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4 A LEI DE ANISTIA.

4.1 ABRANGÊNCIA.

Partindo para a leitura das disposições da Lei nº 6.683/79, constata-se que, além da anistia
penal (art. 1º, caput e §§1º e 2º), trata sobre reversão ao serviço público de funcionários
demitidos, bem como de seu reaproveitamento (arts. 1º, §3º, 3º e 10); uma forma específica de
declaração de ausência de desaparecidos políticos (art. 6º); demissão de funcionários da área
privada, praticada em razão de atos reivindicatórios (art. 7º); militantes políticos que não
cumpriram o serviço militar obrigatório (art. 8º); punições administrativas aplicadas a dirigentes
sindicais e estudantis (art. 9º); o alcance dos direitos que gera (art. 11); requisitos para que os
anistiados participem de eleições (art. 12); além das cláusulas comuns as leis em geral, como
ordem ao Executivo para regulamentá-la (art. 13), a cláusula de vigência (art. 14) e de revogação
(art. 15).
Apesar da diversidade de assuntos que a Lei de Anistia trata, tendo em conta que o
objetivo desta monografia é discutir unicamente a anistia penal que ela concede, esses outros
aspectos não serão objeto de análise.

4.1.1 Sujeitos Abrangidos.

Neste momento, serão discutidos quem foram os agentes beneficiados pela Lei nº
6.683/79. A anistia está delimitada no seu art. 1º, caput, §§1º e 2º, nestes termos:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido


entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta,
de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes
Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes
sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais, Complementares
(vetado).
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política.
2

§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela


prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. 1
(sem destaques no original)

A leitura do caput do artigo mostra que foram anistiados os agentes que, dentro do
intervalo de tempo colocado (logo após a renúncia de Jânio Quadros e pouco antes da aprovação
da lei pelo Congresso Nacional), cometeram três categorias de crimes: crimes políticos, crimes
conexos aos crimes políticos e crimes eleitorais.

4.1.1.1 Agentes de Crimes Políticos.

A noção do que seja crime político não é algo que possui uniformidade entre os
doutrinadores, havendo consenso no tocante apenas no ponto de que essa espécie de crime foi
criada para se contrapor a ideia de crime comum, que é aquele praticado visando atender a um
interesse pessoal do agente.
Historicamente, o delito político é uma construção da legislação romana e era
compreendido como toda ofensa à figura do imperador, tendente a gerar perigo à tranquilidade
estatal, tendo em conta que o governante era a personificação da soberania do Estado.2
A partir do início do Século I até o Século XVIII, o crime político passou a ser conhecido
como crime de lesa-majestade e era aquele que agredia a dignidade do monarca, a autoridade de
suas decisões, a alta cúpula governamental, a família real e a sede do governo. Como causavam
uma perigosa instabilidade no centro interno de poder, eram punidos com mais severidade que os
crimes comuns.
Com a Revolução Francesa, iniciada em 1789, os ideais liberais que trouxe fizeram com o
crime político passasse a ser tratado com mais benevolência. Essa mudança foi resultado da
constatação de que o criminoso político é um criminoso apenas porque não foi bem sucedido em
conseguir apoio a ideologia que defende, já que, se isso ocorresse, ele deixaria de ser considerado
como tal e se tornaria um revolucionário transformador. O respeito à liberdade de pensamento
fez, então, com que o delinquente político recebesse maiores benefícios que o criminoso comum.
Esse entendimento se tornou consenso e perdura até hoje.

1
Texto integral da lei no Anexo A.
2
GUIMARÃES, Marcello Ovídio Lopes. Tratamento Penal do Terrorismo. 1 Ed. São Paulo: Quartier Lantin,
2007. p. 61.
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Modernamente, o problema da conceituação do crime político gerou o desenvolvimento


de três teorias que abordam a questão. A primeira é a teoria objetiva, que considera um crime
como político a partir do bem jurídico que é lesionado, sendo tal quando atinge o Estado na
condição de entidade política soberana. Por esse ponto de vista, há crime político, por exemplo,
quando se comete um crime de explosão que compromete o funcionamento de um órgão basilar,
como o dirigido contra a sede do Legislativo.
A segunda, a teoria subjetiva, leva em consideração apenas a intenção do agente,
qualificando como crime político o praticado quando se tenciona agredir a estrutura política
estatal, independentemente do tipo de bem que é atingido concretamente. A motivação do agente,
então, é o que lhe define como um criminoso político. Um crime político, então, seria o praticado
com a intenção de modificar o regime de governo, por exemplo.
A teoria mista, a terceira teoria, combina as outras duas, determinando o crime político
quando praticado por motivação política ao mesmo tempo em que lesiona a integridade estatal.
Embora a Lei nº 6.683/79 não tenha explicitado qual dessas correntes se filiava, é possível
afirmar que é a teoria mista. Para que isso seja compreendido, é preciso ter em perspectiva que,
quatro anos depois, foi editada uma nova Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de
dezembro de 1983) onde foi determinado o uso da teoria mista na sua interpretação, nestes
termos:

Art. 1º. Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão:
I - a integridade territorial e a soberania nacional;
II - o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito;
III - a pessoa dos chefes dos Poderes da União.
Art. 2º. Quando o fato estiver também previsto como crime no Código Penal,
no Código Penal Militar ou em leis especiais, levar-se-ão em conta, para a
aplicação desta Lei:
I - a motivação e os objetivos do agente;
II - a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior.

Tendo em conta o pouco intervalo de tempo entre os dois diplomas, bem como o fato de
que ambos foram editados no mesmo contexto de ditadura militar e, mais ainda, na presidência
do general Figueiredo, é razoável dizer que o entendimento reinante para a caracterização de
crime político é a teoria mista.
4

Nessa linha de ideias, chega-se a conclusão de que crime político é um crime praticado
em função de uma ideologia política e que expõe ao perigo as estruturas elementares de poder do
Estado.
Com base nessa interpretação, já se pode afirmar que um dos beneficiados pela anistia
foram os integrantes das organizações socialistas que combatiam o regime. Afinal, as ações
criminosas que praticaram foram movidas pela finalidade de derrubar a ditadura e implementar
um regime comunista no país (elemento subjetivo) e agrediam, ou tentavam agredir, as estruturas
do regime político instituído pelos militares (elemento objetivo). Mas é preciso esclarecer que o
caput não abrange todas as condutas levadas a efeito pelos opositores, em função de que nem
todas buscavam lesionar a integridade estatal, embora fossem dotadas de motivação política. É o
caso dos roubos a estabelecimentos bancários, que não podem ser enquadrados como políticos
por lhes faltar o elemento objetivo, já que causar um dano patrimonial a uma instituição
financeira não lesiona a estrutura do Estado. São apenas crimes comuns, que, até este ponto desta
análise, não foram anistiados pela Lei nº 6.683/79.

4.1.1.2 Agentes de Crimes Conexos aos Crimes Políticos.

No tocante a categoria de crimes conexos aos crimes políticos, a primeira ideia que vem
em mente é o instituto da conexão, adotado com o objetivo de fazer com que delitos que possuem
algum elemento em comum sejam julgados conjuntamente, de maneira que se evitem decisões
contraditórias sobre os fatos que os envolvem. Está previsto no art. 76 do Código de Processo
Penal:

Art. 76. A competência será determinada pela conexão:


I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo
tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora
diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar
as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer
delas;
III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias
elementares influir na prova de outra infração.

No inciso I, está prevista a hipótese de conexão intersubjetiva, que ocorre quando há


pluralidade de agentes e se desdobra em três subtipos: a conexão intersubjetiva por
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simultaneidade, que é a existente quando são praticados dois ou mais delitos, por duas ou mais
pessoas, sem ajuste prévio entre si, ao mesmo tempo, isto é, no mesmo local, simultaneamente ou
sucessivamente; a conexão intersubjetiva por concurso, que ocorre quando são perpetrados dois
ou mais delitos, por duas ou mais pessoas, previamente combinadas, embora em locais e
momentos diversos; e a conexão intersubjetiva por reciprocidade, que é aquela onde dois ou
mais crimes são praticados por dois ou mais agentes, uns contra os outros.
No inciso II, está regulada a conexão objetiva, que advêm quando uma infração penal é
praticada em função de outra, havendo uma relação de meio/fim entre uma e outra.
No inciso III, está prevista a conexão instrumental (ou conexão probatória), estabelecida
com o intuito de facilitar a coleta de provas, por razões de economia processual.
Apesar de o Código de Processo Penal já delinear o que sejam crimes conexos, a Lei de
Anistia decidiu estabelecer um conceito particular de conexão, colocando que são conexos os
crimes que se caracterizem de duas formas: crimes de qualquer natureza relacionados com crimes
políticos e crimes de qualquer natureza praticados por motivação política. Passemos, então, a
debater as características desta segunda categoria de crimes abrangidos pela Lei 6.683/79, que,
aliás, foi redigida de forma bastante obscura.
O primeiro aspecto que chama atenção em relação ao primeiro tipo de crime conexo é a
referência a crimes de qualquer natureza. Mesmo que não esteja claro o que esta locução
abrange, consideramos que a sua intenção foi apontar que não só os crimes políticos foram
anistiados, mas também os crimes comuns. Isso se extrai do simples fato de que não foi
estabelecida nenhuma distinção. O uso da palavra qualquer, do contrário, indica a intenção de
não abarcar somente os crimes políticos. Como o caput já alcança os crimes políticos, ao
parágrafo primeiro, assim, resta anistiar os crimes comuns. Dessa forma, a expressão crimes de
qualquer natureza deve ser lida como crimes comuns.
O segundo aspecto – a exigência de que o crime esteja relacionado com um crime político
– é o que mais traz desafios interpretativos, visto que não foram fornecidos quais os critérios que
devem ser utilizados para que se considere que um crime está relacionado a outro. Dada essa
grande falha da Lei nº 6.683/79 – que, a bem da verdade, provavelmente foi intencional - é
preciso buscar disposições em outros diplomas legais para que se consiga alcançar o que não foi
esclarecido pelo Legislativo de 1979.
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Para tanto, são úteis a conexão intersubjetiva por concurso e a conexão objetiva, já que,
sendo a conexão que disciplinam um instrumento que determina a reunião de processos de delitos
que possuem alguma relação entre si, os critérios que estabelecem são os que permitem
identificar, precisamente, quando um crime está relacionado com outro.
Neste ponto, é cabível esclarecer que a conexão instrumental não pode ser utilizada, em
razão de que trata de uma reunião de processos por motivos meramente probatórios, sem que os
crimes estejam concretamente relacionados entre si. O mesmo pode ser dito quanto a conexão
intersubjetiva por reciprocidade, que não é reconhecida, pela doutrina majoritária, como uma
hipótese de conexão onde os crimes possuem um elo material entre si, mas sim como uma
espécie de conexão instrumental, impropriamente prevista junto a outros casos de conexão. Um
exemplo de doutrinador que acolhe esse posicionamento é José Frederico Marques:

(Na conexão por reciprocidade) não há propriamente conexão de infrações, e


sim de procedimentos (conexão instrumental), pois não existe co-
responsabilidade de várias pessoas por uma infração comum, mas
responsabilidades diversas e distintas.3

Em relação a conexão subjetiva por simultaneidade, ela também não pode ser utilizada
pelo mesmo motivo que afasta o uso da conexão intersubjetiva por reciprocidade, exposto na
citação do Frederico Marques, pois, nela, a responsabilidade dos agentes é distinta para cada uma
das infrações, que são julgadas conjuntamente apenas pelo fato de serem praticadas em
circunstâncias de tempo e espaço próximas umas as outras, sem que exista um elo material entre
elas.
Tomando como base essa interpretação lógico-sistemática, para efeitos da primeira parte
do parágrafo primeiro do art. 1º da Lei nº 6.683/79, entendemos que foram anistiados os que
cometeram crimes comuns relacionados com crimes políticos, de uma das seguintes maneiras:
quando foram praticados por duas ou mais pessoas, ligadas por um liame subjetivo, embora em
momentos e locais diversos; e quando foram praticados com a finalidade de ocutá-lo, facilitá-lo,
conseguir impunidade ou vantagem.
Alguns exemplos podem facilitar o entendimento deste tipo de crime conexo. O primeiro
seria o de dois guerrilheiros que, previamente combinados, decidem dividir as tarefas em uma

3
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal – Vol 1. 2 Ed. Campinas: Millenium, 2003.
p. 308
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missão: um coloca explosivos no local oficial de trabalho de um Chefe de Estado (crime


político), enquanto outro faz o mesmo na sede de uma empresa que financiou a campanha
eleitoral dessa mesma autoridade (crime comum, ligado subjetivamente ao crime político). A
segunda hipótese seria o contrabando de armas (crime comum) para serem utilizadas para praticar
crime de dano contra a sede do Executivo (crime político, facilitado pela prática do crime
comum).
Neste ponto, é cabível deixar registrado que a interpretação exposta não foi a utilizada
pelo Judiciário da época, que, na verdade, não se ateve a adotar algum posicionamento uniforme
ou mais objetivo diante dos conceitos abertos desta espécie de crime conexo.
A segunda parte do parágrafo primeiro estabelece que também devem ser considerados
crimes conexos os que foram praticados por motivação política. Aqui, o legislador exigiu apenas
que o agente tivesse sido levado por um objetivo político quando cometeu o delito. O especial
fim de agir do criminoso, o elemento subjetivo voltado à uma finalidade política, é o que o
qualifica para que seja abrangido pela Lei de Anistia, independentemente do tipo de bem jurídico
lesionado.
A par de todas essas análises, é possível afirmar que os crimes comuns praticados pelos
membros dos grupos de oposição também foram anistiados, por duas razões: a primeira é pelo
fato de que possuíam relação com crimes políticos, na medida em que foram perpetrados com a
finalidade de facilitar o cometimento deles - como se constata no já citado exemplo dos roubos a
bancos, que eram realizados como forma de financiar as ações políticas; e a segunda razão é
porque possuíam motivação política, já que eram levados a efeito como meio de alcançar a
desestruturação da ditadura, embora não a agredissem objetivamente.
Da mesma forma, também é possível afirmar que os militares e policiais que atuaram na
repressão aos opositores do regime também foram anistiados. Sob influência da doutrina da
segurança nacional, os encarregados da função de polícia política agiam motivados pela ideia de
que estavam protegendo o país contra o perigo de subversão da ordem e do progresso que os
opositores representavam. As prisões ilegais, agressões, assassinatos e outros delitos eram vistos
como malefícios necessários para a preservação da integridade do país, circunstância que
demonstra a motivação política que havia nos crimes que praticaram. Cometer crimes para
manter um governo autoritário estabelecido para assegurar o desenvolvimento do país é uma
8

finalidade tão política quanto infringir a lei penal para derrubá-lo, o que também os leva a
fazerem jus ao benefício da anistia.
Um questionamento que pode surgir neste instante diz respeito a impossibilidade de os
agentes estatais, por praticarem crimes em um contexto onde possuíam o monopólio da força,
alegarem que estavam agindo por motivos políticos, entendimento que não concordamos. O fato
de terem sido a manifestação da ordem política instituída não exclui a possibilidade de que
estavam agindo por motivos políticos, já que a circunstância de agirem sob a conivência e em
nome do Estado não é incompatível com a idéia de que as pessoas físicas do militares realmente
atuavam influenciados pela ideologia política disseminada pela doutrina da segurança nacional -
que pregava a necessidade de garantir a segurança e o desenvolvimento do país a qualquer custo,
inclusive violando a legislação criminal - e não pelo simples dever funcional comum a qualquer
funcionário público. O fato de representarem a ordem política instituída é um fato objetivo que
não os exclui da Lei nº 6.683/79, que exigiu, no tocante a segunda parte do §1º, apenas o fato de
agirem por motivação política, que, regra geral, estava presente.
Não obstante a interpretação que embasa esta última conclusão, existe uma corrente de
doutrinadores, cuja figura mais expressiva é Fábio Konder Comparato 4, que não concorda que a
Lei nº 6.683/79 também beneficiou os agentes apoiados pelo governo, com base na alegação de
que os crimes da ditadura não podem ser considerados crimes políticos e nem crimes conexos a
estes. Não poderiam ser enquadrados como políticos porque não lesionaram o Estado, mas sim
pessoas; e não poderiam ser conexos porque só é possível haver conexão entre dois delitos
quando um for pressuposto do outro, isto é, quando os objetivos perseguidos pelos agentes dos
crimes forem os mesmos. Como os agentes do regime agiram com objetivo exatamente oposto
aos dos opositores, os crimes que praticaram não podem ser considerados conexos.
Em relação ao primeiro argumento, temos que concordar com ele: os crimes do regime
não são políticos porque não possuíam o elemento objetivo. Já quanto ao segundo argumento,
não é possível acatá-lo, por um motivo simples: não existe base legal que venha exigir a
comunhão de objetivos para que um crime seja conexo a um delito político, ao menos no âmbito
da Lei da Anistia. Como argumento adicional, diga-se que, no âmbito penal, por força do
princípio in dubio pro reu, diante da existência de diversas interpretações, é obrigatória a adoção

4
O posicionamento do doutrinador consta na petição inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, que subscreveu em conjunto com Maurício Gentil Monteiro.
9

da que seja mais favorável ao réu, como é a que foi desenvolvida neste momento. Assim, seja
como for, os militares e policiais foram anistiados.

4.1.1.3 Agentes de Crimes Eleitorais.

Os crimes eleitorais são os previstos nos arts. 289 a 354 do Código Eleitoral e no art. 11
da Lei nº 6.091/745. Tais figuras criminais são de fácil identificação e caracterização. Portanto,
não existem problemas a serem discutidos.
Ao incluir os agentes de crimes eleitorais, a Lei da Anistia beneficiou aqueles que
atentaram contra a regularidade e a lisura do processo eleitoral e do exercício dos direitos
políticos, que são os bens jurídicos protegidos pela legislação penal eleitoral.

4.1.1.4 Agentes Excluídos.

Delineados esses aspectos, restam as exceções estabelecidas no parágrafo segundo, pelas


quais foi negada a anistia aos agentes que foram condenados pelos crimes de assalto, sequestro,
atentado pessoal e terrorismo. Esse parágrafo possui uma redação ainda mais precária do que o
anterior. Isto ocorre porque, dentre os crimes citados, apenas um é um crime propriamente dito,
no sentido de tipo penal previsto na legislação. É o caso do sequestro, previsto no art. 158 do
Código Penal. Os outros crimes citados são apenas núcleos de tipos, isto é, atos que caracterizam
a prática da conduta tipificada. Como forma de facilitar o entendimento quanto a esse ponto,
temos o exemplo do já transcrito art. 155 do Código Penal, onde está previsto o crime de furto,
cujo núcleo é subtrair.
Os núcleos citados no parágrafo são de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional
que vigorou entre 1969 e 1978 (Decreto-lei nº 898/69) – o período de maior atividade das
organizações guerrilheiras. Um desses delitos é o do art. 27, que contém o núcleo assaltar:

5
Os crimes eleitorais também estão tipificados no art. 25 da Lei Complementar nº 64/90 e nos arts. 33, §4º, 34, §2º,
39, §5º, 40, 68, §2º, 72, 87, §4º, e 91, parágrafo único, da Lei 9.504/97. Como estas duas leis não estavam em vigor
no período compreendido pela anistia, para fins da Lei nº 6.683/79, devem ser desconsideradas.
10

Art. 27. Assaltar, roubar ou depredar estabelecimento de crédito ou


financiamento, qualquer que seja a sua motivação:
Pena: reclusão, de 10 a 24 anos.
Parágrafo único. Se, da prática do ato, resultar morte:
Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo.

Outro tipo penal bem ilustrativo é o do art. 28, que contém todos os núcleos citados:

Art. 28. Devastar, saquear, assaltar, roubar, sequestrar, incendiar,


depredar ou praticar atentado pessoal, ato de massacre, sabotagem ou
terrorismo:
Pena: reclusão, de 12 a 30 anos.
Parágrafo único. Se, da prática do ato, resultar morte:
Pena: prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo.

A técnica precária que foi utilizada no parágrafo em tela gera grandes dificuldades para o
intérprete. O fato de terem sido citados núcleos penais, e não tipos, acaba levando a uma
conclusão bastante esdrúxula: a anistia não foi concedida a certos agentes, mas apenas se o crime
que cometeram foi praticado através de um dos núcleos penais do parágrafo terceiro.
Assim, em um exemplo, uma pessoa que cometeu o crime do art. 28 do Decreto-lei nº
898/69 por meio de um ato de terrorismo não foi anistiada, mas quem o praticou através de um
ato de massacre o foi. Diante desse panorama, resta tentar conceituar esses núcleos penais.
O ato de assaltar não possui definição na doutrina ou na legislação brasileira. Mas, apesar
desse vazio, é possível afirmar que corresponde a conduta de subtração de coisa alheia, para si ou
para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, cometida de maneira repentina que
dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Como o verbo assaltar – da qual deriva a
palavra assalto – significa “investir repentinamente para a prática de roubo”6, a gramática leva a
considerar que a sua definição deve corresponder a união do conceito legal de roubo, adicionado
ao elemento surpresa. Como um ataque repentino é praticado, obviamente, para evitar que a
vítima possa reagir, o prejuízo para a sua defesa também deve constar na conceituação.
A definição de terrorismo é a mais complicada de ser formulada, dada a fluidez de sentido
que a palavra carrega.

6
HOLANDA, Aurélio Buarque de (org). Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3 Ed. Curitiba: Positivo,
2005. p. 209.
11

A execução de atos taxados como terroristas é algo que se encontra em relatos que vêm
desde a Idade Antiga, mas o marco histórico moderno da prática generalizada do terrorismo é
atribuído ao Reino do Terror, período da Revolução Francesa que tem início em 31 de maio de
1793 e término em 27 de julho de 1794.7
Nesse período, o exercício do Poder Executivo da França coube ao Comitê de Salvação
Pública, comandado por Maximilien de Robespierre (1758-1794), integrante de um ala de
revolucionários conhecidos como Clube dos Jacobinos. Esse grupo desenvolveu uma ideologia
radical, que sustentava que a estabilidade das mudanças operadas pela revolução só seria possível
se houvesse a eliminação de todos os tipos de oposição e fosse implantado um sentimento de
medo na população em geral. Essa visão resultou em um governo totalitário, que suspendeu as
liberdades civis e levou milhares de pessoas à execução sumária na guilhotina, inclusive aliados.
Apesar de o terrorismo ser uma conduta definida legalmente em vários legislações
estrangeiras, o uso de tais conceituações não é adequado para se determinar a conduta que foi
excluída da Lei nº 6.683/79, já que a vagueza do termo faz com que variem muito de um país
para outro, que a estabelece de acordo com a vivência particular que possui com esse fenômeno.
Isso faz com que se parta para o direito internacional, em função de que os seus conceitos vêm do
consenso entre vários países e, portanto, não estão envolvidos pelas características específicas de
cada um.
O primeiro e único tratado internacional8 a definir o terrorismo foi a Convenção de
Genebra Para a Prevenção e a Punição do Terrorismo de 1937, logo no seu art. 1º, nos seguintes
termos:

Art. 1º. A expressão “atos terroristas” quer dizer fatos criminosos dirigidos
contra um Estado, e cujo objetivo ou natureza é o de provocar o terror em
pessoas determinadas, em grupo de pessoas ou no público.

A definição feita pela Convenção é incompleta e erroneamente limitada, o que faz com
que o seu uso, para o desenvolvimento de um conceito a ser utilizado aqui, tenha que sofrer
modificações.

7
FLECK, Gabriela Grings. A Responsabilidade Civil do Estado por Danos Ambientais Decorrentes de Atos
Terroristas, 2008. Disponível no endereço eletrônico <http://bdtd.ibict.br>. Acesso em 12 jun. 2010.
8
Existem cerca de outros treze tratados internacionais que tratam sobre terrorismo, mas nenhum deles faz uma
definição abstrata geral do termo, preferindo se ater a conceituar práticas específicas, como a tomada de reféns e o
apoderamento de aeronaves.
12

Os erros consistem em considerar terrorismo apenas aqueles atos dirigidos contra o


Estado, ignorando que pode ser praticado contra outros sujeitos – como um grupo de pessoas, um
partido político ou uma organização internacional. – e, que, ao invés de vitimar o Estado, pode
até mesmo ser fomentado por ele, como elemento de uma política, como a sua origem histórica
demonstra. Assim, um ato, não depende da vítima ao qual é dirigido para que seja terrorista.
Esse conceito também falha ao não formular nenhuma ressalva, o que acaba fazendo com
que o ataque a alvos militares em tempos de guerra também seja considerado terrorismo, algo
inapropriado.
A partir dessa análise, pode-se conceituar terrorismo como o ato criminoso cujo objetivo
ou natureza é o de provocar o terror em pessoas determinadas, em grupo de pessoas ou no
público, independentemente da vítima atingida em concreto, com exceção dos atos dirigidos a
alvos militares em situação de guerra.
O conceito de atentado pessoal é fornecido por Nilo Batista:

(O atentado pessoal corresponde a) ofensa à vida, integridade corporal ou


saúde de Chefes de Estado ou pessoas especialmente protegidas. 9

Para que se mantenha a coerência com a finalidade elementar deste núcleo penal,
consideramos que por pessoas especialmente protegidas deve-se entender aquelas que exercem a
mesma função de um Chefe de Estado, como é o caso dos embaixadores.
Apesar de a determinação dos núcleos penais, no plano teórico, ser possível, é preciso
reconhecer que, na prática, existirão muitas dificuldades para distingui-los dos outros núcleos
penais que foram abrangidos pela anistia (com exceção do atentado pessoal). Dada a incidência
do princípio in dubio pro reu, a dúvida deve fazer com que se considere que o agente foi
anistiado.
Um questionamento previsível (e compreensível) que surge de toda essa análise seria
quanto aos motivos que levaram ao uso de uma forma de redação tão particular, por assim dizer.
Após alguma reflexão, consideramos que foi uma manobra utilizada pelo regime para impedir
que a anistia beneficiasse quem cometeu crimes contra a segurança nacional durante o período de
maiores conflitos da ditadura. Isso acaba mostrando como a cúpula militar era maliciosa: ao

9
BATISTA, Nilo. Aspectos Jurídicos-penais da Anistia. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, nº 26, p.
40.
13

mesmo tempo em que, contrariando os desejos da sociedade, concederam anistia aos seus
agentes, tentaram restringir, de uma maneira sutil, o benefício aos seus opositores mais perigosos.

4.1.2 Crimes Abrangidos.

Uma vez que já foi determinado quem foram os beneficiados pela Lei nº 6.683/79, será
agora analisado quais foram as condutas criminosas levadas a efeito por seus destinatários, de
maneira que se consiga alcançar os tipos penais que foram anistiados.
A noção acerca de quais crimes foram cometidos pelos encarregados da repressão política
e pelos grupos opositores implica em um levantamento sobre quais práticas adotavam, já
adiantando que não temos a pretensão de fazer uma listagem exaustiva.
Usualmente, o primeiro passo nessa tarefa seria pesquisar a documentação produzida
pelos órgãos da polícia política, notadamente o SNI e o DOI-Codi. Mas isso não é possível em
razão de que tais documentos, até hoje, estão protegidos por sigilo e o acesso a eles não é
permitido ao público em geral10. Outro obstáculo são os relatos de que parte significativa dessa
papelada foi incinerada11. Diante desse panorama, é preciso buscar outras fontes de informação.
Neste aspecto, do lado dos crimes praticados pelos policiais e militares sustentados pelo
regime, há uma excelente fonte de pesquisa: o já citado projeto Brasil: Nunca Mais, fruto de um
esforço da Arquidiocese de São Paulo. O projeto é resultado do exame de mais de setecentos
processos de crimes contra a segurança nacional que, com a colaboração de advogados que
atuavam junto à Justiça Militar – que possuía competência para julgar esse tipo de delito – foram
clandestinamente copiados. Os depoimentos dos réus em juízo, relatando as agressões que
sofreram durante os interrogatórios e os períodos em que permaneceram em cárcere possuem
credibilidade suficiente para serem utilizados aqui.
Do lado das práticas dos grupos guerrilheiros, infelizmente, não existem fontes tão
fidedignas, já que não se tem conhecimento sobre nenhum tipo de pesquisa que tenha se dedicado
a levantar de que forma, precisamente, esses grupos atuavam. Isso acaba fazendo com que se
parta para relatos genéricos sobre as suas ações, geralmente feitos no decorrer de textos que

10
Como já dito, a Lei nº 8.159/91 e a Lei nº 11.111/2005 servem de base para a decretação do sigilo que recai sobre
a maior parte dos documentos da ditadura militar.
11
Na contestação nos autos do Processo nº 2008.61.00.0011414-5, a União coloca que parte da documentação
demandada foi destruída em incêndios acidentais.
14

tratam de sua história. Para tanto, é bem proveitoso o livro-relatório Direito à Memória e a
Verdade, o qual contém um resumo sobre as origens e atividades desenvolvidas por todas as
organizações de esquerda que se opuseram ao regime militar. O livro-relatório foi produzido pela
Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instituída pela Lei nº 9.140/95, que
tem o intuito de proceder ao reconhecimento de pessoas desaparecidas e/ou mortas por razões
políticas, localizar seus corpos e analisar requerimentos de indenização formulados por
familiares. Embora não seja tão rico em detalhes quanto o compêndio Brasil: Nunca Mais, e o seu
objetivo principal tenha sido registrar quem foram as pessoas assassinadas por motivos políticos,
a narrativa que contém é coerente com o que usualmente se conhece do modo de atuação desses
grupos. Assim, para fins de verdade histórica, é uma fonte aceitável.
Os crimes que serão apontados são apenas os que constavam nas duas principais
legislações em vigor no período compreendido pela Lei de Anistia: o Código Penal de 1940
(Decreto-lei nº 2.848) e o Código Penal Militar de 1969 (Decreto-lei nº 1.001), nos termos dos
tipos vigentes na ditadura. Em relação a primeira codificação, os anistiados praticaram os crimes
de homicídio (art. 121), lesões corporais (art. 129), omissão de socorro (art. 135), maus tratos
(art. 136), constrangimento ilegal (art. 146), ameaça (art. 147), violação de domicílio (art. 150),
furto (art. 155), roubo (art. 157), extorsão mediante sequestro (art. 159), dano (art. 163),
apropriação indébita (art. 168), destruição, subtração ou ocultação de cadáver (art. 211), estupro
(art. 213), atentado violento ao pudor (art. 214), explosão (art. 251), apologia de crime ou
criminoso (art. 287), quadrilha ou bando (art. 288), falsidade de atestado médico (art. 302), uso
de documento falso (art. 304), supressão de documento (art. 305), concussão (art. 316),
condescendência criminosa (art. 320), violência arbitrária (art. 322), resistência (art. 329),
desobediência (art. 330) e contrabando ou descaminho (art. 334).
Os crimes do Código Penal Militar perpetrados pelos destinatários da Lei nº 6.683/79 são:
penetração com o fim de espionagem (art. 146), organização de grupo para a prática de violência
(art. 150), violência contra superior (art. 157), uso indevido de uniforme, distintivo ou insígnia
militar por qualquer pessoa (art. 172), deserção (art. 187), homicídio (art. 205), lesão (art. 209),
ameaça (art. 223), dano em material ou aparelhamento de guerra (art. 262), arremesso de projétil
(art. 286), ingresso clandestino (art. 302), condescendência criminosa (art. 322) e violência
arbitrária (art. 333).
15

Neste ponto, é preciso esclarecer os motivos do porque dois crimes notoriamente


praticados no curso da ditadura não constam nessas duas listagens: o sequestro ou cárcere privado
e a tortura. A primeira figura não foi colocada porque o art. 1º, §2º, da Lei nº 6.683/79 o exclui
expressamente, e o segundo crime não foi mencionado porque só foi tipificado em nossa
legislação em 1997, pela Lei nº 9.455. Embora as sessões de agressão durante os interrogatórios
dos prisioneiros tenham sido comuns no DOI-Codi, sob a ótica do princípio da legalidade penal,
esses atos não podem ser vistos como crime de tortura. Devem ser enquadrados como crime de
lesão corporal (CP, art. 129) ou homicídio qualificado pelo uso de meio cruel (CP, art. 121, §2º,
III), a depender das circunstâncias do caso concreto.
Por fim, é preciso tratar de um posicionamento, fundado no direito internacional, que
considera que o crime de tortura já estava previsto na legislação durante o período da Lei nº
6.683/79, em função do seu reconhecimento no âmbito da comunidade internacional.
Tal entendimento tem origem americana, ao julgar uma demanda promovida pelos
familiares de Joel Filartiga, morto por tortura durante a ditadura paraguaia. A negativa do
Paraguai em reconhecer o evento levou ao acionamento do Judiciário dos Estados Unidos, para
onde o agente, um delegado de policia, havia fugido12.
Ao sustentar a competência americana para julgar o caso, a família se apoiou em uma lei
bicentenária que conferia jurisdição aos Estados Unidos para julgar casos que envolvessem
violações as leis das nações, isto é, ações criminosas tão graves que a sua punição seria de
interesse da comunidade internacional como um todo, estabelecendo jurisdição universal e
criminalizando a conduta independentemente da existência de tipificação interna específica. Por
essa linha de raciocínio, toda conduta que implicasse séria violência ao ser humano, está
criminalizada, mesmo que não exista lei interna neste sentido.
Apesar de fundamentado e, por melhor que seja a sua intenção em impedir a impunidade
de agentes que cometeram crimes graves, não é possível acatar este tipo de entendimento no
ordenamento brasileiro, em função de só é constitucionalmente viável criar figuras típicas através
de lei, por força do princípio da legalidade penal. Assim, o crime de tortura continua excluído da
Lei de Anistia, o que não significa que tal ato não seria punível. O que mudaria seria apenas o seu
enquadramento, em lesão corporal ou homicídio qualificado, ao invés de um tipo particular.

12
TEITEL, Ruti G. Transitional Justice. 1 Ed. New York: Oxford University Press, 2000. p. 143.
16

4.2 CLASSIFICAÇÃO.

Com base na análise feita neste tópico, é possível estabelecer que a anistia penal da Lei nº
6.368/79 pode ser classificada da seguinte forma:
a) Parcial: já que o parágrafo segundo exclui da anistia penal os condenados pelo crime
de seqüestro e pela prática dos núcleos penais de assalto, atentado pessoal e terrorismo.
b) Especial: tendo em vista que o caput expressamente abrange crimes políticos.
c) Comum: visto que a interpretação da categoria de crimes conexos leva a conclusão de
que os crimes comuns também foram anistiados.
d) Bilateral: em função de que a análise do caput e do parágrafo primeiro leva a
conclusão de que os tanto os opositores quanto os agentes apoiados pela ditadura foram
anistiados.
e) Incondicional: porque não foram estabelecidos requisitos para que os seus destinatários
se beneficiassem de seus efeitos.
f) Sem legitimidade local: já que foi promulgada em um contexto de governo autoritário e
não foi submetida a avaliação popular.
g) Sem legitimidade internacional: tendo em conta que não houve a participação de entes
internacionais na sua edição.

4.3 QUESTIONAMENTOS JUDICIAIS.

Desde que o projeto foi encaminhado ao Congresso Nacional e até os dias de hoje, a
irresponsabilidade penal conferida pela Lei de Anistia é uma questão que suscita grande
polêmica. Com a redemocratização do país, foram propostas ações judiciais que questionaram a
sua validade em diferentes esferas judiciais.

4.3.1 Na Jurisdição Cível.

Na jurisdição cível, não houve propriamente demandas questionando a validade da Lei de


Anistia, mas sim que tentavam contornar a situação de impossibilidade de investigação dos
crimes abrangidos, através de ações que se basearam no direito à verdade.
17

O direito à verdade tem como conteúdo o direito, titularizado pelos particulares, de terem
acesso a informações governamentais sobre fatos que sejam de seu interesse pessoal ou de
interesse público. Essa conceituação é muito próxima do direito de acesso à informação, previsto
no art. 5º, XXXIII, da Constituição, mas possui um viés maior, pois está relacionado com a ideia
de preservação da memória e construção da garantia de não-repetição. Isto quer dizer que o
exercício do direito à verdade não se esgota no simples acesso à informação, mas também tem a
finalidade de, ao determinar a divulgação de fatos que envolvem violações aos direitos humanos,
mitigar os danos sofridos pelas vítimas e/ou pelos seus familiares e permitir o conhecimento
acerca da história nacional, contribuindo, por isso mesmo, para a adoção de medidas que venham
impedir que as violações se repitam no futuro.
O direito à verdade foi originado a partir do direito das famílias de conhecer o paradeiro
de integrantes seus que tenham desaparecido em situações de guerra, previsto no Protocolo
Adicional I da Convenção de Genebra13.
O direito à verdade foi se desenvolvendo de maneira conexa com as ditaduras que
marcaram a segunda metade do século XX, onde uma prática de repressão comum era o
desaparecimento forçado de opositores. Com a instalação de governos democráticos, os
familiares passaram a reivindicar que o Estado passasse a apurar e divulgar os fatos e
circunstâncias relativas ao que havia realmente acontecido com os seus parentes. Tem-se o
conhecimento acerca do ajuizamento de seis demandas, detalhadas a seguir14.
A primeira demanda judicial foi proposta ainda na ditadura. Em 1982, familiares de
desaparecidos na Guerrilha do Araguaia ingressaram na Justiça Federal do Distrito Federal contra
a União, com o objetivo de obter a declaração de ausência dos desaparecidos, a localização de
seus corpos, o esclarecimento dos fatos que envolveram as mortes e a entrega da documentação
oficial do Ministério da Guerra sobre as operações empreendidas (Processo nº 82.00.24682-5).
Em 1989, o processo foi extinto sem resolução de mérito, com o fundamento da
impossibilidade jurídica e material dos pedidos. Interposta apelação, o Tribunal Regional Federal
da 1ª Região reformou a decisão e determinou que a causa prosseguisse, em 1993. A União opôs

13
MARTINS, Tahinah Albuquerque. O Direito à Verdade na Corte Interamericana de Direitos Humanos e no
Brasil. Disponível em <www.liberlex.com/archivos/averdade.pdf> Acesso em 02 ago. 2010.
14
BREGA FILHO, Vladimir; RODRIGUES, Roberto Lima. Os Reflexos da “Judicialização” da Repressão Política
no Brasil no seu Engajamento com os Postulados da Justiça de Transição. Revista de Anistia Política e Justiça de
Transição. Brasília: Ministério da Justiça nº. 1. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/anistia> Acesso em 19 jun
2010.
18

embargos de declaração, rejeitados em 1996. Essa decisão foi impugnada por um recurso
especial, não admitido pelo TRF, seguido de um agravo de instrumento dirigido ao Superior
Tribunal de Justiça. O recurso não foi conhecido, em decisão proferida em 1998. Finalmente, o
processo voltou a tramitar em 1ª instância.
Em 2003, foi emitida sentença pela procedência parcial do pedido, a qual determinou que
a União apresentasse a documentação relativa as atividades militares e localizasse e entregasse os
corpos dos desaparecidos aos seus parentes. Foi interposta apelação, não provida pelo TRF e, em
seguida, recurso especial, também não provido. Não houve novos recursos e o trânsito em
julgado ocorreu em 2006. A União iniciou o cumprimento da sentença em 2009.
A segunda ação foi proposta pelo Ministério Público Federal, contra a União, em 2001
(Processo nº 2001.39.01.000810-5). Os pedidos envolviam a divulgação dos documentos que
continham informações sobre as ações efetivadas contra a Guerrilha e a abstenção de influenciar
os moradores da região, dada a circulação de notícias que indicavam que o Exército estaria
promovendo medidas assistencialistas em troca do silêncio dos moradores.
A ação foi julgada totalmente procedente, em 2005. A União apelou, foi derrotada em
2006, e interpôs recurso especial e recurso extraordinário, ainda não julgados.
Em 2005, cinco membros de uma família ingressaram com uma ação contra Carlos
Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi de São Paulo entre 1970 e 1974, pleiteando
que fosse declarado responsável pelas torturas que haviam sofrido (Processo nº
583.00.2005.202853, proposto na Justiça Estadual de São Paulo). Em 2008, foi proferida
sentença pela procedência do pedido. Foi interposta apelação, não julgada.
Em 2007, Ustra foi réu em outra ação com a mesma finalidade, promovida pela família de
um jornalista desaparecido dentro do DOI-Codi paulista (Processo nº 583.00.2007.241711). No
julgamento de um agravo de instrumento, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a
extinção do processo sem resolução de mérito, pela inadequação da via eleita. Os autores
ingressaram com um recurso especial, que não foi admitido e, depois, com um agravo de
instrumento, ainda pendente de análise.
Em 2008, o Ministério Público Federal ingressou com outra demanda, contra a União,
Ustra e Audir Santos Maciel (também comandou o DOI-Codi de São Paulo; Processo nº
2008.61.00.0011414-5). Na ação, se busca, em relação a União, a abertura dos arquivos da
ditadura e, quanto aos dois últimos réus, que ressarçam o erário em virtude das indenizações a
19

sessenta e quatro torturados que a União teve que pagar; que fosse declarada a existência de
responsabilidade, perante a sociedade, pelos crimes que cometeram; e que fossem proibidos de
ocupar cargos públicos. O processo foi suspenso até o julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 4.077, onde se busca a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº
8.159/91 e da Lei nº 11.111/2005, base que conferiu sigilo aos arquivos.
Em 2009, o Ministério Público Federal ingressou com mais outra ação, contra a União e
sete funcionários públicos, acusados do envolvimento na morte de um sindicalista em 1975
(Processo nº 2009.61.00.005503-0). O objetivo era obter declaração quanto a responsabilidade
dos réus no falecimento do sindicalista, ao ressarcimento quanto a indenização paga pela União à
família, o pagamento de danos morais coletivos e a perda dos cargos públicos que ocupam e/ou
cassação das aposentadorias. O processo foi extinto sem resolução de mérito, sob o fundamento
de ilegitimidade da parte e inadequação da via eleita. Foi manejada apelação, ainda não analisada.

4.3.2 Na Jurisdição Constitucional.

Na jurisdição constitucional, a Lei de Anistia foi impugnada através da Argüição de


Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, com o objetivo de dar interpretação conforme a Constituição no sentido de
excluir da abrangência da anistia penal os sujeitos que agiram a favor do regime militar.
A ação foi proposta em 21 de outubro de 2009 e julgada em 28 e 29 de abril de 2010. Dos
11 ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal, nove participaram do julgamento. O
Min. Joaquim Barbosa estava ausente, de licença-médica, e o Min. Dias Tofolli estava impedido,
porque havia atuado anteriormente no processo, na condição de Advogado-Geral da União. O
processo foi relatado pelo Min. Eros Grau.
No decorrer do julgamento, surgiram quatro posicionamentos diferentes. O primeiro foi o
do Min. Marco Aurélio, pelo não conhecimento da demanda, com base na ausência do interesse
de agir. Argumentou que todos os crimes abrangidos pela Lei nº 6.683/79 já estavam prescritos,
conforme os prazos previstos no Código Penal, o que tornava a ação sem efeitos práticos mesmo
na hipótese de procedência.
O segundo foi o do Min. Eros Grau, vencedor, que conhecia a ação para julgá-la
totalmente improcedente. O seu voto foi seguido pelo Min. César Peluso, Min. Carmem Lúcia,
20

Min. Celso de Melo e Min. Ellen Gracie. O Min. Gilmar Mendes emitiu um voto vogal no
mesmo sentido.
O terceiro posicionamento, adotado pelo Min. Ricardo Lewandovski, julgou a ação
parcialmente procedente, para considerar que um crime não pode ser considerado político
abstratamente e depende da análise da cada caso concreto.
O quarto posicionamento foi o do Min. Ayres Brito, que julgou a ação parcialmente
procedente para excluir da anistia penal os crimes previstos no art. 5º, XLIII, da Constituição.
A análise das manifestações constantes nos autos da ADPF nº 153 permitem chegar a uma
conclusão um tanto quanto infeliz: o exame da constitucionalidade da Lei de Anistia foi
contaminado pelo componente político e moral que cerca o assunto. Ao invés de se aterem a
discutir a questão sob um ponto de vista da Constituição, os sujeitos envolvidos se deixaram levar
por outros pontos, fazendo uso de argumentos que não são adequados para um debate que deveria
se dar em linhas jurídicas. E isso não é exclusividade de um único posicionamento, visto que
tanto o voto vencedor do Min. Eros Graus, quanto o voto vencido do Min. Ayres Britto usaram
argumentos de natureza eminentemente política e moral, e até mesmo o parecer do Procurador-
Geral da República, pela improcedência, sustentou o seu entendimento primordialmente em
considerações políticas. Um exemplo é a fundamentação a seguir, utilizada no parecer
ministerial:

Este o quadro, não parece aceitável, com as vênias devidas, fazer uma leitura
atemporal do ato impugnado e, de forma pontual, atacar o mesmo contexto que
possibilitou e conferiu legitimidade à convocação da Assembléia Nacional
Constituinte.
Acatar a tese da arguente para desconstituir a anistia concebida no final da
década de 70 seria romper com o compromisso feito naquele contexto histórico.
(...)
Romper com a boa-fé dos atores sociais e os anseios das diversas classes e
instituições políticas do final dos anos 70, que em conjunto pugnaram – como já
demonstrado – por uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, significaria
também prejudicar o acesso à verdade histórica. 15

A alegação sustenta que, como a Lei de Anistia foi um instrumento que auxiliou a
redemocratização do país, não poderia ser declarada inconstitucional, como se a mobilização e a
repercussão de uma lei a dispense de ter conformidade com a Constituição. Nada mais político.

15
BRASIL. Ministério Público Federal. Parecer nº 1218 – PGR – RG, Brasília, 29 de janeiro de 2010. Disponível
em <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br> Acesso em 22 jun. 2010.
21

O voto do Min. Eros Grau também serve como base para demonstrar o desvio de foco que
ocorreu na ADPF nº 153, de cujas mais de quarentas páginas só foi possível extrair dois
argumentos jurídicos, que serão expostos e analisados ao final. Um exemplo de argumento
político usado é ter defendido que a Lei nº 6.683/79 deveria ser revista só pelo Legislativo, à
semelhança do que aconteceu na Argentina e em outros países do continente, como se o
Judiciário não pudesse analisar a constitucionalidade de uma lei. É claro que seria muito melhor
para o clima político do país, que, caso fosse necessário proceder a revisão de uma lei, que tal
fosse feito pelo Legislativo, pois resultaria de um consenso nacional entre representantes eleitos
pela população, ao invés da decisão de um tribunal onde é suficiente a concordância de seis juízes
para que uma lei seja derrubada. Mas essa não é uma alegação jurídica e, portanto, não é
apropriado fundamentar um debate legal nesse sentido.
O voto do Min. Ayres Britto, mesmo tendo chegado a uma conclusão oposta, foi
igualmente composto por argumentos morais:

Antigamente se dizia o seguinte: a hipocrisia é a homenagem que o vício presta


à virtude. O vício tem uma necessidade de se esconder, de se camuflar, e
termina rendendo homenagens à virtude. Quem redigiu essa lei não teve
coragem – digamos assim – de assumir essa propalada intenção de anistiar
torturadores, estupradores, assassinos frios de prisioneiros já rendidos; pessoas
que jogavam de um avião em pleno voo as suas vítimas; pessoas que ligavam
fios desencapados a tomadas elétricas e os prendiam à genitália feminina;
pessoas que estupravam mulheres na presença dos pais, dos namorados, dos
maridos.
(...)
O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado. O torturador é
aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso dos
sofrimentos, perpetrados por ele próprio. É uma espécie de cascavel de
ferocidade tal que morde até o som dos próprios chocalhos. Não se pode ter
condescendência com ele (...).16

Embora tenha utilizado expressamente um dispositivo constitucional em sua decisão,


ficou evidente que isso ocorreu porque o art. 5º, XLIII, proíbe anistiar crimes hediondos, os
quais, pela sua gravidade, contrariam o senso moral do ministro - como, aliás, deve ocorrer com
(quase) todos. Além desse trecho, outra prova disso é que decidiu pela incidência do inciso de
maneira genérica, sem tratar dos argumentos que contrariam este entendimento, como a
impossibilidade de atingir anistias pretéritas a ele, baseado na sua própria redação.
16
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, do Pleno,
Brasília, DF, 28 de abril de 2010. Disponível em <http://www.stf.jus.br> Acesso em 16 ago. 2010.
22

Por fim, uma última ponderação deve ser colocada. A discussão sobre a Lei nº 6.683/79
sempre suscita discussões acerca da ética que há em sua continuidade e da conveniência política
da sua retirada do ordenamento. A questão, porém, de sua validade jurídica perante outras
disposições legais, não deve ser encarada a partir de uma visão passional, do contrário, deve ser
vista sob uma ótica primordialmente jurídica. Não há dúvidas acerca da importância de analisar o
contexto histórico complicado e relevante que cercou a sua promulgação para que seja
compreendida adequadamente. Mas o uso de tal aspecto não pode ter maior preponderância que
os diplomas legais. Embora compreensível, o peso das circunstâncias não deve conduzir a
possibilidade de analisar uma demanda judicial com base principalmente nelas, ainda mais em
um processo cuja decisão tem eficácia vinculante e é irrecorrível. Deve-se, assim, separar o
sentimento passional dos problemas jurídicos: são esses que o Judiciário deve analisar. O que não
ocorreu no julgamento da ADPF nº 153.

4.3.3. Na Jurisdição Internacional.

No âmbito internacional, a Lei de Anistia está sendo impugnada no Sistema


Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, instituído no campo de ação da Organização
dos Estados Americanos (OEA), com a finalidade de assegurar o reconhecimento, por parte dos
países do continente americano, de patamares básicos de direitos aos seus cidadãos, estabelecidos
na Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da
Costa Rica. O tratado foi ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº 678/92. O sistema possui
dois principais órgãos de atuação: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos está sediada na cidade de Washington,
Estados Unidos, e tem a função de agir como órgão de supervisão da Convenção Americana de
Direitos Humanos, fiscalizando o correto cumprimento dos direitos assegurados na Convenção.
No âmbito de sua competência, a Comissão tem poderes para solicitar que os Estados
Membros da OEA adotem medidas cautelares que sejam necessárias para preservar os direitos
humanos em seus territórios, expedir recomendações, emitir pareceres, elaborar estudos, analisar
denúncias e assessorar os países signatários, sempre sobre questões relativas aos direitos
humanos. Da mesma forma, deve apresentar relatório anual de suas atividades à Assembléia
23

Geral da OEA. Pode atuar de ofício ou mediante provocação, com exceção da função de
assessoria, que só pode ser feita através de solicitação do país.
Partindo-se para uma comparação com a organização interna do Brasil e, à luz de suas
atribuições, especialmente a relativa a apuração de denúncias sobre violações aos direitos
humanos, é cabível afirmar que a Comissão possui um papel muito semelhante ao que o
Ministério Público exerce em nosso país.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão sediado na cidade de São José,
na Costa Rica, com função jurisdicional, que se desdobra de duas formas: competência consultiva
e competência contenciosa. Na prática consultiva, o tribunal emite pareceres consultivos, pelos
quais responde a consultas que envolvam interpretação da Convenção Americana e a
compatibilidade das leis internas dos Estados Partes com os termos do tratado. Os pareceres
consultivos não levam em consideração algum conflito concreto e não possuem caráter
vinculante. Tem legitimidade para provocar a Corte os Estados membros da OEA, a Comissão
Interamericana, a Assembléia Geral da OEA, o Conselho Permanente da OEA, a Reunião de
Consulta dos Ministros das Relações Exteriores e a Comissão Consultiva de Defesa da OEA.
Na competência contenciosa, a Corte analisa e julga acusações de violações à Convenção
que os Estados partes porventura tenham cometido. Para que possa agir, é necessário que o
Estado requerido se submeta expressamente a jurisdição do órgão. O Brasil se submeteu através
do Decreto nº 4.663/2002.
Os legitimados ativos perante o tribunal são a Comissão e os Estados partes. No pólo
passivo, sempre estará um país. As sentenças proferidas pela Corte tem eficácia vinculante e,
portanto, devem ser obrigatoriamente cumpridas pelo Estado condenado.
Em 7 de agosto de 1995, duas organizações não-governamentais – a Human Rights
Watch/Americas e o Centro pela Justiça e Direito Internacional – encaminharam uma
representação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acusando o Brasil de violar
disposições do Pacto de São José da Costa Rica, em função da ausência de promoção da
responsabilidade criminal de militares e policiais pela morte e/ou desaparecimento de cerca de
setenta pessoas no episódio da Guerrilha do Araguaia.
Após diversas manifestações de ambas as partes, realização de diligências e de tentativas
malsucedidas de conciliação, a Comissão, em 31 de outubro de 2008, emitiu relatório concluindo
que o Estado brasileiro era o responsável pela detenção e morte de membros do PCdoB e de
24

moradores da região e que, em virtude da Lei 6.683/79, deixou de investigar e processar os


responsáveis por tais delitos, implicando em violação a Convenção. Também considerou que o
Brasil restringiu indevidamente o acesso a informações sobre os fatos que cercaram os
homicídios e foi o responsável pela falta de efetividade das ações cíveis ajuizadas para se obter
tais informações, causando danos morais e matérias aos familiares das vítimas.
Ao final do relatório, a Comissão recomendou que o Brasil empreendesse as modificações
legais necessárias para responsabilizar criminalmente os agentes envolvidos nas violações de
direitos humanos, inclusive através de revogação da Lei nº 6.683/79, tendo em conta que se
tratam de delitos insuscetíveis de anistia e imprescritíveis; permitisse o acesso aos documentos
sobre as operações militares desenvolvidas contra a guerrilha; localizasse os corpos das vítimas
desaparecidas; reparasse os danos morais e materiais sofridos pelos familiares; implementasse
programas de formação na área de direitos humanos em todos os níveis das Forças Armadas; e
tipificasse internamente o crime de desaparecimento forçado.
Em resposta, no dia 24 de março de 2009, o Brasil apresentou um relatório sobre o
cumprimento da recomendação. Ao analisá-lo, no dia seguinte, a Comissão considerou que as
providências adotadas foram insatisfatórias e submeteu a demanda à Corte Interamericana de
Direitos Humanos17. O processo foi autuado sob o número 11.552.
Na contestação, o Estado brasileiro suscitou questões preliminares relativas a
incompetência da corte, falta de interesse processual e a necessidade de esgotar os recursos
internos para se acionar a jurisdição internacional.
No tocante ao mérito, foi sustentado que a Lei de Anistia resultou de um amplo debate
público, com a finalidade de garantir a estabilidade da transição rumo à democracia e que a sua
revogação implicaria em desrespeito ao acordo realizado. Em relação aos outros pedidos, alegou
que já estavam sendo cumpridos, ou em vias de serem, através de um conjunto de providências
legislativas e administrativas18.

17
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Demanda da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos Contra a República Federativa do Brasil. Revista de Anistia
Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da Justiça nº. 2. Disponível em
<http://portal.mj.gov.br/anistia>. Acesso em 08 jul. 2010.
18
BRASIL. Contestação do Estado Brasileiro. Revista de Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília:
Ministério da Justiça nº. 3. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/anistia> Acesso em 08 jul. 2010.
25

Nos dias 20 e 21 de maio de 2010, a Corte realizou uma audiência, onde foi feita a oitiva
de vítimas e de peritos. Na mesma ocasião, foram apresentadas as alegações finais orais de ambas
as partes.
O Caso nº 11.552 ainda está em trâmite e a audiência foi o último ato realizado em seu
bojo.

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