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Distância e proximidade nas formas de aprender: uma aprendizagem não-virtual

nos tempo-espaços outros que não escola/universidade


Licio Caetano do Rego Monteiro*

Para nós, professores e professoras, o principal dilema colocado a partir da


epidemia é o apelo aparentemente incontornável para nos adaptarmos às ferramentas de
ensino à distância, ensino remoto, ou algum outro termo que signifique o mesmo. Esse
apelo parece tem recebido reações as mais diversas por parte de nossos colegas, nos
diferentes níveis de ensino, variando entre frustração, desconfiança e apreensão até a
euforia e a adesão de primeira hora. O problema se agrava quando este parece ser o
único formato a ser discutido, como se fosse essa a referência padrão de ensino e
aprendizagem ao qual devemos nos posicionar, a favor ou contra, com mais ou menos
reservas. O ensino à distância possível ou o presencial impossível? Mas os termos do
debate estão enviesados por uma clivagem pouco frutífera.
Toda aprendizagem é presencial - não existe aprendizagem "ausencial". Então a
questão é: como instituir uma presença na aprendizagem? Parece que o foco no ensino à
distância tende a supervalorizar os meios virtuais e os canais de comunicação e
desconsiderar o que está presente na proximidade, ao alcance, dos/as professores/as e
dos/as alunos/as. O fetiche das novas tecnologias é alimentado de todos os lados,
“analfabetizando” os/as professores/as cujas atividades são muito mais complexas do
que uma videoaula.
Se pensarmos em nossa sala de aula, realmente não faria falta para muitas de
nossas aulas substituí-las por ou mediatizá-las com ferramentas distanciais. Criamos em
nossas próprias práticas de docência alguns artifícios que servem para encarar e suportar
a disposição de nossos corpos e mentes dentro de uma sala de aula. Não é fácil estar
exposto ao outro, disponível. Algumas armaduras carregamos, e elas nos protegem, mas
também nos pesam.
Esse texto busca reconhecer alguns aspectos que qualificam a presença
compartilhada numa sala de aula e dialogar sobre como podemos reinstituir uma
aprendizagem presencial nos tempo-espaços outros que não escola/universidade, dentro
desse contexto de pandemia, mas também para além dele.
Corpo, sentidos e não-dito: o que a presença permite?
O corpo na aprendizagem
Um dos recursos que instituímos ao entrar em sala de aula é uma certa negação
do próprio corpo como presença no espaço físico, somos valorizados e reconhecidos
pelo que nossa mente produz e pelo que dissemos e escrevemos, mas isso nos permite
abstrair uma existência corpórea que está intimamente relacionada ao saber. Essa
abstração, no entanto, esconde a afirmação de um corpo dominante, o nível zero do
corpo acadêmico que se encerra num universo branco masculino, numa postura
intelectual reclusa, superior, verbal, racional, contemplativa.
Num livro da bell hooks (1994), Ensinando a transgredir: a educação como
prática da liberdade1, ela diz

quando começamos a falar em sala de aula sobre o corpo, sobre como


vivemos no corpo, estamos automaticamente desafiando o modo como o
poder se orquestrou nesse espaço institucionalizado em particular. A pessoa
mais poderosa tem o privilégio de negar o próprio corpo.

E prossegue:
a pedagogia libertadora realmente exige que o professor trabalhe na sala de
aula, que trabalhe com os limites do corpo, trabalhe tanto com esses limites
quanto através deles e contra eles (...). Temos que voltar a um estado de
presença no corpo para desconstruir o modo como o poder tradicionalmente
se orquestrou na sala de aula, negando subjetividade a alguns grupos e
facultando-a a outros.

Talvez a demanda da virtualidade seja a regressão do corpo a níveis ainda mais


neutralizados e inertes, a redução do corpo a um animal audiovisual com dedos que
teclam, duas orelhas, dois olhos grudados na tela e um cartão de crédito, como descreve
Harari (2018, p. 123), num capítulo intitulado Comunidade: humanos têm corpos, ou ao
perfil de redes sociais, um devir-perfil da humanidade, como poderia dizer o Bruno
Torturra em seu Boletim do Fim do Mundo2. A contrapartida à hipervirtualidade do
corpo docente, no entanto, não deve ser o nível intermediário da sala de aula em que nos
habituamos à expressão intelectual desincorporada, mas uma radicalização das formas
de conhecimento e de aprendizagem que atravessam os corpos e a co-presença, a

1
Sublinho essa importante sugestão de leitura apresentada por Maíra Norton.
2
A ideia de que a identidade política tende a se resumir ao perfil virtual aparece em diferentes programas,
mas recomendo o Pornografia da indignação e impotência política, de maio de 2019, que foi o primeiro
em que assisti, após sugestão de Ingrid Xavier.
interação com os espaços intersubjetivos, aprender em movimento, aprender do
território, aprender no diálogo e no silêncio tácito, cúmplice de nossas humanidades e
inteligências que se reconhecem na distância não maior que a de uma troca de olhares.

Sentir e pensar
A recusa de virtualização pressupõe também o reencontro entre o sentir e o
pensar. Por acaso caiu em minhas mãos um livro de Pablo Fernandez Christlieb (2011)
chamado Lo que se siente pensar, o folheei por pouco tempo, numa casa que me
hospedei em viagem recente. Num dos capítulos ele dizia que o sentir é um pensar
próximo e o pensar seria um sentir distante, de modo que não haveria propriamente uma
cisão tão acentuada entre o sentir e o pensar. Não tenho o livro aqui para recuperar as
palavras de forma mais consistente. Mas é como se a proximidade das coisas nos
permitisse traduzir o pensar como sentir e que a projeção à distância nos permitisse
saltar do sentimento e dos sentidos de proximidade (tato, olfato, paladar) para o
pensamento mais abstrato, relacionado à audição e principalmente à visão. O
interessante é justamente esse continuum do sentir ao pensar, que recusa uma certa cisão
na maneira como apreendemos o mundo a nossa volta e, principalmente, por não
hierarquizar o sentir e o pensar, o corpo e a mente, a emoção e a razão.
Alguns autores buscaram formas de expressar essa indissociabilidade em termos
híbridos como o sentipensar3, que Orlando Fals Borda colheu da cultura anfíbia dos
pescadores de San Martín de La Loba, na Colômbia, o corazonar, que Patricio Guerrero
recolheu dos Kitu Kara, explorado por Boaventura de Sousa Santos em O fim do
império cognitivo (2018), ou a emorazão de Laflamme, citada por Milton Santos (1996)
num capítulo em que fala sobre a proximidade, cada um desses termos traz sua própria
origem e seu significado. Fico um termo que achei muito interessante ao ouvir de
Gustavo Esteva, a ideia mais simples de comover4, comoção, como um mover junto,
que seria diferente de promover, em que se move o outro, a quem se considera parado.
E isso vale nas relações políticas, mas também como uma política do conhecimento.

3
Ouvi o termo pela primeira vez de Carlos Walter Porto-Gonçalves, que me indicou a leitura de Fals
Borda. A explicação sobre a origem do termo é contada por Fals Borda numa entrevista disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=LbJWqetRuMo
4
Ver Conversa do Mundo entre Boaventura de Sousa Santos e Gustavo Esteva, no canal Alice Ces,
gravado em fevereiro de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-
nbzKhSIhaA&t=7079s
Conhecimento tácito
Um outro autor, Michael Polanyi5, usou a metáfora da visão para falar sobre a
maneira como o conhecimento é produzido e transmitido. Quando se captura uma
imagem, temos a apreensão de um componente distal (focal) e outro proximal
(subsidiário), termos que Michael Polanyi toma emprestado da anatomia. Esse
componente focal permite algum grau de formalização para que seja transmitido. No
entanto, o conhecimento é composto por todo o campo que não está focado, isto é, o
componente subsidiário, que ao não ser focado, só pode ser apreendido como uma
experiência integral diante do conhecimento. O conceito que Polanyi utiliza é o de
conhecimento tácito, chamando atenção para a impossibilidade de um conhecimento
objetivo ou intersubjetivo que prescinda de uma dimensão pessoal, que só pode ser
adquirida num mundo de experiência que ultrapasse o que pode ser formalizado, aquilo
que cabe num canal de transmissão. Não sabemos o quanto o componente formal é
informado, habilitado, potencializado, por todo o não formalizado que o reveste.
Ficar somente à distância empobrece o campo do sentir-pensar e empobrece a
apreensão do conhecimento tácito que se produz na interação entre o focal e o
subsidiário, o formal e o informal, o verbal/visual e o sensível. O corpo, o sentimento e
o não-dito (as entrelinhas) são próprios da experiência presencial, mas mesmo em
nossas salas de aula muitas vezes nos afastamos, de diferentes maneiras, e por isso
desperdiçamos nossa co-presença. Então se me perguntam: quais atividades suspensas
eu gostaria que não fossem retomadas? Eu respondo: toda atividade presencial que
desperdice a oportunidade de experimentar a potência da presença e dê lugar a
mecanismos que boicotem os efeitos do corpo, do sentimento e do não-dito na maneira
como aprendemos e como produzimos conhecimentos. Há coisas que podem ser
transmitidas à distância, para todas as outras necessitamos de proximidade, estarmos
juntos. Diria até que muito da aprendizagem remota só é possível porque esta simula
relações dos ambientes presenciais, nos quais a maioria de nós nos formamos. A perda
da experiência presencial compromete a capacidade de simularmos esses ambientes em
rede, e essa perda tende a afetar principalmente aqueles que não consolidaram suas
formas presenciais de aprendizagem.
5
As ideias de Michael Polanyi são retiradas da leitura de O valor do conhecimento tácito: a
epistemologia de Michael Polanyi na escola, de Cláudio Saiani (2004, pgs. 53-58)
Outras tramas: reconstituindo a presença
Recentemente em Oaxaca, no México, fui a um lugar chamado Universidad de
la Tierra, à procura de uma conversa com Gustavo Esteva, por sugestão do Carlos
Walter. Em vez de conversa particular participei de um “conversatório” semanal aberto
a todos os interessados em “platicar”. Lá pude conhecer um pouco da proposta da
sociedade desescolarizada legada por Ivan Illich6 a vários que seguem inspirados por
suas ideias, em diálogo com uma concepção muito radical de autonomia que é muito
própria aos mexicanos, mas que se vê de diferentes formas na América Latina. Confesso
que foi um pouco difícil compreender e aceitar essa visão de autonomia - tanto quanto
me pareceu difícil explicar o conceito de "sem pimenta" aos mexicanos. O pressuposto
de Ivan Illich é o de que a crise das instituições não deveria ser respondida com a
tentativa malograda de salvá-las, de reformá-las, deixando-as mais aperfeiçoadas, isso
seria uma atitude vã. A crise deveria indicar a impossibilidade radical de que essas
instituições consigam cumprir sua promessa.
No caso das instituições de ensino, seria o caso de romper com a especialização
que elas promovem, com a supressão das diferentes formas de aprender que a
institucionalização da educação impõe e reproduz. O problema de aceitar essa
formulação é que levá-la às últimas consequências resultaria numa negação mesma do
profissional institucionalizado que nós somos. Logo, pareceria um pouco contraditório
defendê-la num contexto em que não abrimos mão dos poderes e da segurança que a
instituição universitária nos confere, mesmo diante dos ataques que também sofremos.
A questão, no entanto, é lançar uma luz de vela - para ver de perto. Lançar uma
provocação sobre a real razão de existir uma universidade. Aqui atento para o detalhe
que a Universidad de la Tierra não possui diploma, nem professores, nem alunos, nem
currículos, nem disciplinas. Mas mesmo assim se autodenominou "universidade". A
pergunta que procuro reter nesta experiência é: em que devemos apostar, insistir e
cultivar nesse espaço que também chamamos de universidade? Será toda a trama
institucional que nos assegura em nossas posições de poder e saber? Ou as tramas da

6
Alguns textos do Ivan Illich eu li em pequenas brochuras artesanais chamadas Cadernos para la
Imaginación, da Palapa Editorial. Destaco aqui o caderno Tramas de aprendizaje convivencial:
propuestas para ejercer la libertad de aprender e Aprendizaje en movimiento: rutas hacia la liberación
de la pedagogía, publicados em 2013. A coletânea Repensar el mundo con Iván Illich, organizada por
Gustavo Esteva (2013) também é uma importante fonte.
aprendizagem, para utilizar um termo de Ivan Illich, que percorrem caminhos os mais
diversos e imprevisíveis? Vivemos essa contradição, assim como vivemos a contradição
entre nosso corpo e nossa razão, entre o sentir e o pensar, entre o que explícito e o
tácito. A questão é: o que vamos fazer a partir disso, desta matéria prima, destes
ingredientes?

Você teve um encontro hoje?


Parte da resposta eu poderia especular a partir do espaço universitário, os
caminhos que nele percorremos e as pessoas que lá encontramos. E aqui busco também
uma dimensão presencial inescapável, que é universidade como lugar de encontro.
Numa palestra recente, Ailton Krenak7 cita um livro de Nurit Bensusan chamado Do
que é feito o encontro. Encomendei o livro, ainda não chegou, mas gostei do título. O
jeito de perguntar ou de afirmar é interessante: "do que é feito isso". E se a gente
perguntasse: do que é feito a universidade? Do que é feito a aula? Bem, vou seguir o
pensamento do Krenak. Na mesma palestra ele dizia que o cotidiano é uma constante
negação do encontro, então se você disser "eu tive algum encontro, se for verdade isso
para você, então parabéns, isso foi um bom dia". Quantos bons dias seriam possíveis de
serem ditos, vividos, guardados, no cotidiano de nossa experiência dentro da
universidade?
Se imaginarmos esse espaço vivido, o lugar que frequentamos, ocupamos,
habitamos, mais do que meramente o espaço de um trabalho, de uma profissão,
podemos dizer que é um lugar de encontro, onde o encontro é possível, esse ponto de
encontro como “lugar decifrável de um tecido de relações” (Vera-Herrera, 2012, p.80)
Nessa dimensão poderíamos deixar de lado uma parte das desconfianças de Ivan Illich
e, às expensas de uma cobertura institucional que nos deixa ocos por dentro sempre que
mais reforçamos a capa, experimentar a criação, a invenção e o resguardo de lugares de
encontro onde corpos, sentimentos e silêncios possam se afetar mutuamente para
aprender.
Recente texto de Agamben decretou o fim das universidades, justamente pela
perspectiva do fim do ambiente presencial compartilhado por muitos estudantes. Seria

7
A palestra ocorreu na mesa redonda Perspectivas anticoloniais, dividida com Paulo Arantes, que se
realizou em março de 2020, no evento Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=2tjX2VodDYs&t=2980s
"o fim do estudantado como forma de vida": "os estudantes não viverão mais na cidade
em que está sediada a universidade, antes cada um escutará as lições fechado em seu
aposento (...). As pequenas cidades, outrora sedes de universidades de prestígio, verão
desaparecer de suas ruas aquela comunidade de estudantes que frequentemente lhe
constituíam a parte mais viva" (AGAMBEN, 23 mai 2020). O vaticínio de Agamben
não aponta alguma possibilidade de reversão. Como o próprio texto diz, esse ambiente
ideal já estava corrompido e por isso tão facilmente pôde sucumbir. Mas diria ainda que
o próprio ideal de ambiente universitário, tal como apresentado por Agamben, talvez já
fosse ele mesmo problemático em seu modelo, uma vez que o acesso e a possibilidade
de usufruir desse ambiente é diferenciado.
A escola propicia, por um lado, uma suspensão do tempo e do espaço social e
familiar (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 21-25). Por outro lado, fica a pergunta
sobre como esse tempo-espaço de suspensão se relaciona com as formas de
aprendizagem em tempo-espaços outros que não escola, considerando que o acesso a
cada um desses tempo-espaços é sempre diferenciado. Isso se coloca mais radicalmente
nesse contexto de suspensão do tempo-escola. A escola que suspendia o tempo-espaço
social e familiar, agora está suspensa. O dilema é: como suspender o tempo-espaço
social e familiar, mas fora da escola, para produzir um efeito de suspensão que conserve
o "tempo-espaço livre" da aprendizagem?

Aprender ao redor, todo rincão é um centro


Relembro aqui algo que escrevi no meio das eleições de 2018, sobre o espanto
com a proposta do então candidato - que agora é presidente - em fazer ensino à distância
no ensino fundamental8. A proposta parecia absurda desde que foi enunciada, mas hoje
está sendo uma realidade difundida em todo o Brasil, como uma decorrência do
isolamento social. Neste momento em que nos privam de nosso lugar de encontro,
precisamos saber ao que exatamente estamos interessados a renunciar e onde construir o
reduto de nossa proximidade, de nosso convívio.
Parece que a aprendizagem está sendo lançada para a distância fria das telas,
mas há um outro movimento a ser feito, para fora das telas. Pensar numa aprendizagem
virtual à distância circunscreve o processo ao contato olho-tela, mãos-teclado, ouvidos-
8
Monteiro, Licio. Feliz dia dos alquimistas: como ser professor na era do pós-real. Revista Escuta, 20
out 2018
fone. Seria possível deslocarmo-nos para outro espaço, uma aprendizagem ao redor?
Seria então uma forma de aprendizagem não-virtual de proximidade. Primeiro,
reconhecer em cada universo particular, do corpo, dos cômodos, da casa, do entorno,
um microcosmo em que o conhecimento universal pode se manifestar. A ideia aqui é
resumida a partir de um texto de Ramón Vera Herrera (2012, p. 88):

somos iguais porque somos diferentes. Todo rincão é um centro. E é


surpreendente o tecido dos saberes de cada rincão. Só a partir de nossa
própria experiência adquire seu sentido pleno o que sabemos, o que
compartilhamos e exercemos, para cuidar da vida. E isso é o que somos.
Todo rincão é um centro: nossa condição, nosso entorno, nossas
circunstâncias, nossa história e nossos processos atuais, são só nossos, de
quem compartilhamos o lugar onde existimos. (...) Esse tecido de saberes,
vivências, experiências e visões compartilhadas de rincão a rincão, vem do
fundo da humanidade desde sempre, desde que a memória recorda a memória
da memória.

Todo rincão é um centro. É um modo de pensar o microcosmo que se abre da


escala de nossos afazeres humanos mais próximos aos espaços mais amplos de convívio
social, e daí aos horizontes e destinos que nos levam mais longe. Pode ser que
desconfiem da possibilidade de se construir todo um percurso formativo de educação
básica baseada nesse princípio, mas não há como negar que alguns meses explorando
nosso entorno nos permitiria descobrir e aprender um bocado.
No corpo, dores e prazeres, práticas manuais e corporais, autocuidado e
autoconhecimento, exploração dos sentidos, memórias e cicatrizes. Na casa, a
materialidade da casa, suas superfícies e camadas, sua organização, seus arquivos e
espaços. No entorno até onde se pode ir, muitas descobertas a fazer. O que sua mãe
sabe? Seu pai? Seus irmãos e irmãs? Seus avós? Que memórias e conhecimentos se
cultivam e se guardam na interior das relações familiares? Uma palavra, uma
reminiscência, uma história compartilhada. Como diz Conceição Evaristo no belo
poema De Mãe: "Foi mãe que me descegou para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado em cinzas e a agulha do tempo movendo no palheiro".

A cabeça pensa onde os pés pisam


Uma vela se acendeu aqui no pensamento quando ouvi o relato de que as
crianças do Sono e de Trindade estavam saindo mais para pescar com os pais e irmãos.
De repente, o mundo ao redor pode ser reencantado do lado de fora da escola. Lembro
das escolas da Praia do Sono e do Pouso da Cajaíba, que vasto mundo nos caminhos de
areia entre a escola e as casas! Eis que aqueles lugares ditos de difícil acesso, com suas
dificuldades próprias do momento, se tornam tão interessantes. Inclusive por já terem
experimentado ao longo dos anos de educação diferenciada uma série de práticas e
aprendizagens que interrogavam o território, a casa, o conhecimento dos mais velhos e
mais velhas, o lugar. Esses lugares que teriam sido, como escrevi em 2018, os primeiros
candidatos a receberem o ensino à distância na educação básica, são hoje aqueles que
podem nos ajudar a repensar uma aprendizagem não-virtual de proximidade. Todos os
lugares hoje são de difícil acesso.
Nessa quarentena a UFF-Angra segue com a formação continuada na rede
municipal de Paraty, iniciada com as escolas caiçaras de segundo segmento em 2016,
um projeto chamado Escolas do Território, coordenado pelo Prof. Domingos Nobre9.
Minha expectativa seria a de virar de cabeça para baixo essa geografia das escolas de
Paraty, pois hoje a experiência dos rincões se torna central, não porque quer ser um
novo centro, mas para mostrar que cada rincão pode ser seu próprio centro. Isso se
vincula a uma ideia de colocar a cabeça na sola do pé. A cabeça pensa onde os pés
pisam10, nos diria Laura Maria dos Santos, intelectual orgânica do quilombo do
Campinho e de Paraty, jongueira e educadora popular. Interessante esse aforismo.
Prestemos atenção que não diz que a cabeça só pensa onde os pés pisam, mas que
sempre é possível pensar onde os pés pisam, há algo de diferente a se pensar quando se
pensa onde os pés pisam. Voltando a Conceição Evaristo, no mesmo poema, "quando se
anda descalço, cada dedo olha a estrada". Como relata também Ailton Krenak (2007)11,
sobre sua aprendizagem na infância,

a gente andava de pé livre. Pé livre, cabeça livre. A gente andava pisando na


pedra, pisando no chão. A gente ia por dentro da água metendo o pé, assim,
no fundo e a gente sabia era de matéria orgânica que tava podre, de material
que estava ali. Aquelas coisas que caíam de folha, de mato. Ou se o chão era
de areia, ou uma laje de pedra. A gente ia pegando isso tudo de sensação. Era

9
As referências sobre o projeto podem ser encontradas no livro Currículos diferenciados das escolas
indígenas, caiçaras e quilombolas: política e metodologia, de Domingos Nobre et. Al., 2019.
10
Ouvi de Laura dos Santos algumas vezes, em rodas de conversa. Tentei buscar alguma autoria, mas a
frase aparece em inúmeros contextos, quase como um ditado. Aqui não importa pra mim a originalidade,
mas o significado e a força que a ideia ganha ao nos ser transmitida por Laura dos Santos. Assistindo uma
aula no México alguém citou a mesma frase como uma fala dos zapatistas. Então pode existir outras
fontes.
11
Entrevista de Ailton Krenak ao site do Museu da Pessoa. Disponível em
http://ailtonkrenak.blogspot.com/2009/05/arquivo-2007-entrevista-de-ailton-ao.html
o nosso pé que ia lendo o chão pra gente. A gente estava aprendendo. Então,
nós aprendemos tateando. Tateando o mundo, tateando a terra. Sentindo o
cheiro do mato, sentindo o cheiro dos bichos.

Daria para desdobrar ainda mais. Na frase o corpo está cindido em duas partes,
cabeça e pés, em cima o pensamento e embaixo o chão, a terra, o território, como
queiram. Então a frase só faz sentido quando se orienta para a reconexão entre cabeça e
pés, considerando que o mais comum é pensar com a cabeça... fora do chão, nas nuvens,
numa razão universal que prescindiria de sua relação imediata, concreta, com as
circunstâncias corporais e espaciais em que o pensamento se dá. E esse pressuposto do
conhecimento universal só se realiza a partir da cisão entre corpo e mente, emoção e
razão, sentir e pensar. Somente o corpo reconstituído em sua integridade pode colocar
em ação, habilitar, reencantar, iluminar com luz própria, luz de vela, o chão como lugar
de conhecimento, fazendo de cada rincão um centro. Então aqui juntamos o cabeça-pés
e o rincão-centro.

Os tempo-espaços outros que não escola


A educação do campo nos legou uma ideia chave para pensar o aprender nos
dias de hoje, que é a pedagogia da alternância. O termo foi criado nos anos 1930 na
França, a partir da experiência de escolas de famílias rurais iniciadas por Abbé
Granereau, mas desde lá muitas mudanças e adaptações aconteceram de acordo com os
diferentes contextos. O princípio é o definir um tempo-escola e um tempo-comunidade.
Mas o tempo-comunidade não seria um momento em que as crianças ficam na frente de
um computador ou celular, de longe, recebendo conteúdos. O tempo-comunidade é o
tempo em que as crianças aprendem na comunidade, da própria comunidade, de suas
práticas e afazeres, de seus saberes e histórias. O que se faz é trazer para dentro do
currículo aquilo que por muito tempo ficou relegado como menor. Não estaríamos nós
num longo período de tempo-comunidade, tempo-casa, tempo-corpo? Como
inscrevemos em nosso modo de aprender os tempo-espaços outros que não escola?
Já pensei esses dilemas do rincão-centro e do pé-cabeça em outras ocasiões e em
outras escalas. Pensava nisso em relação à própria universidade. O que significa estar
numa semiperiferia latino-americana, embora no coração do país, mas não na
metrópole, e sim no interior, e nesse interior não na maior cidade, Angra dos Reis, mas
na menor do lado, Paraty, e em Paraty ir conhecer e fazer escola, não no centro, mas nas
comunidades caiçaras, na costeira. E como se nessa pequena janela para o mundo es
pudesse ressignificar e refazer o percurso, trazendo do menor a chave de compreensão
de um lugar no mundo como se este se pusesse em contatos imediatos com qualquer
outra parte. Não foram poucas as vezes em que encontrei nos dilemas da experiência da
escola caiçara um insight para pensar o que fazer na universidade. É como as pedrinhas
miudinhas que nos "alumeiam", num encontro inusitado entre Walter Benjamin e o
Caboclo da Pedra Preta contado por Luiz Antonio Simas12. Por isso tendo a ver com
boas expectativas se a educação no município de Paraty nesses tempos pudesse ser
pensada a partir da experiência vivida nesses contextos das escolas caiçaras.
Como fazer isso? Na verdade isso já vem sendo feito de diversas formas pelos
professores e professoras, uma vez que o projeto proposto pela secretaria de educação
de Paraty justamente explorar as diferentes possibilidades de aprendizagem à distância.
Minha questão é como trazer isso para o centro do processo de aprendizagem dessas
crianças e jovens. Pois não deveria ser visto como algo menor. Mas o âmago de uma
experiência de aprendizagem radical e inventiva.
Hoje se fala muito em ensino à distância ou ensino remoto, através de
ferramentas virtuais que tentam reproduzir o ambiente de sala de aula permitindo uma
transmissão de conteúdos. A chave aqui, no entanto, pode não ser propriamente o
ensino, mas a aprendizagem, considerando já ponto pacífico que esta não corresponde
exatamente àquele. Mais do que ensino à distância virtual, trata-se de que a
aprendizagem se dá num ambiente não-virtual de proximidade. Não significa que a
aprendizagem só se dê nesse ambiente, mas que existe algo muito importante a se
aprender nesse ambiente, nesses tempo-espaços outros que não escola/universidade,
algo muito importante e que geralmente é negligenciado e que justamente poderia
promover essa imersão.
É o caso de imaginar e instituir um espaço de experiência e aprendizagem que
coincida com o espaço de nossa vivência cotidiana: o corpo, a casa e a comunidade (não
precisamos entrar em detalhes sobre o que é esta comunidade, somente pressupor que
ela pode existir ou estar latente no âmbito externo de nossa casa, mas não tão amplo que
chegue a coincidir com os recortes oficiais de gestão territorial). Existe um libelo

12
Luiz Antonio Simas escreve em Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros. Rio de
Janeiro: Mórula, 2013. O argumento é desenvolvido em Encontro de Walter Benjamin e o Caboclo da
Pedra Preta: o espaço escolar a contrapelo, palestra proferida na Fundação Getúlio Vargas em 2017.
libertário dos anos 1990, chama-se Zona Autônoma Temporária13, em que Hakim Bey
afirma que uma “psicotopografia é capaz de desenhar mapas da realidade em escala
1:1” contra o “imperialismo psíquico” do Estado. Seria o caso de buscar ativamente os
espaços “com potencial de florescer como zonas autônomas – dos momentos em que
sejam relativamente abertos, seja por negligência do Estado ou pelo fato de terem
passado despercebidos pelos cartógrafos”. Um tempo-espaço próprio surge na ruína do
mapa 1 por 1, aquele que é inútil ao império, como diria Borges14. O mapa 1 por 1 é
também a metáfora da incomensurabilidade, aqui traduzida como o desafio de cada um
produzir uma diferença que não possa ser medida pela régua padrão de referência..

Namastê pedagógico
Como não podemos nos encontrar no mesmo espaço, precisamos utilizar alguma
tecnologia de comunicação que permita a proposição de experiências presenciais. Pode
ser uma mensagem, um bilhete, um áudio ou vídeo, ou um email, ou uma carta. Mas a
aprendizagem não é o que se dá no momento da transmissão da mensagem, esta deve
conter uma proposição de algo para alguém que está do outro lado experimentar,
vivenciar em seu próprio lugar, no raio de alcance de sua ação e de suas possibilidades,
com os recursos disponíveis, por mínimos que sejam. Então isso também garante uma
noção de equidade e tornaria até mesmo desnecessário todo o questionamento se os
alunos possuem ou não acesso aos meios tecnológicos para a recepção de conteúdos. A
questão seria: quais meios existem e como condicionaremos a comunicação aos meios
existentes. Pois as experiências de aprendizagem devem ser possíveis em qualquer
contexto e, no limite, até mesmo ser potencializadas em contextos de desconexão
virtual, próprios à reconexão com o presente e o próximo.
Uma tradução para namastê, termo sânscrito popularizado ao redor do mundo
como saudação do ioga, é "o divino que habita em mim saúda o divino que habita em
você". É uma tradução mais interessante do que outra que diz "eu me curvo a você". O
namastê pedagógico seria então o reconhecimento desse espírito interno, que podemos
chamar aqui de inteligência, que pode ser ativado de dentro para fora, sendo o papel do

13
O livro me foi enviado pela Ingrid Xavier pelo correio em 2014.
14
A leitura mais comum destaca uma inutilidade absoluta do mapa 1 para 1, mas esquece que Borges
afirma que esse mapa é inútil para o império, o que poderia nos levar à ideia de que pode ser útil para
outras finalidades que não as do império e, no limite, ser justamente útil contra o império.
professor, que ensina, o de saudar e reconhecer a inteligência que habita naquele que vai
experimentar a atividade proposta. Enquanto o ensino à distância é dependente do canal
de comunicação, aqui o canal é esvaziado, em favor do que cada um pode realizar em
seu próprio âmbito. E também o professor deveria, para se comunicar com a experiência
do aluno, experienciar a proposta em seu próprio âmbito. Cumprida essa condição, o
canal seria reabilitado como meio para a troca de experiências, para compartilhar os
feitos, mas sem a fetichização das tecnologias virtuais tão propalada nos últimos meses.
Há uma noção interessante que podemos recuperar do livro O mestre ignorante,
de Jacques Rancière, que é a de "revelar uma inteligência a ela mesma". Diz ele: "há
sempre alguma coisa que o mestre pode pedir que descubra, sobre a qual pode
interrogá-lo e verificar o trabalho de sua inteligência". Em outro trecho: "sempre se
pode, mesmo no fundo da loucura desigualitária, verificar a igualdade das inteligências
e prestar contas dessa verificação". É esse "verificar a igualdade das inteligências" que
se combina com a ideia do namastê.

Do-in epistemológico
Do-in é uma outra ideia interessante para nossa analogia. Significa em japonês o
"caminho da casa", sendo aí o corpo saudável uma casa. Mas o princípio que nos
interessa aqui é o de que uma automassagem realizada em pontos acessíveis do próprio
corpo possa afetar outros pontos que estão interrelacionados pelos circuitos internos. É
uma relação entre ativar um ponto acessível, próximo, para afetar algo inacessível e que
está distante do ponto ativado. Então se a sola do pé possui todo um mapa de acesso a
partes do corpo que podem ser afetadas pelo toque, o caso aqui é fazer de nosso âmbito
de proximidade a sola do pé.
Reequilibrar significa também inverter certas hierarquias do conhecimento. A
ideia de "do-in antropológico" foi utilizada na política dos pontos de cultura, no saudoso
ministério da Cultura do Gilberto Gil. Um dos sentidos era justamente romper com uma
certa centralidade da cultura em "âmbitos restritos e restritivos das concepções
acadêmicas ou dos ritos e da liturgia de uma suposta classe artística e intelectual", como
enunciado em seu discurso de posse (GIL, 2003). Os pontos de cultura foram
espalhados nos recônditos e periferias, com ação capilar, fragmentada e conectada ao
mesmo tempo. Embora não estejam tão distribuídas como os pontos de cultura, a
distribuição das universidades no território, para interiores e periferias, modificou a
relação entre os territórios e os saberes, possibilitando olhares próprios,
contextualizados, imersivos, ali onde o conhecimento científico apenas chegava por
meio de pesquisas esporádicas ou prática profissional de egressos das universidades. A
dispersão horizontal (pelas cidades e regiões) de professores doutores, pesquisadores,
turmas de graduação e pós-graduação propiciou pequenas revoluções cognitivas nos
novos lugares onde o encontro entre o acadêmico e o popular puderam se influenciar. O
mesmo podemos dizer em relação à inclusão vertical (dos oriundos das escolas públicas
e das cotas raciais), que permitiu que as periferias irrigassem com suas presenças as
universidades ainda muito elitizadas e concentradas espacialmente.
O do-in epistemológico aqui proposto recupera o sentido de ativação das
extremidades, das margens, da epiderme social como um meio de reequilibrar a relação
entre saberes e poderes, reconsiderando os lugares remotos, ermos, marginais,
periféricos, subalternos, silenciados, esquecidos e mais quaisquer adjetivos que se possa
usar, como lugares de conhecimento. Isso vale para os pés, o corpo, a emoção e o
sensível e seus conhecimentos, em sua inferioridade frente à cabeça, à mente e à razão,
vale para a casa, a rua, o campo e a comunidade em relação aos espaços institucionais,
vale para os espaços das mulheres em relação ao dos homens, dos negros e índios em
relação ao dos brancos, das periferias em relação aos centros, e por aí vai. Não vamos
resolver tudo isso numa tacada, aqui estamos somente pensando que ativar um tempo-
espaço outro que não escola/universidade para uma aprendizagem não-virtual de
proximidade pode afetar conhecimentos que são produzidos no tempo-espaço da
escola/universidade. Mas certamente todas as clivagens listadas acima podem ser
tensionadas ao se fazer esse deslocamento.

A metadisciplina da pandemia: o que fazer?


Organizar as formas de aprender nesses tempos excepcionais nos convida a
desestabilizar os conteúdos, os currículos, os programas de curso e as disciplinas. Seria
o caso de considerar uma metadisciplina, que implicasse fazer da própria experiência a
forma e o conteúdo da aprendizagem. Em seguida, considerando a pandemia como um
fato social total, que incide sobre todos os domínios de conhecimento e saberes, um
momento que está sendo e será estudado por muitos anos, marcando nossa experiência e
sentimento de mundo, seria o caso de fazer deste tempo presente a matéria a ser
estudada.
Essa condição de metadisciplina implica que a experiência da aprendizagem
nesses tempos deva ser efêmera, não pode ser capturada como uma forma de dispensar
o ensino presencial no pós-pandemia. Ela deve ser também necessariamente incompleta,
não pode subsumir a totalidade dos conteúdos. Ela deve ser diversa, não pode ser
padronizada, pois produz sempre respostas infinitamente diferentes para questões
comuns. Ela deve ser também não excludente pelos critérios de acesso a tecnologias de
informação (internet, celulares e computadores), ou seja, precisa ser acessível a
qualquer situação de escassez e, no limite, chega a ter sua eficácia prejudicada quanto
mais dispositivos e conexões estiverem à disposição.
O primeiro desafio é o de estabelecer múltiplas conexões, mas esvaziando os
meios. É preciso comunicar via meios o mínimo necessário. Esses meios são os
mínimos múltiplos comuns que vão modular a maneira como as informações poderão
circular.
O segundo desafio é o de explorar os conhecimentos a serem produzidos e
apreendidos através de diferentes atividades que possam ser feitas num âmbito de
proximidade. Acataria aqui a sugestão de Gustavo Esteva: "recuperar os verbos é uma
forma muito clara de liberar a ação" (2013, p.22). Trata-se de substituir os "substantivos
como educação, saúde, emprego, habitação, etc. que nos instalam na dependência de
instituições contraprodutivas, por verbos como aprender, sanar, trabalhar, habitar, etc.,
que nos devolvem a iniciativa, a agência autônoma da transformação". Em seu artigo,
Esteva explora o potencial de quatro verbos: aprender, comer, sanar e fazer. Pensei em
juntar mais alguns, como sonhar, contemplar, organizar-se, recordar, plantar, escutar e
cantar. Tudo isso seria extremamente importante para nossa experiência de mundo nesse
período de confinamento. Imagino que alunos e professores estaríamos numa condição
de aprendizagem muito mais rica e frutífera em nosso retorno à sala de aula se
conseguíssemos alimentar a maneira como lidamos com esses verbos em nossa vida.
O terceiro desafio então seria o de conectar a experiência situada no âmbito de
proximidade e as diversas escalas pandemia, esse fato social total, em suas diferentes
faces, para além do espaço vivencial do corpo/casa/comunidade. O que não faltam são
artigos, ensaios e produções em todas as áreas de conhecimento e em diferentes
linguagens que buscam pensar o atual momento. Essa tarefa se apresenta mais factível
no âmbito da universidade, mas também poderia ser elaborada na educação básica.
A reflexão da pandemia me levou ao pensamento de renunciar às formas de
aprendizagem presencial que sejam executadas, na proximidade, como se fosse uma
ação à distância. Mas esse é um problema para o pós-pandemia. Imagino que o dilema
da educação está sendo o deslizar do nível intermediário da sala de aula para um
extremo da hipervirtualidade, mas que cabe pontuar no outro extremo a exigência de
uma co-presença ainda mais radical. Até lá, o que podemos fazer é experimentar nos
limites de nossa circunstância.
Resumindo, esses três desafios - estabelecer um meio de conexão, agir no
âmbito da proximidade e apreender o que se passa em outras escalas - podem ser
pensados nos diferentes níveis de aprendizagem. Acredito que poderíamos propor, na
universidade, um programa de aprendizagem que propiciasse essa experimentação. Com
o compromisso de que ao final poderemos nos encontrar novamente em sala de aula, no
pátio, na tenda, no jardim, na rua, e de alguma forma restituirmos a universidade como
um lugar possível do encontro, mesmo que tenhamos que reconstituir novas maneiras de
coabitarmos o mesmo espaço, como artesãos da presença.

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*
Professor de Geografia Humana do Departamento de Geografia e Políticas Públicas da
Universidade Federal Fluminense (Angra dos Reis).

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