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O declínio da autoridade: efeitos na família e na escola*

Raymundo de Lima**

“O pai deixa à mãe o privilégio de uma sensorialidade


comum com a criança.”
Philippe Julien
“A autoridade pedagógica não pode fundar-se no poder e na força, mas
apenas na competência real e moral comprovada. Não deriva do carisma ou
revelação mística, mas do diálogo racional, que revela a competência.”
Vocabulário Fundamental de Pedagogia

Introdução
Uma em cada três crianças norte-americanas não tem o pai em casa. A maioria das
crianças inglesas vê o pai somente dois minutos por semana. No Brasil, a presença do
pai com os filhos, em média, é de duas horas por semana. São dados de pesquisas. É
crescente o número de pais negligentes (45%), segundo pesquisa de Lídia Weber
(2009)1, da Universidade Federal do Paraná. A mesma pesquisa aponta 33% de pais
participativos, 12% de pais permissivos e 10% de pais autoritários. Não é surpresa que
na nossa sociedade liberal-permissiva (ZIKEK, 1999) somados os pais negligentes e
permissivos temos 57%. Ou seja, os professores devem estar conscientes e tecnicamente
preparados para lidar com turmas sem limites, ou sem um mínimo de código moral de
convivência em grupo.
FONTE: Lídia Weber (UFPR)

Posicionamento dos Pais x Filhos

45
40 45

35
30 33
25
20
15
10 12
10
5
0
Autoritários Permissivos Negligentes Participativos

1
Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/051005/pesquisas.doc>.

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A autora ainda apresenta uma que ser autoridade2, a figura do pai
contradição entre esses pais: estava investida de “poder” de vida e
A maioria dos participantes da morte sobre os membros da família. Por
pesquisa relatou que já recebera conta disso, ao longo da história da
punições físicas (88,1%) e castigos humanidade, “o pai é suspeito de abuso,
(64,8%). Sobre punições físicas, de maus-tratos ou de sedução insidiosa”
86,1% apanharam da mãe e 58,6% (JULIEN, 1997, p. 21). Ainda que ele
apanharam do pai, e 36,9% dos estivesse sempre viajando, aventurando-
participantes relataram que já se em viagens ou trabalhando, o pai
ficaram machucados. A maioria dos simbolicamente estava presente na
participantes apanhou nas nádegas família. Mesmo ausente por meses,
(64,7%), e os punidores utilizaram anos, ou mesmo definitivamente, a
mais freqüentemente as próprias
figura simbólica do pai era presença
mãos (62,3%), embora o cinto
(43,0%) e chinelo (42,3%) também marcante no lar que evocava sua
tenham servido para punir. A autoridade de “lei” e “referência” para
avaliação que os participantes os filhos, ela própria, irradiando assim
fizeram sobre os métodos uma segurança no lar e o respeito da
disciplinares revelou uma comunidade. Na presença e na ausência,
contradição: 75,2% concordaram o pai era mais temido do que respeitado;
que, quando fazem coisas erradas, não raro, sua figura era objeto de
as crianças devem apanhar, mas identificação e veneração, por vezes,
somente 34,5% afirmaram que eram homenageados pela família e pela
utilizarão punições físicas em seus comunidade por seus feitos ou carisma
filhos, e um número considerável
pessoal.
(27,1%) afirmou não sabê-lo
(WEBER, 2009). Um dos traços da modernidade é o
Escapa ao propósito deste texto a declínio da autoridade do pai, causando
análise sobre as palmadas e surras como assim um desequilíbrio sem precedentes
suposta prática educativa. Contudo, na família e na sociedade. Nas últimas
esses dados são necessários para revelar décadas, a figura do “pai herói”, “pai
uma contradição: embora a maioria patrão, “chefe de família”, “pai-lei”,
desses pais seja negligente, a pesquisa “pater famílias”3 está em franco
aponta que os recursos “educativos”
2
tradicionais persistem. Por quê? Qual Diz-se de alguém que tem ‘autoridade’ quando
será a explicação mais consistente? seus enunciados e suas ordens são considerados
legítimos por parte de quem ouve e obedece.
Tentaremos discutir essas e outras
Por exemplo: autoridade do médico para
questões relativas ao efeito do declínio diagnosticar e curar, o juiz está investido de
da autoridade do pai na família e a crise autoridade judiciária, o professor deve ser
de autoridade na escola. autoridade no assunto em que é contratado para
ensinar, etc. Enquanto a autoridade é legitimada
Na maioria das culturas, o pai, sempre o pelos outros, o autoritário se impõe apenas pela
provedor, o chefe de família (pai de força e repressão. A sociologia diz que a
família), foi ausente na educação dos autoridade usa de coerção, e o autoritarismo faz
filhos. Ele transmite o sobrenome aos uso da repressão. O primeiro é respeitado, o
segundo é temido.
filhos, enfim, o pai força, onipotência, 3
Pater famílias designa originalmente uma
vontade absoluta, autoridade sem paternidade ao mesmo tempo política, religiosa
limites sobre filhos e sua mulher, que e familiar. Ele é o diminus, o senhor da casa
lhe devem obediência. Ou seja, mais do (domus), e também o patrão (patronus): ele é
senhor que funda uma sociedade econômica
(JULIEN, 1997, p. 13-14).

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declínio na sociedade ocidental. Há casa e criadora de filhos (RAMIRES,
autores que declaram que o 1997, p. 112-117; HURSTEL, 1999, p.
patriarcalismo morreu. Para Julien 179).
(1997, p. 24) a data de sua morte é Há autores que estabelecem a relação
1989, com a aprovação da lei sobre a entre o aumento da criminalidade e a
degradação dos pais julgados indignos, ausência do pai na formação de
na França. Seguir-se-á o restante: 1938, personalidade dos filhos. Um pai
o poder marital sobre a esposa é excluído de sua função parece deixar na
suprimido; 1970 é a vez de ser criança “uma imago inconsciente e
suprimida do “pátrio poder”, em primitiva da mãe, onipotente e perigosa.
proveito da autoridade do “casal Essa imago desencadeia medo,
parental”, isto é, o pai dividirá com a agressão, idealização e induz a uma
mãe a responsabilidade com os filhos. tendência a erradicar o pai e seus
Não se trata uma mera substituição de representantes” (CHASSEGUET-
palavras, mas sim de “novos valores SMIRGEL apud RAMIRES, 1997, p.
que entram na lei. A interdição de 69). No dizer de Martins (2009)4, “a
utilizar sanções corporais na criança mãe onipotente hoje se torna um
para fazê-la obedecer, ou ainda o Saturno devorando os filhos e castrando
suposto acordo entre pais quando um o pai”. Assim, a psicanálise suspeita de
deles toma uma atitude na vida diária que tal mãe onipotente, que faz pacto
relativa à criança supõem um tipo de simbiótico com a criança, impede a
reação em que o respeito pela palavra entrada do pai como operador
do outro prisma sobre o exercício de um simbólico, que, segundo a psicanálise, é
poder” (HURSTEL, 1999, p. 124). o agente continuador da ordem
Outros autores entendem que sobrou civilizatória. No mínimo, ambos ficam
muito pouco do ‘pátrio poder’, presos a um mundo alienado da Lei, ou
sobretudo quando a mulher passou da ordem cultural. A função do pai,
também a deter um certo poder de simbolicamente, é marcar um limite (a
estudar e trabalhar, somado ao que já interdição do incesto); portanto, a
tinha sobre os filhos. O que resta do função paterna permite, em princípio,
poder do pai estaria na sua capacidade um modo inicial de estruturação do
de procriação, mas há mulheres que sujeito em sua relação com a
dispensam o pai na procriação, isto é, linguagem.
comprando o material genético em uma A psicanálise nos ensina a definir
clínica especializada. Uma vez esse modo como o de um corte
convocado pela mãe, resta ao “novo simbólico do laço primordial que
pai” participar do cuidado e da une a criança à mãe por meio de um
educação dos filhos; ao contrário do pai nome, o do ‘pai’, que representa a
tradicional, que vivia distante dos mãe – outra filiação que não é a da
filhos, não se revelando como pessoa, mãe. O pai é, na teoria
agora esse ‘novo pai’ se vê envolvido psicanalítica, colocado primeiro
também com a maternagem. Esse novo (mas não exclusivamente) como um
pai se torna importante se a mãe
fracassou no seu papel, ou se ela não é 4
Rosangela Martins: “Desamparo e
vocacionada para ser mãe, mas sim, subjetividade: a figura do pai na
para ser uma empresária, intelectual, contemporaneidade”, defesa de dissertação do
Mestrado em Psicologia, da Universidade
enfim, uma mulher que ousou romper
Estadual de Maringá (UEM), em fevereiro de
com a tradição de apenas ser dona-de- 2009.

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princípio separador. (HURSTEL, Hoje em dia, fala-se muito de limites e
1999, p. 61). referencias para as crianças. Muitas
Nosso imaginário ainda conceitua vezes vemos crianças e adolescentes
família a partir de: pai-mãe-filho(a). A faltando com o respeito, demonstrando
família convencional tem o pai como indisciplina ou falta de educação com os
figura que se destaca pela sua função pais e professores. Em vez de as
simbólica, isto é, ele é presença-e- criticarmos diretamente pela falta de
ausência. Ou, usando uma metáfora educação, deveríamos nos perguntar:
agostiniana: o pai é presença de uma Onde está nela a imagem do pai? Que
ausência. Presença da lei divina na papel exerce a mãe em relação ao pai? É
carne, na palavra e na ação do homem. uma mãe que evoca a figura do pai, ou
Mesmo quando está fisicamente ela denega ou desqualifica o pai como
ausente, o pai presentifica-se com suas figura imprescindível na estrutura
marcas: voz, palavra, atitude, altura familiar em nossa “modernidade
mais elevada do que a mãe, comando, líquida”5? Os motivos que podemos
salário que sustenta da família, objetos levantar como hipótese dessa falta de
pertencentes a ele, lugar físico onde ele limites do jovem é: (a) a falta da
se senta, etc. Em uma sociedade autoridade paterna como norteador de
capitalista, mesmo que a mãe trabalhe sua formação; (b) resistência,
fora, o ganho do pai tende a ser contado incompetência ou onipotência da mãe
primordialmente, nem sempre por ser ao ocupar esse lugar vazio da autoridade
geralmente maior do que o recebido paterna; (c) a incompetência da escola e
pela mulher, mas por ser significativo dos professores de funcionar como
como “provedor” da família, dentro da prótese desse sistema cultural falido.
cultura patriarcal, fato cada vez mais em Devido ao desamparo do pai na
declínio. sociedade contemporânea, qualquer
Pai real morto ou que está separado da bom pai teme dizer “não” ao filho. Às
mãe deve ser evocado por quem a educa vezes até consegue dizer “não”, mas o
(mãe ou metáfora de mãe), para que ela horror e a culpa de exercer sua
desenvolva sua personalidade autoridade ou de esta ser confundida
integralmente. Além da presença – como autoritarismo pelos vigilantes da
concreta ou simbólica - na família, o pai nova ordem obriga-o voltar atrás e se
funciona como “operador simbólico a- omitir. O pai vive a negação de sua
histórico”, dissemos acima. Enquanto a função tradicional. Vivemos a era do
mãe gera, nutre e dedica um amor total pai-banana, frouxo, impotente, castrado
ao filho, o pai funciona como um na sua autoridade, quer na palavra, quer
mediador dessa relação fundada em no ato. Reforçando o já dito, ele deixa
uma simbiose. Além de ser de exercer sua autoridade – necessária e
representante na Lei da cultura, é o pai providencial – porque teme excedê-la
quem instaura a “lei” na família em autoritarismo, tão malvisto nas
tradicional e, com sua autoridade, democracias pós-modernas.
mediatiza a relação família com a
5
sociedade. Enquanto a mãe instaura “Modernidade líquida” é um termo forjado por
uma relação “horizontal” e “natural” Zygmunt Bauman (1998) em sua vasta obra.
com a criança, o pai tende a assumir Para a observação marxiana, de que “tudo que
era sólido se desmanchou”, sobra apenas uma
uma relação “vertical” e “cultural” com modernidade liquefeita. Bauman afirma que “a
ela e com os demais. pós-modernidade é uma modernidade sem as
ilusões da modernidade”.

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Então, o pai de nossa época termina adulto? Um antigo filósofo alertava:
pecando mais pela omissão do que pela eduque o seu filho com rigor hoje para
palavra e pelo ato. E esse vazio deixado que ele não termine amanhã numa
por ele, a mãe não dá conta de prisão.
preencher. Daí ambos aceitarem tudo
Existem mães envolvidas de tal forma
que a criança pede ou faz errado. A mãe
com o filho ou a filha que não deixam
também acompanha o pai na sua
nadinha de espaço para o pai chegar.
covardia moral, ou seja, não tem
Por um lado, pecam pelo excesso de
coragem de dizer e sustentar os ‘nãos’,
carinho e atenção incondicional; por
bem como teme ser criticada como uma
outro, pecam pela onipotência narcisista
mãe fora de medida. Com o tempo, essa
e simbiótica. Também existe pai que se
criança formada sem bússola não sabe
acostuma com a imagem de “banana”,
para onde caminhar pela estrada da
assim também se desresponsabilizando
vida. Por um lado, existe a criança pela educação dos filhos. Será que o(a)
aparentemente livre, que na verdade se
filho(a) quererá se lembrar de um pai
sente abandonada, visto que seus pais marcante ou apagado? Um pai covarde
foram negligentes. Pesquisa de Lídia
ou herói, participante ou omisso?
Weber (2009)6 aponta um aumento
significativo no número de pais * * *
negligentes (45%). Causa-nos Atualmente são cada vez mais
preocupação sobre a nova geração cujos frequentes jovens transgredindo regras
pais se desresponsabilizam da sua de convivência, demonstrando assim
função civilizadora. Por outro lado, seu descaso para com a autoridade e a
aumenta o número de crianças lei social. A mídia noticia casos de
mimadas, pequenos ditadores do lar, violência ocorridos no espaço escolar, e
sem limites porque para elas “tudo o professor se queixa de que as novas
pode”, inclusive mandar nos pais (os gerações chegam à escola sem um
filhos têm algum poder, mas não mínimo de código de civilidade para
possuem autoridade sobre os pais). Que convivência social.
será o futuro de uma geração
acostumada aos mimos, à sedução para Não se trata de achar quem é o culpado
ter coisas, a ter a ilusão de que com pelo avanço da barbárie na escola na
gritos e ameaças podem ter tudo? (Neste vida cotidiana da sociedade. Mas é
sentido, sugiro o filme “O senhor das imperativo analisar as causas e os
moscas”, baseado no livro homônimo, efeitos dos atos de incivilidade em
no qual o autor imagina uma sociedade nossa época. O desrespeito à autoridade
só de crianças, isto é, não mediada por e à lei começam em casa, por meio dos
adultos). Como será o futuro de uma pais negligentes, permissivos ou cínicos
geração que aprendeu substituir os pais e as crianças terminam "autorizando" a
pelos ídolos do mundo artístico ou si próprias a atos desse tipo. Uma
desportista? Como os demais reagirão a pesquisa aponta que 35% de
essas almas infantis em um corpo de adolescentes se autorizam trazer seu
namorado(a) para dormir em casa. Os
pais não foram consultados. São muitas
6
Pesquisa de Lídia Weber, da Universidade as contradições dos pais entre a teoria e
Federal do Paraná, confere um aumento a prática. São tempos difíceis para os
significativo de pais negligentes (45%). Os
restantes são: pais participativos (33%), pais pais cumprirem o que as teorias
permissivos (12%) e pais autoritários (10%) sugerem. Embora bem informados, eles
(WEBER, 2009).

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não sabem como aplicar determinados para “o desaparecimento da infância”
conceitos na realidade prática. (POSTMAN, 1999). Como resultado
desse desaparecimento, segundo esse
Jovens, em todos os tempos e culturas,
autor, surge uma “adultificação das
sempre tiveram impulsos
crianças” e um “adulto infantilizado”
transgressivos; sempre se comportaram
(POSTMAN, 1999, p. 138-141). O
desafiando a autoridade e desprezando
declínio da autoridade do pai abre
as regras de boa convivência. Em sua
caminho para a suspensão da lei cultural
época, Sócrates (1980) já se queixava
e ainda impede dois sentimentos
da juventude e pedia ao seu filho,
fundamentais para formar um sujeito
Lâmpocles, o mais velho dos seus
ético: vergonha e culpa. Vergonha diz
filhos, ser tolerante com sua mãe. Os
respeito ao fracasso de cumprir as
jovens são intolerantes ou transgridem
obrigações emanadas da lei paterna; e
as regras – não necessariamente por
culpa remete à transgressão de uma lei.
maldade, mas sim para testar seus
Ambos os sentimentos são
limites – dão asas aos seus impulsos e
imprescindíveis para a formação do
paixões, levam ao máximo sua
sujeito moral. O sujeito “sem vergonha”
liberdade e senso de independência, não
é alguém que, por um lado, ignora e
se importando em ter de pagar um alto
despreza o juízo dos outros e, por outro,
preço por isso.
não considera condenável, aviltante,
Por isso alguns especialistas associam o cometer certos atos condenados pela
"declínio da lei-do-Pai" com o aumento moral vigente (LA TAILLE, 1996, p.
da delinqüência infantil e adulta e dos 16). Para além do autor, ousaria dizer
sinais de barbárie ou retrocesso na nossa que vergonha e culpa são sentimentos
civilização. No período pós-guerra, construídos pelo sujeito em confronto
Theodor Adorno (1995a, 1995b) com a Lei-do-pai. Na família
alertava que a escola é a única tradicional, bastava o pai olhar
instituição capaz de evitar que a fixamente para os filhos baixarem os
barbárie se estabeleça na sociedade. olhos, envergonhados, e se se tratasse
Então, que faz a escola contemporânea de uma transgressão, eles sentiriam
para barrar a barbárie? A escola cumpre culpa.
com o seu papel civilizador “entre o
Se aproximarmos “o declínio da
passado e o futuro”, como observa
autoridade do pai” ao “declínio da
Hannah Arendt (1972).
infância”, funda-se um desequilíbrio de
O desrespeito em relação ao pai se funcionamento na família, na escola e
reproduz na rede simbólica de na sociedade. Funda-se, por exemplo,
sustentação das demais autoridades da um perigoso sintoma para a
sociedade: professor, diretor, reitor, sobrevivência da sociedade: um brutal
prefeito, governador, presidente. aumento de crianças e adolescentes
Qualquer autoridade é herdeira da cometendo crimes de adultos
função paterna original. Não é que os (POSTMAN, 1999, p. 148-150)
adolescentes estejam mais
* * *
indisciplinados do que os de
antigamente, mas as contradições da O sentido de educar aponta basicamente
sociedade, sim. Também cresce o para três pontos: a) desnaturalização dos
número de filmes e games que impulsos para ascender à civilidade,
barbarizam a nova geração; o conteúdo bem como a consideração e o respeito
dos programas da televisão contribui com o seu “próximo”; b) adiamento da

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realização dos desejos, ou seja, "incitar se sentem culpados quando não são
a superar o princípio de prazer, felizes” (ZIZEK, 1999). Na maioria das
substituindo-o pelo princípio da vezes, a adolescência é uma etapa de
realidade"; c) ter um Outro como transição, um vir-a-ser, e também um
mediador. Se esse Outro está efeito dos conflitos intrafamiliar e do
completamente ausente, na hora "h", ou conflito com a sociedade. Se na década
está mal posicionado, não haverá de 1970 a palavra de ordem dos jovens
educação "possível". era contra a repressão do pai e das
autoridades, e isso fazia sentido porque
Educar sempre foi um trabalho difícil.
os países latinos viviam sob ditaduras
Freud certa vez disse que governar,
militares, no início do terceiro milênio
psicanalisar, e educar são três tarefas
os jovens não têm palavra de ordem.
impossíveis. As mudanças radicais
Cada qual pensa e age como quer. Já
ocorridas na estrutura da família
não existe um ponto convergente par
moderna, as alterações na ordem
unir seu desejo. Pior, os adolescentes de
cultural que trocou a verticalidade pela
hoje “sonham pequeno”, observa
horizontalidade nas relações humanas e
Calligaris (2007).
sociais, os novos valores e costumes
impostos pela mídia, todos esses fatores Não encontro ninguém (nem de 12
fazem a educação ser uma tarefa difícil, ou 13 anos) que sonhe em ser
complexa e talvez impossível. Embora militante do Greenpeace. Os mais
transpareça aqui algum pessimismo, entusiastas se propõem a estudar
oceanografia ou veterinária, mas é
devemos adotar uma perspectiva de
para ser professor, funcionário ou
esperança na ação educativa. profissional liberal. Eles são
A educação dirigida por imposições ‘razoáveis’: seu sonho é um ajuste
morais (dever, obrigações, controle dos entre suas aspirações heróico-
"bons" hábitos, disciplina, os frios ecológicas e as ‘necessidades’
regulamentos e códigos feitos de fora concretas (segurança do emprego,
plano de saúde e aposentadoria)
para dentro) não mais funciona. Esse
(CALLIGARIS, 2007).
tipo de educação tradicional e moralista
funcionava no passado porque era Então, como será a sociedade do futuro
sustentado por uma rede simbólica em cuja família passou a conviver com o
vários setores da sociedade. Hoje essa desaparecimento onipotencial do pai?
rede simbólica está frágil. Os slogans Autores como Hurstel (1999) apontam
libertários da década de 1970 (“é “evoluções familiares” em direção a
proibido proibir”, “abaixo o poder”, formas e famílias diversificadas
etc.) em vez de libertar as pessoas (monoparentais, recompostas,
geraram indivíduos apáticos ou com concubinatos, família conjugal urbana
disposição para a revolta e a ainda estável), ou seja, em vez de
delinquência. Outros, tomados pelo vaticinar um caos social, a autora prevê
espírito de pharmakon, deixam-se levar no lugar do pai tradicional, afetivamente
pelas drogas, bebidas, a compulsão pela distante dos filhos, um novo pai mais
velocidade fatalista dos carros e próximo, inclusive interessado em
esportes radicais. Na sociedade liberal- cuidar deles ou dividindo tarefas com as
permissiva principalmente, “os jovens mães. A maternagem deixa de ser um
se sentem na obrigação de divertir, de monopólio das mulheres para ser
“curtir a vida”, como se fosse uma também uma tarefa do pai. Onde existia
espécie de dever, e, consequentemente, hierarquia, pai mandando e a mãe

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obedecendo, é possível agora se ter bandos, como se buscassem uma
cooperação e complementação, identidade coletiva, talvez para
sobretudo para cuidar dos filhos preencher seu vazio de identidade.
(RAMIRES, 1997, p. 112-117). Outros se isolam em seu próprio
mundo. Em casa, trancam-se no seu
Dito de outro modo, antes a educação
quarto e quando aparecem nada falam,
estava baseada na moral (regras
não olham olho-no-olho, também não
impostas) do mais forte e na tradição.
querem saber da vida concreta. No
Com o declínio do pai, a educação passa
Japão atual, esse isolamento tem um
a ser orientada pela ética da cooperação
nome: hikikomore. Tal isolamento
e da complementação; assim, cabe ao
lembra o quadro clínico do autismo,
casal parental ser responsável pela
porque o jovem se faz de inacessível ao
educação dos filhos. Uma educação
Outro. Todavia, ambos os estilos de
orientada na ética leva o sujeito a
vida se apresentam como inacessíveis à
introjetar a lei dos princípios da
autoridade do pai, da mãe, do professor,
civilização que faz do indivíduo um
do diretor da escola, do delegado, etc.
sujeito. Se o sujeito é construído desde
Eles fingem que não estão nem aí,
criança, ele saberá conduzir sua própria
literalmente. Fazem pouco caso de
existência para o melhor caminho. Será
quem lhes cobra uma atitude de
um sujeito responsável pelos seus atos
participação ou responsabilidade. Nos
de escolha. Há uma diferença sutil entre
anos 1970, psicanalistas argentinos
não fazer algo ruim porque o pai não
associavam os adolescentes à psicopatia
quer e "porque ele sabe que não deve
"normal" dessa fase do
fazer porque ele assim sabe discernir".
desenvolvimento. Ainda que precisem
Proibir jovens de cantar musiquinhas de dos adultos para levar adiante seu estilo
palavrão, ou impor um regulamento de vida, jamais irão reconhecer.
fixando horários de saída e chegada é
O auto-isolamento dos jovens hoje pode
um caminho moral, e até legal, mas não
ser fuga, por meio da música, de filmes,
resolve o problema do seu desrespeito à
sitcons, games, ou pelos próprios
autoridade. Por isso nos alerta Imbert
devaneios do pensamento. O
(2001) ao dizer que os professores
agrupamento dos adolescentes parece
tradicionalmente estão impregnados de
não servir para elaborar sua crise
moral, mas será que possuem uma
normal, ou pensar os acontecimentos,
ética? Portanto, educar no contexto
serve apenas como agrupamento
atual é reposicionar pai e mãe; na
especular ou narcísico. Pergunto-me se
escola, em vez de reproduzir a moral
esses jovens não estão convivendo com
dominante, cabe aos professores
mais um luto: a morte simbólica do pai.
ocuparem um lugar ético de ensinar
E com um novo medo ou pavor: o
tudo que for possível para civilizar os
futuro incerto, porque tudo que era
alunos. Ocupar um lugar ético é ser
sólido se desmanchou. Se a antiga
mais ato do que palavras; é se oferecer
fórmula “ser pai é ter tido um pai”,
mais como exemplo do dia-a-dia,
como será o futuro onde o pai é incerto,
acompanhando os aprendizes a se
múltiplo ou definitivamente ausente?
construírem como sujeitos.
Nosso propósito neste texto não
Na cultura ocidental contemporânea,
pretendia fazer uma revisão do
onde a autoridade está em franco
complexo de Édipo que, do ponto de
desprestígio, os jovens vivem nos
vista da psicanálise, é o momento
extremos. Uns vivem em grupos ou

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crucial do salto do indivíduo para ser BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-
um sujeito diferenciado dos outros na modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
sociedade. O superego de cada sujeito é
herdeiro do complexo de Édipo na CALLIGARIS, Contardo. Os sonhos dos
adolescentes. Folha de São Paulo - Cad.
concepção freudiana.
Ilustrada, São Paulo, 11 jan. 2007.
Concordamos com Ramires (1997, p. HURSTEL, Françoise. As novas formas de
25) que o exercício da paternidade paternidade. Campinas: Papirus, 1999.
parece constituir uma porção IMBERT, Francis. A questão da ética no
insignificante nos estudos de formação campo educativo. Petrópolis: Vozes, 2001.
da personalidade do ser humano,
JULIEN, P. A feminilidade velada: aliança
enquanto as publicações sobre a conjugal e modernidade. Rio de Janeiro: C.
maternidade são abundantes. Freud, 1997.
Pretendemos, aqui, tão-somente refletir LA TAILLE, Yves. A indisciplina e o
sobre algumas causas e consequências sentimento de vergonha. In: AQUINO, Julio
do declínio da autoridade do pai na Groppa. Indisciplina na escola: alternativas
família e na escola. Mas trata-se de teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1996. p.
apenas uma introdução, caro leitor. 9-37.
Convido-o a avançarmos juntos nesse POSTMAN, Neil. O desaparecimento da
estudo. infância. Rio de Janeiro: Grafia, 1999.
RAMIRES, Vera Regina. O exercício da
paternidade hoje. Rio de Janeiro: Rosa dos
Referências Tempos, 1997.
ADORNO, Theodor W. Educação e SOCRATES. Defesa de Sócrates. São Paulo.
emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Abril Cultural, 1980. (Os pensadores).
1995a.
WEBER, Lidia. Estilos e práticas parentais no
ADORNO, Theodor W. Palavras e sinais. desenvolvimento da personalidade.
Petrópolis: Vozes, 1995b. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/05100
ARENDT, Hannah. A crise na educação. In:
______. Entre o passado e o futuro. São 5/pesquisas.doc>. Acesso em: 27 fev. 2009.
Paulo: Perspectiva, 1972. p. ZIZEK, Slavoj. O superego pós-moderno.
Folha de São Paulo - Caderno Mais!, São
Paulo, 23 maio 1999. p. 5-8.

*
Esse artigo está impresso no livro “Educação no Século XXI: Múltiplos Desafios”.
Organizado por Sandra Regina Cassol Carbello e Sueli Ribeiro Comar. Maringá: Eduem, 2009, p. 119-
128.

**
RAYMUNDO DE LIMA é Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Atualmente é professor do Depto. Fundamentos da Educação, na área de Metodologia da Pesquisa, da
Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: ray_lima@uol.com.br

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