Livro: YVY PORÃ PORAU E O RIO DE MEL

Ângela Hofmann

YVY RUXÃ’I

VIVIA, NÃO MUITO LONGE DAQUI, UM POVO ANTIGO NUMA BOA TERRA CHAMADA YVY
PORÃ. CONTAM OS MAIS VELHOS QUE UMA GRANDE TRISTEZA SURGIU NAQUELE POVO
QUANDO PERDERAM MUITOS DE SEUS FILHOS POR DOENÇAS E GUERRAS NA DEFESA DE SUAS
TERRAS.

APÓS MUITOS E MUITOS ANOS, O NÚMERO DE PESSOAS FOI DIMINUINDO E DANDO LUGAR A
OUTROS MEMBROS, FILHOS DE OUTROS POVOS QUE FALAVAM OUTRAS LÍNGUAS QUE
VIERAM JUNTAR-SE A ELES. MAS AINDA ERAM MUITOS POUCOS. O POVO DE YVY PORÃ
CHORAVA O PASSADO, E ACABARAM RECOLHENDO-SE A SUAS PRÓPRIAS FAMÍLIAS, DEIXANDO
DE CULTIVAR OS VELHOS COSTUMES DA SUA CULTURA. CERTA VEZ PASSOU POR LÁ UM
VIAJANTE CARI QUE ACHOU AQUELE LUGAR MUITO PEQUENO E DISSE:

— ESSE POVOADO É TÃO PEQUENO, TÃO PEQUENO, QUE NADA PARECE CRESCER POR AQUI!

AS PESSOAS SE ASSUSTARAM COM AQUELE COMENTÁRIO, POIS NÃO SABIAM QUE AINDA
HAVIA LUGARES MAIORES OU COM MAIS GENTE QUE LÁ. POR FIM, ACABARAM ACHANDO
QUE ERA VERDADE O QUE O CARI HAVIA DITO. E O POVO DE YVY PORÃ, PASSOU A SE
CHAMADO DE YVY RUXÃ’I, TERRA DO BEM POUQUINHO.

NESSE POVOADO COM NOME ESTRANHO, HAVIA UM PUNHADO DE CASAS, UM PUNHADO DE

GENTE, UMJ PUNHADO DE MATA, UM PUNHADO DE BICHO.

ERA UMA ALEGRIA QUANDO PASSAVAM POR LÁ OS PARENTES E AS PESSOAS DE OUTRAS

REGIÕES, DE OUTRAS EKOAS, OUTRAS ALDEIAS, QUE SE UNIAM A ELES PARA CELEBRAR SUAS
FESTIVIDADES ANUAIS.

NO RESTANTE DO TEMPO, OS HABITANTES DE YVY RUXÃ’I VIVIAM EM SEUS CONTADOS RISOS

E TRISTEZAS.

POR ENXERGAREM TÃO POUCO E NÃO VEREM O HORIZONTE AO LONGE, NUNCA VIAM O SOL
SE PÔR. EM YVY RUXÃ’I SÓ APROVEITAVAM O SOL EM UMA PARTE DO DIA.

POUCO TINHAM, POUCO SABIAM, POUCO QUERIAM. MAS SONHAVAM À NOITE. ENQUANTO
DORMIAM, ENXERGAVAM TUDO AQUILO QUE DURANTE O DIA SUA VISTA NÃO TERIA
ALCANÇADO JAMAIS: AS VELHAS HITÓRIAS DE SEU AVÓS, DOS TEMPOS DE FARTURA E
FELICIDADE.

O SONHO DE JACI

JACI ERA CASADA COM O JOVEM RAYRA E, POR MAIS QUE SE AMASSEM, NÃO TINHAM
FILHOS. COMO AS OUTRAS MULHERES DO POVOADO QUE TAMBÉM HAVIAM SE CASADO NOS
ÚLTIMOS DEZ ANOS, JACI SONHAVA EM SER MÃE. MAS OS FILHOS NÃO VINHAM PARA
NENHUMA DESSAS MULHERES: ELAS NÃO ENGRAVIDAVAM.

OS DIAS PASSAVAM PERDIDOS NAS HORAS, NOS ENCONTROS, EM NADA DE NOVO. EM YVY
RUXÃ’I O DIA A DIA ERA DURO PARA TODOS, O QUE OS FAZIA ESPERAREM PELO BRILHO DOS
SONHOS À NOITE.

E JACI ERA GRANDE SONHADORA. SONHAVA ATÉ DE OLHOS ABERTOS, DESEJANDO QUE OS
SONHOS DE OLHJOS FECHADOS ACORDASSEM SEU CORAÇÃO E O DE TODA AQUELA GENTE. O
QUE VERIAM SE ACORDASSEM?

JACI SE PERGUNTAVA SE A VIDA TERIA ALGO MAIS, SE AQUELE DIA A DIA TÃO POBRE NÃO
SERIA UM GRANDE SONHO, POIS NÃO DEVERIA SER CERTO TRABALHAREM TODOS OS DIAS E
NÃO POSSUÍREM O BASTANTE PARA SE ALIMENTAREM E VIVEREM BEM.

FOI ASSIM QUE, NUMA DESSAS NOITES DORMIDEIRAS, JACI TEVE UM SONHO QUE PARECIA
REAL. SONHOU QUE ESTAVA DORMINDO E QUE ACORDAVA COM O CLARÃO DO SOL NA
JANELA: A PALMEIRA JUÇARA FAZIA UM CORO SUAVE COM O VENTO, ENCOSTANDO-SE NA
CASA. ERA HORA DE LEVANTAR-SE.

CHEGOU À JANELA E LÁ VIU UMA ABELHA DE UM TAMANHO MAIOR QUE O COMUM.

A ABELHA APROXIMOU-SE DE JACI E, COM PODER DE TELEPATIA, PERGUNTOU-LHE ONDE

ESTAVAM AS CRIANÇAS.

— COMO ASSIM? AS CRIANÇAS? QUE CRIANÇAS? — JACI ESTRANHOU.

NÃO HAVIA MAIS CRIANÇAS HÁ MUITO TEMPO, DESDE QUE SE CONHECIA POR GENTE E QUE
SUA ALDEIA SE CHAMAVA YVY RUXÃ’I. POR QUE HAVERIA DE TER CRIANÇAS? NENHUMA
MULHER ENGRAVIDARA DESDE AQUELE POVO SE ACREDITOU TÃO PEQUENO.

POUCOS HAVERIAM DE SER. POUCOS ERAM, POUCO TINHAM, POUCO ALMEJAVAM. POR QUE
MAIS?

JACI ACORDOU QUANDO GUARACI BRILHOU NO CÉU. O SOL LEMBRAVA A ABELHA, LHE
LEMBRAVA O SONHO. FALOU A SEU COMPANHEIRO RAYRA:

—MBORAYVU! AMADO RAYRA! TIVE UM SONHO COM UMA EIRUBA. A MÃE ABELHA
COMUNICOU-SE COMIGO. EU ENTENDIA O QUE ELA QUERIA ME DIZER, EMBORA ELA NÃO
FALASSE COMO NÓS. A EIRUBA PERGUNTOU ONDE ESTAVAM AS KYRINGUE. O QUE SERÁ QUE
ISSO QUER DIZER?

OS OLHOS DO ESPOSO BRILHARAM AO OUVIR JACI CONTAR SOBRE A APARIÇÃO DA EIRUBA, A

GRANDE ABELHA. RAYRA JÁ HAVIA VISTO ALGUMAS JATAÍS NA IBOTIRAMA, EM MEIO ÀS
FLORES, DIAS ANTES.

— TEÇÁ: OLHOS ATENTOS, JACI, MINHA EIRATI! ESCUTE, APENAS ESCUTE A EIRUBA, MINHA
PEQUENA ABELHINHA, PARECE SER UMA MENSAGEM.

JACI ESCUTOU O ESPOSO E GUARDOU AS PALAVRAS CONSIGO. OS DOIS PRECISAVAM

OCUPAR-SE DO DIA QUE JÁ HAVIA COMEÇADO COM SINGULAR BELEZA.
EIRAPU’A

COMO ERA DE COSTUME, O CASAL VOLTOU PARA CASA AO MEIO-DIA, APÓS O TRABALHO NAS
ROÇAS DE MANDIOCA, MERÕ E KARAGUATA’I.

QUANDO JACI CHEGOU EM CASA, FOI SURPREENDIDA POR UMA PEQUENA ABELHA QUE
ZUMBIA INSISTENTEMENTE À SUA VOLTA.

— EIRATI, VOCÊ ESTÁ PERDIDA? ONDE ESTÁ SUA EIRAPU’A? POR AQUI NÃO HÁ COLMEIAS.
QUE ESQUISITO! — FALOU JACI.

JÁ DENTRO DE SUA CASA, ELA PASSOU A OUVIR NÃO SÓ UM ZUMBIDO, MAS UM CORO DE
VÁRIOS ZUMBIDOS JUNTOS.

— DE ONDE VÊM?

APROXIMANDO-SE DA REDE DE DORMIR, JACI DESCOBRIU UM GRUPO DE ABELHAS

EMARANHADAS, UMAS SOBRE AS OUTRAS, NUM VÃO ENTRE A PALHA DA OCA NO TELHADO.
ESTRANHOU AQUELA MOVIMENTAÇÃO DOS BICHINHOS:

— QUANTAS EIRATIS! NUNCA VI TANTAS JUNTAS! COMO PODEM EXISTIR TANTAS ASSIM? O
MOVIMENTO DO ENXAME NÃO CESSOU ENQUANTO JACI ESTAVA EM CASA. VOLTOU NO
INÍCIO DA TARDE PARA A ROÇA. QUANDO RETORNOU, JÁ ERA NOITINHA. ESTRANHAMENTE,
AS ABELHAS NÃO ESTAVAM MAIS LÁ.

EIRETAMA, AS MUITAS ABELHAS, VOLTARAM AINDA DURANTE QUATRO SEMANAS. QUANDO

GUARACI ABRIA TOTALMENTE SEU LEQUE, UM ENXAME VINHA PARA A CASA DE JACI E RAYRA.
ZUMBIAM, TRABALHAVAM, IAM E VINHAM DE TODOS OS JARDINS E CAPOEIRAS, PASSAVAM O
DIA. ANTES QUE AS FLORES DA NOITE SE ABRISSEM, AS ABELHAS JÁ HAVIAM SUMIDO. NO
OUTRO DIA CHEGAVA UM OUTRO ENXAME, E O IR E VIR DAS EIRATIS PARECIA NÃO TER FIM.

ASSIM FOI, DIA APÓS DIA, ATÉ QUE, NA QUINTA SEMANA, AS ABELHAS NÃO VOLTARAM MAIS,
MAS DEIXARAM SINAIS POR ONDE PASSARAM.

FIZERAM EY, O MEL...

AO FINAL DA ÚLTIMA VISITA DAS EIRAPU’A, UM SONO ENVOLVEU JACI, ADORMECENDO-A

LOGO QUE AS JAXY-TATA SORRIRAM NO CÉU.

AS LEMBRANÇAS DO DIA FORAM SE ESVAECENDO, E JACI ESTAVA PRESTES A MERGULHAR NO

REINO DOS SONHOS. FOI NESSA NOITE QUE ELA TEVE SEU SEGUNDO ENCONTRO COM EIRUBA.

DETA VEZ NÃO SÓ A ABELHA APARECERA, MAS A EIRAPU’A INTEIRA QUE, ZUMBINDO, SE FEZ
ENTENDER À JAJCI.

— AGORA, MULHER, MBOGUATA! FAÇA O MEL ANDAR!

JACI DESPERTOU RAPIDAMENTE COM OS PRIMEIROS RAIOS DE SOL, ARACY, QUE TRAZIA EM
SUAS MÃOS O DIA. RAYRA, VENDO A AGITAÇÃO DA ESPOSA, COMPREENDEU QUE ELA HAVIA
RECEBIDO NOVAMENTE A EIRUBA. SEM NADA DIZER, ACOMPANHOU-A NO QUE ESTAVA
PRONTA A FAZER.

IRAÍ, RIO DE MEL

JACI RECOLHEU CUIDADOSAMENTE O MEL DEIXADO PELAS ABELHAS, ARMAZENANDO – O
NUMA AJAKA BEM TRANÇADA POR ELA PRÓPRIA. REUNIU TAMBÉM AS MANDIOCAS DE SUA
ROÇA.

FOI ATÉ O GRANDE PÁTIO, A PRAÇA CENTRAL DA ALDEIA, E FALOU A TODOS SOBRE O QUE
ACONTECERA. TOMANDO AS MANDIOCAS E SUA AJAKA CHEIA DE MEL, OFERECEU AOS
VIZINHOS E A TODOS QUE ENCONTRAVA NA CHAMADA “TERRA DO BEM POQUINHO”. A
NOTÍCIA SE ESPALHOU. ALGUMAS PESSOAS PERGUNTAVAM-SE:

— COMO ESTA MULHER VEM REPARTIR ALGO QUE NÃO CONHECEMOS?

— E AINDA OFERECE PARA TODOS QUE ENCONTRA? NÃO VAI LHE FAZER FALTA?

QUANTO MAIS JACI OFERECIA O ALIMENTO, ESTA DÁDIVA DOS PEQUENOS BICHINHOS QUE A
VISITARAM, MAIS MEL BROTAVA DE SUA AJAKA. TANTA UPYRA HAVIA QUE ATÉ AS ARACIARAS
VIERAM SE ALIMENTAR!

EROMA’ENUDU’A, GRATIDÃO!

AS PESSOAS, RECEBIAM AQUELE PRESENTE, MAS FICAVAM MUITO DESCONFIADAS, POIS NÃO
ESTAVAM ACOSTUMADAS A RECEBER NENHUM AGRADO QUE FOSSE.

NASCIA NAQUELE POVO UMA ALEGRIA, TORIBA, PELA GRATUIDADE DA OFERENDA DE JACI E
RAYRA. ASSIM, HOUVE QUEM FOSSE PARA SUAS ROÇAS E TIRASSE ALGO DE SUA HORTA, DE
SUA DESPENSA, DE SUAS COSTURAS, DE SUA CASA, PARA OFERECER EM TROCA AO CASAL
GENEROSO.

NÃO SÓ JACI E RAYRA RECEBIAM OS PRESENTES OFERECIDOS, COMO OS OUTROS FORAM

DESCOBRINDO O QUE PODERIAM OFERECER PARA MAIS ALGUÉM AQUILO QUE SOBRAVA NA
SUA CASA, FRUTO DE SEU TRABALHO. ISSO MESMO, ALGO LHES SOBRAVA.

QUEM PLANTAVA XÃJAU TINHA AOS MONTES. QUEM PLANTAVA MORANGA NÃO SABIA O
QUE FAZER COM AQUELAS QUE NASCIAM A MAIS. E OS QUE FAZIAM ROUPAS,
CONSERTAVAM, COZINHAVAM, CONTAVAM HISTÓRIAS, PREPARAVAM MEDICAMENTOS E
FAZIAM CHÁS DAS PLANTAS CURADORAS QUISERAM COMPARTILHAR.

MESMO OS MORADORES VIZINHOS, QUE ATÉ ENTÃO NEM CONCHECIAM DIREITO, PASSARAM
A SE INTERESSAR UNS PELOS OUTROS E POR AQUILO QUE CADA UM PODERIA OFERECER.