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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
SOCIOLOGIA

Avaliação Final da Disciplina de Sociologia

Docente: Profª. Drª. Vera Lucia Navarro


Discentes: Carolina Jacomini – 11297430
Lívia Rocha – 11793872
Lucas Ramazzotto – 8754465

Ribeirão Preto
2021
Introdução

Este trabalho objetiva, através das reflexões construídas em diálogo na disciplina de

Sociologia do curso de Psicologia, discutir a relação entre Trabalho e Saúde, o primeiro

discutido a partir de um referencial teórico marxista, e esta última entendida a partir de seu

aspecto biopsicossocial. Para isso, foram abordados alguns aspectos da crítica desenvolvida

por Karl Marx, em um recorte restrito à brevidade exigida para esta avaliação, não deixando,

é claro, de enriquecê-lo com reflexões a respeito da sociedade para pensarmos essa relação.

Discussão

A princípio, iniciamos essa discussão abordando a forma como Marx (1983) inicia

sua célebre obra, “O Capital”, em uma busca para desenvolver explicações acerca do que é

mercadoria. O autor discute sua forma social histórica, a qual demonstra que o produto é

produzido e tem seu fim máximo direcionado ao mercado. A partir disso, Jorge Grespan

(2021) aponta que “a mercadoria também é a forma pela qual o sistema se generaliza e se

expande, destinando ao mercado todos os produtos do trabalho, uma vez que a fonte criadora

desses produtos, a força de trabalho, assume igualmente a forma de mercadoria”. Assim,

podemos notar uma correlação estabelecida a partir da qual se esclarece, então, como

podemos entender que no capitalismo tudo se torna uma enorme coleção de mercadorias.

Expandindo a análise, Marx (1983) aponta como a forma social mercadoria é

composta por uma contradição entre o seu valor de uso e o seu valor de troca, produzida a

partir de uma outra contradição no próprio trabalho. Tal contradição é dada pela relação entre

o trabalho concreto, que gera valor de uso, e trabalho abstrato, definido como uma espécie de

pacto social que compactua com a ficção social que, por sua vez, produz o valor de troca.

Essa contradição diz respeito à distância que existe entre aquilo que é necessário e aquilo que

possui valor para o mercado. Desse modo, como Marx (1983) aponta, este valor ficcional do

trabalho abstrato é uma característica exclusiva de uma sociedade debruçada sobre as

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relações capitalistas de troca. Isso porque é a partir dessas relações que se constrói o ciclo do

capital: o trabalhador se vende para poder comprar enquanto o burguês o compra para poder

vender, objetivando alcançar uma forma de extrair dessa relação o mais valor, seu lucro.

Tal reflexão é de grande relevância para se pensar a saúde do trabalhador na

contemporaneidade, uma vez que esta é a dinâmica que se desenrola por trás do fato de que

não trabalhamos para atender às nossas necessidades, mas sim às do mercado. Diante dessa

lógica, não importa que para nós a necessidade seja saúde, seja educação, seja a construção

de hospitais e de escolas. Importa apenas aquilo que possui valor para o mercado, aquilo que

possui o tal valor ficcional, isto é, o trabalho abstrato, o produto de trabalho validado pelo

pacto social regido pelo mercado.

A partir do exposto, é possível complementar a questão a partir de outro aspecto,

porém é necessário que algumas considerações sobre o conceito saúde sejam feitas antes.

Saúde deve ser compreendida em seu aspecto biopsicossocial, pois essa condição envolve

tanto o homem enquanto corpo biológico e dimensão psicológica, como o homem também

em suas vivências e inserção em um meio social, como será abordado. Primeiramente, assim

como Michael Wilson (1984) aponta, um dos questionamentos mais importantes a ser

discutido é o que entendemos por saúde. Para isso, é importante destacar que, no pensamento

vigente em nossa cultura, essa definição normalmente se constrói em oposição ao conceito de

doença. Tal concepção gera grande contraste com os sistemas e entendimentos de saúde

orientais, que não se limitam a tratar sintomas, priorizando a prevenção e manutenção da

saúde. Essa análise pode ser fundamentada por um livro brasileiro dos anos 80, chamado

“Medicina não é Saúde”, de Jayme Landmann (1983). O autor investiga como, no ocidente, é

comum que a população em geral vá recorrer aos remédios diante de um sintoma, buscando

silenciá-lo ao invés de procurar investigá-lo e tratar suas causas, que muitas vezes podem

simplesmente envolver repouso e uma alimentação melhor.

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Com isso, podemos apontar a relação entre saúde e sociedade a partir de uma leitura

da obra “O Mal-Estar na Civilização”, escrita por Sigmund Freud, que destaca o próprio ser

humano como sintoma de uma cultura e uma sociedade doente. Diante disso, se aponta que

os remédios mais vendidos no Brasil são ansiolíticos e antidepressivos (Central de Conteúdo

Unidade Tua Rádio São Francisco, 2021), o que demonstra que os brasileiros estão doentes,

mas não de forma isolada. Tal fato entra em consonância com o que Freud observou, uma vez

que podemos concluir que estamos doentes enquanto país, sociedade e cultura. Como

exemplo, apontamos a relação entre desregulação de serotonina e desenvolvimento de

quadros agravados de sofrimento psíquico e emocional. Sabe-se que tal composto é regulado

por meio de ciclos de sono e vigília, alimentação, práticas de atividades físicas, banhos de sol

e outros hábitos. Dessa forma, em muitos casos, a privação ou disfunção de tais hábitos e

costumes são responsáveis por desenvolver em nós dinâmicas doentias, que não podem ser

curadas ou remediadas com drogas. A partir disso, cabe destacar como a sociedade do

trabalho impacta esses hábitos para explicitar a relação entre a dinâmica social e a saúde do

trabalhador.

Logo, torna-se possível estabelecer, a partir disso, uma relação entre o adoecimento da

população e a dinâmica capitalista, já que esta impede que a maioria dos indivíduos tenham

acesso a meios de cultivar hábitos saudáveis. De modo a fundamentar isso, citamos o trecho

em que Marx questiona o que é uma jornada de trabalho e por quanto tempo os interesses do

capital podem prolongá-la, ao passo que responde que esta corresponde às 24 horas

completas com exceção de poucas horas de repouso, suficientes apenas para que o trabalho

não cesse (Marx, 1983). Desse modo, fica explícito que é impossível para o trabalhador

dispor de tempo, disposição ou energia para hábitos saudáveis. As implicações disso são

várias em nosso cotidiano, pois mesmo a lógica de produtividade que essa dinâmica nos

impõe nos limita a desenvolver cuidados com a saúde - dado que, por exemplo, uma dor de

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cabeça causada pelo excesso de esforço nunca é tratada em sua causa, mas sim silenciada

com remédios para que o trabalhador não cesse o trabalho.

Ademais, tal aspecto é explicitado quando Marx coloca que nessa dinâmica “toda

barreira interposta pela moral e pela natureza, pela idade ou pelo sexo, pelo dia e pela noite

foi destruída”. Assim, todo o tempo do trabalhador não pertence a ele mesmo. Tal dinâmica

“usurpa o tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção sadia do corpo.

Rouba o tempo necessário para o consumo de ar puro e luz solar. Escamoteia o tempo

destinado às refeições para incorporá-lo onde possível ao próprio processo de produção [...]”

(Marx, 1983, p.211).

Indo ainda mais além nessa reflexão, quando pensamos em alimentação, um dos

exemplos de cuidados com saúde citado, não é possível deixar de fora como as dinâmicas

dessa sociedade neoliberal capitalista impedem uma dieta saudável. A exemplo disso,

vivemos em país cujo governo atual foi o que historicamente mais liberou o uso de

agrotóxicos. Isto porque existe uma rede de interesses políticos e econômicos, cujo intuito

deveria ser cuidar do bem-estar e da saúde do trabalhador, mas que normalmente atua em

detrimento deste. Ademais, retomando o fato de que o que é produzido conforme a dinâmica

do Capital não visa atender às necessidades da população e sim aos interesses do mercado,

podemos pensar como este impacta a produção de alimento. Por exemplo, uma das indústrias

mais ricas neste setor são as empresas de Fast-Food, o que impacta diretamente naquilo que é

plantado localmente. Dessa forma, como é o mercado de Fast-Food que vende produtos com

alto valor de troca, localmente são produzidos os ingredientes que ele necessita para vender e

não os ingredientes mais saudáveis para a população. Podemos, a partir do exposto,

questionar como é possível pensar em saúde, uma necessidade humana, diante de mais um

exemplo de que, na dinâmica do Capital, o trabalho tem um único fim: o de atender ao

mercado e não à população, não à saúde.

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Outro exemplo a ser citado relaciona-se à remuneração distinta dos profissionais de

saúde, uma vez que são os médicos mais necessários, tais quais os médicos de comunidades,

os de família, e, em geral, aqueles não associados a grandes corporações, que são pouco

remunerados, em contrastes com os médicos de hospitais particulares, cujas remunerações

são altíssimas. Mais uma vez, podemos notar a contradição apontada por Marx no valor

atribuído ao trabalho, entre o trabalho concreto e abstrato. Embora um médico de

comunidade tenha um trabalho de utilidade muito maior para a sociedade, que carece desse

atendimento, é um cirurgião plástico quem possui os salários mais elevados, embora cirurgias

estéticas sejam muito menos necessárias para o bem-estar da população.

Ademais, uma observação sobre essa remuneração que pode ser colocada é a de que a

classe médica atua como uma forma de sensores de controle social. Isso porque o médico é

um profissional que detém o poder de autorizar que um trabalhador deixe de trabalhar por um

período, ao mesmo tempo que é o profissional capaz de investigar as causas das doenças que

ele deve tratar, possivelmente percebendo que essas são mais que sintomas, são consequência

do modelo de vida atrelado ao capitalismo. Desta forma, um médico costuma ser melhor

remunerado para que ele não se veja como trabalhador, de forma que ao se deparar com dada

situação, sua falta de consciência de classe o impeça de se deixar envolver por essa

exploração, sendo muito mais provável que ele atenda os interesses da classe dominante.

Com isso, o nosso sistema de saúde continua a se debruçar sobre os sintomas e não sobre as

causas, afinal essa dinâmica mantida através da exploração do trabalhador não tem interesse

em permitir que as causas de suas doenças sejam problematizadas, tendo em vista que o

trabalhador descobriria ser exatamente este sistema a sua maior doença.

Por fim, encerramos este trabalho comentando mais uma das reflexões de Marx

retiradas de “O Capital”. Como preparação, cabe apontar que para Marx a essência do

homem é o trabalho e que por isso é por ele denominado de “homo faber”. No entanto, na

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dinâmica de trabalho que o capitalismo impõe, este se converte em uma forma de alienação,

pois, como ele aponta, este trabalho é externo ao trabalhador, não faz parte de sua natureza e,

assim, não o leva a realizar-se em seu trabalho, e sim a se negar. Desse modo, a perversidade

desse sistema se enfatiza na forma com a qual ele separa o homem de sua própria essência,

levando-o, como descreve Marx, a um sentimento de sofrimento ao invés de bem estar,

colocando-o em um estado fisicamente exausto e mentalmente deprimido. Com isso,

conforme descreve o autor, o trabalhador só é capaz de se sentir à vontade em seu tempo de

folga, visto que diante deste trabalho imposto e forçado ele se sente contrafeito. Marx ainda

aponta, como prova dessa alienação, o fato de que sem esta imposição o trabalho é evitado

como uma praga. Ainda, assim como apontamos ao longo deste texto, ele coloca que o

trabalho “não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras

necessidades”. Enfatizando tal afirmação, Marx ainda demonstra que tal trabalho, que serve

ao mercado e não ao homem, é o maior aspecto da alienação deste último:

“O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de

sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o

trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas trabalho para outrem, pelo

fato de no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa.”

Assim, por não servir ao homem e sim ao mercado, como o trabalho poderia atender

às necessidades humanas? Se o trabalho, essência do homem, não pertence ao trabalhador e

transforma-se, sim, em uma mercadoria, como poderia o trabalhador pertencer a si mesmo?

Enfatizando os questionamentos, indagamos como é possível buscar a saúde do trabalhador

diante de uma dinâmica de trabalho de sacrifício? Como é possível para o trabalhador ter

saúde, se este trabalho atropela todos os seus limites biológicos, psicológicos e sociais?

Como é possível pensar na saúde do trabalhador se o trabalho na sociedade capitalista

torna-se a doença?

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Referências

Central de Conteúdo Unidade Tua Rádio São Francisco. (2021). Antidepressivos e

ansiolíticos alcançam o topo da lista dos remédios mais vendidos no Brasil. Recuperado em

https://www.tuaradio.com.br/Tua-Radio-Sao-Francisco/noticias/saude/22-02-2021/ant

idepressivos-e-ansioliticos-alcancam-o-topo-da-lista-dos-remedios-mais-vendidos-no-

brasil. Acesso em 22 de jul de 2021.

Freud, S. (1930). O mal-estar na Civilização. Cienbook.

Grespan, J. (2021). Marx: Uma introdução. Boitempo Editorial.

Landmann, J. (1983). Medicina não é saúde: As verdadeiras causas da doença e da morte.

Ed. Nova Fronteira.

Marx, K. (1983). O Capital: Crítica da economia política. Vol. 1. Tradução de Régis Barbosa

e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural.

Wilson, M. (1984). Saúde, atitudes e valores. In: TAPS. Saúde da comunidade: um desafio.

São Paulo: Ed. Paulinas.

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