Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
E leonora Fabião
Sobr
Sobree ela, a performance > A história de outro homem que con-
tratou por 10 dólares/hora um desempregado
Começo por contar histórias. que concordou em permanecer 15 dias preso
por trás de um muro de tijolos contruído numa
17 histórias de performances sala de museu. Através de um buraco, na altura
ou 17 cenas verbais do chão, o contratado recebia comida.
P
> Este mesmo homem pagou 4 prostitu-
rimeira: a história do homem que em- tas viciadas em heroína para tatuar uma linha
purrou um bloco de gelo pelas ruas da horizontal em suas costas. Colocadas lado à
Cidade do México até seu derretimen- lado, as 4 mulheres formavam uma linha reta
to completo. contínua de 1,60 cm de comprimento. Cada
Segunda: A história do homem que intro- uma recebeu pela participação no projeto 67
duziu uma boneca Barbie no ânus e, com con- dólares, o valor correspondente a um shot de
trole de sua musculatura anal e abdominal, ex- heroína. Vale saber que as mesmas cobram cer-
peliu-a lentamente na frente de uma audiência. ca de 17 dólares por felação.
> Ou daquele que construiu uma cela de > E aquele outro que convidou amigos
prisão em seu apartamento/studio, trancou-se para mastigar páginas do célebre livro Art and
nela por um ano (365 dias e noites) e não leu, Culture de Clement Greenberg, juntou à polpa
não falou, não escutou música, não se comuni- mastigada ácido sulfúrico, açúcar e bicarbonato
cou com ninguém. Contratou alguém para le- de sódio, depositou a mistura num pote que
var-lhe comida bem como um advogado para etiquetou com os dizeres “Art and Culture” e
testemunhar o feito e guardar a chave. Permitiu retornou o objeto à biblioteca da San Martin’s
visitação pública de três em três semanas, num School of Art (perdendo, nesta ocasião, seu em-
total de 18 vezes ao longo do ano. prego como professor nesta mesma instituição).
235
> A mulher que tomou o metrô num sá- o gorro vermelho do Papai Noel branco, para
bado à noite e foi a uma livraria movimentada fazer levitar um vidro azul de leite de magnésia.
vestida com roupas que havia deixado de mo- Branco leite este que, como se sabe, ajuda a sol-
lho por uma semana num caldo de vinagre, lei- tar fezes marrons seja de homens pretos, bran-
te, óleo de rícino de bacalhau e ovos. cos, azuis ou amarelos.
> Uma mulher que construiu uma mini- > A mulher que, trajando camisolão bran-
atura de palco Italiano, tapou os seios nús com co, usou terços de plástico cor-de-rosa-bebê para
a maquete, e convidou os passantes na rua a to- realizar desenhos de pênis no chão. (conforme
car-lhe os peitos através das cortinas de veludo veiculado em sites de notícia na internet: “Em
vermelho do pequeno palco. abril de 2006, esta obra é retirada da exposição
> A mulher que subiu com os pés descal- Erótica – Os sentidos da arte, promovida pelo
ços uma escada cujos degraus eram facões. Centro Cultural Banco do Brasil, após denún-
> O homem que armou sua festa de aniver- cia de um empresário que a interpreta como
sário na rua, partilhou seu bolo, trocou abraços e ofensa ao catolicismo. O grupo Opus Christi
recebeu votos de felicidade de desconhecidos. pressiona o Banco para que mantenha a exclu-
> A mulher que, no Centro do Rio de Ja- são da obra no próximo destino da exposição,
neiro, colocou frente a frente duas cadeiras de sua Brasília. O então Ministro da Cultura, Gilber-
cozinha, descalçou os sapatos, sentou-se, escre- to Gil, condena o ato de censura. Finalmente, a
veu num cartaz a frase “converso sobre qualquer direção do Banco do Brasil decide que a exposi-
assunto” (ou “converso sobre saudade”, “converso ção não seguiria para Brasília por apresentar
sobre política”, “converso sobre amor”), exibiu- ameaças à marca e aos negócios”.)
o. E, por sucessivas manhãs, conversou com di- > A história da mulher que se submeteu
versas pessoas sobre assuntos diversos. a nove cirurgias plásticas combinando em seu
> A mulher que convidou os espectado- rosto traços de cinco beldades da pintura oci-
res a usarem nela, enquanto se manteve passiva dental: o nariz de Diana (por ser insubordina-
por seis horas, inúmeros objetos, dentre eles da aos Deuses e aos homens), a fronte de Mona-
uma rosa, uma pistola, uma bala, tesoura, mel, lisa (a mulher algo homem), o queixo de Vênus
correntes, caneta, baton, uma câmera polaroid, (a Deusa da Beleza), os olhos de Psyche (refe-
faca, chicote (os objetos puderam ser utilizados rência de vulnerabilidade) e a boca de Europa
livremente e a performer, que se definiu como (a aventureira).
objeto, assumiu plena responsabilidade pelos > A mulher que perguntou a seus com-
atos dos “espectadores” que chegaram a brigar patriotas Palestinos exilados: “se eu pudesse fa-
entre si já que alguns queriam feri-la mortal- zer algo para vocês, em qualquer lugar na Pales-
mente e outros os impediram). tina, o que seria?” E, graças a seu passaporte
> O homem negro que se sentou numa norte-americano, cruzou a fronteira inúmeras
calçada cinza, exibiu três vidros de maionese vezes e atendeu os pedidos que lhe foram feitos:
branca, e tentou vendê-los por 100 dólares cada. regar uma planta, pagar uma conta atrasada,
> O mesmo homem sentou-se numa ga- comer doce, florir um túmulo, tirar fotografia,
leria de arte por três dias consecutivos vestindo jogar futebol com meninos, cheirar o mar.1
1 Estas ações foram respectivamente concebidas e realizadas pelos seguintes artistas: Francis Alÿs (2000),
Denis O’Connor (1999), Theching Hsieh (1978/79), 2 ações de Santiago Sierra (2000), John Lathan
(1966), Adrian Piper (1970), Valie Export (1968), Gina Pane (1971), Eduardo Flores (2002), Eleonora
Fabião (2008), Marina Abramovic (1974), 2 ações de William Pope. L (1991), Márcia X (2000-03),
Orlan (anos 90) e Emily Jacir (2003).
236
237
cetíveis e cambiantes. A bio-política dos progra- como o corpo é capaz de afetar e de ser afetado.
mas performativos visa gerar corpos que ultra- O corpo é definido pelos afetos que é capaz de
passam em muito os limites da pele do artista. gerar, gerir, receber e trocar.
Se o performer investiga a potência dramatúr- Espinosa propõe que um corpo não é se-
gica do corpo é para disseminar reflexão e expe- parável de suas relações com o mundo posto que
rimentação sobre a corporeidade do mundo, das é exatamente uma entidade relacional. O corpo
relações, do pensamento. Refraseando: se o espinosiano não está, e nunca estará, completa-
performer evidencia corpo é para tornar eviden- mente formado, pois que é permanentemente
te o corpo-mundo. informado pelo mundo, ou, parte de mundo
que é. Inacabado, ou ainda, inacabável, provi-
sório, parcial, participante – está, incessante-
Se “corpo” é tema e é meio, mente, não apenas se transformando, mas sen-
faz-se necessário perguntar: do gerado. Tenho particular interesse na resposta
o que é corpo? espinosiana pelo grau de abstração e a amplitu-
de daí decorrente. Se do entendimento de for-
Uma resposta dentre muitas. ma, função, substância e sujeito passamos às
De acordo com Gilles Deleuze (2002), noções de infinitude, movimento, afeto e en-
Baruch Espinosa define corpo de duas manei- tre-meios, nos tornamos potência-corpo antes
ras simultâneas: mesmo de corpos sermos, pois que “corpo” não
Primeira Proposição: o que é corpo? “é”. O mundo se torna potência-corpo antes
Um corpo é um grupo infinito de partí- mesmo de corpo ser, pois que “corpo” não “é”.
culas relacionando-se por paragem e movimen-
to. São as diferentes velocidades relacionais en- Uma frase: uma frase solta:
tre as partículas, que definem as particularidades uma frase nem tão solta assim:
de cada corpo. Portanto, o corpo não é defini- uma frase-pipa
do por sua forma ou função. Forma e funções
orgânicas dependem de arranjos de velocidades Cada performance é uma resposta momentâ-
e ralentações e não vice-versa. nea para questões recorrentes: o quê é corpo?
O corpo não está sendo compreendido (pergunta ontológica); o quê move corpo? (per-
em termos de forma, mas de forças interativas, gunta cinética, afetiva e energética); o quê o
como uma complexa relação entre diversas ve- corpo pode mover? (pergunta performativa);
locidades, como uma elaborada interação entre quê corpo pode mover? (pergunta bio-poética
partículas infinitas. e bio-política).
Corpo é movimento e mobilidade.
Segunda Proposição Espinosiana: o quê
move o corpo ou qual o princípio energético Tendências dramatúrgicas gerais
do corpo? da performance
Um corpo tem o poder de afetar e ser afe-
tado – esta capacidade determinante também Sugiro que podemos encontrar em programas
define as particularidades do corpo: o quê ele performativos alguns elementos dramatúrgicos
afeta e como afeta, e pelo quê ele é afetado e discerníveis. Porém, veja-se bem, restrinjo-me a
como é afetado. apontar tendências gerais, pois considero vão,
Então, Espinosa não define corpo por sua mesmo equivocado, qualquer esforço no senti-
forma ou função, como dito anteriormente, do de definir o que seja “performance”. Trata-se
nem como substância ou sujeito. Corpos são de um gênero multifacetado, de um movimen-
vias, meios. Essas vias e meios são as maneiras to, de um sistema tão flexível e aberto que dribla
238
qualquer definição rígida de “arte”, “artista”, “es- exibir seu tipo ou estereótipo social (ou convi-
pectador” ou “cena”. Como a performance in- dar transeuntes para que apalpem seus seios
dica, desafiar princípios classificatórios é um dos através das cortininhas de uma maquete de pal-
aspectos mais interessantes da arte contempo- co italiano); 8) o investimento em dramaturgias
rânea. A suspensão de categorias classificatórias pessoais, por vezes biográficas, onde posicio-
permite o desenvolvimento de “zonas de des- namentos e reivindicações próprias são publi-
conforto”2 onde sentido se move, onde espéci- camente performados (como o sexo anal com
mes ontológicos híbridos, alternativos e sempre um pênis-barbie); 9) o curto-circuito entre arte
provisórios podem se proliferar. Porém, é preci- e não-arte (sempre); 10) o estreitamento entre
so frisar: não se trata de um elogio à falta de ética e estética (sempre); 11) a agudez conceitual
clareza, de fetichisar o misterioso, muito pelo (muita); 12) o encurtamento ou a distensão da
contrário: trata-se simplesmente de reconhecer duração até limites extremos (como quando
e investigar a extrema vulnerabilidade dos ditos uma única ação dura um ano inteiro) e a irrepe-
“sujeitos” e “objetos” e torná-la visível. Dito isto, tibilidade (como quando uma ação única é
consideremos algumas tendências dramatúrgi- tudo); 13) a ritualização do cotidiano e a des-
cas na performance: mistificação da arte (como quando alguém
1) o deslocamento de referências e signos come um doce, cheira o mar ou paga uma con-
de seus habitats naturais (como quando a cela ta atrasada a pedido de um exilado e exibe fotos
da prisão ocupa o apartamento/studio do artis- dessas ações numa galeria); 14) a ampliação dos
ta); 2) a aproximação e fricção de elementos de limites psicofísicos do performer (seja se desfi-
distintas naturezas ontológicas (como quando a gurando ao feder abjetamente em espaços pú-
cirurgia plástica, o set cirúrgico e o corpo corta- blicos, ou subindo uma escada de laminosos
do tornam-se públicos e cênicos); 3) acumula- degraus); 15) a ampliação da presença, da par-
ções, exageros e exuberâncias de todos os tipos ticipação e da contribuição dramatúrgica do es-
(como quando um pote de maionese custa 100 pectador (que por vezes se vê diretamente im-
dólares); 4) aguda simplificação de materiais, plicado na ação).
formas e idéias num namoro evidente com o Estrategicamente, a performance escapa à
minimalismo (como quando uma barra de gelo qualquer formatação, tanto em termos das
e o empurrar são suficientes); 5) a aceleração ou mídias e materiais utilizados quanto das dura-
des-aceleração da experiência de sentido até seu ções ou espaços empregados. Como sugere
colapso (como quando se mastiga e se engarra- Eduardo Flores (o homem mexicano que come-
fa um clássico da crítica de arte); 6) a aceleração morou seu aniversário com bolo e enfeites na
ou des-aceleração da noção de identidade até calçada) numa acertiva propositalmente genera-
seu colapso (ou até que um espectador queira lizante, “a matéria da performance é a vida, seja
fazê-la puxar o gatilho); 7) o desinteresse em do espectador, do artista, ou ambas”.3 A arte do
performar personagens fictícios e o interesse em performer, eu arrisco, trata de evidenciar e po-
explorar características próprias (etnia, naciona- tencializar a mutabilidade e a vulnerabilidade do
lidade, gênero, especificidades corporais), em vivo e da vivência.
2 ‘Expressão utilizada pelo crítico C. Carr em relação ao trabalho do performer norte-americano William
Pope (Pope, 2002, p. 48).
3 Notas tomadas na visita do artista mexicano Eduardo Flores à uma aula do curso “Performance: teoria,
historiografia e composição” que ministrei no primeiro semestre de 2005 para alunos do Curso de
Direção Teatral da Escola de Comunicação-UFRJ.
239
P como em Performance, to” (Artaud, 1958, p. 89); quer “criar uma es-
P como em Paradoxo pécie de equação apaixonante entre o Homem,
a Sociedade, a Natureza e os Objetos” (p. 90); e
A performance desafia definições, pois ativa esclarece: “importa é que, através de meios se-
dinâmicas paradoxais: trata-se da fundação de guros, a sensibilidade seja colocada num estado
uma cena-não-cena equiparável ao teatro-não- de percepção mais aprofundada e mais apura-
representacional vislumbrado por Antonin da” (p. 91); Artaud propõe: “a velha dualidade
Artaud. Artaud preconiza um “teatro da cruel- entre ator e diretor deverá ser dissolvida, substi-
dade” sendo que, como explica, “crueldade não tuida por um tipo de Criador único sobre quem
é sinônimo de sangramento, carne martirizada recairia a dupla responsabilidade pelo espetácu-
e inimigos crucificados. Essa identificação de lo e pela ação” (p. 94); “Suprimimos o palco e
crueldade com vítimas torturadas é um aspecto a sala, substituídos por uma espécie de lugar
menor da questão” (Artaud, 1958, p. 102). Ele único, sem divisões nem barreiras de qualquer
esclarece: “Eu disse ‘crueldade’ como poderia ter tipo, e que se tomará o próprio teatro da ação”
dito ‘vida’ ou ‘necessidade’” (idem, 114). Ou (p. 96); e conclui: “No estado de degenerescên-
seja, um teatro-vida ou um teatro-necessidade. cia em que nos encontramos, é através da pele
O projeto artaudiano, assim como a performan- que faremos a metafísica entrar nos espíritos”
ce, não visa, tampouco, à formação de um tea- (p. 99). Chama atenção a consonância entre o
tro inconsciente. “Quase o oposto” argumenta pensamento artaudiano e as buscas de muitos
Jacques Derrida em “O Teatro da Crueldade performers ao longo dos últimos 50 anos.
e o fechamento da representação”: “crueldade O teatro artaudiano, e com ele a perfor-
é consciência, é lucidez exposta” (Derrida, mance, é cruel ao minar fundamentos determi-
1995, p. 165). Artaud: “a crueldade é acima de nantes da cultura ocidental, nomeadamente:
tudo lúcida, um tipo de controle rígido e uma logocentrismo e tirania teológica. Fundamen-
submissão à necessidade. Não há crueldade tos estes que domesticam e minguam corpos;
sem consciência e sem o uso da consciência” forças de subjetivação que descorporalizam nos-
(Artaud, 1958, p. 102). sas maneiras de nos relacionarmos e criarmos
A performance, assim como o teatro mundo. Como propõe Artaud, o julgamento de
artaudiano, é cruel na medida em que ativa flu- Deus precisa ser erradicado para o nascimento
xos para-doxais, ou seja, lógicas que escapam à do corpo; a fúria logocêntrica precisa ser acal-
regulamentação da doxa (senso comum e bom mada para o nascimento do corpo. Como pro-
senso); é cruel na medida em que ativa a cons- põem os performers com seus programas, o tipo
ciência crítica atrelada à consciência corporal, de conhecimento de que precisamos no presen-
ou seja, ativa a consciência como “coisa cor- te momento se faz nos corpos, com corpos,
pórea”; é cruel na medida em que conduz o cê- como criação de corpos. Ou como convoca
nico a situações representacionais limite. A Gilles Deleuze inspirado por Artaud: “É preci-
identificação da performance com vítimas tor- so que estiquemos nossa pele como um tambor
turadas seria, pois, um aspecto menor da ques- para que uma nova política comece” (Deleuze,
tão. A cena crua, paradoxal, mínima, aponta o 1990, p. 72).
teatro-vida.
No “Primeiro Manifesto do Teatro da
Crueldade” uma teoria visionária da perfor- Sobr
Sobree eles, TTeatr
eatr
eatroo e Performance
mance começa a ser elaborada (note-se que o
primeiro manifesto foi escrito em 1932!). Fato é que entrecruzamentos entre teatro e per-
Artaud busca “uma espécie de linguagem úni- formance são moeda corrente nos palcos con-
ca, a meio caminho entre o gesto e o pensamen- temporâneos. Grupos de teatro experimental
240
como o britânico Forced Entertainment, o nor- ações cotidianas: levantar-se, lavar-se, vestir-se,
te-americano Wooster Group, ou os brasileiros comer, urinar…” Tratam-se de experiências que
Teatro da Vertigem, Orlando Furioso, Coletivo possibilitam um confronto cru com a fisica-
Improviso, Michel Melamed e sua cena-poesia, lidade, com a metafisicalidade; confronto este
para citar alguns poucos casos, desenvolvem tra- que, penso, tonifica o atuante para além de gê-
balhos consonantes com o universo da perfor- neros ou técnicas específicas. Grotowski clarifi-
mance (sejam eles direta e conscientemente in- ca: “O Performer, com maiúscula, é o homem
fluenciados, ou não). Considero a inclusão da de ação. Não é o homem que faz o papel do
prática e da teoria da performance no circuito outro. É o dançante, o sacerdote, o guerreiro:
do estudo, da pesquisa e da criação teatral esti- está fora dos gêneros estéticos. […] Pode com-
mulante por vários motivos: para a ampliação preender apenas se faz. Faz ou não faz. O co-
de pesquisas corporais e o investimento em pes- nhecimento é um problema de fazer.”4 Mais
quisa específica sobre dramaturgia do corpo; am- uma vez Grotowski: “O Performer não deve de-
pliação do repertório de métodos composicio- senvolver um organismo-massa, organismo de
nais e o investimento em pesquisa específica músculos, atlético, mas um organismo-canal
sobre dramaturgia do ator; investigação sobre através do qual as forças circulam.”5 Ainda ou-
diálogo entre gêneros artísticos e sobre gêneros tra vez Grotowski: “O Performer deve trabalhar
híbridos; discussão de conceitos através de mais em uma estrutura precisa. […] As coisas a se-
outro viés além da teoria do drama e das histó- rem feitas devem ser exatas. Não improvise, por
rias e poéticas espetaculares; aprofundamento favor! Há que se encontrar ações simples; mas
de debates e práticas teatrais voltados para po- tomando cuidado para que sejam dominadas e
líticas de identidade e políticas de produção e perdurem. De outra forma não se tratará do
recepção; valorização de uma investigação espe- simples, mas do banal.”6
cífica sobre dramaturgia do espectador. Conside-
remos alguns destes pontos.
Para os artistas da cena em geral penso ser Vertigem: estado mórbido
de grande valia a experimentação de práticas durante o qual per de-se equilíbrio;
perde-se
psicofísicas baseadas na tradição da performan- delíquio; vágado; ato impetuoso e
ce. Citar alguns exemplos de programas pro- irr efletido; tentação súbita; desvario
irrefletido;
postos pela performer Marina Abramovic em
seus workshops elucida meu ponto; Abramovic O Teatro daVertigem investe em mecanismos
propõe: “durante um período de uma hora, es- dramatúrgicos de alta voltagem performativa
creva seu nome apenas uma vez num papel para a criação de seus espetáculos.7 O grupo
branco sem levantar a caneta” ou “andar para privilegia a dramaturgia do ator, ou seja, proces-
longe da casa; parar; vendar-se; encontrar o ca- sos criativos onde o ator não é exclusivamente
minho de volta” ou “da manhã até à noite, mo- intérprete, mas co-autor do espetáculo assim
vendo-se o mais lentamente possível, fazer as como o diretor, o cenógrafo, o iluminador, o
4 Revista Máscara – número especial em homenagem à Jerzy Grotowski (Cidade do México: Fondo de
Cultura del México, p. 78).
5 Idem, p. 80.
6 Idem.
7 Me refiro à criação e encenação da Trilogia Bíblica composta pelas peças O Paraíso Perdido (1992),
O Livro de Jó (1995) e Apocalipse 1,11 (2000).
241
8 “O Que Fazemos na Sala de Ensaio”. In: Trilogia Bíblica (São Paulo: Publifolha, 2002, p. 45).
9 Idem, p. 46.
10 Idem.
11 No caso da Trilogia Bíblica, respectivamente, igreja, hospital e presídio.
12 Idem. p. 48; grifos meus.
13 Idem.
242
14 “Art must be beautiful, artist must be beautiful” é o título de uma das performances de Marina
Abramovic.
243
a mesma peça funcionar da mesma maneira re- primeiro beijo da sua vida; o que é fogo?; por-
petidas vezes – nós resolvemos fazer algo dife- que você conta tantas mentiras?) À cada inter-
rente, algo mais extremado. As peças longas fo- rogação suspensa, um impulso reflexivo e um
ram um passo nessa direção: trabalhos entre seis salto mental do espectador. A longa duração da
e vinte e quatro horas de duração nos quais os peça tanto exaure como exalta atores e audiên-
atores improvisam dentro de um sistema pré- cia. Por vezes, a arguição é cômica e amigável;
definido de regras. […] Considere cada peça em outros momentos, transforma-se numa for-
como uma tarefa ou um jogo […] e considere ma de tortura; noutros, adentra-se um espaço
que cada jogo tem regras, estratégias, movimen- de demência, disléxico, mole. A caracterização
tos conhecidos e também limites.”15 Um destes de palhaço oscila a significação de acordo com
trabalhos – Quizoola!, um jogo de perguntas e as atmosferas. Quizoola! é um jogo de pergun-
respostas para dois participantes – tem a dura- tas a partir de uma interrogação básica: quais os
ção de seis horas. O público está livre para en- limites da cena teatral contemporânea?
trar e sair da sala quando e quanto quiser. Três Proponho que levemos a questão um
atores da companhia, explorando as três com- pouco adiante e consideremos brevemente al-
binações de duplas possíveis, revesam-se por guns experimentos que visam testar limites e/
períodos de duas horas. Os atores interrogam- ou criar novos parâmetros para o teatro. Afinal,
se mutuamente baseados num questionário com já abdicamos de muitos (senão de todos) os ele-
2.000 perguntas sobre os mais variados temas – mentos ditos “constitutivos da cena dramática”
esporte, amor, filosofia, fatos… Como expli- e continuamos a fazer TEATRO com o duplo
cam, as respostas podem ser verdadeiras, falsas, intuito, suponho, de dialogar com a tradição e
longas, curtas, confessionais, abstratas, de acor- de descobrir novos sentidos.
do com decisões imediatas. O desenho da cena Vejamos.
é extremamente simples. Lâmpadas elétricas li- A narrativa: O Forced Entertainment
gadas em série definem uma área no chão que (como tantos outros) abriu mão da narrativa em
delimita o espaço do jogo. Os atores estão ves- muitos de seus espetáculos;
tidos com roupas cotidianas e levemente ma- O palco: o Vertigem (como tantos outros
quiados como palhaços. Duas cadeiras, as folhas interessados em arte de lugar-específico) deso-
de papel com as perguntas, algumas garrafas brigou-se do palco e do edifício teatral em bus-
d’água e só. Em Quizoola! não há vestígio de ca de outras relações com o espectador-cidadão
narrativa ficcional. O “fechamento” da cena cir- e a cidade;
cunscrito pelas lâmpadas no chão é meramente A ficção: o “teatro-documentário” com-
alegórico: a cena chega aos espectadores de for- plicou ainda mais as dinâmicas ficção/não-fic-
ma direta através de interpretações abertas (ou ção/tudo-ficção/nada-ficção anunciadas pelo
seja, através de atores não apenas cientes da pre- teatro cubista de um Pirandello por exemplo,
sença dos espectadores, mas capazes de trans- ao focar temas como versão, testemunho, do-
formá-la em elemento da ação se assim deseja- cumento e história oral;
do). A dramaturgia da peça é outro elemento O texto dramático: o chamado “teatro
de abertura: cada vez que uma pergunta é pós-dramático” teorizado por Hans-Thies
lançada abre-se um vácuo. (Porque o medo de Lehmann destaca experimentações cujo foco
escuro?; você possui escravos?; você é um escra- não está no texto dramático, mas na corpora-
vo?; você sabe fabricar um veneno?; descreva o lidade e na imagem, fato que o autor associa a
15 “Notas Sobre as Peças de Longa Duração”. In: Live Art. London: Tate Publishing, 2004, p. 101.
244
uma transição histórica (de uma cultura do tex- Talvez devido à estreita relação com as artes plás-
to a uma era de novas mídias e tecnologias); ticas, a performance foi e continua sendo uma
A personagem: as tantas cenas em que o prática marcada pela figura do artista solo.
nexo personagem se espatifa, não apenas pela A carga solipsista é relativizada quando consi-
quebra do eixo de subjetivação operado por deramos a alta voltagem relacional de muitos
Beckett e tantos mais, mas para abrir uma zona projetos, mas o gesto individual é emblemático.
conceitual outra, um espaço entre o ator auto- Ando interessada nas performances que, de al-
biográfico e o não-ator: refiro-me às tantas ce- guma maneira, encontram no grupo o corpo e
nas contemporâneas em que a biografia do ator a energia necessários para outros vôos drama-
é elemento dramatúrgico crucial ou, num outro túrgicos. Algo belo e poderoso disseminado tan-
extremo, as cenas que prescindem proposi- to por trabalhos de grupos teatrais como por
talmente do ator em favor de outras qualidades performers é a indissociabilidade entre ética e
de presença e de corpos que não os treinados estética, entre política e estética. Contudo, ao
para o palco; e, é preciso lembrar ainda, de um evocar este veio político, não me refiro necessa-
projeto como o Teatro Invisível de Augusto Boal, riamente à “teatro-político” ou “ativismo artís-
onde abdica-se até mesmo da consciência do pú- tico”. Ao refletir sobre caminhos da arte con-
blico que ignora estar diante de uma cena teatral. temporânea Lucy Lippard comenta:
Em resumo: dependendo do caso, abre-
se mão de um ou mais elementos tidos como “Está claro que hoje em dia, até a arte, existe
constitutivos do teatro tradicional – o texto, a como parte de uma situação política. O que
consciência de espectador, a personagem, o ator, não quer dizer que a arte tem de ser vista em
o palco, a narrativa, a dimensão representacional termos políticos ou ser explicitamente en-
– para desconstruir limites, aumentar atritos e, gajada, mas a maneira como os artistas tra-
com isso, criar novas zonas de significação. tam sua arte, onde eles a fazem, as chances
Diante de tal quadro sugiro que passamos de que se tem de fazê-la, como ela será veiculada
um problema ontológico – o que é teatro – para e para quem – é tudo parte de um estilo de
uma interrogação performativa: o que queremos vida e de uma situação política” (Lippard,
que “teatro” seja? Como formas não são fôrmas, 1973, p. 8-9).
como formas são momentos da experiência-
mundo, cada espetáculo encena uma resposta – Ou seja, tratar-se ou não de militância,
resposta provisória, parcial, participante: res- não é o ponto nevrálgico da questão. O chama-
posta-corpo. do é por uma ativação do corpo como potência
relacional, uma tomada de consciência ativa de
que nossas dramaturgias não apenas participam
Aqui e agora de um determinado contexto, mas criam “esti-
lo de vida” e “situação política”. Sobretudo aqui
Até aqui e agora tratei de discutir a per- e agora, neste nosso país, a um só tempo
formance, e casos de grupos teatrais cujas expe- enrijecido e flácido por conta de tantas e tama-
riências permitem associá-los à performance. nhas truculências políticas e descalabros sociais,
Entretanto, gostaria de finalizar apontando para sobretudo aqui e agora, neste nosso país tão pro-
a pesquisa que me ocupa no momento. Ando fundamente marcado pela herança colonial, a
interessada nas performances de grupos, per- performance interessa por ser a arte da negocia-
formances realizadas por mais de duas pessoas. ção e da criação de corpo – aqui e agora.
245
Referências bibliográficas
ARTAUD, Antonin. Theater and its double. New York: Grove Press, 1958.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1999,
DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
_______. The logic of sense. New York: Columbia University Press, 1990.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.
LIPPARD, Lucy R. Six years: the dematerialization of the art object. University of California Press:
London, 1973.
POPE, William. “In the disconfort zone”. MIT Press: Cambridge/London, 2002.
246