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O STF e as Musas: a instituição do Poder pela história contada

oficialmente.

The STF and the Muses: the establishment of Power by the official story.

Palavras chaves: História, Poder, Memória e Ditadura

Keywords: History, Power, Memory and Dictatorship

Bruno Camilloto Arantes

RESUMO: O presente ensaio pretende discutir o julgamento proferido pelo


Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153 que não reviu a interpretação da lei
da anistia. O ponto em questão é o voto do Ministro Eros Grau, em especial o
argumento de que houve um acordo para promulgação da lei 6683/79 que
possibilitou a anistia ampla e geral para os agentes públicos do Estado
Ditatorial.

ABSTRACT: This essay discusses the trial given by the Supreme Court in
ADPF No 153 that has not revised the interpretation of the law of amnesty. The
point at this issue is the vote of the Minister Eros Grau, in particular the
argument that there was an agreement for the promulgation of Law 6683/79
which allowed the broad and general amnesty for public servants from the
Dictatorial State.

Professor de Direito Constitucional, Filosofia Jurídica e Hermenêutica Jurídica da Universidade


Federal de Ouro Preto. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Esta palavra primeiro dissera-me as Deusas
Musas Olímpiades, virgens de Zeus porta-égide:
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
Sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.

Já em Hesíodo (2003), em sua Teogonia, a memória é uma forma de


instauração de poder. O canto do aedo 1 que revive o conhecimento
experimentado é o responsável por estabelecer aquilo que será lembrado e
aquilo que será esquecido. Logo, o referido canto instaura uma forma de Poder
(político inclusive) sobre a organização social vez que o referido hino
(re)estabelece a ordem cósmica e a ordem social 2.

Mnemosines é filha de Urano e Gaia e mãe, junto com Zeus, das Musas
inspiradoras do aedos. É pela memória das Musas que os aedos (re)contam o
início de toda a ordem natural e social. Sendo assim, “Rememorar esta
constituição do cosmos é também (re)estabelecê-la e, portanto, conduzir ao
esquecimento de tudo o que não lhe é conforme.” (KRAUSZ, 2007, p. 121).

A história constitucional e institucional brasileira é atravessada pela ditadura


militar no período de 1964-1985. Essa página infeliz de nossa história (HIME;
BUARQUE DE HOLANDA, 1984) teve como conseqüência a violação dos
direitos humanos e a institucionalização da prática da tortura. A Constituição
republicana de 1988 aboliu a tortura e o tratamento desumano e degradante da
pessoa (art. 5, III). Tal preceito está relacionado com o princípio da dignidade

1
Aedo é um cantor ou poeta que, na antiga Grécia, cantava as epopéias através de poemas
desenvolvendo uma dupla função: (i) reconstrução da história através do poema e (ii) educação
dos povos pela poesia.
2
A canção que Hesíodo aprendeu com as Musas não celebra os feitos memoráveis de mortais.
Seu objetivo é recordar a origem dos deuses e o desenvolvimento das gerações divinas, na
Teogonia, e mostrar a seus contemporâneos os caminhos da ética e da retidão, em Os
Trabalhos e os Dias. A poesia hesiódica está sempre reiterando a existência de uma certa
ordem, instrínseca ao cosmos e à sociedade humana – a ordem estabelecida por Zeus – e a
origem desta mesma ordem, sbjacente a tudo. (KRAUSZ, Ano 2007, p. 121)
da pessoa humana que serve de fundamento à ordem jurídica do Estado
Democrático de Direito.

A passagem de um regime ditatorial para um regime democrático implica no


estabelecimento de um modelo de justiça que pode ser denominado justiça de
transição3. O estabelecimento de uma nova ordem constitucional que se
pretende democrática deve reconhecer e afastar as violações aos direitos
humanos historicamente cometidas pelo próprio Estado. Nesse sentido:

“Com o fim da guerra fria, várias sociedades passaram por transições


radicais, do regime ditatorial para a democracia na América Latina, do
regime comunista para a democracia liberal no Leste Europeu, e do regime
Apartheid para o regime democrático na África do Sul. Os diversos dilemas
enfrentados por sociedades em transição, revelam os diferentes interesses
e valores conflitantes, e os motivos que levam cada sociedade a adotar
concepções distintas de justiça de transição.” (WAISBERG, 2009)

Lidar com o passado autoritário é um importante passo para a consolidação da


democracia presente. Assim, a justiça de transição deve ser pensada e
realizada dentro da realidade de cada sociedade. Contudo, a passagem de
regimes autoritários para regimes democráticos apresentam características
comuns como, por exemplo, a discussão sobre a punição dos agentes públicos
que, durante o regime autoritário, praticaram crimes (especialmente os
comuns) contra os cidadãos.4

A lei 6.683/79 fez parte do contexto histórico de redemocratização do país


permitindo aos exilados políticos o retorno ao Brasil depois de anos de
ostracismo. O artigo primeiro da referida norma, dispôs:

3
Para melhor conhecimento verificar: http://ictj.org/en/tj/
4
“A justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o passado autoritátio e
viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática. O risco é que as concessões ao passado
posam comprometer e debilitar a busca democrática, corrompendo-a com as marcas de um
continuísmo autoritário. Justiça e paz; justiça sem paz; e paz sem justiça são os dilemas da
transição democrática.” (PIOVESAN, 2009, p. 204)
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre
02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e
Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares (vetado).

§1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de


qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política.

§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela


prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido


por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo
cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências
do art. 3º.

Conforme se depreende do texto legal ( §1º), a possibilidade de anistia foi


estendida aos agentes públicos responsáveis pelas práticas de vários crimes
contra cidadãos, violando, portanto, os preceitos fundamentais da Constituição.
Parece claro que a lei da anistia foi publicada para permitir aos perseguidos
políticos o retorno aos seus lares e ao seu país. Contudo, as interpretações
feitas a partir da abertura semântica do texto levaram à conclusão de que não
só os perseguidos, mas todos os agentes públicos envolvidos na prática dos
crimes durante o regime militar teriam sido anistiados.

Parece-nos que tal interpretação acaba por conceder uma “auto-anistia”.


Entretanto, não é juridicamente razoável a concessão de “auto-anistia”. O
Estado de Direito, pautado pelos princípios da democracia e dos direitos
fundamentais, não pode coadunar com a legitimação da prática de tortura e
crimes comuns pelos agentes públicos e, ato seqüente, anistiar aqueles que
perpetraram tais atos.

A extensão da anistia aos terroristas de Estado é uma contradição na sua


gênese à luz das premissas básicas do direito. Implica a deslegitimação do
Estado enquanto detentor do monopólio da violência. É mais do que
entregar o monopólio da violência consentida. Seria a admissão do
monopólio de uma violência não permitida. Implica desmentir a razão do
Estado. Significa desmentir mesmo a razão do direto. (CORREIA, 2009, p.
144/145)

O reconhecimento histórico da prática de crimes contra o ser humano deve vir


acompanhado da imputação de responsabilidade aos autores dos referidos
crimes. Essa é a missão do Estado de Direito, especialmente no modelo
constitucional democrático. A prática de crimes contra a humanidade deve ser
rechaçada pelos Estados que se amoldam pelos princípios da democracia e
dos direitos fundamentais. Nesse caso a declaração e proteção aos direitos
humanos se constitui como objetivo fundamental do Estado Constitucional.

“Na opinião concorrente, o jurista brasileiro e Juiz da CIDH Cançado


Trindade afirmou que “apesar das circunstâncias relativas ao caso em
espécie, é relevante focar um tipo específico de anistia: a chamada “auto-
anistia”, que busca proteger aqueles responsáveis por graves violações dos
direitos humanos do alcance da justiça, assim promovendo impunidade.”
(WAISBERG, 2009)

Pairando dúvida quanto à interpretação da referida norma, a OAB Federal


ingressou com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) junto ao STF cujo pedido consiste na interpretação da lei 6.683/79
conforme a Constituição para declarar que a anistia concedida em seu artigo 1º
não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes do Estado
durante o regime militar.

A ADPF n. 153 visa estabelecer a possibilidade da apuração dos crimes


comuns cometidos pelos agentes do Estado contra o cidadão durante o regime
militar. Isso significa que aqueles agentes que praticaram crimes comuns em
nome do Estado poderão ser processados e deverão responder a esses
processos com amplo direito de defesa, contraditório e produção probatória. É
o Estado de Direito Constitucional que lhes garantirá a legalidade de qualquer
decisão punitiva fazendo um movimento exatamente ao contrário daquele feito
pelo regime militar onde não havia garantia do devido processo legal.

Pois bem, a ADPF possui um sentido de rememoração histórica nos moldes da


poesia hesiódica na medida em que permite a mais alta Corte de Justiça deste
país um provimento que visa o re-estabelecimento e re-significação no que diz
respeito ao recente passado brasileiro. Ainda hoje quando se diz que vivemos
num Estado Democrático de Direito deve-se ter em conta que a base
democrática institucional de nosso Estado é o respeito aos direitos
fundamentais, quer seja no plano nacional da consagração no texto
constitucional, quer seja no plano internacional com a anuência aos diversos
tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. Assim sendo, a
iniciativa da Ordem dos Advogados do Brasil com a propositura da ADPF n.
153 permitiria que o Poder Judiciário brasileiro re(contasse) a história do
regime de exceção viabilizando a consolidação do regime democrático no
sentido de reconhecer a responsabilidade do Estado pela prática de crimes
contra a humanidade.

Entretanto, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF n. 153,


publicada no diário oficial em 11 de maio de 2010, fez questão de esquecer o
passado inglório da recente história brasileira do período militar. Nos dizeres do
poeta grego acima transcrito, a decisão do STF deixa de herança para as
gerações futuras o esquecimento daquilo que foi nosso regime de governo.
Coloca debaixo do tapete todas as cinzas e cacos que sobraram do regime
ditatorial vivido pelo país.

A decisão proferida inclui o Brasil como um país que não quer acertar as
contas com seu triste passado. Depois de mais de 20 anos de promulgação da
constituição que prima pelos princípios da democracia constitucional, o STF
decide a questão da anistia aos agentes do Estado que praticaram atos de
tortura de forma lamentável manchando a história constitucional do nosso país.
O silêncio é ensurdecedor. A sociedade civil parece ainda não ter dado conta
da desastrosa decisão proferida pelo STF na ADPF n. 153. Pior, o mundo
jurídico (Faculdades de Direito em especial) não se manifestou a respeito da
referida decisão5. Após duas décadas de proclamação da Constituição de 1988
percebe-se que ainda há um déficit de compreensão do modelo instaurado pelo
referido texto constitucional: um Estado Democrático de Direito 6. Não haverá
democracia sem o reconhecimento (e punição) dos crimes praticados pelo
próprio Estado durante o regime ditatorial.

A história não deve (pode) ser esquecida. O passado se constituiu como forma
legítima de compreensão do presente e na fusão de horizontes hermenêuticos
é que surge a possibilidade de compreensão. Esquecer o passado é negar a
experiência construtiva que constitui o ser humano como ser ético-histórico. É
negligenciar o esforço histórico do mundo ocidental na construção do
arcabouço teórico conhecido como direitos humanos.

Se durante a ditadura militar brasileira o Poder Judiciário foi tolhido do exercício


de suas funções institucionais e de Poder Constituído, sendo subjugado pelos
ditadores, a decisão na referida ADPF reflete a incapacidade de nosso
Judiciário de reconhecer a trágica história das torturas praticas por um Estado
de Exceção nos anos de chumbo vividos pelo nosso país.

5
Sobre as manifestações a respeito da decisão, em 22 de junho de 2010 foi promovido pela
OAB de Minas Gerais um Debate Público sobre a NÃO REVISÃO pelo STF da LEI DE
ANISTIA, que contou com a participação de juristas, historiadores, professores, advogados,
com objetivo de fomentar a discussão das medidas judiciais e extrajudiciais a serem tomadas
após a decisão do STF. Conferir: http://www.oabmg.org.br/sites/leideanistia/. Essa iniciativa é
um a honrosa exceção ao silêncio ensurdecedor de toda sociedade.
6
Sobre o assunto conferir o manifesto escrito pelo Professor Marcelo Cattoni in
http://www.ihj.org.br/bh/.
Não se trata de punir os agentes do Estado da mesma forma com que os
crimes foram praticados. Não se trata de simplesmente punir 7. Muito ao
contrário. Hoje temos uma Constituição que garante a todos os acusados o
respeito aos princípios processuais-constitucionais do contraditório, ampla
defesa e isonomia. Isto é, o Estado de Direito garante o devido processo legal
totalmente abandonado nos métodos escusos institucionalizados pelo Estado
Militar.

A decisão do STF destoa da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos


Humanos no tocante a interpretação dos dispositivos legais que concederam
auto-anistia aos agentes das ditaduras latino-americanas 8. Nesse sentido:

“(...) inúmeras decisões dessas duas instituições firmaram jurisprudência


indicando que as anistias autoconcedidas pelo regime militar não têm valor
jurídico na democracia para escudar a impunidade dos agentes do estado
nos regimes de exceção.” (PINHEIRO, 2009, p. 14)

A inicial da ADPF n. 153 argumentou que a recepção do §1º do artigo 1º da lei


6683/79 implicaria em violação dos os seguintes preceitos Constitucionais: (a)
dever do Poder Público de não ocultar a verdade; (b) princípio democrático e
republicano e (c) dignidade da pessoa humana. A fundamentação desenvolvida
na ação visa a interpretação conforme a Constituição para declarar que a
anistia concedida pela referida norma (lei 6683/79) não se estende aos crimes
comuns praticados pelos agentes de repressão contra adversários políticos
durante o regime de exceção. Também se fundamento que a lei 6683/79 não
foi recepcionada pela Constituição de 1988.

7
Ao retomar-se a ordem democrática, representada pela promulgação da Constituição de
1988, os brasileiros ainda se vêem diante da dolorosa perda de memória do País. A estratégia
das ditaduras é conhecida: produzir a supressão da memória por parte de pactos de silencia e
de concessões mútuas que acomodam, precariamente, os sobreviventes do conflito e mantêm
intocadas a possibilidade do ajuste de contas com o passado e a ignorância dos fatos
pretéritos, sobretudo entre os jovens (BARBOSA, VANNUCHI, 2009, p. 58)
8
A título de exemplo verificar: Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile (2006), para. 154-157,
2006, disponível em <www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/series 154 esp.pdf>
No início de sua decisão o Ministro Eros Grau faz digressão sobre a
hermenêutica jurídica para afirmar que o até o momento da interpretação da
norma o texto é obscuro. Segundo o Ministro:

“As normas resultam da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto


textos, enunciados, disposições, não dizem nada: elas dizem o que os
intérpretes dizem que elas dizem.”
(http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf)

Utilizando-se da distinção entre texto e norma o Relator da ADPF n. 153


argumenta que a petição inicial argüiu, impropriamente, a inconstitucionalidade
do texto do artigo §1º do artigo 1º da lei 6683/79 e não uma norma específica
referente ao texto. O argumento do Relator nos soa equivocado uma vez que o
pedido da ADPF diz respeito a uma interpretação possível a partir de um texto,
isto é, desafia a aplicação de um determinado sentido normativo nos casos de
cometimento de crimes comuns pelo Poder Público durante o regime militar
especialmente diante do princípio da isonomia Constitucional.

Outro argumento rechaçado no voto do Ministro Eros Grau diz respeito à


alegação de que a lei 6683/79 impediu que as vítimas dos agentes da
repressão (Poder Público) e o povo brasileiro tivessem conhecimento da
“identidade dos responsáveis pelos horrores perpetrados, durante dois
decênios, pelos que haviam empalmado o poder”.
(http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf).

O referido impedimento às informações (que leva à falta da verdade por parte


do Poder Público) é provocado pelo acobertamento das situações criminosas
acontecidas de fato, através do expediente de incluir no texto normativo a
expressão “crimes conexos”. Como bem salientado na petição inicial, não é
possível, pela própria natureza do instituto da “conexão”, relacionar como
conexos os crimes praticados com a conotação política com os crimes comuns
praticados pelos agentes políticos. Nesse sentido não nos parecer acertado o
voto do Relator que, além de ignorar a tecnicidade referente ao instituto da
“conexão”, também ignorou que o texto normativo foi construído de forma a
dificultar (ou mesmo impedir) que os agentes públicos fossem
responsabilizados pelo cometimento dos crimes de lesa humanidade.

A inicial alega, ainda, que a referida norma provoca violação dos princípios
democráticos e republicanos e da dignidade da pessoa humana. As duas
argüições são afastadas pelo voto do Relator ao afirmar que tais violações não
ocorrem. Novamente, entendemos que a compreensão apresentada nos
argumentos do Relator não condiz com uma hermenêutica constitucional
adequada ao modelo de Estado consagrado pelo texto de 1998, qual seja,
Democrático de Direito.

Um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito é o estabelecimento


dos direitos fundamentais que tem, por alicerce, a dignidade da pessoa
humana. A prática de crimes de lesa humanidade viola, sem sombra de dúvida,
a dignidade da pessoa humana na medida em que utiliza a força coercitiva do
Estado (utilizando-se, para tanto, o aparato do Poder Público) para o
cometimento de crimes bárbaros e despropositados. Tudo em nome do
establishment do Regime Ditatorial. Logo, as ações praticadas pelos agentes
públicos que se amoldam aos tipos penais descritos nas normas jurídicas como
crimes comuns devem ser objeto de investigação e punição para a
concretização do Estado de Direito que se paute pelos princípios da
democracia e do republicanismo.

No julgamento em análise, História, Verdade, Poder, Direitos Humanos e


Estado de Exceção tornaram-se palavras que devem ser compreendidas
dentro de um contexto argumentativo de forma a permitir uma (re)construção
do passado através da narrativa de fatos, da interpretação do direito e do
entendimento dos referenciais teóricos atinente ao cenário jurídico-político
contemporâneo. Desta forma, o voto do Ministro Relator faz (quer fazer)
acreditar que houve um amplo acordo no seio da sociedade brasileira que
permitiu a transição do Regime Ditatorial para o Regime Democrático, in literis:

A transição para a democracia

43. Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a


democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de
certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-
se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa
dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver
em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar
o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se
manifestaram politicamente em nome dos subversivos.
(http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf)

De todos os argumentos utilizados pelo Relator, nos parece que este é o mais
perigoso de todos na linha de raciocínio adotada no presente ensaio. Em seu
voto o próprio Ministro reconhece que os “subversivos” tiveram acesso à anistia
em razão do acordo político celebrado amplamente pelos setores sociais.
Contudo, há de se perguntar qual acordo foi feito e quais as partes figuram no
referido acordo. É possível pensar num acordo entre torturadores e torturados?
É válido um acordo celebrado entre opressor e oprimido? Qualquer acordo
jurídico, dentro da teoria geral do direito, deve passar pelo crivo da validade
formal (para explicitar os princípios positivistas contratuais). Nesse caso, não
nos parece ser possível acreditar que o acordo supostamente celebrado entre
as forças ocupantes do poder estatal e os cidadãos que lutavam contra o
regime ditatorial apresente os requisitos necessários a formação de qualquer
acordo válido.

O simples reconhecimento de que os “subversivos” alcançaram a anistia


implica no reconhecimento da ilegitimidade do Estado de Exceção. Há que se
lembrar que os denominados “subversivos” pelo Ministro insubordinaram-se
contra a autoridade, as instituições, as leis e os princípios estabelecidos por um
Poder Ilegítimo. Logo, há que se reconhecer que os “subversivos” lutaram pela
consagração de um Estado Democrático contra um regime autoritário, ou seja,
ilegítimo.
O julgamento pela improcedência da ADPF n. 153 eximiu o Estado brasileiro de
sua responsabilidade história não oportunizando que o mesmo fizesse um
ajuste com seu passado de violação dos direitos humanos praticados pelos
agentes públicos.

“Embora houvesse reivindicações por justiça, com aprovação da Lei da


Anistia, o início do que viria a constituir-se no processo brasileiro de acerto
de contas seria marcado pela opção dos militares de ignorá-las. Pensada
para encerrar a questão das punições e inserida em um processo de
lliberalizçaão do regime de arbítrio, com a sanção, em 1979, da Lei n. 6.683
os militares atenderam principalmente os anseios de impunidade dos
próprios integrantes do aparato de repressão, negando por completo os
direitos de perseguidos políticos e da sociedade.” (MEZAROBBA, 2009, p.
46)

Acreditar no acordo celebrado quando da edição da lei da anistia é romper com


a estrutura do Estado Democrático de Direito atualmente constituído pela Carta
de 1988. É desconsiderar os ordenamentos jurídicos internacionais assinados
pelo Estado brasileiro que prevêem a proteção dos Direitos Humanos contra os
regimes de exceção.

Não reconhecer, oficialmente, que o Estado foi responsável pela prática de


crimes comuns é colocar o Brasil na contramão da histórica luta pelo
estabelecimento de um regime democrático que se preze pela memória e pela
verdade.

Voltando ao início do presente ensaio, estamos diante de um terrível risco de


deixar que os crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Estado de Exceção
brasileiro caiam no completo esquecimento porque o STF resolveu, como se
um aedo fosse, (re)contar uma parte de nossa história e interpretar a lei de
anistia ao arrepio do princípio basilar da Constituição de 1998: dignidade da
pessoa humana.
Como diz Hesíodo, as Musas sabem contar mentiras como se fossem
verdades. O STF, tal como uma Musa hesiódica, escreveu uma página onde
quer fazer parecer que houve, de fato, um acordo celebrado entre os
torturadores e criminosos que ocupavam os cargos públicos do Estado com
toda sociedade civil para o (re)estabelecimento do regime democrático.
Também como a Musa, o STF não quis ouvir as revelações feitas pela história
brasileira responsabilizando o Estado pelos bárbaros crimes cometidos pelos
seus agentes durante o regime de exceção.

Para consolidação de nossa incipiente democracia, não podemos calar diante


da história contada pelo STF sob pena de tal história se tornar página definitiva
e verídica da história político-jurídica brasileira.
Bibliografia:

BARBOSA Marco Antonio Rodrigues; VANNUCHI, Paulo. Resgate da memória e da


verdade: um direito de todos. In: SOARES, Inês Vigínia Prado; KISHI, Sandra
Akemi Shimada (Coord). Memória e verdade: a justiça de transição no Estado
Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, 422 p.

BRANDÃO, Jacyntho Lins. As musas ensinam a mentir. (Hesíodo, Teogonia,


27-28). Ágora, Aviero, Estudos Clássicos em Debate 2 (2000) p.7-20.

BRASIL, Lei n. 6.683, 28 de agosto de 1979, Concede a anistia e dá outras


providências. Presidência da República.

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Anistia para Quem? IN: In SOARES,


Inês Vigínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord). Memória e
verdade: a justiça de transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo
Horizonte: Fórum, 2009, 422 p

HESÍODO. Teogonia – A origem dos deuses (Hesíodo). Estudo e tradução de


Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2003.166p.

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Disponível em <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html>
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PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos Direitos Humanos e lei de anistia:
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PINHEIRO, Paulo Sérgio. Esquecer é começar a morrer. In: SOARES, Inês


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SOARES, Inês Vigínia Prado. Justiça de transição. Disponível em


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WAISBERG, Tatiana. A Teoria e Prática da Justiça de Transição: breve


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