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Democracia judicial e estado de direito:


Uma crítica ao ativismo judicial na ADI 5.081/DF

Glauco Salomão Leite1


Marina Falcão Lisboa Brito2
Matheus Bezerra de Moura Lago3

Introdução

Após a Ditadura Militar vivenciada no Brasil, e as incertezas


políticas e sociais e relativização de direitos com ela trazidas, o
constituinte originário preocupou-se em trazer uma Constituição
garantidora de direitos. Se, por um lado, a Constituição Federal de
1988 (CF/88) pregou a harmonia e independência dos Três Poderes
entre si, por outro lado, promoveu uma relação mais social entre o
Supremo Tribunal Federal (STF) e a sociedade, não só a partir da ótica
de proteção aos direitos e garantias fundamentais mais amplos a que
se propunha o STF, mas também conferindo a este o papel de guardião

1
Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Direito
Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor de Direito
Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, onde também leciona, na condição de
Professor Permanente, em seu Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado).
Professor Adjunto de Direito Constitucional e Administrativo da Universidade Federal da Paraíba
(Campus João Pessoa) e Professor de Direito Público da Universidade de Pernambuco (UPE). Membro
do grupo Recife de Estudos Constitucionais – REC (CNPq).
2
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista do Programa de
Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).
3
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco.
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da CF/88, defendendo direitos e o Estado Democrático de Direito. Isso,


por si só, já enfatizou a importância não só do STF, mas de todo o
Poder Judiciário e o seu envolvimento com o indivíduo e sociedade;
entretanto, com o passar do tempo, houve um fortalecimento dessa
relação, que se destaca, de certa forma, preocupante.
Em cenários cada vez mais instáveis e descrentes, em que se
assistiu a uma sucessão de escândalos políticos, tanto nas esferas do
Poder Executivo quanto do Poder Legislativo, discursos abarrotados
de promessas de renovação e probidade, mas que, ao serem postos
em prática, seguiram-se os escândalos, e, assim, perpetuaram-se
eleição após eleição. Desta feita, os anseios populares cresceram
sobre outro poder – o Poder Judiciário. Consequentemente, a partir
das decepções, instaurou-se clamor pela Justiça no cenário
brasileiro, diante da ausência de atuação dos Poderes Legislativo e
Executivo, e, com isso, acabou por se recorrer ao Poder Judiciário
para a efetivação da Justiça e para a efetivação dos direitos
prometidos pela Constituição.
Vale apontar como paradigma para a crescente judicialização
o maior acesso e facilidade do cidadão ao Poder Judiciário pelas
garantias constitucionais asseguradas pela CF/88. Para exemplificar
cita-se o artigo 5°, inciso XXXV da Constituição Federal (BRASIL,
1988): “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”. Isso fez com que uma intensa judicialização se
instalasse no Poder Judiciário, os quais, muitas vezes, sequer
pertencem a sua alçada, o que elevou o STF a uma nova projeção, a
imprimir-se neste o desejo de suprir as lacunas existentes no Direito
Brasileiro. Assim, nesse meio de intensa judicialização das relações
sociais, o STF tem demonstrado, em certos casos, uma postura
ativista. Esse fenômeno, de acordo com Marcus Faro de Castro:

Ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o


funcionamento do Legislativo e do Executivo mostra-se falhos,
insuficientes ou insatisfatórios. Sob tais condições, ocorre certa
aproximação entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se
mais difícil distinguir entre um ‘direito’ e um ‘interesse político’,
Glauco S. Leite; Marina Falcão L. Brito; Matheus Bezerra de M. Lago | 655

sendo possível se caracterizar o desenvolvimento de uma ‘política


de direitos’. (CASTRO, 1997, p.27)

O ativismo judicial – como é chamado o fenômeno da atuação


dos tribunais – tem atuado em contextos específicos, causando, não
raro, incômodo e desorganização às outras áreas do Poder. Por
exemplo, Glauco (LEITE, 2017) aponta, dentre as possíveis
consequências de uma atuação ativista, quando o Tribunal decide
pela imposição de uma obrigação positiva para um ente do Poder
Público, o que pode afetar o planejamento orçamentário gerando
uma despesa extra aos cofres públicos.
Isso tudo tem ido de encontro, em certa medida, a algo que,
no século XVIII, Montesquieu, em seu livro Do Espírito Das Leis, já
dissera categoricamente:

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos


principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes:
o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar
os crimes ou as divergências dos indivíduos. (MONTESQUIEU,
1993, p. 181).

A essa movimentação entusiasta do tribunal em caráter


proativo surgiram questionamentos, a que se seguiram sérias
preocupações de que houvesse uma troca de valores, e a partir do
argumento de uma atuação prol Estado Democrático de Direito
estaria se erigindo um Estado Judicial ou ainda uma Democracia
Judicial a tal ponto que, para além de suprir lacunas deixadas pelos
demais Poderes, o Judiciário estaria usurpando às competências
legiferantes e executivas pertinentes ao Poder Legislativo e ao Poder
Executivo, respectivamente.
Nessa seara, o presente trabalho se debruçará sobre um
verdadeiro liame subjetivo do ativismo, perscrutando a atuação do
STF enquanto modificador de uma resolução eleitoral e em que
medida isso beneficia ou agride as regras do jogo democrático do país.
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1. Entre o STF e o TSE: a ação direta de inconstitucionalidade


5.081/DF e a resolução eleitoral n° 22.610.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.081/DF ilustra


um caso interessante de confronto do Supremo Tribunal Federal
com a resolução eleitoral, n° 22.610/2007, feita pelo Tribunal
Superior Eleitoral (TSE).
A resolução eleitoral em questão, do ano de 2007, tratou de
regular a disciplina quanto à perda de cargo eletivo, assim como da
justificação da desfiliação partidária. Afora os outros artigos dessa
resolução, que interessariam a uma análise conjunta entre o direito
eleitoral e o direito constitucional, reside nos artigos 10 e 13:

Art. 10. Julgando procedente o pedido, o tribunal decretará a perda


do cargo, comunicando a decisão ao presidente do órgão legislativo
competente para que emposse, conforme o caso, o suplente ou o
vice, no prazo de 10 (dez) dias.
Art. 13. Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação,
aplicando-se apenas às desfiliações consumadas após 27 (vinte e
sete) de março deste ano, quanto a mandatários eleitos pelo
sistema proporcional, e, após 16 (dezesseis) de outubro corrente,
quanto a eleitos pelo sistema majoritário. (BRASIL, Resolução nº
22.610, 2007).

Como o foco da dissidência paira sobre esses artigos é sobre


estes que se há de debruçar este presente estudo.
O ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot (2013-
2017), entrou perante STF com uma ADI pedindo a
inconstitucionalidade desses excertos da resolução proferida pelo
TSE. Como fundamentação, pautou-se nos artigos da Constituição
Federal de 1988 que seriam feridos por essa resolução, dentre os
quais destacam-se o art. 14, caput, art. 46, caput e o art. 55, caput;
que assim expressam:
Glauco S. Leite; Marina Falcão L. Brito; Matheus Bezerra de M. Lago | 657

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal


e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos
termos da lei, mediante;
Art. 46. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados
e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário;
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador. ((BRASIL,
Constituição Federal, 1988.)

Para Rodrigo Janot, os artigos 10 e 13 da resolução do TSE


estariam inadvertidamente estendendo uma situação própria do
sistema proporcional para o sistema majoritário, afetando, com uma
lógica absurda, o voto emanado da soberania popular.
O problema do art. 13 da resolução do TSE, cujo cerne seria a
parte final do artigo, ao fazer referência a desfiliação partidária
aplicada ao sistema majoritário, o que já remete ao art. 10 dessa
mesma resolução, para as palavras “suplente ou o vice”. Ora, isso
tudo representaria uma afronta a soberania popular uma vez que o
empossamento de vice ou suplente é aplicável para os casos de
infidelidade partidária de político eleito pelo sistema proporcional,
mas não no caso de representante eleito pelo sistema majoritário.
(BARROSO, 2015) Em maior ou menor perspectiva, ambos os
artigos trariam consigo problemas, uma vez que violariam o sistema
eleitoral e o estatuto nacional dos congressistas, dispostos, como já
referenciados, em alguns artigos da Constituição Federal
(BARROSO, 2015).
Levada ao Supremo, deu-se provimento à ADI 5.081 pelo voto
do relator, ministro Luís Roberto Barroso, o qual foi acompanhado
por todo o plenário. Não obstante a decisão unânime, o debate
acerca da ADI suscitou, durante o tempo em que esteve na Suprema
Corte, a seguinte questão: afinal, é válida a abrangência da ideia de
fidelidade partidária, mais pertinente ao regime proporcional, ao
regime majoritário?
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2. (In)fidelidade partidária e soberania popular em debate

A respeito da abrangência ou não da aplicabilidade da norma


de fidelidade partidária ao sistema majoritário, é oportuno refletir
um pouco sobre a teoria dos sistemas eleitorais, de composição
mista, adotados no Brasil: o proporcional e o majoritário.
O sistema proporcional é adotado para a escolha dos cargos
de vereador, deputado estadual e deputado federal. Este sistema é
caracterizado por se considerar que a representatividade da
população se dá em uma relação de afinidade com a ideologia
manifestada pelos partidos políticos, o que leva que os votos sejam
destinados à legenda do partido político de certo candidato, e não no
personagem político per si (TRE-SC, 2015). Assim, embora um
candidato arrecade muitos votos, o que é, de fato, decisivo para que
seja eleito, é a quantidade de votos que a legenda do partido político
recebeu, devendo superar o quociente eleitoral estabelecido. Isso
permite dizer que, embora um candidato receba muitos votos, a
ponto de poder se eleger, isso não presume que ele seja,
definitivamente, eleito, pois o partido ao qual está filiado pode ter
recebido poucos votos em sua legenda (TRE-SC, 2015).
Por outro lado, o sistema majoritário é adotado para a escolha
dos cargos de prefeito, governador, senador e presidente. A principal
característica desse sistema é a presunção de que haja uma forte
relação de afinidade entre a vontade de representação do povo para
com o personagem político, e muitas vezes associada à importância do
cargo a ser assumido, logo, há um maior envolvimento da população,
o que ocasiona um destaque do político (BARROSO, 2015). Desta
forma, será eleito o candidato que receber mais votos (maioria simples
ou relativa), ou aquele candidato que receber mais da metade dos
votos válidos computados (maioria absoluta).
Em resumo, no sistema proporcional o eleitor destina o voto
à legenda do partido político, e o determinante para que um
candidato seja eleito é quantidade de votos que este recebeu, assim
como o de seu partido; enquanto que no sistema majoritário, o
Glauco S. Leite; Marina Falcão L. Brito; Matheus Bezerra de M. Lago | 659

candidato escolhido pelo eleitor é o que receberá o voto, a ser


computado com os outros que receber, podendo ser eleito ou não a
depender do somatório dos votos que receber (STF, 2015).
Visto isso, parte-se para outro ponto: o porquê de a desfiliação
partidária pesar mais para o candidato de sistema proporcional do
que para o candidato do sistema majoritário. Ora, isso se trata da
necessidade ou não da fidelidade partidária em relação com o
imperativo da soberania popular, em que, a depender do regime
eleitoral, esses elementos ou estabelecem um vínculo indissociável
ou, então, uma relação de predominância de um sobre o outro.
É o que se explicará a seguir.
No sistema proporcional, como exposto, o candidato é eleito
por conta da legenda do partido político, e, ainda que tenha
angariado uma quantidade insólita de votos, se sacrificando nas
campanhas, debates e discursos, defendendo seus planos e
propostas, se eleito, não os fez para si, mas sim para o partido ao
qual está filiado. Ao final, a eleição do candidato depende
exclusivamente do partido e, por isso, após conquistar o cargo eleito
almejado, não poderia o político desvincular-se do partido político,
pois este ajudou aquele a se eleger. A ofensa ao partido é
representada pela infidelidade. Nesse caso, o político deve manter os
laços com o partido que o elegeu, sendo-lhe fiel e permanecendo
nele. Esta é a restrição quanto à desfiliação. Se o faz, abandonando
a legenda que o elegeu, perde o cargo. A soberania popular é
consequência da fidelidade partidária: o candidato deve-se manter
no partido que o elegeu, em respeito às escolhas e opções políticas
feitas pelo eleitorado no momento das eleições.
No sistema majoritário, por sua vez, não há esse dever de
respeito entre o candidato, de um lado, e o partido atrelado a
soberania popular, do outro lado. O candidato foi eleito e isso
importa a representatividade popular de uma maioria. Nessa
situação, a soberania popular foi consubstanciada quando houve a
escolha do candidato. Caso o candidato eleito viesse a se desfiliar do
partido no qual foi eleito e, por conta de sua infidelidade partidária,
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perdesse o cargo para o qual foi eleito, isso importaria desrespeito à


própria soberania popular, manifestada na representação dos votos
que o elegeram. Dessa maneira, candidato eleito e soberania popular
andam juntos no sistema majoritário, e por isso a desfiliação
partidária não compromete o cargo do político eleito. Nas palavras
do ministro Barroso, este afirma que:

As características do sistema proporcional, com sua ênfase nos


votos obtidos pelos partidos, tornam a fidelidade partidária
importante para garantir que as opções políticas feitas pelo eleitor
no momento da eleição sejam minimamente preservadas. Daí a
legitimidade de se decretar a perda do mandato do candidato que
abandona a legenda pela qual se elegeu. O sistema majoritário,
adotado para a eleição de presidente, governador, prefeito e
senador, tem lógica e dinâmica diversas da do sistema
proporcional. As características do sistema majoritário, com sua
ênfase na figura do candidato, fazem com que a perda do mandato,
no caso de mudança de partido, frustre a vontade do eleitor e
vulnere a soberania popular (CF, art. 1º, par. ún. e art. 14, caput).
(BARROSO, 2015, p. 5-6).

Disso se depreende a tese de que a perda do mandato em


razão da mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos
pelo sistema majoritário, pois seria uma ofensa à soberania popular,
um dos fundamentos máximos da República Federativa do Brasil,
como consta no art. 1° da CF, inciso I e parágrafo único.
Por tudo que foi dito até o presente momento, deve-se
imaginar quais as regras e prerrogativas constitucionais foram
utilizadas para se tecer essa relação entre fidelidade e soberania,
como bem asseveradas pelo ministro relator. A verdade, todavia, é
que não há nenhuma regra geral ou prerrogativa constitucional.
Tudo não passa de uma construção jurisprudencial do STF.
Não resta, seja de maneira evidente ou de maneira inequívoca,
que Constituição permita a infidelidade partidária para um sistema
e para o outro não. Observe-se o texto Do artigo 17, § 1º, CF, o qual
diz que:
Glauco S. Leite; Marina Falcão L. Brito; Matheus Bezerra de M. Lago | 661

É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua


estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e
duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua
organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha
e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a
sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de
vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual,
distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas
de disciplina e fidelidade partidária. (BRASIL, Constituição
Federal, 1988).

O art. 17 da Constituição parte da premissa que todos os


partidos devem estabelecer, em seus estatutos, suas normas
internas quanto à fidelidade partidária. Ainda assim, embora esse
artigo veja que os partidos políticos devem observar as suas regras
de fidelidade, a Constituição não estabelece uma regra geral.
Ademais, soma-se a esse fato o de que o art. 55, também da CF/88,
que compreende o rol taxativo das causas de perda de mandato do
parlamentar (BARROSO, 2015), não configura como causa a
infidelidade partidária, ou seja, não há uma sanção explícita para
algo que, via de regra, não é a regra geral.
Com a informação extraída desses dois artigos, pode-se
afirmar que a possível troca de partido por parlamentar não deveria
ocasionar nenhuma sanção, pois não só a CF/88 não estabelece um
caminho em que a fidelidade partidária seja a regra, como também
não comina uma sanção a quem o fizer. O próprio ministro Barroso,
em seu voto como relator, não extrai a fundamentação da fidelidade
partidária da CF/88, mas chega à conclusão por sua defesa pela
construção jurisprudencial que a relaciona com a ideia de soberania
popular e na essência do sistema proporcional; já para o sistema
majoritário, como não vê cabimento, não percebe aplicabilidade da
regra. Como afirmado reiteradas vezes em seu voto:

(...) a fidelidade partidária, nos moldes decididos por esta Corte,


somente se justifica no âmbito do sistema proporcional. A sua
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extensão ao sistema majoritário, além de incompatível com a sua


lógica, acaba por violar a soberania popular, pedra de toque da
democracia. Convém esclarecer, preliminarmente, que não há, na
Constituição de 1988, qualquer previsão expressa da “regra da
fidelidade partidária. (...) com efeito, o vínculo entre partido e
mandato é muito mais tênue no sistema majoritário do que no
proporcional, não apenas pela inexistência de transferência de
votos, mas pela circunstância de a votação se centrar muito mais
na figura do candidato do que na do partido. Se a soberania
popular integra o núcleo essencial do princípio democrático, não
se afigura legítimo estender, por construção jurisprudencial, a
regra da fidelidade partidária ao sistema majoritário, por implicar
desvirtuamento da vontade popular vocalizada nas eleições, (...).
Tal medida, sob a justificativa de contribuir para o fortalecimento
dos partidos brasileiros, além de não ser necessariamente idônea
a esse fim, viola a soberania popular, ao retirar os mandatos de
candidatos escolhidos legitimamente por votação majoritária dos
eleitores. (BARROSO, 2015, p. 20-25).

Cumpre indagar a coerência e logicidade dessa construção


jurisprudencial. A sua prerrogativa em prol da soberania popular
não seria uma forma de se atentar contra o jogo eleitoral e assim
intervir nas regras do jogo democrático? Qual o limite da Suprema
Corte para construir ou interpretar a partir de um completo vácuo
deixado pela Constituição a respeito da necessidade de se preservar
fiel ao partido político? Afinal, trata-se de um caso demonstrativo de
ativismo judicial ou de supressão benéfica de lacuna constitucional,
em prol da democracia e de próprio jogo político?

3. O ativismo judicial inconstitucional

Diante de toda explanação acerca (in)fidelidade partidária e os


seus desdobramentos no cenário político, cumpre adentrar no objeto
do presente artigo, qual seja, entender o porquê da decisão do STF,
juntamente com a resolução do TSE, pode se chamar daquilo que se
caracteriza como um ativismo judicial inconstitucional.
Glauco S. Leite; Marina Falcão L. Brito; Matheus Bezerra de M. Lago | 663

Como uma explanação simples, é de se notar que à luz da


teoria da separação dos três poderes, a decisão judicial da fidelidade
partidária extrapolou a esfera do exercício ordinário do Supremo
Tribunal Federal. Isso, pois, tal prerrogativa compete ao Congresso
Nacional e o STF não detém a competência de inovar no sistema
jurídico brasileiro – o que, de fato, fez -, principalmente no que se
refere a perda do mandato parlamentar (SOUSA; CUNHA, 2011)
De tal modo que o ativismo presente na decisão dos Tribunais
Superiores referidos – STF e TSE – se mostrou acima do permitido
pela dogmática jurídico constitucional (SOUSA; CUNHA, 2011) no
momento em que interferiu e modificou as regras do jogo, decidindo
sobre matéria que não é de sua competência originária. Por tal
motivo, pode- -se dizer que a ADI 5.081/DF é um dos episódios mais
simbólicos do ativismo judicial no Brasil (RAMOS, 2010). Logo, na
pratica, a decisão do Supremo legislou, adentrando a competência
do Poder Legislativo, exorbitando a sua própria esfera (COUTINHO,
2017). Essa normatização precisa, necessariamente, passar pela
apreciação do Congresso Nacional para que seja discutida por ambas
as Casas Legislativas. Não cabe ao Poder Judiciário, representado
pelo STF, decidir e influenciar as instâncias políticas – seja ou por
pressão popular ou por pressão política.
Em voto do MS 26.602-3/DF, o Ministro Eros Grau –
contrário à perda de mandato – expressou a sua ideia:

[...] resulta bem nítido o desígnio nutrido pelo impetrante, no


sentido de que o Supremo Tribunal Federal, ratificando
deliberação do Tribunal Superior Eleitoral, exorbite de suas
atribuições. Fazendo-o, estaria a ratificar a criação, por via oblíqua,
de hipótese de perda de mandato parlamentar não prevista no
texto da Constituição. O impetrante pretende faça as vezes, este
Tribunal, de Poder Constituinte derivado, o que se não pode
conceber. (GRAU, 2007).

Aqui, o ativismo judicial se mostra como uma perversão da


judicialização da política, em que o STF, lançando mão da sua
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prerrogativa de guardião da CF/88, exorbita seu poder, decidindo


além do que lhe é permitido. Tal atitude pode ocasionar um
problema no sistema de checks and balances, no qual há um Poder
que extrapola os seus limites.
No caso em tela, é importante salientar que os Tribunais
criaram uma nova hipótese de perda de mandato não antes prevista
constitucionalmente, ou seja, usurparam a função legislativa, com
base em princípios constitucionais e na jurisprudência do STF.
Segundo José Afonso da Silva:

A Constituição não permite a perda de mandato por infidelidade


partidária. Ao contrário, até o veda, quando, no art. 15, declara
vedada a cassação de direitos políticos, só admitidas a perda e a
suspensão deles nos estritos casos indicados no mesmo artigo
(SILVA, 2011, p. 408).

Surge a questão acerca da (in)constitucionalidade de tal


medida tomada pelo STF. Nessa esteira de pensamento, Thales e
Camila surgem com a seguinte hipótese:

Como fica a soberania popular exercida nas urnas, segundo o art.


1o , parágrafo único da CF/88 – ou seja, apesar dos 513 deputados
federais eleitos em 2006, apenas 31 conseguiram se eleger por
conta própria, sendo os demais pelo quociente eleitoral/partidário,
não se pode olvidar que as regras do jogo (Bobbio) eram estas
colocadas no momento da disputa, sendo que a violação por
Resolução do TSE corresponderia a uma lei que, no caso concreto,
deveria respeitar o art. 16 da CF/88, ou seja, ser válida somente
para as próximas eleições, respeitando assim o princípio do rules
of game? (CERQUEIRA; CERQUEIRA, 2008, p. 251).

Segundo esse entendimento, Thales e Camila concordam


acerca da inconstitucionalidade das decisões do STF e TSE sobre a
perda do mandato por infidelidade partidária, isso se dá não só em
razão de usurpar uma função – já tão debatido por nós – mas
também por criar novos ritos processuais e hipóteses de perda de
mandato (NUNES JUNIOR, 2014). Em sua atuação ambos os
Glauco S. Leite; Marina Falcão L. Brito; Matheus Bezerra de M. Lago | 665

tribunais agiram como legisladores positivos (KELSEN), intervindo,


necessariamente, nas regras do jogo democrático. Isso, pois, não
existe até hoje no ordenamento brasileiro constitucional, norma que
preveja a perda do mandato através do cancelamento da filiação
partidária ou da troca de partido político (NUNES JUNIOR, 2014).

Conclusão

Diante das perspectivas analisadas, é de salutar importância


deixar claro que o ativismo judicial quando exercido dentro dos
limites constitucionais é extremamente necessário para a
preservação e funcionamento de um sistema equilibrado onde três
poderes coexistem em harmonia. Entretanto, conforme visto, não
foi o que ocorreu no caso da fidelidade partidária, onde os Tribunais
basearam sua decisão em valores e princípios constitucionais para
criar uma punição, qual seja, a perda do cargo eletivo.
Logo, é possível notar um perfil ativista no Supremo Tribunal
Federal e no Tribunal Superior Eleitoral, a partir do momento em que
disciplinam de forma concreta o instituto da fidelidade partidária no
Brasil. Desse modo, o magistrado passa a ter uma postura mais ativa
ao interpretar a Constituição Federal, onde deixa de ser neutro e se
comporta como um ator político (NUNES JUNIOR, 2014).
Por isso é certo afirmar que o Poder judiciário não deve se
colocar como um Poder acima dos outros dois – Poder legislativo e
Poder executivo –, o seu dever é o de interpretar e aplicar os
preceitos constitucionais da CF/88. E, no caso estudado, caberia ao
Poder Legislativo, por meio do Congresso Nacional, o de disciplinar
mais uma hipótese de perda de cargo eletivo, caso assim desejassem
– transfigurando a vontade majoritária.
666 | Processos Desconstituintes e Democracia no Brasil

Referências
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