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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

ANDRESSA BOMFIM, BRENDA CUNTA, LETÍCIA SIMÕES, LUCAS


CARDOSO E THAMIRES RODRIGUES

EMBATE ENTRE A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
O CASO GOMES LUND VS BRASIL E ADPF 153

NITERÓI/RJ
2023
2

EMBATE ENTRE A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
O CASO GOMES LUND VS BRASIL E ADPF 153

Trabalho avaliativo da disciplina de


Acesso a Justiça na América Latina

Prof. Eduardo Val.

NITERÓI/RJ
2023
3

SUMÁRIO

RESUMO ........... .....................…………………………………………………………04


1 INTRODUÇÃO........................... ........……………………………………………… 05
2 HISTÓRICO COMPARADO ………………………………………………………… 07
3 ADPF 153/DF.................................... ....……………………………………………. 10
4 GOMES LUND VS BRASIL (CIHD)…...….....……………………………...………. 12
5 CONCLUSÃO ..................................................... .......……………………………. 16
6 REFERÊNCIAS .....………………………………………………………………… 18
4

RESUMO

Violações a Direitos Humanos constam como elemento em comum de


grande parte dos regimes de exceção. No Brasil, uma das medidas marcantes
desse período foi a sanção da Lei da Anistia Nº 6.683/79. Entretanto, as
consequências imediatas da Lei da Anistia também foram objeto de debates e
controvérsias, e a ausência de responsabilização direta por tais atos gerou
debates duradouros sobre a justiça histórica e a memória do período, destacando
as tensões entre o desejo de reconciliação nacional e a necessidade de lidar com
os crimes do passado.
Nesse sentido, a ADPF 320 surge no contexto da condenação do Brasil,
em 2010, no caso Gomes Lund vs Brasil, em face da ADPF 153, com o objetivo
de revisão do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, na tentativa de
demonstrar que a Lei da Anistia seria um empecilho no processo de punibilidade
dos agentes dos crimes que ocorreram durante o regime militar brasileiro. A ADPF
320 traz de uma revisão do juízo de acerca da Lei 6.683, lançado pelo Supremo
Tribunal Federal na ADPF nº 153, fazendo com que essa reavaliação se faça
necessária, para que haja de fato, a declaração de inconstitucionalidade da Lei
de Anistia com base na Constituição de 1988. Nesse sentido, o presente trabalho
teve como objetivo discutir o embate entre a Corte Interamericana de Direitos
Humanos e o STF, à luz do caso Gomes Lund vs Brasil e a ADPF 153/DF.

PALAVRAS-CHAVE: Anistia política. Constituição de 1988. Convenção


Americana sobre Direitos Humanos. ADPF 153/DF. ADPF 320.
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1. INTRODUÇÃO

Violações a Direitos Humanos constam como elemento em comum de


grande parte dos regimes de exceção. No contexto da América Latina, boa parte
dos países foi arrolada em regimes ditatoriais em algum momento a partir do início
do século passado. O Brasil teve dois períodos de exceção no decurso dos anos
1900, o primeiro com o Estado Novo (1937-1945) e o segundo com o Regime
Militar (1964-1985) – pertinente a este trabalho – já no contexto de Guerra Fria.
Várias nações da América Latina conduziram investigações judiciais
sobre violações aos direitos humanos perpetradas por regimes de exceção em
seus respectivos países. Na Argentina, destacam-se os julgamentos das Juntas
Militares nos anos 1980 e processos posteriores relacionados à justiça, verdade
e memória. No Chile, foram realizadas investigações e julgamentos referentes às
violações durante a ditadura de Pinochet. O Uruguai também empreendeu
esforços para examinar violações durante seu regime militar. No Peru, houve
investigações sobre crimes durante as décadas de 1980 e 1990, incluindo aqueles
cometidos pelo Sendero Luminoso e pelas forças de segurança. Esses processos
refletem tentativas regionais de abordar as violações dos direitos humanos e
promover a justiça histórica diante de períodos autoritários passados.
O Regime Militar, sofrendo um desgaste econômico com proporções
crescentes em razão da crise do petróleo na década de 70, teve minada sua base
de sustentação na sociedade civil. Prevendo uma necessária abertura política e
consequente mudança de regime, coordenou o processo de transição. Uma das
medidas marcantes desse período foi a sanção da lei 6683 de 28 de Agosto de
1979, que concedia anistia ampla a

[...] todos quanto, no período de 02 de Setembro de 1961 a 15 de Agosto


de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes
eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos
servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas
ao poder público, Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos
Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com
fundamento em atos institucionais e complementares. (Art. 1º da Lei nº
6.683/79)
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Ou seja, o Estado garantia a todos os agentes supracitados a extinção


da pretensão punitiva, sequer permitindo, nos casos, a persecução criminal dos
que “cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, [...]
punidos com fundamento em atos institucionais e complementares.”
A legislação buscava promover a reconciliação nacional ao conceder
anistia ampla e geral, tanto para os opositores políticos que haviam sido
perseguidos pelo regime militar quanto para os agentes estatais envolvidos em
violações dos direitos humanos durante esse período. A medida foi fundamental
para encerrar oficialmente a repressão política e permitir a volta de exilados,
promovendo um ambiente de transição para a democracia.
Entretanto, as consequências imediatas da Lei da Anistia também foram
objeto de debates e controvérsias, uma vez que ela contribuiu para uma certa
impunidade em relação aos agentes do regime militar que cometeram violações
dos direitos humanos. A ausência de responsabilização direta por tais atos gerou
debates duradouros sobre a justiça histórica e a memória do período, destacando
as tensões entre o desejo de reconciliação nacional e a necessidade de lidar com
os crimes do passado. Essa dinâmica continuou a influenciar as discussões
políticas e sociais no Brasil ao longo das décadas seguintes.
No contexto dessas discussões, ocorreu um marco histórico no
tratamento da questão pela Suprema Corte, situada no bojo da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153 (2010) de iniciativa da
Ordem dos Advogados do Brasil, a Corte decidiu, em maioria de 7 a 2, manter a
interpretação ampla da Lei da Anistia, argumentando que a revisão deveria ser
uma prerrogativa do Congresso Nacional. Logo em seguida, houve o
estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade (2011), que investigou casos
de violações dos direitos humanos, buscou localizar desaparecidos políticos e
apresentou um relatório final que detalhava as conclusões de suas investigações.
No âmbito internacional, O caso Gomes Lund versus Brasil na Corte
Interamericana de Direitos Humanos também envolveu violações durante o
regime militar brasileiro. A Corte determinou, em 2010, que o Brasil não cumpriu
suas obrigações de investigar e punir responsáveis por desaparecimentos
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forçados e torturas.
Nesse contexto complexo de contraposição entre uma decisão de uma
corte internacional – que passou a ter importante papel depois da adesão
Nacional ao Pacto de San José da Costa Rica - e a Corte Constitucional do país,
houve a propositura de nova ADPF, de número 320, buscando uma revisão da
primeira decisão.
Partindo dessa base, o presente artigo almeja realizar uma análise
contemporânea e abrangente das implicações da Lei da Anistia. Este escopo será
delineado em consonância com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal, entrelaçando-se com as determinações estabelecidas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Nesse contexto, busca-se não apenas
examinar os desdobramentos imediatos da discussão, mas também compreender
o impacto a longo prazo nos domínios da justiça, reconciliação nacional e
preservação da memória histórica. A interrelação entre as decisões dessas
instâncias judiciais oferece uma perspectiva rica e multifacetada, permitindo uma
análise mais abrangente das implicações da Lei da Anistia no atual cenário
jurídico e social. Por meio desse enfoque expandido, busca-se contribuir para um
entendimento mais profundo e contextualizado das dinâmicas em jogo,
fornecendo luzes significativas para o debate contínuo sobre justiça e direitos
humanos no contexto brasileiro.

2.Histórico Comparado

O embate entre a Corte Internacional de Direitos Humanos e o Supremo


Tribunal Federal (STF) ganhou destaque no cenário jurídico global, especialmente
no caso emblemático Gomes Lund versus Brasil. Para além desse viés, é
importante realizar um histórico comparado, com escopo de analisar e evidenciar a
atuação da Corte quanto aos casos de violações aos Direitos Humanos. Quanto às
decisões do CIDH, destaca-se que ao analisar o Caso Gomes Lund, vislumbrou a
obrigação dos Estados em investigar e punir violações de direitos humanos,
especialmente em casos de graves violações, como tortura e desaparecimento
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forçado. A Corte também ressaltou a importância da justiça transicional e da


responsabilização dos perpetradores. Essas decisões refletem uma abordagem
proativa da CIDH na promoção e proteção dos direitos humanos.
Essa questão destaca um conflito fundamental entre a interpretação
internacional dos direitos humanos e a abordagem nacional. Enquanto a CIDH
defende a aplicação de padrões internacionais mais rigorosos, o STF busca
conciliar esses padrões com a legislação nacional, gerando tensões entre o
compromisso internacional e as questões de soberania.
Em um viés histórico, cabe inferir alguns casos semelhantes que
ocorreram sob a mesma perspectiva. Por exemplo, a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos submeteu à jurisdição da Corte Interamericana o Caso
Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares
contra a República Federativa do Brasil. A Comissão Interamericana relaciona o
caso à explosão de uma fábrica de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus,
ocorrida em 11 de dezembro de 1998, em que 64 pessoas morreram e seis
sobreviveram, entre elas 22 crianças.
Sinteticamente, a Corte concluiu que, neste caso, não se garantiu uma
proteção judicial efetiva às trabalhadoras da fábrica de fogos porque, ainda que
se lhes tenha permitido fazer uso dos recursos judiciais previstos legalmente, tais
recursos ou não tiveram uma solução definitiva depois de mais de 18 anos do
início de sua tramitação, ou contaram com uma decisão favorável às vítimas, mas
esta não pôde ser executada por atrasos injustificados por parte do Estado.
Paralelamente, ainda em comparativo nacional, traz-se à baila o resumo
oficial emitido pela Corte Interamericana quanto ao Caso “Sales Pimenta versus
Brasil”, no qual denota similaridade entre os pontos expostos, dizendo:

Em 30 de junho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos


emitiu uma sentença declarando que a República Federativa do Brasil era
internacionalmente responsável pela violação dos direitos às garantias
judiciais, à proteção judicial e ao direito à verdade, conforme estabelecido
na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A decisão relaciona-se
à investigação inadequada da morte violenta de Gabriel Sales Pimenta, o
que resultou no descumprimento do dever de devida
diligência reforçada para crimes contra defensores dos direitos humanos.
Além disso, a sentença destaca a violação da garantia do prazo razoável
e a situação de impunidade que persiste até o momento. As violações
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foram reconhecidas em prejuízo a vários membros da família Sales


Pimenta (...).

Consequentemente, após uma análise minuciosa, o entendimento da


Corte ao inferir a sentença, se deu da seguinte maneira:

A Corte verificou que os familiares de Gabriel Sales Pimenta


acompanharam e estiveram ativamente envolvidos, como assistentes de
acusação, no processo penal iniciado para apurar o seu homicídio desde
o princípio, e envidaram esforços para o seu avanço e conclusão. Apesar
disso, esse processo, conforme já referido previamente, foi concluído após
quase 24 anos dos fatos, unicamente com a declaração da extinção da
responsabilidade penal a favor do único acusado sobrevivente.
Adicionalmente, constatou que a duração das investigações e do processo
penal sem que tenha havido a sanção de nenhum responsável pela morte
violenta e a falta de devida diligência provocaram sofrimento e angústia
nos referidos familiares, em detrimento de sua integridade psíquica e
moral. O Tribunal indicou que a absoluta impunidade em que se encontra
o homicídio de Gabriel Sales Pimenta constitui um fator chave na violação
da integridade pessoal de cada membro de sua família. Assim, concluiu
que o Estado violou o direito à integridade pessoal reconhecido no artigo
5.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo
instrumento, em prejuízo aos familiares do senhor Sales Pimenta.

Desse modo, observa-se que o Caso Gomes Lund abre precedentes para
futuras interações entre a CIDH e o STF. A pressão internacional sobre o Brasil
para responsabilizar os perpetradores de violações de direitos humanos
persistirá, levantando questões sobre a capacidade do sistema judicial brasileiro
de reconciliar sua abordagem histórica com as demandas atuais por justiça.
O embate entre a Corte Internacional de Direitos Humanos e o Supremo
Tribunal Federal no contexto do Caso Gomes Lund destaca as complexidades
enfrentadas pelos Estados na busca por justiça em casos de violações graves de
direitos humanos. Enquanto a CIDH busca garantir padrões internacionais, o STF
se depara com o desafio de reconciliar esses padrões com a legislação nacional
e a histórica Lei de Anistia. Ou seja, o caso retratado desempenha um papel
crucial na evolução do diálogo sobre direitos humanos no Brasil e além.
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3.Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 Distrito


Federal (ADPF 153/DF)

Em outubro de 2018, a Ordem dos Advogados do Brasil propôs a


Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (numerada como 153),
que tem fundamento legal no artigo 102, parágrafo 1°, da Constituição Federal
Brasileira e no artigo 2°, inciso I, da lei 9.882/99. Esta ADPF, originada por uma
Emenda Constitucional, propõe um novo remédio jurídico processual, com o
intuito de assegurar a defesa de preceitos fundamentais. Nesse contexto, o objeto
de questionamento foi o art. 1º da Lei nº 6.683/79:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre


02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e
Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais
e Complementares” (LEI Nº 6.683/79)

A lei citada trouxe benefícios para pessoas que, na época, não


concordavam com o regime ditatorial, eram presas e recebiam títulos de
criminosas. Porém, trouxe, também, benefícios para os funcionários públicos que
se utilizavam de seus cargos e abusavam de sua autoridade, praticando diversos
crimes, como tortura, homicídio, lesão corporal... Assim, argumenta-se a ideia de
que esta lei não foi criada para perdoar efetivamente as pessoas perseguidas,
mas fazer com que os responsáveis pelos crimes não fossem punidos.
Nesse contexto, a ADPF, proposta pelo Conselho da OAB, entra em cena
para questionar a conformidade dessa lei, especificamente com a Ordem
Constitucional, argumentando que a recepção do parágrafo 1°, artigo 1° da lei
6.683 implicaria no desrespeito ao dever, do Poder Público, de não ocultar a
verdade, visto que o artigo 5°, inciso XXXIII, da CF diz que todos tem direito a
receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou coletivo,
assim, não seria possível omitir informações dos responsáveis pelos crimes
11

efetuados no período ditatorial.


Dando continuidade, a OAB argumentou que tal situação contraria os
princípios fundamentais da democracia e da república. A petição inicial ressalta
que o cerne do regime democrático reside na soberania popular, e aqueles que
cometeram crimes contra opositores políticos estavam ocupando funções
públicas, utilizando recursos públicos. Dessa maneira, a concessão ampla de
anistia a esses indivíduos representa uma clara afronta ao princípio democrático,
pois desconsidera a responsabilidade daqueles que ocupavam cargos de poder
e autoridade.
Além disso, a OAB destaca a carência de legitimidade democrática do
processo que resultou na Lei de Anistia. A Emenda Constitucional n° 8, datada de
14 de abril de 1977, é apontada como um exemplo dessa falta de legitimidade,
uma vez que 1/3 dos senadores eram escolhidos indiretamente. Essa emenda foi
sancionada por um Chefe de Estado que, na época, era um General do Exército
não representava diretamente a vontade popular. A escolha indireta de parte
significativa dos representantes no Congresso Nacional, portanto, compromete a
base democrática do processo legislativo que resultou na Lei de Anistia.
Por fim, a OAB destacou como o dispositivo legal questionado fere a
dignidade da pessoa humana. Os militares, ao alegarem que a Lei de Anistia
decorre de um acordo, foram acusados de usar argumentos falaciosos. O Brasil,
como signatário da Convenção contra a Tortura de 1984, deveria considerar a
natureza dos crimes ocorridos durante o período ditatorial.
A natureza dos crimes ocorridos durante o período ditatorial é um tema
central de discussão. O ministro Eros Grau foi o relator da ADPF apresentada
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cuja a improcedência
foi declarada por sete votos a dois.
Foram apresentados diversos argumentos, sendo os mais relevantes: o
ponto inicial sobre a ilegitimidade dos senadores (eleitos indiretamente). A ex-
ministra Carmén Lúcia considera este um assunto indiscutível, pois trata-se dos
mesmos que redigiram a Constituição Federal de 1988, levando à ilegitimidade
da Magna Carta. O ex-ministro Cezar Peluso apresentou a argumentação da
12

prescrição, indicando que mesmo que a ação fosse julgada procedente, não
poderia prosseguir devido à prescrição. Por fim, Ricardo Lewandowski,
juntamente com Cezar, também menciona o caso da prescrição.
Enquanto o julgamento de improcedência pode ter fundamentos legais
sólidos, a discussão em torno da anistia continua a gerar reflexões sobre os
valores fundamentais da democracia, transparência e respeito aos direitos
humanos. A ADPF 153 permanece como um marco no debate sobre como uma
nação confronta seu passado autoritário, delineando os contornos de uma
sociedade que busca equilibrar justiça e reconciliação.

4.Gomes Lund x Brasil (CIDH)

O regime militar brasileiro instaurou mecanismos de forte repressão


instrumentados através de normas como os atos institucionais, além do
fechamento do Congresso e da restrição de direitos políticos e individuais, que
culminou em desaparecimentos e assassinatos de presos e opositores políticos,
caso da Guerrilha do Araguaia, movimento de resistência ao regime militar, vítima
de operações repressivas por ordem do governo. Apesar do reconhecimento da
responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos, o Brasil foi um dos
únicos países da América Latina que não implementou procedimentos penais para
analisar as violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura, segundo
a Comissão Especial (CIDH, 2010, par. 83 à 87).
Diante do caso de Desaparecimentos Forçados e execução extrajudicial,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2009, submeteu à Corte
Interamericana de Direitos Humanos uma demanda contra a República
Federativa do Brasil, a fim de estabelecer a incompatibilidade da Lei de Anistia,
bem como das leis sobre sigilo de documentos, com a Convenção Americana
(CIDH, 2010, par. 1).
Em conformidade com sua jurisprudência acerca do tema e em
concordância com o estabelecido pelo Direito Internacional e pelos precedentes
dos órgãos dos sistemas de proteção dos direitos humanos, a Corte reiterou que
13

as disposições da Lei de Anistia, assim como a de prescrição e o estabelecimento


de excludentes de responsabilidade, que buscam impedir a investigação e
punição de responsáveis por graves violações dos direitos humanos, são
inadmissíveis (CIDH, 2010, par. 171). Além disso, segundo o Tribunal, a
interpretação e aplicação da Lei de Anistia aprovada pelo Brasil “afetou o dever
internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos
humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem
ouvidos por um juiz”, conforme artigo 8.1 da Convenção Americana. Ademais,
destaca-se o descumprimento do artigo 25 e 1.1 no que tange ao direito à
proteção judicial e garantias processuais pela “falta de investigação, persecução,
captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos”, e do artigo 2 da
Convenção Americana, haja vista que, impedindo a investigação dos fatos e,
consequentemente, o julgamento e sanção aos responsáveis pelas violações, o
Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno, como dispõe o
artigo (CIDH, 2010, par. 171 e 172).

A sentença expõe que as disposições da Lei da Anistia brasileira que


impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são
incompatíveis com a Convenção Americana (CIDH, 2010, par. 174). Sua
interpretação, que abarcava todos os crimes cometidos pelos agentes do Estado,
como manifesta os representantes dos familiares das vítimas [Grupo Tortura
Nunca Mais do Rio de Janeiro, a Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos do Instituto de Estudos da Violência do Estado e o Centro
pela Justiça e o Direito Internacional], “constitui o maior obstáculo à garantia do
direito de acesso à justiça e do direito à verdade dos familiares dos
desaparecidos, o que criou uma situação de total impunidade” (CIDH, 2010, par.
171 e 128).
Em relação às medidas adotadas pelo Estado como garantia de não
repetição, o Tribunal compreende que, embora positivas, o que é abordado no
capítulo sobre as reparações da Sentença, não foram suficientes, “porquanto
omitiram o acesso à justiça por parte dos familiares das vítimas” e suprimiram os
direitos das vítimas, derivados dos mencionados artigos 8 e 25 da Convenção
14

Americana, como expõe o parágrafo 178 da sentença do caso.


Outrossim, acerca da Ação Ordinária, que tinha como objeto o acesso a
documentos oficiais sobre as operações militares contra a Guerrilha do Araguaia,
a Corte manifestou-se no sentido de que “o direito de acesso à justiça deve
assegurar, em um prazo razoável, o direito das supostas vítimas ou de seus
familiares a que se faça todo o necessário para conhecer a verdade do ocorrido
e, se for o caso, sancionar os responsáveis” (CIDH, 2010, par. 219), entendendo
que não se pode justificar o atraso do andamento e cumprimento da Ação em
razão da complexidade do assunto ou por se tratar de uma solicitação de maior
complexidade para ampla dilação do prazo (CIDH, 2010, par. 219 à 220). Salienta-
se, ainda, que o Estado interpôs vários recursos à entrega da documentação
estabelecida pela autoridade judicial, com base na alegação de inexistência
dessas informações, somente efetuando a entrega de documentos acerca da
Guerrilha do Araguaia muitos anos depois (CIDH, 2010, par. 222). Desse modo,
concluiu a Corte Interamericana que a Ação Ordinatória do caso excedeu o prazo
razoável e que, à vista disso, o Brasil “violou os direitos às garantias judiciais
estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Americana, em relação com o artigo 13
e 1.1 do mesmo instrumento” (CIDH, 2010, par. 225 à 226).

5.A Alegação de Descumprimento de Normas Básicas (ADPF) 320

Na ADPF 153, apesar de o Supremo Tribunal Federal sentenciar que a


Lei da anistia não poderia deixar impune graves violações aos direitos humanos,
a considerou como que sendo constitucional e decorrente de acordo político, e
não de autoanistia. Andrade (2020) destaca que:

“A ADPF 153 sustentava ser incompatível com preceitos constitucionais


fundamentais a interpretação segundo a qual a Lei 6.683/79 anistiava
agentes públicos responsáveis pela prática de homicídios,
desaparecimentos forçados, lesões corporais, estupro e atentado violento
ao pudor. Alegava-se que a extensão da anistia a crimes comuns violaria
os princípios democrático e da isonomia e seria ilegítima, caracterizando
autoanistia, pedindo-se fosse dada interpretação conforme a Constituição
para declarar que a anistia da Lei 6.683/79 não se estendia aos crimes
comuns praticados por agentes da repressão.” (ANDRADE, 2020, pp. 7)
15

Assim sendo, a Alegação de Descumprimento de Normas Básicas


(ADPF) 320, apresentada ao STF pelo Partido Socialismo e Liberdade no ano de
2014, surge com a perspectiva de revisão da Lei da Anistia de 1979, assinada
durante a ditadura militar, e que perdoa crimes cometidos por agente públicos,
sejam eles, civis ou militares, e, que mesmo após quase dez anos, ainda não foi
julgada.
A ADPF 320 surge no contexto da condenação do Brasil, em 2010, no
caso Gomes Lund vs Brasil, em face da ADPF 153, com o objetivo de revisão do
posicionamento do Supremo Tribunal Federal, na tentativa de demonstrar que a
Lei da Anistia seria por óbvio um extremo empecilho no processo de punibilidade
dos agentes dos crimes que ocorreram durante o regime militar brasileiro.
Dentre os pedidos ao Supremo Tribunal Federal, tem que a Lei da Anistia
de 1979 não deve ser aplicada às graves violações de direitos humanos do
período da ditadura militar de 1964, bem como que se dê cumprimento à sentença
no Caso Gomes Lund vs. Brasil, e neste segundo, Patrus (2015), diz que “...ADPF
nº 320, afigura-se cabível quanto à responsabilização criminal dos agentes da ditadura
de 1964, à luz de um contexto de “controvérsia constitucional relevante”, baseado em
uma proliferação de orientações conflitantes a respeito da aplicabilidade da Lei
6.683/1979”
A ADPF 320 não foi julgada, bem como, os embargos na ADPF 153. Isso
tem acarretado em lacunas, evidenciadas paralisações, em sede de habeas
corpus e rejeições das denúncias propostas pelo Ministério Público, em ações
penais relativas a crimes contra a humanidade, sob a alegação de que a
investigação fica inviável antes do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal,
dos embargos de declaração na ADPF 153 e da ADPF 320. Além disso, a
pendência nos julgamentos da ADPF 153 e ADPF 320, enseja na impossibilidade
do cumprimento integral da sentença no caso Gomes Lund v. Brasil, dada a
complexidade jurídica, da necessidade de convencionar as normas internas com
as normas internacionais, sem perder o caráter de supremacia da Constituição,
tendo em vista, que é de próprio entendimento do Supremo Tribunal Federal, que
16

os tratados internacionais referentes aos direitos humanos, sobrepõem as normas


brasileiras.
A grande polêmica da ADPF 320, segundo Patrus (2015), está na
ineficácia de vinculação da sentença da Corte Interamericana, onde pela primeira
vez na história brasileira, há a responsabilização internacional do Estado, sendo
imposto a esse uma série de determinações com o viés de reparar essas
violações.
Tal responsabilização do Estado, e a urgência de cumprimento da
sentença no caso Gomes Lund v. Brasil, parece ter sido suprimida pelo Supremo
Tribunal Federal no julgamento da ADPF 153, e que, ainda, segundo o autor, vem
mostrado omisso no cumprimento da sentença da Corte Interamericana, existindo
até mesmo, notícias de que os órgãos judiciários brasileiros, estariam criando
obstáculos à persecução criminal dos agentes da repressão autoritária.
Nesse sentindo, a possibilidade que a ADPF 320 traz de uma revisão do
juízo de acerca da Lei 6.683, lançado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF nº
153, por mais que, como já foi retratado no presente trabalho, como um verdadeiro
marco no debate do confronto de uma nação com seu passado autoritário, com
objetivando a justiça. Essa reavaliação faz-se necessária, para que haja de fato,
a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Anistia com base na Constituição
de 1988.

6.CONCLUSÃO

O presente trabalho teve como objetivo discutir o embate entre a Corte


Interamericana de Direitos Humanos e o STF, à luz do caso Gomes Lund vs Brasil
e a ADPF 153/DF.
Como vimos, o regime militar brasileiro implementou um poderoso
mecanismo de repressão através de normas como o fechamento do Congresso
e medidas institucionais, além de restrições aos direitos políticos e individuais, o
que acabou levando ao desaparecimento e assassinato de prisioneiros e
opositores políticos.
17

O caso Gomes Lund vs Brasil, que foi julgado pela Corte interamericana
de Direitos Humanos contra a República Federativa do Brasil em 2010, em face
da Lei da Anistia de 1979, que impedia a responsabilização penal na justiça
brasileira pelos atos à época do regime militar, possibilitou a condenação do
Estado pela violação dos direitos humanos das vítimas.
E, apesar de o Brasil ser o único país da América Latina que reconhece
a responsabilidade do Estado pelas mortes e desaparecimentos, não realiza
julgamentos criminais para analisar as violações dos direitos humanos cometidas
durante a ditadura.

A ADPF 153 tem sua importância nessa quebra de paradigmas, no que


tange em responsabilização estatal neste período, não apenas por expor as
contradições e desafios legais relacionados à Lei de Anistia, como também
colocando em evidência as complexidades de reconciliar a justiça com a
estabilidade política, mas de fato, não satisfaz toda a problemática envolvida por
considerar ainda sim, a Lei da Anistia de 1979 como constitucional.

Contudo a ADPF 320 com seu o objetivo de rever a posição do Supremo


Tribunal Federal, mostra-se bastante promissora em consolidar a lei de anistia
como um enorme obstáculo no processo de punição dos criminosos cometidos
durante o regime militar brasileiro.

Apesar de ADPF 320 não ter sido julgada ainda, bem como, os embargos
na ADPF 153, pode-se concluir que a questão da anistia no Brasil não é apenas
jurídica, como também é uma narrativa que envolve a reconstrução da memória
coletiva e a promoção de uma sociedade justa e comprometida em reparar crimes
de um passado em que suas vítimas ainda esperam por justiça.
18

7.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Graves violações de direitos humanos e


anistia: os casos Gomes Lund e Herzog e as ADPFs 153 e 320. In: MAZZUOLI, Valerio
de Oliveira/GOMES, Eduardo Biacchi (dir.); BRANDALISE, Ane Elise/COSTA, Pablo
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