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ISBN: 2359-1951

O engajamento existencial das personagens d’O conto da Ilha Des-


conhecida: diálogos entre José Saramago e Jean-Paul Sartre
Ana Yanca da Costa MACIEL1

Resumo
O presente estudo objetiva propor uma discussão em torno da literatura engajada, apontando
contribuições estéticas e políticas, como um gesto intrínseco ao próprio fazer literário, relaciona-
do ao engajamento intelectual dos escritores José Saramago e Jean-Paul Sartre. Salientamos o
comprometimento histórico que os autores reimprimem em sua escrita. Para efeito de discus-
são, investigamos como se dá o engajamento existencial de duas personagens saramaguianas: o
“homem do leme” e a “mulher da limpeza”, d’O Conto da Ilha Desconhecida (1998 [1997]). Leva-
mos em consideração algumas indagações, a saber: Como se situa o escritor, enquanto sujeito
social e artista? De que modo o engajamento que está na sociedade se transforma no texto literá-
rio? Como o engajamento existencial do autor e das personagens constitui um percurso libertá-
rio? Quando se perscruta a referida aproximação, temos o pressuposto de uma “vizinhança co-
municante” na interlocução entre os campos literário e filosófico. A nossa principal hipótese é
uma afirmação que possibilita outros questionamentos sobre a mesma obra literária: o conto é
um projeto que se realiza na ação das personagens por meio da liberdade, necessária ao engaja-
mento. Nesse sentido, os autores direcionam seus leitores ao pensamento crítico-reflexivo sobre
si mesmo e sobre seu próprio contexto social. O embasamento teórico que fecunda o corpus de
nosso trabalho consiste na recorrência a reflexões de autores como Antonio Candido (1993; 2004),
Alfredo Bosi (1996), Arthur Danto (1975), Franklin Leopoldo e Silva (2003; 2004; 2008) e Jean-Paul
Sartre (1963; 2004; 2008; 2012).
Palavras-chave: Engajamento, Liberdade, Literatura.

The existential engagement of the characters of The Tale of the Unknown Island:
dialogues between José Saramago and Jean-Paul Sartre
Abstract
This study aims to propose a discussion about the engaged literature, pointing to aesthetic and
political contributions, as an intrinsic gesture to the literary work itself, related to the
intellectual engagement of the writers José Saramago and Jean-Paul Sartre. We emphasize the
historical commitment reprinted by these authors in their writing. For the purpose of
discussion, we investigated how the existential engagement of two Saramaguian characters is
constituted: the “rudder man” and the “cleaning woman”, from The Tale of the Unknown Island
(1998 [1997]). We take into consideration some questions, namely: How is the writer situated, as
a social subject and artist? How does the engagement that is in society become literary text?
How does the existential engagement of the author and the characters constitute a libertarian
path? When we look at this approximation, we have the presupposition of a “communicating
neighborhood” in the interlocution between the literary and philosophical fields. Our main
hypothesis is an affirmation that makes possible other questions about the same literary work:
the story is a project that takes place in the action of the characters through the freedom,
necessary to the engagement. In this sense, the authors direct their readers to critical-reflexive
thinking about themselves and their own social context. The theoretical basis that fecundates
the corpus of our work relies on the recurrence to reflections of authors such as Antonio
Candido (1993; 2004), Alfredo Bosi (1996), Arthur Danto (1975), Franklin Leopoldo e Silva (2003;
2004; 2008) and Jean-Paul Sartre (1963; 2004; 2008; 2012).

1 Graduanda em Letras-Português na Fundação Universidade Federal de Rondônia. Pesquisadora do GP Ética, Estéti-


ca e Filosofia da Literatura.

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Keywords: Engagement, Freedom, Literature.

Considerações Iniciais

O presente artigo ancora-se no recorte temático e em uma partilha relacional


entre literatura e filosofia, investigando o diálogo entre Jean-Paul Sartre e José Saramago.
Com base no ensaio O que é literatura?, publicado em 1947 na França, verificamos o engaja-
mento existencial das personagens no livro O Conto da Ilha Desconhecida, publicado em
1997 em Portugal. Analisamos o engajamento de duas personagens desse conto, segundo a
noção de “vizinhança comunicante” trabalhada por Franklin Leopoldo e Silva em Ética e
Literatura em Sartre (2004).

Temos, portanto, dois termos que não se homogeneízam, mas distinções


que dialogam e que não se isolam. Essa relação de diálogo salienta sua distinção e uma
proximidade não unificada, porém, com um horizonte em comum: a condição humana
em seus múltiplos desdobramentos.

Nessa discussão em torno da literatura engajada analisamos como o engaja-


mento das personagens e dos escritores podem constituir um percurso libertário. Além
disso, há contribuições estéticas, políticas e históricas, isto é, uma literatura voltada às rela-
ções sociais, bem como às reflexões políticas no bojo da experiência estética que Saramago
propicia ao leitor, resultando em uma característica peculiar e especial em sua escrita.
Também é única a fruição e efeitos que uma história pode causar em seus respectivos leito-
res; para Leopoldo e Silva (2004), trata-se da chamada “literatura da práxis”, sendo um ges-
to imanente ao próprio fazer literário, relacionado ao engajamento intelectual de Sarama-
go. Assim, salientamos o comprometimento histórico que o autor reimprime em sua escri-
ta.

Nesse sentido, levamos em consideração a potencialidade do tema sobre o lei-


tor em reconhecer através da literatura o peso do social e o impacto na própria literatura
como suporte de enfrentamento de quaisquer relações de poder, possibilitando o sobrepu-
jamento da delegação. Isto é, a literatura que se predispõe engajada pode “sacudir”, susci-
tar no leitor um “terceiro olho”, ou seja, um mundo no qual o leitor está inserido e no qual,
antes, a realidade passava despercebida. O enredo d’O Conto da Ilha Desconhecida desperta
e lança luz a indivíduos que são alheios às autoridades de um reino e que concedem a ou-

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trem a tarefa de representá-los. A partir desse pensamento, levantamos uma confluência


discursiva entre os dois campos de saber: Literatura e Filosofia.

Isso provoca hesitação nos ânimos, deixando-nos ainda mais interessados


pela temática escolhida, pois Sartre e Saramago contestam hegemonias ao mostrar em
suas obras que os vestígios do sistema de governo totalitário ainda tornam o homem
servo das relações de poder. Porém, esse mesmo homem vai à literatura à procura de
algo que o leve e o encoraje a encontrar frestas de liberdade que se alargam por meio
de questionamentos reflexivos e críticos de uma realidade que não é determinada. É
preciso compreender que as determinações dos homens devem ser constituídas pelas
próprias escolhas, como expansão de sua existência.

É sempre bom enfatizar que a palavra “existência”, empregada enquanto


termo técnico da filosofia existencialista, já era utilizada na filosofia heideggeriana, sen-
do entendida como um incessante fazer a si mesmo, um projeto inconcluso, suscetível a
possibilidades e modificações à medida que se vive. Vejamos a seguinte explicação de
Eliana Silva:

Para Heidegger a existência não é um feito. Logo, não é também um


perfazer de um processo natural ou histórico. Mas é sempre um por-
fazer, uma tarefa. O nosso ser nos é dado como uma tarefa. É algo a se
conquistar, nunca é um mero feito. Existir é ter que ser. Em outras pa-
lavras, nós somos entes que têm de ser, que têm sempre de novo, a
cada vez, de conquistar o seu ser. (SILVA, 2010, p. 40).

Esse pensamento foi importante para alavancar o desenvolvimento da filo-


sofia existencialista sartreana, que se tornou um marco antropocêntrico do século XX
na França, cuja solicitude voltava-se à existência humana, na prática de almejar o co-
nhecimento de si mesmo, rejeitando a ideologia de uma essência determinante da natu-
reza humana e até mesmo de Deus. Também houve influências sobre eventos contra-
culturais no Brasil e foi importante ícone nas manifestações de luta pelos direitos hu-
manos e civis de minorias étnico-sociais.

A existência será a construção e a incessante busca de sentido do homem,


do contrário, o homem apenas gozaria sua plenitude. Assim, compreendemos que os
valores são criados a partir das escolhas do homem e que o conjunto destas torna o ho-

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mem aquilo que é, mas não o suficiente para mantê-lo da mesma forma, pois ele é livre
para ser como quiser.

Estamos diante de uma vereda de confluências discursivas: literatura e filo-


sofia que dialogam de diferentes formas; a primeira trabalha a linguagem ambígua, en-
quanto a última prima o rigor e a criação conceitual, sem ambiguidades. Elas se encon-
tram por falarem do homem em situação, aguçando no pensamento do leitor a crítica, a
estética: um convite à ação sobre sua realidade.

Eis o risco que a literatura atravessa ao viver suas crises e rupturas ao longo
dos séculos. Portanto, para se pensá-la enquanto reveladora da realidade, pontes preci-
saram ser rompidas, a exemplo, tomemos o pensamento da “arte pela arte”, consolida-
do no século XVIII, alcançando períodos posteriores. Em contraste com esse movimen-
to, a preocupação estética dos prazeres subjetivos não está em primeiro plano, devido
às transformações da ficção em deformar hierarquias e acomodações que o próprio ser
humano constrói e em que se insere; além de mostrar ao homem que ele se tornará
aquilo que escolher ser, se não se furtar à responsabilidade de suas escolhas, pois o ho-
mem é lançado ao mundo, mas não vive isolado dele, como remonta toda filosofia exis-
tencialista, justificada ao longo dos escritos sartreanos. Neste preâmbulo, a arte literária
está distante de ser um refúgio.

O desencantamento do escritor no século XIX provém do seu falso en-


cantamento com a universalidade abstrata. A compreensão da essên-
cia da literatura deveria, no entanto, levar a entender que é possível
escrever para todos os homens se a literatura puder atingir a totalida-
de histórica dos homens (SILVA, 2004, p.215).

Os escritores que se fazem engajados postulam a dialética autor-leitor, ou


seja, a função ativa do leitor a partir da interpretação que faz do texto, premissa da li-
berdade individual, para que a arte realize seu objetivo de levar o leitor ao desvenda-
mento de sua vida individual e social. A interlocução entre os campos literário e filo-
sófico dos escritores Sartre e Saramago indaga a função da escrita, pois tais autores
veem o engajamento como finalidade da literatura, embora o engajamento de ambos
seja dado de maneira diferente. No mais, a ética da literatura aponta que o sujeito pode
estar assujeitado às ideologias que o subordinam e mostra-nos um caminho viável a to-

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dos. Assim, escrever é agir e não se insere apenas no âmbito contemplativo da realida-
de.

Enfatizamos que a palavra é o primeiro ponto de partida da ação no mun-


do, motivando o leitor a mudanças, em uma visão mais crítica que uma literatura com-
prometida fornece nos detalhes vinculados à história. Na defesa de que o homem,
“condenado a ser livre”, tem na própria liberdade o limite para si mesmo (SARTRE,
2008), o ser cria significado ao seu projeto de vida, abandonando sua passividade abje-
ta, porque “[...] a literatura é a única que consegue representar o homem como singular
universal, justamente por ser ambígua, por falar de um determinado homem e com
isso alcançar o ‘homem’” (SOUZA, 2003, p. 161).

Temos como base teórica fundamental os trabalhos de Antonio Candido (1993;


1998), Alfredo Bosi (2002), Arthur Danto (1975), Franklin Leopoldo e Silva (2003; 2004;
2008) e Jean-Paul Sartre (2004; 2008; 2012). Para percorrer essas relações, dissertaremos so-
bre as duas personagens d’O Conto da Ilha Desconhecida, no que concerne à ação por revela-
ção. A seguir nos dedicaremos ao conceito de engajamento, sempre nos referindo à aliança
entre leitor, escritor e objeto artístico.

Conto da Ilha Desconhecida: A trajetória de engajamento das personagens

Ao nos depararmos com a linguagem do conto é necessário entender que, ao


trabalhar com qualquer obra de Saramago, devemos levar em consideração seu estilo
marcante, pois ele toma como estrutura as narrativas tradicionais, que eram transmiti-
das oralmente, de geração em geração. Através da reconstituição da oralidade na escri-
ta, o leitor tem a impressão de estar íntimo do livro e de quem conta a história.

[...] provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se des-


tina a ser ouvido. Quero com isso significar que é como narrador oral
que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas
tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral
não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os
mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns,
breves ou longas (SARAMAGO, 1997, p. 223).

De fato é abrupta a maneira como o leitor é introduzido no conto: “Um ho-


mem foi bater a porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco” (SARAMAGO, 1998, p. 5).

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Refere-se, portanto, a um homem do povo que bate à porta das petições do palácio do rei,
com intuito de conseguir um barco que o leve à ilha desconhecida por mapas e viajantes;
porém, o rei permanecia na porta dos obséquios, enquanto o descontentamento social só
aumentava na porta em que estava o homem que queria um barco. A narrativa comunica
características do ser humano e das suas relações sociais, além da resistência necessária
para se alcançar os objetivos do homem; para que ele alcance o seu desejo será necessária
resistência. Os excluídos resistem como uma medida de se oporem às forças alheias. Sara-
mago trabalha com a memória de seu tempo, bem como a ambivalência dos valores que o
homem de seu tempo vivia, não tão distante da contemporaneidade.

O episódio relatado ocorre no palácio real. O homem que bate à porta do


rei poderia ter levado vantagem de maneira mais eficaz se fosse há outros tempos,
quando as ilhas eram inatingíveis e desconhecidas por geógrafos. Mas nesta análise
não consideramos que a ilha seja ponto de fuga ou refúgio de quem foge do perigo, até
porque o primeiro perigo seria o mar, principalmente para quem não sabe navegar.
Não é fuga, mas a aventura de encontrar a si mesmo, o sonho, o outro, a liberdade, o
devir. O mundo é um problema que nos interessa muitíssimo pela liberdade da vonta-
de de conhecer, pois o homem é uma questão para si mesmo e a maneira como se vive é
também uma questão, pois ele não possui a si próprio; a busca pelo conhecimento de si
deve passar pelo outro. Certamente essas questões não serão solucionadas, mas vivencia-
das pelas personagens.

A ilha desconhecida não é apenas um signo linguístico, seu sentido é arbi-


trário e a ambiguidade tem notável presença; o leitor, por sua vez, se encontra sempre
suspenso entre o significado literal e o ficcional, diga-se de passagem: espaço sem con-
tornos ou molduras, uma aventura incerta nas malhas do texto e que devemos aceitar o
convite de nos desfiar ainda mais com a narrativa para compreender a fundo o seu sig-
nificado. O homem que queria um barco nos aparece aberto ao mundo que assume sua in-
determinação na existência genuína e faz de si aquilo que pode. Além disso, ele diz não à
sua subalternidade justificada por um sistema social do reino que visava determinar e do-
minar as ações dos súditos.

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Nesse percurso, há a dramaticidade de um personagem engajado nas ma-


neiras de lidar com a própria liberdade para descobrir o seu mundo. Ao mesmo tempo
em que ele lida com essa liberdade, aparecem muitas pessoas para determiná-lo, justa-
mente porque os outros também possuem liberdade e podem interpretá-lo de maneira
que ele não tenha controle.

De onde surgiu esse homem? O que quer com essa ilha desconhecida? Ain-
da não sabemos, no máximo poderíamos compreendê-lo em sua contingência, isto é, a
possibilidade que algo aconteça ou não. Deste modo, não há causa primeira, na verda-
de essa personagem nos aparece com as duas pontas da vida cortada: não se sabe o
nascimento, tampouco sobre aonde chegará, simplesmente se sabe que o indivíduo é
para se fazer nesse absurdo que é a existência e nela tecer valores. Em Bosi (2002, p. 16),
compreendemos que:

[...] a partir do momento em que o romancista molda a personagem,


dando-lhe aquele tanto de caráter que lhe confere alguma identidade
no interior da trama, todo o esforço da escrita se voltará para conquis-
tar a verdade da expressão. A exigência estética assume, no caso, uma
genuína face ética.

Assim, a face que a sociedade repele, Saramago lança em sua obra, no viés
de uma potência expressiva de literariedade e em estilística. Nesse sentido, Saramago
não apresenta a resistência somente enquanto tema de narrativa, mas essa resistência
constitui sua maneira de fazer literatura. Afirma-se que a resistência é uma leitura do
que ocorre no conto de Saramago, como um meio de combate aos antivalores de seu sé-
culo. Pode-se interpretar a resistência como tema e resistência como processo de escri-
ta. Vale recordar o combate ao nazifascismo que Sartre enfrentou com sua filosofia, lite-
ratura e teoria literária; sem falar no regime salazarista revisto por Saramago e seu po-
sicionamento crítico enquanto combate à ditadura e sua miséria se alastrando em Por-
tugal; seus livros foram publicados em períodos de turbulências de movimentos soci-
ais. Para Bosi (2002, p. 20), “[...] a resistência ético-política buscava traduzir-se em uma
resistência no plano das opções narrativas e estilísticas”.

Há um antes e depois na narrativa de modo que haja ato de ruptura na nor-


malidade daquele reino. A vida seguia fluxo automático e esse acontecimento produz
outras condutas e respostas. O homem que queria um barco mostra-se reavivado no

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sentido de crítica, de uma personagem engajada no seu direito, entendendo que ainda
não está no melhor reino, por isso foi resistente e avesso ao conformismo, por uma
existência autêntica. Essa autenticidade implica em enfrentar os problemas do homem
em situação e não fugir das condições com que se depara.

Logo, assistimos a um conflito que dará movimento à narrativa. A priori, o


personagem é um desconhecido, ele é um homem em situação2 como os outros súditos do
reino. Não é viável pensá-lo fora desse contexto, pois essa situação forma as suas possibili-
dades. Por outro lado, o personagem é quem atribui sentido ao seu mundo, na medida em
que realiza conquistas. Isto demanda ações, responsabilidade e engajamento.

Notamos que a personagem muda de nome a cada escolha à qual se dedica e


na qual assume riscos. A personagem não é devolvida a si mesma da mesma maneira
que a conhecemos no início da narrativa, passando a ser: homem que queria um barco,
homem do barco e por fim, homem do leme. Com isto, apura-se que esse movimento é
um constante projetar-se para o exterior, de um homem que não está finalizado e não
estagna em si mesmo buscando tornar-se algo que ainda não é. Então temos dois possí-
veis: o homem não é encerrado em si mesmo: pleno em sua existência (pois, o homem
precisa de uma relação exterior para se constituir, há a necessidade em se relacionar
com o mundo no qual está inserido); em um segundo momento, o homem não atinge o
que busca, por isso está sempre à procura de si mesmo 3, do contrário seria indispensá-
vel qualquer outra circunstância que não fosse a si mesmo para ser.

Nesse sentido, o homem pode ser uma ilha na felicidade de fechar em si


mesmo4, priorizando o descompromisso com o seu meio, negligenciando todas as suas
outras responsabilidades com o mundo, isto é, negando a sua existência autêntica. Mas,
para ser livre, neste plano de análise e interpretação, os escritores Sartre e Saramago,
bem como os personagens Homem do leme e Mulher da limpeza atestam que a liber-
dade requer um projeto e com ele criar valores e não negligenciá-los.

2 “Estar em situação, segundo nós, significa escolher-se em situação e os homens diferem entre si como
diferem suas respectivas situações e também conforme a escolha que efetuam de sua própria pessoa”
(SARTRE, 1963, p. 35).
3 “não é o que ele é e é o que ele não é” (SARTRE, 2008, p.128).
4 “Os estados dos Outros não estão abertos a tal privilégio cognitivo e podem ser entendidos como um impossível de conhecer”
(DANTO, 1975, p.49).

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As personagens se revelam ao agirem umas sobre as outras. Isso é de gran-


de relevância: em uma possibilidade de leitura, podemos inferir que Saramago aponta
que o poder se exerce, está em ato, circula e não é estritamente pertencente aos apare-
lhos ideológicos do rei, mas atravessa, se difunde em distintas situações da prática soci-
al e níveis de hierarquia, construídos, sobretudo, historicamente. Por mais que o rei
seja o centro do mando, seus secretários são a periferia reprodutiva de controle, até
chegar à mulher da limpeza, que não tem como nem a quem transferir a responsabili-
dade, obedecendo, por enquanto, ao sistema de subordinação.

Vejamos que essa relação de poder, que funciona como uma rede se alas-
trando, está presente sem que Saramago cite seu nome, sobrevive ao anestesiamento do
povo, à sua dormência e demência como se vivessem em uma bolha em que somente o
conforto dos seus lares interessa. Ainda que o povo estivesse descontente com o rei,
nada foi feito da parte deles. Esse anestesiamento, a sensibilidade bloqueada ou sus-
pensa dos súditos, contribui para a sobrevivência das relações hierárquicas do reino e
sua expansão hegemônica, principalmente com o homem do barco. Não há quem possa
controlar essa relação de poder e submissão silenciosa, mas o escritor aparece para di-
vergi-la e apontá-la em seus variados níveis, lançando-nos implicitamente o questiona-
mento: Como não saber o que está acontecendo em nosso meio!? Como saber e ser pas-
sivo ao aniquilamento invisível, porém, presente!? Isso cabe tanto à condição de subal-
ternidade, quanto ao silêncio dos subalternos.

Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a res-


posta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade
do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por es-
crito ao primeiro-secretário, o qual escusado seria dizer, passava a en-
comenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até
chegar à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme es-
tivesse de maré (SARAMAGO, 1998, p. 8-9).

Nesse sentido, estamos diante das personagens-tipo, que se materializam na


própria predicação: Rei; Capitão; secretários. Isto é, as personagens exercem a função
do próprio nome, perdem a sua subjetividade, deixando de questionar sua situação e tor-
nam-se liquidadas, compondo um coletivo que não possui criticidade ou individualidade,
vigorando um ser de valor puramente econômico em benefício do rei. Contudo, não po-

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demos afirmar o mesmo em relação à Mulher da limpeza e ao Homem que queria o


barco.

Para que o homem consiga o instrumento que o leve ao desconhecido, pre-


cisará encarar os entraves da hierarquia burocrática do rei, que se distancia dos seus
súditos.

Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos
obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não
saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rema-
tou o homem, e deitou-se ao comprido limiar, tapando-se com a man-
ta por causa do frio. Entrar e sair, só por cima dele (SARAMAGO,
1998, p. 9-10).

É possível interpretar, na porosidade de uma obra literária, a crítica à ambição


do sistema de efetivação das atividades públicas e administrativas de um reino, cujo corpo
de funcionários possui cargos definidos, determinando suas rotinas e responsabilidades. O
homem que quer um barco não faz esse jogo, mas joga ao enfrentar o espelho de sua re-
alidade, ele adentra a delimitação do dizível. Assim ele toca e desconforta a tranquili-
dade de rejeitar o seu direito calcado aos pés de outrem. Ele não aceita, ao mesmo tem-
po em que se entrega às transformações para a manutenção da existência, e não deixa
de se responsabilizar por suas decisões.

A personagem sabe que faz parte do reino a ponto de causar descontenta-


mento perante os outros, causando espanto, rompendo com a normalidade do reino.
Esperar por três dias pelo aparecimento do rei é uma das dificuldades do enfrentamen-
to das relações de poder, uma maneira de resistência, já que o rei faz tudo para impedir
que os súditos possam acessá-lo. Seria muito mais simples se a personagem se acomo-
dasse no cotidiano e se deixasse esmagar pelo terrível cansaço de existir. Mas o rei
sente-se curioso e um tanto amedrontado em relação a esse homem que fez com que di-
minuísse o fluxo dos obséquios.

No caso que estamos narrando, o resultado da ponderação entre os


benefícios e os prejuízos foi ter ido o rei, ao cabo de três dias, e em real
pessoa, à porta das petições, para saber o que queria o intrometido
que se havia negado a encaminhar o requerimento pelas componentes
vias burocráticas (SARAMAGO, 1998, p. 12).

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Todos têm vontade de conhecer, inclusive o rei. Nunca se havia sucedido


algo assim, todos estavam surpreendidos com o acontecimento. Queria ele apenas um
barco para navegar, indo à procura de tal ilha que nem ele mesmo conhece? Não é à
toa que o homem tenha causado espanto, um “louco varrido, dos que têm a mania das
navegações” (SARAMAGO, 1998, p. 17); basta tomar distância da rotina e toda crença
que ela germina e atrofia se espanta. Ele não foi levado a sério, tais atos livremente execu-
tados podem adquirir outra forma, tendo em vista que podem ser interpretados de outra
maneira, pois se está sempre em frente a uma liberdade outra, a qual é passível de inter-
venções. As palavras podem assumir significados contrários ao proferido, criando tabus, e
tudo o que nos causa medo afastamos da consciência.

Sequer posso conceber que efeitos que terão meus gestos e atitudes, já
que sempre serão retomados e fundamentados por uma liberdade que
irá transcendê-los e só podem ter significado caso esta liberdade lhes
confira uma. Assim, o “sentido” de minhas expressões sempre me es-
capa; jamais sei exatamente se significa o que quero significar ou se-
quer sou significante; [...] A linguagem me revela a liberdade daquele
que me escuta em silêncio, ou seja, sua transcendência (SARTRE, 2008,
p. 458).

Além de o rei afirmar sua soberania, ele acredita ingenuamente conhecer a


verdade sobre as coisas em geral, sua percepção é de objetos que se mostram como re -
almente são; isso significa que as ilhas existem e não se encontram fora do mapa. Trata-
se de um conhecimento determinado que fora estabelecido; a opinião do rei é determi-
nar o processo de conhecimento em que só se acredita na atualidade do ser, naquilo
que já é. Uma concepção necessária, mas que não conduz a novos conhecimentos.

O caso do homem do leme enfoca reflexões essenciais acerca do ser perme-


ado pela incompletude de sentido, que na ausência de uma essência se constitui conti-
nuamente a si mesmo, determinando-se pelo projeto de encontrar a tal ilha desconheci-
da. Temos um querer saber que provoca nos leitores atenção ao que nos rodeia, no de -
talhamento intrínseco das possibilidades entre o já dito e o que ainda não se sabe. Che-
gar a essa ilha desconhecida engendra um espaço onde o homem do barco possa pen-
sar o pensamento como espelhamento; é a necessidade de agir para se afirmar no mun-
do. Uma simbologia da formação de uma identidade aberta, em que o sujeito descons-
trói arquétipos para ter a sua elaboração discursiva ouvida e realizada.

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Perguntamo-nos, então, até que ponto uma obra literária pode ser levada a
sério? Até que ponto pode-se promover a literatura como integrante da vida humana?
A este respeito, as manifestações de caráter estético confluem com a existência e seus
percalços das ações e situações a que o ser está suscetível.

A identidade do homem que queria um barco é valorada, pois ele toma co-
nhecimento de suas ações. Na procura da ilha desconhecida temos a busca do sentido
de uma existência autêntica, como já mencionado: o enfrentamento dos problemas do
homem em situação durante o projeto em que vive, pois estar no mundo requer justifi-
cativa, alguma valoração do que é esse ser e se é possível encontrá-lo dentro ou fora
dessa essência. Assim, para que o homem do barco encontrasse um significado de vida
que também pudesse servir aos outros, fez-se necessário que o homem do barco se en-
gajasse por ele mesmo, pois o que se sabe ainda não era o suficiente para formar sua
identidade. Desse modo, “só existe a realidade na ação. O homem não é nada mais que
seu projeto, ele não existe senão na medida em que se realiza e, portanto, não é outra
coisa senão o conjunto de seus atos, nada além de sua vida” (SARTRE, 2012, p. 30).

Não há um “quê” que fixe o homem em uma essência pré-determinada a ex-


plicar-lhe seus atos, no entanto, há o que se pode levar em consideração ao que Sartre de-
nomina “Projeto Original”. Logo, o que se constitui enquanto ética da liberdade em Sartre
e Saramago é o projeto no qual se escolhe engajar-se; na perspectiva sartreana, a ética será
norteadora da liberdade e a liberdade faz com que as individualidades existam. A partir
do projeto do homem que queria um barco, podemos compreender: para que haja esse co-
nhecimento de si próprio e referente ao mundo é preciso ação. Assim, podemos dizer que
cada indivíduo é o que precisou escolher para ser; sua conduta revela o seu mundo e sua
relação com outrem. O homem que queria um barco não é apenas desejo, mas há uma fun-
damentação para tal ato, que dá explicação para o seu comportamento.

O homem que queria um barco muda a sua predicação após conseguir o


barco, engajando-se na resistência e luta pela liberdade com intuito de alcançar uma
existência autêntica. Não foi fácil, pois ele foi tiranizado pela população do reino e a im-
paciência vinha crescendo: aquele homem estava incomodando a todos. Para se verem li-
vres dele, resolveram intervir a seu favor. Longe de contribuir com a sua liberdade, a socie-

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dade do homem do barco funcionou como um bando antagônico na disputa pela porta das
petições; em vez de ajudado, ele foi tiranizado.

Por mais que a consciência nos permita estar no mundo com algum saber, é
através da linguagem que constituímos sentidos e fundamentamos o que somos. Pela
linguagem o homem que queria um barco se engaja em seu contexto, dando significa-
dos às suas ações, ele ainda convence e cativa não somente o rei, mas também o capi -
tão, a partir de argumentos persuasivos e ousados, pela sua condição de súdito, e põe
em ação o seu projeto.

Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei,


que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas
só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa que que-
res ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida,
A quem ouviste tu a falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A
ninguém, Nesse caso, porque teimas em dizer que ela existe, Simples-
mente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E
vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um
barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo
dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos,
Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, per -
guntou o rei inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, po-
derão sempre navegar E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será
para mim, a ti, rei, só te interessam as conhecidas quando deixam de o
ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás
(SARAMAGO, 1998, p. 17-18).

Ao mesmo tempo em que a personagem exterioriza suas intenções, ele rea-


liza ações sobre o interlocutor. O rei decide dar-lhe um barco e o protagonista precisa
levar um cartão do rei para que o capitão lhe entregue o barco. Mais uma vez, a lingua-
gem do homem do barco não apenas convence, mas persuade o capitão, fazendo com
este lhe entregue o barco:

O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a


pergunta que o rei tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta
de navegação, ao que o homem disse, Não to aconselharia, capitão sou
eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um com que
possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que
eu respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de ma-
rinheiro, mas tu não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se
fosse (SARAMAGO, 1998, p. 27).

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Nesse tempo em que o homem do barco se dirige à doca, a mulher da lim-


peza já não se interessa pela limpeza do palácio e sai pela porta das decisões “que é
raro ser usada, mas quando o é, é” (SARAMAGO, 1998, p. 23), acompanhando a atitu-
de de resistência do homem que enfrentou o rei. Antes mesmo de recrutar tripulantes,
a mulher da limpeza é a primeira a acompanhá-lo. Posteriormente, ela é encarregada
de organizar os preparativos da viagem, bem como a limpeza do barco.

A mulher da limpeza foi esperá-lo à prancha, mas antes que ela abris-
se a boca para se inteirar de como lhe tinha ocorrido o resto do dia, ele
disse, Está descansada, trago aqui comida para os dois, E os marinhei-
ros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver, Mas deixaste-
os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me que já
não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam
eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de car-
reira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um im-
possível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso. (...)
Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conhe-
ço. (...) que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei (...) mas
quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quan-
do nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber
quem és, O filosofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao
pé de mim (...) dizia que todo homem é uma ilha (SARAMAGO, 1998,
p. 38-41).

A mulher da limpeza é esperançosa, torna-se uma motivadora do homem


do barco, ajudando-o a determinar a sua escolha em agir à procura da ilha desconheci-
da. Por mais que o homem tenha convicção de que a ilha desconhecida exista, ele fica
cabisbaixo por não ter tripulantes que acreditem em seu projeto, mas a mulher aponta
a sua angústia mencionando o que o filósofo do rei lhe contava para que o homem fi-
que ciente de que essa desagradável perturbação ocorre justamente pelo fato de eles se-
rem livres e não terem quem lhes diga o caminho, por não haver certo e errado pré-
estabelecido, por eles mesmos terem de criar e ser responsáveis por isso. Importante
ressaltar que é necessário refletir sobre seu contexto, sobre o mundo que cerca o sujeito,
por outro lado, esse quedar sobre si mesmo é um risco de fechar-se e ainda estar satis -
feito com as próprias concepções; daí a importância de se manifestar em relação a algo
e de ter um ao outro para que as buscas se tornem possíveis, pois o sujeito não é origi-
nário de tudo aquilo que ele é. E é nessa aflição mal definida que a liberdade põe em
questão o ser, e que existe uma escolha a ser assumida, “[...] trata-se de como cada

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consciência assumirá esse possível que, por mais avassalador que pareça, é um possível
entre outros” (SILVA, 2004, p. 144).

O homem do barco se responsabilizou ao enfrentar todos os procedimentos


burocráticos que o palácio lhe ofereceu. Assim, o escritor desmistifica o homem em si-
tuação ao estilizar aspectos confrontados pela existência humana. A literatura traz essa
criticidade, mas não significa, contudo, que seja uma panaceia, que a obra literária faça
milagres na vida do leitor; trata-se de perturbar a intersubjetividade por meio da pala-
vra e da ação. O projeto dos escritores referente aos seus leitores em agir no mundo
pode ser fracassado ou não, pois o leitor também possui a sua liberdade e age a partir
de seus próprios princípios.

A verdade do livro é vivida primeiramente como a verdade da revolta e


da miséria, numa dimensão absoluta que se dá dentro da experiência
subjetiva. [...] E assim a palavra traz primeiramente a carga subjetiva da
produção de um significado absolutamente direto, na medida em que
serve para insultar, para apelar, para confessar ainda em termos de rela-
ção imediata entre os sujeitos, muito mais emotiva do que socialmente es-
truturada. [...] A palavra se torna histórica da mesma forma que a ação:
através de uma produção subjetiva da qual emana algo que se desprende
do sujeito, que dele se distancia a ponto de até mesmo tornar-se estranha
ao próprio sujeito que produziu (SILVA, 2008, p. 1).

Por meio da linguagem estamos em ligação direta com o outro, que cumpre
a função essencial de nos ajudar na leitura da pessoa que somos. O pensamento é filtra-
do pela linguagem: “Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro, Se te-
nho a linguagem, é como se fosse” (SARAMAGO, 1998, p. 27). Apropriar-se da lingua-
gem e exercê-la é o meio para que o sujeito construa sua realidade. O homem do barco
e a mulher da limpeza se mostraram personagens que não se desligam do social, preci-
sam se relacionar com os outros, precisam transmitir seus desejos e por meio da lingua-
gem criam conexão um com o outro. Quando a mulher da limpeza acompanha o ho-
mem do barco nessa empreitada, ela torna-se reveladora do que o homem do barco é,
por meio do qual ele vê a si mesmo, mas ela pode livremente atribuir-lhe interpreta-
ções que escapam à liberdade dele. Ela torna-se essencial, pois existe um hiato, uma
fresta entre o que o homem é e o que ele acha ser.

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Não obstante, o homem do barco se valoriza ao escolher, ao mesmo tempo


em que essa escolha poderá não se realizar, nem o próprio personagem pode ratificar a
sua escolha, provocando instabilidade no íntimo da personagem. Mas se a sua escolha
atual não se concretiza, tornando-se um oposto, ele também poderá mudar seu projeto;
o que não será possível é deixar de escolher.

Em toda escolha, permanece a liberdade de escolher diferente; de ter


podido escolher e de poder vir a fazê-lo. Como nenhuma escolha con-
solida o meu ser, ou o ser que escolhi ser na contingência da situação,
todas são revogáveis. Não há um sustentáculo que apoie a escolha fei-
ta e fundamentalmente meu ser a partir de uma dada opção de ser.
[...] para continuar sendo o que escolhi ser, é preciso renovar a cada
momento o projeto de ser (SILVA, 2004, p. 144).

Por isso que a escolha é um risco, e a realidade não é apenas esse peso de
ter de escolher, por ora poder-se-á ser lançado a uma posição que não se possa alcançar
com a vista. Vejamos o homem do barco, que se atreveu a uma caravela sem saber na -
vegar: ele torna-se responsável por essa decisão e o mundo não se voltará a favor de
sua vontade para que seus desejos se realizem; portanto, ele só poderá contar com as
suas possibilidades.

O mundo como correlato das possibilidades que sou, aparece, desde


meu surgimento, como o enorme esboço de todas as minhas ações
possíveis. A percepção se transcende naturalmente rumo à ação, ou
melhor, só pode desvelar-se em e por projetos de ação. O mundo se
desvela como um “vazio sempre futuro”, pois somos sempre futuros
para nós mesmos (SARTRE, 2008, p. 407).

Ainda que pareça ter sido fácil persuadir o rei e o capitão, cuja finalidade
era conseguir um instrumento que efetivasse seu desejo de busca ao desconhecido, o
trajeto também é adverso, pois o homem do barco vive o perigo, mas o projeto se reali-
za através da consciência da personagem a partir de suas relações com a mulher da
limpeza. Contudo, as personagens tornam-se parte integrante do instrumento que os
levou por meio do projeto de si mesmos.

Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar


na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome
que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré A
Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma (SARA-
MAGO, 1998, p. 62).

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No documentário “Em busca da ilha desconhecida” (KHAMIS, 2001), Sara-


mago diz que qualquer um de nós poderia ser nomeado de ilha desconhecida, “[...]
pois é isso que somos. Desconhecida dos outros e de nós próprias”. Ao nomear a cara-
vela, o homem do leme também ratifica a existência da ilha desconhecida, esse ato de
nomear ou declarar que algo exista é referir-se a uma ação, e, se a palavra se associa
aos atos, interpretamos que a palavra tem sua pujança e seu sentido não está nela mes-
ma, mas naquilo que a possibilita existir e ter significância, do contrário não exerceria
sua função. Quando o homem do leme nomeia o barco, esse ato funciona como a cons-
trução de identidade desse instrumento, mostrando aos próprios personagens que eles
não só conhecem a si mesmos, mas a maneira como os outros podem vir a conhecê-los,
como pertencentes à ilha desconhecida, pois se trata de uma “ação por revelação”
(DANTO, 1975, p. 33), em que nomear a ação revela às próprias personagens em sua
trajetória, fazendo com que elas vejam a si mesmas e deixem de ser ingênuas diante o
desconhecido. Enunciar discursivamente é pôr a língua em uso e esse colocar a língua
em uso é invariavelmente orientado pelos valores que as personagens atribuem aos ob-
jetos do dizer.

O homem do leme não apenas buscou saber de si, mas pode se modificar
conforme as suas possibilidades em exercer sua ação sobre si mesmo, em vez de se dei-
xar dominar pelas hierarquias burocráticas do rei. Como afirma Sartre (2008), a grande
liberdade é dizer não a si mesmo e o que o homem do leme fez foi constatar o desco-
nhecimento em que se encontrava e não se bastar com o que ele era, e sim consolidar a
sua capacidade em refazer-se diante de tantos entraves. E para continuar o que se tor-
nou, foi preciso que ele se renovasse em cada passo de seu projeto.

Interpretamos a metáfora do navegar, como o movimento da existência de


um homem e uma mulher que conduzem sua vida na problemática de encontrar senti-
do ao ser, diante do devir. Isto é, um estar sem ser concluído diante da possibilidade de
algo acontecer ou não. Temos em vista que o homem do leme já tem para onde se direcio-
nar e é a sua própria sustentação, encontrando-se na medida em que se compreende; o que
permite designá-lo é, segundo o pensamento sartreano (2008), o ser em si é o que é, aos
quais só podemos definir segundo conhecimento incompleto pelo motivo de o homem ser
um projeto, é o devir, porque essa consciência é temporal, “pela hora do meio dia, com a

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maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma” (SARAMAGO,


1998, p. 62).

A aventura do homem do leme e da mulher da limpeza é a ausência da ple-


nitude dos personagens; eles põem em questão: o sentido do ser. Mas a construção do
que eles serão só é possível quando se aciona seus projetos. O homem nunca está a par
consigo mesmo, algo o impede de estar satisfeito, justamente porque está separado de
si mesmo por um hiato, uma lacuna, um nada que o atravessa. A partir de seus proje-
tos, ele tenta essa superação da nulidade.

Apontamentos sobre o conceito de Engajamento

Antonio Candido (2004, p. 113) salienta que a literatura confirma e nega,


propõe e denuncia, possibilitando viver dialeticamente os problemas. Fez-se necessário
seguir seu método crítico, caracterizado pela trindade integradora – história, teoria e
crítica – para entender como vem à baila o fenômeno do engajamento na narrativa de
Saramago, com valor simbólico e para expressar uma preocupação dominante, de
modo que o engajamento encontrado na sociedade se transforma no texto literário:

Nestes está formulado, em planos cada vez mais particularizados, o


problema fundamental para análise literária de grande número de
obras, sobretudo de teatro e ficção: averiguar como a realidade social
se transforma em componente de uma estrutura literária, a ponto dela
poder ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta es-
trutura permite compreender a função que a obra exerce (CANDIDO,
2004, p. 8).

Não adotamos a crítica sociológica tradicional e recusamos o ponto de vista


paralelístico, que consistiria em mostrar, de um lado, os aspectos sociais do engajamen-
to e, de outro, a sua ocorrência no conto, sem chegar ao conhecimento de uma efetiva
interpenetração. Em contrapartida, propomos uma interpretação que suspenda precon-
ceitos e não atribua valor unívoco à obra de Saramago, porque “a realidade do mundo
e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permi-
tindo que esta seja estudada em si mesma, como algo autônomo” (CANDIDO, 1993, p.
9).

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Nesse sentido, a literatura é um meio de que se vale para o leitor conhecer a


sua realidade na constante relação entre homem e mundo. Através da linguagem dos
escritores Sartre e Saramago, ambos em seus próprios contextos, evidenciam e tornam
presentes a realidade que nos escapa à percepção imediata, isso é interessante para
compreender que, quando o termo engajamento se prolifera com mais consistência no
século XX, no imediato pós-Revolução Russa de 1917, o autor e o leitor se preocupam
em notar seu meio à medida que interage com o objeto artístico, sendo Jean-Paul Sartre
a figura de referência a uma literatura que movimenta a história, e cuja filosofia percor-
re os caminhos da liberdade. Não à toa, o posicionamento de Sartre enquanto intelectu-
al dá-se pela memória de perduração em sua experiência de cativeiro na ocasião da
guerra, fundamentando a historicização do seu pensamento e abrindo possibilidades
de encontrar uma verdadeira moral.

Ao tomar contacto com essas obras, o leitor politizado do pós-guerra


supôs que a natureza mesma do fenômeno literário houvesse mudado
radicalmente; e que, a partir da luta contra os regimes totalitários e be-
licistas, a escrita passara a ter a mesma substância cognitiva e ética da
linguagem de comunicação, que é o nosso pão cotidiano quer na vida
pública, quer na vida privada (BOSI, 2002, p. 19).

Efetivamente, na necessidade de agudas transformações que vai além do


campo literário, a literatura torna-se valorizada por proporcionar uma consciência re-
flexiva, e da reflexão à prática. Nesse sentido, a subjetividade vincula-se ao conjunto de
valores responsáveis por toda e qualquer tomada de decisão do sujeito, a chamada éti-
ca. Assim, o homem encontra a sua liberdade e contingência, não significa ser uma li-
berdade anárquica ou liberdade em fuga, muito menos a gratuidade, mas fazer com
que a consciência individual se diferencie do outro e se admita como verdadeira. Como
afirma Silva (2004), em seu capítulo de conclusão, a literatura passa a abranger em si a
ética da realidade humana.

Uma plêiade de autores da cultura comunista passa a explorar debates pre-


sentes em seu tempo, contestando o sistema capitalista e os valores burgueses, dedi-
cando-se às questões político-sociais. A população também teve sua crise quando preci-
sou abandonar postos de trabalho, assumindo um posicionamento nas organizações
trabalhistas. Contudo, emerge a crítica cultural no campo semântico, isto é, deixa de ser

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uma luta de camadas sociais ou minorias e passa ser uma luta de oprimidos que bus-
cam afirmar sua identidade, tanto na escrita, quanto na realidade concreta, “[...] o escri-
tor que se despe dos preconceitos e do imaginário burguês para plasmar uma lingua-
gem aderente ao real e aos valores de progresso, justiça e liberdade” (BOSI, 2002, p. 19).

A literatura, no campo dos debates sociais, sem tornar-se panfletária, foi tra-
balhada com precisão em 1948 com a publicação do ensaio sartreano Que é a Literatura?
Esse é o alicerce do engajamento, em que se encontra o rol de argumentações acerca da
narrativa literária enquanto operante da busca pela verdade através da linguagem em
ato, pela linguagem na qual se tece a realidade e se constitui mundos e culturas.

Em Portugal, a literatura engajada esteve relacionada ao combate do regime


salazarista, que fora inspirado no fascismo. Uma época marcada por brutalidade, desres-
peito ao ser humano e exploração sobre as classes mais baixas; além de implantar o Esta-
do Novo (constituição de 1933) com aliança da Igreja Católica. A literatura desse período
se dedicou a denunciar as hierarquias vigentes e a impactar o leitor apontando as defi-
ciências da sociedade portuguesa. Foi uma temática difundida em dimensões sociais da
realidade histórica; nesse sentido, a igreja colaborou com a propagação de ideias como a
da passividade enquanto o melhor caminho. No entanto, muitos escritores não se enqua-
dravam no paradigma e nem ao quietismo, passando a revelar injustiças; em 1939, veio à
tona oficialmente o neorrealismo.

Ainda que Saramago não se enquadre à corrente neorrealista portuguesa,


visto que ele está inserido no período pós-moderno de Portugal, sua base literária nos
primeiros livros publicados é o neorrealismo. Vejamos ainda que sua linguagem nega o
discurso religioso ou panfletário; o autor atua no desmonte de discursos hierárquicos
sem deixar de constituir a perspectiva da estética verbal que tangencia a historiografia
de seu país.

A sutileza de compreender o engajamento é estar ciente de que ele não é


um realismo crítico em busca da verossimilhança em seu grau máximo, pois o fulcro
deste consiste nas coisas existentes fora e independente da consciência do sujeito (SIL-
VA; SANT’ANNA, 2007); trata-se da descrição da realidade enquanto objeto artístico,
isto é, há um ideal a ser alcançado. A diligência do realismo crítico concomitantemente

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discrepa, relacionado ao engajamento literário, pois este propaga propostas de motiva-


ção libertária que pode ou não ser acatada pelo leitor, além do mais, há a preocupação
com a literariedade que faz de uma obra literatura.

AJ - Crer que a literatura pode ajudar a humanidade? JS - A literatura


pode muito pouco. Não vamos embarcar em ilusões, no otimismo.
Ajudar a humanidade? Não sei se a humanidade quer ser ajudada.
Mas a missão do escritor, se existe alguma, é não calar-se, que deveria
ser a missão de todas as consciências. AJ - O senhor acredita num
mundo melhor? JS - Acredito que temos que fazer algo por um mun-
do mais justo, buscar soluções para os problemas. Efetivamente, não
adianta a crença num mundo melhor se continuarmos de braços cru-
zados, apenas acreditando em conceitos como esperança e utopia. É
preciso indignarmo-nos. Ou melhor, deveríamos refletir seriamente
sobre o que está acontecendo no mundo, na economia, na ecologia, na
desigualdade, na indiferença, no racismo (SARAMAGO, s.d., s/p.).

Portanto, a literatura engajada não se volta à informatividade, mas a propa-


gações de ideias; seu estopim está relacionado a um momento de ausências, dificulda-
des e não se restringe apenas a isso, pois os escritores buscavam a prosa que transcen-
desse rumo à ação do leitor. À medida que falar é uma maneira de ação, a literatura
está sempre comunicando algo ao leitor a fim de levá-lo a esse dar-se a conhecer a si e
ao mundo.

Essa interconexão vem afetando leitores na contemporaneidade, pois so-


mos convidados à reflexão crítica do nosso contexto de vida e nosso compromisso de
responsabilidade humana. Nas palavras de Saramago: “Ninguém nunca poderá dizer
que eu o enganei. As pessoas têm a necessidade de que se fale com elas com honestida-
de” (2010, p. 3). Nota-se que era imprescindível que a literatura carregasse em sua es-
tética a ética e não a fuga da realidade, do homem social como produto histórico, sem
abdicar da literariedade:

Assim, a obra de arte torna-se ao mesmo tempo uma retomada imagi-


nária em nome do povo e pelo artista do que acontece e do que acon-
teceu, e a prefiguração profética de uma sociedade que ainda não exis-
te, mas que se retoma a ponto de se dominar mesmo nas suas relações
com o trabalho e a matéria (SARTRE, 2008, p. 30).

O engajamento literário está associado com mais recorrência ao filosofo Jean-Paul


Sartre, que se dedicou política, social e culturalmente à busca de uma nova ordem soci-

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al após a Revolução Russa. No entanto, Sartre não se dedica ao termo engajamento en-
quanto conceito exclusivo nas suas obras, não há uma análise especificamente desse
termo. Por outro lado, há a caracterização ao longo da sua recorrência nos escritos lite-
rários e filosóficos, que, segundo sua perspectiva, refere-se a um valor moral, de um ser
que sabe que escolhe, de um ser que se percebe pensando e que leva à provocação do
que é o homem.

A literatura de engajamento não se restringe ao prazer da contemplação es-


tética, mas essa estética refere-se ao desvendamento do mundo, manifestando o que
pode a literatura no seio social de seu tempo, fomentando algum posicionamento do
leitor frente ao texto, convidando-o à liberdade por meio da prosa, que não se desliga
do contexto social e político no qual está inserido e que passa a ser sua realidade. As-
sim, os autores – Sartre e Saramago – indagam a função da escrita e vêem o engajamen-
to como a finalidade da literatura, sendo a palavra o primeiro ponto de partida da ação
no mundo, levando o leitor a uma visão crítica que a prosa literária fornece nos deta-
lhes vinculados à história, e que possa tomar iniciativa de modificar seu meio, tor-
nando-se responsável por cada ato desencadeado.

É falso que o autor aja sobre os leitores, ele apenas faz um apelo à li-
berdade deles, e para que suas obras surtam qualquer efeito, é preciso
que o público as assuma por meio de uma decisão incondicionada.
Mas numa coletividade que se retoma sem cessar, que se julga e se
metamorfoseia, a obra escrita pode ser condição essencial da ação, ou
seja, o momento da consciência reflexiva (SARTRE, 1989, p.120, apud
SILVA, 2008, p. 72).

As palavras dos romances e contos de Saramago, bem como a filosofia e a


literatura de Sartre se direcionam ao engajamento político. Mas o engajamento do cam-
po literário, de acordo com Sartre, não é o mesmo em relação às outras artes. Há uma
variação, pois em uma tela, por exemplo, o leitor dessa obra pode fazer inferências de
maneira mais desprendida. Outra questão é a singularidade da linguagem que cada
obra apresenta: a linguagem da prosa literária não é a mesma da música, não é a mes-
ma das artes plásticas, nem mesmo a linguagem da poesia.

Mas, dirá você, e se o pintor fizer casas? Pois bem, precisamente, ele
as faz, isto é, cria uma casa imaginária sobre a tela, e não um signo de
casa. E a casa assim manifesta conserva toda a ambiguidade das casas
reais. O escritor pode dirigir o leitor e, se descreve um casebre, mos-

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trar nele o símbolo das injustiças sociais, provocar nossa indignação.


Já o pintor é mudo: ele nos apresenta um casebre, só isso; você pode
ver nele o que quiser. [...] Todos os pensamentos, todos os sentimentos
estão ali, aglutinados sobre a tela, em indiferenciação profunda; cabe a
você escolher. [...] Não se pintam significados, não se transformam
significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor
ou do músico que se engajem? (SARTRE, 2004, p.12).

Ora, devemos refletir sobre essa questão, pois se o poema também lida com
a palavra, qual o porquê de seu engajamento não ser o mesmo que o da prosa? Em
suma, é importante deixar claro que a divergência entre ambas é a seguinte: a poesia
tem a linguagem tal qual espelho do mundo (SARTRE, 2004). Mas não entendamos er-
roneamente, o autor não quer dizer que o poema é uma cópia da realidade, mas que o
poeta não vai tratar da palavra como signo e sua linguagem não é utilitária. Trata-se
ainda da multissignificação que assume o significado de uma palavra no poema, não
há preocupação com a clareza da comunicação. O poeta trata a palavra já como signifi-
cada, justamente para alcançar a efemeridade da imagem que ele quer transformar em
poesia.

Não sabendo servir-se da palavra como signo de um aspecto do mun-


do, vê nela a imagem de um desses aspectos. E a imagem verbal que
ele escolhe por sua semelhança com o salgueiro ou o freixo não é ne-
cessariamente a palavra que nós utilizamos para designar esses obje-
tos. Como ele já está fora, as palavras não lhe servem de indicadores
que o lancem para fora de si mesmo, para o meio das coisas (SARTRE,
2004, p. 14).

Neste caso, o prosador toma a palavra como signo de uma aparência exte-
rior. O escritor passa a ter a função de não deixar despercebido o mundo e diante dele
não se fazer de inocente, justamente porque a realidade não pode ser ignorada. O leitor
precisa ficar indignado, sentindo-se indispensável em relação ao mundo e aos proble-
mas que ele apresenta; por meio disso constitui-se a liberdade do leitor de agir em sua
realidade.

Assim a linguagem: ela é nossa carapaça e nossas antenas, protege-


nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um prolonga-
mento dos nossos sentidos. Estamos na linguagem como em nosso
corpo; nós a sentimos espontaneamente ultrapassando-a em direção a
outros fins, tal como sentimos as nossas mãos e os nossos pés; perce-
bemos a linguagem quando é o outro que a emprega, assim como per-
cebemos os membros alheios. Existe a palavra vivida e a palavra en-
contrada. Mas nos dois casos isso se dá no curso de uma atividade,

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seja de mim sobre os outros, seja do outro sobre mim. A fala é um


dado momento particular da ação e não se compreende fora dela
(SARTRE, 2004, p. 19).

Nessas circunstâncias, compreendemos que o engajamento se dá pelas vias


da linguagem, o mundo visto pela literatura enfatiza a realidade e elucida o leitor da
sua responsabilidade na liberdade em agir no mundo. Tudo isso se incorpora nas per-
sonagens em cenários ficcionais. “Assim, o prosador é um homem que escolheu deter-
minado modo de ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento”
(SARTRE, 2004, p. 20). Isto é, o desvendamento do homem por ele mesmo. Engajar-se
não significa se aliar a uma política partidária, não apenas criticar a história; a proposta
é saber que os atos humanos, bem como as palavras proferidas, revelam uma responsa-
bilidade.

Nesse ínterim, o escritor não evidencia em primeiro plano as suas aventu-


ras, os seus fracassos e melancolias ou vícios, mas o empenho de viver e demonstrar
sua decisão. A importância dos atos humanos elucidados pela literatura deixa de ter o
valor de mercadoria. O ser precisa desse outro e está sujeito a ele na descoberta da pró-
pria exterioridade. “O que cada um de nós busca – e que é da natureza humana buscar
sempre – é o ser o ‘fundamento’ do nosso próprio ser; e aqui descobrimos que o nosso
fundamento reside na liberdade de um outro” (DANTO, 1975, p. 94).

A vida humana é mostrada com a possibilidade de atos a serem realizados.


Não só observamos o mundo, como nele estamos inseridos e engajados; o que seria in-
viável de se realizar era engajar-se em uma sociedade sem valores ou princípios, “O va-
lor é objeto da intencionalidade da vontade, é a força propulsora das suas ações. O va-
lor está no fim da ação, como seu objetivo; e está no começo dela enquanto é sua moti-
vação” (BOSI, 2002, p. 14).

Os valores requerem fundamento para a existência, só são descobertos


quando agimos, isto é, em uma liberdade em ação. Assim, os valores adquiridos para
viver fundamentam as escolhas do homem, mas não têm a ver com a compreensão do
mundo. Os valores existem por meio do homem e por isso o homem é fundamento do
seu mundo, mas os valores com base no ser já não seriam valores (DANTO, 1975).

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O homem de ação, o educador ou o político que interfere diretamente


na trama social, julgando-a e, não raro, pelejando para alterá-la, só o
faz enquanto é movido por valores. Estes, por seu turno, repelem e
combatem os antivalores respectivos. O valor é objeto da intencionali-
dade da vontade, é a força propulsora das suas ações. O valor está no
fim da ação, como seu objetivo; e está no começo dela enquanto é sua
motivação (BOSI, 1996, p. 14).

Importante ressaltar que o ser só é livre quando determina as causas das


suas ações, tornando uma escolha sensata, esta será a maneira como o mundo se revela
para si mesmo, através do engajamento. Se as ações humanas têm causa, a maneira de
ver o mundo será relacionada com as escolhas proferidas. Danto (1975) nos alerta que o
homem também pode compreender o mundo de maneira inadequada, porque não há
um conjunto de qualidades ou características que possa lhe explicar os atos.

Existe apenas um motivo para que o homem não seja responsável por sua
conduta, sua biologia, pelo fato de que o homem não é fundamento de sua própria cri-
ação; no entanto, a caracterização biológica não é determinante de sua conduta. Para
compreender o projeto original de um indivíduo, isto é, o seu porquê, sua maneira de
ser, seu mundo tal como se apresenta, precisamos compreender os fragmentos de sua
vida e o projeto original como princípio disso. Aqui o pensamento se distingue da
perspectiva dos empiristas, não é em um ato que o homem vai se revelar por inteiro.
Ora, não se nasce herói e se for deste modo, o herói jamais fracassaria, pois a cada ato
ele seria vencedor. Não será um ato que determinará o que o homem é ou deixa de ser,
mas o conjunto desses fragmentos, e a cada ato o homem revela um pouco de si.

Em cada escolha, eu faço mais que escolher uma linha específica de


ação; antes, escolho um estilo de escolha. Assim, a escolha original é
feita em cada escolha. Pois as escolhas, lembremo-nos disto, não são
episódios isolados ordenados em série. Em cada escolha eu integro to-
das as escolhas anteriores numa totalidade. [...] se toda escolha é uma
escolha original, não existem atos gratuitos ou sem significação. E, já
que a cada instante eu estou escolhendo um mundo, o meu mundo é
assunto meu (DANTO, 1975, p. 109).

Desse modo, compreendemos que não devemos analisar a ação de maneira


isolada. Os valores relacionados à nossa liberdade se referem à ética existencialista que
nos inquieta diante do percurso da vida, como, por exemplo: que pessoa estamos fa-
zendo de nós mesmos? Especulando a resposta: olha para teus atos. Nesse sentido, ob-

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servamos a comunicabilidade entre os autores Sartre e Saramago por uma narrativa de


resistência:

A translação de sentido da esfera ética para a estética é possível, e já


deu resultados notáveis, quando o narrador se põe a explorar uma
força catalisadora da vida em sociedade: os seus valores. A força desse
ímã não podem subtrair-se os escritores enquanto fazem parte do teci-
do vivo de qualquer cultura. (BOSI, 1996, p. 13).

Salientamos que o autor não carrega a chave do texto, como se somente ele
pudesse dar significado por si só à obra; em cada época ela é a mesma, mas o observa-
dor não, e vai lhe atribuindo um novo aspecto. Levar em consideração o receptor de
determinada obra é pensar no sentido e no efeito que se atribui ao que se lê, além de fa-
zer parte da construção de experiências de tal leitor. Assim, a obra vai se constituindo
historicamente por ser porosa, isto é, passível de releituras e sentidos que não estão fe-
chados. Há o desfecho da narrativa, mas não há o desfecho das múltiplas interpreta-
ções, do desfiar-se com o texto atravessado pela dinâmica entre leitor-texto-autor; é o
que renova as narrativas, atravessando geografias.

Considerações Finais

Ao perscrutar a relação entre filosofia e literatura desloca-se o centro de priori-


dade entre essas disciplinas, pois elas se colocam no plano da interdependência, da trans-
versalidade, do diálogo. Trata-se de uma vizinhança comunicante, como sublinha Franklin
Leopoldo e Silva em Ética e literatura em Sartre (2004). Lidamos com o trajeto intelectual
de dois significativos escritores hodiernos que dão qualidades necessárias ao desempenho
do desvencilhamento do leitor em sua situação histórica, mostrando-lhe possibilidades e
responsabilidades por meio da literatura. No tocante a Sartre, a prosa é um ato de cora-
gem capaz de desvendar o mundo através do signo, sendo, também, um engajamento dia-
logal de liberdades individuais entre o escritor e o leitor. Em Saramago, somos transforma-
dos nas malhas do texto, devemos ter verdades provisórias; o autor dá seu guia, o narra-
dor, e somos levados a uma autoconsciência aguda de nossa própria identidade e suas
possíveis transformações.

Somos constantemente interrogados ao longo da leitura e findamos a interro-


gar nossas próprias crenças e hábitos cotidianos, não mais que isso, somos compelidos a

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vê-los, encará-los e atravessá-los. Tanto Saramago quanto Sartre buscaram o esclarecimen-


to da qualidade do que é ativo no homem, emprazando liberdades. Em entrevista a Antô-
nio Júnior, Saramago diz que escreve dia após dia porque vive desassossegado e para de-
sassossegar busca o ofício da escrita: “Não desejo abandonar-me a comodidade existencial.
Mas o que procuro saber com a minha escrita, no fundo, é essa coisa tão simples e que não
tem resposta: quem somos? Porém, quando esgotar o que tenho que dizer, terei a sensatez
de não escrever mais” (SARAMAGO, s.d., s/p.).

A literatura vive o real na latência das palavras a partir da fantasia em des-


nudar situações da realidade humana, abrindo caminhos possíveis para que o sujeito
viva a sua liberdade de maneira ética. Filosofia e literatura só se podem tecer na lin-
guagem, porém ambas possuem o que se pode chamar de diligência própria e específi-
ca, sempre fortalecendo a maneira do ser humano se superar, fazendo-o descortinar,
com seu próprio olhar, a vida inteiramente vivida e transcendente: ir além de.

O escritor, enquanto sujeito social e artista busca dessacralizar os entraves da


existência que torna o sujeito deslocado do seu meio, por meio do signo linguístico: a
prosa literária. Palavra que se lança em latência rumo ao leitor, para que este acorde para
a sua realidade e passe exercer sua existência no viés do engajamento, uma maneira de
inscrever-se na história. Desse modo, o engajamento social trata de tomar partido em re-
lação ao contexto insatisfatório de determinado sujeito. O intelectual não está em ne-
nhum momento neutro em meio à sua realidade histórica, como notamos diante o expos-
to no que se refere a Sartre e Saramago, pois buscaram transformar o signo linguístico, a
palavra, em ação por revelação, impossibilitando manter a imparcialidade ou ignorância
ou inocência diante a realidade.

O engajamento transforma-se em texto literário quando busca impactar o


leitor na perspectiva de que a literatura não é somente a contemplação dos prazeres;
esse leitor tem um papel para exercer, que é sempre se inconformar com verdades pré-
estabelecidas ou impostas, pois ele também é sujeito da história. A literatura passa do
social à literariedade enquanto convite à liberdade e à responsabilidade em se viver as
próprias escolhas, sabendo que o homem não escolhe apenas por ele mesmo, mas ten-
do em vista outras pessoas (SARTRE, 2012).

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O efeito criado pela narrativa nos relega o lugar comum, o cotidiano que nos
passa despercebido na maioria das vezes, direcionando-nos a uma nova dimensão do
olhar artístico, em que a forma é obscura e o gozo se prolonga em percepção, é sempre
um vir a ser. Se notarmos, ao longo da literatura e outras artes, não haverá obra acabada,
mas aberta e vulnerável a releituras, do contrário não interessa à literatura e outras artes,
do contrário não se pode afirmar que seja um fato literário. Ora, o óbvio nos interessa ao
avesso, e qual extensão da literatura toca-nos o avesso, deixando-nos maravilhados? A
princípio, entre a literatura e nós mesmos, há um véu. Para tocá-la, senti-la (a literatura),
alçar a língua na palavra, cabe a nós decidir: ou rasga-se o véu ou o desfiamos ou, devido
à impaciência de seus prolongamentos, a abandonamos.

Danto (1975, p. 9) descreve “a relação entre o mundo como passa ser em si


mesmo e como é estruturado pelas nossas intervenções de seres engajados”, isto é, a re-
alidade e as representações que dela fazemos. Contudo, para que haja a criação artísti-
ca precisamos nos sentir indispensáveis em relação ao mundo, sobretudo por dele es-
tarmos sujeitos. O engajamento existencial do autor e das personagens constitui um
percurso libertário, a partir do instante em que ambos se engajam na existência autênti-
ca, pois a obra literária é uma liberdade em busca à liberdade do leitor: “aqui aparece
então o outro paradoxo dialético da leitura: quanto mais experimentamos a nossa liber-
dade, mais reconhecemos a do outro; quanto mais ele exige de nós, mais exigimos
dele” (SARTRE, 2004, p. 43). O leitor é quem faz com que a obra literária realmente
exista, no entanto, nada o impede de fechar o livro e pensar que tudo não passa de fic -
ção do universo imaginário. É preciso, contudo, que o leitor ratifique a liberdade que
criou a obra literária e retribua de igual maneira, assumindo suas próprias escolhas e
responsabilidades.

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