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em tempos de democracia:
estratégias de propaganda na campanha
presidencial de Vargas em 1950
Mônica Almeida Korllis
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o filme Uma vida a serviço do Brasil pode ser subdividido em três partes,
para efeitos de análise. Com imagens oriundas dos cinejornais do DIP, a primeira
parte marca o compromisso de Vargas com a nação brasileira e, principalmente,
o caráter popular de sua candidatura, pela estreita relação demonstrada entre ele
e o povo não somente nos estádios - como era privilegiado pela propaganda
estadonovista -, mas também em concentraçoes de rua de natureza ignorada. A
segunda parte se volta para as realizações de seu governo e para a sua atuação
política, sem assemelhar-se, todavia, a um cinejornal. Por último, é retomada a
relação entre Vargas e as massas populares, agora já no contexto da campanha
eleitoral para a presidência da República, durante manifestação realizada em
estádio, na presença de outros políticos.
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principalmente, à volta dos pracinhas, fato esse que ocorre numa conjuntura
externa e interna de questionamento dos governos totalitários. Há, contudo,en
tre esses dois momentos, o registro das paradas da juventude durante o Estado
Novo, como que para demonstrar o apoio dos jovens. Inicialmente, as crianças
correm para abraçar Vargas, que rem a seu lado o ministro da Educação e Saúde
durante o Estado Novo, Gustavo Capanema,e o interventor do Estado do Rio de
Janeiro nesse mesmo período, seu genro Ernani Amaral Peixoto. Não há nada
além do registro da atenção dedicada às crianças, sendo possível especular que há
aqui uma humanização do líder, pois a referência não se soma às idéias de
educação e de proteção à infiincia - nos moldes dos cinejornais do Estado Novo-,
e parece servir para alternar com o momento seguinte, de maior tensão. Na
seqüência, o flash dirige-se à IH Reunião de Consulta dos Chanceleres
Americanos, evento ocorrido em meados de janeiro de 1942, no Palácio
T iradentes, no Rio de Janeiro, quando Vargas proclama o rompimento das
relações diplomáticas com os países do Eixo - Alemanha, Itália e Japão.
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uma campanha eleitoral). E esse o perfil que o filme deseja imprimir, e essa
transição marca os termos de seu desejo de voltar ao poder.
A locução em ojJ, ao privilegiar em seu texto a defesa da democracia,
torna-se um elemento igualmente importante nessa passagem, sobretudo por
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sua eloqüência. E através dela que se prepara a entrada da campanha no filme: "A
nação proclama. A nação o quer. E ele voltará". Realizada a passagem,junto com
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não só frustrada - pois ele não assume o poder - mas que podia ser identificada
com a permanência de um governo não-eleito no poder. Não haveria aí triunfo, e
sim a lembrança de uma derrota ou de uma presença não-democrática na pre
sidência da República, apesar da força do movimento queremista. A campanha
se faz, assim, com base no carisma de Vargas e em sua estreita relação com as mas
sas, isto é, com base na apresentação de uma face bem-sucedida e de consagração,
o que explicaria ainda a inexpressiva presença de políticos nos registros do
go�rno anterior.
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Não é fortuito que a narrativa de E ele voltou renha início numa conjuntura
hisrórica posterior à da criação do PTB, mais especificamente, quando V argas já
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não mais preside o país. E, assim, após o Estado Novo que Vargas - o grande
inspirador do PTB - entrará em cena, por meio da revelação de sua ligação com
as massas e de sua atuação polírica, como no filme anterior, mas através de seu
passado recente, no momento em que se encontra no Rio Grande do Sul, em
meados da década de 1 940. A narração segue os moldes de um documentário,
revelando contudo o apoio à campanha eleitoral de Vargas. Numa sincronia en
rre som e imagem, os fatos são apresentados, e, desde o início, uma voz evoca o
caráter de veracidade do que está sendo exibido, anunciando a possibilidade de
que alguns personagens já se tenham tornado oposição na conjuntura de 1950.
Há muita locução, e uma voz em offvibrante-e, por conseguinte, nada neutra
narra os fatos, com a intenção maior de explicar o impacto da presença de Vargas
na vida nacional. Não há uma linearidade cronológica no filme, o que significa
que a intenção da montagem também obedece a outros critérios, como veremos a
seguIr.
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3. COl/siderações gerais
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afirma Maria Celina Soares D'Araújo, torna sem dúvida possível - e talvez
indispensável - a utilização de imagens dos cinejornais do DIP por esses filmes.
Lembremos aqui a consrrução positiva da imagem de Vargas, elaborada durame
o Esrado Novo, em meio a discursos e imagens, num processo de culto à sua
personalidade. Esse culto era a todo mamemo construído por meio de sua
onipresença em manifestações cívicas e em homenagens ao chefe de Estado, em
outras manifestações de massa, em escolas, em comemorações e até mesmo em
bailes - através de estandartes com sua figura -, sem esquecer a fana produção de
canilhas e cartazes com sua imagem. 1 3 O personalismo de V argas na condução
de seus objetivos políticos é bastame marcado visualmente em ambas as
conjumuras, isto é, ramo no Estado Novo quanto na campanha presidencial de
1950, e, mesmo no filme E ele voltou., V argas é mostrado como um líder que
extrapola os limites do partido criado por ele próprio, o PTB. A escassa presença
de políticos nos filmes reforça essa constatação, assim como é praticameme
auseme a referência a alianças partidárias e a partidos, apesar da abertura deE ele
VOlIOU. Ao conrrário, o fato de esse último filme ser apresentado pelo PTB revela,
em toda a sua plenitude, a importância e a liderança de Vargas naquela agremia
ção. Mesmo a menção a rrabalhadores organizados em sindicatos atrelados ao
Estado - nos moldes implantados por Vargas durante seu governo -, os quais
comavam com seu apoio, não é contemplada nos filmes, reforçando a idéia de
que importava na campanha a revelação de uma ligação imediata entre Vargas e
as massas. O povo e a defesa dos imeresses nacionais são os pilares dessa can
didatura, a qual se vê represemada nesses filmes por imagens dos cinejornais do
DIP que evocam um passado em que essas questões eram igualmente vitais.
Os dois filmes apresentam, contudo, esrratégias distintas que os dife
renciam justo no processo que lhes é comum: na migração de imagens de outros
filmes realizados nos anos 1930 e 1940. Nos limites de uma narrativa voltada pa
ra a propaganda de Vargas, Uma vida a serviço do Brasil é um filme mais rico, do
pOntO de vista da construção e da evocação de uma simbologia e de referências
históricas, do que E ele voltou., que se apresema mais como um documentário que
remoma brevemente a um passado receme, concenrrando-se especialmen te na
mobilização popular em torno da candidatura Vargas no próprio ano de 1950.
Em ambos os filmes, no emanto, uma eloqüente narração em offsuprime
a locução original das imagens provenientes de outros filmes - no caso do Estado
Novo, suprime o comeúdo dourrinário contido em algumas imagens -, conferin
do-lhes assim um novo significado. As imagens apresentam-se emão como
flashes e criam um painel sobre as realizações e o apoio popular a Vargas, reto
mando o começo com o intuito de justificar a importância de seu retorno à presi
dência da República. O exame da montagem de ambos os filmes nos revela, por
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sua vez, como novos significados são construídos pela narrativa, para além das
relações sincrônicas entre som e imagem.
Não há, no conjunlO das imagens apresentadas, e nem mesmo nas ima
gens dos cinejornais do DIP em geral, uma primorosa elaboração estética nos
moldes dos filmes de propaganda nazista. Entre tais filmes, se destaca o filme
de Leni Riefenstahl, O triunfo da vontade (1934), sobre o congresso de Nurem
berg, no qual a massa, grandiosa e geometricamente organizada, acolhe seu lí
der, Hitler, que sempre é apresentado em colllre-plongée. Na realidade, o único
conjunto de imagens produzido durante o Estado Novo que possui uma qua
lidade estética indiscutível é a chamada Obra Getuliana, uma espécie de álbum
comemorativo dos dez anos de governo Vargas, que nunca foi editado e do qual
só se conhecem as falOs e o projelO edilOrial. 1 4 Ali, o grande tema é o governo
Vargas, embora sua figura esteja sempre ausente, ao contrário dos cinejornais do
DIP e do extenso material fotográfico produzido naquele mesmo período.
Entender os filmes Uma vida a serviço do Brasil e E ele voltou como docu
mento histórico, como fonte para o conhecimento histórico, significa, assim,
desconstruir suas construções narrativas e, nessa operação, examinar a res
significação da visualidade do Estado Novo na propaganda eleilOral de Vargas
em 1950.
Notas
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7. Nas ruas, faixas são rapidamente das Forças Armadas, "partilhando com
apresentadas, mas em duas delas Vargas as atenções dos espcc13dorcs",
consegue-se ler ExérciLo c Marinha,
/ I. Nos créditos do filme, há um
enquanto na entrada de Vargas no
agradecimento ao apoio do Centro
estádio a única faixa é a do Senai.
Nacional Queremis13.
Durante a enlTada no estádio, há rápidas
aparições do ministro do Traba1ho, 12. Para a discussão sobre esse tema, ver I
Alexandre Marcondes Filho, e do Araújo ( 1 982).
ministro da Guerra, general Eurico 13. Sobre esse tema, ver Araújo
Gaspar Dutra. ( 1 986: 1 02·22), Oliveira, VeUoso e Gomes
8. Sobre as imagens do DIP referentes a ( 1 982) e Lacerda e Kornis ( 1 997).
essa questão, ver Souza (2003: 50·1). 14. Esse material integra o arquivo
Ainda sobre os cinejornais do DIP, ver pessoal de Gustavo Capanema,
Pereira (2002). deposilado no CPDOC da Fund ação
9. Ver Araújo ( 1 982). Getulio Vargas. Sobre a Obra Getuliana e
a contratação de fotógrafos alemães,
10. José Inácio de Melo Souza
ambas infl uenciadas por uma estética
(2003: 50) aponta para a importância,
expressionista, vcr Lacerda (2000).
nos cinejornais do DIP, da presença
R�ferêllcias bibliográficas
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Res/I/JIo
Este artigo analisa a construção narrativa dos filmes UlIla vida a serviço do
Brasil e E ele voltou, realizados em 1 950 como propaganda da campanha de
Gerúlio Vargas à presidência da República. A singularidade desses filmes
consiste no fato de que são basicamente construídos por imagens produzidas
durante o Estado Novo ( 1937-1945) e que, sendo estas apropriadas por essas
produções, há uma ressignificação de seus conteúdos primeiros. Pretende-se
usar este breve estudo para a discussão de aspectos importantes das
possibilidades e dos desafios do trabalho com imagens, dada a natureza
específica desse tipo de registro.
Palavras-chave: imagem, Getúlio Vargas, cinema, campanha presidencial de
1950.
Ahstrnct
The article examines the movie piclUres Uma vida a se,-viço do Brasil e E ele
voltou, both made in 1950 as pieces of propaganda for Getúlio Vargas
presidential campaign. The singularity of these picrures lies in the fact [har
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they have been made out of images produced during V argas dictatorsbip of
Estado Novo ( 1 937-1 945), and tbat tbese images have acquired a new meaning
in their new contexto It is our purpose to use tbis brief study to discuss
importam aspects concerning the possibilities and challenges of working with
lmages.
•
RéslIlllé
Cet article analyse la consrruction narrative des films Uma vida a serviço do
Brasil e E ele voltou, qui om été réalisés en 1950 comme pieces de propagande
pour l'élection de Getúlio Vargas à la présidence de la République. La
singularité de ces deux films réside dans le fait qu'ils som construits par des
images qui Ont été produites pendam la dictature de l'Estado Novo •
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