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AMIGOS DE GAIA
N.O 56 + J UNHO DE 2003 + 9.° VOL.
o aproveitamento urbanístico
dos quarteirões norte e sul da antiga
Fábrica Cerâmica das Devesas
FRANCISCO QUEIROZ
DEVESAS - QUARTEIRAo NORTE: O EDIFlc lO MAIS INDICADO PARA UM MUSEU NACIONAL DAS ARTES INDUSTRIAIS
(Foto de Francisco Queiroz)
Mais do que fazer o discurso da defesa do patri- Porque se trata de um assunto de enorme impor-
mónio arquitectónico, é necessá rio apontar alternativas tância para a cultura em Gaia, julgamos oportuno fazer
sustentáveis para a sua salvagua rda, sobretudo quando aqui um resumo do referido parecer, no qual se apresen-
os intervenientes legais se mostram incapazes, quer por tam algumas ideias de base sobre o que pode e o que
falta de articulação , por falta de conhecimentos, ou por não pode ser feito no quarteirão sul da antiga Fábrica
inércia burocrát ica, para assumir as suas responsabilida- de Cerâmica das Devesas , tendo como base o que já se
des. Assim, no contex to da ameaça latente de destrui- encontrou nas sondage ns arqueo lógicas realizadas em
ção da parte sul do complexo fabril cerâmico das Deve- finais de 2002 , independentemente de desenvo lvimen-
sas, elaborámos em 16 de Fevereiro de 2003 um pare- tos posteriores que possam ter já ocorrido entretanto ou
cer preliminar sobre o aprove itamento urban ístíco desse venham a ocorrer quanto a esta questão.
espaço , o qual foi entregue na Câmara Municipal de Em todo o país podem ser encontradas milhares de
Gaia. peças artísticas de alta qualidade saidas da Fábrica Cerâ-
de potencial, ao mesmo tempo que destrói parte de uma e de importância das estruturas arquitectó nicas constru í-
das jóias do património arquitectónico do concelho e - das, o projecto de urbanização previsto para o quarteirão
mais importante - amputa a leitura de todo o complexo sul é medíocre nos pressupostos, ignorante nas
fabril, retirando valor a todas as estruturas arquitectóni- soluções e um autêntico desperdício, constituindo um
cas confinantes, sobretudo ao palacete do fundador (obra verdadeiro plano de destruição patrimonial gratuita . O refe-
única em estilo neo-mourisco), às casas dos operários rido projecto serve apenas um interesse privado concreto
(que são certamente as mais belas casas de operários e nada trará de proveitoso para o interesse público , quer
alguma vez construídas em Portugal) e, sobretudo, ao em termos de reabilitação urbana da zona, querem termos
quarteirão norte da fábrica , que já há alguns anos tem da salvagua rda e valor ização do antigo complexo fabril.
sido apontado como um futuro museu da cerâm ica, sendo
certo que é efectivamente o local indicado para tal. Ora, a
concretização do projecto de urban ização para o quarte i- Alternativas para a reab ilitação do quarteirão sul
rão sul implicará destruir valências que dariam ao futuro do complexo fabril das Devesas.
museu todo o sentido (como o túnel de ligação entre
os dois quarteirões - que o projecto de urbanização Se o complexo fabril nasceu a partir de um primeiro
ignora, como ignora outras estruturas, porque o mesmo núcleo do lado norte, os dois quarte irões são claramente
foi delineado sem exístir um conhecimento prévio do que complementares e, caso seja desvirtuado o quarte irão
ali existia no terreno e do que as primeiras sondage ns sul, perde-se o contexto de todo o complexo fabril e
arqueológicas vieram trazer parc ialmente à luz do dia). empobrece-se o potenc ial do próprio quarte irão norte,
Em suma , com este projecto de urbanização para o quar- cuja musealização é urgente. Ass im, todo e qualquer pro-
teirão sul, qualq uer aprove itamento do quarte irão norte jecto para aquele local deve part ir do principio de que o
para utilidade pública (equipamento cultural) fica preju- quarteirão sul deve também ficar parcialmente preser-
dicado, díminuindo-se o seu impacto e a quantidade de vado e musealizado, em articulação com o quarteirão
oferta cultural que poder ia gerar. norte, permitindo toda a visibilidade para as casas dos
operários e para o palacete do fundador da fábrica.
• Tendo em conta a localização do complexo fabril Ao contrário do que possa parecer, este princípio
das Devesas e o seu potencial em termos de variedade não é limitador : são muitas as hipóteses de aproveita -
menta do espa ço do quart eirão sul que eventua lmente privilegiada a situação do comple xo fabril das Devesas ,
não venha a serv ir directamente como museu, até porque seria interessante destinar a um fim nobre e compatível
é a existência deste espaço e suas estruturas, em rela- todas as estruturas arquitectónicas deste complexo que
ção com a rua e com outros edifícios fabris, que fun- não venham a funcionar como museu no sentido tradicio-
ciona como um eco-muse u (mu seu-lugar) . A dificuldade nal, mas que apenas tenham de ser mantidas como partes
do sitio tem de ser entend ida como um desafio, ao de um eco-museu. Assim, apresentamos seguidamente
qual só pode rá ser dada resposta caba l se a Câmara algumas ideias que poderão ser úteis para definir um apro-
Municip al de Gaia optar de form a clara por assumir um veitamento do complexo fabril, assinalando algumas das
plano global de salvaguarda e valorização para todo o respectivas vantagens e desvantagens, bem como as con-
complexo, mesmo que as exprop riações por motivo de dições básicas em que tais hipóteses seriam admissíveis:
utilidade públ ica possam demorar algum tempo e seja
neces sário definir etapas .
Não se eve descartar de vez a hipóte se de desti- 1. Aproveitamento do quarteirão sul do com-
nar uma parte do quarteir ão sul a habitação, desde que plexo fabril das Devesas para futuro centro cívico 1
com base em ou tro projecto , o qual só deverá ser deli- paços do concelho.
neado após escavações arqueológicas na área , para
se saber onde pode ser admitida nova construção Esta ideia é aquela que poderá traze r mais vanta-
e novas fundações , de modo a que não seja m come- gens ao interesse público e que também poderá transfor-
tidos erros irreparáveis. Este requisito importantíssimo mar a reabilitação do sítio em causa na obra emblemá-
está previsto na Lei do Património (n .? 107/ 20 01) . tica de toda a acção da Câmara Municipal de Gaia nos
Note-se que o comp lexo fabril das Devesas situa-se últimos anos, dado o seu impacto. Ass im, em vez de
nos limites do núcleo histórico, ao cimo da Calçada das se optar pela construção do novo centro cívico no centro
Freiras (que se assumirá dentro de alguns anos como geo métrico do concelho - o que é um verdadeiro dispa-
principal pólo cultural do núcleo histórico) e junt o à esta- rate, à custa do qual já muit os se ririam - o espaço das
ção de caminho de ferro, no eixo viário de acesso à actual Devesas oferece um notável potencial de viabilidade para
Câmara Municipal, passando pela Casa Museu Teixeira este fim. Referimo -nos concretamente à hipótese de ins-
Lopes e pelo futuro arquivo histórico. Ora, sendo bastante talar os serviços centrais da Câma ra Munic ipal de Gaia
uma região e de um concelho. Note-se que a Fábrica de Gaia, é também passível de fracasso em termos urba-
Cerâmica de Jerónimo Pereira Campos & Filhos, em Aveiro, nísticos, se a envo lvente continuar com a mesma função
mesmo sendo cópia em menor escala, com menos his- residencial pouco qualificada que hoje tem. Ass im, esta
tória e com menor qualidade que a Fábrica Cerâmica opção de converter o quarteirão sul em jardim, deixando
das Devesas foi recuperada pela respectiva autarquia intactas as estrut uras arquitectó nicas da antiga fábr ica
e junto a ela está a surgir hoje o novo centro cívico para usufruto por parte dos visitantes do museu ou para
de Aveiro. No caso da Empresa Industrial de Ermesinde, usufruto de não visitantes (como parque público), teria de
mesmo estando em ruínas e sendo Ermesinde um subúrbio ser complementada com uma requalificação das áreas
que nem sequer é cabeça de concelho, foi ali instalado um confinantes a sul e sudoes te (sobretudo), de modo a
fórum cultural, aproveitando-se a antiga fábrica de cerâ - que este parqu e não se convertesse num espa ço subur-
mica para galeria de arte, desafogada por um parque bano vazio e inseguro. Mes mo que este parque fosse
ajardinado. Ora, estas duas antigas "cópias" da Fábrica fechado, aberto apenas durante o dia, seria necessário
Cerâmica das Devesas nem sequer possuíam as estrutu- atrair valências para o local, de modo a que este tivesse
ras que as Devesas ainda mantêm (como os vários fornos, uma utilização regular e isso impedisse o seu aban dono
por exemplo). Se outros assim o fizeram com menos , seria e vanda lização . Ass im, transformar todo o quarte irão sul
um erro grave se o modelo - a Fábrica de Cerâm ica das do comp lexo fabr il das Devesas em jardim, com as
Devesas - não fosse aprove itado e preservado de uma antigas estruturas arquitectón icas fab ris visitáve is por
forma ainda mais consistente e assumida. qualquer um, só seria admíssível no quadro de um
Esta hipótese de transformar o quarteirão sul do com- projecto mais vasto de requal ificação de toda aquela
plexo fabril das Devesas em paços do concelho , centro área , partindo do princípio que o museu estaria já
constituido no quarte irão norte , de modo a poder gico nas Devesas passaria a ser original e único, ultra-
tutelar as estruturas e salvaguardar a sua manutenção. passando facilmente o carácter regional, para se torna r
Esta opção pelo museu + jard im é certamente a num museu nacional, no que certamente iria ainda
mais defensável junto dos adeptos da cultura e dos diminuir mais o ónus da sua manutenção por parte da
museus. Porém, para além de ser um investimento dis- Câmara Municipa l.
pend ioso e nunca realizáve l de forma definitiva a curto A área útil do complexo fabril das Devesas , agora
prazo (tendo em conta a situação econó mica da Câmara devoluta, pode ria servir mesmo para expor maquinaria
vinda de outras antigas fábricas do conce lho (e não só),
Municipal de Gaia), é também uma opção algo redutora.
não sendo totalmente descabido pensar-se numa posterior
De facto, em nossa opinião, a ideia que se lançou há
articulação com o Muse u da Ciência e Indústria do Porto.
vários anos de um museu da cerâmica para aquele local
A própria Misericórd ia de Gaia, que trata actualmente
deve ser alargada para um museu das artes indus-
de constituir um museu para dar destino honroso ao seu
triais , pois foi a produção simultânea de várias formas espólio, ficaria bem melhor servida se pudesse ocupa r
artísticas que impulsionou a Fábrica Cerâm ica das Deve- um espaço nas Devesas (uma vez que o seu espó lio é
sas para o sucesso . Abrindo-se o leque temático do pro- maioritariamente cerâmico e originário da fábrica), sendo
jecto museológico, seria possivel obter mais espólio e viável a hipótese de permuta ou mesmo a de co-gestão ,
mais apoios, reduz indo custos e viabilizando ainda mais desde que se garantisse que todo o projecto seria condu -
o museu. Por outro lado, não existindo ainda um museu zido por especial istas na história da fábrica , na história
das artes industriais em Portugal , este projecto museoló- das artes industriais e em museologia industrial.