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Teoria e prática

constitucional
Azevedo, Simone
SST Teoria e prática constitucional / Simone Azevedo
Local: 2020
nº de p. : 14

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Teoria e prática
constitucional

Apresentação
O Judiciário se expandiu, muitas vezes, em razão da omissão do Legislativo, para
legislar sobre matérias que lhe trazem certo desconforto. O crescimento e expansão
de bancadas conservadoras dificulta o debate de temas polêmicos, mas que são de
grande interesse social ou de grupos sociais.

Em razão disso, foi possível observar nos últimos anos um papel atuante do
Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF) em decisões de temas
que tiveram grande impacto social e que chegaram à Suprema Corte alicerçados em
direitos e garantias fundamentais constitucionais. Veja, nesta unidade, o julgamento
de três desses temas.

Conceito
As constituições devem ser interpretadas em razão das necessidades e mutações
sociais. A esse trabalho do judiciário, dá-se o nome de exegese, que pode ser
compreendida como uma técnica que buscará o real significado dos textos
constitucionais. Essa função é de extrema importância na medida em que o Texto
Maior é critério de validade para as demais normas do ordenamento jurídico.

Saiba mais
A atual teoria da hierarquia constitucional estabelece esse
documento como o fundamento de validade das demais normas
do ordenamento jurídico.

O grande desafio do jurista é decifrar o verdadeiro alcance e a abrangência das


normas constitucionais e, por consequência, das demais normas do
ordenamento jurídico. Nesse sentido, o desenvolvimento da atividade de
hermenêutica leva em consideração a história, as ideologias, as realidades
socioeconômicas, políticas, entre outras, do Estado, a fim de definir o real
significado do Texto Maior.

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Todavia, essa abertura não dá ao magistrado o poder de deliberar livremente sobre
a aplicação e a interpretação constitucional. Existe um grupo de normas no qual o
Constituinte deixou de forma clara qual a tutela deverá ser concedida pelo poder
estatal.

Atenção
Em regra, as normas que necessitam da atividade de interpretação
são os chamados princípios que estão ligados aos direitos
fundamentais em suas cinco dimensões.

Por exemplo, não há dúvidas que, conforme o art. 18 da Constituição Federal de


1988, Brasília será a capital federal. Todavia, quando da aplicação do art. 5º, como é
possível delimitar qual o valor da igualdade?

Saiba mais
O princípio da igualdade deve ser interpretado em seu sentido
material e formal.

Nesse sentido, a técnica da interpretação deverá levar em consideração todo o sis-

tema. E, em caso de antinomia normativa, deve-se buscar a solução para o aparente

conflito por meio da interpretação sistemática orientada pelos princípios constitucio-

nais.

Métodos de interpretação
A interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos que são
desenvolvidos pela doutrina e jurisprudência com base em critérios sistemáticos
com base filosófica, metodológica, epistemológica, entre outros. Apesar de serem

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técnicas em sua essência distintas, podem ser utilizados de forma complementar. A
figura a seguir traz os principais métodos de interpretação.

Métodos de interpretação

Fonte: Elaborada pela autora (2020).

Principais casos de alteração da


interpretação constitucional
Casamento homoafetivo

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o reconhecimento de união


estável entre pessoas do mesmo sexo demonstra na prática o constitucionalismo
contemporâneo. Esse posicionamento da Suprema Corte foi resultado do
Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.

Antes da análise dessa decisão, é importante destacar que a publicação da


Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
autorizando a celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em
casamento entre pessoas de mesmo gênero, representou um avanço em direção à
legalização dessa forma de união.

O relator das duas ações foi o ministro Ayres Britto, que, por meio de seu voto,
manifestou ser necessário fazer uma interpretação conforme a Constituição para

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o artigo 1.723 do Código Civil, que define a união estável como aquela “[...] entre
o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002). Em seu
voto, a ministra Cármen Lúcia destaca que o reconhecimento da união estável
homoafetiva concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana:

Curiosidade
[...] Tanto não pode significar, entretanto, que a união homoafetiva,
a dizer, de pessoas do mesmo sexo seja, constitucionalmente,
intolerável e intolerada, dando azo a que seja, socialmente, alvo
de intolerância, abrigada pelo Estado Democrático de Direito.
Esse se concebe sob o pálio de Constituição que firma os seus
pilares normativos no princípio da dignidade da pessoa humana,
que impõe a tolerância e a convivência harmônica de todos, com
integral respeito às livres escolhas das pessoas. (STF - ADPF: 132
RJ, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011,
Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011
PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001)

Essa decisão do STF reflete os ideais do constitucionalismo democrático na medida


em que busca o respeito e a efetivação dos direitos fundamentais, em especial
os de liberdade, igualdade e dignidade. Seu fundamento e objetivo foi o respeito à
dignidade da pessoa humana, que se tornou após a Segunda Guerra Mundial um dos
grandes consensos éticos.

Uso de células-tronco embrionárias em pesquisas

Outro caso difícil que exigiu uma solução pelo STF foi a Ação Direita de
Inconstitucionalidade 3510-0/600 ajuizada pela Procuradoria-Geral da República
contra o art. 5º da Lei nº 11.105/2005, a Lei de Biossegurança.

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Curiosidade
Você conhece a definição de casos difíceis? Já se deparou em
algum momento com algum caso parecido?

Veja a definição de Barroso (2017): casos difíceis são


aqueles que, devido a razões diversas, não têm uma solução
abstratamente prevista e pronta no ordenamento, que possa
ser retirada, não têm uma prateleira de produtos jurídicos. Que
argumentações e justificativas um juiz poderia utilizar em casos
desse tipo?

Nessa ação, o STF julgou a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco


embrionárias à luz da proteção à vida humana por ocasião da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 3510/DF, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República contra
o art. 5º da Lei nº 11.105/2005. A Suprema Corte decidiu pela constitucionalidade
dessa lei em respeito à autonomia da vontade, ao planejamento familiar, à vida digna
e à liberdade de expressão científica, desde que observadas cautelas na condução
das pesquisas e na realização das terapias, que já estariam previstas ne referida lei.

Segundo a Procuradoria da República em sua petição inicial, a utilização em


pesquisas ou terapias de células-tronco embrionárias coletadas de embriões para
fertilização in vitro – mas que seriam descartados depois – violaria o direito à vida e
o princípio da dignidade humana, respectivamente protegidos nos arts. 1º, inciso III,
e 5º, caput, da Constituição Federal de 1988.

Atenção
O fundamento é que o início da vida aconteceria com a formação
do zigoto, de modo que, ao autorizar a pesquisa com células-tronco
embrionárias, a Lei de Biossegurança seria inconstitucional por
não se respeitar o direito à vida garantido ao embrião.

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Inicialmente, cumpre ressaltar que a decisão da Suprema Corte não definiu o
momento inicial da vida humana. Nesse sentido, o voto da ministra Ellen Grace aduz:

Curiosidade
Não há por certo, uma definição constitucional do momento inicial
da vida humana e não é papel desta Suprema Corte estabelecer
conceitos que não estejam explícita ou implicitamente plasmados
na Constituição Federal. Não somos uma Academia de Ciências. A
introdução no ordenamento pátrio de qualquer dos vários marcos
propostos pela Ciência deverá ser um exclusivo exercício de
opção legislativa, passível, obviamente, de controle quanto a sua
conformidade com a Carta de 1988. (STF - ADI: 3510 DF, Relator:
Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 29/05/2008, Tribunal
Pleno, Data de Publicação: DJe-096 DIVULG 27-05-2010 PUBLIC
28-05-2010 EMENT VOL-02403-01 PP-00134)

Ainda, segundo a ministra Ellen Grace, o embrião criopreservado não pode ser
classificado como pessoa. Destacou, também, que a ordem jurídica nacional atribui
a qualificação de pessoa ao nascido com vida e que a utilização para recuperação da
saúde não agride a dignidade humana.

Saiba mais
A Constituição de 1988 tutela de forma expressa a proteção à
dignidade humana já em seu art. 1º.

O ministro Joaquim Barbosa também acompanhou integralmente o voto do


relator pela improcedência da ação, ressaltando que a permissão para a pesquisa
com células embrionárias prevista na Lei de Biossegurança não recai em
inconstitucionalidade. Ele exemplificou que, em países como Espanha, Bélgica e
Suíça, esse tipo de pesquisa é permitido com restrições semelhantes às já previstas
na lei brasileira, como a obrigatoriedade de que os estudos atendam ao bem comum,
que os embriões utilizados sejam inviáveis à vida e provenientes de processos de

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fertilização in vitro e que haja um consentimento expresso dos genitores para o uso
dos embriões nas pesquisas.

Saiba mais
Atualmente, a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, versa sobre
Biossegurança, e a Resolução nº 510 do Ministério da Saúde
estabelece os patamares para pesquisas envolvendo seres
humanos.

A decisão do STF, ao julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade,


analisou que a Lei de Biossegurança estaria respeitando direitos fundamentais
previstos na Constituição Federal, posto que quando se trata de “direitos da pessoa
humana” e até dos “direitos e garantias individuais” como cláusula pétrea, refere-
se a direitos e garantias do indivíduo-pessoa que se faz destinatário dos direitos
fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”,
entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da
fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar).

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Curiosidade
O caso também era difícil pelas razões usuais. Havia uma
ambiguidade de linguagem relativa ao enquadramento ou não de
um embrião congelado no conceito de vida, para fins de proteção
constitucional. Também estava presente uma colisão de normas:
para quem entendia que se tratava de uma vida potencial, sua
preservação se chocava com o interesse dos pesquisadores e
dos portadores de doenças cuja cura pudesse ser alcançada
por essa linha de pesquisas. Por fim, havia um desacordo moral:
preservar o embrião, em nome do direito à vida, ou destiná-lo à
ciência, diante da constatação de que ele jamais seria implantado
em um útero materno. Por maioria de votos, o Supremo Tribunal
Federal declarou a constitucionalidade da lei, entendendo que
um embrião congelado e sem perspectiva de implantação em um
útero materno não constituía vida para fins constitucionais. Como
consequência, considerou legítimas as pesquisas com células-
tronco embrionárias, mesmo que importassem na destruição do
embrião. (STF - ADI: 3510 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de
Julgamento: 29/05/2008, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-
096 DIVULG 27-05-2010 PUBLIC 28-05-2010 EMENT VOL-02403-01
PP-00134).

Aborto praticado até o terceiro mês de gestação

Outro caso emblemático decidido pelo STF que merece destaque foi o julgamento
sobre a possiblidade de ser praticado o aborto até o terceiro mês de gestação, a
partir de um pedido de habeas corpus.

Saiba mais
Destaca-se que não houve a legalização do aborto no Brasil, apenas
se considerou que o aborto praticado no referido caso não deveria
ser considerado crime.

Tratou-se de habeas corpus, com pedido de concessão de medida cautelar, impetrado


em face de acórdão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que não conheceu

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do HC 290.341/RJ, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Os
indivíduos que mantinham uma clínica de aborto foram presos em flagrante em
março de 2013 pela prática do crime de aborto e formação de quadrilha, por terem
provocado aborto em gestante com o consentimento desta.

Em seguida, foi concedida a liberdade provisória, em 2013, pelo Juízo da 4ª Vara


Criminal da Comarca de Duque de Caxias/RJ. Entretanto, a mesma vara criminal, em
2014, proveu recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público do Estado
do Rio de Janeiro para decretar a prisão preventiva dos pacientes, com fundamento
na garantia da ordem pública e na necessidade de assegurar a aplicação da lei penal.

Assim, a defesa impetrou habeas corpus no Supremo Tribunal de Justiça, que embora
seu mérito não tenha sido examinado pelo acordão, que assentou não ser ilegal o
encarceramento na hipótese.

Atenção
Os fundamentos do habeas corpus impetrado foram: não estão
presentes os requisitos necessários para decretar prisão
preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.
Nesse sentido, sustentaram que:

• os pacientes são primários, com bons antecedentes e têm


trabalho e residência fixa no distrito da culpa;
• a custódia cautelar é desproporcional, já que eventual con-
denação poderá ser cumprida em regime aberto; e
• não houve qualquer tentativa de fuga dos pacientes duran-
te o flagrante.
• Daí o pedido de revogação da prisão preventiva, com expe-
dição do alvará de soltura.

Por unanimidade, os ministros do STF, como mencionado, entenderam que as


prisões dos réus não se sustentavam. Para tanto, fundamentaram seus votos
em alguns princípios constitucionais como o da igualdade, dos direitos sexuais e
reprodutivos, da autonomia e do direito à integridade física e psíquica da gestante.
Entenderam que a criminalização do aborto, no caso em discussão, era incompatível

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com os direitos fundamentais, entre os quais, os direitos sexuais e reprodutivos à
autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e o princípio da
igualdade.

Conforme observou o ministro Barroso em seu voto, com o qual concordou a maioria
dos ministros, a criminalização do aborto produz uma discriminação social, uma
vez que o aborto inseguro tem um efeito perverso nas mulheres mais pobres e
vulneráveis. Assim, esclareceu o ministro:

Curiosidade
Por fim, a tipificação penal produz também discriminação social,
já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres,
que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem
se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento
abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a
possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro.
Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas
sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários
e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões,
mutilações e óbito. (HABEAS CORPUS 124.306 RIO DE JANEIRO
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO)

Observa-se, pois, que o julgamento do STF reconheceu os direitos sexuais e


reprodutivos das mulheres, o direito e à integridade física e psíquica da gestante,
para que, dessa forma, possa se proporcionar à mulher o seu acesso pleno à saúde,
nos termos garantidos na Constituição Federal de 1988.

Fechamento
A partir da análise desses julgados apresentados, é possível notar um papel atuante
do Judiciário em diversas matérias. As decisões se fundamentam e se pautam
em argumentos técnicos com base na Constituição, mas é inegável o seu caráter
político ou reflexos políticos sociais relevantes.

De um lado, é verdade que muitas decisões representam um importante avanço


no reconhecimento de direitos de minorias, como, por exemplo, a legalidade do

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casamento homoafetivo. Mas uma dúvida importante que remanesce é: até onde
pode ir o Judiciário? Muitas vezes se comemoram vitórias progressistas e sociais
importantes conseguidas via Judiciário, mas a questão é: e se o Supremo Tribunal
Federal for composto por uma maioria de membros de vieses autoritários e contrário
ao reconhecimento de direitos?

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Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário


Oficial da União, 11 jan. 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/l10406.htm#capituloiiextincaocontrato. Acesso em: 22 set. 2020.

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