Você está na página 1de 132

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.

com
Copyright © 2017 por Lyan K. Levian
Todos os direitos deste eBook são reservados

Texto, diagramação, capa e revisão


por Lyan K. Levian

Esta é uma obra de ficção.

www.lyanklevian.com
Outras informações de contato serão encontradas
no final do eBook.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Dedico este livro aos que
acreditam que existe todo um
universo além das aparências
e das primeiras impressões.

Soltem suas amarras


e sejam livres para voar!

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Sumário

Segunda-feira
Terça-feira
Quarta-feira
Quinta-feira, manhã
Quinta-feira, tarde
Sexta-feira
Lyan K. Levian

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


“São os pequenos querubins que nos
trazem paz de espírito e nos levam
a encontrar um sentido no meio
dessa merda de vida”

~ Kenan Russel

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com
Segunda-feira

Kenan Russel odiava a escola. Principalmente quando tinha


acabado de mudar de cidade e precisava entrar em uma classe nova,
no meio do ano, em pleno terceiro colegial. Afinal, o segundo
semestre é aquela época em que todos já se conhecem. É quando os
grupos de amigos já estão formados, não havendo espaço para mais
ninguém nas rodinhas de conversas e fofocas.

Naquela manhã ele estava particularmente


mal-humorado – mais do que o normal –, mas sabia que se não
tivesse a postura certa nesta nova escola poderia ser obrigado a
passar por tudo novamente no próximo ano. E ficar mais do que o
necessário ali seria, para ele, insuportável.
Andando como se o espaço já fosse seu, Kenan adentrou o
pátio olhando para todos os pirralhos que teria que suportar durante
seis longos meses. Todos ali eram pelo menos três anos mais novos,
já que ele havia repetido durante o fundamental. Apesar de sua
inteligência acima da média, suas faltas frequentes não deram aos
professores outra opção a não ser reprová-lo.
— Primeiro dia em um novo inferno… – murmurou ele, já
reparando a comoção que causava por ser o estranho do ninho.
O que geralmente ocorre quando há novos alunos na área é
que eles viram alvo para as piadas sem graça dos veteranos. Quanto
mais diferentes fossem, mais motivos para chacotas surgiria.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Mas como o novato era Kenan, as coisas aconteceram de
forma diferente. Ao pisar no vasto pátio os alunos não fizeram
deboche, mas o encararam como se tivesse um marciano armado
adentrando o local. O que realmente chamava a atenção para ele não
era o fato de ser um calouro. A verdade era que Kenan agia como ímã
para os olhos, não importando aonde fosse. Ele caminhava com uma
confiança que não se encontrava nem nos professores dali, e suas
roupas eram destoantes dos uniformes pálidos e ajuizados dos
alunos. Tanto a calça quanto a camiseta eram pretas e desfiadas.
Muitos brincos perfuravam suas orelhas e diversas correntes
prateadas com cruzes e caveiras adornavam seu pescoço esguio.
De fato, ninguém diria que Kenan era um aluno do terceiro
colegial. Alto, de um rosto angelicalmente perigoso que se
emoldurava pelos longos cabelos negros presos numa trança folgada.
Seus olhos azuis vasculhavam todos os lados, conscientes da
inquietação que se espalhava pelos alunos como se ele fosse a chama
que adentra um mato seco. Ele ficava extasiado com essa reação em
cadeia que causava naqueles que se consideravam corretos demais.
Sua passagem causava comoção principalmente nas garotas, que
ficavam agitadas, dando risinhos e cochichando entre si.
Resolveu brincar um pouco: escolheu uma ao acaso e piscou
para ela, dando aquele sorriso – um bem falso, mas ela não percebeu
isso. A garota congelou no lugar, e colocou as mãos nas bochechas,
escondendo a vermelhidão que se formou. No mesmo instante dois
rapazes próximos a ela se levantaram e o encararam feio. Dois
machos defendendo aquilo que julgavam ser seu território.
“Palhaços previsíveis…”, pensou Kenan, seguindo seu
caminho. “Chega a ser chato. Mas não estou a fim de entrar numa
briga agora… Nem de conversar com garotas cheirando à frescurite.
Tenho a droga de uma classe para encontrar”
Ele riu, balançando a cabeça para os lados, e continuou
procurando plaquinhas que indicavam os blocos estudantis. Os
olhares ainda o acompanhavam enquanto ele observava um mapa

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


rascunhado a lápis que o levaria até a classe correta – a funcionária
que havia desenhado o mapa precisou de todos os documentos dele
para acreditar que era de fato o tal aluno transferido.
Ao adentrar o corredor indicado ouviu nova chuva de
cochichos e, como de costume, ignorou. As pessoas não estavam
habituadas a conviver com caras como ele. Um anjo vadio, belo, e
angelicalmente… errado.
O sinal de início das aulas soou, e ele agradeceu quando os
alunos debandaram para suas respectivas classes. Isso facilitava a
busca pelo que ele chamou intimamente de “a classe perdida” – na
verdade, quem estava perdido era ele. No fim das contas, encontrar o
local foi fácil comparado à dificuldade em reunir paciência e saco o
suficiente para abrir a porta da sala. Do lado de fora, Kenan encostou
o ouvido junto à porta fechada. Era possível ouvir a voz de um
professor implorando silêncio aos alunos, que não paravam de
tagarelar apesar de o horário letivo já ter começado.
Quando entreabriu a porta para espiar, viu que um senhor
baixo e grisalho agitava os braços tentando colocar ordem na
bagunça, mas era como um maestro apavorado regendo uma
orquestra de gralhas mortíferas.
Entrou. Ao fechar a porta atrás de si, bateu-a mais do que
pretendia. Todos os alunos foram parando de falar gradualmente só
para observá-lo. Um a um começaram a encarar a figura nada comum
do anjo vestido de preto que havia surgido.
— Finalmente me obedeceram – suspirou o professor,
acreditando que o silêncio dos alunos era fruto de seu esforço.
“Até parece…”, zombou Kenan em pensamento.
Todos os alunos o olhavam como se o próprio Lúcifer tivesse
surgido das chamas do inferno – e para as garotas era como se ele
estivesse de braços abertos e com a fruta da perdição entre os dedos.
— Não acredito! – sussurrou uma delas para a colega ao lado.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Será que este gato é o novo aluno que falaram?
— Se for, estamos com sorte, amiga… – segredou a outra em
resposta.
Mais ao fundo, sentado sozinho em uma das mesas duplas,
um garoto de cabelos cor de fogo e com pequenas sardas pontilhadas
nas bochechas teve a mesma impressão – a de que o novato era um
deleite para os olhos –, mas logo abaixou a cabeça, repreendendo-se
com veemência.
“O típico garoto problema”, pensou ele, observando Kenan
através dos cabelos ruivos. “Por que bem na minha classe?”
O novato andou em direção ao professor, que estava ocupado
remexendo os livros de história que usaria na aula. Aquele silêncio
foi sumindo, dando lugar a cochichos progressivos. Por um lado,
Kenan gostava dessa pseudofama que sua aparência causava. Fazia
com que os frouxos se mantivessem longe e com que os inimigos se
declarassem mais rapidamente – como a dupla de moleques que o
haviam encarado há pouco. Mas o lado ruim era ter que aturar o fato
de ser o centro das atenções em todos os momentos. Ele não se
importava, mas achava enfadonho às vezes. Era cansativo ser Kenan.
Sem se dar ao trabalho de dizer uma palavra, ele jogou um
envelope na frente do professor, causando-lhe um sobressalto que fez
alguns rirem. Quando notou a nova presença, o velho pulou da
cadeira, deu um passo para trás e ajustou seu óculos sobre o nariz,
olhando para cima como quem admira um arranha-céu.
Demorou alguns segundos até que pronunciasse qualquer
coisa.
— Q-quem é você? – gaguejou, temendo que o estranho lhe
apontasse uma arma e fizesse toda a classe refém. Apesar dos belos
orbes de safira, o olhar de Kenan não era nada amigável. — Somente
alunos e funcionários são permitidos aqui…
Quando o professor viu que ele indicava com o queixo o

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


envelope que tinha jogado sobre a mesa, moveu-se lentamente para
abri-lo, e então leu. A expressão de espanto daquele senhor foi
evidente ao notar que se tratava de uma permissão da diretoria para
que o novo aluno pudesse assistir às aulas com roupas diferentes do
uniforme durante os primeiros dias. A funcionária que havia assinado
o documento mais cedo – a mesma que fizera o mapa a lápis – tinha
exigido no mínimo roupas menos estranhas, mas Kenan garantiu que
não tinha nada diferente daquele preto retalhado em seu guarda-
roupas. E ao ser proibido de usar brincos e colares ele foi
contundente ao dizer que “se as garotas podiam usar, ele também
poderia”. De fato, não havia na escola nenhuma regra que impedisse
isso, então a funcionária precisou engolir o preconceito.
— Aluno novo? C-como assim? – oscilou o professor,
relendo pelo menos mais duas vezes o aviso em suas mãos para ter
certeza de que seus óculos não estavam lhe pregando peças. Sabia
que alguém seria transferido, mas não esperava por aquile tipo.
Finalmente, conformou-se — Oh, certo, certo. Kenan Russel, não é?
Sente-se, e por favor… Ora, apenas vá, vá!
Apontou para o meio da sala como quem enxota um
marimbondo. O que o professor queria era distância daquele ser.
Kenan notou que o velho se esquivava de seu olhar. Riu com o canto
da boca. Esse era um dos momentos em que apreciava ser temido:
quando os professores o evitavam.
Levantando o rosto, divisou rapidamente a sala de aula
notando que todas as mesas eram duplas. Não havia uma sequer onde
ele pudesse sentar-se sozinho. Encarou de volta os que o miravam de
esguelha e ignorou as moças que suspiravam contidas. Identificou
com desânimo que só havia um único espaço vago em toda a classe.
“E pra piorar, vou ter que sentar ao lado do palerma ruivo!”,
pensou, notando que o garoto estava encolhido e cabisbaixo.
O professor começou a aula falando sobre a queda do Império
Romano do Ocidente, o que fez com que os alunos gradualmente

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


recuperassem a habilidade de tagarelar alto demais. Acomodando-se
naquele único lugar vazio, Kenan depositou seu caderno na mesa
com estrondo. O rapaz ao lado retraiu-se. Kenan notou algumas
sardas em seu braço, mas não pôde ver seu rosto porque estava todo
coberto pelas mechas alaranjadas. Mas certamente estava nervoso,
pois torcia um pequeno lápis entre os dedos pálidos e finos.
“É isso aí, otário”, pensou Kenan, desejando que sua aura
rabugenta o atingisse e mandasse o recado. “Fique quieto no seu
canto e não me encha o saco”
O garoto parecia o tipo perfeito para se tornar seu alvo de
azucrinações nos momentos de tédio, o que significava: quase o
tempo todo. Antes que tivesse a chance de falar da postura de cão
abandonado dele, alguns alunos no canto oposto da sala começaram a
zoar, sobrepondo-se ao falatório que já superava os limites saudáveis
de decibéis:
— Olha lá, coitado do ruivinho veado! – debochou um com o
cabelo raspado, fingindo lamentar o destino do colega — Cuidado aí,
Lucinho! Esse novato tá com jeito de quem quer te socar todo!
Entendeu? Socar todo!
E riu alucinadamente com a própria piada, sendo
acompanhado por outros dois, como se fossem três patetas. Percebia-
se que o primeiro era uma espécie de líder.
Kenan não achou que a provocação fosse verdadeiramente
para o ruivo – acreditava que fosse direcionada mais para ele próprio,
por ser o novato. Limitou-se apenas a olhar para frente, não achando
o trio digno de sua atenção. Embora olhasse para os garranchos da
lousa, sua visão periférica já tinha identificado de quem se tratava.
Notou que seu companheiro de mesa apertou ainda mais o
lápis depois da provocação.
— Sei não, Victor – grasnou outro do trio, dirigindo-se ao
líder de cabelos raspados, propositalmente alto para ser ouvido pela

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


classe. — É capaz de o ruivinho ajoelhar de boca aberta e implorar
pra fazer uma boq…
— Fiquem quietos, vocês três! – interrompeu o professor,
indo até eles porque não tinha voz enérgica o bastante para ser
ouvido de perto da lousa. — Estou tentando ensinar alguma coisa,
jovem!
Kenan manteve os olhos na lousa, mas estava mais
interessado na visão periférica. Franziu as sobrancelhas.
“Aquele débil mental ia dizer ‘boquete’?”
Espiou o garoto ao seu lado, mas esse apenas se encolhia,
copiando freneticamente a matéria da lousa com a cabeça apoiada em
uma das mãos, como se psicografasse uma carta assassina. Apenas a
ponta de sua orelha era visível naquele mar de mechas em chamas, e
essa quase se confundia com seus cabelos, de tão vermelha que
estava. Kenan balançou a cabeça discretamente. Tinha raiva daquele
tipo. Não entendia como podia haver pessoas tão submissas assim.
Submissas ao sistema de ensino, às regras da sociedade, aos
provocadores… e sabe-se lá a quê mais.
“Mesmo com os caras falando aquelas coisas ele fica calado.
Deve ter se acostumado. Mas e se eu o importunasse? O que ele
faria?”
Contendo-se para não rir sozinho com seus pensamentos,
Kenan prestou atenção quando o professor, aparentemente já com a
memória fraca, lembrou-se de fazer a chamada quase ao final da
aula. Quando o nome “Lucio Corrêa” foi pronunciado, seu tímido
companheiro levantou a mão e falou “aqui” num tom quase
inaudível, mas com uma voz doce. Era como o tilintar de um fino
cristal. O professor já estava habituado com o tom baixo, pois olhou
diretamente para ele e anotou sua presença.
Durante todas as outras aulas daquela manhã Lucio continuou
silencioso – com exceção às respostas de “aqui” que cada matéria

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


exigia –, e não olhou em nenhum momento para os lados, deixando
sempre os cabelos ruivos caírem no rosto, isolando-o do mundo
como uma pequena cortina que impede que o público entreveja os
atores sem suas fantasias. Antes daquele dia ele só precisava evitar
olhar para o lado em que Victor e seus dois capangas se sentavam,
mas agora havia aquele novo rapaz colado à sua esquerda. Lucio só
tinha colocado os olhos em Kenan no momento em que este havia
chegado diante da classe com o envelope de permissão. A primeira
conclusão a que havia chegado ao ver aquelas roupas desleixadas e
os diversos piercings e correntes era a de que deveria manter
distância. A segunda conclusão foi a de que o novato se parecia com
algo divinamente belo, mas venenoso – o que apenas reforçava a
primeira conclusão.
Naquele momento Lucio estava remoendo um ódio de si
mesmo por ter optado sentar-se sozinho desde o início do ano. Ele
cavara sua cova ao transformar aquela cadeira vaga na única em que
aquele ser das trevas poderia ter escolhido.
“Mas, ao mesmo tempo”, pensou Lucio ao aspirar o ar ao seu
redor, “nunca imaginei que um tipo desses pudesse ter um perfume
tão bom…”
Quando se deu conta deste pensamento Lucio afundou a
caneta no papel, quase rasgando-o, tamanha era a raiva que sentiu ao
perceber o pensamento clandestino. Era ridículo, doentio.
Era errado.
As horas passaram muito lentamente, e Kenan estava
começando a se entediar. Fez um esforço sobre-humano para não ir
pessoalmente calar a boca de uma aluna bajuladora que respondia
corretamente a t-o-d-a-s as perguntas que os professores faziam.
Fizera uma promessa a si mesmo de que naqueles primeiros dias
apenas observaria o terreno, sem causar desordem. Mas com aquela
garota as coisas estavam difíceis. A cada elogio que recebia dos
professores ela o olhava toda dengosa, na tentativa de impressionar.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


“Que diabos essa menina tá esperando?”, pensou Kenan,
ignorando os olhares que ela lhe lançava. “Que eu comemore?
Lesada…”
Enquanto isso, Lucio apenas acumulava mais daquela
pressão, como uma mola que se tensiona até um ponto em que
ninguém sabe quando pode estourar. Evitou olhar para Kenan como
se estivesse ao lado da própria Medusa. Não queria virar pedra.
“Amanhã vou pedir para que alguém troque de lugar
comigo”, pensou enquanto uma professora aproveitava os últimos
minutos de aula para deixar exercícios na lousa. “Isto está
insuportável. Só a presença dele já é o suficiente para fazer meu
estômago doer…”
Começou a chacoalhar a perna involuntariamente.
— Hey, moleque, isso é irritante! – ralhou Kenan, dando um
chute no pé de Lucio. Esse apenas respirou fundo e tentou relaxar,
consciente de que aquele cacoete aborrecia a qualquer um. — Ora,
ora… Quer dizer que é só eu falar e você obedece? Cara… você é um
nojo. Toma aqui, copia aquele garrancho da lousa pra mim. Não tô
entendendo porcaria nenhuma daquela letra horrível.
A última aula estava quase no final, e antes que Lucio tivesse
tempo de avaliar se valia a pena mandá-lo à merda, a garota puxa-
saco se aproximou saltitante, seguida de mais cinco amigas. Elas
estavam com os olhos vidrados no novato mais gato que já tinham
visto na vida. A mais bonita delas – exatamente a puxa-saco
irritante – aproximou-se insinuante. As outras se apressaram para
segui-la, cutucando umas às outras com risinhos e cochichos.
— Oi, você é Kenan Russel, não é? – perguntou a garota,
quase cantando. — Meu nome é Camila, e sou a representante da
classe.
Como ele continuou encarando-a com a expressão mais
gélida que conseguiu fazer, ela abaixou-se um pouco, deixando as

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


curvas dos seios ainda mais tentadoras e adquirindo a tática da voz
dengosa:
— Ah, é que… eu ia dizer que você precisa pegar o conteúdo
dos meses anteriores. Como é novato, talvez tenha que colocar
algumas coisas em dia. Não vai querer ficar para trás, né? – Camila
balançou numa das mãos o caderno que pretendia emprestar, como se
fosse o item mais precioso que existisse.
— Conteúdo atrasado… era tudo o que eu mais
queria! – ironizou Kenan, bufando em seguida. — Mas que merda.
“A quê mais eu preciso me submeter para terminar de uma
vez essa droga? Só falta a porra de um semestre!”, pensou.
Desconcertada por não ver nele a reação que sempre causava
nos homens, Camila preparou seu olhar mais tentador e piscou de um
jeito que ela sabia fisgar todos aqueles que desejasse. Era sua arma
final. Infalível.
A única coisa que conseguiu foi aborrecer Kenan de vez.
— Sai da frente. Estou tentando enxergar algo que
preste – exigiu ele, mesmo sem copiar nada da lousa. E olhando para
o caderno que ela oferecia, continuou: — Eu não preciso dessa coisa.
O esquisitinho aqui vai copiar todo o atraso pra mim – explicou,
apontado para Lucio.
Kenan não sabia se ria da expressão de indignação de Camila
e suas amigas pela rejeição, ou do evidente baque de Lucio ao
perceber que era dele que estava falando. O garoto virou
minimamente a cabeça, só para ter certeza de que entendera direito,
mas quando Kenan se inclinou para tentar ver seu rosto ele já tinha
voltado a se esconder, debruçando-se no próprio caderno.
A mudez das garotas e de Lucio foi quebrada pelo sinal do
fim das aulas e pelo tumulto de debandada dos alunos. Camila deu
meia volta, ofendidíssima, e seguiu até a porta acompanhada das
outras. Os três trogloditas, que também iam saindo, gritaram algumas

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


coisas para incomodar Lucio, mas não arriscaram chegar perto para
uma zoação mais caprichada. Tiveram receio de se aproximar
daquele novo indivíduo.
Quando eles saíram, Kenan sentou-se de lado na cadeira,
ficando de frente para o flanco esquerdo de Lucio. Alguns dos fios
negros que não estavam presos pela trança escorregaram por seu
rosto, dando-lhe um ar sexy. Lucio congelou, chegando a sentir a
respiração do anjo das trevas em sua orelha.
Mas o tal anjo estava irritado.
— Você deve ter algum tipo de problema! É meio retardado,
tem autismo? Por que não reage quando te provocam? Hey, estou
falando com você! – resmungou Kenan, dando um cutucão no ombro
dele para verificar se estava vivo, ou se tinha falecido ali mesmo,
sentado na cadeira. — Você não faz nada? Não responde quando
falam de você? Caramba, nem levanta o queixo para mostrar um
pouco de dignidade! O que você tem, moleque? Só abaixa esta merda
de cabeça e faz o que os outros mandam. Assim não tem nem
graça! – Esperou uma reação, mas Lucio apenas ficou parado,
apertando sua caneta com força. — O que tem debaixo dessa franja
ridícula, hein?
Lucio podia ver, com o canto do olho, uma parte do tronco e
da cintura de Kenan, bem delineados pela camiseta preta e justa.
Uma das pernas dele, metida num jeans escuro e todo rasgado,
encostava na sua. Teve curiosidade para levantar o rosto e conhecer
de perto os olhos de alguém com um corpo tão chamativo, mas não
teve coragem.
A obstinação de Lucio em manter a cabeça abaixada estava
começando a fazer Kenan passar da irritação para a intriga. Teria um
nariz estranho? Olhos murchos e estrábicos? Dentes careados ou em
posições bizarras? Ou isso tudo junto? Ele quase teve pena, mas
achou que importunar o garoto até que ele finalmente revidasse
poderia ser um jogo interessante para começar a semana.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Aquela aproximação estava insuportável para Lucio. Era de
suas anotações antigas que ele precisava, não era? Pois bem, então
entregaria as folhas necessárias e sairia de perto daquele ser sombrio.
Definitivamente não copiaria para ele à mão.
— Aqui… – murmurou Lucio, separando cuidadosamente o
conteúdo dos meses anteriores, uma matéria de cada vez. — Fique
com elas o tempo que preci…
— Você é idiota? – retrucou Kenan, esquecendo-se
completamente do plano de virar o rosto do ruivo à força para
gargalhar de suas deformidades. — Acha que eu vou ficar copiando
esse monte de lixo, página por página? Tire a porra de um xérox!
Fechou o caderno em branco com uma pancada na mesa e
guardou a caneta no bolso da calça. Já em pé, esbarrou
propositalmente nas folhas que Lucio havia empilhado para ele,
derrubando-as no chão. Elas se espalharam e saíram totalmente da
ordem.
— Ops, foi mal – ironizou. — Moleque esquisito…
E continuou pisando em várias delas, carimbando a sola de
seu tênis nas páginas que antes eram tão limpas e escritas numa
caligrafia perfeita. Ele ficou impressionado de como nem isso fez
com que Lucio levantasse seu rosto para brigar, ou mesmo para
chorar, ou qualquer reação que fosse. Ele apenas manteve-se
cabisbaixo.
Mas Kenan não notou as mãos do garoto, fechadas em punho
sobre os joelhos, levemente trêmulas. Ele não percebeu como a
caneta envergava na mão de Lucio, tamanha a força que fazia.
Também não percebeu o maxilar que se enrijecia por causa dos
dentes cravados. Kenan também não viu as pequenas narinas que se
dilataram para que o ruivo pudesse respirar o mais fundo possível.
Kenan apenas conjecturava com base naquilo que Lucio
permitia ser observado.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Como um coitado como você conseguiu chegar vivo até o
terceiro? Eu pensaria em ficar com pena, mas é difícil. Divirta-se
pegando tudo de volta. Espero que tenha colocado números nelas,
senão nunca conseguirá colocar todas no lugar outra vez…
O novato esfregou o pé um pouco mais numa das páginas
para que a sujeira do tênis pegasse melhor. Mas Lucio continuou da
mesma forma: nenhum gesto, nenhuma palavra para Kenan. Ele teve
vontade de puxar aqueles cabelos avermelhados para trás e rir das
lágrimas que acreditava estarem se formando, mas lembrou-se da
promessa que confiou ao espelho de não fazer nada do tipo, a
promessa de que desta vez terminaria a escola.
Kenan saiu da classe dando uma última olhada no
garoto-estátua. Era comum que evitassem seu olhar, mas aquele em
especial estava deixando-o intrigado. Pessoas introvertidas o
incomodavam, mas Lucio tinha algo diferente.
Precisava haver um gatilho que o fizesse reagir. Todos
tinham.
Sozinho na classe, Lucio finalmente voltou os olhos
castanhos para a porta. Não havia uma lágrima sequer ali, mas ódio.
E isso o consumia. Com um urro contido que não foi ouvido por
mais ninguém além de seu coração, chutou a mesa dupla que dividiu
com Kenan fazendo-a se chocar contra a da frente. A caneta em sua
mão trincou sem que ele notasse. Por muito pouco não a tinha
cravado na jugular do maldito delinquente. Por bem pouco.
Lucio arquejava, respirando entre os dentes.
“Calma, calma. Você é melhor que isso. Você é melhor que
todos eles juntos!”, disse internamente, como uma espécie de mantra.
Ele se lembrou de como a psicóloga pedira para, nestes
momentos, respirar de forma cadenciada e visualizar um cenário
tranquilo, ignorando os arredores. Era praticamente isso que ele tinha
feito durante a manhã toda, mas naquele momento estava difícil.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Olhou para as suas páginas espalhadas no chão, e mirou as marcas da
sola do tênis de Kenan em várias delas.
“E o filho da puta ainda exigiu que eu tirasse xérox pra ele!”
Pegou a caneta trincada e terminou de quebrá-la, atirando as
metades na parede do fundo, imaginando que atingia em cheio o
rosto daquele maldito anjo do inferno. Por que um desgraçado
daqueles tinha que ter uma voz tão hipnotizante, mesmo quando só
falava merda?
Engoliu o orgulho ácido e abaixou-se para pegar as páginas,
uma a uma, e reorganizá-las em seu fichário – sim, ele as tinha
numerado; e sim, ele havia chegado inteiro até a metade do terceiro
ano, mas agora se perguntava se conseguiria aguentar até o final.
Precisou usar toda a sua força de vontade para não rasgar cada uma
daquelas folhas, antes tão alvas, agora imundas.
Repudiava a si mesmo por não conseguir lidar com esse tipo
desgraçado de ser humano, mas sabia que se tentasse algo perderia
mais do que somente a paciência.
E ele não queria morrer. Ainda não.
Na praça, perto dali, Kenan relaxava recostado a uma árvore
para fumar seu cigarro. Não queria voltar para casa tão cedo.
A praça ficava diante da escola, o que dava a ele vista total do
portão de saída. Durante os finais de semana era comum que ela
recebesse muitos visitantes, mas naquele dia e horário os únicos que
a frequentavam eram alunos e transeuntes cortando caminho até seus
destinos.
Soltando preguiçosamente a fumaça dos pulmões, Kenan
notou que só agora Lucio deixava a escola. Estranhou, olhando para
o relógio. Ele havia ficado mais de uma hora enfurnado na classe.
Curioso, observou que o pequeno ruivo andava apressadamente
enquanto olhava para os próprios pés. Parecia muito com um cão
abandonado se esgueirando para não ser atropelado.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


“E lá vem o coitado novamente. Será que estava até agora
chorando na classe? Pfff, eu deveria ter ficado pra ver…”
Enquanto levava o cigarro novamente aos lábios, flagrou uma
cena que não esperava. Os três rapazes que perturbaram Lucio
durante as aulas apareceram por detrás de alguns arbustos da praça.
Kenan não os havia visto antes, mesmo estando ali todo esse tempo.
Victor, o líder de cabelos raspados, foi o primeiro a entrar no
caminho do garoto.
— E aí, bichinha? Fez amizade com aquele novato bizarro?
Não tá com medinho que ele descubra seus podres
e queira te dar uma surra?
Unindo as sobrancelhas, Kenan apurou os ouvidos. Agachou-
se atrás da árvore para não ser visto.
— Me deixa em paz… – pediu Lucio, num autocontrole
forçado. — Quero ir logo pra casa.
— Ooohh, coitado do bebezinho! Tem que chegar em casa na
hora certinha pra mamãe não ficar bravinha, é? – Victor imitava uma
voz sonsa enquanto apertava as bochechas de Lucio, que já
começava a sentir aquela revolta lancinante acumulando em seu
peito. — Ou talvez tenha alguém esperando pra te foder lá,
veadinho?
— Sai da minha frente, Victor! – retrucou Lucio, tentando
livrar-se dos dedos oleosos que apertavam seu rosto. — Você não
sabe porra nenhuma sobre mim!
— Sei o suficiente, seu merdinha.
E os três riram, dando tapinhas ardidos na cabeça de Lucio,
que retraiu os ombros e levantou os braços para tentar se proteger.
Kenan apenas observava. Já tinha feito esse tipo de agressão
diversas vezes com colegas que considerava lerdos, mas hoje em dia
achava os tapinhas na cabeça algo infantil demais – o negócio era

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


importunar no verbo. Por algum motivo, achou que olhar a situação
de fora era degradante. Será que ele já tinha sido tão idiota quanto
aqueles três? Ignorou a lembrança do pisoteamento das páginas,
acreditando que aquilo não poderia ser considerado exatamente uma
agressão.
Seu olhar se estreitou por trás do arbusto e ele ficou ali, em
dúvida se deveria intervir.
Enquanto ele não se decidia, o pequeno se defendia dos tapas
como podia e acumulava mais da raiva que já tinha transbordado
dentro dele há muito tempo. No momento em que Lucio julgou
oportuno, cuspiu no rosto de Victor e o empurrou com força,
fazendo-o cair com o desequilíbrio. A surpresa do trio foi tão grande
que ele teve uma brecha para sair correndo. Nunca tinha reagido aos
insultos de Victor. Nunca. Mas naquele dia, com a chegada de Kenan
e todos aqueles calafrios e estranhas sensações que repudiava em
si mesmo, seu limite havia explodido.
Victor ainda limpava o cuspe do rosto quando Lucio se
aproximou do ponto de ônibus. Para sua salvação, naquele exato
instante havia um que recebia um passageiro. Lucio entrou ofegante,
sem se importar com o destino – só o que queria era se livrar dos três
naquele momento, e agradeceu por nenhum deles saber onde morava.
Se tivesse demorado cinco segundos, teria sido pego. Ignorando as
ameaças de morte que ouviu pela janela fechada, respirou fundo.
Desejou inutilmente que sua saliva pudesse ser ácida para corroer o
rosto de Victor. Ainda eufórico, se acomodou num banco e, enquanto
o ônibus fazia uma curva, notou com desagradável surpresa que atrás
de uma árvore, bem ao longe, estava Kenan. Um gelo percorreu sua
espinha, e ele não sabia ao certo o porquê.
De onde estava, Kenan conseguiu ouvir os três
praguejando: “Você está ferrado, veado cretino!”, e “Amanhã você é
um cara morto!”.
Dando uma última tragada em seu cigarro, ele não pôde

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


deixar de concordar: Lucio de fato estava ferrado. Mas o baixinho
tinha acabado de lhe surpreender. Concluiu que Lucio não era
indiferente, no fim das contas. Só era meio lento para tomar atitudes.
Ou aquela apatia do garoto era apenas com ele? Não sabia o que
pensar.
Kenan ficou a tarde toda rondando os arredores até que o sol
se escondesse no horizonte. Para ele, esse era o momento certo de
voltar para casa, pois seus pais já teriam saído, cada um para seus
afazeres. A melancólica e dedicada mãe administrava uma casa
noturna de drinques enquanto o pai alcoólatra torrava, em botecos e
esquinas imundas, o pouco que ela ganhava.
Diante de uma porta velha de ferro corroído Kenan tirou um
pequeno molho de chaves do bolso, destrancando-a com um estalo.
— Lar, azedo lar – ciciou sozinho ao entrar na sala com
cheiro de mofo, urina de gato e vômito de bêbado.
A angústia pela labuta da mãe e o ódio pelas atitudes do pai o
impediam de ficar ali durante o dia. Na maioria das vezes em que
voltava para casa mais cedo, aconteciam discussões que só pioravam
a vida daquela mulher guerreira a quem ele tanto devia.
Na cidade onde morou anteriormente, Kenan aproveitava-se da
hospedagem de colegas. Mas ali ainda não tinha ninguém louco o
suficiente para aturá-lo por uma tarde inteira.

••♥••

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Terça-feira

Na manhã seguinte Kenan chegou mais cedo à escola. As


turbulências do lar e os insultos gratuitos do pai que voltava
embriagado se iniciavam com o nascer do sol. Isso tornava o local
impossível de se ficar por mais tempo do que o necessário. Depois de
pular o muro para entrar na escola ainda trancada, enfiou-se num
canto próximo a um dos pátios, e acendeu um cigarro enquanto
nenhum aluno chegava. Ser rebelde sem que soubessem também
tinha lá sua graça.
Quando os portões foram abertos e os alunos começaram a
surgir ele deu uma espiada no ponto de ônibus. Imaginou se Lucio
teria a coragem de aparecer depois das ameaças que recebera do dia
anterior. Acreditou verdadeiramente que não, que Lucio não
arriscaria aquele pescoço frágil como graveto, mas notou que Victor
e os dois capangas pensavam diferente: tinham se reunido perto de
um pilar e olhavam fixamente para o portão aberto, como gaviões
aguardando o momento em que o camundongo sai da toca. Se Lucio
viesse, seria um suculento peixinho dourado pulando diretamente na
boca dos tubarões esfomeados.
E lá estava ele. Furtivo como um gato escaldado, observando
tudo por baixo dos cabelos que lhe escondiam o rosto.
— Mas que retardado… – sussurrou Kenan, jogando a ponta
do cigarro na grama.
Vendo o garoto com cabelos de fogo se aproximar da entrada,
ele se lembrou do que havia concluído no dia anterior e mudou de
ideia. Lucio não era lento para tomar atitudes.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Era suicida.
O trio levantou-se num pulo e foi até Lucio, passando o braço
pelos ombros pequenos como se fossem camaradas. Ele ficou
estático. Não acreditava que sofreria qualquer coisa enquanto
houvesse pessoas por perto – e esse era o único motivo de ter ido
confiante à escola.
— Chegou nossa princesinha favorita, rapaziada! – provocou
Victor, mostrando os dentes como um chacal que se prepara para
arrancar a pele de sua presa. — Foi boa a tarde de ontem, filho
da puta?
Victor ainda sentia a sensação do cuspe manchando seu
orgulho. A raiva que tinha sentido naquela hora não tinha se
dissipado. Ao contrário, teve tempo o suficiente para evoluir para
algo pior.
Fingindo para quem pudesse vê-los que guiava Lucio
amigavelmente, Victor agarrou o antebraço fino sem dó e o
direcionou para um corredor externo que levava para os fundos da
escola. Lucio não contava com isso, e novamente repudiou a si
mesmo, desta vez por ter sido tão ingênuo. Era um cordeiro sendo
arrastado para o abate. Não tinha como fugir e, se o fizesse, só
adiaria o inevitável. Foi andando obedientemente, ciente de que
estava com problemas.
Ninguém notou quando os quatro sumiram numa curva ao
fundo do pátio. Ou, quase ninguém. O único par de olhos que os
perscrutavam estavam atentos como os de uma pantera.
O lugar em que Lucio foi levado era ladeado por paredes que
equivaliam a dois andares, sem janelas, como um beco abandonado.
Em volta deles havia mesas e cadeiras quebradas, descartadas numa
pilha de objetos inúteis e decrépitos. O lugar perfeito, pois ninguém
ia até ali.
Quando Kenan se aproximou, ouviu baques surdos seguidos

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


de risos de escárnio. Lucio estava escorado no paredão e recebia
socos certeiros no estômago e joelhadas que vinham de todos os
lados. Ele tentou se defender, e até conseguiu uma vez ou duas, mas
Victor e os outros dois eram maiores e mais fortes. Depois de mais
alguns golpes, Lucio caiu.
Ele não gritava, não dizia nada. Apenas tentava proteger sua
cabeça com os braços e cravava os dentes com força, não ousando
emitir o som de súplica e dor que eles tanto queriam ouvir.
— Pare de se proteger, seu desgraçado! – gritou Victor,
puxando os braços fracos do garoto para em seguida desferir-lhe um
pontapé. — Não quer machucar o rostinho de boneca? HEIN? NÃO
VAI FALAR NADA? VOCÊ CUSPIU EM MIM E ME JOGOU NO
CHÃO, SEU FEDELHO DESGRAÇADO! ACHA QUE PODE
FAZER ISSO PARA O LÍDER d’OS SETE E SAIR SEM PAGAR?
Ao pronunciar as últimas palavras, puxou Lucio do chão e o
arremessou de volta na parede, fazendo-o bater a cabeça. A dor na
nuca foi instantânea, e ele se desesperou quando suas pernas
perderam a força, fazendo com que escorregasse novamente para o
chão, zonzo. Sem forças para se levantar, Lucio voltou a receber
chutes nos braços que usava para proteger a todo custo a cabeça
dolorida.
Kenan tinha assistido a tudo de longe e manteve-se calado
para ver até onde aquilo chegaria, mas achou que o limite do
inaceitável tinha sido ultrapassado. Ele sempre foi do tipo que
provoca as pessoas. Pegava cadernos daqueles que lhe pareciam mais
abobalhados e rasgava suas capas; surrupiava estojos das garotas que
achava mais frágeis e jogava para outros rapazes, só para vê-las
pulando para recuperar o objeto; derramava refrigerante nos livros de
algum nerd que lhe negasse a lição de casa; ou… espalhava e
pisoteava as páginas de um ruivo que não olhava em seus olhos…
Mas não batia em quem não podia revidar à altura. Não era
mais criança para isso.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Hey, imbecis – chamou Kenan, saindo do esconderijo. Ao
ouvir aquela voz, Lucio sentiu o mesmo gelo na barriga do dia
anterior, mas não ousou se mexer. Ainda sentia as pernas dormentes e
o resto do corpo estava dolorido. Kenan avançou para Victor e
agarrou a gola de seu uniforme. — Que tal mexerem com alguém um
pouquinho maior que o moleque ali?
O cheiro de tabaco chegou às narinas de Victor, que tentava
se soltar do punho fechado em sua roupa. Quando mirou os olhos que
o encaravam gravemente, sentiu medo. Ele sabia que se estivesse
sozinho nada conseguiria fazer contra aquele sujeito.
Mas não estava só, então riu debochando.
— Cretino… Você se acha foda só porque está com essas
roupas ridículas e tem uns brinquinhos na orelha? Isso não te faz
melhor que ninguém aqui, novato de merda… Eu e meu pessoal
podemos quebrar você em menos de um minuto.
— Seu pessoal? – riu Kenan, olhando para os dois que o
encaravam cautelosos. Deu uma rápida espiada para verificar o
estado de Lucio, e notou que ele tinha dificuldades para se levantar.
— Não falo só deles, otário… – vociferou Victor, sentindo
que seus pés quase saíam do chão. — Se fizer algo comigo tem mais
quatro que não frequentam esta escola e que vão gostar de estragar
essa tua cara de sarcasmo. Sou o líder d’Os Sete, vacilão!
Kenan respirou fundo e falou num tom calmo:
— Cuidado, você nem me conhece. Não sabe com que tipo de
fogo está brincando, chefinho.
— E você, como é carne fresca aqui, também não nos
conhece. Eu quero ver você nos atrapalhar outra vez, desgraçado. Da
próxima, vamos te linchar.
Quando Victor fez sua ameaça, o olhar de Kenan tornou-se
mais intenso e ameaçador. O líder d’Os Sete reconheceu com certo

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


receio aquela expressão: Kenan havia aceito o desafio.
Rindo zombeteiro, o novato soltou Victor. Apesar da
promessa que fizera a si mesmo de não arranjar encrenca nos
primeiros dias de aula, ele estava curioso para saber do que aquele
bando seria capaz. Kenan era um desconhecido para Victor e os
outros, mas ele já tinha ouvido falar d’Os Sete antes.
Autointitulavam-se assim, como se fossem uma gangue poderosa,
mas não passavam de um grupinho medíocre de arruaceiros da
região.
— Por que não amanhã? – sugeriu Kenan, afastando uma
mecha negra que caia em seus olhos. — Estou ansioso por isso.
Reúna sua corja, e que venham todos de uma vez.
Com uma mesura irônica, ele apontou a direção da saída do
beco. O trio se mandou, com promessas de que sua carta de óbito
seria logo assinada.
Sem dar a menor atenção a isso, ele esperou até que
sumissem na curva do beco, e então se voltou para Lucio, que tinha
conseguido se sentar. Kenan agachou-se diante dele.
— Depois do que eu te vi fazer ontem, foi burrice ter vindo.
O que você queria? Que eles…
Kenan calou-se, e elevou as sobrancelhas.
Ignorando o falatório, Lucio havia levantado o rosto cheio de
ira e, pela primeira vez, eles se olharam verdadeiramente. Um arrepio
subiu pela espinha do mais velho, fazendo com que ele demonstrasse
surpresa por meio segundo. Os olhos castanho-claros de Lucio
fitaram Kenan com um brilho de raiva, e uma única lágrima se
misturou a um filete de sangue que escorria por sua boca pequena e
rosada, manchando de vermelho uma pele perfeita com pequenas
sardas que apenas aumentavam seu charme.
Um querubim. Era com isso que Lucio se parecia. Um ser
cândido de cabelos alaranjados. E que estava furioso.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Fique longe de mim! – Lucio tentou gritar, mas estava sem
fôlego. Deu um empurrão no homem à sua frente, e foi como uma
pétala de rosa tentando fazer um pedregulho rolar. Kenan segurou o
pulso delgado.
— Poupe suas forças, garoto… – Ele não conseguia tirar seus
olhos de Lucio, que também o mirava com secreta
admiração. — Você me surpreendeu ontem, sabia? Bem, cuspir em
alguém não é exatamente o que vejo como defesa, mas…
— Não enche…
Lucio finalmente desviou o olhar e abaixou a cabeça,
soltando o pulso das mãos firmes de Kenan.
— Ontem o tal Victor falou algo sobre eu descobrir seus
podres… – lembrou-se Kenan, ainda agachado na frente dele.
Inclinou a cabeça, sem tirar os olhos azuis do pequeno rosto à sua
frente. O canto de sua boca se envergou num riso contido — Do que
exatamente aquele cara tava falando? Sabe, fiquei com isso na
cabeça a tarde toda…
Lucio estava incrédulo. Em parte pela audácia da pergunta,
mas principalmente pelo fato de a resposta ser ridiculamente
óbvia – ao menos uma parte dela. Victor o xingava daquelas coisas o
tempo todo, será que o novato não havia ao menos imaginado?
Mas Kenan não era idiota. Sabia do que se tratava, mas
também conhecia pessoas como Victor, que direciona um
xingamento a qualquer um, por qualquer motivo. No fim das contas,
Kenan arrependeu-se por ter feito a pergunta diretamente. É claro
que ele não responderia. Não fácil assim, pelo menos.
A intimidação que Lucio sentiu ao voltar novamente seu olhar
para Kenan era bem diferente daquela que assustou Victor. Ele nunca
tinha visto olhos tão intensos e azuis em sua vida, principalmente
quando esses mesmos olhos o observavam tão atentamente.
Recordou-se do dia anterior, das páginas sujas pelo chão, e de como

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


quisera matar Kenan com aquela caneta. Mas agora traía a si mesmo
ao encará-lo. Lucio notou, mesmo sem querer, o belo pescoço do
novato, a pele ligeiramente queimada pelo sol, e aquele perfume que
o inebriava, tal como acontecera da primeira vez que o tinha visto.
Achou novamente que estava ficando maluco.
— Você… Ontem, você não estava com eles? – sussurrou
Lucio ao mesmo tempo em que buscava outra coisa para distrair sua
visão. Estava sentindo-se praticamente nu com aquele olhar tão
magnífico pousado nele.
“Humm, ele parece estar sem jeito… Que graça”, pensou
Kenan, vendo que a pele clara dos braços de Lucio já começava a
ganhar tons arroxeados pelas pancadas. Teve vontade de tocá-lo.
“Droga, não acredito que esse tipo de garoto está mexendo comigo.
Tenho que botar minha cabeça no lugar”
— Oh, então você me viu lá? – Kenan recobrou a habilidade
de falar qualquer coisa que lhe viesse à cabeça. — Bom, digamos que
eu era um mero espectador curioso para ver o que um palerma como
você faria diante dos três trogloditas. Achei que eles pudessem te
zoar mais um pouco e me dar uma cena cômica de ser assistida, mas
me enganei. Você fugiu como um polvo assustado, que joga tinta na
cara do inimigo e se manda.
Ao ouvir aquilo, Lucio aprumou-se, unindo as sobrancelhas.
— Queria ver algo cômico? – Ele não se conformava com o
que tinha ouvido. Desacreditava que havia pensado por um segundo
que Kenan poderia ser interessante. Toda a revolta do dia anterior e a
raiva de Victor voltaram à tona. Levantou a voz. — E agora? Está
feliz com a cena que viu? Gostou de ter me visto apanhar daqueles
desgraçados? Há quanto tempo estava olhando? Você é como eles!
Não presta!
Inesperadamente, Lucio usou a mão boa para desferir um
soco fraco no queixo de Kenan que, por já estar agachado na ponta
dos pés, se desequilibrou e sentou no chão. Se arrependeu do ato no

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


mesmo segundo ao ver o olhar de Kenan. O anjo de preto o encarou
de forma penetrante e com um sorriso enviesado. Maravilhoso e
terrivelmente sexy. Mas destruidor.
“Como sou imbecil”, Lucio censurou-se em pensamento.
“Agora tenho Os Sete e mais esse maluco querendo me matar!”
Pegando fôlego e reunindo toda a força que lhe restava nas
pernas, Lucio usou sua melhor habilidade de corrida para fugir dali.
Precisava sair de perto do cara que estava mexendo com seus
sentidos. Desde quando viu Kenan entrando na classe, alguma coisa
dentro dele havia despertado. E exatamente por ter notado isso, Lucio
começou a se xingar no caminho que fazia até o ponto de ônibus.
Sozinho e ainda sentado, Kenan apoiou os braços para trás,
observando o céu azul. Talvez o baixinho tivesse mais surpresas do
que ele imaginava. E para ter lhe batido, mesmo que debilmente, era
de fato um suicida. Mas era exatamente isso que tinha feito o
interesse de Kenan aumentar.
— Ahh… Quero ver aquele rostinho novamente – segredou
para um pássaro que voava alto, surpreso consigo mesmo pelo que
havia acabado de declarar. Passou a mão no queixo, no lugar do soco.
Quase não sentira.
“Se ele dependesse daquele punho para se defender, estaria
num hospital agora. Mas ele… Lucio… parece ter realmente algo
além daquela apatia…”
Quando ele finalmente foi para a classe, na primeira aula,
ficou frustrado ao descobrir que Lucio tinha ido embora – e de certa
forma aliviado ao notar que o trio estava por lá, também procurando
por ele. O embate de olhares foi inevitável. Digladiavam-se à
distância, mas nada diziam. Victor não queria correr o risco sem estar
com a gangue completa para protegê-lo.
A presença dos três ali, embora incômoda, deu um estranho
alívio a Kenan. Isso significaria que ao menos naquele dia o pequeno

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


voltaria para casa em paz. Girando uma caneta entre os dedos,
balançou a cabeça. Desde quando se preocupava com a vida dos
outros? Ainda mais com alguém como Lucio? Na classe, Kenan
refletia sobre isso. Apesar de estranhar as próprias ideias às vezes, ele
não era de rejeitar o que sentia. Se a coisa estava ali, aceitava e
pronto.
E o que insistia em voltar à sua mente naquele momento era o
rosto de Lucio. Aquela expressão revoltada, a lágrima solitária se
misturando com a gota de sangue nos lábios finos… E a voz doce,
mesmo quando irritada.
“Ele é lindo, perfeito! Por que fica se escondendo daquele
jeito?”, perguntou-se enquanto abria o caderno. Decidiu que naquele
dia copiaria os garranchos dos professores. Como não parava de
pensar nele, queria fazer alguma coisa por ele. Só não garantiria que
sua letra seria mais legível do que as que via na lousa.

•••

Longe dali, mancando e olhando para o céu no intuito de não


chorar – de dor, de ódio, de frustração –, Lucio fez sinal para o
ônibus que o levaria de volta para casa. Aquela semana
definitivamente tinha começado da pior forma possível. Sentiu-se
ridículo por ter achado que depois daquela cuspida poderia ter um dia
normal de aula.
Lembrou-se do que o novato disse sobre ter sido um mero
espectador.
“Ele não estava com o grupo de Victor, afinal. E ele… apesar
do que disse, me defendeu. É um delinquente e só fala merda, mas se
ele não estivesse ali hoje não sei o que teria acontecido. Em vez de
agradecer eu dei um soco nele… O que eu tenho na cabeça?”

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Se acomodou num dos bancos do ônibus e encostou a testa no
vidro da janela. As casas do lado de fora estavam fora de seu foco. A
única coisa em que prestava atenção era na lembrança de Kenan.
Sentiu o peito se aquecer ao relembrar de como foi encarado por ele.
Ao se dar conta dessa sensação, esfregou ambas as mãos no rosto,
bufando longamente. Não podia sair por aí sentindo calores ao
recordar do perfume inebriante dele… Ou daqueles cabelos
escorregando pelos ombros perfeitos, emoldurando o rosto mais belo
que já vira… Não podia sentir-se exaltado com o olhar de um
completo estranho, uma pantera assassina. Nem com aqueles lábios
que…
“Chega! Suma da minha mente, desgraçado!”
Ao chegar em casa, foi direto para a caixa de primeiros
socorros que seus pais mantinham num armário. Era um verdadeiro
arsenal da enfermagem, digno de um pai cirurgião e uma mãe
cardiologista.
Olhou-se no espelho e ficou aliviado por não ter nada muito
visível em seu rosto. Para as manchas no braço, bastava usar uma
manga longa e estaria tudo resolvido. Seus pais não precisavam saber
que o filho tinha arranjado encrenca. De novo. Ficariam
decepcionados e dariam sermões sobre seguir as dicas de
relaxamento da psicóloga.
Não adiantava explicar aos pais que os incidentes
simplesmente esbarravam em seu caminho – não era Lucio que os
procurava. Se pudesse, tomaria uma poção de invisibilidade e viveria
longe de problemas para o resto da vida.
E o novo problema tinha um nome. Kenan Russel.
Ele havia notado que o anjo negro carregava uma aura
diferente dos delinquentes que conhecera. Kenan provavelmente não
era tão cretino quanto Victor a ponto de juntar uma galera para socá-
lo, mas era estúpido o bastante para espalhar e pisar em suas páginas
com aquela cara de deboche.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


“Os xérox!”
Lucio pegou seu fichário e separou novamente as folhas
pisoteadas.
Contrariando o que tinha prometido a si mesmo, fez todas as
cópias que Kenan precisaria para sobreviver ao segundo semestre do
terceiro ano. Encarava isso como forma de gratidão.
“Pela segunda vez, no segundo dia desde que te conheci,
você está me fazendo engolir meu orgulho… Eu te odeio, Kenan
Russel!”

•••

Kenan estava esgotado pela manhã de aulas tediosas sem o


belo companheiro de mesa para servir de distração. Sua memória não
parava de voltar para aquele delicado rosto com sardas, e para aquela
expressão penetrante de olhos castanho-claros. Ele havia ficado
anestesiado durante todas as aulas. E com a mão doendo – há tempos
que não escrevia tanto.
No final das aulas, em vez de matar o tempo na praça como
fizera no dia anterior, achou melhor ir direto para casa. Estava
cansado, e aceitou correr o risco de voltar antes do início da noite.
Ao entrar na casa o costumeiro odor invadiu as narinas de
Kenan, mas o que realmente o perturbou foi ver o pai vagabundo
derretendo as próprias banhas no sofá, com uma garrafa de uísque
barato apoiada no peito.
— Veio vazer o guê agui, zeu… drassste? – balbuciou o
velho, que estava mais descabelado que um espantalho pós-temporal.
— Não denho zinheiro pra te empres…
— É claro que não tem, seu bêbado. Pega o da mãe pra

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


bancar essa tua vida escrota!
— Óia! – o homem tentou se levantar com o dedo em riste,
mas mal conseguia manter os olhos focados — Óia gomo vala
gomigo, zeu… molegue ingrado!
— Tsc… Tô cansado pra isso…
Sem paciência para discussões, Kenan subiu as escadas e
trancou-se em seu quarto, aliviado por saber que o progenitor não
teria a capacidade motora para segui-lo degraus acima.
Antes que pudesse deitar-se e ficar novamente relembrando
de cada traço de Lucio, ouviu um bater leve na porta. Pelo jeito
brando dos toques, sabia que era sua mãe.
Abriu.
— Ken? – Ela parecia feliz em vê-lo. Trazia nas mãos uma
bandeja farta. — Trouxe o almoço. É tão raro você vir cedo para
casa…
Ele bufou, sentindo pena e raiva da dedicação dela. Não se
achava digno daquele zelo. Pegou a bandeja e forçou um sorriso. Ela
merecia ao menos isso dele.
— Valeu, mãe… E já falei para não me chamar de “Ken”.
Você sabe que eu odeio.
— Eu sei, querido. Mas…
— Que seja – Kenan a interrompeu. — Não importa.
Ela afagou o ombro dele e saiu, fechando a porta. Estava feliz
pelo filho ter voltado a tempo de comer seu almoço. Por causa de
seus horários na casa de drinques e das longas ausências de Kenan,
raramente o via. Aproveitaria mimando-o com quitutes até dar a hora
do trabalho. Apesar de ser um rapaz forte e sadio, ela sempre achava
que ele estava magro demais.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


••♥••

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Quarta-feira

Lucio já estava acostumado a lidar com as encheções de saco


de Victor. Conhecia-o desde o primeiro colegial, quando tinha se
mudado para aquela escola.
Desde pequeno chamava atenção por onde passava, e para ele
isso era um verdadeiro inferno. Tudo o que queria era passar
despercebido pelos corredores, mas sua aparência excêntrica, com as
pequenas sardas e a cabeleira ruiva, traía essa vontade. Várias garotas
se aproximavam na esperança de ter uma chance com “o garoto mais
fofo da escola” – como Lucio já fora chamado um dia. Naquela
época elas o achavam perfeito em diversos aspectos: não as tratava
como objetos, não entrava nas rodas de moleques que mexiam com
elas, era educado, inteligente e dedicado aos estudos,
solteiro e… simplesmente lindo.
Mas, ainda no primeiro colegial, suas constantes recusas aos
convites delas começaram a ser notadas pelos alunos. Camila, a
representante de classe, era uma das rejeitadas. Foi ela quem
começou o rumor de que ele deveria ser gay, só porque não aceitou
namorá-la. Lucio nunca confirmou o boato sobre sua
homossexualidade, mas também não negou. Acreditava que, se
ficasse na dele, os falatórios morreriam – e também teve esperança
de que isso lhe trouxesse paz, já que as garotas foram parando de dar
em cima dele.
Mas pensar que tal boato lhe traria sossego foi um erro.
Foi na metade do primeiro colegial que Victor notou que ele
era um alvo fácil demais – mordia suas iscas como

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


ninguém –, e começou a infernizar sua vida. Falava todo o tipo de
coisas para incomodá-lo, para vê-lo mal. Dava pequenos tapas em
seu pescoço e xingava, ou esbarrava para que Lucio derrubasse o que
quer que estivesse segurando. Nada disso o machucava de verdade,
mas cada um destes atos ardiam no ruivo por dentro como se fossem
espadas embebidas em veneno invadindo seu peito.
O pior momento para ele aconteceu quando Victor resolveu
fazer uma chantagem, só por zombaria. Mas foi exatamente esta
brincadeira que levou o arruaceiro a descobrir que os boatos sobre
Lucio eram verdadeiros.
Desse dia em diante o garoto teve certeza de que o sossego
que tanto desejava nunca mais lhe sorriria.
Com o tempo foi se isolando ainda mais e adquiriu o hábito
de esconder-se sob os cabelos, ocultando o rosto angelical. Começou
a viver por detrás da cortina escarlate, onde subsistia em seu próprio
teatro, acorrentado nos bastidores da própria vida. As meninas que
antes o perseguiam começaram a menosprezá-lo. E graças às
gozações de Victor, todos começaram a tratá-lo como se fosse
transmitir alguma doença venérea só de chegar perto.
Cada olhada preconceituosa em sua direção era uma
punhalada, e a cada sessão com a psicóloga Lucio tinha mais certeza
de que era um deprimido repugnante. E odiava isso. Achava-se fraco
por ter sido diagnosticado com algo que ele sempre julgou ser uma
fraqueza infundada. Ao menos os exercícios de respiração e
visualizações estavam ajudando. Desde que entrara naquela
escola – desde que conhecera Victor, seu maior obstáculo no
exercício da paciência – não perdera o controle uma única vez.
Estivera invicto.
Mas a chegada de Kenan foi um abalo em seu palco, pois de
alguma forma sentiu que o moreno levantou suas cortinas vermelhas
e invadiu seu backstage, mergulhando em seuspensamentos
sem permissão.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Victor nunca tinha conseguido nada semelhante.
Deixar os introvertidos desconfortáveis era o passatempo
favorito do líder d’Os Sete. Mas Lucio era um caso à parte. Diferente
de todos, que tinham reações previsíveis, Lucio simplesmente ficava
quieto. Era a vítima perfeita, e o fato de sempre permanecer calado
não desanimava Victor. Ele nunca tinha sido verdadeiramente
agressivo – antes daquele dia, nunca havia espancado Lucio –, mas
costumava dar-lhe tapinhas na cabeça por ser uma forma perfeita de
irritá-lo. Victor sabia que algum dia o limite dele seria atingido.
E atingiu. Ele só não estava preparado para uma reação
daquelas. Esperava choro, denúncia à diretora, respostas
pseudointeligentes, alguma ameaça vazia ou qualquer coisa do tipo.
Mas um cuspe na cara era tão degradante que Victor não teria
imaginado que alguém tão apático tivesse a audácia de fazer.
Lucio sentia-se metade vitorioso, pela valentia, e metade
derrotado, pela burrice do descontrole. E agora, naquela manhã de
quarta-feira diante do portão da escola, olhava para o pátio em busca
de algo – ou alguém. Estava novamente em dúvida sobre suas
sensações. Só sabia dizer que era algum tipo de ansiedade. Não viu o
trio em nenhum lugar, e então seus pensamentos foram para o
novato. Uma rápida olhada revelava que ele não estava em nenhum
lugar por ali.
Passou a mão pelos cabelos, puxando algumas mechas para
frente. Com passos rápidos e curtos, ultrapassou o pátio enquanto
tentava distrair a mente com outra coisa – qualquer coisa – que não
fosse o novo colega de classe. Lucio queria ver Kenan e ao mesmo
tempo não queria. É como desejar conhecer o inferno, mas não gostar
do calor do fogo.
Ele sabia que tinha que parar com as dualidades infrutíferas,
mas as coisas estavam confusas em sua cabeça. Ao entrar
na classe – usando mangas longas para esconder as marcas
roxas – foi até uma dupla de garotas e pediu para que uma delas

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


trocasse de lugar com ele. Elas o olharam como se fosse lunático.
— Hãn… Vejam pelo lado bom: uma de vocês vai se sentar
com aquele novato – argumentou ele, odiando ser tratado como um
bicho estranho do zoológico. — Na segunda-feira eu vi vocês
olhando para ele o tempo. Acho que um tipo como ele vai preferir a
companhia de qualquer uma das duas em vez da minha.
— Como assim “você me viu olhando para ele o tempo
todo”? – perguntou a garota, cruzando os braços.
Em resposta, Lucio deu de ombros. Ela sabia que ele estava
certo, pois de fato não havia tirado os olhos de Kenan nos dois dias
anteriores. Viu ali uma oportunidade que não poderia ser perdida.
Olhou para a amiga com certa culpa e falou toda dengosa:
— Me desculpa, Sally, mas eu vou! Uma chance assim não
aparece sempre…
E lá foi ela, deixando Sally com cara de cão que foi
abandonado com o carrasco. Lucio era o carrasco, e sentou-se ao
lado dela sabendo disso.
Quando Kenan entrou causou alguns murmurinhos, desta vez
porque estava usando o uniforme branco da escola. O contraste dos
cabelos negros com o algodão cândido só o deixava mais chamativo.
O anjo de preto agora estava disfarçado de uma inocente ovelha, mas
ainda tinha os brincos e colares evidenciando que Kenan ainda era
Kenan.
Franzindo a testa, ele ficou de pé diante de uma mesa que não
era a sua, encarando um Lucio tenso e uma Sally fascinada. Estava
irritado pela troca de lugares.
— Você é o pior tipo de suicida que já conheci, Lucio
Corrêa – zombou ele, apoiando um de seus pés na mesa em cima de
um amontoado de sulfites grampeados, carimbando novamente a sola
de seu tênis em páginas perfeitamente alvas.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


“Isso mesmo, idiota… Pise nos xérox que fiz pra você”,
pensou Lucio, mas não pronunciou uma sílaba sequer. Apenas puxou
as folhas fazendo com que sujassem ainda mais, de propósito.
Guardou-as em um plástico para entregar a ele somente quando lhe
desse vontade. E apenas se lhe desse vontade. Em seguida, retomou
o péssimo costume de esconder o rosto em sua cortina rubra. Depois
do soco que deu em Kenan no dia anterior, tinha a certeza de que
mais um problema havia se somado à sua coleção já extensa. Sua
sorte é que ainda não tinha avistado Victor nem seus capangas em
lugar algum. Pensava que ao menos isso era um bom sinal.
Sally, ao lado de Lucio, se encolheu ao ser fuzilada por
Kenan. Ela ficou quase eufórica, terrivelmente tentada a tocar
naquela bela trança folgada que se desfazia sobre os ombros largos.
— V-você fica bem de branco… – gaguejou Sally. Lucio
concordou internamente, e sentiu uma borboleta intrometida
causando calafrios em seu estômago. Ele de fato estava lindo.
Mas Kenan não tinha ouvido o elogio. Estava mais
preocupado com seu colega de mesa que misteriosamente tinha
mudado de lugar.
— Que merda você está fazendo nessa mesa?
Lucio não respondeu, nem levantou sua cabeça. Estava com o
olhar fixo na caneta nova. O mesmo perfume chegava em suas
narinas, fazendo com que seu cérebro parasse de funcionar
logicamente. Ao seu lado, Sally aprumou-se na cadeira e ajeitou o
cabelo atrás da orelha.
— E-eu… – intrometeu-se ela, ansiosa por ter qualquer
diálogo com Kenan — É que o Lucio disse que você preferiria ficar
com uma de nós duas – e olhou para trás, piscando para a amiga que
aguardava o novato se sentar na cadeira vazia ao lado.
— O quê? Ele disse isso? Lucio, que droga cê tá usando,
hein? – Kenan estalou a língua, irritado. Juntou o material de Lucio e

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


agarrou o braço dele, puxando-o da cadeira que não lhe era própria.
Ignorou as tentativas silenciosas que ele fazia para se soltar e o
arrastou até onde a amiga de Sally aguardava. — Ô pirralha, este
lugar é dele. Vaza daí – ordenou, de mau humor.
Ela ficou olhando-o como se tivesse levado uma bofetada.
Com um bico enorme, pegou suas coisas e voltou para seu lugar,
empinando o nariz.
Sem nenhuma delicadeza, Lucio foi jogado de volta em sua
cadeira, junto com os cadernos.
— Kenan, seu ogro! Me deixa em p…
— Por que achou que eu ia querer ficar com uma delas? Por
acaso bateu muito forte com a cabeça ontem? – Kenan olhou para o
caderno de Lucio e notou que ele usava as coisas de Sally para
repassar a matéria do dia anterior. Bufando, puxou o caderno dela e
jogou-o com estrépito na mesa das garotas ainda chocadas. — Eu não
acredito que me preocupei em copiar todo esse lixo da lousa ontem
para o aluninho certinho não perder a porra da matéria!
Lucio sentiu o coração engasgar uma batida. Como assim,
preocupar-se em copiar para ele? Foi inevitável que abandonasse
temporariamente sua cortina ruiva e voltasse seus olhos castanhos
para os azuis felinos de Kenan.
“Não. Ele teria que copiar de qualquer jeito. Não foi ‘por
mim’ que ele fez isso. Minha cabeça já está caótica o suficiente. Não
preciso de mais bobagens para pensar”
Voltando finalmente para seu lugar, à esquerda de Lucio,
Kenan lembrou:
— E mais uma coisa, não se esqueça disso… – disse
enquanto apontava para o lugar onde recebera o soco fraco no dia
anterior. — Você tentou me bater ontem, mas precisa melhorar muito
a estabilidade desse pulso se quiser se defender de
verdade. – Aproximou-se propositalmente do pequeno querubim,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


agradecido por poder ver seu rosto. — Se quiser, posso te ensinar
algumas coisas.
Com a trança caindo de uma forma charmosa, observou
atentamente os olhos de Lucio, que agora estavam voltados
totalmente para os seus. Percebeu que o garoto estava tenso.
“Droga, por que isso te deixa tão gracioso?”, pensou Kenan,
dando um sorriso maroto ao imaginar a cara que Lucio faria se ele
roçasse agora a língua naqueles pequenos lábios rosados, no meio de
toda a classe. Em sua fantasia insana, o pequeno desfaleceria.
Saindo do torpor que o mais velho estava lhe causando, Lucio
olhou para as páginas novamente carimbadas que estavam agora
guardadas num plástico.
— Por que fez isso de novo? – Lucio ainda não sabia se
entregaria as cópias, por isso nem se deu ao trabalho de revelar que
eram para ele.
— Para ver isso – Kenan apontou para o rosto com sardas,
que agora tinha uma cômica expressão confusa.
— Isso o quê?
Bastou perguntar para receber um peteleco no nariz. A raiva
foi instantânea, e por pouco Lucio não desfere outro soco nele.
— Isso! – explicou Kenan, rindo. E antes de continuar,
abaixou o tom de voz, falando num sussurro — Essa tua cara de
bravinho… Você fica uma graça, e me deixa aceso.
— O QUÊ? – assustou-se Lucio, ouvindo como um eco em
sua mente a última palavra de Kenan. “E me deixa aceso… Aceso…”.
Seria esse o jeito de ele tirar sarro das pessoas? Preferiu voltar para a
segurança de sua cortina ruiva e criar uma falsa certeza de que tinha
entendido errado. Muito errado.
Kenan só conseguiu ver a ponta da orelha dele fervendo, mas
orgulhou-se por saber que conseguia lhe causar essas reações tão

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


facilmente: ele finalmente estava descobrindo os botões mágicos de
Lucio.
Quando as aulas começaram, ficou espiando de esguelha
enquanto o garoto usava suas próprias anotações para passar a
matéria do dia anterior para o caderno. Ao perscrutar a classe,
percebeu que o trio de baderneiros não tinha comparecido. Kenan
duvidava que o motivo do sumiço deles fosse o medo.
Durante o intervalo caminhou lado a lado com Lucio até a
cantina, questionando o paladar do garoto ao ver que tinha comprado
sequilhos sabor laranja. Em seguida seguiu-o de volta pelos
corredores, como se fosse uma sombra tenebrosa.
— E essa manga longa? – perguntou, caminhando com as
mãos nos bolsos. — É para esconder as marcas da surra que levou
ontem?
Lucio permaneceu calado. Apenas tentava andar o mais
rápido possível, na esperança de despistá-lo. Mesmo uniformizado, a
passagem de Kenan era notável demais para que os alunos não o
encarassem. Lucio sentiu-se péssimo ao voltar a ser o centro das
atenções depois de tanto tempo na furtividade. Não queria ser visto
andando com aquele tipo – nem com ninguém –, e tinha pavor do
que poderiam dizer pelas suas costas. A verdade é que a maioria
estava quase com pena, achando que Kenan o estava guiando para a
morte – ou simplesmente obrigando-o a esvaziar os bolsos dando-lhe
todo o dinheiro da merenda. Mas a realidade passava bem longe da
mais ousada suposição.
O mais velho não deixou de reparar como Lucio olhava
alarmado para os lados, certamente achando que Victor poderia pular
de repente de qualquer canto para terminar o que havia começado.
Ele foi e voltou da cantina silenciosamente, sem nem sequer olhar
para os alunos que encontrava pelo caminho. E também adotava o
padrão de sempre: fechava-se atrás dos cabelos e ia andando pelos
cantos, desviando ao máximo das pessoas.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


“Acho que se eu não estivesse andando com ele”, observou
Kenan, “seria quase como se não existisse”
Ao voltarem para a classe ainda deserta por causa do
intervalo, o aluno novato já estava intrigado o suficiente com seu
pequeno companheiro de mesa.
— Você fica sempre assim, sem falar com ninguém? Andando
pelos cantos que nem alma penada?
Aquela pergunta, somada ao fato de estarem sozinhos na
classe, pareceu ser a deixa para Lucio. Ele voltou-se para o outro,
que se esparramava na cadeira, e respirou fundo, como quem vai dar
um mergulho:
— Sim, eu fico! – Foi enfático. — E prefiro andar pelos
cantos como alma penada do que ter meio mundo olhando pra mim
como se eu fosse um esquizofrênico! É por isso que você está me
seguindo? Pra me intimidar ou algo assim? Olha aqui, se quer algum
tipo de troco pelo soco de ontem, ande logo. Prefiro que me bata de
uma vez do que ficar assim… Nessa expectativa agonizante! Então,
por favor, fala logo o que você quer de mim!
Kenan arregalou os olhos e deu um assovio longo.
— Caramba, é a primeira vez que vejo você falar tanto,
sabia? Achei que tivesse um número limitado de cinco palavras por
dia. Uma para cada chamada!
Lucio suspirou. Estava começando a se cansar daquele
joguete. Sentia sua força psíquica se exaurindo.
— Por favor, Kenan, ande logo… – implorou ele, colocando
os sequilhos de lado. — Dê o troco de uma vez para ficarmos quites.
O moreno gostou de ouvir seu nome dito naquele tom de
súplica. Dava-lhe ideias libidinosas.
— Só para você saber, aquilo que você deu não foi um soco.
O aperto de mão da minha mãe é mais forte. Mas… se quer o troco,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


terá o troco. E lembre-se: foi você quem pediu.
Kenan olhou para os lados, garantindo que não havia mais
ninguém na classe. Enroscou seus dedos nos fios de cabelos da nuca
de Lucio, puxando-os para trás rudemente. Deixou o pescoço dele
vulnerável, e o observou com atenção, com água na boca. Lucio
fechou os olhos, apertando as pálpebras, preparado-se para ser
agredido. Mas a intenção de Kenan era totalmente diferente: olhava
para as sardas que pontilhavam seu nariz e bochechas, e para a boca
rosada entreaberta.
Não conseguiria resistir àquela visão. Aproximou sua boca
vagarosamente dos pequenos lábios de Lucio, sentindo a respiração
morna e ofegante acariciando sua pele. O hálito suave que sentiu com
a proximidade era um bálsamo, e apenas intensificava o maldito
desejo que nascera no dia anterior. Precisava beijá-lo.
Antes que Kenan consumasse o ato, ouviu vozes próximas.
Levantou a cabeça e soltou rapidamente o cabelo daquele querubim
que há um segundo estava todo entregue. Amaldiçoou mentalmente
as garotas que entraram comentando qualquer coisa sobre a
reportagem de uma revista e empurrou Lucio para o lado com
grosseria, lamentando profundamente a interrupção.
O garoto suspirou aliviado, acreditando que tinha escapado
por pouco de algo doloroso. Kenan percebeu isso com certa angústia.
Quando Lucio olhou para ele estranhou vê-lo com os cotovelos na
mesa, e as mãos segurando a cabeça como se estivesse com algum
tipo de dor. Hesitou. Pensou em perguntar se ele estava bem, mas
acabou desistindo. O anjo-negro-de-branco parecia diferente, como
se brigasse com algo dentro de si.
— Eu quero fazer algo com você sim, Lucio. Mas não é te
bater, seu lerdo… – revelou Kenan. Era perceptível o fato de ele estar
frustrado com a chegada das garotas. — Não bato em quem não
merece.
— Então… o quê? Por que está me perseguindo? – perguntou

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


um Lucio cada vez mais confuso. As meninas curvavam-se sobre a
revista, sem dar atenção a eles.
Antes de responder, Kenan recostou-se na cadeira cruzando
os braços e olhou novamente para o garoto ao seu lado, pensando no
que diria. Gostou do fato de ele não demonstrar mais resistência para
levantar o belo rosto para olhá-lo.
“Eu poderia ficar admirando cada uma dessas pequenas
sardas por dias sem me cansar…”
Por fim, decidiu que contaria apenas meia verdade.
— Eu não conheço mais ninguém aqui. Nem na escola, nem
na cidade, já que me mudei esses dias. No lugar onde eu morava
tinha vários amigos, e estou estranhando um pouco esse exílio social.
Não me encaixo em nenhuma destas rodinhas e, depois de ver você
se embrenhando pelos cantos hoje, sei que entende do que estou
falando. – Kenan fixou o olhar num ponto neutro da lousa enquanto
Lucio o fitava, pendurado em cada uma das palavras que saiam
roucas e suaves de seus lábios. — A situação na minha casa não é
exatamente o que eu chamo de “um lar equilibrado”. Então, como
ainda não tenho dinheiro para cuidar da minha própria vida, tive que
ser arrastado pra cá junto com minha mãe. Já pensei em sumir, mas
preciso ficar até ter uma merda de certificado de conclusão na mão.
Eu meio que… Tsc! Eu meio que devo isso a ela.
Olhando em volta, viu que alguns alunos iam retornando,
ocupando seus lugares junto às mesas. Logo soaria o sinal que
iniciaria o segundo período de aulas. Com o canto do olho, ficou
surpreso ao ver que Lucio estava inclinado em sua direção, com os
orbes castanhos brilhando para ele com fascínio e curiosidade. Quase
riu daquela bela expressão infantil, mas foi exatamente isso que o
incentivou a continuar.
— Uma das poucas liberdades que tenho é a minha própria
moto, porque tenho a possibilidade de visitar de vez em quando
minha velha cidade para ver as únicas pessoas com quem já consegui

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


ter alguma amizade. Bem que eu queria usá-la o tempo todo, mas
gasolina não cai do céu, né? – ele riu do próprio comentário, mas
Lucio apenas o observava, sério, aproveitando aquele momento para
admirar cada detalhe daquele anjo-negro-de-branco que causava nele
um estranho torpor. A voz dele chegava aos ouvidos de Lucio como
música. — Sei que as pessoas tiram conclusões sobre mim, e estou
pouco me fodendo para isso, mas não sou o delinquente que todo
mundo pensa. – Ao revelar isso, Kenan viu uma única sobrancelha de
Lucio se levantar. — Que cara é essa? É verdade. Só não gosto de
ficar cheio de frescuras, fingindo ser amiguinho de todos. Não quero
mentir ao tentar ser quem não sou. Não quero atrair amigos
entediantes e cheios de máscaras, e isso é foda, pois limita a quase
zero o número de pessoas que se aproximam de mim. E ficar sozinho
é quase de enlouquecer… Não sei como aguenta.
Agora era a vez de Lucio ficar surpreso pela quantidade de
palavras ditas por Kenan. Ele não imaginava que o novato
carrancudo pudesse ter essa expressão tão serena, e menos ainda que
pudesse abandonar a superficialidade para falar de assuntos tão
particulares. Ao pensar melhor, Lucio admitiu para si mesmo que ele
realmente não parecia ser tão delinquente assim. Só era desaforado e
com um senso de humor duvidoso. E um pouco estúpido também.
Um anjo errante que agora vestia branco, mas continuava a usar
brincos pontiagudos e colares de crucifixos e caveiras prateadas.
Lucio sentiu novamente aquela borboleta invadir seu estômago, e
olhou para o lado tentando ignorar a constatação de como Kenan era
irresistivelmente magnético, mesmo sem fazer força para isso.
Balançou a cabeça para espantar os pensamentos, certo de que se
Kenan soubesse o esfolaria ali mesmo.
— Eu tenho que aguentar – declarou, percebendo que o olhar
do outro voltou-se imediatamente para ele. Isso quase fez Lucio
desistir de continuar, mas seguiu em frente. — Hum… Sabe… Ficar
sozinho. As pessoas se acostumaram a me evitar. O Victor e a gangue
dele já criaram um estigma ao meu redor, como se eu fosse
amaldiçoado ou coisa assim. Ninguém chega perto, e…

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Sinceramente, acho que prefiro dessa forma.
— Pfff… – riu Kenan, incrédulo pelo que acabava de ouvir.
— E quem eles são para mandar em você ou dizer como as pessoas
devem reagir em sua presença?
Neste momento a gritaria na classe já era mais do que notória.
O sinal tocou, e o restante de alunos que faltava acabou entrando. O
arrastar de cadeiras era azucrinante.
— Bem… – Lucio inconscientemente aproximou-se de
Kenan para que pudesse ser ouvido. — Eles são Os Sete. Vão fazer
questão de incomodar qualquer pessoa que se aproxime de mim.
Você viu isso ontem.
— Tô cagando para Os Sete. Eu vou me aproximar de você.
Quero ver eles tentarem impedir. Já aceitei o desafio ontem, lembra?
Lucio não tinha certeza de que tipo de proximidade ele estava
falando. Vendo a expressão confusa dele, Kenan deu uma risada e
retirou um cigarro que guardava no bolso da calça desfiada, já
sacando o isqueiro para acendê-lo com a outra mão. O ato era tão
automático que nem percebeu que fazia isso em sala de aula.
— Você ficou louco? – ralhou Lucio num sussurro,
arrancando o pequeno cilindro da boca dele e amassando-o na mão
antes que fosse aceso. Sequer notou a expressão de espanto nos olhos
de Kenan, continuando a bronca. — Estamos numa classe cheia de
gente, e logo o professor chega! Você tem minhocas no lugar do
cérebro? Posso levar uma detenção junto com você por causa disso!
Kenan de fato tinha agido por impulso, e por um lado estava
grato pela sensatez do colega de mesa. Por outro lado, ainda estava
pasmo com a ousadia. Nunca alguém tocou em seu cigarro sem
permissão, e ainda por cima para destruí-lo. Ninguém em sã
consciência teve a coragem de tentar, nem de brincadeira.
— Cara… você é realmente um suicida!

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Por que fica me chamando de suicida? – estranhou Lucio,
lembrando que era a segunda vez naquele dia.
— Por causa de coisas assim – explicou, apontando com um
dedo o cigarro destruído numa das mãos pequenas do outro. — Estou
começando a mudar minha opinião sobre você. Talvez não seja o tipo
que imaginei no primeiro dia, quando te vi aqui com ares de cachorro
de rua. Talvez… É, quem sabe? Talvez seja mais o meu tipo.
Kenan tinha praticamente falado consigo mesmo. Estivera
pensando em voz alta, mas não se importava de ter deixado escapar
aquilo. Afinal, sentia que era verdade.
— O que quer dizer com eu ser seu tipo? Eu não me pareço
em nada com você!
— Absolutamente, não se parece. Eu não disse que você é
lerdo? – caçoou Kenan, aproximando-se da orelha de Lucio, e depois
sussurrou, provocativo: — Eu quis dizer que você é o meu tipo.
Entendeu?
Ele foi interrompido pelo professor que entrava na classe
esbaforido, culpando o trânsito por seu atraso. Era a segunda
interrupção em menos de meia hora, e isso irritou Kenan. Parecia que
tudo conspirava para que ele não avançasse o sinal de alerta de
Lucio.
Abaixando a cabeça para que seus cabelos escondessem seu
rosto afogueado, Lucio começou uma batalha interna para decidir se
deveria aceitar aquilo que sua lógica estava gritando. Não conseguia
admitir que Kenan estivesse querendo dizer o que ele imaginava – e
intimamente se amaldiçoou por desejar que sua fantasia alucinada
estivesse correta.
“Kenan… a fim de mim? Bem que ele falou… Victor deve ter
batido muito forte em minha cabeça ontem”
Respirando profundamente, tão fundo a ponto de o último de
seus alvéolos se sobrecarregar de ar, Lucio decidiu que era hora de

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


parar de fazer conjecturas insanas. As coisas que aquele anjo errante
dizia estavam fazendo com que os miolos do querubim fritassem. Os
palpites que sua mente estava criando eram perigosos. Para seu corpo
e para sua alma.
Tentou focar sua atenção nas Funções Polinomiais de
Segundo Grau que eram passadas na lousa, mas as únicas parábolas
que conseguia fazer eram as curvas constantes de suas espiadelas
furtivas para Kenan. Parou ao perceber que os astutos olhos do outro
o flagraram.
“O que ele quis dizer com o fato de eu ser o tipo dele?”,
pensou Lucio. “Essa deve ser a forma dele de atormentar e
constranger as pessoas. Mas… Mas e se existisse uma mínima
chance de ele ter esse interesse, o que eu faria? Não! No que estou
pensando? Como posso ser tão burro?”. Lucio mordia a tampa da
caneta buscando colocar alguma ordem nos pensamentos enquanto os
exercícios de matemática eram passados para serem resolvidos em
classe. “Droga… É quase impossível prestar atenção na aula agora.
Este perfume… e… Ele está tão perto! E se ele realmente se
interessar por homens? E se eu realmente for o tipo dele? Mas que
inferno! Como sou ridículo! Devo ser de fato um suicida para ter
essas ideias a respeito de alguém como ele”
E passou um tempo assim, tentando se convencer de que
Kenan estava caçoando de sua cara. Estava se forçando a ignorar a
presença dele ao seu lado. Empenhando-se a fingir que aquele
perfume não o inebriava. Procurando fazer de conta que os olhares de
Kenan não faziam-no querer se virar e provar de seu sabor ilícito.
Quando soou o sinal da última aula Kenan saiu num pulo.
Olhou para Lucio e com uma piscadela cantarolou um “bye bye,
honey”. Tinha algo em mente.
“Eles certamente estarão me esperando na saída. Se eu for
rápido, talvez termine antes mesmo que Lucio pegue o ônibus para
casa”

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Ao sair pelo portão, confirmou suas suspeitas. Victor alisava
a cabeça raspada, recebendo-o com uma risada presunçosa. Os dois
capangas estavam logo atrás, como guarda-costas. Kenan fez questão
de encará-lo de perto, e se não fosse tão alto teriam tocado os narizes.
— Não vou ter pena de arrancar esses teus dentes – avisou
Victor.
— Vai querer mesmo dar showzinho aqui? – retrucou Kenan
olhando em volta, onde vários alunos que já se reuniam perto
deles. — Ainda estamos no portão da escola.
— Eu sei disso, vacilão! Não vai ser aqui. Me segue.
O tom de ordem não incomodou Kenan, pois sabia que teria a
chance de fazê-lo engolir as palavras em breve. Victor tomou a
dianteira seguindo por uma rua, e os dois colegas abobalhados
esperaram que Kenan fosse atrás do líder, pois serviriam de escolta.
Os alunos que conheciam cheiro de briga foram logo atrás, seguindo-
os a uma distância segura.
— Pensei que o restante do chiqueiro estaria
junto – comentou Kenan, enquanto caminhava tranquilamente pela
rua com as mãos metidas nos bolsos da calça — Onde estão Os Sete
porquinhos? Só vejo três… Devo começar a soprar suas casas?
Sem parar de andar, Victor cerrou os punhos com força.
— Logo vou fazer sua língua entrar por sua garganta junto
com cada piadinha, novato. Aí você vai ver quem sopra o quê de
quem. E depois de acabar com você pode ter certeza que vou atrás
daquele veado desgraçado, terminar o que comecei ontem. Então
aproveita, seu merda. Fale tudo o que te vem à cabeça enquanto sua
boca não sangra.
— Humm… falar tudo o que me vier à cabeça… Posso
mesmo? – riu sarcasticamente segurando o queixo, pensativo. Seguia
Victor de perto. — Então tá. Uma coisa que me deixa curioso é o
motivo pelo qual vocês enchem tanto o saco do garoto. Por acaso

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


você tem algum tipo de fetiche com menininhos, e tem medo que
alguém descubra, Vitinho? Tem vontade de comer ele, mas falta a
coragem de dizer porque sabe que vai levar outra cuspida na cara?
Victor virou-se tão rápido que chegou a assustar Kenan.
Ainda não tinham chegado no local planejado mas, mesmo assim,
segurou a gola do uniforme branco do rival insolente – e muito mais
alto que ele – e a torceu. Tinha achado que não seria possível odiar
mais o novato, mas viu que estava errado.
— Tome cuidado com sua língua se não quiser perdê-la,
playboy de merda – vociferou, respingando gotas de saliva no
pescoço de Kenan. — Eu odeio veado, e é por isso que acho que
aquele putinho não merece viver em paz. Gente como ele tem que
sangrar até aprender a ser homem de verdade.
Victor tremia de raiva.
— Oh… E imagino que você saiba muito bem o que é ser
homem “de verdade” pra querer sair por aí ensinando aos
outros, né? – Kenan estava sério. Desvencilhou-se da mão de Victor
em sua roupa e voltou a andar, sendo seguido pelo outro. — Sinto lhe
dizer, mas do jeito que você fala parece que o garoto ameaça sua
masculinidade, Vitinho. Por acaso tem medo de…
— Cale a boca!
— … admitir para si mesmo? Não consegue aceitar o fato de
que um homem possa ser tão tentador como ele? Ou talvez não
consiga admitir o fato de que um homem possa ser feliz com outro
homem? – Kenan inclinou a cabeça para ver a cara que Victor fazia, e
riu debochado. — Rá! Aposto que se masturba imaginando ele sem
roupa e gemendo de quatro, todo gostosinho só pra você.
Essa última foi só para finalizar a provocação, pois ele torcia
intimamente para que Victor não tivesse esse tipo de fantasias com
Lucio. Era Kenan que tinha.
Uma veia no pescoço de Victor saltava, pulsante. Ele tinha a

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


testa e o nariz tão enrugados que chegava a parecer um pitbull
rosnando. Kenan captou um músculo no braço dele que se retesava e
previu o murro, desviando com facilidade. O líder de orgulho ferido
desequilibrou-se, e Kenan aproveitou para chutar-lhe as pernas,
derrubando-o no chão. Os dois capangas estavam atônitos e com os
olhos arregalados, pois fora tudo muito rápido. Victor se levantou e
urrou de raiva. Estava sendo visto por dois de seus subordinados em
uma situação degradante. E pela segunda vez.
Quando os dois comparsas despertaram do susto inicial
partiram para cima de Kenan, mas o movimento dele foi bem mais
rápido: primeiro prendeu os pulsos deles, cada um com uma mão,
torcendo-os nas costas dos rapazes. Em seguida aplicou a pressão
necessária para que a dor no braço de ambos se tornasse insuportável,
fazendo-os gritar. Victor, odiando-os por serem tão imprestáveis,
aproveitou que as mãos de Kenan estavam ocupadas e partiu para
cima dele como um touro que se precipita para o capote.
E, assim como um toureiro, Kenan já esperava a reação do
líder da pequena gangue. Usando os dois como apoio, conseguiu
lançar um chute que atingiu o peito de Victor em cheio, derrubando-o
novamente. Neste momento um agrupamento de alunos já se formava
na rua.
— Três porcos de uma vez. Foi fácil – divertiu-se Kenan,
torcendo mais ainda os braços deles.
— Para com isso, cara! Me solta, por favor… – implorou o
mais baixo, já sentindo o ombro prestes a ser deslocado.
— Fica quieto, imbecil! – ordenou Victor, que se levantava
novamente, limpando o sangue que escorria do corte que tinha feito
na boca ao bater de cara no chão. Ele sabia que a súplica de um
integrante da gangue colocaria todos Os Sete numa situação
vergonhosa. Principalmente com aqueles alunos assistindo.
Vendo os dois rapazes choramingando de dor, Kenan os
soltou. Olhou para Victor, que já estava de pé, e abriu os braços,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


desafiando-o a uma nova investida.
— Não queria me bater? Vocês estão em três, e eu sou só um!
O plano de Victor era outro. Queria ir para um campo que
tinha por perto, onde os outros quatro os estavam aguardando, e
juntos Os Sete espancariam Kenan. Mas as coisas desandaram antes
de chegarem lá. Olhando para o lado, Victor percebeu que cerca de
dez alunos assistiam. Achou melhor sair dali antes que dessem mais
vexame. Sabia que não teria como enfrentá-lo apenas em três, então
precisava pensar rápido.
Falou para Kenan, mas num tom alto para que todos
ouvissem:
— Não tô a fim de te quebrar hoje, novato. Mas amanhã a
essa hora você estará a caminho da enfermaria! – E virou-se para os
alunos que assistiam — Hey, vocês! Digam a seus amigos que
amanhã vai ter um show no campinho! Aê, playboy de merda, se
você amarelar eu vou te buscar pelos cabelos. E aquele boiola
também tá convidado. Aquela princesinha inútil precisa aprender o
que é apanhar de verdade.
Dando uma risada insana e forçada, ele se mandou junto com
os dois colegas, que seguravam os braços numa resignada expressão
de dor.
Quando encontrou-se sozinho, Kenan apoiou as mãos nos
quadris, achando graça. Tinha previsto tudo: Victor aguardando-o na
saída, Victor mordendo cada uma de suas iscas… E como cereja do
bolo, Victor não aguentando apanhar na frente dos outros. Mas o
melhor tinha sido reservado para o dia seguinte, no tal
campinho – e desta vez, com uma plateia decente e um número
respeitável de adversários.
Voltou pelo caminho que fez, indo parar na praça diante da
escola. Queria fumar alguns cigarros antes de arriscar voltar para
casa. E, com algum divertimento, viu que sua última previsão se

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


consolidou. Lucio só havia saído agora da escola, com os cadernos
agarrados junto ao peito.
Kenan escondeu-se atrás de uma árvore e observou como o
garoto andava apressadamente, sempre olhando para os lados à
procura do algoz. Já no outro lado da praça, aguardando no ponto,
pareceu surpreso por não ter sido abordado pelo trio.
“Parece um filhote assustado”, pensou ele, agachando e se
recostando na árvore enquanto Lucio entrava no ônibus que havia
chegado.
Permitindo-se uma fantasia rápida, Kenan imaginou-o
debaixo dele, entregue e com as pernas espaçadas, implorando para
ser possuído sem pudor. Enquanto segurava um cigarro com uma das
mãos, usou a outra para masturbar-se ali mesmo, num ponto oculto
da praça.
••♥••

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Quinta-feira, manhã

Naquela manhã Lucio estava num excelente estado de humor.


Não sabia se a felicidade era por não ter topado com Victor em
nenhum momento desde a terça-feira, ou se aquela repentina euforia
vinha do fato de ver Kenan adentrar a classe como um anjo que traz
consigo toda a luz ao mesmo tempo em que desperta sua própria
escuridão. Na tarde do dia anterior tinha pensado muito nele, e agora
era como se vê-lo entrando lhe confirmasse o quanto estava
interessado.
— Hãn, sabe… a Sally até que tinha razão – arriscou Lucio
assim que Kenan sentou-se ao seu lado.
— Não sei quem é Sally, nem em quê ela teria razão.
— Aquela ali – apontou para uma cadeira mais à frente,
cochichando. — A que disse, ontem, que você ficava bem de
branco…
Entendendo o elogio indireto, Kenan disfarçou o júbilo
olhando para o lado. Não queria que Lucio notasse pois pretendia ver
até onde ele poderia se estender.
— Tsc! Não é por opção própria. Esta droga de escola não
tem outro uniforme além dessa coisa desbotada.
— Mas ficou bem em você. Sei lá, você está…
bonito. – Murmurou a última palavra. Quando percebeu o que tinha
acabado de dizer, agitou as mãos em uma negativa — Digo, está
legal, só isso! Quero dizer, não ficou tão ruim. Eu…

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Lucio Corrêa, acho melhor calar a boca – disse Kenan,
achando graça daquele constrangimento.
Para disfarçar o embaraço Lucio remexeu seus cadernos e
colocou o de Kenan, que havia usado para copiar as matérias de
terça, sobre a mesa. Resolveu entregar também as cópias que tinha
guardado num plástico.
— Olha… valeu pelo caderno. E aqui estão os xérox que
você pediu. Tudo o que foi passado desde o início deste ano está
aqui.
Kenan olhou-o, sério. Não havia acreditado que Lucio de fato
faria aquilo por ele – mas fez. Estendeu sua mão, e estava quase
tocando o braço fino, oculto pela manga longa, quando percebeu que
as folhas estavam todas sujas.
— Ei, que porra de marcas são essas?
Apontou a própria pegada numa das páginas.
— Você pisou nelas de novo ontem, antes de me arrastar pra
minha cadeira, lembra?
— Ah, é! Que merda.
Ele não estava bravo, apenas sentindo-se um babaca. Se
soubesse que as folhas eram para ele, não teria pisado. E sabia que
essa constatação só fazia com que sua babaquice ficasse ainda mais
proeminente.
Enquanto as aulas não começavam, Lucio falou:
— Sabe, eu esqueci de te agradecer. Devia ter feito isso antes.
— Hein?
— É que desde terça eu não vejo o Victor e os outros. Eles
não apareceram na praça para me azucrinar. Eu poderia jurar que
depois de você ter me ajudado eles estariam me esperando, ou coisa
assim. Não vieram ontem, e nem hoje também! – Lucio olhou em

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


volta, como se quisesse se certificar de que seus olhos não lhe
pregavam uma peça. — Acho que você meteu medo neles no beco da
escola, lá no paredão. Faz tempo que não me sinto assim… Sei que
pareço bobo, mas é como se eu não tivesse mais que ter medo deles,
entende?
Riu do próprio comentário, com uma confiança que lhe
parecia nova. A verdade é que ele não ficou sabendo da pequena rixa
do dia anterior.
Aquele era o quarto dia desde que Kenan vira Lucio pela
primeira vez – o terceiro desde que se encantara com seu
rosto – e estava tendo outra surpresa. E era aquele sorriso. Não um
riso constrangido ou forçado, mas um sorriso natural, verdadeiro. O
pequeno querubim parecia brilhar ainda mais com as mechas
alaranjadas movendo-se junto com ele.
Provocá-lo para que ficasse zangado era interessante, mas ver
essa risada pareceu uma lufada de ar fresco. Um Lucio irritado, um
Lucio envergonhado, e agora, esse novo Lucio. Kenan decidiu que
causar essas expressões se tornariam uma espécie de meta diária.
— Todo mundo sentado! – berrou o professor, diante da
classe. Lucio e Kenan se surpreenderam, pois estavam tão distraídos
que sequer tinham percebido o sinal.
Cochichando para não ser ouvido, Kenan continuou o
assunto:
— Talvez aqueles cuzões tenham se cansado de você. – Ele
sabia que aquilo estava longe de ser verdade, mas estava se
divertindo com as direções que a imaginação de Lucio tomava. — De
qualquer maneira, você é entediante mesmo. Eu mesmo já estou
enjoado. – E fez um gesto com o dedo na garganta, imitando uma
ânsia exagerada.
— Eu tô falando sério – continuou Lucio, ainda com o riso no
rosto. — Isso nunca aconteceu antes. É como se eu estivesse quase

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


livre deles.
— Quase?
— É, bem… Nunca se sabe quando eles vão resolver
aparecer. Será que o Victor desistiu da escola?
O professor jogava pequenos pedaços de giz para chamar a
atenção de alguns alunos que insistiam em ficar de pé, tagarelando.
Ainda aos sussurros, Kenan aproximou-se mais de Lucio.
— Por que você simplesmente deixa eles te incomodarem
tanto?
Com um arrepio, Lucio sentiu o calor do hálito dele roçando
sua orelha. Instintivamente, aproximou-se alguns milímetros para ter
mais daquela sensação. A desculpa que deu à sua consciência era a de
que precisava falar mais baixo.
— Se eu me deixar levar, posso fazer uma bobagem.
— Você? Uma bobagem? Mal conseguiu proteger sua cabeça
naquele dia!
— É que… na sétima série, quando eu ainda estava numa
outra escola, recebi uma advertência por quebrar uma régua na
cabeça de uma garota que ficava puxando meu cabelo, e outra
advertência por ter dado a rasteira mais épica da minha vida num
cara que tentou me derrubar… – Lucio pareceu quase orgulhoso
desta última.
— Mas isso qualquer um faz – interrompeu Kenan.
— … E na oitava fui finalmente expulso por ter quebrado um
lápis dentro da perna de um cara que estava exagerando nas
provocações. Tiveram que levá-lo para o hospital. – Lucio parou.
Achou que tinha falado demais. — Eu… Naquela época ainda não
fazia terapia. Mas hoje sei me controlar.
Kenan estava de olhos arregalados. Aquele garoto não parava

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


de surpreendê-lo a cada dia. Lucio era, definitivamente, o seu tipo.
Não por dar rasteiras épicas ou por sair espetando pernas por aí, mas
porque estava demonstrando não ser nada daquilo que imaginara a
princípio.
— Acabo de mudar de ideia – revelou Kenan, como se
descobrisse um segredo tenebroso. — Você não é um suicida, é
homicida! E fique longe de mim com essa caneta.
O rosto de Kenan estava realmente perto. Muito perto. Lucio
riu mais pelo nervosismo do que pela piada da caneta.
Um rapaz que se sentava atrás deles espichou o pescoço e
perguntou, curioso:
— O que vocês tanto falam aí? Nunca vi o Lucibicha
conversar tanto com alguém. Cuidado pra não se contaminar com a
veadagem dele, novato!
Como ele falou alto, algumas pessoas em volta riram. Lúcio
não se defendeu. Apenas olhou fixamente para seu caderno e trincou
os dentes. Soltou a caneta nova para não parti-la em duas e uniu as
mãos sobre o colo, usando a esquerda para apertar a direita.
O rapaz ainda estava entusiasmado com a reação causada em
alguns colegas, e não percebeu o olhar perigoso que recebia. Kenan o
encarou como se pudesse asfixiá-lo com o pensamento. Ainda virado
para trás, sentiu algo bater em seu pescoço. Virou-se e viu o pequeno
toco de giz que foi jogado em sua direção.
— Senta direito, caralho! – gritou o professor na frente da
classe, já ficando vermelho pelo inútil esforço em manter a classe
quieta. — Eu vou ter que dar suspensão para quem falar ou se
levantar sem minha permissão!
Kenan aproveitou enquanto o professor mirava a segunda
metade do giz em outro aluno, e segurou a gola do uniforme do
colega de trás que o tinha feito levar bronca.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— É melhor morder essa língua podre, senão vai descobrir
por que o Vitinho não apareceu hoje.
— Ah, é. Eu ouvi os boatos – retrucou o outro, sem se
intimidar. — Ele ficou com pena de você ontem. Mas hoje não vai ter
colher de chá, novato. E pode ter certeza de que eu estarei lá pra ver
o show.
Mesmo estando com a gola da camiseta presa pelo punho de
Kenan, ele riu. Mas desta vez ninguém acompanhou. Não se
atreveram, e Kenan até ouviu alguém próximo pedir para que o rapaz
ficasse quieto.
Um apagador veio voando na direção deles, e atingiu o ombro
do outro, fazendo Kenan soltá-lo pelo susto. O professor gritou mais
alguns impropérios e finalmente resolveu retomar o livro e continuar
a aula. Resmungou algo sobre ter perdido muito tempo tentando
fazer a classe prestar atenção nele.
Quando Kenan já estava endireitado na cadeira, Lucio
sussurrou:
— Eu não estou sabendo de nada… O que aconteceu com
você e o Victor? De que show ele tá falando?
— Não tem show nenhum. E não enche meu saco.
— Mas…
Lucio parou quando percebeu o olhar frio de Kenan. Talvez
estivesse se acostumando mal ao anjo das trevas. Esquecera-se
temporariamente de que ele era alguém a se evitar, e de que ele
estava tentando ludibriá-lo com aquelas coisas sobre “ser seu tipo”.
Tinha que lembrar a si mesmo de não sentir-se muito à vontade com
ele. Calar a boca era a melhor opção. Apoiou a cabeça nas mãos e
tentou, durante todas as aulas, captar aqui e ali algum comentário.
Durante o intervalo não foi seguido por Kenan até a cantina.
Ouviu algumas conversas alheias sobre a briga que teria entre Kenan

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


e Os Sete depois das aulas. De quebra ouviu algo sobre Victor ter
tido pena do novato, poupando-o de um vexame antes da hora.
“Duvido… Kenan já me mostrou que não apanharia fácil
daqueles três. Mas por que ele ficou daquele jeito quando perguntei?
Se a escola toda sabe, não teria motivo para esconder de mim”
Ao voltar para a classe, deixou metade de seu pacote de
cookies com gotas de chocolate na mesa de Kenan.
— Se os boatos que estou ouvindo são verdadeiros, você
deveria ao menos comer alguma coisa antes de…
Kenan murmurou um “valeu” e acabou com o pacote sem
dizer mais nada. Lucio não o conhecia bem, mas imaginou que ele
estivesse preocupado. Brigar com Victor e os dois panacas era uma
coisa. Agora, enfrentar sete pessoas…
O fim do horário letivo chegou e Kenan continuou sentado
enquanto Lucio organizava os cadernos.
— Hey, novato! – gritou algum aluno desconhecido da porta.
— Vou te esperar lá no campinho. Quebra a cara daqueles otários!
Logo atrás, no corredor, alguém passou tirando sarro, dizendo
que não havia chance de um novato vencer Os Sete. Kenan mostrou
o dedo do meio, e continuou sentado até que a classe estivesse vazia,
com exceção dele e do companheiro de mesa.
Lucio demorou ainda, fazendo anotações e fingindo estar
concentrado em alguns pontos da matéria. Tinha plena consciência de
que estavam ambos sozinhos, e isso causou em seu peito um
curto-circuito.
— Você sempre enrola tanto assim para ir embora? - quis
saber Kenan, irritado com as viradas de páginas de Lucio.
— Aham… Virou hábito, acho. Pra não encontrar o Victor na
saída.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Mas ele te espera na praça… De que adianta?
— Como eu disse, virou um hábito.
— Bem, acho que esse hábito não vai ser útil agora. Vamos.
Você vai pegar seu ônibus e eu vou para o campo acabar logo com
essa palhaçada.
Kenan segurou o braço de Lucio e puxou-o na direção da
porta.
— Me larga! Eu quero assistir!
— Assistir o que? Não vai ter nada pra ver. Vai embora.
Lucio enrugou a testa. Aquilo era estranho.
— Kenan… o que tá rolando? O que eu não posso saber?
— Não tem nada que você não possa saber. É uma briga entre
mim e eles. Só isso.
— Então… por que quis evitar que eu soubesse? Por que não
posso ir?
Kenan bufou, murmurando um “que saco” quase inaudível. Já
tinha imaginado que ele pudesse fazer esse monte de perguntas, e
isso era irritante.
— Foi ontem. Disseram que depois de mim iriam te pegar. E,
de boa, eu tô acostumado a bater e apanhar. Mas não vou conseguir
segurar todos eles se forem para cima de você. Eu sabia que iria
querer assistir, por isso não comentei nada. Seria um estorvo ter que
me preocupar com o rabo de mais alguém além do meu. Então… só
vá embora pra sua casa, ok?
Lucio não respondeu nem uma coisa, nem outra. Apenas
ficou ali, parado, e Kenan identificou nele uma nova expressão:
preocupação. Verificando se não havia mais ninguém na classe, deu
um passo à frente, ficando próximo a Lucio.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Me deseje sorte, pelo menos.
— Ahh… certo. Vai lá, quebra a cara deles! – exclamou
Lucio sem muita convicção enquanto dava uns tapinhas de incentivo.
— Não assim! Faz direito…
Kenan puxou o queixo de Lucio com os dedos e beijou-o de
leve. Manteve seus olhos semiabertos e viu os de Lucio se
arregalarem enquanto o pequeno corpo congelava. Ele não retribuiu o
beijo, tamanho era o espanto. Kenan passou a ponta da língua na
boca rosada, deu novamente um selinho naqueles lábios macios e se
afastou fingindo inocência no sorriso.
Lucio estava em choque. Deu alguns passos para trás e
esbarrou em uma cadeira, caindo sentado no chão. Estava muito
vermelho.
— Me deseje sorte – disse Kenan uma segunda vez.
— Bo…a… s… r… te…
Ele saiu antes que Lucio conseguisse desengasgar as palavras.
Se ficasse ali por mais tempo agarraria o ruivo e se esqueceria
completamente do compromisso com Victor e o restante. E o careca
provavelmente estaria esperando no portão da escola, mais uma vez,
para garantir que não furasse. Enrolou as folhas grampeadas do xérox
de Lucio e colocou-as no bolso de trás da calça.
No lado de fora, bastou pisar na calçada para que Victor o
abordasse, como havia previsto novamente. Ele não estava com a
cara de deboche de sempre, mas sim com uma feição séria. E estava
sozinho, o que era novidade.
— Você tem um encontro marcado com Os Sete,
lembra? – disse ele, impassível.
Kenan olhou em volta teatralmente, com uma das mãos
sombreando os olhos.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Onde está o resto do chiqueiro?
— Aproveite para falar enquanto pode. Daqui a pouco você
não vai conseguir nem implorar para eu parar de te bater – zombou
Victor, andando ao longo da rua da escola, sendo seguido de perto
por Kenan e a multidão que serviria de público para aquela tarde. E
já começavam a gritar em coro “Briga! Briga! Briga!”.
Desta vez Kenan não o provocou durante o caminho.
Chegaram num terreno baldio onde os outros seis já estavam
esperando, formando um semicírculo. O local tinha um gramado
amarelado que era periodicamente usado para partidas de futebol.
Mas naquele momento havia somente Kenan, Os Sete, um grupo de
espectadores, e alguns entulhos de móveis velhos descartados.
O coro continuava a entoar “Briga!”, e seis dos sete
integrantes fecharam o semicírculo em volta dos dois, como se
delimitassem uma arena onde Victor seria o primeiro oponente de
Kenan.
— Agora você não vai me pegar de surpresa, novato. Quero
ver se consegue ser tão petulante quanto foi ontem.
O primeiro movimento veio de Kenan, que não estava com
paciência para conversas. Seu chute alto voou na direção da cabeça
de Victor, surpreendendo-o, mas não o acertando.
— Fica esperto, Victor – avisou um de seus colegas.
— Eu sei, caralho!
Começaram a dar socos e a se testar. Nenhum deles tinha um
estilo definido, apenas desferiam golpes a esmo, tentando acertar ao
mesmo tempo em que defendiam como podiam. Alguns alunos
vibravam quando Kenan acertava o golpe, e isso aumentava sua
confiança, deixando Victor com mais raiva.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


•••

Na classe, ainda em estado de choque, Lucio repassava um


milhão de vezes o que tinha acabado de acontecer. Quase duvidava
de sua memória.
“O Kenan… me beijou…”
Era a primeira vez que sua boca tinha sido tocada por um
homem daquela maneira, e sentia que seus lábios ainda estavam
úmidos. Seu coração parecia um tambor enquanto seu estômago
continha em si a Era Glacial. Só então começou a perceber que
sequer abrira a boca para receber o beijo corretamente.
— Como eu posso ser… tão… burro? – murmurou sozinho,
em pé no meio da classe. — Burro! Burro! Ele estava bem aqui, me
beijando! O cara mais… lindo… e eu… Aaargh! Burro!
Teve vontade de arrancar cada fio de cabelo da cabeça. Em
seguida, quis correr atrás de Kenan e beijá-lo corretamente, mas nem
sob ameaça de morte faria uma cena vergonhosa dessas.
“Mas… aconteceu de verdade”, pensou ele, passando a língua
nos lábios para trazer para dentro de sua boca o resquício de saliva de
Kenan. Sentou-se sobre a mesa, rindo sozinho. “Aconteceu de
verdade!”
Aquela euforia estava fazendo sua cabeça girar. Tinha até se
esquecido da teoria de que Kenan estava apenas jogando com ele. E
quase se esqueceu também o motivo de ter sido beijado.
— A briga!
Pegou seus cadernos e saiu pela porta, ganhando o pátio.
Estava mais vazio que o normal, pois os que costumavam ficar até
mais tarde tinham acompanhado o fluxo até o campo.
Enquanto corria até o local, franziu as sobrancelhas e cruzou

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


os dedos de ambas as mãos. Kenan podia ser bom, mas não contra Os
Sete. Não se todos resolvessem atacá-lo de uma vez. Não tinha
nenhuma ideia do que faria ao chegar lá, mas não podia
simplesmente ignorar e ir para casa, como se não se importasse.
Kenan poderia ser um imbecil e falar asneiras com uma frequência
absurda, mas ele se importava.
Ao chegar lá, uma multidão de alunos já estava distribuída
dentro e fora do alambrado. Foi empurrando a todos, abrindo
caminho no mar de gente que gritava e torcia. No momento em que
se aproximou da fileira VIP percebeu que Kenan estava,
surpreendentemente, dando conta de todos de uma só vez.
Quando um se aproximava pela esquerda ele dava uma
rasteira ao mesmo tempo em que socava o estômago do outro que
vinha pela direita. E o que avançava pela frente era pego
inesperadamente por uma cotovelada. Levava um murro
periodicamente, mas isso servia apenas para revelar o autor da
agressão, deixando Kenan mais atento.
Ele demonstrava ser experiente em se defender de gangues.
Cada um d’Os Sete estava tendo dificuldades. Seu uniforme novo
agora estava sujo de terra e suor. O cabelo negro que era sempre
preso pela trança frouxa tinha se soltado, caindo sobre seus olhos
predadores.
No rosto, nenhum arranhão. Apenas um sorriso sádico
e gotículas que brotavam de seus poros.
Um dos integrantes da gangue tinha se desgarrado sem que
Kenan notasse. Ele foi até o entulho e escolheu uma tábua dentre
tantas outras. Algumas garotas que estavam ali só para gritar “Kenan,
sai comigo” viram o perigo, e avisaram em um coro estridente.
Kenan se aprumou e viu seu agressor se aproximando. Se defendesse
no momento certo, não teria problemas.
Lucio, que tinha acabado de conseguir uma visão melhor,
sentiu o pavor tomar conta ao ver aquilo.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Kenan, cuidado!
Foi um erro.
Seu grito não foi mais alto que o das garotas mas, para
Kenan, era como se não houvesse nenhum outro som. Ele desviou
sua atenção para Lucio, sobressaltado. Foram os dois segundos
necessários para que a tábua atingisse em cheio sua têmpora
esquerda, derrubando-o no chão. Depois disso a gangue conseguiu
dominar Kenan, que agora estava atordoado e com um pequeno corte
na cabeça.
— Seu idiota! – ralhou uma das garotas. — Distraiu ele!
Sim, ele era tinha sido um idiota, e sabia disso.
O público que antes torcia para Kenan urrou de excitação.
Para eles, não importava quem estava ganhando ou perdendo. O
interessante eram as reviravoltas que uma briga de rua sempre trazia.
A única coisa que queriam era ação, e que se fodesse quem apanhava
ou quem batia.
— Não! Victor, para com isso! – implorou Lucio, avançando
para dentro da área de risco e desviando de um ou outro golpe que
vinha a esmo em sua direção.
Como o líder estava muito ocupado chutando as pernas de
Kenan, quem viu a aproximação de Lucio foi um d’Os Sete.
— Hey, Victor! Olha só quem chegou pra apanhar também…
— Ora, mas que surpresa… – cantarolou Victor, limpando o
suor empoeirado do rosto enquanto Kenan, ajoelhado, era
firmemente preso por três trogloditas. — Está preocupado com o
novato, Lucibicha? Será que vocês…
Victor estudou Kenan, que tinha um olhar mortífero apesar do
sangue que escorria de sua cabeça.
— Sai de perto dele, desgraçado… – sibilou Kenan,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


perigosamente. Mas seu efeito intimidador não funcionava quando
estava aprisionado e ferido.
Com um riso de compreensão, Victor foi até Lucio e
agarrou-lhe os cabelos. Chutou a parte de trás de seus joelhos para
que se prostrasse no chão.
— Acho que agora entendi tudo, novato… Não quer que eu
toque na sua putinha… é isso? Não imaginei que você também
gostasse dessas merdas.
Alguns ali riram da situação. Victor, para provocar Kenan,
enfiou o nariz na curva do pescoço de Lucio e aspirou seu perfume,
fingindo um êxtase exagerado. Para o ruivo, foi uma sensação
horrível. Preferia ter uma tarântula passeando em seu corpo do que
sentir Victor fungando-o novamente.
— Larga ele… – Kenan resmungou com dificuldade, ainda
aprisionado de joelhos, sentindo o estômago dolorido. — Solte-o
agora… e lute como homem! Isso que você está fazendo… é coisa de
moleque.
Tossiu ao terminar de falar. Lucio, sentindo as raízes de seus
cabelos doerem sob os dedos de Victor, ofegou enquanto via a densa
vermelhidão que escorria da têmpora de Kenan. O corte não era tão
profundo, mas o local tinha fluxo relativamente alto de sangue. Lucio
sabia que a situação só tinha chegado àquilo por sua culpa.
— Acho que tem um erro em seus cálculos,
Kenanzinho – caçoou Victor, puxando ainda mais os cabelos
de Lucio. — Para eu lutar de homem para homem preciso de uma
coisa… Um homem de verdade!
Ao dizer isso, puxou a cabeça de Lucio para trás com força,
fazendo-o olhar para cima, e cuspiu no rosto dele. Gargalhou, sendo
acompanhado praticamente só de sua gangue. Poucos eram os alunos
que estavam se divertindo agora. Um ou outro tomava coragem e
dizia “acho que já chega, Victor”, mas ele preferiu dar ouvidos aos

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


que apoiavam o linchamento.
— Victor, é comigo que você veio brigar – conseguiu falar
Kenan, depois de respirar fundo para pegar o fôlego que lhe
faltava. — Deixe-o de fora.
Seus olhos se encontraram com os de Lucio. Ele estava bravo
pela desobediência, mas de alguma forma a preocupação do garoto
massageava seu ego. Viu que Lucio tinha os olhos rasos d'água, e
ouviu-o sussurrando:
— Me desculpa…
— Cale a boca, moleque – repreendeu Victor, chacoalhando a
cabeça dele. — A conversa ainda não chegou no puteiro das bichas.
E, agora que você está aqui, vai ver o novato apanhar até os dois
aprenderem. Aqui, segura ele!
Com toda a grosseria possível, Victor atirou Lucio aos pés de
um de seus comparsas. Na mesma hora o rapaz pisou no braço fino e
o torceu, apoiando a outra mão para que Lucio ficasse com a cabeça
colada ao chão.
Ainda imobilizado por três valentões, Kenan sentiu-se ser
levantado. A velocidade do ato causou-lhe vertigens, e antes que se
recuperasse sentiu socos repetidos na barriga. Victor tinha um olhar
maníaco, e se deliciava em ver o sofrimento daquele que o
humilhara. Os frequentes golpes no estômago fizeram com que
Kenan vomitasse, respingando na camiseta e no braço de seu algoz.
— Seu filho da puta, olha só o que fez! Que nojo! – berrou
Victor, aumentando a velocidade dos golpes. — Cretino asqueroso!
Está gostando? É bom ser humilhado na frente de todo
mundo, não é? NÃO É?
Vários alunos já se remexiam, desconfortáveis com a cena.
Lucio estava com o lado direito do rosto prensado no chão,
respirando a fina poeira do terreno.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Victor, por favor, pare! – implorou ele, que começava a
sentir as lágrimas escorrendo. Desejou não ter interferido na luta de
Kenan, que estava indo tão bem antes de sua chegada. Desejou não
ter sido salvo por ele dois dias atrás. Desejou não ter cuspido em
Victor. Por fim, desejou nunca ter nascido. — Deixe-o em paz! Bata
em mim!
— Lucio, não fala merda… – balbuciou Kenan, com
dificuldade por causa de um braço que prendia seu pescoço.
— É, Lucinho… cala a porra da boca! Aê, enfia algum pano
nessa matraca dele! – ordenou Victor, irritado por perder o ibope com
seu público. Voltou-se para Kenan e cochichou em seu ouvido, para
que somente ele ouvisse: — Teu namoradinho ali é um indecente
sem-vergonha, sabia?
— Vá se foder…
— É sério! Ouça… – insistiu ele.
Lucio, vendo que Victor confidenciava algo a Kenan, ficou
aterrorizado, suspeitando saber exatamente do que se tratava. Era
sobre aquilo. Aquele passado, num longínquo primeiro colegial, que
ele jurou levar para o túmulo.
Victor continuou, apenas para que Kenan ouvisse:
— Aquele moleque já meteu aquela boca asquerosa no meu
pau, só porque fiz uma chantagem de brincadeirinha. E sabe de uma
coisa? Ele nem protestou. Me chupou como louco!
Foi inevitável para Kenan lançar um olhar de esguelha para
Lucio, que estava com uma mordaça de camiseta malcheirosa. Victor
achou graça da cara chocada dos dois.
— Vem cá – murmurou Kenan, sarcástico. — Também quero
te contar uma coisa…
Quando Victor se aproximou com aquele ar de deboche,
Kenan pegou impulso e rapidamente deu uma cabeçada no líder

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


presunçoso d’Os Sete. O nariz dele estalou, e começou a sangrar. Isso
distraiu os três sentinelas o suficiente para que Kenan se libertasse.
Em seguida, cinco foram para cima dele de uma só vez, mas ele
desviava como se estivesse bêbado. Serpenteava frouxamente para os
lados, dando um olé em todos.
— Zeu gredino! – ralhou Victor, tentando estancar o sangue
que sujava sua roupa. — Ajo gue vozê guebrou beu dariz…
Lucio, ainda com a camiseta amarrada na boca, quase não
conseguia respirar. Achou que aquele fosse o momento perfeito para
morrer. Não tinha ouvido o que Victor cochichara a Kenan, mas pela
expressão do belo anjo das trevas, era óbvio. O episódio que jamais
deveria ter existido em sua vida agora era de conhecimento de
Kenan.
Enquanto Lucio se perdia nestes pensamentos, Victor foi até o
entulho ainda com o sangue do nariz escorrendo até sua boca, e
pegou alguns pedaços de madeira. Jogou-as para seis d’Os Sete que
estavam tentando pegar Kenan – que ainda os driblava –, e armados
desta maneira, começaram a bater.
Tentavam mirar novamente no corte da têmpora, mas ele
estava mais esperto. Acertaram seus braços, flancos e costas. No
estado em que Kenan estava, não tinha como escapar de todos.
Tropeçou, caindo novamente, e se protegeu como pôde enquanto
apanhava.
— CHEGA! – O grito veio de um dos alunos. O rapaz estava
com um celular em mãos, e ameaçava fazer uma discagem. — Victor,
já passou dos limites! Desse jeito vai matar o cara, e aí vocês vão ter
que se entender com a polícia, mermão. Eu não quero ser testemunha
de assassinato.
Vários alunos concordaram, e uma onda de “nem eu” soou
por todos os lados.
Olhando em volta, Victor finalmente percebeu que estava

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


indo longe demais. Todos o olhavam como se ele fosse um assassino
– até deu uma espiada para ter certeza de que Kenan ainda respirava.
Estavam todos assustados, e com isso concluiu que seu intento fora
alcançado: impor medo. Apesar da dor lancinante no nariz ele deu
sua risada esganiçada, só para não perder a pose.
— Beleza, gambada! O jow agabou!
A dor e o sangue nas narinas o impediam de falar
corretamente.
Seus capangas ajudaram a debandar os curiosos, sobrando
somente Os Sete, Lucio, Kenan, e alguns alunos com os celulares em
mãos, pois queriam se certificar de que nada mais aconteceria.
Kenan não se mexia muito. Apenas respirava ofegante
debaixo da cortina de cabelos negros, e olhava para Lucio, ainda
amordaçado. Ele apontou para o garoto e ordenou:
— Solte.
Com um aceno de cabeça, Victor permitiu que Lucio fosse
liberado. Ele pegou várias lufadas de ar, grato por poder respirar
livremente outra vez. Com isso, o restante de alunos foi embora
também, ansiosos por deixarem a posição de testemunhas. Não
queriam ter nada a ver com aquilo.
Antes de Victor ir embora aproximou-se de Kenan, abriu o
zíper da própria calça e urinou sobre ele, espalhando o líquido quente
e fétido por todo o seu corpo e cabelo.
Rindo como se tivessem acabado de assistir a melhor piada
de suas vidas, todos Os Sete se mandaram, deixando apenas os dois
no campo. Kenan virou a cabeça, acompanhando-os com os olhos.
Reunindo coragem, Lucio se levantou e foi até ele. Quando
agachou-se ao seu lado levou um susto. Kenan exibia uma expressão
de ódio maior do que qualquer que já tenha visto na vida, mas não
era para dele. Era para as costas de Victor e seu bando, já distantes.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Ao ver aquele semblante, teve a certeza de que todos os olhares
anteriores de Kenan eram apenas de irritação passageira. Essa era a
expressão que deveria temer.
— Você… está bem? – perguntou, sabendo ser a coisa mais
ridícula a se falar. Ele podia diagnosticar boa parte só pela
observação. Um corte na cabeça, outro no lábio, marcas roxas nos
braços e provavelmente nos flancos e pernas. Torceu para que não
houvesse ossos quebrados. — Kenan, me perdoe… Eu…
Sem aguentar mais o aperto terrível que sentia no peito,
começou a chorar abertamente. Tocou cuidadosamente algumas
partes do anjo ferido à sua frente, desejando que seus dedo fossem
capazes de curar instantaneamente. Mas não eram.
Kenan inspirou, sentindo o cheiro ácido da urina de Victor.
Repudiou a si mesmo por estar nesta situação e principalmente por
ser alvo de pena de alguém que julgara como um coitado poucos dias
antes.
— Pare. Assim você só piora minha autoestima. Eu… ai!
Merda. Eu estou bem. Só um pouco dolorido.
— Não fique se mexendo, eu tenho que chamar uma
ambulância!
— Não seja ridículo – e forçou um riso, arrependendo-se em
seguida quando veio uma pontada no flanco. — Ahh… Pode ter
certeza que meu orgulho está mais estraçalhado que meu corpo. Vai
por mim, eu já estive pior do que isso.
— Mas… você está todo…
— Fique quieto e me ajude a levantar… – Fez força para
colocar-se de pé com o auxílio de Lucio. — Mas que droga de cheiro
horrível! Aquele cara é um ser humano, afinal?
O odor da urina que espalhava em seu corpo e cabelo estava
quase insuportável.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Cambaleando para a saída do terreno, Kenan se escorou em
um Lucio coberto de poeira. Antes mesmo de pisar na calçada, ele
olhou para trás e viu um punhado de folhas sulfite enroladas e
jogadas no chão. Apontou com um dedo.
— Os xerox. Eles caíram do meu bolso.
Lucio apoiou Kenan cuidadosamente no alambrado que
cercava parte do local e foi buscar as páginas. Com exceção da marca
do tênis de Kenan, estavam intactas dentro do plástico. Chegou a rir
ao olhar a pegada, quase como se fosse uma lembrança agradável.
Aproveitou para pegar seus cadernos também, que estavam jogados
por perto.
Recebendo os xerox das mãos de Lucio e apoiando-se em
seus ombros, Kenan conseguiu finalmente deixar o terreno baldio,
amaldiçoando o lugar mentalmente. Os que passavam por eles nas
ruas tinham a certeza de ver um mendigo escorando um bêbado
atropelado.
— Por favor, vamos ao menos até um posto médico. Você
está sangrando.
— Não. Acredite, eu estou bem. O máximo que eles vão fazer
é receitar alguma coisa para passar nessas pancadas. E isso eu mesmo
faço.
— Mas, seu corte…
— Continua andando. Não vou deixar um estranho costurar
minha cara.
Viraram uma esquina antes do quarteirão da escola para evitar
que qualquer um de lá pudesse vê-los. Afinal, ainda estavam de
uniformes, mesmo que esses estivessem praticamente irreconhecíveis
sob a camada de terra e fluidos corporais.
— Então me deixe te ajudar a chegar até sua casa – insistia
Lucio, ciente de que não poderia deixá-lo naquela situação.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Ao ouvir isso, Kenan estremeceu. Chegar assim em casa seria
pior do que ser urinado três vezes por todos os integrantes d’Os Sete
juntos. Sua pobre mãe teria um colapso, e seu pai começaria a
terceira guerra mundial.
— Nem fodendo que eu apareço lá assim. Já tenho problemas
demais naquele inferno. Vamos só até a praça, de lá eu me viro.
— De jeito nenhum! Eu não vou te largar assim. É capaz de
te expulsarem aos pontapés acreditando ser um bicho que escapou do
esgoto. Ou, sei lá… darem um tiro em sua cabeça, pensando que saiu
de uma tumba.
— Estou tão mal assim? – tentou brincar Kenan, arranjando
coragem para dar uma risada mínima.
— Bem, digamos que você fica melhor sem essa terra, marcas
roxas, sangue ou mijo pelo corpo – explicou ele, acompanhando o
tom de brincadeira, aliviado por perceber que talvez não fosse tão
sério quanto tinha imaginado, apesar do corte na têmpora. Lucio
pensou um pouco, e tomou uma decisão: — Vamos para a minha
casa, então. Meus pais trabalham até bem tarde, e você poderá tomar
um banho. E eu vou tentar dar um jeito nesse corte… e nas suas
roupas, que estão piores que pano de chão depois de faxina.
Kenan sorriu com gratidão, ciente de que Lucio não veria.
Tinha uma cortina de cabelos negros impedindo que seus olhares se
cruzassem. Apertou levemente o corpo magro de Lucio, querendo
abraçá-lo, mas fingindo apenas buscar mais equilíbrio.
No ônibus, eles só não foram rejeitados porque Lucio já
conhecia o motorista. Cada uma das sacudidelas e passagens por
lombadas era uma pontada de dor para Kenan, que começava agora a
sentir melhor o resultado de cada golpe. As pessoas se afastaram ao
máximo, e ficavam lançando olhares de reprovação para os dois,
tapando os narizes.
— Idiotas. Me olham como se eu gostasse de ter esse

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


cheiro… – sibilou Kenan, mirando os passageiros mais
à frente. — Vou matar aquele cretino!
— Antes você precisa conseguir andar com suas próprias
pernas – lembrou Lucio, sabiamente.

••♥••

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Quinta-feira, tarde

Algumas curvas bruscas e lombadas depois, Lucio puxou a


cordinha do ônibus, para alívio de Kenan.
— Falta pouco para chegarmos. Vem.
De fato, a casa ficava a dois quarteirões de onde tinham
parado. Kenan notou que era uma construção comum, sem nenhum
toque de requinte em comparação às outras da vizinhança. Ao entrar,
olhou para os lados e sentiu no ar um cheiro agradável.
— Que bom. Não cheira a mofo, nem a vômito de um
embriagado e nem a mijo de um siamês doente.
Ao ouvir isso, Lucio ficou imaginando se esse seria o cheiro
da casa de Kenan. Pegou uma cadeira de plástico e apontou para ela.
— Fique aqui, por enquanto. Do jeito que está, não posso
deixar que se sente em outro lugar…
Kenan se jogou sem nenhum conforto numa cadeira de
polipropileno enquanto Lucio ia pegar algumas coisas no interior de
um dos quartos. Voltou poucos segundos depois com uma caixa de
primeiros socorros digna de um verdadeiro socorrista, duas toalhas
de banho e uns panos coloridos que Kenan supôs serem roupas
limpas.
— Vamos, o chuveiro é aqui.
— Humm… – fez Kenan, com um riso de interesse. — Como
assim, “vamos”? Por acaso está insinuando algo?

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— C-claro que não! É que… no estado em que está não
conseguiria nem deitar e morrer sem ajuda – respondeu Lucio
constrangido enquanto pegava a cadeira de plástico, levando-a
consigo e colocando-a debaixo do chuveiro fechado. Estava
começando a se sentir realmente à vontade na presença dele, mas
com essas brincadeiras ficava difícil evitar certos pensamentos. A
tensão que sentia agora era totalmente diferente daquela de dois dias
atrás. — Vem logo. Eu não vou olhar, se é que essa é sua
preocupação. Não sou como você deve estar pensando. Não leve ao
pé da letra o que aquele cara contou… Por favor.
— Como sabe o que aquele animal me disse? Ninguém além
de mim ouviu aquilo.
— Só tem uma coisa que ele poderia falar que precisasse ser
cochichada, já que ninguém mais sabe. E também… eu vi a cara que
você fez, Kenan.
— Então o que aquele traste cuspiu na minha orelha é
verdade?
— Eu não sei exatamente como ele te contou, então não
posso te dizer se é verdade ou não – respondeu ele,
murchando. — Agora senta aqui. Antes de você tomar banho, preciso
dar um jeito neste corte.
— Ok, doutor.
A curiosidade ainda rondava os pensamentos de Kenan, mas
ele queria ir devagar. Sabia que se guiasse a conversa com calma
conseguiria entender aquela história mal contada.
Lucio abriu a caixa de primeiros socorros, e em seguida lavou
bem as mãos e os braços. Kenan começou a tirar todas as roupas sem
cerimônias, ficando apenas com os brincos e correntes.
— Não, Kenan, espera!
Lucio começou a ruborizar, e olhou para o teto evitando que

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


seus olhos conferissem o pênis do mais velho.
— Esperar o que?
— Eu disse que antes vou cuidar do seu corte! Não era pra…
— Não quero ficar mais nem um segundo com esse trapo. E
você mesmo disse que vou precisar de ajuda pra tomar banho, não é?
Vai se acostumando.
Antes de se virar para pegar pinça, algodão e soro fisiológico
para limpar o ferimento, Lucio notou uma tatuagem no lado esquerdo
do peito de Kenan. Eram três círculos concêntricos com um “V”
cortando-os. Não tinha ideia do que significava. Enquanto isso, os
pensamentos de Kenan flutuaram até o que Victor havia lhe
segredado sobre Lucio.
— E então, o que aconteceu entre você e aquele merda,
afinal? – perguntou enquanto sentia o algodão limpar seu corte.
Aquilo ardia muito.
— Não aconteceu nada entre a gente. O que ele te contou?
Você ainda não me disse.
— Basicamente, que você já fez um boquete para ele sem
protestar.
— Ah…
Lucio confirmou com um leve aceno de cabeça,
surpreendendo um pouco Kenan. Ele cogitava a possibilidade de
Victor estar apenas inventando coisas, blefando. Lucio fingia mais
atenção que o necessário na tarefa de limpeza do corte. Demorou um
pouco antes de falar novamente, mas quando o fez, deu um suspiro
desanimado:
— Foi no primeiro colegial. Ele se aproveitou do boato que
estava correndo sobre eu ser… hãã…
— Sobre você ser gay. Tá, e daí?

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


A forma casual como Kenan falava deixou Lucio sem jeito.
Ele tinha se acostumado a tratar o assunto como tabu, e agora vinha
aquele homem, do nada, e falava de homossexualidade como quem
fala da chuva.
— É… Ele disse que… se eu não fizesse aquilo ele diria para
todo mundo que eu era gay. Mas naquela época ele nem sabia sobre
mim. Falou só por falar mesmo, pra tirar uma onda com a minha
cara…
Lucio ia contando com a voz mais esmorecida do mundo,
como uma criança que confessa aos pais que quebrou o vaso caro da
sala. Pegou um segundo chumaço de algodão com a pinça e
continuou a limpeza no rosto de Kenan.
— E afinal, você é gay? – A pergunta de Kenan foi só para
provocar. Já sabia a resposta, mas queria ouvir da boca dele.
— Bem, eu… Eu sou. Quando ele ameaçou contar para todos
eu nem pensei duas vezes. Como um otário, fiz o que ele pedia só pra
me livrar logo daquilo, acreditando que ele guardaria o meu
segredo… Mas fui um idiota! Quando concordei em fazer, assinei
minha confissão, já que ele nem sabia de verdade… E foi horrível!
Eu odiei! Odiei! Não é só porque sou gay que vou querer fazer isso
com qualquer pessoa. E ele não entende isso. Não entende! Acha que
só o fato de…
— Hey, shhh… Eu sei. Eu entendo – murmurou Kenan, com
um olhar gentil. De alguma maneira, ele estava aliviado por ouvir a
versão de seu pequeno ruivo de sardas. Afinal, qualquer história
vinda de Victor se tornaria imunda. — Relaxa, tá bom?
Lucio se perdeu naqueles olhos por alguns segundos, quase
sem acreditar que de fato estava ali, parado com aquele tipo de cara.
Aquele tipo lindo, desbocado, briguento e ao mesmo tempo de uma
delicadeza inacreditável. O beijo que recebera mais cedo veio à sua
mente, e antes que suas orelhas começassem a fumegar,
denunciando-o, voltou-se para a caixa de primeiros socorros.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Precisava mudar sua mente de canal, senão desfaleceria diante de
Kenan que, para dificultar tudo, estava nu. Usou todo seu empenho
para não ficar admirando aquela escultura viva.
Com algum divertimento, Kenan notou essa batalha interna
de Lucio. Ele perguntava-se o quanto mais demoraria com aquela
limpeza quando o garoto colocou luvas descartáveis e usou algo que
se parecia com uma tesoura para pegar uma agulha torta.
— Espera aí, o que é isso?
— Agulha cirúrgica, você precisa de pontos. O corte está
feio, Kenan.
— E quem você pensa que é para… Ai! – exclamou ao sentir
a primeira picada no lado da testa. E a segunda, e terceira…
— Você não quis ir ao hospital. Fica quieto para eu não errar.
Para tirar a concentração das agulhadas desconfortáveis que
sentia, preferiu observar seu jovem enfermeiro, que estava realmente
gracioso, apesar do rosto ainda sujo de terra. Lucio estava com a
ponta da língua de fora, no canto da boca, e parecia muito
concentrado.
— Você já fez isso antes?
— Nunca com algo vivo – respondeu enquanto fechava um
ponto. — Minha mãe e meu pai me ensinaram usando panos grossos.
Eles são médicos.
— Panos grossos? Eu tô ferrado – brincou Kenan, soltando
uma risada em seguida.
— Eu disse para não se mexer! Desse jeito eu vou rasgar
mais ainda sua pele…
— Certo.
Kenan ficou quieto, mas não conseguiu evitar o sorriso
maroto nos lábios. Se não fosse pelas dores e pela repulsa que sentia

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


do próprio corpo melado teria o agarrado ali mesmo. Fixou sua
atenção em Lucio, tendo vez ou outra encontros de olhares furtivos, e
assim ficaram até que terminasse.
Cada traço de Lucio estava sendo decorado. Cada expressão
era degustada. E as disfarçadas do garoto, que fingia não escorregar
seus olhares para pontos proibidos, eram todas percebidas pelo mais
velho.
— Pronto! Agora você está… O que foi? Por que está me
olhando assim?
— Humm, não, nada – respondeu, sorrindo. — Agora quero
me livrar dessas substâncias Victorianas horrorosas.
Como Kenan já estava sem roupas e sentado debaixo do
chuveiro, Lucio deu uma risada travessa e deixou que a água
escorresse sem aviso. Kenan levou um susto, pois as primeiras gotas
estavam frias.
— Que inferno! Por que fez isso?
— Para ver isso – retrucou Lucio, divertindo-se com a reação
dele e usando a mesma frase que Kenan usara quando lhe deu um
peteleco no nariz, no dia anterior.
— Humph! Mas não se esqueça de que é você quem vai fazer
o trabalho. Eu nem sei se consigo ficar de pé direito, e meus braços
doem. Vai, começa…
Lucio procurou agir logo. Ainda vestindo o uniforme imundo,
lavou os longos cabelos de Kenan, que estava achando aquilo tudo
muito interessante. Em seguida, tratou de limpar o restante, e isso foi
realmente difícil. Em parte porque Kenan estava coberto de manchas
roxas doloridas, mas para Lucio a dificuldade real era olhar aquele
corpo esculpido pelos deuses sem sentir-se excitado. Torcia para que
Kenan não notasse a inevitável ereção que se formava por baixo de
sua calça, e forçava-se a não olhar no meio das virilhas dele – o que
era quase impossível, pois ele sentava-se de uma maneira desleixada,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


deixando as pernas espaçadas.
“Ai, meu Deus…”
Apesar de ele ter tentado esconder o volume entre as dobras
da roupa, Kenan já tinha percebido. Mas fingiu não notar, e deixou-
se ser ensaboado por quase todo o corpo. A mando de Lucio limpou
as partes íntimas, e ficou curtindo um pouco mais a água morna que
caía sobre seus ombros, relaxando os músculos e aliviando as dores.
Ao ficar de olhos fechados, reparou que Lucio ganhou mais
confiança nos caminhos das mãos. O pequeno estava quase
explodindo, achando aquilo tudo incrível demais. Sentia cada curva
com os dedos e mordia o lábio inferior, imaginando coisas que
achava inconcebíveis.
Kenan abriu minimamente os olhos, espiando deliciado seu
enfermeiro particular.
— Você fica uma graça quando está com essa expressão
lasciva – provocou ele, com uma voz rouca.
— E-eu não estou fazendo expressão nenhuma! – titubeou
Lucio, atordoado pela vergonha. — E fique quieto… Quero tirar todo
o cheiro daquele cretino de você. É só isso que estou fazendo.
Quando Kenan estava de olhos fechados, havia interpretado
aquilo apenas como um agradável carinho pelo corpo. Mas agora,
vendo que Lucio o alisava com um evidente desejo reprimido,
encarou-o com luxúria.
Não iria aguentar. Levantou a mão e tocou a cintura fina dele.
No mesmo instante Lucio congelou, e ficou observando enquanto a
outra mão de Kenan pegava a sua e direcionava até o umbigo nu,
escorregando-a em seguida para baixo, numa linha perigosa.
Sem pensar muito, Lucio puxou a mão, desvencilhando-se.
Estava assustado. Olhava para Kenan, que estava completamente
excitado, com seu pênis apontando para o alto, pulsante.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Kenan, eu…
— Desliga o chuveiro – ordenou, terrivelmente sedutor. Ele
percebeu a hesitação nos olhos do garoto. — Você já me lavou umas
três vezes. Agora, desliga o chuveiro e vem aqui…
Enquanto falava, Kenan alisava a parte de baixo de seu
membro. Lucio, vendo aquilo, achou que entraria em parafuso. Ele
não estava preparado para aquela ordem, para aquele olhar, aquela
voz e muito menos para o gesto erótico. Sequer estava preparado
para o banho que deu em Kenan. Usou a primeira frase que
veio à mente:
— Vo-você precisa se vestir… Eu deixei suas roupas
ali. Vai logo…
Sem se envergonhar de sua ereção, Kenan levantou-se
cuidadosamente e arrastou os pés até onde Lucio havia mostrado.
Achou graça do pavor repentino dele, mas ficou ligeiramente
desapontado pela rejeição.
Enquanto ele se vestia com alguma dificuldade, Lucio se
fechou no box fosco e tomou seu próprio banho. Fez questão de
mudar para a água fria, na tentativa de abaixar a própria ereção. Era
inevitável que todo o tipo de coisa viesse à sua mente, já que estavam
nus no mesmo cômodo – mesmo que não estivesse sendo visto.
“Ele realmente se insinuou para mim! Não estou ficando
louco… Ah, droga… Por que ele tem que ser tão… Ah, céus,
tão gostoso!”
Lembrou-se mais uma vez do beijo, e de como sequer
correspondera a contento. Já ia começar a se chamar de “burro” e
“idiota” novamente quando Kenan exclamou:
— Hey, não tinha umas roupas um pouco mais coloridas para
mim, não? – ironizou ao olhar a si mesmo no espelho, com uma
camiseta vermelha de estampa verde limão e mangas azuis. — O
short fica. Não preciso da camiseta, é ridícula demais.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Não tenho nada preto que te sirva – explicou, fechando o
chuveiro e vestindo rapidamente as roupas limpas que havia levado
consigo dentro do box. Ao observar Kenan, viu que ele estava
sentado na tampa do vaso sanitário, com uma cara abatida. — Você
precisa descansar um pouco. Vem cá.
Apoiando-se no ombro de Lucio – que levava a caixa de
primeiros socorros – e andando vagarosamente, Kenan olhou para os
lados, notando os detalhes da casa. Era simples e sem quadros ou
enfeites, diferente da dele, cheia de bibelôs e imagens que a mãe
colecionava. Lucio logo disse que não era nenhum estilo “clean”,
mas sim frieza mesmo.
Chegando no quarto, as articulações de Kenan rangeram de
alívio ao deitar na cama macia.
Depois de colocar um pequeno curativo sobre os pontos
recém-dados, Lucio pegou um spray da caixa e começou a borrifar
nas manchas roxas do flanco, braços e pernas dele. Diante dos
protestos que recebeu, explicou:
— Isso vai aliviar os sintomas das contusões.
— Ah, bom. Pensei que estivesse querendo me dedetizar.
Lucio não riu da piada.
— Olhe para você! Um corte na cabeça e várias marcas de
pancadas pelo corpo! Nunca imaginei que o Victor pudesse chegar a
esse ponto – lamentou ele, sentando-se na cama, ao lado de Kenan.
— Por favor, não estou a fim de ouvir o nome desse parasita
hoje. Aliás, os parasitas não merecem ser comparados com ele, é uma
ofensa aos coitados…
Com isso, Lucio finalmente se permitiu um sorriso fraco,
sendo acompanhado por Kenan. De repente, era como se nada mais
existisse além daquelas paredes e da presença um do outro.
O quarto em que estavam era o lugar mais humanizado da

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


casa. Numa escrivaninha, um quadro dos pais de Lucio jazia ao lado
de um computador. Nas prateleiras, alguns livros estavam
enfileirados perto de um foguete de ferro e algumas caixas de
madeira. Bastava uma rápida olhada em volta para compreender que
aquele cômodo era o mais usado de toda a casa. Era onde Lucio
passava a maior parte de seus dias. Sempre sozinho.
— Sua casa é bastante silenciosa. E este travesseiro…
humm… tem seu cheiro – murmurou Kenan, aspirando
profundamente o perfume dali. — É muito bom!
Abaixando a cabeça, Lucio olhou para os próprios punhos
que se apertavam no colo.
— Se eu ouvisse você falando isso ontem juraria que está
tirando sarro da minha cara. Mas agora…
— Mas agora? – Kenan sussurrou, admirando o garoto à sua
frente, que estava com uma das mechas ruivas graciosamente
colocadas atrás da orelha. Apoiou uma mão no joelho dele,
encorajando-o a continuar. Estava louco por ouvir o que Lucio
realmente pensava.
Lucio nunca tinha estado tão próximo de um homem que lhe
despertasse algum interesse. E naquele momento, com Kenan
praticamente servido numa bandeja – e em sua cama! –, não sabia o
que dizer
ou fazer.
— É que… depois de tudo aquilo com o Victor e os outros…
— Já falei pra não citar o nome desse serzinho abominável
hoje. Olha, eu já odiei pessoas, mas nunca alguém conseguiu
conquistar meu ódio em tão pouco tempo. E, aquilo que você disse
sobre não imaginar que ele pudesse chegar a esse ponto… Como
pôde pensar que um sádico daqueles não seria capaz de coisas assim?
Se ele te obrigou a fazer aquilo no primeiro colegial, imagine agora!
— Era uma chantagem. Não tinha agressão…

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— E, afinal, qual seria o problema se todos soubessem? No
fim das contas, ele nem cumpriu o acordo.
— Bom, pelo menos meus pais ainda não sabem.
— Mas que droga isso importa? Não pode simplesmente ser
você mesmo, e ponto final?
— Importa que minha vida simplesmente vai pelo ralo,
Kenan! Você não sabe como é isso, sabe?
— Você não faz ideia de como eu sei como é isso. Eu vim de
um lugar onde todos sabiam sobre eu ser gay, e… Que cara de
surpresa é essa? Vai me dizer que não percebeu ainda? Depois de
toda a minha insinuação?
— Não é isso. É que… Ouvir você falar assim, como se não
fosse nada… É estranho.
— Esse é seu problema! Age assim, vivendo seu tabu
particular. Na cidade onde eu morava o fato de eu preferir homens
não era segredo pra ninguém, e mesmo assim eu não deixava que me
enchessem o saco. Entenda uma coisa, Lucio. Não é o fato de ser gay
que importa. É essa postura de vítima que você toma para si que faz
toda a diferença sobre como te tratam. Quando te vi pela primeira
vez eu nem imaginei que fosse, mas foi o seu jeito de se encolher e
de se diminuir que me fez querer te incomodar.
— E você fez isso.
— E eu fiz isso – ecoou Kenan, com um sorriso de triunfo.
Levantou um pouco o corpo, apoiando-se com o cotovelo para ficar
mais próximo do rosto de Lucio. — E vou continuar fazendo, mas
quero ser o único que atormenta sua vida. Não vou aturar que ele
tenha esse privilégio. Ele tocou em alguém que eu desejo, e isso é
imperdoável…
Com a mão livre, entrelaçou os dedos nas mechas alaranjadas
da nuca de Lucio, aproximando-o de si. Deixou que os narizes se

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


tocassem, e ficou um tempo olhando para os grandes olhos
castanhos, que fitavam-no com um brilho indescritível. Inclinando a
cabeça, o beijou. Lucio estremeceu de satisfação, e desta vez
lembrou-se de entreabrir a boca, recebendo-o de forma digna.
Sentir a língua quente e úmida de Kenan em sua boca era um
deleite. Um sutil gosto de ferro e tabaco se mesclou ao hálito
excitante. A sensação era nova para Lucio, que sentia cada parte do
corpo formigar pela ansiedade do momento, e tudo ficava melhor
quando ouvia a respiração entrecortada do outro entre os beijos
molhados. Lucio se debruçou sobre ele, que voltou a se recostar no
travesseiro. Sentiu as mãos de Kenan deixarem sua nuca e
começaram a explorar suas costas, retirando-lhe a camiseta
e jogando-a no chão.
Ignorando algumas pontadas de dor que surgiam pelo corpo,
Kenan foi contornando o pescoço de Lucio com a boca, sentindo o
gosto de sua pele. Adorou quando o ouviu gemer. Isto era algo novo
sobre o garoto tímido e irritadiço. Era uma expressão que ele queria
conhecer mais a fundo. Em todos os sentidos.
Roçou seus dedos nos quadris pequenos, e escorregou-os por
baixo das roupas que restavam. Mordiscando a orelha semi-
escondida pelos cabelos ruivos, Kenan terminou de despir Lucio,
ouvindo um arfar acanhado que escapou. Em seguida, retirou de si o
pouco que usava também.
Vagarosamente, Lucio começou a lamber o arco interno da
orelha de Kenan, nos lugares onde não havia brincos. Sem se dar
conta, tinha descoberto um dos locais favoritos para causar arrepios
de satisfação no moreno. Kenan achou aquilo irresistível demais, e
avançou mais rápido do que pretendia, agarrando as nádegas
pequenas com vontade. Lucio se sobressaltou, acelerando sua
respiração.
— Humm, deixa eu te comer, vai… – suplicou Kenan, com a
voz rouca e perigosamente sensual.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


As carícias que Lucio recebia no lado interno das coxas
estavam deliciosas, mas o pedido o assustou. E quando sentiu aqueles
dedos libertinos começando a invadir sua pequena entrada, arqueou
as costas e arregalou os olhos. Afastou-se instintivamente.
— Desculpe… É que eu nunca fiz isso.
Lucio sentia o coração saltando em sua garganta.
— Acho que sou eu que devo desculpas… Estou indo muito
rápido. – Kenan também estava em um estado eufórico. — Você é
tentador demais… Me deixei levar.
Com as mãos espalmadas, Lucio segurou o rosto dele e fitou
os olhos de safira.
— Mas… – hesitou. — Eu quero.
Só por ter feito essa confissão em voz alta, sentiu
o formigamento de ansiedade e nervoso voltar com tudo. Escondeu o
rosto na curva do pescoço de Kenan, e arriscou beijá-lo ali, sentindo
nos lábios o metal frio das correntes prateadas. Kenan gemeu, e esse
era o incentivo que Lucio precisava. Arriscou fazer o que esteve
imaginando durante o banho: com a língua, traçou cada centímetro
daqueles músculos, indo parar em seu mamilo. Por um lado, sentia-se
constrangido pelo que fazia, mas os murmúrios de prazer daquele
homem totalmente entregue indicava que aquilo não era ruim. Que
aquilo não era errado. Então não reprimiu seus desejos, conseguindo
ser, pela primeira vez em quase toda uma vida, ele mesmo. Dedicou
mais um pouco de sua atenção aos dois mamilos intumescidos de
Kenan, um com a boca e o outro com os dedos. Concluiu que aquela
era uma de suas partes favoritas, como se pedissem para serem
tocados e beijados.
O cheiro de sabonete e suor que a pele diante de si exalava só
faziam o conjunto todo ser mais tentador. Lucio desceu uma das
mãos e tocou de leve o pênis pulsante de Kenan. Ofegou, quase sem
acreditar no que fazia. Sentiu que as mãos do outro o acariciavam,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


também buscando suas partes íntimas, e novamente um dos dedos de
Kenan tocaram seu ânus. Era algo muito estranho e um pouco
assustador.
— Nnnn… Ah! Não, espera um pouco – pediu Lucio, indo
remexer na caixa de primeiros socorros. Retirou de lá um pote de
vaselina, e logo em seguida foi fuçar numa cômoda.
Como ele estava de costas, Kenan aproveitou para observá-lo
sem pudor. Admirou as nádegas redondas e durinhas enquanto
mordia o lábio inferior, louco de tesão.
Quando ele voltou, estava corado até as orelhas e
visivelmente apreensivo. Mostrou a vaselina e um pacote de
camisinhas.
— Eu… nunca acreditei que fosse realmente usá-las
algum dia…
— Ahh, Lucio… – Kenan segurou a base do próprio pênis e
passou a ponta da língua no lábio superior, não suportando mais
aquela espera. — Vem cá, vem…
Sentando-se ao lado daquele deus grego, Lucio admirou-o
silenciosamente. Estava sem nenhuma roupa na cama com o cara
mais tentador que já conhecera na vida. E que também estava nu.
Observou enquanto aquela mão grande puxava sua coxa, pedindo
indiretamente que se aproximasse. Lucio passou um dos joelhos por
cima dele, ficando com cada um de um lado dos quadris provocantes.
— Por favor, Kenan, vá devagar – pediu, com a respiração
entrecortada — E… se eu pedir pra parar, você para.
— Olhe sua posição… Você é o cavaleiro aqui, então faça do
seu jeito. Você decide o ritmo, ok?
Kenan piscou e deu um sorriso voluptuoso que fez Lucio
derreter e querer voltar a beijá-lo. Desta vez não se afastou ao sentir
uma mão se aproximando perigosamente, já cheia de vaselina. Ao

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


contrário, inclinou-se para que facilitasse a entrada de um dos dedos.
Kenan levantou o próprio quadril para que pudesse roçar seu membro
no de Lucio. Ambos começaram a mover o corpo lentamente,
friccionando seus sexos numa masturbação mútua e ritmada. Isso
ajudou Lucio a relaxar para que pudesse receber o segundo dedo,
acostumando-se com a ideia de que aquilo de fato aconteceria.
Aos poucos, a sensação dos dedos lambuzados que o
invadiam passou de estranha a interessante. E ao sentir a boca
inebriante daquele anjo safado, notou que a ideia deixou de ser
apenas interessante para se tornar irresistivelmente sedutora. Lucio
moveu-se para cima e para baixo encarando os olhos desejosos de
Kenan, depois colou o queixo no próprio peito para mirar o pênis que
pulsava logo abaixo do seu. Definitivamente, queria senti-lo dentro
de si.
Percebendo os lentos movimentos de vai e vem de Lucio e o
olhar febril que lhe era lançado, Kenan pediu quase num gemido,
intensificando os movimentos que fazia com a mão no ânus do
garoto:
— Veste a camisinha pra mim… Monta aqui, vai… Quero te
foder bem gostoso!
— Tá…
Lucio já não prestava tanta atenção nas próprias palavras.
Respondeu quase automaticamente enquanto agarrava o pênis de
Kenan e o masturbava vagarosamente junto com o seu. Pegou a
camisinha e vestiu-a nele, medindo com o polegar e indicador a
espessura que estava prestes a receber. Não sabia como aquilo
entraria nele.
Parou de se mover e respirou fundo. Com as mãos trêmulas
direcionou o membro duro para o meio de suas nádegas. O coração
batia tão rápido que pensou que fosse desmaiar. Kenan percebeu o
nervosismo crescente dele, e levantou o braço para alcançar o rosto
de Lucio. Acariciou-o com o polegar.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Hey, calma, anjinho. Vem aqui, me beija…
Em qualquer outra ocasião, aquele apelido teria feito Lucio
ferver de raiva. Mas naquele momento, com aquela doçura, teve um
efeito calmante que não sabia explicar.
Ainda mantendo o pênis de Kenan em sua entrada, curvou-se
para sentir aqueles lábios devorando os seus. Com a respiração
entrecortada, tentou concentrar-se nos braços fortes que o abraçavam.
Com o tempo, tomou coragem para ir descendo o quadril, permitindo
o avanço dos primeiros centímetros do membro pulsante. Kenan,
achando que seu parceiro parecia mais confiante, elevou-se um
pouco, apressando a penetração.
— Nnn, espera! Dói… – Lucio apertou as pálpebras e cravou
os dentes, enfiando as unhas com força nos ombros de Kenan.
— Argh, e isso também dói…
Com algum alívio, Lucio notou que ele não estava bravo pelo
arranhão que levou. Começou a relaxar ao sentir suaves carícias nos
cabelos, e aos poucos foi se acostumando com o volume. Seus
pulmões buscavam ar na mesma velocidade das batidas frenéticas de
seu coração. Pouco a pouco, foi recebendo mais de Kenan dentro de
si. Quando sentou-se nos quadris dele, estava arfando e com gotas de
suor brotando dos poros.
Kenan pegou o pote de vaselina e lambuzou novamente os
dedos, indo massagear o membro de Lucio, que começava a dar
sinais de esmorecimento.
— Humm, assi… Ahh… nnnã… pa… r… – gemeu Lucio,
sentindo algo incrível.
— O quê?
— Ahhssiiim! Assim! Nnnão pare!
Quando Kenan compreendeu, deixou transparecer um riso
mudo no canto da boca.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Animado pelo estímulo que recebia, Lucio começou a se
mover. Deslizava para cima e para baixo, engolindo o falo latejante.
Aos poucos foi se adaptando à estranha sensação da penetração e,
quanto mais relaxava, menos a dor incomodava. E mais o tesão ia
tomando conta, causando-lhe pequenos choques elétricos por todo o
corpo.
— Estou sentindo… – murmurou Lucio, experimentando
uma onda de êxtase que aumentava quando, vez ou outra, era
atingido em um ponto específico. — Nnnn… Estou sentindo você
pulsar… dentro de mim…
— É você que me deixa assim! Você é uma delícia, menino…
Ele aumentou a velocidade da masturbação que fazia, e isso
levou Lucio a se mover mais rápido também, cavalgando
impiedosamente sem saber que causava, em algumas estocadas,
dores pelo corpo do mais velho. Mas Kenan não se importou e o
deixou fazer como quisesse. A visão de um querubim lascivo tendo
espasmos de prazer era única. Um querubim que descobria as
sensações que o próprio corpo podia lhe proporcionar. E ele sentia-se
orgulhoso por ser o responsável disso.
Curvando-se sem cessar os movimentos, Lucio buscou com a
língua a boca de Kenan, que respondeu com o mesmo fervor. As
mãos pequenas alisavam o tórax definido como se quisesse decorar
cada curva. O anjo errante, que não estava acostumado com parceiros
de uma timidez virtuosa, gostou de como as coisas estavam
se desenrolando.
— Humm… Tem certeza de que… Ahhh! – Ele sentiu o
pescoço ser mordiscado e beijado. — Tem certeza… de que é sua
primeira vez?
Kenan arfava, sentindo que seu auge estava muito próximo.
Diminuindo um pouco aquele frenesi, Lucio olhou para ele,
sem jeito. Até aquele momento, estava apenas seguindo seus

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


instintos, fazendo o que lhe dava vontade.
— Claro que é! Isso quer dizer que… está bom?
Entre um arquejo e outro Kenan praticamente implorou:
— Bom? Ahh, Lucio, não pare… Fazia tempo que meu pau
não era tão bem tratado assim!
Esta maneira de falar deixou Lucio incrivelmente excitado.
Prestou toda a sua atenção às expressões do homem abaixo de si,
voltando a cavalgá-lo com avidez. Passeou com os dedos pela boca
entreaberta e fitou intensamente os olhos azuis que o espreitavam
febrilmente. Entre uma estocada e outra, enquanto sentia ondas de
desejo subir de seu colo até o peito, acariciou as mechas negras e
longas que grudavam no suor do tórax e pescoço de Kenan, amando
a sensação daquela mão grande e lubrificada masturbando-o até
quase levá-lo à loucura. E finalmente, como a única coisa que faltava
para que o quadro se fechasse com perfeição, viu os espasmos de
Kenan aumentarem enquanto ele soltava um gemido alto. Estava
gozando.
Acompanhando toda essa sinfonia erótica, depois de mais
alguns movimentos da mão de Kenan, ele próprio gozou também,
lambuzando o corpo de seu cúmplice da volúpia. Aos poucos foi
diminuindo o ritmo, sentindo um entorpecimento tomar conta de suas
pernas, e uma tranquilidade e satisfação correrem por todo o seu
corpo. Parecia que tinha tomado uma garrafa inteira de vinho.
Com uma sensação semelhante, Kenan manteve os olhos em
Lucio enquanto ele se acomodava ao seu lado, deitando a cabeça
ruiva em seu ombro dolorido e arranhado. Ele emaranhou seus dedos
nos fios cor de fogo e aspirou profundamente o perfume, ouvindo-o
ofegar pelo esforço que exercera. Puxou o queixo delicado para perto
de si e pousou naqueles lábios um beijo cândido, admirando os olhos
castanhos que o observavam de volta com carinho. Mentalmente
comparou cada uma das dezenas de pequenas sardas às constelações
no céu, o que só fazia ultrapassar os limites de perfeição e beleza que

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


ele conhecia. E além disso havia aquela incrível personalidade que
oscilava rapidamente do zero ao infinito. Não sabia definir o que
mais lhe chamava atenção em Lucio. Talvez fosse exatamente a
combinação de tudo.
— Você é definitivamente o meu tipo, anjinho
lascivo – admitiu Kenan.
Sem saber o que responder, Lucio sorriu embaraçado e
afundou o rosto no pescoço do outro, respirando aquele aroma que
agora era, de longe, sua fragrância favorita.
Ao se mexer um pouco sobre ele sentiu com a barriga o
próprio sêmen, que estava espalhado por todo o abdômen de Kenan.
— Acho que… vamos ter que tomar outro banho.
— Humm, e eu acho que você vai ter que me ajudar mais
uma vez. Sabe, é que sinto como se sete porcos tivessem me
atropelado, e como se eu tivesse sido cavalgado por um querubim
delicioso e muito pervertido.
— Pfff… seu tonto! – riu Lucio, auxiliando-o a se levantar da
cama para irem até o banheiro.
— Desta vez não quero que se contenha. Pode me olhar e me
tocar onde quiser – esclareceu Kenan, aproximando-se de Lucio para
lamber-lhe os lábios.
Aos beijos, entraram sob a água morna. Lucio se permitiu
levar suas mãos onde bem entendia – e gostava de sentir os toques do
outro também –, mas não se demoraram tanto quanto gostariam já
que as dores de Kenan começavam a dar maiores sinais de vida.
— Espere só para ver amanhã de manhã – provocou Lucio,
vestindo novamente suas roupas. — Aposto que não vai nem
conseguir levantar da cama.
— Ah, é? E você vai ficar com essa bunda gostosa de um
jeito que não vai nem conseguir sentar.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Riram e voltaram para o quarto, onde Kenan finalmente
relaxou seu corpo dolorido. Lucio deitou-se ao seu lado com os
músculos da perna amortecidos e sentindo-se um pouco dolorido por
causa da recente penetração. A mera observação mental de que tinha
acabado de transar com um cara – com aquele cara – era inebriante.
Não imaginava que o sexo poderia ser tão toxicamente delicioso.
“Droga… Acho que estou gostando dele”
Olhando para as próprias mãos, que acariciavam Kenan,
Lucio fez uma pergunta que havia lhe ocorrido já há algum tempo:
— O que vai fazer? Quero dizer, sobre a gangue do…
— Aquilo não é gangue – interrompeu Kenan. — É um
clubinho de imbecis arruaceiros. – Apontou para o lado esquerdo do
peito onde Lucio notara, durante o primeiro banho, a tatuagem dos
três círculos concêntricos cortados por um “V”. — Eu falei para
aquele escroto que ele não me conhecia. Mexeu com a pessoa errada.
Eu sou integrante de um grupo, lá daquela outra cidade. Mas é algo
bem diferente d’Os Sete. O problema é que eu não vejo a galera com
a frequência que eu gostaria.
— Você faz bem o tipo de quem tem uma gangue – comentou
Lucio, lembrando-se da primeira impressão que teve de Kenan, três
dias atrás. — Você é o líder?
— O quê? Não! – Ele riu como se tivesse ouvido algum
absurdo. — Eu disse que sou integrante de um grupo, não o líder
dele. Não chega a ser bem uma gangue. Está mais para uma turma de
amigos que gostam de motos e lutas. O nome é Velazque, talvez já
tenha ouvido falar. – Pelos olhos de Lucio que se espantaram,
percebeu que sim, ele já tinha ouvido falar. — São umas dez vezes
mais numerosos que a panelinha d’Os Sete. Eu nem conheço todo
mundo! Eles têm fama de barra pesada, mas a maioria lá é pai ou
mãe de família. São gente boa. Assim, tipo eu.
— Hein? Você, gente boa?

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Lucio não conseguiu conter a gargalhada, despencando a testa
no peito de Kenan, que acompanhou o riso. Ambos sentiram uma
chuva de felicidade, fazendo brotar uma primavera que há anos não
os visitava.
Apesar de Lucio não ter resistido àquela piada, sabia que não
era bem assim. Kenan era um tipo diferente de rebelde. Um
irreverente, sempre tão à vontade em ser ele mesmo que acabava
parecendo estar fora da lei, mas apenas gostava de escapar dos
atavismos e rótulos que a sociedade infligia sem perceber.
Aos poucos, eles foram parando de rir, e sentiram a atração
inevitável que uma boca exercia sobre a outra. Os beijos
esquentaram, e novamente começaram a se explorar intensamente.
Quando Lucio sentiu uma mão começando a adentrar novamente sua
bermuda, colocou um dedo sobre os lábios de Kenan e fez que “não”
com a cabeça.
— Acho que preciso de um tempo antes de fazer isso
de novo, Ken.
Ken… Ken… Isso ressoou na mente de Kenan.
“Este apelido. Eu odeio, mas… Por que parece tão
agradável vindo dele?”
— Me chame assim mais uma vez… – pediu, tirando a mão
de dentro das roupas de Lucio e segurando-o pela cintura.
— Assim como? Ken?
— Aham…
— Ken… – sussurrou Lucio com um riso. — Ken… quero
fazer uma coisa para você, já que ainda está com vontade.
Sem aviso, ele desceu os lábios pelo torso definido, fazendo
com a língua uma trilha de saliva até alcançar a virilha de Kenan.
Com as duas mãos, puxou para baixo as roupas que ele usava,
revelando uma semi-ereção. Sem hesitar, abocanhou-o

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


completamente e sentiu-o crescer ainda mais na boca. Começou a
chupar com vontade, passando a língua continuamente no frênulo
daquele membro delicioso.
— Ohh, Lucio! Isso é… Ahhh… – Kenan arqueou as costas e
separou mais as pernas para sentir melhor a boca molhada que lhe
sugava. Segurando os cabelos de Lucio com ambas as mãos,
perguntou: — Onde aprendeu a…? Nnnn… Merda, não me
responda!
Sem se incomodar com a alusão indireta a Victor, Lucio
olhou com uma certa voracidade para Kenan, que agora tinha os
olhos fechados, gemendo com a boca semiaberta. Era verdade que
tinha aprendido aquilo num momento péssimo e com alguém que
odiava, mas ao menos podia agora agradar um homem por quem
tinha desejo. Com isso, sentia como se Kenan estivesse obliterando
suas memórias ruins sobre ter um pênis em sua boca. E vê-lo se
entregar daquela maneira por sua causa era sensacional.
Não demorou muito para que ele sentisse o gozo na língua.
— Você… – arfou Kenan — … é bom nisso. E não me diga
que… Ah, cara, você engoliu mesmo?
Limpando um respingo que tinha sobrado no canto dos
lábios, Lucio confirmou com a cabeça. E explicou-se rapidamente:
— Mas não pense que eu já tinha engolido antes. Com ele eu
cuspi tudo fora, quase vomitei. É a primeira vez que eu…
— E tem um gosto bom? - interrompeu Kenan,
desinteressado das explicações sobre a experiência com Victor.
— Não – Lucio riu, fazendo uma careta. — Essa coisa é
estranha…
Kenan sentou-se, beijando-o para sentir o próprio sabor.
— Irc! Meu gosto é estranho mesmo.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Eu avisei.
Eles olharam para a janela, e viram que a luz que entrava por
ela já tinha abaixado bastante. O sol já se direcionava para o
horizonte, deixando tudo ao redor num tom sépia.
— Eu vou nessa, antes que decida morar na sua casa e te
pegar de novo.
— Então é melhor você ir logo… – provocou o ruivo,
mordendo o canto do lábio enquanto o assistia vestir a camiseta
vermelha de estampa verde limão e mangas azuis. Era uma roupa
realmente espalhafatosa, e Lucio a escolhera de propósito.
Ele não queria que Kenan fosse embora, tampouco o outro
queria partir. Era como aquele momento em que acordamos de um
sonho e lamentamos profundamente por ter que voltar ao mundo real.
Mas o que tinham vivido não tinha sido uma mentira. Era
como um oásis de realidade doce em meio ao amargo da vida.
— Aqui, não se esqueça disso – alertou Lucio quando Kenan
já segurava a maçaneta da porta da frente. Eram as folhas de xérox e
quatro comprimidos. — Sei que não posso sair receitando isso,
mas… Um desse por dia já vai ajudar na recuperação.
Olhando para as páginas grampeadas e pisoteadas por ele
próprio, Kenan perguntou:
— E isso aqui? Vou mesmo precisar?
— Bem… Você quer terminar o terceiro colegial
junto comigo?
Com um sorriso enviesado, Kenan deu uma batidinha na
própria cabeça com as folhas enroladas.
— Essa é a ideia. Terminar aquilo de uma vez por todas. E
com você lá, acho que vai ser menos penoso. Bendita a hora em que
o ruivinho palerma escolheu deixar uma cadeira vaga para mim.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


— Você sabe que eu amaldiçoei esta minha decisão naquela
segunda-feira, né? E quase te matei com minha caneta.
— Eu nunca poderia imaginar – ironizou.
Ganhando as ruas e andando com pequena dificuldade, Kenan
demonstrou a intenção de dar um beijo de despedida, mas Lucio se
afastou cruzando os braços e olhando para o asfalto:
— Olha, Ken… Não me entenda mal, mas… É que ainda não
estou pronto para fazer isso na frente da minha casa, ou de
outras pessoas.
— Ah, é! Esqueci. Seu tabu particular – brincou Kenan,
surpreso de como estava gostando de ouvir aquele apelido vindo
dele. — Então pelo menos toca aqui.
Oferecendo o punho fechado, ele esperou até que Lucio
fizesse o mesmo. Ficaram alguns segundos assim. Punhos se
tocando, olhos se perdendo na imensidão um do outro, mas sem
dizerem nada.
Um vento mais forte jogou os cabelos ainda úmidos de Kenan
na direção de Lucio, e isso foi como um toque de despertar.
— É melhor você ir. Vê se descansa, você precisa
se recuperar.
— Eu sei, mas se eu estivesse tão mal assim a gente
não teria… – cortou a frase no meio ao ver que Lucio olhou
preocupado para os lados. — Enfim. Também preciso fazer umas
ligações para uns amigos. Tenho um plano para amanhã.
— Um… plano? Isso não tá me cheirando bem…
— Yep! E não é para cheirar bem mesmo. De manhã, chegue
na praça uma hora mais cedo. Ah! E leve pra mim um par daquelas
luvas descartáveis que você usou ao me costurar, é importante!
Estarei te esperando.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Enquanto Kenan se virava, andando contra o vento, Lucio
deu dois passos na direção dele. Sentiu as batidas do coração
acelerarem, e por um momento arrependeu-se de não ter aceitado
aquele beijo público. Queria novamente ser tomado nos braços desse
homem que praticamente acabara de conhecer. O tipo que ele sempre
criticava sem pensar uma segunda vez. O tipo de quem deveria
manter distância. Mas Kenan o atraía como um poderoso ímã.
Voltando para a casa fria e vazia, livrou-se dos vestígios de
que alguém estivera ali, e isso significava jogar no lixo toda aquela
roupa fétida e o preservativo melado como quem se livra das provas
de um assassinato. Depois de uma rápida faxina, fechou-se no quarto
entrando num estupor catatônico. Em sua mente, as cenas daquela
tarde entraram em looping, e mesmo quando seus pais chegaram do
hospital inventou uma desculpa para que não precisasse olhar para a
cara deles. Tinha feito arte, e isso estava escrito em cada poro de sua
pele corada.
“Pai, mãe… Eu trouxe um cara pra casa…” pensou, olhando
para o teto, “… e transei com ele!”. Rindo de si mesmo tapou o rosto
com as mãos, esparramado na cama. “Ken… O seu cheiro ainda
está no lençol”

•••

Quando Kenan colocou os pés dentro de casa, o odor que


sempre o atormentava parecia mais ameno. Os xingamentos do pai
bêbado não feriram seus ouvidos com a mesma agudeza de sempre. E
da cozinha notou aquele aroma de alho e cebola fritos que tanto
gostava. Sua mãe, que sempre preparava a janta antes de ir para a
casa de drinques, deu uma espiada e notou algo diferente nele – algo
além da roupa nada usual.
— Ken! O que houve? Está todo machucado… –

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


preocupou-se ela, estendendo a mão para as marcas roxas no braço
do filho e para o curativo da têmpora. Mas então percebeu que ele
estava com uma aura diferente, mais leve. — Minha nossa, parece
que viu um passarinho verde! Afinal, o que foi que houve?
Subindo as escadas de dois em dois degraus, ele parou no
alto, de braços abertos:
— Mãe! Acho que estou apaixonado!
Ela riu, balançando a cabeça para os lados enquanto ele se
fechava no quarto. Apesar da preocupação pelas marcas no corpo
dele, sentiu-se feliz pelo filho. Não era novidade para ela ver Kenan
chegar todo ferido por conta de alguma briga, mas quanto tempo
fazia que não o via sorrir verdadeiramente?
Não se lembrava.

••♥••

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Sexta-feira

Os portões da escola ainda estavam fechados e o sol mostrava


seus primeiros raios no céu quando Kenan chegou na praça, diante do
grupo dos sete rapazes que compunham a gangue arruaceira do
bairro. Ele sabia que os encontraria ali, fumando e bebendo entre os
arbustos antes do período letivo começar.
Não usava o uniforme branco – precisaria de um novo –, mas
sim as costumeiras camisetas junto de uma jaqueta de couro preto
cheia de broches, todos com motivos motociclistas e caveiras
prateadas. Os longos cabelos estavam soltos, presos apenas pelos
óculos escuros no topo da cabeça.
Um dos capangas de Victor percebeu que estavam sendo
observados e cutucou o chefe com uma risada sonsa. Victor, com um
curativo no nariz, zombou:
— Olha só quem voltou dos defuntos! – Levantando-se,
cambaleou com uma garrafa de vodca na mão, mantendo-se a uma
distância segura. — Não foi o suficiente a mijada de ontem? Vai
querer um pouco hoje também?
Todos os outros seis se levantaram, rindo com Victor. De
relance, avistaram um jovem ruivo que desceu do ônibus no ponto da
praça e correu na direção de um Kenan especialmente belo. Como Os
Sete estavam ainda entre os arbustos e as sombras das árvores, Lucio
não os notou.
— Bem na hora, anjinho – murmurou Kenan dando um beijo
em seu querubim, que o recebeu de bom grado só porque acreditava

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


que estivessem a sós.
— Mas que merda, novato! – ralhou Victor, estragando o
clima dos dois. — Que porra estão fazendo? Por acaso querem
apanhar mais um pouco?
Lucio congelou, de olhos arregalados. A cor sumiu de seu
rosto e ele simplesmente não conseguia falar. Sensibilizado por sua
reação, Kenan abraçou a pequena cintura por trás e sussurrou-lhe no
ouvido:
— Relaxa, confie em mim…
Afastando-se de seu lenitivo, Kenan abriu os braços
recebendo de diferentes pontos da praça alguns amigos que se
reuniram em torno de todos eles. Eram seis homens no total, todos
com trajes motociclistas. Com Kenan, somavam sete.
— O que acha, Vitinho? Sete contra sete! Uma briga
justa, não?
Victor olhou para os lados com as sobrancelhas elevadas.
Eram pelo menos uma década mais velhos que ele, e os cercavam
com cara de poucos amigos. Não tinha para onde correr.
— Seu desgraçado… que palhaçada é essa, agora? Não era
você quem dava conta de tudo sozinho?
— E eu vou dar conta sozinho. Só chamei meus amigos aqui
para garantir que vocês não trapaceiem ou fujam com estes rabos de
porcos entre as pernas. Não antes de eu permitir, pelo menos.
Lucio deduziu que se tratasse daqueles amigos sobre os quais
Kenan tinha falado. Com a presença deles, sentiu mais confiança.
Conseguiu respirar novamente, e seu pequeno rosto voltou a ter o
tom de sempre. Kenan aproximou-se dele e despiu-se da jaqueta e da
camiseta preta, exibindo o peitoral e os braços cheios de marcas da
agressão sofrida.
— Segura pra mim? – pediu, entregando as roupas e os

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


óculos escuros a Lucio, que abraçou-as junto com seus
cadernos. — Você trouxe as luvas descartáveis?
— Aham… Aqui.
Virando-se para um amigo enorme e barbudo que estava ao
lado, Kenan perguntou:
— E aí, Otto, trouxe minha encomenda?
Um embrulho plástico bem pequeno foi passado para suas
mãos, e ele logo guardou-o atrás da calça.
— Cuidado com isso – alertou Otto. — Se essa coisa quebrar
no seu bolso…
— Relaxa, eu tô ligado – tranquilizou Kenan. Virando-se para
Lucio, aproximou-se da boca pequena e roubou um beijo rápido,
sussurrando só para ele ouvir: — Fique aí e não entre no meio. Não
me distraia desta vez, ok, anjinho?
Lucio concordou com a cabeça. Estava embaraçado, mesmo
sem ninguém ter ouvido. Preferiu não perguntar do que se tratava
a encomenda.
Ao voltar para o centro da roda junto com Os Sete, Kenan
falou em voz alta:
— Lembra, Victor, quando eu disse que você não sabia com
quem estava mexendo? – Ele não obteve resposta. Seu rival estava
olhando para os lados, com receio de abrir a boca. — Olhe aqui, acho
que você deve reconhecer isso…
Puxando os longos cabelos para o lado, Kenan descortinou a
tatuagem com o “V” dos Velazque, fazendo Victor petrificar.
— Aê… ele tá de sacanagem, num é não? – perguntou um
dos capangas d’Os Sete.
O tom de deboche de Victor havia desaparecido. O que ele
demonstrava agora era medo. A fama que os Velazque tinham era

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


grande. Participavam ativamente de protestos por direitos humanos,
sempre de maneiras espalhafatosas e polêmicas com suas motos e
trajes que assustavam os mais puritanos. Os próprios Velazque não se
consideravam uma gangue, mas devido a seus encontros constantes
para duelos corpo a corpo a fama acabou pegando, e eles começaram
a se aproveitar disso. Eram motociclistas que nunca saiam de uma
briga sem antes derrubar pelo menos outros cinco. Diziam os
rumores que só se entrava para a Velazque após derrotar três deles
numa luta mano a mano – e precisava ter uma moto decente, isso era
inquestionável.
— Puta que pariu, novato… Vá se foder… Por que não falou
nada, seu…
— É porque você… – Kenan venceu a distância entre eles
num piscar de olhos. — … nunca perguntou!
Seu soco veio por baixo, atingindo o queixo de Victor sem
que ele tivesse tempo de defender.
Cada um d’Os Sete deu um passo para trás, mas não tinham
como se afastar mais do que aquilo. Estavam cercados por uma
muralha humana. Os Velazque estavam tranquilos, com as mãos nos
bolsos ou de braços cruzados. Pareciam assistir a uma partida de
futebol entre crianças, e já sabiam em qual time apostar suas fichas.
— O que foi? – zombou Kenan, andando de um lado para
outro, ignorando a dor aguda que tinha surgido em seu braço depois
do murro. Ainda sentia as pancadas do dia anterior. — Cadê aquela
coragem toda de uns minutos atrás? Só tem eu de oponente aqui.
Meus amigos são apenas a nossa plateia!
— O que estão esperando? – ralhou Victor, levantando-se do
chão e sentindo o gosto ferroso de sangue na boca. — Peguem esse
desgraçado!
Os seis rapazes que compunham o grupo de Victor se olharam
sem saber o que fazer. Eles sabiam que não teriam chance contra

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Kenan, afinal, lembravam-se de como ele os havia dominado no
campinho, antes de levar a paulada na cabeça. E mesmo que
conseguissem sobrepujá-lo, tinha uma montanha de couro e barba
para esfolar cada um deles.
— Aê, Victor… não leva a mal não, mas eu não quero
apanhar destes caras, brother.
— É… Também passo. Foi mal, cara.
Kenan começou a gargalhar, e precisou apoiar as mãos nos
joelhos para retomar o fôlego. Ele não esperava que fosse ser tão
rápido.
— Chefinho, que porra de amigos são esses que você
arranjou? – perguntou ainda às gargalhadas. — Não teve nem graça!
O olhar que o líder – ou ex-líder – d’Os Sete lançou para seus
comparsas era de matar. Ele sabia que nunca tinham sido um grupo
verdadeiramente unido, e que só andavam juntos por mera
conveniência, mas não esperava por aquilo. Voltou seu olhar para
Kenan e cuspiu uma bola de sangue e catarro no chão, retirando a
camisa.
— Então acho que é só a gente, novato. Mas nada de vir sem
avisar de novo.
— Então abra os olhos!
Com o impulso de uma das pernas, Kenan disparou para o
lado de Victor, que quase não conseguiu desviar do golpe. Ele rolou
no chão e levantou-se novamente, partindo para cima de Kenan com
as duas mãos em punho, tentando sempre proteger o nariz que ainda
doía por causa da cabeçada do dia anterior.
Os duelos Velazque de que Kenan participara haviam-no
deixado preparado para esse tipo de briga. Os socos que tentavam
atingi-lo eram esparsos, sem nenhum tipo de foco. Para cada vez que
Victor pensava em atacar, Kenan já tinha lido sua tensão muscular e

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


previsto o golpe, defendendo sem dificuldade. Nas reuniões dos
Velazque era costume fazerem desafios de um contra vários, então
para Kenan aquilo estava sendo como um aquecimento bobo. E à
medida que sua concentração aumentava, prestava menos atenção às
dores que latejavam pelo corpo.
Lucio não tirava os olhos dele. Seus movimentos eram
perfeitos, e a defesa quase impecável. Estava tão absorto em seu anjo
guerreiro que se assustou quando o grandalhão barbudo ao seu lado
cochichou com voz de trovão:
— Sabe, garoto, ficamos felizes quando o Kenny nos contou
que finalmente tinha arranjado um namorado.
— O quê? Kenny… o Ken? Namorado?
As borboletas voltaram ao estômago de Lucio. Ele tinha
ouvido aquilo direito?
— Oh, perdoe-me. Pode me chamar de Otto – interrompeu a
montanha humana, sem ter ouvido o cricrilar do pequeno ao
seu lado. — O garotão ali ainda é muito jovem. Ele é, de longe, o
mais novo dos Velazque. Por isso consideramos Kenny nosso
mascote.
— Mascote? – Lucio disfarçou o riso. Era engraçado, mas
fofo: “Kenny”, o mascote dos Velazque.
— É. O rapaz tem uma vida complicada, sabe? Pai alcoólatra
e uma mãe cansada cuidando de um bar noturno.
— Bar… noturno? – Lucio sentiu-se sortudo. Pelo jeito Otto
seria um livro aberto sobre Kenan.
— Você sempre repete o que as pessoas falam assim,
mocinho? – perguntou Otto com uma risada.
— Ah, não. Desculpe. É que eu não sei nada sobre ele…
— Ora, o Kenny é simples de se entender, basta dar a ele uma

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


chance. Bem, sobre o bar noturno da mãe, é uma casa de drinques
quase caindo aos pedaços, coitada. O negócio era do pai, mas eles
tiveram problemas na cidade que moravam. Kenny arranjou dívidas
por causa de drogas ao mesmo tempo em que o pai escoava o
dinheiro da família com prostitutas. O velho colocou tudo a perder e
começou a beber todo o estoque, indo parar no hospital mais de uma
vez por isso. Entrou numa fossa pior do que a que Kenny estava. A
mãe decidiu fechar o bar que tinham lá, e abrir outro aqui, para tentar
recomeçar do zero. A pobrezinha leva a família nas costas, e não quer
que o garotão ali ajude com o bar. Sabe, ela tem medo que ele caia na
mesma besteira de beber como o pai ou que tenha alguma recaída
com as drogas, já que os tipos que aparecem ali não são dos
melhores.
— Eu… não sabia. E… que tipo de drogas ele
usava… ou usa?
— Ih, relaxa, menino. Há uns anos ele gostava de curtir uns
baseados, mas era… Como ele dizia mesmo? Ah, sim. Recreativo.
Nunca foi um viciado desses que a gente vê por aí, se arruinando
pelos becos. O verdadeiro problema é que ele pegava tudo fiado com
uma galera barra pesada. Estava liso e precisou da ajuda da mãe para
pagar os caras, que estavam ameaçando a família dele. Mas é um
bom rapaz. Ele não está mais nessa.
Lucio lembrou-se de algo que Kenan havia confidenciado na
classe sobre estar devendo à sua mãe. Provavelmente tinha se
referido a isso.
Enquanto eles fofocavam sobre a vida de Kenan, Victor
rolava no chão mais algumas vezes, tentando desesperadamente
escapar dos chutes altos que miravam seu nariz. Algumas marcas
roxas já começavam a surgir nos braços dele. Ninguém prestava
atenção em Otto e Lucio.
— E… ele já tentou trabalhar com alguma coisa? – continuou
o ruivo, ansioso para saber mais. — É que ele comentou que fica

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


vagando durante a tarde para matar o tempo antes de voltar para
casa… Não seria melhor se…
— Ele já tentou arranjar emprego, mas o pessoal acaba não
confiando, mesmo que seja indicação nossa, sabe? Já falei pra ele
usar menos colares e brincos na hora das entrevistas, mas ele insiste
que “se tiverem que contratá-lo, terão que aceitar o pacote
completo”.
— É, acho que isso é o Kenan sendo o Kenan.
— Verdade – riu o grandalhão. — Gostei de você, Lucio.
Parece um bom garoto. O Kenny nunca teve ninguém assim, nem
homem nem mulher, que lhe despertasse o interesse. Sempre foi um
gato sem dono, entrando pelas portas onde lhe oferecessem cama e
comida, sabe? Mas conheço esse rapaz há tempo o suficiente pra
dizer que com você as coisas são bem diferentes, mesmo sendo tão
recente. Ele sempre repudiou a ideia de se fixar com uma só pessoa,
mas me ligou ontem à noite dizendo que finalmente encontrou
alguém a quem pode chamar de “namorado”. E o Kenny não é de
frescura. Quando tem certeza de algo, não faz rodeios. Espero que
com você ele finalmente sossegue o facho e comece a olhar pra
frente. Pro futuro.
Lucio abaixou a cabeça, abraçando mais forte a jaqueta com o
cheiro de Kenan. Imaginar que seu anjo negro pudesse ter dormido
com vários homens e mulheres deu em Lucio uma pontada aguda de
ciúme. Mas, pelo que Otto disse, agora seria diferente, não seria?
“Namorado…”. Novamente aquilo ecoou em sua mente.
“Quando tem certeza de algo, não faz rodeios”, lembrou das
palavras recém ditas por Otto. Decidiu que perguntaria a Kenan
depois que a poeira abaixasse.
No centro da roda, Victor caiu de quatro, tossindo e cuspindo
o sangue que fluía do fundo da boca, onde um dente ruim se
desprendera com os constantes golpes. Kenan andava em volta como
uma pantera, e aproveitou a posição do líder caído para chutar-lhe o

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


traseiro, fazendo-o bater o queixo no chão.
— Eu tô sendo legal demais ao te deixar com os braços e
pernas livres pra você se defender, seu inútil – sibilou Kenan,
rodeando Victor. — Mas se minha memória não falha, três daqueles
seus porcos me prenderam ontem para você me espancar à vontade.
E por quê? Ah, lembrei! Porque você é frouxo demais para conseguir
me enfrentar mano a mano!
Quando Kenan usou o tênis para pisar na orelha de Victor, um
som de vidro se quebrando foi ouvido. Todos voltaram a atenção para
um d’Os Sete, que tinha estourado a garrafa de vodca no chão,
fazendo com que ficasse com várias pontas afiadas. Agora, segurava-
a com ambas as mãos pelo gargalo. Apontava para Kenan como uma
arma, tremendo da cabeça aos pés.
— Eu também me lembro de você, palhaço… – vociferou
Kenan, deixando Victor de lado por um instante e indo até o rapaz
armado que agora olhava para os lados, procurando uma brecha para
correr dali.
— Sai de perto de mim! – rosnou ele, apavorando-se mais a
cada passo de Kenan em sua direção. Ele afastou-se, mas deu de
costas com um dos Velazque.
— Segura os braços dele – pediu Kenan para o amigo, que
atendeu sem dificuldades. Kenan tinha selecionado os maiores deles
propositalmente.
— Me solta, cara… Eu só quero sair daqui, tô de paz,
mermão…
— Só quer sair, “mermão”? – repetiu Kenan em tom
de zombaria. — Então agora você sabe como eu estava ontem. Eu
marquei bem sua cara: foi você que teve a ideia de me bater com
aquele pedaço de madeira primeiro, não foi? Gostou de brincar de
pinhata, desgraçado?
Tendo ambos os braços presos pelo Velazque, o rapaz soltou o

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


gargalo quebrado da garrafa, suplicando:
— Desculpa, novato… Eu só estava seguindo o
fluxo, juro que…
— Pois eu também só estou seguindo o fluxo – ameaçou
Kenan, agarrando um dos cacos que havia sobrado da garrafa.
Retirou o curativo da têmpora esquerda, revelando os pontos
amadores de Lucio. — Está vendo isso aqui? Vai virar uma cicatriz
que eu vou carregar pelo resto da vida.
— Foi mal, cara… Me perdoa, por favor! Me deixa
vazar daqui, novato…
— Meu nome é Kenan! – rosnou ele, raspando o caco de
vidro na têmpora do outro, sem aviso. Um pouco de sangue sujou sua
mão, e o rapaz apertou os olhos, sentindo o líquido quente
escorrendo pelo rosto. — Agora suma da minha frente.
No segundo em que os braços dele foram soltos tratou de sair
da roda, tropeçando desajeitadamente no caminho. Desapareceu em
uma esquina com uma das mãos tapando a hemorragia.
No lado oposto da roda, Lucio estava dividido. Sentia um
pouco do sabor da vingança, mas ficou com receio de até onde
Kenan poderia chegar. Deu um passo à frente.
— Ken… – sussurrou ele, mas apenas Otto ouviu. Esse
puxou o ombro de Lucio, lembrando-o da promessa de
não se envolver.
— Não vamos deixar que ele faça nenhuma bobagem, garoto.
Fique aqui. Se entrar na roda pode atrapalhá-lo.
“Como ontem”, pensou Lucio, voltando a seu lugar. Ele
elevou as roupas de Ken até a altura do nariz, aspirando
profundamente. Assistir àquela luta estava deixando-o tenso, e aquele
perfume o tranquilizava um pouco.
— Mais alguém com uma garrafa aí? – gritou Kenan para o

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


agrupamento de cinco que havia sobrado da gangue d’Os Sete.
Ninguém se pronunciou. — Ótimo!
Largou o vidro sujo de sangue e voltou para o centro da roda,
onde Victor se levantava e voltava a ter uma postura de luta, mas ele
já estava muito lento. Não conseguia mais desviar dos golpes que
voltaram a ser desferidos, e começou a cambalear.
— Eu posso ficar aqui o dia todo, se quiser – anunciou
Kenan, relaxando os braços. — Mas se você for ficar respirando que
nem um suíno no abate, nossa brincadeira acaba agora!
Com um último arranque, deu um chute certeiro no estômago
de Victor, fazendo-o voar na direção dos cinco ex-membros que
assistiam agrupados. Três se desequilibraram e caíram junto,
amortecendo a queda do duelista perdedor.
Kenan se aproximou ao mesmo tempo em que eles se
afastaram, com medo. Victor se contorcia no chão, segurando a
barriga e tossindo.
A luva descartável que Lucio trouxera foi finalmente vestida
por Kenan, que em seguida retirou do bolso o embrulho plástico
revelando um frasco mínimo. Ele curvou-se e apoiou um dos pés na
perna de Victor, que choramingou de dor.
— Sabe o que tem aqui, Vitinho? – perguntou Kenan, alto e
claro para que todos ouvissem. O frasco continha uma quantidade
pequena de um líquido amarelo.
Com o pouco de audácia que lhe restava, Victor riu. Elevou a
cabeça e vociferou:
— Eu esvaziei minha bexiga em cima de você, bichona de
merda! E seu troco são esses três dedos de mijo?
— É impressionante como você ainda tem coragem de falar
assim comigo – cantarolou Kenan, inesperadamente
tranquilo. — Para seu grande azar, isso aqui não é urina. Quando eu

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


despejar essa belezinha em você, vai desejar que todos os Velazque
tivessem mijado na tua goela.
— Chupa meu pau, veado – provocou Victor, com desprezo.
Cuspiu na direção de seu executor, mas só acertou o chão.
Kenan agachou-se e cravou suas unhas nas bochechas dele. O
olhar felino tornou-se perigoso, e sibilou apenas para ele ouvir:
— O dia em que você enfiar teu pinto broxa na minha boca,
ou na boca do meu namorado, vai ficar sem foder pelo resto da tua
vidinha infeliz, tá me entendendo? Olhe a situação em que está, e
aprenda a hora certa de morder essa tua língua podre!
Com uma das mãos, segurou o dedo médio de Victor e torceu,
fazendo-o urrar de dor. Só parou quando ouviu um estalo. Havia
deslocado o dedo dele.
— HUUAAAAHH! Ele quebrou minha mão! Ele quebrou
minha mão!
— Larga de ser ridículo… – escarneou Kenan, pensando o
que mais deveria fazer com ele.
Lucio não suportava mais assistir àquela cena. Já tinha
bastado, estavam mais do que quites. Deu um pulo à frente e gritou
em tom de súplica, não sendo impedido por Otto desta vez:
— Ken! Por favor, já chega!
Os que restavam d’Os Sete estavam aterrorizados por causa
dos gritos de “ele quebrou minha mão”. Dois dos Velazque riram,
sabendo que não tinha acontecido nada sério com o dedo dele, apesar
de conhecerem aquela dor. Victor choramingava e rosnava de ódio.
Com um suspiro de irritação, Kenan ficou em pé novamente.
Voltou seu olhar para os agressores do dia anterior e apontou
para eles.
— Eu decorei a cara de cada um de vocês, e não esqueci o

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


que fizeram! – alertou Kenan. — Fiquem atentos ao andar pelas ruas,
pois as esquinas têm olhos. E garras!
Nenhum deles respondeu. Estavam estáticos, atemorizados
pela facilidade com que ele havia derrotado o débil ex-líder. Kenan
retomou o frasco de líquido amarelo e esticou o braço, afastando-o de
si como se fosse explodir. Ainda protegido pela luva, abriu com
cuidado.
Próximo a Otto, Lucio se desesperou, e ameaçou correr para
impedir o que quer que fosse aquilo. Achou que Kenan fosse tocar
fogo em Victor.
— Garoto, você está muito tenso, relaxa… Aquilo não é nada
perigoso – revelou Otto, rindo. — Chama-se butilmercaptana. Mais
conhecido como: essência de gambá!
Surpreso, Lucio observou enquanto Kenan despejava todo o
líquido fétido sobre Victor. Todos os que estavam por
perto – inclusive os Velazque – fizeram uma careta e taparam os
narizes.
— Acho melhor vocês levarem ele a uma
enfermaria – lembrou Kenan, falando com um dos integrantes d’Os
Sete. Em seguida, arremessou as luvas e o frasco vazio na orelha de
Victor com força, e deu meia-volta.
Sua vingança tinha chegado ao fim. Ao menos por enquanto.
Foi até Lucio e vestiu novamente sua camiseta e jaqueta,
voltando a colocar os óculos escuros no topo da cabeça. Puxando
Lucio pela mão, acompanhou os amigos Velazque, que debandaram
dali indo todos na direção onde as motos estavam estacionadas.
— Vem, vou te mostrar minha máquina – anunciou,
orgulhoso.
Enquanto isso, Victor era escorado pelos dois colegas de
classe para o lado oposto. Daquele dia em diante, o trio não

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


apareceria mais na escola.
Antes de Kenan e Lucio se juntarem aos Velazque, pararam
entre duas árvores onde poderiam ter alguma privacidade. O maior
acariciou o rosto de Lucio, que o encarava como se ele fosse morder
a qualquer momento.
— Não precisa me olhar assim. Por acaso já se esqueceu do
que eles fizeram com a gente ontem?
Lucio fez que “não” com a cabeça e o abraçou, enterrando o
rosto na abertura da jaqueta e ficando praticamente dentro dela. Seu
ouvido repousava sobre o peito de Kenan, o que permitia ouvir-lhe as
batidas aceleradas do coração.
— É que… eu não queria que você precisasse fazer isso de
novo. Você sabe… Ele provavelmente vai dar um jeito de juntar mais
gente e vir atrás de você, talvez com coisa pior…
— É possível – concordou Kenan, pensativo. Abraçava Lucio
e aspirava o perfume de seu cabelo, de olhos fechados. Era como
entrar nas asas de um ser angelical que emana paz.
Lucio apertou o abraço.
— Eu não quero que aconteça algo com você, Ken…
— Eu sei…
Ele ficou com o olhar perdido, mantendo o nariz entre as
mechas escarlate. Sabia que a vingança poderia ter sido um erro, e já
começava a sentir um pequeno arrependimento por isso. Seu receio
era de ter acionado um gatilho sem volta, e ele sabia como pessoas
daquele tipo poderiam ser inconsequentes.
Há uma semana isso não importaria, mas agora tudo era
diferente.
— Ken… – chamou Lucio timidamente ao se lembrar de
algo. — Conversei com o Otto, e ele disse que você contou a eles que

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


sou… Sabe, o seu… namorado.
Ao dizer isso, saiu do aconchego do peitoral morno e olhou
nos olhos de Kenan.
— Tsc! Otto e aquela boca grande… É, acho que eu devia ter
falado com você antes. Eu não sou bom com essas coisas de
relacionamentos… – Kenan estava atrapalhado com as ideias, e
Lucio notou isso, sentindo-se ainda mais atraído por ele. Quando
Kenan conseguiu formular uma frase na cabeça, continuou: — E
então, você quer isso? Quer namorar pra valer comigo?
Com um sorriso, Lucio ficou nas pontas dos pés e pulou para
os lábios daquele homem indecifrável.
— Pra valer! – respondeu, feliz. — Hãã… Mas não quero que
saia falando isso pra mais pessoas do que as que já sabem… Não
ainda.
— Por mim tudo bem. Mas não garanto que o pessoal da
escola não vá notar. Não vou fazer força para esconder, não sou
disso.
— Já percebi.
Lucio deu de ombros com um meio sorriso, e eles voltaram a
andar, já próximos do estacionamento onde eram esperados pelos
Velazque.
— E… onde você arranjou aquela coisa? A tal essência de
gambá que o Otto me falou?
— Ah, sim. Aquela coisa se chama butilmercaptana. A esposa
do Otto é funcionária de um zoológico, se quer saber. É bem fácil
para ela. Fedor irado, né?
— Nem me fale. Cheguei a ter pena do Victor. Bem… Quase.
Tinham acabado de chegar ao local onde as motos estavam
estacionadas. Lucio, que esperava ver sete delas, ficou surpreso ao

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


contar pelo menos umas vinte. Muitos do grupo tinham ficado por lá
enquanto apenas seis acompanharam Kenan na retaliação. Entre eles
havia várias mulheres também, todas com tatuagens ou um broche
dos Velazque. Todos conversavam animadamente como num
reencontro de amigos. Quando viram o casal se aproximar de mãos
dadas, começaram a assoviar e alguns aplaudiram.
Lucio quis enterrar-se no primeiro buraco que encontrasse.
Kenan apenas acenou, e puxou-o até uma Virago vinho. Sentou-se
nela, pegou dois capacetes e estendeu um para Lucio.
— Aqui, pega. Vamos dar uma volta.
Lucio olhava embasbacado para o veículo de duas rodas em
sua frente. Ela fazia um par perfeito com aquele piloto delicioso e
incrível. Quando Kenan havia falado sobre “ter uma moto”, não
imaginou que fosse aquela moto.
— Caramba! Como você conseguiu comprar isso?
— Eu estava guardando dinheiro para pagar umas paradas
que eu devia, mas… Isso não importa mais. Fala sério, não é linda?
Buscando na memória, Lucio lembrou-se de Otto contando
algo sobre Kenan ter arranjado dívidas com drogas. Preferiu não
comentar.
— Você é louco, Kenan Russel.
— Eu sei! Mas acho que você até que gosta desse louco,
Lucio Corrêa – cochichou Kenan, segurando-o pela cintura.
— Você acha? Está muito cheio de si, Kenny!
— Hey! Só eles me chamam assim!
Sem aviso, o ronco suave da moto de Otto foi ouvido. Era
agradável e nada parecido com as motocas que aceleram por aí
fazendo tímpanos alheios arderem. Entre algumas Harley Davidsons,
Tamburinis e Fireblades, a Virago vinho de Kenan era uma das mais

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


simples.
— Ken, a gente tem que voltar pra escola…
— Hoje você vai matar aula comigo – anunciou, prendendo
os cabelos numa trança antes de abaixar os óculos escuros e colocar o
capacete. — Já faz umas semanas que não dou um passeio longo
nela, e quero matar essa vontade junto com você. E trate de se sentir
privilegiado, pois ninguém nunca sentou nessa garupa antes, ok?
Vamos logo, vista o capacete e guarde estes cadernos na bolsa lateral.
— Humm… ok. Mas só desta vez.
— “Só desta vez”, hein? Ok, vou fingir que acredito.
Todas as outras motos foram sendo ligadas, formando um
coro de motores acelerando. Era algo excepcional e imponente.
— Conheça agora um pouco do que eu chamo de
liberdade! – gritou por dentro do capacete para que pudesse ser
ouvido em meio àquela orquestra célere. — Toma aqui, coloque
minha jaqueta. Senta logo, e segure-se bem!
Lucio vestiu a peça de couro. Ficava meio grande, mas
escondia seu uniforme e fazia com que se misturasse em meio a todas
as roupas pretas. Sentou-se atrás de Kenan, apoiando suas mãos nos
ombros largos.
— Aí não, anjinho. Segure aqui – corrigiu Kenan, colocando
as mãos de Lucio em sua cintura. — Senão me atrapalha.
Era um erro clássico de quem não costumava andar em
garupas. Segura-se na cintura do piloto ou nas laterais da moto, pois
os ombros precisam sempre ficar livres como as asas de um pássaro.
Lucio aproveitou para grudar nas costas dele, e não conseguiu
evitar que ideias libidinosas lhe viessem à mente. Apertou o abraço e
sentiu o tremor da ignição da Virago.
Começando por Otto, o séquito de motociclistas arrancou,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


ganhando as ruas. A sensação de andar entre mais de vinte daquelas
máquinas era singular. Pela primeira vez na vida Lucio sentiu uma
certa satisfação ao ver as pessoas virando o pescoço em sua direção.
Naquele momento tudo parecia diferente. Poderiam olhar o quanto
quisessem: ele sentia-se protegido.
Segurou mais forte na cintura de seu libertador, sentindo os
músculos retesados sob suas mãos. Estava voando! Voando com seu
anjo iluminado, voando com seu namorado. Estava voando
com Kenan.

•••

Após meia hora numa rodovia de alta velocidade, já estavam


bem longe de casa. Todas as motos buzinaram para eles,
despedindo-se com acenos e piscadas de faróis. Os Velazque
continuaram em frente, de volta para suas casas, mas Kenan pegou
um retorno, indo a um local na beira da estrada que ele sabia ter uma
bela vista da cidade.
Estacionando a Virago no vasto gramado, ele olhou para os
lados. Não havia ninguém além deles, da moto, e daquele mirante
com panorama digno de cartão-postal. Lucio encaixou seu capacete
no encosto do passageiro e deu um suspiro. Já tinha ido lá algumas
vezes quando criança, mas agora era especial. Desta vez, ele estava
junto.
Chegando por trás de Lucio, que observava a cidade como
maquete ao longe, Kenan segurou os cabelos alaranjados e puxou
delicadamente, fazendo-o olhar para cima. Para ele. Mesmo naquela
posição desajeitada, curvou-se para sentir os lábios rosados pelos
quais estava ansiando.
Naquele lugar, dando aquele beijo meio de ponta cabeça,
Kenan lamentou o fato de não poder traçar uma linha fixa para seu

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


futuro e segui-la à risca. Pela primeira vez teve medo dos gatilhos
que pode ter acionado em seu passado, e dos que ainda acionaria com
seus instintos inconsequentes. Mas fosse qual fosse esse futuro,
esperava que pudesse ser sempre assim: desajeitado, mas agradável
pela presença de Lucio. Tempestuoso, mas cálido pela proximidade
de sua boca. Doloroso, mas brando por perceber que, a cada minuto
que passava com aquele seu pequeno querubim ruivo, mais
apaixonado ficava.
Depois de um tempo observando a paisagem, sentado no
gramado nos braços de Kenan, Lucio desabafou:
— Sinto que estou nascendo de novo. Você fica me chamando
de “anjinho”, como se eu fosse um ser celestial, mas acho que só
agora estou começando a entender o que é a luz.
Kenan olhou para ele, tentando perscrutar os significados
mais profundos que aquela simples declaração abrangia. Acariciou as
bochechas pontilhadas de sardas.
— Você era um anjinho negro, não é? Com uma corrente
prendendo e machucando suas asas.
— Ainda sou um “anjinho negro” – concluiu Lucio,
levantando os olhos para uma nuvem, sentindo a brisa brincar com
seus cabelos. — Vou ter que me acostumar com essa luz nova. É
como quando estamos por muito tempo fechados num quarto escuro
e alguém abre a janela. Os olhos doem e por um tempo a gente não
consegue enxergar mais nada.
— Então, enquanto sua cegueira durar, vou te guiar.
— Você não pode ver o futuro, Ken. E eu tenho medo
disso – confessou Lucio. — Medo do que pode estar à frente.
— É, eu sei. Eu também.
Voltaram a fazer silêncio, e recostaram-se um ao outro, com
as mãos dadas em leves carícias. Os pensamentos iam longe,

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


transitando entre dolorosos passados, indecifráveis futuros, e um
presente cálido.
Quando as lembranças do mais novo voltaram-se para os
acontecimentos do dia anterior, deu um riso contido.
— Sabe, você tinha razão – começou ele, enigmático.
— Eu sempre tenho razão – brincou Kenan. — Mas, sobre o
quê, desta vez?
— Sobre o que você falou ontem, depois do segundo
banho. É que… está doendo um pouco. Sabe, para sentar na moto
e tudo o mais.
Kenan gargalhou, e beijou-lhe a testa.
— Eu até poderia te pedir desculpas por ter sido um cafajeste
indelicado, mas foi você quem me cavalgou como um anjinho tarado.
— Hey!
Perante protestos de um Lucio muito constrangido, Kenan o
puxou para baixo, rolando na grama e rindo um verdadeiro riso de
alegria. Parando sobre o ruivo, afastou alguns fios dos olhos
castanho-claros e disse com uma voz preguiçosa, quase rouca:
— De certa forma fico orgulhoso de saber que fui o
causador disso.
— Você é muito sádico e exibido…
— Humm… E você, meio impulsivo e perfeccionista.
Lucio mordeu o lábio inferior e arriscou, olhando
intensamente para ele:
— E você é muito lindo…
— E você… é… – Kenan travou, deitando a cabeça no tórax
de Lucio e suspirando. A frase que lhe veio à mente fez com que seu
coração se apertasse dolorosamente. — Droga. Sei que pode parecer

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


cedo demais para dizer isso, mas… Você é a pessoa mais especial
que já conheci.
Lucio não conseguia ver o rosto de Kenan, pois estava
apoiado em seu peito. Ficou grato por isso, porque não conseguiu
impedir que aquela lágrima solitária rolasse. Uma única lágrima de
esperança para a nova vida que começava.
Secando-a, retirou o elástico que prendia aqueles longos
cabelos negros e enrolou algumas das mechas em seus dedos.
— Ken… me beija.

●●●••♥••●●●

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com
Lyan K. Levian

Seguindo um indelével desejo pela igualdade, Lyan


veste seu manto para colocar em palavras tudo aquilo
que acredita sobre o amor e sobre a libido das
pessoas.

“Somos todos anjos em corpos humanos, e anjos


não têm definição de gênero. Logo, não importa a
quem se ame, desde que seja verdadeiro”

Percorrendo o mundo da escrita há alguns anos,


mas somente iniciando publicações do tipo “Boys Love”
em 2016, Lyan traz aos que amam histórias entre
garotos um novo frescor nos enredos, sempre
misturando romance com personagens problemáticos
e lascivos.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Gostou de Anjo Negro e gostaria de um pouco
mais de Kenan e Lucio? Então siga-me nas redes
sociais para saber quando lançar o Volume 2:

Twitter

Fanpage no Facebook

instagram.com/lyanklevian

wattpad.com/user/LyanKLevian

Sim, é claro que vai ter continuação ♥


Kenan e Lucio ficaram cochichando em meus ouvidos,
então tive que ouvi-los!

E lembre-se:
Sexo sem amor é como pastel sem recheio.
E transar sem camisinha é como saltar de
um avião sem paraquedas.
Pense antes de agir.

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Você tem uma conta no Skoob, a Rede
Social de leitores?

Faça um comentário sobre o que você achou de


Anjo Negro! Eu adoraria conhecer sua opinião ^_^

Anjo Negro no SKOOB

lyanklevian@gmail.com

••♥••

O livro “Anjo Negro” também está


disponível na versão física.

Acesse meu site para ver detalhes.


www.lyanklevian.com

Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com


Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com
Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com
Versão gratuita completa adquirida em www.lyanklevian.com

Você também pode gostar