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1.

Introdução

Movida por uma assombrosa denúncia feita em Maputo no decorrer de um seminário


sobre responsabilidade corporativa em 2012, a Justiça Ambiental (JA) decide
começar a monitorar os impactos sociais do projecto da sociedade Wanbao Africa
Agriculture Development Limited no Regadio do Baixo Limpopo. Fá-lo através de
várias visitas de campo, de entrevistas, bem como através de uma fundamental
articulação com a sociedade civil local.
“A província de Gaza, concretamente no distrito de Xai-Xai, começou
a colher arroz de origem chinesa, desde a semana passada.
O arroz, que é de elevada qualidade, foi plantado no ano transacto em
regime experimental por técnicos de ambos os países.
De acordo com a imprensa chinesa, os técnicos chineses conseguiram
bons resultados nas culturas de teste - com a utilização de variedades
de elevada qualidade - estando a produção média situada em 10
toneladas por hectare.”

Gaza inicia colheita de arroz de origem chinesa, em Jornal O País, 15 de Abril 2009
1.1 Sobre a Agro-pecuária e Moçambique

“A maior parte da população moçambicana reside na área


rural. Esta tendência não é diferente dos outros países
africanos. O crescimento da população urbana tem sido
muito lento, dados do censo de 1997 apontavam para
28.6% da população que residia em áreas urbana, tendo
passado para 30.1% em 2007 e, segundo as projecções, a
população urbana em Moçambique para ano de 2014, foi
estimada em aproximadamente 32%.”

Estatísticas de Indicadores Sociais 2012-2013 Instituto Nacional de Estatística

Empregando mais de 80% da população rural e contribuindo com 25% do PIB do País,
a agro-pecuária é uma actividade económica importantíssima para Moçambique, um
país com 5,6 milhões de hectares de terras agrícolas, ocupadas predominantemente
por mais de 3,7 milhões de pequenas e médias propriedades.
Dos dados estatísticos que se seguem, saltam à vista os mais de dois terços de
população rural do país e os assombrosos 98.7% de extensão agrícola entregue a
essas pequenas e médias explorações – as machambas.
Distribuição da População e respectiva Densidade Populacional

Distribuição Percentual da População


por Área de Residência

31.6%
População
Urbana
68.4%
População
Rural
Fonte:
Instituto Nacional de Estatística
2010, Projecções Anuais da População
Total, Urbana e Rural 2007-2040
2013, Censo Agro-Pecuário

Área Cultivada, por Província, por tipo de Exploração


Número de Explorações Agro-pecuárias do País por tipo e por Província

Número de Pequenas e Médias Explorações quanto ao Género do Chefe


do Agregado Familiar, por Província

Número de Pequenas e Médias Explorações por Grau de Escolaridade e


Género do Chefe do Agregado Familiar
1.2 Sobre o Regadio do Baixo Limpopo

“Em condições de sequeiro, a planície aluvial do Limpopo,


em Moçambique, tem uma produtividade agrícola
marginal. A precipitação média (622 mm por ano) é
baixa, o que é agravado pelas altas temperaturas e taxas
de evapotranspiração (1402 mm por ano). Além disso, a
precipitação está sujeita a importantes oscilações, tendo-
se calculado haver boas colheitas apenas em 22% dos anos,
aproximadamente (BTFPL, 1956, p. 21). O elevado risco
para a agricultura é acentuado pelas grandes oscilações
do caudal do Limpopo e do seu principal afluente, o
Rio dos Elefantes (Olifants, a montante, na África do
Sul). O caudal mensal conjunto dos dois rios varia em
média entre 56,5 Mm3, em Setembro, e 1585 Mm3, em
Fevereiro. Mesmo estas grandes variações sazonais (x30)
são ampliadas pela variação de ano para ano.”
Oportunidades e Condicionalismos da Agricultura no Regadio do Chókwè por Ana Sofia
Ganho e Phil Woodhouse em IESE Desafios para 2014 – Parte II: Economia

A zona do Regadio do Baixo Limpopo é uma área com terra arável, propícia para a
prática de agricultura, há muito caracterizada por uma dupla dualidade:
Sistema de Produção Cooperativo Vs. Sistema de Produção Empresarial/Estatal; e
Sistema de Produção Familiar Vs. Sistema de Produção Comercial.
Após a independência, algumas das zonas de drenagem ao longo das encostas
arenosas do regadio foram entregues a cooperativas agrícolas, enquanto a zona
aluvionar do Regadio viria a permanecer predominantemente entregue à exploração
empresarial/estatal e à criação de gado bovino.
Por volta do ano 2000 estes sistemas começam a sofrer algumas transformações. As
áreas outrora geridas pelas cooperativas são repartidas em pequenas explorações
de tipo familiar e organizadas em associações que, por sua vez, são aglomeradas
em Casas Agrárias. Ao mesmo tempo, as áreas exploradas pelas antigas empresas
estatais começam a ser exploradas por associações de produtores comerciais
emergentes e por empresas agro-industriais.
Após vários modelos de gestão e várias transformações estruturais, o governo cria
em 2010 o Regadio do Baixo Limpopo, Empresa Pública (RBL), a quem é então
entregue a gestão do Regadio.
Representando cerca de 80% da terra destinada à exploração agrícola do distrito, o
Regadio é fundamental para a segurança alimentar da região.
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Mapa do Regadio
Gentilmente cedido pela RBL

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BUNDZULANE
MAHELENE Infraestruturas de rega Uso e Cobertura da Terra Area do Regadio Baixo Limpopo
Pontos de Tomada de água Casas Agrárias
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Canais de rega
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a Sede - Operacional
Outra Informação relevante Area Samatine
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O Projecção: WGS84 Casas Agrarias Sede - em construção
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Zona: 36
Localidades Superfícies aquáticas
Datum: WGS1984 ¶
" Centro de recursos
.
! Povoações/Aldeias Rios
Km
Valvula_PS
Cidade de Xai_Xai Lagos/Lagoas
0 0.35 0.7 1.4 2.1 2.8

Habitacoes
Janeiro, 2014
1.3 Sobre a Wanbao

“A plantação foi estabelecida em 2007 no Xai-Xai, capital da Província de


Gaza, graças a um acordo assinado entre os Governos Provinciais de Hubei e
Gaza. Este acordo concedia à Hubei Lianfeng Mozambique Company, Lda, uma
companhia Estatal Chinesa, uma área de 300 hectares (ha) no Regadio do Xai-
Xai para produzir arroz.
Em 2011, a gestão da plantação foi entregue à Wanbao Africa Agriculture
Development Limited, uma companhia Chinesa privada. A Wanbao recebeu
uma concessão de 20,000 ha por um período de 50 anos, e planeia investir 289
milhões de Dólares Americanos em três a cinco anos, a começar em 2012.”
Chinese Agricultural Investment In Mozambique por Sérgio Chichava em The SAIS China - Africa Research Initiative at John
Hopkins University – Policy Brief no.02/2014

Em Abril de 2007 as Províncias de Hubei, na China, e Gaza em Moçambique, assinaram


um memorando de entendimento para a geração e transferência de tecnologias
de produção agrícola (incluindo como pontos de adição de valor aspectos como
o armazenamento e processamento). É à luz das condições estipuladas por esse
acordo (e dos resultados obtidos nos campos de teste da companhia Estatal Chinesa
que a antecedeu) que a Wanbao decide vir para Gaza.
Conforme o Relatório Final do Estudo de Impacto Ambiental (REIA) do projecto, a
Wanbao é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada sediada no Xai-
Xai, constituída por três sócios de nacionalidade chinesa [Haoping Luo (2.5%), Yong
Cai (2.5%) e Shungong Chai (95%)] e com um valor global de investimento (aplicado
em infra-estruturas e na aquisição de maquinaria) de 250 milhões de Dólares
Americanos. A sua área para a produção de cereais, adquirida de forma faseada,
totaliza 20,000 hectares (6,000ha adquiridos no primeiro ano e 14,000ha nos dois
anos seguintes). Do total da área prevista, 10% estão supostamente destinados a
produtores nacionais.
O REIA refere ainda que após 4 anos de implementação apenas se realizaram campos
de ensaio de arroz, tendo sido possível identificar variedades com alto potencial
produtivo cujo rendimento ronda as 8 a 10 toneladas por hectare. Menciona ainda
vários aspectos importantes a abordar, a fim de assegurar a protecção do ambiente
e do povo.
Para os representantes da Wanbao, apesar de reconhecidas dificuldades (que
atribuem a diferenças e choques culturais) nas cedências de terra por parte dos
camponeses locais e na aceitação da introdução de novas tecnologias agrícolas,
Moçambique continua a ser um país bastante atractivo, com muita terra fértil para
agricultura e óptimas condições para o investimento estrangeiro.
1.4 Sobre o governo de Moçambique

“A terra fértil, a procura explosiva de soja e de arroz e um Estado


disposto a negociar grandes transacções de terra colocaram o país
no centro da corrida à terra que varre actualmente o continente
africano. Em 2013, Moçambique era o terceiro país mais pobre do
planeta e quase metade das crianças com idade inferior a 5 anos
sofriam de subnutrição. As recentes descobertas de jazidas de
carvão e gás natural no Norte do país, bem como outras concessões
de exploração nos sectores mineiro e florestal, estão a alterar
lentamente o seu destino.”
“O Próximo Celeiro: Porque estão as grandes empresas a apropriar-se de terras no continente com mais
carências alimentares?” por Joel K. Bourne, Jr. para a National Geographic, Julho de 2014

Durante os oito anos (2007-2015) que compreendem a narrativa deste caso, a


governação de Moçambique esteve entregue a três governos (embora o último
tenha só tomado posse em Janeiro de 2015), todos eles da mesma força política.
Durante esse período, sob a bandeira do “combate à pobreza absoluta” e à boleia
da descoberta de várias reservas de recursos minerais e de uma controversa política
de atracção ao investimento caracterizada por incríveis benefícios e regalias fiscais,
estabelecem-se em Moçambique vários mega-projectos. A agricultura segue o molde:
grandes extensões de terra são cedidas para plantações florestais, o agronegócio
começa a ganhar terreno ao tradicional modelo de agricultura familiar e, à medida
que o governo vai ganhando balanço, começam a surgir relatos de problemas com
as populações locais que se queixam de abuso de poder, promessas incumpridas e
usurpações de terra. Diversos estudos de diversas organizações da sociedade civil
nacionais e internacionais denunciam os múltiplos casos que eclodem um pouco por
todo o país.
Em diversas ocasiões, o governo defende-se argumentando que a sua política era
um mal necessário para atrair investimento ao país e que, a longo prazo, as suas
decisões trariam prosperidade. No entanto, conforme espelha fielmente o caso
da Wanbao, – em que para garantir a transferência de tecnologia o governo criou
uma associação de camponeses (Associação de Agricultores Regantes do Bloco de
Ponela para o Desenvolvimento Agro-Pecuário e Mecanização Agrícola de Xai-Xai,
ou simplesmente ARPONE) tendo entregue as rédeas da Associação a conhecidos
membros do partido do poder – o que realmente resultou deste modelo de promoção
ao desenvolvimento foram vários problemas sociais, inúmeros projectos desprovidos
de sustentabilidade e uma desigual repartição da riqueza obtida, em grande parte
fruto do instituído sigilo que rodeia esses mega-contractos, que se adivinham
firmados num mar de conflitos de interesses onde se especula que nadem grandes
nomes da praça.
Convém também mencionar que entre meados de 2013 e o presente, Moçambique
vive um escalar de tensão político-militar. Enquanto entre 2013 e 2015 as duas
maiores forças políticas do país digladiavam-se quanto a mudanças na lei eleitoral
com as Eleições Gerais de 2015 em mente, hoje ambas reclamam vitória no pleito,
da qual a FRELIMO foi declarada vencedora apesar dos sérios indícios de fraude
eleitoral em diversas mesas de voto. Certo é que, desde 2013, o centro do país tem
sido palco de vários confrontos armados.

1.4.1 Plano Estratégico de Desenvolvimento Agrário (PEDSA)


À semelhança de outros projectos de larga envergadura a decorrer no país, o Governo
de Moçambique enquadra o projecto da Wanbao no PEDSA, um plano estabelecido
pelo Sistema Nacional de Planificação com uma visão de médio/longo prazo assente
nas directrizes nacionais traçadas para a agricultura e nas prioridades do quadro
orientador comum dos países africanos para melhorar o desempenho do sector
agrário – o Programa Integrado para o Desenvolvimento da Agricultura em África.
Em linha com os princípios advogados pelo PEDSA, o governo defende que o projecto
da Wanbao contribuirá para a segurança alimentar da região e ajudará a reduzir as
importações do país.
A principal crítica feita a este plano e à actual política agrária do país pelos muitos
cépticos, é que os seus instrumentos beneficiam os grandes investimentos/mega-
projectos em detrimento do camponês, sendo que hoje, os principais desafios
enfrentados em Moçambique pelos pequenos agricultores são a insegurança da
posse de terra e a sistemática violação dos direitos fundamentais das populações
afectadas por grandes investimentos/mega-projectos.

1.4.2 Pronunciamento da Directora Provincial do MICOA em Gaza


Em conversa connosco em Junho de 2015, a Directora Provincial do MICOA admitiu
ter sabido, ainda que por via informal, que quando o projecto da Wanbao arrancou,
gerou conflitos com as comunidades locais, tendo inclusivamente sido informada de
uma marcha dos camponeses. Disse também lamentar que todo o processo tivesse
sido conduzido da forma como o foi.
Num discurso desalinhado com os actos do seu executivo, disse ainda que, pequenas
ou grandes, as parcelas de culturas diversificadas sustentavam muitas famílias e,
como tal, ajudavam na redução da pobreza do país – o tal grande desafio do governo
Moçambicano. Complementou isto dizendo que permitir o investimento estrangeiro
tem como objectivo, em primeiro lugar, beneficiar o povo de Moçambique e não
prejudicá-lo, pois não se combate a pobreza privando as pessoas dos seus meios
de subsistência, deslocando-as para zonas inférteis e tomando medidas que as
colocam em risco.
1.5 Sobre as Comunidades na Área do Projecto

“A intervenção da empresa Wanbao é feita através duma


parceria «público-privado-população» implementada com
enfoque para o programa de transferência de tecnologia
a produtores locais, alocação de áreas infra-estruturadas,
apoio ao programa de suplementação alimentar e
intervenções conjuntas.
A componente de transferência de tecnologia irá
beneficiar mil produtores locais.”

“Regadio do Baixo Limpopo em vias de tirar Moçambique do mapa de importador de arroz”


por Almiro Mazive para a Agência de Informação de Moçambique, 31 de Agosto de 2013

Como nos confirmou o Presidente do Conselho de Administração da RBL, o projecto


está a ser implementado numa área afecta a cerca de 79.868 habitantes dos diversos
bairros da cidade de Xai-Xai e arredores, e de bairros comunais e povoações de toda
a região. Os agricultores da região usam a terra tanto para sua subsistência, como
para a obtenção de renda através da venda dos seus produtos nos mercados locais.
2. O Caso Wanbao

“O Governo de Moçambique concedeu 20,000 hectares de terra


a uma empresa chinesa denominada “Wanbao Agriculture”, para
exploração de arroz durante um período de 50 anos. Esta área
corresponde a 22% do total da área irrigável do Baixo Limpopo,
província de Gaza. Com esta concessão, cerca de 80 mil pessoas
deverão abandonar as suas terras. A empresa agora está a invadir
as zonas de Hluvucaze, Languene e Gumbane que não faziam
parte do projecto, e as populações dos cinco (5) bairros do posto
administrativo de Chicumbane, ficaram sem terra para praticar
agricultura e pastar os seus gados. Temem ainda que as ocupações
prossigam para outras áreas das comunidades. Não há informação
disponibilizada para as comunidades pelo Governo. As pessoas estão
apenas a assistir as suas terras a serem ocupadas.”
CanalMoz, 25 de Outubro de 2012

Depois do Governo Moçambicano ter cedido oficialmente à Wanbao 20,000 hectares


sem o consentimento das comunidades, a empresa, com o apoio da RBL, fazendo uso
de retroescavadoras e tractores foi paulatinamente invadindo pequenas parcelas
de terra usadas pelas populações, destruindo as suas culturas (muitas delas prontas
para ser colhidas) e abrindo valas de tal profundidade e largura que inviabilizaram
a circulação de pessoas e bens, bem como do abundante gado, causando assim
imensos transtornos. Estes constrangimentos afectaram cerca de 500 produtores
agrícolas e camponeses residentes em diferentes bairros do distrito de Xai-Xai,
cujas machambas se encontravam nas áreas de Kana Kana e Baixa Fome no Regadio
do Baixo Limpopo.
Segundo os camponeses afectados, a RBL designou-lhes então uma nova área para
fazerem machambas, mas essa área está entregue a uma empresa produtora de
algodão desde a época colonial, o que só veio gerar mais confusão e desconfiança.
Ainda segundo os populares, numa tentativa de prestar esclarecimentos à população,
a Wanbao deixou bastante claro aos camponeses (ainda que gesticulando, uma
vez que lhes é difícil falar o Português ou o Xitchangana) que já haviam pago ao
Governo e, como tal, estavam a exercer o seu direito.
Posto isto, um grupo de mulheres visadas dirigiu-se ao Governo Distrital de modo a
solicitar explicações ao Administrador, mas este não as recebeu. Por seu turno, a JA
tentou também agendar um encontro com o mesmo, o que também não foi possível,
alegadamente por estar ausente, o que sabemos não corresponder à verdade.
Uma vez frustrada essa tentativa, os camponeses visados por esta primeira investida,
que eram acima de 100 e na sua maioria mulheres, reuniram-se mais uma vez em
Kana Kana junto a uma das vias de acesso aos campos, por onde acreditavam
que o administrador passaria, em jeito de manifestação e protesto. Fizeram uma
autêntica espera em frente às suas terras, palco de destruição das suas culturas
pela Wanbao.
A situação era volátil, até catanas havia nas mãos da multidão. Mas não passou
nem administrador, nem membro algum do governo, apenas um técnico do RBL que
nada disse alegando não ser de sua competência, mas que garantiu levar o assunto
a quem de direito. A população enfurecida conteve-se.
Perante este cenário, a JA dirigiu-se à RBL e teve uma reunião com o Administrador
e com a Secretária Executiva do PCA, onde procurou sensibilizá-los e relembrá-los
da sua responsabilidade pelo bem estar social e económico da população.
O Administrador da RBL mostrou-se desagradado e surpreso com a atitude da
Wanbao em destruir as culturas em fase de maturação e disse não poder garantir
qualquer tipo de indemnização, apenas a devolução das terras acima referidas e o
tapar das valas.
Ou seja, resumidamente, os representantes da RBL garantiram-nos que entrariam
em contacto com a Wanbao para que estes parassem com os seus trabalhos,
restituíssem as machambas às populações e fechassem as valas. E assim foi. As
parcelas foram desocupadas e restituídas à população, mas indemnização nenhuma
lhes foi oferecida pelos danos.
Durante o primeiro semestre de 2013 a Wanbao volta a invadir as terras entretanto
devolvidas às comunidades. Desta feita, uma série de organizações da sociedade
civil, entre as quais a JA, o Fórum das Organizações Nacionais de Gaza (FONGA), a
Liga dos Direitos Humanos (LDH) e a União Nacional dos Camponeses de Gaza (UNAC),
ajudaram a população a exercer o seu direito de petição, queixa e reclamação (ao
abrigo da Lei n.º 2/96 de 4 de Janeiro), organizando uma marcha pacífica que
culminou com a entrega de uma petição endereçada ao Governador da Província
de Gaza onde constavam todas as preocupações e exigências dos afectados pelo
projecto supracitado. Até à data, esta petição não surtiu resposta alguma.
Questionados sobre a destruição de culturas em fase de maturação, representantes
da Wanbao confirmaram posteriormente que o incidente acontecera e lamentaram
o sucedido. Segundo estes, nas consultas comunitárias havidas, ficou acordado que
as populações cessariam as suas prácticas agrícolas uma vez que as terras já lhes
haviam sido cedidas pelo governo Moçambicano. No entanto, os locais continuaram
a produzir e chegada a data prevista para o início de actividades, a empresa iniciou
a lavoura sem se importar com as culturas lá existentes.
Além da destruição das suas culturas, das realocações forçadas, inadequadas e
desprovidas de devida compensação, e de uma incompreensível e quase total
ausência de comunicação, o projecto compreende outros problemas que julgamos
preocupantes. Vamos abordar alguns.
2.1 Início de actividade sem EIA
e sem Licença Ambiental

Conforme carta do Ministério Para a Coordenação da Acção Ambiental (MICOA)


datada de 30 de Setembro de 2013 (na proxima página), a aprovação do Relatório
Final de Estudo do Impacto Ambiental (REIA) deste projecto só se veio a efectuar
em Setembro de 2013.
Sobre o tópico, em entrevista concedida à JA em 2012, o PCA da RBL disse que,
porque se tratava de um projecto cuja finalidade é beneficiar o povo moçambicano,
o projecto da Wanbao não carecia de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA)
aprovado para dar início às suas actividades. – Esta afirmação é desprovida de
qualquer suporte legal.
Por seu turno, em Junho de 2015 numa reunião com a JA, um técnico da Direcção
Provincial do MICOA disse não saber se a Wanbao (cujo projecto, segundo o
estipulado pelo Decreto n°45/2004 de 29 de Setembro é dito de Categoria A e
como tal requer um EIA) já obtivera o devido licenciamento ambiental. Disse ainda
que o processo de aprovação do projecto havia sido tratado a nível central e, como
tal, também não sabia dizer se a Wanbao já efectuara o pagamento de 250 milhões
de Dólares Americanos (determinado pelo MICOA) para dar inicio às actividades,
em conformidade com o Regulamento sobre o Processo de Avaliação do Impacto
Ambiental na alínea a) do nº1 do Artigo 25, do Decreto 45\2004, de 29 de Setembro.
Em Junho de 2015, num encontro com representantes da Wanbao, a JA ficou a
saber que a empresa ainda não detinha Licença Ambiental por alegada falta de
fundos para o pagamento da da tal taxa de 250 milhões de Dólares estipulada
pelo MICOA. À semelhança do que fora dito em 2012 pelo PCA da RBL, segundo os
representantes da empresa chinesa, tratando-se de um projecto de agricultura
não era imperiosa a obtenção do mencionado documento legal para dar início às
actividades. – Nova asserção sem qualquer base legal.
Legalmente, a verdade é que as operações da Wanbao violam taxativamente o acima
mencionado Decreto 45/2004, de 29 de Setembro, que preconiza a obrigatoriedade
da realização do EIA para qualquer proposta de projecto de actividade económica,
bem como a obtenção da respectiva Licença Ambiental, obtida mediante o
pagamento impreterível da devida taxa.
2.2 Consultas Comunitárias e sua Aprovação

Segundo muitos dos camponeses afectados pelo projecto, os visados não foram
sequer devidamente informados, quanto mais consultados, durante o processo que
culminou com a usurpação das suas terras pela Wanbao. A perda da terra onde
produziam há mais de 30 anos ocorreu sem transparência e sem indemnizações, com
a agravante que na altura em que as máquinas da Wanbao “limparam” os campos,
“limparam” também culturas em fase de maturação de muitos camponeses. Este
facto é confirmado pela inexistência de uma cópia da acta da consulta comunitária
quer nos arquivos das estruturas locais, bem como nos da Direcção Provincial do
MICOA, nos da RBL e nos da Wanbao. Aliás, apesar de imprescindível para todo o
processo de licenciamento do projecto, esse documento nem consta do seu REIA.
As consultas comunitárias são extremamente importantes para evitar conflitos
futuros. Tipicamente, na consulta à comunidade discutir-se-iam as razões da
reunião, os dados do projecto proposto, a legislação de terra em relação a este
processo e os direitos da comunidade. Aos membros da comunidade seria dada
oportunidade para fazer perguntas e discutir prós, contras e demais implicações
do projecto.
A Lei de Terras estipula que os “acordos ou promessas feitas durante as consultas
à comunidade são incluídas na acta da consulta e são consideradas obrigatórias”
(Regulamento da Lei de Terras, Decreto 15/2000 de 20 de Junho, Decreto 45/2004
e o Decreto 31/2012 de 8 de Agosto).
Embora na opinião de muitos elas lamentavelmente tenham muito pouco peso no
processo legal, as consultas comunitárias não são facultativas e existem por algum
motivo.

2.3 Violações da Lei de Trabalho

Uma queixa recorrente dos camponeses é a violação sistemática dos seus direitos
laborais. Trabalho sem contratos, salários abaixo do tabelado, horas extras sem
remuneração, rescisão de contratos unilateralmente sem justa causa e alguns casos
de maus tratos aos trabalhadores moçambicanos.
2.4 Agrotóxicos?

Tudo leva a crer que o projecto Wanbao use agrotóxicos (químicos usados para
o controle de pragas, para prevenir doenças causadas por micro-organismos e
para impedir o crescimento de outras plantas que não sejam as do cultivo). Estas
substâncias, quando utilizadas em larga escala (como, dada a envergadura do
projecto, se supõe que seja o caso) podem causar sérios problemas ao meio ambiente.
Num ecossistema como o do Regadio do Limpopo, o risco está na contaminação de
solos e águas e consequentemente da fauna e flora da região. Um uso excessivo/
desregulado de agrotóxicos poderá, por exemplo, ameaçar seriamente a população
de várias espécies de peixes do Rio Limpopo.

2.5 Desrespeito pelos Valores Culturais e Espírituais

De acordo com a sua tradição, várias famílias das comunidades locais enterravam
os seus mortos dentro do perímetro hoje concessionado à Wanbao. Face a isto, a
empresa custeou a exumação de parte dessas sepulturas, enquanto noutros casos,
as campas foram simplesmente removidas sem qualquer cuidado ou critério.

2.6 Divisão de Lucros Injusta

Os agricultores queixam-se que a Wanbao vende o arroz que produzem a preço


normal de mercado, por vezes até acima da sua concorrência, mas no entanto não
lhes paga por este um valor justo, ficando assim com a maior porção dos lucros.
Desta forma, a tal transferência de tecnologia que supostamente beneficiaria todo
o país, é paga (a vários níveis) estritamente por quem mais devia beneficiar dela.
Ou seja, não é uma transferência de tecnologia, é uma prestação de serviços mal
remunerada.
3. O Insólito Caso da
Penitenciária de Gaza

Dia 19 de Outubro de 2015, no exacto momento em que uma equipa da JA e mais


de 90 camponeses de Baixa Fome e Kana Kana terminavam uma reunião sobre
as mais recentes invasões das suas machambas, chegou ao local um camião com
alguns homens, carregada de blocos de cimento. Os homens eram presidiários
acompanhados por guardas prisionais, e ao chegarem puseram-se de imediato a
descarregar os blocos sob o olhar atento dos guardas. Este cenário desencadeou de
imediato uma resposta furiosa da população. Com os nervos compreensivelmente
à flor da pele, os camponeses a quem o governo não se dignava a responder,
avançaram intrepidamente em direcção ao grupo a fim de lhes pedir explicações
sobre o que estavam a fazer. Exaltados, abordaram-nos de forma bastante agressiva
e intimidatória, gerando um momento muito tenso. Os guardas prisionais estavam
armados, e embora tenham respondido à letra à abordagem hostil da população
(o que nos pregou um enorme susto), felizmente mantiveram-se calmos tempo
suficiente para permitir que lhes explicássemos a situação e apaziguássemos os
ânimos da população que entretanto também se apercebeu da insensatez do seu
acto. Restabelecida a razão e o diálogo, o grupo de homens explicou que quem lhes
concedera o espaço fora a RBL.

Preocupadas, a JA, a FONGA e a LDH contactaram imediatamente o PCA da RBL,


expuseram a situação e agendaram uma reunião para o dia seguinte.

Importa referir que, para que também estivessem presentes na reunião, a RBL
ficara incumbida de contactar o líder da Comunidade de Chimbonhanine e um
representante do Comité dos Camponeses, no entanto, tal não aconteceu e estes
não teriam participado caso a JA não os tivesse contactado e ido buscar.

A RBL fez-se representar no encontro por dois técnicos da sua área social.
3.1 Reunião, dia 20 de Outubro de 2015

Intervenção dos representantes do camponeses


Segundo os representantes dos camponeses afectados, numa primeira instância
eles já haviam lavrado manualmente a terra e esperavam apenas a chuva para
semear quando souberam que estavam tractores a lavrar as suas machambas.
Deslocaram-se ao terreno e abordaram os invasores pedindo-lhes que parassem com
a lavoura pois as terras eram suas. Esses homens pararam os trabalhos, isolaram-se,
conversaram entre si, fizeram chamadas telefónicas e de seguida foram-se embora
sem dar qualquer tipo de explicação. No entanto, alguns dias depois retomaram as
suas actividades, desta feita ignorando os seus protestos. Foi então que solicitaram
o apoio da JA, cuja visita coincidiu com nova invasão. Agora, perante os líderes
locais e os representantes da RBL, queriam saber o que estava a acontecer.

Intervenção do Líder Comunitário de Chimbonhanine e do Chefe do Comité dos


Camponeses de Baixa Fome
De acordo com o Líder Comunitário e com o Chefe do Comité dos Camponeses,
a RBL abordou-os sobre a possibilidade de concederem à Penitenciária de Gaza
uma área de 320 hectares cedidos à população há mais de 24 anos pelo Governo
da Província e ocupada por 52 famílias da comunidade de Chimbonhanine (mais
de metade desta área foi entretanto ocupada/entregue à Wanbao). A essas 52
famílias desapropriadas, propunham em troca novas terras numa área pertencente
e cultivada pela Comunidade de Magul, que também fora vítima da Wanbao. Os
líderes disseram ter recusado a proposta afirmando que a terra que lhes propunham
mal reunia condições para os que já lá estavam. Foi, portanto, com surpresa que
viram os tractores com homens da Penitenciária a lavrar as suas terras. Frustrada a
tentativa de dissuadi-los e perante a sua persistência solicitaram o apoio da JA, que
chegou a tempo de testemunhar nova investida. Reiteraram então que esperavam
que a RBL pudesse hoje esclarecer o ocorrido.

Intervenção dos representantes da RBL


Segundo a RBL, a empresa trabalha, com e para, mais de nove mil camponeses/
agricultores, número que aumenta todos os dias. De acordo com a sua versão dos
factos, após ter sido abordada pela penitenciária, a empresa analisou zonas não
exploradas e contactou a Casa Agrária de Inhamissa , com quem identificou a área
em questão. Deu-se então início à lavoura de 42 hectares e posteriormente de mais
28, totalizando assim 70 hectares. Depois da população intervir a RBL mandou a
Penitenciária paralisar o trabalho. Procuraram então o Líder da Comunidade e o
Chefe do Comité dos camponeses de modo a solucionarem o conflito causado pelo
facto de não terem consultado/falado com os camponeses.
Posto isto, delegou-se uma comissão de representantes dos agricultores/
camponeses para gerir o conflito. Essa comissão, liderada pelo Secretário do
Comité dos Camponeses – que garantiu estar a trabalhar em consenso com o Líder
da Comunidade e com o Chefe do Comité – identificou uma área de 48 hectares que
foi lavrada para realocar os camponeses que perderam as suas áreas de cultivo.
Segundo os representantes da RBL, o Secretário disse ter falado com os camponeses
afectados e que estes teriam concordado com a troca. No entanto, perante as
declarações dos camponeses, do Líder Comunitário de Chimbonhanine e do Chefe
do Comité de Camponeses de Baixa Fome, reconheceram ter estado a trabalhar
com as pessoas erradas e ter conduzido o processo de forma incorrecta, pelo que
pediram desculpas pelo sucedido em nome da RBL.
Questionados se essas reuniões de resolução de conflitos estavam documentadas,
se alguém sequer notas tirara, responderam que não por julgarem tratar-se de um
trabalho de rotina e como tal não acharem relevante.

A JA, LDH e FONGA, recomendaram à RBL o seguinte:


• Envolver sempre o maior número de representantes dos camponeses e lideranças
locais possível para evitar futuros conflitos e mal entendidos, e para garantir um
processo transparente, justo e abrangente;
• Documentar devidamente todas as reuniões com as ferramentas possíveis (notas,
actas e a imprescindível assinatura dos participantes);
• Zelar, acima de tudo, pelo bem estar dos camponeses (sua obrigação como
Empresa Pública) trabalhando dentro das normas;
• Que se reunissem com o Líder Comunitário de Chimbonhanine e com o Chefe e o
Secretário do Comité dos Camponeses de Baixa Fome para solucionarem o conflito;
• Que escrevessem prontamente uma carta à Penitenciária de Gaza ordenando a
paralisação das suas actividades enquanto se resolve o conflito.

No fim da reunião os camponeses queixaram-se bastante da postura do governo, a


quem acusaram de desconsideração e falta de respeito, lamentando o seu silêncio
cúmplice.

Dez dias depois os camponeses foram autorizados a retomar as suas machambas.


4. Testemunhos
Durante a nossa monitoria, conduzimos várias entrevistas nas comunidades de
Marien Ngouabi, Patrice Lumumba, Inhamissa, Chicumbane e Chimbonhanine. Eis
alguns que julgamos pertinentes:
Jossias Langa, residente no Bairro de Marien Ngouabi e camponês na Baixa Fome,
perdeu 4 hectares para a Wanbao com culturas em fase de maturação. Para o cultivo
e sementeira dessa terra teve de contrair um empréstimo no banco que seria pago
com a venda dos produtos dessa colheita. Sem outra fonte de rendimento, não
tinha como liquidar a sua dívida. Acabou comprometendo-se a produzir 2 hectares
de arroz para o projecto Wanbao, a quem entregou o arroz há dois meses. Para sua
tristeza e frustração, a empresa Wanbao não lhe pagara ainda, alegando não ter
dinheiro de momento. Este facto foi relatado por mais de 10 camponeses envolvidos
no mesmo projecto, agastados por terem perdido as suas terras, sido forçados a
trabalhar para quem as usurpou, e ainda assim continuarem de mãos vazias.
Angélica Moyane, viúva, também residente no Bairro de Marien Ngouabi e
camponesa na Baixa Fome, detinha 1\2 hectare no regadio. Por ano chegava a
colher duas toneladas de milho e outras variedades de culturas em pequena escala
para seu consumo e para lhe ajudar a custear as despesas de educação dos seus
4 netos. Investiu o seu tempo e os seus parcos recursos financeiros na compra de
sementes e na lavoura da terra para a sementeira e está agastada com a perda das
suas culturas.
Raquelina Mathe, anciã e viúva, camponesa de Kana Kana e residente no Bairro
de Inhamissa, com 7 dependentes, tinha 1 hectare cuja produção lhe dava para
seu sustento durante o ano e para a educação das crianças. A destruição das suas
culturas atentou seriamente a sobrevivência da sua família.
Jossias Manhique, residente em Chimbonhanine, tinha 12 cabeças de gado (cada
um com o valor aproximado de 15 a 18 mil meticais) que usava na época de cultivo
para trabalhar nas suas machambas e de outros camponeses, o que lhe permitia
viver de forma condigna. Quando as suas terras foram entregues à Wanbao, por não
ter espaço para pastar esses bois, teve que abater a maioria das cabeças e vender
algumas abaixo do seu valor. (Facto também relatado por outros camponeses,
alguns dos quais mantiveram parte do gado que hoje se encontra, por falta de
pasto, em muito má condição.)
“Vovó” Felismina é uma anciã residente na zona de Marien Ngouabi que, segundo
o seu testemunho e o de seus vizinhos, teve um ataque cardíaco quando viu as suas
culturas a serem destruídas pelas máquinas da Wanbao. Viúva e com 9 netos que
dependiam da sua machamba, sem condição física vive agora uma vida miserável,
dependente da caridade de alguns vizinhos. O mais velho dos seus netos (todos
órfãos) ainda que menor de idade, teve que começar a trabalhar a pastar de gado
de modo a poder ajudar a sua avó, mas o valor que recebe não chega nem para seu
próprio sustento. Felismina carece de apoio alimentar e de saúde e reside numa
habitação que não reúne condições mínimas para um ser humano.
5. Conclusões

A Lei é bem explícita quando diz que “a terra é propriedade do Estado”, isto
significa que pertence ao povo moçambicano.
A obrigatoriedade de consultar as comunidades locais antes de acolher investidores
e outros interessados na terra, é considerada uma das principais inovações da Lei
de Terras (Artigo 13, número 3). Para haver ocupação de terra, o investidor (ou
o Estado), na condição de (novo) requerente, é obrigado por Lei a realizar uma
consulta comunitária com a finalidade de determinar se a área pretendida está
livre e não tem ocupantes.
Mas será que a aquisição de um Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT)
por pessoas singulares ou colectivas (nos termos da alínea c) do artigo 12 da Lei
n.º 19/97, de 1 de Outubro) se sobrepõe às demais formas de aquisição fixadas
no mesmo artigo? Nos termos do nº2 do artigo 13 do mesmo dispositivo legal, a
ausência de título não deve prejudicar o direito de uso e aproveitamento da terra
adquirido por ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo
as normas e práticas costumeiras e ocupação por pessoas singulares nacionais que,
de boa-fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos 10 anos.
Por sua vez, a Constituição da República de Moçambique (CRM) acautela que a
política económica do Estado é dirigida à construção das bases fundamentais
do desenvolvimento, à melhoria das condições de vida do povo, ao reforço da
soberania do Estado e à consolidação da unidade nacional através da participação
dos cidadãos, bem como da utilização eficiente dos recursos humanos e materiais,
sem prejuízo do desenvolvimento equilibrado. Mais, o Estado garante a distribuição
da riqueza nacional, reconhecendo e valorizando o papel das zonas produtoras,
sendo que é seu dever promover, coordenar e fiscalizar a actividade económica
agindo directa ou indirectamente para a solução dos problemas fundamentais
do povo e para a redução das desigualdades sociais e regionais. O seu papel é
impulsionar a promoção do desenvolvimento de forma equilibrada.
Tal não sucedeu neste caso.
Importa referir também que os órgãos de Administração Pública têm o dever
de responder aos pedidos de esclarecimento por parte do cidadão, bem como
de ponderar e tomar posição sobre as observações, sugestões e recomendações
feitas. (Ao abrigo do Decreto 30/2011 de 15 de Outubro e a Lei nº14/2011, de 8 de
Fevereiro).
A Lei moçambicana é clara e rigorosa, pelo desenvolvimento sustentável e
equilibrado, pela não violação dos direitos humanos dos cidadãos e pela justa
indemnização/compensação em caso de qualquer dano resultantes da actividade
económica.
Não é que o projecto agrícola da Wanbao no Regadio seja uma má iniciativa, mas
a realizar-se deveria ter por base uma relação harmoniosa com as outras partes
interessadas, bem como com a natureza, o que infelizmente, não é o caso.
Este conflito, à imagem de outros, é uma indicação de que é necessário que se
enveredem mais esforços para optimizar estes processos, para que de futuro
decorram de forma mais transparente, inclusiva e democrática. Todas as partes
deverão ser integradas nas decisões tomadas e essas decisões devem ser guiadas
por uma abordagem holística, onde todas as dimensões do pretendido (ambientais,
sociais, culturais, espirituais e económicas) sejam contempladas. Isto só pode ser
alcançado se o contributo de todas as partes envolvidas for levado em conta.
O principal objectivo deste documento é contribuir para a resolução do conflito e
trazer justiça às partes afectadas.
5. Recomendações

1. A Wanbao e o Governo deveriam apresentar um pedido de desculpas oficial às


comunidades pelo sofrimento e perdas causados pelo Projecto;

2. A totalidade das terras usurpadas deveria ser devolvida às comunidades;

3. Ao abrigo do artigo 58 da CRM, que preconiza que, “1. A todos é reconhecido


o direito de exigir, nos termos da lei, indemnização pelos prejuízos que forem
causados pela violação dos seus direitos fundamentais; e 2. O Estado é responsável
pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas
funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei”, as pessoas das
comunidades afectadas deveriam ser devidamente indemnizadas;

4. A comunicação entre as partes deve ser melhorada e aumentada e o modus


operandi na tomada de decisões precisa ser melhorado de forma a tornar-se mais
inclusivo;

5. O conhecimento tradicional, incluindo as técnicas de cultivo, precisa de ser


relevante na tomada de decisões agrícolas, e a introdução de novas tecnologias
deve ser feita levando em consideração esse conhecimento tradicional, aliás,
conforme preconizam:
• A alínea i do artigo 11 da CRM, que define como um dos objectivos fundamentais
do Estado “a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais
valores sócio-culturais”; e
• O artigo 118 do mesmo dispositivo legal, que diz: “1. O Estado reconhece e
valoriza a autoridade tradicional legitimada pelas populações e segundo o direito
consuetudinário; e 2. O Estado define o relacionamento da autoridade tradicional
com as demais instituições e enquadra a sua participação na vida económica, social
e cultural do país, nos termos da lei”.

6. As leis do país são para respeitar e cumprir. Os Estudos de Impacto Ambiental não
são facultativos, devem ser elaborados o mais cuidadosamente possível e devem
honrados. Eles existem para nos salvaguardar;

7. Todas as formas de aquisição de DUAT estabelecidas pela Lei, devem ser


respeitadas e honradas por igual, conforme o estabelecido no artigo 12 da Lei nº
19/97 de 1 de Outubro:
“O direito de uso e aproveitamento da terra é adquirido por:
a) ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo as normas
e práticas costumeiras no que não contrariem a constituição;
b) ocupação por pessoas singulares nacionais que, de boa fé, estejam a utilizar a
terra há pelo menos dez anos;
c) autorização do pedido apresentado por pessoas singulares ou colectivas na forma
estabelecida na presente Lei.”
8. O Estado não deve sacrificar o povo em prol do desenvolvimento. O seu papel é
outro, conforme estipula o nº2 do artigo 103 da CRM: “O Estado garante e promove
o desenvolvimento rural para a satisfação crescente e multiforme das necessidades
do povo e o progresso económico e social do país”.
9. Por último, recomendamos a todos os afectados que continuem a agir dentro do
estipulado pela lei, ainda assim relembrando-lhes que o artigo 80 da CRM estabelece
que “o cidadão tem o direito de não acatar ordens ilegais ou que ofendam os seus
direitos, liberdades e garantias.”
Ficha Técnica

Titulo
No Regadio do Baixo Limpopo
Autoria
Gizela Zunguze
Publicação
Justiça Ambiental – Amigos da Terra Moçambique
Coordenação e Revisão
Anabela Lemos
Daniel Ribeiro
Trabalho de Campo
Gizela Zunguze
Manuel Chaúque
Samuel Mondlane
Xavier Pene
Daniel Burgos-Nyström
Edição de Texto e Layout
Outra Perspectiva
Fotografia da Capa
Samuel Mondlane

Distribuição Gratuita
O conteúdo desta publicação é de inteira responsabilidade da Justiça Ambiental
e de nenhuma maneira reflecte a posicão ou opinião dos financiadores.

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