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Brasília, Vol. 12, n°96 | Fev/Mai 2010 ISSN 1808-2807 | pp.

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Jurisdição Eleitoral:
Judicialização da política?
João Andrade Neto

Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais.
E-mail: andradeneto.joao@gmail.com

Electoral Jurisdiction:
Judicialization of Politcs?
resumo: O texto proposto adota como campo de estu- abstract: The proposed text adopts as its field of study the
dos o Direito Eleitoral e a Ciência Política. O objetivo é Electoral Law and the Political Science. The purpose is to
demonstrar a inadequação da concepção juspositivista demonstrate that the legal positivist conception does not
para explicar a natureza da jurisdição eleitoral. Parte-se sufficiently succeed in explaining the nature of electoral
da premissa de que as acusações de judicialização da jurisdiction. It is assumed that those who accuse Electoral
política dirigidas contra a Justiça Eleitoral supõem que Justice of committing judicialization of Politics believe that
a atividade jurisdicional deve ser mecânica e que os the jurisdictional activity must be mechanical and that
juízes abusam de seu poder quando proferem decisões judges abuse of their power when they pronounce creative
inovadoras. Por meio da análise de fontes doutrinárias e decisions. By analyzing both doctrinal and jurisprudential
jurisprudenciais, constata-se que o discurso da neu- sources, it is confirmed that the discourse of political neu-
tralidade da decisão judicial, predominante no passado, trality of the judicial decision, predominant in the past, ex-
explica a substituição do sistema eleitoral anterior, de plains the substitution of the previous electoral verification
verificação dos poderes, a cargo do Poder Legislativo, system, in which the Legislative Power was in charge of the
pelo modelo judiciário, a cargo da Justiça Eleitoral. No inspection of the powers of its own members, by the judicial
entanto, esse discurso não oferece legitimação sufici- model, under the Electoral Justice. Nevertheless, it does not
ente para as funções atualmente exercidas pelos juízes offer enough legitimacy to the functions that are nowadays
eleitorais brasileiros, pois o exercício da jurisdição não carried out by the Brazilian electoral judges, because the
é puramente mecânico, desprovido de considerações exercise of jurisdiction is not merely mechanical, deprived of
morais e políticas. Adota-se como marco teórico a con- moral and political considerations. It is taken as a theoreti-
cepção construtiva da natureza da interpretação jurídica, cal benchmark the constructive conception of the nature of
proposta por Dworkin (2007a). judicial interpretation, proposed by Dworkin.

palavras-chave: Justiça Eleitoral, Jurisdição, Judicialização keywords: Electoral Justice. Jurisdiction. Judicialization
da política. of Politics.
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sumário:

1. Judicialização da política: uma denúncia freqüente...................................................................................................................... 109


2. Dois subsistemas de organização eleitoral....................................................................................................................................... 115
3. Justiça Eleitoral: uma opção moralizadora........................................................................................................................................ 117
4. A perspectiva positivista na origem da judicialização................................................................................................................... 120
5. A virada hermenêutica.............................................................................................................................................................................. 123
6. Infidelidade partidária: um caso sintomático................................................................................................................................... 127
7. Referências bibliográficas........................................................................................................................................................................ 131

1> Judicialização da política: uma denúncia frequente

A mixórdia política deve mudar de gênero, mas não de grau. O de-


creto judicial da fidelidade talvez tenha sido uma tentativa de sus-
citar outras mudanças, como a adoção do voto distrital com listas
fechadas de candidatos. Não seria uma solução, mas rima com a
cassação de infiéis. E com judicialização da política. (FREIRE, 2007)

O trecho acima foi publicado pelo colunista Vinicius Torres Freire no


jornal “Folha de São Paulo”, no dia 7 de outubro de 2007. Meses an-
tes, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) afirmara, em resposta a uma
consulta, ser devida a perda do mandato parlamentar de deputados
que deixassem a legenda partidária pela qual se haviam elegido.
Criticando a decisão, o articulista acusava a Justiça Eleitoral de ju-
dicializar a política. Não se trata, porém, de uma denúncia isolada.

Uma rápida consulta ao banco de dados do mesmo periódico revela


que, desde 1997, 32 textos foram escritos sobre o fenômeno da
interferência judicial na esfera política. Obteve-se tal número con-
siderando apenas os artigos que fazem menção direta à expressão
“judicialização da política”. Se forem considerados os textos que
contêm as palavras “judicialização” e “política” independentemente
da ordem em que aparecem no texto, as ocorrências sobem para 48,
desde 1996. De qualquer modo, enquanto a expressão só aparece
em quatro textos da última década do século XX – dois de 1997, um
de 1999 e um de 2000 –, de 2001 a 2009, ela consta de 28 – um
em 2001, três em 2002, um em 2003, três em 2004, dois em 2006,
1>> Pesquisa realizada nos arquivos digitais do sete em 2007, sete em 2008 e quatro em 20091.
jornal Folha de São Paulo. Busca por: “judicial-
ização da política”. Disponível em: <http://search.
folha.com.br/search?q=judicializa%E7%E3o%20 A pesquisa foi realizada nos arquivos da “Folha de São Paulo” dis-
pol%EDtica&site=jornal>. Acesso em: 14 jan. 2010.
poníveis para assinantes, pela internet. Buscaram-se, primeiro, tex-
tos de que constasse a expressão “judicialização da política”, depois,

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as palavras “judicialização” e “política”, neste caso, independente-


mente da ordem, desde que no mesmo artigo. Segundo dados da
Associação Nacional de Jornais (ANJ), a “Folha de São Paulo” foi o
jornal pago de maior circulação nacional, com tiragem superior a
2>> ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS (BRASIL). 300.000 exemplares/dia, em todos os anos, de 2002 a 20082. Como
Maiores jornais do Brasil: Os maiores jornais do Brasil
de circulação paga, por ano. Disponível em: <http://
se trata de um jornal de influência em todo o País, o exame de seus
www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no- arquivos pode servir para sustentar algumas conclusões general-
brasil/maiores-jornais-do-brasil/?searchterm=folha>. izáveis. A primeira delas refere-se ao fato de que a judicialização
Acesso em: 26 mar. 2010.
da política é um fenômeno que vem ganhando especial atenção
midiática desde a década de 90. A segunda conclusão possível é a
de que o interesse por esse assunto tende a ser crescente, embora
episódico. Cada quadriênio apresenta mais registros que o imedi-
atamente anterior. Contudo, agrupando-se os anos em triênios ou
biênios, a intervalos de grande frequência, seguem-se os de baixa.

Uma das hipóteses para explicar tal variabilidade é a de que a


quantidade de ocorrências reage a julgamentos de grande reper-
cussão na esfera pública nacional. O período de maior incidência da
expressão, de 2002 a 2009, responsável por 27 registros, coincide
com o de diversas alterações nas regras da competição político-
partidária promovidas por sucessivas decisões do Supremo Tribunal
Federal (STF) e do TSE. Como observa o cientista político V. Ferraz
Júnior, “Desde 2002, [as duas cortes] vêm interpretando a legislação
eleitoral com um perfil mais arrojado” (FERRAZ JÚNIOR, 2008, p.
18). O autor aponta cinco casos emblemáticos dessa nova atitude
interpretativa: a determinação da verticalização das coligações ma-
joritárias, a fixação do número de vereadores das câmaras munici-
pais, a declaração da inconstitucionalidade da cláusula de desem-
penho partidário, a definição das regras de distribuição dos fundos
partidários e a tipificação da infidelidade partidária:

a) No primeiro caso, da verticalização das coligações, o TSE, a fim


de fortalecer os partidos políticos, determinou que as alian-
ças partidárias formadas nas coligações estaduais majoritárias
correspondessem às firmadas nacionalmente para eleição do
Presidente da República (FERRAZ JÚNIOR, 2008);

b) No segundo caso, do número de vereadores, diante de uma de-


cisão do STF que fixava limites quantitativos para composição
da câmara municipal de uma cidade do interior paulista, a corte
eleitoral editou uma resolução que transformou tais exigências
em regra para todos os municípios do País (FERRAZ JÚNIOR,
2008);

c) No terceiro e no quarto casos, quando o STF, em 2006, “enten-


deu que a cláusula de desempenho era inconstitucional por

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ferir o princípio do multipartidarismo (...), o TSE editou uma


resolução definindo novas regras para a distribuição dos fun-
dos partidários (...)” (FERRAZ JÚNIOR, 2008, p. 18-19); e

d) No quinto episódio, ao examinar uma consulta sobre as conse-


quências do abandono partidário, este tribunal entendeu que
os mandatos proporcionais pertenciam aos partidos, não aos
mandatários. Ao fazê-lo, abriu caminho para que se reivindicas-
sem as vagas abertas por deputados e vereadores que, ao longo
do mandato, houvessem deixado a legenda de origem (FERRAZ
JÚNIOR, 2008).
Nesse sentido, é representativa a recente atuação dessa corte
superior no combate à disseminada prática de troca de par-
tidos a que recorrem os parlamentares brasileiros – denomi-
nada, pela jurisprudência do tribunal, infidelidade partidária.
Em 2007, o então Partido da Frente Liberal (PFL), formulou ao
TSE a consulta nº 1.398, na qual indagava: “Os partidos e co-
ligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema
eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento
de filiação ou de transferência do candidato eleito por um par-
tido para outra legenda?”.

O consulente antepôs à pergunta propriamente dita as seguintes


considerações:

a) A eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado


do quociente eleitoral, apurado entre os diversos partidos e
coligações, nos termos do art. 108 do Código Eleitoral (Lei nº
4.737/65).

b) A filiação partidária é condição constitucional de elegibili-


dade que indica ao eleitor o vínculo político e ideológico dos
candidatos.

c) O cálculo das médias eleitorais decorre do resultado dos votos


3>> Resolução nº 22.526, de 27 mar. 2007. válidos atribuídos a partidos e coligações.3

O Ministro César Asfor Rocha, relator do processo, respondeu posi-


tivamente à pergunta. Afirmou que “os Partidos Políticos e as co-
ligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral
proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação
ou de transferência de candidato eleito por um partido para outra
legenda”. A decisão do tribunal, consubstanciada na Resolução nº
22.256/07, deu-se na forma do voto do relator, por maioria, vencido
4>> Resolução nº 22.526, de 22 mar. 2007. o Ministro Marcelo Ribeiro4.

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Noutras palavras, a resposta à Consulta nº 1.398 estabeleceu como


causa de perda de mandato o abandono do partido pelo qual se
elegera o deputado infiel. A decisão modificou substancialmente a
jurisprudência do TSE. Desde a promulgação da CRF/88, predom-
inava o argumento de que a nova ordem jurídica não previa tal
hipótese de perda de mandato e não havia recepcionado as normas
5>> Acórdão nº 11.075, de 2 abr. 1990. infraconstitucionais que o faziam5. Por maioria, restava consolidada,
“tanto no Supremo, como no TSE, a tese de que, se o parlamento
optou por uma orientação mais liberalizante, permitindo o fluxo
de mandatários entre os partidos, não caberia ao Judiciário assumir
uma postura mais restritiva” (FERRAZ JÚNIOR, 2008, p. 165). Ade-
mais, vinha-se defendendo que os casos de perda de mandato que
não se devessem a fatos ocorridos durante o processo eleitoral, o
qual se encerra com a diplomação dos eleitos, constituíam matéria
atribuída não à Justiça Eleitoral, mas à Justiça Comum.

A Resolução nº 22.256/07 representou, então, notável mudança


de entendimento da mais alta corte eleitoral brasileira. Primeiro,
trouxe para a Justiça especializada matéria tipicamente atribuída
à Justiça Comum. Segundo estabeleceu como causa de perda de
mandato o abandono do partido pelo qual se elegera o deputa-
do. Terceiro, fundamentou-se numa norma que não constitui regra
expressa na CRF/88 nem na legislação. A despeito da relevância
das duas primeiras razões, a terceira conferiu especial importân-
cia àquela sessão. O TSE não só fundamentou seu paradigmático
acórdão em normas com elevado grau de abstração, em detrimento
de regras. Ao fazê-lo, deu nova interpretação a textos legais, definiu
o sentido de dispositivos controversos e afirmou a existência de
princípios constitucionais implícitos, cujo conteúdo se estabeleceu
na mesma oportunidade.

Os seguintes trechos do voto do Relator são suficientemente claros


quanto ao novo paradigma hermenêutico adotado:

Creio que o tempo presente é o da afirmação da prevalência dos


princípios constitucionais sobre as normas de organização dos Par-
tidos Políticos (...).

(...) o julgamento desta Consulta traz à tona a sempre necessária


revisão da chamada teoria estruturalista do Direito (...).

Com efeito, as exigências da teoria jurídica contemporânea buscam


compreender o ordenamento juspositivo na sua feição funcional-
ista (...), no esforço de compreender, sobretudo, as finalidades (te-
leologias) das normas e do próprio ordenamento.

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Ouso afirmar que a teoria funcionalista do Direito evita que o in-


térprete caia na tentação de conhecer o sistema jurídico apenas
pelas suas normas, excluindo-se dele a sua função, empobrecendo-
o quase até a miséria; recuso, portanto, a postura simplificadora do
Direito e penso que a parte mais significativa do fenômeno jurídico
6>> Consulta nº 1.398, de 8 mai. 2007, p. 143, é mesmo a apresentada no quadro axiológico.6
grifo nosso.

Noutra passagem, Rocha acertadamente reconheceu que admitir


que “as normas compreendem as regras e os princípios e, portanto,
[que] estes são também imediatamente fornecedores de soluções
às controvérsias jurídicas (...)” implica atribuir ao Poder Judiciário
uma importância diversa da a ele conferida pela “visão positivista
7>> Consulta nº 1.398, de 8 mai. 2007, grifo nosso. tradicional, certamente equivocada (...)” 7:

Outro ponto relevante que importa frisar é o papel das Cortes de


Justiça no desenvolvimento da tarefa de contribuir para o conhe-
cimento dos aspectos axiológicos do Direito, abandonando-se a
visão positivista tradicional, certamente equivocada, de só consid-
erar dotadas de força normativa as regulações normatizadas; essa
visão, ainda tão arraigada entre nós, deixa de apreender os sentidos
finalísticos do Direito e de certo modo desterra a legitimidade da
8>> Consulta nº 1.398, de 8 mai. 2007, grifo nosso. reflexão judicial para a formação do pensamento jurídico.8 (BRASIL.
Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n.º 1.398, 2007, grifo nosso).

No que interessa a este trabalho, os fundamentos da Resolução n.º


22.256/07 e as razões invocadas no debate que a precedeu são
em si significativos. Eles demonstram a confusão da Justiça Eleito-
ral diante de uma autoproclamada nova hermenêutica, que alega
romper com o modelo anterior, positivista. Revelam a dificuldade
enfrentada por esse ramo judiciário na definição dos limites e, con-
sequentemente, da extensão das funções que tem de desempenhar
num paradigma interpretativo supostamente novo.

Há que se reconhecer que o fenômeno da judicialização da política


não é uma peculiaridade do Brasil, nem está limitado aos órgãos ju-
diciais encarregados do controle das eleições. É preciso admitir que
o Poder Judiciário do País se esforça para acompanhar uma tendên-
cia percebida em boa parte do Ocidente. Nos Estados Unidos da
América, por exemplo, a Suprema Corte decidiu, já na década de 60,
que uma matéria até então reconhecida como tipicamente política,
a ordenação dos distritos eleitorais, sujeitava-se à revisão judicial.
Poucos anos depois, declarou o caráter normativo do princípio da
igualdade de participação democrática, “um homem, um voto”. Então,
por meio dele, operou a reforma de toda a estrutura política norte-
americana (RODRIGUES, 1991). Mais recentemente – em 3/3/09 –,
na Alemanha, a Corte Constitucional reconheceu que a publicidade

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dos atos de controle do processo eleitoral é um princípio do Estado


alemão, e, em obediência a ele, impediu a implantação do sistema
9>> ALEMANHA. Federal Constitutional Court. Judg- eletrônico de votação no país9.
ment of the Second Senate of 3 March 2009. 2
BvC 3/07, 2 BvC 4/07. Disponível em: <http://www.
bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/ Mas, dada a necessidade de restringir o universo de investigação,
rs20090303_2bvc000307en.html>. Acesso em: 13 a Justiça Eleitoral brasileira se mostra um interessante objeto de
set. 2009.
análise. A instituição guarda algumas características que parecem
contribuir para as denúncias de judicialização da política contra
ela dirigidas. Primeiro, porque a própria esfera de disputa político-
partidária e os agentes e condutas nela situados são o objeto das
deliberações judiciais, o que, em si, torna difícil separar a jurisdição
eleitoral da política. Segundo, porque certo ímpeto corretivo das
relações político-partidárias está na origem desse ramo judiciário,
concebido como instância moralizadora da política, a partir de uma
noção positivista de neutralidade judicial.

Tais particularidades devem ser enfrentadas por quem se propõe a


problematizar a proclamada adoção de uma postura hermenêutica
pós-positivista pela Justiça Eleitoral. Interessa-nos a constatação
de que a dificuldade de separação entre jurisdição e política remete
a uma concepção positivista de repartição de poderes. Da mesma
ideia, partem também as frequentes acusações de abuso de poder
formuladas por agentes políticos que se sentem prejudicados pelos
julgados eleitorais. O que os acusadores põem em xeque é a crença
da mecanicidade da decisão judicial e da consequente neutralidade
política do Poder Judiciário. Tal noção, predominante – senão un-
ânime – no passado, foi em muito responsável pela estruturação do
sistema brasileiro de controle da legitimidade das eleições. Dada
a necessidade de garantir a moralidade do processo eleitoral e a
imparcialidade na interpretação de suas regras, desde o Decreto
21.076, de 24/02/32, recepcionado pela Constituição de 1934, a
função de verificação do preenchimento das condições para a posse
do mandato eletivo foi atribuída à Justiça Eleitoral. A criação desse
ramo judiciário especializado representou o abandono do modelo
anterior, que vigorava desde a Carta Imperial de 1824 e encar-
regava o Poder Legislativo, diretamente interessado no resultado
das disputas, da nomeação e da verificação dos poderes de seus
próprios membros.

A mesma perspectiva juspositivista que levou à instituição dos


juízes e tribunais eleitorais ampara hoje quem, sem identificar com
precisão a verdadeira causa de sua perplexidade diante do que
chamam “ativismo judicial”, intui não ser o exercício da jurisdição
puramente mecânico, desprovido de considerações políticas, como
se quer acreditar. Ou seja, tanto o ponto de vista que pretende jus-
tificar a Justiça Eleitoral como o que a critica partem da crença de

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que a atividade do Poder Judiciário é intrinsecamente técnica e


apolítica. Ambos buscam sustentar-se na noção amplamente difun-
dida da neutralidade dos magistrados – qualidade que, afinal, se
exige dos encarregados do controle das eleições.

2> Dois subsistemas de organização eleitoral

Nas modernas democracias, a maneira como se estrutura o


sistema representativo tem consideráveis implicações na ordem
política. Na medida em que os procedimentos são tratados como
fonte de legitimação do regime e das instituições – aceitam-se
os governos, independentemente dos governantes e das decisões
governamentais específicas, porque os aspectos fundamentais da
organização política são considerados legítimos (LEVI In: BOBBIO;
MATTEUCI; PASQUINO, 1998, p. 675-679; LUHMANN, 1980) –, as
técnicas eleitorais adotadas para autorizar os mandatos para exer-
cício do poder se tornam um importante elemento de sustentação
da estrutura política.

Sem sair do contexto da legitimação dos sistemas sociais pelo pro-


cedimento, identificada por Luhmann (1980), e estendendo tal ideia
à esfera política, pode-se afirmar, como fez Ribeiro (2000), que, no
regime democrático contemporâneo, a concepção de legitimidade
do poder governamental envolve duas dimensões anteriores: a da
legitimidade quanto à investidura no mandato e a da legitimidade
quanto ao exercício dele. Essa constatação inicial da existência de
duas dimensões da legitimidade permite o reconhecimento de que
a primeira delas, aquela relativa à investidura no mandato, diz re-
speito aos mecanismos eleitorais adotados por uma comunidade
política para provimento das funções estatais. Qualifica, pois, as
ações que antecedem e autorizam o preenchimento de cargos pú-
blicos eletivos. Já a segunda, a legitimidade quanto ao exercício,
refere-se ao tempo de duração e ao modo como se exerce o man-
dato. Exige, portanto, a manutenção, durante todo o período man-
datício, das condições legitimadoras da função estatal do agente
investido no cargo público eletivo.

Fala-se, aqui, em condições legitimadoras no sentido proposto por


Lucio Levi, de fatores (comportamentos de indivíduos ou grupos)
percebidos como compatíveis ou de acordo com o sistema de cren-
ças da comunidade, e tratados como fundamento ou finalidade das
instituições e critério para julgar se “o agir é orientado para a ma-
nutenção de aspectos básicos da vida política” (LEVI, 1998, p.678).

O primeiro conjunto de instituições e mecanismos, que legitimam

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o sistema representativo em sua dimensão inicial, a da investidura,


pode ser denominado sistema de organização eleitoral e abrange
as técnicas de funcionamento do corpo eletivo e os critérios de dis-
tribuição numérica dos mandatos representativos (RIBEIRO, 2000,
p. 101). Mas não só. Inclui também os órgãos responsáveis pela
verificação do funcionamento do próprio sistema e os instrumentos
de que dispõem para tanto.

Mesmo essa resumida enumeração dos elementos que compõem


a organização eleitoral, dada a natureza diversa dos mecanismos
mencionados, parece deixar claro que integram o sistema pelo me-
nos dois subsistemas: um, propriamente eletivo, e outro, de controle.

O subsistema político propriamente eletivo diz respeito às condi-


ções em que a representação é autorizada. Compõe-se pelo pró-
prio processo eleitoral de investidura no mandato, precedida, entre
outras fases, da campanha de convencimento do eleitorado e da
votação, e pelas instituições, grupos e pessoas que o conduzem ou
dele participam. Abrange o que as ciências políticas comumente
definem como sistema eleitoral – segundo Emanuele Marotta, os
“procedimentos institucionalizados para atribuição de encargos por
parte dos membros de uma organização ou de alguns deles (...)”
(MAROTTA, 1998, p. ������������������������������������������
1174-1179). Por meio do principal mecanis-
mo desse subsistema, as eleições, opera-se “a redução do ‘mais’ das
massas ao ‘menos’ das elites de Governo (...).” (MAROTTA, 1998, p.
1175-1776).

Já as instituições estatais envolvidas na solução de conflitos sur-


gidos no interior do subsistema eletivo, e encarregadas, em caso
de descumprimento, da aplicação forçada das regras fixadas para
a condução do processo eleitoral – ou seja, as instituições que de-
finem, em última análise, os casos de obediência e desobediência
a tais regras, e qualificam os agentes políticos como infratores ou
não – e as práticas que elas institucionalizam constituem um sub-
sistema político de verificação, a que se dá o nome de (sub) sistema
de controle da legitimidade das eleições (RIBEIRO, 2000).

No caso do Brasil, pelo menos desde a República, os elementos que


compõem o subsistema propriamente eletivo têm variado muito his-
toricamente. Apenas para ilustrar a profundidade das mudanças ocor-
ridas em pouco mais de um século, lembramos que, sob a vigência da
Constituição de 1891, somente cidadãos maiores de 21 anos podiam
votar, excluídos expressamente, entre outros, os mendigos, os analfa-
10>> Constituição da República dos Estados Unidos betos e os religiosos sujeitos a voto de obediência10. A Constituição de
do Brasil, de 24 fev. 1891.
1988, diferentemente, tornou o voto obrigatório para maiores de 18 e
facultativo para maiores de 16. Além disso, acabou com a restrição ao

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sufrágio de mendigos, religiosos e analfabetos. Mais especificamente,


em relação a estes últimos, o alistamento e o voto se fizeram fac-
11>> Constituição da República Federativa do Brasil, ultativos11. Ressalte-se que, mesmo durante a vigência da atual Con-
de 5 out. 1988.
stituição, as regras eletivas sofreram sensível modificação com a in-
trodução, pela Emenda Constitucional nº 16, de 1997, da possibilidade
12>> Emenda Constitucional nº 16, de 4 jun. 1997. de reeleição dos ocupantes de cargos majoritários12. E, se no momento
a opinião pública e os órgãos legiferantes debatem a realização de
uma reforma política, até onde se pode apreender, as propostas alter-
ariam principalmente os institutos desse subsistema.

Em situação oposta, constatamos que a estrutura do sistema de con-


trole da legitimidade das eleições tem permanecido mais ou menos
estável desde a criação da Justiça Eleitoral, em 1932.

3> Justiça Eleitoral: uma opção moralizadora

A normal apuração da votação popular nas democracias representa-


tivas modernas é assegurada por sistemas de controle do processo
eleitoral, também denominados sistemas de controle da legitimi-
dade das eleições. A ciência política reconhece três modelos básicos
de mecanismos para exercício dessa atividade: o de verificação dos
poderes, o misto e o judicial. Eles diferenciam-se, essencialmente,
devido ao Poder estatal ao qual se atribui a função controladora e
à natureza que ela adquire em razão dessa atribuição. O primeiro e
o último modelo foram adotados no Brasil em períodos históricos
diversos. Entender as razões para tanto é essencial para estabelecer
a influência da perspectiva juspositivista na estruturação da Justiça
Eleitoral brasileira.

O primeiro sistema moderno, o da verificação dos poderes, atribui


a órgãos legislativos a prerrogativa de atuar como juiz da elegi-
bilidade e da regularidade da eleição dos próprios membros. Sur-
gido historicamente na Inglaterra do século XVII, esse modelo re-
conhecia à Câmara dos Comuns a função de controle das eleições,
e assim a resguardava do despotismo dos príncipes. Em todas as
comunidades políticas, as razões para a adoção de tal sistema “Não
foram outras (...), senão de preservar também das ingerências e das
pressões do governo” (RIBEIRO, 2000, p. 152). Pois, em princípio,
o controle das eleições cabia ao monarca. Por meio da assunção
do controle sobre a regularidade da eleição e a elegibilidade dos
membros do parlamento, antes “prerrogativa régia”, o Legislativo
pôde “firmar a sua independência funcional do Executivo” (RIBEIRO,
2000, p. 152). Todavia, se o sistema da verificação dos poderes sur-
giu para tornar possível a autonomia das assembléias representati-
vas, preservando-as da interferência executiva, ele logo se revelou

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institucionalmente inadequado para o cumprimento satisfatório de


tal função (RIBEIRO, 2000, p. 165).

No País, não foi diferente. A Carta Imperial de 1824 se filiou a esse


sistema, com a finalidade de evitar que “o ministério ou facções”
pudessem “abusar, violentar as eleições, e impor à Câmara criatu-
ras suas a despeito dos direitos do País, e das liberdades de sua
representação nacional” (BUENO, 1857, p. 128). Mesmo após a
proclamação da República, o modelo foi mantido pela Constituição
de 1891. Todavia, a própria manutenção desse controle legislativo
possibilitou a degeneração do processo democrático da República
Velha. As eleições do período foram marcadas por deformações dos
tipos mais variados, cometidas “por coações aos grupos votantes,
por falsificações dos votos, por depuração facciosa dos eleitores”
(RIBEIRO, 2000, p. 153). Tais deformações acabavam por comprom-
eter a legitimidade dos investidos nos mandatos governamentais.

A atribuição do controle das eleições a um órgão judiciário se deu


justamente para evitar os frequentes abusos do sistema de verifi-
cação dos poderes, a que faltava neutralidade. A origem da Justiça
Eleitoral, criada em 1932, remete à degeneração do modelo políti-
co que predominava anteriormente, inerentemente sujeito a uso
e manipulação despótica pelos grupos politicamente dominantes.
O desenvolvimento das instituições políticas levou ao reconheci-
mento da impossibilidade de que os parlamentares dirimissem com
padrões igualitários as controvérsias nas quais eram os principais
interessados (RIBEIRO, 2000, p. 156). O sistema de verificação dos
poderes não se mostrou capaz de, por si, afastar o risco de que, “com
vistas às eleições e votações do período eleitoral subseqüente, um
partido majoritário decide [decidisse] as diretrizes eleitorais legais
em seu próprio benefício e em detrimento de seu concorrente na
política interna” (SCHIMITT, 2007, p. 37). Desde o princípio, por-
tanto, “A neutralidade desse órgão [de controle da legitimidade] nas
disputas que se travam entre as diversas correntes de opinião é
requisito essencial para a segurança dos resultados da operação
eleitoral” (RIBEIRO, 2000, p. 156).

Como observado por Schmitt (2007, p. 29-30) e Luhmann (1980,


p. 146-147, 160-161), um sistema representativo que conte com
eleições periódicas tem necessariamente de garantir a constância
de repetição do poder mediante a igualdade de chances de obter
maioria. Sem tal garantia, logo após a primeira obtenção do poder,
o próprio sistema perde a legitimidade, que depende da regular al-
ternância dos representantes (mandatários). Pois a maioria inicial
poderia instalar-se como permanente, fechando atrás de si a porta
pela qual entrou. Ainda que não o faça voluntariamente, recairá

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sobre ela, em decisões sobre as quais não houver suficiente con-


senso, a suspeita de utilização dos instrumentos legais em benefício
próprio. Não dificilmente, os juízos de legitimidade formulados pela
minoria que almeja a hegemonia estatal condenarão as opiniões do
partido antagônico. Acusá-lo-ão de cometer abusos e ilegalidades
(SCHMITT, 2007b, p. 35). Nesse contexto, as situações de conflito
entre maioria e minoria caminharão para o impasse, um momento
crítico do qual o resultado é “um estado de coisas desprovido de
legalidade e de Constituição” (SCHMITT, 2007b, p. 36). Torna-se
necessário, pois, incluir na disputa um terceiro elemento imparcial,
que, “(...), no caso de conflito, elimina [elimine] e decide [decida]
dúvidas ou incompatibilidades de opiniões” (SCHMITT, 2007b, p. 35).

A busca desse terceiro elemento imparcial desencadeou a transição


do sistema de verificação de poderes para o judicial. Não parecia
suficiente a atribuição do método jurisdicional a um órgão colegiado
de composição política ou mista. O controle deveria ser exercido
na própria esfera judiciária, para garantia de imparcialidade. Não
apenas porque os magistrados se submetem a garantias e vedações,
que incluem a proibição de envolvimento em atividades partidárias,
mas também porque se sujeitam a regras processuais rígidas, que
incluem causas impeditivas e de suspeição da função judicante
(RIBEIRO, 2000, p. 156). O anseio não era tanto por uma instância
judicial, mas por um julgador independente e neutro. A seguinte ob-
servação de Schmitt, embora feita em outro contexto, quando trata
da questão da guarda da Constituição, aplica-se aqui sem ressalvas:
utilizou-se do caráter judicial como o meio mais seguro de uma in-
dependência garantida institucionalmente (SCHMITT, 2007a, p. 225)

A imparcialidade institucional da Justiça Eleitoral – característica


muito distinta da pretensa despolitização de seus membros –, é,
em parte, garantida por uma série de elementos formais, típicos do
Poder Judiciário como um todo – a vitaliciedade dos magistrados,
por exemplo – ou específicos, como a periodicidade bienal das fun-
ções judicantes eleitorais. No que diz respeito às garantias típicas
de toda a magistratura, a independência judicial difere da de outros
agentes estatais, tanto dos demais funcionários de carreira, quanto
dos parlamentares (SCHIMITT, 2007, p. 225). Em relação a estes,
não se reduz à independência perante instruções de outra institui-
ção que atinjam o exercício da atividade judicial (SCHMITT, 2007a,
p. 225). Em comparação àqueles, é reforçada: “os juízes (...), contra
sua vontade, só podem ser permanente ou temporariamente exo-
nerados do cargo, transferidos ou aposentados por força de decisão
judicial e pelos motivos e sob as formas que a lei determina (...)”
(SCHMITT, 2007a, p. 224). A vitaliciedade aparece como “elemento
constitucional de estática e permanência (...)” (SCHMITT, 2007a, p.

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219) da instituição e “posição juridicamente protegida” (SCHMITT,


2007a, p. 223) de seus membros. O juiz, que “não pode ser destituí-
do ou demitido à discrição, é retirado do conflito dos antagonismos
econômicos e sociais. Ele se torna ‘independente’ e, por isso, está
em condições de ser neutro e imparcial (...)” (SCHMITT, 2007a, p.
223). Pode aplicar, com alguma segurança e, tanto quanto possível,
sem interferências externas, critérios públicos de julgamento, base-
ados em normas gerais reconhecidamente válidas.

Afinal, o verdadeiro objetivo da atribuição ao Poder Judiciário da


tarefa de controle da legitimidade das eleições – com o conse-
quente reconhecimento da dupla natureza judicial e jurisdicional
da atividade de verificação eletiva –, reside na possibilidade de a
tensão causada pela disputa de forças entre grupos políticos opos-
tos ser pacificada pela objetividade do julgamento baseado numa
norma reconhecida. “É a vinculação à lei (que contém vinculações
materiais) que possibilita a objetividade e, com isso, uma espécie
de neutralidade, assim como a relativa autonomia do juiz perante a
outra vontade estatal (...) (SCHMITT,
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2007a, p. 166).” ��������������
Essa neutrali-
dade leva a uma decisão – política, certamente, na medida em que
“toda área imaginável de atividade humana é (...) política e se torna
imediatamente política quando os conflitos e questões decisivas se
passam nessa área (...)” (SCHMITT, 2007a, p. 160, grifo do autor) –,
mas não político-partidária.

4> A perspectiva positivista na origem da judicialização

Ao falar em imparcialidade judicial, deve-se ter em mente a não


participação direta na esfera de disputa política pelo poder; nunca,
a ausência de ideologia ou valoração. Pois, como observou Carl Sch-
mitt (2007b, p. 28), a neutralidade política, a absoluta indiferença
quanto à matéria da deliberação, não é possível. Na medida em que
está inserido no contexto social de relações entre governantes e
governados, o juiz, como todos os demais membros da comunidade,
formula concepções próprias da moralidade pública. Concebe, por
exemplo, como tais relações poderiam ser mais justas. É inevitável
que, em certa medida, uma sentença reflita essas concepções. Nesse
sentido, qualquer decisão é política. Por neutralidade, entende-se,
portanto, “apenas a eliminação de um determinado tipo de política,
a saber, da política partidária (...)” (SCHMITT, 2007a, p. 160).

Contudo, a neutralidade imaginada para o Poder Judiciário adquire


muito comumente outros sentidos, que variam do instrumental,
como se a Justiça institucionalizada fosse “um recurso técnico que
deve funcionar com objetiva calculabilidade e dar a todos a igual

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chance de uso (...)” (SCHMITT, 2007a, p. 163), ao baseado num re-


conhecimento experto, não egoísta nem interessado, típico de um
parecerista ou perito que, além de não ser expoente dos grupos em
disputa, não é afetado pela decisão em si (SCHMITT, 2007a, p. 166-
167). Nos dois casos, percebe-se a errônea identificação de neu-
tralidade com absoluta despolitização (fuga do político). Todavia,
embora o erro de pressuposto seja facilmente notado nestas duas
concepções, mais extremas, ele assombra também a primeira, que
diferencia a natureza política inerente a toda manifestação estatal
daquela típica da atuação político-partidária.

Comumente, as afirmações acerca do caráter suprapolítico (não so-


mente suprapartidário) da atividade jurisdicional pressupõem uma
interpretação do que são o Direito e as instituições jurídicas típica
dos teóricos do positivismo. A expressão positivismo jurídico des-
igna uma corrente do pensamento da Modernidade, um conjunto
de doutrinadores e doutrinas que, estritamente considerados, com-
partilham uma teoria que reduz todo o Direito ao Direito positivo.
Além desse aspecto descritivo, compartilham também, embora nem
sempre admitam, uma ideologia que propõe o que o Direito deveria
ser. No que diz respeito à natureza da jurisdição, as correntes ju-
rídico-doutrinárias reconhecidas como positivistas incorporaram a
ideia, predominante entre os séculos XVIII e XIX, de que a atividade
do Poder Judiciário é intrinsecamente técnica, neutra e apolítica
(BOBBIO, 2006).

“O positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe


outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 2006, p. 26, grifos do autor).
Por obra dessa corrente, “o direito positivo passa a ser considerado
como direito em sentido próprio” (BOBBIO, 2006, p. 26). Essa con-
cepção repercute necessariamente no modo como se encara o ofício
do juiz. Nas formas pré-modernas de organização política, o Direito
não era, ao menos majoritariamente, estatal. O julgador, ao dirimir
controvérsias entre os particulares, “não estava vinculado a escolher
exclusivamente normas emanadas do órgão legislativo do Estado”
(BOBBIO, 2006, p. 28). Na Modernidade, ao contrário, o juiz se torna
órgão estatal, um autêntico funcionário público, titular de um Pod-
er, o Judiciário, e, em certa medida, “subordinado ao legislativo (...)”
(BOBBIO, 2006, p. 28), uma vez que ao julgador se impõe a observân-
cia exclusiva das regras positivas, legisladas pelo órgão competente.

A suposição do diferente papel do legislador e do juiz encontra jus-


tificação filosófica na doutrina da separação dos Poderes, “o funda-
mento ideológico da estrutura do Estado moderno (...)” (BOBBIO,
2006, p. 79). Uma vez que se atribuíram a órgãos diversos as três
funções fundamentais do Estado, legislativa, executiva e judiciária,

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“o juiz não podia criar o direito, caso contrário invadiria a esfera


de competência do poder legislativo, mas devia, de acordo com a
imagem de Montesquieu, ser somente a boca através da qual fala a
lei (...)” (BOBBIO, 2006, p. 79). A jurisprudência, a atividade de con-
hecimento e aplicação do Direito, adquire então, sob a perspectiva
do positivismo, natureza estritamente cognoscitiva. Na medida em
que não se volta para a produção normativa, deve ater-se à “ex-
plicitar com meios puramente lógico-racionais o conteúdo de nor-
mas jurídicas já dadas” (BOBBIO, 2006, p. 212). Noutras palavras, é
vista como “atividade puramente declarativa ou reprodutiva de um
direito preexistente (...)”. A finalidade a ela atribuída reduz-se ao
“reconhecimento puramente passivo e contemplativo de um objeto
já dado (...)” (BOBBIO, 2006, p. 211).

Importa destacar que o positivismo não nega a possibilidade de


formular um juízo de valor sobre o Direito e as instituições jurídicas.
Em verdade, ele afasta tal juízo do campo do conhecimento jurídi-
co (BOBBIO, 2006, p. 137). A partir dessa premissa, os positivistas
formulam concepções supostamente avalorativas do Direito, com-
preendem-no como ordenamento racional da sociedade, nascido
“somente de normas gerais e inerentes postas pelo poder soberano
(...)” (BOBBIO, 2006, p. 120).

Do racionalismo, decorreu uma teoria da interpretação que Bob-


bio (2006, p. 133) denomina “mecanicista”. Sob a alegação de que
descreve o exercício da jurisdição como ele ocorre, o mecanicis-
mo defende que prevaleça, na atividade do juiz, a declaração, em
prejuízo da produção ou da criação do Direito. A radicalização desse
pensamento levou um autor como Beccaria (2005) a propor a teoria
do silogismo: o juiz, ao aplicar as leis, deve fazê-lo como se deduz-
isse a conclusão de um silogismo. Assim considerada, a atividade
jurisdicional não inova, apenas torna explícito o que se encontrava
implícito na premissa maior, a lei. Para atender à exigência de se-
gurança jurídica e garantir a certeza do Direito, o jurista renuncia
à “toda contribuição criativa na interpretação da lei (...)” e se limita
a explicitar, “através de um procedimento lógico (...), aquilo que já
está implicitamente estabelecido (...)” (BOBBIO, 2006, p. 80).

A concepção mecanicista da função jurisdicional foi suficiente para


que as decisões judiciais, mesmo as que têm por objeto a disputa
político-partidária, fossem reconhecidas como legítimas (ou, ao
menos, assim toleradas). Tamanha fora a difusão da ideia, que, du-
rante mais de um século, as investigações acerca do real sentido da
neutralidade judicial promovidas por juristas e cientistas políticos
pouco avançaram. Limitaram-se a aperfeiçoar aspectos secundários
da doutrina, criando variações da teoria, sem alterar-lhe o essen-

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cial. Tomado como dado apriorístico, o mecanicismo tornava in-


sustentável qualquer crítica ao papel do aplicador do Direito. Pois,
se a atividade jurisdicional é inegavel e intrinsecamente objetiva
– como defende a versão mais extrema da teoria –, a mera acusação
de que um magistrado julgara com base em preferências políticas
implicava não uma denúncia contra um caso de abuso de poder
jurisdicional, mas uma ameaça a todo o sistema jurídico.

Ocorre que a concepção mecanicista não pode mais ser tomada


como elemento de justificação da instituição judiciária e de suas
ações. Uma das últimas variações da teoria positivista, o formal-
ismo, alcançou o ponto mais alto com o normativismo de Kelsen. A
polêmica desse autor com Schmitt, na década de 30, “constitui um
dos momentos decisivos da reação que o formalismo provoca na
Alemanha, produzindo um divisor de águas na teoria do século XX”
(BONAVIDES, 2008, p. 171). O exame mais detido da argumentação
positivista revelou que grande parte das conclusões da teoria são, na
verdade, proposições disfarçadas. Exprimem um dever ser quando
parecem ser descritivas. Ademais, partem de uma constatação falsa:
a racionalidade do homem e da comunidade política. Pressupõem
que o indivíduo encarregado da aplicação jurídica sempre age ra-
cionalmente, quando, na verdade, esperam que ele o faça. Tomam
a suposição como fato, de forma que, em vez de propor condições
para evitar que comandos jurídicos nasçam de decisões individuais
e ocasionais, negam que tais abusos aconteçam, “porque então (...)
seria capricho e arbítrio (...)”, não, Direito (BOBBIO, 2006, p. 120).

Hodiernamente, as ciências políticas e jurídicas reconhecem aber-


tamente o caráter político, decisionista (SCHMITT, 2007a, p. 67) e
criativo (DWORKIN, 2007), de toda sentença ou acórdão, indepen-
dentemente da atitude ativista dos magistrados que os proferem.
Pensadores que, para contrariar esse fato, apelem hoje para noções
positivistas como a da teoria do silogismo, por exemplo, serão por
certo acusados de ingenuidade. Essa mudança acerca da compreen-
são da natureza da atividade jurisdicional é inseparável do desen-
volvimento do novo paradigma hermenêutico que afirma a norma-
tividade dos princípios constitucionais.

5> A virada hermenêutica

A falácia da doutrina positivista que vê na interpretação praticada


pelo juiz um silogismo puramente lógico, a dedução a partir da lei
de uma resposta única e necessária ao caso concreto, pode ser per-
cebida sem muito esforço se atentar para o que ocorre nos órgãos
judiciais colegiados. Não raramente, existe entre os membros da

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corte um sincero desacordo a respeito de uma decisão. “A consta-


tação de que vários depositários do ‘papel judiciário’ reunidos num
mesmo colégio para julgar uma mesma disputa possam tirar, do
complexo das normas e dos precedentes, motivações para duas ou
mais decisões diferentes, e às vezes em nítido contraste, (...)” talvez
não ameace “os fundamentos da confiança pública na função judi-
ciária”, mas certamente joga por terra a concepção exclusivamente
objetiva da atividade jurisdicional.

Admitir que o exercício da jurisdição não é uma atividade isenta


de considerações subjetivas acerca da realidade significa reconhe-
cer que a decisão judicial contém elementos da visão política do
juiz que a profere. Independentemente da clareza do texto legal,
“em toda decisão, mesmo na de um tribunal que decide um pro-
cesso subsumindo de maneira correspondente ao tipo, reside um
elemento de pura decisão que não pode ser derivado do conteúdo
da norma” (SCHMITT, 2007a, p. 67). Aqui se revela a insuficiência do
formalismo positivista aplicado à interpretação do Direito. Ele se
esforça para reduzir a hermenêutica à elaboração de conceitos jurí-
dicos abstratos, deduzidos e depois aplicados com base numa ope-
ração puramente lógica. Mas, ao fazê-lo, pressupõe que a aplicação
das leis pelo magistrado encontra limites inerentes à posição dos ju-
ízes (as garantias e vedações judiciais de imparcialidade) e à própria
atividade jurisdicional (o dever de fundamentá-la juridicamente).

Sobre os limites institucionais decorrentes do status de juiz, já foi


dito que eles garantem ao julgador uma posição especial, de ter-
ceiro desinteressado, nos processos judiciais. Se a matéria dos jul-
gamentos é eleitoral, como no caso sob análise, a imparcialidade
só pode ser assegurada se o decisor se mantiver fora da esfera de
disputa político-partidária. Ainda assim, embora as garantias e ve-
dações institucionais impeçam, tanto quanto possível, a postura ju-
diciária deliberadamente ativa em favor de determinado partido ou
facção, elas não previnem contra o julgamento político. Para tanto,
os Estados modernos exigem a motivação jurídica da decisão: “o
órgão que toma uma decisão judiciária é obrigado a justificá-la ra-
cionalmente de modo muito mais rigoroso do que, habitualmente,
qualquer órgão administrativo” (BOBBIO et. al., 1998, p. 1161).

Sabe-se que, “Na prática, (...) isto é um dever apenas aparente: é um


fato indiscutível para estudiosos e reconhecido por muitos juízes
(...) que antes se toma a decisão que resolve a contenda e, depois,
se dá a razão” (BOBBIO et. al., 1998, p. 1161). Ademais, “dada a
variedade das normas e o grande arsenal de técnicas argumentati-
vas (...), não é difícil motivar decisões, mesmo amplamente diversas
sobre o mesmo objeto” (BOBBIO et. al., 1998, p. 1161). Ainda assim,

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a motivação jurídica constitui um importante freio ao decisionis-


mo e à criatividade judicial – em especial se considerado o novo
paradigma hermenêutico, que reconhece abertamente a força nor-
mativa dos princípios constitucionais. Ao expor sentenças e acór-
dãos à crítica e à revisão, a motivação limita as chances de que eles
se politizem de modo deliberado, o que permitiria aos julgadores
exercer o papel de atores, e não árbitros, da competição partidária.
Mesmo quando os juízes inovam, seja porque a norma tem de ser
interpretada na aplicação, seja porque não há regra expressa a ser
aplicada, eles se subordinam à exigência de aplicar o Direito, não as
opções políticas pessoais. (DWORKIN, 2007, p. 129). Por óbvio, para
dizer o que o Direito é, o magistrado partirá da própria perspectiva.
Ele necessariamente adaptará os critérios de julgamento publica-
mente reconhecidos à concepção política que particularmente ado-
ta. Contudo, tanto quanto o fizer, terá de simultaneamente adequar
sua ideia particular de justiça àqueles critérios públicos, sob pena
de ser desacreditado e, em algumas situações, ter os argumentos
revistos ou anulados.

Além de impor o uso de padrões públicos, não privados, de julga-


mento, o dever de fundamentar juridicamente torna efetiva a im-
portante restrição institucional de que, ao decidir, os juízes apelem
somente a direitos e deveres previstos em normas. Inicialmente,
não interessa se por normas se entendem apenas regras, como quer
o positivismo, ou regras e princípios, segundo a nova hermenêutica.
Importa somente que seja vedado o apelo a argumentos de políti-
ca. Frequentemente ignorada, a distinção entre normas e objetivos
políticos é aqui essencial. Enquanto “Os argumentos de política jus-
tificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou
protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo”, as
normas “justificam uma decisão política, mostrando que a decisão
respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo”
(DWORKIN, 2007b, p. 129).

Não subsiste, contudo, nenhuma diferença entre os institutos que


seja intrínseca, ou emane da natureza deles. Um argumento será
político se não jurídico, e vice-versa, de modo que a matéria que
hoje é objeto de deliberação partidária pode vir a ser normatizada,
e fundamentar a decisão judicial.

O problema da difícil distinção entre esferas não políticas, tradi-


cionalmente sujeitas ao controle jurisdicional, e políticas, a ele não
submetidas, se resolve, então, pela negação. Compete ao “poder le-
gislativo aderir a argumentos de política e adotar programas gera-
dos por tais argumentos” (DWORKIN, 2007b, p. 130). Aos tribunais,
cabe justificar as decisões por meio de regras e princípios, “mes-

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mo que a lei em si tenha sido gerada por uma política” (DWORKIN,


2007b, p. 131). De outra forma, não se pode entender “a proibição –
importantíssima, mesmo que a maioria das vezes não esteja escrita
por ser auto-imposta pelos órgãos judiciários – de decidir ‘questões
políticas’, ou seja, pertencentes à organização do sistema político”
(BOBBIO et. al., 1998, p. 1162). Do ��������������������������������
Poder Judiciário não se espe-
ra (ou não se deveria esperar) que relegue a outro órgão o exame
de questões da esfera político-partidária que tenham impacto em
direitos e deveres. Cobra-se, apenas, que, ao decidi-las, não o faça
com base em argumentos de política. Assim se evita cair na arma-
dilha de, para diferenciar política e Direito, partir “da falsa noção do
século XIX liberal de que seria possível separar uma área especial
de ‘política’ de outras matérias como economia, religião e direito”
(SCHMITT, 2007a, p. 161). Afinal, “Tudo o que, de alguma forma, for
de interesse público, é de alguma forma político e nada do que diz
respeito essencialmente ao Estado pode ser despolitizado” (SCH-
MITT, 2007a, p. 160).

O reconhecimento público desse limite adicional à jurisdição, a


vedação do apelo aos argumentos de política, juntamente com o
consenso acerca dos limites inerentes ao cargo de juiz e à atividade
jurisdicional, contribui para restringir as possibilidades de ativismo,
no sentido de uma intervenção judicial deliberadamente partidária
na esfera política. Mas a eficácia desses mecanismos é restrita, e
ainda menor se são aplicados a partir de uma perspectiva formal-
positivista da jurisdição. Pois eles não retiram o caráter político das
sentenças e acórdãos, que necessariamente refletem as concepções
morais e políticas mais amplas do julgador. Ao contrário, pressu-
põem esse caráter. A concepção positivista, não. Ela o nega e, ao
fazê-lo, torna os limites imprestáveis para coibir os abusos onde
eles realmente acontecem.

O positivismo não pode limitar a atitude decisionista, vez que nem a


reconhece. Isso deixa o juiz livre para apelar a qualquer fundamento
político para embasar a decisão, seja tal argumento público ou não.
As distorções, na maioria dos casos, em que há regras claras a ditar
a conclusão, não são perceptíveis ou podem ser facilmente reforma-
das pelas instâncias jurisdicionais superiores. No entanto, em situa-
ções mais complexas, nas quais não há uma regra expressa a aplicar,
e os tribunais, autorizados pela nova hermenêutica, têm de apelar a
princípios, a ausência de freios pode se revelar preocupante.

Nesse caso, o alerta de Schmitt (2007) acerca dos riscos da ativi-


dade judicial de controle de constitucionalidade parece servir per-
feitamente para o controle judicial das eleições – dado o caráter
político não reconhecido de ambos: “é por demais fácil entender

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que se acredita ter despolitizado todos os conflitos (...) quando a


decisão é conferida a um colegiado de juízes funcionários públicos.
Mas, nunca é demais lembrar, constitui-se (...) um mal-entendido e
um modo de falar ilusório, se não enganoso, sugerir (...) que a incô-
moda responsabilidade e o risco do político pudessem [possam] ser
evitados e exterminados (...)” (SCHMITT, 2007a, p. 160).

6> Infidelidade partidária: um caso sintomático

A despeito da notória recusa da Justiça Eleitoral brasileira em ad-


mitir o caráter essencialmente político de sua atividade – o que
poderia contribuir para a formulação de mecanismos reais de con-
trole da isenção das funções que exerce –, o impacto da participação
dos órgãos judiciários eleitorais na conformação do cenário políti-
co-partidário nacional é crescente. E o é, em grande parte, devido
à nova postura interpretativa que os juízes alegam adotar. As mais
recentes sentenças e acórdãos, especialmente os do TSE, parecem
rechaçar a perspectiva positivista da jurisdição. Os ministros, em
seus votos, frequentemente apelam ao aspecto axiológico da nova
hermenêutica, que reconhece o caráter normativo dos princípios.

Todavia, uma leitura mais detida revela que o apelo principiológico


aparece na jurisprudência, muito frequentemente, de forma super-
ficial. O reconhecimento do caráter normativo dos princípios pelas
doutrinas pós-positivistas foi acompanhado da formulação de re-
gras de interpretação que limitam ou, ao menos, expõem à critica
o decisionismo judicial. Se é certo que os métodos variam de autor
para autor, conforme as exigências de coerência do sistema sobre
o qual será aplicado, é correto também ser impensável a ausên-
cia de critérios de aplicação. Afinal, como não se concebem nor-
mas isoladas, mas um ordenamento em que elas interagem entre si,
faz-se necessário, ao menos, explicar como ocorrem tais interações.
Pode-se citar como exemplo a teoria de Alexy, reconhecidamente
um expoente da nova hermenêutica. Ele concebe um complexo
sistema de sopesamentos que não pode ser separado da noção
de princípios por ele proposta (ALEXY, 2008). Não se nota, nem de
longe, semelhante esforço de sistematização nos recentes acórdãos
da Justiça Eleitoral.

Por óbvio, essa breve exposição das relações entre o modo como se
estrutura a Justiça Eleitoral e a perspectiva positivista da natureza
da jurisdição dependeu de uma definição simplificada do positiv-
ismo jurídico. A teoria que chamamos de juspositivista tradicional
é a de que os juízes não criam Direito de modo algum. Apenas re-
tiram o envoltório e expõem a lei aos olhos de todos. Embora não

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encontremos aceitação para essa concepção nem em Kelsen nem


em Bobbio, dois dos autores cuja definição de positivismo jurídico
muito influenciou a formação dos juristas brasileiros, e ainda que,
segundo Cardozo (2004, p. 91), “ninguém, desde os tempos de Ben-
tham e Austin, tenha aceito essa teoria sem dedução ou reserva”,
observamos, “em decisões atuais, vestígios de sua prolongada in-
fluência” (CARDOZO, 2004, p. 91).

Um dos aspectos mais perversos da perspectiva positivista pode


ser observado na recente jurisprudência do TSE. Esse tribunal, que
declaradamente se esforça para romper o paradigma hermenêutico
anterior, na verdade, tem, na visão de muitos, conservado o pior dele
– e exatamente nas oportunidades em que se dispõe a não o fazer.
Diante de um autoproclamado novo modelo interpretativo, que
alega ter superado o positivista, aquela corte se mostra confusa em
relação aos limites – e, consequentemente, à extensão – do papel
que tem de desempenhar. Incapaz de situar-se adequadamente, o
tribunal atrai para si acusações de que age irregularmente quando
judicializa a disputa político-partidária. O julgamento da Consulta
n.º 1.398, que fixou o novo entendimento da corte acerca da infi-
delidade partidária, é aqui sintomático. Em seu voto, o relator re-
conheceu que admitir que “as normas compreendem as regras e os
princípios e, portanto, [que] estes são também imediatamente for-
necedores de soluções às controvérsias jurídicas (...)” implica atri-
buir ao Poder Judiciário uma importância diversa da a ele conferida
13>> Resolução nº 22.526, de 27 mar. 2007. pela “visão positivista tradicional”.13 Naquela oportunidade, porém,
não se esclareceu qual é essa nova importância.

A linha de argumentação majoritária encontrou oposição somente


no Ministro José Delgado, a quem causou “estranheza o fato de a
Constituição estar prestes a completar dezenove anos (...)” e aquela
“ser a primeira vez que se proclama [proclamou] que há a aludida
perda de mandato. Ou seja, demorou-se um pouco para se perceber
14>> Resolução nº 22.526, de 27 mar. 2007. esse princípio.”14 Para o Ministro, que afirmou não desconhecer a
existência de princípios implícitos, “Não há norma na Constituição,
nem em lei infraconstitucional, que diga que aquele que mudar
de partido perderá o mandato. Isso, no final das contas, é o objeto
15>> Resolução nº 22.526, de 27 mar. 2007. da consulta.”15 Tão direta negação da premissa que sustentava o
argumento dos demais votantes levou o Ministro Marco Aurélio a
indagar se seria necessária “uma norma diante dos princípios con-
sagrados pela Constituição Federal”, ao que ele mesmo respondeu
16>> Resolução nº 22.526, de 27 mar. 2007. negativamente: “Seria acaciano.”16 Note-se, porém, que, ao formular
tal pergunta, o ministro acabou por promover uma confusão termi-
nológica, pois usou o termo “normas” como sinônimo de regras ex-
pressas na CRF/88. Logo, ainda que não intencionalmente, sugeriu
não serem os princípios espécies normativas. Tal inferência vai de

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encontro ao que até então se sustentara – que princípios são nor-


mas tanto quanto o são as regras.

Fato é que as importantes objeções levantadas pelo Ministro José


Delgado não foram enfrentadas na decisão. É interessante perce-
ber que o autor do voto divergente, ao questionar a existência do
princípio da fidelidade partidária nos termos alegados, fazia men-
ção a uma norma de primeira grandeza, que sequer foi considerada
pelos demais votantes: o princípio da legalidade. Nos termos do
disposto no inciso II do art. 5º da CRF/88, “ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei
(...).” Decorre daí a exigência de que se dê por meio de lei qualquer
restrição a direito. Pois, desde a revogação da EC nº 1/69, publicada
sob o regime militar, não há no ordenamento jurídico brasileiro
norma expressa que comine a perda do mandato ao parlamentar
que deixar o partido pelo qual se elegera. Ao contrário, guiada pe-
los princípios que levaram à supressão da emenda no período de
redemocratização, a Constituinte de 1988 deixou de incluir no rol
das hipóteses constitucionais de perda do mandato de deputados e
senadores (art. 55 da CRF/88) qualquer sanção decorrente da infi-
delidade partidária.

Para autores como Ferraz Júnior, a atuação do Judiciário no combate


à infidelidade partidária é tão significativa, que se pode considerar
tê-la inaugurado “uma nova prática na judicialização da competição
político-partidária” (FERRAZ JÚNIOR, 2008, p. 207). No episódio, a
Justiça Eleitoral apelou a argumentos de política e demonstrou dis-
posição para tratar como uma delegação parlamentar os temas de
difícil consenso legislativo que compõem as regras da competição
partidária. A matéria vinha sendo discutida há várias legislaturas.
Inúmeros projetos de lei foram apresentados para disciplinar a
questão de os parlamentares eleitos pelo sistema proporcional de-
ixarem o partido durante o exercício do mandato, seja por intenção
de mero abandono, seja para migrarem para outra legenda. Não ob-
stante, desde 1985, quando a EC nº 25 revogou o parágrafo único
do art. 152 da EC nº 1/69, nenhuma das iniciativas legislativas de
restabelecimento do instituto logrou êxito (FERRAZ JÚNIOR, 2008,
p. 206).

A verdade é que, ao se esforçarem para romper o paradigma nove-


centista, os agentes encarregados do exercício da jurisdição cor-
rem o risco do erro oposto. Desconsiderando as leis escritas que
constituem o Direito, não alcançam as técnicas hermenêuticas pós-
positivistas. Ao contrário, trafegam dentro de concepções jusposi-
tivistas extremas – por mais paradoxal possa essa afirmação pa-
recer. Pois é consequência de um positivismo radical que “Quando

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uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra
de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o
juiz tem (...) o ‘poder discricionário’ para decidir o caso de uma ma-
neira ou de outra” (DWORKIN, 2007b, p. 128). Ou seja, da inexistên-
cia de uma regra expressa, o juiz depreende a ausência do Direito.
Sem identificar critérios jurídicos publicamente reconhecidos para
aplicar ao julgamento, o decisor se vê autorizado ao arbítrio.

Nesse caso, o ativismo judicial não encontra limites externos, nem


na comunidade jurídica nem na opinião pública. Pois os críticos à
conduta desses magistrados partem de uma concepção de sepa-
ração de poderes também positivista. Eles reclamam que o Poder
Judiciário volte a decidir os casos colocados sob sua apreciação me-
canicamente, sem qualquer consideração moral ou política. Ocorre,
contudo, que os juízes nunca decidiram assim. Tal espécie de jul-
gamento não é nem mesmo possível. Ainda quando a jurisdição é
exercida por juízes de boa-fé que têm à disposição regras claras
que eles se esforçam para aplicar aos casos concretos colocados
sob seu juízo, a doutrina juspositivista, longe de corresponder à re-
alidade do funcionamento judiciário, revela-se uma ideologia que
possibilita não a fuga da política – o que promete –, mas uma outra
espécie de política, que insiste em não reconhecer.

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