1) Há uma distinção entre a atitude de sacerdotes e crentes em relação a deuses e a atitude de poetas e filósofos, que enxergam representações divinas de forma mais crítica;
2) Mitologias cumprem funções como trazer um sentido de mistério sobre a existência, oferecer uma cosmologia culturalmente relevante, garantir a ordem social, e orientar o indivíduo em sua psique;
3) À medida que sociedades evoluem, mitologias precisam evoluir também para manterem relevância
1) Há uma distinção entre a atitude de sacerdotes e crentes em relação a deuses e a atitude de poetas e filósofos, que enxergam representações divinas de forma mais crítica;
2) Mitologias cumprem funções como trazer um sentido de mistério sobre a existência, oferecer uma cosmologia culturalmente relevante, garantir a ordem social, e orientar o indivíduo em sua psique;
3) À medida que sociedades evoluem, mitologias precisam evoluir também para manterem relevância
1) Há uma distinção entre a atitude de sacerdotes e crentes em relação a deuses e a atitude de poetas e filósofos, que enxergam representações divinas de forma mais crítica;
2) Mitologias cumprem funções como trazer um sentido de mistério sobre a existência, oferecer uma cosmologia culturalmente relevante, garantir a ordem social, e orientar o indivíduo em sua psique;
3) À medida que sociedades evoluem, mitologias precisam evoluir também para manterem relevância
Uma distinção tem que ser feita - em todos os estudos de mitologia - entre as
atitudes com as divindades representadas, por um lado, pelo sacerdote e seu
rebanho e, por outro, pelo poeta, artista ou filósofo criativo. O primeiro tende para o que eu chamaria de uma interpretação positivista das metáforas de seu culto. Tal interpretação é estimulada pela atitude da oração, já que na oração é extremamente difícil manter o equilíbrio entre crença e incredulidade que é próprio da contemplação de uma imagem ou ideia de Deus. O poeta, o artista e o filósofo, por outro lado, sendo eles próprios criadores de imagens e de ideias, percebem que toda representação - seja na matéria visível da pedra ou na matéria mental da palavra - é necessariamente condicionada pela falibilidade dos órgãos humanos. Dominado por sua própria musa, um mau poeta pode imaginar que suas visões sejam fatos sobrenaturais e, consequentemente, cair na postura de um profeta - cujas declarações eu definiria como “poesia exagerada”, explicada em excesso; assim, ele se torna o fundador de um culto e um produtor de clérigos. Mas assim também um sacerdote dotado pode concluir que suas visões sobrenaturais perdem corpo, mergulham no vazio, mudam de forma e até mesmo se dissolvem: desse modo, tornar-se-á possivelmente um profeta ou, se mais dotado, um poeta criativo. Três importantes metamorfoses dos motivos e temas de nosso assunto, por- tanto, têm que ser reconhecidas como fundamentalmente diferentes, mesmo que fundamentalmente relacionadas, a saber: a verdadeira poesia do poeta, a poesia exagerada do profeta e a poesia morta do clérigo. Se por um lado a história da religião é em grande parte o registro das duas últimas, a história da mitologia inclui todas as três e, ao fazer isso, coloca não apenas a poesia, mas também a religião, numa relação mais saudavelmente vivificada com as fontes do pensamento criativo. Pois há na poesia uma tendência ("poesia crua”) a permanecer nas extravagâncias da surpresa, júbilo ou angústia pessoais diante das realidades da vida em um universo que os poetas não fizeram; por outro lado, na religião pode prevalecer a tendência oposta –a de não expressar absolutamente nenhuma experiência pessoal, mas apenas clichês autorizados. No amplo panorama da história da humanidade, pode-se distinguir quatro funções essenciais da mitologia. A primeira e mais característica - que vitaliza todas - é a de trazer à tona e sustentar um sentido de espanto diante do mistério da existência. O Prof. Rudolf Otto denominou esse reconhecimento de numinoso, e é o estado mental característico de todas as religiões que podem ser propriamente ditas.' Ele antecede e desafia qualquer definição. Ele é, no nível primitivo, terror demoníaco; no nível mais elevado, arrebatamento místico; e entre os dois estados há muitos outros níveis. Definido, pode ser explicado e ensinado; mas explicar e ensinar não podem produzi-lo. Tampouco pode a autoridade impô-lo. Apenas o acaso da experiência e os símbolos característicos de um mito vivo podem trazê-lo à tona e sustentá-lo; contudo, tais símbolos não podem ser inventados. Eles são encontrados. Em seguida, eles atuam por si mesmos. E as mentes que os encontram são as mentes vivas, sensíveis, criativas, que um dia foram conhecidas como visionárias, e hoje como poetas e artistas criativos. Mais importantes, mais eficazes para o futuro de uma cultura do que seus estadistas e seus exércitos, são esses mestres da expressão espiritual, pela qual o barro do homem desperta para a vida. A segunda função da mitologia é oferecer uma cosmologia, uma imagem do Universo que sustentará e será sustentada por aquele sentido de espanto diante do mistério de uma presença e a presença de um mistério. A cosmologia tem que corresponder, entretanto, à experiência, conhecimento e mentalidade reais do grupo cultural em questão. Assim notamos que, quando os sacerdotes observadores do céu na antiga Suméria, por volta de 3500 a.C., descobriram a ordem dos planetas, todo o sistema mítico do Oriente Próximo nuclear deu um passo além dos simples temas primitivos das tribos de caçadores e agricultores. A visão grandiosa de uma ordem temporal e espacial, matematicamente impessoal, ganhou forma, da qual a visão de mundo da Idade Média – não menos que a da antiga Índia, da China e de Yucatán - foi apenas uma variante tardia. Hoje essa visão está dissolvida. E aqui tocamos num problema crucial das religiões de nosso tempo, porque os clérigos, em geral, continuam pregando sobre temas do primeiro ao quarto milênio a.C. Nenhum adulto hoje se voltaria para o Livro do Gênese com o propósito de saber sobre as origens da Terra, das plantas, dos animais e do homem. Não houve nenhum dilúvio, nenhuma Torre de Babel, nenhum primeiro casal no paraíso, e entre a primeira aparição do homem na Terra e as primeiras construções de cidades, não uma geração (de Adão para Caim), mas milhares delas devem ter vindo a este mundo e passado para o outro. Hoje nos voltamos para a ciência em busca de imagens do passado e da estrutura do mundo. O que os demônios rodopiantes do átomo e as galáxias a que nos aproximam os telescópios revelam é uma maravilha que faz com que a Babel da Bíblia pareça uma fantasia do reino imaginário da querida infância de nosso cérebro. Uma terceira função da mitologia é garantir a ordem social vigente, para integrar organicamente o indivíduo em seu grupo. Encontramos aqui mais uma vez que a ampliação gradual da esfera e conteúdo do grupo foi o sinal característico do desenvolvimento da humanidade, desde o primeiro agrupamento tribal até o conceito moderno pós-alexandrino de uma sociedade mundial única. Contra a amplitude deste conceito desafiador e abrangente, numerosas províncias ainda resistem, como as das várias mitologias nacionais, raciais, religiosas ou classistas, que um dia podem ter tido a sua razão de ser, mas hoje estão superadas. A função social de uma mitologia, e dos ritos pelos quais ela é expressa, é estabelecer em cada membro do grupo em questão um “sistema de sentimentos” que o vinculará espontaneamente aos objetivos desse grupo. O “sistema de sentimentos” apropriado para uma tribo de caçadores seria impróprio para uma de agricultores; o adequado para um matriarcado é inadequado a um patriarcado; e o de qualquer grupo tribal é impróprio para os indivíduos de hoje, que criaram instrumentos para percorrer o planeta de leste para oeste e do Norte para o Sul. As antigas ordens míticas davam autoridade a seus símbolos, atribuindo-os a deuses, a heróis nacionais ou a alguma força impessoal superior como a ordem do Universo; e a imagem da própria sociedade, dessa maneira relacionada com a imagem superior da natureza, tornou-se um recipiente de temor religioso. Hoje sabemos, na maioria das vezes, que nossas leis não provêm de Deus nem do Universo, mas de nós mesmos, são convencionais, não absolutas; e que ao transgredi-las, ofendemos não a Deus, mas aos homens. Nem os animais nem as plantas, nem o zodíaco nem seu suposto criador, mas nossos semelhantes tornaram-se hoje os responsáveis pelo nosso destino e nós pelo deles. No passado recente talvez possa ter sido possível que homens inteligentes e de bem acreditassem que sua sociedade (qualquer que ela fosse) era a única boa, que além de suas fronteiras estavam os inimigos de Deus e que eles tivessem sido escolhidos, consequentemente, para expulsar os princípios do ódio para fora do seu mundo, enquanto cultivavam o amor em seu interior, para aqueles cujo “sistema de sentimentos" era de Deus. Hoje, entretanto, não há nenhum tal exterior. Enclaves de provincialismo nacional, racial, religioso e classista persistem, mas as realidades físicas tornaram ilusórios os horizontes fechados. O antigo deus está morto, com seu pequeno mundo e sua pequena e estreita sociedade. O novo centro de fé e confiança é a humanidade. E se o princípio do amor não puder realmente ser despertado em cada um de nós - como estava mitologicamente em Deus - para governar o princípio do ódio, nosso único destino será a Terra Devastada, e os senhores do mundo, seus demônios. A quarta função da mitologia é introduzir o indivíduo na ordem das realidades de sua própria psique, orientando-a para o seu próprio enriquecimento e realização espiritual. Antigamente - embora persista em algumas culturas arcaicas - •caminho era subordinar toda opinião, vontade e capacidades individuais à ordem social: o princípio do ego (como vimos no volume Mitologia Oriental) devia ser subjugado e, se possível, até apagado; ao passo que os arquétipos, os papéis ideais da ordem social eram impressos em todos, inexoravelmente, de acordo com suas funções sociais.