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Imagens do autoritarismo

em tempos de democracia:
estratégias de propaganda na campanha
presidencial de Vargas em 1950
Mônica Almeida Korllis

Imagens fílmicas sobre a vida pública e/ou a figura do ex-presidente Ge­


túlio Vargas são seguidamente veiculadas pela mídia televisiva, sendo exibidas
tanto em programas jornalísticos, com uma perspectiva documental, quanto na
programação ficcional, como foram os casos da minissérieAgosto ( 1 993) e, mais
recentemente, da telenovela Esperallça, ambas realizadas pela Rede Globo de
Televisão. Somando-se essas imagens às dos documentários produzidos após o
governo Vargas e, sobretudo, às fotografias impressas em jornais e revistas pu­
blicados ao longo dessas várias décadas, é imediata a constatação da existência de
um conjunto de registros que, apropriado ao longo de mais de meio século,

Nota: Mônica Almeida Kornis é pesquisadora do CPDOC da Fundação GelUlio Vargas.

Estudos Hist6ricos, Rio de j�lnciro� nO 34. julho-dezembro de 2004, p. 71-90.

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estudos históricos e 2004 - 34

reconstrói e reafirma a todo momento uma memória em torno da liderança


política mais importante da vida republicana brasileira. Produzidas em
diferentes momentos entre os anos de 1930 e 1954, essas imagens foram criadas
principalmente durante o Estado Novo (1937-1945), justamente como estratégia
de difusão da ideologia do novo regime. Nesse período, sob a coordenação do
DepartamenlO de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em dezembro de 1939,
visava-se explicitamente à construção de uma imagem positiva de V argas e de
seu governo como forma de sustentar o projeto político-ideológico de matriz
autoritária que se procurava afirmar. I Os cinejornais produzidos por esse órgão
apresentavam uma sociedade em desenvolvimento, submetida aos desígnios de
um poder de Estado centralizado, sem a demonstração de conflitos. Com o
objetivo de criar um novo país, privilegiavam a exaltação nacionalista e o
progresso economtCO.
- .

E evidente que nem tOdas as imagens utilizadas durante e após o


governo Vargas foram produzidas durante o Estado Novo, especialmente as
imagens individuais do ex-presidente e aquelas referentes ao momento da
lOmada do poder em 1930. Podemos, contudo, destacar a importância daquele
conjunto de registros fotográficos e/ou filmicos da época do Estado Novo como
testemunho inconteste da popularidade e da liderança de Vargas. Transformados
em verdadeiros ícones ao longo das últimas cinco décadas, tais registros
reinventam a todo momento o mito em torno de sua figura.
Essas observações de caráter geral nos conduzem à base da questão que
se discutirá neste artigo, numa tentativa de problematizar o trabalho com
imagens no campo da história. Pretende-se utilizar este breve estudo para a
discussão de aspectos importantes do trabalho com imagens, os quais se referem
às suas possibilidades e desafios, dadas a particularidade e a natureza de seus
registros. Desta forma, cabe sempre a indagação sobre como analisar as imagens,
na medida em que, além de não se constituírem como expressão direta do real,
assumem novos significados no momento em que são deslocadas para contextOs
históricos e formalOs narrativos distintos. Tomamos como pressupostO que esse
movimento de apropriação por diferentes estratégias narrativas impõe novos
significados às imagens, considerando sobretudo a forma de seu conteúdo em
outras produções e conjunturas históricas. No caso em questão, esse processo se
deu não somente após a morte de Vargas, mas também durante a campanha
presidencial de 1950, através de dois filmes realizados como peças de propa­
ganda de sua candidatura: Uma vida a serviço do Brasil e E elevol/ou, produções de
A. Botelho e de Aristeu Santana, respectivamente .2
No interior dessa problemática, este artigo pretende examinar em que
termos se deu o processo de "migração de imagens" 3 nesses filmes, islO é, como
foram inseridas imagens produzidas em outros contextOs históricos e narrativos,

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Imagens do autoritarismo em tempos de democracia

impondo uma ressignificação de seus conteúdos primeiros. A primeira vista,


essa possibilidade pode nos causar um certo impacto: como imagens produzidas
por um Estado centralizado e ditatorial podem ser utilizadas num contexto de
propaganda democrática? Como e quais imagens produzidas para enaltecer a
imagem de V argas num governo autoritário, típicas de uma visual idade
estadonovisra, foram utilizadas numa campanha eleitoral democrática) Como
podem aquelas imagens se adequar a um espírito democrático? Como podem
ainda servir a objetivos políticos de natureza distinta)
A dimensão ilusória da imagem como fiel reprodução do real fica então
evidenciada a partir dessa possibilidade, o que nos leva a concluir com Pierre
Sorlin (1994: 95) que a imagem é mentirosa. Imagens podem ser utilizadas para
quaisquer fins, não sendo por si só provas de verdade, muito embora não possa­
mos desconhecer a existência de um registro do real na imagem documental.4 O
exercício crítico de desconstrução do discurso contido em ambos os filmes
pressupõe, desta forma, não o exame isolado das imagens, mas, ao contrário, a
análise de suas estratégias narrativas, também distintas entre si. Examinaremos,
assim, simultaneamente, imagens de campanha democrática e de governo au­
toritário, o que indica a complexidade das relações entre história e imagem,com­
plexidade esta que se afasta da noção de uma relação necessariamente direta en­
tre ambas, ou seja, entre o evento propriamente dito e sua representação. In­
vestigaremos o modo como, numa conjuntura democrática, a propaganda se
utiliza de registros obtidos num governo autoritário, num processo definido por
múltiplas combinações, pela relação entre som e imagem, montagem e enqua­
dramentos, segundo a intenção desejada. Trabalhar com as imagens desses fil­
mes significa, sobretudo, apontar para a peculiaridade do exame de narrativas
fílmicas construídas por relações específicas entre a imagem e o som, que se ar­
ticulam através de uma montagem. Trata-se, assim, de entendê-las não como ex­
pressão de uma propaganda autoritária - forma como aprendemos a vê-las, no
interior do contexto político que as produziu - mas, neste caso, como produtoras
de uma imagem positiva para um candidato à presidência da República em
campanha democrática. Ou seja, trata-se de examiná-las como formuladoras de
novos significados, apontando para questões referentes à história política repu­
blicana brasileira, examinada u·adicionalmente através de documentos escritos.
Como veremos a seguir, estão presentes nos dois filmes perspectivas
distintas, embora ambos enfatizem, em suas construções narrativas, a
importância do ano de 1930, momento no qual se afirma nacionalmente a
liderança política de Vargas. Uma vida a serviço do Brasil utiliza-se fartamente de
imagens produzidas nos anos 1940, durante o Estado Novo, para destacar as
realizações de Vargas e reafirmar sua liderança juntO às massas, o que é o ponto
central de sua narrativa. Já E ele voltou apresenta Vargas sob O ponto de vista do

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estlldos históricos e 2004 - 34

Panido T rabalhista Brasileiro (PTB), privilegiando a voz em ojJ, num modelo de


documentário, acompanhado por imagens produzidas preferencialmente du­
rante a própria campanha presidencial.
Nada se sabe sobre a circulação desses filmes e muito menos sob.e sua
recepção. Essa constatação não invalida, no entanto, a análise do projeto ali
contido: a construção de um determinado perfil de uma liderança política que,
apoiada em seu carisma pessoal e num forte sentimento nacionalista, atributos
construídos pela propaganda estadonovista, tinha como objetivo central eleger
Vargas para a presidência da República.

1. A campa/lha persOIzalista elll Uma vida a serviço do Brasil

o filme Uma vida a serviço do Brasil pode ser subdividido em três partes,
para efeitos de análise. Com imagens oriundas dos cinejornais do DIP, a primeira
parte marca o compromisso de Vargas com a nação brasileira e, principalmente,
o caráter popular de sua candidatura, pela estreita relação demonstrada entre ele
e o povo não somente nos estádios - como era privilegiado pela propaganda
estadonovista -, mas também em concentraçoes de rua de natureza ignorada. A
segunda parte se volta para as realizações de seu governo e para a sua atuação
política, sem assemelhar-se, todavia, a um cinejornal. Por último, é retomada a
relação entre Vargas e as massas populares, agora já no contexto da campanha
eleitoral para a presidência da República, durante manifestação realizada em
estádio, na presença de outros políticos.
-

E possível constatar de imediato a importância que o filme confere à


relação de Vargas com as massas, sempre urbanas, resgatando não só imagens
dispersas nas centenas de filmes realizados pelo DIP, mas também registros
contemporâneos à campanha. Na construção do filme, essa relação se apresenta
inicialmente de forma a-histórica, pois não se situa em nenhum lugar no tempo,
surgindo como algo já dado, consolidado e cristalizado, como registro da força de
uma liderança, aclamada nos estádios e nas ruas: o povo é unido pelo som do
discurso de Vargas. A primeira parte do filme se atualiza na terceira parte, que
registra as imagens da campanha propriamente dita, mas agora em moldes
documentais. Já a segunda pane se volta para a atuação de Vargas, por meio de
um conjunto de referências a suas realizações de governo, centradas no período
do Estado Novo, como que dando o substrato para a importância de sua presença
na vida política e econõmica da nação. Configuram-se dois tempos de forma
bastante nítida: parte-se do mito - da identificação de algo que foge à ordem do
real e se apóia na emoção manifestada em toda parte e em qualquer tempo - e
chega-se à história - momento no qual se realiza a campanha eleitoral -,

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Imagens do autoritarismo em tempos de democracia

passando pelas realizações de governo apresentadas entre esses dois movimen­


tos, sem urna preocupação com a datação histórica.
As duas questões centrais do filme são colocadas nos seus primeiros mo­
mentos: a identificação de Vargas com a nação e com o povo brasileiro. Após os
letreiros da produção e do tímlo, a primeira cena do filme mostra Vargas erguen­
do a bandeira nacional, tendo ao fundo o som de um coral que canta o Hino da
Bandeira; segue-se uma revoada de pássaros, e há um retorno à imagem inicial
de Vargas erguendo a bandeira. A apresentação da figura de Vargas com a ban­
deira nacional, celebrada por música que evoca a nação brasileira, estabelece
uma conexão imediata entre Vargas e a nação, apontando para a simbiose entre
ambos, além de um compromisso nacionalista. Em seguida, uma voz em off men­
ciona que Vargas "presta conta de seus atos" e se refere à democracia, em cena que
retrata urna concenrração popular e a entrada de Vargas no estádio do clube do
Vasco da Gama, em carro abeno, sorrindo e acenando para o povo. A longa du­
ração da cena de Vargas acenando para a platéia, somada ao close em sua figura,
estabelece urna relação positiva entre ele e as massas populares, em seguida à re­
lação que se estabelecera entre ele e a nação, via o hasteamento da bandeira. Pro­
duzidas durante o Estado Novo, essas cenas se difundiram ao longo das décadas
posteriores como algumas das imagens mais importantes e fones de Vargas, na
evocação do carisma do conhecido "pai dos pobres".5 A utilização, em of!, da ex­
pressão "espíritO democrático" cria, por sua vez, um novo significado para essas
imagens originalmente criadas num contexro auroritário.
A 1'07. em olfsai de cena com o discurso de Vargas em estádio, no qual ele
remonta ao momemo em que toma o poder e assume o governo federal, na cha­
mada Revolução de 1930, demarcando o início de sua presença na vida política
nacional, ao mesmo tempo que recupera, naquele momento histórico, o marco
de construção do Estado nacional e da justiça social, em oposição à experiência
liberal da República Velha.6 No discurso, aborda ainda a importância da eman­
cipação econômica e do apoio ao trabalhador, além da aproximação com os Es­
tados Unidos e a questão da defesa nacional, posto que o mundo está em guerra.
O discurso de Vargas introduz, no filme, uma hisroricidade ausente nas
imagens apresentadas, cuja preocupação central é demonstrar a unanimidade do
aplauso ao líder e a sua onipresença. Não há nem mesmo a intenção de regisrrar
exclusivamente Vargas e a massa no estádio. Ao contrário, sem o recurso à voz em
oJJ; toda essa seqüência alterna as imagens do próprio líder em tomada lateral­
tendo como segundo plano, desfocada, a massa homogeneizada - com as de sua
platéia, formada não só por essa audiência no estádio, que inclui crianças
uniformizadas, mas também por concentrações de populares nas ruas, em
imagens em plano geral, captadas em eventos de natureza desconhecida.) Não há

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est/lrfos ',istóricos e 2004 - 34

tomadas de V argas em colltre-plollgée, estratégia típica de enaltecimento da figura


humana que também foi utilizada nos cinejornais do DIP. Destacam-se os
aplausos e a euforia das massas, criando uma unanimidade que é construída pela
montagem, que une o líder e as massas, dentro e fora do estádio, tornando sua
o

figura onipresente. A distância, povo e líder juntoS, afirma-se a liderança de


Vargas por meio de sua fala, de sua figura e do aplauso consagrador de sua
popularidade, num espetáculo de "confraternização social" .s E todo esse re­
pertório é propiciado por imagens dos cinejornais do DIP, que produziram em
grande escala imagens em torno do apoio popular a Vargas, tendo os estádios
como cenário privilegiado, sobretudo o de São Januário, no Rio de Janeiro, capi­
tal da República. Os estádios constituíam-se como o local das grandes mani­
festações cívicas, incluindo as comemorações pelo Dia do Trabalho e pelo ani­
versário do presidente. O filme, contudo, não registra exclusivamente uma mas­
sa organizada. Ao contrário, as imagens de rua - evidentemente produzidas em
alguma outra ocasião, e com sonoridade distinta - mostram os populares em
momento de euforia, como se estivessem igualmente ouvindo o discurso de Var­
gas. A valorização de todo esse aplauso reitera o tom personalisra que, gestado no
período autoritário, na relação'do presidente com as massas, perdurará ao longo
de uma campanha eleitoral na qual o carisma político será um fator decisivo.
Uma vida a serviço do Brasil corrobora sem dúvida o caráter apartidário que Var­
gas imprime em sua campanha, reiterando o seu comprometimento com a nação
e com o povo brasileiro, e confirmando o peso do seu personalismo.9 A operação
de montagem dessa seqüência é, assim, vital no processo de construção de um
consenso popular em torno do candidato.
A narração em offé retomada enquanto Vargas sai do estádio, tendo a seu
lado o ministro Alexandre Marcondes Filho, que se tornou um dos principais
arriculadores do PTB em 1945. Ainda demonstrando a ligação de Vargas com as
massas, sucedem-se imagens que registram benefícios já proporcionados por ele
ao povo, sem que se faça, no entanto, qualquer menção à legislação sindical e
trabalhista consolidada entre os anos de 1930 e 1940.
Os "benefícios", aqui, equivalem a concessões: referem-se à criação de
casas populares e de escolas técnicas. Instaura-se nessas cenas um tom docu­
mental, sem que seja possível perceber se o som é ou não original. Pela primeira
vez, figuras do mundo político do período do Estado Novo são destacadas, como
Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, e Adernar de Barros,
interventor de São Paulo entre os anos de 1938 e 1941 e, mais tarde, quando
governador de São Paulo (1947-195 1), um importante articulador da aliança en­
tre o PT B e o Partido Social Progressista (PSP) na campanha presidencial de
1950.

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Imagens do autoritarismo em teUlpos de democracia

Inaugurando a segunda pane do filme, Vargas tem o seu lugar como


figura central da narrativa reassegurado - nas imagens e nas referências em of!
que identificam pontualmente o que se passa na tela -, agora por meio do relato
das ações de seu governo: a locução somente anuncia e localiza, em tom elogioso
e por vezes triunfal, o que se verá na tela; o som assume um papel fundamental na
condução das imagens, imprimindo a marca da ação de Vargas à frente do
governo e reforçando o caráter personalista do filme como um todo. São spots de
sua presença, em diferentes locais, como chefe de Estado, que serão valorizados.
Como que relatando a ação governamental e enfatizando o progresso do país du­
rante sua gestão, são destacadas várias realizações suas em diferentes segmentos
da economia - agriculrura, pecuária, indústria, comércio, grande siderurgia,
extração mineral e petróleo -, além das atividades nas empresas por ele criadas­
usina em Volta Redonda e Fábrica Nacional de Motores - e da construção de
hospitais, rodovias e ferrovias. Isso é feito com uma alternância de imagens, na
maior parte das vezes panorâmicas, em que a figura de Vargas é protagonista, e
com uma voz em of! que menciona seu nome a cada mudança de tema. Há uma
onipresença de sua figura à frente desse conjunto de realizações, mas não há nem
o detalhamento do conteúdo dessas imagens, nem a identificação de outras per­
sonalidades eventualmente presentes nas diferentes situações apresentadas.
Essas realizações são registradas de uma forma grandiosa - com a atenção vol­
tada para as inúmeras pessoas presentes durante inaugurações e lançamentos de
projetos - na qual a aclamação é o elemento principal. A música, por sua vez, é
um dado fundamental nessa sucessão de imagens, pois ela modula o conteúdo
apresentado: enquanto as referências às atividades no campo, como a pecuária,
são acompanhadas por canções da campanha gaúcha, a idéia de progresso, con­
tida nas atividades de transformação, como a indústria e a siderurgia, é acom­
panhada por uma trilha sonora que imprime velocidade. Já a evocação do na­
cionalismo tem seu lugar tanto na referência ao petróleo existente na Bahia
quanto na fala segundo a qual esse produto liberta a pátria do estrangeiro.
As breves cenas em que Vargas demonstra sua ligação com a Igreja se
situam no intervalo entre a seqüência das grandes ações de seu governo e as cenas
que apresentam suas realizações, bem como sua popularidade, em cada estado da
federação. O respeilO às tradições religiosas se faz presente por meio do seu
comparecimento em missa celebrada pelo cardeal dom Sebastião Leme e da ação
de sua esposa, Darcy Vargas, à frente da doação de brinquedos para crianças
pobres durante o Natal, prática assistencialista recorrente durante o Estado No­
vo e fartamente documentada pelos cinejornais. A música de fundo durante a
missa, Ave Maria, introduz um tom solene às cenas, e o mesmo ocorre com a
canção natalina Noite feliz, na entrega de presentes aos pobres e nas cenas refe­
rentes à construção de abrigos. Há aqui uma nova conjunção entre Vargas e o
povo: através das atividades de sua esposa como primeira-dama, reforça-se o

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vínculo de sua imagem com a de proteror dos pobres. Caridade e cristianismo se


associam nessa prática de assistência à criança e ao jovem igualmente cara ao
Estado Novo. No conjunto, essa seqüência impõe uma queda no acelerado ritmo
narrativo em rorno das realizações de Vargas, não só pelo conteúdo, mas,
sobretudo, por uma banda sonora menos veloz. Esse será o tratamenro dado à
questao da assistência social, à apresentação de sua esposa - único momento de
sua aparição - e ao seu compromisso cristão, em clara associação com o
assistencialismo.
Um novo repertório de realizações de Vargas privilegia então a sua
presença nos estados, mantendo a idéia do amplo apoio popular obtido em todos
os lugares. Com a retomada de uma trilha sonora de marcha triunfal, que
dinamiza o ritmo narrativo, São Paulo é o primeiro dos estados apresentados
através do apoio popular, recebido agora no estádio do Pacaembu - local que
sediou algumas manifestações populares, inclusive os festejos do Dia do
Trabalho, em 1944. São apresentadas as imagens tradicionais de acenos em carro
aberto e de faixas exaltando Vargas, além de retratos em grandes estandartes,
objetos fartamente utilizados em várias situações durante o Estado Novo para
o

exaltação da figura do presidente. A imagem de Vargas discursando não é


acoplado o som original. O relato segue com imagens de Vargas em outros
estados, o que reitera a idéia de dinamismo e de um chefe de Estado que não
particulariza interesses regionais: no Paraná, há imagens da população local e de
suas realizações no estado, e no Rio Grande do Sul, há registros exclusivos do
povo e dele próprio. A referência ao Nordeste se faz somente através de
construções e obras, e a locução menciona que tais realizações têm como objetivo
"libertar o povo". Manifestações de apoio popular na região da fronteira do sul
do país e a inauguração de uma ponte que liga o Brasil ao Uruguai se somam à
menção à manifestaçao calorosa do povo fluminense. Após breve alusão à
construção de uma adutora na capital, para garantia do abastecimento de água, o
bloco finaliza fazendo referência ao centro do país e também aos índios,
fechando a seqüência num ritmo mais lento. Constata·se que, na seqüência em
que é registrada a atenção dada aos estados, as imagens privilegiam a presença do
povo, sem que apareçam políticos, o que reitera o objetivo expresso de
demonstrar a ligação direta entre Vargas e as massas. As manifestações, por sua
vez, não são identificadas pela locução: a idéia é afirmar exclusivamente essa
estreita relação, atualizando a importância da questão da unidade nacional, que
fora um dos pilares de sustentação do Estado Novo.
Os meios de comunicação possuem uma presença pontual no filme,
quando, a seguir, a imprensa, e junto com ela, jornalistas e profissionais do cine­
ma são mencionados, com atenção à inauguração da Imprensa Nacional, além de
almoço na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), com a presença de Oswaldo

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Imngens do nutoritnrismo em tem/-,os de democracin

Aranha e Herberr Moses, personagens imponantes na veiculação das idéias go­


vernamentais durante o Estado Novo.
Após essa breve menção, um outro ângulo da unidade nacional é
retomado no destaque à defesa nacional, acompanhado por uma trilha sonora
que impõe o ritmo de uma marcha, como que numa batalha. No formato de
cinejornal, inúmeros fatos ocorridos durante o Estado Novo são evocados como
flashes, muito embora não haja a identificação dos inimigos interno e externo - o
comunismo e o nazi-fascismo - como era feito nos filmes daquele período, o que,
naquele contexto, justificava a imponância e o peso das Forças Armadas para a
segurança do país.lo Sucedem-se imagens da inauguração do Ministério da
Guerra; de parada militar, em grandes panorâmicas que registram a panicipação
popular e a potência dos veículos; de demonstração do aparelhamento militar do
país; de cerimônia na Escola Técnica do Exército; de homenagem a Duque de
Caxias durante a condecoração de oficiais; de recepção ao presidente da Argen­
tina Agustin Justo, e, finalmente, de desfile da Força Expedicionária Brasileira
(FEB).
As cenas iniciais desse bloco pretendem revelar o fone investimento
realizado no aparelhamento do Exército - e em seguida da Marinha e da
Aeronáutica - e no aumento da qualidade do contingente humano - aprimorado
pela existência de escolas técnicas -, que incrementaram a capacidade de defesa
do país. A referência à FEB, por sua vez, pode ser entendida como reveladora do
engajamento do país num conflito mundial, e, nesse caso, a menção à defesa da
democracia no exterior estabelece uma ligação positiva com o caráter
democrático da conjuntura do início da década de 1950. Entre as cenas voltadas
para as ações da Marinha e da Aeronáutica, são introduzidas imagens breves de
aulas de educação física, as quais, todavia, em nada se assemelham à idéia
estadonovista de destacar o espone como fator fundamental no projeto de
construção de um "novo homem". As tomadas panorâmicas confirmam essa
hipótese, distinguindo-se assim de imagens veiculadas durante o Estado Novo,
nas quais o recurso ao c/ose tinha como efeito a valorização do corpo humano. As
imagens, aqui, simplesmente pontuam a importância da preparação dos jovens
para o exercício de suas atividades. Em relação à Aeronáutica, além do destaque
dado à produção de aviões e à criação de bases aéreas, são registradas imagens de
Vargas em datas festivas e de sua condecoração pelo ministro da Aeronáutica
Salgado Filho (1941-1945), destacando-se ainda O vigor dos escoteiros.
A introdução de cenas de Vargas com crianças, em passeios por
Petrópolis, imprime então uma narrativa mais ágil, baseada ainda emflashes de

diferentes temas. E nesse contexto, em meio à demonstração de um amplo afeto e


do apoio popular, em função da receptividade dos jovens, que se seguem
registros do compromisso democrático nacional, através da menção à guerra e,

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eswnos históricos e 2004 - 34

principalmente, à volta dos pracinhas, fato esse que ocorre numa conjuntura
externa e interna de questionamento dos governos totalitários. Há, contudo,en­
tre esses dois momentos, o registro das paradas da juventude durante o Estado
Novo, como que para demonstrar o apoio dos jovens. Inicialmente, as crianças
correm para abraçar Vargas, que rem a seu lado o ministro da Educação e Saúde
durante o Estado Novo, Gustavo Capanema,e o interventor do Estado do Rio de
Janeiro nesse mesmo período, seu genro Ernani Amaral Peixoto. Não há nada
além do registro da atenção dedicada às crianças, sendo possível especular que há
aqui uma humanização do líder, pois a referência não se soma às idéias de
educação e de proteção à infiincia - nos moldes dos cinejornais do Estado Novo-,
e parece servir para alternar com o momento seguinte, de maior tensão. Na
seqüência, o flash dirige-se à IH Reunião de Consulta dos Chanceleres
Americanos, evento ocorrido em meados de janeiro de 1942, no Palácio
T iradentes, no Rio de Janeiro, quando Vargas proclama o rompimento das
relações diplomáticas com os países do Eixo - Alemanha, Itália e Japão.

E por demais sabido que as paradas de mobilização da juventude, du-


rante o Estado Novo, foram bastante recorrentes na comemoração das datas
nacionais, em cujos desfiles reunia-se um grande contingente de jovens
uniformizados que marchavam diante do presidente. Um desses desfiles é
apresentado no filme em seguida, e o tratamento não-detalhado das figuras que
dele participam aponta para a função exclusiva de registro de uma comemoração
de massa, expressão de uma nação organizada que apóia Vargas. No filme, a
referência ao desfile tem um caráter discreto, se comparada à intensidade de sua
presença nos cinejornais, e nas primeiras cenas não há informação sobre a
natureza da referida manifestação.
Na narrativa, essas cenas abrem caminho para uma outra manifestação
de massa que, além de marcar o fim da seqüência que apresenta as realizações e os
eventos importantes dos quais Vargas participou, estabelece a passagem entre o
fim do Estado Novo e a campanha presidencial. Trata-se da volta dos pracinhas
da guerra, desfilando sob a aclamação popular e assistidos pelo presidente, com
uma locução que registra que Vargas não aceitava a luta, tendo-a defendido
exclusivamente em função de sentimentos humanitários. Essas cenas criam,
sem dúvida, um elo entre o compromisso democrático de Vargas naquele
momento (no ano de 1945), e no filme (em 1950, na conjuntura democrática de

uma campanha eleitoral). E esse o perfil que o filme deseja imprimir, e essa
transição marca os termos de seu desejo de voltar ao poder.
A locução em ojJ, ao privilegiar em seu texto a defesa da democracia,
torna-se um elemento igualmente importante nessa passagem, sobretudo por

sua eloqüência. E através dela que se prepara a entrada da campanha no filme: "A
nação proclama. A nação o quer. E ele voltará". Realizada a passagem,junto com

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Imagens do fwtoritnrislIlO cm tcmpos de democracia

o texto "E ele voltará", o som é de música tipicamente gaúcha, remontando às


raízes de Vargas e como que apontando para um recomeço. A primeira imagem é
a do estádio do Pacaembu, local da primeira manifestação da campanha, e há
uma correspondência entre a locução e a imagem, como num cinejornal. Essa
manifestação, na qual o povo chega com faixas, é descrita, sendo a locução mais
eloqüente que a imagem, que registra exclusivamente a movimentação das
pessoas entrando no estádio. Pela primeira vez, é mencionada a coligação
PSP-PTB, e o momento apoteótico é registrado: Vargas entra no estádio, tendo a
seu lado Adernar de Barros, que, junto com ele, seria o articulador da referida
aliança na campanha de 1950. Após as imagens de Café Filho e Adernar de Barros
discursando, a locução aponta para o desejo de Vargas de conclamar a população
a comparecer às urnas em 3 de outubro, num apelo que no filme se justifica pela
demonstração do apoio popular obtido ao longo de seu passado como chefe da
naçao.
-

Há uma ausência de imagens referentes ao queremismo - movimento


criado em 1945, que visava à permanência de Vargas no poder -, e a passagem
para a campanha eleitoral de 1950 propriamente dita se faz por meio da intro­
dução de imagens relativas à volta dos pracinhas. Há, certamente, a intenção
explícita .de marcar mais a opção pelo compromisso democrático, que se
difundia a partir do fim da guerra em todo o mundo, do que por uma campanha
-

não só frustrada - pois ele não assume o poder - mas que podia ser identificada
com a permanência de um governo não-eleito no poder. Não haveria aí triunfo, e
sim a lembrança de uma derrota ou de uma presença não-democrática na pre­
sidência da República, apesar da força do movimento queremista. A campanha
se faz, assim, com base no carisma de Vargas e em sua estreita relação com as mas­
sas, isto é, com base na apresentação de uma face bem-sucedida e de consagração,
o que explicaria ainda a inexpressiva presença de políticos nos registros do
go�rno anterior.

2. O oll/ar pctcbista em E ele voltou

Outra perspectiva da propaganda eleiroral de Vargas é exposta pelo filme


E ele voltou. Apresentado como uma colaboração do PTB à "monumental
cruzada de 1950", esse filme possui uma narrativa distinta, que se apóia
principalmente no registro da própria campanha eleitoral - o que é enunciado
desde as primeiras cenas -, e em imagens colhidas no período pós-1945, as quais
não integram portanto os cinejornais do DIP. O caráter personalista da
campanha permanece, mas trata-se agora de um filme com uma ligação
partidária explicitada desde a abertura, cuja trilha sonora é o hino do PTB, o que
revela um compromisso partidário inexistente em Uma vida a se,-viço do Brasil.

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cS/lldos históricos - 2004 - 34

Não é fortuito que a narrativa de E ele voltou renha início numa conjuntura
hisrórica posterior à da criação do PTB, mais especificamente, quando V argas já
-

não mais preside o país. E, assim, após o Estado Novo que Vargas - o grande
inspirador do PTB - entrará em cena, por meio da revelação de sua ligação com
as massas e de sua atuação polírica, como no filme anterior, mas através de seu
passado recente, no momento em que se encontra no Rio Grande do Sul, em
meados da década de 1 940. A narração segue os moldes de um documentário,
revelando contudo o apoio à campanha eleitoral de Vargas. Numa sincronia en­
rre som e imagem, os fatos são apresentados, e, desde o início, uma voz evoca o
caráter de veracidade do que está sendo exibido, anunciando a possibilidade de
que alguns personagens já se tenham tornado oposição na conjuntura de 1950.
Há muita locução, e uma voz em offvibrante-e, por conseguinte, nada neutra­
narra os fatos, com a intenção maior de explicar o impacto da presença de Vargas
na vida nacional. Não há uma linearidade cronológica no filme, o que significa
que a intenção da montagem também obedece a outros critérios, como veremos a
seguIr.

E possível dividir a narrativa de E ele voltou em quatro panes: a


apresentação do filme como uma contribuição do PTB, tendo em vista a
campanha presidencial de Vargas; a trajerória do ex-presidente a panir do fim do
Estado Novo; a comparação entre o momento em que Vargas assumiu o poder e a
época em que ele já cumpriu dez anos de mandato, e, finalmente, a campanha
eleitoral.
Após o som do hino do PTB e o texto informarivo sobre o caráter
documental do filme, a informação "o solitário de Im", apresentada na rela, de­
fine o marco temporal no qual tem início a narrativa: trata-se do período pós­
Estado Novo, quando Vargas passa uma longa temporada na fazenda Santos
Reis, no município de São Borja. A política se raz presente imediatamente, na
medida em que, após considerações gerais em off sobre esse momento da vida do
ex-presidente, acompanhadas por imagens do pampa gaúcho com o próprio
Vargas ao fundo, há o registro da chegada de políticos àquele estado para visi­
tá-lo. A reiterada presença de Adernar de Barros em todo o filme revela a impor­
tância do pacto que seria firmado meses antes da eleição, em 1 950, entre PTB e
PSP Além disso, faz-se referência a Vargas e a Ademar de Barros como os dois
maiores líderes do populismo da atualidade, e alude-se ao pacro propriamente
diro, com vistas a uma solução para a sucessão presidencial. Nesse primeiro mo­
mento, a voz em offnarra os eventos, demonstrando em imagens o que esrá sendo
diro.
O bloco narrativo seguinte concentra-se na exposição das atividades de
Vargas, com ênfase nas suas realizações de governo entre 1 938 e 1 939, isto é, du­
rante os primeiros anos do Estado Novo, apresentando conteúdos certamente

82
ImageJls do nutoritnrismo em tem/Jos de dCl1locrncitr

extraídos dos cinejornais do Departamento Nacional de Propaganda (DNP) e,


em seguida, do DIP. A estratégia de exibição desse conteúdo se realiza pela con­
traposição de imagens do Brasil em 1 930 e quase dez anos depois, numa eficiente
fórmula de evocação das idéias de progresso e de dinamismo: a introdução de um
ritmo mais rápido na apresentação das imagens se faz pela divisão da tela em qua­
tro quadros, marcando o "antes" e o "depois". Há, assim, uma pedagogia na de­
monstração das realizações de V argas, a qual é diversificada em vários campos,
especialmente econômicos. Como um relatório visual acompanhado pela leitura
de um conjunto de realizações e sem música, as imagens referentes ao petróleo
jorrando inauguram a série.
A referência à intensa atividade produtiva consubstanciada na grande
esquadra existente no país - e aqui a questão da defesa nacional se impõe - é
seguida pela menção a várias melhorias, tais como saneamen to da baixada,
eletrificação, construção de estradas de ferro e de rodagem, plano rodoviário,
recuperação da economia agrícola e da pecuária. Após a alusão à reorganização
do serviço de obras contra secas, são introduzidos os trabalhadores a partir dos
benefícios recebidos, como a casa própria e os restaurantes populares. As cenas
que demonstram a relação positiva entre Vargas e as massas trabalhadoras
desembocam, ao final, na referência à educação física e ao esporte, com a
exaltação da importância desses aspectos na formação moral do povo.
Diferentemente do filme anterior, que não lança mão dessas cenas, E ele voltou
utiliza as imagens da propaganda estadonovista que pregavam a construção de
um novo homem. RelOma-se, lOdavia, nessa construção narrativa, a relação
direta entre Vargas e as massas, às quais ele concede benefícios, como em Uma
vida a serviço do Brasil.
- O ritmo dinâmico impresso pela exibição desse conjunto de imagens é
certamente conveniente para estabelecer, mais adiante, uma relação com a
campanha eleilOral de Vargas. Do ponto de vista da construção narrativa, tal
conjunto expressa dinamismo econômico e atenção aos trabalhadores como
peças indissociáveis desse processo, além de apontar para a questão da segurança
nacional, que inaugura o bloco e é caracterizado como elemento fundamental na
consolidação da unidade nacional.
Destacam-se, em seguida, os fatos políticos e as demonstrações
populares de apoio a Vargas, com a clara intenção de historiar grandes feitos de
sua gestão. Narrados em ritmo mais lento, ao som de marchas, com locução
apologética e com a distinção dos vários momentos exposta por letreiros, os
eventos apresentados concentram-se entre os anos de 1 942 e 1 944, conjuntura na
qual a questão do alinhamento brasileiro aos EUA é mais evidenciada. O
primeiro conjunto de imagens se reporta à Conferência dos Chanceleres, e
constirui o único momento em que a voz de Vargas é ouvida, tendo a guerra como

83
estllnos históricos e 2004 - 34

referência. Todo um conjunto de situações ligadas ao alinhamento aos ESLados


Unidos se faz presente a panir daí: do encontro com Roosevelt à volta dos
pracinhas em 1945, passando por imagens de navios torpedeados, manchetes de
jornais, texto contra o nazismo e contra Hitler. Ainda com um fundo musical
composto por marchas, são exibidos uma manifestação popular no V asco, em
1943, a aclamação popular durante uma vis ita de Vargas a Curitiba, em 1 944, e o
desfile de V argas em carro aberto durante a comemoração do Dia do Trabalho,
nesse mesmo ano, no estádio do Pacaembu, em São Paulo. São as marcas do auLO­
ritarismo do Estado Novo que se fazem aqui presentes como momentos de passa­
gem para a aclamação popular em prol da candidatura Vargas.
Grandiosidade dos encontros do povo com Vargas nos estádios, ban­
deiras tremulando, formação de pessoas com seu retrato, desfile em carro aberto
com o típico aceno para as massas: são esses os registros que, na construção nar­
rativa, preparam a volta de Vargas de Im, rumo à campanha presidencial. Como
dado relevante, a demonstração de confiança e popularidade, dois elementos
capazes de reconduzir Vargas ao poder. Vale lembrar que essa é uma propaganda
não de governo, mas de um panido que aspira ao governo, diferemememe da
propaganda do DfP Mas são esses os conjuntos visuais que concebem a cam­
panha democrática, incluindo aí as apologéticas manifesLações de massa ocor­
ridas durante o Estado Novo. Diferentemente do filme anterior, não são os pra­
cinhas, ali evocadores da vitória da democracia, que marcam a passagem para a
campanha de Vargas, e sim o próprio povo que com ele celebra o Dia do Traba­
lho no ano de 1 944.
São, assim, as imagens do 1 0 de maio no Pacaembu que amecedem as
manchetes de jornais que nos apresentam a sucessão presidencial e, panicular­
mente, a candidatura Vargas. Após o letreiro em que se lê "Getúlio candidato do
povo ao pleito", é apresentada a saída de Vargas de !tu, num momento de
despedida dos peões de sua fazenda - em que Vargas tem a seu lado Ademar de
Barros -, numa alternância sonora de ritmos triunfais com música regional
gaúcha. Há a evocação de um recomeço, de um afastamento de suas raízes para o
retorno à vida pública, e a fusão de duas sonoridades distimas evidencia esse
mOVlmemo.

A panir daí, o filme assume um caráter documental sobre a campanha,


partindo de uma apresentação apoteótica da ampla receptividade da população
em relação a Vargas em várias cidades brasileiras. A força da unanimidade se faz
presente. Alternando som ambiente - de onde emergem os gritos de "Getúlio,
Getúlio, Getúlio" e a exclamação de "já ganhou" - e voz em offassociada ao que se
vê em imagens, sucedem-se manifestações de apoio nas cidades de Porto Alegre,
São Paulo e Rio de Janeiro. Na chegada ao estádio do Vasco da Gama, tradicional
cenário das manifestações cívicas durante o Estado Novo, são aprese ma das as

84
Imagens do autoritarismo em tClJlpOS de dcmocracia

imagens de Café Filho e Adernar de Barros discursando. Reiterando o apoio que


emerge de todos os cantos do país, sucedem-se as visitas ao Mato Grosso, a Goiás
e à cidade de Uberaba, em que é conferido destaque ao tradicional aceno de mão,
tendo ao fundo as massas. Não há corpo a corpo, mas há sempre uma estreita
relação com as massas, marcada pela condição de um líder que é aclamado em
meio à grandiosidade desses encontros.
Apesar de o filme narrar, a partir desse momento, a campanha eleitoral,
há um retorno para o ano de 1945, com a chamada "A chama queremista de
1945". Com uma voz em off que se refere àquele período como o do "mais im­
pressionante movimento de massas do país", estabelece-se aí um elo entre o de­
sejo dos partidários de Vargas em 1945 e a possibilidade de realização desse dese­
jo por meio do voto em 1950. Essa montagem estabelece assim uma relação com a
eleição. Isto é, o que antes era o desejo de permanência num governo imposto,
como o de 1937, tornava-se agora uma nova possibilidade, dada pelo voto. O que­
remismo retoma como uma chama que não se apagou. No mesmo momento, são
apresentadas manchetes de jornais que se referem à campanha de 1950 e à
convocação final "às urnas". Lembremos mais uma vez que o PTB foi criado
com o apoio de Vargas em 1945, numa conjuntura bastante próxima à formação
do movimento queremista n
Em linhas gerais, vemos que há uma presença latente do PTB no filme se
atentamos para o rato de que, desde o início, o partido se apresenta por meio de
seu hino e dos letreiros iniciais, revelando que estamos diante de uma peça de
propaganda partidária, apesar de haver também a preocupação em afirmar a
veracidade do que está sendo mostrado. A narrativa propriamente dita se inicia
com Vargas em !tu e com a menção a articulações políticas. Ao final do relato das
experiências anteriores de Vargas no poder, as quais darão o substrato para a
-relevância de sua candidatura, há um retorno a Itu, como ponto de partida para a
campanha presidencial. A evocação do queremismo nos remete ainda para a
campanha do PTB, em 1945, pregando a candidatura Vargas, e se soma à
eloqüência - apresentada em imagens e por voz em off - do encontro do então
presidente com as massas. Aliás, essa relação é bastante explorada no filme,
sendo no entanto mais excessiva na narração da campanha eleitoral de Vargas.

3. COl/siderações gerais

A estratégia de ressignificação das imagens operada nesses dois filmes


merece ainda algumas observaçoes, independentemente das características e dos
rumos assumidos pela campanha propriamente dita, o que fugiria aos objetivos
deste artigo. 12 O fato de a campanha do candidato Vargas se basear na sua
liderança carismática e na sua relação imediata e direta com as massas, como

85
estudos !ristó/'icos e 2004 - 34

afirma Maria Celina Soares D'Araújo, torna sem dúvida possível - e talvez
indispensável - a utilização de imagens dos cinejornais do DIP por esses filmes.
Lembremos aqui a consrrução positiva da imagem de Vargas, elaborada durame
o Esrado Novo, em meio a discursos e imagens, num processo de culto à sua
personalidade. Esse culto era a todo mamemo construído por meio de sua
onipresença em manifestações cívicas e em homenagens ao chefe de Estado, em
outras manifestações de massa, em escolas, em comemorações e até mesmo em
bailes - através de estandartes com sua figura -, sem esquecer a fana produção de
canilhas e cartazes com sua imagem. 1 3 O personalismo de V argas na condução
de seus objetivos políticos é bastame marcado visualmente em ambas as
conjumuras, isto é, ramo no Estado Novo quanto na campanha presidencial de
1950, e, mesmo no filme E ele voltou., V argas é mostrado como um líder que
extrapola os limites do partido criado por ele próprio, o PTB. A escassa presença
de políticos nos filmes reforça essa constatação, assim como é praticameme
auseme a referência a alianças partidárias e a partidos, apesar da abertura deE ele
VOlIOU. Ao conrrário, o fato de esse último filme ser apresentado pelo PTB revela,
em toda a sua plenitude, a importância e a liderança de Vargas naquela agremia­
ção. Mesmo a menção a rrabalhadores organizados em sindicatos atrelados ao
Estado - nos moldes implantados por Vargas durante seu governo -, os quais
comavam com seu apoio, não é contemplada nos filmes, reforçando a idéia de
que importava na campanha a revelação de uma ligação imediata entre Vargas e
as massas. O povo e a defesa dos imeresses nacionais são os pilares dessa can­
didatura, a qual se vê represemada nesses filmes por imagens dos cinejornais do
DIP que evocam um passado em que essas questões eram igualmente vitais.
Os dois filmes apresentam, contudo, esrratégias distintas que os dife­
renciam justo no processo que lhes é comum: na migração de imagens de outros
filmes realizados nos anos 1930 e 1940. Nos limites de uma narrativa voltada pa­
ra a propaganda de Vargas, Uma vida a serviço do Brasil é um filme mais rico, do
pOntO de vista da construção e da evocação de uma simbologia e de referências
históricas, do que E ele voltou., que se apresema mais como um documentário que
remoma brevemente a um passado receme, concenrrando-se especialmen te na
mobilização popular em torno da candidatura Vargas no próprio ano de 1950.
Em ambos os filmes, no emanto, uma eloqüente narração em offsuprime
a locução original das imagens provenientes de outros filmes - no caso do Estado
Novo, suprime o comeúdo dourrinário contido em algumas imagens -, conferin­
do-lhes assim um novo significado. As imagens apresentam-se emão como
flashes e criam um painel sobre as realizações e o apoio popular a Vargas, reto­
mando o começo com o intuito de justificar a importância de seu retorno à presi­
dência da República. O exame da montagem de ambos os filmes nos revela, por

86
ImageJJs do autoritarismo em tempos de democracia

sua vez, como novos significados são construídos pela narrativa, para além das
relações sincrônicas entre som e imagem.
Não há, no conjunlO das imagens apresentadas, e nem mesmo nas ima­
gens dos cinejornais do DIP em geral, uma primorosa elaboração estética nos
moldes dos filmes de propaganda nazista. Entre tais filmes, se destaca o filme
de Leni Riefenstahl, O triunfo da vontade (1934), sobre o congresso de Nurem­
berg, no qual a massa, grandiosa e geometricamente organizada, acolhe seu lí­
der, Hitler, que sempre é apresentado em colllre-plongée. Na realidade, o único
conjunto de imagens produzido durante o Estado Novo que possui uma qua­
lidade estética indiscutível é a chamada Obra Getuliana, uma espécie de álbum
comemorativo dos dez anos de governo Vargas, que nunca foi editado e do qual
só se conhecem as falOs e o projelO edilOrial. 1 4 Ali, o grande tema é o governo
Vargas, embora sua figura esteja sempre ausente, ao contrário dos cinejornais do
DIP e do extenso material fotográfico produzido naquele mesmo período.
Entender os filmes Uma vida a serviço do Brasil e E ele voltou como docu­
mento histórico, como fonte para o conhecimento histórico, significa, assim,
desconstruir suas construções narrativas e, nessa operação, examinar a res­
significação da visualidade do Estado Novo na propaganda eleilOral de Vargas
em 1950.

Notas

1. Para um breve painel sobre a conmdo recebido até hoje um


implementação de políticas de exame como documenro histórico
comunicação em algumas partes do propriamente dito.
mundo naquele momemo, e sobre a
propaganda do Estado Novo, ver Gomes
3. Tomo aqui de empréstimo a expressão
que intitula o artigo de Jean-Claude
(2003). N a página 1 1 4 (notas I e 2), a
Bemadet publicado em Teixeira (2004).
aurora arrola ainda vários trabalhos que
têm como objeto a propaganda políLica e 4. Sobre essa discussão, ver Bazin ( I 983)
a cultura política do Estado Novo. e Dubois ( 1 990).
2. Depositados no CPDOC da Fundação 5. Foi certamente essa condição de
Getulio Vargas e integrantes do arquivo
imagem-ícone que levou os realizadores
pessoal de Getúlio Vargas, ambos os
de AgoslO a selecioná-la como uma das
filmes são bastante consullados por
imagens de abertura da minissérie,
reunirem um conjunto de imagens sobre
exibida pela Rede Globo em 1994.
a atuação do ex-presidente durante o
Estado Novo e, secundariamenre, sobre a 6. Sobre essa questão, ver Araújo
campanha presidencial, não tendo (1982).

87
estudos históricos . 2004 - 34

7. Nas ruas, faixas são rapidamente das Forças Armadas, "partilhando com
apresentadas, mas em duas delas Vargas as atenções dos espcc13dorcs",
consegue-se ler ExérciLo c Marinha,
/ I. Nos créditos do filme, há um
enquanto na entrada de Vargas no
agradecimento ao apoio do Centro
estádio a única faixa é a do Senai.
Nacional Queremis13.
Durante a enlTada no estádio, há rápidas
aparições do ministro do Traba1ho, 12. Para a discussão sobre esse tema, ver I
Alexandre Marcondes Filho, e do Araújo ( 1 982).
ministro da Guerra, general Eurico 13. Sobre esse tema, ver Araújo
Gaspar Dutra. ( 1 986: 1 02·22), Oliveira, VeUoso e Gomes
8. Sobre as imagens do DIP referentes a ( 1 982) e Lacerda e Kornis ( 1 997).
essa questão, ver Souza (2003: 50·1). 14. Esse material integra o arquivo
Ainda sobre os cinejornais do DIP, ver pessoal de Gustavo Capanema,
Pereira (2002). deposilado no CPDOC da Fund ação
9. Ver Araújo ( 1 982). Getulio Vargas. Sobre a Obra Getuliana e
a contratação de fotógrafos alemães,
10. José Inácio de Melo Souza
ambas infl uenciadas por uma estética
(2003: 50) aponta para a importância,
expressionista, vcr Lacerda (2000).
nos cinejornais do DIP, da presença

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Res/I/JIo
Este artigo analisa a construção narrativa dos filmes UlIla vida a serviço do
Brasil e E ele voltou, realizados em 1 950 como propaganda da campanha de
Gerúlio Vargas à presidência da República. A singularidade desses filmes
consiste no fato de que são basicamente construídos por imagens produzidas
durante o Estado Novo ( 1937-1945) e que, sendo estas apropriadas por essas
produções, há uma ressignificação de seus conteúdos primeiros. Pretende-se
usar este breve estudo para a discussão de aspectos importantes das
possibilidades e dos desafios do trabalho com imagens, dada a natureza
específica desse tipo de registro.
Palavras-chave: imagem, Getúlio Vargas, cinema, campanha presidencial de
1950.

Ahstrnct
The article examines the movie piclUres Uma vida a se,-viço do Brasil e E ele
voltou, both made in 1950 as pieces of propaganda for Getúlio Vargas
presidential campaign. The singularity of these picrures lies in the fact [har

89
esturfos históricos e 2004 - 34

they have been made out of images produced during V argas dictatorsbip of
Estado Novo ( 1 937-1 945), and tbat tbese images have acquired a new meaning
in their new contexto It is our purpose to use tbis brief study to discuss
importam aspects concerning the possibilities and challenges of working with
lmages.

[(ey words: image, Getúlio Vargas, cinema, presidemial campaign in 1950.

RéslIlllé
Cet article analyse la consrruction narrative des films Uma vida a serviço do
Brasil e E ele voltou, qui om été réalisés en 1950 comme pieces de propagande
pour l'élection de Getúlio Vargas à la présidence de la République. La
singularité de ces deux films réside dans le fait qu'ils som construits par des
images qui Ont été produites pendam la dictature de l'Estado Novo •

( 1 937-1945), ce qui impose une resignification de leurs comenus. A partir de


cene étude, on veur discurer des aspects importams concernam les possibilités
et les défis du rravaille avec des images en fonction de leur propre nature.
MOls-clés: image, Getúlio Vargas, campagne de Vargas en 1950.

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