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O Pensamento Hétero1

Monique Wittig2 (1980)

Em anos recentes em Paris, a linguagem


enquanto fenômeno tem dominado os sistemas
teóricos modernos e as ciências sociais, e entrou nas discussões políticas dos
movimentos de libertação das lésbicas e das mulheres. Tal acontece porque a
linguagem relaciona-se com um importante campo político onde o que está em jogo
é o poder, ou, mais ainda, uma rede de poderes, uma vez que existe uma
multiplicidade de linguagens que constantemente agem sobre a realidade social. A
importância da linguagem enquanto tal como um interesse no jogo político foi
apenas recentemente percebida3. Mas o gigantesco desenvolvimento da lingüística,
a multiplicação das escolas lingüísticas, o advento das ciências da comunicação, e o
tecnicalismo das metalinguagens que estas ciências utilizam, representam os
sintomas da importância daquilo que está em jogo politicamente. A ciência da
linguagem invadiu outras ciências, como a antropologia através de Levi-Strauss, a
psicanálise através de Lacan, e todas as disciplinas que se desenvolveram com base
no estruturalismo.

A semiologia de Roland Barthes na sua fase inicial quase escapou ao domínio


da lingüística para tornar-se uma análise política dos diferentes sistemas dos signos,

1
Este texto foi lido pela primeira vez em New York na Modern Language Association Convention em
1978 e dedicado às lésbicas estadunidenses.
Está versão em português foi tirada do site: http://mulheresrebeldes.blogspot.com.br/2010/07/sempre-
viva-wittig.html. Acessado em 23/12/2015
2
Monique Wittig (1935-2003) tem doutorado em Ciências Sócias pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales, é poetisa e teórica feminista francesa. Sua primeira obra publicada foi “L'Opoponax”
(1964), sua segunda obra foi “ Les Guérillères”(1969). Em 1973 publicou o “Le Corps Lesbien (traduzido
para o inglês “Lesbians Body” em 1975 como o).Em 1992 publicou o livro The Straight Mind and Other
Essays”. Suas obras tiveram grande impacto nos Woman’s Studies e Gays and Lesbians Studies no EUA.
Wittig está ligada a corrente do feminismo lésbico radical.
Fonte: www.moniquewittig.com/bio/bio.html
3
Todavia, os Gregos clássicos sabiam que não existia poder político sem domínio da arte da retórica,
sobretudo na democracia.
para estabelecer uma relação entre este ou aquele sistema de signos - por exemplo,
os mitos da classe da pequena burguesia - e a luta de classes dentro do capitalismo
que esse sistema tende a ocultar. Fomos quase salvas, pois a semiologia política é
uma arma (um método) de que precisamos para analisar aquilo a que se chama a
ideologia. Mas o milagre não durou. Em vez de introduzir na semiologia conceitos
que lhe são estranhos – neste caso os conceitos do Marxismo - Barthes rapidamente
declarou que a semiologia era apenas um ramo da lingüística e que a linguagem era

o seu único objetivo.

Assim, o mundo inteiro é apenas um grande registro onde as mais diversas


linguagens surgem, sendo registradas, tal como a linguagem do Inconsciente4, a
linguagem da moda, a linguagem da troca das mulheres onde seres humanos são
literalmente os signos utilizados para comunicar. Estas linguagens, ou melhor, estes
discursos, encaixam uns nos outros, interpenetram-se, apoiam-se uns aos outros,
reforçam-se uns aos outros, auto originam-se, e dão origem uns aos outros. A
lingüística dá origem à semiologia e à lingüística estrutural dá origem ao
estruturalismo que por seu lado dá origem ao Inconsciente Estrutural. O conjunto
destes discursos produz uma estática confusa para o(a)s oprimido(a)as, que o(a)s faz
perder de vista a causa material da sua opressão e o(a)s lança numa espécie de

vácuo a-histórico.

Porque esses discursos produzem uma leitura científica da realidade social na qual
os seres humanos são dados como invariantes, não tocados pela história e não
trabalhados por conflitos de classe, com psiques idênticas porque geneticamente
programadas. Esta psique, igualmente intocada pela história e não trabalhada por
conflitos de classe, fornece aos especialistas, desde o princípio do século XX, um
arsenal inteiro de invariantes: a linguagem simbólica que, muito vantajosamente,
funciona com muito poucos elementos, já que, como os dígitos (0-9), os símbolos
"inconscientemente" produzidos pela psique não são muito numerosos. Assim, estes
símbolos são muito fáceis de serem impostos, através da terapia e da teorização, ao
inconsciente coletivo e individual. Ensinam-nos que o inconsciente, com perfeito

4
Ao longo deste artigo, quando se refere o uso de Lacan do termo “o inconsciente” ele é posto em
maiúsculas, seguindo o seu estilo.
bom gosto, se estrutura por metáforas, por exemplo, o nome-do-pai, o complexo de
Édipo, a castração, o assassínio-ou-morte-do-pai, a troca de mulheres, etc. Se o
Inconsciente é fácil de controlar, não o é, porém, por qualquer pessoa. À semelhança
das revelações místicas, a aparição dos símbolos na psique exige interpretações
múltiplas. Apenas os especialistas conseguem decifrar o inconsciente. Apenas eles,
os psicanalistas, podem (são autorizados?) a organizar e interpretar manifestações
psíquicas que mostrarão o símbolo no seu significado pleno. E, enquanto que a
linguagem simbólica é extremamente pobre e na sua essência cheia de lacunas, as
linguagens ou metalinguagens que a interpretam estão-se a desenvolver, cada uma
delas, com uma riqueza, um aparato, que até agora apenas as exegeses lógicas

conseguiram igualar.

Quem deu aos psicanalistas o seu conhecimento? Por exemplo, para Lacan,
aquilo a que ele chama o "discurso psicanalítico", ou a "experiência analítica", ambos
lhe "ensinam" aquilo que ele já sabe. E cada um lhe ensina aquilo que o outro lhe
ensinou. Mas quem irá negar que Lacan descobriu cientificamente, através da
"experiência analítica" (de alguma forma uma experiência) as estruturas do
Inconsciente? Quem será suficientemente irresponsável a ponto de ignorar os
discursos das pessoas psicanalizadas deitadas nos seus divãs? Na minha opinião não
há dúvida que Lacan encontrou no inconsciente as estruturas que disse que lá
encontrou, pois tinha-as previamente posto lá. As pessoas que não caíram sob o
poder da instituição psicanalítica poderão sentir uma incomensurável sensação de
tristeza perante o grau de opressão (de manipulação) que os discursos
psicanalizados demonstram. Na experiência psicanalítica há uma pessoa oprimida, a
pessoa psicanalizada, cuja necessidade de comunicação é explorada e que (da
mesma maneira que as bruxas podiam, sob tortura, apenas repetir a linguagem que
os inquisidores queriam ouvir) não tem outra hipótese (se não quer destruir o pacto
implícito que lhe permite comunicar e de que precisa) senão tentar dizer o que é
suposto ser dito. Dizem que isto pode durar uma vida inteira - cruel contrato que
constrange um ser humano a exibir o seu infortúnio a um opressor que é
diretamente responsável por esse infortúnio, que o(a) explora econômica, política e
ideologicamente e cuja interpretação reduz esse infortúnio a umas quantas figuras

de retórica.

Mas poderá a necessidade de comunicação que este contrato implica ser


satisfeita apenas na situação psicanalítica, no ser curada(o) ou usada(o) como
"experiência"? Se acreditarmos em testemunhos recentes5 de lésbicas, feministas e
homossexuais masculinos, tal não é o caso. Todos estes testemunhos sublinham o
significado político da impossibilidade enfrentada por lésbicas, feministas e
homossexuais na sua tentativa de comunicar na sociedade heterossexual, a não ser
com um psicanalista. Ao compreender o estado geral das coisas (a pessoa não está
doente nem procura a cura, tem um inimigo) o resultado é que a pessoa oprimida
quebra o contrato psicanalítico. Isto é o que aparece nos testemunhos, juntamente
com o ensinamento que o contrato psicanalítico não era um contrato feito com
consentimento, mas um contrato forçado.

Os discursos que acima de tudo nos oprimem, lésbicas, mulheres, e homens


homossexuais, são aqueles que tomam como certo que a base da sociedade, de
qualquer sociedade, é a heterossexualidade6. Estes discursos falam sobre nós e
alegam dizer a verdade num campo apolítico, como se qualquer coisa que significa
algo pudesse escapar ao político neste momento da história, e como se, no tocante a
nós, pudessem existir signos politicamente insignificantes. Estes discursos da
heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que nos impedem de falar a menos
que falemos nos termos deles. Tudo quanto os põe em questão é imediatamente
posto a parte como elementar. A nossa recusa da interpretação totalizante da
psicanálise faz com que os teóricos digam que estamos a negligenciar a dimensão
simbólica. Estes discursos negam-nos toda a possibilidade de criar as nossas próprias
categorias. Mas a sua ação mais feroz é a implacável tirania que exercem sobre os
nossos seres físicos e mentais.

Ao usarmos o termo demasiado genérico "ideologia" para designar todos os


discursos do grupo dominante, relegamos estes discursos para o domínio das Idéias
Irreais; esquecemos a violência material (física) que diretamente fazem contra as

5
Por exemplo, ver Karla Jay, Allen Young, eds Out of the Closets (New York: Links Books, 1972)
6
Heterossexualidade: uma palavra que apareceu pela primeira vez na língua francesa em 1911
pessoas oprimidas, violência essa produzida pelos discursos abstratos e "científicos",
assim como pelos discursos dos mass media. Gostaria de insistir na opressão
material dos indivíduos pelos discursos, e gostaria de sublinhar os seus efeitos

imediatos através do exemplo da pornografia.

As imagens pornográficas, os filmes, as fotos de revistas, os pôsteres publicitários


que vemos nas paredes das cidades, constituem um discurso, e este discurso cobre o
nosso mundo com os seus signos, tem um significado: as mulheres são dominadas.
Os semióticos podem interpretar o sistema deste discurso, descrever a sua natureza.
O que eles lêem ai, são signos cuja função não é significar e que não têm qualquer
razão de ser exceto a de serem elementos de um certo sistema ou natureza. Mas
para nós este discurso não está divorciado do real tal como está para os semióticos.
Este discurso não só mantém uma relação muito próxima com a realidade social que
é a nossa opressão (econômica e politicamente), mas, igualmente, é em si próprio
real já que é um dos aspectos da opressão, já que exerce um poder bem definido
sobre nós. O discurso pornográfico é uma das estratégias de violência que são
exercidas sobre nós: ele humilha, ele avilta, ele é um crime contra a nossa
"humanidade". Como técnica de assédio tem uma outra função, a de ser um aviso.
Ordena-nos que nos mantenhamos na linha e mantém na linha aquelas que teriam
tendência a esquecer quem são; esse discurso chama o medo. Estes peritos em
semiótica a que nos referimos previamente censuram-nos por confundirmos os
discursos com a realidade, quando nos manifestamos contra a pornografia. Não
vêem que este discurso é a realidade para nós, uma das facetas da realidade da
nossa opressão. Acreditam que estamos enganadas no nosso nível de análise.

Escolhi a pornografia como exemplo porque o seu discurso é o mais


sintomático e o mais demonstrativo da violência que nos é feita através de discursos,
assim como na sociedade em geral. Não há nada de abstrato acerca do poder que as
ciências e as teorias têm de agir materialmente e na realidade sobre os nossos
corpos e as nossas mentes, mesmo se é abstrato o discurso que produz esse poder. É
uma das formas de domínio, a sua própria expressão, como disse Marx. Eu diria,
alternativamente, um dos seus exercícios. Todxs xs oprimidxs conhecem este poder e
têm de lidar com ele. É aquele que diz: não tens o direito de falar porque o teu falar
não é científico e não é teórico, estás a um nível errado de análise, estás a confundir
discurso e realidade, o teu discurso é ingênuo, compreendes mal esta ou aquela

ciência.

Se o discurso dos sistemas teóricos modernos e da ciência social exercem


poder sobre nós, é porque esse discurso trabalha com conceitos que nos tocam de
perto. Apesar do advento histórico dos movimentos de libertação lésbica, feminista e
gay, cuja ação já transtornou as categorias filosóficas e políticas dos discursos das
ciências sociais, as suas categorias (assim brutalmente postas em questão) são, no
entanto utilizadas, sem serem examinadas, pela ciência contemporânea. Essas
categorias funcionam como primitivos conceitos num aglomerado de toda a espécie
de disciplinas, teorias e idéias correntes a que chamarei o pensamento hétero (Ver o
Pensamento Selvagem de Claude Levi-Strauss) Dizem respeito à "mulher", "homem",
"sexo", "diferença", e a toda a série de conceitos que carregam esta marca, incluindo
conceitos tais como "história", "cultura", e o "real". E embora tenha sido aceite em
anos recentes que não existe semelhante coisa como a natureza, que tudo é cultura,
permanece ainda um cerne de natureza que resiste a ser examinado, uma relação
excluída do social na análise - uma relação cuja característica é inescapável na
cultura, assim como na natureza, e que é a relação heterossexual. Chamar-lhe-ei a
relação social obrigatória entre "homem" e "mulher" (Aqui refiro-me a Ti-Grace
Atkinson e à sua análise do coito como uma instituição7.) Com a sua
inescapabilidade erigida em conhecimento, em princípio óbvio, em dado pré-
adquirido a qualquer ciência, o pensamento hétero desenvolve uma interpretação
totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e
simultaneamente de todos os fenômenos subjetivos. Posso apenas sublinhar o
caráter opressivo de que se reveste o pensamento hétero na sua tendência para
imediatamente universalizar a sua produção de conceitos em leis gerais que se
reclamam de ser aplicáveis a todas as sociedades, a todas as épocas, a todos os
indivíduos. Assim, fala-se de conceitos como a troca de mulheres, a diferença entre

7
Ti-Grace Atkinson, Amazon Odyssey (New York: Links Books, 1974), pp.13-23.
os sexos, a ordem simbólica, o Inconsciente, Desejo, jouissance, Cultura, História,
dando um significado absoluto a estes conceitos, quando são apenas categorias
fundadas sobre a heterossexualidade, ou sobre um pensamento que produz a

diferença entre os sexos como um dogma político e filosófico.

A conseqüência desta tendência para a universalidade é que o pensamento


hétero não pode conceber uma cultura, uma sociedade onde a heterossexualidade
não ordenaria não só todas as relações humanas mas também a sua própria
produção de conceitos e também todos os processos que escapam ao consciente.
Além disso, estes processos inconscientes são historicamente cada vez mais
imperativos naquilo que nos ensinam sobre nós próprio(a)s através da
instrumentalidade dos especialistas. A retórica que expressa estes processos (e cuja
sedução eu não subestimo) reveste-se de mitos, recorre ao enigma, caminha pelo
acumular de metáforas, e a sua função é a de poetizar o caráter obrigatório do

"serás-hetero-ou-não-serás".

Segundo este pensamento, rejeitar a obrigação do coito e das instituições


que esta obrigação produziu como sendo necessárias para a constituição de uma
sociedade, é simplesmente uma impossibilidade, já que proceder assim significaria
rejeitar a possibilidade da constituição do outro e rejeitar a "ordem simbólica",
tornar a constituição do significado impossível, sem o qual ninguém pode manter
uma coerência interna. Assim, o lesbianismo, a homossexualidade e as sociedades
que formamos não podem ser pensados nem falados, embora sempre tivessem
existido. Assim, o pensamento hétero continua a afirmar que é o incesto, e não a
homossexualidade, o seu maior tabu. Assim, pelo pensamento hétero, a
homossexualidade não passa de heterossexualidade.

Esta A sociedade hétero está baseada na necessidade, a todos os níveis, do


diferente/outro. Não pode funcionar economicamente, simbolicamente,
linguisticamente ou politicamente sem este conceito. Necessidade do
diferente/outro é uma necessidade ontológica para todo o aglomerado de ciências e
disciplinas a que chamo o pensamento hétero. Mas o que é o diferente/outro se não
a(o) dominada(o)? A sociedade heterossexual é a sociedade que não oprime apenas
lésbicas e homossexuais, ela oprime muitos diferentes/outros, oprime todas as
mulheres e muitas categorias de homens, todas e todos que estão na posição de
serem dominadas(os). Para constituir uma diferença e controlá-la é um “ato de
poder, uma vez que é essencialmente um ato normativo. Todos tentam mostrar o
outro como diferente, mas nem todos conseguem ter sucesso a fazê-lo. Tem que ser
socialmente dominante para se ter sucesso a fazê-lo”8. Por exemplo, o conceito de
diferença entre os sexos constitui ontologicamente as mulheres em
diferentes/outras. Os homens não são diferentes, os brancos não são diferentes, nem
o são os senhores. Mas os pretos, tal como os escravos, são-no. Esta característica
ontológica da diferença entre os sexos afeta todos os conceitos que integram o
mesmo aglomerado. Mas para nós não existe semelhante coisa que seja ser-mulher
ou ser-homem. "Homem" e "mulher" são conceitos políticos de oposição, e a cópula
que dialeticamente os une é, simultaneamente, aquela que irá abolir os homens e
mulheres8. É a luta de classes entre mulheres e homens que abolirá os homens e as
mulheres9. Não há nada de ontológico no conceito de diferença. É a única maneira
como os senhores interpretam uma situação histórica de domínio. A função da
diferença é a de ocultar a todos os níveis os conflitos de interesse, incluindo os
conflitos ideológicos. Por outras palavras, para nós, isto significa que não podem
mais existir mulheres e homens, e que enquanto classes e categorias de pensamento
ou linguagem eles têm de desaparecer, política, econômica, ideologicamente. Se
nós, lésbicas e homossexuais, continuarmos a falar de nós próprias(os) e a conceber-
nos como mulheres e como homens, estamos a ser instrumentais na manutenção da
heterossexualidade. Tenho a certeza que uma transformação econômica e política,
não irá desdramatizar estas categorias da linguagem. Podemos redimir escravo?
Podemos redimir escarumba? Em que medida é a mulher diferente? Continuaremos
a escrever branco, senhor, homem? A transformação das relações econômicas não
será suficiente. Temos de produzir uma transformação política dos conceitos chave,
isto é dos conceitos que nos são estratégicos. Há uma outra ordem de materialidade,
a da linguagem, e ela é trabalhada de dentro por estes conceitos estratégicos. A
linguagem é, ao mesmo tempo, intimamente ligada ao campo político, onde tudo o

8
Claude Faugeron and Phillipe Robert, La Justice et son Public et les représentations sociales du systeme
pénal (Paris: Masson, 1978)
que concerne a linguagem, a ciência e o pensamento se refere à pessoa enquanto
subjetividade e à sua relação com a sociedade9. Não podemos deixar estas coisas no

poder do pensamento hétero ou do pensamento de dominação.

Se, de entre todas as produções do pensamento hétero questiono


particularmente o estruturalismo e o Inconsciente Estrutural é porque: no momento
histórico em que o domínio sobre os grupos sociais já não pode parecer uma
necessidade lógica aos olhos das(os) dominadas(os), porque estas(es) se revoltam,
porque estas(es) questionam as diferenças, Lévi-Strauss, Lacan e outros invocam
necessidades que escapam ao controle do consciente e portanto à responsabilidade

dos indivíduos.

Por exemplo invocam processos inconscientes, os quais exigem a troca de


mulheres como condição necessária para cada sociedade. De acordo com esses
autores é isso o que o inconsciente nos diz com autoridade, e a ordem simbólica,
sem a qual não existe significado, linguagem, sociedade, depende do inconsciente.
Mas o que significa a troca de mulheres se não que são dominadas? Não é, pois de
admirar que haja apenas um inconsciente e que esse seja heterossexual. É um
inconsciente que protege demasiado conscientemente os interesses dos senhores10
nos quais vive para que estes possam facilmente ser despojados dos seus conceitos.
Além disso, o domínio é negado, não existe a escravidão das mulheres, existe a
diferença. Ao que responderei com esta frase de um camponês romeno numa
assembléia pública em 1848: "Porque dizem os senhores que não se tratou de
escravidão, uma vez que nós sabemos que foi escravidão, este sofrimento que
sofremos". Sim, sabemo-lo, e esta ciência da opressão não nos pode ser tirada.

É a partir desta ciência que temos de descobrir o rosto “óbvio” do


heterossexual, e (parafraseando o Roland Barthes inicial) não deveremos suportar
"verem-se constantemente confundidas Natureza e História"11. Temos de tornar
brutalmente claro que o estruturalismo, a psicanálise e particularmente Lacan
transformaram rigidamente os seus conceitos em mitos - a Diferença, o Desejo, o

9
Ver Christine Delphy, “Pour un Féminisme Matérialiste,” l’Arc 61 Simone de Beauvoir et la lutte des
femmes, que aparece em Feminist Issues.
10
São os milhões de dólares ganhos pelos psicanalistas todos os anos simbólicos?
11
Roland Barthes, Mythologies (New York: Hill and Wang, 1971), p.11
Nome-do-pai, etc. Estes psicanalistas até "sobre-mitificaram" os mitos, uma
operação que lhes era necessária para sistematicamente heterossexualizarem aquela
dimensão pessoal que repentinamente surgiu no campo histórico através dos
indivíduos dominados, particularmente através das mulheres, que encetaram a sua
luta há quase dois séculos. E isto tem sido feito sistematicamente numa concertação
de interdisciplinaridade, nunca mais harmoniosamente do que quando os mitos
heterossexuais começaram a circular com à-vontade de um sistema formal para
outro, como valores certos e seguros que podem ser investidos na antropologia

como na psicanálise e em todas as ciências sociais.

Este conjunto de mitos heterossexuais é um sistema de signos que usa figuras


de retórica, e por isso pode ser estudado politicamente de dentro da ciência da
nossa opressão; "pois-sabemos-que-foi-escravidão" é a dinâmica que introduz o
diacronismo da história no discurso pré-estabelecido das essências eternas. Esta
tarefa deveria ser de algum modo uma semiologia política, embora, com este
"sofrimento que sofremos", trabalhemos também ao nível da linguagem/manifesto,

da linguagem/ação, tudo o que transforma, tudo o que faz história.

No entanto, nos sistemas que pareciam tão eternos e universais que se lhes
podiam extrair leis, leis que podiam ser enfiadas em computadores, e em todo o
caso, para já, enfiadas no mecanismo inconsciente, nestes sistemas, graças à nossa
ação e à nossa linguagem, estão a acontecer deslocações de enfoques. Um modelo
tal como, por exemplo, a troca de mulheres, re-submerge a história de modo tão
violento e brutal que o sistema inteiro, que se acreditava fosse formal, desaba para
outra dimensão do conhecimento. Esta dimensão da história pertence-nos, já que de
algum modo fomos designadas e uma vez que, como disse Levi-Strauss, falamos,
vamos dizer que quebramos o contrato heterossexual.

Portanto, isto é o que dizem as lésbicas neste país e nalguns outros, se não
com teorias então pelo menos através da sua prática social, cujas repercussões na
cultura e sociedade hétero são ainda incalculáveis. Um antropólogo poderá dizer que
temos de esperar 50 anos. Sim, si se quiser universalizar o funcionamento destas
sociedades e fazer com que apareçam as suas invariantes. Entretanto os conceitos
hétero são minados. O que é a mulher? Pânico, alarme geral para uma defesa ativa.
Francamente, este é um problema que as lésbicas não têm por causa de uma
mudança de perspectiva, e seria incorreto dizer que as lésbicas se associam, fazem
amor, vivem com mulheres, pois "mulher" tem significado apenas em sistemas de
pensamento heterossexuais e em sistemas econômicos heterossexuais. As lésbicas

não são mulheres.

(Monique Wittig, The Straight Mind and other Essays, Boston: Beacon, 1992)

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