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Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

PJe - Processo Judicial Eletrônico

22/04/2023

Número: 0705729-42.2020.8.07.0018
Classe: AÇÃO POPULAR
Órgão julgador: Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF
Última distribuição : 31/08/2020
Valor da causa: R$ 1.000,00
Assuntos: Ato Lesivo ao Patrimônio Artístico, Estético, Histórico ou Turístico, DIREITO
AMBIENTAL, Licitações
Nível de Sigilo: 0 (Público)
Justiça gratuita? NÃO
Pedido de liminar ou antecipação de tutela? NÃO
Partes Advogados
VERA MARIA BICUDO DE CASTRO MAGALHAES (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
PAULO CESAR ROXO RAMOS (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
DENISE LEVONI (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
VANINE VASCONCELOS MAGALHAES (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
EDISON BERNARDES DOS SANTOS (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
JOSE CARLOS DE SOUZA NETO (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
GILSON PENA COSTA (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
ADILSON VIEIRA (AUTOR)
LUIZ FREITAS PIRES DE SABOIA (ADVOGADO)
PRESIDENTE DA COMPANHIA IMOBILIARIA DE BRASILIA
TERRACAP (REU)
PRESIDENTE DA COMISSÃO PERMANENTE DE LICITAÇÃO
DE VENDAS DE IMÓVEIS DA TERRACAP (REU)
COMPANHIA IMOBILIARIA DE BRASILIA TERRACAP (REU)
DISTRITO FEDERAL (REU)

Outros participantes
MINISTERIO PUBLICO DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITORIOS (FISCAL DA LEI)
CARLOS AUGUSTO ZANGRANDO TONELI (PERITO)
Documentos
Id. Data da Documento Tipo
Assinatura
151717531 14/03/2023 Sentença Sentença
17:19
Poder Judiciário da União
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

VMADUFDF
Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF

Número do processo: 0705729-42.2020.8.07.0018

Classe judicial: AÇÃO POPULAR (66)

AUTOR: VERA MARIA BICUDO DE CASTRO MAGALHAES, PAULO CESAR ROXO


RAMOS, DENISE LEVONI, VANINE VASCONCELOS MAGALHAES, EDISON
BERNARDES DOS SANTOS, JOSE CARLOS DE SOUZA NETO, GILSON PENA COSTA,
ADILSON VIEIRA

REU: COMPANHIA IMOBILIARIA DE BRASILIA TERRACAP, DISTRITO FEDERAL,


PRESIDENTE DA COMPANHIA IMOBILIARIA DE BRASILIA TERRACAP,
PRESIDENTE DA COMISSÃO PERMANENTE DE LICITAÇÃO DE VENDAS DE
IMÓVEIS DA TERRACAP

SENTENÇA

Autos 0705677-46.2020.8.07.0018:
Trata-se de Ação Popular, com pedido de tutela de urgência, proposta por LELIANA
MARIA ROLIM DE PONTES VIEIRA em desfavor da TERRACAP e do DISTRITO
FEDERAL, objetivando a suspensão do procedimento licitatório de alienação dos imóveis
situados nos lotes A, B e C da QL 14 do Setor de Habitações Individuais Sul, Lago Sul (Item
11 do Edital 08/2020-Terracap).
A autora popular sustenta que a Lei Complementar 797/08, que criou a “Praça do Poeta,
afetou o imóvel à categoria de bem público de uso comum do povo os lotes A, B e C da QL
14 do Setor de Habitações Individuais Sul – SHI/Sul, na Região Administrativa do Lago Sul
– RA XVI” para destinar o uso da área afetada “exclusivamente, a atividades de lazer e
preservação paisagística e ambiental.” Argumenta que o Distrito Federal, pautado no
interesse puramente econômico, pretende comercializar a área a despeito do interesse
coletivo de preservação ambiental, mesmo porque se está diante de um verdadeiro corredor
ecológico urbano que integra as raras áreas naturais do cerrado remanescentes em Brasília,
incluindo as APAs do Paranoá e Gama Cabeça de Veado. Sustém também que a afetação do
bem à categoria de bem público de bem de uso comum do povo voltado exclusivamente ao
lazer e à preservação paisagística e ambiental impede a comercialização do bem, sobretudo

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para uso institucional, inclusive comercial, de modo que o item 11 deve ser excluído do
Edital nº 8/2020. Argumenta que a área pública objeto da presente ação, afetada pela Lei
Complementar 797/08 à categoria de bem de uso comum do povo não passou a categoria de
bem dominial pela Lei Complementar 906/15 e por esse motivo não pode ser objeto da sanha
vendedora de imóveis públicos da Terracap, até mesmo porque tal lei só autorizou a
desafetação e alienação por venda dos imóveis discriminados nos seus anexos II a IV, não
desafetando o imóvel discutido nesta demanda que não consta nesses anexos. Além disso, a
Lei Complementar 906/2015 não atendeu aos requisitos materiais da participação popular e
da realização de estudos técnicos de impacto impostos pelo art. 56 da LODF, e mais, não há
lei especifica desafetando o bem, como exige o art. 47, § 1º, da Lei Orgânica do Distrito
Federal. Pede a concessão de liminar para determinar que os réus excluam do edital 8/20 o
bem em discussão e se abstenham de incluir em outros Editais de alienação o imóvel
compreendido pelos os lotes A, B e C da QL 14 do Setor de Habitações Individuais Sul –
SHI/Sul, na Região Administrativa do Lago Sul – RA XVI” para destinar o uso da área
afetada “exclusivamente, a atividades de lazer e preservação paisagística e ambiental.”, e a
fixação de multa para o caso de descumprimento. Atribui à causa o valor de R$ 1.045,00
(mil e quarenta e cinco reais). Requer a definição de prazo para que o Distrito Federal
cumpra a obrigação de implantar a “praça do Poeta), conferindo eficácia a Lei
Complementar 797/08, que no art. 3º determina a “a elaboração dos estudos e levantamentos
técnicos necessários à implantação dos equipamentos públicos necessários à criação da Praça
do Poeta, respeitados os interesses ambientais e paisagísticos da área” e a fixação de multa
para o caso de descumprimento. Requer também a anotação no registro do bem quanto a
existência desta demanda. Juntou documentos na sequência.
O pedido liminar foi indeferido (id. 71079458).
O Distrito Federal apresentou informações preliminares e documentação (id. 72236346/47).
A autora apresentou cópia da Matrícula 82767 (id. 72823742).
Em contestação (id. 73645635), a Terracap informa que o imóvel está irregularmente
ocupado e cercado por moradores locais. Sustenta que o imóvel foi desafetado e tem sua
destinação autorizada por lei, sendo, por esse motivo, alienável. Diz que o item 11 do Edital
8/2020 refere-se a imóvel distinto situado na SHI/S QL 05, LT B – BRASÍLIA. Sustenta que
não há lesão ao patrimônio público porque o valor obtido com a alienação do bem será
revertido para o Distrito Federal em investimento para desenvolvimento social, econômico e
ambiental, faltando assim os requisitos essenciais à Ação Popular. No mérito, sustenta que a
LC 906/15 autorizou a desafetação e alienação do imóvel pela Terracap através de licitação
pública, a qual atende a todos os requisitos de legalidade.
Em contestação (id. 74360035), o Distrito Federal suscita impossibilidade jurídica do pedido
e ilegitimidade ativa, na medida em que a autora busca a chancela jurídica para que a área
nunca seja objeto de licitação, concessão ou outros, e ainda quer obrigar o Distrito Federal a
implantar a praça alocando recursos públicos, competência esta que é exclusiva do Distrito
Federal em virtude de sua autonomia administrativa e financeira, e tais pleitos esbarram em
limitações legais, inclusive princípio da separação dos poderes e supremacia do interesse
público. No mérito, aduz que o imóvel discutido foi desafetado pela Lei Complementar 903
(art. 3º, IV e IV e anexos III e IV, e o processo legislativo obedeceu às regras de edição,
tendo sido realizadas audiências públicas, estudos ambientais e de impacto perante a CLDF,
e mais a Lei 906 foi integralmente mantida na LUOS editada em 2019 (Anexo II, mapa 8º

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RA Lago Sul), com o objetivo de promover empregos e desenvolver a área.
A autora apresentou réplica (id. 77343562).
Na fase de especificação de provas, as partes não requereram dilação probatória. Contudo, o
Ministério Público requereu a oitiva do Conselho Supervisor da APA Gama e Cabeça de
Veado e do IBRAM (id. 130738444).
O IBRAM prestou informações (id. 138068492/94), assim como o SEMA (id.
144579410/406). Na sequência as partes foram ouvidas.
Em parecer (id. 151277679), o Ministério Público oficia pela procedência dos pedidos
autorais.

Autos nº 0705729-42.2020.8.07.0018:
Trata-se de Ação Popular, com pedido de tutela de urgência proposta por VERA MARIA
BICUDO DE CASTRO MAGALHAES, PAULO CESAR ROXO RAMOS, DENISE
LEVONI, VANINE VASCONCELOS MAGALHAES, EDISON BERNARDES DOS
SANTOS, JOSE CARLOS DE SOUZA NETO, GILSON PENA COSTA, ADILSON
VIEIRA em desfavor da COMPANHIA IMOBILIARIA DE BRASILIA TERRACAP, do
DISTRITO FEDERAL, do PRESIDENTE DA COMPANHIA IMOBILIARIA DE
BRASILIA TERRACAP e do PRESIDENTE DA COMISSÃO PERMANENTE DE
LICITAÇÃO DE VENDAS DE IMÓVEIS DA TERRACAP, com o intuito de anular ato
lesivo ao patrimônio natural e estético decorrente da desafetação e disponibilização para
venda do Lote B da EQL 14/16, Setor de Habitações Individuais Sul, Lago Sul. Os autores
informam que a Lei Complementar 797/2008 afetou a área dos lotes A, B e C da EQL 14/16
à categoria de bem público de uso comum do povo, criando a Praça do Poeta com destinação
exclusiva para atividades de lazer, preservação artística e ambiental, reconhecendo a sua
importância ambiental. Todavia, o DF, por meio da Lei Complementar 906/2015, promoveu
a desafetação do bem e o disponibilizou para venda por meio do Edital nº 08/2020 da
Terracap sem que antes fosse feita consulta pública e estudo de impacto ambiental, o que se
traduz em inconstitucionalidade da norma por violação ao Art. 56 da Lei Orgânica do
Distrito Federal. Pedem a suspensão do processo licitatório em andamento, bem como a
declaração de nulidade da desafetação do imóvel situado à SHIS QL 05, Lote B, Lago Sul,
restabelecendo-se a afetação da área para a prática de atividades físicas, lazer, preservação
paisagística e ambiental. Atribui à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Juntou
documentos na sequência, inclusive decisão que indeferiu o pedido de impugnação do edital
da Terracap discutido (id. 71103843) e cópia do Edital 8/2020 (id. 71103844).
O pedido liminar foi deferido, determinando-se a suspensão da licitação sobre o imóvel
discutido (id. 71209620).
Em sua defesa (id. 73659936), a Terracap aduz, em preliminar, inadequação da via eleita,
argumentando que os autores buscam com esta ação popular a declaração de
inconstitucionalidade da Lei 906/15 com o objetivo de impedir a alienação de imóvel
desafetado regularmente há mais de 5 anos com o propósito pessoal de preservar ocupações
irregulares naquela mesma área. Diz que não há qualquer irregularidade que macule a venda
do imóvel, mesmo porque há lei em vigor com destinação prevista na LUOS (Lei

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Complementar 948/2019) e autorização legislativa para venda (Lei Complementar
906/2015). Ressalta a deslealdade processual dos autores que omitiram o fato de que vários
deles ocupam o imóvel público irregularmente, alguns com ação judicial em curso. Juntou
documentação na sequência (id. 73659938/53).
Em sua contestação (id 74356332), o Distrito Federal tal qual a Terracap suscita inadequação
da via eleita, argumentando que os autores não constam no rol de legitimados previsto pelo
art. 103 da Constituição Federal para a propositura de Ação de Inconstitucionalidade. No
mérito, sustenta que a desafetação promovida pela Lei Complementar n.º 906/15 foi
realizada e chancelada com a promulgação da LUOS, a qual tramitou por longo período na
Câmara Legislativa do Distrito Federal, momento em que foram elaborados estudos
ambientais e realizadas audiência públicas. Diz que a LC 906/15, assim como a LUOS, está
pautada nas diretrizes encampadas pelo PDOT, não havendo que se falar em nulidade da lei.
Diz ainda que esta ação não passa de uma tentativa de sobreposição dos interesses
particulares dos autores aos interesses da coletividade, o que constitui violação ao princípio
da supremacia do interesse público.
A autora ofertou réplica (id. 77244819).
Os autores postularam a produção de prova pericial (id. 78233817), sendo ela autorizada e
produzida (laudos id 95569444/8599974437/110168339).
O Ministério Público oficia pela manutenção da liminar, mantendo-se suspenso o processo
licitatório do imóvel discutido até que seja consultado o Conselho Supervisor da APA Gama
e Cabeça de Veado sobre o processo de desafetação da área e ainda que seja comprovada
pelos réus a realização de consulta popular no processo de desafetação (id. 123466299).
Eis o relatório. DECIDO.
O objetivo da demanda não é a declaração da inconstitucionalidade in abstracto de lei
complementar distrital, mas, muito diversamente, a exigência de controle de legalidade
estrita sobre ato administrativo perfeitamente definido, qual seja, a disponibilização à venda
de um imóvel denominado pela população local de Praça do Poeta. A eventual menção en
passant à inconstitucionalidade da norma que deu suporte ao ato administrativo impugnado
não qualifica o procedimento como instrumento de controle concentrado de
constitucionalidade. Recorde-se, a propósito, que há muito o STF reconhece a possibilidade
de controle difuso de constitucionalidade, mesmo em ações coletivas – e nem poderia ser de
outro modo, pois seria desafio diabólico exigir que, no julgamento de ações coletivas, o
julgador não pudesse sequer tangenciar questões de índole constitucional. Enfim, dado que a
tese da inconstitucionalidade do fundamento atribuído ao ato administrativo impugnado
constitui mera causa de pedir, e não objeto específico da demanda, nada há que impeça seu
debate no bojo deste instrumento processual. Em face do exposto, rejeito a arguição de
inadequação da via eleita.
No mérito, não se pode negar a sintonia da demanda posta pela cidadania nestes autos em
face dos princípios republicano e democrático. Com efeito, a pretensão cidadã encontra
robusto assento jurídico tanto sob o prisma ambiental-urbanístico, como da consideração do
exercício do direito à cidade pela comunidade local.
Para o desenvolvimento dessas premissas, enfoquemos primeiramente o aspecto ambiental:

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Como se sabe, o conceito jurídico de meio ambiente é decantado em quatro aspectos básicos:
meio ambiente natural, artificial (ou urbano), cultural e laboral.
Logo, não se pode perder de vista o fato de que, ao se tratar de direito urbanístico, está se
falando também de direito ambiental em sentido lato; mais que um mero diálogo de fontes,
as normas ambientais e urbanísticas articulam-se necessariamente, por integrarem um
mesmo sistema jurídico de proteção ao macrobem ambiental.
Como é trivial, a elevada relevância social e o caráter difuso do direito ambiental qualificam-
no para a incidência do princípio da vedação ao retrocesso (“Princípio Clicquet”). Assim,
ainda que as normas de uso de áreas urbanas sofram alteração formal, seu conteúdo
ambiental só poderá ser aprimorado, sendo manifestamente inconstitucional qualquer
alteração ou interpretação que resulte na vulneração da proteção ambiental.
Ainda que revogada, a lei que afetou a área discutida nos autos reconheceu a importância
ambiental do local. Tal relevância subsiste pelas próprias características da área, malgrado o
déficit de proteção jurídica formal, o que denota, na realidade, negligência da Administração
no trato do bem ambiental.
Noutro giro, agora sob o prisma do direito fundamental à cidade, tem-se como certo que a
afetação que houve sobre o imóvel discutido nos autos não nasceu do acaso. Foi
impulsionada pela demanda da comunidade local, que zela pela conservação dos atributos
naturais da área, contra a razão meramente especulativa e em prol de sua própria qualidade
de vida.
Para além de atender à diretriz conservacionista constitucional, a existência de espaços
abertos destinados à natureza em meio à ambiência urbana é imperativo destinado à saúde e
bem-estar dos cidadãos. De fato, uma cidade sem espaços abertos é uma cidade opressiva e
insalubre. Espaços abertos como parques ou praças são absolutamente necessários não
apenas como elementos de harmonia e estética das cidades, mas sobretudo por assegurar a
saúde e a qualidade de vida, ou seja, o bem-estar da população. E a garantia de bem-estar da
população é princípio constitucional trivial definidor da política urbana: “A política de
desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (CF, art. 182).
É por isso que a Lei Orgânica do Distrito Federal (LODF) veicula, no art. 280, a seguinte
proibição: “As terras públicas, consideradas de interesse para a proteção ambiental, não
poderão ser transferidas a particulares, a qualquer título”.
O dispositivo acima reproduzido não subordina a proibição de alienação à afetação formal da
terra pública como unidade de conservação, mas apenas ao reconhecimento de que a área
seja considerada de interesse ambiental. Sublinhe-se: as terras inalienáveis por força do art.
280 da LODF são aquelas “consideradas de interesse para a proteção ambiental”, o que pode
se dar por afetação específica da unidade de conservação, mas também por certificação em
ato judicial.
De fato, a afetação de um imóvel como unidade de conservação sem dúvida aperfeiçoa com
ampla segurança jurídica a especial proteção ao espaço território ambientalmente relevante,
mas não é o único modo de se reconhecer a importância dos atributos naturais de um local,
até porque o art. 225 da Constituição incumbe a todos e especialmente ao poder público o

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dever de defender e preservar o meio ambiente, proibindo, em seu inc. III, o uso que
comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. Sendo a área
conhecida pela população como “Praça do Poeta” um local de reconhecida importância
ambiental, não só por integrar a área de amortecimento (“buffer zone”) das APA das Bacias
do Gama e Cabeça de Veado, como pela apropriação do local como praça por parte da
comunidade local, é evidente que sua alienação a particulares, para o fim de instalação de
edificações, viola a proibição constitucional (no âmbito federal e local) de mitigação da
proteção a espaços territoriais de interesse para a proteção ambiental.
Ainda sob o prisma do direito à cidade, são diretrizes gerais da política urbana, conforme art.
2º da Lei n. 10.257/01 (Estatuto da Cidade) a “garantia do direito a cidades sustentáveis,
entendido como direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à
infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
presentes e futuras gerações” (inc. I) e a “proteção, preservação e recuperação do meio
ambiental natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e
arqueológico” (inc. XII). Alienar e permitir a descaracterização de espaço consagrado pela
população como praça pública viola francamente as diretrizes fixadas no Estatuto da Cidade,
ocasionando inequívoca agressão ao direito a uma cidade minimamente saudável.
Neste ponto, a alegação de que a demanda autoral representa pretensão de primazia de
interesses particulares sobre o interesse público soa inteiramente destoante de qualquer
razoabilidade, pois pressupõe que haja interesse público em se entregar uma área pública e
reconhecida pela comunidade como praça à especulação imobiliária por particulares, o que é
manifesta inversão de valores. Sublinhe-se que a noção de interesse público não é originada
da mera vontade do administrador, por maior que seja o seu poder de escolhas
discricionárias, mas deduzida da interpretação à lei. Todas as considerações tecidas acima
sobre o aparato constitucional protetivo a bens considerados de interesse para a proteção
ambiental conduzem à consideração de que o direito difuso de preservação ambiental e
perpetuação do usufruto público de espaço aberto apropriado como praça pela comunidade
local é objetivamente prevalente sobre o interesse jurídico de colocação de imóvel em área
particularmente valorizada financeiramente ao uso exclusivo por particulares, seguindo
apenas os interesses da especulação imobiliária.
Um outro aspecto relevante é a evidente ausência de consulta popular não apenas na
desafetação, mas também na decisão de alienação do imóvel público sobre o qual a
comunidade há muito exerce o direito de usufruto coletivo como bem ambiental. Além de ser
decorrência trivial do princípio democrático consagrado constitucionalmente, a participação
popular é outra diretriz geral da política urbana nacional: “gestão democrática por meio da
participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano” (Estatuto da Cidade, art. 2º, II). Ainda que se considere legítima a
desafetação de unidade de conservação por ato legislativo, a circunstância de o espaço
territorial ser de peculiar interesse pela comunidade local exige, indubitavelmente, a
qualificação da decisão de alienação por meio do franco debate social, sem o quê o ato é
ilegítimo, por déficit democrático.
Não se trata aqui de substituir o poder de gerir a cidade pelo administrador, mas
simplesmente de submetê-lo aos limites legais, posto que mesmo o poder discricionário é
balizado pela ordem jurídica. Não é legítima a opção administrativa que ofenda a lei, por
qualquer modo, posto que, mesmo em sua atividade discricionária, o administrador vincula-

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se estritamente às opções que se afigurem consoantes a lei.
Trazendo o raciocínio para os requisitos específicos da tutela jurisdicional cabível em ação
popular: o ato administrativo submetido ao controle jurisdicional de legalidade nestes feitos
denota invalidade por defeito de finalidade, na medida em que subverte o princípio da
proteção ambiental para favorecer o mero interesse econômico na disponibilização da praça
pública ao comércio particular, contrariando frontalmente as diretrizes constitucionais e
infraconstitucionais acima mencionadas. A invalidade do mesmo ato administrativo de
disponibilização da área ambientalmente sensível é marcada também pela evidente violação
ao interesse jurídico especialmente tutelado constitucionalmente de proteção ambiental e
garantia de ordenação urbanística voltada sobretudo ao bem-estar da cidadania.

Em face do exposto, confirmo a tutela provisória deferida e julgo procedentes os pedidos


autorais, para declarar a nulidade dos atos destinados à alienação da área reconhecida pela
população como “Praça do Poeta”, situada nos lotes A, B e C da QL 14 do Setor de
Habitações Individuais Sul (SHIS), também referida pela designação “SHI/S QL 05, Lt B
(atual SHIS EQL 14/16 Lt B)”, constantes do Edital n. 08/2020, da Terracap. Por
conseguinte, fica sem validade e eficácia a cláusula constante do Edital n. 8/20 que ofereceu
o imóvel à venda. Condeno a parte ré ao pagamento de custas e honorários advocatícios no
valor de R$ 1.000,00, em cada feito.

Brasília, 14 de março de 2023 17:17:13.

CARLOS FREDERICO MAROJA DE MEDEIROS

Juiz de Direito

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