a sua causa” (A9/B13). Kant preten-
geométrico sem possuir, aparentemente, de aplicar este modelo à metafísica, como
quaisquer rudimentos de geometria. In- também à matemática e à geometria, que
dependentemente de o mito platónico entende que são ciências puras (cujos
da pré-existência da psyche ter alguma ver- princípios são determinados a priori). Só
dade ou não, o que a teoria da anamnese por meio do a priori se explica que exis-
pretende pôr em evidência é que existem tam juízos que beneficiam de universali-
conhecimentos ou maneiras de chegar a dade e necessidade – duas características
certos conhecimentos que não podem de- essenciais de muitos dos nossos juízos –,
pender da aprendizagem empírica. ao invés de estarem limitados pela par-
Descartes popularizou esta questão ao ticularidade e contingência resultantes
perseguir o seu fundamento certo e in- da experiência. De acordo com o pensa-
concusso para todo o saber, e ao encontrá mento crítico kantiano, o nosso conheci-
-lo (pretensamente) no cogito, onde desco- mento depende de formas a priori, quer
briu ideias inatas que não poderiam ser da sensibilidade (tempo e espaço), quer
provenientes, em caso algum, dos eventos do entendimento (categorias), formas
sensoriais (ideias adventícias), nem da essas que são aquilo que permite que a
imaginação (ideias factícias). Seguiram- multiplicidade do fenómeno – i.e., o ob-
-se-lhe, como é também sabido, Espino- jeto indeterminado da intuição empíri-
sa e Leibniz, ainda que com abordagens ca – seja ordenada segundo determinadas

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108 AntiApriorismo

relações. É a essas formas que os objetos do inatismo presente no pensamento car-


nosso conhecimento se conformam. Por tesiano, e, por extensão, também como
outro lado, esses objetos, porque se trata, resposta ao problema do a priori (i.e., da-
precisamente, de objetos conformados às quilo que, em geral, pode ser visto como
nossas formas, são sempre fenómenos, ou anterior à experiência na formação do
seja, objetos dependentes da nossa repre- conhecimento), apontem-se dois nomes:
sentação, objetos que são exclusivamente Manuel de Azevedo Fortes (1660-1749) e
para nós, mas nunca coisas em si (coisas Luís António Verney (1713-1792).
conhecidas independentemente da nossa Fortes ficou conhecido, sobretudo, pela
representação, tais como são em si mes- sua tentativa de conjugar o pensamento
mas, ou conhecidas por Deus). Assim, cartesiano com o pensamento empirista
apesar de haver uma noção pressuposta de Locke no âmbito das discussões sobre
de realidade em si, aquela nunca pode o inatismo atual e o inatismo virtual. Na
ser conhecida por nós nos termos do nos- linha cartesiana, este autor defende o
so conhecimento – o realismo (ingénuo, dualismo substancial que distingue entre
direto, etc.) é impossível. Só o idealismo res cogitans e res extensa (alma e corpo), na
transcendental tem sentido. separação de funções e determinações
Neste contexto, e no âmbito da tradi- próprias a cada uma dessas substâncias
ção, não se pode falar propriamente de (uma é pensante e a outra é extensa). Isso
antiapriorismo na aceção de uma cor- não impede, no entanto, que, ao mesmo
rente filosófica própria e específica, teo- tempo que existem operações pertencen-
rizada como oposição ao a priori. Aquilo tes exclusivamente ao domínio da alma e
de que se pode falar, no entanto, é de operações pertencentes exclusivamente
teorias, pensamentos e filosofias que, na ao domínio do corpo, existam também
sua essência, seja de origem ou a partir operações que dependem do concurso
de uma reformulação, são contrárias ao de ambas as substâncias na sua união uma
que está em causa no apriorismo. E.g., o com a outra. Estranhamente, e apesar dos
empirismo de John Locke exclui o aprio- seus esforços de conjugação entre o ina-
rismo, mas é anterior à revolução coper- tismo e o empirismo, Fortes parece de-
nicana de Kant; e o mesmo se passa com fender a um tempo o inatismo atual, em
o empirismo cético de Hume, que serviu que existe um conhecimento de entes ou
como ocasião para despertar Kant, como determinações que não podem depender
referido, mas que não se pode apresentar em nada da experiência, e o inatismo vir-
como reação ao idealismo transcenden- tual, segundo o qual a alma dispõe, desde
tal. Já movimentos de renovação como a sua origem, de um conjunto determi-
o neo-escolasticismo e o neotomismo nado de disposições e faculdades que usa
podem ser considerados antiaprioristas, na elaboração dos dados recebidos pelos
apesar de não ser essa a sua especificida- sentidos. Uma das características mais
de, na medida em que têm características acentuadas do seu pensamento, e ao con-
que se opõem ao idealismo transcenden- trário do que se passava com Hume e o
tal. Não obstante, não podem ser tidos empirismo cético, e.g., é a defesa de que
como “o” antiapriorismo. Seja como for, os dados dos sentidos possibilitam um
as mais fortes e típicas reações ao aprio- conhecimento conducente à certeza – o
rismo são, de facto, empiristas. que implicaria, por isso, também, univer-
Em Portugal, no quadro daquilo que salidade e necessidade. É curioso, aliás,
pode ser considerado como resposta ao que Azevedo Fortes, antes de Kant e na

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AntiApriorismo 109

tarde, como se sabe. De resto, a divisão e


composição do intelecto, já pensada por
Aristóteles no De Anima, basta como prin-
cípio explicativo das ideias mais abstratas
de que o ser humano parece ser detentor:
as muitas e variadas ideias simples que
recebemos através dos sentidos desde o
início da vida são reorganizadas, quer no
todo, quer em parte (a partir do isolamen-
to das suas propriedades), para darem ori-
gem a novas ideias através de raciocínios.
Para Verney, ainda, a alma é, para fazer
uso da conhecida metáfora, uma tábua
rasa na qual não se encontram quaisquer
conteúdos prévios à experiência; isso quer
dizer também que a alma não é uma subs-
tância pensante no sentido em que esteja
permanentemente e desde a sua origem
Manuel de Azevedo Fortes (1660-1749).
em ato (substantia cogitans quae in praesen­
ti cogitat), mas uma substância que pode
linha de um realismo adequado, assuma pensar (substantia quae potest cogitare); se
que, se o nosso conhecimento não disses- fosse uma substância pensante permanen-
se respeito às coisas como elas são, então temente em ato, isso implicaria que hou-
teríamos acesso somente a uma multipli- vesse ideias inatas mediante as quais e nas
cidade de aparências que nada teria de quais estivesse constantemente a pensar.
verdade. Nada disto quer dizer, no entan- Ainda que não tão relevante quanto os
to, que não seja necessário que a sensação anteriores, chame-se ainda e brevemen-
cumpra com os critérios já definidos por te a atenção para Teodoro de Almeida
Aristóteles, a saber, a saúde dos órgãos (1722-1804), que também rejeitou limi-
dos sentidos, a pureza dos media e a pre- narmente o inatismo, nomeadamente na
sença dos objetos, e que não recaia sobre sua obra Recreação Filosófica.
o juízo a responsabilidade da verdade.
Verney, por sua vez, critica abertamen-
te o inatismo atual, admitindo o inatismo Bibliogr.: BUTTS, Robert E., e HINTIKKA,
virtual acerca das faculdades da alma. Não Jaako (orgs.), Historical and Philosophical Dimen-
sendo tão eclético quanto Fortes, a expe- sions of Logic, Methodology and Philosophy of Scien-
riência é para ele fonte suficiente de to- ce, London, Springer-Science+Business Media,
B. V., 1975; CALAFATE, Pedro (dir.), História
das as nossas ideias, mesmo daquelas que
do Pensamento Filosófico Português, 5 vols., Lis-
parecem estar enraizadas na alma desde a boa, Caminho, 1999-2004; COXITO, Amân-
sua origem, como sejam as ideias de Deus dio, Estudos sobre Filosofia em Portugal na Época
e da própria alma. A dupla intencionali- do Iluminismo, Lisboa, INCM, 2006; KANT,
dade do ato cognoscente, e.g., dirigida ao Immanuel, Kritik der Reinen Vernunft, Frank-
objeto, por um lado, e ao próprio sujeito furt, Herausgegeben von Wilhelm Weischedel,
que conhece, por outro, explica a perce- Suhrkamp, 1968; PEREIRA, José Esteves, Per-
cursos de História das Ideias, Lisboa, INCM, 2004.
ção de si na existência – algo que Franz
Brentano (1838-1917) exploraria mais Álvaro Almeida

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110 AntiArAbismo

Antiarabismo Por outro lado, é necessário ter em con-


ta a historicidade do conceito de árabe
e o dinamismo das realidades a que ele
se refere. Este conceito parece hoje, e.g.,
inevitavelmente marcado por elementos
provenientes dos discursos nacionalistas
árabes e pan-arabistas, emergentes sobre-

O neologismo remete-nos, à partida,


para o conjunto das atitudes de
confronto e das perceções negativas so-
tudo após o desmembramento do Impé-
rio Otomano, no início do séc. xx, e in-
dissociável do longo e complexo processo
bre indivíduos ou grupos árabes, que se histórico-político que conduziu à criação
registam na história de Portugal, sobre- da Liga Árabe, em 1945, e sua posterida-
tudo no contexto da fundação do reino de. Assim, o seu uso depreende à partida
e dos séculos seguintes, bem como no um determinado património histórico
quadro das guerras travadas no Norte de comum e um conjunto de pressupostos
África e nas regiões costeiras do Médio políticos e ideológicos, à semelhança do
Oriente durante a expansão imperial. que acontece, mutatis mutandis, quando
No que respeita à história de Portugal, usamos um conceito como o de europeu.
a utilização do conceito de árabe implica, Nestes termos, esta aceção mais rigoro-
no entanto, algumas ressalvas e dificulda- sa de antiarabismo poder-se-ia associar,
des. Por um lado, elas dizem respeito à e.g., ao processo sinuoso de relações di-
variedade de aceções que o conceito en- plomáticas estabelecidas entre Portugal e
cerra, quase todas problemáticas: a étni- o Egito após a Conferência de Bandung,
ca ou genealógica, de acordo com a qual em 1955, e à criação da Liga Árabe, no
um fenómeno ou indivíduo árabe é aque- sentido de tentar garantir junto do Go-
le que é originário da península Arábica verno de Gamal Abdel Nasser o apoio ne-
e do Norte de África; a política, que os cessário para controlar a influência sovié-
identifica através da proveniência ou da tica junto das comunidades muçulmanas
cidadania de um país destas regiões; a his- de Moçambique e da Guiné, e edificar
tórico-cultural, que associa ao termo “ára- um “islão português” pacificado e alheio
be” um património histórico e de costu- aos intuitos descolonizadores.
mes específico; a religiosa, que o associa No contexto de uma história das rela-
ao islamismo; a linguística, que o identifi- ções interculturais em Portugal na Idade
ca com uma língua. Assim, “árabe” seria Média ou no início da Modernidade, o
todo o indivíduo, grupo ou fenómeno uso do conceito de árabe, apesar de em
que reunisse ou se identificasse com algu- diversos casos ter mostrado uma assina-
mas destas características, sendo, todavia, lável operacionalidade, requer ainda, a
necessário ter em atenção inúmeras exce- nosso ver, alguma contenção e impõe al-
ções possíveis, nomeadamente os factos gumas cautelas metodológicas.
de nem todos os indivíduos provenien- Com efeito, a matriz árabe dos contin-
tes da península Arábica e do Norte de gentes que invadem a península Ibérica
África serem muçulmanos, nem todos os a partir de 711 não deve imediatamente
muçulmanos terem o árabe como língua elidir os fenómenos de aculturação ocor-
materna e nem todos os indivíduos que ridos no âmbito da expansão do Califado
têm o árabe como língua materna terem de Damasco ao longo da faixa do Norte
nascido em países árabes. de África, assimilando população ber-

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AntiArAbismo 111

bere, magrebina e negra. A este facto saliente testemunhava a persistência do


sobrepõem-se, ainda, o processo de des- legado árabe na península Ibérica.
membramento do Califado de Damasco, O antiarabismo, tomado nesta aceção
a emergência de novas instituições políti- literal, enquanto atitude de oposição ou
cas e o desenvolvimento, ao longo de cer- restrição à prática e ao estudo da língua
ca de quatro séculos, de uma população árabe em Portugal, aguarda ainda um es-
nativa que conjugava a religião muçulma- tudo detalhado. No entanto, é possível re-
na e a cultura e a língua árabes com ou- colher alguns elementos não só na biblio-
tras camadas culturais e identitárias. grafia que trata a perseguição religiosa de
O movimento de reconquista cristã terá mouros e de mouriscos, como também
motivado a morte, a fuga e a escravização naquela que reconstitui os tímidos avan-
de uma parte substancial desta popula- ços dos estudos arábicos em Portugal até
ção. Outra parte terá sido empurrada aos finais do séc. xx; é o caso das obras
para os arrabaldes das cidades, remetida de Luís Filipe Thomaz e de Eva Maria von
a uma condição subalterna. Kemnitz.
No foral dado por D. Afonso Henriques Conhecem-se hoje alguns exemplos de
à população de Lisboa em 1176, surge traduções arábico-latinas produzidas até
consagrado o conceito de mauri, mouros, finais do séc. xiii, que prestam testemu-
que já seria anteriormente usado para de- nho da vitalidade da cultura moçárabe
signar genericamente a população islâmi- portuguesa e da importância que as fon-
ca nativa. tes árabes teriam nos meios intelectuais
Ainda que o termo “mouro” tivesse deste período.
também um significado racial e social, a Esta dinâmica parece, no entanto, ter
componente religiosa parece ter ocupa- perdido terminantemente o seu supor-
do um lugar determinante nas dinâmi- te social e político a partir do séc. xiv,
cas de segregação deste grupo. Sobre- num contexto em que se acentuavam
tudo a partir da Batalha do Salado, em as medidas de segregação religiosa e de
1340, tornam-se particularmente visíveis redução da autonomia jurídica e admi-
na documentação várias medidas que re- nistrativa das comunidades mouras, ao
duzem consideravelmente a autonomia mesmo tempo que os cronistas e os le-
administrativa e jurídica das comunida- trados construíam narrativas da nacio-
des mouras portuguesas, sob o pretexto, nalidade que simulavam a homogenei-
confirmado pela tradição jurídica e ca- dade cristã da população portuguesa.
nónica hispânica, de que seria ilegítimo Para além disso, com a progressiva im-
permitir que os infiéis exercessem poder posição do direito cristão sobre o espa-
sobre os cristãos. ço concedido ao direito muçulmano, é
O estudo do antiarabismo na história provável que se tenha também verifica-
de Portugal poderá, pois, ter como um do uma gradual latinização das práticas
dos pontos de partida possíveis a obser- legais, limitando a margem de interven-
vação dos fenómenos de segregação e ção daqueles que dominavam sobretu-
de perseguição religiosa das populações do a língua árabe.
mouras (&Anti-islamismo), no âmbito A partir do édito de expulsão de 1496,
dos quais se condenavam também traços a língua árabe terá sido cultivada em Por-
e práticas culturais árabes. tugal sobretudo por mouriscos ou pseu-
Destes elementos, a língua emerge domouriscos portugueses. Na sua maior
como aquele que de forma mais óbvia e parte, esta franja de população era consti-

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112 AntiArAbismo

tuída por cativos trazidos de diversas par- um autor português de que temos conhe-
tes do império ou fugidos da perseguição cimento.
em Espanha, que se tinham convertido Nas décadas que se seguiram, o estudo
ao catolicismo e que se ocupavam de ofí- do árabe desenvolveu-se em diferentes
cios subalternos e de baixa remuneração. cidades do país por intermédio da Or-
Os seus hábitos quotidianos estavam sob dem Terceira, que trouxe para Portugal
a vigilância do Tribunal do Santo Ofício, religiosos estrangeiros habilitados para o
e o recurso à língua árabe não era exce- efeito, como o padre maronita Paulo Ho-
ção, enquanto indício de que eram man- dar e o barbadinho Fr. João de Sousa, na-
tidas práticas rituais muçulmanas. Apesar tural de Damasco, um dos protagonistas
disso, as autoridades eclesiásticas não pa- mais salientes desse processo.
recem ter investido demasiados esforços Na apresentação do seu Compendio da
no estudo da língua árabe ou na catequi- Grammatica Arabica, publicado em 1795,
zação dos mouriscos. Fr. João de Sousa faz notar que o árabe
Na sua “Epístola aos Cristãos de como era então uma língua pouco cultivada no
se deve instaurar o ensino do árabe e reino e que os instrumentos disponíveis
organizar a cruzada contra Mafoma”, Ni- para a sua aprendizagem eram ainda defi-
colau Clenardo, humanista oriundo de cientes. E acrescenta que a aprendizagem
Diest, na região de Lovaina, narra o estu- do árabe servia diversos propósitos: para
do empreendido em Évora sob a orienta- além de permitir uma melhor compreen-
ção de António Filipe, um médico dessa são da etimologia de diversas palavras
cidade, que possuía uma biblioteca de portuguesas, era útil no comércio, na di-
livros árabes e era um bom conhecedor plomacia e na evangelização, por permi-
da língua, com o intuito de se preparar tir analisar e refutar o Corão.
uma missão de evangelização dos mouros Durante o séc. xix, a utilidade do co-
de Marrocos. Apesar de Clenardo não ter nhecimento da língua árabe nos domí-
alcançado minimamente os seus objetivos nios da diplomacia e do comércio levaria
e de não conhecermos qualquer testemu- a que o estudo se desenvolvesse em con-
nho dos materiais que ele terá prepara- texto laico, com alguns cultores. Todavia,
do, a sua curiosidade acerca da língua e as condições ideais para a constituição de
de fontes árabes, bem como do Corão, uma tradição continuada de estudos ára-
constitui um caso ímpar na cultura portu- bes em contexto académico parece nun-
guesa do seu tempo. ca terem estado plenamente reunidas.
Só no séc. xviii, no contexto das re- Com efeito, só em 1914 viria a ser criada,
formas pombalinas e da importante ação na Univ. de Lisboa, a cadeira de Língua
cultural de Fr. Manuel do Cenáculo, se- e Literatura Árabe, que ficou a cargo de
riam lançadas as primeiras raízes dos es- David Lopes.
tudos arábicos em Portugal, com a inclu- Os estudos árabes estão, hoje, presen-
são, pelo futuro bispo de Beja, do estudo tes em diversas instituições científicas
da língua árabe no plano de estudos da portuguesas e são incomparavelmente
Ordem Terceira da Penitência de S. Fran- mais atendidos por estudiosos de diferen-
cisco, no ano de 1768. As aulas tiveram tes áreas científicas. Todavia, a recupera-
início em 1772. O lente, Fr. António do ção do atraso de séculos na constituição
Rosário Baptista, viria a publicar, no ano de uma tradição de estudos árabes em
de 1774, Instituições da Lingua Arabiga, a Portugal implicará, provavelmente, um
primeira gramática de árabe escrita por redobrado investimento.

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AntiArcAdismo 113

Bibliog.: BARROS, Maria Filomena Lopes


de, “Les musulmans portugais: la justice en-
Antiarcadismo
tre la normativité chrétienne et la normativité
islamique”, in TOLAN, J. V., e BOISSELLIER,
S. (coords.), La Cohabitation Religieuse dans les
Villes Européennes, Xe-XVe Siècles, Turnhout, Bre-
pols, 2014, pp. 207-222; BRAGA, Isabel Dru-
mond, Mouriscos e Cristãos no Portugal Quinhen-
tista: Duas Culturas e Duas Concepções Religiosas
em Choque, Lisboa, Hugin, 1999; Id., Missões
Diplomáticas entre Portugal e o Magrebe no Sécu-
O arcadismo foi o movimento literá-
rio que deu forma aos princípios
do neoclassicismo, difundidos na Europa
lo XVIII. Os Relatos de Frei João de Sousa, Lisboa, a partir da segunda metade do séc. xvii,
Centro de Estudos Históricos da Universidade
por influência dos classicistas franceses,
Nova de Lisboa, 2008; CLENARDO, Nicolau,
“Epístola aos cristãos de como se deve ins- sobretudo Nicolas Boileau-Despréaux e
taurar o ensino do árabe e organizar a cruza- a sua Art Poétique (1674). Ludovico Mura-
da contra Mafoma”, in CEREJEIRA, Manuel tori (Della Perfetta Poesia Italiana, 1706),
Gonçalves, Clenardo e a Sociedade Portuguesa em Itália, e Ignacio de Luzán (Poética o
do Seu Tempo, Coimbra, Coimbra Editora, Reglas de la Poesía en General y de Sus Princi­
1949; FIGANIER, Joaquim, Frei João de Sousa: pales Especies, 1737), em Espanha, foram
Mestre e Intérprete da Língua Arábica, Coimbra,
dois eminentes ideólogos desta corrente
Universidade de Coimbra, 1949; KEMNITZ,
Eva Maria von, “Estudos árabes em Portugal
estética, com expressão ao longo de todo
– um ensaio histórico-crítico”, Boletim da Socie- o séc. xviii. Integrado no movimento ge-
dade de Geografia de Lisboa, n.os 7-12, jul.-dez. ral das ideias racionalistas e iluministas,
1987, pp. 19-37; MACHAQUEIRO, Mário Ar- o neoclassicismo impõe-se como reação
tur, “Relações sinuosas: Portugal e o mundo aos excessos formais do estilo barroco.
árabe, 1950-1973”, Análise Social, vol.  xlviii, A designação de Arcádia, com origem
n.º 206, 2013, pp. 4-28; SIDARUS, Adel, “Os numa região da Grécia antiga, constitui
estudos árabes em Portugal (1772-1962)”, in
uma alusão ao pastoralismo clássico e
Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do XI
Congresso da União Europeia de Arabistas e Isla- tem subjacente um conceito de poesia
mológos (1982), Évora, Universidade de Évora, baseado nos valores da simplicidade, da
1986, pp. 37-54; Id., “Arabismo e traduções harmonia e da aurea mediocritas. No sécu-
árabes em meios luso-moçárabes”, Collectanea lo das Luzes, o ideal bucólico inspirou
Christiana Orientalia, n.º 2, 2005, pp. 207-223; a formação de academias literárias cujos
THOMAZ, Luís Filipe, “Estudos árabo-islâmi- membros ocultavam a sua identidade
cos e orientais em Portugal”, Povos e Culturas,
sob criptónimos pastoris.
n.º 5, 1996, pp. 389-414; VAKIL, AbdoolKa-
rim, “Do outro ao diverso – islão e muçulma- Foi no contexto da receção do neoclas-
nos em Portugal: história, discursos, identi- sicismo que surgiu o primeiro tratado de
dades”, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, poesia em Portugal, Arte Poética, ou Regras
n.os 5-6, 2004, pp. 283-312. da Verdadeira Poesia (1748), de Francisco
Ricardo Ventura José Freire. Tendo como precursor o Ver­
dadeiro Método de Estudar (1746), de Luís
António Verney, obra que prepara o ter-
reno para o movimento de restauração
do “bom gosto” nas letras portuguesas,
o texto de Freire preconiza o conceito
aristotélico de mimêsis. À semelhança do
que fazem os intérpretes modernos do

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114 AntiArcAdismo

filósofo estagirita, define a poesia como século de Camões o século de ouro das
“uma narração com que um representa letras portuguesas, pretendem resgatar a
a outro, ou por meio das ações ou pelo simplicidade e delicadeza dos seus auto-
da voz” (FREIRE, 1748, 25). Na poesia res, eliminando para tal as excrescências
dos árcades, esta relação entre narração do ornato despido de conteúdo, comum
e representação é fundamental. Justifica no barroco tardio. A pretexto disso, têm
a defesa da naturalidade no verso, que se como lema a frase Inutilia truncat (“Cor-
traduz na busca de um maior concretis- ta o inútil”).
mo no dizer poético, e logo numa maior Desde julho de 1757, momento em
abertura aos elementos do quotidiano e que é feito o juramento dos estatutos,
às atividades que o preenchem; determi- até cerca de 1760, as sessões da Arcá-
na também a introdução do verso bran- dia Lusitana são frequentes e alcançam
co, que visou pôr fim aos limites da rima prestígio na sociedade lisboeta pós-ter-
e do consoante, e uma apologia do uso ramoto. Depois dessa data, e após sofrer
exclusivo da língua portuguesa na poesia. várias dissensões internas, a atividade da
Enquanto escola literária, o arcadismo academia tende a paralisar-se, vigoran-
inicia-se, oficialmente, com a fundação do, apesar disso, até 1774. Várias foram
da Arcádia Lusitana, em Lisboa, em as associações literárias que, na segunda
setembro de 1756. Presidiram à elabo- metade de Setecentos, seguiram o seu
ração dos seus estatutos três juristas de modelo organizativo. Notabilizou-se par-
profissão, António Diniz da Cruz e Silva, ticularmente a Academia das Belas-Le-
Manuel Nicolau Esteves Negrão e Teo- tras (1790-94), fundada em Lisboa por
tónio Gomes de Carvalho. Seguindo o Domingos Caldas Barbosa, depois cha-
modelo da Arcádia Romana (1690), a mada Nova Arcádia. Dela foram mem-
Arcádia Lusitana tinha como fim último bros Curvo Semedo, Bocage, José Agosti-
a instrução pública, considerada indisso- nho de Macedo e Francisco José Bingre.
ciável da recuperação do verdadeiro gos- As convenções da estética arcádica per-
to da poesia. No intuito de levar a cabo manecem nas obras de Paulino António
uma reforma das belas-letras em Portu- Cabral, mais conhecido como Abade de
gal, foi constituído um grupo de censo- Jazente, e João Xavier de Matos, mem-
res cuja atividade passava por examinar bros da Arcádia Portuense. E vigoram
com exatidão as obras dos membros igualmente na poesia de Nicolau Tolen-
associados, visando separar “o bom do tino e de Filinto Elísio, ambos dissidentes
defeituoso” (“Estatutos da Arcádia…”, da Arcádia Lusitana, o último, fundador
Jornal de Coimbra, 1820, 134). Este proce- do grupo da Ribeira das Naus, por volta
dimento reflete o teor eminentemente de 1760. O arcadismo continua presente
prescritivo da sua atitude face à criação também nas obras de José Anastácio da
poética. A poesia é feita de regras que Cunha e da marquesa de Alorna. Junta-
é necessário observar: os membros da mente com Bocage e Xavier de Matos,
Arcádia legislam sobre estas, redigindo estes dois autores evidenciam traços de
dissertações nas quais fazem censura se- uma dramaticidade, visível não só num
gundo os ditames horacianos. Nas com- anseio de exibir a dor, como também
posições métricas, procuram imitar os numa ênfase ao nível da expressão do eu
clássicos e os seus melhores seguidores que prenuncia o romantismo.
(Homero e Virgílio, Camões e Ariosto, Mau grado o excesso de regulamen-
Racine e Voltaire, etc.). Considerando o tação que o caracteriza, o programa

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AntiArcAdismo 115

poético dos árcades contribuiu para o linhas de força que demonstram a for-
estabelecimento de uma nova forma de mação de um pensamento contrário aos
expressão, com efeitos no lirismo mo- princípios da crítica clássica setecentista.
derno. Desde a fundação da academia Esse pensamento é evidente sobretudo
lisboeta até à data da publicação do poe- no âmbito da afirmação do romantismo,
ma Camões (1825), de Almeida Garrett, mas também, de forma significativa, du-
em que se fixa, habitualmente, o início rante o período de funcionamento da
do período romântico em Portugal, a Arcádia Lusitana. Para fazer uma carto-
Arcádia compreende um momento de grafia da oposição ao arcadismo, há que
grande efervescência literária, quer pe- considerar as vozes que reagiram contra
las sucessivas agremiações que suscitou, os procedimentos dessa mesma crítica.
quer pelo debate literário a que deu A época arcádica da literatura portu-
lugar, quer ainda pelas transformações guesa primou por uma acentuada aten-
que sofreu, enquanto corrente, ao longo ção às questões de teorização literária,
de várias gerações de poetas. A reação de que dão conta as numerosas publica-
ao arcadismo carece ainda, no começo ções da Arte Poética de Horácio e o ele-
do séc. xxi, de um estudo sistematiza- vado número de discursos, dissertações
do, o que se deve, em parte, ao facto de doutrinárias e até mesmo poemas mar-
não ter constituído um movimento or- cados pela referência aos códigos e às au-
ganizado, como foi, em certa medida, a toridades do classicismo. A “apreciação
oposição dos árcades à prática literária justalinear das obras, fazendo de cada
do gongorismo (&Antibarroquismo). palavra pretexto para larga e erudita
Não obstante, é possível divisar algumas dissertação” (FIGUEIREDO,  1916,  98),

Concerto no Parque, de nicolas Lancret (1720).

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116 AntiArcAdismo

corresponde a um modo de fazer crítica e Melo defende o gosto peculiar por


essencialmente assente no defeito e no que se distingue toda a nação, abrindo
erro, que em breve será substituída pela assim, indiretamente, uma janela para o
crítica romântica e por uma perspetiva futuro interesse romântico pelas cultu-
de análise fundada no juízo do belo. Por ras locais como projeto literário. Como
outro lado, o arcadismo baseia-se numa refere: “V. Mercê está muito preocupado
visão retrospetiva das letras, procuran- com a singeleza (eu quisera chamar-lhe
do na Antiguidade os modelos a imitar. Sensaboria) Francesa, sem querer ad-
A emergência do novo conceito de cria- vertir que a nossa Poesia é totalmente
ção artística, baseado na noção de origi- diferente da que agrada, àquela Nação”
nalidade, motivará pois uma rutura do (Id., Ibid., 217-218). Mas o seu parecer
cânone com a velha noção de mimese não se restringe ao âmbito literário da
clássica. ortodoxia neoclássica. A hostilidade de
Mas antes que os principais autores do Pina e Melo para com os árcades alcança
romantismo português emitam parece- igualmente o plano social, denotando a
res críticos relativamente ao arcadismo, atitude de sobranceria e conservadoris-
foram figuras contemporâneas da Arcá- mo da nobreza de sangue face aos es-
dia Lusitana quem primeiro se manifes- tratos menos elevados da sociedade, em
tou contra os inconvenientes da censura franca ascensão no período iluminista.
neoclássica. Em primeiro lugar, há que Neste sentido, menospreza o juízo do
fazer referência ao braço de ferro trava- poeta Domingos dos Reis Quita sobre as
do entre o poeta e fidalgo Francisco de suas obras, aludindo à sua profissão e às
Pina e Melo (1695-1773) e alguns dos suas origens humildes: “O cabeleireiro
nomes mais sonantes do arcadismo. Ini- bem poderá deixar de meter-se também
cialmente devedora da estética barroca, a crítico, visto não ter chegado ainda a
a obra de Pina e Melo, sobretudo no pla- ser poeta” (Id., Ibid., 206). Já na “Carta
no teórico, aproxima-se pouco a pouco critica” dirigida a João Gomes Ferreira
dos cânones do neoclassicismo. Porém, e no “Soneto aos arcades de Lisboa”, o
a abrangência dos seus interesses literá- autor deixa verter todo o azedume senti-
rios denuncia um ecletismo que jamais do por um poeta cuja geração, formada
foi aceite pelos árcades, mantendo-se o ainda na escolástica e no gongorismo,
autor, também por isso, à margem do foi vilmente menosprezada pelos jo-
academicismo da segunda metade do vens pastores da Arcádia. Destes diz: “se
séc. xviii. Uma das contendas que pro- têm convertido em Momos não só para
tagonizou situou-se no quadro da con- atassalharem as minhas Poesias, mas as
trovérsia epistolar em torno da epopeia minhas prosas” (ANTT, Manuscritos da
A Conquista de Goa. Em busca de acolhi- Livraria, n.º 1052, fl. 138). E utiliza hi-
mento, submeteu esta obra ao juízo do lariantes e ácidas metáforas com o fim
árcade José Xavier Valadares e Sousa, em de ridicularizar o orgulho pedante dos
1757. Não aceitando a censura de que é críticos emergentes: “parecia-me, que
alvo, o autor argumenta contra a obses- seriam novos uns bigodes postiços para
são dos neoclássicos pela simplicidade, fazerem o papel de censores” (Ibid.);
própria do gosto literário francês. Opon- “Que coisa mais digna de chorar-se do
do-se a uma estética que almeja a um que um Menino, que ainda fede aos
universalismo supranacional (plasmado cueiros, queira empunhar a vara cen-
no ideal da República das Letras), Pina sória, e queira ser Mestre antes de ser

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AntiArcAdismo 117

Discípulo” (Ibid., fl. 139). Mais além do crítica romântica irá privilegiar. Neste
despeito, há que atender ao modo como caso, sobrepõe a capacidade de intuir
Pina e Melo perspetiva traços definido- e expressar o sentimento humano, figu-
res do neoclassicismo nas críticas que rado no “coração”, à urgência de cum-
adereça aos árcades. Em primeiro lugar, prir os preceitos da poética. Igualmente
a importação da cultura francesa: “este Garção, um dos mais ilustres poetas da
ajuntamento é uma Francesada que in- academia lisboeta, em “Sátira sobre a
tentou passar a moda dos vestidos para a imitação dos antigos” (1760), atenta na
Eloquência” (Ibid.). Tendo as suas éclo- atitude de conservadorismo e falta de
gas sido atacadas por Cruz e Silva, por originalidade perante a receção da he-
atribuir aspetos de rusticidade ao falar rança clássica. Rejeita, pois, a imitação
dos pastores, aponta com sarcasmo o servil dos poetas quinhentistas, fazendo
idealismo das convenções da estética ar- uma apologia da atualização das práticas
cádica, em que “até as saloias possam ser poéticas e linguísticas (“Camões dizia
espirituosas, e discretas” (Ibid.). Por fim, imigo, eu inimigo”), em suma, da adoção
no soneto, satiriza a introdução do ver- do “gosto livre” e da “frase nova”, na ida-
so branco na poesia portuguesa, do qual de das Luzes. À ironia de Garção não
diz: “não pode haver mais escuro” (Ibid., escapa ainda o simplismo dos árcades
fl. 140). “Fracos”, “espíritos opacos”, no recurso aos códigos do bucolismo:
“coisa nenhuma”, “cascavelada”, são ou- “Bastam as pinturas/de quatro bagate-
tros tantos epítetos que dão forma ao an- las: uma fonte, um bosque, um rio, um
tiarcadismo de Pina e Melo, visivelmente campo” (LAPA, 1941, 3 e 5).
ressentido pela falta de reconhecimento Embora social e politicamente forjado
que a sua poesia e idade provecta obtêm na matriz iluminista, o romantismo irá
junto dos poetas da segunda metade do afirmar-se em toda a Europa através de
séc. xviii. uma ofensiva contra os limites do racio-
Em 1759, um dos sócios da Arcádia Lu- nalismo clássico e as imposições de uma
sitana, José Caetano de Mesquita, enume- estética com raízes greco-latinas, alheia
ra alguns “vícios” do Arcadismo, em ses- ao particularismo das culturas nacionais.
são pública da academia. Na Oração sobre Nessa medida, à exaltação do sentimen-
a Restauração dos Estudos das Bellas Letras to, antítese do pretenso intelectualismo
em Portugal, faz referência ao “excesso na dos árcades, soma-se então um interes-
crítica” como algo de que o cultor das se pela pesquisa dos elementos góticos
belas-letras se deve precaver (FIGUEI- do mundo medieval cristão, anterior à
REDO, 1916, 201-202). Em consonância, afirmação quinhentista do classicismo
considera perniciosa a elaboração de humanista. Também às lendas e contos
prolixos documentos sobre questões de populares próprios do folclore nacional,
oratória clássica; e crê ser inútil a busca prenhes de um maravilhoso “inculto”,
obstinada das qualidades da harmonia e se passará a dedicar atenção. Expressivo
da suavidade em poesia, quando o que da rutura ocorrida na transição de uma
verdadeiramente importa é “o como se época para a outra, o romance Dona
hão de conhecer os homens” e como Branca, de Almeida Garrett, publicado
se lhes “há de ler o coração” (Id., Ibid., em 1826, funda-se na asserção de uma
202). À semelhança de Melo, também renúncia ao paganismo clássico, simbo-
Mesquita reage ao formalismo da poesia lizado na lira, insígnia da poesia antiga.
neoclássica apelando para valores que a O poeta propõe uma substituição deste

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118 AntiArcAdismo

instrumento e do seu canto pelo “alaú- natureza, que não pelos cálculos da arte,
de romântico” e pelas “coplas do amigo e operações combinadas do espírito”
trovador”, que se ouvem na “nossa terra” (Id., 1825, V).
(GARRETT, 1857, 2). Já a “Noticia” que Os artigos de Alexandre Herculano
precede o volume da Lyrica de João Mi­ publicados na revista Repositorio Litterario,
nimo (1829) começa com uma crítica ao em 1834 e 1835, respetivamente, “Qual
ambiente intelectual vivido em Lisboa é o estado da nossa litteratura? Qual é
nas décadas iniciais do séc. xix, e às con- o trilho que ella hoje tem a seguir?” e
siderações dos neoclássicos em torno das “Poesia: imitação – bello – unidade”, são
heréticas discrepâncias na poesia. Gar- os textos que melhor espelham uma ten-
rett lamenta serem poucos os tipos de tativa de analisar os princípios que nor-
composição poética permitidos pela “le- teiam a crítica clássica à luz da poética
gítima, pura e ortodoxa poesia lusitana” romântica, bem como a pretensão de
(Id., 1829, II). Educado no racionalismo assumir, definitivamente, um novo rumo
iluminista, e grande apreciador de Gar- nas letras portuguesas. No primeiro, tal
ção e da poesia dos primeiros árcades, como Garrett, Herculano comenta o es-
o autor considera negativamente, sobre- tado de decadência da crítica portugue-
tudo, a fase decadente do arcadismo, a sa do final do séc. xviii e primeiras dé-
partir do final de Setecentos. Estabelece cadas do séc. xix. Elogiando o trabalho
assim uma diferenciação entre o servilis- de recuperação do gosto levado a cabo
mo dos que se contentam em ser imita- pelos membros da Arcádia, atribui-lhes
dores de Horácio e de Byron, clássicos no entanto a responsabilidade pelo pre-
ou românticos, fazendo “odes com senso sente. Adverte, nomeadamente, para a
comum” (Id., Ibid., VII), e poetas como impotência da crítica clássica para travar
Bocage e Filinto, a quem a formação a erupção de sucessivos litígios em torno
arcádica não privou de fervor e talen- da qualidade das obras. A querela mais
to, que os tornou capazes de sacudir “o significativa, neste âmbito, diz respeito
jugo da imitação” para seguir “um trilho ao debate travado em torno da receção
novo” (Id., 1904, 358). Enquanto pionei- da epopeia O Gama, da autoria de José
ro do romantismo em Portugal, Garrett Agostinho de Macedo, refundida em
defende igualmente a originalidade e 1814 sob o título O Oriente. Pretendendo
a liberdade de expressão do indivíduo. o seu autor igualar em excelência Os Lu­
Na “Advertência” que antecede Camões, síadas, não se abstém de emitir comentá-
enfatiza a índole “absolutamente nova” rios depreciativos sobre a sua qualidade
deste poema. Opondo-se ao modo de lei- poética, o que vem a provocar acesas
tura da crítica clássica, e colocando em reações por parte de Pato Moniz (Exame
causa o calculismo que define o seu ideal Analytico e Parallelo do Poema Oriente do
de criação poética, refere sobre Camões: Reverendo José Agostinho de Macedo com a
“Conheço que ele está fora das regras; e Lusiada de Camões, 1815) e do Morgado
que, se pelos princípios clássicos o qui- de Mateus (nova edição de Os Lusíadas,
serem julgar, não encontrarão aí senão 1817), entre outros. Nesta troca de argu-
irregularidades, e defeitos. Porém decla- mentos, evidencia-se já um desgaste da
ro desde já que não olhei a regras, nem poética neoclássica, que tem ademais
a princípios, que não consultei Horácio, subjacente uma afirmação dos valores
nem Aristóteles; mas fui insensivelmen- de uma leitura romântica da obra de Ca-
te de pôs o coração, e os sentimentos da mões. Segundo Ofélia Paiva Monteiro, o

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AntiArcAdismo 119

“salvado a que chegavam estes lutadores tendemos como as paixões concebidas


acentuava que, por muitas infrações ao da maneira que as concebe o génio e
preceituário da epopeia que Agostinho aplicadas a um individuo, ou suposto ou
de Macedo e outros apontassem n’ Os Lu­ histórico, sejam uma imitação” (Id., Ibid.,
síadas, o poema de Camões empolgava a 39). Falando sobre a noção de imitação
imaginação e o sentimento, enquanto O do belo da natureza, tal como é descrita
Oriente, com a sua regularidade escrupu- na Arte Poética de Horácio, o autor leva
losa e as suas alegorias sem vida, era de ainda mais longe a ironia. Se só é belo
uma monotonia gelada” (MONTEIRO, o que é verdadeiro, e se só o verdadei-
2011, 177). Central no cânone do ro- ro pode ser imitado, porque diz respeito
mantismo português, a obra de Camões ao que tem modelo na natureza, então
vem, desta maneira, reverberar uma as criações da “fantasia” não podem ser
abertura crítica, que em parte se deve a belas, porque não existe na natureza um
uma primeira valorização do autor por modelo a partir do qual foram imitadas.
parte dos primeiros teorizadores do ro- No sentido de demonstrar a ausência de
mantismo (os irmãos Schlegel, M.me de fundamento da teoria horaciana, em jei-
Staël, Bouterweck, Sismondi). to de sátira recorda vários prodígios que
Em consonância com esta abertura, figuram na Odisseia, relevantes no plano
Herculano, partidário de uma aproxi- da inteligência: “Pobre Homero! Os teus
mação da metafísica ao domínio do li- ciclopes, o teu Polifemo, os monstros
terário, e defensor de uma “poesia mais de Caríbdis, enfim teus lindos sonhos
liberal”, inspirada nas ideias do mundo devem-nos arrancar uma gargalhada”
contemporâneo, contesta a cega obe- (Id., Ibid., 40). Em seguida, sondando a
diência dos autores do neoclassicismo conformidade dos textos das mais céle-
aos cânones da poesia antiga e ao “tropel bres epopeias europeias (Ilíada, Eneida,
de preceitos” que consideravam inviolá- Orlando Furioso, Os Lusíadas, Jerusalém
veis (HERCULANO, 1889, 8-9). Propõe Libertada) com os fundamentos da velha
ainda que se substitua o interesse pela poética, conclui que a todas falta o prin-
literatura de Gregos, Romanos e Fran- cípio essencial da unidade de ação. Tal
ceses pelo cultivo da literatura inglesa, ausência permite questionar o seu valor
sugerindo igualmente uma mudança enquanto modelos a seguir, de acordo
ao nível das autoridades poéticas: de com o sistema de representação clássico.
Boileau e Racine para Shakespeare e A presença da temática das cruzadas na
Milton. Já em “Poesia: imitação – bello – obra de Tasso dá ainda ensejo a uma crí-
unidade”, cresce o tom de animosidade tica que deixa entrever a visão de Hercu-
do autor de Eurico, o Presbítero para com lano acerca do racionalismo iluminista.
o despotismo literário que os neoclássi- Descreve pois os seguidores do neoclas-
cos impuseram à República das Letras. sicismo como “gélidos filhos do século
Ao fazer o escrutínio dos elementos da xviii”, desprovidos da generosidade, do
poética clássica (imitação, belo, unida- valor e do entusiasmo que torna o ho-
de, verdade, verosímil), procurando a mem capaz de sentir com profundidade
sua validade enquanto pilares da mes- o belo e sublime de grandes feitos histó-
ma, Herculano mostra estranheza ante ricos como o das cruzadas (Id., Ibid., 66).
o conceito de imitação aristotélico apli- O retrato dos neoclássicos assume con-
cado à representação das paixões huma- tornos mais definidos não só através da
nas: “Confessamos nossa rudeza; não en- alusão a uma frieza de sentimento, mas

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120 AntiArcAdismo

também da metáfora religiosa. Esta per-


mite conotar a atitude de subserviência
para com a autoridade literária, espelha-
da no imperioso cumprimento dos pre-
ceitos: “ficavam amparados por grandes
nomes e pelo respeito dos séculos [...]
como em nossas catedrais os cónegos à
sombra do culto religioso” (Id., Ibid., 28).
Herculano conclui “Poesia: imita-
ção…” com um enfático manifesto do
romantismo. Aqui, constatam-se duas
atitudes passíveis de definir o projeto
cultural romântico: anticlassicismo e
nacionalismo. A destruição do sistema
da escola clássica serve, antes de mais, o
objetivo de afirmar a premência da nova
estética. A definição de poesia apresen-
tada pelo autor traz para o centro da
teoria estética um novo conceito, o con-
ceito de expressão, que assim substitui o Almeida Garrett (1799-1854).

conceito clássico de imitação (“A poesia


é a expressão sensível do belo por meio Na qualidade de herdeiro do romantis-
de uma linguagem harmoniosa”). Em mo, embora exercendo o ofício de poeta
vez de buscar o cumprimento de regras, num momento em que outras correntes
o crítico deve buscar a ideia que cons- estéticas ganham relevo em Portugal,
trangeu o poeta a revelar-se ao mundo Antero de Quental censura o classicismo
em cantos harmoniosos, e.g., a ideia de do século das Luzes de forma análoga.
glória nacional em Os Lusíadas. O senti- A sua crítica insere-se, porém, numa vi-
mento do belo depende de uma dimen- são de maior alcance sobre o evoluir da
são íntima, que parte do sujeito, e do história cultural do país. Em Causas da
modo como este se projeta no mundo e Decadência dos Povos Peninsulares (1871),
nas obras, e não da mera representação atribui a razão do “gosto pesado e insípi-
(distanciada, prescrita) da natureza e do do Classicismo” à falta de sentimento
das paixões humanas. Para terminar, o e inventividade que afeta o povo portu-
abandono do classicismo opera-se pela guês desde a ocupação filipina até finais
instigação a que os Portugueses voltem a de Oitocentos. Barroco e neoclassicismo
uma literatura sua, uma literatura entre- são abrangidos numa mesma visão de-
tecida no amor à pátria. No entender de preciativa, monolítica, sobre os últimos
Herculano, e em termos similares aos de três séculos da cultura portuguesa. Na
Garrett no início de Dona Branca, urgia sua perspetiva, a literatura surge como
substituir todos os elementos da estética espelho da apatia e pobreza espiritual de
greco-romana pela mitologia nacional – todo um povo. “A poesia, depois da exal-
mais concorde com as ideias morais que tação estéril, falsa, e artificialmente pro-
constituem a nação portuguesa – na poe- vocada do Gongorismo, depois da afeta-
sia narrativa, e pela religião, a filosofia e ção dos conceitos [...], cai na imitação
a moral na lírica (Id., Ibid., 69). servil e ininteligente da poesia latina,

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AntiArcAdismo 121

portuguesa, na ótica da crítica românti-


ca. Não obstante os comentários depre-
ciativos, Garrett e Herculano reconhe-
cem a importância do neoclassicismo na
recuperação do “bom gosto” nas letras
portuguesas, depois de mais de um sécu-
lo de literatura barroca. As suas críticas
dirigem-se fundamentalmente ao modo
de fazer censura, não tanto à qualidade
das obras deste período. Contudo, pre-
tendem traçar um novo destino para a
literatura, rompendo assim com o velho
classicismo, que na idade das Luzes teria
assumido contornos de “fanatismo lite-
rário” (HERCULANO, 1889, 68). Com o
romantismo, chega ao fim um período
de 300 anos em que o fazer literário se
orientou por pressupostos alicerçados
na revisão do classicismo levada a efeito
Alexandre herculano (1810-1877).
durante o Renascimento. O novo ascen-
dente da filosofia e da história sobre a
naquela escola clássica, pesada e frades- literatura compagina-se, agora, com o
ca, que é a antítese de toda a inspiração afastamento relativamente a um para-
e de todo o sentimento. Um poema digma crítico apoiado na retórica e nas
compõe-se doutoralmente, como uma convenções poéticas clássicas.
dissertação teológica”. Antero lamenta Uma vez esboçado o percurso de uma
com pesar a feição quase plagiária que a linha de pensamento antiarcádico na
produção dos árcades assume, por privi- cultura portuguesa, podemos concluir
legiarem a citação e o pastiche de autores que o seu início se fixa, ainda de modo
antigos nos seus poemas, sujeitos deste disperso, nas primeiras vozes que reagi-
modo a um ideal de tradução em tudo ram contra a crítica clássica, ao tempo de
antagónico ao moderno ideal de origi- funcionamento da Arcádia Lusitana, ins-
nalidade. Para Antero, a poesia clássica tituição fundamental na concretização
redunda num artificialismo estranho, do projeto literário iluminista. O pensa-
por um lado, à “verdade humana” e ao mento antiarcádico vem a consolidar-se
“sentimento popular e nacional”, e, por posteriormente, durante o período de
outro, à descrição comezinha “dos expe- afirmação das ideias do romantismo, as-
dientes da vida ordinária” (QUENTAL, sumindo então uma consistência crítica
1871, 15-16). antes inexistente. Apesar de se situarem
Dissertativo, autoritário, erudito, fra- em momentos distintos, é notória uma
desco, servil, fautor do litígio entre poe- continuidade entre ambas as reações.
tas, mesquinho e pedante, interessado Com efeito, vários dos argumentos uti-
na vida ordinária e, ao mesmo tempo, lizados por Herculano e Garrett estão
alheio ao sentimento nacional e popu- presentes, de forma embrionária, no dis-
lar, são alguns dos traços que caracte- curso dos autores setecentistas, árcades
rizam o período arcádico da literatura e não árcades, que contra o formalismo

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122 AntiArcAdismo

imperante nas práticas literárias dos só- Alcipe e a Sua Época, Lisboa, Colibri/Funda-
cios da academia lisboeta se manifesta- ção das Casas de Fronteira e Alorna, 2003,
ram. Em termos gerais, esses autores rea- pp.  9-19; FIGUEIREDO, Fidelino de, Historia
da Critica Litteraria em Portugal da Renascença á
gem contra o excesso de preceituação e
Actualidade, 2.ª ed. rev., Lisboa, Livraria Clássi-
de crítica, a imitação servil dos antigos
ca, 1916; FREIRE, Francisco José, Arte Poetica,
e o francesismo que se apoderavam da ou Regras da Verdadeira Poesia em geral, e de To-
literatura portuguesa. Em Garção, esta das as Suas Especies Principaes, Tratadas com Juizo
contestação denota uma atitude incon- Critico: Composta, e Dedicada ao Senhor Filippe de
formista, que dá lugar a uma obra origi- Barros de Almeida, Cavalleiro da Insigne Ordem Mi-
nal no seio da academia. litar de S. Joaõ de Malta, &c., Lisboa, Officina
O interesse romântico pela estética do de Francisco Luiz Ameno, 1748; GARRETT,
Almeida, Camões, Poema, Paris, Livraria Na-
sublime reveste-se do intento de devol-
cional e Estrangeira, 1825; Id., Lyrica de João
ver a literatura aos grandes temas do hu- Minimo, Londres, Sustenance e Stretch, 1829;
mano. Na senda de uma elevação do lite- Id., Dona Branca, 3.ª ed., Lisboa, Imprensa
rário acima da pequenez do quotidiano Nacional, 1857; Id., Obras Completas de Almei-
(recorde-se o desprezo de Quental pela da Garrett, ed. pref., rev., coord. e dir. Teófilo
descrição dos expedientes da vida or- Braga, vol. 2, Lisboa, H. Antunes Livraria Edi-
dinária), institui-se uma relevante opo- tora, 1904; HERCULANO, Alexandre, Opuscu-
los, 3.ª ed., t. ix (t. i), Lisboa, Bertrand, 1889;
sição aos valores da simplicidade e do
LAPA, Manuel Rodrigues, Poetas do Século XVIII
objetivismo que os árcades procuraram (Árcades e Pre-Românticos), Lisboa, s.n., 1941;
resgatar na poesia. Contudo, a procura MONTEIRO, Ofélia Paiva, “Camões e o ro-
da autenticidade do sentir, que anima mantismo português”, in SILVA, Vítor Aguiar
os poetas românticos, não está tão longe e (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa,
como parece a Herculano e à crítica ro- Caminho, 2011, pp. 176-182; QUENTAL, An-
mântica do princípio de verdade que os tero de, Causas da Decadência dos Povos Peninsu-
neoclássicos perseguem desde Boileau. lares nos Últimos Três Séculos: Discurso Pronunciado
na Noite de 27 de Maio, na Sala do Casino Lisbo-
A mudança essencial residirá na substi-
nense, Porto, Tip. Comercial, 1871; SARAIVA,
tuição de um conceito de representação A. J., e LOPES, Óscar, História da Literatura Por-
baseado na razão, e na imitação como vi- tuguesa, 17.ª ed., Porto, Porto Editora, 2005.
são, por um ideal de poesia que implica
Marta Marecos Duarte
o sujeito poético, e toda a exaltação do
sentimento que lhe é inerente, no repre-
sentado.

Bibliog.: manuscrita: ANTT, Manuscritos


da Livraria, n.º 1052 (16 e 17), Colecção de
Manuscriptos Historicos em especial de Algumas
Sentenças, t. vii, 1803, fls. 138-140; impres-
sa: DELEHANTY, Ann T., Literary Knowing in
Neoclassical France: from Poetics to Aesthetics,
Maryland, Lewisburg Bucknell University
Press, 2013; “Estatutos da Arcádia de Lis-
boa”, Jornal de Coimbra, vol. 16, pt. 2, n.º 88,
1820, pp. 130-146; FERRAZ, Maria de Lour-
des A., “Da Arcádia ao romantismo: a poe-
sia entre o drama e a narrativa”, in SOUSA,
Maria Leonor Machado de et al. (coords.),

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AntiAristocrAcismo 123

Antiaristocracismo Platão, ao descrever as várias formas de


governo, considerou a aristocracia o go-
verno ideal, evidenciando a vantagem de
ser este grupo a dirigir os cidadãos, devi-
do à sua superioridade na filosofia e na
guerra. Esta abordagem foi completada
por Aristóteles, que apontava este sistema

Q ualquer reflexão sobre a aristocra-


cia é passível de se estender quase
indefinidamente. O tema da aristocracia
como o governo de alguns e dos melho-
res, e como aquele que visava garantir a
prosperidade do Estado e dos seus mem-
é recorrente ao longo da história da hu- bros. Neste cenário, a oligarquia surgia
manidade e os múltiplos sentidos deste como a forma degenerada da aristocra-
conceito vêm complexificar a já intricada cia, sendo esta última incluída no pata-
trama. O tema inclui as críticas à aristo- mar dos melhores regimes, apesar de a
cracia enquanto forma de governo ou re- sua exequibilidade não ser garantida.
gime político autocrático, por um lado, e Miguel Morgado constatou que, curio-
enquanto grupo social, por outro. O foco samente, apesar de não ter existido ne-
desta análise serão sobretudo os sécs. xvii nhum exemplo prático de aristocracia
e xviii, ambos profícuos neste debate, se- – enquanto forma de governo –, houve
guindo até ao séc. xix, no qual o debate ao longo dos séculos uma persistência no
em torno da aristocracia enquanto grupo valor desta alternativa. Assim, encontra-
social foi permutado para uma discussão mos em certos teóricos, como Jean Bodin
em torno das elites. em Six Livres de la Republique, um reconhe-
O termo “aristocracia” deriva das pala- cimento da validade do princípio aristo-
vras gregas “aristos”, o melhor, e “kratos”, crático, ao considerar que a soberania
poder/governo. Quando usados por Tu- pertencia aos mais dignos; entre estes, ha-
cídides, Xenofonte, Platão ou Aristóteles, veria sempre um que superaria e lideraria
nos sécs. v e iv a.C., os vocábulos “aris- todos os outros e, portanto, a soberania
tokratia”, “aristokratikos” e “aristokrateis- última pertenceria a esse, sendo a monar-
thai” mantiveram o significado primário quia “a verdade última do princípio aris-
de “governo de poucos que são moral- tocrático” (MORGADO, 2008, 26).
mente os melhores” (FISHER e WESS, Porém, outros autores, como Maquia-
2015, 5), não indicando necessariamente vel, Hobbes, Castiglione, Montesquieu,
um grupo cujo poder era justificado pelo Burke e Rousseau, consideraram que o
nascimento; ainda que o nascimento no- modelo da aristocracia era incompatível
bre pudesse aparecer como um dos cri- com os ideais basilares instalados, sen-
térios de virtude moral, juntamente com do portanto esta alternativa reprovada.
a riqueza, a educação e a coragem, entre Na verdade, para Miguel Morgado, a as-
outros. censão do pensamento democrático na
Heródoto elaborou uma classificação época moderna em muito repousou na
tripartida de sistemas de governo, em crítica às alternativas, e, por conseguin-
que a aristocracia surge como o governo te, na rejeição da aristocracia. Assim, e
de alguns, e é colocada em contraponto, como Rui Ramos mostrou, Almeida Gar-
quer com a monarquia – governo de um rett procede, no periódico O Português, a
–, quer com a democracia e a república, uma comparação entre os efeitos de uma
governos da generalidade. Por sua vez, democracia e de uma aristocracia sobre

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124 AntiAristocrAcismo

o povo, considerando que, no primeiro com a inclusão dos plebeus no consula-


regime, os cidadãos confundiriam o seu do, em 366, se nota uma viragem, através
amor próprio com o da pátria, fomentan- da criação de um precedente político e
do os partidos e desprezando os interes- social que não dependia da linhagem
ses domésticos, enquanto numa aristocra- (EDER, 2002, 1110).
cia entregariam os assuntos do governo Para A. J. Brito, a nobreza só se com-
aos seus maiores (RAMOS, 2012, 181). preende em sistemas como a monarquia,
Por este motivo, a aristocracia foi rejeita- o que não acontece necessariamente com
da, quer em termos morais, como sociais, a aristocracia. Por outro lado, o termo
como intelectuais. “elite” apresenta-se muitas vezes como
Por sua vez, a aristocracia enquanto um sinónimo de aristocracia – remeten-
grupo social é por norma definida como do para a doutrina da circulação de eli-
uma elite que assume uma posição de tes. Pode-se assim confundir os movimen-
predomínio ou de relevância sobre o co- tos antiaristocráticos com os antielitistas
letivo, nos foros económico, militar, polí- (&Antielitismo).
tico e intelectual. Uma das características Por outro lado, há um problema siste-
da aristocracia na Antiguidade clássica é a mático em muitos estudos que observam
aretê, ou conjunto de valores e caracterís- as aristocracias contemporâneas: a per-
ticas da nobreza. Desde Platão que estes sistência em contar a sua história numa
valores se demarcaram como um critério perspetiva de declínio. Com efeito, pre-
distintivo da aristocracia, um critério ou sume-se frequentemente que as elites,
ideal que continuou a ser perseguido até sobretudo depois da Revolução Francesa,
ao séc. xviii. Este critério da excelência estiveram numa posição de defesa, de de-
incluía alguns elementos já referidos, sintegração e de decadência. Porém, El-
como a riqueza, a destreza na guerra e lis Wasson, na sua obra Aristocracy and the
nas competições atléticas, a sabedoria Modern World, apresenta uma perspetiva
e a eloquência, a beleza ou a aparência de continuidade, resiliência e adaptabili-
elegante, a educação e a cultura. Assim, dade; para este autor, até 1945, na grande
certas designações em conjunto pres- maioria dos Estados europeus – excluin-
supunham uma categorização dos que do o caso da Rússia –, a aristocracia con-
eram considerados aristocratas; algumas tinuou a ter um papel fulcral na política,
delas eram mais facilmente identificáveis na economia, na sociedade, na ciência e
em famílias nobres, mas sem haver uma na cultura (WASSON, 2006, 4).
conexão necessária entre nascimento no- Se passarmos esta análise para o caso
bre e poder. português, é interessante notar que, nos
Já em Roma o panorama era diferente. dicionários do séc. xviii e xix, apenas
Aqui, o grupo dos aristocratas teve a sua se contempla o termo “aristocracia” en-
origem nos patricii, os patrícios, que justi- quanto forma de governo, sem haver re-
ficava a sua posição, autoridade política e ferência ao sentido de grupo social. Para
religiosa não somente através do critério Rafael Bluteau, a aristocracia consistia
do nascimento, mas também reforçando em “uma espécie de República, governa-
a sua rede clientelar. Apesar das grandes da pelos mais nobres e melhores sujeitos
alterações conjunturais introduzidas ao do Estado”, sendo o governo aristocráti-
longo da República e do Império, os pa- co constituído pelo governo de muitos
trícios mantiveram-se um grupo fechado senhores e de muitos tiranos, “o que for
e com certos privilégios sociais. Somente mais poderoso, arrastará os que o não

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AntiAristocrAcismo 125

forem tanto, conservará as parcialidades visigoda. Esta nobreza representava uma


e serão as decisões filhas mais do poder elite, um pequeno grupo no vasto con-
que da liberdade e justiça” (BLUTEAU, junto dos vassalos. Oliveira Marques afir-
1712, 495-496). Também António de Mo- ma que toda a nobreza estava vinculada à
rais Silva definiu a aristocracia como uma noção de privilégio e à ideia de constituir
forma de governo no qual os direitos ma- a classe defensora da sociedade. Grandes
jestáticos residiam em poucos homens, ou pequenos, os nobres não deviam pres-
“os mais nobres por merecimento ou nas- tações à Coroa, estando isentos da legis-
cimento”, que representavam a soberania lação civil, criminal e processual comum
nacional. Morais Silva introduz outro ter- aos restantes vassalos. Dispunham de tri-
mo, “aristodemocracia”, que é o governo bunais próprios e não estavam sujeitos a
dos nobres e do povo juntamente (SILVA, determinadas penas. E, ainda que a linha-
1789, I, 168), que hoje é definido como gem nem sempre fosse um fator que os
um governo misto. Por sua vez, este autor diferenciava, na verdade, o apelido surgia
qualifica a nobreza como dependente da como um elemento de distinção entre
lei ou da vontade do soberano: “Nobre um nobre e um vilão.
quer dizer literalmente o que é conheci- No começo da Idade Moderna surgi-
do: e no sentido mais particular, em que ram obras como Il Cortegiano (1528), de
aqui o tomamos, exprime a qualidade do Baldassare Castiglione, e Civilidade Pue­
homem, que é distinto dos plebeus; que ril, de Erasmo de Roterdão. A primeira
tem a qualificação legal da nobreza” (SIL- apresenta o cortesão perfeito como um
VA, 1789, II, 360), sendo esta herdada homem universal, tão hábil com as armas
dos avós ou adquirida por merecimentos como com a pena, capaz de cantar, dan-
e serviços. Morais Silva referiu ainda a çar, pintar, escrever poesia e cortejar as
existência de um outro tipo de nobreza, damas, enquanto a segunda, adotando o
qualificada pelos seus talentos, virtudes mesmo ponto de vista, surge como um li-
e ações, uma qualificação que dependia vro de conselhos de bom comportamento
principalmente do mérito próprio e da para os jovens; ambas se aproximam da
opinião dos homens, e não da vontade da noção de aretê. Tratava-se de uma nobreza
lei e dos príncipes. subordinada ao rei mas poderosa em re-
Se considerarmos a conceção de nobre- lação aos outros grupos sociais.
za como análoga à de aristocracia em cer- Na verdade, o processo de centrali-
tos períodos históricos, devemos referir zação do poder e, por conseguinte, de
que neste grupo se encontravam maiori- fortalecimento do poder régio que ca-
tariamente os núcleos responsáveis e diri- racteriza o Estado moderno transformou
gentes da sociedade, um grupo de indiví- a posição e a função da aristocracia. Foi
duos a quem era concedido um conjunto sobretudo a partir do séc. xvi que se as-
de privilégios que eram fonte de digni- sistiu à consolidação territorial dos Esta-
dade ou título, que podia ser concedida dos europeus e esse avigoramento serviu
diretamente pelo rei ou provir dos pais. em parte para a afirmação do poder dos
A nobreza portuguesa, tal como a cas- monarcas. Numa progressiva legitimação
telhana, surgiu da prestação de serviços e justificação do seu poder, o príncipe
ao rei, da ocupação de importantes car- surgia como o garante da manutenção
gos administrativos, da posse de bens da ordem do Estado e da sua invulnera-
territoriais ou, em alguns e raros casos, bilidade perante os poderes estrangeiros.
da continuação da chamada aristocracia Decorreu assim, por toda a Europa, um

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126 AntiAristocrAcismo

processo de centralização do Estado que, última metade do séc. xvii e primeira


em parte, resultou no enfraquecimento do séc.  xviii, ocorreu em Portugal um
dos grandes senhores feudais, num esfor- processo que Jorge Borges Macedo de-
ço teórico que apontava para um novo nominou de funcionalismo independen-
conceito de soberania, inclusive popular, te e que permitiu o disciplinamento da
fundamentada em Hobbes e Espinosa. nobreza metropolitana, deixando esta de
Assim, na transição do séc. xv para o ser o único elemento de coordenação ad-
xvi, deu-se em Portugal a chamada ur- ministrativa e política; simultaneamente,
banização da aristocracia, a maioria de ampliou-se o papel dos nobres que pres-
cujos membros se instalou em palácios tavam serviço no ultramar, mantendo-se
nas cidades, dedicando-se em grande também as funções administrativas e ju-
medida à exploração africana e ultrama- rídicas da nobreza provincial, particular-
rina. Este processo seria reforçado nos mente no Norte de Portugal.
sécs. xvii e xviii, altura em que se assistiu Mas se, ao longo dos séculos, as caracte-
ao triunfo da monarquia. Em Portugal, rísticas da nobreza se foram modificando,
até ao séc. xviii, não se formaram gran- em Portugal este grupo subsistiu, pelo
des movimentos intelectuais, contra ou menos até à instauração da república,
a favor, da aristocracia – enquanto for- sem grandes objeções populares. Mesmo
ma de governo – nem mesmo contra a na Grã-Bretanha, ao contrário do que
nobreza. Mas verificou-se uma alteração seria de esperar, o período entre a Revo-
progressiva das funções destinadas à no- lução Gloriosa de 1689 e o início do alar-
breza: este grupo deixou de se dedicar gamento do sufrágio, em 1832, parece
exclusivamente à guerra e à direção do ser marcadamente aristocrático, nomea-
Estado, e passou a ocupar um papel mais damente por haver um predomínio da
relevante na corte e a exercer um conjun- Câmara dos Lordes na vida política.
to de atividades mais amplas, e.g., na vida As críticas que se faziam à nobreza nos
diplomática e, no caso português, no trá- sécs. xvii e xviii apontavam a má condu-
fego e nas capitanias navais. ta, o desleixo, a corrupção e a decadên-
Paralelamente, foram sendo inseridos cia de muitos destes indivíduos e famí-
em cargos governamentais membros lias nobres, que abusavam dos privilégios
da alta burguesia, com maiores qualifi- e regalias que lhes eram concedidos; ver,
cações. Poderemos considerar também entre outros, os trabalhos de D. Fran-
esta uma tendência antiaristocrática? Na cisco Manuel de Melo e do P.e António
verdade, e apesar de ocorrer uma trans- Vieira. No fundo, criticavam-se aqueles
formação do corpo que compunha os que se afastavam da imagem idílica que
cargos estatais – sobretudo administrati- se tinha desta classe, não cumprindo as
vos e legistas –, os membros da nobreza suas obrigações.
detinham ainda uma preponderância so- Duarte Ribeiro de Macedo, um di-
cial e militar, que assentava na sua riqueza plomata enviado às cortes de Paris e de
territorial e perícia técnica; assim, e.g., a Madrid, faz transparecer essas mesmas
nobreza com interesses ultramarinos e críticas na obra Verdadeiras Cauzas da Pros­
intervenção governativa direta (vice-reis, peridade da Monarchia de França e Declina­
governadores, capitães de fortaleza, etc.) ção da de Castella (1680) e numa boa par-
era um elemento essencial na engrena- te da sua correspondência. O diplomata
gem do Estado e, consequentemente, português comentou maioritariamente a
gozava de grande autonomia. Assim, na nobreza espanhola, que considerava ser

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AntiAristocrAcismo 127

dominada pelo vício e a ignorância, ao instituições, na Alemanha proporcionou


contrário da nobreza francesa. Ribeiro de a criação de um movimento literário de
Macedo destacava uma diferença essen- matriz aristocrática. Em Portugal, foi du-
cial entre França e Castela, que acabava rante o reinado de D. José I que os ideais
por influenciar todos os restantes aspe- iluministas se disseminaram. Estes apon-
tos: enquanto em Castela se valorizava a tavam para uma sociedade mais justa e
ascendência do indivíduo, atribuindo-se esclarecida, que acreditava no valor da
os cargos de alta chefia com base nos títu- razão, no espírito da tolerância e no esta-
los nobiliárquicos, em França valorizava- belecimento de um novo tipo de organi-
se o mérito individual, sendo esse o crité- zação social, que no seu extremo previa o
rio de escolha para as mais altas funções fim dos privilégios da nobreza e do clero.
estatais. Nessa sociedade, cada nobre era Foi neste reinado que se pôs em prática
compelido à excelência e não à indolên- políticas de limitação da autonomia e do
cia. O diplomata acrescentava que, em poder da nobreza com cargos ultramari-
França, o estado da nobreza era fértil, nos e de diversos grupos da nobreza re-
porque estes indivíduos eram capazes gional, visando precisamente retirar-lhe a
de ocupar uma grande variedade de fun- independência de que usufruía frente ao
ções, pela boa educação que tinham. Na- rei e ao Estado.
turalmente, verificava-se o contrário em Neste campo, interessa-nos o trabalho
Espanha, onde se vivia em suma ociosida- de António Ribeiro Sanches, nas Cartas
de. Ribeiro de Macedo considerava que sobre a Educação da Mocidade, publicadas
a boa preparação dos nobres ajudava ao em 1759. Chamado a intervir nas refor-
bom governo das monarquias, pois aque- mas educativas da segunda metade do
les serviam o seu príncipe com a maior séc. xviii, “porque sua Majestade consi-
qualidade possível. Pelo contrário, uma derava necessários capitães para a defe-
nobreza esquecida da arte militar, cria- sa, conselheiros, juízes, administradores,
da entre os passatempos da corte, segura embaixadores e outros ministros públicos
pelo seu nascimento de ocupar os cargos doutos e experimentados”, para Ribeiro
mais importantes conduzia a um desleixo Sanches a educação não ficaria comple-
na sua atividade e provocava a ostentação ta se fosse somente dedicada à mocida-
de riqueza na corte, prejudicando o te- de nobre. A criação das escolas públicas
souro real. proporcionaria a educação a mercadores,
Não encontrámos, porém, uma análise diretores de fábricas e arquitetos de “mar
semelhante relativa à nobreza portugue- e terra” (SANCHES, 1922, 3), tornando
sa, que neste âmbito não é descrita nas possível a sua introdução nas artes e ciên-
suas cartas. Temos ainda de acrescentar cias. Este autor defendia que todos os
que esta visão negativa da nobreza espa- súbditos deviam ser considerados iguais,
nhola pode ser fruto de propaganda an- argumentando que a maior ruína de um
ticastelhana (&Anticastelhanismo), resul- Estado se encontrava na desigualdade de
tado de uma memória ainda recente do obrigações e direitos: “uns com obrigação
domínio filipino e da continuação dos es- e obedecer, e outros absolutos; uns sujei-
forços de afirmação de Portugal perante tos às justiças, e outros sem nenhum Im-
os outros Estados europeus. pério” (Id., Ibid., 4).
A filosofia das Luzes materializou-se em Ainda assim, para Ribeiro Sanches, a
diferentes formas na Europa; enquanto existência de um grupo social privilegia-
em França se revestiu em duras críticas às do como a nobreza era justificada: “Como

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128 AntiAristocrAcismo

o Príncipe Soberano não pode exercitar


todos os cargos [...] o que faz é dar estas
varias incumbências àqueles súbditos que
forem mais capazes de as exercitar, e cum-
prir [...]. Aquela distinção de Nobreza, e
da Fidalguia, provém somente do Poder
do Soberano, e não da ascendência, nem
da geração: porque todos os súbditos pelo
juramento de fidelidade são iguais, como
fica demonstrado” (Id., Ibid., 22). E pros-
segue, fazendo uma abordagem evolutiva
das particularidades deste grupo e critica
a escolha de nobres iletrados para altas
funções estatais, por conduzir a um cená- Ribeiro Sanches (1699-1783).
rio no qual tanto conselheiros como gene-
rais desconhecem os princípios do Estado As reformas pombalinas na educação vi-
civil e as obrigações da sociedade. saram precisamente a criação do Real
Ribeiro Sanches define como priori- Colégio dos Nobres, uma solução que,
dade a abolição total das leis góticas que porém, não teve sucesso.
sustentavam os “privilégios da nobreza e Ao se caminhar para o fim do séc. xviii,
as imunidades dos eclesiásticos, aos quais aumentou o debate em torno da justifica-
contrariarão sempre todo o bom governo ção dos privilégios da nobreza caso esta já
civil” (Id., Ibid., 76). Enquanto existisse não tivesse uma função social. O debate
este tipo de obstáculos, seria impossível facilitou a crítica futura do liberalismo e
introduzir uma educação universal da a evolução para um conceito de nobreza
mocidade. Considerava que os desembar- como forma honorífica, sem prejuízo do
gadores que propunham tais ordenações princípio da igualdade perante a lei. De
não sabiam de facto a diferença entre facto, nas últimas décadas do séc. xviii,
uma monarquia fundada e conservada fervilhavam em França críticas aos privi-
com a espada e aquela fundada pelo tra- légios que o nascimento reservava aos no-
balho e a indústria. Eram esses mesmos bres, que muitos consideravam iletrados
privilégios e imunidades que causavam e ociosos, invocando os direitos huma-
a depravação dos costumes; destruída a nos da liberdade e igualdade. Muito do
igualdade, não haveria justiça, proprieda- que foi escrito pelos filósofos iluministas
de de bens ou respeito aos magistrados. teve um profundo impacto e foi seguido
O abuso dos privilégios e a ausência de por uma corrente satírica e de ridículo,
uma educação adequada conduzia à in- que retratava os membros da aristocracia
tolerância e ao desrespeito de muitos fi- como parasitas e moralmente corruptos.
dalgos pela igualdade, fazendo com que Os ataques também eram dirigidos à Igre-
se considerassem livres para cometer ja e a secularização era encorajada. O mé-
qualquer excesso e destruindo o vínculo rito tornou-se o critério do progresso so-
essencial da sociedade. A solução apre- cial. As instituições seriam julgadas pela
sentada por Ribeiro Sanches passava pela razão e pela sua utilidade, e não pela sua
criação de uma escola real para nela se- antiguidade.
rem educados os nobres que, no futuro, O que à primeira vista pode parecer
serviriam o rei de forma mais esclarecida. contrastante é que os próprios membros

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desta aristocracia desafiaram os pressu- A Revolução Francesa fez eclodir por


postos e as práticas fundamentais do An- toda a Europa os princípios democráti-
tigo Regime. Na verdade, eram estes indi- cos e liberais, fazendo tremer a ordem
víduos que enchiam os cafés e salões das social vigente. Sucintamente, defendia-
cidades com críticas à sociedade vigente. se a liberdade individual, a liberdade de
Observa Wasson que uma boa parte da imprensa e de religião, o livre comércio,
aristocracia francesa e inglesa aproveitou a propriedade privada, os direitos civis
e fomentou a crítica e o escárnio a um pe- e as eleições democráticas. À definição
queno grupo de nobres mais provinciais. legal dos grupos sociais através de pri-
Foi também neste contexto que sur- vilégios, característica das sociedades
giu, entre tantos outros, o panfleto de anteriores ao liberalismo, opõe este um
Emmanuel Joseph Sieyès Qu’Est­ce Que le princípio bastante diferente: o conceito
Tiers­État?, de 1789, que combateu forte- de igualdade entre os cidadãos perante a
mente os privilégios da nobreza e simul- lei, transferindo para outras modalidades
taneamente, se bem que de forma menos a forma como se distinguiam os grupos
acentuada, a monarquia. Ao desenvolver sociais (o que não significa necessaria-
o conceito de nação, Sieyès exigiu que os mente que estes ideais fossem levados à
privilégios conferidos à nobreza fossem prática). Porém, como realça Wasson, a
justificados. A nação, no ver do autor, “é Declaração dos Direitos do Homem e do Cida­
um corpo de associados que vivem segun- dão (1789) acompanhou os rascunhos já
do uma lei comum e são representados compostos pelo marquês de Lafayette; e
pela mesma legislatura […]. O terceiro muitos foram os nobres que participaram
estado abrange, pois, tudo o que perten- nos corpos legislativos entre 1789 e 1791
ce à nação” (SIEYÈS, 2009, 78-79). Desta em França. Ademais, a resistência aos
maneira, a nação era um soberano que exércitos napoleónicos revigorou a Euro-
suplantava o rei e a detentora de uma le- pa aristocrática, reforçando os membros
gitimidade respeitante apenas aos que se deste grupo como líderes militares e fiéis
reconheciam nela. Assim sendo, os refra- servidores do Estado.
tários, mesmo que fossem franceses, não Em Portugal, assistiu-se, ao longo de
pertenciam à nação – e Sieyès referia-se todo o séc. xix, à introdução de uma
especificamente aos privilegiados do pri- multiplicidade de medidas talvez antiaris-
meiro e do segundo estados. tocráticas, como lhes chama Joel Serrão,
Para este autor a usurpação de todos os assentes no art. 9.º da Constituição de
lugares lucrativos pelos privilegiados era 1822, que consagrava a igualdade de to-
uma “traição à coisa pública” (Id., Ibid., dos perante a lei. Entre elas, contam-se a
77). O conceito de nação identificava- abolição das tenças e mercês, e a extinção
se apenas com o terceiro estado, e todo dos morgados (1832) – ainda que esta úl-
aquele que era privilegiado pela lei saía tima medida inicialmente visasse apenas
da ordem comum e, por isso, não perten- a nobreza ilegítima ou com vínculos eco-
cia à nação. Para Sieyès, o bem comum nómico-sociais de menor importância.
seria entendido quando se valorizasse o Contudo, no início do séc. xix, José
mérito e não o sangue, quando todos os Seabra da Silva definia a nobreza como
Franceses pudessem ter direito às isen- o corpo mais respeitável dos Estados, de-
ções que até então estavam apenas ao nominado aristocracia. Já o povo era o
alcance dos membros dos dois primeiros menos considerado mas ao mesmo tem-
estados. po aquele com mais potencialidade, que

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130 AntiAristocrAcismo

Seabra da Silva designava por democra- te a corrupção da elite” (RAMOS, 2012,


cia. Estes corpos constituíam as Cortes e 175-176). Mais do que uma oposição à
estas últimas representavam a nação. Sea- aristocracia, apontavam-se críticas às eli-
bra da Silva apontava a importância de tes – num movimento cada vez maior
manter estes corpos sociais no seu lugar com o avançar do século – à medida que a
dentro da monarquia, seguindo um go- nobreza perdia o lugar na administração
verno misto. Para Rui Ramos, esta mesma e nos altos cargos do governo. Num arti-
perspetiva está patente numa obra ante- go publicado no verão de 1851, Alexan-
rior, a Dissertação a favor da Monarquia, pu- dre Herculano interpretou os resultados
blicada em 1799 por D. Fernando Teles das revoluções em França como uma des-
da Silva, 3.º marquês de Penalva. Nesta locação nas classes superiores, no sentido
obra, a monarquia e a república surgem de substituir a fidalguia pelo “capital ou
como formas de administração opostas, e cultura intelectual” (Id., Ibid., 182-183).
a democracia e a aristocracia não são tra- Na déc. de 40 do séc. xix, um deputa-
tadas como regimes, mas como corpos so- do setembrista, ao descrever as secções
ciopolíticos, usando-se o caso inglês para do Parlamento, apontou a democracia
exemplificar a união dos dois. Seabra da – do lado esquerdo – como a represen-
Silva considerava mais fácil alcançar a li- tante dos pobres e o lado direito – a
berdade e a igualdade numa monarquia aristocracia – enquanto representante
do que numa república, porque, nesta úl- dos ricos e das graças do governo. Não
tima, a multitude de vozes dificultaria a se refere aos membros da velha nobre-
tomada de decisões. za ou da aristocracia fixa, porque con-
A primeira constituição portuguesa, siderava que estes praticamente já não
já referida e que data de 1822, estabe- existiam. Por outro lado, a Câmara dos
leceu, resumidamente, a separação dos Pares, em funcionamento durante a vi-
poderes, consagrou as liberdades funda- gência da Carta Constitucional (1826-
mentais e os direitos dos cidadãos, pôs -1828; 1834-1836; 1842-1910), era cons-
fim à monarquia absoluta e implantou tituída, segundo esta mesma Carta, por
a monarquia constitucional. As políticas aristocratas, consagrando a importância
de Mouzinho da Silveira vieram depois li- da nobreza na economia, sociedade e
bertar o governo dos seus intermediários política do país. Esta mesma Câmara foi
feudais, nobreza e clero, centralizando os sofrendo várias alterações ao longo dos
impostos. Surgiu em seguida uma disputa anos – nomeadamente, a supressão da
hierárquica entre a riqueza, a influência hereditariedade do pariato e alteração
social – a notoriedade, a cultura – e as do número de membros vitalícios.
hierarquias eclesiásticas, políticas, admi- Desta forma, percebemos que os mo-
nistrativas e militares. vimentos críticos à aristocracia passaram
No período que se seguiu à Guerra Ci- a ser dotados de outras dinâmicas e ar-
vil, acreditava-se que a Monarquia Consti- gumentos. E, ainda que os primeiros go-
tucional de 1834 evitaria os excessos tan- vernos liberais não procurassem afastar a
to da nobreza como do povo. Porém, o monarquia e implementar uma democra-
setembrismo trouxe uma visão diferente: cia, surgiram, a partir de 1820, alguns mo-
nasceu, dentro do liberalismo, um parti- vimentos republicanos que começaram a
do que se definia como democrata fazen- pôr em causa a existência e a pertinência
do surgir a imagem de um povo que se da própria monarquia e, portanto, da no-
erguia como uma “instância moral peran- breza. Caminhava-se, assim, a passos lar-

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AntiAristocrAcismo 131

gos para completar a transformação dos escreveu uma multitude de artigos de


membros da aristocracia enquanto grupo temática ético-política, nos quais insistiu
social. Mais uma vez, estes movimentos igualmente na crítica à moral da burgue-
não visavam a extinção da nobreza, per se, sia e a todas as formas de ditadura. O seu
mas a sua adaptação. Joel Serrão conside- socialismo democrático fez dele um críti-
rou que neste período a própria burgue- co do Integralismo Lusitano, que recusa-
sia tendeu à nobilitação e, consequente- va que os homens pudessem ser conside-
mente, a nobreza foi-se gradualmente rados juridicamente iguais.
aburguesando no teor das suas relações Resta referir que muitos ainda dis-
económico-sociais e jurídicas. cutem a tese de Arno Mayer, de que o
Quando a Primeira República decre- fim da hegemonia política, social e mili-
tou a extinção dos títulos nobiliárquicos, tar da aristocracia se fez patente depois
concluiu, na verdade, o plano de ordena- de 1918, acompanhando o processo de
mento jurídico que já se arrastava há dé- desintegração das monarquias entre as
cadas. Podemos considerar que, na con- duas grandes guerras. Mesmo perscru-
temporaneidade, os movimentos críticos tando a realidade portuguesa percebe-
à aristocracia se converteram paulatina- mos que o único sector assumido em
mente em movimentos antielitistas, como que a nobreza resistiu em Portugal foi o
se previu inicialmente, consolidando-se a da diplomacia, cada vez mais associada
aristocracia do séc. xx como antidemo- com a representação de um certo cos-
crática (&Antidemocraticismo). mopolitismo. Porém, outras correntes
De facto, quando se estuda o séc. xix e acreditam que as democracias tiveram
início do séc. xx, os termos “elite”, “clas- dificuldade em afastar as elites tituladas
se alta”, “notáveis”, “nobreza” e “aristo- e que a aristocracia teve um papel fulcral
cracia” são mais facilmente confundidos, nas sociedades do séc.  xx, pelo menos
em grande medida porque, em conceitos até ao final da Segunda Guerra Mundial.
como o de aristocracia, são reconhecidos Privado da oportunidade de governar,
parâmetros económicos, sociais e cultu- terá o mundo aristocrático conseguido
rais, variando a sua aplicação e conceção sobreviver e continuar a ter algum signi-
no tempo e no espaço, e não existindo, as- ficado? Em alguns casos a resposta é posi-
sim, uma definição dita universal. Porém, tiva. Na realidade britânica, e.g., ainda há
se conectarmos o conceito de aristocracia muitas famílias com riqueza e linhagem
ao de elite, teremos de recordar autores que vivem nas propriedades que herda-
como Marx, Pareto, Mosca, Weber, Man- ram, e alguns dos seus membros têm uma
nheim, Schumpeter e Mills, que perspeti- carreira política e um papel importante
vavam, num período próximo, diferentes na cultura e sociedade britânicas.
e conflituosos modelos de elites.
Precisamente no séc. xx, encontramos Bibliog.: impressa: BLUTEAU,  Rafael,  Vo-
no pensamento político e social de Raul cabulario Portuguez e Latino, Aulico, Anatomico,
Proença contributos fundamentais con- Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comi-
co, Critico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Den-
tra os elitismos e todas as formas de desi-
drologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico,
gualdade que representam limitações à Florifero, Forense, Fructifero... Autorizado com
liberdade, ao valor e ao mérito dos indiví- Exemplos dos Melhores Escritores Portugueses, e
duos. De espírito democrático e ao mes- Latinos, vol. 1, Coimbra, Collegio das Artes
mo tempo crítico dos vícios do regime da Companhia de Jesus,  1712; BRITO, An-
republicano e da corrupção, este autor tónio José, “Aristocracia”, in Logos, vol. 1,

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132 AntiAristotelismo

Lisboa, Verbo, 1989, p. 354; EDER, Werner,


“Aristocracy”, in CANCIK, Hubert, e SCH-
Antiaristotelismo
NEIDER, Helmuth (orgs.), Brill’s New Pauly,
Encyclopaedia of the Ancient World. Antiquity,
vol. i, Leiden/Boston, Brill, 2002, pp. 1107-
-1111; FARIA, Ana Leal de, Duarte Ribeiro de
Macedo. Um Diplomata Moderno (1629-1680),
Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangei-
ros, 2005; FISHER, Nick, e WESS, Hans van
(orgs.), Aristocracy in Antiquity: Redefining Greek
and Roman Elites, s.l., The Classical Press of
E ntendemos por antiaristotelismo a
corrente de cariz cultural, filosófico
e científico que se insurgiu contra a tra-
Wales, 2015; GRAÇA, Luís Maria P. S., Nó- dição de matriz escolástico-aristotélica
tulas de História Geral Contemporânea, Lisboa, precedente e que recebeu, interpretou
Universidade Católica Editora, 2003; HES-
e divulgou a filosofia de Aristóteles, so-
PANHA, António Manuel, Poder e Instituições
bretudo desde a medievalidade. Em Por-
na Europa do Antigo Regime. Colectânea de Textos,
Lisboa, FCG, 1984; HUGON, Alain, “Prólo- tugal, a literatura expressiva sobre esta
go”, in CARRIÓ-INVERNIZZI, Diana (dir.), perspetiva do Outro desenvolveu-se de
Embajadores Culturales, Madrid, Universidad forma mais consistente no séc. xviii e vi-
Nacional de Educación a Distancia, 2016, ria a influenciar negativamente as leituras
pp. 9-10; MARQUES, Oliveira et al., “Nobre- posteriores até ao séc. xx.
za”, in SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de Histó- O Iluminismo português insere-se na
ria de Portugal,  Lisboa, Iniciativas Editoriais, 
cultura europeia coeva como um momen-
1971, pp. 149-161; MARTÍNEZ, Doris Mo-
to de afirmação de novos valores, no qual
reno, “O renascimento”, in SOLLAR, David
Sollar, e VILLALBA, Javier (dirs.), História da o conceito de razão – simbolicamente re-
Humanidade. Idade Moderna, Lisboa, Círculo presentada na imagética da luminosida-
de Leitores, 2007; MORGADO, Miguel, A de –, aliado ao de certificação empírica,
Aristocracia e os Seus Críticos, Lisboa, Edições permitiria ao Homem revelar a verdade,
70, 2008; RAMOS, Rui, “Entre revolução po- conduzindo-o a uma época mais próspera
lítica e evolução social: uma história do con- em que o progresso científico assumiria
ceito de democracia (Portugal, século xix)”, um papel determinante. Em contraparti-
Ariadna Histórica, n.º 1, 2012, pp. 163-193;
da, o século das Luzes deu origem a uma
SANCHES, António Ribeiro, Cartas sobre a
Educação da Mocidade, Coimbra, Imprensa da profícua produção de textos que elege-
Universidade, 1922; SIEYÈS, O Que É o Tercei- ram como inimigo próximo aquele que
ro Estado?, Lisboa, Círculo de Leitores/Temas representaria uma voz dissonante, um co-
e Debates, 2009; SILVA, António de Morais, nhecimento obsoleto e, mais gravoso, um
Diccionario da Lingua Portugueza Composto pelo dos motivos pelo qual a Europa estaria
Padre D. Rafael Bluteau, Reformado, e Accrescen- encerrada nas trevas do obscurantismo –
tado por António de Morais Silva Natural do Rio a escolástica.
de Janeiro, 2 vols., Lisboa, Officina de Simão
Depois de Galileu descobrir as man-
Thaddeo Ferreira, 1789; TELES, M. Galvão,
chas solares, afirmando a corruptibilida-
“Aristocracia”, in Verbo, vol. ii, Lisboa, Ver-
bo, 1992, pp. 1120-1121; WASSON, Ellis, de dos corpos celestes, e de perceber que
Aristocracy and the Modern World, New York, a natureza era quantificável, nomeando
Palgrave, 2006; digital: CALAFATE, Pedro, por isso a linguagem matemática como a
“Raul Proença (1884-1941)”, Instituto de Ca- única válida para ler o “livro da nature-
mões: http://cvc.instituto-camoes.pt/filoso- za”; depois de Descartes revelar o mundo
fia/1910d.html (acedido a 19 set. 2016). como um relógio posto em funcionamen-
Carolina Esteves Soares to e movido por regras mecânicas, além

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AntiAristotelismo 133

de estipular a dúvida orientada pela razão que se processavam nos sécs. xvii e xviii,
como o método científico de descoberta não podemos deixar de referir o contri-
da verdade; depois ainda de Newton com- buto dos Descobrimentos portugueses
provar a gravidade como uma lei mecâni- no séc. xvi, que, através da observação
ca da natureza na qual concorriam diver- direta dos territórios, punham em causa
sas forças que explicariam o movimento as conceções ptolemaicas que vinham
dos corpos; depois também de John Lo- da Antiguidade. Como aponta Silva Dias
cke afirmar a importância dos sentidos, (1982), não se tratava ainda de um empi-
responsáveis por prover a mente da infor- rismo, cujo método as academias haviam
mação necessária ao trabalho da razão, li- de adotar e veicular, mas de um experien-
mitando e fazendo depender esta última cialismo no sentido em que a validação
dos dados empíricos, os paradigmas cien- dos factos se fazia essencialmente pela
tíficos de então não poderiam manter-se vivência ao longo das expedições, espole-
inalterados. Para além deste périplo me- tadas, é certo, por outros motivos que não
ramente ilustrativo das transformações os científicos.
A Modernidade interpelou o Homem
e fê-lo colocar em causa o saber que as-
Aristóteles, pormenor de A Escola de Atenas,
de Rafael Sanzio (1483-1520). sumia como seguro. É neste sentido que
a reação contra a escolástica foi, antes
de mais, uma tomada de posição relati-
vamente à alegada aceitação acrítica de
uma autoridade, em que a figura de Aris-
tóteles se reveste de uma importância ím-
par. Na verdade, a filosofia do Estagirita
tinha sido alvo de contestação na Europa
ainda na Idade Média, como atestam as
proibições de Paris, com a carta apostó-
lica de Gregório IX dirigida em 1231 à
Faculdade de Artes daquela cidade, em
que manda corrigir ou purgar os textos
aristotélicos, ou ainda as condenações
do bispo Estêvão Tempier, que, em 1270
e 1277, censura novamente Aristóteles.
Contudo, como lembra Carlos Silva, “a
maior parte destas condenações não teve
tanto consequências impeditivas [...],
quanto foi sintoma de uma mudança de
perspetiva em relação ao agostinianismo
(mesmo bonaventuriano) e até indutor
de um aturado estudo de Aristóteles a
partir do período do papado de Urbano
IV e das traduções do texto grego do Esta-
girita realizadas por Guilherme de Moer-
beke e Tomás de Aquino” (SILVA, 1989,
426). As consequências mais coercivas e
irreversíveis relativamente ao legado do

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134 AntiAristotelismo

filósofo grego viriam a ser concretizadas científico moderno; a leitura escolástica


no período iluminista. das obras do filósofo.
Em linha com as mudanças que se ope- A receção das obras de Aristóteles pelo
ravam noutros países, realizou-se em Por- Ocidente a partir das traduções árabes
tugal uma das reformas mais relevantes resulta num dos argumentos fortes para
do séc. xviii, pela mão do marquês de se considerar a sua leitura inútil ou pelo
Pombal – a reforma da Univ. de Coimbra, menos infrutífera. Esta vicissitude da
com a publicação de novos Estatutos em transmissão textual levou João Baptista a
1772. Interessa-nos este momento por- escrever a sua Philosophia Aristotelica Resti­
que simboliza a erradicação da filosofia tuta, publicada em 1748, sob o pretexto
aristotélica dos curricula académicos, em de reler as obras do Estagirita, tentando
manifesto contraste com o que até então recuperar as suas ideias originais e depu-
se veiculava, nomeadamente nos ditos “es- rando toda a interpretação que havia sido
tatutos velhos” de 1653. A transformação feita pela escolástica a partir daquelas tra-
da Universidade resulta de uma corrente duções e dos consequentes comentários,
de pensamento antinómica que pretende cujo resultado é apresentado sempre de
afirmar um novo tempo em detrimento forma depreciativa. Antes dele, Manuel
de um antigo, conotado com o retroces- de Azevedo Fortes, na Lógica Racional,
so do país e responsabilizado pelo estado Geométrica e Analítica (1744), com uma
infausto em que este se encontrava. Do exposição mais moderada e eclética, não
lado luminoso, surgem figuras como as deixa de apontar a receção das obras
de Luís António Verney, António Nuno como um problema para uma leitura fi-
Ribeiro Sanches ou Teodoro de Almeida; dedigna do sentido de Aristóteles, que se
do lado das trevas, emergem os Jesuítas e teria adulterado devido às circunstâncias
tudo o que era representado por eles, no- da sua difusão. Verney rematará em 1751,
meadamente o ensino alicerçado na base no seu De Re Logica (de que foi publica-
escolástico-aristotélica. da, em 2010, uma tradução do latim por
O discurso antiaristotélico português Amândio Coxito), que “dado que eles
consolida-se no séc. xviii e tem como [entenda-se: os árabes] desconheciam a
característica o facto de se apresentar em língua e a história da filosofia gregas e es-
dois registos distintos: um primeiro, de tavam desprovidos de toda a capacidade
feição demonstrativa, em que o debate de de interpretar, interpretaram Aristóteles
ideias tem assento mediante a exposição sem talento. Por isso, eles tornaram os
e contraposição de argumentos de forma livros do filósofo grego muito obscuros
mais ou menos equilibrada; e um segun- e depravados, e ainda mais obscuros por
do, de cariz político, que se insere na causa das suas interpretações inábeis”
propaganda antijesuítica perpetrada por (VERNEY, 2010, 85). Com efeito, as obras
Pombal, cuja linguagem faz transparecer dos autores setecentistas portugueses são
o tom cáustico típico de obras coevas da profícuas em exemplos demonstrativos
mesma natureza. A crítica a Aristóteles e deste tópico, que ganha especial relevo
à sua herança, percorrida por ambos os quando é abordada a questão da trans-
registos, desenvolve-se em três linhas te- missão da Metafísica de Aristóteles. Neste
máticas fundamentais: a tradição manus- contexto, recorda-se com frequência o
crita do corpus; a afirmação da evidente papel de Andronico de Rodes, que terá
antiguidade desta figura, que se torna- colocado sob aquele título os textos que,
ra obsoleta com o avanço tecnológico e não pertencendo à física e não sendo

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AntiAristotelismo 135

fáceis de classificar (como sustenta o Bar-


badinho no De Re Metaphysica), viriam
depois daqueles tratados, traduzindo li-
teralmente o vocábulo “metafísica”. Esta
organização posterior não corresponde-
ria à intenção do filósofo de Estagira e
constituiria, por si só, uma deturpação do
seu sentido, agravada com as sucessivas
traduções alegadamente incompetentes.
Em relação com o ponto anterior, sur-
ge como motivo histórico a consciência
manifesta da distância temporal que se-
para a Antiguidade da Modernidade,
o que intensificaria a probabilidade de
erro por desconhecimento de dados des-
cobertos posteriormente. Se o que disse
Aristóteles acerca do movimento dos
corpos celestes, e.g., estaria ultrapassado,
qual a pertinência de continuar a estudá
-lo? É por isso que Teodoro de Almeida Rosto de De Re Logica, de Luís António Verney.
não deixará de apontar logo no primeiro
volume da sua Recreação Filosófica (1786- de pedra de toque para depurar o ensino
-1800) que o Estagirita, sendo homem e da influência da “escola” medieval. Auto-
gentio, era mais permeável ao erro. Por res como Verney, João Baptista, o seu dis-
seu turno, Manuel de Azevedo Fortes, na cípulo Teodoro de Almeida, Manuel Ál-
obra citada, salienta a alteração da carga vares ou António Nuno Ribeiro Sanches
semântica de palavras como “demónio”, encabeçaram a condenação da autorida-
“heresia”, “tirania”, entre outras, que de de Aristóteles, assumida acriticamente
têm significados diferentes em Aristó- pelos seus sucessores, que a teriam em-
teles e nos autores que o interpretaram polado, deturpado e acrescentado a uma
até ao séc. xviii, aludindo à discrepância linguagem já obscura uma ainda mais
temporal que os separa. Este tema surge impercetível. O valor indelével da ver-
intimamente ligado à ideia de progresso dade era sustentado por uma conceção
científico, que estimula uma boa parcela de conhecimento na qual a lógica surgia
das reformas pombalinas e será por isso como instrumento fundamental e regula-
usada para contestar em grande medida dor das operações da mente, com vista à
os textos escolástico-aristotélicos afetos aquisição e transmissão de saber válido,
sobretudo à filosofia natural. por forma a evitar o erro, e mediante
Por último, o argumento que provocou um método de combinação ordenada de
as reações mais intensas foi o da nefasta ideias claras em juízos e discursos coeren-
interpretação que fizerem os escolásticos tes. Neste contexto, as noções “quiméri-
do legado aristotélico. No debate entre cas” e “fantásticas” da metafísica escolás-
antigos e modernos que caracterizou o tico-aristotélica eram confusas, sendo o
Iluminismo, as lições por meio de comen- seu estudo bastante depreciado e muitas
tários e de disputas teóricas, que nada ti- vezes posto de parte. Mesmo Verney, que
nham de empírico ou prático, serviram escreveu a sua De Re Metaphysica, em 1753,

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136 AntiAristotelismo

reduziu-a a uma espécie de “teoria geral só expressiva e ilustrativa, mas que tem
da ciência, incidindo quer sobre os seus como alvo primordial mais os próprios
fundamentos subjetivos (ao investigar o escolásticos do que o filósofo que inspira
modo de conhecer das primeiras verda- o novo vocábulo. Na sua quarta “Dispo-
des ou princípios), quer sobre a estrutura sição”, pode ler-se sobre Aristóteles que
da realidade conhecida (ao expor as ver- “este Filósofo, émulo da gloria de Isocra­
dades fundamentais comuns às diversas tes, ainda que algumas vezes fosse escuro;
ciências)”, como recorda Amândio Coxi- outras prolixo; outras malicioso, e ímpio;
to (CAEIRO et al., 1989, 448). Também a com tudo em diversas Obras ostentou a
filosofia natural, na qual se destaca a obra sua agudeza eloquentemente; e ensinou
monumental de Teodoro de Almeida, se coisas úteis” (CENÁCULO, 1776, I, 6-7).
assume como o estudo dos corpos natu- Alegam ainda os autores pombalinos
rais baseado em dados empíricos e recusa do Compêndio Histórico da Universidade de
quaisquer especulações vãs que não te- Coimbra que o filósofo grego teria inten-
nham suporte experimental. cionalmente criado uma filosofia e uma
As três linhas de leitura do antiaristo- moral com vista à corrupção dos jovens.
telismo português que temos vindo a Esse plano magistral do Estagirita fora
sintetizar ganham especial elã com a in- somente posto a descoberto na Moder-
tervenção do marquês de Pombal e o seu nidade, sendo todos aqueles que o le-
programa político de expulsão dos Jesuí- cionaram, transmitiram ou admiraram
tas, ao instrumentalizá-las e transferi-las cúmplices confessos desse perverso de-
do foro filosófico para o político. Na vas- sígnio. Por este motivo, lê-se no mesmo
ta literatura preparada ou orientada pelo Compêndio: “Aristóteles, filósofo ateísta
valido de D. José, surge uma imagem de que nenhuma crença teve em Deus e na
Aristóteles negativamente retratada, que vida eterna, que em vez de ditar princí-
teria maquinado a pior de todas as frau- pios para a probidade interior do ânimo
des da cultura ocidental. São exemplos e para a justiça natural, foi autor de um
expressivos desta construção sombria a sistema estofado de máximas dirigidas a
Relação Abreviada (1757), a Dedução Crono­ formarem o áulico das cortes de Filipe,
lógica e Analítica de José de Seabra da Silva de Alexandre e um hipócrita armado
(1767-1768), a Origem Infecta da Relaxação contra a inocência dos crédulos com
da Moral dos Denominados Jesuítas (1771), virtudes externas e fingidas”, ou ainda
o Compêndio Histórico do Estado da Univer­ “Aristóteles não só faltou com sementes
sidade de Coimbra (1771) e os Estatutos da à terra, mas em lugar do limpo bom tri-
Universidade de Coimbra (1772), estes dois go lançou nela cizânia e joio para con-
últimos escritos pela então criada Junta taminá-la e fazer nocivas as suas produ-
de Providência Literária, onde se destaca ções. Este é o crime mais atroz, por que
o papel de Fr. Manuel do Cenáculo, cuja se deveria ter desterrado dos Estatutos
orientação escolástico-aristotélica dos da nossa Universidade a Moral que ele
primeiros anos de vida intelectual viria ensinou” (FRANCO e PEREIRA, 2008,
a alterar-se posteriormente em conso- 101 e 246). O resultado desta contenda,
nância com o espírito iluminista e, mais sem possibilidade de contraditório por
particularmente, pombalino. Ainda que uma das partes, resultaria na elimina-
de forma mais moderada, Cenáculo não ção de Aristóteles dos novos Estatutos da
deixaria de criticar os escolásticos ao acu- Univ. de Coimbra, mesmo com a criação
sá-los de “aristotelomania”, palavra por si da nova Faculdade de Filosofia.

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AntiAristotelismo 137

A pesada autoridade aristotélica e esco- tugal. Acresce ainda o facto de os auto-


lástica, fortemente conotada com o en- res laicos e antijesuítas do séc. xix, her-
sino dos Jesuítas, é posta em causa num deiros confessos da cartilha pombalina,
processo de legitimação das medidas chegarem mesmo a acusar os Jesuítas de
pombalinas, que resultarão na expulsão terem deturpado a obra original de Aris-
da Companhia de Jesus, em 1759, e de tóteles, obscurecendo o seu “verdadeiro”
tudo aquilo por ela representada. É nes- e valioso conhecimento. Nesta ordem de
ta conjuntura histórica que se tecem as ideias e seguindo as linhas temáticas do
mais duras e absurdas críticas ao filósofo Iluminismo português que temos vindo a
grego, cujos excertos transcritos são par- desenvolver, os Jesuítas seriam acusados
cos testemunhos no conjunto da extensa de ter desfigurado os grandes  autores
literatura setecentista. Na passagem para clássicos, como Aristóteles, tornando a
o séc. xix, releva-se a transformação do sua obra obsoleta e um obstáculo para o
“antijesuitismo em anticongreganismo progresso.
puro e simples” (ABREU, 2004, 87), en- O perfil negativo do Estagirita, cunha-
contrando Pombal um sucessor em Joa- do no séc. xviii português, veio a in-
quim António de Aguiar, com o decreto fluenciar também autores do séc. xx, no-
de extinção das ordens de 1834. A aver- meadamente Leonardo Coimbra. Neste
são à escolástica continua a alimentar sentido, Manuel Ferreira Patrício deteta
de forma parcial as interpretações dos no autor um “anti-aristotelismo explícito”
pensadores portugueses, sobretudo no (PATRíCIO, 1983), patente nas suas No­
que ao estado do país diz respeito, mas tas sobre a Abstracção Científica e o Silogismo
a figura de Aristóteles em si deixa de (1927), que se terá inspirado no Compên­
surgir diretamente na discussão, apesar dio Histórico da Universidade de Coimbra e
de subentendida. Com efeito, a reforma nos Estatutos, para referirmos apenas as
pombalina da Universidade e a produção fontes portuguesas. É certo que Manuel
de textos profundamente depreciativos Ferreira Patrício tem como objetivo final
sobre a herança aristotélica tiveram como lançar o estudo aturado da obra daque-
principal consequência para o séc. xix o le filósofo português e das suas relações
desaparecimento do filósofo grego como com o platonismo e o aristotelismo, mas
uma das figuras centrais do debate filo- não deixa de ser pertinente a base en-
sófico. A crítica a Aristóteles permane- contrada para a leitura antiaristotélica de
ce, mas de forma velada e imiscuída na Leonardo Coimbra, que redunda naque-
ampla condenação dos Jesuítas e da sua las obras setecentistas.
escola, sendo Teófilo Braga, entre outros Importa referir, no entanto, que ain-
autores, disso um exemplo ilustrativo, no- da no séc. xix surgiram alguns autores
meadamente nos volumes da sua História que tentaram uma reabilitação de Aris-
da Universidade de Coimbra (1892-1902). tóteles, como Silvestre Pinheiro Ferreira,
Aqui, a questão antiaristotélica transfe- que ensaia uma reapreciação da lógica
re-se para outro plano argumentativo, aristotélica, chegando mesmo a tradu-
no qual os Jesuítas são vistos não como a zir as Categorias. Porém, seria apenas no
causa primordial da decadência do país, século seguinte que se iniciaria uma re-
mas como a agravante de uma condição cuperação mais consistente dos estudos
ruinosa em que a insistência num ensino aristotélicos, nomeadamente pela obra
ultrapassado e de base escolástica terá de Álvaro Ribeiro e com as traduções a
servido para obnubilar o avanço de Por- partir do grego da Poética, por Eudoro de

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138 AntiAristotelismo

Sousa (1951), e do Organon, por Pinha- Bibliog.: ABREU, Luís Machado de, Ensaios
randa Gomes (1985-1987). De salientar o Anticlericais, Lisboa, Roma Editora, 2004;
projeto de edição e publicação das Obras ANDRADE, António Banha de, Vernei e a
Completas de Aristóteles pela Imprensa Cultura do Seu Tempo, Coimbra, Universidade
de Coimbra, 1966; Id., A Reforma Pombalina
Nacional-Casa da Moeda, sob a coordena-
dos Estudos Secundários (1759-1771): Contri-
ção de António Pedro Mesquita, autor de buição para a História da Pedagogia em Portugal,
um volume introdutório de valor inesti- Coimbra, Universidade de Coimbra, 1981;
mável para o estudo desta personalidade, CAEIRO, Francisco da Gama, Frei Manuel do
publicado em 2005. Cenáculo: Aspectos da Sua Actuação Filosófica,
A exaltação dos valores iluministas vi- Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1959; Id.
ria a criar imagens antagónicas, caracte- et al., “Aristotelismo em Portugal”, in Logos,
rísticas de posições extremadas: ao mes- vol.  1, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1989,
cols. 433-454; CALAFATE, Pedro (dir.), His-
mo tempo que se defendia a liberdade
tória do Pensamento Filosófico Português, vol. iii,
do Homem, instigava-se a centralização
Lisboa, Caminho, 2001; CENÁCULO, Ma-
de poderes na figura inatacável do rei, nuel do, Disposições do Superior Provincial para
cuja soberania provinha diretamente de a Observancia Regular, e Literaria da Congregação
Deus e permitia, sem contestação, algu- da Ordem Terceira de São Francisco Destes Rei-
mas das ações mais repressivas; ao mes- nos, Feitas em os Anos de Mil Setecentos Sessenta
mo tempo que se entronizava a razão e Nove, e Setenta, 2 t., Lisboa, na Regia Of-
e o espírito crítico, repudiava-se acriti- ficina Typografica, 1776; CERQUEIRA, Luís
camente um legado cultural através de Alberto (org.), Aristotelismo e Antiaristotelis-
mo: Ensino da Filosofia, Rio de Janeiro, Ágora
uma representação denegrida e pouco
da Ilha, 2000; COXITO, Amândio, Estudos
devedora da racionalidade. Como lem- sobre Filosofia em Portugal na Época do Iluminis-
bra Umberto Eco, “ter um inimigo é mo, Lisboa, INCM, 2006; DIAS, J. S. da Sil-
importante, não apenas para definir a va, Portugal e a Cultura Europeia: Sécs. XVI-XVIII,
nossa identidade, mas também para ar- Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953;
ranjarmos um obstáculo em relação ao Id., Os Descobrimentos e a Problemática Cultural
qual seja medido o nosso sistema de valo- do Século XVI, Lisboa, Presença, 1982; ECO,
res, e para mostrar, no afrontá-lo, o nos- Umberto, Construir o Inimigo e Outros Escritos
Ocasionais, Lisboa, Gradiva, 2011; FRANCO,
so valor. Portanto, quando o inimigo não
José Eduardo, O Mito dos Jesuítas em Portugal,
existe, há que construí-lo” (ECO, 2011,
no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX), 2 vols.,
12). A construção de uma imagem nega- Lisboa,  Gradiva,  2006-07; Id., e PEREIRA,
tiva de Aristóteles consolidou-se e teve Sara Marques (coords.), Compêndio Históri-
maior expressão precisamente no perío- co da Universidade de Coimbra, Porto, Campo
do pombalino, no seio de um discurso das Letras, 2008; MESQUITA, António Pe-
iluminista que, para se afirmar, teve de dro, Aristóteles: Obras Completas – Introdução
produzir alguns mitos negros como o do Geral, Lisboa, INCM, 2005; PATRÍCIO, Ma-
Jesuíta, o do medieval ou, no que aqui nuel Ferreira, “O anti-aristotelismo explícito
de Leonardo Coimbra: contribuição para o
respeita, o do filósofo corruptor. Com
estudo do problema”, Revista Portuguesa de
efeito, a reforma pombalina da Univer- Filosofia, vol. 39, 1983, sep.; SILVA, Carlos,
sidade e a produção de textos profun- “Aristotelismo”, in Logos, vol. 1, Lisboa/São
damente depreciativos sobre a herança Paulo, Verbo, 1989, cols. 408-433; VERNEY,
aristotélica tiveram como principal des- Luís António, Lógica, introd. e trad. Amândio
fecho para o séc. xix o desaparecimento Coxito, Coimbra, Imprensa da Universidade
do filósofo grego como uma das figuras de Coimbra, 2010.
centrais da discussão filosófica. Paula Carreira

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AntiAssistenciAlismo 139

Antiassistencialismo mento, menorizando e submetendo o re-


cetor, coagido a retribuir o que recebeu,
seja pela oração, pelo voto ou pelo reco-
nhecimento público da superioridade
do outro. Geralmente atende a situações
individuais, para enfrentar questões pon-
tuais, e não visa mudanças estruturais,

O antiassistencialismo repousa na pre-


sunção de que a coesão social é uma
obrigação do Estado, a quem cabe a res-
nem sequer das condições que conduzi-
ram à necessidade de apoio. Os antiassis-
tencialistas reduzem-no a práticas de do-
ponsabilidade pela proteção dos mais minação, que perpetuam as condições de
desfavorecidos. O imperativo do Estado apatia social, que acentuam as desigual-
como redutor da incerteza foi pela pri- dades sociais, por oposição a um sistema
meira vez formulado por Hobbes, no que deve ser universal, solidário e inclu-
séc.  xvii, depois desenvolvido pelos ilu- sivo, assente nos valores da cidadania,
ministas, triunfando sob a forma de uma nos direitos políticos e cívicos; e, por isso,
nova doutrina social com a Revolução regulamentado, legalmente enquadrado,
Francesa. De acordo com Pierre Rosan- avaliado e readaptado em função de re-
vallon, a Revolução esforçou-se por arti- sultados menos positivos. Neste sentido,
cular  o princípio da solidariedade  –  se- para os antiassistencialistas, assistência e
gundo o  qual a sociedade tem uma cidadania são duas variáveis de uma mes-
dívida para com os seus membros – com ma equação, que também integra os com-
o da responsabilidade individual. Neste portamentos sociais e o trabalho.
binómio, a assistência social impôs-se Historicamente, as perceções sociais
como um direito, consignado nas con- em relação à utilização indevida dos re-
dições que devem garantir a dignidade cursos assistenciais foram mais negativas
do ser humano ao nível da habitação, que positivas. Quando a análise recua à
da alimentação, dos cuidados de saúde Idade Média, ao tempo em que foi dese-
e da instrução, mas a que estão agrega- nhado o perfil do pobre merecedor de
dos deveres, nomeadamente o do bom compaixão e caridade, a incapacidade
uso dos recursos públicos; exige a prévia para o trabalho foi colocada ao lado da
avaliação da situação dos necessitados e doença, da velhice e da infância despro-
preocupa-se em conhecer o impacto das tegida. Em Portugal, a Lei das Sesmarias,
medidas tomadas. No limite, a assistência de 1375, é, a este propósito, um bom in-
social nasce antiassistencialista. dicador do desejo de estabelecer normas
O antiassistencialismo define-se, assim, claras de regulação social, condenando o
pela recusa da sujeição do apoio social às ócio, a mendicidade, a vagabundagem e
vicissitudes inerentes à distribuição dis- o embuste. À entrada do séc. xvi, D. Ma-
cricionária dos recursos disponíveis, que nuel I limitava o acesso aos hospitais, as
divide os indivíduos entre beneméritos e mais importantes e generosas instituições
devedores, atores de um relacionamento de assistência formal do Ocidente medie-
que tem as características das ligações pri- vo, aos doentes, procurando combater o
vadas, muitas vezes clientelares. No assis- uso indevido de bens que nunca chega-
tencialismo, o auxílio funciona como um vam para as necessidades.
investimento para o doador, que o pode Nas décadas finais do séc. xviii, a críti-
capitalizar ou recuperar em qualquer mo- ca às práticas assistenciais nos termos em

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140 AntiAssistenciAlismo

que até então eram exercidas – sem con-


trolo, sem regras, sem contrapartidas – ga-
nhou uma nova dinâmica, acompanhan-
do o debate europeu. Pelas memórias da
Academia das Ciências, pela Gazeta de Lis­
boa e pelo Jornal Enciclopédico, em escritos
avulsos e panfletários ou em obras mais
elaboradas, a discussão privilegiou os ma-
lefícios da esmola e da mendicidade, “um
vício nacional”, no dizer de D. Rodrigo
de Sousa Coutinho (COUTINHO, 1993,
205). Relativamente protegidos ficaram,
quase sempre, os pilares do sistema as-
sistencial e o modo como o mesmo era
gerido: as misericórdias, em muitos casos
também administradoras dos hospitais e
responsáveis pelas crianças abandonadas,
que funcionavam segundo os padrões
estabelecidos por D. Manuel I, consolida-
dos ao longo de Quinhentos. A reforma
que o marquês de Pombal impusera à Mi-
sericórdia de Lisboa e ao Hospital de To-
dos os Santos só muito tangencialmente
tocara o resto do país e, mesmo assim, ti-
Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805).
nha-se centrado mais nas questões admi-
nistrativas e funcionais do que na filosofia
subjacente às práticas assistenciais. xíssimos salários e da precariedade do
Sob a direção de Diogo Inácio de Pina mundo laboral e ameaçava as estruturas
Manique, intendente-geral da polícia da sociedade liberal, que respondeu com
(1780-1805), a quem igualmente com- a criação dos seguros obrigatórios para
petia a tutela da Casa Pia, ensaiou-se, a enfrentar o risco social. Foi o receio do
partir daquelas duas instituições, uma socialismo que levou alguns Estados a in-
profunda reorganização do panorama vestir no desenvolvimento da cidadania,
assistencial nacional. Sob a égide de um associada a práticas de proteção social,
conjunto de ideias desenvolvidas e ex- de forma a prevenir conflitos. O seguro
perimentadas na Alemanha, em França social regulado pelo Estado, introduzido
e em Inglaterra, acentuou-se o discurso na Alemanha por Otto von Bismarck em
e a prática antiassistencialista. O  pres- 1883, explica-se neste contexto. Em In-
suposto de Montesquieu, que fazia cor- glaterra, em 1942, lord Beveridge altera-
responder a pobreza à ausência de tra- va os termos desta relação e impunha a
balho, funcionou como trave mestra de ideia do Estado como elemento protetor
uma teoria, também seguida por Pina das necessidades coletivas, e criador de
Manique, que tomou o trabalho como políticas sociais que conduzissem à esta-
forma de assistência. No século seguinte, bilidade social.
o pauperismo, dominante entre a classe Em Portugal, foi também em ligação
operária, demonstrava os efeitos dos bai- com o mundo do trabalho que se pro-

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AntiAssistenciAlismo 141

cessou a mudança nas políticas sociais ao substituição dos seguros sociais estabele-
longo dos sécs. xix e xx, inicialmente na cidos na Primeira República, apesar de
vertente mutualista, com a fundação da restrita no universo e nos riscos que co-
Sociedade dos Artistas Lisbonenses, em bria, procurava soluções de compromis-
1839, a primeira de muitas de idêntica ín- so entre as reivindicações dos trabalha-
dole operária, seguindo depois o modelo dores e o poder controlador do Estado.
bismarckiano dos seguros sociais. O  re- A reforma da previdência social de 1962,
trato que uma parte substantiva do país considerada por alguns autores como um
apresentara em 1827, em resposta à por- momento chave do desenvolvimento do
taria de 7 de julho de 1827, relativamen- Estado-providência português, alargava a
te aos recursos assistenciais existentes, incidência social dos cuidados de saúde,
mostrara o peso de um sistema que conti- sem no entanto os tornar universais. Tal
nuava dependente das misericórdias, das como então foi redesenhado, este regime
rodas e de um conjunto indefinido de manteve-se até à Revolução de 1974, evo-
instituições que designava por hospitais. luindo daí para a Lei da Segurança Social
Neste documento, as primeiras (à exce- de 1984, assente em princípios de univer-
ção das misericórdias de alguns dos prin- salidade e solidariedade. Não escaparam,
cipais centros urbanos) encontravam-se contudo, a críticas antiassistencialistas
falidas, vivendo muitas delas de esmolas determinadas políticas de carácter so-
que recolhiam de gente pobre para as dis- cial desenvolvidas neste enquadramento.
tribuírem por outros ainda mais pobres; Foi o caso, e.g., do rendimento mínimo
na sua maioria, os hospitais estavam mais garantido, acossado, por um lado, como
próximos dos medievos hospitais do que promotor de estigmatização dos utentes
da moderna clínica, que então despon- e fomentador de sentimentos negativos
tava um pouco por toda a Europa; e as que, por sua vez, podem ser catalisadores
rodas chegavam a consumir mais recur- de reações sociais de contestação; e por
sos que muitas misericórdias e hospitais outro, por poder funcionar como meio
em conjunto, sem que tal se traduzisse de apoio ao ócio e à dessocialização.
em resultados reais, porque os índices da
mortalidade das crianças abandonadas
se mantinham elevadíssimos, indepen-
dentemente das somas alocadas a este
serviço assistencial. Pretendendo alguma
segurança que este sistema não lhes dava,
as associações de socorros mútuos que
surgiram na década de 1830 continham
valores antiassistencialistas. Bibliog.: ABREU, Laurinda, Pina Manique: Um
Consagrada a assistência pública na Reformador no Portugal das Luzes, Lisboa, Gradi-
va, 2013; CASTEL, Robert, Les Métamorphoses
Constituição de 1911, o apoio social man-
de la Question Sociale. Une Chronique du Salariat,
teria, no entanto, muitas das característi- Paris, Fayard, 1995; COUTINHO, Rodrigo de
cas anteriores, reservando o Estado para Sousa, Textos Políticos, Económicos e Financeiros.
si um papel meramente supletivo no que 1783-1811, introd. e dir. Andrée Mansuy Diniz
concernia às questões sociais; para os Silva, t. i, Lisboa, Banco de Portugal, 1993;
teóricos do regime, a pobreza continua- ROSANVALLON, Pierre, La Nouvelle Question
va eivada de uma valorização moral. A Sociale, Paris, Points, 1995.
previdência social, surgida em 1935 em Laurinda Abreu

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142 AntiAssociAtivismo

Antiassociativismo bém esse movimento é dos mais primiti-


vos movimentos da humanidade.
Contudo, o associativismo enquanto
positivação de uma liberdade e de um di-
reito, consagração constitucional e livre
exercício, bem como formulação institu-
cional reconhecida, aberta e com nature-

D e entre as diferentes formas de so-


ciabilidade humana, a experiên-
cia da associação é das mais antigas e
za jurídica própria, é constitutivo apenas
da Idade Contemporânea. É um reflexo
das revoluções de 1789 e de 1848, uma
das mais transversais a todas as culturas. consequência do fim do Antigo Regime
O  associativismo, entendido meramente para a passagem a uma sociedade funda-
como todo o tipo de relação de coope- da no princípio de direito, uma suposta
ração entre os homens, preside às mais garantia de uma sociedade que certifica
primitivas formas de organização social as suas condutas pela declaração dos di-
como produto de dinâmicas de confluên- reitos universais dos homens e que tem
cia entre o individual e o coletivo. tido um desenvolvimento nem sempre li-
A associação, nesse sentido, resulta de near e nem sempre pacífico. Entenda-se,
um vínculo que, por uma série de afini- então, associação como uma instituição
dades reconhecidas e de relações de so- com natureza jurídica multiforme, como
lidariedade, se estipula numa comunida- exercício do direito à liberdade da sua
de, i.e., um entendimento de interesses e constituição.
necessidades que, por um lado, se identi- O grande laboratório do associativismo
ficam perante um objetivo comum, mais será a França. Depois da Revolução, os
passível de alcançar em conjunto do que constituintes de 1789 debatem-se com a
individualmente; por outro, correspon- inclusão ou não da liberdade de reunião
dem a um apelo individual ou a uma na Declaração dos Direitos do Homem e
pressão social de índole religiosa, mági- do Cidadão, desse mesmo ano. A hesita-
ca ou política que necessita do coletivo ção residia em considerar-se tal liberdade
para se expressar e viver dentro de uma como um direito natural ou não. Ganhou
determinada ordem e de um determi- a fação que não a considerava como tal,
nado ritual comuns para se validar; mas influenciada sobretudo pela filosofia de
também, por fim, que se assumem como J. J. Rousseau (antiassociativista), na medi-
um meio de perpetuação de saberes da em que, se os direitos naturais preexis-
e/ou de técnicas que, tendencialmente, tiam à sociedade, não era a sociedade que
resulta numa formulação mais restrita e os poderia conferir; mas não foi apenas
de índole secreta. essa a razão pela qual esse direito não
Nessa medida, poder-se-á opor a essa consta da primeira declaração dos direi-
ideia natural e primitiva de associativismo tos do Homem.
o individualismo ou a profunda repulsa à Houve, desde o início, um receio de
sociedade que recusa qualquer tipo de so- que a liberdade de associação e de reu-
ciabilidade, como sejam a misantropia, o nião perturbasse a ordem pública; i.e., o
eremitério solipsista ou a fuga mundi, mo- direito de livre associação era entendido
vimentos de homens e de mulheres que como uma ameaça aos poderes instala-
se retiram drasticamente do gregarismo dos no Estado e, como tal, houve desde
e vivem nas sombras da sociedade. Tam- sempre alguma hesitação legislativa em

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AntiAssociAtivismo 143

concedê-lo. Mais, a Declaração de 1789


tem o propósito de romper com o Antigo
Regime, e o individualismo, “o homem
separado do seu conjunto e da comu-
nidade” (BARROSO, 2006, 548), acaba
por prevalecer no documento como uma
afirmação extremada, e talvez necessária,
desse mesmo propósito, de forma a surtir
efeitos.
Tanto o associativismo como o antiasso-
ciativismo da Idade Contemporânea têm
de ser lidos sobretudo à luz de todas as
correntes que pensaram sobre os direitos
naturais, mas também da história consti-
tucional e da história política. Assim sen-
do, o antiassociativismo, mais do que o
pensamento de um ou outro autor, acaba
por ser uma violação que se exerce sobre
a liberdade e sobre um direito do indiví-
duo no coletivo, que vai sendo reconheci-
do como natural a partir do séc. xviii nas
sociedades ocidentais. O que vai aconte-
cendo é uma oscilação entre a positivação
desse direito e a sua restrição, a sua cons-
tante vigilância ou, no extremo, a sua
ausência dos documentos legislativos ou
constitucionais.
A primeira Constituição francesa, de Declaração dos Direitos do homem
e do Cidadão (1789).
1791, a segunda europeia a surgir (a pri-
meira foi a Constituição da Polónia, uns um ano, aberto pela Revolução de 1848,
meses antes), reconhece a liberdade de que fez com que o código francês con-
reunião, mas logo nesse mesmo ano sur- sagrasse o direito absoluto de reunião e
ge um decreto que proíbe que qualquer de associação. Após a queda do Império
sociedade, clube ou associação de cida- (1870), cabe à lei de 30 de junho de 1881
dãos tenha qualquer tipo de existência recuperar a liberalização do direito de as-
política (decreto de 29 e 30 de dezembro sociação e de reunião, entendidos como
de 1791), embora não tenha entrado em um garante da democracia. Se em França
vigor. Apesar de a nova Constituição de o direito de livre associação foi logo re-
1793 prever este direito, i.e., de ser tam- conhecido em 1791, em Inglaterra só foi
bém um direito defendido pelo espírito reconhecido em 1824.
liberal, a França atravessa, até 1868, um Contudo, a universalização deste direi-
período em que “as liberdades coletivas to é apenas expressa bem mais tarde pela
contaram com a desconfiança dos libe- Declaração Universal dos Direitos do Ho-
rais” (Id., Ibid., 548), especialmente face mem de 1948: “todos têm direito à liber-
às sociedades jacobinas. Não obstante, dade de reunião e associação pacíficas”
existe um período intercalar de apenas (art. 20.º). A Convenção para a Proteção

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144 AntiAssociAtivismo

dos Direitos do Homem e das Liberdades de assuntos fora do seu âmbito, i.e., de
Fundamentais de 1950 acrescenta ainda terem uma natureza política.
que “toda a pessoa tem direito à liberda- É apenas com a Implantação da Repú-
de de reunião pacífica e à liberdade de blica e posteriormente com a Constitui-
associação, incluindo o direito de fundar ção de 1933 que o direito de associação
com outras pessoas sindicatos e de se fi- obtém reconhecimento definitivo, em-
liar neles para a defesa dos seus interes- bora o Estado corporativo tenha garan-
ses” (art. 11.º). tido esse direito com severas restrições
Quanto a Portugal, há um momento e existam diferenças substanciais entre
decisivo para se perceber a transição das o associativismo livre e o corporativismo,
formas de organização corporativas para que fazem com que este último funcione
as formas de organização associativas, que quase por oposição ao primeiro. Como
é quando o decreto de 7 de maio de 1834 afirma um autor de um libelo a favor
vem abolir as antigas corporações de ar- deste direito, “não basta a constituição
tes e ofícios; estas eram uma forma de reconhecer ao homem o direito de asso-
organização de interesses e de proteção ciação como corolário de um direito de
de classes profissionais do Antigo Regi- liberdade”, continuando: “com efeito o
me, de traços corporativos, incompatíveis art. 8.º no seu § 2 vem atirar pela janela
com o novo pensamento liberal. o que deixara entrar pela porta. Aí se diz:
Em termos constitucionais e legislati- ‘leis especiais regularão o exercício da li-
vos, a Revolução Liberal de 1820 acarre- berdade de expressão do pensamento, do
ta uma Constituição que vem reconhe- ensino, de reunião e de associação’”, pos-
cer direitos fundamentais aos cidadãos. to que “a garantia muda de natureza – de
Mas também em Portugal o reconheci- constitucional passa a governamental. Fa-
mento da liberdade de associação é fei- cilmente se imaginam as consequências”
to de intermitências. D. João VI, após (MARTINS, 1969, 9-11).
a Vila-Francada e a Abrilada, restaura O tipo de associativismo que vingou
a monarquia absoluta, antagónica ao na segunda metade do séc. xix em Por-
direito de associação. Apesar de a Car- tugal foi o defendido pela ala reformista
ta Constitucional de 1826, de D. Pedro liberal, de pendor burguês e não tanto
IV, repor a monarquia constitucional, operário, como vem a vingar mais tarde,
a liberdade do direito de associação e durante o séc. xx, de onde surge também
reunião só volta a ser preconizada pela o movimento sindical. No séc. xix e no
Constituição de 1838. O Código Civil de séc. xx da Primeira República, prolife-
1867 classifica o direito de associação ram defensores e teóricos da associação,
como natural. A 15 de junho de 1870, mais facilmente detetáveis do que autores
sai um decreto que proclama a liberda- que se tenham posicionado a desfavor da
de de associação independentemente mesma. Aliás, essa posição de oposição
da licença da autoridade pública, mas, passa muito mais por um pensamento e
como seria de esperar, foi revogado logo uma ação estatais, mais ou menos ideo-
no ano seguinte. Entre 1890 e 1894, há lógicos, mas sobretudo jurídicos e cons-
finalmente um fôlego legislativo que se titucionais, do que propriamente por um
dedica em exclusivo às associações. No pensamento individual.
entanto, impõem-se inúmeras restrições É possível determinar quatro grandes
ao livre associativismo, inclusivamente a núcleos de pensadores portugueses a
que impede as associações de tratarem favor da associação: 1) o grupo dos in-

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AntiAssociAtivismo 145

telectuais com preocupações sociais que


se envolvem e estudam o movimento
associativo, de entre os quais se destaca
Silvestre Pinheiro Ferreira, na filosofia,
Costa Godolfim (Goodolphim), nos
primórdios da sociologia, com uma vas-
ta obra sobre o tema, a começar, desde
logo, por A Associação (1876), mas tam-
bém Sousa Brandão, Lopes de Mendon-
ça e Feliciano Castilho; 2) o grupo dos
professores de Direito de Coimbra que
escrevem teses onde desenvolvem e de-
fendem o direito à associação, como foi
o caso de António Costa Lobo, com O Es­
tado e a Liberdade de Associação (1864), e,
mais tarde, de Lobo d’Ávila Lima, com
Socorros Mútuos e Seguros Sociais (1909),
entre muitos outros; 3) o grupo dos
pensadores e políticos liberais, no qual
se podem inserir alguns dos autores dos Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
grupos anteriores, mas do qual tem de se
destacar incontestavelmente Alexandre geral, “mas nunca este acordo será du-
Herculano; 4) o grupo heterogéneo dos radouro e constante; porque a vontade
participantes do próprio movimento as- particular, pela sua natureza, tende para
sociativo que expressaram publicamente a preferência e a vontade geral, para a
tal defesa nos vários congressos dedica- igualdade. Ainda mais impossível é ter-se
dos ao tema. uma garantia desta conformidade” (Id.,
Dos grandes pensadores que se opuse- Ibid., 33). Importa ainda a distinção en-
ram ao associativismo, destacam-se Rous- tre a vontade de todos – soma das von-
seau e Proudhon (um Proudhon de uma tades particulares, votada ao interesse
primeira fase, refira-se). Em Contrato privado, que gera “fações e associações
Social, Rousseau teme pela liberdade do parciais à custa da totalidade” (Id., Ibid.,
indivíduo quando se associa a outros, 37) – e a vontade geral, votada ao inte-
sendo imperativo que “ao unir-se a to- resse comum. Pode resumir-se o antias-
dos, só a si mesmo obedeça e continue sociativismo rousseauniano segundo a
tão livre como antes”. Sendo a condição lógica de que “para que a vontade geral
de associado igual para todos, torna-se esteja bem representada, cumpre que
“pesada”, pelo que tal associação pode não exista sociedade parcial dentro do
vir a ser alienante, ilusória ou tirâni- Estado e que cada cidadão não tenha ou-
ca (ROUSSEAU, 1977, 21). Rousseau tra opinião que não seja a sua” (Id., Ibid.,
distingue, porém, liberdade natural 38). O contrato de associação aceitável
de liberdade civil. A primeira apenas é aos olhos de Rousseau é o que se vincula
limitada pela força individual; a segun- ao Estado e, segundo ele, “este exclui to-
da, pela vontade geral. Concorda que dos os outros. Não se concebe qualquer
haja uma possibilidade de convergência outro contrato público que não seja uma
entre a vontade particular e a vontade violação do primeiro” (Id., Ibid., 115).

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146 AntiAssociAtivismo

Por seu lado, Proudhon, em Capacité tativa que garanta formas de correção de
Politique des Classes Ouvrières, distingue desigualdades e devolva ao trabalhador
dois tipos distintos de mutualismo. Con- os resultados do seu trabalho sob forma
sidera as associações de socorros mútuos de proteção económica e social.
como simples organizações de caridade,
que, tal como os montes de piedade, as
lotarias de beneficência ou seguros de
Bibliog.: BAPTISTA, Eduardo Correia, Os Di-
vida, são “uma verdadeira sobrecarga reitos de Reunião e de Manifestação no Direito Por-
imposta ao trabalhador que não quer ser tuguês, Coimbra, Almedina, 2006; BARROSO,
exposto ao abandono no caso de doença Ivo Miguel, “A ausência geral de positivação
e desemprego”. Por outro lado, chama das liberdades de reunião e de associação
verdadeiro mutualismo aquele que nega no direito português, entre 1820 e 1870”, in
“qualquer possibilidade de especula- MIRANDA, Jorge et al. (coords.), Estudos em
ção”, e “tende a organizar sistematica- Memória do Professor Doutor António Marques
dos Santos, vol. ii, Coimbra, Almedina, 2005,
mente o princípio da justiça numa série
pp.  173-202; Id., “A descontinuidade da po-
de deveres positivos” na qual “é prome- sitivação da liberdade de reunião no direito
tido e assegurado o serviço pelo serviço, francês (1789-1868)”, in PINTO, Eduardo Ve-
o valor pelo valor, crédito pelo crédito, ra-Cruz (org.), Estudos em Homenagem ao Profes-
a garantia pela garantia” (PROUDHON, sor Doutor Marcello Caetano no Centenário do Seu
1982, III, 132). Assim, o autor valoriza Nascimento, vol. i, Lisboa/Coimbra, Faculdade
uma forma de mutualismo que deve ser de Direito da Universidade de Lisboa/Coimbra
Editora, 2006, pp. 537-582; GARCIA, Santos,
voluntária, decorrente de princípios de
Do Associativismo Livre à Organização Corporativa
justiça, e não uma espécie de obrigação da Agricultura, Évora, Gráfica Eborense, 1938;
jurídica que transforma o risco numa GOODOLPHIM, Costa, A Associação – Histó-
possibilidade de lucro. Proudhon carac- ria e Desenvolvimento das Associações Portuguesas,
teriza o papel do crédito nestas institui- Lisboa, Seara Nova, 1974; LOBO, António de
ções que têm em vista o lucro, como no Sousa Silva, O Estado e a Liberdade de Associação,
caso das caixas económicas e associações Coimbra, Imprensa da Universidade, 1864;
MARTINS, Alfredo Soveral, O Direito de Asso-
de socorros mútuos, que é a “ocultação
ciação, Coimbra, Associação Académica de
e a exploração sem reciprocidade do
Coimbra, 1969; PROUDHON, Pierre-Joseph,
trabalho pelo capital”, o que propaga e Oeuvres Complètes, vols. 1 e 3, Genève, Slatki-
perpetua a miséria, levando a um fosso ne, 1982; ROUSSEAU, Jean-Jacques, Contrato
cada vez maior entre o capitalista e o Social, Lisboa, Presença, 1977; SÁ, Victor, Do
trabalhador (Id., 1982, I, 128-129), algo Associativismo ao Sindicalismo em Portugal, Coim-
com consequências lesivas tanto para a bra, Imprensa de Coimbra, 1977; VENTURA,
sociedade como para o indivíduo. Re- Maria da Graça A. Mateus (coord.), O Asso-
ciativismo: das Confrarias e Irmandades aos Movi-
fere mesmo que a caridade é da família
mentos Sociais Contemporâneos, Lisboa, Colibri/
do crédito, e que para existir equilíbrio Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2006;
de rendimentos e mais-valias resultantes VERDE, Rui et al., Direito da Liberdade – Discus-
do trabalho é necessária uma organiza- sões de Filosofia, Lisboa, Estúdios Côr, 2002; VI-
ção do trabalho em si, o que faz com CENTE, Ana, “Direito à liberdade de reunião
que ataque frontalmente determinadas e de associação”, in RIBEIRO, Almeida et al.,
formas de associativismo subsidiárias da Repensar a Cidadania: nos 50 Anos da Declaração,
Lisboa, Notícias, 1998.
prossecução de lucro, ao mesmo tempo
que favorece um conceito de mutualis- José Bernardino
mo que respeite uma equivalência pres- Ana Catarina Rocha

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AntiAteísmo 147

Antiateísmo

A origem do fenómeno religioso per-


de-se nos alvores da própria história
humana e, praticamente até ao séc. xviii,
este fenómeno sempre desempenhou um
papel preponderante na vida das socieda-
des humanas. Por isso, alguns – particu-
larmente X. Zubiri – são tentados a dizer
que o Homem é naturalmente religioso.
E falar de religião, obviamente, é evocar
a relação do Homem com o divino, com
um ser (ou seres) supremo(s).
Desde a Antiguidade, porém, houve
Platão, pormenor de A Escola de Atenas,
alguns indivíduos excecionais que ousa- de Rafael Sanzio (1483-1520).
ram exprimir a sua descrença e filósofos
audaciosos que propuseram novas teo-
rias sobre a origem dos deuses, sem no divino. No primeiro caso, o testemunho
entanto as levarem à prática nem rejeita- mais antigo que se conhece é o do sofis-
rem o exercício normal da religião. Foi ta Protágoras (c. 490-420 a.C.), célebre
em referência a eles que se criou o termo pela sua frase “O homem é a medida de
“atheos” (primeiro uso com Platão), com todas as coisas” (DIÓGENES LAÉRCIO,
conotação negativa, e que posteriormen- Vidas e Doutrinas, IX, 51). Ele seria acu-
te – até ao séc. xvi – seria usado de ma- sado de impiedade ou ofensa aos deuses
neira retórica para desacreditar alguém. (a asebeia, em grego), e os seus escritos
Na Modernidade, o ateísmo desenvolveu- queimados, provavelmente por causa da
se como uma espécie de ideologia popu- sentença de abertura do seu livro Sobre os
lar, alcançando grupos cada vez maiores. Deuses: “Sobre os deuses, eu não saberei
E, também desde a Antiguidade, foi con- dizer se existem ou que forma têm” (DK,
tinuamente combatido das mais diferen- B4). Como viria a reconhecer Cícero em
tes maneiras, e, por isso, é possível traçar De Natura Deorum, essa afirmação de Pro-
uma história do antiateísmo. tágoras é muito mais uma atitude agnósti-
ca do que propriamente ateia.
Em relação ao segundo caso, bem mais
o Ateísmo nA históriA evidente, as novas ideias sobre o divino
Antiguidade clássica começam a aparecer muito cedo, com
No período clássico, e seguindo o estudo os filósofos naturalistas. O primeiro a fa-
de J. Bremmer, podemos encontrar indi- zê-lo é Xenófanes (c. 570-475 a.C.), que
víduos e filósofos que negam a existência combate o antropomorfismo dos poetas
dos deuses, ou então que propõem novas gregos e defende a existência de uma di-
teorias para explicar a origem do panteão vindade única, o uno divino. Depois dele,

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148 AntiAteísmo

Anaxágoras (c. 500-428 a.C.), que à seme-


lhança de Protágoras também viria a ser
processado por impiedade, defendia que
os astros, nomeadamente o Sol – tidos
por deuses pela crença popular –, não
eram mais do que massas incandescentes.
Precisamente depois do processo de Ana-
xágoras, as novas ideias dos filósofos natu-
ralistas começaram a ser alvo de escárnio
nas comédias gregas. E, pouco depois, o
próprio Sócrates (c. 470-399 a.C.) não se
livraria de acusações de ateísmo.
É neste contexto que surge a primeira
teoria explicativa da origem do divino,
proposta por Pródico de Ceos (c. 465- Belerofonte Montando Pégaso e Matando a
-395 a.C.). Segundo o testemunho de Fi- quimera (mosaico romano).
lodemo de Gádara em Sobre a Piedade, ele
defenderia que “os deuses da crença po-
pular não existem nem possuem conhe- mesmo crente sincero nessas velhas fábu-
cimento, mas foram os homens primiti- las, com elas vos engane e vos iluda ainda.
vos [que, por admiração, deificaram] os [...] E vós, se em vez de trabalhar rezais
frutos da terra e praticamente tudo o que aos deuses, e deixais de lutar para ganhar
melhorava a sua existência” (frag. 19). a vida, aprendereis que os deuses não
Ou seja, Pródico proporia uma teoria so- existem. Que todas as divindades signifi-
bre a origem dos deuses em duas etapas: cam só a sorte, boa ou má, que temos nes-
primeiro, os antigos começariam a cha- te mundo” (BREMMER, 2006, 16). Num
mar deuses aos elementos da natureza de fragmento atribuído ao segundo, que
que mais dependiam (o Sol, a Lua, os fru- integra a obra Sísifo, parece defender-se
tos, etc.); depois, começaram a deificar a teoria de que a religião foi inventada
e a adorar as pessoas (Deméter, Dioniso, para assegurar a boa conduta humana,
etc.) que se tinham tornado os seus prin- aproveitando o temor que os fenómenos
cipais benfeitores, ao inventar métodos naturais inspiravam no Homem: “Hou-
para o bom uso desses bens. Portanto, ve um tempo em que a vida humana era
segundo esta teoria, teria havido um tem- desordenada e se vivia de um modo bes-
po em que não existiam deuses (antes da tial, impondo-se pela força, porque não
invenção da agricultura). se premiava os virtuosos nem se punia os
Duas outras explicações complemen- perversos. Num dado momento, penso
tares surgem nos escritos de Eurípides que os humanos decidiram estabelecer
(c. 480-406 a.C.) e de Crítias (c. 460- leis para castigar, de maneira a que rei-
-403  a.C.). Num fragmento da tragédia nara a Justiça [lacuna] e se mantivesse o
Belerofonte, descoberto já na era cristã, o crime e a violência sob controlo. Os que
primeiro parece defender que os deuses continuavam a agir mal eram castigados.
não têm poder algum e que a religião é Mas, dado que as leis apenas castigavam
mera fantasia: “Quem disse alguma vez os atos violentos cometidos em público, e
que há deuses lá nos céus? Não há, não não os que se cometiam às escondidas, en-
há, não há. Não deixem que ninguém, tão penso que um homem sábio e esperto

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AntiAteísmo 149

inventou [para os homens] o temor dos intervenção de Demétrio de Faleros, mas


deuses, para que os malvados não fizes- teve de deixar posteriormente a cidade
sem nem dissessem nem pensassem nada grega. É difícil reconstruir a sua teologia,
de mal, nem sequer às escondidas. E foi mas, segundo Diógenes Laércio (séc. iii
essa a origem do divino” (Id., Ibid., 17). d.C.), defendia, numa obra intitulada
Pródico, Eurípedes e Crítias refletem Sobre os Deuses, que estes não existiam ou
uma nova maneira de olhar para o divi- que eram uma criação humana. O certo
no, em finais do séc. v a.C., em Atenas, é que um discípulo seu, Evémero (ver in­
que cria apreensão entre os atenienses. fra), desenvolverá mais tarde a teoria de
E essa apreensão cresce com alguns even- Pródico.
tos que ocorrem em 415. Em vésperas de
uma expedição da frota ateniense à Sicí- Período helenístico e romano
lia, para conquistar a cidade de Siracusa, No período helenístico e romano, ainda
a população descobre com assombro a segundo o estudo de J. Bremmer, impor-
mutilação de praticamente todas as está- ta assinalar três desenvolvimentos impor-
tuas de Hermes da cidade. Nas investiga- tantes.
ções que se fizeram, soube-se ainda que O primeiro tem a ver com o apareci-
os mistérios de Elêusis também haviam mento e desenvolvimento de listas de
sido profanados através de uma paródia ateus. A primeira terá provavelmente sido
de celebração em que participara o pró- elaborada por Epicuro (341-270 a.C.), no
prio Alcibíades, o estadista ateniense que liv. xii do seu Da Natureza, onde mencio-
comandava a expedição à Sicília. Esses nava certamente Protágoras, Pródico,
eventos deram naturalmente origem a Crítias e Diágoras como ímpios (ou seja,
um grande processo contra a impiedade ateus). Essa lista ter-se-ia ampliado no Do
(asebeia) dos seus autores. Ateísmo, de Clitómaco (c. 187-110 a.C.),
É neste contexto que há que entender que teria grande influência em autores
a figura de Diágoras de Melos, conside- posteriores como Cícero, o Pseudo-Aé-
rado o ateu antigo por excelência – e a cio, Sexto Empírico e Diógenes Laércio.
que viria ajuntar-se mais tarde Teodoro O segundo concerne o sucesso poste-
de Cirene. Originário da ilha de Melos, rior da teoria de Pródico. Ele deve-se so-
o poeta e sofista Diágoras, o Ateu (c. 475- bretudo a Evémero (c. 330-250 a.C.), que,
-410 a.C.), foi para Atenas, onde se tor- na sua História Sagrada, defendia que os
nou discípulo de Demócrito. Por volta personagens mitológicos eram seres hu-
de 416-415 a.C. (provavelmente antes manos divinizados pelo medo ou pela
dos eventos acima referidos), é também admiração dos povos. Teve muita influên-
acusado de impiedade, por ter criticado cia no poeta latino Énio (239-169 a.C.),
os mistérios de Elêusis – ou, talvez, por que traduziu a sua obra e a difundiu em
ter revelado a profanos o seu funciona- Roma, talvez preparando o ambiente
mento interno (o que explicaria as paró- para a deificação de Cipião Africano, o
dias antes referidas) –, e, por isso, é obri- Velho, vencedor do general e estadista
gado a sair de Atenas. cartaginês Aníbal. Posteriormente, as
Mais tarde, Teodoro de Cirene, o Ateu suas ideias foram conservadas e difundi-
(c. 340-250 a.C.), sendo professor do Li- das por Diodoro da Sicília, Sexto Empíri-
ceu de Atenas, foi acusado (à semelhança co e Lactâncio.
de Sócrates) de impiedade e de corrom- Enfim, o uso dos termos “ateu” e “ateís-
per a juventude. Seria libertado graças à mo”. Apesar da difusão das ideias ateias

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150 AntiAteísmo

do período clássico, não se pode dizer donista (o prazer é o bem supremo). Do


que durante o período helenístico e ro- ponto de vista religioso, insurge-se contra
mano tenha havido praticantes de um a religião: o mundo não é obra dos deu-
ateísmo declarado. Antes pelo contrário, ses (ideia de Providência), mas do acaso
o termo “ateísmo” tornou-se sobretu- (a combinação aleatória dos átomos).
do um rótulo para atacar os adversários Embora a obra de Epicuro se tenha pra-
(os judeus contra os Egípcios, os pagãos ticamente perdido, as suas ideias sobrevi-
contra os cristãos, e vice-versa). Este uso veram graças a um dos seus admiradores,
vai prolongar-se durante os primeiros sé- Lucrécio (c. 95-55 a.C.), autor do poema
culos da era cristã, até ao momento em De Rerum Natura, redescoberto no séc. xv
que o cristianismo passou a ser considera- e tornado conhecido graças à ação de
do a religião do Império. Niccolò Niccoli.
Importa ainda mencionar duas corren- O ceticismo é uma filosofia atribuída a
tes filosóficas antigas que, redescobertas Pirro de Élis (c. 360-270 a.C.) e conheci-
no Renascimento, terão um enorme im- da sobretudo graças aos escritos de Sex-
pacto na Modernidade: o epicurismo e o to Empírico (sécs. ii-iii d.C.), nomeada-
ceticismo. mente Hipotiposes Pirronianas (ou Esboços
O epicurismo tira o seu nome do filóso- Pirronianos). O termo “cético” vem do
fo grego Epicuro e é uma filosofia mate- termo grego “skepsis”, que significa exa-
rialista (fundada no atomismo de Demó- me ou o que está em exame/averiguação.
crito), para a qual todo o ser é composto Os céticos são, sobretudo, investigadores,
de átomos indivisíveis (mesmo a alma, que suspendem o juízo (opondo-se a
que nada tem de espiritual, e por isso todo e qualquer tipo de dogmatismo) e
não faz sentido esperar uma vida futura); praticam a aporia (o paradoxo, a dúvida,
adota uma epistemologia de tipo empiris- a incerteza). Do ponto de vista religioso,
ta (sendo a sensação a origem de todo o põem em dúvida certas crenças ou afir-
conhecimento); e defende uma ética de- mações, sendo precursores do atual ag-
terminista (uma vez que tudo é agrega- nosticismo. O livro de Sexto Empírico,
ção aleatória dos átomos) e um pouco he- embora conhecido já no séc. xv, pelas
frequentes citações de Francesco Filelfo,
epicuro (341-270 a.C.). só na segunda metade de Quinhentos
seria traduzido e divulgado em grande
escala. Teve uma grande influência nos
pensadores dos sécs. xvi, xvii e xviii.

Idade Moderna
O ateísmo moderno está muito relaciona-
do com a redescoberta dos autores clás-
sicos num contexto sociocultural menos
favorável à fé: desenvolvimento de uma
classe burguesa independente, indivi-
dualista e letrada; ambiente cortesão de
grande libertinagem e costumes dissolu-
tos; atmosfera de guerra religiosa, motivo
para o ceticismo (uso da dúvida; De Arte
Dubitandi, de Castellio) e para a crítica à

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AntiAteísmo 151

Providência divina; generalização do sen- Curieuse des Beaux Esprits de ce Temps (1623):
timento anticlerical; desencantamento identificação de Deus com a natureza;
com a natureza e surgimento de ideias negação da transcendência, dos milagres,
panteístas; descoberta do atomismo epi- da imortalidade da alma e do destino ul-
curista e questionamento da imortalida- traterreno; substituição do livre-arbítrio
de da alma. e da responsabilidade individual por um
Como refere Gavin Hyman, trata-se tal- determinismo naturalista; acusação aos
vez, simplesmente, do aparecimento da religiosos de serem uns oportunistas, e
incredulidade ou descrença em relação aos padres uns impostores. Por esta altu-
ao cristianismo, que depois tomará várias ra, no contexto da guerra das religiões, as
figuras: o deísmo (e o livre pensamen- críticas à religião tradicional fazem emer-
to), o ateísmo (propriamente dito) e o gir um deus não antropomórfico (ser su-
agnosticismo, preparados pelos céticos e premo), totalmente oposto à divindade
libertinos. O certo é que, ao contrário do despótica e cruel do que estes pensado-
que aconteceu na Antiguidade, em que o res consideram ser a religião supersticio-
ateísmo foi defendido apenas por alguns sa dos padres. Na segunda metade desse
indivíduos, na Modernidade desenvolver- mesmo século, começam a rejeitar a ideia
se-á como ideologia, alcançando grupos de uma revelação sobrenatural, tendo as
cada vez maiores. religiões reveladas por imposturas, inven-
Quando John Cheke usa o termo tadas para controlar o povo. A primeira
“ateísmo”, em 1540, numa tradução de metade de Setecentos foi o momento
Sobre a Superstição de Plutarco, dá-se uma da negação de toda a intervenção do ser
situação curiosa: embora Plutarco o use supremo e imutável no mundo, e dos es-
em referência àqueles que pensam que critos contra os milagres. Nascia assim a
os deuses não existem, na tradução de religião racional do séc. xviii, oposta a
J. Cheke o termo surge como uma espé- toda a revelação sobrenatural, que “exal-
cie de acusação contra aqueles que ne- tava um Deus arquiteto do universo, au-
gam a doutrina específica da Providência tor das leis inerentes ao mundo e alheio
divina, i.e., aqueles que não acreditam a qualquer manifestação sobrenatural, tal
que os deuses possam intervir no mundo. como pregavam os sacerdotes” (MARTí-
Este uso do termo “ateísmo” torna-o qua- NEZ, 2011, 319).
se sinónimo de “heresia”. E por isso não é O ateísmo propriamente dito (séc. xviii)
de estranhar que ele seja então usado re- e o agnosticismo (séc. xix) têm também
toricamente nas controvérsias entre cató- a sua própria genealogia.
licos e protestantes, tanto por uns como A do agnosticismo é mais fácil de des-
por outros, para acusar o adversário de crever. Os três primeiros agnósticos con-
incredulidade. fessos são conhecidos: Herbert Spencer,
O deísmo (e o livre pensamento) dos Thomas H. Huxley e Leslie Stephen.
sécs. xvii e xviii lança as suas raízes no Huxley foi mesmo o inventor do termo
teísmo naturalista da Antiguidade greco “agnosticismo” – inspirando-se na passa-
-romana, redescoberto em Quinhentos. gem dos Atos dos Apóstolos onde se fala
Esse deísmo tem início em variadíssimas do “Deus desconhecido” (agnosto theo)
manifestações de libertinos em Itália, (At 17, 23) – para expressar a falta de
França e Inglaterra, e é reconhecível em certeza epistemológica relativa à existên-
várias características já apresentadas pelo cia de Deus. Contudo, este agnosticismo
Jesuíta François Garrasse em La Doctrine confesso foi preparado pelas filosofias

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152 AntiAteísmo

pragmáticas de I. Kant e, sobretudo, de tornar-se-ia praticamente a bíblia dos


D. Hume, o grande crítico dos argumen- ateus. Por outro lado, nos anos de 1670
tos acerca da existência de Deus. Mas e 1680, entre uma boa parte do clero eu-
Hume é, ele mesmo, influenciado pelas ropeu, começou a elaborar-se uma histó-
ideias céticas pirronistas, transmitidas à ria intelectual do ateísmo em que prima-
filosofia moderna por Sexto Empírico, vam as filosofias naturalistas de Hobbes
cuja obra mais importante, Hipótiposes e Espinosa.
Pirronianas, fora redescoberta no séc. xvi E é precisamente entre o clero francês
(tradução de H. Estienne, em 1562). Em que surge o texto considerado o fundador
Hipótiposes Pirronianas, Sexto Empírico do ateísmo e do anticlericalismo militante
define o ceticismo como “a faculdade de em França: Mémoires des Pensées et Sentimen­
opor de todas as maneiras possíveis as ts, de Jean Meslier (1729). Voltaire publi-
coisas que são observáveis [phainomenon] caria extratos do manuscrito original, sob
e as que são pensadas [noumenon], para o título Testament de J. Meslier (1762), ten-
chegar, pelo equilíbrio das coisas e das do reescrito algumas passagens, nas quais
razões opostas, primeiro à suspensão do introduziu a sua própria conceção deísta;
julgamento [epochê] e, depois, à indiferen- o mesmo fez d’Holbach, sob o título de
ça [ataraxia]” (liv. i, cap. iv). Este método, Le Bon Sens du Curé Jean Meslier Suivi de Son
como é exemplificado pelo próprio Sexto Testament (1792). A primeira edição com-
Empírico, pode conduzir ao agnosticis- pleta do manuscrito seria feita apenas em
mo: a existência de Deus não é óbvia, e 1864, por Rudolf Charles d’Ablaing van
não pode ser nem provada nem rejeitada. Gissenburg. As ideias de Meslier, no en-
Do mesmo modo, também podería- tanto, tiveram grande repercussão não
mos fixar-nos nos primeiros ateístas apenas na França da Revolução, como
franceses confessos – d’Holbach, Nai- posteriormente no socialismo utópico e
geon e Diderot – e voltar atrás, não só na Revolução Bolchevique.
aos manuscritos clandestinos ateus dos Durante a Revolução Francesa, o ateís-
sécs. xvii e xviii, mas também aos filó- mo ganhou foros de respeitabilidade:
sofos que deram forma aos ideais ateus, passou rapidamente de inimigo do Esta-
sobretudo T. Hobbes e B. Espinosa; ou do a, praticamente, o seu credo oficial,
então a toda a tradição cética moderna construindo-se por toda a parte templos
que inspirava formas de ateísmo veladas, ao culto da Razão. Mas a experiência
como talvez seja já o caso de Montaigne, francesa será uma exceção; a Revolução
e certamente o de muitos outros céticos Americana permanece inóspita ao ateís-
a partir dos anos de 1630. Desde meados mo e a Inglaterra é-lhe francamente hos-
do séc. xvii, uma literatura clandestina til, sendo este praticamente sinónimo de
ateia teve um grande impacto entre os imoralidade, anarquia e violência.
livres pensadores europeus: Theophrastus Na Inglaterra vitoriana, os descrentes
Redivivus (1659), De Tribus Impostoribus preferiam designar-se por secularistas
(1688), L’Esprit de Mr. Benoît de Spinosa (Holyoake) ou agnósticos (Huxley),
(1688), Traité des Trois Imposteurs (1719), evitando a todo o custo o termo “ateu”,
Cymbalum Mundi sive Symbolorum Sapien­ conotado negativamente. Os desenvolvi-
tiae (1692) e Ars Nihil Credendi (entre mentos da filosofia política no séc. xix
1705 e 1710). O Traité des Trois Imposteurs, não facilitaram as coisas: para Marx,
em particular, publicado definitivamen- revolução e ateísmo estão intimamen-
te em 1768 por Naigeon e d’Holbach, te unidos. A revolução é acompanhada

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AntiAteísmo 153

pelo ateísmo, pois a religião sempre


acompanhou e apoiou o capitalismo
económico. Esta tendência só seria ul-
trapassada no final do século, altura em
que o ateísmo se tornou respeitável en-
tre os intelectuais.
Nessa altura, duas figuras – Friedrich
Nietzsche e John Henry Newman – ante-
cipam profeticamente o que se poderia
descrever como a idade do ateísmo dos
finais do séc. xx. Para estes autores – um
ateu e outro crente –, a indiferença reli-
giosa deixaria de ser um fenómeno isola-
do e do foro privado, passando a exercer
um impacto duradoiro na sociedade. Isso
Friedrich nietzsche (1844-1900).
viria a acontecer a partir dos anos de 1960
(ou talvez já um pouco antes). O que
aqueles dois pensadores não previram niense foram os processos de impiedade.
foi o aparecimento de um novo tipo de A religião grega estava intimamente liga-
ateísmo – o neoateísmo – combativo (ou da à comunidade e, salvo raras exceções,
mesmo agressivo), para o qual a religião a gestão do fenómeno religioso era da
não deve ser apenas tolerada, mas deve responsabilidade dos magistrados civis,
ser contrariada, criticada e confrontada pelo que uma ofensa aos deuses era con-
com argumentos racionais que a descon- siderada um ato de asebeia (impiedade)
siderem. Esta nova forma de ateísmo é e, simultaneamente, de incivilidade. Foi,
veiculada por autores de grande sucesso a portanto, um decreto de Diopites, pro-
nível mundial, como Sam Harris, Richard mulgado por volta de 430 a.C., que ori-
Dawkins, Christopher Hitchens, Victor J. ginou os primeiros processos públicos a
Stenger, entre outros. Anaxágoras e Protágoras, logo seguidos
dos de Diágoras, Sócrates e outros, uma
prática que, segundo G. Minois, foi usada
até finais do séc. iv a.C.
FoRMAS De CoMBATe Ao ATeíSMo
No início da Modernidade, o ateísmo
(AnTIATeíSMo)
foi também combatido através de proces-
A história do ateísmo já foi, de algum sos judiciais pela Inquisição. São célebres
modo, feita, e basta aqui recordar as os casos de Giordano Bruno (1600), acu-
obras monumentais de G. Minois e sado de heresia e ateísmo, e os processos
M.  Onfray. A do antiteísmo está ainda contra os ateus pela Inquisição de Nápo-
nos seus começos; o que foi feito repor- les (1688-1697). Mas também em França
ta-se unicamente aos períodos renas- houve muitos julgamentos por impieda-
centista e iluminista, e está cingido a de: entre 1599 e 1650, foram julgadas
poucos países. 49 pessoas, sendo 42 executadas. Os ca-
Quando surgiram as primeiras mani- sos mais conhecidos foram os de Lucilio
festações de impiedade na Aufklärung Vanini (1619) e Jean Fontanier (1621).
grega, em finais do séc. v a.C., uma das Outra reação, que vem também da An-
primeiras reações da comunidade ate- tiguidade, é a da paródia das ideias dos

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154 AntiAteísmo

filósofos naturalistas gregos que punham Ateus, Epicuristas, Pagãos, Judeus, Maome­
em causa as explicações religiosas popu- tanos e Outros Infiéis, 1581), Antoine Pos-
lares, e que por isso eram satirizadas nas sevin (Livro sobre as Seitas Ateias do Nosso
grandes comédias gregas dos sécs. v-iv a.C. Tempo, 1586) e Pierre Charron (As Três
O primeiro a fazê-lo foi o conservador Verdades, 1593). No séc. xvii, sobressaí-
Aristófanes, nas comédias As  Nuvens ram François Garasse (A Doutrina Curiosa
(423 a.C.) e, mais tarde, em Os  Pássaros dos Bons Espíritos deste Tempo, 1622-1623)
(414 a.C.), em que satiriza e ataca os argu- e Marin Mersenne (Impiedade dos Deístas,
mentos sofistas e as inovações da filosofia Ateus e Libertinos deste Tempo, 1624). No sé-
natural, e acusa Sócrates de exercer uma culo seguinte, apenas merece referência
influência nefasta sobre a sociedade; foi a obra História das Heresias e Sua Refutação,
imitado pelos outros dois grandes drama- ou o Triunfo da Igreja (1768), de Afonso de
turgos atenienses, Êupolis (Os Bajulado­ Ligório.
res, 421 a.C.) e Crátino (Os Omnividentes, Na Antiguidade, Platão foi um dos que
c. 423 a.C.). Na Modernidade também mais se opôs à difusão do ateísmo, con-
não faltarão os prospetos e panfletos, com siderando-o intrinsecamente perigoso e
o seu estilo satírico, polémico, difama- defendendo que era necessário comba-
tório e violento, para atacar as ideias dos tê-lo fosse por meios persuasivos (argu-
livres pensadores (libertinos) e ateístas. mentação), fosse até por meios repressi-
No início da era cristã, os primeiros cris- vos (com sanções proporcionais ao grau
tãos foram muitas vezes acusados de ateís- de culpabilidade). Os meios persuasivos
mo, por se recusarem a prestar culto aos consistiam, por um lado, na apresentação
deuses romanos. Na maioria dos casos, de provas acerca da existência de Deus
essa acusação não era mais do que expres- e, por outro, na enfatização do carácter
são retórica contra o outro. Mas tornou- imoral e vulgar dos ímpios. Segundo
se tão frequente que os apologistas cris- G. Minois, Platão estaria na origem da
tãos se viram forçados a reagir. Por volta opinião negativa que marcou o ateísmo
do ano 200, Tertuliano refuta a acusação até ao séc. xix, a saber, o seu carácter
de ateísmo e argumenta que os deuses pa- vulgar e imoral, ou anticívico. A apologé-
gãos não passam de demónios. Clemente tica moderna sublinhará estes dois tipos
de Alexandria e Orígenes defendem que de argumentação. Por um lado, há uma
o politeísmo pagão é que é ateu, porque preocupação constante de uma parte (a
não acredita em (no verdadeiro) Deus e cristã) em provar a existência de Deus,
na sua Providência. Surpreendentemen- como da outra (a cética) em desfazer es-
te (e retoricamente), a apologética cristã sas provas. Por outro lado, a insistência
reabilita os ateus canónicos (das antigas de uma parte (os apologistas) em des-
listas gregas), porque foram os primeiros mascarar a imoralidade e incivilidade dos
a reconhecer a loucura da religiosidade libertinos e céticos (e.g., Garasse), como
popular greco-romana. também da outra em afirmar a indepen-
A partir de meados do séc. xv, vai nascer dência da moral em relação a qualquer
também uma nova apologética cristã para religião (e.g., d’Holbach).
combater quer a heresia (dos reformado- Face aos novos e agressivos desenvolvi-
res), quer o ateísmo dos céticos, liberti- mentos neoateístas, têm também surgido
nos e incrédulos em geral. No séc. xv, novas maneiras mais ou menos dialogan-
destacaram-se Philippe de Duplessis-Mor- tes de tentar responder-lhe racionalmen-
nay (Da Verdade da Religião Cristã contra os te (cf. Juengel; Mcgrath; Fergusson).

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AntiAteísmo 155

ATeíSMo e AnTIATeíSMo de Sampaio Bruno, A Velhice do Padre Eter­


eM PoRTuGAL no (1885), de Guerra Junqueiro, O Anti­
Em ambientes de influência hegemónica cristo (1886), de Gomes Leal, e A Relíquia
do catolicismo romano, como Portugal, (1887), de Eça de Queirós. Já em 1871,
“o anticlericalismo assume particular nas Conferências do Casino, Antero de
relevância porque visa sobretudo a con- Quental (“Causa da decadência dos povos
testação não só do desempenho da fun- peninsulares nos últimos três séculos”)
ção do clero em si, mas globalmente da acusara o catolicismo do imobilismo pe-
presença das instituições religiosas e res- ninsular. E, alguns anos depois, Basílio
petiva influência na sociedade” (FERREI- Teles, na obra Do Ultimatum ao 31 de Janei­
RA, 2000, 79). É por isso que, em muitos ro (1905), sintetizava o debate em torno
ambientes, diz ainda Matos Ferreira, o da questão religiosa. Referindo-se a duas
anticlericalismo é visto “como sintoma de Vidas de Jesus produzidas em Oitocentos
descristianização”, ou simplesmente de – a Vida de Jesus (1835), de David Strauss,
descrença, e “afirmação do ateísmo” (Id., e a Vida de Jesus (1863), de Ernest Re-
Ibid.), até porque é frequentemente as- nan –, diz que essas obras constituem “a
sociado a movimentos sociais e políticos primeira e mais funda brecha aberta pela
de esquerda (liberais radicais, socialistas erudição moderna no edifício da nossa fé
e anarquistas). Carlos Silva é ainda mais religiosa”; e acrescenta: “não era apenas o
abrangente, afirmando que “todo o ateís- cristianismo, ou outra religião particula-
mo é mais um ateísmo de fé, da religião, rista, que saía ferida de morte, era a ideia
da Igreja, do que um ateísmo do Absolu- religiosa mesma” (GAMA, 2005, 9). Mais
to enquanto tal” (SILVA, 2000a, 160). tarde, em A Questão Religiosa (1913), Ba-
Em Portugal, na verdade, o ateísmo sílio tirará todas as consequências desta
confunde-se com anticlericalismo, pelo constatação, negando a existência de um
menos até ao aparecimento da questão ser transcendente ao mundo fenomenal
religiosa (debates sobre a natureza da cognoscível.
religião, a existência de Deus e a figura Resumidamente, podemos apresen-
de Jesus) em finais do séc. xix e inícios tar a classificação dos vários ateísmos e
do séc. xx. Anteriormente, os temas po- antiteísmos portugueses, elaborada por
lémicos prendiam-se sobretudo com o J. Pinharanda Gomes. Relativamente aos
congregacionismo, o ultramontanismo e ateísmos (a negação de Deus), o autor
o obscurantismo (utilidade da vida con- enumera três: um ateísmo racionalista,
sagrada, celibato, dignificação social da i.e., a negação de Deus através de argu-
mulher, missão do leigo, valorização do mentos racionais (como em Antero de
ministério paroquial, consciência da soli- Quental, Fernando Pessoa e outros); um
dariedade comunitária e tolerância con- ateísmo positivista, tendo Deus e a reli-
fessional e doutrinária). gião como um mito primitivo (e.g., José
Com a aproximação do final do século, Teixeira Rego e Amorim de Carvalho);
num contexto de crítica ao ultramon- e um ateísmo existencialista, que faz de
tanismo e ao dogmatismo romano, cul- Deus um adversário do projeto de liber-
tivando também a ideia de um complô dade humana (como em Vergílio Ferrei-
católico contra as liberdades e a socieda- ra e Alberto Ferreira). Quanto aos anti-
de no seu conjunto, surge uma série de teísmos (o combate contra Deus), ele
obras que atacam o sistema de crenças enumera também três tipos concretos:
cristão: Análise da Crença Cristã (1874), um antiteísmo agonista, que combate

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156 AntiAteísmo

combater “as doutrinas e erros dos mate-


rialistas antigos [Epicuro e Lucrécio] e
modernos [Helvétius, Espinosa, Hobbes
e Locke]” – e A Verdade da Religião Cristã
(1787), de António Ribeiro dos Santos
(MARQUES, 2000, 89).
Um século depois, quando da crise da
questão religiosa, sobressai a obra apolo-
gética do lazarista José Joaquim de Sena
Freitas, respondendo ao racionalismo
(O Milagre e a Crítica Moderna, 1873), aos
ataques de Guerra Junqueiro e Gomes
Leal (Autópsia da Velhice do Padre Eterno,
1885, e um estudo crítico acerca do An­
ticristo, publicado no Diário de Notícias do
Guerra Junqueiro (1850-1923). Rio de Janeiro), e ainda à questão da fi-
gura de Jesus (Historicidade da Existência
Deus com base no sofrimento humano Humana de Jesus, 1910, refutando o libelo
e na questão do mal (Basílio Teles); um de Emilio Bossi, Jesus Christo nunca Exis­
antiteísmo racionalista, tendo Deus como tiu, publicado em Portugal em 1909, mas
uma criação mental do Homem (José visando também Basílio Teles).
Bacelar); e um antiteísmo atomista, que No início do salazarismo, assinale-se o
admite Deus como uma energia cósmica debate em torno do livro de Manuel Gon-
(Raul Brandão). Mas a crise do teísmo de- çalves Cerejeira, A Igreja e o Pensamento
senvolve ainda outras formas heterodo- Contemporâneo (1924), atacado por Sílvio
xas, sendo a mais comum uma espécie de de Lima em Notas Críticas (1929), consi-
pantiteísmo de raiz joaquimita, por vezes derando-o uma “infeliz obra de apologé-
considerado um ateísmo prático (e.g. em tica católica”. No cerne do debate estava
Sampaio Bruno e Amorim Viana). precisamente a questão da necessidade
A primeira e principal resposta ao ateís- da religião para resolver o “problema do
mo, em Portugal, foram os escritos apo- homem” (MARQUES, 2000, 98).
logéticos. Logo no início do movimento, Além da apologética, importa ainda
durante o período pombalino, quando mencionar duas ações combativas da
chegavam ao país os ecos do deísmo de parte dos meios católicos. A primeira,
Tindall e Collins, do espinosismo de To- em finais do séc. xix, é a realização do
land e do naturalismo de Hobbes e Hel- Congresso Internacional Católico (1895)
vétius, são publicadas algumas obras em contra o modernismo, e que constitui
defesa do teísmo e da religião cristã, no- uma “ação antiagnóstica [...] da parte dos
meadamente Triumpho da Religião. Poema tomistas e continuadores do pensamento
Epico Polemico (1756), de Francisco de eclesiástico de matriz escolástica e metafí-
Pina e de Melo – um texto dedicado ao sica” (SILVA, 2000, 26); ou seja, uma cla-
Papa Bento XIV, que lhe agradeceu o es- ra resposta aos positivistas (maçons e anti-
forço de desfazer os erros de ateístas, po- clericais), que defendem atitudes de tipo
liteístas, deístas, libertinos, religionários e agnóstico. A segunda, a Concordata entre
cirenaicos –, Dissertação sobre a Alma Racio­ o Estado português e a Santa Sé (1940):
nal (1778), de José de Jesus Maine – para “a Santa Sé procurava erguer uma frente

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AntiAteísmo 157

em defesa da civilização cristã, ameaçada, Rise and Fall of Disbelief in the Modern World, New
como diz Salazar, ‘pelas desordens e peri- York, Doubleday, 2004; MINOIS, Georges,
gos mentais, morais e sociais trazidos pelo História do Ateísmo, Lisboa, Teorema, 2004; Id.,
The Atheist’s Bible. The Most Dangerous Book That
falso liberalismo, pelo socialismo, pelo
never Existed, Chicago/London, The Universi-
comunismo, pelo ateísmo, pelo materia-
ty of Chicago Press, 2012; ONFRAY, Michel,
lismo e pelas revoluções’” (CARVALHO, Contre-Histoire de la Philosophie, 9 vols., Paris,
2009, 3). Por outras palavras, a Concorda- Grasset, 2006-13; RODRIGUES, Luís F., His-
ta significava o reconhecimento público tória do Ateísmo em Portugal. Da Fundação ao Final
da hegemonia católica em Portugal. do Estado Novo, Lisboa, Guerra e Paz, 2010;
SHEPPARD, Kenneth, Anti-Atheism in Early Mo-
dern England, 1580-1720. The Atheist Answered
and His Error Confuted, Leiden, Brill, 2015; SIL-
VA, Carlos H. do C., “Agnosticismo”, in AZE-
Bibliog.: impressa: BREMMER, Jan N., VEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de His-
“Atheism in Antiquity”, in MARTIN, M. (org.), tória Religiosa de Portugal, vol. i, Lisboa, Círculo
The Cambridge Companion to Atheism, Cam- de Leitores, 2000, pp. 25-27; Id., “Ateísmo”, in
bridge, Cambridge University Press, 2006, AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de
pp. 11-26; CARVALHO, Rita Maria C. A. de, História Religiosa de Portugal, vol. i, Lisboa, Cír-
A Concordata de Salazar. Portugal-Santa Sé 1940, culo de Leitores, 2000a, pp. 159-161; digital:
Dissertação de Doutoramento em História GAMA, Manuel, “Percursos da secularização
Contemporânea Institucional e Política de em Portugal: Basílio Teles e Sampaio Bruno”,
Portugal apresentada à Universidade Nova de Braga, Centro de Estudos Humanísticos da
Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2009; CA- Universidade do Minho, 2005: http://reposi-
TROGA, Fernando, “O laicismo e a questão torium.sdum.uminho.pt/handle/1822/28426
religiosa em Portugal (1865-1911)”, Análise (acedido a 29 dez. 2016).
Social, vol. xxiv, n.º 100, 1988, pp. 211-273;
FERGUSSON, David, Faith and Its Critics. A Con- Porfírio Pinto
versation, Oxford/New York, Oxford University
Press, 2009; FERREIRA, António Matos, “An-
ticlericalismo”, in AZEVEDO, Carlos Moreira Na redação desta entrada, o seu autor contou
(dir.), Dicionário de História Religiosa de Portu- com a colaboração muito proveitosa do colega
gal, vol. i, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, José Carlos Lopes de Miranda, a quem deixa
pp.  79-82; GOMES, J. Pinharanda, Teodiceia aqui exarado o seu mais penhorado reconhe-
Portuguesa Contemporânea (Estudo e Antologia), cimento.
Lisboa, Sampedro, 1974; HYMAN, Gavin,
A  Short History of Atheism, London/New York,
I. B. Tauris, 2010; JUENGEL, Eberhard, God
as the Mystery of the World. On the Foundation of
the Theology of the Crucified One in the Dispute
between Theism and Atheism, London, Blooms-
bury, 2014; LUCAS, Juan de Sahagún, Fenome-
nología y Filosofía de la Religión, Madrid, Biblio-
teca de Autores Cristianos, 1999; MARQUES,
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Carlos Moreira (dir.), Dicionário de História Re-
ligiosa de Portugal, vol. i, Lisboa, Círculo de Lei-
tores, 2000, pp.  82-102; MARTÍNEZ, María
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Su Culminación en el Pensamiento Ilustrado, Cuen-
ca, Universidad de Castilla-La-Mancha, 2011;
MCGRATH, Alister, The Twilight of Atheism. The

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158 AntiAtomismo

Antiatomismo troduz o atomismo, tentando conciliar


Epicuro com a doutrina cristã, foi um
padre francês, matemático e astrónomo,
Pierre Gassendi, amigo de Galileu. Fê-lo
em Syntagma Philosophiae Epicuri cum Re­
futationibus Dogmatum Quae contra Fidem
Christianam ab eo Asserta Sunt, de 1649.

O atomismo é a teoria que defende


que tudo no mundo é feito de áto-
mos e espaço vazio. Essa teoria foi filo-
Para o historiador de ciência Pietro Re-
dondi, a acusação inquisitorial contra
Galileu ficou a dever-se mais à defesa
sófica na Antiguidade Grega, tendo sido de ideias atomistas, que tinham conse-
defendida por Leucipo e Demócrito, no quências no que respeita ao milagre da
séc. v a.C.; de acordo com estes pensa- Eucaristia (se tanto o pão como o vinho
dores, todos os movimentos da natureza eram feitos de átomos, como poderia
resultariam do movimento incessante mudar a substância sem mudarem as
e aleatório, no vazio, dos átomos que aparências?), do que à defesa da teoria
constituem a matéria. Mas passou a ser heliocêntrica introduzida pelo polaco
científica no início do séc. xix, quando Nicolau Copérnico. O filósofo e mate-
o químico inglês John Dalton defendeu mático francês René Descartes, embora
a realidade dos átomos, tendo a chama- não fosse um atomista (negava a exis-
da “hipótese atómica” passado defini- tência de vácuo), especulou, em Le Mon­
tivamente a tese quando, no início do de ou le Traité de la Lumière – escrito em
séc. xx, os cálculos do físico suíço de ori- 1632-1633, mas publicado só em 1664 –,
gem alemã Albert Einstein e as observa- que a luz seria constituída por pequenas
ções do físico francês Jean Perrin sobre partes, embora recuse a ideia de vazio.
o movimento browniano puseram termo A receção dessas teses corpusculares nem
à querela entre atomistas e energeticis- sempre foi pacífica. Em Opticks, uma
tas (do lado dos primeiros, estavam o obra de 1704, o físico inglês Isaac New-
químico francês Charles-Adolphe Wurtz ton defendeu a natureza corpuscular da
e o físico austríaco Ludwig Boltzmann; luz, contrariando as posições do seu co-
do lado dos segundos, estavam o físico lega holandês Christiaan Huygens, tam-
austríaco Ernst Mach, o químico alemão bém ele autor de um Traité de la Lumière,
Wilhelm Ostwald, e o matemático e físi- que considerava a luz uma onda.
co francês Pierre Duhem). Entre os autores nacionais, o primei-
No período da Revolução Científica, ro a defender o atomismo foi o filósofo
a ideia atómica ressurgiu, embora ainda judeu Isaac Cardoso (Fernando, de seu
sem suficiente sustentação científica. Já nome marrano), que se exilou primeiro
alguém notou que o início do Renasci- em Espanha e depois em Itália, e que co-
mento foi precedido pela descoberta, nhecia as ideias de Gassendi e Descartes.
em 1417, do manuscrito de De Rerum No seu livro Philosophia Libera, de 1673,
Natura, da autoria do poeta latino Tito sustentou que a existência de átomos
Lucrécio Caro, que difunde as ideias de resultava do exercício da razão. Os seus
Leucipo e Demócrito. A introdução des- átomos eram, porém, mais uma ideia fi-
sas ideias teve necessariamente de colidir losófica do que física, uma vez que não
com a visão aristotélico-tomista, então tinha consequências no plano da mecâ-
prevalecente. O autor católico que rein- nica. As ideias atomistas de Cardoso cir-

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AntiAtomismo 159

cularam em Espanha e Itália sem suscitar lar insistência a partir de 1623. Cordeiro
reações da Inquisição, mas não tiveram não escapou à admoestação dos seus su-
grande impacto em Portugal. periores, tendo sido obrigado a retratar-
No final do séc. xvi, e em consequên- se de algumas das suas posições e mes-
cia da Contrarreforma, pontificava em mo afastado do ensino em Coimbra. Em
Portugal no ensino da filosofia o Curso 1739, o Jesuíta António Vieira, professor
Conimbricense, um conjunto de comentá- no Colégio de Santo Antão, em Lisboa,
rios a textos de Aristóteles da autoria de atacou quem pretendia estudar a lógica
um coletivo de Jesuítas do Colégio das por “Renato (Descartes), Gassendo, Ma-
Artes, que incluía Manuel de Góis, Bal- riotte, Isaac Newton” (ANDRADE, 1965,
tazar Álvares e Sebastião do Couto. Os 156), por contrariar a boa teologia. Em
Jesuítas de Coimbra foram violentamen- Coimbra, o Jesuíta Silvestre Aranha dis-
te acusados pelo marquês de Pombal de tinguiu-se no ataque ao atomismo, con-
reacionarismo intelectual; mas o facto é siderado herético na medida em que
que, numa fase tardia desse movimento contrariava a filosofia aristotélica. No
neoescolástico, se verificaram algumas seu Disputationum Physicarum adversus
tentativas de renovação do curso. O Je- Atomisticum Systema, afirmou que se esta-
suíta Francisco Soares Lusitano tentou va a subverter a ordem natural das coisas
introduzir alguns elementos de Descar- ao separar a filosofia da teologia. A proi-
tes, escrevendo em 1651, no seu  Cursus bição do atomismo mantinha-se a meio
Philosophicus in Quatuor Tomos Distribu­ do séc. xviii, como revela o decreto de
tus: “Agradam­me as coisas verdadeiras, 1746 do reitor do Colégio das Artes, que
porque verdadeiras; desagradam­me as proibia “nos exames ou lições, conclu-
falsas, porque falsas. Porque não me ar- sões públicas ou particulares se [não]
rasta a beleza da novidade, ou o peso da ensine defesa ou posições novas pouco
antiguidade, mas sim a Verdade das coi- recebidas ou inúteis para o estudo das
sas” (GOMES, 2012, 34). Porém, o Jesuí- Ciências maiores como são as de Renato
ta que, sem renegar totalmente Aristóte- Descartes, Gassendi, Newton e outros, e
les, avançou mais na defesa do atomismo nomeadamente qualquer Ciência que
foi António Cordeiro, autor do Cursus defenda os átomos de Epicuro ou negue
Philosophicus Conimbricensis, de 1714. In- a realidade dos acidentes Eucarísticos
fluenciado por ideias modernas sobre a ou outras quaisquer conclusões opostas
natureza da luz, escrevia: “a luz, tomada ao sistema de Aristóteles, o qual nestas
Física e entitativamente, não é mais do escolas se deve seguir, como repetidas
que pequeníssimas partículas de fogo vezes se recomenda nos estatutos deste
lançadas do próprio fogo ou do Sol ou Colégio” (Id., Ibid., 154).
dum astro aceso” (GOMES, 2012, 52). Nessa altura, a formação dada pelos
Cordeiro pode ser considerado o pri- Oratorianos na Casa das Necessidades,
meiro autor português a tratar o atomis- em Lisboa, era mais atualizada do que o
mo moderno, distinguindo-o do antigo dos Jesuítas no que respeita ao ensino da
e aceitando-o, pelo menos parcialmente. física, sendo aqueles considerados eclé-
Foi muito clara nos sécs. xvi e xvii, na ticos por apresentarem tanto os antigos
escola conimbricense, a rejeição do ato- como os modernos. Uma referência dos
mismo, assim como das ideias cartesia- Oratorianos foi o P.e João Baptista que,
nas a respeito das partes da matéria. Essa em 1736, introduziu a orientação gas-
condenação ocorreu aliás com particu- sendista; mas, entre Descartes e Newton,

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160 AntiAtomismo

preferia claramente o primeiro. O nome bem diferente de uma elegantíssima fá-


maior do Iluminismo católico dos Ora- bula ou um poeta a filosofar. Mandei,
torianos foi, porém, o P.e Teodoro de portanto, passear Descartes, Gassendo,
Almeida que, nas suas Recreações Filosófi­ Epicuro e Aristóteles, pelo menos por
cas, iniciadas em 1751, descrevia de um algum tempo, e peguei em Newton”
modo atomista a mistura de farinha com (MONTEIRO, 1973, 319).
água para fazer pão: “Nesta diligência só No séc. xix, quando se voltou a falar
se dá àquelas partículas a diversidade de em átomos, agora com base científica,
se unirem e meterem umas por entre as os químicos portugueses, embora sem
outras” (Id., Ibid., 267). inovarem do ponto de vista científico,
O estrangeirado Luís António Verney souberam manter-se atualizados graças
criticou, no seu famoso Verdadeiro Método aos seus contactos com o estrangeiro. No
de Estudar, o ensino tradicional da física, I  Congresso Internacional de Química,
chamando aos modernos como Gassen- realizado em Karlsruhe, na Alemanha,
di e Descartes “semimodernos”: “Devo em 1860, no qual se discutiram as ideias
admitir [...] que há grande diversidade atómicas, só esteve presente um Portu-
entre uns e outros Modernos. Os primei- guês: o lente de Coimbra Matias de Car-
ros que sacudiram o jugo de Aristóteles, valho e Vasconcelos, que mais tarde teve
como Cartésio e Gasendo, ainda que fos- uma carreira política.
sem Antiaaristotélicos nos fundamentos, A polémica científica entre os ato-
muito se inclinavam ao Perípato no mé- mistas e os energeticistas não conheceu
todo. [...] Por isso Cartesianos e Gassen- protagonistas entre nós, mas a palavra
distas, enquanto que se chamem moder- “átomo” foi entrando na vida corrente;
nos, porque se fundam nas experiências, e.g., em Os Maias (1888), Eça de Queirós
contudo são filósofos hipotéticos (que é imagina João da Ega a escrever um li-
o mesmo que dizer maus filósofos) por- vro intitulado As Memórias de Um Átomo.
que supõem muitas coisas que não pro- No início do séc. xx, quando a questão
vam)” (VERNEY, 1746, t. 37) . atómica já estava praticamente redimi-
Um Jesuíta moderno foi indubitavel- da, o filósofo Leonardo Coimbra, em
mente Inácio Monteiro, que escreveu O Criacionismo (uma obra de 1912), não
no seu Philosophia, Libera seu Eclectica Ra­ põe completamente de lado as ideias de
tionalis, et Mechanica Sensuum, de 1766: Pierre Duhem, o químico energeticista.
“Depois, deixei Epicuro e o sistema dos Coimbra tentou conciliar posições ato-
Atomistas, com o qual não concorda- mistas e energeticistas, escrevendo, e.g.:
va em muitos pontos, e apliquei-me ao “O que, consciente ou inconscientemen-
novo mundo cartesiano, à nova filosofia. te, fazem os energeticistas é fugirem ao
[...] Depois de ter lido Descartes, notei mecanismo cousista, no que são dignos
que havia resvalado para o campo imen- de louvor” (COIMBRA, 1958, 81). Outro
so das hipóteses; e dei com uma filosofia, filósofo da mesma época, Basílio Teles,
na qual tudo é apresentado engenhosa- rejeitava as conceções atomistas. Estas
mente, muitas coisas há verdadeiras e posições revelam o distanciamento da
muitas também claramente falsas. Ao ler filosofia portuguesa da época relativa-
com atenção e ao discorrer pela teoria mente à ciência.
cartesiana do mundo e na primeira cons- O primeiro cientista a apresentar em
trução de tão grandiosa obra, segundo Portugal a teoria de 1913 do dinamar-
as ideias desse autor, pensava ler coisa quês Niels Bohr, em que pela primeira

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AntiAtomismo 161

vez se enunciava a moderna estrutura do Portuguesa de Filosofia, t. 29, fasc. 3, 1973,


átomo, foi o italiano Giovanni Costanzo, pp. 318-322; NEWTON, Isaac, Opticks, Lon-
professor do Instituto Superior Técnico, don, Samuel Smith e Benjamim Walford,
1704; REDONDI, Pietro, Galileo: Heretic,
em Lisboa, que, por volta de 1920, deu
Princeton, Princeton University Press, 1987;
um curso sobre radioatividade onde fa-
SANTOS, M. N. Berberan e, “Sobre a nudez
lava das novas ideias quânticas. Embora forte do núcleo o manto diáfano da nuvem
lentamente e a custo, a moderna teoria electrónica: as memórias dum átomo”, Quí-
atómica tinha conquistado o seu justo lu- mica, n.º  130, 2013, p. 21; TELES, Basílio,
gar entre nós. O antiatomismo não tinha A Ciência e o Atomismo: Continuação do “Estudo”
mais razão de existir. Inserto no “Prometeu”, Lisboa, Portugal-Bra-
sil, 1920; VERNEY, Luís António, Verdadeiro
Método de Estudar, t. ii, Valença, Oficina de
Bibliog.: impressa: ANDRADE, António Antonio Balle, 1746; digital: SILVA, M. Pal-
Banha de, Vernei e a Cultura do Seu Tempo, mira, “O eclipse do átomo”, De Rerum Na-
Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigen- tura, 31 ago. 2007: http://dererummundi.
sis, 1965; ARANHA, Silvestre, Disputationum blogspot.pt/2007/08/o-eclipse-do-tomo.
Physicarum adversus Atomisticum Systema, Typ. html (acedido a 14 abr. 2016).
Colégio das Artes, 1747; CARDOSO, A. Carlos Fiolhais
Correia et al., “O modelo de Bohr e a sua
recepção em Portugal”, Química, n.º 130,
2013, pp. 11-20; CARDOSO, Isaac, Philoso-
phia Libera, Veneza, Bertanorum sumptidus,
1673; CARVALHO, Joaquim de, Obra Com-
pleta, vol. 2, Lisboa, FCG, 1983; COIMBRA,
Leonardo, O Criacionismo: Síntese Filosófica,
Porto, Livraria Tavares Martins, 1958; COR-
DEIRO, António, Cursus Philosophicus Conim-
bricensis, Lisboa, Officina Deslandes, 1714;
COSTA, A. M. Amorim da, “A cultura anti
-atomista dos conimbricenses”, in COSTA,
A. M. Amorim da, Ciência no Singular, Coim-
bra, Imprensa da Universidade, 2014, pp.
247-274; DESCARTES, René, Le Monde ou le
Traité de la Lumière, Paris, Michel Bobine et
Nicolas le Gras, 1664; GASSENDI, Pierre,
Syntagma Philosophiae Epicuri cum Refutationi-
bus Dogmatum Quae contra Fidem Christianam
ab eo Asserta Sunt, Lyon, Guillaume Barbier,
1649; GOMES, João Pereira, Jesuítas. Ciên-
cia e Cultura no Portugal Moderno. Obra Selecta
de P.e João Pereira Gomes, S.J., org. Henrique
Leitão e José Eduardo Franco, Lisboa, Esfe-
ra do Caos, 2012; HUYGENS, Christiaan,
Traité de la Lumière, Leiden, Pieter van der Aa,
1690; LUCRÉCIO; Da Natureza das Coisas,
Lisboa, Relógio d’Água, 2015; LUSITANO,
Francisco Soares, Cursus Philosophicus in Qua-
tuor Tomos Distributus, Coimbra, Colégio das
Artes/Typ. Craesbeeck, 1651; MONTEIRO,
S. J., “Textos de Inácio Monteiro: prefácio
ao leitor (de ‘Philosophia Libera’)”, Revista

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162 AntiAutoritArismo

Antiautoritarismo rio e das oposições; controlo do sistema


educativo e dos meios de comunicação.
De acordo com estas premissas, na
prática portuguesa apenas se pode de-
signar o período posterior à Revolução
de 28 de maio de 1926 – em especial o
período que se inicia com a aprovação

O conceito de autoritarismo não re-


presenta uma realidade unívoca,
sendo possível encontrar uma multipli-
da Constituição de 1933, quando já era
claro que o regime em vigor não era um
instrumento meramente circunstancial
cidade de significados na sua definição. – como correspondente à consagração
Dessa forma, tanto se pode discutir a do autoritarismo enquanto forma de
utilização de “autoritarismo” no con- regime político. O primado da auto-
texto da tipologia dos sistemas políti- ridade no exercício da arte governati-
cos, como em sentido psicológico ou va é sustentado pelo mais importante
enquanto ideologia política. No entan- ideólogo do Estado Novo, António de
to, as várias dimensões da noção, não Oliveira Salazar, com especial incidên-
obstante a possibilidade de tratamento cia nos seus primeiros discursos, onde
diferenciado e autonomizado, têm um é possível encontrar uma sólida defesa
denominador comum: a ideia de go- da importância de um Estado forte, de
verno através da autoridade e tendo-a uma “ditadura” como forma de resolver
como epicentro. os problemas do país, algo que encon-
Paralelamente, a ideia de autoritaris- tra confirmação nas palavras de Marce-
mo surge em contraposição ao ideário lo Caetano, quando refere que, no fim
liberal e democrático, alicerçado no da Primeira República, se desejava um
pensamento de autores como Joseph regime “em que houvesse um gover-
de Maistre, Bonald, Carl Ludwig Haller, no estável, autoritário e responsável”
Heinrich Treitschke ou Charles Maur- (CAETANO, 1957, 3).
ras. Só com a consolidação do sistema Assim sendo, a construção do negati-
democrático liberal é possível encon- vo do autoritarismo só pode ser enten-
trar os primeiros regimes políticos de dida através dos sucessivos movimen-
cariz autoritário, tal não significando tos culturais e político-ideológicos que
que não existissem anteriormente ex- se vão apresentando e desenvolvendo
periências ditatoriais lato sensu. A uti- (muitas vezes apenas na clandestinida-
lização mais frequente deste conceito de) nos quase 50 anos em que vigorou
identifica-o, segundo o Dicionário Hou­ o Estado Novo, que se exprimiram quer
aiss, com um “sistema político que con- em diferentes correntes do pensamen-
centra o poder nas mãos de uma auto- to artístico, quer no contexto da luta
ridade ou pequena elite autocrática”, e política. Note-se que, no âmbito da de-
a construção do seu negativo faz-se atra- finição de antiautoritarismo – que, em
vés desta sua dimensão fulcral, na qual muitos aspetos, se aproxima da de de-
é possível discernir algumas das suas mocratismo –, se incluem postulados de
principais características: desvaloriza- cariz ideológico, que, na sua extensão
ção do papel do Parlamento; ausência filosófica, se afastam do significado in-
de eleições livres; predomínio do poder trínseco da democracia e cujas aproxi-
executivo; supressão do sistema partidá- mações morfológicas se distanciam do

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AntiAutoritArismo 163

conteúdo conceptual da democracia


formalista.
Desta forma, salienta-se – sem dimi-
nuir a importância dos considerandos
expostos anteriormente, em relação às
conceções filosóficas pressupostas no
conceito de democracia –, em primeiro
lugar, a reação antiautoritária centra-
da na revista Seara Nova, que contou,
entre outros, com os contributos de
Raúl Proença, Jaime Cortesão, António
Sérgio, Ferreira Macedo e Aquilino Ri-
beiro. Surgida antes do 28 de Maio de
1926, no ano de 1921, constitui-se como
um instrumento de “contrapoder”, quer
durante a Primeira República, quer, em
especial, durante o Estado Novo, tendo
como objetivo “congregar em torno do
seu discurso as elites intelectuais de es-
querda na oposição ao autoritarismo e
nacionalismo corporativo” (AMARO,
Capa da Seara Nova, julho de 1944.
1995, 405). A vertente política da Sea­
ra Nova, essencialmente marcada pelo
idealismo racionalista que caracterizava para o aparecimento do Movimento de
a maioria dos seus autores, concretiza- Unidade Nacional Anti-Fascista (MU-
va-se na defesa do socialismo e da de- NAF) e para a formação da União Socia-
mocracia, entendendo-se esta última lista. O MUNAF, claramente inspirado e
como “uma atitude moral”. dominado pelo Partido Comunista Por-
Por outro lado, o antiautoritarismo tuguês (PCP), acabaria por defender o
concretiza-se numa outra dimensão: a derrubamento de António de Oliveira
da oposição política. Neste âmbito, em Salazar e a criação de um governo de-
1932 surge o movimento Renovação De- mocrático. Apesar da sua diversidade,
mocrática, que defendia, no seu progra- os vários movimentos oposicionistas ti-
ma – de natureza híbrida, e até contra- nham em comum o facto de serem con-
ditória –, a defesa do ideal democrático trários ao autoritarismo ditatorial que
e a condenação da ditadura, sem, no caracterizava o Estado Novo.
entanto, ressalvar a importância da au- Durante o ano de 1945 – no término da
toridade como postulado que permite Segunda Guerra Mundial –, foi surgindo
organizar a sociedade. espaço para que o movimento oposicio-
O movimento oposicionista, de con- nista se organizasse na legalidade, sendo
siderável e reconhecida heterogenei- que a criação do Movimento de Unidade
dade, foi-se desenvolvendo, ainda que Democrática – iniciativa do advogado
muito paulatinamente, ao longo das Mário Lima Alves – assumiu considerá-
décs. de 30 e de 40, com especial relevo vel importância na segunda metade da
para a Aliança Republicana e Socialista, déc. de 40. Entre as propostas deste movi-
presidida pelo Gen. Norton de Matos, mento, muito centrado na possibilidade

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164 AntiAutoritArismo

de concorrer em liberdade e igualdade críticas à censura, tendo o mesmo acon-


ao ato eleitoral de 1945, entreveem-se al- tecido nas eleições legislativas de 1957.
gumas de cariz marcadamente antiauto- Merecem especial destaque as eleições
ritário, nomeadamente aquelas nas quais presidenciais de 1958, que, depois do
se defende a liberdade individual, de reu- episódio da putativa candidatura de Ar-
nião e de expressão, ou outras, em que lindo Vicente, viriam a contar com a can-
se advoga a permissão de formação de didatura de Humberto Delgado, firme
partidos políticos. Além disso, a natureza opositor do regime, que em texto publi-
antiautoritária deste movimento é confir- cado pelo jornal República, de 8 de maio
mada pelos discursos dos seus principais de 1958, dirigindo-se a “todas as cor-
responsáveis, como a Declaração lida por rentes liberais antitotalitárias” (ANTT,
Mário Lima Alves no Centro Escolar Re- Arquivo Salazar, PC-51A, cx. 629, pt. 5),
publicano Almirante Reis, em 1945. se assume como tal. Ademais, encontra-
Mais tarde, mas ainda durante a mos, entre as suas afirmações, a crítica
déc.  de  40, o movimento oposicionis- ao autoritarismo legalista do Estado
ta ao Estado Novo organizou-se em Novo, concretizada em inúmeros exem-
torno da candidatura do Gen. Norton plos, como a denúncia da ausência das
de Matos às eleições presidenciais de liberdades de reunião e de expressão, e
1949 (que decorreram a 13 de feverei- da prática da prisão perpétua.
ro), num primeiro momento, e, pos- O movimento oposicionista permane-
teriormente, às eleições legislativas de ceu ativo durante toda a déc. de 1960.
13 de novembro. Nos seus manifestos Em 1961, realizaram-se eleições legisla-
políticos, encontramos a defesa da de- tivas, tendo as mesmas sido precedidas
mocracia e a condenação explícita da pelo Programa para a Democratização
expressão autoritária – designada, em da República, documento com enorme
determinadas circunstâncias, de “tota- repercussão nesse período. Mais tarde,
litária” – do regime, através da crítica em 1965, dá-se um novo ato eleitoral,
à censura, às perseguições políticas e à movido pelas mesmas ideias e na con-
limitação das liberdades individuais. tinuação da linha antiautoritária e pró-
O movimento oposicionista prolon- democrática. Em 1969, já com Marcelo
gou-se durante as décadas seguintes. Caetano, realizam-se novas eleições le-
Em 1951, após a morte do Mar. Carmo- gislativas, com a particularidade de já
na, Rui Luís Gomes apresenta-se como não ser possível falar de uma unidade
candidato à Presidência da República, oposicionista, tendo participado nesse
defendendo a formação de um governo ato eleitoral a Comissão Democrática
democrático, a dissolução da Assembleia Eleitoral, a Comissão Eleitoral Monár-
Nacional e o restabelecimento das liber- quica e a Comissão Eleitoral Nacionalis-
dades fundamentais. Também Quintão ta Independente..
Meireles se apresentou como candidato Deve salientar-se o surgimento, em
ao ato eleitoral de 1951 e, embora tenha 1969 e inserida na estrutura do regime,
apresentado um programa que pugnava da designada ala liberal, e o seu anun-
pela democratização do país, fazia-o mo- ciado fracasso.
deradamente, sem grandes ruturas. Nota ainda para o efervescente movi-
Nas eleições legislativas de 1953, re- mento estudantil que se vai desenvolven-
petem-se os argumentos em prol da do durante este período, e que se assume
existência de eleições democráticas e as como defensor do ideário democrático.

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AntiAutoritArismo 165

a Prática, ontem e hoje, Porto, Afrontamento,


1989; ESTANQUE, Elísio, e BEBIANO, Rui,
Do Activismo à Indiferença. Movimentos Estudan-
tis em Coimbra, Lisboa, Instituto de Ciências
Sociais, 2007; FERNANDES, Tiago, Nem
Ditadura, nem Revolução – a Ala Liberal e o
Marcelismo (1968-1974), Lisboa, Dom Qui-
xote, 2006; GARRIDO, Álvaro, Movimento
Estudantil e Crise do Estado Novo, Coimbra,
Minerva, 1996; GRUPO DE RENOVAÇÃO
DEMOCRÁTICA, A Organização da Democra-
Fotografia de humberto Delgado a depositar cia, Lisboa, Renovação Democrática, 1933;
o voto nas eleições presidenciais de 1958. LEMOS, Mário Matos, Oposição e Eleições
no Estado Novo, Lisboa, Assembleia da Re-
pública – Divisão de Edições, 2012; Logos,
Ao longo da déc. de 1970, o frag- vol. i, Lisboa, Verbo, 1997; LOPES, Fernan-
mentado movimento oposicionista vai- do Farelo, “A revista ‘Pela Grei’ (doutrina e
se afastando cada vez mais. Depois de práticas políticas)”, Análise Social, vol. xviii,
criado o Movimento de Oposição De- n.os 72-74, 1982, pp. 759-772; Manifesto de
mocrática, no final de 1969, é fundada Rui Luís Gomes, 1951; RABY, D. L., “O MU-
NAF, o PCP e o problema da estratégia re-
a Associação para o Desenvolvimento
volucionária da oposição, 1942-47”, Análise
Económico e Social. Paralelamente, sur- Social, vol. xx, n.º 84, 1984, pp. 687-700; Id.,
gem movimentos paramilitares (de dis- A Resistência Anti-Fascista em Portugal (1941-
cutível tendência democrática), como a -1974), Lisboa, Salamandra, 1988; RAMOS,
Acção Revolucionária Armada e a Liga Rui, “O fim da república”, Análise Social,
de Unidade e Acção Revolucionária. Nas vol. xxxiv, n.º 153, 2000, pp.  1059-1082;
eleições legislativas de 1973, repetem-se SALAZAR, António de Oliveira, Discursos,
os princípios norteadores do movimen- 5.ª ed., vol. i, Coimbra, Coimbra Editora,
1961; TENGARRINHA, José, “Os caminhos
to oposicionista, ou seja, a doutrina de-
da unidade democrática contra o Estado
mocrática e antiautoritária, que marcou Novo”, Revista de História das Ideias, vol. 16,
todo o período do Estado Novo. 1994, pp. 387-432.
Filipe Arede Nunes

Bibliog.: manuscrita: ANTT, Arquivo Sala-


zar,  PC-51A, cx. 629, pt. 5,  Proclamação do
General Humberto Delgado com os Fundamentos
da Sua Candidatura à Presidência da Repúbli-
ca, 1958; impressa: AMARO, António Ra-
fael, “A Seara Nova e a resistência cultural e
ideológica à ditadura e ao Estado Novo”,
Revista de História das Ideias, vol. 17, 1995,
pp. 405-438; BOBBIO, Norberto et.al., Di-
cionário de Política, 12.ª ed., vol. i, São Paulo,
Universidade de Brasília, 2004; CAETANO,
Marcelo, A Constituição de 1933. Estudo de
Direito Político, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 1957; CRUZEIRO, Celso, Coimbra
1969 – Crise Académica, o Debate das Ideias e

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166 AntibAirrismo

Antibairrismo Importa desde já assinalar que, tal como


o bairrismo não é um fenómeno estático,
também o antibairrismo não deve ser
entendido como uma frente organizada
que, de um só golpe e ao longo do tem-
po, se opõe à totalidade das expressões,
práticas e aceções que decorrem do bair-

A noção de bairrismo é uma dessas no-


ções que faz parte do património da
língua portuguesa e que é difícil traduzir,
rismo. Na verdade, não parece ser sequer
possível dizer que haja um antibairrismo;
é mais exato dizer, como se verá na con-
adequadamente e sem perda, para outras tinuação, que há diversos antibairrismos.
línguas. Ainda que à partida essa noção De facto, cada antibairrismo centrou de
pareça remeter, muito simplesmente, cada vez o seu ataque ao bairrismo num
para uma forma de apego ou dedicação aspeto particular – numa aceção de bair-
a um bairro, a verdade é que o fenóme- rismo, num dado ponto de vista que de-
no do bairrismo não parece ter difusão corre do bairrismo, numa dada prática
universal; pelo contrário: parece ser um que o bairrismo veio a adotar, etc. –, de
desses fenómenos cujas características tal modo que não é possível identificar o
próprias têm por origem um quadro antibairrismo como um movimento uno,
circunscrito de factos e acontecimentos que manteve a sua coesão ao longo do
históricos e que apenas uma língua con- tempo, etc.
segue expressar plenamente, em todos os Assim, aquilo que se irá encontrar nes-
seus sentidos. te artigo será, mais do que propriamen-
Ora, se nos ativermos à descrição apa- te uma história do bairrismo e dos seus
rentemente benigna de bairrismo como adversários, um conjunto de pistas que
forma de apego ou dedicação a um abrem aos diversos ângulos a partir dos
bairro (como interesse por aquilo que quais o bairrismo foi visado e que consti-
é próximo ou contíguo, por aquilo que tuíram a base dos ataques que veio a so-
se passa no espaço da vizinhança, etc.), frer. E o primeiro desses ângulos começa
pode não ser à partida claro como é que a revelar-se se se atender ao seguinte.
tal fenómeno gerou adversários ou a Não é de modo nenhum evidente que
contestação que se expressa na fórmula da mera existência de bairros decorra,
“antibairrismo”. O apego bairrista tem, como correlato ou consequência imedia-
se lido neste sentido, uma aceção posi- ta, o bairrismo. Quer dizer: na aceção ori-
tiva e, sendo assim, poderia até ser en- ginal da palavra, bairrista era todo aquele
tendido como uma forma espacialmen- que tinha um papel no bairro – e, assim,
te limitada mas socialmente desejável e o bairrista estava para o bairro como o
vantajosa de interação com os vizinhos. freguês para a freguesia, o vizinho para
Porém, acontece que, sob a alçada desta a vizinhança, etc. Porém, a noção evo-
definição preliminar e vaga, o bairrismo luiu: bairrista não é aquele que tem um
assumiu, ao longo do tempo, expres- qualquer papel no bairro (o que poderia
sões, práticas e aceções muito diversas resultar de uma relação contingente, aci-
entre si. As diversas críticas que, como dental e eventual com o bairro) mas é,
veremos, foram dirigidas ao bairrismo mais do que isso, aquele que atribui a um
tiveram precisamente essas expressões, bairro o estatuto de entidade com signifi-
práticas e aceções como alvo. cado próprio.

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AntibAirrismo 167

Aquilo que estamos a procurar subli- cas do bairro, privilegiando as vivências do


nhar fica mais claro se se tiver em conta bairro e os interesses locais, as associações
que há um profundo desencontro en- locais, etc., mas também tornando-se seu
tre a história dos bairros e a história do advogado, assumindo a sua defesa.
bairrismo; que dos primeiros bairros não Ora, o primeiro ataque antibairrista a
decorre instantaneamente bairrismo; que queremos dar atenção decorre justa-
que o bairrismo é um fenómeno muito mente daqui. E a crítica conduzida pelo
posterior aos primeiros bairros. Fica mais antibairrismo passa essencialmente por
claro se se notar que nem todos os bairros três aspetos.
parecem gerar fenómenos de bairrismo; Em primeiro lugar, o antibairrismo as-
aparentemente, uns bairros são mais pro- sinala que não está em jogo apenas uma
pícios do que outros. E, por fim, fica mais mera comemoração ou uma mera exal-
claro se se notar também que o núcleo tação das características de um bairro; o
do bairrismo nem sequer passa, no limi- que está em jogo será, mais propriamen-
te, por entender o bairro nos seus limites te, uma hiperbolização dessas caracterís-
de divisão administrativa, mas que pode ticas – i.e., a sobrevalorização despropor-
perfeitamente acontecer que o que se cionada de um conjunto de traços ou
entende por bairro seja algo que exceda qualidades que, em si mesmos, não terão
tais limites ou, pelo contrário, algo que o valor superlativo que lhes é atribuído.
fica aquém desses limites (que se limita a Certas críticas antibairristas sugerem até
umas quantas ruas, a uma zona particular que a forma de exagero bairrista é fru-
e circunscrita, etc.). to de sentimentos de inferioridade – e,
Em suma: quando falamos de bairro, no
sentido que lhe dá o bairrismo, falamos Rua das Farinhas, de Roque Gameiro
de algo com identidade própria, com ca- (1864-1935).
racterísticas próprias, típicas, distintivas,
etc. É talvez essa uma das razões por que
bairros com características mais marcadas
são mais propícios a gerar bairrismo – são
bairros com forte componente histórica,
cultural e tradicional, que os identifica e
os distingue de todos os outros.
Mas isto ainda não é suficiente para
compreender o bairrismo e os seus ad-
versários. Para isso, é preciso mencionar
um outro fator fundamental: o fator da
identidade cultural.
O que caracteriza o bairrista não é ape-
nas o facto de ter um dado papel num bair-
ro com qualidades e propriedades distinti-
vas; é o laço identitário que o une a esse
bairro. Por outras palavras: é o facto de a
identidade do bairro ter um grande peso
na sua identidade própria, de tal modo
que adota como sua a identidade do bair-
ro – não apenas incorporando característi-

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168 AntibAirrismo

sendo assim, o bairrismo não seria senão santos populares; por outro lado ainda,
um inflacionar de qualidades ou caracte- havia aí uma certa evocação das marchas
rísticas de valor diminuto. militares, em especial as marches aux flam-
Em segundo lugar, e mesmo se ou beaux, etc. Em suma: correspondiam a
quando motivado por um interesse de uma ação e expressão de propaganda sa-
fortalecer as relações entre os habitantes lazarista e, portanto, estavam integradas
do bairro, o bairrismo tem sempre um num programa de legitimização de um
quantum de exclusão de todos os que não modelo ruralista, localista e nacionalista,
são do bairro. Quer dizer: mesmo num que se afirmava e se reproduzia através de
sentido positivo, de integração, o núcleo usos e costumes da cultura popular.
do bairrismo nunca deixa de ser compos- Ora, há sinais na sociedade portuguesa
to de centramento e exclusividade – no de um certo antibairrismo que acentua e
caso, um centramento que exclui todos que critica precisamente os aspetos que
aqueles que não são do bairro, que não agora vemos. A saber: por um lado, criti-
partilham as suas vivências, para quem o ca ao bairrismo a sua história, i.e., o facto
bairro não tem este significado central, de o bairrismo e uma das suas expressões
etc. Em certos casos, a exclusão pode mais populares terem cunho salazarista;
até ir mais longe e pode passar por não por outro lado, critica ao bairrismo o fac-
aceitar a presença no bairro daqueles que to de corresponder a uma demarcação
não são do bairro ou não têm no bairro a territorial restritiva e portanto, à escala,
sua raiz – o que vale ao bairrismo a crítica o facto de corresponder a uma variante
de ser uma modalidade de resistência à cultural do protecionismo.
mudança, de tradicionalismo, de conser- Estes avanços permitem-nos dar conta
vadorismo ou, no limite, de xenofobia. de uma outra aceção de bairrismo – e, na
Em terceiro lugar, decorre dos dois sequência, de um novo ataque antibairris-
aspetos anteriores um fator de conflito. ta que nos interessa, ainda que de forma
Assim, a conjugação do aspeto do cen- muito breve, mencionar.
tramento e da exclusão do outro com o Há uma aceção que fala de bairrismo,
aspeto da exaltação e comemoração das de forma figurada, para significar uma
características de um bairro conduz a estrita e redutora ligação a uma fação.
que os mais diversos bairrismos se cons- O que está em causa nesta aceção de bair-
tituam em adversários entre si. Quer di- rismo é ainda a forma de centramento
zer: conduz a casos ou a eventos em que que vimos atrás – neste caso concreto, a
dois bairrismos de naturezas similares se consequência é o horizonte estar reduzi-
confrontam, procurando fazer prevalecer do aos limites da fação, de tal modo que
o seu bairro sobre outro (e, na verdade, não se considera e que se desvaloriza
sobre todos os outros). todo o horizonte para lá da fação ou que
O exemplo paradigmático deste aspe- se adere, de forma acrítica, às ideias, aos
to do bairrismo são as marchas popula- valores, etc., de uma fação.
res. As marchas populares têm origem Há múltiplos casos de bairrismos desta
na déc. de 30 do séc. xx e a ideia que as natureza: religiosos, culturais, desporti-
origina terá por base três ou quatro ob- vos, partidários, etc. O que mais vezes terá
jetivos mais ou menos declarados: por sido visado pelo antibairrismo foi uma
um lado, a constituição de um concurso certa ligação conformista, provinciana
semelhante aos concursos de ranchos po- e etnocêntrica à terra ou ao país de ori-
pulares; por outro, a comemoração dos gem. A crítica antibairrista, neste sentido,

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AntibAndArrismo 169

passa pela adoção das teses do intercul-


turalismo ou do multiculturalismo, do
Antibandarrismo
cosmopolitismo e, em especial a partir do
final do séc. xx, passa por contestar estas
formas de bairrismo através das teses, dos
processos e dos efeitos da globalização.

Bibliog.: CARVALHO, Ruben de, “A verten-


te política e a vertente popular das festas de
Lisboa”, in CARVALHO, Ruben de et al., Festas
É difícil encontrar, na história da cultu-
ra portuguesa, um autor tão “desfigu-
rado” como Gonçalo Anes, o Bandarra, e
de Lisboa: Relatório da Comissão Consultiva das Fes- um texto tão requisitado e manipulado
tas de Lisboa de 1990, Lisboa, Livros Horizonte,
como as trovas que escreveu, ou que lhe
1991, pp. 26-55; CORDEIRO, Graça Índias,
Um Bairro no Coração da Cidade: Um Estudo An- foram atribuídas. E falar das Trovas – ou
tropológico sobre a Construção Social de Um Bairro da sua contestação e oposição – continua
Típico de Lisboa, Dissertação de Doutoramento a implicar que se enfrente um problema
em Antropologia Social apresentada ao Ins- de monta, que tem a ver com a dificulda-
tituto Superior de Ciências do Trabalho e da de em determinar qual teria sido, de fac-
Empresa, Lisboa, texto policopiado, 1995; to, o texto escrito pelo sapateiro beirão e
Id., “Territórios e identidades: sobre escalas
que foi lido e analisado pelo Tribunal do
de organização sócio-espacial num bairro de
Lisboa”,  Revista de Estudos Históricos, n.º 28, Santo Ofício no processo inquisitorial ul-
2001, pp. 125-142; Id., “Uma certa ideia de timado em 23 de outubro de 1541. Aliás
cidade: popular, bairrista e pitoresca”, Sociolo- é neste processo – e nos que lhe são arro-
gia, n.º  13, 2003, pp. 185-199; Id., “Marchas lados – que encontramos as notícias mais
populares de Lisboa”, in CASTELO-BRANCO, seguras sobre o autor e o texto: Gonçalo
Salwa (ed.), Enciclopédia de Música em Portugal Anes confessa que durante oito ou nove
no Século XX, vol. 3, Lisboa, Círculo de Leito-
anos lera uma Bíblia que lhe empres-
res, 2010, pp. 741-743; Id., e COSTA, António
Firmino da, “Bairros: contexto e intersecção”, tara um escudeiro natural de Trancoso
in VELHO, Gilberto (ed.), Antropologia Urbana: chamado João Gomes de Grão e, por ter
Cultura e Sociedade no Brasil e em Portugal, Rio de muito boa memória, retivera as partes
Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 58-79; COSTA, principais. O seu jeito natural para fazer
António Firmino da, “Identidades culturais trovas levou-o a escrever, pelos anos de
urbanas em época de globalização”,  Revista 1529 e 1530, umas “em louvor de Deus e
Brasileira de Ciências Sociais, n.º 48, 2002, pp. 15-
de El-Rei” que – na sua versão, sem razões
-30; Id., Sociedade de Bairro: Dinâmicas Sociais da
Identidade Cultural, 2.ª ed., Lisboa, Celta, 2008; que o justificassem – teriam despertado
ESTANQUE, Elísio, Cultura Popular e Ideologia Es- o interesse e alimentado as  expectativas
tatal na Produção de Consentimento, Coimbra, Ofi- messiânicas que, por aqueles dias, gras-
cina do Centro de Estudos Sociais, 1995; FOR- savam intensamente na comunidade dos
TUNA, Carlos, “As cidades e as identidades: cristãos-novos. Nunca, durante o inter-
patrimónios, memórias e narrativas sociais”, in
rogatório, tanto quanto o processo nos
SANTOS, M. Lourdes Lima dos (coord.), Cultu-
ra & Economia – Actas do Colóquio Realizado em Lis-
permite verificar, a Inquisição põe em
boa, 9-11 de Novembro de 1994, Lisboa, Instituto causa a boa fé do sapateiro nem o carác-
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, ter ortodoxo dos textos que, saliente-se,
1995, pp. 209-230; MELO, Daniel, Salazarismo tinha lido e analisado, porque, como se
e Cultura Popular (1933-1958), Lisboa, Imprensa refere explicitamente, possuía o caderno
de Ciências Sociais, 2001. do Bandarra em que estavam escritas as
Bruno Venâncio trovas e a explicação do seu sentido. Per-

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170 AntibAndArrismo

passa ao longo da atestação que a inten- Mas, contrariando os ditames do Tribu-


ção do Tribunal era descobrir quem lia e nal, iniciar-se-á aqui uma longa vida – en-
dava interpretações “clandestinas” àque- tre cristãos-novos  e cristãos-velhos – ga-
las composições. Das seis perguntas feitas, rantida pelas cópias variadíssimas, pelos
quase todas vão nesse sentido. Só na últi- inúmeros aproveitamentos e as manipu-
ma o inquisidor João de Melo lhe pergun- lações dos famigerados versos. Segundo
ta como é que “alcançara ele este saber e voz corrente –  é  D. João de Castro que
entender a Brívia, e as cousas da Sagra- o diz –,  o  próprio Monarca malogrado
da Escritura” (ANTT,  Tribunal do Santo as teria levado para África, e foi tal a po-
Ofício…, proc. 7197, fls. 1-5). Numa pri- pularidade e o crédito que ganharam
meira reação, seria legítimo pormos em dú- no pós-Alcácer Quibir, que o cardeal
vida a versão do Bandarra, imaginando-a D. Henrique, como rei e como inquisi-
como um compreensível subterfúgio dor-mor, achou por bem decretar a sua
para escapar às agruras do Tribunal. Não recolha (BNP, cód. 4371, fl. 5v.). De fac-
podemos deixar de admitir, no entanto, to, há testemunhos vários da enorme po-
que aquela interpretação das Trovas – em- pularidade – mas também da inevitável
bora pudesse ter outras – como gesto lau- manipulação – que os textos atribuídos
datório de Deus e do rei de Portugal era a Bandarra tinham nesse contexto. Veja-
possível, e a prova acabada é o facto de a -se, e.g., as  39  “Trouas que  fez Gº. Añes
Inquisição – tão rigorista naquele contex- ho Bandarra çapateiro deremendão na-
to – a ter achado natural. Por isso mesmo, tural de Trancoso. A modo de prophe-
a sentença não constitui tanto um assomo tia e avera 32 anos que  morreo”  que se
contra o conteúdo do texto, mas contra a encontram num pequeno manuscrito la-
exorbitância, a ousadia de um tão simples vrado entre 1579 e 1582, possivelmente
mesteiral se ter dado a ler e comentar o em Guimarães, e transcrito por João de
texto sagrado, causando alvoroço na co- Meira, em 1907, na Revista de Guimarães.
munidade dos cristãos-novos.  Também As trovas teriam sido escritas a 29 de se-
do ponto de vista dos inquisidores, por tembro de 1579, dia de S. Miguel, pou-
falta da devida “declaração”, o texto já es- cos dias depois de as forças de Sancho de
tava a sofrer desacertadas interpretações Ávila terem reconquistado o Porto, des-
de tonalidades messiânicas. Por isso, ten- truindo todas as esperanças ao partido
do em conta a qualidade da pessoa, a sua de D. António. O número exíguo e a sua
vida e os seus costumes, o Tribunal limita- irregularidade formal manifestam bem o
-se a admoestar que não se entremetesse teor das cópias e o desgaste a que as tro-
“a responder nem  escrever em nenhuma vas estavam sujeitas. Depois da aclamação
coisa da Sagrada Escritura”, exige que de- de Filipe II como rei de Portugal, conti-
clare publicamente a “sua tenção acerca nuaram a ser um lugar privilegiado para
das trovas [...] segundo se lhe dará  por interpretar o estado pátrio e encontrar
apontamento” e ordena “que qualquer respostas para tantas incertezas. É sinal
pessoa que tiver as ditas trovas as apre- do desconforto que provocariam o facto
sente à  Santa Inquisição dentro de três de não escaparem ao oitavo rol dos livros
dias, que vier à  notícia e o poder fazer” proibidos, o “Catalogo dos livros que se
(Ibid., fl. 9). O Bandarra autêntico, as tro- prohibem n’estes reynos e senhorios de
vas originais, ficam, com esta sentença, Portugal”, coordenado, em 1581, por
definitivamente sepultos nos arquivos da Fr.  Bartolomeu Ferreira  (LIMA,  2009,
inquisição. 443). O já referido D. João de Castro – o

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AntibAndArrismo 171

seu primeiro editor – conta ainda que lhe


vieram parar às mãos no verão de 1578 e,
por serem de difícil leitura e interpreta-
ção, leu-as tantas vezes que lhe ficaram al-
gum tempo na memória. Depois perdeu
o papel em que as tinha escrito na Bata-
lha de Alcântara, quando os apoiantes de
D. António foram derrotados pelo du-
que de Alba, e reteve sempre delas “uma
certa ideia”  que nunca mais encontraria
nas versões vistas posteriormente. O que
se propõe fazer – tendo como ponto de
referência aquelas trovas há tanto tempo
lidas e que lhe pareciam agora “das bem Gonçalo Anes Bandarra (1603)
escritas e certas que se podiam achar no (atribuição incerta).
Reino”  – é recolher e selecionar os versos
mais condizentes e dar-lhes uma unidade a primeira da obra que ele fez; o prólo-
capaz de sustentar a vida de D. Sebastião go é dotado de uma destoante coesão e
e a causa de Marco Túlio Catizone, o ho- coerência, que lhe dão a figura de uma
mem que, em 1598, em Veneza, começou produção e inclusão posterior; na época
a dizer ser o rei de Portugal desaparecido em que foram escritas, o bispo da Guarda
em África e estar preso em San Lúcar de era D. Jorge de Melo – bispo entre 1519
Barrameda e em vias de ser sentenciado. a 1549 – que não era, de forma alguma,
Apesar do comprovado rigor intelectual merecedor de tais elogios. O prelado
do autor e da coerência com que traba- com o perfil que mais se adequaria à de-
lha as fontes, a primeira edição das Tro- dicatória era, sem dúvida, D. João de Por-
vas – na  Paraphrase et Concordancia de Al- tugal que, para além de figura insigne, foi
gũas Prophecias de Bandarra, Çapateiro de um defensor da autonomia lusa. Filho de
Trancoso – em Paris, no final de 1603, na D. Francisco de Portugal, primeiro conde
“clandestinidade”, não consegue deixar de Vimioso, confirmado como bispo da
de ser uma edição incompleta ao serviço Guarda em 23 de março de 1556, caracte-
de um sebastianismo latente, ortodoxo e rizou-se pelo zelo e pela reforma que im-
antifilipino com que o autor estava com- primiu na sua Diocese. Em 1580, seguiu
prometido. São vários os sinais do desfa- o partido de D. António prior do Crato
samento entre os textos desta primeira e andou fugido e escondido desde a en-
edição e aqueles que foram apreciados trada de Filipe II em Portugal até 1586,
pelo Tribunal do Santo Ofício em 1541.  ano em que foi preso. Em março desse
Uma das partes que não poderia ter sido ano, foi levado para Setúbal e depois para
da lavra de Gonçalo Anes é  o prólogo Castela, onde esteve preso até à morte. Só
em que Bandarra falaria com o bispo da aceitando a hipótese de Bandarra ter fa-
Guarda do tempo, exaltado pela “virtude lecido em 1560 – que D. João de Castro
e ciência”: O próprio Bandarra disse no aventa – é que, teoricamente, poderia ser
processo inquisitorial que a estrofe que possível que a dedicatória fosse por ele
se inicia “Um grande leão se erguerá,/ escrita e dirigida a D. João de Portugal.
E dará grande bramido,/Seu brado será No entanto, isso implicava admitir que o
ouvido,/A todos asombrará” tinha sido sapateiro de Trancoso teria contrariado

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172 AntibAndArrismo

a sentença que lhe fora atribuída pelo vas tiveram neste entrecho: veja-se o Ma-
Tribunal da Inquisição, o que nos parece nifesto do Reino de Portugal, de Pantaleão
muito inverosímil. Estas razões levam-nos Rodrigues Pacheco (1643) em que, na
a considerar que se trata de um texto pos- tentativa de convencer Urbano VIII da le-
terior a Bandarra, escrito e anexo às Tro- gitimidade de D. João IV e da necessidade
vas para servir as virtudes de D. João de de se acolher a embaixada de D. Miguel,
Portugal, premiando a sua ação no movi- bispo de Lamego, se usam, como escreve,
mento de resistência a Filipe II e dando os “mal limados e toscos versos daquele
ao texto uma tonalidade reativa que nun- poeta, que tanto tempo de antes declara-
ca mais perderia. va o ano de sua restituição”; a  Lusitânia
Apesar da inevitável polémica com os Liberata de António de Sousa de Macedo,
sebastianistas ortodoxos, fiéis às suas es- editada em Londres em 1645, em que se
peranças proféticas e messiânicas, as pro- traduzem algumas trovas de Bandarra; a
fecias plasmadas nas trovas terão também correspondência de Francisco de Sousa
um papel fundamental no surgimento e Coutinho, embaixador em Holanda que,
na consolidação do movimento restau- numa carta de 8 de agosto de 1648 para
rador. É esta uma outra apropriação da o marquês de Niza, revela encontrar nas
autoridade profética  do sapateiro ao trovas sinais de que o infante D. Duar-
serviço de uma corrente messiânica – ou te, preso em Milão, viria a comandar as
de um sebastianismo agora “heterodo- forças unidas da cristandade e vencer o
xo”  –  que privava já de qualquer prota- Império Turco; ou, ainda, a Vox Turturis
gonismo político o rei desaparecido em Portugalia Gemens de Nicolau Monteiro,
África. É neste contexto, aliás, cerca de prior de Cedofeita e depois bispo do Por-
100 anos depois da condenação inquisi- to, publicada em 1649 (AZEVEDO, 1984,
torial, que a reputação do valor profético 67-70). Mas o empreendimento de maior
dos textos de Bandarra atinge o zénite. O vulto seria cometido por D. Vasco Luís da
P.e António Vieira – o principal bandar- Gama,  embaixador em Paris, então con-
rista heterodoxo da linha restauracionis- de da Vidigueira e mais tarde marquês de
ta –, no seu processo inquisitorial, fala Niza, que, em 1644, manda imprimir, em
da forma como, no dia da aclamação de Nantes, à sua custa, as Trovas de Bandarra.
D. João  IV, o arcebispo consentiu que a E nesta edição abundam acenos de novos
imagem de Bandarra fosse posta num al- acrescentos e delapidações. De facto, das
tar da Sé sem que ninguém protestasse. trovas que dão corpo ao segundo e ter-
Em Trancoso, procuraram-se os restos ceiro sonhos não se encontram indícios
mortais do “profeta” e transferiram-se nas muitas versões que D. João de Castro
para um lugar nobre da igreja matriz. O consultou e usou.  Para além de não ser
governador das armas da Beira, D. Álvaro despicienda a sua asserção de as Trovas se-
de Abranches, mandou fazer o túmulo, e rem constituídas por um “prólogo” e um
João de Saldanha de Sousa, seu sucessor, “sonho”, na sua obra – com exceção das
teria mandado que se lavrasse a inscrição trovas 135, 158 e 159, que são as últimas –
que dizia: “Aqui Jaz Gonçalo Eannes Ban- não há qualquer sinal dessas 59 (da 98 à
darra, natural desta vila, que profetizou 157) que, na referida edição de 1644, apa-
a restauração deste reino, e que havia de recem ininterruptas. Para além disto, há
ser no ano de 1640, por el-rei D. João IV, nos versos supracitados uma clara confor-
nosso senhor”. E não faltam exemplos midade semântica com a restauração da
para sustentar a importância que as tro- independência, ao propalar-se a chegada

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AntibAndArrismo 173

do tempo esperado em que se escolheria inquisitorial do P.e António Vieira (1663-


um novo rei, um rei de “direito e dotado -1667) que, sem o apoio político de ou-
de perfeição”, um rei humano que com trora, é verdadeiramente humilhado pelo
gente de grande valor enfrentaria a “grifa Tribunal do Santo Ofício. A principal
parideira”, derrubaria monarquias e aca- peça dos autos, “Esperança de Portugal,
baria com as heresias, defenderia a grei e Quinto Império do Mundo”, patenteava
a lei e protagonizaria uma unificação uni- bem as razões do decurso: Bandarra, con-
versal profetizada por Daniel e Jeremias. denado pela Inquisição em 1541, era um
O segundo e terceiro sonhos, portanto, verdadeiro profeta; nos seus textos, teria
foram ampliações estratégicas das fami- profetizado a ressurreição de D. João IV e
geradas trovas de Bandarra, de forma a a consumação do Quinto Império, que se
que melhor servissem o ideário restaura- revelaria no ano de 1666, a partir do qual
cionista. O  certo é que o Bandarra não se instauraria um tempo de triunfo da
perderá mais o lugar de “profeta maior” e cristandade liderado pelo rei de Portugal
os textos que lhe foram sendo atribuídos e pelo papa Angélico. A nova proibição
– acertadamente considerados o “evange- inquisitorial de 3 de novembro de 1665
lho do sebastianismo” – sofrerão todas as e o facto de o inquisidor-mor, D.  Veríssi-
adulações e repressões a que se viu sujeita mo de Lencastre, provavelmente durante
a “fé sebástica”. o seu primeiro mandato (28 de novem-
Como bem apontou Veiga Torres, e bro de 1676 a 27 de maio de 1679), ter
ao contrário da interpretação de Lúcio feito questão de ordenar que se apagasse
de Azevedo, durante a segunda metade o epitáfio da sepultura do Bandarra são
do séc. xvii – apesar da consolidação da sinais da forma como a Inquisição se ex-
autonomia nacional, da estabilização da tremou nos esforços antibandárricos. E a
situação económica e de todas as contra- mentalidade racionalista e pré-iluminista
riedades a que se verá sujeita –, a expec- do séc.  xviii  não dará tréguas à crença
tativa sebástica manifesta-se ainda de uma sebástica: para além dos cíclicos ímpe-
forma mais intensa, como mostra a cres- tos inquisitoriais para com os leitores
cente produção manuscrita de textos e a das Trovas – em 1727, o Tribunal ordena
proliferação de casos de devoção. O que nova apreensão, declarando-as opostas à
motivou o erro interpretativo foi o facto religião e ímpios os seus autores e aque-
de, agora, dificilmente se encontrarem li- les que as propagam –, são os ataques
teratos e aristocratas entre os seguidores. corrosivos dos panfletários como Tomás
O sebastianismo deixou de interessar po- Pinto Brandão que, em 1730, num poema
liticamente e passa a ser depreciado pelos intitulado “Declarados encubertos”, brin-
homens próximos do poder. Na verda- ca com o facto de muitos sebastianistas
de, se até à segunda metade do séc. xvii continuarem à espera de acontecimentos
é  difícil encontrar sinais que sintonizem milagrosos; e são as primeiras abordagens
com a censura inquisitorial  das Trovas e verdadeiramente historicistas sobre o fe-
é impossível mapear a presença dos seus nómeno sebástico, de que são exemplo
detratores, agora aparecerão nítidas ma- a Crónica do muito Alto e muito Esclarecido
nifestações de sarcasmo para com os seus Príncipe D. Sebastião (1730) de Manuel de
leitores e para com a sua pretensa capaci- Menezes, a História Sebástica (1735) de
dade profética e efetivar-se-á uma empe- Manuel dos Santos, as Memórias para a His-
nhada censura. A este respeito é incontor- tória de Portugal Que Compreendem o Governo
nável – porque emblemático – o processo del Rey D. Sebastião (1736-1751) de Diogo

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174 AntibAndArrismo

Barbosa Machado e o Portugal Cuidadoso e venturoso de Portugal plasmado nas pro-


Lastimado com a Vida e Perda do Senhor Rei fecias. Mas era também o desassossego
D. Sebastião (1737) de José Pereira Baião perante a secularização latente, a influên-
(OLIVEIRA, 2002, XXXI-XXXII). cia maçónica e racionalista e a propaga-
Faltariam ainda os particulares acome- ção das ideias revolucionárias francesas.
timentos de Pombal. Na tese do marquês, No mesmo ano de 1810, surgirá uma cé-
os Jesuítas tinham sido os autores de tudo lebre controvérsia que ficaria conhecida
quanto havia sucedido de calamitoso em como “guerra sebástica”. José Agostinho
Portugal, nomeadamente os inventores de Macedo (1761-1831), acirrado com as
das Trovas do Bandarra, interpretando-as apologias sebásticas que circulavam por
no sentido da Restauração para se lhes aqueles dias, num escrito intitulado Os Se-
perdoar o mal que antes tinham feito à bastianistas. Reflexões Críticas sobre esta Ridí-
Casa de Bragança; e António Vieira teria cula Seita, no estilo corrosivo que lhe era
sido o principal arquiteto da maquina- tão próprio, sente-se impelido pelo dever
ção. Mas fica claro que, nesse contexto, de combater “esta seita de crédulos” que,
a postura antibandárrica é enviesada pela agarrados às trovas de Bandarra e a ou-
problemática antijesuítica (&Antijesuítis- tros textos “condenados e proscritos pela
mo) e, nesse sentido, merecerá a devida Real Mesa Censoria”, eram “prejudiciais
relativização. A investida não era tanto á pública segurança, e defesa do Reino,
contra as trovas e o seu pretenso espírito enquanto fiados nas ridiculas profecias
profético, mas contra os padres da Com- permanecem indolentes para tudo” (MA-
panhia, cujo poder e influência Pombal CEDO, 1810, Prefação). E a obra tenta
pretendia destruir. Os sebastianistas poli- sustentar quatro proposições particular-
ticamente inofensivos podiam continuar mente controversas: um sebastianista é
a acreditar. E a crença, de facto, como um mau cristão; um sebastianista é um
que por instinto de sobrevivência, defen- mau vassalo; um sebastianista é um mau
deu-se destes assomos rearrumando os cidadão; e, a mais contundente, um se-
seus argumentos e difundindo-se, sigilo- bastianista é o maior de todos os tolos.
samente, em variadíssimos manuscritos. A diatribe ganha um eco vigorosíssimo,
O Estado cada vez mais secularizado, a manifesta-se em mais de 30 opúsculos de
corrupção de costumes, a irreligião la- géneros diversos e, conhecidos os inter-
tente, o sentimento de decadência eram venientes e as suas razões, fica claro que
argumentos decisivos para que se acor- representa o choque, agora inevitável,
dassem esperanças grandiosas e ambições entre posições ideológicas vincadamen-
pretéritas. te opostas. O sebastianismo continuava
No início do séc. xix, outras razões sur- a animar as fações mais tradicionalistas e
giram para animar as hostes sebásticas. inconformadas com o esboroar do Portu-
Por um lado, era o sobressalto naciona- gal antigo. E, ao longo da centúria, quer
lista perante as invasões francesas (&Anti- pelas circunstâncias políticas – a expul-
francesismo) e a intervenção estrangeira. são das ordens religiosas, a progressiva
A edição impressa em Londres, em 1810, secularização do clero diocesano, a con-
intitulada Bandarra Descoberto nas Suas Tro- solidação das instituições liberais –, quer
vas – Collecçam de Profecias mais Notáveis, pela atitude estética que acompanha o
Respeito a Felicidade de Portugal, e Cahida movimento romântico, o apocalitismo e
dos Maiores Imperios do Mundo, pretendia o profetismo messiânico tendem a defi-
recordar à consciência pública o futuro nhar. E o mito sebástico, tratado à exaus-

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AntibAndArrismo 175

cio de, A Evolução do Sebastianismo, Lisboa, Pre-


sença, 1984; HERMANN, Jacqueline, “Dom
Sebastião contra Napoleão: a guerra sebástica
contra as tropas francesas”, Topoi, vol. 3, n.º 5,
dez. 2002, pp. 108-133; LIMA, Luís Filipe Sil-
vério de, “O percurso das Trovas do Bandarra:
circulação letrada de um profeta iletrado” in
ALGRANTI, Leila Mezan, e MEGIANI, Ana Pau-
la Torres (orgs.), O Império por Escrito. Formas
de Transmissão da Cultura Letrada no Mundo Ibéri-
co, São Paulo, Alameda, 2009, pp. 441-452;
MACEDO, José Agostinho de, Os Sebastianistas.
Reflexões Críticas sobre esta Ridícula Seita, Lisboa,
Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, Im-
pressor do Conselho de Guerra, 1810; MAR-
COCCI, Giuseppe, e PAIVA, José Pedro, História
da Inquisição Portuguesa – 1536-1821, Lisboa, A
Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Esfera dos Livros, 2013; MARTINS, J. P. Oli-
de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929). veira, História de Portugal, Lisboa, INCM, 1988;
MEIRA, João de, “Subsídios para a historia
vimaranense”, Revista de Guimarães, vol. 24,
n.º 2, abr.-jun. 1907, pp. 68-78; OLIVEIRA,
tão pelas elites culturais e, de forma par- Vítor Amaral de, Sebástica – Bibliografia Geral
ticular, pela geração de 70, é recriado e sobre D. Sebastião, Coimbra, Biblioteca Geral
transformado no símbolo de um Portugal da Universidade, 2002; SERAFIM, João Carlos
decadente e frustrado nas suas ambições Gonçalves, Gonçalo Anes, o Bandarra, Sapateiro de
imperiais. Foi particularmente decisiva Trancoso, Dissertação de Mestrado em Cultura
Portuguesa Moderna apresentada à Universi-
a caracterização do fenómeno feita por
dade do Porto, Porto, texto policopiado, 1996;
Oliveira Martins na sua História de Portu- Id., D. João de Castro, “O Sebastianista” – Meandros
gal (1879), que viu o mito sebástico como de Vida, e Razões de Obra, Dissertação de Dou-
uma “explosão simples da desesperan- toramento em Cultura Portuguesa Moderna
ça”, uma “abdicação da história”, uma apresentada à Universidade do Porto, Porto,
“renegação da realidade” (MARTINS, texto policopiado, 2004; TORRES, José Veiga,
1988, 83). Mas nem o definhamento da “Um exemplo de resistência popular – o sebas-
tianismo”, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 2,
expectativa apocalíptica ou sebastianista
set.-dez. 1978, pp. 5-33.
decretou a impopularidade das Trovas: o
número dos aduladores manteve-se, e as João Carlos Gonçalves Serafim
razões da demanda eram agora o facto de
serem uma espécie de emblema coletivo
de uma pátria fracassada.

Bibliog.: manuscrita: ANTT, Tribunal do Santo


Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 7197, Pro-
cesso de Gonçalo Anes Bandarra, 1541; Biblioteca
Nacional de Portugal, reservados, cód. 4371,
D. João de Castro, Da Quinta e Ultima Monarquia
Futura, com muitas Outras Cousas Admiraveis dos
Nossos Tempos, 1597; impressa: AZEVEDO, Lú-

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176 AntibArroquismo

Antibarroquismo do gosto literário. A doutrina poética que


estabelece firma-se nos valores do bom
senso, do bom gosto e do equilíbrio, e
pretende recuperar o conceito de imita-
ção horaciano. A apologia do regresso à
leitura dos clássicos da Antiguidade rea-
liza-se a par de uma negação do artificia-

O fenómeno denominado antibarro-


quismo é compreensível no âmbito
da evolução das correntes estéticas euro-
lismo dos escritos preciosistas e burlescos
franceses.
Data de pouco depois a publicação do
peias, nos sécs. xvi, xvii e xviii, consti- tratado de Ludovico Muratori, Della Per-
tuindo um ponto nevrálgico da oposição fetta Poesia Italiana (1706). Analisando
entre o classicismo e os princípios artísti- a evolução da literatura em Itália desde
cos que representam uma crise dos seus as suas origens, este autor aponta como
valores (&Anticlassicismo). viciosos o uso do tropo e da agudeza,
Em Portugal, a reação à estética do pe- próprio do gosto barroquista, que fruti-
ríodo barroco obteve uma significativa ficou depois de 1600, e responsabiliza a
sistematização no século das Luzes, no influência da poesia de Marino pela sua
quadro da fundamentação dos pressu- instauração no Parnaso italiano. O neo-
postos neoclássicos que o academicismo classicismo afirma-se, neste país, com a
literário impôs à prática literária. No al- fundação da Arcádia Romana (1690),
vorecer da aproximação às tendências cujo modelo organizativo inspira a cria-
estéticas e científicas em voga na Euro- ção da Arcádia Lusitana, em Lisboa, mais
pa a norte da península Ibérica, desta- de meio século depois (1756).
ca-se, desde os reinados de Afonso VI e Exprobando analogamente a corrente
Pedro II, o aparecimento de vários cír- literária vigente, na tentativa de perfilar
culos de letrados que têm como objetivo as mentalidades pelo emergente raciona-
intervir nos modos de conceber as artes
e as letras. Um desses grupos, de nome Rafael Bluteau (1638-1734).
Conferências Discretas e Eruditas (1696),
reunindo elementos da extinta Academia
dos Generosos (1647-1667), contou com
a presença de Rafael Bluteau, importante
intermediário entre a corte portuguesa e
a corte francesa de Luís XIV.
É neste ambiente, em que se pressente
a iminente condição periférica dos países
ibéricos face ao novo foco de irradiação
cultural do Ocidente, que substitui assim
a influência cultural da Europa latina,
que é levada a cabo a tradução da Arte
Poética de Nicolás Boileau (1674), pelo
conde de Ericeira, D. Francisco Xavier
de Meneses, por volta de 1697. Esta obra
fornece os princípios em que se fundará
a crítica ao barroco e, com ela, a reforma

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AntibArroquismo 177

lismo europeu, os membros da também sicos tornar-se-iam possíveis pela imitação


chamada Arcádia Olissiponense formam da natureza e a observância das regras da
um movimento intelectual cujo projeto arte.
passa por uma restauração do bom gos- Recorde-se, pois, a conceção horaciana
to e pelo fomento da instrução pública. presente no Verdadeiro Metodo de Estudar
Para tal, tornou-se imprescindível uma (1746), da autoria do Oratoriano Luís
acentuação da crítica literária, prática António Verney (com o pseud. de P.e Bar-
já florescente em Portugal. Sendo uma badinho), texto que antecede a funda-
parte significativa dos seus membros de ção da Arcádia e influencia a escrita da
origem burguesa, a exercer funções na primeira arte poética portuguesa, pela
área do direito, não é despiciendo o fac- pena de Freire (1748-1749): “A Poesia é
to de os escritos doutrinários da Arcádia uma viva descrição das coisas, que nela se
evidenciarem, por um lado, o teor nor- tratam: outros lhe chamam pintura que
mativo próprio da linguagem jurídica fala” (VERNEY, 1746, 234). O Verdadeiro
e, por outro, um desejo de substituir o Metodo... constitui a obra paradigmática
idealismo das formas literárias associa- da acesa polémica que teve como alvo a
das à velha aristocracia por um maior eloquência e, de um modo geral, a cultu-
compromisso com o real quotidiano, ra seiscentista. Obteve reações que se es-
que pretendem ver tematizado nas suas tenderam ao longo de vários anos, vindas
obras. Assim, em conformidade com de dentro e de fora de Portugal.
o que vem acontecendo, paralelamen- Além de preparar o terreno para a teo-
te, no campo das reformas da língua, rização estética dos árcades, o tratado
desde o Antídoto da Língua Portuguesa de Verney determinou a elaboração dos
(1710), de António de Melo da Fonseca, compêndios de retórica da segunda me-
até às Enfermidades da Língua Portuguesa tade do séc. xviii. Imbuídas do moder-
(1759), de Manuel José de Paiva, os árca- no espírito científico europeu, as novas
des procedem ao escrutínio do uso dos conceções literárias e pedagógicas vão ser
processos estilísticos e retóricos presen- implementadas no seio das reformas edu-
tes em obras coetâneas, e anteriores, à cativas pombalinas. Consequentemente,
luz das regras da poética clássica. substitui-se o paradigma da especulação
O emblema da Arcádia, uma mão em- abstrata em que se baseava o método es-
punhando uma foice de podar, acompa- colástico em vigor nos colégios jesuítas
nhado da divisa “inutilia truncat” [corta pelo novo modelo de conhecimento, di-
o inútil], traduz bem a batalha contra o rigido para o experimentalismo e a apre-
excesso do adorno retórico cultista e a in- ensão do imediato. Em estreita conexão
fluência castelhana da poesia de Luis de com esta mudança de paradigma, é sig-
Góngora, que os árcades levam a efeito. nificativa a extinção de todas as escolas
Na prática poética e na teorização, vários reguladas pelos métodos dos Jesuítas, por
nomes avultam, nomeadamente Pedro efeito do alvará de 28 de junho de 1759,
José Correia Garção e Francisco José precedida que foi, ainda no reinado de
Freire. Procuram, sobretudo, introduzir D. João V, da entrega da missão tutelar so-
no verso o “apetecido ar da nobre simpli- bre o ensino à Congregação do Oratório
cidade” (GARÇÃO, 1778, 356), virtude (&Antijesuitismo). A esta congregação
oposta ao rebuscamento das formas e ao pertenceram, além de Verney, outras fi-
delírio imaginativo atribuídos à poesia guras célebres do Iluminismo português,
barroca. A sobriedade e o equilíbrio clás- como Fr. Manuel do Cenáculo. Alguns

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dos seus congregados foram sócios da Ar-


cádia Lusitana.
Situando-se uma das suas prováveis
origens em textos portugueses e espa-
nhóis do séc. xvi, em que se designava
uma pérola de forma irregular (“pérolas
barrocas”), foi no contexto artístico do
Iluminismo que se cristalizou o uso do
termo “barroco” em correlação com os
movimentos estéticos que se baseiam na
expressão do estranho e do bizarro. Em
1797, Francesco Milizia, no Dizionario del-
le Belle Arti, estabelecia que “O Barroco
é o superlativo do bizarro, o excesso do
ridículo”. Este sentido pejorativo mante-
ve-se exclusivamente até que, na segunda
metade do séc. xix, o conceito foi reabi-
litado, primeiro na história da arte, e em
seguida na história literária.
Em termos de periodização, Wölfflin e
Weisbach começam por chamar barroco,
em sentido totalizador, ao estilo de épo-
ca que se estende desde o Renascimento Rosto do Dizionario delle Belle Arti del Disegno,
até ao rococó. Estudos desenvolvidos em de Francesco Milizia.
meados do séc. xx permitiram isolar va-
riantes nesta totalidade.
Em Estudios sobre el Barroco (1973), Hel- Manuel de Melo e P.e António Vieira, que
mut Hatzfeld defende que o barroco, na denotam preocupações morais e políticas
sua plenitude, é cingido por dois estilos que ecoam as ideologias modeladoras da
geracionais, que constituem um ama- sociedade seiscentista –, no barroquismo
neiramento das formas estéticas que os a expressão assume um carácter de maior
precedem: assim como o maneirismo – ludicidade em torno das formas herda-
ou barroco nascente – constituirá uma das: aumenta a sobrecarga ornamental,
distorção inicial das formas do Renasci- e aligeira-se o teor ideológico, sobrepon-
mento tardio (já visível na poesia camo- do-se assim o valor da fruição estética (de-
niana e cultivada com extremo requinte lectare) ao da finalidade didática (docere).
e visionarismo por Góngora), o barro- Por outro lado, torna-se mais forte a no-
quismo consistirá no exagero das formas ção de singularização do autor pelo esti-
barrocas, passível de ser entendido como lo que possui; busca-se avidamente obter
a fase de decadência do estilo. Se no bar- novidade e subtileza através dos malaba-
roco clássico tem lugar um equilíbrio rismos da forma.
momentâneo das formas herdadas do Tesauro e Gracián são os principais
Renascimento, que se apresentam simul- teorizadores do barroquismo, desenvol-
taneamente majestosas e sóbrias dentro vendo a análise dos princípios subjacen-
da sua pomposa ostentação – visível, e.g., tes às figuras da metáfora e da analogia.
nas obras de prosadores como Francisco O poeta mais engenhoso é aquele que

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AntibArroquismo 179

consegue estabelecer ligações entre obje- do Parnaso” – poema que integra a cole-
tos à partida totalmente desconexos, sur- tânea A Fenis Renascida, ou Obras Poeticas
preendendo assim o leitor; mais do que dos Melhores Engenhos Portuguezes; P.e An-
enunciar figuras de retórica, espera-se tónio Vieira, no texto que endereça ao
dotá-las da subtileza do conceito. São cé- leitor no volume i dos Sermões, e no “Ser-
lebres poetas Marino (inspirador do ma- mão da sexagésima”. Face ao hermetismo
rinismo), em Itália, e Calderón de la Bar- cultista, privilegiam a expressão clara e
ca e Quevedo, em Espanha. Em Portugal, direta, e põem a descoberto a obsessão
destaca-se a poesia de Fr. António das dos cultores do estilo pela metáfora e pe-
Chagas (1631-1682) e Fr. Jerónimo Baía los jogos sinestésicos, procurando emular
(1620/30-1688), e a oratória de Fr. José os seus procedimentos retóricos, através
Caetano, autor de Divini Verbi Hierologia da enunciação de imprevistas analogias,
(1730-35), assim como de inúmeros ou- sugestivas da exuberância e frivolidade
tros que figuram nas compilações Fénix do léxico que utilizam. São de sublinhar,
Renascida (1716-1728) e Postilhão de Apolo neste âmbito, as expressões de que se so-
(1761-1762). corre Vieira, com a finalidade de expor
Porém, deve sublinhar-se que a crítica os erros dos pregadores do seu tempo –
iluminista não discrimina entre barroco “lisonjear precipícios”, “derreter cristais”,
e barroquismo. Tem como alvo os exces- “desmaiar jasmins” (VIEIRA, 1679, 76).
sos formais da literatura do séc. xvii, e A partir do final do séc. xvii, e duran-
a sua sobrevivência no séc. xviii, de um te as primeiras décadas do seguinte, uma
modo genérico, reduzindo-a aos traços maior ênfase na teorização surge a par da
que, segundo Hatzfeld, definem o barro- elaboração de discursos de pendor satíri-
quismo. Mais do que visar o barroquismo, co, por parte de autores cuja produção
enquanto fase de decadência do estilo, literária se insere, ainda, nos cânones do
encara o período de vigência das formas barroco. É o que acontece no Serão Polí-
barrocas, no seu todo, como momento de tico de Fr. Lucas de Santa Catarina (pu-
decadência da literatura nacional e, por blicado em 1704, embora escrito antes de
extensão, do país. 1695, com o pseudónimo Felix da Cas-
As primeiras críticas ao formalismo tanheira Turacem), em especial na sec-
da literatura de Seiscentos surgem, na ção em que parodia a poesia dos cultos,
primeira metade do séc. xvii, sob o sig- chamados “meninos órfãos do Parnaso”
no de uma reação ao estilo cultista e aos (TURACEM, 1704, 143-148). A Nova Arte
imitadores de Góngora. Por vezes com de Conceitos (1718-1721), de Francisco Lei-
um elevado tom de sarcasmo, apontam tão Ferreira, muito embora elabore uma
a afetação no uso de palavras pomposas teoria da eloquência devedora dos ensina-
e pensamentos aéreos, o comprazimen- mentos de Tesauro e de Gracián, frisa já
to na expressão do difícil. Veja-se, e.g., a importância da simplicidade do ornato
“Discurso contra a poesia dos cultos”, de retórico e da verosimilhança do conceito,
Manuel Pires de Almeida – presente no advertindo para a premência de cercear
terceiro volume da História Crítica da Lite- as exuberâncias da fantasia e do empola-
ratura Portuguesa de Maria Lucília Pires e mento com a luz do entendimento. Mas
José Adriano de Carvalho; Domingos Pe- é o texto de Valadares e Sousa utilizando
reira Bracamonte, em Banquete Que Apolo o pseudónimo Diogo de Novais Pacheco,
Hizo a los Embaxadores del Rey de Portugal Exame Critico... (1739), que, ao fazer a
Don Iuan Quarto; o autor de “O pegureiro análise de uma elegia contemporânea, da

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180 AntibArroquismo

autoria de Caetano José Souto Maior, fixa lhos, deturpando inclusivamente o sig-
o início da época de restauração levada nificado exato das palavras da Vulgata,
a cabo por Verney e pelos árcades. Apre- para estabelecer analogias destituídas
senta, com efeito, uma primeira teoriza- de verosimilhança.
ção fundada nos princípios do neoclassi- Já na carta 7.ª, dedicada ao ensino da
cismo e na influência da crítica francesa, poesia, Verney veicula a noção de que a
reclamando a necessidade de submeter o poesia dos “cultos” se compraz, exclusiva-
engenho poético à censura dos críticos mente, ora em fúteis contemplações do
prudentes, cujo parecer é determinante real, ora na tentativa de enunciar o inve-
na formação do novo cânone literário. rosímil. Assim, reduz a temática barroca a
É sobretudo nas cartas 5.ª, 6.ª e 7.ª do alguns motivos preciosistas presentes na
Verdadeiro Metodo... que assistimos a um poesia de Chagas, tais como “a Dama que
ataque direto aos modos de discursar e deixou cair a luva em terra” ou “um sinal
de poetar barrocos, numa elaboração que se despegou do rosto” (Id., Ibid., 246),
que se propõe definir e ensinar a boa re- cujo significado assume relevo no âmbito
tórica, a boa eloquência e a boa poesia. performativo da poesia de circunstância
Em termos gerais, sobressai a crítica ao e academicista. Esta carta estrutura-se
carácter grandíloquo do “estilo dos Seis- em torno de quatro eixos: 1. definição
centos”, assim intitulado pejorativamente da poesia; 2. caracterização do estilo dos
pelo Barbadinho, que o faz corresponder poetas portugueses contemporâneos; 3. o
à idade sombria dos “séculos da ignorân- que falta aos poetas portugueses; 4. quais
cia”, i.e., do final do séc. xvi em diante os modelos a seguir e a não seguir.
(VERNEY, 1746, 75 e 211). O autor atri- De notar a afirmação de um ideal de
bui em grande medida a deturpação das poesia assente na sujeição do lirismo às
regras da boa eloquência ao desejo de leis da retórica. A poesia é “uma Eloquên-
singularização que norteia os autores bar- cia mais ornada”, “uma retórica mais flo-
rocos, pois, desprezando a simplicidade rida”, afirma (Id., Ibid., 216 e 236). O pri-
e naturalidade no escrever, procuram a mado da retórica, e da razão, tem como
todo o custo exibir argumentos estranhos consequência natural a aproximação da
e conceitos despropositados. poesia à prosa. Na dissecação de poemas
Nas cartas 5.ª e 6.ª, dedicadas ao en- que leva a cabo, é evidente o intento de
sino da retórica, o Barbadinho subli- fazer submeter a elaboração poética à
nha a necessidade de fundar o uso do coerência da prosa, referindo que “o que
ornamento e, em última instância, o nada significa em proza, muito menos
discurso, na verdade, sendo que a boa significa no verso” (Id., Ibid., 240).
eloquência terá que passar pelo uso Entre os defeitos imputados aos “verse-
adequado dos princípios retóricos da jadores” portugueses, destacam-se alguns
disposição, do decoro e da invenção. Os aspetos fundamentais. Em vez de funda-
sermões de Vieira servem-lhe de exem- rem o seu estilo no uso da razão e do juí-
plo, como fonte de galantarias pelas zo, de onde decorre o “verdadeiro enge-
quais se deixaram arrebatar e persuadir nho”, exercitado na leitura dos melhores
os homens (sem juízo, refere) do seu modelos da Antiguidade (Homero, Vir-
tempo. O Barbadinho aponta, entre ou- gílio, Catulo, Horácio; Cícero, Quintilia-
tros defeitos, a falta de profundidade e no, Dionísio Longino), preferem poetar
de rigor teológico do jesuíta, que baseia segundo a força da sua imaginação. As-
o seu discurso em sucessivos trocadi- sim, fazem uso quer do “falso engenho”,

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AntibArroquismo 181

faculdade corrupta que o autor associa à “na busca ansiosa de lumes e formosuras,
proliferação de formas poéticas como os que fazem do seu Lampadário de Cristal a
anagramas, os cronogramas, os labirintos mais vistosa girândola nessa competição
e os enigmas, e que considera “fantásti- pirotécnica que é a Fénix Renascida” (CI-
cas imaginações” (Id., Ibid., 229), quer do DADE, 1968, viii). As metáforas da luz
“engenho misto”, i.e., da metáfora, cujo e do fogo de artifício servem assim para
uso imoderado censura, aludindo indire- conotar a transbordante e vívida explosão
tamente ao tratado de Gracián, Agudeza y de analogias e conceitos engenhosos que
Arte de Ingenio (1648), e à teoria barroca atravessam as formas barrocas extremas,
que atribui genialidade à capacidade de a que não é possível ficar-se indiferente.
criar correlações harmónicas entre con- No Verdadeiro Metodo... figura um conjun-
ceitos divergentes. to de expressões que, além de conotarem
Por fim, o Barbadinho relaciona o des- a noção de bizarria, são sugestivas da ani-
virtuamento da poesia portuguesa com madversão que essas composições, poten-
a influência castelhana (&Anticastelha- cialmente inspiradoras dos jovens poetas,
nismo). A importação da arte poética geraram entre os intelectuais portugueses
do país vizinho ter-se-ia traduzido na in- em meados de setecentos (de notar a pu-
capacidade de criar um estilo nacional e blicação de Postilhão de Apolo, posterior à
no pouco incentivo para se escrever em do tratado de Verney e à fundação da Ar-
língua portuguesa. Por oposição, confere cádia Lusitana, sintoma do interesse pela
importância ao parecer dos “estrangeiros poesia barroca, ainda na segunda metade
de juízo” sobre este assunto (Id., Ibid., do século). Tal como Cidade, o Barbadi-
223), uma nota do estrangeiramento de nho comenta o seu carácter bombástico,
Verney, que apela assim ao abandono de notando o desprezo dos escritores pela
regras de poetar que já não vigoram nos simplicidade, pois que não produzem
países mais cultos da Europa, como Fran- palavra “que não acabe em estoiro, como
ça e a Itália. Por razões que se prendem uma bomba. [...] desprezam tudo, o que
com a observância dos princípios da re- não é estrondoso” (VERNEY, 1746, 165).
tórica e poética clássicas, segundo a leitu- Com ironia, compara ainda o estilo des-
ra neoclássica dos mesmos, a censura do ses autores ao provinciano que “comia as
Barbadinho ao mau gosto estende-se tam- uvas com o garfo”, para mostrar que tivera
bém ao séc. xvi e a Camões, bem como boa educação (Id., Ibid., 161); e atribui ao
a alguns autores antigos, entre os quais seu discurso designações como “mexero-
Teócrito, Séneca e Marcial. sadas” (Id., Ibid., 154) e “Partos monstruo-
A dimensão joco-séria que perpassa as sos” (Id., Ibid., 160), além de discorrer de
invetivas de que se compõe o discurso do forma hiperbólica acerca dos seus efeitos:
antibarroquismo constitui uma particula- “em vez de agradar, fazem náusea” (Id.,
ridade relevante a anotar. O intento de Ibid., 240), “tem alucinado infinita gente”
descrever o excesso ornamental próprio (Id., Ibid., 172-173).
da escola gongórica levada ao seu limite Na reação ao chamado “Seiscentismo”,
redunda com frequência num discurso por parte dos autores iluministas, quer
fortemente estereotipado. Para tal, re- na esfera da crítica literária quer na da
corre-se a enfáticas metáforas. Ao definir filosofia, em que se destacaram, além
a evolução da poesia do Renascimento de Verney, nomes como Teodoro de Al-
para a do barroco, Hernâni Cidade colo- meida (1722-1804) e Fr. Manuel do Ce-
ca o seu culminar em Fr. Jerónimo Baía e náculo (1724-1814), sedimentaram-se os

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182 AntibArroquismo

degenerescência literária, vai determinar


a elaboração do “Bosquejo da historia da
poesia e lingua portugueza”, por Garrett,
em tempo de estabelecimento do libera-
lismo em Portugal: sintomaticamente, o
capítulo sobre a poesia seiscentista intitu-
la-se “Principia a corrumper-se o gôsto e a
declinar a lingua”. A “falsa e vã grandeza”
do gongorismo dos poetas da Fénix Renas-
cida é referida como causa da decadência
da poesia nacional, tendo posto termo
à “grande escola de Camões e Ferreira”
(GARRETT, 1826, 32). O propósito ro-
mântico de mitificação dos poetas nacio-
nais alcança-se, desta forma, através de
uma anti-heroicização dos autores e mo-
vimentos literários em voga no séc. xvii.
Em 1916, vem a lume o primeiro estudo
resultante de uma pesquisa aprofundada
Teodoro de Almeida (1722-1804).
de autores do período barroco. Trata-se
do terceiro volume da História da Literatu-
alicerces ideológicos de uma teoria sobre ra Portuguesa, de Teófilo Braga, intitulado
a decadência da cultura e sociedade por- de “Os seiscentistas”. Contudo, é ainda vi-
tuguesas. A ela dão curso, mais tarde, as sível o preconceito sobre o qual assenta a
penas de Antero e de Sérgio. caracterização deste período histórico, a
Com efeito, é significativo o facto de a que Teófilo se refere como marcado pelo
poesia e eloquência barrocas, e a censura “pedantismo literário” e por uma “atmos-
às mesmas, servirem, já na contempora- fera deletéria” (BRAGA, 1984, 89 e 314).
neidade, como argumento que ratifica Até meados do séc. xx, a sobrevivên-
a tese que assinala o período do Renas- cia de uma perspetiva antagónica relati-
cimento como idade dourada do génio vamente às produções do séc. xvii faz-se
português, por oposição ao deserto inte- sentir, particularmente, na análise de al-
lectual em que singrou a exaltação estéril guns autores da época que não se encai-
e artificial do gongorismo. Para Antero, xam por inteiro na imitação do modelo
refira-se, a produção poética neoclássi- gongórico. Assim, estudiosos de Rodri-
ca, enquanto antítese dos princípios ro- gues Lobo, tentando situá-lo face às cor-
mânticos que se viriam a afirmar pouco rentes estéticas emergentes no final do
depois, é tanto ou mais alvo de crítica do séc. xvi e ao camonismo que cultivou,
que a barroca (&Antiarcadismo). cedem ainda perante o ensejo de con-
O ataque dos neoclássicos à estética do fundir o plano cronológico com o plano
barroco, simultâneo da exaltação da lírica literário, no tocante à valoração de qui-
portuguesa do séc. xvi, é especialmente nhentismo e seiscentismo. Num texto pu-
assinalável na medida em que se constitui blicado em 1920, que constitui um marco
como matriz das primeiras histórias lite- inaugural no estudo da obra de Lobo, Ri-
rárias. A leitura setecentista, entendendo cardo Jorge sugere que o autor de Corte
o período barroco como momento de na Aldeia repudiou o maneirismo. Jorge

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AntibArroquismo 183

manifesta a sua antipatia pela poesia seis- poéticas vanguardistas. Neste sentido,
centista e setecentista com expressões de teve especial impacto o estudo minucio-
praxe como “nojentas frioleiras” e “ver- so dos recursos estilísticos, lexicais e sin-
salhada retorcida e parvoinha de poetas- táticos de Góngora levado a efeito por
tros trocadilhistas e trocatintas” (JORGE, Dámaso Alonso, em La Lengua Poética
1920, 443). de Góngora (1927), tanto mais porque, à
No volume i da História da Poesia Por- época, e por vicissitudes análogas das que
tuguesa (1955), João Gaspar Simões refe- explicam o desinteresse pelos autores do
re também com agrado a proximidade barroco, no contexto português, o autor
do bucolismo de Lobo à poesia de qui- de Soledades era não só pouco conheci-
nhentos, a “época áurea das nossas letras” do como marginalizado. A capacidade
(SIMÕES, 1955, 478). Intitula o capítulo de intuir uma “realidade misteriosa” e
dedicado ao barroco de “Degenerescên- inefável, que Henri Bremond associou à
cia barroca” e, num último fôlego crítico, essência da poesia, ou poesia em “estado
em que é visível a emergência da corrente puro”, terá sido, de acordo com Celina
positivista no seu pensamento, estabelece Sabor de Cortázar, um dos traços funda-
uma oposição entre o “corpo saudável mentais pelos quais a obra de Góngora
da realidade” e a “balofa carnação que constituiu uma fonte de inspiração para
adquirem os espíritos que se negam ao as vanguardas.
exame dos fenómenos e à observação Animado pela influência do estudo de
da vida” (Id., Ibid., 478). Gaspar Simões Eugenio d’Ors (Du Baroque, 1935), Cida-
distingue assim a vitalidade das correntes de, em O Conceito de Poesia como Expressão
classicistas, segundo o estereótipo que da Cultura, realiza uma defesa da poéti-
delas se formou durante o Iluminismo (a ca barroca. Porém, fá-lo enaltecendo as
realidade, a observação, o imediato), do composições de poetas que souberam
deturpado uso da imaginação que fazem conter a expressão rebuscada “nos limites
os autores do barroco, entre outros que da razão”, como Lobo, e elogiando a cria-
se inserem nessa linha de pendor antirra- ção de modelos de clareza e de elegante
cionalista (&Antirracionalismo). simplicidade, de que foi capaz a prosa
O interesse pela recuperação dos auto-
res do período barroco faz-se notar, no
João Gaspar Simões (1903-1987).
entanto, a partir de meados do séc. xx,
em parte graças ao influxo da crítica lite-
rária espanhola e alemã. Simbólica, neste
âmbito, foi, com efeito, a homenagem a
Luis de Góngora, que teve lugar no Ate-
neu de Sevilha, em 1927, por ocasião do
terceiro centenário da morte do poeta.
Organizada na circunstância do primeiro
encontro do grupo de escritores que vi-
ria a ser chamado Geração de 27, de que
fazem parte, entre outros, García Lorca,
Jorge Guillén e Dámaso Alonso, a recor-
dação do poeta cordovês assume-se como
marco representativo de uma redesco-
berta estética do barroco no domínio das

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184 AntibArroquismo

portuguesa, onde o influxo do cultismo escrita conventual feminina, como Por


terá sido mais moderado (CIDADE, 1945, trás da Grade, Poesia Conventual Feminina
130-131). Um elogio que deixa transpare- em Portugal (Séculos XVI-XVII), de Isabel
cer uma aceitação daquilo a que Hatzfeld Morujão, publicado em 2013.
chamou “barroco pleno” ou “clássico” e
não tanto do intrincado e obscuro modo
de poetar que constituiu o distintivo do Bibliog.: BRACAMONTE, Domingos Perei-
barroquismo, durante mais de dois sécu- ra, Banquete Que Apolo Hizo a los Embaxadores
los. Para a referida noção de contenção del Rey de Portugal Don Iuan Quarto, Lisboa,
chamaram à atenção os próprios teori- Lourenço de Amberes, 1642; BRAGA, Teó-
zadores do barroco, como já referimos filo, História da Literatura Portuguesa, 3.º  vol.,
Lisboa, INCM, 1984; CIDADE, Hernâni,
supra, o que demonstra que a difusão do
O Conceito de Poesia como Expressão da Cultura:
gongorismo em Portugal desde cedo foi Sua Evolução através das Literaturas Portuguesa e
alvo de particular mediação, evidente na Brasileira, Coimbra, Arménio Amado, 1945;
tentativa de reduzir o excesso imaginati- Id., A Poesia Lírica Cultista e Conceptista, Lis-
vo, plasmado nos atavios da retórica, atra- boa, Seara Nova, 1968; CORTÁZAR, Celina
vés de um esforço da razão. Sabor de, Para Una Relectura de los Clásicos Es-
A partir da segunda metade do séc. xx, pañoles, Buenos Aires, Academia Argentina
de Letras, 1987; GARÇÃO, Pedro Antonio
foram vários os estudos que concorre-
Correa, Obras Poeticas, Lisboa, Régia Ofici-
ram para uma valorização da literatura
na Tipográfica, 1778; GARRETT, Almeida,
do barroco e do maneirismo: desde os Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos Auc-
estudos pioneiros de Maria de Lourdes tores Portuguezes Antigos e Modernos, Illustra-
Belchior Pontes sobre Fr. António das das com Notas, t  i, Paris, J. P. Aillaud, 1826;
Chagas (1950 e 1953), à visão panorâ- HATZFELD, Helmut, Estudios sobre el Barro-
mica de A. J. Saraiva e Óscar Lopes, na co, Madrid, Gredos, 1973; JORGE, Ricardo,
História da Literatura Portuguesa (1955), Francisco Rodrigues Lobo – Estudo Biográfico e Crí-
tico, Coimbra, Imprensa da Universidade de
em que se dá especial destaque às obras
Coimbra, 1920; MILIZIA, Francesco, Dizio-
de Francisco Manuel de Melo e de Viei- nario delle Belle Arti del Disegno, Bassano, s.n.,
ra, até às obras supracitadas de Aguiar 1797; PACHECO, Diogo de Novais (pseud.),
e Silva (1971) e Aníbal Pinto de Castro Exame Critico de Hua Sylva Poetica Feita à Morte
(1973). Posteriormente, assinala-se a da Serenissima Senhora Infanta de Portugal a Se-
publicação de importantes contributos nhora D. Francisca, Coimbra, Real Colégio das
por parte de Margarida Vieira Mendes, Artes da Companhia de Jesus, 1739; PIRES,
Maria Lucília Gonçalves, A Crítica Camoniana
sobre a oratória de Vieira (1989); e, de
no Séc. XVII, Lisboa, Instituto da Cultura e
Ana Hatherly, estudos sobre poesia e edi- Língua Portuguesa, 1982; Id., e CARVALHO,
ções de obras de diversos autores (e.g., o José Adriano de, História Crítica da Literatura
Lampadário de Cristal de Frei Jerónimo Baía, Portuguesa, vol. iii, dir. Carlos Reis, Lisboa/
1992). É igualmente assinalável a publi- São Paulo, Verbo, 2001; QUENTAL, Antero
cação do volume iii da História Crítica de, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares
da Literatura Portuguesa (2001), a cargo nos Últimos Três Séculos, Discurso Pronunciado
de Maria Lucília Gonçalves Pires e José na Noite de 27 de Maio, na Sala do Casino Lisbo-
nense, Porto, Tip. Comercial, 1871; SÉRGIO,
Adriano de Carvalho. Gonçalves Pires
António, O Seiscentismo, Lisboa, Seara Nova,
foi também autora, em 1982, de um re- 1926; SIMÕES, João Gaspar, História da Poe-
levante ensaio sobre A Crítica Camoniana sia Portuguesa, vol. i, Lisboa, Empresa Nacio-
no Séc. XVII. Por fim, refiram-se os estu- nal de Publicidade, 1955; SYLVA, Mathias
dos sobre a não muito explorada área da Pereira da (ed.), A Fenis Renascida, ou Obras

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Antibelicismo 185

Poeticas dos Melhores Engenhos Portuguezes, t. v,


Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1746;
Antibelicismo
TURACEM, Felix da Castanheira (pseud.),
Seram Politico, Abuso Emendado, Dividido em
Tres Noites para Divertimento dos Curiosos, Lis-
boa, Oficina de Valentim da Costa Deslan-
des, 1704; VERNEY, Luís António, Verdadeiro
Metodo de Estudar, para Ser Util à Republica, e à
Igreja: Proporcionado ao Estilo, e Necessidade de
Portugal. Exposto em Varias Cartas, Escritas polo
R. P. Barbadinho da Congregasam de Italia, ao R.
P. Doutor na Universidade de Coimbra, t. i, Valen-
O antibelicismo é um movimento de
oposição ao recurso a soluções béli-
cas para a resolução de conflitos.
ça, Oficina de Antonio Balle, 1746; VIEIRA,
Em Portugal, uma das vozes mais ati-
António, Sermoens do P. Antonio Vieira da Com-
panhia de Iesu, pt. i, Lisboa, Oficina de Joam vas deste movimento foi a da Fundação
da Costa, 1679. Pro Dignitate, uma fundação de defesa
dos direitos humanos fundada e presi-
Marta Marecos Duarte
dida por Maria Barroso Soares, uma das
principais figuras da política nacional do
séc. xx. O trabalho da Fundação na luta
contra o fabrico e a utilização de armas
foi elogiado pelo Secretário-Geral das
Nações Unidas Kofi Annan, que disse que
“campanhas semelhantes que combinem
as convicções dos membros da sociedade
civil com a vontade política dos governos,
podem obter grandes progressos na cau-
sa do desarmamento global” (SOARES
et al., 2001, 11).
Segundo um relatório do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvi-
mento, o negócio da produção e venda
de armamento é um dos três negócios
mais rentáveis a nível global. As recei-
tas geradas por este negócio, segundo a
Fundação, fazem com que os países ricos
estimulem “conflitos entre grupos étni-
cos, entre fações políticas, até entre gru-
pos religiosos. Os países ricos aumentam
os seus lucros e os menos desenvolvidos
despedaçam-se em lutas, por vezes inter-
mináveis” (Id., Ibid., 5).
Outros dos principais argumentos con-
tra o negócio das armas e contra a guerra
prende-se com o facto de que “documen-
tos da maior seriedade e importância”
afirmam “que em cada minuto que passa,
as nações de todo o mundo gastam um

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186 Antibelicismo

milhão e oitocentos mil dólares em arma- que corresponde ao caminho para um


mento. Deve pensar-se no que seria esse estádio de evolução máximo. O filósofo
dinheiro utilizador em matar a fome aos afirma que a competição entre os Estados
milhões que a sofrem ou vencer as doen- garantiu o progresso da civilização e afir-
ças que os minam e muito especialmente ma que, com este progresso, se registou
crianças” (SOARES et al., 1999, 17). um aumento de liberdade. Os pensado-
O antibelicismo sustenta-se numa visão res iluministas acreditavam que, gradual-
da humanidade sem fronteiras, i.e., numa mente, com a ilustração, o Homem viria
valorização da vida humana que não seja perceber os benefícios da razão, em detri-
posta em causa por esferas de identifica- mento do egoísmo expansionista. A razão
ção com o outro mediadas por etnia, re- venceria os impulsos e as imperfeições do
ligião, classe, nacionalidade, ou crenças Homem. Deste modo, a história da hu-
ideológicas ou partidárias. É deste argu- manidade orientar-se-ia para a criação
mento de valorização da vida e dos di- de uma liga ou federação de nações que
reitos humanos, que pretende restaurar protegeria todos os Estados membros,
um sentimento de fraternidade entre os de modo a erradicar os conflitos. Kant
povos e calar a avareza e a vontade de po- diz que não pode haver uma verdadeira
der, que resulta a tese de que o negócio moral sem união mundial, uma vez que,
do armamento, uma das principais forças enquanto se empregam esforços na guer-
económicas a nível mundial, é uma for- ra ao invés de se investir na formação dos
ça destruidora, que atrasa o progresso da cidadãos, não se consegue fertilizar uma
humanidade, alimentando as querelas e disposição de ânimo moralmente boa.
as diferenças históricas e culturais entre Kant justifica ainda a necessidade de uma
os povos subdesenvolvidos. Em 2006, o cidadania mundial através do seguinte ra-
cardeal Paul Poupard encorajou o traba- ciocínio: para a história da humanidade
lho de Maria Barroso Soares dizendo que, existem duas opções, o caos e irracionali-
tal como afirmava o “Papa Paulo VI, que dade, por um lado, e a ordem, que segue
declarou: ‘A Paz não se constrói unica- um curso rumo a um objetivo, por outro.
mente através da política e do equilíbrio
de forças e de interesses. Constrói-se com
o Espírito, as ideias, e as obras de Paz’”;
nesse sentido, importava “a renovação do
que há de melhor no coração do homem
com vista a uma redescoberta dos valores
que reforçam a paz e unem os homens na
harmonia, para o advento de uma civiliza-
ção de Amor” (Id., Ibid., 10).
A propósito desta ideia de trabalho do Bibliog.: AURÉLIO, Diogo Pires, Razão e Vio-
lência, Lisboa, Prefácio, 2007; KANT, Imma-
espírito e de caminhada para uma civili-
nuel, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Lisboa,
zação de amor e harmonia, importa re- Edições 70, 2004; ROUSSEAU, Jean-Jacques,
ferir Kant, que, em Ideia de Uma História Contrato Social, Lisboa, Presença, 1973; SOA-
Universal com Um Propósito Cosmopolita, es- RES, Maria Barroso et al., Não às Armas, Lis-
tuda a hipótese de considerar a história boa, Fundação Pro Dignitate, 1999; Id. et al.,
da humanidade como se fosse o desen- Calem-se as Armas, Lisboa, Fundação Pro Dig-
volvimento de disposições naturais, i.e., nitate, 2001.
como se houvesse um plano da natureza Ricardo Franco

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Antibiblismo 187

Antibiblismo Setenta, a Bíblia dos cristãos – e ao Deus


criador veterotestamentário. Alicerçado
no pensamento paulino, de que conhe-
cia uma dezena de cartas, Marcião nega
qualquer valor teológico aos textos sagra-
dos dos judeus. Ora, foi precisamente em
reação à heresia marcionita que a Igreja

O conceito de antibiblismo não é fá-


cil de definir, pois existem vários
antibiblismos. Poderíamos defini-lo, em
católica definiu o seu primeiro cânone
dos livros bíblicos e elaborou uma her-
menêutica sobretudo tipológica das Es-
primeiro lugar, em contraposição a bi- crituras hebraicas.
blismo. Chama-se biblismo ao movimen- Mas o antibiblismo, tal como hoje o
to geral de retorno à Bíblia, característico conhecemos, tem raízes mais recentes,
dos sécs. xv e xvi, que “se ergueu contra sobretudo nos movimentos deísta (An-
a autoridade de uma teologia [especula- net, Voltaire e Paine) e ateísta (Marx,
tiva] escolástica convertida em princípio Nietzsche e Freud) da Modernidade. Ao
básico da fé cristã” (CANSECO, 2012, contrário do que fez Marcião, abominan-
135). Este biblismo conheceu, no entan- do o Deus criador do AT e propondo o
to, várias formas, desde a busca da hebrai- Deus misericordioso do Novo Testamen-
ca veritas pelos humanistas, com amplo to (NT), os deístas do séc. xviii vão recu-
recurso à filologia, até à sola Scriptura dos sar simplesmente o Deus judaico-cristão,
reformadores, que, caindo no extremo a favor de um deus criador de tipo filosó-
contrário, convertem a palavra de Deus fico. Nos séculos seguintes, os mestres da
em fonte única do ensino da fé. E entre suspeita vão proclamar que Deus morreu,
estas duas formas de biblismo, emerge que Deus não existe, recusando as Escri-
uma atitude católica cada vez mais intran- turas de uma religião que consideram
sigente e autoritária, com claras manifes- ópio do povo ou o sustentáculo de um
tações de antibiblismo, como autos de fé grupo de débeis e fracassados.
da Bíblia hebraica, exigência da censura
prévia à publicação de textos bíblicos, co-
locação no Index de novas traduções bíbli- O AnTiBiBliSMO MARCiOniTA
cas e, finalmente, a proibição de os fiéis Marcião foi um homem a quem inúme-
leigos lerem a Bíblia. ras passagens da Bíblia hebraica inco-
Hoje em dia, esta proibição da leitura modavam moralmente, e que defendia
da Bíblia afigura-se-nos como uma here- que a Igreja devia simplesmente livrar-se
sia. Mas foi justamente em meios heréti- dela. Ao invés daqueles que propunham
cos e sectários – contra a Igreja católica uma leitura alegórica ou tipológica das
(ou universal) – que surgiram as primei- Escrituras judaicas, como um conjunto
ras manifestações de uma segunda forma de predições e promessas acerca de Cris-
de antibiblismo, a recusa da Bíblia he- to (como era o caso, nomeadamente,
braica ou Antigo Testamento (AT) cris- dos meios judeo-cristãos e da tradição
tão. Com efeito, no séc. ii da era cristã, exegética alexandrina), Marcião recusa
num momento em que não existia ainda simplesmente esses escritos e desenvolve
uma Bíblia propriamente cristã, Marcião a  conhecida doutrina dos dois deuses,
lança um feroz ataque à Bíblia judaica o Deus criador do judaísmo (do AT) e o
– que era também, na versão grega dos Deus-Pai de Jesus Cristo (do NT).

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188 Antibiblismo

Em seu entender, o Deus do AT não


pode ser o Pai de Jesus Cristo. O Deus
de Israel é um Deus justiceiro, agindo
segundo o antigo princípio da retaliação:
olho por olho, dente por dente. É um
monarca severo e cruel, sedente de san-
gue e promotor de guerras. Ou seja, está
longe de ser o Deus bondoso do NT, o Pai
misericordioso revelado por Jesus. Defen-
dendo uma perspetiva de algum modo
modalista, ele via no próprio Jesus uma
incarnação desse Deus bondoso, que era
também o autor do evangelho, em cla-
ra oposição ao Deus da Lei (Torá) anti-
ga. Por isso, o Deus criador (e autor da
Lei) veterotestamentário não reconhece o
Marcião de Sinope (85-160).
Deus misericordioso (e autor do evange-
lho) neotestamentário, fazendo com que
seja crucificado e enviado para o Hades. crituras cristãs. Se é verdade que as anti-
Marcião não foi filósofo nem teólogo, gas deviam ser rejeitadas, pois a lei da an-
mas biblista. O AT era, para ele, uma nar- tiga aliança já fora abolida, todavia havia
rativa do passado, e o Messias ali anuncia- lugar para as escrituras da nova aliança.
do não era certamente o Cristo de Paulo Ao rejeitar o AT, substituiu-o por uma
e do evangelho. De facto, existem dema- nova coletânea, constituída por 10 cartas
siadas contradições entre os dois deu- de Paulo e o evangelho de Lucas. Trata-
ses: a) o Criador é um deus justiceiro e -se de uma recolha que, provavelmente,
guerreiro (veja-se como Josué conquista a já circulava em meios cristãos e que cons-
terra prometida através da violência), en- titui o primeiro cânone conhecido do NT
quanto Cristo proíbe a violência e prega (a lista de livros do NT mais antiga que
a misericórdia; b) o Criador ordena aos se conhece é a do chamado fragmento
Israelitas que deixem o Egito, levando ca- de Muratori, posterior a Marcião, onde
jado, um saco para a viagem e sandálias já são mencionados praticamente todos
nos pés, e, até, que roubem o ouro e a os livros que formam hoje o cânone neo-
prata dos Egípcios, enquanto Cristo envia testamentário). A atitude de Marcião,
os discípulos sem nada; c) o Criador/Le- portanto, contribuiu para a criação do
gislador ordena que se ame os que estão NT, pois desafiou a ortodoxia da Igreja a
próximos e que se odeie os inimigos, en- elaborar uma lista de livros cristãos, como
quanto Cristo ensina o amor mesmo aos complemento à Bíblia dos Setenta.
inimigos; d) o profeta do Criador (Moi- Embora Marcião tenha sido antibiblis-
sés) levantou os braços durante a batalha, ta, não foi, de modo nenhum, antissemita
para que os exércitos de Deus matassem (ou antijudaico). Nunca ataca os judeus
o maior número possível, enquanto o Se- enquanto povo, por terem morto Jesus;
nhor Jesus abre os braços na cruz para com efeito, para ele, como vimos, essa
salvar a todos. morte devia ser atribuída unicamente ao
O antibiblismo de Marcião, porém, Deus criador veterotestamentário. Mas
contribuiu para o aparecimento das Es- ataca os símbolos do judaísmo. A religião

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Antibiblismo 189

judaica, em seu entender, é inferior à cris- Bíblia, a partir dos originais, o que já
tã; os seus textos, abomináveis; o seu Mes- não acontecia desde S. Jerónimo.
sias, um mero guerreiro, muito diferente Mas, ao mesmo tempo, cresce a descon-
do Jesus cristão; etc. Enfim, o seu antibi- fiança em relação à leitura livre do texto
blismo (enquanto rejeição do AT) perma- sagrado. As primeiras proibições aconte-
neceu em muitos movimentos cristãos. cem ainda nos sécs. xiii e xiv, quando
Desde logo, na mesma área geográfica, os Concílios de Toulouse (1229) e Tar-
foi herdado pelo paulicianismo; depois, ragona (1233), primeiro, e Carlos IV da
na Idade Média, pelo movimento cátaro Boémia (Maiestas Carolina, 1350), depois,
do Sul da França; e nos tempos moder- proibiram a tradução e leitura da Bíblia
nos, de modo residual, pelos meios ger- em língua vulgar por parte dos heréticos,
mânicos antissemitas. Adolf von Harnack, já que estes se apropriavam dos textos
um grande estudioso de Marcião, era si- bíblicos para divulgar as suas ideias hete-
multaneamente seu admirador. rodoxas. A invenção da imprensa e a tra-
dução da Bíblia em língua vulgar, por Lu-
tero, vieram aumentar essa desconfiança.
O AnTiBiBliSMO CATóliCO Em 1490, com grande pompa, o car-
A especificidade da exegese cristã está na deal Torquemada, inquisidor-geral de
leitura alegórica ou tipológica dos tex- Espanha, organizava em Salamanca um
tos veterotestamentários, aplicando-os a auto de fé onde foram queimados muitos
Cristo. Foi assim que ela se definiu após livros judaicos, entre os quais algumas Bí-
a crise marcionita. Embora alguns Padres blias hebraicas. Em 1515, o Papa Leão X
da Igreja se tenham preocupado com a estabelecia a censura prévia e a proibição
hebraica veritas (quer dizer, o sentido his- de imprimir livros sem a autorização do
tórico e literal dos textos sagrados), a bispo. Depois, surgem os índices de livros
maioria privilegiava claramente o senti- proibidos, primeiro, o de Henrique VIII
do espiritual. Só a partir do séc. xii, em (1529), depois, os das Universidades de
França (na abadia de S. Victor, na escola
catedral de Paris e, depois, entre os Do- Papa leão X (1475-1521).
minicanos e os Franciscanos), se voltou a
valorizar o sentido literal das Escrituras.
Sintomático deste volte-face foi o de-
creto do Concílio de Viena (1311-1312),
propondo a criação de cátedras de Gre-
go e das línguas orientais nas princi-
pais universidades europeias. Todavia,
isso não ocorreria senão no início do
séc.  xvi, com a criação do Collegium
Trilingue nas Universidades de Alcalá,
Lovaina e Paris (de onde sairiam as fa-
mosas Bíblias poliglotas). Os sécs.  xv
e xvi, portanto, são férteis em cristãos
hebraístas, profundos conhecedores da
gramática hebraica e defensores do sen-
tido literal das Escrituras. São eles que
estão na génese de novas traduções da

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190 Antibiblismo

Paris (1542) e Lovaina (1546), e, enfim, tes, em Voltaire percebe-se a leitura do


os das inquisições espanhola (1551) e seu conterrâneo Richard Simon (História
romana (1559). Nestas listas, são sistema- Crítica do Velho Testamento, Paris, 1680), e
ticamente incluídas não só as traduções em Paine, a leitura de Thomas Hobbes
da Bíblia em língua vulgar não aprovadas (Leviatã, Londres, 1651) e de Espino-
pela autoridade competente, temendo- sa (Tratado Teológico-Político, Amsterdão,
-se a infiltração nelas de ideias luteranas 1670), os autores considerados os pais da
e calvinistas, mas também as novas tra- moderna crítica histórica bíblica. Preci-
duções da Bíblia em latim a partir das samente o nascimento da crítica históri-
línguas originais, por se afastarem da tra- ca bíblica (sobretudo em torno da ques-
dução oficial, a Vulgata de S. Jerónimo. tão da autoria dos livros sagrados), e o
O  Index Librorum Prohibitorum de 1564, desenvolvimento da filologia bíblica, que
com as novas regras elaboradas pelos Pa- pôs a nu tensões e contradições no inte-
dres do Concílio de Trento, proibia pra- rior dos textos bíblicos, deram trunfos
ticamente aos fiéis a leitura da Bíblia em aos deístas para atacarem a autenticida-
língua vernácula, uma vez que exigia per- de e autoridade da Bíblia como revelação
missões especiais quer do bispo quer da divina, e ainda a autoridade da própria
Inquisição para que isso se pudesse fazer. Igreja, que era, na realidade, o seu obje-
A preocupação dos Padres de Trento é tivo principal.
compreensível, pois queriam salvaguar- O antibiblismo de Voltaire manifesta-
dar a auctoritas da Igreja. Era fundamen- -se, de um modo claro, a partir de 1761,
tal estabelecer uma versão oficial – a Vul- com o Sermon des Cinquante, e atinge o seu
gata – para que não se pensasse que não auge nos anos 1776-1777, com La Bible
existia um texto com autoridade, no qual enfin Expliquée e Histoire de l’Établissement
se pudesse ouvir a voz (palavra) de Deus du Christianisme. Estando perfeitamente
sem grande ruído da palavra humana ao corrente das críticas do deísta inglês
(pelo que se opunham à multiplicidade Peter Annet, Voltaire começa também
de textos provenientes dos humanistas e pela crítica moral das Escrituras: em pri-
às traduções vernáculas dos protestantes); meiro lugar, do AT, repleto de histórias
e, por outro lado, insistir em que a única de violência e massacres, mas também
maneira de interpretar as Escrituras era de imoralidades de toda a ordem (men-
na linha do entendimento da Igreja (em tiras, roubos, traições, adultérios, etc.),
clara oposição às leituras subjetivistas dos pelo que considera que foi uma medida
teólogos protestantes e ao acesso livre dos de sabedoria os papas terem proibido a
fiéis leigos aos textos sagrados). leitura da Bíblia; mas também do cristia-
nismo, que persegue os judeus, filhos de
Abraão como eles próprios. Passa depois
O antibiblismO deísta e ateu à crítica filológica e científica. O comen-
A autoridade da Igreja, que os Padres de tário seguido da Bíblia permite-lhe subli-
Trento tanto queriam preservar, foi o que nhar as incoerências e contradições do
esteve na mira dos ataques e do antibiblis- texto, bem como ridicularizar, ironizar
mo dos deístas do séc. xviii. ou apontar a falta de sentido de muitas
Com muita frequência, acusam-se os passagens, à luz da ciência moderna. Um
deístas de desconhecerem a Bíblia e de dos aspetos mais criticados era a questão
a criticarem sem razão. Ora, isso não é dos milagres, pois contrariavam as leis
verdade. Embora não citem as suas fon- gerais da natureza, estabelecidas pelo

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Antibiblismo 191

sistema de governo seria muito prova-


velmente seguida de outra revolução no
sistema religioso” (PAINE, 1827, 6). Esta
revolução religiosa consistiria no aban-
dono das religiões reveladas, a favor da
religião (filosófica) deísta. Ao longo das
páginas deste segundo livro, Paine ataca
a Bíblia, considerando-a uma trama de
mentiras, atrocidades e blasfémias. À se-
melhança de Voltaire, a primeira crítica
ao texto bíblico prende-se com a moral (a
velha crítica de Marcião ao Deus vetero-
testamentário): o Deus bíblico é um deus
violento, injusto, imoral e vingativo; e o
povo por Ele escolhido não se distingue
dos outros povos pelos crimes e barbáries
que comete. A segunda, e mais impor-
François-Marie Arouet, dito Voltaire tante para ele, é a que se depreende da
(1694-1778). crítica histórica e filológica. Se os verda-
deiros autores dos livros bíblicos não são
próprio Deus, de modo que Deus se con- aqueles que a Igreja sempre proclamou,
tradiria a si próprio. E conclui com a crí- se as incoerências e contradições internas
tica propriamente histórica, onde revela põem em causa a autenticidade do texto
um profundo conhecimento dos estudos bíblico, isso quer dizer que está em causa
bíblicos de então. Em relação ao Penta- a autoridade das próprias Igrejas cristãs.
teuco, ao mesmo tempo que nega a au- A Bíblia torna-se então uma impostura ou
toria mosaica dos livros que o compõem, fraude, cuja autoridade foi imposta aos
aponta para uma redação pós-exílica dos homens por agentes cínicos e corruptos.
mesmos (provavelmente por Esdras, tal A desmitificação do texto sagrado leva
como defendiam Spinoza e outros), e de- Paine a catalogá-lo na categoria da litera-
teta neles a mão de um escriba sacerdotal tura de ficção.
que procura proteger os interesses da sua Finalmente, importa referir Friedrich
casta (é por isso que a figura de Aarão é Nietzsche, o profeta da morte de Deus.
tão protegida, apesar do pecado de ido- Nascido numa família protestante, teve
latria em que caiu); o ambiente também uma sólida educação cristã (pietista) e co-
idolátrico do livro dos Juízes leva-o a pen- nhecia perfeitamente a Bíblia. Aliás, teve
sar tratar-se de um livro anterior aos que sempre uma grande admiração pelo AT
compõem o Pentateuco; finalmente, tem – no qual admira o Deus que faz causa co-
um profundo apreço pelos livros e as nar- mum com um povo, assumindo com ele
rativas sapienciais veterotestamentários. vitórias e derrotas – e manteve-se informa-
O antibiblismo de Thomas Paine não é do acerca da evolução da exegese, conti-
muito diferente do de Voltaire, e, como nuando a ler, já no final da vida, Ernest
ele próprio afirma, está ao serviço da re- Renan e Julius Wellhausen. No entanto,
volução: “Desde que publiquei na Améri- para ele, a constituição do corpus escritu-
ca o panfleto intitulado O Senso Comum, rístico, tanto o judaico, como o cristão,
percebi que uma revolução operada no revela a vontade de domínio de uma casta

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192 Antibiblismo

(os sacerdotes, no judaísmo) ou a falsifi- liberais de antibiblismo, como acontece


cação levada a cabo pelos cristãos – já que na recente controvérsia entre maximalis-
Jesus nada quis escrever – para justificar tas e minimalistas, em que muitas vezes as
a morte de Cristo contra os poderes es- afirmações dos últimos parecem ameaçar
tabelecidos. Este processo de falsificação, os fundamentos da fé judaico-cristã.
segundo Nietzsche, é realizado sobretudo
pelos Padres da Igreja, fazendo com que
os textos veterotestamentários anunciem
Cristo. A filologia rigorosa (e científica),
pelo contrário, significa o declínio desse
procedimento e o fim da teologia (ou de
uma tradição filosófica ligada às Escri-
turas). Na conceção de Nietzsche, este
crepúsculo anuncia um novo estilo de
Homem e de filosofia, libertos das anti-
Bibliog.: BRETT, Annabel S., “Authority, rea-
gas crenças e da moral dos escravos que
son and the self-definition of theologians in
caracterizou a tradição ética ocidental the spanish ‘Second Scholastic’”, in TUCKER,
(judaico-cristã). George H. (org.), Forms of the ‘Medieval’ in the
‘Renaissance’. A Multidisciplinary Exploration of a
Cultural Continuum, Charlottesville, Rookwood
O antibiblismO nO séculO xxi Press, 2000, pp. 63-89; BULGAKOV, Sergej,
Quando o escritor José Saramago afirma- L’Orthodoxie, Lausanne, L’Age d’Homme,
1980; CANSECO, Luis Gómes, “Biblismo, hu-
va, em 2009, em diversos contextos que a
manismo y hebraísmo: lindes y encrucijadas”,
Bíblia era “um manual de maus costumes, in EGIDO, Aurora, e LAPLANA, José Enrique
um catálogo de crueldade e do pior da (eds.), Saberes Humanísticos y Formas de Vida.
natureza humana”, estava a inscrever-se Usos y Abusos. Actas del Coloquio Hispano-Alemán,
nesta corrente antibiblista, iniciada por Zaragoza, 15-17 de diciembre, 2010, Zaragoza,
Marcião, pelo que era normal considerar Institución “Fernando el Católico”, 2012,
o Deus bíblico (e não só o Deus vetero- pp.  133-149; CARON, Nathalie, “Thomas
testamentário, senão veja-se o seu Evan- Paine en guerre contre les ‘faiseurs de Bibles’”,
Revue de la Société d’Études Anglo-Américaines des
gelho segundo Jesus Cristo) como “um Deus
XVIIe et XVIIIe Siècles, n.º 64, 2007, pp. 231-245;
cruel, invejoso e insuportável”. Tal como DAHAN, Gilbert, L’Exégèse Chrétienne de la Bible
os deístas do séc. xviii, no romance Caim, en Occident Médieval, XIIe-XIVe Siècle, Paris, Cerf,
Saramago sublinha a ideia de um Deus 1999; GARGETT, Graham, “Voltaire and
sanguinário e cruel que encontramos the Bible”, in CRONK, Nicholas (ed.), The
noutras obras escritas recentemente por Cambridge Companion to Voltaire, Cambridge,
conhecidos ateus – God Hates You, Hate him Cambridge University Press, 2009, pp.  193-
-204; PAINE, Thomas, The Age of Reason. In
Back (2009), de C. J. Werleman, e Drunk
Two Parts, New York, G.N. Devries, 1827;
with Blood (2010), de Steve Wells –, e RÄISÄNEN, Heikki, “Marcion”, in MARJA-
que constitui também um desafio moral NEN, Antti, e LUOMANEN, Petri (eds.), A
para a boa exegese, como se pode ver Companion to Second-Century Christian “Heretics”,
em The Immoral Bible. Approches to Old Tes- Leiden/Boston, Brill, 2005, pp. 100-124; VA-
tament Ethics (2010), de Eryl W. Davies. LADIER, Paul, “Marx, Nietzsche, Freud et la
Por outro lado, fazendo eco do antibi- Bible”, Nouvelle Revue Theologique, t. 98, 1976,
pp. 784-798.
blismo católico da Contrarreforma, não é
raro exegetas conservadores acusarem os Porfírio Pinto

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Antibigbrotherismo 193

Antibigbrotherismo através de um sistema de ecrãs, faz uma


vigilância contínua das conversas, das
ações e até dos pensamentos das pessoas,
movimento bem espelhado na frase pro-
pagandística do Estado: “Big Brother is
watching you [O Grande Irmão está a
ver-te]”. Tendo-se popularizado a partir

O pondo-se a um conceito de cunha-


gem recente, o antibigbrotherismo
consiste no conjunto de discursos, atitu-
da publicação do romance, o termo “big
brother” tornou-se viral, sobretudo após
o ano 2000, por via do aparecimento
des e práticas que tem em vista pelo me- do reality show com o mesmo nome, nos
nos um de dois objetivos: por um lado, Estados Unidos, pela mão da Colum-
combater ou mitigar o excesso de contro- bia Broadcasting System, formato que
lo ou vigilância, e consequente invasão depressa se espraiou pela Europa, pela
e violação de privacidade, por parte de África e pelo Médio Oriente, chegando
uma figura de autoridade – um líder, um mesmo a alguns dos grandes colossos
grupo, uma empresa ou um governo –, asiáticos, nomeadamente à Índia.
contrariando, assim, o projeto futuro de Tendo presentes estas duas dimensões
uma sociedade hipervigiada; por outro críticas, dirigidas à sociedade hipervigia-
lado, combater a influência social e cul- da e à sociedade espetáculo, vários são
tural representada pela designada socie- os autores que, sobretudo a partir da se-
dade do big brother ou novela da vida real. gunda metade do séc. xx, têm refletido,
Enquanto tentativa de desconstrução da em modo de alerta, sobre o fenómeno do
nossa realidade e do nosso modo de viver, bigbrotherismo. Alguns pensadores pro-
o antibigbrotherismo apresenta-se como põem que o entendamos, de um modo ge-
uma denúncia da crise que atravessa o ral, como parte integrante da pós-moder-
paradigma civilizacional que tem servido nidade ou daquilo a que Gilles Lipovetsky
de referencial ao nosso tempo. Podendo
ser visto como uma crítica à perda da pri- George Orwell (1903-1950).
vacidade decorrente de uma crescente
vigilância da sociedade, o antibigbrothe-
rismo também depressa se transformou,
através da crítica aos media, numa contes-
tação aos “espetáculos do real” (NOBRE-
-CORREIA, Revista Expresso, 2 jun. 2001,
54). Destaca-se, nesse contexto, o “Big
Brother”, um reality show que, ao transfor-
mar 24 h de controlo e espionagem em
espetáculo, foi classificado como o acon-
tecimento mediático do milénio.
O termo “big brother” teve a sua ori-
gem na famosa personagem do distópico
romance de George Orwell, 1984 (1949).
Nele, o autor dá forma a uma sociedade
liderada pelo regime autoritário e omni-
presente do Big Brother, que, sobretudo
D.R.

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194 Antibigbrotherismo

chama a hipermodernidade. Tal relação é pagar por razões de segurança não é um


gizada pelo sociólogo francês na célebre tema novo, nem exclusivo de teóricos ou
obra Os Tempos Hipermodernos (2004) e políticos. A discussão desta realidade foi
em textos posteriores, como O Ecrã Global largamente debatida, e.g., no conto inti-
(2007), livro no qual denuncia a hiperes- tulado Relatório Minoritário (1956), escrito
petacularização do quotidiano. Na mes- por Philip K. Dick e traduzido por Steven
ma linha, Gérard Wajcman, em O Olho Spielberg para a sétima arte em 2002.
Absoluto (2010), diz-nos que os “tempos No que respeita à vigilância, o antibig-
hipermodernos”, caucionados pela ciên- brotherismo assume-se como um protesto
cia e pela técnica, assumiram-se como “o contra uma perspetiva ideológica. Peran-
tempo da visão sem limites”, que “supõe te a crise de insegurança que se instalou
sair dos limites ou ultrapassar todos os li- nas sociedades ocidentais e declinou na
mites” (WAJCMAN, 2011, 65). Mediante preocupação com a criminalidade de co-
a análise do papel que os media assumem larinho branco, desenvolveu-se uma von-
na construção do quotidiano, em parti- tade de inspecionar que, indo para além
cular na transformação da vigilância em da questão da prevenção, evoluiu, com a
entretenimento, e para além da reflexão ajuda da revolução tecnológica, para um
sobre o real constituído como espetáculo policiamento cego assente em sistemas
e o espetáculo confundido com a reali- de controlo de tudo e de todos.
dade, que encontramos, e.g., em Debord Como repara Deleuze, foi sobretudo
(2003 [1967]), algumas leituras ajudam- após a Segunda Guerra Mundial que os
-nos a situar a compreensão da sociedade sistemas e instrumentos de vigilância se
do big brother no contexto da censura à desenvolveram e, assim, se construíram e
realidade cultural que Baudrillard (1991) fortaleceram os alicerces da sociedade de
designou como simulacro e que Castells controlo. Foi precisamente nesse período
entendeu como “virtualidade real” (CAS- que, na sequência de um acordo firmado
TELLS, 2007, 488). em 1947 entre os Governos dos EUA, de
Concomitantemente, é de sublinhar Inglaterra, do Canadá, da Austrália e da
o contributo de outros autores, entre os Nova Zelândia, se engendrou uma rede
quais destacamos a reflexão do filósofo de escuta planetária chamada Ukusa e se
francês Gilles Deleuze – não escusando criou, no âmbito de atividade da Natio-
mencionar também as propostas de Mi- nal Security Agency (NSA) dos EUA, um
chel Foucault e Félix Guattari, seus par- sistema global de espionagem chamado
ceiros privilegiados de debate –, que sina- Echelon, com vista a capturar o conteú-
liza, na passagem da Modernidade para do de todas as chamadas e mensagens
a Contemporaneidade, a mudança do enviadas via telefone, correio eletrónico
modelo de uma sociedade “disciplinar”, e faxe. Tal projeto assumiu como escopo
indigitado por Foucault, para uma socie- aceder à informação trocada pelas mais
dade de “controlo” assessorada por dispo- diferentes instâncias, sobretudo governos
sitivos de vigilância e monitorização, na e organizações internacionais.
qual toda a imagem é esvaziada do seu Posteriormente, destaca-se o programa
conteúdo para se tornar pura informação americano Total Information Awareness
e todas as questões importantes se fazem (TIA), desenvolvido no âmbito do Infor-
depender já não de um nome, mas de um mation Awareness Office (IAO), um or-
código (DELEUZE, 1990, 243-244). No ganismo criado em janeiro de 2002 com
entanto, a questão do preço humano a o objetivo de usar as tecnologias de infor-

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Antibigbrotherismo 195

mação para captar conteúdos relevantes


para a identificação e monitorização de
terroristas e demais ameaças para o Esta-
do americano. Tal programa, que cedo
mudou o seu nome para Terrorism Infor-
mation Awareness Program, em virtude
das violentas críticas que teve logo desde
o seu início, lançou as bases da maior co-
leção de informações privadas sobre cida-
dãos, os seus dados, hábitos e conteúdos

D.R.
de conversa, sob a égide de um conceito
de policiamento preditivo e preventivo. Tom Cruise em Relatório Minoritário,
Face à reação inflamada da opinião pú- de Steven Spielberg (2002).
blica e às sucessivas acusações de violação
de privacidade, o programa TIA durou de sistemas da CIA e consultor da NSA,
apenas, pelo menos formalmente, até denunciou o alcance abusivo dos progra-
ao final de 2003, altura em que o Sena- mas de vigilância da NSA e da agência
do americano decidiu deixar de apoiar britânica Government Communications
financeiramente o IAO. No entanto, ape- Headquarters, provando, através da divul-
sar dos vários gestos e tentativas de oposi- gação de vários documentos secretos, que
ção, a verdade é que muitos dos projetos estas violavam flagrantemente o direito
do IAO, bem como de outros organismos civil à privacidade ao espiarem, sem reser-
afins fora dos EUA, continuaram, e conti- vas, cidadãos e líderes políticos em todo
nuam, o sonho da vigilância total, finan- o mundo. No dia 6 de junho de 2013, na
ciados, quando não pelos Estados, por sequência de tal denúncia, os jornais The
grupos de interesse privado. Washington Post, nos EUA, e The Guardian,
No entanto, as malhas do bigbrotheris- no Reino Unido, publicaram reportagens
mo, na vertente que se liga à questão da sobre a monitorização de milhões de pes-
vigilância, não são já urdidas apenas pe- soas que a NSA estava a levar a cabo atra-
los governos ou grandes organismos, mas vés do acesso às redes sociais e outros sites,
também pelos vários sites que se servem bem como da recolha de dados e registos
do perfil e da atividade dos seus utiliza- de chamadas realizadas a partir de dis-
dores para traçar padrões de comporta- positivos móveis. As reportagens revelam
mento, de forma a antecipá-lo e a mani- que a NSA teve acesso direto aos sistemas
pulá-lo. Conhecendo os gostos e o perfil do Google, do Facebook e da Apple, en-
comportamental de cada utilizador, tais tre outros, através de um programa de
sites selecionam de uma forma inteligente vigilância global, Planning Tool for Re-
a publicidade que lhes será dirigida, bem source Integration, Synchronization and
como as sugestões de produtos que fa- Management (PRISM), mantido secreto
zem. São exemplo disso a famosa livraria desde 2007, que permitiu a recolha de
virtual Amazon e redes sociais como o Fa- dados confidenciais dos cidadãos, como
cebook, cuja receita deriva precisamente o conteúdo do histórico das pesquisas,
da publicidade que vende. das mensagens eletrónicas e das conver-
As reações antibigbrotheristas adquiri- sas em chat.
ram novo fulgor e sentido em 2013, quan- A violenta perseguição a que Snowden
do Edward Snowden, ex-administrador passou a estar sujeito ajuntou à questão

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196 Antibigbrotherismo

da violação da privacidade a do direito à analisar a sociedade como um todo, em


liberdade de expressão e à segurança, aci- Portugal tal crítica não teve o mesmo im-
catando ainda mais a indignação que tais pacto nem idêntica direção. Paradoxal-
revelações causaram no mundo. Destaca- mente, em Portugal, o suposto debate so-
-se, neste contexto, a reação da Amnistia bre este tipo de concursos tão pouco foi
Internacional ao denunciar a ilegalidade incitado pelas polémicas que ocorreram
do que estava a ser feito a Snowden e ao no “Big Brother”, estreado em setembro
reiterar o valor categórico do direito à pri- de 2000 pela TVI, nomeadamente a me-
vacidade dos cidadãos e do direito à pro- diatizada expulsão de um concorrente
teção por todos aqueles que denunciam por ter pontapeado uma colega. Tratou-
abusos dos Estados. O site da Amnistia -se, pois, de um acontecimento mais ana-
Internacional de Portugal publicou, neste lisado do ponto de vista jornalístico, pelo
contexto, sobretudo entre junho e agosto facto de a TVI o ter transformado numa
de 2013, alguns artigos sobre esse assunto. notícia com um amplo destaque, tanto no
Posteriormente, encontramos uma im- Jornal de Notícias como no Jornal Nacional.
portante expressão do antibigbrotheris- Apesar das críticas que vieram a lume
mo em ações como a de Max Schrems, no que respeita à mistura entre infor-
um austríaco que intentou uma ação le- mação e entretenimento e aos critérios
gal no Tribunal Comercial de Viena con- jornalísticos que orientaram a seleção
tra a filial do Facebook na Irlanda, a torre e a grelha de informação da estação de
de controlo das contas de todos os utiliza- Queluz, a onda de contestação face à
dores, à exceção dos norte-americanos e espetacularização da vigilância e da pri-
dos canadianos. Segundo o jornal Público vacidade surgiu em maio de 2001, com
(“Facebook vai ser processado…”, 7 ago. um episódio registado no programa da
2014), tal iniciativa contava, à data, com SIC “Bar da TV”. A indignação e os pro-
cerca de 25.000 subscritores de cerca de testos foram suscitados pelo “sacrifício”
100 países, apoiantes de Schrems em vá- daquela que foi considerada “a primeira
rias acusações contra a rede social, entre vítima a sério dos ‘reality shows’ em Portu-
as quais as de que a mesma não respeitava gal” (LOPES, 2007, 102), por ocasião da
as leis europeias sobre proteção de dados transmissão da discussão familiar entre a
e a de que era um importante apoio do concorrente Margarida Gomes e os pais,
PRISM na sua recolha de dados privados. que tentaram persuadi-la a abandonar o
Em Portugal, as reações antibigbrothe- programa.
ristas têm-se levantado no contexto da crí- Para além deste e de outros casos tidos
tica tanto à sociedade espetáculo, como à como polémicos, a análise ficou atida a
vigilância (vídeo e áudio) em espaços pú- um discurso disperso nos meios de co-
blicos e privados. No que concerne à aná- municação que, à época, concentrou as
lise do fenómeno mediático, numa época críticas no conteúdo do concurso, clas-
em que contestar se tornou uma espécie sificado como “telelixo” (CABRAL, DN,
de “desmancha-prazeres”, o antibigbro- 25 maio 2001, 9) e como “uma oscilação
therismo, enquanto inquietação, teve o típica entre o porno-banal, o desbraga-
mérito de recuperar o espírito crítico. mento estúpido e a fala vazia” (DIAS,
Todavia, enquanto em França a crítica se Revista Expresso, 2 jun. 2001, 18). Não es-
constituiu como uma reflexão alargada, capando à avaliação, se os concorrentes
que, partindo das polémicas em torno do foram qualificados como “um grupo de
respetivo reality show, teve a intenção de jovens selecionados pela ausência de qua-

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Antibigbrotherismo 197

lidades”, como “animais num zoológico” a sua violação foi representada como um
(ANDRINGA, 24 Horas, 20 jul. 2001, 5) degrau que assinala a “escada” por onde
e “gladiadores televisivos” (CARDOSO, desce a degradação humana (FLORES,
Público, 19 maio 2001, 53), por sua vez o DN, 21 maio 2001, 10). Sendo o fenóme-
reality show foi apreciado como uma “casa- no do reality show apontado como uma es-
-prisão” (TORRES, Público, 25 nov. 2002, preitadela “pela fechadura da TV para as
37) e entendido como um programa que intimidades de meia dúzia de portugue-
“reduz o pensamento ao mínimo e que, ses” (PINA, Visão, 31 maio 2001, 104), os
no entanto, dá, e muito, que pensar – críticos consideram que não se trata ape-
sobre a pobreza das nossas vidas” (POR- nas da privacidade explorada e perdida,
TAS, DN, 31 maio 2001, 9); foi ainda feita mas do voyeurismo que reduz o valor da
uma conotação com a “sociedade rasca” intimidade ao preço do mercado.
(MOURA, DN, 30 maio 2001, 9). Entre Os patrocinadores deste género de
linhas, o enredo foi contextualizado no entretenimento defendem que se trata
caldo cultural do Maio de 1994, no qual de um ato consciente e de participação
emergiu a crítica à geração que Vicente voluntária. Além das audiometrias lhes
Jorge Silva cunhou como rasca, num edi- darem razão – 90 em cada 100 telespecta-
torial do jornal Público. Tratava-se, à épo- dores terão assistido ao final da primeira
ca, de uma crítica ao protesto estudantil edição do “Big Brother” –, a seu ver a evo-
que, além de exibir à então ministra da lução do número de candidatos às edições
Educação alguns traseiros despidos nos seguintes – 10, 35 e 150.000, respetivamen-
quais se lia “não pagamos”, havia sido, no te – é demonstrativa de que o programa
ver do jornalista, um desfile de palavrões dá ao público aquilo que este procura.
e obscenidades. Nesta linha, alguns vislumbraram uma “te-
O antibigbrotherismo considera inacei- ledemocratização”, argumentando que,
tável o modo como este género de entre- mediante a “transformação dos espetado-
tenimento explora “de uma maneira mi- res em atores do próprio entretenimento”
serável sentimentos e emoções da esfera (BARROS, DN, 30 maio 2001, 52), o públi-
privada, transformando-os num espetácu- co pôde aceder à televisão.
lo público deplorável”, revelando ainda Se para uns era importante problema-
uma preocupação com as “consequências tizar a qualidade dos conteúdos, para
psicológicas nefastas” para os concorren- outros importava deixar funcionar a lei
tes (BARROSO, DN, 26 maio 2001, 8). da oferta e da procura, e a liberdade de
Em contrapartida, alguns argumentam dar aos consumidores um produto pro-
que “as televisões, como outros meios de curado pela maioria. Assim, as discussões
comunicação, não são ONG’s, são empre- ficaram mais atidas à questão da devassa
sas que estão no mercado para dar lucro. da intimidade e aos termos da violação da
Devem regular-se pelas leis gerais do mer- privacidade daqueles que participaram
cado e da concorrência, e servir o públi- neste género de concursos televisivos do
co à medida do interesse e do gosto des- que à reflexão sobre o voyeurismo con-
se público” (“Outra vez …”, DNA, 2 jun. sentido pelos concorrentes e as implica-
2001, 7). Embora, para a geração BB (big ções que aquela “experiência de condi-
brother), a privacidade possa ser enten- cionamentos psicológicos em humanos”
dida como um bem negociável, para os (PEREIRA, Público, 4 jan. 2001, 10) e de
antibigbrotheristas, a privacidade como longa clausura teria quando regressassem
dignidade deve ser inalienável, pelo que às suas vidas.

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198 Antibigbrotherismo

No que concerne à outra vertente do 1991; CABRAL, Manuel Villaverde, “Telelixo e


bigbrotherismo, ligada ao excesso de vi- eurofutebol”, Diário de Notícias, 25 maio 2001,
gilância e à perda da privacidade, é de sa- p. 9; CARDOSO, Gustavo, “Os novos gla-
diadores televisivos”, Público, 19 maio 2001,
lientar a promulgação da lei n.º 9/2012,
p. 53; CASTELLS, Manuel, A Sociedade em Rede,
de 23 de fevereiro, relativa à utilização de
3.ª ed., vol. 1, Lisboa, FCG, 2007; DEBORD,
sistemas de vigilância pelas forças de segu- Guy, A Sociedade do Espetáculo, s.l., Projeto Pe-
rança em locais públicos. Alterando, pela riferia, 2003; DELEUZE, Gilles, Pourparlers, Pa-
terceira vez, a lei n.º 1/2005, de 10 de ja- ris, Les Éditions de Minuit, 1990; DIAS, Carlos
neiro, a nova lei alargou a autorização de Amaral, “O cinzento ao alcance de todos…”,
utilização dos sistemas de vigilância aos Revista Expresso, 2 jun. 2001, p. 18; FLORES,
casos de prevenção e repressão de infra- Francisco Moita, “Sabonetes, detergentes e
vídeo”, Diário de Notícias, 21 maio 2001, p. 10;
ções cometidas na estrada, prevenção de
LEMOS, Ana Paula, Big Brother. O Fenómeno,
atos terroristas e proteção florestal. Neste Viseu, Bertrand, 2001; LIPOVETSKY, Gilles, e
contexto, é ainda de destacar a transição, SERROY, Jean, O Ecrã Global, Lisboa, Edições
em 2011, do poder de decisão sobre a ins- 70, 2010; LOPES, Felisbela, “Novos rumos no
talação de sistemas de videovigilância nos audiovisual português. O reflexo do Big Brother
espaços públicos das mãos da Comissão na informação televisiva”, in PINTO, Manuel,
Nacional de Proteção de Dados para as e SOUSA, Helena (eds.), Casos em que o Jornalis-
mo Foi Notícia, Porto, Campo das Letras, 2007,
do Ministério da Administração Interna.
pp. 97-124; MOURA, Vasco Graça, “A socie-
O aumento das possibilidades legais de dade rasca”, Diário de Notícias, 30 maio 2001,
vigilância em sítios públicos e privados p. 9; NOBRE-CORREIA, José Manuel, “A de-
tem levantado algumas discussões que mocracia instantânea não é possível”, Revista
assentam no binómio segurança/priva- Expresso, 2 jun. 2001, p. 54; “Outra vez a TV”,
cidade. A crescente vigilância dentro das DNA, 2 jun. 2001, p. 7; PEREIRA, José Pache-
escolas, nomeadamente nas salas de aula, co, “Por que razão se sabe tão pouco sobre
surge, e.g., como uma das questões que o Big Brother?”, Público, 4 jan. 2001, p. 10;
PINA, Manuel António, “A SIC e a SIC”, Visão,
mais reações têm gerado junto dos anti-
31 maio 2001, p. 104; PORTAS, Miguel, “Far-
bigbrotheristas. Por outro lado, processos rapos”, Diário de Notícias, 31 maio 2001, p. 9;
como o Face Oculta e as Secretas suscita- PORTELA, Artur, “A realidade-espetáculo e a
ram, no início do séc. xxi, discussões em AACS”, Diário de Notícias, 23 maio 2001, p. 52;
torno da legitimidade de se colocar sus- TORRES, Eduardo Cintra, “Contos da loucu-
peitos de crimes sob escutas sem o seu co- ra normal”, Público, 25 nov. 2002, p. 37; WA-
nhecimento, motivando um nova reação JCMAN, Gérard, El Ojo Absoluto, Buenos Aires,
Manantial, 2011; digital: “EUA: revelações
antibigbrotherista, apostada em colocar o
sobre a vigilância governamental fazem ‘soar
valor da privacidade acima dos interesses o alarme’”, Amnistia Internacional – Portugal, 11
policiais e políticos. jun. 2013: http://amnistia.pt/index.php/no-
ticias/noticias-860021/1393-eua-revelacoes-
sobre-a-vigilancia-governamental-faz-soar-o
-alarme (acedido a 15 dez. 2016); “Facebook
Bibliog.: impressa: ANDRINGA, Diana, “Pa- vai ser processado por 25 mil utilizadores”,
recem animais num zoológico”, 24 Horas, 20 Público, 7 ago. 2014: http://www.publico.pt/
jul. 2001, p. 5; BARROS, Eurico de, “O pior tecnologia/noticia/facebook-vai-ser-proces-
da TV não são os ‘reality shows’”, Diário de No- sado-por-25-mil-utilizadores-1665708 (ace-
tícias, 30 maio 2001, p. 52; BARROSO, Eduar- dido a 15 dez. 2016).
do, “A ditadura das maiorias”, Diário de Notí-
cias, 26 maio 2001, p. 8; BAUDRILLARD, Jean, Helena Costa Carvalho
Simulacros e Simulações, Lisboa, Relógio d’Água, Simão Fonseca

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AntibiogrAfismo 199

Antibiografismo talento de João Gaspar Simões, pairava


sobre o crítico uma insalubre conivência
com o redutoramente designado e tantas
vezes mal assimilado método biográfico
de Sainte-Beuve (&Antisubjetividade)
– o que lhe valeu, de resto, o assaz injus-
to epíteto de Sainte-Beuve da Figueira –,

“N unca senti saudades da infância;


nunca senti, em verdade, sauda-
des de nada […]. Tenho, do passado, so-
recaindo sobre a revista Presença, que
Gaspar Simões cofundara com Branqui-
nho da Fonseca em 1927, as múltiplas e
mente saudades de pessoas idas, a quem contraditórias acusações de “subjetivis-
amei; mas não é saudades do tempo em mo, umbicalismo, esteticismo, ahistori-
que as amei, mas a saudade delas que- cismo, individualismo, pessoalismo, psi-
ria-as vivas hoje, e com a idade que hoje cologismo, formalismo, intemporalismo,
tivessem, se até hoje tivessem vivido. O eternismo, torre-de-marfismo” (LISBOA,
mais são atitudes literárias, sentidas por 1977, 24).
instinto dramático, quer as assine Álvaro À advertência pessoana contra a tenta-
de Campos, quer as assine Fernando Pes- ção de sucumbir ao “ponto de vista hu-
soa” (PESSOA, 1982, 65). Assim reagia, mano – em que ao crítico não compete
em célebre carta datada de 11 de dezem- tocar, pois de nada lhe serve que toque”
bro de 1931, Fernando Pessoa à forma (PESSOA, 1982, 66), faz eco, sensivel-
como João Gaspar Simões se entregava, mente na mesma altura, a posição de An-
em Mistério da Poesia, “um pouco mais do tónio Sérgio. Com efeito, no prefácio à
que deveria às influências e sugestões do primeira edição (1932) dos seus Ensaios
meio intelectual europeu” (Id., Ibid., 62).
Este reparo destinava-se essencialmente Fernando Pessoa,
a relativizar a importância das teorias de de Almada negreiros (1893-1970).
Freud, que assumiam contornos de “fran-
ca paranoia de tipo interpretativo” (Id.,
Ibid., 63), permitindo-lhe, pouco depois,
afirmar que a função do crítico – na sua
tentativa de compreender “a essencial
inexplicabilidade da alma humana” –
deve consistir, antes de mais, em “estudar
o artista exclusivamente como artista, e
não fazendo entrar no estudo mais do
homem que o que seja rigorosamente
preciso para explicar o artista” (Id., Ibid.,
66). A chave para “abrir lentamente todas
as fechaduras da […] expressão” do ar-
tista e da sua obra passava assim a residir
na íntima compreensão do fenómeno de
despersonalização, que dá origem a múl-
tiplas ficções autorais e a diversos imagi-
nários discursivos. Pese embora a confes-
sa admiração de Fernando Pessoa pelo

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200 AntibiogrAfismo

(vol. iii), reage violentamente tanto con- to pressupõe, para além de uma notável
tra a “emoção absurda” provada pelos autonomização da linguagem poética na
seus escritos – reflexo de uma crítica pra- sua vertente material (dimensão plástica
ticada em “ambiente acanhado – tão pro- e sonora do significante), um autêntico
vinciano e de compadrio, tão charlatanes- auto de fé dos autores que uma promís-
co, e tão bafiento” (SÉRGIO, 1980, 8-9) –, cua e falaciosa tradição literária erguera
como contra a crítica exercida para “sim- ao estatuto de cânone: “Só nós somos o
ples uso dos autores criticados” (Id., Ibid., rosto do nosso tempo. O clarim do tempo
19). Daí advogar, nas suas “Anotações”, ecoa através de nós pela arte da palavra.
que, por ter como principal vocação “pôr O passado é estreito. A Academia e Pou-
a obra em relação com o público”, a críti- chkine são mais incompreensíveis que os
ca pode “dispensar-se, absolutamente, de hieróglifos. Lancemos Pouchkine, Tols-
pensar o autor. A obra, uma vez criada, toi, etc., etc., fora das margens do tempo
existe por si, independentemente do au- atual […]. Lavai as mãos do contacto ab-
tor; e não só a Crítica, mas a História da jeto e viscoso dos livros escritos por todos
Arte, poderia dispensar-se de falar em no- esses inúmeros Leónidas Andréev” (RO-
mes” (Id., Ibid., 19-20). Anos mais tarde, BEL, 1972, 13), exultava, em dezembro
na 18.ª das Cartas do Terceiro Homem, data- de 1912, um grupo vanguardista liderado
da de 27 de janeiro de 1954, Sérgio volta por Bourlinov.
a lamentar a verve pseudocrítica lusíada Não sendo nem o primeiro nem caso
que tende a discutir “muito dos homens único neste vasto e intrincado processo,
[…] e quase nada das ideias”, fazendo é, no entanto, com Marcel Proust e o seu
com que “todos se aferr[e]m sobre nugas célebre Contra Sainte-Beuve publicado em
mínimas que não chegam a valer coisa al- 1954 – conjunto de ensaios que consti-
guma” (Id., 1954, 26). tui um verdadeiro campo experimental
A modernidade crítica e literária, en- onde a linguagem crítica experimenta
quanto fenómeno paradoxal marcado formas, processos e figuras que virão, al-
simultaneamente pela perda da trans- guns anos mais tarde, a alimentar a céle-
parência da linguagem, como refere bre obra Em busca do Tempo Perdido –, que
William Marx, e pela extrema “valoriza- o antibiografismo assume uma expressão
ção da escrita como ato estruturador do doutrinária mais nítida e incisiva. No ca-
sujeito” e do mundo (REIS, 1995, 52-53), pítulo viii, no qual parte em busca dos
emerge assim de um desejo mais ou me- “pecados” de Sainte-Beuve e do seu mé-
nos violento de rutura face à superiori- todo – “uma espécie de análise botânica
dade ontológica e metafísica do Homem praticada sobre os indivíduos” (PROUST,
sobre a linguagem e a obra que põe em 1954, 123) –, através do qual foi incapaz
causa os fundamentos epistemológicos de reconhecer o génio de Baudelaire ou
da própria conceção clássica da autorida- de Flaubert e considerou “francamen-
de, em temáticas de Leclerc. Tal desejo te detestáveis” os romances de Stendhal
encontra na crítica antibiográfica uma (Id., Ibid., 128), Proust enuncia aquela
vítima expiatória e um terreno particu- que virá a ser a vulgata teórica dos moder-
larmente fértil para se expandir. Este nismos: um livro – que não seja um “tra-
processo, decerto já patente na poética tado de geometria pura” (Id., Ibid., 127)
pré-modernista de um Stéphane Mallar- – não resulta da soma da relação entre
mé, e.g., acentua-se consideravelmente o homem e a obra; “é o produto de um
com os formalistas russos, cujo manifes- outro eu diferente daquele que manifes-

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AntibiogrAfismo 201

tamos nos nossos hábitos, na sociedade,


nos nossos vícios. Este eu, se quisermos
tentar compreendê-lo, é no fundo de nós
mesmos, tentando recriá-lo em nós, que
poderemos alcançá-lo” (Id., Ibid., 127).
A passagem do “eu biográfico”, munda-
no, conversacional, “aparência enganosa
da imagem”, para o “eu autoral”, silen-
cioso, profundo, sempre latente, implica
assim esse constante “sacrifício de uma
vida” (Id., Ibid., 131) que antecipa o “au-
tossacrifício do artista” enquanto “contí-
nua extinção da personalidade”, procla-
mado, poucos anos depois (em 1920),
por T. S. Eliot (ELIOT, 1950, 53). A con-
ceção artesanal da arte enquanto árduo
e incessante labor análogo ao do próprio Marcel Proust (1871-1922).
crítico – defendida por Sainte-Beuve an-
tes de ele próprio se render aos encantos ção da obra face ao seu criador, à noção
poéticos “desta indústria que é a glória de falácia da intenção postulada pelo new
do presente” (ANTOINE, 2000, 42), na criticism norte-americano das décs. de 20
qual já se vislumbra o esprit nouveau de a 40, e aos principais pressupostos teó-
um Guillaume Apollinaire – dificilmente ricos da nova crítica desenvolvida em
se coadunava com a apologia modernista França a partir dos anos 60 do séc.  xx,
da máquina poética celebrada por Paul nomeadamente a noção de autor fictício
Valéry, entre tantos outros (&Antisubjeti- (diferente do autor empírico), que prefi-
vidade). Como este poeta e crítico afirma gura claramente o conceito de autor-mo-
nos seus Cadernos, compostos entre 1894 delo desenvolvido por Umberto Eco, e.g..
e 1914, a obra nunca permite encontrar o É verdade que o juízo severo que
verdadeiro autor, mas apenas o “autor fic- Proust formula sobre o método de Sain-
tício” (VALÉRY, 1960, 1194). Neste pris- te-Beuve é extremamente parcial e me-
ma, a crítica não deve diluir-se ao mergu- todologicamente duvidoso, uma vez que
lhar nos faits divers da história literária, e se constrói a partir da justaposição de
muito menos nos da vida do seu criador, uma série de citações que vão todas no
mas sim “descobrir o problema colocado mesmo sentido, quando poderia ter reu-
pelo autor”, a intenção (consciente ou in- nido outras tantas de sentido contrário.
consciente), que se define, neste contex- Situando-se nos antípodas das biografias
to, como um problema matemático que ultrarromânticas, Sainte-Beuve parte em
caberá ao crítico elucidar ou resolver; busca de uma identidade arcaica e fun-
problema em relação ao qual, depois de dadora da personalidade do autor. O pa-
publicada a obra, a interpretação do pró- pel fundador e estruturante que atribui
prio autor “não tem mais autoridade do à relação primordial com a mãe e ao so-
que qualquer outra interpretação” (Id., frimento na formação das obras de génio
Ibid., 1191). Neste distanciamento face faz dele um precursor da psicanálise ao
à história literária e à crítica biográfica, qual apenas faltam os conceitos opera-
abria-se o caminho à radical autonomiza- tivos trazidos pelas teorias freudianas

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202 AntibiogrAfismo

do inconsciente. Homem do seu tempo ca biográfica, segundo Sainte-Beuve, é


apesar de tudo, Sainte-Beuve pode não método e antídoto. Mais do que simples
ter instituído uma psicologia das profun- mimese, revela-se como uma verdadeira
dezas nem uma crítica da consciência tal arte da representação em que as técnicas
como a virá a praticar a chamada Escola retratistas (vejam-se os títulos das suas
de Genebra (Marcel Raymond, Albert Bé- obras) do esboço e do traço prevalecem
guin, Georges Poulet, Jean Rousset, Jean amplamente sobre a descrição no intuito
Starobinski); pode igualmente não ter de alcançar, sob a superfície epidérmica
descoberto as noções de mitoestilo a que do escritor, a dimensão profunda do ho-
se refere Helder Godinho, ou de imagi- mem, mesmo que, no final do seu percur-
nário autoral, mas intuiu certamente a so nos Retratos Contemporâneos (t. v), o crí-
importância estruturante do estilo como tico se aperceba dramaticamente de que
um dos traços mais consistentes da per- da inalcançável profundidade do outro
sonalidade de um escritor e da sua visão apenas conseguira recolher fragmentos
do mundo. No tomo iv dos seus Retratos de fragmentos, ou de que essa tão dese-
Contemporâneos, afirma que “Apenas o es- jada profundidade se revelara afinal pura
tilo faz viver” (SAINTE-BEUVE, 1889, IV, ilusão, não passando a verdade do sujeito
313), sugerindo que o estilo não é apenas de “superfícies” que se refletem especu-
uma forma do texto (uma forma para o larmente “ao infinito” (DIAZ, 2000, 67).
texto), mas uma autêntica matriz cogni- Apesar do modo como sistematicamen-
tiva que (se) molda (sobre) a realidade te desvaloriza o método biográfico en-
(“escrever como se pensa, moldar o seu quanto pura divagação ou divertimento,
estilo sobre as coisas” [Id., Ibid., 66]), da não deixa de ser interessante observar,
qual depende a própria “fertilidade das a este propósito, a confessa admiração
imagens” (Id., Ibid., 209). Contrariamen- que António Sérgio demonstra por Sain-
te às acusações de que foi alvo por Proust te-Beuve, cujas palavras inauguram, sob a
e tantos outros, Sainte-Beuve é aliás o pri- forma de epígrafe, as suas “Notas de lite-
meiro a reconhecer os limites do biogra- ratura portuguesa” (SÉRGIO, 1980, 62)
fismo atento apenas às minudências ou às e cujo vulto é erguido em modelo em-
relíquias insignificantes da vida: num en- blemático da crítica como obra de arte
saio sobre Michel de Montaigne datado (&Antisubjetividade), inesgotável fonte
de 1883, denuncia a fetichista e religiosa de prazer, “necessário e eficiente prelú-
“superstição histórica e biográfica que se dio [que] prepara e completa a ativida-
prende com as irrelevantes cartas e bilhe- de estética” (Id., Ibid., 11): “o verdadeiro
tes das personagens célebres” (Id., 1883, crítico é um criador […]; e não se topa
239-240). Dos amores de Lamartine, Sain- em arte um criador completo que não
te-Beuve dirá, num texto de 1832, que es- seja também excelente crítico – excelen-
tes não refletem uma mulher corpórea e te crítico, pelo menos, em determinados
tangível, espelhando antes “um constante ramos especiais: aqueles em que prima
ideal, um ser angélico de que sonhava; a como criador. A galeria psicológica de
inimitável Beleza, em suma; a Harmonia, um Sainte-Beuve não fica longe da de
a Musa”. Ora, perante esta dimensão in- um Balzac; e Baudelaire, visceralmente
comensurável do imaginário feminino, poeta, era também visceralmente crítico”
“que importam”, pergunta o crítico, “os (Id., Ibid., 10).
poucos detalhes da sua vida” (Id., 1870, Perante esta manifesta modernidade
294-295)? Verdadeiro pharmakon, a críti- do pensamento (anti)biografista de Sain-

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AntibiogrAfismo 203

te-Beuve, será interessante questionar os autor”, célebre artigo de Roland Barthes


reais motivos que subjazem à crítica de publicado pela primeira vez em 1968 na
Fernando Pessoa a João Gaspar Simões e revista Manteia (e republicado em 1984
os virulentos ataques feitos por Proust a em O Rumor da Língua); e “O que é um
Sainte-Beuve; questionar por que razão, autor?”, título da não menos célebre con-
em suma, foi a perspetiva biografista um ferência proferida por Michel Foucault
método tão vilipendiado pelo séc. xx a 22 de fevereiro de 1969 na Sociedade
como se fosse esse outro odioso e incon- Francesa de Filosofia. A ideia não era
fessável de uma nova identidade crítica inteiramente nova: já alguns anos antes,
em busca de afirmação. Com efeito, o Maurice Blanchot, em L’Espace Littéraire,
que parece separar estes dois mundos definira a leitura como um ato que impli-
não são propriamente as interpretações ca a anulação do autor, de modo a devol-
que resultam da hermenêutica literária ver a obra à “presença anónima, à afirma-
de cada autor (Pessoa está muitas vezes ção violenta, impessoal” que a caracteriza
em consonância com Gaspar Simões; (BLANCHOT, 1955, 256). Barthes apenas
Proust oferece uma visão de Balzac, e.g., confere a esta problemática um registo
coincidente com a de Sainte-Beuve), mas mais dogmático. Os seus argumentos são,
sim a tensão, nos limiares da rutura, entre de resto, amplamente conhecidos: en-
dois paradigmas metodológicos, teóricos quanto destruição de toda a voz, de toda
e epistemológicos, entre duas visões in- a origem tangível (Jacques Derrida já ex-
conciliáveis da obra: o paradigma antro- plorara longamente esta ideia de desen-
pológico (assente no conhecimento sen- raizamento, de exílio, intrinsecamente
sível e empírico) e o paradigma filosófico associado à experiência da literatura), a
(assente numa ordem conceptual). Esta escrita é espaço do neutro (uma imagem
divergência, simultaneamente ínfima e cara, também ela, a Blanchot), do oblí-
imensa, assume a “espessura, quase, de quo, do compósito. Sendo uma persona-
uma folha de papel”, revelando um Sain- gem moderna que, do ponto de vista lin-
te-Beuve que parte em busca do “artista guístico, nada mais é do que um scriptor,
dissimulado em filigrana na obra” (PAU- ou seja, alguém que escreve, subordinan-
GAM, 2008, 49) face à crítica moderna do-se aos códigos da linguagem enquanto
que procura sondar os contornos diáfa- sistema, o autor não tem existência para
nos do texto e os mistérios da letra refle- lá da enunciação que o define e através
tidos na sombra desse “outro eu” autoral. da qual se define. Inscrevendo-se sobre
Da morte do escritor, com a sua espessu- o fundo de um incomensurável vazio, o
ra biográfica, e da consecutiva emergên- scriptor moderno de Barthes nasce e mor-
cia do eu autoral como “atitude literária” re com o seu texto. Depreende-se assim
(PESSOA, 1982, 65), i.e., como ficção, ao que, na obra, não é um autor quem fala,
eclipse e à morte do autor (enquanto ins- mas sim a linguagem que fala constante-
tituição e paternidade simbólica exercida mente de si própria através de um scrip-
sobre o texto) vai apenas um passo. Passo tor, invertendo-se radicalmente a relação
mínimo, embora decisivo, uma vez que ontológica de poder entre o homem e
na sua esteira se ergueram, em grande a palavra. “Atribuir um Autor ao texto”,
parte, as fundações do edifício teórico do continua Barthes, equivale a impor-lhe
pós-estruturalismo e da desconstrução a um “significado último”, i.e., a “fechar a
partir dos anos 70 do séc. xx. Refiramos escrita” (BARTHES, 1984, 65). O autor
dois textos incontornáveis: “A morte do é, de resto, uma figura extremamente

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204 AntibiogrAfismo

instável que pode constantemente diluir- profundamente os estudos literários e o


-se no anonimato ou na multiplicidade: olhar sobre o texto, inaugurando uma
foi, aliás, esse o desafio levado a cabo reflexão teórica e práticas hermenêuti-
através da experiência surrealista de uma cas particularmente fecundas nas quais a
escrita coletiva que precipitou a dessacra- questão crucial da intencionalidade e da
lização da imagem do autor. Na verdade, sua falácia, nos termos de Wimsatt e Berd-
para Barthes, o autor nunca passou de sley, se cruza como as figuras complexas
uma figura conveniente para o crítico, do autor empírico, do autor implicado,
que, através dela, alimentava a ilusão de do editor, do narrador (homo ou hete-
conhecer a obra através do homem ou rodiegético), do protagonista, do narra-
o homem através da obra. Daí que, con- tário, do leitor-modelo ou do leitor empí-
clui logicamente Barthes (Id., Ibid., 67), rico estudadas por críticos como Wayne
o reino do autor coincida historicamente Booth, Gérard Genette, Kate Hamburger
com o reino da crítica, o advento de uma ou Umberto Eco, entre muito outros. No
nova crítica enquanto ciência do texto e o início do séc. xxi, os media eletrónicos, a
nascimento do leitor, implicando tanto o virtualização da literatura na era digital, a
sacrifício do autor como o da crítica (en- diluição da autoria numa escrita colabo-
tenda-se, claro está, a crítica biográfica ou rativa que não deixa de relembrar certas
a crítica lansoniana assente na história da práticas surrealistas e as transformações
literatura, que invadiam os manuais esco- identitárias inerentes à comunicação em
lares e dominavam, à época, os estudos rede (do anonimato à criação de múlti-
literários na universidade). À idade da plas identidades ficcionais) relançaram,
crítica sucedia-se, de certo modo, a idade com particular agudez e complexidade,
da teoria, como sustentou Selden. a questão do autor, da natureza e do es-
Mais matizada é a posição de Foucault, tatuto dessa instância que fala do outro
que transforma o autor num dispositivo lado do texto, desse corpo que dá voz à
discursivo e numa função (historicamen- escrita. Contudo, se parece relativamente
te modalizada) que continua a assegu- fácil matar o autor, mais difícil será, por
rar, apesar das incertezas que a envol- ventura, erradicá-la totalmente do hori-
vem e do lugar vazio no qual se funda, a zonte enquanto figura desejada e figura
coesão da obra. Esta relativa reabilitação do desejo, enquanto alter ego imaginário
ou revalorização funcional do autor não do leitor, enquanto outro dialógico sem
anula, contudo, o princípio ético estru- o qual o texto e a construção do sentido
turante da escrita contemporânea que ameaçam transformar-se em presença
Foucault enuncia na pergunta sem res- fria e desencarnada, puro jogo intelec-
posta com que encerra o seu discurso: tual e abstrato.
afinal, “que importa quem fala?” (FOU-
CAULT, 1983, 23).
De figura dispensável que pode – e
deve – eclipsar-se do horizonte da crítica
preconizada por António Sérgio, à mor-
te pura e simples do autor, nos limiares
Bibliog.: AGAMBEN, Giorgio, Profanazioni,
do niilismo, e à sua conceção como gesto Roma, Nottetempo, 2005; ANTOINE, Gé-
de que fala Agamben, ou como dispo- rald, “Pour ou contre Sainte-Beuve”, Ro-
sitivo ficcional, a crítica antibiográfica mantisme, n.º 30, vol. 109, 2000, pp. 33-44;
que irrompe no início do séc. xx alterou BARTHES, Roland, “La mort de l’auteur”, in

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AntibrAsileirismo 205

Essais Critiques IV. Le Bruissement de la Langue,


Paris, Seuil, 1984, pp. 61-67; BLANCHOT,
Antibrasileirismo
Maurice, L’Espace Littéraire, Paris, Gallimard,
1955; DERRIDA, Jacques, De la Gramma-
tologie, Paris, Éditions de Minuit, 1967; Id.,
L’Écriture et la Différence, Paris, Seuil, 1967;
DIAZ, José-Luis, “‘Aller droit à l’auteur sous
le masque du livre’. Sainte-Beuve et la bio-
graphie”, Romantisme, n.º 30, vol. 109, 2000,
pp. 45-67; ELIOT, T. S, “Tradition and the
individual talent”, in The Sacred Wood: Essay
O antibrasileirismo pode ser conside-
rado como um ato de fala ou discur-
so que representa o Brasil e os Brasileiros
on Poetry and Criticism, London, Metheun, sob aspetos negativos. Assim, apresenta-se
1950; FOUCAULT, Michel, “Qu’est-ce qu’un como um fenómeno recorrente na cul-
auteur?”, Littoral, n.º 9, jun. 1983, pp. 3-32; tura portuguesa, podendo ser historica-
GODINHO, Helder, O Mito e o Estilo, Lisboa, mente localizados os momentos de pico
Presença, 1982; LECLERC, Gérard, Histoire de da sua ocorrência. Esse retrato em nega-
l’Autorité, Paris, PUF, 1996; LISBOA, Eugénio,
tivo do Brasil emerge com a sua própria
O Segundo Modernismo em Portugal, Lisboa, Ins-
fundação, i.e., com a expansão do Impé-
tituto de Língua e Cultura Portuguesa, 1977;
MARX, William, Naissance de la Critique Mo- rio Português, coincidindo com a con-
derne: Eliot et Valéry, Arras, Artois Presses Uni- solidação de uma consciência europeia
versité, 2002; PAUGAM, Guillaume, “Le génie e da ideia de uma identidade nacional
de la critique, de Sainte-Beuve et de Proust”, portuguesa. É desse modo que se confun-
in AUGER, M., e GIRAUDIN, M. (coords.), de com a representação generalizada do
Entre l’Écrivain et Son Œuvre: In(ter)férences des outro selvagem e indefeso, carente por-
Métadiscours Littéraires, Montréal, Nota Bina, tanto de uma conversão, de educação ou
2008, pp. 33-51; PESSOA, Fernando, Obras civilização.
em Prosa, org., introd. e notas C. Berardinelli,
A primeira tentativa de promover a
Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1982; PROUST,
adesão aos ideais e às diretrizes nacio-
Marcel, Contre Sainte-Beuve, Paris, Gallimard,
1954 [1908]  ; REIS, Carlos, O Conhecimento nais ocorre durante o período pombali-
da Literatura. Introdução aos Estudos Literários, no, embora a política dessa altura tenha
Coimbra, Almedina, 1995; ROBEL, Léon sido precedida pela catequese jesuítica,
(coord.), Manifestes Futuristes Russes, Paris, que já em meados do séc. xviii confli-
Les Éditeurs Français Réunis, 1972; SAINTE- tuava com o Estado português por ser,
-BEUVE, Charles Augustin, Nouveaux Lundi, em princípio, transnacional. Com o
t. 6, Paris, Calmann Lévy, 1883; Id., Portraits crescimento das atividades comerciais
Contemporains, t. i, Paris, Michel Lévy Frères, coloniais, tanto das lícitas como das ilíci-
1870; Id., Portraits Contemporains, t. iv-v, Pa-
tas, e o consequente enriquecimento de
ris, Calmann Lévy, 1889; SELDEN, Raman
uma classe de colonos que estabeleceu
(coord.), The Cambridge History of Literary Cri-
ticism, vol. 8, Cambridge, Cambridge Univer- economicamente os seus descendentes,
sity Press, 1995; SÉRGIO, António, Cartas do começa a desenhar-se outro tipo de an-
Terceiro Homem. Porta-Voz das “Pedras Vivas” do tibrasileirismo, movido por uma certa
“País Real”, Lisboa, Inquérito Limitada, 1954; fobia perante o enriquecimento dos no-
Id., Obras Completas. Ensaios, ed. crítica Caste- vos-ricos brasileiros, algo que encontra a
lo Branco Chaves et al., 2.ª ed., t.  iii, Lisboa, sua representação mais explícita em cer-
Sá da Costa, 1980; VALÉRY, Paul, Œuvres, tas narrativas literárias oitocentistas. Às
t. 2, Paris, Gallimard, 1960. tentativas de integração do Estado Novo,
Carlos F. Clamote Carreto via lusotropicalismo, sucede o fascínio

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206 AntibrAsileirismo

pelo Brasil no período pós-Revolução colonial, é um agente específico de domi-


dos Cravos (1974), que dá lugar a um nação, na medida em que hierarquiza os
filobrasileirismo que só é interrompido sotaques e as expressões, discriminando
com a entrada de Portugal na Comuni- social e culturalmente os seus falantes.
dade Económica Europeia, posterior- A crença de que os africanos são incapazes
mente União Europeia, o que nos leva de dominar as subtilezas sintáticas e foné-
à hipótese de que é a partir da necessi- ticas da língua portuguesa encontra regis-
dade da autoafirmação de Portugal na to até nas peças de Gil Vicente, persistin-
conjuntura europeia, que se constitui do no anedotário popular de começos do
discursivamente no momento em que a séc. xxi em expressões como “língua de
tolerância do país é testada pelo crescen- preto” ou “pretoguês”, para não falar das
te fluxo imigratório de brasileiros, que o polémicas em torno da “língua brasileira”
antibrasileirismo reemerge. Vejamos. no séc. xix e do estranhamento mútuo
A emergência de uma consciência eu- que marca os falares de Portugueses e
ropeia ocorreu pela primeira vez quan- Brasileiros, mesmo depois do sucesso de
do os europeus se confrontaram com o Amália Rodrigues (1920-1999) no Brasil
outro, fosse ele eslavo ou muçulmano, e da telenovela brasileira em Portugal.
contra o qual as Cruzadas tinham sido É provável que um dos primeiros au-
organizadas; um momento crucial da sua tores a registar uma representação ne-
formação ocorre na época dos Descobri- gativa do Brasil tenha sido D. Francisco
mentos, nos sécs. xv e xvi. Com efeito, o Manuel de Melo (1608-1666), que ficou
uso inconsciente do pronome possessivo conhecido na história diplomática de
“nossa”, que acaba por se tornar “deles”, Portugal como negociador do casamento
principalmente quando é usado para se de D. Catarina com Carlos II, Rei da In-
referir à fé cristã como a verdadeira, de- glaterra. Com a Restauração, foi acusado
nuncia uma territorialização dos credos, de castelhanista, por ter encoberto os de-
prenunciando assim o discurso naciona- sígnios da alta nobreza portuguesa, sen-
lista de que a “nossa” nação é a “melhor”. do condenado a quatro meses de prisão.
Não é por acaso que, a partir do séc. xvi, Em 1644, foi novamente preso, dessa vez
a preocupação, por parte de gramáticos, como cúmplice de um assassinato, sendo
dicionaristas, poetas e polígrafos em ge- condenado a quatro anos de reclusão,
ral, de cultivar e exaltar a língua portu- tempo que aproveitou para escrever e rei-
guesa se assume por contraposição ao vindicar a comutação da sua pena. Tudo
castelhano, algo que se torna explícito o que conseguiu, apesar dos seus esforços
nos diálogos entre João de Barros e Gân- – que incluíram dois memoriais ao Rei e
davo. uma intercessão pessoal de Luís XIV –,
Como se sabe, a oposição entre povos foi um degredo para o Brasil, em 1655.
com escrita e povos sem escrita é corrente Em Epanáfora Triunfante, narra a sua esta-
desde os cronistas do séc. xvi. O facto de dia de três anos na Baía, lugar que consi-
ser recusado ao outro “selvagem” o acesso dera ser “paraíso de mulatos, purgatório
ao livro corresponde, assim, a uma manei- de brancos e inferno de negros”, onde,
ra de assegurar a permanência do seu es- no entanto, recuperou de problemas fi-
tatuto de inferioridade, uma vez que um nanceiros, envolvendo-se no negócio do
povo sem escrita é marcado pela ausência açúcar (SARAIVA e LOPES, 2008, 453).
não somente de Deus, mas também da Durante o período pombalino, a co-
história. Ademais, a língua, no contexto lónia brasileira é reconhecidamente o

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AntibrAsileirismo 207

reador e principal. Da mesma forma, era


proibida a habitual alcunha de “negros”
quando referida aos índios, pois a vileza
de tal nome poderia persuadi-los de que
“a natureza os tinha destinado para escra-
vos dos Brancos, como regularmente se
imagina a respeito dos Pretos da Costa da
África” (Collecção da Legislação Portugue-
za…, 1830, 510-511). Uma outra mani-
festação de antibrasileirismo – se assim a
podemos qualificar, numa época em que
o território brasileiro ainda era parte do
reino português – ocorre depois da trans-
ferência da corte para o Brasil, em 1808.
Com as guerras napoleónicas, foram-se
formando, no Governo, dois partidos,
à semelhança do que aconteceu em ou-
tras ocasiões: um “francês”, cujo adepto
mais ilustre era António de Araújo de
Azevedo, futuro conde da Barca, e ou-
tro “inglês”, representado por D. Rodri-
go de Sousa Coutinho, depois conde de
Rosto de Epanaphoras de Varia Historia Portugue-
Linhares, autor de arrojados projetos de
za, de D. Francisco Manuel de Melo.
reforma institucional, os quais abrangiam
a economia, a educação e a criação de es-
mais precioso domínio do reino portu- colas especializadas, além de ter sido um
guês, sobretudo em virtude do ouro e dos que apoiavam a transferência da cor-
dos diamantes, que vão tornar-se objeto te para o Brasil, argumentando que Por-
de conflitos no Brasil e de especial prote- tugal não era “a melhor e mais essencial
ção em Portugal. Na Lei do Diretório, ex- Parte” da monarquia portuguesa, para o
pedida em 1757 e confirmada em 1758, que aconselhava D. João a “criar um po-
o cuidado com a proteção e o controle deroso Império no Brasil, donde se volte
dos índios torna este aspeto evidente. As- a reconquistar o que se possa ter perdido
sim, em ordem à “civilidade dos índios”, na Europa”. Com efeito, era a primeira
que ficariam sob a inteira responsabili- vez na história da Europa que um Estado,
dade dos diretores, a primeira medida com seus mais altos representantes e fun-
a ser tomada seria o estabelecimento da cionários, se aventurava a viver uma vida
obrigatoriedade do uso da “Língua do nova do outro lado do oceano, repetindo
Príncipe”. Outras orientações foram es- os feitos de muitos cientistas e aventurei-
tabelecidas para os diretores, as quais ros desde o séc. xvi (MONTEIRO, 2009,
testemunham os preconceitos de acordo 431-432). A guerra, que durou de 1808
com os quais eram tratados os “nativos” a 1814, teve um momento decisivo, para
da terra. Assim, eles deveriam zelar pela Portugal, em junho de 1810, quando um
manutenção dos privilégios dos índios exército comandado pelo Gen. Massena
que porventura ocupassem postos hono- (1758-1817), após entrar no país pela
ríficos, tais como os de juiz ordinário, ve- Beira Alta, marchou em direção a Lisboa,

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encontrando à sua espera uma tropa com


cerca de 31.000 Ingleses e 26.000 Portu-
gueses, liderada pelo general inglês Ar-
thur Wellesley (1769-1852), futuro duque
de Wellington, que, afastando o exército
inimigo do centro de Espanha, conseguiu
fazer com que os Franceses se retirassem
de Portugal em 1811, o que esteve na ori-
gem de saques e incêndios que deixaram
as habitações e a população remanescen-
te – especialmente a de Santarém, onde
ficava o quartel-general de Massena – em
estado deplorável.
A ideia da transferência da corte por-
tuguesa para a América, correlativa à
ambição de “fundar um Império do Oci-
dente”, era acalentada desde há muito
por monarcas lusitanos, mas, da maneira
como se colocava – sob a pressão do Im-
perador francês, de um lado, e a prote-
ção não menos opressora da Inglaterra, Rei D. João Vi (1767-1826).
de outro –, a opção não era vista com
bons olhos. Já em 5 de julho de 1801 José planos de Inglaterra”, fazendo ver que,
Monteiro da Rocha, matemático e astró- se por um lado a transferência da corte
nomo, em carta enviada a D. Francisco de para o Brasil representava o início de
Lemos, bispo e reitor da Univ. de Coim- um período de significativas mudanças
bra, afirmava que “o pior de todos os con- no panorama educacional da Améri-
selhos é o da retirada para o Brasil. É o ca portuguesa, por outro significava o
mesmo que lançar-se ao mar na tormenta abandono de Portugal, deixando o seu
com o medo de naufragar daí a pouco”. povo sujeito aos desmandos do general
José Agostinho de Macedo, num parecer britânico William Carr Beresford. Con-
contemporâneo da saída de Sua Alteza vém observar que o positivismo radical
Real para o Brasil, afirmava, por sua vez, de Braga, sempre apoiado em citações
que “a conservação do Príncipe no Brasil de Auguste Comte, chega a ser um tanto
assegura à Inglaterra para sempre o se- tendencioso: “O rei, distraído com a sua
nhorio absoluto dos mares; dá um con- capela de negros, e atormentado pelo
sumo infinito às suas manufaturas num clima, só pensava em Portugal quando ti-
império criado de novo e que necessita nha de assinar algum paternal decreto, e
de tudo”, acrescentando que a emigração adormecia na confiança de que a espada
do príncipe era “vantajosa à Inglaterra e do general inglês Beresford lhe conserva-
desvantajosa e funesta a todos os outros ria na obediência estes fiéis vassalos, até
povos” (BRAGA, 1902, 17-20). que o gabinete de Saint-James resolvesse
Teófilo Braga (1843-1924), assim como acerca do destino desta esmagada nacio-
os autores e personagens históricos que nalidade” (Id., Ibid., 37).
cita, condenou a atitude de D. João em A ideia de tornar o Brasil a base do Es-
fugir de Portugal “em cumprimento dos tado português acabou por proporcionar

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todas as condições para que aquele se foi prontamente recusado pelas Cortes,
configurasse como Estado autónomo, que desejavam que a carta constitucional
como veio depois a ocorrer, mas também fosse a mesma para toda a “nação portu-
instilou nos parlamentares portugueses guesa”. Vendo todas as suas pretensões
um preconceito em relação aos seus co- recusadas pela maioria, os deputados bra-
legas brasileiros, embora este viesse mis- sileiros perceberam que o Brasil, já alça-
turado com certa inveja pela condição do à condição de reino em 1816, estava
de corte e reino que fora outorgada à prestes a voltar a ser uma mera colónia
antiga colónia. Seguindo o exemplo dos governada por Lisboa, o que significava
vizinhos espanhóis, cujos comandantes a restituição de alguns monopólios e a
do exército concentrado em Cádis, em ja- perda de liberdade comercial. Nesse sen-
neiro de 1820, se revoltaram, obrigando tido, esta revolução tinha um carácter em
Fernando VII a restaurar a Constituição muitos aspetos restaurador quando posta
de 1812, Portugal preparou, no mesmo em confronto com a anterior, uma vez
ano, a sua revolução, embora pacífica e que, ao recusar o “brasileirismo” da mo-
sem mortos ou feridos. Jovens e velhos, narquia, recusava também o legado de
frades e seculares, incluindo os fidalgos D. Rodrigo de Sousa Coutinho, e sobretu-
das províncias do Norte que se aliaram do o seu sistema liberal de comércio. De
ao governo revolucionário, optaram por qualquer forma, os liberais portugueses,
uma atitude tradicionalista, vendo a in- ao optarem pelo modelo espanhol, não
compatibilidade entre o “amor de uma agiam subversivamente, mas buscavam
liberdade ilimitada” e a “verdadeira feli- pôr em execução as “leis fundamentais”
cidade do homem” (RAMOS, 2009, 464). e os “direitos universais” que haviam
No entanto, tal concertação pode ser aprendido na reformada Univ. de Coim-
igualmente vista como uma rutura, pois bra. Muitos desses liberais, que exerciam
as Cortes, agora compostas por 100 de- a profissão de advogados, médicos e mi-
putados eleitos em Portugal, 65 no Brasil litares, eram maçons ou estavam ligados
e 16 de outras possessões, não eram so- à maçonaria, também no Brasil, estando
mente consultivas, mas também sobera- além disso envolvidos na publicação de
nas e integradas por deputados eleitos periódicos, muito prolífica à época, e na
por sufrágio universal, como acontecia formação do que passou a considerar-se a
em Espanha. Entre os dias 8 de fevereiro “opinião pública” – mesmo com a exclu-
e 9 de março, as bases da Constituição – são do “baixo povo”, que, como afirmava
que entrariam em vigor a 23 de setembro o embaixador espanhol em Lisboa, José
de 1822, 16 dias, portanto, depois de ser Maria de Pando, permanecia “na mais
proclamada a independência do Brasil estúpida apatia” perante as revoluções e
– foram discutidas e votadas. Os artigos proclamações da época –, tanto em Por-
então aprovados mudaram radicalmente tugal como no Brasil (Id., Ibid.).
a estrutura da monarquia portuguesa, Convém observar que, ao contrário do
embora mantivessem o catolicismo como modelo inglês, em que a monarquia não
religião do Estado. se confundia com a nação, a afirmação
Mas o aspeto principal dessa transfor- da soberania nacional pelos deputados
mação da monarquia portuguesa foi a portugueses rompia a unidade da mo-
separação do Brasil. Em fevereiro de narquia, que era, nos termos de Benedict
1821, o Rei havia proposto que o Brasil Anderson, uma “comunidade dinásti-
tivesse uma constituição própria, o que ca”, e não uma “comunidade imaginada

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nacionalmente” (ANDERSON, 2008). Por “se o Brasil não quer unir-se a Portugal,
outras palavras, todos poderiam ser vassa- como tem estado sempre, acabemos uma
los do Rei, mas nem todos poderiam ser vez com isto: passe o Sr. Brasil muito bem”
Portugueses, sobretudo num momento (RAMOS, 2009, 471-472). Nesse contex-
em que as narrativas políticas, historio- to, e perante a decisão das Cortes de re-
gráficas e literárias de Portugal procura- gressar a Portugal, D. Pedro, que já havia
vam estabelecer, em moldes românticos, dito a seu pai que Portugal era um Estado
uma identidade nacional portuguesa. No de quarta ordem, e que só o Brasil pode-
Brasil – apesar do movimento separatista ria sustentar a casa dos Bragança, decidiu
que dominava a América espanhola, e dos ficar no Brasil, declarando a indepen-
levantes emancipacionistas ocorridos em dência a 7 de setembro e sendo aclama-
várias localidades do país desde o final do do Imperador a 12 de outubro de 1822,
séc. xviii (como a breve experiência re- pelo que se tornou uma das personagens
publicana em Pernambuco, em março de mais fascinantes da história do Brasil e da
1817) –, somente em 1822 é que os apelos Europa da primeira metade do séc. xix,
à independência se tornaram mais cons- sobretudo quando se tornou moda dis-
tantes na imprensa, como consequência cutir a causa de D. Maria II (1819-1853)
da atitude dos deputados portugueses e os problemas da sucessão em Portugal,
nas Cortes de Lisboa. Um dos notáveis nos quais estavam envolvidos intelectuais
brasileiros da época, o visconde de Cairu, franceses e portugueses, entre eles dois
e.g., tinha a Europa por “mestra da civi- jovens que, tendo-o como salvador da
lização no Novo Mundo” e defendia na pátria, se alistaram nas tropas sob seu co-
imprensa, e perante as Cortes de Lisboa, mando: Almeida Garrett (1799-1854) e
a unidade do Reino Unido, no que con- Alexandre Herculano (1810-1877).
cordava com o juramento, prestado pelo Uma representação do Brasileiro como
príncipe D. Pedro a 26 de fevereiro, da o novo-rico sem bom gosto, enriquecido
Constituição que se elaborava em Lisboa, com o tráfico negreiro ou com negocia-
sugerindo a Constituição inglesa como ções não menos ilícitas, consagra-se nas
modelo a ser seguido por Portugal, pois narrativas de Eça de Queirós, sobretudo
via na França um perigo para a ordem so- em Os Maias, mas já aparece em Júlio
cial (KIRSCHNER, 2009). Dinis. Convém ressaltar que, no caso de
Para os deputados portugueses, con- Eça, tal aspeto da sua obra aparece apesar
tudo, a preponderância brasileira no de o autor ter uma relação afetiva com o
Reino Unido era insuportável. Ademais, país, ao qual era ligado pela parte pater-
embora o Brasil fosse a principal fonte de na. Tido como o romancista das famílias,
riquezas e rendas de Portugal, acreditava- Júlio Dinis pode ser considerado como a
-se que, sem Portugal, o país seria dissol- expressão literária da Regeneração, uma
vido, numa situação paralela à da Amé- vez que a sua obra novelística é permeada
rica espanhola, ou mesmo assolado pela pela ideia de harmonia universal, que se
revolta dos escravos, como acontecera no expressa nos enredos sentimentais e no
Haiti no século anterior, uma vez que o final feliz, coroado pelo nivelamento de
contingente africano compunha mais de dois namorados económica e socialmen-
80 % de toda a população. Foi levado por te desiguais. Tal é o caso de Uma Família
essa crença que o deputado Manuel Fer- Inglesa (1868). Como o próprio narrador
nandes Tomás (1771-1822) afirmou, a 22 confessa no final do capítulo ii, a ação
de março de 1822, nas Cortes de Lisboa: do romance flui quase desimpedida de

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complicadas peripécias, havendo longos e circulação global de cultura provocou


capítulos de descrição do ambiente cul- um profundo deslocamento da própria
tural e comercial da cidade do Porto, noção de cultura – representada tradi-
que é dividido em três bairros: o central, cionalmente pela ideia de Europa como
o “portuense propriamente dito”, onde sujeito universal da cultura –, que passou
predominam a loja, o balcão, o escritório a abranger tanto a “alta cultura” quanto
e a casa de muitas janelas e extensas va- a cultura popular e a cultura de massas,
randas; o ocidental, que é o habitat dos mediadas pela imagem e pelas formas tec-
aliados ingleses, os “nossos hóspedes”, e nológicas. Consequentemente, as instân-
que é marcado por casas de cor escura e cias discursivas privilegiadas no séc. xix,
arquitetura despretensiosa; e o oriental, como as narrativas históricas, políticas
tido como “brasileiro”, por ser o mais pro- e literárias, perdem centralidade no de-
curado pelos capitalistas que retornam da correr do séc.  xx, fazendo com que as
América, e se caracteriza por palacetes e representações e os mitos sejam repercu-
paredes de azulejo. tidos em outras modalidades de práticas e
No decorrer do séc. xix, não são raras manifestações artístico-culturais, como o
no romance português as referências de- rádio, o cinema, a televisão e, mais tarde,
sabonadoras aos brasileiros – a própria a Internet, o que nos obriga a levar em
denominação, em suas ocorrências no conta outros tipos de fonte para além dos
romance de Eça, e.g., já aparece com co- tradicionais.
notação pejorativa –, como na seguinte Assim, o mito negativo acerca dos Bra-
passagem de Os Maias, na qual Dâmaso sileiros perdeu muito da sua força no
de Salcede, em conversa com Carlos da séc. xx, numa altura em que a popularida-
Maia, se refere a uma família brasileira de da rádio e do cinema colocou o Brasil
rica, cujo destino iria cruzar-se com o seu: em evidência internacionalmente, através
“Esta gente conheci-a em Bordéus. Isto é, da música, do futebol e de Carmen Mi-
verdadeiramente conheci-a a bordo. Mas randa. Durante o regime do Estado Novo,
estávamos todos no Hotel de Nantes...
Gente muito chic: criado de quarto, go- Carmen Miranda (1909-1955).
vernanta inglesa para a filhita, feme de
chambre, mais de vinte malas... Chic a va-
ler! Parece incrível, uns brasileiros... Que
ela na voz não tem sotaque nenhum, fala
como nós. Ele sim, ele muito sotaque...
Mas elegante também, V. Ex.a não lhe pa-
receu?” (QUEIRÓS, 2014, 90).
No séc. xx, não somente a balança de
poderes da Europa, mas também a con-
juntura económica internacional se alte-
ram profundamente: as peças do xadrez
político mudam de lugar e, assim, dão
uma nova configuração ao jogo de poder
implicado nos ditames económicos e nas
representações simbólicas. Com efeito,
o surgimento dos Estados Unidos como
potência mundial e centro de produção
D.R.

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e sobretudo a partir de 1961, quando o portuguesa. Nesse sentido, se tivermos


desempenho económico de Portugal era em conta as gerações de retornados, bem
muito satisfatório, fazia parte da estratégia como os descendentes de imigrantes bra-
do Governo mostrar-se, no plano interna- sileiros, angolanos, moçambicanos, cabo-
cional, como uma nação intercontinental -verdianos, etc., vemos como a cultura por-
e multirracial, algo que encontrava justifi- tuguesa dos começos do séc. xxi abrange
cação na suposta capacidade ingénita dos discursos e manifestações políticas, artísti-
Portugueses para a miscigenação, como cas e culturais de grupos sociais que têm
teorizava Gilberto Freyre (1900-1987) uma dupla ou híbrida pertença, embora
com o seu conceito de lusotropicalismo. tenham nascido e/ou crescido nos guetos
Desde finais da déc. de 60 do séc. xx, e subúrbios de Lisboa. Note-se que a to-
houve trocas de experiências culturais lerância dos Portugueses começou a ser
muito férteis entre Portugal e o Brasil, testada com o aumento da imigração.
como as que envolveram Chico Buarque, É nesse contexto que se inserem as re-
Gilberto Gil e Caetano Veloso. Com a presentações de Portugueses sobre o Bra-
chegada das telenovelas a Portugal, na sil dos inícios do séc. xxi. É fácil acom-
década seguinte, emergiu um certo fascí- panhar, por meio das redes sociais e dos
nio dos Portugueses pelo Brasil que, ape- comentários a vídeos do Youtube, o modo
sar de viver um prolongado período de como é representado o imigrante brasilei-
ditadura, era visto e representado como ro. A mão de obra brasileira é, em geral,
uma espécie de paraíso da liberdade não qualificada, e constituída por empre-
comportamental, sobretudo no domínio gados de mesa, cozinheiros, mecânicos
sexual. Nesse intervalo de tempo, uma de automóveis, empregadas domésticas,
série de transformações culturais foi ga- etc. Este grupo deve ser contrastado com
nhando forma. A “canção nacional”, a a realidade de muitos Brasileiros que são
partir de 1976, foi revitalizada. A obra de estudantes, professores, investigadores e
escritores de esquerda moderada passou profissionais altamente qualificados em
a ser adotada nas escolas. O rock urbano, Portugal. Neste segundo grupo, embora
na década de 1980, fez sucesso nacional, não haja qualquer preconceito explícito,
e até internacional. Os novos programas seja ele social, económico ou étnico – a
televisivos de humor, o investimento nos maior parte dos seus membros é de cor
desportos, os talk shows e as telenovelas branca, ao contrário do que acontece no
brasileiras passaram a fazer parte do quo- primeiro grupo, em que grande parte
tidiano da população das cidades. tem a pele escura –, subsistem e resistem
Para os Portugueses que nasceram de- certos mitos vinculados aos Brasileiros,
pois de 1986, ser europeu tornou-se algo como o de que as mulheres são prosti-
indissociável da sua condição. No final do tutas em potência ou de que os homens
séc. xx, Portugal já não se caracterizava são fanfarrões e galanteadores, o que
somente como país de saída de pessoas, comprova que o antibrasileirismo é um
mas também de entrada, dado o contin- fenómeno performativo e atuante, em-
gente imigratório das décs. de 1980 e bora não de maneira tão aberta quanto
1990, o que o tornou obrigatoriamente nos períodos históricos do seu pico, por
um país cosmopolita, por mais que não assim dizer, sobretudo num momento em
estivesse, em muitos aspetos, ainda pre- que, no processo de adaptação à convi-
parado para conviver com a diversidade vência com a diferença, o racismo formal
e negociar novas formas da identidade e institucionalizado se tornou comum na

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AntibritAnismo 213

Europa, onde um número cada vez maior


de comunidades “étnicas” se estabeleceu,
Antibritanismo
provocando, não raro, sérias manifesta-
ções de intolerância, numa nova onda
fundamentalista que é já uma caracterís-
tica marcante do séc. xxi.

Bibliog.: ANDERSON, Benedict, Comunidades


Imaginadas: Reflexões sobre a Origem e a Difusão do
O mito de Inglaterra em Portugal tem
uma dupla funcionalidade. Se, por
um lado, se inscreve nas origens do rei-
Nacionalismo, São Paulo, Companhia das Le-
tras, 2008; BATISTA, Elina Maria Correia, Da no ou nos momentos de refundação da
Emigração entre Continentes em Eça de Queiroz: da nação, configura-se discursivamente em
Correspondência Consular à Obra Literária, Disser- termos positivos, o que faz com que as
tação de Doutoramento em Estudos Intercul- narrativas de Portugal que o levam em
turais apresentada à Universidade da Madei- conta sejam caracterizadas por um movi-
ra, Funchal, texto policopiado, 2012; BRAGA,
mento de anglofilia. Se, por outro lado,
Teófilo, Historia da Universidade de Coimbra nas
se inscreve nos mitos apocalípticos, em
Suas Relações com a Instrucção Publica Portugueza,
t. iv, Lisboa, Typographia da Academia Real períodos de crise e decadência financei-
das Sciencias, 1902; Collecção da Legislação Por- ra, política e militar, emerge como um
tugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações outro demonizado, como um anticristo.
Oferecida a El Rei Nosso Senhor pelo Desembarga- Nestes casos, portanto, trata-se de um
dor Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a movimento de anglofobia, que podemos
1762, Lisboa, Typ. de L. C. da Cunha, 1830; conceber como um processo de demoni-
DINIS, Júlio, Uma Família Inglesa. Cenas da Vida
zação do outro, que teve como corolário
do Porto, Porto, Porto Editora, 2007; HALL,
Stuart, Da Diáspora. Identidades e Mediações Cul- a constituição discursiva da identidade
turais, Belo Horizonte, Editora Universidade nacional portuguesa, através de uma
Federal de Minas Gerais, 2006; KIRSCHNER, comparação em negativo. É preciso res-
Tereza Cristina, Visconde Cairu: Itinerários de Um saltar, no entanto, que tal processo decor-
Ilustrado Luso-Brasileiro, São Paulo/Belo Ho- re de circunstâncias históricas concretas,
rizonte, Alameda/Portifícia Universidade de marcadas por uma relação de dependên-
Minas, 2009; MARGARIDO, Alfredo, A Luso-
cia, suportada porque necessária à auto-
fonia e os Lusófonos. Novos Mitos Portugueses, Lis-
boa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000;
nomia e legitimação do reino que depois
MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “Idade moder- se transformou em nação.
na (séculos xv-xviii)”, in RAMOS, Rui (coord.), Dois momentos se destacam no pro-
História de Portugal, 5.ª ed., Lisboa, A Esfera cesso de construção discursiva da anglo-
dos Livros, 2009, pp. 197-435; MOREIRA, fobia: o período pombalino (1750-1777)
Adriano, e VENÂNCIO, José Carlos, Luso-Tro- e o Ultimato inglês (1890), apesar de
picalismo: Uma Teoria Social em Questão, Lisboa, haver outros nos quais as manifestações
Vega, 2000; QUEIRÓS, Eça de, Os Maias, Rio
antibritânicas se fizeram notar de modo
de Janeiro, Zahar, 2014; RAMOS, Rui, “Idade
contemporânea (séculos xix-xxi)”, in RAMOS, significativo. No primeiro, desenvolveu-
Rui (coord.), História de Portugal, 5.ª ed., Lis- -se, como política de Estado, embora ve-
boa, A Esfera dos Livros, 2009, pp. 437-777; lada, uma certa anglofobia da parte de
SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, His- alguns intelectuais portugueses, o que
tória da Literatura Portuguesa, 17.ª ed., Porto, se verifica tanto nos relatórios e ofícios
Porto Editora, 2008. diplomáticos do período joanino, já na
Luiz Eduardo Oliveira primeira metade do séc. xviii, quanto

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214 AntibritAnismo

na legislação pombalina que regulamen- e oscilação das representações anglofó-


tava as aulas e as companhias de comér- bica e anglófila de Inglaterra e do povo
cio então criadas, bem como os inten- inglês. Podemos começar por recortar
tados incrementos à defesa, indústria e dois limites cronológicos significativos:
instrução pública, mesmo que para tan- 1386, ano em que foi firmado o Tratado
to o país fosse obrigado a contar com o de Windsor, que preparou o momento
auxílio inglês. No segundo, por sua vez, para a união dinástica com Inglaterra e
assistimos a uma espécie de profecia da a legitimação da Casa de Avis, e 1986,
ressurreição nacional num momento de ano em que Portugal entra definitiva-
crise política e bancarrota financeira, mente para a Comunidade Económica
pois prenuncia, com a sua derrocada, a Europeia, para onde foram transferidas
reatualização do Quinto Império, que as esperanças de prosperidade e, com
se expressa no imaginário social como elas, o mito do Quinto Império, como
a chegada de uma nova era, ou de uma uma forma de compensação da perda
nova Idade de Ouro, que, no caso da ge- das colónias africanas, sendo-lhe ofere-
ração de intelectuais de 1870, se confun- cido o portal de entrada na Europa “ci-
dia com a república. vilizada” e “polida”, algo tão almejado
No entanto, se lermos atentamente os por Pombal, já no séc. xviii, bem como
discursos que narram Portugal na longa um novo meio de se afirmar de manei-
duração da sua história, o que notamos ra intercontinental: a lusofonia – daí o
são momentos de tensão, ambiguidade mapeamento e o estudo linguístico da

Tratado de Windsor (1386).

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AntibritAnismo 215

Casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre (séc. xv).

chamada Comunidade de Países de Lín- Ibérica, representa uma interrupção da


gua Portuguesa. aliança com Inglaterra, dada a nova con-
Partindo de tais limites (1386-1986), a figuração de poderes na Europa, bem
história das relações político-culturais en- como o despontar de novos impérios,
tre Portugal e Inglaterra pode ser dividi- como o da Holanda.
da em três partes. Na primeira, de 1386 Na segunda parte, de 1640 a 1890, te-
a 1640, temos os precedentes, a consoli- mos a renovação da aliança, quando,
dação e a interrupção da aliança inglesa. com a restauração da autonomia do reino
Quando a estabilidade de ambos os rei- português, a legitimidade da monarquia
nos estava ameaçada pelos conflitos cau- portuguesa – representada pela Casa de
sados pela Guerra dos Cem Anos, a alian- Bragança – voltou a depender do apoio
ça firmou-se política e economicamente dos Ingleses, desta vez mediante tratados
com a assinatura de tratados, os primei- firmados com explícitas vantagens co-
ros do género na Europa. É no reinado merciais e económicas para Inglaterra,
de D.  João I que a aliança matrimonial como o Tratado de Paz e Aliança impos-
com D. Filipa de Lencastre marca a pre- to por Oliver Cromwell (1599-1658), o
sença da Casa Real inglesa na vida e no “protetor de Inglaterra”, em 1654. Nem
imaginário português, bem como a legiti- mesmo o fortalecimento das relações
midade da Casa de Avis, que seria depois entre os dois reinos, com o regresso dos
confirmada pela Santa Sé. Passada a ida- Stuarts ao trono inglês e a consolidação
de de ouro dos Descobrimentos, iniciada de mais um enlace matrimonial, desta vez
pela “ínclita geração”, de sangue inglês, entre Carlos II (1630-1685) e Catarina de
por assim dizer, o período de hegemonia Bragança (1638-1705), foi capaz de arre-
dos Habsburgos, marcado pela União fecer o carácter exploratório das relações

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216 AntibritAnismo

político-económicas entre os dois reinos,


tanto pelas cessões coloniais e financeiras
do reino português quanto pelos tratados
que se seguiram, como o controvertido
Tratado de Methuen, de 1703.
Na segunda metade do séc. xviii, em
mais um momento de refundação po-
lítica de Portugal, representado pelo
reinado de D. José I e pela governação
pombalina, ocorre, pela primeira vez,
uma oposição sistemática à aliança in-
glesa por parte dos intelectuais portu-
gueses estrangeirados, algo que se insti-
tucionaliza, embora de modo implícito,
na legislação pombalina referente ao
comércio, às milícias e à instrução pú-
blica. Tal situação não tardaria a alterar-
-se, pois, com as invasões napoleónicas General William C. Beresford (1768-1854).
iniciadas nos primeiros anos do século
subsequente, a Casa de Bragança viu-se meira metade do séc. xix. Mesmo a rela-
mais uma vez ameaçada, tendo de contar tiva paz e prosperidade do fontismo, que
com o auxílio britânico para realizar o se caracteriza pelo progresso técnico e a
seu antigo plano de fundar um império construção de estradas de ferro, contou
na América portuguesa. A regência e o com o capital inglês. A aliança inglesa,
reinado de D. João VI (1767-1826), que no entanto, volta a ser profundamen-
governava a partir do Brasil, deu lugar, te questionada aquando do episódio da
em Portugal, a uma verdadeira ditadura partilha do continente africano, depois
inglesa, comandada pelo Gen. Beresford do Congresso de Berlim (1884-1885). Os
(1768-1854), que, depois de expulsar os planos de reviver o período áureo do Im-
Franceses com a ajuda de lord Wellington pério Português, representados pelo cha-
(1769-1852), obteve do Rei plenos pode- mado “mapa cor-de-rosa”, que lastreava a
res para governar em Portugal, ganhan- sua pretensão de uma faixa de território
do a aversão da população. O tratado de que ia de Angola a  Moçambique, foram
19 de fevereiro de 1810 reforçou ainda agressivamente destruídos pelo Ultimato
mais as vantagens que os Ingleses já ti- inglês de 1890, que fez com que a Casa de
nham, ampliando-as para o Brasil. Bragança fosse fortemente atacada pelos
A conturbada década de 1820, marca- intelectuais republicanos, que considera-
da pelas manifestações liberais das Cortes ram o episódio uma catástrofe nacional.
reunidas em Lisboa e pela perda do Bra- Na terceira e última parte dessa longa
sil, não obstante a oposição de importan- história das relações político-culturais an-
tes intelectuais coetâneos, como Almeida glo-portuguesas, de 1890 a 1986, a aliança
Garrett (1799-1854) e Alexandre Her- perde boa parte da sua relevância políti-
culano (1810-1877), não impediu que co-económica, mesmo tendo sobrevivido
a aliança fosse relembrada e acionada, à república, instaurada em 1910, fazen-
sobretudo nos momentos de confronto do-se valer da entrada de Portugal na Pri-
militar e de guerra civil ocorridos na pri- meira Guerra Mundial (1914-1918), pois

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o período entreguerras, com a ascensão rivalidade entre o Rei e o condestável


do fascismo europeu e o declínio da im- Nuno Álvares Pereira, chefe supremo do
portância britânica no panorama interna- exército régio, cuja imagem de homem
cional, dado o crescimento da Alemanha rico e grande senhor feudal ameaçava o
e dos Estados Unidos, possibilitou uma poder real. Os conflitos cessaram com o
reinserção do Portugal salazarista na nova casamento de D. Beatriz Pereira de Al-
balança da Europa. Tal situação propor- vim (1380-1412), filha única do condes-
cionou ao país um relativo crescimento tável, com D. Afonso (1377-1461), filho
económico, facilitado pela sua neutrali- bastardo de D. João, consórcio que deu
dade na Segunda Guerra Mundial (1939- origem à Casa de Bragança. Mas o reino
-1945). Ademais, o pós-guerra muda defi- permanecia numa grave crise económica,
nitivamente o carácter da aliança, pois a com subida de preços e desvalorização
viabilidade política e económica de Por- da moeda. São dessa época as primeiras
tugal não depende mais da Grã-Bretanha, conturbações da aliança, desencadeadas
mas dos organismos internacionais que por inúmeras queixas apresentadas ao
são criados, como a NATO, e sobretudo Monarca português por mercadores que
dos Estados Unidos. procuravam comerciar com Inglaterra e
No entanto, a aliança nunca deixou de viam os seus produtos confiscados pelos
ser lembrada ou referida nos discursos Ingleses, como meio de pagamento das
oficiais do próprio Oliveira Salazar (1889- dívidas da Coroa portuguesa. Inglaterra,
-1970). Até mesmo quando a população e principal fornecedora de armas, cereais e
a imprensa inglesas criticavam asperamen- lã, produtos que Portugal não produzia
te a situação a que eram submetidos os em quantidade suficiente, tinha o seu co-
negros africanos das colónias portuguesas, mércio muito facilitado entre os merca-
em 1973, Marcelo Caetano (1906-1980) dores portugueses, que haviam inclusive
visitou Londres para celebrar a históri- pedido a importação de qualquer tecido
ca aliança. Com o 25 de Abril e a perda que não viesse dos aliados. O reino portu-
das colónias africanas, Portugal teve mais guês, em troca, comerciava, entre outros
uma vez de se adaptar política, financei- produtos, azeite, cera, mel, sal, peles e,
ra e culturalmente ao resto da Europa, o principalmente, vinho.
que desencadeou um processo político- Uma das principais queixas dos merca-
-diplomático coroado com a sua inserção dores portugueses dizia respeito ao direi-
na Comunidade Económica Europeia, em to de salvado, costume que consistia em
1986. No mesmo ano, comemoraram-se os deixar os bens de naufrágio intocados
600 anos do Tratado de Windsor com ma- desde que houvesse algum sobrevivente.
nifestações oficiais de ambos os Estados e Tal direito era acintosamente ignorado
um colóquio realizado em Lisboa, no qual pelos Ingleses, que capturavam, às vezes
muitos intelectuais portugueses e ingleses violentamente, os bens, mesmo nos ca-
reavaliaram a aliança nos seus vários mo- sos em que os sobreviventes não tinham
mentos históricos. condições para opor qualquer tipo de re-
sistência. Ainda assim, D. João I, depois
do seu casamento com D. Filipa, manteve
Origens da anglOfObia boas relações com o grande número de
Após a trégua celebrada com Castela em famílias e cidadãos ingleses que haviam fi-
1393, o reino de Portugal passou por xado morada em Portugal, especialmente
uma crise política interna advinda da em Lisboa e no Porto, como prova uma

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218 AntibritAnismo

lei de 1389 destinada a garantir aos Ingle- importante porto marroquino. No tocan-
ses o mesmo tratamento que era recebido te à aliança com Inglaterra, o que pertur-
pelos genoveses, privilégio que muito de- bava as relações entre os dois reinos eram
sagradava aos mercadores do Porto, uma as dívidas contraídas pela Coroa portu-
vez que estes jamais haviam tido esse tipo guesa, algo que foi lembrado por Henri-
de facilidade em Inglaterra. Deste modo, que IV, em resposta a uma das reclama-
os comerciantes portugueses passaram ções de D. João I quanto às condições de
a exigir do Rei o direito de se apodera- tratamento dos mercadores portugueses,
rem dos bens dos mercadores ingleses mesmo depois da participação de tropas
em Portugal, como forma de compensar portuguesas nos conflitos de 1404 e 1405,
as perdas sofridas na Inglaterra. Com que tiveram lugar no Norte da Europa.
a deposição de Ricardo II, em 1399, e a Na costa portuguesa, as mercadorias in-
ascensão ao trono inglês de Henrique IV glesas eram também capturadas, o que
(1367-1413), irmão de D. Filipa, as rela- motivou cartas do Monarca inglês a sua
ções entre os dois reinos melhoraram. irmã, para que esta interviesse em tais
Como para estreitar os laços familiares e questões. Estes conflitos comerciais per-
comerciais com a monarquia portuguesa, maneceram durante os dois restantes rei-
o Rei inglês nomeou, em 1400, D. João I nados da dinastia de Lencastre, apesar de
como cavaleiro da Ordem da Jarreteira Henrique V (1386-1422) e Henrique VI
e ratificou, em 1403, o Tratado de Wind- (1421-1471) manterem a tradição de in-
sor. Contudo, os mercadores portugueses cluir membros da Casa de Avis na Ordem
continuaram a apresentar queixas junto da Jarreteira.
das autoridades inglesas, sem sucesso, Os acordos matrimoniais continuaram,
pois até mesmo os embaixadores e emis- com D. Beatriz (1386-1447), filha bastar-
sários régios estavam sujeitos aos maus da de D. João I, a casar-se, em 1405, com
tratamentos dos aliados na costa inglesa. Thomas Fitzalan, 12.º conde de Arundel,
Disso testemunham as cartas especiais bem como os auxílios militares, tanto
emitidas por Henrique IV para garantir contra Castela quanto na expedição de
aos embaixadores portugueses a liberda- Ceuta. No final da Guerra dos Cem Anos,
de de abandonar Inglaterra. Portugal também auxiliou os Ingleses,
Por outro lado, os conflitos e a rivali- com a participação no conflito de alguns
dade com o reino de Castela continua- nobres, como D. Álvares Vaz de Almada
ram mesmo depois de celebrada a paz (1340-1449), que se tornou depois conde
definitiva, em 1411, o que fez com que o de Avranches, na Normandia, e cavaleiro
Monarca português optasse, como ponto da Jarreteira. Com a morte de D. João I,
de fuga da crise que não parava de cres- em 1433, D. Duarte manteve a aliança,
cer, pela conquista de novos territórios que perdurou até 1470, quando Portugal
além-mar, na esperança de encontrar os declarou guerra a Inglaterra e renunciou
produtos e as riquezas de que carecia. aos tratados entre os dois reinos. Contu-
O movimento de expansão territorial re- do, Eduardo IV (1442-1483) revalidou o
lacionava-se também com o ideal cruza- Tratado de Windsor e, mesmo com as fre-
dístico, que permaneceu até, pelo menos, quentes queixas dos comerciantes e mo-
ao final do séc. xvi, pois intentou inicial- narcas de ambos os reinos, a aliança man-
mente tomar o reino islâmico de Grana- teve-se até à União Ibérica, em 1580. No
da ou de uma cidade no Norte da África, período da expansão portuguesa, con-
acabando a escolha por recair em Ceuta, tudo, Inglaterra, em crise com a Guerra

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AntibritAnismo 219

das Duas Rosas, absteve-se dos problemas dio da morte de D. Sebastião num cam-
internacionais, o que facilitou ainda mais po de batalha de Alcácer Quibir. O Rei,
o fortalecimento dos reis católicos e a he- cuja morte, tendo consternado todos os
gemonia política espanhola. portugueses, simboliza o fim de uma era,
Mas a aliança com Inglaterra, que já se mesmo depois de o seu suposto cadáver
achava, de certa forma, relacionada com ter sido achado em Ceuta, em 1578, e
o momento de fundação de Portugal, no sepultado por Filipe I (1527-1598), em
Cerco de Lisboa de 1147, teve, com a re- 1582, no Mosteiro dos Jerónimos, viria
fundação do reino, implicações culturais a ressuscitar, tomando vida na forma de
muito significativas, passando a povoar um messianismo que passou a fazer par-
o imaginário popular através de narrati- te da consciência nacional, uma vez que
vas de tradição oral, como a história dos irrompe recorrentemente na história
“Doze de Inglaterra”, e a fazer parte inte- portuguesa. Com efeito, Oliveira Martins
grante do repertório literário da elite le- (1845-1894), na sua História de Portugal,
trada da época, mediante os romances do vislumbra uma espécie de proto-sebastia-
ciclo arturiano e os textos dos cronistas nismo na figura de D. João I, no papel de
e poetas dos sécs. xv e xvi. Em tal pro- messias salvador destinado a impedir que
cesso de mitificação, destaca-se a figura Portugal perdesse a independência.
de D. Filipa de Lencastre, cuja imagem,
vinculando-se não somente à “ínclita ge-
ração” e à tomada de Ceuta, mas também
a cOnsOlidaçãO da anglOfObia:
à divinização dos soberanos, teve uma
da restauraçãO aO ultimatO
funcionalidade ideológica que merece Durante o período da Restauração
ser ressaltada, sobretudo no modo como (1640-1668), as relações anglo-portugue-
se apresenta em três importantes obras sas conheceram um novo aspeto, pois,
do período: a Chronica de el-Rei D. João I, com a série de regalias e vantagens que
de Fernão Lopes, a Crónica da Tomada de foram concedidas aos Ingleses, passaram
Ceuta por el-Rei D. João I, de Gomes Eanes a configurar uma espécie de colonialismo
Zurara (1410-1474), e o Leal Conselheiro, informal. Depois de legitimada a dinastia
de D. Duarte (1433-1438). dos Bragança pelas Cortes convocadas
A União Ibérica, ou o período de do- em 1641, e dos vários empreendimen-
minação filipina, como às vezes é cha- tos historiográficos e literários para a
mado, que durou de 1580 a 1640, muito construção da memória da aclamação de
mais do que uma situação de ocupação D. João IV (1604-1656), Portugal passou
de Portugal por uma potência estrangei- por um período de guerra permanente,
ra – como faz crer toda a literatura anti- para o qual contou com um significa-
castelhana (&Anticastelhanismo) produ- tivo contingente de soldados mercená-
zida no séc. xvi, bem como os manifestos rios estrangeiros, muitos deles ingleses.
de defesa e preservação da língua portu- Mesmo assim, a situação de insegurança
guesa nos diálogos e gramáticas da época, fazia com que surgissem planos visioná-
e ainda certa historiografia dos começos rios para a salvação do reino, como o da
do séc. xxi –, representa a integração do transferência de D. João IV para o Brasil,
reino numa poderosa monarquia católi- conforme propunha o P.e António Vieira
ca que abrangia todo o espaço ibérico. (1608-1697), ou para a África.
A sua associação posterior a uma idade A aliança inglesa teve vários episódios
de ferro prende-se com o mítico episó- nessa época. A 29 de janeiro de 1642, foi

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assinado em Londres um tratado de paz novo tratado, firmado no mesmo local,


e de comércio entre D. João IV e Carlos I no dia 23 de junho, com o qual foram ra-
(1600-1649), que franqueou os portos de tificados e confirmados, “em tudo e por
Portugal e das suas colónias no Orien- tudo o que significam”, todos os tratados
te e em África, sendo conferidos vários feitos desde o ano de 1641 e se consagrou
privilégios aos comerciantes britânicos. o casamento de Carlos II, rei da Inglater-
Com os conflitos entre o Rei inglês e o ra, com D. Catarina, filha de D. João IV.
respetivo Parlamento, que deflagraram O reinado de D. João V (1689-1750) foi
a chamada Revolução Puritana, Carlos I marcado, entre outras coisas, pelos efei-
foi executado publicamente e o Gover- tos do Tratado de Methuen, tendo Portu-
no inglês passou para as mãos de Oliver gal adquirido, na memória histórica por-
Cromwell (1599-1658), que impôs a Por- tuguesa, a imagem de um reino afastado
tugal o Tratado de Paz e Aliança de 1654, tanto do seu vizinho ibérico – mesmo de-
assinado em Westminster, a 10 de junho, pois dos casamentos reais entre as duas
e ratificado por Portugal a 9 de julho de Casas peninsulares – quanto da Europa
1656, sob ameaça militar inglesa, que ilustrada, sob a liderança de um Rei tido
ampliava os privilégios de Inglaterra, in- por lúbrico e beato. Todavia, do ponto de
cluindo o comércio direto com o Brasil, vista cultural, o período joanino caracte-
algo só posteriormente evitado. Após a riza-se pela importação de artistas e inte-
morte de Cromwell, foi assinado no Pa- lectuais estrangeiros, sobretudo músicos
lácio de Whitehall, em Londres, a 18 de italianos, bem como pela encomenda
abril, o Tratado de Paz e Aliança de 1660, sistemática de pinturas e obras arquite-
entre Afonso VI (1656-1683) e o Conse- tónicas, graças ao incremento financei-
lho de Estado, em nome da República de ro advindo do ouro do Brasil. Datam do
Inglaterra, pelo qual o reino português período joanino: a construção do Palácio
poderia recrutar, através de contratação, e Convento de Mafra, de 1717 a 1730; a
tropas mercenárias inglesas. Restabele- fundação da Real Academia da História
cida a dinastia Stuart, foi assinado outro Portuguesa, que funcionou de  1720 a
Tratado de Paz e Aliança em 1661, entre 1776; a tradução e impressão  de obras
Afonso VI (1643-1683) e o Rei Carlos II, portuguesas e estrangeiras, inclusive de
pelo qual se consagrou o casamento de periódicos; e a constituição da figura
D. Catarina de Bragança com o Monarca do homem de letras estrangeirado, re-
inglês, realizado no ano seguinte, em tro- presentado por escritores que tiveram
ca de um rico dote e da entrega de Bom- experiências diplomáticas ou formativas
baim e Tânger a Inglaterra. A restauração internacionais, tais como Luís da Cunha
dos Stuarts no trono inglês, em 1660, im- (1662-1749), Alexandre de Gusmão
pediu que fosse ratificado o Tratado de (1695-1753), Martinho de Mendonça de
Paz e Aliança versando sobre a compra e Pina Proença (1693-1743), António Nu-
o transporte de cavalos ingleses, a nomea- nes Ribeiro Sanches (1699-1783), Luís
ção de coronéis e outros postos militares António Verney (1713-1792) e Sebastião
e a disposição de tropas e navios de guer- José de Carvalho e Melo (1699-1782),
ra, firmado entre D. Afonso VI e o Conse- mais tarde marquês de Pombal.
lho de Estado, em nome da República da Nos discursos político-económicos dos
Inglaterra, no Palácio de Whitehall, a 18 intelectuais estrangeirados do reinado
de abril daquele mesmo ano. Em 1661, de D. João V, destaca-se o carácter des-
contudo, a aliança foi renovada com um trutivo que é atribuído à aliança inglesa,

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que havia sujeitado a nação portuguesa


à humilhação de ter de depender de In-
glaterra até no abastecimento dos cereais
necessários à sua subsistência. Segundo
Keneth Maxwell, na primeira metade do
séc. xviii, apenas a Holanda e a Alemanha
sobrepujavam Portugal como consumido-
res das exportações inglesas, e somente
nos momentos mais críticos da Guerra
dos Sete Anos (1756-1763) os navios britâ-
nicos no porto de Lisboa ficaram aquém
de 50 % do total de exportações. O em-
baixador francês Étienne-François, conde
de Stainville e duque de Choiseul (1719-
-1785), escreveu, cinco anos depois do
terramoto de Lisboa, ocorrido em 1755,
que Portugal tinha de ser considerado
como uma colónia inglesa. João Lúcio de
Azevedo, por sua vez, afirma que, depois
do Tratado de Methuen, Portugal, como
principal consumidor das manufaturas
inglesas, era “a mais excelente colônia da
Grã-Bretanha” (AZEVEDO, 1991, 220).
O comércio português era praticamente
monopolizado pelos súbditos ingleses,
que vinham fazer fortuna no Porto ou
em Lisboa, mas também trabalhar como
tanoeiros, sapateiros, alfaiates e cabelei-
reiros, de modo que a imigração abarcava Revista Pontos nos ii,
todo o tipo de gente, desde o Inglês falido 19 de junho de 1890.
ao Irlandês fugido da forca de Londres.
Ademais, apesar da intensa produção das
minas do Brasil, o numerário escasseava, à França em 1759, aquando da subida ao
pois as moedas com a efígie de D. João V trono de Carlos III (1716-1788), após a
eram mais comuns em Inglaterra do que morte de Fernando VI (1713-1759), so-
as do Rei Jorge I (1660-1727). bretudo quando os Ingleses começaram
A primeira fase da governação pombali- a atacar, no final de 1760, as colónias
na foi marcada por acontecimentos deci- espanholas das Antilhas. A diplomacia
sivos para o desdobramento das relações portuguesa tentou, sem sucesso, casar o
político-diplomáticas entre Portugal e In- Rei viúvo de Espanha e o seu primogé-
glaterra: a implementação do Tratado de nito com infantas portuguesas, mas, em
Madrid (1750), o terramoto de Lisboa, 1761, com a formação do terceiro Pacto
em 1755, e a Guerra dos Sete Anos (1756- de Família entre os monarcas da Casa de
-1763), que opôs a França, a Rússia e a Bourbon de França, Espanha, Nápoles e
Áustria à Prússia e a Inglaterra. Espanha, Parma, a França exigiu que Portugal fe-
inicialmente neutra no conflito, aliou-se chasse os portos aos Ingleses. Mantida a

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222 AntibritAnismo

já histórica aliança, firmada que estava diplomata em Londres, Sebastião de Car-


pelo Tratado de Methuen, os exércitos valho e Melo, baseado nas interpretações
franceses e espanhóis atacaram Portugal então correntes sobre os tratados firma-
em abril de 1762, declarando guerra pos- dos com Inglaterra em 1703, desenvolveu
teriormente. Foi também nesse período toda uma mitologia negativa da Ingla-
que começou a manifestar-se de modo terra, atribuindo à má índole dos Ingle-
mais ostensivo o descontentamento dos ses grande parte dos males da economia
sectores mercantis ingleses em relação às portuguesa. Durante o seu governo, a
medidas protecionistas de Pombal, bem anglofobia torna-se, por assim dizer, uma
como as manobras de açambarcamento razão de Estado, uma vez que quase to-
de trigo realizadas por comerciantes in- das as suas medidas políticas, económicas
gleses, burlando assim o Regimento do e educacionais buscavam, umas vezes de
Terreiro do Trigo. modo tácito ou camuflado, outras vezes
Com efeito, para competir com os In- nem tanto, prejudicar os interesses de In-
gleses no comércio colonial, Pombal con- glaterra, numa época em que os Ingleses,
cedeu privilégios especiais de proteção por conta dos tratados, gozavam de privi-
aos grandes empresários portugueses da légios e imunidades incomuns, como dis-
Companhia do Grão Pará e Maranhão, pensa de impostos, foro privativo, licença
criada em 1755, assegurando-lhes o direi- para andarem armados, mesmo nos luga-
to exclusivo do comércio e da navegação res em que isso era vedado aos nacionais,
das capitanias, o que fez com que fossem e liberdade religiosa, entre outras coisas
expulsos do Brasil todos os comissários que, no entender do ministro, causavam
volantes, principal elo de ligação entre os a ruína da indústria, do comércio e da
comerciantes estrangeiros e os produtores economia do país.
brasileiros, e banidos os pequenos comer- Assim, a anglofobia atinge a sua mais
ciantes itinerantes. O mesmo havia acon- perfeita expressão nos escritos do mar-
tecido com a criação, em 1756, da Compa- quês de Pombal, pois, pela primeira vez,
nhia Geral da Agricultura das Vinhas do o carácter malévolo da aliança é atribuí-
Alto Douro, que teve o objetivo inicial de do ao génio e ao carácter dos Ingleses,
proteger os principais proprietários de vi- posição que, nessa época, pressupunha
nhedos, incluindo o próprio marquês, em também uma dimensão étnica e linguís-
prejuízo dos pequenos produtores, que tica, ou uma consciência protonacional,
vendiam mais do que o dobro de vinho dado o desenvolvimento da filologia mo-
aos comerciantes ingleses. Estes não rea- derna. Na primeira metade do séc. xix,
giram de imediato porque as companhias, essa anglofobia vai misturar-se, nos escri-
além de não representarem ameaças aber- tos de Garrett e Herculano, com uma an-
tas à hegemonia comercial inglesa em Por- glofilia literária que alcança a sua maior
tugal, não violavam nenhum dos tratados. expressão durante a Regeneração, tanto
Tudo leva a crer que tais iniciativas eram com Júlio Dinis quanto com Pinheiro
um plano camuflado para atacar os inte- Chagas, e vai manter-se com os intelec-
resses ingleses, o que havia sido possibili- tuais da geração de 1870, embora os even-
tado pela habilidade política de Pombal, tos anteriores e posteriores ao Ultimato
adquirida no tempo em que vivera no ex- os tenham levado a retomar o discurso da
terior como diplomata. anglofobia. Nessa altura, as imagens este-
Desde os seus primeiros escritos econó- reotipadas dos Ingleses, sempre represen-
micos, produzidos na época em que era tados etnicamente como um povo loiro e

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AntibritAnismo 223

de olhos azuis, e politicamente como um e depois a internet, o que nos obriga a


povo prático, enérgico e bem sucedido, levar em conta outros tipos de fonte além
ou mesmo como um grupo de beberrões dos tradicionais.
devassos, têm suporte na crença no na- Tal como acontecera entre 1914 e 1918,
turalismo determinista da raça, do meio Portugal também lucrou com a Segunda
e do momento histórico, tal como pro- Grande Guerra, alcançando uma relativa
punha Hippolyte Taine (1828-1893), de prosperidade financeira, mesmo com os
modo que as suas atitudes eram interpre- motins e as greves organizados pelo Par-
tadas como resultado de atributos, por tido Comunista, causados pela expansão
assim dizer, naturais. da máquina corporativa, pela corrupção
da administração, a alta dos preços e o
congelamento dos salários. As opiniões
a recOnfiguraçãO dO mitO dividiam-se entre aliadófilos e germanó-
da inglaterra em POrtugal filos, embora houvesse um medo gene-
Depois das duas grandes guerras mun- ralizado tanto de uma hegemonia norte-
diais, a Europa é obrigada a sujeitar-se -americana quanto do comunismo, como
ao poder dos Estados Unidos e Inglater- o próprio Salazar confessava ao embaixa-
ra deixa de representar, para Portugal e dor inglês Ronald Campbell (1883-1953).
para o mundo, uma ameaça imperialista. Em 1944, uma reforma ministerial colo-
Nesse novo contexto, não somente a ba- cou no poder jovens com reputação de
lança da Europa, mas também a conjun- direita nacionalista, dando um carácter
tura económica internacional alteram-se monárquico ao governo de Lisboa, o que
profundamente, uma vez que as peças do não impediu que algumas conspirações
xadrez político mudam de lugar e assim militares fossem toleradas por Carmona
dão nova configuração ao jogo de poder e até por Inglaterra, que estava irritada
que envolve os ditames económicos e as com as vendas de volfrâmio de Portugal
representações simbólicas. Com efeito, à Alemanha.
o surgimento dos Estados Unidos como Com o fim da Segunda Guerra Mun-
potência mundial e centro de produção dial, a Grã-Bretanha ainda era uma das
e circulação global de cultura provocou três principais potências mundiais, junta-
um profundo deslocamento da própria mente com os Estados Unidos e a União
noção de cultura – representada tradi- Soviética, embora estivesse bastante cons-
cionalmente pela ideia de Europa como ciente das dificuldades que teria de en-
sujeito universal da cultura –, que passou frentar para a construção do Estado de
a abranger tanto a alta cultura quanto a bem-estar social no pós-guerra. Prevendo
cultura popular e a cultura de massa, me- tal dificuldade, durante a guerra havia-se
diadas pela imagem e pelas formas tec- comprometido com os Estados Unidos
nológicas. Consequentemente, as instân- para proteger algumas posições-chave nas
cias discursivas privilegiadas no séc. xix, suas rotas imperiais e mesmo na Europa.
como as narrativas históricas, políticas e Salazar logo percebeu a fragilidade de In-
literárias, são deslocadas e perdem a cen- glaterra, bem como a impossibilidade da
tralidade no decorrer do séc. xx, fazen- realização de uma sonhada Pax Britanni-
do com que as representações e os mitos ca, o que fez com que a aliança inglesa
sejam repercutidos noutras modalidades fosse seriamente repensada, uma vez que
de práticas e manifestações artístico-cul- o futuro de Portugal dependia muito mais
turais, como o rádio, o cinema, a televisão de um acordo com os Estados Unidos do

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224 AntibritAnismo

que com o governo de Londres. Foi este se, em junho de 1960, o Times publicou
pensamento que determinou a adesão do uma série de artigos enviados pelo seu
país ao Plano Marshall, em 1948, ao Pacto correspondente em Angola, David Hol-
do Atlântico, no ano seguinte, e ao Acor- den (1924-1977), dando conta das ten-
do de Defesa luso-americano, em 1951. sões político-raciais no território, o que
Assim, depois da Segunda Guerra Mun- chegou a provocar um certo desconforto
dial, o principal eixo das relações diplo- diplomático, logo apaziguado pela inter-
máticas portuguesas passou a ser Lisboa/ venção do embaixador britânico em Lis-
Washington, e não mais Lisboa/Londres. boa, Charles Stirling, que fez com que
Contudo, a preponderância norte-ame- o Ministério dos Negócios Estrangeiros
ricana não chegou a eclipsar a influên- britânico pedisse à direção do Times para
cia britânica em Portugal, não somente demitir o jornalista. O ingresso de Por-
porque a aliança que uniu os dois países tugal na ONU, contudo, obrigou o go-
no séc. xiv continuava formalmente em verno de Salazar a agir com mais cautela
vigor, mas também porque os Britânicos nas questões coloniais, uma vez que a sua
ainda eram os maiores parceiros comer- política deixaria de passar despercebida
ciais de Portugal, e Salazar demonstrava, nos fóruns internacionais. Em 1961, no
ao menos publicamente, a sua estima e o entanto, quando o foco da Guerra Fria
seu apreço em relação à Grã-Bretanha. recaiu sobre o Terceiro Mundo, as rela-
Além disso, as relações diplomáticas en- ções luso-britânicas chegaram a um novo
tre os dois países, que tinham em comum impasse. Num dia em que foram votadas
a manutenção e administração dos seus na ONU matérias relativas a Portugal,
impérios coloniais em África, foram de o representante britânico, Frederick
fundamental importância para que Por- Douglas-Home (1903-1995), absteve-se
tugal ingressasse em organizações como no julgamento da política ultramarina
a NATO, em 1949, a ONU, em 1955, e a portuguesa, que se recusava a acatar as
EFTA, em 1960. novas diretrizes adotadas pelos países-
Com o agravamento das tensões en- -membros, em oposição à propaganda
tre os Governos de Salazar e o estadista soviética, retirando assim o apoio de que
indiano Sawaharlal Nehru (1889-1964) Portugal precisava, o que fez com que a
a propósito de Goa, que culminariam velha aliança fosse, mais uma vez, posta
na ocupação de territórios portugueses em cheque.
por ativistas indianos, a política colo- Apesar da relativa estabilidade econó-
nial portuguesa sofreu severas críticas mica, uma série de crises internas e ex-
na imprensa britânica, sobretudo em ternas deu início à derrocada do Estado
artigos assinados por um dos mais cáusti- Novo, que culminaria nos anos de 1974
cos inimigos do regime de Salazar: Basil e 1975. A derrota na Índia, bem como
Davidson (1914-2010). As suas primeiras a oposição dos exilados políticos, como
matérias foram publicadas na revista New Henrique Galvão (1895-1970), capitão
Statesman, em maio de 1954, e depois na do Exército e explorador naturalista que
West Africa, mas o colunista alcançou a ficou internacionalmente famoso por
consagração numa longa reportagem ter organizado, naquele mesmo ano de
da Harper’s intitulada “Africa’s modern 1961, um assalto ao paquete Santa Maria,
slavery”, numa referência direta ao li- numa tentativa de provocar uma crise
vro de Henry Nevinson, Modern Slavery, política contra o regime de Salazar, pa-
publicado em 1904. Como se não bastas- recia atestar este facto. Para completar

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AntibritAnismo 225

o cenário crítico, os conflitos pela inde- ram reviver a atmosfera do Ultimato, foi
pendência de Angola, iniciados no mes- uma questão de dias.
mo ano, alcançaram os grandes meios Após o afastamento de Salazar, em
de comunicação social, sendo comenta- 1968, Marcelo Caetano (1906-1980) as-
dos e debatidos em programas de rádio sumiu o governo, conseguindo manter
e televisão da BBC. A queda de Goa e internacionalmente a imagem de Portu-
a guerra de Angola só foram suplanta- gal como uma ditadura moderada, algo
das na grande imprensa pela Guerra do que trabalhou com certa segurança de-
Vietname, que tinha mais atrativo popu- pois da visita que lhe fizera o speaker do
lar pelo facto de os Estados Unidos es- Parlamento inglês, que o aconselhara
tarem nela envolvidos. A reação inicial a não suprimir a censura da imprensa.
do governo de Salazar provocou um A questão do ultramar não lhe trouxe
breve surto de manifestações de anglo- grandes problemas no início da sua go-
fobia em Lisboa. Num relatório enviado vernação, apesar das denúncias, pela im-
para Londres, o embaixador britânico à prensa inglesa, do estado de escravidão
época, Archibald Ross, dizia-se assustado dos negros das colónias portuguesas em
com a agressividade dos manifestantes, África, que provocaram manifestações
que queimaram a fotografia de Nehru públicas aquando da sua visita a Ingla-
e arrastaram pelo chão as bandeiras da terra, em 1973, para celebrar os 600 anos
Inglaterra e dos Estados Unidos, com da aliança luso-britânica, e de algumas
slogans antibritânicos e antiamericanos. manifestações antibritânicas que tive-
Daí aos panfletos propondo um boicote ram lugar em Lisboa. Para a diplomacia
aos produtos britânicos e norte-america- inglesa, a maioria da população portu-
nos, aos editoriais e artigos dos jornais guesa era contrária à independência das
afeitos ao governo português, que fize- colónias. E, apesar de o Papa Paulo VI
ter recebido em audiência privada os
O mapa que deu origem ao Ultimato. líderes das guerrilhas independentistas,
em julho de 1970, o Vaticano não tomou
nenhuma providência a esse respeito.
O governo dos Estados Unidos, conven-
cido de que o domínio branco se perpe-
tuaria na África portuguesa, continuou a
vender armamentos a Portugal e a treinar
oficiais portugueses. A partir de 1972,
contudo, o regime passou a sofrer insis-
tentes críticas da juventude politizada e
dos novos membros do PCP, o que fez
com que a censura e a repressão aumen-
tassem consideravelmente. Com efeito,
a circulação e divulgação das informa-
ções de outros países, a revolução com-
portamental e cultural promovida pelas
barricadas de Paris, em 1968, e pelo rock
inglês e norte-americano, fizeram com
que a juventude se sentisse apta a mani-
festar-se contra o regime e reivindicar os

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226 AntibritAnismo

seus direitos, um movimento já iniciado de D. João I (1385-1433)”, in BULLÓN-


com a música de intervenção de Zeca -FERNÁNDEZ, María (coord.), A Inglaterra e a
Afonso (1929-1987). No entanto, o Go- Península Ibérica na Idade Média – Séculos XII-XV:
Intercâmbios Culturais, Literários e Políticos, Lis-
verno tinha a aprovação da maioria da
boa, Europa-América, 2008; HALL, Stuart, Da
população, sobretudo a parcela da socie-
Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, Belo
dade que pôde usufruir dos momentos Horizonte, Editora Universidade Federal de
de prosperidade económica proporcio- Minas Gerais, 2006; MARTINS, Oliveira, His-
nados pelo regime. tória de Portugal, 3.ª ed., 2 vols., Lisboa, Viúva
O ano da adesão de Portugal à CEE, Bertrand, 1882; MAXWELL, Keneth, A Devassa
1986, coincidiu com as comemorações da Devassa – a Inconfidência Mineira: Brasil e Por-
dos 600 anos do Tratado de Windsor, tugal, 6.ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 2005;
OLIVEIRA, Pedro Aires, Os Despojos da Aliança:
celebrados pelos dois países, nomeada-
a Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa
mente com um evento académico, tendo (1945-1975), Lisboa, Tinta da China, 2007;
a temática das relações luso-britânicas RAMOS, Rui (coord.), História de Portugal,
sido transformada em campo de estudos 5.ª ed., Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009;
e de investigação. Por outro lado, a ade- SAMPAIO, Luís Teixeira de, “Elementos para
são de Portugal à CEE representou tam- o estudo da aliança luso-britânica”, in AL-
bém a neutralização do conteúdo polí- MADA, José de, A Aliança Inglesa, vol. iii, Lis-
boa, Imprensa Nacional, 1945, pp. 343-383;
tico-económico da aliança luso-britânica
SIDERI, Sandro, Comércio e Poder: Colonialismo
e, consequentemente, o seu fim, dada a Informal nas Relações Anglo-Portuguesas, Lisboa,
multilateralidade das relações diplomá- Cosmos, 1978; WOLLOCK, Jennifer G., “A In-
ticas dos países membros, incompatível glaterra e a península Ibérica medievais: uma
com qualquer tratado que privilegie relação cavaleiresca”, in BULLÓN-FERNÁN-
somente uma parte das nações. Como DEZ, María (coord.), A Inglaterra e a Península
observou o embaixador Luís Teixeira de Ibérica na Idade Média – Séculos XII-XV: Intercâm-
Sampaio (1875-1945), secretário-geral bios Culturais, Literários e Políticos, Lisboa, Euro-
pa-América, 2008.
do Ministério dos Negócios Estrangeiros
de 1933 a 1945, eram as suas condições Luiz Eduardo Oliveira
de “largueza, imprecisão, imperfeição”
que faziam dela a mais longeva alian-
ça da história da diplomacia europeia
(SAMPAIO, 1945).

Bibliog.: Actas do Colóquio Comemorativo do VI


Centenário do Tratado de Windsor (de 15 a 18 de
outubro), Porto, Faculdade de Letras da Uni-
versidade do Porto, 1988; ALMADA, José
de, A Aliança Inglesa: Subsídios para o Seu Estudo,
vol. 1, Lisboa, INCM, 1946; AZEVEDO, João
Lúcio de, Época do Portugal Económico, 4.ª ed.,
Lisboa, Clássica Editora, 1991; FALCON,
Francisco J. C., A Época Pombalina, 2.ª ed., São
Paulo, Ática, 1993; GOUGE, Jennifer C., “O
comércio anglo-português durante o reinado

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Antibudismo 227

Antibudismo ção espetacular entre uma prática arcaica


e a perspetiva apontada pelo conceito de
vacuidade” (VARENNE, 1988, 67). Dis-
tinguindo entre os motivos de admiração
e os de censura, Mendes Pinto faz uma
apreciação crítica de ordem racional e
lógica: “E a este modo por entre esta gen-

O budismo, enquanto religião im-


portada da Índia para o Extremo
Oriente, designadamente a China e o Ja-
te, a que por outra parte não falta grande
juízo e entendimento em todas as outras
coisas, outras muitas maneiras de ceguei-
pão, através do chamado “grande veículo” ras e brutalidades tão fora de toda a razão
(Mahayana), em contraste com a sua di- e entendimento humano, que fica sendo
fusão na Índia e nas regiões vizinhas (Sri um grandíssimo motivo de dar continua-
Lanca, Birmânia, Tailândia, Laos, Vietna- mente infinitas graças a Deus aquele a
me), através do chamado “pequeno veícu- quem Ele por sua infinita bondade e mi-
lo” (Teravada), foi testemunhado, a partir sericórdia quis dar o lume da fé, para se
do séc. xvi, pelos Portugueses, designada- salvar com ele” (PINTO, 1983, 480).
mente missionários e escritores cristãos, A visão fragmentária e ilusória do Uni-
em termos contraditórios. Por um lado, verso, comum ao budismo e ao taoismo, é
não deixou de exercer poderoso fascínio, expressa na écphrasis do escudo de armas
quer pelos pontos comuns que apresenta- de um nobre chinês, representativo de um
va com o cristianismo, quer pela extraor- mundo às avessas, tão caro à Idade Média
dinária adesão dos seus seguidores, a pon- e ao Renascimento europeus: “Este mons-
to de darem a vida pela sua mensagem. tro diziam que era figura do mundo que
Por outro lado, a posição antibudista im- os Chins pintam às avessas, e porque todas
punha a estes viajantes, testemunhas de vi- as coisas são mentirosas, para desenganar
vências bem características e antagónicas aos que fazem caso dele lhes diz, tudo o
do cristianismo, um distanciamento crí- que há em mim é assim, como se dissesse,
tico que marcasse bem a diferença entre feito às avessas, com pés para cima e com a
ambas as religiões e filosofias. cabeça para baixo” (Id., Ibid., 233).
Entre tais escritores podemos citar Fer- Efetivamente, o budismo atribui as cau-
não Mendes Pinto, o qual, na sua monu- sas da infelicidade às ilusões da razão (ig-
mental Peregrinação, não deixou de tecer norância) e às ilusões da vida (desejo): “As
curiosas e oportunas considerações sobre ilusões da razão baseiam-se na ignorância
tal religião, quer a propósito do Calami- e as ilusões da vida baseiam-se no desejo:
nham (Tibete), quer da China e do Japão. por isso, os dois conjuntos são apenas um
No Calaminham, impressiona ao nar- só e ambos são a fonte de toda a infelici-
rador o trágico espetáculo testemunhado dade” (The Teaching of Buddha, 1980, 81).
nas festas do pagode de Tinagogó, atra- No Japão, o debate ideológico entre
vés de práticas de automutilação e suicí- Francisco Xavier e os monges budistas zen
dio, numa confusão de religiões, unidas, tem uma finalidade apologética, ou de
porém, no traço comum da crença hin- defesa teológica da religião de cada qual.
duísta e budista na metempsicose. Assim, Os temas são a negação do princípio ao
num misto de xamanismo bon e tantrismo mundo e o fim aos homens, bem como a
tibetano, estes sacrifícios lembram o rito reincarnação. São horas de discussão, no
chod (literalmente “trinchar”), “associa- fim das quais o missionário cristão é dado

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como vencedor e os budistas como maus A epopeia camoniana Os Lusíadas ca-


perdedores. Hesitando entre a admira- racteriza o povo indiano de modo sen-
ção encomiástica e a censura mordaz, o sual, bem oposto à mística budista, já que,
narrador não deixa de elogiar o discerni- ao contrário da abstinência “Das carnes”,
mento dos monges budistas – “como ho- “Somente no venéreo ajuntamento/Tem
mens que todavia se não pode negar que mais licença e menos regimento” (VII,
tem por natureza melhor entendimento 40). A alegoria da Ilha de Vénus, se bem
que os outros gentios daquelas partes” que glorificadora da gesta épica da desco-
(Ibid., 673) – qualidades a que contrapõe berta do caminho marítimo para a Índia,
a obstinação pertinaz e a sua “natural ufa- utiliza a linguagem do amor carnal para
nia e presunção” (Ibid., 669). simbolizar essa glorificação: “Ardente
O culto da deusa Amiba, interpretado amor, à flama feminina,/É forçado que a
por António José Saraiva e G. Le Gentil pudicícia honesta/Faça quanto lhe Vénus
como uma corruptela de género e uma amoesta” (IX, 49).
confusão entre as seitas budista amida ou O interesse exótico surge nas artes a
amitabha, o Buda das virtudes infinitas, e partir do séc. xviii, como é manifesto
a deusa xintoísta Kwannon, representa- no soneto que se inicia pelos versos “O
da com uma criança nos braços, consti- louro chá no bule fumegando/De Man-
tuem uma criação mitopoética expressiva darins e Brâmenes cercado” de Correia
da aculturação nipónica assimilada por Garção (GARÇÃO, 1957, 18). Na geração
Mendes Pinto. A grande expansão popu- de 70, Antero e Eça não deixam de fazer
lar desta seita pela China, pela Indochina dele matéria criadora, como surge no
e pelo Japão terá impressionado o escri- conto fantasista e fantástico O Mandarim
tor português, até pela proximidade com (1880). Os Maias (1888), porém, ironi-
a doutrina escatológica do cristianismo. zam a influência budista na arte, ao uti-
Fundada na China por Tao-ch’o (562- lizarem a imagem de um “ídolo japonês
-645), baseada no texto sânscrito Shakah- de bronze, um deus bestial, nu, pelado,
vat Jivyuha, prometia o paraíso aos seus obeso, de papeira, faceto e banhado de
devotos, em contraste com os horrores riso, com o ventre ovante, distendido na
do Inferno, de acordo com os 48 votos de indigestão do universo – e as duas per-
Bodhisattva Dharmakara. ninhas bambas, moles e flácidas como
Também Fr. Gaspar da Cruz se refere as peles mortas de um feto” (QUEIRÓS,
ao epíteto de Buda Omitoffois, transcri- s.d., 437), como símbolo do incesto dos
ção chinesa do sânscrito amithaba, deuses irmãos Maia. No final do romance, o bu-
cujas imagens adoram e aos quais ofere- dismo, ainda que sob a designação de
cem “incenso e beijoim, águila […] e ou- “fatalismo muçulmano”, é ironizado, a
tros cheiros” (CRUZ, 1997, 251). partir da contradição entre a teoria do
De modo análogo, mas ainda mais explí- “nada desejar e nada recear” e a corrida
cito do que Mendes Pinto, o P.e Luís Froes para apanhar o transporte “americano”
hostiliza os budistas de Miaco, “casados para a refeição de um prato de paio com
com suas honras, atados a seus pecados”, ervilhas, no hotel Bragança: “Riram am-
os quais “vivem submersos nos vícios e de- bos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a
lícias sensuais” (FROES, 1981, II, 32), são sua teoria da vida, a teoria definitiva que
“cegos e miseráveis” (Id., 1976, I, 76), que ele deduzira da experiência e que agora
seguem “uma maldita seita”, “fundada em o governava. Era o fatalismo muçulma-
muitas abominações” (Id., Ibid., 41). no. Nada desejar e nada recear… Não

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Antibudismo 229

O primeiro, na sua aculturação nipónica,


e dilacerado pela morte de duas mulhe-
res amadas (O-Yoné e Ko-Haru), recusa
o bem-estar, meditando sobre a natureza
transitória do mundo e a futilidade esta-
belecida. A segunda deslumbra-se com
“o príncipe da perfeição e da renúncia”,
esculpido na “Estátua de Buda”, apesar
da sua “beleza tão carnal de magnólia e
fruto” (ANDRESEN, 1999, 336).

Bibliog.: ANDRESEN, Sophia de Mello Brey-


ner, Obra Poética, 4.ª ed., vol. iii, Lisboa, Cami-
nho, 1999; CRUZ, Gaspar da, Tratado das Coisas
da China, Lisboa, Cotovia, 1997; FROES, Luís,
História de Japam, org. José Wicki, 5 vols., Lis-
boa, Biblioteca Nacional, 1976-84; GARÇÃO,
Pedro Correia, Obras Completas, vol. i, Lisboa,
Sá da Costa, 1957; GENTIL, George Le, Les Por-
tugais en Extrême Orient. Fernão Mendes Pinto, Un
Précurseur de l’Exotisme au XVIe Siècle, Paris, Her-
S. Francisco Xavier Pregando e Curando,
mann & Cie Éditeurs, 1947; MONIZ, António
da Escola de Peter Paul Rubens. Manuel de Andrade, “A peregrinação de Fer-
não Mendes Pinto na China”, in TAVARES, An-
tónio Augusto (dir.), Estudos Orientais: o Ocidente
se abandonar a uma esperança – nem a no Oriente através dos Descobrimentos Portugueses,
um desapontamento. Tudo aceitar, o que Lisboa, Instituto Oriental, 1992, pp. 269-277;
vem e o que foge, com a tranquilidade Id., “A evangelização do Japão na óptica de Fer-
com que acolhem as naturais mudanças não Mendes Pinto”, in CARNEIRO, Roberto, e
de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta TEODORO, Artur (coords.), O Século Cristão do
placidez, deixar esse pedaço de matéria Japão, Actas do Colóquio Internacional Comemorativo
dos 450 Anos de Amizade Portugal-Japão (1543-
organizada que se chama o Eu ir-se dete-
-1993), Lisboa, Centro de Estudos dos Povos
riorando e decompondo até reentrar e se e Culturas de Expressão Portuguesa da Univer-
perder no infinito Universo… Sobretudo sidade Católica Portuguesa/Centro de História
não ter apetites. E, mais que tudo, não ter de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa,
contrariedades” (Id., Ibid., 715). 1994, pp. 32-48; PESSANHA, Camilo, Chi-
Camilo Pessanha, que viveu em Ma- na (Estudos e Traduções), Lisboa, Agência Geral
cau, deixa-se repartir pela fascinação do das Colónias, 1944; PINTO, Fernão Mendes,
Peregrinação, Lisboa, INCM, 1983; QUEIRÓS,
budismo e da cultura chinesa, e pela vi-
Eça de, Os Maias, Lisboa, Livros do Brasil, s.d.;
vência dos “Desejos”: “Desejo, num trans- SARAIVA, António José, História da Cultura em
porte de gigante,/estreitá-la de rijo entre Portugal, vol. iii, Lisboa, Jornal do Foro, 1962;
meus braços,/até quase esmagar nestes TAMBURELLO, Adolfo, Japan, London, Cassell,
abraços/a sua carne branca e palpitante” 1971; The Teaching of Buddha, 6.ª ed., Tokyo,
(PESSANHA, 1944). Koseido Printing Co., Ltd, 1980; VARENNE,
Venceslau de Morais e Sophia de Mello Jean-Michel, O Budismo Tibetano, Lisboa, Euro-
Breyner Andresen deixam-se mais sedu- pa-América, 1988.
zir pelo budismo do que contrariá-lo. António Moniz

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230 Antiburguesismo

Antiburguesismo Será, aliás, durante a fase comercial


do desenvolvimento do capitalismo que
o fenómeno de ascensão da burguesia
irá ser, em grande medida, configurado
por uma perspetiva aristocrática e filo-
sófica que lhe conferirá uma conotação
negativa ligada à ideia de mediocridade,

F enómeno cultural de reação à ascen-


são da burguesia enquanto conjunto
de indivíduos não enquadráveis na or-
nomeadamente em termos de gostos e
hábitos, que, com maior ou menor inten-
sidade, se manterá ao longo da história.
dem feudal ou senhorial da Idade Média Durante o mesmo período, porém, com
que, restringindo a complexidade das a difusão da prática de remuneração do
transformações socioculturais inerentes trabalho com recurso ao salário livre e à
ao desenvolvimento do capitalismo, con- crescente visão dos seus membros como
tribuiu para a sua figuração enquanto “empregadores”, a dimensão social dos
classe até à segunda metade do séc. xx. termos “burguês” e “burguesia” irá pro-
Historicamente, e embora abrangendo gressivamente consolidar-se, nomeada-
um grupo heterogéneo, o termo “bur- mente por oposição aos trabalhadores
guês” indicava o habitante do burgo, local assalariados, uma vez que o burguês de-
onde os artesãos e mercadores usufruíam tinha o capital necessário para a “com-
da categoria de homens livres, ocupando pra” de trabalho, e aos soldados e traba-
uma posição intermédia entre os nobres lhadores migrantes, que não usufruíam
e os servos. A expansão comercial de fins da sua estabilidade vivencial.
da Idade Média, posteriormente intensi- A Revolução Industrial e a emergência
ficada pelos Descobrimentos, com a cres- de regimes mais igualitários na Europa
cente utilização da moeda, a “arma” da a partir de fins do séc. xviii, nomeada-
burguesia (MACEDO, 1997, 675), bem mente com a Revolução Francesa, cons-
como da concessão de crédito a ela asso- tituirão o pano de fundo para futuros
ciada, levaria à sua crescente caracteriza- desenvolvimentos do fenómeno do anti-
ção enquanto classe cujos componentes burguesismo. Em meados do séc. xix, o
dispunham de recursos económicos que desfazer da unidade essencial presente
dispensavam o trabalho manual, mani- na Revolução e no movimento românti-
festando, tendencialmente, interesses co levará um desiludido Almeida Garrett,
puramente materiais, caracterização que paladino do liberalismo, a concentrar o
a aproximava de certas figurações sociais seu desprezo, em Viagens na Minha Terra,
dos judeus (&Antissemitismo). Um clás- na figura do barão, o burguês “usuraria-
sico exemplo é a figura do onzeneiro, mente revolucionário e revolucionaria-
aquele que cobrava a onzena, ou seja, mente usurário”, “o mais desgracioso e
uma taxa de juro de 11 % pelo dinheiro estúpido animal da criação” (GARRETT,
emprestado, como a homónima persona- 1993, 91). É esse, aliás, o destino de Car-
gem do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vi- los no fim da obra, uma vez perdida a sua
cente, filho da “maldição” a quem o Anjo anterior inocência: gordo e rico, mas in-
nega a travessia para o Paraíso por o seu teriormente vazio e incapaz de um gesto
“bolsão”, ainda que vazio, ocupar toda a redentor, figuração que retoma os traços
barca, sendo tratado pelo Diabo como fundamentais da caracterização histórica
seu “parente”. do burguesismo. Daí que o seu destino

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Antiburguesismo 231

Fábricas Químicas da BASF em Ludwigshafen (1881), de Robert Friedrich Stieler.

seja descrito, justamente por Fr. Dinis, tos, indicando, tipicamente, uma vida
como um suicídio moral. tranquila e sem preocupações. A falta
A Revolução Industrial, porém, com a de ideais e de convicções profundas e a
decorrente necessidade de capital inten- entrega a um pragmatismo utilitarista
sivo para o estabelecimento de unidades serão, na verdade, elementos inerentes à
de transformação onde a grande manufa- caracterização do burguesismo enquanto
tura ganhava relevo, conferiu uma nova modo de vida ao longo desta fase, rece-
dimensão aos detentores desse capital, bendo um tratamento paradigmático em
vindo o termo “burguesia” a designar o Alves & C.ª, de Eça de Queirós, sátira na
empregador, o negociante, o patrão, ou qual um adultério, o de Lulu, mulher do
seja, quem dispusesse dos meios neces- pacato Godofredo Alves, com o seu sócio,
sários à remuneração do trabalho ou à Machado, acaba por ser perdoado ape-
aquisição da produção, ainda que deste nas para que a vida possa regressar à sua
grupo pudessem fazer parte membros da anterior normalidade, exibindo as perso-
nobreza ou mesmo do clero. Será, aliás, nagens, acima de tudo, o desejo de usu-
durante a primeira metade do séc. xix fruírem do tranquilo conforto proporcio-
que o termo “capitalista” irá progressiva- nado pelos lucros gerados pela empresa
mente impor-se, sendo frequentemente que dá o título à obra e se encontra no
associado a “burguesia” para designar, cerne do seu enredo.
inúmeras vezes pela negativa, o detentor A ausência de valores e o comodismo
de capital próprio que não participava di- associados à burguesia em tais figurações
retamente no processo de produção. continuariam a ser alvo da hostilidade de
De facto, já nos séculos precedentes, o inúmeros artistas, escritores e pensado-
sucesso dos membros da burguesia fora res ao longo do séc. xx, nomeadamente
aferido pela sua capacidade de viverem durante o período das vanguardas histó-
apenas dos lucros dos seus investimen- ricas, que elegerão a assim denominada

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232 Antiburguesismo

“cultura burguesa” como principal foco e


denominador comum de uma multiface-
tada denúncia da realidade sociocultural
coeva, dando assim, em grande medida,
continuidade ao antigo sentimento de
desprezo pela mediocridade em termos
de gostos e hábitos associada à classe.
Clássico é o exemplo da “Ode ao bur-
guês”, do poeta brasileiro Mário de An-
drade, recitada, para grande escândalo
do público, durante a Semana de Arte
Moderna em São Paulo, em 1922, mo-
mento inaugural do movimento moder-
nista no Brasil.
Embora não exclusivamente, subjacen-
te a inúmeras expressões do antiburgue-
sismo estaria a crítica da burguesia opera-
da pelo marxismo, que determinou, em
Karl Marx (1818-1883).
grande medida, a fortuna do termo desde
meados do séc. xix até à segunda metade
do séc. xx. Segundo Marx, e no segui- Em Portugal, os princípios axiológicos
mento da clivagem entre trabalhadores do materialismo histórico e dialético for-
assalariados e detentores dos meios de necerão a base do código ideológico do
remuneração decorrente da Revolução neorrealismo enquanto movimento esté-
Industrial, o modo de produção capitalis- tico, nomeadamente durante as décs. de
ta levara ao predomínio da burguesia en- 1940 e 1950, tendo o terreno para o seu
quanto classe responsável pela “opressão surgimento sido preparado por textos
do homem pelo homem”, bem como ao publicados em inúmeras revistas surgi-
surgimento de uma nova sociedade, a so- das na década anterior, como o célebre
ciedade burguesa, que, destronando a an- “O anti-burguesismo da cultura nova”,
tiga nobreza, impusera a sua ideologia, a de Álvaro Salema, publicado na revista
sua arte e novas formas de pensar e sentir. Gládio, onde a própria angústia metafí-
A oposição dicotómica entre burguesia e sica de um desiludido Antero é atacada
proletariado restringia a complexidade como sintoma de uma cultura de inspi-
do fenómeno e permitia a identificação ração burguesa. Pese embora a inegável
do adversário a ser suplantado por uma influência do neorrealismo nas décadas
luta de classes que, emulando a transfor- seguintes, a manutenção do regime de
mação anterior, resultaria, por sua vez, Salazar após a Segunda Guerra Mundial
no surgimento de uma nova sociedade. e a bipolarização do mundo que se seguiu
Fruto da Revolução Industrial, a visão da ao seu desfecho viriam a pôr em causa o
burguesia como agente utilizador do ca- inabalável sentido de um futuro ao alcan-
pital e principal explorador dos operários ce da mão presente na primeira fase do
permanecerá ativa durante grande parte movimento. Em 1958, o protagonista de
do séc. xx, encontrando eco na obra de O Anjo Ancorado, de José Cardoso Pires,
inúmeros artistas e escritores de todo o poderia inclusivamente salientar o senti-
mundo. do de honra da burguesia de 1900 face

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Antiburguesismo 233

aos “candongueiros” e “novos-ricos” que eliminado o último reduto significativo


teriam vindo a ocupar o seu lugar com as de oposição ao sistema económico que
duas Grandes Guerras. estivera por trás da sua ascensão. O pós-
Com efeito, a partir dos anos 50, e espe- -modernismo seria justamente a expres-
cialmente após a déc. de 1970, a própria são cultural de um avançado estado de
palavra “burguesia” abandonaria progres- modernização no qual a possibilidade de
sivamente os palcos a nível internacional, outras ordens sociais, um dos horizontes
vindo a ser substituída pela expressão fundamentais da Modernidade, se veria
“classe média” – embora o termo “bur- anulada. Se a Modernidade pode ser con-
guês”, com a sua antiga conotação nega- siderada o período histórico da ascensão
tiva ligada à ideia de mediocridade em da burguesia, a pós-Modernidade corres-
termos de gostos e hábitos, continuasse ponderia, de facto, ao seu apogeu; e o
a manter uma certa atualidade, mesmo fenómeno do antiburguesismo perderia
face à ascensão da expressão “novo-rico”, a sua premência com o enfraquecimen-
que, em grande medida, veio a ocupar o to das posições antagónicas a partir das
seu espaço conceptual. quais a burguesia fora sendo caracteriza-
A expansão do sector terciário nesta da ao longo dos séculos, fossem elas do
nova fase do desenvolvimento do capita- clero, da nobreza ou do povo.
lismo e o consequente aumento do nú- Pesem embora as críticas ao sistema fi-
mero de trabalhadores a ele associados nanceiro internacional espoletadas pela
retirariam premência à oposição entre Grande Recessão, que retomam a histó-
“burguesia” e “proletariado” e, com o rica acusação de usura e demonstração
colapso da União Soviética, em 1991, era de interesses puramente materiais por

Grande Recessão, de Margaret Bourke-White (1904-1971).


D.R.

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234 AntiburocrAtismo

parte dos seus beneficiários e gestores,


bem como o regresso, nos começos do
Antiburocratismo
séc. xxi, de tendências ideológicas afetas
aos extremos do espectro político, os ter-
mos “burguesia” e “burguesismo” não re-
gressaram ao discurso público enquanto
conceitos operativos adequados para uma
crítica da sociedade contemporânea.
D e forma muito sumária, o burocra-
tismo (substantivo masculino, sin-
gular) pode caracterizar-se quer como
um sistema específico, estruturado, hie-
rarquizado e impessoal de organização
e funcionamento interno do Estado (ou
de Igrejas, de empresas, de partidos, de
organizações internacionais, ou outras),
quer como a própria utilização abusiva
da burocracia (dita “governo dos técni-
Bibliog.: ANDRADE, Mário de, De Paulicéia
Desvairada a Café (Poesias Completas), São Pau- cos”, entendido este como um conjunto
lo, Círculo do Livro, 1986; DACOSTA, Luísa, de regras e de procedimentos mais ou
Aspectos do Burguesismo Literário, Lisboa, s.n., menos complexos – geralmente adminis-
1959; FRANCO, António Luciano de Sousa, trativos – necessários à obtenção de um
“Capitalismo”, in Polis, 2.ª ed. rev. e atualiza- resultado).
da, vol. i, Lisboa, Verbo, 1997, pp. 759-767; O antiburocratismo assume-se como
FUKUYAMA, Francis, The End of History and
oposição ao burocratismo e à própria bu-
the Last Man, London, Penguin, 2012; GAR-
RETT, Almeida, Viagens na Minha Terra, Mem rocracia, sendo esta última muitas vezes
Martins, Europa-América, 1993; JAMESON, entendida de forma imprecisa, como rea-
Fredric, Postmodernism, or the Cultural Logic of lidade negativa que prejudica ou impede
Late Capitalism, London, Verso, 1991; MACE- a intervenção ou a participação jurídico-
DO, Jorge Borges de, “Burguesia”, in Polis, -administrativa dos cidadãos.
2.ª ed. rev. e atualizada, vol. i, Lisboa, Verbo, Etimologicamente, a palavra “burocra-
1997, pp. 672-686; MARX, Karl, e ENGELS,
cia” e as palavras que da mesma derivam
Friedrich, Manifesto do Partido Comunista, Lis-
boa, Avante, 1997; MATTOSO, José (dir.),
têm origem na composição que agluti-
História de Portugal, 8 vols., Lisboa, Estampa, nou a palavra francesa “bureau” (pri-
1993-94; OLIVEIRA, Marcelo G., Modernismo meiramente, burel, tecido rude que era
Tardio, Lisboa, Colibri, 2012; PIRES, José Car- usado no vestuário, mas também para
doso, O Anjo Ancorado, Lisboa, Dom Quixote, cobrir uma mesa; mais tarde, a própria
1999; QUEIRÓS, Eça de, Alves & C.ª, Lisboa, mesa de escrever e, posteriormente, o
Presença, 2003; REIS, Carlos (org.), História escritório ou local de trabalho) e a pa-
Crítica da Literatura Portuguesa, Lisboa, Verbo,
lavra grega “kratos” (“kratein”, governo
2005; SALEMA, Álvaro, “O anti-burguesis-
mo da cultura nova”, Gládio, n.º 1, jan. 1935, ou domínio).
p.  4; SANTOS, Boaventura de Sousa, Pela A palavra “burocracia” (bureaucratie)
Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Moderni- terá sido usada pela primeira vez por
dade, Coimbra, Almedina, 2013; VICENTE, Vincent de Gournay, em meados do
Gil, Auto da Barca do Inferno, Mem Martins, séc. xviii, embora não exista registo es-
Europa-América, 1996. crito do próprio, mas sim do seu amigo
Marcelo G. Oliveira barão de Grimm, que atribuía a Gournay

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AntiburocrAtismo 235

a autoria do termo: “[Gournay] dizia por portugueses: (i) excesso de funcionários


vezes: ‘Temos em França uma doença face às necessidades e construção de uma
que provoca muitos danos; essa doença máquina administrativa sobredimensio-
chama-se buromania’. Às vezes, referia-se nada; (ii) intervenção ilegítima das estru-
a ela como uma quarta ou quinta forma turas administrativas na decisão política
de governo, sob o nome de burocracia” e a politização da estrutura burocrática;
(GRIMM, 1829, 11). (iii) excesso de confidencialidade em
A palavra, que nasceu com uma forte áreas não sigilosas e que exigem transpa-
carga negativa, difundiu-se rapidamente, rência; (iv) irresponsabilidade e falta de
não apenas em França, mas nos vários sancionamento dos funcionários; (v) in-
países e línguas europeias, com diferen- flexibilidade ou insensibilidade, em espe-
tes significados (Fred Riggs faz um levan- cial para realidades novas e/ou diversas,
tamento exaustivo dos mesmos), chegan- falta de iniciativa e de sentido de dever,
do também a Portugal, mas tardiamente, preguiça mental dos funcionários, com
“nos finais dos anos de 1860”, e “com demasiado apego às rotinas; (vi) minúcia
maior irradiação nos anos 80” (CATRO-
GA, 2004, 418-419). Revista A Parodia,
Extravasando o significado original, já de 22 de agosto de 1900.
mencionado, a palavra também pode ser
usada, segundo Fabrizio Bencini, para
designar “sistema de administração pro-
fissional”, “ineficácia profissional”, “ad-
ministração pública”, “lentidão, rotina,
manipulação”, entre outros. O processo
de degeneração dos modelos burocrá-
ticos, das suas estruturas e funções, é
frequentemente designado de burocra-
tização (BENCINI, 2004, 130), sendo
o seu resultado o burocratismo, onde é
frequentemente realçada a ligação (har-
moniosa ou conflituante, transparente
ou obscura) entre governação política e
administração burocrática.
O poder da burocracia e o burocratis-
mo tendem a acentuar-se nas sociedades
em que as decisões políticas são muitas
vezes sugeridas, preparadas e posterior-
mente executadas pelos técnicos, como
sucede nas sociedades contemporâneas,
incluindo a portuguesa, nas quais o co-
nhecimento e a experiência técnica são
fundamentais.
Entre os vícios ou inconvenientes
apontados ao burocratismo, em especial
na administração pública, costumam ser
elencados, nomeadamente pelos autores

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236 AntiburocrAtismo

desproporcionada e excesso de formalis- ção ao serviço do Estado, para o exercício


mo, lentidão e a dificuldade na obtenção de domínio e opressão.
de resultados que, por sua vez, potenciam A obra de juventude de Marx, em 1843,
a corrupção e o tráfico de influências. revelava uma posição crítica, consideran-
Numa análise histórica contemporâ- do que as corporações eram o conteúdo
nea, apesar da existência de uma “má- material da burocracia formal de Hegel,
quina burocrática” construída pelos apontando-lhe o “materialismo sórdido, o
Estados da época moderna, coexistindo materialismo da obediência passiva, da fé
ainda com a “patrimonialização dos ofí- na autoridade, do mecanismo de uma ativi-
cios” (GARCIA, 1994, 148), foi apenas no dade formal rígida, de princípios, ideias
séc. xviii que o pensamento autoritário e tradições rígidas” (MARX, 1983, 73).
e burocrático prussiano se traduziu num Porém, apesar das referências em obras
burocratismo assumido, entendendo a posteriores (elaboradas individualmente
burocracia como o modelo político-admi- ou com Engels), o tema nunca foi tratado
nistrativo ideal. Esta perspetiva manteve- exaustivamente e permaneceu a conceção
-se no séc. xix, também com um contribu- da burocracia como “corpo parasitário”
to enviesado do pensamento hegeliano e que movia “uma massa imensa de interes-
da sua conceção do “Estado como qual- ses e exigências” com que o Estado “ma-
quer coisa de racional em si” (HEGEL, nieta, controla, regulamente, vigia e tute-
1940, 42-43), em que a ação governativa la a sociedade civil” (MARX, 1982, 66-67).
se apoiava numa administração de fun- Porém, após a Revolução Russa, tam-
cionários, sujeitos a hierarquia, fiscali- bém o novo Estado necessitou de uma
zação e responsabilidade, com especial organização e de uma classe dirigente
formação e integrando a “classe média”. que instituiu a sua própria e complexa
O pensamento liberal oitocentista era burocracia e, gradualmente, uma fortís-
fortemente antiburocrático, em oposi- sima centralização das estruturas políti-
ção ao Estado/aparelho administrativo cas, partidárias, económicas e militares
do Antigo Regime, que, por sua vez, se (com a precoce burocratização do Exér-
impusera e estruturara em oposição à cito Vermelho), sempre justificada pelo
organização feudal. Porém, apesar de “Comunismo de Guerra” (TWISS, 2009,
a nova aristocracia burguesa professar 68-80). Lenine, criticando o aparelho
um antiburocratismo que identificava burocrático como “parasita”, defendera,
os procedimentos do Estado absoluto contudo, uma abolição gradual da buro-
como mecanismos de opressão, o pró- cracia, pois a sua abolição imediata era
prio Estado liberal afirmou-se através da uma utopia, embora, mesmo tendo im-
burocracia. plementado muitas medidas que favore-
O pensamento marxista integrava um ceram o burocratismo, fosse exprimindo
claro antiburocratismo, pois identificava as suas preocupações com os perigos des-
o aparelho burocrático liberal e capitalis- te e propondo novas medidas para com-
ta com um instrumento de dominação de bater a ineficiência e reduzir as estruturas
classe, que desapareceria com o fim do burocráticas.
Estado burguês e liberal. O marxismo – e, Aliás, precocemente, a partir de 1919,
antes ainda, o pensamento de Marx, que mas principalmente em 1923, a nova bu-
sofreu variações ao longo do tempo e foi rocracia era violentamente criticada pe-
tardiamente recebido em Portugal – con- los grupos mais radicais (e.g., na “declara-
cebia a burocracia como forma de aliena- ção dos 46”) e pelo próprio Trotsky, que,

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AntiburocrAtismo 237

apesar de muito ter contribuído para essa -se James Burnham (1905-1987; trotskista
centralização e burocratização do Estado americano e posteriormente neoconser-
e da sociedade soviéticos, expressou des- vador) e, partindo do modelo de Weber,
de cedo o seu antiburocratismo (TRO- embora com discordâncias mais ou me-
TSKY, 1924, 88ss.), linha de pensamento nos profundas, David Riesman (1909-
que veio a desenvolver posteriormente -2002), Robert Merton (1910-2003), Her-
(Id., 1977, 247-250), enquanto o burocra- bert Simon (1916-2001), Philip Selznick
tismo soviético continuava em crescendo (1919-2010) e Alvin W. Gouldner (1920-
em todos os sectores do Estado e da pro- -1980). Na Europa, podem referir-se, no
dução. burocratismo coletivista, Antonio Grams-
O tema da burocracia e do burocratis- ci (1891-1937), Bruno Rizzi (1901-1977),
mo foi investigado com maior distancia- Milovan Đilas (ou Djilas, 1911-1995), e,
mento e numa abordagem científica por numa linha weberiana, embora crítica,
Max Weber, que analisou a burocracia Edgar Morin (n. 1921), Michel Crozier
enquanto instrumento “racional” de do- (1922-2013), Shmuel Eisenstadt (1923-
mínio e de equilíbrio ao serviço de outros -2010), Claude Lefort (1924-2010) e
interesses que se servem da mesma (logo, Alain Touraine (n. 1925), entre outros.
a burocracia é uma “forma” a que podem Posteriormente, podem ser elencados
corresponder diferentes conteúdos). Na como autores de referência, e.g., Donald
obra de Weber, a burocracia deve ser P. Warwick, Martin Albrow ou Fred Riggs.
entendida num âmbito mais amplo que Para identificar o antiburocratismo na
abrange toda a sociedade contemporâ- cultura portuguesa, interessa apurar de
nea: organização político-administrati- que forma estes movimentos e linhas de
va, partidária, empresarial, eclesiástica, reflexão se manifestaram em Portugal.
militar, etc. A burocracia pode então ser As conceções liberais estavam, nesta
entendida num sentido positivo, como a matéria, fortemente marcadas por duas
expressão de uma administração racional linhas. Em primeiro lugar, a oposição à
e garantística, no seio das sociedades de- forma de atuação do Estado do Antigo
mocráticas. Regime e à sua pesada estrutura buro-
O modelo weberiano foi ponto de par- crática, associada, em especial, ao Esta-
tida para vários autores que, ao longo da do absoluto “sem direito administrativo”
primeira metade do séc. xx, pensaram a (GARCIA, 1994, 291), i.e., ao “Estado
burocracia, quer desenvolvendo critica- de polícia”, entendida esta última como
mente este modelo, quer afastando-se ou “toda a ação do Príncipe dirigida a pro-
rejeitando o mesmo. mover o bem-estar e a comodidade dos
A burocracia tornou-se um tema po- vassalos”, semelhante à posterior “admi-
pular no final do séc. xix e no início do nistração pública” (CAETANO, 1973,
séc. xx, abordado logo na época de We- 385). Em segundo, a defesa da liberdade
ber, e.g., por Robert Michels (autor da lei individual, em confronto com o Estado,
de bronze da oligarquia, em 1876) e Gae- exigindo uma regulação da atividade des-
tano Mosca (Elementi di Scienza Politica, te último, de forma a impedir os abusos,
1896 – traduzido e divulgado como The como se comprova, e.g., em Almeida Gar-
Ruling Classes, que identificava a burocra- rett e em Alexandre Herculano, e nas dis-
cia como a classe dirigente e referia mes- cussões em Cortes.
mo um “absolutismo burocrático”). Um A própria centralização e uniformiza-
pouco mais tarde, nos EUA, destacaram- ção política e administrativa – adversas

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238 AntiburocrAtismo

a corpos intermédios e a uma sociedade Também em obras de diferente na-


estamental – tiveram como consequên- tureza, de, entre outros, Júlio Dinis (A
cia o crescimento exponencial dos ser- Morgadinha dos Canaviais, 1868) e Eça de
viços e funcionários públicos, que tam- Queirós (em especial em O Conde d’Abra-
bém encontra razões na distribuição de nhos, só publicado em 1925), se encon-
benesses, “para suscitar o empenhamen- tra a crítica mordaz às relações pouco
to partidário dos beneficiados” (HESPA- transparentes entre o poder político e a
NHA, 2004, 306). máquina burocrática. Eça e Ramalho Or-
As críticas ao centralismo, por Alexan- tigão, em As Farpas, denunciavam pratica-
dre Herculano (HERCULANO, 1873, 228 mente em todos os números as ligações
e 234-237, onde refere a “imunidade do corruptas entre política e administração,
funcionário criminoso”, a omnipresença os cargos que se prometiam, os “favore-
do governo central, “do berço à cova”), cimentos”, a desorganização completa do
Henriques Nogueira (NOGUEIRA, 1851, país, o “funcionalismo” crescente (só no
213-215, que referia a “tirania por vezes primeiro ano de publicação, 1871, apare-
ridícula e injustificada”, “a centralização cem referências em maio, junho, julho,
absurda, monstruosa”, a “profusão de hie- setembro, outubro e novembro).
rarquia”), e Teófilo Braga (BRAGA, 1913, As críticas são muito visíveis nos textos
181-184, atacando a “empregomania” e dos autores socialistas (em geral, mais re-
o “funcionarismo”), conviviam com uma formistas do que revolucionários e mais
estrutura administrativa ainda frágil, em proudhonianos do que marxistas), como
especial no interior rural e nas províncias Oliveira Martins (1873, para além do já
ultramarinas. referido, onde utilizava o termo “banco-
Por outro lado, a crítica às estruturas lo- -burocracia”), Antero de Quental, Ante-
cais (muitas vezes um obstáculo à eficácia ro e José Fontana (em vários números de
da administração central), defendendo O Pensamento Social, 1872-1873), defenden-
uma reforma administrativa “em nome do, como remédio, um movimento revo-
da eficácia e da economia de recursos” lucionário-reformista, que visaria também
(BARRETO, 1984, 197), utilizava uma vi- as estruturas administrativo-burocráticas.
são negativa da burocracia e do burocra- Este sentimento antiburocrático acen-
tismo para fomentar uma forte concen- tuou-se, como atestam as fontes referidas,
tração jurídico-política, com importância na segunda metade do séc. xix, na época
crescente da administração central e en- normalmente designada como Regenera-
fraquecimento do anterior municipalis- ção (1851/2-1890), que correspondeu à
mo, característica constante no direito e “consolidação do aparelho burocrático”
no poder político português anterior ao (ALMEIDA, 1995, 9), e não mais retroce-
liberalismo (sem olvidar, contudo, algu- deria durante a crise que levou à Implan-
ma decadência no período moderno em tação da República e, através do séc. xx,
comparação com o medieval). até aos nossos dias.
A ineficiência, o compadrio e a “em- Após a Revolução de 1820, em 1836,
pregomania” surgiam bem claros como instituiu-se o ensino da disciplina inti-
características da administração portu- tulada “Direito público português pela
guesa oitocentista, apontados a dedo constituição, direito administrativo pá-
por diversos autores: António Serpa Pi- trio, princípios de política e direito dos
mentel, Augusto Fuschini; Oliveira Mar- tratados de Portugal com outros povos”,
tins (1895). mas apenas em 1853 seria criada uma

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AntiburocrAtismo 239

disciplina autónoma, ensinando segundo ção (dec. de 6 de novembro de 1835 e


o modelo e os manuais franceses (com- Código Administrativo de 1836; Código
plementados por apontamentos), e, pos- Administrativo de 1878), que correspon-
teriormente, as lições e os manuais dos deu à vontade e à oportunidade política
lentes portugueses Justino António de orientadora da sua elaboração, tendo a
Freitas (desde 1857) e José Frederico La- instabilidade não “uma causa jurídica – da
ranjo (publicado em 1888), Guimarães natureza das normas do direito adminis-
Pedrosa (1904-1908), Alberto da Cunha trativo”, mas antes “causas históricas e polí-
da Rocha Saraiva (1912-1914), Ludgero ticas peculiares a Portugal” (CAETANO,
Neves (1916), Fezas Vital, Magalhães Co- 1935, 83).
laço (1924) e Marcelo Caetano (1936), Porém, os planos descentralizadores
acompanhado por alguma produção nunca foram implementados e a progres-
doutrinária, nomeadamente, durante o siva centralização estatal tornou-se cons-
período republicano, sobre o funcionalis- tante até à Implantação da República,
mo público – Fezas Vital (A Situação dos que a manteve (apesar de ter repristinado
Funcionários, 1914) e Martinho Nobre de parcialmente o Código Administrativo de
Melo (O Estado dos Funcionários, 1915) –, 1878), reforçando e reformando o apare-
entre outros temas. lho burocrático, fazendo crescer o núme-
No plano jurídico-administrativo, exis- ro de organismos e funcionários públicos
tiu, durante o séc. xix, um movimento e aumentando a especialização político-
pendular de centralização (dec. n.º 23 -administrativa, processo que se verificou
de Mouzinho da Silveira, de 16 de maio igualmente em território colonial.
de 1832; Códigos Administrativos de Aliás, nas vésperas da república, Gui-
1842, de 1886 e de 1895-1896, e diversa marães Pedrosa expunha um sistema
legislação extravagante) e descentraliza- de “serviços administrativos” complexo

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240 AntiburocrAtismo

e compatível com um Estado em que a garantido por um corpo burocrático fiel,


“ação social” tinha cada vez maior im- disciplinado e em sintonia com os valores
portância (PEDROSA, 1908, I, 92), e do regime (GRAHAM, 1985, 905-911).
seguindo um modelo centralizado e bu- O desenvolvimento da burocracia e do
rocrático, uma vez que “nas hierarquias burocratismo teve também correspon-
administrativas tudo se vai prender, em dência no desenvolvimento do direito
última análise, ao elemento central do administrativo. O seu principal estudioso
estado” (Id., 1909, II, 9-10). e construtor em Portugal definia, logo
A centralização e o reforço da buro- em 1937, a “administração burocrática”
cratização tenderam a acentuar-se ain- de forma integralmente neutra: “a que é
da mais com o Estado Novo e o Código exercida por agentes que procedem in-
Administrativo de 1936/1940 (corres- dividualmente […] é a que decorre nas
pondendo a primeira data ao projeto e a repartições ou secretarias” (CAETANO,
segunda à entrada em vigor do Código). 1973, 117). A complexidade estava bem
Foram várias as fontes do corporativismo espelhada no Manual de Direito Adminis-
português que influenciaram também as trativo de 1937 e acentuou-se num cres-
conceções que enformavam as matérias cendo imparável, como demonstrava, nas
político-administrativas e o tratamento vésperas de Abril de 1974, o mesmo Ma-
que lhes era conferido pelo direito, bem nual agora com edição de 1973.
como a criação de uma burocracia rígida Em Portugal, após a Revolução de 25
e fortemente hierarquizada. de abril de 1974, fixou-se como priorida-
O corporativismo apresentava-se como de político-administrativa a autonomia
alternativa, quer ao liberalismo económi- regional, a autonomia autárquica e a re-
co, quer às correntes marxistas. Tendo gionalização (consagradas na Constitui-
como base teórica o associativismo profis- ção da República Portuguesa de 1976,
sional e a valorização dos corpos intermé- nos arts. 227.ºss., 237.ºss. e 256.ºss.), que
dios, pretendia uma autodireção da eco- não representavam necessariamente um
nomia, mas, na verdade, nunca foi esse o combate ao burocratismo e permitiam a
modelo português, que construiu um Es- criação de novas e mais vastas estruturas.
tado claramente intervencionista, centra- A Constituição de 1976 também consa-
lizado, baseado na unidade da nação e na grava, na sua versão original, como prin-
procura ou imposição de paz social, Esta- cípios para determinar a estrutura da ad-
do ancorado numa administração central ministração pública a proximidade das
que tendia “a chamar a si a realização to- populações, a participação dos interessa-
tal dos fins coletivos”, recusando-se “a ver, dos e o “evitar a burocratização” (art. 267.º,
fora do seu corpo político, outras entida- n.º 1), devendo a lei estabelecer formas de
des que independentemente dos órgãos descentralização e desconcentração, sem
superiores da organização centralizada descurar a “eficácia e unidade de ação e
exerçam uma parcela de poder” (CAE- dos poderes de direção e superintendência
TANO, 1935, 83). do Governo” (art. 267.º, n.º 2) e assegurar
O corporativismo não se formou a a racionalização de meios e a participação
partir da livre iniciativa de associação, dos cidadãos (art. 267.º, n.º 3).
mas de uma forte criação (e controlo) Salienta-se que estes princípios – no-
estatal, que resultou no “corporativismo meadamente a referência ao “evitar a
de Estado”, o que teve consequências no burocratização” – se mantiveram consa-
acentuar do burocratismo autoritário, grados após as revisões constitucionais de

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AntiburocrAtismo 241

1982, de 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e A consciência de uma excessiva bu-
2005, sempre no art. 267.º, alterado em rocratização funcional e procedimental
1982 e 1997, mas sem pôr em causa os (que podemos caracterizar como um
princípios referidos. Aliás, o Código do antiburocratismo social) e de uma maior
Procedimento Administrativo (dec.-lei maturidade democrática criaram na so-
n.º 442/91, de 15 de novembro) veio ciedade e nos grupos político-partidários
também reiterar os mesmos e, no seu e governativos uma mentalidade propícia
art. 10.º (Princípio da desburocratização à desburocratização e simplificação admi-
e da eficiência), afirma-se: “A Administra- nistrativa, o que se traduziu na criação de
ção Pública deve ser estruturada de modo comissões específicas (Comissão para a
a aproximar os serviços das populações e Qualidade e Racionalização da Adminis-
de forma não burocratizada, a fim de asse- tração Pública, 1992; Comissão de Acesso
gurar a celeridade, a economia e a eficiên- aos Documentos Administrativos, 1993)
cia das suas decisões” (no novo Código do e na elaboração de estudos e inquéritos
Procedimento Administrativo, aprovado (e.g.: Renovar a Administração: Um Desafio,
pelo dec.-lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, e Uma Aposta: Relatório da Comissão para a
atualmente em vigor, o princípio da “boa Qualidade e Racionalização da Administra-
administração” consta do art. 5.º). ção Pública, 1993-1994; Lei do Acesso aos Do-
Porém, estes princípios não acarretaram cumentos Administrativos: Avaliação da Sua
uma simplificação administrativa. Perma- Execução pela Administração Pública, 2000).
neceram e até se agravaram a dispersão le- A face mais recente no combate à bu-
gislativa, a falta de uniformização e a com- rocracia através da simplificação adminis-
plexidade de procedimentos e o excesso trativa e legislativa concretizou-se no pro-
de burocratismo no acesso aos serviços grama denominado Simplex, criado em
públicos por cidadãos e empresas, embora 2006, que visa “alterar processos e sim-
em muitos casos com um deslocamento, plificar ou eliminar procedimentos cons-
a nível local, dos serviços governamentais tantes das leis e regulamentos em vigor,
para os serviços autárquicos. com base numa avaliação negativa sobre
Logo em 1978, o mais célebre discípulo os seus impactos ou a sua pertinência”
de Marcelo Caetano, Freitas do Amaral, e assume-se como “o resultado de uma
comparava a administração pública du- consciência, por parte da própria Admi-
rante o Estado Novo, que fora “politica- nistração, da desadequação da oferta e
mente condicionante e economicamente da consequente desconfiança generaliza-
condicionada”, com a mesma administra- da em relação às instituições e aos modos
ção pública após 1974, que era “politica- de fazer gestão pública, conotados com
mente condicionada e economicamente burocracia, desperdício, lentidão e falta
condicionante”, com um reforço claro das de transparência” (“O que é o Simplex?”,
garantias do cidadão “contra os comporta- Simplex, s.d.).
mentos ilegais ou injustos da Administra- Outros programas, mais específicos, in-
ção” (AMARAL, 1978, 120), característica, tegram-se também no processo de desbu-
aliás, associada ao modelo de Estado social, rocratização: Empresa na Hora, programa
consagrando “instrumentos de salvaguarda a funcionar desde 2005; Legislar Melhor
da coincidência do poder com o direito”, (aprovado pela resolução do Conselho
onde também se enquadram as “normas de Ministros n.º 63/2006, de 18 de maio,
para a ação administrativa aberta à partici- onde se inclui, e.g., a publicação eletrónica
pação dos cidadãos” (GARCIA, 1994, 677). do Diário da República, com valor oficial e

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242 AntiburocrAtismo

a supressão da edição em papel); Simplex Lisboa, Universidade Católica, 1994; GAR-


Exportações, programa de 2011. RETT, Almeida, O Dia Vinte e Quatro d’Agosto,
Apesar de todas as reformas que visam Lisboa, Tip. Rollandiana, 1821; GIRGLIOLI,
a desburocratização, a simplificação e a Paolo, “Burocracia”, in BOBBIO, Norberto et
agilização na atividade administrativa em al., Dicionário de Política, 12.ª ed., Brasília, Edi-
tora Universidade de Brasília, 2004, pp. 124-
Portugal, estudos muito recentes conti-
-130; GRAHAM, Lawrence S., “Administra-
nuam a comprovar o peso excessivo da
ção pública central e local: continuidade e
burocracia: o relatório Paying Taxes 2013, mudança”, Análise Social, vol. xxi, n.os 87-89,
um estudo conjunto do Banco Mundial, 1985, pp. 903-924; GRIMM, Friedrich Mel-
do International Finance Corporation chior, Correspondance Littéraire, Philosophique et
e da consultora PwC Portugal, colocou Critique de Grimm et de Diderot depuis 1753 jusqu’
Portugal no primeiro lugar do ranking da en 1790, t. iv, Paris, Chez Furne et Ladrange,
burocracia fiscal da zona euro. 1829; HEGEL, Principes de la Philosophie du
Droit, Paris, Gallimard, 1940; HERCULANO,
Alexandre, Opúsculos, vol. ii, Lisboa, Viúva Ber-
trand, 1873; HESPANHA, António Manuel,
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Pedro Gines- Guiando a Mão Invisível. Direitos, Estado e Lei no
tal Tavares de, A Construção do Estado Liberal: Liberalismo Monárquico Português, Coimbra, Al-
Elite Política e Burocracia na “Regeneração” (1851- medina, 2004; MARTINS, Joaquim Pedro de
-1890), 2 vols., Dissertação de Doutora- Oliveira, Portugal e o Socialismo, Lisboa, Impren-
mento em Sociologia Política apresentada à sa de Sousa Neves, 1873; Id, Portugal Contem-
Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, texto porâneo, 3.ª ed., Lisboa, Livraria de António
policopiado, 1995; AMARAL, Diogo Freitas Maria Pereira, 1895; MARX, Karl, O 18 de Bru-
do, Direito Administrativo e Ciência da Administra- mário de Louis Bonaparte, Lisboa, Avante, 1982;
ção, Lisboa,  Universidade Católica Portugue- Id., Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Lis-
sa, 1978; BARRETO, António, “Estado central boa, Presença, 1983; NOGUEIRA, José Félix
e descentralização: antecedentes e evolução, Henriques, Estudos sobre a Reforma em Portugal,
1974-84”, Análise Social, vol.  xx, n.os  81-82, Lisboa, Typographia Social, 1851; PEDROSA,
1984, pp. 191-218; BENCINI, Fabrizio, “Bu- António Lopes Guimarães, Curso de Ciência da
rocratização”, in BOBBIO, Norberto et al., Administração e Direito Administrativo, 2 vols.,
Dicionário de Política, 12.ª ed., Brasília, Editora Coimbra, Instituto Universitário de Coimbra,
Universidade de Brasília, 2004, pp. 130-136; 1908-09; PIMENTEL, António Serpa, Questões
BRAGA, Teófilo, Soluções Positivas da Política de Política Positiva, Lisboa, Imprensa da Univer-
Portugueza, vol. II, Porto, Livraria Chardron de sidade, 1881; QUENTAL, Antero de, Prosas,
Lello e Irmão, 1913; CAETANO, Marcello, “A vol. ii, Coimbra, s.n., 1926; RIGGS, Fred W.,
codificação administrativa em Portugal (um “Introduction: évolution sémantique du terme
século de experiência: 1836-1935”, Revista
‘bureaucratie’”, Revue Internationale des Sciences
da Faculdade de Direito, vol. ii, 1935, sep.; Id.,
Sociales, vol. xxxi, n.º 4, 1979, pp. 605-627;
Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., Lis-
TROTSKY, Léon, Problems of Life, London, Me-
boa, Emprensa Universidade Editora, 1973;
thuen & Company, Ltd., 1924; Id., A Revolução
CATROGA, Fernando, “Natureza e história na
fundamentação do municipalismo. Da revo- Traída, Lisboa, Antídoto, 1977; TWISS, Tho-
lução liberal ao Estado Novo (uma síntese)”, mas Marshall, Trotsky and the Problem of Soviet
in SILVA, F. Ribeiro da et al. (orgs.), Estudos Burocracy, Dissertação de Doutoramento em
em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos, Ciência Política apresentada à Universidade
Porto, Faculdade de Letras da Universidade de Pittsburgh, Pittsburg, texto policopiado,
do Porto, 2004, pp. 409-420; FUSCHINI, Au- 2009; digital: “O que é o Simplex?”, Simplex,
gusto, O Presente e o Futuro de Portugal, Lisboa, s.d.: http://historico.simplex.gov.pt/simplex/
s.n., 1899; GARCIA, Maria da Glória Ferreira simplex.html (acedido a 7 fev. 2017).
Pinto Dias, Da Justiça Administrativa em Portugal, Margarida Seixas

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AnticAbrAlismo 243

Anticabralismo par dos seus reconhecidos méritos, so-


bressaem as razões do seu afastamento
violento do poder e as fortes críticas que
lhe têm sido feitas. O cabralismo não se
compreende sem o anticabralismo e am-
bos explicam, em grande parte, os anos
de Oitocentos em Portugal.

A ntónio Bernardo da Costa Cabral


(Fornos de Algodres, 1803-Porto,
1889), mais conhecido como Costa Ca-
Que tempo foi esse? O séc. xix portu-
guês começou com as invasões francesas,
a ida do Rei D. João VI para o Brasil e a
bral, foi um político português do se- administração inglesa. O país viveu tem-
gundo quartel do séc. xix. O Dicionário pos de grande instabilidade e de descren-
da Língua Portuguesa Contemporânea da ça no sistema político e nos políticos.
Academia das Ciências de Lisboa define, Em 1821, após 13 anos no Brasil, o Rei
com especial detalhe, os termos “cabra- foi forçado a regressar à metrópole, mas
lismo” e “cabralista”, o que comprova a não trouxe consigo a tão desejada estabi-
importância de Costa Cabral na política lidade política, nem a paz social. A Cons-
e sociedade portuguesas de Oitocentos. tituição liberal de 1822, jurada por
Segundo o referido dicionário, “cabra- D. João VI, durou apenas cerca de ano
lismo” é “o sistema político que vigorou e meio, até à Vila-Francada. Entrou em
em Portugal, em meados do séc. xix, du- vigor, de seguida, a chamada Constitui-
rante o ministério de Costa Cabral, mar- ção histórica, logo substituída, em 1826,
quês de Tomar”; são os “métodos políti- ano da morte de D. João VI, pela Carta
cos utilizados por Costa Cabral durante Constitucional, outorgada por D.  Pe-
o seu governo”; é a “designação do pe- dro  IV, que procurou um compromisso
ríodo em que Costa Cabral governou”.
Já “cabralista”, como adjetivo, significa o António Bernardo da Costa Cabral (1803-1889).
“que é relativo ao partido, à orientação
política, ou à época de Costa Cabral; o
que é partidário do cabralismo”, e, como
substantivo, significa “pessoa partidária
do regime político de Costa Cabral; pes-
soa sectária do cabralismo”. É inquestio-
nável que falamos de um político fora
do comum. Oliveira Martins, que com
ele manteve profundas divergências po-
líticas, considerou-o outro Pombal, pelo
seu trabalho de construção de um novo
edifício político-administrativo para o
país. Fundamentalmente, Costa Cabral
destacou-se como um político que sou-
be ler os acontecimentos do seu tempo
e agir com enorme eficácia na transfor-
mação das estruturas políticas e sociais
portuguesas. Daí o interesse no estudo
da sua personalidade e obra, em que, a

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244 AnticAbrAlismo

entre fações opostas, mas que dividiu, como ficou claro num discurso que pro-
mais do que uniu, os Portugueses. Vigo- feriu a 10 de agosto desse ano na Câ-
rou, de novo, a Constituição histórica, mara dos Deputados, Costa Cabral não
com a escolha de D. Miguel, como Rei valorizava a coerência na política. Disse
absoluto, pelas Cortes Gerais de 1828, então as seguintes palavras, que ficaram
até que os setembristas, da ala esquerda célebres: “Quem há aí que possa dizer-se
do regime liberal, retomaram, em 1838, sempre coerente em política desde 1820
a Constituição de 1822, com algumas al- até hoje? Levante o dedo para o ar que
terações. O país real, em grande parte eu vou fazer-lhe a devida anatomia”.
afeto ao exilado D. Miguel e capaz de se A 10 de fevereiro de 1842, D. Maria II
deixar incendiar por intuitos irracionais, restaurou a Carta Constitucional de
teimava em querer a paz, que se afigura- 1826, instigada por um golpe de génio
va improvável ou mesmo impossível. As de Cabral, que, a 27 de janeiro desse
insubordinações e as revoltas tornaram- ano, constituiu e liderou no Porto uma
se frequentes e com grande impacto po- Junta de Governo, com o intuito subver-
lítico. A Constituição setembrista – não sivo de substituir o Governo em funções.
fugindo à regra – durou pouco tempo. Como esperado, a manobra suscitou de
Foi neste contexto político e social imediato apoios de peso a Cabral, com o
que Costa Cabral apareceu, logo se fa- duque da Terceira a ir propositadamen-
zendo notar pela sua capacidade de in- te ao Porto para lhe garantir o seu apoio,
tervenção política, que impressionou a o mesmo tendo feito outros políticos in-
opinião pública. Enquanto administra- fluentes da época. Em Lisboa, os antica-
dor de Lisboa, nomeado por um Gover- bralistas protestaram contra a jogada po-
no setembrista, Costa Cabral destacou-se lítica de Cabral. No jogo das aparências
na repressão dos movimentos contesta- que é a política, D. Maria II procurou
tários da ação do Governo. Nos inícios ser salomónica na gestão dos interesses
de 1842, foi nomeado ministro dos Ne- antagónicos que estavam em causa, mas,
gócios Eclesiásticos e da Justiça de um na verdade, Costa Cabral emergiu, nesse
Governo ordeiro, i.e., de um Governo momento, como o novo chefe político
moderado, centrista, que pretendia con- da nação, com o apoio da Monarca. For-
ciliar o cartismo com o setembrismo. Aí malmente, a Rainha não nomeou Costa
se destacou, mais uma vez, na defesa da Cabral como líder do Governo, mas este
ordem há muito ansiada pelo povo. Era passou a ser efetivamente quem manda-
reconhecidamente um grande orador, va e era reconhecido como tal.
mas sentia-se, sobretudo, como um ho- Logo no dia seguinte à restauração da
mem de governo, e tornou-se grão-mes- Carta, o cartista moderado Luís Mouzi-
tre da maçonaria, a qual haveria de lhe nho de Albuquerque concedeu pode-
ser muito útil. Envolveu-se na política res constituintes aos deputados. Porém,
até ao extremo das suas forças e da sua no dia 5 de março, o novo ministro do
inteligência, com um plano claro, prepa- Reino (Cabral) fez aprovar um decreto
rado para enfrentar todas as dificulda- que retirou capacidade constituinte aos
des que lhe surgissem. parlamentares. Apostado em garantir, a
A 24 de fevereiro de 1842, Costa Ca- todo o custo, a ordem financeira e poli-
bral assumiu as funções de ministro do cial que o país exigia, Costa Cabral, mui-
Reino de um Governo cartista. Os car- to hábil politicamente, procurou e obte-
tistas opunham-se aos setembristas, mas, ve os meios de que precisava para tal.

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AnticAbrAlismo 245

política do ministro do Reino. Por ação


de Cabral, o Governo passou a estar no
centro do sistema político português,
em substituição do Parlamento. Com
plenos poderes, fruto de um trabalho
político consistente e reiterado, e apoia-
do na ação concertada dos seus muitos
seguidores, Costa Cabral cumpriu um
ambicioso plano de modernização e
centralização do Estado e da administra-
ção, tendo as suas reformas perdurado
até ao séc. xx.
Importantes jornais como A Revolução
de Setembro, de Rodrigues Sampaio, Portu-
gal Velho, afeto aos miguelistas, e O  Pa-
triota, de Leonel Tavares de Carvalho,
foram firmes na oposição a Cabral. A 15
de janeiro de 1845, quando se avizinha-
vam novas eleições gerais, o jornal Coali-
Rainha D. Maria II (1819-1853). zão, constituído como órgão da aliança
das oposições a Cabral, acusou o Go-
As primeiras eleições do cabralismo verno de tirania e apelou a uma vota-
foram marcadas para 5 e 19 de junho ção massiva contra Cabral. A 3 e 17 de
de 1842, nos termos do disposto no de- agosto de 1845, ocorreram as segundas
creto de 5 de março desse ano, a que a eleições do cabralismo, nos termos pre-
oposição chamou uma coisa monstruo- vistos no decreto de 28 de abril de 1845,
sa, por estabelecer um sistema de sufrá- com nova vitória do partido do Governo.
gio indireto e censitário, com círculos A oposição constituída por cartistas anti-
provinciais. A oposição, constituída por cabralistas e setembristas (os miguelistas
setembristas, cartistas anticabralistas e apelaram desta vez à abstenção), concor-
miguelistas, preparou a refrega eleito- rendo com a designação de Comissão
ral. A 30 de março de 1842, constituiu- Geral Eleitoral do Reino, elegeu apenas
se uma ampla coligação de setembristas 6 deputados em 142, todos no Alentejo.
e miguelistas. A 3 de junho desse ano, Apesar da inequívoca vitória nas ur-
foi publicado um manifesto da comissão nas do partido cabralista e da recondu-
central eleitoral do partido cartista con- ção de Costa Cabral como ministro do
tra Costa Cabral. Apesar de muitos esfor- Reino e efetivo líder político da nação,
ços, os anticabralistas elegeram apenas nos primeiros meses de 1846, a sua sorte
10 deputados em 142. mudou. A 17 de maio desse ano, D. Ma-
Habilmente, Costa Cabral garantiu o ria  II, que, na sequência das eleições,
apoio do Parlamento, o que permitiu ao premiara Costa Cabral, concedendo-lhe
seu Governo cumprir a primeira legisla- o título de conde de Tomar, foi forçada
tura após a Revolução Liberal. O P.e La- a demiti-lo por causa de uma história pa-
cerda, filho de maçom e com muitos tética, mas reveladora do elevado estado
amigos na referida ordem secreta, des- de degradação a que chegou a política
tacou-se como empolgado apoiante da portuguesa na altura. A história conta-se

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246 AnticAbrAlismo

em poucas palavras. Os adversários do


ministro aproveitaram uma revolta po-
pular no Norte do país – que ficou co-
nhecida como Maria da Fonte –, na qual
se bramia contra a proibição de enterrar
os mortos nas igrejas e a obrigação de o
fazer em cemitérios. A decisão do Gover-
no não era totalmente nova, porque ti-
nham existido outros decretos sobre essa
matéria. Porém, contra ela juntaram-se
miguelistas e setembristas, com o único
objetivo de atingir politicamente Cabral. Tropas de António Bernardo da Costa Cabral,
açoitando um popular durante a Patuleia.
E a verdade é que a revolta popular e o
aproveitamento político que dela fize-
ram os anticabralistas foi tão grande que da Rainha. Logo nos primeiros meses
o ministro caiu. da guerra, Costa Cabral, estando exila-
Caiu Cabral, mas não acabou o cabra- do, foi nomeado pela Soberana ministro
lismo. A 20 de maio de 1846, ainda to- plenipotenciário e enviado extraordiná-
mou posse um Governo chefiado pelo rio em Madrid, o que lhe permitiu pre-
duque de Palmela, um feroz adversário parar o seu regresso à política ativa.
de Cabral, com destacados anticabralis- A Guerra Civil foi cruel, registando-
tas, que obrigou Costa Cabral a exilar-se -se milhares de mortos, entre os quais
em França. Mas o Governo de Palmela Mouzinho de Albuquerque, e a paz não
foi sol de pouca dura. Com o apoio da foi duradoura. Aparentemente estavam
Rainha, o duque de Saldanha, um cabra- criadas as condições para uma reprise do
lista, levou a cabo o chamado golpe da político fornense, mas a história não se
emboscada – que, segundo várias fontes, repetiria. Costa Cabral foi grão-mestre
foi organizado pelo próprio Cabral –, a do Grande Oriente Lusitano (GOL),
que se seguiu, a 6 de outubro de 1846, eleito quando já era cartista, até ter dei-
um Governo de cabralistas sem Cabral. xado o poder, em 1846. Nessa medida,
Reagiram o conde das Antas e Passos a maçonaria, ainda que num contexto
Manuel, históricos adversários do cabra- de conflitos permanentes, muitas vezes
lismo, com uma sublevação no Porto. duros e violentos, entre diferentes lojas
O país entrou em guerra civil (a Patu- e orientações, foi um esteio da sua ação
leia), que se prolongaria por ano e meio, política. Em 1847, Cabral reassumiria
sendo conhecidos como patuleias todos funções de liderança na maçonaria com
os que se opunham a Cabral e à Rainha, o intuito de preparar o seu regresso ao
fundamentalmente setembristas e mi- poder, o que veio a acontecer a 18 de
guelistas. O curso da guerra foi incerto junho de 1849, mais uma vez convidado
durante vários meses, mas, com a ajuda por D. Maria II e, pela primeira vez, para
de potências estrangeiras – França, In- ser o chefe do Governo. Sem surpresa,
glaterra e Espanha, sobretudo as duas Costa Cabral teve entre os cartistas al-
últimas – e no cenário de pacificação, guns dos seus maiores adversários, como
em grande parte ilusório, criado com a Rodrigo da Fonseca, que o próprio An-
assinatura da Convenção do Gramido, a tónio Bernardo derrotara nas eleições
29 de junho de 1847, ganhou o partido para grão-mestre do GOL em 1842, e

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AnticAbrAlismo 247

Francisco de Almeida Portugal. Teve política, que fora a chave do seu sucesso
também a oposição do Mar. Saldanha, no passado. Entre os novos opositores
seu antigo aliado. Concitou ainda a opo- do cabralismo estavam os que haveriam
sição da alta aristocracia e dos principais de pontificar na política portuguesa no
pares do reino, com o duque de Palme- terceiro quartel do séc. xix, que para o
la (a psicologia continuou a falar alto) efeito tiveram de derrotar definitivamen-
em destaque. Os intelectuais cartistas e te o marquês de Tomar, o novo título de
ordeiros, como Alexandre Herculano, Costa Cabral outorgado por D. Maria II.
Almeida Garrett e António de Oliveira Foi acesa a luta política no Parlamen-
Marreca, assim como os setembristas pa- to, o novo palco da ação política nacio-
tuleias, eram também anticabralistas. nal. O homem que colocara o Governo
A diferença em relação a tempos pas- no centro do sistema político português
sados é que quando Cabral regressou tornou-se um orador parlamentar vio-
ao poder, em 1849, a elite política por- lento. Cabral era então o único empeci-
tuguesa tinha-se renovado. Os setem- lho para que o sistema político mudasse,
bristas que em 1844 se revoltaram, em o que anunciava o fim do seu tempo.
Torres Novas, contra o Governo de Sal- Perante a incapacidade de o sistema
danha, foram os primeiros que em 1848 mudar por dentro, segundo as regras
se afirmaram republicanos. O país entra- democráticas, mudou pela força das ar-
ra numa nova fase política, que estava a mas. Chefiou o golpe contra Cabral, dito
criar os seus próprios protagonistas, di- regenerador, em homenagem ao autên-
ferentes e mais fortes do que os do passa- tico espírito liberal, nem mais nem me-
do, e defensores de novas ideias. Cabral nos do que um velho aliado da Rainha e
não foi então capaz de controlar a classe do próprio Cabral, mas que agora estava

A Revolta da Maria da Fonte. Imagem de A Ilustração, vol. ii, 1846, p. 71.

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248 AnticAbrAlismo

com ele inteiramente incompatibiliza- tisse ordem e segurança às populações.


do: o duque de Saldanha. A 1 de maio Para se manter no poder, Costa Ca-
de 1851, prevendo os resultados da revo- bral alimentou as pretensões dos seus
lução em marcha, o marquês de Tomar apoiantes criando uma Câmara dos Pa-
pediu a demissão à Rainha, sua maior res, vitalícios e hereditários, assim como
apoiante durante muitos anos. uma burocracia administrativa, apoiada
Com a saída de cena do fornense, ini- no Código Administrativo de 18 de mar-
ciou-se uma nova fase da política portu- ço de 1842, composta por 400 adminis-
guesa – a Regeneração – onde sobressaiu tradores de concelho, 4000 regedores e
Fontes Pereira de Melo. Costa Cabral cerca de 30.000 cabos de polícia. A este
retirou-se desiludido da política, à qual processo Oliveira Martins chamou, em
não voltou, apesar de instado para o tom crítico, comunismo burocrático.
efeito, não apenas pelos seus apoiantes De Costa Cabral disse ainda Oliveira
(agora poucos), mas por alguns dos seus Martins que, mais do que um homem,
maiores adversários, como Rodrigo da fora um sistema e um fantasma. O ódio
Fonseca e Rodrigues Sampaio, que, não dos seus adversários evidenciou o seu
obstante as diferenças de pensamento, valor e o medo que suscitava nos ou-
lhe reconheciam capacidade política. tros. Dada a força da sua personalida-
Que juízo podemos fazer da ação de de, Cabral dividiu o país ao meio, uma
Costa Cabral e do cabralismo na política situação típica em Portugal em tempos
portuguesa? Diz José Adelino Maltez que de crise. O seu fim político ocorreu,
o cabralismo se baseou em três elemen- precisamente, com a sua ascensão à pre-
tos: burocracia, riqueza e exército. Ca- sidência do Governo, quando as cliva-
bral promoveu a centralização e o poder gens na política portuguesa superaram
da oligarquia, o que levou Alexandre claramente as forças de organização do
Herculano a lamentar a exploração fácil regime cabralista.
da desmoralização das pessoas decorren- A política tem uma dimensão pessoal
te de sucessivas guerras, emigrações, hu- irrefutável, pelo que, em finais de 1849,
milhações e demagogias, e a criação de foram mais e, sobretudo, mais fortes os
uma cadeia de funcionalismo improduti- que odiavam Cabral do que os que o
vo, desviante da lei e corrupto. Com isso amavam. No seu regresso ao poder, Ca-
se desvirtuaram, ainda segundo Hercula- bral usou a fórmula política com que
no, os valores da Revolução Liberal que tivera sucesso no passado, baseada no
muito tinham custado a conquistar. Em apoio da maçonaria e de um partido (o
profundo desacordo com Cabral, Her- centro cartista), assim como numa ação
culano inspirou o triunfante movimento governativa rápida e eficaz. A maçonaria
regenerador. promoveu os seus sucessos durante anos
Num ponto os críticos de Cabral estão a fio, mas não impediu a sua queda. Ca-
de acordo: o estadista alfornense procu- bral caiu num momento histórico em
rou recuperar a autoestima nacional e que as instituições políticas portuguesas
construiu um novo sistema político, à estavam muito fragilizadas e em que as
sua imagem e semelhança. Não preten- fações políticas existentes tinham perdi-
deu instaurar uma ditadura feroz, como do qualquer capacidade de entendimen-
foi acusado pelos seus detratores, mas to. O poder estava nas mãos das maço-
um governo autoritário que fosse capaz narias, que se odiavam, num autofágico
de dominar o Parlamento e que garan- processo de destruição institucional. Na

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AnticAbrAlismo 249

primeira fase do exercício do poder por Bibliog.: BONIFÁCIO, Maria de Fátima,


Costa Cabral, assistiu-se, como observa- Estudos sobre o Liberalismo Português, Lisboa,
ria José Adelino Maltez, a uma ditadura Estampa, 1991; Id., História da Guerra Civil da
Patuleia, 1846-1847, Lisboa, Estampa, 1993;
do ministro do Reino, exercida com o
Id., O Século XIX Português, Lisboa, Imprensa
apoio da maçonaria, no atavismo portu-
de Ciências Sociais, 2002; Id., A Segunda As-
guês de subversão a partir do aparelho censão e Queda de Costa Cabral (1847-1851),
de Estado. Ora, foi esse mesmo atavismo Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002;
subversivo no interior do Estado que le- Id., D. Maria II (1819-1853), Lisboa, Círculo
vou à queda e substituição de Cabral por de Leitores, 2005; CARVALHO, Joaquim Bar-
outros políticos que, embora odiando-o, radas de, As Ideias Políticas e Sociais de Alexandre
haveriam de perpetuar a sua obra. Herculano, 2.ª ed., Lisboa, Seara Nova, 1971;
MALTEZ, José Adelino, Tradição e Revolução:
Uma nota final que diz muito sobre o
Uma Biografia do Portugal Político do Século XIX
que foram os tempos de Cabral como lí- ao XXI, 2 vols., Lisboa, Tribuna da História,
der político: pela primeira vez na história 2004-05; Id., A Influência da Maçonaria no Pen-
da política portuguesa, o termo “anti” foi samento Jurídico-Político do Portugal Contempo-
usado relativamente a uma pessoa. Com râneo, Lisboa, Grémio Lusitano, 2005; Id.,
efeito, entre os adversários de Costa Ca- Abecedário de Teoria Política. Ideias e Autores dos
bral, encontramos quem expressamente Séculos XIX e XX, pela Santa Liberdade I, Lisboa,
Instituto Superior de Ciências Sociais e Polí-
se tenha afirmado “anticabralista”, o que
ticas, 2014; Id., Biografia do Pensamento Políti-
só mostra a grandeza política do visado co. Obras e Cronobibliografias. Séculos XIX e XX,
na crítica. Depois de Cabral, outros po- pela Santa Liberdade II, Lisboa, Instituto Su-
líticos portugueses, como Fontes Pereira perior de Ciências Sociais e Políticas, 2014;
de Melo, Salazar e Cavaco Silva, em dife- MARTINS, J. P. Oliveira, História de Portugal,
rentes contextos históricos e de diferen- 3.ª  ed., 2 vols., Lisboa, Bertrand, 1882;
tes maneiras mas em situações de mani- Id., Portugal Contemporâneo, 3.ª ed., 2 vols.,
festa continuidade cultural, suscitaram Lisboa, Livraria de Antonio Maria Pereira,
1895; SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Hercula-
uma oposição semelhante à que teve o
no e a Consciência do Liberalismo Português, Ama-
alfornense, por reunirem as mesmas ca- dora, Bertrand, 1977.
racterísticas psicológicas e denotarem
João Relvão Caetano
traços semelhantes de temperamento
no modo de fazer política. Entre essas
características, são de destacar o desen-
volvimento de lideranças pessoais fortes
e carismáticas e a aposta na construção
de sistemas políticos novos ou fruto de
novas interpretações da política, assim
como na construção de obras físicas, le-
gislativas e administrativas duradouras.
No que parece ser uma lei da política
portuguesa, todos esses políticos cons-
trutores privilegiaram a ação do Gover-
no sobre os demais órgãos de soberania,
apoiados numa rede de apoiantes fiéis,
com forte pendor político e tecnocráti-
co, capazes de garantir longos períodos
de exercício do poder.

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250 AnticAmilismo

Anticamilismo pautada pela turbulência causada por


focos de tensões e conflitos históricos.
Porque, em boa verdade, nenhum autor
conceituado se rende à evidência da sua
mortalidade literária, fazendo, pelo con-
trário, de tudo para sobreviver, como se
a sua ausência do campo literário fosse

S endo o campo literário marcado por


uma notória dinâmica em torno da
ocupação da sua centralidade, a remis-
impensável. A esse nível, o caso de Ca-
milo Castelo Branco afigura-se assaz pa-
radigmático.
são dos escritores com o invejável estatu- Entre finais da déc. de 50 até meados
to de centrais, com mais ou menos resis- dos anos 70 de Oitocentos, o novelista
tência, para as suas margens periféricas reinou nas letras lusas sem rivais à vista,
constitui uma consequência inevitável, ocupando uma posição nitidamente he-
como se percebe sem custo e como, de gemónica no campo literário português.
resto, ensinam as teorias sistémicas (em E isto porque Camilo, detentor de uma
especial os estudos de polissistemas de força romanesca sem igual e, dir-se-ia,
I. Even-Zohar e a sociologia do gosto em constante processo criativo, conse-
desenvolvida por Pierre Bourdieu). Nin- guiu a proeza de ser visto na qualidade
guém escapa, pois, à periferia. de “representante mais destacado do ro-
Não significa isto, como é claro, que mance romântico no campo da produ-
os relegados para a periferia não possam ção restrita, função e posição reforçadas
aspirar à imortalidade. Centralidade do pela consideração de duro polemista
campo literário e cânone não coincidem e sólido erudito que dele se afirmava”
forçosamente. Pense-se, e.g., na situação (FEIJÓ, 2011, 11).
de Eugène Sue, talvez o escritor mais Todavia, a situação altera-se substan-
lido e aclamado em França no tempo de cialmente a partir de meados dos anos
Balzac, enquanto este, refira-se, não dis- 70, altura em que o espaço literário se
punha da relevância maior que hoje, ao encontra, como diria J. Cândido Mar-
inverso de E. Sue, consensualmente lhe tins, “em plena ebulição transforma-
é reconhecida em sede canónica. dora” (MARTINS, 2003, 9). Apesar de
Ressalvando as numerosas situações Camilo não sair particularmente moles-
em que tal não acontece, não é ocioso tado com a perda de capital simbólico
afirmar, em todo o caso, que não rara- sofrida por António Feliciano de Casti-
mente o facto de um escritor ter ocupa- lho com a chamada Questão Coimbrã
do o apogeu do campo literário pode (1865-1866), a verdade é que, com o
ser suficiente para ficar retido pelo pan- advento em força da doutrina realista, a
teão canónico. Antes disso, porém, esse localização do novelista no seio da ins-
escritor não se furtará ao purgatório de tituição literária registou um inevitável
ver o seu merecimento estético-literário declínio. Declínio, como se compreen-
esgotar-se em favor de outros colegas de de sem dificuldade, enfatizado com o
ofício. Razão pela qual a história literá- desaparecimento de figuras de proa do
ria, com toda a evidência empírica, con- romantismo, entre as quais, em 1875,
siste num palco de lutas e não se isenta precisamente Castilho.
de vários poderes em conflito. Trata-se, Mas a morte de Castilho por si só nada
enfim, de uma linha de temporalidade significaria de verdadeiramente drástico

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AnticAmilismo 251

para Camilo, não estivesse ela situada no


contexto da irrupção da geração de 70
e do seu desígnio de conectar Portugal
com o progresso. Que é como quem diz,
o aparecimento da mudança, a bem do
derrube de velhos ídolos e da pulveriza-
ção de convenções anacrónicas, propul-
sionada por uma geração apostada na re-
novação da ficção literária (inspirada em
autores como G. Flaubert e E.  Zola) e,
confiante no triunfo irrestrito da ciência
e da razão, na divulgação das novas mati-
zes filosófico-científicas (nomeadamen-
te o idealismo hegeliano e o ideário po-
sitivista). E, neste contexto de conquista
de um domínio tão rápido quanto possí-
vel do campo literário, foi seguramente
muito significativa, senão até fundamen-
tal, a publicação de duas obras maiores
de Eça de Queirós, O Crime do Padre Ama-
ro (1876) e O Primo Basílio (1878). Desde Camilo Castelo Branco (1825-1890).
logo por terem sido textos decisivos na
mutação no campo literário conducen- Não sofre dúvida, por isso, que “o que
te à desvalorização da ficção de Camilo, era anunciado e enunciado programati-
já que foram romances que não apenas camente polo próprio Eça nas Conferên-
surpreenderam pela novidade de pro- cias do Casino [...] era realidade central
cedimentos de composição, ratificando sete anos mais tarde” (FEIJÓ, 2011, 13).
uma fratura estético-ideológica, como Tanto mais, como sublinha E. Feijó, que
também alcançaram assinalável êxito. quer O Primo Basílio quer O Crime do Pa-
O Primo Basílio, diz-nos E. Feijó, vendeu dre Amaro constituíram um deliberado
uns 3000 exemplares sem demora e ataque ao idealismo romântico preconi-
com direito a segunda edição no mes- zado por Camilo. Apesar de o novelista
mo ano, sendo que Camilo venderia, de Seide não ter sido explicitamente ri-
em média, algo como 1000 exemplares dicularizado nesses romances, a verdade
de cada uma das suas novelas. E é con- é que neles se parodiam os referentes li-
veniente, claro está, mencionar uma terários de Camilo. Tratou-se, certamen-
reveladora agenda de publicações até te, de escarnecer do sentimentalismo
finais da déc.  de70  –  o que diz bem do piegas colado à sua figura. Digamos que
movimento de reforma social e de pen- Eça não podia ser mais claro. E se a per-
samento levado a efeito nos sistemas de da de influência de Camilo no campo
formações discursivas da época – de um literário não se fica a dever em exclusivo
conjunto de revistas afetas às novas ten- à proeminência da escrita queirosiana
dências (Revista Ocidental, O Positivismo, (não é igualmente despiciendo o papel
Era Nova, Revistas de Estudos Livres). Dito de Júlio Dinis), o certo é que o grande
de outro modo: estamos em força cres- rival de Camilo nessa luta pela centrali-
cente numa atmosfera de anticamilismo. dade do campo foi, não se duvide, Eça.

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252 AnticAmilismo

Suficiente exemplo disso é a (quase) deste estimável escritor [Eça] senão


polémica desencadeada pelo conhe- coisas bonitas, e nunca lhas direi se-
cido prefácio do livro de contos Azule- não justas, segundo o meu sentimento
jos, do conde de Arnoso (Bernardo de de justiça. Não obstante, o Sr. Eça, e
Pindela), assinado por Eça. Como que alguns dos seus amigos, – que não po-
condensando a reação da nova escola dem festejá-lo a berros de entusiasmo
aos seus antecessores, Eça aproveita a sem incomodarem os vizinhos, e não o
ocasião para aí censurar os românticos, sabem acariciar sem escoucear os ou-
em especial o modo como, afinal, se tros – sempre que lhes vem a talho de
apropriavam, para não desaparecerem foice implicam comigo, assacando-me
por completo, dos códigos realistas. Ve- aleivosias. Aqui está uma do Sr. Eça, do
ja-se o que escreve a dado passo, perto General, que pelo feitio parece de cabo
do final: “Os discípulos do idealismo, de esquadra” (Id., Ibid., 148). A passa-
para não serem de todo esquecidos, gem a que alude Camilo, classificada
agacham-se melancolicamente e, com pelo novelista como “dura sova”, é pre-
lágrimas represas, besuntam-se tam- cisamente o excerto anteriormente ci-
bém de lodo! Sim, amigo, estes homens tado de Eça. E Camilo prossegue nestes
puros, vestidos de linho puro, que tão termos eloquentes: “Ora aquilo é comi-
indignadamente nos arguiram de cha- go. O Sr. Eça de Queirós desembestou
furdarmos num lameiro, vêm agora aquela frecha apontada ao meu peito
pé ante pé enlambuzar-se com a nossa inocente; mas alvejou com o seu olho
lama! Depois erguendo bem alto as ca- mais míope, ou sacrificou a verdade a
pas dos seus livros, onde escreveram em umas pitorescas frases azedas e já bas-
grossas letras este letreiro – romance rea- tante puídas que não valiam a pena do
lista –, parece dizerem ao público, com holocausto. Em primeiro lugar, eu nun-
um sorriso triste na face mascarrada: ca censurei a pouca limpeza dos livros
– ‘Olhem também para nós, leiam-nos do Sr. Eça; e, sempre que de passagem
também a nós... Acreditem que tam- o indiquei, foi para os elogiar incondi-
bém somos muitíssimos grosseiros, e cionalmente; porque para mim livros
que também somos muitíssimos sujos!’” sujos são somente os mal escritos. Em
(CABRAL, 1982, 145). Verdade se diga, segundo lugar, nenhuma novela minha
não custa imaginar o nome de Cami- se inculca na capa romance realista. Al-
lo como o destinatário possível, senão guém arguiu, com razão, um meu edi-
mesmo privilegiado, deste trecho (até tor que nos anúncios da 4.ª página dos
por a data do prefácio, 1866, coincidir jornais especializava a fatura realista da
com a da edição de Vulcões de Lama). novela. Daí procedeu talvez o equívoco
Pelo menos, assim o entendeu o pró- importuno e flagelador do Sr. Eça de
prio Camilo. Queirós. Se S. Ex.cia me julgasse menos
A reação furiosa do novelista não se irracional do que o seu modo de ler os
fez esperar. Ripostou, a 7 de junho de frontispícios dos meus livros sem os ver
1887, num texto, muito sugestivamente, (eu é que vejo tudo quanto o insigne
intitulado “Nota à procissão dos mori- romancista imprime) duvidaria que eu
bundos/José Maria de Almeida Teixeira fosse capaz dessa parvoiçada para cha-
de Queirós”, publicado no jornal Novi- mar aos meus romances a atenção dos
dades e no qual, entre outras conside- leitores de S. Ex.cia. Credo! Pois eu pre-
rações, diz o seguinte: “Eu nunca disse cisaria, para ser visto, de me nivelar com

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AnticAmilismo 253

a espádua literária do Sr. Eça? Mas, se


o fizesse era essa a maneira de me tornar
invisível, como diz a sentença de não sei
que grande sábio... Talvez seja do Sr. Eça
de Queirós a sábia sentença” (Id., Ibid.,
149). É por demais evidente nestes tre-
chos (e em todo o texto) o sentimento
que percorre Camilo, o de “uma sensi-
bilidade de ‘patriarca literário’ ferido
pelo ‘desrespeito’ de uma geração mui-
to mais jovem e, em certos aspetos, mais
moderna” (REIS, 1999, 62).
Quanto a Eça, não responderá à sus-
cetibilidade ofendida de Camilo senão
por carta particular, nela assegurando
Eça de Queirós (1845-1900).
não ter desejado, por forma alguma,
denegrir o insigne novelista. “Sempre”
– escreve Eça – “me exprimi sobre o au- V. Ex.cia que, quando se queixar aos ven-
tor do Esqueleto, dum modo que é irre- tos e ao Chiado das pessoas que impli-
cusavelmente mais digno dele e da sua cam consigo, como V. Ex.cia diz, ou que
obra do que esse outro estranho modo desdouram a sua glória, como eu traduzo,
por que o costumam decantar aqueles não se volte para mim e para os meus
que se ufanam, já na palestra, já na im- amigos – mas olhe em torno de si para
prensa, de serem seus amigos e seus dis- os seus admiradores, e para dentro de si
cípulos” (CABRAL, 1982, 151). E isso mesmo, talvez” (Id., Ibid., 152).
na justa medida em que “eu, falando de Da leitura destas transcrições resulta a
V. Ex.cia, considero sempre a sua imagi- convicção de Eça ter sido sagaz bastante
nação, a sua maneira de ver o mundo, o para responder com notória desenvol-
seu sentimento vivo ou confuso da rea- tura a Camilo. O certo, porém, é que
lidade, o seu gosto, a sua arte de com- se escusou a transferir para a esfera do
posição, a fraqueza ou a força do seu conhecimento público esta sua resposta
traço; e, pelo menos, admiro sem reser- ao autor de Amor de Perdição. A carta só
va em V. Ex.cia o ardente Satírico, neto viria, pois, a ser coligida postumamente
de Quevedo, que põe ao serviço da sua (em 1912) em Últimas Páginas. Qual a
apaixonada misantropia o mais quente razão disso? Segundo Carlos Reis, “Eça
e o mais rico sarcasmo peninsular. E os não abre uma polémica literária com Ca-
seus amigos, esses, admiram apenas em milo, manifestamente porque não quer.
V. Ex.cia secamente e pecamente, o ho- E não quer ou porque o não aceita como
mem que em Portugal conhece mais termos polemista à sua altura, ou porque teme
do Dicionário!” (Id., Ibid.). Assim sendo: a truculência das reações camilianas; ou
“A mim só me compete lamentar que até pelas duas razões” (REIS, 1999, 65).
a estas mofinas proporções tenha sido Como quer que seja, este confronto
reduzido, pelo zelo crítico dos seus entre os dois grandes autores é elucida-
amigos, a larga individualidade que tivo da batalha travada pelo domínio do
nos deu o Amor de Perdição. Mas ao mes- campo literário; e, mais, evidencia Ca-
mo tempo adquiro o direito de rogar a milo a perder terreno. Com efeito, por

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254 AnticAmilismo

muito que faça ouvir a sua voz de pode- sempre me pareceu foi que o adjetivar
roso novelista e de polemista implacável, de científicos os tais processos era um
Camilo não consegue conter o avanço desvanecimento um tanto charlatão
hegemónico da nova escola. A doutrina por parte dos inovadores. A canalha,
realista implanta-se e começa a produzir porém, reputando-se privilegiada na
consensos e, logo, a coordenar compor- forma, na fraseologia realista, chamava
tamentos estéticos. O mesmo é dizer, a à coisa científica para espavorir os igno-
novelística de Camilo entra fatalmente rantes da minha casta, os macróbios do
em crise e em rápida debilitação, não romanticismo lacrimoso” (Ibid.). Nota-se
obstante os esforços do novelista em sen- uma nítida reserva perante a nova esco-
tido contrário. la literária, pois Camilo está longe de se
É certo que, em privado, Camilo não render aos hipotéticos rigores do natura-
desconsidera o merecimento literário da lismo, embora não suficiente para justi-
prosa queirosiana, valorizando, por ex- ficar uma declarada postura antirrealista
tensão, o novo feitio romanesco, como e antinaturalista.
comprovam estas linhas de uma carta Todavia, em público, i.e., nas polémi-
enviada ao visconde de Ouguela: “Este cas e no interior das suas novelas, Ca-
rapaz vem tomar a vanguarda de todos milo compraz-se, e não sem ironia, em
os romancistas. É um admirável obser- provocar a novidade (a “ideia nova”,
vador e com quanto faça pouco caso das como se dizia então). Em novelas onde
imunidades da língua tem a arte de fa- – note-se – não é necessária especial
zer admiráveis defeitos” (COSTA, 1923, clarividência crítica para perceber uma
204). E, de resto, é bem conhecida tanto flagrante apropriação de certos códigos
a sua amizade, como o seu apreço lite- propalados pelo realismo-naturalismo.
rário por outra figura maior da nova es- “Maria Moisés”, uma das narrativas de
cola, Teixeira de Queirós (Bento More- Novelas do Minho, e.g., parece lançar
no), a quem, em carta (inédita), refere: mão do modelo realista. O  texto não
“Faça-me justiça. Eu, se hostilizam a sua envergonha os leitores adeptos da fic-
escola, não lhe tinha dado a V. Ex.cia um ção realista, nem embaraça os leitores
público testemunho de preito aos seus treinados na ficção de Camilo, e acaba
escritos” (MJD, “Carta de Camilo Caste- numa interpelação a Tomás Ribeiro,
lo Branco…”). a qual não acrescenta nada ao enre-
Mas uma coisa é reconhecer valor, ou do, mas revela-se pertinente por fazer
algum valor, à nova escola; outra coisa ressaltar a “agressividade polémica”
bem diferente é aceitar com espírito (BAPTISTA, 1992, 12) de Camilo nesta
acrítico os pressupostos, as crenças e questão da emergência da escola realis-
as exigências dessa nova escola, em es- ta: “Tomás Ribeiro, com o teu coração,
pecial quando a novidade realista-natu- se tens nele uma lágrima, imagina este
ralista, à conta de “canalha”, como que quadro e descreve-o, se podes, que eu
relega o novelista (e os românticos, em não posso, nem quero, porque o último
geral) para um lugar de ignorância, o feitio das novelas é não pintar, com o
de quem representa práticas literárias colorido gótico dos românticos, os qua-
desusadas. Eis o início da carta: “Eu não dros comoventes que rutilam na alma a
me propus zombar da escola naturalista. faísca do entusiasmo. Agora somente se
V. Ex.cia algumas vezes me ouviria dizer pintam as gangrenas com as cores roxas
que os processos me deleitavam. O que das chagas, e com as cores verdes das

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AnticAmilismo 255

podridões modernas. Nos literatos o Contudo, no prefácio da segunda edi-


que predomina é o verde, e nas litera- ção, o leitor depara com esta referência
turas é o podre” (BRANCO, 1992, 211). ao realismo: “Cumpre-me declarar que
E sobre esta questão de interpelar a eu não intentei ridicularizar a escola
nova escola em narrativas onde faz por realista. Quando apareceram o Crime do
ostentar o “último feitio das novelas”, Padre Amaro, o Primo Basílio e os roman-
nada como regressar a Eusébio Macário. ces de Teixeira de Queirós, admirei-os,
Porque sobretudo aí (e em A Corja) e escrevi ingenuamente o testemunho
Camilo se deixou contaminar por pro- da minha admiração. Creio que, hoje
cedimentos técnico-narrativos adstritos em dia, novela escrita doutro feitio, não
ao realismo-naturalismo; e sobretudo aí vinga” (Id., Ibid., 56). Será caso para pre-
Camilo não resistiu a referir-se, em pas- sumirmos um genuíno reconhecimento
sagens marcantes, a essa contaminação. por parte de Camilo de que doravante
Leia-se, pois, a célebre dedicatória com romance que se venda é romance de
que abre a obra: “Minha querida amiga facto escrito nos moldes ensinados pelo
[Ana Plácido]: Perguntaste-me se um ve- realismo? E se assim for, significa isto
lho escritor de antigas novelas poderia uma capitulação perante a nova escola?
escrever, segundo os processos novos, O que, por sua vez, indiciaria a tentativa
um romance com todos os ‘tiques’ do de Camilo se moldar ao gosto do públi-
estilo realista. Respondi temerariamente co, ele que tão frequentemente inter-
que sim, e tu apostaste que não. Venho pela com cordialidade o leitor nas suas
depositar no teu regaço o romance, e narrativas? Convém não esquecer de ler
na tua mão o beijo da aposta que perdi” o que vem a seguir, a bem de uma apre-
(Id., 2003, 57). De todas as leituras que ciação mais global do excerto: “Eu não
se poderão fazer deste trecho não isento conhecia Zola e ainda agora apenas e
de ambiguidade, desde logo a mais bá- escassamente o conheço de o ouvir apre-
sica, mas também a mais válida, porque ciar a uma pessoa de minha família que
dificilmente refutável, será por certo a me fez compreender a escolas com duas
de que o novelista quis inscrever este seu palavras: ‘É a tua velha escola com uma
romance sob a influência do realismo. adjetivação de casta estrangeira, e uma
Com que intenção? Com a intenção es- profusão de ciência compreendida na
tratégica de ridicularizar a nova escola. ‘Introdução aos três reinos’. Além disso,
Senão vejamos. tens de pôr a fisiologia onde os român-
Na “Advertência” a preceder o pri- ticos punham a sentimentalidade: deri-
meiro capítulo, em tom irónico, entre var a moral das bossas, e subordinar à
outras possíveis, podemos ler esta escla- fatalidade o que, pelos velhos processos,
recedora passagem: “Os processos do au- se imputava à educação e à responsabi-
tor são, já se vê, os científicos, o estudo lidade’. Compreendi, e achei que eu,
dos meios, a orientação das ideias pela há vinte e cinco anos, já assim pensava,
fatalidade geográfica, as incoercíveis quando Balzac tinha em mim o mais iná-
leis fisiológicas e climatéricas do tem- bil e ordinário dos seus discípulos” (Id.,
peramento, o despotismo do sangue, a Ibid., 56).
tirania dos nervos, a questão das raças, a Como se vê, se, por um lado, Cami-
etologia, a hereditariedade inconsciente lo se reporta ao papel decisivo do pú-
dos aleijões da família, tudo, o diabo!” blico leitor, por outro, também diz “há
(Id., Ibid., 59). vinte e cinco anos, já assim pensava”

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256 AnticAmilismo

ao referir-se aos novos procedimentos estética realista-naturalista aplicada ao


técnico-compositivos. E, como sempre, romance” (MARTINS, 2003, 24).
as palavras surgem tintadas de ironia. Dito isto, convirá ainda observar que se
É,  por isso, muitíssimo duvidoso sus- Camilo, a partir de certa altura, escreve
tentar que Camilo pudesse estar pura e com “tiques”, como diria o próprio, rea-
simplesmente a converter-se à nova es- listas (e com não menos razoáveis tonali-
cola ao assimilar algumas das suas mais dades naturalistas à mistura), esses supos-
evidentes estratégias discursivas (maior tos textos “realistas” não podem ser lidos
incidência de descrições, recurso ao ex- como textos de pura expressão realista.
pediente do estilo indireto livre, bem Longe disso, até. Como bem nota E. Fei-
como outras renovações estilísticas), jó: “Em geral, nenhum texto camiliano
como de facto se nota em várias das pode ser lido como realista-naturalista.
suas narrativas finais (e isso ao ponto Faltam neles elementos fortes, que, por
de haver quem fale numa “fase realis- sua vez, fazem parte do substrato enga-
ta” do autor). E também se afigura du- gée do movimento em ascenso” (FEIJÓ,
vidosa a presunção de essa imitação se 2011, 28). Mas, não é somente por este
ficar a dever ao receio de Camilo se ver motivo que se deve descartar Camilo do
erradicado do campo literário. O  que rótulo de escritor realista ou então, a cer-
sucede parece claramente ser antes o ta altura da sua trajetória, inclinado para
inverso. Ou seja, em vez de se esforçar uma “fase realista”. Abel Barros Baptista
por corresponder aos novos padrões remata a questão deste modo, que vale a
narrativos, para não ficar para trás, não pena transcrever, não obstante a extensão
está o novelista, na verdade, a satirizar do trecho: “Se é praticamente insustentá-
a escola literária do rival Eça e, assim vel a hipótese de Camilo alguma vez ter
sendo, a desafiá-la, querendo desta for- pretendido escrever romances realistas, é
ma afirmar a sua persistência no campo incontestável que estes romances formam
literário? um corpo especial e, num certo sentido,
Em reforço desta presunção está o anómalo na obra camiliana. Dificilmente,
facto nada despiciendo de Camilo não porém, se pode falar em rutura, delimi-
se ficar pela imitação. O novelista vai tando com eles uma ‘fase realista’ ou se-
mais longe e não se inibe de recorrer – e quer uma nova fase. Desde logo, porque
este é um ponto fundamental – à paró- retomam e amplificam características
dia. Como em nenhum outro lugar da que já se encontram em obras cómicas e
ficção de Camilo, em Eusébio Macário e humorísticas anteriores – e.g., A Filha do
em A  Corja a contaminação realista-na- Arcediago (1854), O Que Fazem Mulheres
turalista comporta uma magistral inten- (1858), Coração, Cabeça e Estômago (1862)
cionalidade paródica. E essa intencio- ou Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado
nalidade paródica destina-se a atingir o (1863) –, e daí que não custe aceitar que
realismo-naturalismo, ridicularizando-o. um e outro são, afinal, ‘um arranjo da no-
Por outras palavras, dando azo à sua vo- vela satírica de costumes da fase anterior’.
cação satírica, Camilo, através de uma Acresce que, com A Brasileira de Prazins
acutilante paródia, desmonta “pelo ex- (1882), Camilo regressa à prática de des-
cesso caricatural e pelo riso grotesco e figuração da novela passional, que não é
carnavalizador, os pressupostos ideoló- necessariamente cómica ou satírica e de-
gicos, as técnicas narrativas, as opções finiu o sentido do seu trabalho romanes-
estilísticas ou os temas recorrentes da co desde muito cedo. A novidade ou, se

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AnticAmilismo 257

se aceitar uma estabilidade fundamental em clara incompatibilidade com o cor-


da novela camiliana, a grande anomalia po típico de procedimentos naturalistas,
de Eusébio Macário está, não no romance mas, afinal, bem mais modernas do que
em si mesmo, mas no enquadramento ele” (Id., Ibid., 18). Daqui resulta, como
que, em nome da subordinação a uma é evidente, assaz problemático falar-se,
escola, o que nunca acontecera, introduz repita-se, numa “fase realista”. Admitir a
um princípio de homogeneidade num incursão de Camilo pelo território realis-
universo romanesco que nunca o supor- ta não é o mesmo que conceber a escrita
tou” (BAPTISTA, 1992, 13-14). E nunca o desse período como apenas responden-
“suportou” por Camilo se afirmar na lite- do às leis e aos códigos do realismo (tal
ratura portuguesa como um escritor “de como nunca se definiu em termos estri-
uma singularidade irredutível, de uma tamente românticos).
maneira própria, que não se sujeita a di- Certo, no meio disto tudo, é o facto de
tames alheios” (Id., Ibid., 12). a centralidade de Camilo no campo lite-
Ou seja, dir-se-ia que Camilo, reniten- rário se desvanecer à medida que se dá
te às definições, sob influência da nova o triunfo da estética realista e a coexten-
escola é mais Camilo do que nunca, não siva popularidade literária de Eça. Basta
havendo lugar nas suas últimas narrati- ver que até os que apoiavam sem conces-
vas à expressão de um realismo em sen- sões Camilo e dele sempre se afirmaram
tido puro, mas antes o emprego do novo publicamente partidários, como é o caso
modelo narrativo, subjugando-o ao ser- de Fialho de Almeida, cederam a uma
viço da sua singularidade (salta à vista, realista (é caso para dizer) constatação.
e.g., em Eusébio Macário como em A Cor- Aquela pela qual, para citarmos precisa-
ja, o impressionante poder do escritor mente Fialho (sob o pseud. de Valentim
no tocante ao uso imoderado do verná- Demónio), editar Camilo mais não seria
culo – recordemos o que lhe dizia Eça, senão, ao fim e ao resto, um ato levado a
como quem aponta um defeito grave: “E cabo para “honrar as letras com os servi-
os seus amigos, esses, admiram apenas ços de uma estimável boa vontade” (CA-
em V. Ex.cia secamente e pecamente, o BRAL, 1988, 95).
homem que em Portugal conhece mais termos E não deixa de ser particularmen-
do Dicionário!” –; e poderíamos também te sintomática a reação, ou melhor, a
fazer notar que a imaginação de Camilo pouca reação despoletada pela mor-
nesses e noutros textos não sofre acanha- te do novelista. Como faz notar, com
mento em proveito da observação, como apreciável sagacidade, E. Feijó, o desa-
costuma suceder com os discípulos da parecimento do autor, em particular se
nova escola). aferido pelo que sucedeu três décadas
O mesmo se pode dizer em relação a antes, por altura do seu processo judi-
“Maria Moisés”. Sobre a conclusão da cial (a acusação de prática de adultério
novela com a interpelação, atrás citada, com Ana Plácido), não desencadeou
dirigida a Tomás Ribeiro, observa Abel uma mobilização por aí e além: “se se
Barros Baptista: “Interromper ou mes- utilizar como termómetro de populari-
mo suspender a narração, intercalar dade as reações à sua morte, em 1890,
um comentário ou um apelo ao leitor, ela está longe do acompanhamento que
multiplicar as digressões são caracterís- motivara, por exemplo, o seu processo
ticas que, desde muito cedo, definem judicial 30 anos antes; uma morte que
o modo de narrar da novela camiliana, não parece ter ativado a presença pú-

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258 AnticAmitismo

blica de muitos elementos destacados


do campo cultural e do poder lusos, ao
Anticamitismo
contrário do que 15 anos antes aconte-
cera com Castilho, ou isso, ao menos, é
o que se pode deduzir da imprensa da
altura” (FEIJÓ, 2011, 16). Porque, en-
tretanto, já o apagamento simbólico se
tinha antecipado ao físico.
A historiografia colonial tendeu a mi-
nimizar a iniciativa africana, atri-
buindo sistematicamente a fatores ex-
Bibliog.: manuscrita: Museu João de Deus, ternos qualquer mudança ou inovação
“Carta de Camilo Castelo Branco a Francisco significativas; por isso, o camitismo foi
Teixeira de Queirós”, s.d.; impressa: BAPTIS-
um dos grandes álibis da tutela colonial.
TA, Abel Barros, “Apresentação crítica”, in
BRANCO, Camilo Castelo, Novelas do Minho, Alguns membros da Igreja Católica di-
apres. crítica, sel. e sugestões para análise vulgaram a ideia de que os negros afri-
literária Abel Barros Baptista, Lisboa, Comu- canos eram descendentes de Cam, jus-
nicação, 1992, pp. 11-51; BRANCO, Camilo tificando a sua escravização. Camitas ou
Castelo, Novelas do Minho, apres. crítica, sel. caamitas, descendentes de Cam, seriam
e sugestões para análise literária Abel Barros os povos escuros da Etiópia, Arábia do
Baptista, Lisboa, Comunicação, 1992; Id., Eu-
Sul, da Núbia, da Tripolitana, da Somá-
sébio Macário/A Corja, pref. e fixação do texto J.
lia (na verdade, os africanos do Antigo
Cândido Martins, Porto, Caixotim, 2003; CA-
BRAL, Alexandre, Polémicas de Camilo, vol.  ix, Testamento) e algumas etnias que habi-
Lisboa, Livros Horizonte, 1982; Id., Correspon- tavam a Palestina antes da sua conquista
dência de Camilo, vol. vi, Lisboa, Livros Hori- pelos hebreus – tais como os sidon, os hi-
zonte, 1988; COSTA, Júlio Dias da, Escritos de titas ou hiteus, os jebuseus, os amorritas
Camilo, Lisboa, Portugália, 1923; FEIJÓ, Elias ou amorreus, os girgueseus, os heveus,
Torres, O Legado do Último Camilo Romancista e os arquitas ou arkitas, os sinitas, os arva-
a (Auto-)Cilada Realista, Vila Nova de Famali-
ditas, os zemaritas e os hamartitas –, to-
cão, Casa de Camilo/Centro de Estudos/Câ-
mara Municipal de Vila Nova de Famalicão, dos com um ancestral comum, Canaam,
2011; MARTINS, José Cândido, “Prefácio”, in e por isso muitas vezes designados como
BRANCO, Camilo Castelo, Eusébio Macário/A cananeus. Os descendentes de Cam cria-
Corja, pref. e fixação do texto J. Cândido Mar- ram três grandes grupos de povos: os
tins, Porto, Caixotim, 2003, pp. 7-47; REIS, descendentes de Cush, muitas vezes ape-
Carlos, Estudos Queirosianos. Ensaios sobre Eça de lidados de cushitas, os descendentes de
Queirós e a Sua Obra, Lisboa, Presença, 1999.
Mizraim e os descendentes de Canaam,
Sérgio Guimarães de Sousa também denominados cananeus.
Não deixa de ser paradoxal, conforme
observou Ferrán Iniesta em El Planeta
Negro, que o mito de Cam tenha sido
utilizado contra a mesma África, pois os
defensores do camitismo tentaram bran-
quear Cam, expulsando a fração negra
da humanidade. Os modernos investiga-
dores da África subsaariana nem sempre
variaram as suas premissas a este respei-
to, referindo que a civilização agrária e

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AnticAmitismo 259

a organização estatal tinham sido herda-


das pelos africanos a partir de um polo
externo, não negro, defendendo um
Egito branco ou a existência de povos
fronteiriços – berberes ou árabes – igual-
mente brancos.
Em Portugal, como noutros países ca-
tólicos, a influência da Igreja no desen-
volvimento da teoria camita foi signifi-
cativa. A Igreja classificou, por diversas
vezes, com vivaz contumácia, os descen-
dentes dos camitas como amaldiçoados
ao longo da sua história. Exemplo disso
são as expedições ao Novo Mundo, no Mercado de escravos negros no Antigo Egito
séc. xvi. Os novos povos da América por- (1650-1295 a. C.).
tuguesa foram inseridos na economia di-
vina e na génesis bíblica. Uma vez que,
do ponto de vista católico, a humanida- Basil Davidson, em Africa: History of a
de era uma só, os habitantes do Novo Continent, que identificaram e defende-
Mundo descendiam, necessariamente, ram o passado do continente africano
de Adão e Eva, e, portanto, de um dos fi- como negro. Cheikh Anta Diop foi mais
lhos de Noé, provavelmente Cam, aque- além, ao tentar recuperar a história afri-
le que desnudou seu pai – explicação cana e analisar os processos de oculta-
para a nudez dos índios. Amaldiçoado ção anteriores. Com isto, questionou a
por seu pai Noé, Cam teria transmitido honestidade e o rigor da ciência institu-
essa maldição aos seus descendentes, se- cionalizada e considerou-a dependente
gundo a Bíblia. A escolha da hipótese ca- da sociedade da sua época. Para Diop, a
mita como resposta à questão da origem informação histórica ocultada era a de
do índio comprometia, radicalmente, a que os Egípcios eram negros africanos
sua conversão à religião cristã. Segundo – ao invés de brancos ou mediterrâni-
o Jesuíta Manuel da Nóbrega em Cartas cos – que tinham constituído a primei-
Jesuíticas, os tupi da costa ocidental da ra civilização. Diop recorreu aos aspetos
América portuguesa guardavam, ainda, fenotípicos como indicadores de rela-
uma vaga lembrança do dilúvio. A teo- ções históricas continuadas, não como
ria camita justificou também, de modo manifestações de uma essência. Assim,
especial, a escravidão africana, com um comprovou que o Egito estava profun-
dos mais conhecidos argumentos: a as- damente ligado ao mundo africano. As
cendência dos negros de seu pai Cam. principais bases da chamada civilização
Enquanto o pecado original justificava egípcia encontravam-se ao sul de Áfri-
a escravidão de uns povos por outros, a ca. Nos seus estudos linguísticos, Diop
origem camita justificava especialmente considerou ser politicamente importan-
a escravidão dos negros africanos. te demonstrar a unidade cultural e lin-
Pelo contrário, a corrente do anti- guística de África e basear essa unidade
camitismo foi defendida por autores no passado egípcio. Rejeitou a confusão
como Ki-Zerbo no primeiro volume de de raça com língua e fez uma aborda-
História Geral da África, e o britânico gem inovadora, através da hipótese de

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260 AnticAmonismo

uma unidade das línguas africanas in-


dígenas, sendo que todas elas tinham
Anticamonismo
a língua do Antigo Egito como tronco
comum. As suas pesquisas foram dire-
cionadas para as semelhanças estrutu-
rais entre uma língua africana moder-
na, o wolof, e a língua do Antigo Egito.
O  interessante resultado destas obser-
vações, assentes sobre paradigmas teó-
ricos distintos, aponta claramente para
U ma primeira via para manifestações
de depreciação de Camões conten-
de com a sua ascendência familiar e a
a autonomia de uma cultura egípcia em sua herdada constituição psicossomática,
relação ao Médio Oriente, a sua origi- com a sua extração social e os meios onde
nalidade e a sua vinculação às socieda- se moveria. Teófilo Braga ecoa e enfati-
des negroafricanas, e não simplesmente za, segundo os seus (falsos) pressupostos
africanas. O anticamitismo revelou, as- de psicologia científica e de sociologia
sim, outra versão da história do Egito, positivista, o que seria a nevrose heredi-
evidenciando o seu passado negro-afri- tária de Camões e o determinismo nega-
cano, assim como a sua influência na tivo do meio em que Camões viveu – o
cultura grega. do Portugal entrado em decadência  –,
embora logo enalteça o poder genial de
Camões (favorecido por outras supostas
determinações de hereditariedade) para
superar em idealização artística os fatores
negativos. Entre esses fatores se insere a
Bibliog.: DAVIDSON, Basil, Africa: History of
a Continent, London, Weidenfeld & Nicolson, má situação económica em que Camões
1966; DIOP, Chanka Anta, Parenté Génétique cresceu e periodicamente mergulhou.
de l’Égyptien Pharaonique et des Langues Négro-Afri- Contra o “sprito vil” de coevos que o des-
caines: Processus de Sémitisation, Ifan-Dakar, Les feiteavam e apoucavam seu porte e arte,
Nouvelles Éditions Africaines, 1977; INIESTA, André Falcão de Resende atesta, na “Sáti-
Ferrán, El Planeta Negro: Aproximación Histórica ra segunda a Luís de Camões. Reprende
de las Culturas Africanas, Madrid, Los Libros de aos que, desprezando os doutos, gastam
la Catarata, 2001; KI-ZERBO, Joseph (org.),
o seu com truhãe”, a pobreza injusta em
História Geral da África, vol. i, Brasília, UNES-
CO, 2010; NÓBREGA, Manuel da, Cartas Je- que vive o seu admirado Camões à data
suíticas, vol. i, Itatiaia/São Paulo, Editora Uni- da publicação de Os Lusíadas.
versidade de São Paulo, 1988. A própria preocupação apologética de
Faria e Sousa mostra que continuavam as
Fernanda Santos
insinuações ou propalações de inferio-
ridade social de nascimento de Camões
e as denúncias de erros ou faltas morais
nos seus textos (como seria a defesa de
mulher adúltera nas oitavas “Esprito va-
leroso”, cuja autoria camoniana Faria e
Sousa nega). A fazer fé nos ataques de
Faria e Sousa, continuava viva a perceção
de que Sá de Miranda “com ações e pala-
vras se burlava do Camões” e que Diogo

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AnticAmonismo 261

Bernardes se evidenciara entre os poetas a contrario podemos avaliar as resistências


coetâneos que malqueriam a Camões e ao reconhecimento dessa cultura huma-
“muitas coisas que ele usurpou a Luís de nista de bom letrado, pelo sucessivo labor
Camões”. Seja como for, o rol de lances de classicistas e camonistas nas fontes do
difíceis e de situações miseráveis que a saber e da intertextualidade, que os pri-
existência do “príncipe dos poetas” co- meiros biógrafos (Pedro Mariz, Severim
nheceu acabará por funcionar como ins- de Faria) e os grandes comentários do
trumento de canonização ao longo dos séc. xvii (de Manuel Correia a Faria e
séculos e sobremodo a partir de Bocage Sousa, de Pires de Almeida a D. Marcos
e do romantismo. de S. Lourenço) logo expuseram.
Provavelmente, desde os anos em que Outra frente de potencial anticamo-
viveu até aos nossos dias, com Aquilino Ri- nismo incide no comportamento inter-
beiro e José Hermano Saraiva, a imagem pessoal e público do poeta. Não faltou
construída de Camões e as suas indevidas em vida de Camões e na sua posteridade
projeções na interpretação e valoração da quem inferisse leitura de culpabilização
obra revestiram de conotações negativas perante os seus versos no tratamento re-
(se não de inferioridade contestatária ou verso do tema do desconcerto do mundo:
de ressentimento orgulhoso) a sua supos-
ta condição social de pobre escudeiro
Luís de Camões (c. 1524-1579/80).
sem eira nem beira. Aquilino honrou es-
ses predecessores fazendo de Camões um
pícaro que se retrataria nas cartas chocar-
reiras sobre vida dissoluta, em contrapo-
sição com a não menos infundada visão
de Camões como um áulico, difundida
com insuspeitados mas idênticos riscos
pejorativos por camonistas como José
Maria Rodrigues. Ambas as representa-
ções desfiguraram a condição existencial
de nobreza menor sem casa nem título,
economicamente dependente e precária,
e a índole mais guindadamente aristocrá-
tica da obra literária – que a escrita de Ca-
mões recorrentemente verte nos tópicos
da queixa da pobreza, da denúncia das
invejas, do orgulho ferido e do sentimen-
to de superioridade.
Só possível graças não apenas ao génio
inspirado e à arte cultivada, mas também
a larga e profunda cultura propiciatória,
a obra superior implica nova frente de
enaltecimento e de depreciação: o deba-
te em torno da formação cultural, escolar
ou não, no âmbito do humanismo (filo-
lógico, ideológico, cívico) dominante em
Portugal e na Europa. Aqui, também só

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262 AnticAmonismo

“fui mau, mas fui castigado. Assim que, da iminente decadência nacional (Os Lu-
só para mim/anda o mundo concertado” síadas, canto x, vv. 145-146) –, destinatá-
(“Ao desconcerto do mundo”). Desde rios das veementes censuras que o épico
os primeiros biógrafos, Mariz e Severim, ergue ao abrigo da exploração reversa
e também Faria e Sousa, se refletiu por dos temas da excelência nas armas e le-
escrito as dúvidas, desabonatórias para tras e do valor do canto poético, em es-
Camões, sobre o cariz da nomeação pelo pecial nas estrofes finais do canto v de Os
governador da Índia, Francisco Barreto, Lusíadas, parecendo particularizar essa
para o cargo de provedor dos defuntos objurgatória na alusão aos descendentes
na China. Com efeito, uma pertinaz cor- de Vasco da Gama, e nas pungentes es-
rente de opinião entendia esse ato como tâncias finais do canto vii sobre as misé-
degredo a que se movera Francisco Bar- rias e desgraças que devastavam uma vida,
reto por zelo de justiça perante excessos em grande parte por causa da ingratidão
satíricos de Camões, ou para satisfazer de “aqueles que eu cantando andava”,
“queixas dos motejados” na “zombaria ignorantes (porque “quem não sabe a
que fez sobre alguns homens a que não arte, não/na estima”, canto v, v. 97) ou
sabia mal o vinho” e na “ficção de umas injustos perante o alto valor de um canto
festas em Goa, por introduzir nelas certos a “quem o não mereça”.
homens viciosos”. O certo é que, mesmo Não menos adversas a Camões se mos-
encarcerado, Camões reincide no vezo tram a dinâmica coeva do campo literá-
satírico com os “Disparates da Índia” e rio e a inerente conflitualidade. Camões
continua a alimentar despeitos e ímpetos não foi cultor do género da epístola poé-
de detratores. Depois, vieram as dúvidas tica; e essa ausência de cartas em verso,
ou reprovações acintosas sobre a forma mais do que entendida como lacuna do
como se desempenhara do cargo de pro- espectro genológico do seu estro lírico,
vedor dos defuntos na China e sobre as veio sendo apontada como reflexo da
razões por que voltara para a Índia sob sua singular (e marginal) posição na
prisão. Vieram também as sequelas da dinâmica epocal do campo literário e
oscilante situação de Camões em Goa, indício do menor apreço pela sua perso-
com vida de necessidades e dívidas, que nalidade e de desfavorecimento da sua
uns justificariam lisonjeiramente como poesia. Não é claro, porém, se Camões
resultantes da sua liberalidade perdulária era marginalizado ou se queria à mar-
e outros evidenciavam condenatoriamen- gem do círculo mirandino dos poetas
te como desastrosas consequências da sua que mutuamente se endereçavam textos
vida dissoluta – embora acontecimentos epistolares, se incentivavam e elogiavam
posteriores tenham vindo confirmar a (António Ferreira, João Roiz de Sá de
asserção de Severim de Faria de que Ca- Meneses, D. Manuel de Portugal, Pero
mões era muito estimado “de toda a fidal- de Andrade Caminha, Diogo Bernardes,
guia da Índia”. etc.); mas tem de admitir-se que essa
Forma perniciosa de anticamonismo, condição de existência literária terá en-
pelo menos passivo, constituiu o com- tão pesado negativamente no destino de
portamento nem mecenático, nem en- Camões e na fortuna crítica da sua obra.
comiástico, dos poderosos do tempo de É particularmente estranho o desconhe-
Camões – “gente surda e endurecida” na cimento mútuo a que as escritas de Ca-
cobiça mercantil e na sede de poder, pri- mões e de Sá de Miranda, polarizador
meiramente, e na “apagada e vil tristeza” ascendente da dinâmica coeva do campo

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AnticAmonismo 263

literário português, se votam – nem dei- A partir quer da escassez de referên-


xando que nelas se refratassem pretex- cias a Camões em textos de poetas coe-
tos circunstanciais como o da simultânea vos, quer da interpretação ad hominem
morte em Ceuta de Gonçalo de Sá, filho de acintes epigramáticos em poemas de
de Miranda, e de D. António de  Noro- Caminha e outros, o visconde de Juro-
nha, jovem amigo de Camões, que o con- menha construiu uma teia de inferências
templa na sua poesia. sobre a cabala de poetas despeitados e
Os Lusíadas saíram sem os paratextos apostados em denegar a glória ou rasurar
laudatórios ou introdutórios que eram a obra genial de Camões. No centro de
proverbiais nas obras do tempo (espe- tal atuação discriminatória estaria Pero
cialmente no confronto com o poema de Andrade Caminha, que aliás pode-
épico de Jerónimo Corte-Real, Sucesso do ria conotar o conflito com contraposta
Segundo Cerco de Diu); e preponderou um orientação da lírica amorosa, nele alheia
estranho silêncio perante a edição prin- aos dissídios entre desejo erótico e aspi-
ceps. Sem embargo, não faltam sinais de ração espiritual, entre o humano e o divi-
que a epopeia de Camões foi considerada no, antes culminando no louvor do amor
canónica logo no séc. xvi. Camões não conjugal por uma tão rara poesia espon-
deixou de ser solicitado para escrever lau- salícia. Essa precipitada tese crítico-histo-
datórios paratextos poéticos em obras im- riográfica teve grande fortuna posterior
portantes para a cultura científica e letra- em biografias romanceadas de Camões,
da da época (Colóquios dos Simples e Drogas em recriações novelísticas, dramáticas
e Cousas Medicinais das Índias, de Garcia (e.g., Erros Meus, Má Fortuna, Amor Arden-
da Orta, e História da Província de Santa te, 1980, de Natália Correia) e cinemato-
Cruz, a que vulgarmente Chamamos Brasil, gráficas (e.g., Camões, 1946, de Leitão de
de Pero de Magalhães de Gândavo). E as Barros) do mito pessoal camoniano.
edições camonianas desde 1595 adotam o Sem ter ainda Camões garantido o
epíteto de “o príncipe dos poetas”, lança- reconhecimento da grandeza da sua ter-
do por Diogo do Couto. ribilità protomaneirista em controlado
A ausência de paratextos encomiásticos atrito com o primado clássico da medida
tem de ser ponderada à contraluz não só e do equilíbrio das formas, compreende-
da imitação e emulação respeitosa que os se que em António Ferreira se refratem
versos de Camões recebem em Rodrigues razões estéticas que à época contribuíam
Lobo, em Fernão Álvares do Oriente, em para ser Pero de Andrade Caminha, e
Luís Pereira Brandão, e de outro modo não Camões, destinado o “alto canto des-
em Diogo Bernardes e Vasco Mousinho ta empresa digna” em torno do jovem
Quevedo de Castelbranco, mas ainda dos condestável, D. Duarte, eventualmente
trechos panegíricos sobre Camões que em campanha contra os mouros de Mar-
comparecem nas obras de André Falcão rocos, tal como caber a Diogo Bernardes,
de Resende e Fernão Álvares do Oriente e não a Camões, ser incorporado no sé-
– que não se coíbe de exprobar os des- quito real para cantar a esperada grande
peitados rivais de Camões, “esquadrão de vitória de D. Sebastião em Alcácer Quibir.
Bávios e de Zoilos”, que, perante a supe- Aliás, Camões nunca esteve ao abrigo de
rioridade da sua obra, “com muitos tiros críticas formais dos preceptistas, mesmo
pretendiam danificar” “a estátua do prín- no que tocava ao respeito pelas caracte-
cipe dos poetas da nossa idade” (ORIEN- rísticas tradicionais de géneros líricos
TE, 1791, 115). (como acontece com a extensão da ode

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264 AnticAmonismo

“Nunca manhã suave”, tida por dema- cionais da obra de Camões, vários textos
siado curta). Díspar terá sido a receção de apologia, defesa ou polémica denun-
de clássicos quinhentistas e neoclássicos ciam a contrario outras tantas posições de
setecentistas às facetas camonianas de anticamonismo.
desvio tópico e retórico relativamente aos Logo em 1595, no “Prologo ao leytor”
modelos canónicos, particularmente das das Rhythmas (1.ª edição da lírica de Ca-
éclogas perante a tradição bucólica (mor- mões), o poeta e advogado Fernão Rodri-
mente na “intitulada dos Faunos”). gues Lobo Soropita faz certo desvio para
Em contrapartida, não tardou essa for- o “estilo heroico” e o “poema épico” a fim
ma ambígua de notoriedade que provém de desautorizar preventivamente críticas,
da paródia. Se é que por 1576, na carta que já deviam circular e que viriam a avul-
xxxii de O Lima Diogo Bernardes não tar no séc. xvii, quanto ao não respeito
terá ambiguamente parodiado alguns pelas normas do género épico e ao em-
passos de Os Lusíadas, já cerca de 1589 a prego da mitologia clássica.
paródia burlesca se exercitava, pois qua- Naturalmente, foram à época conhe-
tro estudantes de teologia em Évora trata- cidos e chamados à colação com intuitos
ram em tom jocoso e linguagem desbra- emulativos ou depreciativos os dados que
gada de “Festas bacanais: conversão do estudiosos como Hélio Alves têm vindo
primeiro canto d’Os Lusíadas do grande a recapitular, carrear ou valorizar com
Luís de Camões vertidos do humano ao intencionalidade retificativa perante a
de-vinho por uns caprichosos autores”, tradição ou a inércia da afirmação este-
arrancando com o argumento “Borra- reotipada da originalidade plena, da pre-
chas, borrachões assinalados”. Mas, desde cedência cronológica, da singularidade
este rasgo inicial, que conheceu grande ideotemática e/ou técnico-formal da epo-
repercussão até aos finais do séc. xix, a peia camoniana ao emergir no séc.  xvi.
receção paródica de Camões – ora rebai- Antes da publicação de Os Lusíadas “exis-
xando o estilo, ora vulgarizando o assunto tiam já poemas narrativos em língua la-
(sobretudo subvertendo o arquitexto do tina produzidos por eminentes autores
canto i ou dos episódios do Adamastor, portugueses, demonstrando bem o facto
de Inês de Castro, do Velho do Restelo), de que muitas das mesmas estratégias de
mais frequentemente com intuito de sáti- carácter retórico, imitativo e estilístico
ra político-social – raramente terá assumi- (para não falar da pura informação histó-
do intuito anticamonista de depreciação rica e mitológica), prestes a transparecer
ou ridicularização, antes se abonava com na epopeia de Camões, eram conhecidas
o espírito que ainda nas celebrações tri- e praticadas anteriormente”, aduz com
centenárias de 1880 se explicitava na ree- razão Hélio Alves, para depois deduzir
dição do texto goliardesco dos estudan- que, logo até ao final de Quinhentos, a
tes eborenses: “As honras da paródia só tradicionalmente proclamada diferença
às obras do génio costumam conceder-se” de natureza do poema camoniano vê-se
(MARTINS, 2011, 660). Confirma-o o fac- desmentida pela proliferação de, pelo
to de o apologeta Faria e Sousa destacar menos, outras “epopeias retóricas de imi-
essas paródias como tributos à genialida- tação” (ALVES, 2011a, 346).
de de Camões. Alguns desses poemas não se eximem
No quadro de uma minoria culta apos- a glosar pontual ou extensivamente Ca-
tada em enaltecer o modelo épico portu- mões, mas também não se coíbem por
guês e em defender as qualidades exce- vezes de visar com humor alusivo ou iro-

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AnticAmonismo 265

nia explícita alguns passos de Os Lusíadas;


assim acontece, com efeito, na Elegíada
de Luís Pereira relativamente ao episó-
dio camoniano das ninfas abrandando os
ventos em defesa da armada portuguesa
e na Prosopopeia do luso-brasileiro Bento
Teixeira a propósito da descrição camo-
niana de Tritão – passo que, aliás, ainda
em 1820 o P.e José Agostinho de Macedo
haveria de causticar como “a mais ridícu-
la e extravagante figura que a imaginação
pode conceber” (Id., Ibid., 350). Como es-
tudos de retificação heurística e filológica
(e.g. de J. G. Herculano de Carvalho) sa-
lientaram, desde Faria e Sousa que Diogo
Bernardes foi acusado de processo mais
acintoso em relação, a saber, o de roubar
a autoria de poemas a Camões – embora
neste caso, como noutros similares, fosse
maior o efeito negativo na posterior rece-
ção do poeta, tido por inepto e larápio,
do que na de Camões, para a qual o plei-
to atuaria como mais um dos fatores de Rosto de Europa Portuguesa, de Faria de Sousa.
endeusamento do génio perseguido…
A apologética de Faria e Sousa refletirá,
talvez, reações menos simpáticas de con- Aliás, o texto camoniano foi modificado
temporâneos de Camões no pronuncia- por desvios da transmissão, de copistas
mento sobre o grau de estranheza, obscu- e compositores tipográficos; e assim, in-
ridade e novidade da língua literária do compreensões, erros ou adaptações de
poeta. Aliás, na valorização dos vocábulos copista manual ou mecânico tornaram-se
cultos e herméticos que Camões criou em inovações que foram bem acolhidas como
Os Lusíadas, Faria e Sousa dilatou infun- se fossem de autoria camoniana. Por isso,
dadamente o elenco desses camonismos. o alcance do texto recebido de Camões
Mais tarde, Rafael Bluteau impôs na di- em sede de norma linguística e a influên-
cionarística a errada perceção – errada, cia no gosto literário podem estar inqui-
segundo depois ensinaram Herculano de nados pelos erros de transmissão. Ocor-
Carvalho e Ivo Castro – de que a maioria rência paralela, e que cedo terá dado azo
das palavras cultas da língua portuguesa a desfeitas de escritores e leitores ou pelo
tinham sido criadas ou difundidas pelo menos terá provocado um desconforto
épico. crítico que veio a explicitar-se no séc. xx
O discurso camonista nem sempre faz pela pena de Agostinho de Campos, é a
reinar o equilíbrio entre o entendimento de arrojados mas desconformes arranjos
da língua de Camões como a língua que vocabulares em busca de rima original na
Camões construiu e legou à posteridade, lírica e na epopeia.
ou como a língua que Camões falava e O próprio Soropita assinala um fator
escrevia, a par dos seus contemporâneos. comunicacional desfavorável à obra de

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266 AnticAmonismo

Camões, que a sua edição das Rimas vi-


ria superar: até 1595 a lírica do príncipe
dos poetas só circulava “espedaçada” em
“livros de mão” (como, aliás, quase todas
as obras dos poetas quinhentistas). Pode-
mos ponderar o que nisso ia de limitação
ao camonismo à luz do espírito que era
invocado na edição das Rimas: “A publi-
cação da Lírica camoniana se fazia com o
espírito de resgate cultural, de recupera-
ção de um património português, com o
objetivo de marcar uma nova época na re-
ceção da poesia camoniana” (HUE, 2011,
858). E a epístola dedicatória do livreiro
Estêvão Lopes ao protetor D. Gonçalo
Coutinho lá assinala os “juízos pobres
que o perseguem como estrangeiro”, tal
como a décima “Nominibus gentis, donis,
Coutigne, Minervae” de Manuel de Sou-
sa Coutinho (Fr. Luís de Sousa) louva o
mecenas por haver livrado Camões das
trevas do esquecimento. Nesse sentido,
o “Prólogo aos leitores” de Soropita não Rosto de Os Lusiadas, de Luís de Camões.
podia ser mais assertivo sobre a existência
de detratores de Camões: “E posto que
não faltam murmuradores que calunia- Sousa) o episódio do taful sevilhano que
ram suas obras, não escurece isso o me- se situaria após IV, 40, na medida em que
recimento delas, porque também Virgílio o considerava condizente com o tom das
e Homero passaram por este transe, que cartas eróticas que Camões escrevera da
é natural a todos os engenhos raros” (Id., Índia (e cuja autenticidade suscita muitas
Ibid., 864). dúvidas).
Indiretamente ou enviesadamente, ti- Prejuízos à boa fortuna crítica da obra
veram de quando em vez efeitos antica- de Camões ou pelo menos perturbação
monistas as notícias e congeminações so- da acribia de um esclarecido camonismo
bre esboços do poema épico que não só provieram de incidentes históricos como
apresentariam variantes textuais de bas- o da construção, por Filinto Elísio, de um
tantes oitavas, mas também conteriam es- falso exemplar de Os Lusíadas, e de falsa
tâncias depois suprimidas por injunções notícia jornalística sobre a existência de
muito discutidas (por imposição de ter- um códice secularmente ignorado e ago-
ceiros? ou por opção temático-formal do ra estudado por Arthur L.-F. Askins e, por
autor?). Como seria de esperar, em senti- outro lado, pelo manuscrito dito judai-
do de corrosão do camonismo canónico, zante, parcialmente estudado por Maria
por meados do séc. xx Aquilino Ribeiro Antonieta Soares Azevedo, mas nunca
não perdeu a oportunidade de explorar, tornado público.
no chamado manuscrito de Pedro Coe- Sobretudo, a fortuna crítica de Camões
lho (um dos dois referidos por Faria e foi perturbada negativamente pelas

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AnticAmonismo 267

vicissitudes da história editorial da sua critérios objetivos com base sobretudo


obra. No que concerne a Os Lusíadas, pri- nos dados extrínsecos propugnados por
meiramente pelos erros técnicos e imper- Storck e por Carolina Michaëlis de Vas-
feição global do processo de impressão, concelos, o rol de travessuras inflacio-
com recurso a vários papéis que António nárias com o corpus da lírica camoniana
Gonçalves tinha de reserva, e, depois, decorreu em grande parte do círculo vi-
pelo delongado mito das duas edições de cioso no recurso a elementos estilísticos
1572, agravado pela convicção generali- para a definição do cânone textual. Ao
zada (e, como quase fatalmente aconte- mesmo tempo, campearam as tropelias
ceu, acalentada por Teófilo) de que uma na fixação de cada texto, particularmen-
delas seria autêntica e a outra fraudu- te na alteração de muitos versos por su-
lenta, com alterações “feitas não impor- postas correções métricas, avançadas no
ta quando ou por quem, sobretudo em desconhecimento da prática versificató-
vista da aparente recomposição tipográ- ria quinhentista.
fica dos fólios”; criou-se assim, sintetiza A par da imperícia dos impressores, as
Keneth David Jackson, “um dilema com malfeitorias da censura foram realçadas
consequências graves e irresolúveis para por Teófilo desde pelo menos 1891, com
futuras edições da obra camoniana, cujo Camões e o Sentimento Nacional. São de di-
cânone continuaria a nadar num mar de versa ordem os factos que justificam se-
variantes, com a aplicação de critérios melhantes juízos; mas sobretudo o mora-
diversos entre os seus editores” (JACK- lismo ancestral e metamórfico de leitores,
SON, 2011, 334) Quanto à lírica, logo o críticos e pedagogos encontrou sempre
próprio Faria e Sousa denuncia deturpa- as razões maiores de censura na euforia
ções e erros por ignorância na transmis- libidinal do episódio mítico-erótico da
são manuscrita dos poemas e lamenta o Ilha dos Amores.
carácter obscuro que imprimiam a esses Efeito colateral da mudança de clima
textos, embora também diga que noutros cultural e religioso culminante na ação
passos Camões “caiu”; mas desde as duas inquisitorial em aspetos adversos da his-
edições de 1595 e 1598, as sucessivas edi- tória editorial da obra de Camões exem-
ções póstumas das Rimas geram um cor- plifica-se porventura com a ausência, na
pus inflacionado e deturpado, carecente, edição das Rimas em 1595, da ode “Aque-
a começos do séc. xxi, de uma definição le único exemplo”, com que Camões fa-
do cânone e de rigorosa fixação ecdótica vorecera a edição em 1563 dos Colóquios
dos textos. dos Simples e Drogas da Índia, que poderá
Das vicissitudes e ambíguos efeitos que ter decorrido da condenação do autor
marcaram a história editorial de Camões desta última obra, o cristão-novo Garcia
dá bons exemplos a edição Juromenha da Orta, e da destruição de muitos exem-
da lírica camoniana; em grande par- plares da mesma no póstumo auto de fé.
te apoiada na recolha de composições O censor dominicano Fr. Bartolomeu
inéditas forrageadas naquela diversida- Ferreira parece ter interferido negativa-
de de fontes que ele próprio designou mente na versão impressa do Auto de Filo-
por verdadeira feira da ladra da litera- demo. Como revedor da edição princeps de
tura, ressente-se das pouco criteriosas Os Lusíadas, usou de liberalidade na au-
opções nessa operação de recolha e de torização da obra (fingimento e poesia);
graves defeitos filológicos e ecdóticos. mas Aquilino Ribeiro dá a voz mais forte a
Em geral, à falta de estabelecimento de quantos entenderam acusar Bartolomeu

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268 AnticAmonismo

Ferreira de haver metido a mão ou de ha- nência informativa e de inteligência


ver forçado a pena de Camões em passos poética que, respondendo decerto a
incongruentes da parte final do poema, orientações então predominantes, ca-
nomeadamente das oitavas 82, 83 e 84 do racteriza essa edição ad usum Delphini
canto x. Logo as edições de Os Lusíadas talvez originariamente preparada pe-
de 1584 e 1591 vêm estropiadas pela cen- los Jesuítas para uso didático (sugestão
sura inquisitorial; e Bartolomeu Ferreira, oriunda de Faria e Sousa e continua-
que no fundo aplica o preceituado no mente propalada, apesar da contesta-
Aviso Terceiro do Index de 1581, por ele ção por Sousa Viterbo, em 1891). Além
mesmo redigido, como que se desculpa de expurgos e alterações de índole polí-
desses atentados à fidedignidade do tex- tica em alguns trechos da narração, sob
to camoniano reiterando a concessão de o efeito da conjuntura de dominação
1572 sobre o muito engenho e erudição filipina (neutralizando ou invertendo
que o autor demonstrava. Na edição de encomiasticamente os termos deprecia-
1597, a licença, da responsabilidade de tivos para espanhóis, e.g., o condestável
Manuel Coelho, oscila nos termos, mas D. Nuno Álvares Pereira passa, no canto
está em linha com o juízo recebido pela iv, de “açoute de soberbos Castelhanos”
princeps de 1572; e o mesmo se verifica nas a “exemplo de valentes Castelhanos”), e
licenças de Fr. António Freire (1606, eds. da substituição recorrente de “deuses”
de 1609 e 1612) e de Fr. António de Sal- ou “deusas” por outras palavras, sobres-
danha (1611, ed. de 1613), numa linha saem os cortes integrais e a deturpação
de resgate do poema justamente perante substancial das muitas estâncias tidas
riscos e ataques anticamonistas. por “desonestas”, especialmente os pas-
Entre as edições marcadas pela inter- sos de euforia libidinal ou visualismo
venção censória decorrente do novo ín- erótico (retrato de Vénus no canto ii
dice censório publicado em 1581, que e de Tétis (?) no canto vi, delírio amo-
acrescentava à nova tradução do índice roso do Adamastor com a nereide Tétis
tridentino uns “Avisos e lembranças que no canto v, sobretudo lances bacanais
servem para o negócio e reformação dos da Ilha dos Amores no canto ix).
livros”, da autoria de Fr. Bartolomeu Fer- Fr. Manuel Coelho é também o censor
reira, e que em particular condenava o da 1.ª edição das Rimas, em 1595, e se,
convívio com livros em que “há desones- por um lado, continua a considerar que
tidades e amores profanos”, vão estar as termos como “deuses”, “fado” e “fortuna”
primeiras edições das Rimas e novas edi- não vão contra as Sagradas Escrituras e a
ções estropiadas de Os Lusíadas. verdadeira teologia (invocando as mes-
O caso mais grave de deturpação do mas razões e exemplos de Bartolomeu
texto da epopeia é o da chamada “edi- Ferreira), o certo é que a edição elimi-
ção dos piscos” (1584), que deve essa na duas estrofes da chamada Écloga dos
curiosa designação a um pitoresco e Faunos e anota esse expurgo dos versos
disparatadamente sintomático ditado que descreveriam o banho de Diana e a
de um dos anónimos comentadores so- contemplação furtiva da sua nudez por
bre a “piscosa Cezimbra”, a saber: “Cha- Actéon. Também na colação das Rhy-
ma piscosa, porque em certo tempo se thmas de 1595 com as Rimas de 1598 al-
ajunta ali grande quantidade de piscos gumas das variantes internas parecem
pera se passarem à África” – indício in- obedecer a censura religiosa preventiva,
felizmente cumprido da falta de perti- tal como parecem devidas a prevenções

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AnticAmonismo 269

de ordem moral a exclusão das voltas ao Portugal e no Brasil, esta é alvo todavia de
mote alheio “Caterina bem promete”, das juízos mais severos dos seus méritos esté-
trovas “Esses alfinetes vam”. tico-literários, pela pena de Manuel Pires
É certo que a alteração, durante os de Almeida e de D. Marcos de S. Louren-
prolongados anos de composição de Os ço; e dá origem por vezes à receção ambí-
Lusíadas (e da lírica), do contexto histó- gua da paródia (e.g., nas cartas de Fr. Lu-
rico-social e do ambiente cultural, com o cas de S.ta Catarina no Anatómico Jocoso e
avolumar de fatores de crise e o adven- noutros textos conhecidos, sem terem
to de um clima intelectual e espiritual chegado aos prelos). Além disso, como
de inseguranças e de medos, agravado observou Mafalda Ferin da Cunha, vários
pela ação censória, punitiva ou dissuasó- poemas épicos ou heroicos “afastam-se
ria da Inquisição, não deixou de marcar da poética que rege Os Lusíadas, mas se-
Camões e a sua escrita. Permanece, to- guem bastante mais de perto a da Jerusa-
davia, matéria controversa a submissão a lém Libertada de Tasso, uma feliz confluên-
interferências de entidades religiosas na cia da precetiva aristotélica e dos ideais
redação ou remodelação de passos dos contrarreformistas” e, por consequência,
últimos cantos da epopeia e no “estilo diferenciam-se do discurso camoniano na
tardio” de alguns grandes poemas líricos. medida em que “recusam o maravilhoso
Mas essas interferências aventadas ou da- mitológico e adotam o cristão ou proso-
das por certas teriam constituído, peran- popeico, abrem espaço à ficção verosímil,
te um poeta a que se assacavam também buscam a unidade de ação, relacionando
as oscilações no concernente ao decoro vários episódios bélicos e amorosos com
da maiestas tua/humilitas mea, outra mo- o nó central do poema, e comprometem-
dalidade de anticamonismo quinhentista se, ainda mais do que Os Lusíadas, com
e como tal foram enfatizadas no séc. xx a celebração da fé cristã. Por outro lado,
por antecessores e seguidores de Aquili- nalgumas delas […] a influência de Os
no Ribeiro. Lusíadas parece secundarizar-se face à in-
Consolidada ao longo do séc. xvii, a fluência mais marcante, em termos estru-
canonização de Camões (na mitificante turais, das epopeias de Homero e da Enei-
fusão de sua personalidade, seu destino da, enquanto outras, como a Insulana,
e sua obra) manifesta-se até ao início que constituem extensos panegíricos de
do séc. xviii em citações e comentários, um mecenas e da sua família, se afastam
glosas e paráfrases poéticas, edições e tra- do valor formativo e universal da epopeia
duções da epopeia e do inflacionado cor- de Camões” (CUNHA, 2011, 176).
pus lírico, que parecem querer também A primeira grande edição comentada
corrigir e compensar o descaso com que de Os Lusíadas, pelo Lic. Manuel Correia
os contemporâneos de Camões o teriam (1613), com resgate póstumo das suas ano-
deixado viver e morrer pobre e misera- tações por Pedro de Mariz, em ambígua
velmente (apesar de, logo na pioneira interferência, mostra-os a ambos, como
biografia de Mariz, não se rasurar a culpa assevera com autoridade Isabel Almeida,
que também cabia a Camões no desam- “empenhados em refutar o que denun-
paro mecenático e no facto de ter regres- ciam como um coro mais ou menos difuso
sado ao reino “capitulado”). No séc. xvii, de críticas às ousadias do poeta (desde a
sem embargo da predominante boa re- liberdade linguística traduzida nos neo-
ceção crítica e criativa que maneiristas e logismos, até ao teor de seus juízos e fic-
barrocos dispensam à obra de Camões em ções)” (ALMEIDA, 2011, 297). É com esse

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alcance de revelação a contrario de epo- A superior categoria da crítica de Ma-


cais vozes e intuitos anticamonistas que nuel Pires de Almeida vai manifestar-se
contam aqui passos do comentário que sobretudo em juízos e polémicas em
se distinguem por processos retóricos de torno da vida de Camões e sobretudo
anticipatio e de concessio, para proteção do da obra camoniana – quer na desmonta-
poema contra as também compreensíveis gem de panegíricos como os de Manuel
acusações de excessos – e.g., a propósito da Severim de Faria em Discursos Vários Po-
estrofe 31 do canto iii e do amor “sensual” líticos (1624), quer em digressões sobre
de D. Teresa nas estrofes 45-49 do canto x, elogios e censuras (e.g., ao uso da mito-
do castigo aplicado a Rui Dias por Afonso logia pagã e à falta de unidade de ação e
de Albuquerque, e da controversa estrofe de herói), que, preservando embora um
119 do canto x, com a suspeita de ataque equilíbrio que o racionalismo iluminista
aos Jesuítas. Em suma, perante reações pa- e o formalismo neoclássico não respei-
tentes ao teor “perigoso” de alguns passos tarão no séc. xviii (desde Verney a José
de Os Lusíadas, em particular no canto x, Agostinho de Macedo), contextualmen-
estrofe 119, os padres Manuel Correia e te derivaram para uma integração no
Pedro Mariz teriam elaborado comentá- confronto entre camonistas e tassistas.
rios tortuosos por julgarem conveniente Muito antes de, por volta de 1648 e 1652,
velar a letra do poema e proteger Camões se dedicar ao comentário respetivamen-
de escândalo nefasto. te de Os Lusíadas e das Rimas, Pires de
Em nome do carácter ficcional e sim- Almeida pronunciara-se com apreço
bólico do poema camoniano e da conse- e reservas a “alguns descuidos” de Ca-
quente necessidade de não o sujeitar a mões no Juízo Crítico sobre a Visão do Indo
leitura literal, mas sim alegórica, a apo- e Ganges, Rios da Índia, a el-Rei D. Manuel,
logia de Severim de Faria em Discursos Representado nos Lusíadas de Camões em o
Vários Políticos (“Vida de Luís de Camões Canto Quarto (1629) e em escritos sub-
com um particular juízo sobre as partes sequentes que se integram na polémica
que há-de ter o poema heróico e como assim suscitada com camonistas apolo-
o poeta as guardou todas nos seus Lusía- géticos, particularmente João Soares
das”) responde a vozes anticamonistas, de Brito, João Franco Barreto e Manuel
que apontavam, entre outros desvios e de Faria e Sousa. Este debate desdobra-
defeitos, o recurso às divindades do pa- se numa mais vasta polémica em que,
ganismo greco-latino. Mas o próprio tomando por modelo Torquato Tasso,
Severim de Faria se verá contestado por alguns comentaristas e críticos depre-
Manuel Pires de Almeida, em nome das ciam Camões relativamente àquele mo-
normas do género épico. delo – podendo mesmo enveredar por
Na teorização e crítica literárias seiscen- pronunciamentos hostis a Camões (em
tistas, também interessam os ecos e as res- textos que foram desaparecendo ou sen-
postas a reservas e objeções que corriam do sonegados). Nessa sequência se vêm
anónimas desde a viragem do século (lis- inserir Francisco Rodrigues da Silveira
tadas por Severim de Faria e referidas por e aqueles D.  Agostinho Manuel de Vas-
Manuel Pires de Almeida), em particular concelos e D. Francisco Rolim de Moura
certo censor de Lisboa; o próprio Faria a que aludirá D.  Francisco Manuel de
e Sousa, no seu monumental comentário Melo no Hospital das Letras, em que aliás
dado à estampa em 1639, condena censo- se mantém fiel à linhagem de defesa da
res inominados de Camões. superioridade de Camões. A qualidade

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da apologia de Soares de Brito, com sua e se foi acentuando a obediência norma-


sensível e minuciosa análise do texto ca- tiva à poética aristotélica em interpreta-
moniano no quadro da estética barroca, ção restritiva.
dá bem a ideia da dimensão considerável Condicionada por uma crítica cedo
da hoste de detratores ou depreciadores apostada em defesa nacionalista da epo-
de Camões. peia de Camões, a sensibilidade às refra-
Adotando também, implicitamente, ções dos Orlandos, de Boiardo e de Arios-
a posição tassiana, o erudito “Discurso to, derivou nas reticências ou censuras
poético” (1636) do neoaristotélico Ma- ao que seria um poema heroico fundado
nuel de Galhegos abre outra frente de num universo fantasioso. Mais ou menos
censura localizada – o erro, enquanto complacentes para com as compensações
poema heroico moderno, de iniciar a em cativante fantasia e noutros tributos
narração in medias res (ao contrário da estruturais aos grandes poetas de Ferrara
Ulisseia de Gabriel Pereira de Castro, à das quebras de unidade, e mais ou me-
qual caberia “primeiro lugar entre os nos comprometidos com a pertinência
[poemas] heroicos”) – e de global elo- de (um entendimento de) uma narrativa
gio reticente da obra épica de Camões; primária do poema épico como crónica
como sempre, não faltaram contendo- versejada e retorizada, as críticas desfa-
res, que começaram a empurrar Galhe- voráveis a Camões raro apontavam ainda
gos para o “inferno dos anticamoístas” para a convicção (ideológica) de algumas
(MARTINS, 1964, 83). Até pelo aplau- dissertações hodiernas – e.g., Luís Olivei-
so da relativa liberdade de conceção e ra e Silva, que também reage ao episódio
composição que Camões adotara em dos Doze de Inglaterra como digressão
Os Lusíadas e pela defesa da sua hibridi- “alargando-se anacronicamente numa
zação de romanço e de poema heroico enorme quantidade de estâncias imper-
a que procede Manuel Pires de Almei- tinentes” para Veloso “com grande lata
da, podemos calcular quanto a crítica e contar, como aperitivo da tormenta, com
a precetística do séc. xvii foram severas total descontração, as façanhas dos Doze
para aspetos técnico-compositivos e es- de Inglaterra” (SILVA, 2011a, 286).
truturais de Os Lusíadas na medida em Se os influxos de Ariosto ou as afinida-
que, ao invés do que acontecera até fi- des com a sua brilhante fantasia também
nais do séc. xvi (em que, aliás, o fascínio eram ambivalentemente rastreáveis nos
pelo épico-cavaleiresco Orlando Furioso, Autos de Camões, no Filodemo em parti-
de Ludovico Ariosto, e pela variedade cular a tal se acrescentava a influência da
de situações com que parecia figurar os Menina e Moça bernardiniana no que toca
aspetos contraditórios ou providenciais à estrutura dúplice (pela desenvolução
da existência humana levava a lisonjeiras das duas aventuras amorosas, afinal só
aproximações do poema épico camonia- aparentemente independentes) e à in-
no, sobretudo a propósito dos episódios tromissão do pastoril no mundo cavalei-
dos Doze de Inglaterra e da Ilha dos resco, mas também a elementos menores
Amores ou do tratamento familiar de como o episódio inicial do barco (aliás,
certas figuras e situações mitológicas), correlato como fator de expectativa de
foi avançando o valor paradigmático da aventuras cavaleirescas).
Jerusalém Libertada de Torquato Tasso Muito mais tarde, nas primeiras dé-
(unidade compositiva, ligação à história, cadas do séc. xx, mesmo um camonista
afastamento do sobrenatural na ficção) fervoroso como José Maria Rodrigues

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272 AnticAmonismo

estranhava a dupla infração à pureza da alegorização; mas já Manuel Pires de


cavaleiresca nas pretensões amorosas Almeida a estigmatizava como “a maldita
socialmente desajustadas do nobre Vena- alegoria”.
douro e do criado (humilde, mas culto e No estrangeiro, a desaprovação subiu
discreto) Filodemo, mas logo resgatando de tom na passagem do séc. xvii para o
a pertinência dessa anomalia por justifi- séc. xviii. Em Espanha, o entusiasmo ini-
cação engendrada à luz de mau biogra- cial perante Os Lusíadas cede lugar, des-
fismo hermenêutico, pois Camões quere- de meados do séc. xvii até às primeiras
ria assim defender “amores em desnível” versões oitocentistas, a um decréscimo
porque ele mesmo estaria então a viver de atenção e preito, mais sensível no
relação amorosa com uma infanta (RO- séc. xviii, pontuado por uma ou outra
DRIGUES, 1931). referência pouco lisonjeira para Camões
Entretanto, o período barroco, tão afe- (e.g., no “Poema heroyco en octavas ri-
to ao género paródico, cultiva-o também thmas”, El Sol Máximo de la Iglesia S. Ge-
sobre textos líricos de Camões (só nas ronymo, 1726, de Francisco de Lara); en-
coletâneas A Fénix Renascida e Postilhão de tretanto, o acesso de patriotismo galego
Apolo surgem vários exemplos, por entre de Fr. Martín Sarmiento atingia Camões,
outras modalidades de glosa), ao mesmo por não haver assumido e cantado as suas
tempo que prossegue com a paródia do origens familiares e por, ao contrário, ter
poema épico (quando não combina a descaído em ingratas depreciações de
paródia do lírico e do épico do “Poeta sórdidos e cautos galegos. Em Inglaterra,
torto”, como acontece na “Jornada que por finais do séc. xvii, Dryden acolhe as
Diogo Camacho fez às Cortes do Parnaso, objeções contra a coexistência do mara-
em que Apolo o laureou”). Várias paró- vilhoso pagão e da teologia cristã em Os
dias são, aliás, referidas em 1628 no texto Lusíadas, que se avolumarão até Hugh
introdutório do Pancarpia: Prosas Históri- Blair, Lectures on Rhetoric and Belles Lettres,
cas e Titulares & Versos Diferentes, coletânea 1783; em França, a mesma tendência tem
onde foi originariamente editada uma acolhimento no Grand Dictionaire Histori-
das obras desse género, a Imitação, Paró- que, 1674, de Louis Moreri, e avolumar-
dia e Centonização de Dez Estrofes d’Os  Lu- se-á com o Essai sur la Poésie Épique, 1727-
síadas de Camões, Fr. Cristóvão Osório. -1733, de Voltaire e toda a sua influência;
Com Lusíadas de Camões – Imitação ao e o mesmo se verifica em Portugal, des-
Burlesco por Um Autor Incógnito, António de Valadares e Sousa ou Pina e Melo até
de Magalhães e Menezes pretende dar D.  Francisco Alexandre Lobo (maxime a
sequência ao “estilo báquico” das “festas propósito do célebre verso “o falso deus
bacanais” eborenses, exercitando-o sobre adora o verdadeiro”).
o canto vi. Mais tarde, Fr. Lucas de S.ta Ca- Em Portugal, durante boa parte do séc.
tarina parodia oitavas dispersas ao longo xviii, a cultura literária ainda tributária
do Anatómico Jocoso (1753-1755). do Barroco presta homenagem a Camões
Já Manuel Correia mostrara desconfor- em espírito de reparação, como mostra a
to com a presença e o papel dos falsos “Introdução poética” de António dos Reis
deuses. Perante os debates anteriores à no limiar da Fénix Renascida (“Camões, o
Restauração de 1640 e as desconsidera- mor poeta, o mor soldado,/[…]/Aque-
ções de leitores portugueses desde os iní- le engenho nunca assaz louvado,/Que
cios do séc. xvii, Faria e Sousa preserva a quanto mais nos louva, nos condena,/
defesa de Camões pela via interpretativa Sendo calúnia nossa os seus louvores,/

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AnticAmonismo 273

1820, 19) – esquecendo esses críticos o


que a lição de Aníbal Pinto de Castro irre-
fragavelmente dilucidou: a coerência de
intentio auctoris e intentio operis garantida
pelo sentido estético de Camões, pela sua
equação com a norma clássica do equilí-
brio e pela singular articulação funcional
e simbólica dos episódios numa conceção
unitária da obra, não redutível à estipula-
da unidade de ação.
O contexto iluminista dos ímpetos
pombalinos de reforma sociocultural e
certa “crise na institucionalização das Be-
las Letras como prática do deleite e da ins-
trução” (FRANCO, 2011, 224) levaram a
uma revisão das antecedentes leituras lau-
datórias da obra de Camões e atingiram
duramente a sua imagem de modernida-
de humanista. A peça mais relevante e
ressonante (por opúsculos de controvér-
sia e notícias na imprensa) dessa denega-
ção da sublimidade do poeta foi a famosa
“Carta vii” do Verdadeiro Método de Estudar,
Rosto de Le Grand Dictionaire Historique, em que Luís António Verney, aplicando à
de Louis Morery.
sociedade setecentista a determinação da
inutilidade da poesia na polis que Platão
Que pagamos com tantos desfavores”). lavrara na República, e dando por assente
Além de Os Lusíadas, a crítica setecentista que falta erudição e discernimento a Ca-
não enfeudada às reservas iluministas e mões (no fundo, cantor por antonomásia
arcádicas consuma o processo de cano- da pátria portuguesa e símbolo-mor da
nização da lírica camoniana, dando lugar mentalidade lusa que Verney queria re-
até ao apagamento do valor ou ao silen- baixar e substituir), censura severamente
ciamento do nome dos poetas seus con- vários aspetos de Os Lusíadas (a impro-
temporâneos (segundo o que Hélio Alves priedade do título, a deslocada invocação
designa por derrogação da diferença). dos deuses pagãos, a infração das normas
Desde alguns dos comentaristas do do género épico, o excesso de episódios e
séc. xvii até aos picos da crítica setecen- ações secundárias, a inadequação ao esta-
tista (e a eruditos posteriores que gostosa- tuto de herói épico do carácter do Gama,
mente se abonam com essa crítica, como etc.); ressalvando a “naturalidade” dos
Hélio Alves), pretendeu-se que Camões versos, Verney estende os juízos negativos
se perdera por uma composição enciclo- à conceção genológica e à execução for-
pédica de Os Lusíadas, parecendo a José mal dos poemas líricos (éclogas e odes,
Agostinho de Macedo e seus citadores elegias e sonetos, mesmo ou sobretudo os
que “não intentara compor um poema famosos “Alma minha gentil, que te par-
épico, mas encíclico, que abrange mui- tiste” e “Sete anos de pastor Jacob servia”)
tos objetos e muitas acções” (MACEDO, – fazendo daí decorrer a insuficiência de

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274 AnticAmonismo

Camões para figurar no cânone euro- artigo “Camões” (1811), e na sua senda
peu, pois “querê-lo comparar a Homero, Simonde de Sismondi, com seu contra-
como fazem muitos, ou querê-lo colocar pontado balanço em A Literatura do Sul da
sobre os das outras nações todas […] não Europa (1813) em que ainda acompanha
deixa de ser temeridade”. Voltaire na censura da inverosimilhança
Os juízos de Verney acomodavam à do relato ao rei de Melinde e ao excesso
pragmática da sua intervenção reforma- de alegorização. Staël e Sismondi prepa-
dora, num Portugal periférico e tido por ram o impacto da edição parisiense do
atrasado no processo de modernização Morgado de Mateus (1817), de novas ver-
europeia, as considerações que – situan- sões em francês e dos comentários que
do-se aliás na senda de R. Papin, para difundem com grande sucesso a visão
quem “os versos dele [Camões] são tão melodramática da vida de um Camões
obscuros que poderiam passar por misté- heroico e mal-amado, e das análises e ver-
rios […]. É altivo e faustoso na compo- sões líricas de Ferdinand Denis que, sem
sição, mas tem pouco discernimento e esconder aspetos que julga defeituosos,
pouca retidão” (PAPIN, 1674) – Voltaire contribui para crescente convívio com o
inscrevera no seu Essai sur la Poésie Épi- verso e o mito camonianos – que passa
que: o encanto com o episódio de Inês de depois por lances bizarros como o da tra-
Castro e a alta admiração pela criação do dução em verso de Os Lusíadas por Fran-
Adamastor não bastam para atenuar, na çois-Félix Ragon (1842), que não se coíbe
perspetivação racionalista da estética aris- de expurgar trechos que julga cheios de
totélica e do seu princípio axial da vero- defeitos (embora os traduza em nota).
similhança, a condenação racionalista da Num mesmo sentido confluíram, antes
promiscuidade entre religião católica e e depois do arcadismo, atitudes críticas
mitologia greco-latina – “um maravilhoso condicionadas pela reação antibarroquis-
tão absurdo desfigura a obra toda no juí- ta e desamparadas do (ainda não formu-
zo dos leitores sensatos” – e “tais dispara- lado) conceito estilístico-periodológico
tes” (VOLTAIRE, 1775, 329) de uma mais de maneirismo e dos seus préstimos
alta pecha de inverosimilhança (além da hermenêuticos e críticos, mas gradativa-
inadequação do título a um poema cujo mente reafeiçoadas por mais equilibrada
herói Voltaire considera ser o Gama). equação estética de racionalidade e sensi-
Se nessas e noutras depreciações – ina- bilidade, com crescente exigência heurís-
dequação do título, construção defeituo- tica e ecdótica e mais rigorosa crítica de
sa e expressão obscura, visão inaceitavel- fontes (como se vê, e.g., nos opúsculos da
mente orgulhosa da nação portuguesa, polémica provocada pela edição das Obras
etc. – Voltaire atualiza a ótica de Rapin, pelo P.e Tomás José de Aquino, entre os
por seu turno, o seu pronunciamento so- quais um, publicado pelo oratoriano José
bre Camões difundiu-se por Juvenal de Valério em 1784, ostenta um título, Camões
Carlencas, Abbée Delille, etc., e toldou Defendido, ambivalentemente indiciante
duradouramente a receção de Camões, da oscilação da fortuna crítica do poeta).
mas viu-se também equilibrado no Abbée É então matizada ou mesmo contra-
Prévost e em Montesquieu, e contrariado pontada, se não antinómica, a desenvo-
por Desfontaines, Duperron de Castera, lução dos estudos e comentários, críticas
etc., em contraste com o infamante La e controvérsias, que sob o novo signo
Harpe (1776, 1820). Até que chega M.me da estética neoclássica se centram na
de Staël, com seu seduzido e sedutor compreensão e apreciação da obra de

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AnticAmonismo 275

Camões (Francisco José Freire/Cândido Se Camões se vê frequentemente cha-


Lusitano, Sampaio Valadares, Mesquita mado à colação ou submetido a escrutí-
e Quadros, Pedro José da Fonseca, etc.), nio em quase todas as polémicas que atra-
dissentindo, quanto a Os Lusíadas, espe- vessam esse período (e.g., entre Valadares
cialmente nas uexatae questiones do herói e Sousa e “o Camões do Rossio”, Caetano
(Vasco da Gama, e não o herói coletivo José da Silva Sotomaior, por 1739), é so-
do “peito ilustre lusitano”) e sua caracte- bretudo na polémica em torno do Verda-
rização (de duvidosa coerência compor- deiro Método de Estudar que a sua cotação
tamental, mental e verbal), do título (tido está em causa, com uma acuidade que
por tão inadequado à exaltação épica de podemos medir a contrario pela pormeno-
herói individual que um dos melhores rizada ou irónica desmontagem das vul-
editores-comentadores, Garcês Ferreira, nerabilidades e incoerências de Verney
não se coíbe de o modificar para Lusía- por parte do P.e José de Araújo (que, em
da), da proposição (desproporcionada 1950, também reage frontalmente contra
no louvor a figuras gradas, no limiar de Voltaire) e de Pina e Melo (1952).
um poema que narra apenas uma ação Com a implantação da Arcádia Lusita-
– a viagem do Gama à Índia), da invoca- na e a proliferação subsequente de aca-
ção (contestavelmente dirigida às ninfas demias provinciais e brasileiras, Camões
e colocada demasiado longe do início da passa a ser olhado prevalecentemente
narração), da dedicatória (por demais com figura e prática modelares, ganhan-
extensa), do início da narração (de uma do relevo programático fundamental e
ação histórica demasiado recente), das tornando-se ímpar padrão intertextual
intervenções do poeta (julgadas excessi- no tratamento lírico dos tópicos petrar-
vas, à contraluz do preceituado distancia- quistas; mas, como o poeta Bingre pro-
mento épico e chamando mal a si o que clama para Correia Garção, Filinto Elí-
deveria decorrer da representação de sio e Bocage, Camões torna-se então um
ações exemplares), do uso da mitologia mestre com quem dialoga ou se identifi-
(em geral condenado por incongruente ca, pro domo sua (nem que seja de forma
com o canto de factos históricos moder- reversa), o vate subestimado ou o bardo
nos e o discurso militante de religiosida- desditoso – porventura ao tempo com al-
de católica, mas que António das Neves guns riscos de ambiguidade na projeção
Pereira já legitimava como imagens de da sua imagem, a que de todo são alheios
pertinentes densidade semântica e po- os cantos panegíricos como os que o con-
tencial plástico) e do perturbador episó- trarrevolucionário António Ribeiro dos
dio da Ilha de Vénus (chegando alguns Santos dedica À Memória do Grande Luís
tradutores estrangeiros a suprimir ou re- de Camões.
fazer algumas estâncias), da construção Paralelamente, a paródia do episódio
retórica (geralmente tida por exemplar) do Velho do Restelo subserve a sátira bur-
e dos recursos de estilo e linguagem (em lesca ad hominem intitulada Zamperineida
Os Lusíadas, só não louvados quando (1774), atribuída ao poeta brasileiro Ba-
marcados por elementos maneiristas, sílio da Gama e visando a exploração di-
mas privilegiados na análise e valoração vertida dos amores da cantora lírica Ana
da lírica, sobretudo em Memórias da Li- Zamperini e do árcade P.e Manuel Ma-
teratura Portuguesa, elaboradas na Aca- cedo. Por outro lado, a versão burguesa
demia das Ciências por Francisco Dias do neoclassicismo frequenta muitas ve-
Gomes e António das Neves Pereira), etc. zes em registo satírico a fronteira fluida

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276 AnticAmonismo

entre paródia de ressonâncias camonia- que envolveu na defesa de Camões, e no


nas e poema herói-cómico (culminante cotejo com a poesia de Macedo, nomes
em O Hissope, 1802, de Cruz e Silva, e Os então mais ou menos sonantes (desde o
Burros, 1827, de José Agostinho de Mace- Cardeal Saraiva a Pato Moniz) e se pro-
do, mas passando pela “musa galhofeira” longou até José Ramos Coelho. Entre ou-
da Agostineida de Pato Moniz, em desagra- tras motivações históricas e ideológicas,
vo de 1817 contra o anticamonismo de o vezo anticamoniano levava Macedo a
Macedo e do seu “indigestíssimo poema” visar, nos seus sucessivos opúsculos e arti-
de falhado épico). Trata-se de uso satírico gos de justificação e diatribe, os camonis-
que, pelo séc. xix em fora, visará uma e tas expatriados (desde João Bernardo da
outra vez figuras e práticas políticas (e.g., Rocha Loureiro ao Morgado de Mateus).
A Visão do Herói da Ilha das Galinhas. Paró- Mas o certo é que o cerne do libelo de
dia do Episódio do Adamastor em 19 oitavas, Macedo contra a “seita camoniana” esta-
de 1872) ou desmandos ético-sociais (e.g., va próximo de figuras tão equilibradas na
paródia do canto i de Os Lusíadas em cur- assunção do espírito e da normatividade
ta composição de Faustino Xavier de No- (estética e ética) próprios da tradição
vais, Poesias Póstumas, 1877) – enquanto neoclássica como o sábio bispo de Viseu,
o modelo seiscentista de Paul Scarron se D. Francisco Alexandre Lobo, que, ainda
refratava nos alexandrinos franceses de em 1821, em importante publicação da
J. R. M. Scarron II, criptónimo de Jacques Academia Real das Ciências, censurava
Robert Mesnier, em Les Lusiades Traves- o maravilhoso de Os Lusíadas por inve-
ties: Parodie en Vers Burlesques, Grotesques et rosímil e incongruente, condenava por
Sérieux. Voyage Maritime et Pedestre du Grr- indecorosa o retrato de Vénus e das nin-
rand Portugais Vasco da Gama, 1883. fas, e tinha por inaceitável que o prémio
O carácter epigonal da depreciação crí- da virtude dos navegantes consistisse em
tica na Análise dos Lusíadas de Camões de delícias da mesa e do amor. Aliás, já com
Jerónimo Soares Barbosa acentua-se pela o romantismo implantado em Portugal,
natureza póstuma da edição em 1859, já contrariando o juízo favorável para que,
longe do ambiente de polémica tardia, após fase de tom reservado, se encami-
na fase declinante do período neoclás- nhara o último Herder na revista Adras-
sico, provocada por José Agostinho de tea, esse “completo desatino de um Poeta
Macedo, como suposto émulo de Camões de que faço tanto apreço” (LOBO, 1821,
enquanto poeta épico e como arguente 274) não foi menos vivamente exproba-
destemperado, desde Reflexões Críticas do nas Viagens na Minha Terra, por um
sobre o Episódio de Adamastor, em 1811, a Garrett que sempre expendeu a opinião
Censuras dos Lusíadas, em 1820, passando de que “o mais indesculpável defeito que
por alguns solilóquios de Motim Literário. até aqui esgravataram críticos e zoilos na
No “Discurso preliminar” ao poema Ilíada dos povos modernos, os imortais
épico O Oriente (que, em 1814, refundia Lusíadas, é sem dúvida a heterogénea e
O Gama, de 1811), Macedo proclama-o heterodoxa mistura da teologia com a
superior a Os Lusíadas e, reciclando ou mitologia, do maravilhoso alegórico do
dilatando anteriores censuras setecen- paganismo com os graves símbolos do
tistas, procede a um juízo devastador da cristianismo” (cap. vi).
épica camoniana, provocando acesa ce- No início do séc. xix, com a Inglater-
leuma, que também abrange retroativa- ra em ambiente romântico, Adamson
mente O Gama, e que teve tal relevância enreda a receção da lírica de Camões no

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AnticAmonismo 277

círculo vicioso do biografismo crítico, que encontrara em Camões intérprete


interpretando os poemas em termos de supremo, era, como diria A. P. Lopes de
registo da vida do poeta e procurando Mendonça e depois Teófilo, toda uma na-
preencher lacunas de informação bio- cionalidade que renascia.
gráfica com dados retirados literalmente Este vetor glorificante de Camões nem
da obra literária, enquanto perante essa se deixa então beliscar em sede de cultu-
edição comentada R. Southey parece es- ra romântica e do seu congénito histori-
tender as opiniões depreciativas à própria cismo pela perspetiva de Hegel sobre o
escrita originalmente camoniana. que de negativo teria o contraste entre o
Em Portugal, as décadas dos finais do assunto nacional da epopeia camoniana
séc. xviii e dos alvores do séc. xix são, e o seu intrínseco classicismo, nem se dei-
no plano da estética literária e da dinâ- xa contaminar pelas referências pouco
mica institucional do campo literário, lisonjeiras de Victor Hugo no prefácio às
fase de esgotamento dos epigonismos Odes et Ballades (1824), além de natural-
tardo-barrocos e rococós e de declínio da mente fazer orelhas moucas às palavras
dominante arcádico-neoclássica e de ma- loucas com que Joseph Autran (Os Poemas
nifestações assistemáticas, por entre acul- do Mar, 1852) censura Camões como fra-
turações iluministas, de novas tendências co imitador de Virgílio, que não teria fala-
de “estética da sensibilidade” a caminho do suficientemente do mar. Se juntarmos
do romantismo; mas são também período a reconfiguração romântica da sua perso-
convulso de acontecimentos políticos e nalidade e do seu destino como “poeta
militares, económicos e sociais, que aba- maldito” – com Garrett e o seu Camões
lam a consciência nacional e a tornam (1825) a darem superior síntese romanes-
mais necessitada de alentos históricos e ca e imaginífica a lances de identificação
simbólicos para a reação patriótica – en- idiossincrásica e literária de Filinto Elísio,
contrando-os superlativamente no apego José Anastácio da Cunha e sobretudo de
fervoroso a Camões, herói por excelên- Bocage com o temperamento buliçoso, a
cia das armas e das letras, representan- sensibilidade vibrátil, a inquietação men-
te supremo do espírito da pátria. Logo tal, a vida aventurosa e desventurada, a
depois, com as vicissitudes da implanta- grandeza incompreendida e amargura-
ção periclitante do regime liberal e das da, a transmutação poética da agitação
intercadentes reações antiliberais, quer vivencial –, teremos presente a torrente
o nacionalismo de todos os quadrantes, mitográfica que atravessará Oitocentos
quer o patriotismo cívico de Garrett e dos e boa parte do séc. xx Nesse quadro, o
mais progressistas reforçavam essa prima- anticamonismo não tem quase possibili-
zia de Camões e a urgência do seu culto, dades de se manifestar assertivamente;
ao mesmo tempo que – partilhando com e só pode traduzir-se reversamente pe-
entusiasmo o juízo de Schlegel (para o los prejuízos que à imagem do poeta, e
qual, sobretudo mercê da epopeia escrita sobretudo à cooperação interpretativa e
sob ardente inspiração do heroísmo na- crítica com a sua obra, não deixou de tra-
cional, a obra de Camões compreende zer a estereotipização, a trivialização e a
toda a poesia da sua nação e vale por uma desfocagem dos panegíricos do homem
literatura toda inteira) – o colocavam e da obra, tal como a instrumentalização
no centro da atuação determinada pela ideológica e política.
convicção de que, com a nova literatura, O biografismo crítico campeou desen-
intencionalmente vinculada ao volksgeist freadamente e tanto deu origem a fanta-

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278 AnticAmonismo

siosas construções ou infundadas ilações sa condição de génio de poeta maldito,


sobre a vida de Camões, quanto delas se mas outras vezes em sentido depreciati-
prevaleceu, desfigurando a sua presença vo, rebaixante da sua condição social e
na história e treslendo a sua escrita, em cultural, infirmadora do cabedal de lei-
especial a da sua lírica – que entretanto turas e de reflexão tido por necessário
via o seu corpus ser precipitada ou frau- substrato de uma poesia com dimensão
dulentamente inflacionado numa con- filosófica (nomeadamente no que toca
vergência de incúria ancestral e súbitos ao platonismo, como ainda pretendiam
fervores, de ignorância e de erudição in- no segundo quartel do séc. xx José Ma-
consistente, de fascínio autêntico e indis- ria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, to-
farçável instrumentalização. Eis um pro- davia apaixonados apologetas do génio
cesso a que poucos se eximem e de que poético de Camões).
Teófilo Braga será só o expoente maior; Alguns tópicos da paixão da intelectua-
como assinalou o desassombro de Cami- lidade romântica e positivista, tradiciona-
lo, não deixava mais encarar Camões a lista e liberal, monárquica e republicana,
uma grande luz natural, embaçada pela neolusitanista e emancipalista, pelo mito
avassaladora projeção heroico-melan- camoniano da intelectualidade – paixão
cólica tão avassaladora em Portugal, no postulada como vivência coletiva de toda
Brasil e até pela Europa fora, e que, por a grei – legaram valiosas criações artísti-
uma vez, se via matizada em Portugal cas à cultura moderna e ao mesmo tem-
por Arnaldo Gama no romance A Cal- po deram aso a infindas glosas ou rema-
deira de Pero Botelho (1866) e seu Camões tizações kitsch. Assim, a morte de Camões
estudante em Coimbra retratado como inspirou o Requiem de Domingos Bom-
chistoso e brigão “trinca-fortes”, ou no tempo e outras composições musicais de
Brasil episodicamente por humorismos qualidade, o quadro A Morte de Camões de
de Gonçalves Dias e da modulação joco- Domingos Sequeira e outras composições
séria do mito camoniano na literatura de pictóricas de qualidade, páginas inesti-
cordel. máveis de Garrett (e de Tieck) e outras
O Morgado de Mateus julga ter sobejas composições literárias de qualidade; mas
razões para exprobar muitos críticos e so- é incomensuravelmente maior o número
bretudo pretensos biógrafos de Camões, de dramas e poemas românticos trans-
desde os quinhentistas até à “Vida de Ca- tornados pelo patético previsível, pela
mões” por ele romanticamente recriada sentimentalidade dessorada e pela ênfase
na monumental e irradiante edição de Os clamorosa em torno dessa morte imagi-
Lusíadas que patrocinara em 1817, na me- nada de Camões e/ou da sua coincidên-
dida em que tinham silenciado ou bran- cia, factual ou simbólica, com a agonia da
damente assinalado a carga de misérias, pátria e a perda da sua independência (o
desgraças, injustiças, invejas, malqueren- “expirou com ela” de Garrett e, por mi-
ças, intrigas, perseguições, ingratidões, metismo, de Teófilo, e o “morria a pátria,
etc., que por obra da predestinação e vi- morria o poeta” de Oliveira Martins tive-
leza dos homens selara a vida do génio. ram incontidas e lesivas metástases). Os
Essa e outras leituras de fundo român- amores de Camões, as Natércias e infan-
tico redimensionavam, afinal, a faceta tas, o escravo Jau e a condição miseranda
de vida aventurosa e desventurada que foram outros tantos tópicos com que as
acompanhara a receção da sua obra – literaturas em língua portuguesa desfigu-
quase sempre em sentido lisonjeiro des- raram a grandeza de Camões.

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AnticAmonismo 279

O fim do século xix e os alvores do


séc. xx, com suas correntes decadentistas e
neorromânticas, com o nacionalismo cul-
tural propalado por Teófilo e seus discípu-
los, com o nacionalismo literário advogado
por Trindade Coelho, pelo novolusismo
de Manuel da Silva Gaio, pelo neogarret-
tismo de Alberto de Oliveira, pelo neolu-
sitanismo de Afonso Lopes Vieira e tantos
outros, revelar-se-ão períodos animados
pelas virtudes e assolados pelos vícios des-
sa apoteose romântica à beira do kitsch
do “santo padroeiro da nação” (como di-
ria Junqueiro em discurso celebrativo do
10 de Junho: “Camões é Portugal, e a festa
de Camões, o dia santo da nação”).
Pelo meio, Camões vê-se contrapon-
tadamente associado a momentos axiais
de devir da literatura (e da cultura)
moderna em Portugal. De facto, assim
acontece com antecedentes da eclosão
da Questão Coimbrã: na encomiástica
e digressiva “Conversação preambular”
a D. Jaime, de Tomás Ribeiro, o Visconde Rosto de Rhythmas, de Luís de Camões.
de Castilho lamentou que os admirados
Lusíadas fossem leitura escolar obriga-
tória, imposta aborrecedoramente a de língua portuguesa – como na Itália as
crianças ainda incapazes de entender más ilustrações de Francesco Gonin para
tal obra, mas, indo além dessa pondera- o folhetim Luigi Camoens de Pietro Pes-
ção, sugeriu que o enaltecido poema de ce na revista Il Mondo Ilustrato de Turim
Tomás Ribeiro substituísse a epopeia de retiram significado à larga dimensão da
Camões e, para confortar essa sugestão, instrumentalização do poeta português
lavrava opiniões que pareceram pôr em para os debates de ideias e os embates
causa a qualidade poética da obra camo- políticos na Itália oitocentista.
niana. Não faltaram reações a esses juí- Da Questão Coimbrã ao Cenáculo ante-
zos de Castilho, com destaque para João riano, dos programas de trabalhos (ante-
de Deus, que, como depois no decurso rianos e teofilianos) da escola de Coimbra
da grande polémica, intervém com arti- à hegemonia da geração de 70, do encar-
go em O Bejense (“Os Lusíadas e a con- reiramento para o realismo e o natura-
versação preambular”, 7 nov. 1863), em lismo dessa geração nova (que Sampaio
defesa do alto significado humano, na- Bruno cedo escalpelizou), da compensa-
cional e histórico, com que Os Lusíadas ção estética das asperezas líricas da gera-
haviam marcado “uma época na história ção de A Folha no parnasianismo da ge-
do mundo”. Até os textos menos valiosos ração intervalar, com o lastro romântico
da polémica reverteram em crescente a persistir em metamorfoses subliminares
visibilidade de Camões na cena literária até à extraordinária A Fome de Camões de

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280 AnticAmonismo

Gomes Leal, não há grande brecha para Etérea de Nemésio), com o rebate cívico
veleidades de anticamonismo. O que da crise do Ultimato e das crises subse-
mais se poderia aproximar disso seriam as quentes, não foram naturalmente propí-
refrações negativas da controvérsia histo- cias a veleidades de anticamonismo. Mas,
ricista de Antero e Oliveira Martins con- curiosamente, não se eximiram a inculcar
tra a construção por Teófilo da mitografia a ambiguidade na mais vasta receção cria-
camoniana com fito de propaganda repu- tiva de Camões através do registo paródi-
blicana e com base no nacionalismo étni- co que proliferou numa produção antes
co e cultural, e o desagrado polémico que de mais trazida à ribalta por Trindade
algum aspeto das comemorações oficiais Coelho no famoso In Illo Tempore (1902)
de “o triste centenário de Camões” (MA- que recolhe ou refere textos de troça
CEDO, 1880) provocou na comunidade emergentes na academia coimbrã – A
portuguesa do Brasil, originando textos Niveleida de António Cabral, A Bolha (Res-
como Desabafo Patriótico de Ferraz de Ma- posta à Niveleida…) de Ângelo Ferreira,
cedo, ou mesmo o galeguismo político de A Casaqueida do luso-brasileiro Pinto da
Manuel Murgía contrapontando o elogio Rocha –, cuja arma da troça artilhada so-
global com severas críticas à “incorreção” bre o molde dos imortais Lusíadas como
de Camões nas odes e sobretudo nas can- que dão o tom a outros poemas causti-
ções, ou involuntariamente a tradução in- cadores da estirpe bacharelática (como
glesa de Os Lusíadas por R. F. Burton, que o que, segundo Júlio Vilhena, o próprio
prejudicou a atração dos leitores à escrita Rei D. Luís terá intentado com uma Pa-
poética de Camões na medida em que, ródia ao Primeiro Canto dos Lusíadas), no
com o intuito de máxima aproximação quadro mais lato dos múltiplos exercícios
ao idioleto do poeta português, acabava parodísticos na viragem para Novecentos
por criar aos leitores coevos estranheza registados e/ou transcritos por Alberto
e grande dificuldade perante um texto Pimentel e por Ferreira Lima. Note-se
linguisticamente distanciado do seu hori- que, também no Brasil, desde os finais
zonte de expectativas. do séc. xviii até ao tricentenário, se fora
As virtualidades apoteóticas e os riscos formando e consolidando uma tradição
reversos dessa campanha multipolar de de experiências satíricas e humorísticas
apropriação mitificante e militante de apoiadas na reescrita de passos camonia-
Camões atingem patamar cimeiro com as nos, ao mesmo tempo que se implanta,
comemorações, em 1880, do já mencio- a par da tradição culta sobre os valores
nado tricentenário da morte de Camões, clássicos de Camões, uma tradição popu-
abrindo caminho, de par com o incre- lar de camonismo faceto, que, segundo
mento e a alteração dos estudos camonia- Gilberto Mendonça Teles, assimila e mo-
nos, para a institucionalização académica difica a referida tradição, através de paró-
(e, em Portugal como no Brasil, para o dias, paráfrases e poemas herói-cómicos,
aproveitamento didático quase sempre a partir de uns quantos sonetos da lírica
massacrante e, por isso, contraproducen- e, na maioria dos casos, das primeiras es-
te para o camonismo intencional), culmi- trofes do poema épico, com o objetivo de
nante por alturas do quarto centenário aproveitar o texto de Camões para fins de
do nascimento de Camões (1924-1925). humor ou pastiches comerciais; aqui se in-
No campo literário, essas décadas domi- cluem as narrativas em prosa e em verso
nadas pelo decadentismo, o simbolismo das peripécias de um tal Camonge, e até
e o neorromantismo (até à primicial Nave de um Camongo.

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AnticAmonismo 281

É certo que a receção criativa e críti- aprofundamento da autoconsciência hu-


ca de Camões nas primeiras décadas do mana. Nesse sentido, paradoxalmente,
séc. xx nos confronta com mais uma con- Camões não pode ser preterido como
cretização daquilo a que E. H. Gombrich referência máxima do cânone literário
chamou a não contemporaneidade dos português e, ao mesmo tempo, parece já
coevos, na medida em que é contrastan- não poder dar nome bastante ao poten-
te a presença de Camões nas estratégias cial reprojetado de criação intelectual e
institucionais e textuais das correntes artística. Se, no caso particular de sibili-
neorromânticas, claramente hegemóni- na pretensão de superioridade, em Fer-
cas naquele período, e nas dos minoritá- nando Pessoa (como depois nos casos de
rios grupos modernistas e vanguardistas. inculcada equiparação, em José Régio e
Não se mantêm no âmbito do(s) moder- Miguel Torga), se compreende que são
nismo(s) e das tentativas vanguardistas a seja só por lapso freudiano que se diz ser
frequência, a amplitude e a importância refutável e refutada a tradicional afirma-
estamental que a presença de Camões ção de que Camões é o maior poeta da
tem no neorromantismo; e sobretudo é literatura nacional (segundo certo texto
significativamente diversa a forma como pessoano em inglês, a propósito de Alber-
as facetas do ascendente camoniano são to Caeiro, recolhido em Páginas Íntimas e
hierarquizadas na receção criativa e crí- de Auto-Interpretação), o que mais conta, no
tica nas primeiras décadas de Novecen- panorama modernista, é que “o próprio
tos. O discurso inalienavelmente irónico Camões não foi mais que o que esqueceu
do(s) modernismo(s) procede, agora fazer. Os Lusíadas é grande, mas nunca se
em regime de estética de contraposição escreveu a valer. Literariamente, o passa-
(na aceção lotmaniana), a uma seletiva do de Portugal está no futuro” (PESSOA,
prossecução de vetores antecedentes; e é 1980a, 135). A figura em palimpsesto de
em função dessas opções e nesse regime Camões revela-se pregnante para essa
irónico de reconversão e reapropriação estratégia modernista, em cuja matriz
que cultiva uma relação paragramática pessoana o processo se infiltra quer pelo
com a obra camoniana, menos ostensiva viés da subrogação do sentido territorial
e menos constante. de nação e de imperium pela energia ex-
Camonismo e anticamonismo parecem pansiva da “nossa clara língua majestosa»
refratar-se em mais um dos exercícios de (Livro do Desassossego, frag. 259), quer pela
radicalização da ironia até ao paradoxo. correlata verdade funcional – mito social
Com efeito, o que polariza em profundi- e nacional, empolgante à maneira de
dade os diferentes vetores da presença G. Sorel, identitário à maneira de V. Pare-
de Camões no(s) modernismo(s) é talvez to – que o ortónimo anuncia com auctori-
uma nova valência mítica do signo-Ca- tas retórica: Portugal haveria de recuperar
mões: uma valência de mito como figura- e superar a missão na história da humani-
ção simbólica do horizonte de realização dade, através da língua pátria e da cultura
das fundamentais possibilidades do Ho- de língua portuguesa. Por isso, quando
mem, e, no contexto cultural e literário nessa perspetiva eivada de cosmopolitis-
português, de moderna atualização das mo Fernando Pessoa anunciar a nova poe-
mais altas potencialidades de criação in- sia de “ordem superior”, correspondente
telectual e artística; e assim Camões se à ordem superior de civilização que será
tornava epónimo do homem completo o “supra-Portugal de amanhã”, o epóni-
almadiano e da elevação pessoana no mo tem de designar-se “supra-Camões”;

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282 AnticAmonismo

e é desse modo que se anuncia como “o No subperíodo do primeiro modernis-


grande Poeta, que […] deslocará para mo português, em que se singularizam
segundo plano a figura, até agora prima- o aparente alheamento de Camões por
cial, de Camões” (PESSOA, 1980, 22-23). parte de Sá-Carneiro e a subsunção de Ca-
Razões de circunstância – em textos, e.g., mões na estratégia de integração supera-
dirigidos a editores britânicos – e estraté- dora por parte de Fernando Pessoa e na
gia global de valorização da nova litera- sua bloomiana ansiedade da influência, va-
tura modernista e do seu génio pessoal riam as condições de receção de Camões.
explicam certas expressões depreciativas Mesmo num autor como António Fer-
de Camões; pelo menos em parte, pois ro não faltam lances de convocação de
por outro lado aí interfere também a per- Camões e até de paragramatismo com
manente insinuação de que, por razão de caracterizante valor estilístico-periodoló-
etimológica modernidade que o próprio gico. O mais marcante reside na confe-
Camões também invocara em seu favor, o rência que António Ferro profere no Rio
ponto culminante da poesia portuguesa de Janeiro, a 10 de junho de 1922, para
estava, como se referiu, em vias de residir celebrar a travessia aérea do Atlântico Sul
na obra de outro autor, o próprio Pessoa. por Sacadura Cabral e Gago Coutinho,
Nesse registo, algumas coisas de Camões em (im)pertinente contraste com a preia
que considerava nobres estariam decerto -mar de exaltações e exultações neorro-
em Os Lusíadas, que Pessoa sempre disse mânticas perante o feito dos argonautas
preferir à lírica: «Eu tenho uma grande lusíadas. Ferro coloca a sua apologia sob
admiração por Camões (o épico, não o o signo do primado da aventura e figu-
lírico)», reiterava ainda a João Gaspar Si- ra o feito enaltecido como “Uma estrofe
mões em 1931 (PESSOA, 1999, 257). Não inédita dos Lusíadas”; esta figura do título
obstante o que, naquele discurso tático vertebra depois a alocução, como metá-
de circunstância, podia inculcar sobre a fora desdobrada, e atinge a sua valência
valia superior da Pátria junqueiriana, pa- vanguardista quando a inovação tecnoló-
recem mais fundos juízos como o que é gica se vê introjetada no próprio discurso
exarado aquando do centenário de 1924, camoniano – “no avião épico dos Lusía-
segundo o qual só a Ilíada, a Divina Comé- das”. Mas António Ferro tenta processar
dia e o Paraíso Perdido superam a epopeia vanguardistamente a dessacralização da
camoniana. Isto embora Pessoa pudesse poética e do texto camonianos, derro-
equivocar-se, noutras páginas, sobre a gando a intemporalidade das formas ar-
quase ausência de pensamento que em tísticas e da própria intuição (expressiva
Os Lusíadas desampararia a grande arte e preceptiva) do Belo, em favor de uma
de paixão (o patriotismo) e de imagina- captação pós-baudelairiana da beleza do
ção (o Adamastor, a Ilha dos Amores); em transitório, segundo uma estética con-
contrapartida, apesar de certo fragmento duzida pelos valores da velocidade, da
inédito revelar o fascínio pela beleza da força, da dissonância: “Eu sei, eu sei com
linguagem direta e simples, una com o que voo Camões cantaria esse voo… Ele
movimento lírico contínuo e íntimo do abandonaria o decassílabo solene e pau-
ritmo inquebrado e dolorido do soneto sado pelo verso livre, pelo verso inquieto,
“Alma minha gentil que te partiste” (PES- o verso que tivesse o movimento astral
SOA, 1973, 322), em geral era ao Camões do avião, o verso que subisse e que des-
lírico que mais quadrava o epíteto depre- cesse sem preocupações nem receios”
ciativo de “italiano” ou “italianizado”. (FERRO, 1987). Por razões idênticas, mas

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AnticAmonismo 283

de ebulição mais profunda, compreen- sua convocação simbólica ao confronto


de-se a presença de Camões na aventura desmistificador, tão bem exemplificado
performativa de Almada Negreiros. Não num poema de 1931, intitulado “Luís, o
surpreende que, em momentos da sua poeta salva o poema a nado”.
intervenção turbulenta e em estratos da Mário Saa ilustra esse tópico contestatá-
sua obra dominados pelos valores e intui- rio em entrevista ao diário A Capital, por
tos da vanguarda cubo-futurista, Camões dezembro de 1921, exclamando ironi-
pareça atingido pela verve iconoclasta, camente: “Quem me dera no tempo em
que enfatiza a retórica da imprescindível que Camões morria de fome e não havia
campanha contra a inércia convencional génios nacionais” (SAA, 2006, 257). Car-
e contra o academismo. Assim, o “Ultima- los Queirós, por seu turno, num “Epigra-
tum futurista às gerações portuguesas do ma” publicado no n.º 37 da Presença, de
século xx”, momento forte de tal orien- fevereiro de 1933, chama à colação um
tação estratégica, tem de arrolar Camões Camões merecedor daquele “uso mais
entre os velhos nomes que há que substi- moderno” a que, em Os Lusíadas (VI, 52),
tuir, na admiração e no exemplo, pelos ele mesmo afeiçoara as armas e roupas
génios da invenção (Edison e Marinetti, do Magriço e seus companheiros: “Se de
Pasteur, Marconi e Picasso); mas, além Camões o Espírito algum dia,/A pátria
do matiz tático que dessa contextualiza- visitasse,/Quando na douta Academia en-
ção decorre, convém ter presente a am- trasse/(Para ouvir o que nela se dizia)/
bivalência da decisiva proclamação de Confuso, pensaria: Que erro enorme!/
inconformismo e ânsia de novo (desde Como eu julguei ser esta pifieza/Aquela
logo na linguagem), menos relutante em antiga pátria portuguesa/Que me deixou
relação a Camões do que cáustico em re- morrer de fome!...”.
lação à cultura nacional pós-camoniana: O matiz dessacralizador da relação
“Porque Portugal a dormir desde Camões paragramática do modernismo com Ca-
ainda não sabe o significado das palavras” mões manifesta-se no Brasil não tanto no
(NEGREIROS, 1972). Por outro lado, episódio com justificação de estratégia
na sequência desse asserto ambivalen- nativizante da queima de um exemplar
te, outros textos importantes de Almada de Os Lusíadas no decurso da Semana de
Negreiros investem numa revalorização Arte Moderna, quanto nas ressonâncias
insólita de Camões, através da denúncia antiépicas do Macunaíma, o Herói sem Ne-
de quanto havia de mistificação nacio- nhum Carácter (1928), de Mário de An-
nal(ista) do poeta pela oratória e pelos drade – o mesmo que apontava no Brasil,
estereótipos literários da cultura oficial como o poderia ter feito em Portugal, que
– assim antecipando, aliás, certa tonali- a popularidade de Camões e o relaciona-
dade da receção presencista de Camões. mento dos novos escritores com a sua
Na verdade, o extraordinário poema obra nem sempre correspondia a um con-
vanguardista “A  cena do ódio” deplora veniente estudo dessa obra camoniana.
com veemência “a pátria onde Camões Noutros meridianos, foi oscilante
morreu de fome/e onde todos enchem a relação dos modernismos com Ca-
a barriga de  Camões”. Assim se abre mões – como exemplifica a figura ci-
caminho para um recentramento ima- meira de Ezra Pound, que por 1910, em
ginífico da poesia de Almada Negreiros The Spirit of Romance, ainda se referia
numa exemplaridade anticonvencional muito negativamente a um épico sem
e antitradicionalista de Camões e para a dimensão filosófica nem magia poética.

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284 AnticAmonismo

Compreensivelmente, na Rússia nove- artigo publicado na revista Lusíada (vol. i,


centista, a perceção do carácter e papel n.º 4, 1953). Em certos quadrantes da vida
histórico de Os Lusíadas não foi imedia- literária portuguesa, sob o embate das im-
ta sob o regime bolchevista: na primeira plicações ideológicas e políticas, foram le-
Enciclopédia Soviética, a epopeia camonia- vados à conta de anticamonismo as inter-
na foi focado como poema representati- pelações e os comentários ensaísticos de
vo do período em que se deu a primei- António Sérgio que tanto visavam sanear
ra acumulação de capital. Na Alemanha no plano da crítica literária o biografismo
dos anos pós-guerra, em que as peças (aliás mal documentado) e as interpreta-
radiofónicas subvertem mitos herdados ções abusivamente psicologistas em favor
e questionam valores tradicionais, surge de uma rigorosa leitura imanentista dos
Die Brandung vor Setúbal (1957), em que textos (e.g., na sua “Questão prévia de
Günter Eich, segundo ensina Maria Ma- um ignorante aos prefaciadores da lírica
nuela Delille, “transforma os amores len- de Camões”, dirigida a José Maria Ro-
dários entre Camões e Catarina de Ataíde drigues e Afonso Lopes Vieira), quanto
numa tragicomédia com traços do teatro pretendiam, no plano cívico-cultural da
do absurdo em que a estética e a mun- reforma da mentalidade, desautorizar a
dividência românticas, subjacentes às an- manipulação de Camões por um nacio-
teriores criações ficcionais sobre o poeta nalismo redutor e ministrar o seu huma-
português, são subtilmente parodiadas” nismo crítico. Mais tarde, obliterando a
(DELILLE, 2011, 751). enorme erudição e a indubitável paixão
Entre nós, na filmografia inspirada por do camonista Jorge de Sena, idênticos
Camões o incensador Camões (1946), de lances de apropriação ou exautoração an-
Leitão de Barros, veio ironicamente a sus- ticamonista ocorreram perante interven-
citar efeitos contraproducentes quando ções suas que – porventuraa confundidas
a imagem do poeta e a linha dominante com as de Aquilino Ribeiro, muito mais
dos estudos sobre sua vida e obra passa- influentes aliás em certa fase de António
ram a proscrever o retrato de estereóti- José Saraiva – queriam mostrar um Ca-
po donjuanesco e o fantasioso despique mões oposto ao “pastelão patriótico-clás-
amoroso e literário com Pero de Andra- sico que durante anos tem sido” (SENA,
de Caminha. Em contrapartida, Camões 1970, 11) (o que não era coextensivo ao
– Tanta Guerra Tanto Engano (1998), de intuito de Aquilino descobrir “o Camões
Paulo Rocha, e Erros Meus (2000), de Jor- real, esse que viveu, amou, penou, […]
ge Cramez, abalam a receção consagrada tão longe do Camões fabuloso [construí-
de Camões ao abjurarem da identificação do pelos camonistas] como o ovo dum
entre o poeta e a pátria, numa alternati- espeto” [RIBEIRO, 1950]).
va de fixação nos sofrimentos do génio Por 1969, ano convulso em Portugal, a
mal compreendido e pouco estimado pe- imagem de Camões viu-se envolvida nos
los seus contemporâneos – em contraste conflitos político-ideológicos entre situa-
com a comunhão de afetos e valores, no ção e reviralho, ou mais precisamente
cultivo das armas e das letras, vivida entre na orla de conotações culturais da con-
Camões e, e.g., Diogo do Couto. tenda, quando o bispo do Porto, D. An-
Na charneira do séc. xx, ainda há ra- tónio Ferreira Gomes, de regresso após
zões que levam o camonista Fidelino de desterro político, subscreve longo e es-
Figueiredo a julgar pertinente defender peculativo prefácio aos Contos Exemplares
“A realeza de Camões contestada” num de Sophia de Mello Breyner Andresen,

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AnticAmonismo 285

e a dado trecho, não só se refere a Ca- de Camões a que procede Aquilino Ri-
mões com apelidos tão contrastantes beiro em 1949-1950 (tão cativante quan-
com o teor multissecularmente canóni- to unilateral ao serviço de uma imagem
co dos epítetos – “nosso não menos [do iconoclasta de Camões cujo desagravo
que Cervantes] miles gloriosus e ainda Hernâni Cidade de imediato encabeçou:
mais desditado Trinca-Fortes, mirolho de “Nobreza de Camões – A hierárquica e
Marrocos” – que provocou espanto ou in- a moral”), e depois, a exploração dessas
dignação perante o que parecia ir além cartas por Helder Macedo no sentido de
da dessacralização ou desmitificação da consagrar a componente dionisíaca no
figura do vate nacional e degradá-la no retrato aberto de “o Camões para quem
desdenhar chocarreiro, mas também põe a contradição é a norma” (MACEDO,
em causa ironicamente a superestrutura 2006, 27), personalidade em que convi-
ideológica e historiosófica a que se teria veriam “o sublime poeta” e “o malandro
rendido o épico – “obnubilado por fu- malcomportado” (Id., Ibid., 31).
mos da índia, enrouquecido de epopeia e Formas de atingir a relação admirativa
destemperado de lira renascente e impe- com Camões pela crescente distanciação
rial” –, e ainda mais, subentendidamente irónico-crítica são os recorrentes estra-
à luz da sua cristologia e da sua interven- tagemas da reescrita com diferença no
ção evangélica, põe sob caução a autenti- trânsito do neomodernismo – com o con-
cidade cristã da estrutura mundividente e tundente ethos iconoclasta e político de
ética sob a retórica católica e nacionalis- Jorge de Sena no conto “A Grã-Canária”
ta: “valeria bem a pena analisar algum dia – para o pós-modernismo – com a difu-
a epopeia nacional ou mesmo não apenas sa modelização romanesca na Tetralogia
Os Lusíadas mas toda a lírica camoniana Lusitana de Almeida Faria, em As Naus
[…] à luz do Evangelho eterno, a ver o (1988) de A. Lobo Antunes, em Jangada
que ficava de válido. Mais valerá porém de Pedra (1986) de José Saramago, etc.
não começar, nem sequer começar”. Nesse âmbito se inscrevem também mais
As poucas cartas em prosa que nos ostensivas ou estruturantes transposições
restam de Camões puderam ser lidas paródicas do poema épico camoniano.
contrapontadamente ao longo dos tem- Primeiro, em ciclo de resistência polí-
pos, nuns casos como testemunhos inte- tica e subversão ideológica, Camões vê-se
ressantes, até pela linguagem pícara, de envolvido na intencionalidade de corro-
temperamento faceto e vivências próprias são antinacionalista e rutura da retórica
de humanidade pujante em idades e cir- épico-imperial, com As Quybycas: Poe-
cunstâncias desconcertadas, noutros ca- ma Ethyco… Que Corre como Sendo de Luís
sos como contraprovas de baixa educação Vaaz de Camões em Suspeitíssima Atribuição/
e comportamento desregrado. Por outro Frey Ioannes Garabatus (1972) de Antó-
lado, se, na receção criativa pela novelís- nio Quadros/João Grabato Dias (sátira
tica, pelo teatro e pelo cinema, esses ele- burlesca que, enquadrada por divertida
mentos vulgares ostentados pelas cartas e engenhosa mistificação metatextual e
puderam ser refundidos como fator lison- paratextual, através da paródia de passos
jeiro de pitoresco e de humor aureolan- de Os Lusíadas, atinge menos Camões do
do a personalidade irreverente do génio, que a leitura salazarista da gloriosa lusita-
na receção crítica ressaltam, primeiro, a nidade a que se referia o camonista Jorge
releitura em clave de subversão picaresca de Sena no prefácio, “Um imenso inédito
da ordem tradicional do lado dionisíaco semicamoneano, e o menos que adiante

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se verá”), e com os lusíadas (1974), ro- – que de tempos a tempos lhe apontavam
mance em parceria autoral de Manuel da o atraso científico da conformidade com
Silva Ramos e de Alface, que carnavaliza as teses ptolomaicas na feição astronómi-
em experimentalismo verbal e metagráfi- co-astrológica da sua representação poéti-
co o discurso camoniano e procede a um ca do universo no canto x de Os Lusíadas
abjecionista esvaziamento do conteúdo encontram nova recidiva na turbulência
épico da história lusíada. progressista que então se apodera do dis-
Depois, em ciclo de irónico ceticismo, curso académico de Silva Dias (Camões no
a obra-prima pós-moderna Viagem à Índia Portugal de Quinhentos, 1981).
– Melancolia Contemporânea (Um Itinerário) Nos começos do séc. xxi, nos centros
(2010) de Gonçalo M. Tavares, que se internacionais de estudos camonianos,
afasta da glosa burlesca do texto camonia- fizeram-se sentir na reapreciação de Ca-
no em favor de uma translação histórica mões e, em particular, de Os Lusíadas os
do avançar pelo desconcerto do mundo, pressupostos ideológicos, se não de todas
em que se degradam os paralelos con- as vertentes do que Harold Bloom de-
temporâneos de episódios e tópicos do nunciou como a escola do ressentimento,
poema épico matricial. No mesmo senti- pelo menos de correntes de estudos pós-
do, cultores pós-modernos da literatura coloniais e de new historicism ou cultural
infantojuvenil adotam ocasionalmente o materialism, dando por adquirido e con-
registo paródico, curiosamente com par- denável que o renascimento ocidental se
ticular gosto pela figura do Adamastor, traduziu em estratégias de poder classista
amachucado pela constipação em A Nau e de dominação imperialista, atuando as
Mentireta (1991) de Luísa Ducla Soares, e suas grandes figuras culturais e os seus
pela dor de dentes em “A porta dos sete grandes criadores artísticos como coones-
mares” (2004) de Miguel Miranda. tadores desses interesses e movimentos.
De algum modo, a deriva da paródia Nessa perspetiva, é especialmente Baco
militante para a paródia reconversora quem vai representar aquilo e aqueles
não colide, mas também não se confun- que não tinham lugar no ecumenismo
de, com o devir da fortuna de Camões legitimador da expansão imperial portu-
após o 25 de Abril – desde o anticamo- guesa (do poder ocidental e da religião
nismo no período convulso do Processo católica) e também as classes sociais que
Revolucionário em Curso (dos dislates em Portugal (e na civilização cristã da Eu-
discursivos e distúrbios recetivos às tenta- ropa) eram desfavorecidas, desprestigia-
tivas de despromoção no cânone literário das, marginalizadas ou silenciadas.
e de afastamento do cânone escolar) até Sem requisitório de tendência, não po-
ao progressivo processo de reabilitação demos deixar de focar, no âmbito dos es-
através de renovadas leituras da obra tudos académicos sobre ou em torno de
épica e lírica de Camões – em que cedo Camões, as posições de Luís de Oliveira e
participa alguma esclarecida intelectuali- Silva. Julgando apenas suposta a vocação
dade comunista, mormente pela criação universalista dos Portugueses e opinan-
da revista Camões, sob a direção intergera- do que estes “com tanta expansão nunca
cional de Óscar Lopes e Manuel Gusmão. deixaram de ser dos povos mais pobres e
Por essa altura, as críticas – eivadas de incultos da Europa”, considera que Ca-
anacronia, falhas de rigor exegético e ce- mões, mero grand rhétoriqueur – enleado,
gas à coerência epistemológica e estético aliás, no que seria a “máscara” do “estoi-
-literária do discurso poético de Camões cismo cristianizado” contra o que seria “o

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AnticAmonismo 287

seu vocacional epicurismo” – “quer-nos Adamastor, o poema foi direto e escorrei-


convencer de que é sobretudo um poeta” to, muito cingido à História; a partir de
e consegue sem dúvida criar “um excelso Adamastor ganha uma sofisticação exces-
discurso epidíctico” em que inventa uns siva. E uma complexidade evenencial que
lusíadas diferentes dos portugueses his- o poeta nem sempre sabe administrar.
tóricos, criando ao Homem português a O  aparente senso comum transforma-se
ilusão de uma identidade gloriosa, atra- em delírio imaginativo”. Esta perspetiva
vés da competência retórica para “escre- analítica e judicativa extrema-se na análise
ver um texto que opera uma doação de do episódio do Consílio dos Deuses olím-
consciência coletiva” (SILVA, 2011, 56- picos: “O narrador é incapaz de imprimir
-57). Em Os Lusíadas, essa construção re- carácter prático ao panteão. Por que de-
tórica e sua persuasão epidíctica estariam senhou Camões um panteão Olímpico
ao serviço de um indesejável desígnio inativo? […] O ambiente do consílio não
camoniano de enaltecimento pátrio: “Na convence nem como tribunal nem como
estância 33 do canto i, Vénus, assumindo a assembleia deliberativa que não é” (Id.,
a defesa (apologia) dos Portugueses, enve- Ibid., 287). “Tal adequação resolve-se num
reda por um raciocínio epidíctico. É um processo arbitrário e divertido que carece
raciocínio comprometido, altamente vo- totalmente de rigor epistémico, embora
luntarista, que deve mais à vaidade que à encerre, por vezes, um alto valor retóri-
razão. Nem defende nem refuta: elogia. co-persuasivo”, “tal redução [adequar o
A defesa traduz-se em louvor: a têmpera panteão romano ao santoral cristão, se-
dos Portugueses, submetidos a tratamen- gundo interpretações canónicas como a
to retórico, garante e justifica os seus in- de Faria e Sousa] carece de um mínimo
vulgares merecimentos” (Id., 2011b, 291), rigor epistémico. Nem sequer oferece um
“Louva-se, julga-se, condena-se. Gasta-se rigor entimemático. Pode ser considera-
o tempo no elogio e na deprecação inar- da completamente descabida, embora
gumentais” (Id., Ibid., 292), “[dirigindo-se seja evidente a habilidade patenteada.
também a um auditório universal] muito A  alegoria só é convincente quando é
mais difícil de persuadir, já que, alheio e imediatamente apreendida, sem ser pre-
indiferente aos valores da comunidade ciso jogar às escondidas para o fazer” (Id.,
lusitana, não pode ser engodado pela Ibid., 288-289). “Camões, n’Os Lusíadas,
grandeza egotista das gestas pátrias. Tal desativa a lógica da tragédia, evacuando
limitação torna o poema algo provincia- a nemese. Os deuses permitem prazentei-
no, incapaz de assumir a universalidade ramente que Vasco da Gama se superiori-
da Eneida”, “Mas Camões, na sua brutal ze a Baco. A situação é absurda. Camões
redução voluntarista, esbarra com a in- deixa que o panteão dê não um tiro no
comensurabilidade. O problema fulcral pé, mas na cabeça. Será preciso reconhe-
de Camões é de carácter metrológico. cer que o vate inabilitou para sempre o
A sua atividade sincrítica é, com excessiva protagonismo do panteão” (Id., Ibid.,
frequência, irresponsável. O teor e o veí- 290); “algo arbitrariamente, Camões co-
culo nem sempre se adequam” (Id., Ibid., loca os protorromanos da Eneida e os Por-
294). Além disso, tal indesejável constru- tugueses de fins do Quatrocentos num
ção retórica estaria montada sobre defei- mesmo ciclo histórico” (Id., Ibid., 291),
tos múltiplos de não criatividade poética, “o comportamento dos deuses é inexpli-
de incoerência compositiva e de imper- cável” (Id., Ibid., 292), “Como assembleia
tinência pragmática; aliás, “até chegar a deliberativa ou tribunal o consílio resul-

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288 AnticAmonismo

ta, logo de entrada, algo supérfluo, seja Além disso, Camões cairia em mais de-
qual for o seu indiscutível valor orna- sacertos “ignorando o papel fulcral de
mental” (Id., Ibid., 293). Enfim, Oliveira Mercúrio, patrão dos negotiatores, banali-
e Silva conduz a sua depreciação até ao zado no poema como moço de recados
comprazimento irrisório: “[Vénus] já tra- de Júpiter”, ao passo que afinal “Vasco da
balhou a tempo inteiro na Eneida e agora Gama, na sua viagem de descobrimento,
obrigam-na a desempenhar de novo uma além de se constituir em mera prótese
mesma missão. E aceita com entusiasmo funcional da autoridade monárquica, foi,
o novo encargo. Já conhece o libreto” (Id., sobretudo, um capitão da marinha mer-
Ibid., 291). De resto, Oliveira e Silva con- cante que quase nunca se viu obrigado a
sidera que Camões escreve enredado nas recorrer às armas. A eminente identida-
teias de um nacionalismo missionário, de épica, hiperbolicamente realçada, não
“sabendo muito pragmaticamente que tem, pelo menos na sua vertente militar,
agora a evangelização garante e sacraliza grande base fáctica de sustentação na mo-
a soberania”, mas não podendo obstar a nótona viagem de descobrimento” (Id.,
que o “universalismo cristão colide com 2011c, 344-345). Para Oliveira e Silva, a
a retorização desaforadamente patrióti- condição desadequada do protagonista
ca, e paradoxalmente universalista, dos Vasco da Gama evidenciaria que “a mise en
factos” (Id., 2011c, 342) e a imaginação intrigue do poema resulta assaz estranha,
camoniana, «aparentemente mimética», porque permite uma solução de conti-
sobrepõe “à identidade rural, piscatória nuidade entre factualidade histórica, ve-
e mercantil, própria dos ‘verdadeiros rosimilhança e maravilhoso inverosímil.
Portugueses’, uma suposta identidade O poema sofre de um evidente desajuste
épica de projeção universalista que lhe conteudístico e mereológico” (Id., 2011d,
permitirá encontrar um alter ego subli- 395), aliás agravado pela indefinição do
mado e heroicizado, quem sabe se de “peito ilustre lusitano” que Camões se
carácter plenamente metamórfico” (Id., propõe cantar e à luz da qual o Gama “ca-
Ibid., 345). Por outro lado, se o “Impé- rece de espontaneidade e de verdadeira
rio quinhentista transoceânico […] só se capacidade proairética” (Id., Ibid., 396).
concebe sob a férula do Catolicismo, veí- Por seu turno, o discurso de renovação
culo universal de salvação tão indiscutí- dos estudos camonianos introduzido por
vel como a Monarquia e imbricado nas Hélio Alves (para quem Camões escreve
suas práticas”, acresce que no parecer Os Lusíadas com base nos esquemas de
pejorativo de Oliveira e Silva “os heróis compreensão e composição codificados
de 1498, vistos por Camões, têm um ana- pelas teorias retóricas para o sistema épi-
crónico e solene talante contrarreformis- co-demonstrativo renovado, hegemónico
ta” (Id., Ibid., 343). Igualmente enredado antes do paradigma aristotélico-tassiano;
estaria Camões na inviável conciliação logo, Camões escreve Os Lusíadas num
entre o exercício do livre-arbítrio, a von- quadro primordialmente oratório e mo-
tade de Deus e a ditadura do destino, a ral, com seu discurso epidíctico e suasó-
tal ponto que – sendo tão augustiniano rio, à luz do qual promove uma axiologia
na épica e na lírica – a solução única pela do heroico a que afinal os supostos he-
omnipotência da Providência Divina fi- róis portugueses da viagem muitas vezes
caria hipotecada pela consideração desse não correspondem…) não se coíbe de
Deus como entidade incógnita e ininteli- questionar ou inferiorizar múltiplos aspe-
gível (X, 80). tos de Os Lusíadas, por comparação com

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AnticAmonismo 289

Corte-Real: a sensibilidade à violência na


guerra, os fundamentos da intervenção
de Vénus e as implicações éticas da ilha
namorada, o desautorizado episódio do
Magriço, etc., e antes do mais as “refe-
rências ofensivas que recorrem no poe-
ma de Camões a propósito de indivíduos
ou populações exteriores à Cristandade”
(ALVES, 2011, 300) em contraste com
“uma visão dos contactos entre povos de
religiões diferentes muito mais tolerante
e igualitária” (Id., Ibid., 301) na épica de
Corte-Real. Por outro lado, a modalidade
que o evemerismo assume em Camões e
o seu papel funcional no poema épico
também não escapam ao visor depreciati-
vo de Hélio Alves: “Se, como quis Faria e
Sousa, os deuses estão n’Os Lusíadas para
engrandecer as façanhas dos portugue-
ses, o evemerismo, com o seu postulado
da essencial humanidade daqueles, leva
ao efeito contrário” (Id., 2011c, 363).
Finalmente, Hélio Alves acentua em Ca-
mões a equivocidade dos conteúdos e
das mensagens, parecendo sonegar ou
ignorar as virtualidades de semântica in
progress e de desenvolução prismática e
polifónica, quando frisa como o influxo
do cânone romanesco e particularmente Camões (1907), de José Malhoa.
da poesia cavaleiresca de Ariosto e Boiar-
do terá favorecido a composição de epo- clara-se o louvor imerecido. Os Lusíadas
peias como a de Camões: “Muitas vezes são veementemente criticados pel’Os Lu-
com a presença de alusões a textos cava- síadas” (Id., 2011b, 361).
leirescos, Os Lusíadas representam os seus Se já para Bowra o sentido de justiça
heróis sob uma luz ambígua, que simulta- dos protagonistas portugueses em várias
neamente autoriza e desautoriza afirma- conjunturas históricas está próximo da
ções ideológicas consistentes. Como figu- crueldade, interpretações pós-imperiais
ra primus inter pares do poema, Vasco da de Os Lusíadas – porventura demasiado
Gama dificilmente funciona como mode- dirigidas por um “commitment to the
lo da virtude heroica, chegando mesmo political analysis of that problem which
a ser vilipendiado abertamente. O argu- effectively goes on in the poem” (Id.,
mento ético-político principal do poema 2003, 101) – deslocam-nos para outro pla-
exalta a viagem do Gama como ato cru- no de requisitório. Essas leituras dilatam
cial na dilatação do Império, enquanto, o inventário dos elementos que tradicio-
ao mesmo tempo, condena esse mesmo nalmente eram arrolados na lista mais ou
ato. Exercita-se o louvor dos heróis e de- menos embaraçosa das estranhezas ou

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290 AnticAmonismo

dissonâncias discursivas e a aprofundar em tempos alvitrada por Jorge de Sena,


as corrosivas consequências semântico- do arquétipo de divindade proscrita mas
-pragmáticas de sinalizações patentes ou irredutível e de humanidade epocalmen-
sub-reptícias não só de um sentido mais te submetida mas inconformada. Enfim,
complexo, mas sobretudo de um estrato a deriva hermenêutica de Luiza Nóbrega
semântico-pragmático de alcance sub- vai desde a discutível mas fecunda hipó-
versivo – espécie de “veneno encoberto” tese interpretativa de ler a polifonia ca-
(V, 105) ou “engano fabricado” (I, 76), ur- moniana que no decurso da viagem se
dido já não pelo mouro perverso mas pelo desenvolve, como estratégia textual de
próprio programa subliminar do poema! equivocidade e duplicidade, até uma pos-
Privilegiando a conexão da crítica ideo- tulação infundamentada de que o canto
lógica com a mitoanálise e a exploração épico de Camões é uma prática elogiosa
das relações paragramáticas do texto ca- que significa o repúdio de si mesma.
moniano, Luiza Nóbrega desenvolveu
uma análise inferencial de implicações Bibliog.: ALMEIDA, Isabel, “Correia, Ma-
contextuais e intertextuais com forte coe- nuel”, in SILVA, Vítor Aguiar e (coord.), Di-
ficiente de dissidência perante o que se- cionário de Luís de Camões, Lisboa, Caminho,
ria a superestrutura político-religiosa do 2011, pp. 294-298; ALVES, Hélio J. S., Camões,
Corte-Real e o Sistema da Epopeia Quinhentista,
império – imposição dogmática tridenti-
Coimbra, Centro Inter-Universitário de Estu-
na vs. compreensão mais profunda dos
dos Camonianos, 2001; Id., “Post-imperial
cultos mítico-iniciáticos, regime imperia- Bacchus: the politics of literary criticism in
lista do avanço civilizacional mercantilis- Camões studies 1940-2001”, in Post-Imperial
ta vs. abertura intercivilizacional do para- Camões, Dartmouth, University of Massachu-
digma da “lusitana antiga liberdade”. Daí, setts, 2003, pp.  95-106; Id., Tempo para Enten-
a aposta na deteção e valorização de uma der: História Comparada da Literatura Portuguesa,
isotopia camoniana da contradição da Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2006; Id.,
“Corte-Real, Jerónimo”, in SILVA, Vítor Aguiar
proposição épica por figuras, com valor
e (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa,
arquetípico (e provável presença sublimi- Caminho, 2011, pp. 298-303; Id., “Épica na
nar de Garcia da Orta), de Velho Sábio, literatura portuguesa do século xvi”, in SILVA,
de aspeto venerando mas descontente e Vítor Aguiar e (coord.), Dicionário de Luís de Ca-
admoestador, que não vão só do Velho do mões, Lisboa, Caminho, 2011a, pp. 345-353;
Restelo ao Adamastor, antes surgem nou- Id., “Epopeia e poema cavaleiresco no renas-
tras latitudes com insólitas fisionomias, cimento”, in SILVA, Vítor Aguiar e (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Caminho,
falas, atitudes e insígnias (tirso, coroa de
2011b, pp.  358-362; Id., “Evemerismo n’Os
ramos e ervas não conhecidas no Ociden- Lusíadas”, in SILVA, Vítor Aguiar e (coord.),
te, etc.), tão peculiares quanto indician- Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Caminho,
tes de alternativa dionisíaca: as personi- 2011c, pp. 362-364; ANSELMO, Artur, Camões
ficações do Ganges e do Indo, as figuras e a Censura Literária Inquisitorial, Braga, Barbosa
do Mouro e de Luso (explicitamente ao e Xavier, 1982; BRAGA, Teófilo de, História de
serviço de Baco-personagem, enquanto Camões, Porto, Imprensa Portuguesa, 1873;
agentes dionisíacos na trama semântica Id.,  Camões: Época e Vida, Porto, Livraria Char-
dron de Lello e Irmão, 1907; CASTRO, Aníbal
do discurso poético) e sobretudo Baco,
Pinto de, Páginas de Um Honesto Estudo Camonia-
que, de papel decorativo como frustrado no, Coimbra, Centro Inter-Universitário de Es-
opositor ao desígnio oficial dos heróis lu- tudos Camonianos, 2007; CHAVES, Henrique
síadas e da divina Providência (católica), de Almeida, O Mito de Camões em Itália, Lisboa,
passaria a peça-chave da atualização, já Colibri, 2001; CUNHA, Mafalda Ferin, “Ca-

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AnticAmonismo 291

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292 AnticApitAlismo

Anticapitalismo sitores ao capitalismo enquanto forma


de organização da sociedade e ao capi-
talismo enquanto teoria. É no primeiro
dos sentidos que o discurso anticapitalis-
ta em Portugal apresenta uma trajetória
mais interessante. De uma maneira ou
de outra, e à semelhança de outros movi-

O termo “anticapitalismo” tem dois


sentidos distintos. Por um lado,
inclui a rejeição de uma forma de orga-
mentos (&Antieconomicismo), só é pos-
sível falar de anticapitalismo a partir de
inícios do séc. xix, quando a economia
nização social em que a distribuição do clássica se afirma em Portugal.
produto é determinada por preços que O primeiro autor em que se deteta
se formam em mercados concorrenciais. uma crítica fundamentada ao edifício
Em teoria, a concorrência entre capitalis- da economia clássica é Francisco Solano
tas e trabalhadores estimulará a eficiên- Constâncio (1777-1846), médico forma-
cia e resultará num crescimento econó- do em Edimburgo, com uma curta – mas
mico benéfico para todos. No entanto, marcante – estadia nos Estados Unidos
os críticos do capitalismo partilham a em 1822-1823, e que viveu em França;
convicção de que este tipo de sociedade escreveu sobretudo em francês. Em Pa-
conduz à opressão dos trabalhadores pe- ris, traduziu David Ricardo para francês,
los capitalistas, uma vez que o surgimen- o que lhe valeu alguma notoriedade na
to de um mercado laboral torna a capa- Europa. Por influência dos protecio-
cidade criadora, própria do ser humano, nistas americanos (Hamilton, em parti-
uma mercadoria. A desproteção dos cular) e dos socialistas utópicos (Owen),
trabalhadores perante este mecanismo Francisco Solano Constâncio tornou-se
condu-los a uma situação desvantajosa um crítico do capitalismo. Considera-
relativamente aos detentores do capital. va que a escola liberal, como chamava
Como tal, para os seus críticos, o capi- aos economistas clássicos (Smith, Say e
talismo implica uma sociedade injusta Ricardo), errava ao defender que a vali-
e intrinsecamente desigual. É de notar dade das suas teorias era universal. Com
que a aceção contemporânea do termo efeito, Constâncio entendia que havia
foi cunhada, em grande medida, por dois poderosos limites às generalizações
autores críticos da organização social do de Smith e dos seus seguidores: o inte-
seu tempo, entre os quais avultam Prou- resse nacional e a condição dos operá-
dhon e Marx. Ou seja, desde a sua gé- rios. Na verdade, escreveu Francisco
nese, o termo “capitalismo” encerra em Solano Constâncio, “será impossível que
si uma perspetiva anticapitalista (&An- um povo cada vez mais esclarecido sobre
tidespesismo, &Antieconomicismo). Já os seus direitos e sobre os vícios da atual
os defensores do capitalismo preferem organização antissocial consinta em tra-
enfatizar a liberdade dos agentes econó- balhar para enriquecer os seus opres-
micos (liberalismo) ou empregar uma sores” (CONSTÂNCIO, 1995, XXXI).
expressão mais impessoal (“economia Segundo José Luís Cardoso, esta crítica
de mercado”). O anticapitalismo impli- de Constâncio ao liberalismo económi-
ca uma crítica às teorias (científicas ou co antecipa o famosíssimo Manifesto do
ideológicas) que defendem este tipo de Partido Comunista de Engels e Marx, sete
sociedade. Dito de outra forma, há opo- anos posterior.

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AnticApitAlismo 293

As críticas de Solano Constâncio diri- ria implicava a superação do laissez faire


giam-se ao capitalismo como teoria e, só económico pelo socialismo, uma desig-
em menor medida, ao capitalismo como nação eclética em que cabiam as diversas
sociedade. Observações semelhantes alternativas ao capitalismo (anarquismo,
às de Solano Constâncio extravasaram socialismo de Estado, cooperativismo).
o campo do discurso especificamente O primeiro escreveu o seu Portugal e o
económico. O romantismo liberal portu- Socialismo, em 1873 (antecedido de um
guês, em que Garrett sobressai, vê com livro mais académico, Teoria do Socialis-
circunspeção e até desconfiança o avan- mo, em 1872), fortemente influenciado
ço da ordem burguesa. Alexandre Her- pelo socialista Proudhon (&Antieco-
culano, figura cimeira do liberalismo ro- nomicismo). Em Portugal e o Socialismo,
mântico, não tinha dúvidas em afirmar, Oliveira Martins descreve como a “mons-
em 1844, que “a organização de um país truosidade do laissez faire” – ou seja, “a
[como a Grã-Bretanha] é viciosa e vio- livre concorrência do capital e do tra-
lenta; […] a propriedade é não só mal, balho” – conduz à miséria do operário
mas monstruosamente dividida; […] o (MARTINS, 1873, 75-79). A solução en-
capital está em guerra aberta com o tra- contra-a Oliveira Martins no socialismo,
balho; […] a condição do homem do visto como o oposto do capitalismo, à
povo [britânico] é rigorosamente pior semelhança do que acontecera já, imagi-
que a do servo da Idade Média […]; para ne-se, em Roma: “Até que César […] fa-
estes […] frequentemente faltam os ob- zendo servir as armas de instrumento às
jetos de primeira necessidade” (HERCU- reformas, venha criar sobre as ruínas do
LANO, 1901, 14). Além disso, Herculano capitalismo e da oligarquia um regime
associa às sociedades como a Grã-Breta- socialista monárquico” (Id., 1885, 443).
nha um longo cortejo de males sociais. Laranjo distingue-se pela sua crítica ao
Curiosamente, o atraso tecnológico e o alcance supostamente universal das ob-
predomínio da agricultura protegiam servações dos pensadores liberais. O seu
o trabalhador português das misérias do interesse pelas situações históricas con-
capitalismo industrial. Herculano mani- cretas leva-o a rejeitar o carácter de lei às
festou-se contra o capitalismo industrial posições dos economistas clássicos. Tal
que distinguia claramente da sua posição como Solano Constâncio, entende que o
liberal. Assim, anos antes (em 1841, no interesse nacional (aqui nota-se influên-
seu opúsculo “Escola Politécnica e do cia de Friedrich List) constitui um obs-
Colégio dos Nobres”), falava das “tiranias táculo de peso à liberalização das trocas
da fábrica” como análogas às formas de internacionais, defendida pelos econo-
opressão do absolutismo (Id., Ibid., 89). mistas clássicos (&Antilivrecambismo).
Os pensadores Oliveira Martins e João Uma pesquisa dos termos usados nos
Frederico Laranjo foram os críticos mais debates da Câmara dos Deputados, onde
significativos do capitalismo no séc. xix. ressoam, pontual e fielmente, as polé-
Ambos reclamaram reformas, regula- micas ideológicas em curso, não devol-
mentação económica mais restritiva e ve qualquer resultado válido, anterior a
mesmo a assunção, por parte do Estado, 1887, para o termo “capitalismo” (muito
de alguns sectores. Oliveira Martins e menos para “anticapitalismo”). A  partir
Laranjo, à semelhança de autores como dessa data, “capitalismo” é usado sobre-
Sismondi, Proudhon, Marx, Kraus e ou- tudo depreciativamente, ora a propósito
tros, consideravam que o curso da histó- dos fluxos financeiros mundiais (“capi-

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294 AnticApitAlismo

talismo cosmopolita” ou “capitalismo in-


glês”, como afirmou, em 1889, Augusto
Fuschini [FUSCHINI, Diario da Cama-
ra..., 7 maio 1889, 588]), ora no sentido
de antagonismo insanável entre classes.
Nos sentidos de desregulação, indivi-
dualismo selvagem ou desproteção so-
cial é visível a influência de “socialistas”
como Oliveira Martins – numa alocução
à Câmara dos Deputados, em 1888, ele
mesmo fala de “sociedade anarquizada
pelo capitalismo” (MARTINS, Diario da
Camara..., 7 abr. 1888, 6). Note-se como
“capitalismo” designava essencialmente
a oposição entre classes, nas palavras de
António José de Almeida, referindo-se
aos barbeiros: “Naquela indústria não
há capitalismo. Patrão e oficiais, todos
trabalham no mesmo pé de igualdade
quase” (ALMEIDA, Diario da Camara...,
2 fev. 1907, 11).
Em inícios do séc. xx, surge O Capita-
lismo Moderno e as Suas Origens em Portugal,
Rosto de O Capitalismo Moderno,
obra do economista Bento Carqueja. Tra- de Bento Carqueja.
ta-se de um livro essencialmente históri-
co, mas que abre com uma discussão crí- mais tarde, o mesmo autor dirigia à Aca-
tica do lucro e da mais-valia, encerrando demia de Ciências de Lisboa uma alocu-
com uma digressão dogmática em que se ção sobre o futuro do regime capitalista,
profetiza o necessário fim do capitalismo. em que reintroduzia a sua agenda refor-
Tal como o capitalismo surgira das for- madora. Temporariamente, o capitalismo
mas anteriores, a “evolução implicaria o tinha conseguido multiplicar a capacida-
fim do capitalismo” (CARQUEJA, 1908, de produtiva da humanidade, mas a um
200). No entanto, a “máquina”, uma das preço social demasiado elevado. Para
novidades deste regime económico, pre- Carqueja, um regime baseado no indivi-
parava para a “humanidade de amanhã dualismo e na ambição desmedida não
um singular modo de ser” (Id., Ibid., 221). podia melhorar a condição de vida da
Tal como Marx, que cita, Carqueja enten- maioria e por isso não tinha futuro. Para
dia que o Estado acabaria por expropriar, tal, Carqueja clamava por uma regenera-
através dos impostos, grande parte do ção moral, que abolisse o “utilitarismo in-
capital, e por eliminar cenários concor- teresseiro e egoísta”, a “ausência de con-
renciais. Aliado às máquinas e à sua ca- vicções” e o “desprezo pelos princípios e
pacidade produtiva, deste “coletivismo” ideais” (Id., Ibid., 200).
iminente resultaria o socialismo, no qual Até finais do séc. xix, o Partido Socia-
o homem deslocaria a concorrência do lista Português (membro da Internacio-
campo da economia para os domínios nal Socialista) exibia um conhecimento
da cultura e da arte (Id., Ibid., 200). Anos rudimentar da crítica marxista, apesar

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AnticApitAlismo 295

do prestígio da figura de Marx. Mesmo Nos debates da Câmara Corporativa,


os meios universitários conhecedores da o termo “capitalismo” continuou a ter
obra marxista preferiram caminhos não a mesma conotação negativa que no
revolucionários para o socialismo, como séc. xix: opressão dos trabalhadores pelos
o socialismo reformista. No entanto, o privilegiados; especulação internacional
republicano Teixeira Bastos publicou, improdutiva. Associadas à designação
em 1897, na coleção Bibliotheca Popular “capitalismo”, surgem ideias como este-
de Orientação Socialista, o livro antica- rilidade, especulação, mau investimento,
pitalista A Dissolução do Regimen Capitalis- egoísmo, degenerescência, ilusão dou-
ta. Esta obra é essencialmente polémica trinária. Desta forma, e ao contrário do
e política, sem qualquer preocupação que seria de esperar, tendo em conta as
teórica, refletindo a forma como o capi- características do pensamento marxista,
talismo se tornou um polo aglutinador no séc. xx não é a posição anticapitalista
dos problemas sociais do seu tempo. que distingue o Partido Comunista Por-
Não mostrando interesse em justificar as tuguês (PCP) das outras ideologias. De
suas afirmações, Teixeira Bastos declara facto, a sua primeira arena de confronta-
que o capitalismo origina a desigualdade ção foi a cultura (em especial, a literatu-
(“série interminável de injustiças que vi- ra) e não a teoria económica. Como tal,
timam a população operária” [BASTOS, os intelectuais comunistas não são tanto
1897, 4]), a ociosidade (“o mesmo ideal paladinos do “anticapitalismo”, como se
do capitalismo: viver à larga sem traba- enfileiram nas hostes do “antiburguesis-
lhar!” [Id., Ibid., 6]), a “empregomania” mo” (MADEIRA, 1996, 98). Aliás, a visão
(Id., Ibid., 9), a especulação (“a fúria do leninista (na famosa conceção de Leni-
ganho individual alimentado pela forma ne do imperialismo como o “último está-
capitalista de produção e atraído pela dio do capitalismo”), que passou a domi-
febre do jogo” [Id., Ibid., 9]), a imorali- nar o PCP, adequava-se à circunstância
dade (“o desenfreado amor do luxo e do portuguesa. As transformações internas
prazer que se propagou no reinado de no partido e a sua orientação estalinista
D. Luís” [Id., Ibid., 13]). Por estas razões, levariam mesmo a que se voltasse, não
o autor afirma que, em Portugal como tanto contra a organização capitalista e
na Europa, o capitalismo está em “de- a exploração dos operários, como con-
composição espontânea” (Id., Ibid., 13). tra o “imperialismo” (NEVES, 2010, 62),
O sentido negativo do termo “capitalis- que, juntamente com o fascismo, era res-
mo” manteve-se no séc. xx. A ideologia ponsável pela opressão dos Portugueses.
corporativista que servia de fundamento Uma perspetiva quantitativa, obtida
ao regime de Salazar defendia que o in- a partir dos debates da Assembleia da
teresse nacional implicava a superação República da Terceira República, revela
da luta entre trabalhadores e capital, que, até 1980, o termo “imperialismo” é
que propunha substituir por uma coope- mencionado em mais 35 % das sessões
ração mutuamente benéfica. É esta visão diárias do que o termo “capitalismo”.
que preside ao Estatuto do Trabalho Na- Entre 1981 e 1990, “capitalismo” e “im-
cional, de 1933. Em 1934, e.g., A Voz dos perialismo” estão aproximadamente em
Trabalhadores, jornal do sindicato católi- paridade. A partir de 1991, as sessões em
co dos operários da Covilhã, declarava-se que se menciona o termo “imperialismo”
ao mesmo tempo “anticapitalista” e “an- representam um terço daquelas em que
timarxista” (PATRIARCA, 1995, 206). se refere “capitalismo”. Esta mutação

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296 AnticApitAlismo

reflete a criação, em Portugal, de uma que luta contra “um capitalismo anti-
economia de mercado; além disso, o fim democrático” (SANTOS, Visão, 12 jan.
da Guerra Fria retira ao discurso dos par- 2012, 24). Curiosamente, estas palavras
tidos de esquerda o tradicional antago- parecem anunciar uma reconciliação
nismo ao imperialismo americano, para entre os socialistas oitocentistas, preocu-
o centrar na crítica às injustiças do capi- pados com o capital, e os comunistas do
talismo. Não se pode dizer que esta mu- séc. xx, unidos contra o imperialismo.
dança representa um regresso à matriz
ideológica da esquerda partidária, uma
vez que a sua hostilidade, ao longo do
séc. xx, se exprimiu nas esferas geopo-
lítica (contra o imperialismo), política
(contra o fascismo) e cultural (contra a Bibliog.: ALMEIDA, António José de, Diario
estética burguesa), e só secundariamen- da Camara dos Senhores Deputados, 2 fev. 1907;
te na esfera económica. BASTOS, Teixeira, A Dissolução do Regimen Ca-
Em finais do séc. xx, o termo “antica- pitalista, Lisboa, Companhia Nacional Edito-
ra, 1897; CARQUEJA, Bento, O Capitalismo
pitalismo” tornou-se recorrente nas críti-
Moderno e as Suas Origens em Portugal, Porto,
cas à globalização económica e tornou-se Livraria Chardron de Lello e Irmão, 1908; Id.,
moeda corrente numa grande variedade O Capitalismo. Seu Passado, Seu Presente, Seu Fu-
de movimentos (incluindo o feminismo turo, Lisboa, Academia das Ciências,  1933;
e o ecologismo), assumindo mais noto- CONSTÂNCIO, Francisco Solano, Leituras e
riamente o significado de opressão e de Ensaios de Economia Política (1808-1842), in-
predomínio dos interesses económicos trod. e dir. José Luís Cardoso, Lisboa, Banco
de Portugal, 1995; FUSCHINI, Augusto, Dia-
sobre os demais. Nesta literatura polé-
rio da Camara dos Senhores Deputados, 7 maio
mica salienta-se, a nível internacional, 1889; HERCULANO, Alexandre, Opúsculos,
a figura do sociólogo coimbrão Boaven- t. viii, Lisboa, Tavares Cardoso & Irmão Edi-
tura de Sousa Santos. A partir dos seus tores, 1901; MADEIRA, João, Os Engenheiros
circuitos portugueses e brasileiros, este de Almas. O Partido Comunista e os Intelectuais
autor opõe duas globalizações: a “hege- (dos Anos Trinta aos Inícios de Sessenta), Lisboa,
mónica”, que se identifica com o libera- Estampa, 1996; MARTINS, J. P. de Oliveira,
Teoria do Socialismo, Lisboa, P. Plantier, 1872;
lismo, com as grandes empresas e com
Id., Portugal e o Socialismo, Lisboa, P. Plantier,
as grandes economias de mercado, e a
1873; Id., História da República Romana, Lis-
“contra-hegemónica”, que se define con- boa, Bertrand, 1885; Id., Diario da Camara dos
tra a anterior, ou seja, “é de carácter an- Senhores Deputados, sup., 7 abr. 1888; MARX,
ticapitalista” (SANTOS, 2001, 61). Sou- Karl, e ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido
sa Santos evidencia a existência de um Comunista, Lisboa, Avante, 1984; NEVES, José,
confronto dialético entre globalização Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política,
capitalista e o seu oposto, representado Cultura e História no Século XX, Lisboa, Tinta da
China, 2010; PATRIARCA, Fátima, A Questão
pelas ONG, pelos países periféricos e
Social no Salazarismo. 1930-1947, vol. i, Lisboa,
pelo Fórum Económico Mundial, sendo INCM, 1995; SANTOS, Boaventura de Sousa,
que o segundo claramente se define, na “Os processos da globalização”, in SANTOS,
sua essência, como o anti do primeiro. Boaventura de Sousa (org.), Globalização. Fa-
Num texto de intervenção publicado na talidade ou Utopia, Porto, Afrontamento, 2001,
imprensa generalista, a “Quarta carta às pp. 31-106; Id., “Quarta carta às esquerdas”,
esquerdas”, Boaventura de Sousa Santos Visão, 12 jan. 2012, p. 24.
fala de uma “democracia anticapitalista” António Castro Henriques

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AnticAritAtivismo 297

Anticaritativismo acabam por não contribuir para o bem


-estar das pessoas que necessitam de aju-
da, tais como a filantropia corporativa e
o microcrédito, expressões da intromis-
são do capitalismo no assistencialismo.
Com efeito, na primeira década do
séc. xxi, várias fundações filantrópicas

C onjunto de práticas e de teorias que


se posicionam contra gestos de cari-
dade, ou seja, contra toda a ação altruísta
globalmente reconhecidas começaram
a usar um novo mecanismo de práticas
caritativas, ao fazerem doações milioná-
feita em benefício de uma ou mais pes- rias isentas de impostos, mas chamadas
soas, independentemente da situação caritativas, a empresas extremamente lu-
em que estas se encontrem, sem esperar crativas (a Ford Foundation faz doações
qualquer recompensa em troca. Sendo a a empresas dos media; a Wellcome Trust
caridade percecionada pela maioria das oferece bolsas a companhias farmacêuti-
religiões como uma atitude de compai- cas; a Bill & Melinda Gates Foundation
xão, de amor desinteressado ao próximo faz doações na ordem dos milhares de
e de generosidade, que denota elevação milhões de dólares à Mastercard, à Mon-
moral do indivíduo ou do grupo de indi- santo, à ABC News, à NBC, à Univision
víduos que a praticam, e está frequente- Communications, entre outras; etc.),
mente identificada com bondade, o anti- investindo nestas empresas com o ob-
caritativismo é geralmente perspetivado jetivo de que elas criem produtos que
de uma forma negativa do ponto de vista ajudarão as populações necessitadas,
da moral e da ética. Nesse sentido, por ao invés de doarem diretamente essas
um lado, a argumentação a favor de atos grandes quantias às pessoas carenciadas,
anticaritativos costuma prender-se com gerando-se, deste modo, uma filantropia
a defesa do bem-estar geral de uma po- corporativa. No caso concreto da Bill &
pulação que não necessita de assistência Melinda Gates Foundation, a organiza-
humanitária em detrimento de um gru- ção filantrópica mais poderosa do mun-
po que desta necessita, revestindo-se de do, constata-se que esta, em 2011, doou
atitudes discriminatórias em relação a 11 milhões de dólares à Mastercard para
este último – muito evidente, e.g., aquan- a construção de um laboratório de in-
do das diversas tentativas de impedir que clusão financeira em Nairobi, no Qué-
cidadãos de um dado país prestem ajuda nia, que consiste no estabelecimento de
a refugiados de guerra migrantes para agências de microcrédito por parte da
esse mesmo país, como sucedeu na déc. Mastercard nesta região, tendo em vista
de 10 do séc. xxi na Europa com a crise a expansão do mesmo microcrédito ao
dos migrantes que fugiam da guerra da resto do país. Devido a este tipo de doa-
Síria e com o racismo e a xenofobia daí ções (que ajudam a reduzir as despesas
decorrentes. Por outro lado, o anticarita- legais da empresa e lhe permitem expan-
tivismo ocorre mais sistematicamente, de dir-se para outros mercados a custo re-
uma forma velada, dentro dos próprios duzido), e voltando o seu interesse para
programas de assistência humanitária e os 2,5 mil milhões de pessoas do mun-
de filantropia, subvertendo os princípios do que não acedem ao sistema bancário
e os objetivos da caridade que os deve- nem têm porta-moedas digital, ou seja,
riam reger através de mecanismos que os pobres, a Mastercard dedicou-se, na

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298 AnticAritAtivismo

segunda década do séc. xxi, a estabele- cultivo. Destas práticas, surge a ideia de
cer agências de microcrédito em países a saúde e a educação das populações ne-
em desenvolvimento, tendo crescido cessitadas de assistência serem presente
330 % entre 2010 e 2015 e ocupado um e unilateralmente decididas por dadores
lugar cimeiro num grupo crescente de que têm interesses corporativos e capi-
negócios que fazem lucro a combater a talistas, não havendo espaço para o diá-
pobreza global. logo com os recetores da assistência hu-
As acusações de anticaritativismo a manitária ou da caridade, os primeiros
fundações filantrópicas deste género interessados.
sugerem a existência de lucros escondi- Esta mudança de rumo no papel das
dos nestas doações corporativas, já que fundações filantrópicas interessadas no
as fundações esperarão alguma recom- negócio da pobreza vai destruindo o seu
pensa para os seus investimentos. Lem- intuito primeiro – o de ajudar os que vi-
bram ainda que a maioria dos gastos fi- vem em situações de violência, sem abri-
lantrópicos do séc. xxi não é dirigida a go, sem alimentos e sem instrução – e
indivíduos com baixo rendimento, mas enraíza-se no pensamento de Adam Smi-
a universidades abastadas, a instituições th, Andrew Carnegie, Charles Wilson,
culturais frequentadas pelas classes so- das elites do Fórum Económico Mun-
ciais mais ricas e a instituições religiosas dial, e posteriores investidores e estu-
que, legalmente, têm o poder de juntar diosos da gestão e da economia, que de-
riqueza sem pagar impostos e de não a fendem que a expansão dos mercados é
distribuir, ao invés do que a moral da um processo naturalmente filantrópico,
maioria das religiões aconselharia. que contribui para a melhoria do nível
Relativamente à Bill & Melinda Gates de vida em termos globais, e que, deste
Foundation, as críticas que identificam modo, as doações isentas de impostos a
o cariz anticaritativo da fundação indi- empresas ricas não deveriam ser questio-
cam que esta só recentemente começou nadas, mas promovidas. Esta intromissão
a denotar preocupação com a melhoria do capitalismo nos conceitos de carida-
dos sistemas de saúde primária das po- de, generosidade e bondade, que a filo-
pulações carenciadas e que ajudou mul- sofia e as religiões foram inculcando, ao
tinacionais americanas, como a Mon- longo de milénios, na humanidade, para
santo, a crescer em países africanos em que esta pudesse ser civilização, derruba
desenvolvimento, facto que tem conse- o próprio conceito de civilização e de
quências gravosas nas economias locais, humanidade, corroendo internamente
especialmente no caso dos agricultores as práticas do caritativismo, como acon-
africanos dessas regiões, que, ao invés tece no caso das experiências com micro-
de serem ajudados a melhorar a sua pro- crédito em países em desenvolvimento,
dutividade, através da tecnologia e dos que se revelaram ineficazes no combate
conhecimentos dos norte-americanos, à pobreza na déc. de 90 do séc. xx e nas
foram convencidos a comprar produtos décs. de 00 e de 10 do séc. xxi, mas que
da Monsanto e outros, que não têm ca- continuam a ser louvadas.
pacidade financeira de pagar, mas que Nascido na déc. de 90 do séc. xx no
ficaram como que obrigados a comprar Bangladeche, a partir do sucesso obti-
anualmente de modo a continuarem a do no banco comunitário de Grameen,
cultivar as suas terras, como é o caso da fundado pelo economista Muhammad
disseminação das sementes híbridas para Yunnus, que recebeu, em 2006, o Prémio

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AnticAritAtivismo 299

Nobel da Paz pelo seu esforço na criação da caridade e no empoderamento das


de desenvolvimento económico e social mulheres (as recetoras dos empréstimos)
nas classes sociais mais pobres, o mi- como decisoras da economia doméstica,
crocrédito – o empréstimo de dinheiro tendo ensinado disciplina financeira e
a pessoas em situação de pobreza para promovido a produtividade das popula-
que estas possam desenvolver os seus ções. Porém, há diversos registos de esta
próprios negócios – é hoje uma indús- taxa ser conseguida com base na coerção
tria global de 60 mil milhões de dólares das populações (feita de abusos físicos e
com 200 milhões de pessoas recetoras de sexuais) pela parte das pessoas incumbi-
empréstimos, apesar de não existir prova das de estabelecer os empréstimos e de
do efeito positivo desta prática no bem- coletar os pagamentos dos mesmos, bem
-estar financeiro dos participantes. como na apropriação não autorizada de
A maioria dos estudos efetuados sobre bens pessoais, como é o caso dos telhados
o impacto do microcrédito nas finanças das casas das pessoas que contraíram em-
de populações carenciadas evidencia préstimos. A partir destes métodos de in-
que, na verdade, não se verificou um timidação, compreende-se a priorização
aumento significativo nos orçamentos do pagamento do microcrédito para estas
e rendimentos familiares, no consumo comunidades e, portanto, a sua altíssima
de alimentos, na assiduidade escolar e taxa de pagamento.
no empoderamento das mulheres nas A pobreza não é assim eliminada, já
comunidades recetoras de empréstimos, que estas pequenas comunidades (a
objetivos a atingir, segundo as agências título exemplificativo, na cidade de
de microcrédito. Efetivamente, em vá- Arampur, com uma população de 1500
rios estudos de caso, verifica-se que as pessoas, existem oito agências de micro-
vozes das comunidades que beneficiam crédito e a maioria das famílias contraiu,
de microcrédito não são escutadas, es- em média, quatro empréstimos) torna-
tando completamente ausentes dos pro- ram-se mais dependentes da caridade e
jetos económicos que determinam o seu de outros empréstimos para pagarem o
futuro, e que muitas vezes não conside- primeiro e, assim, menos autossuficien-
ram a pobreza como mais do que falta tes. Perniciosa e ironicamente, no caso
de dinheiro (quando é também falta de das mulheres, a sua situação inicial de po-
acesso à instrução, a cuidados de saúde breza agravou-se bastante, na medida em
e/ou desigualdade de género), avalian- que, sendo recetoras dos empréstimos
do-se o sucesso do microcrédito apenas em nome da sua família (de modo a com-
mediante as taxas de pagamento dos em- bater a desigualdade de género), esta sua
préstimos, que são altas, e tornando-se aceitação do microcrédito é-lhes frequen-
esta avaliação um argumento falacioso temente imposta pelos maridos, já que
na defesa dos benefícios deste tipo de vivem numa sociedade patriarcal. Quan-
assistência financeira. do estes empréstimos lhes são cobrados,
No caso do Bangladeche, país em que as mulheres são duplamente vítimas de
foi criado o microcrédito (e, por isso, in- violência – dos cobradores das agências
teressante enquanto objeto de análise), e dos maridos –, raramente colhendo as
os seus defensores argumentam que as recompensas que um empréstimo lhes
altas taxas de pagamento (98 %) indicam poderia proporcionar, havendo mesmo
o sucesso do projeto na quebra de ciclos mulheres que os contraem para pagar o
de pobreza, na redução da dependência seu dote de casamento à família do noivo,

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300 AnticArnivorismo

perpetuando-se um ciclo de violência e


de desigualdade de género. Deste modo,
Anticarnivorismo
inverte-se totalmente o primeiro objetivo
das fundações filantrópicas que fizeram
doações corporativas para ajudar estas
populações e das agências de microcré-
dito que promoveram empréstimos de
modo a ajudar o seu desenvolvimento fi-
nanceiro, transformando-se estas práticas
de caridade, pela intromissão da teoria
N a atualidade, encontra-se um con-
junto vasto, diversificado e minori-
tário de pessoas adeptas do não consumo
capitalista na assistência humanitária, em de animais: os vegetarianos, os vegetalis-
anticaritativismo. tas e os vegans. Os primeiros recusam a
ingestão de carne, peixe e crustáceos, os
segundos juntam aos interditos referidos
leite, queijo, ovos e, por vezes, mel e, fi-
nalmente, os terceiros não só recusam
Bibliog.: impressa: BANERJEE, Abhijit et al., ingerir animais e seus derivados como
“Six randomized evaluations of microcredit: também prescrevem todo e qualquer
introduction and further steps”, American Eco- produto que implique a exploração dos
nomic Journal: Applied Economics, n.º 7, 2015, mesmos. Ou seja, adotam o vegetalismo
pp. 1-21; PAWLIKOVÁ-VILHANOVÁ, Viera, e vão mais longe, recusando vestir peças
“Christian missionary enterprise in Africa. A de peles, couros e lãs, abstendo-se de par-
synonym for ‘cultural imperialism’”, Asian and
ticipar e de assistir a espetáculos que im-
African Studies, vol. 11, n.º 1, 2002, pp.  49-
-68; digital: CASSELMAN, Ben, “Microloans
pliquem algum tipo de dano aos animais,
don’t solve poverty”, Five Thirty Eight, 8 dez. como touradas e combates de galos; e, fi-
2015: https://fivethirtyeight.com/features/ nalmente, de usar cosméticos preparados
microloans-dont-solve-poverty/ (acedido a a partir de substâncias animais ou previa-
26 jul. 2017); CONS, Jason, e PAPROCKI, Ka- mente testados neles.
sia, “The limits of microcredit: a bangladeshi Vegetarianos, vegetalistas e vegans par-
case”, Food First Backgrounder, vol. 14, n.º 4, tilham preocupações comuns mas não
2008: http://www.academia.edu/1601767/
nasceram simultaneamente. Uns eviden-
Jason_Cons_and_Kasia_Paprocki--The_Li-
mits_of_Microcredit_A_Bangladeshi_Case ciam motivações ecológicas – a criação
(acedido a 26 jun. 2017); MCGOEY, Lindsey, de gado polui os solos e as águas, implica
“The philanthropy hustle”, Jacobin Magazine, desflorestação, diminuição da biodiver-
11 ago. 2015: https://www.jacobinmag. sidade e contribui para o aquecimento
com/2015/11/philanthropy-charity-banga- global – alguns calculam que os cereais
carnegie-gates-foundation-development (ace- utilizados para alimentar o gado seriam
dido a 25 jun. 2017); MORDUCH, Jonathan,
suficientes para acabar com a fome no
“Debunking the microfinance bubble”, Inno-
vations for Poverty Action, 8 ago. 2009: http:// mundo, outros salientam motivos de saú-
www.poverty-action.org/blog/debunking-mi- de – associando o consumo de carnes ver-
crofinance-bubble (acedido a 26 jun. 2017); melhas ao aparecimento de diversos tipos
TUCKER, Jeffrey A., “The micro-credit cult”, de doenças – outros ainda, como hindus
The Free Market 13, n.º 11, 1995: https://mi- e budistas, alegam questões religiosas,
ses.org/library/micro-credit-cult (acedido a sem esquecer os adeptos do ascetismo
26 jun. 2017). que visam purificar a alma e os que lem-
Joana Lima bram as matérias éticas como a necessi-

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AnticArnivorismo 301

dade de tratar bem os animais (LARUE, alma de humanos. Aparentemente, para


2015, 5-7). Pitágoras, a recusa do consumo de car-
Algumas correntes enfatizam mesmo ne estaria também ligada ao horror ao
que comer carne de cadáveres é intro- sangue e à contaminação e à procura da
duzir a morte em si mesmo. Em con- pureza e da ascese (NIOLA, 2015, 63-74).
trapartida, a defesa dos alimentos vivos, Retenha-se que uma das diferenças entre
das plantas, é uma forma de reforçar o ascetismo e vegetarianismo passou pelo
equilíbrio físico e espiritual (OSSIPOW, primeiro consistir na renúncia a um pra-
1994, 127-135). Certos pensadores vão zer sensual para crescer espiritualmente.
mais longe, ao defenderem que o utili- Em todo o caso, a crença na transmigra-
tarismo não pode justificar a criação e o ção das almas, a procura da pureza e o
abate, uma vez que o interesse humano desejo de ascese, parecem ter sido os três
não deve ser superior ao do animal, que motivos base do vegetarismo pitagórico
tem sentimentos, sente dor e tem inteli- que caminharam ao arrepio das práticas
gência. Logo, o Homem tem a obrigação religiosas institucionalizadas, incluindo
ética de ser vegetariano, vegetalista ou as cerimónias sacrificiais, a partir das
vegan, posição que serve mais interesses, quais se obtinha carne para consumo
tanto mais que a sobrevivência humana (SPENCER, 2016, 43-69; RAUW, 2015,
não implica comer animais (MATHENY, 2-3; LARUE, 2015, 16-30). Os regimes
2006, 13-25). alimentares isentos de carne levariam,
A defesa do consumo de alimentos de deste modo, à regeneração física e moral
origem vegetal teve origem na tradição fi- do Homem. Note-se que, no Ocidente,
losófica indiana, designadamente através estes regimes alimentares sem carne, até
de religiões como o Hinduísmo e o Bu- ao século XVIII, foram classificados como
dismo, que nessas matérias mostraram al- pitagóricos.
gumas semelhanças, designadamente no Plutarco (c. 46 – 120) também se pro-
que se refere à crença no karma (entendi- nunciou a respeito da opção vegetariana,
do como as ações em vidas prévias afetam mostrando sobretudo o que considerou
a existência do presente) e na reincarna- serem as incoerências do regime carní-
ção. De qualquer modo, se no Budismo voro. Foram os problemas fisiológicos e
houve uma forte tradição vegetarianista, morais suscitados pelo consumo de carne
desde que Buda (séc. VI a. C) ordenou que levaram o filósofo a considerar que a
aos seus seguidores que não matassem sua ingestão não era normal, necessária
animais, houve uma corrente que não nem natural. Nada justificaria os tormen-
acatou este preceito, consequentemente tos infligidos aos animais, tudo passava
não se verificou unanimidade por parte por uma questão cultural. O consumo
dos que adotaram esta religião (TROTIG- da carne transformada, isto é, cozinhada,
NON, 2011, 243-292). com recurso a temperos e ao fogo, consti-
Na Antiguidade clássica, entre os Gre- tuía um símbolo da civilização, não tendo
gos, a abstinência do consumo de carne o Homem a possibilidade de a ingerir no
ficou a dever-se a motivos éticos e espiri- estado em que era obtida, ao contrário
tuais. Pitágoras (c. 570 a. C – c. 495 a. C.) do que acontecia com os outros animais
considerou que a abstenção de carne (RAUW, 2015, 8-9, LARUE, 2015, 55-58).
tornava o Homem menos predisposto à Porfírio de Tiro (c. 234 – c. 304) consti-
violência e que os animais deveriam ser tuiu uma referência importante para a li-
poupados pois poderiam transportar a teratura vegetariana, e, consequentemen-

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302 AnticArnivorismo

te, para o anticarnivorismo, uma vez que animais como seres que não deveriam ser
apresentou uma soma dos conhecimen- sacrificados. O confronto de posições,
tos acerca da opção verde do passado e iniciado com Pitágoras e resumido por
parece ter sido um dos pioneiro na defesa Porfírio, após diversos contributos, esta-
do vegetarianismo ético, ao considerar a va em vias de hibernar. A conversão do
nulidade dos sacrifícios animais para cul- imperador Constantino (272-337), desfa-
tuar os deuses. Não atacou todos os sacri- vorável ao vegetarianismo de inspiração
fícios, mas apenas os que implicavam a moral, e o entendimento pelos teólogos
morte de animais. Isto é, não procurou e pelos Padres da Igreja da abstinência da
reformar a religião vigente mas poupar os carne como uma superstição, não foram
bichos. Considerou que privar o animal favoráveis a este tipo de opção (LARUE,
da vida era afim à prática de homicídio 2015, 76-78).
por razões cruéis e inúteis, pois o Homem O Judaísmo, o Cristianismo e o Isla-
poderia dispor de plantas e de frutos para mismo sempre mostraram aversão à vio-
sobreviver (DIAS, 2012, 81-92). Mais do lência inerente à morte dos animais, o
que salientar as qualidades do regime ver- que não significou a adesão dos crentes
de, Porfírio criticou o consumo de carne. ao vegetarianismo (DAVIDSON, 2003,
Para o autor, os animais eram dotados de 114-130). As três religiões entende-
logos prophorikos (linguagem que atesta os ram que os animais eram meios para
estados de alma), independentemente de os humanos obterem fins. Logo, o re-
os humanos nem sempre os compreende- gime omnívoro seria o adequado. Se
rem, expressavam-se, logo, não deixavam para o islão, a alimentação com carne
de ser objeto de direito. Salientou ainda se apresenta como um ato para servir
que os animais eram úteis aos homens o Homem, também pode ser entendida
uma vez que os ajudavam diretamente no como uma forma de predação. Diver-
trabalho e lhes forneciam bens para a ali- gências e discussões de interpretação
mentação e para o vestuário, em alguns foram permanentes, mas duas constan-
casos, dependiam do próprio Homem tes se salientaram: a necessidade de cui-
para sobreviver (SPENCER, 2016, 103- dar dos animais e a morte destes de for-
-106; RAUW, 2015, 9-11; LARUE, 2015, ma rápida e com o menor sofrimento
63-66). possível (MARONGIU-PERRIA, 2015,
Na Antiguidade clássica não houve con- 309-324). Para judeus e cristãos, a absti-
senso acerca das relações entre o Homem nência de carne foi defendida enfatica-
e os animais, o mesmo é dizer que a opção mente, não por compaixão ou respeito
vegetariana teve adeptos e adversários. As pelos animais, mas como uma forma
várias escolas filosóficas pronunciaram- de enfraquecimento do corpo visando
se de maneiras diferentes, sobre o papel refrear os desejos carnais. Progressi-
do Homem no universo, o entendimento vamente, os jejuns foram instituídos,
dos animais, a religião, a pureza, a moral tornando-se clara a existência de dias
e o direito. Se para uns o Homem era a fi- gordos, ou de carne, em paralelo com a
nalidade do universo enquanto os outros forte presença de dias magros ou de je-
seres eram meros meios de honrar os deu- jum e abstinência, numa dinâmica com-
ses através da oferenda de sacrifícios; ou- plexa e variável ao longo dos tempos.
tras posições entenderam que o Homem Efetivamente, no início do Cristianismo
era uma parte de um todo a par de outras a matéria foi dada a alguma confusão:
criaturas, sendo adequado considerar os um indivíduo que se abstinha de carne

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AnticArnivorismo 303

visava a ascese ou recusava-se a fazer so- permanentemente ameaçado (SPENCER,


frer os animais? (LARUE, 2015, 80-81). 2016, 165-166, BARATAY, 1996, 172,
O livro do Génesis apresentou inicial- LARUE, 2015, 119).
mente o Homem como vegetariano e, A tradição católica nunca foi adversa
após o Dilúvio, como omnívoro. Essa à abstinência de carne nem inimiga da
mudança seria explicada pelo facto de a preocupação com os animais. Ou seja,
hecatombe ter destruído as plantas. Eis trata-se de uma realidade complexa que
uma interpretação de rabis do passado apresenta basicamente três razões interli-
e do presente. Mas esta posição não foi gadas: uma de natureza médica, outra de
comum a todos os exegetas judaicos, al- carater ascético e uma terceira de verten-
guns dos quais negaram a mudança de te escatológica. Isto é, do ponto de vista
regime alimentar, recusando entender médico a pureza espiritual era a princi-
Adão como vegetariano. Entre os exege- pal preocupação, de tal modo que nem
tas cristãos a interpretação do primeiro o consumo de carne para os doentes foi
livro sagrado também não foi consensual. consensual; sob a ótica do ascetismo, visa-
Se para São João Crisóstomo (347-407) o va defender-se o contrário da glutonaria
sacrifício deveria ser entendido como pri- e, finalmente, na perspetiva escatológi-
vação, para São Jerónimo (c. 347-420) ser ca, entendia-se como um encorajamen-
carnívoro era prova da bondade divina, to enquanto recompensa pela queda de
uma vez que Deus tinha percebido que os Adão. Assim se compreende a existência
homens apreciavam a carne dos animais, das ordens religiosas que eliminaram a
não os obrigando a dela se privarem (LA- carne das suas dietas (BERKMAN, 2004,
RUE, 2015, 83). Quer para judeus quer 174-190).
para cristãos o sacrifício de um cordeiro Com Descartes (1596-1650), o proble-
por Abel, antes do Dilúvio, causou dificul- ma animal sofreu um enorme retrocesso.
dades exegéticas. No caso do Judaísmo, O filósofo defendeu que os bichos não
a preocupação em proceder ao abate ri- sentiam dor, embora as respostas mecâ-
tual dos animais, as proibições de separar nicas aos estímulos se assemelhassem a
as mães das crias, de castrar animais, de expressões de sofrimento. Era a noção
entre outras, pressupôs a criação de uma de besta-máquina, corolário do dualismo
ética animal. corpo, mente. Assim, o tratamento dis-
No Cristianismo, a aparente contradi- pensado aos animais seria uma questão
ção entre a abstinência de carne e a recu- meramente moral. Desenvolveu-se, deste
sa do vegetarianismo deve ser explicada modo, a vivisseção, praticada desde a An-
tendo em conta que a privação só se acei- tiguidade, incluindo em público, desig-
tava se tivesse como fundamento o dese- nadamente na Royal Society, por médicos
jo de mortificação e não o respeito pelos como William Harvey (1578-1657) e por
animais ou as superstições. Assim se com- físicos e químicos como Robert Boyle
preende a regra de São Bento (composta (1627-1691). Estas ações acabaram por
em 529), que interditava o consumo de levantar oposição, ainda no século XVII.
carne aos cistercienses. Em geral, tratou- Por exemplo, o naturalista John Ray
-se, pois, de conciliar a prática do regime (1627-1705) defendeu exatamente o
omnívoro e a necessidade de castigar o contrário de Descartes e dos seus segui-
corpo. O cristão deveria comer de tudo dores, considerando que Deus não criara
e abster-se, em determinadas ocasiões, do o mundo apenas para o Homem e que as
que era mais apetecido, num equilíbrio ações dos animais não eram mecânicas.

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304 AnticArnivorismo

Outros expressaram opiniões no mesmo tarian Messenger, periódico em que muitos


sentido, tais foram os casos dos filósofos artigos enfatizaram os benefícios morais
Thomas Hobbes (1588-1679) e de Bene- e espirituais de abstenção do consumo de
dict de Spinoza (1632-1677)(GUERRINI, carne (MILLER, 2011, 154).
1989, 391-407). Na cultura portuguesa o discurso anti-
Ao admitir-se que os animais sentiam carnivorista teve alguma relevância a par-
e sofriam tendeu a aceitar-se que essas tir das primeiras décadas do século XX,
características lhes conferiam direitos, em particular devido à ação dos membros
designadamente os de não serem mortos da Sociedade Vegetariana de Portugal,
nem comidos. Ou seja, os homens não fundada no Porto, em 1911. Esta agre-
podiam ser superiores aos bichos, usando miação teve origem no comité da revista,
-os conforme os seus interesses. Eis que se de periodicidade irregular, O Vegetaria-
perfila uma alteração das sensibilidades no (1909-1935), dirigida por Amílcar de
paralela ao processo de descristianização Sousa, tendo como estatuto-programa
deste período. Simultaneamente o deba- um documento assinado em 1 de março
te atingiu outras áreas, levantando per- daquele ano. A comissão fundadora foi
guntas acerca da natureza do Homem, do constituída por várias personalidades: o
primeiro regime alimentar da humanida- referido Amílcar de Sousa, presidente;
de, dos melhores alimentos para a saúde, Jerónimo Caitano Ribeiro, secretário;
de entre outras. Manuel de Oliveira Borges, secretário; e
No século XVIII, as reações às posi- ainda os vogais Eduardo de Lima Lobo
ções de Descartes foram significativas, e Manuel Teixeira Leal. Como presidente
envolvendo intelectuais de renome – tais honorário foi escolhido o escritor e críti-
como Voltaire (1694-1778) e Rousseau co literário Jaime de Magalhães Lima.
(1712-1778) – e desencadearam debates A ligação do vegetarianismo e do vege-
médicos sobre os malefícios do consumo talismo ao naturismo foi uma realidade
de carne. Salientem-se os contributos de palpável desde cedo. Isto é, os adeptos
Louis Lémery (1677-1743) e Philippe He- destas práticas defendiam ideias seme-
cquet (1661-1726), em França (PERROT, lhantes: benefícios da água, do ar, do sol
2011, 294); John Arbuthnot (1667-1735) e consequentemente de uma vida em
e George Cheyne (1671-1743), em Ingla- contato com a natureza a par de uma ali-
terra (MORTON, 1998, 53-88; RAUW, mentação natural, isenta de carne e de
2015, 13-14) e Antonio Cocchi (1695- peixe, em paralelo aos ataques ao tabaco,
-1758), em Itália (MANNUCCI, 2008, às bebidas excitantes e ao álcool. Naturis-
180-183). Não obstante, estas e outras po- tas e vegetarianos estavam de acordo que
sições anticarnivoristas e em defesa do ve- uma maneira de viver não conforme às
getarianismo, no ocidente, este só entrou leis da natureza era a principal causa das
em voga no século XIX, em especial du- enfermidades. No entanto, nem todos
rante a segunda metade. Recorde-se que os vegetarianos portugueses eram natu-
o termo vegetariano criou-se no fim dos ristas. Veja-se o caso de Jaime Magalhães
anos de 1830 e generalizou-se a partir de Lima, que, em carta a Julieta Rodrigues
1847, quando se criou a Vegetarian Society, Ribeiro, naturista e autora do primeiro
em Ramsgate – Inglaterra. Neste momen- livro de culinária vegetariana, publicada
to, a dieta pitagórica mudou oficialmente na quarta edição da obra, esclareceu que
de nome. A nova associação teve como ór- apreciava e consumia muitos frutos mas
gão de difusão das suas ideias o The Vege- não dispensava uma tigela de caldo de

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AnticArnivorismo 305

diversas hortaliças em mistura acompa- do naturismo, que usou diversos meios


nhada de um pedaço de broa, duas vezes ao seu alcance para formar e catequisar
por dia (RIBEIRO, 1923, 22-23). Porém, novos adeptos, atacando, em especial, o
os mais arraigados não só o eram como consumo de carne (BRAGA, s.d.).
defendiam o vegetarianismo de feição A linguagem utilizada por naturistas
frutívora e crudívora. Ou seja, apesar de e vegetarianos foi, por vezes, virulenta.
ser um grupo necessariamente restrito, Pensemos em expressões como “feita de
não se verificava unanimidade de posicio- sangue e de fogo” (SOUSA, 1916, XIX)
namentos. ou “alimentos cadavéricos preparados
O maior ativista do vegetarianismo foi ao fogo” (SOUSA, 1937, 106) utilizadas
seguramente Amílcar de Sousa (1876- por Amílcar de Sousa, em consonância
-1940), médico formado na Universi- com outros naturalistas, para se referir
dade de Coimbra, em 1905, que aderiu à alimentação omnívora. Por outro lado,
ao naturismo em 1910, depois de se ter o anticarnivorismo levou-o a referir a
tornado vegetariano. Foi autor de diver- carne como um “alimento feroz próprio
sas obras de divulgação, todas com várias para lobos cruéis e hienas sanguinárias”
edições e algumas com tradução para (SOUSA, 1927, 89). E, no mesmo tom,
castelhano, de entre as quais se destacam não deixou de defender ideias como
O Naturismo (1912?), A Saúde pelo Naturis- “o Homem, libertando-se da prisão do
mo (1916), Arte de Viver (1926?), Banhos fogo, não precisa da cozinha, onde prin-
de Sol (1937) e ainda uma novela natu- cipalmente se fabrica a morte” (SOU-
rista, ou como na atualidade se designa, SA, 1916, 87) ou “o Homem é um puro
uma utopia, intitulada Redenção (1923). frugívoro, entretanto num regime de
O discurso, por vezes em tom agressivo, transição, o leite, os ovos e o mel são
quase sempre denunciador e visando alimentos admissíveis, o que é inadmissí-
convencer os omnívoros a abandonarem vel é a carne dos cadáveres dos animais”
o consumo de animais e seus derivados, (SOUSA, 1916, 61), ou ainda “comendo
levado a efeito por Amílcar de Sousa para alimentos de lume não se vive senão em
se referir aos não vegetarianos, não foi contínuo desmerecimento fisiológico.
de todo original. Seguiu os tópicos dos E se nos privarmos da luz sobre o nosso
temas dos discursos de outros vegetaria- corpo, anemiamos o sangue e desnatu-
nos e naturistas estrangeiros, cujas obras ramo-lo por completo” (SOUSA, 1937,
foram bem conhecidas do médico portu- 67). Consequentemente, o vegetarismo
guês, um leitor ávido e viajado, que fre- de caracter frugívoro e crudívoro era a
quentemente aludiu a novas descobertas única dieta verdadeiramente aceitável,
de outros naturistas. Ressalte-se que foi a qual deveria ser complementada com
também tradutor de várias obras e impul- exercício físico e banhos de sol: “uma
sionador de uma biblioteca naturista em horta é uma farmácia. Um pomar, uma
língua portuguesa, um conjunto de pu- sala de jantar e almoçar. Tudo isto se
blicações com várias dezenas de títulos, colhermos as plantas e formos buscar
dada a conhecer ao público através das os frutos no traje adâmico, ao ar, à luz e
últimas páginas do Almanaque Vegetariano ao sol” (SOUSA, 1937, 92). Este tipo de
Ilustrado (1913-1922), do qual foi diretor. discurso foi recorrente e não raras vezes
Ou seja, mais do que um criador, Amílcar agrupado numa espécie de cartilha com
de Sousa foi um divulgador, um missio- vários pontos a seguir (SOUSA, 1916,
nário, um apóstolo do vegetarianismo e 335-336; SOUSA, 1916ª, 77-78).

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306 AnticArnivorismo

Além do ataque cerrado ao consumo do regime frutívoro e crudívoro, o ideal


de animais e seus derivados, outros gé- dos mais refinados, sem contudo, conse-
neros foram igualmente atingidos. Neste guir a unanimidade. Se Amílcar de Sou-
âmbito refira-se em particular o vinho, e sa defendeu, de forma utópica, que: “a
o álcool em geral, as bebidas excitantes, terapêutica postiça e habitual deixaria
o açúcar, o sal e ainda o uso de tabaco, de existir e do mesmo modo os mata-
que não sendo um alimento entrava no douros e talhos, as praças de peixe e as
grupo dos produtos cujo uso combatia. peixeiras, os cafés e restaurantes atuais,
A linguagem continuou a ser igualmente as deletérias cozinhas e cozinheiras, os
forte. Por exemplo, os ovos foram enten- vinhateiros e os cervejeiros que fabricam
didos como “deletérios para alimento produtos de fermentação, etc., dar-se-ia
humano” (SOUSA, 1916b, 46); o sal, um um desenvolvimento colossal aos po-
“agente subversivo da cozinha” (SOUSA, mares e às hortas. As vacas reservariam
1927, 46) e o tabaco “ um mal [que] tem o leite para os seus vitelos, e as cabras
invadido os povos civilizados. É o compa- para os seus cabritos e as próprias gali-
nheiro do álcool e da carne, é um irmão nhas que põem os ovos não seriam ‘cul-
do jogo e da devassidão” (SOUSA, 1934, tivadas’ para esse fim…também podería-
16, 81). mos usar os cereais triturados para fazer
Uma das preocupações dos vegetaria- massas cruas com sumo de frutos, como
nistas era a desconfiança comum patente laranja ou tangerina, e sem o malefício
no vulgo acerca da possibilidade de uma do lume, ou demolhando-os” (SOUSA,
dieta à base de frutos e vegetais satisfazer 1916, 28); Jaime Magalhães Lima, mais
as necessidades nutricionais das pessoas. realista, não deixou de considerar que:
Nesse sentido, não raras vezes utilizaram “eu creio, firmemente, que a cozinha
a fotografia, sua e a de conhecidos, bem continua a ser uma parte preciosa, que
como histórias de vidas (MILLER, 2011, está para durar e crescer; e peço a Deus
157-160), como prova de que a dieta ali- que a favoreça, porque não só o merece,
mentar que defendiam e praticavam não pelas suas muitas e complexas virtudes,
produzia pessoas enfermiças, muito pelo mas instantemente o pede pois, se é de
contrário. Vários autores utilizaram este maior idade para uma reduzida minoria,
recurso, salientando-se Amílcar de Sousa está ainda de todo na infância para a
que se fez retratar quer vestido formal- grande maioria, que mal sabe cozer com
mente quer de calções (VIEIRA, 2006). esmero uma púcara de couves bem lim-
Essas fotografias foram publicadas na pas, em água pura, temperadas em justa
revista O Vegetariano, no Almanaque Ve- proporção e fervidas somente até àquele
getariano Ilustrado e até no receituário ponto em que o seu sabor e digestibili-
de Julieta Rodrigues Ribeiro, intitulado dade atingiram o grau mais convenien-
Culinária Vegetariana, Vegetalina e Menus te. Creio que a cozinha é uma instituição
Frugívoros. que com o tempo não tem criado cabelos
A passagem da dieta omnívora para brancos e ostenta uma perene mocida-
a vegetariana deveria ser feita paulati- de, embora eu, muito moderadamente,
namente, primeiro consumindo os ali- lhe solicite as suas graças e vantagens e
mentos a suprimir apenas numa das re- não ignore pelas suas munificências tem
feições diárias até os conseguir eliminar sido origem de muitos vícios e desgraça
por completo (SOUSA, 1916, 335-336). de muito boa gente, singela e ingénua.
O mesmo se preconizou para a adoção Procuro, é certo, libertar-me quanto

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AnticArnivorismo 307

possível da sua tirania, mas não sou um Bibliografia:


rebelde ao seu império que aduz carta Fontes Impressas: RIBEIRO, Julieta Adelina
de legitimidade de muito difícil contes- Meneses Rodrigues, Culinária Vegetariana, Ve-
getalina e Menus Frugívoros, 4.ª edição, Porto,
tação a meu ver” (RIBEIRO, 1923, 24).
Machado & Ribeiro, 1923; SOUSA, Amílcar
O discurso anticarnívoro implica ine-
de, Arte de Viver, Porto, Sociedade Vegetariana
vitavelmente poupar os bichos. Embora de Portugal, 1934; SOUSA, Amílcar de, Ba-
nenhum membro da Sociedade Vegeta- nhos de Sol, Porto, Livraria Civilização, 1937;
riana de Portugal tenha feito qualquer SOUSA, Amílcar de, “Não comas, leitor, mais
manifesto em defesa da vida animal, carne”, Almanaque Vegetariano Ilustrado de Por-
Amílcar de Sousa não deixou de aos tugal e Brazil, n.º 4, Porto, 1916a, pp. 77-78;
mesmos se referir em termos de simpatia SOUSA, Amílcar de, A Cura da Prisão de Ventre,
2.ª edição, Porto, Livraria e Papelaria Moder-
e apreço: “um talho é um local nojento.
na, 1923; SOUSA, Amílcar de, O Naturismo.
Um matadouro, um sítio de carnificina. Alimentação Natural, Conselhos Higienicos, Trata-
Ver matar um boi pacífico às marreta- mentos Racionais, Práticas Quotidianas, 3.ª edição
das, ou um tímido cordeiro é um espe- revista e aumentada, Porto, Sociedade Vege-
táculo que choca. Ninguém que tenha tariana, 1916; SOUSA, Amílcar de Sousa, “Os
sentimentos de bondade é capaz de, a Ovos são venenosos”, Almanaque Vegetariano
sangue frio, matar uma pomba branca Ilustrado de Portugal e Brazil, n.º 4, Porto, 1916b,
p. 79. Estudos: BARATAY, Éric, L’Église et l’Ani-
que arrulha no pombal ou um frango de
mal (France, XVIIe-XXe siècle), Paris, Cerf, 1996 ;
plumagem macia e multicor que vive na BERKMAN, John, “The Consumption of Ani-
capoeira. Ver frigir uma enguia viva ou mals and the Catholic Tradition”, Logos: a Jour-
deitar em água a ferver os camarões, não nal of Catholic Thought and Culture, vol. 7, n.º 1,
é decididamente um ato glorioso e he- 2004, pp. 174-190; BRAGA, Isabel Drumond,
roico” (SOUSA, s.d., 51-52). As Origens do Vegetarianismo em Portugal: Amílcar
O anticarnivorismo andou sempre de de Sousa, o missionário verde, em preparação;
mãos dadas com o vegetarianismo. As DAVIDSON, Jo Ann, “World Religions and Ve-
getarian Diet”, Journal of the Adventist Theological
suas origens são longínquas e inicial-
Society, n.º 14-2, Berrien Springs (Michigan),
mente ligadas a matérias religiosas e mo- 2003, pp. 114-130; DIAS, Paula Barata, “Em
rais. A partir do século xix, em especial Defesa do Vegetarianismo: o lugar de Porfírio
irradiando de Inglaterra, e com concre- de Tiro na fundamentação ética da abstinên-
tização em Portugal, desde as primeiras cia da carne dos animais”, in SOARES, Car-
décadas do século xx, o movimento cres- men e de DIAS, Paula Barata, Contributos para
ceu, divulgou-se, fraturou-se – pensemos a História da Alimentação na Antiguidade, Coim-
bra, Centro de Estudos Clássicos e Huma-
no ramo vegan, formado em Inglaterra,
nísticos da Universidade de Coimbra, 2012,
em 1944 – e expandiu-se em rumos di- pp. 81-92; GUERRINI, Anita, “The Ethics of
ferenciados, continuando minoritário animal Experimentation in seventeen century
até ao presente. Foi objeto de críticas, England”, Journal of the History of Ideas, vol. 50,
sátiras e chacotas por parte dos amantes n.º 3, Filadelfia, 1989, pp. 391-407 ; LARUE,
do consumo de carne (BRAGA, s.d.) mas Renan, Le Végétarisme et ses Ennemis  : Vint-cinq
não deixou de ir ganhando terreno de siècles de débats, Paris, PUF, 2015 ; MANNUC-
CI, Erica J., “Lusso Gentile: il Vegetarianismo
forma gradual, lembremos que variadas
di Cochi e il suo Contesto Europeo”, in LIPPI,
marcas de produtos e diversos espaços
Donatella e CONTI, Andrea A., Antonio Cocchi
de comércio de restauração, em especial Mugellano (1695-1758). Scienza, Deontologia,
nas grandes cidades, têm cada vez maior Cultura, Florença, Tassinari, 2008, pp. 180-
sensibilidade para os consumidores não -183; MARONGIU-PERRIA, Omero Maron-
carnívoros. giu-Perria, “Chasse, Élevage et Végétarianisme

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308 AnticArtesiAnismo

en Islam  : des paradigmes en concurrence”,


Revue Semestrielle de Droit Animalier, n.º  1,
Anticartesianismo
2015, pp. 309-324  ; MATHENY, Gaverick,
“Utilitarianism and Animals”, in SINGER, Pe-
ter, Defence of Animals: the second Wave, Malden
(MA), Blackwell, 2006, pp. 13-25; MILLER,
Ian, “Evangelicalism and the Early Vegetarian
Movement in Britain c. 1847-1860”, Journal of
Religious History, vol. 35, Malden (Massachuse-
tts), 2011, pp. 149-161 ; MORTON, Timothy,
“The Pulses of the Body: Romantic Vegetarian
A s primeiras referências ao francês
René Descartes em Portugal foram
feitas pelo padre jesuíta Francisco Soares
Rhetoric and its Cultural Contexts”, in COPE, Lusitano. No terceiro tomo do seu Cursus
Kevin, Ideas, Aesthetics and Inquires in the Early
Philosophicus, enviado ao prelo em janei-
Modern Era. vol. 4, AMS Press, 1998, pp. 53-
-88; NIOLA, Marino, Homo Dieteticus. Viaggio ro de 1649, ao explicar a circulação do
nelle tribù alimentari, Bolonha, Il Mulino, 2015; sangue, referia-se à doutrina cartesiana,
OSSIPOW, Laurence, “Aliments Morts, Ali- embora usando referências secundárias.
ments Vivants”, in FISCHLER, Claude, Manger Entre elas estaria o Exercitatio Anatomica
Magique. Aliments Sorciers, Croyances Comesti- de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus,
bles, Paris, Autrement, 1994, pp. 127-135; comummente conhecido por  De Motu
PERROT, Xavier, “L’abstinence de viande en
Cordis, saído em 1628, do médico inglês
France au XVIIIe siècle: une Xérophagie, un
végétarisme rejeté”, Revue Semestrielle de Droit
Willian Harvey. Descartes inspirou-se na
Animalier, n.º 1, Limoges, 2011, pp. 293-305; ideia de Harvey da circulação sanguínea
RAUW, W. M., “Philosophy and Ethics of Ani- para desenvolver um modelo puramente
mal use and Consumption: from Pythagoras mecânico do corpo. Acerca da velocidade
to Bentham”, CAB Reviews, vol. 10, n.º 26, sanguínea, o Jesuíta português discutiu
2015, pp. 1-25; SPENCER, Colin, Vegetariani- os resultados apresentados pelo médi-
sm: a history. 2.ª edição, Londres, Grub Street, co francês Lazare  Meyssonnier, citando
2016; TROTIGNON, Dominique, “Bouddhis-
também a Apologia adversus Primirosium,
me et Végétarisme”, Revue Semestrielle de Droit
Animalier, n.º 1, Limoges, 2011, pp. 243-292 ; do holandês Henry Le Roy, discípulo de
VIEIRA, Fátima, “A fotografia como prova Descartes e um dos mais arrebatados de-
documental da robustez dos vegetaristas, ve- fensores das doutrinas cartesianas contra
getarianos e frugívoros”, E-topia: Revista Elec- o vigoroso anticartesianismo do protes-
trónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 5, 2006. Em tante peripatético Gisbert Voët, reitor da
linha: <http://www.letras.up.pt/upi/utopias- Univ. de Utrecht.
portuguesas/revista/index.htm>, (acedido a
O Jesuíta açoriano António Cordeiro,
10 de janeiro de 2017).
que mostrava alguma afinidade com o
Isabel Drumond Braga cartesianismo, marcou indelevelmente, a
partir de 1676, o ensino no Colégio das
Artes, em Coimbra. Influenciado pelas
obras de Honoré Fabri, apresentava as
ideias deste autor nas suas lições, motivo
pelo qual foi fortemente combatido por
alguns mestres, como João Serrano e José
Múrcia. Apesar de ter sido chamado a
Por desejo expresso da autora, este texto não Roma, tornando-se teólogo da corte da
foi revisto pela equipa de revisão do Dicionário penitenciária papal na basílica do Vati-
dos Antis.
cano, um cargo que ocupou durante 30

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AnticArtesiAnismo 309

anos, Fabri não conseguiu evitar ser acu- gem fosse o Sol ou o fogo, mais não era
sado de ter adotado a filosofia de Descar- do que um eflúvio substancial, corpóreo
tes. Entre as muitas referências apresen- e perene do próprio fogo elementar ou
tadas por Cordeiro nos documentos que solar. Por conseguinte, a luz não deve-
deixou, merecem destaque as que fez so- ria ser considerada uma “qualidade físi-
bre as ideias de Kepler, Galileu, Descartes ca entitativa”, nem sequer um acidente,
e Gassendi. como pretendiam as conceções aristoté-
Acerca do processo das sensações e da licas, mas sim uma substância corpórea
sua natureza, e influenciado pelo sistema do fogo. Esta opinião tinha a prova da
filosófico de Descartes, Cordeiro defen- experiência, uma vez que os raios de luz
dia que toda a ação dos objetos externos aqueciam, queimavam, iluminavam, etc.,
consistia em provocar um movimento nas como se verificava através do espelho us-
extremidades dos nervos que se encon- tório. Esses raios, mesmo quando disper-
travam nos diversos órgãos dos sentidos sos, não deixavam de ser fogo. A cor não
e que os ligavam diretamente ao cére- era uma qualidade permanente e real do
bro; esse movimento era transmitido ao corpo, que pudesse ser adequadamente
cérebro, estimulando a glândula pineal considerada distinta da luz. De acordo
e fazendo com que a alma experimentas- com esta ideia, a “cor transeunte e apa-
se a correspondente sensação. Assim, as
sensações visuais não eram causadas se- René Descartes (1596-1650).
não pela ação dos próprios raios de luz
emanados do objeto e que se dirigiam
para a vista; as sensações auditivas seriam
causadas pela ação do ar “atirado contra
os ouvidos”, em movimentos “trémulos e
ondulatórios”; por sua vez, as sensações
odoríferas resultavam das emanações,
ou evaporações substanciais, do corpo
odorante, enquanto as gustativas estavam
associadas à impressão, afetação ou infor-
mação gustativa: o sabor era proveniente
da ação das partículas do corpo saboroso
que impressionavam o órgão gustativo.
Para Cordeiro, as espécies impressas que
estavam na origem das sensações eram
tenuissima corpuscula, ou eflúvios substan-
ciais corpóreos.
António Cordeiro afirmava que, no
que respeita à sua definição formal, não
havia dúvida de que a luz era aquilo que
tornava os objetos claros e manifestos;
e, constando isto pelos sentidos e pela
experiência, não precisava de outra pro-
va de razão. A luz não era mais do que
um elemento corpóreo e substancial do
fogo. Toda e qualquer luz, quer a sua ori-

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310 AnticArtesiAnismo

rente” era a luz modificada de um deter- matéria-prima contínua e indivisa. Des-


minado modo, ou seja, “obscurada” pela cartes entendia o Universo como forma-
constituição permanente e intrínseca do do por matéria em eterno movimento e
objeto (GOMES, 1943, 298). a perfeição da criação como refletida no
O cartesianismo que transparecia nes- princípio da conservação da quantidade
tas teses suscitou uma forte reação. Na pri- de movimento. Os princípios cartesia-
mavera de 1696, Cordeiro foi retirado do nos foram questionados por Vieira, que
ensino em consequência da polémica de- começou por argumentar que Deus não
sencadeada em torno das suas opiniões; produziu simultaneamente todo o movi-
foi enviado para Braga e, entre 1699 e o mento quando criou o mundo, porque
verão de 1707, para o Porto. O geral Mi- lhe parecia que a suposição de que o con-
chelangelo Tamburini autorizou que os trário colocaria em causa a imutabilidade
seus escritos fossem impressos. Por fim, e a perfeição de Deus era falsa. Defendeu
foi para Lisboa, onde exerceu os cargos que o método cartesiano de demonstra-
de mestre de casos em S. Roque e lente ção não era conclusivo. Os fundamentos
de prima no seminário dos irlandeses. em que se baseava para retorquir a Des-
O Cursus Philosophicus, do Jesuíta Antó- cartes apoiavam-se no experimentalismo
nio Vieira, ditado entre 1739 e 1742 no físico-matemático. Rejeitava algumas leis
Colégio de S.to Antão, demonstra que o cartesianas sobre a transmissão dos mo-
cartesianismo emergiu como um tema vimentos, apresentando como discutível
de grande interesse para a intelectualida- a possibilidade ab aeterno de todo o mo-
de portuguesa. Este curso, que se insere vimento, como demonstravam algumas
num processo de atualização científica, experiências de dinâmica dos sólidos e
embora não represente ainda uma rutura fluidos. Na sua análise da hipótese turbi-
com a metafísica aristotélica-tomista, foi lhonar, como explicação da estrutura do
influenciado pelo cartesianismo e pelo Universo e constituição do mundo cor-
experimentalismo. Vieira apresentava póreo, apontou algumas incongruências
uma desenvolvida exposição da teoria dessa teoria. A razão estava do seu lado,
cartesiana da constituição dos corpos na medida em que os estudos acerca da
numa secção intitulada Systema Corporis colisão dos corpos vieram mostrar os er-
Naturalis ex Inventione seu potius Innova- ros da conceção cartesiana. Contudo, via
tione Renati des Cartes. A estrutura car- como um dos principais motivos para a
tesiana do Universo, particularmente a rejeitar o facto de aquela teoria se sus-
teoria turbilhonar, era extraída dos Prin- tentar no sistema de Copérnico, embora
cipia Philosophiae. Revelando-se crítico reconhecesse que o sistema heliocêntrico
em relação a alguns aspetos da filosofia explicava os fenómenos astronómicos ob-
cartesiana, Vieira argumentava que, dos servados. Tal como outros jesuítas, prefe-
raciocínios, Descartes passava às fanta- ria o sistema de Tycho Brahe.
sias, imaginando arbitrariamente que Em 1754, foi publicado no Colégio das
Deus, na primeira criação das coisas, pro- Artes o primeiro volume do Compendio dos
duziu a matéria-prima expandida na sua Elementos de Mathematica, de Inácio Mon-
tríplice dimensão até onde se expande e teiro. No capítulo dedicado aos Elementos
se estende a estrutura do Universo. Este da Statica e Centrobarica, o autor estabele-
argumento cartesiano equivalia a dizer cia uma distinção entre gravidade e levi-
que toda a extensão ocupada pelas coisas dade. Ninguém sabia a causa da queda
do mundo foi preenchida por Deus com dos corpos. Tal como referia Monteiro, os

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AnticArtesiAnismo 311

peripatéticos admitiam uma certa causa


interna nos corpos, que designavam por
gravidade, da qual não davam qualquer
explicação física que pudesse ser conside-
rada bem fundamentada. As dificuldades
para explicar verdadeiramente a sua ori-
gem continuavam a persistir, pois a virtu-
de atrativa magnética da Terra prevista
por Gassendi, o “engenhoso” sistema dos
turbilhões de Descartes, a força atrativa
de Newton, a qual, na opinião de Montei-
ro, tinha mais ar de geometria do que de
física, apenas consolidavam a incerteza
de opiniões.
Ao longo da Recreação Filosófica, publi-
cada a partir de 1751, o padre oratoriano
Teodoro de Almeida declarou-se, nalguns
aspetos, seguidor dos princípios de Des-
cartes quanto à causa da conservação e
continuação do movimento, questionan-
do e rejeitando outros. Na sua análise
estava implícita a aceitação do conceito
de inércia. A inércia dos corpos permitia
conservá-los no movimento depois da pri-
meira determinação, assim como conser- Rosto de Recreação Filosofica,
vá-los em repouso num determinado lu- de Teodoro de Almeida.

gar depois de nele terem sido colocados.


Os “vórtices” ou “turbilhões” de Descar- abrasa-se, e voltam-se as costas a tudo o
tes mereceram uma reflexão crítica por mais” (Id., Ibid.).
parte de Almeida. Sobre Descartes, dizia Para Descartes, os espaços do céu es-
ser “aquele grande e incomparavel ho- tavam cheios de uma matéria subtilíssi-
mem no seu Seculo, que com a beleza de ma, a qual, encontrando-se em perpétuo
suas ideias quase arrastou em seu segui- vórtice, ou turbilhão, estaria animada de
mento meio mundo literário” (ALMEI- movimento desde a criação do mundo.
DA, 1763, 22). Considerava, porém, que O Sol seria o centro do vórtice onde an-
devido às limitações dos instrumentos do dava a Terra, juntamente com os outros
seu tempo e à multiplicidade de observa- planetas. A causa do movimento dos pla-
ções que posteriormente se fizeram, as netas era o mesmo vórtice, que os arre-
ideias de Descartes não tinham podido batava consigo. Quanto mais a matéria
manter a firmeza e estabilidade indispen- turbilhonar distasse do Sol, maior seria
sáveis para se conservarem “na mesma o seu giro, devendo deste modo demorar
estimação” de outros tempos; por esta mais tempo a completar uma revolução.
razão teria “descaido consideravelmen- O sistema cartesiano também conside-
te; e como nós não guardamos respeito a rava os cometas como planetas que, tal
ninguem, mais que á verdade; onde quer como os outros, tinham sido criados no
que aparece, se a chegamos a conhecer, princípio do mundo: ora apareciam, ora

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312 AnticArtesiAnismo

desapareciam, porque umas vezes se en-


contravam mais perto da Terra, podendo
ser vistos, outras se encontravam tão lon-
ge que se tornavam impercetíveis. Esta
seria a única diferença entre os cometas e
os demais planetas. Assim, se o espaço dos
céus estivesse pleno de matéria, também
os cometas, em qualquer lugar da sua tra-
jetória, deveriam nadar em algum fluido,
cuja corrente os arrebatava e transporta-
va. Mas, se assim fosse, os cometas teriam
necessariamente de causar alguma per-
turbação e desordem na órbita de algum
dos planetas, quando a atravessassem
durante a sua aproximação ao Sol. A não
observação deste efeito resultou num des-
crédito do sistema de Descartes, embora
não se deixasse de reconhecer quanto
ele era engenhoso. As considerações fei-
tas em relação ao Sol e aos seus planetas
eram aplicáveis às estrelas que, segundo
o sistema de Descartes, seriam, cada uma
delas, o centro do seu vórtice, em torno Teodoro de Almeida (1722-1804).
do qual andariam também alguns plane-
tas, tal como no vórtice em que se encon- nifestava nas suas propriedades. Apesar
trava a Terra, os quais, no entanto, não de Descartes ser um moderno, e “um tão
eram visíveis por causa da distância a que grande homem”, Almeida deixava bem
se encontravam daquela. vincada a sua independência em relação
A opinião de Newton era bem oposta ao prestígio de quem quer que fosse e op-
à de Descartes porque, enquanto este tava pelo sistema de Newton, afirmando
concebia todo o espaço pleno de maté- que “eu não sigo o Homem por grande
ria, para aquele prevalecia o espaço celes- que ele seja, sigo a razão do Homem”
te vazio. Entre os dois, Almeida preferia (Id., Ibid., 29).
Newton. O espaço celeste não podia estar cheio
Na doutrina de Descartes, o espaço va- de matéria, tal como pretendia Descar-
zio era uma coisa totalmente impossível, tes: há muito tempo que desaparecera
tal como a simultaneidade do ser e não do “Orbe Literario o Cheio de Descar-
ser. Almeida aceitava que o espaço celeste tes” (Id., 1798, III, 226). Apesar da sua
não estava absolutamente vazio, uma vez convicção, Teodoro de Almeida deixava
que estaria pleno de luz, a qual na sua transparecer alguma dúvida, e interroga-
essência seria corpo, ou matéria, suma- va-se sobre se o espaço seria, na realida-
mente subtil, tal como mostravam os seus de, absolutamente vazio, afirmando: “E
efeitos. Quer a matéria da luz fosse sub- lá vai todo o horror do vacuo com que
til, como a descrevia Descartes, ou fogo os Filósofos antigos nos criaram. A mim o
puro, como afirmava Newton, sempre que me embaraça a persuadir-me que os
seria a sua essência corpórea que se ma- Céus estão totalmente vazios, é o que já

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AnticArtismo 313

vos disse. Vemos todo o espaço dos Céus


cheio de luz, e esta é substancia, ainda na
Anticartismo
opinião de Newton; o qual diz que é uma
chama tenuíssima; logo não estão total-
mente vazios” (Id., 1763, 40).
O oratoriano não se sentia isolado nes-
ta dificuldade, uma vez que os filósofos
estavam há muito atormentados com ela.
Tratava-se da luz difundida pelo Sol para
além da órbita de Saturno e do novo pla-
C omecemos por apurar o que se de-
signa por cartismo, como primeiro
passo para a delimitação do objeto desta
neta Urano. A luz seria na sua essência entrada. O cartismo de que aqui tratamos
corpo, ao qual Newton havia atribuído, é um movimento político português que
com “inegáveis fundamentos”, a natureza deve esta designação à Carta Constitucio-
do fogo. Por um lado, através do cálculo, nal de 1826, sendo meramente casual a
provava-se a existência do vácuo, mas, por coincidência deste termo com o que de-
outro, a evidência obrigava a que se ad- signa a luta pelos direitos de participação
mitisse a difusão de um fluido corpóreo política das classes trabalhadoras através
emanado constantemente pelo Sol, o que da Peoples’ Charter [Carta do Povo]
não deixava de causar alguma consterna- na Inglaterra do séc. xix. Cartismo, na
ção entre os filósofos. aceção que nos interessa, é, portanto, a
doutrina partidária da Carta Constitucio-
nal promulgada por D. Pedro IV e pela
Bibliog.: ALMEIDA, Teodoro de, Recreasaõ qual foi retomado, ao mesmo tempo que
Filozofica, t. vi, Lisboa, Officina Miguel Rodri- mitigado, ou redirecionado no sentido
gues, 1763; Id., Cartas Fisico-Mathematicas de da moderação e do compromisso com as
Theodozio a Eugenio: para Servir de Complemento forças opositoras, o processo de afirma-
à Recreação Philosofica, 3 t., Lisboa, Officina
ção e instituição dos ideais liberais em
de Antonio Rodrigues Galhardo, 1784-98;
GOMES, J. Pereira, “Doutrinas físico-biológi- Portugal, inaugurado com a Constituição
cas de António Cordeiro sobre os sentidos”, da Monarquia portuguesa de 1822 que
Brotéria, vol. xxxvi, fasc. 3, mar. 1943, pp. 293- D. João VI jurou. Este processo fora in-
-305; MAURÍCIO, Domingos, “A primeira terrompido quando D. João VI declarara
alusão a Descartes em Portugal”, Brotéria, novamente vigentes as instituições tra-
vol. xxv, fasc. 6, 1937, pp. 177-187; Id., “Para dicionais do reino, em 1824, depois de
a história do cartesianismo entre os Jesuítas
deflagrada a revolta chefiada por D. Mi-
portugueses do século xviii”, Revista Portuguesa
de Filosofia, t. 1, fasc. 1, 1945, pp. 27-44.
guel. Tal como à derrotada Constituição
de 1822, à Carta Constitucional presidia
Décio Ruivo Martins o intento da instauração de uma monar-
quia constitucional, i.e., a modificação do
regime monárquico no sentido de o con-
ciliar com o exercício da soberania por
parte do povo, alargando as suas possibi-
lidades de participação no governo por
meio de órgãos representativos detento-
res do poder legislativo, condicionando o
governo do rei à observância de uma lei
fundamental consagrante de um catálogo

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314 AnticArtismo

de direitos individuais dos governados. tismo dos liberais mais radicais, avessos às
O rumo e a inspiração liberais assumidos cedências da Carta e obreiros da Consti-
pela Carta Constitucional pretendiam-se, tuição setembrista, que com aquela have-
porém, temperados por um espírito de ria de disputar a vigência, depois de 1838.
moderação que fosse capaz de conciliar a Na base do anticartismo coexistiram, fru-
ideologia liberal com o respeito pela insti- to de intensas lutas políticas, convicções e
tuição monárquica e pela dignidade real, ideais diferentes. A divergências progra-
segundo os usos e as tradições da nação. máticas quanto à condução política e eco-
Pretendia-se, também, pragmaticamen- nómica do país juntaram-se divergências
te estabelecer um compromisso entre ideológicas. Procuraremos atender a to-
os dois extremos ideológicos em tensão das, embora privilegiando um esboço do
(realistas ou tradicionalistas e partidá- anticartismo como ideário.
rios do liberalismo), viabilizando a paz
pública, a estabilidade e o progresso do
reino. A feição revolucionária, de rutura,
PARTICuLARIDADES DA CARTA
que a Constituição de 1822 apresentava
ConSTITuCIonAL DE 1826 SoBRE AS QuAIS
foi substituída por uma solução de pro-
InCIDIRá A oPoSIção
gresso gradual e pela coexistência entre A primeira e mais fundamental particula-
a novidade e a herança. Podemos desde ridade da Carta Constitucional é anterior
já compreender porque é que o anticar- à sua aprovação, consistindo no facto de
tismo foi um fenómeno com duas mani- não ter sido elaborada e votada por uma
festações radicalmente opostas, nos dois assembleia representativa, mas outorgada
polos ideológicos cuja conciliação a Carta pelo Rei, promovendo, assim, uma posi-
procurava: tínhamos, por um lado, o an- ção própria quanto à questão basilar da
ticartismo dos partidários das instituições soberania: esta reside, é certo, na nação,
tradicionais, e, por outro lado, o anticar- na medida em que a Carta cria órgãos
representativos do povo, atribuindo-lhes
nomeadamente o poder legislativo, e con-
D. Pedro IV e D. Miguel a Lutar pela Coroa sagra os direitos individuais dos cidadãos
Portuguesa, de Honoré Daumier (1833). portugueses; mas pertence também, de
modo inegável, ao rei, de quem proma-
na, não carecendo de outra legitimação.
O contrato social como fonte única do
poder legítimo não foi, portanto, inteira-
mente assumido pelos liberais partidários
da Carta, manifestando estes, se quiser-
mos ir mais longe, uma reserva perante o
voluntarismo e a total imanentização do
poder propugnados pelo ideário da Re-
volução Francesa. Alguns aspetos da Car-
ta concretizam coerentemente a opção
de não reservar ao rei a função de uma
mera representação simbólica da nação.
Como principais exemplos, são de referir:
a participação do rei no processo legis-
lativo através do direito de veto absoluto

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AnticArtismo 315

(substituindo-se o veto meramente sus- Relativamente à religião, é importante


pensivo da Constituição de 1822 e em con- notar a coincidência essencial que existe
traste com a ausência de qualquer direito entre a Carta e as duas Constituições (de
de veto na Constituição de 1838), bem 1822 e 1838). Pronunciando-se expressa-
como através da possibilidade de apresen- mente sobre o assunto, as três leis funda-
tar propostas de lei às câmaras (possibili- mentais declaram a religião católica apos-
dade esta vedada tanto pela Constituição tólica romana a religião de Estado, sem
de 1822 como pela Constituição de 1838); prejuízo da liberdade de culto doméstico
a circunstância de a chefia do poder exe- dentro do país para os fiéis de outras re-
cutivo caber ao soberano; a instituição de ligiões, desde que mantendo o respeito
um quarto poder, chamado poder mode- para com aquela (cf. art. 6.º). Esta dispo-
rador, que cabia exclusivamente ao monar- sição não deixará, porém, de ser motivo
ca, por meio do qual lhe competia “velar de dissidência em relação à Carta.
sobre a manutenção da independência,
equilíbrio e harmonia dos demais Poderes
Políticos”, em virtude do qual lhe era atri-
AnticArtismo trAdicionAlistA
buída, entre outras competências impor- O anticartismo que cronologicamente
tantes, a nomeação dos membros de uma surgiu primeiro, e o fenómeno que talvez
das duas câmaras parlamentares (a Câ- mereça esta designação com mais pro-
mara dos Pares), cujos cargos tinham ca- priedade, é a oposição à Carta por parte
rácter vitalício e hereditário (cf. arts. 57.º, dos que rejeitavam a constitucionaliza-
58.º, 71.º, 72.º e 74.º). ção da monarquia. Falamos dos adeptos
Este último ponto – a opção por uma das instituições políticas tradicionais, nas
Câmara constituída por membros vitalí- quais aqueles viam consubstanciada uma
cios e hereditários nomeados pelo rei – lei fundamental escrita pela mão dos sé-
manifesta outro traço distintivo do ideá- culos, que completava a legitimidade do
rio da Carta que não se confunde com o poder real com a aclamação do rei pelas
papel dado ao monarca, mas que deriva Cortes e fazia a nação participar no gover-
do mesmo propósito (assim formulado no – consultiva e até deliberativamente –
pelos cartistas) de equilibrar o princípio por meio da representação das mesmas
democrático com os princípios monár- Cortes. A grande diferença estaria, então,
quico e aristocrático. Se aqui está em cau- no modelo de representação política e na
sa, inegavelmente, uma conceção do po- ordem social que este sustentava, já que
der legítimo que não se reduz à decisão as Cortes assumiam a divisão social dos
da maioria parlamentar e que prefere os três estados, não integrando a conceção
benefícios de um governo dos mais sábios liberal da igualdade dos cidadãos. Seria,
sob a presidência de um só, a um gover- portanto, um erro designar esta fação
no participado por muitos, dificilmente antiliberal (como é aliás comum) como
se poderá negar que, para além disto, a sendo absolutista, já que o príncipe abso-
Carta estabelecia a continuidade com luto, detentor de um poder sem limites,
a ordem social do Antigo Regime que a que exerce despoticamente dispensando
Constituição de 1822 procurara abolir, li- qualquer representação popular, longe
mitando a mobilidade entre as classes so- de se identificar com o regime monár-
ciais e privilegiando, quanto ao acesso ao quico, data apenas da afirmação do Ilu-
poder, os membros dos (antigos) estados minismo, do qual é uma criação. Existiu,
da nobreza e do clero. de facto, um anticartismo expresso por

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316 AnticArtismo

parte dos opositores do liberalismo em de 1822, ao qual estes opositores à Carta


Portugal, que atribuía a elaboração da se manifestaram até mais favoráveis, re-
Carta Constitucional não ao príncipe velando não ser, efetivamente, contra a
D. Pedro IV, mas à ação manipuladora ideia de representação política a sua dis-
da maçonaria (da “pedreirada”, como se sidência. Neste ponto estava em causa a
lhe referiam) e aos liberais radicais que sua oposição à opção política tipicamen-
pretendiam fazer vingar o seu ideário ser- te liberal de enfraquecimento do poder
vindo-se do Rei para o tornar enganado- dos municípios, os quais, como quaisquer
ramente aceite pelo povo. corpos sociais intermédios entre o Estado
Mas mesmo na hipótese de este qua- e o indivíduo, eram considerados obstá-
dro ser falso, esta fação, e este é o pon- culos à realização do modelo económico
to essencial, não aceitava a legitimidade baseado na ação da “mão invisível”, gera-
de uma lei promulgada por um príncipe dor do maior proveito geral a partir da
que, em sua opinião, perdera os direitos máxima liberdade de ação do indivíduo
ao trono de Portugal, ao proclamar-se Im- na prossecução do seu próprio interesse.
perador do Brasil, depois de fazer deste Estes anticartistas referiram ainda incoe-
um Estado independente. Na verdade, rências internas do texto da Carta, relacio-
estes anticartistas rejeitavam os ideais li- nadas precisamente com a concretização
berais, aos quais associavam inteiramen- do princípio da igualdade, denunciando
te a Carta, vendo nela e na estima pela a clivagem entre uma teoria política pre-
tradição que pretensamente a distinguia tensamente promotora da igualdade e
da Constituição de 1822 um mero expe- uma prática política efetivamente gerado-
diente para fazer vingar o liberalismo e ra de desigualdades injustificadas, alheias
esvaziar a instituição real. Os poderes re- aos alegados critérios do mérito e da vir-
conhecidos ao rei pela Carta não eram, a tude liberais. Os críticos da Carta referi-
seu ver, diferentes dos que lhe atribuíra a ram, nomeadamente, a contradição entre
Constituição de 1822, ao impedi-lo quase a disposição que declarava acessíveis a to-
inteiramente de legislar, condição que o dos os cidadãos os cargos públicos e a que
direito de veto absoluto pouco alterava, vedava a eleição como deputados a indi-
já que também as câmaras podiam vetar víduos com rendimentos inferiores a 400
absolutamente as propostas do rei. A legi- mil réis, assim como a contradição entre a
timidade hereditária do poder real seria afirmação da igualdade de todos os cida-
mantida, nesta perspetiva, apenas como dãos perante a lei e o carácter vitalício da
uma farsa estratégica, uma vez que se ad- pertença à Câmara dos Pares, ou mesmo a
mitiam princípios que excluíam os funda- possibilidade de reeleição dos deputados
mentos dessa legitimidade e a tornavam durante toda a vida.
praticamente inconsequente. Ponto nevrálgico da discórdia, não ape-
Criticavam ainda estes anticartistas o nas em relação à Carta, mas, por maioria
processo eleitoral para a assembleia re- de razão, em relação ao ideário liberal de
presentativa, por entenderem ser ainda que aquela era uma materialização con-
pior do que o processo da Constituição creta, é o que se refere à religião e ao lia-
de 1822. Tratava-se, curiosamente, de um me entre esta e o poder civil (ou, como
processo de sufrágio indireto, que facil- então ficou conhecido, entre o trono e o
mente se diria menos progressista, me- altar). De facto, apesar de referir o cato-
nos democrático e menos revolucionário licismo como religião de Estado, a Carta
do que o sufrágio direto da Constituição instituiu as ideias liberais nesta matéria

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AnticArtismo 317

(que eram de rutura), ao estabelecer ex-


pressamente a liberdade de profissão e
de culto público de outras religiões no
reino (art. 6.º da Carta). Aos olhos dos
opositores do liberalismo, ressaltava o
facto de o estatuto constitucional da re-
ligião católica como religião de Estado
não coincidir, manifestamente, com a
sua afirmação como a única religião ver-
dadeira, verificação da qual retiravam
sérias consequências. Não viam, de facto,
no art. 6.º da Carta Constitucional o es-
tabelecimento de um princípio de mera
tolerância religiosa prática, mas sim, re-
lacionando essa norma com a totalidade
das normas da Carta e com as bases do
edifício filosófico liberal, a relativização
da religião. Para os detratores tradiciona-
listas da Carta Constitucional, essa relati-
vização consubstanciava-se na afirmação
filosófica e política da autonomia da es-
fera temporal em relação à ordem espiri-
tual, a qual adquiria os contornos de uma
cisão. Embora este discurso, denotando o
seu carácter anticartista, manifestasse um Ilustração da Carta Constitucional (1827).
radicalismo falsamente simplificador, não
deixa de ter semelhanças com a realida-
de contemporânea. Agora como então, ção das ordens religiosas pelos liberais
o que está em causa no debate político vitoriosos, veio revelar mais claramente e
sobre o papel das religiões na sociedade, com novos contornos a medida em que
sobretudo da religião dominante (no esta matéria estava implicada, na luta que
caso português, o catolicismo), é saber dividia o reino. Para além de cumprir o
se pode ter uma expressão pública ou se propósito de dissolver os relevantes cor-
deve ser remetida para a esfera privada. pos sociais intermédios entre o indivíduo
Em relação estreita com a rejeição do e o Estado que eram as ordens religiosas,
papel atribuído pela Carta à religião cató- a afirmação das liberdades revelava-se
lica na esfera pública, os anticartistas de fundamental, segundo os monárquicos
cunho tradicionalista objetaram também tradicionalistas, para subordinar a in-
contra o art. 145.º, que consagrava as li- fluência religiosa em Portugal à direção
berdades de expressão, de pensamento do poder político liberal em vista da ma-
e de culto. Fizeram-no animados pelo nutenção do regime.
mesmo espírito que os levara a recusar Este anticartismo pugnava ainda ex-
um entendimento da liberdade que com- pressamente contra a pretensão de ins-
portasse a subalternização da verdade, na tituição de uma ordem política e social
hierarquia constitutiva dos valores. O de- universal que sacrificava a particularida-
curso dos acontecimentos, com a extin- de dos usos e tradições constitutivos da

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318 AnticArtismo

identidade dos povos. Pouco mais de 30 ções e da alternância de vigência das duas
anos haviam passado sobre a Revolução leis fundamentais (a Carta, de 1826, e a
Francesa, mas os seus efeitos persistiam Constituição de 1822, reformada).
em toda a Europa. Uma das motivações comummente
Um aspeto comum à Carta, de 1826, e apontadas para a Revolução de Setembro
às Constituições de 1822 e de 1838, relati- prende-se, não com o conteúdo da Carta,
vamente ao qual não houve divergência, mas com o fenómeno da eleição sistemá-
foi a consagração dos direitos individuais tica dos mais ricos e a fixação de uma oli-
dos cidadãos portugueses como finali- garquia legitimada pela vigência da Carta.
dade e orientação da governação. Pelo É também amplamente consensual en-
menos não houve divergência quanto à tre os autores que a matriz liberal comum
formulação em si mesma, tanto que fora a ambas as fações permitiu uma conver-
usada por D. João VI na proclamação ré- gência mais significativa entre elas do que
gia de 1824 pela qual restaurara a vigên- uma oposição, e que esta se deveu, mais
cia das instituições tradicionais. do que a diferendos de natureza constitu-
Cronologicamente, este anticartismo cional, a divergências programáticas e à
tradicionalista existiu enquanto existiram competição pelo acesso ao poder.
em Portugal opositores declarados do re- A prova de que existiam divergências
gime constitucional liberal. Falamos dos programáticas está no facto de os revolu-
partidários de D. Miguel, cuja ação políti- cionários de setembro terem promovido o
ca se estendeu para além da derrota defi- restabelecimento da Constituição de 1822
nitiva de D. Miguel, em 1834. a título provisório, com vista à elaboração
de um novo texto constitucional, que foi
aprovado e entrou em vigor em 1838.
AnticArtismo setembristA Desde logo, os setembristas, apresentan-
A monarquia constitucional instalou-se do-se como liberais mais radicais, discor-
definitivamente em Portugal, alicerçada davam da Carta quanto à questão da so-
na Carta, depois da derrota de D. Miguel berania, por entenderem que esta residia
(1834), primeiro sob a regência de D. Pe- unicamente na nação. Nesta perspetiva,
dro e, depois, sob o reinado de D.  Ma- toda a lei, e especificamente a lei funda-
ria  II. Num período de grande instabili- mental, seria legítima enquanto fosse ex-
dade política, motivada pela divergência pressão da vontade do povo. Desse modo,
constante entre as duas câmaras do reino, a Constituição teria de ser elaborada e
foi ganhando forma e capacidade de in- votada por uma assembleia constituinte
fluência uma fação política que questio- representativa. Coerentemente, a impor-
nava a vigência da Carta Constitucional. tância e o papel do rei foram encarados de
No plano ideológico, essa fação opunha- maneira distinta do que acontecia na Car-
se à feição moderadora da Carta e rejei- ta Constitucional. A Constituição de 1838
tava os recuos que esta alegadamente deixou de reconhecer ao rei o direito de
representava face à Constituição de 1822, veto absoluto sobre a legislação aprovada
na perspetiva da implantação do regime pela câmara representativa, assim como
liberal. Tal oposição concretizou-se na deixou de reconhecer a sua participação
Revolução de Setembro de 1836, dando indireta nos outros poderes (diferentes do
início a um aceso combate político entre poder executivo) como decorrência do
cartistas e setembristas, acompanhado da seu poder moderador (nomeadamente, o
alternância do poder entre ambas as fa- poder de nomear os membros da Câmara

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AnticArtismo 319

dos Pares). Que o setembrismo era expres- confundiu-se com a contestação ao minis-
são de um liberalismo menos monárquico tro e a rejeição da feição centralizadora e
do que era o cartismo, tal parece claro. De autoritária do seu Governo.
facto, se a monarquia constitucional – o O anticartismo setembrista situa-se cro-
regime político comummente propugna- nologicamente entre a Revolução de
do por cartistas e setembristas – procura- 1836 e a promulgação do Ato Adicional à
va conciliar o princípio monárquico com Carta – à Carta Constitucional cuja vigên-
o princípio democrático, é inegável que cia acabou por vingar –, que pretendia
para os cartistas que o eram por convic- adaptá-la às principais objeções dos seus
ção aquele primeiro princípio adquiria opositores e conciliar, tanto quanto possí-
uma importância que não tinha para os vel, as duas fações em confronto.
setembristas, que procuravam integrá-lo
mais pelos condicionamentos da época Bibliog.: BONIFÁCIO, Maria de Fátima, Seis
do que por crerem nos seus benefícios. Estudos sobre o Liberalismo Português, Lisboa,
Além deste aspeto, e com ele relacionado, Estampa, 1991; BRANCO, Joaquim António
Lemos Seixas e Castelo, Mais Huma Toza nos
o igualitarismo mais patente no espírito
Liberaes ou Verdadeiras Idéas de Hum Realista Por-
setembrista rejeitava a persistência dos pri- tuguez Puro em que Se Evidencêa e Prova, sem mais
vilégios hereditários veiculada pelo carác- Recursos que a Historia, e Refutando as Perniciosas
ter vitalício dos membros da Câmara dos Doutrinas da Demagogia e Maçonismo, Lisboa,
Pares. Imprensa Régia, 1831; MADRE DE DEUS,
Apesar destas divergências de princí- Faustino José da, Justificação da Dissidencia Por-
pios, a assinalável mobilidade das pessoas tugueza contra a Carta Constitucional, Lisboa,
s.n., 1828; MATTOSO, José, “O liberalismo”,
entre os dois partidos dá sustento à tese
in MATTOSO, José (coord.), História de Portu-
de que a luta pelo poder foi a motivação gal, vol. v, Lisboa, Estampa, 1988, pp. 68-120;
mais significativa da divisão entre eles. No NEVES, Pedro Almiro et al., História de Portu-
palco do antagonismo entre cartistas e se- gal. Textos e Documentos, Porto, Porto Editora,
tembristas, que ultrapassava claramente 1985; REIS, A. do Carmo, O Liberalismo em Por-
o plano da ordem constitucional postula- tugal à Reconquista do Poder, Vila do Conde, Edi-
da, os cartistas eram, no discurso setem- ções Linear, 1982; Id., A Imprensa Periódica do
Porto na Primeira Metade do Século XIX. Cartismo
brista, os oportunistas gananciosos que
e Setembrismo, Dissertação de Doutoramento
pretendiam servir-se dos cargos públicos
em História Moderna e Contemporânea apre-
para encher os bolsos com os bens do sentada à Universidade do Porto, Porto, texto
reino, e que, por isso, foram apelidados policopiado, 1993; RODRIGUES, António Si-
de devoristas. À orientação programática mões (coord.), A História de Portugal em Datas,
patriótica protecionista a que ficou asso- Lisboa, Círculo de Leitores, 1994; SERRÃO,
ciado o setembrismo, que pretendia o in- Joel et al., “Regeneração e setembrismo”, in
cremento da indústria nacional acima do SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de
Portugal, vol. 3, Lisboa, Iniciativas Editoriais,
comércio e da agricultura como via para
1968, pp. 553-558; SERRÃO, Joel, e MAR-
a independência económica do país, so- QUES, A. H. de Oliveira (dirs.), Nova História
bretudo face à hegemonia britânica, li- de Portugal, vol. 9, Lisboa, Presença, 2002;
gava-se uma descrição dos cartistas como SOARES, Mário, “Carta Constitucional”, in
Portugueses pouco patriotas, subservien- SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de
tes aos interesses e ao poder dos Ingleses. Portugal, vol. 1, Lisboa, Iniciativas Editoriais,
Quando Costa Cabral tomou o poder, 1971, pp. 494-497.
em 1842, restaurando a vigência da Car- João Relvão Caetano
ta Constitucional, a oposição ao cartismo Beatriz Miranda

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320 AnticAstelhAnismo

Anticastelhanismo portuguesas desde 1297, espelham, de


certo modo, essa diferenciação identitá-
ria entre o desejo de expansão territorial
portuguesa, centrada na coesão de um es-
paço cristão, que, embora menos exten-
so, oferecia garantias de estabilidade reli-
giosa, e as constantes guerras dos diversos

O primeiro vizinho europeu para Por-


tugal começou por ser – e permane-
ceu assim durante séculos – o castelhano.
reinos espanhóis, que, sob a hegemonia
de Castela, dispersavam as suas ambi-
ções geopolíticas em mútuos domínios
Foi sempre encarado como rival a manter territoriais. Só no final do séc. xv, com a
sob controlo e a ultrapassar, para o que reunião dos diversos estados, o país que
contribuiu o facto de a história dos dois hoje consideramos Espanha se definiu,
reinos ter evoluído com grande proximi- mesmo continuando a verificar-se, ao
dade. Esta realidade expressou-se de dife- longo do tempo, episódios relacionados
rentes formas, e também a literatura tem com movimentos separatistas. Subescre-
peso na construção e projeção de uma vemos a consideração de Agostinho da
determinada imagem do povo espanhol Silva de que “o que Portugal fez de maior
e da sua nação. no mundo não foi nem o descobrimen-
Ainda que seja relativamente tardia a to, nem a conquista, nem a formação de
expressão de um nacionalismo conscien- nações ultramarinas: foi o ter resistido a
te, no qual todos se empenham indepen- Castela” (SILVA, 2000, 29-30).
dentemente da vontade do rei ao qual de- Na perscrutação da estratégia geopolíti-
vem obediência, o seu conceito encerra ca que presidiu à construção do território
aspetos que conduziram a essa consciên- português, vários autores, incluindo Oli-
cia: a união de um povo por um poder veira Martins, Vitorino Magalhães Godi-
centralizador, por uma língua própria e nho e José Mattoso, centrados na questão
pelos laços proporcionados pelo contac- eminentemente medieval do território,
to quotidiano e pelo confronto com os consagraram a tese de que as causas que
mesmos opositores. Dentro da lógica de provocaram a independência geográfica
afirmação de um reino acoplado a um e política de Portugal relativamente a Cas-
território politicamente definido, os Por- tela, como sejam a religião (MARTINS,
tugueses procuraram a independência 1981, 145), o poder centralizador do rei
identitária através da conquista territo- (GODINHO, 2004, 19) e as fronteiras
rial, tal como Castela procurou articular (MATTOSO, 1998, 7), perduraram, legi-
os reinos subjacentes que a circunda- timamente, até ao séc. xix, época em que
vam. Porém, no quadro da sobrevivência uma consciência não nacional, mas já
político-geográfica, os Portugueses pro- nacionalista, começa a despontar. Dentre
curaram destacar a importância da fé e estas visões, destacamos a posição de Jor-
doutrina cristãs, aliando a expansão da fé ge de Sena, que defende, inclusivamente,
católica ao alargamento do território cris- que essas causas de interesse pragmático,
tão na península Ibérica, que, nos seus di- a que vieram juntar-se os estritos interes-
versos e inúmeros reinos, consideravam ses económico-sociais de luta de classes,
ser já parte integrante de uma comunida- permaneceram inalteráveis nos seus pro-
de territorial. As guerras da Reconquista, pósitos até mesmo durante as duas mais
que formaram e legitimaram as fronteiras graves crises sucessórias, a de 1383-1385

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AnticAstelhAnismo 321

e a de 1580, consideradas épocas-chave


para uma demarcação identitária anticas-
telhanista. Ao contrário da clara oposição
de José Mattoso (1998), que exclui uma
concomitante formação étnica e territo-
rial, consideramos que a obrigação po-
lítica de obediência a um rei dentro de
um território que procura delimitar pau-
latinamente as suas fronteiras não é, de
todo, incompatível com uma consciência
comunitária (e, porque não, nacional)
dessa mesma pertença, não só a um ter-
ritório politicamente centralizado, como
também a uma língua e convivência quo-
tidiana comuns.
Será a partir dos meios práticos de
sobrevivência (o território, a língua e a
convivência) que o protótipo de uma
identidade nacional começará a formar-
Rei D. Afonso Henriques (1109-1185).
se numa perspetiva opositora. Martim de
Albuquerque, e.g., elege a noção de grei
(“afinidade de sangue”) como uma das exclusão de uma entidade ou de concei-
precursoras do espírito de comunidade, tos alheios aos objetivos de manutenção
e até de nacionalidade (ALBUQUER- de um microcosmos é sempre, de alguma
QUE, 1974, 19), entre os habitantes de forma, relatada. Não serão controversos
um determinado território, já bem pre- os vestígios que documentam valorati-
sente quando D. Afonso Henriques de- vamente esses acontecimentos, mesmo
cidiu congregar sob o mesmo propósito ainda antes do despontar de uma histo-
defensivo vários opositores às pretensões riografia mais metódica, como os Anais de
castelhanizantes de sua mãe. Foi a par- D. Afonso Henriques, redigidos no mostei-
tir desta tomada de consciência perante ro de Santa Cruz de Coimbra, por volta
a honra de um espaço a proteger que a de 1185, em que é grafada, pela primeira
vontade do rei começou a ombrear com vez, a ocorrência do qualificativo “estran-
a sua motivação pela vontade do povo, geiro” para definir não um opositor reli-
comungando na defesa do território e gioso, mas um opositor político, o caste-
na criação dos laços que lhe conferirão lhano-leonês. Faz sentido afirmar que a
um espírito agregador. Se o palco de pretensão independentista de D. Afonso
confrontos territoriais requer uma união Henriques, mais do que pessoal, era já
comunitária convocada por um soberano portuguesa. Consideremos esta passagem
que procura delimitar e defender um es- dos Anais de Santa Cruz de Coimbra: “E
paço fronteiriço, os motivos que inspira- os portuguesses teuerom todos com o
rão as características de base de determi- prinçipe [D. Afonso Henriques] e como
nada identidade nacional residem nesses ssouberom que sse o emperador guisaua
fatores pragmáticos de defesa instintiva por/vijnr em Purtugal fforonsse todos
do que podemos classificar como uma muym bem guisados a huum lugar que
espécie de propriedade privada. Assim, a chamam Uall deUez E atenderom hi. E o

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enperador vijnha com muym grandepo- mente, essa preocupação distintiva inau-
der dAragam e de Castella e de Leom e gurará, igualmente no reinado de D. Di-
de Galliza E quando chegou ally o prinçi- nis, a historiografia portuguesa, a partir
pe pos lhe a batalha” (Anais, Crónicas…, de uma nova abordagem factual e linguís-
1968, 132). tica dos eventos peninsulares. A tradução
Será, portanto, na Idade Média que se da Crónica do Mouro Rasis pelo clérigo Gil
elaborarão os ideologemas e estruturas Peres, (1315), além de ser o primeiro do-
institucionais essenciais ao suporte do cumento integralmente escrito em por-
edifício ideológico de uma nação. E, por tuguês desde que D. Dinis decretou que
sua vez, será nas crónicas portuguesas pri- assim deveriam ser todos os documentos
mitivas, e até nos livros de linhagens, que régios, introduz uma série de inovações
se encontrarão os aspetos diferenciadores à versão original, procurando distinguir
da identidade portuguesa relativamente a importância dos Portugueses no tem-
à castelhana. Tendo ainda em conta a fi- po da Reconquista. Mais do que rivalizar
gura de D. Afonso Henriques como parte culturalmente com Castela, esta cons-
do mito fundacional, a implementação e ciência histórica prepara os mitos funda-
evolução do milagre de Ourique teve uma cionais que mais tarde nos distinguiriam
importância messiânico-providencialis- cultural, religiosa e politicamente no
ta, sacralizando o imaginário coletivo da plano hispânico. É tendo isto em conta
nação e catalisadora na confiança da ex- que António Quadros afirma que é com
cecionalidade portuguesa em tempos de D. Dinis que poderemos falar já de uma
crise, assumindo-se como um dínamo so- pátria portuguesa (QUADROS, 1986,
ciopolítico. Não será ocasional o facto de 13). Apesar de os conflitos políticos com
a primeira versão do milagre ter apareci- Castela não marcarem ainda, diretamen-
do durante a crise de 1383-1385, embora te, a construção cultural da identidade
Isabel Buescu aponte relatos da ocorrên- nacional portuguesa, existem exemplos
cia do milagre nas Crónicas dos Vinte Reis, explícitos que relatam não só o começo
obra em que se relatam as consequências de uma preocupação política indepen-
das diversas iniciativas régias de autono- dentista, como também o de uma noção
mização da participação portuguesa na de ameaça permanente que as fronteiras
Ordem de Santiago de Espada. As várias recentemente definidas ainda não ha-
versões do milagre, feitas até 1632, data viam neutralizado. O Livro de Linhagens
da Terceira Parte da Monarchia Lusitana, de do conde D. Pedro Afonso de Barcelos
Fr. António Brandão, representam o po- relata o modo como D. Dinis, depois dos
der legitimador que o relato deste mila- esforços diplomáticos para garantir a paz
gre teve na evolução da história política e com D. Fernando e da construção de
cultural do país. António Marques Bessa fortalezas fronteiriças, “entrou per Cas-
vai mais longe e afirma que o mito terá tela ataa Valladolide” (MATTOSO, 1983,
contribuído para a separação entre Portu- 217) para assegurar a sua superioridade
gueses e Castelhanos “conquanto no pla- e domínio militares. Na linha de uma
no da fé se pudessem confundir, enquan- tradição portuguesa de livros de linha-
to todos católicos” (BESSA, 1988, 60-61), gens, já inaugurada em finais do séc. xiii,
atribuindo um carácter sagrado à predes- o Livro de Linhagens, ou Livro Terceiro, do
tinação portuguesa de, com a proteção conde D. Pedro (1343-1344) iniciou a
divina, prosseguir o alargamento do seu exaltação dos Portugueses, relatando os
território religioso e político. Simbolica- feitos dos filhos de alguns e introduzindo

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a genealogia dos reis e das principais fa- português. Perante as intenções de Afon-
mílias nobres portuguesas como parte so XI, a crónica reproduz pormenoriza-
de um conjunto universalmente bíblico. damente a correspondência entre os dois
No entanto, será pela Crónica Geral de Es- reis, procurando espelhar a desconfiança
panha, de 1344, inspirada na crónica ho- de D. Afonso IV perante as intenções do
mónima de Afonso X, que D. Pedro Afon- inimigo castelhano, num discurso direto
so inaugurará a primeira história geral do e incisivo que culmina nestas palavras do
reino que dirime diretamente a tese afon- Monarca: “sabee sem duvida que tres cou-
sina sobre a primazia castelhana no pro- sas nunqua portugueses reçearom, con-
cesso cruzadístico da reconquista cristã, vem a saber, usar de luyta e averem gue-
além de manifestar uma declarada hosti- ra com castelhanos e demandar de boa
lidade relativamente à linhagem da casa mente molheres” (Crónica de Portugal…,
real castelhana. O autor encontrará na 1998, 241). Até à crise sucessória deixa-
vitória da Batalha do Salado a chave para da por D. Fernando, podemos considerar
a diferenciação e exaltação da participa- que os conflitos entre Portugal e Castela
ção portuguesa nesse processo, sobretu- foram pontuais, sobressaindo, ainda que
do do ponto de vista da solidariedade dos do ponto de vista romanesco, o episódio
nobres portugueses, que permitiram aos da morte de Inês de Castro, revelador
fidalgos participar nas guerras. das políticas protecionistas de Afonso IV,
A partir de meados do séc. xiv, o gra- só mais tarde ultrapassadas pela rutura
dual avanço da autonomização política definitivamente declarada de D. João I.
portuguesa tornou-se, contudo, propor- Porém, mesmo numa obra de índole as-
cional aos conflitos diplomáticos espole- cética como O Horto do Esposo se poderão
tados por Castela, quer através de uma antever os novos contornos historiográ-
dinâmica de aproximação sinuosa por ficos que permitiram ao povo participar
uniões sanguíneas de mútuo interesse, nos acontecimentos históricos. As tensões
quer pela intenção declarada de reivindi- políticas espoletadas pela crise sucessória
cação integracionista por parte dos Cas- deixada por D. Fernando representam
telhanos. A Crónica de Portugal de 1419, uma mudança no paradigma histórico
além de retomar a preocupação messiâni- dos acontecimentos, encarados não já
co-religiosa da legitimidade da fundação como fruto das decisões de responsabi-
do reino de Portugal, dando continuida- lidade governativa exclusivamente régia
de à historização do grande reinado de ou cortesã, mas como janela do alcance
D. Afonso Henriques, relata as tensões di- social das mudanças políticas de um país
plomáticas entre Afonso IV e Afonso XI, com uma consciência nacionalizante mais
além de alguns episódios cavaleirescos alargada e convicta. Juntamente com os
que prefaciam os acontecimentos mais eventos que deram lugar à resolução da
importantes dos conflitos entre as duas crise de 1383-1385, D. João I inaugurará
Coroas. Antes da crise sucessória, em um ponto de viragem na conceção da na-
1383-1385, já Afonso XI de Castela difi- cionalidade portuguesa, inspirando seu
cultara as relações de concórdia e violara filho D. Duarte a encetar um programa
os tratados de paz com Portugal quando, cronístico de legitimação da independên-
depois de se divorciar de D. Constança cia de Portugal e da dinastia que presidiu
Manuel, se recusara a entregá-la nova- a uma nova era na história portuguesa.
mente a seu pai, D. Afonso IV, na intenção As Crónicas de Fernão Lopes constituem,
de assegurar as suas pretensões ao trono de facto, um dos mais relevantes pilares

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324 AnticAstelhAnismo

Ayala, que acompanhou os factos relata-


dos e é constantemente desautorizado
pelo cronista português. Sobressai, e.g.,
o episódio de formação do evangelho
português, cujo problema castelhano
António José Saraiva, em O Crepúsculo da
Idade Média em Portugal (1998), interpreta
como um prolongamento da inimizade
para com os mouros, com que combateu
o conde D. Henrique. A insistência do
cronista no tópico da divisão da cristan-
dade entre dois papas rivais reforça esta
ideia, já que, ciclicamente, os Castelha-
nos, entre outros insultos, são caracteri-
zados como “cismáticos”, mesmo pelos
populares, que poderiam não ter uma
noção exata do significado desse termo.
Aliás, a reação popular aquando das pri-
Rei D. Afonso IV (1291-1357). meiras aclamações de D. Beatriz constrói-
se de acordo com uma série de imagens
representativas desta intrínseca vontade,
do projeto político de D. Duarte, já que é que adota todos os argumentos possíveis.
nestas obras que, pela primeira vez, exis- O mais comum é, contudo, o da recusa
te a intenção clara de sobrepor à vontade de sujeição a um soberano estrangeiro
dominadora dos Castelhanos a legitima- depois dos sacrifícios coletivos durante
ção de um rei português. A Crónica de D. a Reconquista, como mostram o discur-
João I é, pela sua exemplaridade, a mais so da velha de Santarém – “e como em
significativa. Parece-nos evidente que, se maa hora sogeitos avemos nos de seer a
Fernão Lopes teria sempre de mostrar-se Castellãos? Nunca Deos queyra” (LOPES,
defensor da causa de D. João I e da sua 1990, I, 488) – e o murmúrio coletivo
eleição (utilizando argumentos como os dos lisboetas – “Agora se veme Portugal
de João das Regras, que a Crónica repro- doado que tamtas cabeças e sangue cus-
duz), não foi apenas isso que motivou tou a gaanhar, quando foi filhado aos
Hernâni Cidade a apelidá-lo de “anima- Mouros” (Id., Ibid., 484). Para além disso,
dor do nacionalismo” e a considerá-lo o parece-nos que a imagem que o cronista
primeiro a expressar a “consciência da constrói do Rei de Castela é significati-
nacionalidade” (CIDADE, 1959, 45-48), va, resumindo uma perceção do invasor
independentemente de ser discutível a castelhano. Antes de entrar em Portugal,
adequação desta terminologia à época o Rei de Castela reúne o seu Conselho
do cronista. Fernão Lopes constrói a sua para discutir a legitimidade dos seus atos.
obra não só para engrandecer o Mestre Neste momento, como em todos aqueles
de Avis, os “verdadeiros portugueses” que em que pedirá a opinião dos seus natu-
com ele estiveram e a sua campanha vi- rais, a sua escolha pende para aqueles
toriosa, mas também para veicular uma que melhor simbolizam as características
determinada visão do povo castelhano e atribuídas aos Castelhanos – ambição, so-
para rivalizar com o cronista adversário, branceria, confiança excessiva, falsidade.

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AnticAstelhAnismo 325

E isto apesar de ser notória a consciência ou a integração em Castela, ou a aventura


que os Castelhanos possuem da rivalida- fora da Península” e da escolha da “in-
de entre os dois povos e do modo como dependência em relação a Castela” (SA-
uma invasão poderia agravá-la de modo RAIVA, 1985, 85). A tendência revelada
irreversível. Diz um dos mais sensatos pelas obras dos príncipes de Avis é muito
conselheiros: “Senhor, vos nom devees clara: D. João I, no Livro da Montaria, e
nê podees dereitamente entrar em Por- D. Duarte, na Ensinança de bem Cavalgar
tugal per esta guisa com gentes darmas, Toda a Sela, defendem que os fidalgos de-
segundo os trautos que antre vos e el Rei vem estar sempre prontos para a guerra,
D. Fernando foram firmados; mas com- tendo, portanto, de dedicar-se a ativida-
pre muito a vosso serviço, segundo a for- des desportivas, e o infante D. Pedro, na
ma em que ssom jurados, de os guardar e Virtuosa Benfeitoria, corrobora a ideologia
comprir em todo, e teermaneira com as veiculada ao longo de toda a Crónica de
gemtes de Portugall, de guisa que nom D. João I, promovendo a necessidade de
vaades per força de gemtes entrar no rrei- os Portugueses defenderem a terra de
no” (Id., Ibid., 110). Desenha-se um sobe- onde são naturais, onde se encontram
rano violento, cruel, cioso da sua honra, os seus parentes e da qual aprenderam
despreocupado com os interesses dos a gostar em comunidade de língua, cos-
seus naturais. Na segunda parte da Cróni- tumes, motivações e património coletivo.
ca de D. João I, este retrato desenvolve-se
de modo semelhante. D. João desvalori- D. Afonso XI com os seus cavaleiros (séc. xiv).
za novamente os conselheiros mais pru-
dentes, caindo no erro de se considerar
vencedor apenas devido ao número su-
perior dos seus soldados, revela evidentes
sinais de crueldade para com aqueles que
pensava vir a subjugar e, finalmente, não
conseguindo coordenar os seus homens
na batalha por se encontrar doente, foge
do terreno ao primeiro sinal de adversi-
dade, só então contemplando a dimen-
são da sua soberba. Parece-nos, ainda, de
destacar que Fernão Lopes gerou o clima
propício ao aparecimento de um dos
mais populares mitos portugueses, o da
padeira de Aljubarrota, descrevendo lar-
gamente (mais do que a própria batalha)
a perseguição de que os Castelhanos, ven-
cidos, foram alvo, por parte do povo dos
arredores do campo, quando tentavam
escapar para a sua terra.
Depois de estabelecida a paz, inaugu-
ra-se um novo período na história e na
cultura portuguesas. António José Saraiva
nota que as opções futuras dos Portugue-
ses nasceram da “grande opção nacional:

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326 AnticAstelhAnismo

Embora ainda longe do conceito de na- acompanhar constantemente os ritmos


ção conforme começará a revelar-se no de desenvolvimento interno do adversá-
Renascimento, existe um sentimento que rio; com as condicionantes continentais,
José Eduardo Franco define como “ideal devido ao facto de que “o país estava cer-
nacionalizante”, embrião do posterior cado pelo poder crescente de Castela a
“nacionalismo doutrinalmente elaborado leste e a norte”, a “válvula das energias
e culturalmente exacerbado” (FRANCO, portuguesas era para além dos mares”
2000, 225-230). Esta nova dinastia seria (PASSOS, 1970, 113).
também responsável por todo o processo O projeto que conduziu ao domínio
que conduziu aos Descobrimentos por- de Ceuta foi elaborado cuidadosamente,
tugueses. Mais uma vez, a empresa mo- sempre com a possibilidade de continuar
tivou uma rivalidade crescente entre os o conflito peninsular em aberto, e tinha
dois reinos peninsulares (que, em certos como um dos grandes objetivos conse-
momentos, se revestiu de aparente con- guir um ponto estratégico não só para o
córdia e colaboração) e a necessidade de comércio, como também para uma possí-
vel resposta aos ataques do rival. Ao mes-
mo tempo, era necessário impedir que
Iluminura da Crónica de D. João I,
de Fernão Lopes (1385-1460). Castela alcançasse primeiro uma penetra-
ção territorial em Marrocos. Diferendo
que conheceria um aparente desfecho
quando o futuro D. João II, negociando
a paz com Castela no Tratado das Alcáço-
vas, consegue da parte do inimigo o di-
reito dos Portugueses ao Norte de África,
à costa da Guiné e às ilhas atlânticas por
troca com as Canárias. Colombo e Fer-
não de Magalhães seriam os principais
rostos de novas divergências, o primeiro
agindo ao serviço dos Reis de Castela com
um projeto de navegação para Ocidente,
que D.  João II fora aconselhado a igno-
rar e que, obtendo sucesso inesperado,
conduziu a “uma série de corridas para
Roma de diplomatas portugueses e espa-
nhóis” (Id., Ibid., 195), contencioso que
redundaria num novo acordo, o Tratado
de Tordesilhas, que dividia explicitamen-
te o mundo descoberto ou a descobrir
pelos dois reinos; o segundo, iniciando
uma viagem de circum-navegação ao ser-
viço do Rei castelhano que, ao terminar,
desencadeou contendas entre Portugal
e Castela devido a novas disputas pelas
terras encontradas. Percebe-se, portan-
to, que até ao momento da União Ibéri-
ca (1580-1640) existiram duas frentes de

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AnticAstelhAnismo 327

disputa constante, uma pela possibilida- manha coisa como era a ser jurado por
de de um dos dois reinos ocupar o trono príncipe de Castela de tamanhos reinos
do vizinho e outra, que com ela se cruza, e senhorios” (Id., Ibid., 467-468); este pa-
pela descoberta, conquista e posse de no- rece ser um episódio dos conflitos entre
vos territórios ultramarinos. as várias nacionalidades submetidas a
Findo o conflito que se seguiu à ascen- Castela. Na “Miscellanea”, é tratada com
são de D. João I ao trono, com o acordo particular destaque a gesta marítima, mas
de paz de 1411, os dois reinos confrontar- notam-se ecos da relação entre os dois
se-iam novamente quando D. Afonso  V, reinos, desde logo com a defesa da ideia
seguindo a utopia de reunir as Coroas de que “portugueses, castelhanos/não os
peninsulares na cabeça de um rei portu- quer Deus juntos ver” (Id., Ibid., 545). No-
guês, invade Castela para se envolver na te-se como, quando confronta os tempos
questão sucessória aberta pela fraqueza áureos de Portugal com uma certa deca-
do Rei Henrique IV. Garcia de Resende, dência, que se sente no momento em que
no seu Livro das Obras, explorará muitas escreve a “Miscellanea”, Garcia de Resen-
das questões relevantes deste período. de refere que “de granadis, de africanos/
Em “Vida e feitos d’el Rei D. João II” faz de andaluzes, castelhanos/era Portugal o
sobressair a imagem do Príncipe Per- cume” (Id., Ibid., 570). Castela é o único
feito durante os conflitos com Castela, reino europeu referido na tentativa de su-
quer enquanto defensor inexcedível das periorização de Portugal.
fronteiras ameaçadas, quer enquanto Em Gil Vicente, as questões são seme-
guerreiro vitorioso no auxílio ao pai, du- lhantes. A par do destaque dado aos fei-
rante a Batalha de Toro. Assim, destaca tos dos Portugueses, já que o dramaturgo
o seu importante papel no Tratado das escreve no momento de maior grandeza
Alcáçovas e, sobretudo, mesmo duran- do Império Português, encontram-se
te o período em que existia um possível também alguns exemplos da contrapo-
projeto de união ibérica motivado pelo sição entre Portugueses e Castelhanos,
casamento do herdeiro, D. Afonso, com culminando na superiorização dos lu-
a filha dos Reis Católicos, a prudência sos. A peça mais significativa será o Auto
e antecipação dos acontecimentos po- da Fama, na qual Gil Vicente identifica a
líticos de que o Rei sempre deu provas, Fama de Portugal com uma mocinha da
mandando “prover, fortalecer e reparar Beira que será tentada por um Francês,
todas as cidades, vilas e castelos dos ex- um Italiano e um Castelhano, recusando
tremos de seus reinos” (RESENDE, 1994, todos eles e sobrepondo às glórias e ri-
258). Na “Entrada de el-Rey Dom Manoel quezas de que se gabam os feitos dos Por-
em Castella” – a segunda possibilidade de tugueses no além-mar. No caso do Caste-
sucesso da procurada união peninsular –, lhano, embora a moça reconheça a sua
descrevem-se as divergências entre os grandeza, procura mostrar como os feitos
Portugueses quanto à entrada do Ventu- dos Portugueses superam os do seu povo.
roso em Castela para ser aclamado como Gil Vicente constrói a imagem de um Cas-
herdeiro: alguns consideram arriscada telhano arrogante, palrador, gabarolas e
essa ideia, tendo em conta os “casos que gingão (o mesmo que compõe, no Auto
podiam sobrevir a rei fora de seus reinos da Índia, para definir o Castelhano que
e em reino alheio em poder de outro se encontra com a mulher do Português
rei”, enquanto outros aconselham o Rei enquanto este viaja para o Oriente), mas
a prosseguir com a ideia, “pois hia a ta- que no final enaltece, como os outros, a

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328 AnticAstelhAnismo

glória dos Portugueses. No Auto da Festa, não soa;/mas temo-me de Lisboa,/que


a Verdade destaca Portugal do conjunto ao cheiro desta canela/o Reino nos des-
ibérico: “Que eu tenho corrido grande povoa” (MIRANDA, 1989, 215). António
parte da Espanha/principalmente neste Ferreira, nos Poemas Lusitanos, procura
Portugal/e posso dizer que nunca achei exaltar a língua portuguesa e recomenda
tal/que me fizesse ua honra tamanha” aos amigos que renunciem ao castelhano,
(VICENTE, 2002, II, 655-685). como num poema dedicado a Pero de
No que respeita aos humanistas portu- Andrade Caminha: “Mostraste-te té gora
gueses, Sá de Miranda, quando se refere tão esquecido/Meu Andrade, da terra
aos perigos da decadência portuguesa em que nasceste/Como se nela não foras
motivada pelo comércio das especiarias nascido/Esses teus doces versos que er-
orientais – aspeto que mostra como o gueste/Teu claro nome tanto, e que inda
autor é contemporâneo de uma outra erguer/mais se verá, a estranha gente os
visão da realidade dos Descobrimentos deste/Porque o com que podias nobre-
–, encontra como ponto de comparação cer/Tua terra, e tua língua lhe roubaste,/
para o seu engrandecimento a ameaça Por ires outra língua enriquecer?/Cuida
constante representada por Castela: “Não melhor que quanto mais honraste,/E
me temo de Castela/donde inda guerra em mais tiveste essa língua estrangeira,/
Tanto a esta tua ingrato te mostraste”
(FERREIRA, 2000, 259-263). André de
Ilustração de Auto da Barca do Inferno, de Gil
Resende, um dos que mais se dedicou ao
Vicente (c. 1465-c. 1536).
estudo das origens de algumas cidades
portuguesas (nomeadamente Évora) e
do povo lusitano, mantém um interes-
sante debate com Bartolomeu Quevedo:
“Vocês têm um império dilatado […].
Apesar de tudo, alguns compatriotas teus
[…] passam o tempo a provocar este nos-
so cantinho – a que chamam, depreciati-
vamente, Portugalito – e ainda por cima
exibem ares de enfado, incapazes que são
de se convencer ou de aceitar com sereni-
dade que entre nós haja coisas dignas de
admiração ou mesmo geniais” (RESEN-
DE, 1988, 125-126).
O caso que mais sobressai, contudo, é o
de Camões. O poeta de Os Lusíadas, que
muitos consideram um clássico hispâni-
co, quando coloca na boca de Vasco da
Gama a descrição física da Europa, des-
tacará a península Ibérica como “cabeça
ali de Europa toda” (III, 17) e, referin-
do-se às várias nações que a compõem,
mostrará como “qualquer delas cuida
que é melhor” e como o Castelhano é
“restituidor de Espanha e senhor dela”

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(III, 19). Na narração dos feitos dos Por-


tugueses, se a guerra com os mouros e os
feitos marítimos dominam, não passam
despercebidas as narrativas dos conflitos
com Castela, desde que D. Afonso Hen-
riques se opôs ao “soberbo castelhano”
(III, 34-41). Ao referir-se a D. Afonso IV,
o poeta destaca que “sempre as soberbas
castelhanas/Co’o peito desprezou, fir-
me e sereno”, para se colocar depois em
evidência a sua ação decisiva na batalha
de Salado, socorrendo o genro (III, 99-
-117). Parece-nos ainda mais significativo
que, no segundo momento de descrição
dos heróis nacionais (quando Paulo da
Gama mostra ao Catual as bandeiras dos
navios), se destaquem episódios da resis-
tência portuguesa ao invasor castelhano
(VIII, 32-36).
Por outro lado, o desejo de aperfeiçoa- Rei D. Duarte (1391-1438).
mento e enriquecimento da língua por-
tuguesa, somado à consciência de que os portuguesa, por ser a “que se mais con-
grandes feitos de Portugal mereciam ser forma com a latina, assim em vocábulos,
devidamente divulgados, induzem os au- como na ortografia” (BARROS, 1971,
tores portugueses a valorizar o seu idio- 396-397). Em 1580, ano em que se jogou
ma e a destacá-lo das restantes línguas a autonomia portuguesa, Fernão de Oli-
latinas, nomeadamente do castelhano, veira deixava clara a sua posição na pri-
que era então a língua da moda. Fernão meira História de Portugal: Castela como
de Oliveira, autor da primeira Gramática um reino mais recente que Portugal e
da Linguagem Portuguesa (1536), destaca que nunca teve direitos relativamente às
“a antiga nobreza e saber da nossa terra suas terras, defendendo inclusivamente
da Espanha, cuja sempre melhor parte que na guerra com os mouros, os leone-
foi Portugal”. Recordando que Grécia e ses e Castelhanos “mais perderam do que
Roma “quando senhoreavam o Mundo ganharam porque não pretendiam apro-
mandaram a todas as gentes a eles sujei- veitar Portugal”, apenas assoberbar-se das
tas aprender suas línguas”, propõe que suas terras (FRANCO, 2000, 501-507);
“é melhor que ensinemos a Guiné que utiliza ainda a eleição de D. Afonso Hen-
sejamos ensinados de Roma”, i.e., que se riques pelos seus naturais para criticar a
desenvolva e expanda pelas colónias o atitude de Filipe II, que se teria aprovei-
idioma nacional (OLIVEIRA, 1975, 42). tado da situação difícil em que se encon-
Também João de Barros, em 1540, elabo- trava o reino para comprar o apoio de
rará uma Gramática da Língua Portuguesa, uma parte da nobreza portuguesa e para
na qual inclui um “Diálogo em louvor da lhe impor uma ameaça militar que nun-
nossa linguagem” onde se considerará, ca conseguiria conter; finalmente, a tese
no confronto com as outras línguas lati- que percorre toda a obra, segundo a qual
nas, que a melhor e a mais elegante é a Portugal nunca deixou de ser um reino

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autónomo, resistindo sempre à ocupação Duarte Nunes de Leão, Décadas da Ásia,


estrangeira. de Diogo do Couto, e Chronica do muyto
O sentimento da superioridade e dig- Alto e muyto Poderoso Rey destes Reynos de
nidade nacionais, amplamente difundido Portugal Dom João o III deste Nome, de Fran-
no séc. xv, encontrou novas representa- cisco de Andrade. Emerge a ideia de que
ções aquando da eminente perda iden- o carácter português se foi forjando a par-
titária para Castela. Fruto da miscigena- tir de um agudo sentido de autonomia,
ção temporal originária das profecias de não só como recetáculo de um voluntário
crenças messiânicas e dos acontecimentos espírito de cruzada, mas também como
críticos que levaram à tomada do trono profundo desejo de independência rela-
português por Filipe I de Castela, surge o tivamente ao outro castelhano.
fantasma cultural do sebastianismo numa Evidencia-se igualmente, neste perío-
fórmula messiânica que aguardava cor- do, uma curiosa aproximação entre o
rente profética específica. A extensíssima panegírico negro denunciador de uma
parenética publicada entre 1580 e 1640 nação definhante e a veia satírica de al-
é o espelho do regresso a um sentimen- guns autores. Testemunho singular desta
to de pertença comunitária portuguesa, simbiose é o Testamento Que o Reino de Por-
ancorado mais na noção de ecumenismo tugal Fez após a Desventura e Perda de el Rei
religioso do que propriamente numa his- D. Sebastião em África, de autoria e data im-
panidade político-cultural ou europeia. precisas, em que Portugal deixa aos seus
Na verdade, a comunhão hispânica entre herdeiros o que apenas lhe restou de um
os Portugueses apareceu muito depois passado glorioso, as lembranças. É pela
de a Reforma corroer a unidade católica sátira que ecoa a revolta perante o esta-
que ameaçava o Império Habsburgo. É, do de subjugação em que caíra Portugal,
no entanto, neste período que o desen- que atinge, e.g., as figuras consideradas
volvimento da leyenda negra, associada responsáveis pelo sucedido, como nes-
aos Espanhóis, passa a remeter para um ta quadra anónima dedicada ao cardeal
contexto ibérico mais alargado, uma vez D. Henrique – “Viva el-rei D. Henrique/
que a gradual aproximação cultural e Nos infernos muitos anos./Pois deixou
política entre Portugueses e Castelhanos em testamento/Portugal aos Castelha-
foi externamente acompanhada pelas nos” (PIMENTEL, 1885, 68). Este géne-
dissensões governativas que afastavam o ro lírico aliou-se à manifestação de um
catolicismo conservador da Hispânia do anticastelhanismo peculiar que encontra
catolicismo progressista inaugurado com na língua invasora o meio para a sua di-
o anglicanismo de Henrique VIII. Que- vulgação. As obras compostas durante o
rendo desvincular-se da influência caste- domínio filipino e dedicadas aos Filipes
lhana e baseado-se na compilação histo- (e.g., Flores de España Excellencias de Portu-
riográfica dos feitos passados, recorrendo gal (1621), de Sousa de Macedo, dedica-
muito à mitologia nacional, os teólogos do a Filipe IV, e a Sucession del Señor Rey
e historiadores portugueses esforçaram- Don Filipe Segundo en la Corona de Portugal
-se por definir uma caracterologia portu- (1639), de D. Agostinho Manuel, ofereci-
guesa distinta da de outras nações, como da ao conde-duque de Olivares) são, em
demonstram as obras Diálogos de Varia grande medida, uma forma de expulsar
História, de Pero de Mariz, Monarchia Lu- os demónios da inveja e da hostilidade
sitana, de Fr. Bernardo de Brito, Primeira que o povo português sempre nutriu em
Parte das Crónicas dos Reis de Portugal, de relação a Castela, ainda que aprofundasse

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uma proximidade cultural que veio reve- portuguesa, não poderemos deixar de as-
lar-se contraditória nas suas manifesta- sinalar que certas áreas literárias sucum-
ções passivo-agressivas: o sentimento his- biram ao poderio cultural espanhol. Foi o
pânico era tratado, em alguns casos, com caso do teatro, que, depois de Gil Vicen-
uma ironia que espelhava a inevitabilida- te, decaiu consideravelmente, ao inspirar-
de da subjugação à superioridade do país -se com menos originalidade nos motivos
vizinho ou, noutros casos, procurando e no estilo provenientes de Espanha.
fazer sobressair os interesses portugueses Ainda assim, mesmo que pontualmente
no contexto da unidade hispânica. Uma contrariando a opressão cultural do país
das melhores comunhões epocais entre vizinho, o gosto pelo teatro em Portugal
o panegírico da língua materna e a di- não diminui, tendo-se criado a nossa pri-
plomacia política é Origem da Língua Por- meira companhia em 1591. Simão Ma-
tuguesa, de Duarte Nunes de Leão, obra chado é exemplo do génio dramático da
dedicada a D. Filipe III e escrita em por- época, escrevendo duas peças bilingues
tuguês. A tentativa de equilíbrio entre o nas quais procurou oferecer uma melhor
português e a sua língua de origem, o cas- possibilidade de divulgação, A Comédia do
telhano, resulta numa curiosa imparciali- Cerco de Dio e A Comédia da Postora Alfea
dade derivada dos processos panegíricos (1601). Mesmo sob a censura castelhana,
de compensação da apologia das línguas o autor logrou deixar o rasto da sua veia
hispânicas e da defesa do português, in- nacionalista ao atribuir aos inimigos dos
submissível e original. Particularizando Portugueses, mouros e índios, a língua
alguns vocábulos portugueses que exem- castelhana. Embora posterior ao domínio
plificam as ligações ao castelhano, mas filipino, o Auto do Fidalgo Aprendiz (1646),
ainda sensível ao tumulto político-cultu- de Francisco Manuel de Melo, continua
ral de que esta obra procura ser media- ainda a ser considerado a melhor peça do
dora, Leão esclarece que o empréstimo séc. xvii português. A adoção da língua
vocabular foi modesto tendo em conta castelhana por parte de alguns autores,
“tanta vizinhança, comércio e parentesco que caracterizara algumas produções de
com os Castelhanos” (LEãO, 1975, 73), vultos tão representativos como Gil Vi-
justificando que “se alguns vocábulos se cente, Sá de Miranda ou Camões, man-
agora acharem tomados dos Castelhanos, teve-se mesmo depois da Restauração, o
será depois que nos unimos com eles,  e que demonstra singularmente que o sen-
somos todos de um mesmo príncipe timento anticastelhanista não se ancorava
e de um governo” (Id., Ibid., 74). O último particularmente na Espanha e na evidên-
parágrafo da obra prepara um dos seus cia de uma raiz hispânica comum, reivin-
capítulos mais arriscados e panegíricos, dicada por muitos Portugueses, mas na
intitulado “Que não é falta da bondade entidade política constituída por Castela,
da língua portuguesa não ser comum a de resto contestada desde sempre por
tantas gentes da Europa como a castelha- outras identidades culturais particula-
na”. Ao mesmo tempo que superioriza o res englobadas no todo espanhol. Sur-
castelhano ao reconhecer a proliferação gia nesse momento, também, uma nova
do seu uso, justifica com factos políticos oportunidade de celebrar e reconhecer a
a sua vulgarização (Id., Ibid., 82). língua portuguesa através das sátiras res-
Neste contexto, e apesar destas mani- peitantes ao domínio filipino, igualmen-
festações que procuravam defender a ori- te acompanhadas de uma intensíssima
ginalidade e a potencialidade da língua parenética apologética da Restauração e

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332 AnticAstelhAnismo

da justificação de Portugal como reino


independente e tão importante quanto
Castela. Alguns exemplos: o poema “Ulis-
sipo” (1640) e Lusitânia Liberata ab Injusta
Castellanorum Domínio, Restituto Legitimo
Principi Sereníssimo Joanni IV (1645), de
António de Sousa de Macedo; Resorreiçam
de Portugal e Morte Fatal de Castela (1642?),
de Manuel Homem (Fernão Homem de
Figueiredo, pseud.); Uzurpação, Retenção,
Restauração de Portugual (1642), do herói
conjurado da Restauração, João Pinto
Ribeiro; Perfídia de Alemanha y de Castilha
en la Prision, Entrega, Accusacion y Proceso
del Infante de Portugal Don Duarte (1952),
de Francisco Velasco de Gouveia; e, não
menos importante, o Sermão dos Bons Anos
(1641), do P.e António Vieira. Integran- Rei Filipe IV de Espanha, III de Portugal
do-se no contexto das obras parenéticas, (1605-1665).
e retomando um velho mito milenarista
pré-monarquia dual, distinguem-se Espe- reelabora toda uma nova construção de
ranças de Portugal, Quinto Império do Mundo identidade nacional virada não para a
(1649) e História do Futuro (1649) de apologia dos feitos passados, mas, basean-
P.e António Vieira, duas obras representa- do-se neles, para as potencialidades do
tivas do ressurgimento do ser português, futuro. Destacando-se da restante pare-
ecuménico e universal. A Carta ao Bispo nética focada no contraste entre o passa-
do Japão, D. André Fernandes, escrita sete do (mau), representado pelos Filipes, e o
anos antes da morte de D. João IV, ante- presente (bom), figurado por D. João IV,
cipa a tentativa de reelaboração da histó- Vieira aposta numa radical perspetivação
ria de Portugal através das profecias de do passado que não se ancora tanto numa
Bandarra, que, segundo Vieira, previra conjuntura sociopolítica lógica, mas num
o começo de uma última e nova era im- maniqueísmo providencialista de propor-
perial na figura do Monarca restaurador. ções bíblicas. A figura e a psicologia de Fi-
Reconstruindo o passado e o presente, e lipe I desenham-se quase sempre do lado
antecipando o futuro, Vieira resume num oposto aos desígnios de Deus, contra-
silogismo o essencial messiânico que ani- riando um plano divino já profetizado e
mou o espírito português desde a parti- de que os Portugueses seriam pioneiros.
da de D. Sebastião para Alcácer Quibir: A História do Futuro, mais do que uma pre-
“O Bandarra é verdadeiro profeta; o Ban- dição utópica e iluminada, reinterpreta a
darra profetizou que El-Rei D. João 4.º decadência vivida por Portugal a partir da
há de obrar muitas coisas que ainda não perspetiva anticastelhanista, que, em vez
obrou, nem pode obrar senão ressusci- de se martirizar com a perda da sua for-
tando: logo El-Rei D. João o 4.º há de res- ça e glória, vê nessa usurpação identitária
suscitar” (VIEIRA, 2014, 63). A ressurrei- a justificação para o cumprimento das
ção de D. João IV, teoria que levou Vieira profecias messiânicas da edificação do
ao Tribunal do Santo Ofício, prepara e projeto divino do Quinto Império. Ainda

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AnticAstelhAnismo 333

assim, o sentimento anticastelhanista de externa portuguesa se fragilizava cada vez


Vieira é equilibrado entre a razão e o mais com a ofensiva da França, agora for-
saber escolástico, ao mesmo tempo que talecida pela sua união com a Coroa espa-
pende para um tom profético de quem nhola. Contudo, numa pequena amostra
está protegido por uma sapiente provi- de algumas obras setecentistas escritas
dência superior. Ao estabelecer uma série acerca do mito/movimento sebastianista,
de comparações entre a história do domí- podemos dar-nos conta da disparidade
nio filipino e marcos bíblicos ou figuras de opiniões acerca do benefício – Reco-
históricas (compara, e.g., a subjugação ao pilação das Coisas mais Notáveis para Afir-
domínio filipino com o cativeiro da Babi- mação dos Fundamentos em que Se Estribam
lónia), Vieira procura ver como violação os Sebastianistas na Vida do Sereníssimo Rei
dos desígnios de Deus a afronta que D. Fi- D. Sebastião; José Pereira Baião, Portugal
lipe II cometeu contra Portugal, contrá- Cuidadoso e Lastimado com a Vida, e Perda
ria à profecia de Jeremias, que “levantou do Senhor Rey Dom Sebastião, o Desejado, de
o mundo” por mão divina, construindo Saudosa Memória. Historia Chronologica de
nações e, metaforicamente, destruindo Suas Ações, e Sucessos desta Monarquia em
-as, ao assistir à sua ruína (Id., 2015, 114). Seu Tempo, Suas Jornadas a África, Batalha,
Politicamente, o séc. xviii europeu é Perda, Circunstancias, e Consequencias Nota-
marcado pela progressiva afirmação da veis della; Fr. Manuel dos Santos, História
França e da Inglaterra como duas das Sebástica, Contem a Vida do Augusto Príncipe
principais potências comerciais e políti- o Senhor D. Sebastião, Rey de Portugal, e os
cas europeias. Culturalmente, o sebastia- Sucessos Memoráveis do Reyno e Conquistas
nismo de Setecentos começará, desta for- no Seu Tempo, Dedicada a elRey N. Senhor
ma, a ser encarado e estudado enquanto D. João V (1735) –, do malefício – Tomás
fenómeno passadista de um aspeto da Pinto Brandão, Aos Declarados Encubertos
identidade nacional virado para o obscu- (1730) –, ou até da veracidade/legitimi-
rantismo mítico e para a contemplação, dade – Livro das Couzas mais Notavens Que
ideias que contradizem a energia anti- Tenho Lido acerca dos Fundamentos dos Se-
metafísica da razão e da força da dúvida bastianistas para Afirmarem Que He Vivo, e
crítica do Iluminismo. Por outro lado, é Hade Vir o Sereníssimo Sr Rey Dom Sebastião,
também nesta época que surgem com manuscrito anónimo, de ano impreciso –
maior incidência obras que manifestam desta crença mística. Apesar de o sebas-
admiração e respeito pela imagem de tianismo ter contribuído para redefinir
D. Sebastião, dando origem a uma legião e reconstruir a mentalidade portuguesa
de seguidores, a maioria dos intelectuais de Setecentos, o que mais importa reter
devotos que, mais tarde, formarão uma na variedade das suas conceções ao longo
tendência, quase religiosa, que congrega do século é o modo como os intelectuais
todos os propósitos e ideias do sebastia- iluministas espelharam a sua própria re-
nismo, os sebastianistas. Já no séc. xix, lação com este mito, termómetro aními-
mas ainda sob o primado racional ilumi- co dos diversos problemas que Portugal
nista, Agostinho de Macedo, numa obra enfrentava no início da referida centúria.
intitulada Os Sebastianistas (1810), denun- Além do sebastianismo, as relações di-
cia as perigosas ilusões das “seitas” sebas- plomáticas entre os reinos e o equilíbrio
tianistas difundidas pelo país, alienando geopolítico periclitante que durante todo
as mentalidades e os focos de atenção da o século submeteu a península Ibérica a
opinião pública à medida que a política forçadas decisões partidárias e a guerras

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334 AnticAstelhAnismo

aparentemente familiares pela hege- grande conflito europeu, possibilitando


monia europeia marcam a progressiva uma posição seguramente diplomática
europeização cultural de Portugal, mais durante toda a contenda até à sua deci-
do que propriamente um movimento li- são final, que excluiria a neutralidade: a
terário, uma obra ou uma personalidade. adesão ao bloco que formou, em 1701,
Foi através dos conflitos e das conjuntu- uma grande aliança e que defendia a po-
ras sociais, económicas e políticas que sição do arquiduque Carlos – a pressão
os maiores vultos do espírito iluminista de Inglaterra e da Holanda e a ação de
se destacaram, na sua leitura desses mes- John Methuen seriam determinantes na
mos acontecimentos e refletindo sobre opção por esta aliança – e a participação
o modo como afetavam a evolução da ao lado de França e Espanha, bloco que
cultura portuguesa. Torna-se difícil, e.g., defendia o que estava proposto no testa-
não estabelecer um paralelismo entre as mento de Carlos II, que atribuía a coroa
constantes transformações políticas que, ao neto de Luís  XIV, Felipe de Anjou.
desde D. Pedro II e D. José I, desequili- Neste contexto, distinguiram-se as pers-
braram a estabilidade política portuguesa petivas de diplomatas e figuras cimei-
e o aparecimento de uma cultura trans- ras da hierarquia política, como José da
fronteiriça que começava a dar destaque Cunha Brochado, diplomata em França,
ao francês e à influência das culturas dos que revela nas suas Cartas uma constante
países económica e politicamente hege- atenção à evolução da situação europeia
mónicos. A afirmação portuguesa de Se- perante a anunciada morte de Carlos II.
tecentos fez-se sentir mais através de um A importância que a sucessão de Espanha
gradual afastamento político de Espanha, teria para Portugal é evidente e Brochado
do que como um confronto direto com teme, e.g., que Luís XIV “entre por Caste-
esta, ambicionando a cultura e política la com um exército numeroso e, em me-
iluministas para lá da fronteira transalpi- nos de uma campanha, se faça senhor de
na. A “Hispânia”, ideia de Estado-nação toda a Monarquia, e por consequência,
de Vieira na História do Futuro, começa a invente algum pretexto para conquistar a
diluir-se paulatinamente, à medida que nossa” (BROCHADO, 1944, 5-6). Porém,
Portugal se apercebe do seu lugar estra- a posição de neutralidade mantém-se
tégico-político numa Europa que se re- sempre como pedra de toque das suas re-
definia por meio de disputas comerciais flexões: “Enquanto o novo Rei se não faz
e políticas. Assim, a península Ibérica espanhol e o governo de Castela não dá
divide-se em duas nações, antes forma- ciúmes a França, é necessário professar
das com um só conceito identitário. Na grande amizade com Inglaterra e Holan-
verdade, o conceito de portugalidade co- da, e ao mesmo tempo não dar à França a
meça a antagonizar-se cada vez mais com mínima desconfiança nem aos espanhóis
o de hispanidade, sendo Castela sinédo- o mais leve pretexto” (Id., Ibid., 113-114).
que de Espanha. Foi com esta atitude, Nas suas Memórias, o 1.º conde de Povo-
mantida de parte a parte, que se deu um lide, Tristão da Cunha de Ataíde, descreve
significativo conflito político de propor- o ambiente vivido entre os Portugueses de
ções europeias, nos primeiros anos do modo semelhante. As várias descrições do
séc.  xviii: a Guerra de Sucessão de Es- desenvolvimento do conflito são de extre-
panha. A participação portuguesa desta- ma importância, deixando claros os sen-
cou-se, na medida em que foi a primeira timentos de inimizade entre Portugueses
vez que Portugal esteve no centro de um e Castelhanos, bem mais relevantes, por

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AnticAstelhAnismo 335

vezes, que os próprios interesses em jogo rados responsáveis, quer pelo sucedido
no conflito. Veja-se, exemplarmente, a em Alcácer Quibir, quer por terem ali-
reação de soldados portugueses ao serem ciado D. Filipe II a apossar-se do trono
confrontados com a necessidade de não português, favorecendo as intenções que
pilhar as terras espanholas por onde iam este Monarca castelhano já tinha. Nas
passando e de respeitarem os soldados Memórias Secretíssimas, Pombal recorre ao
espanhóis que defendiam a mesma causa exemplo do vizinho espanhol sobretudo
do arquiduque Carlos: “E desgostosos os para caracterizar os efeitos da influência
soldados, muitos destacaram para Portu- inglesa que se seguiu a 1640: “Depois da
gal blasfemando da forma e política desta sua revolução ficou Portugal mais escravo
guerra em que tão pouco se aproveitaram da Inglaterra do que alguma vez o foi de
do muito que acharam, e este sentimen- Espanha” (POMBAL, 1984, 156).
to se ajuntava à ira da impiedade de ve- Começa a verificar-se um acentuado de-
rem que aos doentes das salvaguardas se clínio do uso do castelhano em Portugal,
lhes faltaram com os remédios, e que a em benefício do francês, a partir de finais
estes ímpios Castelhanos tinham deixado do séc. xvii e inícios do séc.  xviii, vati-
de tomar o que lhe acharam, tratando- cinando o futuro declínio político-cultu-
-os como bons amigos sendo os maiores ral da Espanha, começando também a
inimigos, como sempre foram e seriam” editar-se várias gramáticas e dicionários
(POVOLIDE, 1990, 140). Já D. Luís da franceses, bem como obras de referên-
Cunha tem uma visão mais marcada rela- cia que ensinavam a ler e a escrever essa
tivamente à posição que Portugal deveria língua, como Arte da Língua Franceza
assumir perante a Guerra da Sucessão: para facilmente e brevemente Aprender a Ler,
a aliança com a Inglaterra era a aposta Escrever e Falar essa Língua, a primeira
mais benéfica para os interesses econó- gramática francesa, da autoria de João
micos e políticos, uma vez que existia o da Costa, ainda de finais do séc. xvii, e
perigo de uma retaliação espanhola, mes- Grammatica Franceza ou Arte para Aprender
mo dentro da opção da neutralidade e da Ofrancez por meyo da Língua Portuguesa, de
aliança com a França. Numa carta para a Caetano de Lima. O aparecimento de
Secretaria de Estado, em 1735, defende livreiros franceses (Pedro Faure, Joseph
o reforço das fronteiras entre Portugal e Reycend, Jean Joseph Guibert, familiar-
Espanha, caso fosse necessário levantar mente ligados com a Bertrand) marcou
resistências contra uma possível invasão igualmente a divulgação da cultura fran-
ou assegurar o país contra uma eventual cesa em Portugal, vindo a manifestar-se,
guerra ou um conflito. Uma das ideias e.g., na influência do teatro francês, que
mais importantes acerca do pensamen- rapidamente eclipsou o antigo impacto
to político deste diplomata é a noção de do teatro espanhol em Portugal; Molière,
fronteira, singularmente moderna pela Racine e Voltaire começaram a publicar-
conceção de pertença a um espaço euro- -se com regularidade, ainda que o teatro
peu. O marquês de Pombal desenvolveu espanhol tivesse os seus defensores, como
também uma leitura muito particular da D. Francisco de Portugal e Castro que,
situação de Portugal face ao contexto eu- em 1739, publicou um Discurso Apologéti-
ropeu. No que respeita ao reino vizinho, co em defesa do Theatro Hespanhol. Porém,
sobretudo face ao período de subjugação o aspeto cultural que melhor caracteriza
filipina, a sua perspetiva cruza-se com a o cosmopolitismo português oitocentis-
sua visão deturpada dos Jesuítas, conside- ta é a valorização renovada das línguas

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nacionais. Uma vez que o latim começa- dade entre os ideais iluministas e a tor-
va a ficar restringido à missa e à Bíblia, o rente vocabular pré-romântica, Bocage
português e as outras línguas vivas, com sempre manifestou o seu patriotismo
destaque para o francês, começam a ser anticastelhanista, tendo como pedra de
alvo de divulgação e estudos, com a publi- toque o marco histórico restauracionis-
cação de gramáticas e dicionários. José de ta: “Cesarões, Viriatos, Apimanos,/Vós
Macedo, no Antídoto da Língua Portuguesa, que, brandindo vingadora espada,/Ten-
não se coíbe de afirmar que o português tastes sacudir da Pátria amada/O vil, o
é superior ao castelhano. Luís António férreo jugo dos Romanos./Surgi, vede-a
Verney foi um dos principais responsá- no sangue de tiranos/Inda piores outra
veis pela revolução das conceções filosó- vez banhada,/E a nossa liberdade edifica-
fico-pedagógicas da língua e da literatura da/No estrago dos intrusos Castelhanos”
portuguesas. Em O Verdadeiro Método de Es- (BOCAGE, 2008, 214).
tudar, a apologia à língua nacional pren- A passagem do séc. xviii para o
de-se com a sua intenção de retratar uma séc.  xix dá-se por via da preparação de
série de defeitos que não deveriam coin- novos conflitos entre os dois reinos ibé-
cidir com a superioridade da língua e ricos, no contexto mais vasto da rápida
literatura portuguesas, até mesmo relati- transformação política europeia. Estando
vamente à castelhana: “dos espanhóis [os Portugal desde há muito em aliança com
defeitos] o aprenderam os portugueses; a Inglaterra e encontrando-se a Espanha
e comummente se persuadem que quem na órbita francesa, as circunstâncias difi-
subtiliza melhor e diz coisas menos vero- cultaram sempre um entendimento dura-
símeis é melhor poeta” (VERNEY, 1991, douro. Em Planos Espanhóis para a Invasão
144). Por contraponto com a retórica e de Portugal, 1798-1801, António Ventura
a poesia castelhanas, Verney valoriza e analisou cuidadosamente os preparativos
incentiva o estudo e o cuidado no trato de Espanha para a invasão de Portugal,
com a língua portuguesa, na medida em em 1801, na sequência da participação
que o conhecimento da língua nacional conjunta dos dois reinos no Rossilhão,
permitiria potenciar a sua cultura e a sua contra a França de Napoleão Bonaparte,
literatura. Daí que afirme que grande e da aparente traição da Espanha, que
parte dos erros se prenda com a má mi- acordou a paz e posterior aliança com
mese, ideia que pode conjugar-se com a Bonaparte, deixando Portugal à mercê
de Filinto Elísio, que, na “Carta ao amigo das exigências francesas. Gabriel Maga-
Brito”, desenvolve uma defesa da língua lhães, em Garrett e Rivas..., defende que
portuguesa, centrando as suas atenções os sucessos do iníco do séc. xix contri-
na subjugação da língua portuguesa à buíram para alterar o modo como Portu-
francesa, chegando a considerar que foi gal e Espanha passaram a relacionar-se,
Filipe II o responsável por abrir a primei- aproximando-se. Se nos parece defen-
ra das “duas largas portas/Por onde a sável esta leitura, comprovada, e.g., no
corrupção entrou lavrando/No corpo da modo como os autores portugueses pro-
linguagem Portuguesa,/E lhe estragou a curaram acompanhar os desenvolvimen-
compleição sadia” (ELÍSIO, 1998, 59-60). tos políticos e ideológicos em Espanha
Paralelamente, um dos escritores por- (e vice-versa), assim como no pendular
tugueses com mais afinidades relativa- aparecimento de discursos tendentes à
mente a França é, naturalmente, Bocage. união ibérica, também é verdade que um
Seguindo a sua idiossincrática bipolari- sentido muito diferente percorre todo o

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AnticAstelhAnismo 337

espanhola de Cádis –, também ecoam vo-


zes de inimizade. Nos Memoriais a D. João
VI, e.g., João Bernardo da Rocha Lourei-
ro, um dos mais destacados liberais por-
tugueses emigrados em Inglaterra, avisa o
Rei da possibilidade de uma invasão espa-
nhola, só retardada devido às condições
difíceis em que o reino vizinho também
se encontrava.
Garrett, no seu texto de grande visão
“Portugal na balança da Europa”, mostra
como as potências europeias não soube-
ram, nas primeiras décadas do séc. xix,
respeitar devidamente Portugal e assume
a forte possibilidade de se recorrer a uma
união ibérica, caso a situação nacional
não se transformasse. Garrett começa
por mostrar como o reconhecimento de
D. Miguel por parte do Rei espanhol, Fer-
José Agostinho de Macedo (1761-1831). nando VII, vem dar sequência à velha am-
bição castelhana de “estender os braços e
apertar em amplexo de morte aquele peque-
século. Logo em 1801, Joaquim Bingre, a no reino. […] Insistiu-se nele depois de
propósito dos ataques espanhóis naquela liberto Portugal, durante toda a duração
que ficaria conhecida como Guerra das da dinastia austríaca. […] Desde então
Laranjas, acentua a dimensão histórica da até hoje a fação castelhana em Portugal
adversidade e da necessidade de os Por- gradualmente tem despido a máscara, e
tugueses resistirem novamente: “Vós, que abertamente declara, ou pelo menos, já
na posse estais de vencedores,/Dos sober- não oculta seus projetos” (GARRETT,
bos leões domando a sanha,/Sereis da 1984, 195-196). Apesar de defender que
insigne Pátria os defensores./É ela quem “Portugal tem um único fim e objeto
vos quer sobre a campanha:/Eia, arran- [que] é o de ser livre” (Id., Ibid., 231), Gar-
cai as fúlgidas espadas,/Que novos louros rett conclui, ainda que pouco conforma-
vos vem dar a Espanha” (BINGRE, 2002, do, que, perante a situação de decadência
52). Se durante o período de combate ao e subjugação internacional de Portugal,
invasor francês e na subsequente disputa em 1829, restavam apenas duas soluções:
entre liberalismo e absolutismo se verifica “ou continuar a ser potência indepen-
uma proximidade entre os políticos e os dente mas independente deveras, – ou
intelectuais das duas fações – afirmado, voltar a ser província de Espanha” (Id.,
e.g., nas obras de José Acúrcio das Neves, Ibid., 195-196). É também significativo o
um acérrimo defensor do patriotismo contexto da peça Frei Luís de Sousa, pelo
ibérico contra o inimigo comum (Escri- constante peso do sebastianismo – ainda
tos Patrióticos: Entretenimentos Cosmológicos, que não numa perspetiva positiva – e pelo
Geográficos e Históricos), e nas Memórias de modo como a personagem que inspirou
José Liberato de Carvalho, que destaca o o título, Luís de Sousa Coutinho, se insur-
modo como Portugal seguiu a revolução giu contra as exigências opressoras dos

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Portugueses ao serviço do poder castelha- os afetos, que amamos ainda mais por ser
no, sendo por esse ato considerado um desgraçada, porque o dedo misterioso da
Português digno desse nome, até mesmo providência lhe arrancou da fronte a co-
por Telmo Pais, representante do Portu- roa que fez tremer o mundo” (Id., Ibid.,
gal antigo que até ali não o colocara no 58), Lopes de Mendonça introduzirá,
mesmo patamar de D. João de Portugal. contudo, nestes textos, um dos temas com
Alexandre Herculano também dedicou maior eco nas gerações subsequentes, dos
especial atenção ao período de domínio dois lados da fronteira: a possibilidade de
da terceira dinastia, perscrutando no tex- uma federação ibérica: “[c]ontanto que
to “Cogitações soltas de um homem obs- exista em cada estado independência ad-
curo” os motivos que teriam permitido a ministrativa […], que possuamos os nos-
surpreendente sobrevivência de Portugal sos foros e garantias, que a nossa língua,
ao longo dos séculos, independentemen- os nossos costumes e tradições, existam
te do impacto que nela teve a influência vivos, e indestrutíveis, pensamos que a
europeia – sobretudo a dos interesses nossa nacionalidade se não perdeu” (Id.,
ingleses –, defendendo que os Portugue- Ibid., 81-82).
ses sempre possuíram um espírito de re- Permitindo eloquentes afirmações de
sistência que os animou mesmo quando identidade nacional e de oposição ao
subjugados. No artigo “Pouca luz em mui- ideal de união ibérica, esta questão foi
tas trevas”, procurará também analisar o debatida um pouco por todos os grandes
processo vicioso que conduziu Filipe II ao vultos da cultura portuguesa do séc. xix,
trono português. Mas mais relevante ain- desde que D. Pedro chegou a ser visto pe-
da será a polémica que alimentará com los liberais de ambos os lados da fronteira
Lopes de Mendonça, em 1853, a respei- como um bom candidato ao trono ibéri-
to do desenvolvimento dos caminhos de co, passando pelas acesas discussões das
ferro que uniriam Portugal e Espanha. décs. de 60 a 80, pelo reacender aquando
Herculano começa por considerar que do Ultimato de 1890 e pelo prolonga-
“os caminhos de ferro tendem a destruir mento, ao começo do séc. xx, concluin-
as divisões entre os povos, a uniformizar do com a ascensão dos governos fascistas.
as ideias e os costumes e a igualar as di- O opúsculo Um Voto contra a União Ibérica,
versas civilizações” (MÓNICA, 1996, 25), de Augusto Sousa Lobo, é representativo
resumindo todos os seus receios desde o dessa voz patriótica que recusa qualquer
primeiro artigo desta série, nos quais de- possibilidade de união ibérica, a par de
senvolveria também a defesa da sua tese Sim: Opúsculo Ibérico (1865), de Luciano
municipalista. Cordeiro, dos Quadros da Independência
Lopes de Mendonça, jovem ciente da Nacional (1873), de Andrade e Almeida,
necessidade de Portugal percorrer em de Aspirações de Espanha à Posse de Portugal
igualdade de circunstâncias com as ou- (1877), de Leite Machado, e de um vasto
tras nações, nomeadamente com Espa- leque de sermões relativos à celebração
nha, o rumo da civilização moderna, de- intensa do 1.º de Dezembro, que inspi-
fenderá a ideia oposta, mostrando como raria mesmo um movimento patriótico
não depende do progresso a manutenção integrado, entre outros, por Alexandre
ou não da nacionalidade. Concentran- Herculano.
do a sua ideia de nacionalidade “no seio A abrir a déc. de 70, merece especial
desta terra, que amamos porque é nossa, destaque a leitura que José de Andrade
porque nos ligam a ela as recordações e Corvo faz da situação de Portugal no

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contexto europeu e mundial. Eviden- cracia e federalismo” (QUENTAL, 1982,


ciando um profundo conhecimento dos 228-229). Numa carta de 1957 a um con-
acontecimentos e das dinâmicas políti- terrâneo, Augusto Bicudo Correia, An-
cas, este autor dedica parte significativa tero defende a ideia de pátria, notando
da sua análise à questão ibérica e comen- ainda que “fora da pátria, pelo contrário,
ta largamente o problema representado nada nos interessa” (Id., 1989, I, 66); em
pela inexistência efetiva de sucessão mo- 1868, em carta a Alberto Sampaio, salien-
nárquica em Espanha na obra Perigo: Por- ta que “Portugal perante a revolução de
tugal na Europa e no Mundo – questão em Espanha” vai no sentido das ideias dos es-
que o Rei português D. Fernando esteve panhóis fundadores do jornal Ibéria, “que
diretamente implicado ao ser considera- são também as minhas, iberismo com o
do um dos mais adequados candidatos –, federalismo de toda a península” (Id.,
assim como todos os desenvolvimentos Ibid., 107); entre outra correspondência
políticos da Revolução de 1868 e do sub- em que defende as suas posições ibéri-
sequente germinar do Partido Republica- cas (em 1880, com Alberto Sampaio; em
no. Declarando-se contra a união ibérica, 1890, com Alberto Castro Osório), na sua
concluirá que “a ideia de unir Portugal e carta de pendor autobiográfico destinada
Espanha […] todos os partidos no reino a Wilhelm Storck integra os projetos ibe-
vizinho a têm e manifestam” e que “não ristas entre os muitos trabalhos em que
podemos […] deixar de ter em conta “consumi muita atividade e algum talen-
este facto de transcendente importância, to, merecedor de melhor emprego” (Id.,
quando se trata não só da nossa política 1989, II, 834).
externa, se não também da nossa política Oliveira Martins tem uma evolução
interna, da nossa administração, da nossa igualmente paradoxal. Na sua versão da
vida social” (CORVO, 2005, 118-119). discussão em torno das “Causas da deca-
Antero de Quental refletiu largamente dência dos povos peninsulares”, inserida
sobre esta questão ibérica, evidenciando na obra significativamente intitulada His-
em muitas das suas obras uma clara ten- tória da Civilização Ibérica, Oliveira Mar-
dência iberista, ainda que se notem, por tins procede a uma semelhante noção de
vezes, alguns desvios nessa sua conceção conjunto de toda a história dos dois rei-
e, nos últimos anos, um menor grau de nos peninsulares. Afirma que a noção da
idealismo na crença de que esta seria a unidade peninsular é, antes de mais, uma
via para o futuro peninsular. Em 1868, no perceção europeia, visto que “a Europa
texto “Portugal perante a Revolução de viu sempre em Castela e Portugal um só
Espanha”, Antero mostra-se entusiasma- corpo animado por um mesmo espírito”,
do com o peso histórico desse momento o que explica por que motivo a formali-
de libertação do povo vizinho, procura dade da união, em 1580, não significou
incentivá-la e introduz o conceito de fe- qualquer melhoria e antecipa o paralelis-
deração enquanto “conciliação para to- mo dos destinos das duas nações a par-
dos os interesses, garantia para todas as tir da separação, em 1640 (MARTINS,
liberdades […], templo para todos os 1981, 176). Na sua História de Portugal,
cultos”, salientando que a única forma de procura demonstrar que o sebastianis-
existir uma reforma é seguir o exemplo mo deriva, antes de mais, de uma reação
revolucionário espanhol, pelo que “para popular ao domínio opressor de Filipe II
portugueses como para espanhóis não há e significa uma fuga dos Portugueses à
senão um mesmo ideal político: demo- história em nome de um passado mítico

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e irrecuperável. Em 1890, perante a crise que vê na história da Península? Guerras,


vivida por Portugal, Oliveira Martins de- questões de territórios, ódios de famílias
senvolve uma esclarecedora leitura históri- reais […], sofrimento do mais pequeno,
ca do fenómeno do iberismo, mostrando sangue perdido do mais pequeno, e eu
como “[n]esta crise, […] o pensamento lembro […] que o mais pequeno era Por-
de muitos portugueses tem-se voltado tugal […]. E o que vê na literatura por-
para uma possibilidade de uma união com tuguesa de todos os tempos […]? Ódio à
a vizinha Espanha, e no de todos os espa- Espanha, glorificação dos nossos triunfos,
nhóis está radicado o sentimento da união amesquinhamento do carácter espanhol”
política da península ibérica” (Id., 1924, (Id., 1980, 245). A par do conto “A catás-
203). Numa sequência de outros artigos trofe”, é conhecido o episódio do hotel
publicados entre janeiro e julho de 1890, Central, em Os Maias, no qual se faz re-
o historiador defenderia um tipo de alian- ferência à possibilidade de uma invasão
ça peninsular específico, no qual as duas espanhola, às consequências que essa
nações manteriam a sua independência invasão certamente teria e às diferentes
política, mas passariam a funcionar como atitudes ideológicas que provocaria – des-
um bloco face às afrontas europeias: “Só a de a atitude cobarde de Dâmaso Salcede,
aliança das duas monarquias peninsulares disposto a fugir para Paris, à de Ega, dese-
é estável, natural, fecunda e duradoura” joso de uma invasão que obrigasse a uma
(Id., Ibid., 220). Os últimos projetos de transformação moral dos Portugueses pe-
Oliveira Martins mostrariam, contudo, rante a necessidade de lutar pela nacio-
uma evolução de teor nacionalista, já que nalidade e de receber uma afronta, e à
se baseiam na exaltação de personalida- atitude patriótica e liricamente bélica de
des tão próximas do imaginário nacional José de Alencar.
de resistência ao vizinho castelhano como Exemplo das múltiplas posturas re-
D.  João I e seus descendentes, Nun’Álva- ferente à aproximação política e social
res Pereira, D. João II ou Camões. com Espanha está a demarcação do or-
Eça de Queirós comenta em carta ao gão de comemoração restauracionista,
amigo que “têm sido os Filhos de D. João I, a Comissão Central 1.º de Dezembro,
e agora o Nun’Álvares que me têm feito fundada em 1861 por um grupo de po-
patriota. Tu reconstróis a Pátria, e res- líticos e intelectuais ligados ao regime
suscitas, com esses livros, o sentimento constitucional e aos Partidos Histórico e
esquecido da Pátria” (QUEIRÓS, 1983, Regenerador. Os seus primeiros estatutos
315). A presença de Espanha, das preo- foram aprovados por D. Luís, em 1869,
cupações relativas à questão da união e teve como presidentes, entre outros,
ibérica e de um sentimento de adversida- Luís de Carvalho Daun e Lorena, Fontes
de ao vizinho espanhol conhecerão ecos Pereira de Melo e Hintze Ribeiro. Esta
muito interessantes na obra de Eça de Comissão tinha como principais objeti-
Queirós, com sentidos muito menos ibe- vos o culto da memória da Restauração
ristas do que os dos seus companheiros de 1640 e de todas as suas figuras, bem
de geração. Num texto intitulado “A Es- como a construção de um monumento
panha” (1865), inserido no jornal Distrito em sua memória, e assegurar a unidade
de Évora, refuta a proximidade excessiva nacional e do Estado. Existindo, a partir
entre os dois países, defendida por Casal de 1927, sob o nome de Sociedade Histó-
Ribeiro. Assinala, por contraste, a oposi- rica da Independência de Portugal, o seu
ção constante: “O senhor ministro […] o êxito manteve-se praticamente inalterado

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e o seu crescimento foi motivado por


momentos históricos que inibiram a pro-
paganda iberista, como o centenário da
morte de Camões, o investimento nas co-
lónias portuguesas ultramarinas, e a me-
mória da Guerra Hispano-Americana e
da afronta resultante do Ultimato inglês,
combatendo os catalisadores da ameaça
ibérica. Aliás, oito anos depois da humi-
lhação de Portugal por via do Ultimato,
Espanha seria igualmente ridiculariza-
da, no seu caso por uma potência colo-
nial e industrial emergente, os Estados
Unidos da América. A transição entre os
sécs.  xix e xx seria, assim, marcada por
um ambiente de fracasso e de desconfian-
ça relativamente aos destinos individuais
e comuns das duas nações peninsulares.
Neste âmbito, é relevante ter em conta
a convivência, nas primeiras décadas do
António Sardinha (1887-1925).
séc. xx, de uma tendência para a apolo-
gia da especificidade cultural portuguesa,
sobretudo tendo em conta o conceito de As primeiras décadas do século propicia-
saudade, tão relevante para o projeto de ram, também, aproximações inequívocas
Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coim- entre intelectuais dos dois lados da fron-
bra e outros representantes da revista teira. Miguel de Unamuno manteve um
A Águia e da renascença portuguesa, e da longo contacto com Manuel Laranjeira
recuperação de um ideal de iberismo, até e Teixeira de Pascoaes, tendo produzido
mesmo de união e articulação entre as um estudo sobre os Portugueses, que con-
nações latinas, presente, e.g., na reflexão siderou um povo suicida, e tendo escrito
de António Sardinha, precursor do Inte- largamente sobre Portugal e o facto de
gralismo Lusitano e anti-iberista convicto, gostar de visitar, sempre que podia, o país
que, depois da sua vivência em Espanha, vizinho. Fernando Pessoa não deixou de
equilibrou a sua posição com a defesa de manter contactos com poetas contempo-
um ideal peninsularista ou hispanista. râneos espanhóis, representantes do mo-
O sebastianismo e o ideal de Quinto dernismo, junto de quem tentou divulgar
Império também não se apagaram do Orpheu, conforme António Sáez Delgado
pensamento intelectual português, como documentou no estudo Órficos y Ultraístas
ilustra uma das múltiplas vias pelas quais (2000). Almada Negreiros viveu muito
Fernando Pessoa se exprimiu, e.g., na tempo em Espanha e mesmo Mário de
Mensagem, que recuperava de Os Lusíadas Sá-Carneiro encontrou, guiado por Ribe-
não só o canto da plenitude portuguesa ra i Rovira, a Catedral da Sagrada Família,
identificada com a capacidade de vencer ainda em construção, que dava corpo ao
os obstáculos mais adversos, mas também seu ideal de arte paúlica. António Ferro
a crença num qualquer Encoberto que vi- manteve fortes ligações literárias e ideo-
ria retirar Portugal da sua amarga tristeza. lógicas com Gómez de la Serna. Ortega

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342 AnticAstelhAnismo

y Gasset e Julio Palacios passaram algum colóquios promovidos por estudantes


tempo exilados em Portugal. universitários, pelo Colégio Militar e pela
De qualquer forma, a desconfiança Academia Militar, em que jovens cadetes
mútua e o desconhecimento a respei- espanhóis e portugueses conviviam sob
to da cultura e das referências literárias a memória dos feitos da expansão ibéri-
da parte de um e do outro país foram-se ca. Apesar de as conclusões sobre o tema
mantendo. Hipólito de la Torre Gómez, “Ideia general de los descubrimientos es-
e.g., cristaliza a relação mantida entre pañoles” reivindicarem para a Espanha a
Portugal e Espanha, entre 1919 e 1930, glória dos Descobrimentos, as conclusões
entre o “perigo espanhol” e a “amizade dos jovens cadetes matizaram essa pre-
peninsular”, um bom balizar do que real- ponderância, imortalizando com estas
mente foi sucedendo. A evolução social palavras o permanente equilíbrio dúbio
e política dos acontecimentos, ao longo entre os dois países: “Espanhóis e Portu-
do séc. xx, foi ainda de alguma conflituo- gueses deverão sempre estar decididos a
sidade e tensão. António Pedro Vicente, defender de todos os perigos os valores
e.g., comenta que “no decorrer do século Supremos da civilização cristã que, de-
xx, a história peninsular foi marcada pela pois de terem ajudado a consolidar, es-
coexistência, durante várias décadas, de palharam pelas sete partidas do mundo”
regimes políticos, os quais, não obstante (Comemorações..., 1963, 185).
as suas afinidades, mantiveram e até cul- O séc. xx ficaria marcado também por
tivaram esse afastamento” (VICENTE, obras de profundo sentido peninsular,
2003, 11). Para tal, contribuíram também como os Poemas Ibéricos de Miguel Torga,
os planos de Franco, hoje conhecidos, a Jangada de Pedra de Saramago ou Somos
para a possível invasão de Portugal, que Todos Hispanos, de Natália Correia. Avan-
motivaram da parte de Salazar estudos ços e recuos que, contudo, não impedem
sobre a forma de defender devidamente que em finais do séc. xx e no séc.  xxi
Lisboa. O percurso traçado por ambos os pairem alguns motivos, quase tópicos
Estados até ao eclodir dos respetivos re- entranhados num discurso comum, de
gimes políticos ditatoriais foi igualmente referência às velhas adversidades. São vá-
semelhante. Marcelo Caetano, dirigindo- rios os contextos, de que destacamos: o
se aos jovens da Mocidade Portuguesa futebol, desde os jogos mantidos entre as
durante as celebrações do 1.º de Dezem- seleções dos dois lados da fronteira a figu-
bro, frisava o cariz nacionalista daquele ras portuguesas que brilham em Espanha
acontecimento: “Portugal e Espanha, e que tendemos a considerar estarem a
enquanto governados separadamente, mostrar ao vizinho que em Portugal tam-
praticaram grandes feitos em proveito da bém existe talento, passando pela adversi-
Humanidade; mas depois de unidos sob o dade de muitos Portugueses, sentida nos
mesmo rei nada mais fizeram senão sofrer blogues, nos jornais desportivos e mesmo
a própria ruína” (POMBO, 1957, 137). em crónicas de todos os jornais diários,
Apesar das tentativas de aproximação, aquando dos projetos para a organização
as histórias portuguesa e espanhola man- conjunta do Mundial de Futebol de 2018;
tiveram bem demarcados os respetivos as questões relativas ao TGV, encarado
contributos no quadro de jogos mundial, por muitos comentadores políticos como
como ficou patente nas Comemorações mais um meio de fazer de Portugal um ar-
do V Centenário da Morte do Infante mazém do vizinho; a presença da ETA em
D. Henrique, em 1960, preenchidas com Portugal, numa evidência de que, para os

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AnticAstelhAnismo 343

grupos radicais ibéricos, Portugal ainda é tinente e mesmo entre os vários blocos
encarado como território que foi capaz que, numa era em que a globalização e a
de concretizar o que para eles nunca foi concorrência desenfreada espelham uma
possível; as ligações, ao fim de tantos sé- acérrima luta pela afirmação internacio-
culos, pairando ainda na boca dos de um nal, se foram formando para colmatar a
lado e de outro da fronteira, entre Portu- impossibilidade de um Estado permanen-
gal e a Galiza; determinados problemas li- temente isolado sobreviver na avalanche
gados aos recursos naturais e energéticos, política contemporânea.
nomeadamente à água e à eletricidade,
surgindo sempre Espanha como prejudi- Bibliog.: ALBUQUERQUE, Martim de, A Cons-
cial aos nossos interesses económicos; ou, ciência Nacional em Portugal, Lisboa, s.n., 1974;
e.g., o recurso ao vizinho espanhol como Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz
de Coimbra, ed. lit. António Cruz, Porto, Bi-
estratégia de combate político, por parte
blioteca Pública Municipal, 1968; BARROS,
da população de Valença, que colocou João de, Gramática da Língua Portuguesa, Lis-
bandeiras espanholas nas janelas pro- boa, Faculdade de Letras da Universidade de
testando contra o encerramento de um Lisboa, 1971; BESSA, António Marques, “As
Serviço de Atendimento Permanente, em dormentes matrizes”, in BESSA, António Mar-
abril de 2010. ques et al., A Identidade Portuguesa. Cumprir Por-
Também são de destacar obras peculia- tugal, Lisboa, Instituto Dom João de Castro,
1988, pp. 53-64; BINGRE, Joaquim, Obras.
res de um imaginário paródico relativa-
Epístolas/Odes, vol. 3, Porto, Lello, 2002; BO-
mente a Espanha, como Como Tourear os CAGE, Manuel Barbosa du, Obra Completa.
Espanhóis e Sair em Ombros, do humorista Sonetos, vol. 1, Porto, Caixotim, 2008; BRO-
Marco Horácio. Neste sentido, pode tal- CHADO, José da Cunha, Cartas, Lisboa, Sá da
vez pensar-se que a questão das rivali- Costa, 1944; CIDADE, Hernâni, Lições de Cul-
dades peninsulares terá sido remetida tura e Literatura Portuguesas, Coimbra, Coimbra
também para o espaço humorístico das Editora, 1959; Comemorações do V Centenário da
Morte do Infante Dom Henrique, vol. 4, Lisboa,
anedotas com permanência na cultura
Comissão Executiva das Comemorações do
portuguesa, perdendo alguma da sua
Quinto Centenário da Morte do Infante D.
concretude ideológica. Ao fim de séculos Henrique, 1963; CORVO, João de Andrade,
de ligação, Portugal e Espanha conti- Perigo. Portugal na Europa e no Mundo, Porto,
nuam gémeos desavindos, ou melhor, Fronteira do Caos, 2005; Crónica de Portugal de
mantêm o complexo de Édipo peninsular 1419, ed. lit. Adelino Almeida Calado, Aveiro,
do filho que fugiu à alçada parental e é Universidade de Aveiro/Fundação João Jacin-
olhado com inveja por alguns irmãos pe- to de Magalhães, 1998; ELÍSIO, Filinto, Obras
Completas, Braga, Associação Portuguesa de
ninsulares obrigados a permanecer por
Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental,
casa eternamente. Mesmo que a tendên- 1998; FERREIRA, António, Poemas Lusitanos,
cia atual pareça de diálogo mais amplo Lisboa, FCG, 2000; FRANCO, José Eduardo,
e aberto, verifica-se que, em muitas das O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal
suas manifestações mais violentamente e a Sua Função Política, Lisboa, Roma Editora/
expressas, as relações entre Portugal e Fundação Maria Manuela e Vasco de Albu-
Espanha foram caminhando lentamente querque d’Orey, 2000; GARRETT, Almeida,
Obras Completas, vol. 14, Lisboa, Discolivro,
para um maior entendimento mútuo ou,
1984; GODINHO,Vitorino Magalhães, Portu-
pelo menos, para a diluição dos aspetos gal. A Emergência de Uma Nação, Lisboa, Colibri,
mais conflituosos, tendo em conta o novo 2004; GÓMEZ, Hipólito de la Torre, Do “Perigo
âmbito dos contactos mantidos entre Es- Espanhol” à Amizade Peninsular. Portugal-Espanha
tados fronteiros, Estados do mesmo con- (1919-1930), Lisboa, Estampa, 1998; LEÃO,

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344 AnticAstelhAnismo

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boa, Livraria Clássica, 1975; LOPES, Fernão, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura
Crónica de D. João I, 2 vols., Porto, Civilização Portuguesa e Brasileira,  vol. 1, Lisboa, Âncora,
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AnticAsticismo 345

Anticasticismo por Bluteau, ao lado da primeira aceção,


em relação a raça animal ou linhagem e
acrescentada por Moraes em relação a pa-
lavras, sendo “palavras castiças” as que são
“puras da língua, sem nota ou mescla de
estrangeiras”.
É com base nesta segunda dimensão

O anticasticismo é uma corrente que


se instaura, nos seus princípios, con-
tra o casticismo. O termo “casticismo”,
semântica de “castiço”, como algo que
espontaneamente se manifesta no indiví-
duo, advindo-lhe dos instintos da espécie
derivado de “castiço”, designa o conjun- a que pertence, que se constrói o nome
to de atitudes e comportamentos daque- “casticismo” e, contra os seus princípios,
le que é castiço, ou seja, daquele que é o anticasticismo.
puro, próximo da origem, primordial e, O termo “casticismo” não se encontra
no âmbito das comunidades humanas, abonado nos dicionários do séc. xvii,
que tem um carácter nacional. No campo nem em Domingos Vieira; no séc. xx,
linguístico, e num sentido metonímico, surge abonado na 10.ª edição do Grande
designa a pureza da língua e, concreta- Dicionário de Língua Portuguesa, de Mo-
mente, um vocábulo vernáculo. O termo rais. O nome “casticismo”, significando
“castiço” deriva do nome “casta” através uma corrente que pugna por comporta-
do sufixo -iço que impõe ao adjetivo com mentos linguísticos, culturais e artísticos
ele formado a significação de “propenso que inscrevam no seu seio traços que
a”. Esta génese morfológica do adjetivo sejam puros e primordiais, no sentido
“castiço” permite compreender o signifi- de reveladores da genuinidade de uma
cado primeiro de “castiço” – “reprodutor, nacionalidade, teve maior utilização em
fecundador” –, colhido em textos do por- Espanha do que em Portugal. Em Espa-
tuguês (VICENTE, 1979, 581), a partir do nha, emergindo como corolário da gera-
significado original do nome “casta”, cuja ção de 1898, em que sói integrar-se Azo-
proveniência etimológica é incerta (CO- rín, Unamuno, Pio Baroja e Valle-Inclán,
ROMINAS e PASCUAL, 1991), mas que entre outros, o casticismo resulta de uma
significava “geração” e “espécie animal busca da Espanha real, vivente em condi-
ou vegetal”, sendo tardia a significação ções miseráveis, por oposição à Espanha
de “pureza” aliada a estes semantismos. falsa, ainda que oficial. A Espanha real é
Um “cavalo castiço” era, pois, um cavalo valorizada por esta geração nos seus tra-
“propenso à casta”, ou seja, à geração; um ços característicos: os lugarejos isolados e
cavalo utilizado para a reprodução. Pos- pobres, os indivíduos falando uma língua
teriormente, o nome “casta” integra, na vernaculamente marcada, com hábitos
sua carga semântica, o traço de “pureza”, quotidianos secularmente enraizados,
através do uso que os Portugueses fize- impermeáveis à homogeneização im-
ram deste vocábulo, referenciando com posta por uma europeização crescente.
ele as classes sociais hereditárias da Índia Como tal, a geração de 1898 carateriza-se
que não admitiam a miscigenação. Em pelo “costumbrismo”, ou seja, pela descri-
consequência deste traço de “pureza” do ção dos costumes que são considerados
nome “casta”, passa o adjetivo “castiço” a genuinamente espanhóis. Os pensadores
designar a qualidade de ser “puro”, “pe- desta geração assumem-se como críti-
culiar”, “próximo da origem”, já anotada cos de uma Espanha falsamente forjada

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346 AnticAsticismo

como homogeneamente avançada nos Bibliog.: BARBOSA, Duarte, O Livro de Duar-


moldes do progresso industrial, cultural te Barbosa, ed. crítica e introd. Maria Augusta
e social europeu, localizando-se ideolo- da Veiga e Sousa, Lisboa, Instituto de Inves-
tigação Científica Tropical, 1996; BLUTEAU,
gicamente à esquerda e pugnando pela
Rafael, Vocabulario Portuguez e Latino, 8 vols. e
pureza que só pode ser mantida através
2 sups., Coimbra, Collegio das Artes da Com-
da negação da miscigenação cultural com panhia de Jesu, 1712-28; CAMPOS, Ismael
outras nações. O temor perante a perda Saz, España contra España. Los Nacionalismos Fran-
da própria identidade, que é já real – pois quistas, Madrid, Marcial Pons Historia, 2003;
uma identidade forte não se ocupa com CARDOSO, Jeronimo, Dictionarium Latinolusita-
a sua explicitação –, revela-se na procu- nicum & vice versa Lusitanicolatinum cum Adagio-
ra da espanholidade, através da rejeição rum Fere Omnium Iuxta Seriem Alphabeticam Pe-
rutili Expositione, Conimbricae, Ioan Barrericae,
daquilo que não lhe é intrínseco. Como
1569-70; COROMINAS, Joan, e PASCUAL,
tal, esta geração rejeita os princípios do Duarte, Diccionario Crítico Etimológico Castella-
realismo e regressa aos do romantismo, no e Hispánico, 3.ª reimpr., Madrid, Editorial
embora assuma contornos naturalistas. Gredos, 1991; GASSET, José Ortega y, Obras
O anticasticismo, por sua vez, forja-se Completas, vol. ii, Madrid, Revista de Occiden-
como atitude ultranacionalista, como rea- te, 1963; PEREIRA, Bento, Thesouro da Lingua
ção aos nacionalismos que, em Estados Portugueza, Eborae, Typographia Academiae,
1697; SILVA, Antonio de Morais, Diccionario
constituídos por várias comunidades que
da Lingua Portugueza, 2 vols., Lisboa, Officina
se têm a si mesmas como histórica, linguís- de Simão Thaddeo Ferreira, 1789; Id., Gran-
tica e culturalmente unas e, por isso, diver- de Dicionário da Língua Portuguesa, 10.ª ed. rev.,
sas das demais, emergem como ameaças à corrig., aum. e atualizada por Augusto More-
integridade desses Estados. Como tal, são no et al., Lisboa, Editorial Confluência, 1949-
próprias do antinacionalismo (&Antina- 59; UNAMUNO, Miguel, “En torno al casti-
cionalismo) falangista as atitudes anticas- cismo”, La España Moderna, t.  lxxiv, fev. 1895,
ticista, europeísta e modernista. pp. 17-40; n.º  lxxv, mar. 1895, pp.  57-82;
n.º lxxvi, abr. 1895, pp. 27-58; n.º lxxvii, maio
Em Portugal, não terá havido verdadei-
1895, pp. 29-52; t. lxxviii, jun. 1895, pp. 26-
ra preocupação em relação ao “castiço”. -45; VICENTE, Gil, Obras Completas, coord. do
No entanto, em obras como Eusébio Macá- texto, introd., notas e glossário Álvaro Júlio
rio, de Camilo Castelo Branco, elaborada da Costa Pimpão, Porto, Livraria Civilização,
pelo autor, como o próprio o explicita no 1979; VIEIRA, Domingos, Grande Dicciona-
prefácio, numa atitude reativa à acusação rio Portuguez ou Thesouro da Lingoa Portugueza,
de que não teria capacidade de escrever 5 vols., Porto, Editores Ernesto Chardron e
Bartholomeu H. de Moraes, 1871-74.
uma obra naturalista, assomam persona-
gens castiças que, tal como ocorre na tra- Orlando Miguel Gama
Alexandra Soares Rodrigues
dição espanhola, se revelam picarescas.
Também em As Cidades e as Serras e em
Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós,
a oposição entre a genuinidade e a es-
pontaneidade de personagens castiças,
porque marcadamente locais, e o artifi-
cialismo de carácter de personagens eu-
ropeizadas e/ou modernizadas exempli-
fica o castiço, mais do que o casticismo,
que não parece ter tido âncora nas letras
portuguesas.

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AnticAtolicismo 347

Anticatolicismo define o complexo institucional e as formas


históricas peculiares de organização que o
cristianismo foi assumindo na Europa e no
Próximo Oriente, em particular a partir
de Constantino Magno, desde começos do
séc. iv. Corresponde à christianitas medieval
e ao ideal por ela representado. O elemento

P ara se falar de anticatolicismo com


rigor torna-se necessário determinar
com a precisão possível qual a natureza
mais saliente da situação de cristandade du-
rante a Idade Média foi a profunda simbiose
da Igreja com a organização social e política
do catolicismo a que aquele se opõe e que do poder temporal. Por fim, em sentido his-
contradiz. Ora, a univocidade nesta ques- tórico, chamamos catolicismo ao conjunto
tão tem muito de mítico e quase nada de de fiéis, doutrinas, movimentos e institui-
objetivamente claro e uniforme. Sem ter ções que, a partir da cisão trazida pela Re-
a pretensão de analisar toda a complexi- forma protestante do séc. xvi, se manteve
dade histórica e semântica do conceito, fiel à obediência da Igreja de Roma. A sua
consideraremos aqui três aceções princi- estrutura e forma mentis foram modeladas
pais do termo “catolicismo”. pelo projeto de restauração doutrinal, cate-
Em sentido teológico, o catolicismo é a quética, litúrgica, moral e pastoral que, em
Igreja de Cristo enquanto católica, i.e., uni- meados do séc. xvi, o Concílio de Trento
versal, porque não pertence a um território, (1545-1563) promoveu. Assim compreen-
uma etnia ou uma cultura particulares, se- dido, o catolicismo é “a história da institui-
não a todos os povos e às muitas culturas dis- ção chamada Igreja Católica e a maneira
persas pelo mundo inteiro. Esta característi- de compreender o cristianismo constituído
ca constitui uma propriedade da mensagem por inflexões doutrinais características, rela-
cristã e das comunidades que a professam, tivamente às quais as outras famílias cristãs
e chama-se mais propriamente catolicida- guardam, em maior ou menor grau, as suas
de. Em sentido sociológico, o catolicismo distâncias” (ROGUES, 1997, 127).

Concílio de Trento (1545-1563).

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348 AnticAtolicismo

A primeira grande manifestação de an- de romanismo transporta uma carga pejo-


ticatolicismo deveu-se à cisão introduzida rativa, forjada e difundida a partir da polé-
na cristandade pela Reforma protestante. mica protestante nos contextos anglicano e
É  verdade que, desde os primórdios do luterano. E essa perceção negativa transitou
cristianismo, todo o tipo de heresias foi para dentro do próprio catolicismo, dando
criando fissuras na unidade da Igreja. A origem a diversas expressões de catolicismo
maior fratura dessa unidade foi, na Idade antirromano. No dizer de Sylvio de Frances-
Média, o cisma de 1054, que reforçou, na chi, “o catolicismo antirromano conheceu
Igreja latina, a nota de catolicidade – i.e., de a idade de oiro na época pós-tridentina no
universalidade – em face da alegada ortodo- quadro do debate clássico à volta da auto-
xia defendida pelos cristãos orientais. No ridade pontifícia in rebus temporalibus. Na
séc. xvi, o catolicismo sofreu a oposição de confluência das duas modernidades, a reli-
cristãos indignados com as práticas de simo- giosa, caracterizada por um processo geral e
nia, a ostentação, a ganância e os vícios de irreversível de confessionalização na Euro-
toda a ordem existentes na cúpula da Igreja pa depois do encerramento do Concílio de
de Roma, que contradiziam a mensagem Trento, e a política, fundada sobre uma au-
evangélica lida, estudada e interiorizada à tonomização do Estado que significa desejo
luz dos progressos filológicos do humanis- de absolutismo, o antirromanismo católico
mo renascentista. Os arautos do movimento trava a controvérsia em torno do poder tem-
protestante denunciaram com grande fra- poral do papa” (FRANCESCHI, 2008, 45).
gor tais procedimentos e interpretaram-nos É a própria cultura do período moderno
como demonstração da profunda infideli- que, ao consagrar a prevalência dos valores
dade e perversão do cristianismo evangélico da razão, do livre exame, da dúvida metódi-
da Igreja Católica Romana. Lutero verbera ca e do sujeito, com a respetiva autonomia,
especialmente o poder papal, que identifi- cria condições propícias ao afastamento e
ca com o anticristo e com a tirania ao ser- divórcio da tradição católica. Não obstante
viço de Satanás. Em 1520, no “Manifesto à o fecundo trabalho de renovação em que a
nobreza alemã”, Lutero incitava a Alema- Igreja se empenhou para o cumprimento
nha a levantar-se contra a Roma papal, à das orientações saídas de Trento – a favor
qual chama “prostituta de Babilónia”, e ao da formação do clero, da catequese e da
papa “verdadeiro Anticristo” (LUTHER, evangelização, da dinamização espiritual
1957, 136). Verifica-se, desde então, que o através das devoções populares –, os anticor-
anticatolicismo passa a andar associado ao pos culturais não pararam de crescer e de
antirromanismo. Embora seja óbvia a estrei- se difundir. Libertinos, céticos, racionalistas
ta proximidade entre as duas noções, não e empiristas ocupam progressivamente os
podem ser tomadas uma pela outra. O que meios bem-pensantes, onde se impõe um
mais imediatamente as distingue e separa escol de literatos, artistas e filósofos, sempre
é a componente religiosa da primeira e a mais ou menos desafetos ao catolicismo e,
conotação política da segunda. Enquanto com frequência, a ele abertamente hostis,
o anticatolicismo remete para a configura- pois veem neste uma doutrina e uma moral
ção institucional que o cristianismo foi as- que limitam a liberdade de pensar, de saber,
sumindo, sobretudo a partir do Concílio de de usufruir os prazeres da vida e de ser feliz.
Trento, o antirromanismo visa os abusos da Os livros e opúsculos que difundem estas
hierarquia e as marcas de poder absoluto mensagens têm edições e tiragens abundan-
alegadamente presentes no governo pasto- tes. Registe-se, e.g., que as obras de Charles
ral da Igreja de Roma. Note-se que a noção de Saint-Évremond (1613-1703), incrédulo

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AnticAtolicismo 349

e hedonista, já tinham 50 edições no ano testador era lutar para vir a ser reconhecido
de 1705. E, quando a edição impressa era como homem honrado e autónomo, “que
proibida, logo pululavam, na clandestinida- sabe o que tem de fazer, sem perguntar ao
de, os escritos, sob a forma de cópias ma- Deus dos cristãos, e que sabe ser honesto,
nuscritas, tão sôfrega era a curiosidade dos sem precisar de pedir conselho à Igreja”
interessados na sua leitura. (GROETHUYSEN, 1977, 290).
Também os avanços do conhecimento A instituição católica, que foi atacada,
científico trouxeram descrédito a alguns de maneira rude e demolidora, pelos en-
elementos nucleares da doutrina cristã e ca- ciclopedistas e intelectuais sedentos de
tólica. A observação da natureza, potencia- emancipação doutrinal e instruídos pelas
da por novos instrumentos de observação, evidências da observação empírica e pelas
como o telescópio e o microscópio, se, por luzes da razão, sofreu também gravíssimas
um lado, fazia crescer o sentimento de ad- crises internas. O jansenismo, contra o qual
miração e louvor pelas maravilhas do mun- interveio a suprema autoridade eclesiástica,
do natural, obra do Criador, de que se ocu- mostrou-se obstinado nas suas posições, de-
pava a teologia física, punha cada vez mais safiando o magistério papal e assumindo,
em causa a letra da história bíblica, sobretu- no séc. xviii, uma forte opção política de
do a criação em seis dias e o dilúvio, narra- teor galicano, insistindo em reivindicações
dos no livro do Génesis. É verdade que cerca conciliaristas e de reforço dos poderes epis-
de metade dos naturalistas de Setecentos copais. Nikolaus von Hontheim, vulgarmen-
eram eclesiásticos e pastores protestantes, te chamado Febrónio, é autor do De Statu
mas isso não impediu a colisão da história Ecclesiae (1763), obra que defende poderes
natural com a teologia. Desse modo, se “a e prerrogativas papais para cada bispo na
história natural no século xviii é em grande sua diocese, e que reitera a doutrina da su-
parte uma ciência eclesiástica, estamos cer- premacia dos concílios ecuménicos sobre a
tos que o século xix fez dela uma ciência autoridade do papa. Ao mesmo tempo que
laica” (MORNET, 1911, 71). assim se punha em causa a universalidade
Depois do questionamento evangélico à do poder da Igreja de Roma, não faltavam
Igreja de Roma por parte dos reformado- sinais de ostentação, nepotismo, mediocri-
res, foi-se avolumando o questionamento dade doutrinal e pastoral, e de transigên-
social e religioso, por parte do espírito bur- cias com os interesses dos monarcas, que
guês, aos dogmas e às práticas do catolicis- enfraqueciam o catolicismo.
mo tradicional. Esse espírito crítico, tantas O galicanismo teve grande repercussão
vezes insolente, desafiava e punha a ridículo em Portugal. No âmbito da teologia e do di-
grande parte das crenças católicas. A neces- reito canónico, encontrou no padre orato-
sidade de questionar a doutrina da Igreja riano António Pereira de Figueiredo (1725-
acompanhou o progressivo emergir do es- -1797) um seguidor de grande notoriedade.
pírito burguês, que minava a credibilidade Em obras de alta erudição, como Tentativa
da cultura eclesiástica. Entre os simples Teológica (1766) e Demonstração Teológica
fiéis, que sabiam crer sem levantar grandes (1768), procurou fundamentar doutrinal-
problemas, e os teólogos, guardiães e defen- mente e servir as práticas regalistas seguidas
sores qualificados do discurso da fé, surgia pela política pombalina.
assim um agente desestabilizador. Era o gru- Foi principalmente nos países de tradi-
po dos contestadores de Deus e da doutrina ção católica que, desde o final do séc. xviii
católica, prontos a investigar, discutir e jul- até meados do séc. xx, a vida cultural e
gar antes de acreditar. A ambição do con- política se caracterizou por manifestações

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350 AnticAtolicismo

radicais e persistentes de anticatolicismo. pervertido pela Igreja, que o aprisionara


Assistiu-se, pouco a pouco, à formação de em estruturas de poder e de domínio opres-
uma ideologia anticatólica, em que se refle- sivo, e a de que, para servir a perpetuidade
tiam os princípios da Revolução Francesa e do seu estatuto de poder sobre os povos e o
as marcas de uma sociedade em profunda controlo das consciências, ela não hesitara
transformação. Reuniam-se nessa ideologia recorrer a variados instrumentos de mani-
os efeitos de diferentes revoluções. A Revo- pulação.
lução Científica da Modernidade, que aba- Vimos como o anticatolicismo foi, nos
lava crenças que, como vimos, faziam parte sécs. xviii e xix, uma reação destrutiva vin-
do património doutrinal do cristianismo; a da, quase sempre, de entidades que não per-
revolução industrial, que, ao inovar nos sis- tenciam às estruturas da Igreja. No séc. xx
temas de produção, acarretava mudanças e, de maneira particular, nos anos que se se-
profundas nas relações sociais; a revolução guiram ao Concílio Vaticano II, a oposição
política, assente nos princípios do libera- ao imobilismo da instituição católica nasce
lismo e da democracia aplicados à orga- no seio de comunidades cristãs que vivem
nização e ao governo dos Estados – eis os o agudizar de uma crise, em grande parte
elementos principais de um contexto que sustentada por membros da hierarquia,
se assumiu como adverso ao catolicismo. designadamente por padres e por alguns
Nesse contexto, lança raízes o processo de bispos. A crise alimenta-se de interrogações
secularização, em que se esbatem a configu- repartidas entre dois polos decisivos, o polo
ração sobrenatural da vida social dos povos da fidelidade à comunidade cristã das ori-
e a consciência histórica dos indivíduos, e gens e o da resposta exigida à Igreja pelas
enfraquece a hegemonia, de direito e de urgências da sociedade contemporânea.
facto, que o catolicismo romano exercia Que é a Igreja no séc. xx – interrogavam-
sobre o conjunto da sociedade civil e polí- -se muitos –, testemunha e prolongamento
tica. A impregnação substantiva da existên- vivo do evangelho, ou apenas simulacro e
cia coletiva das nações de tradição católica, perversão da mensagem que ele anuncia?
até então difundida pelo magistério papal, Podem os homens deste tempo esperar da
dá gradualmente origem a uma influência Igreja um contributo que ajude a inventar e
limitada, parcial, adjetiva. Desse contexto construir o futuro?
desfavorável e frequentemente hostil se fi- A necessidade de enunciar perguntas tão
zeram porta-vozes jornalistas, romancistas, radicais bebia de uma atmosfera de gran-
panfletários, ensaístas, pintores, caricaturis- de desconfiança quanto à possibilidade de
tas, e muitos outros agentes da ideologia an- uma resposta afirmativa. Assistiu-se a uma
ticatólica. Insurgiam-se com grande ênfase revolução cultural na Igreja, a uma agitação
contra o obscurantismo e a irracionalidade subversiva do pensamento católico, que se
dos dogmas e das crenças, o conluio entre exprimiu em testemunhos e ensaios cujos
a Igreja e o absolutismo político, o controlo títulos falam por si: “A decomposição do
da educação, os desmandos e as imoralida- catolicismo” (Louis Bouyer), “A crise de
des de eclesiásticos e membros de ordens catolicismo” (José Luis Aranguren), “O ca-
religiosas, em que adquire particular rele- tolicismo tem futuro?” (George Lindbeck),
vo um antijesuitismo militante. As críticas “O Catolicismo sob acusação” (René Ré-
visavam tanto a mensagem cristã como os mond), “O cristianismo vai morrer?” (Jean
alegados malefícios por ela trazidos ao pro- Delumeau). E chega-se mesmo a proclamar
gresso dos povos. Generalizava-se a ideia de que esta Igreja deve morrer para que possa
que o espírito do cristianismo tinha sido renascer a verdadeira Igreja de Jesus Cristo.

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AnticAtolicismo 351

O pós-concílio viu surgir um novo modo Latina, ao mesmo tempo que desafiavam
de ser cristão, o cristão revolucionário. Ao a credibilidade do anúncio da mensagem
contrário de muitos outros, este cristão não cristã aos explorados, interrogavam a soli-
está disposto a desertar. Mantém-se dentro dez e a adequação dos alicerces do discurso
da Igreja para fazer nela a revolução que teológico tradicional. Tornava-se claro que
deveria resultar inevitavelmente das ideias e a reflexão teológica tinha de deixar de ser
ações concretas que se sucederam ao encer- uma elaboração teórica e de gabinete, para
ramento do Vaticano II. se basear na análise da realidade social,
A vontade de renovar a Igreja, manifes- onde se joga a dignidade da pessoa, e para
tada por muitos teólogos e padres concilia- tomar uma clara opção pelos pobres. Vinha
res, esbarrou muitas vezes em resistências aí a Teologia da Libertação, que tantas des-
vindas da Cúria romana e de um grande confianças e dissídios haveria de provocar
número de bispos e de fiéis conformistas no seio da Igreja.
e conservadores. Contra estas resistências, Na velha Europa, irradiou da França cató-
por toda a parte se levantaram núcleos con- lica uma sequência vertiginosa de desafios
testatários, mais ou menos radicais. O catoli- radicais vindos de fileiras cristãs de primeira
cismo holandês gerou, bem cedo, propostas linha. Foi mais uma profunda crise interna
teologicamente ousadas, que ameaçavam a do que um assalto apostado na demolição
doutrina tradicional em matérias de fé e de da robusta fortaleza do catolicismo. Mas
moral, de liturgia e de pastoral. O Catecismo os danos causados foram consideráveis, e
Holandês, publicado com a autorização do convergentes com o mais agressivo antica-
cardeal Alfrink, foi por este apresentado, tolicismo.
em 1966, “a todos aqueles que atualmente Em maio de 1968, jovens cristãos revolu-
estão atentos ao que a Igreja tem para lhes cionários reunidos na Sorbonne, colocaram
dizer” (GOFFIN, 1969, 87). Sobre ele caiu, no mesmo plano de ação a Bíblia e a revolu-
de imediato, tenebrosa tempestade, que de- ção. Em setembro, a publicação da encícli-
sassossegou a Igreja por toda a parte. ca Humanae Vitae desencadeou um coro de
As desigualdades sociais e a exploração contestações. Como protesto, alguns cris-
dos pobres exigiam, à luz do evangelho, o tãos decidiram escrever ao Papa uma carta
empenho da Igreja quer no combate em aberta. E pretendiam que a carta fosse uma
prol da justiça social e da solidariedade, espécie de encíclica escrita pelas bases. Com
quer na ação junto dos poderosos. D. Hél- os contributos recebidos, redigiram um tex-
der Câmara (1909-1999), bispo de Olinda e to, ácido e contundente, que denunciava
Recife, fazia-se porta-voz da revolução estru- situações consideradas escandalosas: falta
tural, necessária tanto ao mundo desenvol- de respeito pelo povo na maneira como a
vido como ao mundo em vias de desenvolvi- Igreja exercia o magistério, uso continua-
mento, e apelava ao respeito pela memória do de formas de coação, recusa em seguir
dos revolucionários Camilo Torres e Che o exemplo de Cristo, que convidava à prá-
Guevara. Defendia a não violência; todavia, tica da pobreza, e perversão da “Igreja-Fra-
à violência instalada nas estruturas políticas ternidade” pela rigidez das estruturas insti-
respondiam, na América Latina, padres e tucionais da “Igreja-Sociedade” (“Carta ao
militantes católicos, com a sua participação Papa…”, 1969, 132). No mês de dezembro
nas lutas revolucionárias, travadas em várias do mesmo ano, assistiu-se a uma insurreição
frentes, ao lado de marxistas e esquerdistas. clerical: 120 padres remetiam aos bispos e
Pela mesma altura, os gritantes proble- ao clero em geral uma carta reivindicativa
mas sociais e políticos vividos na América que rompia com a tradição clerical e com

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352 AnticAtolicismo

deliberações recentes do Concílio Vaticano da esperança, prestes a morrer se não hou-


II. Reclamavam, entre outros, os direitos de vesse, a curto prazo, mudanças profundas.
assumir compromissos políticos e sindicais, Mas que mudanças? Desclericalização da
de intervir nas nomeações e transferências Igreja; introdução, no exercício do poder
de bispos e padres, de aceitar o ministério eclesiástico, de um estilo que acabe com a
sacerdotal de padres casados. dominação e o “estalinismo” desse poder;
O anticatolicismo também reclamou legi- uso de uma nova linguagem na apresenta-
timidade em nome de formas de ultraorto- ção da mensagem evangélica; total laiciza-
doxia. O pendor cismático de monsenhor ção da sociedade civil, “desconstantinizan-
Marcel Lefebvre (1905-1991), alimentado do” a Igreja; procura de uma nova maneira
pela oposição inflexível ao aggiornamento de ser padre, depois de definidas as respe-
da catolicidade do Vaticano II e ao Papa tivas funções na sociedade de então. Estas
Paulo VI, pretendia, no fim de contas, ga- propostas não visavam destruir a Igreja
rantir a estabilidade da ortodoxia tradicio- para que fosse possível a criação de uma
nal, que julgava ter sido traída pelos pa- Igreja nova. Pretendiam tão-só significar
dres conciliares. É na chamada “profissão a derradeira oportunidade, o último grito
de fé”, publicada por monsenhor Lefebvre de esperança de reforma, que desfalecia.
em novembro de 1974, que deparamos Se as transformações propostas ficassem
com o ato decisivo de rutura. Depois de letra morta, então sim, não restaria outra
proclamar adesão cordial à “Roma católi- causa, “decente e nobre” (Id., Ibid., 163),
ca, guardiã da fé católica”, “Roma eterna, a não ser a luta para destruir a Igreja por
mestra de sabedoria e de verdade”, o do- todos os meios ao alcance.
cumento prossegue com intransigente fir- Se é verdade que a Igreja continuou o seu
meza: “Pelo contrário, recusamos [agora] caminho, deixando sem resposta imediata
e sempre recusámos [no passado] seguir o apelo final da esperança protagonizado
a Roma de tendência neomodernista e pelo P.e Felicidade Alves, não evitou, no en-
neoprotestante que claramente se mani- tanto, que numerosos sacerdotes e leigos,
festou no concílio Vaticano II e, depois do desiludidos, deixassem a barca de Pedro,
concílio, em todas as reformas que dele saí- engrossando as fileiras dos “vencidos do ca-
ram” (FLORIAN, 2008, 123). tolicismo” (BELO, 1981, 147).
Como nos outros países católicos, o an- Encontramos marcas de anticatolicis-
ticatolicismo gerado no seio da Igreja teve mo em autores representativos do pensa-
significativa e prolongada expressão em mento e da criação literária em Portugal.
Portugal. Padres e leigos, insatisfeitos com Um rápido inventário das expressões de
a paralisia que se estava a apoderar das rejeição e de confronto com a Igreja Ca-
esperadas reformas, nascidas do aggiorna- tólica mostra-nos em que fundamentos
mento conciliar, foram tomando a palavra. assentam tais marcas. Verificamos como
E contestaram, com firmeza, o imobilismo o regalismo, a ética protestante, o espí-
e o bloqueio autoritário praticados por rito nacional, entre outros, são frequen-
aqueles que apelidavam de “patrões da re- temente invocados. O regalismo explica
ligião e da Igreja” (ALVES, 1969, 153) e de o seu posicionamento contra o catolicis-
responsáveis pelo infantilismo do catolicis- mo romano em nome do projeto de uma
mo português. Desse coro de críticos fazia Igreja lusitana, sustentada pela aversão
parte a voz audaciosa do P.e José da Feli- ao ultramontanismo, dominante tanto no
cidade Alves (1925-1998). Num texto pu- antigo regime como na monarquia cons-
blicado em A Crise da Igreja, em 1969, fala titucional. Alexandre Herculano, velho

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AnticAtolicismo 353

Concílio Vaticano II (1962-1965).

católico, enquadra-se nesta linha antica- nela evidentes os sinais de ambivalência na


tólica, quando fala de dois catolicismos. interpretação da simbólica bíblica e exis-
Há o catolicismo puro, autêntico, fiel à tem nela repetidas formulações de antica-
tradição dos Padres da Igreja e dos anti- tolicismo. Acusa o catolicismo de atentar
gos concílios, a que Herculano adere, e contra a doce alegria de viver. No opúsculo
o catolicismo espúrio, centralizador, ultra- intitulado “A era lusíada” (1914), denun-
montano, que aceita a definição de novos cia ter o catolicismo romano adulterado
dogmas, devendo, por isso, ser repudiado as energias criadoras e o espírito original
com toda a veemência. A ética protestante da pátria portuguesa. E, em O Homem Uni-
interessou vultos de inegável mérito, e.g., versal, insurge-se contra a espiritualidade
António Pedro Lopes de Mendonça e An- onde se vislumbra a soturnidade de uma
tero de Quental. O primeiro atribui à Re- religião refém da morte. Ao catolicismo
forma protestante um contributo decisivo chama “cristianismo de luto, o corpo espi-
para o desenvolvimento civilizacional da ritual mudado em vestuário fúnebre, a re-
humanidade. Por sua vez, na conferência ligião do Cadáver, a procissão do Enterro”
sobre as causas da decadência dos povos (PASCOAES, 1937, 84). Nestes atributos
peninsulares, Antero associa à influência de morte, Pascoaes desfia o humor nos-
da Reforma as nações mais inteligentes e tálgico do grande Pã, alegre e venturoso,
industriosas, ao passo que as nações “mais inundando de vida a terra inteira.
decadentes são exatamente as mais católi- Também em Fernando Pessoa o antica-
cas” (QUENTAL, 1926, 113). tolicismo goza de grande relevo e apare-
Na obra de Teixeira de Pascoaes, tanto ce em diferentes contextos, manifestan-
poética como em prosa, há grande inten- do-se sempre sem complacências. Veja-se
sidade religiosa, aflorando com frequência a assunção autobiográfica de quem se
os principais mistérios do cristianismo. São declara “inteiramente oposto a todas as

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354 AnticAtolicismo

Igrejas organizadas, e sobretudo à Igre- Bibliog.: ALVES, José da Felicidade et al.,


ja de Roma” (PESSOA, 1986, 461). As A  Crise da Igreja, Lisboa, Dom Quixote, 1969;
acusações orquestram, com frequência, BELO, Ruy, Obra Poética, vol. 1, Lisboa, Pre-
sença, 1981; “Carta ao Papa por um grupo
lugares-comuns de anticatolicismo histo-
de cristãos”, in ALVES, José da Felicidade et al.,
ricista, onde figuram a repressão inqui-
A Crise da Igreja, Lisboa, Dom Quixote, 1969,
sitorial, os massacres de albigenses e val- pp. 111-140; FLORIAN, Michel, “De l’Action
denses, as guerras religiosas, a resistência Française à l’intégrisme catholique: réflections
à evolução, a intolerância e a imposição sur le paradoxe d’un antiromanisme ultra-ro-
da única verdade a toda a humanidade. main”, in FRANCESCHI, Sylvio de (coord.),
As críticas realçam a incompatibilidade Antiromanisme Doctrinal et Romanité Ecclésiale
intrínseca do catolicismo com a alma da dans le Catholicisme Posttridentin (XVIe-XXe Siècles),
Lyon, Laboratoire de Recherche Historique
nação portuguesa, devendo por isso ser
Rhône-Alpes, 2008, pp. 119-142; FRANCES-
atacado enquanto elemento desnaciona- CHI, Sylvio de, “Paolo Sarpi et Fulgenzio Mi-
lizador ou religião estranha que debilita canzio. L’extrémisme catholique antiromain du
o patriotismo nacional. É sobretudo ao début du xviie siècle”, in FRANCESCHI, Sylvio
abordar o sebastianismo e o regresso do de (coord.), Antiromanisme Doctrinal et Romanité
paganismo, dois temas maiores do proje- Ecclésiale dans le Catholicisme Posttridentin (XVIe-XXe
to cultural pessoano, que o catolicismo se Siècles), Lyon, Laboratoire de Recherche Histo-
rique Rhône-Alpes, 2008, pp. 45-71; GOFFIN,
perfila de imediato como grande obstácu-
Magdalen, “Tempestade sobre o catolicismo
lo à respetiva concretização. holandês”, in ALVES, José da Felicidade et al.,
O anticatolicismo regista o lado escuro A Crise da Igreja, Lisboa, Dom Quixote, 1969,
que acompanha a historicidade da pre- pp. 83-95; GROETHUYSEN, Bernard, Origines
sença da Igreja na vida afetiva, social, po- de l’Esprit Bourgeois en France, vol. i, Paris, TEL/
lítica e cultural dos homens. Ao findar o Gallimard, 1977; LUTHER, Martin, Oeuvres,
séc. xx, René Rémond, historiador insus- vol. 2, Genève, Labor et Fides, 1957; MORNET,
peito, reconhecia o descrédito generali- Daniel, Les Sciences de la Nature en France au XVIIIe
Siècle. Un Chapitre de l’Histoire des Idées, Paris,
zado que passou a envolver o catolicismo,
A. Colin, 1911; PASCOAES, Teixeira de, O Ho-
bem mais do que outras expressões cris- mem Universal, Porto, Edições Europa, 1937; Id.,
tãs, como a Reforma e a Igreja Ortodoxa. A Saudade e o Saudosismo, comp., introd. e anot.
Na verdade, segundo ele, “é sobre o cato- Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio e Alvim,
licismo que a chicotada é desferida e é o 1988; PESSOA, Fernando, Obra Poética e em
catolicismo, na primeira linha, que sofre Prosa, introd. e org. António Quadros, vol. iii,
o embate. Recusam-no como interlocutor Porto, Lello e Irmão, 1986; QUENTAL, Antero
de, Prosas, vol. ii, Coimbra, Imprensa da Univer-
válido no plano intelectual, pois enten-
sidade, 1926; RÉMOND, René, Le Christianisme
de-se que dele nada há a esperar, por já en Accusation. Entretiens avec Marc Leboucher, Pa-
não ter mais nada a dizer ou a trazer ao ris, Desclée de Brouwer, 2000; ROGUES, Jean,
mundo” (RÉMOND, 2000, 14-15). A face “O catolicismo”, in DELUMEAU, Jean (dir.),
mais visível deste descrédito está na geral As Grandes Religiões do Mundo, Lisboa, Presença,
indiferença ou desatenção com que são 1997, pp. 127-150.
recebidas as mensagens que a Igreja não Luís Machado de Abreu
desiste de enviar ao coração dos homens.
Sob diversas metamorfoses, o anticato-
licismo acompanhou a história da Igreja,
desafiando-a como um contraditório com
que ideologias várias e as humanas fragili-
dades da mesma Igreja a confrontam.

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AnticAvAquismo 355

Anticavaquismo mesmas funções após as eleições gerais


de outubro de 1980, nas quais a Aliança
Democrática reforçou a sua maioria par-
lamentar. Porém, o Governo terminaria
prematuramente o seu mandato, em 9
de janeiro de 1981, na sequência do aci-
dente de aviação que vitimou o primei-

A níbal Cavaco Silva (n. 1939) é o


político português que mais tempo
exerceu funções de alto nível em Portu-
ro-ministro, Francisco Sá Carneiro, e o
ministro da Defesa, Adelino Amaro da
Costa, em 4 de dezembro de 1980. Aní-
gal na vigência da Constituição da Re- bal Cavaco Silva não aceitou ser recon-
pública Portuguesa de 1976. Fez toda a duzido no VIII Governo Constitucional,
sua formação académica durante o Esta- liderado por Francisco Pinto Balsemão,
do Novo (regime autoritário e naciona- que entretanto assumira também as fun-
lista de direita), nomeadamente o seu ções de presidente do PSD; pelo contrá-
doutoramento, que realizou na Univ. rio, iniciou um período de intensa inter-
de York, no Reino Unido. Foi também venção crítica no seu partido, que lhe
durante o Estado Novo que cumpriu o aumentou o prestígio.
serviço militar obrigatório, em Portugal Em 1985, no congresso do PSD que
e em Moçambique. Antes da Revolução decorreu na Figueira da Foz, Cavaco Sil-
de 25 de abril de 1974, que instituiu a va disputou a liderança do partido com
democracia em Portugal, não exerceu João Salgueiro. Quando a imprensa dava
cargos públicos, nem teve militância po- como certa a vitória do seu adversário,
lítica ou cívica. Em 1974, pouco tempo através de uma hábil negociação com di-
após a instauração da democracia e a le- versos sectores do Partido, Cavaco Silva
galização dos partidos políticos, aderiu foi eleito presidente da Comissão Políti-
ao Partido Popular Democrático (PPD), ca Nacional do PSD. Promoveu a queda
por convite do líder deste partido, Fran- do Governo de coligação que o seu par-
cisco Sá Carneiro, que não o conhecia tido mantinha desde 1983 com o Partido
pessoalmente. Socialista (o denominado Governo do
Em 3 de janeiro de 1980, após a vitória Bloco Central), o que levou o Presidente
da Aliança Democrática – coligação de da República, Ramalho Eanes, a convo-
centro-direita constituída pelo Partido car eleições legislativas antecipadas, que
Social Democrata (PPD/PSD ou apenas foram ganhas pelo PSD, com maioria
PSD), pelo Partido do Centro Democrá- relativa (29,87 %). Pela primeira vez na
tico e Social (CDS) e pelo Partido Po- sua curta história, o PSD, concorrendo
pular Monárquico (PPM) – nas eleições isoladamente, ganhou eleições legisla-
legislativas intercalares de dezembro de tivas com um reforço do seu peso elei-
1979, assumiu, no VI Governo Constitu- toral, o que muito se deveu ao carisma
cional, liderado por Francisco Sá Carnei- do novo líder e a uma estratégia de co-
ro, a pasta das Finanças e do Plano, no municação com ideias simples e de fácil
exercício da qual ganhou notoriedade perceção pela opinião pública.
pública em virtude de um estilo novo Chefiando um Governo minoritário,
em que conjugou um comportamento promoveu uma mudança de interpre-
político austero com uma boa estratégia tação do sistema político-constitucional
de comunicação. Foi reconduzido nas português, caracterizada pela dominân-

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356 AnticAvAquismo

cia da figura do primeiro-ministro no sa, assim como nas tomadas de posição


âmbito do Governo e pela sua nítida no espaço público, ganham unidade na
demarcação, no plano político-institu- rejeição do modelo de político provi-
cional, do Presidente da República. Nas dencial e financista que a si mesmo se
eleições legislativas de 1987, o PSD, mais considerava como um tecnocrata e não
uma vez concorrendo isoladamente, ob- como um político profissional, embora,
teve uma inédita maioria absoluta de vo- de facto, sempre se tenha comportado
tos e mandatos, que reforçaria nas elei- como tal.
ções gerais de 1991.
Pela sua forte personalidade políti-
ca e pelas alterações que promoveu no
sistema político português, assim como
pela dinâmica empreendedora que pro-
tagonizou e com a qual transformou o
país, Cavaco Silva marcou um período
que ficou conhecido como cavaquismo,
o que lhe suscitou muitos admiradores e
seguidores. Porém, o seu estilo de fazer
política, de forte pendor tecnocrático e Bibliog.: impressa: CAETANO, J. Relvão, “A
assente na sua pessoa como líder políti- política segundo Cavaco”, Expresso, 20 ago.
co, que alguns, como foi o caso de Mário 2005; FIGUEIRA, J. Costa, Cavaco Silva. Homem
Soares, comparavam ao salazarismo, mo- do Estado, Lisboa, Francisco Franco, 1987;
LIMA, Fernando, O Meu Tempo com Cavaco Sil-
tivou também o aparecimento de muitos
va, Lisboa, Bertrand, 2004; SILVA, A. Cavaco,
adversários – os anticavaquistas –, tanto Cumprir a Esperança: Discursos Proferidos durante
fora como dentro do PSD, cujas inter- a Vigência do X Governo Constitucional, Lisboa,
venções constituem o que podemos de- INCM, 1987; Id., Construir a Modernidade: Dis-
nominar de anticavaquismo. cursos Proferidos durante a Vigência do XI Governo
Em 2006, Cavaco Silva foi eleito Presi- Constitucional, Lisboa, INCM, 1989; Id., Ganhar
dente da República à primeira volta, com o Futuro: Discursos Proferidos durante a Vigência do
XI Governo Constitucional, Lisboa, INCM, 1991;
50,54 % dos votos, e, em 2011, foi reelei-
Id., Afirmar Portugal no Mundo, Lisboa, INCM
to, também à primeira volta, com 52,95 %
1993; Id., Manter o Rumo: Discursos Proferidos
dos votos, percentagens muito próximas durante a Vigência do XII Governo Constitucional,
das que obteve como líder do PSD nas Lisboa, INCM, 1995; Id., Autobiografia Política,
eleições de 1987 e 1991. Porém, como 2 vols., Lisboa, Círculo de Leitores, 2002-04;
Presidente da República, ao contrário Id., “Cavaco Silva. Enganei-me algumas vezes”,
do que fizera como primeiro-ministro, in MARQUES, Carlos Vaz, Pessoal e Transmissí-
embora mantendo o mesmo comporta- vel XX-XXI, Porto, ASA, 2004, pp. 169-191; Id.,
Roteiros, 10 vols., Lisboa, INCM, 2006-16; VA-
mento político tecnocrático caracteriza-
LENTE, V. Pulido, “A velhice do dr. Cavaco”,
do pela austeridade de conduta e por um Público, 14 nov. 2014; digital: VALENTE, Lilia-
maior relevo dado aos aspetos financeiros na, “Ascensão no PSD. O homem e as circuns-
e institucionais do que aos aspetos polí- tâncias de uma liderança (quase) inesperada”,
tico-partidários, Cavaco Silva não logrou Observador, 16 maio 2015: http://observador.
fazer uma interpretação original do sis- pt/especiais/30-anos-de-cavaco-silva-o-ho-
tema político-constitucional português. mem-e-as-circunstancias-de-uma-lideranca-
quase-inesperada/ (acedido a 26 jul. 2017).
Os muitos registos de anticavaquismo
existentes na prática política portugue- João Relvão Caetano

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AnticelibAtismo 357

Anticelibatismo a imposição da lei do celibato aos cléri-


gos de toda a Igreja latina. O Concílio
de Trento (1545-1563) retomou e confir-
mou essa imposição.
Na primeira carta do apóstolo Paulo
dirigida a Timóteo e na enviada a Tito,
em que se estabelecem regras de vida

P odemos considerar três modalida-


des principais de opção pela vida
celibatária: simples decisão pessoal por
que os servidores da Igreja devem cum-
prir, não há qualquer menção da exigên-
cia de celibato. Os episcopoi (superviso-
falta de atração pelo matrimónio e/ou res), os presbyteroi (anciãos) e os diakonoi
por vontade de dispor de maior dispo- (servidores) devem ser homens dignos e
nibilidade para se dedicar a causas cívi- de boa reputação, que saibam governar
cas; escolha do celibato como expressão bem a própria casa, mas nada se diz so-
de total entrega ao amor de Deus, como bre virgindade, continência ou celibato.
ocorre no voto de castidade dos religio- A dedicação total ao serviço das comu-
sos; chamamento ao sacerdócio na Igre- nidades acabará por conferir aos seus
ja latina, na qual vigora a lei do celibato responsáveis uma qualificação espiritual
clerical. Qualquer destas modalidades e social singular no seio do povo cristão,
suscita incompreensão, suspeitas e opo- que é consagrada pelo chamado sacra-
sições da parte de quantos delas discor- mento da ordem. O clérigo passa a gozar
dam, com base em razões diversas, psi- de um estatuto que o constitui como ser
cológicas, demográficas ou sociais. Das à parte, dotado de uma função e digni-
três modalidades, é a disciplina do celi- dade que o distingue dos simples fiéis ou
bato clerical que mais sustentada con- leigos. Forma-se assim no interior da so-
testação tem merecido, especialmente ciedade um estrato, seleto e privilegiado,
a partir da difusão da mentalidade ilu- com características de classe social, que
minista promotora dos direitos do Ho- acabou por se impor em relação ao povo
mem, com ênfase particular no direito comum como aristocracia sagrada. A
de viver segundo as inclinações da natu- obrigação do celibato, ao mesmo tempo
reza. Compreende-se, por isso, “não ha- que favorecia a sua disponibilidade para
ver na Igreja Católica outro problema se dedicar às tarefas do ministério ecle-
que seja tão sobrecarregado ideológica siástico, realçava o prestígio e excelência
e emocionalmente como é o debate so- da condição clerical.
bre o celibato eclesiástico, nem haver A principal contestação ao celibato
outro domínio da vida da Igreja onde partiu, no decurso dos tempos, daqueles
tanto se deturpe e dissimule, onde tan- membros do clero cujo comportamento
to se sofra e dispute” (DREWERMAN, se revelou contrário aos compromissos
1989, 273). que tinham assumido. Uma das mais
A obrigação do celibato clerical nem é ostensivas e militantes iniciativas contra
de instituição divina nem constitui maté- o celibato clerical veio da Reforma e foi
ria dogmática de fé. Tem natureza disci- personificada, na primeira metade do
plinar e resultou de longo processo de séc. xvi, pela prática e pela palavra do
desenvolvimento de exigências morais e reformador Martinho Lutero. Essa mo-
pastorais que, só muito tarde, em 1139, dalidade de refutação ativa da disciplina
no Segundo Concílio de Latrão, ditaram do celibato foi posteriormente intensi-

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358 AnticelibAtismo

ficada pelo aumento do número de pa- É notória a orientação iluminista da


dres casados durante as últimas décadas Memória, que segue de perto a obra Les
do séc. xx. Inconvéniens du Célibat, publicada sem
Momento significativo da contestação, nome de autor, em 1781, mas que sa-
em Portugal, à disciplina do celibato na bemos ter sido escrita pelo oratoriano
Igreja encontra-se no trabalho académi- francês Jacques Gaudin. O ensaio corres-
co com que o clérigo madeirense José pondia em cheio à sensibilidade seculari-
Manuel da Veiga (1795-1859) se apre- zadora do espírito das Luzes e provocou
sentou, em 1822, a provas na Faculdade enorme escândalo. O anticelibatismo da
de Cânones da Univ. de Coimbra. Nessa obra pressupunha uma antropologia de
investida contra o celibato clerical, há marca naturalista centrada na satisfação
duas partes que indiciam com meridia- das liberdades individuais a que a lei do
na clareza os propósitos do autor e que celibato ditava a frustração. Evidenciava,
interpretam a argumentação generaliza- por essa via, quanto de antissocial a lei
da na época das Luzes. A primeira parte encerrava, ao impedir o crescimento da
da Memória sobre o Celibato Clerical apre- população. A argumentação contra o celi-
senta a defesa da proposição segundo a bato recorre a observações curiosas sobre
qual “todo o homem é individualmente os efeitos perversos que a falta de expe-
obrigado a satisfazer aos votos da natu- riência conjugal provoca na imaginação
reza no estado de matrimónio” (VEIGA, dos celibatários. Vejamos algumas linhas
1822, 3). Na segunda parte, além de pro- de Les Inconvéniens du Célibat reproduzi-
clamar que “a lei do celibato clerical é das pelo autor da Memória: “Nota-se que
injusta, prejudicial à Igreja e ao Estado” os celibatários têm em geral a imagina-
(Id., Ibid., 42), conclui com a apresenta- ção mais enxovalhada e o propósito mais
ção de um projeto de reforma da dita libertino do que as pessoas casadas. Eu
lei. O arrazoado da Memória baseia-se no não excetuo mesmo os nossos eclesiásti-
princípio de que a lei do celibato é con- cos, e só o exemplo dos nossos casuístas
trária ao direito natural absoluto, i.e., o é uma boa prova. Eles, cuja curiosidade,
direito de que ninguém se pode eximir. sempre insaciável sobre este artigo, tanto
Não obstante, o autor alarga o leque de se apraz em publicar os segredos do leito
argumentos, tentando mostrar que tal nupcial e em imaginar ao prazer mons-
lei se opõe também ao evangelho, sendo tros que nunca existiram, manchando as
ainda injusta, ilegítima, prejudicial ao suas obras de impurezas, que toda a licen-
Estado e à Igreja. Conclui, depois, que ça das paixões jamais poderia produzir”
essa lei deve ser cassada pela Igreja ou (Id., Ibid., 146).
pelo Sumo Pontífice, devendo o poder Nem Jacques Gaudin nem José Manuel
civil, caso aqueles não o façam, tomar a da Veiga pretenderam atacar a Igreja,
iniciativa de a extinguir. Neste sentido, o mas apenas os escândalos a que, em sua
autor chega a rascunhar um decreto em opinião, a obrigação do celibato servia de
que propõe ao Sumo Pontífice que de- ocasião. O anticlericalismo de liberais e
clare a lei do celibato proscrita da Igreja. republicanos é que se vai encarregar de
No caso de não haver coragem para che- exibir as escandalosas infrações à discipli-
gar tão longe, propõe que, ao menos, ele na do celibato com propósitos de descré-
consinta o matrimónio de clérigos que dito e afronta ao clero e à Igreja.
preferem casar-se em vez de continuar Para a tese defendida na Memória
no exercício de funções sacerdotais. converge a “luz do sentimento” que o

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AnticelibAtismo 359

romantismo de Herculano acende sobre A abolição da disciplina do celibato


o celibato do sacerdote, nele descobrindo clerical foi, ao longo dos tempos, tema
“a ideia de irremediável solidão da alma a confinado a meios restritos de teólogos
que a Igreja condenou os seus ministros, e clérigos inconformistas ou de intelec-
espécie de amputação espiritual” que os tuais que nessa lei pretendiam ler uma
obriga a “junto do altar repelir metade da violação dos direitos da natureza huma-
nossa alma” (HERCULANO, s.d., IV-V). na. A questão passou, desde o séc. xix, a
Outros autores retomaram essa mesma adquirir presença crescente na imprensa
contestação em Portugal. Registem-se, sob a forma de artigos de opinião e de co-
entre muitos outros, os nomes de José mentário aos casos de padres que infrin-
Leandro da Costa, que em números su- giam a regra do celibato. Mais tarde, a ge-
cessivos da 2.ª série do Archivo Univer- neralidade das críticas à obrigatoriedade
sal, entre agosto e dezembro de 1859, do celibato passou a basear-se sobretudo
se ocupou do tema; Costa Godolfim e o na desconstrução das várias fases histó-
seu opúsculo O Celibato Clerical, de 1872; ricas de elaboração e institucionalização
e ainda o caso singular de Sampaio Bru- da lei. Seguindo a proposta de um ensaio
no em A Questão Religiosa, obra de 1907 de Alberto Campinho (2000), podemos
em que defende o fim do celibato como sintetizá-las da maneira seguinte: a) prá-
modo eficaz para acabar com a domina- ticas de ascese sexual de origem pagã que
ção religiosa do padre sobre o universo terão contaminado comportamentos de
feminino, de que a confissão auricular alguns núcleos de cristãos dos primeiros
seria o principal instrumento. séculos; b) exigência ditada por concílios
O Concílio Vaticano II sublinhou o va- provinciais a partir do séc. iv, em que se
lor do celibato e manteve nessa matéria revigora a marca de encratismo sobre a
a posição tradicional da Igreja. Mas o as- sexualidade no matrimónio; c) o chama-
sunto nem sequer chegou a ser debatido do pan-monaquismo, que aplica ao clero
na aula conciliar. Depois do Concílio, o secular o conselho evangélico de castida-
tema foi conquistando terreno no seio de professado por monges e membros
da Igreja e veio à ribalta da comunica- de ordens religiosas, e faz da vida clerical
ção social. A Igreja holandesa adiantou- uma espécie de vida monástica degrada-
-se, agitando as águas, ao propor à Santa da, como defende Yves Congar; d) deci-
Sé que deixasse abrir o diálogo com o sões conciliares do Segundo Concílio de
Papa e com o colégio dos bispos sobre a Latrão (1139) e do Concílio de Trento
questão do celibato. Nasceu assim uma (1545-1563) que, como vimos atrás, con-
situação de tensão entre Roma e as Igre- firmaram a imposição do celibato ecle-
jas locais. O cardeal Suenens, arcebispo siástico e a estenderam a todo o universo
de Mechelen entre 1961 e 1979, mostrou da Igreja latina.
grande abertura para o pretendido diálo- As discussões sobre esta matéria e o
go, que, segundo ele, fazia todo o senti- protesto e a recusa que ela suscita envol-
do dentro do princípio de colegialidade, veram quase sempre apenas atores do
aceitando mesmo que, à semelhança do sexo masculino. Foi já no final do séc. xx
diaconado permanente exercido por ho- que mulheres com experiências de ena-
mens casados, também para o celibato moramento e de relacionamento sexual
sacerdotal se deveria ponderar uma solu- com padres se começaram a organizar e
ção pluralista, atendendo às necessidades a fazer ouvir a sua voz junto das mais ele-
pastorais de cada Igreja local. vadas instâncias da Igreja. Nos começos

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360 AnticentrAlismo

do séc. xxi, a questão estava encerrada


no interior da estrutura eclesial, embora
Anticentralismo
continuasse a suscitar debates no seio da
sociedade e da opinião pública.

Bibliog.: CAMPINHO, Alberto, A Lei do Celi-


bato Eclesiástico: Ensaio sobre o Clero – Classe So-

O
cial, Braga, Bezerra Editora, 2000; DREWER- anticentralismo é o conjunto de
MANN, Eugen, Funcionários de Deus: Psicograma
manifestações políticas, ideológicas
de Um Ideal, Mem Martins, Inquérito, 1989;
GARNEL, Rita, “A polémica sobre o celibato e culturais tendentes a pôr em causa o sis-
eclesiástico (1820-1911)”, Penélope, n.º  22, tema centralista do Estado. São principais
2000, pp. 93-116; HERCULANO, Alexan- vetores desta luta anticentralista o muni-
dre, Eurico, o Presbítero, ed. crítica dirigida cipalismo, o regionalismo administrativo
por Vitorino Nemésio, Lisboa, Bertrand, s.d.; e autonómico, o parlamentarismo e a li-
HOUTIN, Albert, Courte Histoire du Célibat Ec- vre expressão democrática. O pensamen-
clésiastique, Paris, Éditions Rieder, 1929; Les
to iluminista europeu, na sua generalida-
Inconvéniens du Célibat des Prêtres, Prouvés par
des Recherches Historiques, Genève, J. L. Pellet, de, está na base deste combate, podendo
1781; MIGNOT, Elisa, Amours Interdites des Prê- citar-se alguns nomes representativos de
tres et des Femmes Parlent, Paris, Fayard, 2012; tal pensamento, como Guizot, Thierry e
PEREIRA, Martinho Rocha, A Questão do Ce- Tocqueville.
libato no Anticlericalismo Português (1820-1911), O municipalismo, enquanto forma de
Dissertação de Mestrado em Estudos Portu- intervenção dos cidadãos no poder local,
gueses apresentada à Universidade de Aveiro, ocupa lugar cimeiro na história de Portu-
Aveiro, texto policopiado, 2003; VEIGA, José
gal, entroncando a sua origem na herança
Manoel da, Memoria sobre o Celibato Clerical Que
Deve Servir de Fundamento a Uma das Theses dos romana, germânica e árabe. Assim, na de-
Actos Grandes de Seu Autor, Coimbra, Imprensa signação de Alexandre Herculano (1810-
da Universidade, 1822. -1877), os concelhos perfeitos tiveram ori-
gem no sistema jurídico-administrativo de
Luís Machado de Abreu
Roma, tendo sido assimilados pelos visigo-
dos, enquanto os imperfeitos ou rudimen-
tares foram formados durante o processo
da Reconquista cristã aos mouros.
Concedidos pelo instrumento jurídico
do foral, ou carta de foro, os concelhos
receberam o seu incremento ainda antes
da nacionalidade portuguesa, por moti-
vos ligados ao povoamento. Foi o que
ocorreu com os de Guimarães (1095-
-1096) e de Coimbra (1111). Assim, en-
tre 1096 e 1128, D. Henrique e D. Te-
resa concederam 11 forais, enquanto
os conferidos por D. Afonso Henriques
entre 1128 e 1185 somaram 31. Dos
monarcas seguintes, D. Afonso III, con-
quistador do Algarve, foi o maior outor-
gante de forais (92 entre 1246 e 1275),

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AnticentrAlismo 361

seguindo-se-lhe D. Sancho I, o Rei povoa- quia e fraqueza do Governo, é que pode


dor (58, entre 1185 e 1211), D. Afonso II justificar de algum modo este sistema de
(28, entre 1211 e 1223) e D. Sancho II (24, legislação, o qual começou a cair em de-
entre 1223 e 1245). suso à proporção que se foram publican-
Tanto os concelhos do Norte, predo- do as Leis Gerais” (ROCHA, 1841, 79).
minantemente rurais e cristãos, com De modo convergente, o federalis-
povoamento disperso, como os do Sul, ta António Pedro Lopes de Mendonça
urbanos e de herança islâmica, além de (1826-1865), apoiante do Governo rege-
favorecerem a fixação da população, per- nerador de Rodrigo da Fonseca Maga-
mitiram ao poder régio, juntamente com lhães e Fontes Pereira de Melo, põe em
as inquirições, limitar a expansão e con- causa o municipalismo retrógrado e fe-
solidação do poder senhorial, vendo-se chado, face ao desenvolvimento ferroviá-
os senhores coagidos a concederem tam- rio, em oposição a Herculano: “Como se
bém eles forais, a fim de evitarem a fuga pode ligar esta revolução nos hábitos, nos
dos trabalhadores para os concelhos ou a costumes, nos fenómenos de produção, e
sua revolta. de consumo, com a ideia de um município
Deste modo, o municipalismo portu- vivendo sobre si mesmo, administrativa e
guês e ibérico representa, como reconhe- industrialmente independente, mais ou
ceu Herculano, um pilar fundamental da menos separado de interesses dos outros
democracia: “A história da instituição e municípios, restrito, circunscrito, na sua
multiplicação dos concelhos é a história individualidade social e política?” (MEN-
da influência da democracia na socieda- DONÇA, Revolução de Setembro, 25 abr.
de, da ação do povo na significação vulgar 1853, 61).
desta palavra, como elemento político” Segundo Antero de Quental, o muni-
(HERCULANO, 1980, III, 314). Olivei- cipalismo entra em decadência durante
ra Martins, por seu turno, caracteriza a
Idade Média como uma combinatória do Conde D. Henrique (1066-1112).
poder senhorial e do municipal: “Os con-
celhos são, como os senhorios, membros
quase independentes de uma federação
política. A nação é a congregação de um
sistema de domínios aristocráticos e de
um sistema de comunas democráticas”
(MARTINS, 1994, 169).
Em contrapartida, o jurista Manuel
Coelho da Rocha (1798-1850) considera
a autonomia municipal medieval como
primitiva e obstáculo à desejável centrali-
zação nacional: “Em lugar de centralizar
o Governo e de dar unidade à Legislação
e aos povos espírito de nacionalidade,
estas Leis somente serviam de os isolar,
e de cortar entre eles as relações sociais.
Apenas a necessidade de prover imedia-
tamente a povoação, e urgências do país,
que se ia conquistando no meio da anar-

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362 AnticentrAlismo

o Antigo Regime, ressurgindo com a sua 1976, que repôs a legalidade democráti-
vitalidade democrática com o novo re- ca na sequência do 25 de Abril de 1974.
gime. Para ele, “entre todos os povos da Após o Estado Novo e a Reforma do Có-
Europa central e ocidental, somente os digo Administrativo de Marcelo Caetano
da Peninsula escaparam ao jugo de ferro (1936-40), que procedeu à nomeação
do feudalismo”, apresentando uma união dos presidentes de Câmara e dos rege-
de “interesses e sentimentos” entre “no- dores de freguesia pelo poder central, a
bres e populares” na Idade Média, sendo Constituição do regime democrático, no
“a coroa dos reis” “mais um símbolo bri- seu art.  237.º, consagrou a autonomia
lhante do que uma realidade poderosa” financeira e administrativa dos municí-
(QUENTAL, 1926, 96). Assim, com o pios e das freguesias, com as respetivas
advento do séc. xvi, “a vida municipal assembleias, embora, na prática, o poder
afrouxa gradualmente: […] As institui- autárquico continuasse dependente do
ções locais, cerceadas por todos os lados, Governo. A lei n.º 1/79, de 2 de janeiro,
sentem faltar-lhes em volta o ar, e o chão estabeleceu a autonomia das finanças
debaixo de si. Quem poderá jamais con- locais, mas essa autonomia viria a ser li-
tar com essas invasões surdas, insensiveis mitada por leis posteriores, como a lei
do poder real no terreno do povo, essas n.º 98/84, de 24 de março. No entanto,
lutas subterraneas, as abdicações sucessi- a lei n.º 1/87, de 6 de janeiro, conferiu
vas da vontade nacional nas mãos dum à Associação Nacional dos Municípios
homem, as resistencias infelizes, a longa Portugueses a representação dos inte-
e cruel historia do desaparecimento dos resses municipais. A dificuldade de ob-
fóros populares?” (Id., Ibid., 125). tenção de recursos financeiros próprios
No entanto, o esforço de controlo da e a crise económica que se instalou nos
administração política a partir do Terrei- começos do séc. xxi foram, nesta fase, os
ro do Paço constituiu um obstáculo prá- principais obstáculos à plena autonomia
tico ao municipalismo do país no regime financeira e administrativa do poder lo-
liberal, como se continuasse o seu ante- cal. A reformulação das freguesias pela lei
cessor absolutista. Exemplo desta práti- n.º 56/2012, de 8 de novembro, causou
ca é o relatório que precedeu o Código grande celeuma, por obrigar à fusão de
Administrativo de 1886, reconhecendo grande parte daquelas autarquias.
a anarquia financeira de muitos municí- O regionalismo administrativo foi in-
pios e o excesso fiscal. Somente o Código troduzido em 1832 pelo governo liberal
de 1878 pretendeu a “vivificação da admi- no exílio nos Açores, com as Juntas Gerais
nistração local” (PINTO, 1996, 40). Por (provinciais), tendo vigorado até 1892,
isso, o I Congresso de Municípios, reali- data em que aquelas foram substituídas
zado em Lisboa, em 1909, com a adesão pelas Juntas Distritais, que se mantiveram
de 158 autarquias, 87 das quais se fizeram até à instauração da república. Apesar da
representar, reivindicou “para os municí- consagração das regiões administrativas
pios do país as liberdades e franquias de na Constituição de 1976, esta nunca foi
que sucessivamente foram sendo desa- implementada, tendo mesmo sido refe-
possadas por uma repressão centralizado- rendada negativamente em 1998.
ra” (MACHADO, 2004, 17). O regionalismo autonómico foi con-
Introduzida a noção de poder local sagrado primeiramente em relação aos
na Constituição republicana (1911), a Açores (dec. de 2 de março de 1895) e
mesma foi retomada na Constituição de depois em relação à Madeira (dec. de 8

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AnticentrAlismo 363

de agosto de 1901). A Constituição de municipalista, consagra os princípios da


1976 voltou a consagrar este aspeto, que eleição democrática, da autonomia e da
tinha sido suspenso durante o Estado suficiência financeira. A Constituição de
Novo (& Anticontinentalismo). 1976 foi objeto de seis revisões (1982,
O parlamentarismo só foi introduzido 1989, 1992, 1997, 2001 e 2004), impulsio-
em Portugal com a revolução liberal. Efe- nadas pela definição política do objetivo
tivamente, as Cortes do Antigo Regime de uma sociedade sem classes. Todavia,
eram meros instrumentos de consulta mantém a abertura progressista aos direi-
do poder régio. A Constituição de 1822 tos e deveres dos cidadãos, à independên-
rompe com o Antigo Regime, ao entron- cia dos três poderes políticos (legislativo,
car “as desgraças públicas” do passado executivo e judicial) e à autonomia das
“no desprezo dos direitos do cidadão e instituições democráticas. O constitucio-
no esquecimento das leis fundamentais nalista Jorge de Miranda criticou, não
da Monarquia” (“Preâmbulo”). O título i, propriamente o número de revisões a
“direitos e deveres individuais dos portu- que foi submetida a Constituição em 26
gueses”, é constituído por 19 artigos, no anos – em comparação com os 4 atos adi-
primeiro dos quais se defende a proteção cionais da Carta, em cerca de 70 anos, as
da liberdade, segurança e propriedade 5 revisões da Constituição de 1911 e as 9
de todos os cidadãos, reconhecendo-se da de 1933, em 41 anos –, mas a exten-
democraticamente, no art. 7.º, a liber- são das mesmas revisões, à exceção das
dade de comunicação dos pensamentos de 1992 e 2001, chegando a de 1997 ao
como “um dos mais preciosos direitos extremo, único no mundo, de modificar
do homem”. A eleição dos deputados é 150 artigos (do 92.º ao 262.º).
consagrada democraticamente em todas Apesar de se limitarem a um voto
as Constituições, à exceção da que funda- consultivo, as Cortes não deixaram de
menta o Estado Novo, em 1933, de cariz constituir, porém, um pilar de uma cer-
autoritário e corporativo. A efemeridade ta representatividade nacional no poder
e a pulverização das constituições libe- legislativo nos períodos em que foram
rais (1822, Carta Constitucional de 1826, convocadas, sendo o seu abandono ou
1838, oriunda da revolução setembrista menosprezo fruto do absolutismo reinan-
de 1836) são características da instabili- te no Antigo Regime. Este menosprezo
dade do regime implantado pela Revolu- absolutista constituiu, para a geração de
ção de 1820, agravada com a Guerra Civil 70, designadamente Antero de Quental e
(1828-1834). A Carta Constitucional ou- Oliveira Martins, uma das causas da deca-
torgada por D. Pedro IV, a única do regi- dência. Com efeito, durante a Idade Mé-
me não oriunda de uma revolução, vigo- dia, desde 1211 até 1478, realizaram-se
rou não apenas entre 1826 e 1828, sendo 80 assembleias chamadas cortes, cúrias,
retomada, após a vitória dos liberais na concílios ou parlamentos, enquanto de
Guerra Civil (1834-1836), mas também 1481-1482 até 1820, se efetuaram apenas
após o setembrismo (1842), mantendo-se 25, tendo-se verificado em 1828 apenas 1,
até à Implantação da República (1910), em Lisboa.
embora modificada por quatro atos adi- A livre expressão democrática, para
cionais, na sequência do regime instau- além da descentralização das instituições
rado, em 1851, pela Regeneração (1852, do Estado, aliada à mobilização dos cida-
1885, 1895/1896, 1907). A Constituição dãos no sentido da defesa e promoção
republicana (1911), progressista, laica e dos seus direitos fundamentais, coroa e

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364 AnticentrAlismo

legitima em cada momento histórico a Oliveira, História da Civilização Ibérica, Lisboa,


justa e adequada orientação política do Guimarães Editores, 1994; MENDONÇA,
país e das instituições europeias e mun- António Pedro Lopes de, “O caminho-de-fer-
ro e a nacionalidade”, Revolução de Setembro,
diais em que este se insere. O Tribunal
25  abr. 1853, p. 61; MIRANDA, Jorge de,
Constitucional e outras instituições, As Constituições Portuguesas. De 1822 ao Texto
como o provedor de justiça e vários movi- Actual da Constituição, 4.ª ed., Lisboa, Livraria
mentos cívicos, têm a função histórica da Petrony, Lda., 1997; PINTO, Aires de Jesus
preservação dos direitos e das garantias Ferreira, O  Município Português (Séculos XIX e
dos cidadãos. XX), Coimbra, Centro de Estudos e Forma-
O anticentralismo está bem expresso ção Autárquica, 1996; QUEIRÓS, Eça, Os
Maias, Lisboa, Livros do Brasil, s.d.; QUEN-
na frase da personagem Ega de Os Maias,
TAL, Antero de, “Causas da decadencia dos
de Eça de Queirós, fazendo-se eco da ge- povos peninsulares nos ultimos tres secu-
ração de 70: “Lisboa é Portugal! – gritou los”, in QUENTAL, Antero de, Prosas, vol.  ii,
o outro. Fora de Lisboa não há nada. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926,
O país está todo entre a Arcada e S. Ben- pp. 93-140; RIBEIRO, Maria Manuela Tava-
to” (QUEIRÓS, s.d., 170). res, “Centralização – descentralização: uma
polémica nos meados do séc.  xix”, Revista de
Ciências Históricas, vol. 5, 1990, pp. 343-352;
ROCHA, Manuel Coelho da, Ensaio para a
História do Governo e da Legislação de Portugal,
Bibliog.: impressa: ABRUNHOSA, Ângelo, para Servir de Introdução ao Estudo do Direito Pá-
“Centralismo e anticentralismo no movi- trio, Coimbra, s.n., 1841; digital: MIRANDA,
mento constitucional em Espanha e Portu- Jorge de, “Acabar com o frenesim constitu-
gal”, Polis-Revista de Estudos Jurídico-Políticos, cional e debater a Europa”, Público, 28 jul.
n.os  18-21, 2012, pp. 5-30; BRANCO, João 2002: http://www.publico.pt/espaco-publi-
Pedro, O Municipalismo no Pensamento de Ale- co/jornal/acabar-com-o-frenesim-constitu-
xandre Herculano (1834-1859), Dissertação cional-e-debater-a-europa-173194 (acedido
de Mestrado em Cultura e Formação Autár- a 27 abr. 2016).
quica apresentada à Universidade de Lisboa,
António Moniz
Lisboa, texto policopiado, 1997; CATROGA,
Fernando, “Alexandre Herculano e o histori-
cismo romântico”, in TORGAL, Luís Reis et
al., História da História em Portugal (Sécs. XIX-
-XX), vol. i, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998,
pp. 39-85; COELHO, Maria Helena da Cruz,
“Alexandre Herculano: a história, os docu-
mentos e os arquivos no século xix”, Revista
Portuguesa de História, t. xlii, 2011, pp. 61-84;
HERCULANO, Alexandre, História de Portugal,
vols. iii e iv, Lisboa, Bertrand, 1980; MACHA-
DO, José Joaquim Ferreira, A Administração
Municipal de Ponta Delgada nos Primórdios da Au-
tonomia (1896-1910), Dissertação de Mestra-
do em História Insular e Atlântica, Séculos XV
a XX apresentada à Universidade dos Açores,
Ponta Delgada, texto policopiado, 2004;
MARQUES, José, “Os municípios portugue-
ses. Dos primórdios da nacionalidade ao fim
do reinado de D. Dinis”, Revista da Faculdade
de Letras, n.º 10, 1993, pp. 69-90; MARTINS,

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AntichArlAtAnismo 365

Anticharlatanismo curar com palavras adquiria legitimida-


de oficial em Portugal e que, no mesmo
documento, podia mesmo atribuir-se ao
soldado e curador António Rodrigues
um pagamento anual estimado em 40
mil réis, que permitia ao exército “se po-
der valer dele” (BRAGA, 1986, II, 154).

N a origem do charlatanismo está


o verbo “charlar”, i.e., falar muito
e sem propósito. Quem assim definia
Se é certo que a denúncia das más prá-
ticas associadas a curandeiros, charlatães
e mezinheiros se intensifica durante
o último conceito era o clérigo teatino todo o séc. xviii na literatura, num re-
Rafael Bluteau no seu monumental Vo- gisto que pouco divergirá daquele que
cabulário Português e Latino, lembrando encontramos no Vocabulário de Bluteau,
que o termo “charlatão” subsumia, em importa ler esta tendência discursiva à
particular, uma espécie de vadios que luz de uma certa aceitação destes agen-
singrava na Europa comercializando tes e dos serviços e produtos por eles dis-
drogas medicinais, com clara predomi- ponibilizados. Não obstante os esforços
nância das triagas, e também unguentos, persecutórios bem recuados da justiça
destacando-se pela visibilidade que con- civil, dos tribunais episcopais e da In-
seguiam alcançar na promoção dos seus quisição portuguesa a toda a vasta gama
produtos. Com o intuito de alcançarem de curadores, saludadores e benzedeiras
tal visibilidade, descrevia Bluteau, “so- não autorizados – acusados de “curas
bem em cima de uma mesa, ou de um supersticiosas” e, não raras vezes, de
tablado nas praças públicas, […] persua- lograrem tais virtude através de “pacto
dem a gente e muitas vezes a enganam” diabólico” (PAIVA, 1997, 361) –, o uni-
(BLUTEAU, 1712, 277). Redigidas em verso da medicina popular permanecerá
1712, as palavras de Bluteau ilustram o bem vivo ao longo de todo o século das
sentimento de desconfiança em relação Luzes. Importa também sublinhar que a
a estes indivíduos loquazes e astutos, adesão a este tipo de procedimentos não
numa tendência discursiva que se acen- se esgotava nos segmentos populacionais
tuará no decurso do séc. xviii e da cen- mais baixos. Basta lembrar que, nas pri-
túria seguinte, com especial incidência meiras décadas do séc. xviii, há indícios
na literatura médica e no discurso oficial de que a própria família real possa ter
das autoridades de saúde. Se a tendên- recorrido aos serviços de um famoso
cia condenatória destes praticantes tem curandeiro lisboeta, de nome João Bap-
origens literárias bem mais recuadas, tista de São Miguel. A reputação adquiri-
não terão sido também raros os casos da pelo rapaz virtuoso, em especial junto
de aceitação, que cremos mais ou me- dos grandes da capital, havia de suscitar
nos generalizada, de certas práticas que, a atenção das mais altas instâncias do
pelas suas próprias características, não poder real, que parecem ter consentido
podiam deixar de se enquadrar na defi- na sua presença no “Paço quando teve
nição contida no Vocabulário de Bluteau. bexigas a senhora princesa das Astúrias”,
Basta evocar, seguindo a lição de Teófi- ou seja, D. Maria Bárbara de Bragança
lo Braga, que em meados do séc. xvii, (SANTANA, 1996, 113).
por alvará de D. João IV datado de 13 É procurando fazer face a esta concor-
de outubro de 1654, a capacidade de rência, que parecia não dar tréguas, que

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366 AntichArlAtAnismo

médicos e cirurgiões portugueses se em- trinais de Cem Casos Gravíssimos (1707),


penham no combate ao charlatanismo para depreender que o seu autor, João
em prol do esclarecimento e da saúde Curvo Semedo, conhecido médico lis-
dos povos. Combate multifacetado, que boeta e também ele familiar do Santo
se traduziu na diversidade de estratégias Ofício, não era indiferente à prolifera-
preconizadas por estas classes profissio- ção de charlatães que se encontravam
nais. Evoque-se, e.g., a colaboração de usurpando as funções médicas e cirúrgi-
um número não negligenciável de mé- cas pois, como sublinhava, “não há velha
dicos e cirurgiões com a própria Inquisi- remelosa, nem remendão, nem mariola,
ção, tendo como propósito a identifica- ou estrangeiro saltimbanco, que não se
ção e denúncia dos praticantes de curas atreva a curar e aplicar remédios com
ilícitas. Como demonstrou recentemen- tanta ousadia, como quem joga da bolsa
te Timothy Walker, esta articulação de alheia” (SEMEDO, 1741, 496).
esforços entre religiosos e doutores do Palavras idênticas podem ser lidas
corpo intensificou-se entre 1715 e 1760, na literatura portuguesa das primeiras
estando longe de corresponder a um décadas de Setecentos. Pensamos, por
fenómeno marginal; aspecto que está exemplo, na célebre Medicina Lusitana de
bem patente na dimensão intelectual Francisco da Fonseca Henriques, publi-
de alguns dos médicos e cirurgiões que cada em 1710 e conhecendo posteriores
ascenderam à posição de familiares do edições em 1731 e 1750, e na Anacepha-
Santo Ofício, num conjunto que inclui leosis Médico-Teológica, Mágica, Jurídica,
nomes tão diversos como o do cirurgião Moral e Política de Bernardo Pereira, de
António Ferreira, autor de Luz Verdadei- 1734. Obras que surgem num quadro
ra e Recopilado Exame de toda a Cirurgia, cultural muito específico, onde a conde-
publicada em edições sucessivas entre nação e denúncia das práticas associadas
1683 e 1757, José Rodrigues de Abreu, a curandeiros, saludadores e charlatães
autor de Historiologia Médica (1733), e coexistiam com longas e detalhadas ex-
João Mendes Sachetti Barbosa, autor de posições de episódios clínicos de impo-
Considerações Médicas (1758). tência sexual decorrente de “ligação por
Os livros foram, sem dúvida, outra das arte diabólica” (Id., Ibid., 566-567), bem
estratégias utilizadas em prol do com- como com relatos de indivíduos atingidos
bate ao charlatanismo. Textos médicos, por quebranto, mau-olhado ou outros ti-
redigidos em vernáculo e movidos por pos de fascinação, sem esquecer a enu-
um intuito pedagógico, cumpriram nes- meração das soluções terapêuticas mais
te período a dupla função de mobilizar, adequadas.
não só os indivíduos, mas também o Atitude intelectual bem diversa é aque-
próprio poder político, para a urgência la que encontramos na literatura médica
de pôr cobro à influência nefasta dos portuguesa e europeia da segunda meta-
curadores extraoficiais junto das popula- de do séc. xviii, marcada por uma radi-
ções. No séc. xviii, este tipo de denún- calização no combate ao charlatanismo e
cias representa quase uma invariável na pelo abandono da convicção de que era
literatura médica, ecoando não só nos possível os corpos ofenderem-se à dis-
livros de autores portugueses, mas tam- tância, verdadeiro fundamento daquelas
bém nos livros traduzidos. Entre nós, supostas moléstias, doravante considera-
basta olhar para uma obra de inícios do das puras superstições. Capítulos inteira-
século como as Observações Médicas Dou- mente consagrados aos charlatães e mezi-

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AntichArlAtAnismo 367

nheiros tornam-se cada vez mais comuns.


É o caso do Aviso ao Povo de Samuel-An-
dré Tissot que, rapidamente traduzido
para português em sucessivas edições,
considera o combate ao charlatanismo a
pedra angular de uma política de saúde
consequente. Por isso defenderá, para
além de outras medidas, a criação de
“uma lista de todos estes falsos médicos,
de um e outro sexo, e que se publicasse
a mais exata descrição, acompanhada das
suas sanguinolentas façanhas” (TISSOT,
1777, II, 269).
Propostas de alcance idêntico podem
ser lidas em autores portugueses como
António Ribeiro Sanches ou José Hen-
riques Ferreira. Nas últimas décadas do
séc. xviii, a preocupação dominante dos
médicos que escrevem a propósito do
charlatanismo prende-se sobretudo com
a comercialização de drogas medicinais
e remédios de segredo, medicamentos Rosto de Aviso ao Povo sobre a sua Saude,
sem fórmula conhecida, género de pa- de Samuel A. D. Tissot.
naceia para todos os males. Na literatura
médica do período o tema é recorren- a substituir temporariamente os cargos
te, assim como o será nos arquivos dos de físico e cirurgião-mor do reino, não
órgãos de saúde pública, em especial foi indiferente aos libelos acusatórios
da Junta do Protomedicato, criada em dirigidos ao charlatanismo, publicados
1782. As fontes de que dispomos levam- durante anos a fio na literatura médica
nos a acreditar que charlatães e mezi- nacional. O protomedicato reconhecia
nheiros faziam parte do quotidiano das a urgência de erradicar o “inextinguível
populações citadinas e rurais nestas enxame” (ANTT, Ministério do Reino...,
últimas décadas de Setecentos. No seu mç. 469, “Regimento”) de curandeiros,
Discurso Crítico, José Henriques Ferreira charlatães e impostores que campeavam
tinha oportunidade de notar que se po- no país, comercializando as mais diver-
diam ver, em várias cidades do reino, “a sas substâncias medicamentosas e remé-
cada passo cartazes impressos, e afixados dios de segredo, ou disponibilizando
nas esquinas das ruas, além da gazeta, outro tipo de serviços às populações. To-
nos quais se noticiam estas imposturas” davia, até 1809, ano da extinção oficial
sendo que muitos destes agentes extrao- da Junta, o protomedicato não parece
ficiais chegavam até “a publicar que têm ter tido muito sucesso na erradicação
licença, e autoridade daqueles mesmos, destes fenómenos. Para tal, não terá sido
que os devem proibir e castigar” (FER- indiferente a falta de colaboração das
REIRA, 1785, 9-10). populações e das próprias autoridades
Criada em 1782, a Junta do Protome- locais com os comissários e visitadores da
dicato, órgão de saúde pública que viria Junta, nos seus esforços para identificar

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368 AntichArlAtAnismo

e reprimir os infratores. Aspecto muitas preocupações centrais dos órgãos de saú-


vezes agravado pela anuência da cúpu- de pública posteriores. O Conselho de
la do poder político, numa situação que Saúde Pública, e.g., intentará pôr cobro
não conhecerá grandes transformações ao problema reclamando ao governo e
nas primeiras décadas do séc. xix. Por aos poderes locais o aperfeiçoamento da
volta de 1826, o então delegado do ci- cobertura terapêutica do território, em
rurgião-mor do reino, Jacinto José especial nas zonas rurais, onde o char-
Vieira, tinha ainda a oportunidade de latanismo mais condições tinha de me-
descrever uma vasta panóplia de charla- drar. A estratégia passaria sobretudo por
tães lisboetas que se dedicavam ao trata- obrigar “todas as Câmaras Municipais do
mento de várias moléstias de medicina Reino […] a ter médicos e cirurgiões de
e cirurgia, as “mais difíceis ou impossí- partido, que tratem os doentes de todo o
veis de curar”, encontrando-se, para tal, município” (Ibid.). Medidas projetadas,
“munidos, em nome d’El Rei, por avisos cujos efeitos práticos se tornam difíceis
da Secretaria de Estado dos Negócios do de apreciar. Seja como for, o Conselho
Reino” (ANTT, Ministério do Reino..., de Saúde Pública reconhecia que as polí-
mç. 470, “Carta do cirurgião-mor do rei- ticas repressivas do passado não podiam
no de 24 de agosto de 1826”). surtir efeito enquanto não se atalhassem
Longe de constituir um caso isolado, as verdadeiras razões que conduziam os
os arquivos das autoridades de saúde das povos a aceitar de bom grado os serviços
primeiras décadas encontram-se povoa- prestados por mezinheiros, curandei-
dos por descrições idênticas. Talvez por ros e charlatães. Aliás, a documentação
isso se justifique que, nas memórias e emanada deste órgão oficial continuará
outros escritos enviados por médicos e a deplorar a existência das mesmas “cau-
cirurgiões às Cortes Gerais, Extraordiná- sas poderosas, que os [aos charlatães]
rias e Constituintes no início da déc. de protegem e os sustentam, além de serem
1820, se continuasse a apontar a existên- mui frouxamente executadas estas leis,
cia de charlatães como razão explicativa e regulamentos” (ANTT, Ministério do
da falta de clínicos no país. É que esta Reino..., mç. 2072, doc. 212).
concorrência dos curadores extraoficiais Mas, à medida que nos aproximamos
deslustrava, como se dizia, a “represen- da segunda metade do séc. xix, embora
tação e dignidade civil” (OLIVEIRA, em número que permanece por apurar,
1992, 121) de médicos e cirurgiões habi- há indícios de curandeiros famosos le-
litados, tornando estas profissões pouco vados à barra dos tribunais, a requeri-
ou nada apetecíveis. Nas palavras de um mento do Conselho de Saúde Pública
profissional de saúde, Manuel Joaquim e respondendo pelo crime de curar de
Moreira, numa das missivas endereça- medicina sem habilitações legais. Era o
das ao soberano congresso: “Não há in- caso de João Daniel de Sines, leitor com-
centivo que convide, e há motivos que pulsivo das obras de François-Vincent
desviam do estudo da Medicina; eis aqui Raspail, cujas receitas médicas pretendia
claramente a razão da falta de médicos” difundir junto das populações. A sua po-
(Id., Ibid., 121). sição era privilegiada, já que se tratava
Com efeito, não é com estranheza que de um droguista, dono de loja própria,
constatamos que o grande “aluvião de onde fabricava e comercializava produ-
charlatães” (Anais do Conselho..., 1842, tos químicos e licores. Mas, se este caso
VIII, 31) permanecerá como uma das judicial pode pronunciar certo impulso

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AntichArlAtAnismo 369

das autoridades no combate ao char- Bibliog.: manuscrita: ANTT, Ministério do


latanismo, a descrição do julgamento Reino, mç. 470, Negócios de Saúde Pública; Ibid.,
dá-nos igualmente conta das inúmeras Ministério do Reino, Comissão de Saúde Pú-
dificuldades que tal batalha continuava blica, mç. 2072, doc. 212, 1835-43; Ibid., Mi-
nistério do Reino, Junta do Protomedicato,
a encerrar. Como afirma o redator da
mç. 469, Negócios Diversos, 1778-1808; impres-
sessão do julgamento, o Conselho de sa: Anais do Conselho de Saúde Pública, Lisboa,
Saúde Pública “achou-se face a face com Tipografia Lisbonense, 1838-42; BLUTEAU,
um adversário inteligente e fogoso”, Rafael, Vocabulário Português e Latino, vol. 2,
numa descrição que relembra as pala- Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de
vras de Bluteau um século e meio antes. Jesus, 1712; BRAGA, Teófilo, O Povo Português
Indivíduo loquaz e astuto, o praticante nos Seus Costumes, Crenças e Tradições, 2 vols.,
extraoficial tinha agora, em tribunal, a Lisboa, Dom Quixote, 1986; FERREIRA, José
Henriques, Discurso Crítico em que Se Mostra o
oportunidade de contrapor a medicina
Dano Que Tem Feito aos Doentes, e ao Progresso da
popular, democrática e livre, ao império Medicina em Todos os Tempos, a Introdução, e Uso
da medicina privilegiada e académica, de Remédios de Segredo, e Composições Ocultas, não
fechada e iniciática. Por isso, repudiava só pelos Charlatães, e Vagabundos, mas também pe-
perante os juízes o “monopólio e o privi- los Médicos, Que os Têm Imitado, Lisboa, Oficina
légio” da medicina oficial que, em acor- de Filipe da Silva e Azevedo, 1785; HENRI-
do com as leis do reino, mais não fazia QUES, Francisco da Fonseca, Medicina Lusitana:
do que dominar o homem doente. Nas Socorro Délfico aos Clamores da Natureza Humana
para Total Profligação de Seus Males, Amesterdão,
suas palavras, a medicina popular consti-
Casa Miguel Dias, 1710; OLIVEIRA, Luísa Tia-
tui um correlato do princípio da liberda-
go de, A Saúde Pública no Vintismo, Lisboa, Cen-
de: “pois, se isto nos fosse vedado, o que tro de Estudos de História Contemporânea/
ficava sendo o homem doente, senão Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
uma propriedade da medicina?” (Sessão da Empresa, 1992; PAIVA, José Pedro, Bruxaria
do Julgamento..., 1852, 27) Argumentos e Superstição num País sem “Caça às Bruxas”, Lis-
que surtirão os seus efeitos. A sua senten- boa, Notícias, 1997; PEREIRA, Bernardo, Ana-
ça havia de declarar que “está provado cephaleosis Médico-Teológica, Mágica, Jurídica, Mo-
que o réu João Daniel de Sines não tem ral e Política, Coimbra, Oficina de Francisco de
Oliveira, 1734; SANTANA, Francisco, Bruxas e
curado de medicina, nem se tem incul-
Curandeiros na Lisboa Joanina, Lisboa, Alternativa
cado médico nem cirurgião para iludir a Gráfica, 1996; SEMEDO, João Curvo, Observa-
fé pública. Tem dito a todos que lhe hão ções Médicas Doutrinais de Cem Casos Gravíssimos,
pedido explicação do que ensina Raspail Que em Serviço da Pátria, & das Nações Estranhas
nas suas obras dadas à luz, e que correm Escreve em Língua Portuguesa & Latina, Lisboa,
impressas, sem serem proibidas, que não Oficina dos Herdeiros de António Pedroso
é cirurgião nem médico” (Ibid., 69). In- Galram, 1741; Sessão do Julgamento de João Da-
dício porventura significativo de que, niel de Sines, Acusado perante o Tribunal de Polícia
Correccional, a Requerimento do Conselho de Saúde
em meados do séc. xix, os charlatães pa-
Pública, por Curar de Medicina sem Habilitações Le-
recem ainda ter um lugar, se não de di- gais, Lisboa, Imprensa de J. J. A. Silva, 1852;
reito pelo menos de facto, no território TISSOT, Samuel-Auguste-André-David, Aviso
clínico nacional, com clara aceitação das ao Povo sobre a Sua Saúde, 2 t., Lisboa, Régia
populações e dos poderes locais. Oficina Tipográfica, 1777; WALKER, Timo-
thy, Doctors, Folk Medicine and the Inquisition. The
Repression of Magical Healing in Portugal during the
Enlightenment, Leiden/Boston, Brill, 2005.
Bruno Barreiros

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370 Anticientismo

Anticientismo

O cientismo ou cientificismo é uma


doutrina filosófica que teve origem
em França no séc. xix (o termo original
é scientisme), que defende o primado,
para não dizer mesmo a exclusividade, da
ciência empírica na aquisição de conhe-
cimento. Segundo os seus adeptos, nada
mais interessa ao entendimento que o ser
humano faz do mundo do que as descri-
ções fornecidas pela ciência dos fenóme-
nos naturais. Nos alvores do séc. xxi, sem Isaac newton (1643-1727).
prejuízo do reconhecimento do papel re-
levante e, em alguns casos, único da ciên-
cia na descoberta do mundo, o cientismo afastando para mais longe a eventual in-
foi considerado uma visão dogmática e tervenção divina). Deus não ficou com-
ultrapassada. pletamente excluído da descrição e ex-
A ascensão da ciência deu-se no séc. xvii plicação do cosmo, mas tornou-se bem
com a Revolução Científica, cujos nomes nítida a separação entre a área do mun-
cimeiros foram o italiano Galileu Galilei do material, onde a numerosa e variada
e o inglês Isaac Newton, na física, e o fenomenologia pode ser explicada pelos
inglês William Harvey, na medicina. No métodos da ciência, e a área do espírito.
século das Luzes, a ciência triunfou ao Apesar da reação romântica, a ciência
conseguir descrever o funcionamento do continuou o seu trajeto ascensional ao
Universo por meio de leis universais: de longo do séc. xix não só na física, com
facto, com a teoria de Newton conseguia- o desenvolvimento da termodinâmica e
-se ao mesmo tempo descrever os movi- do electromagnetismo, mas também na
mentos dos astros e dos objetos em queda química, separada da alquimia pelos tra-
na superfície da Terra. Apesar de Newton balhos do francês Antoine-Laurent Lavoi-
ter sido claramente um teísta, foi um sier, ainda antes de o séc. xviii terminar,
seu seguidor, o matemático e astrónomo na biologia, com a Teoria da Evolução do
francês Pierre-Simon de Laplace, que, no naturalista inglês Charles Darwin, que in-
séc. xviii, veio a dispensar a hipótese de tegrou a espécie humana na gigantesca
Deus no seu Tratado de Mecânica Celeste, árvore da vida, e na geologia, com o reco-
o que significava que a ciência bastava nhecimento de uma história lenta da Ter-
para a explicação dos fenómenos natu- ra divulgada na obra do geólogo inglês
rais (sobre a origem do mundo, Laplace Charles Lyell, substituindo a ideia de uma
e o seu contemporâneo Immanuel Kant criação rápida, como o Génesis narra. Na
conjeturaram, de forma independente, medicina, triunfou no mesmo século o
sobre a origem natural do sistema solar, raciocínio hipotético-dedutivo graças ao

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Anticientismo 371

médico francês Claude Bernard. Todos os


ramos do conhecimento passaram, pois,
a adotar o método científico, fundado
na observação, na prática experimental e
no raciocínio lógico-matemático. Por ou-
tro lado, a Revolução Industrial, iniciada
com a invenção da máquina a vapor pelo
escocês James Watt no séc. xviii, expan-
dia-se rapidamente não só na Grã-Breta-
nha como na Europa do Norte, levando a
economia a um caminho de crescimento
extremamente rápido. Não admira que
na filosofia se tenham afirmado as ideias
inspiradas pela ciência conhecidas por
positivismo, devidas principalmente ao
sociólogo francês Auguste Comte. Algu-
mas dessas ideias de inspiração científica
chegaram à política, e procurou-se passar
William Harvey (1578-1657).
para a sociedade noções como a do evo-
lucionismo, que tão boas provas tinham
dado na biologia. A evolução era enten- assim como, no mesmo ano, das escolas
dida como um movimento no sentido do médico-cirúrgicas nas referidas cidades,
progresso, uma noção que foi enfatizada reflete, nos tempos que se seguiram à
pelo biólogo, sociólogo e filósofo inglês Revolução Liberal de 1820, a vontade de
Herbert Spencer. E o progresso era dese- uma melhor adaptação do ensino supe-
jável no governo dos povos. rior à sociedade em rápido desenvolvi-
Em Portugal, tal como no mundo oci- mento. A escola do Porto, em particular,
dental em geral, foram grandes as ex- soube cultivar uma boa relação com a
pectativas no progresso da ciência, ali- Associação Industrial Portuense que,
cerçadas nos progressos da investigação fundada em  1849  por  um seu professor,
científica e suas aplicações, e, por exten- o Eng.º José Vitorino Damásio (que de-
são, no progresso da sociedade. A ciên- senvolveu entre nós a rede do telégrafo
cia não se desenvolveu, porém, entre nós eléctrico), e por um grupo de homens de
com o mesmo ritmo que no estrangeiro; negócios da região, deu depois lugar à As-
chegou com o atraso provocado pela dis- sociação Empresarial de Portugal. Já an-
tância que vai do centro para a periferia, tes, em 1837, tinha sido fundada em Lis-
embora essa distância começasse a ser boa a Associação Industrial Portuguesa.
vencida por meios tecnológicos como o A defesa do cientismo foi crescendo em
caminho de ferro e o telégrafo. A Revolu- Portugal ao longo do séc. xix, à medida
ção Industrial chegou a Portugal bastante que a visibilidade da ciência avançava na
tarde e, quando chegada, não conheceu sociedade. O cientismo está ligado de
aqui as proporções atingidas noutros paí- perto ao positivismo, ao naturalismo e ao
ses do Norte da Europa e da América do materialismo. O positivismo terá entra-
Norte. De qualquer modo, a criação de do no nosso país através dos professores
escolas politécnicas em Lisboa e da Aca- de matemática de Escola Politécnica do
demia Politécnica no Porto, em 1837, Porto e de Lisboa. O principal defensor

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372 Anticientismo

do positivismo foi, porém, um homem de (kAnticlericalismo). Assinale-se que o in-


letras, Teófilo Braga, formado em Direito teresse dos Jesuítas por temas científicos
em Coimbra mas mais tarde professor do cresceu logo no início do séc. xx, o que
Curso Superior de Letras de Lisboa, que, se manifestou pela criação do Colégio
em 1878, fundou e dirigiu, com o médico de S. Fiel, em Castelo Branco, em 1902,
Júlio de Matos, a revista O Positivismo. Foi e pela fundação da revista Brotéria – Re-
membro do partido republicano e pre- vista de Sciencias Naturaes, que continuava
sidiu ao governo provisório que adveio a publicar-se no começo do séc. xxi, em-
logo após a Revolução de 5 de outubro de bora com um teor mais cultural do que
1910, tendo em 1915 chegado, ainda que científico.
por pouco tempo, a Presidente da Repú- Mas houve outras reações contra o
blica. A ideia republicana desenvolveu-se cientismo além das que vieram do lado
em Portugal ao longo da segunda meta- da Igreja. Deve destacar-se o pensamento
de do séc. xix, muito assente em ideias de Antero de Quental, o poeta e filósofo
científicas e ideias filosóficas baseadas na da geração de 70 que, embora reconhe-
ciência. cendo os méritos da ciência e admirando
Nomes grandes simultaneamente do os progressos que ela conseguia, reco-
movimento republicano e das ideolo- nhecia a necessidade de uma exigência
gias positivista e naturalista foram dois espiritual. Em “Tendências gerais da filo-
médicos da área da psiquiatria: Miguel sofia na segunda metade do século xix”,
Bombarda, professor da Escola Médico- uma obra de 1890, Quental escrevia:
Cirúrgica de Lisboa, e o já referido Júlio “Esta conceção de Universo, resultado da
de Matos, da Escola Médico-Cirúrgica do elaboração científica de quatro séculos,
Porto, embora depois se tenha transferi- aparece-nos como alguma coisa simples e
do para Lisboa. O primeiro protagoni- grandiosa e, ao mesmo tempo, tenebrosa
zou uma famosa polémica com o padre e desolada. É imensa e todavia falta-nos o
jesuíta Manuel Fernandes Santana, que ar. É que esta conceção não é um produ-
reflete bem o laicismo republicano. O to harmónico de todas as faculdades do
confronto, que ficou conhecido como po- espírito humano, mas somente o produto
lémica entre ciência e religião, iniciou-se especial de algumas de certas [...]. Desta
em 1897 com uma conferência de Bom- sua atitude em face da realidade resulta
barda, e continuou com um comentário um ponto de vista limitado, o que quer
do Jesuíta intitulado Evisceração da Cons- dizer incompleto. É a experiência no seu
ciência e Livre Arbítrio do Sr. Dr. Miguel Bom- máximo de organização, mas é sempre a
barda; após a publicação de Consciência e experiência. A base do seu edifício é es-
Livre Arbítrio, de Bombarda, o sacerdote treita: generaliza impressões e delas tira
replicou com Materialismo em face da Ciên- inferências, mas os resultados mais elabo-
cia e Curso de Religião: Apologetica, vol.  i, rados deste processo lá trazem sempre o
Bases Científicas da Religião. A polémica só cunho da origem, que é sensual” (QUEN-
terminou após a morte de Santana, quan- TAL, 1991, 145).
do Bombarda publicou A Ciência e o Jesui- Semelhante rejeição do cientismo,
tismo – Réplica a Um Padre Sábio. Este con- sem ser acompanhada de inteira rejei-
fronto, que se revestiu amiúde de alguma ção da ciência, ocorreu com o filósofo
agressividade (principalmente por parte Sampaio Bruno, contemporâneo de
de Bombarda), impregnou o cientismo Antero, segundo o qual a ciência não é
português de um forte tom anticlerical antagónica do espírito, podendo ajudar

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Anticientismo 373

na procura da verdade, mas está decidi- maior parte do tempo, de António de Oli-
damente longe de satisfazer aos maiores veira Salazar e, depois, de Marcelo Caeta-
desejos humanos. Estas ideias antimate- no. Só assim se poderão compreender as
rialistas (kAntimaterialismo) e antipo- purgas que atingiram um grande número
sitivistas (kAntipositivismo) renasceram de cientistas portugueses antes e depois
na Primeira República, em 1912, com da Segunda Guerra Mundial, respetiva-
a chamada renascença portuguesa, um mente em 1935 (Abel Salazar e Aurélio
movimento filosófico-literário de pendor Quintanilha) e 1947 (Mário Silva e Ruy
nacionalista e até sebastianista que inte- Luís Gomes, entre vários outros). Salazar,
grou, entre outros, o poeta Teixeira de o professor de direito da Univ. de Coim-
Pascoaes, diretor da revista A Águia, pu- bra que começou a sua carreira governa-
blicada no Porto, e o filósofo Leonardo tiva em 1926 como ministro das Finanças,
Coimbra, que em 1912 tentou conciliar almejava um país rural, projetado em
de um modo bastante original ciência e ideais históricos, como se viu em 1943,
espiritualidade na sua obra O Criacionis- nas Comemorações do Duplo Centenário
mo, tese do seu concurso para professor da Nacionalidade (fundação e restaura-
universitário, para a qual não obteve ção). Já Marcelo Caetano, o professor de
aprovação. Surgiram depois os seguido- direito da Univ. de Lisboa e político que
res do neopositivismo, inspirados pelo lhe sucedeu em 1968 na Presidência do
círculo de Viena, criado nos anos 20, mas, Conselho de Ministros, reconhecia rele-
como num novo balanço do pêndulo, vância à investigação científica, mas mais
logo irrompeu entre nós, em 1943, o mo- nas colónias e não tanto na metrópole.
vimento chamado da Filosofia Portugue- Escrevia ele nos anos 50, após ter ocupa-
sa, animado por Álvaro Ribeiro (o autor do o cargo de ministro das Colónias: “No
de O Problema da Filosofia Portuguesa), José Ministério da Educação Nacional, a in-
Marinho e António Quadros, com um vestigação científica pode, na ordem das
claro pendor antipositivista, na esteira preocupações, ocupar o quarto, o quinto,
das ideias de Sampaio Bruno e Leonardo o sexto lugar; no Ministério das Colónias
Coimbra. Aos valores da universalidade trata-se de uma preocupação de primei-
proporcionados pela ciência e pela mo- ro plano” (BERNARDO, 2013, 297). Por
dernidade, obtida com a ajuda da técni- sua vez, Alberto Franco Nogueira, minis-
ca, estes pensadores opunham outros va- tro dos Negócios Estrangeiros de Salazar,
lores: o nacionalismo e a tradição. afirmou em 1969: “Buscou-se na ciência
Ainda no quadro da filosofia, deve e na técnica a resposta aos anseios inso-
acrescentar-se que ideias pós-modernas fridos. A ciência e a técnica, todavia, são
como as que foram apresentadas pelo monopólio dos povos ricos e altamente
sociólogo Boaventura de Sousa Santos desenvolvidos” (Id., Ibid.).
nos seus livros O Discurso sobre as Ciências Com a Revolução de 25 de abril de
e Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna 1974, e mais ainda com a integração de
constituem uma forte crítica à ciência Portugal na União Europeia em 1986, o
moderna. anticientismo de cariz político desvane-
Do ponto de vista político, se a Primeira ceu-se. Quanto ao anticientismo de ca-
República se afirmou favorável à ciência, riz religioso, já há muito tempo se havia
já o mesmo não se poderá dizer do Estado desvanecido. No começo do séc. xxi, não
Novo, o regime que vigorou entre 1933 e era difícil reconhecer que o cientismo
1974, sob a forte liderança, primeiro e na deixara de fazer sentido e que a ciência é

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374 AnticlAssicismo

uma dimensão do ser humano, tal como


a política e a religião. E essas dimensões
Anticlassicismo
podem comprovadamente coexistir, in-
fluenciando-se mutuamente, mas sem
ingerências nem preponderâncias des-
propositadas.

Bibliog.: BERNARDO, Luís Miguel, Cultura


Científica em Portugal. Uma Perspectiva Histórica,
Porto, Universidade do Porto Editorial, 2013;
O classicismo é uma corrente literária
e artístico-cultural, que vigora em
Portugal entre os séc. xvi e xviii. Tendo
BOMBARDA, Miguel, A Consciência e o Livre Ar-
no humanismo italiano a sua fonte prin-
bítrio, Lisboa, Parceira de António Maria Pe-
reira, 1898; Id., A Ciência e o Jesuitismo – Réplica cipal, pautou as linhas da sua estética na
a Um Padre Sábio, Lisboa, Parceira de António revisitação das obras dos antigos gregos e
Maria Pereira, 1900; CATROGA, Fernando, romanos.
“‘Cientismo político’ e ‘anticlericalismo’”, in De Dante a Vico, passando por Petrar-
MATTOSO, José (coord.), História de Portu- ca, Bembo, Lourenço Valla, Castigloni,
gal, vol. v, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, Ficino, Salutati, Poggio Bracciolini, G. Va-
pp. 583-593; Id., O Republicanismo em Portugal.
ronese, A. Poliziano, E. Barbaro, Pico
Da Formação ao 5 de Outubro de 1910, 2.ª ed.,
2 vols., Lisboa, Notícias, 2001; COIMBRA, della Mirandola, entre outros, o huma-
Leonardo, O Criacionismo: Síntese Filosófica, Por- nismo italiano encontrou na matriz clas-
to, Livraria Tavares Martins, 1958; LAPLACE, sicista a chave de uma antropologia e de
Pierre-Simon, Traité de Mécanique Céleste, Paris, uma cosmologia harmoniosas, abertas e
Duprat, 1799; QUENTAL, Antero de, “Ten- profundas, numa axiologia civilizacional
dências gerais da filosofia na segunda metade que moldou o Ocidente.
do século xix”, in QUENTAL, Antero de, Obras Em Portugal, no campo da história e
Completas. Filosofia, org., introd. e notas Joel
da filosofia moral, a influência dos auto-
Serrão, Ponta Delgada, Universidade dos Aço-
res/Comunicação, 1991, pp. 115-172; RIBEI- res clássicos faz-se sentir em Fernão Lo-
RO, Álvaro, O Problema da Filosofia Portuguesa, pes, D. Duarte (Leal Conselheiro), infante
Lisboa, Inquérito, 1943; SANTANA, Manuel D. Pedro/Fr. João Verba (Livro da Virtuo-
Fernandes de, O Materialismo em face da Ciência, sa Benfeitoria) e Gomes Eanes de Azurara
Lisboa, Tip. da Casa Católica, 1889; Id., Cur- (Crónica dos Feitos da Guiné). Mateus Pisa-
so de Religião: Apologetica, Lisboa, Tip. da Casa no (autor da crónica De Bello Septensi, so-
Católica, 1901; SANTOS, Boaventura de Sou-
bre a tomada de Ceuta) e Estêvão de Ná-
sa, Um Discurso sobre as Ciências, Lisboa, Afron-
tamento, 1987; Id., Introdução a Uma Ciência poles foram chamados por D. Afonso  V
Pós-Moderna, Porto, Afrontamento, 1989. para mestres do filho, o futuro D. João II,
em cuja corte o humanismo mais se fez
Carlos Fiolhais
sentir. O próprio D. João II contratou
como professor de D. Jorge, seu filho
bastardo, Cataldo Áquila Sículo (c. 1455-
-1514), que, nas suas Epistolae, apresenta
uma crónica coeva da história de Por-
tugal e, na sua De Diuina Censura, alude
recorrentemente à expansão portuguesa.
Entre os humanistas portugueses que se
distinguiram em universidades europeias
salientamos Luís Teixeira (reitor da Univ.

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AnticlAssicismo 375

de Sena, em 1476, e professor de Direito particular menção pelo carácter apologé-


em Ferrara, 1502), Diogo Pacheco (pro- tico dos ideais humanistas, na conciliação
fessor de Humanidades, em Sena), Gon- entre classicismo e cristianismo.
çalo Mendes da Silveira (reitor da Univ. No campo da poética, regista-se apenas
de Roma La Sapienza) e Pedro Margalho o De Antiquitate, Dignitateque Poesis et Poeta-
e Aires Barbosa (professores de Salaman- rum Differentia (1586), de Tomé Correia
ca, tendo este último introduzido os Es- (1536-1595), obra que compendia o cur-
tudos Helenísticos). Diogo Gouveia, “o so que ministrava no Colégio Dominica-
velho”, António e Marcial Gouveia, seus no, em Roma, e no qual propõe uma base
sobrinhos, André de Gouveia (que tam- ética e pedagógica para a poesia. No âm-
bém foi reitor do Colégio de Guiena) e bito das ciências da natureza, deve refe-
Diogo de Gouveia, “o moço”, ocuparam rir-se o contributo de Pedro Nunes (Tra-
lugar de destaque no Colégio de S.ta Bár- tado da Esfera, 1537; De Crepusculis, 1542)
bara, em Paris. para a correção dos dados cosmográficos
O latim, como língua de expressão dos da época e para a metodologia experi-
humanistas portugueses, pode registar- mental; de Garcia de Orta, na investiga-
se em autores como André de Resende, ção da flora exótica; de D. Francisco de
Henrique Caiado, Damião de Góis, Jor- Melo (1490-1536), na reinterpretação de
ge Coelho, Joana Vaz, Manuel de Melo, Arquimedes e Euclides. Na área do direi-
Pedro Nunes, D. Jerónimo Osório, entre to, tem importância a revisão e sistemati-
outros, introduzindo-se, deste modo, a zação do direito romano de António de
corrente literária neolatina. A didática do Gouveia (De Juri Accrescendi), Belchior Be-
latim é renovada por Estêvão Cavaleiro liago e Jerónimo Cardoso.
(Nova Grammatices Marie Matris dei Virgi- Na filosofia, interessa assinalar a obra
nis Ars, 1516) e por Jerónimo Cardoso. A de Francisco Sanches (Quod Nihil Scitur,
filologia encontra-se em Aires de Barbosa 1581), precursora da dúvida universal
(c. 1470-1540), com os seus comentários e metódica de Descartes e do experi-
à Historia Apostolica do cardeal Arator, pu- mentalismo de Francis Bacon. Não se
blicados em Salamanca (1516); em Marti- deve esquecer também a relevância do
nho de Figueiredo, com o seu comentário erasmismo nas cortes de D. Leonor e
ao prólogo da Historia Naturalis, de Plínio D.  Manuel  I, como se expressa no Eras-
-o-Velho; em Aquiles Estaço (comentários mi Encomium, de André de Resende, além
a Catulo, Tibulo, Suetónio e Cícero) e em das obras de D. Martinho de Portugal,
Pedro da Fonseca (comentário da Metafí- Francisco de Melo e Damião de Góis, em
sica, de Aristóteles). oposição a Diogo de Gouveia, “o velho”,
Na oratória, após a eleição de um novo e Aires de Barbosa (Antimoria, 1536). Em
papa, proliferam as Orationes Oboedien- relação à teologia, D. António Pinheiro
tiales perante a Santa Sé, com D. João de e D. Jerónimo Osório (De Gloria, 1549 e
Ataíde, Diogo Soares, João Fernandes De Iustitia, 1564) ocupam lugar cimeiro,
da Silveira, Mestre Lourenço, Luís Pires, conciliando a mensagem bíblica com a
D. João de Meneses, Mestre Afonso, Nuno herança clássica.
Fernandes Tinoco, Vasco Fernandes de Na política, Fr. António de Beja, com a
Lucena, João Teixeira, D. Garcia de Me- sua Breve Doutrina e Ensinança de Príncipes
neses, Aquiles Estaço e outros. A Oratio (1525), e também D. Jerónimo Osório
pro Rostris (1534), pronunciada na Univ. (Epistola ad Serenissimam Elisabetam Regi-
de Lisboa por André de Resende, merece nam, 1562 e De Nobilitate Ciuili et Christia-

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376 AnticlAssicismo

to mais que o engenho, o tempo, e estu-


do” (FERREIRA, 1829, 69).
É, porém, com o arcadismo que o clas-
sicismo é reivindicado como antítese
das correntes barrocas do cultismo e do
conceptismo. Correia Garção proclama
claramente, na sua “Dissertação terceira”,
o “verdadeiro genio a que o vulgo cha-
ma Veia Poetica, e os doutos Enthusiasmo”
(GARÇãO, 1778, 328-329): “Os Gregos,
e os Latinos, que dia, e noite não deve-
mos largar das mãos estes soberbos Ori-
ginaes, são a unica fonte de que manão
boas Odes, boas Tragedias e excelentes
Epopeas” (Id., Ibid., 328). Trata-se, no
Hércules e Atena (480-470 a.C.). entanto, de uma reformulação dos câno-
nes e modelos estéticos, à luz dos novos
na, 1542) merecem destaque. Na cronís- tempos, como também se exprime na
tica e na historiografia, de Rui de Pina “Epístola a Olino”, na qual se prefere a
a Jerónimo Osório (De Rebus Emannuelis imitação dos bons poetas e prosadores
Regis Lusitaniae, 1571), passando por vernáculos, em detrimento das línguas
João de Barros, Diogo do Couto, Fernão grega e latina: “Usa da pura lingua Por-
Lopes Castanheda e Gaspar Correia, a tugueza, Que aprendido já tens no bom
matriz ciceroniana e liviana está sempre Ferreira,/No Camões imortal, em Sousa,
presente. e Barros: em Grego não me escrevas, nem
Na literatura do séc. xvi, de Sá de Mi- Latim” (Id., Ibid., 169).
randa a Camões, passando por António Se bem que estruturalmente ligado ao
Ferreira, André Falcão de Resende e tan- classicismo, o arcadismo, ou neoclassi-
tos outros, os poetas Virgílio, Ovídio e cismo, abre já as portas ao anticlassicis-
Horácio inspiram diretamente a criação mo, na sequência do movimento alemão
estética, enquanto Cícero é o principal Sturm und Drang. Este movimento, que
modelo da prosa. Os relatos de viagem, retira o nome de uma peça de Friedrich
muitos escritos em latim, se bem que indo Maximilian Klinger (1776), questiona a
beber a Homero, Heródoto, Xenofonte, classe aristocrática, propondo uma visão
Estrabão, Pompónio Mela, Plínio-o-Velho burguesa da sociedade, através dos valo-
ou Arriano, trazem à literatura, à geogra- res da simplicidade, do individualismo,
fia, à antropologia e à cultura, em geral, da irracionalidade, do real e do natural,
uma nova visão do mundo. ainda que o que daí resultasse fosse do-
António Ferreira, na sua Carta a Diogo loroso.
Bernardes, “verdadeira ‘Arte Poética’ do O poema heroi-cómico de Cruz e Silva
Renascimento Português” (BUESCU, O Hissope (1802) constitui uma sátira ao
1992, 107), glosa o lema dantiano do classicismo de imitação francesa, que se
“ingegno ed arte” como “direita/Estrada opõe ao uso do vernáculo: a “bela e fertil
dos que sobem ao alto monte/Ao brando língua nossa,/Primogenita filha da Lati-
Apollo, ás nove Irmãs aceita”: “Muito, ó na” (SILVA, 1802, 52). Trata-se de uma
poeta, o engenho pode dar-te./Mas mui- moda, como um “sacramento”, seguida

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AnticlAssicismo 377

por “Estes novos, ridículos Autores”, que


enfeitam seus escritos com “A mesclada
dicção, bastardos termos” (Id., Ibid., 53).
O poema ridiculariza ainda o gongoris-
mo e o pseudo-eruditismo gramatical:
“Outros passam/Sem cessar, revolvendo
noite e dia/Do antigo Lácio antigos ma-
nuscritos,/Do roaz tempo meio consumi-
dos” (Id., Ibid., 3).
Mas é o romantismo que rompe com
o classicismo, propondo, em alternativa,
novos modelos, de tendências contraditó-
rias: a aspiração insaciável de realização
dos sonhos, a criatividade, a imaginação,
o génio individual e os obstáculos inter-
postos pela sociedade, o idealismo e o Quinto Horácio Flaco (65-8 a. C.).
materialismo, ao mesmo tempo que con-
fronta temas como a natureza rural vs. a tica: “Não sou clássico nem romântico; de
cidade, o passado glorioso vs. um presen- mim digo que não tenho seita nem parti-
te decadente, a evasão para o exotismo do em poesia […] e por isso me deixo ir
no espaço e no tempo vs. um quotidiano por onde me levam minhas ideias, boas
rotineiro e degradado, a onda impetuo- ou más, e nem procuro converter as dos
sa do sentimento e da emoção vs. o rigor outros, nem inverter as minhas nas deles”
dos esquemas nacionais, a inovação for- (Id., Ibid., 4).
mal vs. a imitação dos clássicos. É esse espírito crítico independente
Garrett, no prefácio da primeira edição que o leva a distanciar-se da nova escola,
do poema Camões (1825), reclama a sua na introdução ao Romanceiro: “Eu, que
absoluta novidade, reconhecendo que ousei levantar o pendão da reforma lite-
“está fora das regras”, “se pelos princípios rária nesta terra, soltar o primeiro grito
clássicos o quiserem julgar” (GARRETT, de liberdade contra o domínio opressivo
1961, 3). Em oposição a Horácio e Aristó- e antinacional da falsa literatura, dói-me
teles, declara ter seguido “o coração e os a consciência de ver a anarquia em que
sentimentos da natureza, que não pelos andamos depois que ele foi aniquilado”
cálculos da arte e operações combinadas (Id., Ibid., 60). E insurge-se contra a sim-
do espírito”. Mas também se demarca ples substituição dos modelos: “Que se
de Byron, cujo estilo “tão ridiculamen- há de fazer para isto? Substituir Goethe a
te macaqueiam hoje os Franceses a torto Horácio, Schiller a Petrarca, Shakespeare
e a direito, sem se lembrarem que para a Racine, Byron a Virgílio, Walter Scott a
tomar as liberdades de Byron e cometer Delille? Não sei que se ganhe nisso, senão
impunemente seus atrevimentos, é mister dizer mais sensaborias com menos graça”
haver um tal engenho e talento que, com (Id., Ibid., 65-66).
um só lampejo da sua luz, ofusca todos No romance Viagens na Minha Terra
os descuidos e impede a vista deslumbra- (1846), o escritor romântico volta a dis-
da de notar qualquer imperfeição”. Por tanciar-se dos estereótipos a que tal movi-
isso, se proclama acima das escolas e mo- mento foi reduzido, através da caricatura
vimentos, numa livre independência esté- da escrita de um romance (cap. v), mas

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378 AnticlAssicismo

também debate, em tom irónico, o uso é o poeta futurista que canta a beleza das
da mitologia clássica (cap. vi). Elogia a máquinas na “Ode triunfal”.
poesia da natureza, que nem os melhores Em contrapartida, o fascínio da cultu-
poetas clássicos, como Teócrito e Virgí- ra clássica ressurge nos sécs. xx e xxi em
lio, traduziram nos seus versos. Aprecia poetas e romancistas vários, como Miguel
o “sublime da montanha”, o “augusto do Torga, Sophia de Mello Breyner Andre-
bosque” e o “ameno do vale”, geralmente sen, Natália Correia, Manuel Alegre, Da-
descritos nos cenários clássicos, mas tam- vid Mourão Ferreira, Jorge de Sena, Ana
bém o rochedo “na gandra erma e selva- Hatherly e Teolinda Gersão, entre muitos
gem” e a charneca romântica, embora outros.
peça a Deus que o livre de ser romântico, Classicismo e anticlassicismo, nas cur-
“ao menos, o que na algaravia” do tempo vas e contracurvas da história, sucedem-se
se entendia por tal termo (cap. viii). em dialética disputa de valores civilizacio-
Eça de Queirós, no conto “Perfeição”, nais, transcendendo o tempo e o espaço.
glosa o tema da morada de Ulisses na ilha
de Calipso, durante sete anos; mas, no
Bibliog.: BUESCU, Maria Leonor Carvalhão,
romance Os Maias, a decadência trágica
Literatura Portuguesa Clássica, Lisboa, Univer-
que atingiu a família dos protagonistas é sidade Aberta, 1992; FERREIRA, António,
simbolizada pelo jardim, que apresenta- Poemas Lusitanos, t. ii, Lisboa, Typ. Rollandia-
va “a melancolia de um retiro esquecido, na, 1829; GARÇÃO, Pedro António Correia,
que já ninguém ama” e pela estátua de Obras Poeticas de Pedro Antonio Correa Garção,
Vénus Citereia, cujos membros eram co- Lisboa, Regia Officina Typografica, 1778;
bertos por “uma ferrugem verde” (QUEI- GARRETT, Almeida, Viagens na Minha Terra,
Lisboa, Typ. Gazeta dos Tribunais, 1846; Id.,
ROZ, s.d., 710). No interior do Rama-
Doutrinas de Estética Literária, 2.ª ed., Lisboa,
lhete, a passagem do tempo é evocada, s.n., 1961; MONIZ, António Manuel de An-
entre outros objetos, pelos “bufetes da drade, “A sociedade setecentista n’O Hissope,
Renascença italiana, recordando a alegre de Cruz e Silva”, in CASTRO, Aníbal Pinto de,
casa dos Olivais que tinham ornado” (Id., et al. (coords.), Alcipe e as Luzes, Lisboa, Coli-
Ibid., 708). bri, 2003, pp. 189-206; QUEIROZ, Eça de,
A degradação social do final do Os Maias, Lisboa, Livros do Brasil, s.d.; SILVA,
séc. xix, tema caro ao decadentismo, sur- Antonio Diniz da Cruz e, O Hyssope. Poema He-
rói-Comico, London, s.n., 1802; VERDE, Cesá-
ge simbolizada na poesia de Cesário Ver-
rio, Obra Completa, 2.ª ed., Lisboa, Portugália,
de. Entre outras, na própria personagem 1970.
do professor de Latim, índice dos valores
culturais do classicismo, também eles em António Moniz
decadência: “E, nas esquinas, calvo, eter-
no, sem repouso,/Pede-me sempre es-
mola um homenzinho idoso,/Meu velho
professor nas aulas de Latim” (VERDE,
1970, 69).
Se Ricardo Reis é o poeta clássico e
horaciano da galeria heteronímica de
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, por
oposição, em alternativa à estética herda- Parte desta entrada foi anteriormente publica-
da do classicismo, representada pelos gre- da em http://edtl.fcsh.unl.pt/business-direc-
tory/5951/humanismo-/.
gos Ésquilo e Platão e pelo latino Virgílio,

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AnticlAssismo 379

Anticlassismo mentam ou estratificam os membros da


comunidade, assim consolidando um
determinado arranjo das relações entre
eles. Em alguns casos, o arranjo social é
de natureza igualitária – i.e., assenta so-
bre um princípio de reciprocidade eco-
nómica e social. Noutros casos, porém, o

Q ualquer compreensão do anticlas-


sismo tem de passar pela prévia
definição de o que se entende por classe;
arranjo é de natureza não igualitária, daí
resultando comunidades hierárquicas, es-
tratificadas ou não.
no entanto, dificilmente se encontra uma Não cabe aqui, de modo nenhum, fa-
definição de classe que gere consenso. zer um inventário das diversas modalida-
Esta falta de consenso não é apenas cla- des de hierarquia ou de estratificação so-
ra de disciplina para disciplina (casos em cial possíveis. No entanto, no sentido de
que a noção de classe tem aceções muito precisar de que se está a falar quando se
distintas), mas é igualmente clara no âm- fala de classe e delimitar o seu âmbito, é
bito de uma disciplina e de áreas de co- útil passar brevemente em revista alguns
nhecimento em que classe é um terminus modelos alternativos – modelos que, ape-
technicus operativo e fundamental, como sar de neles não nos podermos deter de
são os casos da sociologia e da história. modo exaustivo, constituirão não apenas
Procuraremos vencer esta primeira meios de contraste para balizar e carac-
dificuldade recorrendo a dois ângulos terizar a classe, como ainda pressupostos
de análise. Em primeiro lugar, interessa históricos sobre os quais a classe emerge e
visitar a pré-história da noção: os seus em relação aos quais se posiciona ou dos
antepassados, outros conceitos com que quais se diferencia. De todos os modelos
o conceito de classe se pode confundir, alternativos, para determinar a classe in-
etc. Em segundo lugar, interessa fixar o teressa considerar muito sucintamente
momento histórico em que o conceito se em especial dois: a casta e a ordem ou o
liberta e se instala no património univer- estado. Mais especificamente, interessa
sal – momento histórico que não apenas considerar os modos como a casta e a or-
fixa o conceito de classe (ou de classe so- dem ou o estado se relacionam com a mo-
cial) mas que, em simultâneo, abre cam- bilidade social ou com a sua possibilidade
po ao aparecimento de movimentos que e o contraste que a classe virá a estabele-
contestam e questionam o seu papel na cer em relação a essas formas alternativas
organização social. de hierarquia ou de estratificação social.
Podemos iniciar o primeiro ponto sa- Naquilo que nos interessa sublinhar
lientando o seguinte. Por força de um nele para compreender a classe, um sis-
enorme e muito variável conjunto de fa- tema de castas é, no essencial, um sistema
tores, que qualquer forma de comunida- que impossibilita a mobilidade social: cor-
de – antiga ou atual – parece sustentada responde a uma forma de estratificação
num conjunto de princípios que distri- social endogâmica e fechada. Quer dizer:
buem de forma desigual os seus mem- por um lado, a casta corresponde a uma
bros. Mesmo no caso das comunidades forma de organização que contém gru-
primitivas, é possível observar formas de pos sociais rígidos e em que cada grupo
estruturação que organizam uma dada social tem o seu conjunto de atividades,
comunidade, enquanto todo, e que seg- crenças, cerimónias e rituais próprios;

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380 AnticlAssismo

por outro lado, não apenas o sistema de etc. – o que, eventualmente, deu lugar à
castas apresenta uma hierarquia vertical, sociedade de estados, que por natureza é
como não há possibilidade de trânsito mais dinâmica.
entre castas – o estilo de vida de uma No caso português, esta transição de pa-
casta é preservado por via hereditária e, radigmas fica bem desenhada no séc. xv.
do ponto de vista individual, pertencer a As diversas ordenações que então se pu-
uma casta depende do nascimento, de tal blicaram mostram, por um lado, uma
modo que a passagem a outra casta repre- divisão que é, em muitos aspetos, tripar-
sentaria uma violação da lei tradicional. tida; porém, mantendo a integridade do
Consideremos de seguida a ordem ou o sistema senhorial e assentes numa estru-
estado. Ordem ou estado são os modelos tura social implantada que se mostrava,
de hierarquia social associados ao regime lato sensu, relativamente estável, e mesmo
feudal. Naquilo que interessa sublinhar tendo em atenção que poderiam não ter
neles para compreender a classe, não nos imediata tradução no quotidiano e nas
importam tanto as disparidades que efeti- instituições, essas diversas ordenações
vamente se detetam entre os dois mode- também constituem já, por outro lado,
los – a mais fundamental das quais será esboços legais da divisão em estados – di-
a forma como a ordem evoca o sagrado, visão assente sobre os princípios de rique-
se apresenta como expressão de uma lei za, estatuto, ofícios ou profissões, graus
divina, etc., por oposição ao estado, que ou situações, etc. – e capazes de acolher
tem natureza profana e horizontal; são as mudanças sociais em curso.
mais significativas as semelhanças. Ora, o que é decisivo nas ordens ou nos
O sistema de ordens e o sistema de esta- estados, naquilo que os distingue das cas-
dos são tipos de agrupamento em que os tas e naquilo que nos interessa sublinhar
seus membros se distribuem por catego- neles para compreender a classe, é preci-
rias hierarquizadas relativamente estan- samente este aspeto. Ainda que devamos
ques. O pressuposto em que se fundam é ter claro que falamos de sociedades com
o de haver uma desigualdade hierárquica hierarquias estanques; que a transição de
e sociopolítica fundamental, cabendo a uma sociedade de ordens para uma socie-
cada ordem ou estado dentro do sistema dade de estados é uma mera reação ao di-
estabelecido uma função específica e em namismo social e à sua velocidade; e que,
que cada ordem ou estado adquire o seu portanto, se trata de uma forma de pre-
valor ou a sua posição hierárquica dentro servação do status quo contra eventuais
do sistema correspondente através do va- propostas alternativas de organização
lor e da importância da função desempe- social – devemos ter claro também que a
nhada. De facto, aquilo que à partida se passagem e o trânsito entre ordens ou es-
verifica é que a desigualdade hierárquica tados não estão à partida excluídos. Quer
da sociedade de ordens se estendeu para dizer: sociedades de ordens e estados têm
a sociedade de estados; porém, verifica-se ainda características de endogamia, justa-
também uma incapacidade de a socie- mente na medida em que a endogamia
dade de ordens acompanhar a velocida- é uma modalidade de preservação de po-
de de transformação da realidade socio- der ou, no mínimo, de evitar a sua dis-
lógica, em especial no que diz respeito persão; e daqui resulta a dificuldade em
ao desenvolvimento urbano, à divisão alterar a classe a que se pertence, resulta
e especialização das atividades produti- um grau mínimo de mobilidade possível,
vas, à afirmação da burguesia comercial, etc. No entanto, o facto é que abrem a

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AnticlAssismo 381

possibilidade concreta de mobilidade e o princípio fundamental de que um regi-


de ascensão – sendo que, no caso, o mais me feudal não dá garantias ou condições
frequente era isso acontecer através de de igualdade a montante (porque privi-
rituais de sagração (a investidura de um legia uns em relação a outros em virtude
monarca, a aquisição de um título, a con- do seu nascimento, dos seus títulos, etc.),
cessão de nobreza, etc.). nem a jusante (porque concentra o po-
Esta batida pela pré-história da noção der, porque distribui assimétrica e des-
de classe permite-nos, como dizíamos proporcionalmente a riqueza, etc.).
antes, não apenas compreender os an- Assim, uma classe é um conjunto de
tepassados da organização social de que pessoas ou grupos que são considerados
a classe se distancia mas também fixar o como uma unidade porque apresentam
momento histórico em que o conceito semelhanças significativas quer na dis-
operativo de classe se instala no patrimó- tância em que estão em relação ao poder,
nio universal. Isso é assim porque estes quer no que resulta para si da distribui-
dois aspetos são correlatos: o aparecimen- ção de riqueza. E o que decorre desta
to do conceito de classe e o momento his- definição e desta forma de organização
tórico do seu aparecimento não são, de social são dois aspetos centrais. Por um
modo nenhum, independentes. lado, que haverá tantas classes quantas as
Por uma parte, o que distingue uma diferenças significativas assinaladas quer
classe de todas as modalidades de or- na distância em relação ao poder, quer na
ganização social alternativas anteriores distribuição de riqueza. Por outro, que a
(aquilo que distingue a classe da casta, da relação das classes entre si tem uma na-
ordem ou do estado) é que não se perten- tureza hierárquica – justamente porque a
ce a uma classe por direito (e.g., por nas- uma ou a mais classes caberá um maior
cimento, investidura, aquisição de título, acesso ao poder e uma maior proporção
etc.) mas por facto. Ou seja: uma socie- da riqueza distribuída do que a outra ou
dade de classes não é apenas o resultado a outras classes.
de uma proposta taxonómica distinta; o A hierarquia é, dependendo das socie-
que está em curso é uma efetiva mudança dades visadas e ao longo dos tempos, mui-
que desafia a organização e os princípios to variável; a variação está, desde logo,
do regime feudal e que propõe – ou im- e.g., no número de classes. O problema
põe – uma alternativa. passa então por saber o que determina
No núcleo fundamental da noção de uma classe ou a distribuição em classes
classe estão dois aspetos de contestação diversas; é possível observar que se geram
e de rebelião em relação à organização classes distintas consoante os critérios
feudal: o problema do acesso e da rela- que se utilizam. O problema, passa, em
ção com o poder e o problema da distri- suma, pelo processo de classificação e o
buição de riqueza. Parte, desde logo, do processo de classificação é sempre ideoló-
reconhecimento de que, entre os indiví- gico, i.e., adota um conjunto de ideias ou
duos de uma dada sociedade, há uma as- princípios de discriminação que resultam
simetria tanto no acesso e na relação com em determinada classificação. E o que é
o poder, quanto no modo como a riqueza igualmente claro é que, seja qual for o
é distribuída. Há, numa palavra, desigual- processo adotado, o resultado é uma clas-
dade – e desigualdade quer no ponto de sificação hierárquica, em que cada classe
partida, quer no ponto de chegada. Ou tem o seu estatuto próprio definido – é
seja: a sociedade de classes assenta sobre apresentada desta ou daquela maneira,

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382 AnticlAssismo

está situada num ou noutro nível da hie- para o exterior das classes. Alguns autores
rarquia, etc. defendem que, em certo sentido, isso se
Ora, aquilo que é decisivo numa socie- deve ao advento da burguesia, que indi-
dade de classes, o que a distingue de to- cam como primeira classe. A justificação
das as formas anteriores de organização para esse entendimento está no pressupos-
social a que atrás se fez menção, é o fator to de que o advento da burguesia quebrou
da mobilidade. A rutura que uma socie- a hierarquia criada pela sociedade de es-
dade de classes vem introduzir e que a faz tados. E isso não apenas por a afirmação
substituir a sociedade de estados associa- da burguesia desestabilizar a ordem tripar-
da ao regime feudal passa por impor uma tida mas, mais concretamente, porque a
mobilidade aberta e absoluta, i.e., pela afirmação da burguesia veio acompanha-
absoluta recusa de quaisquer normas da de reivindicações de direitos de cidada-
formais e institucionais que estabeleçam nia, da necessidade de repensar os crité-
critérios para haver trânsito entre classes. rios de classificação social ou os critérios
Dito por outras palavras: numa socieda- de distribuição do poder (e.g., acentuando
de de classes, não há nenhum obstáculo o valor do dinheiro), etc.
formal à passagem de uma classe para ou- Não cabe neste artigo perseguir esta li-
tra – e isto quer no sentido ascendente nha; o que efetivamente interessa a este
(de uma subida na hierarquia), quer no artigo é compreender que todos estes de-
sentido descendente (de uma descida na senvolvimentos geraram as condições ne-
hierarquia). cessárias ao aparecimento de movimentos
Todos estes desenvolvimentos permi- que, partindo do pressuposto da existên-
tem-nos já identificar o momento históri- cia de classes, as vêm contestar e vêm pro-
co em que o conceito operativo de classe por um modelo de sociedade alternativo e
se instala no património universal; e são igualitário – i.e., um modelo de sociedade
também estes desenvolvimentos que nos em que não haja lugar a classes. E é des-
preparam para compreender os movi- ses movimentos, e em particular dos mo-
mentos que contestam ou questionam o vimentos anticlassistas portugueses, que
papel das classes na organização social e nos devemos por fim ocupar.
os fundamentos que virão a invocar. De Para a análise do anticlassismo em
facto, em sentido estrito, só se pode falar Portugal, é especialmente relevante con-
de classes no seguimento das chamadas siderar o período de transição entre os
revoluções burguesas, que têm o seu cul- sécs.  xix e xx, começando pelo papel
minar no séc. xix. O que está em jogo da chamada geração de 70. Tendo como
então é, de modo muito sucinto e subli- ponto de partida o conjunto das ideias
nhando apenas aquilo que interessará ter liberais e o lema da Revolução France-
presente na continuação, o declínio das sa (“liberdade, igualdade, fraternida-
sociedades agrárias, o papel da proprie- de”), aquela que ficou conhecida como
dade na distribuição dos papéis sociais e a geração de Coimbra terá encontrado
a necessidade de igualdade dos cidadãos e procurado gerar na realidade social
perante a lei. portuguesa as condições para o estabele-
De facto, o que se verifica é que é em cimento de uma nova prática social que
especial nas democracias das sociedades visava a igualdade entre os homens.
industriais modernas ocidentais que é atri- Não nos é possível fazer um retrato
buída uma grande importância à possibili- completo da geração de 70, dos seus
dade de mobilidade social – no interior e ideais e das suas desavenças internas;

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AnticlAssismo 383

o que se segue não é, portanto, um resu- de consciência de classe não é apenas do


mo de um programa. Mas é possível tra- mero reconhecimento da classe social a
zer aqui um exemplo do seu pensamento que se pertence ou a que outros perten-
e da sua originalidade ao citar o seguinte cem; isso não seria suficiente para haver
passo: “a grande, a suprema obra do sé- consciência de classe.
culo XIX: emancipar o trabalho, apagar Na verdade, a consciência de classe é
por uma vez da face da terra a odiosa divi- um fenómeno complexo, que implica
são de classes, fundindo-as todas numa só muitos fatores. Antes de mais, implica o
de trabalhadores livres, e iguais, não ricos reconhecimento de que há um conjunto
e pobres, senhores e servos, governantes de pessoas ou de grupos que apresentam
e governados, capitalistas e operários, semelhanças na distância em relação ao
mas todos homens, debaixo do mesmo poder e no que resulta para todos da dis-
céu, e em face do mesmo trabalho justo e tribuição de riqueza. Inclui, em suma,
digno!” (QUENTAL, 1926, II, 176). um sentimento de pertença a um grupo.
Façamos notar que as ideias que estão Mas implica também o reconhecimento
lançadas neste passo encontravam, à épo- de que esse grupo é uma força social –
ca, uma forte resistência. Antes de mais, i.e., uma força que defende os interesses
não podemos perder de vista o ambiente de um grupo com características seme-
em que eram lançadas (o ambiente in- lhantes, que quer fazer prevalecer os in-
telectual e cosmopolita), a que o povo, teresses do grupo, que ambiciona uma
em geral, não tinha acesso. Além disso, participação no poder e no processo de
o povo a quem se dirigiam era um povo decisão, que quer fazer evoluir o futuro
sedimentado numa organização social social a seu favor, etc. Por fim, a consciên-
relativamente rígida, filho de um país cia de classe implica o reconhecimento
fundamentalmente agrário, com pouca de outras classes de natureza e princípios
indústria, com operariado diminuto, de similares, com as quais rivaliza. Pode mui-
um país maioritariamente católico e mo- to bem acontecer que uma qualquer clas-
nárquico – e façamos notar que aquilo se não tome consciência de si enquanto
que as palavras de Antero de Quental, classe enquanto não se opuser a uma ou-
escritas em 1871, contêm não é menos tra classe, com a qual tem conflitos de in-
do que um apelo explícito à reformula- teresses. Neste sentido, a consciência de
ção (integral e profunda) de fundações classe parece implicar o reconhecimento
sociais seculares. de uma oposição ou tensão em relação a
Para a mobilização mais efetiva dos lei- uma ou a várias outras classes sociais, con-
tores de Quental e dos seus contemporâ- sideradas como concorrentes ou opostas.
neos, faltaria talvez isso a que se chama Ou seja: implica ou pode implicar senti-
consciência de classe. Alguns investiga- mentos de inferioridade e superiorida-
dores tendem a considerar a consciência de, de oposição ou conflito em relação
de classe como fundamental à existência a outras classes, de contestação ao modo
real da classe – ainda que salvaguardem a como na sociedade se exerce o poder e
possibilidade de essa consciência de clas- se distribui a riqueza, pode implicar sen-
se ser um reconhecimento exterior ou timentos de que o status quo social privi-
alheio à própria classe em questão e não legia classes concorrentes ou até oferece
necessariamente o reconhecimento que a classes concorrentes oportunidades de
adviria de uma autoconsciência de classe. explorar uma classe mais baixa ou as clas-
Ora, aquilo de que se fala quando se fala ses mais baixas, etc.

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Ora, aquilo que se nota em Portugal no da exploração capitalista e pela defesa de


período de transição entre os sécs. xix e uma ordem nova baseada no trabalho e
xx é um aumento progressivo e susten- na justiça, foram forçados a cumprir algu-
tado da consciência de classe. Acontece, mas das suas promessas quando triunfan-
porém, que um aumento de consciência tes” (MARQUES, 1975, 47-48).
de classe se deu não numa mas em duas Este súbito aumento de agitação social
classes distintas. poderá ter colhido de surpresa a burgue-
Por uma parte, houve um claro aumen- sia, já que sugeria a força crescente do
to de consciência de classe do proletaria- proletariado e dos sindicatos. Uma das
do. No caso, esse facto viria a resultar na promessas que os republicanos cumpri-
organização da classe trabalhadora e na ram foi a legislação do direito à greve.
multiplicação de associações operárias e, Nos anos de 1910 e 1911, há sinais de mais
por fim, num período politicamente mui- de 60 greves pelo país, tendo por motivo
to ativo, marcado por múltiplas revoltas os salários e os horários de trabalho, e
populares e pelo advento de vários par- abrangendo várias áreas (operários, em-
tidos políticos (como o Partido Socialista pregados de companhias comerciais e de
dos Operários Portugueses, em 1875). transportes, trabalhadores rurais, etc.); a
Por outra parte, no entanto, houve primeira greve geral (que aconteceu em
igualmente um claro aumento de cons- janeiro de 1912) leva a uma declaração de
ciência de classe da burguesia (melhor: estado de sítio, ao encerramento forçado
das diferentes burguesias que compreen- da Casa Sindical e à prisão de centenas
diam a burguesia). De um lado, desen- de grevistas; na sequência de múltiplos
volvia-se a burguesia rica, composta por congressos, reuniões e encontros, cria-se
banqueiros e capitalistas; de outro, desen- a União Operária Nacional em 1914; em
volvia-se a média e pequena burguesia; de simultâneo, desenvolve-se a organização
um outro ainda, desenvolvia-se a burgue- anarquista – em suma: aumenta a tensão
sia que advinha da nobreza tradicional social.
entretanto virada para o comércio e a Se até 1910 a pequena burguesia po-
banca. Em geral, ainda que não de uma deria ter simpatia pelas reivindicações
forma homogénea, a burguesia apoiava operárias, que afinal indiretamente a po-
Igreja e monarquia – apoios que lhe ga- deriam beneficiar, essa é mitigada pelas
rantiam a preservação dos seus lucros e greves, consideradas excessivas e inopor-
privilégios. tunas. Quanto à burguesia do patronato,
Este equilíbrio de forças mantém-se uma escassa proteção por parte do Gover-
até 1910. “Por todo o mundo civilizado, no republicano leva-a a uma ativa prote-
o desenvolvimento da sociedade indus- ção dos seus interesses, de que é exemplo
trial foi acompanhado por uma crescente a fundação, em 1911, da União de Agri-
agitação social. Em Portugal, também se cultura, Comércio e Indústria.
fizeram sentir reivindicações sociais, ape- Dada a dimensão do proletariado, as
sar do escasso número de proletários e suas reivindicações nunca foram devida-
dos aspetos moderados que o capitalismo mente atendidas; apesar de neste período
exibia aqui. Nos primeiros dez anos do sé- se ter legislado sobre acidentes de traba-
culo XX, ainda durante a Monarquia, as lho, ter sido aprovada uma lei reguladora
greves atingiram já números alarmantes. das horas de trabalho e se ter até criado
Os Republicanos, que tinham consegui- um Ministério do Trabalho e da Previ-
do apoio popular pelo ataque ao modo dência Social, o facto é que estaria igual-

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AnticlAssismo 385

mente em curso uma tentativa de repres- conceito, uma consciência de classe im-
são dos movimentos operários, na forma plica dois fatores centrais. O primeiro é
duma perseguição aos agitadores. De que por “consciência de classe” se deve
tudo isto resulta a oposição dos proletá- entender tanto a exploração do homem
rios ao regime republicano, concretizada pelo homem como a vontade de supri-
em alianças com a oposição monárquica mir essa exploração. O segundo é que a
e com elementos da extrema-direita – o consciência de classe só se aplica à classe
que lhes valeu serem acusados de favore- oprimida. E isto por dois motivos: porque
cer os inimigos da república. as classes diferem quanto ao âmbito e ao
É neste cenário de profunda divisão en- grau de mobilidade social ascendente
tre proletariado e burguesia que o mar- possível e o proletariado está no degrau
xismo entra em cena. Não nos cabe aqui mais baixo da hierarquia social; e, sendo
fazer um estudo aprofundado do mar- assim, porque cabe ao proletariado um
xismo, da sua implantação em Portugal, papel privilegiado e histórico: o papel de
nomeadamente nesta época concreta; o reconhecer as privações e as desigualda-
que cabe aqui é apenas um breve levan- des sociais, e de iniciar a rebelião ou a
tamento de alguns princípios marxistas, revolução que lhes ponha termo.
enquanto o marxismo é também uma Ora, na tese marxista, a luta de classes
forma de anticlassismo e, porventura, a leva necessariamente a uma fase de dita-
forma de anticlassismo em que este não é dura do proletariado. Essa fase passa por
apenas um momento ou uma tese de um compreender que um sistema de classes
programa político mais vasto mas é, de abertas seria uma contradictio in terminis e
facto, o núcleo central de todo o progra- que qualquer transformação social que
ma político, sobre o qual todas as outras proponha uma nivelação social iguali-
teses se edificam. E para compreender a tária dos indivíduos só se pode obter
natureza anticlassista do marxismo, im- através da tomada de posse dos meios
porta dar atenção a quatro etapas, no fim de produção e do fim dos privilégios da
das quais o marxismo pretende ter obtida burguesia.
uma sociedade sem classes. No entanto, por fim, esta ditadura não
Na primeira fase, o marxismo parte da é mais do que uma fase transitória e que
existência de classes e identifica-a com o tem em vista uma sociedade sem classes.
acesso diferenciado à produção e à pro- O que fundamenta a necessidade de uma
priedade dos meios de produção. O que ditadura do proletariado é, portanto, na
o marxismo desenha é, portanto, uma tese marxista, o facto de ela ser um meio
organização social em duas classes prin- necessário contra uma fase de eventual
cipais: a classe que tem os meios de pro- divisão social – i.e., um meio necessário
dução e beneficia deles, e a classe que, para prevenir a esperada reação da bur-
não tendo os meios de produção, fica à guesia, que tentará recuperar os seus pri-
mercê da que tem. À primeira o marxis- vilégios, e para impor o fim da proprieda-
mo chama burguesia e à segunda chama de privada dos meios de produção.
proletariado. Acontece que a entrada em cena das
Num segundo momento, o proletaria- ideias marxistas de organização social
do toma consciência da opressão e alie- coincide, em Portugal, com a participa-
nação social em que se encontra, e entra ção na Primeira Guerra e, em especial
numa luta de classes com a burguesia. com a oposição popular à Guerra e à
Isto significa que, no sentido marxista do subida do custo de vida. “O terceiro ga-

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386 AnticlAssismo

binete Afonso Costa tentou (sem o con- dizer uma última palavra sobre outras va-
seguir) obter o apoio dos trabalhadores riantes de anticlassismo.
para o seu esforço de guerra. Num dis- Na abordagem que aqui seguimos, e
curso de julho de 1917, por exemplo, o que segue a maioria dos autores, o que
chefe de Governo mostrava a sua simpa- está em causa quando se fala de classe
tia para com a luta de classes e inclina- (ou classe social) são desigualdades de
va-se para as teses marxistas. Condenava natureza social. No entanto, há desigual-
a exploração do trabalho pelo capital e dades que, não tendo à partida natureza
declarava compreender a necessidade social, adquirem relevância na sociedade
de greves. Mas em boa verdade havia e se convertem em desigualdades sociais:
pouco que o seu governo, ou os dos seus diferenças de sexo, raça, religião mas
sucessores, pudesse fazer para resolver o também diferenças quanto à riqueza, ao
problema. Os aumentos de salários não grau de instrução, às relações de família,
conseguiam acompanhar o aumento do a maneiras ou ao estilo de vida, etc. Em
custo de vida e a desvalorização da moe- especial, estas desigualdades tornam-se
da” (MARQUES, 1975, 50-51). socialmente relevantes quando se estabe-
Nos anos seguintes, vários ministérios lecem como critérios para atribuição dos
adotaram medidas a favor do proleta- vários papéis sociais e expressam sempre
riado e do baixo funcionalismo público. os princípios por que uma dada a socie-
No entanto, as medidas adotadas revela- dade se rege.
ram-se incapazes de refrear a contestação Ora, a enunciação do princípio de
social: uma greve geral em 1919 obteve que todos os cidadãos têm a mesma dig-
algum sucesso e há notícias de atentados, nidade social ou de que ninguém pode
lutas individuais e assassinatos. Como ser privilegiado ou privado de direitos (e
efeito secundário, estas medidas ainda isento de deveres) em razão da ascendên-
serviram para fazer dispersar o apoio cia, do sexo, da raça, da língua, do territó-
tradicional ao regime garantido pela rio de origem, da religião, das convicções
burguesia – que, sentindo-se desampara- políticas ou ideológicas, da instrução, da
da, para se opor àquilo que entendia ser situação económica, da condição social,
uma subversão em curso da ordem e da da orientação sexual, etc. – tal como
organização social, procurou aumentar a preveem as alíneas do art. 13.º da Cons-
sua coesão e a sua força social com a fun- tituição Portuguesa de 1976 – não quer
dação de novas associações, de que são de modo nenhum dizer que tenham
exemplo a Confederação Patronal (em desaparecido as desigualdades e as clas-
1920) e a União dos Interesses Económi- ses sociais; na verdade, quer dizer que as
cos (em 1924). classes e as desigualdades entre as classes
Esta breve batida pelas origens do an- não estão excluídas mas que nada obsta,
ticlassismo português, com especial inci- do ponto de vista meramente formal, ao
dência no fim do séc. xix e no início do trânsito entre classes e a que se ultrapas-
séc. xx, não corresponde senão a uma sem essas desigualdades.
breve amostra do que se seguiria ao lon- De facto, vendo bem, boa parte dos mo-
go do séc. xx e que este artigo não pode vimentos sociais do séc. xx partiu de um
perseguir; o que se procurou foi apenas reconhecimento da existência de classes
compreender os mais rudes fundamen- prejudicadas e do facto de haver uma
tos do anticlassismo português. Porém, relação entre esse prejuízo e os poderes
e como forma de epílogo, importa ainda dominantes em exercício, e constituiu-se,

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AnticlericAlismo 387

mesmo que num sentido do conceito


de anticlassismo diferente daquele que
Anticlericalismo
esteve neste artigo em análise, em movi-
mentos anticlassistas efetivos. A respeito
das diversas classes que cada um desses
movimentos pretendia defender e que
cada um desses movimentos pretendia
isentar de desigualdades, foi esse o caso,
e também em Portugal, do feminismo,
do antissemitismo, dos diversos ativismos,
N ão é possível ter uma ideia preci-
sa acerca da natureza do anticle-
ricalismo sem primeiro procedermos à
enfim, de todos movimentos que conde- elucidação de o que seja o clericalismo.
naram um qualquer tipo de desigualdade Sem entrar em análises mais finas, dire-
social ou de discriminação negativa. mos que o termo “clericalismo” acres-
centa ao termo coletivo “clero” uma
conotação crítica e pejorativa que, nos
membros da classe clerical, denuncia
comportamentos e práticas censurá-
veis ou ainda ingerências em áreas que
o poder político, democrático e laico,
reclama como da sua competência, de-
Bibliog.: CATROGA, Fernando, “As vanguar- signadamente a educação e a formação
das intelectuais, da geração de 70 à Seara dos cidadãos. Foi esta conotação políti-
Nova”, in FERNANDES, Maria Luísa Garcia
ca que ficou consagrada na célebre de-
(coord.), Seara Nova, Razão, Democracia, Europa:
Textos e Contextos, Porto, Campo das Letras,
claração proferida por Léon Gambetta
2001, pp. 14-40; CUNHAL, Álvaro, As Lutas (1838-1882) em começos da III Repúbli-
de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, ca em França: “E como foi tão bem dito
Lisboa, Estampa, 1975; ESTANQUE, Elísio, e pelo meu amigo Peyrat, o clericalismo,
MENDES, José Manuel, “Análise de classes e eis o inimigo” (LALOUETTE, 2002, 9).
mobilidade social em Portugal: um breve ba- Entendido assim o clericalismo como
lanço crítico”, Revista Crítica de Ciências Sociais, agente de valores e práticas contrárias
n.os 52-53, nov. 1998/fev. 1999, pp. 173-198;
aos interesses liberais, democráticos e
FONSECA, Carlos da, História do Movimento
Operário, Lisboa, Europa-América, 1979; GO- laicos da política republicana, o anticle-
DINHO, Vitorino Magalhães, Estrutura da Anti- ricalismo traduz, em relação ao poder
ga Sociedade Portuguesa, Lisboa, Arcádia, 1975; e à influência exercidos pela doutrina
1977; HANSON, Carl, Economia e Sociedade no e estruturas da Igreja na história social,
Portugal Barroco: 1668-1703, Lisboa, Dom Qui- cultural e política de países com forte
xote, 1986; MARGARIDO, Alfredo, A Introdu- tradição católica, uma vigorosa vontade
ção do Marxismo em Portugal: 1850-1930, Lis-
de mudança, a caminho da organização
boa, Guimarães Editores, 1975; MARQUES,
A. H. de Oliveira, A 1ª República Portuguesa laica da sociedade política. Na realidade,
(Alguns Aspectos Estruturais), Lisboa, Livros Ho- a classe clerical assim visada congrega e
rizonte, 1975; NOGUEIRA, César, Notas para a objetiva a oposição efetiva a uma enti-
História do Socialismo em Portugal (1871-1910), dade global chamada Igreja Católica.
Lisboa, Portugália, 1964; QUENTAL, Antero Foi desse modo que a generalidade dos
de, Prosas, 3 vols., Coimbra, Imprensa da Uni- “filósofos” iluministas entendeu a cle-
versidade, 1923-31. rezia por eles tão duramente fustigada.
Bruno Venâncio Holbach explicitou essa identificação ao

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388 AnticlericAlismo

escrever que “a Igreja, a religião, a pró- núncia tenta alertar para contradições
pria divindade são palavras que não de- existentes entre os altos ideais evangéli-
signam senão o sacerdócio encarado sob cos proclamados e os compromissos de-
diferentes pontos de vista. A Igreja é um masiado terrenos, sem esquecer a falta
nome coletivo para designar o corpo dos de dignidade e mesmo imoralidade de
nossos guias espirituais […]. Numa pala- comportamentos e de ações praticadas.
vra, Deus, a religião, a Igreja são a mes- Temos, deste modo, o chamado anticle-
ma coisa que os padres. É desta trindade ricalismo crente ou interno que, nas acu-
que resulta o ser único a que chamamos sações mais ou menos severas dirigidas
clero” (HOLBACH, 2006, 23). É  claro a clérigos e membros de ordens e con-
que esta eclesiologia iluminista de com- gregações, não põe em causa a Igreja,
bate reflete uma conceção redutora mui- pois visa, acima de tudo, a reforma e o
to difundida na ortodoxia católica, e que aperfeiçoamento moral e espiritual da-
se prolongou até ao séc. xx, em que a queles que, como ministros da Igreja e
Igreja aparece praticamente confinada pessoas consagradas, constituem a elite
à hierarquia eclesiástica, entidade que eclesial. Para além disso, temos também
exerce a mediação entre Deus e os fiéis. o que podemos qualificar como anticle-
O anticlericalismo político teve, desde ricalismo social ou de costumes, em que
o séc. xix, múltiplas manifestações, so- se atacam e ridicularizam formas antisso-
bretudo em países como França, Itália, ciais e extravagantes de comportamento
Espanha e Portugal, onde a presença do em elementos individuais ou no coletivo
catolicismo tinha estado estreitamente de ordens e congregações, sem que no
articulada com Estados governados por entanto se pretenda que essas corpora-
monarquias de poder absoluto. E situa- ções sejam eliminadas, como acontece
ção análoga verificou-se também em paí- nas reivindicações do anticlericalismo
ses da América Latina, designadamente político mais radical. Nessa situação, não
no Brasil e no México. Note-se que, em se trata já de corrigir costumes e práticas
Estados onde predominam confissões por iniciativa de críticos que são crentes
religiosas não católicas, as manifestações e têm confiança na Igreja. A iniciativa
de anticlericalismo foram ou são apenas pertence agora, sobretudo, a observa-
residuais. Em Portugal, a época de Pom- dores que encontram, nos institutos re-
bal, meados do séc. xviii, ficou marcada ligiosos e no clero em geral, comporta-
por políticas de radicalismo antijesuí- mentos e costumes tidos por insólitos e
tico, expressão de um anticlericalismo exóticos, e que reagem à sua presença na
político seletivo bem individualizado. sociedade, ora denunciando estilos de
Foi, porém, a partir da afirmação das vida contrários à mentalidade moderna
políticas liberais que essa ostracização e apresentados como nocivos à educação
de iniciativa pombalina se generalizou, das novas gerações, ora explorando o có-
primeiro ao universo congreganista e, mico das situações e zombando de tais
depois, também ao clero secular. comportamentos.
Devemos notar, no entanto, que exis- Esta diversidade de manifestações an-
tem outros planos nos quais a crítica e ticlericais tem coexistido ao longo dos
oposição ao universo clerical e às cor- séculos, embora o peso de cada uma de-
porações religiosas se manifestou com las na vida da sociedade se tenha modi-
grande vigor protestativo. Abundam os ficado segundo as épocas e os contextos
casos em que a firme contestação e de- culturais. Se as perspetivarmos em ter-

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AnticlericAlismo 389

mos diacrónicos, diremos que no perío-


do medieval predominou o anticlerica-
lismo interno ou cristão, e nos tempos
modernos o anticlericalismo social ou
de costumes. Já na época contemporâ-
nea, sobretudo durante o séc. xix e nas
primeiras décadas do séc. xx, fruto da
revolução de 1789 e do estabelecimen-
to da III República em França, tal como
em Portugal, por efeito da dinâmica que
conduziu à Implantação da República,
foi o anticlericalismo político que se
sobrepôs a qualquer outra modalidade
anticlerical.
Do que acaba de ser descrito segue-
-se uma conclusão a que nem sempre
atendemos. Embora se fale quase no
singular, a verdade é que existe uma
pluralidade de anticlericalismos que vai
muito além das três tipologias – política,
interna ou crente e sociológica – atrás
referidas. A  realidade multifacetada do
fenómeno anticlerical pode ser estabele-
cida com base em elementos tão diversos
como o sujeito da enunciação e o seu ob-
jeto, a motivação e as modalidades de ex- Semana Santa em Espanha,
de Francisco de Goya (1746-1828).
pressão. Sujeitos da tomada de posição
anticlerical tanto podem ser indivíduos
como Heliodoro Salgado (1861-1906) do poder temporal, do controlo das ins-
ou Tomás da Fonseca (1877-1968), gru- tituições educativas, até motivações de
pos ou associações como a Associação natureza idiossincrática ou de orienta-
Promotora do Registo Civil, fundada em ção partidária.
1876, e a Associação dos Livres Pensado- No que respeita a formas de expres-
res, criada em 1880, ou ainda organiza- são a que o anticlericalismo recorre, é
ções partidárias. Se considerarmos o ob- inesgotável a panóplia de instrumentos
jeto ou alvo contra o qual são lançadas a que foi deitando mão. Transformado
as setas anticlericais, podemos encontrar em retórica pronta para toda a espécie
os institutos religiosos em geral ou uma de combates, dispõe de um arsenal bem
ordem em particular, o clero secular em fornecido de armas, de que podemos
conjunto ou figuras singulares, quase enumerar, entre outras, comícios, roma-
sempre de posição elevada dentro da gens, manifestações, ações de propagan-
hierarquia. Diversidade existe também da, discursos parlamentares, opúsculos,
nas motivações que inspiram a oposição panfletos, polémicas, artigos em jornais,
e combate ao clericalismo. As motiva- teatro, romance, poesia, caricatura, sem
ções podem ir desde a rejeição do ultra- esquecer a importante expressão de li-
montanismo, da ingerência no exercício teratura popular que Paulo Correia de

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390 AnticlericAlismo

Melo reuniu. É através destes recursos modernização das instituições. O mes-


de expressão e comunicação que são ela- mo sucede nas incansáveis denúncias de
borados os conteúdos temáticos e figura- tudo quanto no ultramontanismo e ro-
tivos do imaginário anticlerical, os quais manismo é suspeito de ser perigoso, por
são, depois, difundidos junto de todo o ameaçar a autonomia da nação e o triun-
tipo de públicos. fo dos princípios liberais e democráticos
Do vastíssimo arsenal retórico com que devem regê-la. Explora-se por essa
que foi sendo elaborado o discurso anti- via a ideia de que existe uma conspira-
clerical português, podemos extrair um ção religiosa cujos agentes são as ordens
conjunto de temas, i.e., de matérias ou e congregações à medida que, a partir
assuntos, que sobressaem no acervo de de meados de Oitocentos, estas começa-
documentos onde esses temas aparecem ram a regressar a Portugal, por vezes de
e se repetem de modo mais insistente. maneira algo clandestina. Há também o
Percorrendo uma extensíssima escala, os apontar de baterias contra alguns insti-
assuntos mais recorrentes, especialmen- tutos religiosos que acabam por perso-
te nos anticlericalismos político e social, nificar o universo religioso no seu con-
possuem como denominador comum junto. Sem surpresa, entre os institutos
o propósito de desgastar a presença do masculinos, e desde o pombalismo, os
clero no espaço público, e assim minar Jesuítas ocupam o centro das atenções,
a credibilidade da missão da Igreja. Um de tal modo que o termo “jesuíta” ser-
primeiro inventário desses temas foi pu- ve, com frequência, para designar mem-
blicado em Ensaios Anticlericais, de Luís bros de outros institutos religiosos e até
Machado de Abreu, e mostra que a ques- do clero secular. Entre as congregações
tão do poder temporal da Igreja, que femininas, foram as Irmãs de Caridade,
remonta às consequências da conversão fundadas no séc. xvii por S. Vicente de
do Imperador Constantino Magno, no Paulo, que mais impiedosamente foram
séc. iv, se tornou fonte de graves e per- vilipendiadas, suspeitas de subordinação
sistentes tensões ao longo dos séculos. a superiores estrangeiros e de, nos hos-
É ainda o fantasma desse poder que con- pitais e dispensários, cuidarem mais da
tamina o exercício do poder espiritual e salvação das almas do que dos corpos.
está na origem de tentativas de o exorci- A educação e ensino a cargo de colé-
zar, e.g., através das formulações políticas gios confessionais constituiu, igualmen-
de galicanismo e de regalismo. Nas fases te, assunto de confronto político e de
mais agudas do anticlericalismo portu- polémica com os defensores da escola
guês, tanto em tempos de monarquia laica. Estes acusavam a escola católica de
liberal como nos de militância republi- não estimular a iniciativa pessoal e a au-
cana, foi sempre a questão do poder que tonomia, ao mesmo tempo que incutia
polarizou as atenções. O auge dessa con- nas crianças e nos jovens a passividade
traposição de laicidade às reivindicações de espírito e a adesão a crenças supersti-
do poder eclesiástico foi a Lei da Sepa- ciosas. A escola seria, desse modo, junta-
ração do Estado das Igrejas, de 20 de mente com o púlpito e o confessionário,
abril de 1911. Na vizinhança desse tema a grande arma utilizada pelo clericalismo
maior circulam tópicos sensíveis como para subjugar as consciências e resistir
a chamada aliança do trono e do altar, aos valores da modernidade: a ciência,
que atribui ao clero e à monarquia um a liberdade, a democracia. À conflituali-
pacto de mútuo apoio e de resistência à dade em torno da educação e do ensino,

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AnticlericAlismo 391

juntava-se a acusação de obscurantismo se modo o poder espiritual, criando um


dirigida aos que, além de professarem vazio que tem de ser preenchido por
pessoalmente a fé, se comprometeram um novo poder espiritual, nascido do
a pôr todas as suas capacidades ao ser- espírito científico e da criação artística.
viço da difusão da mensagem evangélica O “novo cristianismo” tem como expres-
como apóstolos, i.e., como promotores são produtiva o industrialismo. Ainda
de doutrinas que eram obscuras para a segundo Saint-Simon, a aliança do novo
razão. A opção religiosa, lida em pers- poder espiritual com as temporalidades
petiva positivista, contradizia o horizon- do sistema industrial é que deve animar
te de progresso aberto pelo advento da e presidir ao governo da nova sociedade
idade positiva, idade na qual a raciona- cujo advento se espera.
lidade científica era soberana. Também Por falta de espaço, não vamos en-
a questão social forneceu matéria útil e trar na análise pormenorizada dos ins-
oportuna, numa época em que a produ- trumentos que tornam visível a paixão
ção industrial se baseava na exploração anticlerical, com os respetivos autores
selvagem da força de trabalho de crian- e públicos. Fixar-nos-emos brevemente
ças e adultos. A sensibilidade socialista apenas em três perfis de figuras repre-
de Heliodoro Salgado levou-o a orientar sentativas que demonstram a diversida-
o anticlericalismo na direção do que en- de de convicções e a complexidade da
tendia ser o inevitável conflito entre os fenomenologia do anticlericalismo. Ve-
exércitos do trabalho formados pelo pro- jamos, em primeiro lugar, o caso de Ale-
letariado e a cumplicidade de clérigos e xandre Herculano (1810-1877). Embora
religiosos irmanados com os senhores do a sua hostilidade ao clericalismo, decla-
capital. Para acentuar este confronto, o radamente agressiva, tenha explodido
anticlericalismo invocava o ideal do cris- com a publicação, em 1850, do opúscu-
tianismo primitivo, no qual encontrava lo Eu e o Clero, havia muito já que vinha
as raízes doutrinais da igualdade, frater- amadurecendo. A História de Portugal co-
nidade e justiça, fonte do movimento de meçada a publicar em 1846, ao remeter
renovação social que teria sido perver- para o domínio das lendas hagiográficas,
tido pela história do catolicismo. Nesta em nome da crítica histórica, o apareci-
posição anticlerical ressoam ecos do utó- mento de Cristo a D. Afonso Henriques
pico “novo cristianismo” preconizado na véspera da Batalha de Ourique, pôs
por Claude Henri de Saint-Simon (1760- em alvoroço o clero, que não conteve a
-1825), segundo o qual a esperada orga- indignação perante o atentado à piedosa
nização da sociedade tem de ser acom- e patriótica tradição, atentado que nem
panhada de nova organização espiritual sequer acontecia pela primeira vez. Esta-
e religiosa. A fórmula com que nos apre- vam em jogo também outras avaliações
senta o novo mundo religioso inspira-se do comportamento clerical em recentes
nos elementos do cristianismo antigo e episódios da vida nacional. Grande par-
medieval. Todavia, o clero não merece te do clero, hostil à ideologia liberal e
qualquer consideração por ter abando- ofendido pelas medidas políticas toma-
nado o princípio sagrado da moral cristã das contra as ordens religiosas, tinha
promotora de dedicação aos pobres, ter alinhado ao lado da parcialidade migue-
olhado apenas para a conservação da sua lista. O espírito visceralmente religioso e
existência temporal e pregado aos povos liberal de Herculano viu-se confrontado
a sujeição aos príncipes. Atraiçoou des- com o catolicismo antiliberal do clero.

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392 AnticlericAlismo

Fiel ao cristianismo e ao ideário liberal, como constituir um projeto e um pro-


decidiu investir contra os representantes grama ideológico individual a que tudo
desse clero, acusando-os de ignorância acaba por se subordinar ao longo da vida
e de infidelidade aos ensinamentos do inteira. O caso de Tomás da Fonseca tem
evangelho. O avolumar da clerofobia o valor paradigmático de uma existência
do eminente historiador explica-se pelo que, desde a juventude até à morte, per-
cruzamento da questão política com o maneceu intransigentemente fiel a um
problema religioso. Se isso já era visível a programa anticlerical, traçado parado-
propósito do “milagre” de Ourique, aca- xalmente durante os oito anos em que
bou por adquirir maior relevo com a cla- frequentou o Seminário de Coimbra. As
ra oposição ao ultramontanismo, e ainda traves mestras do percurso de vida que
com a aproximação aos velhos católicos se propunha realizar são-nos reveladas
e a Ignaz von Döllinger (1799-1890). com surpreendente clareza no texto de
Outra figura singular no panorama an- O Evangelho de Um Seminarista, obra pu-
ticlerical português é o erudito historia- blicada em 1905, pouco depois de deixar
dor José Caldas (1842-1932). Do seu fe- o Seminário. À medida que as páginas
roz antijesuitismo dão conta sobretudo deste texto, e dos textos que publicou
duas extensas obras: Os Jesuitas e a Sua depois, se desdobram, vai-se tornando
Influência na Actual Sociedade Portuguêsa: mais nítido o projeto que animava o
Meio de a Conjurar (1901) e A Corja Negra autor e o programa que pretendia exe-
(Tosquia de Um Charlatão) (1914). O com- cutar para atingir o alvo. O autor revela
bate aguerrido que move aos filhos de claramente o propósito que o move ao
Inácio de Loiola, e as acusações que lan- proclamar a boa nova, i.e., o conjunto
ça ao clero secular pela falta de cultura e de proposições que, com a lógica inexo-
desenfreada cupidez, destoam da vulga- rável de uma espécie de silogismo, defi-
ta anticlerical republicana em dois pon- nem o plano a executar: Deus é um mito
tos nucleares. Por um lado, José Caldas e a religião uma mentira; são os padres
defende com vigor as ordens religiosas quem alimenta nos crentes esse mito
monásticas, cujos merecimentos não se e essa mentira; portanto, o remédio é
cansa de elogiar, por outro, usa da maior um só: aniquilar os padres. Sente-se in-
severidade na avaliação que faz do mar- vestido de uma missão e devorado por
quês de Pombal, a quem não regateia “ânsias de luta, planos de Verdade e de
os mais desprezíveis epítetos, chegando Justiça, disposto a iluminar os homens e
ao ponto de não lhe reconhecer mérito a derribar os deuses” (FONSECA, 1905,
algum pelos vexames a que sujeitou a 182). Tomás da Fonseca fez da adesão a
Companhia, atribuindo antes a Clemen- um programa de anticlericalismo mili-
te XIV a mão de gigante que a aniquilou. tante o seu projeto de vida. Cumpriu-o
O alvo final do anticlericalismo polí- de maneira radical, persistente e sem
tico tem sempre alcance coletivo, por- desvios, animado pelo propósito de
quanto aponta para a vitória do princí- emancipar a sociedade portuguesa da
pio de laicidade em todos os recantos alegada opressão religiosa e clerical. Fas-
da esfera do Estado. Mas tanto pode ser cinado pela mística do homem novo e da
desenvolvido a partir de uma iniciativa sociedade nova, procurou levá-la à prá-
de grupo, como sucedeu no combate tica intervindo em três frentes: política,
partidário que levou à Implantação da pedagógica e social. Com essa atuação
República, no dia 5 de outubro de 1910, pretendia varrer da sociedade a presen-

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AnticlericAlismo 393

ça da Igreja. Entendia que para isso era Alguns abraçaram o ministério como
necessário defender e consolidar a lai- pastores ao serviço de comunidades pro-
cidade republicana, promover o ensino testantes. Assim sucedeu, e.g., com Gui-
laico e libertar a mulher da subalterni- lherme Dias da Cunha (1844-1907), da
dade e da manipulação clerical. Estes ob- Diocese do Porto, e com Joaquim dos
jetivos obedeciam ao superior propósito Santos Figueiredo (1865-1937), da Dio-
de dignificar o laicismo com uma nobre cese de Coimbra, entre muitos outros.
qualificação moral e social, oposta à san- Desta deserção fundada em razões de
tidade cristã. O livro por ele publicado natureza pessoal e doutrinal, acompa-
em 1957 com o título Agiológio Rústico nhada de transição para formas variadas
visava, através de breves retratos morais de militância contra a Igreja, há exem-
de figuras do meio rural, laicizar os cos- plos noutros países de tradição católica,
tumes, democratizando e naturalizando nomeadamente em França. Nestes casos,
o padrão teológico da santidade eclesial. o anticlericalismo toma a configuração
O anticlericalismo antirreligioso e mi- de antirromanismo, na medida em que
litante de Tomás da Fonseca evidencia visa preferentemente o Vaticano e as de-
um percurso cultivado desde os tempos cisões doutrinais e canónicas emanadas
de seminário, i.e., no interior da pró- dos seus dicastérios.
pria Igreja. São numerosos os casos de Como fenómeno social e cultural, o
membros do clero que, em Portugal, anticlericalismo possui uma longa his-
tendo desertado dos compromissos do tória iniciada muito antes de ter sido
ministério sagrado, se converteram em criado o vocabulário específico que o
ativos militantes anticlericais. Nem to- designa. Este vocabulário terá surgido
dos passaram a adotar formas radicais de apenas em meados do séc. xix, depois
anticristianismo ou de antirreligiosismo. de decorridos muitos séculos de crítica
e ataque à instituição clerical e à vida
Tomás da Fonseca (1877-1968). monástica e mendicante. Quando pro-
curamos perceber quais os contextos
históricos em que a pulsão anticlerical
se torna mais conflituosa e ameaçadora
para a harmonização da existência re-
ligiosa com as organizações políticas e
sociais, verificamos que eles coincidem
com fases de transformação profunda
ou rutura de padrões institucionais vi-
gentes. É no quadro da mobilização co-
letiva para a mudança que se assiste ao
agravamento das atitudes e dos compor-
tamentos anticlericais. Lembremos, e.g.,
que as origens da Reforma protestante
foram acompanhadas da denúncia de
práticas eclesiásticas baseadas em orien-
tações dimanadas da Roma papal e tidas
por contrárias ao evangelho. O espírito
reformador, empenhado nas mudanças a
introduzir na vida da Igreja, considerava

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394 AnticlericAlismo

que estas tinham de passar pela inevitá- gações, e em severos constrangimentos


vel revisão da atuação do clero, sobretu- impostos ao exercício do ministério
do através das suas figuras mais gradas. pastoral pelo clero secular. Confirma-se
Quando, no final do séc. xviii, o espírito com esta experiência histórica que o an-
revolucionário se instalou na sociedade ticlericalismo na sua dimensão política,
francesa, a violência anticlerical conhe- além de ser reativado em períodos de
ceu um recrudescimento nunca visto até forte transformação do poder político,
então, com o sectarismo jacobino a im- funciona de facto como instrumento
por a sua lei e a provocar a repressão que ideológico de mudança.
vitimou numerosos religiosos de ambos Quando, já entrados no séc. xxi, olha-
os sexos. mos para a situação atual do anticleri-
Também em Portugal os períodos de calismo, que encontramos nós? Parece
acentuada mudança política se caracte- óbvio que, em países nos quais ele foi
rizaram por formas especialmente agres- foco de tensões e conflitos nos últimos
sivas de luta contra o clero e as ordens dois ou três séculos, a realidade social
religiosas. A afirmação do poder despó- e religiosa oferece agora um panorama
tico de Sebastião de Carvalho e Melo, de geral tranquilidade e pacificação.
posta ao serviço de reformas políticas, Nesta medida, perguntamos natural-
sociais e económicas do país, foi acom- mente qual o porquê de o anticlerica-
panhada de mudanças profundas na po- lismo ter perdido a agressividade mili-
lítica religiosa, de acentuado regalismo. tante de tempos idos. Embora ninguém
A Companhia de Jesus foi, como vimos, esteja seguro de alguma vez lhe ter sido
a instituição religiosa mais severamente passada declaração de óbito, parece in-
visada, acabando proscrita em Portugal dubitável que tal movimento há muito
e, depois, extinta pelo breve Dominus ac deixou as luzes da ribalta no quotidiano
Redemptor do Papa Clemente XIV, em da sociedade portuguesa e se remeteu
1773. O antijesuitismo foi, neste caso, a episódios esporádicos, sem o alarme
um anticlericalismo radical mas de in- social de outras eras. Muitas foram as
cidência sectorial. Quando se intensifi- transformações culturais verificadas no
cou o processo de implantação do libe- decurso do séc. xx e início do séc. xxi
ralismo, também se agravou a discussão que alteraram radicalmente as menta-
em torno da permanência das ordens e lidades, com incidência no relaciona-
congregações. Com o triunfo da Revolu- mento da sociedade com a Igreja. O re-
ção Liberal, reconhecido e assinado na gime de separação da Igreja e do Estado
Convenção de Évora Monte, em 1834, o instituído em 1911, depois de ter sido
desfecho da controvérsia congreganista motivo de profundas clivagens e do rea-
foi a extinção das ordens e congrega- cender de violentas paixões clericais e
ções decretada por Joaquim António de anticlericais, acabou por trazer e conso-
Aguiar, em 28 de maio desse mesmo ano lidar uma coexistência social e política
de 1834. Será igualmente por ocasião do caracterizada pelo clima de estabilidade
fortalecimento da dinâmica partidária e tolerância, no respeito pela liberdade
republicana, que acabaria por levar à im- religiosa. Republicano e laico, o Estado
plantação do novo regime, que a onda português não enfrenta atualmente ur-
anticlerical cresceu a ponto de alcançar gências de mudança de regime e não
resultados práticos que se traduziram padece da hipersensibilidade ao ultra-
em nova expulsão das ordens e congre- montanismo alimentada outrora por

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AnticlericAlismo 395

Fotografia de grupo de Jesuítas detidos no forte de Caxias por ordem do Governo Provisório da Repú-
blica, Ilustração Portuguesa, 7 nov. 1910.

proclamações maximalistas de nacio- É claro que, no Ocidente europeu,


nalismo. Além disso, apesar de alguns podemos ainda falar de um anticlerica-
casos mediáticos, parece pacífico que lismo recorrente cuja expressão pouco,
se esbateu a ideia de incompatibilidade ou quase nada, tem já a ver com o tom
absoluta entre fé e razão, entre religião estridente e agressivo de outras eras.
e ciência, admitindo-se que os dois cam- Tornou-se irónico, bastante polido, fre-
pos se organizam a partir de jogos de quentemente subtil. Distanciou-se in-
linguagem e de códigos institucionais comparavelmente dos anticlericalismos
autónomos e discursivamente paralelos. exacerbados da III República em Fran-
Força é reconhecer que, para a genera- ça, ou das três décadas que precederam
lidade dos cidadãos, se tornaram mais a Implantação da República em Portugal
frágeis e permeáveis as fronteiras que e dos anos imediatamente a seguir. Hoje,
separam as convicções, tendo ao mes- o esbatimento da paixão anticlerical pro-
mo tempo sofrido enorme erosão os cede das mudanças culturais em que se
vínculos identitários do catolicismo so- tornou preponderante a cultura da indi-
ciológico tradicional. As considerações ferença em face do fenómeno religioso
precedentes mostram como o território e do catolicismo em particular. Nalguns
em que a temática do anticlericalismo casos, transparece mesmo a cultura do
se move passou a ser o da inventariação desprezo, do pôr a ridículo ou do insul-
de percursos, múltiplos e subtis, abertos to. Como lembra René Rémond, “para
à elaboração permanente de leituras de fazer rir, apela-se para estereótipos sim-
hermenêutica histórico-cultural. plistas, para as imagens mais tradicionais

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396 AnticlericAlismo

da religião. Contra o catolicismo todos tónio, e FRANCO, José Eduardo (coords.),


os insultos são permitidos” (RÉMOND, Dança dos Demónios. Intolerância em Portugal,
2000, 25). Do mesmo modo que a at- Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores,
2009, pp. 125-201; Id., “Perspectivas sobre
mosfera da vivência religiosa das comu-
o anticlericalismo português”, Communio:
nidades cristãs se encontra poluída por
Revista Internacional Católica, n.º 1, jan.-fev.
ventos de ceticismo, de indiferença e -mar. 2010, pp.  33-41; CATROGA, Fernan-
de individualismo, também os anticleri- do, “O  livre-pensamento contra a Igreja.
calismos e anticatolicismos sobrevivem A  evolução do anticlericalismo em Portugal
agora com menos alarido e quase sem (séculos xix-xx)”, Revista de História das Ideias,
paixão. Como em tantos outros contex- vol. 22, 2001, pp.  255-354; FONSECA, To-
tos de generalização, existem exceções más da, Evangelho dum Seminarista, Coimbra,
Empreza Editora d’O Ensino, 1905; HOLBA-
e não faltam casos. Mas também aqui o
CH, Paul-Henri Thiry d’, La Théologie Portative
espírito individualista se impõe às repre- ou Dictionnaire Abrégé de la Religion Chréetien-
sentações com que o imaginário profano ne, s.l., Coda, 2006; LALOUETTE, Jacqueli-
encena os acontecimentos. Ao contrário ne, La  République Anticléricale: XIXe-XXe, Paris,
dos clássicos confrontos anticlericais em Seuil, 2002; MELO, Paulo Correia de, Ane-
que o caso particular tinha valor de siné- dotas e Outras Expressões de Anticlericalismo na
doque, pois era a parte em que estava Etnografia Portuguesa, Lisboa, Roma Editora,
2005; RÉMOND, René, Le Christianisme en Ac-
condensado o universo clerical, censura-
cusation. Entretiens avec Marc Leboucher, Paris,
se agora de preferência o infrator e con- Desclée de Brouwer, 2000; SAINT-SIMON,
dena-se o comportamento do ou dos in- Henri de, Le Nouveau Christianisme et les Écrits
divíduos sem, nesse labéu, envolver todo sur la Religion, Paris, Seuil, 1969; SORREL,
o grupo de que fazem parte. Christian (dir.), L’Anticléricalisme Croyant
Devemos, no entanto, reconhecer que (1860-1914). Jalons pour Une Histoire, Cham-
o fenómeno anticlerical foi ganhando, a béry, Université de Savoie, 2004.
partir de meados do séc. xxi, configura- Luís Machado de Abreu
ções imprevistas ou pelo menos pouco
valorizadas até então. As práticas há sé-
culos instituídas em território europeu,
de tradição cristã e católica, mantiveram-
nos distraídos ou esquecidos de áreas
geográficas onde outros credos animam
regimes teocráticos e onde se verifica
avassaladora influência clerical. Foram
necessários os acontecimentos traumá-
ticos de desregulação política verifica-
dos no Próximo Oriente para a questão
religiosa adquirir contornos de ameaça
transnacional, com novos clericalismos e
anticlericalismos no horizonte.

Bibliog.: ABREU, Luís Machado de, Ensaios


Anticlericais, Lisboa, Roma Editora, 2004; Id.,
“Anticlericalismo. A intriga teológico-políti-
ca dos anticlericalismos”, in MARUJO, An-

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AnticoloniAlismo 397

Anticolonialismo pos, exerce autoridade política assegu-


rando as respetivas relações internacio-
nais” (CAETANO, 1948, 7).
Do conceito de colónia emergem,
como características: a situação geográ-
fica; a individualização étnica da popu-
lação colonial e a sua diferenciação da

O termo “anticolonialismo” designa


a corrente jurídico-política de de-
fesa da autodeterminação dos povos e da
população metropolitana; o aproveita-
mento económico dos recursos do terri-
tório; a cultura e a organização política
independência dos territórios coloniais específica do território ocupado; a de-
e, em consequência, de condenação do pendência política e as especificidades
sistema colonial e da subjugação de um do sistema de governo, de administração
povo a outro. e jurídico.
O movimento anticolonialista defen- O Estado não tem de ter um território
de a descolonização, entendida como contínuo e situado num único continen-
o processo através do qual o território te. O Estado é constituído por todas as
que se encontra sob o domínio de uma possessões detidas em qualquer parte
potência estrangeira conquista a sua li- do mundo. Os teóricos do colonialismo,
berdade, a sua soberania interna e in- a partir do séc. xix, defendem uma in-
ternacional, e defende a sua identidade corporação das colónias no território
nacional. A identidade nacional é asse- estadual, de modo a que tudo o que seja
gurada através de uma reaproximação aplicado à metrópole o seja também ao
à história, à cultura e à língua de um território colonial.
povo; a soberania interna pressupõe a Os poderes da metrópole sobre as co-
existência de um território definido, de lónias podem variar em extensão, man-
um povo e de instituições administrati- tendo, no entanto, o governo da metró-
vas e políticas, e a soberania internacio- pole, independentemente do grau de
nal implica a inexistência de um poder relação existente com as colónias, uma
superior sobre o território e o exercício interferência direta e definida sobre a
do ius belli, enquanto capacidade de de- administração e o governo daquelas.
clarar a guerra e a paz, do ius tractatum,
o direito de celebrar tratados interna-
cionais, e do ius legationis, o direito de Marcelo Caetano (1906-1980).
enviar e receber agentes diplomáticos e
consulares.
Para se entender a oposição à desco-
lonização é necessário definir a colónia.
Marcelo Caetano entende o conceito de
colónia em sentido lato, como “o terri-
tório habitado por dois ou mais grupos
étnicos de civilização diferente, no qual
um Estado, cujos órgãos soberanos têm
sede noutro território geograficamente
distinto e a que em regra pertencem os
elementos dominantes de um dos gru-
D.R.

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398 AnticoloniAlismo

As colónias podem encontrar-se numa externa, que só é adquirida com a inde-


relação de sujeição, de autonomia ou de pendência. Como exemplo deste siste-
assimilação em relação à metrópole. No ma podemos apontar a relação colonial
sistema de sujeição, as colónias são gover- existente entre a Grã-Bretanha e a coló-
nadas pelo governo da metrópole, por in- nia da Índia, nas primeiras décadas do
termédio de delegados que se encontram séc. xx e até à independência da Índia,
no território colonial e que não dispõem em 1947.
de poderes próprios. Como a colónia tem No âmbito económico, as colónias atin-
como objetivo aumentar a riqueza da na- gem um estado de quase independência,
ção, o seu governo é exercido no exclusi- e a metrópole assegura, em regra, repre-
vo interesse da metrópole. sentação nas empresas comerciais criadas
Com a política de assimilação, as co- para explorar e aproveitar as riquezas
lónias são consideradas como prolonga- naturais. Em muitos casos, desenvolve-se
mento do território da metrópole e re- uma complementaridade económica en-
gem-se pelas leis metropolitanas. Neste tre a metrópole e as colónias.
sistema, que vigora em Portugal a partir Mesmo no regime de autonomia, que
de 1820, propõe-se uma união estreita é o que oferece uma menor subordina-
entre o território colonial e a metrópo- ção da colónia à metrópole, os gover-
le. De acordo com esta conceção, elimi- nadores são nomeados pela metrópole,
nam-se as diversidades jurídicas e cultu- que também fiscaliza as atividades desen-
rais, tendo os habitantes das colónias, volvidas pelas colónias.
incluindo os nativos, os mesmos direitos No início do séc. xx, o pensamento
fundamentais que os da metrópole. No anticolonialista e o princípio da auto-
sistema de assimilação, a organização ad- determinação dos povos começam a
ministrativa das colónias constitui uma ganhar relevo nos meios internacionais,
extensão da organização administrativa influenciados pela Primeira Guerra
metropolitana. Mundial, pela Revolução Russa, pelos
Do ponto de vista político, as colónias movimentos socialistas e pelos mandatos
seguem o sistema em vigor na metrópole coloniais, criados no âmbito da Socieda-
e elegem representantes às assembleias de das Nações.
nacionais. Nas relações económicas, a A tradição liberal e democrática ingle-
característica preponderante é a unifi- sa, francesa, holandesa e belga defende,
cação da economia metropolitana com na sequência das ideias dos pais da inde-
a colonial. pendência americana, a liberdade indi-
A política de autonomia tem como ob- vidual, a igualdade entre os homens, o
jetivo preparar a emancipação das coló- exercício da soberania nacional e a livre
nias. A metrópole dota paulatinamente escolha dos governantes. É neste enqua-
a colónia de estruturas capazes de a go- dramento que se encontra o pensamen-
vernar. As leis são feitas na própria coló- to do Presidente dos Estados Unidos da
nia e o governo colonial é ocupado por América Woodrow Wilson.
habitantes da colónia. As relações entre Em 1917, o Presidente Woodrow Wil-
a colónia e a metrópole têm como intui- son faz uma comunicação ao Congresso
to assegurar a soberania política da me- dos Estados Unidos da América em que
trópole e a proteção da colónia. Apesar apresenta catorze pontos para a paz.
de poder parecer que a colónia é quase De entre esses pontos, o quinto defen-
independente, falta-lhe a representação de a necessidade de se proceder a uma

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AnticoloniAlismo 399

redefinição da política colonial, tendo


em consideração os interesses dos povos
colonizados. O pensamento americano
vai no sentido da defesa do princípio da
autonomia dos povos sujeitos a coloniza-
ção.
O contributo americano para a inde-
pendência dos povos continua presente
em 1941, na Carta do Atlântico, assina-
da a 14 de agosto entre o Presidente dos
Estados Unidos da América, Roosevelt,
e o primeiro-ministro inglês, Churchill.
Nesta Carta é declarado que cada povo
tem direito a escolher a sua forma de go- D.R.

verno e o seu destino político.


Mahatma Gandhi (1869-1948).
No decurso da Segunda Guerra Mun-
dial, Roosevelt defendeu o princípio
norte-americano do anticolonialismo. não defende uma descolonização pre-
A exemplo do que tinha acontecido no cipitada, mas uma passagem prévia por
continente americano, os Americanos um governo autónomo da colónia, antes
defendem a libertação das colónias an- de ser atingida a independência. O mo-
tes que as tentativas de autodetermina- delo a seguir é o desenvolvido pela Grã-
ção originem lutas raciais, como acabou -Bretanha em relação às suas colónias.
por acontecer em alguns casos. Estamos O movimento comunista internacio-
perante a defesa, como acentuou o sub- nal – na sequência do pensamento de
secretário de Estado norte-americano Marx, Rosa Luxemburgo, Boukharine,
Sunner Wells, no Memorial Day de 1942, Lenine – é um adversário da coloniza-
da libertação dos povos perante o impe- ção, enquanto fenómeno imperialista,
rialismo, que estava a chegar ao fim. e defende o direito dos povos a dispo-
O pensamento anticolonialista en- rem de si próprios. Apesar de se manter
contra apoio nos movimentos socialis- fiel ao princípio de autodeterminação
ta, comunista e cristão, que, por razões dos povos, a Segunda Guerra Mundial,
políticas ou de defesa da dignidade e da a recuperação da Europa e as posições
igualdade humana, defendem a autode- nacionais nas diversas metrópoles fize-
terminação dos povos colonizados. ram-no adiar ações tendentes à indepen-
O movimento socialista, após 1914, dência dos territórios coloniais.
também defende a descolonização dos As Igrejas cristãs – a Igreja Católica
povos, em nome dos interesses da clas- e as Igrejas protestantes – apoiam, por
se trabalhadora e como instrumento de meio de ações e declarações nos ter-
construção da paz. A utilização das co- ritórios coloniais, os movimentos de
lónias, durante a Primeira Guerra Mun- descolonização.
dial, e a luta pela detenção de territórios As Igrejas protestantes pronunciam-se
coloniais fazem com que os partidos so- firmemente contra a colonização, em es-
cialistas europeus condenem o sistema pecial através de várias missões nos con-
colonial. Não obstante o pensamento tinentes asiático e africano. A Santa Sé,
anticolonialista, o movimento socialista ao invés, vai lentamente assumindo, ao

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400 AnticoloniAlismo

longo das primeiras décadas do séc. xx, progressivo das instituições políticas, de


uma posição contrária ao sistema colo- acordo com o nível de desenvolvimento
nial. Bento XV, em 1915, chama a aten- e as características de cada povo.
ção para os direitos e as aspirações dos O conceito presente na Carta das
povos, e Pio XI, em 1919, preocupa-se Nações Unidas não traduz a ideia de
com a formação do clero indígena. No independência dos povos, mas a de au-
período posterior à Segunda Guerra tonomia da administração da colónia,
Mundial, a Santa Sé, em várias encícli- que se mantém ligada à metrópole.
cas, sublinha que a emancipação dos A autodeterminação dos povos é enten-
povos colonizados deve ser feita sob o dida, em 1945, e pela ONU, como au-
signo da justiça e da paz como forma de tonomia política e não como indepen-
diminuir as desigualdades e promover o dência estadual.
desenvolvimento dos povos. A Carta das Nações Unidas, na altura
Os movimentos anticolonialistas sur- em que é assinada – no rescaldo da Se-
gem com especial dinamismo após a Se- gunda Guerra Mundial –, é produto de
gunda Guerra Mundial. A Organização uma cultura imperial, em que os Esta-
das Nações Unidas (ONU) é um dos lo- dos-império pretendem manter o status
cais de defesa da liberdade dos povos. quo, aceitando dar alguma autonomia
A Carta das Nações Unidas consagra, aos territórios coloniais, sem os tornar
nos arts. 1.º, n.º 2, e 55.º, o princípio da independentes.
autodeterminação dos povos. Não obstante esta orientação das Na-
O art. 1.º, que enumera os objetivos da ções Unidas, os movimentos anticolo-
ONU, dispõe, no n.º 2, que a ONU deve nialistas vão fazer-se sentir por todo o
“desenvolver relações de amizade entre mundo, encabeçados, em parte, por
as nações baseadas no respeito do princí- movimentos comunistas e por movimen-
pio da igualdade de direitos e de autode- tos de libertação dos povos colonizados.
terminação dos povos”. O art. 55.º volta A Guerra Fria, que opôs dois blocos po-
a referir a autodeterminação dos povos, líticos – o bloco ocidental, encabeçado
sem desenvolver o tema. pelos EUA, e o bloco de Leste, ligado à
A Carta das Nações Unidas apresenta URSS –, vai fomentar o aparecimento de
três capítulos relacionados com os ter- movimentos de libertação das colónias,
ritórios coloniais: o capítulo xi, relativo nomeadamente na Ásia e em África,
aos territórios não autónomos, o xii, apoiando as lutas coloniais, numa corri-
sobre o regime internacional de tutela, da pela independência de novos Estados
e o xiii, sobre o Conselho de Tutela. que constituam aliados para os blocos
Estes capítulos estabelecem as responsa- em confronto. A Guerra Fria vai também
bilidades dos Estados que administram fazer-se no contexto, ideologicamente
territórios sob mandato. Os Estados motivado, das independências coloniais.
mandatários devem assegurar a cultura O impulso para o início do movimento
dos povos interessados, bem como o seu de descolonização, em especial do afri-
progresso político, económico, social e cano, ocorre com a Conferência de Ban-
educacional; consolidar a paz e a segu- dung, realizada entre 18 e 24 de abril de
rança internacionais; promover um go- 1955 na Indonésia. Nesta Conferência,
verno próprio dos territórios coloniais, reúnem-se 25 chefes de Estado e de Go-
atendendo às aspirações políticas dos verno da Ásia e de África a convite do
povos, e fomentar o desenvolvimento líder indonésio Sokarno. Como promo-

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AnticoloniAlismo 401

tores da Conferência, destacam-se igual- Fria, a Conferência de Bandung tem


mente o líder indiano Nehru e o egípcio uma grande influência da União Sovié-
Nasser. tica, que surge como a grande defensora
A Conferência de Bandung é também da emancipação colonial. Apesar de ser
conhecida como a Conferência do Ter- esta a posição adotada pelos países do
ceiro Mundo ou dos Estados não alinha- bloco de Leste, também os EUA olham
dos, uma vez haver, entre as suas fileiras, para a descolonização como uma opor-
países aliados dos EUA, como as Filipi- tunidade para alargar as suas zonas de
nas, o Japão, a Tailândia, o Paquistão, e influência e como prossecução do prin-
outros da União Soviética, como a China cípio da autonomia dos povos, enquanto
e o Vietname do Norte. independência dos mesmos.
Os objetivos da Conferência de Ban- A consagração do princípio da auto-
dung são: (i) a promoção da cooperação determinação dos povos como um prin-
económica e cultural afro-asiática; (ii) a cípio positivo do direito internacional
oposição ao colonialismo; (iii) a declara- concretiza-se com a resolução 1514 da
ção do racismo e do imperialismo como Assembleia Geral da ONU, de 14 de de-
crimes contra a humanidade. zembro de 1960. Esta resolução, que é
Os princípios orientadores da Confe- conhecida como a Declaração sobre a
rência são: (i) o respeito pelos direitos Concessão de Independência aos Países
fundamentais, de acordo com o consig- e Povos Coloniais, constitui uma ver-
nado na Carta das Nações Unidas; (ii) o dadeira carta de descolonização e um
respeito pela soberania e pela integrida- bastião da luta anticolonial. A resolução
de territorial de todas as nações; (iii) o é aprovada por 89 votos favoráveis, ne-
reconhecimento da igualdade de todas nhum contra e 9 abstenções, entre elas
as raças e nações; (iv) o respeito pelo a de Portugal.
direito de cada nação a defender-se in- A resolução 1514 visa o fim do colo-
dividual e coletivamente; (v) a defesa do nialismo e determina que a sujeição
direito de autodeterminação dos povos; dos povos à dominação e à exploração
(vi) a defesa da resolução pacífica de estrangeira constitui uma negação dos
conflitos. direitos fundamentais, especialmente do
O princípio da autodeterminação dos direito à liberdade dos povos. Nos con-
povos assume especial ênfase durante siderandos, a Assembleia Geral declara
a Conferência de Bandung, ao defen- que, “convencida de que todos os povos
der-se que aquele apenas se concretiza têm o direito inalienável à liberdade ab-
através da independência – o mesmo soluta, ao exercício da sua soberania e
é dizer: só há autodeterminação com à integridade do seu território nacional,
independência. proclama solenemente a necessidade
Após a Conferência de Bandung, os de pôr fim rápido e incondicional ao
povos não alinhados, assim como os paí- colonialismo em todas as suas formas e
ses que constituem o bloco de Leste, en- manifestações”.
cabeçados pela URSS, vão erguer a ban- Dispõe a resolução, no n.º 1, que a
deira dos movimentos anticolonialistas, “sujeição dos povos a uma subjugação,
nomeadamente dentro da ONU. dominação e exploração constitui uma
Não obstante a referência ao não ali- negação dos direitos humanos funda-
nhamento aos blocos ocidental e de Les- mentais”. Como consequência desta
te, característicos do período da Guerra determinação, todos os povos têm, nos

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402 AnticoloniAlismo

termos do n.º 2, o direito à livre determi- ca, influenciada pelo eixo afro-asiático.
nação, podendo, através dela, promover A defesa dos princípios anticolonialistas
livremente o seu desenvolvimento eco- torna-se dominante.
nómico, social e cultural. Com a resolução 1514, o princípio
Para a concretização destes objetivos, da autodeterminação dos povos passa a
a Assembleia Geral das Nações Unidas fazer parte do ius cogens, ou seja, torna-
defende o cessar de “toda a ação armada -se um princípio imperativo de direito
ou toda e qualquer medida repressiva de internacional, pelo que a sua violação
qualquer índole dirigida contra eles [os constitui uma negação dos direitos fun-
povos colonizados]” e que “deverá res- damentais do Homem. Fica estabelecido
peitar-se a integridade do seu território que todos os povos têm direito a esco-
nacional” (n.º 4). lher o seu estatuto político e a promover,
Para a ONU, todos os povos têm direito de forma livre, o seu desenvolvimento
à autodeterminação, e esta é alcançada económico, social e cultural.
através da independência. A independên- As Nações Unidas não defendem a in-
cia constitui a concretização da liberdade dependência dos territórios coloniais a
dos povos. A assunção, feita pelas Nações qualquer preço, mas mediante a auscul-
Unidas, de que apenas há autodetermina- tação dos povos coloniais, por meio de
ção através da independência dos povos referendos ou de plebiscitos, ou através
traduz-se, como referem André Gonçal- da concordância dos movimentos de li-
ves Pereira e Fausto de Quadros, numa bertação de um determinado território,
heterodeterminação da ONU no futuro que, em princípio, exprimem a vontade
de um determinado povo. do povo.
A resolução 1514 constitui um avanço Complementam a resolução 1514 as
interpretativo no conceito de autodeter- resoluções 1541 e 1542, de 15 de dezem-
minação dos povos presente no art. 1.º, bro de 1960.
n.º 2, da Carta da ONU. Em 1945, quan- Em 1962, a Assembleia Geral das Na-
do a Carta é assinada na Conferência ções Unidas emite a resolução 1803
de São Francisco, o princípio da auto- (XVII), de 14 de dezembro, acerca da
determinação dos povos não é ainda soberania permanente sobre os recursos
entendido como um princípio de inde- naturais, com especial incidência nos
pendência, mas tão só de autonomia dos novos Estados soberanos saídos da des-
territórios coloniais, no âmbito de um colonização. Prevê a resolução que “o
mundo em que os impérios coloniais direito dos povos e das nações à sobera-
– inglês, francês, belga, português – se nia permanente sobre as suas riquezas e
mantinham presentes. A Carta das Na- recursos naturais deverá ser exercido no
ções Unidas faz, nesta matéria, afirma- interesse do respetivo desenvolvimento
ções programáticas. nacional e do bem-estar do povo do Es-
A mudança de entendimento das Na- tado em causa”. Acrescenta a resolução
ções Unidas, como referido, ocorre por que “a violação dos direitos dos povos
pressão do bloco de Leste e pela ade- e das nações à soberania sobre as suas
são, às Nações Unidas, de Estados asiá- riquezas e recursos naturais é contrária
ticos e africanos. Com efeito, a adesão à ao espírito e aos princípios da Carta das
ONU, na sessão de 1960, de 17 Estados Nações Unidas e prejudica o desenvolvi-
africanos resultantes da descolonização mento da cooperação internacional e a
dá origem a uma nova orientação políti- manutenção da paz”.

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AnticoloniAlismo 403

Fotografia da Assembleia Geral da onu.

As correntes anticolonialistas em Por- para a economia e o posicionamento


tugal fazem-se sentir com especial ênfase de Portugal no mundo, razão pela qual
na déc. de 50 e no início da déc. de 60. os movimentos de oposição ao regime
Apesar de Portugal participar nas político português não são defensores
Nações Unidas desde 1955, não aceita ativos da independência colonial. Não
os princípios de descolonização e auto- deixam, no entanto, de defender a in-
determinação dos povos defendidos a dependência dos povos, mas para o mais
partir de 1960. Durante o período do tarde possível. Esta independência não
Estado Novo, é defendida a tese do Por- deveria ser autónoma, dado o parco de-
tugal pluricontinental, ou seja, de um senvolvimento colonial, mas assegurada
país com presença em vários continen- mediante a tutela de Portugal, como foi
tes – Europa, África e Ásia. Esta doutrina, defendido pelo Partido Comunista Por-
que tivera consagração na revisão consti- tuguês no Congresso de 1943.
tucional de 1951, com a transformação Os ideais descolonizadores não atin-
das colónias portuguesas em territórios gem diretamente a oposição – seja repu-
ultramarinos, permite que Portugal re- blicana, socialista ou monárquica – ao
cuse, nos termos do capítulo xi da Carta, regime do Estado Novo, que continua a
o envio de relatórios para a ONU sobre ver no império a salvação da “pátria” e o
os territórios coloniais. único meio de Portugal se impor, como
Não obstante a posição política e jurí- potência, na esfera internacional.
dica assumida por Portugal, as pressões Nos finais da déc. de 50 e nos anos 60,
sobre o país vão aumentar, culminando, os movimentos de oposição ao regime
em 1961, com uma Guerra Colonial que político português afirmam de forma
dura 13 anos. mais clara o direito à independência dos
Em Portugal é notório, a partir dos povos colonizados e condenam a polí-
anos 30, o reconhecimento da importân- tica colonial portuguesa. O movimento
cia económica e estratégica das colónias comunista português, a título de exem-

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404 AnticoloniAlismo

plo, sob influência da Internacional Co- Internacionais, vol. ii, Lisboa, Ática, 1961; FREI-
munista, apoia os diversos movimentos TAS, Pedro Caridade de, Portugal e a Comuni-
de libertação que surgem nos territórios dade Internacional na Segunda Metade do Século
XIX, Lisboa, Quid Juris, 2012; GIRAULT, René
ultramarinos portugueses, com especial
et al., La Loi des Géants. 1941-1964. Histoire des
destaque para os da Guiné, Angola e Mo-
Relations Internationales Contemporaines, Paris,
çambique. Éditions Payot & Rivages, 2005; HOMEM,
Com os movimentos de libertação dos António Pedro Barbas, e FREITAS, Pedro Ca-
povos africanos, surge o binómio nacio- ridade de, Textos de História das Relações Inter-
nalismo/anticolonialismo. Se, por um nacionais, Lisboa, Associação Académica da
lado, se ergue a bandeira da contestação Faculdade de Direito de Lisboa, 2012; KIS-
à presença colonial europeia no conti- SINGER, Henry, Diplomacia, Lisboa, Gradiva,
1996; MACEDO, Jorge Borges de, “Descolo-
nente africano, por outro desenvolve-
nização”, in Polis, vol. 2, Lisboa, Verbo, 1984,
se um nacionalismo africano – no caso pp.  134-161; MAXWELL, Kenneth, “As coló-
português, um nacionalismo angolano nias portuguesas e a sua descolonização”, Re-
e moçambicano – com o intuito de de- vista Crítica de Ciências Sociais, n.os 15-17, maio
terminar as especificidades de um de- 1985, pp. 529-547; MOUGEL, François-Char-
terminado povo, enquanto comunidade les, e PACTEAU, Séverine, Histoire des Relations
linguística, histórica e racial. Sob a égi- Internationales. XIXe et XXe Siècles, Paris, PUF,
2006; PEREIRA, André Gonçalves, e QUA-
de desta unidade nacional, defende-se a
DROS, Fausto de, Manual de Direito Internacio-
criação de um Estado que aglutine uma nal Público, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2002;
pretensa unidade cultural. QUEIRÓ, Afonso Rodrigues, “Colonialismo”,
Na realidade, nem sempre é possível in Polis, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1983, pp. 982-
isolar essa unidade cultural e ideoló- -985; SANTOS, Aurora Almada e, “A ONU e
gica nos vários Estados que se formam as resoluções da Assembleia Geral de dezem-
no continente africano, atendendo à di- bro de 1960”, Relações Internacionais, n.º 30,
versidade das características étnicas em jun. 2011, pp. 61-69.
presença. Mais do que diante de movi- Pedro Caridade de Freitas
mentos nacionalistas, estamos perante
um internacionalismo africano, ou seja,
uma influência externa das potências
mundiais no desenrolar dos movimentos
de libertação e no destino dos povos co-
lonizados.

Bibliog.: CAETANO, Marcelo, Portugal e o Di-


reito Colonial Internacional. Estudos de Direito e
Administração Colonial. I, Lisboa, Tip. Casa Por-
tuguesa, 1948; CARDINA, Miguel, “Guerra à
guerra. Violência e anticolonialismo nas opo-
sições ao Estado Novo”, Revista Crítica de Ciên-
cias Sociais, n.º 88, 2010, pp. 207-231; CONS-
TANTINI, François, Les Relations Internationales
en Fiches, Paris, Ellipses, 2009; CUNHA, J. M.
da Silva, Administração e Direito Colonial, Lisboa,
Associação Académica da Faculdade de Direi-
to de Lisboa, 1953; Id., Questões Ultramarinas e

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Anticomunismo 405

Anticomunismo Existe uma linha de continuidade his-


tórico-cultural que fundamenta este grau
absoluto de intolerância face ao diferente
e a consequente tentativa de absorção ou
eliminação do outro: do cruzadismo da
Reconquista, em que se forçava a recon-
versão ou a eliminação do mouro e do ju-

E m Portugal, o conceito de anticomu-


nismo enquadra todo o movimento
político e social que tende à repressão e
deu, à missionarização e catequização do
pagão nos Descobrimentos, à nulificação
do protestante e do judeu até ao final do
esmagamento do comunismo. Neste sen- séc. xviii, prosseguida pelo maniqueísmo
tido, o comunismo é considerado como político entre liberais e absolutistas e pelo
um movimento político revolucionário radical anticlericalismo dos partidários
cujos ideais ferem violentamente a essên- da Primeira República, toda a história e
cia histórica da sociedade portuguesa e cultura portuguesas se conjugavam para
cuja aniquilação se torna um imperativo afrontar a emergência do comunismo, na
nacional, um “dever patriótico”. Deste primeira metade do séc. xx, com o mesmo
modo, no séc. xix e primeira metade do fervor autoritário e persecutório com que,
séc. xx, o anticomunismo radica em pro- desde há 500 anos, o vinham fazendo rela-
fundas raízes nacionalistas, cuja natureza tivamente a forças cultural e politicamente
presume identificar-se com o todo da his- adversas. A extrema violência que o anti-
tória de Portugal enquanto comunidade comunismo ganha em Portugal a partir
membro da civilização cristã europeia. da Guerra Civil de Espanha (perseguição,
Do ponto de vista cultural, a legitimi- prisão, degredo em campos de concentra-
dade patriótica do anticomunismo, que ção, exílio, assassínio, criação de corpos de
incentiva à criação de instituições policiais polícias e de tribunais plenários especiais)
cujo objectivo último consiste em destruir é apenas explicável pelo forte rasto cultu-
pela raiz todas as forças políticas comunis- ral, com raízes profundas na forma mentis
tas e associadas, entronca na mesma forma portuguesa, que a história das abjurações,
mentis maniqueísta e intolerante que, en- apostasias, retratações e perseguições à
tre o fim da primeira metade do séc. xvi heresia já possuía em Portugal. Face a um
e a segunda metade do séc. xviii, fundou passado de contínua exclusão do conten-
e orientou a atividade da Santa Inquisição dor, o anticomunismo constitui-se, cultu-
e do Tribunal do Santo Ofício na perse- ralmente falando, como a permanência
guição de forças religiosas heréticas, no- do mesmo, agora aplicado a um grupo
meadamente do judaísmo. Não por aca- particular da história política do séc. xx.
so histórico, os dois países em que mais Não admira, assim, que um elevado digni-
fortemente dominou o absolutismo da tário da Igreja Católica, Mons. Fino Beja,
Inquisição – Portugal e Espanha – foram autor de inúmeros artigos de jornais e de
igualmente os dois países onde mais forte- programas da rádio, em livro de grande di-
mente se fez sentir, no séc. xx, a persegui- vulgação, publicado nos finais da déc. de
ção às forças comunistas, radicando ambas 1930, se permita escrever com uma clareza
as perseguições – a judeus e a comunis- epigramática: “civilização [cristã, tradicio-
tas – na mesma essência mental dramática nal], um bem que se deve guardar e de-
da postulação do outro, não como adver- fender; comunismo, um inimigo a exter-
sário a tolerar mas como inimigo a abater. minar” (BEJA, 1938, 25).

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406 Anticomunismo

O movimento anticomunista em Por- lavismo) e autoritários do comunismo,


tugal nasce, desenvolve-se, atinge o apo- bem como a sua vocação internaciona-
geu e fenece em direta relação com a lista, considerando legítima a apropria-
organização comunista do movimento ção da mais-valia pelo capital enquanto
operário, sendo débil quando este é dé- retorno de investimento.
bil e forte quando este é forte. Do mesmo A segunda fase, a fase política, estende-
modo, o anticomunismo apenas se for- se entre 1921, data da criação do PCP, ex-
talece intelectual e ativamente quando tinto legalmente em 1927 pela Ditadura
estatui o Partido Comunista Português Militar, e 1974, data da legalização demo-
(PCP) e/ou a URSS como principais e crática do mesmo. Esta fase abarca três
diretos inimigos da ordenação estrutural períodos distintos.
tradicional da nação. Em outros momen- O primeiro período, o período nacio-
tos históricos, desde a segunda metade nalista, é, por um lado, uma época de
do séc. xix até 1921 (data da fundação forte domínio do movimento operário
do PCP) ou após a extinção da URSS (na pelo anarcossindicalismo, reunido na
déc. de 1990), o anticomunismo figura- UGT, que se estende até à instauração
se mais como movimento intelectual e da Ditadura Militar, em 1926, e à con-
como uma entre várias doutrinas polí- sequente criação do Estado Novo, em
ticas e menos como força socialmente 1933, terminando, simbolicamente, em
interventora. 1934, nas greves dos operários vidreiros
Neste sentido, para efeitos de orde- da Marinha Grande, ou em 1937, com
namento cronológico, pode dividir-se o o atentado falhado a Salazar; por outro
movimento anticomunista em três fases lado, é a época de emergência do na-
específicas. A primeira fase, a fase inte- cionalismo português do séc. xx. Neste
lectual, corresponde a um movimento período, após a extinção do movimento
prático-social de afirmação das ideias sindical anarco-sindicalista e a proibição
marxistas, uma espécie de lento casa- da divulgação do jornal A Batalha, o anti-
mento prático e concreto entre o mo- comunismo confunde-se com o naciona-
vimento operário nascente e a doutrina lismo tornado poder de Estado por força
marxista – desde as famosas cartas de do movimento do 28 de Maio de 1926
José Fontana à Associação Internacional e da posterior consolidação do Estado
dos Trabalhadores, em 1873, à criação Novo, que amplia o seu poder em todas
da Associação Mutualista Portuguesa, as instituições legais do país, esmagando
em 1919, e, posteriormente, à criação o comunismo.
do PCP. Nesta primeira fase, as propos- O segundo período, o período interna-
tas anticomunistas, débeis, são sobretu- cionalista, demarca-se a partir da Guerra
do de natureza intelectual, realçando-se Civil de Espanha (1936-1939), prolonga-
a contestação da teoria económica da se ao longo da Segunda Guerra Mundial
mais-valia e do papel privilegiado atri- (1941-1945) e termina em 1960, com a
buído à classe operária no movimento irrupção dos movimentos anticoloniais.
histórico contemporâneo. Amorim Via- Neste período, que assiste à divisão da
na contrapõe ao comunismo marxista Europa entre Ocidente e Leste, à divisão
o proudhonismo; Antero de Quental, da Alemanha, à edificação do Muro de
Oliveira Martins, José Frederico Laran- Berlim e ao estacionamento do Exército
jo, Fortunato de Almeida e A. A. Pires Vermelho em inúmeros países europeus
de Lima sublinham aspetos rácicos (o es- do Leste, o anticomunismo identifica as

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Anticomunismo 407

forças comunistas portuguesas como re-


presentantes nacionais do comunismo
internacional, uma espécie de quinta
coluna, preparada para auxiliar pela re-
taguarda o avanço do comunismo inter-
nacional. A adesão de Portugal à NATO
reforça internacionalmente o papel de
Portugal como elemento da defesa oci-
dental contra o comunismo.
O terceiro período, o período colo-
nialista, coincide com a Guerra do Ul-
tramar (1961-1974) e prolonga a perse-
guição às forças comunistas portuguesas
– estatuídas agora não só como repre-
sentantes do internacionalismo proletá-
rio, mas igualmente como representan-
tes dos movimentos independentistas
das colónias portuguesas em território
continental europeu. Neste sentido,
o anticomunismo identifica-se, prima-
cialmente, com as forças colonialistas
acolhidas, devido ao estado de guerra,
no centro do Estado português. Nestes
dois últimos períodos, o anticomunismo
identifica-se com o cerne da política do
Estado português.
A terceira fase, a fase popular, é com- Jornal A Batalha.
preendida entre 1974 e 1975, sobretudo
entre 11 de março e 25 de novembro de Geral de Segurança); nestes dois anos,
1975. Nesta curta fase, o PCP e inúmeros sobretudo em 1975, o anticomunismo
partidos e movimentos comunistas de ganha uma inaudita vibração popular no
extrema-esquerda promovem com suces- Centro e Norte de Portugal (manipulada
so um conjunto de movimentos sociais, ou não por forças políticas, e certamente
de reivindicações políticas e de ocupa- influenciada por meio século de propa-
ção de órgãos intermédios do aparelho ganda política anticomunista): as sedes
militar que os aproximam da conquista do PCP e de forças políticas associadas
e domínio do topo do Estado português. (como o Movimento Democrático Portu-
Estes dois anos constituem o momento guês/Comissão Democrática Eleitoral)
mais poderoso do movimento comunista são assaltadas, destruídas e, por vezes,
em Portugal, gerando, em contraparti- incendiadas. O fluxo simultâneo dos
da, um fortíssimo movimento anticomu- Portugueses residentes nas ex-colónias,
nista, que, entre 1926 e 1974, era centra- então em processo de independência e
lizado no Estado e dinamizado a partir cujo novo horizonte político se identifi-
de corpos policiais do Estado (Polícia de cava com o marxismo e o comunismo na
Vigilância e Defesa do Estado, Polícia In- maioria dos novos países, em muito terá
ternacional de Defesa do Estado, Direção contribuído, certamente, para o húmus

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408 Anticomunismo

de violência popular anticomunista ao Bibliog.: AZEVEDO, Álvaro Rodrigues, O Co-


longo do ano de 1975. munismo, Lisboa, Tip. de Francisco Xavier de
A quarta fase, a fase democrática, to- Sousa, 1848; BEJA, José Fino, Civilização e
Comunismo, Lisboa, Livraria Popular Francis-
talmente desprovida de violência, nasce
co Franco, 1938; CAETANO, Marcelo, Nem
em 1976. O anticomunismo manifesta-
Comunismo Opressor nem Liberalismo Suicida,
se como vector democrático, aceitando Lisboa, Acção Nacional Popular, 1971; CÂN-
constitucionalmente a existência do co- DIDO, Armando, Corporativismo. Comunismo.
munismo e do PCP, com representação Frente a Frente, Ponta Delgada, Papelaria
parlamentar própria e assento, por di- Âmbar, 1937; COIMBRA, Leonardo, A  Rús-
reito, na maioria dos órgãos do Estado. sia de hoje e o Homem de sempre, Porto, Livra-
O comunismo é, então, considerado ele- ria Tavares Martins, 1962; JESUS, Quirino
de, O Nacionalismo Português, Porto, Empresa
mento político integrante da democra-
Industrial Gráfica, 1932; LIMA, António Au-
cia. Acresce a esta perspetiva a fragilidade gusto Pires de, As Doutrinas Económicas de Karl
internacional do próprio movimento co- Marx. Estudo Expositivo e Crítico, Coimbra, Im-
munista após a queda do Muro de Ber- prensa da Universidade de Coimbra, 1900;
lim, em 1989, e o consequente desmem- MORA, Mário Damas, O Comunismo, Lisboa,
bramento da URSS, que privou o PCP do ed. do Autor, 1934; MOURA, Horácio de,
seu modelo ideal de sociedade. O PCP O Comunismo Internacional perante o Nacionalismo
Português, Coimbra, Comunidade Distrital de
baixa continuamente a sua percentagem
Coimbra, 1967; PIMENTA, Alfredo, O Comu-
de voto nas eleições, assiste à criação nismo. Inimigo n.º 1, Porto, Enciclopédia Por-
de uma central sindical (UGT) rival da tuguesa, 1941; PRETO, Rolão, Para além do
central de influência comunista (CGTP Comunismo, Coimbra, Junta Escolar de Coim-
– Confederação Geral de Trabalhadores bra do Integralismo Lusitano, 1932; ROLIM,
Portugueses) e constata a real perda de José, O  Comunismo. História, Ideologia, Crítica,
influência no seio do operariado por via vol. i, Lisboa, União Gráfica, 1944; SANTOS,
do envelhecimento deste, inclusive o seu Eduardo, “O comunismo e a África”, Ultramar,
vol. 1, n.º 4, 1973, pp. 47-71; VARZIM, Abel,
desaparecimento de antigos lugares sa-
O Comunismo, Lisboa, Edições S. E. T., 1949;
grados da história proletária, como Ama- VITRY, Guarin de, Que É o Comunismo? Não É
dora, Almada, Seixal, Vila Franca de Xira, Partilha, Lisboa, Tip. de Francisco Xavier de
Barreiro, Matosinhos e Viana do Castelo. Sousa, 1848.
Acresce a isto a integração de Portugal
Miguel Real
na CEE, em 1986, cuja influência social
e cultural desencadeia a criação de uma
nova mentalidade juvenil, totalmente
desligada da história operária e campesi-
na portuguesa, rastro de luta e heroísmo
clandestinos deste Partido, gerando-se
deste modo uma incompatibilidade so-
ciológica entre o discurso histórico dos
dirigentes do PCP e as novas gerações.
Face a esta fragilização histórica das for-
ças comunistas, as forças anticomunistas
fragilizam-se igualmente, convivendo pas-
siva e democraticamente com este Parti-
do, perdendo o seu antigo e violento ful-
gor nacionalista.

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AnticomunitArismo 409

Anticomunitarismo vida espontâneas. Num sentido, porém,


mais lato e mais importante, capaz de
englobar aquele, anticomunitarismo é a
força cultural, ideológica e política que,
apoiada nos grandes postulados do valor
do indivíduo e das liberdades individuais
como alicerces inegociáveis da ordem so-
Na diversidade de significados precisos cial, tende para uma conceção atomista da
que assume o termo “comunitarismo” sociedade, opondo-se a uma conceção co-
consoante os contextos, reconhece-se o munitária, i.e., a uma conceção que dê re-
fundamental elemento comum: está sem- levância pública aos laços existentes entre
pre implicada a valorização da dimensão os indivíduos e à experiência de um bem
comunitária da vida humana. O termo comum diferente da soma dos bens indi-
designa, por um lado, as formas de vida, viduais, bem como à identidade comum
que surgem normalmente em comunida- partilhada como dimensão incontornável
des pequenas e rurais, caracterizadas pela das identidades individuais.
propriedade comum dos bens essenciais, Quando falamos de anticomunitaris-
pela partilha dos bens possuídos indi- mo, falamos, portanto, dos traços (ao me-
vidualmente e pela força de costumes e nos, dos traços extremados) que definem
tradições, a par de um forte sentimento o Estado moderno liberal, e que, simulta-
de pertença e de uma vincada identidade neamente, são alicerces nos quais se apoia
comum. Por outro lado, designa uma o sistema capitalista. Para identificarmos
corrente de pensamento que pretende esses traços anticomunitaristas, seguimos
constituir-se como crítica e como alter- o rumo de identificar os principais pontos
nativa ideológica, quer ao individualismo de tensão do importante debate filosófico
das sociedades contemporâneas, quer -político que se tem vindo a desenvolver
ao coletivismo totalitário testemunhado desde os anos 70-80 do séc. xx e que se
pelo séc. xx, que dissolve o indivíduo na tem designado debate liberal-comunitá-
coletividade. Em estreita ligação, na sua rio, por se desenrolar entre os defensores
génese, com o personalismo do séc. xix do Estado liberal e de uma doutrina polí-
(E. Mounier, J. Maritain, M. Buber), o
comunitarismo parte de uma conceção
Emmanuel Mounier (1905-1950).
do Homem como pessoa, essencialmente
relacional e ordenado ao bem comum,
contrabalançando assim o conceito – e a
valorização moderna – de indivíduo para
daí retirar consequências práticas para
a estruturação política e económica da
sociedade. Um tal discurso filosófico-po-
lítico oferece, se quisermos, a fundamen-
tação teórica das formas de vida comuni-
taristas que referimos, propondo-as como
paradigma.
Anticomunitarismo será, então, num
certo sentido estrito, a oposição declarada
e a procura de extinção dessas formas de
D.R.

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410 AnticomunitArismo

tico-económica neoliberal (que teve no li- Desta visão metafísica do eu como an-
vro de John Rawls, A Theory of Justice, publi- terior à situação do sujeito concreto, bem
cado em 1971, uma formulação decisiva) como da inerente afirmação de uma racio-
e os seus principais críticos, agrupados sob nalidade universal como fundamentação
a designação de comunitaristas, apesar da bastante da organização da vida em co-
sua muito significativa heterogeneidade. mum e da precedência da justiça em rela-
Depois de identificados estes aspetos ção ao bem decorre, segundo os autores, a
anticomunitaristas da doutrina neoliberal incapacidade de integrar e de reconhecer,
e do Estado liberal moderno, deter-nos- no Estado liberal, a) a noção de um bem
-emos um pouco nas formas de anticomu- propriamente comum e portanto o fenó-
nitarismo particularmente reconhecíveis meno da prossecução não egoística de
em Portugal. bens, em comum; b) a identidade comum,
partilhada, na qual está necessariamente
integrada a identidade individual real, que
é forjada no seio de grupos, de tradições
AnticomunitArismo tornAdo e, em última análise, de uma linguagem
pAtente pelo debAte entre liberAis partilhada; c) as conceções abrangentes
e comunitAristAs. de bem dos indivíduos, constitutivas dessa
AnticomunitArismo ontológico identidade, que não se atêm a uma noção
Antes de mais, é, então, manifesta nas naturalística ou reducionista da realização
obras dos autores que se têm chamado co- e felicidade humanas, e que se pronun-
munitaristas uma perspetiva ontológica, ciam sobre o bem comum mas que são
ou onto-antropológica, oposta àquela que deixadas à margem da vida pública.
denunciam estar subjacente ao neolibe- Decorrente desta perspetiva onto-antro-
ralismo. Segundo autores como Michael pológica anticomunitarista subjacente ao
Sandel e Charles Taylor, o neoliberalismo Estado liberal, aflora, então, um antico-
proposto por Rawls numa senda kantia- munitarismo prático, manifesto, por um
na pressupõe uma noção desencarnada, lado, no âmbito da economia, mas tam-
não situada, do sujeito humano, que está bém, mais generalizadamente, no âmbito
implicada na posição original a partir da das políticas e das leis, mormente as que se
qual Rawls propõe que os indivíduos de- relacionam com a questão da identidade.
terminem as normas de funcionamento
da sociedade, em condição de ignorância
em relação às suas próprias preferências
e valores. Nesta posição original, estaria
AnticomunitArismo
em condições de operar uma racionalida-
no âmbito dA economiA
de universal (e instrumental) depurada No que diz respeito à economia, a pers-
dos condicionalismos circunstanciais de petiva comunitarista sublinha a existência
cada indivíduo, de cada grupo e cultu- de bens que são comuns por natureza, e
ra, bastando para tal uma noção mínima a que portanto os indivíduos não podem
do bem que todos os indivíduos querem aceder senão prosseguindo-os em comum,
com certeza prosseguir igualmente em tal como defende Charles Taylor em Sour-
sociedade. Esta neutralidade em relação ces of the Self, bem como a possibilidade
à questão do bem é, para Rawls, constitu- humana de potenciar o bem individual
tiva da justiça, porque esta precede o bem pela procura do bem de todos. A limita-
e é independente dele. ção ou restrição da procura individual de

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AnticomunitArismo 411

bens em função de um bem comum maior


(que é na verdade condição de funciona-
mento do Estado social, cuja defesa Rawls
procura inequivocamente manter) é con-
siderado algo legítimo, bom e natural, en-
contrando fundamento adequado numa
onto-antropologia da complementaridade
e da interdependência entre os seres hu-
manos que supera o conflito.
Economicamente, então, o anticomuni-
tarismo está presente numa sociedade libe-
ral que desencoraje ou procure eliminar,
como algo nocivo à maximização do valor,
os chamados corpos intermédios entre o D.R.

Estado e o indivíduo (corporações, asso-


John Rawls (1921-2002).
ciações, fundações de solidariedade, a fa-
mília, por fim), vistos, de uma ótica liberal
radical, como obstáculos ao funcionamen- exercício do seu ius imperium, ou se advo-
to da “mão invisível” que transformaria gam antes que ela seja permitida e fomen-
a prossecução egoísta do bem individual tada como uma opção livre dos indivíduos.
no maior bem de todos. Mas a maior ma- Dada a origem personalista do comunita-
nifestação de anticomunitarismo, a nível rismo e a rejeição do totalitarismo que lhe
teórico, encontra-se talvez na perspetiva é inerente, não há dúvida de que a aboli-
libertária de Robert Nozick, que, também ção da propriedade privada e a imposição
ele crítico de Rawls, se opõe à tributação da prossecução do bem exclusivamente
dos salários mais elevados para fins so- em comum não fazem parte da proposta
ciais como princípio de redistribuição da comunitarista, podendo até reconhecer-
riqueza, comparando-a à exploração de se aí um género de anticomunitarismo de
trabalho escravo. Podemos ainda situar no natureza oposta, ou não fosse fundamen-
âmbito económico (embora diga respei- tal a diferença entre as noções de comuni-
to também ao ponto que se segue) uma dade e de coletividade. Para os autores co-
força de uniformização e de anulação das munitaristas, a comunidade funda-se nos
diferenças, nomeadamente de dissolução laços reais constituídos entre os indivíduos
das culturas e tradições particulares, que que têm consciência de dependerem uns
atua no Estado moderno liberal, e à escala dos outros para a sua sobrevivência e reali-
global no mundo culturalmente influen- zação humana, de serem agentes comuns
ciado pelo Ocidente, força a que não será dessa realização. O que há, sem dúvida,
alheia a necessidade de o sistema capitalis- na proposta comunitarista é uma relativi-
ta alargar e manter uma massa uniforme zação do direito da propriedade privada,
de consumidores. Pergunta essencial a bem como dos direitos e liberdades indivi-
formular nesta sede é se os autores comu- duais em geral, com base na ideia de que
nitaristas têm uma proposta concreta de o bem do indivíduo passa pela busca do
alternativa ao liberalismo económico, e, bem da comunidade.
concretamente, se propõem que esta par- Sustenta-se, portanto, que o conteúdo
tilha de bens e prossecução de um bem das leis seja inspirado por esta visão comu-
em comum seja imposta pelo Estado no nitária e que as leis e as políticas públicas

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412 AnticomunitArismo

possam incluir essa restrição, em função AnticomunitArismo político e jurídico


do bem comum. No caso de alguns auto- quAnto à questão dA identidAde
res, como Charles Taylor, a visão comu-
nitarista opera, aliás, como fundamento Outro aspeto anticomunitarista da socie-
adequado, reconfigurador, do contrato dade liberal reside, para os seus críticos,
social, i.e., da autolimitação das liberdades na incapacidade de integrar e reconhecer
individuais no momento da constituição as diversas tradições éticas e religiosas que
das bases da vida em comum. Diante das carregam as conceções abrangentes (não
formas de vida espontâneas que prescin- reducionistas) do bem e nas quais Charles
dam, porém, em medida mais radical, da Taylor integra o que designa pela busca, es-
propriedade e da prossecução individual pecificamente humana, do bem incomen-
dos bens (nas quais o poder do Estado suravelmente mais elevado. Esta incapaci-
não surge, ao contrário do que sucede dade deriva em grande parte do facto de
num cenário totalitário, como mediador o neoliberalismo se considerar a si próprio
entre as pessoas e os bens possuídos em como garante da neutralidade do espaço
comum), o comunitarismo indica que es- público e guardião de uma racionalidade
tas não sejam suprimidas como atentató- universal (que passa a ser a razão pública,
rias das liberdades individuais. É verdade neutra) válida acima ou independente-
que, no atual contexto, dos Estados mo- mente de qualquer tradição concreta, sem
dernos consolidados e de grandes dimen- reconhecer que se integra, ele mesmo,
sões, em que o modo de vida cosmopolita numa dada tradição. Esta pretensão de
se sobrepõe largamente ao comunitarista neutralidade redundaria, nesta perspetiva,
e a fragmentação moral supera em muito numa imposição cultural. Para os críticos
a unidade, o comunitarismo assume tam- comunitaristas, as conceções abrangentes
bém os contornos de uma utopia, particu- de bem, ou a busca do bem total a que se
larmente evidentes na proposta subjacen- refere MacIntyre, sendo indissociáveis da
te à obra de MacIntyre, After Virtue, cuja realização e do florescimento autentica-
incompatibilidade com as dimensões do mente humanos, que não podem bastar-se
Estado moderno o autor chega mesmo a com a noção mínima de bem, e sendo al-
assumir: a conciliação da liberdade com cançáveis e desenvolvidos necessariamente
a integração do bem individual no bem em comunidade, não deveriam ser relega-
comum, i.e., com o estabelecimento das dos para o espaço individual e privado que
bases da vida pública necessárias a tal in- por natureza não é o seu, tornando-se irre-
tegração, exige uma conceção partilhada levantes ou interditas no plano do espaço
do bem humano não meramente funcio- público, das leis e das políticas.
nal e reducionista (daquilo a que Rawls Estão aqui implicados, na prática, dife-
chamava conceção abrangente do bem, rentes tipos de questões. Por um lado, a
considerando que deveria ficar no âmbito sobrevivência das minorias culturais e étni-
meramente privado), bem como a exis- cas no seio do Estado moderno liberal, nos
tência de um vínculo real entre os mem- casos em que a preservação da cultura mi-
bros da comunidade; só a compreensão noritária possa exigir uma certa restrição
partilhada da liberdade como instrumen- de algumas liberdades individuais (caso da
tal para o bem e do bem comum como proibição, na Constituição do Quebeque,
parte do bem individual autêntico pode da educação dos francófonos em escolas
conduzir ao estabelecimento livre de uma de língua inglesa para a preservação da
forma de vida comunitária. identidade cultural do país), ou nos casos,

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AnticomunitArismo 413

bem mais difíceis, em que a própria cultu- modernos (grupos antissemitas, anti-islâ-
ra minoritária atente contra direitos e li- micos, mesmo anticristãos), os quais exer-
berdades individuais essenciais. Quanto a cem pressão e violência – ainda que vio-
este último tipo de questões importa dizer lência não física – sobre as comunidades
que os autores designados comunitaristas em causa, nomeadamente pelo ataque
não se afirmam relativistas culturais – estes violento (não argumentativo) da sua tra-
não afirmam que as respostas éticas válidas dição religiosa. No uso da prerrogativa da
o sejam apenas para a comunidade espe- liberdade de expressão para o exercício
cífica que as adota e porque esta as adota. desta pressão e desta violência encontra-
A sua resposta a estes dilemas (explícita, -se uma demonstração da oportunidade,
e.g., em C. Taylor) aponta no sentido da para as sociedades liberais, da proposta de
ponderação dos bens humanos em cau- uma ética de reconhecimento (assim de-
sa, em vez da consideração da liberdade signada por Taylor) e de aceitação do ou-
individual como um absoluto ou infinito. tro na sua integralidade – a qual inclui a
A compreensão da liberdade como a pos- sua identidade comunitariamente forjada
sibilidade de um bem permitiria, assim, e as suas conceções abrangentes do bem,
discernir quais os casos legítimos e quais sem outro limite que não o do respeito
os ilegítimos de restrição de liberdade em pela mesma dignidade humana na qual se
função dos bens que a sua restrição permi- funda tal aceitação. As mesmas situações
tisse ou sacrificasse, bem como a distinção denunciam, além disso, o gérmen de vio-
entre as práticas culturais admissíveis e as lência e conflito presente numa conceção
não admissíveis por lesivas de bens huma- anticomunitarista da liberdade como con-
nos essenciais. Esta resposta valoriza, no ceito absoluto ou, deste ponto de vista, va-
fundo, o liberalismo como tradição – tra- zio, i.e., sem referência ao bem humano.
dição essa que coloca entre as demais –, Por fim, refira-se uma implicação da pre-
mas denunciando a feição personalista de tensão de neutralidade da tradição liberal,
que ele se reveste, já que o critério deixa que é a solução de determinadas questões
de ser o sujeito individual desencarnado, éticas e jurídicas de importância crucial,
passando a ser a pessoa concreta e as ne- e.g., as que hoje são chamadas fraturan-
cessidades da sua natureza. tes, com base nessa racionalidade pública
Outro tipo de questões é bem ilustrado e universal, i.e., pela rejeição a priori da
pelos exemplos da proibição de crucifixos contribuição das visões abrangentes (não
nas escolas nos países de tradição católica reducionistas) do Homem presentes nas
e pela do uso da burca pelas mulheres mu- diversas tradições, e identificando o papel
çulmanas em contexto público nos países da lei com a adoção de uma posição neu-
ocidentais – casos em que a manifestação tra, obedecendo a um critério científico.
pública de uma tradição religiosa é consi- Opondo-se a esta cientifização (fictícia) da
derada atentatória da neutralidade do es- ética e mesmo do direito, a perspetiva co-
paço público, mesmo sem estar em causa munitarista avança que, sobre questões que
qualquer lesão a um outro concreto. dizem respeito ao bem, é a partir de uma
Outro tipo ainda de questões, claramen- razão situada, enraizada numa tradição e
te revelador de um movimento antico- que arrisca uma compreensão integral do
munitarista no seio da sociedade liberal, Homem que se devem buscar as respostas,
manifesta-se na existência de grupos hos- sem renunciar à via do diálogo e do con-
tis a determinadas comunidades culturais fronto entre as diferentes – mas não intra-
e religiosas que coexistem nos Estados duzíveis nem incomunicáveis – tradições.

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414 AnticomunitArismo

AnticomunitArismo em portugAl cada em Barroso devido à forte oposição


das populações, preconizava a divisão
No que se refere às manifestações de dos baldios e a sua redução a proprieda-
anticomunitarismo em Portugal, abor- des privadas. Quanto à ação do Estado
damos, em primeiro lugar, a ação nociva Novo, bem se compreende que a inde-
das políticas postas em prática pelo po- pendência em relação às estruturas esta-
der central face a certas formas de vida tais e às instituições nacionais que esta
comunitarista existentes no país. Um modalidade comunitária de organiza-
exemplo acabado de comunitarismo na ção socioeconómica potencia é também
primeira aceção que referimos é, efeti- algo perfeitamente contrário ao seu de-
vamente, oferecido pelo conjunto de al- sígnio centralizador. Na déc. de 1940
deias portuguesas situadas na região do procedeu-se, assim, à florestação indis-
Alto Trás-os-Montes a que se dá o nome criminada e maciça dos ditos baldios, a
Terras de Barroso, por estarem semeadas despeito da importantíssima função por
ao longo e em redor da serra que assim eles desempenhada na economia das po-
é apelidada. O isolamento a que a situa- pulações, e sem que as solicitações que
ção geográfica vota estas populações e as estas fizeram ouvir a esse respeito fossem
dificuldades que oferece à sobrevivência tomadas como critério. A gestão dos bal-
humana são certamente fatores impor- dios e do seu usufruto comum, que an-
tantes para compreender tanto a singu- tes cabia aos aldeãos em obediência ao
laridade iniludível da cultura que aí se costume do lugar feito instituição, pas-
gera e desenvolve, formando uma unida- sou a depender da decisão dos guardas
de com identidade própria, como a soli- florestais, a quem o Estado conferiu essa
dariedade comunitária que enforma as autoridade, mesmo sobre os baldios que
existências individuais. São escassos, mas não estavam a ser objeto de florestação.
eloquentes, os testemunhos e registos Costumes ancestrais que ditavam os ter-
que temos dos costumes, dos ritos, das mos de um usufruto partilhado das ter-
tradições e do linguajar destas comuni- ras com a força de uma lei unanimemen-
dades, e particularmente – o que aqui te reconhecida foram, assim, destituídos
mais releva – do carácter comunitário da da sua validade e substituídos pelo arbí-
sua economia manifesto nomeadamente trio do poder central, com a previsível
na importância dos chamados baldios, consequência do enfraquecimento das
terras cuja propriedade é, segundo a lei restantes instituições comunitárias, dos
n.º 68/93, de 4 de setembro, comum e laços de solidariedade comunitária e da
das quais todos usufruem para efeitos particular identidade por eles veiculada.
“de apascentação de gado, de recolha de Depois da Revolução de 1974, a gestão
lenhas, de culturas e de outras fruições”. dos baldios foi restituída às comunida-
Ora, desde a reforma administrativa de des, sem que com isso, no entanto, se te-
1895, e de forma recrudescente durante nham superado os efeitos das anteriores
o período do Estado Novo, procurou-se políticas adotadas.
ativamente a dissolução desta forma de Relativamente à segunda aceção em
propriedade comunitária que caracte- que tomámos o termo “comunitarismo”,
riza a região. A referida reforma admi- e consubstanciando formas de anticomu-
nistrativa, intentada quando estava já nitarismo num sentido lato, reconhece-
plenamente consolidado em Portugal o mos em Portugal as manifestações que
Estado liberal, e que não veio a ser apli- seriam de esperar num país em que o li-

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AnticomunitArismo 415

beralismo foi plenamente implementado Bibliog.: impressa: ARIAS, L. Rodríguez, “Co-


e ganhou raízes, embora nem todos os as- munitarismo”, in Gran Enciclopedia Rialp, t. vi,
petos que referimos adquiram entre nós Madrid, Ediciones Rialp S.A., 1972; CUNHA,
José Correia da, Cooperativismo e Comunitarismo
a mesma importância. Economicamente,
Agrários: Conferência Proferida na III Semana de Es-
impõe-se afirmar que a ideologia neoli-
tudos, Angra do Heroísmo, Secretaria de Estado
beral ganha terreno, ao mesmo tempo da Agricultura, 1964; EIRA, António, Comunita-
que o Estado social, para cujos efeitos a rismo: Comunicação Feita à Sociedade Portuguesa de
visão comunitarista quer oferecer fun- Antropologia e Etnologia, na Faculdade de Ciências do
damento e pressuposto motivacionais, Porto, Porto, A Gutenberg-Chaves, 1995; FON-
atravessa uma reconhecida crise, a que TES, António Lourenço, Etnografia Transmonta-
não será alheia, entre outros importantes na. O Comunitarismo de Barroso, Lisboa, Edito-
rial Domingos Barreira, 1992; GONÇALVES,
fatores, a carência desses pressupostos
João Pedro, O Horizonte da Justiça em Alasdair
numa cultura individualista. A resistência MacIntyre, Braga, Universidade Católica Portu-
oferecida a este direcionamento, porém, guesa, 2007; HABERMAS, Jürgen, “Struggles
é sinal de que ele não é garantido, sen- for recognition”, in GUTMANN, Amy (org.),
do também digna de nota a valorização Multiculturalism, Princeton, University Press,
que persiste do Estado social e da visão 1994, pp. 107-148; KIMLICKA, Will, Libera-
mais comunitária que, assumidamente lism, Community and Culture, Oxford, Clarendon
Press, 1989; MACINTYRE, Alasdair, After Vir-
ou não por parte de liberais que também
tue, London, Duckworth, 1981; Id., Dependant
o defendem, lhe subjaz. Certamente mais Rational Animals. Why Human Beings Need Virtues,
significativa, desta feita relativamente às London, Duckworth, 2009; RAWLS, John, Poli-
questões relacionadas com a identidade tical Liberalism, New York, Columbia University
e com a pretensa neutralidade do espaço Press, 1993; Id., A Theory of Justice, Oxford, Ox-
público, é a existência de uma corrente ford University Press, 1999; SANDEL, Michael,
laicista radical, em Portugal, apostada em O Liberalismo e os Limites da Justiça, Lisboa, FCG,
purgar a vida pública das marcas da iden- 2005; TAYLOR, Charles, “What’s wrong with
negative liberty”, in RYAN, Alan (org.), The Idea
tidade religiosa comum, pretendendo a
of Freedom. Essays in Honour of Isaiah Berlin, Ox-
ilegitimidade de qualquer expressão reli- ford, Oxford University Press, 1979, pp. 175-
giosa que não seja estritamente privada. -193; Id., “Inwardness and the culture of mo-
Falamos concretamente da proibição de dernity”, in HONNETH, Axel et al. (coords.),
exposição de crucifixos nas escolas pú- Zwischenbetractungen im Process der Aufklarung.
blicas, e mesmo da procura de resolução Jurgen Habermas zum 60. Geburstag, Frankfurt,
dos contratos públicos de associação que Suhrkamp, 1989, pp. 601-623; Id, Sources of
the Self. The Making of Modern Identity, Cambri-
permitiam a colaboração das escolas ca-
dge, Cambridge University Press, 1992; digital:
tólicas na prestação do ensino gratuito. GUSMÃO, João Nuno Vilhena, “Os espaços
Embora estando ainda longe dos ataques físico e social no comunitarismo em Barroso”,
a igrejas e impedimentos violentos de comunicação apresentada no V Congresso de
procissões que têm lugar na vizinha Espa- Geografia Portuguesa na Universidade do Mi-
nha, e.g., estas iniciativas não deixam de nho, 14-16 out. 2004: http://www.apgeo.pt/
ser sinal de uma mesma compreensão da files/docs/CD_V_Congresso_APG/web/_pdf/
F8_15Out_Joao%20Gusmao.pdf (acedido a
laicidade do Estado e da neutralidade do
16 dez. 2016).
espaço público. Não é expressiva, por sua
vez, em Portugal, uma atitude de hostili- Beatriz Miranda
dade para com grupos étnicos e religio-
sos minoritários que mereceria também a
classificação de anticomunitarista.

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416 Anticonceptismo

Anticonceptismo

F rancisco Quevedo (Los Sueños, 1627)


e Baltasar Gracián (Agudeza y Arte de
Ingenio, 1648) são os autores responsáveis
pela criação da escola literária chamada
conceptismo, em oposição ao cultismo
(Luís de Gôngora, Soledades, 1613). Ao
artifício dos recursos formais (metáforas,
anáforas, antonomásias, quiasmos, hi-
pérbatos, etc.) deste, aquele contrapôs a
Francisco Quevedo (1580-1645).
agudeza dos conceitos e raciocínios (ima-
gens, antíteses, paradoxos, oximoros,
etc.), numa retórica igualmente barroca, O primeiro crítico do conceptismo foi
ainda que distinta nos seus princípios e Luís António Verney, o qual reprova os
processos estéticos. Assim, se, para alguns “equívocos” dos sermões de Vieira, “teias
críticos, como António Sérgio, a oposição de aranha, bonitas para se observarem,
das escolas é nítida, para outros, como mas que não prendem ninguém” (VER-
Maria Lucília Pires, trata-se mais de uma NEY, 1746, I, 206). O verdadeiro enge-
gradação do que de uma oposição. nho, segundo ele, não consiste “em dizer
Ainda que declaradamente anticultista sutilezas”, mas em “saber unir ideias se-
e conceptista, o P.e António Vieira não melhantes, com prontidão e graça; para
deixa de se distanciar criticamente de formar pinturas que agradem, e elevem
ambas as escolas: “As palavras são estre- a imaginação” (Id., Ibid., 218). Ao con-
las, os sermões são a composição, a or- trário, o falso engenho consiste “na se-
dem, a harmonia e o curso delas. […] melhança de algumas letras, como os
As estrelas são muito distintas e muito Anagramas, Cronogramas, etc. às vezes na
claras. Assim há de ser o estilo da prega- semelhança de algumas sílabas, como os
ção, muito distinto e muito claro. […] Ecos e alguns consoantes insulsos: outras
O estilo culto não é escuro, é negro, e vezes na semelhança de algumas palavras
negro boçal e muito cerrado. É possível como os Equívocos, etc. finalmente con-
que somos portugueses, e havemos de siste também, em composições inteiras,
ouvir um pregador em português, e não que aparecem com diferentes pinturas”
havemos de entender o que diz?” (VIEI- (Id., Ibid., 218-219). A ironia dirigida ao
RA, 1959, 19-20). elitismo do engenho poético, assente
Mas é o neoclassicismo (que preconiza na decifração dos enigmas, é expressiva
o regresso à simplicidade dos clássicos do anticonceptismo verneyano: “A regra
greco-latinos) que, nas academias literá- que eu vejo neste particular é esta: quan-
rias (arcadismo), verbera a crítica mais do vejo um Poeta destes, que se serve de
acentuada ao conceptismo, bem como ao expressões que nada significam, ou que
cultismo. compõem de sorte que o não entendem;

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Anticonceptismo 417

assento que não quis ser entendido; e plo de Sá de Miranda, António Ferreira e
em tal caso, procuro fazer-lhe a vontade, Diogo Bernardes neste sentido, os quais
e não o leio. Com esta sorte de homens, seguiram “Os versos mais canoros e cor-
faço o mesmo que com os labirintos e rentes,/A sisuda dicção, a frase pura;/
enigmas, etc., os quais nunca me cansei Aquele Ático sal que não conhece/Quem
a decifrar. Eles que o fazem, que se divir- nunca viu o Pórtico de Atenas” (Id., Ibid.,
tam com isso” (Id., Ibid., 244). 150).
Adotando, no capítulo ii, o emblema A sátira de Nicolau Tolentino de Almei-
do podão, cuja função é cortar os ramos da (1741-1811) à arte da retórica, disci-
secos das árvores, os Estatutos da Arcádia plina de que ele próprio foi mestre, pode
Lusitana preconizam o princípio estético considerar-se uma crítica não apenas à
anticultista e anticonceptista da simplici- poesia cultista e conceptista, mas também
dade, expresso na epígrafe Inutilia trun- às limitações estéticas dos árcades: “Arte
cat (corta o que é inútil). O capítulo xiv infeliz, Retórica chamada,/Ensino as tuas
reprova os assuntos forçados, que violen- leis, mas não as creio;/Ou nunca ergues-
tam o génio poético, impedindo que se te fogo em peito alheio,/Ou tu já hoje
ache nas composições dos seus criadores estás degenerada” (ALMEIDA, 1801, 60).
“aquele gosto, facilidade e delicadeza que Filinto Elísio (1734-1819), do grupo
caracterizam as da antiga Grécia e as dos da Ribeira das Naus, na “Carta ao ami-
Romanos do século de Augusto” (BUES- go Brito” (Francisco José Maria de Brito,
CU, 1992, 306). secretário da legação portuguesa na Ho-
Fiel a este princípio, Correia Garção landa), põe na boca de Garção, reerguen-
(1724-1772), na sua “Dissertação III”, elo- do-se do sepulcro, a crítica aos poetas,
giando nos antigos Gregos “o verdadeiro tanto seiscentistas como setecentistas, i.e,
génio, a que o vulgo chama Veia Poética e seus predecessores e contemporâneos.
os doutos Entusiasmo”, critica nos poetas A apologia da frase concisa expressa indi-
seiscentistas o seguimento de outros prin- retamente o anticonceptismo de Filinto,
cípios estéticos: “poucos foram os que enquanto o repúdio do hipérbato se en-
penetraram semelhante mistério, de que quadra no seu anticultismo (“o enleado/
são miseráveis testemunhas as Obras dos Hipérbato, que embaça a inteligência”
Setecentistas” (GARÇãO, 1778, 328-329). – ELÍSIO, 1836, I, 68): “Calai-vos, tolos
Comparando os poetas aos navegantes, (o Garção responde)/A elocução é tudo.
que seguem a agulha de marear para evi- Uma sentença,/Que tosca refugais por
tar os naufrágios, aplica tal prática à imi- desagrado,/Se com frase concisa, orna-
tação adequada, não servil, dos Antigos: da e culta,/Vem ferir na alma, o ouvido
“O Poeta, que não seguir aos Antigos, amaciando,/Abalados ficais, ficais ab-
perderá de todo o norte, e não poderá sortos,/Namorados da sua formosura”
já mais alcançar aquela força, energia, e (Id., Ibid., 65-66).
majestade, com que nos retratam o for- Depois de salientar que a “língua é
moso e angélico semblante da Natureza. como a moda./A novidade lhe dá gala e
[…] Os Poetas devem ser imitados nas fá- primor” (Id., Ibid., 62), ironiza “as cediças
bulas, nas imagens, nos pensamentos, no frases/Do caduco Lucena, aguado Bar-
estilo; mas quem imita, deve fazer seu o ros” (Id., Ibid., 63), aplicando ao discur-
que imita” (Id., Ibid., 331). so “delambido” a metáfora da moda no
Na “Sátira II”, insiste na condenação da vestuário, “para adorno guapo e sécio/
imitação servil, apontando o bom exem- enrocados mantéos, golpeadas calças”

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418 Anticonceptismo

(Id., Ibid.). Nem Camões escapa à crítica o cultismo, com os seus “Anagramas,/
dos latinismos (“palavras fastiosas/Dos Labirintos, Acrósticos, Segures,/E mil
velhos alfarrábios com bafio” – Id., Ibid., espécies de medonhos Monstros” (SIL-
65): “Tão peco é o Camões, quando des- VA, 1802, 2). Comum ao anticultismo e
creve/do estelífero polo os moradores,/e a ao anticonceptismo é a ridicularização
belígera gente?” (Id., Ibid., 106). No entan- dos estereótipos da banalidade poética
to, são os quinhentistas os preferidos de (“ricos tesouros”, “Concha”, “Borboleta”,
Filinto Elísio – “Afortunada idade de Qui- “estranha Flor”, “listrado Iris” – Id., Ibid.,
nhentos,/Quando os teus te põem nó- 2ss.), do pseudo-eruditismo gramatical
doa, alheios te honram” (Id., Ibid., 144) –, (“se se deve/A Conjunção unir ao Verbo,
enquanto os seiscentistas são apelidados ou Nome,/Que marcham antes dela no
de “néscios” e postos a correr – “Correi- discurso” – Id., Ibid., 3), da servil depen-
vos, Seiscentistas, ou Pacóvios,/Que nés- dência dos poetas aos políticos e mecenas
cios motejais do que é de preço:/Do que (compõem “Aos vaidosos Magnatas, mil
não entendeis julgais a esmo” (Id., Ibid., Sonetos,/Mil Pindáricas Odes, e Epigra-
145) –, motejo, considerado “insulso” e mas,/A que apenas de olhar eles se dig-
“parvo” o riso, desafiados que são a não nam” – Id., Ibid.).
se virar tal riso contra eles: “Quais flechas
no ar viradas que se encravam/Em quem
as disparou” (Id., Ibid.).
O poema herói-cómico Hissope de An- Bibliog.: ALMEIDA, Nicolau Tolentino de,
tónio Dinis Cruz e Silva (1731-1799), Obras Poeticas de Nicoláo Tolentino de Almeida,
Lisboa, Regia Officina Typografica, 1801;
uma das mais veementes expressões do
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, Literatura
zelo vernaculista da Arcádia Lusitana, de Portuguesa Clássica. Textos Complementares, Lis-
que foi cofundador, satiriza, no canto i, boa, Universidade Aberta, 1992; ELÍSIO, Fi-
linto, Obras de Filinto Elysio. Nova Edição, 22 t.,
Lisboa, Typographia Rollandiana, 1836;
Filinto Elísio (1734-1819).
GARÇÃO, Pedro António Correa, Obras Poe-
ticas de Pedro Antonio Correa Garção, Lisboa,
Officina Typografica, 1778; MONIZ, António
Manuel de Andrade, “A sociedade setecentis-
ta n’ O Hissope, de Cruz e Silva”, in CASTRO,
Aníbal Pinto de et al. (coords.), Alcipe e as Lu-
zes, Lisboa, Colibri/Fundação das Casas de
Fronteira e Alorna, 2003, pp. 189-206; PIRES,
Maria Lucília G., “Conceptismo”, in Biblos,
Lisboa, Verbo, 1995; SÉRGIO, António, En-
saios, 2.ª ed., t. v, Lisboa, Sá da Costa, 1955;
SILVA, António Dinis da Cruz e, O Hyssope.
Poema Herói-Comico de Antonio Diniz da Cruz e
Silva, Londres, s.n., 1802; TORRES, Amadeu
(Castro Gil), Antologia Literária dos Séculos XVIII
e XIX, Braga, Humanitas, s.d.; VERNEY, Luís
António, Verdadeiro Metodo de Estudar, 2  t.,
Valensa, Officina de Antonio Balle, 1746;
VIEIRA, António, Sermões, vol. i, Porto, Lello
e Irmão, 1959.
António Moniz

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AnticongregAnismo 419

Anticongreganismo os conselhos evangélicos. Surgiram, no


decorrer dos séculos, graças ao carisma e
dinamismo espiritual de pais fundadores
que, atentos aos sinais dos tempos, pro-
curavam, por meio dessas instituições,
responder ao chamamento pessoal à per-
feição cristã e às necessidades da Igreja.

O anticongreganismo define-se pela


atitude de repúdio e de oposição
à existência de congregações religiosas,
Segundo o direito canónico, as ordens
são organismos cujos membros fazem
votos solenes e vivem em comunidade,
bem como à sua finalidade. Esta hostili- ao passo que os membros das congre-
dade ostensiva inscreve-se no quadro das gações fazem votos simples, adotando
manifestações de anticlericalismo como igualmente a vida em comunidade. En-
um dos dois mais importantes subgéne- quanto as ordens monásticas remontam
ros anticlericais, por tomar como seu alvo aos primórdios da Idade Média, as con-
preferencial o universo constituído por gregações apareceram mais tardiamente,
quantos professam os votos de pobreza, sobretudo a partir do séc. xvii. As ordens
obediência e castidade e seguem uma re- davam então claros sinais de declínio e as
gra de vida que aspira à perfeição cristã. congregações, mais adaptadas à vida ativa
No outro subgénero, temos a confronta- e às necessidades dos tempos, chegaram
ção hostil com a presença e a influência a alcançar grande expansão no catolicis-
da Igreja, representada pelo clero secu- mo europeu, especialmente no decorrer
lar, na vida social, cultural e política dos do séc. xix. Para dar uma ideia do que
povos. foi o revivalismo congreganista em Fran-
A posição anticongregacionista mani- ça após a Revolução, refira-se que havia
festa-se frequentemente através de me- 81.000 religiosos em 1789 e 13.000 em
didas políticas. Na sua origem está uma 1808, mas em 1878 são 160.000, a maio-
oposição que faz convergir a crítica à ria esmagadora dos quais pertence a vá-
desordem e à decadência das próprias rias congregações, sobretudo femininas,
ordens monásticas e mendicantes com muitas delas acabadas de fundar já no
a mentalidade racionalista e os valores séc. xix. A sua presença ativa no seio da
burgueses da Modernidade. Esta aversão, sociedade – no desempenho de tarefas de
difundida pelo filosofismo das Luzes, ge- ensino, na assistência aos enfermos, em
neralizou-se a partir do final do séc. xviii obras de beneficência, na missionação
e da Revolução Francesa, tendo adquiri- nos territórios coloniais –, além de minis-
do, no séc. xix e em começos do séc. xx, térios de carácter mais espiritual, confe-
assomos de agressividade plasmados em riu às congregações grande visibilidade.
campanhas políticas, textos legislativos Ao reconhecimento público da sua vita-
e manifestações diversas. Embora o ter- lidade correspondia a ideia, muito difun-
mo remeta diretamente para a oposição dida, de que as ordens monásticas já não
às congregações, envolve também todo acompanhavam a sensibilidade dos tem-
o tipo de ordens religiosas, monásticas, pos e estavam a entrar em decadência. É
mendicantes, militares. pela confusão entre ambas as realidades
As ordens e congregações são, na Igre- (ordens monásticas e congregações re-
ja, institutos cujos membros, imitando o ligiosas) que a linguagem da sociedade
exemplo de Cristo, se propõem seguir civil e os discursos políticos e jurídicos

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420 AnticongregAnismo

falam habitualmente de congregações, doutrinas e éticas erróneas. Cromwell e


incluindo nestas toda a diversidade das os seus agentes apresentam-se-nos como
ordens religiosas. É com essa mesma ex- conservadores religiosos a suprimir mos-
tensão que aqui tomamos o termo “anti- teiros na base da conveniência e não
congreganismo”. na dos princípios” (CHADWICK, 1966,
Ao findar a Idade Média, as ordens mo- 104). Radicalmente oposta a tais medidas
násticas e mendicantes davam sinais de al- antimonásticas, a Igreja de Roma não es-
guma estagnação – e até de estiolamento queceu as ordens religiosas no seu esfor-
– do fervor espiritual que tinha animado ço reformador empreendido no Concílio
a vida destas instituições durante vários de Trento (1545-1563).
séculos. O mundo cultural e político esta- O panorama das ordens religiosas não
va em transformação graças à restauração era em Portugal muito diferente do ce-
das letras gregas e latinas, inspiradoras do nário de outros países católicos. Mas a
humanismo renascentista, ao começo da fundação da Companhia de Jesus na pri-
globalização trazida pelos Descobrimen- meira metade do séc. xvi, logo admitida
tos portugueses e espanhóis, ao apareci- em Portugal e generosamente favoreci-
mento da imprensa e à afirmação do ab- da pelo poder monárquico, trouxe ao
solutismo político. A consciência de que reino e aos seus domínios ultramarinos
se impunham reformas para restaurar o um dinamismo religioso, cultural e mis-
espírito religioso primitivo e a dinâmica sionário inteiramente novo. Com esse
espiritual de cada instituto, na fidelidade impulso, surgiram igualmente proble-
ao carisma dos fundadores, acompanhou mas políticos, que acabariam por atingir
as urgências do movimento reformador de modo negativo a relação das ordens
sentido no conjunto da Igreja Católica. e congregações com o poder temporal
Alguns dos principais agentes da cha- do país. A primeira grande manifestação
mada Reforma protestante surgiram no política contrária aos institutos religiosos
interior de ordens monásticas, tendo-se em Portugal deve-se a Sebastião de Car-
convertido em críticos da fundamenta- valho e Melo, futuro marquês de Pom-
ção evangélica reivindicada por elas e bal. O alvo da perseguição incansável por
adversários da sua permanência na vida ele desenvolvida como governante pleni-
da Igreja. Essa apregoada falta de legiti- potenciário ao serviço do Rei D. José foi
midade bíblica, a que se somavam a ob- a Companhia de Jesus, nada menos do
jeção à vinculação ao Papa e a crítica à que uma ordem fundada no dealbar da
acumulação de bens consideráveis pelas Modernidade e a mais influente e pode-
ordens, serviu de justificação para muitos rosa das ordens, tanto na Europa como
príncipes do centro e Norte da Europa nos domínios portugueses ultramarinos.
porem em causa a existência de casas Não estavam em causa as ordens e as con-
monásticas e conventuais. Henrique VIII gregações em geral, mas o enorme poder
personificou esse oportunismo antimo- cultural e social dos filhos de S.to Inácio
nástico, ao extinguir os mosteiros e apro- de Loiola, bem como a influência reli-
priar-se do respetivo património material. giosa por eles exercida. Em Portugal, o
Mas nem todos os casos de supressão de terramoto antijesuítico, protagonizado
casas monásticas assentavam nas mesmas por Pombal, não só marcou a primeira
razões: “Os reformadores continentais grande investida persecutória contra as
suprimiam os mosteiros por crerem que ordens, como continuou a pairar sobre
estes estavam errados e se baseavam em o anticongreganismo dos sécs. xix e xx

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AnticongregAnismo 421

como referência exemplar, tanto na mo-


narquia constitucional como para as me-
didas anticongreganistas da república.
Por essa razão, os membros de ordens ou
congregações, histórica e canonicamen-
te distintas da Companhia de Jesus, con-
tinuaram a ser abusivamente chamados
Jesuítas e ultrajados como se de Jesuítas
se tratassem. Além de constituir os Jesuí-
tas como perigo público que ameaçava
de ruína os interesses do Estado, Pombal
empenhou-se na exportação dessa ima-
gem tenebrosa para os outros países eu-
ropeus. Potenciada por essa campanha
pombalina, como lembra Christine Vo-
gel, “a crítica iluminista às ordens religio- Expulsão dos Jesuítas.
sas elegeu como seu inimigo preferido a
figura do Jesuíta tiranicida, hipócrita e ceu entre 1861 e 1862, quando as Irmãs
conspirador, uma imagem que conden- ou Filhas da Caridade de S. Vicente de
sava todos os perigos e males das ordens Paulo, depois de aceites no país em 1857,
religiosas” (VOGEL, 2014, 454). foram expulsas do reino no seguimento
Em Portugal, medidas políticas anti- de uma vasta campanha na imprensa e na
congreganistas de carácter universal, i.e., Câmara de Deputados. O segundo deu-se
visando não só os Jesuítas, mas a totalida- numa fase de acirrada luta de organiza-
de dos institutos religiosos do reino, ocor- ções liberais e republicanas contra o pa-
rerão em duas fases decisivas de mudança pel desempenhado pelas congregações
de regime, a saber, a instauração da mo- no ensino e nos hospícios. A contestação,
narquia constitucional e a Implantação em tom sempre crescente, levou o minis-
da República. Em ambos os momentos tério de Hintze Ribeiro a publicar, com
históricos, o efeito político pretendido data de 10 de março de 1901, um decreto
pelos atos legislativos dos governantes foi que pretendia regular as atividades edu-
eliminar a presença de ordens e congre- cativas das congregações.
gações religiosas dentro das fronteiras Entre os múltiplos lugares comuns que
da nação portuguesa. Em 28 de maio de falam de vícios e malefícios com que as
1834 foi decretada, pelo ministro liberal ordens religiosas começaram a ser ataca-
Joaquim António de Aguiar, a extinção das desde o séc. xvi, conta-se o tema do
de todas as corporações cujos membros excessivo número de mosteiros, de frades
emitissem votos, tanto solenes como sim- e freiras. Que parecia exagerada e insu-
ples, e vivessem em comunidade. Entre portável a quantidade de casas monásti-
esta data e o decreto republicano de 8 de cas e mendicantes já tanto a Igreja como
outubro de 1910, que declarava em vigor a Coroa portuguesa o haviam reconheci-
tanto as medidas de Pombal como as do do, ao ser tomada a iniciativa de reduzir o
Governo liberal de 1834, houve dois epi- seu número. Não faltaram proibições de
sódios de natureza legislativa reveladores fundação de novos mosteiros nem deci-
da grande hostilidade vigente contra os sões de extinção e de anexação; e.g., em
institutos religiosos. O primeiro aconte- começos do séc. xvii, foi recomendado à

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422 AnticongregAnismo

Câmara de Lisboa que se suspendessem


os estudos nos mosteiros durante 10 anos,
tantos eram “os clérigos e frades que se
comem uns aos outros” (ALMEIDA, 1968,
202). Aliás, tamanho formigueiro de mos-
teiros só contribuía para fomentar as riva-
lidades e a competição, nada edificantes
entre institutos, de que resultavam cenas
escandalosas e alegações jurídicas causa-
doras de desprestígio social e de grande
dano moral. Em começos do séc. xviii,
também Montesquieu (1689-1755), na
carta cxvii das Lettres Persanes (1721), sa-
tirizava os países católicos por haver neles
tantos homens e mulheres que, ao abra-
çarem o celibato, causavam o despovoa-
mento dos reinos e, por falta de braços
para trabalhar nos campos, contribuíam
para o seu empobrecimento. Assim suce- Charles-Louis de Secondat, barão de
dia nos países católicos, ao contrário do Montesquieu (1689-1755).
que se podia ver nos países protestantes,
que, tendo mais população, a ocupavam tagens portuguesas e descobrir os remé-
na agricultura e em rendosas atividades dios eficazes para as curar. É a propósito
de comércio e de manufatura. Acentuava- da terceira desvantagem comparativa que
se, assim, a deslocação do argumentário surgem as ordens como organizações
anticongreganista: passava-se do sentido altamente nocivas para o engrandeci-
de risco pessoal, por exposição à imorali- mento e a vitalidade do reino de Portu-
dade em caso de incumprimento dos vo- gal. A terceira desvantagem consiste na
tos, especialmente o de castidade, para o desproporção demográfica entre os dois
significado económico adveniente desses reinos vizinhos: sabendo que o povo é o
mesmos votos, em particular os votos de sangue que circula no corpo do Estado,
pobreza, por fomentar a preguiça e a ina- importa verificar de onde têm derivado
tividade, e de castidade – vivida no celiba- as diferentes sangrias que enfraquecem e
to –, por secar o aumento populacional. dizimam a população do país; ora, como
Dessa deslocação da acusação de imora- declara o autor das Instruções Políticas, “a
lidades na vida dos conventos (neste con- primeira e mais copiosa sangria, por su-
texto, o risco de exposição pessoal à imo- cessiva, […] é a do grande número de
ralidade adquire alcance coletivo) para a conventos de cada uma das Ordens de
sua nocividade demográfica e económica frades e freiras que se têm estabelecido
dão testemunho abundantes denúncias em todas as províncias e cidades do rei-
de analistas e críticos da sociedade por- no, aumentando-se desta sorte as bocas
tuguesa. O diplomata D. Luís da Cunha que comem, sem braços que trabalhem, e
(1662-1749), ao analisar, em termos de vivendo à custa dos que para se sustenta-
geopolítica, as reais vantagens que a Es- rem e pagarem os tributos que se lhes im-
panha levava sobre Portugal, procurou põem, cavam, semeiam e colhem o que
determinar os fundamentos das desvan- Deus lhes dá, com o suor do seu rosto”,

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AnticongregAnismo 423

não hesitando o mesmo autor em afirmar espirituais e temporais prestados pela


que a vocação não passa, muitas vezes, de Companhia de Jesus e alega que, tendo
um subterfúgio para “a natural preguiça em consideração tão grande proveito da
dos Portugueses” (CUNHA, 2001, 318). república, “se pode sofrer a sua ambição,
Os prejuízos assim causados ao país são a que todavia se lhes devia prescrever al-
aumentados pelos numerosos conventos gum limite” (Id., Ibid., 221).
de freiras, para onde são enviadas, pe- A opinião de D. Fr. Alexandre da Sagra-
los pais, as filhas cujos progenitores não da Família (1737-1818), longe de ser caso
dispõem de bens suficientes para pagar único, surpreende pela ousadia, afinada
os dotes de casamento; aí, vivem muitas pelo argumentário dos mais aguerridos
vezes infelizes e o Estado, que assim fica críticos do exagerado número de insti-
privado da natural gestação de novos súb- tutos monásticos que havia em Portugal.
ditos, sofre dano. Idênticas perdas para Também ele se junta ao coro de quantos
o crescimento demográfico resultariam, condenam que tantos homens e mulhe-
segundo D. Luís da Cunha, da multipli- res entrem em religião, obstando assim
cação de conventos femininos nos terri- ao aumento da população e ao enrique-
tórios ultramarinos, nomeadamente em cimento do país pelo trabalho; contraria
Goa e no Brasil, onde era mais sentida mesmo aqueles regulares que suspiravam
a escassez de população de origem eu- pelos tempos de antigamente, em que os
ropeia. A sangria demográfica do país e costumes eram menos corruptos, e lem-
das suas conquistas, dado o número exor- bra-lhes que havia então menos conven-
bitante de frades e freiras, chega mesmo tos, o que demonstra que a sua multipli-
a ser calculada de modo hiperbólico. No cação não trouxe benefícios aos costumes
entender do grande diplomata, basta nem progresso moral aos povos. Como
supor “que a terça parte deles e delas o seria de esperar, este frade franciscano,
não fossem, antes se casassem, como pu- e bispo de Angra, valoriza os conventos
dessem, e verá [veríamos] que em duas onde se entra com vocação e se observam
idades poderia povoar outro Portugal, e as regras da perfeição cristã. Pelo contrá-
outras tantas colónias” (Id., Ibid., 229). rio, é frequente os conventos serem pro-
Em contexto de importante crescimen- curados pelo interesse de uma vida mais
to demográfico nos países europeus, a fácil e sem que haja vocação, mas apenas
crítica ao aumento de frades e freiras em a expectativa de comodidades e regalos;
Portugal propunha uma espécie de mal- outras vezes, os que neles professam a isso
thusianismo conventual. são obrigados por vontade e conveniên-
Sendo certo que as ordens visadas nas cia de pais ou parentes. E o autor insur-
reflexões anteriores eram principalmen- ge-se contra a profusão desses estabeleci-
te as ordens monásticas e mendicantes, mentos, sem quaisquer contemplações:
o juízo de D. Luís da Cunha sobre os Je- “Haja os que bastem: extingam-se os que
suítas abunda em condescendência e de- sobejam, em vez de se propagarem. […]
marca-se da avaliação que faz do desem- Quão poucos bastariam! Três ou quatro
penho dos outros institutos. Aos Jesuítas de cada ordem, com quarenta celas, cada
chama “anfíbios da religião, porque não um, talvez que tivessem muitas vagas”
são frades nem deixam de o ser”. Embo- (MONTEIRO, 1974, 353). Também no
ra os enquadre no cenário prejudicial que concerne ao serviço espiritual da
para a prosperidade do reino comum às Igreja não é lisonjeira a opinião do bis-
outras ordens, ressalva os bons serviços po de Angra; diz ele que “a experiência

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424 AnticongregAnismo

mostra que nas ordens regulares, tirados de Os Frades Julgados no Tribunal da Razão
os padres mestres (e alguns não se deve- (1814), que identifica com pertinência a
riam tirar), tudo o mais são bolónios, ter- deslocação do ataque às ordens, em ter-
mo que, no dicionário fradesco, significa mos teológicos e morais, para o terreno
ignorantes” (Id., Ibid., 357). da contestação de cunho político, levada
Acerca da utilidade das ordens re- a cabo sobretudo pelos filósofos moder-
gulares para o Estado e para a Igreja, nos. É particularmente significativa e ino-
D.  Fr.  Alexandre desenvolve, no texto vadora a reflexão que faz acerca da natu-
“Religiões (sobre os frades)”, um verda- ral diminuição do número de monges e
deiro cálculo de custo-benefício, dele frades no país: entende o autor que o es-
extraindo a conclusão de serem mui- perado progresso, regular e constante, da
tos os malefícios oriundos do excesso agricultura, do comércio e das artes úteis
de mosteiros em Portugal. Admitia que há de trazer como normal consequência
“nos primeiros tempos da Monarquia, essa redução.
talvez que fosse conveniente fazer algu- Perante a excessiva quantidade de ca-
mas destas fundações […]. Mas como sas e institutos religiosos e, mais ainda,
o sal, a pimenta, ainda o açúcar e todos o deprimente espetáculo de desgoverno
os irritantes do paladar em certas medi- material e espiritual, nomeadamente no
das são convenientes e em sendo dema- concernente à vida em comunidade, vá-
siados enjoam e prejudicam a saúde do rias entidades mostraram, em finais do
corpo, assim estas piedosas fundações séc. xviii, grande preocupação. Foi para
dentro de justos limites seriam úteis mas responder a muitas dessas perturbações
o seu excesso é nocivo à saúde do Estado que, no dia 21 de novembro de 1789,
e da Igreja” (Id., Ibid., 327). E, referin- D. Maria I criou a Junta do Exame do
do o que foi o aumento desses mosteiros Estado Atual, e Melhoramento Tempo-
masculinos e femininos, exemplifica o ral das Ordens Regulares. A Junta tinha
que se passou num deles: o seu cresci- dois objetivos principais: inquirir sobre a
mento foi tal “que chegou a ter cem e situação real e o estado das casas religio-
mais freiras supranumerárias; porque de sas e fazer propostas sobre melhoramen-
uma parte a mania dos pais e de outra a tos a empreender, incluindo as uniões ou
cobiça dos conventos enchiam de mise- supressões de conventos a realizar. Dos
ráveis vítimas estes (alguém diria – serra- inquéritos que entretanto foram feitos
lhos – mas eu direi) cárceres. O mesmo resultou um retrato do estado calamito-
aconteceu em proporção nos mosteiros so em que as casas religiosas se encon-
de homens por efeito de um bigotismo travam, quase sem vida de comunidade,
que tarde se extinguirá entre nós. […] com faltas ao coro, ausências prolonga-
Assim o Estado está sustentando milha- das dos conventos, conflitos e parcialida-
res de ventres secos, que o não ajudam des entre membros do mesmo instituto,
temporalmente” (Id., Ibid., 330). disputas por causa de precedências, reli-
Este quadro, pintado em tons de claro giosas com criadas ao seu serviço, a ponto
-escuro, teve opositores que contra ele se de só “comerem no Refeitório alguns dias
bateram, firmes na apologia de conventos ao jantar, mas cada uma da sua particular
e mosteiros, rebatendo cada uma das acu- panelinha”, como se diz das professas do
sações levantadas contra a sua existência. Convento de Santa Clara, de Vila Real
Distinguiu-se, na tarefa de contrariar a (CORREIA, 1974, 105). Numa palavra, a
onda anticongreganista, o autor anónimo vida religiosa havia chegado, em muitos

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AnticongregAnismo 425

conventos do reino, a um estado deveras de que as ordens devem ser extintas, por
confrangedor. serem desnecessárias à Igreja e incompa-
Embora dos inquéritos feitos no final tíveis com os princípios iluministas e as
do século das Luzes se tenha apurado um bases modernas da vida em sociedade.
acentuado decréscimo do número de re- É na época do vintismo que a questão
ligiosos, o tema da nocividade provenien- congreganista se converte num dos nós
te do excesso de frades e freiras no reino mais difíceis, que a política liberal está
vai prolongar-se, tornando-se ensurdece- empenhada em desatar urgentemente.
dor nos tempos que precederam e acom- Nem antes nem depois o assunto foi ob-
panharam a instauração do liberalismo. jeto de confronto tão apaixonado entre
Não só se vai repetindo que prejudicam apologistas das ordens e adversários obs-
o serviço da nação por retirarem braços tinadamente apostados em cavar-lhes a
à agricultura, à indústria, ao comércio e sepultura. A razão efetiva de tão animosa
à defesa das fronteiras, como também se disputa não a encontramos nas infâmias
defende que levam à ruína os Estados que que os críticos iluministas lhes atribuí-
os admitem e conservam. Prepara-se por ram, por nelas não encontrarem utilida-
esta via a opinião pública para a extin- de social, acusando-as de obscurantismo,
ção das ordens, que não tardaria muito opressão da liberdade, repressão dos
a ser decretada. Expressão vigorosa dessa mais íntimos impulsos da natureza e hi-
animosidade contra as ordens regulares pocrisia. Talvez nada disso fosse bastante
e o estatuto social dos seus membros, de para adquirir a relevância política que o
clara inspiração iluminista, encontra-se vintismo conferiu ao problema congrega-
em O Investigador Portuguez dos meses de nista. A razão de fundo que mobiliza a ar-
maio e junho de 1814, que se publicava gumentação contra as congregações não
em Londres, onde se pode ler uma “Me- se nos afigura ser outra senão a descober-
moria sobre a extincção, e supressão das ta da cidadania cuja institucionalização
ordens religiosas, sua necessidade eccle- na sociedade portuguesa agita os revo-
siastica, e civil”, em que são abordadas lucionários liberais. Foi Manuel Borges
matérias como a origem, o desenvolvi- Carneiro, na sessão parlamentar de 1 de
mento, a decadência, as tentativas de re- fevereiro de 1821, quem primeiro levou
forma, a relaxação e a situação de letargia às Cortes Constituintes a questão congre-
em que caíram as ordens. Tinham falha- ganista. E logo aí apresentou uma pro-
do todas as tentativas de reforma. Perante posta que prima pela lição de liberdade
a riqueza de que dispunha grande parte e de exercício de cidadania, onde se diz:
das ordens monacais e a vida de pedinte a “Todos os Regulares do sexo masculino
que se dedicavam as ordens mendicantes, que quiserem sair dos conventos o pode-
o Estado não devia tolerar quem pareces- rão fazer, precedendo licença pontifícia,
se viver na ociosidade ou à custa das es- cuja expedição o Governo protegerá: e
molas de quem trabalhava. Além disso, se ficarão os egressos hábeis para servir ofí-
a Igreja vivera e florescera durante os três cios, e outras ocupações civis ou eclesiás-
primeiros séculos sem ordens religiosas, ticas, como outros quaisquer Cidadãos”
é porque, não só elas não foram instituí- (Id., Ibid., 1974, 140). Ao mesmo tempo
das pelo fundador do cristianismo, como que se vão repetindo argumentos já bem
este pode existir perfeitamente sem elas. conhecidos, como o do número excessivo
Depois destas considerações, a conclusão de frades “contrário ao sistema constitu-
a que chega o autor da “Memoria…” é cional e à felicidade da Nação”, outros

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426 AnticongregAnismo

vão surgindo. Vejamos o que diz José An- posto por frades e clérigos recrutados no
tónio Guerreiro, deputado constituinte, Minho, maldosamente chamado “Sagra-
acerca da formação, que incapacita os re- do”, integrou mesmo o exército do prín-
gulares para o exercício do conveniente cipe absolutista. Como era de esperar, lá
discernimento democrático: “Todos eles vinha o argumento económico, de que
são tendentes a uma cega obediência, se faz eco o relatório, datado de 30 de
seja a qualquer mandado despótico; por maio de 1834, que fundamenta e explica
isso têm contraído hábitos que os tornam o decreto de extinção. Com a supressão
incapazes de aconselhar a um rei consti- das ordens, diminuíam os celibatários e
tucional” (Id., Ibid., 146). aumentava a população, diminuíam as
Antes de a legislação liberal anticon- terras de mão-morta e lucrava o Estado
greganista ter declarado a extinção dos as receitas provenientes do melhor apro-
institutos regulares, por decreto de Joa- veitamento dos terrenos, com vantagens
quim António de Aguiar, ministro da no progresso da agricultura, do comércio
Justiça, com data de 28 de maio de 1834, e da indústria. Os bens dos conventos
já o governante liberal José da Silva Car- extintos ficavam incorporados nos bens
valho tinha, por decreto de 5 de agosto próprios da Fazenda Nacional. A violen-
de 1833, proibido as admissões a ordens ta expropriação dos bens dos conventos,
sacras e aos noviciados monásticos de agora decretada, já tinha sido objeto de
qualquer ordem e natureza. Esta decisão argumentação, assumida em Cortes por
era completada, a 9 de agosto, por novo Manuel Fernandes Tomás, em sessão de
decreto, que obrigava as casas religiosas 24 de julho de 1821. O grande revolucio-
de ambos os sexos com mais de 12 mem- nário liberal alegava então o princípio se-
bros a comunicarem anualmente ao bis- gundo o qual “os frades possuem os bens
po da Diocese a eleição de um prelado como donatários, bens que são da nação e
ou superior, com obrigação de este pres- que ‘ela os pode assumir, quando julgar
tar obediência ao respetivo bispo. Quan- conveniente’” (Id., Ibid., 1974, 148).
to às casas com número inferior, ficavam Nesta altura, uma das raríssimas exce-
os seus membros obrigados a ingressar ções à fúria do anticongreganismo liberal
noutro convento, revertendo para a Fa- foi a Companhia das Filhas da Carida-
zenda Nacional os bens dos conventos de, fundada no séc. xvii por S. Vicente
por esse motivo encerrados. O  decre- de Paulo e autorizada em Portugal por
to de Joaquim António de Aguiar, com alvará de D. João VI de 14 de abril de
data de 28 de maio, i.e., apenas dois dias 1819. As Cortes de 1821 aceitaram-nas
depois de assinada a Convenção de Évo- com simpatia e doaram-lhes uma casa em
ra Monte, mostra como, havia muito, Lisboa: as obras de beneficência a que
estava a ser pensado, e era desejado por se dedicavam, cuidando dos enfermos
sectores liberais intransigentes, o fim das e instruindo a infância desvalida, torna-
ordens na organização social e religiosa vam-nas beneméritas e utilíssimas à socie-
do país. À  diminuta qualidade moral de dade. Por outro lado, pertenciam a uma
muitos frades e freiras tinha-se juntado, congregação em que não se faziam votos
para maior desaire, a sua resistência à li- solenes, apenas votos simples e temporá-
berdade e às ideias modernas, ao mesmo rios; não eram, por isso, abrangidas pelo
tempo que, em notória maioria, vinham decreto de 28 de maio de 1834. A fúria
apoiando o partido de D. Miguel. No ano do radicalismo liberal atingiu-as duas dé-
de 1834, o batalhão exclusivamente com- cadas mais tarde, quando, em resposta

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AnticongregAnismo 427

a proposta do Governo acerca das con-


gregações religiosas e do ensino, em ses-
são de 26 de abril de 1962, observa que
“estas Congregações estão sujeitas, pelo
voto de obediência, à direção suprema de
um prelado, o qual, como estrangeiro e
residindo fora do país, está isento da ação
das nossas leis e das nossas autoridades,
e como súbdito de soberano estrangeiro,
obedece às leis e às autoridades da sua na-
ção. Não se compadece bem com a inde-
pendência do Estado esta inversão da or-
dem natural, em associações autorizadas
dentro dele” (Parecer…, 1862, 15-16). Era
a lógica do liberalismo nacionalista e re-
galista traduzida em anticongreganismo.
Joaquim António de Aguiar (1792-1884). A questão das Irmãs de Caridade exa-
cerbou-se nos anos de 1861 e de 1862. En-
às muitas solicitações de instituições de tre os parlamentares que lhes eram mais
beneficência de Lisboa e do Porto, fo- hostis conta-se José Estêvão, deputado
ram chamadas e admitidas oficialmente de Aveiro, que exprimiu a sua repulsa e
as Filhas da Caridade francesas. Havendo oposição à presença das Irmãs, sem ter-
entrado em Portugal no outono de 1857, giversar, sobretudo em dois vibrantes dis-
e logo votadas às funções caritativas para cursos na Câmara de Deputados. Vejamos
as quais tinham sido chamadas, não tar- alguns dos motivos que animam o orador
daram os ataques, os protestos públicos, aveirense na sua campanha.
as campanhas de imprensa ignóbeis e as A sombra do jesuitismo pairou, como
proclamações hostis na própria Câmara dissemos, de modo mais ou menos osten-
de Deputados. A essa oposição organiza- sivo sobre o anticongreganismo. Não res-
da não era alheia a máquina anticongre- tam dúvidas quanto ao real fundamento
ganista da maçonaria e a bateria dos bem da hostilidade militante de José Estêvão
conhecidos argumentos da incompatibi- contra o instituto das Filhas da Caridade
lidade entre as congregações e o ideário de S. Vicente de Paulo; são elas, lembra o
liberal de cidadania, do combate ao ultra- grande político liberal, “uma organização
montanismo, da desobediência ao poder que nos intimida, porque as irmãs da cari-
temporal expresso nas leis. dade […] não são senão uma emanação
A cidadania, como prática de liberda- do espírito jesuítico, e em volta dessa con-
de civil e política, apresentava-se como gregação se juntam todas as ideias que
obstruída pelo voto de obediência e pela ficaram desbaratadas e destruídas pela
subordinação a prelados e superiores perseguição que se fez a essa instituição”
maiores estrangeiros; entendia-se que (ESTÊVãO, 1963, 350). Entre os motivos
a soberania nacional ficava desse modo que acendem a forte animosidade do par-
posta em causa, em virtude da sujeição lamentar aveirense contam-se questões
dos cidadãos a poderes e interesses estra- como a prática da caridade, a defesa da
nhos. O parecer da maioria da comissão família, o ensino e a educação. O autor
especial da Câmara dos Deputados sobre acusa as religiosas de pertencerem a uma

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instituição que atenta contra o princípio conferindo-lhe uma enorme amplitude,


da família, que exerce uma ação caritati- por descortinar nele o início do regresso
va redundante, por estar há muito arrei- ao passado, i.e., o prenúncio de uma inva-
gado em todo o país o espírito caridoso, são do Portugal constitucional por todo
e que, através do ensino, instila na cons- o género de ordens religiosas. O certo é
ciência das crianças princípios contrários que, desde 1862 até 1901, além da cam-
às luzes do conhecimento e à liberdade. panha anticlerical de inspiração republi-
O cristianismo retórico de José Estêvão cana (acesa a partir das comemorações
minimiza a dedicação e o espírito soli- centenárias de Camões e do marquês de
dário das Irmãs de Caridade e considera Pombal na déc. de 1880), praticamente
desnecessária a sua instituição, uma vez não houve manifestações significativas de
que “o sentimento nacional de caridade oposição às congregações religiosas do
é inesgotável entre nós, está estabelecido ponto de vista legislativo. Existia, sem dú-
em todas as classes e em todas as locali- vida, um ambiente hostil, que recorria a
dades”; e leva mais longe o desdém por variados meios destinados a desacreditar
elas, ao declarar que, com a permissão de as ordens e a escarnecer delas, nomea-
permanência em Portugal, “vamos matar damente através do jornalismo liberal e
o espírito caridoso que é distintivo do republicano e de numerosos opúsculos;
nosso país” (Id., Ibid., 338). É, porém, em assim, acerca do falso desprendimento
torno da questão do ensino que o caso do mundo, de que os religiosos são acu-
político se agrava, porque, como lembra sados com frequência, gravaram-se, em
o parlamentar, reside nela “a questão de forma de adágio ou ladainha, alguns
tudo, é a questão de todas as liberdades ditos escarninhos, de que são exemplo:
absolutamente” (Id., Ibid., 404). E, refe- “Frei Tadeu, primeiro eu; Frei Mateus,
rindo como inconciliáveis os interesses primeiro os meus; Frei Queiroz, primeiro
cívicos da sociedade liberal, por um lado, nós…” (GOMES, 1890, 9). Num longo in-
e os interesses dos agentes de ensino reli- tervalo de quatro décadas, apenas a por-
gioso, por outro, José Estêvão vê na ques- taria de José Luciano de Castro, de 31 de
tão do ensino “um leilão de almas” (Id., dezembro de 1888, aliás sem consequên-
Ibid., 422); competem pela sua conquis- cias, tentou indagar se, contra o disposto
ta duas cidades antagónicas, a cidade de nas leis, se tinham introduzido no reino
Deus, servida pelo “exército” dos institu- conventos ou congregações religiosas.
tos religiosos de que as Irmãs de Caridade Era, porém, cada vez mais publicamen-
são apenas uma das companhias, e a cida- te sabido que, no decurso desses anos,
de terrestre, cujos desígnios de liberdade se vinha assistindo a uma recomposição
e de autonomia racional e secular devem progressiva do mapa de ordens e congre-
ser prosseguidos pelas políticas liberais. gações no país. Compreende-se, por isso,
Não podemos esquecer que, na déc. de que o episódio Rosa Calmon tenha provo-
1860, a chamada questão das Irmãs de cado grande alarme social. Filha do côn-
Caridade polarizou muitas outras ques- sul do Brasil no Porto, Rosa Calmon pre-
tões que originaram a radicalização da tendia ingressar, contra a vontade do pai,
hostilidade política liberal, radicalização num instituto religioso; ao tentar fugir da
que, ao elegê-las como alvo privilegia- casa paterna, em começos de 1901, foi de-
do, pretendia ser exemplar. Foi assim tida pela polícia. O caso desencadeou tu-
que o parlamentar de Aveiro perspeti- multos violentos em que se guerrearam,
vou este episódio político e religioso, durante várias semanas, sobretudo no

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Porto, em Braga, em Coimbra e em Lis- As associações dispunham de seis meses


boa, defensores e inimigos das ordens e para fazerem as modificações necessárias
congregações, com forte participação da ao seu ajustamento às condições exigidas
juventude estudantil. Para fazer face aos pelo decreto de 18 de abril de 1901. En-
protestos e à agitação pública, o Gover- tretanto, os tumultos continuaram, insti-
no, por iniciativa de Hintze Ribeiro, mi- gados pela União Liberal do Porto, pela
nistro do Reino, decretou, no dia 10 de Junta Liberal de Lisboa e por outras as-
março desse ano, que, para saber ao certo sociações liberais a que davam larga au-
qual a situação e se tomarem as medidas diência numerosos jornais. Nem a ordem
adequadas, ficavam os governadores civis emanada do Conselho de Ministros, que
encarregados de inquirir se existiam ins- determinou o encerramento de várias ca-
tituições de vida monástica contrárias ao sas religiosas, entre as quais o Convento
decreto de 28 de maio de 1834, a fim de franciscano do Varatojo, a casa dos Be-
serem suprimidas. Deviam inquirir tam- neditinos em Singeverga e o Colégio da
bém se havia estabelecimentos de ensino, Lapa em Sernancelhe, que pertencia aos
propaganda, obras de beneficência ou Jesuítas, serenou os ânimos. Só muito len-
caridade a cargo de congregações religio- tamente se foi acalmando a fúria anticon-
sas, para lhes ser exigido que, no prazo de greganista, até rebentar, em 1910, o gran-
oito dias, apresentassem os seus estatutos de terramoto anticlerical da república.
e regulamentos, tendo em vista mandar Vimos que, apesar da extinção dos ins-
fechar os que o não fizessem e tomar pro- titutos regulares, decretada a 28 de maio
vidências em relação aos restantes. de 1834, as congregações religiosas come-
O decreto de 10 de março, em vez de çaram cautelosamente a caminhada da
tranquilizar os opositores, atiçou ainda reorganização e do regresso ao país ainda
mais as paixões anticongreganistas, ten- em meados do séc. xix. A sua presença na
do desse reacender dos protestos sido sociedade portuguesa, fundando e admi-
motor a União Liberal do Porto. Nem nistrando instituições prestadoras de ser-
o encerramento de casas religiosas, por viços de assistência e saúde, de educação
incumprimento do decreto, sossegou os e ensino, de animação espiritual e missio-
ânimos. Perante a continuação dos tu- nação, fez que as congregações religiosas
multos, Hintze Ribeiro, chefe do Gover- fossem consideradas um instrumento va-
no, publicou, no dia 18 do mês seguinte, lioso de promoção social da comunidade;
novo decreto em que, depois de declarar mas converteu‐as igualmente, como foi
em vigor as leis de 1833 e de 1834, esta- dito, num incómodo para vários sectores
belecia as condições que as associações com influência na vida política nacional,
religiosas deviam satisfazer para serem que nelas viam uma ameaça à soberania e
autorizadas como pessoas morais; entre à modernização do país. Muitos republi-
essas condições, contam-se as seguintes: canos professavam ideias profundamente
as associações deviam ter estatutos apro- anticongreganistas; não surpreende, por
vados e oficialmente publicados; deviam isso, que, a 8 de outubro de 1910, três
ocupar-se de atos de beneficência, cari- dias após a proclamação do novo regime,
dade, educação, ensino e propagação da tivesse sido assinado, por Afonso Costa,
fé e da civilização no ultramar; deviam o dec.‐lei que declarava em vigor as leis
estar subordinadas aos prelados ordiná- antijesuíticas de Pombal e a legislação an-
rios do reino; e deviam ser dirigidas por ticongreganista de Joaquim António de
indivíduos de nacionalidade portuguesa. Aguiar. Os primeiros anos da República

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foram de aberta perseguição aos institu-


tos religiosos, visando a sua erradicação
da sociedade portuguesa. A obra do juris-
ta republicano Eurico de Seabra, intitu-
lada A Egreja, as Congregações e a Republica
(1914), espraia-se extensamente sobre os
principais vícios, perigos e malefícios com
que a República quis fundamentar não só
o ódio que nutria pela Companhia de Je-
sus e pelos institutos religiosos em geral,
como a própria Lei da Separação da Igre-
ja e do Estado. Com acentos diferentes,
repetem-se acusações já bem conhecidas
de épocas anteriores, sintetizadas nestas
linhas: “As ordens e congregações são as
sentinelas do Vaticano, as suas guardas vi-
gilantes, os seus propagandistas e coleto-
res internacionais. Educado para a ordem,
o religioso consagra-se a ela. A pobreza e a
castidade completam-se pela obediência. É a
obediência à Igreja, ao superior, ao papa.
Deus existe, porque o superior e o papa
existem. Daqui, esta consequência nítida:
o frade, o congreganista é, em toda a par- Rosto de A Egreja, as Congregações e a Republica,
de Eurico de Seabra.
te, um estrangeiro” (SEABRA, 1914, 89).
Quase já não se fala do excessivo núme-
ro de casas religiosas, e menos ainda de ficial da presença dos institutos religiosos
“ventres secos” (MONTEIRO, 1974, 330), no país. É o que decorre das diligências
mas retoma-se enfaticamente a acusação do ministro da Justiça Artur Lopes Cardo-
de os religiosos não terem pátria e não so, que, com data de 12 de abril de 1921,
respeitarem os legítimos interesses da publica uma portaria em que determina
nação; pelo contrário, ligados à missão que os governadores civis devem con-
da Igreja, de que são servidores zelosos, vidar os membros de ordens regulares
desenvolvem atividades supranacionais e autorizadas a comunicar ao Governo em
têm como desígnio único a implantação que local residem; os governadores civis
universal do poder espiritual e temporal devem ainda informar os responsáveis de
da Igreja de Roma. Note-se que o estatu- estabelecimentos de saúde, higiene, pie-
to transnacional de que são acusados os dade e beneficência de que não podem
membros dos institutos religiosos é pre- admitir ao seu serviço indivíduos que não
cisamente a característica que fez deles cumpram a condição anterior. Manuel
precursores da globalização e pioneiros Borges Grainha (1862-1925), bem conhe-
das relações internacionais. cido pelos seus escritos contra os Jesuítas
Com o andar dos tempos, o novo re- e que, em 1911, Afonso Costa tinha encar-
gime não só foi moderando o seu anti- regado de organizar o Arquivo, Museu e
congreganismo, como deu provas de um Biblioteca das Congregações, foi nomea-
conhecimento bastante limitado e super- do, em 1921, responsável pela inspeção

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AnticongregAnismo 431

do cumprimento das leis republicanas da Bibliog.: ALMEIDA, Fortunato de, História da


Separação e das Congregações Religiosas. Igreja em Portugal, nova ed. preparada e dirigi-
O relatório elaborado por Grainha, não da por Damião Peres, vol. ii, Porto, Civilização
Editora, 1968; CHADWICK, Owen, A Reforma,
só acusa dificuldade em obter a informa-
Lisboa, Ulisseia, 1966; CORREIA, José Eduar-
ção pretendida, como deixa entrever co- do Horta, Liberalismo e Catolicismo. O Problema
nivências com os religiosos e desinteresse Congreganista (1820-1823), Coimbra, Univer-
da parte dos informadores. O elemento sidade de Coimbra, 1974; CUNHA, Luís da,
mais revelador dessa deficiente supervi- Instruções Políticas, ed. crítica Abílio Diniz Silva,
são republicana terá sido certamente a Lisboa, Comissão Nacional para as Come-
introdução, durante os últimos anos do morações dos Descobrimentos Portugueses,
2001; ESTÊVÃO, José, Obra Política, pref. e
regime, de cinco novas congregações,
anot. José Tengarrinha, vol. ii, Lisboa, Portu-
quatro das quais de fundação portuguesa. gália, 1963; Os Frades Julgados no Tribunal da Ra-
O anticongreganismo pode ser visto zão. Obra Posthuma, Lisboa, Impressão Regia,
como uma etapa inicial de uma vaga de 1814; FRANCO, José Eduardo, e ABREU, Luís
fundo chamada secularização e laicização Machado de (dirs.), Para a História das Ordens
da sociedade. Assim projetado no fluir e Congregações Religiosas em Portugal, na Euro-
da história cultural, em que se cruzam e pa e no Mundo, vol. ii, Lisboa, Paulinas, 2014;
GOMES, Delphim, A Extincção das Ordens Re-
interagem os fenómenos religioso, social
ligiosas, Coimbra, Typographia União, 1890;
e político, o assalto às ordens religiosas “Memoria sobre a extincção, e supressão das
começa por querer estancar o aumento ordens religiozas, sua necessidade ecclesiasti-
do número de institutos e de professos; ca, e civil”, O Investigador Portuguez em Inglaterra
passa, depois, a limitar a reprodução das ou Jornal Literario, Politico, etc., maio-jun. 1814,
que existem, proibindo a admissão de as- pp. 397-410, 615-656; MONTEIRO, Ofélia
pirantes; e termina nas decisões políticas Paiva, D. Frei Alexandre da Sagrada Família. A Sua
Espiritualidade e a Sua Poética, Coimbra, Univer-
de extinção legal. O ataque às ordens e os
sidade de Coimbra, 1974; Parecer da Maioria da
resultados por ele obtidos vão potenciar Commissão Especial da Camara dos Deputados so-
a luta contra o poder e a influência do bre a Proposta do Governo acerca das Congregações
clero secular e da respetiva hierarquia, Religiosas e do Ensino, Lisboa, Sociedade Typo-
reforçando, em intensidade e extensão, o graphica Franco-Portugueza, 1862; SEABRA,
movimento anticlerical. Neste movimen- Eurico de, A Egreja, as Congregações e a Republica
to, ganha força uma hostilidade que já (a Separação e as Suas Causas), 2.ª ed., Lisboa,
Clássica Editora, 1914; SORREL, Christian,
não tem somente como alvos os institutos
La République contre les Congrégations. Histoire
religiosos e o clero secular; o seu radica- d’Une Passion Française (1899-1904), Paris, Cerf,
lismo crescente aponta baterias contra o 2003; ULRICH, Ruy Ennes, Estudo sobre a Con-
próprio cristianismo e as crenças religio- dição Legal das Ordens e Congregações Religiosas em
sas, que passam a ser tratadas como mani- Portugal de 1834 a 1901, Coimbra, Imprensa
festações obscurantistas, desacreditadas à da Universidade, 1905; VILARES, Artur, As
luz da razão e da ciência. Congregações Religiosas em Portugal (1901-1926),
Lisboa, FCG, 2003; VOGEL, Christine, “A
crítica do Iluminismo às ordens religiosas: a
influência portuguesa no pensamento euro-
peu”, in FRANCO, José Eduardo, e ABREU,
Luís Machado de (dirs.), Para a História das Or-
dens e Congregações Religiosas em Portugal, na Eu-
ropa e no Mundo, vol. ii, Lisboa, Paulinas, 2014,
pp. 451-458.
Luís Machado de Abreu

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432 AnticonservAdorismo

Anticonservadorismo dança, mas aceita-a como forma de reno-


vação e aperfeiçoamento das instituições
e da vida social. Por conseguinte, não só
o conservadorismo e a reforma social não
são incompatíveis, mas revelam-se mutua-
mente solidários. O conservadorismo e
o reformismo andam juntos, segundo a

O conservadorismo é uma atitude an-


cestral e que acompanha a história
humana, correspondendo a “uma inclina-
fórmula exemplar de Burke: “Um estado
sem a possibilidade de alguma mudança
é incapaz de se conservar” (Id., Ibid., 99).
ção pura e natural do espírito humano” O anticonservadorismo é, antes de mais,
(CECIL, 1912, 8). Enquanto atitude ou uma forma de vida que se caracteriza pela
disposição, o conservadorismo responde pulsão de mudança e rutura com o status
à necessidade de segurança e ao desejo quo. A sua motivação pode ser diversa – éti-
de fruir o bem que já se possui. Como ca, utópica ou revolucionária –, mas trata-
ideologia, o conservadorismo surgiu his- se efetivamente da mudança como valor.
toricamente como movimento antirrevo- Foram anticonservadores os revolucioná-
lucionário e antiutópico de rejeição da rios que preconizaram uma mudança ra-
Revolução Francesa. O seu mentor foi dical, como Marx, e os muitos ativistas que
Edmund Burke (1729-1797), um reputa- romperam com o estado de coisas vigente
do intelectual, autor nomeadamente de em nome de ideais aparentemente ina-
Reflections on the Revolution in France. Tra- tingíveis: Mahatma Gandhi (1869-1948),
ta-se de uma ideologia “posicional”, “não Martin Luther King (1929-1968) e Nelson
ideacional” (COUTINHO, 2014, 44), i.e., Mandela (1918-2013). O celebrado slogan
uma ideologia que se afirma em função “Eu tenho um sonho”, de M. L. King, ex-
de uma dada circunstância que, na pers- prime com admirável concisão e vigor a
petiva do conservador, ameaça valores exigência de passagem a outro modo de
fundamentais da sociedade. vivência e convivência humanas.
O conservadorismo é uma das expres- No caso português, a forma mais típica
sões da Modernidade, acentuando a con- de conservadorismo, onde este adquire
tinuidade e a permanência, mais do que o estatuto de linha orientadora da ação
a mudança e a inovação. Para o conserva- política e mesmo a força de uma dou-
dor, a continuidade e a tradição são provas trina, foi, sem dúvida, a governação de
do valor e da eficácia de práticas, ideias e Marcelo Caetano (1968-1974), que, logo
instituições na realização do ser humano. no discurso de tomada de posse, assume
Assumindo que o Homem nasce, cresce a continuidade como base de um pro-
e se forma no seio de tradições que se grama reformador: “Disse há pouco da
revelaram aptas a satisfazer necessidades minha preocupação em assegurar a con-
e a responder aos anseios dos humanos, tinuidade. Essa continuidade será procu-
o conservadorismo valoriza a continuida- rada, não apenas na ordem administrati-
de de dispositivos que resistiram à prova va, como no plano político. Mas continuar
do tempo. A tendência do conservador implica uma ideia de movimento, de
é para manter as estruturas herdadas do sequência e de adaptação” (CAETANO,
passado e as reformar parcialmente onde 1969, 19). A fórmula “evolução na con-
elas se revelam claramente ineficazes. O tinuidade”, que Caetano assume como
conservador resiste à mudança pela mu- bandeira da sua política, é exemplar de

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AnticonservAdorismo 433

receiam qualquer fórmula de evolução”


(SPÍNOLA, 1974, 15). Esta obra pode ser
interpretada como um relatório crítico da
conjuntura nacional chegada a um impas-
se, uma vez quebrado o vínculo entre con-
tinuidade e evolução: “A análise objetiva
da presente conjuntura não pode deixar
de constituir motivo de séria preocupação
porquanto não se vislumbra que a via da
continuidade estática conduza a qualquer
outra finalidade senão ao agravamento da
crise” (Id., Ibid., 239-240). Um dos tópicos
mais interessantes deste livro é o questio-
namento da noção axial de uma política
conservadora: a existência de “realidades
permanentes”. No capítulo “As nossas
Edmund Burke (1729-1797). contradições”, num estilo finamente dialé-
tico, desconstrói-se a ideia de “realidades
uma visão conservadora. A expectativa de permanentes”: no plano factual; no plano
uma nova dinâmica da sociedade portu- teórico, em que se reconhece haver “um
guesa, criada pela chamada “primavera contrassenso na expressão em análise”
marcelista”, rapidamente se esvaiu à me- (Id., Ibid., 113); e no plano prático, em
dida que a continuidade se sobrepõe à que conduz ao “imobilismo”, o que “levan-
evolução e que as várias oposições, que ta sérias interrogações quanto ao desfecho
não cessam de proliferar, se radicalizam. a que pode conduzir” (Id., Ibid., 122).
O anticonservadorismo, i.e., a recusa da Nas sociedades contemporâneas, a pul-
continuidade, em nome da evolução ou são anticonservadora é um fermento
da revolução, conforme as vozes em pre- indispensável de inovação, num diálogo
sença, conquista sectores relevantes da saudável com a tradição viva que anima a
sociedade portuguesa. Ao nível da análi- vida da coletividade.
se, o livro de João Martins Pereira – Pen-
sar Portugal hoje – é um marco significati- Bibliog.: BURKE, Edmund, Reflections on the
vo do anticonservadorismo português na Revolution in France, London, Pearson Long-
luta contra o imobilismo da continuidade man, 2006; CAETANO, Marcelo, Pelo Futu-
marcelista. Nas vésperas da queda do re- ro de Portugal, Lisboa, Verbo, 1969; CECIL,
gime, o livro Portugal e o Futuro, assinado Hugh, Conservatism, London, Williams & Nor-
por António de Spínola, é representativo gate, 1912; COUTINHO, João Pereira, Conser-
vadorismo, Lisboa, Dom Quixote, 2014; O’HA-
da convicção de que o regime político está
RA, Kieron, Conservatism, London, Reaktion
amarrado a uma política ultramarina inca- Books, 2011; PEREIRA, João Martins, Pensar
paz de conduzir a uma solução e perdeu Portugal hoje, Lisboa, Dom Quixote, 1971; RO-
todo o élan reformador, tornando-se in- SAS, Fernando, O Estado Novo (1926-1974), in
dispensável uma rutura que pudesse abrir MATTOSO, José (coord.), História de Portugal,
caminho a um futuro digno da coletivi- vol. vii, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994; SPÍ-
dade nacional: “É este, no fundo, o espí- NOLA, António de, Portugal e o Futuro, Lisboa,
rito que presidiu à elaboração deste livro, Arcádia, 1974.
que pretende ser uma resposta a quantos Adelino Cardoso

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434 AnticonstitucionAlismo(s)

Anticonstitucionalismo(s) da Modernidade, Thomas Hobbes, rom-


pe com o constitucionalismo tradicional,
contribuindo para o novo constituciona-
lismo, ao privilegiar a “coerência da von-
tade do soberano” (FIORAVANTI, 2009,
22). Contudo, a ideia de constituição mis-
ta conheceu um novo impulso na discus-
são constitucional travada nas cidades ita-
lianas, acabando por ter influência, e.g.,
cArtogrAfiA conceituAl na experiência norte-americana, que não
Sentido(s) deixou de ter efeitos no próprio consti-
O anticonstitucionalismo é uma noção tucionalismo moderno (VORLÄNDER,
pouco mencionada e trabalhada na dou- 2004, 33; sobre a receção do humanismo
trina. O conceito reverso ou oposto (con- cívico no constitucionalismo norte-ameri-
traconceito) é o de constitucionalismo e, cano, com outras indicações, veja-se PO-
apesar do enorme filão de literatura exis- COCK, 1975, em especial 506ss.; PINTO,
tente em relação a este último, um dos 2006, 81-85).
grandes especialistas, Horst Dippel, po- Neste artigo, não faremos da expres-
dia escrever, em 2007, que “a história do são “anticonstitucional” um mero sinóni-
constitucionalismo moderno é uma his- mo de “inconstitucional” (no sentido de
tória que ainda está por fazer” (DIPPEL, juízo de inconstitucionalidade face à lei
2007, 35). Este adjetivo – “moderno”  – fundamental tomada como parâmetro)
remete-nos para a tradicional distinção e vamos situar a questão do problema
entre constitucionalismo antigo e cons- do anticonstitucionalismo no quadro do
titucionalismo(s) moderno(s) (veja-se constitucionalismo moderno. Assim, a
o clássico MCILWAIN, 1940; na dou- expressão pode ser utilizada para desig-
trina portuguesa, CUNHA, 2002, 343- nar correntes que se opõem: 1) à pura e
-360; mais desenvolvidamente, CUNHA, simples existência de uma constituição
2006). Karl Loewenstein refere-se, in- escrita, resultante de um poder consti-
clusivamente, a um constitucionalismo tuinte, tal como a categoria é represen-
transcendente, em Israel, em que o dis- tada no pensamento francês revolucioná-
curso dos profetas sublinha os limites do rio de 1789 (com a sua importância para
poder temporal (LOEWENSTEIN, 1975, a “fundação do domínio” [MÖLLERS,
92; veja-se, citando, nomeadamente, o li- 2009, 230]), em termos de referência à
vro do Deuteronómio, WEIL, 1985, em vontade da nação ou do povo, rompen-
especial 106-113). do com formas tradicionais de legitima-
Em relação ao constitucionalismo anti- ção; a constituição é, pois, vista como a
go, expresso na ideia de leis fundamen- “incarnação da vontade” (PREUSS, 1995,
tais do reino e relevando a constituição 2), como tarefa, sendo essencial a sua
mista, encontramos, na história consti- origem, neste processo de legitimação
tucional, a sua recusa. Exemplo típico é (pense-se, e.g., no “we the people [nós,
a posição do Rei James I de Inglaterra, o povo]” do constitucionalismo norte-a-
defendendo o absolutismo (falando pre- mericano); 2) à exigência de uma cons-
cisamente do seu anticonstitucionalismo, tituição com certos conteúdos – a para-
ABRIL, 1979, 235). Repare-se que, na digmaticamente chamada “constituição
teoria política, um dos pais fundadores ideal” (SCHMITT, 1982, 59-61) –, i.e, ao

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AnticonstitucionAlismo(s) 435

reconhecimento da substância do proje-


to constitucional cuja síntese é dada pelo
art. 16.º da Déclaration des Droits de l’
Homme et du Citoyen: garantia dos direi-
tos – nos começos do séc. xxi, falaríamos
de direitos fundamentais – e da divisão
ou separação de poderes (conceitos que
usamos aqui indiferenciadamente); 3) à
constituição como direito superior (higher
law), vinculando as gerações futuras ou
vindouras, que não poderia ser modifica-
da pelos procedimentos legislativos nor-
mais (HOLMES, 1995, 144). Na primeira
hipótese, privilegia-se a crítica quanto à
dimensão formal e de legitimação proce-
dimental; a segunda move-se numa recu-
sa de uma certa visão substantiva ou mate-
Thomas Hobbes (1588-1679).
rial; na terceira, rejeita-se a dimensão de
rigidez e de vinculação transgeracional.
Quanto à visão de anticonstitucionalis- não estarmos perante um poder consti-
mo como oposição a uma constituição es- tuinte revolucionário à francesa (sobre
crita resultante de um poder constituin- os dois conceitos de revolução, veja-se
te entendido à francesa, regista-se que ARENDT, 1971, 40-47).
seriam indevidamente abrangidas hipó- No segundo caso – exigência de uma
teses que se filiam em tradição constitu- constituição com certos conteúdos –, ex-
cional diferente da da pátria da Revolu- pressa-se uma mutação do conceito de
ção de 1789. Com efeito, basta pensar na constituição, que vai ser contraposto ao
experiência constitucional inglesa para absolutismo, apresentando-se como a ne-
evitar a redução do constitucionalismo à cessidade de dotar uma comunidade de
sua face revolucionária francesa (sobre a um texto com certas qualidades e capaz
pluralidade de experiências, veja-se CA- de abrir portas a uma nova ordem jurídi-
NOTILHO, 2003, 55-60, 69-72) e, conse- co-política (DIPPEL, 2009, 14-15). Repa-
quentemente, rejeitar que todas as rea- re-se que isto passa por um processo de
ções então suscitadas fossem vistas como sedução pela Constituição inglesa (e.g.,
manifestações de anticonstitucionalismo. Montesquieu), assumindo relevo (Id.,
Na verdade, alguns dos conteúdos consi- Ibid., 16) a obra de Jean-Louis de Lolme
derados essenciais pelo constitucionalis- (Constitution de l’Angleterre, 1771), citada
mo moderno (limitação do poder – no nas Cortes portuguesas (Diário das Cortes
caso britânico, do Monarca, em primeira da Nação Portuguesa, 1822, 390). A lista de
linha, mas sem que a supremacia parla- conteúdos pode ser mais ampla, varian-
mentar fosse sinónimo de omnipotên- do as propostas relativas à identificação
cia, ao contrário do que vulgarmente se do primeiro texto do constitucionalismo
pensa – e defesa dos direitos individuais moderno (para muitos, a Declaração de Di-
(para uma síntese, WICKS, 2006, 29-30)) reitos de Virgínia, de junho de 1776; veja-
integram a constituição inglesa tal como -se DIPPEL, 2007, em especial 4-10). Mas
resultou da Revolução de 1688, apesar de novidade decisiva do constitucionalismo

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436 AnticonstitucionAlismo(s)

moderno é a passagem de um conceito de revoir, de réformer et de changer sa


descritivo (um “conceito de experiência” Constitution. Une génération ne peut as-
[GRIMM, 1995, 100]) para um conceito sujettir à ses lois les générations futures
prescritivo ou normativo de constituição, [Um povo tem sempre o direito de rever,
com uma “carga ético-política” (SOARES, de reformar e de mudar a sua Consti-
1983, col. 1166), gerador de confrontos tuição. Uma geração não pode sujeitar
políticos (GRIMM, 1995, 100). É na opo- às suas leis as gerações futuras]” (Décla-
sição a este constitucionalismo moderno ration des Droits de l’Homme et du Ci-
que se desenha um primeiro conjunto toyen de 1793, art. 28.º).
de críticas inseridas no filão do anticons- A par de um anticonstitucionalismo
titucionalismo, que contestam o projeto geral – a oposição ao movimento cons-
político da modernidade – estruturado, titucional moderno de raiz continental,
nomeadamente no seu modelo francês, maxime francesa, é a que mais sobressai
em função de uma rede conceitual (PE- historicamente –, podemos pensar num
REIRA, 1990) – e que se dirigem a uma anticonstitucionalismo específico. Com
conceção racional-voluntarista de cons- efeito, o termo também aparece referido
tituição (para nos socorrermos de uma em termos de oposição a uma certa cons-
conhecida formulação de Arthur Young, tituição (o que, aliás, pode ser feito pre-
logo em 1792, como se “a constitution cisamente em nome da defesa do consti-
was a pudding to be made by a receipt [a tucionalismo: pense-se na crítica a textos
constituição fosse um pudim a fazer se- constitucionais ditatoriais).
guindo uma receita]” [MCILWAIN, 1940, No mapa de aceções, é possível proce-
4]); sobre as duas conceções de consti- der a uma outra análise para enquadrar, a
tuição – racional-voluntarista e histórico partir de uma certa constituição, o tipo de
-evolutiva –, veja-se VORLÄNDER, 2004, associações ou mesmo de condutas que
15-16; SOUSA, 1910, 354-359, falava da esta, mesmo não utilizando essa fórmu-
contraposição entre a escola metafísico la, considera como “anticonstitucionais”,
-revolucionária e a escola histórico-evo- enquanto põem globalmente em causa a
lucionista. Em termos que não podemos ordem consagrada no texto constitucio-
aprofundar, mas apenas ilustrar, refiram- nal (assim, e.g., na Constituição de 1911,
se dois grandes veios de reação: o absolu- pense-se na proibição da Companhia de
tista, ainda que ilustrado; o tradicionalis- Jesus e das congregações religiosas e or-
ta, apelando para as leis fundamentais do dens monásticas, vistas como inimigas,
reino como limitativas do poder do mo- acusadas de terem “os capitais [para]
narca, nisto se distinguindo da referência as despesas [inclusivamente armadas]
feita por James I, que as utilizava para de reação contra a República” [Diário
indicar as limitações dos seus súbditos e da Assembleia…, 28 jun. 1911, 5]). Nesta
do Parlamento (GOUGH, 1992, 60-61, ci- perspetiva, temos expressões de um anti-
tando o The Trew Law of Free Monarchies, da constitucionalismo proibido, sendo que a
autoria do próprio Rei). nossa análise se centrará no anticonstitu-
No terceiro caso, seria havida como cionalismo defendido.
anticonstitucionalista a recusa da tese Além disso, o anticonstitucionalismo
de que uma geração poderia vincular as pode ser pensado em termos adjetivados,
seguintes, pensamento que teve expres- de modo a referir a rejeição de um qua-
são no quadro constitucional jacobino dro constitucional para além do existen-
de 1793: “Un peuple a toujours le droit te no plano nacional, no âmbito supra-

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AnticonstitucionAlismo(s) 437

Assembleia nacional Constituinte francesa, abertura dos Estados Gerais em 5 de maio de 1789.

nacional (União Europeia), ou mesmo Anticonstitucionalismo


mundial (veja-se o que se dirá à frente). e aconstitucionalismo
Já George Kateb menciona um “anticons- O anticonstitucionalismo não deve ser
titucionalismo seletivo”, quer em relação confundido com o que poderíamos de-
à não aplicação do constitucionalismo no signar como aconstitucionalismo: neste,
interior de um território (e.g., quanto ao ao contrário do primeiro, sublinha-se,
reconhecimento de direitos a um ou a não a oposição, mas a simples ausên-
vários grupos), quer em relação a outros cia. Podemos distinguir várias aceções:
povos, através de guerra e de colonização a) uma prende-se com a contraposição
(KATEB, 2011, 33-34). entre constitucionalismo moderno e
Há ainda uma outra situação que po- antigo, entendido o último como inexis-
deremos designar de anticonstitucionalis- tência de constitucionalismo stricto sensu;
mo prático, em que se instrumentaliza o uma marca do primeiro seria a exigência
constitucionalismo para tentar legitimar de uma constituição escrita, o que leva-
regimes ditatoriais ou autoritários. Tra- ria Thomas Paine a escrever que “na In-
ta-se de uma situação de pseudoconsti- glaterra não é difícil perceber que tudo
tucionalismo (LOEWENSTEIN, 1975, tem constituição exceto a nação” (PAI-
95), correspondendo às chamadas cons- NE, 1989, 166); b) outra designa os casos
tituições semânticas (critério ontológico em que, havendo textos constitucionais
proposto por Loewenstein (Id., Ibid., 100; na aceção moderna, não há um constitu-
Id., 1979, 218-222)), compreendendo-se a cionalismo enquanto cultura irrigadora
expressão como referida à “formalização com os valores que referimos anterior-
jurídica de uma configuração de poder mente, sem que isso traduza a tomada
estabelecida a favor de um determinado de posição contrária que o prefixo “anti”
governante” (Id., 1975, 100). exprime.

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438 AnticonstitucionAlismo(s)

Em Portugal, a fórmula “aconstitu- nas posições de William Lloyd Garrison,


cional” foi usada por Vital Moreira, no considerando que a lei fundamental obri-
confronto com a Aliança Democrática, garia os cidadãos a participar no mal mo-
referindo-se à “tendência para a disso- ral (COVER, 1983-84).
lução da Constituição, [a] um fascínio No séc. xix, registam-se, em várias par-
por um Estado aconstitucional”, que, no tes da Europa, acusações de anticonstitu-
uso que fazemos dos termos, se recon- cionalismo: e.g., em Itália, no quadro do
duz ao anticonstitucionalismo – não por tradicionalismo, Pio IX é acusado de ser
acaso, fala de um “neomiguelismo, que, anticonstitucionalista (Giacomo Martina
por antonomásia, hostiliza nela [Cons- fala de uma “involução anticonstituciona-
tituição de 1976] todo o constituciona- lista” [MARTINA, 1999, 157] e, na obra
lismo”. Assim, segundo a acusação, não Storia della Chiesa, faz o enquadramento
estaríamos apenas perante um anticons- do período, considerando quer os cató-
titucionalismo específico, pois o “consti- licos constitucionais e liberais, quer os
tucionalismo reacionário e contrarrevo- anticonstitucionais e antiliberais, em vá-
lucionário aparenta ser e corre o risco rios países da Europa; sobre esta questão
de ser anticonstitucionalista em geral” no Portugal oitocentista, veja-se adiante);
(MOREIRA, 1980, 137). em França, Joseph de Maistre aparece
com um discurso paradigmático do tradi-
Alguns subsídios cionalismo, pronunciando-se, em nome
históricos comparados: da antiga Constituição de França, contra
entre a teoria e a prática o constitucionalismo revolucionário (em
Para além dos aspetos históricos, já su- especial no cap. viii de Considerações sobre
blinhados na aproximação conceitual, a França); no círculo de língua alemã, na
permitam-nos uma breve e fragmentária história constitucional, veja-se, e.g., a par-
referência ao anticonstitucionalismo em tir da oposição à Constituição de Cádis,
termos comparados (veja-se mais à fren- a obra Über die Constitution der Spanischen
te o que se dirá sobre o caso português). Cortes (1820), do suíço Karl Ludwig von
Assim, logo na sequência da Revolução Haller (1768-1854) (para uma síntese do
Francesa, podemos encontrar expressões seu pensamento, KÖLZ, 2006, 183-187);
de anticonstitucionalismo, sendo até pu- na Alemanha, Adam Müller (Elemente
blicado um Catéchisme Anti-Constitutionnel, der Staatskunst, 1809) veio a adotar posi-
ou Sentiments de Solon, Sénèque, Tacite, Gor- ções anticonstitucionais (expressamente,
don, Sydney, Locke, J.-J. Rousseau, etc., sur Ce STOLLEIS, 2001, 106); em Espanha,  os
Qui S’Est Passé et Se Passera en 1789 et 1790, carlistas surgem, no seu conflito com
em 1790. os liberais, como representantes do cam-
Na história constitucional norte-ameri- po crítico.
cana, a designação “anticonstitucionalis- Mas já antes, no período que antecede
tas” foi utilizada quer como sinónimo de a Constituição de Cádis, a defesa da cons-
“antifederalistas”, quer, ao menos na Pen- tituição histórica, das tradicionais leis
silvânia, como rótulo para nomear, jun- fundamentais, e a recusa do poder cons-
tamente com republicanos ou modera- tituinte na aceção moderna encontram
dos, os opositores à Constituição de 1776 expressão (analisando o pensamento de
(KLEIN e HOOGENBOOM, 1980, 104). Jovellanos, SUANZES-CARPEGNA, 1983,
Refiram-se ainda as teses do anticonstitu- 144-156). Quer na fase da sua elabora-
cionalismo antiesclavagista representado ção, quer depois, encontramos literatura

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AnticonstitucionAlismo(s) 439

crítica do texto de 1812, não raro em humana (para eles, o verdadeiro sujeito
nome da religião: pensem-se nos escri- constituinte seria Deus), a questão era,
tos de Francisco Alvarado (1756-1814), no campo das cartas ou das constituições
dominicano, que elaborou, no seu exílio outorgadas, se “il re non avesse disposto
em Tavira, as Cartas Críticas Que Escribió el su una materia indisponibile da parte di
Filósofo Rancio, ou de Fr. Rafael de Vélez, qualunque autorità terrena e se, quindi,
em Apología del Altar y del Trono o Historia non avesse cosí messo in gioco la sua le-
de las Reformas Hechas en España en tiem- gittimità [o rei não tivesse disposto sobre
po de las Llamadas Cortes, e Impugnación de matéria indisponível por parte de alguma
Algunas Doctrinas Publicadas en la Consti- autoridade terrena e se, por isso mesmo,
tución, Diarios y Otros Escritos contra la Reli- não tivesse posto em causa a sua legitimi-
gión y el Estado (1818), que publicara an- dade]” (ZAGREBELSKY, 1996, 67).
teriormente Preservativo contra la Irreligión, Na Alemanha do séc. xix, antes da
o los Planes de la Filosofía contra la Religión unificação, encontramos posições clas-
y el Estado, Realizados por la Francia para sificadas como anticonstitucionais, re-
Subyugar la Europa, Seguidos por Napoleón lacionadas quer com uma “democracia
en la Conquista de España y Dados a la Luz anticonstitucional”, quer com um “an-
por Algunos de Nuestros Sábios (ANDRÉS- ticonstitucionalismo antidemocrático”
GALLEGO e PAZOS, 1999, 86; contudo, (BEYME, 2002, 188).
em 1812, a posição de Vélez afigura-se O anticonstitucionalismo democrático
distinta: LÓPEZ-BREA, 2002, 9-10). É o parte da ideia de igualdade, criticando
tempo da contraposição entre servis, en- a tese da limitação da vontade do povo.
quanto anticonstitucionalistas, e liberais Em termos gerais, estamos perante a ten-
(NOVALES, 2008, 21). Trata-se de um são oitocentista entre liberalismo (cons-
elemento que se consolida com a Confe- titucionalismo liberal) e democracia (so-
rência de Viena de 1815 e com a famo- berania).
sa Santa Aliança. A crítica ao parlamen- Refira-se que, na Rússia do séc. xix,
tarismo, e.g., é vista como um aspeto de o uso da palavra “constituição” (“kons-
anticonstitucionalismo, desconstruindo titoetsija”), em reuniões políticas ou no
uma metanarrativa emancipatória da Mo- teatro, alarmava a censura e a polícia po-
dernidade que assenta numa escatologia lítica czaristas (TANG, 1998, 169). Teria
meramente horizontal e intramundana. de se esperar por 1905 para se eleger um
Como sublinha Martin Kriele, “o parla- Parlamento (a Duma).
mentarismo está ligado de tal maneira à Noutro uso, considerando os totalitaris-
esperança do progresso que o pessimismo a mos do séc. xx, o termo “anticonstitucio-
respeito do progresso dá lugar frequen- nalismo” surge como chapéu conceitual
temente a reações antiparlamentares, em que cobre quer o marxismo-leninismo
especial fascistas e autoritárias” (KRIELE, soviético, quer o nacional-socialismo. Con-
1980, 258). A par da crítica ao parlamen- tudo, se este é um “anticonstitucionalismo
tarismo, o chapéu conceitual do anticons- antidemocrático”, o primeiro foi apresen-
titucionalismo compreende ainda outros tado como “anticonstitucionalismo demo-
antis, como o antiliberalismo (&Antilibe- crático”, entendida a expressão “democra-
ralismo; veja-se LEAL, 2009) e o antiplu- cia” no sentido de defesa da igualdade dos
ralismo (BACKES, 2006a, 36). Registe-se cidadãos e do primado da vontade popu-
que, para os autores que recusavam que lar, enquadramento que é extremamente
a constituição pudesse ser uma criação controverso, reconhecendo Backes, em

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440 AnticonstitucionAlismo(s)

Politische Extreme, a simplificação face à A nossa análise está centrada na área


complexidade interna de ambas as corren- euro-atlântica, mas a categoria do anti-
tes (dá, como exemplos, leninismo e es- constitucionalismo tem sido utilizada para
talinismo, num caso, e a diferença de po- analisar outros espaços civilizacionais (e.g.,
sições entre Hitler e Rosenberg, noutro) sobre o caso japonês e o papel dos ultrana-
(BACKES, 2006, 245). Num quadro nazi, cionalistas, veja-se KEMPKE, 2011).
e.g., anticonstitucionalismo é sinónimo de Acresce que este primeiro levantamen-
“neoabsolutismo” (GRIMM, 2012, 42). to semântico não esgota os usos de “anti-
Ulrich Preuss refere, inter alia, as pro- constitucionalismo”.
postas leviatânicas de uma “ecoditadura”
(PREUSS, 1995, 21-22) contra o consti-
tucionalismo: embora não as mencione,
breve referênciA Ao
relembramos as posições de Hans Jonas
AnticonstitucionAlismo nA históriA
sobre as vantagens da ditadura (neste
constitucionAl portuguesA
caso, do “modelo comunista do socialis- Sem prejuízo de uma análise dos anti-
mo” (JONAS, 2006, 244)) e a “inaptidão” constitucionalismos específicos (contra
da democracia para garantir as obriga- uma certa constituição), começaremos
ções decorrentes do “princípio responsa- por notar que, mesmo antes do texto
bilidade” e do seu imperativo categórico vintista, encontramos uma clara reação
(Id., Ibid., em especial 243-250; sobre a ao constitucionalismo moderno em ge-
sua desilusão, Id., 2001, 46). ral (exemplarmente, a Dissertação a fa-
Um tema que não pode ser aqui desen- vor da Monarquia, de 1799, do marquês
volvido prende-se com a relação entre de Penalva; para uma primeira síntese,
anticonstitucionalismo e religião. Histo- MESQUITA, 2004, 258-259). Referimo-
ricamente, a crítica ao constitucionalis- nos a correntes que, à semelhança das
mo moderno faz-se também apelando experiências comparadas, se filiam em
ao lastro religioso: basta pensar, e.g., no matrizes absolutistas ou tradicionalis-
breve Quod Aliquantum, de Pio VI, da- tas, sendo que nem sempre são claras as
tado de 10 de março de 1791 (sobre a fronteiras entre estas (em geral, veja-se
Igreja Católica e a Revolução Francesa, a síntese de TORGAL, 1993, 228-234).
veja-se CHAPPIN, 1989; quanto ao caso Este pensamento anticonstitucionalis-
português, veja-se mais à frente). Mas a ta deixou as suas marcas ao longo do
oposição pode ver-se noutros quadrantes: séc.  xix, tendo ainda refrações impor-
assim, no judaísmo, parte dos sectores tantes no séc. xx, nomeadamente no
ortodoxos afirma que só a Torá pode ser Integralismo Lusitano e no tradicionalis-
a Constituição de Israel (nomeadamente mo novecentista (veja-se o que se dirá).
M. K. I. Levi, membro do Partido Religio- E.g., refiram-se, no período oitocentis-
so Nacional [AVNON, 1998, 537, n.º 6]); ta, nomes como Faustino da Madre de
ou, de uma forma mais restritiva, limitan- Deus, José da Gama e Castro, José Acúr-
do o conceito constitucional ao Decálogo sio das Neves, José Agostinho de Macedo
(MARKL, 2007), resultante da Aliança, a (para mais desenvolvimentos, MESQUI-
qual é uma categoria fecunda, aliás, no TA, 2004; TORGAL, 1993; figuras que
próprio pensamento constitucional; no influenciaram o pensamento de António
islamismo, também encontramos leituras Sardinha, no período da sua formação,
claramente anticonstitucionais (pense-se quando não falava em Maurras: MERÊA,
na discussão sobre o lugar da sharia). 1992, 263).

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AnticonstitucionAlismo(s) 441

Nas atas das Cortes Gerais, Extraordiná- constitucionalismo dirigidas à Academia


rias e Constituintes da Nação Portuguesa, (GARRETT, 1966; ARAÚJO, 2013). Os
encontramos algumas vezes a expressão anticonstitucionais eram também co-
“anticonstitucional”. A par do uso fre- nhecidos por “corcundas” (registe-se, de
quente de “anticonstitucional” como novo, a intervenção de Garrett), sendo
sinónimo de “inconstitucional”, que não acusados de se vergarem perante o po-
assume autonomia na análise, veja-se a der (para esta crítica aos corcundas e a
situação de oposição ao novo quadro defesa do sistema constitucional, veja-se,
emergente da Revolução. Para exempli- e.g., SOUSA, 1822). Aliás, em termos de
ficar, transcrevemos parte da ata da ses- léxico, encontramos ainda designações
são de 31 de julho de 1821: “afirma que como “servis” (José António de Miranda
este oficial era anticonstitucional, e que considera-os “membros podres e gan-
caluniava em público as cortes, e o gover- grenados” [MIRANDA, 1821, 89]; em
no. É necessário que ele se justifique, e relação à questão no Brasil antes da in-
enquanto se não justifica, não pode, nem dependência, veja-se NEVES e NEVES,
deve ser reintegrado no seu posto. Não 2009, 75, que refere, na literatura satíri-
pode, nem deve retrogradar o princípio, ca, a publicação de um Dicionário Corcun-
de que em qualquer mudança política se dativo ou Explicação das Frases dos Corcun-
hão de confiar todos os lugares aos ami- das, 1821, com assinatura de J. Lopes de
gos daquela causa” (Diario das Cortes…, 31 Lima); após o curto período comum de
jul. 1821, 1709). história constitucional, a independência
A Constituição de 1822 surge num ho- conduzirá a uma alteração semântica em
rizonte liberal que não escapa aos críticos que “anticonstitucionalismo” e “corcun-
absolutistas e tradicionalistas, como acon- da” passam a ser vistos como sinónimos
tecera, aliás, com uma das suas fontes, a de apoio aos interesses portugueses e
Constituição de Cádis, de 1812. Inclusiva- contra a independência do Brasil [PAM-
mente, na correspondência trocada por PLONA, 2009, 171-172]).
Carvalho com Bentham faz-se referência, A defesa do constitucionalismo liberal
na carta de 1 de março de 1822, à exis- monárquico, a começar pela Constitui-
tência de anticonstitucionais: “Tout le ção de 1822, face à crítica movida em
congrès vous aime et les libéraux se ré- nome da “Constituição antiga” pode ver-
clamant de votre autorité pour appuyer -se em texto de Basílio de Sousa Pinto.
leurs opinions, tandis que les anti-consti- Refere que “a constituição antiga estava
tutionnels n’osent point la combattre et feita de acordo com os costumes daquele
encore moins la méconnaître [Todo o tempo, porém a civilização e os conheci-
congresso vos ama e os liberais invocam a mentos dos homens não são estacionários
vossa autoridade para sustentarem as suas e por isso a Constituição também não
opiniões, ao passo que os anticonstitucio- deve sê-lo, devendo estar em harmonia
nais não se atrevem de todo a combatê-la com o progresso. A Constituição antiga
e menos ainda a ignorá-la]” (BENTHAM, não tinha as mesmas garantias do siste-
2000, 40-41). ma constitucional e foram descobertas,
O epíteto “anticonstitucionalista” foi, pela civilização moderna, garantias cuja
pois, atribuído aos opositores da Revo- invenção foi devida principalmente a
lução. Recorde-se, e.g., a reação de Al- Montesquieu e, por conseguinte não es-
meida Garrett, enquanto estudante da tando a Constituição antiga apta para a
Univ. de Coimbra, às acusações de anti- civilização dos tempos modernos, devia

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442 AnticonstitucionAlismo(s)

inovar-se para se adaptar aos tempos de Já quanto à Carta Constitucional – a


hoje” (PINTO, Direito…, 8). lei fundamental que mais tempo este-
Na sequência da Vila-Francada, cessa a ve vigente entre nós – podemos referir
vigência do texto constitucional vintista. dois tipos de anticonstitucionalismo: o
É precisamente deste período um escri- miguelismo, que passou simbolicamente
to intitulado Revolução Anti-Constitucional, pela suspensão da Constituição (sobre a
em 1823, Suas Verdadeiras Causas e Effeitos, relação entre miguelismo e anticonstitu-
publicado anonimamente em Londres, cionalismo, veja-se SERRãO, 1995, 163);
em 1825, mas atribuído aos liberais (José a oposição ao cartismo, enquanto solução
da Silva Carvalho e/ou Simões Margio- política, mas sem abandonar o constitu-
chi; TORGAL, 1980, 279, que indica os cionalismo.
nomes em termos disjuntivos; diferente- Num escrito de 1827, William A’Court,
mente, LOBO, 2002, 101, defende uma embaixador inglês, é acusado de ser o
leitura copulativa, falando de “parceria” “chefe do Partido anticonstitucional”, ao
entre os dois autores). Nele, identifica-se visar a cessação da vigência do texto cons-
revolução anticonstitucional com antili- titucional (Resposta ao Author…, 1827, 18).
beralismo. Registe-se que, em 1823, José Eça de Queirós atacou a Carta, que “foi
Sebastião Oliveira de Saldanha Daun es- previdente nesta questão do riso! Deixou-
crevia: “O Constitucionalismo Democrá- -nos instituições” (QUEIRÓS, 2004, 225).
tico só convém a Anarquistas, Sans Cullo- De uma forma geral, a crítica à Carta é,
tes, a Desesperados, a Aventureiros”, para aqui, uma crítica da monarquia e da ca-
depois acrescentar que o absolutismo não tolicidade.
é sinónimo de despotismo. Explicita que Em relação ao envolvimento dos católi-
o seu propósito é “analisar, combater e cos portugueses, se encontramos figuras
refutar o Sistema Constitucional Portu- que procuram conciliar a sua fé com a de-
guês decretado pelas Bases, desenvolvido fesa do regime constitucional (e.g., Fran-
na Constituição de 1822” (DAUN, 1823, cisco de Azeredo Teixeira de Aguilar, 2.º
VII). Também a partir de 1823 (com 33 conde de Samodães: CLEMENTE, 2010),
números publicados, cessando em 1824) há também um conjunto de católicos ab-
é publicado, pela mão de Fr. Fortunato de solutistas anticartistas e anticonstitucio-
São Boaventura, O Punhal dos Corcundas, nais em geral.
que, como se explica logo no n.º 1, é “o Já no final da monarquia, uma crítica
punhal da razão e da experiência” (SãO violenta da Carta (e, de modo genérico,
BOAVENTURA, 1823, 2), sendo clara e do constitucionalismo) pode ver-se na
profundamente antimaçónico (&Antima- obra de Joaquim Alfredo Gallis: “[e]sse
çonismo; RAMOS, 2009). Já o n.º 4, e.g., constitucionalismo caricato, produto le-
abre com um triplo “Morra a Constitui- gítimo das escorrências da grande revolu-
ção” (SãO BOAVENTURA, 1823a, 29). ção de 93, desabou sobre o nosso país por
Sublinhe-se que D. Pedro de Sousa e meio de um sonho de poetas e de uma
Holstein, após a Abrilada (30 de abril de questão de barriga” (GALLIS, 1905, 182).
1824), chegou a sugerir a D. João VI que Não curaremos aqui do parêntesis que
abandonasse a ideia de conceder uma foi a Constituição de 1838, de curta vi-
constituição a Portugal, “fazendo reviver gência (4 de abril de 1838 a 10 de feve-
as genuínas Instituições portuguesas, sem reiro de 1842), a que se sucedeu a Carta
adulterações à moderna” (CANAVEIRA, Constitucional, restaurada por Costa Ca-
1988, 52). bral como “símbolo antirrevolucionário”

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AnticonstitucionAlismo(s) 443

(CAETANO, 1978, 48). Note-se que conde de Monsaraz, que se opunha à


António de Oliveira Marreca, uma das restauração de uma monarquia que trou-
figuras do pensamento económico por- xesse consigo a Carta Constitucional (Id.,
tuguês, que também foi parlamentar, se Ibid., 225).
referia às tendências anticonstitucionais Alfredo Pimenta assume inequivoca-
(absolutistas e democráticas) como sen- mente uma posição anticonstitucional.
do “extraconstitucionais” (MARRECA, 21 Escreve: “A monarquia ou será antiliberal
fev. 1839, 351). ou não será” (Id., Ibid., 232). E João do
Quanto à Constituição de 1911, no Amaral, logo no n.º 1 de Aqui d’El Rei, es-
que toca ao anticonstitucionalismo proi- creve: “A história do constitucionalismo
bido, embora não utilizando a fórmula monárquico e republicano resume-se nis-
“anticonstitucionais”, indubitavelmente to: a Nação posta a saque pelos bandos
podem ser enquadrados como tal: a) cri- políticos” (QUINTAS, 2014, 171).
mes de responsabilidade – “atos do Poder O Integralismo Lusitano combate o
Executivo e seus agentes que atentarem: constitucionalismo moderno. Assim, num
2.º Contra a Constituição e o regime re- artigo em O Dia, de 23 de março de 1915,
publicano democrático” (art. 55.º/2.º); tentando responder à acusação de serem
b) as associações religiosas, vistas como um “simples artigo de importação france-
incompatíveis com o projeto republi- sa, sem fundamento tradicional” (CRUZ,
cano, “instrumentos mais eficazes que 1986, 28), nas palavras de Hipólito Rapo-
Roma tem à sua disposição para a reali- so, um conjunto de figuras de primeira
zação da ditadura papal, em inteira opo- linha do movimento sustenta que as suas
sição com as condições da civilização mo- ideias políticas “são antes um património
derna” (SOUSA, 1913, 100-101). histórico-político de bons portugueses, os
Para além dos autores que se opunham grandes tratadistas da primeira metade
à Constituição republicana, mas não ao do século passado que o delírio da vitória
constitucionalismo, encontramos uma liberalista condenou a um esquecimento
clara e assumida defesa do anticonsti- ingrato” (Id., Ibid., 28-29).
tucionalismo em correntes como o In- Na fase da chamada Ditadura Mili-
tegralismo Lusitano e o neotradiciona- tar, Marcelo Caetano publica, na Ordem
lismo de Alfredo Pimenta e de Caetano Nova, um artigo contra as “preocupa-
Beirão, atacando o constitucionalismo ções legalistas” que levavam alguns a ter
da monarquia e da república (para uma receio de romper com a Constituição de
síntese, veja-se SANTOS, 2010, 223-224). 1911 (CAETANO, 1927). Ultrapassaria
Repare-se que a localização deste anti- as possibilidades, em termos de objeto e
constitucionalismo exige que se tenha de espaço, uma consideração do debate
presente a discussão entre monárqui- em torno da manutenção da lei de 1911,
cos constitucionalistas, defensores de naturalmente revista, ideia que ainda teve
D.  Manuel II (organizados em torno de tradução no dec. n.º 18.570, que aprovou
A Nação), e miguelistas, que subscreviam o Ato Colonial, “substituindo o título
um modelo anticonstitucionalista que v da Constituição da República Portu-
recusava o parlamentarismo (Id., Ibid., guesa, e devendo ser incorporado na
219-222). O  constitucionalismo aparecia reforma geral desta, sujeito a revisão do
como sinónimo do liberalismo, que, ao Congresso, reunido com poderes consti-
tempo, começou a ser apresentado como tuintes” (art. 1.º) (sobre a discussão cons-
decadente. Vejam-se, e.g., as posições do titucional, veja-se, com outras indicações,

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444 AnticonstitucionAlismo(s)

ARAÚJO, 2007; para uma síntese da po- co, assistimos a uma linha que, no limite,
sição dos integralistas, veja-se QUINTAS, defendia a rutura com a Constituição de
2004, em especial 40-41). 1976. Do ponto de vista ideológico, foi
A Constituição de 1933 surge como pi- usada como fronteira entre os que de-
lar do Estado Novo, numa linha de nor- fendiam e atacavam Abril (lembre-se a
malização em que o constitucionalismo revista Fronteira, que assumia como lema
se degrada em legalismo. O texto cons- a frase de Piteira Santos: “A Constitui-
titucional de 1933 foi objeto de crítica, ção é uma linha de defesa e de combate:
quer quanto à génese (procedimento uma fronteira entre abril e as oposições
constituinte direto, sendo submetido a a abril”). No entanto, repare-se que, ao
um plebiscito), quer quanto ao conteú- menos para alguns, se tratou de uma
do, censurando-se, e.g., a possibilidade alteração, pois na mesma área houve
de vários direitos e garantias poderem quem antes desvalorizasse a legalidade
ser subvertidos por via legislativa (art. e a Constituição – instrumentos da bur-
8.º/§ 2.º; criticamente, com uma com- guesia –, contrapondo-lhe o processo
paração com a solução constitucional revolucionário em curso (Lucas Pires
vigente depois de 1976, CANOTILHO, fala de um “binómio Constituição-Re-
1979, 94). Registe-se que, mesmo entre volução” [PIRES, 1988, 146]; sobre este,
os protagonistas de 28 de maio de 1926, no quadro das discussões na Constituin-
houve oposição específica ao projeto te, veja-se MIRANDA, 1978, em especial
constitucional. Com efeito, José Vicente 32-37), tendo pairado no ar a possibili-
de Freitas criticou o projeto, tendo envia- dade de não terminar o procedimento
do uma exposição ao Presidente Óscar constituinte. Assim, a aprovação do tex-
Carmona, o que levou a que fosse demi- to foi vista como “fronteira da democra-
tido do cargo de presidente da Comissão cia” contra as forças revolucionárias que
Administrativa da Câmara Municipal de apontavam para a dissolução da Assem-
Lisboa. Nesse documento, que foi publi- bleia Constituinte (MELO et al., 1981,
cado pelo jornal O Século (12 fev. 1933), 23). A linha de defesa da Constituição
afirma-se partidário de uma corrente como baluarte das conquistas de Abril,
“francamente republicana, que, sem de claramente assumida pelo Partido Co-
nenhuma maneira defender o regresso à munista Português (PCP) (paradigma-
ordem política criada pela Constituição ticamente, Álvaro Cunhal recusa que o
de 1911, é francamente liberal e demo- Partido se tivesse anteriormente oposto
crática” (p. 1) (uma síntese de outras crí- à Assembleia Constituinte e à Consti-
ticas pode ver-se em MATOS, 2004, 321, tuição [CUNHAL, 1976], polémica não
n.º 29, referindo posições da “ultradirei- extinta: BRITO, 2010, 200-201, 204-210;
ta e do republicanismo conservador”; al- contra, JARA, 2013), teve tradução no
guns subsídios para o tema podem ver-se discurso político-constitucional. Após as
também em FARINHA, 2002). eleições de 2 de dezembro de 1979, que
Quanto à atual Constituição, nascida levaram à vitória da Aliança Democráti-
da Revolução de Abril, uma corrente mi- ca, Vital Moreira recusa que as eleições
noritária começou por criticá-la, tendo, pudessem ser lidas como um “referendo
inclusivamente, faltado unanimidade na anticonstitucional”, isto na sequência da
sua aprovação (veja-se a posição do CDS afirmação de um dos dirigentes da coli-
(Centro Democrático Social)). Em ter- gação vencedora, que disse que “a Cons-
mos de anticonstitucionalismo específi- tituição passou à oposição” (MOREIRA,

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AnticonstitucionAlismo(s) 445

1980, 129-130), contrapondo-a à vontade constitucional portuguesa, vejam-se os


popular. Indo mais longe, depois de cri- acs. n.º 17/94 e n.º 129/94, do Tribunal
ticar o “regresso do decisionismo consti- Constitucional, relativos ao Movimento
tucional” – que adjetiva de “serôdio, de de Ação Nacional.
recorte schmittiano”, uma “autêntica dis-
solução da Constituição” (Id., Ibid., 134) –,
pergunta: “Não estará aqui patente a
AnTIConSTITuCIonALISMo:
nostalgia de um Estado absoluto, acima
A QuESTão no PLAno EuRoPEu E MunDIAL
da Constituição, de um ‘soberano’ a legi- Para parte da doutrina, não é adequa-
bus soluto?” (Id., Ibid., 136). Tanto quanto do falar de constituição no plano inter-
sabemos, Vital Moreira é o constitucio- nacional e supranacional, pois assenta
nalista (não nos situamos aqui na análise na recusa em cortar o cordão umbilical
da imprensa que marca o tempo, traba- com o plano tradicional dos Estados
lho que, tendo cabimento, nos situaria (MIRANDA, 2010, 46). Assim, a expres-
noutro registo e que não podemos, por são “constitucionalismo europeu” seria
ora, empreender) que, de uma forma imprópria e inadequadamente usada,
sistematizada, utilizou a expressão an- não se verificando, desde logo, um con-
ticonstitucional(ismo) para atacar um junto de pressupostos, e.g., a existência
conjunto de críticos da Constituição da de um povo europeu. Ou seja, em cau-
República Portuguesa (CRP) (para além sa não está agora a recusa do corpus do
do texto citado, veja-se MOREIRA, 1980, constitucionalismo; mais, no limite, para
onde se fala de “reacionarismo anticons- além da sua inadequação, a tentativa de
titucional”, “hostes anticonstitucionais” afirmar um constitucionalismo europeu
(p. 10), “panfleto anticonstitucional” seria a máscara que debilitaria e poria
(p. 16), ou, ainda, um artigo de jornal, em risco o constitucionalismo nacional.
onde se qualifica a revisão constitucional Do ponto de vista político, recordem-se
de “golpe de Estado anticonstitucional” as paixões desencadeadas pela referên-
[MOREIRA, 1980, 43]). cia constitucional no chamado Tratado
Mais recentemente, tem-se vindo a Que Estabelece Uma Constituição para a
difundir um (neo)anticonstitucionalis- Europa (Roma, 29 de outubro de 2004),
mo vulgar que faz da Constituição bode que não resistiu ao voto negativo de
expiatório da crise e da inadequação de Franceses e Holandeses.
um conjunto de políticas públicas ado- O paradigma do constitucionalismo eu-
tadas. ropeu recusa que o direito da União as-
Embora não utilizando a fórmula, no sente num modelo internacionalista (so-
que toca ao anticonstitucionalismo proi- bre este ponto, MADURO, 2006). Aliás, a
bido, a CRP interdita as associações “que diferença organizacional leva a que haja
perfilhem ideologia fascista” (art.  46.º, quem admita que se possa falar com pro-
n.º 4; sobre o sentido da expressão, ve- priedade de Constituição a propósito da
ja-se CANOTILHO e MOREIRA, 2007, União Europeia, mas recuse que tal possa
648-649; MIRANDA e MEDEIROS, valer no plano mundial, sob pena de ter-
2010, 959-960). Trata-se, no caso, de um mos um “conceito esvaziado de constitui-
anticonstitucionalismo forte dessas as- ção” (GRIMM, 2012, 302-303).
sociações, que, no limite, podem levar Assim, deparamo-nos com uma crítica
à destruição do Estado constitucional às teses do chamado constitucionalismo
consagrado pela CRP; na jurisprudência global, sendo que, neste ponto, não é

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446 AnticonstitucionAlismo(s)

despiciendo distinguir entre o constitu- Liberdade em Portugal. Do Contratualismo Abso-


cionalismo “político” e societário. Este lutista às Sequelas do Triénio Vintista, Coimbra,
último, impulsionado por Gunther Teub- Almedina, 2012; ANDRÉS-GALLEGO, José, e
PAZOS, Antón M., La Iglesia en la España Con-
ner (TEUBNER, 2003; 2012), aprovei-
temporánea, vol. 1, Madrid, Encuentro, 1999;
tando uma fórmula do sociólogo norte-
ARAÚJO, António de, A Lei de Salazar, Coim-
-americano David Sciulli (SCIULLI, 1991), bra, Tenacitas, 2007; ARAÚJO, Fernando,
aplica-a a espaços de regulação (e.g., ter- “Almeida Garrett e o constitucionalismo”,
ritório desportivo), onde o quadro nor- Revista do Instituto do Direito Brasileiro, ano 2,
mativo com pretensões constitucionais n.º 5, 2013, pp. 3521-3579; ARENDT, Han-
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mais uma forma de anticonstitucionalis- Israel Law Review, vol. 32, 1998, pp. 535-566;
mo ou traduzir um mero ceticismo sobre BACKES, Uwe, Politische Extreme. Eine Wort-
a sua possibilidade. Ainda em sentido und Begriffsgeschichte von der Antike bis zur Ge-
mais estrito, o anticonstitucionalismo é genwart, Göttingen, Vandenhoeck und Rup-
recht, 2006; Id., “Politische Extremismen
apresentado como uma possibilidade de
– Begriffshistorische und begriffssystemati-
resistência ao chamado “novo constitu- sche Grundlagen”, in BACKES, Uwe, e JESSE,
cionalismo” (new constitutionalism), que Eckhard (orgs.), Gefährdungen der Freiheit. Ex-
não deve ser confundido com o neocons- tremistische Ideologien im Vergleich, Göttingen,
titucionalismo (sobre este, com outras Vandenhoeck und Ruprecht, 2006a; BEN-
indicações, Id., 2012, 551-556). O “novo THAM, Jeremy, The Collected Works of Jeremy
constitucionalismo” aparece como cha- Bentham. Correspondence, vol. 11, Oxford, Cla-
péu conceitual que recobriria a chamada rendon Press, 2000; BEYME, Klaus von, Poli-
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-1945, Wiesbaden, Westdeutscher Verlag,
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nativen zur staatszentrierten Verfassungsthe-

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450 Anticonsumismo

Anticonsumismo principalmente numa leitura peculiar


dos textos de Karl Marx, os mentores e
adeptos da IS defenderam a necessidade
de alterar as condições modernas de pro-
dução, com vista a remover do mundo a
sua feição alienante, alimentada pela va-
lorização da mercadoria e do consumo.

A ideia de aquisição excessiva e aces-


sória define o consumismo enquan-
to forma de vida, cuja estrutura a incli-
Em A Sociedade do Espetáculo (1967), Guy
Debord, um dos principais mentores da
IS, afirma, em consonância com o que
na constantemente para o consumo. Theodor W. Adorno e Max Horkheimer
O  questionamento de uma sociedade refletiam desde os anos 40, a ideia prin-
animada por tal tendência pulsou, em cipal de que a ordem social sua contem-
Portugal, principalmente no ativismo porânea distorce a expressão do mundo
ecológico e na produção cultural que in- sensível, colocando no seu lugar uma
tegra as críticas do movimento situacio- seleção de imagens que se fazem reco-
nista ao que este apelidou de “sociedade nhecer como o “sensível por excelência”
do espetáculo”. e que passam por espetáculos (DEBORD,
Afonso Cautela (n. 1933), jornalista, 2010, 22).
poeta e figura saliente da luta ecológica Os títulos mencionados participam de
em Portugal, sugeriu até o bloqueio ao um movimento mais amplo de contesta-
consumismo pela insubmissão a um dos ção à sociedade de consumo, bem como
seus veículos mais velozes, a publicidade. ao padrão de economia capitalista que a
Em A Estratégia das Eco-Tácticas: Greve Geral alicerçou. Ainda que minoritárias, estas
à Sociedade de Consumo, de 1974, um dos manifestações ganharam forte visibilida-
variados contributos do autor para a cau- de nos anos 70, introduzindo um discur-
sa ecológica, sublinhava que as matérias so em que a prática do consumo surge
-primas não são eternas e que tal obrigava mais associada à alienação das massas do
a medir constantemente a correspondên- que à libertação e à democratização, va-
cia entre o impulso de compra e a real lores com os quais fora principalmente
necessidade. Como tática de resistência conotada nos anos 50 e na primeira parte
perante a instigação da publicidade ao da déc. de 60. O confronto entre os ver-
consumo – em especial a divulgada pela bos ter e ser, por um lado, e a vontade de
televisão, que considerava destruidora de rutura, que os anos 70 exaltaram, torna
neurónios, sensibilidade e consciência esta época um capítulo singular da his-
crítica –, propunha que o consumidor tória do consumo. Este período mostra
não se deixasse cretinizar e fizesse perió- também que o consumo representa uma
dicas greves ao visionamento do pequeno prática social concreta que sintetiza um
ecrã. Ecoam neste livro, quer o interes- conjunto de forças: a distribuição de ren-
se de Afonso Cautela pelo surrealismo, dimentos resultantes do processo de tra-
quer o discurso agitador da Internacional balho, a construção de necessidades re-
Situacionista (IS), um movimento euro- conhecidas por parte dos consumidores,
peu de crítica social, cultural, ambiental a procura de benefícios comerciais, os
e política, fundado em 1957 e dissolvido discursos e o aparato publicitário, a cons-
em 1972, que deixou lastro em Portugal ciência dos grupos sociais, as instituições
em diversos ciclos geracionais. Inspirados formais e informais, a competição e a

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Anticonsumismo 451

imitação social, os movimentos coletivos, ção, em 1985, do Amoreiras Shopping


entre outras forças. Center,  em Lisboa, espoletou o apareci-
O horizonte do período que vai de 1975 mento de uma vaga de centros comerciais
a 1989 decorreu sob o signo da desestru- regionais, situados em zonas centrais das
turação, manifestada em várias frentes, cidades e nas periferias suburbanas, cuja
cuja reconfiguração abriu oportunidade paisagem se tornou cada vez mais povoada
para novas formas de consumo. No que por tais aglomerados. No final de 2013, a
respeita, designadamente, à revisão dos Associação Portuguesa de Centros Comer-
códigos do vestir, o conceito de estilo ciais agregava 89 empreendimentos (60
incentivou a mistura e a combinação de centros comerciais; 16 galerias comerciais
usos antes compartimentados, manten- ancoradas em hipers ou supermercados;
do-se a função de diferenciação social do 13 retail parks e factory outlets), corres-
consumo, seja pela aquisição intensiva ou pondendo a 2.664.827 m2 de área bru-
pela adoção do filtro “less is more”. Na ta e a 8247 lojas de variadas dimensões.
fase da história do consumo inaugurada De um estudo sociológico em torno do
com os anos 90, que acompanhou a in- CoimbraShopping – o maior centro co-
tensificação do processo de globalização, mercial da zona Centro, criado em 1993,
predomina uma força mista de contesta- nos arredores da cidade – retira-se a se-
ção e negociação, orientada cada vez mais guinte imagem: um lugar cativador de vi-
pelo princípio da coexistência; assim, ao sitas assíduas, preferencialmente em gru-
mesmo tempo que se complexificou, a po; um espaço disponível para atender à
cultura do consumo naturalizou-se. vária procura, muitas vezes não planeada
O aparecimento e a consolidação do e induzida pela atmosfera geral; um ce-
centro comercial são reveladores da ten- nário apto para uma forte articulação en-
dência para naturalizar o ato de consumir, tre consumo e lazer, onde se cruza uma
conferindo-lhe variado enquadramento. população socialmente diversa mas em
Como notou Jean Braudillard, se o gran- que a nova classe média se destaca, pelo
de estabelecimento comercial fornecia o menos na amostra dos frequentadores
“espectáculo feirante da mercadoria”, os inquiridos no âmbito da pesquisa referi-
novos centros comerciais propõem “o re- da. Voltando o olhar para Lisboa, mais
cital subtil do consumo”: produzindo um precisamente para o seu centro histórico
aglomerado de trabalho, lazer, cultura e a zona do Chiado, conclui-se que, se
e natureza e simulando o mundo con- o incêndio que o abalou, em 1988, veio
densado num clima de conforto, beleza contribuir para consolidar o Amoreiras
e eficácia (BAUDRILLARD, 2010, 17), Shopping Center e outras superfícies
apelativo do consumismo que estimula a comerciais de grande atração, seria um
“embriaguez da posse” (PAIS, 2013, 131). centro comercial – Armazéns do Chiado,
Em Portugal, os primeiros centros comer- inaugurado em 1999 – a ter um papel
ciais surgiram na déc. de  70 do séc.  xx, chave no processo de reconstrução e revi-
em áreas residenciais e de emprego na talização daquela área, por fatores como
área dos serviços. Este tipo de espaços o seu horário alargado e a capacidade de
comerciais expandiu-se, em número e atrair uma clientela diversificada, com
em dimensão, a partir de meados da predomínio de jovens.
déc. de 80, participando da moderni- A muito sumária digressão por dife-
zação do comércio e da redefinição de rentes tempos da era do consumo acima
especializações funcionais. A inaugura- delineada esclarece mudanças registadas

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452 Anticonsumismo

no discurso dos movimentos ecológicos, acolhimento minoritário, como a poesia


também no panorama da sociedade por- e o ensaio. Esta constelação de pequenas
tuguesa. Se, até meados dos anos 80, e casas editoriais, ligadas pela idêntica rei-
no embalo da atmosfera pós-Revolução vindicação de independência, resistência
de 25 de abril de 1974, se verificou uma e subversão, atua enquanto contraponto
maior tendência para a ocupação de lu- à expressão cultural padronizada, cujo
gares marginais, no tempo posterior as sucesso comercial é devedor, segundo
principais associações adquiriram, tam- a lógica da organização industrial, da
bém por efeito da adesão de Portugal à prioridade dada à quantidade (procura
Comunidade Económica Europeia, uma de maior peso das audiências; busca de
consolidação organizacional que se reve- mais alto volume de lucro). Independen-
lou significativa para a gradual influência temente das singularidades reveladas na
que passaram a exercer sobre o discurso génese, nos recursos, no perfil dos men-
da sociedade civil e dos atores políticos. tores e na longevidade de cada editora,
A conciliação do protesto com a capaci- reconhecem-se afinidades discursivas. Es-
dade de iniciativa e o aprofundamento tas vão desde a valorização dos modos de
do conhecimento técnico e jurídico dos produção artesanal à defesa da arte e ao
temas resultou num discurso mais firme elogio da liberdade de expressão e esco-
e negociador do que contestatário. O tó- lha (de autores, colaboradores e vínculos;
pico mais permanente da agenda ecológi- de formatos gráficos e tiragens; de ritmos
ca – o impacto ambiental dos excessos do da atividade e de oscilação entre visibi-
consumo e da produção de resíduos, bem lidade e ocultação no espaço público),
como os modos de os prevenir e reduzir passando pelo enaltecimento da colabo-
– passou a apresentar outro revestimento ração, da cooperação e do convívio em
semântico, como se reconhece em fre- torno da criação e produção das obras,
quentes apelos à participação “cívica” dos em detrimento da atenção ao princípio
consumidores “conscientes” e “responsá- da eficácia produtiva e financeira. Trata-
veis” no caminho da “sustentabilidade”. se de um agrupamento relacionado pre-
O facto de em Portugal não ter sido ferencialmente com entidades congéne-
criada uma secção da IS não impediu res noutros campos artísticos e culturais,
que a formulação das críticas à chama- incluindo o que se refere a um circuito
da sociedade do espetáculo e da mer- de associativismo de resistência.
cadoria servisse de referência a diversas
iniciativas no campo cultural. É à luz dos
cruzamentos do movimento situacionista Bibliog.: ALONSO, Luis Enrique, La Era del
com outras correntes de cariz libertário e Consumo, Madrid, Siglo, 2005; ASSOCIA-
revolucionário, como o anarquismo, que ÇÃO PORTUGUESA DE CENTROS COMER-
pode situar-se o discurso crítico da socie- CIAIS, Anuário dos Centros Comerciais. Portugal
dade de consumo, transversal a diversas 2014, Lisboa, Associação Portuguesa de Cen-
entidades comummente designadas por tros Comerciais, 2014; BAUDRILLARD, Jean,
espaços culturais alternativos. De notar A  Sociedade de Consumo, Lisboa, Edições 70,
2010; BOURDIEU, Pierre, La Distinction. Cri-
que a atividade da maior parte destes
tique Sociale du Jugement, Paris, Les Éditions
projetos se concentra num ramo menos de Minuit, 1979; CAUTELA, Afonso, A Es-
oneroso das indústrias culturais, a edição tratégia das Eco-Tácticas: Greve Geral à Sociedade
de livros; e, ainda aqui, estão situados de Consumo, Paço de Arcos, Edições Frente
num segmento dedicado a géneros de Ecológica, 1974; DEBORD, Guy, A Sociedade

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AnticontinentAlismo 453

do Espetáculo, Lisboa, Edições Antipáticas,


2010; DOMINGOS, Paulo da Costa (org.),
Anticontinentalismo
& etc. Uma Editora no Subterrâneo, Lisboa, Le-
tra Livre, 2013; HENRIQUES, Júlio (org.),
Internacional Situacionista – Antologia, Lisboa,
Antígona, 1997; MAUÉS, Flamarion Pelúcio
Silva, Livros Que Tomam Partido: a Edição Polí-
tica em Portugal, 1968-80, vol. 1, Dissertação
de Doutoramento em História apresentada à
Universidade de São Paulo, São Paulo, texto
policopiado, 2013; OLIVEIRA, Luís de (org.),
F enómeno patente em relação aos in-
sulares de todos os países continen-
tais, o anticontinentalismo representa
A Promessa de Antígona. Dez Anos, Lisboa, An- sempre uma dinâmica de luta, mais ou
tígona, 1989; PAIS, José Machado, “Kitsch”,
menos declarada, mais ou menos violen-
in CARDOSO, José Luís et al., Portugal Social de
A a Z. Temas em aberto, Lisboa/Paço de Arcos, ta, contra a centralização do poder, e uma
Impresa, 2013, pp. 130-140; PEIXOTO, Pau- vontade de autonomização, de acordo
lo, “A sedução do consumo. As novas superfí- com o direito universal ao exercício da
cies comerciais urbanas: um estudo de caso”, cidadania. Em Portugal, o anticontinen-
Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 43, 1995, talismo restringe-se à luta das regiões dos
pp. 147-170; ROCHEFORT, Robert, La Societé Açores e da Madeira por uma verdadeira
des Consommateurs, Paris, Odile Jacob, 1996;
e sólida autonomia.
SALGUEIRO, Teresa Barata, “Da Baixa aos
centros comerciais. A recomposição do cen-
Não devemos, porém, deixar de asso-
tro de Lisboa”, Monumentos, n.º 21, 2004, ciar o anticontinentalismo a outros movi-
pp. 214-223; SOROMENHO-MARQUES, Vi- mentos autonómicos, como o municipa-
riato, Metamorfoses. Entre o Colapso e o Desen- lismo, de forte tradição político-cultural
volvimento Sustentável, Mem Martins, Europa- desde a Idade Média, designadamente
-América, 2005; TEIXEIRA, Luís Humberto, em Portugal, como Alexandre Herculano
Verdes Anos. História do Ecologismo em Portugal e Henriques Nogueira estudaram e Ante-
(1947-2011), Lisboa, Esfera do Caos/FCG,
ro de Quental acompanhou.
2011; VEBLEN, Thorstein, The Theory of Leisure
Class, New York, Penguin Books, 1994; WEIL, Efetivamente, o municipalismo ecoa
Pascale, A Quoi Rêvent les Annés 90. Les Nouveaux com uma ressonância teórica no pensa-
Imaginaires. Consommation et Communication, Pa- mento liberal, retomando a importância
ris, Seuil, 1994. que tivera antes do regime absolutista,
Teresa Duarte Martinho vigente desde o séc. xv até 1820, opon-
do-se ao centralismo estatal. É o que pre-
conizam Garrett: “sem […] uma recta e
regular administração municipal e pro-
vincial, como pede a índole do país, os
seus costumes, as suas tradições, as suas
necessidades e circunstâncias, nada pode
melhorar e prosperar, nada pode existir
de verdadeiro e sólido” (NETO, 1911,
55); Herculano: “a administração do país
pelo país é a realização material, palpável,
efectiva da liberdade na sua plenitude”
(HERCULANO, 1982, 322), e Henriques
Nogueira: “[um municipalismo intima-
mente ligado] às tradições e à índole do

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454 AnticontinentAlismo

país e ao “espírito moderno” (NOGUEI- ta-voz dos interesses regionais no final


RA, 1993, 154). de Oitocentos. As queixas contra o isola-
No entanto, o esforço de controlo da mento das ilhas e o esquecimento a que
administração política a partir do Terrei- eram votadas pelo poder central eram
ro do Paço constituiu um obstáculo prá- frequentes e ponderosas, como esta de
tico ao municipalismo do país no regime O Povo: “Não duvidamos já de dizer ao go-
liberal, como se continuasse o seu ante- verno e ao país que nos envergonhamos
cessor absolutista. Exemplo desta práti- de ser portugueses, que o nosso estado
ca é o relatório que precedeu o Código de decadência e abandono nos aconse-
Administrativo de 1886, reconhecendo lha que solicitemos a protecção duma
“o exagero das liberdades concedidas aos potência estrangeira, que […] saiba fazer
corpos administrativos, mormente em melhor uso da política e zelar melhor os
matéria tributária, que em vez da vitali- nossos interesses” (VIEIRA, 2001, 258)
dade que pretendia insuflar-lhes, só al- Apoiado por comissões autonomistas
cançou levar a desordem às finanças pela em São Miguel e Terceira, Aristides Mo-
facilidade de criar impostos e de contrair reira da Mota apresentou na Câmara dos
e acumular dívidas, que são já em muitas Deputados, a 31 de março de 1892, um
partes um embaraço no presente e um projeto de autonomia administrativa para
perigo no futuro” (Código Administrati- os Açores que, no entanto, foi inviabiliza-
vo…, 1892, 7). do pela dissolução da Câmara. Entretanto
Somente o Código Administrativo de fundado, o Partido Autonomista depressa
1878 pretendeu a “vivificação da admi- ganha a maioria, elegendo três dos quatro
nistração local” (PINTO, 1996, 40). Por deputados do círculo na eleição de 15 de
isso, e de acordo com uma notícia publi- março de 1893. Nova proposta de lei au-
cada pelo Diário dos Açores a 4 de maio, o tonomista foi apresentada em junho do
I Congresso de Municípios, realizado em mesmo ano, também inviabilizada pela
Lisboa, em 1909, com a adesão de 158 au- dissolução da Câmara. Em grandes comí-
tarquias, das quais se fizeram representar cios, crescia a reivindicação autonomista,
87, reivindicou “para os municípios do a partir do lema “livre administração dos
país as liberdades e franquias de que su- Açores pelos Açorianos”. Nova proposta
cessivamente foram sendo desapossadas foi apresentada à Câmara, em resultado
por uma repressão centralizadora” (MA- da sua aprovação em Ponta Delgada, em
CHADO, 2004, 17). março de 1894. Em janeiro, havia-se vota-
Com o bloqueio prático à descentraliza- do uma proposta com a criação de um par-
ção municipalista, cresceu a reivindicação lamento açoriano, a qual não foi apresen-
autonomista com a extinção, em 1892 e tada à Câmara por falta de entendimento
no continente, das juntas gerais que vigo- com a comissão micaelense. A autonomia
ravam desde 1832, substituídas pelas jun- administrativa, concedida por decreto di-
tas distritais até à instauração da república. tatorial, em 1895, em momento de suspen-
Tal reivindicação acabaria por vencer teo- são das Cortes, reuniu de forma moderada
ricamente a partir do dec. de 2 de março as propostas anteriormente apresentadas,
de 1895, que recriaria, nos distritos aço- por influência do micaelense Hintze Ri-
rianos, as juntas gerais, e do dec. de 8 de beiro, presidente do Conselho de Minis-
agosto de 1901, que as recriou na Madeira. tros. Era, porém, necessário que os distri-
A imprensa insular, de que é exemplo tos a requeressem por maioria de 2/3 dos
o Patriota Funchalense, constituiu-se por- eleitores, o que aconteceu em 1895 com o

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AnticontinentAlismo 455

de Ponta Delgada, e em 1898 com o de An- sensível à autonomia insular. Em 1922,


gra do Heroísmo, não o tendo conseguido chegava ao Funchal uma representação
o da Horta senão em 1939, por carência micaelense para uma reunião com a co-
de receitas próprias e falta de liderança missão autonomista madeirense, o mes-
política. O decreto restabelecia as juntas mo ocorrendo, no início de 1923, com
gerais, extintas em 1892, e concedia-lhes a delegação terceirense. Já em junho de
novas atribuições no domínio dos serviços 1922, José Bruno Carreiro desafiava os
agronómicos, pecuários e de obras públi- madeirenses, no jornal Correio dos Açores,
cas, bem como a tutela dos municípios. As para um projeto de consolidação e am-
juntas eram dirigidas por um presidente e pliação da autonomia, respondido posi-
quatro procuradores eleitos, que exerciam tivamente por Manuel Pestana Reis, no
a sua ação junto do governo civil. Diário de Notícias Madeira. Todavia, a di-
A autonomia administrativa só se esten- versidade concecional quanto à amplitu-
deu à Madeira em 1901, por carta de lei de dessa autonomia impediu o prossegui-
de 12 de junho, passando o número de mento efetivo de tais esforços conjuntos.
procuradores de 25 para 15. No entanto, A substituição do regime parlamentar por
a subordinação da junta geral ao veto do um regime corporativo, como defendia
governo, civil ou central, não satisfez os Ramon Rodrigues, era uma destas diver-
autonomistas. Além do mais, a atribuição gências concecionais. A falta de partidos
prioritária da autonomia administrativa regionais impediu também a concentra-
aos Açores e a concessão de apoios às ção dos esforços autonomistas.
infraestruturas àquele arquipélago deixa- O Estado Novo representou um tra-
ram descontentes os madeirenses. vão jurídico-administrativo à autonomia
O regime republicano ratifica a autono- insular. Após certa abertura no início da
mia administrativa insular na sessão de 18 ditadura, logo a Constituição de 1933 e
de abril de 1912 da Câmara dos Deputa- o Estatuto de 1940 limitaram o alcance
dos. Todavia, não deixa de crescer o mo- e a dimensão dessa forma de governo.
vimento autonomista, principalmente por Assim, a descentralização existente até
motivos económicos, mas também políti- então passou a ser tutelada pelo Gover-
cos, agora com características separatistas: no central e fiscalizada pelo distrital, e,
“Nos últimos anos tomou vulto a ideia au- dos sete membros da Junta Geral, quatro
tonómica dos açoreanos e dos madeiren- passavam a ser eleitos trienalmente pelas
ses. Não está ainda suficientemente defini- câmaras e os organismos corporativos,
da no espírito deles, embora as aspirações sendo os restantes natos. Após 1947, o
estejam completas no ardor e unanimida- governador do distrito passou a nomear
de. Isto concorre para que na metrópole arbitrariamente os presidentes da Junta.
haja suspeitas e oposições apenas funda- As semanas de estudo, nos Açores e na
das no descontentamento. Supõe-se que Madeira, nas décs. de 60 e 70, aprofunda-
a autonomia insular envolveria o perigo ram o estudo da economia daqueles arqui-
ou até a separação. Subentende-se talvez pélagos, constituindo motivo de descon-
o receio de que os madeirenses queiram fiança por parte do regime. As eleições de
juntar-se à Inglaterra e os açoreanos aos 1969, já sob o consulado de Marcelo Cae-
Estados Unidos. Ilusões infinitamente dis- tano, representaram uma fugaz ocasião
tantes da realidade!” (Id., Ibid., 278). de oposição política à ditadura. Em 1970,
A reação monárquica e absolutista realizaram-se cimeiras em Ponta Delgada e
ao regime republicano não se mostrava no Funchal, nas quais se propôs a alteração

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456 AnticontinentAlismo

dos estatutos autonómicos, embora só a


Revolução de 1974 tenha permitido a res-
tauração e consolidação da autonomia.
O ambiente eufórico instaurado pelo 25
de Abril desencadeou nas ilhas uma explo-
são de movimentos e partidos regionais à
esquerda e à direita, dando voz, de acordo
com a sua ideologia própria, a anseios se-
cularmente abafados e reprimidos.
Na Madeira, eclodiram 12 movimen- Bandeira da Frente de Libertação
tos, com maior ou menor projeção e in- dos Açores (FLA).
fluência, com maior ou menor prática da
violência. À esquerda, surgiram a Frente Açores de seis padres católicos, de leigos
Popular e Democrática da Madeira e a progressistas e de militantes do PCP, do
União do Povo da Madeira (UPM), res- Movimento Democrático Português/
ponsáveis pelas manifestações de 21 e Comissão Democrática Eleitoral (MDP/
30 de outubro de 1974; em 1975, a UPM CDE), da União Democrática Popular,
aliou-se à Frente Eleitoral de Comunistas do Movimento de Esquerda Socialista
– Marxista-Leninista. À direita, agrupa- (MES) e outros partidos de extrema-es-
ram-se a Aliança Revolucionária da Ma- querda; o incêndio desencadeado, a 17
deira, a Associação Política da Madeira, de agosto, nas sedes do semanário O Tra-
as Brigadas para a Independência da Ma- balhador e dos partidos PCP, MDP/CDE
deira, o Exército de Libertação da Madei- e MES, em Angra, e do PCP, em Ponta
ra, o Movimento de Autonomia das Ilhas Delgada. O Trabalhador havia promovido
Atlânticas, o Movimento de Independên- uma campanha contra o separatismo, de-
cia da Madeira, o Movimento Popular nunciando-o como uma tendência rea-
de Libertação da Madeira, o Movimento cionária frente ao Movimento das Forças
Democrático da Madeira e a Frente de Armadas, responsável pelo 25 de Abril,
Libertação da Madeira. Em 1975, regista- e ao Processo Revolucionário em Curso
ram-se sete atentados bombistas (14, 23 e (PREC). Em agosto, é criado o Exército
27 de agosto, 18 e 25 de setembro, 21 de de Libertação dos Açores, braço armado
outubro, 14 de novembro); em 1976, dois da FLA, e, em outubro, é difundido, no
(15 de janeiro e 20 de fevereiro); um em Rádio Clube de Angra, o programa da
1977 (25 de outubro); três em 1978 (25 FLA, tendo também sido criado no mes-
de fevereiro, 30 de julho, 23 de agosto). mo mês o Esquadrão da Noite, para a
Nos Açores, a Frente de Libertação luta unitária contra a FLA.
dos Açores (FLA), criada em 1975, em A aprovação da Constituição Portugue-
Londres, por José de Almeida, antigo sa, em 2 de abril de 1976, com o reconhe-
deputado da Acção Nacional Popular, cimento formal das regiões autónomas
protagonizou as ações violentas do se- dos Açores e da Madeira, permitiu acal-
paratismo. Entre estas, contam-se em mar a onda separatista desencadeada no
1975: a manifestação de 6 de junho, em PREC, embora ainda se tenham verifica-
Ponta Delgada, que culminou com a do ameaças e tentativas naquele sentido,
demissão do governador civil, António de acordo com a situação política de cada
Borges Coutinho; a aprovação, em 16 de momento. Como órgãos político-admi-
agosto, de moções exigindo a saída dos nistrativos, foram instituídos a Assembleia

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AnticorporAtivismo 457

Regional, com carácter legislativo, consti- Anticorporativismo


tuída por deputados eleitos, e o Governo
regional, além da figura do ministro da
República que, até 2006, representou o
Governo da República.
O exercício da autonomia político-ad-
ministrativa nos Açores e na Madeira foi
testemunha de uma instituição, vocacio-
nada à promoção das aspirações funda- P or anticorporativismo entende-se a
rejeição ou oposição às doutrinas e
práticas do corporativismo. Esta última
mentais da respetiva população, deixan-
do esbater ou mesmo ignorar vestígios ideologia pode ser definida como uma
históricos de fundamentado anticonti- doutrina contrarrevolucionária e favorá-
nentalismo. vel a um ideal orgânico da vida social, cuja
expressão histórica mais saliente residiu
no fascismo italiano e noutros regimes
autoritários e totalitários, em especial no
período entre as duas guerras mundiais.
Bibliog.: Código Administrativo Portuguez, 1886,
É na evidência histórica de que todos os
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892;
HERCULANO, Alexandre, História de Portugal, fascismos foram corporativistas – embora
Lisboa, Academia Portuguesa da História, vários corporativismos não tenham sido
1954; Id., Opúsculos, org., introd. e notas Jor- fascistas – que radica o anticorporativis-
ge Custódio e José Manuel Garcia, vols.  i-ii, mo, que tem todavia outras expressões e
Porto, Presença, 1982; JESUS, Avelino Quiri- argumentos.
no de, “A autonomia da Madeira e dos Aço- A noção de corporativismo é variada e
res”, A Pátria, 7 jul. 1923; MACHADO, José hiper-referencial. A definição do concei-
Joaquim Ferreira, A Administração Municipal to é muitas vezes perturbada por aceções
de Ponta Delgada nos Primórdios da Autonomia
construídas pelas suas diversas correntes,
(1896-1910), Dissertação de Mestrado em
em regra com finalidades de legitimação
História Insular e Atlântica apresentada à
Universidade dos Açores, Ponta Delgada, tex- das instituições criadas sob a égide das
to policopiado, 2004; MENESES, Avelino de ideias corporativistas. Numa perceção so-
Freitas de, “A administração dos Açores e as ciológica próxima do senso comum, o cor-
raízes da autonomia”, in A Autonomia no Plano porativismo é identificado com o egoísmo
Histórico. I Centenário da Autonomia dos Açores. dos grupos de pressão e de organizações
Actas do Congresso, Ponta Delgada, Jornal de enquistadas na defesa dos seus interesses
Cultura, 1995, pp. 55-101; NETO, António privados (mesmo quando de grupo ou de
Lino, A Questão Administrativa: o Municipalismo classe), em vez de um interesse geral que,
em Portugal, Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1911;
por definição, se crê anticorporativo.
NOGUEIRA, José Félix Henriques, O Município
no Século XIX, Lisboa, Ulmeiro, 1993; PINTO,
Nesta gramática geral do conceito de
Aires de Jesus Ferreira, O Município Português corporativismo e na obtenção da sua ima-
(Séculos XIX e XX), Coimbra, Centro de Estudos gem em negativo, importa propor uma
e Formação Autárquica, 1996; QUENTAL, definição aberta mas atenta à sua histo-
Antero de, Prosas, vol. ii, Coimbra, Impren- ricidade. É necessário colocar em relevo
sa da Universidade, 1926; VIEIRA, Alberto os seus principais momentos históricos e
(coord.), História e Autonomia da Madeira, Fun- interpretar as suas dinâmicas de afirma-
chal, Secretaria Regional da Educação, 2001. ção e recuo, sem esquecer o sentido dos
António Moniz sistemas institucionais que inspirou.

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458 AnticorporAtivismo

Em sentido amplo, o corporativismo tinguido assim os dois principais tempos


designa um sistema de representação de históricos do corporativismo: 1) O corpo-
interesses cujas instituições se organizam rativismo do Ancien Régime, que persistiu
num número limitado de categorias fun- em diversas sociedades enquanto modelo
cionalmente distintas e hierarquizadas, de organização socioprofissional assente
compulsórias e não concorrenciais, às nas corporações, instituições que o libe-
quais o Estado concede o monopólio da ralismo começou por abolir e proibir em
representação, em contrapartida de cola- finais do séc. xviii; 2) O corporativismo
boração no exercício do controlo social moderno, doutrina conservadora e rea-
e político. cionária, que se apresentou como solu-
Enquanto ideologia histórica assente ção de terceira via para a questão social
na recusa da luta de classes e na defesa aberta pelas sociedades industrializadas,
de uma cooperação harmónica dos gru- rejeitando quer o individualismo liberal,
pos e interesses no sentido de evitar a quer o coletivismo marxista, no sentido
conflitualidade social, o corporativismo é de uma paz social compulsiva.
uma doutrina marcadamente interclassis- Importa colocar em relevo a memória
ta, que surgiu acossada pelos socialismos social do corporativismo moderno, por
que emergiram nas sociedades industria- estar mais próxima no tempo e indelevel-
lizadas do séc. xix. Em concreto, o corpo- mente ligada aos fascismos, em particular
rativismo foi reinventado para promover ao Estado Novo português, cujo sistema
a inibição política e institucional do po- corporativo foi detidamente estudado
tencial conflito entre capital e trabalho. por Manuel de Lucena. Nesta distinção
A ideologia corporativa nasceu embebi- geral de tempos e conceitos, acresce o
da na luta que se travou, na Europa do neocorporativismo, modelo que surgiu
séc. xix e durante as primeiras décadas articulado com as democracias sociais do
do séc. xx, para que o Estado encontras- segundo pós-guerra, evidenciando algu-
se uma resposta sistémica, anti-individua- mas continuidades em relação à prática
lista e não revolucionária para a questão dos corporativismos antidemocráticos
social. Nesta perspetiva, que remete para (&Antidemocratismo). Esse segundo neo-
o fenómeno dos corporativismos históri- corporativismo, que persiste em diversos
cos modernos, é mais rigoroso adotar a países democráticos e constitui uma for-
definição de neocorporativismo, usada ma de anticorporativismo totalitário, é
por alguns estudiosos e doutrinadores marcado por políticas e práticas de con-
da ideia corporativa em plena déc. de 30 certação social nas quais o Estado assu-
do séc.  xx, nomeadamente pelo francês me o papel de árbitro interveniente nas
Gaetan Pirou. Tal como o liberalismo, relações entre o capital e o trabalho, no
que por essa época conhecia a sua primei- sentido de alcançar uma paz social nego-
ra crise institucional cavada pela Grande ciada, assente no direito. Durante as últi-
Depressão, na Europa dos anos 30 o mo- mas décs. do séc. xx, as expressões mais
vimento corporativista era um neocorpo- acérrimas de anticorporativismo vieram
rativismo, dado que as ideias corporativas da ideologia neoliberal, que começou
conheciam o seu segundo fôlego históri- por se expressar na Grã-Bretanha de Mar-
co, após um longo hiato associado à nega- garet Thatcher. Nesse contexto, o corpo-
ção que delas fizera o Estado liberal. rativismo foi invocado e combatido num
A maioria dos autores, da história à sentido amplo e considerado atentatório
sociologia e à ciência política, têm dis- do regular funcionamento do mercado.

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AnticorporAtivismo 459

Foram indistintamente apodadas de cor- claro compromisso com a natureza auto-


porativistas e de neocorporativistas as ritária ou totalitária dos Estados e foi um
práticas concertadas de rendas e preços, dos seus elementos constituintes. Em cer-
a negociação coletiva e a ação dos sindi- tos casos, a exemplo do italiano e do por-
catos em geral. tuguês, o corporativismo tomou parte sa-
Na sua decantação historicista, mui- liente nas instituições do sistema político,
to frequente na retórica corporativa e configurou a ideologia do Estado e defi-
rebatida por todas as correntes anticor- niu o modelo económico de instituciona-
porativistas, o corporativismo exaltava a lização da nação. Recorde-se a definição
sua expressão medieval e pré-moderna, do Estado Novo português constante da
cujo exemplo maior estaria nas corpora- Constituição de 1933, enquanto “Repú-
ções profissionais de ofícios ou mesteres blica unitária e corporativa” (art. 5.º) e
e noutras corporações naturais, como a a declaração oficial de que pertencia ao
família, a paróquia, os compromissos re- Estado criar uma “economia nacional
ligiosos e as irmandades, as universidades corporativa” (art. 34.º) ou uma economia
e as ordens militares. No caso português, dirigida.
o próprio direito administrativo, uma Enquanto doutrina social antidemo-
vez coligido e afeiçoado às ideias corpo- crática, antiliberal e antiassociativa, o
rativistas, nomeadamente por Marcelo corporativismo começou por ser um ins-
Caetano, comprometeu-se com a forma trumento de eliminação do sindicalismo
corporativa do Estado, incumbindo-se de de classe autónomo e de destruição dos
exaltar as origens orgânicas do corporati- seus laços de ideologia e movimento com
vismo e de invocar a sua remota tradição os socialismos revolucionários. Embo-
nacional de modo a justificar o seu carác- ra variando conforme os regimes que o
ter natural e histórico. adotaram como ideologia de exercício do
No quadro das ideologias de terceira poder do Estado sobre a sociedade, o cor-
via, que conheceram diversas expressões porativismo foi, também, um instrumen-
políticas e vários modos de articulação to de institucionalização económica da
do Estado com a economia e a socieda- nação – da nação orgânica exaltada pelos
de, a utopia conservadora de retorno às corporativistas, que prometiam resgatá-la
comunidades naturais encontra na ideia da história, reinventando uma tradição
de corporação a sua instituição total. Os que teria sido rasurada pelos iconoclastas
corporativistas fazem crer que, no mun- liberais.
do laboral e na sociedade em geral, só a Nesta ordem comum de discurso, te-
corporação permite conjugar a obrigação nham os sistemas corporativos nacionais
moral e profissional com os fins de pro- assumido a forma política e jurídica de
teção social. É precisamente contra esta um corporativismo de Estado ou o perfil
ordem social idílica, assente no poder e de corporativismo de associação, a ideo-
nos privilégios das corporações do Ancien logia corporativista foi, em todo o caso,
Régime, que o liberalismo triunfante se uma forma de nacionalismo instituído,
manifesta radicalmente anticorporativo, assente na recusa dos valores liberais do
proclamando a liberdade do trabalho e individualismo e da concorrência, bem
interditando qualquer forma de associa- como na rejeição dos princípios socialis-
ção ou reivindicação coletiva. tas de ação coletiva e da revolução.
O corporativismo instituído entre as O anticorporativismo teve, porém, ou-
duas guerras mundiais estabeleceu-se em tras origens e expressões, além da hosti-

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460 AnticorporAtivismo

lidade geral ao corporativismo expressa corporativismo em curso, supostamente


por todas as ideologias empenhadas em tímido. A concretizar-se, essa revolução
preservar a liberdade de associação do seria devastadora para as instituições her-
trabalho. Quando a ideia de uma inter- dadas do Estado liberal e não permitiria
nacional corporativista se difundiu na qualquer compromisso entre o Estado
Europa, já eram muitas as críticas à ex- corporativo e as anteriores formas de or-
periência italiana do corporativismo fas- ganização política e social, como sucedeu
cista. A mais célebre obra de divulgação no salazarismo. Também por isso, Salazar
do corporativismo moderno, nacionalista e o seu círculo político preferiram usar a
e autoritário, Le Siècle du Corporatisme, foi expressão “revolução nacional” ou, quan-
publicada em França, em 1934, pelo ro- do muito, chamar-lhe “revolução nacio-
meno Mihaïl Manoilesco (com tradução nal corporativa”.
em língua portuguesa, editada no Brasil, Igualmente desiludidos com a prática
em 1938), e assenta numa visão crítica da fascista e burocrática dos sistemas cor-
prática corporativista que se conhecia da porativos italiano e português ficaram
Itália de Mussolini, cujos desvios ao cor- os católicos sociais, embora muitos se te-
porativismo de associação também ocu- nham tornado corporativistas de Estado.
pou diversos doutrinadores portugueses. A desilusão e mesmo a dissidência vieram
Os corporativistas de vários países que daqueles que fizeram uma leitura menos
invocaram a tradição solidarista inspirada integrista das encíclicas papais Rerum No-
em Léon Bougeois, Charles Gide e Émile varum, de Leão XIII (1891), e Quadrage-
Durkheim, bem como os corporativistas simo Anno, de Pio XI (1931), tomando-as
de esquerda que se disseram sindicalistas como a base de um corporativismo social-
revolucionários invocando Saint-Simon, cristão cuja ética em nada se poderia con-
a exemplo de Georges Sorel, Enrico Cor- fundir com a forma secular, burocrática
radini e Marcel Déat, abriram grandes e estatizada que vingou nos principais
polémicas entre os corporativistas, impos- corporativismos de regime. Foram exem-
sibilitando a construção de uma ordem plo dessa deriva o corporativismo fascista
corporativa internacional cuja expressão italiano, os regimes português e austría-
se confinou à inconsistente “economia co, ou mesmo a Espanha de Franco e o
corporativa” (ALMODOVAR e CARDO- Brasil de Vargas, um amplo espectro de
SO, 2005, 334-335). A ideia de uma “eco- corporativismos estatistas, autoritários e
nomia dirigida internacional”, assente na fortemente burocráticos, regimes que ti-
corporação como entidade económica e veram vários ideólogos comuns, como os
social semiautónoma, capaz de substituir italianos Rocco, Bottai, Spirito, e Bortolo-
a ineficiente base institucional do sistema tto, juntamente com o austríaco Othmar
capitalista liberal, foi porém muito difun- Spann e o próprio Manoilesco.
dida, nomeadamente por Giuseppe De Diferente é o caso do corporativismo
Michelis (MICHELIS, 1935, 11). francês do chamado regime de Vichy,
O próprio nacional-sindicalismo, surgi- que conheceu uma duração limitada e
do em Portugal no começo dos anos 30, coincidente com a ocupação alemã. Em
embora incluísse movimentos de ideolo- França, o corporativismo conheceu uma
gia corporativista, nacionalista e antilibe- singular efervescência ideológica duran-
ral que tinham em comum a recusa da te toda a déc. de 30, em plena agonia da
luta de classes, apelou a uma revolução Terceira República, período em que se
corporativa, que se exprimiu contra o exprimiram importantes doutrinadores

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AnticorporAtivismo 461

franceses da ciência corporativa, que foi travado em torno da opção por sindicatos
sobretudo aplicada às organizações pro- mistos ou separados, ou seja, mais ou me-
fissionais e a alguns sectores da atividade nos corporativos.
económica. Embora tenha imitado algum Enquanto ideia em movimento no
discurso italiano e mantido o culto pelo contexto histórico de superação autori-
sociologismo católico antimoderno de tária do Estado liberal, o corporativismo
Albert de Mun e de René de La Tour du despertou um entusiasmo internacional
Pin, durante esses anos o corporativismo expresso em inúmeras publicações e
francês construiu a sua própria doutrina. conferências. A associação do corporati-
Autores como Maurice Bouvier-Ajam e o vismo ao fascismo, sendo uma evidência
referido Gaetan Pirou, ambos professores histórica e não um facto acidental, foi o
de Direito, juntamente com o economis- argumento fundamental do anticorpora-
ta católico François Perroux (traduzido tivismo, oposição que se enquadra no âm-
em Portugal), ocuparam-se não apenas bito mais vasto do antifascismo (&Antifas-
da questão operária e da corporação em cismo), que supõe ele próprio toda uma
si mesma, mas também das organizações memória social da ideologia corporativis-
patronais e do conceito de “empresa cor- ta e da prática política dos seus agentes e
porativa”. das suas instituições.
O ralliement do corporativismo com o
princípio autoritário e totalitário das vá-
rias direitas europeias que subscreveram
a ideia de uma terceira via foi politica- Bibliog.: ALMODOVAR, António, e CARDO-
mente eficaz, porque invocou os riscos SO, José Luís, “Corporatism and the econo-
do individualismo e do materialismo, a mic role of government”, in MEDEMA, Ste-
anomia social denunciada pelos solidaris- ven G., e BOETTKE, Peter (orgs.), The Role of
Government in the History of Economic Thought,
tas, o parlamentarismo estéril e a insidio-
Durham/London, Duke University Press,
sa ideia de nação inventada pelas revolu- 2005, pp. 333-354; BORTOLOTTO, Guido,
ções liberais. Denunciando estes alegados Politica Corporativa, Milano, Hoepli, 1934;
vazios, ergueram-se, em primeiro lugar, o CAETANO, Marcello, Lições de Direito Corpora-
catolicismo social e a intransigência pa- tivo, Lisboa, Oficina Gráfica, 1935; Id., Proble-
pal, em contingente aliança. Já na déc. de mas da Revolução Corporativa, Lisboa, Editorial
1870, em França e na Bélgica, fora pro- Acção, 1941; DENIS, Henri, La Corporation,
posto um retorno à ordem cristã, a única Paris, PUF, 1941; DONZELOT, Jacques, L’In-
vention du Social. Essai sur le Déclin des Passions
suscetível de assegurar a paz social, recu-
Politiques, Paris, Seuil, 1994; FERNANDES,
perando o valor moral e profissional do António Júlio de Castro, O Corporativismo Fas-
trabalho. Igualmente se defendia uma cista, Lisboa, Editorial Império, 1938; HALL,
ordem política de raiz tomista, assente na Peter A., e SOSKICE, David (orgs.), Varieties of
representação dos corpos intermédios, Capitalism. The Institutional Foundations of Compa-
ideia que muito se animou no final desse rative Advantage, New York, Oxford University
século. Porém, esse sistema sociopolítico Press, 2003; KAPLAN, Steven L., e MINARD,
Philippe (dirs.), La France, Malade du Corporatis-
antirrevolucionário e antidemocrático
me? XVIIIe-XXe Siècles, Paris, Belin, 2004; LEITE,
não poderia funcionar sem um Estado João Pinto da Costa (Lumbrales), A Doutrina
forte e capaz de tornar obrigatórias as Corporativa em Portugal, Lisboa, Livraria Clás-
corporações, embora algumas correntes sica, 1936; LUCENA, Manuel de, A Evolução
corporativistas cristãs as tenham recla- do Sistema Corporativo Português, 2 vols., Lis-
mado livres. Um debate semelhante foi boa, Perspectivas & Realidades, 1976; MAN,

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462 Anticosmopolitismo

Henri de, Corporatisme et Socialisme, Bruxelles,


Éditions Labor, 1935; MANÖILESCO, Mihaïl,
Anticosmopolitismo
Le Siécle du Corporatisme: Doctrine du Corpora-
tisme Intégral et Pur, Paris, Félix Alcan, 1934;
MICHELIS, Giuseppe de, La Corporation dans le
Monde. Économie Dirigée Internationale, Paris, Les
Éditions Denoel et Steele, 1935; MOREIRA,

“C
Vital, Auto-Regulação Profissional e Administra-
osmopolita” e “cosmopolitismo”
ção Pública, Porto, Almedina, 1997; NUNES,
Adérito Sedas, Situação e Problemas do Corpora- são termos antigos que apontam
tivismo, Lisboa, Gabinete de Estudos Corpora- para uma realidade complexa e evolutiva
tivos, 1954; PEREIRA, Pedro Teotónio, A Ba- no espaço e no tempo, a saber, o modo
talha do Futuro. Organização Corporativa, 2.ª ed., como os cidadãos de uma determinada
Lisboa, Livraria Clássica, 1937; PERROUX, comunidade política, de carácter na-
François, Capitalisme et Comunnauté de Travail, cional, supranacional ou infranacional,
Paris, Librairie du Receuil Sirey, 1937; PINTO, constroem e percecionam as suas relações
João Manuel Cortez, A Corporação. Subsídios com os outros, que não são cidadãos ou
para o Seu Estudo, 2 vols., Coimbra, Coimbra estão ligados a outras partes do mundo.
Editora, 1955; PIROU, Gaétan, Éssais sur le “Cosmopolita” tem origem etimológica
Corporatisme, Paris, Librairie du Recueil Si- no termo grego “kosmopolitês”, compos-
rey, 1938; Id., Néo-Libéralisme, Néo-Corporatis-
to por “kosmós”, que significa mundo, e
me, Néo-Socialisme, 4.ª ed., Paris, Gallimard,
por “politês”, que significa cidadão, sen-
1939; ROSAS, Fernando, e GARRIDO, Álvaro
(orgs.), Corporativismo, Fascismos, Estado Novo,
do pois cosmopolita aquele que se vê a
Coimbra, Almedina, 2012; ROSENSTOCK- si mesmo como cidadão do mundo, que
FRANCK, L., L’Économie Corporative Fasciste en gosta do mundo e, por isso, se abre ao
Doctrine et en Fait. Ses Origines Historiques et Son mundo.
Évolution, Paris, Gamber, 1934; SANTOMAS- Com a mesma origem etimológica, cos-
SIMO, Gianpasquale, La Terza Via Fascista. Il mopolitismo é a doutrina político-filosó-
Mito del Corporativismo, Roma, Carocci, 2006; fica que defende o princípio e a prática
SCHMITTER, Philippe C., “Still the century of de abertura ao mundo pelos cidadãos.
corporatism?”, in SCHMITTER, Philippe C., e O  termo “cosmopolitismo” expressa ain-
LEHMBRUCH, Gerhard (orgs.), Trends towards da a atitude favorável a uma presença de
Corporatist Intermediation. Contemporary Political pleno direito das pessoas no mundo.
Sociology, vol. i, London, Sage Publications,
São, assim, elementos essenciais dos
1979, pp. 7-52; Id., Portugal: do Autoritarismo
conceitos de cosmopolita e de cosmopo-
à Democracia, Lisboa, Imprensa de Ciências
litismo a atitude de abertura ao mundo
Sociais, 1999; SPIRITO, Ugo, Princípios Funda-
mentais de Economia Corporativa, Lisboa, Livra- protagonizada pelos cidadãos de uma
ria Clássica, 1934; TORGAL, Luís Reis, Estado determinada comunidade política e a de-
Novo, Estados Novos, 2 vols., Coimbra, Impren- cisão dos poderes públicos dessa comuni-
sa da Universidade de Coimbra, 2009; WIAR- dade política, visando garantir essa aber-
DA, Howard J., Corporatism and Development: tura como desígnio histórico. Com efeito,
the Portuguese Experience, Amherst, The Univer- atos tão comuns ou plausíveis como viajar,
sity of Massachussets, 1977; WILLIAMSON, dar trabalho a um imigrante ou acolher
Peter J., Corporatism in Perspective. An Introduc- um refugiado não dependem apenas de
tory Guide to Corporatist Theory, London, Sage decisões individuais, mas da existência de
Publications, 1989. uma cultura político-jurídica que garanta
Álvaro Garrido que isso é possível. Faz toda a diferença

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Anticosmopolitismo 463

um país aceitar ou não imigrantes, assim uma impossibilidade, dado que a UE não
como reconhecer-lhes ou não direitos. é uma nação; só que a UE foi construída
E, no caso de se reconhecerem direitos, como sendo portadora de valores e inte-
é significativo saber que direitos se reco- resses que, tendo origem e justificação
nhecem, como se reconhecem e porque nacional, ligam harmonicamente várias
se reconhecem. O mesmo vale para os nações.
deveres. O Tratado da União Europeia, de 1992,
A abertura cosmopolita é particular- ao consagrar a cidadania europeia, estabe-
mente evidente em períodos históricos leceu que são cidadãos europeus apenas
marcados pela liberdade de circulação os cidadãos nacionais dos Estados mem-
das pessoas para lá das suas fronteiras bros da UE. Essa posição foi confirmada
nacionais ou naturais. Na União Euro- pelos tratados posteriores a 1992, que al-
peia (UE), e.g., no início do séc. xxi, a teraram os tratados europeus iniciais. To-
liberdade de circulação de pessoas é não davia, a partir de 1992, e de forma cada
apenas uma liberdade de facto, mas uma vez mais intensa, na prática, quer a UE,
liberdade política e jurídica. Nesse senti- quer os Estados membros da UE passaram
do, a UE é, nos alvores desse século, palco a reconhecer aos cidadãos de Estados ter-
de uma verdadeira cidadania cosmopoli- ceiros mais direitos do que era usual, num
ta – consagrada no seu direito –, aberta processo evolutivo que tendeu a reconhe-
não só aos cidadãos nacionais dos Estados cer os mesmos direitos a todas as pessoas,
membros, mas a pessoas originárias de independentemente da sua origem ou
Estados terceiros que, em determinadas proveniência, com a consequente altera-
condições, gozam de direitos de cidada- ção da interpretação e aplicação dos prin-
nia muito semelhantes aos dos cidadãos cípios de cidadania ativa.
da UE. Para além de ser um substantivo que
Sem prejuízo de outras influências, a expressa a qualidade de pertença de
noção de cosmopolitismo do séc. xxi in- uma pessoa a uma comunidade política
corpora principalmente elementos mo- – convindo não esquecer que, na França
dernos e pós-modernos, que estão pre- revolucionária, as pessoas foram tornadas
sentes no conceito de cidadania europeia cidadãs à força, como forma de acentua-
definido no direito da UE. É verdade que ção de um ideal nacional expresso, e.g.,
existiam cidadãos nas sociedades clássicas numa língua própria e única –, “cidadão”
grega e latina, mas o conceito de cidadão é também um adjetivo que expressa a
que chegou aos sécs. xx e xxi é moder- qualidade de participação na vida da co-
no, com origem na Revolução Francesa, munidade política. É o caso da participa-
identificando cada indivíduo com uma ção cidadã ou da participação política das
nação e um Estado específicos. Sendo pessoas como membros de comunidades
esse conceito ainda operacional no plano plurais, nas quais as diferenças entre as
político-jurídico, ajustou-se às exigências pessoas são significativas. Esta vontade
de sociedades pós-modernas e pós-mate- e este desejo, quer dos governos, quer
rialistas como são tipicamente as socie- dos partidos políticos, quer ainda dos
dades europeias de finais do séc. xx e movimentos cívicos e dos cidadãos elei-
princípios do séc. xxi. Para os revolucio- tores, de maior participação política vale
nários franceses, cidadão era o cidadão principalmente, nos primeiros anos do
nacional, pelo que, à luz deste princípio séc.  xxi, para os cidadãos nacionais dos
nacionalista, a cidadania europeia seria Estados membros da UE, mas está para

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464 Anticosmopolitismo

além deles, como se comprova pela cres- oportunidades, enquanto luta contra os
cente inclusão, durante esse período, nos desafios que tem pela frente. Esta políti-
Governos nacionais de alguns Estados da ca – atualmente em desenvolvimento – é
UE (e.g., Suécia, Portugal, França, Alema- construída na solidariedade e na respon-
nha e Itália) de cidadãos originários de sabilidade. Ela terá a vantagem de dar
Estados terceiros, ainda que entretanto uma contribuição valiosa para o desenvol-
tenham adquirido a cidadania nacional. vimento económico da União Europeia e
Poderia pensar-se que prevalecem, no para o seu desempenho a longo prazo”
início do séc. xxi, na Europa e no mundo, (EUROPEAN COMMISSION, MIGRA-
ideologias e atitudes cosmopolitas, de bra- TION AND HOME AFFAIRS, 2016). Se a
ços abertos aos outros, mas não é assim, vontade política de fomento da mobilida-
ou não é necessariamente assim. À luz do de de pessoas e de atração de imigrantes
dia ou no subterrâneo das mentalidades, o parecia clara, verificaram-se no entanto,
anticosmopolitismo surge, neste período, de modo consistente, em vários Estados
como uma expressão de comportamentos membros, sentimentos individuais e po-
individuais e como uma ideologia políti- líticas públicas contrários a essa vontade.
co-social contrárias à abertura referida. Como interpretar este facto?
É o caso, e.g., das atitudes xenófobas em A rejeição de abertura ao mundo pró-
relação a pessoas de outras culturas e das pria do anticosmopolitismo tanto pode
ideologias promotoras de leis restritivas da ser uma rejeição de princípio – contra
imigração, que podem ser verificadas em o relacionamento generalizado entre
muitos países europeus. pessoas de diferentes proveniências ou
É um facto que a mobilidade humana culturas – como pode ser uma rejeição
foi garantida, pelo menos para determi- mitigada – em função do contexto. Foi
nados efeitos, pelos direitos nacionais e esta última situação que se verificou na
pelo direito internacional – nomeada- Europa, onde muitos políticos, por ra-
mente, o reconhecimento, pelo direito zões eleitorais, se comportaram – e.g., em
da UE, da cidadania europeia a todos os relação aos imigrantes ou aos refugiados
cidadãos dos Estados membros da União – em função da perceção que as pessoas
e, em função de determinados requisi- tinham do que se passava à sua volta, mes-
tos, aos originários de Estados terceiros. mo que isso fosse contrário aos proclama-
Quanto a estes últimos, as políticas de dos princípios de abertura cosmopolita.
imigração dos Estados nacionais e da UE A tortuosa política europeia de princí-
foram complementadas por ações de sen- pios do séc. xxi em relação aos imigran-
sibilização, visando garantir a sua mobili- tes justificaria, só por si, a necessidade
dade em todo o território europeu. Nas de estudar os comportamentos anticos-
primeiras décs. do séc. xxi, a UE precisa- mopolitas em função de um conceito de
va de profissionais qualificados e não qua- anticosmopolitismo capaz de abranger
lificados e, por isso, procurava atraí-los e a nova realidade. Mas existiu uma razão
reconhecer-lhes direitos. Num documen- adicional para que isso fosse feito. A evo-
to de 2016 da Comissão Europeia, dizia-se lução das relações políticas, sociais e cul-
que “uma maior mobilidade traz consigo turais num mundo em mudança exigiu
oportunidades e desafios”, e acrescenta- um aperfeiçoamento do manancial teó-
va-se: “Uma política de imigração equi- rico e o desenvolvimento de novos con-
librada, abrangente e comum vai aju- ceitos. Na primeira metade do séc. xix,
dar a União Europeia a aproveitar essas Alexis de Tocqueville (1805-1859), num

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Anticosmopolitismo 465

período histórico também de grande mu-


dança, teve consciência dessa necessida-
de. Na sua obra Da Democracia na América
(1840), o autor francês defendeu que o
espírito humano inventa mais facilmente
as coisas do que as palavras, daí advindo o
uso de muitos termos impróprios e de ex-
pressões incompletas. Por essa razão, ad-
vogou uma ciência política nova para um
mundo novo. O mundo do séc. xxi não é
o de Tocqueville, mas conhece o mesmo
fenómeno de ausência de conceitos apro-
priados para descrever a realidade. No
primeiro quartel do séc. xxi, os dicioná-
rios de referência dos principais idiomas
do mundo passaram a ter extensas listas
de antis – no que foi um notável sinal dos
tempos –, mas não grafam ainda a palavra
anticosmopolitismo. Esta ausência deve
ser suprida, porque onde, ao longo da
Alexis de Tocqueville (1805-1859).
história humana, houve cosmopolitismo,
houve sempre anticosmopolitismo, ainda
que de modos diversos. bre a política que se faz, frequentemente
Cada tempo tem a sua história. Falar de contrária aos não nacionais. A crise dos
anticosmopolitismo no séc. xxi passou a refugiados e os atentados terroristas que
ser particularmente pertinente, atenden- a Europa conheceu em 2015 são disso
do ao elevado número e à intensidade notáveis exemplos, tal a força das con-
das relações das pessoas à escala global, tradições entre, por um lado, as políticas
o que, no plano das mentalidades e dos de abertura aos estrangeiros e, por outro
comportamentos individuais e políticos, lado, as políticas de encerramento, tem-
suscitou contradições e conflitos com porário ou permanente, das fronteiras
efeitos potencialmente catastróficos. europeias.
Nunca tinha havido políticas tão fortes Anticosmopolitismo é o contrário de
de atração de imigrantes como as que cosmopolitismo, do mesmo modo que
foram construídas nesse período na UE, anticosmopolita é o que pensa ou age de
como expressão de abertura ao mundo. modo contrário ao cosmopolita. Esta afir-
Porém, tornou-se evidente quer a inca- mação não é trivial, porque nem sempre
pacidade dos Estados para receberem a contradição é explícita ou consciente.
novas pessoas, quer a desconfiança de Encontram-se atitudes cosmopolitas e
muitos cidadãos nacionais relativamente anticosmopolitas nos mesmos lugares e
aos imigrantes. Neste período histórico, pessoas, que, se não forem bem adminis-
apesar da abertura a novas formas de pro- tradas, podem gerar sentimentos de pro-
teção de quem vem de fora, os cidadãos funda insegurança nas pessoas e situações
nacionais continuam a ser os cidadãos de grande perigo para as sociedades.
por excelência e aqueles que, por via do A fixação do significado do anticos-
seu direito de voto, mais poderes têm so- mopolitismo em contexto democrático

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466 Anticosmopolitismo

é relevante na medida em que se refere No séc. xxi, os conceitos de cidadania,


a representações sociais, modos de vida de mobilidade e de direitos humanos
e comportamentos humanos existentes aparecem próximos. Criou-se um direi-
nas comunidades políticas que integram to internacional que definiu a liberda-
elementos contrários a princípios de ação de de circulação de pessoas como um
comummente aceites. O termo “anticos- direito. Muitas das medidas adotadas
mopolitismo” expressa o que falta num em nome desse direito visam finalidades
mundo com menos fronteiras do que no específicas, como a proteção do turismo
passado para que as relações humanas se- ou das relações de trabalho, mas existi-
jam relações de qualidade. rá um direito humano geral que possa
São anticosmopolitas as posições polí- ser invocado pelo seu titular contra os
tico-filosóficas e as atitudes pessoais de que lhe negam a possibilidade de exis-
rejeição da oportunidade ou do valor das tir como cidadão de pleno direito em
relações com outros que não gozam dos qualquer parte do mundo? Ainda não,
mesmos direitos de cidadania ou a quem porque o anticosmopolitismo ainda é
não se pretende reconhecer-lhos. muito forte.
Num mundo tendencialmente sem No estudo das relações entre pessoas
fronteiras, o cosmopolitismo faz sentido. com diferentes origens geográficas e cul-
Prova disso é que os dicionários passaram turais, sejam elas reais ou imaginárias, é
a acolher, no séc. xxi, as palavras “cos- preciso dar atenção ao contexto do sur-
mopolização” (“ato ou efeito de tornar gimento e desenvolvimento das palavras
cosmopolita” e “tornar cosmopolita”) e que as pessoas usam para se relaciona-
“cosmopolizar” (“internacionalizar; uni- rem entre si, no modo como se amam
versalizar”) como expressões de uma ou odeiam. O termo “cosmopolitismo”
história nova marcada pela abertura ao evoluiu em relação com o seu próprio
mundo. Outro neologismo grafado pelos contrário, porque as vantagens da aber-
principais dicionários do mundo foi o ter- tura não são igualmente percecionadas
mo “cosmopolítico”, que significa “aque- por todos. É por isso que um cosmopo-
le que tem caráter cosmopolita; que anda lita pode ser nacionalista, para determi-
por todas as partes do mundo”. nados efeitos.
O colapso ou a transformação dos regi- Nos inícios séc. xxi, a maior parte
mes comunistas e a entrada desses países dos políticos europeus era cosmopolita,
nas redes do comércio internacional pro- não era nacionalista, o que não impediu
moveram um aumento muito significati- que na Europa emergissem poderosos
vo das trocas comerciais e da mobilidade sentimentos, movimentos e partidos
de pessoas, por necessidades que só elas nacionalistas visando o fechamento das
conhecem. Uma das novidades consiste fronteiras. A par de um anticosmopoli-
no aumento significativo da mobilidade tismo ideológico, verificou-se um anti-
académica à escala global, com um forte cosmopolitismo prático. A aversão ao
impacto económico. Foi neste período outro (o estrangeiro, o imigrante, o es-
histórico que os ministros das relações tranho) tem a sua origem, neste período
externas dos Estados e os diplomatas, em histórico, mais no medo de se perder a
articulação com as agências de promoção segurança – e.g., de se perder ou não en-
da internacionalização dos produtores de contrar trabalho – do que numa luta por
bens transacionáveis, passaram a vender diferentes modos de vida. É um proble-
os bens produzidos pelas universidades. ma de natureza política e cultural saber

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AnticriAcionismo 467

se, no séc. xxi, existirá uma noção de


responsabilidade comum que faça com
Anticriacionismo
que comunidades inteiras se abram à sa-
tisfação das necessidades de cada pessoa
e de toda a humanidade.

Bibliog.: impressa: BERLIN, Isaiah, “Political


ideas in the twentieth century”, Foreign Af-
O criacionismo literalista, a noção de
que todos os seres vivos do planeta
surgiram diretamente pela manifestação
fairs, vol. 28, n.º 3, abr. 1950, pp. 351-385;
Id., The Crooked Timber of Humanity: Chapters in de uma vontade divina, é uma conceção
the History of Ideas, New York, Vintage Books, comum a culturas predominantemente
1992; BUDGE, Ian et al., The New British Politi- influenciadas pelo cristianismo. Resul-
cs, 4.ª ed., Harlow, Routledge, 2007; CERRO- tando de uma leitura literal do livro do
NI, Umberto, Il Pensiero Politico dalle Origini ai Génesis, esta noção acompanhou séculos
Nostri Giorni, Roma, Riuniti, 1966; LARA, An-
de história ocidental, constituindo uma
tónio de Sousa, Da História das Ideias Políticas
à Teoria das Ideologias, Lisboa, Pedro Ferreira, explicação para a grande diversidade ani-
1994; Id., As Portas de Dante, Lisboa, Edições mal e vegetal existente.
MGI, 2015; MALTEZ, José Adelino, Abecedário Durante o séc. xvii, vários pensadores
de Teoria Política. Pela Santa Liberdade I, Lisboa, europeus procuraram explicar fenóme-
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políti- nos naturais através de causas exclusiva-
cas, 2014; MEINECKE, Friedrich, Cosmopolita- mente naturais, no âmbito de filosofias
nism and the National State, Princeton, Princeton
mecanicistas. O mecanicismo, contudo,
Legacy Library, 1970; MOREIRA, Adriano,
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ropéenne au XVIIIème Siècle, Paris, Stock, 1966; grande complexidade reforçava a ideia
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amanhã, Lisboa, Paulus, 2005; SANTOS, Boa-
ventura de Sousa, Pela Mão de Alice. O Social e pécies tinham sido criadas com os carac-
o Político na Pós-Modernidade, 9.ª ed., Coimbra, teres anatómicos e as funções fisiológicas
Almedina, 2013; TOCQUEVILLE, Alexis de, De necessários à sua sobrevivência. Por este
la Démocratie en Amérique, vol. ii, Paris, Librai- motivo, considerava-se que as espécies se
rie de Charles Gosselin, 1840; Id., L’Ancien Ré- encontravam perfeitamente adaptadas ao
gime et la Révolution, Paris, Michel-Lévy Frères, seu ambiente natural, tendo-se mantido
1856; VENTURI, Franco, Les Idées Cosmopolites
inalteradas desde o momento da criação.
en Italie au XVIIème Siècle. Perspectives Européens
du Cosmopolitisme au XVIIIème Siècle, Nancy, s.n., Esta conceção estática do mundo vivo era
1957; digital: EUROPEAN COMMISSION, também conhecida como fixismo.
MIGRATION AND HOME AFFAIRS, Legal Mi- Os primeiros sistemas abertamente an-
gration and Integration, Brussels, 2016: http:// ticriacionistas só começaram a aparecer,
ec.europa.eu/dgs/home-affairs/what-we-do/ de um modo sistematizado, a partir do
policies/legal-migration/index_en.htm (ace- séc. xviii. Alguns pensadores considera-
dido a 3 jul. 2016).
vam que era possível explicar o apareci-
João Relvão Caetano mento de seres vivos através de sistemas

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468 AnticriAcionismo

que afastavam deliberadamente qual-


quer tipo de intervenção divina no pro-
cesso. Os mais importantes defensores
de sistemas deste tipo eram pensadores
comprometidos com o programa ilumi-
nista, como Julien Offray de La Mettrie,
Denis Diderot e o barão d’Holbach. No
seu entender, os seres vivos podiam ser
formados espontaneamente na Natureza,
sempre que determinadas partículas se
encontravam num meio que propiciava a
sua associação.
Influenciado pelos filósofos ilumi-
nistas, o naturalista Jean-Baptiste Pier-
re Antoine de Monet (mais conhecido
pelo seu título de nobreza, chevalier de
Lamarck) propôs, no início do séc. xix,
uma das teorias materialistas sobre a ori- Charles Darwin (1809-1882).
gem das espécies que se tornaram mais
conhecidas na Europa. Admitindo que foram sistematicamente condenados,
os elementos da Natureza apenas se con- sendo as suas obras proibidas. Este clima,
seguiam associar espontaneamente para aliado à instabilidade política resultante
formar seres pouco complexos, Lamarck de confrontos entre liberais e absolutistas
sugeriu que estes podiam sofrer transfor- no séc. xix, foi bastante desfavorável para
mações posteriormente e originar novas o desenvolvimento científico em Portugal
espécies. A hipótese da transmutação ou até meados desse século.
transformação das espécies, designação Em 1859, em A Origem das Espécies, o na-
pela qual esta visão dinâmica do mundo turalista inglês Charles Darwin apresen-
vivo era conhecida na época, possuía um tou uma nova teoria de base materialista
pendor anticriacionista, pois fornecia que defendia a modificação das espécies.
uma explicação puramente materialista Ainda que não tivesse por objetivo des-
para o aparecimento de novas espécies. credibilizar a doutrina cristã, a Teoria da
Ainda que outras teorias materialistas Evolução de Darwin foi utilizada para ata-
tivessem sido discutidas em diferentes car conceções criacionistas dominantes e
Estados europeus até à segunda metade a influência das instituições religiosas nas
do séc. xix, as conceções criacionistas sociedades de diversos Estados.
mantiveram uma influência significati- Contrariamente ao que aconteceu na
va. Em Portugal, a atividade repressora maioria dos países europeus, houve pou-
da Inquisição desde o séc. xvi até ao fi- cos pensadores explicitamente anticria-
nal do séc. xviii constituiu um obstácu- cionistas em Portugal durante o séc. xix,
lo importante à publicação e à discussão o que surpreende por dois motivos. Por
aberta de obras que contradissessem as um lado, os estudantes das mais impor-
doutrinas da Igreja Católica. Os autores tantes instituições de ensino superior da
iluministas franceses, e mesmo os pensa- época conheciam o essencial das teorias
dores do séc. xvii que deram os maiores que propunham a transmutação das es-
contributos para a Revolução Científica pécies, incluindo aqueles que não tinham

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AnticriAcionismo 469

uma formação científica (e.g., Antero da cadeira de Zoologia da Escola Politéc-


de Quental e Eça de Queirós). Por ou- nica desde 1880, chegou a reestruturar
tro lado, apesar de Portugal ser um país por completo o seu programa segundo
predominantemente católico, e por esse uma lógica evolutiva, o que denota a im-
motivo se esperar que as teorias evoluti- portância atribuída a estas conceções.
vas fossem fortemente combatidas pelos Personalidades ligadas à prática médica,
membros do clero, a verdade é que tal como Miguel Bombarda e Júlio de Matos,
não se verificou. também aceitavam a evolução das espé-
A ausência de um movimento explicita- cies, embora esta fosse apresentada, mais
mente anticriacionista em Portugal deve frequentemente, como um argumento a
ser compreendida como consequência favor de uma visão positivista e laica da
da ausência de uma oposição organizada, sociedade.
em território nacional, à ideia da trans- O naturalista Francisco de Arruda Fur-
mutação das espécies. Os movimentos an- tado foi uma das poucas personalidades
ticriacionistas europeus constituíram-se, portuguesas militantemente anticriacio-
frequentemente, em reação às inúmeras nistas. Além de se dedicar a estudos de
críticas antievolucionistas (&Antievolu- Zoologia e de Antropologia, publicou
cionismo) que surgiram em sociedades artigos anticriacionistas em alguns pe-
onde o cristianismo detinha prestígio so- riódicos das últimas décadas do séc. xix.
cial, como a sociedade britânica. A inexis- As suas iniciativas foram motivadas, pro-
tência, em Portugal, de uma tradição de vavelmente, por um episódio que ocor-
estudos científicos construída com base reu no início da déc. de 1880: durante
numa visão criacionista do mundo vivo um sermão, um padre criticou o facto
possibilitou uma maior abertura à aceita- de alguns pensadores defenderem que
ção de teorias que propunham a evolução o homem evoluíra a partir de antepas-
das espécies. Além disso, a popularidade sados símios. Em resposta, Arruda Fur-
de um materialismo de base positivista tado publicou o opúsculo O Homem e o
nas elites portuguesas, a partir da déc. de Macaco, onde não só expôs argumentos
1870, contribuiu para a receção favorável
de teorias evolutivas, como a de Darwin.
Deste modo, e ao contrário do que suce- Francisco d'Arruda [Arruda Furtado], de Augusto
Cabral, O Binóculo, 3 fev. 1884.
deu em países de tradição científica mais
consolidada, foram os próprios meios
académicos a aceitar e a defender conce-
ções anticriacionistas.
Os professores que lecionaram discipli-
nas científicas durante este período, quer
na Univ. de Coimbra (Júlio Henriques na
Botânica, Albino Giraldes na Zoologia,
Francisco Correia Barata na Química e
Bernardino Machado na Antropologia),
quer na Escola Politécnica de Lisboa
(Fernando Matoso Santos e Baltasar Osó-
rio na Zoologia, e Eduardo Burnay na
Química Orgânica), aceitavam a evolu-
ção das espécies. Matoso Santos, regente

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470 AnticriAcionismo

favoráveis à evolução das espécies, como dos de Zoologia e Antropologia, sendo


ainda ridicularizou a Igreja Católica e provável que tivesse publicado mais arti-
os seus representantes numa linguagem gos anticriacionistas se não tivesse faleci-
extremamente irónica. Para Arruda Fur- do em 1887, com apenas 32 anos. Além
tado, o criacionismo era uma teoria de- da oposição demonstrada em opúsculos
satualizada face ao conhecimento cien- e artigos de divulgação científica, é neces-
tífico da época, e o Antigo Testamento sário notar que os seus próprios estudos
era simplesmente inútil. A referência às científicos tinham um pendor anticria-
condenações da Inquisição era utiliza- cionista, pois escolhia propositadamente
da para questionar a conduta moral dos os tópicos de investigação que ofereciam
membros da Igreja Católica, uma estraté- mais hipóteses de apoiar a ideia da evo-
gia recorrente entre os pensadores que lução das espécies e, deste modo, tornar
se opunham a esta instituição. mais evidente a falência das interpreta-
Em 1881 e 1882, Arruda Furtado con- ções criacionistas. Os restantes discursos
tinuou a criticar conceções criacionistas anticriacionistas que surgiram em Portu-
em vários artigos, onde expunha diferen- gal, até ao início do séc. xx, eram apre-
tes tipos de argumentos científicos que sentados no contexto da defesa de um
fundamentavam a evolução das espécies, positivismo cuja missão última consistia
no contexto de uma visão materialista. Es- em reformar a sociedade.
tes artigos de divulgação científica foram O médico Júlio de Matos também se
publicados em periódicos de tendência dedicou à divulgação científica, utili-
republicana, como A Republica Federal, zando-a para dar visibilidade à ciência
A  Vanguarda e Era Nova, o que atesta a no espaço público e apresentá-la como
sua proximidade aos ideais republicanos. a verdadeira fonte de autoridade, por
Para Arruda Furtado, a Igreja Católica oposição à doutrina cristã. Matos foi
era uma instituição decadente, que se mais ambicioso do que Arruda Furtado,
encontrava em vias de desaparecer. Tal publicando uma obra extensa, em seis
como Auguste Comte, Arruda Furtado volumes, onde descrevia as característi-
considerava que os clérigos insistiam em cas e o modo de vida de diversos animais,
explicações que correspondiam a um es- incluindo o homem. Ainda que não indi-
tádio infantil da humanidade, e que esta casse explicitamente que o homem atual
se haveria de libertar da sua influência, resultava de um processo evolutivo, Ma-
passando a ciência a ocupar o lugar da tos apresentou todos os dados que tor-
religião. No seu entender, o positivismo navam esta conclusão inevitável para os
continha os princípios fundadores de leitores. As semelhanças entre o homem
uma nova sociedade, onde os cientistas e outros símios eram sublinhadas através
desempenhariam as funções que eram, da sua inclusão no grupo dos primatas,
na época, atribuídas aos padres da Igreja. expondo-se ainda as descobertas antro-
Arruda Furtado assumia-se como positi- pológicas que apontavam para a existên-
vista, tendo chegado mesmo a publicar cia de formas humanas primitivas. Além
artigos na revista Positivismo, dirigida por disso, Matos defendia que os principais
Teófilo Braga e Júlio de Matos, dois im- mecanismos que Darwin propusera para
portantes prosélitos desta corrente em explicar a evolução das espécies eram
território nacional. dados completamente objetivos e, por-
A partir de 1883, Arruda Furtado pas- tanto, que qualquer dúvida quanto à sua
sou a dedicar-se, essencialmente, a estu- existência era ilegítima.

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AnticriAcionismo 471

Miguel Bombarda, outro médico adep- do criacionismo literalista nos Estados


to do positivismo e republicano convic- Unidos da América, fenómeno que con-
to, também era anticriacionista, embora siderava um produto pseudocientífico
não se tenha ficado por uma crítica a de fundamentalismos fanáticos.
este aspeto concreto da doutrina cristã. No início do séc. xxi, o discurso an-
O alvo de Bombarda era a religião como ticriacionista era pouco expressivo em
um todo. Influenciado pelo naturalista Portugal, tal como na maioria dos países
alemão Ernst Haeckel e pelo seu mo- europeus.
nismo, um sistema filosófico de pendor
materialista construído para substituir
uma visão teológica do mundo, Bombar-
da nem se ocupou da defesa da evolução
das espécies, tendo-a aceitado como um Bibliog.: impressa: BOMBARDA, Miguel,
dado objetivo. A Sciencia e o Jesuitismo, Lisboa, Parceria An-
A popularidade de uma visão dinâmi- tónio Maria Pereira/Livraria Editora, 1900;
ca da vida no planeta marcou as últimas BOWLER, Peter J., Evolution: the History of An
Idea, London, University of California Press,
décs. do séc. xix e o início do séc. xx, em
2009; CATROGA, Fernando Almeida, “Os
Portugal, influenciando as elites científi- inícios do positivismo em Portugal: o seu
cas e literárias da época, como a geração significado político-social”, Revista de His-
de 1870. Verificaram-se algumas contro- tória das Ideias, n.º 1, 1977, pp. 287-394;
vérsias com membros da Igreja Católica, ENGELS, Eve-Marie, e GLICK, Thomas F.
mas foram episódicas e tiveram um âm- (coords.), The Reception of Charles Darwin in
bito bastante limitado. No séc. xx, o cres- Europe, 2 vols., London, Continuum, 2008;
GAMITO-MARQUES, Daniel, “A recepção
cimento da investigação científica sobre
das teorias transformistas e evolucionistas na
outros temas, esvaziou, em grande parte, comunidade científica portuguesa: o caso da
os ímpetos anticriacionistas. Esta linha de Escola Politécnica de Lisboa (1872-1911)”,
pensamento foi mantida mais pelas ini- in FIOLHAIS, Carlos et al. (coords.),  Livro de
ciativas individuais de personalidades que Actas do Congresso Luso-Brasileiro de História das
partilhavam os mesmos ideais positivistas Ciências, Coimbra, Imprensa da Universidade
do que por ações concertadas. de Coimbra, 2011, pp. 345-359; MARCOC-
CI, Giuseppe, e PAIVA, José Pedro, História
Os discursos de pendor anticriacio-
da Inquisição Portuguesa (1536-1821), Lisboa,
nista só voltaram a registar-se duran-
A Esfera dos Livros, 2013; MATOS, Júlio de,
te as últimas décadas do séc. xx, num Historia Natural Illustrada, 6 vols., Porto, Livra-
contexto distinto. Através de livros de ria Universal, 1880-82; PEREIRA, Ana Leonor,
divulgação científica, Germano da Fon- Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia
seca Sacarrão, professor da área de Bio- Social (1865-1914), Coimbra, Almedina, 2001;
logia da Faculdade de Ciências da Univ. SACARRÃO, Germano, Biologia e Sociedade,
de Lisboa, deu a conhecer algumas das vol. 1, Lisboa, Europa-América, 1989; digital:
ARRUDA, Luís M. (coord.), Obra Científica de
problemáticas no campo da disciplina
Arruda Furtado, 2007: http://siaram.azores.
e chamou a atenção para os perigos da gov.pt/naturalistas/arruda-furtado/CD-AFur-
Sociobiologia, a área científica então tado/obra-cientifica.html (acedido a 15 fev.
emergente que pretendia explicar os 2014); CONCEIÇÃO, Tavares, et al., Arruda
comportamentos sociais a partir de con- Furtado: Vida e Obra, 2014: http://digital.
ceitos evolucionistas. Ainda que não se museus.ul.pt/exhibits/show/arruda-furtado-
mostrasse abertamente anticriacionista, vida-e-obra (acedido a 27 mar. 2018).
Sacarrão criticava a influência crescente Daniel Gamito-Marques

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472 AnticristiAnismo

Anticristianismo expulsão temporária dos judeus da cida-


de de Roma, alegando distúrbios entre
eles, a agitação pudesse ter origem na
pregação cristã que aí tinha chegado.
O incêndio da cidade de Roma ocorri-
do no ano 64 da nossa era, que se julga
ter sido obra do próprio Imperador Nero,

A oposição ao cristianismo remon-


ta aos primórdios da nossa era e
acompanhou de variadíssimas maneiras
serviu para tornar os cristãos, acusados
de incendiários, bode expiatório dessa
tragédia infernal. Foi a primeira grande
os seguidores da mensagem de Cristo. perseguição, a que numerosas outras se
A enunciação do anticristianismo foi, ao haveriam de seguir, em que o grande cri-
longo dos séculos, assumindo diferentes me consistia em pertencer ao grupo dos
configurações, consoante os contextos que, acreditando na mensagem de Jesus,
sociais e os cenários ideológicos a partir a professavam. Sabemos que as perse-
dos quais essa enunciação se estrutura- guições durante os primeiros séculos da
va. O contexto histórico dos primeiros era cristã fizeram da Igreja uma Igreja
séculos cristãos ficou marcado pelo ine- de mártires. A realidade da perseguição
vitável confronto com o judaísmo donde não pode, porém, ser generalizada para
procede a nova fé, com as práticas cívicas além dos dados obtidos por critérios de
e os cultos vigentes no Império Romano, rigor histórico quanto à diversidade dos
e também com as escolas de pensamento agentes, à motivação e aos objetivos, aos
filosófico. Nos tempos modernos, o an- meios utilizados e ao número de perse-
ticristianismo enuncia-se, de modo par- guidos e martirizados. Temos de ir muito
ticular, a partir do valor da razão e da além dos simples registos hagiográficos e
ciência, da questão social, e de diferen- apologéticos para “compreender do pon-
tes expressões da vontade de poder. to de vista dos perseguidores os aspetos
As primeiras manifestações de oposi- políticos, sociais e religiosos da sua ação”
ção aos discípulos de Cristo ocorreram (MARAVAL, 1992, 6).
na província romana da Judeia e visaram Além de naturalmente não participa-
os apóstolos Pedro e João. Estes tiveram rem nas práticas religiosas do paganismo,
de comparecer diante do Sinédrio, que, os primeiros cristãos foram acusados de
depois de os mandar açoitar, proibiu crimes hediondos, entre os quais práti-
que falassem em nome de Jesus (At 5, cas de antropofagia, infanticídio, magia,
40). Também o diácono Estêvão morreu superstição, incesto e orgias. A  tipifica-
apedrejado por judeus (At 7, 54-60) e o ção destes presumíveis crimes deveu-se,
jovem Saulo, depois Paulo, começou por muito provavelmente, às celebrações
se distinguir como feroz perseguidor, litúrgicas da eucaristia, às reuniões no-
fazendo rusgas para meter na prisão os turnas, ao ósculo da paz. A estas denún-
discípulos de Jesus (At 8, 3). Mais tarde, cias de origem popular juntaram-se, no
é ao apóstolo Paulo que acusam, por- decurso dos séculos, as críticas de teor
que “fomenta discórdias entre todos os filosófico vindas de Celso (séc.  ii), Por-
judeus do mundo inteiro e é cabecilha fírio (séc. iii), Hiérocles e Juliano Após-
da seita dos nazarenos” (At 24, 5). Perce- tata (séc. iv). O que conhecemos dos
be-se, por isso, que por volta do ano 50, escritos destes autores chegou até nós
quando o Imperador Cláudio decreta a através de textos apologéticos de escri-

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AnticristiAnismo 473

contradiz a razão e a experiência. E não


venham dizer os cristãos que a Deus
nada é impossível, porque Deus não
pode fazer que Homero não tenha sido
poeta ou que dois mais dois seja igual a
cem. As crenças dos cristãos contrariam
a razão. Baseiam-se num saber mais ele-
vado, transmitido pelas escrituras. Aos
olhos de filósofos pagãos, como Celso e
Porfírio, esses textos são obra de char-
latães e apresentam narrativas que não
valem mais do que as fábulas e os mitos
gregos e egípcios.
Ao anticristianismo de origem popular,
e ao de inspiração epicurista, estoica ou
neoplatónica, veio juntar-se o anticristia-
nismo político, manifestado em repetidas
iniciativas persecutórias e medidas re-
pressivas. Pôs-lhes termo o édito de tole-
rância de 311, que reconheceu a prática
da fé cristã como religio licita, i.e., religião
permitida, com direito a lugares de culto
Imperador nero (37-68).
e direito dos cristãos a viverem tranquila-
mente em seus lares. O cristianismo nas-
tores cristãos, como Orígenes, Minúcio cente também conheceu divisões e inter-
Félix, Tertuliano, Eusébio de Cesareia. pretações que, em diferentes planos, lhe
Os cristãos sofrem ataques em nome de punham em causa a coesão e unidade na
razões muito variadas. Acusam-nos de afirmação da mesma doutrina e na orga-
serem perigosos inovadores que, tendo nização das comunidades. Montanistas,
abandonado os princípios do helenis- marcionistas, várias escolas gnósticas e
mo e as tradições do judaísmo, provo- outros grupos heréticos acabaram por ge-
cam uma revolução nas ideias, no culto rar dissidências, enquanto contribuíam
e nos costumes. Aos olhos dos filósofos para a afinação e o aprofundamento de
pagãos, professar a fé cristã é próprio de pontos fundamentais da fé e do culto.
ignorantes, de pessoas sem cultura que Depois da conversão de Constantino
seguem uma fé completamente irracio- Magno e durante a longa época medie-
nal. E não poupam a doutrina sobre a val, o cristianismo teve de fazer face a
Trindade, sobre o logos que se fez carne, ameaças internas de natureza doutrinal
sobre a ressurreição. Que o logos seja fi- vindas de várias heresias, e de responder
lho de Deus é, para Celso, uma aberra- ao expansionismo do credo muçulma-
ção, já que, se Deus é Pai, todos os seres no, tanto no Leste como no Ocidente
têm de ser seus filhos. Se Deus incarnou, europeus.
então está sujeito à mudança e não goza O anticristianismo invadiu gradual-
da perfeição e excelência que se atribui mente o espaço cultural da Europa.
à divindade. E quanto à ressurreição dos Essa oposição progride a partir do co-
corpos, entendem os filósofos que ela meço dos tempos modernos quando se

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474 AnticristiAnismo

assiste à difusão de nova mentalidade (1656-1733), ou ainda a denúncia do


baseada na prática do livre exame, e na cristianismo como doutrina que veicu-
emergência de uma reformulação da la dogmas absurdos e se encontra ao
presença do homem no mundo à luz do serviço da tirania e da exploração dos
antropocentrismo, do espírito científi- mais pobres, como se pode ver no testa-
co, da valorização da natureza, fatores mento deixado por Jean Meslier (1664-
de emancipação da tutela multissecular -1729), pároco de Étrépigny, no Mémoire
da mundividência cristã. Esta nova men- des Pensées et Sentiments. Essa conceção
talidade manifestava-se por formulações racionalista e anticristã prolonga-se,
críticas que traduziam distanciamento, generaliza-se e torna-se mais agressiva
desvalorização e, não raro, oposição à na campanha dos philosophes e colabora-
tradição religiosa dominante até então. dores da Enciclopédia (1751-1760), que,
O libertinismo intelectual, também cha- em França, preparavam o contexto ideo-
mado libertinismo erudito, foi uma des- lógico da Revolução de 1789. São muito
sas formulações críticas caracterizadas variadas as acusações contra o cristianis-
pela vontade de sacudir as tutelas auto- mo. Denunciam nele a religião do sofri-
ritárias, adotando atitudes de oposição mento, da culpa, do medo do inferno,
aos dogmatismos religiosos, morais e da tristeza, da resignação, religião ad-
políticos. Os seus representantes eram versa à liberdade, à razão e à ciência.
herdeiros e continuadores de Montaig- Seria, no fim de contas, uma doutrina
ne (1533-1592) e do movimento cético moral, inimiga daquela felicidade que
e pirrónico que se desenvolveu a partir o séc. xviii francês instituiu como valor
do reencontro renascentista com as es- supremo que deve ser conquistado pelos
colas representativas do ceticismo he- indivíduos e promovido pelos Estados.
lénico. Também se implantou gradual- As reflexões de Voltaire (1694-1778)
mente nos meios intelectuais uma visão sobre religião apresentam características
racionalista na abordagem das grandes particulares quanto à forma e quanto ao
questões da existência, com particular conteúdo. Ao tratar o assunto religioso,
incidência nas doutrinas e práticas reli- recorre sempre à ironia e ao eufemismo,
giosas. Na sua raiz está a onda de cho- realçando o que na religião dos euro-
que provocada pela obra do filósofo peus é bom, nobre e justo, para depois
Espinosa (1632-1677), que alimentou, confrontar essas determinações com
durante cerca de século e meio, as “Lu- práticas e atitudes que desmentem as
zes radicais” amplamente estudadas por qualidades referidas. No plano formal,
Jonathan Israel. Impera nessa onda in- essa desqualificação exprime-se frequen-
telectual a recusa sistemática, em nome temente por meio de sequências inter-
da razão, dos pressupostos doutrinais rogativas. No que respeita à natureza
do cristianismo relativos à revelação, à do assunto abordado, o cristianismo e a
divindade de Jesus e à redenção da hu- Igreja Católica surgem sempre no pro-
manidade pela sua morte e ressurrei- longamento de referências às religiões
ção. Desenvolvia-se, desse modo, uma pagãs da Grécia e de Roma, ou às reli-
conceção naturalista, antidogmática e giões orientais, budismo e hinduísmo, a
deísta, veiculada por obras como Chris- que se juntam frequentes evocações da
tianity not Mysterious (1696), de John doutrina e dos ritos maometanos. É ver-
Toland (1670-1722), e Christianity as Old dade que se afirma de modo explícito
as Creation (1730), de Matthew Tindal a superioridade do catolicismo sobre as

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AnticristiAnismo 475

outras religiões. Mas, ao mesmo tempo, evangélico. Thomas Jefferson (1743-


apela-se para outra religião, formada a -1826), redator da proclamação de in-
partir da depuração de defeitos que as dependência dos Estados Unidos, entre-
luzes da razão tornam óbvios. Essa reli- gou-se à composição de uma nova versão
gião, purificada das escórias do cristia- do evangelho. Da boa nova trazida por
nismo e do catolicismo, é a mais nobre Jesus conserva apenas o que julgava ser
expressão do culto do Ser Supremo. o código moral mais elevado e benéfico
A  ela dá Voltaire o seu crédito pessoal. alguma vez proposto aos homens. Para
A respeito daquela a que chama a “nos- isso, eliminou quanto nos textos evan-
sa” religião, i.e., o cristianismo, diz: “Só gélicos lhe parecia revelar ignorância,
ela é boa, necessária, provada, e a se- engano ou charlatanice, numa palavra,
gunda [religião] revelada”. E continua: obscurantismo. Essa versão do texto do
“Teria sido possível ao espírito humano, evangelho ficou conhecida como Bíblia
não digo admitir uma religião que se de Jefferson. O procedimento assim
aproximasse da nossa, mas que fosse me- adotado enquadra-se no humanismo das
nos má do que todas as outras religiões Luzes que se caracteriza por reclamar
do universo juntas? E que religião seria o direito de “poder eliminar do antigo
essa? Não seria a que nos propusesse a Evangelho o que se tornou incompatível
adoração do Ser Supremo, único, infini- com a glorificação do homem e do cida-
to, eterno, formador do mundo, que ele dão” (SLOTERDIJK, 2002, 27).
move e vivifica […], a religião que nos A Revolução Industrial operou trans-
uniria a este Ser dos seres como prémio formações profundas na vida material e
das nossas virtudes e dele nos separaria social dos povos, induzindo mudanças
por castigo dos nossos crimes?” (VOL- em todos os sectores da existência cultu-
TAIRE, s.d., II, 350). E, referindo-se aos ral e da autocompreensão do indivíduo
sacrifícios humanos que houve em quase e da sociedade. Assistiu-se então a uma
todos os povos, ainda que raramente fos- reavaliação política do cristianismo, de
sem praticados, acrescenta: “A religião que as doutrinas socialistas forneceram
pagã derramou muito pouco sangue, diversas interpretações. A utopia do
ao passo que a nossa inundou a terra. novo cristianismo elaborada por Clau-
A nossa é, sem dúvida, a única boa, a úni- de-Henri de Saint-Simon (1760-1825)
ca verdadeira. Mas nós fizemos tanto mal projeta-se a partir da crítica do cristia-
por meio dela que, quando falamos dos nismo antigo. Afirma, acerca dele, que é
outros, devemos ser modestos” (Id., Ibid., necessário “terminá-lo”, dando à palavra
219-220). A Inquisição e o ódio teológi- o duplo sentido de levá-lo ao seu termo
co que a criou e alimentou exibem a face e de acabar com ele. Depois de reco-
mais miserável e monstruosa da religião nhecer que os primeiros cristãos devem
que, pregando o amor fraterno, pratica- servir de modelo, acrescenta que “o que
va a mais cruel intolerância. Os horrores temos de  fazer é terminar o que eles
inquisitoriais funcionaram como uma começaram. A tarefa gloriosa que  nos
das mais poderosas armas no combate cumpre realizar é pôr em prática, por
das Luzes contra o cristianismo. meio da política, a doutrina que eles
Há representantes qualificados do es- apenas puderam estabelecer de manei-
pírito das Luzes adeptos de um tipo de ra especulativa” (SAINT-SIMON, 1969,
anticristianismo que procede da am- 102). O cristianismo antigo nasceu gra-
putação, expurgo ou censura do texto ças à energia e ao entusiasmo de Jesus,

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476 AnticristiAnismo

tendo a organização da doutrina cristã, o pretexto faceto de que isso é o cristia-


doutrina de fraternidade universal, sido nismo e que na cristandade está a sua
obra do apóstolo Paulo, homem instruí- concretização” (KIERKEGAARD, 1982,
do e genial. Foram os discípulos de Pau- 179). A  crítica do cristianismo também
lo que levaram o cristianismo a todo o apresenta em Nietzsche (1844-1900)
Império Romano e o dotaram do imen- pressupostos e expressão bem diversos
so poder que se manteve até ao fim da dos que encontramos nos pensadores
época medieval. A sua ruína começa a iluministas. Os philosophes desacreditam
firmar-se no séc. xvi, quando os homens a religião cristã, alegando que a sua irra-
passaram a acreditar apenas no que está cionalidade está patente naquilo a que
conforme os ditames da razão e é con- chamam o absurdo dos dogmas. Por seu
firmado pela experiência. Iniciava-se a lado, Nietzsche parte da demolição radi-
passagem para a constituição do que vai cal dos valores oriundos do cristianismo,
ser a aliança da ciência, novo poder es- que impregnam, há séculos, a cultura do
piritual, com o espírito empreendedor Ocidente, e anuncia o futuro em que o
do sistema industrial, poder temporal niilismo, já em curso, acabará por triun-
emergente. Estavam assim encontradas far. O processo de destruição dos valores
as bases do novo cristianismo anunciado estabelecidos faz estiolar a vontade de
por Saint-Simon, cristianismo que deve crer, perdendo assim vigor a própria cre-
cimentar a política geral da sociedade e dibilidade dos dogmas. O Iluminismo
cujos laços asseguram a unidade de toda denuncia e rejeita a fé cristã em nome
a humanidade. da razão, que se confessa ofendida pela
Há ainda um anticristianismo que irracionalidade dos dogmas. Nietzsche,
emerge do íntimo do que de mais ma- por seu lado, pretende aniquilar o cris-
tricial e genuíno existe no cristianismo, tianismo em nome da pujança da vida.
a estrita fidelidade à mensagem evan- Mostra como o cristianismo, ao deixar
gélica. A sua oposição cristaliza-se em de corresponder à nova sensibilidade
manifestações de desconforto peran- do presente e do futuro, definha até se
te concretizações históricas em que a tornar completamente insignificante.
mensagem cristã teria sido atraiçoada. É deste modo que se torna efetiva a “eu-
Deparamos com expressões dramáticas tanásia do cristianismo” de que o filóso-
que reclamam a pureza radical e subver- fo nos fala no parágrafo 92 de Aurora.
siva presente no testemunho das origens O desprezo, asco e ódio de morte que
cristãs. O que veio mais tarde, sobretu- Nietzsche nutre pelo cristianismo proce-
do a partir do séc. iv, com a paz cons- de do apego natural a valores vitalistas
tantiniana que originou a cristandade, que ele reputa terem sido desprezados e
teria consumado uma efetiva perversão negados pela cultura cristã. Ao invés do
da mensagem inicial. O pensador cris- homem nobre e de vida superior, o espí-
tão Søren Kierkegaard (1813-1855) não rito cristão prefere os fracos, os falhados,
se coíbe de contrapor ao cristianismo o homem do rebanho. Cultiva, desse
exigente do Novo Testamento a forma- modo, a mentalidade de decadência que
ção histórica da cristandade que o des- perverte a força e o poder do ser huma-
figurou. E vai ao ponto de afirmar que no. É por isso que, segundo Nietzsche, o
“a cristandade não é senão o esforço cristianismo se apresenta como religião
do género humano para se refazer, de- da compaixão e inventa um mundo ima-
sembaraçando-se do cristianismo com ginário que separa o homem da realida-

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AnticristiAnismo 477

de: “No cristianismo, nem a moral nem a mentalidade técnico-científica. Em tom


religião tocam na realidade em qualquer assertivo, Bertrand Russell (1872-1970)
ponto” (NIETZSCHE, 1997, 22-23). Esse proclama em pleno séc. xx: “Eu afirmo,
mundo de ficção nasce do instinto de pesando bem as minhas palavras, que a
ressentimento inerente ao cristianismo, religião cristã, tal qual é estabelecida nas
instinto que diz não à moral do homem suas igrejas, foi e continua a ser a prin-
nobre dotado de vontade de poder. cipal inimiga do progresso do mundo”
A moral judaico-cristã nutre-se de ressen- (RUSSELL, 1967, 29). Dava assim novo
timento e “para poder dizer não a tudo passo no caminho já antes percorrido
o que representa na Terra o movimento por Auguste Comte (1798-1857). O pai
ascendente da vida, o sucesso, o poder, a da filosofia positiva pretendeu, com o
beleza, a autoafirmação, o instinto do seu Catecismo Positivista (1852), introdu-
ressentimento, convertido em génio, tinha zir no mundo fascinado pelo poder da
de inventar para si um outro mundo, vis- ciência uma síntese religiosa, sem sobre-
to do qual essa afirmação da vida apare- natural e sem teologia. Intentava con-
cesse como o mal, como o condenável cretizar desse modo a grande aspiração
em si” (Id., Ibid., 35-36). Nietzsche orgu- setecentista de uma “religião demons-
lha-se de desmascarar finalmente o que trada” em que “a Humanidade se subs-
19 séculos de cultura cristã não terão titui definitivamente a Deus, sem jamais
conseguido perceber. Cristo, mensagei- esquecer os seus serviços provisórios”
ro da boa nova, morreu para demonstrar (COMTE, 1964, 299).
como havemos de viver, e não para salvar O anticristianismo fez parte de pro-
e redimir a humanidade. Acontece que jetos políticos que adotaram orienta-
essa prática de vida é a do ser fraco, o ções doutrinais e práticas governativas
homem do rebanho, que há de confor- em que os cristãos foram abertamente
mar-se com o que é baixo e desprezível. visados como inimigos a abater apenas
A grande ironia da história universal está por causa da fé que professavam. Assim
em que a Igreja, instituição de poder, e, sucedeu com a política antirreligiosa,
por isso, antítese do evangelho, canoniza tanto do comunismo soviético como do
e promove a aceitação pelo ser humano nazismo hitleriano. O ateísmo militante
da sua condição de fraqueza. Nisso resi- professado pelo materialismo dialético
de, segundo o filósofo, a santa mentira viu no cristianismo um dispositivo ideo-
do cristianismo e da Igreja. lógico alienante e adverso às lutas do
As mundividências cientista e positi- proletariado. Quanto à ideologia nazi,
vista, amplamente difundidas a partir esta foi, em pleno séc. xx, manifestação
do séc. xix, puseram em causa as for- agressiva de anticristianismo, como per-
mas de conhecimento que não se regem ceberam, desde os primeiros episódios
por critérios observacionais e experi- de perseguição, tanto católicos como
mentais. São estes critérios que figuram evangélicos, não vendo no cristianismo
como ponto de partida das conquistas senão judaísmo camuflado. Com ódio
da ciência e da revolução nos modos de declarado a Cristo crucificado, assumia
produção que determinam a vertiginosa também total aversão à mensagem de
transformação verificada nas condições fraternidade que se dirige, sem discrimi-
de vida das populações. Os saberes ba- nação, a todas as raças e culturas, e que
seados na fé e nas tradições religiosas fo- sabe acolher e apoiar pobres, doentes e
ram naturalmente ameaçados pela nova marginais.

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478 AnticruzAdismo

Bibliog.: COMTE, Auguste, Catéchisme Po-


sitiviste, Paris, Garnier-Flammarion, 1964;
Anticruzadismo
GUSDORF, Georges, Dieu, la Nature, l’Homme
au Siècle des Lumières, Paris, Payot, 1972; IS-
RAEL, Jonathan I., Les Lumières Radicales. La
Philosophie, Spinoza et la Naissance de la Moder-
nité (1650-1750), Paris, Éditions Amsterdam,
2005; KIERKEGAARD, Sören, Oeuvres Com-
plètes, t. xix, Paris, l’Orante, 1982; LENOIR,
Frédéric, Le Christ Philosophe, Paris, Plon, 2007;
LÖWITT, Karl, De Hegel à Nietzsche, Paris, Galli-
C írculo vicioso semântico que remete
para dois blocos religiosos em oposi-
ção, mas também em complementarida-
mard, 1969; MARAVAL, Pierre, Les Persécutions de. Não é possível entender o anticruza-
durant les Quatre Premiers Siècles du Christianisme,
dismo sem considerar o jihadismo. Para
Tournai/Paris, Desclée/Mame, 1992; MOR-
LET, Sébastien, Christianisme et Philosophie: o contexto português, há que buscar as
Les Premières Confrontations (Ier-Ve Siècle), Paris, origens desta dialética na Idade Média,
Librairie Générale Française, 2014; NIETZS- mais concretamente na segunda metade
CHE, Friedrich, Obras Escolhidas – O Anticris- do séc. xi, quando a sociedade se trans-
to, Ecce Homo, Nietzsche contra Wagner, s.l., formou por força de novas práticas da
Círculo de Leitores, 1997; POPKIN, Richard religião, fenómeno observável tanto no
H., The History of Scepticism from Erasmus to Spi-
campo cristão, quanto no muçulmano.
noza, Berkeley/Los Angeles/London, University
of California Press, 1979; RUSSELL, Bertrand,
Estamos perante os dois lados de um es-
Porque não Sou Cristão e Outros Ensaios sobre pelho: Condado Portucalense e Gharb
Temas Afins, Porto, Brasília Editora, 1967; al-Andalus (abrangendo o último os ter-
SAINT-SIMON, Henri de, Le Nouveau Chris- ritórios a Ocidente de Córdova, como
tianisme et les Écrits sur la Religion, Paris, Seuil, Badajoz e parte da Estremadura espa-
1969; SLOTERDIJK, Peter, La Compétition des nhola, o Alentejo e o Algarve) miram-se
Bonnes Nouvelles. Nietzsche Évangéliste, Paris, Mil- e influenciam-se, divididos pela linha
le et Une Nuits/A. Fayard, 2002; VALADIER,
natural do Tejo. Ao redor desta separa-
Paul, Nietzsche et la Critique du Christianisme, Pa-
ris, Cerf, 1974; VANEIGEM, Paul, La Résistance ção líquida, dispunha-se uma fronteira
au Christianisme. Les Hérésies des Origines au XVIIe móvel que se deslocava mais para o Sul
Siècle, Paris, Fayard, 1993; VOLTAIRE, Diction- ou para o Norte consoante o curso das
naire Philosophique, 2 vols., Paris, Garnier, s.d. conquistas. Era em tal faixa, dotada – ao
Luís Machado de Abreu contrário das fronteiras dos modernos
Estados-nação – de contornos imprecisos
e voláteis, que se disputava o domínio po-
lítico, num enfrentamento permanente
designado por guerra de fronteira. De
características sazonais, dela dependia
em grande medida a economia, por via
do saque de bens e animais e do cativeiro
de indivíduos, sobre os quais era imposto
um resgate ou que acabavam converti-
dos em mão de obra. A estas operações,
conhecidas como fossados, algaras ou
correrias, ou seja, incursões sobre o terri-
tório adversário, algumas de grande pro-
fundidade, mas nem sempre destinadas à

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AnticruzAdismo 479

conquista, juntavam-se outros ataques de A partir de 1095, o apelo à Cruzada daria


maior amplitude, por vezes chefiados por origem a um desígnio coletivo de expan-
reis, emires ou califas. Até à sua conquista são. Conquistada em 1099, Jerusalém
definitiva por D. Afonso Henriques, em transformou-se no centro do mundo
1147, Lisboa e Santarém mudariam vá- para os europeus. A peregrinação garan-
rias vezes de mãos entre o Condado Por- tia o perdão dos pecados e a promessa
tucalense e o Reino de Portugal, por um da vida eterna. Com o apoio de S. Ber-
lado, e o Império Almorávida, por outro. nardo de Claraval, uma das personalida-
A mobilidade da fronteira ditaria uma so- des mais influentes do seu tempo, surgiu
breposição de camadas culturais, de que a figura do cavaleiro, que concentrava
resultaria um produto influenciador da duas dimensões até então inconciliáveis:
identidade do povo português. religião e guerra. O monge-guerreiro co-
As dificuldades impostas pela violência locava as suas armas ao serviço de Deus
omnipresente, entre as quais a instabili- e lutava pelo bem comum. Travava, por
dade social, a incerteza do quotidiano, isso, uma guerra justa. A Hispânia, onde
a fiscalidade elevada e, não raras vezes, cristãos e muçulmanos se guerreavam
a escassez de alimentos e a especulação desde há séculos, tornou-se lugar de cru-
associada ao respetivo preço, assim como zada e quem abraçava a causa merecia o
uma forte dimensão religiosa, levaram as apoio do papado.
comunidades a depositar no sobrenatural Para lá das linhas muçulmanas, os se-
a confiança para repor a justiça do mun- res humanos comportavam-se de forma
do, resolver os problemas diários e prover
às necessidades mais elementares. Num
terreno fértil para uma salvação por in- Rei Afonso VI de Leão e Castela (1043-1109).
termédio do divino, floresceram os ideais
de cruzada e jihad. Procuremos-lhes os
antecedentes.
No tempo do Papa Leão IX (1049-
-1054), foi lançada uma reforma religiosa
com vista a fazer regressar o cristianismo
à pureza das origens e afirmar o poder
da Santa Sé. Tal ambiente repercutiu-se
de forma indelével no tabuleiro de xa-
drez da península Ibérica. Depois de o
Imperador Afonso VI, avô de D. Afonso
Henriques, se ter apossado de Toledo, em
1085, iniciou-se um fluxo de entrada no
território de clérigos de origem franca,
encarregados de levar à prática as novas
ideias. Com maior ou menor resistên-
cia, o movimento acabou por se impor
e sacrificar paulatinamente as tradições
moçarábicas, próprias das miscigenadas
sociedades de fronteira. Coimbra foi, de
resto, um bastião contra a reforma grego-
riana até ao primeiro quartel do séc. xii.

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480 AnticruzAdismo

semelhante. Apesar da condenação da na Batalha de Zallaqa, perto de Badajoz,


guerra por todas as religiões monoteístas, em outubro de 1086. Derrotadas as elites
também o islão procurou desde o iní- peninsulares pelo emir Yusuf b. Tashfin,
cio um discurso ratificador da violência. estava dado o mote para a conquista al-
Maomé pregava a guerra contra os que morávida do al-Andalus e para a expan-
desafiavam a vontade de Deus, os não são do islão para lá da fronteira do Tejo.
muçulmanos, opondo a chamada Dar al- Com o seu filho, Ali b. Yusuf (1106-1143),
-Islam, Casa do Islão, à Dar al-Harb, Casa o conceito de jihad conheceu uma trans-
da Guerra. Na prática, estabelecia o con- formação. Dados os perigos e a dificulda-
fronto entre os domínios islamizados e os de em realizar a peregrinação a Meca, os
territórios de potencial conquista, com a doutores de leis de Ali determinaram que
guerra entre muçulmanos interdita por- a jihad poderia substituir esta obrigação.
que considerada blasfémia. Não menos Rapidamente surgiram contingentes de
vedada estava a sua prática contra os po- voluntários a engrossar os exércitos an-
vos que, não sendo islamizados, aceitas- daluzes, com frequência sem preparação
sem pagar tributo. O séc. xi ibérico ve- militar e condenados ao massacre. A bus-
ria os cristãos impor esse mesmo tributo ca da redenção justificava a aceitação do
aos muçulmanos. Iniciada por Fernando martírio.
Magno de Leão e Castela, a política de pa- O ano de 1147, o das conquistas de San-
rias trocava a segurança dos reinos muçul- tarém e Lisboa, marcou uma viragem na
manos em que se decompôs o califado de vivência da fronteira, que, além de con-
Córdova por bens preciosos. Ao compen- tinuar a ser disputada no terreno, come-
sarem o Imperador, afastavam o perigo çou a ser transferida para o interior de
de ataques militares e podiam dedicar-se um reino em formação. Se, por um lado,
sem obstáculos ao comércio. Este exercí- a recuperação de Lisboa atraiu ao tecido
cio de equilíbrios em que ambas as partes social novos atores, como colonos de ori-
ficavam a ganhar fazia afluir elevados ren- gem peninsular ou norte-europeia, que
dimentos ao Norte cristão, cuja produção se misturaram com locais e, com o tem-
industrial se apresentava mais débil, e po, se diluíram no todo cristão, por ou-
contribuía para fazer florescer as institui- tro, os grupos muçulmanos, decapitados
ções religiosas, alvo de generosas doações das elites, foram autorizados a manter
por parte das elites. Afonso VI, filho do a sua identidade, mas adquiriram novo
precedente, levaria ao limite a política de enquadramento político. Em 1170, pela
imposição de tributo, a ponto de precipi- mão de D. Afonso Henriques, o foral dos
tar a entrada de um novo elemento no ce- mouros forros de Lisboa, Almada, Palme-
nário ibérico: o poder almorávida. Pres- la e Alcácer institucionalizou, dentro da
sionados pelas exigências incomportáveis comunidade maior, comunidades que de-
do Imperador, os reis das taifas apelaram veriam trabalhar as vinhas e os figueirais
ao espírito de jihad dos guerreiros do de- do Rei e pagar os impostos anteriormen-
serto do Sara, islamizados em anos recen- te exigidos a cristãos sob domínio mu-
tes e inflamados pelo fulgor da ortodo- çulmano, recebendo em troca proteção
xia. Se, na primeira metade do séc. xi, os e liberdade de frequentar locais de culto
almorávidas direcionaram a guerra santa próprios e escolher os seus líderes. Até
contra as tribos berberes e negras não is- ao édito de expulsão emitido por D. Ma-
lamizadas, com este repto, iriam confron- nuel em 1496, as comunas muçulmanas
tar-se com os poderes cristãos, reunidos iriam multiplicar-se a sul do Tejo. Estes

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AnticruzAdismo 481

cerca de 350 anos de convivência não


traduzem, porém, uma realidade de tole-
rância. A cristandade vitoriosa esforça-se
por construir um discurso de alteridade
como reforço da identidade. A fronteira,
a noção de outro, mantém-se com a for-
mação das comunas muçulmanas.
A conquista definitiva do Algarve, em
meados do séc. xiii, veio reforçar ou-
tra fronteira militar – a marítima, que
ganhou novo fôlego quando, em 1317,
D. Dinis atribuiu a Manuel Pezagno o tí-
tulo de almirante-mor de Portugal, com
poderes sobre todos os alcaides das ga-
lés, corsários e arrais. O alvo preferencial Batalha numa das Cruzadas do séc. xi.
das operações de corso eram as naves
muçulmanas. A retórica sobre o outro
mantém-se subjacente. O corpo norma- de taifa de Sevilha e dos impérios almorá-
tivo conhecido como Siete Partidas, redi- vida e almóada, para nomear alguns dos
gido em Castela no reinado de Afonso X mais evidentes. Em causa, estavam as ro-
(1252-1284), dá pistas para compreender tas comerciais a ligar a África subsariana e
esta realidade: “Cativos são chamados por o Mediterrâneo. Lembremos que o ouro
direito aqueles que caem na prisão de ho- de Tumbuctu e os escravos negros foram
mens de outra crença; e estes matam-nos a base do comércio almorávida durante
depois de os terem presos, pelo despre- cerca de um século, a partir de meados
zo que têm à sua lei, ou atormentam-nos da centúria de xi. O controlo do ouro
com penas muito cruéis, ou usam-nos permitiu-lhes cunhar moeda de confian-
como servos sujeitando-os a tais serviços ça neste metal, que se espalhou pelos cen-
que preferiam a morte à vida; e, se não tros comerciais do Mediterrâneo e, em al-
pagarem àqueles que lhes fazem todos gumas décadas, foi adotada em exclusivo
estes males, vendem-nos no momento pela Coroa portuguesa sob o nome de
em que quiserem” (AFONSO X, 1807, 2.ª morabitinos. O ideal de cruzada tornou-
partida, tít. 29, lei 1). -se, assim, o pano de fundo legitimador
A noção de fronteira será replicada de um projeto de conquistas diretamente
ao longo dos séculos consoante interes- liderado pela Coroa e sancionado pela
ses conjunturais. A conquista de Ceuta, Santa Sé. Em 1452, pela bula Dum Diver-
em 1415, que a historiografia aceita sem sas, o Papa Nicolau V deu a Afonso  V o
grande polémica enquanto evento que direito de reduzir os “sarracenos, os pa-
marca o fim da Idade Média portuguesa, gãos e outros incréus” à escravatura he-
veio renovar o discurso do cruzadismo. reditária, o que veio justificar a expansão
Portugal procurava posicionar-se no Me- do cativeiro de seres humanos durante a
diterrâneo através do controlo do Estrei- época dos Descobrimentos.
to de Gibraltar. O projeto não era novo. A noção de fronteira preside, de resto,
Ao longo dos séculos, vários poderes ten- à construção da própria narrativa fun-
taram assenhorear-se da passagem entre dacional do reino, pela qual um Afonso
a Hispânia e África: foi o caso do reino Henriques beneficiado com a visão de Je-

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482 AnticruzAdismo

sus Cristo na véspera da Batalha de Ouri- políticas não existiam na Idade Média, a
que, que sabemos não ter passado de um mesma que produziu a jihad e a cruzada:
fossado próprio da guerra de fronteira, o Mediterrâneo não se detinha perante
derrota cinco reis mouros, também eles os conflitos. A Hispânia, o Norte de Áfri-
inexistentes na conjuntura do al-Andalus ca, a Sicília, o Sul de França, as cidades
em 1139. Esta narrativa será com frequên- italianas e o Oriente mantinham intensas
cia repetida como argumento a favor da trocas comerciais. E, nas naves do comér-
independência de uma nação forjada cio, viajavam livros, sábios e peregrinos,
pelo favor divino e pela bravura militar. que faziam circular a cultura e a religião
Será assim com o Estado Novo no séc. xx. por todas as costas do mare nostrum.
A imagem de Ourique é tão poderosa,
que tanto a Monarquia como a República
a mantiveram no escudo da bandeira de
um Portugal que se definia por oposição
ao elemento muçulmano (mas também
castelhano).
Bibliog.: AFONSO X, Siete Partidas, Madrid,
Esta ideologia ditará, de resto, o atraso Real Academia de la História, 1807; BAR-
do nosso país na descoberta dos estudos ROS, Maria Filomena Lopes de, Tempos e Es-
de cariz orientalista a partir do séc. xix. paços de Mouros. A Minoria Muçulmana no Reino
Apesar de uma escola de arabistas ainda Português (Séculos XII a XV), Lisboa, FCG/FCT,
no séc. xviii, resultante da política pom- 2007; COELHO, António Borges, Portugal
balina de relações com o reino de Mar- na Espanha Árabe, Lisboa, Caminho, 2008;
FARINHA, António Dias, Os Portugueses em
rocos, e de, já no séc. xx, nomes como
Marrocos, Lisboa, Instituto Camões, 1999;
David Lopes (1867-1942) se terem cor-
FERNANDES, Hermenegildo, Entre Mouros
respondido com os grandes estudiosos e Cristãos: a Sociedade de Fronteira no Sudoeste
do seu tempo, terá sido a publicação de Peninsular Interior (Séculos XII e XIII), Disserta-
Portugal na Espanha Árabe por António ção de Doutoramento em História Medieval
Borges Coelho, uma coletânea de excer- apresentada à Universidade de Lisboa, Lis-
tos de fontes muçulmanas medievais de boa, texto policopiado, 2001; GOITEIN, S.
que emerge o território português dos D., A  Mediterranean Society, 5 vols., Berkeley/
Los Angeles/London, University of California
começos do séc. xxi, a funcionar como
Press, 1999; KEEGAN, John, Uma História da
a pedra que agita as águas do charco. Guerra, Lisboa, Tinta da China, 2006; LAGAR-
A fronteira começava a diluir-se, mas seria DÈRE, Vincent, Les Almoravides. Le Djihad An-
necessário esperar pelo pós-revolução de dalou 1106-1143, Paris, L’Harmattan, 1998;
1974 para que a historiografia começasse LOURINHO, Inês, 1147: Uma Conjuntura Vista
a dar passos mais seguros nesta área. Com a partir das Fontes Muçulmanas, Dissertação de
o tempo, o discurso oficial passou a ser de Mestrado em História Medieval apresentada
recuperação do elo com o Mediterrâneo. à Universidade de Lisboa, Lisboa, texto poli-
copiado, 2010; MATTOSO, José, Identificação
Mas os discursos nem sempre coinci-
de Um País – Ensaio sobre as Origens de Portugal,
diram com as práticas. Na obra A Medi- 2 vols., Lisboa, Estampa, 1995; NICOLAU V,
terranic Society, composta a partir dos do- Dum Diversas, 1452; SERRÃO, Joel, e MAR-
cumentos descobertos junto à sinagoga QUES, A. H. Oliveira, Nova História de Portugal,
de Fustat, no antigo Cairo, S. D. Goitein vol. iii, Lisboa, Presença, 1996; VILÁ, Jacinto
refere que, ao ler esses textos – cartas Bosch, Los Almorávides, Granada, Editorial
comerciais, contratos, peças religiosas –, Universidad de Granada, 1998.
fica com a impressão de que as fronteiras Inês Lourinho

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AnticuriAlismo romAno 483

Anticurialismo romano çoamento técnico de toda a estrutura e dos


seus agentes, que pode considerar-se fun-
dacional, e arquétipo para a futura Europa
dos Estados nacionalistas.
As instituições mais importantes surgidas
nesta época são o Consistório, assembleia
dos cardeais, imediatos colaboradores do

A expressão “Cúria romana” designa o


conjunto de instituições que trazem
à efetividade o primado magisterial e ju-
Papa; a Chancelaria, colégio de notários, es-
cribas e bibliotecários, cujas funções foram
atribuídas à Secretaria de Estado em 1973,
risdicional do Papa. A história do desen- por Paulo VI, na sequência da grande refor-
volvimento de tal complexo institucional ma da Cúria levada a cabo pela constituição
pode dividir-se basicamente em duas fases apostólica Regimini Ecclesiae Universae de 15
articuladas em torno da chamada Refor- de agosto de 1967; a Câmara Apostólica,
ma Gregoriana do séc. xi – assim desig- que tinha a seu cargo o governo dos Estados
nada devido ao seu principal propulsor, pontifícios e que, naturalmente, se esvaziou
o Papa S. Gregório VII (1073-1085), Dou- a partir de 1870 com o desaparecimento de
tor da Igreja –, que trouxe o papado ao tais domínios; a Dataria, que, como se de-
aspeto que apresentava nos começos do duz do nome, datava os documentos ponti-
séc. xxi, sobretudo quanto à centraliza- fícios, mas a que foram sendo dados pode-
ção administrativa do exercício do prima- res, sobretudo de administração das graças
do em todas as suas dimensões. pontifícias, e que foi suprimida também por
Fala-se de Cúria propriamente dita, com Paulo VI na reforma da Cúria; e, finalmente,
efeito, a partir de tal reforma centralizado- os Tribunais Superiores da Igreja, a Rota Ro-
ra, uma vez que as instituições anteriores, mana, a Assinatura Apostólica e a Peniten-
desde o séc. ix designadas conjuntamente ciaria, que ainda hoje conservam toda a sua
como “palácio lateranense”, exerciam a sua identidade, que não cabe aqui desenvolver.
função de governo para os domínios dire- A Reforma católica veio suscitar reformas
tos do Papa como bispo de Roma e titular importantes na Cúria, dotando-a de novas
da doação que lhe fizera Pepino, o Breve, instituições, as congregações, que, além
Rei dos Francos (714-768), depois de em de significarem um novo modelo de admi-
756 ter vencido os lombardos, que tinham nistração do poder centralizado no Papa,
expulsado o exarcado oriental de Ravena
em 734. A Cúria, pouco a pouco acrescen- Coroação de Pepino, o Breve (714-768).
tada, foi formando o chamado património
de S. Pedro, que, por sua vez, está na base
dos domínios temporais da Santa Sé, os pos-
teriormente designados Estados pontifícios,
sobre os quais o Papa exerceu governo secu-
lar até 1870. É sobretudo a partir do séc. xii
que a Cúria romana regista grande desen-
volvimento, devido à referida centralização
que faz chegar a Roma, de todas as nações
cristãs, grande quantidade de assuntos fis-
cais e beneficiais e ainda de administração
da justiça. Isto implicou um grau de aperfei-

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484 AnticuriAlismo romAno

significaram também um alargamento dos a preparação da nomeação dos bispos, a ad-


objetos do exercício desse poder, até ali vi- ministração da ereção de novas dioceses e a
rado sobretudo para questões da adminis- alteração das circunscrições eclesiásticas; e
tração da justiça, dos bens e do governo se- a Secretaria de Estado, que desde o início
cular. Para verificar este alargamento, basta tem funções relacionadas com a relação do
elencar as mais importantes congregações Papa com toda a Cúria, com tudo o que seja
surgidas nesta época: a do Santo Ofício, objeto de transmissão entre a Cúria e os Es-
com o título de Santa Inquisição – que não tados e cleros nacionais e, finalmente, com
deve confundir-se com as inquisições civis a diplomacia vaticana propriamente dita,
para matérias religiosas pedidas pelos reis originada remotamente pelos legados pon-
de Portugal e Espanha ao Papa pela mesma tifícios do tempo da Reforma Gregoriana.
época –, com a função de vigiar sobre a pu- A dimensão e complexidade desta estru-
reza da fé e da doutrina, cujo nome Paulo tura resultam naturalmente em que a Cú-
VI mudou para Congregação para a Doutri- ria romana, sendo um órgão de governo
na da Fé na véspera da clausura do Concílio do Papa, adquire com o tempo força vital e
Vaticano II; a Congregação do Índice, com inércias próprias, de modo que chega mes-
a função de elaborar e manter o catálogo mo a constituir-se como uma espécie de alter
de livros cuja leitura se proibia aos fiéis por ego do Papa, com o qual ele tem de relacio-
conterem erros ou ideias perigosas acerca nar-se, quer orgânica quer dialeticamente.
do dogma, da Sagrada Escritura, da discipli- Aliás, no próprio espírito do ordenamento
na eclesiástica e da moral, e que foi extinta canónico, se é certo que o Papa é um mo-
por Bento XV em 1917, passando as suas narca absoluto, também o é que o princípio
funções para a Doutrina da Fé, que, por da subsidiariedade articula todas as relações
sua vez, veio a declarar em 24 de junho de de poder entre os vários níveis hierárquicos
1966 que o Índice – cuja última publicação da pirâmide eclesiástica, de modo que nem
é de 1948 – deixava de ser lei eclesiástica, a Cúria pode prescindir do Papa, a não ser
pelo que deixava de estar sujeito a censu- em sede vacante, nem o Papa pode prescin-
ras eclesiásticas quem lesse livros erróneos dir dela.
e proibidos; a Congregação do Concílio, Passada esta revista pelos principais ór-
que tinha a missão de promover a aplicação gãos da Cúria romana, compreende-se que,
dos cânones do Concílio de Trento com a do mesmo modo que com o antipapismo,
competência de os interpretar, bem como também com o discurso anticurialista, sus-
as leis que fossem promulgadas com esse citado pelas consequentes tensões entre o
fim; a Congregação De Propaganda Fide, primado e os poderes civis e eclesiásticos
já do pontificado de Gregório XV, instituí- locais, se pode agrupar as suas várias mo-
da em 1622, designada por Paulo VI, na dalidades em dois grandes conjuntos rela-
reforma da Cúria, por Congregação para a cionados com as dimensões jurisdicional e
Evangelização dos Povos, e que desde o iní- magisterial do primado romano que a Cúria
cio tem a missão de promover o anúncio do torna efetivo.
Evangelho em todo o mundo e de velar pela No primeiro conjunto de aversões à Cú-
administração espiritual em todas as dimen- ria, deve ter-se em conta um fator históri-
sões nas terras de missão em que as igrejas co-político comum, a saber, o facto de a
locais não chegaram ainda à plena maturi- Cúria, pelas suas dimensões, acabar por
dade; a Congregação Consistorial, depois refletir, na sua constituição e no seu provi-
denominada Congregação para os Bispos, mento, de pessoal a geoestratégia europeia,
cuja tarefa se relaciona desde o início com de modo que não raramente os conflitos

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entre os príncipes e a Cúria são suscitados de reforma geral da Igreja, e especialmente


por oposições não imediatamente eclesiás- da Cúria, para que depois se lhe desse um
ticas, mas sim político-diplomáticas. Um Papa que viesse a integrar-se nesse progra-
outro fator, não direta ou substancialmente ma. Os principais promotores desta segun-
eclesiástico – mas já muito mais próximo do da via foram, significativamente, os padres
centro das relações da Cúria romana com conciliares alemães e ingleses, mas a via se-
os seus interlocutores –, para os conflitos e guida finalmente veio a ser a primeira.
as aversões pela Cúria foi, progressivamen- Pelo trabalho de uma comissão de refor-
te, a necessidade de sustentação financeira ma emanada do Concílio de Pisa (1409),
de tal estrutura, maior do que a de qualquer de iniciativa de dois grupos de cardeais dos
reino da época, que fez proliferar as taxas a dois colégios cardinalícios de Roma e de
que se submete um sem-número de licen- Avinhão, e pelo da emanada do Concílio
ças, dispensas, graças, provisões, etc., enfim, de Constança, já por iniciativa do ali elei-
tudo que pudesse contribuir para o alimen- to Martinho V, deduzem-se as principais
to pecuniário da Cúria. I.e., à medida que razões de queixa contra o governo central
o exercício do primado alarga os limites da Igreja. No primeiro caso, propunha-se
da centralização, a estrutura cresce; à me- a restituição aos bispos da antiga liberdade
dida que a centralização se aprofunda e a na competência de colação aos benefícios
estrutura cresce, cresce o número de atos eclesiásticos, uma significativa redução dos
jurídicos e burocráticos emitidos pela Cúria tributos pagos pelas propriedades eclesiás-
necessários às vidas eclesiástica e secular lo- ticas e outros contributos das nações, que
cais; à medida que tudo isto cresce, cresce tinham crescido nos últimos decénios, nem
a necessidade de meios financeiros para su- sempre de modo justificado e sobretudo
portar a Cúria, e as fontes financeiras serão equitativo. No segundo caso, propunha-se a
cada vez mais as pessoas físicas e jurídicas diminuição das uniões e incorporações de
eclesiásticas locais, necessitadas desses atos benefícios eclesiásticos nas mãos dum mes-
jurídicos curiais e vítimas de e sujeitas a nu- mo titular, a renúncia por parte da Cúria
merosos abusos. romana ao contributo dos benefícios vagos,
O período histórico clássico e fundacio- a proibição de toda a simonia e da dispensa
nal de um discurso anticurialista denuncia-
dor desses frutos espúrios do crescimento Alegoria ao Concílio de Pisa (1409).
da Cúria romana é o tempo do Cisma do
Ocidente (1378-1417), a ponto de no Con-
cílio de Constança (1414-1418), reunido
com o desejo expresso de o resolver, uma
das questões mais debatidas ter sido exata-
mente a de saber, no contexto da discussão
mais profunda sobre a relação do Papa com
o Concílio e com a Igreja, se a necessária
reforma da Igreja deveria começar por uma
eleição, finalmente purificada, de um novo
e único Papa (que veio a conseguir-se com
a eleição de Martinho V), que depois refor-
masse a Cúria e a expurgasse dos numero-
sos abusos de poder e de administração, ou
se se deveria primeiro votar um programa

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da ordem clerical para pessoas titulares de turo, mas para as dioceses ditas antigas, do
benefícios eclesiásticos, a restrição severa continente, a Santa Sé continuou a evitar
do direito papal de decretar dízimos a clé- usar essa expressão, chamando à nomeação
rigos e igrejas locais, e a obrigatoriedade de enviada pela Coroa “súplica” – nos termos
os clérigos usarem as vestes próprias da sua usados por Alexandre VI – e, aqui ou ali,
ordem. quando o Rei demorava demasiado tempo
Vale a pena considerar, à luz deste esboço a prover alguma diocese, a nomear por ini-
do cenário histórico, um caso típico de lon- ciativa própria, sem mais.
ga disputa entre a Monarquia Portuguesa Neste contexto, generalizável a quase
e o Papa e a Cúria romana, bem inserido, toda a Europa, a Santa Sé sempre reservou
aliás, no contexto geral europeu do crescen- para si a averiguação da idoneidade dos
te e cada vez mais generalizado regalismo candidatos, e a Cúria romana mostrava-
ao longo da Idade Moderna, a saber, a es- -se especialmente ciosa da prerrogativa de
colha e nomeação dos bispos, por misturar que o inquérito não lhe saísse das mãos.
em si fatores de ordem vária, desde os po- No Concílio de Trento, essa resistência foi
litico-eclesiásticos até aos puramente finan- visível, mas os cânones sobre a matéria aca-
ceiros. A solução final dada por Alexandre baram por se inclinar para a proposta de
VI ao conflito provocado pela nomeação do que tal inquérito, remetido, é certo, para
cardeal de Alpedrinha, D. Jorge da Costa, a Cúria, seria feito sob modelo emanado
para arcebispo de Braga passou a ser invo- desta, mas realizado no país ou na região
cada pela Monarquia Portuguesa como fun- do candidato. Naturalmente que o final do
damento para a institucionalização do que processo, com a proclamação da eleição e a
viria a ser, no padroado, a apresentação do bula de nomeação/confirmação, ficava su-
bispo por parte da Coroa e a sua confirma- jeito ao pagamento – por parte do eleito,
ção papal. O Papa prometia no breve Cum nuns casos, de quem o apresentava, noutros
te in Praesentia de 22 de maio de 1503 que, – das anatas, despesa nada negligenciável.
quando novamente vagasse o arcebispado, A totalidade das despesas podia chegar à
o proveria “personae idoneae, pro qua Sua dimensão dos rendimentos anuais de uma
Magestas nobis suplicaverit” (PAIVA, 2006, diocese das mais pequenas, pelo que o Rei
42). Tratava-se, afinal, da formalização de não poucas vezes mobilizou os cabidos para
um costume que já vinha da segunda dinas- ajudarem a tal pagamento.
tia, mas que nunca tinha tomado aparato A Coroa portuguesa nunca se conformou
jurídico estável, nunca tendo abdicado, no com aquela distinção entre súplica e apre-
entanto, a Santa Sé de liderar o processo sentação que a Santa Sé manteve, respeti-
conducente à averiguação e ao reconheci- vamente, em relação às dioceses antigas e
mento da idoneidade dos candidatos apre- às do ultramar, particularmente D. João V,
sentados. Quando, com a bula Praeclara que, no contexto do amplo plano de unir
Charissime de 30 de dezembro de 1551, de o trono e o altar, não descansou enquanto
Júlio III, se deu perpetuamente aos Reis de não conseguiu, em 1740 – à custa inclusi-
Portugal a administração do mestrado das ve de corte de relações diplomáticas –, que
três grandes ordens militares (Cristo, Avis e a Santa Sé formalizasse unicamente pela
Santiago) e com isso chegou à plena matu- apresentação o que na realidade já vinha
ridade o direito de padroado para todo o sendo praticado ao longo de três séculos.
Império, a apresentação dos bispos por par- É neste contexto que é muito ilustrativa
te da Coroa foi formalizada para as dioceses do espinho anticurialista encravado no pé,
ultramarinas já existentes e a fundar no fu- por assim dizer, da monarquia moderna e

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absolutista portuguesa a notícia que o pró- tra as usurpações e vícios dos curiais roma-
prio D. João V deixou numa carta a Pedro nos […]. Grande prova do magnânimo es-
da Mota e Silva, secretário de Estado dos pírito de Gerson! Levantar a voz e levantá-la
Negócios Interiores do Reino e irmão do bem alto contra uns direitos que a cúria ro-
cardeal da Mota, de que, por ocasião da no- mana, aproveitando-se da inércia de alguns
meação de vários prelados simultaneamen- Príncipes seculares e da indiscreta incredu-
te, “já tinha enviado um agente seu a casa lidade do Povo, queria fossem respeitados
do patriarca por causa da ‘ladroeira dos gas- e obedecidos como Direitos divinos, como
tos chamados dos processos’” (Id., Ibid., 86). máximas do Evangelho” (SANTOS, 1982,
Uma versão mais plurifacetada de aversão 176). Os censores da Tentativa Theológica
à Cúria romana, pelo que esta significa de unanimemente recomendaram a sua pu-
centralização romana que ofuscou a digni- blicação pela virtude teológica de recordar
dade original do bispo, reduzido à condição o valor original do ministério episcopal,
de funcionário do Papa, pelo que isso sig- conforme a tradição eclesial mais antiga
nifica, conexamente, de barreira às preten- evidencia, entretanto ofuscado pela excessi-
sões regalistas e, finalmente, pela imagem va reserva de atos ministeriais por parte do
final de boca sugadora de dinheiro, como Papa e da Cúria. Vale a pena, para o nosso
símbolo da humilhação infligida por um tema, transcrever um deles, Fr. João Baptis-
poder desprovido de autoridade, encon- ta de S. Caetano, que chama a atenção para
tramos, pouco mais tarde, nas declarações uma verdadeira caricatura da centralização
dos censores da Tentativa Theológica, publi- sustentada pela Cúria romana: “Pretende
cada em 1766, do P.e António Pereira de alguém casar, não importa que seja nobre
Figueiredo, o teólogo oficial do regalismo ou mecânico, que tenha causa ou que não
pombalino. O impedimento do recurso à tenha causa para a dispensa, porque dinhei-
Sé Apostólica era o corte em curso das rela- ros já entram no número dos motivos dela
ções diplomáticas entre Portugal e a Santa […]. Pede a dispensa e tão breve envia a
Sé, devido, entre outras razões, à recusa pa- remessa, como vem a expedição, porque se
pal em que os Jesuítas, já extintos aqui, fos- o banqueiro avisa que há dificuldade, já a
sem julgados exclusivamente por Portugal. praxe tem ensinado que estas palavras, na
O próprio P.e Figueiredo invoca como seu frase daqueles contratadores, significam:
modelo Jean Gerson (1363-1429), impor- que vá mais dinheiro. Vem o Breve. Mas em
tante teólogo e autor espiritual do tempo que forma? Virá a causa julgada, averigua-
do Cisma do Ocidente e por cuja solução dos os motivos e feita a graça? Nada menos:
muito lutou e escreveu (especialmente Do há já muitos anos que o estilo da cúria está
Modo de Se Conduzir num Tempo de Cisma e em passar estes Breves em forma comissória
De Restitutione Obedientiae, escritos ambos a e não em forma graciosa e é o mesmo que
partir de 1397). Neste autor, que sustentou vir licença para que o Bispo dispense sendo
a superioridade do concílio-geral em re- a causa certa. Nada se averigua em Roma:
lação ao Papa e participou na elaboração todo o conhecimento desta causa mais tor-
dos famosos quatro artigos do Concílio de na para o Bispo a quem se ordena que dis-
Constança, a futura carta do galicanismo, pense; em Roma ficaram os dinheiros e cá
encontra o P.e Pereira de Figueiredo uma hão de fazer os processos” (Id., Ibid., 181).
teologia “sempre regulada pelas máximas Na realidade, o contexto histórico, am-
da antiguidade. Por isso, discorria sempre plamente ideológico-político, em que o
com solidez; nunca se deixava arrastar por discurso anticurialista confessadamente se
novidades. Declamou como ninguém con- comprometeu com o poder civil regalista,

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galicano, etc. não permitia, nem permitiu


durante todo o séc. xix, que a justiça ecle-
sial e, mais propriamente, teológico-dog-
mática das suas análises e juízos fosse mais
geralmente reconhecida. Tão fundado na
realidade, no dogma e na tradição eclesial
era este discurso, como o inverso, antirre-
galista, ultramontanista, i.e., o favorecedor
da centralização da autoridade da Igreja na
Cúria e no Papa como antídoto contra os
perigos também reais – quer a nível mera-
mente eclesiástico, quer a nível teológico-
-dogmático, como se via no anglicanismo
– da independência das Igrejas nacionais
e das dioceses. Com efeito, aquilo que, nos D.R.

começos do séc. xxi, o ordenamento ca- Papa Bento XVI (n. 1927).

nónico prevê em termos de dispensas, e.g.,


reservadas à Santa Sé, é muitíssimo redu- fundamentalmente tomista e neotomista,
zido em relação sequer ao primeiro Códi- de pendor discursivo jurídico-moral, her-
go de Direito Canónico de 1917, sem que dada da Idade Média e da Contrarreforma,
aquilo que permanece reservado seja visto opôs-se e venceu uma teologia de armação
como contraditório com a originalidade e humanista-kantiana, cujo principal repre-
consistência teológica do ministério verda- sentante é Karl Rahner (1904-1984), com
deiramente sacerdotal do bispo diocesano uma rejuvenescida ligação à tradição patrís-
em comunhão com todo o colégio episco- tica protagonizada por Yves Congar (1904-
pal e sua cabeça, o Papa. -1995), Henri de Lubac (1896-1991), Jean
Ora, é também neste âmbito teológico- Daniélou (1905-1974) e Marie-Dominique
-dogmático e magisterial que nos últimos Chenu (1895-1990), todos com importan-
séculos da Modernidade a Igreja apresenta tes estudos na área da apropriação medieval
condições para o desenvolvimento de um dos padres da Igreja.
discurso anticurialista que se pode dizer Não se pense, no entanto, que esse em-
alcança uma vitória retumbante no Concí- bate fosse exatamente entre a generalidade
lio Vaticano II. Com efeito, basta consultar do episcopado e a Cúria romana, o que se
qualquer simples crónica do Concílio para pode facilmente verificar pela consulta dos
se encontrar esta nota fundamental: logo à vota – i.e., expressão dos desejos de cada bis-
partida, os esquemas de textos preparados po para as matérias sobre as quais o Concí-
pelas várias comissões curiais, basicamente lio deveria trabalhar –, pedidos aos bispos,
decalcadas das congregações romanas, para superiores religiosos e das universidades ca-
serem trabalhados pela assembleia conciliar tólicas para a preparação do Concílio e por
foram rejeitados e tudo foi começado de estes enviados em grande número: 1998 de
novo pela própria assembleia. E não foi só o 2594 pedidos. Se aqui e ali são visíveis ten-
método a ser transformado, foram também, dências antirromanas, sobretudo no epis-
e sobretudo, as correntes filosófico-teológi- copado alemão, o tom geral é o do desejo
cas e os métodos de exposição da teologia e de uma reforma a partir da tradição que a
do dogma subjacentes aos textos que foram teologia oficial da Cúria representava. Cer-
substituídos. A uma teologia de armação to é que por vários modos o episcopado da

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AnticuriAlismo romAno 489

Europa Central obteve um controlo progra- Necessidade dos Súbditos, Lisboa, Officina de
mado e consciente da Cúria romana, fazen- Miguel Rodrigues, 1766; HOLMES, J. Derek,
do substituir praticamente todo o trabalho e BICKERS, Bernard W., História da Igreja Ca-
preparatório do Concílio por ela realizado. tólica, Lisboa, Edições 70, 2006; KNOWLES,
David, e OBOLENSKY, Dimitri, A Idade Média,
E foi essa substituição o motor da direção
in ROGIER, L.-J. et al., Nova História da Igreja,
teológica de fundo. vol. ii, Petrópolis, Editora Vozes, 1983; MAR-
Esta oposição entre episcopados e Cúria COS, Rui Manuel Figueiredo, A Legislação Pom-
romana não foi, no entanto, esvaziada pela balina. Alguns Aspectos Fundamentais, Coimbra,
“derrota” sofrida pela segunda no Concí- Almedina, 2006; MONDIN, Battista, Dizio-
lio, antes continuou e está na base de uma nario Enciclopedico dei Papi. Storia e Insegnamenti,
das bandeiras do pontificado de Bento XVI Roma, Città Nuova Editrice, 1995; OLIVEIRA,
Miguel, História Eclesiástica de Portugal, ed. rev. e
(2005-2013), que ele explicitou como a ne-
atualizada por Artur Roque de Almeida, Mem
cessidade de uma apropriação e receção do Martins, Europa-América, 1994; ORLANDIS,
Concílio numa “hermenêutica de continui- José, Historia de las Instituciones de la Iglesia Ca-
dade”, i.e., uma hermenêutica que lance tólica, Pamplona, Ediciones Universidad de
um olhar sobre o Concílio supondo-o numa Navarra S.A., 2005; PAIS, Álvaro, Estado e
completa integração na longa, longínqua e Pranto da Igreja (Status et Planctus Ecclesiae), esta-
perene Tradição da Igreja, em vez de o su- belecimento do texto e trad. Miguel Pinto de
Meneses, introd. João Morais Barbosa, vol.  i,
por como uma solução de continuidade em
Lisboa, Instituto Nacional de Investigação
relação a essa mesma Tradição.
Científica, 1983; PAIVA, José Pedro, Os Bispos
de Portugal e do Império: 1495-1777, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 2006; SANTOS,
Cândido dos, “António Pereira de Figueire-
do, Pombal e a Aufklärung: ensaio sobre o
Bibliog.: BARBOSA, David Sampaio Dias, regalismo e o jansenismo em Portugal na
“Santa Sé e Portugal”, in AZEVEDO, Carlos 2.ª metade do século xviii”, Revista de Histó-
Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa ria das Ideias, vol. iv, t. i, 1982, pp. 167-203;
de Portugal, vol. 4, Lisboa, Círculo de Leito- SEABRA, João, O  Estado e a Igreja em Portugal
res/Centro de Estudos de História Religiosa no Início do Século XX. A Lei da Separação de 1911,
da Universidade Católica Portuguesa, 2001, Cascais, Principia, 2009.
pp. 155-164; BENTO XVI, “Discurso aos car-
Pedro Carlos Lopes de Miranda
deais, bispos e prelados da Cúria romana na
apresentação dos votos de Natal”, Roma,
22 dez. 2005; FELÍCIO, Manuel da Rocha,
Portugal e a Definição Dogmática da Infalibilidade
Pontifícia. Teologia, Magistério e Debate Público,
Viseu, Instituto Superior de Teologia, 2000;
FERREIRA, Manuel de Pinho, A Igreja e o Es-
tado Novo na Obra de D. António Ferreira Gomes,
Dissertação de Doutoramento em Direito Ca-
nónico apresentada à Universidad Pontificia
de Salamanca, Salamanca, texto policopia-
do, 2004; FIGUEIREDO, António Pereira de,
Tentativa Theológica em que Se Pretende Mostrar
Que Impedido o Recurso à Sé Apostólica Se Devolve
aos Senhores Bispos a Faculdade de Dispensar dos
Impedimentos Públicos do Matrimónio e de Prover
em Todos os Mais Cazos Reservados ao Papa to-
das as vezes que assim o Pedir a Pública e Urgente

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