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Ação civil ex delicto: problemática e procedimento após a Lei


11.719/2008

(Publicado em RT vol. 888, p. 395-439)

GUILHERME DE SOUZA NUCCI


Livre-docente em Direito Penal, Doutor e Mestre em Processo Penal pela PUC-SP.
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação na PUC-SP.

ANDRÉ VINÍCIUS MONTEIRO


Bacharelando em Direito pela PUC-SP.

DANIEL GEMIGNANI
Bacharelando em Direito pela PUC-SP.

IVAN LUÍS MARQUES DA SILVA


Mestre em Direito Penal pela USP. Professor de Direito Penal e Processual Penal na
Rede LFG de Ensino e na Escola Paulista de Direito – EPD. .

RAPHAEL ZANON DA SILVA


Bacharelando em Direito pela PUC-SP.

ÁREA DO DIREITO: Penal-Processo Penal; Civil-Processo Civil; Constitucional

“Ficamos (...), nos âmbitos do Direito Constitucional e do Direito


Processual Penal – particularmente das matérias e institutos
focalizados e analisados sob perspectiva única da processualística
constitucional-penal, despregada, como de técnico rigor, de
quaisquer idéias tendentes a aproximá-la do processo civil (como se
o processo penal fosse mero apêndice ou acessório deste...) e
impositiva da formulação de uma denominada (e, por certo,
infactível) ‘teoria geral do processo’, inapta, de manifesto, à
2

abrangência das diversificadas realidades dos ramos penal e


extrapenal do Direito Processual.”
(Rogério Lauria Tucci)1

RESUMO: O presente artigo objetiva mostrar uma nova possibilidade de procedimento


da ação civil ex delicto após sua reestruturação pela Lei 11.719/2008. O estudo propõe,
para aplicação das novas normas positivadas, a utilização da hermenêutica
constitucionalista processual, apresentando soluções para as lacunas pragmáticas
decorrentes da reforma processual penal de 2008. Os resultados dogmáticos obtidos
passam, necessariamente, pelo crivo da constitucionalidade e da eficácia do novo
sistema processual.
PALAVRAS-CHAVE: Reforma processual penal – Ação civil ex delicto – Problemática –
Procedimento – Constitucionalidade e eficácia.
ABSTRACT: This essay address a newpossibility civil action ex delicto procedure after
it’s reform by the Act 11.719/2008. The current essay proposes an interpretation that
combines the act itself with the constitucional principles related to it. Nonetheless, the
dogmatic results achieved here may go through an analyses that tackles either the
constitucionality and the effectiveness of the Act 11.719/2008.
KEYWORDS: Criminal law reform – Civil action ex delicto – Concerns – Procedure –
Constitucionality and effectiveness.

SUMÁRIO: Apresentação – Introdução – 1. Aspectos gerais – 2. Procedimento: 2.1 Da


necessidade de pedido específico; 2.2 Dos prazos; 2.3 Da produção de provas; 2.4 Da
sentença: 2.4.1 Da fixação do valor mínimo e dos danos morais; 2.4.2 Da necessidade
de sentença condenatória; 2.4.3 Das excludentes e do erro – 3. Dos recursos e das ações
de impugnação: 3.1 Da habilitação do ofendido como assistente de acusação; 3.2
Embargos de declaração na hipótese de omissão; 3.3 Apelação direta e supletiva – 4.
Problematização: 4.1 Da necessidade de notificação da vítima; 4.2 Da responsabilidade
de terceiros e da comunicabilidade aos herdeiros; 4.3 Limites à atuação do Ministério
Público; 4.4 Da fixação de honorários advocatícios; 4.5 Do conflito de competência
com o juízo cível; 4.6 Aplicação da inovação legislativa no tempo; 4.7 Da aplicação da
inovação legislativa a todos os procedimentos penais – 5. Conclusão – Bibliografia.

1
Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3. ed., p. 7.
3

APRESENTAÇÃO
A principal meta dos estudos de graduação é o binômio formar e instruir o aluno,
capacitando-o para o exercício da sua opção profissional, fazendo-o com firmeza e
confiança, com o fito de atingir sucesso pessoal e estabilidade financeira. Os
bacharelandos realmente vocacionados e talentosos, entretanto, despontam nos bancos
acadêmicos desde cedo e emitem questionamentos e opiniões além do exigido,
firmando posições individuais ricas de conteúdo, prontos a demonstrar não estarem
satisfeitos com o universo da graduação. Avizinham-se da pós-graduação, cuja missão
primordial é impulsionar o raciocínio crítico, apoiando o desenvolvimento das idéias
novas e promissoras, de modo a atingir a construção de trabalhos científicos, que irão
irradiar novos conceitos e instrumentos para a comunidade jurídica.
Desse cenário, surgirão novos mestres e pensadores, cientistas e operadores do inédito,
proporcionando campo fértil ao aprimoramento dos currículos das faculdades, das
matérias a serem ministradas aos alunos da graduação e também ao legislador, como
instrumento pródigo de sementes a plantar no terreno do Congresso Nacional. Como
professor dos cursos de graduação e pós-graduação da PUC-SP, cuidando, há muitos
anos, das ciências criminais, contando com a colaboração entusiasmada dos alunos,
idealizamos e formamos o Núcleo de Estudos e Pesquisas de Ciências Criminais da
PUC-SP. Viabilizamos, finalmente, o contato permanente entre alunos da graduação e
da pós-graduação, afeitos a Direito Penal e Direito Processual Penal, ávidos por estudos
e sequiosos por pesquisas nessas áreas. O projeto encontra-se em seu nascedouro, mas
cercado de entusiasmo e ousadia por parte de seus integrantes.
O primeiro resultado dos encontros, debates e discussões, em torno das reformas
processuais penais de 2008, concretizou-se nas linhas deste artigo, que, com imensa
satisfação, apresento. Sob minha coordenação, após o amadurecimento dos seus autores,
construíram-se os lineamentos da reparação civil em razão do crime praticado, a ser
obtida na ação penal. A Lei 11.719/2008, que introduziu a inédita possibilidade de se
conceder à vítima a indenização civil do dano advindo do crime, lamentavelmente, não
forneceu substrato suficiente para a aplicação segura do novel instituto. Restou à
doutrina a responsabilidade de viabilizar a utilização do instrumento, de modo a não
frustrar, mais uma vez, a parte interessada, que teria o direito, mas não como exercê-lo.
Os três autores bacharelandos, integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisas, André
Vinícius Monteiro, Daniel Gemignani e Rapahel Zanon da Silva fazem parte daquele
4

conjunto de vocacionados e talentosos alunos do curso de graduação, que não se


contentam com o ensinamento, pois o anseio pela reflexão os torna inquietos,
impelindo-os para o universo da criatividade e da busca de soluções aos problemas
encontrados. O autor pós-graduado, componente do Núcleo de Estudos e Pesquisas,
Ivan Luís Marques da Silva, é mais que vocacionado e talentoso, pois já comprovou ser
arguto organizador e condutor dos debates, possuindo espírito crítico invejável,
despontando, pelos seus trabalhos científicos publicados, como esperança viva da nova
geração de criminalistas emergentes na atualidade. Não nos foi custosa a coordenação
dos trabalhos; ao contrário, prazerosa e rica em experiência. Outros alunos preparam
seus artigos, sobre outras matérias, para que, futuramente, possam colaborar com o
pensamento crítico no cenário das ciências criminais brasileiras. Esperamos esteja
lançada a idéia e fomentado o ideal. Daqui por diante, embora com todos os eventuais
percalços, somente haveremos de obter ganhos. Possa o Núcleo de Estudos e Pesquisas
de Ciências Criminais da PUC-SP representar o mais elevado grau de engajamento na
trilha científica, valendo-se do exemplo maior originário da Universidade Católica de
São Paulo, em todas as suas áreas de atuação.

INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, denominada, também, Constituição cidadã,2 fundou
ordem jurídica nova no que diz respeito à composição institucional brasileira e no que
se refere aos paradigmas jurídicos sobre os quais se deve desenvolver toda relação entre
o Estado e o cidadão. Nesse sentido, caracteriza-se esta ordem constitucional por sua
completude e extensão, em marco inaugural de uma fase que se refere às relações entre
os Poderes estatais constituídos e entre ditos Poderes e os cidadãos, caracterizada pela
necessidade de interpretação dos fatos e institutos jurídicos sobre novos paradigmas.
Assim, no contexto legal de valorização do ser humano, inserem-se as recentes reformas
do Código de Processo Penal, que devem, em primeiro lugar, ser analisadas sob uma
perspectiva que as conforme ao texto constitucional, caracterizando-as como resultado
da ponderação legislativa dos princípios encartados na Constituição. Em segundo lugar,

2
GEMIGNANI, Daniel. A coerência na interpretação dos direitos sociais quando analisados pelo STF:
comparação evolutiva do tema. In: COUTINHO, Diogo; VOJVODIC, Adriana (org.). Jurisprudência
constitucional: como decide o STF? São Paulo. Malheiros, 2009.
5

devem estas inovações legislativas ser vislumbradas sob perspectivas estritamente


jurídicas,3 alheias a concepções ideológicas ou partidarismos.
Cabe enfatizar que a inovação legislativa sob análise deve ser festejada pelo seu intento
em compatibilizar o tema processual penal com os valores trazidos pela Constituição de
1988. Dito de outra forma, visam as alterações referentes à ação civil ex delicto
privilegiar traços restaurativos e garantistas no tratamento da infração penal, fazendo
com que o cidadão, quando possível, participe do processo retributivo/restaurativo.
Desta forma, tem a reforma o mérito de promover os valores da Constituição cidadã na
processualística penal.
Portanto, se, por um lado, temos princípios garantidores de uma prestação jurisdicional
justa e em prazo razoável (art. 5.º, XXXV e LXXVIII, da CF/1988), por outro, temos a
necessária garantia a direitos individuais e sociais, e.g., à ampla defesa e ao
contraditório (art. 5.º, LV, da CF/1988), à eficiência da atuação da administração
pública (art. 37, caput, da CF/1988) e ao devido processo legal (art. 5.º, LIV, da
CF/1988). Logo, a aplicação das normas constitucionais há que se pautar por uma das
seguintes hipóteses: (a) pela aplicação de regra resultante da composição de seus
princípios, quando não haja regra infraconstitucional prévia específica, ou (b) pela
aplicação direta das regras legais existentes, pois fruto de uma prévia ponderação entre
princípios feita pelo Poder Legislativo, quando constitucional.
Para a análise das reformas introduzidas pela Lei 11.719/2008 e, mais especificamente,
no que concerne à fixação, pelo juízo penal, de um valor mínimo a ser ressarcido a título
de danos civis causados por uma conduta criminosa, alguns pressupostos precisam ser
fixados: o primeiro deles relaciona-se à presunção de constitucionalidade4 do novo

3
“Definições estipulativas, por sua vez, parecem-se com regras, são prescritivas: delimitam como deve
ser usado um termo ou como ele será usado por certo autor em certo texto ou contexto. As ciências em
geral fazem uso de definições estipulativas: a partir delas procedem as demonstrações. Uma estipulação
determina, marca ou delimita um campo do saber. (...) Cada disciplina ou campo do saber, que em
Aristóteles aparece como uma ciência, tem pontos de partida próprios, apenas seus (Berti, 1998:6). A
geometria tem os seus, a física, os seus, a ética, outros tantos. Por isso, os princípios de que se valerão os
juristas encontram-se normalmente na parte inicial dos textos que estipula e define seu próprio campo.
Fazendo isso, o direito pode destacar-se do saber comum ou leigo a respeito do que se deve fazer, do que
é devido, do que é legal ou ilegal.” LOPES, José Reinaldo de Lima. As palavras e a lei. São Paulo: Editora
34, 2007, p. 27 e 44.
4
“Não por acaso, os clássicos do controle de constitucionalidade sempre apontaram, entre as regras de
bom aviso ou preceitos sábios, que devem presidir, no particular, as relações entre os juízes e a
legislatura, o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, a significar que toda lei, à partida, é
compatível com a Constituição e assim deve ser considerada, até judiciosa conclusão em contrário; ou,
mais precisamente, que a inconstitucionalidade não pode ser presumida, antes deve ser provada, de modo
cabal, irrecusável e incontroverso.” MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo. Saraiva, 2009, p. 141.
6

instituto, buscando a conformação de seus traços às diretrizes constitucionais. Isso será


feito buscando seu fundamento constitucional, resultante da ponderação entre
princípios, a fim de guiar a interpretação jurídica que se desenvolverá; em segundo
lugar, parte-se do pressuposto de que inexiste uma teoria geral do processo a reger tanto
o processo civil quanto o processo penal, mas, ao contrário, entende-se haver princípios
constitucionais gerais, que, pela particularidade de cada uma dessas esferas jurídicas
processuais, a elas se conforma e se afeiçoa.5 Dito de outra forma, quer-se aqui relevar
que a aplicação e a interpretação da legislação infraconstitucional pauta-se por
princípios que, apesar de provindos de uma mesma origem, são distintos em suas
respectivas áreas, haja vista não só as particularidades, como também as contingências
de cada processo legal, necessariamente observadas nos momentos de construção e
aplicação das regras.
Fixados os pressupostos básicos do trabalho, resta analisar a hipótese de o instituto aqui
defendido alçar o processo penal a um novo paradigma interpretativo, ao qual se
agregam características de direito processual civil. A reforma oriunda da Lei
11.719/2008 aproximou os processos civil e penal, levando ao procedimento penal
elementos processuais civis que, por distintos dos processuais penais, com este não se
devem misturar.
A heterogeneidade dos processos penal e civil está presente, inclusive, na interpretação
dada aos princípios básicos, como os da ampla defesa e do contraditório e, em cada um
deles, deve ser aplicado de forma particularizada, singularizada pelas características
próprias da relação a se desenvolver em cada qual, seja visando no cível a reparação de
um ilícito, seja no penal aferindo a culpa do réu. Outro bom exemplo reside na
disponibilidade dos interesses envolvidos nos âmbitos civil e penal: no processo civil, a
inércia do réu acarreta a decretação de sua revelia, enquanto no processo penal, se o réu
é pessoalmente citado e injustificadamente não comparece, será considerado ausente,
mas, a despeito de sua ausência, imprescindível será a presença de um defensor, com o
fim de resguardar os interesses indisponíveis do réu em jogo na ação penal. Se o réu for
citado por edital e não comparecer nem nomear defensor, suspende-se o processo e a

5
NUCCI, Guilherme de Souza. Ciências criminais: a união indissolúvel nos campos legislativo e prático.
Boletim IBCCrim 193/6-7, ano 16. São Paulo: IBCCrim, dez. 2008.
7

prescrição (art. 366 do CPP), não sendo possível ao magistrado decretar a sua revelia
tendo em vista a indisponibilidade dos interesses envolvidos.6
Assim, a fixação pelo juízo penal de valor mínimo a ser ressarcido a vítima pelo réu, há
que se reger – pois civil a reparação –, pelos princípios próprios do processo civil, no
qual se busca não a culpa ou inocência do réu, mas o an debeatur e o quantum debeatur
resultantes do crime. Conseqüência disso, valendo-se dos princípios processuais civis, é
a aplicação do princípio dispositivo e da necessária intervenção da vítima como
assistente de acusação para, valendo-se do seu direito de ação, deduzir pedido próprio a
viabilizar a formação de litígio cível, bem como, produzindo as respectivas e pertinentes
provas do dano, a fim de que se possa dar parâmetro ao réu para a sua defesa e ao juízo
para a fixação de um valor mínimo passível de ressarcimento.
Concluindo, objetiva-se com o presente artigo instigar a discussão sobre este novo
instrumento positivado pela legislação, que, por seus contornos, e pelos pressupostos
aqui apresentados, requer discussões mais detalhadas sob o prisma científico, seja pela
sua incipiência, seja pela imperiosa necessidade de interpretação e aplicação
constitucional deste novo instituto processual.

1. ASPECTOS GERAIS
De início, importante ter em foco o mote legislativo que ensejou a reforma ora em
apreço. Anteriormente a esta, a sentença penal condenatória passada em julgado
configurava título executivo judicial, porém ilíquido (art. 475-N, II, do CPC). Desta
forma, nada obstante a certeza do título quanto às partes passiva e ativa, bem como
quanto ao objeto da obrigação – qual seja, o prejuízo emergente de infração penal –, a
vítima deveria iniciar, antes da ação executória cível, procedimento de liquidação.
Nestes termos, o parágrafo único do art. 475-N especifica que no caso de sentença penal
condenatória, o mandado inicial incluirá a ordem de citação do devedor, no juízo cível,
para liquidação ou execução, conforme o caso.
A ação civil ex delicto, antes da reforma, eliminava a necessidade de se ajuizar processo
de conhecimento para que demonstrada fosse a responsabilidade do autor da infração
penal, aproveitando-se, para tanto, a sentença penal condenatória como título passível
de liquidação e execução.

6
A respeito da revelia no processo penal em decorrência da citação por hora certa (art. 362 do CPP), cf.
SILVA, Ivan Luís Marques da. Citação por hora certa no processo penal. Disponível em:
[www.novacriminologia.com.br]. Acesso em: 12.04.2009.
8

Como ensina Tourinho Filho, “receber a pena, por si só, não basta. É preciso que se
restabeleça, tanto quanto possível, o status quo ante, isto é, é preciso que desapareçam
os efeitos do crime. E a reparação da ofensa causada pelo delito só será completa se à
pena se somar a reparação do dano”.7 Em virtude de tal entendimento, optou o
legislador por facilitar o ressarcimento do prejuízo causado pela infração penal,
suprimindo a obrigatoriedade da ação de conhecimento para apurar a culpa do réu, posto
já ter sido este condenado na seara criminal de forma definitiva.
Apesar de referido desembaraço, as vítimas, incrédulas com a eficiência judiciária ou
ignorantes quanto ao seu direito à reparação, em considerável percentagem de casos,
deixavam de propor a cabível ação de liquidação. Antes da reforma processual civil
trazida à baila pela Lei 11.232/2005, a liquidação era processo autônomo com petição
inicial, taxa judiciária, citação, instrução, recursos etc., razão pela qual, em diversos
casos, o custo e a demora acabavam por desinteressar a busca pelo ressarcimento
decorrente da infração criminal.
Assim, primeiro, com a transformação da liquidação em etapa procedimental e, agora,
com a possibilidade de o juiz criminal fixar valor mínimo a ser indenizado na própria
sentença penal condenatória, respeitaram-se os princípios da celeridade da prestação
jurisdicional e da eficiência, valorizando a vítima e desburocratizando o pleito
ressarcitório.
O legislador, ao inserir o novo inc. IV, no art. 387 do CPP, estimulou o acesso ao
Judiciário para a reparação dos danos. Com isso, o magistrado criminal recebe nova
parcela de competência para fixar, quando possível, valor mínimo a ser ressarcido à
vítima da infração penal. Trata-se de atribuição de competência eminentemente civil ao
juiz criminal.
O direito público subjetivo, que tem qualquer pessoa de exigir do Estado a prestação
jurisdicional, nos moldes desenhados por Liebman,8 mantém-se intacto, deslocando-se o
pedido da esfera civil para a penal, com opção de constituição de título certo, líquido e
exigível na própria órbita criminal de jurisdição.
Note-se que esta sobreposição de competências em nada colide com nosso sistema
jurídico-positivo; a Jurisdição é entendida como o poder-dever do Estado aplicar o

7
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. vol. 2.
8
Enrico Tullio Liebman desenvolveu o conceito de ação, hoje aceita pela ampla maioria da doutrina, na
aula inaugural do curso de processo civil na Universidade de Turim, em 1949. Scritti in onore di
Francesco Carnelutti. Pádua, 1950, p. 425) apud TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo
penal, p. 302-303.
9

direito aos casos concretos que lhe sejam apresentados, compondo conflitos de
interesses; sendo manifestação da soberania estatal, é una e indivisível, de forma a ser
atribuída in totum aos agentes encarregados da função jurisdicional. A distribuição da
jurisdição pela lei em parcelas é a competência jurisdicional. Esta distribuição pode
cumular matérias dispositivas e indisponíveis na figura do mesmo magistrado sem que
haja incompatibilidade constitucional.
Qualquer juiz togado pode conhecer e julgar lides nas mais diversas searas jurídicas,
desde que estabelecido por lei. Esta é a competência, que busca delimitar o exercício da
função jurisdicional, determinando com fins metodológicos as hipóteses de atuação dos
órgãos judiciários. Na recente reforma entendeu-se por bem permitir ao juízo penal
estipular valores indenizatórios decorrentes de infrações penais, atribuindo-lhe
competência para tanto.
Frise-se, também, não ser esta a única atribuição cível do juízo criminal. A este também
compete o conhecimento de matérias, nada obstante o caráter primordialmente cível,
com estreita conexão às questões penais, tais como o seqüestro de bens adquiridos com
os proventos da infração, a hipoteca legal sobre os imóveis do acusado, bem como a
restituição de objetos apreendidos – sendo certo que este último instituto já possibilita
em alguns casos, ainda que de forma indireta, a reparação do prejuízo material sofrido
pela vítima. Confira-se a hipótese de furto, em que o autor do fato é detido com a
integralidade da res furtiva, sendo esta restituída ao proprietário, não mais se falando
em dano patrimonial.
Diferentemente do que ocorria antes do advento da Lei 11.719/2008, regendo-se o
processo penal única e exclusivamente pelas normas processuais penais, passa agora a
integrar o processo criminal, em virtude do caráter civil do valor a ser fixado na
sentença penal condenatória, alguns elementos do processo civil. Nesse sentido, o
procedimento penal deve se fundamentar por duas lógicas processuais: pela penal,
naquelas matérias eminentemente criminais; pela civil, no que se refere à fixação do
valor mínimo a ser ressarcido pelo autor da infração penal. Há, portanto, um
sincretismo, que bem demonstra a distinção ontológica – senão conceitual – entre os
processos civil e penal e que, aliás, não é exemplo inédito em nosso ordenamento.
Como exemplos desse sincretismo em nosso sistema, qual seja, de concorrência e
coexistência das competências civil e penal na figura do mesmo juízo, pode-se citar as
recém criadas Varas da Violência contra a Mulher (art. 14 da Lei 11.340/2006), as
quais, em estrita obediência à idéia de que a jurisdição é una, encerram competência
10

civil e penal, elencando, em seu art. 22, medidas de caráter eminentemente penal, como
a proibição de freqüentar determinados lugares, e outras de cunho estritamente civil,
como a prestação de alimentos provisórios.
Na mesma linha, temos a Lei 9.099/1995 que confere ao magistrado a condução das
tentativas de composição dos danos civis, inclusive, quando for o caso, com a presença
do responsável civil, sendo certo que, uma vez homologado o acordo pelo juízo, este
terá eficácia de título executivo judicial. Ainda citando exemplos, merece menção o
disposto no art. 99, VII, da Lei 11.101/2005, autorizando ao juiz da falência ordenar a
prisão preventiva do falido ou de seus administradores.
Por fim, pode-se mencionar a multa reparatória, prescrita pelo art. 297 da Lei
9.503/19979 (Código de Trânsito Brasileiro) que, para grande parte da doutrina e
jurisprudência, confere competência cível ao juízo penal.10

9
Cabe observar que frente às idéias trazidas no presente estudo, merece dito instituto prescrito pelo CTB
ser relido, haja vista a forma desarrazoada e automática com que vem sendo aplicado. Assim, propugna
aqui pela sua adequação não só aos pressupostos adotados neste artigo e expostos na introdução, e.g.,
separação entre os processos civil e penal, com a conseqüente aplicação dos princípios civis ao
procedimento em que se fixará a multa reparatória, como a sua constitucionalidade, com a indispensável
conformação da regra posta às diretrizes traçadas pelos princípios constitucionais.
10
Nesse sentido NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, e COSTA JR.,
em Comentários aos crimes do novo Código de Trânsito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
Diferentemente, a defender a natureza penal do instituto, encontramos JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano
Diniz, em Legislação penal especial, 3.ed. São Paulo: Premier, 2005. vol. 1, p. 366. Seguimos a primeira
posição pelos seguintes motivos: (a) a multa reparatória tem o mesmo objeto e escopo da indenização
civil; argumentariam os opositores que o mesmo ocorre com a prestação pecuniária, rebateríamos a
sustentar que esta é substitutiva de pena privativa de liberdade, e se descumprida converte-se novamente
naquela, enquanto que a multa reparatória é autônoma, e se descumprida caberá tão-somente a execução
dos valores, tal qual a indenização civil; (b) ainda em comparação com a prestação pecuniária, para que
esta seja fixada não se faz necessário tenha sido comprovado a existência de qualquer prejuízo, já para
que se estipule multa reparatória exige-se a comprovação do dano material, além de não poder ser
superior a este, como não poderia deixar de ser na reparação civil; (c) também o fato de não poder ser
fixada isoladamente, mas apenas cumulativamente com outra sanção, nos faz refletir quanto à sua
natureza penal; (d) para sua aplicação é necessário que o juiz já tenha cominado uma pena compatível
com o fato sub judice, ora, ao estabelecer esta pena considerou o magistrado todo o desvalor de conduta e
de resultado do fato, de forma que cominar uma nova sanção em razão do dano causado seria analisar
mero desvalor de resultado, o que é inadmissível no sistema penal moderno sob pena de retomarmos a
responsabilidade penal objetiva e a máxima medieval versari in re illicita operam danti rei illicitae,
imputatur omnia quae sequuntur ex delicto; (e) aqui deixamos uma indagação: haveria afronta ao
princípio da legalidade? Sobre o princípio expõe Luiz Regis Prado, “exige-se que o legislador descreva da
forma mais exata possível o fato punível. Diz respeito, em especial, à técnica de elaboração da lei penal,
que deve ser suficientemente clara e precisa na formulação do conteúdo do tipo de injusto e no
estabelecimento da sanção para que exista segurança jurídica” (Curso de direito penal brasileiro. São
Paulo: Ed. RT, 2008, p. 132-133); encontramos no art. 297 do CTB, porém, a disposição vaga de
abrangência a qualquer ilícito de que resulte dano patrimonial, sendo também indeterminadas as margens
da pena, que variará de acordo com o resultado, a ferir os princípios nulla poena sine lege stricta e nulla
poena sine lege certa; isto porque o cidadão, ao dirigir sua ação aceita um resultado provável, e por este
deve responder, no entanto, havendo circunstâncias que fogem ao seu conhecimento – não pode prever
todo o prejuízo material que resultará de sua ação –, não podendo ser por isso penalizado, mas apenas
responsabilizado civilmente. Nesse sentido também se direciona o entendimento do STJ, a possibilitar a
fixação cumulativa da multa reparatória com a prestação pecuniária substitutiva de pena privativa de
11

Assim, anteriormente à alteração introduzida pela Lei 11.719/2008, o sistema adotado


pelo legislador pátrio, ainda que com certa mitigação, visto a influência da coisa julgada
penal condenatória na seara cível, era o da independência, vez que a reparação se daria
exclusivamente no âmbito civil. No entanto, como expõe Tourinho Filho, há outros
modelos de sistematização da actio civilis ex delicto, e que nos servirão como
parâmetros de análise: “Há os sistemas de confusão (as duas pretensões deduzidas num
só pedido), da solidariedade (as duas pretensões deduzidas num mesmo processo, mas
em pedidos distintos), o da livre escolha, segundo o qual o interessado tanto pode
ingressar com a ação civil na jurisdição civil como pleitear o ressarcimento na sede
penal, no próprio processo penal, e, finalmente, o sistema da separação: a ação civil
proposta na sede civil e a ação penal na Justiça Penal”.11
A novel legislação, porém, modifica essa sistemática, de forma que o interessado, se
assim pretender, poderá deduzir seu pedido no próprio processo penal, ou poderá optar
por fazê-lo em demanda civil, sem que isso lhe acarrete qualquer prejuízo, como
exporemos a seguir.

2. PROCEDIMENTO
2.1 Da necessidade de pedido específico
A novel legislação veio, conforme esperado pela melhor doutrina, simplificar os meios
pelos quais se busca ressarcir a vítima quanto ao dano causado pelo autor do delito.
Nada obstante a nobre intenção do legislador, este deixou de tratar – voluntária ou
involuntariamente?12 – de pontos que entendemos de suma importância para a perfeita
aplicação da lei.

liberdade, posto que de naturezas diversas (REsp 772.721, rel. Paulo Medina, e REsp 736.784, rel. Felix
Fischer).
11
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. cit.
12
Questão interessante a ser posta e que grande influência pode acarretar no processo hermenêutico diz
com relação à voluntariedade ou involuntariedade do legislador em editar lei que prescinde de integração.
Observa-se que não se está aqui a ressuscitar a já ultrapassada técnica interpretativa de busca da mens
legislatoris, mas sim, se está a propor pressupostos de análise, quais sejam: (a) voluntariedade do
legislador em produzir norma lacunosa, pois, prevendo o legislador a complexidade e a dificuldade
inerentes à instituição de uma legislação deste jaez, preferiu deixar aos intérpretes e aplicadores sua
conformação, de forma tal a promover uma maior aceitação da novel legislação; ou, (b) involuntariedade
do legislador ao produzir norma que necessite de integração, pois imprudente, já esqueceu-se o legislador
das regras e contingências jurídicas, aprovando lei fadada ao fracasso, cabendo, assim, aos intérpretes e
aos aplicadores do direito esforçarem-se no sentido de conformar as alterações legais à Constituição.
Como norte para quem se disponha a investigar a voluntariedade ou involuntariedade do legislador, traz-
se aqui, exemplificativamente, excerto do relatório apresentado à Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara dos Deputados, de Relatoria do Deputado Régis de Oliveira, referente ao PL 4.207/2001, mais
especificamente quanto aos comentários às Emendas ao art. 63 do CPP, à p. 10: “Proposta de Emenda: ‘§
8.º. Aplicam-se subsidiariamente, no que couber, as disposições da lei processual civil’. (NR)
12

Esta omissão legislativa força o intérprete do direito a realizar uma manobra intelectual
a fim de possibilitar a interpretação da norma sem que haja qualquer afronta ao sistema
constitucional vigente. Três omissões, assim, nos parecem mais relevantes: (a) a
primeira quanto aos elementos a serem utilizados na formação da convicção do
magistrado penal em relação ao valor a ser fixado; (b) a segunda quanto à inclusão, ou
não, dos danos morais no montante estabelecido a título de indenização (a ser tratada no
tópico 2.4.1); e (c) a omissão normativa quanto ao procedimento.
Nesta primeira questão ingressamos na contramão do que vêm entendendo diversos
autores, tais como José Paulo Baltazar Jr.,13 Leandro Galluzzi dos Santos14 e Andrey
Borges de Mendonça,15 os quais têm se manifestado quanto à desnecessidade de haver,
por parte do pólo ativo da demanda penal, qualquer pedido de fixação de danos,
devendo o julgador, sempre que possível, aferir o valor a ser indenizado à vítima. Esta,
porém, não nos parece a melhor solução; isto porque não consentânea com os princípios
constitucionais do processo civil, como adiante se explicitará.
Conforme já exposto acima, a nova redação do art. 387 do CPP, conferiu ao magistrado
responsável por feitos criminais nova parcela de competência cível. Esta novel
atribuição, ainda que relacionada com o injusto, em muito se difere da competência
penal, de modo que os atos a ela referentes devem pautar-se pelos princípios próprios ao
direito processual civil. Afinal, cuidando-se de bens jurídicos diversos – patrimônio e
liberdade –, ainda que em um mesmo procedimento, deve-se, a cada uma das
pretensões, empregar os preceitos a elas inerentes e respectivos.
Notemos, portanto, no direito processual civil, a existência do princípio dispositivo,
cabendo às partes deduzirem suas pretensões em juízo, sem o que estará o magistrado
impedido de apreciar e decidir determinada questão; caso contrário, ver-se-ia violado o
princípio da inércia. É o que ocorre com a reparação civil no processo penal. Embora

Comentário: A presente emenda não deve prosperar, pois acabaria por transformar o juízo penal em um
juízo de liquidação. Tarefa certamente não aplicável aos magistrados da seara criminal. Ademais, a
modificação do art. 387, IV, já permite ao magistrado, quando fácil a constatação dos danos materiais
sofridos pela vítima, determine valor mínimo de indenização. Ir além disso, certamente, não trará ganhos,
pois ao se determinar a fase de liquidação de sentença no juízo penal, acabará por alongar em demasia o
prazo para obtenção do trânsito em julgado da sentença condenatória e, enquanto não transitada em
julgado a sentença, não se aplica a pena, mas o lapso prescricional não está suspenso, logo, a modificação
pretendida, em que pese a sua excepcional boa intenção, acabaria por favorecer aqueles que postergam
indefinidamente o processo, levando a muitas extinções de punibilidade pelo advento do prazo
prescricional.”
13
José Paulo Baltazar Junior. A sentença penal de acordo com as leis de reforma apud Reformas do
processo penal, Verbo Jurídico, 2008.
14
Leandro Galluzzi dos Santos. Procedimentos, Lei 11.719/2008 apud As reformas no processo penal.
São Paulo: Ed. RT, 2008.
15
Andrey Borges de Mendonça. Nova reforma do Código de Processo Penal. Método, 2008, p. 240.
13

conste do rol do art. 387 do CPP, o item relativo à indenização, a apontar requisito da
sentença, em verdade deverá o julgador estabelecer o quantum debeatur tão-somente se
em decorrência da infração existirem reflexos patrimonial e moral passíveis de
indenização e se houver expresso pedido da vítima; em caso negativo, deverá declarar a
impossibilidade jurídica de fazê-lo. Assim, tratando-se de requisito da sentença,
obrigatória é a manifestação do juiz criminal em relação à indenização, pois ainda que
não fixe valor, deverá justificar as razões pelas quais deixou de fazê-lo. Ao contrário, a
fixação ex officio do valor mínimo a ser indenizado traria outras incongruências para o
sistema processual, como o maltrato aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Note-se que, caso não incumba à vítima deduzir sua pretensão e demonstrar seu
prejuízo, e, na via oposta, não haja a possibilidade do réu de se manifestar e resistir à
aspiração alheia, chegar-se-ia ao absurdo de se constituir título executivo judicial em
favor de quem não era parte na demanda e contra quem não foi aberta a oportunidade de
defesa, vez que não havia qualquer pretensão contra a qual resistir e instrumento
probatório contra o qual se opor.
Ao ser citado em uma ação penal, o réu toma ciência e se defende tão-somente dos fatos
típicos a ele imputados; não tem conhecimento da pretensão indenizatória da vítima,
não sendo razoável que dele se exija resposta quanto ao que dos autos não consta. É
flagrante, pois, a violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla
defesa quando houver a condenação do réu à restituição dos danos eventualmente
sofridos pela vítima, sem que este seja instado a manifestar-se a respeito da reparação.
Temos, então, que a melhor solução seria, em se tratando de ação penal pública, a
vítima ingressar como assistente de acusação, requerendo a fixação do montante a ser
ressarcido, bem como levando aos autos as provas pertinentes a fim de demonstrar o
real prejuízo sofrido, sob pena de inviabilizar a fixação do valor mínimo pelo juiz em
eventual sentença penal condenatória. Por outro lado, o réu, ciente da intenção e
argumentos do ofendido, poderá investir contra a pretensão deste, não podendo alegar
afronta aos princípios constitucionais.
Haverá, portanto, deduzidos em um mesmo procedimento, dois pedidos – um de caráter
penal, representado pelo Ministério Público, e outro de cunho civil, titularizado pelo
ofendido. Para cada qual deverão ser aplicadas as normas gerais que regem a espécie.
Note-se que não se trata de trazer ao procedimento criminal todas as peculiaridades do
processo civil – como, por exemplo, garantir a reconvenção ou o prazo para se
manifestar sobre novas alegações – mas tão-somente o necessário a garantir o devido
14

processo legal formal e substantivo, que não se pode concretizar sem o contraditório e a
ampla defesa.
Não pode o aplicador do direito, valendo-se da interpretação, legislar. Desta forma, a
fixação de valor mínimo pelo próprio juiz criminal só será viável se, e somente se, for
possível utilizar as regras e o procedimento já existentes no processo penal, previamente
definidos na lei.
Destarte, tudo quanto interesse à delimitação das perdas da vítima deverá ser requerido
e produzido em um procedimento essencialmente penal, nos moldes do art. 394 e ss., do
CPP, vez ser o rogo do assistente meramente acessório ao pedido de condenação.
Necessário que assim seja, pois ao introduzir-se no âmbito penal a completude de um
procedimento cível, a prestação jurisdicional acabaria por retardar-se, invertendo a
lógica do legislador e o princípio constitucional da razoável duração do processo, tendo-
se em vista a celeridade na outorga do bem idealizado.

2.2 Dos prazos


A Lei 11.719/2008 introduziu o parágrafo único do art. 63 e modificou o inc. IV do art.
387 do CPP, possibilitando a fixação de valor mínimo, pelo juiz criminal, após
condenar o réu pela prática de infração penal.
No entanto, nada disse de específico a respeito de novas etapas procedimentais
relacionadas à instrução para apuração desse “valor mínimo”. Desta forma, o valor, para
ser apurado, respeitando-se a lei processual penal e a Constituição Federal, deve ser
fundamentado e fixado nos moldes já previstos no ordenamento jurídico, buscando-se,
assim, uma integração normativa no âmbito das regras passíveis de aplicação e,
posteriormente, o preenchimento das lacunas restantes por regras resultantes do
sopesamento dos princípios aplicáveis ao caso.
Qualquer nova etapa procedimental criada por interpretação desatrelada de fundamentos
legais, ou contra legem, para viabilizar a fixação do valor mínimo pelo juiz criminal,
seria legislar, o que é vedado ao Poder Judiciário. Uma etapa adicional fruto apenas de
interpretação iria de encontro à duração razoável do processo e seria um desrespeito ao
princípio constitucional da separação dos poderes.
A duração do processo está atrelada aos prazos ordinários fixados em lei. O novo
tratamento legal dado aos ritos do júri, ordinário e sumário totaliza 90, 60 e 30 dias,
respectivamente, para o encerramento da fase de instrução, sendo que,
15

excepcionalmente, o rito procedimental poderá ser dilatado se houver justificativa


razoável.
Esta razoabilidade só será legítima se justificada no caso concreto, por peculiaridades
fáticas, e não legais. Exemplificando, uma ação penal com muitos acusados, uma perícia
complexa requisitada pela defesa, uma testemunha a ser ouvida por carta rogatória
imprescindível para a real apuração dos fatos etc.
A questão relacionada a este trabalho reside na seguinte premissa: o fato de a vítima
utilizar a ação penal em curso para produzir provas a respeito de seu desfalque
patrimonial e moral e criar acervo probatório que sustente seu pedido de indenização
final com base nos arts. 63, parágrafo único e 387, IV, do CPP, justificaria dilação no
prazo procedimental?
Em nosso entendimento a resposta é negativa, pois a mesma reforma que alterou o
Código de Processo Penal, introduzindo o valor mínimo de indenização na sentença
penal condenatória, fixou o prazo de duração dos ritos procedimentais. Trata-se, assim,
de uma indicação do legislador, incluindo no prazo por ele estabelecido a possibilidade
de fixação do valor mínimo a ser indenizado. Trata-se de regra geral, situação ordinária
que não justifica dilação procedimental ou criação de novas etapas.
Quanto ao princípio da separação dos poderes, urge seja feita breve análise específica.
O Poder Judiciário moderno, desvinculado do tecnicismo de Arturo Rocco e
preocupado com questões de política criminal no momento de aplicação das regras
vigentes, nos moldes pregados por Claus Roxin,16 deve exercer a função jurisdicional
valendo-se, sempre, da hermenêutica neoconstitucionalista.17
Não pode o aplicador da lei, utilizando o exercício hermenêutico, usurpar a função
legiferante típica do Poder Legislativo para criar regras inexistentes e procedimentos
criminais, principalmente na criação de prazos inexistentes e regras ainda não aprovadas
por quem legitimado para tanto.18
Portanto, a referida fixação de valor mínimo deve respeitar o rito procedimental e as
suas etapas previamente firmadas em lei, não sendo cabível utilizar da criatividade
jurisdicional para criar novidades legislativas não previstas.

16
ROXIN, Claus. Derecho penal – Parte general, t. I, passim.
17
SILVA, Ivan Luís Marques da. O direito penal como garantia fundamental – O novo enfoque decorrente
da globalização, p. 164.
18
Roberto Lyra assim se manifesta sobre as normas de ordem pública: “As normas de ordem pública não
são objeto de renúncia ou transigência, suprimindo ou alterando contra o próprio interesse (...) prazos
peremptórios e, portanto, improrrogáveis, mas, também, irredutíveis”. Comentários ao Código de
Processo Penal, p. 476.
16

Antes da reforma do Código de Processo Penal, havia a criação jurisprudencial e


posteriormente legislativa (Lei 9.034/1995) do prazo de 81 dias para o encerramento da
instrução processual penal quando o réu estivesse preso. Em seguida, após a reforma
constitucional trazida pela EC 45/2004, inovou-se ao ser fixado no inc. LXXVIII do art.
5.º da CF/1988, o princípio da duração razoável do processo, que exige, para o
encerramento da instrução criminal, prazo comedido, podendo ser idêntico ao da lei nos
casos ordinários, mas também maiores do que o prazo legal, em situações excepcionais.
Agora, após a reforma procedimental trazida pela Lei 11.719/2008, o legislador inovou
ao fixar prazos exíguos para o encerramento da instrução criminal. Independente das
críticas feitas a esse disparate temporal legislativo,19 é importante concentrar nossa
atenção para a relação criada entre a instrução do valor mínimo a ser prescrito na
sentença condenatória e os prazos processuais estipulados pela reforma processual penal
de 2008.
Assim, dentro dos exíguos prazos instrutórios trazidos pelas Leis 11.719/2008 e
11.689/2008, nos arts. 400, 412 e 531 do CPP, além de provar a materialidade, a
autoria, a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade do fato, surge a possibilidade de a
vítima ingressar na ação penal, como assistente de acusação, e, nas etapas
procedimentais já existentes, instruir o feito em busca do an e do quantum debeatur.
Nos casos de queixa-crime, não há como iniciar a ação penal sem que a vítima tenha
ciência, pois o titular da ação penal privada e o ofendido confundem-se na mesma
pessoa ou em seu representante legal. A sua participação nos autos é fator determinante
para a instrução e a apuração da responsabilidade do agente pela prática da infração
penal.
Nos casos de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, a vítima
pode ou não acompanhar a formação da relação processual, tendo em vista a
possibilidade de a representação ser feita ainda na fase policial.
Problema efetivo surge, contudo, com as ações penais públicas incondicionadas. Neste
caso, no qual não há a necessidade de queixa-crime ou representação, dificilmente a
vítima fica sabendo se e quando a denúncia foi recebida pelo magistrado. O
desconhecimento da existência de ação penal em andamento mitiga, tendo em vista a
exigüidade dos prazos processuais, a possibilidade de a vítima instruir a ação penal para

19
SILVA, Ivan Luís Marques da. Reforma processual penal de 2008. São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 43, 49 e
93.
17

provar o montante do valor que deverá ser fixado pelo juiz criminal na sentença
condenatória.
Esta oportunidade de participação da vítima, como assistente de acusação na ação penal,
para provar valor a ser ressarcido, não carece de modificações legislativas nem
ginásticas interpretativas, uma vez que já está regulamentada com as novidades trazidas
pela Lei 11.690/2008, como se verá no item 4.1, viabilizando-se a habilitação da vítima
ao dar-se a esta ciência da ação penal.
A mudança do título do “Capítulo V – Das perguntas ao ofendido”, para “Do ofendido”
já exterioriza uma mudança da ótica legislativa a respeito da participação do ofendido
na ação penal. Deixa de ser apenas uma fonte de informações a respeito do caso
concreto para figurar como sujeito processual.
O art. 201 do CPP prescreve: “Sempre que possível, o ofendido será qualificado e
perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as
provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações”. Este artigo não
associa a intimação e a participação do ofendido com a necessidade de sua presença, e
sim com a possibilidade de sua presença (sempre que possível). Essa abertura normativa
e o exercício jurisdicional em busca da verdade possível do processo viabilizam o
ingresso e a intimação do ofendido para manifestar sua intenção de ingressar no
processo como assistente de acusação e instruir o seu pedido cível em busca da fixação
do valor mínimo pelo próprio juiz criminal.
A habilitação tardia do assistente não torna imperiosa a renovação dos atos de instrução,
pelo contrário, ele receberá a causa no estado em que se achar, antes do trânsito em
julgado (art. 269 do CPP).
Importante ressaltar ser a habilitação do ofendido facultativa (art. 268 do CPP), assim
como o pedido de condenação a um valor mínimo fixado pelo juiz criminal, por ser
matéria civil e, portanto, dispositiva.

2.3 Da produção de provas


Ponto relevante que se levanta é referente aos meios pelo quais o ofendido poderá
demonstrar os prejuízos experimentados, a fim de que o magistrado se convença da
procedência de seu pleito, fixando montante correspondente à integralidade dos danos.
Ao contrário do que encontramos em diversas legislações, não há em nosso processo
penal a figura da parte civil, representada pela vítima que busca especificamente
ressarcir-se do dano sofrido, conforme se lê no art. 74.º do CPP português, abaixo
18

transcrito, não restando outra alternativa ao ofendido senão habilitar-se como assistente
de acusação – figura genérica –, oferecendo ao julgador meios para formação de sua
convicção.
“1. O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a
pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou
não possa constituir-se assistente.
2. A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de
indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere
aos assistentes.
3. Os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do argüido
quanto à sustentação e à prova das questões cíveis julgadas no processo, sendo
independente cada uma das defesas.”
Dispõe o art. 271 do CPP brasileiro que “Ao assistente será permitido propor meios de
prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do
debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele
próprio, nos casos dos arts. 584, § 1.º, e 598”. Deixa, contudo, de ditar as espécies de
provas que poderão ser requeridas, de onde se conclui estar o assistente autorizado a
requerer a produção de qualquer modalidade destas, desde que lícitas e pleiteadas em
momento adequado, a fim de se evitar a procrastinação indevida da demanda criminal.
Não poderá, v.g., requerer a oitiva de testemunhas após a realização da audiência una,
ressalvada a hipótese do art. 402 do CPP.
Em relação à prova testemunhal devemos observar o disposto no art. 406, § 2.º, do CPP,
determinando sejam as testemunhas da acusação arroladas na denúncia ou queixa.
Tratando-se, pois, de queixa-crime ou ação privada subsidiária da pública poderá o
ofendido – confundindo-se com a acusação – indicar testemunhas que possam
esclarecer questões de relevo para a fixação da indenização. Cuidando-se, porém, de
ação penal pública, não caberá à vítima, ainda que habilitada, arrolar qualquer
testemunha.20 Isto porque, neste caso, o oferecimento da inicial acusatória é ato
privativo do Ministério Público e, por conseguinte, também o é o arrolamento de

20
Nesse sentido, GRECO FILHO, Vicente, em Manual de processo penal. Saraiva, 1993. Em sentido
contrário encontramos MIRABETE, Julio Fabbrini, em Código de Processo Penal interpretado. Atlas,
1999.
19

testemunhas, não podendo o assistente imiscuir-se em prerrogativa que não lhe foi
conferida.21
Da mesma forma, não poderá nem mesmo o assistente arrolar o número de testemunhas
que falte para completar o máximo legal de oito, uma vez que, sendo o oferecimento da
denúncia a oportunidade adequada para fazê-lo, em qualquer momento posterior haverá
preclusão consumativa.
Óbice não há, porém, que o assistente requeira seja determinada a oitiva de alguém
como testemunha do juízo, nos termos do art. 209 do CPP. O magistrado fará a análise
da possibilidade da oitiva e decidirá de plano, sem descuidar da duração razoável do
processo.
Ainda quanto à prova testemunhal, entendemos que, nada obstante a existência de dois
pedidos distintos, não há falar-se em rol específico para a comprovação do que interesse
à reparação civil, já que não deixa de ser o assistente de acusação mero interveniente no
processo penal, mesmo que deduzindo pedido cível de seu interesse. Impossível,
portanto, a interpretação analógica do art. 407, parágrafo único, do CPC, a fim de
assegurar ao ofendido o número mínino de três testemunhas. Isto porque haveria
evidente desequilíbrio entre os meios de prova da defesa e da acusação; a menos que se
autorizasse ao réu indicar igual número de testemunhas, o que, de certo, causaria ainda
maiores delongas à solução da lide, sendo certo que não deve um pedido disponível, de
interesse exclusivo da vítima, prejudicar a persecução penal e a duração razoável do
processo.
No entanto, assim como nas provas periciais, ficará a cargo do magistrado examinar a
pertinência e relevância da produção probatória requerida pelo ofendido, nos termos da
nova redação do art. 400, § 1.º, do CPP, a fim de garantir a unidade da audiência e a
razoável duração do procedimento. A perícia técnica requerida com o propósito de
demonstrar prejuízo por parte do ofendido deve ser tratada com algumas peculiaridades.
Haverá casos em que o tempo necessário à realização da perícia extrapolará o limite do
razoável para a persecução penal (prazo de 60 dias para a audiência de instrução e
julgamento no rito ordinário). Nesta hipótese, deverá o juiz indeferir a prova pericial,
cabendo à vítima a procura pela esfera cível se não lhe for atribuída indenização

21
Em sentido contrário, Guilherme de Souza Nucci defende a possibilidade de o assistente de acusação,
devidamente habilitado, arrolar o número de testemunhas caso o Ministério Público não tenha esgotado o
número máximo de testemunhas em seu rol. Código de Processo Penal comentado, p. 569.
20

compatível com seu prejuízo. Solução semelhante adota a legislação lusitana em seu
Código de Processo Penal, art. 82, item 3:
“O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais
civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem
uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem
intoleravelmente o processo penal.”
Ao que concerne à prova documental, reza o art. 231 do CPP: “Salvo os casos expressos
em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do processo”. A
flexibilidade dispensada à apresentação de documentos é conseqüência prática de sua
própria forma de produção, qual seja, ser independente de qualquer diligência por parte
do órgão judiciário ou de terceiro, sendo desde logo apto e conclusivo.

2.4 Da sentença
2.4.1 Da fixação do valor mínimo e dos danos morais
Questão ainda muito controvertida é a atinente à possibilidade de o julgador, ao fixar o
valor a ser indenizado, considerar para tanto os danos morais a que se sujeitou a vítima.
Além dos já mencionados Leandro Galluzzi dos Santos e José Paulo Baltazar Jr.,
também Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto22
entendem que não caberá ao magistrado criminal cuidar da questão. Novamente aqui a
divergência surge como porto seguro.
A questão quanto à possibilidade de fixação de valor a título de danos morais deve ser
vislumbrada sob quatro perspectivas, uma principiológica, duas jurídico-sistemáticas e
outra jurídico-teleológica, que, no entanto, por se complementarem, levam à mesma
conclusão, qual seja, a de que não só é possível, como necessária, a fixação, pelo juiz
penal, de montante indenizatório a título de danos morais.
Os atos praticados pelos agentes públicos, e entre estes encontra-se o magistrado, devem
obediência não apenas à lei (arts. 63 e 387 do CPP) mas também aos princípios
constitucionais, que são regras vigentes e cogentes, de aplicação obrigatória e imediata
e, entre eles, estão os princípios da eficiência, da duração razoável do processo e da
economia processual. Assim, se a lei não veda, e o sopesamento de princípios está a
resultar na direção da exigência, não há porque não fazê-lo.

22
Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto. Comentários às reformas do
Código de Processo Penal e da lei de trânsito. São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 314.
21

Sob o prisma sistemático, as novidades no âmbito do próprio Código de Processo Penal


devem ser lidas em conjunto com a regulamentação dos atos ilícitos prevista no Código
Civil. Ao incluir na competência do juiz criminal a fixação de valor a ser indenizado em
decorrência de ato ilícito, deslocou-se para a esfera do processo penal todo o conceito
do ato ilícito, nos moldes do art. 186 do CC/2002: “Art. 186. Aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Assim, se estivermos diante de um ilícito civil, mas não houver crime por presença de
alguma excludente de tipicidade, ilicitude ou culpabilidade, o magistrado criminal deve
absolver o acusado e, na sentença absolutória (art. 386 do CPP), não há previsão de
valor mínimo a ser indenizado.
Outra situação que certamente ocorrerá diz respeito a relação entre a ação civil ex
delicto e o crime de dano (art. 163 do CP). Comete o delito de dano quem destrói,
inutiliza ou deteriora coisa alheia. Nesta situação fática, resta evidente o prejuízo
patrimonial e a conseqüente fixação, pelo juiz criminal, do valor mínimo a ser
indenizado. Entretanto, mesmo se estiver provado o dano e seu valor, não poderá o juiz
fixar o valor a ser indenizado se a acusação não conseguir provar o dolo do agente. Tal
situação ocorre, pois não existe o crime de dano culposo no Código Penal. Ou seja,
mesmo que esteja provado o dano e seu valor, mas ausente o dolo, o juiz criminal deve
absolver o acusado e, consequentemente, não fixará o valor mínimo a ser indenizado,
restando para a vítima ingressar com ação ordinária na esfera cível em busca de seu
ressarcimento. Assim, as peculiaridades existentes na esfera criminal limitam a fixação
do novo valor mínimo pelo juiz criminal, que só poderá fazê-lo no âmbito da sentença
penal condenatória, como se verá adiante.
Ainda no que se refere à perspectiva jurídico-sistemática, deve a questão ser
vislumbrada tendo por paralelo o art. 297 da Lei 9.503/1997 (Código de Trânsito
Brasileiro), que, expressamente, restringe o valor a ser fixado apenas aos danos
materiais.23 Assim, sob uma interpretação sistemática e, a contrario sensu, deve-se
concluir que, não havendo disposição expressa vedando a mensuração dos danos
morais, devem esses ser incluídos no valor indenizável.
Já sob uma ótica jurídico-teleológica, um pressuposto necessita ser fixado, isto é, de que

23
Nesse sentido, há aresto do STJ que impede que se deduza o valor pago a título de multa reparatória de
eventual indenização civil correspondente tão-somente a danos morais (REsp 1.039.015, 3.ª T., rel. Nancy
Andrighi).
22

à infração penal corresponde um ilícito civil. Em outras palavras, concorrem o ilícito


civil e a infração penal, sendo que as circunstâncias deste influenciaram e permearam a
ocorrência daquele. Portanto, sabendo-se que, por experiência, está o juiz criminal
cronologicamente mais próximo e familiarizado com as circunstâncias do delito em
relação ao juízo cível, conclusão outra não poderia se tomar senão a de que o órgão
jurisdicional mais apto a julgar os reflexos civis de um crime é o próprio juiz penal, sem
que com isso se exclua, obviamente, ulteriores considerações pertinentes e próprias ao
juiz civil.
Portanto, conclui-se pela obrigatoriedade da fixação, pelo juiz criminal, de valor
indenizável a título de danos morais – desde que requerido pelo ofendido –, haja vista a
interpretação e aplicação dos princípios constitucionais pertinentes, a concorrência entre
o ilícito civil e a infração penal, a interpretação a contrario sensu do art. 297 do Código
de Trânsito Brasileiro e, por fim, a interpretação teleológica, no que se refere à presteza
e familiaridade com que o juiz penal pode mensurar eventuais reflexos civis das
infrações penais.
Guilherme de Souza Nucci entende que o juiz deve provocar a vítima para que possa
apresentar o seu pedido e, com isso, ensejar a defesa por parte do acusado, produzindo-
se prova na mesma audiência em que a questão criminal for debatida. O autor faz uma
ressalva: “deve-se, contudo, evitar o debate de matéria complexa, que possa provocar
sério distúrbio na colheita de prova interessante à parte criminal, meta maior do
processo penal. Se assim acontecer, ou seja, caso a questão civil mostre-se intrincada, o
magistrado pode limitar o debate ao mínimo indenizável, permitindo que se continue a
discussão na esfera cível. No mais, se o pedido civil for simples, vale a fixação do valor
integral da indenização, buscando-se evitar a continuidade do processo na Vara
Cível”.24
É certo que o ordenamento jurídico não pode se satisfazer com a reparação parcial do
dano, pois é do próprio interesse social que sejam sanados, por completo, os efeitos do
delito. Ora, se ao lesado não for garantida, no processo penal, uma restituição justa e
compatível, continuará a existir o desinteresse na busca pela reparação, pois necessária
ainda se fará a via da liquidação, restando inócua a alteração legislativa. Entendemos,
portanto, competir ao magistrado fixar um montante correspondente a quanto dos autos
se possa extrair; e não somente o quanto se possa inferir pela mera narração do fato

24
Considerações sobre a indenização civil fixada no processo criminal. Jornal Carta forense. Publicado
em 01.12.2008.
23

delituoso. Encontramos, assim, ser ônus do ofendido, habilitado como assistente de


acusação, demonstrar em juízo sua perda.
A expressão valor mínimo, destarte, deve ser entendida não como aquilo que é evidente
aos olhos do leigo, mas como o correspondente a todos os elementos trazidos aos autos,
aptos a demonstrar ao juiz o efetivo dano experimentado. O chamado valor mínimo,
então, poderá corresponder à totalidade do prejuízo, se o assistente assim o demonstrar.
Neste momento, cabe-nos um lapso a fim de evitar confusões conceituais. Esclarecemos
que as expressões valor mínimo e valor máximo referem-se tão-somente aos danos
diretos causados pelo delito. Ou seja, aqueles que emergem como conseqüência lógica,
natural e imediata da prática do crime. Os danos indiretos, por sua vez, são os
merecedores de análise mais aprofundada para a verificação do nexo de causalidade
com o delito e, como regra, encontram-se cronologicamente mais afastados do fato; são
exemplos a pensão aos dependentes da vítima, a moléstia que se agrava com o passar do
tempo, ainda que antes da condenação, e os lucros cessantes. Destes não deverá cuidar o
juiz criminal por depender de minuciosa investigação, para a qual está mais bem
equipado o juízo civil. Notemos, destarte, ainda que se fixe o denominado valor
máximo, este não será exauriente, pois emergindo qualquer dano indireto, este deverá
ser pleiteado no cível.
Coloca-se nova indagação: qual seria a conseqüência da fixação, pelo juiz criminal, de
valor correspondente à totalidade do prejuízo? Pois, vejamos. O parágrafo único do art.
63 do CPP, incluído pela Lei 11.719/2008, dispõe: “Transitada em julgado a sentença
condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV
do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano
efetivamente sofrido”.
Poder-se-ia sustentar que ao se fixar um valor máximo, restaria inaplicável a parte final
do mencionado dispositivo. Este entendimento, no entanto, parece-nos guiar-se em
evidente afronta ao texto da lei. Ora, se a própria norma autoriza o ofendido a proceder
à liquidação na hipótese de se sentir lesado pela decisão criminal, entender de forma
diversa seria uma captação contra legem. O legislador, ao utilizar-se da expressão valor
mínimo, buscou impedir que tal importância fosse passível de redução, senão em sede
de recurso; de forma que, independentemente do valor estabelecido pelo magistrado
criminal, este sempre será mínimo, só sendo possível ao juiz civil, em sede de
liquidação, manter o valor fixado na esfera criminal ou aumentá-lo. Impedimento não
há, contudo, que este magistrado, quando da análise do pedido de liquidação entenda
24

não haver valor complementar a ser estipulado, por ter o juiz penal enfrentado a questão
inteiramente.25 Ou seja, cabe ao juiz civil a última palavra quanto à completude da
indenização fixada.26
A fixação do, sempre que possível, valor máximo, deve abarcar os danos morais. Isto
porque, caso não o faça, forçoso será à vítima, que busca a justa recomposição dos
danos, proceder à liquidação da sentença, pretendendo a fixação de valor relativo aos
danos morais – desvirtuando a vontade da lei de facilitar a reparação civil.
Apesar da possível completude dos elementos probatórios postos à comprovação dos
danos sofridos, deve-se ter presente a imensurabilidade prima facie dos danos morais
sofridos pela vítima, fato que, per si, leva a conclusão de que o valor fixado pelo juízo
penal pode ser o máximo, tendo em vista o grau de subjetivismo presente na fixação dos
danos morais.

25
Em sentido diverso do aqui defendido há a posição de NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de
processo penal e execução penal. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, São Paulo, 2008, p. 235-236, que pautado por
uma interpretação privilegiadora dos princípios da razoável duração do processo, da economicidade
processual e do efetivo acesso à uma prestação jurisdicional justa, assim argumenta de forma provocativa:
“Outro ponto que reputamos tíbio é a previsão de fixação de valor mínimo para a reparação dos danos,
permitindo que o interessado possa ingressar na esfera cível a fim de apurar o prejuízo efetivamente
sofrido. O correto seria o estabelecimento de um valor real, debatido no processo criminal, a fim de não
sobrecarregar a esfera cível com nova discussão a respeito do mesmo tema. Ademais, se o ofendido
conseguir um valor mínimo qualquer, sem atingir o efetivamente devido, poderá sentir-se duplamente
enganado. O Judiciário fixa-lhe um valor pífio, que não o deixa satisfeito, embora se sinta desmotivado
para, novamente, demandar no cível outros valores. Não se deve implementar uma modificação pela
metade. O ideal é que a reparação civil possa ser apurada no processo criminal de maneira ampla, sem
abertura para, depois, renovar-se o debate cível. Pensamos deverem os juízes criminais, se instados pela
vítima a promover a discussão da indenização civil, buscar atingir o valor real – e não somente o mínimo
– deixando consignado, em suas sentenças, tal situação. Com isto, pode-se argumentar ter-se formado
coisa julgada material, vedando-se o acesso à órbita civil, evitando-se a sobrecarga inútil de serviço”.
26
Por fim, de forma analógica, expõe-se julgados do STJ que, dentre os fatores analisados, discorrem
sobre a possibilidade de modificações do valor fixado a título de danos morais, assentando, ademais, que
este só é passível de alteração, em sede de recurso especial, caso manifestamente irrisório ou exagerado.
Assim, nota-se baliza jurisprudencial à análise pelo juiz cível do valor fixado pelo juiz penal no que se
refere aos danos morais, que mesmo encerrando um aspecto subjetivo, lastreia-se e fundamenta-se em
parâmetros de razoabilidade:
1. “Civil. Indenização. Trânsito. Acidente. Morte. Danos materiais e morais. Pressupostos fáticos. Súmula
7 do STJ. Omissão. Inexistência. Quantum indenizatório. Razoabilidade. Pensão mensal. Redução.
Admite o STJ a redução do quantum indenizatório, quando se mostrar desarrazoado, o que não sucede na
espécie, em que houve morte decorrente de acidente de trânsito, dado que as 4.ª e 3.ª Turmas desta Corte
têm fixado a indenização por danos morais no valor equivalente a 500 salários mínimos, conforme vários
julgados” (STJ, REsp 713764/RS, 4.ª T., rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 10.03.2008).
2. “Recurso especial. Civil. Dano moral atropelamento. Morte de filho menor. Quantum irrisório.
Majoração. Possibilidade. Recurso provido. A jurisprudência deste Tribunal é firme no sentido de que o
quantum definido pela Corte de origem somente pode ser alterado, em sede de recurso especial, quando
manifestamente excessivo ou irrisório, o que, se verifica no caso dos autos; na espécie, o valor da
indenização pela perda do filho menor dos recorrentes, deve ser elevado ao montante de R$ 190.000,00
(cento e noventa mil reais)” (STJ, REsp. 936792/SE, 4.ª T., rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ
22.10.2007).
25

Sobre o assunto diverge Leandro Galluzzi dos Santos: “A nós parece impossível esta
situação, pois o que pretendeu o legislador foi facilitar a reparação da vítima quando o
tamanho do prejuízo fosse evidente, como nos crimes de apropriação indébita ou furto,
por exemplo. Porém, quantificar o tamanho da dor da vítima, para conseguir determinar
o valor da indenização por dano moral, certamente extrapola a intenção legal. Para
verificar a abrangência deste dano, não é o juiz penal a melhor pessoa, mas sim o juiz
cível, mais familiarizado com essas questões”.27
Não será evidente o dano psicológico sobre a jovem violada em sua liberdade sexual, ou
em relação à mulher submetida à prática abortiva sem o seu consentimento? E quanto ao
pai que é obrigado a ver a execução de suas filhas por um latrocida sádico? Nestes
casos, como em outros delitos, há a predominância de dano moral em detrimento ao
dano patrimonial. Não nos parece, no entanto, ter a lei diferenciado qualquer espécie de
delito, até mesmo porque não poderia tratar desigualmente as vítimas, tornando mais
célere a reparação de um ao do outro.
Assim, se por um lado, hipoteticamente, pode-se provar de forma completa e objetiva os
danos materiais, por outro, difícil será provar, completamente, os danos morais sofridos,
razão pela qual, apesar de se entender, em casos vários, pela prescindibilidade de
comprovação dos danos morais, sua medida poderá, se entender pertinente a vítima, ser
colocada em discussão no juízo cível. Esta possibilidade, cabe enfatizar, em nada
prejudica a celeridade intentada pela inovação legislativa, uma vez que o valor fixado na
ação penal poderá, independentemente de eventual procedimento de liquidação
discutindo o real prejuízo experimentado, ser objeto de execução definitiva em relação à
sua parte líquida. Como já exposto, o chamado valor mínimo não pode ser reduzido na
esfera cível, mas apenas em grau recursal; transitando em julgado, portanto, será certo,
líquido e exigível, razão pela qual poderá a vítima executá-lo, sem prejuízo de que,
concomitantemente, pleiteie sua majoração, buscando os prejuízos não abarcados pela
sentença criminal, tais como os danos indiretos.
Nesse ponto, estamos de acordo com Andrey Borges de Mendonça, cuja lição vale
transcrever: “É importante ressaltar que a questão da indenização civil deve ser objeto
de capítulo próprio da sentença penal condenatória. Esta constatação trará
conseqüências práticas. Caso o condenado ou a vítima entendam indevido o valor
fixado para a indenização, poderão recorrer deste capítulo da sentença. Entretanto, isto

27
SANTOS, Leandro Galluzzi dos Santos. As reformas no processo penal. In: MOURA, Maria Thereza
Rocha de Assis (coord.). São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 300-301.
26

não impedirá a expedição da guia definitiva de execução da pena, quando houver


trânsito em julgado do capítulo da sentença que trata da pena. Em outras palavras, se o
condenado ou a vítima não se conformarem com o valor da impugnação e recorrerem
apenas deste capítulo da sentença, os demais capítulos – que digam respeito ao aspecto
penal – não precisarão aguardar o resultado final do recurso”.28
Se, no entanto, for interposto recurso tão-somente contra os dispositivos penais da
sentença, não será possível proceder à execução do montante estabelecido a título de
indenização. Isto porque, como melhor se exporá no tópico seguinte, é necessário que
haja sentença condenatória, sem a qual não opera efeitos a fixação do valor devido à
vítima. Então, ainda que não haja impugnação quanto ao valor, transitando em julgado
este capítulo da sentença, continua a prevalecer o princípio da presunção de inocência,
estando impedida a execução de valores.

2.4.2 Da necessidade de sentença condenatória


Nos países em que se adota o sistema da confusão ou o sistema da solidariedade (item
1), a questão pertinente à reparação do dano proveniente de suposta prática delituosa
passa a ser de competência do juízo criminal, independentemente de haver condenação,
como se apresenta no Código de Processo Penal português em seu art. 377.º:
“1 – A sentença, ainda que absolutória, condena o argüido em indemnização civil
sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no
artigo 82.º, n. 3.
2 – Se o responsável civil tiver intervindo no processo penal, a condenação em
indemnização civil é proferida contra ele ou contra ele e o argüido solidariamente,
sempre que a sua responsabilidade vier a ser reconhecida.”
Ao adotar tal solução, cuida a legislação lusitana da economia dos atos processuais,
posto que, uma vez produzidas as provas no procedimento penal, razoável não nos
parece deixe o magistrado de apreciá-las em virtude da absolvição; já encontrando as
provas prontas e acabadas deveria o julgador fixar o quantum debeatur, a fim de evitar a
propositura de nova medida judicial na esfera cível.
A legislação pátria, no entanto, não nos permite aplicar dito entendimento. Isto porque o
caput do art. 387 do CPP autoriza o magistrado a estabelecer valor para a reparação dos
danos causados pela infração tão-somente na hipótese de proferir sentença condenatória.

28
Andrey Borges de Mendonça. Op. cit., p. 243.
27

Desta feita, mesmo em circunstâncias nas quais não haveria aplicação de pena, mas que
seria possível a indenização civil, como em algumas hipóteses de excludentes de
culpabilidade, o magistrado encontra-se impedido de estabelecer montante indenizável,
posto o art. 386, VI, do CPP, determinar seja nesta hipótese proferia sentença
absolutória. Aliás, nesse cenário, surgem as medidas de segurança, cuja finalidade é a
cura e a reabilitação do paciente.
Não obstante a discussão existente quanto à natureza de tais medidas, se jurídico-penais
ou se meramente administrativas, como expressão do poder de polícia, é assente na
doutrina o seu caráter penal, sendo, portanto, espécie do gênero sanção penal. Não se
trata, pois, de pena, a qual se funda na culpabilidade do agente, mas de medida própria
àqueles que não têm plena consciência de suas ações, fundando-se na periculosidade
destes.
Embora se assemelhe ao instituto da pena na proporção da diminuição ou restrição de
um bem jurídico, a liberdade, a aplicação de medida de segurança não se caracteriza
como condenação, mas como remédio necessário ao convívio social. Dessa forma,
estabelece o inc. III do parágrafo único do art. 386 do CPP, que as medidas de
segurança serão aplicadas em sentenças absolutórias; por conseguinte, impede-se a
fixação, pelo juiz da causa, de valor líquido a ser ressarcido à vítima.
Essa impossibilidade de se fixar valor a ser indenizado em sentença absolutória tem
justificativa lógica, pois o estabelecimento de indenização pelo juiz criminal só é
possível nas hipóteses evidentes de existência de um crime. De acordo com a teoria do
delito, este só se consubstanciará depois de constatadas a tipicidade, a ilicitude e a
culpabilidade da conduta. Ausente qualquer um dos elementos constitutivos do crime,
não existe infração penal e o requisito básico da ação civil ex delicto – sentença penal
condenatória transitada em julgado – desaparece, levando consigo a possibilidade da
fixação de valor a ser indenizado.
Não obstante a absolvição do réu, ao intentar demanda ressarcitória, poderá o ofendido
valer-se das provas produzidas no procedimento penal, requerendo ao juízo cível a
utilização de prova emprestada, a qual se funda nos princípios da economia e celeridade
processual, vindo a comprovar a unidade da jurisdição.

2.4.3 Das excludentes e do erro


Neste tópico, abordaremos, sucintamente, algumas intervenções de institutos penais na
esfera da reparação civil, frisando-se que, em nenhuma das hipóteses abaixo expostas, o
28

valor será fixado por magistrado criminal, em virtude de se concretizar o direito à


reparação em sentenças absolutórias.

2.4.3.1 Excludentes de Ilicitude


Dispõe o art. 927 do CC/2002 que “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Por sua vez, o art. 188 do mesmo diploma
estabelece que não constituirão atos ilícitos aqueles praticados em (a) legítima defesa,
(b) exercício regular de direito reconhecido, bem como (c) a deterioração ou destruição
de coisa alheia, ou lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Referidas normas se coadunam com o art. 23 do CP, que exclui a ilicitude dos atos
praticados em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever
legal e exercício regular de direito. Portanto, se excluída for a ilicitude do fato nos
termos do supra mencionado art. 23, estará o autor do fato típico, porém lícito, eximido,
como regra, de reparar os prejuízos causados, vez ser a antijuridicidade pressuposto para
a responsabilização civil.
A viabilizar tal entendimento, embora seja a responsabilidade civil independente da
criminal (art. 935 do CC/2002), o art. 65 do CPP prevê: “Faz coisa julgada no cível a
sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em
legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de
direito”. Destarte, não se poderá reabrir no cível a discussão quanto à existência de
qualquer excludente de ilicitude, uma vez que cabe exclusivamente ao juízo penal
cuidar do mérito da questão. Fica, portanto, impedida a propositura da actio civillis ex
delicto quando se tratar de pedido de indenização contra quem fora absolvido no
procedimento penal nos termos do art. 23 do CP, pelo autor da injusta agressão ou o
causador do perigo que gerou a legítima defesa ou o estado de necessidade.
Quanto ao estado de necessidade, cabe outro comentário. Exceção à regra da
desobrigação de indenizar quando impelido por situação de perigo, dá-se quando a
pessoa lesada, ou o dono da coisa, forem os próprios causadores do risco (art. 929 do
CC/2002). Se o risco, porém, ocorrer por culpa de terceiro, o autor do dano estará
obrigado a ressarcir o lesado, mas terá direito à ação de regresso contra aquele (art. 930
do CC/2002), bem como contra aquele em favor do qual se atuou (art. 930, parágrafo
único, CC/2002).
29

Em síntese, vale mencionar a lição de José Frederico Marques:29 “Se a sentença penal
reconhece que o fato típico não é ilícito em virtude da ocorrência de uma das
justificativas do art. 23 do CP, ilicitude também não há no Direito Civil, e isto em face
do próprio artigo do Código Civil, que exclui a antijuridicidade do ato danoso quando
há legítima defesa, exercício regular de um direito e o estado de necessidade”.

2.4.3.2 Excludentes de culpabilidade


A legítima defesa putativa, diferentemente da legítima defesa real, não exclui a
antijuridicidade do fato, mas sim a culpabilidade deste, como se infere do art. 20, § 1.º,
do CP. O fato, portanto, embora não reprovável, mantém o caráter de ilícito, de modo a
ensejar a responsabilidade civil. Nas palavras de José Frederico Marques:30 “as causas
de excludente de culpabilidade vem previstas nos arts. 17, 18, 22 e 24 do CP, ao passo
que as justificativas penais capituladas se acham no art. 19 e, repetidas, por isso mesmo,
no art. 65 do CPP. O problema da legítima defesa putativa facilmente se resolve em
função destes dados. Uma vez que se trata de erro de fato, não há que cogitar da
aplicação do art. 65 do CPP. Na legítima defesa putativa, o ato de quem a pratica é
ilícito, embora não punível por não ser reprovável (isto é, por ausência de
culpabilidade)”.
Conclui-se, pois, que não estará o lesado impedido de propor, de forma autônoma, a
cabível ação civil contra o autor do dano a fim de se ressarcir. Note-se, porém, que,
nesta hipótese, não se poderá utilizar do supracitado art. 65 do diploma processual, pois
este não elenca as causas de exclusão de culpabilidade, mas tão-somente as excludentes
de ilicitude. Assim, não havendo coisa julgada na esfera cível, deverá o lesado
demonstrar, além do prejuízo sofrido, a culpa do agente. Para o ressarcimento do dano,
suficiente se faz a comprovação da culpa lato sensu; nos dizeres de Maria Helena Diniz
“a culpa em sentido amplo, como violação de um dever jurídico, imputável a alguém,
em decorrência de fato intencional ou de omissão de diligência ou cautela compreende:
o dolo, que é a violação intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido estrito,

29
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas; Bookseller, 1997. vol. 3,
p. 109.
30
Idem. Os arts. 17, 18, 19, 22 e 24, citados na lição do autor, referem-se à Parte Geral do CP antes da
Reforma Penal de 1984.
30

caracterizada pela imperícia, imprudência ou negligência, sem qualquer deliberação de


violar o dever”.31
Em relação ao erro de proibição, sendo também causa que exclui a culpabilidade (art. 21
do CP), aplicar-se-ão os mesmos entendimentos expostos quanto à legítima defesa
putativa, ou seja, cabe ação civil em busca de indenização.

2.4.3.3. Erro de tipo


Para que seja devido o ressarcimento civil, mister se faz estarem presentes dois
elementos: a ilicitude do fato e a culpa do agente. O art. 20 do CP, ao prever o erro
sobre elemento constitutivo do tipo, exclui o dolo da ação, mas permite a punição
quando o crime for previsto como culposo.
Portanto, excluído o dolo, afastado também estará o tipo. Encontramos aqui duas
correntes: a primeira a entender que a antijuridicidade subsiste ainda que não haja
tipicidade; e a segunda a julgar impossível a mantença daquela sem esta. No entanto, ao
que nos concerne, em qualquer das hipóteses a solução quanto à indenização será
idêntica. Isto porque a ilicitude que se busca é a civil, sendo irrelevante a
antijuridicidade penal. Desta forma, não perdendo o fato seu caráter de ilícito civil,
quando caracterizado o dano, o nexo causal e a culpa do agente, possibilitada estará a
propositura da pertinente ação de conhecimento.

3. DOS RECURSOS E DAS AÇÕES DE IMPUGNAÇÃO


A fixação da indenização civil na própria decisão criminal faz surgir questionamentos a
respeito do sistema recursal e das ações de impugnação.
Conforme a reforma processual do tema, expressa nos arts. 63 e 387 do CPP, compete
ao magistrado criminal fixar o valor mínimo a ser indenizado à vítima na própria
decisão condenatória criminal.
Para facilitar a visualização de todas as hipóteses de inconformismo contra uma decisão
judicial, no novo rito do processo penal, relacionados com a fixação do valor mínimo,
cuidaremos de cada etapa, desde a nomeação como assistente de acusação até a
devolução da matéria aos Tribunais.

3.1 Da habilitação do ofendido como assistente de acusação

31
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – teoria geral das obrigações. São Paulo:
Saraiva, 2004.
31

A habilitação do ofendido como assistente de acusação lhe possibilitará provar e pedir


valor a ser indenizado, tendo legitimidade para recorrer de forma autônoma e arrazoar
recursos interpostos pelo Ministério Público (art. 271 do CPP). Da decisão judicial que,
após a oitiva do Ministério Público, indefere a habilitação do assistente de acusação não
cabe recurso (art. 273 do CPP). Entretanto, cabe mandado de segurança. Tal pleito já era
aceito pela jurisprudência e agora resta fortalecido pela importância do novo inc. IV do
art. 387 do CPP.

3.2 Embargos de declaração na hipótese de omissão


O recurso cabível contra a decisão que não fixa o valor mínimo é o de embargos de
declaração. Trata-se de omissão judicial, pois tendo sido instruída a ação penal nesse
sentido e havendo pedido expresso do assistente de acusação, é dever do magistrado
apreciar a matéria. Os embargos declaratórios também poderão ser manejados quando,
não havendo requerimento por parte do assistente, o juiz deixar de esclarecer os motivos
que o levaram a não estipular o valor indenizatório; isto para que se evite uma possível
anulação da decisão, pois cuida-se de requisito da sentença.

3.3 Apelação direta e supletiva


Se a vítima discordar do valor mínimo fixado na sentença condenatória, poderá discutir
a matéria em apelação criminal. Na hipótese, porém, de sentença absolutória, deverá o
assistente valer-se da prerrogativa conferida pelos arts. 271 e 600, § 1.º, do CPP, e
arrazoar em três dias o apelo do parquet a fim de requerer, em caso de provimento,
também a fixação de montante a ser indenizado.
Se, no entanto, o Ministério Público decidir não recorrer da sentença absolutória, abre-
se prazo para apelação supletiva, mesmo para os casos em que o ofendido não houver se
habilitado como assistente de acusação, nos termos do art. 598 do CPP. Nesta
conjectura, poderemos nos deparar com duas situações diversas. Estando o ofendido
devidamente habilitado e tendo perseguido durante a instrução a recomposição dos
danos, poderá em suas razões de apelação requerer a estipulação do valor. Ao contrário,
se a vítima apelar sem que esteja habilitada como assistente de acusação, deverá ater-se
tão-somente às questões abordadas em primeira instância pelo órgão acusatório, sob
pena de se vislumbrar supressão de instância e violação ao princípio devolutivo, uma
vez que a matéria nem sequer foi apreciada pelo órgão a quo; resta ao ofendido buscar o
quantum debeatur apenas em sede de liquidação civil.
32

Por fim, a decisão que não fixar o valor mínimo, havendo prévia habilitação, provas e
pedido nesse sentido, será anulável, por ausência de requisito essencial (art. 564, IV, c/c
art. 563 do CPP).

4. PROBLEMATIZAÇÃO
4.1 Da necessidade de notificação da vítima
Conforme analisado neste estudo, o ofendido passou a titularizar relevante participação
no procedimento criminal, sendo ônus seu o pleito e a prova do dano experimentado.
Em nosso país, os cidadãos possuidores de acesso a informações de ordem jurídica são
poucos e o acompanhamento da atividade policial é custoso e trabalhoso, além de
requerer conhecimentos específicos do linguajar técnico.
Temos, então, como realidade nacional, um considerável número de procedimentos
administrativos e judiciais desenvolvidos e finalizados sem a participação efetiva da
vítima, ou mesmo sem qualquer ciência desta, que se limita a dar a notitia criminis e
prestar declarações quando intimada para tal.
Desta feita, a uma análise perfunctória, pode parecer desvinculada da realidade a
esperança de que o ofendido se habilite como assistente de acusação a fim de se ver
ressarcido.
Sob tal entendimento, o TJSP32 editou ato normativo determinando fosse a vítima
informada do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, para que, dessa
forma, pudesse esta ingressar com procedimento de liquidação e execução na seara
civil.
Observa-se, então, a redação dada pela Lei 11.690/2008 ao § 2.º do art. 201 do CPP, o
qual dispõe que o lesado deverá ser intimado de atos processuais referentes ao “ingresso
e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e
respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem”.
Assim, ainda que o ofendido não seja cientificado quanto à propositura da ação penal
pública, dela tomará conhecimento quando de sua intimação para a audiência de

32
Normas da Corregedoria Geral de Justiça – Normas de Serviços dos Ofícios Judiciais – Capítulo V –
Dos ofícios de justiça criminal, do júri, das execuções criminais e da Corregedoria dos presídios e da
polícia judiciária: “26. Das sentenças condenatórias proferidas em processos criminais e daquelas
prolatadas em procedimento relativo à prática de ato infracional que imponha a adolescente medida sócio-
educativa prevista na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), com trânsito em julgado,
deverão ser extraídas cópias para encaminhamento às vítimas, ou sendo o caso, aos familiares”. (Provs.
CSM 770/2002, CGJ 2/2001 e 5/2002). Disponível em: [www.tj.sp.gov.br].
33

instrução e julgamento,33 restando-lhe ainda a oportunidade de requerer o que lhe é de


direito.
Vê-se, então, que o legislador (in)voluntariamente optou por um processo penal
tendente à real efetivação da tutela jurisdicional, garantindo-se o acesso material à
justiça, como quer a Lei Maior em seu art. 5.º, XXXV, deixando por terra a máxima
dormientibus non sucurrit jus.

4.2 Da responsabilidade de terceiros e da comunicabilidade aos herdeiros


Neste item há que se traçar linhas bem definidas entre a responsabilidade penal e a
responsabilidade civil.
No âmbito do direito criminal, vige a regra de que a pena não passará da pessoa do
condenado (art. 5.º, XLV, da CF/1988). Este princípio penal não comporta exceção. O
réu condenado criminalmente, ao receber uma pena pecuniária, restritiva ou privativa de
liberdade, vê a sua punibilidade extinta com a sua morte, por expressa previsão legal
(art. 107, I, CP). Os efeitos de sua pena criminal não ecoam para fora de seu âmbito
personalíssimo. A pena está atrelada à autoria do delito e não transborda os seus limites.
Dessa forma, podemos afirmar não existir no direito responsabilidade penal de terceiros.
No âmbito do direito civil, vale a regra da legitimidade passiva transmissível, também
por força de disposição expressa da lei. Reza o art. 943 do CC/2002: “O direito de
exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança”.
No caso da responsabilidade civil decorrente de infração penal, a regra civil prevalece,
mesmo na esfera penal. Há um pedido de natureza civil decorrente de um fato típico
penal. O valor mínimo a ser indenizado à vítima tem como origem uma infração penal,
mas não possui natureza jurídica de pena stricto sensu. Trata-se de uma condenação
civil exarada por juiz criminal. Essa natureza privada da parcela indenizatória da
sentença criminal permite a figuração, no pólo passivo da ação ex delicto, do autor do
delito, seus representantes legais ou seus herdeiros. O patrimônio do de cujus,

33
“O ofendido não precisa ser arrolado; deve ser ouvido sempre que possível, independentemente da
iniciativa das partes. O art. 201 do CPP cria para o juiz o dever jurídico de ouvir o ofendido” (Hélio
Tornaghi. Compêndio de processo Penal. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967, t. III, p. 853).
“Obrigatoriedade da sua inquirição: em que pese não ser testemunha, pensamos ser obrigatória a oitiva da
vítima, não só porque o art. 201, expressamente, menciona que ele será ouvida sempre que possível, mas
também porque, no processo penal, como se sabe, vige o princípio da verdade real, isto é, deve o juiz
buscar todos os meios lícitos e plausíveis para atingir o estado de certeza que lhe permitirá formar o seu
veredicto. Assim, caso as partes não arrolem a parte ofendida, deve o magistrado determinar, de ofício, a
sua inquirição, sob pena de se enfraquecer a colheita de prova” (Guilherme de Souza Nucci. Código de
Processo Penal comentado. São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 401).
34

condenado criminalmente, responde pela dívida dentro dos limites objetivos da força da
herança.
Toda essa construção doutrinária tem por base a lei penal e a lei civil e, principalmente,
a função da responsabilidade civil e penal: “a responsabilidade civil tem uma função
essencialmente indenizatória, ressarcitiva ou reparadora, só acessória ou
secundariamente assumindo caráter punitivo, ao invés do que sucede com a
responsabilidade criminal, cuja função primordial é de caráter punitivo e preventivo”.34
A migração do pedido de natureza civil para o âmbito da ação penal contraria a
Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, de 1941, quando Sá Pereira
afirmou: “A meu ver, o que há de verdade nessas alegações não atinge os dois pontos
seguintes: 1) que a reparação do dano é matéria de direito civil, e 2) que a repressão
sofreria, se, no crime, a pleiteássemos. Se há lesão patrimonial, a reparação há de ser
pedida a um outro patrimônio, e se me afigura impossível deslocar esta relação entre
dois patrimônios do campo do direito privado para o do direito público, como querem
os positivistas. Abrir no processo-crime a necessária margem à ação reparadora seria ou
fazer marcharem simultaneamente as duas ações no mesmo processo, o que tornaria
tumultuário, ou paralisar o processo-crime para que o cível o alcançasse no momento
final do pronunciamento da sentença que aplicasse a pena e fixasse a indenização. Não
creio que a repressão ganhasse com isto alguma coisa; ao contrário, perderia muito de
sua prontidão e rapidez”.
A mesma linha de preocupação sondou as linhas doutrinárias de Helio Tornaghi, ao
tecer comentários sobre o Código de Processo Penal, quando denominou a duplicidade
de pedidos civil e penal, no mesmo processo, de esquema da confusão, no qual há uma
única ação com duas obrigações.35
De qualquer forma, a positivação do pedido de indenização no decurso da ação penal já
é uma realidade e está vigente. Não ofende a Constituição e, respeitadas as
características díspares existentes entre a responsabilidade penal e a civil, deve o valor
mínimo a título de indenização ser fixado pelo juiz criminal em busca de eficácia e
celeridade na prestação jurisdicional.
Por derradeiro, pretendendo o ofendido ser ressarcido pelo responsável civil, não
poderá, de qualquer forma, valer-se da sentença penal condenatória a fim de liquidá-la

34
Antunes Varela. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 228, apud MOREIRA,
Rômulo de Andrade. Ação civil ex delicto. Jus Navigandi 281, ano 8. Teresina, 14.04.2004. Disponível
em: [http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5068] Acesso em: 12.04.2009.
35
TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Penal, p. 107.
35

ou executá-la no cível; isto porque não sendo o terceiro parte na demanda criminal, não
se pode contra ele constituir título judicial de qualquer natureza. Assim, caberá à vítima
intentar ação de conhecimento para que se reconheça judicialmente a responsabilidade
do terceiro, sem, contudo, discutir-se a existência do fato criminoso, conforme art. 935
do CC/2002.36

4.3 Limites à atuação do Ministério Público


Como já exposto no tópico 2.1, compete ao ofendido, habilitado como assistente de
acusação, requerer seja estabelecido montante indenizável, porque se cuida de questão
relevante tão-somente às partes. Destarte, pela leitura do art. 127, caput, da CF/1988,
prescrevendo ser atribuição do Ministério Público a defesa dos interesses sociais e dos
individuais indisponíveis, infere-se pela impossibilidade desta instituição requerer a
reparação do dano, pois este versa sobre interesse individual disponível, não se
encontrando no âmbito de atuação legítima do parquet. Da mesma forma, não caberá ao
Ministério Público impugnar a parte civil da sentença, por evidente falta de interesse
recursal.
Ademais, não podemos aqui nos furtar a analisar a exceção trazida pelo art. 68 do CPP.
Ainda sob uma análise constitucional da função atribuída ao Ministério Público
devemos nos pautar tanto por uma análise dogmática quanto jurisprudencial do tema.
Primeiramente, no campo da dogmática, há que se sublinhar a imprescindível
adequação constitucional dos dispositivos anteriores à Carta da República, quando
recepcionados. Em segundo momento, importante é a consideração da forma como vem
o STF analisando a questão.
Dispõe a norma ora em exame:

36
“(...) Se o juiz penal pudesse decidir acerca da responsabilidade penal e também da civil, logo poderia
ser chamado o patrão a integrar a ação penal, querendo, tornando-se possível a condenação a quem
efetivamente possa indenizar o dano causado. (...) Cite-se, também, a posição de Rogério Marrone de
Castro Sampaio, no sentido de que ‘tem prevalecido, tanto na jurisprudência quanto na doutrina, que o
título executivo formado com a sentença penal condenatória confere legitimidade passiva para a ação
executiva apenas ao ofensor, ou seja, aquele que foi parte na ação penal. Quanto à apuração da
responsabilidade civil indireta (patrão por ato do empregado, a título de exemplo), necessário nova ação
civil de conhecimento’. Entretanto, ressalva o autor que, a despeito do ensinamento de Tourinho Filho,
tem triunfado na jurisprudência o entendimento de que, proposta a ação civil contra o terceiro
responsável, tem ele direito de rediscutir todos os pontos de forma abrangente, sem qualquer vínculo, uma
vez que a coisa julgado no crime não o atingiu (Responsabilidade civil, p. 75). Em igual prisma: Mirabete
(Código Penal interpretado, p. 131).” NUCCI. Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução
penal, cit., p. 239-240.
36

“Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1.º e 2.º), a
execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a
seu requerimento, pelo Ministério Público.”
Mencionada determinação legal foi posta em nosso ordenamento quando encerrava o
Parquet função distinta da que lhe é reservada pelo art. 127 da CF/1988. Desse modo,
interpretar o art. 68 do CPP é, antes de qualquer coisa, julgar a recepção, ou não, do
dispositivo processual pela ordem constitucional vigente. Havendo, portanto, flagrante
contraposição entre a outrora atribuição ao Ministério Público de poderes para a defesa
de direitos disponíveis, como é a reparação civil de danos decorrentes da prática de
infração penal, e a defesa de direitos indisponíveis hoje encerrada como dever
constitucional precípuo desta instituição, bem como a transferência de dita função à
Defensoria Pública, infere-se, dogmaticamente, pela não-recepção de referido artigo de
lei.
No entanto, sem exclusão da solução dogmática apresentada, vem interpretando
reiteradamente o STF de forma diversa, isto é, acrescenta o Pretório Excelso elemento
acima não considerado, qual seja, os efeitos práticos de uma declaração de não
recepção. Nas palavras do Min. Sepúlveda Pertence:
“O caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição
constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos
ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua
inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou ainda, na hipótese de lei
ordinária pré-constitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da
perda de vigência desde a data da Constituição.
Essas alternativas radicais – além dos notórios inconvenientes que gera – faz abstração
da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato
instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da
Constituição – ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia
limitada –, subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a
inviabilizam.
(...)
Estou em que, no contexto da Constituição de 1988, essa atribuição deva efetivamente
reputar-se transferida do Ministério Público para a Defensoria Pública: essa, porém,
para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de
fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela
37

ordenada: até que – na União ou em cada Estado considerado –, se implemente essa


condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art.
68 do CPP será considerado ainda vigente.” (RE 147.776-8/SP, rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJ 19.06.1998, f. 143-145)37
Assim, corroborando os argumentos trazidos ao longo deste artigo, há que se atentar,
quando da interpretação de normas infraconstitucionais, não apenas sua coerência com
os preceitos da Lei Maior, mas também sua adequação às circunstâncias práticas, de
forma a não inviabilizar, em virtude de raciocínios lógico-formais, a materialização de
garantias fundamentais, como o amplo acesso ao Judiciário.
A solução adotada pelo Supremo deve, portanto, ser prestigiada por ser a mais adequada
à realidade nacional. Assim, nas localidades em que a Defensoria Pública encontrar-se
instalada, o art. 68 do CPP deve deixar de ser aplicado, sob pena de o Ministério
Público adentrar na esfera de atuação reservada à Defensoria.
Por outro lado, nos locais em que a Defensoria Pública não estiver ainda instalada, o
mesmo artigo deve servir como permissivo à atuação do parquet em favor do interesse
individual disponível; cabendo-lhe, nesta hipótese, inclusive, requerer ao juiz da causa a
fixação de valor mínimo a ser ressarcido à vítima e, por conseguinte, legitimar-se a
interpor os recursos cabíveis.
Importante destacar que a disponibilidade do pedido de indenização, mesmo que
conduzido pelo parquet, está vinculado à autorização e ao interesse do réu em ver o
promotor de justiça agir em seu nome. O representante do Ministério Público não
poderá nem deverá agir de ofício; Devendo aguardar a manifestação do ofendido quanto
à vontade de exercer o seu direito.

4.4 Da fixação de honorários advocatícios


A análise do cabimento da fixação de honorários advocatícios quando da fixação de
montante a ser ressarcido pelo réu à vítima é tema que, indubitavelmente, deve ser
vislumbrado sob a lógica e perspectiva da nova legislação. Dito de outra forma, deve o
tema ser abordado considerando a inexistência de norma expressa, no direito processual
penal, sobre o assunto, o que implica uma análise dos princípios constitucionais
envolvidos com o processo penal e com a novel sistemática da ação civil ex delicto,
além das características do valor que se busca ressarcir.

37
No mesmo sentido, corre o julgado RE 135.328/SP, do STF.
38

Primeiramente, referindo-se ao sopesamento constitucional necessário à integração da


lacuna aqui vislumbrada, já que não se observa qualquer prescrição legal específica
sobre o assunto no processo penal, pode-se inferir ser imprescindível a consideração do
princípio da razoável duração do processo. Cabe esclarecer que o sincretismo processual
evidenciado pela reforma não transportou para o procedimento penal toda a sistemática
prescrita pelo Código de Processo Civil, mas tão-somente as regras matrizes deste.
Desta feita, a outra conclusão não se poderia chegar senão pela inaplicabilidade do art.
20 do CPC, ao processo criminal em que se fará a aferição do valor mínimo a ser
ressarcido, sendo fundamento para tanto a incongruência deste transplante com o
princípio da razoável duração do processo, em especial no campo recursal.
Ademais, nada obstante a garantia de acesso a uma prestação jurisdicional equânime, da
qual é corolário a imprescindibilidade do advogado, pode-se dizer que a valorização a
uma ordem célere impede, no processo criminal, a fixação de honorários advocatícios,
restando, pois, ao patrono, neste momento, ser ressarcido unicamente pela verba
contratual avençada com a vítima/assistente de acusação.
Em segundo lugar, necessário se faz uma diferença entre a natureza do valor mínimo a
ser ressarcido e uma indenização civil exauriente, completa. Como exposto no item
2.4.1 supra, o magistrado criminal deve ater-se aos danos diretos, ficando os chamados
danos indiretos a cargo do juízo civil. Temos que os custos necessários à busca pela
prestação jurisdicional caracteriza-se como dano indireto, posto não ser resultado
imediato da prática delituosa,
Assim, a despeito de constar no § 5.º do art. 201 do CPP, que a assistência jurídica do
ofendido se dará a expensas do ofensor ou do Estado, há de se concluir que tais valores
deverão ser pleiteados em sede de liquidação, não sendo possível a fixação de verba
honorária quando da fixação do valor mínimo a ser ressarcido, pois da análise legal não
se pode inferir ter sido esta competência atribuída ao juízo penal.

4.5 Do conflito de competência com o juízo cível


Conforme largamente exposto no presente estudo, ao magistrado titular de juízo
criminal foi conferida nova parcela de competência civil; note-se, porém, que esta
mesma parcela não foi subtraída do âmbito de atuação do juiz cível. Na hipótese da
vítima optar por não provocar a tutela no procedimento penal, deixando para discutir a
totalidade de seus prejuízos no cível, problemas não haverá. Da mesma forma se o
ofendido esperar o trânsito em julgado da sentença criminal para posteriormente buscar
39

eventual liquidação. Qual será a solução, no entanto, quando a ambos os juízos forem
dados apreciar a mesma matéria?
Dispõe o art. 64 do CPP:
“Art. 64. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano
poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o
responsável civil.
Parágrafo único. Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso
desta, até o julgamento definitivo daquela.”
Infere-se da leitura do artigo supra que, independentemente da fase em que se encontre
o procedimento criminal, poderá a vítima ingressar com ação de conhecimento civil a
fim de se ressarcir, seja contra o autor do delito, seja contra o responsável civil. Tal
dispositivo encontrava-se perfeitamente ajustado à redação do art. 63 anterior à reforma
– antes da inserção de seu parágrafo único.
Ocorre, porém, ter o processo criminal passado a conter traços civis, evidentemente em
relação à indenização da vítima. Sustentamos neste mesmo estudo caber ao ofendido
optar por deduzir seu pedido ao juízo criminal – possibilitando-lhe eventual liquidação
posterior –, ou pleitear a recomposição dos danos diretamente na seara civil. Ora, se o
magistrado criminal detém agora competência civil para apreciar o an e o quatum
debeatur, por certo, se o ofendido requerer o mesmo ao juízo civil haverá litispendência,
ensejando a extinção do segundo pedido, pois não pode o direito processual tolerar uma
mesma lide objeto de mais de um processo simultaneamente.38
Temos aqui mais uma razão pela qual se entende depender a fixação de valor pelo juiz
penal de expresso pedido do interessado (item 2.1). Fosse a fixação de montante
indenizatório requisito da sentença penal, e se o ofendido ingressasse com ação de
conhecimento (como permite o art. 64 do CPP) que passasse em julgado antes da
sentença penal, o lesado obteria dois títulos executivos referentes à mesma obrigação,
formalizando evidente enriquecimento indevido.
Sendo, porém, necessária a manifestação do ofendido a fim de que se apure o seu
prejuízo, caso deduza o mesmo pedido na esfera civil, poderá ser responsabilizado por
litigância de má-fé. O mesmo se dará se, já havendo ação de conhecimento autônoma,
requerer indenização no procedimento penal.

38
THEODORO JÚNIOR., Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1994. vol. 1,
p. 310.
40

É também da letra da lei que se infere poder a ação ser movida contra o responsável
civil. Nessa hipótese, porém, não se poderá falar em litispendência, pois as partes serão
distintas. Isto porque, não sendo o responsável civil parte no processo penal, não poderá
sofrer qualquer conseqüência que dele se extrai, sob pena de afronta ao devido processo
legal.
Desta forma, a fim de evitar-se o enriquecimento sem causa, deverá o magistrado
utilizar-se do parágrafo único do art. 64 do CPP, aguardando o estabelecimento de valor
pelo juiz penal (que poderá ser o mínimo ou o máximo), para que, então, proceda ao
julgamento da lide, descontando-se o montante fixado na outra demanda ou não fazendo
nenhum acréscimo patrimonial se entender que a fixação do valor indenizatório
estipulada pela esfera criminal é justa, equânime, suficiente e proporcional.

4.6 Aplicação da inovação legislativa no tempo


A questão referente à aplicação da Lei 11.719/2008, mais especificamente quanto à
aplicação do art. 387, IV, do CPP, aos procedimentos já iniciados reveste-se de
contornos tormentosos, casuísticos, mas que, indubitavelmente, deve respeitar as balizas
constitucionais e os pressupostos fixados ao longo deste trabalho. Assim, como não há
regramento específico quanto à aplicação da nova lei aos procedimentos já iniciados,
deve-se, em cada um dos casos, buscar a conformação da novel sistemática à regra
advinda do sopesamento dos princípios constitucionais envolvidos.
Preliminarmente, importante expor a discussão verificada na jurisprudência de alguns
tribunais pátrios quanto à natureza da regra do inc. IV do art. 387 do CPP, isto é, se
processual ou substantiva.39 Entendemos, a despeito das opiniões e argumentos

39
Posicionamentos no sentido de caracterizar a regra do art. 387, IV, do CPP, como de natureza
substantiva foram verificados no TJRS. A título exemplificativo, transcreve-se excerto no qual se expõe
estas posições:
“Conquanto deva ser observado o princípio tempus regit actum, com a imediata aplicação da lei
processual que venha a vigorar, a norma em questão possui evidente natureza substantiva, importando em
verdadeira sanção a ser imediatamente executada pela vítima, quando do trânsito em julgado. A carga
penal do preceito em tela, impede sua incidência imediata, sob pena de se fazer retroagir lei prejudicial ao
réu, o que é vedado” (TJRS, ApCrim 70027798511, 8.ª Câm. Crim., rel Des. Fabianne Breton Baisch, f.
10-11); e, “Entendo a legislação processual penal em vigor preveja, a partir de 23.08.2008 (início da
vigência da Lei 11.719, de 20.06.2008, que, no ponto ora sob análise, deu nova redação ao inc. IV do art.
387 do CPP), a possibilidade do réu ser condenado a indenizar a vítima pelos danos e/ou prejuízos
decorrentes dos fatos libelados, a natureza jurídica da extensão da regra positiva que a criou é de direito
material extrapenal, pois estabelece nova modalidade de sanção que, não obstante, não integre o preceito
secundário das normas materiais penais em geral (crimes e contravenções: nulla poena, nullun crimen,
sine previa legem poenale), em conseqüência do que, ainda que se considere procedimentalizável e
aplicável no âmbito do processo penal, ela jamais poderá ser aplicada ex officio pelo juiz, porque a sua
incidência repudia a unilateralidade e requisita observância, antes de tudo e sobretudo, aos princípios
norteadores dos direitos e garantias fundamentais individuais (constitucionais e infraconstitucionais),
41

contrários, tratar-se a nova sistemática, introduzida pela Lei 11.719/2008, de regra


processual, aplicável de imediato aos processos em andamento, uma vez que não cria,
altera ou extingüe direito substantivo, mas apenas acrescenta novo requisito à sentença
condenatória. Portanto, processual é a natureza da regra aqui em discussão, não sendo
pertinente a submissão da matéria aos condicionamentos próprios da aplicação de novas
normas penais.
Assim, imprescindível consignar a aplicação do art. 2.° do CPP, prevendo que “A lei
processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados
sob a vigência da lei anterior”. Ou seja, prima facie, deve-se entender pela aplicação
imediata do art. 387, IV, do CPP, a todos os procedimentos iniciados, devendo, assim, o
magistrado fixar em sua sentença penal condenatória o valor mínimo mencionado,
desde que assim requerido. Ocorre, contudo, que os já iniciados processos criminais
encontram-se em suas mais diversificadas fases; o que poderá gerar conflito entre a
aplicação indiscriminada do art. 2.º do CPP, com as garantias constitucionais da ampla
defesa, do contraditório, do devido processo legal substantivo, da razoável duração do
processo e da separação entre os processos penal e civil.
No tocante aos princípios constitucionais acima citados, e que ao longo deste artigo
foram debatidos, fácil é a constatação da possibilidade de incongruências. Encerram os
incs. LIV, LV e LXXVIII do art. 5.º da CF/1988, princípios que, quando sopesados,
resultam, como regra, a depender da fase em que se encontra o processo penal, no
impedimento à fixação de um valor mínimo pelo juízo penal, cabendo a este declarar
esta impossibilidade, por ausência de instrumento probatório apto a tanto. Assim, não há
como se aceitar que, em exemplo propositalmente extremado, se admita o ingresso de
assistente de acusação, com o propósito único e específico de deduzir pedido
indenizatório, com a conseqüente dilação probatória para tanto, quando se encontrar o
processo em fase de apresentação de alegações finais. Obviamente não se nega a
possibilidade de ingresso do assistente de acusação, recebendo os autos no estado em

dentre os quais se inserem os da imputação, da correlação, do contraditório e da ampla defesa, dentre


outros não menos importantes, no devido processo penal legal aplicável à espécie sub judice” (TJRS,
ApCrim 70028354199, 6.ª Câm. Crim., rel. Des. Aymore Roque Pottes de Mello, f. 21). No mesmo
sentido, as ApCrim 70027659226 e 70027379437, do TJRS, e 1112456.3-5, do TJSP).
Em sentido contrário, contudo, há a ApCrim. 70027379437, do mesmo TJRS, em acórdão proferido pela
7.ª Câm. Crim., sob relatoria do Des. João Batista Marques Tovo, às f. 10, in verbis: “A matéria é nova e
demanda formação de entendimento. A meu sentir, cuida-se de norma de caráter exclusivamente
processual e, portanto, aplicável desde logo. É que não se trata de pena nem foi criada alguma
indenização especial ou diversa daquela já prevista na legislação anterior, apenas se determinou ao juiz da
ação penal condenatória que arbitrasse um valor mínimo para reparação de danos, que poderá ser
prontamente executado pelo ofendido, sem prejuízo da liquidação do dano efetivamente ocorrido”.
42

que se encontram, mas apenas a possibilidade deste requerer dilação probatória em


momento inoportuno. No entanto, razão também não há para não se facultar ao
assistente de acusação deduzir seu pedido, e conseqüentemente produzir provas, quando
estas não resultarem em ampla dilação probatória, ou seja, não acarretando delongas e
atrasos desnecessários ao devido processo legal.
Em relação à separação entre os processos penal e civil, novamente em conformidade
com o defendido ao longo deste trabalho, não há como se pretender a prolação de
sentença sem a necessária motivação do livre convencimento do juiz, isto é, sem a
devida produção, em respeito às características civis do pedido indenizatório, de
instrumento probatório, com seu respectivo contraditório, sobre o qual se pautar.
Dessa forma, no que se refere à aplicação da novel legislação no tempo, questões outras,
além da mera leitura do art. 2.º do CPP, são suscitadas, principalmente quando se trata
de processos penais já iniciados. Assim, se por um lado contingências há, devido à
singularidade de cada processo, uma diretriz subsiste, representada pela aplicação dos
princípios constitucionais envolvidos na matéria e a separação entre os processos civil e
penal. Portanto, a despeito da análise que deverá ser feita em cada caso, processos
existirão em que a aplicação imediata da nova lei se mostrará incabível, e casos em que
sua aplicação se apresentará perfeitamente possível. É certo, porém, que,
independentemente da fase do processo, por cuidar-se de norma processual, deverá o
magistrado, ao sentenciar, manifestar-se quanto à indenização, seja para fixá-la ou
deixar de fazê-lo.

4.7 Da aplicação da inovação legislativa a todos os procedimentos penais


O art. 394, § 2.º, do CPP reza: “Aplica-se a todos os processos o procedimento comum,
salvo disposições em contrário deste Código ou de lei especial”. Já o § 4.º do mesmo
artigo preceitua: “As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os
procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código”.
Com base nesses dispositivos, podemos concluir que os critérios de rejeição de
denúncia ou queixa, a defesa preliminar e a absolvição sumária estarão presentes em
todos os ritos, comuns ou especiais. Fora dessas hipóteses, mantidas estarão as
disposições prescritas pelos procedimentos especiais.
Apresentadas as permissões gerais sobre os ritos comum e especial, urge seja traçada
uma regra geral a respeito da aplicação da fixação do valor mínimo de indenização pelo
juiz criminal.
43

Existindo crime com reflexos patrimoniais e morais e sentença condenatória proferida


por juiz competente, respeitados a ampla defesa e o devido processo legal formal e
substantivo, a fixação do valor mínimo previsto no art. 387, IV, do CPP é obrigatória.
Há, porém, exceções. Como ensina Cezar Roberto Bitencourt, o dano sofrido pela
vítima do crime não deve ser punido, mas sim reparado, em suas palavras: “os acenos
que mais se aproximaram de uma pálida tentativa de reparar uma das mais graves
injustiças que o Direito Penal, historicamente, tem cometido com a vítima referem-se à
multa reparatória”.40
O art. 297 do CTB prevê seja a multa reparatória paga diretamente à vítima, e não
recolhida aos cofres públicos. Trata-se, como já afirmado outrora, de reparação civil, e
não de pena. De tal assertiva, infere-se que a multa reparatória nada mais é do que uma
indenização pelos danos materiais sofridos pela vítima, não abarcando os danos morais.
Sendo assim, por se tratar de regra especial, contrária à regra geral do Código de
Processo Penal acrescida com a novel legislação, não há que se aplicar o art. 387, IV.
Logo, deverá a vítima de trânsito socorrer-se do juízo civil, quando for de seu interesse
a mensuração e execução dos danos morais. Interpretação noutro sentido iria não só
contra a letra da lei, como ao encontro com as regras de hermenêutica, já que não há que
se falar em subsidiariedade de tema totalmente regulamentado por norma especial.
Outra questão interessante diz respeito à fixação do valor mínimo no rito especial do
tribunal do júri.
Após a votação do conselho de sentença decidindo pela responsabilidade criminal do
réu, o juiz presidente do júri elabora a sentença sem ingressar no mérito da decisão,
atendo-se, somente, ao dispositivo com a fixação da pena proporcional e individualizada
com a culpabilidade do agente e a capitulação do delito.
Além de fixar a pena-base, considerar as circunstâncias agravantes ou atenuantes
alegadas nos debates, impor os aumentos ou diminuições da pena, o art. 492, I, CPP
ainda traz expressamente em seu texto: “d) observará as demais disposições do art. 387
deste Código”. O art. 387, IV, diz: “fixará valor mínimo para reparação dos danos
causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. Os dois
dispositivos normativos demonstram, de forma cabal, a possibilidade de o juiz
presidente fixar o valor mínimo a título de indenização civil.

40
BITENCOURT, Cezar Roberto. Alguns aspectos penais controvertidos do Código de Trânsito. RT
754/480.
44

Para fazê-lo, portanto, deve o juiz presidente observar, no que couber, o disposto nos
arts. 948 a 950 do CC/2002, que trata, especificamente, da indenização civil por
homicídio e lesão corporal. Dizemos “no que couber”, pois, como já explanado
anteriormente, não deverá o magistrado penal cuidar dos danos indiretos.
Assim, o juiz criminal fixará valor correspondente ao tratamento da vítima, mas não se
aterá à prestação de alimentos (art. 948, II, CC/2002), uma vez que carece que análise
pormenorizada a fim de se estimar a “duração provável da vida da vítima”, como quer a
lei. Da mesma forma, não deve apreciar o cabimento de eventual pensão civil ex delicto
ou a existência de lucros cessantes, pois tais questões merecem um contraditório mais
amplo do que o possível dentro de um procedimento criminal.

5. CONCLUSÃO
Concluímos-se, assim, afirmando a constitucionalidade do novo instituto, salientando
seus méritos no que se refere à promoção dos valores constitucionais da razoável
duração do processo e do acesso à prestação jurisdicional justa (art. 5.º, LXXVIII e
XXXV, CF/1988), ao mesmo tempo em que promove, nas lacunas procedimentais
deixadas pelo legislador, a possibilidade de respeito à ampla defesa, ao contraditório e
ao devido processo legal formal e substantivo (art. 5.º, LIV e LV, CF/1988).
Temos, ainda, que a nova sistemática evidencia importante evolução legislativa,
consagrando não apenas os princípios constitucionais acima expostos, mas também o
anseio de ver apagados todos os reflexos de um injusto penal, promovendo a
valorização do ser humano, ao mesmo tempo em que insere traços garantistas e
restaurativos ao processo penal. Atinge a novel reforma, seja diretamente, através de
suas regras postas, ou indiretamente, por meio da hermenêutica constitucional, os
valores e sistemas desenhados pela Constituição de 1988.
Portanto, sob os pressupostos como o da inexistência de uma teoria geral do processo e
o da presunção de constitucionalidade das leis aprovadas pelo Poder Legislativo,
conclui-se este trabalho afirmando, de um lado, ser necessário, para a real aplicação da
nova sistemática da ação civil ex delicto, uma mudança de comportamento na prática
forense diuturna e, de outro lado, com a pretensão de que se tenha contribuído para
novas discussões sobre o tema, não se furtando às indispensáveis críticas e
considerações.

BIBLIOGRAFIA
45

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008.
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