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Era um jogo infantil. Da minha janela via as crianças brincando e cantando depois de
termos sabido das novas. E, na rua, uma delas correu para mim com uma adivinhação que
ouvira dos pais: se você acasala um ganso com um cisne, qual deles ficará por cima?
Quanto aos comentários feitos nos acampamentos e quartéis da Zona Quatro, preferimos
não registrar. Não que sejamos puritanos. Mas cada cronista tem o seu estilo.
Estou dizendo que os povos das duas Zonas se desprezavam? Não. Não nos é permitido
criticar abertamente as dispensações dos Provedores, mas digamos que nós, da Zona Três,
não tínhamos esquecido — como demonstravam os versos populares cantados naqueles dias:
E tornou-se uma balada popular, que todos cantavam, mesmo depois de saber que Al.Ith
não estava morta e que o câsamento tinha se realizado. Que não era o mais tranqüilo dos
casamentos todos souberam desde o princípio. Como? Como se tornam conhecidas essas
coisas? Estavam sempre adicionando novos versos à canção. Eis aqui três deles, feitos no
alojamento dos soldados casados da Zona Quatro:
Bravo Rei, seu reino é forte e bom.
Onde os animais se acasalam e as mulheres estão ansiosas.
Serei sua escrava, bravo Rei.
Em nenhum lugar e em nenhum tempo, versos como esses poderiam ter sido compostos
pelo nosso povo; tínhamos baladas ternas e cheias de compaixão sobre Al.Ith. Muitos dizem
que onde há poder existe esse tipo de crítica, pois, não importa a altura do soberano, faz parte
da natureza dos súditos o desejo de uma identificação no mais baixo nível. Dizemos que não é
verdade, e a Zona Três é uma prova disso. Reconhecer e celebrar os níveis quotidianos da
autoridade não significa caluniá-la.
Essas baladas da Zona Quatro chegaram até nós e foram modificadas ao cruzar a
fronteira. Em primeiro lugar, não precisávamos das inversões, das ambigüidades criadas pelo
temor que inspira a autoridade arbitrária.
Podemos mesmo dizer que um certo tipo de balada não pode existir entre nós: a que se
baseia em lamentações ou na comemoração de alguma perda.
Na Zona Quatro, o cavalo sem cavaleiro deu origem a canções de morte e de dor; na
nossa, a baladas de amor e amizade.
A estrada que cortava a planície em linha reta, e era cruzada por outra bem no centro,
começou a subir a pequena elevação que Al.Ith contemplara com alívio do alto da escarpa. Os
canais tinham ficado para trás, com seu peso morto de água parada. Surgiam agora algumas
árvores que não tinham sido cruelmente podadas como as da planície. No topo da colina
havia jardins e a água corria rapidamente nos canais caindo em pequenas cachoeiras, de um
nível para o outro, formando fontes. O ar era fresco e revigorante e Al.Ith sentiu-se mais
animada ao ver um pavilhão com pilares coloridos e arcos delicados. Mas não se via ninguém.
Ela comparou o jardim vazio, aparentemente deserto, com a convidativa amplidão dos jardins
da Zona Três. A uma ordem de Jarnti, a companhia fez alto. Os soldados desmontaram e
cercaram Al.Ith, e, quando ela saltou do cavalo, conduziram-na em passo de marcha, como
uma cativa de guerra — e ela percebeu que não era a primeira vez que faziam isso, pela
precisão dos seus movimentos.
Mas, quando fecharam o círculo à sua volta, Jarnti um pouco à frente, ela colocou a mão
no pescoço de Yori, o cavalo que ganhara.
E foi assim que chegou aos degraus do pavilhão. Ben Ata apareceu na entrada, os braços
cruzados, as pernas afastadas, um soldado com barba, vestido exatamente como Jarnti e os
outros. Era alto e louro, os músculos fortes por causa das manobras militares constantes, o
rosto e os braços morenos, queimados de sol. Seus olhos tinham um tom acinzentado. Ben
Ata não olhava para Al.Ith mas para o cavalo, pois seu primeiro pensamento foi que sua noiva
estava morta.
Al.Ith passou rapidamente pelos soldados, suspeitando de que devia haver outros
precedentes que não desejava fossem levados a cabo, e ficou na frente de Ben Ata, segurando
o cavalo.
Então ele olhou para ela, surpreso e com o cenho cerrado.
— Sou Al.Ith — disse ela —, e este cavalo é um presente gentil de Jarnti. Quer, por favor,
dar ordens para que seja bem tratado?
Ben Ata parecia incapaz de pronunciar uma palavra. Assentiu com a cabeça. Jarnti
segurou o pescoço do animal e tentou levá-lo. Mas Yori deu um passo atrás, procurando
libertar-se, e foi preciso que Al.Ith o confortasse, prometendo vê-lo muito em breve.
— Hoje, eu juro. — E, voltando-se para Jarnti: — Portanto, não o leve para longe. E, por
favor, providencie para que seja bem tratado e bem alimentado.
Jarnti parecia embaraçado, os soldados sorriam zombeteiros, disfarçadamente, porque a
expressão de Ben Ata não os encorajava. Normalmente, em ocasiões semelhantes, a mulher
era empurrada brutalmente para dentro, de acordo com os costumes, mas, agora, ninguém
sabia o que fazer.
Al.Ith disse:
— Ben Ata, suponho que tenha aposentos nos quais eu possa descansar por algum tempo.
Cavalguei o dia todo.
Ben Ata estava se refazendo da surpresa. Sua expressão era severa, amarga mesmo. Não
sabia o que esperar e tinha se preparado para ser cordato, mas essa mulher com roupas
sombrias não lhe agradava. Ela não retirara o véu e tudo o que Ben Ata podia ver eram os
cabelos escuros. Preferia mulheres louras.
Ele ergueu os ombros, olhou para Jarnti e entrou no pavilhão. E, assim, foi Jarnti quem a
levou aos seus aposentos e providenciou para que tivesse tudo o que precisava. Al.Ith recusou
comida e bebida e disse que dentro de alguns momentos estaria pronta para ver o rei.
E foi encontrar-se com ele, surgindo sem cerimônia dos seus aposentos, ainda com a
roupa escura da viagem. Mas tirara o véu e o cabelo caía-lhe pelas costas em uma longa
trança.
Ben Ata estava sentado em uma cama baixa, na sala clara e arejada, quase desprovida de
móveis. Ela percebeu que era a câmara nupcial, preparada para a ocasião. O noivo, porém,
com o cotovelo apoiado nos joelhos e o rosto na mão, não se levantou à sua entrada. Não
havia outro lugar para sentar-se, por isso Al.Ith acomodou-se na beirada da cama, um pouco
afastada dele, apoiando-se em uma das mãos, como se tivesse pousado ali, pronta para se
levantar rapidamente. Olhou para ele, sem sorrir. Ele olhou para ela e não havia nem a
sombra de um sorriso no seu rosto.
— Muito bem, o que acha deste lugar? — perguntou Ben Ata asperamente. Não sabia o
que dizer ou o que fazer.
— Então, foi construído especialmente?
— Sim. Ordens. Construído segundo especificações. Exatamente. Terminaram esta
manhã.
— É muito elegante e agradável — disse ela. — Muito diferente de tudo o que tenho visto
por aqui.
— Não é o meu estilo — observou ele. — Mas, se lhe agrada, é tudo o que importa.
Era um galanteio, mas Ben Ata estava inquieto, suspirava continuamente e era óbvio que
desejava sair dali o mais depressa possível.
— Suponho que a finalidade era agradar a nós dois? — perguntou ela.
— A mim não importa — respondeu Ben Ata com rude violência, suas emoções vindo
afinal à tona. — E, obviamente, a você também não.
— Temos de fazer o melhor possível — observou ela, procurando demonstrar resignação,
mas sua voz era desesperada e amarga.
Entreolharam-se, com uma troca sincera de cumplicidade; dois prisioneiros que nada têm
em comum a não ser o cárcere.
Esse primeiro e tênue momento de compreensão foi fugaz.
Ben Ata deitou-se no leito nupcial com as mãos sob a cabeça e os pés, calçados de
sandálias poeirentas, sobre as cobertas, que eram de fina lã, tingida de cores suaves, e
bordada. Em nenhum outro lugar pareceria tão deslocado. Enquanto olhava para o teto, como
se ela não estivesse presente, Al.Ith teve tempo de reconstruir na imaginação o ambiente
habitual dele.
Ela examinou a sala. Era um aposento enorme com arcos que se abriam para o jardim, de
dois lados. As outras duas paredes tinham portas discretas que davam para os aposentos onde
ela já estivera e para os aposentos de Ben Ata. O teto era curvo, alto e canelado. A sala toda
era pintada de marfim brilhante com desenhos em ouro, vermelho suave e azul, e as cortinas
dos arcos eram bordadas e estavam seguras por prendedores incrustados de pedrarias. Ouvia-
se o murmúrio das fontes e da água corrente. Não era muito diferente da alegria e da frescura
dos edifícios públicos de Andaroun, a nossa capital, embora os aposentos de Al. Ith fossem
mais simples do que estes.
O grande quarto não estava completamente vazio. Uma coluna erguia-se no centro e
curvava-se, dividindo-se em várias outras, caneladas e ornamentadas de ouro, azul-celeste e
vermelho. O assoalho era de madeira suavemente perfumada. Além da grande cama baixa,
havia uma pequena mesa, perto dos arcos, com duas graciosas cadeiras.
Um cavalo relinchou. Quase imediatamente, Yori apareceu em uma das portas em arco e
teria entrado se Al.Ith não corresse para impedi-lo. Não era difícil adivinhar o que tinha
acontecido. O animal fora confinado em algum lugar e fugira, sem que os soldados que o
guardavam ousassem segui-lo nos jardins do pavilhão, que há semanas era motivo dos
comentários de todos. Ela colocou as mãos nos dois lados do focinho de Yori, trouxe a cabeça
dele para si, murmurou alguma coisa, primeiro em uma orelha e depois na outra, e o animal
deu meia-volta e desapareceu no jardim, de volta à sua guarda.
Quando Al.Ith se voltou, Ben Ata estava de pé, perto dela, com expressão colérica.
— Vejo que é verdade o que se comenta. Vocês são feiticeiros no seu país.
— É uma feitiçaria fácil de aprender — respondeu Al. Ith, mas, como ele continuasse a
encará-la com desagrado, perdeu a paciência, atravessou rapidamente a sala, foi até o grande
leito, jogou no chão uma das almofadas e sentou-se sobre ela, com as pernas cruzadas sob o
corpo. Não se preocupou com a idéia de que ele devia fazer o mesmo, ou se devia ficar
sentado na cama, mas Ben Ata hesitou, como se tivesse sido desafiado e, jogando outra
almofada para um canto, sentou-se como Al. Ith. De frente um para o outro, cada um na sua
almofada.
Ela à vontade, pois sempre se sentava assim; ele, mal acomodado, parecia temer que a
almofada escorregasse pelo assoalho polido ao menor movimento.
— Sempre usa roupas como essa?
— Vesti-as especialmente para você — respondeu ela, e Ben Ata enrubesceu. Desde a sua
chegada, Al.Ith tinha visto mais homens irados e embaraçados do que já vira em toda a sua
vida e começava a imaginar se não sofriam de algum distúrbio sangüíneo ou cutâneo.
— Se soubesse que você ia chegar assim, teria providenciado alguns vestidos. Como ia
saber que se veste como uma serva?
— Ben Ata, nunca uso roupas luxuosas.
Ele olhava a simplicidade do vestido de Al.Ith com desagrado e exasperação.
— Pensei que fosse uma rainha.
— Você se veste como os seus soldados.
Subitamente ele deu um largo sorriso e resmungou algo como: "Tire essa coisa e eu lhe
mostro."
Al.Ith sabia que ele estava zangado, mas não imaginava quanto. Nas campanhas, quando
o exército chegava a um novo território, levavam uma mulher para a tenda de Ben Ata e a
faziam deitar-se no chão, aos seus pés. Quase sempre elas chegavam chorando. Ou
esbravejando e gritando insultos. Às vezes mordiam e arranhavam quando ele as possuía.
Outras choravam o tempo todo, sem parar. Algumas cerravam os dentes, sem que se abatesse
o ódio que sentiam por ele. Ben Ata não gostava de infligir sofrimento, por isso as mandava
de volta para casa. Mas as que choravam ou opunham resistência de um determinado modo
que ele conhecia davam-lhe prazer e lentamente as dominava. Essas eram as convenções. E
ele lhes obedecia. Tinha possuído muitas mulheres, engravidado algumas. Mas jamais se
casara, não pretendia se casar, pois esse arranjo com Al.Ith não correspondia ao conceito que
fazia do casamento; tinha as idéias sentimentais e imaginosas de um homem que não
conhecia as mulheres. Essa mulher que teria de suportar quase indefinidamente era algo
além da sua experiência.
Tudo nela o perturbava. Não deixava de ser bela, com os grandes olhos escuros, cabelos
negros e todo o resto, mas nada em Al.Ith o excitava fisicamente.
— Quanto tempo deverei ficar com você? — perguntou ela, exatamente com o tom de voz
seco e frio que ele — sombriamente — esperava dela.
— Eles disseram alguns dias.
Fez-se um longo silêncio. O quarto, espaçoso e agradável, estava repleto da sonoridade da
água corrente e de reflexos das fontes e dos pequenos lagos.
— Como fazem isso no seu país? — perguntou Ben Ata, reconhecendo que estava sendo
rude, mas sem poder imaginar outro modo.
— Fazemos o que?
— Bem, todos sabem que têm muitos filhos, para começar.
— Tenho cinco meus. Mas sou mãe de muitos mais. Mais de 50.
Al.Ith sentia que suas palavras aumentavam a distância entre eles.
— Segundo nossos costumes, quando uma criança fica órfã eu passo a ser sua mãe.
— Adota-a.
— Não usamos essa palavra. Passo a ser sua mãe.
— Suponho que rente por eles o mesmo que por seus filhos — disse ele, como se estivesse
arremedando algo que ela não dissera.
— Não, não é isso. Além do mais, com 50 filhos não posso ter contato íntimo com todos.
— Como são seus filhos, então?
— Todos têm os mesmos direitos. E, sempre que posso, passo o mesmo tempo com eles.
— Não é a idéia que faço da mãe dos meus filhos.
— Acredita que é isso que esperam de nós?
A pergunta o deixou furioso. Não pensara muito nessa imposição chocante e ofensiva,
reagira apenas emocionalmente. Mas supunha que teriam filhos "para cimentar a aliança" —
ou algo parecido.
— Ora, e o que mais poderia ser? O que pretende? Uma ligação amorosa, com intervalos
de várias semanas? Logo com você! — Ben Ata riu com desprezo.
Al.Ith tentava não olhar fixamente para ele — notara que o olhar direto e atento, como era
seu costume, o embaraçava. Além disso, Ben Ata a atraía menos do que ela a ele. Achava
grosseiro esse soldado com a pele queimada, os olhos ardentes e cheios de ressentimento, o
cabelo amarelado pelo sol, que fazia lembrar o pêlo de uma raça de carneiros das montanhas.
— A união entre um homem e uma mulher é algo mais do que ter filhos — observou ela.
O bom senso dessas palavras provocou um gemido surdo e Ben Ata bateu com o punho
fechado no assoalho ao lado da almofada.
— Bem, se é assim, devo supor que sabe muito sobre isso?
— Sim, eu sei — respondeu ela. — De fato, é uma das especialidades da nossa Zona.
— Oh, não, não, não, não. — Ele levantou-se de um salto e começou a andar pelo quarto
dando socos nas paredes delicadas.
Ela, imóvel, as pernas cruzadas, observava-o com interesse, como se ele fosse uma
espécie nova e estranha.
Ben Ata parou. Aparentemente com esforço. Então, voltou-se e com os dentes cerrados
foi até onde ela estava, ergueu-a e atirou-a na cama. Pôs a mão sobre a boca de Al.Ith, como
era seu costume, levantou o vestido dela, apalpou-se para verificar se estava pronto,
penetrou-a e cumpriu a tarefa, com meia dúzia de movimentos rápidos.
Endireitou-se. Não tirara os pés do chão durante todo o processo. Ainda embaraçado,
demonstrou reconhecer que algo estava errado, com um gesto pouco comum para ele: puxou
o vestido de Al. Ith para baixo e retirou a mão do rosto dela, gentilmente.
Al.Ith ficou deitada, olhando para ele com expressão vazia. Paralisada. Não chorava. Não
arranhava. Não dizia desaforos. Também não demonstrava a repulsa instintiva que ele temia
ver nas mulheres que possuía. Nada. Ocorreu a Ben Ata que ela parecia estudar um
fenômeno totalmente desconhecido.
— Oh, você! — resmungou ele, entre os dentes. — Como fui deixar que me impusessem
esse fardo!
E ela deixou escapar uma risada zombeteira. Depois, sentou-se na cama, pôs as pernas
para fora e de súbito começou a chorar silenciosamente, o corpo todo estremecendo, e, como
tinha começado, parou e voltou para a sua almofada. Sentou-se de costas para a parede, os
olhos fitos nele.
Ben Ata percebeu que Al.Ith estava com medo dele, mas não se comoveu.
— Bem — disse ele. — É isso. — Olhou-a de relance, à espera de algum comentário.
— É isso realmente o que você faz? — perguntou ela. — Ou é porque não gosta de mim?
Então, Ben Ata dirigiu-lhe um olhar que era um apelo e sentou-se na beirada da cama,
batendo com, os punhos cerrados nas cobertas.
Nesse momento, Al. Ith compreendeu que ele era um menino, não passava de um
garotinho. Comparou-o aos seus filhos mais velhos e pela primeira vez seu coração se
abrandou.
Ainda com lágrimas nos grandes olhos negros, fitou-o e disse:
— Sabe, acho que vocês podem aprender alguma coisa conosco.
Ele sacudiu a cabeça vigorosa como se muita coisa estivesse chegando aos seus ouvidos
de uma só vez. Mas continuou inclinado para a frente, sem olhar para ela, escutando.
— Por exemplo, já ouviu dizer que se pode escolher o tempo para ter filhos?
Ele estremeceu. Mais uma vez ela falava sobre filhos. Bateu com o punho na cama e
depois ficou imóvel.
— Não sabe que a natureza de uma criança pode ser determinada pelo modo como é
concebida?
Ele sacudiu a cabeça. Suspirou.
— Se eu ficar grávida — o que pode acontecer — essa criança não terá motivo nenhum
para nos agradecer.
Subitamente, ele atirou-se na cama, de bruços, e ficou imóvel, com os braços abertos.
Outro longo silêncio. O leve odor do sexo era uma desagradável lembrança do desejo
animal, e Ben Ata ergueu os olhos para ela. Al.Ith estava sentada, as costas contra a parede,
muito pálida, cansada, e tinha uma marca ao lado da boca onde ele apertara com o polegar.
Ben Ata gemeu.
— Parece que posso aprender com você — disse, e sua voz agora não era a de um
garotinho.
Ela assentiu com a cabeça. Olhos nos olhos, compreenderam que eram ambos infelizes e
que não sabiam o que esperar um do outro.
Al.Ith levantou-se e foi sentar-se ao lado dele, na cama. Colocou as mãos pequeninas,
uma de cada lado do pescoço de Ben Ata, enquanto ele continuava de bruços, com o queixo
apoiado nas costas da mão fechada.
Afinal, ele virou-se. Custava-lhe olhar para ela.
Segurou as mãos de Al.Ith e ficou imóvel. Ela, em silêncio ao seu lado, tentou sorrir, mas
seus lábios estavam trêmulos e as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Com uma exclamação
breve, Ben Ata fê-la deitar-se ao seu lado. Com surpresa sentiu os próprios olhos marejados.
Tentou reconfortar aquela estranha mulher. Sentiu as mãos pequeninas nos seus
ombros, com uma leve pressão de consolo e de pena.
E adormeceram juntos, cansados afinal.
Foi o primeiro ato de amor entre os dois, o acontecimento que acalorava a imaginação de
dois reinos.
Ele acordou, imediatamente alerta. Todos os sentidos funcionando ansiosamente,
mapeando o espaço que o rodeava de medo estranho, habituando os ouvidos aos sons
murmurantes que sugeriam perigo. A entrada da tenda estava aberta... mas a abertura era
maior do que deveria ser; teria sido desmantelada pelo vento ou por um ataque inimigo?
Água.., água corrente e subindo; os canais estavam transbordando e logo estaria dentro
d'água? Pronto para aceitar nos tornozelos o abraço frio de uma calamitosa enchente, lançou
as pernas para fora da cama, para o assoalho seco, e deu alguns passos largos, gritando para
seu ordenança com uma voz assustada e rouca, própria dos pesadelos, quando percebeu que o
que pensara ser a abertura da tenda era a curva da alta coluna central onde ela se encontrava
com o teto. Lembrou-se imediatamente. Voltou-se, no escuro, esperando o riso zombeteiro
daquela mulher, Al.Ith. Mas não conseguia ver a cama. Tudo o que desejava era sair daquele
lugar para sempre. Compreendeu que confundira o canto das fontes com o rumor de uma
inundação e pensou, em pânico, que talvez estivesse fora de si. Sentia-se enfraquecido,
castrado, um covarde... Estremeceu sentindo a amargura que secava sua boca. Estava
simplesmente chocado — com a situação, cons;go mesmo, com ela. Mas, se havia algo que
compreendia muito bem era a obediência. Uma ordem o levara àquele pavilhão efeminado e o
dever o levaria de volta àquela cama. Convencido de que ela devia estar acordada,
observando-o, caminhou cuidadosamente no escuro, até suas pernas sentirem a maciez das
cobertas. Inclinou-se e estendeu a mão, procurando o corpo dela — procurando-a. E, então,
suas mãos frenéticas apalparam a cama vazia. Ela fugira! Alívio! A culpa era exclusivamente
dela, não dele! Não teria de fazer nada! Mas esses sentimentos foram logo substituídos pela
indignação e pelo desejo de conquista. Se ela escapara, devia ser apanhada. As confusões e
indecisões dos últimos minutos combinaram-se, gerando um fluxo de energia. Chegou a
assobiar alegremente — então, pensou que ela poderia estar no quarto, talvez atrás de uma
coluna, observando-o. E rindo dele. Voltou-se rapidamente e tateou ao redor da coluna. Nada.
Ia chamar o ordenança quando se lembrou de que não havia ninguém ali. Não se importava
com isso: este rei sentia-se feliz quando em campanha, um soldado entre soldados, diferindo
deles apenas na obrigação de tomar as decisões. Mas importava-se por estar a sós com ela,
sem a presença nem mesmo de empregados. Encarcerado com uma mulher. Com esta
mulher. Que, como feiticeira que era, devia estar em algum canto, enxergando no escuro. A
cólera deu forças à sua decisão. Envolveu-se no manto militar e caminhou até a porta que
dava para a fonte.
Acordara no escuro e não sabia as horas. Nos acampamentos, uma sentinela parava do
lado de fora da sua tenda e anunciava — não com um chamado, mas com uma informação — a
passagem de cada meia hora. Se estivesse acordado, precisava saber em que região estava do
país da noite. Do qual não gostava, que encarava com desconfiança. Gostava de deitar-se logo
depois da refeição da noite e dormir até as primeiras horas da manhã, sem tomar
conhecimento das horas noturnas — mas, se por algum motivo ficava acordado, esperava
ouvir a voz grave e confortadora da sentinela.
Agora, parou no arco de entrada, o quarto escuro às suas costas, olhando os outros arcos e
pórticos, e imediatamente teve certeza de que estava a uma hora do nascer do sol, embora
não houvesse lua nem estrelas no céu e nuvens baixas passassem rapidamente. Um vulto
irregular marcava o longo retângulo do pequeno lago onde brincavam sete jatos de água. As
dimensões do pavilhão, das construções adjacentes, as vias de acesso, as galerias que o
circundavam, os jardins, os vários lagos e fontes, as aléias e os degraus que levavam de um
nível a outro — tudo especificado exatamente, determinado, medido, e nais medidas mais
absurdas — em metades, quartos e pequenas frações e pedaços, irregularidades e formas
inesperadas. Os arquitetos, que naturalmente jamais haviam construído outra coisa que não
fossem fortes, torres e quartéis, durante anos, estiveram a ponto de se amotinar. De qualquer
modo, esse lago especial, longo e estreito, ou canal, como ele o tinha classificado ao ver as
plantas, devia ter, segundo as especificações, sete jatos d'água. Não dez, ou cinco, ou 20, mas
sete. E o lago oval, atrás dele, tinha três, de tamanhos diferentes.. . um grupo de nove árvores
de especiarias fora plantado ao lado dos lagos e sob elas ele distinguiu alguma coisa sombria e
estranha. Mas era grande demais para ser uma mulher. Ouviu o ruído de movimento.
Percebeu que era um cavalo — aquele maldito cavalo! — e seus olhos, adaptados agora à
escuridão, viram que ela estava sentada imóvel em uma das extremidades do longo lago,
entre este e o lago oval, em uma elevação de pedra ou terraço formado por um círculo com o
raio de exatamente 2,29m. Os pedreiros que o tinham construído disseram jocosamente que
seria uma boa cama. Oh, as piadas, as brincadeiras, ele as abominara, estava farto delas, farto
dessa coisa toda... não sabia se ela podia vê-lo. Mas ocorreu-lhe que, se ele a via,
naturalmente Al.Ith podia enxergá-lo também.
Mas nada havia de ridículo em sua atitude, ali parado, as pernas afastadas, os braços
cruzados, uma postura militar absolutamente correta.
Pensou que estava ainda alerta e pronto para o movimento porque persistiam ainda as
expectativas de uma perseguição, de uma procura: se ela estava ali sentada, não seria preciso
persegui-la como a uma fugitiva desesperada pelos pântanos e alagados, com a metade do seu
exército e ele à frente... portanto, ficou menos tenso.
Não faria o primeiro movimento de aproximação. Não queria cumprimentá-la. Não sentia
nenhum impulso amistoso. Esquecera-se do momento de ternura que os unira, e, se pensasse
nele, o teria repudiado.. . ficou ali parado por alguin tempo. Minutos. Ela não esboçou o
menor movimento. Ben Ata distinguia o rosto de Al.Ith como uma mancha branca e
brilhante. O vestido lúgubre e escuro naturalmente era absorvido pela noite. Acreditava que
ela devia odiá-lo. Ben Ata sentia o cheiro da brisa leve e úmida que precedia o amanhecer.
Gostava de ser acordado por aquele vento suave, que se esgueirava sorrateiramente sobre a
terra, movendo os arbustos, trazendo o odor da relva e da água. Durante as marchas do
exército, sempre acordava quando esse vento soprava, comparando-o então com os ventos de
chuva que açoitavam suas terras planas muitas vezes por semana, seguidamente... sem
perceber, começou a andar ao longo do lago. Estava ainda com as sandálias e não era possível
evitar o ruído dos seus passos e surpreendê-la. Estava ainda imóvel. Aproximara-se de Al.Ith,
passando pelos sete jatos d'água idiotas, alcançando a borda do pequeno terraço, quando ela
voltou a cabeça e observou:
— Está muito agradável aqui, Ben Ata.
— Posso ver que não dormiu bem!
— Nunca durmo mais de duas ou três horas.
Isso o aborreceu: naturalmente ela estaria em casa durante a noite — onde mais poderia
estar?
E como não havia nada mais a fazer, ele sentou-se na outra extremidade do terraço, longe
dela.
Agora percebia que havia dois cavalos sob as árvores, o dela — negro — e outro, branco.
Distinguia o primeiro apenas porque estava muito próximo do outro, tuna sombra escura
contra a forma branca.
— Vejo que no seu país vocês têm cavalos como nós temos cães.
— Não, Ben Ata.
Ele ouvia na voz dela — mal podia distinguir-lhe o rosto — um tom conciliatório ou talvez
um pouco temeroso? Sentiu o sangue acelerar-se nas veias à idéia de que ela estivesse com
medo, mas logo se acalmou. Suspirou. Era como se estivesse sob a pressão de um peso leve. O
entusiasmo evaporou- se. Todo o seu ser, suas memórias, suas esperanças diziam-lhe o
quanto essa mulher era estranha, como essa estranheza pesava sobre ele, oprimindo-o.
Vasculhava freneticamente na memória a lembrança de mulheres com as quais pudesse
compará-la, para uma orientação, pois sinceramente Ben Ata pretendia tentar compreendê-la.
Mas não havia nada parecido, nem mesmo remotamente. Sua mãe? Certamente que não! Sua
mãe tinha sido uma mulher tola — na sua opinião. Mas, na verdade, não estivera com ela,
realmente, depois dos sete anos, quando foi mandado para o exército, para começar seu
treinamento. Suas irmãs? Também não voltara a vê-las a partir dessa idade, a não ser em
breves encontros durante suas visitas à casa e tinham se casado e viviam em regiões distantes
da Zona Quatro. As mulheres dos seus oficiais? A questão era que jamais fora perturbado por
uma mulher, e era isso o que estava acontecendo agora. Ela nunca reagia de acordo com suas
expectativas. Ben Ata estava tenso e irritado como um cavalo malconduzido... cavalos outra
vez. Na verdade, não gostava de cavalos. E não se lembrava de ter alguma vez pensado se
gostava ou não; eles estavam ali, era tudo.
— Ben Ata, quando me levantei e vim para cá, vi meu cavalo ao lado da fonte. Pensei que
não tinha sido bem tratado, mas não era isso. Ele não estava com fome ou com sede...
Ambos ouviram o ar ser exalado lentamente dos pulmões de Ben Ata, não um suspiro de
exasperação, mas de pura incredulidade, uma espécie de paciência atônita e imposta.
— ...mas ele estava perturbado e fugiu do curral para me encontrar. Por isso acordei,
creio. Mas não é fácil saber exatamente o que aconteceu. Mandei que ele fosse buscar um dos
seus amigos...
Mais uma vez Ben Ata soltou o ar lentamente: agora, um suspiro cauteloso.
— O que me admira — disse ele com voz suave, hesitante, como se estivesse
experimentando um novo tipo de sarcasmo — é você não ter ido aos estábulos para trazer o
cavalo.
— Mas, Ben Ata, você sabe que não posso sair deste lugar. Não sem o meu escudo. Estou
confinada ao pavilhão e aos jardins. Se sair, o ar da Zona Quatro me fará adoecer.
— Está certo, está certo. Tinha me esquecido. Não, não me esqueci... mas... oh, pelo amor
de Deus, não...
Imprecações de toda a espécie recusavam-se a sair dos seus lábios e ele ouviu as próprias
palavras como se fossem pronunciadas por um estranho.
— Ele se foi. Depois de algum tempo, trouxe este cavalo branco. Conhece este animal?
— Não.
— Os dois chegaram no momento em que você apareceu na porta. Olhe para eless Ben
Ata.
De fato, ele podia ver que os animais estavam parados lado a lado com as cabeças baixas.
Eram a própria imagem do desânimo.
— Vou até lá. — E ela caminhou descalça, passando pelas fontes. Agora ele a distinguia
claramente contra o céu do nascente. Uma imensa sombra cinzenta cobria a terra. Farrapos
de nuvens passavam céleres e baixo. Ben Ata a seguiu, a contragosto, e os animais, ao vê-la,
saíram de sob as árvores e aproximaram-se, de cabeça baixa. Ele a viu acariciar o cavalo
negro, depois o branco; viu-a curvar-se, falando ora com um, ora com o outro. Viu as mãos
dela sobre o pêlo úmido. E, então, ela passou um braço ao redor do pescoço de cada um e
ficou imóvel, entre eles. Em seguida, afastou-se, bateu palmas uma vez e eles desceram a
colina a galope, saltando agilmente o muro da cocheira.
Al.Ith voltou-se. Agora ele podia ver seu rosto. Pálido e preocupado. O cabelo, solto sobre
os ombros, umedecido com pequenas gotas de orvalho. Ao lado da boca, a marca de sua mão.
Ao vê-la, Ben Ata sentiu uma necessidade premente de agarrá-la e abraçá-la com força — não
com amor ou desejo, com algo muito diferente. Um impulso de brutalidade quase tomou
conta dos seus sentidos. Mas sentiu a mão pequenina na sua e ficou completamente
desarmado. Talvez, em sua infância, alguém tivesse segurado sua mão com confiança e
amizade, mas, depois disso, jamais.
Não podia acreditar! No momento em que tentava controlar impulsos de pura hostilidade
e repulsa, ela colocou a mão na dele, como se fosse a coisa mais natural. A mão de Ben Ata
estava rígida e esquiva.
Então, ela apressou o passo e andou na frente dele, passando pelas flores, pelas fontes,
até chegar ao terraço redondo, onde se sentou, com os pés descalços sob a saia do vestido.
Os pensamentos de Ben Ata giravam num torvelinho de atônito protesto. Esta grande
rainha, esta conquista — pois não podia deixar de pensar dessa forma — era mais simples do
que as mulheres que cuidavam do gado.
Ela ergueu os olhos para ele, insistente, preocupada:
— Ben Ata, alguma coisa está errada.
Outro suspiro profundo.
— Se você acha.
— Sim. Sim, eu acho. Diga-me, seus rebanhos, seus animais, tem havido algum caso de
doença?
Agora ele a olhou de frente, sério, pensativo.
— Sim, houve alguns relatórios. Mas, espere um pouco... ninguém parece saber do que se
trata.
— E o índice de nascimentos entre eles?
— Baixou. Sim, está mais baixo. — Embora confirmando o que ela temia, não pôde conter
o sarcasmo: — E o que os dois cavalos lhe contaram?
— Não sabem o que está errado. Mas estão abatidos, todos eles. Perderam a vontade de se
acasalar... — Percebendo a iminência da zombaria inevitável, continuou rapidamente,
ignorando-a — e ignorando-o, sentiu Ben Ata. — Não, escute-me, Ben Ata. São todos os
animais. Todos. E os pássaros. E, como sabemos, isso significa o reino vegetal também, se
não agora, muito em breve...
— Como, sabemos?
— Sim, naturalmente.
Apesar da tentativa de zombaria, os olhos dele fitaram os dela com seriedade, com uma
interrogação interessada. Acreditava nela. Estava atento e pronto a fazer o que fosse possível.
Esse modo de encarar o assunto os aproximou mais do que nunca, mas não no sentido de Ben
Ata sentir conforto ou segurança no contato físico entre os dois.
— O número de nascimentos continua o mesmo?
— Não, não continua. Tem havido um decréscimo constante.
— Sim, entre nós também.
— Certas partes da periferia da nossa Zona estão completamente abandonadas.
— Sim, o mesmo se dá conosco.
Ficaram em silêncio por longo tempo. Varando o ar úmido do céu, a leste, a luz do sol
nascente começava a surgir. As nuvens eram flocos de ouro pálido e uma névoa dourada
envolvia tudo. As árvores perfumadas engrinaldavam-se de arco-íris, e lanças de luz opalina
rasgavam a neblina que se erguia dos pântanos. A água jorrava das fontes e seu canto parecia
abafado pela umidade geral.
— Suponho que seja bonito — disse ela com voz baixa e desanimada, e de súbito deu uma
gargalhada cheia de calor.
— Ora, vamos, não é tão mau assim — disse ele. — Vai ver, quando o sol nascer e tudo
estiver seco. Temos dias muito agradáveis aqui, pode estar certa.
— Espero que sim! Ponha a mão no meu vestido, Bem Ata!
Mas esse convite os fez voltar no tempo. Não fora um ato provocante, e ser convidado a
tocar o vestido dela por qualquer outro motivo o ofendia. Segurou a fazenda entre o polegar e
o indicador e disse que estava úmida.
— Ben Ata, erramos em alguma coisa. Nossas duas Zonas. Um erro sério. O que vamos
fazer?
Ele largou o vestido. Franziu a testa.
— Por que não nos dizem o que está errado, simplesmente, e acabam com isso? Assim
poderíamos reparar o erro. — Ele viu o leve sorriso de Al.Ith. — Muito bem, o que há de
errado nisso?
— Acho que querem que encontremos a solução por nós mesmos.
— Mas, por quê? Para quê? Qual a utilidade disso? É perda de tempo!
— Não é assim que as coisas são conduzidas... creio que é isso — disse ela, quase num
sussurro.
— Como sabe? — Mas, ao fazer a pergunta, percebeu que a resposta já fora dada. — Há
quanto tempo você não recebia uma Ordem?
— Tanto que ninguém se recorda. Mas temos velhas histórias. E canções.
— Bem, eu naturalmente não me lembro de nada. Quando me tornei rei nada me foi dito.
Quando a Ordem chegou, lembrei-me apenas de que devia ser obedecida. Disso eu sabia. Mas
era tudo.
— Em toda a minha vida, não recebemos nada. Nem no tempo da minha mãe.
— E a mãe dela?
— Nada, durante gerações de Mães.
— Ah! — exclamou ele, rápida e evasivamente.
— Quer saber, acho que as coisas estão muito sérias. Muito mal. Perigosas. Só pode ser!
— Você acha mesmo?
— Bem, para estarmos juntos deste modo. Por causa da Ordem. Não percebe?
Ele ficou novamente em silêncio. Franziu a testa. Suspirou, sem perceber que o fazia,
pelo esforço de pensamentos aos quais não estava habituado — não costumava questionar
esses assuntos. Al.Ith o observava: este Ben Ata, quieto, pensando, tentando desvendar o
significado daquele dilema — deste homem ela poderia vir a gostar. A respeitar. Mais uma vez
sua mão procurou a dele, num impulso de amizade, e a mão forte de Ben Ata fechou-se sobre
a dela como um alçapão prendendo uma ave. Abriu-a rapidamente, e Al.Ith viu-o olhar para
sua mão e a dele com ar de incredulidade. E, então, olhou-a com uma expressão indefesa no
rosto moreno.
Ela suspirou, retirou a mão rapidamente e levantou-se.
Voltou as costas para o amarelo dourado do leste e olhou para o céu por sobre os ombros
dele. Via as montanhas e os altos picos do seu reino.
— Ohhhh — suspirou —, olhe... não tinha idéia... não tinha a menor idéia...
As montanhas da Zona Três erguiam-se a mais de um terço da altura da direção do zénite.
Ela ficou com a cabeça inclinada para trás olhando para as formas majestosas iluminadas. O
sol nascente refletia brilhos de cristal e os cumes agudos dos picos mais altos pareciam
envoltos em nuvens cor-de-rosa, vermelhas e douradas — mas não eram nuvens, era a neve
acumulada de milhares de anos. E lá embaixo, recortada sobre a massa de montanhas, estava
a borda escura, rochosa, circundada por um forte de pedra, a escarpa que ela descera na
véspera. A vasta planície que se estendia da escarpa e do sopé do planalto, a base das
inúmeras cadeias de montanhas da nossa terra, não podia ser vista daquele ponto. Ninguém
poderia adivinhar a sua existência. Os habitantes dessa zona baixa e pantanosa jamais
poderiam imaginar, olhando para as cadeias de montanhas, as infinitas variações de uma
paisagem e de um país invisíveis para eles. Al.Ith estava de pé, as mãos cruzadas atrás da
cabeça, olhando para cima, mais para cima, sorrindo de satisfação e cheia de saudade, e
chorando de felicidade.
Ben Ata observava-a atentamente. Sentia-se pouco à vontade.
— Não faça isso — disse ele asperamente.
Com relutância, ela baixou os olhos e viu a desaprovação dele.
— Mas, por que não?
— Não é direito.
— O que não é direito?
— Nós não encorajamos isso.
— O quê?
— Devaneio, nós chamamos.
— Você quer dizer, as pessoas não olham para cima, para toda... toda aquela glória?
— Ê debilitante.
— Mas não acredito que seja, Ben Ata!
— Mas é. Essas são as leis.
— Se eu tivesse de viver lá embaixo, acho que não conseguiria tirar os olhos dessa cena.
Olhe, olhe... — E ela abriu os braços, exultante, para os vastos panoramas de luz e cor que
enchiam os céus do nosso ocidente. — Nuvens! — cantou ela. — Não são nuvens, é o nosso
país, é lá que estamos.
— Temos certos momentos para contemplar as montanhas. Momentos determinados.
Festivais. De dez em dez anos. Fora disso, as pessoas que passam muito tempo olhando para
elas são punidas.
— E como são punidas?
— Colocamos pesados fardos em suas cabeças para não poderem olhar para cima.
— Ben Ata, isso é cruel.
— Eu não fiz a lei. Sempre foi a nossa lei.
— Sempre, sempre, sempre... como sabe?
— Não acredito que isso tenha sido jamais questionado. Você é a primeira.
Al.Ith sentou-se ao lado dele. Bem perto. Mais uma vez Ben Ata evitou o contato,
instintivamente. Essa exultação, esse encantamento eram detestáveis. Mal suportava olhar
para o rosto dela radiante e sorridente. Mas sentiu-se aliviado; afinal ela não era sempre tão
pálida e séria. O rosto de Al.Ith, iluminado agora pela luz rosada das montanhas distantes,
tinha o colorido e a graça de uma face de menina, e os cabelos abundantes, pontilhados com
pérolas de orvalho, dançavam, emoldurando o sorriso.
Mas:
— Não deve olhar assim. É contra a lei. Enquanto estiver aqui, deve obedecer às nossas
leis.
— Sim, faz sentido — murmurou ela, desviando os olhos.
— Quando estiver no seu país naturalmente poderá agir como quiser. — Ben Ata a fazia
lembrar de seu irmão que fora administrador da sua casa por muitos anos, antes de pedir
transferência para o posto de curador das Memórias.
— Mas, no nosso país, é assim que somos, Ben Ata.
Como se atingida por um súbito raio luminoso, Al.Ith sentiu-se atordoada.
— Ben Ata, tive uma... — mas já passara. Al.Ith segurou o rosto com as duas mãos e
balançou-se para a frente e para trás, tentando lembrar-se daquilo que tão rapidamente
passara por ela.
— Está doente?
— Não, não estou. Mas quase cheguei a compreender alguma coisa.
— Muito bem, avise-me quando tiver compreendido.
Com essas palavras, o soldado levantou-se e — por um breve momento — olhou para a
glória das montanhas paradisíacas destacando-se contra o céu: Resmungou: "E muito certo
proibir que as pessoas percam tempo com isso", e, desviando os olhos resolutamente,
marchou para os pavilhões. Al.Ith acompanhou-o, com passos lentos, ao lado do lago estreito,
passando pelos jatos d'água, um, dois, três — lançou também um último olhar ao seu país,
desviou os olhos para os sete chafarizes que toldavam a superfície do lago, impedindo-a de
refletir o céu cinzento e pesado.
Dentro do pavilhão, tudo os esperava. O quarto imenso, silencioso, arejado, reluzente,
com seus desenhos delicados e cores brilhantes. A cama era baixa e larga, mal desfeita pelo
encontro dos dois. Através dos arcos via-se apenas a paisagem acinzentada. Chovia e a
encosta ajardinada que descia para os acampamentos estava envolta em névoa.
Ben Ata estava no meio do quarto, ao lado da coluna, observando Al.Ith com uma
expressão de cômico embaraço. E ela sorriu para ele.
Nesse momento sentiram-se unidos por amizade. Companheirismo. Eram ambos, sem
dúvida, representantes e personificações dos seus respectivos países. Preocupados com seus
reinos. Nele, essa preocupação tomava a forma de obediência. Dever. Nela, a compulsão
restrita era amenizada pela responsabilidade sobre acontecimentos e situações, mas ainda
eram iguais. Seu povo era o que eles eram, o que eram seus pensamentos. Suas vidas não
poderiam ser nada mais, ou menos... contudo, agora ambos compreendiam profundamente, e
isso os chocava no mais íntimo do ser, que todo esse cuidado e esses deveres não os tinham
impedido de errar... Entreolhavam-se, sem desviar os olhos, tentando penetrar aqueles olhos
acinzentados e pensativos dele, o brilho suave dos olhos negros dela, para alcançarem algo
mais profundo, alcançar um ao outro.
— O que vamos fazer, Ben Ata? — murmurou ela.
Desta vez foi ele quem estendeu a mão e Al.Ith, aproximando-se, tomou-a entre as suas.
— Precisamos pensar — disse ela. — Precisamos tentar descobrir...
Então, ele passou os braços fortes cuidadosamente pelos ombros dela, como se temesse
que seu tamanho e seu peso a esmagassem, e como se estivesse tentando, experimentando
sensações completamente novas e não de todo bem-vindas e, evitando a marca ao lado da
boca de Al.Ith, olhou aquele rosto que lhe parecia feito de uma substância ou de uma luz que
ele jamais esperaria, nem desejaria possuir. Beijou-a, desajeitado como um garoto. Sentiu os
lábios dela respondendo com uma vivacidade que ainda o alarmava. Beijos rápidos e leves, o
gosto sutil do sorriso e do companheirismo descontraído, a provocação, a resposta na
resposta na resposta — tudo isso era uma imposição excessiva, e, depois de alguns minutos,
ele levou-a mais uma vez para o grande leito. Não deixou de notar que, quando a manteve
imóvel para penetrá-la, Al.Ith enrijeceu o corpo como se tudo nela o repudiasse. Sentiu isso e
comparou com as carícias sensuais que ele havia interrompido. Os modos dela pareciam-lhe
estranhos, difíceis, além do seu alcance. E os seus pareciam-lhe agora rudes... ele só
conseguia penetrá-la e possuí-la depois de um olhar furtivo à marca deixada pelo seu dedo no
rosto dela, e isso o envergonhava agora, enquanto ejaculava, gemia e finalmente ficava
imóvel. Ele estava estranhamente acabrunhado pelo remorso.
Al.Ith ficou imóvel, os olhos muito abertos cheios de mágoa.
— Muito bem — disse ele. — Sei que me acha um bruto.
— Vocês têm péssimos hábitos no seu país — observou ela, afinal, com voz fria. Mas Ben
Ata tinha esperança de que o companheirismo de há pouco voltasse.
Ele levantou-se rapidamente, envolveu-se no longo manto e cobriu as pernas dela com o
vestido azul.
— Sabe o que vou fazer? — sibilou, com voz autoritária. — Vou mandar vir alguns vestidos
da cidade.
Al.Ith começou a rir. Balançava a cabeça levemente de um lado para outro, com a mão
sobre a boca, mas estava rindo. Ben Ata sorriu, aliviado, embora soubesse que aquele riso
podia muito bem ser pranto.
— De qualquer modo, está na hora de comermos alguma coisa — disse ele. E, mais do que
nunca, parecia o irmão de Al.Ith, o administrador, e ela riu, mas, depois, virou-se na cama,
colocou os braços sobre a cabeça e disse:
— Saia daqui, saia daqui, deixe-me sozinha!
Ben Ata obedeceu e foi rapidamente para os aposentos que lhe tinham sido destinados, à
direita do pavilhão central.
Ele tomou banho, trocou de roupa. Vestiu uma túnica própria para cerimônias especiais,
pois não encontrou no guarda- roupa nada que lhe parecesse apropriado para esse encontro
amoroso, para essa primeira refeição nupcial.
Voltou então ao quarto central. Al.Ith estava ainda nos seus aposentos. Ben Ata sentou-se
à pequena mesa ao lado dos arcos, na frente de uma janela onde a chuva, trazida pelo vento
úmido, batia sonoramente, e, apoiando o queixo na mão, meditou sobre os dilemas de ambos
como soberanos. Assim ela o encontrou mais tarde, tão imerso em pensamentos que não a
viu chegar.
Al.Ith encontrara um roupão de linho branco, leve, deixado por uma das empregadas que
fizera a limpeza do pavilhão. Tirou o vestido azul, vestiu o roupão e foi para Ben Ata — que
reconheceu imediatamente a roupa da empregada, assim que deu pela presença dela.
Não fez nenhum comentário. Notou que o branco ficava bem nela. Pensou que Al.Ith era
razoavelmente bonita, ou seria, se conseguisse demonstrar maior boa vontade para agradar-
lhe. Mas ela estava séria novamente, o que combinava com o que ele sentia naquele
momento.
Entre as duas cadeiras havia uma pequena mesa quadrada feita de madeiras coloridas e
lavradas. Feita também segundo as especificações da Ordem.
Ben Ata perguntou:
— O que quer comer?
Antes que ela pudesse responder, Ben Ata bateu palmas e apareceram sobre a mesa
frutas, pão, uma bebida quente e aromática.
— Muito frugal — observou ele, e bateu palmas novamente. Desta vez surgiu um prato de
carnes e um tipo de biscoito sólido que os soldados costumavam comer quando em
campanha.
— Muito frugal — observou ela.
— Não está impressionada com o meu pequeno truque? — perguntou Ben Ata,
secamente, mas com uma insinuação de fraterno desafio.
— Sim, mas creio que faz parte das coisas fornecidas pela Ordem.
— Sim, é verdade. Já tinha visto algo parecido?
— Não, nunca.
— Bem, é só pensar em alguma coisa, e ela aparece. — E ela percebeu, pelo prazer infantil
estampado no rosto dele, que Ben Ata estava a ponto de fazer algo mais se materializar.
— Não, não faça isso — disse ela. — Não devemos abusar.
— Tem razão. Naturalmente. — E ele começou a comer pondo enormes garfadas na boca.
A refeição foi deliberadamente prolongada pelos dois. Ao que parecia, apreciavam-se mais
quando estavam desempenhando o papel de soberanos responsáveis — pensativos, sérios.
Ben Ata dizia a si mesmo que teria preferido que Al. Ith se comportasse como as mulheres às
quais estava acostumado, mas na verdade começava a aceitá-la, a confiar nela. Quanto a
Al.Ith, só podia ignorar a aversão natural pelo tipo físico de Ben Ata e pelos seus modos
quando o via pensativo, tentando aproximar-se dela para compartilharem os problemas que
os defrontavam.
Falaram mais do que comeram e ficaram ali sentados, observando a chuva interminável
que passava com o vento lá fora dos arcos, envolvendo-os em uma quietude tranqüila.
No fim da tarde, a chuva parou, e os dois, descalços, caminharam ao redor das fontes que
fielmente se lançavam nos pequenos lagos, transbordantes agora. Andavam com os pés
mergulhados na água morna. Ben Ata arrastava os pés e chutava a água, como uma criança.
Al.Ith pensou que ele parecia estar preso a uma longa correia. Era uma imagem tola e
desagradável. Ali estava um homem incapaz de se distrair descontraidamente. Parecia sentir-
se culpado, passível de punição. Depois de algum tempo, ela sugeriu que entrassem, e a
reação de Ben Ata, o ar sério e formal, parecia a de uma criança a quem tivessem chamado a
atenção. Al.Ith olhou rapidamente para as montanhas do seu país, agora levemente
iluminadas pelo sol que se punha atrás delas no céu azul cristalino, e viu-o apertar os lábios e
sacudir a cabeça. Para ela não havia meio-termo — licença ou proibição, uma ou outra! Mas,
quando chegaram ao pavilhão, estavam calmos e voltaram a conversar.
Não tinham chegado a nenhuma conclusão sobre o que estava errado nos dois reinos,
nem sabiam onde tinham errado — pois estava claro para ambos que esse tinha sido o caso.
Contudo, a todo momento pareciam estar perto de uma revelação que continuava fora do seu
alcance.
As sombras do cair da noite envolveram o pavilhão e as luzes se acenderam nas sancas
caneladas do teto. Os dois estavam andando de um lado para outro na sua prisão. Ambos
sabiam que era isso o que sentiam. Mas não lhes era possível colocarem-se um no lugar do
outro o suficiente para uma compreensão total. Ben Ata sentia, em cada partícula do seu ser,
a necessidade de afastar-se daquele ambiente, e dela, daquela mulher cuja simples presença
provocava nele uma resistência irritada, enquanto andava para lá e para cá, sua passagem por
ele provocando em seu corpo um protesto e uma repulsa. Jamais experimentara nada
parecido em toda a sua vida. Mas também jamais passara tanto tempo sozinho com uma
mulher, muito menos uma que conversava com ele e, em sua opinião, "comportava-se como
um homem". Esses surtos emocionais eram tão intensos que, quando diminuíam, sentia-se
atônito, imaginando se não estaria doente. Voltaram os pensamentos das possíveis
habilidades dela nas artes mágicas. Quanto a Al.Ith, estava pesarosa, triste, com vontade de
chorar. Eram emoções estranhas para ela. Não se lembrava de ter sentido antes essa
necessidade premente e intensa de chorar, sucumbir, deitar a cabeça no ombro de alguém —
não de qualquer um, e muito menos de Ben Ata. Entretanto, mais de uma vez surpreendeu-se
desejando que ele a carregasse de novo para aquele leito baixo, não para "fazer amor" —
certamente que não, pois ele era um bárbaro —, mas para envolvê-la em seus braços. Essa
urgência a intrigava e inquietava. Com certeza estava sofrendo os efeitos do ar dessa Zona,
tão debilitantes e desanimadores. Apesar do escudo, das dimensões especiais do pavilhão,
talvez tivesse sido corrompida de alguma forma. Todo o seu ser desejava estar livre e de volta
ao seu reino, onde todos esperavam sentir uma leveza de espírito amiga e descontraída, e
onde as lágrimas eram sinal de doença física.
A caminhada dos dois pelo grande quarto tornou-se tão intensa que ambos riram, mas de
súbito ele deixou escapar uma exclamação abafada, que ela facilmente reconheceu como o
sinal de alguém chegando ao limite da resistência, e disse:
— Preciso sair e tratar de algumas coisas... — e desapareceu na noite, descendo a pequena
colina.
Ela sabia que ele fora para os acampamentos — eram o seu lar.
Al.Ith começou a respirar com mais facilidade. Mas, enquanto continuava a andar pelo
quarto, as palavras chegaram-lhe claras como se tivessem sido ditas ao seu ouvido: "Está na
hora de você voltar para casa, agora, Al.Ith. Deverá voltar, mais tarde, mas agora vá para casa."
Não duvidou de que eram as palavras da Ordem. Animou- se imediatamente. Sem perder
tempo para trocar de roupa, saiu como estava, correndo na direção oposta àquela que Ben Ata
tomara, e, parando no meio das fontes, chamou o seu cavalo. Apenas pensou que ele devia vir
para ela. Logo o ouviu galopar na subida da colina e atravessar os jardins e os lagos. Estava
montada e na estrada que levava para oeste antes mesmo que Ben Ata tivesse chegado ao
acampamento dos seus soldados.
Al.Ith não temia ser detida. Estava escuro. Tinha apenas de seguir a estrada reta, sem
cruzamentos, sempre em frente, passando pelas linhas de árvores podadas que pareciam
montes de ramos fracos cobertos de folhas, de um lado, e o canal, do outro. Poucas pessoas
saíam à noite, nesse lugar. Na verdade, Ben Ata ficara chocado ao saber que em seu país
aproveitavam a noite para visitas, festas e todo o tipo de divertimentos. Tinha concordado que
o ar na Zona Três não era tão perigoso quanto, teve de admitir, o da sua Zona. Al.Ith achou-o
desagradavelmente pesado e úmido, e, muito antes da aurora, a estrada começou a subir, na
direção da escarpa da beira do planalto. Não podia ser detida pelos soldados deste lado da
fronteira. Arrancou as mangas do robe que usava e envolveu com elas as patas de seu cavalo.
E continuou, silenciosamente.
Não viu os rebanhos ao passar por eles, mas ouviu-os e pensou no pobre menino
assustado que se deitara aos seus pés. Não viu o grande vulto do lugar "perigoso", e prometeu
a si mesma que, em sua próxima visita, que era inevitável, perguntaria a Ben Ata sobre ele.
Não viu pessoa alguma na estrada. Ouviu o canto e as vozes altas dos soldados, não muito
longe da fronteira, mas passou por eles sem dificuldade.
Quando a aurora incendiou o céu atrás dela, e Al.Ith ergueu os olhos para as neves
maravilhosas das suas montanhas, ouviu o galope de um cavalo que a perseguia e pensou que
era Ben Ata. Parou sua montaria e esperou pacientemente por ele. Era Jarnti, Estava sem
armadura, mas levava o escudo e a capa do exército.
— Aonde vai, senhora?
— Para casa. Como me ordenaram.
— Ben Ata não sabe disso. Ele está na tenda, com os oficiais.
— Tenho certeza de que está — disse ela, mas ele não respondeu à tentativa de humor.
Não olhava para ela, mas para o lado. Tinha a expressão embaraçada e furtiva que ela
lembrava muito bem. Mas Jarnti parecia esforçar-se por manter os olhos desviados... então,
com alguma dificuldade de movimentos, voltou a cabeça para o outro lado. Depois, pareceu
querer erguer a cabeça sem conseguir.
Subitamente ela pensou estar a ponto de compreender.
— Jarnti, você nunca olha para as montanhas?
— Não — e ele fez seu cavalo negro voltar-se, em protesto.
— Por quê?
— É proibido.
— Parece que muitas coisas são proibidas. Olhe agora, olhe como são belas.
Mais uma vez o cavalo negaceou e deu voltas na estrada, e Al.Ith viu que ele se esforçava
por olhar para o alto. Mas seus olhos iam de um lado para o outro, sem que ele erguesse a
cabeça. Não podia.
— Quando era criança você devaneava?
— Sim.
— E era punido com o pesado capacete. Por quanto tempo?
— Um longo tempo — respondeu ele, com cólera súbita à lembrança. E a obediência
dominou-o novamente.
— Muitas crianças desobedecem e olham para as montanhas?
— Sim, muitas. E às vezes os jovens também.
— E todos eles usam capacetes como castigo e daí em diante ficam obedientes?
— Sim, é isso.
— Como soube que eu tinha partido?
— Este cavalo ficou sozinho, pulou o muro de pedra e saiu galopando atrás do seu. Eu
sabia que você tinha fugido, por isso montei-o.
— Bem, devo continuar agora, Jarnti, e creio que nos veremos outra vez. Mas diga a Ben
Ata que, se ele receber a Ordem para novo encontro aqui em sua Zona, não precisa mandar
uma companhia de soldados.
— Fazemos o que achamos que é certo.
— Quantos soldados a Ordem especificou como necessários para me trazer aqui?
Nenhum, creio eu.
— Não é seguro viajar sozinha.
— Cheguei em segurança até aqui, e, uma vez além da fronteira e no meu país, pode estar
certo de que nada tenho a temer.
— Eu sei disso — disse ele em voz baixa, com admiração e tanto sentimento que Al.Ith
compreendeu seu desejo de voltar à Zona Três para o resto da vida. Embora ele mesmo não
compreendesse por quê.
Al.Ith examinou o soldado e ele desviou os olhos.
Tinha a mesma constituição de Ben Ata, forte, pele queimada de sol, mas os cabelos e os
olhos eram negros. Ela o conhecia intimamente, por causa de Ben Ata. Seria o mesmo com
sua mulher ou suas mulheres: fanfarrão e grosseiro. Contudo, por um momento assaltou-a
um desejo, que a surpreendeu com sua intensidade, de estar entre aqueles braços fortes como
pilares, "segura" e "a salvo". Disse:
— Até logo, Jamti, e diga a Ben Ata que o verei quando for preciso.
A expressão constrangida do rosto de Jarnti foi a recompensa do seu assomo de malícia, e
ela imediatamente sentiu remorso.
— Diga a ele... diga.. . — mas ela não conseguia pensar em nada suave e delicado para
dizer. — Diga que parti porque precisava — falou rapidamente, afinal, e pôs o cavalo num
galope rápido subindo a encosta da escarpa. Voltou-se e viu Jarnti esforçando-se por erguer a
cabeça para as montanhas proibidas. Mas não conseguiu: apenas levantou um pouco, mas
logo abaixou-a novamente.
Al.Ith atravessou a fronteira usando o escudo protetor, e então, quando chegou ao ar
fresco e cantante da sua terra, atirou o escudo para longe, saltou do cavalo e dançou em volta
dele, rindo sem parar. E, nos picos das montanhas que se estendiam para o céu, a manhã se
erguia escarlate e púrpura.
Desejava mais do que tudo estar no planalto, ao pé das montanhas, mas antes disso
precisava verificar certas coisas. Assim, depois de dançar e cantar, recuperando seu habitual
estado de espírito, tornou a montar e, deixando a estrada que levava ao planalto, tomou o
caminho que o circundava e que a levaria às regiões periféricas da sua Zona. Eram, na sua
maior parte, centros de criação de gado e fazendas de plantação, e Al.Ith sempre gostara de
visitá-las... mas há muito não fazia essa viagem... há quanto tempo? Bem no fundo da sua
mente estava a certeza de que fazia muito, muito tempo. O que tinha acontecido? Por que se
descuidara desse modo? Pois fora descuidada. Irresponsável. Não existia palavra pior. Sentia-
se castigada, açoitada por ela. Normalmente, depois do deleite de dançar e recuperar sua
alegria de espírito, a ponto de cada átomo do seu corpo cantar e regozijar-se, ela cavalgava,
andava ou corria sobre a relva perfumada da planície, perseguida apenas pelos prazeres do
dia, a luz do sol, os ventos frescos e aromáticos, a mudança da luz, sempre diferente nos
picos... mas não, desta vez não foi assim. Ela tinha errado. Por quê? Chegou mesmo a saltar
do cavalo e abraçou o pescoço do animal, o rosto encostado no calor escorregadio do pêlo,
como se a força dele pudesse transmitir compreensão à sua mente. Estivera especialmente
ocupada? Não, não tinha sido isso. A vida fora como sempre deliciosa, com os filhos, os
amigos, os amantes, a paz amiga do seu reino determinando o ritmo do corpo e do espírito
para o bom humor, a bondade... pensando nos rostos sorridentes e satisfeitos da sua vida,
revoltava-se à idéia de haver algo errado — como era possível!
Uma voz de homem perguntou:
— Precisa de ajuda?
Al.Ith voltou-se e viu um fazendeiro de uma das fazendas coletivas. Jovem, saudável, com
aquele calor irradiante especial que era a marca do bem-estar e do bom humor, e que não
existia no reino de Ben Ata.
— Não, estou bem — disse ela. Mas ele a observava com expressão de dúvida. Al.Ith
lembrou-se que usava ainda o leve robe branco, agora sem mangas e amassado, e as patas do
cavalo estavam ainda envoltas em pano. Retirou os pedaços de fazenda das patas do animal, e
ele exclamou:
— Ah, vejo agora quem é. E como é o casamento na Zona Quatro?
Era o tipo de pergunta amistosa que ela devia esperar normalmente, mas Al.Ith lançou
um olhar desconfiado ao fazendeiro, definido por ela própria de "olhar da Zona Quatro". Mas,
não, naturalmente ele não estava sendo "impertinente" — uma palavra da Zona Quatro! Oh,
como ela havia mudado em um dia e meio naquele lugar!
— Tem razão, sou Al.Ith. E tinha me esquecido que estou usando isto. Diga-me, será que
uma das mulheres da sua família poderia me emprestar um vestido?
— Naturalmente. Eu vou buscar.
E ele correu para um conjunto de casas, cercado por rebanhos de vacas e ovelhas.
Enquanto esperava, Al.Ith soltou o cavalo para pastar e sentou-se à sombra de uma
árvore.
Quando ele voltou correndo, com o vestido na mão, viu-a ali sentada e o cavalo pastando
ao seu lado, de vez em quando acariciando-a com o focinho.
— Como se chama o seu cavalo, Al.Ith?
— Ainda não achei um bom nomé para ele.
— Ah, então é um amigo especial?
— Sim, ele me escolheu para amiga no momento em que nos encontramos.
— Yori — disse ele. — Seu companheiro, seu amigo.
— Sim, é muito bom! — E ela acariciou o nariz do animal, murmurando o nome Yori na
sua orelha.
— E eu também — disse o homem. — Naturalmente eu a conhecia, mas logo que a vi
percebi que era minha amiga. Meu nome é Yori. — E ele sentou-se na relva de frente para ela,
apoiou os braços nos joelhos e inclinou-se para a frente, sorrindo.
Agora, Al.Ith estava completamente confusa. Ela sorriu, assentiu com a cabeça, mas ficou
em silêncio. Se tudo estivesse normal, ela teria respondido imediatamente às palavras dele.
Esse homem era igual a ela e seus físicos se comunicavam com facilidade, desde o primeiro
olhar. Ali sentados, sobre a relva morna, seca e levemente perfumada, com a sombra da
pequena árvore fazendo desenhos silenciosos, seria perfeitamente natural estender a mão
para ele e passarem uma ou duas horas deliciosas. Mas dentro dela havia vozes que diziam:
Não! Não! Por quê? Estaria grávida? Oh, esperava que não, pois no passado sempre escolhera
o momento da concepção de modo bem diferente. Mas, se estivesse grávida, então, pela
ordem natural das coisas, na verdade por exigência e determinação, devia ser alimentada e
inundada pelo ser individual desse homem, para que a criança fosse sustentada com as
essências dele e ouvisse suas palavras. Das outras vezes, quando engravidava — depois de
escolha cuidadosa, pensada e longamente considerada —, assim que tinha certeza, escolhia,
para influenciar beneficamente a criança, vários homens, os quais, sabendo por que e para
que tinham sido escolhidos, cooperavam com ela nesse ato de abençoar e favorecer a criança.
Esses homens tinham um lugar especial no seu coração e nos anais da Zona Três. Eram tão
Pais das crianças quanto os Pais Genéticos. Todas as crianças da sua Zona tinham Pais
Espirituais, tão responsáveis por elas quanto os Pais Genéticos. Formavam um grupo com a
Mãe Genética e com as mulheres que tomavam conta das crianças, considerando-se pais
comuns, sempre à disposição dela, ou dele, em qualquer momento, individual ou
coletivamente. Se estivesse grávida, já era tempo de começar a escolher as influências
benéficas para a criança.
— Yori... — o cavalo ergueu as orelhas e aproximou-se mais; os dois sorriram e o
acariciaram gentilmente. — Você acha que eu estou grávida?
— Não sei.
— Saberia, se tudo fosse normal?
— Sim, sempre soube.
— Você é pai muitas vezes?
— Duas vezes Pai Genético — e espero ser outra vez, dentro de cinpo anos, quando deverá
chegar a minha vez. E sete vezes Pai Espiritual.
— E sempre soube?
— Sim, desde o primeiro.
Entreolharam-se pensativamente, um olhar que levaria ao jogo do amor, mas havia uma
barreira entre os dois.
— Se eu estivesse como sempre, escolheria você, acima de qualquer outro, e o escolheria
também para Pai Genético, se precisasse ter um filho, mas...
As sombras corriam pela imensa estepe, a relva sibilava e murmurava, a árvore sob a qual
estavam farfalhou, Yori, o cavalo, levantou a cabeça e relinchou como se estivesse se
libertando de pensamentos dolorosos demais para serem guardados, e ela ficou imóvel, as
lágrimas correndo-lhe pelo rosto.
— Al. Ith! Você está chorando — disse ele, com voz baixa e chocada.
— Eu sei. Não tenho feito outra coisa nos últimos dias. Por quê? Não compreendo a mim
mesma! Não compreendo nada! — E ela cobriu o rosto com as mãos e chorou, enquanto Yori,
o homem, lhe acariciava as mãos, e Yori, o cavalo, tocava o braço dela com o focinho.
Ondas de compreensão passaram entre ela e o homem através de suas mãos, sua carne
lamentava-se, porque os corpos sabiam que deviam estar unidos, e ela disse:
— Aquele é um lugar horrível. Terei sido envenenada por ele?
— Por que horrível? Como é?
— Como vou saber? — Percebeu a irritação na própria voz e ficou chocada. Levantou-se de
um salto. — Estou irritada! Zangada! Sinto necessidade de me atirar em braços fortes, e
chorar — os seus... oh, não fique chocado, não tenha medo. Não vou fazer nada disso. Tornei-
me desconfiada de palavras e olhares... diga você agora qual a natureza da Zona Quatro.
— Sente-se, Al.Ith. — O tom de comando — pois foi como ela o interpretou — fez com que
obedecesse; e sentou-se, pensando que ele não tivera intenção de dar uma ordem, um
comando, apenas a sugestão de um amigo, mas ela ouvira uma ordem.
— É um lugar de compulsões — disse ela. — Existem pressões que não temos aqui, que
nem conhecemos. Só reagem a ordens, à coerção.
— Ordens?
— Não, não a Ordem, não Ordem. Mas, faça isto. Faça aquilo. Não possuem o
conhecimento intuitivo da Lei.
— Sempre foram assim? — perguntou ele, com uma iluminação súbita que a fez inclinar-
se e examinar seu rosto atentamente.
— Sim — disse ela. — Deve ser isso. Você deve estar certo.
— Al.Ith, as coisas estão muito ruins por aqui.
— Sim, eu sei. Sei agora. Devia ter sabido antes. Se não tivesse sido negligente.
— Sim, estamos comentando agora que você deve ter negligenciado seus deveres. Mas só
agora. Pois só agora esses acontecimentos diferentes começam a formar um todo
compreensível.
— Por que ninguém foi falar comigo?... — E lembrou- se de que a tinham procurado, mas
ela não os ouvira. — Oh, eu mereço ser punida... — exclamou, e a estranheza dessas palavras
fez com que continuasse, em voz muito baixa: — Ouviu isso? É o que quero dizer sobre eles.
— Eu ouvi.
Mais uma vez ficaram em silêncio, lado a lado, envoltos em harmonia.
— Talvez se nos uníssemos você ficasse curada? — sugeriu ele.
Al.Ith disse:
— Quando você falou, meu primeiro pensamento foi de suspeita — não, espere, ouça. "Ele
está dizendo isso no próprio interesse." Não, não fique chocado. Estou tentando explicar... lá é
assim e eu fui infectada por eles... Acredito que, talvez, se nos uníssemos completamente, eu
ficasse curada ou pelo menos melhor. Mas existe em mim outra obrigação, uma imposição à
qual devo obedecer... sinto que não seria honroso.
— Honroso? — E seu sorriso era intrigado.
— Sim. Honroso.
— Você não pertence a Ben Ata e ao reino dele.
— Quem sabe! — E ela levantou-se outra vez. O fino robe branco quase não lhe cobria a
nudez. Era o mesmo que estar sem roupas. Ele usava as roupas dos fazendeiros, calças largas
e camiseta. Ficaram juntos, de mãos dadas. Yori, o cavalo negro, esticou o pescoço na direção
dos dois. Esta é uma cena muito do agrado dos Cronistas e artistas do nosso reino. É chamada
"A Separação". Ou, para as mentes mais sutis: "A Descida de Al.Ith ao Reino das Trevas".
— Eu o convidaria para viajar comigo — disse ela:. Mas não vou fazê-lo. Não me conheço
mais. Não confio em mim mesma. Devo ir sozinha. E, agora, diga-me depressa como estão as
coisas nesta parte da estepe.
Segurando as duas mãos dela, ele falou sobre a tristeza dos animais, das fracas colheitas,
a inconstância do tempo, a diminuição da concepção entre animais e entre o povo.
— Obrigada. Agora preciso vestir esta roupa. Diga-me a quem devo devolvê-la.
— É da minha irmã. Ela a enviou com sua amizade.
— Mandarei outra para ela, com minha gratidão, quando chegar em casa.
Ele a saudou com um sorriso e um beijo gentil no rosto, e afastou-se. Al.Ith tirou o robe
branco, ficou por algum tempo nua entre as plantas aquecidas pelo sol e então pôs o vestido
da irmã do fazendeiro, vermelho-escuro, do feitio de que ela mais gostava, justo no busto e
nas mangas, folgado na saia.
Montou Yori e cavalgou para a região norte do seu reino.
Em todos os lugares em que parou, fazendas, acampamentos de pastores, para conversar
e fazer perguntas, ouviu as mesmas notícias. Ou as coisas estavam piorando rapidamente em
toda a parte ou estavam piores no Norte, onde o primeiro frio de um outono precoce
espessava o ar.
Demorou-se apenas o tempo necessário em cada lugar. Era recebida com a bondade de
sempre, embora todos, homens, mulheres e até crianças, concordassem que Al.Ith havia
cometido algum erro e que esse casamento, essa aproximação com a Zona Quatro,
relacionava-se com seu erro ou sua falha.
E, enquanto cavalgava pela região norte, mais selvagem, montanhosa, fartamente
irrigada, às vezes agressivamente escarpada, lembrava-se — lembrava-se apenas — dos
momentos descontraídos e lentos do passado, pois agora Ben Ata, Ben Ata, Ben Ata pulsava
sonoramente no seu sangue, não podia esquecê-lo, embora cada lembrança fosse dolorosa e
carregada de sofrimento; sabia, e a cada momento mais se convencia de estar prestes a descer
às possibilidades que existiam dentro dela que jamais acreditara serem reais. E nada podia
fazer para evitar.
Deixando a região norte, sempre com os maciços à sua esquerda, dirigiu-se para oeste. Aí
estavam ainda no fim do verão e o sol quente e imóvel. Cavalgou pelas paisagens de
abundância e plenitude, mas a informação era a mesma, e mulher, homem e criança a
saudavam, perguntando: "Al.Ith, o que está errado? Onde foi que erramos? Onde foi que você
errou?"
O peso incômodo que sentia, era culpa. No entanto, era-lhe desconhecida, pois jamais
soubera da possibilidade de tal estado de espírito. Reconhecendo, entre as várias e
calamitosas emoções que a assaltavam, que tomavam as mais diversas tonalidades e pesos e
formas, esta que voltava com insistência, parecendo afinal transformar-se na própria essência
de todas as outras, Al.Ith sentiu seu gosto e textura. Culpa, ela a chamou. Eu, Al.Ith, sou
culpada. Mas, sempre que esse pensa- mento a assaltava, procurava afastá-lo com desgosto e
desconfiança. Como podia ela, Al.Ith, ser culpada, como podia ela, apenas ela estar errada...
podia estar escravizada à Zona Quatro, mas não perdera o conhecimento, a base de todo o
conhecimento, de que tudo era interligado e combinado, tudo era uno, que não existe isso de
um indivíduo estar errado, que não poderia existir. Se havia um erro, devia ser propriedade de
todos, de todos, em todas as Zonas — e, sem dúvida, além delas também. Esse pensamento
atingiu-a violentamente, como uma advertência. Há muito tempo não pensava no que
acontecia além das Zonas... na verdade, mesmo agora, pensou muito pouco sobre as Zonas
Um e Dois — e a Zona Dois estava bem ali, a noroeste, além do horizonte que parecia se
dobrar e se desdobrar em azul ou púrpura... Não tinha se interessado há... há. .. nem podia se
lembrar há quanto tempo. Estava em uma pequena elevação, no centro da região oeste.
Desceu do nobre Yori, e com o braço sobre o pescoço dele, como procurando conforto, olhou
para noroeste, para a Zona Dois. O que havia lá? Não tinha idéia! Jamais pensara nisso!
Jamais imaginara! Ou teria pensado, há muito, muito tempo? Não se lembrava de ter estado
assim como agora, olhando naquela direção, imaginando, deixando os olhos perderem-se
naquelas distâncias longas, azuis e enganadoras... seus olhos pareciam atraídos e seguiam,
dissolvendo-se em azul, azul... um azul mesclado, variado, ondulante... Al.Ith voltou a si,
depois de um lapso de tempo nas regiões mais profundas de si mesma, com um novo
conhecimento que, estava certa, frutificaria. Não já, mas em breve... "Está lá", murmurava
para si mesma. "Lá... se eu pudesse alcançá- lo..." Montou novamente e continuou a sua
viagem circular, virando para a esquerda e passando para as regiões do Sul. Suas favoritas,
sempre suas favoritas, sim, tinha arranjado desculpas para visitá-las com mais freqüência do
que as outras... estivera no Sul há pouco tempo, com todos os filhos e sua corte, e ao que
parecia, com metade do povo do planalto. E como fora maravilhoso — festas, canções —,
agora, lembrando o passado, parecia-lhe que tinham dançado e cantado durante todo o verão.
E nunca parava por muito tempo em sua vida ocupada, para descansar os olhos no azul
infinito da Zona que estava muito acima da Zona Três, tanto quanto esta estava da Zona
Quatro... A idéia a deixou chocada, atingiu-a com a força de uma concepção — com a força que
teria uma concepção devidamente preparada e orquestrada —, aí estava alguma necessidade
urgente e poderosa, que ela devia estar satisfazendo, procurando alcançar...
Entretanto, enquanto atravessava as fazendas e ranchos do Sul, saudada por todos com
bondade e reconhecimento pelo tempo maravilhoso que haviam compartilhado, lá estava
outra vez, mais do que nunca — "Você é culpada, Al.Ith, culpada. (...)"
E seguiu seu caminho, dizendo para si mesma: não sou, não sou, como posso ser, se sou
rainha foi porque vocês me escolheram, e me escolheram porque eu sou vocês, e todos sabem
disso — sou a melhor parte de vocês, meu povo e eu os chamo de meus, como vocês me
chamam de nossa, nossa Al.Ith, e portanto não posso ser mais culpada do que vocês — o erro
está em alguma outra parte, em lugar mais profundo, em lugar mais alto? E continuou a
cavalgar, subindo as colinas cobertas com as ricas vinhas do Sul, avistando a região noroeste,
os olhos estendendo-se pelas montanhas azuis daquela outra terra — até dar a volta no
maciço e perdê-las de vista, para só voltar a vê-las quando chegasse ao planalto, que pretendia
cruzar rapidamente, parando apenas para ver seus filhos e todos nós e chegar na borda do
mesmo, de onde se descortinava o Oeste e o Noroeste, para fitar a bruma azul até que aquilo
de que se devia lembrar — e sabia que era importante — lhe viesse à mente.
Al.Ith percorreu as Zonas do Sul de ponta a ponta. Várias vezes encontrou-se com os
homens que, se tudo estivesse normal, ela teria escolhido para transferir-lhe as qualidades
que seriam proveitosas para a criança que talvez tivesse concebido — mas, teria mesmo? E
essa questão era também origem de amarga auto-recriminação e auto-insuficiência, pois já
fazia um mês que tinha estado com Ben Ata e não tinha idéia se estava ou não grávida. Pois
naturalmente era fácil reconhecer esse estado, pelas reações e pela intensificação da intuição
de todo o ser, e não por causa de fatores puramente físicos. Culpa, oh, culpa... mas não era
culpada, e esse pensamento era em si mesmo motivo de culpa — tão tolo, tão voltado para ela
mesma, tão fixo em sua pessoa. E assim viajava Al.Ith, agitada e em conflito. Sua mente
estava calma, clara e equilibrada, mas sob ela contorciam-se e gemiam e balbuciavam
emoções revoltas, que lhe pareciam ridículas.
Quanto ao resto, as altas regiões nas quais normalmente ela pairava, e nas quais confiava
— aquelas distâncias no seu íntimo que sabia serem seu verdadeiro ser —, bem, pareciam
extremamente remotas nesses dias. Era uma criatura decaída, a pobre Al.Ith, e sabia disso.
E, durante todo o tempo, Ben Ata, Ben Ata soava no pulsar do seu sangue e no passo do
cavalo.
Quando voltou à estrada que levava das fronteiras da Zona Quatro diretamente ao
planalto central, através da planície, voltou o cavalo para a esquerda, na direção de casa. Mas
a voz inconfundível soou de súbito e com clareza em sua mente: "Volte para Ben Ata...", e,
como ela hesitasse: "Vá agora, Al.Ith."
E ela dirigiu o cavalo para o leste. Ao sair da Zona Quatro, na sua dança de alívio e
triunfo, jogara longe o escudo, feliz por se ver livre dele. Não podia entrar agora sem proteção.
Como não sabia o que fazer, não fez coisa alguma: eles deviam conhecer sua dificuldade e
tomariam providências. Voltava a cabeça para trás constantemente para olhar a massa
imensa, o coração de sua terra com seu brilho, suas luzes, suas sombras... e agora veio-lhe um
pensamento completamente novo... pensava, ao mesmo tempo, nas distâncias azuis além.
Assim seu belo reino aparecia na sua mente dilatado ou aumentado; antes era finito,
limitado, conhecido completamente em cada detalhe, fechado em si mesmo... mas agora
desdobrava-se e ondulava para fora e para cima, para além, alcançando interiores que eram
como possibilidades desconhecidas da sua mente.
Sempre que olhava para trás, obrigava-se resolutamente a virar a cabeça para a frente e
enfrentar o que a esperava.
Atrás, alturas, distâncias, perspectivas; à sua frente, a Zona Quatro.
E Ben Ata. E veio-lhe à mente a idéia de que esse homem desajeitado, há pouco tempo
introduzido em sua vida, era uma forma de compensação para as alturas distantes e azuis da
Zona Dois — mas não sorriu. Não era agora uma criatura capaz de sorrir. O que começava a
observar em si mesma era um impulso completamente estranho para idéias vazias. Nunca
antes, em toda a sua vida, encontrara um ser, mulher, homem, criança, sem abrir
completamente seu coração, sem que o fluxo de intimidade corresse imediatamente entre
eles — e, agora, artes e sutilezas sobre as quais nada sabia funcionavam dentro dela, contra a
sua vontade, ou pelo menos acreditava que assim fosse. Quando se encontrasse com Ben Ata,
agiria assim, e assim, e assim — e Al.Ith imaginava olhares, sorrisos, evasivas, a oferta de si
mesma. E isso a revoltava.
Quando chegou à fronteira, viu, como esperava, uma figura a cavalo, mas não era Jarnti,
nem Ben Ata. Montada em uma bela égua castanha, lá estava uma mulher forte, os cabelos
escuros trançados em volta da cabeça, como um diadema. Seu olhar era franco e honesto.
Mas parecia insegura, toda ela expressava a necessidade de ser aceita, o que evidentemente se
esforçava por ocultar. Na parte da frente da sela pesada, a indispensável sela da Zona Quatro,
Al.Ith viu dois objetos alongados de metal brilhante: o escudo para Al.Ith.
— Sou Dabeeb, mulher de Jarnti — disse ela. — Ben Ata mandou que eu viesse.
As duas mulheres, cada uma em seu cavalo, examinaram-se com amistosa franqueza.
Dabeeb viu uma mulher bonita e esguia, o cabelo caindo-lhe pelas costas e olhos tão
calorosos e tão cheios de bondade que teve ímpetos de chorar.
Al.Ith viu uma mulher bela que, em sua Zona, seria designada, imediatamente, para uma
função da maior responsabilidade — no entanto, ali ela tinha a marca inconfundível da
escrava.
Os olhos de Dabeeb não deixavam o rosto de Al.Ith, à procura de censura ou repúdio.
Punição mesmo... contudo, na verdade ela estava, por assim dizer, desmanchando-se em
sinceridade e simpatia.
— Está tentando imaginar por que estou aqui, minha senhora?
— Não... por favor, não! Meu nome é Al.Ith... — e a lembrança dos costumes de sua Zona
fez com que todo o seu ser se encolhesse de dor.
— É difícil para nós — observou Dabeeb. Mas sua voz tinha um tom de auto-respeito
obstinado, que chamou a atenção de Al.Ith.
— Nunca ouvi o nome Dabeeb antes.
— Significa uma coisa amaciada com pancada.
Al.Ith riu.
— Sim, é verdade.
— E quem o escolheu para você?
— Minha mãe.
— Ah... compreendo.
— Sim, ela gostava de uma piada, gostava mesmo.
— Você sente falta dela! — exclamou Al.Ith, vendo lágrimas nos olhos de Dabeeb.
— Sim, sinto. Ela compreendia as coisas como elas são, assim era a minha mãe.
— E fez de você uma mulher forte — a que foi amaciada com pancada.
— Sim. Como ela mesma. Sempre ceder, mas nunca dar-se por vencida. Era o que ela
dizia.
— Por que está aqui sozinha? Não é incomum uma mulher viajar sozinha?
— É impossível — disse Dabeeb. — Nunca acontece. Mas acho que Ben Ata quis agradar-
lhe... e tem mais. Jarnti estava pronto para vir encontrá-la...
— Muito delicado da parte dele.
Um leve sorriso malicioso.
— Ben Ata ficou com ciúmes... — um olhar rápido para ver como suas palavras eram
recebidas. E ficou imóvel, a cabeça levemente abaixada, mordendo os lábios.
— Com ciúmes? — exclamou Al.Ith. Não conhecia a palavra, mas lembrou-se então de tê-
la visto nas velhas crônicas. Tentando compreender o seu significado nesse contexto, viu que
Dabeeb corara e parecia insultada; Dabeeb pensou que Al.Ith não considerava Jarnti à altura
dela.
— Acho que nunca senti ciúmes. Não estamos preparados para essa emoção.
— Então, são muito diferentes de nós, minha senhora.
As duas mulheres atravessaram juntas o desfiladeiro. Avaliavam-se mutuamente, com
todos os sentidos que possuíam, visíveis e invisíveis.
Os sentimentos de Dabeeb fizeram-na exclamar, depois de algum tempo:
— Oh, queria ser como a senhora, oh, se pudesse ser como a senhora! É livre! Deixaria
que a acompanhasse quando voltar para casa outra vez?
— Se for permitido — e ambas suspiraram, sentindo o peso da Ordem.
E Al.Ith pensava que essa mulher possuía uma força, algo obstinado e duradouro;
sofrimentos e dores que Al.Ith sequer imaginava a tinham feito assim. Estava curiosa,
ansiosa para conhecê-la melhor. Mas não sabia fazer as perguntas ou que perguntas fazer.
— Se você, uma mulher, pode vir encontrar-se comigo com a permissão de Ben Ata, isso
significa que as mulheres agora terão maior liberdade?
— Ben Ata deu permissão. Meu marido não. — E deu uma risada breve e maliciosa, que
Al.Ith sabia agora ser característica.
— Então, o que ele vai fazer agora?
— Bem, estou certa de que descobrirá um modo de se fazer sentir. — E esperou que Al.Ith
a acompanhasse em uma das suas típicas risadas.
— Acho que não compreendo o que quer dizer. — Mas, notando a expressão divertida e
paciente de Dabeeb, compreendeu.
— Já pensou em se revoltar?
Dabeeb abaixou a voz:
— Mas é a Ordem... não é?
— Eu não sei.
— Não sabe?
— Estou descobrindo que não sei muita coisa que pensava saber. Por exemplo, sabe
quando uma mulher está grávida?
— Naturalmente, você não?
— Sempre soube, até agora. Mas não sei, neste momento. Não aqui.
Dabeeb compreendeu imediatamente, assentiu com a cabeça, e disse:
— Compreendo. Bem, a senhora não está grávida, posso garantir.
— Bem, isso já é alguma coisa.
— Está planejando não engravidar? — E mais uma vez ela baixou a voz, lançando olhares
furtivos para os lados, embora estivessem na entrada dos campos e canais e não houvesse
vivalma por perto.
— Acho que usamos a palavra planejar de modo diferente.
— Podia me ensinar? — veio o murmúrio quase inaudível, abafado pelo ruído dos cascos
dos cavalos na estrada de terra.
— Eu lhe ensinarei o que puder. O que for permitido.
— Ah, sim... eu sei. — E o suspiro que deixou escapar dizia tudo o que Al.Ith precisava
saber sobre as mulheres da Zona Quatro.
Resignação, aceitação. Humor. E sempre, no fundo dessas armaduras de vigilância,
paciência e humor, o aguilhão permanente de uma terrível carência.
Al. Ith fez seu cavalo parar. Dabeeb parou também. Al.Ith estendeu a mão. Depois de uma
breve luta contra as cautelas e resistências, Dabeeb estendeu a sua. Al.Ith murmurou:
— Eu lhe direi tudo o que puder. Ajudarei no que puder. Serei sua amiga. Tanto quanto
possível. Prometo. — Pois sentira que as palavras eram necessárias. Esse tipo de palavras.
Jamais as usara na Zona Três, jamais imaginara que fosse preciso usá-las. Mas, agora, via as
lágrimas descendo dos belos olhos de Dabeeb e orvalhando as faces coradas. As palavras eram
certas e necessárias.
— Obrigada, Al.Ith — murmurou ela, com voz embargada.
Quando chegaram ao ponto da estrada de onde se avistava o pavilhão, Al.Ith disse:
— Gostaria que me emprestasse um dos seus vestidos. Ben Ata acha que não me visto
adequadamente.
Dabeeb olhou com apreciação para o vestido vermelho- escuro bordado que Al.Ith estava
usando e respondeu:
— Esse é mais bonito do que qualquer um da nossa Zona. Mas eles não vão entender isso,
nem em um milhão de anos! — Falou com a indulgência afetuosa que Al.Ith jamais pensaria
em usar referindo-se a um adulto. E havia também em suas palavras um terrível desprezo. —
Você é elegante, Al.Ith. Gostaria de saber ser elegante...
E olhou para o próprio vestido, de fazenda estampada, bonito, mas sem o encanto e a
elegância das roupas da Zona Três.
— Não precisa se preocupar com isso. Todos estão comentando as roupas que Ben Ata
encomendou na cidade para você. Os armários estão cheios... embora não possa imaginar o
que vai fazer com elas.
Quando chegaram à subida da colina, onde começavam as fontes e os jardins, Dabeeb
inclinou-se para o lado e abraçou Al.Ith com emoção.
— Pensarei na senhora. Todas nós, todas as mulheres, estamos com a senhora, não se
esqueça! — E desceu a colina, suas lágrimas espalhando-se no vento, como chuva.
Al.Ith cavalgou lentamente até o fim dos jardins, desmontou, mandou que Yori fosse para
a cocheira e caminhou atravessando os jardins, olhando para os pavilhões, esperando o
momento de ver Ben Ata. Sentia a mais notável constelação de emoções estranhas, que,
examinadas como um todo, definiam-se como uma espécie de antagonismo que não
conhecia. E uma espécie de zombeteiro divertimento: "Vou lhe mostrar!" E mais: "Acha que
vai me vencer!"
Não era animosidade contra Ben Ata, mas um desafio agradável e combativo.
Esperava mesmo ansiosamente pelo encontro, para que esse novo relacionamento
pudesse começar. Não havia lágrimas no seu horizonte, naturalmente que não!
Estava completamente confiante e calma, todos os seus poderes controlados e prontos
para serem usados.
Havia também nela um fundo de invencibilidade que reconheceu porque o sentira e
avaliara em Dabeeb durante toda a travessia da planície.
Nesse estado de espírito, esperava o encontro com Ben Ata.
Este estava encostado na coluna central, braços cruzados, numa pose que refletia os
pensamentos de Al.Ith. Ele sorriu, severo e zombeteiro.
— Gostou da sua acompanhante? — perguntou, fazendo-a lembrar-se de que ele sentira
ciúmes.
— Muito. Não tanto quanto teria apreciado a companhia do belo Jarnti, naturalmente.
Ele adiantou-se rapidamente com os olhos brilhando e Al.Ith percebeu que Ben Ata
estava a ponto de agredi-la. Mas ele sorriu, e o sorriso dizia que Al.Ith pagaria por isso, mais
tarde, e estendeu as duas mãos. Al.Ith segurou-as, balan- çando-as levemente, de um lado
para outro, com um sorriso divertido.
— É um belo vestido — observou Ben Ata, pois tinha resolvido ser gentil.
— Então, gosta de vermelho?
— Acho que gosto de você — disse ele, abraçando-a, a contragosto, pois, na verdade,
gostava dela cada vez menos. Deixando que seus sentidos o informassem que essa mulher
provocante de vestido vermelho podia muito bem vir a agradar-lhe, Ben Ata esquecia-se da
independência dela, que se expressava em cada sorriso, olhar, em cada gesto.
Al.Ith afastou-se, deslizando levemente para o outro lado do quarto, com um olhar de
desafio lançado sobre o ombro que a deixou atônita — não compreendia o que se passava com
ela! E Ben Ata, para provocá-la, não a seguiu. Ficou imóvel, uma figura imensa com a túnica
verde curta, o cinto de couro, os braços cruzados. Al.Ith então, sorrindo "enigmaticamente" —
e ficou assombrada ao sentir esse tipo de sorriso nos próprios lábios —, colocou as mãos nos
lados da coluna e balançou o corpo de leve, num movimento extremamente provocante. Ben
Ata ficou excitado, mas não pretendia ceder.
Ele sorria, ela se balançava...
Na noite em que Al.Ith o deixara, há tantas semanas, Ben Ata voltara relutante, à meia-
noite, depois de ter se acalmado com a companhia dos soldados, e não a encontrara. Furioso,
compreendeu que ela havia obedecido a ordens, e sentiu-se invadido por uma carência, uma
necessidade, uma incapacidade que não sabia diagnosticar ou suprir. Não sentia falta de
Al.Ith, disso tinha certeza.
Ben Ata era, acima de tudo, um homem minucioso.
Compreendera que tinha pouco conhecimento de certas práticas; na verdade, que seu
conhecimento era falho em muitas coisas.
Desprezava os homens que freqüentavam a parte baixa da cidade; para ele era uma forma
de auto-indulgência. Mas, agora, era para onde se dirigia. Depois de interrogar
metodicamente Jarnti e outros oficiais, foi a um certo estabelecimento e pediu uma
entrevista com a madame. Ela compreendeu o motivo dessa visita assim que ouviu dizer que
Ben Ata ia procurá-la. Mas ouviu as explicações dele, constrangidas mas precisas, com um
leve sorriso.
Levou-o a um quarto onde o esperava uma mulher à qual tinham sido dadas instruções
detalhadas, pois a capacidade e as falhas de Ben Ata haviam sido discutidas, em todo o país,
pelas mulheres. Afinal de contas, tantas campanhas, treinamento militar, tantos saques,
estupros e pilhagens haviam deixado muitas mulheres violentadas ou desiludidas para
comentar o assunto.
Ben Ata foi instruído nas artes do amor por uma mulher tão experiente que o
surpreendeu. Não se pode dizer que tenha sido inteiramente do seu agrado essa prolongada
dedicação ao prazer, pois continuava a considerar o ato como ocupação pouco masculina.
Mas a verdade é que Ben Ata mergulhara nos prazeres, o único jeito de descrever o que
acontecera durante o mês em que Al. Ith percorreu seu reino, procurando saber o estado das
coisas. Ele aprendeu, como se fosse em uma escola, uma imensa variedade de noções sobre a
anatomia, as possibilidades, as potencialidades do corpo do homem e da mulher. Não foi um
aluno exemplar. Mas também não era dos piores, e quando se decidia por alguma coisa ia até
o fim.
Essa cortesã — pois não era uma prostituta comum —, escolhida entre muitas pela dona
do bordel, viera de outra cidade, por causa de sua reputação, e ensinou a Ben Ata tudo o que
sabia.
O que Elys conseguiu em um mês de trabalho duro foi ajustar a mente de Ben Ata para a
idéia de que o prazer pode ser multifuncional. Essa era pelo menos a noção básica.
Ele pensava que agora sabia tudo o que havia para saber.
Mas, no momento em que Al.Ith entrou, graciosa e provocante, ele lembrou-se de algo
que tinha afastado completamente da lembrança durante aquele mês enervante. Os beijos
leves, furtivos, excitantes, aos quais não soube corresponder, haviam desaparecido de sua
mente. O convite, a resposta e pergunta, a reação mútua, a contra-resposta — nada disso fazia
parte dos ensinamentos da cortesã Elys, pois jamais em sua vida ela tivera esse tipo de
relacionamento com um homem ou mulher.
Enquanto Al.Ith balançava-se com leveza e graça, sorrindo e esperando, ele compreendeu
que tinha de começar tudo de novo. Não havia outra saída. Não podia recusar, pois aquele
mês como aprendiz entusiasmado era uma aceitação do que estava para acontecer.
Ben Ata estava desafiando e antagonizando uma igual — seu olhar revelava isso. Então,
ela afastou-se da coluna, aproximou-se dele e começou a ensiná-lo a ser igual e a se preparar
para o amor.
Foi extremamente chocante para ele, porque viu-se exposto a prazeres que sequer tinha
imaginado com Elys. Não havia comparação possível entre a sensualidade pesada da cortesã e
as mudanças e sensações desses ritmos. Estava exposto não somente a respostas físicas que
jamais imaginara, mas, o que era pior, a emoções que não desejava sentir. Viu-se mergulhado
em ternura, paixão, nas selvagens intensidades que não sabia se eram dor ou prazer... e tudo
isso enquanto ela, completamente à vontade, em seu próprio país, conquistava-o mais e mais,
um companheiro decidido mas inquieto.
Naturalmente, ele não agüentou muito tempo. A igualdade não se aprende em uma ou
duas lições. Por natureza, suas reações eram lentas e pesadas; sempre seria assim.
Impossíveis sempre seriam para ele os prazeres mercuriais. Mas, dentro dos seus limites de
resistência, fora introduzido a potencialidades muito além de tudo o que julgava possível. E,
quando desistiram, ele meio aliviado e meio desgostoso com a interrupção das intensidades,
ela não permitiu que Ben Ata deixasse o plano de sensibilidade que haviam atingido. Fizeram
amor a noite toda, e no dia seguinte, e não pararam para se alimentar, embora tivessem
pedido vinho, e quando afinal estavam inteira e completamente unidos, de modo que não
poderiam distinguir, pelo tato, onde um começava e o outro acabava, sendo preciso para isso
a ajuda visual, caíram num sono profundo que durou outras 24 horas. E, quando acordaram,
ao cair da noite, ouviram batidas de tambor vindas do jardim e sabiam que era o sinal, para
todo o país, de que o casamento fora consumado. E o tambor deveria tocar sempre que se
encontrassem, até terminarem, para que todo o povo soubesse que estavam juntos e
compartilhasse do casamento, em espírito, em apoio — e naturalmente, em emulação.
Ficaram abraçados como se estivessem nas profundezas do mar. Mas agora começava o
lento e cauteloso afastamento da carne, a coxa da coxa, o joelho do joelho... era quase noite e
embora ambos sentissem que suas personalidades comuns não estavam de acordo com as
maravilhas dos dias e noites que tinham passado, felizmente não percebiam nenhuma
dissonância, pois já não podiam acreditar no que tinham feito. Ele, com um movimento terno
e quase de desculpas, retirou o braço de sob o pescoço dela, sentou-se, depois levantou-se,
espreguiçando-se. Havia alívio em cada movimento daqueles músculos fortes, e ele sorriu na
semi-obscuridade. Quanto a ela, voltava a si do mesmo modo. Mas evidentemente ele achava
que seria pouco delicado deixá-la imediatamente, e, envolvendo-se em sua capa militar,
sentou-se nos pés da cama.
— Se nos arrumarmos um pouco, podemos nos encontrar para jantar — disse ele.
— Que ótima idéia! — Ela já estava na porta dos seus aposentos, pois tinha saído da cama
sem que ele percebesse. E Al.Ith saiu do quarto.
Nada tinha mudado, exceto um armário, que cobria a parede inteira, agora repleto de
vestidos, peles, pelerines. Al.Ith jamais vira coisa igual, e, resmungando que se tratava sem
dúvida de um depósito de roupas para um exército de prostitutas — tinha aprendido a palavra
com ele —, começou a tirar tudo, peça por peça, de dentro do armário. As fazendas eram de
boa qualidade, e ela examinou sedas, cetins, lãs, com a experiência de uma profissional —
sem dúvida este país sabia fabricar tecidos. Mas ficou estupefata com o mau gosto dos
modelos. Não conseguia encontrar um que não fosse exagerado, de um modo ou de outro,
que não fosse feito para enfatizar as nádegas ou os seios, ou expô-los, ou apertá-los
incomodamente, ou, então, a cor ou a fazenda não combinavam com o estilo. Não havia o
sentimento instintivo da combinação certa entre o modelo e a fazenda, e nenhuma sutileza.
Sentindo, porém, que a sedução imediata não era a ordem do dia ideal para as circunstâncias,
escolheu um robe verde discreto que a deixou atônita por sua incrível disparidade em todos
os sentidos, mas era o melhor de todos. Tomou banho, penteou o cabelo, procurando imitar o
penteado de Dabeeb — um estilo muito feminino, talvez —, e vestiu o robe verde. Então,
voltou ao quarto central, onde Ben Ata a esperava, taciturno, sentado à pequena mesa perto
da janela. Ao ver o vestido seus olhos brilharam, mas logo pareceu desapontado.
— É um dos nossos? — perguntou, duvidando.
E ela respondeu:
— Sem dúvida, grande rei. — E trocaram um sorriso amigo e compreensivo dos que estão
realmente unidos. Olhando-se agora, de volta às suas dissociações absolutas, aos seus outros
eus, esses dois habitantes de reinos diferentes não podiam acreditar no que haviam
conquistado durante aquelas horas de imersão completa um no outro. Para ele, ela era
novamente uma mulher estranha, tudo nela diferente, embora querido, o que o afastava mais
do que o unia, pois Ben Ata temia, no mais íntimo do seu ser, o que ela poderia fazer com ele.
E Al.Ith, olhando para aquele soldado grande e forte, com o cabelo molhado ainda do banho,
pensava que na verdade devia se congratular por ter conseguido levá-lo tão longe.
Mentalmente pediram uma refeição substancial e, durante algum tempo, comeram
avidamente.
Enquanto isso, o tambor no jardim, batendo, batendo, batendo.
Assim que terminaram a refeição, levantaram-se e caminharam no jardim, de uma
extremidade a outra. Não viram tambores. Mas o som ali estava... em algum lugar... aqui?, ..
não, ali, pareciam sempre a ponto de chegar à origem do som, mas nada encontravam.
Compreendendo que jamais saberiam de onde vinham as batidas, voltaram ao pavilhão.
Não de mãos dadas. Nem mesmo muito próximos um do outro. Ambos sentiam-se fechados,
completos, contidos em si mesmos, cada um absolutamente impenetrável àquele e àquela
pessoa estranha.
— Entretanto — disse ela, como se continuasse uma conversa —, sem dúvida estou
grávida.
— Está? Tem certeza? Esplêndido! — Sentindo que seria adequado pelo menos um
abraço, ele fez menção de se aproximar, mas, vendo que Al.Ith absolutamente não precisava
disso, interrompeu o gesto.
— Naturalmente estou certa.
— Por quê? Como?
— Como as mulheres do seu país sabem, não como no meu país. — E ela riu. Riu,
enquanto ele a observava polidamente, esperando que parasse de rir.
— Bem, ótimo, estou encantado.
— Eu também, uma vez que provavelmente é o que esperavam de nós.
— Tem certeza?
— Não, é claro que não. Não tenho certeza de nada.
— O que devemos fazer agora?
— Como vou saber? Mas talvez eles queiram que eu volte para casa.
Ao ver a expressão de alívio no rosto dele, Al.Ith deu uma gargalhada, com o dedo
indicador apontado para ele, e Ben Ata compreendendo que ela sentia a mesma coisa,
começou a rir também. Quando terminaram de rir viram que faltava muito ainda para a meia-
noite, e que, livres um do outro, certamente se separariam.
— Xadrez? — sugeriu ele.
— Por que não?
Ele ganhou uma partida, ela ganhou a outra. Eram muito bons, na verdade mestres nesse
jogo, nos respectivos reinos. Sendo assim, as partidas foram demoradas e o dia raiava quando
terminaram.
Os dois imaginavam (esperando que o outro não adivinhasse) se seria adequada outra
sessão amorosa, mas resolveram que não era.
Mais uma vez, caminhando entre a bruma e as fontes do jardim, com a batida constante
do tambor em todo o lugar, no seu sangue, em suas mentes, ela chamou a atenção de Ben Ata
para as fileiras de soldados em formação entre a névoa da baixada. Al.Ith observou o rosto
dele, respeitando o que via: o conhecimento completo do que se passava lá embaixo, e ela
sabia que ele estava criticando e aprovando, dando ordens, dirigindo a perfeição do seu
trabalho, o exército.
— E quem são — perguntou ela com sinceridade — os seus inimigos?
Ben Ata ficou tenso, e ela compreendeu que ele estivera pensando desde que ela fizera a
pergunta a Jarnti, que repetira suas palavras ao rei, em tom zombeteiro, mas intimamente
perturbado.
— Não temos inimigos, então para que temos exércitos? — perguntou ele, com seriedade,
referindo-se à pergunta dela.
— Contra quem lutam?
Ele continuou tenso e ficou silencioso por algum tempo. Al.Ith sabia que Ben Ata
recordava-se das pilhagens e rapinagem de muitas campanhas, pensando se tudo isso não
fora feito à sombra de uma idéia errônea...
— Nós não somos seus inimigos — não é possível a uma pessoa da Zona Três cruzar a
fronteira sem sentir os efeitos do ar — no entanto, vocês mantêm fortes em toda a extensão
dos nossos limites, o mais próximo que podem chegar, sem que os soldados sintam os efeitos
do nosso ar.
Ben Ata ergueu os ombros rapidamente, de forma estranha.
— Há quanto tempo foi dado pelo menos um tiro de advertência nas fronteiras?
Ele riu brevemente, concordando.
— Há tanto tempo que nem nos lembramos. Mas, veja bem, às vezes prendemos um
espião... e o deixamos ir, depois.
Ela riu.
— Então, para quê?
— Temos exércitos grandes e eficientes.
Lá embaixo, entre a névoa dourada que se erguia quase verticalmente no ar, dissolvendo-
se mais ou menos ao nível da pequena colina onde estavam, os soldados, com suas vestes
coloridas e armaduras brilhantes, marchavam e davam voltas, e ó som áspero das ordens
parecia perder-se ao mesmo nível, como se névoa e som fossem uma só coisa.
— E a Zona Cinco? Têm fortes lá? Uma fronteira?
— E escaramuças, até mesmo batalhas.
Al.Ith espantou-se; esquecera-se de que havia guerra na Zona Cinco.
— Naturalmente — disse ela. — Mas, naturalmente...
— Sim, eu sei. — Desajeitado, embaraçado, apologético, como se estivesse em falta com
ela e não com Eles — os Provedores e os que emitiam as Ordens —, ele gaguejou: — Tenho
pensado nisso desde que você tocou no assunto. É verdade... naturalmente, não se espera que
cheguemos a lutar...
— Batalhas de verdade?
— Sim. Bem... nada muito sério...
— Feridos? Mortos?
— Feridos e mortos.
Al.Ith deixou escapar um suspiro longo e desalentado.
A expressão dele era consternada:
— Sim, eu sej. Mas juro... aconteceu aos poucos. Nunca pensei... nenhum de nós jamais
pensou... foi só quando você... — E Ben Ata bateu violentamente com o punho fechado no
parapeito baixo do lago.
— Quem começa a luta? A batalha? O povo desta Zona pode passar para a outra — e voltar
— sem prejuízo ou perigo?
— Em certa época tenho certeza de que era impossível passar de uma Zona para a outra,
como acontece hoje entre a sua Zona e a nossa, sem escudos. Mas alguma coisa parece ter
mudado. Não estou dizendo que seja fácil. Não há movimento em grande escala na fronteira.
Nem freqüente. Mas a luta ocorre ao longo dos limites, às vezes deste lado, às vezes do
outro... nunca muito no interior da Zona deles.
— Você esteve lá?
— Sim. Mais de uma vez.
— E como é a Zona Cinco?
Ele estremeceu e passou as palmas das mãos nos braços, para aquecê-los. Sua aversão
pela Zona Cinco o fizera empalidecer.
— É tão ruim assim? — disse ela, não sem ironia, pois sabia que era exatamente o que
nós, da Zona Três, sentíamos pela Zona Quatro. Ele percebeu a ironia, assentiu com a cabeça
e abraçou-a carinhosamente.
— Sim, é tão ruim assim.
E, puxando-a para si, apoiou o rosto no cabelo dela murmurando:
— Mas o que vamos fazer, Al.Ith? O quê? Basta meu erro de só agora começar a pensar
nisso.
— Como eu fiz em relação às deficiências da nossa Zona. Sabe, Ben Ata, não tive tempo de
lhe contar, mas percorri todas as regiões mais distantes da nossa Zona, depois que o deixei...
— Sozinha? — perguntou ele, com voz áspera e incrédula, instintivamente, e não pôde
deixar de rir quando ela respondeu calmamente:
— Naturalmente, sozinha, porque eu quis assim... mas não se trata disso, Ben Ata.
Quando estava em uma parte alta do país, abaixo do maciço central, de onde avistava toda a
região noroeste, vi... mas a verdade é que nenhum de nós fazia isso há muito tempo, tanto
que nem sabemos quando foi a última vez. Vocês precisam de capacetes punitivos para evitar
que seu povo olhe naquela direção — e ela o fez voltar-se, de modo que os olhos
deslumbrados de Ben Ata se erguessem para as grandes montanhas da Zona Três, nesse
momento com todas as cores da opala de fogo. — Seu povo não deve olhar para lá, não, fique
atento, Ben Ata, porque nosso povo nunca olha para além das nossas fronteiras sem punições
ou reprimendas. E nunca nos ocorre olhar. Somos muito prósperos, muito felizes, tudo é tão
confortável e agradável entre nós, Ben Ata... não sei o que dizer ou o que pensar... — e ela
ficou atônita, chocada mesmo ao perceber que lágrimas lhe corriam pelo rosto, enquanto Ben
Ata se curvava para ela, esquecendo os altos picos de cores fascinantes, confortando
suavemente aquelas lágrimas estranhas. Chegou a enxugar uma lágrima com o dedo forte,
olhando depois para ela como se fosse diferente de todas as outras lágrimas que já tinha
visto.
Nas canções, nos quadros e na história, esta cena é conhecida como "A Lágrima de Al.Ith".
O povo acredita que reproduz as ternas emoções do casal, quando Al.Ith disse que estava
grávida, mas a verdade é exatamente como acabei de contar.
Lá estava Al.Ith, acalentada ao peito forte daquele homem, aconchegada e contente,
soluçando, como tão freqüentemente tinha vontade de fazer naqueles dias. O fato de ela não
acreditar na eficácia das lágrimas não impedia que lhes aproveitasse o conforto, enquanto
duraram.
Quanto a ele, estava satisfeito por ver que essa mulher tão auto-suficiente era capaz de
chorar, como qualquer outra, e ao mesmo tempo não podia acreditar. Não estava de acordo
com o que sabia dela, e sentiu-se aliviado quando ela se levantou, fungou, enxugou o rosto
com as duas mãos e mais uma vez ficou ao lado dele no parapeito.
— E como é a Zona Dois? — perguntou ele.
— Você sabe mais sobre a nossa Zona do que eu lhe posso dizer sobre a Zona Dois. Tudo o
que sei é que a gente olha, olha e nunca parece ser o bastante. É como se olhássemos para
névoas azuis — ou água... ou... mas é azul, azul, um azul jamais visto...
— Bem, não vejo a utilidade disso — observou ele —, não se realiza nada olhando.
Precisamente o que ela esperava dele; Al.Ith deu uma gargalhada, e Ben Ata
acompanhou-a: e isso os levou de volta ao leito. A troca de carícias não foi de modo algum
igual à dos últimos dias, mas uma confirmação de que era ainda possível — pois suas
diferenças eram tão grandes que ambos constantemente eram assaltados pela sensação de
espanto por estarem juntos. E assim sentiriam até o fim.
Era meio-dia outra vez; um dia úmido e quente, e ela o escandalizou ao entrar nua em
uma das fontes. Ben Ata jamais pensara nas fontes nesse sentido, mas juntou-se a ela,
embora sem o abandono de Al.Ith. Queixou-se de que os peixinhos lhe faziam cócegas, disse
que estavam perturbando os peixes e que, além disso, "se alguém os visse..."
Mas, quem?
— Aquele tambor — queixou-se ele. — Deve haver alguém por aí, é lógico — pois o tambor
continuava sem parar, não importa o que dissessem ou fizessem.
— O que devemos fazer — disse ela, quando, já vestidos, estavam sentados à pequena
mesa — é isto. Você sabe que houve um tempo em que não era possível a mistura entre a
Zona Quatro e a Zona Cinco. Agora, vocês se misturam... até lutam. Portanto, o que
aconteceu? Precisamos descobrir. E, depois, descobrir para que serviam seus exércitos,
originalmente. Por que vocês têm exércitos? Toda a riqueza da sua terra é absorvida pelo
exército. Não admira que sejam tão pobres.
— Nós somos pobres? O que quer dizer?
— Ben Ata, vocês são pobres! Não sabem disso, mas são patéticos! O mais pobre pastor do
nosso reino vive melhor do que você, o rei. Quanto às roupas naqueles armários! Oh, não
estou dizendo que não sejam resistentes e bem-feitas... ou pouco adequadas. Para a finalidade
a que se destinam. Mas não são roupas consideradas dignas de uma rainha, de acordo com as
suas idéias — pois acham naturalmente que uma rainha deve usar um tipo de roupas, e a
mulher de um soldado, outro...
— Naturalmente. Deve haver uma hierarquia.
— Naturalmente. Segundo vocês. Mas eu lhe digo que não é necessário. Por que precisam
ter patentes e hierarquia? Por que são tão pobres? Por que precisa usar esse broche enorme
prendendo sua capa, que indica que você é Ben Ata? Entre nós, todos sabem que eu sou
Al.Ith. E saberiam se me vestisse de andrajos. Não compreende? Vocês são pobres, um povo
pobre, Ben Ata. Tudo o que vi enquanto cavalgava até aqui — oh, não falo deste pavilhão, que
foi criado para esta ocasião e que provavelmente desaparecerá quando nos separarmos...
— Vamos nos separar outra vez?
— Mas, naturalmente! O que está imaginando? Que ficaríamos juntos para sempre, Ben
Ata? Estamos aqui para um determinado fim — para curar nossos países e descobrir onde foi
que erramos e o que devemos fazer, o que na verdade já devíamos estar fazendo...
Ela estava inclinada para a frente, fitando-o com um olhar persuasivo e apaixonado.
Ben Ata, recostado na cadeira, observava-a com sarcasmo. Sentia-se ofendido. Jamais lhe
passaria pela mente a idéia de que seu país pudesse ser descrito como uma terra pobre ou que
fosse considerado atrasado e carente pelos estrangeiros. Não lhe importava que essa mulher o
achasse rude e inculto — como evidentemente ela o achava. Era um soldado! Soldados eram...
soldados. Mas seu reino, sempre o considerara um modelo. Sentia-se frio e indiferente com
ela. E furioso, ao mesmo tempo. Fitava os olhos brilhantes de Al.Ith, o rosto iluminado, como
se estivessem muito distantes — separados por uma distância de total repúdio.
Subitamente, Ben Ata levantou-se e começou a andar pelo quarto furiosamente.
— Você disse que o que importa é o luxo, você disse isso. Conforto. Facilidades. Tudo...
você disse, você disse...
— Sim, é verdade. — E naturalmente ele insistiu, uma admissão seria fraqueza, e Ben Ata,
de pé, ria zombeteiramente apontando para ela.
— Você é como um garoto crescido, Ben Ata — disse ela, erguendo-se da cadeira. —
Quando somos ricos e temos tudo, isso só é prejudicial quando nos faz esquecer os objetivos
importantes. Mas seu país é pobre e bárbaro porque toda a riqueza é absorvida pela guerra —
uma guerra inútil, estúpida, sem sentido... — estava na frente dele, desafiando-o.
O ódio de Ben Ata culminou no gesto de erguer a mão para agredi-la. O punho enorme,
quase do tamanho da cabeça de Al.Ith, estava pronto para o golpe — ela não se moveu, apenas
olhou para ele.
— Ben Ata, sou muito mais fraca do que você e pode fazer o que quiser, se usar violência.
Não posso impedi-lo. E aqui, no seu estranho país, não posso fazer uso da verdadeira força
para evitar...
Naturalmente ele tinha agora de levá-la para a cama e tratá-la como costumava tratar as
mais fracas mulheres das suas noites de pilhagem.
Al.Ith não resistiu, mas virou a cabeça para o lado e fechou os olhos, ausentando-se
completamente, como se estivesse morta.
Ben Ata estava violentando uma mulher morta, pelo menos era o que sentia. E odiava-se
por isso. E odiava-a por forçá-lo a esse ato. Então, lembrou-se que ela estava grávida e que
podia prejudicar o feto. Tudo isso evitou que repetisse o processo, o que teria feito em
circunstâncias normais. Rolou o corpo para o lado, trêmulo com a aversão que sentia, e disse:
— É isso. É isso.
No silêncio, ambos ouviram o silêncio dos tambores.
Al.Ith levantou-se com dificuldade, foi para seus aposentos e voltou, quase que
imediatamente, com seu vestido vermelho. Não olhou para ele.
— Não pode ir sem que eles ordenem — disse Ben Ata, violento e ameaçador.
— O tambor parou, não ouviu? — respondeu ela com voz sem vida.
Al.Ith saiu do quarto e chamou seu cavalo. Imediatamente ouviu-se o ploque-ploque dos
cascos no jardim, entre as fontes.
— Então, não volte — disse ele, vencido. Não podia acreditar no que estava acontecendo.
Não conseguia combinar a primeira parte das suas relações com o que acabava de fazer.
Era como se tivesse estado na borda de uma paisagem que jamais imaginara existir e que
agora desaparecia.
— Pode voltar às suas malditas prostitutas — disse ela, montando em Yori. E acrescentou
imediatamente, ouvindo as próprias palavras, que não eram suas, mas da Zona Quatro: — Oh,
preciso sair deste lugar horrível — atingindo-o em cheio com a sinceridade das mesmas.
Al.Ith afastou-se a galope. Ben Ata apressou-se em apanhar seu cavalo e galopou atrás
dela, alcançando-a quando já estava quase na metade da estrada que ia para oeste. Os dois
animais, um branco e um preto, voavam lado a lado, e, como era o fim da tarde, havia luz
ainda e muita gente nas estradas e nos barcos dos canais. Viram a rainha da Zona Três
cavalgando como "um demônio" e o rei perseguindo-a, "pálido como a morte, o pobre
homem".
Mas isso foi só na primeira parte da estrada, pois Al.Ith não levara o escudo e, perto da
fronteira, inclinou-se para a frente, quase perdendo os sentidos, e agarrou-se à crina de Yori,
sabendo que se desmaiasse morreria. Yori, sentindo que ela relaxava o corpo, diminuiu o
passo e caminhou cuidadosamente, e Ben Ata, vendo sua mulher quase inconsciente, tirou-a
do cavalo e carregou-a nos braços. As pessoas que estavam na estrada contaram que a rainha
desfaleceu de desgosto por ter de deixar a Zona Quatro e que o rei a embalou "como a uma
criança" e que ambos choravam enquanto seguiam para a fronteira.
Yori acompanhou o rei. Na fronteira, Ben Ata a colocou no chão, no lado da Zona Três —
não muito longe de sua própria terra, porque não podia entrar sem proteção no reino de
Al.Ith, e, logo que ela deu sinais de voltar a si, afastou-se um pouco, a mão no ombro da
mulher, ajudando-a a se equilibrar. Ao abrir os olhos, tudo o que Al.Ith encontrou foi o
negrume da noite e o vento que sempre soprava de leste na sua Zona e que a impelia para a
frente. Viu Ben Ata pálido e carrancudo e pensou que ele estava zangado; não percebeu que
ele se preocupava com ela.
Yori estava ao seu lado; montou-o e mulher e cavalo desapareceram na noite como uma
folha na tempestade. E Ben Ata voltou aos seus acampamentos, pensando se a mandariam
para ele outra vez.
Al. Ith não tinha cavalgado por muito tempo quando, depois de pensar profundamente e
com simpatia, compreendeu o que Ben Ata fizera e desejou poder dizer-lhe que sabia que ele
a tinha carregado através da fronteira colocando-a a salvo em sua terra, dizer-lhe que
compreendia que a violência cometida contra ela era tão inacreditável para ele quanto era
para ela o fato de ter criticado e acusado duramente o seu país!
Como podia ter feito isso! Ela, Al.Ith, incapaz de uma palavra cruel ou descuidada para
qualquer pessoa do seu reino! Contudo, para esse 'homem que não era mais culpado do que
ela própria, que era — não por escolha sua — o rei daquela terra triste, úmida e empobrecida,
deixara que o veneno impregnasse as suas palavras.
Ele de volta aos seus exércitos, ela cavalgando para a sua capital, pensavam um no outro
com compaixão.
Quando chegou ao topo do desfiladeiro que unia a planície ao planalto, parou e olhou as
montanhas à sua volta. Passara toda a vida entre essas montanhas, e a observação das
mudanças que sofriam, de acordo com a situação atmosférica, fora sempre repouso e
alimento para seu espírito. Agora, fazendo o cavalo girar lentamente, via-as como sempre as
vira — mas também como lhe tinham parecido nas terras baixas, quando as contemplara com
Ben Ata. Sabia que nesse momento ele estava com os olhos fitos nos altos picos, apesar da
proibição de suas leis. Ben Ata não poderia deixar de fazê-lo. E seus oficiais, vendo-o perdido
em si mesmo, no meio das barracas e das cercas do acampamento, iam olhar um para o outro
com as sobrancelhas erguidas e, depois, levantariam os olhos — e, em seguida, os soldados.
Al.Ith pensava agora que as mulheres deviam ser as depositárias de muitas crenças secretas.
Provavelmente muitas delas, quando não estavam sendo observadas, contemplavam o céu de
oeste, onde as neves das montanhas se confundiam com as nuvens.
E lembrou-se de uma canção — sim, ouvira-a distraidamente quando estava nos braços de
Ben Ata, mas o bastante para recordar-se das palavras agora. Naquele momento, a canção fora
apenas uma parte dos prazeres crescentes que os surpreendiam.
A voz doce, feminina, cantava enquanto faziam amor, e essas palavras estariam sempre
unidas à memória dos dois.
Al.Ith sabia que um ouvinte ocasional, um soldado ou uma mulher não-iniciada não
ouviriam as mesmas palavras — as mulheres iniciadas, ela e Ben Ata as tinham ouvido — ou
teria ele? Perguntaria, na próxima vez em que se encontrassem.
Agora, grupos de pessoas nas estradas chamavam o seu nome, saudavam seu regresso. E
Al.Ith parava para conversar, ouvia suas mensagens e contava-lhes que estava grávida. A
notícia espalhou-se de boca em boca pelo planalto e, quando chegou à nossa capital, a
multidão cantava e saudava a criança que ia nascer, e, em casa, Al.Ith sentiu-se de novo
envolvida pela amizade descontraída, característica da Zona Três.
Na imensa escadaria, esperavam-na sua irmã Murti, e todas as crianças que a chamavam
de Mãe. Acalentaram-na com seu carinho e saudações de boas-vindas e Al.Ith passou um dia
e uma noite ouvindo-os contar o que tinha acontecido na sua ausência. E os sinos cantavam
na nossa torre de informações para que todos soubessem que Al. Ith estava de volta a salvo e
que ia ter um filho.
Então, deixando as crianças com seus Pais Espirituais, para seus jogos e ensinamentos,
retirou-se com a irmã para o lugar mais alto do palácio, onde os telhados se estendem em
todas as direções sobre a cidade e de onde se podia subir à torre mais alta da capital.
De pé, na torre, ao lado de Murti, que se admirava com a determinação de Al. Ith de
chegar a essas alturas nunca antes visitadas por ela, ouviu a irmã dizer:
— Olhe... olhe, lá... — e apontava para noroeste, para uma profunda passagem entre as
montanhas. O azul da Zona Dois cintilava como uma imensa safira. A princípio, Murti não viu
nada além da abertura entre as montanhas e uma névoa vaga.
Al.Ith, saciando os olhos naquele azul, pensou em Ben Ata com carinho, lembrando-se
que ele dissera ser perda de tempo contemplar o azul, e sorriu. Murti olhou para a irmã e
compreendeu que ela pensava no marido, pois esse sorriso não podia significar outra coisa.
Riu alto, e estava a ponto de fazer perguntas sobre fatos e particularidades desse famoso Ben
Ata, o grande soldado, quando Al.Ith falou:
— Não, fique quieta e olhe... — Durante toda a sua vida ela, Al.Ith, tivera a oportunidade
de subir até ali e contemplar a Zona Dois. Ninguém a proibira! Mas ninguém mencionava a
Zona Dois! Mas... sim, quando era criança subira a essa torre. Lembrava-se agora. Era muito
nova, antes da adolescência. Sentira a necessidade de subir cada vez mais alto, primeiro até os
telhados que se estendiam lado a lado, de modo que, se quisesse, podia passar de um para o
outro, para lá e para cá, durante semanas. Mas vira a torre com a pequena porta e continuara
a subir. Mais e mais. E tinha chegado afinal ao topo da escada circular. Parou ofegante e
estonteada na pequena plataforma onde estavam agora, envoltas pelas luzes do sol poente.
Pássaros voavam céleres saudando-as. Sobre as montanhas, pairavam as águias, dando de
quando em vez mergulhos rápidos no ar. Al.Ith lembrava-se de ter-se agarrado ao parapeito,
olhando para cima e para a frente, e que todo o seu ser parecia querer partir, com uma
necessidade premente de deixar-se absorver por aquele azul infinito — o azul, o azul, o azul! E
só depois de muitas horas descera cautelosamente, a cabeça repleta do ar azul e... então o
quê? Não conseguia se lembrar! Contara a alguém e fora censurada? Não contara,
simplesmente esquecera?
E isso importava? O fato era que, durante toda a sua vida, tivera essa possibilidade,
precisando apenas subir alguns lances de escada. Entretanto, era como se sua mente tivesse
fechado uma porta sobre o que poderia fazer. O que devia fazer. O que desejava fazer...
A irmã segurava-se ao parapeito com as duas mãos, o perfil fino e nítido, os olhos
brilhando. Parecia envolta em luminosidade; a luz do poente punha cintilações nos seus
cabelos dourados e nos desenhos do vestido amarelo. Murti. estava vendo!
Voltou-se afinal para Al.Ith e tudo o que disse foi:
— Por que nos esquecemos?
E Al.Ith não soube responder.
Depois disso, Al.Ith ordenou que tocassem os sinos, convidando todas as regiões a
enviarem mensageiros, o mais depressa possível. Em seguida, jantou com a irmã, que estava
curiosa sobre esse marido, e Al. Ith, que em circunstâncias normais teria contado tudo a
Murti., sem considerar-se desleal, não conseguiu dizer nada. Por quê? Em parte porque os
fatos sobre a Zona Quatro seriam tão estranhos para o espírito de Murti que teria de
descrevê-los vezes sem conta, de ângulos diversos para que ela começasse a compreender,
mas também porque sentia que Ben Ata pensava nela. Não lhe agradava essa ligação
espiritual com ele. Não se lembrava de ter sentido por qualquer outro homem, pais dos seus
filhos ou companheiros de prazer, essa inquietação, esse desejo dominador. Considerava-o
pouco saudável — uma projeção daquela Zona onde todas as emoções eram tão fortes e
carregadas. Mas era isso o que sentia, e não adiantava fingir o contrário. Murti percebeu a
resistência da irmã, não a culpou mas sentiu-se excluída e retirou-se cedo para os aposentos
onde seus próprios filhos a esperavam.
Um relacionamento que excluía outros era sem dúvida errado. Como podia ser certo?
Mas Al.Ith sabia que os problemas reais que precisava enfrentar agora eram mais
urgentes do que as inquietudes sobre o seu marido, para o qual, sem dúvida, lhe ordenariam
que voltasse no momento determinado — e não podia dizer se a idéia a aborrecia ou se
desejava estar com ele.
Deitou-se e dormiu, para estar descansada no dia seguinte, que, esperava, lhe traria o
discernimento tão necessário.
A Câmara do Conselho da nossa Zona não é muito grande, pois não precisa conter mais
de 30 ou 40 pessoas de cada vez, o suficiente para nos representar; naturalmente, os
representantes são diferentes, de acordo com suas funções. É uma sala quadrada, o teto não
muito alto, e as janelas mostram o céu, as nuvens e as montanhas, de três lados.
No chão estão dispostos almofadões nos quais nos sentamos sem observar nenhuma
ordem de precedência, e Al.Ith pode sentar-se em qualquer um deles; não precisa ficar em
plano elevado, demonstrando preeminência sobre esse pequeno número de pessoas.
Nesse dia, ela chegou à Câmara antes de todos e foi de janela em janela, olhando as
nossas ruas lá embaixo e as montanhas, lá no alto, e depois contemplou por longo tempo um
determinado ponto a noroeste. Eu estava lá nesse dia. Encontrei-a na sala quando cheguei —
fui o segundo a chegar. Impressionaram-me imediatamente a sua inquietação e ansiedade.
Essa não era a mulher tão senhora de si que eu conhecia desde o seu nascimento: eu sou um
dos Pais Espirituais de Al.Ith.
Fiquei ao lado dela, na janela, e Al.Ith olhou-me com a expressão da mais comovedora
tristeza, depois apoiou a cabeça no meu ombro, aconchegando-se como uma criança. Mas,
quando pequena, era muito decidida e independente para tal gesto, e fiquei mais perturbado
do que posso explicar.
Logo ela se afastou.
— Lusik, não me conheço.
— Sim, posso ver.
Lá embaixo, na praça principal, havia um movimento desusado e nos inclinamos para ver,
gratos pela distração de nossas ansiedades.
Chegavam representantes de todas as regiões, a cavalo, em burros, e crianças, montadas
em bodes. Os animais eram entregues aos jovens encarregados desse serviço e conduzidos
para a sombra das árvores, na extremidade sul da praça. Eu tinha viajado de camelo, pois
moro no ponto extremo da nossa bela região do Sul. Esse animal, que raramente tem a
oportunidade de conhecer outros de espécie diferente, pois criam-se tão bem entre nós que
são nosso meio exclusivo de transporte, estava com o focinho encostado ao de uma bela égua
negra, da região leste.
Era uma cena tão agradável e familiar que nos alegrou o coração. Mas Al.Ith disse:
— Ainda assim, estamos com um sério problema, e não sei do que se trata.
A sala encheu-se de pessoas do nosso povo, homens, mulheres e duas meninas às quais
dávamos oportunidade de aprender a arte de governar por demonstrarem grande inclinação
para ela.
Naquele dia éramos 25. Al.Ith sentou-se imediatamente sob a janela de oeste e arrumou
cuidadosamente a saia do vestido amarelo sobre a almofada, pois sabia que gostávamos de vê-
la bela e com boa aparência, e começou a falar:
— Nós todos conhecemos a situação. Eu aceito a responsabilidade. — Esperou, olhando
em volta. Todos assentiram com a cabeça, não com animosidade, mas reconhecendo um fato.
Ela sorriu levemente, um sorriso sem cor.
— O que precisamos saber é o seguinte: nos últimos 39 dias, houve alguma mudança na
situação?
Nova pausa. Olhou atentamente um rosto depois do outro e sorriu para as duas meninas,
que retribuíram com sorrisos de adoração e de submissão total ao desejo de serem iguais a
ela, e melhores.
— Em todas as regiões a mesma coisa. Animais doentes, sua fertilidade perdida. E nós
também não somos o que éramos. Sei disso. Nós todos sabemos. E eu teria tomado
conhecimento há mais tempo se tivesse dado a atenção devida aos seus relatórios.
Todos concordaram novamente. Era verdade.
— Sei que todos acreditam que meu casamento com Ben Ata está de certo modo
relacionado com este declínio. Não sabemos como, nem por quê. Mas devemos esperar
alguma melhora entre nós. Como já anunciei, estou grávida. Isto provavelmente faz parte da
fórmula para a nossa recuperação.
Ao fim de cada frase ela fazia uma pausa e olhava para todos, verificando se havia sinais
de discordância e para que pudessem acrescentar algo.
— Muito bem, faz 39 dias que fui levada a Ben Ata. A palavra levada foi dita com ênfase
amarga, da qual ela logo se arrependeu, oferecendo-nos um sorriso de desculpas. A essa
altura, não havia uma pessoa que não tivesse notado seu desgosto íntimo. Pairava na sala do
Conselho uma atmosfera que eu jamais sentira. Mais do que qualquer outra coisa, o estado
de espírito de Al.Ith nos dizia que era séria a situação do nosso reino.
Ela esperou imóvel.
— Não houve nenhuma mudança durante este tempo? Não? Bem, estou grávida há cinco
dias. Alguma mudança nestes dias?
Uma das meninas disse:
— Minha ovelha teve gêmeos, ontem.
Nós rimos, e a sessão interrompeu-se, enquanto Al.Ith explicava à menina o tempo de
gestação das ovelhas.
Durante esse intervalo, tentávamos nos lembrar se houvera alguma mudança nos últimos
dias. Começamos a trocar impressões. Al.Ith ouvia atentamente. Então, ergueu-se de um
salto e foi rapidamente de uma janela a outra, parando na do lado oeste e reclinando-se,
contemplando fixamente a distância. Não era uma atitude normal dela. Depois de algum
tempo, eu, como único Pai Espiritual presente, fui até a janela e segui a direção do seu olhar.
Via apenas a massa compacta das cadeias de montanhas, a oeste.
Minha presença ao seu lado a fez lembrar-se dos seus deveres e sentou-se novamente.
A menina que falara sobre a ovelha cantarolava baixinho.
Era a música de uma brincadeira infantil.
Encontre o caminho
E encontre o caminho
E siga-o até o fim.
Através do desfiladeiro
Devemos passar
E nos reunir no azul...
Al. Ith inclinava-se para a frente, ouvindo. Todos nós tínhamos escutado a canção uma
centena de vezes. As crianças faziam desenhos com pedras e pulavam sobre elas, segundo um
ritmo determinado, que variava de acordo com o jogo.
Pensamos que Al.Ith, como de hábito, estivesse dando atenção especial às crianças, e
esperamos.
Mas ela continuava inclinada, atenta à menina, que, indiferente a essa atenção, balançava
o corpo, cantarolava e batia palmas levemente. Era uma criança típica da região leste: uma
coisinha de pele clara, olhos azuis e cabelo louro-pálido. Essas meninas magricelas
transformavam-se nas mais estonteantes belezas, por mais estranho que pareça, e os homens
também eram belos. Por ocasião dos nossos festivais, os corações aceleravam-se quando
chegavam os grupos do Leste, sedutores e sorridentes todos eles, conscientes do poder que
exerciam sobre nós, com suas canções de um passado muito mais selvagem...
— Como é o seu nome? — perguntou Al.Ith.
— Greena.
— Muito bem, pequena Greena, venha aqui.
A criança, com um movimento rápido, pôs-se de pé e foi sentar-se no colo de Al.Ith.
— Como é o resto da canção?
— Que canção, Al.Ith?
— Você estava cantando. O que vem depois de "E nos reunir no azul"?
A menina tentou se lembrar. Olhou para a irmã, pedindo ajuda.
A essa altura nós todos sabíamos que algo importante estava acontecendo.
Quanto a mim, estivera presente a momentos excepcionais nessa sala, mas nenhum
como esse. O ar estalava de expectativa e toda a lassidão de Al.Ith desaparecera. Voltara ao
normal, alerta, viva, toda atenção.
— A canção continua?
Mais uma vez a menina pediu ajuda com os olhos à irmã, outra garota franzina, mas esta
sacudiu a cabeça. De súbito, levantou-se.
— Sim, continua... eu acho... — e sentou-se.
— Escutem — disse Al.Ith —, quero que façam uma coisa. Vão até a praça, lá onde estão os
animais. Esqueçam-se de nós por algum tempo. Façam esse jogo. Apenas brinquem, como se
estivessem em casa com seus rebanhos e sua família. E procurem se lembrar do que vem
depois de "E nos reunir no azul".
As duas levantaram-se rapidamente e saíram correndo da sala do Conselho, de mãos
dadas. E nós sorrimos, porque as víamos como seriam dentro de pouco tempo.
— O que significa tudo isso, Al.Ith? — perguntou um jovem do Norte. Era, na verdade, seu
filho adotivo e crescera ao lado dela. Era parecido com Al.Ith, como acontece freqüentemente
com filhos adotivos.
— Estou chegando perto — disse Al.Ith, olhando atenta e demoradamente para cada um
de nós. — Não sentem? Há alguma coisa! O quê! — E em sua ansiedade, levantou-se
novamente e caminhou pela sala, desta vez parando perto das janelas, sem olhar para fora. —
O que é? — Ficamos em silêncio. Esperamos. Sabemos que, quando um de nós está a ponto
de alcançar a compreensão de uma coisa importante, podemos ajudar pensando com ele e
esperando. — Eu simplesmente não sei, não sei... — então, ela voltou-se rapidamente para a
janela de oeste e debruçou-se sobre o peitoril. Todos os que cabiam no espaço da janela
aproximaram-se, olhando para baixo. As duas meninas tinham feito o desenho de pedras e
pulavam e cantavam.
Não podíamos ouvir as palavras.
Percebendo que as observávamos, pararam olhando para cima. Afastamo-nos da janela.
— Devemos esperar — disse Al.Ith.
Sentamo-nos. Naturalmente esperávamos ouvir sobre as suas visitas à outra Zona, mas
não queríamos trazer de volta aquela sombra sobre ela.
Al.Ith sabia o que estávamos pensando, e com um suspiro veio ao nosso encontro.
— É difícil descrever -— disse, corajosamente, e vimos que toda a animação a abandonava.
— É fácil descrever a aparência externa. Tudo é feito para a guerra. Para a luta. É um lugar
desolado. Nada em nosso reino se compara. Quanto ao espírito do povo... — Ela hesitava,
fazendo pausas entre as palavras. Mais uma vez percebemos que estava dominada por algum
sentimento. — Guerra. Luta. Os homens... todos os homens do reino são soldados... — Sua voz
esvaiu-se em silêncio. Praticamente parou de respirar. — Todos os homens de uniforme... —
Parou novamente e seus olhos perderam o brilho, enquanto ela parecia abismar-se em si
mesma. Ficamos absolutamente imóveis.
— Uma economia inteiramente aparelhada para a guerra... mas não há muita guerra...
quase nenhuma luta... mas cada homem é um soldado desde que nasce até a morte...
Mais uma vez o silêncio hermético, e ela ali sentada, o corpo ereto, tenso, os olhos vazios.
Agora balançava-se para a frente e para trás, na almofada.
— Um país para a guerra... mas sem guerra... são governados por uma Lei severa... sua Lei
é realmente rigorosa... guerra. Homens... todos os homens para a luta, mas não têm guerras,
nenhuma guerra... o que é, o que significa?
A tensão em Al.Ith era um espetáculo aterrador. Uma mulher de idade que a observava
atentamente adiantou-se, sentou-se ao seu lado e procurou acalmá-la, acariciando-lhe os
braços e os ombros.
— Chega, Al.Ith. Chega. Está me ouvindo?
Al.Ith estremeceu e voltou a si.
— O que é? — perguntou ela, num sussurro.
A mulher, que a abraçava, disse:
— Você vai saber. Acalme-se.
Al.Ith sorriu, fez com a cabeça um gesto de assentimento, e a mulher voltou ao seu lugar,
dizendo:
— O melhor que temos a fazer é conservar o pensamento intacto em nossa mente e deixá-
lo crescer.
Al.Ith assentiu com a cabeça, novamente.
Assim terminou a parte mais difícil do Conselho. Murti. trouxe uma bandeja com sucos
de frutas e saiu para apanhar comida leve para todos. Depois, juntou-se a nós, sentando-se ao
lado da irmã.
E, então, as meninas voltaram. Pareciam desapontadas.
Ficaram de pé na frente de Al.Ith e de Murti e Greena disse:
— Fizemos o jogo. Muitas vezes. Não conseguimos nos lembrar. Mas existem palavras
depois daquelas. Disso nos lembramos.
Al.Ith indicou com um gesto que compreendia.
— Não tem importância.
— Devemos repetir o jogo quando chegarmos em casa, para ver se nos lembramos?
— Por favor, façam isso... e tenho uma idéia...
Nós todos ficamos alertas, pensando que ela encontrara afinal a resposta que lhe fugia,
mas Al.Ith sorriu e disse:
— Não, sinto muito. Mas tive uma boa idéia. Vamos organizar um festival. Logo. E será de
canções e histórias — não, não como os que temos sempre. Este será de canções e histórias
que já esquecemos. Ou quase esquecemos. Todas as regiões devem mandar seus contadores
de histórias, cantores e Memórias — ela sorriu para mim, para suavizar o que ia dizer: —
Lusik, parece-me que todos vocês estão em falta. Como é que as crianças podem saber que
foram esquecidos versos da canção do seu jogo?
Aceitei. Naturalmente, era verdade.
Logo depois, voltamos para nossas casas.
Agora, retomo a narrativa, não em primeira mão, como a sessão que descrevi na Câmara
do Conselho, mas feita do melhor modo possível, juntando os pedaços, como um cronista.
As irmãs subiram para o apartamento de Al.Ith e ela disse que estava cansada. Essa
gravidez anunciava-se mais difícil do que todas as outras. Agora, que pusera em andamento
as providências necessárias, queria descansar por alguns dias.
Murti. estava preocupada com ela.
As duas belas mulheres sentaram-se de mãos dadas, na frente da janela que dava para as
montanhas de oeste. Al.Ith disse que queria ir até a torre outra vez, mas Murti pediu-lhe que
não fosse. Al.Ith concordou. Geralmente, nesses momentos de descanso, as duas mulheres
conversavam, uma penteava o cabelo da outra, experimentavam vestidos, planejavam novas
roupas, discutiam as inovações da moda que haviam notado em outras mulheres naquele dia
e que poderiam ser úteis de um modo geral. Eram irmãs verdadeiras, a mesma Mãe, o mesmo
Pai Genético, compartilhavam até mesmo os mesmos Pais Espirituais. Não havia segredos
entre elas. Al.Ith disse:
— Tem razão de estar magoada. Não posso evitar.
Murti beijou-a e retirou-se.
Al.Ith estava em casa há menos de um dia quando sentiu que devia voltar para Ben Ata.
As palavras vieram-lhe à mente: "O tambor está tocando." Teve a impressão de ouvir as
batidas. Levou a mão ao ventre, pensando que fosse o pequenino coração, mas era o tambor.
Abriu seus armários, desta vez procurando roupas que pudessem agradar a Ben Ata.
Depois desceu correndo para o primeiro andar, onde deixaria um recado para Murti.
Cinco pessoas subiam a escada e a viram: uma menina, apenas saída da infância, seu Pai
Genético e três dos seus Pais Espirituais. Al.Ith era a mãe da menina.
Essa criança tinha um problema que nada tem a ver com a nossa história. Este
acontecimento é relatado porque, no momento em que o espírito de Al.Ith já estava com Ben
Ata, com toda a perturbação e ajustamento que isso implicava, ela teve de entrar em uma sala
tranqüila com um homem com quem mantivera, durante anos, uma amizade intensa, o pai
verdadeiro da menina, e três homens que haviam sido igualmente íntimos, mas que não via
há algum tempo, porque tinham viajado para lugares distantes no reino.
A sala dava para a do Conselho e tinha também almofadas no chão e mesas baixas. Al. Ith
abraçou a menina e conservou-a junto a si quando todos se sentaram. Mas, quase
imediatamente, percebeu que suas emoções turbilhonantes comunicavam-se à criança e não
podia permitir isso. Levantou-se rapidamente e sentou-se em outra almofada, e a menina,
sentindo-se rejeitada, deu as costas para a mãe com expressão infeliz. Isso perturbou mais
ainda Al.Ith.
As seis pessoas, uma mulher, quatro homens e a menina, tinham-se reunido assim
muitas vezes. E Al.Ith estivera com aqueles homens, juntos ou separados, constantemente.
Eram as pessoas mais chegadas a ela, mais do que sua própria irmã. Não era possível isolar-se
deles agora, nem mesmo para sua proteção. Procurou falar abertamente com eles, ao mesmo
tempo sentindo-se pronta para as exigências de Ben Ata que a reclamavam selvagemente. Ela
tremia.
Os homens a abraçaram e sentaram-se perto dela. Felicitaram Al.Ith por sua gravidez. E
ela sentia-se e parecia cada vez pior.
— Você não está bem — disse o pai verdadeiro da menina, Kunzor, e Al.Ith disse que não
estava, que não podia evitar, que sentia muito. E desmaiou.
Chamaram Murti. e ela explicou que o estado de espírito de Al.Ith estava muito além de
tudo o que podiam imaginar. Murti. cuidou de Al.Ith e consolou a menina, que, para surpresa
de todos, torcia as mãos e dizia que Al.Ith estava doente por sua causa. Pareceu-lhes uma
forma de desequilíbrio mental; jamais tinham ouvido coisa igual.
Quando Al.Ith voltou a si estava só com Kunzor, que procurava compreender o seu
problema. Lembrava-se de tê-la visto em circunstâncias complexas, mas esta estava além de
tudo o que podia entender.
Al.Ith em prantos e descontrolada era algo que ele nunca imaginara ser possível.
Ela lhe disse que precisava ir buscar o seu cavalo e partir e Kunzor acompanhou-a até a
praça, chamou Yori e viu-a cavalgar para fora da cidade.
Quando Al.Ith chegou à planície, a noite caía, e cavalgou contra o vento frio do leste até
chegar à fronteira.
Esperava que Ben Ata a estivesse esperando no outro lado, e lá estava ele. Frio e
silencioso, envolto na capa preta, ele esperava com os olhos fitos na estrada, pálido, atento,
imóvel.
Quando o avistou seu coração apertou-se. Acontece que, enquanto cavalgava na planície
contra o vento gelado, tendo como único conforto o calor de Yori, pensava na sua longa
amizade com Kunzor e com os outros homens de quem fora íntima — já estava estranhando
essas palavras que seu povo usava. No passado, ela não usava palavras, nem mesmo em sua
mente. Sentia a intimidade com eles como parte da trama de sua vida. O encontro com um
deles, premeditado ou por acaso, sempre os levava à união, de acordo com as intenções do
momento. Jamais os considerava como isto ou aquilo. Eram amigos. Agora, perguntava-se a
si mesma: seriam seus maridos? Certamente que não, se Ben Ata era o seu marido! E durante
a viagem pensava também em Ben Ata, com quem logo estaria, como um amigo — com todo
o bom senso e responsabilidade que a palavra implicava.
Vendo-o ali, sua ligação física e espiritual com os homens que a protegiam na Zona Três
desfez-se, deixando-a vulnerável.
Ben Ata esperou que ela cruzasse a fronteira e entregou- lhe o escudo — ele tinha
acertado ao. pensar que, mais uma vez, Al. Ith esquecera-se de trazer o seu. Ben Ata estendeu
a mão para segurar o bridão do cavalo, mas não encontrou nenhum. Levou seu animal para
perto do dela, Al.Ith voltada para a Zona Quatro, Ben Ata, para a Zona Três. Os olhos dele
examinavam o rosto de Al.Ith como se procurassem a marca de um crime.
— Qual é o problema? — perguntou ela, irritada.
— O problema é que eu compreendi uma coisa.
— Que coisa? — Suspirando alto para que ele ouvisse, ela se pôs a caminho e Ben Ata
seguiu-a, encostando seu cavalo de tal modo no dela que Al.Ith teve de apertar a perna contra
o flanco de Yori para não ser esmagada.
— Você não me ama — declarou ele.
Al.Ith não respondeu.
As palavras simplesmente passaram por ela sem atingi-la. Percebia que Ben Ata estava
perturbado e que não podia contar com ele para conforto e amparo. Procurava fortalecer a si
própria.
Ele continuava muito junto dela e lançava-lhe olhares dramáticos, inclinando-se para ver
o rosto de Al. Ith.
O dia estava nascendo. Cavalgavam na escarpa, sobre os campos dos quais se erguia a
névoa costumeira, um belo espetáculo na luz fraca do sol.
— Você não me ama. Não verdadeiramente — gritou ele.
Desta vez Al.Ith registrou a palavra "ama". Lembrou-se que as duas Zonas a usavam com
sentido diferente.
O que tinha acontecido com Ben Ata foi o seguinte.
Quando ela o deixou na fronteira, sentiu-se tomado por emoções cuja existência
desconhecia. Se Elys o fizera aceitar que não estava à par de muitos fatos físicos, sabia agora
que um mundo de emoções lhe tinha sido negado até aquele momento. Levou seu problema à
madame do bordel, que, depois de ouvi-lo atentamente, concluiu que não era de Elys que ele
precisava — na verdade, ela já voltara para a sua cidade, muito satisfeita consigo mesma —, e
sim de um verdadeiro caso amoroso.
Naturalmente ele sabia que muitas pessoas tinham casos amorosos, mas não os
soldados!
Ao ver Dabeeb escovando o uniforme do marido, que era guardado ao lado dos outros, no
alojamento dos oficiais casados, fez tuna avaliação das suas possibilidades. Imediatamente foi
assaltado por centenas de emoções que o deixaram atônito, pois não compreendia de onde
tinham vindo.
Dabeeb naturalmente ficou admirada, e resolveu usar de cautela, bom senso e discrição.
É claro que tinha medo do marido. Tivera alguns casos, mas não com o objetivo de estimular
Jarnti. Tinha, porém, mais medo de Ben Ata. Não era sua intenção entregar-se a ele, mas
distraiu-o com beijos e carícias leves, calculados para manter a situação enquanto ela pensava
em coisa melhor.
Jarnti surpreendeu seu rei em atitude comprometedora com sua mulher.
Genas violentas. Ciúmes. Censuras. Os homens discutiram e resolveram que a amizade
entre eles valia mais do que o amor de uma mulher, apertaram-se as mãos, beberam juntos
uma noite inteira, mergulharam juntos no canal, de madrugada... tudo de acordo com os
costumes.
Ben Ata estava agora violentamente apaixonado por Al. Ith.
Cavalgando juntos na névoa dourada, ele rilhava os dentes e inclinava-se para ela, cheio
de desejo. Al.Ith murmurou:
— Tem algum dicionário no pavilhão?
— O quê?
— É a palavra "amor". Nós a usamos de modo diferente.
— Fria. Fria e sem coração.
— Estou fria mesmo. Gelada até os ossos.
Ben Ata arrependeu-se, mas esse não era um sentimento apropriado para a ocasião.
— Muito bem, como é que vocês usam a palavra "amor"?
— Acho que não usamos. Significa estar com alguém. Responsabilizar-se por tudo o que
acontece entre os dois. Entre os interessados e, naturalmente, com todas as outras pessoas
envolvidas.
Ocorreu a Ben Ata que durante esses seis dias tumultuados ele havia esquecido como era
a verdadeira Al.Ith.
Seu entusiasmo arrefeceu. Afastou o cavalo do dela e, assim distantes, mas lado a lado, os
animais galoparam colina acima, até os jardins dos pavilhões onde os tambores batiam desde
a noite anterior.
Quando saltaram dos cavalos, soltando-os para que fossem para a cocheira, caiu uma
pancada súbita de chuva e os dois correram para o pavilhão, onde Al.Ith deixou uma trilha de
água no caminho para os seus aposentos. Os armários estavam vazios agora dos vestidos da
cidade e ela, depois de enxugar-se, escolheu entre os que trouxera um que combinasse com o
abatimento em que se encontrava. O amarelo brilhante da véspera era como a plumagem de
um pássaro fora de estação. O marrom era muito deprimente, mas achou mais alegre o cor de
laranja escuro, que parecia algo a que poderia aspirar se tudo corresse bem. Penteou o cabelo
em tranças ao redor da cabeça, como as matronas da Zona Quatro, e chegou ao quarto central
no momento em que Ben Ata aparecia na porta no outro lado. Não havia a mínima sugestão
de armadura na roupa dele. A túnica parecia ter sido escolhida com a intenção de agradar a
ela e o cabelo estava escovado, delineando sua bonita cabeça.
Tudo isso, e mais seu olhar hostil e sedento, fez com que ela ficasse o mais longe possível
dele, e sentou-se à pequena mesa. Ben Ata, que há 24 horas não pensava em outra coisa,
adiantou-se e estava a ponto de carregá-la para a cama, quando se lembrou de que fora isso
que provocara todo o turbilhão da última visita, o qual, comparado com a realidade visível de
Al.Ith, parecia agora inapropriado, para não dizer mais.
Praguejando vigorosamente, ele sentou-se na frente dela, dando mais do que nunca a
impressão de que o menor movimento poderia derrubar não só a mesa delicada, mas todo o
pavilhão. Ele inclinou-se para trás, suspirou, e parecia mais controlado.
Ambos consideravam corajosamente o tempo indeterminado durante o qual teriam de
suportar sua incompatibilidade.
— Eu gostaria de saber — disse ele — tudo sobre os costumes para esse tipo de coisa no
seu país.
Ora, Al.Ith já havia pensado nesse problema. Não imaginava, nem por um minuto, que ele
aceitasse os hábitos da Zona Três, em nenhuma circunstância. Foi direto ao centro da
inquietação de Ben Ata dizendo:
— Não há dúvida nenhuma — não pode haver nenhuma dúvida — de que esta criança é
sua.
— Não disse nada sobre isso — protestou ele, enquanto a satisfação do seu rosto
demonstrava que ela havia acertado.
Ele esperou.
Percebendo que precisava se alimentar, Al.Ith pensou no que desejava e logo surgiu à sua
frente um prato fino de seu país, feito com mel e nozes. Ela começou a comer pedacinhos
pequenos. Sem cerimônia, Ben Ata estendeu a mão, apanhou um pedaço, experimentou,
revirou os olhos para o teto e pareceu resignado.
— É muito bom para mulheres grávidas.
— Espero que esteja se cuidando bem! Afinal, essa criança será o monarca da Zona
Quatro.
Essa idéia também já tinha ocorrido a Al.Ith. Contentou-se em observar:
— Se os Provedores assim decidirem.
O gesto contido de rebelião mostrou claramente o que ele pensava — o que pretendia
fazer.
— Presumo — disse ele, positivamente radiante de sarcasmo — que sou apenas um dos
seus amantes.
Ela reclinou-se na cadeira, levantou as duas mãos e começou a contar nos dedos, com um
ar de brejeira satisfação, hesitando no terceiro dedo com um leve franzir de lábios, voltando
para o segundo, de novo para o terceiro, com um movimento afirmativo da cabeça, depois
para o quarto, o quinto — mudando de mão com deliberação, seis, sete, oito —, demorando na
contagem do nono, com um sorriso cheio de reminiscência; ouviu a respiração ruidosa e
ultrajada dele e imaginou se ousaria voltar a outra mão, 11, 12, 13, e voltou, com ar
descuidado, 14, 15, e terminou no 19? com um pequeno gesto decidido de cabeça, como um
competente administrador que não se esqueceu de nada.
Olhou para ele, convidando-o a rir — dela, dele, mas Ben Ata estava verde de raiva.
— Você compreende — começou ela, mas ele terminou, furiosamente:
— As coisas são diferentes com vocês! E sou muito grato por isso. Decadentes. Cheios de
vontades. Imorais.
— Na verdade, não posso imaginar você seguindo os nossos costumes.
— Muito bem, quantos amantes você teve?
O rosto dela crispou-se ao ouvir a palavra e ele notou. Não sem interesse, um interesse
desapaixonado. Isso a encorajou a explicar — embora se tivesse decidido antes a não fazer
essa tentativa — com a intenção real de convencê-lo do barbarismo da sua percepção.
— Em primeiro lugar, essa palavra não tem o menor significado para mim, para qualquer
mulher da nossa Zona. A pior de nós, e naturalmente temos fracassos, como vocês... —
Percebeu que ele notara o uso diferente da palavra, dita com ênfase jamais usada na Zona
Quatro. — A pior de nós seria incapaz de usar uma palavra que descreve o homem como uma
espécie de brinquedo.
Isso lhe valeu um olhar apreciativo. Sentindo que gostava dele o bastante, ela continuou,
explicando os costumes sexuais da Zona Três. Enquanto ela falava, a atitude e os punhos de
Ben Ata tornaram-se tão tensos que Al.Ith pensou em parar; mas então ele pareceu absorver-
se no que ela contava, ouvindo atentamente, sem perder nada.
Em certos momentos ela temia que todo o orgulho pessoal de Ben Ata fosse subir-lhe à
cabeça e explodir em violência, mas ele controlou-se. Quando Al.Ith terminou, toda a
agressividade o abandonara, dando lugar ao filósofo.
Ela pensou em vinho, e, a um gesto de Ben Ata, para ele também, porém mais forte. Ben
Ata aceitou o copo das mãos dela com um gesto de agradecimento.
— Não adianta fingir que eu poderia me adaptar a essas coisas — declarou ele, afinal.
— Pois me parece — respondeu ela, com humor — que vai ter de fazê-lo. — Mas, ao ver os
sinais ameaçadores de novos problemas, ela disse que, desde seu primeiro encontro, certas
exigências (ela não pretendia dizer das "mais altas") se tinham feito sentir, e, ao que parecia,
absoluta fidelidade à Zona Quatro era a ordem do dia para ela.
— Tenho a impressão — disse Al.Ith — de que há uma repulsa em meu corpo — em algum
lugar do meu corpo — que me impede de aceitar não apenas o contato com outro homem,
mas com qualquer outra pessoa.
Ele sorria, e Al.Ith continuou:
— E isso não é bom, ó grande rei, nada bom. Considero pernicioso, hostil, mas estamos
ambos presos a modos diferentes dos nossos e precisamos continuar assim.
Ben Ata tinha na ponta da língua frases como "então, você deve me amar, afinal de
contas", mas o tom calmo e explanatório de Al.Ith o impedia de pronunciá-las. A melancolia
apossou-se dele." E envolveu-a. O motivo era simples: toda a vez que florescia em um deles a
vitalidade natural, era imediatamente suprimida pela disposição contrária da natureza do
outro.
E a melancolia os levou para a cama com um sentimento de camaradagem, emprestou ao
ato de amor murmúrios de condolências por aquela união desafortunada, provocou um fluxo
de simpatia entre eles, transformou seu jogo amoroso —
se assim se poderia chamar aquela fúnebre troca de carícias — em algo tão diferente dos
seus encontros prévios que não se reconheciam mais, e terminaram com gemidos e
exclamações que não passavam de queixas contra a má administração de absolutamente
todas as coisas.
Mas Al.Ith notara em si mesma, e com grande consternação, um prazer agudo — como o
de um ferimento estranho — ao sentir-se triturada por esses êxtases de submissão ao destino.
Jamais sentira nada parecido e não podia acreditar que sentiria novamente.
Enquanto isso, choveu. Nos braços um do outro, ouviam o chapinhar e o movimento da
chuva, e ambos se maravilharam com as infinitas possibilidades de variações que nem
mesmo suspeitavam existir dentro deles.
Chovia ainda pesadamente quando se levantaram, tomaram banho, vestiram-se e
voltaram ao quarto central do pavilhão — ela com o vestido cor de laranja, numa tentativa
desesperada de trazer um pouco de sol a esse casamento.
Estavam tão unidos e casados quanto qualquer Ordem poderia desejar.
Mas havia também em suas vozes o fio áspero e cortante que acompanha infalivelmente
esse estado de espírito conubial.
Ela queria descobrir a verdade sobre a Zona marcial de Ben Ata.
Quer dizer — assim começaram suas perguntas, enquanto. ele, sentado, o queixo apoiado
nas mãos, o cotovelo na mesa, tinha o ar de quem admite tudo por ser obrigado, mas que,
apesar disso, conserva sua independência interior.
— Quer dizer que aqueles peitorais, cujas virtudes apregoam tanto, não passam de
mentiras? Não fazem coisa alguma? Não repelem armas?
— São muito bons para proteger da chuva.
— Quer mesmo dizer que esses medonhos edifícios redondos e cinzentos, espalhados por
toda a Zona Quatro, não têm nenhum raio da morte? É uma mentira, também?
— Todos pensam que os possuímos. Dá tudo no mesmo.
— Ben Ata, às vezes não acredito no que estou ouvindo!
— Por que tanto barulho por tão pouca coisa? Para começar, a construção daquelas
fortalezas de raios mortais é um trabalho muito complexo. Temos pouca pedra. Tem de ser
trazida às vezes da outra extremidade da Zona Quatro. Nem sei quantas vezes, quando o
exército começa a reclamar, pedindo uma boa luta, eu os faço construir uma ou duas
fortalezas de raios mortais. Foi a melhor idéia que já tive!
— Quer dizer que foi sua idéia?
— Bem... ouvi falar em algo parecido.
— Quem? Quando?
— Um homem passou por aqui, certa vez, e mencionou as fortalezas. E mais todo tipo de
idéias parecidas.
— Que homem? Da Zona Cinco?
— Zona Cinco! Não sabiam nem o que eram lanças antes de verem as nossas. Ainda
assim, preferem as catapultas. Não. Um homem passou por aqui. Foi no tempo de meu pai.
Eu era menino. Escutei. Ele disse que era de... de onde mesmo? Não da Zona Cinco. Talvez da
Zona Seis?
— Sei alguma coisa sobre a Zona Seis. Não pode ter sido de lá.
— De muito longe, estou certo. Falava de um lugar onde havia armas jamais imaginadas
por nós. Usam o próprio ar para fabricar armas.
— Mas se podem usar o ar para fabricar armas, podem usá-lo para coisas úteis?
— Não disse nada sobre isso. É um lugar, não sei onde. Um planeta. Uma raça cruel.
Matam e torturam o tempo todo, só por prazer... não, Al.Ith, não me olhe desse modo! Não
somos iguais a eles, aqui na Zona Quatro — nem parecemos. Mas, pensei nisso tudo, e foi
quando começamos a espalhar os boatos sobre nossos coletes invulneráveis e nossos raios
mortais.
— Parece que a Zona Cinco não se impressiona muito com eles.
— De qualquer modo, a intenção não é essa. Já disse que mantém muita gente ocupada.
— Muito bem — concluiu ela —, penso o seguinte: nove décimos da riqueza do seu país
são usados nos preparativos para a guerra. Com exceção dos verdadeiros agricultores que
plantam alimentos e dos vendedores de alimentos e de utensílios domésticos, todos estão no
exército, de um modo ou de outro. Contudo, vocês não se lembram de nenhuma guerra.
Quanto às guerras que fizeram, basta elaborar uma lista das supostas razões que as
determinaram e você tem de admitir que são inadequadas. E, além disso, ocorreram em
gerações passadas. Suas escaramuças nas fronteiras com a Zona Cinco são devidas ao fato de
que, quando se colocam dois exércitos lado a lado, naturalmente há escaramuças, e um
sempre põe a culpa no outro. O nível de vida do seu povo é muito baixo — ele deu um gemido
surdo, concordando —, mas, Ben Ata, tudo isso é determinado por Lei. Pelos Provedores. Cada
um por si. Portanto, o que saiu errado? — Al.Ith notou que durante essa análise mais ou
menos pretensiosa não tivera a menor sensação de estar perto da descoberta, como
acontecera na véspera. Coloque-se uma pessoa junto de outra, dê-se a essa união o nome de
amor, pensava ela, e então terá de se contentar com o mais baixo denominador comum.
Ben Ata bocejou.
— É muito cedo para dormir, você sabe — disse ela. — A tarde nem deve ter terminado
ainda — se pelo menos pudéssemos ver o céu no meio desta chuva toda. — Pois a chuva
continuava intensa.
— Muito bem, Al.Ith, quero que descreva seus problemas para mim, como descreveu os
da minha Zona.
Al. Ith hesitou, pois ocorreu-lhe perguntar a si mesma por que não fizera ainda essa
análise —, uma vez que, embora esse modo de pensar não conduzisse a conclusões de alto
gabarito, pelo menos era útil para esclarecer a mente.
— Ora, vamos, Al. Ith, sempre está disposta a me criticar.
— Sim, eu estava apenas... muito bem. A economia do nosso país não depende somente
de um produto. Plantamos grande variedade de cereais, vegetais e frutas...
— Mas nós também — observou ele.
— Não na mesma quantidade.
— Continue.
— Temos várias espécies de animais e usamos seu leite, sua carne, sua pele e sua lã... —
Vendo que ele ia interrompê-la, disse: — É uma questão de grau, Ben Ata. Metade da nossa
população produz essas coisas. Um quarto é de artesãos que usam ouro, "prata, ferro, cobre,
estanho e muitas pedras preciosas. Um quarto é de comerciantes, fornecedores, negociantes e
contadores de histórias, guardiães das Memórias, pintores e escultores e cancioneiros
ambulantes. Nem uma parte mínima da nossa riqueza se destina à guerra. Não existem armas
em nosso país. Não encontrará nada além de facas ou machados para uso doméstico ou dos
pastores, em qualquer casa da nossa Zona.
— E se forem atacados por um animal selvagem? Se uma águia ataca um cordeiro?
— Os animais são nossos amigos — disse ela, e viu a incredulidade nos olhos dele. Além
disso, Ben Ata estava achando essa descrição desprovida de qualquer interesse.
— E o que ganharam com isso? A não ser o que temos agora, problemas... pelo menos é o
que você diz...
— O índice de natalidade da sua Zona está baixando ou não?
— Está. Muito bem, as coisas não vão bem. Admito. E agora, Al. Ith, nesse seu paraíso,
quero saber o que fazem os homens?
— Não fazem guerra!
— O que fazem o dia todo?
— Exatamente o que todos nós fazemos — de acordo com o seu trabalho.
— Parece-me que, com as mulheres governando, a única coisa que um homem pode fazer
é...
— Fazer amor, é isso que ia dizer?
— Mais ou menos isso.
— E cozinhar, cuidar da terra, do gado, cultivar cereais, comerciar, trabalhar em minas e
fundições, fazer artefatos e tudo o que se precisa fazer para alimentar as crianças, mental e
emocionalmente, e organizar arquivos e manter a Memória, compor canções e contar
histórias e... Ben Ata, até parece que eu o insultei.
— Tudo isso é trabalho de mulher.
— Como é possível que Eles esperem que nos entendamos? Se colocassem você no meio
do meu país, não seria capaz de entender nada do que estava acontecendo. Sabia que assim
que entro em sua terra deixo de ser eu mesma? Tudo o que digo é distorcido e diferente. E
quando consigo agir naturalmente, tudo é tão difícil, e só serve para fazer as coisas diferentes.
Às vezes, sento-me aqui com você e penso no que eu sou, em casa, com Kunzor, por exemplo,
e não posso...
— Kunzor é o seu marido?
Ela ficou em silêncio, desarmada ante a completa impossibilidade de dizer alguma coisa
que pudesse conservar a substância de verdade.
— Muito bem, diga de uma vez. Ele é, não é? Oh, você não me engana.
— Mas não lhe disse que Kunzor é o nome de um dos homens com quem eu estou?
Mas o rosto de Ben Ata conservou a aparência de um homem que conseguiu alcançar a
verdade. Sua atitude, braços cruzados, pernas separadas, pés firmes no solo, anunciava que
não estava nem um pouco influenciado ou intimidado.
Contudo, ela via que de fato ele tentava compreender; seria um erro permitir que a
defensiva automática de Ben Ata a afastasse dele. Algo que Al.Ith respeitava com a maior
sinceridade do seu espírito estava se formando nele.
Mais uma vez Ben Ata sorriu com sarcasmo, automaticamente.
— E esse seu Kunzor naturalmente é um homem muito melhor do que eu em todos os
aspectos.
Al.Ith não respondeu, apenas disse:
— Se não é para nos compreendermos, o que estamos fazendo aqui, afinal?
Do mais profundo do seu pensamento, um pensamento na verdade protegido por sua
atitude defensiva, que ele sempre classificara de "força", Ben Ata disse, ou deixou emanar
lentamente:
— Mas o que é... eu preciso entender... o quê? Nós temos de compreender... o que... — sua
voz perdeu-se no silêncio, os olhos fixos em uma xícara sobre a mesa. E ela percebeu, com
imenso prazer e alívio, que na verdade Ben Ata estava trabalhando com aquela parte do seu
íntimo pronta e aberta para receber a compreensão — como acontecera com ela na sala do
Conselho. Al.Ith ficou completamente imóvel, controlando a respiração, não permitindo que
seus olhos se demorassem no rosto dele, para não perturbá-lo.
A respiração de Ben Ata diminuiu de ritmo, ele parecia petrificado, os olhos fixos na
xícara nada viam — estava imerso nas profundezas do próprio ser.
— O que... — murmurou. — Alguma coisa... que precisamos... eles querem que nós... aqui
estão os soldados... soldados sem guerra... vocês são... vocês são... o que são vocês? O que
somos nós... para que estamos... é isso, é isso...
Como se falasse num sonho, ele dizia as palavras lentamente, sem inflexão, cada uma um
sumário, uma nota breve ou abstrata de um longo processo de pensamento profundo.
A chuva lenta derramava-se sem cessar, eles estavam no interior de uma concha
cintilante dentro d'água, dentro de um silêncio de som marulhante. Nenhum dos dois fez um
movimento. Ele parecia não respirar. Ela esperou. Muito tempo depois, ele voltou a si, viu-a
ao seu lado, pareceu surpreso, olhou para o frio espaço desse lugar de encontro, lembrou-se
de tudo, e imediatamente seu rosto, olhos e corpo voltaram à incredulidade alerta.
Ele não sabia o que tinha acontecido. Mas Al.Ith podia ver no seu rosto a maturidade que
refletia o profundo processo que ocorrera em seu íntimo.
Al.Ith agora não tinha mais a sensação de estar indefesa contra uma auto-depreciação que
não controlava e não podia dirigir; estava apoiada e confortada, sabendo que, apesar de tudo,
estavam na verdade conseguindo o que deviam conseguir... e, falando com a mais pura
intenção, com base na melhor compreensão do que era necessário, ela destruiu esse precioso
estado de espírito que beneficiava a ambos.
O que ela disse foi o seguinte:
— Ben Ata, será que posso ver Dabeeb... você sabe, a mulher de Jarnti?
Ele ficou tenso e olhou fixamente para ela. A reação foi tão violenta que Al. Ith teve de
reconhecer que voltara ao ponto em que não podia esperar vir a compreendê-lo um dia.
— É que nós... quero dizer, na nossa Zona... vamos fazer um festival de canções e
histórias...
O rosto dele crispava-se cheio de desconfiança. Os olhos vermelhos estavam coléricos.
— O que há?
— Oh, você é mesmo uma bruxa. Não finja que não é.
— Mas, Ben Ata, eu acho que poderemos descobrir o que queremos saber... ou pelo
menos ter uma idéia, ouvindo as antigas canções. Histórias. Não essas que todos cantam
constantemente. As que... saíram de... uso... e... — Mas ele levantara-se violentamente e
estava inclinado sobre ela, agarrando seus ombros, o rosto a poucos centímetros do de Al.Ith.
— Então quer entrevistar Dabeeb?
— Qualquer uma das mulheres. Mas Dabeeb eu conheço.
— Pois vou lhe dizer uma coisa, não vou participar dessas suas orgias, todos mundo
andando com todo mundo.
— Ben Ata, não sei o que aconteceu, mas você está outra vez no caminho errado...
— Estou, não é? O que acontece quando um grupo de suas mulheres e seus Pais se
encontram? Posso imaginar!
— Você está imaginando coisas que você mesmo experimentou, Ben Ata, coisas que
acontecem quando seus soldados invadem alguma pobre aldeia e... — mas percebeu que não
adiantava continuar. Ergueu os ombros. Aguilhoado por seu desprezo, pois era o que o gesto
significava, ele endireitou o corpo e, com passos largos, foi até a entrada em arco que dava
para a colina ao pé da qual estavam os acampamentos do seu exército. Gritou para a chuva,
uma, duas, três vezes... um grito em resposta, o som de pés correndo na chuva, e Ben Ata
gritando:
— Diga a Dabeeb para vir aqui. Imediatamente.
Voltou-se para o interior do quarto, os braços cruzados, apoiando o peso do corpo no
batente da porta, sorrindo triunfantemente para ela.
— Bem, quero falar com Dabeeb e estou satisfeita porque ela vem. Mas não sei por que
você está agindo desse modo.
— Talvez você queira possuir Dabeeb? Quem sabe as sujeiras que você e seu povo
costumam fazer.
— Possuir. Possuir. Que palavra é esta, possuir? Como se pode possuir outra pessoa? Não
admira que você não consiga — mas ela ia dizer: "Não admira que você não possa fazer amor
quando está pensando em termos de possuir" — e naturalmente se conteve.
— É melhor apanhar o escudo para protegê-la ou qualquer coisa assim — disse Al.Ith. —
Ela não suportará o ar daqui.
— Muito obrigado. Isso já tinha me ocorrido, sabe? Como pensa que todas essas coisas
foram feitas?
E ele indicou os objetos destinados à proteção das pessoas que tinham trabalhado, ou que
ainda trabalhavam na colina, de tempos em tempos — grandes pregadores ou broches usados
na altura da garganta.
O som de pés chapinhando na água e Dabeeb apareceu, envolta em uma grande capa
escura, uma velha capa militar de Jarnti. Ela ficou parada na porta, sem olhar para Ben Ata,
mas muito perto dele, fitando Al.Ith com expressão astuta. Al.Ith sorriu. Ela aceitou o broche
que Ben Ata lhe ofereceu — de uma substância amarela baça, muito pesada — prendeu-o no
decote do vestido e entrou no grande quarto com passos leves, deixando a capa do lado de
fora dos arcos, no chão do terraço.
Não olhou para Ben Ata; esperou por Al.Ith, que subitamente compreendeu o provável
motivo para todo o drama. Dabeeb não olhara para Ben Ata. Nesse lugar terrível, onde o
antagonismo era companheiro inseparável de estar junto — do sexo, como diziam —, isso
talvez significasse que eles tinham se possuído. Ela o tinha possuído ou ele a possuíra —
segundo o ponto de vista desses bárbaros —, mas, nesse momento, Al.Ith não estava disposta
nem mesmo a pensar nisso.
Ao ver Dabeeb, a bela matrona, bem-vestida, capaz, com a expressão de humor malicioso
ali de pé, esperando, Al.Ith resolveu aproveitar a situação do melhor modo possível.
— Por favor, sente-se, Dabeeb — e indicou, com um movimento de cabeça, a cadeira que
Ben Ata acabava de deixar. E, então, Dabeeb olhou para Ben Ata. O risco real dessa situação —
como ela a via — não fora suficiente para que erguesse os olhos para ele, mas agora precisava
de uma ordem, uma orientação, e olhou para o seu amo.
Mas Ben Ata deixou tudo a cargo de Al.Ith e ficou ali parado como uma sentinela,
observando a cena.
Dabeeb sentou-se.
— Vamos ter um festival de canções e histórias no meu país. Sempre temos esse tipo de
festival, mas este vai ser diferente.
Dabeeb estava alerta e em guarda; as mulheres olhavam- se nos olhos e os de Dabeeb
transmitiam uma advertência; Al.Ith moveu a cabeça de leve, como se dissesse. "Eu sei, mas
não tenha medo." Ben Ata não percebeu essa troca imperceptível de olhares, mas sabia agora
que tinha se enganado. O quadro que formavam as duas mulheres, uma na frente da outra,
ambas prontas para a troca do que tinham de melhor, acalmou-o, perturbando-o ao mesmo
tempo. A imediata compreensão entre as duas o fazia sentir-se excluído, rejeitado.
Ben Ata exagerou a expressão sarcástica e a pose militar.
— Queremos saber se existem canções das quais talvez nos tenhamos esquecido e que
nos esclareçam alguma coisa.
— Compreendo, senhora.
Mais uma vez entreolharam-se interrogativamente.
— Mas não há nada a temer... — Al.Ith fez uma pausa, e depois continuou — ... se não se
lembrar de nenhuma. Para isso pedi a Ben Ata que chamasse você aqui. Não deve se
preocupar... — outra pausa, e Dabeeb assentiu de leve com a cabeça — ... com isso. Foi apenas
uma idéia que tive. Um capricho! — E adotou uma expressão de quem é sujeita a caprichos e
está acostumada a satisfazê-los, um ar de fatuidade e de auto-congratulação.
— Compreendo, senhora.
— Gostaria que me chamasse pelo meu nome.
— É difícil de lembrar. — Como quem se desculpa, quase uma súplica.
— Temos todo o tipo de canções, mas, por exemplo, no outro dia, ouvindo as crianças
cantarem, compreendi que algumas partes devem ter sido esquecidas ou alteradas... ou coisa
assim. E talvez o mesmo se dê com vocês.
— Talvez.
— Ouvi uma canção da outra vez em que estive aqui. O ritmo é este... — E Al.Ith apoiou a
mão na mesa e tamborilou com os dedos:
Dabeeb assentiu com a cabeça.
— Ê talvez uma canção das mulheres?
— Todos a cantam, senhora.
— Talvez palavras diferentes sejam adaptadas à mesma música, em tempos diferentes —
disse Al.Ith despreocupadamente.
— Acho que isso acontece às vezes aqui — observou Dabeeb.
Ben Ata estava mais alerta do que já estivera em toda a sua vida.
Sabia muito bem que esse encontro das duas mulheres estava combinando níveis de
compreensão que no momento ele não podia alcançar. Mas pretendia descobrir. Contudo,
mais forte nele, envolvendo pensamentos e intuições diferentes, dominava a suspeita. E
estava tão desamparado e rejeitado quanto uma criança que vê uma porta fechar-se à sua
frente.
— Tem algo a ver com luz? — sugeriu Al.Ith.
— Luz? Creio que não. Não me lembro de ter ouvido essa.
Mas seus olhos diziam que sim, e pedia, implorava a Al.Ith que não as traísse. Al.Ith
percebia que sua idéia sobre as mulheres não era apenas correta — mas também inteiramente
incompleta. Existia algo como um movimento secreto, subterrâneo.
— Quer que eu cante uma das versões para a senhora? É muito popular.
— Sim, eu gostaria.
— É uma canção muito antiga, senhora. — E Dabeeb pigarreou, ficou de pé atrás da
cadeira, segurando o encosto com uma das mãos. Sua voz era forte e clara e evidentemente
usada com freqüência.
"Olhe para mim, soldado! Ele está olhando!
Ê para mim que ele olha!
Logo vou sorrir, não para ele,
Isso o conquistará!"
E as duas mulheres ouviram a respiração tensa e furiosa de Ben Ata.
Não olharam para ele; sabiam que iam ver um homem dominado por frenéticos ciúmes.
Tudo estava perfeitamente claro agora para Al.Ith. Admirou-se da própria falta de tato; e
também da conveniência dos acontecimentos, que sempre iam ao encontro da sua vontade,
encadeando-se inevitável e satisfatoriamente, revelando facetas da verdade, as possibilidades
de desenvolvimento, uns transmitindo luz aos outros.
Tinha certeza de que Ben Ata desejara possuir essa mulher, e que ela se negara a ser
possuída. Sabia que a mente de Ben Ata estava ardendo de ciúmes e suspeitas. Nada mais
podia fazer do que deixar-se levar pelos acontecimentos — esperar para ver.
Dabeeb estava cantando:
"Brilham os olhos —
Os dele e os meus.
Sei como agradecer-lhe
Simplesmente provocando-o.
Farei com que fique faminto
Lânguido e furioso,
E que pague meu soldo
O soldo de um cabo."
"Aqueça-me
Encha a minha taça..."
Tamborilou.
"Agora... vá.
Rápido. Lentamente."
Ela tamborilou. Piscou para Al.Ith outra vez e, animada pela canção, piscou para Ben Ata
também, e ele não conseguiu conter um sorriso de apreciação.
Tamborilou.
Quando acordou ao nascer do sol, Al.Ith estava encolhida sobre a relva da margem do
regato, como um animalzinho abandonado pela mãe; seu cavalo pastava ali perto. Colheu as
finas sementes da relva e comeu-as, bebeu água do regato e sentou-se, contemplando as
montanhas do seu reino.
Sonhava com as viagens que fizera pelo seu país, para o norte, oeste e sul, onde cresciam
as vinhas e os olivais, e para o leste novamente, onde vagava agora. Como era variada,
maravilhosa e rica essa sua terra, da qual estava agora banida, onde não era bem-vinda.
Quanto tempo andara por ela, reunindo e realizando em si mesma todo o seu potencial. Ela,
Al.Ith, a bela, agora uma fugitiva, não-desejada em lugar algum, sentou-se na beira do rio,
tentando lembrar-se por quanto tempo gozara de toda aquela riqueza. Mas não conseguia
lembrar-se.
Esperou durante todo o dia, o rosto erguido na direção das altas cadeias de montanhas de
sua terra, e à noite o cavalo deitou-se outra vez e ela encostou-se nele para se abrigar do vento
cortante que começava ao pôr-do-sol, soprando das planícies de leste. Deitou a cabeça no
flanco de Yori e escutou o coração que batia forte, e imaginou que eram os tambores nos
pavilhões de Ben Ata. Mas não eram. Ben Ata estava sozinho, andando por aqueles quartos
vazios e ao redor das fontes, esperando, copio Al.Ith, que os tambores recomeçassem.
Mas não tocaram.
Passaram-se dias.
Enquanto havia claridade, ela caminhava pela margem do regato, observava os pássaros
que se banhavam nas águas claras, ou sentava-se, contemplando as suas montanhas. Às vezes
a luz atingia-as em cheio e cada vale, cada rocha, tornava-se visível e definido. Mas, outras
vezes, as montanhas pareciam flutuar, cintilantes ou na sombra, e seus picos e silhuetas
misturavam-se ao azul do céu. À noite abrigava-se ao lado do cavalo, e não dormia, mas
cantava lamentos de exílio e esperava a batida do tambor.
Mas não se ouvia nada dos pavilhões de Ben Ata.
Al.Ith perdeu a noção do tempo, não sabia quantos dias haviam passado. Imaginava que
talvez tivesse errado o caminho. Ou talvez suas visitas a Ben Ata tivessem terminado, e ela
falhara, e havia sido afastada e condenada a esperar ali até a morte. Mas então lembrava-se da
criança, que não passava de um ato de fé para ela, uma vez que a nova vida não se fizera ainda
sentir. Se ela não era necessária para os Provedores ou para a Necessidade, pelo menos a
criança devia ser.
Ou talvez estivesse sendo punida... Quando esse pensamento surgiu insistente, ela
procurou afastá-lo, pois lembrava- se ainda que em sua terra, quando alguém deixava idéias
desse tipo tomarem conta do seu espírito, era sinal de doença mental, de um egoísmo
chocante e monstruoso.
Mas a compulsão para acreditar que estava tremendamente errada era mais forte e
continuava pressionando-a. Afinal, era na Zona Três que essas idéias eram interpretadas
erroneamente, não na Zona Quatro — e era a esta última, tudo indicava, que ela pertencia! Se
é que pertencia a algum lugar agora — mas como poderia saber? Se era culpada, qual era sua
culpa, e por quç seria esta a punição acertada? Esses pensamentos — ou seriam emoções? —
giravam em sua mente — ou seria no seu coração que ferviam e se agitavam?
Às vezes chamava Yori e olhava para os olhos meigos e inteligentes do animal.
— Yori, Yori, então eu sou má? Você sabe o que foi que eu fiz?
Mas só via o amor do animal a ela, e toda a sua bondade, e logo Yori baixava a cabeça,
como fazem os animais, para pastar.
Ele sentia-se tão solitário quanto ela, nesse lugar. Certo dia, uma manada de cavalos
selvagens, as crinas ao vento, atravessou a planície, e Yori chamou-os e galopou para eles, o
solo vibrando sob seus cascos. Durante todo o dia longo e feliz, Yori correu com eles, rolou no
calor perfumado da relva, e em determinado momento correu com eles até se perder de vista,
e Al.Ith pensou que ele não ia voltar. Mas voltou, sozinho, ao pôr-do-sol, e ela percebeu que
estava triste e gostaria de ter ficado com os companheiros. Mas Yori encostou o nariz macio
no pescoço dela cumprimentando-a, e pacientemente deitou-se, porque os ventos de leste
começavam a soprar e era hora de protegê-la.
Passaram-se os dias.
Certa noite, quando a luz do sol já tinha quase desaparecido, ela viu, no outro lado do
regato, muito distante, um homem que se parecia com Ben Ata. Cruzou o regato, passando
sobre as pedras, e correu para o homem que estava no outro lado da fronteira, entre as Zonas.
Parou quando sentiu a mudança na densidade do ar, e viu que não podia ser Ben Ata, pois era
um homem abatido e desesperado, sem nada da força poderosa do rei da Zona Quatro. Mas o
desejo de correr para ele era muito forte e Al.Ith compreendeu que era na verdade Ben Ata.
Separados pela impossibilidade, ficaram imóveis, olhando fixamente, e então ela chamou:
— Ben Ata!
E depois de algum tempo, a voz áspera:
— Al.Ith!
Suas vozes eram estranhas, fazendo-os lembrar suas diferenças e o quanto era abrasivo
seu contato real. Mas permaneceram ali, enquanto a noite descia e nada mais podiam ver
além de sombras.
Ela não chamou outra vez, ele também não, mas mais tarde descobriram que ambos
tinham ficado ali no escuro, com olhos muito abertos, inclinados para a frente, durante
muitas horas. Ela voltou ao regato e ao abrigo do seu cavalo quando o vento se tornou forte
demais para suportar. Naquela noite, sentiu o movimento leve que indicava que a criança era
mais do que um amontoado de células. Colocou a mão protetoramente sobre o ventre,
saudando-a, mas seu espírito estava dividido e em conflito.
Quanto a Ben Ata, que estivera atormentado pelo desejo de revê-la e de não mais se
encontrar com ela, desde que a deixara na fronteira, quando a viu no outro lado, na semi-
obscuridade, um frágil fragmento de mulher com o vestido amarelo brilhante, sentira uma
verdadeira revolução no seu íntimo, e voltara a toda pressa para os acampamentos, passando
pelos pavilhões onde estivera durante todos aqueles dias, sem perceber a passagem do tempo,
como Al.Ith na beira do regato, e sentindo outra vez que ela perturbara sua razão. Mas, de
volta ao acampamento, em sua tenda, com Jarnti e os outros oficiais que o saudaram
delicadamente, continuava atormentado, como nos pavilhões... mas o que o atormentava?
Não conseguia dormir. Não comia. Não podia ficar parado. Dabeeb, lavando a roupa da família
em uma grande tina nos fundos da casa, viu Ben Ata saltar a pequena cerca e caminhar para
ela com passo decidido como se fosse derrubá-la, a tina de água e as roupas molhadas e
torcidas da bacia. Ele parou na frente dela e, segurando o queixo de Dabeeb, ergueu-lhe a
cabeça e fitou-a nos olhos, esquadrinhando cada pedaço do seu rosto. Ele franzia a testa ante
a imensidade de comparações que fazia. Dabeeb percebeu e não o culpou por isso. Pobre rei,
está mesmo muito apaixonado, pensava ela, enquanto sorria, escondendo pudicamente seus
pensamentos por detrás dos olhos tranqüilos. Huuuuum. Não lhe fez mal nenhum, pensou
ela, quando Ben Ata, sem se desculpar, voltou-se e se afastou. E Dabeeb sorriu para si mesma
felicitando Al.Ith, imaginando como ela usaria esse desespero e essa fúria.
Mas Ben Ata não podia mais suportar esse torvelinho de emoções. Estava na hora de
iniciar outra campanha. Febrilmente mandou pedir os últimos relatórios sobre todas as
fronteiras e descobriu — o que não era de surpreender — que tinha havido escaramuças nas
fronteiras da Zona Cinco. "Está na hora de lhes dar uma lição", murmurou, com outras frases
rotineiras e rituais, e foi para a barraca dos oficiais para compartilhar a sua idéia e levantar
um pouco os ânimos. Como sempre, todos ficaram encantados com a idéia de uma nova
campanha. Sentado em sua tenda, agora, Ben Ata pensava em Al.Ith, e no desprezo dela por
ele, suas guerras, campanhas. Pensava na última campanha, e, pela primeira vez, lembrou-se
dos mortos e feridos, pois até agora jamais sentira necessidade de se lembrar deles.
Não podia cancelar essa campanha, pois o faria parecer fraco e vacilante, mas também
não suportava a idéia de cavalgar à frente dos soldados, "suportar toda aquela tagarelice",
resmungava ele, desanimado, e "agüentar aquilo tudo durante dias e semanas intermináveis".
Esses pensamentos lhe pareciam traição, e deixou escapar um rugido surdo de raiva, que foi
ouvido pelos seus ajudantes, os quais se entreolharam, trocando comentários silenciosos que
não ousariam dizer nem mesmo em um murmúrio.
Ben Ata lançou-se para fora da tenda, apanhou o primeiro cavalo que encontrou na
cocheira e cavalgou na direção da fronteira de leste que era adjacente à da Zona Cinco. Não
deixara nem um pouco da sua infelicidade para trás!
— O que vou fazer? — murmurava, enquanto alternadamente soltava as rédeas do animal
e puxava-as, batendo com a mão de leve no pêlo macio... a boca do cavalo estava cheia de
espuma, o bridão o incomodava... Ben Ata lembrou-se de que Al. Ith e todos no seu país
cavalgavam sem elas ou arreios, que não batiam nos animais, não usavam nada do que para
eles, da Zona Quatro, parecia necessário. Soltou a rédea e chegou a murmurar algumas
palavras de compaixão para o animal — mas ao fazer isso sentiu-se um traidor novamente. E
por que estava indo na direção da Zona Cinco? Detestava aquele lugar. Muito antes de chegar
à fronteira, o solo pesado e profundo, os campos ricos, os canais, as valas e os lagos, nas
planícies intermináveis da Zona Quatro, que para ele — até recentemente pelo menos —
significavam o que um país deve ser, cediam lugar a cerrados e areia e o ar era fino, com sabor
de poeira. Jamais tinha penetrado no interior daquele lugar horrível, mas os cativos e
mulheres que os soldados faziam desfilar à sua frente ou que atiravam na sua tenda eram
sempre criaturas magras e esfarrapadas, as faces e os membros cobertos de poeira, com
cabelo amarelo e sujo. Ele supunha que essa poeira seca era característica de toda a Zona,
mas não tinha certeza. Jamais perguntara. Pensando nisso agora, lembrava-se de que nunca
dissera a um prisioneiro ou a uma mulher mais do que palavras de comando, nunca lhes
perguntara coisa alguma, apenas os punia ou usava.
Ben Ata não chegou até a fronteira, mas apenas ao ponto de onde podia avistar as colinas
de areia, escarpas pedregosas e vegetação rasteira. Montado no seu cavalo, acariciando o
pescoço do animal sem perceber que o fazia, e pensando na boca ferida da pobre criatura,
lembrou-se das mulheres capturadas, a acre aspereza dos seus corpos, suas lágrimas, sua
revolta.
Ben Ata chorou. Sabia perfeitamente que não ia iniciar nenhuma guerra contra esse lugar
tão infeliz: daria uma contra-ordem assim que chegasse ao campo. Sabia que os soldados iam
dizer que estava sendo vítima de uma mulher e que não servia mais como soldado. Dava
razão a eles. Não queria voltar à sua própria terra, onde todos os seus pensamentos eram
agora discordantes ou sediciosos.
Resolveu ficar onde estava. Desmontou, tirou a sela e as rédeas do cavalo, e voltado para
sua terra, dando os costas para a Zona Cinco, sentou-se sobre sua capa, para uma vigília. E
assim Ben Ata, rei da terrível Zona Quatro, estava longe dos seus exércitos e dos
acampamentos, sozinho, quando o tambor começou a tocar. Ele não o ouviu.
Depois de uma noite insone e solitária, voltou. Ouviu o tambor quando chegou ao
acampamento e ia correr diretamente ao encontro de Al.Ith, quando lhe ocorreu que talvez
fosse muito tarde. Subiu a colina para os pavilhões, no exato momento em que ela aparecia
no outro lado.
Os dois entraram no grande quarto central, por arcos opostos, e pararam, examinando-se
mutuamente. Como sempre, a primeira coisa que notavam eram as diferenças: ambos,
comparando os longos dias de incerteza, de desejo, de saudade com a realidade desse
indivíduo obstinadamente controlado, sentiam apenas uma exaustão extrema.
Ambos demonstravam à primeira vista seu cansaço. Ambos estavam queimados de sol e
esguios. Ambos abrigavam no íntimo um turbilhão de desejo e inquietação. Seus olhos
flamejavam nas órbitas. Ali de pé, ambos se consumiam em um desejo faminto que nenhum
dos dois era capaz de entender.
E, juntos, afinal, deitaram-se lado a lado na grande cama, olharam-se nos olhos, passaram
as mãos pelos braços e pelas pernas um do outro. E, tendo se certificado de que ele, ela,
estavam ali, real e absolutamente presentes, a longa tensão desfez-se. Suspiraram, bocejaram,
e adormeceram abraçados. Dormiram um dia e uma noite, quase sem se mover.
Quantos foram os dias que se seguiram, cada pensamento e movimento numa lentidão
carregada de sensações e de questionamentos! Pois esse lugar, essa fase, estavam sendo
experimentados pela primeira vez por ambos, e tudo o que diziam ou faziam vinha como uma
surpresa.
Para começar, estavam juntos, só os dois, e suspeitavam de que seria assim por um longo
tempo, porque para ambos suas vidas quotidianas — as vidas que haviam perdido? —
pareciam-lhes proibidas. Eram exilados, e os reinos que os estavam expulsando eram criados
e sustentados pelo companheirismo, pelas ligações e necessidades de outros. Nenhum dos
dois jamais estivera a sós com outra pessoa durante dias... e dias... e dias. E noites.
Faziam amor como nunca tinham feito antes: sério e prolongado, como se chegar ao fim
significasse a perda da possibilidade de compreensão, como se fosse uma tarefa exploratória
deliberada, como se unindo-se desse modo criassem uma força, um lugar inexpugnável à
dúvida e a algo pior — hostilidade de certa espécie e de alguma origem — calamidades, caos. E
enquanto lutavam, ou se abraçavam, ou se protegiam, lançavam sobre essa cena, com mais
freqüência do que o outro gostaria, um olhar frio e desapaixonado, que concordava
completamente com qualquer julgamento que alguém — quem? o desconhecido hostil? —
pudesse estar pronunciando sobre os dois. Contudo, contra esse julgamento revoltavam-se e
protegiam-se, em pensamento e em ação, pois o que significava esta necessidade — sempre
crescente — de aconchegar Al.Ith, de aconchegar Ben Ata, dentro dos braços fortes, senão
colocar barricadas no lado de fora de uma caverna onde uma criatura pequenina e
infinitamente vulnerável se escondia?
Mas não lhes chegava nem uma palavra, nenhum sinal exterior. O tambor batia
continuamente. E sabiam que devia continuar tocando. Pelo menos durante mais algum
tempo.
Al.Ith recostava-se nas almofadas, no leito, nua, a mão apoiada onde essa criaturinha
híbrida dos dois abria caminho para fora do reino das possibilidades, e sentia-a pulsar,
acompanhando o ritmo do tambor. E Ben Ata, nu, aproximava-se dela, percebendo, pela
concentração daquele rosto agora tão perto e tão amado, que não se surpreenderia se o visse
ao olhar-se no espelho, que ela estava se comunicando com o futuro senhor dessa Zona,
tirava a mão dela cuidadosamente do lugar e colocava a sua, ouvindo com sua palma e seus
dedos. Ou encostava a orelha no ventre dela, fazendo desaparecer todos os sons dessa casa
adorada e familiar, para ouvir apenas o tum, tum, batendo nos seus ouvidos e determinando o
ritmo do seu sangue.
Agora ficavam nus a maior parte do tempo, pois essa nudez a dois era o mesmo que estar
vestidos, de tal modo seus corpos se diversificavam e se exprimiam. Ele olhava para a luz
úmida que vinha do jardim e que emoldurava os ombros dela, pensando como era bela essa
sua Al.Ith, esguia e forte como o arco da coluna contra a qual se apoiava; e ela olhava a linha
das costas dele e pensava que poderia contemplar os movimentos e a tensão daqueles
músculos pelo resto da vida, sem jamais se cansar. E ele punha a mão no cabelo negro que
lhe cobria as costas e admirava-se de por tanto tempo ter levado uma vida morta, quando
nem sequer notava — ou pelo menos lhe parecia agora — as infinitas complexidades de uma
pequena cabeça feminina, com um mundo de diferenças, que seus dedos exploravam,
acariciando mecha por mecha de cabelo; e ela estendia o braço sobre os ombros morenos e
fortes e sabia que a linguagem e mensagens de suas superfícies dérmicas, tocando-se
levemente, ou resvalando uma pela outra, seriam suficientes para ela para o resto da vida.
Quando por capricho ou coquetismo ela se vestia, a roupa era tirada imediatamente, pois
a provocação maliciosa era um insulto para essa atitude séria que ambos exploravam pela
primeira vez; e se ele se envolvia em sua capa militar, quando o vento soprava gelado desde a
colina, sentia-se mal com ela, quase como se não tivesse direito de usá-la. E voltavam para
debaixo das cobertas do grande leito, de volta ao seu mundo, seu tempo... que não mudavam,
não podiam mudar... mas que mudaram, e muito cedo, pois certo dia, quando estavam
sentados à pequena mesa ao lado do arco, de onde avistavam os campos no sopé da colina,
pediram a refeição, em pensamento, e nada aconteceu. E, enquanto imaginavam o que
poderia significar, viram Dabeeb subindo a colina, inclinada para a frente para se proteger do
forte vento que parecia querer arrancar-lhe a velha capa militar; e ela trazia pratos cobertos e
bebidas. Deixou-os cuidadosamente no terraço, sob os arcos, e voltou rapidamente, sem olhar
para eles.
Cobriram sua nudez e saíram para o terraço a fim de apanhar a comida, que vinha da
cantina dos oficiais, como Ben Ata notou imediatamente, e consistia em feijão cozido e pão.
Notou, com alívio, quando começava a comer, que Al.Ith comia avidamente, como se não
sentisse falta dos seus doces com perfume de rosa, suas frutas e suas geléias.
Esses pavilhões, esses prédios mágicos tinham-se tornado muito prosaicos para os dois.
Certa vez Al.Ith os considerara como uma imitação muito falha das elegâncias e sutilezas de
sua própria terra. Não fazia muito tempo que representava para Ben Ata um lugar encantador
— sem dúvida —mas irritante, afeminado, que tinha de suportar. Mas agora nada havia
naquele quarto que lhe parecesse importante. A sala arejada, com a coluna central que se
erguia como uma fonte, suas sombras, altura imensa e desenhos no teto canelado — a sala
que usava para tomar banho e trocar de roupa, na qual ela entrava com toda a liberdade, os
quartos destinados a ela, onde ele entrava e saía à vontade — tudo isso era simplesmente um
lar agora: seu e de Al.Ith. Ben Ata tinha vivido em tendas de campanha, sem desejar nada
melhor. Naturalmente voltaria a elas... lem- brando-se dessas obrigações agora tão distantes,
retirou-se para seu quarto, e sentado, completamente nu, à mesa simples que mandara trazer
para seu uso, escreveu uma ordem para que os exércitos fizessem manobras e guerras
simuladas, porque se recordava de que lhes tinha prometido uma guerra e não cumprira a
promessa. Isso "os enrijecerá um pouco", murmurou ele, enquanto com a cabeça apoiada na
mão imaginava qual a parte do seu país que seria mais apropriada, na ocasião, para uma
guerra simulada... tnas seus oficiais podiam tratar disso muito bem, resolveu afinal, com um
estranho misto de pena por não participar dessa guerra, e alívio por não ter de suportar
semanas e semanas de tédio, fingindo que os ataques eram reais, que tinham um objetivo
real... e, com esse pensamento, lembrou-se de que Al.Ith não acreditava que essa sua
ocupação tivesse alguma finalidade... mas, ao pensar no seu filho, incubado nesse momento
no corpo delicioso de Al.Ith, via-o sempre a cavalo, com ele, à frente dos exércitos.
Era um filho, naturalmente. Al.Ith sabia e ele sabia. Porque era necessário e normal que
essa união produzisse um filho. O casamento da Zona Três com a Zona Quatro devia produzir
um filho: era evidente.
Voltou e encontrou Al. Ith vestida, pela primeira vez em muitos dias.
Os guarda-roupas do seu apartamento estavam outra vez cheios de vestidos feitos nesse
país e não no dela. Não os desprezava agora. Em parte porque as mulheres estavam fazendo
roupas mais simples e mais cômodas, depois de terem desmanchado e estudado cada ponto
do vestido que dera a Dabeeb. E em parte porque Al.Ith estava mudada, e já não considerava
os produtos dessa terra impossíveis para seu uso. Usava agora um robe rosado que lhe ia bem
e acentuava o início da sua gravidez.
Estava sentada à mesa, a cabeça apoiada na mão, pensando.
— Ben Ata — disse ela, como ele já pressentira —, há muitas coisas das quais precisamos
cuidar.
Antes de responder, ele sentou-se ao lado dela. Não queria concordar muito rapidamente.
Olhando para trás — para os dias que pareciam tão distantes agora —, quando as visitas de
Al.Ith ao seu país tinham sido breves e irregulares, ele lembrava-se especialmente das
discussões. A culpa fora dele, por não tê-la enfrentado. Ela era autoritária. Ben Ata gostava do
relacionamento que tinham agora. Casados. Era como ele o definia. Estamos casados agora, e
ela não pode fazer o que bem entende, como antes.
Quanto a ela, ficou em silêncio, porque se lembrava também daqueles dias. Oh, não como
estavam agora... não como ela era agora .. Entre Al. Ith e seu reino no planalto havia uma
cortina ou nuvem. Lembrava-se de que as coisas tinham sido muito diferentes. Essa
diferença, ela a sentia como uma descontração, uma leveza, uma ternura, e acima de tudo
uma maravilhosa camaradagem em tudo. Lembrava-se de todos os seus filhos, da lógica e da
necessidade de ficarem juntos. Lembrava-se de que tinha uma irmã, bela, e que costumavam
sentar- se juntas todas as noites contemplando o cair da noite, vendo a luz se extinguir, ou
caminhavam sobre os telhados... a lembrança dos maravilhosos passeios pelos telhados era
dolorosa para Al.Ith. Não podia fazer isso agora — parecia temer alturas, ficar no mesmo
plano que os pássaros e as montanhas... e havia outra coisa, uma torre, e de lá de cima — mas
uma saudade imensa assaltou-a, um sentimento tão opressivo que Al.Ith se pôs de pé num
salto, torcendo as mãos. Estava ali parada, sem fazer nada, e não era isso o que devia fazer...
— O que foi? — perguntou Ben Ata, calmo e dominador. — Não devia pular desse jeito,
não acha? Não é bom para a criança.
Considerando o que tinham feito durante dias e noites, achou melhor ignorar essa
observação. Mas sentou-se, devagar, e acalmou-se. Pois sentia que se não pudesse comunicar
a Ben Ata a natureza do que persistia em suas memórias e na substância do seu passado —
embora ela não fosse mais a mesma —, então não valia a pena insistir em nada mais.
— Está certo — disse ele delicadamente, mas com certa indiferença.
Ele estava pensando que quando esse filho nascesse teriam festividades e comemorações
de todo o tipo. Portanto, precisava certificar-se de que a guerra simulada estaria terminada
por esse tempo. Apanhou o papel onde tinha escrito a ordem para a guerra e fez uma
alteração na data.
— E acho que quando fizermos as festas — observou ele, como se já a tivesse informado
dos seus planos —, as outras crianças deverão tomar parte, como acompanhantes. Ou
qualquer coisa parecida.
Al.Ith sabia que Ben Ata era pai de inúmeros filhos, que eram colocados em regimentos
militares logo que começavam a andar O Exército das Crianças era parte da vida da Zona
Quatro. Ficara indignada quando ouviu falar nisso pela primeira vez — mas sua indignação
fora absorvida pela necessidade de compreender.
Ela não respondeu. Ben Ata percebeu que Al.Ith estava em silêncio há muito tempo, e,
depois de corrigir a ordem, colocou-a no cinto e sorriu para ela.
— Está bem, minha querida?
— Gostaria de conhecer o seu país, Ben Ata. Não, tenho certeza de que não fará mal agora.
Já estou aclimatada.
Ele animou-se imediatamente.
— Oh, ótimo. Poderá viajar comigo durante as manobras. Gostaria disso?
Al.Ith ficou pensativa. Tinha a expressão de alguém que experimenta uma comida ou
uma situação desconhecida.
— Não vejo por que não... mas estava pensando em pedir que as mulheres organizassem
um festival de canções. Nós costumávamos fazer isso, se bem me lembro. Em casa. Alguma
coisa parecida.
— Oh, elas não gostariam disso, minha querida! Têm suas próprias idéias, você sabe. Os
homens não podem nem chegar perto das suas cerimônias — não se dá valor à masculinidade.
— E ele recostou-se na cadeira ridiculamente pequena e deu uma gargalhada ruidosa,
extremamente divertido.
— Na verdade, não estava pensando em você. Eu posso ir. Como mulher.
— Então, já está farta de mim!
— Talvez seja bom nos separarmos, pelo menos uma noite.
Provaram suas boas intenções com pequenos beijos, mas havia algo de cerimonioso entre
eles, sem dúvida nenhuma.
— Escreverei uma nota para Dabeeb, quando ela vier trazer a refeição.
— Eu mesma falo com ela.
— Oh, não, é sempre muito melhor escrever, evita mal-entendidos.
Al.Ith não fez oposição, apenas resolveu chamar a atenção de Dabeeb e falar
pessoalmente com ela. Sorriu gentilmente para Ben Ata, como se concordasse plenamente.
Logo depois viram Dabeeb subindo a colina.
Ben Ata foi até a varanda para que ela não desaparecesse, logo depois de colocar os pratos
no chão.
Al. Ith viu quando ele entregou o papel com as ordens para a guerra simulada e ouviu-o
dizer que da próxima vez teria tuna ordem de Al.Ith mas que ainda não a tinha escrito.
— Oh, que bom — disse Dabeeb com voz suave —, será um prazer atender aos desejos da
senhora. Mas, antes disso, posso dar uma palavrinha com ela?
— Entre — disse ele, afastando-se da porta, e foi direto para seu quarto escrever as ordens
de Al.Ith.
As duas mulheres estavam a sós. Al.Ith levantou-se e foram rapidamente para a
extremidade da sala mais afastada dos quartos de Ben Ata.
Al.Ith disse em voz baixa o que queria, e Dabeeb, compreendendo imediatamente,
observou:
— As mulheres ficarão contentes. Na verdade estavam falando em convidá-la. Queriam
que lhe pedisse ordem para alguma coisa parecida — e agora já não é preciso.
Nesse momento Ben Ata entrou na sala, a imagem do marido benevolente. Mas,
enquanto se aproximava delas, pensava em como seria agradável ter Dabeeb só para si por
uma ou duas noites; imaginara-a atônita com tudo o que ele havia aprendido nesse longo
período — mas censurou a palavra prisão e substituiu-a por prazer — com Al.Ith. Esse
pensamento refletiu-se no seu rosto sob a forma de um sorriso auto-suficiente, e as duas
compreenderam.
Ele entregou o bilhete para Dabeeb, que o abriu, leu e observou com voz doce:
— É tão melhor escrever as coisas. Mas, Ben Ata, senhor, há um porém: não se trata de
ter um festival de canções quando estivermos dispostas, é tolice nossa, não dê atenção a isso,
mas temos tempo e estações apropriados para eles.
— Muito bem, então, quando chegar o tempo ou a estação, convidem Al.Ith e eu me
encarrego de fazer com que ela chegue lá em boa ordem.
— Muito obrigada. Ficaremos muito honradas. — Quando se voltou para sair, piscou
levemente para Al.Ith e, desejando-lhes bom apetite, correu colina abaixo.
Passaram uma noite carinhosa e de manhã Ben Ata confessou que não acreditava que os
exercícios para a guerra pudessem ser feitos sem a sua supervisão, e pediu licença para se
ausentar por alguns dias e tratar dos negócios do seu reino.
Al.Ith a princípio sentiu-se desolada ao pensar em afastar-se dele por uma hora que fosse,
depois teve um lampejo de pânico que considerou como manifestação patológica, em seguida,
indignação por ele desejar separar-se dela, e finalmente, sem dúvida nenhuma, alívio. Oh, que
maravilhosa oportunidade de localizar seu próprio eu novamente — que parecia tão remoto a
ponto de duvidar de sua capacidade para reconhecê-lo — e permanecer, pelo menos por algum
tempo, no seu interior, com seus próprios e reais objetivos... fossem lá quais fossem. Pois
Al.Ith não se lembrava.
Ben Ata, interpretando o silêncio dela como tristeza, e temendo que Al.Ith chorasse ou
lhe implorasse para ficar, disse que providenciaria para que ela o acompanhasse pelo menos
uma parte da guerra, mas que naturalmente ela devia voltar para casa antes do começo dos
jogos, porque não seria bom para ela excitar-se demais.
Al.Ith concordou com tudo, despedindo-se dele no topo da colina com um beijo caloroso e
demorado, que não se lembrava de ter dado jamais, pois parecia conter uma boa parcela de
submissão.
E, depois de acenar para ele enquanto podia ver a figura forte marchando energicamente
na direção dos acampamentos, voltou a seu quarto, tomou banho, perfumou-se e escolheu
um vestido branco de lã bordada, com desenhos floridos de todas as cores, e estava pronta
para sair pela outra porta, para os jardins cheios de fontes, de onde vinha o som do tambor —
mas de onde? de todos os lados, primeiro de um, depois do outro — quando Dabeeb apareceu
subitamente, dizendo em voz baixa que Al.Ith devia acompanhá-la, pois nessa noite as
mulheres iam realizar sua cerimônia, e que naturalmente não dissera a Ben Ata, porque
nenhum homem devia saber quando elas se reuniam. Não os avisavam, e o único homem que
ousara infiltrar-se em uma das reuniões secretas arrependera-se amargamente.
Al.Ith agasalhou-se com a capa militar de Ben Ata, segundo o costume da Zona Quatro, e
as duas, de mãos dadas, desceram correndo a colina úmida, atravessaram as linhas de
barracas de campanha sem serem vistas, pois os soldados estavam muito ocupados com a sua
guerra, que começaria exatamente dentro de dois dias, e faziam exercícios na planície.
Correram sem parar sobre a relva molhada, perturbando os rebanhos de gado
melancólico e cruzando inúmeras pontes, saltando sobre valas e canais até chegarem,
embriagadas e animadas com todo esse movimento, apesar do ar pesado e irritante, a um
grande edifício de pedra, que parecia deserto. Era um velho forte, relíquia de alguma guerra
passada, e quase todo em ruína.
Mas, depois de passarem ao largo de alguns grupos de árvores e de arbustos, e de
atravessarem um grande arco, viram-se em um imenso salão de pedra, repleto de mulheres
de todas as idades, sentadas em bancos, em volta de longas mesas de madeira sobre as quais
havia comida e vinho. No centro havia um espaço livre onde um grupo de jovens cantava,
fazendo movimentos variados com o corpo e com os braços. Todas riam alegremente. Ao
verem Al.Ith, levantaram-se, ergueram as mãos acima das cabeças e bateram palmas
vigorosas, dando-lhe as boas-vindas, depois sentaram-se de novo e continuaram a assistir ao
número das meninas. Indicaram a Al. Ith um lugar na cabeceira de uma das longas mesas, e
sem mais cerimônias ela sentou-se, com Dabeeb ao seu lado. Não notou imediatamente o
resto do salão porque estava interessada nas cinco meninas que, com entusiasmo,
representavam as palavras cantadas, solenemente e com atenção, com cuidado para não
cometer nenhum erro, de modo que era enorme o contraste dessa atitude concentrada com o
que, sem dúvida, devia ter sido, pelo menos no princípio, um jogo infantil.
Juntas, cantavam:
"Achei um colar de contas,
Pendurei-o em uma árvore,
Um colar de contas mais lindo
Jamais se viu."
E separadamente:
E mais uma vez, quando a canção terminou, todas voltaram ao espaço no centro da sala e
inclinaram a cabeça para trás contemplando as montanhas, escuras agora, sua silhueta
delineada por uma luminosidade azulada, talvez das estrelas -mas não se viam as estrelas no
céu, pois toda a vasta janela aberta nas ruínas estava tomada pelas montanhas. Al.Ith
acompanhou as mulheres e ficou no meio delas. Os músculos do seu pescoço estavam
doloridos e resistiram, e viu que as jovens cujas cabeças as mais velhas forçavam para trás
tinham lágrimas nos olhos e mordiam os lábios por causa do esforço.
Então, depois de um curto espaço de tempo, pois era evidente que esse tipo de exercício
não podia ser suportado mais do que isso, todas voltaram aos seus lugares. Travessas com
comida foram trazidas da cozinha, na extremidade do salão, e as jovens serviam o vinho.
A festa ou cerimônia. — pois era na verdade um ritual -continuou noite adentro. Sempre
que uma canção, jogo ou declamação terminava, todas corriam para o centro e executavam o
exercício de distender os músculos e conservá-los distendidos — pois era evidente que essa
era a finalidade do ritual. Os grupos de mulheres e de jovens continuavam a contribuir com
suas canções, todas uma repetição de algo feito muitas vezes antes, pois muitas vezes as
palavras nada tinham a ver com os gestos que as acompanhavam. Gestos sensuais, acenos de
cabeça e piscadelas ilustravam versos perfeitamente inocentes, e vice-versa. Contudo, todas
as mulheres sabiam quais as palavras e gestos que deviam ser ditos ou executados, pois mais
de uma vez corrigiram as cantoras e atrizes exclamando: "Não, o braço deve ficar deste modo"
ou "Não deve sorrir nesta parte, é no verso seguinte".
Um ritual. Um rito. E havia um entusiasmo especial, uma energia nova nessa noite,
graças à presença de Al.Ith, e ela percebeu que todas a observavam, aberta ou discretamente,
segundo a natureza de cada uma, para ver se ela estava gostando — e com tanta esperança!
Muito depois da meia-noite, quando as montanhas começavam a empalidecer, Dabeeb, a
um sinal de uma das mulheres, que agia como coordenadora do espetáculo, caminhou para o
centro da sala e esperou que fizessem silêncio. Ninguém havia cantado ou dançado sozinha.
O silêncio era denso e atento.
Ela cantou:
E todas:
***