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BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO C -LT -R A.

AMIGOS DE GAIA
N.O 56 + J UNHO DE 2003 + 9.° VOL.
o aproveitamento urbanístico
dos quarteirões norte e sul da antiga
Fábrica Cerâmica das Devesas

FRANCISCO QUEIROZ

DEVESAS - QUARTEIRAo NORTE: O EDIFlc lO MAIS INDICADO PARA UM MUSEU NACIONAL DAS ARTES INDUSTRIAIS
(Foto de Francisco Queiroz)

Mais do que fazer o discurso da defesa do patri- Porque se trata de um assunto de enorme impor-
mónio arquitectónico, é necessá rio apontar alternativas tância para a cultura em Gaia, julgamos oportuno fazer
sustentáveis para a sua salvagua rda, sobretudo quando aqui um resumo do referido parecer, no qual se apresen-
os intervenientes legais se mostram incapazes, quer por tam algumas ideias de base sobre o que pode e o que
falta de articulação , por falta de conhecimentos, ou por não pode ser feito no quarteirão sul da antiga Fábrica
inércia burocrát ica, para assumir as suas responsabilida- de Cerâmica das Devesas , tendo como base o que já se
des. Assim, no contex to da ameaça latente de destrui- encontrou nas sondage ns arqueo lógicas realizadas em
ção da parte sul do complexo fabril cerâmico das Deve- finais de 2002 , independentemente de desenvo lvimen-
sas, elaborámos em 16 de Fevereiro de 2003 um pare- tos posteriores que possam ter já ocorrido entretanto ou
cer preliminar sobre o aprove itamento urban ístíco desse venham a ocorrer quanto a esta questão.
espaço , o qual foi entregue na Câmara Municipal de Em todo o país podem ser encontradas milhares de
Gaia. peças artísticas de alta qualidade saidas da Fábrica Cerâ-

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mica das Devesas , facto que permite perceber porquê dade de Letras da Universidade do Porto tenha recente-
esta unidade foi o mais paradigmático complexo fabr il de mente propos to ao IPPAR a class ificação de todo o com-
artes industriais do seu tempo em Portugal , tendo projec- plexo fabril das Devesas como Monum ento Nacion al.
tado Gaia de uma forma imensa .
Hoje, o que ainda resta da antiga Fábrica Cerâm ica
das Devesas pode voltar a serv ir para enriquecer Gaia, Sobre o actual projecto existente para o quartei-
dada a singular idade e grandiosidade de algumas estru- rão sul do complexo fabril das Devesas
turas arquitectón icas do comp lexo fabril, a articulação
dos vários equipamentos fabris entre si e a posição pri- o projecto de urban ização para o quarte irão sul
vilegiada do referido complexo num espaço confinante da antiga Fábrica Cerâmica das Devesas é do falec ido
com o núcleo histórico . arquitecto Humberto Vieira , sendo promotor imobiliário
Para que a Fábrica Cerâm ica das Devesas venha a uma empresa propos itadamente constitu ida para o efeito
tornar-se uma mais valia e não acabe por se juntar ao rol (Gaiadeve).
do património arqu itectón ico dest ruído ou desperd içado , Por aquilo que conhecemos do projecto , apesar de
é primeiramente necessá rio alterar alguns pressupostos propor várias soluções em que se nota uma preocupação
na forma como as diversas vereações da Câmara Munici- com a manutenção de certos alinhamentos e com a inter-
pal de Gaia têm actuado neste processo e também equa- dição de acesso automóvel a alguns espaços mais sen-
cionar propostas concretas sustentáveis para aproveita - síveis no interior do quarteirão, a verdade é que o mesmo
mento daque le espaço . Esta necess idade é urgente , não enferma de alguns pressupostos que fazem dele um mau
só tendo em conta as actua is pressões para a transfor- projecto para aquele local:
mação daque le espaço em mais um bana l loteamento,
mas também porque o IPPAR se tem mostrado clara- • O projecto de urbanização parte do princípio de
mente incapaz de concluir o processo de classificação que só existe valor patrimon ial nas estruturas arquitectó-
instruído por iniciativa da própr ia Câmara Municipal de nicas ainda de pé, quando o subsolo de todo o comple xo
Gaia, estando o espólio da fábrica agora em maior perigo fabril possui estruturas muito interessantes (cisternas ,
do que nunca . túneis, fornos ) que seriam, assim, destruídas. Por outro
Assim, na qualidade de docente do ens ino super ior lado, como a fábr ica foi sendo ampliada com base nos
na área da História da Arqu itectura e do Urbanismo, bem materiais de refugo da sua próp ria produção , supõe-se
como na qualidade de investigador em Arte s Industriais que estarão enterradas naquele local peças interessan-
e na História de Gaia, lançamos aqui algumas ideias de tes, bem como outros vestígios importantes para a com-
partida sobre o aproveitamento urbanistico do comple xo preensão da fábrica - facto que não é de menosprezar
fabril das Devesas , as quais procuram concil iar os vários tendo em conta que uma parte da história da arquitectura
interesses em jogo. Pretendemos , sobretudo , que haja e da escultura em Portuga l nos finais do sécu lo XIX passa
suficiente informação antes de ser tomada qua lquer deci- por aquela antiga fábr ica. Ignorar esse potencia l seria um
são sobre este assunto sens ível. erro grave que as gerações vindouras não perdoa riam.
É desnecessário dete rmo-nos sobre a história e a
enorme importância da Fábrica Cerâm ica das Devesas . • O projecto de urbanização não apresenta critérios
É, no entanto , de realçar o extremo interesse do antigo objectivos para a manutenção de determinadas estrutu-
complexo fabril como um todo , pois contém - articulada- ras arquitectónicas e a demolição de outras que ainda se
mente - edifícios de carácter arqu itectónico único , onde encontram de pé. Ora, não é sensato que um projecto
intervieram os melhores ornatistas de Gaia, nomeada- para uma zona tão sens ível, class ificada de interesse
mente os Teixeira Lopes . Na viragem do século XIX para público pela Câmara Municipal de Gaia e com processo
o século XX, o número de trabalhadores de todo o com- de classif icação pendente no IPPAR, seja discricionário ,
plexo fabril ultrapassou vár ias vezes os 700 - número não incluindo o parecer externo de reconhecidos espe-
muito alto para a época . Um jornal operário da altura refe- cialistas em arqueolog ia industrial elou em história da arte
ria que, em Gaia, o único local onde podia ser encont rada (de preferênc ia, especialistas que não sejam parte inte-
a civilização era na fábrica do Costa. ressada em todo o processo de promoção imobiliária e
Face aos recentes estudos de investigação que têm que possuam real conhec imento da importância da fábrica
sido elaborados sobre o complexo fabr il das Devesas, e do significado dos seus edifíc ios, comprovado através
face ao espólio ainda existente na fábr ica e face às son- de estudos que já tenham publ icado sobre o assunto).
dagens arqueológicas feitas nos últimos meses de 2002
no quarteirão sul do complexo fabril , a class ificação deste • O projecto de urbanização não pretende valorizar
comp lexo como de Interesse Público - deliberada pela aquela zona, mas simplesmente corresponder ao objec-
própria Câmara Municipal de Gaia já há quase vinte anos tivo de lucro por parte do promotor, que virá a ser o único
- é hoje manifestamente insuficiente. Não admira, pois, benefi ciado de um património que pertence a todos .
que perante a ameaça latente de destru ição de uma Gaia nada obterá como mais valia se o dito projecto de
grande parte deste complexo fabr il, o própr io Departa- urbanização avançar, uma vez que este se limita a criar
mento de Ciências e Técnicas do Património da Facul- uma área residencial igual a tantas outras num sítio cheio

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DEVESAS • QUAR TEIRÃO SUL: VISTO DO MIRANTE DO PALACETE DE ANTÓNIO ALMEIDA DA COSTA
(Foto de Ana Marg arida Portela)

de potencial, ao mesmo tempo que destrói parte de uma e de importância das estruturas arquitectó nicas constru í-
das jóias do património arquitectónico do concelho e - das, o projecto de urbanização previsto para o quarteirão
mais importante - amputa a leitura de todo o complexo sul é medíocre nos pressupostos, ignorante nas
fabril, retirando valor a todas as estruturas arquitectóni- soluções e um autêntico desperdício, constituindo um
cas confinantes, sobretudo ao palacete do fundador (obra verdadeiro plano de destruição patrimonial gratuita . O refe-
única em estilo neo-mourisco), às casas dos operários rido projecto serve apenas um interesse privado concreto
(que são certamente as mais belas casas de operários e nada trará de proveitoso para o interesse público , quer
alguma vez construídas em Portugal) e, sobretudo, ao em termos de reabilitação urbana da zona, querem termos
quarteirão norte da fábrica , que já há alguns anos tem da salvagua rda e valor ização do antigo complexo fabril.
sido apontado como um futuro museu da cerâm ica, sendo
certo que é efectivamente o local indicado para tal. Ora, a
concretização do projecto de urban ização para o quarte i- Alternativas para a reab ilitação do quarteirão sul
rão sul implicará destruir valências que dariam ao futuro do complexo fabril das Devesas.
museu todo o sentido (como o túnel de ligação entre
os dois quarteirões - que o projecto de urbanização Se o complexo fabril nasceu a partir de um primeiro
ignora, como ignora outras estruturas, porque o mesmo núcleo do lado norte, os dois quarte irões são claramente
foi delineado sem exístir um conhecimento prévio do que complementares e, caso seja desvirtuado o quarte irão
ali existia no terreno e do que as primeiras sondage ns sul, perde-se o contexto de todo o complexo fabril e
arqueológicas vieram trazer parc ialmente à luz do dia). empobrece-se o potenc ial do próprio quarte irão norte,
Em suma , com este projecto de urbanização para o quar- cuja musealização é urgente. Ass im, todo e qualquer pro-
teirão sul, qualq uer aprove itamento do quarte irão norte jecto para aquele local deve part ir do principio de que o
para utilidade pública (equipamento cultural) fica preju- quarteirão sul deve também ficar parcialmente preser-
dicado, díminuindo-se o seu impacto e a quantidade de vado e musealizado, em articulação com o quarteirão
oferta cultural que poder ia gerar. norte, permitindo toda a visibilidade para as casas dos
operários e para o palacete do fundador da fábrica.
• Tendo em conta a localização do complexo fabril Ao contrário do que possa parecer, este princípio
das Devesas e o seu potencial em termos de variedade não é limitador : são muitas as hipóteses de aproveita -

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DEVE SAS - QUARTE IRÀ O SUL: PARTE SUPERIOR DE UM FORNO CONTI NUO BEM PRESE RVADO
(Foto de Francisco Que iroz)

menta do espa ço do quart eirão sul que eventua lmente privilegiada a situação do comple xo fabril das Devesas ,
não venha a serv ir directamente como museu, até porque seria interessante destinar a um fim nobre e compatível
é a existência deste espaço e suas estruturas, em rela- todas as estruturas arquitectónicas deste complexo que
ção com a rua e com outros edifícios fabris, que fun- não venham a funcionar como museu no sentido tradicio-
ciona como um eco-muse u (mu seu-lugar) . A dificuldade nal, mas que apenas tenham de ser mantidas como partes
do sitio tem de ser entend ida como um desafio, ao de um eco-museu. Assim, apresentamos seguidamente
qual só pode rá ser dada resposta caba l se a Câmara algumas ideias que poderão ser úteis para definir um apro-
Municip al de Gaia optar de form a clara por assumir um veitamento do complexo fabril, assinalando algumas das
plano global de salvaguarda e valorização para todo o respectivas vantagens e desvantagens, bem como as con-
complexo, mesmo que as exprop riações por motivo de dições básicas em que tais hipóteses seriam admissíveis:
utilidade públ ica possam demorar algum tempo e seja
neces sário definir etapas .
Não se eve descartar de vez a hipóte se de desti- 1. Aproveitamento do quarteirão sul do com-
nar uma parte do quarteir ão sul a habitação, desde que plexo fabril das Devesas para futuro centro cívico 1
com base em ou tro projecto , o qual só deverá ser deli- paços do concelho.
neado após escavações arqueológicas na área , para
se saber onde pode ser admitida nova construção Esta ideia é aquela que poderá traze r mais vanta-
e novas fundações , de modo a que não seja m come- gens ao interesse público e que também poderá transfor-
tidos erros irreparáveis. Este requisito importantíssimo mar a reabilitação do sítio em causa na obra emblemá-
está previsto na Lei do Património (n .? 107/ 20 01) . tica de toda a acção da Câmara Municipal de Gaia nos
Note-se que o comp lexo fabril das Devesas situa-se últimos anos, dado o seu impacto. Ass im, em vez de
nos limites do núcleo histórico, ao cimo da Calçada das se optar pela construção do novo centro cívico no centro
Freiras (que se assumirá dentro de alguns anos como geo métrico do concelho - o que é um verdadeiro dispa-
principal pólo cultural do núcleo histórico) e junt o à esta- rate, à custa do qual já muit os se ririam - o espaço das
ção de caminho de ferro, no eixo viário de acesso à actual Devesas oferece um notável potencial de viabilidade para
Câmara Municipal, passando pela Casa Museu Teixeira este fim. Referimo -nos concretamente à hipótese de ins-
Lopes e pelo futuro arquivo histórico. Ora, sendo bastante talar os serviços centrais da Câma ra Munic ipal de Gaia

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nas Devesas , serv iços esses que se encontram hoje dis- cívico, jardim e eco-museu - como apoio a um futuro
persos e em edifícios pouco funcionais para as neces - museu no quarteirão norte, possui várias outras vanta-
sidades actuais: As partes do quarteirão sul das Deve- gens. Uma delas é o custo. São mais valiosos os terrenos
sas que deva m ser preservadas como estruturas ao ar e edificios onde hoje a Câmara Municipal de Gaia está ins-
livre funcionariam como espaço aja rdinado de apoio aos talada do que os do quarteirão sul das Devesas . Assim,
novos paços do conce lho. O restante espaço vago funci o- com uma permuta, a Câmara Municípal de Gaia poderia
naria como estacionamento (após as esca vações arque- eventualmente angariar verba suficiente para construir
ológicas no local) e as estruturas arquitectónicas exis- parte dos novos paços do concelho e simultaneamente
tentes seriam recuperadas e reformuladas para conter adquirir o quarteirão norte do complexo fabril, destinando-o
os vários serviços . São estruturas que se prestam bas- a museu. Ao optar por esta solução de deslocamento dos
tante bem a isso, pelos grandes vãos e pela utilização paços do concelho, a Câmara Municipal de Gaia estaria
de vigas em ferro, solução que pode ser perfeitamente simultaneamente a incentivar a constituição de uma forte
recriada num estilo contemporâneo , sempre que o estado zona comerc ial no local onde hoje está a Câmara Munici-
de ruína o just ifique. Uma parte dos espaços do conce - pal, junto ao futuro metro de superfície. Neste local, pode-
lho serviria de anexo ao museu - a criar no lado oposto ria ser mesmo instalado um projecto comerc ial de grande
do quarteirão - enquanto que outra parte estaria aces- dimensão (como o tão falado EI Corte Inglês ), no que seria
sível ao grande público , simplesmente porque func ionar ia mais uma valência comerc ial para Gaia, valência essa
como espaço público e eco-museu . Os fornos existentes localizada em sítio onde não se colocariam os mesmos
poder iam ser pensados para conter determ inadas valên- problemas sentidos do lado do Porto.
cias da autarqu ia, dada a sua tipologia . Esta proposta
pode ser articulada com o destino a dar ao próp rio espaço
da antiga litografia incendiada e respectivos logradouros 2. Aproveitamento de todo o complexo fabril das
(a norte), bem como a vár ios terren os devo lutos que fun- Devesas apenas para museu e parque ajardinado,
cionariam como zona verde, tampão entre o caminho de com as várias estruturas exteriores preservadas .
ferro e a Rua Conselheiro Veloso da Cruz.
Note-se que esta hipót ese de aproveitamento do O complexo fabril das Devesas , como projec to
quarteirã o sul da Fábrica Cerâmica das Devesas para os museológ íco, é interessante sobretudo pelas estruturas
futuros paços do concelho aproximaria o centro cívico de e pela sua articulação entre si. Em termos de espólio,
Gaia de uma zona mais genuína (núcle o histórico), pulv e- apesa r da sua enorme importância e interesse, é mais
rizando serviços no sentido desta zona algo deg radada , que suficiente a utilização apenas do quarteirão norte
revitalizando o pólo do caminho de ferro e o acesso pedo- para a sua expos ição , para as reservas, para acolhi-
nal Ribeira de Gaia por sul.
à mento de visitantes e serviços de conservação , inves-
Para além disso, existe um importante cariz simbólico tigação e administração de um futuro museu. Ass im, o
nesta hipótese de aproveitamento do quarteirão. A Fábrica quarte irão sul deverá ter as estruturas preservadas mas ,
de Cerâmica das Devesas foi a mãe de todas as fábricas em grande parte , poderá servir para outras funções , que
de cerâmica modernas no norte de Portugal. Ora, se Gaia sejam compatíveis com o museu. Um jard im urbano seria
é considerada terra da cerâmica, faz todo o sentido apro- a opção mais cláss ica e, para alguns , seria mesmo a
veitar uma parte do que ainda resta desta fábrica-mãe para ideal. Porém , para além de ser dispendiosa - uma vez
paços do concelho - seria realçar a própria identidade de que traz pouco retorno financeiro Câmara Munic ipal de
à

uma região e de um concelho. Note-se que a Fábrica de Gaia, é também passível de fracasso em termos urba-
Cerâmica de Jerónimo Pereira Campos & Filhos, em Aveiro, nísticos, se a envo lvente continuar com a mesma função
mesmo sendo cópia em menor escala, com menos his- residencial pouco qualificada que hoje tem. Ass im, esta
tória e com menor qualidade que a Fábrica Cerâmica opção de converter o quarteirão sul em jardim, deixando
das Devesas foi recuperada pela respectiva autarquia intactas as estrut uras arquitectó nicas da antiga fábr ica
e junto a ela está a surgir hoje o novo centro cívico para usufruto por parte dos visitantes do museu ou para
de Aveiro. No caso da Empresa Industrial de Ermesinde, usufruto de não visitantes (como parque público), teria de
mesmo estando em ruínas e sendo Ermesinde um subúrbio ser complementada com uma requalificação das áreas
que nem sequer é cabeça de concelho, foi ali instalado um confinantes a sul e sudoes te (sobretudo), de modo a
fórum cultural, aproveitando-se a antiga fábrica de cerâ - que este parqu e não se convertesse num espa ço subur-
mica para galeria de arte, desafogada por um parque bano vazio e inseguro. Mes mo que este parque fosse
ajardinado. Ora, estas duas antigas "cópias" da Fábrica fechado, aberto apenas durante o dia, seria necessário
Cerâmica das Devesas nem sequer possuíam as estrutu- atrair valências para o local, de modo a que este tivesse
ras que as Devesas ainda mantêm (como os vários fornos, uma utilização regular e isso impedisse o seu aban dono
por exemplo). Se outros assim o fizeram com menos , seria e vanda lização . Ass im, transformar todo o quarte irão sul
um erro grave se o modelo - a Fábrica de Cerâm ica das do comp lexo fabr il das Devesas em jardim, com as
Devesas - não fosse aprove itado e preservado de uma antigas estruturas arquitectón icas fab ris visitáve is por
forma ainda mais consistente e assumida. qualquer um, só seria admíssível no quadro de um
Esta hipótese de transformar o quarteirão sul do com- projecto mais vasto de requal ificação de toda aquela
plexo fabril das Devesas em paços do concelho , centro área , partindo do princípio que o museu estaria já

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DEVESAS - QUARTEIRAo SUL: OS GRANDES vA o s E AS ESTRUTURAS EM FERRO PERMI TEM
VARIAS SOWÇOES INTERESSANTES PARA O ANTIGO COMPLEXO FABRIL
(Foto de Francisco Queiroz)

constituido no quarte irão norte , de modo a poder gico nas Devesas passaria a ser original e único, ultra-
tutelar as estruturas e salvaguardar a sua manutenção. passando facilmente o carácter regional, para se torna r
Esta opção pelo museu + jard im é certamente a num museu nacional, no que certamente iria ainda
mais defensável junto dos adeptos da cultura e dos diminuir mais o ónus da sua manutenção por parte da
museus. Porém, para além de ser um investimento dis- Câmara Municipa l.
pend ioso e nunca realizáve l de forma definitiva a curto A área útil do complexo fabril das Devesas , agora
prazo (tendo em conta a situação econó mica da Câmara devoluta, pode ria servir mesmo para expor maquinaria
vinda de outras antigas fábricas do conce lho (e não só),
Municipal de Gaia), é também uma opção algo redutora.
não sendo totalmente descabido pensar-se numa posterior
De facto, em nossa opinião, a ideia que se lançou há
articulação com o Muse u da Ciência e Indústria do Porto.
vários anos de um museu da cerâmica para aquele local
A própria Misericórd ia de Gaia, que trata actualmente
deve ser alargada para um museu das artes indus-
de constituir um museu para dar destino honroso ao seu
triais , pois foi a produção simultânea de várias formas espólio, ficaria bem melhor servida se pudesse ocupa r
artísticas que impulsionou a Fábrica Cerâm ica das Deve- um espaço nas Devesas (uma vez que o seu espó lio é
sas para o sucesso . Abrindo-se o leque temático do pro- maioritariamente cerâmico e originário da fábrica), sendo
jecto museológico, seria possivel obter mais espólio e viável a hipótese de permuta ou mesmo a de co-gestão ,
mais apoios, reduz indo custos e viabilizando ainda mais desde que se garantisse que todo o projecto seria condu -
o museu. Por outro lado, não existindo ainda um museu zido por especial istas na história da fábrica , na história
das artes industriais em Portugal , este projecto museoló- das artes industriais e em museologia industrial.

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3. Museu nas Devesas como museu vivo magnífico, para além de tornar mais cons istente a ideia
de um museu no quarte irão norte . No próp rio quarteirão
Uma das hipóteses mais interessantes para o futuro norte (ou mesmo no quarte irão sul), desde que toda esta
museu da cerâmica (e/ou museu naciona l das artes zona fosse requalificada, um hote l de luxo ou restauran-
industria is), que minoraria em muito os custos , dando tes seriam também hipóteses viáveis de aprove itamento
também uma mais valia ao futuro espaço museológico, e valor ização , tendo em conta a vista panorâmica sobre
seria a elaboração de um protocolo com alguma oficina o Porto antigo, bem como a proximidade às caves e à
de cerâmica , das várias que existem em Gaia , para se estação de caminho de ferro.
instalarem no local e fazerem uso de várias partes do Por outro lado , sendo o complexo fabril das Deve-
comp lexo fabr il, de modo a que os visitantes pudessem sas um sitio de importância mund ial, origem de um tipo
aprec iar aspectos de laboração (um pouco como sucede de produção art istica espec ífica da arqu itectura portu-
com o museu da fábr ica Vista Alegre). Com a conscien - guesa de uma época concreta , a inclusão da antiga
cialização da importância do azulejo nas fachadas , por Fábrica de Cerâmica das Devesas na área a propor
exemp lo, o mercado de produção de azulejo de subst i- à UNESCO para classificação como Património da
tuição está a sofrer um grande aumento , que será certa - Humanidade será uma mais valia e certamente favore-
mente ainda mais sentido nos próximos anos. As Deve- cerá o interesse de eventuais visitantes, quando toda a
sas poderiam dedicar-se a esse nicho de mercado, cum- área estiver visitável e musealizada.
prindo uma dupla função de museu e de indústria activa,
voltando um pouco ao esplendor que tiveram outrora . Em suma, o quarte irão sul da antiga Fábrica de
Cerâmica das Devesas poderá servir para muitas fun-
ções , desde que sejam respe itados vár ios pressupostos
4. Museu das Devesas articulado com o quartei- Uá enunciados ), pressupostos esses que não são tão
rão sul como eco-museu, parcialmente ocupado por limitadores como podem parecer. Tendo noção do tipo
pr ivados ligados ao vinho do Porto. de equipamentos que necess ita ou que lhe interesse pro-
mover, a Câmara Municipal de Gaia poderá decidir
Constituindo-se um museu nas Devesas, o espaço da melhor forma , embora seja sempre conveniente
dos antigos armazéns fabr is do lado sul poderia também ouvir pareceres externos e aguardar por uma mais deta-
ser cedido a privados, para armazém de vinhos , desde lhada avaliação do potencial do local , através de escava -
que houvesse compromisso de preservação das antigas ções arqueológ icas general izadas , que devem ser efec-
estruturas da fábr ica e desde que este armazém de tuadas no quarte irão sul o mais rapidamente poss ivel.
vinhos servisse sobretudo para funções turísticas. Pode rá O complexo fabril das Devesas merece bem melhor
ser lançada esta hipótese aos privados, hipótese que do que o projecto med íocre que está previsto para o
reúne a dupla vantagem de juntar duas valências que se quarte irão sul e a Câma ra Mun icipa l de Gaia tem de
enriquecem mutuamente em termos de utilização e de sabe r aprove itar o potenc ial ali existente . Ass im, antes
número de visitantes , bem como de ser também uma hipó- de mais, é necessário não estragar o que lá existe 1,
tese pouco dispendiosa para a Câmara Mun icipal de Gaia. conhecer melhor o que está escondido debaixo da
terra e adquirir os terrenos com base numa ideia con-
creta para o local, sempre com o propósito de salva -
5. Outras ideias para o quarteirão sul do com- guardar o patrimón io para os vindou ros, aliando o útil ao
plexo fabril das Devesas. prático e dando uma nova utilização àquilo que hoje são
edifícios abandonados, sem desca racte rizar as estrutu-
Ideias melhores do que a mera habitação para o ras. Tudo isso é hoje poss ivel com um pouco de engenho
quarte irão sul do comp lexo fabri l das Devesas podem e boa vontade , uma vez que o kno w how está dispon ivel.
passar por vários outros equ ipamentos que não destruam
as estruturas preexistentes e se adeqúem aos edificios
ainda de pé. Não seriam de excluir hipóteses à primeira
vista difíceis de equacionar. Por exemplo, se fosse possí -
Nota
vel a tão desejada (por alguns) criação de um casino em
Gaia, o quarteirão sul da antiga Fábrica de Cerâm ica das
Devesas seria um espaço interessante, pela sua local iza- 1 A construção de uma urbanização na área que fica
imediatamente nas traseiras do palacete do fundador da fábrica , onde
ção e pelo tipo de edificios a recuperar. Um projecto bem
actualmente se situam dependências dos CTT, tem de ser vista com
feito para tal equipamento naquele local teria um impacto muito cuidado, pois pode perturbar visualmente todo o complexo.

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