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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Disciplina: 5940770 – Estágio Básico em Observação

Docente: Profª Dra. Patrícia F. Monticelli

Discentes: Lívia Rocha Carniel - 11793872

Talita Melo Della Ponta – 10425333

Etograma

Filme: O garoto selvagem

(L’enfant sauvage - 1970)

A presente atividade objetiva tecer uma análise comparativa do comportamento de


Victor em dois momentos. O primeiro momento compreende o período no qual o menino é
encontrado aos 11 ou 12 anos de idade aproximadamente, até seu contato inicial com a
sociedade humana civilizada. Já o segundo momento, refere-se aos primeiros meses de
trabalho desenvolvido por Dr. Itard e Madame Guérin, no qual pode-se observar, nitidamente,
progressos nos aspectos cognitivos e comportamentais de Victor. Baseando-se nessa
premissa, as cenas apresentadas para observação são 01:30-03:30 (cena 1), 04:00-08:40 (cena
2), 09:30-12:05 (cena 3), 29:30-30:30 (cena 4), 30:53-32:07 (cena 5), 32:16-33:16 (cena 6) e
33:30-42:30 (cena 7). Considera-se ainda, que as cenas 1, 2 e 3 pertencem ao momento 1 e as
cenas 4, 5, 6 e 7 ao momento 2, que serão comparados quanto ao desenvolvimento do
“Garoto Selvagem”.

Isto posto, primeiro realizamos uma observação geral das cenas para anotar quais os
comportamentos o menino emitia em cada cena. Depois selecionamos aqueles que ocorreram
com maior frequência e/ou eram significativos para a distinção dos dois momentos do filme.
A partir disso, tais comportamentos foram classificados em 10 categorias distintas elencadas
de A a J, permitindo a elaboração de um etograma. De acordo com Freitas e Nishida (2011),
um etograma consiste em uma lista de unidades comportamentais referentes à uma dada
espécie, que contém as descrições de tais ações e permite a quantificação de comportamentos.
Nesse sentido, as unidades comportamentais selecionadas, observadas e quantificadas nesta
atividade estão descritas nas categorias a seguir:

Categorias comportamentais

A: Andar em quatro apoios: Andar com as costas encurvadas e braços próximos ao chão,
considerando como uma emissão se ocorrer por pelo menos 2 segundos e uma nova emissão
se ocorrer após um intervalo de 2 segundos.

B: Andar bípede: Andar com as costas eretas, considerando como uma emissão se ocorrer
por pelo menos 2 segundos e uma nova emissão se ocorrer após um intervalo de pelo menos
2 segundos.

C: Beber sem usar as mãos: Beber um líquido inclinando a cabeça e/ou o corpo em direção
ao líquido. Considera-se uma emissão cada vez que o rosto se aproxima da água e uma nova
emissão se ele for distanciado em 30 cm por menos 2 segundos e se aproximar novamente.

D: Beber usando as mãos: Beber um líquido usando as mãos para levar o recipiente com o
líquido até a boca. Considera-se uma emissão cada vez que o objeto for levado a boca e uma
nova emissão se ele for distanciado em 30 cm por menos 2 segundos e se aproximar
novamente.

E: Comer usando as mãos: Pegar o alimento com as mãos e levá-lo até a boca. Considera-se
uma emissão cada vez que uma porção distinta de alimento for levada à boca.

F: Morder: Comprimir algo ou parte de alguém com os dentes através da abertura e


fechamento da mandíbula. Considera-se uma emissão a cada mordida.

G: Estereotipia: Movimento de inclinar o tronco para frente e para trás de modo contínuo.
Considera-se uma emissão quando o corpo do indivíduo se inclina para frente e para trás por
pelo menos 5 segundos e uma nova emissão se o movimento cessar por 5 segundos e voltar a
executá-lo.
H: Farejar: Investigar o ambiente, com o focinho direcionado ao substrato ou ar, cheirando.
Considera-se uma emissão quando ele o realiza por pelo menos 2 segundos e considera-se
uma nova emissão se após 5 segundos sem realizá-lo ele tornar a fazê-lo.

I: Debater-se: Agitar os membros superiores e/ou inferiores rápido e desordenadamente.


Considera-se uma emissão toda vez que esses movimentos ocorrem por pelo menos 2
segundos e considera-se uma nova emissão se após 5 segundos sem realizá-lo ele tornar a
fazê-lo.

J: Jogar-se no chão: Cair em direção ao chão abruptamente. Considera-se o início de uma


emissão toda vez que esse movimento ocorre, encerrando-se quando o indivíduo se levanta
do chão.

Além disso, decidiu-se quantificar esses comportamentos em termos do número de


ocorrência para comparar os dois momentos, isto é, em termos de frequência, que
corresponde “ao número de vezes que um determinado evento ocorreu numa determinada
unidade de tempo” (Freitas & Nishida, 2011, p. 44). Outrossim, ressaltamos que por se tratar
de um filme, alguns cortes de cena não permitem saber se o comportamento foi contínuo ou
se caracteriza como uma nova emissão, sendo essa segunda opção a convenção estabelecida
neste exercício. Portanto, para fins de análise na presente atividade, cada corte de cena
considera o comportamento como iniciado a partir dela, caracterizando uma nova emissão no
comportamento a cada vez que uma cena é interrompida por outra, ainda que o mesmo
comportamento seja exibido subsequentemente.
Ademais, conforme ressaltado por Freitas e Nishida (2011), ainda que duas pessoas
tenham sido treinadas para o registro de dados comportamentais, dificilmente a
confiabilidade entre os observadores corresponderá a 100%, uma vez que estes estão
condicionados a erros interpessoais. Testes estatísticos de correlação e concordância auxiliam
a estabelecer uma margem de segurança para a confiabilidade do registro, obtida através do
registro de duas ou mais pessoas acerca do mesmo comportamento e comparando,
posteriormente, tais observações. Desse modo, a fim de verificar a confiabilidade do registro
ambas as observadoras realizaram a contabilização por frequência dos comportamentos
elencados no etograma, organizados em duas tabelas que estão apresentadas a seguir:
Tabela 1: Etograma - Quantificação das unidades comportamentais pela Observadora 1
(comportamentos agrupados segundo critério de frequência)
Tabela 2: Etograma - Quantificação das unidades comportamentais pela Observadora 2
(comportamentos agrupados segundo critério de frequência)

A concordância entre as observadoras pode ser testada a partir do cálculo de

porcentagem de concordância entre as duas observações simultâneas e independentes.

Convenciona-se que uma porcentagem superior a 85% indica concordância entre os

observadores (Freitas & Nishida, 2011).

O índice de concordância entre os observadores pode ser expresso pela divisão do

número de concordância pela soma dos números de concordância e discordância,

multiplicados pelo fator 100 (Shaughnessy et al, 2012). Nesse sentido, o número de

concordâncias entre as observadoras da presente atividade corresponde a 64, enquanto o


número de concordâncias e discordâncias equivale a 67 (número máximo de ocorrências

observadas considerando todas as unidades comportamentais). Efetuando-se os cálculos

acima mencionados, tem-se que o índice de concordância entre ambas as observadoras foi de

95,5%. Assim, verifica-se a confiabilidade dos registros, permitindo a análise dos

comportamentos de Victor em ambos os momentos observados.

A partir das tabelas apresentadas, podemos estabelecer uma comparação entre o

momento 1 e o momento 2 quanto às transformações que Victor sofreu ao longo do filme.

Nesse caso, as categorias comportamentais escolhidas para observação não buscavam abarcar

todo o repertório comportamental do menino, mas sim, as principais categorias que poderiam

ser relevantes para esta análise. Nota-se, por exemplo, a frequência do andar quadrúpede

(categoria A) muito maior no momento 1 e o andar bípede (categoria B) no momento 2, uma

das mais claras diferenças do processo civilizatório de Victor, bem como de seu progresso no

desenvolvimento motor. Além disso, revela-se bem claramente a diferença no repertório

comportamental do garoto para beber água, pois no momento 1 ele o fazia de forma mais

parecida com os outros animais, isto é, inclinando a cabeça para fazê-lo (categoria C: Beber

sem usar as mãos), enquanto que no segundo momento ele passa a utilizar recipientes para

levar o líquido a boca, segurando o objeto com as mãos, como é mais comum entre os seres

humanos de nossa civilização (categoria D: Beber). O mesmo processo evolutivo é observado

nas cenas em que o menino bebe leite, uma vez que utiliza um recipiente para intermediar a

ação de beber, semelhante ao que foi apresentado em relação à água.

Além disso, a categoria E (Comer usando as mãos) foi observada em ambos os

momentos, embora tenha sido mais frequente no momento 1. Todavia, destaca-se que quando

tal categoria apareceu no segundo momento, a cena referia-se a Victor comendo uma

castanha que, mesmo na sociedade civilizada, é um alimento cujo o comer com as mãos é

permitido. De modo semelhante, a categoria F, que se refere à ação de morder, também foi
observada nos dois momentos. Nota-se que, a unidade comportamental dessa categoria

geralmente é expressa em momentos de grande agitação de Victor, no qual o garoto vivencia

uma situação desconfortável, sentindo-se incomodado e/ou encurralado. Com isso, é possível

dizer que o comportamento de morder, ainda que não seja aceitável da sociedade civilizada,

permanece no repertório comportamental de Victor, sendo sua forma mais genuína e

primitiva de enfrentar situações das quais gostaria de fugir.

No tocante à estereotipia, que corresponde à categoria G, pontua-se que foi observada

tanto no momento 1, quanto no momento 2, revelando ser uma unidade comportamental

resistente no repertório de Victor, uma vez que mesmo após os primeiros meses de trabalho

com Dr. Itard e o contato com a sociedade civilizada, a estereotipia não desapareceu de seu

repertório. Em contrapartida, considerando os recortes de cenas propostos pela atividade, a

categoria H (farejar) foi observada somente no momento 2, em uma ação na qual o menino

reconhece um elemento até então desconhecido para ele no ambiente. Nesse sentido,

depreende-se que a despeito das normas e convenções sociais civilizatória, alguns

comportamentos relacionados à segurança de Victor permanecem, exemplificado pelo ato de

farejar que, no mundo animal, é importante no reconhecimento do ambiente externo, na

procura por alimentos, na detecção de ameaças e, consequentemente, na garantia da

sobrevivência.

Ademais, a categoria I (debater-se) expressa uma unidade comportamental também

observada em ambos os momentos da presente análise. No entanto, quando esta aparece no

momento 1, refere-se à tentativa de Victor em livrar-se da captura dos homens adultos que

visam tirá-lo da floresta. Já no momento 2, o comportamento de debater-se irrompe

majoritariamente relacionado aos ataques de fúria, que é também uma tentativa de rebelar-se

contra algo, todavia, aparece acompanhado de outros elementos comportamentais.


Outrossim, a ação de jogar-se no chão (categoria J) foi observada somente no

momento 2, quando Victor estando em pé, lança seu corpo repentinamente ao chão.

Equivalente ao comportamento de morder sobredito, o ato de jogar-se no chão ocorre em

situações que dispararam emoções negativas no menino e forte agressividade.

Por fim, considerando-se os dois momentos observados por meio das sete cenas,

pode-se dizer que Victor apresentou considerável evolução em seu repertório

comportamental, principalmente no tocante à locomoção motora e apreensão de hábitos

normativos preconizados pela civilização, tal como beber e comer intermediado por objetos

(vasilhas, talheres). Contudo, evidencia-se que Victor ainda mantém em seu repertório

algumas unidades comportamentais incomuns para os demais indivíduos, as quais o

particularizam e não negam seu passado marcado pela ausência de interação com outros seres

humanos, bem como com a cultura e tradição da sociedade considerada civilizada.

Um último aspecto a ser considerado é que a análise dos dois momentos ocorreu

através de pequenos trechos, que colaboram para comparar a frequência de determinadas

categorias, mas não deixaram de ser uma seleção inevitavelmente incompleta. Um problema

resultante disso, é que alguns comportamentos aparecem apenas uma vez, isolados da

comparação de quando ocorreram em momentos não inclusos nas cenas, e outros têm

contagens que podem levar a erros na comparação. Dessa forma, é muito possível que essa

análise entre os dois momentos fosse mais clara se o filme fosse observado como um todo, o

que nessa atividade seria inviável e muito mais trabalhoso. Ainda assim, a comparação entre

elas através dos trechos produz resultados interessantes para uma análise com fins didáticos.
2. Você identificou o que Itard chamou de “ataques de fúria”? Defina-o de forma

objetiva.

Sim, nós identificamos os “ataques de fúria” nos momentos em que Victor emite um

conjunto de comportamentos típicos que expressam seu descontentamento em determinadas

situações ilustradas pelo filme. Os ataques de fúria podem ser descritos como o agrupamento

de três unidades comportamentais apresentadas no etograma supracitado: F: Morder, I:

Debater-se e J: Jogar-se no chão. Assim, definindo-o de forma objetiva, o ataque de fúria

consiste na ação de Victor em jogar-se no chão de forma abrupta e debater-se intensamente,

além de morder outro indivíduo presente na cena, cuja ação causou-lhe um sentimento de

revolta e grande agitação. Em um trecho da cena 5, compreendido entre os minutos 31:40 a

32:09, há um exemplo claro de ataque de fúria, no qual o Dr. Itard e a Madame Guérin

impõem a Victor o uso de sapatos, calçando-os à força no menino. Uma vez que os sapatos

são colocados, Victor começa a andar lentamente pelo quarto até que, inesperadamente se

joga no chão, debate-se com veemência e morde a mão de Madame Guérin. Nesse momento,

ambos os adultos tentam contê-lo e acalmá-lo de sua fúria.

Referências:

Freitas, E. G., Nishida, S. M. (2011). Métodos de Estudo do Comportamento Animal. In:


Comportamento Animal. 2ª edição. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5936415/mod_resource/content/1/Texto_Base_Obse
rvar%20para%20Quantificar.pdf

Shaughnessy, J. J., Zechmeister, E. B., & Zechmeister, J. S. (2012). Observação. In:


Metodologia de pesquisa em Psicologia. Porto Alegre: AMG Editora.

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