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A vida (e a morte) de um rato de laboratório
Entenda por que roedores são os principais modelos para a pesquisa científica – e o
que vem sendo feito para tornar a vida deles menos desagradável.
Por Guilherme Eler 28 Jan 2020 17h08
CAPÍTULOS
ENTENDA POR QUE ROEDORES SÃO OS PRINCIPAIS MODELOS PARA A PESQUISA CIENTÍFICA – E
POR QUE USÁ-LOS NEM SEMPRE É A MELHOR OPÇÃO.LINHA DE FRENTENOVOS TEMPOS
ENTENDA POR QUE ROEDORES SÃO OS PRINCIPAIS MODELOS PARA A PESQUISA CIENTÍFICA – E
POR QUE USÁ-LOS NEM SEMPRE É A MELHOR OPÇÃO.
Texto: Guilherme Eler | Ilustração: Felipe Del Rio | Design: Maria Pace | Edição:
Alexandre Versignassi
ALUGA-Se kitnet na zona oeste de São Paulo. Meio metro quadrado. Individual ou
compartilhada por até cinco. Ar-condicionado, limpeza semanal. Alimentação e água
inclusas. Preço: dar a vida à ciência. A saga de um rato ou camundongo usado em
pesquisas científicas começa mais ou menos assim, em apartamentos minúsculos. Na
verdade, cubículos que mais lembram uma caixa organizadora – dessas que você usa
para guardar pastas e documentos. Até três semanas após nascerem, os filhotes ficam
na presença de suas mães. Depois de desmamados, ganham acomodações próprias em
salas climatizadas dos biotérios, ou berçários de cobaias. É nesses locais que eles
passarão pelo menos o próximo mês – até serem arrematados para servir a algum
experimento.
A temperatura das salas fica sempre por volta dos 25º C, e a luz que predomina é
artificial. Todo dia, pontualmente às 18h, um sensor faz as lâmpadas apagarem.
Ratos têm ritmo circadiano diferente do nosso: seu relógio biológico diz que o dia
é hora de dormir e a noite, o momento ideal para fazer suas atividades – leia-se
explorar os cantos da gaiola, beber água e comer ração. Os inquilinos, aliás, só
conseguem acessar o bebedouro e o vão onde a comida é depositada ficando de pé ou
escalando a grade de seus apartamentos transparentes – uma tática para tirá-los do
sedentarismo completo.
E é ideal que sejam exatamente assim. Afinal, para acompanhar os efeitos de uma
determinada doença no corpo ou o comportamento de um novo medicamento, cobaias
devem ser feito folhas em branco, sem nenhum outro problema de saúde ou condição
exótica que possa se meter no caminho da ciência. A rigor, ratos de uma mesma
linhagem devem ser indivíduos milimetricamente iguais.
Estima-se que o mercado mundial de ratos de laboratório movimentará US$ 1.59 bilhão
por ano até 2022.
LINHA DE FRENTE
Não há um levantamento atual sobre quantos ratos e camundongos morrem em prol da
pesquisa científica no Brasil. “O número total de roedores utilizados anualmente
está sendo avaliado pelo Conselho Nacional de Controle da Experimentação Animal
(Concea)”, diz Marcel Frajblat, professor da UFRJ e ex-presidente do órgão. Dados
do Concea de 2015 levantados pela revista Piauí, porém, falam em 650 mil animais –
não só roedores – por ano. “Existem cerca de 800 instituições que utilizam animais
no Brasil para fins científicos.” Em 2008, a União Europeia estimou que 77% do
total de cobaias eram camundongos e ratos. Segundo Frajblat, é possível que um
percentual próximo desse também valha por aqui.
Mais: ratos têm a vantagem de passarem por todos os estágios da vida em pouco
tempo. Cumprem a infância nas três primeiras semanas de vida, ficam maduros
sexualmente com um mês e meio de idade e, quando chegam aos 2 anos, já são anciões.
Isso permite aos cientistas coletar dados sobre uma geração inteira de seres vivos
em alguns meses. Uma fêmea de macaco, por exemplo, demora dez anos para iniciar sua
vida sexual, e tem um bebê por vez. O fator econômico também pesa. Dóceis e fáceis
de manipular, ratos podem ser mantidos sem a necessidade de supervisão constante.
Além disso, há o apelo emocional que cada espécie tem para nós, Homo sapiens: não
costumamos ter ratos de estimação, assim como fazemos com cachorros, outro exemplo
de modelo animal ainda usado em testes. A preferência por esse tipo de cobaia
também passa pela criação de variedades geneticamente modificadas.
(2) Cosméticos
No Brasil, a Anvisa recomenda práticas alternativas aos ratos em 17 testes comuns
para o setor de cosméticos e higiene. O uso de roedores no setor ainda não é
proibido – mas é cada vez menos comum.
Via edição genética, ratos podem ser produzidos sob medida. Roedores da linhagem
SHR, por exemplo, vêm de fábrica hipertensos, enquanto os do tipo A/J desenvolvem
tumores com mais facilidade. Outra variedade, ainda, tem mais chances de arrematar
uma doença reumática – como a DBA/1J. Quer estudar obesidade em idosos? É só pegar
um ratinho velho e torná-lo obeso de propósito para ver qual é. Seu objeto de
estudo é a cegueira? Dá para usar um roedor que é cego desde o berço graças à
engenharia genética.
“Você vai fazendo perguntas mais específicas. Com isso conseguimos dar respostas
mais precisas, e acelerar a nossa capacidade de responder questões”, explica o
professor Roger Chammas, coordenador técnico do biotério da FM-USP. “A nossa [dos
pesquisadores] criatividade é um dos limites. O outro é a ética.”
É nos aspectos éticos que a crítica quanto ao uso de animais em laboratório costuma
esbarrar. O quanto é válido amedrontá-los, e fazê-los receber sessões de choques em
sequência? Ou ainda, nadar até à exaustão para descobrir o momento em que “desistem
da vida”? Detalhe: sabe-se que ratos não são boas cobaias para estudar depressão –
como veremos mais à frente.
Os ajustes são muito sensíveis: um estudo de 2014 mostrou que o estresse de cobaias
usadas em experimentos sobre dor também varia com o sexo do tratador, sendo menor
na presença de funcionárias mulheres. Adicionar simples tiras de papel picado,
pedaços de canos de PVC ou iglus de plástico já melhora sua percepção sobre suas
gaiolas.
NOVOS TEMPOS
Aposentar os ratos de testes considerados cruéis é uma tendência que vem sendo
posta em prática na marra. Uma norma do Concea aprovada em 2014 definiu 17 testes
científicos que devem ser feitos via métodos alternativos. A mudança passou a valer
em setembro de 2019, após um período de adaptação de cinco anos, para centros de
pesquisa de todo o Brasil. Entram nessa lista testes como o de irritação e corrosão
da pele e do globo ocular, toxicidade aguda e fototoxicidade (exposição a radiação
nociva). Eles precisarão, agora, ser replicados em culturas de células.
É sabido, também, que certos animais são cobaias melhores que os ratos para certas
aplicações. Projetos que pesquisam aterosclerose, por exemplo, têm nos coelhos
excelentes modelos do que acontece em humanos. Porquinhos-da-índia servem muito
bem, obrigado, para pesquisas em transplantes de órgãos. E peixes-zebra, a estudos
renais. Há estudos que focam em moscas da fruta, por exemplo – e, apesar de não
sequer serem vertebrados, podem dar insights importantes sobre a biologia animal.
A demanda por novas técnicas de pesquisa e novos modelos, porém, não existe apenas
por conta do bem-estar animal. A criação de novos métodos pode estimular o avanço
da própria ciência. Segundo estimativas da Food and Drug Administration (FDA), dos
EUA, 92% das drogas testadas em animais falham em testes com humanos. Testes
malfeitos com ratos podem trazer prejuízos graves à saúde humana.
Outro argumento é que focar tanto em um mesmo tipo de modelo pode estar limitando o
que sabemos sobre nossa própria espécie. Cientistas já provaram ser possível
reverter cegueira e surdez em roedores diversas vezes, por exemplo. Já curaram o
câncer muitas outras. Dife- rentes substâncias que são comprovadamente cancerígenas
em ratos, no entanto, não o são em humanos. E vice-versa.
Existem diversos estudos que criaram cenários para os quais os ratos não foram bons
espelhos dos problemas de nossa espécie – como em simular certos processos
inflamatórios, doenças do sistema imune e a eficácia de drogas para tratar
distúrbios neurodegenerativos, como a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA).
-
Felipe Del Rio/Superinteressante
Ainda que não sejam o melhor perfil para a missão a que foram designados, o fato é
que milhares de ratos vão ser usados uma única vez e, imediatamente após servirem
aos propósitos dos cientistas, mortos. É bem improvável que essa relação deixe de
existir tão cedo: só um organismo vivo pode oferecer um relato em tempo real de
como órgãos e tecidos respondem a certos estímulos, por exemplo. Apesar de
promissoras, técnicas que visam substituir ratos falham ao investigar questões mais
complexas – que envolvem a análise de comportamento ou estudos de longo prazo.
Um rato só costuma morrer por “causas naturais” na rara ocasião em que está
participando de um estudo sobre envelhecimento. Do contrário, costumam sofrer
eutanásia recebendo uma injeção letal indolor ou uma grande carga de anestésicos. A
decapitação ou deslocamento da cervical é outro fim possível. Essas últimas são
usadas caso os
tecidos do roedor precisem ser analisados após a morte e não possam conter traços
químicos do processo de morte induzida.
A forma mais comum com que passam desta para uma melhor é sufocados com gás
carbônico em pequenas câmaras de metal. Trata-se de um procedimento que pode
acontecer também com recém-nascidos, quando, após o nascimento de uma ninhada,
percebe-se que há muitas fêmeas. Por conta de sua dinâmica hormonal, que pode
comprometer o resultado de certos estudos, ratinhas não raramente são abatidas com
poucos dias de vida.
Ratos ocupam o posto de melhor amigo da ciência há pelo menos um século. Nesse
período, salvaram incontáveis vidas e tornaram a estadia humana na Terra mais
cômoda do que podemos imaginar. E, enquanto isso, seguem essenciais para a produção
científica. Passou da hora de tornarmos a vida deles melhor também.
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