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Uma distinção tem que ser feita - em todos os estudos de mitologia - entre as

atitudes com as divindades representadas, por um lado, pelo sacerdote e seu


rebanho e, por outro, pelo poeta, artista ou filósofo criativo. O primeiro tende para o
que eu chamaria de uma interpretação positivista das metáforas de seu culto. Tal
interpretação é estimulada pela atitude da oração, já que na oração é extremamente
difícil manter o equilíbrio entre crença e incredulidade que é próprio da
contemplação de uma imagem ou ideia de Deus. O poeta, o artista e o filósofo, por
outro lado, sendo eles próprios criadores de imagens e de ideias, percebem que
toda representação - seja na matéria visível da pedra ou na matéria mental da
palavra - é necessariamente condicionada pela falibilidade dos órgãos humanos.
Dominado por sua própria musa, um mau poeta pode imaginar que suas visões
sejam fatos sobrenaturais e, consequentemente, cair na postura de um profeta -
cujas declarações eu definiria como “poesia exagerada”, explicada em excesso;
assim, ele se torna o fundador de um culto e um produtor de clérigos. Mas assim
também um sacerdote dotado pode concluir que suas visões sobrenaturais perdem
corpo, mergulham no vazio, mudam de forma e até mesmo se dissolvem: desse
modo, tornar-se-á possivelmente um profeta ou, se mais dotado, um poeta criativo.
Três importantes metamorfoses dos motivos e temas de nosso assunto, por- tanto,
têm que ser reconhecidas como fundamentalmente diferentes, mesmo que
fundamentalmente relacionadas, a saber: a verdadeira poesia do poeta, a poesia
exagerada do profeta e a poesia morta do clérigo. Se por um lado a história da
religião é em grande parte o registro das duas últimas, a história da mitologia inclui
todas as três e, ao fazer isso, coloca não apenas a poesia, mas também a religião,
numa relação mais saudavelmente vivificada com as fontes do pensamento criativo.
Pois há na poesia uma tendência ("poesia crua”) a permanecer nas extravagâncias
da surpresa, júbilo ou angústia pessoais diante das realidades da vida em um
universo que os poetas não fizeram; por outro lado, na religião pode prevalecer a
tendência oposta –a de não expressar absolutamente nenhuma experiência pessoal,
mas apenas clichês autorizados.
No amplo panorama da história da humanidade, pode-se distinguir quatro funções
essenciais da mitologia. A primeira e mais característica - que vitaliza todas - é a de
trazer à tona e sustentar um sentido de espanto diante do mistério da existência. O
Prof. Rudolf Otto denominou esse reconhecimento de numinoso, e é o estado
mental característico de todas as religiões que podem ser propriamente ditas.' Ele
antecede e desafia qualquer definição. Ele é, no nível primitivo, terror demoníaco; no
nível mais elevado, arrebatamento místico; e entre os dois estados há muitos outros
níveis. Definido, pode ser explicado e ensinado; mas explicar e ensinar não podem
produzi-lo. Tampouco pode a autoridade impô-lo. Apenas o acaso da experiência e
os símbolos característicos de um mito vivo podem trazê-lo à tona e sustentá-lo;
contudo, tais símbolos não podem ser inventados. Eles são encontrados. Em
seguida, eles atuam por si mesmos. E as mentes que os encontram são as mentes
vivas, sensíveis, criativas, que um dia foram conhecidas como visionárias, e hoje
como poetas e artistas criativos. Mais importantes, mais eficazes para o futuro de
uma cultura do que seus estadistas e seus exércitos, são esses mestres da
expressão espiritual, pela qual o barro do homem desperta para a vida.
A segunda função da mitologia é oferecer uma cosmologia, uma imagem do
Universo que sustentará e será sustentada por aquele sentido de espanto diante do
mistério de uma presença e a presença de um mistério. A cosmologia tem que
corresponder, entretanto, à experiência, conhecimento e mentalidade reais do grupo
cultural em questão. Assim notamos que, quando os sacerdotes observadores do
céu na antiga Suméria, por volta de 3500 a.C., descobriram a ordem dos planetas,
todo o sistema mítico do Oriente Próximo nuclear deu um passo além dos simples
temas primitivos das tribos de caçadores e agricultores. A visão grandiosa de uma
ordem temporal e espacial, matematicamente impessoal, ganhou forma, da qual a
visão de mundo da Idade Média – não menos que a da antiga Índia, da China e de
Yucatán - foi apenas uma variante tardia. Hoje essa visão está dissolvida. E aqui
tocamos num problema crucial das religiões de nosso tempo, porque os clérigos, em
geral, continuam pregando sobre temas do primeiro ao quarto milênio a.C.
Nenhum adulto hoje se voltaria para o Livro do Gênese com o propósito de saber
sobre as origens da Terra, das plantas, dos animais e do homem. Não houve
nenhum dilúvio, nenhuma Torre de Babel, nenhum primeiro casal no paraíso, e entre
a primeira aparição do homem na Terra e as primeiras construções de cidades, não
uma geração (de Adão para Caim), mas milhares delas devem ter vindo a este
mundo e passado para o outro. Hoje nos voltamos para a ciência em busca de
imagens do passado e da estrutura do mundo. O que os demônios rodopiantes do
átomo e as galáxias a que nos aproximam os telescópios revelam é uma maravilha
que faz com que a Babel da Bíblia pareça uma fantasia do reino imaginário da
querida infância de nosso cérebro.
Uma terceira função da mitologia é garantir a ordem social vigente, para integrar
organicamente o indivíduo em seu grupo. Encontramos aqui mais uma vez que a
ampliação gradual da esfera e conteúdo do grupo foi o sinal característico do
desenvolvimento da humanidade, desde o primeiro agrupamento tribal até o
conceito moderno pós-alexandrino de uma sociedade mundial única. Contra a
amplitude deste conceito desafiador e abrangente, numerosas províncias ainda
resistem, como as das várias mitologias nacionais, raciais, religiosas ou classistas,
que um dia podem ter tido a sua razão de ser, mas hoje estão superadas.
A função social de uma mitologia, e dos ritos pelos quais ela é expressa, é
estabelecer em cada membro do grupo em questão um “sistema de sentimentos”
que o vinculará espontaneamente aos objetivos desse grupo. O “sistema de
sentimentos” apropriado para uma tribo de caçadores seria impróprio para uma de
agricultores; o adequado para um matriarcado é inadequado a um patriarcado; e o
de qualquer grupo tribal é impróprio para os indivíduos de hoje, que criaram
instrumentos para percorrer o planeta de leste para oeste e do Norte para o Sul.
As antigas ordens míticas davam autoridade a seus símbolos, atribuindo-os a
deuses, a heróis nacionais ou a alguma força impessoal superior como a ordem do
Universo; e a imagem da própria sociedade, dessa maneira relacionada com a
imagem superior da natureza, tornou-se um recipiente de temor religioso. Hoje
sabemos, na maioria das vezes, que nossas leis não provêm de Deus nem do
Universo, mas de nós mesmos, são convencionais, não absolutas; e que ao
transgredi-las, ofendemos não a Deus, mas aos homens. Nem os animais nem as
plantas, nem o zodíaco nem seu suposto criador, mas nossos semelhantes
tornaram-se hoje os responsáveis pelo nosso destino e nós pelo deles. No passado
recente talvez possa ter sido possível que homens inteligentes e de bem
acreditassem que sua sociedade (qualquer que ela fosse) era a única boa, que além
de suas fronteiras estavam os inimigos de Deus e que eles tivessem sido
escolhidos, consequentemente, para expulsar os princípios do ódio para fora do seu
mundo, enquanto cultivavam o amor em seu interior, para aqueles cujo “sistema de
sentimentos" era de Deus. Hoje, entretanto, não há nenhum tal exterior. Enclaves de
provincialismo nacional, racial, religioso e classista persistem, mas as realidades
físicas tornaram ilusórios os horizontes fechados. O antigo deus está morto, com seu
pequeno mundo e sua pequena e estreita sociedade. O novo centro de fé e
confiança é a humanidade. E se o princípio do amor não puder realmente ser
despertado em cada um de nós - como estava mitologicamente em Deus - para
governar o princípio do ódio, nosso único destino será a Terra Devastada, e os
senhores do mundo, seus demônios.
A quarta função da mitologia é introduzir o indivíduo na ordem das realidades de sua
própria psique, orientando-a para o seu próprio enriquecimento e realização
espiritual. Antigamente - embora persista em algumas culturas arcaicas - •caminho
era subordinar toda opinião, vontade e capacidades individuais à ordem social: o
princípio do ego (como vimos no volume Mitologia Oriental) devia ser subjugado e,
se possível, até apagado; ao passo que os arquétipos, os papéis ideais da ordem
social eram impressos em todos, inexoravelmente, de acordo com suas funções
sociais.

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