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Chope Cap 1 2/2/09 15:40 Page 33

Capítulo 1

Introdução
Ecologia e ambiente
Os chopes são um dos grupos étnicos mais pequenos de Moçam-
bique e habitam uma pequena porção de terra banhada a sul e leste
pelo oceano Índico e cujo limite ocidental se situa à longitude de 34° E,
ficando o limite norte à latitude de 24° S. O mapa 1.1 ilustra a localiza-
ção dos chopes relativamente tanto aos povos que se encontram na sua
vizinhança como à sua situação no Sul de Moçambique. Apesar de a
porção de terra que ocupam ser relativamente pequena, a densidade
populacional é uma das mais altas de todo o país, com um valor de 20-
-40 pessoas por quilómetro quadrado (Atlas de Moçambique 1960).
Estima-se que a população total dos chopes seja de 240 396 indivíduos
(Herrick et al. 1969, 66), mas o uso destes números requer alguma
prudência, já que os censos são raros e realizados de forma deficiente.
A terra dos chopes é completamente desprovida de altitude, sendo a
região dominada pela bacia hidrográfica do rio Inharrime, um rio largo e
ligeiramente salgado, que forma uma série de lagoas que correm para sul,
paralelas à costa, separadas do próprio oceano apenas por uma barreira de
dunas de areia. O território a norte do rio é constituído sobretudo por ter-
ras baixas onduladas, com grande densidade florestal, excepto em algu-
mas bacias em que cresce apenas vegetação rasteira ou onde esta foi limpa
para fins agrícolas. Os pequenos montes e serras que formam as áreas
mais altas raramente ultrapassam os 200 metros de altitude, ao passo que
as terras baixas e sem elevações não têm, geralmente, mais de 30 metros
acima do nível do mar, mesmo a 100 quilómetros para o interior.
A sul do rio existe uma área em forma de triângulo que é predomi-
nantemente de baixa altitude e pantanosa. No centro desta área há um
lago pouco profundo (cujas dimensões se reduzem grandemente na es-

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tação seca), chamado Marangwa. Em toda a região o solo é extrema-


mente arenoso, o que traz muitos problemas à actividade agrícola dos
chopes, entre os quais o facto de a superfície arenosa se tornar compacta
quando chove, dificultando o escoamento das águas. O facto de a ca-
mada superior do solo ser infértil (o solo fértil encontra-se a cerca de 15
centímetros de profundidade) também causa problemas ao lavrar a
terra: os arados puxados por bois ou tractores revolvem demasiada terra,
expondo o solo infértil que se encontra por baixo. Por esse motivo, os
chopes preparam o solo com uma pequena enxada de mão (nkwati).
O clima é subtropical, com verões muito quentes e invernos amenos.
A região tem um índice de aridez de 30-40 e uma pluviosidade de cerca
de 890 milímetros por ano. O solo, o clima, a topografia e a pluviosi-
dade são suficientes para produzir boas colheitas de mandioca, milho,
amendoim, abóbora, cabaça, batata-doce, banana, papaia e ananás. Mas
talvez mais importantes do que quaisquer destes produtos sejam as ár-
vores e plantas endógenas que os chopes utilizam. Destas, a mais rele-
vante será, provavelmente, o cajueiro (que, não sendo endógena, forma
actualmente uma parte essencial das florestas). O caju tem duas partes:
um fruto sumarento e carnudo com a forma de um pimento, embora
com outra cor, abaixo do qual se situa a protuberância que aloja a cas-
tanha de caju. O fruto carnudo, vermelho ou amarelo, usa-se sobretu-
do para fazer uma espécie de cidra ou é destilado para produzir uma
forte bebida alcoólica a que se chama sope.
A outra árvore importante que os chopes utilizam muito é endógena
e chama-se ucusu. Trata-se de uma árvore versátil, usada para fazer uten-
sílios de madeira, cujo fruto é consumido como alimento e do qual é
retirada ainda uma substância parecida com sabão, usada para lavar.

O contexto social e cultural


Os chopes formam uma pequena bolsa numa área muito vasta de
povos normalmente referidos como tsongas ou changanes. Em termos
das suas características sociais e culturais gerais, os chopes apresentam
muitas semelhanças com os tsongas que os rodeiam; contudo, em al-
guns aspectos são significativamente diferentes. Na minha opinião, os
primeiros autores a escreverem sobre os chopes, como os Junod e Tracey,
sobrevalorizaram a sua singularidade. Disse-se, por exemplo, que os
chopes e os tongas de Inhambane (imediatamente a norte dos
primeiros) são de alguma forma autóctones (v., por exemplo, H.-P.

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Mapa 1.1 – Localização aproximada dos regulados na terra dos chopes
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TONGAS DE INHAMBANE

MABINGWELAS
2/2/09

be
Gwambe
Nyakowongo

gum
Grande

n
Moçambique
15:40

Gwambe Nkumbi

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Pequeno

Nyaruluka
Rio Inh

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TSONGAS/CHANGANES
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Limites dos regulados
Limites da terra dos chopes
Introdução
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Junod 1927), mas parece haver pouca evidência empírica que sustente
esta afirmação. Há, certamente, características sociais e culturais impor-
tantes que distinguem os chopes dos seus vizinhos (algumas das quais
trataremos brevemente), mas, quando os comparamos com os angones
e os sothos, a sul e a oeste, vemos que fazem parte, sem dúvida, da área
cultural tsonga.
H.-A. Junod, no seu clássico The Life of a South African Tribe (1927
[1912-1913]), dá-nos uma panorâmica geral da sociedade tsonga desde
a viragem do século e, em muitos aspectos, os tsongas pouco mudaram
desde então. Entre as características que mais marcadamente os dis-
tinguem de outros povos de língua banto da África austral contam-se as
actividades económicas a que se dedicam, já que dependem quase in-
teiramente do cultivo das terras. Os tsongas e os chopes praticam uma
agricultura preparada por queimadas, 1 utilizando os campos por perío-
dos de cerca de cinco anos antes de os deixarem em pousio ou de os
abandonarem por completo. Os bovinos são raros, devido à mosca tsé-
tsé, e os caprinos são a forma mais comum de gado, havendo também
muitos galináceos (uns e outros são usados ritualmente em sacrifícios).
Nisto diferem dos sothos e dos angones, que usam os bovinos como
animais sacrificiais, mas são semelhantes aos shonas e a outros povos da
África central que usam frequentemente galinhas em sacrifícios. Os
tsongas e os chopes que vivem junto à costa ou nas margens de rios tam-
bém pescam e consomem peixe frequentemente, algo que tradicional-
mente muitos grupos sothos e angones não faziam, já que o peixe era alvo
de tabu nestas sociedades. A área cultural tsonga caracteriza-se também
por sistemas políticos dirigidos por régulos autónomos, cada um dos
quais é soberano de um pequeno regulado dividido em vários grupos de
povoações e outras unidades de menores dimensões. Talvez devido à re-
lativa abundância de terras, os tsongas não têm um cargo de poder cen-
tralizado à maneira angone. Mesmo a dinastia conquistadora de Sochan-
gane e do seu neto Gungunhana durou apenas cerca de setenta anos.
É no domínio do parentesco que os grupos tsongas diferem mais
marcadamente dos bantos meridionais seus vizinhos. Enquanto os an-
gones e os sothos têm um sistema de terminologia de parentesco do
tipo iroquês, os tsongas (incluindo os chopes e os tongas de Inham-
bane) têm variações do tipo omaha. Resumidamente, as diferenças prin-

1 Vayda (1961, 346) cita Conklin (1954, 133) na sua definição de agricultura de
queimadas como «o uso sempre transitório de terrenos agrícolas obtidos a partir do
abate e da queima do coberto vegetal».

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Introdução

cipais entre os dois tipos de sistema encontram-se nos termos por que
são designados os primos cruzados. Aos primos paralelos são aplicados
os termos que designam o irmão ou a irmã em ambos os sistemas, mas
no tipo iroquês ambos os conjuntos de primos cruzados são designados
por um mesmo termo (angones: umzala; sothos: motswala). Nos sis-
temas omaha, os primos cruzados matrilaterais são designados pelos ter-
mos «mãe» e «irmão da mãe» (ou «pai da mãe»), aplicados, res-
pectivamente, a referentes femininos e masculinos, e aos primos
cruzados patrilaterais chama-se «neta/o» (em chope – MBS: koko,
MBD: mame, FZS/D: ntukulu).*
A terminologia de parentesco é especialmente relevante quando é
lida conjuntamente com as normas exogâmicas. Os tsongas proscrevem
o casamento com qualquer pessoa do clã do pai ou da mãe, o que tam-
bém acontece entre a maior parte dos angones. Isto contrasta forte-
mente com os sothos, que permitem o casamento com os parentes
tanto da mãe quanto do pai e, aliás, consideram preferencial o casa-
mento com a MBD ou mesmo a FBD (que é vista como «irmã»). Assim,
se muitos grupos sothos, como os lovedos (e os swazis angones), prati-
cam o casamento com os primos cruzados matrilaterais, o que tem
como efeito a ligação de qualquer grupo de descendência a dois outros
grupos, enquanto fornecedores e receptores de mulheres, respectiva-
mente, o sistema chope/tsonga tem como efeito o espalhar das alianças
matrimoniais por toda a sociedade, de tal modo que qualquer clã está
ligado a múltiplos outros. Este fenómeno, como espero demonstrar
neste texto, é um dos principais factores responsáveis pela origem de
uma outra característica que acredito ser própria das sociedades tsongas:
o elevado grau de individualidade, ou pelo menos de espaço para a ex-
pressão e a escolha na acção individual que se encontra entre os povos
de Moçambique.
Uma vez situados os chopes no seu contexto mais vasto, enquanto
parte da área cultural tsonga, devemos notar que existem também dife-
renças marcadas entre os chopes e os seus vizinhos tsongas. Talvez a
mais notória seja a língua, já que o chiChopi é muito diferente dos dialec-

* No referente às classificações de parentes, mantiveram--se as siglas de origem in-


glesa, hoje usadas universalmente: M = mãe; F = pai; Z = irmã; B = irmão; D = filha;
S = filho; W = mulher; H = marido. A série é sempre iniciada a partir de ego, em di-
recção ao parente referido, pelo que, em português, estas notações deverão ser lidas da
direita para a esquerda; assim, por exemplo, MBD será a filha do irmão da mãe (João
de Pina Cabral e Antónia Pedroso de Lima, «Como fazer uma história de família: um
exercício de contextualização social», Etnográfica, IX (2), 2006, 355-388). (N. do E.)

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tos tsongas e changanes falados pelos seus vizinhos a sul e a oeste (os
tongas de Inhambane, a norte, falam uma língua que é incompreensí-
vel tanto para os chopes como para os tsongas). Existem, é claro,
grandes diferenças nos dialectos falados pelos povos tsongas/changanes
que se estendem do rio Save à Kosi Bay, mas todos eles manifestam in-
fluências angones, provavelmente devido à conquista de Sochangane e
dos seus invasores zulus.
O mapa 1.1 mostra como a terra dos chopes é limitada a leste e a sul
pelo oceano Índico e a nordeste pelo território dos tongas de Inham-
bane. Estes tongas, como referi, falam uma língua que é incompreen-
sível para os chopes, e vice-versa. No entanto, em termos de cultura e
organização política, em geral, são muito semelhantes. Houve muitos
casamentos e interpenetrações entre os dois povos, que mantêm crenças
e práticas religiosas quase idênticas. A cosmologia destes povos é povoa-
da por espíritos maléficos, espectros, feiticeiros e afins, que garantem
um grande volume de trabalho aos muitos adivinhos e médiuns que se
encontram em ambas as sociedades. Na verdade, os agentes da má sorte
e as formas de lidar com eles são outra característica de todos os grupos
tsongas, o que os liga à África central e os distingue dos angones e dos
sothos. Os tongas de Inhambane são, geralmente, mais ocidentalizados
do que os chopes, sem dúvida porque se agrupam em torno do porto
de Inhambane e mantiveram contactos com os árabes, primeiro, e de-
pois com os portugueses, durante vários séculos (o contacto com os por-
tugueses começou em 1498).
Para norte há povos changanes 2 e tsuas. Os tsuas são, aparentemente,
um grupo tsonga que foi fortemente influenciado pelos zulus, já que o
seu léxico inclui várias palavras angones. São relacionados (por outros)
com os bosquímanes (san) e há quem defenda que a sibilante (s) carac-
terística da língua tsua teve origem no contacto com os povos san.
Parece tratar-se de um erro de percepção: as línguas san caracterizam-se
por cliques e, de acordo com informações de um linguista, a sibilante
caracteriza os dialectos shonas (C. H. Borland, comunicação pessoal).
Todavia, os tsuas são identificados com os san e os seus vizinhos cha-
mam-lhes vatsua (o termo «tsonga» para san ou bosquímane). Aos povos
a oeste e sudoeste dos chopes também se chama changanes, mas são, na
verdade, tsongas. Os seus vizinhos a sul foram estudados por Dora

2 O nome «changane» deriva de Sochangane, que com um bando de seguidores fugiu


a Chaka Zulu. Conquistou e/ou saqueou todo o Sul de Moçambique e, aparentemente,
essas tribos tsongas que Sochangane conquistou tomaram a partir de então o seu nome.

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Introdução

Earthy por volta de 1920 e eram na altura conhecidos como valenges,


designação que desapareceu entretanto. A partir do livro que escreveu
(Earthy 1933) e de outras publicações podemos concluir que Dora
Earthy tratou uma área que englobava gente com diversos antecedentes
e que se havia reunido em resultado das investidas dos invasores an-
gones, sobretudo de Sochangane e, mais recentemente, do seu neto
Gungunhana.
A cultura material dos chopes difere bastante marcadamente, em alguns
aspectos, da dos seus vizinhos, sendo talvez o exemplo mais notório os
delicados xilofones, a que se chama timbila e que são construídos ma-
nualmente a partir de uma madeira muito dura. Esta forma de cons-
trução, com o saber e o cuidado trabalho artesanal requeridos pela ma-
nufactura do instrumento que Tracey documenta em Chopi Musicians
(1970 [1948]), só se encontra em Moçambique entre os chopes. A mu-
sicalidade dos chopes é muito valorizada por Tracey e outros musicólo-
gos e é bem mais complexa do que a de quaisquer dos seus vizinhos.
A música é tocada em orquestras cujas dimensões variam entre as cinco
timbila e grandes orquestras de até cinquenta instrumentos. Trata-se de
uma música complexa que é composta por um indivíduo e depois en-
saiada pela orquestra. Há também danças e canções elaboradas que são
acrescentadas à música. Também a manufactura de tecido de fibras
vegetais, embora seja uma arte em vias de extinção, demarca os chopes
dos seus vizinhos changanes e tongas, que antes da chegada dos eu-
ropeus costumavam usar peles de animais.
O que distingue os chopes de outros povos com quem mantêm con-
tactos é, acima de tudo, o seu sentido de identidade. Este é expresso por
um sentimento de orgulho na sua «chopidade», identidade colectiva in-
definível. Assume visibilidade na sua língua (chiChopi), nos padrões de
aliança, que ligam os vários clãs uns aos outros, na homogeneidade cul-
tural e, o que é mais importante, na música, que cristaliza a sua identi-
dade e cujas letras se referem frequentemente aos sentimentos nutridos
no interior do grupo contra os que não lhe pertencem. Os grupos de
músicos e dançarinos incorporam aspectos segmentares, com fissões e
fusões do grupo determinadas pela escala da oposição. Neste sentido, há
concursos entre as povoações, cujas orquestras são conjuntas no caso de
se tratar de um concurso entre regulados, até ao ponto de nas minas de
ouro sul-africanas todos os chopes se identificarem com os seus músi-
cos nas danças de domingo, sendo aqui, mais do que em qualquer
outro domínio, que ganham consciência da sua identidade. Na verdade,
os chopes têm consciência do seu talento na música e na dança e en-

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caram os esforços de outros povos com bastante desprezo (cf. capítulo


10).
Tal como a maior parte dos bantos meridionais, os chopes mantêm
uma agricultura de subsistência, vivendo em domicílios* dispersos. Não
se dedicam ao pastoreio e criam muito pouco gado. Entre os animais
que criam destacam-se os caprinos, complementados por suínos e gali-
náceos, sendo os primeiros e os últimos usados para sacrifícios rituais.
O sistema de ideias deste povo estabelece um sistema de parentesco
agnático, mas a observação dos padrões de acção revela laços matrila-
terais e aquilo a que chamei «estruturas alternativas» muito importantes,
ainda que não sejam cognitivamente reconhecidas. No domínio do pa-
rentesco, no entanto, é quase como se houvesse um sistema bilateral la-
tente, ou aquilo a que Firth chamou um sistema ambilateral (Firth 1929,
1963, 30-32), que pode ser accionado pelo indivíduo.
Ter-se-á notado que tenho vindo a referir-me aos chopes como um
povo, e não como uma tribo. Isto acontece porque eles não têm uma
estrutura política geral circunscrita, que considero uma condição neces-
sária à definição de tribo. Contudo, os chopes têm efectivamente uma
cultura e uma identidade comuns e parece ser mais adequado conside-
rá-los um «povo».
Assim, o povo chope encontra-se dividido em quinze regulados autó-
nomos, não havendo autoridades superiores a esses régulos. Os regula-
dos variam em termos de dimensões, mas englobam, em média, cerca
de 15 000 pessoas, tendo o maior uma população que atinge os 22 000
indivíduos. Apesar da autonomia política dos regulados, há uma grande
quantidade de interacção entre estes ao nível mais básico. Na verdade,
a mobilidade dos indivíduos e a distribuição das zonas de origem dos
esposos comprovam isto mesmo, como adiante demonstrarei. Cada
regulado está dividido em grupos de povoações, povoações, áreas dos
subchefes e, por fim, embora seja o mais importante em termos da in-
teracção quotidiana, vicinalidades.**

* No original, homesteads. Traduzimos por «domicílio» o termo homestead usado no


original inglês para designar o inti chope, embora se perca nesta tradução parte do seu sig-
nificado. Julgámo-la, no entanto, preferível a alternativas como «casa», «residência»,
«lugar», «casal», etc., que poderiam introduzir algumas confusões com outros elementos;
por outro lado, a abrangência do termo inti resulta bem clara da leitura do texto. (N. da T.)
* * No original, vicinalities. Optámos por traduzir este termo por «vicinalidades»,
vocábulo que tem sido utilizado na literatura antropológica portuguesa com este
mesmo significado (J. Pina Cabral, Os Contextos da Antropologia, Lisboa, Difel, 1991).
(N. da T.)

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Introdução

Antecedentes históricos
A história dos chopes coloca vários problemas aos etnógrafos. A di-
ficuldade principal é a escassez dos registos escritos, de que resultou
uma tendência para seguir as tradições orais, manifestamente pouco
rigorosas. Por esse motivo, devemos ser cuidadosos no uso das recons-
tituições existentes. O trabalho de H.-P. Junod (1927) parece ser basea-
do em grande medida na tradição oral, mas não são indicadas as fontes,
pelo que é difícil avaliá-lo. Para além disso, muito do que escreve con-
tém contradições e a maior parte das minhas próprias reconstituições di-
verge das suas. Infelizmente, a maioria dos autores que escreveram sobre
os chopes desde a publicação do trabalho de Junod tendeu a aceitar
acriticamente as suas afirmações. Disto resultaram alguns erros gritantes,
entre os quais uma concepção errada da dimensão e extensão da terra
dos chopes.
Não se justifica nesta breve introdução entrar em grande detalhe, mas
tenho de contestar H.-P. Junod (1927) quanto à extensão real da terra
dos chopes. Junod afirma que o limite norte da terra dos chopes é o rio
Inharrime e Tracey (1970 [1948]) publica um mapa da terra dos chopes
(no fim do livro) que representa uma área triangular do território a sul
do rio Inharrime. Mesmo na reedição do seu livro em 1970, Tracey igno-
ra as populações a norte do rio. Confesso que o meu interesse na questão
é subjectivo: o meu trabalho de campo foi feito no regulado Nkumbi,
situado, como se pode ver no mapa 1.1, a norte do rio.
Para comprovar a minha opinião bastará talvez referir que as popu-
lações de um e outro lado do rio são idênticas em termos linguísticos e
culturais, à parte pequenas diferenças dialectais, e, o que é significativo,
as populações a norte identificam-se como chopes. Para além disso,
parece ser consensual entre todos os autores que, quando o P.e André
Fernandes escreveu em 1560 (Theall 1898, 141) do regulado Nya-
kowongo, estaria efectivamente entre os antecessores dos chopes mo-
dernos. O mapa 1.1 demonstra que esse era, e é, um dos regulados a
norte. Por fim, o próprio H.-P. Junod (1927, 60) afirma que teriam exis-
tido dois clãs originais entre os quais se dividiriam os «verdadeiros
vaChopi», a saber, Nkumbi e Vilankulu. Acreditava que teriam desa-
parecido quase por completo, mas, se tivesse pesquisado a norte do
Inharrime, teria descoberto que o maior regulado da região é o de
Nkumbi, com uma população estimada em 22 000 habitantes.
Há uma característica que se destaca quando olhamos para a história
do povo que hoje é conhecido como chope: o seu passado fragmentar.

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O primeiro registo escrito relativo a este povo data de 1560 e consiste


na correspondência de dois missionários, o P.e André Fernandes e o
P.e Dom Gonçalo Silveira (Theall 1898, 54-129). Referem eles que vi-
viam junto de um grupo de invasores chamados mokalangas, enquanto
todos os outros africanos em redor se chamavam bongas. Desde essa al-
tura e até ao presente há indicações de que grupos imigrantes se insta-
laram entre a população indígena.
Estes grupos de imigrantes fundiram-se, ao longo dos anos, no meio
social e cultural mais vasto que é a nação chope. Não podemos senão
especular quanto ao grau de influência exercida sobre estes povos pelas
populações indígenas, ou por estas sofrida, mas é razoável supor que se
influenciaram mutuamente, em maior ou menor grau. Os imigrantes
mokalangas referidos pelo P.e Fernandes parecem ter sido um grupo bas-
tante pequeno, mas há indicações de que teriam o xilofone, que hoje é
talvez a principal característica distintiva dos chopes. A descrição dos
«bongas», que eram aparentemente a população indígena, corresponde
em alguns aspectos ao que conhecemos dos chopes, especialmente no
que diz respeito ao facto de usarem roupas de fibra vegetal.
Não há dúvidas de que houve imigrações posteriores, como indica a
tradição oral da maioria dos clãs actuais da terra dos chopes. É frustrante
tentar encontrar um clã que possa reclamar a sua «verdadeira» origem
chope; a maior parte parece ter-se formado a partir de outros povos,
como os ndaus, os tsuas, os tongas, os sothos, os changanes, etc. Até
mesmo H.-P. Junod, que defendia que os chopes eram uma tribo
«pura», admite que assim é (1927, 60).
Nesse mesmo artigo sobre as origens dos chopes, H.-P. Junod de-
fende que alguns clãs seriam derivações de bveshas e vendas. Não reve-
la as suas fontes, mas parece basear-se na tradição oral. É bastante claro
que existe uma relação entre os chopes e os vendas, mas não é certo se
isto começou pelo lado moçambicano ou sul-africano, embora muitos
tsongas tenham fugido para o Transval para escapar a Sochangane.
Tanto os chopes como os vendas tocam xilofone, embora haja dife-
renças significativas na forma e na utilização dos instrumentos. Há um
clã chope chamado Gwambe, nome que se aplica também a uma tribo
vizinha dos lovedos.
Um outro paralelo que vale a pena notar é a importância social
atribuída à irmã do pai tanto no Nordeste do Transval como entre os
chopes. Essa mulher detém uma proeminência e uma autoridade muito
mais relevantes do que entre outros povos moçambicanos e sul-
-africanos e, o que é bastante significativo, pode desempenhar funções

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Introdução

rituais em caso de ausência ou morte do seu irmão, a quem essas


funções caberiam normalmente (Krige e Krige 1965, 75-77).
As semelhanças entre os chopes e os povos do Nordeste do Transval
no que diz respeito a alguns aspectos culturais pode também dever-se,
em parte, ao contacto que uns e outros tiveram inicialmente com os
karangas da Rodésia, de língua shona. Sabe-se que os vendas provêm
dos karangas (Junod 1927) e o grupo mokalanga acima referido por
Fernandes dizia também ter fugido da Rodésia, sendo, sem dúvida, um
grupo karanga.
O facto histórico de o povo chope ter uma composição do género
manta de retalhos faz ressaltar alguns dos temas que desenvolvo ao
longo deste texto: defendo que, embora o parentesco agnático desem-
penhe efectivamente um papel importante na organização social, tem
uma relevância menor do que se verifica entre outros povos da África
austral; verificamos ainda que, associado a isto, há um sublinhar das
lealdades com pessoas muito diversas, incluindo uma grande proporção
de parentes não agnáticos. Isto deixa de ser surpreendente quando des-
cobrimos que em cada povoação há vários segmentos clânicos que têm
origens muito diferentes entre si.
A fragmentação dos chopes e, na verdade, de todos os povos do Sul
de Moçambique foi provocada ou amplamente reforçada pela invasão
de três grupos zulus que fugiam a Chaka. Esses grupos eram liderados
por Nxaba, Zwangendaba e Sochangane, respectivamente, e este último
foi quem mais marcou a região e de uma forma mais duradoura. O im-
pacte angone não pode ser subvalorizado, pelo que dedico algum es-
paço a uma breve consideração do mesmo. As duas fontes que se reve-
laram da maior utilidade foram A. T. Bryant (1965 [1929]) e P. R.
Warhurst (1962).
Após uma série de campanhas fracassadas contra Chaka, o clã
Ndwandwe foi, finalmente, derrotado em 1819. Pouco depois, Sochan-
gane e um pequeno grupo de seguidores, que Bryant estima em «não
mais de cem» (1965, 448), fugiram para nordeste, entrando em Moçam-
bique. Em 1822, o capitão W. Owen, da armada britânica, regista a sua
presença na costa leste, indicando tratar-se de um grupo de duzentos ou
trezentos homens (Bryant 1965, 449).
Sensivelmente na mesma altura, Sochangane atacou e derrotou
Nxaba, que chegara mais cedo da Zululândia e depois fugiu para norte,
atravessando a terra dos chopes e atacando e saqueando na passagem
(o grupo de Nxaba, algum tempo e muitas batalhas mais tarde, estabe-
leceu-se nas margens do lago Vitória). Sochangane permaneceu nas mar-

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gens do Limpopo durante algum tempo, reforçando o seu contingente


através de invasões dos tembes, dos tsongas e dos chopes. Cerca de
1825, o assombroso angone deslocou-se para norte, atravessando o Lim-
popo, para o território do que é hoje a terra dos chopes, destruindo os
campos, tomando as mulheres e recrutando os homens para o seu
exército. Lentamente, Sochangane deslocou-se para norte, para o rio
Save, e assentou arraiais no lugar onde este intersecta a actual fronteira
da Rodésia, no que viria a ser a sua capital.
Numa rápida sucessão, Sochangane combateu e derrotou os seus dois
rivais angones, Nxaba e Zwangendaba, que não se encontravam muito
longe da sua capital. Ambos fugiram para norte pelo lado ocidental,
pela Rodésia, e as forças de Zwangendaba estabeleceram-se perto do
lago Malaui. Sochangane era agora soberano de um vasto império que
ia do Zambeze, a norte, até muito a sul do Limpopo. Saqueava num
raio muito amplo, destroçando tribos, e tal era o seu poder que em 1834
atacou Lourenço Marques, matando o governador português e a sua
guarda.
Sochangane morreu à volta de 1856 e os seus filhos Mawewe e Mzila
disputaram a sucessão, tendo o primeiro saído vitorioso. Alguns anos
depois, com o auxílio português, Mzila derrubou o seu meio-irmão.
Esta luta interina deu algum descanso aos campos devastados e só em
1880 os saqueadores angones recomeçaram as suas pilhagens numa es-
cala comparável. Foi então que morreu Mzila, sendo sucedido pelo
célebre Gungunhana.
Foi Gungunhana quem teve maior impacte sobre os chopes, embora
estes tivessem sofrido incursões ocasionais dos outros governantes an-
gones, já que deslocou a sua capital do rio Save para um local a 50
quilómetros a norte do Limpopo que hoje é chamado Manjacaze (cor-
ruptela do nome da capital de Gungunhana, Manhlagazi), na fronteira
ocidental da terra dos chopes, que se tornou a reserva de caça preferida
dos invasores. Em 1891 Gungunhana conteve pela força bruta uma sub-
levação dos chopes, um dos poucos momentos de resistência efectiva
que teve de enfrentar até ser capturado em 1895. Os seus métodos im-
placáveis e as incursões de pilhagem generalizadas fizeram com que lhe
fosse atribuído o epíteto de «perturbador da terra».
Quando Gungunhana se deslocou para sul, abandonando a capital
no rio Save, o seu exército compreendia uma vasta maioria de ndaus, os
povos de língua shona que povoavam a região, e uma minoria de tson-
gas e ainda menos zulus. Na verdade, é notável que tão poucos guer-
reiros angones provenientes originalmente da Zululândia pudessem ter

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Introdução

exercido uma influência tão marcada sobre uma área e uma população
tão vastas. Para comprovar essa influência, veja-se a imensa extensão de
território e a enorme quantidade de pessoas que hoje se dizem chan-
ganes (tomando o nome de Sochangane).
Devemos recordar que Sochangane deixou a Zululândia com cerca
de cem guerreiros. Ainda que este número fique aquém da realidade, o
grupo teria sido dizimado, não tanto por inimigos, mas sobretudo por
doenças, como a malária, a bilharzia e a disenteria. Foi este efectiva-
mente o destino dos guerreiros de Chaka que foram enviados em 1928
para destruir Sochangane. O fracasso desta campanha foi um dos fac-
tores que contribuíram para a derrota final de Chaka.
Indubitavelmente, a doença, que reduziu em grande medida os con-
tingentes, juntamente com o costume de, enquanto conquistadores,
tomarem as mulheres por concubinas, e não por esposas, explicam o
facto de a cultura e a língua angones não se terem imposto generali-
zadamente. 3 Assim, embora fosse de esperar que a cultura angone pre-
dominasse, isto não acontecia. Uma mulher que é tomada como con-
cubina irá criar os filhos à sua maneira (não terá aprendido a língua ou
a cultura do seu senhor e este irá, provavelmente, comunicar com ela
na língua dela). As crianças estão constantemente aos cuidados da mãe
e, portanto, crescem como crianças chopes (ou tsongas, se for esse o
caso). Em poucas gerações não restará senão o nome do clã angone
(supondo que o povo conquistado segue um princípio patrilinear).
Embora a influência cultural dos angones tenha sido reduzida, a sua
influência a nível social foi enorme. Os ataques perpetrados tinham em
grande medida o propósito de alimentar o exército, pelo que os alvos
privilegiados eram as colheitas agrícolas. Mas ao mesmo tempo as mu-
lheres eram capturadas e os homens eram recrutados para o exército.
Este grupo, agora de maiores dimensões, requeria mais alimentos, por
isso havia novos ataques, e assim sucessivamente. O ciclo era inter-
minável e as pessoas fugiam frequentemente à aproximação dos guer-
reiros. Foi assim que as tribos se fragmentaram e misturaram, e esta é
uma das razões por que os clãs chopes mantêm tradições de origens di-
versas.
Há quem defenda que as tribos do Sul de Moçambique não têm sis-
temas políticos fortemente centralizados porque os angones os des-
truíram ou substituíram por outros. Isto parece-me ser uma explicação

3 Devo à professora Monica Wilson esta observação (que ela desenvolve em 1969,
80-82).

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A Sociedade Chope

facilitista. Os primeiros registos escritos de que dispomos e a tradição


oral indicam que esta região sempre esteve dividida em múltiplos regu-
lados de pequenas dimensões e autónomos e não havia aqui qualquer
reino, como acontecia abundantemente entre os zulus e os swazis.
Resumindo, parece verificar-se que desde muito cedo, certamente desde
antes de 1500, os habitantes da região hoje conhecida como terra dos
chopes se misturaram com grupos de imigrantes vindos de várias di-
recções – os karangas (mokalangas) da Rodésia, os bveshas do Transval,
os tsongas do Sul e do Ocidente, os tongas de Inhambane e os ndaus e,
por fim, obviamente, os angones. Todos estes grupos de origens diver-
sas contribuíram para fazer dos chopes o que estes são actualmente, tal
como a população indígena.
Ironicamente, o sentido de identidade que os chopes possuem deve-
-se aparentemente aos invasores angones, que pela primeira vez os colo-
caram perante uma ameaça exterior de grandes dimensões, o que con-
feriu grande nitidez à consciência de si mesmos e à sua identidade.
Como ilustração da situação anterior à chegada dos angones, vejamos
um excerto da tradição oral registado por Dora Earthy (1933, 3), nas
palavras de um certo Johane Makamu:

Desde há muito tempo, quando os VaNgoni ainda não tinham chegado,


os VaTsopi e os VaLenge tinham sido uma raça de muito, muito antigos […]
quando se encontram, chamam-se uns aos outros pelas direcções do vento,
assim: no lado do ocidente, chamam-lhe VuLenge […] apesar de todos
serem de uma mesma raça. Quando vêem o lado do leste, chamam-
-lhe VuTsonga, o que quer dizer VuTshopi […]

Makwamu toca o cerne da questão quando diz o seguinte:

E também depois disso, quando os VaNgoni chegaram, encontraram


todos os países com os seus próprios régulos. E todos os régulos tinham cer-
cados fortificados e o seu povo. Os cercados fortificados são parecidos com
os currais para o gado. Quando o exército dos VaNgoni chegou, aí eles
fogem, vão para dentro dos seus cercados. Também esses régulos, eles não
se uniam a outro régulo, cada um reinava no seu próprio cercado com o seu
povo, embora fossem todos uma só raça, os VaTsopi.

A impressão com que ficamos é a de uma região que tinha uma ho-
mogeneidade cultural, mas que, politicamente, era constituída por regu-
lados autónomos, ainda que contíguos. As invasões de Nxaba, Zwan-

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Introdução

gendaba e Sochangane foram o impulso que obrigou os habitantes da


região a reunirem-se numa escala mais ampla do que aquela a que es-
tavam acostumados e que contribuiu também para que a sua identidade
se cristalizasse.
Esta ideia ganha credibilidade quando se analisa a forma como os
chopes adquiriram o seu nome na altura da invasão angone. Nenhum
dos meus informantes conseguiu lembrar-se de um nome por que os
chopes fossem chamados anteriormente. Há nomes geográficos, nomes
de clãs, nomes de regulados, etc., mas nenhum representaria toda a
nação chope. Também nenhum estudioso regista qualquer outro nome.
Aparentemente, o nome foi adquirido na altura em que os grupos an-
gones se dirigiam para norte e devastavam tudo à sua passagem (o que
corresponde mais ou menos ao ano de 1824). Há duas versões da
história: a primeira, contada pelos próprios chopes, diz-nos que os an-
gones, quando combateram este povo pela primeira vez, ficaram sur-
preendidos pelas armas com que os adversários lutavam – o arco e a
flecha (contrastando com as armas angones, como escudos, lanças e
knobkerries*). Os angones deram por isso aos arqueiros o nome de
vaChopi (de kuchopa, que H.-P. Junod traduz como «os atiradores do
arco»).
A segunda versão (e a mais verosímil) é fornecida por H.-A. Junod em
The Life of a South African Tribe (1927), onde traduz vaChopi como «os
que são trespassados pelas armas», o que é uma tradução bastante livre.
Explica depois esta designação dizendo que se devia ao facto de «a sua
terra ser o terreno de caça favorito de Gungunhana». Ambas as versões
são concebivelmente correctas, mas pouco importa qual é a explicação
verdadeira. O que é importante reter é que o nome surgiu em resultado
do conflito com um grupo externo e não é uma designação escolhida
por uma nação com consciência de si mesma.
Coloca-se a questão de saber por que motivo Sochangane teve tão
grande sucesso na sua conquista de Moçambique. Aparentemente
deixou a Zululândia com apenas cerca de cem seguidores (Bryant 1965,
448; Wilson 1969, 100), situação que se agravou com o facto de os zulus
terem sido dizimados pela doença (Wilson 1969, 101). Ainda assim,
num curto período de tempo conseguira pilhar e atacar um vasto ter-

* Knobkerrie: espécie de bastão curto com uma esfera pesada num dos extremos que
era usado como arma por povos guerreiros da África austral e para o qual não
encontrei uma designação portuguesa. (N. da T.)

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A Sociedade Chope

ritório, subjugando a maioria dos régulos tsongas ao seu domínio di-


recto ou à sua suserania. A explicação que proponho procura justificar
a passagem relativamente fácil dos angones e opõe-se ao argumento de
que o actual traço cultural tsonga da superficialidade ou inexistência de
linhagens ou grupos de parentesco é fruto dos ataques angones, que dis-
persaram regulados e clãs, deixando à sua passagem apenas «linhagens
truncadas». No capítulo 5 desta monografia afirmo que as «linhagens»
chopes na área de estudo têm, em média, uma profundidade de três ge-
rações, pelo que mal merecem esta designação, já que são pouco mais
do que famílias extensas. O mesmo poderá ser afirmado a respeito de
grupos tsongas, como os tembes, que, segundo alguns autores, não têm
qualquer tipo de linhagens (Krige 1969; W. Felgate, comunicação pes-
soal; Preston-Whyte 1974, 195-196).
A hipótese de que a existência actual de linhagens superficiais pode
ser explicada pela invasão e de que as linhagens ficaram truncadas
aquando da dispersão da população local parece centrar-se em epifenó-
menos, e não nos aspectos cruciais. Estou certo de que, se existissem
originalmente linhagens com uma profundidade de seis gerações, por
exemplo, não haveria motivo para que o sistema de seis gerações não
fosse regenerado após o acontecimento traumático. Julgo que é muito
mais convincente a explicação segundo a qual os tsongas (e especial-
mente os chopes) sempre tiveram um sistema de parentesco caracteri-
zado por linhagens pouco profundas e, talvez, por um princípio agná-
tico fraco. As primeiras cartas do missionário André Fernandes (Theall
1898, 61-152), bem como a tradição oral registada por Earthy (atrás
referida), dão a impressão de que se trataria de pequenas unidades políti-
cas autónomas. Infelizmente, não há qualquer comentário sobre as for-
mas de agrupamento das parentelas. Se pudéssemos pegar nos modelos
das sociedades zulus e chopes/tsongas do passado recente e transpô-los
para algum tempo antes de 1820, uma comparação grosseira demons-
traria que, contrariamente aos zulus, que têm um princípio agnático
forte e linhagens com uma profundidade de cerca de seis gerações, entre
os chopes o agnatismo é fraco e as linhagens têm uma profundidade de
três gerações. Para além disso, os zulus têm um sistema de regimentos e
classes de idade, juntamente com um sistema político centralizado, ao
passo que entre os chopes não existe este tipo de instituições alargadas
a toda a população. Assim, no caso de eclodir um conflito entre os dois
grupos, seria de esperar que a maior capacidade organizativa dos zulus
(através das suas instituições sociais) lhes desse uma vantagem sobre os
chopes.

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Introdução

Sochangane, apesar da dimensão reduzida das suas hostes iniciais, de-


pressa começou a recrutar para o seu regimento os tsongas conquista-
dos, até ter sob as suas ordens um exército de dimensão considerável,
bem treinado e disciplinado. Contra ele estavam os chopes/tsongas, que
não estavam acostumados a reunir-se em grandes números. Habitavam
uma região onde, ainda hoje, a terra não escasseia e tinham tendência a
formar grupos pequenos e auto-suficientes (também os agrupamentos
de parentes eram pequenos e fracos, como adiante se verá). Que grupos
existem que sejam mais amplos do que os do parentesco e que possam
actuar de forma corpórea? Aparentemente, o nível a que a vida social e
política é vivida mais intensamente é o de um pequeno agrupamento
territorial – ao qual daqui em diante me refiro como vicinalidade. A vi-
cinalidade é um grupo de entreajuda constituído por parentes e vizi-
nhos e chefiado por um líder. Mas esta é uma organização política que
actua aos níveis mais baixos e os agrupamentos de nível mais elevado,
como a povoação e o grupo de povoações, têm uma articulação fraca,
sendo a acção social aí quase impossível. Assim, os chopes (e calculo
que também a maior parte dos tsongas) não conceptualizam o seu
parentesco de uma forma alargada, pelo que este de pouco lhes vale
quando se torna necessário um princípio para organizar uma defesa a
grande escala. Nos agrupamentos territoriais e políticos, a vicinalidade
parece ser a única unidade verdadeiramente eficaz e esta consiste geral-
mente em cerca de seis ou sete domicílios (e, portanto, terá apenas cerca
de dez homens capazes de lutar). Claramente, estas unidades tão pe-
quenas não teriam capacidade para enfrentar uma força disciplinada
com mais de cem homens.
O meu argumento assemelha-se, em alguns aspectos, ao conhecido
debate sobre a natureza da interacção entre os nueres e os dinkas
(Sahlins 1961, 323, 328, 335; Newcomer 1972, 7-8; Glickman 1972a,
587).* Não porque os zulus tenham linhagens segmentares (não têm),
mas porque os seus grupos de parentesco actuam a um nível mais ele-
vado e, portanto, quando combinados com o sistema de regimentos e
classes de idade, dão-lhes uma certa vantagem sobre sociedades mais
individualistas, como as dos tsongas. Isto poderá explicar a razão por
que Sochangane e os outros zulus, Nxaba e Zwangendaba, conseguiram
subjugar a população local tsonga com manifesta facilidade.

* Algumas passagens do texto original de carácter mais teórico e menor relevância


etnográfica não foram traduzidas. (N. do E.)

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A Sociedade Chope

O povo
A primeira coisa que se nota quando se visita a terra dos chopes é,
talvez, a natureza gregária deste povo. Vasco da Gama, na sua viagem de
exploração do fim do século XV, foi atacado todas as vezes que procurou
aportar para recolher água doce, até que chegou ao território dos
chopes. Ali foi bem recebido e referiu-se ao lugar como «aguada da boa
paz» e «terra da boa gente». 4 Na verdade, tive a sorte de me encontrar
entre estas gentes tão prestáveis, que, após a contenção inicial inevitável
que manda a boa educação, foram extremamente generosas na forma
como aceitaram a minha presença e a da minha mulher. Os chopes ocu-
pam muito tempo a visitar-se uns aos outros, a beber e a passar o dia
com amigos e vizinhos. Divertem-se muito quando se reúnem para
ouvir tocar uma orquestra de timbila a acompanhar um grupo que exe-
cuta sequências de danças e canções. Estes encontros ocorrem regular-
mente, muitas vezes assumindo a forma de um concurso entre
povoações vizinhas ou rivais, e esses momentos tornam-se cocktails de
pessoas que procuram velhos amigos para conversar, bisbilhotar e tro-
car informações.
É dado grande valor à amizade (v. capítulo 7), e os chopes dividem-
-na em vários tipos, que vão desde os conhecimentos pontuais a uma
forma de amizade «especial», que é uma espécie de irmandade de san-
gue, um laço quase tão forte como os do parentesco. É interessante que,
enquanto inquiria um informante sobre a terminologia do parentesco,
ele insistia em dar-me também o termo ndoni, que designa o amigo es-
pecial. Explicava-me ele que esse amigo era «como se fosse» um parente.
Um aspecto importante da vida social a que a literatura pouco se tem
dedicado (com a notável excepção de Gulliver 1971) é o da vizinhança
e da relação entre vizinhos. Os chopes, que não têm grandes grupos cor-
póreos de parentes, têm forçosamente muitos vizinhos a que não estão
directamente ligados pelo parentesco e desenvolveram uma ética forte
de boa vizinhança. A troca de pequenos produtos alimentares é fre-
quente entre vizinhos. É frequente também que, quando um homem
volta da floresta com um cesto de cogumelos, ou quando uma mulher
regressa dos campos com algumas batatas-doces, pare para partilhar os
alimentos com os residentes do domicílio vizinho.

4 Julgou-se que esta última frase se referia aos tongas de Inhambane, mas há um his-
toriador que actualmente defende que isto aconteceu mais a sul, em território chope
(Eric Axelson, comunicação pessoal).

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Introdução

Há um código complexo para os cumprimentos e o espectador aten-


to percebe depressa o estatuto relativo dos intervenientes. Quando um
homem cumprimenta um outro que detém uma posição elevada, com-
porta-se de uma forma extremamente respeitosa, baixa os olhos, dobra
ligeiramente os joelhos e, se houver um aperto de mão, o subordinado
sustém o seu braço direito com a mão esquerda, porque «o aperto de
mão de um régulo é ‘pesado’» (importante). Espera-se que as mulheres
tratem os maridos e parentes por afinidade com um respeito idêntico
quando os cumprimentam, por vezes ajoelhando-se para o fazerem. No
entanto, na maior parte dos casos manifesta-se um forte pendor iguali-
tário, e os homens cumprimentam-se entre si recorrendo a termos de
parentesco ou amizade, sem que nenhum se vergue perante o outro. Os
cumprimentos quotidianos habituais seguem um padrão formal, de-
vendo o primeiro interveniente referir o período do dia em que se en-
contram – por exemplo, dichide, já nasceu (o sol), mitsikari, vai alto, ou
diswide, está a baixar. A segunda pessoa repete essa palavra única de
cumprimento e depois deve retribuir o interesse demonstrado pela
primeira e perguntar: wahanya?, «estás vivo?». Segue-se então um longo
monólogo, em que o primeiro interveniente vai descrevendo o estado
de saúde (física e espiritual) de todos os seus parentes próximos, de-
morando-se depois em detalhes sobre quaisquer acontecimentos inte-
ressantes que tenham ocorrido desde a última vez que se encontraram.
Cada comentário é recebido com um gemido ou a palavra ina («sim»).
Os papéis invertem-se então e o segundo interveniente descreve a saúde
dos seus parentes e os acontecimentos importantes para si. Este proces-
so pode durar dez minutos, mesmo entre parentes ou vizinhos que se
encontraram ainda no dia anterior.
Esther Goody (1973, 49) assimilou os cumprimentos às ofertas de
bens entre os gonjas, e o mesmo parece ser aplicável aos chopes, já que
tomam a forma de uma troca de respeito e o cumprimento feito requer
a sua própria retribuição. É considerado grosseiro e insultuoso que uma
pessoa passe por outra sem proceder aos cumprimentos; mesmo que se
esteja com pressa, o mínimo a que a decência obriga é que se grite
dichide antes de continuar. Mas mesmo isto é considerado insuficiente,
pois ninguém deveria ter pressa ao ponto de abreviar os cumprimentos.
A utilidade deste sistema de cumprimentos formais deverá já ser evi-
dente. Uma das suas funções principais é a de difundir a informação:
as notícias sobre as movimentações, o estado de saúde e as actividades
de toda a gente que pertence à povoação, pelo menos, tornam-se assim
acessíveis a quem quer que esteja interessado. A saudação formal é,

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A Sociedade Chope

portanto, um veículo de informação e, nessa medida, pode ser mani-


pulada. É possível que alguém se mantenha por este meio a par das
actividades de um adversário político, especialmente se procura anga-
riar apoiantes, ou use o sistema do rumor para espalhar falsas infor-
mações sobre as suas próprias actividades. Em várias ocasiões ouvi deste
modo histórias interessantes, que depois descobri não serem ver-
dadeiras.
Passemos agora do simbolismo na interacção a uma outra linguagem
da troca simbólica: a dos alimentos. A generosidade é um valor prega-
do e praticado e ninguém se recusaria a dar água a um viajante com sede
(na verdade, não é necessário sequer pedir permissão; pode beber-se da
reserva de água existente em qualquer domicílio, mesmo que seja já es-
cassa e independentemente da distância que a mulher da casa tenha de
percorrer para ir buscar mais). Também os alimentos são livremente par-
tilhados e as mulheres (que trabalham nos campos) oferecem fre-
quentemente mandiocas, amendoins ou papaias a quem passar por
perto. A um nível mais formal, oferece-se comida a qualquer pessoa que
seja mais do que um visitante casual do domicílio e, naturalmente, a eti-
queta obriga a que ela aceite a oferta (houve dias, por exemplo, em que
me vi compelido a fazer três ou quatro refeições pesadas numa só
manhã quando me encontrava a fazer entrevistas). A carne é particular-
mente rara e especialmente valorizada. Os animais de criação só são
mortos para rituais ou celebrações, pelo que qualquer outra carne é
bem-vinda. Os homens passam muito mais tempo a caçar do que o pro-
duto mereceria e muitos deles pescam e utilizam armadilhas. Quando
se pergunta sobre as razões que os levam a participar em trabalhos que
os obrigam à migração, muitos homens colocam a «boa carne» no topo
das suas listas. O desejo de carne é levado a pontos extremos, de tal
modo que chegam a colocar-se armadilhas para apanhar ratos-do-
-campo e das canas e são consumidas algumas espécies de serpentes
(especialmente as pitões).
A melhor ilustração da ética da partilha e da generosidade é a situa-
ção em que alguém vai a passar por um domicílio e grita «gunzala»
(tenho fome), após o que, invariavelmente, lhe é oferecida alguma co-
mida. Podemos retirar muitas lições deste costume, já que, dependendo
do contexto, se revela a relação entre quem passa e o dono do domi-
cílio. Se forem vizinhos, parentes ou amigos, o facto de o passante so-
licitar a oferta de comida, em vez de esta ser oferecida pelo residente,
indica uma relação amigável e de proximidade. A comida é oferecida
com toda a boa vontade, sem que haja qualquer perspectiva mercenária

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Introdução

de retorno imediato; trata-se de uma relação de confiança e afecto du-


radouros (Bloch 1973, 75 e segs.), daquilo a que Sahlins chamou «reci-
procidade generalizada» (1965, 147). Mas o grito «gunzala» ocorre tam-
bém entre pessoas que mal se conhecem ou, por vezes, entre estranhos.
Neste contexto, o passante coloca-se deliberadamente numa posição de
subordinação ou inferioridade, já que pede comida (em vez de esta lhe
ser oferecida) que sabe não ser provável ter de retribuir (já que mal co-
nhece o ofertante). A dádiva é assim unilateral ou assimétrica e é uma
demonstração simbólica da superioridade de quem oferece: o passante
«esfomeado» só pode retribuir com os elementos imateriais da gratidão
e do respeito. A obrigação aqui presente é de curta duração e não tem
consequências políticas, mas dois homens que sejam rivais políticos têm
o cuidado de não se permitirem entrar neste tipo de trocas, já que daí
poderia decorrer maior prestígio para um ou para outro (Strathern 1971,
10).
A melhor época do ano (aos olhos dos chopes) é o meio do Verão.
O trabalho nos campos é interrompido (só falta fazer as colheitas) e
toda a actividade se concentra nos frutos caídos dos cajueiros. O fruto
tem uma parte sumarenta e carnuda, abaixo da qual surge a castanha.
As castanhas são armazenadas e a polpa é colocada em grandes recipien-
tes de barro e deixada a fermentar. Nesta época, os homens e as mu-
lheres convivem em grupos e bebem o líquido fermentado (mpwebwe) en-
quanto destilam o resto, processo pelo qual obtêm uma bebida
extremamente alcoólica chamada sope. É também nesta altura que os
homens e as mulheres mais velhos, satisfeitos e descontraídos, divertem
toda a gente com canções, histórias e adivinhas. É nestes momentos que
a tradição oral é transmitida e que as mentes são exercitadas na reso-
lução de enigmas. Isto desempenha uma função importante de sociali-
zação dos rapazes que irão em breve para as minas de ouro da África do
Sul pela primeira vez. Os homens mais experientes formulam proble-
mas imaginários para que eles os resolvam, muitos dos quais são bas-
tante semelhantes aos que lhes são colocados no centro de treino da
Câmara de Minas, em testes destinados a recrutar aqueles que terão car-
gos (pagos) de maior responsabilidade.
No entanto, o período descontraído do meio do Verão depressa cede
lugar ao trabalho duro que caracteriza o resto do ano. O trabalho diário
habitual é árduo e obriga homens e mulheres a levantarem-se antes da
madrugada. As mulheres e respectivas filhas levantam-se cerca das 4 e
meia da manhã para lavar roupa e ir buscar água, que trazem em jarros
de barro à cabeça. Cerca das 5 horas os maridos estão já com as

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A Sociedade Chope

mulheres nos campos, trabalhando lado a lado, para que o trabalho


mais duro do dia seja feito antes de o sol se tornar intolerável. Cerca
das 10 horas param para tomar a primeira refeição do dia, que geral-
mente é constituída pelos restos frios da refeição que cozinharam no dia
anterior. O trabalho nos campos é então interrompido quando o sol
atinge o zénite e o calor e a humidade tornam impossível qualquer
actividade fisicamente exigente. No período que se segue, os homens e
as mulheres visitam amigos ou dormem à sombra, até cerca das 2 da
tarde, altura em que regressam aos campos. O trabalho cessa outra vez
ao entardecer e as mulheres voltam para casa para preparar a refeição da
noite. Depois dessa refeição, tomada ao lusco-fusco, geralmente, as pes-
soas deitam-se, a menos que prefiram a animação de uma sessão no
domicílio do n’anga (médium) mais próximo. Contudo, não há muitas
visitas à noite porque, segundo dizem, há muitos matagais habitados
por fantasmas, espíritos maléficos, bruxas e afins.
A dieta dos chopes é saudável, apesar da escassez de proteínas da carne
(a subnutrição é praticamente inexistente), e é interessante notar a sabedo-
ria com que os frutos da floresta são usados para a complementarem.
A variedade de folhas, raízes, trepadeiras e tubérculos que são regular-
mente colhidos por homens e mulheres (bem como de cogumelos, bas-
tante abundantes) assegura que não é preciso passar fome. A aptidão dos
chopes para usarem o mato que os envolve, para caçarem com arco e
flecha, as armadilhas engenhosas que montam e o uso dos recursos natu-
rais parecem remeter para um estádio em que a caça e a recolecção eram
as suas principais fontes de subsistência. O saber dos chopes no que diz
respeito à utilização do mato estende-se à manufactura de tecido e cor-
doaria vegetal, de colmeias feitas a partir da camada exterior dos troncos
de determinadas árvores e à construção de pequenas canoas com a fibra
das mesmas árvores. Por fim, os campos arenosos são como um jornal
para os chopes. Todos eles são capazes de reconhecer as suas próprias pe-
gadas e são extremamente hábeis a seguir trilhos.

O impacte do contacto com os europeus


É muito difícil avaliar esse impacte porque, apesar dos quase cinco
séculos de contacto com europeus, muito pouco se escreveu sobre os
habitantes desta parte de Moçambique. O impacte na vertente eco-
nómica foi grande e, sem dúvida, traumático. Há mercado para os bens

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Introdução

ocidentais, especialmente roupa, produtos alimentares e, para a elite,


transístores e bicicletas. A migração laboral, predominantemente para as
minas de ouro da África do Sul, mas também para as cidades de Mo-
çambique (onde o trabalho é mal pago e escasseia), tornou-se um modo
de vida. O mesmo aconteceu com os conhecidos efeitos negativos da
migração: empobrecimento da vida social (quando muitos dos rapazes,
por vezes 40%, estão ausentes), doenças venéreas, etc. Harris (1959,
1960) e Rita-Ferreira (1960) discutiram as causas e os efeitos da migração
e não pretendo aqui voltar a este debate. Harris descreve em linhas
gerais um acordo entre a Câmara de Minas do Transval e as autoridades
portuguesas segundo o qual estas últimas fornecem força de trabalho
para as minas a troco de benefícios económicos de primazia na impor-
tação de determinados produtos que são canalizados via Lourenço
Marques para o interior da África do Sul. Há também um acordo para a
retenção de metade da remuneração do trabalhador migrante, que só a
recebe ao regressar a Moçambique, onde as autoridades procedem à co-
brança dos impostos devidos. Para garantir que haveria migração foi cria-
da em Moçambique legislação que não permitia que mais do que 7% de
todas as actividades masculinas fossem realizadas junto do respectivo
domicílio. Harris afirma que isto se fez «em prejuízo do desenvolvimen-
to do empreendimento agrícola nativo» (1959, 63).
Em resposta, Rita-Ferreira defende que, com o surgimento da pax
lusitana, as guerras tribais cessaram, os utensílios europeus tornaram-se
de uso generalizado e a caça está a extinguir-se. Na sua opinião, todos
estes factores reduziram o volume de trabalho económico de cada
homem tsonga a um mês por ano. Afirma também que os homens não
são precisos para limpar os campos, já que a savana dos tsongas é pouco
densa e com árvores baixas e a pobreza do solo e a pluviosidade
forçaram os homens a migrar. Devemos procurar o ponto de equilíbrio
entre os dois lados deste debate. É muito difícil separar a causa e o efeito
e, apesar de serem válidas algumas das afirmações tanto de Harris como
de Rita-Ferreira, ambos parecem estar enganados quanto a alguns outros
aspectos. Por exemplo, a afirmação de Rita-Ferreira de que os homens
não são necessários para a limpeza dos campos só é válida para uma pe-
quena porção do Sul do território tsonga, e veremos (no capítulo 10)
que surgiu uma classe de empreendedores que exploram o nicho criado
pela ausência dos migrantes: prestam serviços a esses homens lavrando
os campos a crédito. De acordo com as entrevistas feitas a vários infor-
mantes, muitos migrantes, no início, teriam partido voluntariamente em
busca de trabalho, mas hoje parece não haver grande alternativa. O sis-

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A Sociedade Chope

tema de impostos da administração é, sem dúvida, um forte factor de


motivação, já que as penalizações por fuga ao pagamento dos impostos
são bastante pesadas. Contudo, as minas são reconhecidas como uma
fonte de riqueza (apesar de os salários serem baixos) e são um meio para
angariar a quantia necessária ao pagamento do preço da noiva e dinhei-
ro para investir em várias coisas, como a compra de um arado ou uma
barcaça, que poderão permitir que um dado indivíduo se torne em-
preendedor.
Agora que os chopes (e, supostamente, os tsongas) passaram a estar
integrados na economia capitalista, racionalizaram a situação ao ponto
de quem nunca esteve nas minas não ser considerado um homem; a mi-
gração é quase uma forma de iniciação secundária. O trabalho migra-
tório e os efeitos das estruturas económicas e administrativas mais vas-
tas e constrangedoras tiveram um forte impacte na sociedade chope.
Surgiram assim novas áreas que os indivíduos mais expeditos podem ex-
plorar, criando um meio propício à emergência de «homens novos»,
como empreendedores, corretores, patronos, etc., e proporcionando
benefícios políticos novos nas esferas tradicionais. Os cargos políticos
tradicionais, como os de régulo, cabo de terras ou chefe de povoação,
não são de todo irrelevantes, mas a política ocorre mais intensamente
ao nível micropolítico da vicinalidade (v. capítulo 4). Na verdade, a mi-
gração pouco interfere com essas funções mais elevadas, já que estas são
tradicionalmente desempenhadas pelos homens mais velhos (e a suces-
são é adélfica*).
No entanto, de uma forma geral, a administração portuguesa pesava
desconfortavelmente sobre os ombros dos camponeses. Embora Mo-
çambique fizesse parte, oficialmente, de um Portugal mais amplo, pou-
cos africanos tinham voz no sistema político mais vasto do parlamen-
tarismo português. Para além disso, apesar da ausência de uma escala
oficial da cor e da discriminação e preconceito que acompanham esse
tipo de instituição, havia muita discriminação de facto contra os negros.
Todavia, não podemos deixar de acrescentar desde já que surgiam algu-
mas oportunidades para os negros subirem na estrutura administrativa
e que a discriminação que se verificava não era de todo tão alargada ou
severa como na África do Sul.

* A sucessão é adélfica quando o cargo é transmitido por herança ao longo de uma


linha de irmãos segundo o critério da primogenitura. Assim, os primeiros a reunir
condições para suceder serão os filhos do primeiro irmão, depois os do segundo irmão,
etc. (N. do E.)

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Introdução

Moçambique era, essencialmente, uma colónia portuguesa. Em 1951,


Portugal tentou contornar a oposição anticolonial que surgia em enti-
dades como as Nações Unidas mudando a terminologia colonial. Assim,
as colónias africanas passaram a ter a designação de «províncias ultra-
marinas» e em 1971 o termo «província» foi substituído pelo termo «Es-
tado». Para sermos justos, digamos que a maioria dos portugueses via as
colónias africanas como fazendo parte do Estado metropolitano e se refe-
ria aos africanos como «cidadãos» portugueses. Mas, para além das mu-
danças na designação, pouco se alterara nas estruturas de poder e nas
políticas coloniais. Depois das sublevações de Angola (em 1961) e
Moçambique (1964), algumas das políticas mais humilhantes e repressi-
vas que Portugal aplicara em África foram atenuadas. O cargo impopular
de chefe de posto (homens de origem local e muitas vezes mestiços que
eram empregues como supervisores administrativos) foi abolido, os casti-
gos corporais foram abandonados e o trabalho forçado diminuiu.
O sistema dos assimilados, que permitia que os africanos pudessem ser
declarados portugueses aculturados, acabou também nessa altura.
O sistema era impopular porque obrigava os candidatos a esse estatuto a
renunciarem à sua cultura e a tornarem-se efectivamente portugueses ne-
gros, aceitando submeter-se às suas leis e costumes. Teve maior impacte
nas áreas urbanas, onde estimulou o aparecimento de uma classe média-
-baixa entre o proletariado negro. Nas zonas rurais, poucos se tornaram as-
similados porque tal significaria estabelecer uma separação entre si mes-
mos e os respectivos parentes e vizinhos e era difícil renunciar à própria
cultura quando se vivia no seu seio. A escolarização ocidental atingia ape-
nas uma minoria de indivíduos em Moçambique. Isto devia-se em parte
à guerra contra os revoltosos da Frelimo, que absorvia 45% do orçamen-
to nacional português, deixando poucos fundos para o desenvolvimento
e a educação. A situação era agravada ainda pelo facto de a Igreja Católica
ter o monopólio dos estabelecimentos escolares nas áreas rurais e de não
ser permitida a entrada em Moçambique de missões protestantes, que
poderiam ter atenuado a falta de escolas. Assim, em última análise, os
camponeses chopes não tinham meios, educação e oportunidades que
lhes permitissem integrar a economia ocidental, retirando dela, em con-
sequência, poucos benefícios, enquanto as estruturas políticas e adminis-
trativas sobre eles pesavam intensamente. 5

5 O trabalho de campo para esta monografia e a maior parte da redacção foram rea-
lizados, obviamente, antes de Portugal ter abandonado Moçambique, deixando o poder
nas mãos do governo provisório da Frelimo, até que o processo de independência fosse
concluído em Junho de 1975.

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