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Vivendo Limpo

Tradução não oficial e não autorizada

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Índice

- Prefácio ................................................................................................................ 7

- Capítulo 1 – Vivendo limpo ....................................................................................10

NA nos oferece um caminho, um processo e uma maneira de viver. O trabalho


e as recompensas da recuperação são infinitos. Continuamos a crescer e a
aprender não importa onde nos encontremos na jornada e mais nos é revelado
à medida que seguimos adiante. Encontrar a centelha que faz da nossa
recuperação uma jornada contínua, entusiasmante e recompensadora requer
uma mudança ativa em nossas ideias e atitudes. Para muitos de nós, isso significa
uma mudança do desespero à paixão.

Chaves para a Liberdade ..........................................................................................11


Dores Crescentes......................................................................................................14

Uma visão de esperança...........................................................................................17


Do desespero à paixão..............................................................................................19
Por que permanecemos............................................................................................20

- Capítulo 2 – Os laços que nos unem.........................................................................23

Em recuperação, somos livres para explorar e considerar quem nós somos e


quem queremos nos tornar. A mudança que vivenciamos nesse processo pode perturbar
bem nossas identidades e nossas relações, mas por meio dessa luta descobrimos que
nossa aceitação, amor e fé continuam crescendo. Embora nossos objetivos e nossos
métodos possam variar, o que temos em comum são as ferramentas e princípios que
nos permitem ser quem somos. Juntos, alcançamos a liberdade.

Conectando-nos conosco..........................................................................................23
Conectando-nos com um Poder Superior..................................................................26
Conectando-nos com o mundo.................................................................................29
Conectando-nos com os outros ................................................................................32

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Capítulo 3 – Um caminho espiritual...........................................................................36

A espiritualidade que vivenciamos em NA é prática e simples: ela nos permite


viver em harmonia com o nosso mundo e experimentar empatia e compaixão pelos
outros. Os passos são um caminho para o crescimento espiritual; despertamos para
nossa espiritualidade. À medida que desenvolvemos uma relação com um Poder
Superior, qualquer que seja a forma como o compreendamos, entendemos que nossa
espiritualidade não é parte de nossas vidas; é um modo de vida que nos conduz ao
entendimento do nosso propósito e da liberdade em busca da qual sempre estivemos.

Despertando para a nossa espiritualidade.................................................................36


Um programa espiritual, não religioso......................................................................38
Uma jornada espiritual.............................................................................................41
A espiritualidade como prática ................................................................................44
Percorrendo o caminho............................................................................................46
Espiritualidade em ação............................................................................................49

Contato consciente...................................................................................................52
Ação criativa do espírito...........................................................................................55

Capítulo 4 – O eu físico..............................................................................................59

Aprender a viver em nossos corpos não é fácil. Não fomos legais com eles e
frequentemente estes expõem as cicatrizes dolorosas de nossa adicção. Fazer as pazes
com o nosso eu físico é necessário para a nossa sobrevivência – mas também é parte do
nosso processo de reparação, um ato de autoaceitação, e uma maneira de vivenciar
liberdade, cura e alegria. Este capítulo aborda a maneira como nos tratamos em
recuperação, aprendendo a encontrar prazer em estarmos vivos e conscientes
fisicamente – bem como encarar nosso processo de envelhecimento, nossa
vulnerabilidade e nossa mortalidade.

Um relacionamento..................................................................................................60
Nos rendendo...........................................................................................................61
Sexo.........................................................................................................................64

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Aventura e busca de emoção....................................................................................66
Bem-estar e saúde....................................................................................................68

Doença.....................................................................................................................70
Deficiências..............................................................................................................74
Crise emocional e espiritual......................................................................................76
Envelhecimento.......................................................................................................78
Sobre Morte, Morrer e Viver com Dor.......................................................................79
Coragem..................................................................................................................82

Capítulo 5 – Relações Humanas.................................................................................84

Nossa recuperação está baseada em relações e a maioria de nós se debate em


meio a isso de uma forma ou de outra. Nossas relações uns com os outros em sala, com
as nossas famílias e as famílias que construímos, são lugares em que aprendemos a
praticar os princípios, incluindo honestidade, empatia e intimidade. Amor é uma
presença curativa e vivemos o seu poder quando ajudamos o outro.

Irmandade...............................................................................................................86
Amizade...................................................................................................................89

Construindo a ponte entre dois mundos: Relações fora de NA..................................93


Família.....................................................................................................................94

Paternidade.............................................................................................................97
Reparações e reconciliações...................................................................................101
Relações amorosas.................................................................................................103
O que queremos.....................................................................................................104
O que pedimos.......................................................................................................107
Coragem para confiar.............................................................................................109
Contato consciente.................................................................................................113

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Capítulo 6 – Uma nova maneira de viver..................................................................115

À medida que acumulamos algum tempo em recuperação, também ganhamos


algum tempo no mundo. Aceitação social não é igual à recuperação, certamente, mas
isso não significa que ambas sejam mutuamente excludentes também. Para muitos de
nós, trata-se de algo que devemos aprender na caminhada. Nossos hábitos de trabalho
e nossas crenças sobre o trabalho, educação, dinheiro e estabilidade mudam e crescem
às vezes de maneiras surpreendentes à medida que ficamos por perto. Aprender a lidar
com o sucesso e o fracasso, com o risco e a responsabilidade, com a estabilidade e a
mudança, tudo é parte do processo que alguns de nós denominam “crescimento em
recuperação”.

Indo além da “aceitação social”...............................................................................116


Encontrando nosso lugar no mundo........................................................................118
Estabilidade...........................................................................................................121

Liberando o caminho – abandonando o controle.....................................................123


Um salto para a fé...................................................................................................127
Compromisso.........................................................................................................129
Educação................................................................................................................130
Dinheiro.................................................................................................................132
Trabalho.................................................................................................................135
Anonimato.............................................................................................................139

O dom da esperança...............................................................................................141

Capítulo 7 – A jornada continua...............................................................................143

Desde a primeira vez que encontramos esperança, estamos em um processo


constante de despertar espiritual que pode durar para o resto de nossas vidas se
estivermos disponíveis. Continuar a sentir que nossa recuperação permanece viva nos
exige que continuemos crescendo. Isolamento e complacência nos impedem de
vivenciar a liberdade de maneiras que podemos não nos dar conta até percebermos que
estamos presos. Generosidade espiritual é o antídoto para a solidão e a alienação. Estar
a serviço nos liberta para vivermos nossas vidas e nos abre ao espírito de amor que nos
cerca. Vicenciamos esperança incondicional e entendemos que não há limites para o

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tanto que podemos ser melhores. Não importa aonde tenhamos chegado, a jornada
continua.

Despertares espirituais...........................................................................................143

Vivendo nossos princípios.......................................................................................145


A rendição é para a vida toda..................................................................................148
Complacência.........................................................................................................159
Nos separando.......................................................................................................151
Andando com a verdade.........................................................................................154
No serviço..............................................................................................................157
Princípios, prática e perspectiva..............................................................................161
Amor......................................................................................................................164

Os 12 Passos de Narcóticos Anônimos.....................................................................168

As 12 Tradições de Narcóticos Anônimos.................................................................169

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Prefácio

Nosso texto básico assegura que mais nos será revelado e nossa experiência o
comprova. Muito se tem desvendado ao largo dos anos, desde que essas palavras foram
escritas, e mais continua a ser em todos os dias que vivemos limpos e praticamos os
princípios da recuperação. Crescemos como indivíduos e amadurecemos como
irmandade. À medida que aprendemos com base em nossa experiência, passamo-la
adiante. Isso implica que, a cada geração de recém-chegados, mais recursos estão
disponíveis. Se isso nos fortalece ou enfraquece, depende inteiramente da capacidade
para compreender nosso propósito primordial, bem como para praticar os princípios do
“compartilhar, cuidar e servir”.
Nosso maior tesouro está nos recursos construídos a partir da profundidade que decorre
do conhecimento sobre o processo de recuperação. Compartilhamos essa preciosidade
nas reuniões, celebrações, na pausa para o café e em nossa literatura. Mais uma vez,
oferecemos sob a forma escrita, tanto quanto podemos, a nossa força, experiência e
esperança coletivas. Este livro, escrito por adictos para adictos, é um retrato da nossa
irmandade: adictos em recuperação que têm se ajudado a encarar a vida à sua maneira,
sem o uso de drogas, por dias, meses, anos e décadas consecutivos. Pretende ser um
presente aos recém-chegados tanto quanto pretende reacender a chama daqueles que
estão limpos há mais tempo. Possivelmente não contém tudo que os membros sabem
ou em que acreditam, mas reflete o que tem sido descoberto e compartilhado desde
1982 quando nosso texto básico foi aprovado.
O primeiro rascunho de um livro intitulado “Vivendo Limpo” foi criado em 1983, mas a
história desse projeto remonta a um tempo ainda mais distante. Enquanto se escrevia o
Texto Básico – Narcóticos Anônimos – alguns de nossos membros já tinham em mente
que não se tratava da última palavra sobre como viver o programa de Narcóticos
Anônimos. As versões criadas em 1983 e 1990 continham muitos conselhos concretos,
sugestões e regras sobre como ficar e permanecer limpo. Mas a maioria de nós não é
muito boa em seguir regras. Nossa experiência, às vezes, é bem diferente do que
pensamos que seja a verdade sobre esse processo. Descobrimos que o que temos em
comum não são as ações específicas que empreendemos, mas os princípios que
tentamos aplicar em nossas vidas. Nos anos subsequentes, gerações de adictos ficariam
e permaneceriam limpas usando o texto básico como guia. Essa experiência nos tem
dado uma perspectiva sobre os princípios da recuperação como nenhuma outra.
Sabíamos desde o início que estávamos descrevendo um problema que não guardava
relação com nenhuma substância simples, mas ao contrário, com uma doença que, se
não fosse tratada, matar-nos-ia. Focar em um sintoma ou substância é demasiado
superficial no nosso caso. Assim como essa doença afeta todos os aspectos das nossas
vidas, a recuperação também o faz: nossas relações com familiares, trabalho,
espiritualidade – até nossos corpos – são profundamente moldados, não só pelo
ambiente de onde viemos, mas também pelas maneiras como a tratamos. Assim como

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as recompensas estão além dos nossos sonhos mais insanos, sabemos que o impacto da
recuperação em nossas vidas e sobre aqueles que nos cercam está além dos limites
imagináveis. Podemos não saber nunca o bem que fazemos somente por estarmos
limpos e vivermos uma vida baseada em princípios da melhor maneira que
conseguirmos. Nossa gratidão por uma vida nova nos motiva a seguir dando, vivendo e
amando mais.
Somos chamados a contar nossa história em NA não apenas uma, mas repetidas vezes.
Não vemos nossa inteireza em um quinto passo ou em uma partilha, e não podemos ver
a completude da nossa recuperação de uma única vez também. Nós a observamos em
camadas e nossa visão de nós mesmos se transforma toda vez que vivenciamos uma
mudança de perspectiva ou uma alteração em nossa percepção. Começamos a ver os
pontos que permeiam nossa experiência muito embora possamos sentir que abrigamos
diferentes pessoas em nós no curso da vida. Enxergamos os padrões que nos ajudam e
também os que nos mantêm paralisados, bem como encontramos esperança em
momentos de dificuldade.
Recuperação é um processo longo e de contato pleno com a vida. Quanto mais a sério
o encararmos, mais claramente poderemos identificar o crescimento disponível que a
caminhada nos oferece, não importa a etapa em que nos encontremos. O aprendizado
nunca termina. A prática do programa de NA não torna nossas vidas mais fáceis. Ela
torna nossas vidas mais ricas, melhores e mais interessantes. Começamos por ficarmos
limpos e a partir desse ponto o programa nos oferece as ferramentas de que precisamos
para encontrar as respostas que nos orientarão na trilha da recuperação. Momentos
diferentes se apresentam a nós, nos ensinam e nos ajudam a avançar. Esperamos que a
experiência aqui compartilhada sirva para encorajar nossos membros para além do que
já se sabe sobre esse processo.
Este livro não é um catálogo de conselhos, mas antes uma coleção de experiências de
força, fé e esperança sobre como experimentamos o modo de viver limpos no dia a dia,
em nossas relações e em nosso serviço na irmandade. Nem tudo nas páginas que se
seguem será igualmente importante para todos. Cada um de nós tem diferentes
desafios na jornada. Entretanto, esperamos que haja aqui um segredo para cada um dos
membros da nossa irmandade.
O que se apresentará neste livro é a experiência partilhada de muitos adictos de todo o
mundo. Centenas de membros compartilharam seus insights sobre como viver limpo em
workshops, cartas, conversas, revistas eletrônicas e gravações de áudio. O livro ganhou
forma em um processo contínuo à medida que conteúdo e estrutura se adaptavam aos
insumos recolhidos. O processo foi conduzido de portas abertas e nos maravilhou ver
aonde chegamos. Aprendemos uns com os outros e a soma resultou bem maior que
suas partes. A característica comum da nossa experiência nos revela que NA é a fonte
da nossa força, independente do nosso tempo limpo, dos passos que trabalhamos e de
por onde nos tenha conduzido a vida. Compartilhar nossa experiência nos dá sentido e
valor. E quanto mais profundas as relações que construirmos em NA – com os outros,
conosco e com o poder superior –, mais valor agregaremos à nossa recuperação.

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Ficamos conectados ao programa e à irmandade no decorrer dos anos porque
necessitamos. Se um dia chegamos, é verdade, a cogitar como NA poderia fazer parte
de nossas vidas, não é menos verdade que agora muitos de nós não conseguem
conceber suas vidas sem a irmandade. Quando usamos as ferramentas que o programa
nos disponibiliza, nossa recuperação continua a nos entusiasmar não importa o que
enfrentemos ou o nosso tempo limpos.
A coisa mais importante sobre viver limpo é que estamos vivos justamente graças a isso,
e para as pessoas com a doença da adicção isso representa nada menos que um milagre.
Recuperamo-nos para viver uma vida plena e recompensadora. Mas essa experiência
nos presenteia com desafios nunca esperados. Viver além dos nossos sonhos mais
insanos significa estarmos em território desconhecido. Os inúmeros adictos que
contribuíram com a elaboração deste livro revelaram que o milagre de viver limpo não
é o último a se experimentar, ou o último de que se precisa. Temos aprendido que
podemos sobreviver a tudo e permanecermos limpos. Nunca é tarde para recomeçar,
reconectar-se com a irmandade, trabalhar os passos, viver um despertar espiritual e
encontrar uma nova maneira de levar a vida. Contanto que estejamos dispostos a ficar
limpos e continuar voltando, nossa recuperação seguirá se desdobrando de maneiras
inimagináveis. Vivemos limpos e a jornada continua a cada dia.

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Capítulo 1- Vivendo limpo

Viver limpo é uma jornada para a vida, e o programa de NA nos capacita para
construirmos uma caminhada com esperança. Não importa o estágio do trajeto em que
nos encontremos, acreditamos que a caminhada, assim como nós, pode tornar-se
sempre melhor. Praticamos uma vida orientada por princípios e encontramos uma nova
maneira de viver. Tentamos novas coisas e descobrimos que algumas delas nos fazem
mais bem do que outras. Ao experimentarmos a vida limpos, com seus altos e baixos,
milagres e lutas, becos sem saída e novas portas que se abrem, observamos o mundo
com mais clareza e entendemos melhor nosso lugar nele.
O programa de Narcóticos Anônimos é a saída que encontramos para escapar do
desespero e da dor em que se havia transformado nossas vidas. Mas isso não é tudo que
NA representa: ele é um caminho, um processo e uma maneira de viver. Muitos de nós
chegam com quase nenhuma esperança de que possam fazer a dor cessar. No começo,
nossa disponibilidade em conhecer o programa decorre do nosso sofrimento e medo.
Viver o programa nos transforma de uma maneira inesperada e também de um modo
nunca imaginado. NA nos concede a habilidade de converter nosso desespero em paixão
por viver uma vida plena, baseada em crescimento espiritual. Sentimos alívio quase
imediato desde o começo da recuperação e nossas primeiras experiências de alegria são
como enxergar cores vivas pela primeira vez. Nossa mente se abre e nosso espírito
começa a se libertar. Ainda que tal experiência se dê por momentos ainda fugazes, essa
alegria nos guia ao longo dos nossos dias e noites mais difíceis.
Não é o que pensamos sobre recuperação que faz a diferença; é o que fazemos. Viver
limpo é um processo espiritual que nos ensina que, se o mundo é maior do que
imaginávamos, por um lado, não é tão inalcançável quanto temíamos, por outro. Nossas
crenças equivocadas sobre as pessoas que não usavam drogas moldaram nossas
opiniões sobre o que poderíamos ser quando parássemos de usar. Quando ficaram
limpos, muitos de nós se preocuparam com o tédio e a pequenez em que poderia se
tornar suas vidas. O que encontramos realmente estava além de nossos sonhos mais
loucos. Agora temos a oportunidade e a habilidade de seguirmos em busca deles. Talvez
ainda mais importante, nossas conexões com as pessoas se tornaram enriquecedoras e
gratificantes para nós. A amizade próxima, construída com outros companheiros que
compartilham a jornada da recuperação, pode ser um vínculo mais profundo que o que
temos com nossa família. Expomos e presenteamos os outros com nossa intimidade, e
esse processo, ao longo do tempo, cresce até se transformar em uma afeição e
entendimento profundos do outro e de nós mesmos.
Compromisso com a recuperação é parte essencial dessa caminhada. Mantê-la como
prioridade pode, no entanto, significar coisas diferentes para nós à medida que o tempo
transcorre. Fato é que precisamos manter a conexão com NA e, não menos importante,
assumirmos a responsabilidade por nossas vidas. Muitas coisas competem pela nossa
atenção e, como adictos, temos a tendência a caminhar pelos extremos: tudo ou nada,

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certo ou errado. Encontrar o equilíbrio é, portanto, uma tarefa permanente. Frequentar
reuniões regularmente não significa estar presente em todas as noites da semana,
embora as reuniões sejam espaços muito importantes para o nosso bem-estar, assim
como para a transmissão da mensagem. Cuidar desse barco que nos salvou a vida exige
contínua atenção e se torna mais fácil quando nos desapegamos da ideia segundo a qual
as coisas têm que ser difíceis. Depois de muitos anos de recuperação, um companheiro
finalmente pode responder à questão: “é realmente possível que a vida seja tão
simples?”, com um simples “sim, é possível”.
Os princípios que praticamos em NA ganham significado ao longo de nossas vidas. Eles
nos oferecem uma maneira de abandonar o uso de drogas e nos libertar para sermos
nós mesmos. Trabalhar os passos, estudar as tradições e servir, dentro e fora de NA, nos
conduz à descoberta de quem somos e daquilo em que acreditamos. Levar a mensagem
nos torna conscientes de nossos dons e limitações e também nos guia rumo à mudança.
Podemos avaliar nossa caminhada não em anos ou pelas coisas que ganhamos ou
perdemos, mas pelo grau de paz que alcançamos em nossas vidas, assim como com os
outros. Crescimento espiritual é o verdadeiro sucesso. Nossa recuperação se desdobra
e, então, podemos seguir nos apaziguando com sentimentos que nunca havíamos
admitido. O princípio da mente aberta nos habilita a investigar-nos e enxergar-nos com
clareza cada vez maior à medida que nos entregamos ao processo infinito da rendição.
Seguimos fazendo nosso inventário e aceitando o convite que a mudança nos faz.
A mensagem que levamos possui três pontos fundamentais: qualquer adicto pode parar
de usar, perder o desejo e encontrar uma nova maneira de viver. Falamos muito sobre
os dois primeiros, pois parar é algo emergencial e abandonar a obsessão do uso é
essencial para apreciar a vida. Mas o trabalho não termina aí. Encontrar uma nova
maneira de viver não é algo que se faz imediatamente. Alguns de nós vivem um turbilhão
na busca por uma vida que faça sentido. Seguimos levando a mensagem e
compartilhando nossa experiência para o auxílio dos outros. Quanto mais experiência
angariamos, mais rica se torna nossa mensagem.

Chaves para a Liberdade

À medida que praticamos os princípios em todas as áreas, eles ganham aderência em


nossa vida e começamos a senti-los com mais naturalidade. Por exemplo, no começo
podemos usar nossa consciência para praticar o princípio da honestidade. Com a
continuidade, percebemos a desonestidade com desconforto, até mesmo com agonia;
e gradualmente notamos que a honestidade se torna mais normal para nós. Tornamo-
nos simplesmente honestos, e começamos a apreciar essa sensação. Alguns dizem que
é como percebem a presença do Poder Superior. Quando nossos defeitos são
removidos, podemos não sentir tal conquista num primeiro momento até percebermos
o retorno de algum padrão antigo e, então sim, constatar seu desconforto e sua

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incompatibilidade com nossa nova vida. Ligamos para o nosso padrinho ou madrinha,
desesperados, dizendo-lhe “fiz de novo”, ou porque estamos pensando em trabalhar
esse defeito, para, de repente, perceber quanto tempo já transcorreu desde a última
vez em que havíamos pensado nesse comportamento. Aprender a sobreviver aos nossos
impulsos sem ceder à nossa natureza inferior representa uma nova liberdade. Com o
tempo, as máscaras que usamos e o desejo de sucumbir ao nosso lado sombrio
começam a desaparecer.
As prisões que criamos para nós mesmos não nos cabem mais. Tornamo-nos livres para
explorar e descobrir aquilo em que somos bons. Somos livres para participar, criar,
cuidar e dividir, nos surpreender, assumir riscos, sermos vulneráveis e permanecermos
de pé. Encontramos nossos valores, começamos a trabalhá-los e decidimos com base na
orientação pela qual estes nos conduzem. Atravessamos o medo e despertamos para os
milagres que estão acontecendo ao nosso redor. Tornamo-nos então livres para sermos
quem somos e vivermos com base em nossas escolhas.
De posse de uma profunda gratidão, podemos olhar para trás e ver que nossa
caminhada até o momento presente não foi pequena, tampouco sem percalços. O que
nos pareceram as piores decisões, em algum momento da recuperação, abriram as
portas para algumas das nossas maiores oportunidades. Somos capazes de superar e
melhorar algumas de nossas decisões. O que nos pareceu correto em determinado
ponto da caminhada pode não nos servir mais na continuação do caminho. Presentes
nos chegam, às vezes, em pacotes estranhos que nem sempre reconhecemos à primeira
vista. Nada que aconteça é inteiramente bom ou ruim. Não fingimos não haver erros em
recuperação, mas, às vezes, tais tropeços nos guiam em direção a novas descobertas.
Recuperação não é algo padronizado como um produto em série gerado a partir de uma
linha fabril. Não vivenciamos o processo, cada qual, da mesma maneira, mas há alguns
marcos que nos são comuns. Avançamos por fases, estágios, becos, escadarias. Cada um
de nós passa por períodos de intenso crescimento e momentos em que a mudança se
torna mais sútil. Adotar uma nova maneira de viver pode nos deixar confusos e perdidos,
às vezes, mesmo quando já estamos, há muito, limpos. Conceder espaço para o
crescimento uns dos outros, cada qual em seu ritmo, não é fácil, especialmente quando
precisamos nos cuidar. Por isso a auto aceitação e o auto respeito são, ao mesmo tempo,
meio e fim dessa caminhada.
Tempo não significa experiência. Só por estarmos há bastante tempo na programação
não significa que saibamos tudo de que necessitamos. Não nos tornamos graduados na
programação simplesmente a partir dos passos que nos fizeram limpos e livres da
adicção. Os desdobramentos das nossas vidas são um processo permanente.
Começamos em lugares diferentes e crescemos a passos diferentes na jornada. O tempo
representa uma oportunidade para o crescimento, mas é necessário aceitar o desafio e
abrir-se às lições que se apresentam. Praticar os princípios da honestidade, mente
aberta e boa vontade mantém-nos em constante aprendizado, além de humildes e
gratos. A diferença entre humildade e humilhação pode estar no nível de aceitação que
temos em relação à informação que nos chega por meio do programa. Quando ouvimos

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com uma mente aberta, qualquer um pode nos transmitir a mensagem de que tanto
precisamos.
Narcóticos Anônimos não se baseia em princípios sem importância, muito embora os
aprendamos em ordem e em momentos que se adaptem às nossas necessidades. Não
podemos ser ingênuos e esperar descobrir o que estamos buscando se trabalhamos
apenas alguns e não todos os passos – ou se ignoramos o aprendizado das tradições, ou
ainda se vivemos em conflito com nossos valores. Princípios espirituais não dependem
de tempo ou circunstâncias. Aprendemos por observação e experiência. Há uma
diferença fundamental entre saber que estamos tão doentes a ponto de não sentir
qualquer perspectiva de melhora e saber que, em recuperação, o processo de
crescimento é gradual e permanente. A exploração da jornada dura a vida inteira.
Começamos e recomeçamos sempre. A permanência no programa torna mais fácil
agirmos em prol dos nossos interesses mais genuínos mesmo quando nos sentimos
resistentes. Um membro partilhou, “ouço com frequência recém-chegados dizerem que
não conseguem se imaginar frequentando as reuniões ao longo de uma vida. Eu tinha a
mesma reserva, mas hoje não consigo imaginar minha vida sem NA.” Aprendemos a
fazer o que é necessário para assegurarmos o que conquistamos, mas também
alcançamos uma liberdade para novas explorações assentadas no alicerce sólido dos
princípios espirituais que aprendemos a praticar. Sabemos das recompensas e revezes
que a prática e a omissão da programação nos trazem.
Novas informações são difíceis de serem assimiladas por nós quando pensamos que nos
chegaram de maneira indevida. Quer seja a informação nova ou o transmissor, alguém
com quem alimentamos alguma resistência, podemos desconsiderá-la por não
gostarmos da embalagem. Um membro partilhou, “ é moleza fazer o que meu padrinho
me pede para fazer, mas quando as palavras que podem salvar a minha vida me são
ditas por alguém com quem não me importo, eu facilmente as desconsidero.”
Enriquecemos nosso repertório de recuperação quando nos dispomos a ser
surpreendidos tanto pela mensagem quanto pelo mensageiro. Se isso nos leva a
reavaliar nosso sistema de crenças, tanto melhor – assim podemos ver nossa resistência
inicial como uma reserva à nossa boa vontade. Tentar novas abordagens na nossa
recuperação é apenas uma das formas por meio das quais evitamos ficar paralisados ou
procrastinar nossa caminhada. Não importa quanto tempo estejamos limpos, podemos
ir a reuniões e ouvir novas canções. “É como se uma mensagem me visitasse os ouvidos”,
compartilhou um companheiro. “De repente, eu podia ouvir aquilo que não sabia que
estava faltando para mim. ”
As tradições nos ensinam que em NA seus membros não dão aulas. Disso decorre que o
recém-chegado pode salvar a vida de um membro com mais tempo limpo assim como o
oposto. Ficamos abertos a essa realidade e, como resultado, muitas das limitações que
havíamos estabelecido para nós mesmos desaparecem. Ensinamos pelo exemplo.
Mesmo quando estamos ensinando o que não se deve fazer, somos portadores de uma
mensagem. Quando compartilhamos nossa experiência, esta ganha valor e significado.
Nem sempre funciona, pois tendemos a aprender as coisas da pior maneira. Mas quando

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um membro, há dois anos limpo, partilha que a experiência de um membro com dez
anos de programação, por exemplo, o afastou de cometer os mesmos erros, sabemos
que estamos nos tornando melhores como pessoa e como irmandade.
A sabedoria é construída com base na experiência recolhida nos fatos passados para
lidar com eventos novos. Quando pensamos em nossa vida atual em contraste com a
adicção ativa, é importante lembrar-nos de que “não é onde estivemos que importa,
mas para onde estamos indo”. Por onde temos andado no processo de recuperação
constitui as bases promotoras da nossa sabedoria. Aprendemos com nossa experiência
e passamos isso aos outros. Nossa sabedoria cresce na mesma proporção em que nos
observamos com honestidade, sem julgamentos ou conclusões precipitadas.

Dores Crescentes

Cedo ou tarde, vivemos uma oportunidade específica ou uma catástrofe sobre a qual
não ouvimos ninguém falar nada nas reuniões. Às vezes algo como um término de uma
relação, a perda de um emprego, ou mudanças em nossas famílias que acionam uma
enxurrada de sentimentos. Mágoa, dificuldades ou traição podem nos fazer sentir
terrivelmente sozinhos. Ocasionalmente, experienciamos mudanças físicas que nos
acarretam uma carga emocional, gerando ansiedade, depressão e medo profundos.
Há momentos também em que nos encontramos em crise mesmo quando as
circunstâncias de nossas vidas parecem realmente boas. Mesmo o entusiasmo com a
vivência dos nossos sonhos – uma nova carreira, mudar-se para um lugar distante,
construir uma família – pode nos fazer sentir inadequados. Às vezes um evento externo
aciona o gatilho. Em outros momentos, uma erupção de emoções parece jorrar não se
sabe de onde. Parece que nos sentimos acuados mesmo quando nada está acontecendo
na verdade. Uma vez que passamos por isso limpos, sabemos que não durará para
sempre. Mas isso também não significa que enxergamos a saída. Passamos por isso
focando em uma análise e entendimento profundos e também com fé na nossa
recuperação. Por meio do trabalho árduo e da graça, se continuarmos voltando, nos
libertamos.
Finalmente é chegada a hora de uma crise emocional na nossa recuperação. Nos
indagamos se a recuperação vai durar ou se o que alcançamos foi apenas uma breve
prorrogação da nossa insanidade. Um membro partilhou “minha vida parece estável
para quem está de fora, mas por dentro está uma zona. Eu estou limpo, mas sofrido,
reativo e com medo”. Nos encontramos nesses lugares após anos limpos. Lidamos com
nossa adicção, mas, muitas vezes, não visitamos os lugares sombrios que tanto
precisamos conhecer dentro de nós. Emoções há muito soterradas brotam na superfície
e podemos ter ou não as ferramentas para lidar com elas. “À medida que descubro
coisas em mim”, partilhou um membro, “minhas emoções me deixam com muita raiva”.
Não há finais amargos em recuperação, mas, às vezes, é o que parece termos. A opção

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pela recuperação sempre nos dá uma nova chance na vida. Às vezes precisamos aceitar
o convite mais uma vez.
Os limiares que encontramos na recuperação podem ser assustadores. Passamos por
momentos difíceis. Quando sentimos dor, é bem difícil oferecer ajuda. É simplesmente
mais fácil observar o que nos difere. Mas mesmo nesses momentos de escuridão, o
processo de recuperação está em andamento. Quando os membros de NA dizem “não
desista cinco minutos antes de o milagre acontecer”, já não estamos mais falando do
primeiro que vivemos e testemunhamos. Nossas vidas estão repletas de momentos em
que nos deparamos com a difícil decisão de crescer ou desistir. Muitos de nós partem
não quando as coisas estão terrivelmente árduas, mas quando é necessário avançar
sobre mais um obstáculo que nos separa de mais um ganho espiritual. Perdemos a
direção pouco antes de o milagre acontecer e deixamos de testemunhar seus
desdobramentos – por vezes e vezes.
A fé que nos guia pela construção de uma vida bem-sucedida pode não ser suficiente
para sustentar o dia a dia. Um novo tipo de rendição é necessário se quisermos ficar
limpos e seguir crescendo. O crescimento espiritual pode ser desconcertante,
assustador e bem solitário. Alguns de nós desistem nesse ponto crucial do processo,
quando não há mais nada em que pôr a culpa, a não ser em nós mesmos. O egoísmo e
o egocentrismo levam a uma morte cheia de dor. Mas podemos atravessar essa etapa
com a ajuda dos outros que venceram esse momento e desfrutar das recompensas que
nos esperam na outra margem do rio. O que nos foi dito quando éramos recém-
chegados continua valendo: continua voltando, independentemente, de qualquer coisa,
funciona! Muitos dos desafios que enfrentamos têm sintomas concretos, mas na
essência são espirituais. É difícil identificar uma crise espiritual: em geral, ela está
disfarçada de uma crise em nossos relacionamentos, finanças, carreiras ou família.
Quando vivenciamos uma crise, podemos tentar todos os tipos de fuga e desculpas
antes de recorrer aos passos. Podemos ser intolerantes, raivosos, defensivos, vingativos,
podemos nos sentir culpados, ressentidos, testando assim a paciência e tolerância dos
que estão conosco. A única saída é encontrar coragem para atravessar esse mar de
emoções. Precisamos arregaçar as mangas e trabalhar com empenho. Essas batalhas
costumam nos fazer avançar para uma nova fase da recuperação. Sairemos mais fortes
e saudáveis da experiência vivida se estivermos dispostos a encarar o trabalho que
precisa ser feito.
Quando iniciamos nossa recuperação nos disseram para continuar voltando, pois cedo
ou tarde ouviríamos a nossa história. Mas é um erro pensar que nossa história é a única
que precisamos ouvir. Nossa história de recuperação não é menos dramática e há
momentos em que precisamos ir a reuniões para ouvi-la tantas vezes quanto necessário.
Aprendemos quando escutamos tanto com o coração quanto com os ouvidos. Às vezes,
é preciso buscá-la em outras reuniões, perguntar e partilhar sobre o que está
acontecendo. Encontramos pessoas que passaram limpas pelo que estamos passando.
A conversa com outros companheiros muito nos ajuda a atravessar tais momentos e
precisamos dividir isso com os outros à medida que superamos essas fases.

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A esperança é real. Quando escutamos os outros partilharem como atravessaram
momentos de dor, ganhamos uma visão mais ampla da vida. Aprendemos a seguir
adiante com nossas vidas com as ferramentas decorrentes dessas experiências. Quando
mudamos nossas atitudes e perspectivas, podemos encontrar um novo senso de
compaixão e gratidão. Talvez a maior lição de todas seja a empatia. Entretanto, empatia
não é um sentimento pontual; é um modo de vida. Quando nos relacionamos com os
outros e observamos seu crescimento, começamos a acreditar na possibilidade de nossa
própria recuperação. Ouvir a partilha de outros adictos sem julgamentos é pressuposto
essencial para ouvirmos nosso próprio coração sem julgamento ou punição. Quando
temos compaixão pelos outros, nos permitimos ser e estar no mundo, e isso nos torna
úteis para a sua construção.
Nossa habilidade de sentir alegria e gratidão pode ser um resultado direto do sofrimento
que suportamos. Ficar limpo não garante que nada ruim possa nos acontecer, mas os
princípios que aprendemos a praticar com os passos nos ensinam a viver a vida como
ela é, dando-nos coragem, enchendo-nos de força e fé para continuarmos limpos não
importa o que aconteça. Somos capazes de viver vidas alegres e com propósito, não
interessa aquilo por que tenhamos passado. Fé é o que nos mantém fazendo o básico,
mesmo quando não vemos razão para tal.
Um dos benefícios de nos ajudarmos é perceber que nossas experiências mais
dolorosas, de fato, ajudam os outros. Quando dizemos “eu passei por isso limpo”
percebemos que atravessamos algo que temíamos e chegamos ao outro lado da
margem. Há grande satisfação não só em olhar para trás, mas também voltar atrás e
ajudar alguém a atravessar seu martírio.
Passar por momentos difíceis fortalece nossa fé. Quando lidamos com assuntos
complexos, podemos viver nossas maiores experiências de crescimento. Um de nossos
membros comentou “há turistas espirituais e buscadores espirituais; um busca com
verdade, de coração, e o outro está apenas testando Deus.” Ganhamos mais certeza da
relação com o Poder Superior à medida que seguimos em frente. Na proporção em que
amadurecemos na recuperação, aprendemos a nos sentir confortáveis com questões
difíceis em vez de apenas nos sentirmos bem em pensar que as resolvemos. Quem sabe
tudo tem grandes dificuldades em aprender. Com frequência, quando dizemos que
estamos buscando alguma solução, o que buscamos, na verdade, é ter controle. Por
muitas vezes buscamos respostas, mas, na verdade, não há muito o que se buscar, nem
precisamos dessas respostas. Os passos nos preparam para sermos honestos conosco e
com os outros. Começamos a nos tornar responsáveis por nossas ações. Identificar o
que nos motiva a agir nos ajuda a encontrar alívio sobre as manifestações da nossa
doença. Também nos possibilita enxergar com mais clareza. Começamos a canalizar
nossa energia para nos mover em direção ao que queremos em vez de nos afastarmos
do que tememos.
Toda vez que nos desapegamos de algo, há um grau de tristeza, mas uma possibilidade
se abre. Toda vez que passamos por esse processo, encontramos liberdade em nós. Mas
pode se levar anos para se livrar do que é preciso para nos sentirmos livres. Equivocados,

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nos apegamos à tentativa de controlar todas as variáveis na nossa vida por vigilância em
nossa recuperação. O desapego apresenta diferentes significados com o avanço da
nossa caminhada.
Fazer as pazes com as perdas é uma maneira de praticar a aceitação. Quando passamos
por perdas e, ainda assim, nos sentimos inteiros, algo muda. O sentimento de que
precisamos lutar pela nossa sobrevivência constantemente começa se dissolver.
Podemos aceitar que o outro esteja certo ou abandonar algo sem nos perder ou a nossa
própria dignidade. Frequentemente uma perda com a qual estamos lutando nos serve
para aliviar danos que nos foram causados no passado e que ainda nos assombram.
Aceitação não é algo como “tudo ou nada” e não acontece do dia para noite. Como
tantas outras lições em recuperação, há certamente maneiras menos dolorosas de se
aprender, mas não é sempre que as alcançamos ou as escolhemos.
Quanto mais nos desvendamos, mais somos capazes de trabalhar nossa visão de
esperança. Ao mesmo tempo, nos lembramos de que nossa visão de nós mesmos é
apenas um olhar fugaz da vontade do Poder Superior para nós. Enquanto buscamos a
realização de nossos sonhos, podemos nos encontrar em lugares nunca imaginados.
Tudo é possível, mas isso implica assumir riscos e, às vezes, nossa experiência falha.
Mesmo quando despencamos e caímos, nos levantamos e seguimos em frente. Isso faz
parte da jornada também. Passamos a ter menos medo da verdade. Mas não chegamos
a isso procrastinando ou nos paralisando, esperando pela recuperação. Aprendemos,
crescemos, doamos, criamos – e continuamos voltando.

Uma visão de esperança

Aprender sobre aceitação, amor e compaixão nos ajuda a aceitar-nos sem condições.
Enquanto nossa fé se aprofunda, nosso entendimento do que significa agir de boa-fé
também muda. Com efeito, não usamos mais nossa doença como álibi para
comportamentos destrutivos. Nosso comportamento se enriquece constantemente
pelo que aprendemos. Fazemos as pazes conosco – com tudo que ganhamos, perdemos,
aprendemos e nos tornamos. Somos gratos aos fatos que nos trouxeram até o momento
em que estamos vivendo. Este processo é algo maior que nós. A recompensa por
permanecer no programa é sentir-se em paz com quem somos.
A autoaceitação muda com o passar do tempo. Aprendemos a viver com nossas
fragilidades e imperfeições. Sentimos que os defeitos que aceitamos e perdoamos em
nós são mais facilmente removidos do que aqueles contra os quais lutamos para ter
algum controle. Podemos nos enganar sobre os obstáculos na caminhada. Aprender a
direcionar nossa atenção para nossas qualidades e objetivos e manter-nos distantes de
nossos defeitos e obsessões representa uma nova liberdade. Mesmo assim ainda
podemos acreditar que nossos atributos positivos são parte de uma fachada ou uma
invenção da nossa imaginação. Mas o fato é que nossos sentimentos já não mais nos

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assustam tanto como antigamente e parecem, de fato, nos deixar em paz mais
rapidamente. Sabemos que não podemos modificar nossos sentimentos
imediatamente, mas podemos modificar nossos comportamentos. Nosso estado de
espírito acompanha o que colocamos em prática. Quando fazemos a coisa certa, nos
sentimos melhor.
A pessoa que vemos no espelho pode guardar pouca relação com a versão que
costumavam ter de nós. Quando estamos presos na obsessão, podemos não ter ideia
do dano que causamos aos que nos cercam ou a nós mesmos. Do mesmo modo, quando
nos prontificamos a ajudar, podemos não ver os efeitos positivos que geramos em nós
e para aqueles que nos rodeiam. Podemos nos ver como quando chegamos, não
reconhecendo que a aplicação dos princípios da irmandade já se tornou parte de nós.
Confiamos em nosso padrinho e madrinha que nos mostram as mudanças conquistadas,
porém ainda não reconhecidas.
Cuidar de nossa condição espiritual é como limpar a casa: se quisermos os benefícios, o
trabalho não deve ter fim. Quanto melhor nos mantivermos ativos na condução de
nossa rotina diária, menos dor sentiremos quando precisarmos fazer uma faxina grande,
e menor será a sua frequência. Somos responsáveis pela nossa recuperação, mas isso
não precisa significar um fardo. Um membro partilhou “houve um tempo em que tive
medo do trabalho de passos. Eu o sentia como se fosse uma punição. Agora estou
entusiasmado de novo para me recuperar, porque sei que os passos são a estrada da
recuperação.”
Não é a recuperação que é dolorosa; nossa resistência é o que nos machuca. Quando
nos afastamos de nossa recuperação e agimos contra nosso sistema de crenças – isso,
sim, nos causa dor. Usar drogas é distorcer as coisas. Nos prendemos em coisas que
alteram nossa percepção, seja droga ou ressentimento. Sanidade é viver em harmonia
com a realidade. Quando estamos espiritualmente despertos, estamos disponíveis para
ver com clareza. Reconhecemos os hábitos mentais que nos levam de volta aos mesmos
sentimentos sem parar, independentemente do que esteja acontecendo ao nosso redor.
Até que rotulemos isso com o nome de “entusiasmo” ou “medo”, o sentimento pode
ser idêntico. Escolher como descrevemos nossa experiência nos dá a possibilidade de
escolher como queremos sentir nossas vidas.
Nos permitir ser felizes pode ser um processo surpreendentemente longo. Mas isso
continua de um jeito ou de outro. Alguns de nós temem a felicidade porque isso pode
nos conduzir à complacência. Outros de nós temem que se estiverem sempre felizes não
haverá mais nada a se buscar. Aprender o que nos faz verdadeiramente felizes pode ser
difícil, especialmente se nossa relação com a busca por prazer está enredada em nossos
comportamentos mais destrutivos. O desafio é sempre encontrar o equilíbrio. “Quando
fiquei limpo pude sentir a dor de cada folha sendo arrancada da árvore”, um
companheiro partilhou. “Me sinto como uma criança encontrando a alegria. Achei que
tinha que abrir mão do prazer para ficar limpo”.

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O que aprendemos sobre o amor prepara-nos para outros tipos de relação. Podemos
achar amor, conceber famílias, ou retornarmos a famílias que havíamos abandonado.
Alguns de nós descobrem que têm talentos para contribuir com o mundo de outras
maneiras, quer seja por sua criatividade, empatia ou nossa obsessão por focar em algo
e ir até o fim. As habilidades que aprendemos pela vida se tornam ferramentas úteis
para levar a mensagem. Quando nos envolvemos com NA, vemos que temos uma
contribuição valiosa para dar ao mundo. Podemos não ver todas essas mudanças em um
primeiro momento, mas sentimos, de alguma forma, como uma centelha de esperança,
que nossas vidas estão se tranformando.

Do desespero à paixão

Uma vez que tenhamos começado a limpar os escombros, as maneiras de que


precisamos para crescer podem não parecer visíveis para quem nos vê pelo lado de fora.
Oscilamos entre sermos completamente impulsivos e pensarmos que nossas decisões
são permanentes. Precisamos de algo para nos dirigir ou nos puxar. Permanecer parado
gera desesperança e pode facilmente convergir para a complacência e a indiferença.
Podemos nos sentir mal ou envergonhados, enquanto estamos lutando para manter a
luz de nossa recuperação acesa, ao pensarmos que deveríamos estar levando a
mensagem a outros adictos. Mas sem verdade, não temos mensagem alguma a ser
transmitida. E quando não estamos com a mente aberta, é difícil nos chegar alguma luz.
Admitir é o início da mudança.
Colocar nossa vida nos trilhos da recuperação não é algo tão difícil. Buscamos a paixão
pela recuperação e a nutrimos. A parte mais difícil é exercitar a boa vontade e agir,
pegando o telefone ou indo a uma reunião quando nos sentimos sem inspiração. Há
uma mágica e uma graça curativa nas reuniões, mas não podemos vê-las quando nossa
atitude nos cega. Voltar às reuniões quando nos ausentamos por um tempo pode ser
difícil e pode, tanto nos causar um sentimento de estranheza, quanto simplesmente
uma sensação de volta à casa. Há um sentimento de leveza ao adentrarmos a sala em
que não pisamos há tempo e ver tudo inalterado. É claro que as reuniões ganham mais
sentido quando as frequentamos com regularidade. Quando oscilamos indo e voltando,
elas podem parecer maçantes e entediantes. Parte da mágica é frequentar com
regularidade: ver os outros crescendo e se transformando e perceber o milagre se
manifestando na vida dos outros. Ocasionalmente alguém dá uma partilha brilhante.
Mas frequentemente o brilhantismo encontra-se mais no que vemos e não no que
ouvimos.
Paixão se parece muito com desespero: é motivante, uma força energizante que pode
nos mover para frente. Mas a paixão raramente é algo que nos seja concedido de fora;
ela vem de dentro. Quanto mais você a cultiva, mais você a vivencia. Transitar do
desespero à paixão é o primeiro passo. Nossa jornada está sempre começando e nossa
capacidade e necessidade de crescimento espiritual é infinita. As mesmas ferramentas

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que nos tiraram das garras da morte permanecem nos brindando com milagres além da
medida, quando aprendemos a alimentar nossa jornada com paixão e entusiasmo em
vez de dor e desespero.
Há uma transição por que passamos no processo de recuperação, um momento
indefinido que marca a passagem do desespero à paixão. O foco, antes localizado no
medo de uma dor crescente, transfere-se para novas oportunidades de crescimento ao
defrontarmos as lutas e desafios que se apresentam, motivando-nos com esperança a
seguir em frente e superá-los. Pode não ser o nosso primeiro despertar espiritual, mas
claramente se trata de um despertar do espírito para uma nova perspectiva repleta de
possibilidades.
Fé no processo significa que estamos indo na direção correta, mesmo quando pensamos
que não é para onde iríamos. Assumimos grandes desafios, lutamos por princípios que
não tínhamos e não fugimos às responsabilidades, mesmo quando estas parecem um
fardo impossível de se carregar. Aprendemos que o poder superior nos ajudará a fazer
o que não podemos – mas que ele não fará por nós o que nós mesmos não fazemos. É
surpreendente descobrir o quanto somos capazes. Quando deixamos de controlar as
coisas em relação às quais somos impotentes, aprendemos onde realmente reside nosso
poder e como podemos usá-lo para operar mudanças em nós e no mundo.
Fazemos parte de algo hoje. Mas não somos apenas parte disso: o que aprendemos
sobre a unidade de NA nos ajuda a entender como sermos membros de nossas famílias,
membros de nossas comunidades, membros de um time que trabalha e que joga bem.
Aprendemos que nunca estamos sozinhos. Estamos aqui com e para os outros. Nossa
confiança aumenta proporcionalmente à nossa experiência. Percebemos que nossas
ações têm consequências para nós e para as pessoas que nos rodeiam. Negar isso é uma
forma de obsessão e um sintoma do egocentrismo cuja manifestação se traduz na ilusão
da autossuficiência. Somos importantes e podemos contribuir com muito.
Cada vez que nos rendemos, percebemos mais uma vez que o desespero, que nos fez
ajoelhar, alimenta a paixão que nos move adiante. Quando a esperança se torna
realidade, nossas vidas mudam. Nossa experiência confirma aquilo em que acreditamos
e nossa crença se desenvolve até virar fé. Quando essa fé cresce ao ponto de se
transformar em conhecimento, o programa, que em algum momento nos exigiu esforço
para ser colocado em prática, torna-se parte do que somos. Encontramos na
programação aquilo em busca de que sempre estivemos: conexão com os outros,
conexão com um Poder Superior, conexão com o mundo ao nosso redor – e o mais
surpreendente: conexão com nós mesmos.

Por que permanecemos

O que nos mantém em NA depois que o desespero inicial se ameniza? Naturalmente,


surge o desejo de ajudar o recém-chegado; nosso décimo segundo passo nos lembra

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que isso deve vir em primeiro lugar. Mas muitos de nós, em alguma etapa da
recuperação, podem perceber que isso é tudo que nos resta. Nosso compromisso de
ajudar pode haver nos mantido voltando, mas alguns de nós podem experimentar o
sentimento desconfortável que hesitamos em partilhar: “é só isso?”
Nossa resposta hoje é um ressonante “não”. Em nossas vidas e nas de outros adictos
pelo mundo, percebemos a mudança – não só do desespero que se transmuta em
paixão, mas da solidão em que nos encontrávamos quando em NA chegamos. Vemos
grandes mudanças na maneira como nos relacionamos com os outros desde a primeira
vez que começamos a trabalhar os passos. Nossa experiência no serviço em NA nos
ensina a interagir com outros em ambientes que, às vezes, são estressantes e ainda
assim continuarmos amorosos e abertos mesmo quando estamos de pé em uma
reunião. Aprendemos quando é importante lutar pelos princípios e quando o melhor é
nos colocarmos à parte em nome da unidade, sabendo que um Deus amoroso está no
comando. Planejamos o futuro apenas por hoje e nos desapegamos do resultado,
mesmo quando o desejamos na verdade. Viver, amar, sobreviver às perdas, celebrar o
sucesso; descobrimos que as ferramentas da recuperação, que nos devolveram a vida,
também nos ajudam a viver com graça, integridade e alegria. À medida que praticamos
os princípios, nosso entendimento cresce e se aprofunda.
O processo não conhece fronteiras. Nossa recuperação nos transporta a lugares
infindáveis; não há limites para quão melhores podemos nos tornar. Prejudicamos nossa
recuperação quando mantemos alguma reserva em relação ao nosso segundo passo, ao
pensar que há partes em nós que não podem ser recuperadas. Quando aceitamos a
possibilidade de que podemos nos tornar infinitamente melhores – que não há fim para
o que a recuperação nos oferece – começamos a entender que a espiritualidade não é
apenas uma saída. Ela é um modo de vida que continua a nos presentear com novas
possibilidades, nova consciência, contanto que a busquemos e a coloquemos em
prática. Se nos deixarmos motivar, não pelo medo do passado, mas pela esperança no
futuro, nos entusiasmaremos para avançar quando a vida está boa, tanto quanto
quando nos encontramos em meio a uma batalha.
Descobrimos uma entrada para uma nova vida de liberdade, paixão e crescimento
ilimitado. Não estamos mais presos na armadilha do nosso próprio desespero. Algo
diferente acontece enquanto nos movemos, guiados na recuperação e motivados pela
paixão, esperança e entusiasmo. Somos libertos para viver nossa vida. Ficamos livres do
sentimento de que devemos estar constantemente com a guarda armada. Nos
libertamos para vivenciar a capacidade dos nossos corações. Onde nos fechamos,
encontramos a habilidade para amar e cuidar dos outros, mais profundamente do que
um dia imaginamos.
Sim, somos uma visão de esperança, nos diz o texto básico. Este livro encara a esperança
como algo que cresce continuamente, nos conduzindo ao longo da recuperação e de
nossas vidas. Não nos recuperamos apenas; vibramos com nossa caminhada. O
programa nos concede ferramentas para viver. O trabalho nunca finda e as recompensas
de se viver esse caminho são também constantes e ilimitadas. Trabalhamos para

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melhorar a conjuntura da nossa vida, criando e recriando-a de sorte que se adeque à
visão que construímos para nós. Com frequência, a mudança que buscamos está nas
nossas ideias e atitudes. Aprendemos a ver o mundo com mais clareza. Tornamo-nos
imensamente gratos pela recuperação que testemunhamos em nós e naqueles que nos
cercam. Recompensas gratificantes sempre nos esperam se estivermos dispostos a fazer
o esforço.
Narcóticos Anônimos é uma ponte para a vida, um caminho pelo qual podemos conduzir
nossas existências. O maior presente é a liberdade. Cada nível de evolução alcançado
nos descortina algo maior da mesma forma como um nível maior de consciência nos
permite reconhecer o tanto que ainda há por se descobrir e conquistar. Embora cada
qual viva de modo diferente, compartilhamos a mesma jornada. Nos sentimos
imensamente gratos por havermos encontrado a recuperação, por vivermos limpos e
por sabermos que, onde quer que nos encontremos na viagem, a jornada é contínua.

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Capítulo 2 – Os laços que nos unem

Narcóticos Anônimos é um programa de ação, não uma teoria. Não pensamos sobre
transformar nossa vida em um novo modo de viver; nós vivemos isso. Antes de ficarmos
limpos, nossa identidade foi forjada na fantasia; quem poderíamos, quem deveríamos,
ou mesmo, quem costumávamos ser. Em recuperação, nos conectamos com a realidade
por meio da ação. Aparecemos e fazemos a nossa parte. Tentamos novas atitudes em
nosso trabalho, nos nossos relacionamentos e nos compromissos com o serviço na
irmandade. Alguns de nós começam por simplesmente tentar manter uma planta viva
em casa. Por onde quer que comecemos, nos aventuramos no mundo – limpos –
tentando algo novo. Aprendemos a ser quem somos, assumindo posições, riscos e nos
permitindo sermos vulneráveis. Mesmo quando erramos, podemos aprender algo
essencial sobre nós mesmos.
Nos identificamos como adictos, e o princípio do anonimato nos ensina que isso é a coisa
mais importante. Se nos esquecermos de que temos uma doença fatal, não terá
importância, realmente, quem ou o que pensamos ser. Mas, uma vez que tenhamos
clareza disso, e nos acostumemos à ideia de ficarmos limpos, todas as possibilidades se
abrem. Como adictos em recuperação, somos livres para explorar o mundo e considerar
quem somos e quem desejamos nos tornar. Um membro experiente sugeriu que o
segredo da vida é descobrir quem somos e nos empenharmos nessa busca
deliberadamente.

Conectando-nos conosco

Pode levar um longo tempo até nos libertarmos. Quando encontramos a recuperação,
estávamos destruídos de muitas maneiras. Embora viver limpo não seja, de modo
algum, estar sempre em crise, às vezes, é o que pode nos parecer. Nossos sentimentos
são muito poderosos e, vez por outra, há tanta mudança em nossas vidas que isso pode
se dar de modo desordenado mesmo quando positivo. Nossas personalidades e nosso
senso de quem somos foi deformado pela nossa adicção e quando ficamos limpos
sentimo-nos ainda mais confusos. Isso pode acontecer pouco antes de termos a
oportunidade ou necessidade de perguntar “Sim, mas quem sou eu?” Mudamos quando
entramos em recuperação e vamos descobrindo quem fomos todo o tempo. Nos
encontramos. Para muitos de nós, essa é a renovação de que trata o segundo passo.
Pode também significar a entrada em um estágio nunca antes vivenciado, porque nunca
tivemos a chance de sermos nós mesmos sem precisar fingir, nos esconder e tentar ser
algo que não éramos.
Podemos nos descrever de diversas maneiras, e aquelas mais importantes podem
mudar, a depender do estágio ou momento em que nos encontramos na vida.

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Identidade é uma palavra que confunde. Indica as coisas que nos diferem dos outros e
as coisas que nos fazem exatamente os mesmos. Nossa identidade é composta de coisas
que nos distinguem, tanto como parte de um mesmo grupo quanto como algo que não
faz parte deste. Somos tão diferentes quanto nossas histórias, mas nossa literatura nos
relembra que “a adicção nos faz parte de um grupo com suas particularidades.”
Em algum momento, nossa identidade como adictos nos definiu. No final, parecia que
éramos somente nossa adicção. À medida que ficamos limpos, começamos a descobrir
quem realmente somos. Alguns de nós retornam à uma identidade que algum dia
conheceram e que haviam perdido; outros de nós entram pelo processo incerto sobre
quem podemos nos tornar. As experiências do nosso passado podem tornar nossa
caminhada difícil em direção a nos enxergarmos de modo diferente. Os rótulos que nos
aplicamos na ativa podem impedir nossa mudança agora que entramos em recuperação.
Experiências emocionais fortes podem dar forma à nossa identidade; às vezes elas nos
definem. Essas experiências nos tornaram quem somos e nós as incorporamos. Nesse
sentido, podemos não desejar nos enxergar. Às vezes, estamos simplesmente
paralisados em experiências passadas como algum tipo de abuso, prisão ou morte de
um ente querido. Como reconciliar o que fomos com aquilo em que estamos nos
tornando na recuperação? Queremos nos libertar do passado ao mesmo tempo em que
aproveitamos essas experiências para aprendermos com elas.
Às vezes pode levar um tempo para a nossa percepção acerca de nós mesmos alcançar
quem somos. Podemos mesmo nos sabotar, retornando ao caos familiar ou à dor
quando vemos que nossas vidas estão se tornando diferentes do que um dia foram.
Gradualmente, aprendemos que muito do que parece incontrolável, e contra o que tão
obstinadamente lutamos, é o resultado das escolhas que fazemos. Quando começamos
a nos sentir confortáveis com as novas escolhas que fazemos, nossa vida começa a
mudar – às vezes, de modo radical.
O que nos faz felizes agora são coisas que nunca nos haviam ocorrido antes. Alguns de
nós testemunham um despertar de sonhos adormecidos, recolhendo o desejo de algum
lugar perdido e finalmente retomando-o como sempre o imaginaram. Alguns de nós
percebem que a retomada dos sonhos deixados para trás não faz mais sentido algum.
Entramos na irmandade com uma história arrependida de promessas e sonhos partidos,
de desonestidades, traições e derrotas. Acreditar que somos dignos das coisas que
desejamos pode ser o caminho. Podemos ter vivido um medo avassalador de sonhar.
Alguns de nós se punem ao longo dos anos de recuperação, separando-se da alegria por
pensarem que não são merecedores dela. As ferramentas e o amor que encontramos
em NA podem nos ajudar a romper esses padrões, não importa o tempo que tenhamos
vivido com eles.
Podemos nos prender rapidamente a esses padrões. A vigilância é necessária para poder
impedir o ressurgimento deles. Algo precisa quebrar o ciclo do nosso pensamento
negativo. Pode ser alguma ação que empreendemos como meditar ou ir a uma reunião;
pode ser uma ação que nos é mostrada por um companheiro. Nossos amigos e padrinho,
que nos conhecem bem, reconhecem quando não estamos bem e nos ajudam com a

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mudança necessária. Quando vivemos só por hoje, encontramos uma coragem que não
conhecíamos e, assim, podemos ir ao encontro de nossas vidas com alegria, entusiasmo
e uma esperança grandiosa no que é possível. Mas quando ficamos presos no passado
ou deslizamos em direção ao futuro, nos encontramos presos na mesma armadilha,
como antes de saber o que nos tinha acontecido.
Não há uma resposta simples para como se fazer as pazes com o passado e, raramente,
isso acontece de uma só vez. Ao longo da recuperação, algumas partes do que somos se
tornam disponíveis para nós e outras partes estão prontas para serem abandonadas. Às
vezes, pode ser um processo que transcorre em paz e, às vezes, pode ser aterrador. O
fato de algo não se resolver com os passos ou nas conversas com nosso padrinho não
significa que não estejamos avançando em nossa recuperação. Manter-se retornando,
quer no trabalho de passos, quer em sonhos, à cena do crime, é parte da experiência
que muitos companheiros partilham em sala. Cada passo que trabalhamos nos traz de
volta um pedaço de nós que abandonamos e alivia algo do nosso fardo de
arrependimento, vergonha e medo. Abandonamos algumas coisas que pensávamos
sobre nós e descortinamos outras. Retomamos algumas coisas que algum dia
apreciávamos e descobrimos se elas ainda cabem em nossas vidas. A maneira como
mudamos pode ser surpreendente.
Deixamos pedaços pelo caminho. É quase como se fosse uma brincadeira de criança. A
cada passo adiante, nos viramos e restauramos um pedaço do nosso passado, agora sob
os holofotes dos princípios que aprendemos. Defeitos de caráter são removidos e outras
coisas negativas também. Trocamos de emprego e descobrimos quanto da nossa
identidade esteve ligada ao que fazíamos para viver, ou mudanças sobrevêm em nossas
relações e vemos que isso nos muda de outras maneiras. Isso pode nos chatear, às vezes.
Podemos não querer admitir que o que funcionou para nós ontem não mais nos serve
hoje. À medida que começamos a nos conhecer, podemos sentir medo de continuar
crescendo, porque isso nos abre a possibilidade de que possamos perder o nosso novo
eu, recém-descoberto. A experiência nos ensina que quanto mais disponíveis e abertos
estivermos para seguir adiante com nossas vidas, mais completos e mais nós mesmos
nos tornamos.
Aprendemos o que é verdade por nós mesmos ao atravessarmos limpos as dificuldades
e mantermos a experiência que o passado nos concede. Podemos pensar que estamos
sendo testados, mas a verdade é que nós é quem estamos testando nossa fé e
entendimento em face das novas experiências. Quando atravessamos uma tempestade
na recuperação, pode parecer que estamos no mesmo lugar em que estivemos quando,
em um primeiro momento, ficamos limpos. Do mesmo modo, às vezes, costumamos
recriar velhas experiências em nossas novas vidas, frequentemente confundindo
também um momento de dificuldade com uma condição permanente.
O simples fato de nos aceitarmos nos transforma. Começamos por nos tratar melhor e
responder ao mundo com uma nova humildade. O texto básico diz em seu oitavo passo,
“Queremos olhar para o mundo no olho, mas sem agressividade ou medo.” Ao passo
em que limpamos nossas ruínas e adotamos um modo de vida diferente, podemos

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respeitar nossas ações e desenvolver também nosso autorrespeito no processo de
recuperação. Parte do charme de muitos de nossos membros mais experientes é que
parecem ser muito excêntricos. Um deles partilhou que isso é fruto de não mais possuir
defesas na caminhada da vida. Mais e mais, tornamo-nos confortáveis com quem
somos. Estamos no mundo exatamente como somos. Esta liberdade é parte da
promessa encerrada na nossa terceira tradição. Em virtude de haver somente um
requisito para o ingresso na irmandade – o desejo de parar de usar – o programa nos
presenteia com a permissão para sermos quem realmente somos. Não precisamos mais
mentir para sermos aceitos.

Conectando-nos com um Poder Superior

Muitos de nós percebem quando vêm pela primeira vez às reuniões que os membros
que já se encontram em recuperação estão felizes e parecem ter um brilho especial em
seus semblantes. Essa luz do espírito é a coisa mais linda que temos a oferecer e isso é
mais forte do que possamos imaginar. Afinal, isso sobreviveu à nossa adicção. Cuidar
dessa luz significa nutrir a paixão dentro de nós, bem como um processo por meio do
qual expurgamos tudo que nos impede de encontrar a nós mesmos. Nossos defeitos
crescem na escuridão quando não se deseja desvendá-la. À luz da recuperação, o que
temos de melhor começa a desabrochar.
Há mais de uma perspectiva sob a qual podemos entender a frase “praticar esses
princípios”. Nós os praticamos, mas cometemos erros. O texto básico nos diz no sexto
passo, “aprendemos que estamos crescendo quando cometemos novos erros...” A
prática regular, começando com o que é elementar, e o progresso gradual, são
exatamente os meios pelos quais nos tornamos bons em alguma coisa, desde aprender
a tocar um instrumento ou uma língua, até viver uma vida gratificante e
recompensadora assentada em princípios espirituais. Não estamos apenas aprendendo
novas habilidades; estamos quebrando velhos hábitos. Alguns destes estão tão
profundamente arraigados que se confundem com o que somos.
Construir uma relação com algo maior que nós é um projeto que assumimos quando
entramos, pela primeira vez, em contato com os passos e que continua com a jornada
da recuperação. Para alguns de nós, práticas espirituais, como a prece e a meditação,
moldam e conduzem nosso dia. Outros de nós tentam viver a vida como uma prece,
oferecendo todas as nossas ações e dons ao nosso Poder Superior. Como quer que
pratiquemos e vivamos, nossa relação com nosso Poder Superior delineia nosso
entendimento de quem somos e como podemos nos relacionar com o mundo que nos
cerca. Nossas ações e motivos refletem nossos valores e crenças. Quando nos
sintonizamos com um poder maior que nós, parecemos nos mover com mais sutileza,
acompanhando o fluxo da vida.

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Depois de anos limpo, nossa relação com nós mesmos é bastante diferente da que
tínhamos no momento em que começamos a jornada. À medida que desenvolvemos
uma identidade para além do nosso eu adicto, nos perguntamos se esse rótulo ainda se
aplica a nós, se ainda fazemos parte da irmandade. Estamos caminhando para aprender
o equilíbrio, pisando cada vez menos as pontas extremas do espectro de nossos
comportamentos. Questionar nossa relação com Narcóticos Anônimos pode levá-la a
um nível mais profundo. As respostas que encontramos podem nos ajudar a resolver
nossas reservas. A segurança para questionar nosso alicerce é parte do segredo para
torná-lo sólido em nossas vidas.
Costuma-se dizer que aquele que deseja descobrir uma nova terra precisa navegar por
longo tempo no mar. Às vezes, quando nos sentimos perdidos no mar, podemos nos
perguntar se o programa ainda é importante para nós. Temos medo de duvidar, pois
sabemos que isso pode nos matar, mas o medo de questionar nossa nova maneira de
viver pode nos levar a ser desonestos com nós mesmos. A essência de NA não é tornar-
se obediente: é estabelecer uma relação com algo maior que nós, ainda que
frequentemente essa relação possa ser um pouco turbulenta. É importante saber que
há membros que nos concederão espaço para questionarmos nossa recuperação, mas
sem desistir de nós também. Embora algumas pessoas se sintam inseguras sobre como
responder às nossas dúvidas, compartilhar nossos sentimentos nos ajuda a ver que não
estamos sozinhos. Em momentos de incerteza mais persistente “fingir que está tudo
bem” pode ser o pior comportamento, ainda que funcione bem em outros momentos.
Precisamos ser brutalmente honestos com nós mesmos sobre o que sentimos e em que
acreditamos. A partir desses momentos de dúvida, uma fé genuína pode crescer
realmente. Não devemos negar, nem sermos indulgentes com tais sentimentos; eles
devem ser tratados com cuidado.
Aprendemos o que é verdade para nós, e isso estabelece a direção para nossas vidas.
Nosso senso ético é produto do trabalho que realizamos para entender e aplicar os
princípios espirituais do programa. Quando nos afastamos do que sabemos que é certo,
sentimo-nos frustrados e aprisionados. Quando nos esquecemos do que é verdade para
nós, nos perdemos e vagamos em meio ao perigo. Por outro lado, quando nosso
entendimento do que é verdade está em processo de mudança, podemos nos sentir
mais perdidos do que realmente estamos. Na verdade, nosso senso ético e de valor está
agindo e nos guiando para uma nova direção. Nesses momentos intensos de dúvida e
incerteza, encontramos uma nova rendição, uma fé mais profunda, e frequentemente
um sentido diferente de quem somos.
Podemos nos agarrar ao nosso medo anterior de que tenhamos nos tornado alguém que
não reconhecemos ou mesmo de quem não gostamos. Alguns de nós temem que se
fizerem a viagem interior, com verdade, não encontrarão nada. Mas o vazio que
tememos também nos dá espaço para o crescimento e para a mudança. Paramos de
tentar nos recriar tão intensamente e simplesmente deixamos que isso aconteça
naturalmente. À medida que reconhecemos as máscaras que pusemos e desenvolvemos

27
a força para ressignificá-las, nos sentimos mais seguros, ganhando clareza e confiança.
Não importa o que aconteça, não nos perdemos novamente.
Há questões que só podemos responder sozinhos, mas, para encarar tais questões,
precisamos do apoio e de pessoas de confiança. A diferença entre solidão e isolamento
é outra linha tênue que identificamos com a experiência. Uma questão que aprendemos
a nos perguntar é “estou agindo a serviço de um bem maior neste exato momento?”
Podemos precisar da solidão para nos conectarmos com nosso Poder Superior. Às vezes,
a melhor coisa que podemos fazer é simplesmente descansar e nos descontrair, ler um
livro ou assistir a um filme, e só. Isso não é isolamento – embora a diferença possa não
parecer tão clara. A diferença, sentimo-la internamente. Identificamos por nós mesmos
o que a solidão é capaz de nos restaurar e o que as atitudes destrutivas nos roubam.
Aceitar nossa espiritualidade em evolução é parte do nosso crescimento pessoal. Se
nossa relação com um poder superior é real e significativa, certamente sofrerá
mudanças com o passar do tempo. Mas às vezes parece estar em crise. Se nos rendemos,
isso nos leva de volta aos passos, e, ao revisitar o segundo e terceiro passos, podemos
reencontrar uma relação com a fé que faz mais sentido para nós. À medida que os nossos
valores mudam, é provável que nossas crenças se desenvolvam e se alterem também.
Abandonar a ideia de que temos de entender o porquê das coisas ou como tudo
funciona nos liberta para uma experiência espiritual sem nos questionarmos se estamos
fazendo do modo certo.
A ação que devemos empreender nem sempre é clara para nós. Às vezes, para
podermos seguir adiante, devemos ficar quietos. Meditar pode ser difícil por conta do
desconforto que a prática nos exige de ficarmos com nós mesmos em quietude, de
simplesmente estarmos no momento presente. Mas aí é quando pedimos ajuda,
escutamos as respostas, olhamo-nos nos olhos e vemos quem somos, onde estamos e
como somos. Quando ficamos quietos e observamos sem julgar, nos chega a clareza
para ver o que é certo e o que não é, para nós.
Aprendemos a confiar no nosso processo e lhe damos o tempo necessário para que se
desenvolva. Quando estabelecemos prazos para avaliarmos quão bem deveríamos
estar, ou por quanto tempo nos afligimos, ou ainda quando não sabemos a resposta
para uma pergunta, sentimos medo e podemos acreditar que a recuperação não está
funcionando. A recuperação funciona, mas não de acordo com alguma agenda que
possivelmente tenhamos feito. Não há substituto para o tempo.
Muito do trabalho de passos que refazemos após a primeira vez trata da clareza para
ouvir nossa voz interna que nos diz quando e se o que estamos fazendo está correto,
bem como quando isso não está alinhado com nossos valores. Cada vez mais, soltamos
os laços que nos aprisionam, as falsas expectativas e as crenças sobre quem somos. Não
estamos mais presos por nossa adicção ou à nossa estreita e velha visão sobre o que a
vida supostamente deveria ser. Aprendemos que o poder que ganhamos no décimo
primeiro passo está disponível para nós quando fazemos a vontade do nosso poder
superior e vivemos uma vida com auto-aceitação. As maiores transformações na

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caminhada da recuperação frequentemente ocorrem quando não as procuramos
obstinadamente. Acordamos e nos percebemos na vida de um modo que mal
reconhecemos. Encontramos estabilidade, dignidade e honra nas relações com outros
quando antes víamos conflito, degradação e alienação.
Ganhamos autorrespeito quando cumprimos nossos compromissos. Isso pode começar
com compromissos de serviço com o grupo: fazer o café, secretariar uma reunião e
assim por diante. À medida que nossa habilidade de assumir compromissos e cumpri-
los cresce, assumimos novos desafios. Talvez o maior desses compromissos seja
trabalhar os passos. Um de nossos membros sugere que não é apenas o trabalho de
passos em si, mas a maneira como os trabalhamos que estabelece o padrão para nossas
vidas. Assumir um grande projeto e trabalhar consistentemente em algo que é
importante, ainda que difícil e desagradável, nos ensina diferentes coisas que não
aprenderíamos nos forçando, apressados ou trabalhando noite adentro, para cumprir
algum prazo.
Por meio dos passos, descascamos as camadas de ilusão que nos enganam. Aprendemos
que temos uma doença, mas que isso tampouco se resume ao que somos. Aprendemos
que não somos Deuses. Aprendemos também que não somos nosso passado ou nossos
defeitos de caráter. Percebemos quando estamos confundindo como estamos com
quem somos. À medida que mergulhamos mais e mais na tomada de consciência de
nossas ilusões, essa consciência nos leva a nos indagarmos sobre o que deve ser
abandonado.
Conversamos com membros que respeitamos e em quem confiamos, e eles nos
lembram de que trabalhar o programa não vai nos tornar ninguém mais do que nós
mesmos. Enquanto desenvolvemos um contato com um Poder Superior maior que nós,
crescemos em consciência de que este poder não quer uma versão imaginária ou
idealizada de nós mesmos. Somos o que somos, e servimos melhor quando somos
inteiramente quem realmente somos. O simples ato de estar presente, sem tentar fingir,
contribui para retirar as distorções, mentiras, defeitos, toda essa bagagem distorcida,
além de nossos incômodos gerados pela inadequação. Aprendemos com precisão quem
somos quando esquecemos de nós e servimos aos outros.

Conectando-nos com o mundo

Nosso alicerce em recuperação é algo que é construído. À medida que nos tornamos
mais seguros, ampliamos nossos horizontes e alcançamos objetivos que nunca havíamos
considerado antes. Muitos de nós voltam a estudar, buscam carreiras e começam
famílias. Voltamos regularmente para checar se há rachaduras ou alguma mudança no
nosso alicerce e, assim, fortalecê-lo onde for necessário. A robustez e tenacidade na
fundação desse alicerce não seriam necessárias se estivéssemos apenas montando uma
barraca, mas queremos construir arranha-céus. Estes devem estar assentados com

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segurança de modo que, quando for preciso uma reforma em alguma sala ou andar, a
estrutura não entre em colapso.
As ferramentas que usamos para construir nosso alicerce não são as únicas de que
precisaremos na caminhada. Não é que elas percam o valor. Os aspectos básicos são
importantes, mas em algum momento eles podem não ser suficientes para sustentar a
continuidade do processo. Quando chegamos a um ponto em que tudo que sabemos
não é mais suficiente para nós, voltamo-nos aos membros com mais experiência. É
provável que escutemos a mesma resposta simples que ouvimos no início: a resposta
está nos passos. Uma relação cada vez mais profunda com os passos continua a se
desenvolver mesmo depois que os houvermos trabalhado muitas vezes. Para alguns de
nós, práticas consistentes de oração, meditação, exercícios escritos ou físicos são úteis
no início, mas se tornam mais enriquecedores com o passar do tempo. O simples fato
de se haver mantido algum tipo de prática e ritual por um longo tempo nos oferece uma
estrutura para o nosso programa na qual podemos confiar.
Para muitos de nós, ficar e permanecer limpos é a maior conquista, não importa o que
façamos mais na vida. Para outros, é o dom mais valioso que já receberam. Nem sempre
é fácil dividirmos a coisa pela qual mais somos gratos com pessoas que não vivem o
processo da recuperação. Isso pode parecer uma barreira entre nós e o mundo.
Alguns de nós ficam inteiramente dentro da esfera da recuperação: todos os amigos que
têm estão em recuperação, todo seu mundo está vinculado à irmandade, não porque
sentem medo de se aventurar mundo afora, mas pela imensa satisfação decorrente das
relações que mantêm em NA. A maneira como compartilhamos este nível de
identificação profunda que torna NA tão especial para nós, falando abertamente dos
nossos sentimentos, achando humor nas coisas mais assustadoras e sombrias, não é
algo que se encontre usualmente disponível fora das salas de recuperação.
Para alguns de nós, está tudo bem. Ficamos felizes em levar nossas vidas em NA. Para
outros, construir fora das salas o mesmo tipo de intimidade e senso de comunidade que
aprendemos a amar na recuperação, é um desafio motivador. Podemos viver alguns
tipos de conexão em NA e outros tipos em lugares distintos – com nossa família,
comunidades religiosas, colaboradores ou vizinhos. Sentimo-nos confortáveis tendo
parte da identidade aqui e lá. Cada qual encontra a combinação mais adequada, a que
melhor funciona, só por hoje. Autoaceitação, para a maior parte de nós, significa
encontrar um equilíbrio entre nossa recuperação e nossas vidas fora de NA.
Há tempos em que não estamos tão presentes na irmandade como gostaríamos.
Notamos a diferença em nossa recuperação; podemos perceber também a diferença em
como nos sentimos quando voltamos. Quando não estamos conectados de modo
próximo, é fácil nos sentirmos excluídos. As pessoas nos perguntam por onde temos
andado e encaramos isso como uma ofensa. Podemos estar correndo sério perigo ao
começarmos a nos sentir com raiva nas reuniões por as pessoas não reagirem da
maneira como gostaríamos que o fizessem.

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As ferramentas desse programa podem se tornar armas lesivas a nós mesmos quando
as usamos de modo incorreto. Mesmo nosso programa de passos pode ser uma
oportunidade para maltratar a nós mesmos com nossas imperfeições. Alguns dizem que
nossos defeitos são apenas mecanismos de sobrevivência que pararam de se
manifestar. Da mesma forma, nossas melhores ferramentas, às vezes, se desenvolvem
a partir dos nossos piores defeitos de caráter. Oscilamos entre a auto-obsessão e o
trabalho intenso na nossa recuperação e gradualmente vamos encontrando um
equilíbrio entre esses extremos, desfrutando mais tempo nesse novo lugar, à medida
que praticamos o programa.
Quando acertamos o polegar com um martelo, nosso senso de proporção muda, e nos
sentimos como se nosso dedo fosse enorme. Pensamos o tempo todo nesse dedo e se
alguma coisa pode tocá-lo e machucá-lo ainda mais. O mesmo é válido para o nosso ego.
Quando somos atingidos e machucados de alguma maneira, sentimos essa dor como
sendo maior que a vida. Parece que toda conversa é sobre nós. Humildade é descobrir
um senso de proporção com bases sólidas na realidade. Assim ganhamos uma
perspectiva mais equilibrada sobre o espaço que realmente ocupamos. Descobrimos
que não somos nem tão grandes, nem tão pequenos quanto pensamos. Somos
importantes na vida das pessoas que nos cercam, mas isso não significa que estejam
sempre pensando em como suas ações nos afetarão.
A auto-obsessão está enraizada no medo. Um dos medos mais profundos que muitos de
nós partilham é que nos perderemos inteiramente. Temos medo de nos desapegarmos
do que sabemos sobre nós para então podermos mudar, do nosso senso de quem somos
no mundo para podermos meditar, das nossas crenças sobre o nosso lugar nesse
mundo, por recearmos que nunca mais nos encaixaremos em algum lugar. Não
precisamos nos apegar e segurar com tanta tensão as coisas. Um de nossos membros
partilhou “quando eu passo por cima, em vez de me desapegar verdadeiramente, eu
apenas viro de cabeça para baixo”. Soltar as rédeas nos dá a liberdade para nos aprumar
novamente, natural e gradualmente, ao contrário do que seria nos forçar a tentar ser o
que achamos que deveríamos.
Lutamos contra a auto-obsessão ao longo de nossas vidas. Não é um defeito do qual
podemos nos livrar de uma vez por todas. Ele tornará a aparecer. Frequentemente será
um sentimento que irá acionar nossa auto-obsessão. A adicção é uma doença que
distorce ideias e atitudes. Quando praticamos a aceitação, nos distanciamos de nossas
reações e reflexos. Isso nos capacita a enxergar o estado da arte com mais clareza em
vez daquilo que nossa visão limitada permitiria. A oração da serenidade é uma
ferramenta da qual nos utilizamos vezes e mais vezes na nossa recuperação: considerar
o que podemos mudar e o que não podemos mudar se torna cada vez mais poderoso.

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Conectando-nos com os outros

Há dias em que realmente parece fácil nos identificarmos com os outros, nos sentirmos
bem-vindos e dar as boas-vindas em uma reunião. Em outros momentos, tudo a que
damos importância é o que nos separa do grupo. Quando começamos a perceber mais
as diferenças do que apreciar o que temos em comum, é porque a bandeira vermelha
do desconforto em nós começa a ser hasteada. Quando o foco se direciona às
personalidades, começamos a fofocar, questionar, disputar e contribuir para a desunião
do grupo. Quando fazemos isso, rapidamente nos tornamos autocentrados e auto-
obcecados. Quando o foco, ao contrário, se direciona à vontade de um Poder Superior
e à transmissão da mensagem, nossas identidades crescem e florescem. O décimo passo
nos oferece amplas oportunidades de caminhar rumo a esse desenvolvimento, nutrindo
o crescimento que desejamos encorajar; é como podar os galhos caprichosos antes que
encontrem terreno fértil para se desenvolver.
Quando frequentamos regularmente as reuniões, as pessoas passam a nos conhecer e
a nos ver com frequência. Quando um membro nos fala, “parece que você sempre se
sente deprimido nessa época do ano”, agimos para corrigir um padrão que talvez não
percebêssemos sozinhos. Quando alguém enxerga generosidade e gentileza,
aprendemos que as pessoas veem bondade em nós, algo do qual não nos dávamos
conta. Nossos companheiros espelham quem nós somos e nos mostram o tanto que
mudamos.
Praticar a compaixão nos ajuda a parar de nos comparar aos outros. Começamos a ver
as ligações e semelhanças profundas que existem entre nós. Nossas tradições nos
ensinam que somos iguais. Isso não significa que somos a mesma coisa. Nossas
diferenças são notórias e, às vezes, divertidas. Muitos de nós compartilharam seu
sentimento de conforto nas primeiras reuniões por ver tantos membros diferentes
sendo amigáveis uns com os outros. Isso contrasta intensamente com o que vivemos na
nossa ativa.
As coisas que nos separam no mundo lá fora não importam em NA. A doença não
discrimina e nós devemos fazer o mesmo. Sabemos que isso é verdade, a princípio, mas
na prática é uma luta. Alguns padrões de preconceito e discriminação estão tão
arraigados em nós que nem mesmo nos damos conta deles. Por outro lado, se
tivéssemos tido uma vida inteira de experiência com opressão e discriminação,
poderíamos estar tão conscientes disso ao ponto de vermos essa manifestação onde
nem mesmo poderia existir.
Para alguns de nós, o processo de identificação ocorre quando encontramos alguém
com quem compartilhamos crenças e uma história em comum. Não vivenciar isso
imediatamente pode ser frustrante ou assustador. “Sei que funciona”, alguns de nós
dizem, “mas não para alguém como eu”. Quando outros membros falam que nossa
necessidade de companhia é algo exagerado, não nos sentimos bem-vindos – na
verdade, nos sentimos ainda mais invisíveis. Entretanto, muitos de nós, a despeito do

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desconforto, vibram com a diversidade da irmandade. Notamos primeiramente que
precisamos ter contato com adictos que nos entendam e compartilhem da mesma, por
exemplo, orientação sexual ou história de vida; percebemos que precisamos de mais
membros com quem possamos compartilhar e nos identificarmos. Podemos nos
surpreender com as histórias dos membros com os quais nos identificamos ou com
quem nos sentimos confortáveis para conversar.
É desconfortável quando achamos que há somente uma pessoa na reunião com a qual
nos identificamos. Isso, no entanto, pode abrir espaço para um senso de conexão maior.
Aprendemos a aceitar e a amar quem somos independentemente de nos identificarmos
com os membros que nos cercam. Aprendemos a nos identificar com outros membros
em níveis diferentes. Muitos de nós prestam atenção a quem entra pela porta e possa
estar se sentindo assim. Em alguns grupos, esse sentimento de isolamento esteve
presente, mas contribuiu para a formação da diversidade que caracteriza a irmandade
hoje. Fato é que um ou dois adictos em uma reunião tornam a reunião mais segura para
o recém-chegado. Aprendemos que o que parecia uma razão para nos isolarmos, na
verdade, é uma ótima razão para pertencermos ao grupo; estamos capacitados de um
modo especial para levar a mensagem ao adicto que se enxerga em nós.
Nunca sabemos o que fará uma pessoa se sentir conectada a nós. Quando sentimos uma
conexão baseada em nossa doença e recuperação partilhadas, as maneiras como nos
diferenciamos tornam-se mais enriquecedoras do que limitantes. À medida que
encontramos mais pessoas, frequentamos convenções e eventos fora da cidade e nos
conectamos com outros membros que estão no serviço on line, por exemplo, nosso
círculo em NA cresce, e nós encontramos pessoas que tem histórias em comum conosco.
Mais surpreendente é que encontramos pessoas que compartilham sentimentos e até
mesmo nosso senso de conexão e desconexão – quando antes nunca havíamos pensado
em olhar para isso. Quando dividimos nossa experiência honestamente, damos aos
outros a oportunidade de se relacionarem e conectarem conosco apesar das diferenças
que pairam na superfície.
Quando ajudamos as pessoas a ficarem limpas, algo muda em nós. Descobrimos a
mágica, a dádiva refletida sob a forma de luz no olhar do outro. Aprendemos a sair da
nossa auto-obsessão. Muitas das soluções para os nossos problemas, encontramo-las
no serviço. Colhemos as recompensas dos nossos esforços contanto que voltemos. O
adicto que ajudamos em um momento de necessidade pode muito bem ser a pessoa
que salvará nossa vida mais tarde.
Há muito a se dizer sobre o velho trabalho do décimo segundo passo. Podemos ficar
confusos e nos concentrarmos somente nos membros que sabemos que recaíram.
Podemos sentir medo das pessoas que são novas para nós. Talvez haja uma razão para
sermos cautelosos: estaremos em perigo se usarmos. Justificamos, ao vermos o recém-
chegado, ao dizer-nos internamente, tentando nos apaziguar: “Não preciso desse drama
todo na minha vida”; Mas quando nos protegemos do recém-chegado, não nos
defendemos do drama, mas, sim, nos privamos de testemunhar o milagre em nossas
vidas. Às vezes, tudo de que o recém-chegado precisa é apenas não estar sozinho.

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Permitir a alguém que esteja conosco enquanto seguimos com nossa vida não tem
preço.
Nos ensinamos uns aos outros como ajudar. Só porque alguém nos ajudou não significa
que saberemos como fazê-lo com os outros. Estar acompanhado do padrinho ao
conversar com outro adicto concede a este a oportunidade de aprender e nos afasta da
tentação de fazer do nosso jeito. Aprendemos a vivenciar a dor sem nos apegarmos a
ela ou passa-la adiante.
Vivemos e sentimos nossas emoções em extremos. Mergulhamos de peito aberto na
vida ou nos escondemos sobre toneladas de máscaras com medo de seguir adiante. O
preço do crescimento para muitos de nós é o despertar de novos sentimentos. É preciso
humildade e coragem para não se fechar ao novo. Com frequência, reconhecemos que
nosso pensamento negativo se multiplicou. Às vezes, começamos ao permitir que um
ressentimento apodreça e, de repente, nos percebemos menos honestos. Guardar a
verdade abre espaço para a mentira de modo que partilhar, com honestidade, se torna
mais difícil até que tenhamos lidado com as consequências de um mal comportamento.
Adicção e recuperação são progressivas. Raramente ficamos parados. Quase sempre
estamos, ou melhorando, ou piorando.
Nossas escolhas nos definem. A decisão de ter uma família nos obriga a deixar para trás
a independência que tínhamos; a decisão de não ter família significa que devemos
encontrar outras maneiras de nos sentirmos conectados com as pessoas, e por aí vai. A
tradição sete nos diz que tudo tem um preço não importa o propósito. Encontramos a
verdade profunda disso à medida que avançamos na nossa recuperação. Cada escolha
que fazemos, boa ou ruim, significa que opções foram ou serão deixadas de lado.
Podemos nos perceber em teias intermináveis do “e se...” à medida que começamos a
pensar sobre nossas vidas. O quarto passo nos adverte sobre nos vermos presos ao
sofrimento emocional. Passamos a nos ver não como éramos, mas como estamos nos
tornando. NA nos ajuda a viver com as consequências e os benefícios de nossa
transformação.
Todos nós já recomeçamos nossas vidas com novas pessoas, lugares e coisas,
começando um novo ciclo que não nos era claro ou certo. O desejo de sobreviver e de
se sentir realizado não é algo exclusivo do adicto, mas, em recuperação, aprendemos a
nos conectar e a trabalhar uma maneira de nos proteger. Talvez tenha que ser assim.
Acreditar que podemos confiar no amor em nossas vidas é desafiador. Não acreditamos
que nossas necessidades mais profundas possam ser preenchidas. Isso começa com o
processo de reparação, com o entendimento de que podemos perdoar e sermos
perdoados, que podemos assumir a responsabilidade por nossas ações e fazer escolhas
melhores.
Embora nossos destinos possam ser diferentes, nossas jornadas são bem semelhantes.
Viajamos por muitas identidades antes de encontrarmos a autoaceitação.
Impulsionamo-nos ao usar as ferramentas que compartilhamos. Quando nosso trem
está descarrilhado, sabemos o lugar aonde vamos parar. Quando estamos seguindo

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adiante ao praticar princípios espirituais, podemos ir a lugares diferentes em nossas
vidas, mas se recaímos, terminamos no mesmo beco sem saída. Isso é o que mais
compartilhamos: não é para onde estamos indo, mas de onde viemos e como seguimos.
Juntos alcançamos a liberdade. Precisamos uns dos outros para chegar lá, e uma das
coisas mais bonitas que fazemos na irmandade é apoiar o outro na busca da realização
dos seus sonhos. Dividir nossas esperanças e sucessos é uma parte importante de se
levar a mensagem tanto quanto partilhar nossos medos e dificuldades. Temos uma
mensagem de esperança para levar. É uma dádiva e um compromisso. Nossos sonhos
podem não ser comuns, mas nossa esperança, energia e nosso entusiasmo para realiza-
los, sim. Sentimo-nos inspirados pela caminhada dos outros membros. Estar presente
na jornada de crescimento do outro nos capacita com as ferramentas e a inspiração para
continuar a nossa. Também percebemos que podemos ficar tranquilos, seguir adiante e
viver as vidas que estamos construindo para nós. Nossa recuperação é algo em que
confiamos e acreditamos. Novos recomeços são sempre possíveis quando nos sentimos
prontos.

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Capítulo 3 – Um caminho espiritual

Os passos são um caminho para o crescimento espiritual. Não há separação entre uma
parte que seja espiritual e o resto do programa. Assim como as facetas de um diamante
não podem ser dissociadas da pedra em si, os aspectos espirituais do programa não se
separam; eles são partes do todo. Tudo é espiritual. Isso também implica que nosso
entendimento do que isso significa possa mudar com o tempo.
Às vezes, pensamos nos princípios espirituais como dissociados das ações que
precisamos empreender, mas na verdade eles estão conectados. Esses princípios nos
propiciam a construção de uma linguagem por meio da qual desenvolvemos nossos
valores e, por consequência, passamos a viver com base neles. Orientam a formação de
nossas crenças e razões que embasam nossas ações. Nossa relação com eles produz o
que se chama de ação criativa. Aprendemos dia a dia a usá-los de formas diferentes, em
novas combinações, para melhor expressar quem somos e ajudar aos que estão à nossa
volta. Quando os compreendemos melhor, tornamo-nos aptos a agir de modo mais
consistente de acordo com aquilo em que acreditamos. À medida que os praticamos,
descobrimos que isso não nos faz, de modo algum, espirituais. Em vez disso,
despertamos para o que sempre esteve, a vida inteira, latente dentro de nós. Somos
seres espirituais; esse é o nosso estado natural.

Despertando para a nossa espiritualidade

Não somos as únicas pessoas a viverem despertares espirituais, mas há um em especial


que vivenciamos como resultado do trabalho de passos: descobrimos e nos conectamos
com a nossa espiritualidade. Somos renovados e nos sentimos vivos no mundo que nos
cerca. Vemos mais claramente e sentimos com maior precisão. Todavia isso não significa
que seja algo sempre confortável. Alguns de nós acreditam que o despertar espiritual
mais importante ocorre quando se transpõe o limite que separa o mundo exterior da
porta da sala de recuperação de Narcóticos Anônimos e passam a sua recuperação
tentando entender o que aconteceu. Para outros de nós, despertar, como tantas outras
coisas em recuperação, parece ocorrer por etapas: “a névoa recuou para onde me
permitia ver quanto dela existia”, disse um companheiro. “Cada vez que ela recua, vejo
mais no horizonte; percebo quão grande ela era e o tanto que ainda não consigo ver.
Com um pouco de sorte, vou seguir despertando minha vida inteira.”
Alguns de nós despertam espiritualmente por meio da percepção de um sentimento
poderoso, presenteado a nós por um Poder Superior. Outros dividem um reavivamento
lento e sutil de consciência espiritual, quer tenhamos ou não vivido uma conexão com
um Poder Superior. A descoberta de que os outros se importam conosco pode funcionar
como esse despertar espiritual. Pela primeira vez reconhecemos nossa importância.

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Viver de acordo com princípios nos conduz à humildade – uma consciência mais
expandida acerca do nosso lugar no mundo e da nossa habilidade de viver em paz com
isso. Sempre ouvimos nas reuniões “a coisa mais importante a se entender sobre um
Poder Superior não é ele em si”. O que quer que nos custe para perceber que não somos
o centro do universo, é válido. Podemos ser espertos o bastante para nos declararmos
o ser supremo do universo e nossa doença autocentrada ainda nos dizer que somos
responsáveis por muito mais do que possivelmente pudéssemos controlar.
Quando praticamos viver em harmonia com o mundo, nos tornamos mais sábios sobre
a escolha das batalhas nas quais queremos tomar parte. Aprendemos a identificar onde
devemos empregar nossa energia e quando o melhor é não agir. Aprender a se afastar
de um conflito é, às vezes, mais difícil do que não entrar em disputas de modo algum.
Isso não significa que sempre concordamos com alguém ou com tudo, ou que, de
repente, tenhamos perdido o poder para lutar pelos nossos direitos. Ao contrário,
aprendemos quando seguir e quando nos retirar. Algumas batalhas são dignas de serem
enfrentadas ainda que saibamos que não poderemos vencê-las, assim como algumas
simplesmente não merecem nossa atenção mesmo tendo a vitória como certa. Isso é
discernimento e vem com o tempo e a experiência. Aprendemos a ver a diferença entre
um princípio pelo qual devemos lutar e uma opinião sobre cuja discussão é melhor
deixar pra lá. Tornamo-nos capazes de escolher por nós mesmos quando lutar e quando
nos render, e à medida que praticamos isso, vamos crescendo ao saber o que é certo
para nós.
Aprender a aceitar as coisas que não podemos mudar e agir no que é necessário e
apropriado não é apenas parte da recuperação da adicção; é parte de um processo de
crescimento mais amplo. Muitos de nós são como crianças grandes, ainda querendo as
coisas à sua maneira sem consideração por nada, nem ninguém. Isso quase sempre
significa que nossa adolescência foi difícil e dolorosa. A maturidade nos chega quando
evocamos os princípios espirituais em vez de defeitos para lidar com a realidade.
Incorporar princípios em nossas vidas nos permite entender a diferença entre o que é
certo e o que é errado. Muitos dos nossos defeitos mais incapacitantes e deformadores
se tornam qualidades e virtudes poderosas quando nos desapegamos da nossa auto-
obsessão – egocentrismo – e medo.
Muitas vezes em nossa adicção vivemos um momento de claridade quando pudemos
ver a verdade acerca do que havíamos nos tornado, mas essa consciência em si não foi
capaz de nos fazer mudar. Esforço é necessário para fazer essa mudança ocorrer. Nossas
vidas mudam porque agimos. Alguns de nós dizem que estamos “aplicando” princípios
espirituais porque estamos agindo de um modo determinado. Outros preferem dizer
que estão “praticando” princípios espirituais por saber que sempre é possível melhorar.
Como quer que encaremos, ação é o que importa.
Nossa primeira ação é nos render. Voltamo-nos para isso a cada dia. Há sempre espaço
para avançarmos mais. Há muita liberdade em entender que sempre temos a opção de
nos rendermos. No começo podemos nos sentir confusos e pensar que devemos nos
render à nossa doença. Na verdade, isso foi o que a maioria de nós fez até encontrar NA.

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Na adicção ativa, voltávamos nossa vontade para a doença todos os dias. Em
recuperação aprendemos a nos render ao processo, ao programa, e, ao final, a um poder
que é maior do que nós. Quando desistimos do uso, colocamo-nos inteiramente sob seu
cuidado. Como consequência, comprometemo-nos a ser canais para a sua manifestação
como quer que o entendamos.
Render-se significa ter mente aberta para ver as coisas sob uma nova perspectiva tanto
quanto para viver de uma outra forma. Quando nos abrimos para outras possibilidades
podemos encontrar novas perguntas para as quais não tínhamos a esperança de
respostas anteriormente. Toda vez que vemos possibilidades que não nos ocorreram
antes, ganhamos mais liberdade. Somos livres para mudar nossas mentes, para mudar
nossa perspectiva e nossas vidas. Liberdade significa que não estamos mais vivendo na
omissão. Vamos percebendo cada vez mais quanta coragem precisamos ter para nos
render.
Vemos o milagre da recuperação em ação quando um adicto que achávamos que não
ficaria limpo, apreende a mensagem. Vemos uma nova esperança em seus olhos. O
contraste é tão marcante que não podemos nos furtar a ver o novo brilho em seu olhar.
Também reconhecemos o milagre quando encontramos as palavras certas para acolher
o sofrimento do adicto mesmo quando não temos ideia do que falar. Quando nos
ouvimos, sentimos o poder das palavras que falamos. Sabemos que estamos sendo
ajudados por elas da mesma forma como aqueles a quem as dirigimos. Saber que já
temos as respostas de que precisamos é como encontrar a dádiva na soleira de nossa
própria casa. Quando estamos passando por momentos difíceis, a melhor coisa que
podemos fazer uns pelos outros é aceitar essa dádiva, utilizando-a como ponte para
ajudar outros adictos.

Um programa espiritual, não religioso

Cada um de nós tem seu próprio caminho espiritual. À medida que nos aprofundamos
em nossa espiritualidade, encontramo-nos em uma jornada de autodescoberta. Quando
vivemos com consciência espiritual, encontramos harmonia com o Deus da nossa
compreensão, com nós mesmos e com os outros. Não há uma receita simples para a
espiritualidade. Cada um de nós encontra sua própria maneira e isso nos liberta para
fazer escolhas de como podemos viver. Isso também, é verdade, nos cobra com a fatura
da autoresponsabilidade.
Não podemos fingir que espiritualidade não é algo central no programa ou no modo de
vida de NA. Há espaço nisso para pessoas de todos os credos – inclusive os que não têm
nenhum. O direito à nossa espiritualidade em NA é incondicional, e isso significa
também respeitar o direito dos outros companheiros a essa dimensão. Embora seja algo
simples, parece que gostamos de complicar isso em nossa recuperação. Qualquer

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definição de princípios espirituais seria por demais restritiva para nós. Nossas tradições
lembram que NA não é um lugar em que se defenda algum caminho espiritual específico.
Encontrar uma espiritualidade que funcione para nós pode ser um dos desafios mais
importantes que enfrentamos em recuperação. Ainda assim, sentimos medo de falar
sobre isso. Podemos nos preocupar pensando que nos sentiremos sem lugar ou que
incomodaremos os outros com nossa partilha. Quando estamos levando a mensagem,
lançamos luz sobre o limite que separa nossas experiências espirituais pessoais e a
mensagem de NA. Encontrar um equilíbrio no qual estamos abertos à experiência do
outro sem criar a impressão de que estamos defendendo uma religião, em particular,
pode ser uma luta para nós.
Enquanto estamos envolvidos com alguma religião ou caminho que utiliza uma
linguagem específica, perguntamo-nos como expressar isso de uma maneira que todos
possam entender, sem ofender as crenças dos outros. Usamos uma linguagem mais
geral por respeito às amplas perspectivas que a irmandade abriga, muito embora, em
outro espaço, possamos usar uma linguagem mais adequada à nossa fé. Pode ser difícil
achar uma maneira para conversar sobre nossa espiritualidade e ainda deixar espaço
para que qualquer um forje seu próprio caminho. Usamos muitas palavras diferentes
para descrever o Poder Superior. Fazemos o melhor para partilhar a profundidade da
nossa experiência espiritual de um modo que isso possa estar disponível para todos na
sala.
Mais importante ainda, encontramos pessoas em quem confiamos, a quem respeitamos
e com quem nos sentimos confortáveis para partilhar. O trabalho da recuperação não
acontece somente nas reuniões; partilhamos e exploramos essa experiência com nosso
padrinho, no trabalho de passos ou entre amigos em quem confiamos. É possível que
nunca abandonemos a irmandade de NA para encontrar nossa espiritualidade, mas se é
verdade que nossas explorações espirituais podem acontecer fora das salas, é também
crucial entendermos que NA nos acolhe sempre de volta após essas incursões. A cada
voo, ganhamos um novo entendimento, e novos desafios, a serem partilhados e
trabalhados, surgem como resultado do nosso crescimento espiritual.
Uma das coisas mais bonitas da programação é que ela funciona independente das
nossas crenças. NA é um lugar onde todos nós podemos nos sentir bem-vindos e
acolhidos. Mesmo quando estamos certos de que todos na sala compartilham a mesma
fé, ainda assim precisamos ter certeza de que a mensagem de NA é clara, sem vieses
religiosos. Não limitamos a aplicação das tradições a um tempo em que víamos um
problema que elas pareciam resolver. Manter a mensagem clara ajuda a todos. “Quanto
mais aprendo a partilhar minha espiritualidade na linguagem de NA, mais vejo com
clareza as conexões entre a minha fé e o programa”, um membro partilhou.
Quando encontramos novas maneiras de partilhar nossos insights usando uma
linguagem comum de recuperação, nossa habilidade de levar a mensagem de NA se
fortalece. Nossa irmandade amadurece e se desenvolve à medida que cada um de nós
traz para a mesa seu entendimento em constante evolução; crescemos a partir das
experiências do outro quando estamos dispostos a partilhar e ouvir com a mente aberta.

39
Muito embora isso seja absolutamente crucial para nossa recuperação, muitos de nós
resistem em falar sobre espiritualidade porque essa conversa em geral se aproxima do
tema religião. Há muitas razões por que nos sentimos desconfortáveis com isso.
Primeiro, porque muitos de nós aprenderam que isso não é algo que se discuta.
Sabemos que fé é algo profundamente pessoal. Outros de nós não conseguem conversar
sobre isso sem tentar convencer o outro. Ainda precisamos mudar até entender que o
programa não vai ameaçar nosso entendimento pessoal acerca de uma crença, qualquer
que seja. Isso pode ser desafiador à medida que começamos a praticar nossa
espiritualidade mais ativamente.
Podemos discutir filosofia o dia inteiro e não fazer progresso algum na seara da
espiritualidade em nossas vidas. Por outro lado, algumas das pessoas mais espirituais
que conhecemos dizem muito pouco sobre espiritualidade. Seu exemplo de quietude
fala mais alto que palavras. Os princípios, que compartilhamos nos passos, tradições,
conceitos, e no resto da literatura, vão além de nos disponibilizar uma linguagem
comum que possamos entender e com a qual possamos nos identificar.
Dizemos incontáveis vezes que o programa é espiritual e não religioso, mas isso não
significa que não funcione para pessoas religiosas. Alguns de nós chegam a NA com um
alicerce bastante sólido em uma fé específica que lhes conforta. Outros encontram um
caminho que os conduz até uma religião organizada justamente como resultado do
trabalho de passos feito para se construir uma relação com um Poder Superior. Alguns
de nós encontram caminhos espirituais alternativos ou consideram a espiritualidade
descoberta no programa suficiente. Não há resposta correta sobre isso; não há um
progresso específico que conduza em direção a uma religião organizada ou desta nos
distancie. O que importa é aceitar que o programa é espiritual por natureza e que abriga
um mistério. Muitos de nós dizem, mesmo após estarem, há muito limpos, que ainda
não sabem como o programa funciona; só sabemos que funciona. Permitir-se acolher a
possibilidade de que sempre haverá algo que não saberemos ou entenderemos significa
que sempre haverá espaço para algo maior que nós, para ser trabalhado em nós e por
meio de nós.
Alguns mantiveram as crenças espirituais com as quais cresceram, mas na sua adicção
ativa estavam na direção contrária. Muitos trabalharam tão arduamente para se
distanciar do que suas crenças haviam sido, que a maneira como responderam a elas
quando as ouviram se assemelha a uma alergia. Pode levar um longo tempo antes de
sabermos porque essa linguagem nos torna tão desconfortáveis. Quando ouvimos as
pessoas falarem sobre um Poder Superior, parece que vamos viver todos os sentimentos
relativos a nossas antigas crenças e é natural que fiquemos nervosos.
Podemos ter tido vivências negativas ou experiências que tornaram desconfortável
nossa relação com a religião. Pode ser desafiador encarar isso. Muitos de nós tentaram
a religião para nos salvar da adicção e perceberam que a fé religiosa foi insuficiente para
nos libertar. Ou, por outro lado, pode acontecer de termos uma fé religiosa consolidada
e temermos que NA vá nos pedir para abandoná-la. Qualquer que seja nossa
experiência, é importante que encontremos um entendimento sobre esse tema que

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possa ajudar na nossa recuperação. Quando estamos nesse processo de entendimento,
as opiniões dos outros podem parecer confusas ou até mesmo ameaçadoras. É
imperativo nos concedermos tempo e espaço para que um sistema de crenças
inteiramente nosso possa realmente surgir.
Por outro lado, podemos evitar conversas que alguns de nós precisariam ter para
reconciliar a recuperação com suas crenças. Um membro confessou “tenho estado em
guerra com minha fé desde que entrei em NA. Eu ainda pratico a fé com a qual fui criado
e me mantive ativo nela desde que fiquei limpo. Mas quando venho às reuniões e
partilho os despertares espirituais que tenho tido, me sinto rejeitado. Deixei de seguir
NA por um tempo, mas percebi que precisava estar aqui – então achei uma maneira de
fazer as pazes entre o vazio que separava minhas crenças de minha recuperação”. Sem
nos esforçarmos, arriscamo-nos a afastar as pessoas, ou limitamos nosso próprio
entendimento das conexões entre o nosso desenvolvimento espiritual e a nossa
experiência em recuperação.
Crescimento espiritual pode ser uma luta, às vezes, mas isso não significa que vá
terminar mal. Essa luta se refere a como podemos encontrar uma espiritualidade que
pode funcionar para nós. Nossas crenças se fortalecem à medida que nosso espírito
desperta. Quando vivenciamos nossas crenças, elas se tornam mais vivas. Para alguns,
isso significa encontrar uma maneira de rezar que reverbere; alguns encontram outras
maneiras de construir um contato consciente que se adeque às suas crenças. Mas a
chave para o crescimento espiritual é que se trata de um processo que cresce, o que
significa que ele muda e, acima de tudo, nos muda. Um membro partilhou “quando eu
já estava limpo há cerca de 10 anos, percebi que não tinha uma relação honesta com
Deus porque fingia não sentir raiva. Percebi que se não fosse honesto nessa relação,
como poderia sê-lo em alguma outra, como poderia esta e minhas outras relações terem
uma chance de serem bem-sucedidas?” Cada vez que reconhecemos uma oportunidade
de crescimento espiritual, experimentamos um novo despertar de esperança.

Uma jornada espiritual

Procurar um Deus do nosso entendimento é uma experiência pessoal, mas é preciso


saber que não estamos sozinhos nessa busca. Há uma parte que é só nossa, inteiramente
pessoal, e inexplicável de uma maneira maravilhosa. Há momentos em que devemos
andar sozinhos com nosso Poder Superior. À medida que estudamos as nossas tradições,
aprendemos que nada que afete nossa recuperação pessoal é um assunto externo e que
nossa unidade deve vir em primeiro lugar. Esses princípios espirituais não estão em
conflito, mas talvez seja necessário prece e entendimento para conciliá-los. No décimo
primeiro passo pedimos força e coragem para realizar a missão que Deus nos reserva.
Nesse espírito, podemos pedir a nosso Poder Superior que nos oriente quanto às
palavras que devemos usar para não criar separação ou desunião na irmandade.

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Pode ser difícil expressar nossa experiência espiritual em palavras. Por falarmos de
coisas que não podem ser vistas, a linguagem concreta às vezes parece não dar conta
do que queremos comunicar. É preciso tempo e prática para que possamos descobrir
nossa maneira de fazê-lo. Lutamos para encontrar as palavras a fim de descrever nossa
experiência. Assim, a última coisa de que precisamos é de alguém para nos dizer que
estamos fazendo errado. Ouvimos uns aos outros com a mente e o coração abertos e
dividimos nossa experiência e entendimento com a perspectiva de que estes não
necessariamente serão vistos como certos pelos outros. Nesse sentido, entendemos que
é difícil para os outros partilharem sobre isso e que, às vezes, nos pedirão para sermos
mais objetivos e não tão julgadores.
Encontramos, cada qual, sua rendição, mas isso não significa que todos irão acreditar
em Deus. Muitos de nós estão limpos há anos como ateus. Para alguns de nós, acreditar
que NA pode acolher nosso ateísmo sem julgamentos tem sido uma brasa para a nossa
fé. Somos bem-vindos não importa aquilo em que acreditemos. NA não tem opinião
sobre como seus membros definem ou praticam cada qual sua espiritualidade. Cada
membro da irmandade tem o desafio individual de encontrar uma definição de
espiritualidade que faça sentido para si. Ao ouvir, cuidadosamente e com a mente
aberta, um amplo espectro de opiniões e experiências de companheiros, conseguimos
formar um entendimento que possamos usar em nossa recuperação. Um membro
partilhou que “ não ouvi ninguém falando sobre ateísmo como um caminho legítimo na
recuperação, mas aceito isso. Com a espiritualidade, fiz o mesmo que faço com outros
aspectos da programação, separo o que me serve e o restante ponho de lado. No
decorrer dos anos, tenho aceitado que as ideias dos outros sobre espiritualidade, ética
e Deus são muito diferentes das minhas. Parte da força e beleza de NA é que a sala está
aberta e disponível para todos. O que os outros denominam princípios espirituais, eu
chamo de princípios éticos.”
Sempre que evocados, os princípios presentes nos passos nos afastam da nossa adicção
ativa, egocentrismo e medo. Quando ajudamos alguém que está lutando para se limpar,
nos libertamos de nossa auto-obsessão. Quando retribuímos, afastamos nossa ganância
e inveja. Descobrimos que nada limita as possibilidades de recuperação de um membro
que pratica os princípios de NA, quer se denomine os princípios espirituais ou não.
Para alguns de nós, espiritual se refere apenas ao que não é visto ou que é intangível.
Cada um de nós tem absoluta autonomia e anonimato, qualquer que seja o conceito
que construímos em nossa recuperação. A frase “como o entendemos” pode ser um
obstáculo para muitos de nós. Não temos que entender ou aceitar um Poder Superior
para viver a espiritualidade. Ninguém tem o direito de nos julgar ou nos dizer o que é
certo ou errado. O que importa é estarmos disponíveis para ouvir e aceitar a experiência
do outro com mente aberta, dividindo nossa experiência sem o desejo de persuadir o
outro sobre o que é certo ou errado. O que nos mantém limpos, pode não funcionar
para o outro. Só dividimos o que funciona para nós.
Manter-nos com a mente aberta sobre nossas crenças e as dos outros nos liberta das
armadilhas que criamos em nossa mente. Percebemos que a espiritualidade está

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funcionando em nossas vidas quando fazemos a coisa certa pela razão certa. É isso que
nosso texto básico chama de “boa vontade”. Somos capazes de ouvir nossa voz interior
em vez do que se tagarela à nossa volta.
Quando nos vemos presos em nossas diferenças e reservas, é fácil esquecer porque esse
tema nos aborrece. O texto básico nos lembra que “aliviamos nossa dor por meio dos
princípios espirituais”. Nós, adictos, sentimos a vida de modo tão intenso que a dor nos
leva a usar drogas, mesmo sabendo que isso não vai melhorar a nossa situação.
Privilegiamos um momento de alívio, ao usar, arcando com uma vida de sofrimento
como consequência. Sobrevivermos à vida que levamos parece impossível quando se
chega a Narcóticos Anônimos, mas aprendemos paulatinamente a encarar a realidade e
a fazer as pazes com a verdade. Os princípios espirituais que praticamos ajudam a
amenizar a dor e quanto mais os praticarmos mais perceberemos que são a chave para
a verdadeira liberdade. Nossas vidas se tornam mais fáceis em todos os aspectos à
medida que ficamos limpos. Com a prática da honestidade, integridade e lealdade não
precisamos mais perder tempo em controlar nossas histórias ou disfarçar quem somos.
Podemos nos surpreender ao descobrir que talvez seja mais fácil viver com base nesses
princípios. Com efeito, passamos a amar nossas vidas, encontramos alegria por
estarmos vivos e encaramos o mundo com entusiasmo genuíno.
Tão logo alcancemos vislumbres espirituais sobre a vontade de Deus para nós, o mesmo
se dá com a nossa própria espiritualidade. Nossa condição espiritual está sempre
mudando. Na maior parte das vezes, pensamos que não somos espirituais porque nosso
contato consciente com um Poder Superior, embora ocorra, logo se perde, ou porque
temos pensamentos ruins, ou ainda porque usamos demasiadas máscaras quando
gostaríamos de sermos nós mesmos, mesmo após muitos anos limpos. Quando
falhamos, não significa que não sejamos espirituais – significa que somos humanos.
Afinal, se não falhássemos, não poderíamos praticar o décimo passo! Ser humano
significa estar aberto para o crescimento. Vivemos espiritualmente muito antes de
sabermos que estávamos fazendo isso.
Espiritualidade é uma relação com a realidade. À medida que desenvolvemos uma vida
espiritual, descobrimos que a realidade se torna menos assustadora e menos rígida.
Aprendemos a viver com a nossa própria liberdade. Percebemos que uma mudança de
perspectiva pode alterar por completo a maneira como entendemos nossa situação.
Quando vivemos uma vida espiritual, nossas percepções e respostas às situações estão
baseadas em uma relação de constante crescimento com algo que é maior que nós. A
auto-obsessão abre espaço para a humildade. Entendemos que não somos a
personagem principal em todas as peças que acontecem no teatro da vida, mas que
nossa disponibilidade e esforço para apoiar pode realmente fazer diferença na vida dos
que nos rodeiam.
Com a evolução da nossa espiritualidade, tornamo-nos imensamente gratos por nossa
vida e pelas pessoas que fazem parte dela. Quanto mais aptos nos tornamos para ver o
que há de bom no mundo que nos cerca, mais gratos nos tornamos pelo poder que nos
presenteia com essa consciência. Quando nossos corpos, mentes e espíritos estão em

43
harmonia, nossas vidas demonstram essa transformação. Somos capazes então de
vivermos em equilíbrio.

A espiritualidade como prática

À medida que nosso comportamento se alinha mais com nossa crença, alcançamos um
novo senso de quem somos. Embora tenhamos uma doença que nos requer que
sejamos vigilantes com nossos pensamentos, podemos ver o que há de bom e de ruim
em nós. Quando fazemos nosso inventário e praticamos “atenção às nossas ações e às
razões que estão por trás destas”, às vezes, podemos nos sentir como se fôssemos
definidos por nossos defeitos de caráter. As piores coisas em nós são as que parecem
ser as mais verdadeiras. Mesmo assim, sabemos que isso não é a verdade sobre quem
somos. É preciso tempo para que enxerguemos as coisas com a perspectiva verdadeira.
Aprendemos que nosso espírito não é uma entidade separada de nós; ele é parte de
quem somos. Ganhamos consciência da natureza exata do que é certo em nós. Nossas
personalidades fragmentadas são recompostas em um todo maior e integrado.
Integridade é um estado em que nos sentimos inteiros: nossas ações, pensamentos,
sentimentos, ideais e valores se alinham. Leva-se muito tempo para que alcancemos
esse ponto na caminhada. Vamos, cada vez mais, alinhando nosso comportamento com
nossos valores e crenças em vez de alinhá-lo com nossos sentimentos e reações.
Quando deixamos a espiritualidade fluir de modo simples por meio de nós, permitimos
que ela seja universal, acessível a todos. No que quer que se acredite ser nosso poder
superior, ou mesmo se não temos um, fato é que todos nós temos um espírito – uma
luz em nosso âmago que nos impulsiona e nos torna quem somos. “Meu espírito é a
única coisa viva em mim”, disse um membro. “Meu corpo estava sendo arrastado como
uma presa que resiste. Nessa época achei que meu espírito estava morto, mas não – nós
é que não estávamos nos entendendo ainda.” Recém-chegados, às vezes, se perguntam
quando seu despertar vai chegar. Quando perguntamos, ele já começou a acontecer.
Podemos não ser capazes de identificar o momento simples e fugaz desse despertar,
mas sabemos que estamos vivenciando isso agora.
À medida que afastamos a confusão que nos separa da verdade, percebemos que nossa
luz brilha cada vez mais intensa. Essa é a beleza que encontramos nos olhos de alguém
que alcançou isso – seja um recém-chegado ou um companheiro com bastante tempo
limpo cujo semblante radiante preenche a sala com sua luz. Sentimos isso nas reuniões.
Muitos de nós já tiveram a sensação de entrar em um prédio em que muitos eventos
ocorriam simultaneamente para nos sentirmos em casa ao adentrarmos a porta de NA.
Da mesma forma, aprendemos que encontrar a vontade de Deus para nós é apenas uma
questão de nos colocarmos à disposição para sintonizar-se com sua energia. Quando nos
tornamos disponíveis para a vida, com a mente aberta, a coisa correta a se fazer tende
a se apresentar naturalmente. Deixamos de fazer esforço para procurar o que é certo.

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Um padrinho sugeriu a um afilhado “coloque os pés no chão, ao acordar. Tome banho.
Dirija-se a seus compromissos e os cumpra. Quando encontrar um obstáculo, vire-se
para o lado em que há uma saída e saia.” Aprendemos a ouvir nosso inconsciente –
aquela voz suave e calma dentro de nós que nos diz se estamos nos conduzindo na
direção correta. A saída está onde menos esperamos e ela nos conduz pelo caminho,
oportunidade ou milagre que, de modo algum, parecíamos buscar.
Ação criativa é mais do que simplesmente encontrar a saída. Uma vez que tenhamos
começado a viver, teremos infinitas escolhas sobre a direção que desejamos seguir. Isso
começa com estarmos disponíveis para a vida, mas não termina aí. Outro membro
partilhou “evoco meu Poder Superior a cada momento. Peço auxílio para a realização
das minhas rotinas diárias e isso me ajuda a amá-las cada vez mais. Acredito que a
vontade de Deus para mim é viver com gratidão, mesmo com as coisas mais ínfimas”. A
habilidade para aceitar a vida como esta se apresenta em seus próprios termos é parte
essencial do nosso despertar espiritual. Podemos aceitar isso ou padecer no sofrimento.
Viver espiritualmente é reconhecer que há espaço para seguir crescendo e se
desenvolvendo. Um membro partilhou “não é nenhum momento de insight grandioso
ou genial. É apenas esse entendimento calmo de que não estou fazendo as coisas
negativas que costumava fazer. Me sinto em harmonia com o mundo”. Começamos a
experimentar consciência e empatia com os outros. Nossa confiança e força nos são
restauradas. Nos vemos como parte de algo maior e buscamos viver em harmonia com
isso.
Nada disso significa que conseguiremos automaticamente o que desejamos. Nosso
relacionamento com um poder maior do que o nosso entendimento é importante
demais para considerarmos que ele só vibra em tempos de bonança. A vida dá e cobra.
Não é nada pessoal. O reconhecimento do nosso despertar espiritual inclui nos
sentirmos bem com os desdobramentos da vida embora alguns de nós não se sintam
bem com o que lhes possa ocorrer, às vezes. Sentimos dor, medo e raiva
frequentemente. Às vezes, ficamos confusos e pensamos que espiritualidade significa
que devemos estar sempre felizes e conseguir o que queremos e que, se isso não
acontece, algo está fora do lugar. Seria ótimo se assim fosse, mas recuperação não é um
conto de fadas. Quando vivemos alguma perda ou frustração, ou ouvimos notícias de
que não gostamos, ou provamos situações pelas quais daríamos tudo para não passar,
isso não significa que nossa espiritualidade não esteja funcionando. Na verdade, há
momentos que são simplesmente assim; não a sentimos muito poderosa mesmo. Com
essa consciência, nossa resposta a esses eventos e nossa percepção do nosso papel se
tornam mais proporcionais e apropriadas. Podemos agir diante desses fatos sem
exagero ou omissão. Passamos a viver no momento presente.

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Percorrendo o caminho

Se quisermos que a relação com nosso poder superior seja útil para nós, ela deve ser
honesta. Aprender a partilhar nosso medo, desapontamento e raiva exige coragem.
Rezamos de variadas formas. Muitos de nós começam seu diálogo com o Poder Superior
por preces formais, e essas podem se tornar ferramentas poderosíssimas. “Rezei a
mesma prece todos os dias da minha recuperação”, partilhou um membro. “Realmente
funcionou muito bem no começo. Mas agora, vinte anos depois, ganharam uma riqueza
e significado que eu nunca poderia imaginar”. Também aprendemos a falar com nosso
Poder Superior de maneiras menos estruturadas, compartilhando nossos sentimentos,
esperanças, medos e ideias.
É importante para nós nos lembrarmos de separar o que o trabalho de um passo em
específico nos ensina daquilo que nos dizem sobre ele. Do mesmo modo, nossa relação
com um Poder Superior, à medida que se desenvolve, pode não condizer com o modelo
que nos foi sugerido pelos outros membros, e pode ser bem diferente inclusive do que
algum dia imaginamos que pudesse ser. Nesse sentido, é bem parecida com nossas
relações em geral. A intimidade não é algo pré-definido ou previsível.
Uma das reservas que costumamos ter com um Poder Superior é que este não permitiria
que as coisas acontecessem como de fato ocorrem; o inferno da adicção pelo qual
passamos não pode ser criação de um Poder Superior amantíssimo. Há muitas saídas
desse beco, aparentemente sem saída, e não nos compete encontrá-la para os outros
membros. O que descobrimos é que nosso Poder Superior não nos poupa das
dificuldades que devemos enfrentar na vida, mas que recebemos a graça de atravessá-
las limpos. Aprendemos a lição ao passar pelas dificuldades. Percebemos que muito das
situações dolorosas pelas quais passamos e que gostávamos de atribuir a Deus são na
verdade consequências de nossas próprias decisões e ações. Talvez, mais importante
ainda, seja que essa dor, por nós vivida, pode ser transformada em uma ferramenta para
ajudar os outros. À medida que nos recuperamos e levamos a mensagem, descobrimos
que tudo por que passamos e que vivemos pode ser um recurso para que encontremos
aceitação, empatia, bem como as palavras para ajudar alguém a encontrar a saída do
seu desespero; somos impotentes diante da nossa adicção, mas com nossa rendição nos
tornamos uma ferramenta poderosa para a transformação em seu sentido mais
enriquecedor.
Essa transformação para cada um de nós, de fato, começa com a rendição. Descobrimos
cada vez mais que a aceitação da nossa impotência nos ajuda a nos libertarmos da dor
e do sofrimento. Começamos por aceitar que somos adictos. A partir do primeiro
momento em que admitimos nossa impotência perante a adicção, bem como que
havíamos perdido a direção de nossas vidas, começamos a nos sentir aliviados; esse
conforto inicial é a centelha da gratidão que vai nos guiar por nossa recuperação.
Gratidão não é apenas um estado de ânimo. É uma ação, uma maneira de nos
estabelecermos em relação ao mundo. Às vezes, é uma disciplina: pode dar trabalho

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para nos mantermos nessa atitude, especialmente quando estávamos acostumados a
ver o mundo com nossos filtros de preconceito e ressentimento. Humildade e gratidão
andam de mãos dadas. Costumamos dizer que somos gratos pelo que quer que
sintamos. Esse sentimento pode não vir naturalmente em um primeiro momento, mas
quando praticamos dizer “muito obrigado” começamos a reconhecer quanto se há na
vida para agradecer. Muitos de nós começam se despindo de suas defesas. Quando
começamos a perceber o tanto que somos agraciados pela vida, nossos problemas já
não nos amedrontam tanto como antes. Eles podem não ser resolvidos imediatamente,
mas começamos a ver que nossos questionamentos em relação ao Poder Superior são
muito menos importantes do que as recompensas que colhemos a partir da construção
dessa relação, mesmo que não a compreendamos ou nela acreditemos inteiramente.
Princípios espirituais parecem abstratos até que sejam praticados. Nossos valores são
princípios que adotamos para nos guiar. Eles podem mudar com o tempo, mas quando
os alteramos para nossa conveniência ou para agradar os outros, nós sabemos disso.
Cometemos esse erro algumas vezes até aprendermos a reconhecer isso. Paramos de
encenar nossos defeitos não porque estão errados, mas porque nos sentimos
demasiadamente desconfortáveis com isso. Passamos a conviver com a maneira como
nos sentimos.
Com frequência agimos orientados por princípios antes mesmo de internalizá-los
porque queremos simplesmente salvar nossas vidas. No começo, aprendemos os
princípios pelas sugestões que nos são dadas. À medida que os integramos em nossas
vidas, eles se tornam valores – ou seja, nós os valorizamos a tal ponto que se tornam
parte de nós. À medida que essa prática se integra mais à nossa vida, descobrimos que
podemos encontrar um estado em que a rigidez vai se suavizando. “Meu entendimento
de honestidade era tão rígido”, disse um membro, “que eu não conseguia nem mesmo
ser cauteloso para poupar os sentimentos dos outros. Um dia, me peguei em um dilema
sobre dois padrinhos: um me chamou e confessou que havia causado um grande mal ao
outro que, por acaso, estava em minha casa naquela ocasião. Uma honestidade crua
com ambos teria tornado a situação ainda pior. Aprendi a equilibrar o princípio da
honestidade com o princípio do anonimato. Desde então tenho aprendido a equilibrar
esses princípios com bondade e compaixão também”.
Usamos as ferramentas que associamos à espiritualidade desde o mais recente
momento em que entramos em contato com ela; praticamos a oração e a meditação,
vamos às reuniões, aceitamos sugestões, trabalhamos os passos. Uma vez que
identificamos como sentimos nossa espiritualidade ou como ela se nos apresenta,
reconhecemos que há outras coisas em nossas vidas que são espirituais. Fazer música é
um ato de oração para alguns de nós; sair para um passeio em espaço aberto pode ser
uma meditação. “Não sou uma pessoa religiosa de jeito nenhum”, disse um membro,
“mas eu estava um dia em um oceano, navegando, e pude sentir minha conexão com a
água me abraçando, com o céu acima de mim e com as pessoas na praia, senti tudo isso.
Esse sentimento de conexão foi algo poderosíssimo”. Quando praticamos nossa gratidão

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ao dar e dividir com os outros, começamos a sentir nossa conexão uns com os outros e
com algo maior.
Cada vez que sentimos essa conexão, entendemos melhor nossa espiritualidade. Nos
vemos como parte de algo maior e procuramos viver em harmonia com isso. Quando
atingimos essa harmonia, a liberdade que sentimos é inconfundível. Somos libertos de
nossos sentimentos de alienação e inadequação e do medo egocêntrico que algum dia
infectou nossos pensamentos e ações. Essa liberdade vem e vai, mas desde que
sentimos isso pela primeira vez, a esperança nos acolhe e faz a vida parecer algo que
não seja tão doloroso como em algum momento no passado pensamos que poderia ser.
A adicção é uma doença dolorosa. Nossa espiritualidade não extingue a dor, mas nos dá
a habilidade para seguir em frente e superá-la ao longo do resto de nossas vidas.
Podemos aceitar nossos sentimentos, senti-los e continuar a jornada. Começamos a
confiar que a dor que sentimos em certos momentos de nossas vidas não vai nos
consumir. Começamos a confiar em nós mesmos para sentir a vida sem medo de que
nossas emoções nos destruirão.
Parte do aprendizado é cometer erros. Aprendemos tanto ao perder o trem quanto ao
chegar ao lugar desejado. O inventário é o processo de voltar às nossas experiências
para descobrir em que ponto específico estivemos vivendo em harmonia com nossos
valores e quando isso não aconteceu. Se não fizermos o inventário pessoal, rezarmos e
meditarmos, não saberemos se estivemos praticando os princípios em todas as áreas de
nossas vidas; não viveremos despertos em conexão com a realidade. Os passos nos
mantêm afinados com os princípios e com nós mesmos. À medida que melhoramos
nisso, identificamos cada vez mais os lugares em que estamos perdidos na caminhada.
As pequenas coisas são frequentemente as que produzem as maiores diferenças em
nossas vidas. Do mesmo modo que uma pequena mudança em curso altera fortemente
o destino dos navios em alto mar, pequenas mudanças na maneira como lidamos com a
vida podem nos libertar de velhos padrões repetitivos e nos mostrar a saída para novas
dimensões do pensar e do agir.
Nós praticamos os princípios espirituais; testamo-nos e vemos quais os mais
importantes para nós. Contanto que estejamos disponíveis e abertos, continuamos a
mudar e a crescer. Nossos valores se tornam claros para nós à medida que agimos. Os
princípios antes praticados como exercícios, ou porque nos foram sugeridos, se tornam
parte de nós. Coisas que são profundamente difíceis no começo da nossa recuperação
se tornam automáticas com a prática e o tempo. Podemos não nos dar conta dessa
mudança até perdermos por um momento os novos hábitos recém adquiridos. Por
exemplo, pode ser bem duro começar a ir a reuniões de novo quando estivemos
afastados por um tempo. A frequência em sala, antes um hábito, agora, mais uma vez,
requer disciplina. Fica mais fácil com a prática, como foi no início.
À medida que vamos melhorando nossa prática da recuperação, temos menos medo de
nós mesmos. Desenvolvemos novas habilidades e nos acostumamos à ideia de praticar
os princípios em novas áreas de nossas vidas, mesmo quando sentimos medo.
Entendemos que a dor pode ser um catalisador para a mudança e não apenas uma

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ameaça ao nosso recém-descoberto equilíbrio. Por outro lado, também aprendemos
que dor não é o mesmo que crescimento embora ela nos estimule, sim, a agir se
quisermos encontrar alívio. Experimentamos, assim, mais disponibilidade para a ação e
isso nos liberta. Nossa tolerância à dor diminui e impulsiona a nossa necessidade de
mudança.

Espiritualidade em ação

Compreender e incorporar os passos e tradições é importante para todos nós. Mas é


preciso que coloquemos em prática o que aprendemos. Quando nos engajamos no
serviço desinteressado, vemos que todos os princípios que aprendemos e amamos são
evocados e praticados. Não é fácil sair de nós mesmos, mas é precisamente isso que nos
liberta das prisões em que nos colocamos. Às vezes, fica claro que precisamos mudar ou
que estaremos em perigo; em outros momentos, sentimo-nos livres para ficar onde
estamos, mas isso pode significar que estamos nos subestimando. Há muitas ações que
podemos adotar quando precisamos mudar, mas as mais simples são as mais
importantes. Quando damos aos outros de nós, saímos do nosso egocentrismo e
ganhamos uma perspectiva diferente das nossas vidas. Por incrível que pareça, as coisas
que fazemos desinteressadamente são as que mais nos produzem sentimento de
gratificação. O serviço desinteressado é algo que fazemos para o nosso Poder Superior,
para os nossos irmãos e para nós mesmos. Quando somos parte desse processo, vemos
um poder maior nos usando como canais para fazer a diferença na vida das outras
pessoas. Mesmo quando vemos isso acontecer, achamos difícil e costumamos negar
essa realidade.
No começo estávamos no modo sobrevivência, mas com o tempo passamos a viver uma
vida além do que sonhàvamos. Muito embora ouçamos isso nas reuniões por anos,
ainda é surpreendente quando nosso mundo se abre e se desdobra. Às vezes isso pode
ser aterrador. Há momentos em que a vida se descortina diante de nós com tantas
possibilidades que isso pode parecer estranhamente vazio. Nós que estivemos às voltas
com más escolhas em nossa ativa por tantos anos descobrimos que muitas escolhas
diante de nós podem nos deixar bem desconfortáveis. Precisamos encarar e resolver
nossa resistência para assumirmos um compromisso com o programa. Podemos sentir
medo desse salto. Não há como saber aonde ele irá nos levar.
Podemos sentir medo de querer as coisas com tanta avidez e por isso parecermos
egoístas ou temermos que elas nos sejam retiradas. Um membro partilhou “creio que é
inadmissível falhar e acredito que fui um fracassado. Então para mim, não havia saída.
Eu precisava de ferramentas para sobreviver à minha própria humanidade.” Libertar-se
de nossas velhas ideias não é algo que alcancemos com facilidade, e de modo algum,
isso acontece de súbito. E graças a Deus não é assim. A verdade é que, se houvesse a
possibilidade de vivermos o processo da recuperação de uma vez só, não resistiríamos.

49
Aceitar nossa liberdade é um ato de coragem espiritual. Um membro partilhou, “no
início da minha recuperação alguém me disse que agora eu poderia ter uma vida. Foi
como se eu ouvisse isso pela primeira vez; o barco da vida estava passando por mim,
mas eu não conseguia me enxergar nele. NA me fortaleceu o espírito para ser corajoso
na vida, para vivê-la”. Nossos sonhos e desejos podem nos servir de orientação. Aquele
“vislumbre fugaz” pode não ser para onde estamos indo, mas pode apontar o caminho
da jornada.
Quando nos abrimos para seguir nossos sonhos, terminamos indo além deles. Um
membro confessou que “... tenho medo de que, se conseguir o que quero, não haverá
mais nada a ser feito em minha recuperação”. Atingir nossos objetivos não é o fim da
linha. Alcançar um objetivo é, com frequência, apenas o início de uma nova fase em
nossas vidas. Muitos de nós estão acostumados a ser movidos por crises ou desastres. É
preciso prática para aprendermos a nos motivar por outra coisa que não seja
simplesmente a dor. Estarmos disponíveis para nos aventurarmos e agirmos porque
sentimos que aquilo é correto exige um novo tipo de confiança. Um membro partilhou,
“assim como luto para listar minhas qualidades no quarto passo, também o faço para
listar meus objetivos e as coisas que aprecio agora”. Transformamos necessidade em
desejo e obsessão em determinação. Quando colocamos abaixo nossas defesas, nossas
resistências e aceitamos a liberdade de verdade, sentimos a beleza da jornada que
abraçamos.
Depois de anos em recuperação, podemos olhar para trás e ver o trabalho que fizemos
e nos sentirmos gratos e satisfeitos – assim como igualmente pelas lacunas que ainda
existem. Há um momento em nossas vidas em que reconhecemos quanto do trabalho
foi feito a serviço da crença de que, se fizermos as coisas certas, conseguiremos o que
desejamos. Quando percebemos que o que temos procurado não é contato consciente,
mas conforto constante, ficamos em choque. Nos perguntamos se a nossa relação com
o Poder Superior é falsa ou se nossa recuperação é uma mentira. Alguns despertares
são dolorosos. Enxergamos com clareza e o que vemos pode ser assustador. Quando
acordamos para a escuridão que há em nós, dói. “A primeira vez que olhei dentro de
mim e vi de verdade as coisas que havia feito”, disse um membro em uma partilha,
“pensei que aquilo fosse a verdade sobre quem eu era. Fiquei apavorado. Pensei que
havia tido a oportunidade de ver toda essa graça ao meu redor para perceber apenas
que isso não era pra mim”.
A habilidade para mudar nossas premissas sobre o mundo é uma liberdade das mais
importantes que temos, porque nos possibilita ver alternativas que não víamos antes.
Disfarçamos nossa baixa autoestima com a falta de interesse pelas coisas que nos
cercam e vemos nossas vidas como caminhos estreitos entre alternativas ruins. “Eu me
via como um obstáculo à realização da vontade de Deus”, disse um membro. Nossa
relação com um Poder Superior foi severamente danificada por nossa adicção, e isso
pode ser das coisas mais difíceis de serem reformadas.
Sabemos que indiferença ou intolerância em relação aos princípios espirituais é
bastante perigoso. Às vezes, ainda desenvolvemos um tipo de intolerância diferente

50
depois de estarmos limpos por um tempo. Podemos construir um conjunto de crenças
quando estamos em recuperação e resistir a qualquer coisa que pareça ameaçá-las ou
questioná-las. Mas é precisamente aí que a nossa perspectiva sobre a verdade pode ser
revista. A verdade não é o que muda; é o que sabemos e o que entendemos dela. À
medida que nos aproximamos da verdade, entendemos que ela não pode nos machucar,
ainda que seja dolorosa no momento. Um membro partilhou, “desapegar-me de velhas
crenças foi tão difícil porque eu realmente não sabia com o que deveria começar”. O
trabalho de passos pode nos ajudar com a descoberta daquilo em que acreditamos e se
nossas crenças funcionam para nós.
“Eu costumava me sentir envergonhado, estranho e vazio quando rezava”, outro
membro admitiu. “Minha relação com o Deus da minha concepção me exigia
perseverança. Tive que me manter rezando por um tempo em que não sentia nada.
Levou muito tempo até isso se tornar natural para mim”. Manter-se tentando quando é
difícil ou quando não se sente nada é um ato de fé. Passamos por esses dias difíceis,
praticando uma rotina espiritual. O hábito nos conduz até o ponto em que os
sentimentos mudam. Temos fé que a experiência de nossos companheiros de alguma
forma nos ajudará.
O exercício de boa vontade para começar uma relação com um Poder Superior há que
ser recheado de determinação, mas podemos hesitar no início. Primeiro colocamos o
dedo na água. Podemos nos perceber numa luta para rezar e meditar por um longo
tempo antes de sentirmos que algo aconteceu, que estamos nos conectando. Um
membro partilhou, “tentei muitas práticas diferentes por sete anos até encontrar a
graça no lugar certo. Encontrar o caminho para a minha espiritualidade foi como
encontrar o sapato que especialmente feito para mim”. Outro membro partilhou que
ela era tão resistente a rezar que seu padrinho teve que recorrer a extremos: “coloque
seu texto básico de um lado da sala, sente-se do outro lado e estenda sua mão”, disse o
padrinho. “Pronto, você acaba de rezar”. Rezar é um ato de pedido de ajuda e conexão.
É um ato de humildade e honestidade e, para alguns de nós, é a primeira ação humilde
e honesta na vida.
Podemos nos sentir mais confortáveis na velha rotina desgastada do que em uma nova
planície com campos verdejantes. É comum não nos darmos conta de que estamos
estagnados até permanecermos assim por um tempo, e então vermos que é difícil
abandonarmos o lugar de conforto estéril. Precisamos estar disponíveis para sentir o
desconforto da estagnação se não quisermos ficar paralisados. Tentar algo novo pode
trazer uma rendição de que precisamos. Pode ser muito difícil experimentar a liberdade.
“Como um adicto, sou uma criatura de hábito”, disse um membro. “É a terceira vez que
vou ao mesmo restaurante e peço a mesma coisa”. Nosso conforto com hábitos torna
mais fácil aderirmos a uma rotina. O medo de uma doença, às vezes, nos faz recuar
diante de um passo mais arriscado. Testar novas perspectivas, crenças e experiências
faz parte de uma vida espiritual.
Nossas certezas podem nos manter afastados da humildade de que tão
desesperadamente precisamos para crescer. Mente aberta é um pilar da nossa

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recuperação e isso inclui atentar para a programação. Quando deixamos de aprender,
estamos em perigo. Muitas vezes criamos barreiras onde holofotes eram mais
apropriados. Quando construímos mais muros que pontes, fechamos as portas às
possibilidades; nos trancamos em velhos modos de ver e pensar o mundo. É fácil cairmos
nessa armadilha. Quando finalmente encontramos um pouco de alívio, tendemos a nos
apegar a isso. Mas à medida que o alívio se transforma em alegria e gratidão, ele se
torna mais precioso para nós. Podemos sentir tanto medo de perder o que ganhamos
que impedimos a continuação do nosso crescimento.
Podemos acreditar que só há uma maneira de NA funcionar e que essa é a maneira que
funcionou para nós até aqui. Quando alguma prática ou maneira de ser que adotamos
salvou nossas vidas, podemos evitar nos desviarmos dela. Aquele grão de areia salvou
as nossas vidas e isso pode realmente ser útil quando estamos levando a mensagem
também. Mas nesse limiar entre o que nos salva e o que nos impede de continuar
crescendo, podemos nos tornar obstinados e teimosos e excluirmos membros que não
fazem as coisas da nossa maneira. Quando pensamos que sabemos exatamente o que o
programa tem a oferecer, não permitimos que haja espaço para que ele cresça ou para
que nós cresçamos com ele. Pior ainda, quando chega o tempo em que precisamos de
algo mais, convencemo-nos de que não haverá mais nada disponível em NA. Por isso
nossa boa vontade em dividir nossa experiência em recuperação é primordial para
ajudar os grupos que frequentamos a experimentar o mesmo crescimento e renovação
que sentimos como indivíduos.
Vivemos muitos começos em nossa recuperação. Aprendemos desde o início que
podemos começar a qualquer momento. À medida que avançamos, aprendemos que
podemos sempre começar uma nova jornada de recuperação e recomeçar sempre que
necessário. Não precisamos deixar que nossas vidas explodam para recomeçarmos de
novo. Podemos pensar que estamos acabados quando, de fato, estamos apenas
começando. Quando NA nos deu tudo que pedimos, isso foi o início de uma nova história
para nós, um novo capítulo. A conquista dos nossos objetivos é um novo começo na
nossa jornada, e à medida que ela continua, precisamos de todas as ferramentas que
nos forem apresentadas. Só porque já as usamos antes não significa que devamos
guardá-las.

Contato consciente

À medida que desenvolvemos mais maneiras de nos relacionarmos com o Poder


Superior, nos beneficiamos de todas as outras relações em que nos envolvemos. Para
alguns de nós isso nunca envolve um Poder Superior ao qual se chame por Deus: “minha
confiança está depositada na unidade de NA”, disse um membro, “é isso que vai me
ajudar quando eu precisar. NA me carregou quando não eu podia caminhar”. Aprender
a rezar é um processo. A jornada em si é a própria recompensa. “Aprendi a oração da
serenidade sem a primeira palavra, pois não acreditava nela. Quando estava

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trabalhando o terceiro passo pela primeira vez, comecei a rezar dizendo “muito
obrigado”. Mas na maior parte do tempo agora não se trata de “por favor” ou de
“obrigado” ou qualquer outro tipo de diálogo padronizado. Só deixo vir o que houver de
ser. Respiro fundo e acolho este momento tranquilo de conexão”.
A prece nos ajuda a libertar-nos do medo e da desconfiança e a viver na fé. Não temos
que entender esse processo para que ele funcione. Abrimos as portas para uma fé
profunda dentro de nós que nos permita enfrentar a adversidade com serenidade. “Me
esforço para praticar a prece a cada momento,” disse um dos membros. “Claro que falho
todos os dias, mas a prática tem mudado minha perspectiva. Estou bem consciente de
quão frágil e preciosa a vida é”. Em vez de perder tempo nos perguntando porque as
coisas acontecem como acontecem, buscamos o que podemos aprender com isso”. Um
membro partilhou, “no início da minha recuperação minhas preces eram atos
esporádicos de desespero e rendição. Aprendi a oração como forma de praticar um
contato consciente. Agora, penso que se posso me lembrar do meu Poder Superior no
momento, minha vida se transforma em prece, minha sabedoria é ativada na meditação
e eu passo a viver de acordo com a vontade do meu Poder Superior. Sou livre
espiritualmente e estou tão mais distante da adicção ativa quanto mais próximo da
alegria pura presente em cada momento da existência”.
Muitos membros acreditam que o Poder Superior se comunica por meio das pessoas
com quem entram em contato. Um membro explicou que “partilhar nas reuniões é a
forma mais sublime de oração, porque o Poder Superior está lá – eu posso senti-lo. Eu
preciso fingir que há alguém na minha frente e falo com Deus como se fosse com essa
pessoa. Às vezes ela me responde o que desejo saber”. A escuta ativa é uma forma de
meditação. Algumas das mensagens mais importantes nos são entregues por pessoas
de quem não gostamos. Quando ouvimos com a mente aberta, a mensagem de que
precisamos está lá. Uma das dádivas da empatia é abrir-se para ouvir a verdade do
outro. Aprendemos a nos confortar em nós mesmos. A paz espiritual se torna o alicerce
da nossa estabilidade emocional, e isso nos encoraja a assumir riscos. Quando
acalmamos nossa mente, podemos captar melhor as respostas de que precisamos.
Constantemente as respostas, em busca das quais estamos, se encontram bem à nossa
frente.
Em um certo sentido, o contato consciente com um Poder Superior não é diferente de
qualquer relação. Encontrar alguém todos os dias no mesmo horário e lugar é um bom
começo para se conhecer esta pessoa, mas para se melhorar essa relação precisamos
estar dispostos a compartilhar e dividir nossa vida com franqueza. Intimidade é algo que
cresce com o tempo. Quando estamos próximos a alguém em um momento difícil,
aprendemos se podemos confiar ou não nessa pessoa. As relações que cultivamos e
sobrevivem às dificuldades são preciosas para nós.
Estar presente no agora e sentir-se feliz, consciente e conectado são sentimentos que
ouvimos reiteradamente na partilha de membros quando se referem à oração e à
meditação. A maioria de nós não sente essa sensação profunda de unidade com cada
momento, mas só de saber que podemos sentir isso às vezes já nos traz uma sensação

53
de segurança. “O momento efêmero pelo qual anseio é o de uma paz interior que não
se baseie em nada que está no exterior. Eu só tenho que estar disponível para
desconstruir meu mundo o suficiente para ter essa chance”. Ainda que provemos essa
paz só por um momento, podemos mantê-la em nossos corações à medida que
avançamos na caminhada. Um membro partilhou: “eu estava exausto pelas palavras que
me vinham à cabeça dizendo que eu não era bom o bastante e nada ficaria bem. Então
em um dia de meditação eu lancei mãos sobre esses pensamentos de todos os
instrumentos que NA me ensinou a tocar. Sabe, estamos compondo boas canções
agora”.
Quando percebemos que a palavra “ritual” integra a palavra “espiritual”, damo-nos
conta de que é importante que nossa espiritualidade tenha algum tipo de expressão
regular e rotineira. Praticar os princípios é o mesmo que praticar qualquer exercício.
Quanto mais regular e consciente você estiver disso, mas você entende, aplica-os e se
desenvolve. “Quando não faço minha oração matinal”, partilhou um membro, “sinto-
me desconectado, como se meu motor tivesse funcionando somente com a minha
própria gasolina, a meio tanque”. Naturalmente, não dizemos a ninguém como, quando
e onde rezamos. O contato consciente pode até não envolver qualquer palavra. Mas
algum tipo de pausa regular para a reflexão é útil. “Luto para chegar aos meus 100%”,
disse um membro. “Eu progrido bem na busca de algum objetivo e então tenho medo,
recuo e então me censuro por não cumprir o que havia programado para mim.” A prática
espiritual regular nos ensina a disciplina para cumprir o que planejamos.
A habilidade para alcançar um objetivo decorre da prática diligente. Ganhar alguma
autonomia com nossos pensamentos positivos é uma das recompensas da meditação.
Nossa prática nos ajuda a focar e ver além da névoa que tolda a clareza do
entendimento. Lembramo-nos então de colocar o programa em primeiro lugar e
respeitar nossos próprios limites. Esforçamo-nos para, a cada dia, nos manter
equilibrados espiritualmente. Às vezes, somos mais bem-sucedidos que outros
membros da irmandade. Quando agimos movidos por amor e humildade, percebemos
as maravilhas do que alcançamos. Paramos de ter medo de nós mesmos e encontramos
coragem para lutar por aquilo em que acreditamos.
Nosso compromisso com Narcóticos Anônimos pode ser a primeira promessa que
mantemos na vida. “Eu sempre busquei liberdade sem restrições, livre de qualquer
autoridade. A maneira como me convenci disso foi me tornando uma espécie de
nômade. Quando você nunca fica em nenhum lugar por algum tempo, você pode fingir
que suas escolhas não te prendem, que você não deixa nenhum rastro no mundo. Minha
bagagem emocional estava sempre na porta de saída. NA me mostrou o caminho para
fazer algo com o qual nunca havia concordado antes: ficar em vez de fugir.” Precisamos
acertar as contas com nossa resistência para nos comprometermos com o programa. O
amor incondicional que aprendemos na irmandade é uma das coisas mais sólidas que
vivemos. A confiança que nos presenteia com a coragem para ficar, a despeito do nosso
desconforto, é a recompensa decorrente da prática do contato com nosso Poder
Superior.

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Cada vez mais descobrimos que os princípios do programa guiam nossas escolhas. A
habilidade para escolher com sabedoria se inicia quando somos capazes de ser honestos
com nós mesmos sobre as razões e os motivos que abrigamos verdadeiramente. Às
vezes, não fazer nada é a coisa mais espiritual que temos a fazer. Isso nos afasta de ter
que fazer reparações depois, e nos dá tempo para procurar a orientação do nosso Poder
Superior. Podemos sentir sem sermos engolidos por nossos sentimentos. A risada e a
alegria podem ser tão espiritual quanto a prece e o serviço. Alguns de nós dizem que a
iluminação começa quando nos iluminamos.

Ação criativa do espírito

À medida que ganhamos mais confiança na nossa espiritualidade, sentimo-nos mais


livres para improvisar, não só em nossa prática espiritual, mas na maneira como
vivemos. Tornamo-nos mais abertos para fazer a coisa certa e abandonar o medo.
Saímos de uma conduta em que deixamos somente de bater o ponto para migrarmos
ao ponto de servirmos a um poder maior que nós da melhor maneira que pudermos.
Começamos por aceitar e seguir sugestões e, assim, progredimos ao fazer as coisas
certas pela razão certa. Podemos parar aí – mas se nos esforçarmos, teremos a
oportunidade de ir além do que esperávamos. Nossa experiência estabelece muito da
nossa ambivalência sobre a espiritualidade. Nós seguimos em frente na nossa relação
com o Poder Superior sem nos preocuparmos tanto sobre as coisas de que não sabemos
ou não entendemos. Cada vez que uma experiência nos desperta novamente, ficamos
mais conscientes do poder que nos toca e nos pede que despertemos para a vida.
Grandes ou pequenos, nossos despertares estimulam nossa disponibilidade para
praticarmos os princípios e levarmos a mensagem. O serviço muito nos ensina sobre
nossa espiritualidade. É como mostramos nosso amor e gratidão, mas é também como
aprendemos a vida espiritual. Quando estamos juntos e agimos em conjunto, somos
maior do que a soma das partes, mais sábios do que nossas próprias decisões e mais
poderosos do que imaginamos. A segunda tradição nos lembra que um Deus
amantíssimo dirige os nossos esforços no serviço e que podemos ver isso quando os
breves reveses ou desentendimentos por que passamos, de alguma forma, não
interferem na missão que assumimos de levar a mensagem ao adicto que ainda sofre.
Percebemos que o Poder Superior trabalha por meio de NA e acreditamos que, da
mesma forma, ele pode fazê-lo por meio de nós. Um membro partilhou, “quando meu
grupo de escolha adia uma decisão porque não temos certeza do que fazer, é comum
decidirmos melhor depois. Aprendi a fazer isso na minha vida pessoal: quando reservo
um tempo para rezar, decido melhor”.
Alguns veem o serviço em NA como um espaço de treinamento: é onde se pode
aprender a praticar princípios de aceitação e respeito mútuo. Nem sempre é de modo
gentil, mas dividimos um propósito e um vínculo comum. Em NA somos sempre iguais e
por isso estudantes e professores. Não importa o tempo, sempre há mais o que se

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aprender sobre nós quando estamos envolvidos. “Servi no início apenas para me
encaixar. Com o tempo desenvolvi um desejo genuíno de servir a Narcóticos Anônimos.
O serviço me faz sentir bem comigo. Estou sendo útil, tenho esperança e rezo a cada dia
para que novos membros se juntem ao serviço e ajudem a levar a mensagem. Leva muito
tempo para NA crescer. Para ver esse crescimento, tenho aprendido a ter paciência,
esperança, a praticar a aceitação, a amar e a me comprometer.
Podemos fazer tanto por este mundo. Uma vez que encontremos a recuperação, nossa
adicção não mais nos limita. Somos valiosos na irmandade e fora dela. “Hoje entendo
que sou um instrumento a serviço da vontade do meu Poder Superior. Tenho a escolha
de me sintonizar e compor uma canção de verdade ou apenas fazer barulho. Ao aderir
a princípios espirituais somos capazes de viver, trabalhar e aceitar as situações do
mundo real, dentro e fora de NA. Quando trabalhamos os passos na ordem correta,
aprendemos a aplicá-los nas situações diárias nas quais nos vemos envolvidos. Se os
praticarmos, não precisaremos usar drogas nunca mais, e poderemos seguir
melhorando continuamente nossa habilidade de servir e lidar com o que a vida nos
trouxer. Admitimos que somos impotentes, pedimos ajuda, admitimos nossos erros,
trabalhamos nossos defeitos, fizemos reparações e rezamos por uma direção
permanentemente. À medida que aplicamos esses princípios aos nossos pensamentos
e ações diárias, potencializamos a qualidade das nossas vidas.
Começamos a nos resolver com o trabalho de passos como uma parte contínua de
nossas vidas. Expor-nos, quer contando nossa história ou fazendo um inventário, nos
ajuda a organizar o caos existente em nós. Vivemos o aprofundamento do crescimento
espiritual cada vez que abraçamos o trabalho de um passo. Nos rendemos mais e mais,
desapegamo-nos e confiamos no processo: a cada vez uma porta se abre dentro de nós.
A fome que nos corroía por dentro é preenchida com a prática da oração, meditação e
com o serviço. Os grilhões representados pelos nossos defeitos começam a ser rompidos
e ganhamos liberdade então para vivermos plenamente. As condições estreitas que nos
definiram algum dia deixam nosso caminho e começamos a sonhar, imaginar, criar,
resolver problemas ou simplesmente buscar a alegria de uma vida verdadeiramente
plena. A programação nos propicia uma fundação sólida. Podemos usá-la para alcançar
qualquer coisa, contanto que isso esteja centrado em princípios espirituais. Aprendemos
a confiar que os princípios de NA nos guiarão nas várias áreas de nossas vidas.
É importante termos convicção do que fazemos. Não mudamos mais quem somos para
nos adaptar ao que acontece ao nosso redor. Em razão desse novo senso de convicção,
temos clareza sobre o caminho a ser seguido. “Antes de encontrar NA, eu era um
covarde e um bajulador. Meu despertar espiritual me impeliu a ficar firme em minhas
crenças”, partilhou um membro. Ressentimento, medo e arrogância nos alijam de nossa
espontaneidade, criatividade e liberdade. Abrimos o canal quando começamos a agir
com amor, sem interesses mesquinhos. Aprendemos a respeitar e amar as pessoas sem
buscar a sua aprovação.
Tornamo-nos membros responsáveis em nossas comunidades, levando o que
aprendemos nas reuniões para a prática em nossas vidas. O serviço é muito importante.

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Em outros momentos, nossos caminhos nos conduziram a sermos úteis aos outros,
direta ou indiretamente. Um dos sentimentos mais maravilhosos é o de sentir-se parte
da humanidade. Quando praticamos princípios espirituais, experimentamos consciência
e empatia com os outros. A espiritualidade nos ensina a nos sentirmos humanos. Depois
de tantos anos de isolamento, um sentimento de bem-estar nasce em nós, assegurando-
nos que estamos certos ao estarmos exatamente onde estamos.
Praticamos esse modo de vida com nossas famílias, pessoas do trabalho e em todas as
outras relações. Fazemos o melhor que podemos a cada dia. Às vezes melhoramos bem
pouco ou fracassamos; mas em outras ocasiões progredimos bastante ao praticar esses
princípios. Nosso progresso não é sempre constante, mas podemos ver que está
funcionando ao longo do tempo. Aprendemos a viver os princípios. Começamos a dizer
não quando algo não é correto para nós, ainda que percamos a aprovação de alguém
nesse processo. Aprendemos a cuidar de nós e de nossas responsabilidades, bem como
a não culpar os outros quando as coisas não ocorrem como gostaríamos. Começamos a
ver as possibilidades de crescimento disponíveis para nós nos nossos melhores e piores
dias.
A liberdade da adicção ativa e a esperança nos foram dadas de graça. Não precisamos
trabalhar para isso. Mas chega um tempo em que não há mais “só o receber”. Chega-se
a uma encruzilhada; muitos de nós param aqui e nunca ficam sabendo o que perderam.
Recebemos as recompensas da recuperação ao retribuir, passando adiante, por
gratidão, o que aprendemos com o que nos foi dado e, por esperança, confiando no que
está por vir. Dedicar amor ao serviço é viver a espiritualidade também. Primeiro
recebemos, depois doamos e então compartilhamos. Viver plenamente é um ato de
expressão criativa de amor dedicado ao nosso Poder Superior. Viver plenamente e
desperto, bem como viver com honestidade sobre quem somos é uma dádiva que
damos e que recebemos.
Nossa conexão espiritual nos conduz a uma nova vida de alegria, completude e
aprendizado infinitos. Descobrimos dentro de nós a paixão pela vida. Nossa experiência
se transforma em ferramentas para a cura e chaves para a compaixão. Encontramos em
nosso interior a luz e a beleza que nunca suspeitamos possuir. Qualquer que seja a forma
como experimentemos o contato consciente, um sentimento de aceitação e alívio do
tumulto, que um dia já nos povoou, parece tomar conta de nós. Os princípios de
Narcóticos Anônimos são instrumentos para lidarmos com o que quer que a vida nos
brinde. Buscar nosso Poder Superior nos aproxima ao máximo do desejo que nosso
coração abriga: sentir-se amado, útil e parte de algo maior que nós.
O alicerce espiritual que encontramos em NA nos dá a confiança para viver e apreciar a
vida, ajudar os outros e levar a mensagem ao adicto que ainda sofre com a certeza de
que estamos sendo guiados para estar onde é necessário que estejamos. Começamos a
nos sentir conectados com o mundo ao nosso redor e nossa vida passa a ter propósito.
Encontramos a coragem para seguirmos nosso coração, nossa voz interior, para
criarmos, comprometermo-nos, explorarmos novas possibilidades e vivermos de forma
plena e gratificante.

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Chegamos a Narcóticos Anônimos com a esperança apenas de sobreviver e o que
encontramos foi amor, coragem, um senso de conexão e de direção. Em toda nossa
existência, procuramos a paz e a segurança que vivemos quando entramos em
recuperação. À medida que buscamos a vontade do Poder Superior para nós,
entendemos nossa missão. O despertar espiritual é um processo. Talvez seja a essência
do processo. Nutrimos nossos despertares e então sabemos que finalmente estamos
livres para viver com dignidade e integridade, bebendo dessa graça.

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CAPITULO 4 – O eu físico

Cada um de nós tem sua própria maneira de se enxergar na vida. Somos seres em um
corpo, além de seres espirituais e também emocionais. Como adictos, tendemos a nos
alienar – este sentir-se à parte, excluído – e, às vezes, a separar-nos de nós mesmos
como se todos os pedaços que nos formam não pudessem constituir uma pessoa inteira.
Mas quando nos concentramos no que é real, podemos começar a nos aceitar com todas
as nossas contradições. Então todos esses pedaços que nos compõem se juntam como
um lindo e colorido caleidoscópio mutante. Desapegamo-nos da ideia de que esses
pedaços precisam se alinhar perfeitamente para que tudo esteja bem. Podemos então
ver uma harmonia maravilhosa em nossas vidas somente pelo fato de estarmos
conscientes do que está acontecendo dentro de nós – física, emocional e
espiritualmente.
Falamos muito sobre como nossa adicção afetou nossos corpos, mas curiosamente a
parte física da recuperação é ignorada em um grau impressionante. Libertamos nossas
mentes e espíritos, transformando-os na medida da conexão com nosso Poder Superior,
mas com nossos corpos a história pode ser outra, bem diferente por sinal. Nossas vidas,
física, emocional e espiritualmente, estão profundamente interligadas e costumamos,
de modo equivocado, pensar nesses aspectos como partes separadas. Não será possível
viver com plenitude todas essas dimensões se não trabalharmos para interconectá-las e
harmonizá-las. Se não lidarmos com o aspecto físico da nossa recuperação, corremos o
risco de nos desconectarmos da nossa espiritualidade.
Cuidar de nossos corpos pode ser algo desafiante. Podemos ir e vir entre nos permitir
caminhos que parecem egoístas ou excessivos, nos punindo por isso, ou ainda empilhar
dezenas de restrições na tentativa de controlar padrões que julgamos serem sintomas
da nossa adicção. Depois de longas batalhas para se alcançar um comportamento
saudável, descobrimos que o que precisamos fazer é nos render. Na imensa maioria das
vezes, descobrimos a verdade sobre os passos em nossas vidas quando ajudamos um
membro mais jovem na irmandade a trabalhá-los.
Muito embora tenhamos nossas crenças sobre como deve ser a relação com o nosso
corpo, a maioria de nós sente que não está dando a devida atenção a esse aspecto.
Muitos membros querem nos dizer como fazer isso, mas a verdade é que adotar um
olhar honesto sobre como nos relacionamos com o nosso corpo é algo completamente
novo e assustador. Muitas vezes nos afastamos da liberdade que o programa tem a nos
oferecer por não conseguirmos exercitar o desapego. Estamos conscientes da nossa
imperfeição, mas a vemos como algo que devêssemos controlar e não a que podemos
nos render.
Nosso senso de humor nos possibilita extrair uma atitude positiva a partir da nossa
autoimagem negativa. Quando somos capazes de rir de nós mesmos, algo se ilumina em
nós. Fazemos o trabalho, mas também aprendemos a brincar e a relaxar. Passamos a

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enxergar não somente nossos defeitos, mas também o que existe em nós que podemos
amar. O equilíbrio em nossas vidas é algo tão dinâmico como andar em uma corda
bamba. Para funcionar, precisamos nos mover. Estamos em movimento constante e é
assim que também nos enxergamos.

Um relacionamento

Uma relação com nossos corpos é apenas isto: uma relação. Pode ser do tipo saudável
e recompensadora ou do tipo abusivo e destrutivo. Na maioria das vezes é algo entre
um e outro. Vivemos e crescemos, melhoramos e pioramos e vemos que o processo
raramente é uma linha reta em uma única direção. Como qualquer outra relação,
requer-se comunicação e responsabilidade, ou seja, prestar atenção aos nossos corpos,
fornecendo-lhes o que é necessário, cuidando e pedindo ajuda quando se precisa. Para
a maioria de nós, isso não é algo que aconteça naturalmente. Um membro partilhou,
“Eu precisava aprender a tratar meu corpo como algo que não fosse meu inimigo”.
Muito poucos de nós chegam a NA com educação e experiência sobre o que é bom para
si. Mesmo quando sabemos mais sobre isso, ter vivido uma vida de adicto significa que
passamos longos períodos de tempo abusando e negligenciando nossos corpos.
Nossa relação com nossos corpos foi problemática: passamos muito tempo tentando
escapar deles. Fomos ao extremo, não só misturando todos os tipos de drogas, passando
por overdoses e buscando ficar cada vez mais “chapados”, mas também tendo ficado
acordados por dias para então, na sequência, dormir quase na mesma intensidade.
Comemos de modo bizarro e nada saudável; vendemos nossos corpos ou fizemos sexo
de modo leviano, sem a devida proteção. Em suma, expusemos nossos corpos a estados
de violência extremos. Nossa doença exige satisfação imediata de modo que aprender
a cuidar de nossos corpos leva tempo, assim como o processo de cura. Podemos desejar
que os resultados venham logo no início, mas a verdade é que eles se acumulam
gradualmente.
A qualidade das relações varia com o tempo. Às vezes cuidamos de nós e às vezes não.
Às vezes confundimos aquilo que parecemos com o que somos e como somos e
pensamos que mudar o que está fora consertará o vazio que sentimos por dentro.
Quando não cuidamos com a devida atenção e respeito do nosso corpo, certamente
estamos com problemas, seja de autoestima, seja por não termos noção de prioridades.
Se não cuidamos da nossa morada, muito provavelmente não estamos igualmente
cuidando de nossas emoções e de nosso espírito. Oscilações de humor podem
igualmente significar problemas de ordem física. Quando percebemos mudanças na
maneira como nos sentimos ou reagimos, vale a pena se questionar mais
profundamente sobre o que está acontecendo e isso inclui a relação com nossos corpos.
Alguns problemas ou mudanças na vida trazem adaptações para as nossas relações com
nossos corpos como parar de fumar, engravidar, a chegada da menopausa, ou a simples

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recuperação de um machucado. Assumir um trabalho que nos exige mais do que
estávamos acostumados a dar ou trabalhar em um horário diferenciado pode realmente
afetar como nos sentimos e como nos cuidamos. Mudanças emocionais, como o começo
ou término de uma relação amorosa, também podem mudar a maneira como nos
enxergamos e nos relacionamos com o nosso corpo. Se as mudanças serão para melhor
ou pior, cabe a nós, ao final, essa decisão.
O cuidado com nós mesmos nos encaminha para outras dimensões da liberdade, o que
inclui, por exemplo, o aumento do nosso nível energético, da nossa autoestima,
disciplina e a liberdade de movimento. Com isso, desenvolvemos a habilidade de agir
em outras áreas de nossa vida. Se resistimos a mudanças maiores, muito provavelmente
o fazemos com aspectos menores que são necessários para que aquelas aconteçam.
Quando não estamos agindo em uma área específica da nossa recuperação,
frequentemente isso pode ser um indicador de que uma transformação está a caminho.
O colapso em geral precede o avanço na caminhada.

Nos rendendo

No terceiro passo tomamos a decisão “de entregar nossa vontade e nossas vidas aos
cuidados de Deus como nós o concebemos”. Muitos de nós tomaram essa decisão cedo
em suas caminhadas de recuperação, mas nosso desejo de controle se expressa de
muitas maneiras diferentes. Não é uma decisão que tenhamos que tomar apenas uma
vez. Cada vez que retornamos a esse passo, nossa resistência se reduz, nosso
compromisso se fortalece e nossa habilidade de nos render aumenta. Alguns sugerem
que estamos em um processo de rendição progressiva. Retomamos o controle e o
abandonamos, mas, a cada vez, somos capazes de nos desligar mais desse nosso desejo
e, a cada vez que o fazemos, uma parte rígida em nós se dissolve de uma vez por todas.
A próxima vez em que nos dispomos a nos observar percebemos que ainda estamos
tentando controlar aqui e ali: “Eu posso virar a página dessa parte da minha vida”,
dizemos, “mas da outra parte preciso tomar conta”. Encontrar a linha tênue entre a
responsabilidade pessoal e a vontade controladora é um desafio constante. Um outro
membro partilhou que para ela, “a rendição real é render-se ao fato de que eu precisarei
me render para o resto da vida”. É diferente para cada um de nós. De fato, para a maioria
de nós, as respostas mudam ao longo da recuperação.
Sentir-se bem e em casa em nossos corpos pode parecer algo que vai além dos nossos
sonhos mais insanos. Sentimo-nos muito gordos ou magros, muito altos ou baixos,
muito velhos ou jovens. Alguns de nós sentem que nasceram no tempo, lugar, gênero e
cultura errados. Mal reconhecemos as pessoas que vemos no espelho ou em fotografias:
“Não pode ser eu!” Quando algo está errado do lado de fora, precisamos olhar do lado
de dentro para compreender as razões disso. Nosso senso de alienação surge de todas
as maneiras. Podemos simplesmente não nos sentir confortáveis em nosso próprio
corpo.

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Trazemos esses problemas para a recuperação junto conosco, mas isso pode acontecer
um pouco antes de percebermos sua importância. Muitos de nós compartilham nas
reuniões que ficaram em pele e osso quando ficaram limpos; falamos menos, no
entanto, sobre nossa resposta quando nossos corpos começam a se curar e quando
começamos a ganhar um pouco de peso. Alguns de nós pensam que uma vez que se
começa a ganhar peso, isso não vai parar. Podemos brincar dizendo “largamos o
cachimbo, a latinha – enfim, tantos outros objetos que a nossa compulsão nos fez usar
para manter nossa adicção - e pegamos o garfo”, mas nem sempre isso é divertido.
Podemos nos sentir profundamente envergonhados e horrorizados com nosso ganho de
peso. Alguns de nós pensam em voltar a usar para lidar com isso. Podemos ficar limpos
e descobrir que o comportamento compulsivo – comer até vomitar, ficar horas em
jejum, abusar de laxantes, tentar dietas radicais, usar o sexo como fuga, nos entupir de
açúcar e outras substâncias que, embora não nos tirem a consciência, são tão viciantes
quanto aquelas que nos destruíram, traz seus próprios problemas e sua própria carga.
A obsessão com nosso peso pode nos conduzir de volta a comportamentos de “jogos de
controle” com nós mesmos: nos recusamos a comer, nos exercitamos compulsivamente,
nos punimos para nos colocar em forma.
A substituição pode ser uma ferramenta importante para nos manter afastados das
nossas drogas de ativa ou para nos ajudar a substituir o comportamento destrutivo, mas
também pode criar seus próprios problemas. Padrões de comportamentos compulsivos
alternativos ao uso de drogas geralmente surgem depois de ficarmos limpos. Muitos de
nós descobrem que nossa relação com a comida é complicada. Talvez nunca tenhamos
sabido como nos alimentar adequadamente. Francamente, havia coisas mais
importantes em nossa adicção. Comíamos em horários irregulares, nos alimentávamos
de junk food ou não comíamos de jeito nenhum. Acostumamo-nos a ficar com fome, ou
vomitar, ou ainda, comer tanto quanto pudéssemos por medo de que não comeríamos
nunca mais.
Nosso folheto “auto-aceitação” nos adverte: “às vezes tropeçamos no melodrama de
desejar ser aquilo que achávamos que deveríamos ser”. Costumamos agir como se isso
somente se aplicasse às nossas partes que não enxergamos. Entendemos que a
liberdade dos nossos defeitos de caráter vem por meio da aceitação de quem nós
somos, bem como da boa vontade para permitir que um Poder Superior os remova. Mas
quando se trata de perceber nossos problemas em relação ao nosso “ser físico”,
costumamos abordar o problema com tentativas de nos controlar ou nos punir. Criamos
regras rígidas e tentamos viver de acordo com elas. Agimos como se essas obsessões e
compulsões fossem de algum modo diferentes de outras que já nos obrigaram a viver a
dádiva da rendição. Pode ser difícil saber a diferença entre comportamentos que nós
precisamos mudar por nós mesmos e outros que exigem rendição. Estamos no caminho
errado quando nos apegamos a padrões irracionais e nos censuramos por não alcançar
nossas expectativas doentes. Por outro lado, permitir-nos sermos humanos não significa
vivermos sem limites; significa que procuramos sanidade em nossas vidas ao adotar as
ações que podemos e entregar os resultados ao Poder Superior. É deixar fluir, não se
intrometer.

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Muito embora tenhamos bastante experiência em compartilhar nossas lutas com um
Poder Superior e permitir que ele atue em nossas vidas, muitos de nós lidam com a
relação com seus corpos como se os devessem controlar pela força de vontade. Quer
estejamos aprendendo a nos alimentar bem – ganhando ou perdendo peso - quer
deixando de fumar ou abandonando outros hábitos destrutivos, é comum esquecermos
que temos um programa que nos ensina a ser livres. Em vez disso cometemos o erro
segundo o qual “temos que nos manter sob controle”. Pode ser que nunca consigamos
nos enxergar livres da doença da adicção, mas isso não significa que não possamos viver
com liberdade.
Medo de mudar é comum entre os adictos – afinal de contas, somos criaturas de hábito.
Mas, às vezes, isso chega a extremos. Podemos nos paralisar pelo medo. Às vezes, o que
tememos são resultados ou consequências específicas. Às vezes, experimentamos uma
espécie de fobia crônica que se apresenta em todas as áreas de nossas vidas: evitamos
assumir riscos a um ponto em que nossas vidas se tornam pequenas. Alguns de nós se
afastam do prazer e de “sentir a vida”, quer porque estão com medo do futuro, quer por
estarem com medo das memórias que podem ser despertadas. Tememos que nos
render possa significar liberar nossos impulsos mais destrutivos.
Alguns de nós se escondem ao não se cuidar. Abandonamos os cuidados pessoais,
inclusive a higiene; ganhamos peso ou simplesmente nos apresentamos como alguém
com quem não nos importamos muito. Podemos nos tornar invisíveis ou nos esconder
da atenção dos outros ou mesmo nos afastarmos de um hábito antigo que não
conseguimos mudar. Quando admitimos nosso medo e o fazemos honestamente,
percebemos que as ações que empreendemos para evitar que sejamos machucados
muitas vezes são mais destrutivas que as consequências que tanto tememos. Mas
quando realmente nos rendemos, praticando a auto-honestidade, somos livres para ser
tudo que somos, sem medo, sem culpa, sem reservas. Isso libera um fardo e tanto que
carregamos.
Começamos a sair do buraco que cavamos para nós mesmos quando reconhecemos que
nosso comportamento não está funcionando. Começamos a praticar e adotar o hábito
de “apreciar as pequenas coisas sobre nós mesmos: a maneira única como nos
movemos, como nossos olhos brilham quando falamos de coisas que nos interessam, o
calor que sentimos por estarmos conectados a um Poder Superior.” Celebramos o fato
de que somos únicos e temos beleza para oferecer ao mundo. Somos únicos e isso
constitui nossa maior dádiva; quando esquecemos isso, abrimos a guarda para que a
doença volte à nossa vida.
Quando voltamos ao costume antigo de não nos gostarmos ou nos odiar, nossa
habilidade de amar fica prejudicada. Caímos de volta no velho sentimento de que não
temos valor ou que estamos arrasados. À medida que entregamos ao nosso Poder
Superior nossos defeitos de caráter e outros fardos que temos carregado, começamos
a descobrir a verdade sobre nossa humanidade, nossa espiritualidade e nossa beleza,
aceitando que isso é um dos trabalhos mais difíceis, mas também, mais belos que algum
dia faremos.

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Autoaceitação vem à medida que desenvolvemos uma relação saudável com a
realidade. Aceitamo-la e aprendemos a aplicar a oração da serenidade, mudando o que
podemos e deixando o restante nas mãos de um poder que nos é superior. Descobrimos
que podemos ser felizes na nossa própria pele se estivermos dispostos a nos render –
não no sentido antigo de nos negligenciar, mas permitindo-nos experimentar a
liberdade por meio da ação criativa. Começamos a vivenciar nossos sentidos. O texto
básico nos diz que somos “livres para apreciar as coisas simples da vida, como... viver
em harmonia com a natureza”. E isso é verdade! Quando vemos as cores cambiantes
nas folhas ou sentimos o vento em nosso rosto, sentimos a alegria de estarmos vivos.
Encontramos a doçura no prazer que sentimos e que se havia ido há muito tempo.
Alguns de nós descobrem que querem fazer arte; que querem se comunicar de modo
criativo. Podemos pensar em algo mais atlético como correr, nadar ou dançar. Nos
perdemos no momento e vemos que não precisamos pensar de modo algum, só sentir
a dádiva do agora e sermos nós mesmos. Quando expressamos a alegria que temos ao
viver, ela se apresenta em nossos movimentos, nosso trabalho, no brilho do nosso olhar.
Há uma beleza em nós que transborda a soma das nossas partes. Quando permitimos
que esse espírito brilhe por meio de nós, tornamo-nos belos não importa o que
pensemos que possamos parecer.

Sexo

Perguntar em uma sala repleta de adictos como foi sua experiência com o sexo pode
produzir algumas respostas bem estranhas. Muitos de nós lutam de alguma maneira
com sua sexualidade. Descobrir o que é certo e errado para nós nessa área pode ser
bem desafiante. Cada um de nós se virou com esse aspecto da vida à sua própria
maneira. Os passos disponibilizam as ferramentas para que possamos acertar as contas
com nosso passado e vivermos livres das associações negativas que alguns de nós
fizeram com a sua sexualidade. Começamos por aceitar que há muito por ser descoberto
sobre esse tema que ainda não sabemos. Ter boa vontade para ver o que está na raiz
das visões que temos sobre a sexualidade dos outros e a nossa pode nos ajudar a
entender nossas crenças.
Muitos de nós se sentem muito mais confortáveis com o sexo do que com a intimidade.
Lutamos contra problemas como autoaversão, desprezo pelos outros e abusos.
Podemos perceber que preferiríamos ter uma relação sexual desprotegida a uma
conversa difícil. Ter um diálogo aberto e honesto com nosso padrinho nos conduz a um
novo nível de confiança. À medida que experimentamos intimidade em uma relação, a
possibilidade de desenvolver essa habilidade com nossos parceiros e outras pessoas
também aumenta.
Algumas de nossas maiores vergonhas decorrem das coisas que fizemos no aspecto
sexual. Nossos comportamentos passados podem refletir quão desesperados
estávamos para conseguir e usar mais, ou eles podem ter sido o melhor que podíamos

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fazer para encontrar amor e conexão. Abuso sexual também pode fazer parte das nossas
histórias e pode ser um assunto absurdamente doloroso de se conversar com alguém.
Podemos pensar que somos os únicos. Mas, pelo contrário, isso é notavelmente comum
entre adictos. Encontrar as palavras certas – e um lugar seguro para proferi-las – pode
ser a diferença entre ser capaz de viver conosco ou passar nossas vidas fugindo do
passado. Examinamos nossa história no quarto passo e começamos a separar quem nós
somos do que nos aconteceu ou do que fizemos. Curar-nos leva tempo, mas realmente
é possível e acontece. Devemos ser pacientes conosco. Aos poucos, sentimos a
liberdade decorrente da cura de alguns de nossos ferimentos mais dolorosos e
profundos. À medida que se clareia mais o turbilhão da confusão e a contradição de
nossas vidas, podemos nos mover adiante com menos do peso que trazemos em nossas
mochilas, antes repletas de mágoas e ressentimentos com o passado.
Lutamos em nossas relações. Membros com mais experiência sugerem que evitemos
nos relacionar no primeiro ano e que coloquemos nossa recuperação em primeiro lugar,
mas muito poucos de nós seguem esse sábio conselho. Começamos nossa recuperação
sozinhos e inseguros. Estamos crus emocionalmente e nosso senso de julgamento ainda
está bastante debilitado. Nosso ímpeto nos leva às relações e descobrimos quão
desafiadoras elas são. Duas pessoas doentes raramente formam um casal equilibrado.
Confundimos novidade com amor e podemos nos descobrir já em um compromisso
antes mesmo de conhecer o outro ou temendo tanto o compromisso que mal damos
uma chance ao nosso parceiro. Abrimos as portas da recaída quando nos pegamos em
surtos de obsessão e compulsão. Tentamos e, às vezes, erramos. Cada erro traz uma
dádiva e um perigo: podemos aprender com nossos erros e usá-los para nossa melhora
ou deixar que nossa culpa e remorso nos conduza porta afora do programa. Quanto mais
prática adquirimos ao usar os passos e outras ferramentas de recuperação, mais somos
capazes de usar nossos erros para avançarmos na construção de nós mesmos.
Definimo-nos em parte por nossa sexualidade. Para alguns, essa definição é a maior
porção da identidade. Às vezes manejamos isso como uma arma para justificar o fato de
nos sentirmos diferentes. Podemos estar mais conscientes das pessoas que não estão
abertas para nós do que aquelas que estão. Nas salas de Narcóticos Anônimos nos
sentimos confortáveis independentemente da nossa sexualidade. Encontramos pessoas
que nos amam e com quem nos sentimos confortáveis não importa quais sejam nossas
crenças sobre a sexualidade.
Embora alguns de nós tenham chegado na irmandade seguros de sua identidade sexual,
outros lutam com a confusão e distorções acerca das questões de gênero e orientação
sexual. Podemos ter adotado comportamentos que eram incompatíveis com nossas
crenças somente para continuarmos a usar ou sermos aceitos e reconhecidos pelos
outros. Ou simplesmente buscamos sexo da mesma forma que fizemos com as drogas,
sentindo-nos completamente sem controle ou domínio sobre esse comportamento.
Alguns de nós viveram isso relação após relação sem nunca realmente se sentirem
preenchidos. Muitos de nós confundiram conexão sexual com intimidade e se tornaram
tão dissociados de seus sentimentos e desejo de conexão emocional que se

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contentaram com uma interação apenas física. Isso pode nos acompanhar em nossa
recuperação e nos conduzir a uma luta contra a vivência da intimidade emocional. Para
aqueles de nós que usaram o sexo como uma maneira de lidar com o mundo, pode levar
um tempo para descobrir a diferença entre sexualidade e intimidade. Trabalhar esses
problemas leva tempo: confiar em nossos padrinhos e amigos próximos, boa vontade
para desafiar nossas certezas, fé e autoaceitação, tudo isso vem com o tempo.
O próximo capítulo abordará nossas relações com mais detalhes. Aqui, por hora, é
importante saber que uma parte importante sobre como viver em nossos corpos é
aprender a reconhecer a realidade da nossa sexualidade. Queremos aprender a
expressar nossa sexualidade de maneira saudável e gratificante – algo inimaginável em
nossa adicção ativa.
O sexo se torna diferente quando estamos limpos. Quando não estamos anestesiados
ou artificialmente estimulados, podemos nos sentir presentes em nossa própria
experiência, bem como para o nosso parceiro de uma maneira bastante diferente da
que costumávamos vivenciar. Às vezes, isso pode parecer assustador e, às vezes, pode
ser bastante excitante. Encontrar prazer em nossa sexualidade sem pensar nisso como
uma moeda de troca ou exercício de poder pode nos possibilitar experimentar uma
grande liberdade; para alguns de nós, isso demora mais do que para outros. Podemos
nos apreciar, e ao outro de modo inteiro, no momento, e aprender o que realmente é
nos conectar. Podemos então vivenciar a intimidade. Podemos nos abrir e sermos reais.
Não precisamos usar o outro como fazíamos com as drogas; quando tratamos os outros
como seres humanos, encontramos nossa própria dignidade.

Aventura e busca de emoção

Bem depois que a obsessão do uso cessou, muitos de nós ainda procuram a “fissura” do
uso de outras maneiras. A busca por excitação nos leva a viver vidas emocionantes
plenas e ricas de aventura aparentemente. Não temos medo de assumir riscos e
buscamos a oportunidade de fazer coisas que sempre quisemos. Às vezes, no entanto,
parece simplesmente que ficamos viciados em nossa própria adrenalina. Quer seja em
jogo, sexo, drama, podemos acelerar tão rápido que nem percebemos que estamos
descendo uma ladeira. Podemos nos distrair com comportamentos de risco enquanto
estamos tentando, na verdade, é preencher um vazio ou bloquear um sentimento. Cabe
a cada um de nós encontrar um equilíbrio entre uma busca desenfreada por uma fissura
destrutiva ou realmente viver nossas vidas na realidade plena.
Um número surpreendente de membros são fãs de esportes radicais. Um membro que
costuma escalar montanhas cobertas de neve disse: “Nesses momentos quando
realmente estou no pico da vida e da morte, quando não tenho certeza de como vou
encontrar um novo lugar para encaixar minha pisada, é quando sinto que estou presente
no momento. Não penso nas contas, na esposa ou no trabalho, somente em como é

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bom estar vivo e como posso me manter assim”. Alguns de nós se engajam em esportes
competitivos ou halterofilismo e realmente se sentem muito entusiasmados sobre o que
estão fazendo. Encontramos uma paixão e um compromisso nessas atividades que
pareciam haver se perdido com a nossa adicção. Temos a liberdade de tentar novas
coisas e assumir novos riscos.
Muitos de nós gostam de motos e um impulso similar pode nos levar a pilotá-las.
Gostamos da sensação de liberdade, tanto quanto de poder e também de nos arriscar.
Alguns de nós dirigem seus carros em alta velocidade e partilham que o entusiasmo não
decorre apenas de se andar rápido, mas de se sentir em fuga e transportando algo.
Podemos pensar que isso não se aplica a nós, até nosso padrinho nos sugerir que
tentemos obedecer às leis de trânsito por uma semana – só como uma experiência.
Enquanto alguns de nós encontram maneiras razoáveis de continuarem perseguindo a
fissura ao longo da recuperação, outros descobrem a necessidade de estabelecer raízes
depois de um tempo – ou que os destroços que criaram simplesmente se tornaram
grandes demais.
Às vezes, sem uma válvula de escape para nossa energia, nos sentamos em nossa própria
ansiedade. Pode ser surpreendente aprendermos que a ansiedade vem da mesma fonte
de onde jorra o entusiasmo; é uma energia útil que podemos canalizar para coisas boas
ou que pode ser incrivelmente destrutiva. O mesmo poder que alimenta nossos
impulsos destrutivos pode alimentar nosso entusiasmo, criatividade e ambição; pode,
igualmente, nos dirigir à aventura ou ao caos. Como muito do que descobrimos sobre
nós mesmos, pode ser um ativo valioso ou um defeito com forte poder de destruição,
dependendo de como o usarmos.
“Quando me vejo no meu medo egocêntrico”, disse um membro, “eu assumo riscos que
podiam me fazer perder tudo. Eu vivia no limite, embora limpo, para poder sentir outra
coisa que não o abismo de não usar. Eu preenchia o vazio com coisas como jogo,
compras, qualquer coisa que me fizesse sentir poderoso quando me sentisse sem poder.
Agora que consigo me enxergar mais claramente, eu percebo que tenho que ser mais
agressivo no tratamento da minha doença, levando sua natureza destrutiva em
consideração”.
Em alguns momentos, pode parecer que estamos agarrando nossa recuperação com
ambas as mãos. Mas há momentos em que nós escavamos, tentando buscá-la, por meio
de uma obsessão para usar. Por vezes, há momentos em que o medo da nossa doença
nos leva a um colapso ou a uma resistência à mudança ou ainda medo de uma novidade
porque qualquer coisa que nos tire da rotina pode nos pôr em risco. É assim que
pensamos. Para alguns de nós, no entanto, se render e se entregar pode ser mais
dramático ainda. Mas a recuperação nem sempre é sobre se esquivar: quando sabemos
que nossas vidas estão aos cuidados de um Poder Superior, que é amantíssimo e maior
do que nós, somos capazes de nos render e nos entregar. Alguns de nós expressam isso
literalmente, indo saltar de paraquedas ou de bungee jumping para se divertir.
Começamos a experimentar a vida como uma aventura e a aplicar o princípio da boa
vontade em outras áreas de nossa existência.

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Bem-estar e saúde

A vida é uma aventura e somos capazes de ir além e vivenciar muito mais do que algum
dia sonhamos. Somos capazes de viver além dos muros que nos impusemos quando nos
rendemos aos limites reais que se encontravam diante de nós. Outra porta se abre toda
vez que uma se fecha: com autoaceitação vem a boa vontade para explorar novas
direções com o uso da nossa criatividade. Muitos de nós se arrependem do tempo ou
habilidades perdidas, mas quando realmente nos propomos a iniciar nossa jornada de
exploração com a mente aberta, descobrimos que temos outras opções que talvez
nunca houvéssemos considerado.
Tivemos uma relação difícil com a palavra “deveríamos”. Temos passado muito tempo
da vida nos rebelando contra as coisas que os outros esperam de nós, mas quando
ficamos limpos descobrimos que temos longas listas de coisas que pensamos que
“deveríamos” fazer ou estar fazendo. A paranoia do “deveria” é tão grande que não
importa o que estejamos fazendo, parece que está errado. Nossas expectativas sobre
nós mesmos podem ser tão esmagadoras que chegam a nos mutilar às vezes. Uma parte
importante de se desenvolver novos hábitos que sejamos capazes de sustentar é
encontrar razões mais apropriadas para as atividades que desejamos realizar em vez do
velho bordão “eu deveria estar fazendo isso ou aquilo”. É muito mais provável que os
comportamentos gratificantes se incorporem em nossas vidas quando aplicamos o
princípio da ação criativa na busca de novos hábitos ao contrário de assumirmos algo
porque imaginávamos que aquilo era o que “deveríamos estar fazendo”. É bem verdade
que teremos que persistir um pouco antes de encontrarmos as recompensas. Quer seja
a paz que encontramos ao fazer atividade física ou a gratificação de ver nosso
desenvolvimento, quer seja a melhora de alguma habilidade, sentimo-nos satisfeitos em
saber que somos capazes de manter um compromisso que assumimos com nós mesmos.
Para alguns de nós, a atividade física é algo que fazemos apenas para cuidar de nossa
saúde. Mas para outros, é algo mais. “Quando estou correndo”, disse um membro, “eu
capto um sentido do que seja rezar. Minha mente se torna clara”. Encontrar uma
conexão espiritual no exercício físico é mais fácil para alguns de nós do que na meditação
em alguma posição parada. A atividade física é mais fácil de se fazer quando é parte da
nossa prática espiritual do que quando se trata simplesmente de fazer o que
“deveríamos” fazer.
Alguns de nós encaram o autocuidado como um aspecto permanente do processo de
reparação. Começamos por não nos engajar em nenhum ato de abuso contra nós
mesmos e, gradualmente, aprendemos a tratar nosso corpo, mente e espírito com
dignidade e respeito. Quando cuidamos do nosso bem-estar como de um amigo
querido, começamos a nos sentir diferentes sobre quem somos e sobre quem podemos
nos tornar. Mudamos do “eu deveria” ou do “eu tenho que” para “eu faço” e
descobrimos que cuidar de nós não é uma tarefa; é um privilégio. Quando nos tratamos

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com compaixão, aprendemos a nos valorizar. Nos exercitar diariamente pode ser uma
maneira de agir com respeito próprio e construir uma relação diferente com nossos
corpos. Podemos nos desapegar do nosso tumulto emocional sobre o que parecemos
ou pensamos que parecemos e começarmos a nos amar como somos. Somos capazes
de andar com dignidade e tratar os outros com respeito. Começamos por nos enxergar
com um senso de unidade: abandonamos a ideia de que nossos corpos estão separados
de nossos espíritos ou de nós mesmos.
Nos sentimos renovados e recuperados fisicamente e percebemos que somos capazes
de nos levar além dos limites que havíamos nos imposto. Estabelecer objetivos físicos
para nós e alcançá-los nos traz imensas recompensas. À medida que experimentamos a
liberdade de nossa doença por meio da prática dos princípios do programa, aprendemos
que disciplina é, na verdade, uma parte essencial da liberdade: ganhamos liberdade para
buscar nossos sonhos e fazemos isso estabelecendo e alcançando um objetivo de cada
vez.
Podemos resistir em cumprir as metas estabelecidas para se alcançar um objetivo, bem
como em nos tornar “demasiado saudáveis”. Nos afastamos de tudo que podemos ser,
seja porque sentimos que não merecemos, seja por medo da mudança que isso nos
acarretará. Às vezes, precisamos rezar pela boa vontade e isso pode iniciar o processo
de mudança. Um simples ato de preparar uma refeição balanceada pode ser o começo
de algo maior; à medida que incorporamos padrões saudáveis em nossas vidas,
começamos a nos sentir renovados, restaurados e aptos a estabelecer novos objetivos.
Pode levar um longo tempo para se abandonar a crença segundo a qual, de alguma
forma, as regras simples da vida não se aplicam a nós, desde o limite de velocidade às
leis da física. Por haver cortejado a morte por tanto tempo, alguns de nós pensam que
são imunes a ela. Muito embora estejamos mais conscientes, o poderoso senso de que
estávamos fazendo a coisa certa - ainda que isso fosse usar drogas - e que nos
automatizou em fazer o que nos era exigido para manter esse hábito, não desaparece
imediatamente. Ademais, muitos de nós se confundem com o sentimento de que, por
estarmos limpos, o mundo deveria celebrar esse triunfo e nos conceder, por
consequência, o que queremos.
Para alguns, esse falso sentimento é tão profundo que produz uma percepção distorcida
segundo a qual cuidar de si não parece uma responsabilidade e, sim, uma obrigação que
compete aos outros. Nossa literatura sugere que “por nossa inabilidade em aceitar
responsabilidades pessoais, criamos nossos problemas”. Conversar com o padrinho ou
madrinha em busca desse entendimento é fundamental. Então perguntamos a eles
“quais são nossas responsabilidades e quais não são? Quando olhamos para isso,
podemos descobrir que nos sentimos mais responsáveis pelos outros que por nós
mesmos. Aprender a nos cuidar é parte fundamental do processo de responsabilização
que passamos a assumir por nossa vida e isso pode se mostrar surpreendentemente
difícil.

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Um de nossos membros veteranos costumava partilhar que “não há nada mais triste
que um adicto com alta tolerância à dor”, e a verdade é que muitos de nós lutamos
contra isso. Alguns de nós suportaram muita dor física e abusos; muitos de nós
suportaram terríveis sofrimentos emocionais. Faz sentido que o adicto seja um sujeito
do tipo durão. A resiliência parece trazer sua própria recompensa e isso certamente é
uma habilidade de sobrevivência que não estamos dispostos a abandonar. Para muitos
de nós, essa tenacidade é parte da nossa identidade, tanto em termos de como nos
enxergamos como em termos de como queremos que o mundo nos conheça. Qual seria
o problema, afinal de contas, com o fato de sermos capazes de suportar tanto?
A resposta é a questão essencial. Quando vemos um adicto na ativa com alta tolerância
à dor indo para o buraco, podemos ver quão desnecessário é esse sofrimento. Mas em
nossas vidas podemos não perceber quando estamos fazendo a mesma coisa. À medida
que trabalhamos os passos, vemos que toleramos bem mais do que precisávamos e
provavelmente mais do que é saudavelmente aceitável. Um membro partilhou que “não
vivo mais como um animal, mas quando ignoro a dor que persiste em meu corpo e
desejo que ela vá embora, isso ainda representa uma forma de sofrimento
desnecessário”. Aprender que as regras realmente se aplicam a nós significa que,
quando algo está errado, paramos para olhar com atenção o problema.
Ser um bom governante do nosso corpo significa aceitar que ele precisa de cuidado e
manutenção. À medida que nos recuperamos, muitos de nós descobrem que adquirem
uma nova importância na vida de suas famílias. Desenvolvemos amizades profundas;
nos tornamos úteis em nosso trabalho e nossas comunidades. Onde antes éramos um
fardo, agora somos importantes para os outros. Fazemos diferença! Ao não cuidar de
nós e vivermos de modo destrutivo, descobrimos que a velha mentira “o mal que faço
é apenas a mim mesmo” é um disfarce para o sentimento de “fracasso”. Para as pessoas
que se importam conosco, não nos cuidarmos é, no mínimo, frustrante. É muito comum
que essas pessoas se vejam, mais uma vez, cuidando de nós. Cuidar-nos é um ato de
reparação não somente conosco, mas também com as pessoas que nos amam e com
nosso Poder Superior. É uma maneira de demonstrar gratidão por estarmos vivos.

Doença

Muitos de nós sofrem de doenças decorrentes da adicção. Algumas podem ser


consequência direta de nossa adicção ou de coisas que aconteceram enquanto
usávamos drogas. Outras podem não ter nada a ver com a nossa doença, mas impactam
em nossa recuperação. Às vezes, parece que elas tomam conta de nossas vidas inteiras.
Aprender a usar as ferramentas que NA nos oferece para lidar com nossos outros
desafios faz parte de viver a vida como ela é.
Quando sofremos ou vemos alguém sofrendo, queremos entender isso e, portanto,
buscamos uma explicação. Mas um impulso positivo pode se transformar em algo

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negativo. Assim, queremos uma explicação, mas terminamos por julgar ou culpar o
outro. Constantemente, nos momentos em que mais precisamos de carinho e conforto,
ficamos com raiva de nós mesmos, de nosso Poder Superior, de qualquer coisa.
Afastamos aquilo de que mais precisamos. Fantasias sobre o que é e o que não é “justo”
tendem a nos manter no ressentimento e na autopiedade. Às vezes, tentamos apoiar
nossos companheiros na tentativa de encontrarem uma explicação e sentimos que
estamos apenas contribuindo para que mais culpa se amontoe. Então podemos mudar
a perspectiva aos poucos e olhar para a lição em vez de buscar uma explicação. Talvez o
que precisemos seja apenas colocar os questionamentos de lado e viver o dia.
Quando algo se passa com nossa saúde, temos a opção de aceitar e lidar com isso ou
fingir que nada está acontecendo. Grande parte do tempo que escolhemos negligenciar
o que sabemos ser verdade é porque sentimos medo ou porque não queremos nos
incomodar com isso. Para alguns de nós, o medo de ser submetido a tratamento médico
é compreensível, especialmente se isso traz a possibilidade de se usar alguma
medicação. Avaliar os riscos e benefícios não é fácil. Encontrar um médico em quem
possamos confiar torna o processo mais tranquilo. Aos poucos passamos a considerar
que não cuidar do problema pode piorar as coisas. Entregar nas mãos de um Poder
Superior o que está além de nossas capacidades de resolver não é o mesmo que ignorar.
Quando agimos e deixamos os resultados a cargo de um poder maior que nós, nós
estamos nos rendendo. Entretanto, quando não assumimos a responsabilidade, mas
esperamos por uma resposta mágica, não estamos trabalhando o terceiro passo;
estamos sendo irresponsáveis. Fé não é o mesmo que um desejar superficial.
Há uma diferença entre negação e recusa. Quando estamos na negação, não temos
consciência de que estamos. O fato pode ser evidente, mas não o vemos. Quando
finalmente dizemos “estou negando os fatos”, isso já não é mais verdade, pois nesse
momento, fazemos uma escolha consciente de aceitar o que é real ou de não mais
fingirmos ou nos iludir. Quando nos recusamos a admitir a verdade, estamos em perigo.
A rebeldia pode ser fatal. “O agir como se” é uma ferramenta que podemos usar para o
bem e para o mal.
O medo que nos impede de seguir caminhando pode ser proveniente de muitas causas.
As opiniões de outras pessoas sobre nós ainda podem ser importantes o bastante para
que arrisquemos nossas vidas por isso; o estigma da doença, quer venha da reação da
sociedade na maioria das vezes, de nossos entes queridos ou mesmo de nossos
companheiros de NA, pode nos afastar da procura por um tratamento. Nosso próprio
senso de julgamento e medo também pode nos surpreender. No início da recuperação,
aprendemos algo sobre projeção: o que realmente nos incomoda nos outros
provavelmente é o que precisamos trabalhar em nós. Da mesma forma ocorre com este
medo: o que imaginamos que os outros podem estar dizendo sobre nós é muito
provavelmente aquilo em que nós mesmos estamos pensando. Podemos precisar agir
muito antes de nos julgarmos prontos com essa questão.
Podemos ficar surpresos ao perceber, por exemplo, como um problema dentário pode
nos conduzir ao sexto ou sétimo passos novamente. Mas quando reconhecemos que

71
nosso medo tem impedido que nos cuidemos, identificamos o trabalho que precisamos
fazer. Às vezes isso nos ajuda a olhar para a ação que precisamos empreender como
parte do processo de reparação; estamos lidando com os destroços do nosso passado.
Um membro partilhou, “gastei uma parte do meu segundo ano de recuperação
consertando meu dente e percebi que muitos outros faziam a mesma coisa. Isso deu
uma tremenda aumentada na minha autoestima e constituiu uma reparação importante
com meu corpo”. Isso pode ajudar na relação com o décimo passo ao se abordar o que
está errado no momento presente. Alguns de nós sentiram que criaram seus próprios
problemas de saúde como resultado da adicção e que esse quinhão lhes pertence. O
texto básico diz que embora não sejamos responsáveis por nossa adicção, somos
responsáveis pela nossa recuperação; isso nos leva a crer que isso se aplica tanto a nosso
corpo quanto a nosso espírito.
Podemos sentir verdadeiramente medo de ficarmos doentes. Se é um diagnóstico
particular ou uma ideia geral de que “há algo de errado conosco”, isso pode ser um tipo
de impotência que não estamos de modo algum prontos para aceitar. Podemos temer
que nossos problemas de saúde nos gerarão incerteza em nossas finanças, carreiras e
famílias: ou que a medicação poderá colocar nossa recuperação em risco. O medo que
sentimos de algo, até aqui fora do nosso controle, pode ser surpreendente para pessoas
que assumiram tantos riscos inconsequentes em suas vidas. As percepções, às vezes,
são bem diferentes e sem sentido. O medo nos dá a chance de agir com coragem.
Podemos, às vezes, não nos sentir muito corajosos, mesmo quando lutamos, encarando
o que está errado e lidando com tudo da melhor maneira que podemos; mas é nesses
momentos que, ao seguirmos a programação, servimos como canais poderosos para o
que poderia parecer impossível. Demonstramos nossa firmeza de caráter.
Quando usamos as ferramentas que o programa nos disponibiliza – pedindo ajuda ao
nosso padrinho e procurando a experiência, força e esperança dos outros, permitindo
que nosso grupo de escolha nos apoie, bem como recorrendo ao “Em tempos de
doença” e outras literaturas de NA – somos capazes de tomar decisões com as quais nos
sentimos confortáveis e, assim, agimos na direção correta. Esses são momentos que
definem nossa recuperação.
Podemos começar por barganhar com Deus, prometendo toda sorte de coisas se ele,
como em um passe de mágica, retirar o que nos incomoda. Esse tipo de ardil não é
incomum, mas é perigoso e completamente inútil. Quando negociamos promessas e
expectativas em nossas preces, estamos preparando o terreno para a crise espiritual. O
Poder Superior não é uma máquina de refrigerantes. Quando aceitamos a vida como ela
é, entendemos que os termos que a vida nos oferece são inegociáveis. Ela é soberana.
Milagres, no entanto, acontecem a todo momento à nossa volta. O próprio fato de
estarmos limpos para encarar esse desafio é um milagre e mais está sendo revelado a
todo instante se prestarmos atenção. Gratidão pode ser aquilo de que mais precisamos
quando isso se torna o mais difícil de sentirmos. Procurar as razões pelas quais podemos
sentir gratidão em um momento de crise pode fazer toda a diferença. Mas exigir

72
milagres não costuma funcionar bem. Agimos, sim, mas os resultados não estão em
nossas mãos.
Render-se em momentos de doença pode significar muitas coisas diferentes. Rendemo-
nos ao processo, à nossa mortalidade e à possibilidade de sobrevivência. Nesse caso,
render-se não significa desistir. Um membro passando por uma doença de longa
duração disse, “tem sido bastante fácil me render à ideia de que posso vir a morrer. Por
outro lado, foi um tipo diferente de rendição me abrir para o fato de que deveria lutar
por minha vida”.
Não há um padrão ou modelo de recuperação para quem é adicto, uma maneira certa
de fazer as coisas. Alguns de nós, ao se olharem honestamente, realmente não
pretendem viver tanto tempo. Pode parecer esquisito, mas é verdade. Longevidade não
é um objetivo ou um bem universal. Alguns de nós fazem escolhas sabendo que isso vai
diminuir seu tempo de vida. Podemos escolher fumar; comer de uma maneira que é
prejudicial à nossa saúde ou nos recusar algum tratamento de que precisamos. Um
membro cujos pais passavam por dificuldades devido à idade avançada disse, “não vou
fazer minha filha passar por isso. Amo minha vida e não vou seguir pedindo ajuda até o
fim”. Podemos nos surpreender com algumas decisões que tomamos, ou com a força
dos nossos sentimentos sobre elas. Essas decisões são profundamente pessoais e as
tomamos de acordo com nossos valores. Queremos estar certos de que agimos de
acordo com nossas crenças, sem alimentar as reservas que poderiam nos levar de volta
ao uso. Cada um de nós encontra um equilíbrio com o qual possa viver que vai do
cuidado excessivo e perfeccionista à negligência destrutiva. Quaisquer que sejam as
escolhas que façamos, o que importa é sabermos que elas são nossas, que nós as
fazemos, que entendamos que temos escolha e que possamos considerar isso de um
modo honesto e aberto.
Estamos sempre em um caminho permanente entre a saúde e a doença, entre a ação e
o desejo, entre viver de acordo com nossas crenças e traí-las. Recorremos às
ferramentas do programa vezes e mais vezes a fim de encontrar essa sintonia, esse
equilíbrio, de sorte que possamos viver uma vida com a qual nos sintamos confortáveis.
O inventário, as reparações e a rendição são fontes infinitas de aperfeiçoamento para
nós. Descobrimos nossos valores e vivemos de acordo com eles. Com o tempo, nos
desapegamos das expectativas que temos sobre como a vida deveria ser ou o que os
outros esperam de nós e passamos a viver de acordo com os valores que encontramos
dentro de nós. Ao aprender o que é certo para nós, descobrimos que não precisamos
mais nos obrigar a sermos perfeitos para agradar alguém ou nos destruir. Somos livres
para viver de acordo com nossas escolhas genuínas.

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Deficiências

“Só por hoje”, diz a nossa literatura, “vou tentar trabalhar uma perspectiva melhor para
a minha vida”. Embora muitos de nós, enquanto adictos, resistamos à mudança,
sabemos que é positivo para nós mudarmos nossa percepção, mudando, assim, nossa
perspectiva. Nada muda mais nossa perspectiva do que a experiência com algum tipo
de incapacidade física. É provável que, se vivermos uma vida plena, em algum momento
vamos experimentar algum tipo de deficiência – quer por um tempo curto ou, às vezes,
permanente. Em ambos os casos, essas lições enriquecem sobremaneira nossa vida,
alargando nosso entendimento, ainda que nosso espectro de escolhas se estreite.
Sabemos que nossa recuperação deve vir em primeiro lugar, que quando estamos
lidando com algum tipo de “deficiência”, precisamos de algo mais para atravessar o dia.
Alguns de nós entram em recuperação com alguma deficiência de tipo permanente.
Nossa experiência, no entanto, tem nos mostrado que qualquer adicto pode se
recuperar e que os desafios decorrentes de uma incapacidade permanente ou provisória
não são barreiras para uma vida rica de significados positivos. É como um membro
partilhou “sei que não haverá nenhum tipo de recuperação para minha cegueira; mas
minha percepção da minha deficiência pode melhorar e a partir disso meu espírito
também. Assim como um membro que enxerga bem, tudo se resume à autoaceitação.
Há mais uma coisa que preciso aceitar”.
Por saber que o impossível não existia, foi lá e simplesmente fez, diz o ditado. Podemos
ser tão dolorosamente conscientes de nossas limitações que mal conseguimos nos
imaginar sem elas. Lamentamos as habilidades que perdemos e temos medo do que há
por vir. Muitos de nós lutam por ter dificuldades em pedir ajuda. Frustrações com coisas
pequenas – buracos no asfalto, os botões na camisa e outras pequenas coisas – podem
nos desencorajar de modo esmagador. Podemos nos surpreender com a quantidade de
tempo e pensamentos que gastamos com coisas sem grande significado.
Tentar falar sobre gratidão nessas horas parece absurdo e nos encoleriza. Podemos
pensar, “você simplesmente não entende; você não tem ideia de como é isso”. A
autopiedade não é menos perigosa quando nos justificamos do que quando sabemos
que estamos fora de órbita. Qualquer que seja a forma, pode nos matar. Na verdade,
sabemos que a gratidão quase sempre é o caminho mais curto para o alívio. Alguns de
nós encontram gratidão na certeza de que poderia ser pior e acham alívio em ajudar ou
simplesmente em ficar conscientes daqueles que estão lutando contra desafios ainda
maiores. Para alguns de nós, isso é um conforto gélido, mas encontramos gratidão
quando atentamos para as coisas que temos – começando pelas pessoas que cuidam de
nós e por nossa relação com um Poder Superior. Uma lista de gratidão pode ser uma
ferramenta vital nesses momentos. Um veterano costumava dizer, “se você não tem
nada por que se possa sentir grato, comece com o fato de que não está imerso em um
incêndio, pegando fogo, e trabalhe a partir daí”.

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Aprender a ajudar outros membros pode fazer parte desse processo também. Perguntar
como se pode ajudar, em vez de pressupor do que o outro precisa, gera empatia.
Aprendemos que oferecer essa pequena ajuda, dedicada aos companheiros com
gratidão por tudo que temos recebido do programa, pode ser uma forma de trabalhar
nosso amor e aceitação. É possível também que nossas tradições e política precisem ser
adaptadas para que os companheiros com algum tipo de condição física especial possam
vivenciar a alegria do serviço.
Uma deficiência não desqualifica ninguém para o serviço; pelo contrário, pode nos
tornar mais conscientes das necessidades dos companheiros e dos obstáculos à
recuperação dos adictos que ainda sofrem. Há diversas maneiras por meio das quais
todos podemos retribuir o milagre que vivemos dentro e fora da irmandade, ainda que
tenhamos que usar um pouco da nossa criatividade para encontrá-las. Podemos ser
exemplos poderosos de compromisso e boa vontade quando olhamos para os
obstáculos que superamos em nosso passado e dedicarmos isso sob a forma de ajuda
aos outros. Podemos nos tornar bastante conscientes sobre problemas de acesso,
mesmo se eles não nos afetam diretamente e isso gera um poderoso sentimento de
empatia. Percebemos se a ata de reunião nos informa se podemos ter acesso às
dependências físicas com uma cadeira de rodas, por exemplo. Começamos a olhar com
mais cuidado o que torna uma reunião mais segura e acolhedora. Para alguns de nós, a
reunião cuja porta de entrada está no nível de baixo e o banheiro em um nível acima é
tão inacessível quanto se tivéssemos que ir a uma reunião na lua. Quando estamos
conscientes disso podemos oferecer nossa experiência por meio do serviço à
comunidade local, ajudando a assegurar que a mensagem estará disponível a todos os
adictos, não importa seu grau de mobilidade ou quaisquer deficiências que lhes gerem
problemas de acesso; nesse sentido, nosso desafio é ajudar a irmandade como um todo
a levar a mensagem de modo mais efetivo, ou seja, considerando todas as dificuldades
físicas de que um adicto pode padecer.
Em períodos de dificuldade, quase sempre percebemos que os membros de NA estão
disponíveis para nos ajudar. Podem não ser as pessoas que esperamos. É surpreendente
ver quem está disposto a atravessar um momento de dificuldade conosco e quem não
está. O princípio do anonimato sustenta que somos todos iguais. Cada um de nós tem
habilidades que são valorosas e limitações lamentáveis, mas juntos podemos fazer o que
sozinhos nos era impossível. Abraçamos as pessoas que querem caminhar conosco em
vez de manter o foco na decepção com aqueles que não desejam isso. Embora
desejemos que as pessoas se comportem segundo nossas expectativas, não queremos
perder os pequenos milagres ao testemunhar aqueles que jamais imaginamos nos
surpreender com sua resposta positiva diante das dificuldades e ainda nos oferecer
ajuda.
As lições que aprendemos em NA sobre compartilhar e cuidar, pedir ajuda e oferecer o
que temos são ferramentas poderosas que podemos usar fora da irmandade também.
Podemos nos conectar com outras pessoas que lutam com deficiências físicas e
descobrir que nossa experiência compartilhada nos aproxima delas. Podemos encontrar

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alívio, dentro e fora da irmandade, acompanhados dos companheiros que também
enfrentam os mesmos tipos de problemas e encontram maneiras de se superar gerando
empatia com as pessoas que estão fora da irmandade.
Nosso orgulho pode ser uma desvantagem maior que o desafio físico que estamos
enfrentando. O orgulho nos diz que queremos parecer bem e isso nos atrapalha.
Embaraço, vergonha ou falta de boa vontade para sermos vistos desta ou daquela forma
nos afastam de fazermos o que podemos para viver e desfrutar a vida como esta
realmente poderia ser. Nossa deficiência física pode se tornar um álibi para o
afastamento, isolamento e medo, se não nos apercebermos disso. O orgulho impede a
nossa união dentro e fora da irmandade.
Aos poucos, descobrimos que a deficiência que nos impeliu a mudar os hábitos também
muda o ângulo a partir do qual vemos o mundo. Notamos detalhes que antes não
percebíamos; nos conectamos com pessoas que não conhecíamos. À medida que o
ritmo da nossa vida muda, também muda a música que flui por meio de nós.
Aprendemos a respeitar em vez de sermos indulgentes com nossas limitações e, assim,
construímos habilidades e competência em novas áreas. Aprendemos a sabedoria do
tempo e também que nossas maiores graças nos são presenteadas nos piores
embrulhos. Abrir-nos às lições com que a vida nos brinda nos ajuda a vencer, mesmo os
momentos mais difíceis; e saber que não precisamos fazer isso sozinhos certamente
torna esse processo mais fácil e mais rico em significados.

Crise emocional e espiritual

Fala-se muito nas salas e na literatura sobre a insanidade da nossa adicção. Embora
esteja bastante claro que nosso pensamento é profundamente distorcido pela nossa
doença, também é verdade que esta difere de outras formas de doença, agrupadas sob
a denominação “doenças mentais” pelos profissionais da área de saúde. Nosso livreto
“In Times of Illness” - pode ser uma fonte útil para aqueles de nós que lutam contra a
doença mental na recuperação.
A doença mental é real e pode ser bem séria. É essencial que entendamos que, enquanto
a doença em si é algo externo e que precisa de tratamento, nossas batalhas contra nossa
doença mental e a maneira como estas impactam na nossa recuperação são, em grande
parte, um problema interno. Precisamos fazer essa distinção para assegurar que não
falharemos ao buscarmos ajuda extra, seja pelo estigma nas salas, seja pela confusão
acerca da relação entre doença mental e recuperação. Mas é também essencial que
entendamos que podemos nos sentir muito deprimidos, ansiosos e fora de controle,
mesmo sem possuir algum tipo de doença mental.
Às vezes o que sentimos é uma consequência de uma condição física; quando estamos
nos desintoxicando, por exemplo, as coisas se tornam bastante intensas. A maioria de
nós nos primeiros momentos da recuperação sente que falta um botão de ajuste para

76
nossas emoções: nosso humor oscila fortemente, nossas vidas parecem dramáticas e
podemos ser surpreendentemente impulsivos. Quando não somos mais um perigo para
nós mesmos e para os outros, muitos de nós descobrem que foram capazes de suportar
essa fase – as coisas se acalmam e nós nos acostumamos às nossas novas vidas; nossos
corpos se acostumam a ficarem limpos. Às vezes, parece insano, mas precisamos
somente de um pouco mais de tempo. A “Desintoxicação emocional” pode levar mais
tempo que a desintoxicação física e há dias em que pode ser especialmente difícil. O
momento em que estamos nas reuniões pode ser o único em que nossos pensamentos
insanos e doentes podem cessar completamente. Ter pessoas ao nosso redor que já
viveram e atravessaram o inferno desse momento na recuperação é muito
reconfortante: podemos não estar convencidos de que isso vai passar, mas a confiança
que nosso padrinho depositou em nossa superação dessa fase nos alimenta com
esperança. E esperança é o otimismo no futuro. Ainda que o programa seja só por hoje,
nos conectarmos com o otimismo no futuro nos ajuda a viver o dia de hoje.
Outras mudanças físicas nos trazem desafios emocionais também. Algumas doenças
físicas ou machucados na cabeça possuem componentes emocionais ou cognitivos e
aqueles de nós que lutam contra outras doenças físicas podem achar que nossa maneira
de pensar, às vezes, é profundamente afetada por isso. Quando nós ou nossos entes
queridos percebem alguma mudança abrupta em nosso comportamento, vale a pena
considerar se há algo físico acontecendo.
Mas sempre há uma causa física ou orgânica por trás do nosso desequilíbrio. Passamos
por intensas mudanças emocionais na recuperação e elas podem ser bem
atemorizantes. Frequentemente confundimos crise espiritual com doença mental.
Mágoa, depressão ou pânico podem nos acometer como uma onda. As lembranças do
passado surgem e parecem engolir nosso presente; e tudo isso pode ser parte do
processo que estamos atravessando para encontrar a saída para uma vida livre. O que
realmente queremos é uma cura para nossos sentimentos.
A dor do crescimento espiritual pode soar como depressão. Uma noite de escuridão na
alma pode ser assustadora e dolorosa. Mas o que está acontecendo por dentro
frequentemente é justamente a transformação que nos conduzirá à luz. Às vezes, é só
um mau tempo passageiro em nossas mentes e que logo vai desaparecer. Aguentar
firme, adaptar-se, dar as caras e partilhar abertamente com nosso padrinho e outros
membros em quem confiamos é, às vezes, tudo que podemos fazer enquanto esse mau
momento está passando. Falamos sobre “o processo” e somos incentivados a confiar
nele, mas nem sempre sabemos o que “o processo” significa. Podemos nos sentir
bastante confusos quanto ao lugar a que estamos sendo conduzidos. No entanto, se
canalizarmos nossa fé para a ação, podemos sair da dificuldade com um novo nível de
entendimento e consciência.
Este tipo de crise pode ser assustadora em sua intensidade e, às vezes, só conseguimos
distingui-la quando a comparamos com outro tipo de desafio que estamos enfrentando.
Por mais intensa que seja, ela é temporária e se ameniza por algum avanço ou
descoberta que possamos deparar no processo, ou mesmo um desejo obstinado de

77
suportá-la até que passe. “Nós vivenciamos uma experiência espiritual vigorosa e somos
modificados”, diz o Texto Básico. Voltamos à sanidade e passamos a viver vidas alegres
e produtivas. Pode ser o mais aconselhável esperar para descobrir por que tipo de crise
estamos passando antes de procurar ajuda. Podemos precisar de novas ferramentas
para construir nossa casa; isso não significa que estejamos abandonando o trabalho que
fizemos até então ou que estejamos traindo nosso compromisso se procurarmos por
elas em outro lugar.
Alguns dos membros mais experientes partilham que seus momentos de maior
insanidade acontecem quando o interior não encontra correspondência com o exterior
– quando estamos fazendo coisas que vão de encontro a nossas crenças, quando
estamos de uma ou outra maneira vivendo uma mentira, ou quando estamos negando
o que realmente acontece ao nosso redor. A desconexão entre o que queremos, no que
acreditamos e o que estamos fazendo é suficiente para nos trazer a sensação de
insanidade – e pode ser uma força poderosa que nos conduz à recaída. Voltar a viver
com integridade começa com a boa vontade para compartilhar honestamente a vida
com outras pessoas. Pode ser uma longa estrada de volta, mas o caminho pode ser tão
doloroso que talvez não consigamos sobreviver limpos. Quando dizemos ao nosso
padrinho ou a um amigo confiável o que realmente está acontecendo, começamos a nos
sentir esperançosos novamente.

Envelhecimento

Os caminhos da vida com os quais temos de lidar mudam por conta da nossa doença.
Eles podem ser ampliados por nossa obsessão ou egocentrismo, ou nós podemos nos
tornar simplesmente mais dramáticos que nossos amigos ou vizinhos que não são
adictos. Mas temos problemas físicos com os quais precisamos lidar que são
consequência da nossa adicção – em suma, trata-se da fatura que nos chega exigindo
que a paguemos. Muitos de nós são acometidos por outras doenças como resultado
daquilo por que passamos e precisamos passar, quer seja pela vergonha, quer seja pela
culpa, antes de desenvolvermos a boa vontade para buscarmos ajuda. Alguns de nós
viveram algum tipo de trauma, violência ou abuso cujas consequências duram para
muito além dos machucados após estes cicatrizarem. “Entrar em contato com meu
corpo tem sido um processo bem lento para mim”, disse um membro. Qualquer
novidade acerca dele me deixa em pânico”. Passamos por acidentes, relações violentas,
brigas, guerras, prisões – todas essas situações tiveram consequências físicas e
emocionais que se manifestam de diferentes maneiras ao longo do tempo. Para alguns
de nós, ficou a experiência simples e estranha de havermos perdido tempo: quando nos
limpamos podemos ter a sensação de estar acordando de um longo cochilo: “eu olho o
espelho e uma mulher velha me olha de volta”, relatou uma companheira, “e é sempre
um choque para mim”. Na última vez que olhei parecia que eu estava só começando,
me sentia como uma criança, muito embora parecesse com uma avó”.

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A possibilidade da morte é menos assustadora para alguns de nós do que a de
envelhecer. Ficar limpo por um longo tempo é uma coisa: aceitar o envelhecimento é
bastante diferente. E para alguns de nós, quando nos damos conta disso, a dor nos
acomete. Podemos nos afligir por um longo tempo e perdermos muitas oportunidades
por conta desse sentimento decorrente de nossa adicção. Podemos viver esse senso de
perda depois de termos estado limpos por muito tempo – quando, por exemplo, nos
tornamos avós e percebemos quanto de nossa infância perdemos. Podemos não nos ter
dado conta que o tempo realmente passou até que alguém nos chame atenção para o
fato de que nossos amigos ou parceiro amoroso pertencem a uma geração mais jovem.
Podemos exagerar as pressões para parecermos jovens ou ficarmos bonitos
verdadeiramente em virtude não só da consciência de nosso egocentrismo e defeitos de
caráter, mas também pelo senso da perda de tempo que vivemos; o sentimento de que
nossa aparência é algo com o que possamos negociar, além da velha fantasia do adicto
sobre morrer jovem e de forma glamorosa. Quando percebemos que estamos velhos
demais para morrermos jovens e que temos uma vida que pode ser vivida de forma
plena, alguns de nós se sentem confusos. Alguns de nós tentam preservar sua juventude
da melhor maneira que podem, esforçando-se para se vestir bem e se cuidar na luta por
assegurar um futuro para si e seus filhos. Encontrar o equilíbrio entre vaidade e
autorespeito, entre a autoaversão e a autoaceitação, é o cerne da luta para muitos de
nós. Quando realmente nos rendemos, descobrimos que envelhecer é uma jornada e
então podemos aproveitar a aventura. Não estamos apenas envelhecendo; estamos
crescendo.
Um membro partilhou, “não há muito para se dizer sobre envelhecer a não ser que
precisamos nos aceitar”. Como muitas coisas em recuperação, parece tão simples visto
do outro lado da margem, mas, até chegar lá, há uma longa caminhada. Pode ser
impossível separar as mudanças que acompanham um envelhecimento virtuoso das que
decorrem do trabalho de passos; juntos, no entanto, a combinação é extraordinária. À
medida que o tempo passa e nossa irmandade envelhece, começamos a perceber que
alguns de nossos veteranos se tornam mais bonitos. Há uma espiritualidade que irradia
por meio de nossos corpos, um tipo de intemporalidade que aparece como elegância e
dignidade. Embora possamos temer o envelhecimento, muitos de nós descobrem que é
possível abraçar e amar aquilo em que nos tornamos – nossas dores e tudo mais. “À
medida que envelheço e tenho mais dificuldade de me levantar da cadeira sem me
escorar na mesa”, disse outro membro, “me sinto mais seguro sobre quem sou. Me acho
mais atraente do quando era um garotão!”.

Sobre Morte, morrer e viver com Dor

Adictos morrem. Falamos sobre isso em nossa literatura e nos lembramos uns aos
outros, a cada reunião, que o fim da doença é “prisão, instituições e morte”, mas quando
um de nós morre, geralmente reagimos como qualquer pessoa o faria: com surpresa,

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choque e angústia. Quando perdemos um companheiro para a doença, podemos
retornar às mesmas reservas pelas quais passamos no início de nossa recuperação; de
que o programa não funciona. Muitos de nós vivem outras reservas a essa altura da
jornada – o sentimento de que não compensa o cuidado com os outros, o sentimento
de que amar adictos só gera perda e dor. Para alguns de nós, ficar na irmandade depois
de uma perda dolorosa pode ser bem difícil. Não é incomum sentirmos que outros
membros estão se afligindo de modo indesejável, que as pessoas não estão reagindo do
melhor modo. Quando estamos magoados ou com raiva é fácil recorrer à autopunição,
mais do que nos sentir compassivos e conectados. Mas o que a experiência nos tem
ensinado é que, quando estamos limpos, são esses momentos que tornam possível a
superação das dificuldades – mesmo quando eles incluem dor e aflição.
Obviamente perder companheiros para a doença da adicção não é a única maneira
como experimentamos a morte quando estamos em recuperação. Adictos morrem
limpos também. Perdemos membros da família e amigos; às vezes, parece que quanto
mais conectados nos sentimos, mais sentimos a perda. De um certo modo, é verdade;
amamos e cuidamos mais, dividimos mais do que nunca e, talvez, mais do que as pessoas
que não fazem parte de uma irmandade como a nossa. Uma das recompensas da
recuperação é que nossas vidas são tão ricas e cheias de pessoas que realmente
apreciamos que, quando nós as perdemos, a dor é incomensurável. Às vezes, o que
sentimos é a culpa de termos sobrevivido: podemos nunca entender por que alguns de
nós vivem vidas longas e alguns se vão tão cedo. Para muitos de nós, as respostas que
encontramos nos passos nos oferecem a ponte para a travessia desses momentos de
dúvida. Mas elas são muito particulares e variam para cada um de nós. O processo da
dor nos força a fazer as pazes com questões não respondidas e, nesse sentido, isso é
uma dádiva.
Alguns de nós descobrem que uma morte que vivemos em recuperação aciona
sentimentos de perdas passadas cuja dor não vivenciamos. Aprendemos, ao praticar os
passos, que as emoções que não sentimos no exato momento em que nos acometem
geralmente esperam por nos encontrar, bem como para podermos fazer as pazes com
elas tempos depois; a experiência de viver uma perda no presente pode trazer de volta
perdas há muito esquecidas, por exemplo. Nos surpreendemos com a fossa das nossas
emoções ao deparar a perda de um amigo ou mesmo um animal de estimação. Podemos
ter pensado que passaríamos facilmente pela experiência e, então, nos percebermos
arrasados. Outros de nós descobrem que ainda há uma distância entre nós e o mundo,
ou que nossas reações são retardadas. Às vezes, nossos sentimentos não são tão
profundos como deveriam; pensamos que deveríamos estar vivendo uma experiência
particular e, na verdade, estarmos passando por algo muito diferente. Permitir-nos
sentir sem nos julgar é uma dádiva poderosa que podemos nos conceder. Qualquer que
seja a resposta, ela é nossa, e podemos nos apropriar dela sem nos deixarmos engolir
ou sermos definidos por isso. Temos a liberdade de viver plenamente o mais amplo
espectro de emoções e saber ao mesmo tempo que essas emoções não constituem o
limite do nosso mundo ou de quem somos.

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A dor é uma experiência única. Permitir-nos o tempo e o espaço para atravessá-la deve
ser um compromisso com nós mesmos e com a honestidade para além daquilo por que
já passamos. Os sentimentos têm seu próprio ritmo e tempo, e pensar que não estamos
“fazendo certo”, ao sermos surpreendidos com uma onda de emoção em um momento
inapropriado, pode ser muito difícil. Como tantas coisas por que já passamos em
recuperação, não há uma maneira correta de se viver isso. Nos confortamos ao saber
que tudo passa, que nossos sentimentos vão mudar certamente e que os que nos
rodeiam também amargaram suas dores e encontraram um caminho para sobreviver a
esses momentos e para vibrar novamente pela vida. Descobrimos na recuperação que
mesmo as piores coisas por que passamos podem ser transformadas em lições e
ferramentas valiosas de que podemos dispor para ajudar os outros.
Quando procuramos um contato consciente com um poder superior a nós, encontramos
maneiras de sermos úteis. Dentro ou fora de NA, estar a serviço nos ajuda a encontrar
valor em nossas vidas quando não o víamos em nós mesmos. Doar generosamente aos
outros quando estamos sentindo dor pode ser o caminho para atravessar nossa tristeza
e confusão.
Constantemente ouvimos membros partilharem coisas como “cada dia em recuperação
é um bônus, uma vitória que quero prorrogar”. Temos uma doença mortal e temos
sorte em estarmos vivos. Muitos de nós experimentaram na adicção um tipo de vida
meio morta na qual cada dia parecia representar um fardo do qual precisavam dar conta
e ainda assim sobreviver. Muitos de nós conviveram com tentativas de suicídio; se
tentamos ou não tirar nossa própria vida, fato é que ela é importante e desejamos
expandir seu significado de modo positivo, rico e construtivo.
No entanto, nos surpreende quão chocados ficamos quando recebemos más notícias de
um médico. Nossa reação perfeitamente humana e natural pode nos fazer parecer que
somos ingratos ou sem noção. Mais uma vez, nos permitir sentir o que quer que seja é
tão importante quanto difícil. Somente admitindo nossos sentimentos podemos
aprender a lidar com eles. A partir do momento em que passamos a falar dos nossos
sentimentos, seu poder se reduz. Um membro que havia passado por várias crises
médicas disse, “eu não sei se tenho um dia ou uma década a mais, mas não quero viver
com medo”. À medida que usamos as ferramentas que estão disponíveis, encontramos
consolo. As mesmas ferramentas que nos guiam pelas veredas da felicidade podem nos
ajudar a terminar nossa jornada com dignidade e serenidade.
Naturalmente, nenhum de nós sabe o que esperar quando a morte está a caminho e
alguns de nós vivenciam alarmes falsos ou escapam dela por um fio. Às vezes, esses
arranhões, que a proximidade da morte nos deixa, podem ser um sinal para acordarmos,
possibilitando-nos considerar, em um nível prático e espiritual, o que poderia significar
organizar nossa vida.
Quando estamos conscientes, paradoxalmente, em momentos de dor intensa, uma
calma profunda nos visita; nesses momentos, podemos ver as profundezas da escuridão
dentro de nós, mas também a grandeza do poder ao qual estamos conectados. A aflição

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terrível que sentimos pode nos proporcionar um contato com tamanha consciência que
nada mais o faria. O impulso de se isolar, de se afastar do barulho e dos aglomerados de
pessoas e, às vezes, até de pessoas próximas que nos apoiam, é frequentemente uma
forma de autoproteção. Podemos sentir tanto medo de reconsiderar nossos
sentimentos que mal conseguimos nos mover. Mas permitir que pessoas de confiança
se aproximem e nos apoiem nos relembra que não estamos sozinhos, mesmo em nossos
momentos mais difíceis. E permitir que as pessoas nos ajudem também é um serviço
que prestamos a elas. Quando permitimos que uma pessoa nos ame em um momento
vulnerável, elas – e também nós – somos todos recompensados. O cuidado e a partilha
recíprocos são uma via de mão dupla e aqueles de nós que estão mais acostumados a
cuidar podem ter dificuldades em receber amor como retribuição.
É um ato de amor permitir que os outros nos amem. Quando nos encontramos em uma
posição de necessidade, podemos facilmente experimentar isso como algo humilhante
e pesado. Mas temos a oportunidade de deixar que aqueles que nos amam expressem
isso de maneiras concretas. A vulnerabilidade que estamos vivendo nos conecta com
uma experiência diferente de amor. É um ato de generosidade sobre o que está
acontecendo. Nosso treinamento para sair da nossa auto-obsessão nos ajuda agora: à
medida que ajudamos nossos entes queridos com seus medos e tristezas, podemos
encontrar palavras que precisamos ouvir para também atravessar nossas dores e
aflições.
Certamente, ao reconhecermos que somos amados e queridos, percebemos que nossas
vidas são realmente diferentes do que tinham sido: ganhamos importância no mundo;
contribuímos com as pessoas que estão ao nosso redor e com outras que não
conhecemos. O amor que damos às famílias de que somos parte, as reuniões que
secretariamos, em que servimos e partilhamos – tudo é uma forma de reparação, uma
maneira de fazer as pazes conosco e com o mundo. Somos gratos pelo que temos e pelo
que temos tido, e sabemos melhor do que a maioria das pessoas que a morte não é a
pior alternativa. Testemunhamos outros viverem destinos piores e, talvez, nós mesmos
em algum momento, possamos ter vivido algo assim. Alguns de nós, após viverem
momentos de sofrimento e, então, o processo de rendição, descobrem que finalmente
estão aptos a se desapegarem e viverem o momento presente. Deixar o medo, a raiva e
as coisas que nos prendem, aos poucos, irem embora, finalmente, nos liberta.

Coragem

A serenidade para aceitar as coisas que não podemos mudar frequentemente vem
depois de termos tido a coragem de mudar as que podemos. É preciso coragem e
humildade para abrir novas portas e fechar as antigas. Para muitos de nós, coragem não
foi algo com que entrássemos de mãos dadas em uma sala de NA, mas nós a
encontramos na irmandade. Podemos sentir medo, mas isso não nos impede mais de

82
nos levantarmos e enfrentarmos os desafios de cabeça erguida. Quando seguimos com
o medo, esse medo se torna fé.
No fim das contas, este capítulo é sobre coragem: a coragem para aceitar as coisas que
não podemos mudar e para mudar as que podemos, de olhar para nós mesmos como
somos e nos aceitar integralmente, de conversar sobre as coisas que nos causam
desconforto e de assumir os desafios que mais profundamente se apresentam a nós.
Trabalhar o programa na relação com os nossos aspectos físicos em nossa recuperação
não significa necessariamente um programa físico, embora para alguns de nós possa ser
isso. Nem todos praticam exercícios físicos, alimentam-se de forma adequada ou
adotam algum processo consciente de cura do corpo como parte de um programa
diário, embora alguns de nós façam disso um ponto central de sua recuperação. O que
temos em comum são os princípios, mesmo quando as práticas são diferentes. Todos
achamos necessário, cedo ou tarde, encarar a verdade acerca de nossos corpos,
qualquer que seja esta; abordar o dano que nos causamos; tratar o que for possível e se
render no resto; e, sempre, sempre sermos honestos. O que ganhamos nesse processo
é a aceitação da nossa realidade física, a habilidade de viver tão plenamente quanto
somos capazes e a boa vontade para assim fazê-lo - de acordo com o que a vida nos
oferece.

83
CAPITULO 5 – Relações Humanas

A recuperação não ocorre em um vácuo. Precisamos uns dos outros e é necessário que
nos envolvamos com o mundo ao nosso redor para que nos recuperemos. Viver limpo
envolve necessariamente nos relacionarmos – com nós mesmos, com nossos entes
queridos, com os membros da irmandade, com a sociedade e, sempre e acima de tudo,
com nosso Poder Superior. As pessoas que estão em nossa vida são os meios pelos quais
podemos viver a graça da recuperação. Vemos o milagre da mudança nos outros e eles
refletem nossa própria mudança. Eles são a janela e o veículo por meio dos quais
podemos ver o mundo e alcançar o progresso espiritual.
A verdade é que a maioria de nós não tem sido muito habilidosa em suas relações
humanas. Alguns podem dizer que a inabilidade para constituir relações de longo prazo
é um sintoma da doença da adicção. O Texto Básico nos diz que a doença nos torna
“desonestos, amedrontados e solitários”, que desenvolvemos hábitos estranhos e
perdemos nossa habilidade social. Quando entramos em recuperação, não
reconhecemos o que estava errado na maneira como nos relacionávamos com as
pessoas. Nossas experiências como adictos na ativa havia moldado nossos hábitos e
expectativas.
Não fomos pessoas fáceis de se lidar. Causamos dano enquanto estivemos usando
drogas e nossos entes queridos são os que sentiram isso da pior maneira. Podemos ser
teimosos e desconfiados, raivosos e receosos, sarcásticos, voluntariosos e
ensimesmados egocêntricos. Passamos pelo inferno e levamos os outros conosco.
Vivemos perda, falência, e muitas vezes violência. Ainda que cheguemos a NA com
nossas famílias e carreiras intactas, precisamos mudar a maneira como lidamos com
elas. Adquirir a habilidade para fazer isso em recuperação pode ser um processo longo
e doloroso. Quando olhamos para nossa adicção ativa no passado e vemos o mal que
causamos, as relações que destruímos e as oportunidades perdidas de vivenciarmos a
intimidade, podemos nos sentir esmagados pelos destroços avassaladores do nosso
comportamento. Mas também podemos encontrar alguma gratidão pelo fato de
estarmos limpos agora e, acima de tudo, vivenciando um processo de mudança. Nosso
histórico de relacionamentos pode nos fazer pensar que não nos resta esperança nessa
área, mas nossa experiência com o segundo passo nos mostra que o programa pode nos
transportar de volta à sanidade. Precisamos de uma ajuda que não encontramos em
nossos entes queridos. O valor terapêutico de um adicto ajudando o outro não encontra
paralelo. O carinho, o cuidado e a partilha sobre o caminho de Narcóticos Anônimos é
uma grande arma que temos contra a alienação, isolamento e a destrutividade da nossa
doença.
É necessário que se trabalhe com seriedade. Os temas com os quais precisamos lidar
surgem no curso das interações que desenvolvemos fora e dentro de NA. À medida que
levamos nossa vida, sendo apenas quem nós somos, começamos a nos curar. Enquanto
o processo de cura está se operando, enfrentamos dificuldades e conflitos. Quando não

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temos mais as drogas para culpar, começamos a entender nossa verdadeira
responsabilidade nas lutas que enfrentamos. No entanto, quando nos apercebemos
criando ainda mais destroços, mesmo estando limpos, pode ser difícil nos apaziguarmos.
Alguns de nós lutam para acreditar que uma mudança duradoura é possível. Nossos
companheiros de jornada podem nos ajudar a enxergar as maneiras pelas quais ainda
estamos criando nossos próprios problemas, embora seja sempre nossa
responsabilidade fazer algo sobre isso.
Aprendemos a partilhar, e a fazê-lo intimamente. Para alguns de nós, a relação com o
padrinho é a primeira, em um longo tempo, a ser honesta e funcional. O padrinho pode
nos servir como um modelo por meio do qual começamos a construir outras relações,
dessa vez, saudáveis, amorosas e produtivas. Muitos de nossos veteranos se lembram
de quando eram recém-chegados e do trabalho que davam – questionadores, céticos,
briguentos e cheios de reservas. Cometemos erros publicamente e tivemos que lidar
com as consequências disso. Nós construímos a base para a nossa recuperação, não
fingindo, mas enfrentando os desafios e lutas, com honestidade e coragem e, não menos
importante, praticando a aceitação e a humildade de pedir ajuda. A recuperação nem
sempre é um processo ordenado; estamos em meio a um processo de construção de
relações de intimidade com os outros e com o nosso Poder Superior e nada disso ocorre
de modo natural e abrupto.
Não chegamos a NA sozinhos: muitos de nós chegam com companheiros, crianças, pais
e outros de quem são próximos. Mas muitas dessas relações estão comprometidas por
nossa doença. Em meio ao processo de reconhecimento de que não se é possível
consertar tudo de uma só vez, a tentação de abandonar o programa nos seduz. Mas
relações não são como drogas, embora as tenhamos vivenciado da mesma maneira e
com o mesmo propósito; não podemos simplesmente nos abster. O verdadeiro trabalho
de se viver limpo acontece quando estamos no mundo, nos relacionando com os outros.
A única escolha que temos nessa jornada é aprender à medida que seguimos.
Aprendemos a lidar com nossa família, nosso ambiente de trabalho e comunidade, ao
mesmo tempo em que estamos aprendendo a encontrar nosso lugar nas salas. Cada
relação que temos afeta todas as outras. Com efeito, cada uma nos ensina algo que nos
ajuda nas outras.
Não alcançamos uma recuperação de longo prazo sem desenvolvermos a habilidade de
nos relacionar, dentro ou fora de sala. A relação é a refeição completa; a carne, os
legumes, as frutas, os cereais e a sobremesa da vida! As relações afetam tudo o que
fazemos e tudo o que somos. A maneira como reagimos às experiências pelas quais
passamos molda quem vamos nos tornar. Quando temos a boa vontade de entrar em
recuperação, abrimos o portal do crescimento e da mudança e passamos a viver um
amplo espectro de emoções. O fato de termos ficado limpos é um milagre. Mas não
paramos por aqui; crescemos e nos tornamos pessoas estáveis, confiáveis e amorosas
de sorte que podemos ser um farol iluminando e mostrando a possibilidade da mudança
na vida de outros, quer sejam adictos, quer não.

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As relações são um aspecto essencial de tudo que fazemos. Todos os passos ou tradições
têm a ver essencialmente com relações e toda nossa literatura trata desse tema de uma
maneira ou de outra. Não há aspecto que nos cause mais dor ou mais alegria do que o
das relações; é nesse aspecto que vemos nosso crescimento e recuperação com mais
clareza.

Irmandade

Quando NA começou, a simples ideia de que adictos poderiam se recuperar na


sociedade, em vez de serem internados por longos períodos de tempo, era algo radical.
Para muitos de nós, atualmente, o que é revolucionário em nossa recuperação é o amor
e intimidade que vivemos com outros membros. Nós estamos unidos pela irmandade. À
medida que ficamos juntos, encontramos uns nos outros uma afeição profunda e
confiamos que podemos superar as mágoas e disputas que encontramos pelo caminho.
Os vínculos que nos unem também são as raízes que nutrem nosso crescimento.
Quando nossa rendição acontece pela primeira vez nos braços da irmandade, uma
conexão é criada entre esta e o adicto que ainda sofre. Sabemos desde o início que NA
é nossa salvação. Quando algo desconhecido nos conduz até a margem, podemos ainda
não perceber claramente o que aconteceu. Pode ser frustrante quando precisamos
ensinar às pessoas que NA não é uma simples extensão de algum programa de cuidados
ou de tratamento. Fato é que as pessoas ficam e permanecem limpas na Irmandade.
Parte do que faz a unidade ser tão essencial para nossa recuperação é que podemos
esquecer com facilidade o tanto que somos parecidos. Mesmo após algum tempo de
permanência, podemos ver nossas diferenças como algo que nos separa em vez de
percebê-las como pontes para o exercício da liberdade, tão importante para crescermos
em direção à descoberta de quem somos. Uma coisa é ajudar um recém-chegado que
mal conhecemos, mas quando, mesmo após anos estando limpos, nós ainda não temos
muito cuidado com os outros, talvez precisemos nos esforçar mais para vencer essa
resistência. Podemos ver que alguém de quem não gostamos tanto pode levar melhor
do que nós a mensagem. Cuidar do outro em vez de nos preocuparmos unicamente com
nós mesmos pode nos trazer recompensas surpreendentes. Quando nos vemos
cuidando de alguém de quem não gostamos ou que não conhecemos, podemos sentir
também nossa humanidade compartilhada e então reconhecemos um novo nível de
espiritualidade em nós.
Nós chamamos Narcóticos Anônimos de irmandade por uma razão: somos uma
comunidade de iguais. Nós nos unimos por necessidade, mas à medida que voltamos
encontramos um laço comum. Temos uma escolha, não só quanto a nos tornarmos, ou
não, membros da irmandade, mas também sobre o que isso significa para nós, e como
viver e demonstrar isso. À medida que nossa conexão com outros se desenvolve, saímos
da posição em que vivíamos, sozinhos, de modo abjeto e mergulhados em autopiedade,

86
e passamos a viver com uma conexão profunda. Alguns costumam dizer que “NA”
significa “nunca mais sozinhos, nunca novamente” “Never Alone, Never Again”. A
conexão nos transforma, e o fato de estarmos todos ligados por uma doença fatal
significa que as bases são mais sólidas. A gratidão que sentimos ao ver um membro ficar
limpo não é abstrata. Podemos nos sentir gratos por ter alguém como nosso amigo por
anos – mas o fato de termos perdido tantos pelo caminho dá outro significado para a
gratidão que sentimos. Nossa amizade é também uma celebração da nossa
sobrevivência. Conectados que estamos por nossa doença comum e nosso propósito
primordial, dividimos um vínculo diferente de quaisquer outros.
Desde o momento em que chegamos à porta de uma sala de NA para nossa primeira
reunião, nossa experiência é essencialmente sobre relações. As boas-vindas que
recebemos como um recém-chegado ficam conosco. Muitos partilham sobre haverem
sido tratados como seres humanos pela primeira vez em anos: “a primeira reunião foi a
primeira vez em longo tempo em que alguém me tratou como uma pessoa, e não como
um problema ou objeto.” O fato de as pessoas nos cumprimentarem, sentarem conosco,
e nos abraçarem sem querer nada em troca, parece mais surpreendente do que a
mensagem que ouvimos por meio de palavras. “Essa linguagem pela qual você se
reconhece no outro sem palavras, crença, ou fé, a qual chamamos de “empatia”, é
exatamente do que precisamos, e isso acontece nos encontros e trocas entre,
supostamente, estranhos nas reuniões. Não há nada mais milagroso que isso. Com o
tempo, aprendemos que temos uma rede segura na qual podemos confiar e pessoas
que se preocupam conosco e nos ajudam a seguir na caminhada.
As relações são uma área em que mostramos nossas diferenças de modo mais agudo.
Alguns de nós ficam bastante isolados enquanto outros cercados de pessoas; alguns de
nós desenvolvem largos e vibrantes círculos sociais dentro da irmandade enquanto
outros de nós têm poucos amigos com os quais nos sentimos confortáveis. Alguns de
nós descobrem que em recuperação nós nos acalmamos, mesmo enquanto, às vezes,
festejamos até o amanhecer, pois estamos fazendo isso limpos. Alguns de nós param de
ter encontros quando ficam limpos, já outros afundam o pé. Provavelmente não há
nenhuma área de recuperação em que ofereçamos tanto conselho e absorvamos tão
pouco; isso tem a ver com a natureza da nossa doença e com as ferramentas que usamos
para lidar com ela. O que temos em comum é a doença da adicção e os princípios da
recuperação que podem nos guiar em todos os aspectos da nossa vida.
Há algumas coisas que se aplicam a todos nós. Temos uma doença e o seu núcleo é a
auto-obsessão. A ferramenta mais importante para lutar contra a doença é a empatia:
a percepção de que outros nos entendem de uma maneira profunda. É a consideração
que construímos pelos outros que nos permite sair da nossa auto-obsessão e nos
conectar com algo maior. Empatia significa que entendemos uns aos outros; vemos e
entendemos nosso lado sombrio, o amor, a dor. Isso é diferente de uma honestidade
brutal, aquela utilizada para machucar alguém. Entregamos uns aos outros a verdade
em um prato – inevitável, óbvia, aterradora, e por que não, um pouco divertida – mas
não a usamos como uma maneira de ganhar poder sobre os outros, bem como para

87
humilhá-los. Mostramos uns aos outros nossa percepção e exemplo de como temos nos
tornado melhores e, mais, que podemos continuar crescendo.
As coisas sobre o que mais reclamamos na irmandade são aquelas a partir das quais mais
podemos aprender. Por mais que imaginássemos que aprenderíamos a praticar os
princípios espirituais ao lê-los, a verdade é que os aprendemos na prática ao bater de
frente uns contra os outros, às vezes, rudemente. Não contribuir, por vezes, para o
aumento do conflito já é um sucesso. Pode ser que não tenhamos o poder de fazer as
pazes, mas certamente podemos evitar alguma situação constrangedora que poderia
comprometer a atmosfera de recuperação que tanto valorizamos. Muitas vezes vemos
membros que, apesar de suas diferenças, as colocam de lado para ajudar o recém-
chegado ou a um amigo, à beira do leito de morte ou em um momento de aflição. As
lutas de vida e morte que experienciamos e suportamos colocam tudo sob perspectiva.
Os conflitos, o drama, as rupturas que ocorrem na sala, tudo ajuda a dissolver os limites
de nossas atitudes rígidas e rudes.
A força da irmandade, que é responsável por nos tirar da nossa condição de isolamento,
alienação e de adictos assustados, gradativamente, vai nos tornando membros
amorosos. Quando estamos no meio do pior tipo de conflito, podemos lembrar que
ainda somos bem-vindos nas reuniões, que ainda temos pessoas em quem podemos
confiar e que se importam conosco e que ainda estamos em meio à irmandade e à nossa
recuperação. Aprendemos que quando temos uma necessidade ou preocupação
genuínas, quase todos os membros se apresentarão para ajudar, mesmo havendo
alguma discordância ou desavença. Com o tempo, à medida que cuidamos dos outros e
percebemos que eles realmente nos apoiam, começamos a nos sentir mais seguros.
Podemos então nos sentir mais dispostos a arriscar algo, nos desapegar do que não está
funcionando, e tentar algo diferente. Cada vez que nos tornamos vulneráveis e
encontramos alguém na irmandade para nos acolher, alcançamos um novo nível de
segurança e confiança.
Nós sempre dizemos que amaremos o recém-chegado até que ele aprenda a amar a si
próprio. O que estamos fazendo é amá-lo para que volte a viver novamente. Isso é
verdade não importa como nós expressemos o nosso amor. Alguns de nós são
acolhedores e afetuosos, alguns grosseiros e distantes, mas fazemos a mesma coisa
quando uma reunião começa. Estamos tirando a atenção de nós mesmos e fazendo um
outro tipo de conexão. O livro básico nos diz que o amor “ é o fluxo de energia da vida
que circula entre nós”. Isso é essencial para a nossa compreensão. Nos conectamos com
outros, e por meio deles, a um poder maior do que nós. Abrir-se para o mundo ao nosso
redor é um despertar espiritual.
Uma de nossas primeiras conexões quando estamos em recuperação é normalmente
com nosso grupo de escolha (quer o chamemos ou não assim) – aquele em que
frequentamos reuniões com regularidade. Percebemos a conexão que existe entre os
membros do grupo e desejamos isso. Fazemos contato com outros membros recém-
chegados que estão se degladiando internamente e nos preocupamos se voltarão na
próxima reunião. Começamos a ter esperança nos outros e encontramos esperança para

88
nós também. Percebemo-nos realmente entusiasmados ao ver o tempo limpo dos
outros. Nos interessamos por eles. Praticar a abnegação nos alivia de nossa auto-
obsessão. Cuidar dos outros e perceber que as pessoas cuidam de nós é outro despertar
que vivemos.
Nosso despertar espiritual se revela em nossas ações. Juntamo-nos ao grupo,
encontramos um padrinho e servimos. Assumimos o compromisso de estar presente nas
reuniões e agir com regularidade. Aprendemos novas maneiras de demonstrar nossa
gratidão ao mesmo tempo em que aprendemos a ser cobrados em nossas tarefas.
Quando assumimos um compromisso, aprendemos a aceitar a responsabilidade, a
passar pelos momentos adversos, a fazer o melhor que podemos e a pedir ajuda quando
precisamos. Aprendemos nossos limites pelos compromissos que assumimos, tentamos
encontrar uma maneira responsável de nos desapegarmos, quando for o caso, e
descobrimos que faz parte do caminho cometer erros. Aprendemos que a adversidade
e os conflitos não são o fim da linha. Podemos começar a servir por ego, mas
aprendemos, por meio da dificuldade, a sermos altruístas e esse é o objetivo. Tornamo-
nos parte de algo maior do que somos. Para a maioria de nós o foco anterior era a
autodestruição. Que felicidade fazer parte de algo que não só salvou nossa vida, mas
que torna a vida digna de ser apreciada.
O desejo de servir vem desse senso de cuidado e preocupação – e é importante notar
que o serviço não está limitado ao que fazemos dentro da irmandade. Sob qualquer que
seja a forma, o serviço é o que fazemos levando em consideração os outros. Nas
reuniões isso pode significar arrumar as cadeiras ou ajudar a limpar a sala; pode ser
passar um tempo e conversar com um adicto que está com problemas, dar uma carona
para alguém ir a uma reunião, ou assegurar que outros não se sintam excluídos. Ajudar
é a maneira como rompemos nossa auto-obsessão. O serviço nos abre à transformação
pelo exercício do músculo do amor. Quanto mais praticarmos o altruísmo abnegado,
mais fácil e mais compensadora percebemos que essa atitude se torna.

Amizade

Podemos escolher as primeiras pessoas de quem nos aproximamos em recuperação


somente porque estão disponíveis, ou porque vão às mesmas reuniões. Quando
estamos em crise, não importa se confiamos ou não em alguém; nós ajudamos e
agradecemos por alguém nos ajudar a sair da beira do penhasco. Precisamos confiar
antes de começar a discernir quem é confiável. O discernimento vem com as
experiências difíceis: confiar em pessoas em quem não deveríamos, sermos magoados
e voltar mesmo assim. À medida que nosso auto respeito cresce, escolhemos com mais
cuidado a quem podemos confiar nossos segredos. Passamos a nos conhecer melhor –
melhoramos nossa ideia acerca de nós mesmos e ganhamos clareza sobre o que
queremos e desejamos em nossas amizades. Começamos a identificar os elementos de
uma relação saudável. Uma sensação de segurança pode ser a maior diferença que

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percebemos em nossas relações. Começamos a sentir que podemos confiar nas pessoas
e nos tornamos mais dignos de confiança para nós mesmos.
Nossa terceira tradição nos ensina que somos todos aceitos em NA. Não seremos
expulsos se cometermos algum erro. Então começamos a experienciar diferentes tipos
de relação e conflitos, abrigados no conhecimento de que ainda seremos bem-vindos
quando estes terminarem. Uma das coisas que percebemos em recuperação é que
temos muitas amizades diferentes. Experimentamos isso e descobrimos os meios com
os quais nos sentimos mais confortáveis para nos conectar. Isso também muda com o
tempo. Relações são fluidas, e isso é parte do que as torna tão desafiadoras. Elas podem
mudar ao longo do tempo. Um membro com o qual tivemos pouco contato por anos
pode nos pedir café e, de repente, nos tornarmos amigos rapidamente – ou perceber
que alguém de quem éramos mais próximos agora está se afastando e já não temos mais
tanto em comum como antes. Nossas expectativas de como deve ser um amigo (ou um
parceiro, ou padrinho, ou parente) pode nos impedir de encarar a realidade de nossas
relações.
Nos desapegamos das coisas que nos afastam das outras pessoas e de nós mesmos. Os
passos e as tradições nos ensinam como praticar os princípios e arrumar a bagunça que
torna a visão da realidade tão difícil. “Há partes em mim que ficaram congeladas pelo
dano que me foi causado na infância”, explicou um membro. “Eu tomei a decisão de que
ninguém jamais me magoaria e que somente confiaria em mim mesmo. Criei um mundo
bem solitário: não havia lugar para ninguém mais, nem mesmo para o meu Poder
Superior. Foi preciso aderir seriamente ao trabalho de passos para reconhecer como
minhas relações antigas haviam estabelecido os padrões para as demais”.
O núcleo da nossa doença é a auto-obsessão. Temos que aprender a lidar com isso desde
o princípio da nossa recuperação e seguir, para o resto da vida, nos cuidando.
Começamos a aprender isso na primeira vez que entramos em uma reunião e sentimos
que estávamos no lugar certo. A identificação que sentimos e a sensação de que os
outros sabem o tanto que sofremos rompem os grilhões da auto-obsessão e nos
libertam de nós mesmos. Escapar da armadilha do egocentrismo nos torna abertos para
o outro, e, de repente, nos assustamos com nossos talentos, dons e com o tanto que
cada um é único. Somos, cada um, fortes, em alguns aspectos, e fracos, em outros.
Descobrimos que podemos ajudar e sermos ajudados pela mesmíssima pessoa. Eles
precisam do que temos a oferecer e nós, da mesma forma, deles. Acordamos para um
mundo em que as pessoas não são simplesmente o que julgamos que elas sejam. Todos
têm suas histórias, lutas, habilidades e falhas. Podemos aprender com qualquer um e
com todos. Escapar do ciclo da vitimização, culpa e vergonha nos possibilita ver as
muitas maneiras de nos conectarmos com as pessoas ao nosso redor – mesmo com as
que ainda não conhecemos.
As dádivas da recuperação estão disponíveis para todos nós e nos chegam por meio de
todos. Sentimos as alegrias e tristezas dos outros, vemos seu crescimento e queremos,
genuinamente, ajudar ainda que, aparentemente, não tenhamos nada a ganhar com
isso. Empatia é a habilidade de se conectar com os outros no nível do coração e do

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espírito. Aprender a desenvolver a empatia requer que desenvolvamos uma consciência
ampla, inclusive uma que está fora de nós mesmos. Desenvolvemos cuidado, interesse
e, em alguns casos, amor pelas pessoas sem querer nada em troca. A empatia nos ajuda
a perceber, cada qual, onde nos encontramos em nossa caminhada.
Há um paradoxo aqui: precisamos desenvolver empatia e interesse pelos outros, e nos
desapegar de nossa auto-obsessão sem nos perder de vista ao mesmo tempo. Podemos
oscilar entre os extremos; da auto-obsessão a autonegligência. Quando nos vemos
presos nesse padrão, podemos estar cheios de ressentimentos e frustrações. Quando
damos um passo atrás e fazemos um inventário, podemos ver que nossa boa vontade
em ajudar alguém com suas necessidades específicas não era abnegação de modo
algum, mas antes uma tentativa de controle – tornar-se indispensável nos dá a sensação
de importância assim como ser cuidado pelos outros também. Quando largamos as
rédeas do nosso egoísmo e egocentrismo, não nos perdemos de nós; pelo contrário, nos
encontramos verdadeiramente e uma sensação de alívio e melhora nos invade.
Sentimos que estamos fazendo o certo pelo motivo certo. Há sempre mais espaço para
a empatia e para a capacidade de amar. Elas são infinitas. Começamos a entender que
sermos apenas nós mesmos é suficiente para sermos amados e cuidados pelos outros
ou por um Poder Superior. Todos temos a oportunidade de vivenciar essa liberdade,
mas, para alguns de nós, isso leva mais tempo. Libertamo-nos do nosso egocentrismo à
medida que aprendemos a distinguir nossas necessidades, desejos e medos. O
autoconhecimento é a melhor e mais segura porta de saída para a liberdade genuína.
Encontramos nossos iguais nas salas – pessoas que nos entendem claramente. Rimos de
nossas experiências e piadas. Uma vez que nos sentimos mais confortáveis com as
mudanças em nossas vidas, somos capazes de encarar, com bom humor, aquilo que
havia sido um grande problema no início da nossa recuperação. Quando ainda estamos
sob a influência dominadora da adicção, isso não é nada engraçado. Nossos amigos de
recuperação nos ajudam a rir de nós mesmos. Eles podem nos ajudar na nossa
construção, e também nos pôr abaixo, mas ao final certamente nos aceitam como nós
somos. As amizades que fazemos quando estamos em recuperação estão entre as mais
importantes para nós.
Alguns de nós usam a palavra “família” para descrever os laços que nos unem – nossa
proximidade; é isso que acontece quando passamos feriados juntos, quando celebramos
algo, quando estamos de luto, assistimos a alguma partida, e por aí vai. Um membro
sugeriu que o grupo de escolha é como uma família, não só pela proximidade, mas
também porque não pré-selecionamos seus membros. “Alguns deles são realmente
difíceis”, um membro comentou, “mas são nossos companheiros e nós os amamos”.
Alguns de nós têm parentes que estão nas salas e que estão envolvidos em recuperação
e os membros da irmandade podem fazer parte da vida de nossas crianças, nossos pais
e nossas esposas. Um membro, cuja mãe era idosa e sozinha, a trouxe para todos os
eventos locais de NA e ela rapidamente se tornou uma “mãe” para todo um grupo de
pessoas em recuperação que estavam ansiosos por conexões familiares.

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Alguns consideram a irmandade como uma família, e geralmente há alguns que dizem,
“Então família...”, quando vão começar sua partilha. Já outros de nós se sentem
desconfortáveis com isso. Especialmente se nossa família foi violenta ou gerou um
ambiente inseguro, ou se tivemos alguma experiência em outros grupos que, por
alguma razão, tenham exigido algum tipo específico de lealdade, então esse papo sobre
“família” pode fazer a irmandade ser considerada insegura também: essas exigências
podem haver feito alguns de nós pensarem que são machucados pela “família NA”. Para
alguns de nós, no entanto, isso não é nada ameaçador – só parece um pouco infantil.
Nós podemos até mesmo não ter uma linguagem que nos permita descrever os tipos de
conexões que temos em NA, mesmo após algum tempo.
Apoiamo-nos em nossas lutas do dia a dia: romances e rupturas, nascimentos e mortes.
Nosso senso de conexão se aprofunda e nossa afinidade se desenvolve. Podemos não
ter a intensidade que tivemos nos primeiros anos em nossas relações, mas a
profundidade que cresce em seu lugar é também maravilhosa. Quando as pessoas que
fizeram parte do início da nossa recuperação continuam sendo parte de nossas vidas, o
tempo se torna uma dimensão que enriquece essas relações de uma forma única.
Desenvolvemos amizades de longa data que resistiram a violentas tempestades,
pessoas que vemos duas vezes ao ano, mas com as quais retomamos a relação tão logo
a encontramos; pessoas que salvaram nossas vidas e que não as encontramos mais por
um ano ou uma década, enfim, pessoas que, a despeito da distância, estão
completamente envolvidas em nossas vidas diárias. Essas são conexões emocionais
profundas que vão além do que consideramos amizade, mas que também não se
encaixam no que consideramos “família”.
À medida que ficamos limpos e construímos relações duradouras, experimentamos um
tipo de segurança que nunca imaginamos. Conhecemos os outros como qualquer um
nos conhece. Testemunhamos o crescimento e envelhecimento uns dos outros, e vemos
nas marcas de expressão de cada um os sinais das gargalhadas e lutas que
compartilhamos ao longo da caminhada. Podemos estar inacreditavelmente próximos e
distantes em períodos determinados, mas há algo que nos consola e nos preenche; a
confiança de que não estamos sozinhos nesse trajeto. Esse amor e conexão é tão
profundo quanto qualquer um que já tenhamos experimentado.
As maneiras sob as quais se manifestam nosso amor em recuperação podem ser
intensas e belas. Aprendemos a amar os outros – não somente nossos companheiros
adictos, mas nossas famílias e os que estão à nossa volta – com um força que nunca
imaginamos. Muitos de nós se afastaram do amor na adicção. Aqueles que nos amaram
nos fizeram sentir envergonhados. Em nossa auto-obssessão nada era suficiente e as
maneiras como éramos amados nunca pareciam adequadas às nossas necessidades e
demandas sempre crescentes. Quando havia cuidado, interesse e apoio suficientes, nós
explorávamos isso. Alguns de nós foram criados em casas de adictos ou em condições
sob as quais nunca nos sentimos amados ou ainda em circunstâncias tão aleatórias que
não nos permitiram confiar na possibilidade e realidade do amor.

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As relações estão sempre evoluindo e nós estamos continuamente em um novo
território à medida que nossas relações crescem e se aprofundam. Erros sempre
acontecerão. Estar apto a reconhecê-los, repará-los e seguir em frente é uma dádiva do
décimo passo, e não se trata apenas de evitar que problemas pequenos se tornem algo
maior. Lutamos com a crença de que não somos bons o suficiente. Problemas pequenos
em uma relação podem ampliar nosso senso de inadequação, de falta de amor e
dignidade. Mesmo com muitos anos limpos, oscilamos entre evitar a responsabilidade
por um problema e acreditar que não é nossa culpa. A rendição nos liberta do
sentimento de que devemos constantemente ter que compensar os outros por sermos
tão inadequados. Podemos lidar com o que nos diz respeito, nos render, e entregar o
restante. Aceitar que podemos cometer erros e que eles não são o fim do mundo ou de
uma relação faz parte do processo de apaziguamento com nossa própria humanidade.
Podemos partilhar honestamente sobre quem somos. Para além da nossa adicção,
somos seres humanos: membros da sociedade com dons e falhas como qualquer um.
Somos capazes de amar e sermos amados, de cuidar dos outros e contribuir para o seu
bem-estar. No processo de reconstrução do nosso eu, que a recuperação nos
oportuniza, construímos uma nova relação com nossos companheiros e com o Poder
Superior. “Ao fim, o que está acontecendo é que me sinto amado e apoiado enquanto
aprendo a construir relações honestas, sem segredos e manipulações. Seguro pelo amor
da irmandade, meu coração está se descongelando.”

Construindo a ponte entre dois mundos: Relações fora de NA

Nossas relações em NA podem não ser como nenhuma outra que temos, mas isso não
significa que sejam as únicas em nossas vidas ou mesmo as mais importantes. Temos
família e amigos fora da irmandade. Nossos empregos em geral nos colocam em contato
com outros; muitos de nós voltam a estudar ou encontram outras maneiras de buscar
seus objetivos pessoais e profissionais. Desenvolvemos interesses e habilidades que
nada têm a ver com recuperação, exceto que, sem esta, muito provavelmente não
teríamos condições de perseguir nossos interesses. Na busca de nossas paixões,
carreiras ou hobbies, nos conectamos de maneiras surpreendentes com o mundo que
está além de nossas portas. Alguns de nós fazem parte de comunidades de fé ou outras
organizações que têm seus critérios vinculantes. Em todas essas relações, aprendemos
e crescemos, praticamos princípios e tentamos lidar de outras formas com velhos
sentimentos. Nosso anonimato pode ser algo que guardamos com cuidado para
resguardar nosso lugar no mundo fora da irmandade.
Quadrado, careta, entre outros – são termos que usamos para nos separar das pessoas
que não frequentam a sala e terminamos por, equivocadamente, reforçar nossa
alienação. Lutamos com o medo de que se nos integrarmos demais com o mundo fora
de NA, vamos abandonar a irmandade. Cada um de nós procura o próprio equilíbrio que
permita participar do mundo sem comprometer sua recuperação ou se colocar em risco.

93
Com uma base que nos concede intimidade e segurança na irmandade, pode ser mais
fácil se aventurar mundo afora. Aprender a viver e a servir de acordo com as tradições
nos dá habilidades específicas que são muito bem-vindas fora da irmandade. Boa
vontade, honestidade, crença na unidade e fé no processo de recuperação nos torna
valiosos onde quer que escolhamos servir e trabalhar. Sabemos como nos fazermos
úteis, como nos tornarmos disponíveis para aprender, como demonstrar respeito e
permitir que os outros falem. Estar focado na recuperação e trabalhar de modo criativo
para alcançar isso é tão parte da nossa maneira de viver que podemos não perceber o
tanto que esse ativo é valioso no mundo. Aprender a servir nos capacita para a liderança.
Nas nossas relações dentro de NA aprendemos muitas habilidades e realizamos
trabalhos importantes, o que nos empodera também nas relações fora de NA. Eis uma
das razões pela qual é tão importante nos mantermos conectados com a irmandade.
Com toda a conversa sobre NA como “o último lugar” ou o lugar em que precisamos
estar ou onde sempre somos bem-vindos não importa o que aconteça, às vezes,
perdemos contato com a beleza do que temos. Quando permitimos que outros
acompanhem nossa recuperação e o que significa para nós termos uma irmandade em
nossas vidas, podemos nos surpreendemos com o tanto que isso atrai. Não é incomum
ouvirmos de um não-adicto “eu gostaria de ter o que vocês têm”. Eles podem ver a
beleza da graça, mas podem não compreender o que tivemos de apostar e passar para
conseguirmos esse lugar. Mesmo sendo afortunados por não possuírem nossa doença,
eles nunca entenderão o milagre que vivemos. Nós podemos ficar tão felizes por sua
sorte quanto agradecidos pelo que temos.
Aprendemos a cuidar dos outros e a compartilhar com eles. Mesmo os limites sendo
bastante diferentes em relação às pessoas de fora da irmandade, os princípios que
aprendemos em recuperação podem ser praticados em todas as áreas de nossas vidas.
Honestidade e sinceridade são quase sempre apreciados em todos os lugares. Às vezes,
pensamos que somente nós estamos encurralados pela dor, mas as outras pessoas
também têm seus problemas. Quando compartilhamos com elas, descobrimos que
temos muito a aprender uns com os outros.

Família

A relação com nossos familiares pode representar um dos maiores desafios em nossa
recuperação. Nunca há somente uma camada de sentimentos em relação à nossa
família. Há momentos em que vemos nossa infância por lentes cor de rosa e outros em
que esquecemos que havia alguma alegria lá. Pode ser difícil deixar no passado a lista
das mágoas reais e imaginárias praticadas por ambos os lados. Se eles ainda fazem parte
das nossas vidas, fato é que a relação com a família é crítica para nós.
Se temos uma relação contínua com nossa família, podemos não conseguir esperar até
o nono passo para lidar com dificuldades decorrentes dessa relação. Quer façamos ou

94
não reparações com os membros de nossa família, haveremos de lidar com as
consequências de nossas ações e de nossa recuperação toda vez que os encontrarmos.
“Eles eram legais, mas eu tinha que descobrir quem eu era e isso não podia ser feito em
companhia da minha família”, um membro falou em sua partilha. Outro membro
descobriu que as reparações em seu caso significavam não tolerar mais abusos, e ela
sentiu que finalmente ganhara permissão para sair de um lar abusivo e destrutivo.
Por outro lado, à medida que nos recuperamos, muitos de nós desejam relações mais
próximas com suas famílias. Apreciamos nossas famílias e a habilidade para estarmos
presentes e participarmos como um membro saudável e responsável já é uma
recompensa em si. O que aprendemos sobre ser membro de NA também se aplica à
nossa família. Quando aparecemos com a mente aberta e boa vontade para servir, as
recompensas podem ser bastante superiores aos esforços; às vezes, são as recompensas
diretas do sentimento de amor decorrente de nos relacionarmos com as pessoas com
quem nos importamos. Mesmo quando as recompensas não são tão diretas, podemos
vê-las com o passar do tempo: reeducar nosso comportamento não é algo que façamos
para conseguir algo em troca, mas para mudar nossa relação com nós mesmos, com
nosso Poder Superior e com todos à nossa volta. À medida que aprendemos a dissolver
e reeducar nossos aspectos negativos - raiva, ressentimento, medo - pela graça do Poder
Superior, desenvolvemos uma maturidade emocional que talvez não esperássemos. Isso
libera parte importante da nossa energia, anteriormente aprisionada por nossos
aspectos sombrios, que agora pode ser canalizada para ações produtivas.
É desafiador abandonar as velhas maneiras de se relacionar com nossa família,
especialmente quando precisamos abrir mão dos benefícios que normalmente nos
traziam. Às vezes, o serviço prestado a NA nos abre uma janela para compreendermos
nossos padrões com nossa família. Podemos perceber que estamos repetindo papéis
como fazemos em outras relações: estamos agindo como vítimas ou salvadores,
mediadores ou instigadores. Às vezes, é positivo e, às vezes, não. Mas a habilidade para
enxergar esses padrões em uma área de nossas vidas permite que mudemos nosso
comportamento em todas as outras dimensões.
Quando as pessoas se acostumam a nos resgatar ou assumir a responsabilidade por nós,
pode ser cômodo deixar que as coisas permaneçam desta forma. À medida que fazemos
nosso inventário, podemos perceber o preço de não haver assumido a responsabilidade
por nós mesmos em nossas relações, carreiras, e, acima de tudo, por nosso espírito. É
possível desatar os nós de nossa dependência em relação aos outros sem uma aspereza
desnecessária. Somos gratos pelas pessoas que tentaram nos ajudar, quer tenhamos
ou não aceitado seu auxilio. Tentamos manter conosco a sabedoria da Sétima Tradição:
“tudo tem seu preço, independente da intenção. ” Fazemos o que está ao nosso alcance
para aceitar ajuda quando precisamos e fazemos a nossa parte no que podemos. Há
uma grande sensação de liberdade ao assumirmos a responsabilidade por nós mesmos.
Somos capazes de olhar nos olhos dos outros e sermos claros quanto ao que queremos.
Depois de muitos anos de recuperação, um membro se viu na posição de cuidar dos pais
com quem havia passado por dificuldades na infância. “Recentemente ficou claro pra

95
mim como eles são humanos e frágeis”, ele disse. “Me machuca quando vejo meu pai
não se lembrar mais de quem eu sou, mas no geral isso pouco importa porque eu me
lembro de quem ele é”. Alguns dos momentos mais difíceis por que passamos contêm a
chave para a cura de nossas cicatrizes mais profundas e dolorosas. Frequentemente as
recompensas na recuperação vêm quando não estamos buscando nada, a não ser a
próxima coisa correta a se fazer.
Podemos nos surpreender ao aprendermos de quantas maneiras diferentes os
companheiros vivem essas coisas. Mesmo se procurarmos ajuda profissional para tratar
das nossas relações de infância e com nossa família, nossa recuperação em NA não
precisa ser colocada de lado. Pelo contrário, a base de nosso programa nos apoia
enquanto estamos lutando contra sentimentos e recordações marcantes. À medida que
outros membros compartilham seu amor e compaixão, aprendemos mais uma vez que
não estamos tão sozinhos quanto poderíamos nos sentir.
Quando olhamos de forma honesta nossa vida, podemos ver o que há de bom e ruim
em nossas famílias mesmo quando são bem complicadas. O processo de recuperação
nos oferece a liberdade de escolher o que queremos trazer à tona do nosso passado, e
o que realmente desejamos deixar para trás. Nem sempre é tão fácil agir quanto se é
falar, mas a habilidade para decidir, que ganhamos com a aplicação do programa,
aumenta consideravelmente a probabilidade de sermos capazes de levar isso adiante.
Nossos veteranos, às vezes, nos lembram: “se você ainda não sabe o que quer, é
provável mesmo que não consiga”.
Muitos padrões de relacionamento que desenvolvemos em nossas vidas foram
estabelecidos muito cedo. Não nascemos com toda essa carga danosa, mas precisamos
viver com os eventos do nosso passado e alguns deles foram de fato traumáticos. Abusos
podem assumir muitas formas e não é fácil qualificar nossa história. Não importa o lado
da equação em que estamos, as lembranças nos assediam. Nossa história nos lega
problemas que vem à superfície muitas vezes: vergonha, medo, a crença de que
precisamos justificar nossa existência, e um senso de alienação de nós mesmos, de
nossos corpos, e dos outros. Em nossas relações, isso aparece como um sentimento de
fracasso mesmo antes de as começarmos. Parece impossível para nós que possamos ter
uma relação saudável e amorosa de modo que qualquer sinal de rusga ou fricção parece
confirmar nossas piores suspeitas. Nós intensificamos nossos medos ou nos afastamos
deles antes que se confirmem ou que vejamos que não são a realidade.
Chegar a um bom termo com nossa experiência de vida acontece aos poucos e em
camadas: há problemas que precisamos abordar imediatamente se quisermos encarar
a vida limpos e outros para cuja resolução precisamos desenvolver uma base sólida em
recuperação. A bagagem que nos acompanha em nossa longa viagem pode nos trazer
sentimentos de desesperança. De fato, há momentos em que podemos nos sentir bem
frustrados ao nos vermos encarando os mesmos problemas já existentes há anos, mas
encontramos uma liberdade crescente à medida que seguimos fazendo-o. Quando
estamos nas garras de um antigo padrão, devemos nos lembrar de nosso lema: não use,
não importa o que aconteça! É como se nos lembrássemos de que devemos agir

96
diferente se quisermos resultados diferentes. Mas pode levar muito tempo entre nosso
trabalho para melhorar em algum aspecto de nossa vida e a tomada de consciência
desse processo.
Para aqueles de nós com padrões de relações dolorosas que vêm de longa data, pode
ser surpreendente perceber o número de relações amorosas e duradouras que temos
na irmandade. O amor pode nos encontrar de surpresa. O próprio fato de que esse amor,
e a sua inegável presença em nossas vidas, realiza seu trabalho silencioso, curando
nossas feridas, pode ser percebida pela sensação de renascimento advinda do ar que
preenche, pela graça de nosso Poder Superior, nossos pulmões a cada amanhecer.

Paternidade

Talvez nada mude mais nossa perspectiva sobre nossa infância do que termos nossos
próprios filhos. Adquirimos uma perspectiva diferente sobre a experiência de nossos
pais e nos vemos por meio deles. Queremos tanto fazer certo – mas não sabemos o que
isso significa. Ser um bom pai pode significar coisas diferentes para cada um de nós, mas
o que quer que pensemos que isso possa representar, a verdade é que queremos fazê-
lo da maneira certa. Ficamos tão imersos em nossas teorias e expectativas acerca do
que deve ser pai que nos esquecemos que se trata de uma relação. Tudo que
aprendemos sobre relações em recuperação pode nos ajudar como pais – vemos nossos
problemas nas lutas que travamos virem à tona, de uma forma ou de outra, em nossas
relações com nossos filhos.
Aprendemos a ouvir e a nos comunicar cuidadosamente. Assim como fazemos em nossa
relação de apadrinhamento, aprendemos a lidar com nossos filhos em seu processo de
crescimento. Talvez mais importante seja perceber que quando saímos de nossa auto-
obsessão, podemos sentir e vivenciar amor, compaixão, empatia e intimidade. À medida
que nos apaziguamos, encontramos paz com os que estão à nossa volta, incluindo
nossos filhos. Quando praticamos a autoaceitação, podemos aceitar nossos filhos como
os seres humanos que são. Talvez a maior dádiva com que possamos presentear nossos
filhos seja aceitá-los. Considerando que não podemos dar o que não temos, o que
queremos para eles pode ser o mesmo alvo que buscamos em nossa jornada da
recuperação.
Ter filhos é um compromisso para a vida, quer isso nos tenha chegado de modo
cuidadoso e planejado ou inteiramente por acaso. Uma das coisas que distingue a
relação de paternidade e maternidade das outras é o seu caráter de permanência: nunca
deixaremos de ser pais, mesmo se não estivermos próximos aos nossos filhos o tempo
todo. Quer estejamos, ou não, próximos a nossos filhos constantemente, o fato de
sermos pais nos expõe a um poder para amar que podemos nunca haver conhecido
antes. Somos mais capazes – e mais vulneráveis – do que imaginávamos. Ter filhos nos

97
oportuniza uma abertura para uma conexão mais profunda do que qualquer outra em
nossas vidas, além de nos agraciar também com uma lição de vida sobre o desapego.
Muitos de nós pressupõem que ser pai é algo que devêssemos saber instintivamente de
modo que pode ser difícil pedir ajuda em relação a isso. O princípio da mente aberta nos
permite continuarmos sendo alunos e a procurar os vários professores que nos cercam
na irmandade. Alguns de nós encontram o apoio de que precisam trazendo seus filhos
às reuniões e criando-os dentro da irmandade; outros de nós têm filhos que não sabem
de modo algum que seus pais estão em recuperação. Quaisquer que sejam as escolhas
que façamos em relação a como nossas famílias e a irmandade se intersectam, sabemos
que as habilidades desenvolvidas em recuperação nos fazem pais, parceiros e filhos
melhores em qualquer estágio de nossas vidas.
Há uma ampla variedade de experiências de paternidade e maternidade na jornada da
recuperação. Alguns de nós se fazem acompanhar dos filhos durante a adicção e
recuperação; alguns formam família após ficarem limpos; alguns de nós nunca têm
filhos, mas se tornam importantes na vida de crianças de alguma forma. É difícil falar
sobre essa experiência sem se distrair em meio a nossas muitas teorias e crenças acerca
da paternidade e maternidade, ou a nossos variados meios de comunicação. Todos
temos opiniões sobre o que é certo e errado. A recuperação em NA nos abre as portas
da liberdade para descobrirmos o que é certo para nós, assim como para podermos
vivenciar isso da melhor maneira possível de acordo com nossa habilidade. Assim como
não há modelo para a recuperação de um adicto, também não o há para um
companheiro, que está em recuperação na irmandade, ser pai.
Pode ser bastante confuso, nas relações com nossos filhos, distinguirmos entre o que
está, e o que não está, sob nosso controle. Fazer um inventário nos ajuda a resolver os
aspectos sobre os quais devemos agir. “Eu fiquei maluca quando soube que teríamos
um bebê. Não tinha ideia do que fazer. Minha madrinha me pediu para escrever algumas
perguntas simples que me foram muito úteis: o que é uma criança? Quais são suas
necessidades? Quais as minhas responsabilidades? O que é um pai? Quais são as suas
responsabilidades? A paternidade e a maternidade são aspectos de nossas vidas aos
quais nosso egocentrismo pode causar dano real. Trabalhar o programa nos impede de
ficarmos presos em nossa auto-obsessão e nos ajuda a detectar quando estamos
recriando antigos padrões que não queremos deixar para a nossa descendência. Viver
vidas simples baseadas em honestidade e integridade formam um padrão de mudança.
Nosso exemplo ensina mais nossos filhos que nossas palavras.
Se houvermos sido separados de nossos filhos por um tempo, poderemos precisar nos
conhecer novamente à medida que aprendemos a lidar com eles. Frequentemente há
conflito quando nos reunimos com nossos filhos após algum tempo; eles têm seus
sentimentos sobre o que aconteceu e isso pode nos machucar. Nossas relações com
nossos filhos podem ser manchadas, não somente pelo estrago que causamos com
nossa adicção, mas também pela culpa e vergonha que sentimos em relação ao que
aconteceu. Autodepreciação é apenas outra forma de auto-obsessão e nos cega às
necessidades de quem está ali bem à nossa frente. Quando saímos do caminho,

98
descobrimos que podemos ser bons pais em qualquer época do desenvolvimento de
nossos filhos. Ainda que eles tenham se tornado adultos, ainda temos algo a lhes
oferecer. Nossa experiência com o serviço abnegado em recuperação nos ensina que se
mostrarmos boa vontade, as oportunidades para ajudar aparecerão naturalmente.
“Deixo minhas crianças assumirem a responsabilidade por amor. Elas me mostram o
carinho caloroso que eu não conheci anteriormente. Aprendi a parar de controlar e
apenas a apreciar”, disse outro pai em recuperação. “A família grande e afetuosa da
minha parceira ensinou meu filho a amar e a abraçar. Estou aprendendo com ele a
aceitar o afeto, mesmo quando é desconfortável para mim”. Parte da alegria e da
dificuldade de ser pai é que estamos em constante experimentação. Cada criança é
única e cada pai também. Aprendemos a adaptar nossas crenças à realidade, a
avaliarmos nosso comportamento e a usarmos as ferramentas que aprendemos em NA
para formar uma família da qual fazer parte nos faça felizes.
Mesmo os melhores pais atravessam momentos em que não estão tão certos sobre se
gostam dos filhos. Somos humanos; há momentos em que apenas não fazer a próxima
coisa errada é o melhor que conseguimos. “Eu costumava correr para o banheiro e
fechar a porta,” disse uma mulher . “Eu ficava de joelhos e apenas rezava para que o
desejo de bater em meu filho passasse”. Uma outra companheira disse: “Eu ia para o
meu quarto e rezava para eu dormir.” Nossas frustrações e medos podem nos levar a
reagir do modo como fizemos anteriormente. Não somos perfeitos, mas estamos
melhorando. Começamos por não machucar os outros e descobrimos que podemos
fazer muito bem se praticarmos o princípio da boa vontade.
Ter filhos em meio à adicção ativa é sempre difícil. Em geral, nem os piores pais desejam
causar mal aos filhos, mas em nossa adicção nós os machucamos com o que fazíamos e
com o que deixamos de fazer. Alguns de nós fizeram o seu melhor na ativa, mas
falharam: “eu pensei que ser um bom pai era comprar fast food e brinquedos para meu
filho com o dinheiro que eu adquiria furtando,” disse um membro. Em muitos casos,
parecia mais simples para todos os envolvidos se nós simplesmente não estivéssemos
por perto. Deixamos nossos filhos com outros pais, parentes ou em abrigos para
continuarmos na nossa adicção e descobrimos, ao ficarmos limpos, que nosso desejo de
sermos bons pais não era suficiente. Alguns de nós estavam presentes fisicamente, mas
emocionalmente distantes, imprevisíveis ou, simplesmente, ausentes. Alguns de nós
sabem que causaram mais mal do que pode ser reparado: “eu era um mau pai”, um
membro reconheceu. “Não há negação nisso e não posso desfazer o mal que fiz de
nenhum modo. Eu vou passar a vida reparando isso.”
Sabemos que machucamos nossos filhos, mas, às vezes, nos esquecemos das outras
crianças que nos cercavam em nossa adicção: tomamos conta de crianças enquanto
usávamos drogas e ignoramos a negligência ou abuso praticados contra elas em nossos
locais de adicção. Se não pudermos desfazer o mal que causamos, podemos ao menos
parar de fazê-lo. Isso já faz uma grande diferença. O programa nos ajuda a parar de
causar danos às pessoas, compartilhar nossa experiência com os companheiros nas
reuniões e vivenciar a experiência renovadora do apadrinhamento e do poder valioso

99
do exemplo. Podemos quebrar os ciclos de autodestruição em nossas famílias e ajudar
os outros a melhorarem com seus filhos também.
Por outro lado, alguns de nós querem assumir mais responsabilidade do que lhes é
possível em determinado momento de suas vidas. Vemos nossos filhos brigando e
queremos nos culpar por suas dificuldades. Projetamos o pior com base em nossa
experiência. Nosso egocentrismo também se manifesta ao enxergarmos nossos filhos
não como eles são, mas como um reflexo de nós mesmos, nossa paternidade ou nossas
decisões. “Eu pensei que meu filho era uma versão de mim”, disse um membro. “Pensei
que gostaríamos das mesmas coisas, que desejaríamos as mesmas coisas e pensaríamos
da mesma maneira. Me custou muito ver que ele era uma pessoa única, diferente de
mim, e sou grato por isso. Agora estamos nos conhecendo. Ele não sou eu, mas alguém
de quem realmente gosto”. Acreditar que nossos filhos têm seu próprio caminho e sua
relação com um Poder Superior pode nos trazer um novo entendimento de nosso
terceiro passo. Quando saímos do caminho, nossos filhos podem ser vistos como
indivíduos únicos que são. Nossa recuperação é uma mensagem para eles de que há
“uma segunda chance” na vida.
Frequentemente vemos traços de nossa doença em nossos filhos e não fica claro se é
somente uma fase ou se eles são adictos como nós. Oscilamos entre a negação do que
está acontecendo e rotularmos seu comportamento de inadequado como sintoma da
adicção. Nosso desejo de poupar nossos filhos da nossa infeliz experiência com a adicção
pode, às vezes, nos levar a pressupor equivocadamente que sabemos o que é melhor.
Assegurar que nossos filhos tenham acesso à recuperação pode significar simplesmente
não os pressionar demais. Mesmo para as pessoas que mais amamos, este ainda é um
programa de atração, não de imposição.
Muitos de nós perderam os filhos de uma maneira ou de outra. Eles foram tirados de
nós, ou nós os demos para garantir sua segurança, ou algo lhes aconteceu. Para alguns
de nós, essa é a ferida mais profunda de nossa adicção, a perda que sentimos mais
agudamente. No entanto, com o tempo e as ferramentas do programa, começamos a
nos curar, quer ou não a relação com eles seja restabelecida.
Se formos afortunados em ter nossos filhos juntos conosco em nossa recuperação,
podemos descobrir que nossos processos e os deles não são tão diferentes: “Crescemos
no mesmo passo”, disse um companheiro. “Eu era tão criança quanto meu filho, e tinha
que ser pai de nós dois. É bastante constrangedor quando nossos filhos amadurecem
antes de nós”. Precisamos de ajuda, aconselhamento e do poder do exemplo. Nos voltar
aos nossos amigos de NA, às pessoas de nossa comunidade, e a outros adultos que estão
envolvidos nas vidas de nossos filhos nos disponibiliza as informações de que
precisamos. “Eu era mãe solteira, mas não estava sozinha”, uma companheira partilhou.
Quando nos sentimos livres para pedir ajuda, somos aptos a adquirir as ferramentas que
necessitamos para criar nossos filhos como acreditamos ser correto.
Se entramos ou não em recuperação com nossas famílias, temos a tendência de
construir relações familiares assim que começamos nossa jornada. Algumas delas se

100
parecem às famílias a que estávamos acostumados – encontramos um parceiro e temos
filhos ou criamos os filhos em comum já existentes. Mas também reunimos famílias de
outras formas: acolhemos os filhos de famílias ou amigos que não são capazes de criá-
los; nós os adotamos ou os ajudamos. Misturamos as famílias de maneiras
surpreendentes. “Fiquei de coração partido quando aprendi que uma das consequências
de minha adicção foi não poder ter tido filhos. Uma afilhada estava partilhando seu
trabalho de passos comigo e comentou se não haveria uma mãe sem filhos que pudesse
ser mãe das crianças que não tinham mãe. Foi como se uma luz entrasse na sala – eu
olhei ao meu redor e lá estavam algumas crianças de rua que não tinham mãe, e então
tive clareza sobre a vontade de Deus para mim”. Alguns de nós terminam por tomar
conta de amigos ou pessoas idosas que não possuem famílias. Como quer que aconteça,
muitos de nós encontram suas casas repletas de amor e pessoas que nos amam, quer
sejam ou não nossos parentes. Os laços que nos unem não se limitam aos primeiros
companheiros que reconhecemos quando nos reunimos na irmandade. Família pode ser
um conceito difícil para alguns de nós. Fazemos as pazes com ele, às vezes, ao reinventá-
lo completamente.

Reparações e reconciliações

À medida que nosso comportamento se transforma, não deixamos mais um caminho de


caos e destruição em nosso rastro. Reconhecemos que não há como voltar atrás após
quebrarmos um vaso; há exemplos de dores que causamos que podem ser difíceis de
serem reparadas. Repararmos nossos erros é importante para se viver livre da culpa,
vergonha e remorso que nos mantêm na armadilha da autopunição. Mas o processo
nem começa e nem termina quando nos sentamos para conversar com a pessoa que
machucamos. Com a ajuda de nosso padrinho, nos reconciliamos com a verdade do que
fizemos e iniciamos o processo de apaziguamento com as consequências das nossas
ações. Uma relação honesta conosco e uma mudança tangível e real em nossas vidas
são necessárias para que as reparações tenham valor. Há uma razão para que essa fase
somente ocorra após estarmos trabalhando os passos há algum tempo. Esse processo,
pelo qual não é fácil passar, é um dos mais importantes que levaremos adiante em nossa
recuperação.
As reparações que fazemos por meio de palavras são cruciais em nossa recuperação,
mas são somente uma parte do processo. Vivê-las significa permitir que as mudanças
em nossos comportamentos e em nossas personalidades se tornem consistentes e
confiáveis nas vidas daqueles com quem nos importamos. Fazemos isso ainda que as
pessoas que amamos estejam ou não evoluindo, mesmo se nos perdoaram ou não,
mesmo se as relações se tornaram aquilo que desejávamos ou não. Quando limpamos
nossa parte da sujeira, nossos corações e espíritos se aliviam e se elevam. Mas isso não
obriga de modo algum que os outros limpem sua parte da sujeira, nem que nossa família
se torne aquilo que desejamos. É mais provável que façamos as pazes com as famílias

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que temos e aceitemos a realidade de quem somos. Aprendemos a viver com eles, como
são, sem impor-lhes condições ou alimentarmos falsas expectativas.
Há pessoas que nunca nos perdoarão. Frequentemente alguns são membros da nossa
família. Por mais que ansiemos por seu perdão, a verdade simples é que isso não virá
até que estejam prontos para tal. Viver com isso pode ser imensamente difícil. O desejo
de consertar pode ser tão forte que pioramos as coisas e não deixamos a cura acontecer
em seu próprio tempo. Uma companheira, 12 anos após iniciar seu processo de
reparação, ouviu de sua filha que ela finalmente havia sido perdoada. “Foi uma dádiva
não saber que ela ainda lutava contra isso todo esse tempo”, ela disse, “porque se eu
soubesse eu teria me desapegado e não haveríamos chegado até aqui”. O que quer que
precisemos dizer às pessoas que magoamos, sabemos que a mais profunda reparação
que podemos fazer se refere à nossa mudança. Enquanto sentimos a profundidade da
transformação em nossas vidas, as pessoas que viveram nossa adicção podem levar
muito tempo para acreditar e confiar em nós. Mesmo nós podemos ter problemas em
acreditar nisso. Abrigamos a mesma dúvida de que a mudança que estamos vivendo
pode emperrar e que, se os outros não acreditam em nós, podemos cair na mesma
armadilha de não acreditar nisso também. Ter pessoas que acreditam em nossa
recuperação pode ser essencial para atravessar a tempestade, especialmente quando a
perspectiva de sua duração é longa. A recompensa pode ser uma profunda auto
aceitação: nos perdoamos, perdoamos os outros e encontramos paz – não importa o
que os outros possam pensar, sentir ou nos dizer. Um membro partilhou, “eu não sou
mais quem eu era, não interessa se alguém está, ou não, convencido disso. Essa mentira
está morta.”
A reconciliação é um princípio espiritual importante para nós: tomamos pé da realidade
de nossas ações e nos reconciliamos com as pessoas. Às vezes, reconciliar-nos significa
restaurar a relação ao seu estágio inicial, ou entrarmos em uma nova fase assentada na
realidade atual ou ainda, às vezes, fazermos as pazes com o fato de que a conexão com
essa pessoa se perdeu. Mas a reconciliação significa o restabelecimento do equilíbrio.
Da mesma forma, quando assumimos o que não é nosso, como quando assumimos a
responsabilidade por algum sentimento ou ação de alguém, estamos desequilibrados e
o resultado disso frequentemente é destrutivo. Fazemos o possível para reparar o mal
que fizemos e restabelecer o equilíbrio em nossas relações, abrindo mão do controle
sobre os resultados. Encarar as reações de algumas pessoas com quem tivemos contato
no passado pode nos fornecer uma visão mais aguçada sobre quem fomos, bem como
custar nossa paz. Queremos estar bem conscientes de quem estamos nos tornando e
usar nossas experiências passadas para nos ajudar a seguir em frente.
Se fazer reparações é mudar, uma mudança crucial que podemos fazer é não nos
submetermos mais a qualquer tipo de abuso. Encontrar o equilíbrio entre ouvir
atenciosamente alguém sem nos colocar em uma situação de risco pode ser difícil.
Somos os únicos capazes de estabelecer essa linha tênue e podemos não conseguir em
dado momento. Como muito do que acontece em recuperação, as coisas trabalhadas e
vivenciadas vêm em camadas. Pode ser útil saber que um tema abordado em

102
determinado momento não necessariamente significa que já o tenhamos esgotado,
quer seja um problema, uma lembrança ou uma reparação. Mais nos é revelado e, às
vezes, no decurso daquilo com que estamos lidando, aprendemos mais do que já
havíamos feito anteriormente.
Seguir nosso caminho com o conhecimento de que alguém não nos perdoou é duro, mas
pode nos conduzir a níveis de aceitação e perdão que não sabíamos ser possível. Isso
nos revela um entendimento mais claro de para que serve o nono passo e aprendemos
a reconhecer a diferença entre esperança e expectativa. Por mais que desejemos que
alguém nos perdoe ou arque com sua responsabilidade em algo cujo dano foi recíproco,
não temos o direito, nem razão de esperar por isso. Às vezes o caminho para nos
perdoarmos se inicia ao perdoarmos o outro pela sua inaptidão para perdoar. À medida
que perdoamos os outros, podemos vivenciar a compaixão pela dor que sentem com o
fardo de seus ressentimentos – e também pela dor que lhes causamos. Entendemos que
o senso do dano causado varia de companheiro para companheiro. Algo de que nos
desapegamos facilmente pode ser, para outro, algo imperdoável: isso não nos diz
respeito. Quando entendemos a gravidade do dano que causamos, podemos entender
que aceitar essa falta de perdão é parte do nosso processo de reparação. Percebemos
também que nos perdoar pode impactar a pessoa a quem estamos fazendo reparações.
Isso pode ameaçar as suas relações ou seu senso de individualidade. Só temos controle
sobre nossa recuperação. Só podemos reparar o que é nosso. O restante, em relação ao
qual praticamos o desapego, não está em nossas mãos.
Milagres acontecem e não somos os únicos a vivenciar a experiência de cura. Às vezes a
reconciliação é possível, mas não necessariamente em nosso tempo e termos. É preciso
que pratiquemos o perdão, a paciência e a aceitação. Precisamos dar tempo, ainda que
seja o tempo de uma vida. Nesse ínterim, estamos cercados de pessoas que acreditam
em nós e nos dispensam cuidado – e se prestarmos atenção, há sempre alguém
precisando de nós. Podemos entregar o amor que sentimos àqueles que lhe dão as boas-
vindas, construindo e zelando pelas relações atuais em nossa vida.

Relações amorosas

O Texto Básico oferece uma sugestão sobre relações amorosas: que comecemos por
escrever o que queremos, o que estamos buscando e o que estamos conseguindo.
Quando exploramos essas questões simples, começamos a ver como podemos usar as
ferramentas de recuperação para mudar nosso comportamento e nossa vivência da
intimidade em uma relação amorosa. Aprendemos a desvendar nossos motivos e a
sermos honestos sobre o que queremos; começamos a nos libertar de nosso antigo
fardo e, assim, a vivenciar relações no agora. Praticar princípios como honestidade,
coragem e fé nos permite abrir a porta para a experiência do amor, da aceitação e da
confiança em nossas vidas.

103
O que queremos

Frequentemente ouvimos que, se fizemos uma lista do que desejávamos no início de


nossa recuperação, muito provavelmente não a fizemos com a devida profundidade.
Não foi só no começo que isso foi verdade – muitas vezes nossos sonhos podem ser
indicativos da vontade do Poder Superior para nós, mas ainda não são o mapa da mina.
Muitos de nós vivem isso em suas relações amorosas também. Podemos começar a
jornada para encontrar um parceiro da mesma forma como saímos para comprar um
automóvel: fazemos uma lista das características que queremos e das que não
desejamos e começamos a avaliar os pretendentes marcando simplesmente o que nos
convém. Podemos nos surpreender, pensando haver encontrado a pessoa que atenda
aos nossos critérios, ao perceber que as coisas não estão funcionando como planejamos.
Nosso padrinho pode nos sugerir que olhemos a lista e pensemos no custo envolvido
para que nos tornemos a pessoa que idealizamos como nosso parceiro. Outros podem
sugerir que deixemos completamente de lado a lista, pensando em vez disso em como
seria a relação na qual gostaríamos de estar. Alguns de nós são mestres da projeção:
quando vamos encontrar alguém pela primeira vez, já imaginamos toda a relação, desde
o mágico início até o divórcio amargo. Permitirmo-nos estar presentes no agora implica
podermos desenvolver uma relação com uma pessoa, não com uma fantasia. Viver no
agora nos liberta para nos apreciarmos, para gostarmos de nós mesmos. Aplicar as
ferramentas que o programa disponibiliza como a escuta ativa, a prática de princípios
como a unidade, a compaixão e o ato de compartilhar, tudo isso nos prepara para o
estabelecimento de uma relação sólida muito antes de a vivermos de fato. Esses
comportamentos não somente tornam mais provável alcançarmos o que queremos; nos
tornam mais felizes e realizados onde quer que estejamos.
Há tanta coisa que pode nos impedir de alcançar o tipo de relação que almejamos:
medo, egoísmo, reservas, a crença de que as coisas terminarão mal. Quanto mais
fazemos nosso inventário, mais claro fica o que está entre nós e aquilo que queremos.
Podemos confundir nossa impulsividade com intuição e imaginar que nos apaixonamos
tão logo sentimos a primeira excitação da emoção. Ou podemos resistir a qualquer tipo
de emoção. Não arriscar nossos corações significa a possibilidade de eles não serem
correspondidos e preenchidos. À medida que nos abrimos, também aprendemos a
sobreviver à dor de sermos feridos. Estranhamente, à medida que se torna mais fácil
suportar esses ferimentos, eles parecem acontecer com menos frequência. Escolhemos
melhor, passamos a ter mais cuidado ao entrar em uma relação, além de aprender a
reconhecer e tratar os sinais de dificuldade com mais urgência. Relações saudáveis
começam a ocupar o lugar do caos que algum dia consumiu nossas vidas. Às vezes
sentimos falta do tumulto. Viver sem o drama e a confusão da adicção ativa nos causa
estranheza. Podemos ser impelidos a criar algum tipo de drama na recuperação só por
isso nos haver sido tão familiar.

104
“É melhor não se relacionar com ninguém no primeiro ano” pode ser o mais repetido e
também o menos ouvido conselho veiculado na irmandade. Precisamos de tempo para
assentar nossos pés no chão, construir uma base de apoio, trabalhar os passos e
descobrir quem somos, embora muitos de nós não se deem esse tempo no início. É
como construir uma casa sem uma boa fundação: cedo ou tarde, a base precisa ser feita,
e é muito mais fácil fazê-la no início do que a construir sobre uma casa já pronta. Muitos
de nós não se dão esse tempo no início e descobrem depois que precisam dele. Se
sobrevivermos a esta primeira etapa limpos, teremos uma boa noção sobre a
importância e a utilidade desse tempo.
Nem todos demoram um ano, e alguns muito mais que isso, até começarem uma relação
amorosa. Podemos mesmo pensar que somos mais felizes e estamos mais serenos
quando estamos solteiros e escolher essa opção. Ao descobrirmos que não há nada de
que ter medo e que não há resposta correta, podemos responder nossas grandes
questões sabendo que sempre podemos alterar a rota se assim o desejarmos.
Nós queremos uma fórmula mágica que faça as relações funcionarem: um ano, três
anos, um quinto passo, uma etapa inteira dos passos. A verdade é muito mais simples e
difícil de definir. Alguns de nós nunca estão “prontos” e lutam por toda uma vida.
Conhecemos membros que são catedráticos sobre os princípios e colecionam
casamentos fracassados; também vemos recém-chegados tropeçarem em uma relação
e fazerem isso funcionar. Quando funciona, ficamos felizes em recebermos os créditos.
Quando não funciona, tentamos entender o porquê. As lições estão sempre disponíveis.
Experiência é o que alcançamos quando não conseguimos o que queríamos. Algumas
lições são tão claras que não é preciso que atuemos para entendê-las. Com a prática,
desenvolvemos responsabilidade pessoal, discernimento e aptidão para sermos
fiscalizados. Na maioria das vezes sabemos quando estamos fazendo algo errado;
levando vantagem sobre alguém que é mais vulnerável, sendo controladores,
enganadores ou abusivos; por isso temos a responsabilidade em relação a nós mesmos,
tanto quanto em relação aos outros, de paralisar e reeducar nossos comportamentos
destrutivos.
Pode ser difícil admitir, mas os momentos em que mais queremos estar em uma relação
são aqueles em que menos estamos preparados para tal. Tantos de nós lutam contra o
medo de que nunca terão um parceiro e que isso possa significar que estarão sempre
“sós”. Esse tipo de medo leva ao pânico e à dor. Quando estamos sozinhos, tristes, ou
tentando nos distrair, podemos escolher uma opção que não seja a que realmente
queremos para a vida. Quando nossa prioridade é simplesmente não estar sozinho,
podemos comprometer nossos valores ou nossas prioridades, comprometendo-nos
rapidamente com alguém que estamos simplesmente conhecendo. Há um ditado antigo
que diz “cuidado com o que você pede em suas orações – você pode conseguir”.
Confundimos intensidade ou sexo com intimidade e podemos pensar que algo é sério
quando estamos apenas procurando distração. Também podemos nos contentar com
sexo quando na verdade o que queremos é intimidade e amor. Pelo medo de ficarmos
sozinhos, tentamos, equivocadamente, remendar o vazio que sentimos com uma

105
relação. “Ele se tornou meu Poder Superior e minha droga de preferência”, uma
companheira disse ao se referir a um namorado recém-chegado à Irmandade. “Eu ligava
o tempo todo quando estava entediada ou feliz, perguntando o que ele estava fazendo.
Eu estava limpa, mas sem conhecimento algum sobre as ferramentas do programa, e
com uma nova obsessão. Nada havia mudado” (Essa companheira também relatou que
alguém lhe sugeriu o seguinte: “se aquilo em que estiver pensando for para depois das
22h00 e soar como uma boa ideia – não faça”). Às vezes é como se nossa última droga
de escolha fosse uma pessoa. Pode ser surpreendente descobrir que uma queda que
temos por alguém pode se transformar facilmente em uma auto-obsessão; e quando
examinamos nosso pensamento, poderemos ver nosso interesse voltado para se
estamos sendo notados ou como estamos sendo percebidos.
Muito frequentemente podemos nos acomodar em nossa recuperação em razão de
estarmos em uma nova relação. Começamos a faltar às reuniões, ligamos menos para
nossos companheiros e deixamos de nos trabalhar com todo o afinco como fazíamos
anteriormente. Não deveria ser uma surpresa se a relação se abala quando não estamos
cuidando bem de nós mesmos. Mas a relação pode ser um centro energético que nos
abastece quando dedicamos tempo ao trabalho do programa. Trabalhamos para nos
tornar o tipo de pessoa que está pronta para a relação na qual queremos estar – e
precisamos continuar fazendo o trabalho necessário para ser essa pessoa em uma
relação também. “É como salpicar sua recuperação com gotas de milagre”, um membro
disse. “Se quiser se conhecer, então comece uma relação com alguém.” “Não”, disse
outro membro: “Se quiser conhecer o seu padrinho – comece uma relação com
alguém!”
Alguns de nós ficam limpos e começam a desenvolver um padrão de relacionamento
aparentemente sério que termina em confusão. O drama de apaixonar-se e de se
desapaixonar pode constituir uma recompensa em si e nós nos vemos repetindo o
padrão muitas e muitas vezes, somente trocando de pessoas. A intensidade do início de
uma relação pode ser tão viciante que seguimos buscando isso repetidamente. Às vezes,
é nosso próprio comportamento na relação que atrapalha, mas também podemos
antever problemas antes mesmo de a relação começar – percebemos que estamos
escolhendo pessoas que não são apropriadas para nós. Brincamos às vezes sobre termos
“um radar avariado”, mas a verdade pode ser bem dolorosa de fato.
Não é surpresa que alguns de nós fiquem sequelados com o sexo. Queremos algo que
nos faça sentir bem, mas queremos isso rápido. Às vezes, só o flerte já produz frisson –
gostamos de jogar. Se conectar já produz uma descarga emocional poderosa, mesmo
antes de que algo aconteça. Não é preciso dizer que isso é um problema para todos nós,
ou ao menos para todos cujas relações costumam ser do tipo “sexo casual”. Como tantas
coisas em recuperação, não há problema até que isso se torne um problema para nós.
Podemos nos perguntar se o sexo está tornando nossas vidas incontroláveis, se está
contribuindo para nossa felicidade ou infelicidade, se obsessão e compulsão estão ativos
em nosso comportamento, ou se estamos mentindo, mantendo segredos ou se

106
escondendo por aí. Olhamos com honestidade se nosso comportamento está magoando
nossos entes queridos – ou se os machucaria se eles soubessem disso.
Precisamos ser honestos sobre o que estamos fazendo. Podemos estar em busca de uma
relação com significado, ou de um momento agradável ou podemos simplesmente estar
buscando problemas. Entender nossa motivação torna muito mais fácil entender as
consequências. Não é sempre que conseguimos o que pedimos, mas quando queremos
uma coisa e pedimos outra, as consequências normalmente são desalentadoras. Como
podemos ter a esperança de sermos honestos e francos com um parceiro se ainda
estamos praticando o autoengano?
O que importa é estarmos confortáveis com nosso comportamento e nossas decisões.
As pessoas têm suas opiniões, mas nós aprendemos a identificar o que queremos, no
que acreditamos e como escolhemos viver. Isso pode variar bastante de um membro
para o outro ou de acordo com o momento das nossas vidas. Um comportamento que
tenha sido confortável no início da recuperação pode se tornar algo impensável depois;
ou podemos descobrir, após anos de programação, que sentimos uma liberdade para
experimentar que era impensável no início. É complemente razoável que nosso
comportamento se altere à medida que nossas necessidades, desejos e expectativas
mudam; o ponto primordial é que a luz da clareza se acende dentro de nós sobre isso.

O que pedimos

Com o tempo, encontramos uma aceitação crescente sobre nós e as circunstâncias que
nos rodeiam. Aprendemos a desfrutar de nossa própria companhia e a lidar com nossos
desejos e responsabilidades de forma apropriada. Pode nos surpreender percebermos
que não mais “precisamos” de alguém como já o fizemos. O que mais surpreende é quão
mais fácil e confortável se torna estar com alguém quando sabemos que o que
realmente queremos é uma relação – mas não “precisamos” de uma para sermos felizes.
Termos as ferramentas do programa à mão como apoio significa que podemos ser bem-
sucedidos em nossa relação, mas também que temos o auxílio necessário caso as coisas
não aconteçam como esperávamos.
Relacionamentos são uma área de nossas vidas em que a prática solitária não leva à
perfeição. Alguns dos trabalhos mais importantes que fazemos para melhorar nossas
relações não são feitas no âmbito das relações em si, mas com nossos padrinhos,
madrinhas e amigos de confiança. Mesmo com muitos anos limpos, reconciliar o que vai
em nossos corações e em nossas mentes não é algo que acontece automaticamente.
Precisamos de outros olhos; precisamos de um ouvinte carinhoso e atento para nos
iluminar a solução de nossas angústias. Um bom padrinho/madrinha é a chave para abrir
as possibilidades de mudança na maneira como nos relacionamos com os outros. Essa
relação forma a base para todas as outras relações que desenvolveremos em
recuperação. Alguns de nós já estão limpos há muito tempo antes de encontrarem um

107
padrinho com o qual possam construir uma conexão. Podemos então descobrir aquele
ouvinte em um amigo de confiança. Onde quer que encontremos a segurança para
começar, compartilhar nossa experiência é algo crucial para a mudança que estamos
buscando.
Não é segredo que adictos têm problema em aceitar a realidade. Isso não é menos
verdade em nossas relações íntimas; ficamos encurralados na fantasia de como nossa
relação deveria ser e perdemos a percepção do que ela realmente é. Quando amamos
uma fantasia, ficamos com raiva da realidade; e raiva da realidade é o oposto da
aceitação. Podemos ficar tão envolvidos com a fantasia sobre o nosso parceiro que
ficamos furiosos por eles não viverem de acordo com a imagem idealizada que criamos.
Às vezes o melhor que podemos fazer é nos afastar, mas frequentemente nos
afastarmos é apenas a saída mais fácil. O segredo é aprender a aceitar a pessoa que
amamos a despeito de todas as suas características que não correspondam à nossa
fantasia de como supostamente ela deveria ser. É possível que amor incondicional seja
algo que somente o Poder Superior possa dar, mas à medida que nos aproximamos
desse ideal, nossos espíritos florescem. Quanto mais profundamente amarmos, mais
seremos capazes de amar. Quanto mais abertos estamos para vivenciar nossas relações,
mais intimidade experimentamos.
Com muitos anos limpos, podemos descobrir que parecemos maduros, que de muitas
formas nossas vidas começam a parecer com o que sempre quisemos – mas ainda assim
lutamos em nossas relações afetivas. Distinguir o amor maduro do imaturo pode levar
tanto tempo quanto se leva para amadurecer. É um processo para a vida. Quando
admitimos quanto do dano vivido em nossas vidas tem a ver com sexo e amor, podemos
perceber quanto ganhamos nessas áreas ao restabelecermos nossa sanidade.
Trabalhamos os passos para tirar do caminho os destroços do nosso passado; com o
auxílio de um padrinho, podemos encarar nosso presente; usamos as tradições para
aprender novas maneiras de se relacionar bem com os outros. Tornamo-nos mais
generosos, menos egoístas e menos medrosos. Aprendemos a estabelecer referências
e limites e também a nos permitir: podemos haver nos tornado tão rígidos, às vezes, em
nossas exigências que encontrar um parceiro pode se tornar impossível. Nos
desprendemos de nossas expectativas em relação aos outros e começamos a nos
investigar mais.
Gradualmente percebemos em que precisamos mudar e quando precisamos estar
firmes em nossas crenças, mesmo que isso signifique esperar. Começamos a ver quando
nossas crenças nos mantêm a salvo e quando nos conduzem ao velho padrão vezes e
mais vezes. “Eu não tenho medo do abandono,” disse um membro. “Eu espero por isso”.
Quando esperamos o pior, é geralmente isso que nos sobrevém. Aprender com a nossa
experiência é importante, mas estarmos disponíveis para acreditar que podemos seguir
adiante é também crucial. Dar aos outros e a nós permissão para mudar também
significa se render à possibilidade de que possamos nos encontrar em território
estranho: quando não estamos repetindo a mesma relação, podemos não saber o que
fazer de modo algum. “Levou muitos anos,” um membro disse, “mas em meu quarto

108
passo, de repente, ficou claro que eu não tinha me envolvido com a mesma pessoa – eu
tinha sido a mesma pessoa todo o tempo. Não importava quem o outro era, eu ainda
reagia da mesma forma.” Fazer algo diferente representa um risco – mas cometer os
mesmos erros representa uma garantia de fracasso. Um veterano colocou isso da
melhor forma: “costumávamos pensar que tínhamos problemas com a confiança, mas
agora sabemos que temos problemas com a coragem.”
Quanto mais experimentamos a liberdade da adicção, mais podemos ver como isso nos
conduz a recantos em nós ainda não conhecidos, mesmo quando não estamos usando
drogas. As maneiras pelas quais causamos dor em nossas próprias vidas tendem a se
repetir. Um pouco de clareza pode ser tudo de que precisamos para mudar um antigo e
doloroso padrão. Às vezes podemos ver tudo com muita clareza e ainda assim fazer do
jeito antigo. Examinamos nossos motivos e nossa boa vontade e partilhamos sobre isso,
abarrotamos nossos notebooks com nossos inventários – mas ainda estamos lá no
mesmo lugar, experimentando o mesmo conflito que vivemos em nosso último
emprego ou relação.
Pode ser fácil julgar os outros quando vemos algum tipo de repetição, mas a verdade é,
o jogo não acaba até que o último grão de areia escorra pela ampulheta. Às vezes tudo
de que se é preciso é que a dor seja grande o bastante; mas às vezes, olhando para trás,
podemos ver que outros tipos de cura tiveram que acontecer antes de estarmos prontos
para lidarmos com as coisas que estavam profundamente enterradas e escondidas.
Podemos nos desapontar ao descobrir que nossas rotas de fuga da realidade foram
removidas, mas não na ordem de nossa preferência. Toda vez que passamos por uma
tempestade emocional, nos é dada a oportunidade de nos desprendermos mais do
nosso fardo passado e ao mesmo tempo encontrarmos mais liberdade, por outro lado.
Nosso futuro passa a ser cada vez menos determinado por nossa história pregressa.

Coragem para confiar

Não há certo ou errado quando se trata de amar. O que importa é nos darmos esse
presente. Amamos quem amamos, é simples assim. Nem sempre faz sentido ou parece
bom no papel. Um casal colocou desta forma: “o ponto é que, se amamos ou
suportamos um ao outro, é sempre divertido. Podemos ser brincalhões, podemos
brigar, mas ficamos juntos e apreciamos a companhia um do outro. Pode parecer meio
falso visto de fora, mas nós apreciamos cada minuto da nossa relação.” Talvez tenhamos
realmente encontrado nosso parceiro – ou talvez haja uma lição que tenhamos que
aprender. Quando deixamos o controle e permitimos que os outros sejam quem eles
são, estamos aptos a nos desapegar um pouco mais de nossas inseguranças e podemos
ser mais honestos em relação a quem somos; podemos ser brincalhões e bobos,
amorosos e ternos, assustados e tristes. Então finalmente nos libertamos desta terrível
sensação: a de que o que somos não é suficiente ou a de que se nos conhecessem
seríamos abandonados.

109
Nossa relação conosco determina a qualidade de nossa relação com os outros. É tão
óbvio, mas basta um momento para isso nos escapar. Quando não estamos nos sentindo
tão bem a nosso respeito, quando algo dói, quando nos sentimos solitários e inseguros,
naturalmente desejamos que haja alguém que possa nos dizer que está tudo bem. Mas
quanto melhor nos conhecermos, melhor conheceremos nossas necessidades e o que
poderemos oferecer em uma relação. “Ajuda se ao menos uma pessoa da relação
conhecer ao menos uma pessoa na relação,” um membro explicou, “mas eu sempre fui
um estranho para mim, mesmo quando não era mais jovem. Me enxergar com
honestidade e acurácia é algo que vai e vem. Agora sei que posso nomear muitas
emoções, mas isso não significa que eu saiba o que estou sentindo a todo momento,
especialmente quando as emoções são fortes. Eu ainda falho ao pensar que sinto raiva,
depressão e resistência quando o que realmente sinto é solidão, desespero ou medo.
Isso acaba chegando indiretamente às pessoas que estão ao meu redor. Eu me conforto
com a ideia de que agora reconheço melhor minhas emoções do que costumava
anteriormente – após uma semana ruim em comparação com um mês ruim ou um
término de uma relação. Mas sei que essa dificuldade ainda não se foi.” Podemos ver a
recompensa do décimo passo quando começamos a ser capazes de reconhecer nossas
emoções no momento em que as estamos vivenciando. Quando podemos identificá-las,
podemos também escolher responder em vez de reagir.
Praticar os princípios em nossas relações não significa sermos outra pessoa, ou uma
farsa, embora possa nos deixar desconcertados em um primeiro momento. Nosso
padrinho/madrinha pode ser de grande ajuda quando começamos a identificar a
diferença entre responder e reagir. À medida que tentamos substituir nossa velha e
falha maneira de pensar por novas ideias e atitudes, surgem problemas que não eram
antes percebidos. Somos defrontados com escolhas e desafios que não costumávamos
reconhecer.
Começar uma relação é uma experiência diferente quando colocamos o princípio da
unidade em primeiro lugar. Quando pomos de lado nossas próprias necessidades e
consideramos o bem do nosso parceiro ou da família como um todo, isso não significa
que iremos tolerar o não reconhecimento e a não satisfação das nossas necessidades
honestas e saudáveis. Começamos a reconhecer que cada um de nós receberá o que
precisa se tivermos uma atitude de boa vontade e uma atitude segundo a qual, quando
permitimos que a unidade seja uma prioridade, podemos entregar os resultados nas
mãos de um poder maior do que nós. Apoiar-nos é um princípio espiritual e aprender a
apoiar nossos espíritos constitui uma parte crítica do nosso desenvolvimento.
Naturalmente não fazemos isso simplesmente “sozinhos”. Temos o grupo, nosso
padrinho/madrinha, nossos amigos próximos e um Poder Superior que nos ajuda a
seguir na jornada da recuperação. Compartilhamos nossos triunfos e fardos com nosso
companheiro, mas aprendemos a não fazê-lo responsável pelos nossos estados
emocionais ou pela nossa qualidade de vida. Quando temos um dia ruim sem insistir
para que o mesmo aconteça com a pessoa com quem temos uma relação amorosa,
percebemos que algo está mudando. “A primeira vez que voltei pra casa com raiva, e

110
minha namorada falou comigo e eu não disse nenhuma palavra rude, eu soube que um
Poder Superior estava agindo em minha vida”, um membro partilhou.
Aprender a diferença entre estar em uma relação com alguém e tornar alguém refém –
ou se fazer refém – é um grande passo para muitos de nós. Desprender-nos das
expectativas pode ser um bom nome para o abandono das rédeas do desejo infantil de
controlar as coisas. Permitir que nossos parceiros e nós mesmos possamos viver
autonomia na relação significa que crescemos e mudamos no nosso ritmo e que a
relação pode se beneficiar do que cada um tem a oferecer. Quando temos boa vontade
para permanecermos quietos e presentes em uma relação, mesmo quando ela muda,
ou nós mudamos, entendemos o significado de um compromisso de outra forma. Assim
como é normal em recuperação pensar em usar às vezes, fazemos o mesmo em uma
relação ao pensarmos em fugir. Permanecer, em vez do impulso de fugir, pode ser um
grande exercício espiritual. Sempre é possível encontrar uma solução saudável se
tivermos boa vontade para aguardar as respostas de que necessitamos. Mente aberta é
essencial para enfrentar e superar as dificuldades inerentes a uma relação sexo afetiva.
Estar com alguém que não se encontra em recuperação pode trazer desafios em
particular. Um deles é que podemos nos sentir excluídos ou julgados por nossos
companheiros em sala. Muito frequentemente deparamos dois tipos de pessoas: as que
estão em recuperação e as que precisam de recuperação. A própria ideia de uma relação
saudável com uma pessoa que não seja “um de nós” pode parecer improvável. De fato,
não é mais improvável do que ser feliz com uma pessoa que também esteja em
recuperação. É possível que tenhamos que trabalhar com mais afinco para equilibrar
nossas prioridades, conciliando os compromissos com nosso parceiro e com a nossa
recuperação. Quando não estamos equilibrados, parece que estamos levando uma vida
dupla. Relacionamentos requerem compromisso e capacidade de aprendizagem. Nas
salas, podemos encontrar as ferramentas de que precisamos para ter as relações que
desejamos em nossas vidas. Fora da irmandade, podemos encontrar maneiras de aplicar
os princípios sem necessariamente nomear o que estamos fazendo. A flexibilidade que
as relações requerem torna-se real quando estamos praticando os princípios da
recuperação em nossas vidas. Aprendemos a solucionar os conflitos à medida que eles
surgem e a termos coragem para dizer o que pensamos e como nos sentimos, mesmo
quando isso seja desconfortável. Boa vontade para mudar significa que deixamos a
relação crescer, se acalmar e se desenvolver até um ponto em que não imaginávamos
ser possível.
Quando uma relação importante para nós não está funcionando, parece que nada está
funcionando. Os conflitos com nossos entes amados podem ser traumáticos e o término
de um relacionamento amoroso pode acionar uma avalanche de emoções. Problemas
em relacionamentos podem ser difíceis para qualquer um, mas para adictos trazem um
perigo em particular: a dor pode ser tão grande que a opção de usar drogas pode ser
considerada novamente. Se nossos companheiros de recuperação começam a adotar
posições antagônicas, podemos nos sentir tão alienados que ir às reuniões pode nos
parecer inseguro. O velho triângulo do medo, raiva e ressentimento pode parecer uma

111
jaula de ferro e o antídoto para isso – conectar-se aos outros – pode parecer a última
coisa que desejamos. Nos cuidar das maneiras mais simples como comer, dormir e ir
trabalhar pode ser muito difícil quando estamos sentindo dor. Os recém-chegados que
nos cercam nos servem como exemplos poderosos, lembrando-nos de ir às reuniões e
de prestar ajuda em nossos momentos de dor. Qualquer membro em qualquer
momento é confiável para salvar nossas vidas.
Podemos concluir, após alguma consideração, que uma relação realmente precisa
chegar ao fim. Mas podemos fazer isso de uma maneira com a qual nos sintamos
confortáveis em vez de agir por impulso e deixar um rastro de confusão dolorosa para
trás. Terminar uma relação não significa que tenhamos que nos sentir mal ou errados
com algo; na verdade, pode ser a melhor opção para todos os envolvidos. Podemos nos
sentir pressionados a permanecer em uma relação – quer seja por aprovação social,
pelos filhos, por complacência ou medo – muito embora saibamos que a hora seja de
partir. É um ato de coragem fazer o que pensamos estar correto sem precisar causar
dano para justificar nossas ações. Não precisamos mais ter um caso para terminar um
casamento; podemos ter clareza para não entrar nesse casamento ou para sair com
dignidade e integridade quando desejarmos. Abandonamos nossa mentalidade infantil
e nos permitimos estar presentes com o outro, com boa vontade para compartilhar a
experiência.
Às vezes estamos lidando com a perda de uma relação e somos surpreendidos pela
intensidade de nossos sentimentos. Nossa reação pode ser desproporcional em relação
à perda que estamos vivendo – e pode mesmo ser isso. Não há nenhuma razão para nos
julgarmos ou fingirmos que não está acontecendo, embora possamos nos sentir
tentados a tal. Não há certo ou errado sobre como nos sentimos. Alguns dos
sentimentos que não vivemos enquanto estivemos usando ainda esperam por nós
quando ficamos limpos. Perder algum companheiro na jornada da recuperação, por
exemplo, pode acionar uma enxurrada dessas emoções decorrentes de perdas passadas
cujas mágoas não nos permitimos sentir no momento de seu acontecimento. Nosso
padrinho/madrinha pode ser como um bote salva-vidas quando passamos por esses
momentos. Se estivermos dispostos a aguentar firme, confiar e trabalhar, podemos
encontrar uma cura real no trabalho de passos. A recaída é uma possibilidade, assim
como jogos de azar, compras, sexo e comida, da mesma forma, podem tornar nossas
vidas igualmente caóticas e incontroláveis quando tentamos evitar o contato com
nossas emoções, por longo tempo, represadas devido à fuga que nos propiciava a
adicção. Alguns de nós repetem este padrão por anos em recuperação antes de
mostrarem boa vontade ou estarem aptos a encarar a dor e o que está acontecendo
com honestidade.
Nossas ideias sobre relações com frequência se baseiam em qualquer coisa, menos na
realidade; queremos acreditar que relações podem se desenvolver por si só, que
podemos subir sem qualquer esforço ou trabalho em um carrossel e que isso vai nos
levar sem que precisemos fazer nada. Assim como pensamos que uma combinação
correta de drogas faria tudo certo, às vezes, imaginamos que a reunião certa de alguns

112
atributos pode materializar nossa alma gêmea. Alimentamos expectativas irreais sobre
nós e sobre os outros. Fantasiamos e projetamos “como deveriam ser as coisas”. Uma
parceria não se encontra; se constrói. Precisamos estar presentes e participar
ativamente nessa construção. Mas, uma vez que comecemos a nos cuidar, se torna
possível vivenciar todas as dimensões da intimidade.

Contato consciente

Não é verdade que, em NA, nós não podemos amar os outros até que amemos a nós
mesmos; na verdade, o que fazemos é amar o outro porque reconhecemos nele a nossa
própria dor. Experimentamos empatia; isso cresce e se torna algo maior. Gradualmente
construímos uma relação com nós mesmos, limpando as coisas que nos mantém no
autodesprezo e na autosabotagem. Aprendemos a amar os outros, mas nossas relações
com eles constituem uma luta até que aprendamos a nos relacionar com nós mesmos e
com o nosso Poder Superior. Em troca, essa relação é enriquecida e nutrida pelas
relações que temos com as outras pessoas.
Aprendemos a respeitar o espírito que existe em cada um com quem travamos contato.
Todos temos nossas maneiras peculiares de pensar e sentir. Quando reconhecemos que
cada um de nós está sob os cuidados de um Poder Superior amoroso, podemos nos
aceitar uns aos outros no estágio da jornada em que estamos e perceber que cada um
tem seu próprio caminho. Se isso estiver baseado em princípios espirituais, servirá como
um bom guia. Aprender a sair do caminho criado pelas nossas próprias reações e aceitar
a realidade nos torna mais flexíveis e aptos a lidar com os desafios que as relações nos
apresentam.
Pelo fato de a recuperação ser progressiva, continuamos a trabalhar os passos e mais
nos é revelado acerca de quem somos. Começamos a conhecer nossas intenções.
Melhoramos na escuta de nossa própria voz, consciência e intuição. Adictos em
recuperação que fazem isso desenvolvem uma boa intuição, mas também nos
ensinamos, ao longo da nossa adicção, a não confiar nela. Aprender a diferença entre a
voz da nossa intuição e a voz da nossa doença não é algo que pode ser explicado;
desvendamos isso no processo de meditação quando praticamos a escuta da nossa voz
interior e do nosso Poder Superior. Compartilhamos nossas experiências com nosso
padrinho/madrinha e este (a) nos aponta quando nossa intuição está nos servindo bem.
Vamos nos tornando crescentemente consciente de nossas escolhas, motivos e
comportamentos. Passamos a saber o que estamos pensando quando tomamos uma
decisão e reconhecemos a diferença entre uma decisão que precisa ser tomada e reagir
ou agir por impulso. Ouvir nossa intuição significa que podemos estar abertos aos outros
sem sermos inocentes ou ingênuos. Aprendemos a confiar na nossa intuição e a honrar
nossos sentimentos.

113
O contato consciente sobre o qual se fala no décimo primeiro passo é uma relação com
nosso Poder Superior. Intimidade é contato consciente com outro ser humano. Nos
conectamos. À medida que nos aproximamos dos outros, enxergamos o que há de
divino neles e vemos isso também em nós. Prestamos atenção a eles e a nós quando
estamos com eles. Quando sentimos a alegria verdadeira ao ver um membro, após a sua
luta, receber a ficha de 30 dias, quando encontramos as palavras que sabemos ter para
oferecer, quando fazemos uma conexão genuína com nossos sentimentos e com outro
ser humano, algo muda em nós – sentimos o amor agindo, fluindo através de nós, nos
transformando para melhor.
Cada uma de nossas relações nos ensina a como melhorar as outras, tornando-as mais
fortes e significativas – se, por meio da escuta ativa, ouvimos e aprendemos as lições
que os outros tem a nos ensinar. E todas essas relações, por sua vez, nos devolvem e
presenteiam com mais riqueza à nossa relação com nós mesmos, criando um ciclo
virtuoso. Não podemos dizer que há relações mais importantes que outras do mesmo
modo que não podemos afirmar que uma parte da pirâmide é mais importante que as
outras. Na verdade, a pirâmide, que é nosso símbolo, é formada por relacionamentos;
conosco, com a sociedade, com o serviço e com Deus. Firmada em uma base sólida de
boa vontade, nossas relações nos trazem liberdade. Nossa capacidade de amar cresce
na proporção do esforço que fazemos para amar e na disponibilidade para aceitar isso.
E com a capacidade de amar – alguns de nós nem mesmo algum dia pensaram que
desejariam isso – começamos a sentir que nossas vidas se preenchem de sentido e
propósito. O dano que causamos, a dor que sofremos, as perdas que vivemos, tudo isso
aprofunda nossa compaixão pelos outros e nosso entendimento de suas lutas e
dificuldades. Nosso valor real está em sermos nós mesmos, não a despeito do que
passamos, mas por causa disso.

114
CAPITULO 6 – Uma nova maneira de viver

Nossa literatura nos assegura que nos tornamos “cidadãos produtivos, responsáveis e
aceitos na sociedade,” mas ela também adverte que “aceitação social não significa
recuperação.” Ambas as afirmativas são verdadeiras, mas não são mutuamente
excludentes. Cada um de nós avalia o que significa ser um membro produtivo na
sociedade à sua maneira.
Nossas ideias de sucesso são tão individuais quanto podemos ser. Começamos nossa
recuperação em lugares diferentes e nossos destinos serão igualmente distintos.
Sabemos fazer algumas coisas muito bem e outras nada bem. Podemos começar nossa
recuperação ativos em uma carreira ou podemos considerar um grande passo
conseguirmos um lugar estável para vivermos. Temos isto em comum: queremos ser
livres. Queremos nos sentir aceitos e respeitados sem precisar fingir sermos algo
diferente de quem realmente somos. Independente das nossas conquistas, o fato é que
os princípios pelos quais nos orientamos na vida são responsáveis por nos sustentar ou
nos destruir. Por isso sua escolha é tão crucial.
Progredimos em nossa jornada ao aplicarmos o que aprendemos em recuperação ao
restante de nossas vidas. O décimo segundo passo nos conclama a “praticar os princípios
em todos os aspectos de nossas vidas.” A liberdade que estamos buscando não é uma
coisa abstrata. É nosso modo de vida. Nosso texto básico nos diz, “os passos não
terminam aqui. Os passos são um novo recomeço!” NA nos oferece os princípios que
nos transformarão, bem como o laboratório para praticarmos a sua aplicação antes de
o fazermos fora da irmandade.
O trabalho de passos nos ajuda a definir nossos valores e nos ensina a buscarmos a
realização de nossos objetivos. Não importa quantas vezes o fazemos; há sempre uma
nova recompensa quando o fizermos o melhor que pudermos. Mas quando paramos no
meio do caminho, metade das dádivas também se perde; perdemos o foco.
Estranhamente, é quando nos defrontamos com nossos mais dolorosos defeitos de
caráter que paramos de nos render. Quando avaliamos o processo, percebemos que
trabalhar os passos nos toma muito menos energia do que se não o fizéssemos.
Rendemo-nos, aceitamo-nos naquele momento e, graciosamente, permitimos que
nossas vidas comecem a se expandir. Finalmente, podemos parar de procurar o pedaço
que faltava em nosso quebra-cabeça. Praticamos viver uma vida assentada em
princípios e nossa jornada no mundo se forma a partir disso. Nos desprendemos do
medo da mudança e percebemos que estamos mudando constantemente. Acolhemos
isso e acreditamos verdadeiramente que podemos ficar limpos não importa o que
aconteça. O processo se torna mais simples; fazer a coisa certa pelo motivo certo se
torna algo cada vez mais natural.

115
Tentamos novas abordagens, explorando camadas mais profundas dentro de nós e
níveis mais elevados em nossa vida exterior. O processo é como uma escada em espiral.
Chegamos vezes e mais vezes à mesma visão, mas cada vez com uma perspectiva
diferente. Estarmos abertos aos pontos de vista de outras pessoas nos ajuda a clarear
nossa própria maneira de pensar. Quando colocamos amor, suor e compromisso em
ação, nossas vidas mudam milagrosamente.

Indo além da “aceitação social”

Quando chegamos à irmandade, nos disseram que “não estamos interessados...em seus
contatos, no que fez no passado, no que possui, mas tão somente no que quer fazer
sobre seu problema e como podemos ajudar.” Anos se passaram e essa firmação
permanece verdade. Não importa para onde estejamos indo, começamos a construção
de nossas novas vidas da mesma maneira. Com o tempo, aprendemos que como
chegamos ao destino importa mais do que o destino em si.
Um dos benefícios de nossa experiência é que sabemos que nossa participação na
sociedade é uma escolha. Como nos engajamos no mundo ao nosso redor é uma decisão
que cabe a nós. Se ou onde queremos nos encaixar é uma decisão inteiramente nossa.
Integrar-nos ao mundo de um modo confortável faz parte de nossa jornada, mas não é
o nosso destino. Encontrar nosso lugar na sociedade não é o objetivo principal; é apenas
um meio pelo qual alcançamos nossa maior meta; despertar nossa espiritualidade.
Muitos de nós se questionam sobre para qual sociedade desejamos nos tornar
aceitáveis. Alguns de nós entendem sociedade como sendo a própria irmandade.
Descobrimos uma maneira de nos sentir em casa em Narcóticos Anônimos, mesmo
tendo sido sempre solitários, céticos ou forasteiros. No entanto, quando pensamos em
encontrar nosso lugar no mundo podemos encontrar desafios adicionais. Se formamos
nossa identidade a partir de nos sentirmos forasteiros, a ideia de juntar-se a qualquer
coisa pode parecer duvidosa. Reintegrar-se à sociedade pode ser um passo difícil, com
riscos envolvidos, mas ninguém pode tomar essa decisão por nós. “Sempre me senti
como um intruso quando era criança. A aceitação que encontrei foi na cultura do uso de
drogas”, um membro partilhou. Essa sensação de pertencimento pode ser um poderoso
atrativo para nós. O estilo de vida é, às vezes, algo que é mais difícil de abandonar do
que as drogas em si.
Quando prestamos atenção no que nos impele a colocar tanta ênfase em coisas que são
exteriores a nós, frequentemente percebemos que o que está nos dirigindo na vida é o
medo. Estamos com medo de nós mesmos, com medo do mundo e com medo de que
alguém perceba o tamanho do nosso medo. Nos escondemos detrás de qualquer
artifício, desde a rígida conformidade social à hostilidade ostensiva. Para pessoas que
passaram por tanta coisa como nós, podemos ser extraordinariamente sensíveis.
Acreditamos enganosamente que aceitabilidade social pode nos conceder imunidade

116
contra a dor que parece acompanhar a preocupação que temos em relação ao que os
outros pensam de nós.
Descobrir nossas fortalezas e fraquezas pode ser complicado, pois, às vezes, elas são
muito parecidas. Cada um de nós sente que faltam peças e partes do seu quebra-cabeça.
Alguns de nós precisam percorrer uma longa caminhada para aprender os princípios
básicos de um comportamento apropriado enquanto outros parecem dominar a arte de
encobrir o que quer que pareça errado com um casaco de couro ou um batom fúcsia.
Podemos ficar presos à ideia de “parecer estarmos bem”, ou projetar uma imagem de
quem nós desejaríamos ser. Se permitirmos que coisas exteriores nos definam,
podemos terminar como uma árvore sem raiz que tombará ao primeiro sinal de
tempestade. Quando a busca por reconhecimento se torna mais importante que a
recuperação, estamos mais propensos a recair do que imaginamos.
Lidar bem com o aspecto da vida exterior não significa apenas buscar aprovação. O que
estamos buscando é responder de modo apropriado à vida. Muitos de nós mascaram
sua baixa autoestima com um comportamento inapropriado. Muitas vezes pressupomos
que os outros farão o que fizemos em nossos piores momentos. Afastamos as pessoas
por medo de que elas nos vejam como nós nos vemos. Permitirmo-nos estar no mundo
como somos é um grande passo. Passamos a ser cuidadosos quanto ao nosso
comportamento e com os nossos arredores sem abrir mão de nossa individualidade.
Também começamos a baixar a guarda, a permitir que as pessoas entrem em nossas
vidas, além de compartilharmos quem somos de verdade. Ao final, o ponto não é como
a sociedade nos aceita, mas se nós aceitamos a sociedade e o papel que podemos
desempenhar nela.
Nossas prioridades mudam ao longo do processo de recuperação. No início,
simplesmente não usar nos toma todo o tempo. Quando nos sentimos fortes e
superamos essa fase inicial do desespero, muitos de nós começam a se preocupar com
coisas materiais. Confundimos sucesso com segurança. Quando nossas prioridades
mudam novamente, pode ser que sejam resultado de um novo tipo de mudança; uma
percepção gradual de que uma satisfação mais profunda nos aguarda. “Eu acreditava
que eu era uma pessoa aceitável desde que pagasse as contas. Eu trabalhava duro, mas
esquecia completamente de mim física, mental e espiritualmente. Aos poucos, meu
entendimento começou a se desenvolver. À medida que a conexão com meu Poder
Superior se aprofundava, pude ter clareza do que eu queria. Eu já não mais me deixava
aprisionar ou definir por rótulos. Parei de pensar em aceitação social como status. Eu
queria ser uma pessoa ao lado de quem era confortável estar. Depois de encontrar a
saída do buraco onde me encontrava e chegar à claridade presente na superfície para
respirar, o que eu queria era simplesmente compartilhar livremente o que eu era com o
mundo sem falsas justificativas.”

117
Encontrando nosso lugar no mundo

Começamos com o objetivo de não usar e então nossos sonhos e objetivos crescem à
medida que nos recuperamos. Enquanto alguns de nós anseiam por sucesso material ou
status social, outros não tem isso como objetivo. Finalmente somos capazes de definir
aceitação social para nós. Ainda assim, esse é um alvo dinâmico que, evidentemente,
muda com o tempo. O que consideramos uma vida aceitável no início de nossa
recuperação, pode ser considerado inadequado ou constrangedor em um momento
posterior. "Só de ser capaz de tomar banho e passar pelo dia sem cometer nenhum
crime já era algo grandioso pra mim”, um membro partilhou. Entretanto o muito ou
pouco que temos, nossos sentimentos de medo ou conforto, segurança ou escassez,
muito tem a ver, mais do que qualquer coisa, com a nossa perspectiva. Sempre nos
lembramos de que um dia limpo é um dia ganho não importa quanto tenhamos
percorrido ou ainda tenhamos por percorrer.
Sonhos realmente se tornam realidade, mas isso nem sempre é o fim da história. As
conquistas nos conduzem ao lugar de chegada onde nosso planejamento ou projeto nos
conduziu. Podemos confundir um objetivo com um ultimato: se não for exatamente da
maneira como planejamos, todo o resto é fracasso. Precisamos nos lembrar que temos
apenas um vislumbre fugaz do que seja a vontade de nosso Poder Superior para nós.
Nossos desejos podem nos levar a uma determinada direção e a jornada nos conduzir a
um lugar que nunca nos havia ocorrido.
Alguns de nós são naturalmente dinâmicos e florescem com vibração e cor. Preocupa-
nos, no entanto, que a vida com a qual nos sentimos confortáveis, às vezes, não seja
muito emocionante. Soltar as rédeas do drama torna possível apreciar as coisas simples
sem o sentimento de que algo deve estar constantemente acontecendo para a vida valer
a pena. Descobrimos que podemos ser apaixonados por nossas vidas como elas
realmente são. Aprendemos que o tipo de trabalho requerido para se ter uma vida boa
não é de modo algum tão difícil quanto o tipo de trabalho que resulta de sabotarmos
nossos próprios esforços. Passamos anos cultivando lixo internamente, causando danos
e alimentando o monstro do drama somente para então, de modo doente, voltar a fazer
o mesmo. Enquanto estamos obcecados pedalando nossa bicicleta do caos, nosso
padrinho pode nos perguntar: “Do que você está fugindo?” Depois de conseguirmos
paralisar esse ciclo espiral destrutivo, podemos perceber o tanto que isso exigiu de nós.
Descobrimos que podemos ser radiantes sem sermos radioativos. Quando finalmente
conseguimos nos acalmar, a poeira baixa, respiramos e nossas vidas se tornam muito
mais fáceis. O espaço emocional, que antes ocupávamos com nossa destrutividade,
agora pode ser utilizado para que olhemos ao redor e nos perguntemos o que amamos
de fato em nossas vidas e o que verdadeiramente desejamos mudar.
Parte do que muda para nós é simplesmente a nossa percepção do que constitui uma
crise. Muitos de nós passam muito do seu tempo inicial em recuperação em um estado
de alerta máximo. Estamos tão mais conscientes da destruição do nosso passado

118
comparada ao milagre da recuperação que parecemos estar em um estado crônico de
emergência. Nós adictos somos engraçados: tendemos a ser bastante dramáticos sobre
coisas pequenas, mas lidamos melhor do que a maioria das pessoas com catástrofes.
Passamos a compreender melhor o espectro de nossas experiências à medida que
aceitamos a vida em seus próprios termos. A experiência nos dá habilidade para colocar
as situações e fatos de nossa vida em perspectiva.
Quanto menos segredos temos, menos estamos propensos a nos preocupar com o que
os outros estão dizendo ou fazendo. É dos nossos segredos que temos medo. Nos
escondemos porque temos vergonha. Dizer a verdade sem firulas ou julgamentos põe
fim ao drama. Nossa própria boa vontade em viver na verdade e lidar com isso retira
muito da energia dedicada ao drama e às rodas de fofoca. O trabalho permanente dos
passos retira a negação e a decepção de nossas ações. À medida que aprendemos a ter
compaixão, temos menos prazer em nos focar na vida dos outros.
Quando trabalhamos duro e vivenciamos uma vitória, certamente ficamos orgulhosos
de nós mesmos. Entretanto, há uma grande diferença entre nos sentirmos bem e
acreditarmos em nossa euforia. Nos colocamos em perigo quando confundimos sucesso
material com recuperação. À medida que perdemos nossa humildade e integridade,
estamos nos colocando em perigo, além dos que estão ao nosso redor. Quando
confundimos nossas prioridades, podemos perder mais do que achávamos que estava
em jogo. Quando tentamos preencher os espaços vazios existentes em nós com coisas
materiais ou posições elevadas, descobrimos que isso nos torna mais vazios que
anteriormente. Quando perdemos contato com a graça da recuperação, nos
esquecemos de onde viemos e já não mais nos importamos com o recém-chegado.
Ficamos tão perdidos na desilusão que nem mais nos damos conta de que há um
problema. Muitos membros morrem em razão dessa arrogância. Uma rede de valor não
significa valor próprio. Todos temos visto membros alcançarem grande sucesso e ainda
assim usarem e desejarem destruir suas próprias vidas.
Talvez por termos visto, tão claramente, até então, como é, por fora, a sociedade,
tendemos a ser muito conscienciosos acerca de como ela funciona. Não temos tempo
para pessoas apressadas e complacentes com a verdade, muito embora nós mesmos
tenhamos dificuldades em praticar de modo consistente o princípio da honestidade. É
nossa própria luta com o princípio da honestidade que torna esse princípio tão
importante para nós. Sabemos o tanto que é fácil abrirmos mão de nossa integridade
em favor de um ganho no curto prazo, mesmo quando sabemos das consequências.
Somos profundamente perspicazes sobre relacionamentos, bem como sobre o fluxo de
dinheiro e poder, e sabemos como nos posicionar para conseguirmos o que queremos.
Não é de se estranhar que muitos de nós se peguem presos à procura de status, quer
dentro ou fora da irmandade.
Encontramos liberdade quando aprendemos a sermos nós mesmos e apoiamos nossos
próprios esforços. Não se trata apenas de uma questão financeira. Quando aprendemos
a aplicar a sétima tradição às nossas próprias vidas, descobrimos que temos ideias bem
distorcidas sobre independência. Por um lado, podemos ser violentamente indiferentes,

119
sem boa vontade para confiar ou para correr o risco de se vincular a alguém ou qualquer
coisa. Por outro, podemos estar acostumados a conseguir a satisfação de nossas
necessidades sem ter que assumir responsabilidade alguma. Alguns de nós temiam a
independência em nossa adicção ativa, nos agarrando em nossos parceiros ou famílias
como fonte de apoio. Havermos sido internados deixou alguns de nós se sentindo
absolutamente sozinhos e sem qualquer autonomia. “Sair da prisão significava a tão
sonhada liberdade”, disse um dos membros, “mas também algo aterrador. Eu não sabia
como viver e eu não estava muito certo de que quisesse aprender.” Aprender a decidir
por nós mesmos também significa aceitar a responsabilidade por essas decisões.
Culpar os outros e abrigar ressentimentos pode ser uma maneira de fingir que não
temos responsabilidade pelo trabalho interno que precisamos fazer e também pela
maneira como nos posicionamos no mundo. “Eu fui para a prisão limpo”, disse um
membro. “Eu continuei alimentando minha doença sem drogas até aprender a aplicar o
programa a todas as áreas da minha vida. O quarto passo iniciou o processo de
demolição que me preparou para viver uma vida em sociedade. Eu tive que aprender a
como participar sem ser destrutivo.” Assumir a responsabilidade por nós mesmos é
necessário para que nós sigamos adiante e isso abre as portas para o processo de
reparação. É uma tremenda reparação àqueles que se preocuparam e sempre cuidaram
de nós que não mais sejamos um fardo para eles. É uma reparação à sociedade que nós
possamos retribuir, dar algo em troca pela oportunidade de estarmos limpos, sendo
produtivos. E é uma reparação com nós mesmos que pratiquemos a autodeterminação,
forjando nosso próprio caminho e nossas próprias escolhas.
Um dos benefícios de iniciar um inventário pessoal é que não precisamos esperar para
que alguém nos diga quem nós somos e como somos. Quando estamos aptos a defender
nossos próprios sonhos e crenças, estamos nos apoiando de um modo mais profundo.
Desenvolvemos a habilidade de escolher e defender o que é certo para nós mesmo
quando os outros não acreditam nisso. Passamos a não mais precisar ser defensivos,
nem lutar pelos princípios que nos orientam na vida. Com uma nova perspectiva,
começamos a confiar em nossa recuperação e em nossos instintos. Adictos realmente
tem bons instintos – mas infelizmente tendem a reagir mal. Aprender a reconhecer a
diferença leva tempo e exige prática. Um padrinho e um amigo confiável podem nos
ajudar a reconhecer a diferença entre nossos desejos e nossas compulsões.
Podemos mudar porque escolhemos ou a mudança pode ser resultado das
circunstâncias que estão além do nosso controle. Nossas vidas requerem manutenção
permanente e nossa definição de sucesso muda à medida que a vida nos dá e nos tira.
“Fui bem-sucedido em todas as áreas da minha vida. Depois que troquei de carreira e
me mudei para outra cidade, tudo se foi – meu sucesso, minha autoestima, até mesmo
minha alegria em frequentar as reuniões de NA. Eu era um veterano e não sabia o que
fazer. Comecei a entender que minha recuperação e valor próprio estavam ancorados
em coisas externas. Quando o sucesso e a aprovação acabaram, tive um colapso. Uma
nova perspectiva e uma nova caminhada com o direcionamento dos passos se faziam
necessárias.” Comparar nossos problemas rotineiros com aqueles que tínhamos quando

120
estávamos na ativa pode ser uma tática que usamos para evitar ter que lidar com eles.
Às vezes diminuímos as lutas que temos que enfrentar como se fossem “problemas
insignificantes“, mas se as ignorarmos poderemos ter que enfrentar uma recaída nada
insignificante. Ao fim, nosso sucesso é mensurado não com base no que nos é exterior,
mas no que construímos dentro de nós. Quando aplicamos os princípios a nossas vidas,
somos bem-sucedidos de muitas formas, mas, mais importante que qualquer coisa, nos
sentimos inteiros.
A ideia de integração está intimamente relacionada com o princípio espiritual da
integridade. Integridade é unidade dentro de nós: somos a mesma pessoa onde quer
que estejamos. O compromisso com os nossos valores não está assentado na
conveniência das circunstâncias. Não precisamos fingir sermos alguém que não somos,
ou deixarmos somente um lado nosso à mostra enquanto escondemos o outro para
sermos funcionais ou aceitos. Sentirmo-nos confortáveis com quem somos atrai.
Quando estamos praticando integridade, quer alcancemos ou não a aprovação dos
outros, sabemos quem nós somos.
A liberdade vem a partir da descoberta de quem somos verdadeiramente por dentro.
Adictos em recuperação são brilhantes, criativos e pessoas compassivas, quer saibamos
ou não isso a nosso respeito. Os passos nos auxiliam na construção de nossa integridade,
no desenvolvimento de uma perspectiva realista sobre nós mesmos, como meio de
alcançar autoaceitação e como processo para nos tornarmos aceitos pela sociedade.
Muitos de nós não se sentem bem o suficiente para a vida em recuperação e
demonstramos isso na maneira como nos tratamos. Quando praticamos respeito e
compaixão por nós mesmos, nossos pensamentos e sentimentos começam a mudar. A
autoaceitação nos liberta para assumirmos responsabilidade por nossas vidas e aceitar
os dons que estão disponíveis para nós. Quando fazemos a oração da serenidade e
realmente consideramos aquilo em nossa vida que temos coragem para mudar,
descobrimos que nossa habilidade de moldar nossas vidas está muito mais limitada pelo
exercício da nossa boa vontade do que por qualquer razão que habite fora de nós.

Estabilidade

Como muitas das coisas pelas coisas batalhamos em recuperação, estabilidade é um


trabalho interno. A sentimento de estabilidade começa a partir da consciência de que
podemos estar bem não importa o que aconteça. Trata-se de uma sensação de
segurança em nossa própria vida. Podemos acreditar que isso será resultado da
conquista de objetivos – como conseguir uma casa, um parceiro, um emprego ou alguma
quantidade sonhada de dinheiro. Mas quando o medo nos acomete, não importa o que
temos ou com quem estamos. A segurança que buscamos vem da paz interior com nós
mesmos, uma relação com um Poder Superior e a conexão com os outros. Acreditar que
somos os capitães de nossas vidas, que a vida é realmente nossa, pode levar um longo
tempo.

121
Para alguns de nós, estabilidade começa quando estamos dispostos a nos comprometer
com um endereço fixo. Podemos começar com uma frequência regular no nosso grupo
de escolha e iniciar nossa trajetória de recuperação a partir daí. Alguns de nós chegam
com todos os penduricalhos da vida normal e então descobrem que estes são
completamente “superficiais”. Pode ser necessário quebrarmos as amarras que nos
cegam antes de sermos nós mesmos. Segurança, previsibilidade e um sentimento de
pertencimento nos possibilitam mudar sem a sensação de que estamos nos perdendo.
Um membro partilhou: “quando eu estava usando, sempre tinha uma muda de roupa
em minha bolsa porque eu nunca sabia onde acordaria. Depois de ficar limpa, me peguei
entulhando minha casa com muita mobília. Depois eu percebi que estava adquirindo
todas essas coisas para ter certeza de que seria difícil removê-las. Eu não queria mais
pratos; o que eu queria era saber que eu estava indo para algum lugar dar um tempo”.
Serenidade pode ser a presença de paz ou a ausência de caos.
Muitos de nós passaram pela vida sem “estarem presentes”, como se os eventos
simplesmente os houvessem incluído. Nosso senso de nós mesmos era tão distorcido
que não sentíamos que poderíamos fazer qualquer diferença no mundo. Quando
entendemos o quinto passo, descobrimos que o bordão “eu sou impotente diante de
tudo” é uma justificativa, uma racionalização. Na verdade, somos impotentes perante
nossa adicção e o tempo que não pode mais voltar. Uma vez que tenhamos tomado
consciência disso, podemos nos maravilhar com a habilidade que temos de fazer
escolhas e moldar nossas vidas de um modo novo e genuíno. Nossa relação com o
mundo é um reflexo da relação que desenvolvemos com nós mesmos. Abrimo-nos a
novas ideias, a novas maneiras de pensar e novas maneiras de olhar para aquilo que
pensamos saber. Confiar nas pessoas que acreditam em nós nos permite tentar novas
coisas, mesmo quando isso parece assustador, além de ter fé na verdade das mudanças
que vemos.
Nosso senso de estabilidade nos possibilita assumir riscos maiores, quer isso signifique
buscar uma nova carreira, quer harmonizar nossos corações com alguém que amamos.
Quando aprendemos a confiar nessa estabilidade, permitimos que mais do nosso fardo
se desprenda. Não precisamos mais passar nossos dias e noites nos preocupando ou
desejando que tudo isso fosse embora. “Sinto tanto medo de aparecer e de crescer que
sonho que estou fugindo, recomeçando, deixando tudo isso para trás”. Tememos a
segurança porque temos muito medo de não sermos capazes de sustentá-la. Estarmos
presentes, vivenciando com atenção nossas vidas sem criar ou alimentar perturbações
ou drama pode ser algo completamente novo para nós.
É fundamental que desenvolvamos estabilidade em nossa jornada de recuperação, mas
há uma diferença entre ser estável e estar parado. Pode ser que tenhamos parado de
nos mover porque chegamos a um destino almejado. Naturalmente é justo e sadio que
desejemos usufruir os frutos de nosso trabalho, mas precisamos ter cuidado para não
usufruirmos desses frutos até que apodreçam. “Quando fiquei limpo foi relativamente
fácil para mim fazer a transição para um estilo de vida normal”, disse um membro. “Mas

122
o medo da mudança me paralisou. ” Temos dificuldade em perceber a diferença entre
uma roda e um buraco.
Há alguns sinais que nos ajudam a distinguir serenidade de complacência: quando
estamos julgadores, ingratos e agitados muito provavelmente estamos do lado errado.
Quando interagir com os outros começa a parecer exaustivo e penoso ou esquecemos
de que somos importantes para os outros, é possível que estejamos escorregando
novamente de volta ao caminho da auto-obsessão. Quando nos sentimos apáticos e
ingratos, dizemos que estamos “entediados”. O mundo é tão entediante ou
emocionante quanto o tornarmos. Um membro partilhou, “quando um dia começa a se
confundir com o outro, geralmente é porque não estou vivenciando os princípios”.
Quando voltamos ao velho comportamento, precisamos retomar o que é básico no
programa. Tempo limpo não nos exime de ficarmos enganchados em algum lugar da
nossa caminhada. Às vezes uma nova perspectiva sobre nossas vidas requer um novo
olhar sobre os passos. Podemos descobrir que precisamos de atitudes melhores ou que,
de fato, é necessário que façamos mudanças em nossas vidas.
Somos capazes então, cada vez com mais frequência e mais cedo no processo de
recuperação, de reconhecer nossa responsabilidade por nossas ações e as razões que as
embasam. Identificar o que nos motiva nos ajuda a encontrar alívio de todas as maneiras
quando a doença aparece em nossas vidas. Isso também nos habilita a seguir em frente
rumo ao que desejamos e não apenas nos manter fugindo do que tememos.
Somos livres para conceber uma vida que valorizamos. Quando estamos colaborando
com nosso Poder Superior, ação e rendição andam de braços dados. Podemos dedicar
muito do nosso tempo para convencer nosso Poder Superior de como as coisas
deveriam ser. Cada um de nós já vivenciou haver tentado transformar um desejo em
realidade e ter deparado os obstáculos mais bizarros até finalmente entendermos que
a melhor coisa a se fazer é soltar as rédeas e deixar as coisas fluírem nos termos
soberanos em que a vida as estabelece. Por outro lado, às vezes um desafio ou
compromisso permanece se colocando diante de nós. Não importa o tanto que
tentemos evita-lo, ele continua aparecendo inevitavelmente. Quando nos rendemos e
tentamos, podemos ficar perplexos com o que podemos alcançar. Quanto maior e mais
completa for nossa rendição, mais aptos estaremos a dar conta dos nossos
compromissos e então brilharmos como estrelas.

Liberando o caminho – abandonando o controle

Muito da nossa experiência é resultado de nossa percepção. Podemos nos sentir bem
firmes e enraizados na vida mesmo quando as circunstâncias externas são dinâmicas e
mutantes. Por outro lado, há momentos em que tudo parece estar bem, mas nos
sentimos como se as coisas tivessem dado errado. De fato, podemos atravessar
decepções e mudanças de curso e ver que ainda estamos sendo bem-sucedidos,

123
progredindo em nossas vidas ou simplesmente nos sentirmos fracassados mesmo
quando tudo vai bem. Talvez o que percebemos como bom ou ruim seja simplesmente
um evento; fazemos disso algo bom ou ruim de acordo com nossa atitude em relação a
esse evento. Às vezes transformamos um simples revés em um drama que dura para
sempre e que, na verdade, foi culpa de todos os envolvidos. Passamos pela dificuldade
muito mais rapidamente se simplesmente a aceitarmos e seguirmos em frente. Deixar a
necessidade de controlar se torna mais fácil se aprendermos simplesmente a não nos
agarrarmos tão firmemente às coisas.
Nem mesmo o céu pode ser um limite para nós. As limitações podem ser estabelecidas
por circunstâncias em nossas vidas que acabam por determinar algumas de nossas
decisões. Na maioria das vezes, o que nos limita são as barreiras que nós mesmos nos
impomos. Estamos tão acostumados a nos olhar sob uma lente particularista, que é
difícil enxergar de outro modo. Podemos ser brutais com nós mesmos. Conceder-nos
um tempo é uma das habilidades mais importantes que adquirimos em recuperação,
além de ser decisivo para nossa habilidade em mudar. É difícil aprender algo novo se
não nos dermos a oportunidade de sermos imperfeitos. Nossas deficiências e
fragilidades nos impedem de agirmos em prol de nossos interesses mais genuínos.
Algumas das coisas mais difíceis das quais precisamos nos libertar são justamente nossas
crenças acerca de nós mesmos e de nossas limitações.
Os obstáculos nos dão a chance de examinar nossa boa vontade. Alguns de nós lutam à
sua maneira para atingir um objetivo apesar de suas deficiências físicas, passagens pela
polícia e outras dificuldades. As resistências que encontramos em nosso caminho podem
fortalecer nosso senso de compromisso com nossos objetivos. Encontramos uma
maneira para fazer o impossível. Em outros momentos, as barreiras nos conduzem a
pensar criativamente, olhando para outras direções nas quais podemos empregar
melhor nossas energias.
A frequência com que falhamos ou somos bem-sucedidos nos indica a eficácia do
programa. Nossas derrotas não têm o poder de nos definir. Fracasso é uma experiência,
uma força e uma esperança disfarçada. É extremamente importante aprender a
diferença entre falhar em algo e ser um fracassado. Quando somos honestos,
começamos a assumir a responsabilidade pelo que nos diz respeito na vida. O remorso
pode ser um combustível para alimentar uma nova dose de boa vontade para se mudar.
Fracasso, assim como sucesso, desempenha um papel importante em nossas vidas, nos
conduzindo a lugares desconhecidos para nós que talvez nos quais não escolheríamos
estar. Pode nos libertar para buscar novas experiências, bem como horizontes mais
amplos.
Às vezes o que vivenciamos como fracasso pode ser na verdade um redirecionamento
em nossas vidas. Podemos nos tornar tão focados que, às vezes, se faz necessário um
solavanco para mudar o curso de navegação anteriormente adotado. Depois de passar
por um momento difícil limpo, um membro disse: “Eu precisava falhar. Eu estava
completamente fora de controle porque eu pensava que tinha tudo sob controle. Eu
tinha confundido sucesso material com crescimento interno em recuperação.”

124
Respondemos ao nosso medo nos tornando mais controladores e com isso findamos por
nos causar ainda mais problemas.
Quando estamos sendo profundamente desafiados em alguma área de nossa vida, é
possível, com frequência, que todas as outras sintam o baque desse momento. Quando
as coisas ficam difíceis, nunca parece que é somente uma coisa. Então retomamos
velhos hábitos muito embora saibamos ou costumássemos saber que eles não
funcionam. O descontrole se retroalimenta. Uma dura lição de humildade nos lembra
que nunca somos graduados no programa. Quando paramos de praticar o que é básico,
estamos enrascados.
É preciso coragem para nos equilibrar. Se os riscos que estamos enfrentando são reais,
então certamente iremos perder às vezes. Se, ocasionalmente, não fracassarmos é
possível que estejamos sendo complacentes com a referência que estabelecemos.
Aprendemos com nossos erros, mas a experiência pode fortalecer nossa fé. Mais
importante, não precisamos passar por nada sozinhos. À medida que aceitamos que
tudo ficará bem mesmo quando somos frustrados em nossas tentativas, começamos a
nos sentir mais confortáveis com a ideia de assumirmos riscos. Aprendemos a ouvir
nossos instintos e começamos a caminhar no nosso ritmo verdadeiro. Podemos agir
diante de guinadas à medida que elas surgem sem nos distrairmos pelo desejo de julgar
ou justificar.
Estabelecemos objetivos para nós e buscamos sua realização um dia de cada vez, minuto
a minuto, sabendo que quando estamos fazendo as coisas certas, as coisas certas
tendem a acontecer – mesmo que não sejam exatamente como previmos. Temos a
tendência de agir como se os progressos que alcançamos não contassem até que
cheguemos exatamente ao destino pretendido. Aprender a seguir, passando pelas
frustrações e eventuais fracassos, nos treina para continuar avançando ainda que as
coisas não aconteçam do nosso jeito.
Alguns de nós nunca chegam aonde gostariam, mas isso não significa que haja algo
errado com sua recuperação. Não ficamos limpos visando alguma recompensa; muito
embora seja absolutamente recompensador estarmos limpos. Quaisquer que sejam os
dons e potencialidades que descubramos ter, fazemos bem ao lembrar que não há nada
de ruim hoje que não possa piorar. A verdade é que todos vivenciamos perdas e
dificuldades em algum momento da nossa recuperação e que se não tivermos boa
vontade para aceitar isso como parte do processo, nosso desejo de sucesso pode se
tornar uma reserva insidiosa. Se nos sentimos envergonhados pela dificuldade que
estamos atravessando ou que não podemos ser honestos acerca de nossas batalhas,
nossa relação com a irmandade se tornará sofrida não importa há quanto tempo
estejamos limpos.
Muitos de nós esperam que se fizerem tudo certo em recuperação não haverá
dificuldade ou dor e que, portanto, conseguirão tudo que quiserem. Essas expectativas
podem ser fatais. Podemos acreditar que se trabalharmos o programa, da melhor forma
possível, jamais sofreremos reveses quando, na verdade, trabalhar o programa nos

125
ajuda a continuar seguindo não importa o que aconteça. Alguns de nós vivem apenas
pequenas perdas ao passo que outros experimentam tragédias e tragédias. Seguir
adiante não é fácil, mas é o que fazemos. Não podemos estabelecer limites ou molduras
para nossos sentimentos. “Eu preciso ser brutalmente honesto sobre como me sinto”,
partilhou um membro, “mesmo quando isso faz o meu estômago doer. Eu estava triste,
com raiva, com medo e com ciúmes dos outros que tinham tido sucesso.” Não
precisamos escutar como devemos vivenciar nossos sentimentos, mas é bacana saber
que somos amados e apoiados. Uma vez que tenhamos passado por um momento ruim
limpos, podemos nos tornar conscientes de nossa força e de que tudo ficará bem.
Começamos a acreditar na nossa própria resiliência e a confiar na nossa recuperação.
Conquistamos uma fé e uma força dentro de nós mesmos que nada, nem ninguém é
capaz de nos roubar.
Se tivermos um histórico de fracassos, é bem possível que não acreditemos na
possibilidade de sermos bem-sucedidos em nossos projetos. Assim, nossa história
passada pode não ser uma boa bússola para a mudança que agora desejamos. Assim
como o segundo passo nos ensina que insanidade é fazer as mesmas coisas esperando
resultados diferentes, às vezes fazemos coisas diferentes e esperamos resultados iguais.
Mas a verdade é que, embora não mais estejamos fazendo o que sempre fizemos, ainda
esperamos conseguir a mesma coisa de sempre. Aprendemos que as coisas realmente
podem mudar para nós se tivermos boa vontade e disposição. Se desejamos algo que
nunca tivemos, precisaremos tentar coisas que nunca tentamos antes, além de termos
fé. Quando mudamos nossas ações, motivações e crenças, nossa vida muda – mas não
da maneira como costumávamos pensar que mudaria. O princípio da mente aberta que
praticamos em nossa recuperação nos concede a habilidade para sermos flexíveis
quando as coisas mudam de modo inesperado. “Aprendi a ter mente aberta em relação
a todos os tipos de coisas,” um membro partilhou, “inclusive sobre o que me faz feliz.”
Podemos já estar livres muito antes de nos apercebermos disso.
É preciso que tomemos cuidado para não nos impedir ou desmotivar, uns aos outros, na
tentativa de seguir nossos sonhos. “Após muitos anos como padrinho”, um membro
partilhou “eu finalmente percebi que eu não impediria ninguém de fazer o que
realmente queria fazer. O ponto era se meus afilhados se sentiriam confortáveis em
partilhar isso honestamente comigo. Quando eu estabelecia exigências ou limitações,
eu acabava por me tornar mais um tema a ser trabalhado pelos meus afilhados.”
Ajudamo-nos uns aos outros a ver claramente aquilo no que estamos nos envolvendo e
aprendemos também a escuta ativa, tão necessária para nos orientarmos melhor em
nossa caminhada.
O ponto verdadeiro pode não ser nosso último fracasso ou sucesso, mas nossa fé no
processo. Um outro adicto partilhou: “eu estava limpo há anos e tudo desmoronou:
casamento, emprego, finanças e minha relação com meus filhos. Os companheiros
nesse momento me lembravam de que cada dia limpo era um dia bem-sucedido. Mas
isso não me aliviava. Eu pensava que eles queriam me colocar ainda mais pra baixo. Mas
na verdade eu estava trabalhando de modo bem-sucedido meu programa de

126
recuperação em NA. Eu precisava de um ajuste com foco no que era prioritário. Ainda
estou rearranjando as coisas, mas hoje em dia estou mais feliz e satisfeito.” Começamos
a ver que grandes mudanças em nossas vidas não são o fim do mundo, apenas o início
de uma nova fase ou mais uma etapa de experimentação. Um membro observou, “eu
pensei que não importava o que significava “não usar” mesmo se houvesse um ciclone.
Mas eu estou aprendendo que isso também significa seguir em frente mesmo quando
não sinto vontade de fazer isso.”
Continuar a fazer simplesmente como nosso hábito antigo nos condicionou, mesmo
quando vemos o céu desabar, não nos ajuda na travessia das turbulências. Quando
enfrentamos períodos difíceis, podemos ficar com raiva, defensivos e bem resistentes.
Pode ser difícil ficar sentado em uma reunião e ouvir o que um companheiro tem a dizer.
Pensamos em baixar a cabeça e murmurar, mas isso tende a piorar as coisas. É como se
disséssemos “eu vou seguir sozinho até conseguir atravessar esse momento difícil e
então dou a volta por cima”. Quando nos mantemos indo a reuniões, ouvimos a
mensagem apesar de nossa resistência. Aparecemos e a mensagem nos encontra, quer
estejamos ou não procurando por ela. Aprendemos com a experiência e isso nos faz
crescer. Frequentemente percebemos que o novo lugar em que nos encontramos é
melhor do que nossa resistência anterior em abandonar o controle.

Um salto para a fé

NA nos oferece versões de sucesso e fracasso diferentes das que encontramos no


mundo. Nossas vidas são bem-sucedidas porque estamos limpos, ajudamos às pessoas
e cultivamos uma relação com um Poder Superior maior do que nós. Pode ser difícil nos
lembrarmos disso quando nosso mundo exterior está caótico. Se a vida é um sonho, não
é menos verdade que pesadelos podem nos acometer. Passamos por altos e baixos.
Temos uma condição que nos diz que sempre foi dessa maneira, não importa se estamos
vivendo bem ou não. Nós podemos ser tragados pelo pensamento de sermos imunes ao
fracasso ou de a vida ser muito difícil para nós. Cada um de nós atravessa momentos
difíceis e de sucesso e por isso aprendemos que a história não se resume a isso – ou ao
menos a parte mais importante dela.
Ambos, sucesso e fracasso, podem ser desafiadores para nós. Alguns de nós entram em
crise porque não sabem lidar com vivências positivas. Podemos temer o sucesso porque
isso vai nos trazer mais responsabilidade e isso pode nos parecer uma armadilha.
Podemos nos preocupar sobre se o sucesso vai nos conduzir à perda do foco em ficarmos
limpos. Pode ser simplesmente pelo fato de que pode ser mais fácil evitar um desafio
do que arriscarmos falhar. Talvez não nos sintamos dignos ou falhar nos pareça algo
normal.
Recuperação é um processo de evolução. Queremos nos tornar a melhor pessoa que
pudermos ser, trabalhando no que achamos que é importante, nos sentindo amados e

127
valorizados. Não pode haver uma maneira única de fazer isso, porque somos todos
diferentes. Queremos que nos deem um mapa com a trilha do sucesso, mas poucos de
nós encontram aquele tipo de direção específica que nos conduz mais longe.
Aprendemos o que é certo para nós por meio de nossos próprios esforços.
Podíamos não ter sonhos quando chegamos aqui. Nossa experiência pode ter nos
ensinado que não é seguro compartilhar nossos sonhos ou desejá-los com muita avidez.
Precisamos descobrir uma maneira de ouvir nossos próprios anseios. Com o passar do
tempo, adquirimos uma compreensão perspicaz do que significa viver em harmonia com
nossas crenças. Mesmo quando partilhamos nossas vidas com outros, nossa
disponibilidade para sermos responsáveis por nós mesmos determina nossa habilidade
de sentir amor e ficarmos satisfeitos. É a integridade com a qual vivemos nossas vidas
que importa. Afinal, se não gostamos de quem somos ou de como agimos, se achamos
nossa própria companhia desconfortável, que importa se possuímos algo ou quanto
possuímos?
Construímos uma base, uma irmandade, e uma vida – não necessariamente nessa
ordem. Aqueles de nós que foram afortunados por estarem envolvidos no
desenvolvimento da irmandade sabem quão gratificante é ver algo crescer desde a
semente. Essa experiência é distinta de qualquer coisa que conhecemos. Muitos de nós
devotaram seus corações e almas a NA e viram o processo de construção de suas
próprias vidas acontecer como decorrência disso. Podemos nos ver começando uma
carreira ou nos preocupando com nossa segurança financeira anos após nossos
companheiros já estarem estáveis. Não há maneira certa ou errada de se recuperar.
Todos nós já vivemos o recomeço em nossas vidas com novas pessoas, lugares, coisas,
enfim, entrando em um novo modo de vida que não entendemos muito bem. O desejo
de sobreviver e se sentir realizado não é privilégio de quem é adicto. Em recuperação,
começamos nos conectando com os outros e trabalhando, cada qual à sua maneira,
nossa segurança básica. Talvez tenha que ser dessa forma. Acreditar que podemos
confiar no amor em nossas vidas é desafiador. Aquelas nossas necessidades profundas
são justamente as que não acreditamos que a vida possa preencher. A resposta está no
processo de reparação por meio da compreensão de que podemos perdoar e sermos
perdoados, de que podemos assumir a responsabilidade por nossas ações e fazer
escolhas melhores.
Através de nossa recuperação, melhoramos nosso comportamento, nossas atitudes,
nossas perspectivas e nossas vidas. Os despertares que temos à medida que
trabalhamos os onze primeiros passos nos equipam com a habilidade de agir de uma
nova maneira. Pedimos pelo conhecimento da vontade do nosso Poder Superior para
nós e pelo poder de realizá-la. Depois de todo processo de rendição e limpeza da nossa
casa nos passos anteriores, um contato constante com o décimo segundo passo nos
muda. Quanto mais abraçamos e nos rendemos à nossa impotência, mais
profundamente somos empoderados para agir em nossas vidas. Nosso texto básico nos
diz que encontramos a vontade de Deus para nós nas coisas que mais valorizamos.
Podemos descrever isso em uma linguagem bem espiritual ou simplesmente sentir que

128
somos um com o criador em tudo que fazemos. “Eu sei que estou realizando a vontade
do meu Poder Superior quando todo o barulho da minha cabeça cessa.”
Em algum nível, trata-se de fé. Viver nossos sonhos requer que acreditemos que eles
são possíveis. Quando agimos apoiados pela fé, nos movemos em uma direção positiva.
Pode ser bem assustador e, às vezes, estranho, é bem verdade. Saltar para a fé nos exige
tanto que confiemos que haverá solo sob nossos pés quanto que seremos capazes de
voar. Os primeiros pequenos passos nos fornecem a coragem para esse salto.

Compromisso

As ferramentas que usamos para praticar os passos nos servem em todos os aspectos
de nossas vidas. A imaginação é uma dessas ferramentas de modo que, quando nos
permitimos sonhar, podemos usá-la para explorar nossos corações. Pode ser assustador
olhar para aquilo em que acreditamos, o que queremos e quem somos. Com a prática
da oração e meditação, aprendemos a ouvir nossa voz interior e a identificar quando
algo é verdadeiro para nós. As pessoas em quem confiamos nos ajudam a desvendar a
verdade dentro de nós em contraposição à voz ditadora da compulsão. Tomamos
decisões com base no desejo – como foi o de ficarmos limpos. “Dizemos aos recém-
chegados para colocarem os uniformes, virem às reuniões e dedicarem a NA tudo que
puderem. Por que nós não deveríamos fazer isso em outras áreas de nossas vidas?” um
membro perguntou. Aprender a sonhar é importante, mas não é um modo de se viver.
Boa vontade sem ação é fantasia.
Uma coisa é ter fé em um poder maior do que nós e outra bem diferente é ter fé em nós
mesmos. Alguns de nós levam muito tempo até acreditarem que podem contribuir com
o mundo de um modo que serve a um poder maior, aos nossos valores e que nos dá
senso de propósito. Fazer a coisa certa quando ninguém vê é um ato de serviço dedicado
àquilo em que acreditamos. Alguns de nós chamam isso de integridade; o sexto passo
chama isso de caráter. Como quer que se chame, essa prática constitui a disciplina que
forma as bases do processo permanente de construção da nossa maturidade.
Quando se comparam os princípios, a disciplina é um dos menos populares. Falamos em
compromisso quase que a partir do nosso primeiro dia limpos. Nos comprometemos a
voltar, a ficarmos limpos até a próxima reunião, a chamar alguém antes de seguirmos.
Agir com base nos compromissos que assumimos exige disciplina e esta é uma
habilidade que desenvolvemos à medida que praticamos. Isso não acontece
naturalmente para a maioria de nós e sabemos que nossos objetivos de longo prazo com
frequência serão alcançados se aprendermos a adiar nosso prazer e satisfação
imediatos, tão característicos da nossa ativa. Disciplina é compromisso em ação, é uma
demonstração de nossa boa vontade. É diferente de “força de vontade” ou
“obstinação”, pois não estamos tentando nos forçar a mudar. O que estamos fazendo é
mudar nossa relação com nosso próprio comportamento. Quanto mais confiarmos no

129
processo, mais estaremos propensos a praticar a disciplina. “Cheguei onde estou pela
graça de Deus – e uma recusa obstinada de largar o programa”, um membro partilhou.
Quando disciplina e fé andam juntas, começamos a nos tornar as pessoas que sempre
quisemos.
O talento ou interesse podem surgir naturalmente, mas qualquer habilidade requer
prática. Desenvolver o foco e a energia para permanecer firme na realização de um
objetivo é um desafio; nos permitir assumir riscos é outro. Demanda coragem encarar
nossa própria criatividade e então disciplinar e direcionar esse aspecto para as coisas
que queremos. Um membro partilhou: “Eu sinto que não tenho a liberdade interna para
fazer aquilo que tenho a habilidade para fazer fora. Eu vejo isso como uma liberdade
que terei no futuro.”
Consciência não é o mesmo que controle. Não conseguimos automaticamente a
liberdade de nossos defeitos somente por que os enxergamos. A consciência nos dá
esperança e direção. Às vezes isso pode nos motivar a arregaçar as mangas e colocar a
mão na massa e, às vezes, o melhor que podemos fazer é esperar. Quando não podemos
ver um obstáculo ou um defeito ao nosso redor é porque geralmente algum trabalho
ainda precisa ser feito primeiramente. Auto-aceitação liberta nossa imaginação. O
trabalho de reparação presente nos passos permite que nos sintamos dignos de sucesso.
As respostas estão em lugares diferentes para cada um de nós e não as conhecemos até
que as encontremos. Estar em recuperação nos liberta de maneiras imprevisíveis. É
somente ao vivenciar a liberdade que aprendemos onde estivemos confinados.
Objetivos são sonhos aos quais adicionamos ação. Podemos entender o trabalho e
mensurar a melhora do nosso progresso se desmembrarmos nossos objetivos em passos
simples a serem alcançados, um de cada vez. Afinal, nós sabemos uma ou outra coisa
sobre passos! Estabelecer objetivos realizáveis e celebrar as conquistas pelo caminho
nos possibilita ver nosso progresso e nos agracia com momentos em que podemos nos
colocar de lado e avaliar onde estamos e para onde estamos indo.

Educação

A doença da adicção pode ser bastante perturbadora quando se trata do aspecto


educacional. Alguns de nós pararam cedo nesse processo ou nunca se sentiram de modo
algum engajados. Há lacunas em nosso conhecimento, quer seja como resultado da
nossa adicção, quer seja como decorrência do lugar de onde possamos ter vindo e isso
pode ser uma fonte de vergonha para nós. Mas falta de informação não é um defeito de
caráter; é apenas algo de que não tínhamos conhecimento ainda. Há uma diferença
entre não saber e não ter capacidade de aprender.
Recuperação é eminentemente um processo de educação. Estamos aprendendo
princípios e praticando uma nova forma de viver. Aprendemos a ler, escrever, cuidar,
compartilhar, praticar, frequentar as reuniões e continuar voltando nesse processo. As

130
habilidades que aprendemos ao praticar os passos podem ser facilmente adaptadas e
utilizadas em outras áreas de nossas vidas. Quando aplicamos essas habilidades a outros
tipos de aprendizado, tendemos a nos sair surpreendentemente bem. Se ainda
estivermos no início do trabalho, a probabilidade, naturalmente, é de que haja limites
quanto ao lugar a que podemos chegar.
Muitos de nós voltam à escola após ficarem limpos. Podemos ficar surpresos com os
desafios que enfrentamos. Mesmo um programa de treinamento no trabalho pode nos
intimidar quando não estamos acostumados a aprender. Não é algo que todos nós
façamos e muitos de nós dão um passo atrás por um tempo e decidem que o que
estamos fazendo “não é apenas por nós”. “ Eu estava agradecido pela oportunidade,
mas também descobri que não tinha que fazer isso”, um membro partilhou. Podemos
voltar à escola porque precisamos desenvolver novas habilidades ou porque queremos
experimentar algo novo. “Minhas ideias sobre a sociedade eram realmente distorcidas”,
disse um membro, “e também sobre a arena em que eu iria jogar. Antes que eu pudesse
participar plenamente, eu tinha que aprender como o jogo funcionava.”
Aprendemos mais do que meramente nosso objeto de estudo. Aprendemos como
aprender. Assim como nossos corpos foram danificados pela adicção ativa, nossos
cérebros também foram maltratados. O que quer que estudemos, um instrumento,
solda, tricô ou filosofia, aprender dá bastante trabalho a nossas mentes. Podemos ver a
cura à medida que praticamos absorver e reter a informação. Aprendemos a trabalhar
sob pressão e a aceitar os feedbacks. Aprendemos a perseverar na construção da nossa
curva de aprendizagem. A impaciência é uma pedra no caminho: queremos conhecer
com profundidade as coisas, não simplesmente aprendê-las. Estudar é um exercício que
requer nosso foco constante. Começarmos aprendendo a sermos seres que aprendem
é um bom começo.
Alguns de nós voltam para a escola com um plano específico em mente, muito embora
possamos nos surpreender. A alegria de aprender pode ser uma recompensa em si.
Podemos não saber aquilo em que somos bons e pode ser que as chances sejam de que
sejamos melhores do que pensamos. “Eu acreditava que era estúpido porque recaí
muitas vezes antes de ficar limpo,” um membro partilhou. “Me formar me ajudou a
acreditar em minha própria inteligência.” Ter mente aberta em relação aos nossos
talentos pode nos possibilitar seguir um caminho que era inimaginável anteriormente
para nós.
Muitos compartilham o sentimento de que precisam compensar o tempo perdido em
sua adicção. Lutamos com o sentimento de que não somos bons o bastante. Conciliar o
tempo dedicado aos nossos compromissos na escola e em NA pode ser uma
aprendizagem sobre equilíbrio. Podemos imaginar que todos nossos colegas de classe
estão usando ou que eles constituem uma unidade na qual não nos encaixamos.
Podemos nos sentir inseguros e julgadores ao mesmo tempo. “O processo era
surpreendentemente emocional,” partilhou um membro. “Minha recuperação era uma
armadura que eu punha. Me sentia sozinho e não percebido pelos outros, mas ao

131
mesmo tempo eu não tinha a auto-aceitação necessária para deixar ninguém entrar em
minha vida.”
Se nossa tendência é buscar a perfeição, é bem provável que enfrentaremos isso quando
formos para a escola. Um membro partilhou: “Eu me sentia um fracassado se não
conseguisse tirar dez em uma prova. Não conseguia dormir até entender o que tinha
feito de errado. Eu não estava competindo contra outros estudantes: estava
competindo contra meu próprio medo.” Logo atrás do perfeccionismo existe um muro
de vergonha. Qualquer passo em falso parece abrir uma janela que revela esse segredo.
Sugestões soam como críticas e críticas como uma condenação.
Com frequência agimos como se nossas vidas fossem começar em algum ponto no
futuro: quando conseguirmos algum tempo limpo, quando terminarmos a escola,
quando arranjarmos um emprego ou quando nossas vidas se tornarem magicamente
controláveis. Em um programa que funciona “só por hoje”, aprendemos que o que
importa não é o que vai acontecer em uma data futura. Nossas vidas são o que estamos
fazendo agora. Vivemos como vivemos nossa busca dos nossos objetivos. Árvores altas
requerem raízes profundas. Precisamos nos assegurar de que estamos utilizando com
sabedoria nosso tempo para construir e manter nossa fundação à medida que seguimos
em frente.

Dinheiro

Quer tenhamos muito ou pouco dinheiro, a maioria de nós tem uma relação desafiadora
com ele. Não há nenhum conjunto de valores corretos, mas temos princípios que
aplicamos em recuperação. Nossa sétima tradição nos fala sobre o auto sustento por
meio de nossas próprias contribuições, e enquanto a tradição faz referência direta aos
grupos, muitos de nós descobrem que praticar o princípio em suas próprias vidas é
essencial para vivenciar a liberdade. Aprendemos a nos manter financeiramente e
descobrimos que há outras maneiras por meio das quais podemos praticar o auto
sustento. Aprendemos a carregar nosso fardo, a limpar nossa bagunça e a contribuir nos
lugares que são importantes para nós. Pode ser bem difícil para nós partilhar sobre
nossa relação com dinheiro. Partilhar honestamente sobre isso com nosso padrinho
pode abrir as portas para a cura em todas as áreas de nossa vida.
Ter dinheiro e trabalho podem ser coisas completamente sem relação quando
chegamos em NA. Encontramos os recursos de que precisávamos em nossa adicção
ativa de todas as formas. Furtávamos, manipulávamos, levávamos vantagem, enfim
persuadíamos todos quantos aparecessem em nossas vidas. Éramos sanguessugas e
dissipávamos os recursos que estavam disponíveis para nós. Em nosso egocentrismo,
tornamo-nos míopes aos pedágios que impusemos às pessoas ao nosso redor. A
consciência de que talvez nunca poderemos reparar o que devemos pode fazer parte da
força que nos guia até uma nova maneira de viver. Temos uma dívida, mas toda vez que

132
agimos a serviço de um poder maior podemos sentir algo mudando dentro de nós.
Temos uma contribuição a fazer e fazê-la não é algo sacrificante. Ela nos serve tanto
quanto nós servimos aos outros.
Nosso senso de direito ilimitado tão presente em nossa adicção ativa pode nos
acompanhar até a recuperação. No entanto, ele aparece frequentemente de formas
mais sutis. Não roubamos mais as bolsas das pessoas, mas pode nos parecer
perfeitamente normal levar alguns itens do estoque da empresa em que trabalhamos,
apenas furtar um pouco ou seguir tirando vantagem das pessoas. Podemos saber que
esse tipo de desonestidade está errada, mas abrigamos a justificativa de que não
estamos sendo pagos dignamente, de que merecemos um descanso que não nos
concedem ou de que as pessoas a quem servimos no trabalho, em casa ou em NA,
deveriam ser mais agradecidas a nós. Às vezes esse sintoma da nossa ativa aparece sob
a forma de desconfiança dos outros: suspeitamos constantemente que alguém está
tentando se dar bem em cima de nós.
O ressentimento que fervilha dentro de nós pode ser inacreditavelmente destrutivo.
Vemos não o que temos, mas o que nos falta. Sentimos mais nossa vulnerabilidade do
que nossa segurança. É difícil sentir-se feliz quando o mundo parece um lugar hostil.
Aprender a praticar fé e gratidão não significa que abandonamos nossas “manhas de
rua”. Significa nesse primeiro momento que começamos a desenvolver um tipo
diferente de inteligência. Podemos lutar por nós mesmos sem sentirmos que estamos
lutando por nossa vida. Começamos a confiar que nossas necessidades serão satisfeitas
e a ver que as imperfeições presentes nas circunstâncias são, na verdade, oportunidades
e não barreiras ao nosso crescimento.
Uma vez que tenhamos entrado em recuperação, a obsessão e a compulsão podem se
manifestar também em nossos hábitos de consumo. Compramos impulsivamente e
compulsivamente e ficamos obcecados com termos o que é mais novo ou o melhor.
Usamos nosso dinheiro sem sabedoria na tentativa de preencher o vazio: queremos
comprar amor, aprovação ou a aparência de sucesso. “Eu pensei que poderia comprar
meu passe para a cura da adicção,” disse um membro. O dinheiro se torna mais uma
maneira de manifestar nosso comportamento controlador. Tornamo-nos tão rígidos que
criamos mais problemas do que soluções ou simplesmente deixamos o dinheiro e as
oportunidades se esvaírem, pensando que a pobreza é o que nos cabe. Alguns de nós
descobrem que não são as “coisas” que nos atraem, mas a sua busca. Essa força pode
nos trazer grande sucesso ou pode se tornar a compulsão que alimenta outros sintomas
da nossa adicção. Só nós sabemos a verdade. Se estamos apostando, vivendo o sistema,
abrindo e fechando negócios, pendulando entre sucesso financeiro e fracasso sem
parar, talvez seja preciso pararmos para analisar aquilo para que estamos prontos. Pode
ser difícil admitir que temos uma relação problemática com o dinheiro; partilhar
honestamente com alguém em quem confiamos pode começar o processo de mudança.
Descontrole financeiro é sempre um sintoma de algo maior. Como tantas coisas contra
as quais lutamos, trata-se de um problema prático com uma solução espiritual.

133
“Coisas muito pequenas”, disse um membro, “como pagar as contas no prazo me deram
um sentido de dignidade.” Outro membro partilhou que ela começou a superar seu
ressentimento com o pagamento de suas contas ao escrever “obrigado pelos seus
serviços” no verso dos boletos. Cumprir com nossas obrigações mais simples pode ser
uma vitória. Para alguns de nós, isso se resolve rápido. Já outros passam a vida inteira
aprendendo a lidar com esse aspecto. Desordem financeira não é algo extraordinário
para membros de NA, mas não é uma exigência para se adentrar a irmandade. Brincar
com a doença que temos traz sérias consequências financeiras. Mas muitas das
maneiras como vivemos nossa recuperação também. Isso não significa que trabalhar o
programa vai nos tornar ricos. Alguns de nós não ganharam mais dinheiro em
recuperação do que quando estavam usando drogas; tornar-se responsável pode ser
caro. Mas muitos de nós se tornam bem-sucedidos em recuperação e alcançam
conforto financeiro. Quando estamos praticando a sanidade e vivendo dentro de nossas
possibilidades financeiras, nos sentimos confortáveis com quem somos e com as
circunstâncias que nos rodeiam, não importa quais sejam.
Aprendemos também a pedir ajuda quando precisamos. Muitos de nós lutam em
recuperação quando alguém fica doente ou inabilitado por conta de suas crenças sobre
serem autossuficientes tornando difícil a realização do pedido da ajuda de que tão
desesperadamente necessitamos. A humildade que aprendemos ao fazer o trabalho de
passos abre espaço para pedirmos ajuda quando necessário, bem como para saber que
nem somos tão bons que não precisemos de nossas necessidades satisfeitas nem tão
ruins para não merecermos ajuda. Podemos pensar que o que queremos é muito
diferente do que precisamos e aprender a nos adaptar às circunstâncias pode nos
equipar com a flexibilidade que nunca havíamos imaginado antes. Aprendemos a aceitar
ajuda e a encontrar outras maneiras de contribuir também. Perder tudo não é uma
sentença de morte, assim como ter tudo não nos exime de precisar dos outros inúmeras
vezes.
Prudência é um princípio que alguns de nós praticam mais que outros. É uma palavra
engraçada, mas é exatamente sobre o que se fala quanto à “reserva prudente” em NA.
Um membro partilhou: “eu aprendi a ser responsável e prudente gerenciando o dinheiro
da irmandade, então não me aproprio também do dinheiro de outras pessoas. Eu tenho
aprendido os princípios da honestidade e de ser fiscalizado. É como ponho em pratica
os princípios, é mais ação e menos falação”.
Aprendemos no serviço a assumir obrigações prudentemente de modo a assegurar-nos
de que podemos cumprir o que prometemos. Também em outras áreas de nossas vidas
descobrimos que planejar e executar nos faz muito bem. Fazemos o nosso melhor para
assegurar que podemos ser responsáveis mesmo quando as circunstâncias mudam.
“Enfrentei um momento difícil em meu negócio e tive que depender das minhas
reservas por um tempo. Eu estava com vergonha de falar disso nas reuniões, mas
partilhei com um companheiro mais próximo de recuperação. Mais tarde ele me disse
que essa havia sido uma mensagem de esperança para ele. Porque planejei
antecipadamente, eu estava apto a enfrentar esse momento difícil. O que meu

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companheiro havia visto era sucesso quando eu vi fracasso. Mais uma vez, eu havia
ganhado uma perspectiva enriquecedora em minha vida.”
Também percebemos que aqueles que não doam em NA também têm dificuldade para
manter o que receberam. A ideia de que “dar” é uma parte crucial do “ter” é algo que
muitos de nós se surpreendem ao descobrir. Podemos ou não ter riqueza material, mas
nossos recursos emocionais, mentais e espirituais são imensos. Nossa riqueza está
presente em nossas vivencias e experiências. Quando doamos energia, tempo, talento
e criatividade, somos recompensados muitas vezes mais do que aquilo que entregamos
de nós.

Trabalho

Enquanto os passos nos ajudam a sermos melhores, o serviço é um caminho de


aprendizado sobre como funcionar novamente no mundo. Muitas das habilidades que
aprendemos no serviço se traduzem em nossa vida profissional. Podemos nos sentir às
vezes como forasteiros ou impostores em nossas profissões, mas em NA nós somos
participantes ativos. Não julgamos o nosso propósito primordial ou nosso direito de
participar. Em uma irmandade em que a última autoridade é um poder maior do que
nós, aprendemos a trabalhar com os outros como iguais que tem algo a oferecer e algo
para aprender em vez de nos vermos como autoridade ou vítima. Aprendemos a
canalizar nossa energia para uma direção construtiva e então colocamos em prática
nosso estado de alerta e foco. Vamos além de nossas habilidades e descobrimos que
podemos sobreviver e sermos bem-sucedidos mesmo não sendo perfeitos. O serviço
combate nosso egoísmo e aumenta nossa dignidade, nosso senso de valor próprio.
Aprendemos a dar um passo atrás e pensar antes de responder. Nem tudo aquilo que
nos afeta é pessoal; não precisamos, portanto, retornar tudo na mesma moeda. NA é
um espaço em que podemos cometer erros, descobrir quem nós somos e aprender a
nos relacionar. As coisas que nos tornam defensivos ou hipócritas tendem a ser
exatamente as mesmas onde quer que estejamos. Vemos nossos defeitos de carácter
se manifestando e então lançamos mão de nossa humildade para fazer reparações ou
mudar o curso das ações e recomeçar. Todos cometem erros; admitir prontamente
quando estamos errados demonstra integridade e responsabilidade por nossas ações.
A experiência do serviço nos ajuda a assumir responsabilidade e a aprender a dar conta
delas na nossa caminhada. Aprendemos a nos sentar com calma e a ouvir, e também a
nos fazer ouvir quando temos algo a dizer. Começamos a sentir que podemos assumir
nosso lugar de direito no mundo sem medo ou vergonha. À medida que praticamos
esses princípios em todos os aspectos das nossas vidas, algumas das distinções entre
quem nós somos em nossa vida profissional e em nossa recuperação começam a se
diluir. Nossa personalidade se fortalece com base em quem somos de verdade.

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Uma das maneiras de praticarmos esses princípios é nos colocarmos a serviço de quem
nos emprega. Alguns membros se perguntam? “Como eu pratico unidade no trabalho?
Como eu permito que o Poder Superior comande minha vida ao longo de um dia de
trabalho? Qual é o propósito primordial deste local de trabalho e como eu posso ajudar
nisso? Qual é o meu propósito primário aqui?” Qualquer que seja o nosso trabalho,
quando o encaramos como uma oportunidade para a prática dos princípios,
concedemos dignidade para o uso do tempo. Um membro partilhou: “Responsabilidade
costumava ser um fardo para mim. Aprender a encará-la como uma maneira de realizar
a vontade do Poder Superior para mim torna minhas tarefas no trabalho um privilégio.”
Com os princípios espirituais a nos guiar, podemos ser um ativo valioso onde quer que
estejamos. É muito frequente que as pessoas ao nosso redor vejam o nosso valor antes
de nós mesmos. Talvez a maioria de nós, quando estamos conectados espiritualmente,
funcione como um canal para a manifestação da criatividade. Isso não significa
necessariamente que façamos música ou que sejamos pintores – embora possamos sê-
lo -, mas, sim, que podemos ver soluções para problemas e encontrar satisfação ao fazer
o que quer que seja da melhor maneira que podemos.
A transição da sala de NA para o ambiente de trabalho nem sempre ocorre sem
dificuldades. Podemos nos perceber chocados com o fato de que a terceira tradição não
se aplica ao trabalho. Não somos membros de outros grupos somente por querer. É
possível que tenhamos que conquistar nossa cadeira em outra sala e que haja lugares
em que talvez nunca sejamos aceitos como gostaríamos. Ademais, o que poderia
parecer perfeitamente natural com nossos companheiros em sala pode ser
completamente inapropriado em outros lugares fora de NA. Estamos conscientes de
como nós compartilhamos nossos sentimentos e histórias. Aprendemos a diferença
entre amigos, relações que construímos em nossa recuperação e relações profissionais
e então começamos a entender que podemos modificar nosso comportamento sem nos
colocarmos em risco.
À medida que avançamos em nosso trabalho de passos, somos capazes de reconhecer
nosso progresso em outras áreas também. A humildade que aprendemos nesse trabalho
nos ajuda a encontrar o lugar ao qual pertencemos no mundo. Começamos a perceber
que não somos nem melhores, nem piores do que ninguém, mesmo no trabalho, e que
nossos dons e talentos são úteis. Um membro falou sobre encontrar um trabalho que
se adaptasse às suas habilidades e defeitos; quando encontramos o ambiente correto,
percebemos que podemos nos destacar pelas coisas que costumavam ser
desconfortáveis para nós. Alguns de nós são naturalmente diligentes e outros muito
bons em se sentarem calmamente e ficarem presentes no momento; Cada uma dessas
habilidades pode ser um ativo ou um defeito dependendo de como as usamos. A culpa
de ser improdutivo e desperdiçar tempo no trabalho se retroalimenta. Por outro lado, a
vontade de estar em movimento constante pode ser uma consequência do medo.
Quando não separamos tempo para reflexão sobre o que estamos fazendo e como isso
está acontecendo, pequenos erros podem se amontoar rapidamente. Como com tudo
na vida, procuramos um equilíbrio saudável.

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Nossos problemas podem diferir, mas os princípios que praticamos são os mesmos.
Alguns de nós nunca trabalharam antes de ficarem limpos e para outros trabalhar foi
tudo o que sempre fizeram. Pela mesma razão, alguns de nós não precisam trabalhar
por razões financeiras e alguns estão demasiado deficientes para poderem trabalhar.
Ainda assim, nós podemos nos beneficiar do estabelecimento de horários e do fato de
sermos cobrados quanto às nossas responsabilidades. Podemos resistir a uma vida
estruturada, mas isso nos ajuda imensamente. Somos, afinal, criaturas de hábito.
Quando sentimos que temos um propósito que dirige nossos dias, sentimo-nos mais
confortáveis conosco e com nossas vidas. Nosso trabalho pode ser algo que façamos
para pagar as contas ou para preencher o tempo ou pode ser uma das maneiras
primordiais como nos definimos. Aqueles que têm um trabalho significativo e de valor
são afortunados. É um objetivo que muitos de nós têm e, quando sentem que estão
fazendo um bom trabalho em algo que é importante, isso lhes traz profunda satisfação.
Quem quer que sejamos, de onde quer que venhamos, temos algo a oferecer.
Nossa ética de trabalho é uma coleção de hábitos que determinarão como usamos nosso
tempo. Quando focamos nossa mente em algo, podemos ser excepcionalmente
determinados. Poucas pessoas podem ser tão orientadas e determinadas em suas vidas
como um adicto à procura da realização de seus objetivos. Quando aprendemos a
direcionar essa determinação para objetivos saudáveis, podemos alcançar coisas
incríveis. Sabemos que se fizermos algo regularmente, isso se tornará um hábito para
nós. O que começa com disciplina se transforma em hábito e, ao fim, isso se torna um
prazer. Há perigo nesse método, no entanto. Substituição pode ser fatal, especialmente
quando isso parece estar funcionando para nós. A marca da nossa doença é progressão.
Quando percebemos que nossa relação com uma atividade está justificando nossa
incapacidade de gerenciamento em outros aspectos de nossas vidas, é bem provável
que seja hora de dedicarmos tempo para olhar com cuidado para nossas ações, motivos
e para nossos passos.
Podemos ser atormentados por sentimentos de inadequação em nossa recuperação e
dispender tempo e energia tentando viver de acordo com algum padrão inatingível.
Podemos oscilar entre nos sentirmos bastante inseguros e ávidos para agradar e sermos
resistentes às regras mais básicas e elementares que um trabalho exige. Nossa falta de
auto-aceitação nos mostra quando não podemos aceitar elogios. Quando nos sentimos
mal e sem valor diante de nós mesmos, tendemos a super compensar em outros
aspectos. Podemos encobrir as más ações dos outros ou aceitar mudanças indesejáveis
receosos de que sejamos de algum modo mais descartáveis que os outros. “Eu tenho
me saído muito bem no trabalho”, disse um membro, “mas ainda não me senti
responsável ou produtivo. A inadequação parece me assombrar.” Pode ser difícil
perceber a diferença entre um desejo genuíno de melhorar e um desempenho que é
motivado por medo.
Quando o medo está nos conduzindo podemos perceber que a procrastinação se torna
um problema. Ficamos com medo de terminar o que começamos e começamos a
arranjar desculpas. “Quando chego perto da conclusão de um projeto, parece que entro

137
em um túnel de vento. Não sei de que direção a resistência vem. Ela é tão forte que mal
consigo plantar meus pés no chão.” Podemos ter tantas ideias e tantas coisas por
terminar que tomar uma decisão sobre o próximo passo aumenta nossa ansiedade. Um
adicto partilhou que ele “se sentia como um cavalo em uma corrida com um começo
retumbante e uma chegada medíocre.”
Às vezes podemos até usar nossos defeitos como força construtiva. Por exemplo,
podemos nos chicotear porque procrastinamos o que tememos. Podemos usar essa
energia para fazer muitas coisas que precisávamos. “Eu raramente sou mais produtivo
do que quando estou procrastinando”, partilhou um dos membros. “Eu posso arrumar
toda a casa porque estou adiando estudar, ou pagar as contas porque não quero ter
uma conversa difícil.” Mas todo esse esforço gasto nessa agitação não nos aproxima de
nosso objetivo. Cedo ou tarde, devemos admitir a verdade e lidar com o que estamos
evitando. Na maioria das vezes, evitar o que precisamos fazer nos toma muito mais
energia do que fazê-lo. A eficiência é resultado da clareza para limpar aquilo que drena
nosso tempo e energia.
Lutamos por alcançar um equilíbrio e encontramos isso de diferentes maneiras. Quando
nos sentimos mais confortáveis conosco, ficamos mais confortáveis com os outros
também. Nossa boa vontade e humildade se manifestam enquanto desejo genuíno de
fazer melhor, não importa quão bem estejamos nos saindo – não porque temos algo a
provar, mas porque nos importamos. Podemos praticar princípios no nosso lugar de
trabalho sem sermos ingênuos ou demasiadamente agradadores. À medida que ficamos
limpos, desenvolvemos uma nova história. Nossos colegas de trabalho podem não ter
visto nosso desespero e não ter nenhuma razão para achar que somos adictos em
recuperação. Não precisamos quebrar nosso anonimato para integrarmos quem somos
às nossas carreiras. Esta é uma escolha que fazemos por nós. Somos seres humanos,
fazendo nosso melhor para sermos responsáveis e produtivos.
Trabalhar pode se tornar um álibi para não praticar o programa. Ouvimos muitas vezes
que perderemos tudo que colocarmos à frente de nossa recuperação e muitos de nós
vivenciaram isso com empregos e coisas materiais que eclipsaram sua recuperação,
fazendo-a parecer algo ultrapassado ou inconveniente. Quando estamos usando as
ferramentas que o programa nos disponibiliza, podemos ver os desafios que temos no
trabalho como oportunidades para praticar o programa. Aplicar os princípios, em
hipótese alguma, piora nossas vidas. Sentimo-nos demasiadamente responsáveis,
obcecados e compelidos a seguir, mesmo quando conceder-nos uma pausa pudesse ser
algo necessária para ganharmos perspectiva.
Somos membros bem-sucedidos da sociedade, quer façamos ou não parte da força de
trabalho. Temos tanta integridade em nossos empregos e em relação às pessoas fora da
irmandade quando dentro de sala – e esse é o grande ponto. Quando praticamos esses
princípios em todas as áreas de nossas vidas, contribuímos muito com o mundo. Não é
somente uma teoria ou outra palestra horrível sobre nosso “potencial”. É nossa
experiência que nos diz isso e assim seguimos fazendo.

138
Anonimato

Nossa adicção não nos isola mais, mas a decisão de quebrar nosso anonimato com as
pessoas deve ser tomada com cuidado. Nós podemos ser imprudentemente casuais
acerca de nosso anonimato.
“Anônimo” é metade do nosso nome por uma razão. Ainda há um estigma ligado ao
adicto e pode haver consequências ao admitirmos que estamos em recuperação. O
cuidado é a única razão para nosso anonimato. A décima segunda tradição nos diz que
ele é o nosso alicerce espiritual. O fato de sermos anônimos significa que o serviço que
prestamos em NA é mesmo algo altruísta. Não precisamos, nem queremos crédito por
ajudar os outros; fazemos isso para salvar nossas próprias vidas. Não nos faz bem sermos
compassivos com nossa condição; sabemos que o preço pela auto piedade pode ser bem
alto. Nas salas, somos iguais aos outros adictos e fora da mesma forma entre nossos
colegas de trabalho ou onde quer que estejamos.
Analisamos nossas razões antes de contarmos a alguém que somos adictos e
aprendemos que essa é uma boa política quando consideramos revelar algo sobre nós.
Reservar um momento para rezar e analisar nossas intenções nos liberta para aproveitar
nossas experiências como uma ferramenta em vez de uma arma. Consideramos se
estamos à procura de atenção ou nos fazendo de importantes tentando justificar nosso
comportamento ou se estamos aptos a oferecer ajuda ou direção como resultado de
nossa experiência. Podemos estar em um processo de abertura para que alguém nos
conheça melhor, construindo uma ponte para a empatia. Também queremos levar em
conta nossos próprios limites: é alguém com quem nos sentimos seguros para partilhar?
O anonimato de outro companheiro ficaria comprometido pela nossa revelação?
Estamos limitando ou protegendo a relação ao partilharmos sobre nós? Nossa ação está
nos conduzindo para fora dos limites estabelecidos por nós na décima segunda tradição?
Temos algo de valor a partilhar dentro e fora das salas. Isso nos pertence e temos
liberdade para escolher como queremos abordar isso.
Dito isso, há tempos em que é apropriado se desprender de nosso anonimato – e, claro,
há momentos em que as pessoas simplesmente descobrem sem que façamos nada para
que isso aconteça. Mas sempre temos escolhas sobre como desejamos responder a isso.
Um membro partilhou sua experiência: “Eu mantenho meu anonimato como um
segredo, mas alguém que tenho visto nas reuniões é amigo de um rival meu no trabalho.
Essa pessoa disse ao meu rival, que espalhou para todo mundo no trabalho. Fiquei em
pânico. Mas isso não resultou em nada. Agora estou livre para ser eu mesmo; não
preciso mais me esconder.” Pode ser desconfortável ou mesmo assustador o sentimento
de carregarmos nosso anonimato como um segredo. Não se esconder significa que
podemos ser nós mesmos e também que somos livres para levar a mensagem quando
deparamos a oportunidade.
Quando nos encontramos com pessoas que conhecemos do trabalho ou de outros
contextos em reuniões de NA, é importante considerarmos o anonimato uns dos outros.

139
Podemos nos sentir confortáveis ao partilharmos que somos membros de NA com
outros, mas isso não significa que a outra pessoa se sinta tal como nós. Nos permitir
vivenciar nosso pertencimento à irmandade à nossa maneira é parte da liberdade que
nos concedemos. Assim como não julgamos uns aos outros quanto ao desejo de parar
de usar, não o fazemos em relação ao compromisso ou qualidade de cada membro
baseado na vontade de quebrar o seu anonimato.
Aprender a escolher de modo sábio e apropriado é importante. Podemos ser o único
exemplo de recuperação que alguém possa ter visto e nosso comportamento reflete o
modo e a mensagem que levamos. Devemos levar isso em consideração quando
vestimos ou carregamos a memorabília de NA ou colocamos um adesivo da irmandade
no carro. Quando permitimos que as pessoas saibam da nossa condição, estamos
também lhes falando da irmandade. Nossa mensagem é levada não só pelo que falamos,
mas também pela maneira como o fazemos.
Da mesma forma, cada um de nós decide sobre os ambientes em que se sentem
confortáveis. Alguns de nós nunca mais estarão na presença de drogas novamente após
ficarem limpos; outros descobrem que nossas obrigações de trabalho ou nosso convívio
com nossa família podem nos expor a pessoas que usam. O que um membro vê como
um risco desnecessário, outro pode ver como parte essencial de sua integração à
sociedade. É importante lembrar que sempre há a opção de sairmos de um lugar que
nos deixe desconfortável.
Quando partilhamos honestamente sobre nossas vidas, sobre quem somos e o que
fazemos, nos tornamos partes vitais de uma mensagem de recuperação. Nossos
companheiros frequentemente se orgulham do nosso sucesso, assim como nossas
famílias. Mas não queremos perder nosso alicerce de igualdade que nos mantém vivos
e livres. Saber que nenhum de nós é melhor ou pior do que qualquer outro membro
torna mais fácil a convivência com nosso passado e nos dá esperança no futuro. Isso
significa que também podemos ver nosso sucesso como parte de nossas vidas, mas não
como nossa única identidade. Uma mudança para melhor ou pior em nosso status não
precisa nos destruir. A prática do anonimato significa que podemos continuar a crescer
em tempos de tranquilidade e de dificuldade e que podemos continuar enxergando os
benefícios de praticar um programa de recuperação mesmo quando nossas vidas são
extraordinárias.
A auto avaliação honesta é essencial na recuperação, mas só é possível se formos
vulneráveis o suficiente para deixar alguém entrar em nossas vidas. Escolhemos nossos
espelhos com cuidado, procurando aqueles em quem podemos confiar, pessoas que
serão honestas, prestativas e gentis. Este processo se torna mais difícil quando nos
atraímos por alguém em razão de suas conquistas, profissão ou status social; podemos
descobrir que as pessoas são relutantes em nos falar sobre nossas falhas. Alguns podem
nem mesmo vê-las. Quando tratamos um membro como um ícone em vez de um adicto
à procura de recuperação, nós o privamos da oportunidade de vivenciar a recuperação
de que tão desesperadamente precisa. Nenhum de nossos membros é mais ou menos

140
valioso na irmandade; quando nos esquecemos disso, machucamos uns aos outros e
também a irmandade como um todo.

O dom da esperança

Temos tanto a oferecer. Somos bons ouvintes e sabemos como encontrar a força e a
esperança em nossa vivência. Estamos no caminho e também conscientes da nossa
jornada. Somos todos, cada qual à sua maneira, amorosos, cuidadosos e generosos. NA
é uma escola de treinamento e a matéria principal, “importar-se com o outro”. Podemos
aprender mais sobre empatia em nosso primeiro ano em NA do que no restante de
nossa vida. O que aprendemos sobre viver o programa é aplicável fora em todos os
aspectos de nossas vidas de modo que podemos ter bons amigos estejam eles em
recuperação ou não. As ferramentas e princípios que aprendemos podem servir aos
outros dentro e fora da irmandade. Quando nos aventuramos, começamos a descobrir
quão úteis podemos ser.
Aprendemos com os exemplos dos outros. Os primeiros da irmandade limparam o
caminho para os recém-chegados de hoje. Andamos sobre as pegadas dos veteranos à
medida que progredimos em nossa jornada. Aprendemos a ser responsáveis ao vermos
o exemplo de comprometimento dos outros. Sermos verdadeiros não liberta somente a
nós mesmos; também liberta os outros. Mesmo em nossos momentos mais dolorosos,
ainda podemos ser uma visão do que é possível. Se conseguirmos manter as pessoas
que apadrinhamos próximas a nós em momentos de prova a que somos submetidos
pela vida, eles poderão nos oferecer o apoio e cuidado de que muito necessitamos.
Também daremos a eles a chance de aprenderem com nossas experiências – e nossos
erros. Podemos ser um exemplo de força e perseverança para outros, assim como
precisarmos dos outros para alimentar nossa esperança também.
Quando encontramos nosso lugar, é como uma peça que se encaixa confortavelmente
no quebra-cabeças como um todo. “Recuperar-nos em completa liberdade criativa”
significa que podemos ouvir nosso coração e um Poder Superior, seguindo o caminho
aonde quer que ele nos leve. Quando acreditamos pela primeira vez que podemos ficar
limpos, começamos a entender que temos escolhas em nossa vida. Mas viver essas
escolhas nos exige coragem, paciência e perseverança. Temos que estar dispostos a
permanecer com nossas escolhas quando as coisas ficam difíceis e seguir mesmo
quando não estamos certos sobre o lugar a que chegaremos ou se o faremos.
Permanecemos fazendo o que for necessário para nos cuidar à medida que avançamos.
As mesmas ferramentas que descortinaram a liberdade para nós no início de nossa
caminhada podem continuar funcionando se continuarmos a usá-las com a mesma boa
vontade e disposição.
Somos amados e nossas vidas têm significado hoje. Fazemos coisas extraordinárias em
nossas vidas – às vezes alcançando grandes objetivos e às vezes simplesmente sendo

141
quem realmente somos. Uma companheira reclamou à sua madrinha que enquanto
dona de casa sentia que não fazia o bastante com seu tempo e com sua vida, que talvez
ela devesse estar fazendo algo mais importante. Sua madrinha sorriu. “Tá brincando?
Você quebrou o ciclo da adicção em sua família; você está fazendo história, querida.”
Nossas maiores conquistas podem ser coisas de que ninguém tem conhecimento: o
simples fato de que sobrevivemos a nossas próprias histórias é monumental. Então
seguimos ajudando os outros e vivendo uma vida da qual possamos nos orgulhar; uma
vida que está muito além de nossos sonhos mais insanos. O que quer que façamos,
fazemos diferença no mundo porque vivemos a vida limpos.

142
CAPITULO 7 – A jornada continua

Despertares espirituais

Um despertar espiritual é apenas isto: um despertar. Ainda precisamos levantar da cama


todos os dias. Algumas pessoas despertam apenas por um momento e então cochilam
de novo. Se quisermos nos manter despertos e vivos, se desejamos a continuidade do
milagre da recuperação se desdobrando em nossas vidas, seguimos em busca de colocar
em prática nossos despertares. Se não estivermos levando a mensagem, seremos
tomados pela névoa inebriante da adicção novamente.
Parece que despertamos em estágios, não de uma só vez. Podemos não nos dar conta
disso imediatamente, mas fato é que a primeira vez que encontramos esperança
vivemos um despertar espiritual. Cada um de nós vivencia novos despertares à medida
que examina suas crenças e as pratica em sua vida. Honestidade, mente aberta e boa
vontade são frequentemente os primeiros princípios espirituais que vivenciamos.
Aprendemos mais princípios à medida que seguimos e alguns se tornam mais
importantes do que outros para nós. Com o tempo, ganhamos mais experiência ao usá-
los como guia para nossas ações. A espiritualidade é progressiva, dinâmica e criativa. O
alicerce de nossa recuperação é composto pela consciência de que precisamos sair de
nós mesmos para vivermos; nossa auto-obsessão é um muro que precisamos demolir.
Em nossos primeiros momentos de recuperação, muitos de nós vão e vêm entre a
excitação genuína com nossas possibilidades e o pesar pelo que perdemos no passado.
Alguns de nós descrevem o início da recuperação como uma “nuvem rosa”, já outros
falam de uma longa fase de tristeza, dor e mágoa. Vivemos muitos sentimentos novos,
às vezes muito rapidamente. Crescemos e mudamos, construímos e perdemos relações,
vamos a reuniões e, acima de tudo, aprendemos. Ao longo da nossa recuperação
vivenciamos novos despertares, novos processos de rendição e mais liberdade. Os
princípios simples que aprendemos quando estamos começando nossa recuperação
assumem significados mais profundos à medida que os praticamos em nossas vidas.
Somente quando pensamos que já conhecemos tudo que a recuperação tem a nos
oferecer, mais nos é revelado se estivermos dispostos a aceitar essa dádiva.
Não há substituto para o tempo em recuperação. Ele nos dá a chance de cura,
crescimento e recomeço, tudo para que construamos vidas com propósito para nós e
aqueles que estão ao nosso redor. Mas o tempo por si não nos cura, não nos faz crescer
nem recomeçar. O que importa mais são as ações que empreendemos. A aplicação
consistente das ferramentas de recuperação nos transforma. O processo é contínuo e
permanente. Não trabalhamos apenas os passos; nós os vivenciamos. Eles moldam
como pensamos, nos sentimos e como respondemos ao mundo. Os passos nos ensinam
a crescer e a ajudar os outros. Aprendemos a nos amar ao falar a verdade. Aceitar nossos
pontos positivos é parte do processo de reparação com nós mesmos, mas mais

143
importante, ele inicia o processo por meio do qual fazemos nossas reparações à
sociedade. Humildade é sermos honestos sobre quem e o que somos. Passamos a
enxergar o que temos e o tanto que podemos oferecer. Há uma diferença entre estar
no programa e viver o programa. Quando entendemos a programação, que foi
especialmente feita para nós, ela se torna nossa e passa a fazer parte de nós.
Ação criativa é construir uma vida espiritual a partir da qual possamos crescer. Isso nos
exige que a pratiquemos, que desenvolvamos nossas crenças e as apliquemos em nossas
vidas. O décimo primeiro passo não diz, “nós mantemos um contato consciente”; ele diz
“nós buscamos ... para melhorar nosso contato consciente...”. Quando praticamos
nosso programa, essa relação não se torna mais importante – ela se torna melhor. Nossa
experiência espiritual não tem que fazer sentido para ninguém a não ser para nós
mesmos. Abraçar nossa parte criativa, que transforma as coisas ao nosso redor em uma
experiência positiva e significativa, é um ato de auto-aceitação visível em nossas vidas.
Descobrimos que as coisas com que mais nos importamos e que mais valorizamos
refletem a vontade do nosso Poder Superior para nós.
A auto-aceitação nos liberta para fazermos a próxima coisa certa ou para esperar
pacientemente pelas próximas palavras ou ações que se revelarão para nós. Não
estamos mais no meio de uma tempestade, pois começamos a entender a nós mesmos,
nossa doença e nossa recuperação de muitas formas. Podemos ser nós mesmos no
momento presente sem medo ou desculpas, sem a necessidade de aprovação ou
racionalizações.
Quando os dançarinos se movem pelo espaço com propósito e beleza, percebemos sua
graciosidade. Da mesma forma, quando nos movemos em nossas vidas com intento e
gratidão, mostramos essa graça; quando vivemos esbarrando, de teimosia em teimosia,
provocando dano e confusão, não estamos dançando com graça. Se tivermos boa
vontade para retomar nossa humildade e gratidão, nossas vidas se tornarão mais fáceis
e tranquilas. Mesmo quando não identificamos a próxima coisa correta a ser feita, em
geral podemos ver a coisa errada e nos mantermos afastados dela. Quando nossa
espiritualidade nos guia e conduz, podemos seguir nossas vidas com tranquilidade.
Nossas vidas em recuperação são tão diferentes do que nos trouxe a NA que talvez não
saibamos o que fazer. Às vezes até mesmo alcançar nossos objetivos parece tornar
nossas vidas ingovernáveis. A experiência pode ser uma ótima professora, no entanto.
O crescimento de nossa consciência cria a fundação firme para novas ideias; a vida
oferece oportunidades para colocar as novas ideias em ação. Adaptar-nos a novas
informações pode levar tempo. A consciência de que estamos de posse de um precioso
presente muda como vemos a nós mesmos e ao mundo. É quando vivenciamos a graça.
Alegria e gratidão andam de mãos dadas, lado a lado. Para alguns de nós, alegria é a
sensação de que somos partes de algo muito maior do que nós e mais importante do
que nossos sentimentos e experiências imediatas. Somos importantes, mas somos mais
importantes quando estamos conectados com outros. Esse senso profundo de alegria
não nos exige que estejamos felizes o tempo todo. Ele é muito maior que isso.

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Humildade significa que entendemos nosso lugar no mundo; a alegria vem de
percebermos que temos um propósito. Estarmos espiritualmente despertos nos
possibilita ver os milagres que nos rodeiam mesmo quando a vida parece bastante difícil.
A generosidade de espírito é o antídoto para a solidão e a alienação.

Vivendo nossos princípios

A compreensão é importante, mas não significa muita coisa sem aplicação prática.
Aplicamos os princípios e evocamos o esforço necessário para fazê-lo. Aplicamo-nos em
mudar nossa perspectiva e nossas vidas. Quando as coisas ficam difíceis, pode ser fácil
esquecer que nós já alcançamos uma vida que amamos e apreciamos. Não precisamos
negar a realidade para ter esperança ou gratidão. Sentimos o que sentimos e fazemos o
trabalho árduo que precisa ser feito não importa o que aconteça. Aprendemos a não
levar nossas emoções tão a sério. “Meus sentimentos não são fatos,” disse um membro,
“mas eu ainda os sinto assim.” Quando escolhemos não olhar pelas lentes do
ressentimento e personalismo, podemos ver o mundo como ele é e ver beleza mesmo
quando o momento que atravessamos é desafiador. Cada dia é preenchido com
oportunidades para escapar da realidade ou encará-la com coragem e viver a vida como
ela é. Agora somos capazes de escolher.
Cada um de nós trabalha seu programa de modo diferente e isso pode também mudar
para cada um de nós com o passar do tempo. Pode significar que estamos escrevendo,
servindo e frequentando reuniões ou somente que estamos praticando um contato
consciente com nosso Poder Superior. O que quer que isso signifique para nós, temos a
responsabilidade de falar e caminhar. A ideia de que “se você quer o que temos, faça o
que fazemos” não tem data de validade.
A consciência de que podemos sempre melhorar traz como consequência uma liberdade
natural. Podemos ver as mudanças em nossas vidas e em nosso pensamento e sabemos
que a recuperação funciona para nós. Quanto mais sabemos disso, mais podemos ver o
que ainda está por ser feito. Temos ideias de como nossa vida supostamente deveria
estar agora e nos envergonhamos por ainda não haver conseguido isso. Mas não
precisamos nos deixar aprisionar por ideias sobre onde “deveríamos estar”. Esse é um
problema no início da recuperação, mas ele volta depois que temos um pouco de tempo
limpos. Um membro que era “sem teto” teve vergonha de celebrar em seu vigésimo
aniversário. “O que eu tenho a oferecer ao recém-chegado?” ele perguntou. “Que você
pode ficar limpo não importa o que aconteça", alguém respondeu. A aceitação nos
liberta para partilhar honestamente sobre nossas vidas sem o medo de ter que se
adaptar a algum modelo ou ser alguém que não somos. Serenidade não significa que
não passemos por momentos dramáticos, mas sim que temos clareza em nossas mentes
para passar por eles. Não importa o que aconteça, podemos permanecer inteiros,
alegres e ancorados em nosso centro interior.

145
Nosso entendimento dos passos se aprofunda e começamos a ver as possibilidades que
eles oferecem traduzidas em novas maneiras. Quanto mais confiamos, mais nossos
olhos se abrem. Não focamos mais o que está errado conosco; começamos a voltar
nossa atenção para qualidades que temos, assim como para a esperança que agora
sentimos em nossas vidas. Quando conseguimos distinguir esperança de desejo ou
expectativa, cessa esse sentimento que constitui uma armadilha. Mais e mais somos
guiados por esperança em vez de medo. A gratidão que sentimos cresce a partir do alívio
de não mais termos que usar hoje até o apreço genuíno por nossas vidas; enfim pelo
que elas são e pelo que podem vir a ser. Quando colocamos a gratidão em ação, vemos
o mundo de forma diferente. Um membro partilhou: “Meu tato voltou, meu olfato e
meu paladar estão vivos. Meus filhos e netos correm para os meus braços e estão
seguros. As pessoas que entram em minha vida levam consigo algo bom.” A sensação
de graça que vivemos em nossas vidas – como se fosse algo que sentíssemos pela
primeira vez – traz uma série de outros sentimentos bons. Enquanto uma parte de nós
tenta fugir do que causamos, outra se sente preenchida plenamente com alegria e
gratidão pela graça da recuperação.
É um alívio e tanto ser capaz de se sentir bem novamente. Mesmo sentir dor às vezes
não tem problema – ela nos ajuda a sermos humanos. Mas às vezes é como se nossos
dedos não tivessem a sensibilidade para o controle do botão do volume. “Quando
comecei a sentir, eu não tinha controle algum sobre minhas emoções,” um membro
partilhou. “Eu aprendi diversas formas de lidar com elas ao longo do tempo. Meu
padrinho me ensinou a nomear os sentimentos e me ajudou a fazer uma lista de coisas
saudáveis que eu poderia fazer quando estivesse emotivo.” Nossos sentimentos não vão
nos consumir, mesmo que às vezes seja isso que pareça que vai acontecer. Em algum
nível não importa realmente o que nós sentimos. O que importa é o que fazemos. Não
temos mais que agir com base em nossos impulsos e emoções. Podemos fazer escolhas
em nossas vidas hoje sobre o que fazemos e como respondemos ao que nos acontece.
Nós ainda podemos nos sentir deprimidos, assustados ou com raiva, mas nossos
sentimentos não precisam nos dominar mais. Quando percebemos que temos
sobrevivido a cada emoção que já nos tomou, começamos a acreditar que vamos ficar
bem quando não estamos nos sentindo bem. Nossas melhores lições quase sempre nos
chegam ao olharmos atrás para nosso mau comportamento. Nosso arrependimento nos
ajuda a encontrar a compaixão pelos outros e a compreensão de que é possível viver
uma nova vida. Ganhar perspectiva significa que conseguimos nos afastar dos nossos
pensamentos, sentimentos e ações. Nossos sentimentos não vão nos matar, mas negá-
los pode, sim, fazer isso. É geralmente quando estamos tentando afastar um sentimento
que começamos a fingir ou atuar, provocando dano e confusão para desviar a atenção.
Admitir nossos sentimentos, mesmo quando estamos nos julgando por senti-los, é uma
das maneiras de se praticar a honestidade.
Passamos a enxergar nossa adicção em suas várias manifestações e a reconhecê-la em
nossos sentimentos e comportamentos. Às vezes é tão simples como reconhecer uma
compulsão ou obsessão, mas também podemos identificá-la na necessidade de

146
estarmos sempre no controle, no medo de estarmos errados, na autopiedade ou em
nossos julgamentos. Também a vemos nos comportamentos dos outros, incluindo o
conformismo, a desconfiança, a incapacidade de sentir amor ou tristeza e o medo da
mudança. Um membro partilhou: “Tenho trabalhado os passos e também não tenho
trabalhado os passos. E eu tenho vivenciado as consequências de ambos.” Não
queremos mais pagar o preço de atuar ou fingir quando se trata de nossos defeitos.
Aprendemos a reconhecer nossa doença à medida que melhoramos na tomada de
consciência acerca do que se passa dentro de nós. Quando nos tornamos mais aptos a
olhar para dentro com honestidade e entender como funcionamos, aceitar-nos torna-
se imensamente mais fácil. A auto avaliação honesta requer um distanciamento,
necessário à perspectiva, para se observar com honestidade e sem julgamentos. Então
podemos mudar o que percebemos que é preciso. Ter compaixão pelos outros nos
ensina a ter por nós mesmos. Alguns de nós se questionam como responderiam ao seu
padrinho se acaso este estivesse passando pelas mesmas coisas contra as quais lutam.
Confiamos no alicerce sólido que estamos construindo e nunca paramos de trabalhar
nessa construção. Sabemos o que podemos esperar quando entramos em uma reunião
de NA e isso nos faz sentir seguros e a salvo. Podemos resistir a mudanças no formato
ou estilo de nossas reuniões mesmo quando isso é uma boa ideia somente porque nos
apegamos tão firmemente àquela velha mesmice. Realizar mudanças pode ser um
grande desafio em outras áreas de nossas vidas também. Quando começamos a
experimentar os efeitos da mudança que estamos empreendendo, às vezes, nos
apressamos em voltar para um velho lugar somente pelo medo do novo e pelo conforto
que aquele lugar poderia enganosamente ainda nos trazer, mesmo isso não significando
nada de bom. Permitirmo-nos ter uma vida emocional sem sermos controlados pelos
nossos sentimentos é uma nova liberdade que conquistamos.
Saber que a espiritualidade que construímos não nos pode ser roubada nos dá
permissão para termos esperança de uma maneira nova. Muitos de nós se sentem
desconfortáveis com esse sentimento. Vivemos tantas e tão profundas decepções em
nossas vidas que sentir esperança parece uma má ideia. Alguns de nós não sabem a
diferença entre esperança e desejo. Mas a esperança que conquistamos em
recuperação não é aquela do tipo em que se acredita que vai ganhar na loteria ou que
o verdadeiro amor vai chegar, como em um passe de mágico, enviado diretamente do
céu. Na verdade, a esperança começa quando descobrimos nossa força para ficarmos
limpos, superando nossa vontade doentia de usar drogas. Encontramos essa esperança
vezes e mais vezes à medida que nossa jornada de recuperação transcorre; nos
momentos nebulosos em que percebemos que podemos seguir não importa o que
aconteça, bem como em nossos triunfos. É possível romper os ciclos viciosos, ir além do
que sonhamos, sermos muito mais do que algum dia imaginamos. Cada vez que
percebemos que é possível, nossa fé se fortalece. A esperança não termina. Não importa
quão boas ou ruins as coisas se tornem, sabemos que sempre há uma razão para se olhar
para frente com otimismo. Começamos a vivenciar uma esperança incondicional.

147
A rendição é para a vida toda

Nosso entendimento da rendição pode variar com o tempo, mas nossa necessidade não.
No começo, render-se pode significar apenas não usar drogas. Mas à medida que o
tempo passa, começamos a ver as outras formas de manifestação da adicção em nossas
vidas. Passamos a nos render a nossos outros comportamentos tóxicos e destrutivos,
um por um. Entendemos que usar – o que quer que seja – é somente um sintoma do
nosso problema; que é essencialmente espiritual. Gradualmente começamos a
abandonar, a nos desapegar das coisas que nos conduziam a uma vida de encenação e
fingimento: negação, raiva, ressentimento, a necessidade de estar certo, os sentimentos
de superioridade e inferioridade, vergonha, remorso e medo.
À medida que a nossa compreensão do primeiro passo se aprofunda, nossa rendição se
aprofunda. Nossa confiança aumenta e nos tornamos mais fortes para soltar as rédeas
da vida. Passamos a identificar mais áreas de nossas vidas em que ainda estamos presos
à ilusão do controle. A rendição dificilmente nos seduz no início, mas ela nos custa
menos quando percebemos progressivamente o custo de não trabalharmos o programa.
No princípio podemos nos render somente quando somos abatidos por algo, mas nossa
tolerância à dor diminui à medida que nos recuperamos. Ficamos menos propensos a
conviver, como se fosse algo normal, com as coisas que machucam nosso espírito. À
medida que adquirimos mais experiência com a esperança e a cura que se seguem,
reconhecemos a rendição como a maneira pela qual colocamos de volta nossos pés no
chão. A mudança, a partir da qual deixamos de nos render à nossa doença e percebemos
que podemos nos render à nossa recuperação, é um despertar espiritual em si mesma.
Mudar nossa percepção é como ver o mundo através de um par de lentes diferentes. A
rendição é uma mudança de percepção: não estamos mais vendo a vida sob um ângulo
em que a fantasia do controle predomina. A honestidade muda nossa percepção: ela
nos abre os portais da verdade. Nos preocupamos menos com o que os outros pensam
acerca de nós e descobrimos que devemos nos guiar por nossos valores e princípios de
recuperação. Começamos a perceber o que é viver de acordo com a vontade de um
Poder Superior. Cada vez que nos rendemos, nosso mundo se abre um pouco mais.
Podemos ver nossa obsessão pelo retrovisor, ficando para trás, enquanto aceitamos a
rica possibilidade da mudança de percepção. Tomamos fôlego - uma respiração
profunda - e nos perguntamos sobre o que aconteceria se simplesmente deixássemos
as coisas seguirem seu fluxo; o que aconteceria se não tentássemos controlar as coisas.
Nossa fé cresce com nossa experiência e nos dá a oportunidade de enxergar nossas vidas
de um ponto de vista diferente. À medida que ganhamos experiência, não sentimos mais
tanto como se tivéssemos que estar no limbo para colocar em prática nossas crenças.
Começamos a acreditar que o resultado de soltar as rédeas do controle não será uma
calamidade. Mil despertares acompanham uma fé constante.

148
O medo é um sentimento natural. A questão é o que fazemos com isso. O terceiro e o
décimo primeiro passos nos possibilitam convidar um Poder Superior amantíssimo a
orientar nossas decisões, e o décimo a nos observar à medida que seguimos na
caminhada. Quando testemunhamos nossos companheiros se recuperando e suas vidas
melhorando, nos lembramos de que o mesmo está acontecendo conosco. À medida que
nossa consciência se aprofunda, seguimos encontrando áreas em nossas vidas que
precisam ser trabalhadas. Enquanto mudamos, procuramos nosso novo espaço e nos
adaptamos. À medida que nos ajustamos, nosso equilíbrio muda e mudamos ainda mais.
Sentir que sabemos tudo significa também que sentimos que nada sabemos. É um bom
sentimento enquanto dura; depois buscamos aprender mais sobre rendição.
Aprendemos a não nos levar tão a sério. No fim da estrada, nada mais era divertido, mas
à medida que abrimos mão das preocupações, vergonhas, raivas e confusões,
começamos a relaxar. Uma das graças da recuperação é a reconquista do nosso senso
de humor. É claro que ele vem e vai, mas quando o perdemos sabemos que isso é um
sinal bem claro de que precisamos de uma mudança de perspectiva. Um membro
partilhou sobre uma companheira de grupo cuja gargalhada preenchia a sala por inteiro:
“a risada dela me dava esperança. Havia tanto amor e auto-aceitação naquela
gargalhada. Era possível ouvir sua alegria.” Nós podemos rir porque as coisas têm
significado ou porque sabemos que as coisas vão ficar bem. Podemos ver a magia e a
ironia em nossas vidas e apreciá-las. Acender as luzes constitui um passo importante
para a iluminação. O humor que encontramos nas histórias uns dos outros é uma
maneira de sabermos que estamos no lugar certo. O que é engraçado para nós tende a
mudar à medida que crescemos. Nós aprendemos a não nos sentirmos tão surpresos
com o sofrimento dos outros e mais aptos a enxergar o lado mais leve das situações
drásticas de que tomamos conhecimento.

Complacência

Complacência é um princípio que nos guia, mas que aparece de maneiras diferentes em
momentos diferentes. O que a maioria de nós sabe sobre complacência é que nós
raramente reconhecemos quando estamos imersos nela. De algum modo não faz muito
sentido tentar falar sobre isso antes de qualquer vivência. Nós sempre acreditamos que
nossa experiência será diferente. Mas a verdade é que a maioria de nós não a reconhece
até que sintamos dor.
Nós podemos não saber que temos uma reserva até termos que lidar com isso. Reservas
podem ser surpreendentes e imprevisíveis. Alguns de nós lutam com o orgulho e a
complacência quando terminamos os passos. Outros perdem a esperança quando estão
passando por um momento difícil. Alguns partilham que as coisas ficam mais difíceis
quando a vida melhora. Nossas vidas melhoram e aí a gente pensa: “ok, estou curado”.
A complacência se encontra no limiar entre o desespero e a paixão. Não somente nos
arriscamos perder o que conquistamos; perdemos também a oportunidade de nos

149
tornarmos melhores. Quando não vemos a esperança que nos sustenta, também não
vemos o medo que nos ronda. Em vez de caminharmos do desespero à paixão, nos
movemos do desespero à complacência. Pode ser melhor do que o que tínhamos, mas
ainda estaremos no auto-engano.
Nossas histórias de complacência são as mesmas. Nos perdemos no trabalho, na
adoração a algo ou em alguma outra atividade. Pensamos que NA está nos sufocando
ou limitando nosso crescimento de alguma forma ou que deixamos para trás essa “coisa
de recuperação”. Perdemos o padrinho ou seguimos e simplesmente não nos
reconectamos. Às vezes é um processo gradual: nos afastamos dos amigos, paramos de
ir às reuniões, ficamos ocupados demais no trabalho ou começamos a desenvolver
ressentimentos. Deixamos de trabalhar em nossa recuperação e nossa doença começa
aos poucos a ganhar uma base de apoio para nos atacar. Podemos perder tudo por um
equívoco em nossa imaginação. Podemos pensar que não precisamos mais sermos
vigilantes sobre a frequência às reuniões, o trabalho de passos ou o apadrinhamento de
modo que esse comportamento pode nos conduzir a amargos lugares já conhecidos. “Eu
estava viajando muito a trabalho”, um membro partilhou, “e ir às reuniões deixou de
ser importante.” Não conseguimos ver como a adicção está nos afetando,
especialmente quando a destruição se aproxima com um disfarce diferente. É possível
que estejamos vivendo um momento de calmaria e adormeçamos na programação,
imaginando que ainda estamos despertos. Mesmo as habilidades para uma vida plena
que conseguimos na recuperação podem se tornar parte da nossa capa de negação. Não
é que todos que caiam nesse erro recaiam, mas quase todos que recaem depois de
estarem um tempo limpos compartilham parte dessa história.
O risco da recaída não termina quando conseguimos algum tempo limpos. Um membro
com muitos anos limpo admitiu: “ até hoje, eu ainda tento me convencer a não me
habilitar ao programa. A maioria dos meus problemas estão relacionados ao meu
egocentrismo e imaturidade, e eu quero separar isso da minha adicção. Eu comecei a
pensar, “você está mais velho agora, mais sábio, mais maduro. Adictos de verdade não
ficam tanto tempo limpos. Meu próprio tempo limpo se tornou uma reserva.” Alguns de
nós temem a felicidade ou serenidade porque isso pode conduzir à complacência.
Encontrar um equilíbrio é um desafio. Podemos diminuir a velocidade sem ter que
abandonar o carro. Aprendemos a estar contentes sem sermos complacentes –
podemos ser felizes com nossas vidas como estas se apresentam, e ainda assim não
deixarmos de fazer o básico e essencial para nos mantermos em recuperação.
Assim como uma bateria não se carrega sozinha, a possibilidade é que não consigamos
acender a centelha da recuperação sem a ajuda de um poder maior que nós. A
participação nas atividades da irmandade mantém a chama de NA viva – e isso também
mantém o espírito da recuperação dentro de nós. “Eu não sabia quanta fé eu tinha até
perdê-la,” um membro partilhou. “A recuperação começou a parecer algo sem sentido
para mim, seca e cínica; eu não conseguia perceber sozinho a negatividade. Eu precisei
procurar novas oportunidades para testemunhar novamente o milagre.” Conectar-se
com aqueles que têm entusiasmo e esperança pode ser um começo. Mas somente

150
pensar em recuperação nunca ajuda tanto quanto agir, especialmente quando não
queremos. Quando o que estamos fazendo não está funcionando, paramos. Mas
quando o que estamos fazendo é um trabalho pela metade, tendemos a seguir mesmo
com o desconforto, porque nos acostumamos a isso. Às vezes parece que quanto mais
tempo limpos temos, menos queremos permanecer limpos. Assim como quando
começamos nossa caminhada, talvez tenhamos que combater nossos impulsos e fazer
o que sabemos que é certo.
Comemorações podem nos tirar da complacência e muitos membros consideram que
uma convenção ou retiro podem desobstruir o fluxo da gratidão. Celebrar o aniversário
de um adicto importante para nós nos lembra o milagre que é ainda estarmos aqui. O
compromisso com o serviço nos mantém na reunião quando nosso desejo não quer.
Receber o recém-chegado pode nos tirar de nosso medo; levar a mensagem nos lembra
que temos uma mensagem. Às vezes, precisamos apenas ser honestos sobre nós
mesmos e nos desapegarmos da crença de que não deveríamos partilhar sobre, por
exemplo, estarmos nos sentindo mal ou sobre o nosso desejo de usar, ainda que
sejamos aquele que tem mais tempo limpo na sala. Mesmo quando não queremos,
sabemos o que fazer: se estivermos nos sentindo complacentes, o melhor é nos
sentarmos e ouvir; haverá sempre uma mensagem nos esperando.

Nos separando

Quer tenhamos três ou trinta anos em recuperação, lembramo-nos dos membros com
mais tempo quando ficamos limpos. Podemos ou não ter gostado deles, mas eles ainda
são importantes para nós. Dependemos dos que têm mais tempo limpos para nos
ensinar e energizar em nossa recuperação, mas ao fim nos percebemos vivendo as
mesmas coisas que eles viveram. Procuramos à nossa volta os veteranos e nos damos
conta de que somos como eles. Somos gratos por aqueles que ainda estão conosco, mas
devemos estar abertos a aprender com aqueles que chegaram depois ou ficaremos bem
sozinhos. Anonimato significa que somos todos iguais em NA não importa nosso tempo
limpos. Lembramo-nos de que pode haver tempos difíceis e de que precisaremos ser
lembrados disso. Podemos nos ver presos a expectativas sobre onde deveríamos estar
ou o que deveríamos saber considerando nosso tempo limpos.
Honestidade, humildade e um senso de humor saudável podem nos ajudar a navegar
por esses desafios. Ajudamos os demais companheiros a responderem suas questões,
além de não alimentar uma imagem de autoridade. O fato de os companheiros pedirem
nossa opinião não significa que estejamos qualificados a dá-la. Compartilhamos nossa
experiência, força e esperança, mas somos cuidadosos com nossas opiniões –
especialmente quando sabemos que elas são consideradas seriamente. É bacana se
sentir importante e respeitado, mas a indulgência com isso será por nossa própria conta
e risco. Quando deixamos nossos companheiros acreditarem que não temos mais

151
necessidades, o resultado é que não teremos a quem recorrer quando estivermos
sofrendo com nossa dor.
Nenhuma quantidade de tempo pode nos tornar imunes à nossa doença ou nos eximir
dos desafios que a vida nos apresenta. A recuperação é um processo para todos os dias
“só por hoje”. Uma relação com nosso Poder Superior requer um contato consciente
permanente e o processo de crescimento contínuo requer que permaneçamos abertos
a novos ensinamentos. “Mantermo-nos jovens” significa que ainda estamos vivenciando
o processo de recuperação, que ainda estamos dispostos a crescer e a trabalhar em
nosso processo de autoconhecimento. Mantemos nossa recuperação ao alimentá-la. Se
não estamos conseguindo apoio e o adubo necessário à continuidade do nosso
processo, ficamos exauridos. É nossa responsabilidade encontrar esse apoio, mesmo
que isso signifique que precisaremos atravessar grandes distâncias.
O simples fato é que, se ficarmos limpos, chegará o dia em que seremos aquele que tem
mais tempo limpo em sala. É uma dádiva, uma responsabilidade e uma armadilha, tudo
de uma vez só. Muitos membros partilham que é fácil se sentir separado quando há uma
interrupção no tempo limpo. Às vezes ser o membro na sala com o maior tempo limpo
é tão assustador quanto começar nossas primeiras noventa reuniões. Podemos nos
sentir como se os recém-chegados não fossem capazes de nos entender ou ainda que
não há ninguém a quem possamos recorrer. Quando nos tornamos mais conscientes da
nossa responsabilidade do que da nossa habilidade em conseguirmos aquilo de que
precisamos, nos sentimos isolados. Um membro partilhou que ser visto como um
“antigão” era desconfortável: “eu sou aquele a quem as pessoas recorrem com suas
questões e não me sinto igual. Não é que eu me sinta “melhor”, eu só me sinto
“separado”. Nós nem sempre sabemos quando ou como nos veremos com problemas e
certamente não saberemos quem nos ajudará a sair de uma situação difícil.
Encontramos pessoas que têm o que queremos independente do tempo limpo.
Frequentemente não é quem esperamos. Não podemos nos dar o luxo de escolher
quem irá salvar nossas vidas.
Costuma-se dizer que nosso desenvolvimento emocional cessa quando começamos a
usar e que, quando ficamos limpos, o retomamos a partir de onde havíamos parado.
Pode ou não ser tão simples assim, mas o fato é que alguns têm muito o que amadurecer
e passamos muitos anos nesse processo. A maioria de nós passa algum tempo em sua
recuperação por uma fase em que estão desesperados por reconhecimento e
aprovação. Questões básicas se tornam importantes. Sou visto? Sou ouvido? Sou
importante? Esse comportamento não é nem sem importância, nem anônimo, mas
pode ser destrutivo, porque frequentemente é parte de nosso processo.
Pode ser sedutor se levantar no palco em um pedestal. Na verdade, muitas pessoas que
estão em pedestais não se voluntariaram para isso – mas uma vez lá talvez não saibamos
como descer. Quando as pessoas nos tratam de modo diferente pelo nosso tempo
limpos ou serviço prestado à irmandade, podemos nos sentir bem sozinhos e estranhos.
Quanto menos pensarmos que merecemos essa atenção, mais inseguros ficamos e mais
aprovação buscamos. Quando deixamos esse ponto para trás em nossas vidas, podemos

152
olhar pelo retrovisor e ver a piada que é desejarmos ser uma celebridade em uma
irmandade anônima. Mas quando estamos nesse estágio de maturidade, pode parecer
a coisa mais importante no mundo. Um membro com muito tempo limpo disse: “quando
eu era novo, vocês me amaram, mas não me paparicaram. Não façam isso agora. É
condescendente, mas isso me separa de qualquer outro adicto em recuperação.” É a
possibilidade da separação que torna galgar posições na irmandade algo tão perigoso.
Tão propensos como alguns de nós podem ser para colocar pessoas em pedestais,
outros de nós podem sê-lo para nocauteá-los. Podemos ser mesquinhos, rancorosos,
vingativos, julgadores e cruéis. Por outro lado, chutar o pedestal para longe não vai
ajudar ninguém a mudar. Um membro partilhou, “toda vez que surtei, quando tudo
parecia desabar, as pessoas que procurei, não foram as mesquinhas ou julgadoras, mas
as que tinham sido amáveis e honestas.” Se queremos ajudar alguém a descer, talvez
esperar seja a melhor coisa a se fazer. O tempo é mais poderoso do que nós. Podemos
ou não ser as pessoas a levar a mensagem a um amigo que se esqueceu de que somos
todos iguais. Pode ser que nosso trabalho seja ou não ter que confrontar alguém. Retirar
as máscaras de alguém pode ser uma experiência inacreditavelmente íntima. Se não
prestarmos atenção às circunstâncias, podemos ser apenas violentos. Sermos humildes
e honestos é uma abordagem mais eficaz do que tentar fazer o papel da consciência do
outro.
O fato é que não precisamos viver de modo perfeito para levar a mensagem. Mais
importante, não precisamos deixar de escolher alguém que mereça para ser um veículo
de algo maior. Podemos levar a mensagem mesmo se não a estivermos vivenciando,
pois, algumas pessoas podem ser ajudadas pelo que partilhamos. Mas por dentro,
podemos estar vivenciando uma lenta destruição. Quando nossas expectativas
começam a fazer nossas escolhas por nós, nos tornamos iludidos, desconectados e
temerosos daquilo que verdadeiramente salva nossas vidas; auto-honestidade sempre.
Os recém-chegados esperam que os veteranos sejam estáveis, sólidos e orientados por
princípios – e frequentemente nós somos. Mas sempre há momentos em que ficamos
em falta com eles. Uma vez perdido o sentimento de que somos adictos comuns como
qualquer um, reconquistar nossa estabilidade e todo o resto pode ser bastante difícil.
Buscamos os outros que já passaram por isso e lhes perguntamos como lidaram com
essa dificuldade. Somos adictos em recuperação, dando nosso melhor para aprender a
viver. Quando nos lembramos disso, tudo volta ao seu devido lugar.
A consciência pode mudar pelo que está ao redor, sem a necessidade de ação. “Em
algum ponto,” partilhou um membro, “eu tinha toda atenção que podia querer e
comecei a incentivar meus companheiros a melhorarem”. Esta é a nossa base de
aprendizado e às vezes fazemos disso uma bagunça. Pode ser de grande ajuda para nós
livrar-nos da necessidade de aprovação dos outros. “Eu, finalmente, não me importo
com o que as pessoas dizem a meu respeito” disse um veterano. Ao fim, percebemos
que quando estamos seguros em nós mesmos levamos a mensagem sem precisar de
palavras.

153
Tempo é apenas tempo e ao final o que ele nos concede é uma cadeira em uma reunião
como a qualquer outro adicto que queira se recuperar. Passamos a apreciar nosso
anonimato, mesmo quando as pessoas dizem que somos especiais ou algo do tipo.
Quando partilhamos com o coração, em geral não nos lembramos muito sobre o
conteúdo. Desconectamo-nos do ego e algo mais acontece: a verdade se revela por nós
e isso preenche com vida o ambiente que nos rodeia. Ouvimos a gratidão após falarmos
e sabermos que não se trata de nós. É o amor que fala por meio de nós e nos ensina a
todos algo naquele momento mágico. O amor que sentimos na sala é mais poderoso
que quaisquer palavras que partilhamos. Quando temos um vislumbre disso podemos
nos tornar um canal para essa manifestação e então sermos verdadeiramente humildes.
A melhor maneira de ser uma referência de recuperação é simplesmente seguir
caminhando e se mostrar honestamente com verdade. Quando começamos a “tipo
aparecer, tipo ser honesto”, estaremos “tipo” em perigo. Precisamos nos lembrar de
que nosso primeiro objetivo será sempre nos cuidarmos para que estejamos bem e a
salvo. Partilhar sobre o que é real para nós é de grande ajuda em nossa recuperação,
além de uma responsabilidade para com os outros, mesmo quando isso não nos faz
parecer bem. Um membro partilhou: “me lembro das pessoas que estavam aqui quando
cheguei e de como eles se expunham sem medos e rodeios nas reuniões e eu os segui.
É ótimo para minha recuperação e uma responsabilidade para aqueles que seguem esse
caminho.” Aprendemos com as experiências uns dos outros. Compartilhar nossa jornada
com os outros é como nós podemos ensinar e aprender ao mesmo tempo. A partilha
honesta sempre atrai, mesmo quando o tema não é tão atraente. Quando somos
honestos e abertos, isso ressoa nas pessoas. Quando somos honestos, elas sentem isso
e nós também.

Andando com a verdade

Todos precisamos nos reenergizar às vezes – fisicamente, emocionalmente e


espiritualmente. Separamos esses aspectos do nosso eu para que possamos abordá-los
melhor, mas na realidade eles estão completamente conectados. Assim como podemos
nos sentir emocionalmente mais sensíveis quando estamos fisicamente cansados,
descobrimos que quando estamos exaustos emocionalmente tendemos a nos tornar
doentes fisicamente. Quando estamos espiritualmente exaustos podemos nos sentir
profundamente inseguros. Alguns de nós estão no seu melhor ao caminharem e quando
estão ocupados; outros se recarregam quando estão sozinhos e quietos. Pode ser tão
simples quanto se sentar para uma breve meditação ou aparecer em uma reunião.
Ajudar pode ser a melhor coisa que podemos fazer por nós mesmos – e por aqueles que
nos cercam. Ver que o programa funciona na vida de outra pessoa confirma nosso
compromisso e nos dá esperança. “Com 10 anos eu deparei um muro”, disse um
membro. “Para mim a virada foi um grupo de recém-chegados cuja paixão e intensidade

154
me despertaram. Foi a mesma paixão que me manteve limpo no início.” Podemos
reconhecer a mudança nos outros antes de a vermos em nós.
Alguns de nós adoram trabalhar com os recém-chegados. Só mantemos o que temos ao
presentear os que chegam à nossa casa. No entanto, é bem verdade que não sabemos
o que temos até começarmos a doar. Nesse momento, ao lidar com alguém em sua luta
em meio a dor, encontramos recursos dentro de nós que nunca pensávamos possuir.
Quando vemos alguém passar por isso e superar, sentimos uma gratidão sem medida.
Não escolhemos quem quer se recuperar. Não depende de nós escolher a quem ajudar.
É difícil vislumbrar, às vezes, o lampejo desse milagre e logo vê-lo ir-se vezes e mais
vezes. Quando estamos presentes na irmandade e fazemos nossa parte, a mensagem é
passada adiante. “Quando estou ajudando alguém com os passos, me sinto como um
instrumento da vontade do meu Poder Superior”, disse um membro. “Não estou no
comando. Minha responsabilidade é apenas estar perto e presente.”
O trabalho que fizemos para construir nossa irmandade significa que muito mais força,
fé e esperança estão disponíveis para os recém-chegados do que o que tivemos no
passado. No entanto, as habilidades de que precisamos para ajudar no início da
construção de uma comunidade de NA podem ser bem diferentes daquelas de que
necessitamos para manter a unidade e a estabilidade após o seu estabelecimento.
Somos passíveis de sermos deixados de fora ou para trás. O problema em ser chamado
de “dinossauro” é que sabemos que eles estão extintos. Permanecermos envolvidos nos
ajuda a crescer e nos exige que mudemos.
Pode parecer estranho, mas também somos responsáveis por permitir que outros nos
superem no processo de crescimento. Pode ser desafiador, após apadrinharmos alguém
por algum tempo, aceitarmos sua partida. Nos confortamos com o pensamento segundo
o qual se o ex-afilhado assume a responsabilidade por sua recuperação, então
cumprimos bem com nossa responsabilidade. Podemos ver nosso crescimento também
como irmandade quando isso acontece. Aqueles de nós que estiveram na irmandade
desde os primeiros dias podem ver isso de um modo bem particular, às vezes doce, às
vezes amargo. O fato de NA mudar e de padrões e hábitos em reuniões serem diferentes
pode se tornar uma desculpa para deixar a irmandade. É outro tipo de reserva que não
se pode prever. Quando estamos envolvidos com uma irmandade viva, que cresce e
muda, é possível que não percebamos as mudanças. Mas se seguimos e paramos em
algum ponto, as mudanças podem se tornar demasiado surpreendentes.
NA muda. As pessoas vêm e vão. Mas nós mudamos também. O tempo que temos ao
nosso dispor, nossas relações com os outros, o modo confortável como nos sentimos ao
servir ou participar – tudo muda naturalmente no decurso de nossas vidas. Quando os
passos se tornam um processo permanente de nossas vidas, somos chamados
regularmente a examiná-las e a ver o que está funcionando e o que pode ser melhorado.
É natural também que sejamos duros ao olharmos para a irmandade, às vezes.
Consideramos e analisamos a irmandade, como nos inserimos, como nos vemos e quais
nossas crenças sobre ela e isso pode ser bem desconfortável e assustador. Quando nos

155
damos espaço para examinar nosso nível de compromisso, podemos ser honestos sobre
esse processo – assim como com qualquer relação.
Quando nossas crenças e percepções estão mudando, podemos vivenciar dor e
confusão, o que pode nos deixar nos sentindo isolados. Podemos nos afastar dos outros,
mas também de nós mesmos e do nosso Poder Superior. Partilhar com os outros nesses
momentos é crucial. Pode nos surpreender o tanto que podemos ser acolhidos nesses
momentos. Quando somos honestos e verdadeiros, nos conectamos com as pessoas.
Quando temos muito tempo limpos, podemos nos ver presos na armadilha do que
“supostamente deveríamos partilhar” nas reuniões. Quando a mensagem que levamos
é um reflexo honesto de nossa experiência e não o que imaginamos que as outras
pessoas gostariam de ouvir, a verdade nos liberta a todos.
Há muitas maneiras de pensar sobre a nossa doença. Alguns dizem que a adicção é um
caso grave da nossa condição humana. Lutamos contra os mesmos medos e
inseguranças que todos, mas os vivenciamos com tal intensidade que isso nos faz
propensos a preferir morrer a escapar. Outros dizem que a adicção é uma doença de
vergonha. No centro do nosso pensamento doente está a crença de que há algo de
errado conosco. Quando olhamos para o mundo, ou para nós mesmos, através dos olhos
da vergonha, tudo que vemos é uma evidência a mais de que estamos errados ou somos
maus ou ainda que não podemos restabelecer nossa sanidade. Mas passamos a
descrever nossa luta de modo diferente à medida que nossa relação com a doença se
altera.
Algumas pessoas dizem que a adicção é uma doença de nostalgia: glamorizamos o
passado e nos aterrorizamos com o presente. Podemos não reconhecer isso em nós,
mas quando ouvimos aqueles que consideramos ainda recém-chegados reclamarem
que “não é mais como costumava ser” ao se referirem a algo que, para nós, nos lembra
um passado recente, começamos a ver o lado humorístico disso.
Algo especial acontece quando ficamos limpos pela primeira vez. Nosso desespero e o
compromisso total que assumimos no início se combinam para criar um momento muito
importante e precioso em nossas vidas. Nada é igual ao nosso grupo de escolha, nossa
primeira conexão com um padrinho ou aquele grupo inicial de amigos com o qual
saíamos no início de nossa recuperação. Mas o fato de não ser igual não quer dizer que
não seja tão bom quanto já tenha sido. Um membro partilhou: “Quando me permito
abordar minha recuperação como um recém-chegado, não vivencio muito as diferenças
entre como as coisas estão e como costumavam ser. Posso estar presente hoje sem me
perder na nostalgia ou na comparação.” Permitir que nossa recuperação mude à medida
que mudamos pode ser difícil, mas é o que torna possível que permaneçamos na
irmandade – e de modo produtivo.
As coisas que fazemos quando a nossa comunidade de NA é pequena são somente o
básico. Assim como em nossa recuperação pessoal, se nos afastarmos do básico,
poderemos sofrer as dificuldades de retornarmos à programação. As reuniões também
podem se tornar complacentes. Quando ficamos preguiçosos, a mensagem se afoga.

156
Quando vemos isso acontecendo em nossos grupos, temos a responsabilidade – não de
reclamar ou punir, mas de nos ocupar com a irmandade. Às vezes começar um estudo
dos passos ou discussões de literatura pode ajudar a trazer o foco de volta nas reuniões
para a recuperação. Alguns dos trabalhos mais importantes, nós fazemos no nosso
grupo de escolha. A participação em nosso grupo de escolha torna isso nossa casa
verdadeira. “Eu gostaria que minhas ações fossem altruístas,” um membro confessou,
“mas no fundo sei que meu objetivo é manter vivo meu grupo de escolha para que eu
possa continuar voltando.” Nos sentimos bem nas reuniões em que somos amados e
aceitos e nas quais podemos ser úteis. Pequenas coisas como ligar para os membros
quando estes deixam de aparecer podem realmente revigorar nosso grupo de escolha.
Não desistir de acompanhar os problemas dos companheiros – quer estejamos ou não
limpos, é algo que ensinamos pelo exemplo. Quando partilhamos honestamente e
francamente sobre recuperação, levamos uma mensagem ainda mais poderosa do que
quando estamos rezando ou tentando ensinar algo.
NA varia de lugar para lugar e também nos vários níveis de crescimento. Não há modelo
de recuperação na irmandade. Em alguns lugares, famílias são envolvidas. Em outros
lugares, levamos membros às nossas casas para se desintoxicarem. Em outros lugares,
um tipo de amor mais rude é a regra e dizemos às pessoas para se sentarem e calarem
a boca; em outros lugares, encorajamos uns aos outros a colocar as coisas para fora. Os
princípios são consistentes, mas como os praticamos varia amplamente. O ponto chave
é que os praticamos, que nossa unidade vem em primeiro lugar e que nós mantemos
nosso foco no propósito primordial: levar a mensagem ao adicto que ainda sofre. Política
e popularidade podem nos distrair do nosso propósito. Quando os membros de NA
esquecem que nossa recuperação individual depende da unidade de NA, ambos estão
em perigo. Os grupos de NA às vezes murcham e morrem, mas é uma tragédia com a
qual podemos aprender. Temos a tendência de acreditar que as coisas de graça não têm
valor, quando o fato é que elas podem ser preciosas para além de qualquer medida.
Quando reconhecemos que a irmandade pode estar em perigo, é hora de colocar nosso
amor em ação. Nossas vidas dependem disso.

No serviço

O desejo de se estar a serviço muda nossa relação com o mundo. Não é só em NA que
estamos amando e nos doando. Nos conectamos com o amor que nos rodeia ao praticar
ações amorosas e nos abrirmos para recebermos o mesmo. Aceitarmos ajuda é uma
forma de doação. Pode ser desconfortável admitir uma necessidade ou pedir ajuda.
Quando permitimos que uma pessoa nos ajude, damos a ela a oportunidade de
expressar seu amor e generosidade. Quando nos disponibilizamos a ajudar, terminamos
por receber muito mais do que damos. Em alguns lugares, após a prece de encerramento
nas reuniões, os membros de NA costumam dizer “continua voltando, funciona!” Em
outros lugares se diz “ajude alguém, companheiro!” Ambas as maneiras derivam do

157
entendimento de que quando damos, e quando permitimos que os outros nos deem,
encontramos uma conexão com um poder maior do que nós.
O serviço não é uma posição em um comitê; é uma postura do coração. É um modo de
vida que podemos praticar em todos os âmbitos de nossas existências. É tão simples
como manter uma porta aberta ou tão complicado quando ajudar um ente querido em
seus últimos estágios de vida. Nossa relação com o serviço e a maneira como
expressamos isso muda à medida que nossa humildade se aprofunda. O desejo de servir
é uma manifestação de liberdade do eu. O anonimato é um princípio vital para o serviço
desinteressado. Quando aprendemos a dar desinteressadamente, tanto àqueles que
sofrem quanto a um poder maior que nós mesmos, encontramos felicidade, propósito
e dignidade.
Quer retornemos o nosso melhor dentro de um serviço estruturado, quer seja caso a
caso ou algo intermediário, servir é uma questão de princípio para nós. Praticar e ensinar
o princípio do serviço é tanto uma maneira de levar a mensagem quanto de receber as
dádivas que a recuperação tem a nos oferecer. O serviço nos conecta com a irmandade
e nos ajuda a mantermo-nos conectados e envolvidos quando não estamos no nosso
ápice. Estar comprometido com abrir a sala para a realização de uma reunião uma vez
por semana pode ser a diferença entre estar envolvido ou escorregar. Primeiramente, o
serviço é uma maneira de começarmos a nos sentir úteis e queridos. Depois, servir nos
dá uma razão para continuar voltando mesmo quando não queremos.
O valor terapêutico de um adicto ajudando outro é uma via de mão dupla; não tem
preço. Não importa quem está dando ou quem está recebendo. Somos todos aptos a
pedir ou a dar e, sempre que estamos vivenciando essa troca, nos beneficiamos e saímos
ganhando. Não precisamos mais pesar quem está dando mais ou menos, se estamos
dando o suficiente ou se estamos sendo presenteados com uma carona. A verdade é
que todos estamos buscando motivação, inspiração, enfim uma centelha que possa nos
incendiar. Uma boa reunião, uma chamada poderosa do décimo segundo passo, uma
convenção ou um acampamento podem nos preencher, sabendo sempre que só por
aquele momento estamos exatamente onde deveríamos estar. Esse sentimento é
mágico. Uma vez que saibamos que podemos sentir esse bem-estar, passamos a querer
mais. Estamos dispostos a atravessar os momentos difíceis porque sabemos que, se
continuarmos fazendo o que precisa ser feito, nos sentiremos completos novamente.
Não se trata mais de uma ilusão como quando nós estávamos usando; alcançamos o
verdadeiro entendimento segundo o qual, só por hoje, o que fazemos importa na vida
de alguém.
O serviço muda a relação com nossa própria vida. Aprendemos a colocar amor e gratidão
em ação e quando mobilizamos nossos melhores sentimentos estes têm o poder de
influenciar positivamente todas as áreas de nossas vidas. Deparamo-nos com nossos
defeitos e com os dos outros e encontramos uma maneira de trabalhá-los. “A primeira
vez que presidi um comitê, descobri o verdadeiro significado do bordão “princípios
acima de personalidades. Rapaz, eu tive que crescer!” um membro partilhou. No serviço,
encontramos outros companheiros apaixonados por sua recuperação e esse entusiasmo

158
nos mantém energizados. Para aqueles de nós que sempre tiveram problemas de
adequação, o serviço nos concede algo para fazermos – e uma razão para ficarmos até
o fim da reunião, da conferência ou de uma dança. Nesse ínterim, fazemos as conexões
que mudam nossas vidas. Aprendemos sobre recuperação no processo do serviço, mas
também à sua margem: seja nas conversas enquanto arrumamos ou limpamos o espaço
para um evento ou em uma caminhada mais longa rumo a um compromisso de serviço,
fazemos as conexões com outros companheiros que levam a sério a recuperação. Um
membro partilhou: “Tive que fechar minha boca quando queria abri-la e abrir minha
boca quando queria fechá-la. Tive que tentar fazer coisas novas e parar de fazer coisas
antigas que já não mais funcionavam. Tive que aprender a pedir ajuda, a delegar
responsabilidades, a assumir riscos e a compartilhar as coisas. Tive que limpar algumas
sujeiras nojentas que eu tinha - literal e figurativamente. Por que eu sirvo? Porque isso
reforça todo o trabalho que eu faço no trabalho de passos.”
Alguns de nós saltam com os dois pés no serviço. Nos envolvemos com cada faceta do
que está acontecendo apenas para sermos rejeitados por outros membros cujas ideias
são diferentes das nossas acerca de como as coisas precisam ser feitas. Ou assumimos
tantos compromissos que não é possível sua manutenção e então gradualmente nos
sobrecarregamos e nos tornamos ressentidos. Nos desencorajamos então e nos
retiramos. Oscilamos entre nos preocuparmos demais e não nos preocuparmos nada e
vice-versa. Descobrimo-nos fora da irmandade que tanto amamos, apenas observando.
Nos perdemos em autopiedade – afinal, não demos o nosso melhor? Esses são tempos
em que mesmo os espíritos mais maduros são testados. Talvez precisemos dar um passo
atrás com a questão do serviço por um momento e focar no nosso propósito primordial.
Quando deixamos essa distração passar, nossa recuperação pode começar um outro
capítulo. Nesse ínterim, ficamos limpos, e muita coisa boa pode ser feita. A solução
começa no décimo passo. Refletimos sobre os nossos motivos no serviço. Queremos
impor nossa visão aos outros de como as coisas funcionam em NA, ou queremos
verdadeiramente nos colocar à disposição para servir aos outros? Podemos nos
distanciar de nós mesmos para que alguém tenha a chance de se aproximar? Nossa
experiência nos avisa sobre o que funciona e o que não funciona. Podemos partilhar isso
sem tentar controlar o resultado. Quando começamos a encarar as coisas de modo
pessoal, talvez seja hora de dar um passo atrás. Saber o momento de abrir mão de um
ponto de vista, de uma decisão, de um posicionamento – exige oração e prática. A
rotatividade é um princípio importante no serviço para o nosso próprio bem-estar e para
o da irmandade da mesma forma.
O serviço pode ser uma fuga ou pode nos dar acesso a novas partes de nós mesmos que
descortinarão novas habilidades e interesses. Quando pensamos em avançar na vida,
usando nossa posição no serviço como prova de algum sucesso, trata-se apenas do
nosso ego em ação. Mas quando estamos dando de volta por gratidão,
desinteressadamente e com o melhor dos interesses do fundo do coração, descobrimos
que essa experiência pode ser tão recompensadora quanto produtiva. Quando estamos

159
despertos espiritualmente, precisamos servir, assim como fazer o trabalho de passos
para lidar com isso.
Encontramos um equilíbrio entre o serviço dentro e fora de NA. Cuidamo-nos por meio
de gestos singelos como levar alguém a uma reunião ou uma refeição a um amigo que
está doente. O programa nos permite a todos encontrar a maneira mais confortável de
servir e as maneiras mais confortáveis de pedirmos ajuda. Enfrentamos nossas
limitações, incluindo os limites de nossa compaixão e aprendemos a sermos realistas
sobre o que podemos e o que não podemos fazer.
Quando temos experiência no serviço, podemos ser um recurso e um mentor valiosos
para os outros. Fazemos isso com espírito de humildade quando estamos
comprometidos com o processo de atrair mais membros, sem mantermos o controle.
Paciência, gentileza e confiança são pontos cruciais nesse processo. Se tratamos outros
com confiança e respeito, é muito provável que recebamos o mesmo. Podemos liderar
pelo exemplo, ajudando a guiar as discussões e focar a energia sem tentar influenciar o
resultado. Participar sem a ilusão do controle estabelece um modelo para as nossas
vidas. Qualquer que seja a capacidade que encontramos em nós, servimos a NA com
dedicação e amor quando a humildade nos guia. Embora, às vezes, associemos liderança
com falta de humildade, nos recusamos a servir a qualquer coisa que estimule nosso
egocentrismo e impaciência. O serviço é sempre humilde. Aprendemos a realiza-lo, ao
dissolvermos e atravessarmos nossos egos e todos os seus penduricalhos. Quando
esquecemos que somos apenas uma pequena peça em uma engrenagem, podemos vir
a ter problemas.
A responsabilidade é um dos princípios mais importantes que praticamos em NA e o
serviço é uma das melhores maneiras de se aprender isso. O serviço nos mantém
envolvidos e rodeados pela recuperação e isso também nos dá a oportunidade de
praticar a aceitação. Ao partilharmos nossa experiência com outros adictos, ganhamos
um entendimento mais profundo de nós mesmos. Raramente adictos ficam limpos por
um longo período sem praticar o serviço abnegado e altruísta de uma forma ou de outra.
NA nos dá abundantemente, mas há sempre mais que podemos absorver do programa.
Depois de um tempo, as recompensas já não são mais resultado do que recebemos, mas
do que damos. O trabalho verdadeiro começa aqui e nem todos estão prontos para isso.
Colher as recompensas significa que devemos plantar as sementes da ação. A
recuperação exige responsabilidade e isso começa ao assumirmos a responsabilidade
por nossa recuperação.
Às vezes apenas ser responsável por cuidar de algo já é recompensador. Para aqueles
de nós que não têm muita experiência em serem responsáveis com algo, isso pode ser
uma ótima lição. Outros já têm muito mais experiência com responsabilidades e o
serviço lhes ensina o desapego. Flexibilidade, tolerância e equilíbrio são princípios que
aprendemos a praticar quando servimos. Aprendemos a praticar a unidade, mesmo
quando isso é algo desconfortável, exercitando então a nossa coragem. “Toda minha
vida eu me senti diminuído,” partilhou um membro. “ Se um estranho franzisse o cenho

160
para mim, isso já era suficiente para fazer do meu dia um dia ruim. O serviço me deu
dignidade.”

Princípios, prática e perspectiva

O serviço em NA deve ser prestado sempre imbuído do espírito de se levar a mensagem


ao adicto que ainda sofre. Esse é o propósito primordial da nossa irmandade e quando
nos desviamos dele abrimos a porta para influências que nos distraem em nossa
caminhada. Mas raramente há um momento em que nossos motivos sejam
inteiramente puros. O serviço desinteressado é nosso objetivo, mas uma das coisas que
fazem o serviço tão recompensador é o conhecimento de que temos valor e somos úteis.
O trabalho que fazemos pode nos manter unidos enquanto aguardamos as coisas
serenarem dentro de nós e então nos sentirmos bem. Aceitarmos isso permite que
melhoremos em vez de fingirmos que já temos tudo isso resolvido dentro de nós. Não é
egoísmo pensar que ter um propósito nos faz sentirmo-nos melhores. Se estamos
agindo com boa vontade – fazendo as coisas certas pelas razões certas – certamente
seremos beneficiados. Cada um de nós tem algo a dar e nos permitir fazer isso é parte
do processo de ajuda mútua em recuperação. O processo é sempre permanente.
Encontramos um canto, aprendemos a nos sentir confortáveis nele, aprendemos tudo o
que temos a aprender e encontramos outro espaço de crescimento. Toda vez que
aprendemos algo sobre nós, com frequência também aprendemos a fazer algo novo.
Um membro partilhou, “parece que quanto mais experiência acumulo, mais
inexperiente eu percebo que sou.”
Outro membro rememorou sua primeira experiência no serviço: “havia discussões,
política, agendas e um caos total. No entanto, assim que a reunião começou eu senti,
como de costume, a suave e reconfortante atmosfera de amor. Como um recém-
chegado – era exatamente como eu estava acostumado a me sentir – eu me senti
rapidamente aconchegado.” Isso não quer dizer que essa desordem em si seja algo bom.
Mas assim como em nossa recuperação pessoal, é frequentemente com as partes
difíceis que aprendemos as lições mais importantes. Receber novos adictos no serviço
permite que eles aprendam mais sobre a rica experiência do serviço. Isso também nos
abre a novas ideias e novas formas de fazer as coisas. Pode haver valor em reinventar a
roda, mesmo se isso parecer uma maneira bastante ineficiente de fazer as coisas. Cada
um de nós aprende vivenciando o processo e, às vezes, aperfeiçoamos a roda.
Tudo muda – isso é bom e ruim. Crescer através das mudanças não significa
necessariamente concordar com elas. Mas uma natureza boa e flexível é uma
característica de caráter essencial para uma recuperação feliz. Tentamos ter fé ao longo
da jornada. Apesar de não termos uma bola de cristal para sabermos se estamos
evoluindo ou se são apenas dores momentâneas, fato é que um resultado
desconfortável é apenas uma fase em nosso desenvolvimento, não o fim da nossa
história. Isso é a mais pura verdade tanto em nossa recuperação quanto em nossa

161
irmandade. Crescemos e mudamos e nossas necessidades crescem e mudam também.
Se estamos envolvidos com o início das atividades de NA em alguma área, pode ser bem
desconfortável esse processo inicial de adaptação e construção de uma nova
comunidade. Se estamos envolvidos há muito tempo com um tipo de serviço específico,
pode ser difícil abrir espaço e aceitar que outros também merecem a mesma chance de
servir à irmandade. Quando nossa identidade se cristaliza como em um embrulho, não
conseguimos ajudar da mesma maneira como antes. Torna-se mais difícil pedir ajuda,
porque “os outros estão fazendo errado” e assim, da mesma forma, torna-se difícil levar
a mensagem porque nosso desapontamento fica evidente.
O fato de NA se tornar diferente do que costumava ser é uma consequência do nosso
sucesso e do nosso crescimento. E a probabilidade é que não seja assim tão diferente.
O básico não muda. A mensagem que levamos não muda. As coisas que precisamos fazer
para parar de usar, perder o desejo e encontrar uma nova maneira de viver na verdade
não mudam. Por nos sentirmos seguros em sala, pensamos saber qual é o nosso lugar e
então não queremos que nada mude. Mas quando o que sabemos de melhor não é
necessário ou buscado da mesma forma, é difícil não levar para o lado pessoal. Podemos
nos readequar quando as cadeiras estão organizadas de maneira diferente em nosso
grupo de escolha. Aprender a trabalhar com novas pessoas e tentar novas maneiras de
fazer as coisas pode ser doloroso e nos fazer sentir inadequados. Deixamos que os
outros se sintam confortáveis com o serviço na irmandade quando o acesso ao serviço
é amplo e acolhedor. Dizer apenas um “por favor” e um “obrigado” já faz toda diferença.
Se abraçarmos os princípios da recuperação, naturalmente abraçamos a irmandade e a
ajudamos a crescer. Cada um de nós faz isso à sua maneira. Podemos amar e nutrir nosso
grupo de escolha. Podemos iniciar uma reunião. Alguns de nós são excepcionais em
trabalhar com novos membros. Outros de nós são excelentes em comunicar-se.
Podemos gostar muito de organizar eventos ou desenhar lindos websites. Quando o
serviço está em nosso coração, encontramos maneiras de sermos úteis sendo quem
somos. O serviço que prestamos pode nunca ter nada a ver com ser votado para algo.
Quando valorizamos a experiência um dos outros e nos esforçamos para fazer do serviço
algo divertido, interessante e inclusivo descobrimos que há espaço para todos no
propósito de levar a mensagem. Assim como o serviço nos ajuda, cada um, a crescer,
precisamos do envolvimento de todos para assegurar que estamos levando a mensagem
tão bem quanto amplamente seja possível.
Quando confiamos na segunda tradição, podemos permitir que nós e os outros sejam
humanos e, portanto, cometam erros. Às vezes os erros que cometemos no serviço –
assim como em nossas vidas – nos conduzem ao próximo lugar para onde precisamos
seguir em nossa jornada. Acreditar na segunda tradição nos dá esperança. Sabemos que
um Deus amoroso está no comando e que o processo é algo vivo não importa o que
aconteça. Nossos julgamentos podem interferir na entrega da mensagem. Não
precisamos ser a melhor pessoa na sala para ser a melhor pessoa para o trabalho de se
levar a mensagem. Parte do que torna o serviço atrativo é encontrar um lugar adequado
para as pessoas que se atraem por ele.

162
É essencial, qualquer que seja a maneira como retribuímos o que ganhamos de graça,
que sejamos aptos a partilhar com os outros e também cooperar, apesar de sabermos
que essas são habilidades com que a maioria de nós não chega às salas de NA. O serviço
nos ensina a nos comunicar e isso pode ser uma das mais frustrantes lições que iremos
aprender. Por vezes e vezes nos vemos em uma posição em que pensamos que estamos
oferecendo informações adequadas e os outros simplesmente não entendem – ou não
se lembram de haver entendido.
A comunicação sempre é algo mais do que apenas transmitir uma informação. Como
comunicamos não pode ser separado do que comunicamos. Prestar atenção na
diferença entre o que estamos dizendo, o que é ouvido, e como as pessoas estão nos
respondendo pode ser o início de uma mudança real em nossas relações. No serviço e
em nossas vidas, oferecemos informação às pessoas de variadas maneiras. Quando
simplesmente as despejamos, sem cuidado e atenção, as pessoas evidentemente se
chateiam. É comum compartilharmos as informações que temos e esperarmos que as
pessoas deveriam saber porque elas são importantes. Há algo mais, além das
informações em si; há uma razão pela qual as estamos transmitindo, mas compete a nós
passá-las da melhor maneira possível. Quando fazemos isso sem inspiração, as pessoas
deixam de nos ouvir. O resultado é que jogamos fora a oportunidade de um diálogo
construtivo que muito ajudaria a todos nós.
A segunda tradição nos ensina que um Deus amoroso pode ser expressado mediante
nossa consciência de grupo. Cada um de nós é responsável por assegurar que todos nós
tenhamos a informação de que precisamos e a habilidade de compartilhá-la livremente
de modo que o gênio que se manifesta por meio de nós tenha a chance de ser ouvido.
Quando consideramos uns aos outros com respeito, abrimos a porta para um tipo
diferente de comunicação. Quando praticamos a atração em nosso serviço, trabalhamos
para assegurar que ele seja tão amplo, inclusivo e acolhedor quanto possível. Quando
nosso bem-estar está em primeiro lugar, isso naturalmente acontece.
Podemos ter cada qual suas próprias ideias sobre temas diversos e como tratá-los, mas
nossos princípios nos lembram que nossas ideias não são as únicas importantes.
Apresentar alternativas na mesa, mesmo quando não concordamos com elas, pode
ajudar a ampliar o escopo de ação do grupo. A melhor opção sempre se manifesta como
resultado do consenso que se alcança no grupo, então cabe a nós municiar o grupo com
o máximo de informação que porventura tenhamos. Render-se à consciência do grupo
quando nos sentimos fortes nos dá a oportunidade de vivenciar confiança. Quando
acreditamos que cada um que está em desacordo em uma discussão está agindo de
plena boa vontade, podemos ser menos defensivos. Quando deixamos para trás nossas
vontades e aceitamos o papel fundamental que o grupo possui na construção da
irmandade, a qualidade de nossa relação com o grupo, com o comitê de serviço e com
a própria irmandade deixa de ser condicionada ao nosso egocentrismo.
Encontrar uma maneira amorosa de abordar as diferenças de opinião ou experiência em
NA nos capacita a ajudar os outros de acordo com suas diferenças. Aprendemos no
processo que a comunicação está no coração do perdão. Podemos nos enganchar por

163
anos em um ressentimento que poderia ter sido resolvido com uma simples conversa.
Encarar situações desconfortáveis e agir é uma demonstração de maturidade e
elegância. A maturidade emocional é nossa recompensa por abrir mão da raiva e dos
ressentimentos.
Não escolhemos nossa próxima geração em NA. Pode ser surpreendente quem fica e
quem não fica limpo. Já passamos pela experiência de ter de enterrar alguém cuja
probabilidade de ficar limpo achávamos ser muito alta e, ao mesmo tempo, celebrar a
troca de ficha daqueles que aparentemente são os mais malucos na sala. Se
permanecemos na irmandade, podemos ter a tendência a pensar que os membros mais
novos não possuem o mesmo tipo de alicerce e experiência que temos. É nossa
responsabilidade compartilhar aquilo que recebemos de graça e assegurar que a
irmandade continue a crescer. Um membro bastante experiente sugeriu, “se eles vão
trazer sua experiência para este programa que salvou minha vida, então é quero estar
certo que eles terão o que for preciso para continuar salvando a minha vida.”
O fato de nossa irmandade estar viva é uma evidência de que o programa funciona e de
que ainda está funcionando. Nossa tarefa é acreditar nisso muito mais do que no medo
ou em nossas crenças rígidas acerca de como as coisas deveriam ser feitas. Se estamos
fazendo certo, o crescimento acontecerá para além do que possamos imaginar – tanto
individualmente como em grupo. Quando temos fé que nosso serviço é guiado por um
Poder Superior verdadeiramente amoroso, podemos deixar o controle e permitir que o
processo se desdobre em suas múltiplas potencialidades. O sucesso vem quando
trabalhamos juntos pela solução de um problema. Há tempos em que os erros
acontecerão inevitavelmente. Fazemos a nossa parte e não ficamos no meio do caminho
atrapalhando. Encontramos formas de permanecermos envolvidos que nos permitam
sermos úteis, além de apreciarmos o serviço. Às vezes pode ser construtivo para nós dar
um tempo do serviço que envolve comitês e decisões e voltar para a linha de frente e
também para a linha telefônica. Oferecer a mão ao adicto em necessidade é a coisa mais
importante a se fazer. Quando mudamos nosso foco para a porta da frente, nossas
disputas e ressentimentos desaparecem. Quando levamos a mensagem, a recebemos
igualmente. A mensagem é de liberdade e os laços que nos unem são puro amor.

Amor

O espírito de amor que expressamos em NA é a coisa mais poderosa que temos. O texto
básico o descreve como “o fluxo de energia da vida que circula entre as pessoas,” e
podemos ver isso em ação quando vemos um adicto renascer nas salas da irmandade.
Os abraços que damos são uma parte instrumental de nosso método e experiência. NA
é amor.
Quando praticamos o décimo segundo passo o melhor que podemos, com o amor
essencial em tudo que fazemos – descobrimos que não há antídoto mais poderoso para

164
o desespero e a autodestruição, tão característicos da adicção. A compaixão que
sentimos pelos recém-chegados é algo que aprendemos a vivenciar com nossas famílias,
com aqueles ao nosso redor, e finalmente, com nós mesmos. Alguns dizem que, ao final,
o décimo segundo passo é fundamentalmente sobre ajudar alguém que esteja sofrendo.
Certamente não podemos nos furtar isso como já fizemos um dia. Mesmo assim,
podemos, às vezes, nos mostrar mais compassivos com o recém-chegado do que com
os veteranos que estão em um momento de dificuldades.
Unidade é uma prática de amor. Nos elevamos acima de nossos julgamentos e nos
unimos não importa o que aconteça. No processo, aprendemos a perdoar e a nos
reconciliar. Não perdoamos até que voltemos a trabalhar juntos, mas somos obrigados
a fazer as pazes porque não é fácil evitar uns aos outros. O perdão é uma ação, mas
acima de tudo uma decisão. Precisamos de muito perdão e também de criar as
condições para que ele possa fluir. O perdão é uma recompensa em si. Começamos a
encontrar paz dentro de nós quando perdoamos. Nossas mentes então serenam, pois
estamos livres da culpa, da vergonha e do ressentimento.
Alguns de nós lutam para se permitirem ser felizes. Podemos achar que não merecemos
isso, ou que podemos temer que iremos abandonar a nossa busca por nos trabalharmos.
Alguns de nós têm sido infelizes por tanto tempo que pode ser-lhes desconfortável abrir
mão da amargura. Quando abordamos a felicidade como um princípio espiritual,
podemos ver sua relação com o princípio da humildade. Nossa capacidade de apreciar
a vida está diretamente relacionada à propensão em soltarmos as rédeas de nossa auto
obsessão. Se pensarmos a felicidade como um valor espiritual, podemos vê-la tanto
como uma graça como um objetivo a ser alcançado. Trabalhamos essa busca ao abrir
mão do controle sobre as coisas que nos desviam da nossa alegria, e deixamos o resto
para um Poder que é maior do que nós. Humildade e empatia são essenciais para uma
vida espiritual recompensadora. À medida que encontramos a alegria profunda que nos
chega por meio da prática da compaixão, descobrimos que a felicidade sempre esteve
disponível para nós. “Eu tive que decidir ser feliz,” disse um membro, “mas tomar essa
decisão de uma forma em que ela pudesse funcionar de modo efetivo exigiu de mim a
construção de um alicerce sobre o qual essa alegria pudesse se apoiar.”
Encarar nossos desafios nos ajuda a encontrar a compaixão para nós e para os outros. À
medida que desenvolvemos nossa habilidade de expressar empatia, percebemos que
esse espírito habita em nós e que nenhum de nós é menos ou mais importante que
ninguém na irmandade. Todos podemos estar doentes ou sofrendo em algum momento
da caminhada, não importa há quanto tempo estejamos limpos. Todos nós doamos
esperança e respostas, às vezes, mesmo quando nem mesmo sentimos isso. Um dia
limpo é um milagre, quer seja ele ou não seguido de outro dia. Quando testemunhamos
a experiência real de um membro que está limpo a 20, 30 ou ainda há mais anos,
podemos ver que, verdadeiramente, a recuperação é um caminho sem fim; ela nunca
termina.
Amor é uma palavra que denota ação. A ação de amar pode assumir várias formas. Às
vezes é um abraço caloroso; às vezes é dizer a verdade nua e crua a alguém. Mas quando

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agimos por amor, com uma intenção amorosa, ele se mostra e isso importa. Podemos
senti-lo e as pessoas que nos cercam também sentem isso. Podemos apreciá-lo;
literalmente, ele nos encaminha à porta da alegria. Quando finalmente aprendemos que
podemos amar e ser amados sem sermos machucados, estamos aptos a vivenciar com
plenitude nossas conexões com os outros e com o mundo ao nosso redor.
Ficar limpo por um longo tempo significa que não só a recuperação está acontecendo,
mas também a vida. Crescemos e envelhecemos; criamos famílias, mudamos de
empresas e navegamos no mundo só porque estamos vivos e limpos. Passamos a
entender que felicidade é um trabalho interno, uma experiência espiritual que se torna
mais forte com a recuperação. Descobrimos, não importa o que aconteça do lado de
fora, que a alegria pulsa em nosso interior. Um membro partilhou: “Eu acolhi meus
sentimentos e encontrei conforto neles porque sabia que eles eram parte da minha
reconstrução. Eu estava vivo. Por mais que eu sentisse que poderia haver me destruído,
eu tinha fé que aquilo não era o fim. Eu sabia que absolutamente nada no mundo
importava a não ser o amor. Eu havia perdido tempo demais na minha vida “não
amando”.
O amor é uma forma de inteligência. É uma intuição que nos revela as palavras corretas
quando não há palavras, que nos diz quando seguir adiante e quando recuar. Sentimos
amor quando falamos a verdade. Quando estamos nas mãos da vontade do nosso poder
superior, naturalmente levamos a mensagem e a mensagem de que precisamos
também nos encontra. Quando purificamos nossos defeitos que bloqueiam a passagem
do fluxo da vida, podemos nos tornar um canal mais limpo para o amor fluir por meio
de nós nas múltiplas direções possíveis. Descobrimos um amor que é maior do que nós
e descobrimos que somos capazes de fazer coisas que nunca imaginávamos serem
possíveis. Resplandecemos então o brilho do amor.
Há um ditado em recuperação que diz que à medida que caminhamos, a estrada se torna
mais estreita. Isso é parcialmente verdade. Nossa propensão para cometer os mesmos
erros diminui, e nos tornamos mais conscientes, na maioria das vezes, de como não agir
com base apenas em nossos impulsos. Mas isso não é o fim da história. É como se
passássemos por um funil: o caminho se torna mais apertado e mais desconfortável à
medida que nos adaptamos a nossa nova maneira de viver – e então, sem aviso, a
abertura do funil se expande e estamos livres. A estrada não é mais estreita; às vezes é
como se não houvesse nem mesmo estrada. Descobrimos que podemos caminhar em
nosso próprio ritmo, encontrando o passo e a direção que são os melhores para nós. A
viagem é para dentro e não tem fim. Nos mantemos aprendendo e crescendo,
encontrando maneiras de viver e usar nossa experiência para ajudar a outros. Não
importa quanto tempo tenhamos limpos, ainda há mais a se aprender e a se
compartilhar. Nosso primeiro passo nos colocou no caminho da consciência, conexão e
serenidade. Recebemos muito mais do que a simples abstinência. Fomos presenteados
com um infinito suprimento de princípios para nos guiar em nossa jornada de vida.
No passo três, tomamos a decisão de entregar nossa vontade nas mãos de um poder
maior do que nós e no décimo primeiro passo isso nos é entregue de volta, mas de uma

166
maneira transformada. O desespero que um dia sentimos em nosso fundo de poço se
tornou o início de uma paixão pelo cuidado, pela ação de compartilhar, doar e crescer.
Onde antes havia a ausência de um poder capaz de nos trazer de volta a vida, agora
agimos em nossas vidas e a serviço dos outros e nos maravilhamos com os resultados.
Vivemos com dignidade, integridade e graça – e sabemos que sempre podemos
melhorar.
Quanto mais progresso reconhecermos em nós e em nossos companheiros, mais
saberemos da sua possibilidade. O que nos apareceu, no início, como uma saída do
nosso fundo de poço, agora nos oferece um caminho para uma vida que não
imaginávamos, repleta de alegria, esperança e de um crescimento infinito. Continuamos
a melhorar. Continuamos descobrindo novas maneiras de viver uma nova liberdade,
bem como novos caminhos a serem explorados. Viajamos, todos irmanados, como se
fôssemos um só corpo e pavimentamos a estrada, à medida que seguimos, para todos
que ainda virão. Não importa o tanto que tenhamos andado ou que ainda possamos
descobrir. Enquanto estivermos limpos, a jornada continua.

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Os 12 passos de Narcóticos Anônimos

1º. Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que nossas vidas
tinham se tornado incontroláveis.
2º. Viemos a acreditar que um Poder maior do que nós poderia devolver-nos à sanidade.
3º. Decidimos entregar nossa vontade e nossas vidas aos cuidados de Deus, da maneira
como nós o compreendíamos.
4º. Fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos.
5º. Admitimos a Deus, a nós mesmos e a outro ser humano a natureza exata das nossas
falhas.
6º. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de
caráter.
7º. Humildemente pedimos a Ele que removesse nossos defeitos.
8º. Fizemos uma lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado, e dispusemo-nos
a fazer reparações a todas elas.
9º. Fizemos reparações diretas a tais pessoas, sempre que possível, exceto quando faze-
lo pudesse prejudica-las ou a outras.
10º. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o
admitíamos prontamente.
11º. Procuramos, através de prece e meditação, melhorar nosso contato consciente com
Deus, da maneira como nós O compreendíamos, rogando apenas o conhecimento da
Sua vontade em relação a nós, e o poder de realizar essa vontade.
12º. Tendo experimentado um despertar espiritual, como resultado destes passos,
procuramos levar esta mensagem a outros adictos e praticar estes princípios em todas
as nossas atividades.

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As 12 tradições de Narcóticos Anônimos

1º. O nosso bem-estar comum deve vir em primeiro lugar; a recuperação individual
depende da unidade de NA.
2º. Para o nosso propósito comum existe apenas uma única autoridade – um Deus
amoroso que pode se expressar na nossa consciência coletiva. Nossos líderes são apenas
servidores de confiança, eles não governam.
3º. O único requisito para ser membro é o desejo de parar de usar.
4º. Cada grupo deve ser autônomo, exceto em assuntos que afetem outros grupos ou
NA como um todo.
5º. Cada grupo tem apenas um único propósito primordial – levar a mensagem ao adicto
que ainda sofre.
6º. Um grupo de NA nunca deverá endossar, financiar ou emprestar o nome de NA a
nenhuma sociedade relacionada ou empreendimento alheio, para evitar que problemas
de dinheiro, propriedade ou prestígio nos desviem do nosso propósito primordial.
7º. Todo grupo de NA deverá ser totalmente autossustentável, recusando contribuições
de fora.
8º. Narcóticos Anônimos deverá manter-se sempre não profissional, mas nossos centros
de serviço podem contratar trabalhadores especializados.
9º. NA nunca deverá organizar-se como tal; mas podemos criar quadros de serviço ou
comitês diretamente responsáveis perante aqueles a quem servem.
10º. Narcóticos Anônimos não tem opinião sobre questões alheias; portanto o nome de
NA nunca deverá aparecer em controvérsias públicas.
11º. Nossa política de relações públicas baseia-se na atração, não em promoção; na
imprensa, rádio e filmes precisamos sempre manter o anonimato pessoal.
12º. O anonimato é o alicerce espiritual de todas as nossas tradições, lembrando-nos
sempre de colocar princípios acima de personalidades.

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