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Abandono Afetivo Afeto e Paternidade em Instancias Juridicas
Abandono Afetivo Afeto e Paternidade em Instancias Juridicas
Abandono Afetivo:
Afeto e Paternidade em
Instâncias Jurídicas
http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703001442013
Artigo
Abstract: This article discusses the relation between paternity and crime using discourse
analysis. We researched case that contained the judgment regarding the emotional
abandonment by the father. In particular, we analyze the subject’s production in
statement as they blame the father for his absence in children’s life. The use of the
statements outlined the family responsibility and established differences between the
family’s responsibility and community or State’s responsibility. Within the family unit,
the statements described the father’s responsibility when they built specific roles for
men and women with specific prescriptions, functions, and features, thereby creating a
heterosexist matrix. When this turns into a legitimate legal demand, the affection will
be translated as care and family intimacy. In this discursive analysis, differences can
be observed in the manner in which the maternal and paternal care are discursively
produced. In the case of paternal care, this difference can be translated into the child’s
need for authority and the demand for limits. This difference could be at the base of the
association between paternal absence and crime.
Keywords: Paternity. Afecct. Forensic Psychology.
que cada texto possui mais fontes do que com os mecanismos da justiça do que com
pode reconstruir em seus próprios termos. uma busca deliberada do requerido protelar
Trata-se de fontes que definem e informam o desfecho do processo.
a linguagem do texto, de modo a exigir uma
exegese abrangente do próprio texto para A terceira demanda, o dano moral por aban-
ser compreendido” (p. 11). Percorremos esse dono afetivo, carrega os jogos enunciativos
documento buscando o que está aqui dito e que aqui nos interessam. Nessa demanda, há
as condições de possibilidade que permitem uma necessidade de enunciar a importância
a esse(s) desembargador(es) dizer(em) o que da figura paterna, possibilitando que anali-
aqui diz(em). Não se trata apenas de análise semos enunciados em ação. Inicialmente,
do texto que configura esse acórdão, mas dos sustenta-se a importância do convívio familiar
textos que compõem esse texto. Tomamos como um direito da criança e do adolescente,
cada citação utilizada nesses materiais como estabelecido pelo Estatuto da Criança e do
uma nova pista a ser buscada. Partimos de um Adolescente – ECA (Brasil, 1990), salientando
primeiro material que foi se multiplicando a necessidade da dupla parental.
nessas buscas e atravessamentos.
Outrossim, o ECA, regulamentando o
5 Apelação – termo origi- Trata-se de uma Apelação Cível , decorrente
5 supramencionado dispositivo, prevê,
nado do latim appelatio, de uma ação por danos morais e materiais dentre os direitos fundamentais da
que é usado no mesmo criança e do adolescente, o direito ao
interposta pela mãe de um filho “abandonado”
sentido originário: recurso respeito e à dignidade como pessoas
interposto de juiz inferior pelo pai. O filho obteve o reconhecimento
humanas em processo de desenvolvi-
para superior. Designa um de paternidade e indenização por abandono mento (art. 15, ECA), bem como o de
dos recursos que se pode afetivo em outro processo. Ou seja, a mãe, serem criados e educados no seio de
utilizar a pessoa prejudi- por ter assumido afetivamente sozinha o filho, sua família (art. 19, ECA). O direito à
cada pela sentença, a fim acusa o pai de abandono afetivo e busca convivência familiar expressa, dentre
de que, subindo a ação indenização por danos morais. outros desdobramentos, o direito dos
para superior instância, e, filhos de serem acompanhados em seu
conhecendo está o seu desenvolvimento tanto pelo pai, como
mérito, pronuncie uma É necessário conhecer algumas particu-
pela mãe (TJSC 2006.015053-0).
nova sentença, confirman- laridades desse acórdão. O pedido da
do ou modificando a que mãe por danos morais sustenta-se em três
se proferiu na jurisdição de pontos: 1) as ofensas que sofreu ao longo A definição do convívio como direito, pode
grau inferior (Silva, 2000). do processo; 2) a demora de 13 anos no ser compreendida como uma construção
reconhecimento da paternidade, pelo recente, atrelada à elaboração do ECA. Dias
6 Interessante que nesse (2010), relembra que anterior ao ECA, em
documento há um voto pedido de investigação solicitado pelo
contrário às decisões pai, mesmo sabendo que o filho era seu; processos de separação, o filho passava a
tomadas pela maioria, ou e, 3) o acompanhamento do sofrimento do residir com um dos genitores, aquele que
seja, dos três juízes um menor pelo abandono afetivo do pai após detinha a guarda, “expressão que significa
discordou, procedimento a abertura do processo de reconhecimento verdadeira ‘coisificação’ do filho, colocan-
que, na maioria dos acór- de paternidade. Ao longo do texto, cada do-o muito mais na condição de objeto do
dãos lidos, não ocorreu. que sujeito de direitos” (Dias, 2010, p. 430).
ponto é julgado. A decisão, pela maioria6,
Esta característica nos Com a prioridade direcionada à criança, os
possibilita conhecer algu- teve a última demanda contemplada, mas
as outras não. No caso das ofensas sofridas dois pais permanecem atrelados aos direitos
mas enunciações e suas
contestações, além de ao longo do processo, primeira demanda, e deveres do poder familiar.
explicitar certos jogos de a defesa alegou que os ataques pessoais à
saber/poder. mãe do investigante faziam parte de uma O convívio familiar passa a ser descrito, não
tática. Além disso, o processo tramitou em apenas pela coabitação, mas pela determi-
segredo de justiça e as ofensas teriam sido nação de práticas afetivas. A definição desse
proferidas pelo advogado e não pelo reque- direito da criança não se restringe à satisfação
rido pai. Em relação à segunda demanda – a das necessidades dos filhos, mas, sustentada
demora no processo de reconhecimento de pelo saber psi, avança para a prescrição de
paternidade –, argumenta-se que o tempo relações cotidianas suficientemente adequa-
para resolução da ação tem mais relação das do ponto de vista psíquico.
A grande evolução das ciências que familiar, caberia a cada um dos membros,
estudam o psiquismo humano veio a tarefas e funções específicas. Nesse sentido,
escancarar a decisiva influência do o Direito entra na família, acompanhado
contexto familiar para o desenvolvi- do saber psi, para prescrever, determinar e
mento sadio de pessoas em formação.
fiscalizar tarefas e funções específicas para
Não mais se podendo ignorar essa rea-
lidade, passou-se a falar em paterni- os agentes que ali se encontram. Eis que se
dade responsável... O distanciamento constrói, nesse documento, um lugar de pai,
entre pais e filhos produz sequelas de uma função paterna que precisa ser neces-
ordem emocional e reflexos no seu sariamente exercida pelo homem, possível
sadio desenvolvimento. O sentimento de ser acionado caso não venha a ocupa-la.
de dor e de abandono pode deixar
reflexos permanentes em sua vida (p. No âmbito da relação parental, sendo
106). (TJSC 2006.015053-0). os pais os orientadores da entidade
familiar, há que se reconhecer a impor-
Podemos pensar que uma das condições que tância da existência tanto da figura
torna possível acionar um membro da família materna como da paterna para a for-
mação do indivíduo, cabendo a ambos
por abandono afetivo é um movimento nos
os pais o dever de oferecer aos filhos
próprios modos de compreender a(s) famí- amparo e afeto, criando-os e educan-
lia(s). Pensando em imagens de família em do-os com o carinho indispensável à
algumas épocas históricas, Roudinesco (2003) formação da sua personalidade (TJSC
analisa as demandas políticas lançadas à famí- 2006.015053-0).
lia. Numa imagem de família “tradicional”,
o objetivo principal estava em assegurar a
transmissão de um patrimônio, subordinada à Pater viril
lógica patriarcal e assentada numa ordem do
mundo imutável. Já a família “moderna” (final O exercício da parentalidade aparece ini-
do século XVIII) funda-se no amor român- cialmente direcionada a ambos mas, na
tico e obedece à lógica afetiva, atribuindo sequência, se constrói o enunciado em prol
autoridade ora dividida entre Estado e pais, da paternidade como elemento necessário
ora dividida entre pais e mães, semelhante e diferenciado da maternidade. Analisando
ao jogo de forças presente nas enunciações a diferenciação binária da parentalidade é
em análise nesse acórdão. Na família “con- possível conhecer o que se constitui como
temporânea”, surgida a partir de 1960, os polo para a paternidade, suas características,
indivíduos buscam relações íntimas ou rea- demandas, normatividades. Que característi-
lização sexual e a transmissão de autoridade cas atribuem-se ao homem pai? Que jogos de
vai se configurando numa problemática por saber poder evidenciam-se nessa produção
conta das recomposições conjugais. Dessa de paternidade? Que discursos possibilitam
rápida recuperação histórica, é interessante esse investimento na figura paterna?
pensar que, no auge da afetividade, há certa
cristalização das questões de autoridade e A ausência das funções paternas já se
apresenta hoje, inclusive, como um
produção de categorias para o exercício das
fenômeno social alarmante e provavel-
relações familiares, o que poderia estar em mente é o que tem gerado as péssimas
transformação e se caracterizar como certa consequências conhecidas por todos
“crise” contemporânea. nós, como o aumento da delinquência
juvenil, menores de rua e na rua, etc.
Apesar das diferentes nuances nas imagens E isto não é um fenômeno de deter-
de família e dos direitos das crianças e ado- minada classe social. Certamente, nas
classes menos favorecidas economica-
lescentes produzirem obrigações em outros
mente, o abandono material é maior,
sujeitos e instâncias (a família, a sociedade e pois se mistura também com a questão
o Estado), é a família que recebe a responsa- política de abandono de Estado, que
bilidade maior. Partindo da “lógica e natural” também exerce em muitos casos, uma
responsabilização da família, as enunciações função paterna e de o ‘Grande Outro’.
passam a descrever o que, nessa instância Esta ausência paterna e o declínio do
de uma indenização por danos morais. Nesse coerência no contexto da matriz heterosse-
9 Apesar disso, em outras caso, a permanência do poder familiar e o xual? Matriz heterossexual ou heteronorma ou
decisões jurídicas, o pagamento da indenização são pensados heterossexualidade compulsória são modos
Brasil tem construído um ambos como uma punição. Segundo Dias de explicitar uma operação permanente e
enunciado importante em (2010), num caso assim, a perda do poder gritante, mas ao mesmo tempo invisibilizada,
termos de isonomia. Cabe que exige unidade entre sexo, gênero e desejo
familiar, isoladamente, poderia “constituir-se
lembrar a decisão do STF,
não em uma pena, mas uma bonificação por (homem, masculino) de forma oposicional
em 2011, que atribuiu à
união estável homoafetiva abandono” (p. 450). à outra unidade de sexo, gênero e desejo
o reconhecimento como (mulher, feminino).
entidade familiar (STF Há certo mal-estar vinculado ao exercício
477.554, 16 de agosto A coerência ou a unidade interna de
da parentalidade masculina, como se o pai
de 2011). É exatamen- qualquer um dos gêneros, homem ou
sempre quisesse da paternidade fugir. Será mulher, exigem assim uma heteros-
te nesses embates que
que a paternidade seria um campo em que sexualidade estável e oposicional...
ficam claras as colagens
em relação ao casa- o masculino estaria colocado como pro- A instituição de uma heterossexuali-
mento/conjugalidade e blemático? Será que o lugar problemático dade compulsória e naturalizada exige
parentesco/parentalidade. do masculino em relação à parentalidade e regula o gênero como uma relação
Haja vista a polêmica em constitui-se a partir da explicitação do caráter binária em que o termo masculino
relação ao reconhecimen- construído dessa relação? diferencia-se do termo feminino, reali-
to da união entre casais zando-se essa diferenciação por meio
homoafetivos ser legitima- de práticas do desejo heterossexual
da como casamento e o As demandas associadas ao exercício materno (Butler, 2003a, p. 45).
temor do desdobramento e paterno aparecem distintas, apesar da
desse reconhecimento na mesma categorização: “abandono afetivo”. Ao fazer referência a “pai” e “mãe” como
legitimação do parentesco Ao pai, os jogos enunciativos demandam o categorias distintas e opostas na forma como
dos casais legitimados por exercício da autoridade (colocando como devem exercer a sua relação parental, a
essa via. Nesse sentido, consequência a ausência de figura de auto-
muitos projetos de lei só
enunciação nos remete ao binarismo e à
ridade). Já à mãe reivindica-se o cuidado, cristalização dessa matriz9. Partir do fato,
são aprovados quando
provando ou não sua negligência. Atualizam- tomado como incontestável, de que para
estabelecem claramente
uma separação do casa- se binarismos: feminino/masculino, cuidado/ gerar uma criança necessita-se de uma
mento com as questões autoridade, corpo/mente, natureza/cultura. pessoa do sexo masculino e outra do
do parentesco. A demanda ao pai por afeto, no abandono sexo feminino, bem como limitar a isso as
afetivo, poderia ser considerada uma sub- possibilidades de vínculo parental é o que
10 Fassin (2011) mostra versão a essa coerência binária, não fosse
que nos Estados Unidos
Fassin10 (2011) descreve como naturalização
o enunciado produzir o afeto como coisa ou biologização da filiação. A filiação tinha
da América a polêmica
do debate se refere à sa-
distinta para pai e mãe. No caso do que se sua dimensão social e cultural reconhecida
cralização do casamento, apresenta no documento, o afeto masculino pelos especialistas do Direito de família até
já no contexto francês a seria exatamente o exercício da autoridade. os anos 1990 e a retomada naturalista da
sacralização está vincula- filiação vem à tona precisamente quando
da à filiação e à nacio- Problematizar essa construção binária é colo- surgem reivindicações homoparentais.
nalidade. O autor tem car em questão os limites das especificidades Enfatizar o caráter biológico da filiação
uma reflexão interessante
do que se direciona para homens e mulheres, surge como estratégia para argumentar a
sobre a sacralização, ex-
plicando que ela refere-se para pais e mães, para o masculino e feminino. limitação de direitos homossexuais sem
ao processo de naturali- Será sempre a paternidade uma referência assumir discursos explicitamente homo-
zação: “o que se sacra- ao binarismo heterossexual? Poderíamos fóbicos (Fassin, 2011).
liza, em uma sociedade pensar em paternidade como um exercício da
democrática, é aquilo que parentalidade sem o atravessamento da matriz Essa dualidade primária é produzida teo-
se estima essencial e que heterossexual? Seria possível estabelecer essa ricamente como uma condição para exis-
se busca, então, retirar mesma demanda jurídica – dano moral por tência e constituição do sujeito na ordem
da esfera da deliberação
abandono afetivo do filho – no caso de um simbólica – herança de teorizações psi. Numa
política para conceder
o estatuto de verdade casal homossexual? Seria possível o uso do entrevista de Butler com Rubin (2003), essa
absoluta que transcende mesmo enunciado, caso os dois sujeitos questão é colocada sob suspeita, em especial
a história” (p. 11). fossem nomeados “pais”? Em que medida pelo caráter essencialista do âmbito simbó-
a categoria “pai” só alcança estabilidade e lico, como se ele fosse anterior a qualquer
construção social, uma relação simbólica reitera-se a norma heterossexual, pois não
que precederia qualquer vida social. se consideram as crianças que escapam a
esse restrito formato. Como pergunta Pre-
Há algo intrinsecamente problemático ciado (2013), “Quem defende a criança
11 Queer não está sendo em qualquer ideia de que, em certa queer11?”. A dupla original (pai e mãe) nos
utilizado por Preciado medida, a própria linguagem ou a remete ao drama edipiano, não como uma
(2011) como um neologis- capacidade para adquiri-la requer uma
fase de desenvolvimento ou em um tempo
mo às minorias sexuais, diferenciação sexual enquanto diferen-
ciação principal. Se os seres humanos
definido, mas como uma precondição da
mas como movimento de
fossem hermafroditas ou se reproduzis- individualização. Entretanto, nas sociedades
“desterritorialização da he-
terossexualidade” (Preciado, sem de forma assexuada, imagino que estudadas por Lévi-Strauss, que serviram de
2011, p. 14). A potência ainda seriam capazes de falar (Rubin, & base para essas formulações, o parentesco
do conceito está em situar Butler, 2003, p. 166). nas relações de casamento e descendência
o corpo não como “um “eram a estrutura social. Elas organizam quase
dado passivo sobre o qual A dupla origem se configuraria como começo toda a vida social ou então constituíam o
age o biopoder”. Queer mais importante e visível aparato institucio-
invariável – homem no lugar de pai e mulher
está sendo utilizado para
no lugar de mãe. Todas as possibilidades nal” (Rubin e Butler, 2003, p. 190). Já nas
nomear o “monstro sexual”,
onde as minorias tonam-se divergentes dessa premissa sacralizada sociedades urbanas modernas, as questões
multidões. “A sexopolítica encontram-se à margem das possibilidades de parentesco não funcionam da mesma
torna-se não somente legitimadas de parentesco, em especial as forma, no sentido da estruturação da vida
um lugar de poder, mas, demandas homoparentais. Perde espaço social. Isso não quer dizer que o parentesco
sobretudo, o espaço de também a filiação monoparental, pois tam- perde sua importância, tendo em vista que,
uma criação na qual se bém colocaria em questão a possibilidade a partir dele, uma série de práticas se torna
sucedem e se justapõem possível – como é o caso do judiciário nos
os movimentos feministas,
de exercício da parentalidade por apenas
uma das figuras parentais. A adoção por documentos analisados.
homossexuais, transexuais,
intersexuais, transgêneros, solteiros seria a prova de que existem regimes
chicanas, pós-coloniais” de filiação distintos. Contrapondo “a ‘ilusão As relações de parentesco estariam, então,
(Preciado, 2011, p. 14). antropológica’, segundo a qual ‘a’ cultura – a serviço da heterossexualidade compul-
ou somente ‘a nossa cultura’ – determinaria sória e também as identidades de gênero
verdades atemporais, a ideia de que a ordem derivariam, em certa medida, das relações
simbólica da filiação é histórica, isto é, que de parentesco. Pensar a parentalidade
se trata de uma ordem definida por escolhas com figuras que colocam em questão a
políticas” (Fassin, 2011, p.14). Em relação heterossexualidade seria questionar a pos-
ao material aqui analisado, as enunciações sibilidade de perpetuação dessa matriz e,
negam a possibilidade de exercício monopa- por conseguinte, colocar a transmissão da
rental da filiação sob pena de descaracterizar cultura (heterossexual) também em risco.
a demanda da mãe ao pai que abandonou o Subversão dessa lógica questionando os
filho. Considerar possível e legítimo que uma termos que a constroem.
mãe ou um pai assuma individualmente as
responsabilidades da filiação, desconfigura Se compreendermos a lei como uma
estrutura anterior e transcendente às
a responsabilização da outra figura.
manifestações sociais, políticas e,
necessariamente, históricas, o simbó-
As condições de possibilidade da construção lico será apresentado como uma força
desse enunciado – de que para a origem da que não poderá ser modificada e sub-
criança devem existir pai e mãe como duplo vertida sem a ameaça da psicose ou da
ponto de referência –, segundo Butler (2003b), perversão. Ao contrário, se compreen-
repousam “em um conjunto de pressuposi- dermos a lei como algo que é vivido
e constantemente reiterado de forma
ções que ecoam a posição de Lévi-Strauss
imanente às relações de poder, as pos-
em The Elementary Structures of Kinship sibilidades de modificação e subver-
de 1949” (p. 244). Esse clamor em nome são, inclusive do simbólico, não neces-
da criança carrega em si o pressuposto de sariamente significarão uma ameaça à
que essa criança também seria (ou deveria cultura e à civilização (Arán, & Peixoto
ser) heterossexual. Em nome “da criança” Júnior, 2007, pp. 142-143).
Nesse sentido, não haveria uma correspon- estão atreladas ao casal heterossexual, as
12 Foucault (1995) retoma dência direta entre o exercício de uma relação relações de poder decorrentes dessas análises
dois significados da parental exercida por um pai e/ou uma mãe produzem efeitos hierarquizantes tomando
palavra sujeito: “Sujeito real e as posições ou figuras imaginárias que como forma “natural” a matriz heterossexista.
a alguém pelo controle e sustentam simbolicamente o sujeito. Há
dependência, e preso à
que se pensar com que concepção de pai O que se coloca em questão são os modos
sua própria identidade por
uma consciência ou auto- se lida nessas práticas discursivas, que pai como essas formulações agem constituindo
conhecimento” (p. 235). é reivindicado pelo saber psi e que pai está e posicionando sujeitos e, ao mesmo tempo,
Desconstrói-se a perspec- sendo reivindicado nos materiais jurídicos, sendo constantemente constituídas na forma
tiva comum de que o po- a partir de uma interpretação e usos deste como os sujeitos reais se posicionam em
der subordina os sujeitos saber. Percorrendo os textos que são tomados relação a elas, ou seja, a operação perfor-
desde fora. Para Foucault como base para o acórdão, compreende-se mática do parentesco (Butler, 2003a). A
e assumido também por
que o pai e a paternidade são reivindicados parentalidade, constituída na heterossexu-
Butler, o poder é algo que
constitui o sujeito.
no seu papel universal como base do saber alidade compulsória diferencia o exercício
psi a respeito da constituição de sujeito. a partir de sujeitos posicionados como pais
13 Na análise, buscamos ou mães. Em decorrência, a paternidade e
os textos completos que Ainda que Édipo fosse universal... isso a maternidade são fabricadas conforme um
foram utilizados para cita- de maneira alguma confirmaria a tese arranjo social prévio e a-histórico.
ções no acórdão. de que ele é a condição da cultura: essa
tese pretende saber que ele sempre fun-
ciona da mesma maneira, isto é, como Cabe analisar alguns termos com os quais a
condição da própria cultura. Mas se paternidade é construída nesse documento.
Édipo é interpretado em sentido amplo, Um deles é “Pater viril” (conforme citação
como um nome para a triangularidade anterior), uma expressão peculiar presente
do desejo, então é relevante pergun- na citação do acórdão e nos materiais
tar: que formas essa triangularidade encontrados nas pistas das enunciações.
assume? (Butler, 2003b, p. 256-257) O estranhamento à expressão surge pela
redundância. Não seriam todos os pais viris?
Negligencia-se a produção histórica e cultural A redundância aqui serviria exatamente para
que possibilita ao pai ocupar determinados marcar a impossibilidade de pensar a “função
lugares e eis que a tarefa deveria ser exa- paterna” para além da presença ou referência
tamente “pensar pai, mãe e filhos como a um corpo masculino. Um corpo mascu-
lugares de sujeito instituídos socialmente lino dotado de pênis, ativo, heterossexual,
e historicamente; pensar a identidade indi- potente – viril.
vidual, familista e edipianizada como uma
forma histórica de constituição de sujeitos, Seguindo a trilha dos materiais que compõem
de produção de subjetividades” (Albuquerque o documento pesquisado13, encontramos uma
Junior, 2005, p. 117). Nesse sentido, o Édipo reflexão deste autor sobre as transformações
circunscreve-se a uma realidade social, a contemporâneas que posicionam diferente-
saber, a família nuclear burguesa da sociedade mente mulheres e homens em função da
moderna Ocidental, apesar de ser tomada “grande revolução da sexualidade mascu-
como essência para toda e qualquer subje- lina” – a invenção da pílula da potência – o
tividade (Albuquerque Junior, 2005). Viagra. Segundo Pereira (2002), o comprimido
“vem anunciar a fé no significante maior da
Buscando compreender a constituição do masculinidade de nossa cultura: garantia de
sujeito, explicita-se a subjetividade como potência ao símbolo fálico. Portanto, ele é a
condição de potência e efeito das relações promessa de sustentação da cultura fálica tão
de poder. Sujeito é um lugar ambíguo, pois ameaçada no pós-feminismo” (p. 1).
é a condição de possibilidade de uma forma
de potência e, ao mesmo tempo, efeito de O apelo à construção de um “pater viril”,
um poder anterior12. Se os modos de subje- assegura o exercício da paternidade a um
tivação contemporâneos ou as formas como determinado sexo, remete esse sexo a um
os explicamos em algumas teorizações psi corpo que seria natural e anatomicamente
diferenciado. Para que se problematize essa responsabilidade civil” (Pereira, 2012, p. 8).
estratégia de produção distinta de corpos É com base nessa construção técnica – que
humanos, evidenciando os jogos de poder, é estabelece a afetividade como cuidado – que
interessante pensar a respeito da construção é possível atribuir responsabilidade aos pais
social do gênero e do sexo. Não evidenciar para além da obrigação alimentar e exigir
essa construção, ou seja, “colocar a dualidade sanções ao seu exercício, quando conside-
do sexo num domínio pré-discursivo é uma rado inadequado.
das maneiras pelas quais a estabilidade interna
e a estrutura binária do sexo são eficazmente Seguindo o rastro dessa categoria jurí-
asseguradas.” (Butler, 2003a, p. 25). dica – “Abandono Afetivo”, chego à decisão
14 Esse documento não mais recente do STJ14. A decisão de abril de
fazia parte do arquivo Entendemos gênero, inspiradas nas proble- 201215 avalia se o abandono afetivo “constitui
montado a partir da pes- matizações de Butler (2003a), como perfor- elemento suficiente para caracterizar dano
quisa na jurisprudência,
matividade “efeito de uma prática reguladora moral compensável” (STJ 1159242). A enun-
mas foi aqui inserido como
um desdobramento, no que busca uniformizar a identidade por via de ciação da ministra relatora busca legitimar o
sentido de compreender as uma heterossexualidade compulsória” (p. 57). cuidado como um valor jurídico. “O cuidado
condições e enunciações A univocidade do sexo, a coerência interna dentro do contexto da convivência familiar
referentes à categoria jurídi- do gênero e a estrutura binária para o sexo e leva à releitura de toda a proposta constitucio-
ca do “Abandono Afetivo”. gênero são consideradas ficções reguladoras nal e legal relativa à prioridade constitucional
que consolidam e naturalizam regimes de para a convivência familiar” (STJ 1159242).
15 STJ 1.159.242 -
poder. Não existe uma substância ou iden- Para tanto, o texto do relatório resgata a teoria
SP Recurso especial
(2009/0193701-9) tidade de gênero por trás das expressões de de Winnicott para mostrar a importância do
gênero. O que se entende como gênero está cuidado na constituição infantil.
Julgadores: Nancy Andrighi
(Relatora), Massami Uyeda, constantemente sendo “constituído perfor-
mativamente, pelas próprias expressões tidas [...] do lado psicológico, um bebê
Sidnei Beneti, Paulo de Tar-
como seus resultados” (Butler, 2003a, p. 16). privado de algumas coisas correntes,
so Sanseverino e Ricardo
mas necessárias, como um contato
Villas Bôas Cueva.
afetivo, está voltado, até certo ponto, a
Data do julgamento: 24 de Encontramos nessas enunciações jogos de perturbações no seu desenvolvimento
abril de 2012. verdade a respeito do sexo, gênero e desejo emocional que se revelarão através de
CIVIL E PROCESSUAL CI- que buscam manter uma unidade estável dificuldades pessoais, à medida que
VIL. FAMÍLIA. ABANDONO através da heterossexualidade compulsória. crescer. Por outras palavras: a medida
AFETIVO. COMPENSA- Nos materiais, fala-se da importância e das que a criança cresce e transita de fase
ÇÃO POR DANO MORAL. para fase do complexo de desenvolvi-
peculiaridades necessárias ao exercício
POSSIBILIDADE. mento interno, até seguir finalmente
da paternidade, não simplesmente como
uma capacidade de relacionação,
o exercício de uma relação parental, mas os pais poderão verificar que a sua
se constrói o enunciado na diferenciação boa assistência constitui um ingre-
da paternidade em relação à maternidade. diente essencial. (Winnicott, 2008)
Tal atributo busca estabilidade num corpo (STJ 1159242).
masculino, que, por sua vez é tomado
como uma evidência natural – a diferença A enunciação legitima o cuidado como uma
sexual, que não facilita a compreensão de conduta a ser avaliada, prescrita e cobrada
seu caráter produzido. nas instâncias competentes. “Não se discute
mais a mensuração do intangível – o amor
“Amar é faculdade, cuidar é – mas, sim, a verificação do cumprimento,
descumprimento, ou parcial cumprimento, de
dever” uma obrigação legal: cuidar” (STJ 1159242,
p. 10). Esse movimento responde à crítica
O afeto é construído como autoridade no feita a esses processos pela impossibilidade
âmbito do Direito em geral, “vai além do de obrigar um pai ou uma mãe a amar seus
sentimento, e está diretamente relacionado à filhos. Através da diferenciação entre amor e
responsabilidade e ao cuidado... por isso pode cuidado, “o amor é faculdade, cuidar é dever”
se tornar uma obrigação jurídica e ser fonte de (STJ 1159242, p. 11), normatizam-se modos
Butler, J. (2003b). O parentesco é sempre tido como Müller, R. C. F. (2012) A constituição de uma
heterossexual? Cadernos Pagu, 21, 219-260. política de saúde para homens no Brasil
doi:10.1590/S0104-83332003000200010 (2009-2011): bases simbólicas e lugares
de enunciação. Tese de Doutorado.
Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Pai presente. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
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