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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO
NO BRASIL MERIDIONAL
o NEGRO NA SOCIEDADE ESCRAVOCRATA
DO RIO GRANDE DO SUL
Fernando Henrique Cardoso nasceu no
Rio de Janeiro em 1931. Foi Presidente
do Brasil por dois mandatos consecuti-
vos, de 1995 a 2003, vencendo ambos os
pleitos por maioria absoluta de votos.
Sociólogo graduado na Universidade de
São Paulo, afirmou-se desde o final dos
anos sessenta como um dos mais influen-
tes intelectuais latino-americanos na
análise de temas como os processos de
mudança social, o desenvolvimento e a
dependência, a democracia e a reforma
do Estado. A partir de sua carreira aca-
dêmica e intelectual, teve importante
papel na luta pela redemocratização do
Brasil. Senador por São Paulo, participou
da fundação do Partido da Social Demo-
cracia Brasileira (PSDB) em 1988 e lide-
rou sua bancada no Senado até outubro
de 1992. Foi ministro das Relações Exte-
riores e da Fazenda no governo Itamar
Franco.
Ex-professor catedrático de Ciência
Política e atual professor emérito da
Universidade de São Paulo, foi diretor
associado de Estudos na École des Hau-
tes Études en Sciences Sociales, em Paris,
e professor visitante no College de Fran-
ce e na Universidade de Paris-Nanterre.
Ocupou a cátedra Simón Bolivar na Uni-
versidade de Cambridge e ensinou nas
universidades de Stanford e de Berkeley.
Entre suas funções atuais, Fernando
Henrique Cardoso é Presidente do Clube
de Madri, co-Presidente do Inter-Ame-
rican Dialogue, Presidente do Painel de
Personalidades Ilustres das Nações Uni-
das sobre a relação entre essa organiza-
ção e a sociedade civil, e Coordenador
do grupo de trabalho responsável pela
revísão do sistema de Cúpulas Ibero-
Americanas. Foi ainda nomeado Mem-
bro dos Conselhos Consultivos do Insti-
tute for Advanced Study, Princeton, e da
Fundação Rockefeller, Nova York.
Entre seus livros publicados no Brasil,
os principais títulos são: Capitalismo e
escravidão no Brasil meridional (1962),
Empresário industrial e desenvolvimen-
to econômico no Brasil (1964), Mudan-
ças sociais na América Latina (1969), Po-
lítíca e desenvolvímento em sociedades
dependentes (1971), O modelo político
brasileiro (1972), Autorítarísmo e demo-
cratização (1975), Democracia para mu-
dar (1978), As idéias e seu lugar (1980),
Perspectivas: idéias e atuação política
(1983), A democracia necessária (1985),
A construção da democracia (1993), Ne-
gros em Florianópolis: relações sociais e
econômicas (2000).
É também co-autor de: Dependência
e desenvolvimento na América Latina
(com Enzo Faletto, 1969), Os partidos e
as eleições no Brasil (com B. Lamouníer,
1975), São Paulo 1975: crescimento e po-
breza (et alii, 1975), Amazônia: expan-
são do capitalismo (com G. Muller, 1977),
O Presidente segundo o sociólogo. En-
trevista a Roberto Pompeu de Toledo
(1998), O mundo em português. Um diá-
logo (com Mário Soares, 1998).
Capitalismo e escravidão
no Brasil meridional
Fernando Henrique Cardoso

Capitalismo e escravidão
no Brasil meridional
o negro na sociedade escravocrata
do Rio Grande do Sul

5ª edição revista

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio de Janelfo
2003
COPYRIG HT © Fernando Henrique Cardoso, 2003

CAPA
Rl'gina Fl'rraz
PROJETO GRÁFICO
El'e/)'n Grumach e João de Souza Ll'itl'
IMAGEM DE CAPA
Foto de Victor Frond

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONfE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Cardoso, Fernando Henrique, 1931-


C262c Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o
negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul 1
Fernando Henrique Cardoso. - Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2003.

Inclui bibliografia
ISBN 85 -200-0635-3

1. Escravidão - Aspectos sociais - Brasil. 2. Negros -


Rio Grande do Sul - Condições sociais. 3. Rio Grande
do Sul- Condições sociais. I. Título.

CDD - 326.098165
03-0227 CDU - 326(816.5)

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PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

Impresso no Brasil
2003
Para
FLORESTAN FERNANDES
pela influência construtiva que exerce no
desenvolvimento da sociologia no Brasil

com reconhecimento e amizade

"...dois tipos contrários, e no fundo


os mesmos: o escravo e o senhor."

JOAQUIM NABUCO, O mandato da raça negra.


Sumário

PREFÁCIO À 5" EDIÇÃO 9


PREFÁCIO À 2· EDIÇÃO 15
PREFÁCIO À 1" EDIÇÃO 25

INTRODUÇÃO 27

CApíTULO I
O escravo na formação do Rio Grande do Sul 55

CAP[TUlO 11
A Sociedade Escravista (realidade e mito) 105

CApíTULO 111
Senhores e escravos 159

CApíTULO IV
Estrutura econômica e política da sociedade escravocrata 197

CApíTULO V
A desintegração da ordem escravocrata 239

CApiTULO VI
O negro na sociedade de classes em formação 305

CONCLUSÕES 345

BIBLIOGRAFIA 355

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Prefácio à sa Edição

Relendo papéis antigos

Não costumo reler o que escrevi. Tampouco é certo que haja alguma vez
repudiado em bloco o que publiquei. Nunca disse, nem penso assim, que é
melhor "esquecer tudo que escrevi". Essa insinuação maldosa (até porque
exagerada, com o "tudo" correu mundo mas não é verdadeira.
Pois bem, curiosamente, um dos primeiros livros que publiquei, alids o
segundo, este Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, foi relido por
mim em 1977, quinze anos depois da primeira edição, e novamente agora,
quarenta anos depois. A primeira releitura foi feita porque eu me incomo-
dava com a Introdução, que me parecia abstrata e de difícil compreensão.
Tentei explicd-la no novo Prefdcio.
Agora reli porque a editora acredita que um texto novo de um sociólo-
go (e ex-presidente) jâna fase mais que madura da vida pode atrair leito-
res. Não o fiz, portanto, por amor egocêntrico à obra produzida.
Confesso, entretanto, que o livro surpreendeu-me. Ele foi talvez o
fruto final da juventude: a pesquisa foi feita quando eu tinha vinte e
cinco anos, até completar a redação aos trinta anos. A volúpia com que
lia os documentos, com que devorava a bibliografia e com que entre-
vistava a comunidade negra gaúcha requer uma energia da qual sinto
saudades.
Mas o livro ressente-se também desta juventude: demasiadas citações,
uma certa insegurança quanto à força das andlises e das interpretações que
leva à repetição, a falta de coragem para cortar e simplificar.
Ainda assim, como tese de doutoramento que foi, parece-me que o li-
vro "pdra em pé".

9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Isto não quer dizer que ele, se fosse escrito hoje, seria igual. Se o fosse,
eu não teria aprendido com a vida nem com quarenta anos de estudos e
reflexões.
Mas desiludam-se os caçadores de incongruências e de contradições,
pois o método de análise não mudaria fundamentalmente, nem a visão
apaixonada da questão do negro como ser humano perderia força na aná-
lise da escravidão.
Aliás, creio que um dos pontos fortes do livro foi a revisão da questão
do negro no Brasil, com a análise da produção do preconceito como forma
de manter o negro como um ser "naturalmente" inferior e não apenas so-
cialmente.
Somente Florestan Fernandes (e peço perdão aos autores que desco-
nheço que eventualmente também contribuíram para a renovação da aná-
lise da questão do negro) havia colocado com força a mesma perspectiva,
analisando a situação dos negros paulistas.
Por trás desta revisão estava o horror da "escola paulista de sociolo-
gia" à mistificação sociológica que abrandava os efeitos negativos do
patriarcalismo escravista e insistia na existência, entre nós, de uma "de_
mocracia racial". Talvez a leitura dos capítulos finais deste livro ofereça
argumentos para uma melhor compreensão do "racismo anti-racista" dos
negros, tema em voga nos tempos em que Sartre e Senghor reivindicavam
a "negritude".
Não quero deixar a impressão, entretanto, de que reproduziria hoje,
cem por cento, as interpretações do livro. Sobretudo a parte relativa às
idéias lukacsianas de "consciência adequada", de "falsa consciência da si-
tuação de classe", que me pareceram, na releitura, um tanto metafísicas e
beirando a analogia com a caracterização do proletariado.
Hoje, eu seria mais cuidadoso na transposição da visão marxista-
lukacsiana sobre a impossibilidade do escravo compreender o modo de
funcionamento da sociedade escravocrata (a "totalidade social") a partir
de sua "perspectiva de casta".
Por trás desta afirmação está a idéia de que só o proletariado pode
entender criticamente o funcionamento da sociedade capitalista, lançan-
do mão dos conceitos que a desvendem e demistifiquem. Isso porque, ao
entendê-la a partir da consciência de sua posição de classe (compreendendo

1 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

como o capitalismo se baseia na exploração do que Marx chama de mais-


valia relativa), o proletariado pode ao mesmo tempo agir para mudar sua
posição na sociedade, e mudar a de todos. Não propondo uma sociedade
na qual ele domine, mas na qual desapareça a dominação de classe. Assim,
seu interesse particular motiva a ação política que pode criar uma socie-
dade melhor para todos.
Enquanto o escravo não deseja a generalização da condição de escra-
vo, mas sim identificar-se com a condição de seu dominador, a de homem
livre, sem tocar nas bases de sustentação da sociedade capitalista.
Embora a comparação esclareça algo do processo histórico ocorrido,
talvez a insistência nas diferenças entre a situação de escravo e a de prole-
tário (aliás, óbvia) possa ter ficado um tanto confusa com a reiteração dos
conceitos de Lukacs.
Não por acaso, Florestan Fernandes temia, quando iniciamos o "Se-
minário de Marx", que a leitura de Lukacs distorcesse as "análises em-
píricas" que ele tanto prezava. Na ocasião, as observações do mestre
surpreenderam-me. Hoje, entendo sua apreensão: o brilhantismo filosófi-
co de Lukacs poderia levar-nos a análises mais abstratas e conceituais do
que à reconstrução histórico-estrutural dos processos que pretendíamos
esclarecer.
Na época, entretanto, tanto Lukacs como Sartre foram o oásis que nos
permitiu escapar do marxismo vulgar cujo mecanicismo nos assustava.
Neste sentido, o livro foi bem-sucedido: as ideologias, os projetos
sociais, os valores não foram deixados de lado. Se não fundamentavam
a explicação (que necessita de análises de estrutura social e dos interes-
ses reais), não desapareceram como "mera" superestrutura, como ilu-
são e deformação ideológica. Todo o tempo ressalto que não é bem
assim.
As ideologias e as estruturas, antes de serem consolidadas pela repeti-
ção de crenças, de práticas e até de instituições que as difundem e prote-
gem, aparecem na história como opções, como alternativas. As próprias
estruturas sociais são construídas pela ação humana.
A preocupação de evitar a análise das estruturas (a sociedade escra-
vocrata, a sociedade capitalista em formação etc.) como forças cegas que
atuam mecanicamente está presente nos capítulos iniciais do livro. Nestes,

1 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

sobretudo no segundo capítulo, fiz a análise das ideologias "humaniza-


doras" e descrevi de forma direta e crua o fundamento último da escravi-
dão: a violência. Só a "escola paulista" foi objetiva neste aspecto e desnudou
completamente a violência do sistema escravocrata.
Não quero transformar este novo Prefácio em algo ainda mais pesado
para o leitor do que a Introdução original. Mas vale a pena salientar ainda
alguns pontos sobre a escolha dos procedimentos de análise.
Caio Prado Júnior foi o primeiro autor a fazer uma análise histórico-
estrutural em seu livro sobre a formação do Brasil. Se eu fosse analisar de
novo a escravidão gaúcha, utilizaria o mesmo método básico. Assim como
fiz com os empresários em livro que publiquei em 1964 e com o que veio
a ser chamado, contra minha vontade, de "teoria da dependência" em li-
vro que escrevi com Enzo Faletto.
Entretanto, para mim a ferramenta histórico-estrutural - ou seja, a
referência necessária ao modo como historicamente se estabelecem as re-
lações de produção e de dominação entre as classes ou os segmentos sociais
- exige a redefinição de conceitos e de seus conteúdos em cada época his-
tórica. Assim, para analisar o capitalismo contemporâneo, em época de
globalização tecnológica e financeira, é preciso recriar conceitos. É preciso
voltar a perguntar: "E hoje, como se produz o excedente financeiro? Que
papel joga, se joga, a idéia de mais-valía relativa?"
Mais ainda, na análise de situações concretas a perspectiva histórico-
estrutural é insuficiente para explicar todos os aspectos da vida social.
Este último ponto foi ressaltado, indiretamente, por Roger Bastide em
resenha que escreveu sobre este livro no L'Année sociologique. Bastide dis-
se que seria difícil para um marxista europeu lançar mão das análises
funciona listas de Talcott Parsons ou de Merton.
Quando escrevi este livro, eu já havia lido muito Parsons, Merton (que
eram funcionalistas) e Weber. Minha leitura de Marx foi posterior a estes
autores, e eu não poderia desprezar a contribuição de seus modos de aná-
lise para obter uma visão mais diferenciada da sociedade escravocrata. A
idéia do patriarcalismo escravista vem de Weber. A análise de "ajustamen-
to entre expectativas", de papel social ou da socialização incompleta vem
dos funcionalistas. E, assim como essas, muitas outras análises e concei-
tos não provêm de Marx.

1 2
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Isto, que pode parecer "ecletismo" aos marxistas teológicos, era usual
entre os que foram alunos e trabalharam com Florestan Fernandes. A pai-
xão pelo conhecimento, a pachorra da análise, os tormentos da síntese não
respeitavam as "escolas" político-filosóficas. Podíamos até tê-las, mas éra-
mos, como sou em quase tudo hoje, heréticos e antifundamentalistas.
Em um tempo como o nosso, no qual o fundamentalismo (religioso
ou secular, político ou científico, pouco importa) está levando o mundo a
guerras de conseqüências incalculáveis, acredito que, mais do que nunca, é
preciso ser mais tolerante e ter menos a pretensão à pedra filosofaI, tanto
no método de análise como na vida. Mais valem o pluralismo eclético e o
diálogo democrático de pontos de vista (ainda que na mesma pessoa) do
que as certezas e as crenças absolutas que não levam ao conhecimento mais
amplo e freqüentemente levam, sim, à negação da Razão.

Fernando Henrique Cardoso


São Paulo, 7 de abril de 2003

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Prefácio 2a Edição

Quinze anos depois da publicação deste livro, sai nova edição sem qualquer
mudança no texto. Uma releitura cuidadosa permitiria fazer modificações em
algumas das interpretações propostas e, especialmente, aconselharia aliviar o
livro das muitas notas de pé de página e de algumas complicações desnecessá-
rias. Achei, contudo, que seria melhor deixar os defeitos (e eventuais qualida-
des) da edição original. Um livro, se possui estrutura mais ou menos sólida,
ressente modificações parciais. Elas freqüentemente o tornam capenga. Não
participo do ponto de vista dos que preferem dar injeções de óleo canforado
em textos antigos para ver se eles caminham melhor: ou bem se escreve outro
trabalho, ou não se autoriza a reedição. Alterações menores são sempre possí-
veis e podem ser úteis. Em regra, entretanto, prefiro deixar que os enganos de
interpretação posteriormente descobertos continuem nas reedições para mos-
trar que na vida intelectual o percurso é tão importante quanto o resultado.
Além disto, eu ainda gosto deste livro. Escrevê-lo custou-me enorme tra-
balho e eu o fiz quando vivia totalmente dedicado às atividades da Universi-
dade de São Paulo. Não havia saído do país e meu horizonte intelectual
limitava-se à antiga Rua Maria Antônia de nossa Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras. Nela, o debate intenso, especialmente o de um pequeno grupo -
hoje em grande parte distante da Universidade por imposições de força -,
tentava acompanhar o debate cultural contemporâneo a duras penas. A gera-
ção anterior à minha, de Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Gioconda
Mussolini, Mário Wagner Vieira da Cunha, Lourival Gomes Machado e tan-
tos outros, havia renovado a vida universitária, sob influência direta dos pro-
fessores estrangeiros e de homens como Fernando de Azevedo. A busca contínua
de um «padrão de trabalho científico", a disciplina da pesquisa histórica e de
campo, os muitos anos de contato com professores como Roger Bastide,

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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Fernand Braudel, Pierre Monbeig, Lévi-Strauss, Emílio Willems e inúmeros mais


haviam criado um modelo para a carreira universitária e para a produção in-
telectual. A presença de alguns dos professores estrangeiros mais o ardor dos
que haviam sido formados por eles e dos que, por conta própria, fizeram es-
forços para substituir a tradição ensaística brasileira pela sociologia transmi-
tiram-nos um sentido de responsabilidade intelectual que impunha trabalho
árduo para a feitura das teses de mestrado e de doutoramento.
No final dos anos cinqüenta - muito antes que a "leitura do Capital" se
transformasse na coqueluche universitária mundial - um grupo de assisten-
tes da Universidade de São Paulo e de alunos mais amadurecidos intelectual-
mente dedicou-se à pachorrenta tarefa de ler integralmente, durante anos,
aquela magna obra. Não lemos O capital, entretanto, com os olhos ingênuos
dos que nada leram antes, nem com a beatífica benevolência dos conversos.
Lêmo-Io depois de muito Weber, Descartes, Durkheim, Dilthey, Mannheim,
Husserl, alguma antropologia, história e economia. Os autores de predileção
de cada um dos participantes do "seminário de Marx" e o grau de conheci-
mento que cada um de nós possuía destes e de outros autores variava. Mas nos
debates acabávamos por aprender de tanto escutar as discussões acaloradas.
Havia os que, sob a influência de Sartre, procuravam uma "antropologia
fundante", para explicar a história, e os que, brandindo Husserl ou Hegel, mas
querendo libertar-se da fenomenologia e do idealismo, acreditavam ter desco-
berto como ancorar a Lógica no trabalho social, dispensando a "problemáti-
ca do sujeito" como passo requerido para completar a dialética marxista. Bons
tempos.
A Introdução deste livro, pedante, titubeante às vezes, confusa em muitas
partes e quase sempre justificativa: ela visava mostrar à "comunidade cientí-
fica" que o método dialético sustenta-se como alternativa de conhecimento.
Deixei-a tal qual a publiquei há quinze anos porque ela documenta o esforço
teórico e a carga pesada que era, então, afirmar a opção pela dialética marxis-
ta. Esta tinha de fazer-se como uma escolha à altura de uma tradição univer-
sitária de nível. Florestan Fernandes, atormentado pela obsessão de desenvolver
uma sociologia que não fosse constatação positiva da ordem predominante,
abrira uma possibilidade de justificaçãO da dialética como um dos três méto-
dos fundamentais: o funcionalista, o weberiano e o dialético. A maioria dos

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CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

participantes do "seminário de Marx" atribuía à dialética um status teórico


mais abrangente, aceitando a utilização dos outros métodos em forma subor-
dinada.
Por certo, entre os historiadores e entre os militantes políticos - nestes
como crença - a discussão destas questões colocava-se de outro modo. Mas
nós éramos ou quiséramos ser cientistas sociais. Havíamos recebido um trei-
namento em técnicas de estatística e de investigação de campo. No caso espe-
cífico da pesquisa sobre relações raciais no Sul estávamos estendendo àquela
área uma pesquisa que já havia sido feita em São Paulo por Bastide e Florestan
e na qual trabalháramos como ajudantes. Alguns de nós, embora sem compe-
tência específica, éramos sensíveis à moderna metodologia de pesquisa. Stouffer,
Lazarsfeld, a invenção de novas escalas de atitudes para analisar os compor-
tamentos sociais codificadas no manual de Kresch e Crutchfield estavam en-
trando em nossas tentativas de melhorar o padrão de pesquisa.
Não podíamos contentar-nos, portanto, com a aceitação de um marxis-
mo ritual e indolente que escondia em conceitos muito gerais e filosofantes a
pobreza do espírito analítico ou a ignorância dos caminhos sem graça mas
necessários da pesquisa. E não podíamos jogar pela janela, simplesmente, um
século de trabalhos sociológicos alheios a Marx.
Não aceitávamos, por outro lado, o bê-a-bá do stalinismo teórico: a infra-
estrutura, dinamizada pelo avanço das forças produtivas, que entra em con-
tradição com a superestrutura (a política e a ideologia) e impõe uma ação,
que é mais uma "resultante", do que uma "práxis". Quando Sartre publicou
as Questions de Méthode e em 1960 saiu a tradução francesa de Histoire et
Conscience de Classe de Lukacs, vislumbramos alguma saída para nossos
impasses. Curiosamente, foi a partir de interpretações não baseadas na eco-
nomia e na história, mas sim na filosofia, que fomos buscar elementos para
uma análise dialética de processos sociais reais.
Na Introdução da edição de 1962 tento juntar o que lera em O Capital
com a inspiração sartreana de como tornar a dialética utilizável na análise
sociológica (sem comprometer-me com as teses da Critique de la Raison
Dialectique) e com a reivindicação lukacsiana da possibilidade de usar a no-
ção de "consciência adequada", talvez algo weberiana e até mesmo (quanto
adjetivo!) kantiana.

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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Eu sei, hoje, que tudo isto é problemático. Imagino que os filósofos conti-
nuem esgrimindo-se por causa da incompatibilidade entre a interpretação
lukacsiana de Marx e o materialismo histórico. Sei também que a noção de
"projeto" de Sartre introduz a temática da consciência pela porta dos fundos
na discussão dialética. Poderia até dizer que epistemologicamente Sartre está
mais próximo de Descartes do que de Marx.
Apesar disto, foi com aquelas ferramentas teóricas - ou melhor, com
aquela inspiração - que tentei utilizar a dialética marxista para reconstituir
a sociedade escravocrata do Sul sem apenas repetir o bê-á-bá e sem conten-
tar-me com formulações que, sob a aparência de síntese, escondem do leitor
a ignorância da história. Tentei usar a dialética de modo heurístico e não
dogmático, e não escrevi como se nunca tivesse lido Weber, Parson e os de-
mais sociólogos. E tinha bem próximo a mim o modelo e o esforço de
Florestan Fernandes que sempre insistiu na relação entre ciência e história,
pesquisa e reflexão.
Alguns intelectuais das gerações posteriores leram Marx pela mão de
Althusser. Sem resquícios, talvez, de uma problemática do sujeito e do
historicismo. Estritamente científicos e materialistas. Talvez mais materialis-
tas do que dialetas. Apesar disto - ou quem sabe até por isto - não creio que
a leitura althusseriana de Marx leve alguém a analisar de verdade um processo
histórico. Vai ser preciso que da sombra de Gramsci ou de algum outro mar-
xista não seminarista renasça um momento de liberdade para permitir, como
Sartre e Lukacs permitiram, apesar ou talvez até por causa de seus pecados,
que o marxismo deixe de ser um catecismo e volte a ser forma inspirada, e
mesmo apaixonada, de conhecimento da vida. Por sorte, pelo menos no Bra-
sil, muitos continuaram lendo Marx buscando inspirar-se para entender a rea-
lidade contemporânea e não apenas para repetir o já sabido com um jargão de
versículo de bíblia, conforme a moda. O esforço da pesquisa nas ciências so-
ciais cresceu e o número de teses criadoras feitas pelas novas gerações é consi-
derável. A persistência do esforço de pesquisa ao lado do intenso debate
metodológico, apesar dos anos de repressão que a Universidade enfrentou no
Brasil, é prova da vitalidade das novas gerações, que lutam contra o ranço
burocrático conformista.

[*]

1 8
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Quando se passa a limpo o que eu disse sobre o método dialético na Intro-


dução deste livro, deixando de lado as citações, pois elas já estão lá, o que
sobra?
Como "regra" mais geral- ou melhor, como sinal de alerta à imaginação
e à razão - indico a necessidade de relacionar as estruturas com a história de
sua formação e, conseqüentemente, com a possibilidade de sua transforma-
ção. Como, entretanto, relacionar o que se repete por força das estruturas com
a transformação delas? Através de movimentos sociais historicamente situa-
dos que estão contidos como possibilidades estruturais. Não se supõe uma
estrutura estática e uma dinâmica independente. A escravidão moderna com-
põe-se de um conjunto de relações (de propriedade e de produção, de técnicas,
de instituições e de valores) que se formou num horizonte histórico determi-
nado, o da expansão do capitalismo mercantil. Essas relações baseiam-se no
domínio que a camada senhorial exerce, pela violência, sobre os escravos. Suas
formas só se explicam quando se analisa a formação do sistema capitalista-
escravista. Este é dinâmico (obedece, no caso, à dinâmica do capitalismo) e é
contraditório (as transformações do capitalismo tornam a própria relação servil
um tropeço para o sistema produtivo avançar). O caráter contraditório e di-
nâmico sobre o qual assenta o capitalismo escravista está dado desde sua ins-
tauração, mas ele só se apresenta como algo historicamente determinante de
opções quando, através das transformações efetivas, o sistema todo começa a
decompor-se. É neste momento que os movimentos sociais de negação da or-
dem servil se tornam possíveis e que a consciência social apresenta suas facetas
críticas ou conservadoras de forma mais pura. A ação humana coletiva - e
não um fator técnico qualquer em si mesmo - passa a contrapor-se às estru-
turas vigentes e surge a possibilidade de uma ordem alternativa. Esta im-
plementa-se quando a ação política transformadora tem êxito e na medida
em que o tem.
Reclamo, portanto, a autonomia relativa do político ao nível das classes
e de sua luta. Mostrei no livro que algumas alternativas políticas e econômi-
cas que existiam para as classes dominantes não foram efetivadas a tempo
oportuno. Mostrei também situações nas quais as soluções encontradas aca-
baram por parecer necessárias e inevitáveis, condicionando ações futuras. En-
tretanto, a "necessidade" e a "inevitabilidade" só aparecem com este caráter
ex-post facto. Antes, surgem como opção, luta, criação socialmente aberta

1 9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

aos homens. Não hd, pois, resquício de mecanicismo ou de determinismo no


esquema de andlise proposto. Nem se aceita, no outro pólo, um estilo volun·
tarista e subjetivista de interpretação histórica, baseado na crença de que esta
só se explica pela ação de sujeitos particulares: se é certo que a história depen.
de da ação concreta dos homens (que podem falhar), as opções se fazem em
condições socialmente determinadas.
Na andlise dialética, a explicação das relações estruturais e da dinâmica
de sua transformação implica um esforço metodológico para estabelecer a
hierarquia de vínculos entre cada situação particular e o conjunto do sistema
social (a noção de totalidade).
Para constituir dialeticamente esta noção é preciso elaborar conceitos que
permitam explicar as estruturas de dominação no duplo sentido de como se
mantêm e quais são as oposições que animam o movimento, a história, que as
move. Por outro lado, sem estes conceitos, a própria ação transformadora fica
aquém de suas virtualidades. É por isto que existe uma relação direta entre
ciência e prdxis: a ação transformadora (crítica ou revoluciondria) requer cons-
ciência teórica. Entretanto, dialeticamente, tampouco existe uma "consciên-
cia teórica em si" decorrente de uma prdtica puramente intelectual: o sentido
e os limites da escravidão, por exemplo, só puderam ser vislumbrados critica-
mente (com todas as limitações que as condições estruturais peculiares da es-
cravidão impunham à consciência abolicionista, como mostro no livro) quando
o sistema escravista estava se decompondo e quando existia não só uma alter-
nativa econômica para a escravidão, mas uma luta concreta pelo seu fim. Os
conceitos que permitem explicar o escravismo não se deduzem abstratamente
através da pura crítica teórica: eles estão parcialmente elaborados na própria
história concreta, e o trabalho do intelectual exige um mergulho analítico e
crítico naquela. Este trabalho, entretanto, é necessdrio para os próprios movi-
mentos sociais transformadores.
No caso da escravidão e, mormente, no caso do Sul, o movimento global
do sistema não decorreu da dinâmica interna do sistema capitalista-escravista
brasileiro apenas. Foi o fim do trdfico do escravos que pôs um limite à condi-
ção bdsica da reprodução do sistema (o abastecimento contínuo e economica-
mente vidvel da mão-de-obra). Aquele, por sua vez, decorreu da vitória política
e econômica dos setores capitalistas-industriais manchesterianos contra o
capitalismo mercantil-escravista inglês e mundial. Existiu, portanto, uma

2 o
'-----------------------------------....
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sobredeterminação ao escravismo brasileiro no sistema capitalista mundial.


Esta sobredeterminação impede buscar no escravismo brasileiro isoladamen-
te a explicação de seu destino histórico. A pesquisa, portanto, tem de recorrer
a artifícios analíticos indiretos: a comparação entre a charqueada escravista e
os "saladeros" capitalistas do Rio da Prata permite mostrar os limites intrín-
secos à escravidão como forma produtiva sob o capitalismo moderno. E pode
mostrar também que existia um limite estrutural ao desenvolvimento do ca-
pitalismo imposto pelas relações escravistas de produção. Se é certo que o re-
gime produtivo não era feudal, não seria correto, entretanto, supor que ele
fosse idêntico ao sistema capitalista pleno.
Desta verificação decorre que não é possível analisar a situação do senhor
e do escravo como se lidássemos com empresários e operários. Tampouco a
consciência possível dos senhores e dos escravos, bem como o sentido do
movimento abolicionista, podem ser analisados utilizando-se o símile da re-
volução burguesa ou proletária. As noções de "luta de classes" e de consciên-
cia de classe têm que redefinir-se em função das condições estruturais globais
que as determinam e em função do tipo particular de sociedade (escravista e
patrimonialista) que dá vigência ao capitalismo escravista.
A esta altura, a outra reivindicação metodológica que faço na Introdução
torna-se mais clara: a análise dialética não se pode contentar com a reafirmação
da existência de oposições gerais (dominadores e dominados, senhores e es-
cravos, patrões e operários); ela deve buscar na particularização destas for-
mas o sentido preciso e as possibilidades de ação (dos movimentos sociais, da
práxis) que explicam a qualidade diferencial de cada grande situação históri-
ca. Para caracterizar dialeticamente uma "totalidade histórica" concreta é
preciso relacionar o geral com O singular e ver as relações estruturadas e
hierarquizadas que as ligam e diferenciam, ao mesmo tempo.
O problema teórico central para qualificara sociedade capitalista-escravista
brasileira é portanto o da relação entre a forma capitalista (mercantil) do sis-
tema econômico mundial com a base escravista das relações de produção. Não
é correto supor que se trata pura e simplesmente de uma sociedade capitalista,
nem dizer que se trata de uma sociedade feudal (que manifestante não era o
caso, como mostro no livro). Para explicar esta particularização do capitalis-
mo mercantil-escravista utilizo tanto o conceito de patrimonialismo (que
qualifica a camada dos senhores de escravo) como de casta escrava. Ambos

2 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

funcionando num contexto capitalista-mercantil e redefinidos pela dinâmica


deste.
Por fim, não sei se sou capaz de explicar de forma mais simples do que fiz
na Introdução: a relação entre os conceitos e o desenrolar dos acontecimen-
tos. Preferiria, em todo caso, retirar a possível conotação metafísica da oposi-
ção entre essência e aparência e dizer, simplesmente, que é necessário submeter
cada sistema de exploração (o capitalismo, o escravismo, o feudalismo etc., e
suas variantes históricas) a um processo analítico capaz de determinar seus
elementos constitutivos fundamentais. Neste esforço é preciso estabelecerquais
são os elementos e relações mais simples e mais gerais (abstratos) comuns a
várias situações, mas é preciso fazer o caminho inverso para articulá-los e para
especificar as formas diferenciais (concretas) destas articulações. Num e nou-
tro movimento metodológico - através da análise e da síntese, indo do abs-
trato (simples e geral) ao concreto (articulado) - é necessário estabelecer os
conceitos que permitem explicar como se constituem e se mantém as relações
de exploração e como se delineiam as oposições a partir das quais as estrutu-
ras são dotadas de um movimento.
Os conceitos que a análise científica estabelece não devem confundir-se
com as noções correntes que servem de justificação à ordem existente. Estas
noções - ideológicas - formam parte do real, são eficazes, motivam e justi-
ficam a ação etc. Nesta medida, são indicadores para chegar-se aos conceitos.
Entretanto, o trabalho da ciência consiste em desmistificar as representações
correntes, mostrando que elas encobrem as relações fundamentais de explora-
ção e dominação. Os alcances das noções ideológicas e seu sentido real só
aparecem quando, através da análise, chega-se a determinar os conceitos
explicativos. Um conceito só é explicativo quando mostra as tendências de
transformação contidas pelas oposições que caracterizam, num dado momen-
to, as situações de dominação existentes. Ao explicar os choques de interesse,
as contradições e as bases sociais para a transformação das sociedades, os
conceitos explicativos permitem a articulação das representações correntes (a
ideologia) com os interesses e permitem que se explicitem os fundamentos
sociais destes. Foi neste sentido que fiz a discussão sobre lucro e mais-valia na
Introdução, adotando o exemplo usual neste tipo de discussão.
O modo pelo qual propus a relação entre conceito e história, ciência e
ideologia é bem diferente daquele que levou Althusser a reivindicar o pri-

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CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

mado da "práxis teórica" e a ver nas estruturas mais "reprodução" do que


transformação e nas ideologias suportes significativos das relações sociais 1.
Niio cabe, nesta nota, voltar ao assunto, aliás já amplamente debatido entre
nós por Giannottil. Anoto, apenas, que noutro contexto e quando estas
questões ainda não possuíam "respeitabilidade acadêmica" internacional
elas haviam sido intensamente discutidas em nosso meio, não como dis-
curso filosófico em si, mas como possível caminho para explicar processos
históricos.
Tampouco utilizei a distinção entre "modo de produção" e formação his-
tórico-social seguindo o figurino atual. De fato, este livro mostra como a de-
terminação dos conceitos fundamentais que explicam a sociedade escravista
(ou o "modo de produção escravista") podem ser garimpados no fluxo da pró-
pria análise histórica. A separação entre o nível do conceito (da teoria ou do
"modo de produção") e o da história (a formação social), se tem a vantagem
didática de simplificar e ordenar cartesianamente o pensamento, tem o in-
conveniente de bloquear a compreensão da relação dialética entre consciência
e história e acaba por impor uma noção estática da ciência que se confunde
com a do "regard de l'esprit" sobre a vida. Com esta nova metafísica vem tam-
bém a busca do "purismo" categorial que separa radicalmente a produção ci-
entífica das lutas concretas e da ideologia.
Na maneira como eu entendo que se deva utilizar heuristicamente a
dialética evita-se a formalização que torna as categorias classificatórias e evi-
ta-se a ilusão de que existe um corte radical entre o mundo da "práxis cientí-
fica" e o mundo da política e da história. Evita-se por conseqüência o
cientificismo marxista (contraditório nos termos) que dá a ilusão tran-
qüilizadora de que há os que sabem de ciência certa como a história e a polí-
tica devem ser, pois conhecem o verdadeiro Conceito, e os que, enredados na
ação mas desprovidos da Suma Teológica, outra coisa não respiram do que a
falsa consciência e os constantes desvios ideológicos.
Sei que tirando do espírito estas muletas da crença muitos se desesperam
ao vislumbrar que o mundo do conhecimento está cheio de ilusões e incerte-
zas e que o mundo da ação contém um horizonte dentro do qual as opções e
os "erros" são sempre possíveis e, portanto, que ciência e vida não diferem tão
radicalmente um do outro neste aspecto; noutros termos, que existe política
na história e não movimento de astros obedecendo às leis da gravitação. Mas

2 3
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

que fazer? A ciência social (histórica) não dá paz aos espíritos que precisam
crer em verdades incontestáveis para sobreviver.
Algumas outras questões foram abordadas na Introdução. Não creio que
seja oportuno repeti-las ou esclarecê-las. Com boa vontade e paciência o lei-
tor poderá traduzir os sinais hieroglíficos com que as expus a uma linguagem
mais simples, referida a problemas menos abstratos. Cometi também algu-
mas injustiças, especialmente no caso de Lévi-Strauss quando me referi ao modo
como os estruturalistas fazem as análises de sentido (de conteúdo). Diga-se, a
título de desculpa, que quando escrevi o Prefácio só estavam publicados a
Anthopologie Structurale, Les Structures Élémentaires de la Parenté eLes
Tristes Tropiques. E dei a impressão, quando me referi a Mannheim e a Freyer,
de que faziam análises dialéticas não ideológicas, o que não é o caso. Pecados
veniais, espero, para quem partia com tanta ambição, compartida por vários
colegas, para mostrar que justificava-se intelectualmente utilizar a dialética
para algo mais do que a mera racionalização ideológica. Continuo, por certo,
pensando assim.

Fernando Henrique Cardoso


Clare College, Cambridge, 7 de abril de 1977.

NOTAS

1. Ver, em português, Louis Althusser, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado,


Biblioteca de Ciências Humanas, Editorial Presença, Lisboa, 1974.
2. Giannotti, J. A., "Contra Althusser", in Seleções Cebrap nO 2. Exercícios de Filoso-
fia, Editora Brasiliense, São Paulo, 1975.

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Prefácio à 1a Edição

Este livro reúne resultados parciais de um programa de investigações sobre a


sociedade escravocrata e o negro no Brasil Meridional (Paraná, Santa Catarina
e Rio Grande do Sul), executado entre 1955 e 1960 como parte das ativida-
des regulares de pesquisa da cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. O programa foi inicialmente
proposto por Florestan Fernandes para ampliar o conhecimento sociológico
sobre o preconceito racial no Brasil alcançado em trabalhos anteriores de sua
autoria e de Roger Bastide. Durante cinco anos, aproximadamente, Octávio
Ianni e o autor deste livro, com a colaboração, nos dois primeiros anos, de
Renato Jardim Moreira, empreenderam o levantamento de dados sobre a si-
tuação social dos negros no Brasil Meridional, tanto no passado como no
presente.
As pesquisas de campo concentraram-se em quatro comunidades da área
investigada - Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre e Pelotas - selecionadas
em função de características sociais relevantes para a compreensão das variá-
veis que podem interferir no ajustamento dos negros à ordem social, como,
por exemplo, o grau variável de urbanização e industrialização das áreas con-
sideradas, o coeficiente de negros na população e a porcentagem de imigran-
tes. No decorrer da investigação, a problemática e a forma de integração do
material coligido modificaram-se consideravelmente com relação ao plano
inicial das pesquisas. Assim, apenas o primeiro trabalho relativo a este progra-
ma, publicado com o título de Cor e Mobilidade Social em Florianópolis,
discute sistematicamente a situação social do negro no presente e no passado.
Tanto o livro de Octávio Ianni publicado nesta coleção, As Metamorfoses do
Escravo, quanto o presente volume tratam somente do período escravocrata
no Paraná e no Rio Grande do Sul, respectivamente. É verdade que a problemá-

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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

tica fundamental da integração dos negros à sociedade de classes formada


depois da Abolição estd delineada nos capítulos finais dos dois livros. Entre-
tanto, os resultados gerais do programa de investigações sobre o negro no Bra-
sil Meridional só ficarão completos com a publicação posterior de trabalhos
sobre a ascensão social dos negros.
Este volume, em que discuto a formação da sociedade escravocrata no Rio
Grande do Sul e a situação social do negro, foi preparado entre janeiro de 1960
e junho de 1961, para ser apresentado como tese de doutoramento na Univer-
sidade de São Paulo, o que explica o aspecto formal do trabalho, com discus-
são de fontes e notas de rodapé um tanto excessivas para um livro. Na
elaboração da tese tive a orientação de Florestan Fernandes, que além de pro-
por e incentivar a realização geral do programa fez a crítica minuciosa e
percuciente dos originais, tendo sido sua colaboração de grande valia para mim.
Ao defender a tese, pude colher sugestões e reparos, levados em conta no texto
que ora é publicado, dos professores Laudelino de Medeiros, Lourival Gomes
Machado, Sérgio Buarque de Holanda e Thales de Azevedo, aos quais renovo
meus agradecimentos.
Os originais também foram lidos e criticados por Bento Prado Júnior,
Fernando Antônio Novais, José Arthur Giannotti, Marialice Forachi, Octdvio
Ianni e Ruth Corrêa Leite Cardoso, colegas da Universidade de São Paulo,
amigos e companheiros de trabalho intelectual. A eles devo a consideração
maior que se pode prestar ao trabalho científico: a crítica simpdtica que, sem
esconder objeções, permite a correção de enganos e o fortalecimento das con-
vicções intelectuais.

Fernando Henrique Cardoso


São Paulo, junho de 1962.

2 6
Introdução

"Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem,


a raiz é o próprio homem."

MARX, Contribuição à Crítica da


Filosofia do Direito de Hegel.

o tema deste trabalho refere-se aos processos de constituição e desagre-


gação da sociedade escravocrata rio-grandense, vistos a partir da situação
social que o negro nela assumia. Procura-se analisar a formação de um
tipo determinado de sociedade e verificar os efeitos exercidos por seus
padrões estruturais sobre o comportamento dos agentes sociais que ocu-
pavam as posições polares do sistema: os senhores e os escravos. Simulta-
neamente, consideram-se os padrões estruturais que constituíam esse tipo
de sociedade, bem como sua dinâmica, como resultantes de um conjunto
de ações e relações humanas desenvolvidas em condições histórico-sociais
concretas. Em termos sucintos: o livro visa analisar a totalidade social
concreta que resultou da interação entre senhores e escravos na sociedade
gaúcha.
Contudo, o tema da investigação e os problemas selecionados para
discussão não se esclarecem simplesmente pelo enunciado. É necessário
mencionar que o trabalho é uma tentativa de utilização da interpretação
dialética na sociologia. O método escolhido para a interpretação possui,
como todos os outros métodos, implicações sobre o tipo de problemas
selecionados para a análise, bem como sobre a forma de sua explicação e
apresentação na monografia. Por esses motivos convém discutir as impli-

2 7
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

cações metodológicas mais gerais do emprego da interpretação dialética


na sociologia, como tentarei fazer na primeira parte da Introdução, para
depois expor, esclarecidos em função da perspectiva de análise adotada,
os temas e a problemática da tese.
A discussão dos pressupostos metodológicos da investigação foi feita
em nível abstrato e com certo grau de complexidade, como a natureza
dos problemas versados impunha. Entretanto, o leitor sem interesse espe-
cial em questões desse tipo poderá, sem graves prejuízos para a compre-
ensão do trabalho, iniciar a leitura pela segunda parte da Introdução, que,
como o resto do livro, refere-se a questões concretas, passíveis de serem
explicadas de forma mais simples e clara.

Em primeiro lugar, é necessário precisar a significação metodológica


implícita na afirmação de que é possível reconstruir interpretativamente,
através do método dialético, uma "totalidade concreta". Os propósitos
teóricos sinteticamente definidos nestes termos possuem uma série de
implicações metodológicas que devem ser explicitadas para que se deli-
mitem, sucintamente, as possibilidades e o alcance da interpretação
dialética na sociologia. Essa discussão se impõe porque, graças a motivos
que não cabe esclarecer aqui, a sociologia constituiu-se, como ciência, a
partir de trabalhos de investigação e de esforços de elaboração teórica que,
em regra, aproveitaram muito pouco da contribuição de Marx e de ou-
tros autores que tentaram utilizar o método dialético na análise dos fenô-
menos sociais. Antes ao contrário, nos círculos acadêmicos mais conspícuos
formou-se a convicção de que a interpretação dialética, por estar imedia-
tamente vinculada a um ponto de vista filosófico e a uma atitude definida
diante dos problemas sociais, não é capaz de adequar-se aos cânones da
explicação científica que impõem a ausência de juízos de valor nas análi-
ses sociológicas.
Entretanto, nos trabalhos de Marx, como em algumas obras de exegese
e em certos trabalhos de investigação (principalmente de história) e mes-
mo de elaboração teórica (basta citar Freyer e Mannheim), a análise
dialética não se confunde com a crítica da sociedade a partir de posições

2 8
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

valorativas previamente assumidas, nem se reduz à técnica do desmas-


caramento ideológico. Do ponto de vista científico, portanto, o problema
para a utilização da interpretação dialética estaria na determinação dos
procedimentos metodológicos requeridos por esse tipo de abordagem e
na discussão da compatibilidade desses procedimentos com a problemáti-
ca sociológica. Tentarei discutir esses problemas em suas implicações mais
gerais partindo da análise do conceito de totalidade. Para esse fim, recor-
ri, comparativamente, a outras modalidades de interpretação sociológica
que também lançam mão de procedimentos totalizadores, procurando
ressaltar a especificidade e as condições de utilização legítima da inter-
pretação dialética na sociologia.
O conceito de totalidade não se refere, ou pelo menos não se resume,
na dialética, à reprodução de todas as condições, fatores, mecanismos e
efeitos sociais que interferem na produção de um fenômeno, processo ou
situação social. Na explicação dialética o conceito de totalidade é utiliza-
do como um recurso interpretativo pelo qual se visa compreender, como
Marx escreveu explicitamente no posfácio da Contribuição à Crítica da
Economia Política, não a identidade, o padrão da invariância, mas as dife-
renças em uma unidade, tal como são engendradas numa totalidade de-
terminada. Desse ângulo, portanto, a importância metodológica do
conceito de totalidade não diz respeito apenas à necessidade que ele su-
põe da retenção e explicação de situações sociais globais; a abordagem
totalizadora transforma-se numa perspectiva de interpretação para a aná-
lise de cada um e de todos os fenômenos sociais. A totalidade assim en-
tendida pressupõe não apenas a existência de diferenças numa unidade,
mas também a existência de "conexões orgânicas" que explicam, ao mes-
mo tempo, o modo de inter-relacionamento existente entre as determina-
ções que constituem as totalidades e o próprio processo de constituição
das totalidades. Noutros termos, quando se afirma que a análise dialética
na sociologia assume uma perspectiva totalizadora, diz-se, implicitamen-
te, que ela visa descobrir as determinações essenciais, capazes de explicar
tanto a formação dos padrões que regem as formas de interação social
quanto as condições e os efeitos de sua manifestação.
A perspectiva totalizadora tem, portanto, na interpretação dialética,
uma intenção heurística. Por certo, também noutras modalidades de

2 9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

explicação sociológica, recorre-se à noção de totalidade, e, em algumas


delas, isso é feito com propósitos explicativos e não meramente descritivos.
Entretanto, o problema não está em saber se a dialética, como a interpre-
tação funcionalista ou a abordagem "estruturalista" etc., utiliza a noção
de todo, mas está em determinar como, ou seja, mediante que requisitos
metodológicos e com que intenções cognitivas constroem-se as totalida-
des nas diversas formas de interpretação. Como o objetivo da presente
discussão se restringe à caracterização do procedimento totalizador na
interpretação dialética, resumir-se-á a análise à comparação desse proce-
dimento com uma ou outra técnica diversa de interpretação, para salien-
tar a peculiaridade dessa forma de conceber e explicar teoricamente a
realidade social.
Assim, também na análise funcionalista a noção de "todo" desempe-
nha um papel de primeira importância. Para muitos funcionalistas as aná-
lises ao nível dos sistemas sociais globais, ou das unidades funcionais totais,
transformaram-se mesmo em postulado para a determinação das funções
sociais. Os autores que redefiniram os procedimentos interpretativos da
análise funcional, querendo evitar as associações imediatas entre a análise
das funções sociais, necessárias para a manutenção de uma totalidade so-
cial, com os pressupostos conservadores de equilíbrio natural do sistema
e de necessidade mecânica, tanto dos componentes do sistema como de
suas funções, não deixaram de sublinhar a importância da definição pre-
cisa das diversas totalidades ou "unidades funcionais":

"Do estudo crítico deste postulado ("postulado da unidade funcional")


decorre que uma teoria de análise funcional precisa começar pela defini-
ção das unidades sociais servidas por funções sociais dadas, e reconhecer
aos elementos culturais a possibilidade de possuir múltiplas conseqüên-
cias, algumas delas funcionais e outras, talvez, disfuncionais"; "(...) as
conexões funcionais, que eram descritas apenas parcialmente nas concep-
ções teleológica e mecanicista, são descritas sinteticamente na concepção
positiva de função social. Por meio desta, é possível chegar-se, portanto,
à determinação completa da função dos fenômenos sociais, o que tem
uma enorme importância para o estabelecimento da rede total de rami-
ficações e de influências de uma ação, relação ou instituições sociais, como
muito bem o demonstrou Malinowski"l.

3 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Porém, pelas próprias condições metodológicas da abordagem fun-


cionalista, as "unidades funcionais" são definidas de modo a possibilitar a
análise das relações de coexistência ou de interdependência nas condições
empíricas em que as "unidades funcionais" consideradas se manifestam.
Esse procedimento se impõe porque a abstração das relações evidencia-
das pelo método funcionalista depende da definição precisa do universo
empírico em que se inclui o objeto da análise. Esta implicação metodológica
faz com que as totalidades requeridas pela análise funcionalista, mesmo
quando a investigação não seja de orientação empiricista, caracterizem-se
pela tentativa de reter as condições empíricas de produção dos fenôme-
nos sociais.
Procedimentos globalizadores têm sido empregados, por outro lado,
em grande parte nas tentativas de investigação sistemática de situações,
processos ou fenômenos sociais, sejam funcionalistas ou não os autores.
Uma das preocupações dominantes nas investigações de campo nas ciên-
cias sociais tem sido exatamente a descrição de situações globais, seja atra-
vés da análise de um sistema social inclusivo (como em grande parte dos
"estudos de comunidade"), seja na explanação descritiva de processos
sociais, instituições ou grupos determinados. A antropologia social ingle-
sa, por exemplo, desenvolveu uma série de trabalhos clássicos sobre gru-
pos tribais, como The Andaman Islanders, de Radcliffe-Brown, em que
são reproduzidas as condições globais da existência social, descritas e
empiricamente explicadas na sua complexidade, unidade e diversidade.
Noutras obras, como emArgonauts ofthe Western Pacific, de Malinowski,
são discutidos todos os efeitos de uma determinada instituição sobre o
conjunto de cada um dos aspectos particulares da cultura e da organiza-
ção social de um pov02• Entretanto, a preocupação de explicar a realida-
de social nas condições de suas manifestações empíricas é, em geral,
dominante neste tipo de trabalho.
Na interpretação dialética, as relações que se procura determinar numa
totalidade também estão referidas de maneira imediata aos processos so-
ciais reais, e também existe o escopo de reproduzir o real como concreto.
Porém, neste caso, o concreto aparece como o resultado de um processo
de conhecimento marcado por um movimento da razão que implica uma
elaboração muito mais complexa do que a abstração dos padrões gerais,

3 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ainda que essenciais, que regulam a interação nas condições empíricas de


sua manifestação. Mesmo a descoberta que se obtém nas explorações des-
critivas das condições e fatores cujos efeitos resultam na produção, numa
determinada "ordem", de um sistema integrado ou de uma situação social
dada, é insuficiente para os propósitos cognitivos da interpretação dialética.
Neste último tipo de explicação, para que as relações que se procura de-
terminar numa totalidade assumam sentido heurístico, não devem ser
retidas conceptualmente como simples reprodução no pensamento de
relações empíricas, nem basta que a teoria seja capaz de descobrir os pa-
drões que regem as conexões entre essas relações. O ponto de partida
imediato, o real, transfigura-se na análise dialética numa série de media-
ções pelas quais as determinações imediatas e simples (e por isso mesmo
parciais, abstratas) alcançam inteligibilidade, ao circunscreverem-se em
constelações globais (concretas). Por isso o concreto foi definido em co-
nhecida frase de Marx como "a síntese de muitas determinações, a unida-
de do diverso". Mas a operação intelectual pela qual se obtém a "totalidade
concreta" implica que o movimento da razão e o movimento da realidade
sejam vistos através de relações recíprocas, e determinados em sua cone-
xão total. Por isso, a interpretação totalizadora na dialética faz-se através
da elaboração de categorias capazes de reter, ao mesmo tempo, as contra-
dições do real em termos dos fatores histórico-sociais efetivos de sua pro-
dução (e, neste sentido, categorias "saturadas historicamente", empíricas)
e de categorias não definidas empiricamente, capazes de desvendar as re-
lações essenciais que aparecem de imediato, como afirmava Marx, "mis-
tificadas"3.
Sociologicamente isso significa que a interpretação dialética opera com
relações que se manisfestam em dois planos. Existem motivos, fins e con-
dições sociais que os agentes sociais se representam em função das mani-
festações que assumem empiricamente. É evidente que, tanto como
representações sociais quanto como resultados efetivos de representações,
esses fenômenos se exprimem através de regularidades objetivas que podem
ser verificadas e explicadas sociologicamente (em termos de conexões
estruturais, funcionais ou de sentido). Porém a explicação científica deve
passar da análise desse plano para a descoberta das conexões que as regu-
laridades empíricas mantêm com as condições, fatores e efeitos essenciais

3 2
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

que determinam realmente a dinâmica e o sentido do processo social. É


óbvio que os motivos e fatores que operam no plano das relações essenciais
não caem necessariamente no nível de consciência social, ou aparecem
deformados.
Entretanto, os dois planos da totalidade concreta não são concebidos
teoricamente como se um fosse a conseqüência irreversível ou mecânica
do outro, nem, muito menos, como se os processos sociais tal qual os
agentes sociais os representam se constituíssem como meros "invólucros"
sem eficácia sobre as condições que determinam verdadeiramente o pro-
cesso social. Ao contrário, as relações entre os dois planos são dialéticas,
e, na construção das totalidades sociais, é necessário elucidar as conexões
recíprocas que os mantêm como uma unidade entre pólos opostos, diver-
sos, mas integrados.
Esse procedimento metodológico explicita-se na análise da sociedade
capitalista em O Capital. Por um lado, há um movimento da razão para a
determinação das relações essenciais e a revelação conseqüente da forma
imediata que essas relações assumem na realidade: determina-se a mais-
valia como conceito básico do sistema capitalista e ipso facto desvenda-se
sua aparência empírica sob a forma de lucro, o mesmo sucedendo no que
diz respeito à taxa de mais-valia e à taxa de lucro:

"ainda que a taxa de lucro difira numericamente da taxa de mais-valia


enquanto mais-valia e lucro são realmente o mesmo e iguais numerica-
mente, o lucro é, contudo, uma forma transfigurada de mais-valia, for-
ma na qual se delineiam e se obscurecem sua origem e o segredo de sua
existência. Na realidade o lucro não é outra coisa senão a forma sob a
qual se manifesta a mais-valia, que só pode desnudar-se através da análi-
se que a despoja daquelas vestes. Na mais-valia põe-se a nu a relação entre
o capital e o trabalho. Ao contrário, na relação entre o capital e o lucro,
quer dizer, entre o capital e a mais-valia tal como aparece como o rema-
nescente sobre o preço de custo da mercadoria realizado no processo de
circulação e, de outro lado, como remanescente que há de terminar-se
mais concretamente por sua relação com o capital total, o capital apare-
ce como uma relação consigo mesmo, relação que se distingue como soma
originária de valor do valor novo acrescido por ele mesmo. Existe a cons-
ciência de que este valor novo é engendrado pelo capital no decorrer do

3 3
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

processo de produção e do processo de circulação. Mas o modo como


isto ocorre aparece mistificado e como fruto de qualidades inerentes ao
próprio capital."4

A mais-valia não se inscreve como um dado da realidade empírica, como


o lucro. Entretanto, só a partir daquele conceito é possível entender o siste-
ma capitalista como uma totalidade concreta: como num movimento de
determinações essenciais (classe capitalista e classe proletária produzindo
mais-valia em condições determinadas de organização das forças produti-
vas) que se objetivam sob formas que ao mesmo tempo as negam e expri-
mem (o lucro, o mercado, a circulação e distribuição de mercadorias etc.).
Por outro lado, o real fenomênico não possui a significação de uma
construção do espírito destituída de conteúdo, sentido e eficácia. Ao con-
trário, ele é um modo de ser determinado que exprime um dos níveis da
totalidade concreta e mantém relações dialéticas com as relações essenciais
que não se objetivam empiricamente. Por isso, a concorrência e as leis do
mercado no sistema capitalista não são analisadas como simples formas
mistificadas de existir e de ter consciência da vida capitalista, mas como
formas reais, que surgem num dos níveis do movimento do capital consi-
derado um processo total:

"Aqui, no Livro 111, não se trata de formular reflexões gerais sobre esta
unidade (a unidade do processo de produção e do processo de circula-
ção), mas, pelo contrário, de descobrir e expor as formas concretas que
surgem do processo de movimento do capital considerado como um todo.
Em seu movimento real os capitais se enfrentam sob estas formas con-
cretas, nas quais tanto o perfil do capital no processo direto de produção
como seu perfil no processo de circulação não são mais do que dois
momentos específicos e determinados. As manifestações do capital, tal
como se desenvolvem neste livro, vão-se aproximando, pois, gradualmen-
te, da forma sob a qual se apresentam na própria superfície da socieda-
de, através da ação mútua dos diversos capitais, através da concorrência,
e tal como se refletem na consciência habitual dos agentes da produção."5

o movimento da razão ao elevar-se do particular para o geral percor-


re, pois, um circuito no qual se desenvolve uma dialética entre o abstrato

3 4
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

e o concreto. É assim, e não pelo recurso a um procedimento metodológico


empirista, que se constitui uma totalidade concreta. Por isso Marx diz que
o concreto aparece como o ponto de chegada quando é o verdadeiro ponto
de partida: não há mediação sem o imediato e vice-versa. Entretanto, se o
real, como imediato, reaparece, mediatizado pela teoria, na totalidade que
o circunscreve, e se as categorias são expressões de relações históricas6,
disso não decorre que o ponto de partida e o ponto de chegada definem-
se por relações de identidade, ou que seja possível pensar o objeto inde-
pendente da teoria. Com efeito, a mercadoria que é o ponto de partida
para a análise do capitalismo é também o ponto de chegada. Mas, no pri-
meiro momento, ela é, como a forma elementar de riqueza nas socieda-
des capitalistas, um "objeto exterior, uma coisa apta para satisfazer
qualquer tipo de necessidade humana"7; percorrido o circuito de consti-
tuição e explicitação do "sistema capitalista", a mercadoria redefine-se
como categoria histórico-social, nega a forma inicial que assumira e se
revela, depois de explicitados os elos que a vinculam à totalidade do siste-
ma, como uma forma de manifestação da mais-valia:

"A mercadoria se apresenta à primeira vista como um valor de utilidade,


como um conjunto de propriedades desfrutáveis. Em virtude de sua
serventia social, entra um jogo de trocas, adquirindo deste modo novas
propriedades e uma nova forma de valor de uso originário (...). O origi-
nário é negado no fenômeno constituído por ele (...). Essa substância,
chamada valor, não é nada em si mesma, mas é pelo contrário constituí-
da pela própria relação de troca como um ser autônomo, que nega enfim
a diversidade ilimitada de suas aparências. Em suma, parte-se da aparên-
cia sensível para, numa série de negações das etapas anteriores, atingir
uma entidade que em si mesma não possui nenhuma das propriedades
das qualidades dos momentos constitutivos"8.

Em análises deste tipo, o real como ponto de partida não é um objeto


empírico sobre o qual se debruça o espírito, concebidas metafisicamente
razão e realidade, de forma estanque. Ele é dado, como representação,
através de um esquema de significações que, por sua vez, só tem sentido
com referência a uma realidade determinada9 •

3 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Em certo sentido, portanto, a análise das totalidades na dialética pos-


sui um ponto de contato com as correntes "estruturalistas" que procuram
elaborar, através do conceito de estrutura concebido como um modelo,
um instrumento conceptual-metodológico para a determinação (e conse-
qüente explicação) das condições básicas ou nucleares que definem as
possibilidades de interação numa sociedade dada. O procedimento metó-
dico para a análise estrutural, tal como é entendida, por exemplo, por Lévi-
Strauss e Nadei, leva à construção de uma matriz, pela qual são ordenados
teoricamente os padrões e combinações possíveis de padrões de compor-
tamento 10• Entretanto, a semelhança no procedimento é formal: num e
noutro caso os requisitos metodológicos para a generalização dependem
da elaboração interpretativa de categorias capazes de exprimir determi-
nações gerais. Nisso, contudo, cessa a analogia. Na verdade, a técnica de
elaboração e representação das totalidades através do método dialético
difere da técnica utilizada pelos estruturalistas. Estes elaboram modelos
que exprimem relações vazias de conteúdo significativo, para assim reter
interpretativamente, como padrões, quaisquer tipos de ação social con-
creta. Já a análise dialética procura sintetizar com seu procedimento
totalizador tanto o que Marx chamava de determinações gerais (os pro-
cessos sociais recorrentes) como as determinações particulares (os processos
emergentes), vislumbrando nestas o elemento explicativo do sentido das
totalidades sociais 11 •
Graças a esse procedimento é possível explicar os fenômenos sociais
nas condições reais de sua produção sem que, ao mesmo tempo, a técni-
ca interpretativa imponha, como condição de validade, que a análise se
circunscreva de maneira estreita às condições sociais empiricamente
dadas. Com efeito, a explicação dialética é obtida quando, no mesmo
movimento da razão, os fenômenos são concebidos e analisados com
referência ao singular e ao geral, com relação ao qual o particular não é
senão sua diferenciação. Noutras palavras, ao mesmo tempo que a in-
terpretação dialética na sociologia visa explicar os fenômenos sociais em
termos de hic et nunc, só alcança este tipo de conhecimento dialeti-
camente quando é capaz de ultrapassar, através da razão, as limitações
do fato, compreendendo-o através de um padrão. Isto é feito, porém,
sem que a explicação se resuma à pesquisa das determinações gerais e

3 6
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sem que, muito menos, se transformem os fatos em conseqüências de


padrões gerais.
Tal técnica interpretativa não deixa, é certo, de limitar as possibilidades
de generalização do conhecimento obtido àquelas situações que tendam a
reproduzir o mesmo tipo de vinculação concreta entre as determinações
essenciais (particulares) e as determinações gerais, e, por outro lado, não
deixa de infletir o foco de análise para os processos de diferenciação dos
sistemas sociais, pois é nas determinações particulares que o método vai
buscar o nexo explicativo das totalidades concretas. Não obstante, essas
limitações garantem a possibilidade de alcançar-se, ao mesmo tempo, uma
explicação que transcenda os limites do conhecimento factual, sem ape-
lar para formas de análise que impliquem logicamente a eliminação das
condições efetivas de produção das atividades sociais.
Chega-se, dessa forma, ao resultado fundamental sobre as possibilida-
des de aplicação do método dialético na sociologia. Através dele é possí-
vellidar com os fenômenos sociais tanto em função do que possuem de
singular e concreto como em função das normas gerais que se exprimem,
como diferenças, nas singularidades. Por isso, o método dialético permite
a análise dos processos sociais recorrentes em conexão com os mecanis-
mos regulares de mudança. Como a interpretação dialética lida, simulta-
neamente, com o particular e o geral, pode-se, sem o risco de transformar
a explicação obtida numa forma ideográfica de análise, explicar as rela-
ções, regularidades e modificações dos fenômenos sociais nas condições
efetivas de sua produção, concretamente situados. Por isso é possível reter
nas totalidades construídas dialeticamente as relações de significação: não
se torna logicamente necessário que os esquemas que explicam o encadea-
mento das ações sociais sejam vazios de conteúdo. Noutras palavras, a
técnica interpretativa dialética permite representar conceptualmente a ação
social sem despojá-la de seus atributos reais. Ao contrário, a análise evi-
dencia tanto o sentido que é inerente à ação humana como a representa
com a qualidade que possui de transformar a si e à natureza pela negação
da realidade constituída.
No que diz respeito às possibilidades gerais de utilização da dialética
na sociologia, cabe salientar ainda que os pressupostos metodológicos alu-
didos acima mostram que este método focaliza os processos sociais de

3 7
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

forma a determinar as relações entre os processos sociais emergentes e os


produtos sociais objetivados em formas já estabelecidas pela atividade social
recorrente. Por isso, os fenômenos sociais podem ser captados interpre-
tativamente tanto como resultados incessantemente renovados da ativi-
dade humana criadora quanto como efeitos de normas estáveis que
resultaram da atividade humana anterior.
O método dialético permite, portanto, a análise da interação social a
partir de situações, condições, fatores e efeitos sociais recorrentes que
produzem configurações sociais estáveis, fixando padrões de inter-rela-
ções. Desse ângulo a análise torna-se estrutural. Porém, mesmo neste caso
não se confunde com a abordagem "estruturalista". Esta, por imposições
lógico-metodológicas, ordena os elementos que integram os modelos es-
truturais em sistemas abstratos de relações. Graças a este artifício, é pos-
sível prever todas as possibilidades de interação reguladas por padrões
estruturais, independentemente do conteúdo e do tipo particular de ação
que concretamente se desenrola num grupo dado. Assim, todos os fatos
observados que exprimem normas estruturais podem ser explicados, for-
malmente, através do modelo. Entretanto, os modelos, por causa dos re-
quisitos metodológicos de sua construção, não retêm os conteúdos
significativos das ações sociais.
A análise estrutural na interpretação dialética parte de intuitos ex-
plicativos e de pressupostos sobre a realidade social diversos. Sua legi-
timação metodológica depende da explicação concomitante do processo
de constituição dos padrões de integração estrutural. Com essa explica-
ção desvenda-se o sentido que os agentes sociais emprestam às normas e
se evidencia a qualidade de produto da atividade social concreta que ca-
racteriza toda estrutura. A análise não resulta nunca na determinação de
condições formais que regulam a ação, mas na determinação de uma cons-
telação de significados expressos em normas sociais. As conexões estrutu-
rais devem, portanto, ser representadas ao mesmo tempo como produtos
"objetivados" da atividade social, e nesse sentido como um conjunto de
padrões que motivam a ação humana (sistema cuja inteligibilidade se en-
cerra nas relações recíprocas entre normas dadas), e como "processo", isto
é, como algo que se está criando pela atividade humana através da nega-
ção de um dado estado de coisas e da projeção de um vir-a-ser ainda não

3 8
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

configurado socialmente (o que, neste caso, torna explicável em termos


de sentido o sistema produzido e o que se está produzindo).
A explanação sobre a possibilidade de análises estruturais nos traba-
lhos sociológicos que utilizam o método dialético leva à compreensão dos
limites da aplicação das pesquisas de conexões funcionais nesse tipo de
trabalho. Sem o recurso às relações de interdependência entre uma "ativi-
dade parcial" e uma "atividade total" ou entre os componentes da estru-
tura social e sua continuidade, não é possível representar a atividade social
humana organizada em sistemas sociais, nem portanto explicá-la, como
em parte ela é, enquanto resultado de condições sociais dadas. Entretan-
to, também nesse caso a representação da atividade social vista em cone-
xão com o "funcionamento" de um sistema de interação já constituído só
se completa dialeticamente quando se retoma ao pólo oposto, que é a
atividade social que constitui os padrões de integração funcional. Só as-
sim se entende por que a atividade social recorrente diferencia-se no pró-
prio processo de repetir-se.
Essa discussão nos leva, finalmente, à consideração das condições pe-
las quais o processo de mudança social é representado na interpretação
dialética. Na abordagem estruturalista e entre os funcionalistas que ape-
lam para a noção de desequilíbrio funcional ou para a idéia de "disfunção"
para explicar o processo de mudança, este acabou sendo visto em termos
mecanicistas ou através do artifício metodológico que consiste na repre-
sentação da estática e da dinâmica social como dois estados do fluxo
sociaP2. Na interpretação dialética, ao contrário, o fluxo social é repre-
sentado como um contínuo. Sociologicamente o contínuo pode ser expli-
cado porque a ação é vista ao mesmo tempo como resultado motivado
por condições exteriores e como práxis 13, e porque os sistemas sociais não
são concebidos como "sistemas fechados", mas como "sistemas abertos".
O curso das modificações sociais, na medida em que a ação também é
práxis, vai depender dos propósitos socialmente definidos pelos grupos
sociais e da capacidade de organização e de modificação que os agentes
sociais forem capazes de desenvolver. A mudança estrutural não é repre-
sentada, pois, como um momento de desequilíbrio de um sistema dado
na direção da recuperação do equilíbrio em outro tipo de sistema. Con-
trariamente, ela decorre da tensão entre ações humanas criadoras e das

3 9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

contradições que se formam no interior da própria estrutura social. Essa


é sempre encarada, dessa forma, como estrutura que está em modificação
graças às contradições sobre as quais repousa e graças à ação humana
criadora.
Os processos de mudança são dialeticamente analisados, portanto,
como resultantes da própria atividade humana concreta que, no processo
incessante de realizar os padrões estruturais e funcionais de integração,
nega-os, provocando tensões e contradições sociais cuja resolução (supe-
ração) consiste na criação de novas formas de existência social.

II

No presente trabalho procurei guiar-me por estes cânones gerais da


dialética marxista. Apenas, como o livro diz respeito à análise de um pro-
cesso histórico-social, a estrutura do trabalho não é lógico-sistemática.
Parte-se do que é dado imediatamente como realidade: a mão-de-obra
escrava como base da economia exportadora do Rio Grande do Sul (Ca-
pítulo I: "O escravo na formação do Rio Grande do Sul"). Neste capítulo,
porém, a problemática real da tese aparece sob forma transfigurada. Ex-
põe-se a participação do escravo no "sistema de produção", encarando-se
este como algo constituído, e aquele como uma peça na engrenagem eco-
nômica, quando o tema que se procura desenvolver no livro é o processo
de constituição de uma totalidade histórica que implicou a dupla aliena-
ção de senhores e escravos. O ponto de partida do trabalho é, portanto,
na verdade, o momento final de um processo histórico.
Por outro lado, se as determinações contidas no primeiro capítulo
são, num sentido, as mais "concretas", porque objetivadas como fatos
históricos, noutro sentido são as mais abstratas, pois desenvolvem-se
no nível mais superficial da totalidade concreta: os escravos aparecem
como coisas, como mercadorias, reguladas pelo processo econômico,
sem que na análise do capítulo se revelem, entretanto, as vinculações
com a prática social global que nos faziam aparecer sob esta forma e,
menos ainda, as tensões derivadas da condição de homem da merca-
doria-escravo.

4 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

No segundo capítulo ("A sociedade escravista, 'realidade e mito"'), o


andamento metódico mantém-se o mesmo, envolvendo apenas maior
conhecimento e extensão: a análise da camada senhorial tal qual ela se
inseria na realidade histórica como um modo determinado, e também alie-
nado, de existência é o reverso da medalha da análise da mão-de-obra
escrava. Os requisitos e as condições de funcionamento da sociedade
escravocrata-senhorial, bem como as modalidades de personalidades-status
necessárias numa sociedade deste tipo, foram analisados em termos de
produtos sociais, como condições dadas de existência social. Apenas no
segundo capítulo as determinações a que se chega tornam-se mais concre-
tas (no duplo sentido) porque é possível defini-las através de correlações-
funcionais-de-sentido e de oposições que envolvem vários planos de
objetivação da história. Noutros termos, as condições estruturais e funcio-
nais que regulavam as ações da camada senhorial são definidas tanto em
oposição às decorrências (implícitas) da existência de escravos como em
função das condições variáveis de funcionamento da sociedade escravista
no que diz respeito às modalidades de exploração econômica e de formas
de poder que historicamente se configuraram. Assim, o senhor não é vis-
to como um tipo invariavelmente definido, ou como resíduo de várias
encarnações históricas do comportamento senhorial, mas como o resul-
tado variável e específico de constelações histórico-sociais determinadas.
Por isso, esboça-se nesse capítulo uma análise que é, ao mesmo tempo,
diacrônica. A noção de momento passa a ser decisiva nele para a caracte-
rização sociológica: as categorias são válidas para constelações histórico-
sociais precisas 14 •
Entretanto, só nos capítulos terceiro e quarto alcança-se realmente a
perspectiva totalizadora. No capítulo terceiro ("Senhores e escravos")
procura-se definir as relações entre os senhores e os escravos tanto em
função de suas determinações gerais (abstratas) como em função das de-
terminações particulares que eram engendradas pelos modos concretos
de interação entre ambos nas diversas condições particulares de produ-
ção social da sociedade rio-grandense. Neste capítulo, a análise é, simul-
taneamente, particular e geral: a caracterização formal das relações entre
senhores e escravos (como relações de violência e de alienação mantida
pelos efeitos da violência) exprime-se de forma particular em cada situação

4 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

singular, e cada situação singular (a estância, a família, a charqueada, o


mercado urbano) revela, em sua unicidade, as determinações gerais
mediatizadas pelas formas particulares de existência. Nenhum dos dois
pólos, contudo, dissolve-se um no noutro.
No capítulo quarto ("Estrutura econômica e política da sociedade
escravocrata"), por fim, o sentido da escravidão na sociedade gaúcha de-
fine-se em sua totalidade. A práxis escravocrata que aparecia nos dois
primeiros capítulos como um conjunto de ações operando num sistema
composto por padrões já constituídos de comportamento e no terceiro
capítulo começou a delinear-se como relações de tensão entre seres hu-
manos, é vista em função de uma situação histórico-social determinada
de produção da existência. A sociedade escravocrata gaúcha constituiu-se
como uma tentativa para organizar a produção mercantil capitalista numa
área onde havia escassez de mão-de-obra. Desde o início, contudo, o sis-
tema assim constituído trazia em seu bojo um conjunto de contradições
que definiam o travejamento básico de suas possibilidades de existência.
A escravidão fora o recurso escolhido para organizar a produção em grande
escala visando o mercado e o lucro (formação do sistema capitalista), mas
o desenvolvimento pleno do capitalismo (a exploração da mais-valia rela-
tiva) era, em si mesmo, incompatível com a utilização da mão-de-obra
escrava através da qual não é possível organizar técnica e socialmente a
produção para obter a intensificação da exploração da mais-valia relati-
va. Essas contradições se aguçaram e evidenciaram desde o momento em
que a produção escravocrata gaúcha entrou em relações de competição
com a produção assalariada no rio da Prata, que acelerou sua desagrega-
ção. A partir desse momento torna-se possível descrever e explicar a socie-
dade escravocrata gaúcha na sua diversidade e unidade, como sistema e
como práxis objetivada. A ação social, em sua singularidade e criatividade,
passa a ser compreensível porque se explicitaram as condições gerais de
possibilidade da ação, e as condições gerais (o sistema escravista de pro-
dução e a sociedade escravocrata), por sua vez, podem ser teoricamente
analisadas como resultantes de tensões, contradições e opções humanas
concretas, historicamente situadas. O jogo dialético do particular e do geral
(mediatizado pelo movimento da razão que determinou as categorias es-
senciais de sistema capitalista e escravidão) permite a compreensão da

42
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

totalidade como concreto. Por isso, neste e nos dois capítulos subseqüen-
tes, a análise passa do nível da discussão das condições funcionais e estru-
turais de manutenção do sistema escravocrata para a análise da atividade
social concreta, vista, a um tempo, como resultado social e como proce-
dimento de invenção da história.
Com efeito, a partir do quarto capítulo e, principalmente, no quinto
("A desintegração da ordem escravocrata") e no sexto ("O negro na soci-
edade de classes em formação"), o andamento da exposição se altera: a
história é vista "en se faisant". A problemática se enriquece graças à dis-
cussão das questões relativas à "consciência da situação", que se torna
indispensável para explicar, já agora sem o risco de ser mera análise
mistificadora, as condições particulare,s pelas quais a situação social se
apresenta historicamente aos agentes sociais e para determinar as linhas
de alternativas possíveis que se abriam para a ação, entendida como práxis.
No quinto capítulo analisam-se tanto os requisitos de funcionamento
do sistema servil como o processo de desagregação da ordem escravocrata
(em termos dos interesses sociais em jogo e da consciência da situação).
Retoma-se a discussão sobre o sistema escravocrata porque só na desa-
gregação do sistema revelam-se de forma nítida as condições, fatores,
processos e mecanismos que interferem no seu funcionamento: a violên-
cia como vínculo básico da relação escravista aparece claramente na
antiviolência, também violenta, do escravo que se rebela; e, por outro lado,
a consciência das condições de funcionamento do sistema evidencia-se,
para os coevos, nos momentos de sua desagregação: a impraticabilidade
de o capitalismo expandir-se além de certos limites através da escravidão
demonstra-se no esforço ingente de criação de formas de retribuição
pecuniária aos escravos no período de dissolução do regime. A discussão
sobre a desagregação do sistema foi feita através da análise dos dois pro-
cessos que diretamente abalaram a escravidão no sul: a imigração e a abo-
lição.
No quinto capítulo e no capítulo final a exposição se desenvolve de
forma a lidar com os vários níveis da totalidade concreta: analisam-se,
simultaneamente, nas condições da ação (estruturais e organizatórias), a
consciência real e possível da situação social e a ação como práxis. Vêem-
se, a um tempo, os efeitos sobre o comportamento do negro livre exercidos

43
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

pela escravidão e pelas representações dos brancos sobre os escravos (a so-


cialização parcial do escravo, as expectativas assimétricas nas relações en-
tre brancos e negros etc., resultando na anomia e na desmoralização do grupo
negro) e as possibilidades abertas pela consciência possível e efetiva deste
estado de coisas e pela ação do negro para a transformação da situação his-
tórico-social. Paralelamente, os problemas discutidos deixam de ser relati-
vos às condições gerais da práxis do negro para circunscreverem-se à temática
da transformação dessas condições pela práxis do homem-negro. Chega-se
assim ao termo, tendo partido da análise do escravo como mercadoria com
a análise do negro enquanto homem, evidenciando-se com isso o propósito
mais geral do presente trabalho, que é o de estudar um momento da histó-
ria da luta do homem contra a alienação.
A indicação sumária da temática e da perspectiva de abordagem deste
trabalho sugere, pois, que a sociedade escravocrata gaúcha foi analisada,
simultaneamente, tanto em termos das condições de coexistência e de
mudança como em termos da práxis social e da objetivação desta práxis
num conjunto de regras relativamente estáveis e integradas de interação.
Entretanto, a análise não pode ser qualificada nem de estrutural nem de
funcionalista, e isto se evidencia ao explicitar-se a historicidade suposta
pela noção dialética de totalidade social.
Em certo sentido seria possível, sem dúvida, analisar processos sociais
históricos ou diacrônicos do ponto de vista estruturalista e do ponto de
vista funcionalista. Sabe-se que Lévi-Strauss, por exemplo, acredita que
"o método histórico não é incompatível, de forma alguma, com a atitude
estrutural", apesar de os fenômenos sincrônicos oferecerem uma homo-
geneidade relativa que os torna mais fáceis de estudar que os fenômenos
diacrônicos 15• Por outro lado, graças aos esforços de investigação e de sis-
tematização teórica de autores como Merton, Florestan Fernandes e Talcott
Parsons, a moderna teoria funcionalista redefiniu os procedimentos de
análise e interpretação utilizados por seus precursores, que a haviam cons-
tituído como um meio de investigação adequado apenas para a análise de
fenômenos sincrônicos16 , sendo capaz, modernamente, de analisar, den-
tro de certos limites 1?, fenômenos de seqüência.
Contudo, na análise das seqüências funcionais e na construção dos
modelos estruturais, se é possível reter, logicamente, as condições de

44
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

redefinição dos sistemas e se, portanto, cabem análises diacrônicas, em


nenhuma circunstância o próprio processo de modificação das condições
estruturais e funcionais é representado de forma que se entenda ação so-
cial humana como práxis que transforma pela negação e que, ao transfor-
mar, necessariamente atribui e nega sentido a um universo determinado.
Por isso mesmo, a validade das explicações funcionais e estruturais res-
tringe-se àquelas situações nas quais existe um universo de significações
sociais dado e um padrão definido de integração social totaps.
Noutros termos, a análise funcionalista e a análise estrutural, tanto ao
definir a integração estrutural e funcional quanto ao lidar com os proces-
sos de alteração de uma ordem social qualquer, acabam por tornar a ação
social (de indivíduos ou de grupos) isenta de tensões dialéticas. É-lhes
estranha a idéia de uma ação "que se faz a si mesma", através da nega-
tividade, em condições concretas e determinadas, e, ipso facto, não cabe a
discussão, naquelas perspectivas, sobre o sentido das ações e sobre as trans-
formações de sentido. Os estruturalistas mais lúcidos, como Lévi-Strauss,
sabem que, "em mitologia como em lingüística, a análise formal coloca
imediatamente uma questão: sentido"19. Mas, neste caso, há uma cisão
metodológica entre o momento da análise formal e o momento da análise
de sentido. Da mesma forma, os funcionalistas, pretendendo escapar às
críticas que tornam o funcionalismo solidário com uma visão conserva-
dora do mundo, estabeleceram categorias capazes de redefinir a noção de
equilíbrio através do recurso à idéia de funções que se neutralizam por
disfunções. Porém, umas e outras são concebidas como "forças", exter-
nas à atividade negadora do homem, de cujo jogo aparece uma resultante:

"Em qualquer caso, um elemento pode ter, ao mesmo tempo, conse-


qüências funcionais e disfuncionais; isto dá lugar ao aparecimento do pro-
blema importante e difícil de estabelecer o padrão de resultado líquido
do feixe de conseqüências. "10

Na análise dialética, ao contrário, os requisitos metodológicos permitem,


como é óbvio, explicar a atividade social em termos de conexões de senti-
do. Além disso, neste tipo de interpretação não há necessidade, logicamente,
de operar em termos de processos estanques ou mecânicos quando se trata

45
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

da passagem de fenômenos sincrônicos para diacrônicos. De fato, a sincronia


e a diacronia inserem-se, na dialética, como pólos cujo circuito incessante-
mente refeito produz, ao mesmo tempo, a simultaneidade e a sucessão:

"Considerando em seu conjunto, o capital aparece, pois, simultaneamente


e coexistindo no espaço em suas diferentes fases. Mas cada uma de suas
partes passa constantemente, e por turno, de uma fase a outra, de uma a
outra forma funcional, funcionando sucessivamente através de todas. Estas
formas são portanto formas fluidas, cuja simultaneidade acha-se deter-
minada por sua sucessão (...) "estes processos especiais não são mais do
que momentos simultâneos e sucessivos do processo total. É a unidade
dos três ciclos, e não a interrupção de que falamos acima, que realiza a
continuidade do processo total. O capital global da sociedade possui sem-
pre esta continuidade e seu processo representa sempre a unidade dos
três ciclos. "'21

É a reprodução das formas de interação que leva à transformação


(basta pensar no ciclo do capital total em conexão com as crises). Isto
fica evidente quando se relembra que o circuito dialético não se resolve
numa identidade e quando se pensa a mudança não em função de forças
opostas que produzem uma resultante, mas em função de "tensões" en-
tre determinações humanas que, ao permutarem incessantemente e si-
multaneamente o sentido que possuem, transformam reciprocamente
suas qualidades, recriando-se. Por isso, a análise das condições de coe-
xistência através do método dialético é, ao mesmo tempo, a análise das
condições de sucessão.
Diante dessas possibilidades, o artifício metodológico funcionalista
parece pobre para interpretar as conexões funcionais que se estabelecem
na mesma sociedade quando esta sociedade se configura em constelações
sociais diversas em momentos distintos. Ele se resume à pesquisa de gru-
pos de conexões válidos para cada fase histórico-social, vistas descon-
tinuamente. Entre um padrão estrutural ou organizatório e outro há um
hiato: o método funcionalista é cego para compreender a transformação
em suas implicações globais. Supõe requisitos para a elaboração meto-
dológica, que retiram a historicidade peculiar do comportamento huma-
no (a negatividade), e não é capaz de representar as vinculações recíprocas

46
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

e contraditórias entre a simultaneidade e a sucessão, que exprimem o


movimento da história.
Finalmente, procurou-se reconstruir as totalidades sociais neste tra-
balho como totalidades singulares:

"O marxismo aborda o processo histórico com esquemas universalizantes


e totalizadores (...) Mas em nenhum caso, nos trabalhos de Marx, esta
perspectiva pretende impedir ou tornar inútil a apreciação do processo
como totalidade singular. Quando ele estuda, por exemplo, a breve e
trágica história da República de 1848, não se limita - como far-se-ia
hoje - a declarar que a pequena burguesia republicana traiu o proleta-
riado, seu aliado. Ao contrário, ele tenta mostrar esta tragédia no por-
menor e no conjunto. Se ele subordina os fatos anedóticos à totalidade
(de um movimento, de uma atitude), é através daqueles que pretende
descobrir esta. Noutros termos, o marxismo empresta a cada aconteci-
mento, além de sua significação particular, um papel de revelador: como
o princípio que domina a pesquisa é o da procura do conjunto sintético,
cada fato, uma vez estabelecido, é interrogado e decifrado como parte
de um todo; é sobre ele, pelo estudo de suas falhas e de suas 'sobre-signi-
ficações' que se determina, a título de hipótese, a totalidade no interior
da qual ele reencontra sua verdade. Assim, o marxismo vivo é heurístico:
com relação à pesquisa concreta, seus princípios e seu saber anterior
aparecem como reguladores. Jamais, em Marx, encontram-se entidades:
as totalidades (por exemplo, 'a pequena burguesia' em 018 Brumdrio)
são vivas; definem-se por elas mesmas, nos quadros da pesquisa. "22

As implicações desse procedimento no presente trabalho atingem des-


de a forma expositiva adotada até as modalidades de investigação utiliza-
das e as técnicas interpretativas empregadas. Em termos simples, a partir
desta perspectiva é possível a utilização do método dialético de forma
heurística porque o real não é dado a priori, mas constitui-se pelo esforço
analítico da investigação. Com isso evita-se a criação de novos Fran-
kensteins que, em caso contrário, acabariam sendo criados, como muitas
vezes foram, em nome de um método que desejava acabar com eles. Nes-
se ponto o paradigma pode ser tanto Marx quanto Max Weber na Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em qualquer dos dois casos, o

47
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

método não é empiricista, mas em ambos a interpretação prende-se a um


momento analítico, que condiciona as possibilidades de globalização. Sem
sólida base empírica a análise dialética na sociologia desfaz-se, enquanto
análise criadora, num formalismo abstrato tão lastimável quanto qualquer
tipo de escolástica e acaba por transformar "a significação em intenção, o
resultado em objetivo realmente visado".
Fica patente portanto que, se por um lado a interpretação dialética na
sociologia parte de uma atitude totalizadora e universalizante, por outro
lado, em nome desses princípios, nada justifica as tentativas de muitos mar-
xistas de transformar o processo de conhecimento em mera procura de fa-
tos e situações empíricas capazes de provar a verdade contida nos esquemas
abstratos de determinações gerais. É claro que existem determinações co·
muns e elas desempenham funções definidas na análise dialética. Porém, o
conhecimento dos processos históricos sociais depende, como é sabido, não
dessas determinações em si mesmas ou de sua verificação particular (que
suporia a identidade entre o comum e o singular), mas das relações entre o
geral e o particular numa totalidade concreta. Neste processo dialético são
exatamente as determinações específicas que, na medida em que diferenci-
am as totalidades, se constituem como chave da interpretação:

"Para atingir esse fim explicativo, precisa o especialista pôr em evidên-


cia o caráter essencial do fenômeno investigado. (...) O essencial, numa
pesquisa de relações que operam causalmente mas que se alteram conti-
nuamente em sua configuração e atividade, em determinados períodos
de tempo, é naturalmente algo que permita explicar como e por que se
produzem determinadas alterações da ordem social. Precisa ser, forçosa-
mente, um fator construtivo e operativo, que contenha aquilo que Marx
chamava de 'determinações comuns' (na linguagem sociológica moderna:
as condições elementares e os processos sociais que se repetem ou recor-
rentes) e aquilo que ele entendia como as 'determinações particulares' (e
que nós chamamos, atualmente, de condições sociais emergentes e pro-
cessos sociais in flux), de maneira tal que as segundas possibilitem uma
elaboração interpretativa causal."23

Por esses motivos, procurei encarar os eventos particulares através


de uma perspectiva capaz de torná-los fatores criadores na interpreta-

48
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

ção sociológica. Não tentei iluminar exteriormente os processos histó-


rico-sociais analisados com a utilização de esquemas interpretativos ela-
borados sobre o negro, a sociedade escravocrata, o capitalismo ou a
sociedade de classes a partir de situações concretas de outras áreas. É
evidente que cada uma dessas categorias possui determinações comuns
e que essas, nesta qualidade, não foram relegadas a segundo plano. Não
obstante, no esforço de fazer análises concretas, as referências sobre os
escravos, os negros e a sociedade escravocrata do Brasil em geral não
contaram para a reconstrução da sociedade escravocrata gaúcha, não
havendo no texto qualquer referência empírica que não diga respeito
expressamente à região considerada, e em nenhum caso as interpreta-
ções são analógicas. A comparação foi utilizada, porém, como recurso
interpretativo, para ressaltar as características diferenciais da área estu-
dada, como, por exemplo, na discussão sobre a produção mercantil nas
charqueadas ou na análise das condições particulares pelas quais se fez
no sul a Abolição. É óbvio que muitos processos sociais e econômicos
que operavam no Rio Grande do Sul não podem ser explicados tendo-
se em vista apenas a situação local; neste caso, indiquei os limites im-
postos à explicação pela natureza do fenômeno, e a interpretação só foi
tentada quando se dispunha de evidências gerais suficientes para com-
preender o processo em causa como uma totalidade.
O cuidado na determinação precisa dos fatos ou situações e na cons-
trução "analítica"24 das totalidades sociais permitiu que os requisitos de
aplicação do método dialético relativos à natureza dessas totalidades como
"totalidades em processo de produção", constituídas através da práxis
social, fossem preenchidos nas descrições e interpretações levadas a efei-
to. Tentei explicar os processos sociais, as situações e os sistemas sociais
não do ponto de vista da história já decorrida, quando tudo parece ter-se
dirigido na direção de finalidades engendradas por condições dadas, mas
do ponto de vista da história como realização da atividade humana cole-
tiva. Realização, é certo, na qual os fins visados e os resultados consegui-
dos não são coincidentes, e onde a necessidade criada pelos fatos já
estabelecidos indica, nas grandes linhas, o curso provável da ação, mas
que sem a referência direta à atividade significante dos homens agindo
em comum torna-se opaca para a compreensão científica.

49

L_
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Devo advertir, ainda, que não se tentou explicar a relação entre fins
desejados, condições de realização das ações e resultados obtidos, como
uma sucessão de fatores externos uns aos outros, ou opostos pela própria
natureza (como condições subjetivas individuais, por um lado, e fatores
independentes da ação humana particular, por outro). Desses equívocos
procurei guardar-me nas interpretações, graças à utilização do conceito
de práxis, que nada mais é, com efeito, senão:

"uma passagem de objetivo a objetivo pela interiorização; o projeto, como


superação subjetiva da objetividade na direção da objetividade, enlaça-
do entre as condições objetivas do meio e as estruturas objetivas do cam-
po dos possíveis, representa, em si mesmo, a unidade em movimento da
subjetividade e da objetividade, determinações cardeais da atividade. O
subjetivo aparece, então, como um momento necessário do processo
objetivo. Para tornarem-se condições reais da prdxis, as condições mate-
riais que governam as relações humanas devem ser vividas na particula-
ridade das situações particulares (... )"25

NOTAS

1. O primeiro texto é de Merton, R. K., "Manifest and Latent Functions", Social


Theory and Social Structure, The Free Press, Glencoe, pág. 37; o segundo é de
Fernandes, Florestan, "O método de interpretação funcionalista na sociologia",
Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, Companhia Editora Nacio-
nal, São Paulo, 1959, pág. 260. A própria concepção positiva de função social,
como F. Fernandes a define, supõe a necessidade metodológica da análise de
uma totalidade: "A função é entendida, logicamente, como uma relação de
interdependência entre uma atividade parcial e uma atividade total ou entre
um componente estrutural e a continuidade de estrutura, em suas partes ou
como um todo, representando-se os elementos dessa relação, de modos diver-
sos e em graus variáveis, quer como determinados, quer como determinantes"
(pág. 255). Para estes autores, as "totalidades sociais" são vistas em termos de
graus variáveis de integração social, o que evita a noção conservadora de siste-
mas em equilíbrio.

5 O
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

2. Sobre o grau de generalização que se obtém neste tipo de investigação, ver Florestan
Fernandes, "A reconstrução da Realidade nas Ciências Sociais", Fundamentos
Empíricos da Explicação Sociológica, op. cit., págs. 33-34.
3. Estas explanações fundam-se nos seguintes trabalhos de Marx:
a) El Capital, crítica de la economía política, trad. de Wenceslao Roces, Fondo de
Cultura Económica, México, 1946, 3 tomos.
b) Contribuição à Crítica da Economia Política, trad. de Florestan Fernandes,
Editora Flama, S. Paulo, 1946.
c) Misere de la Philosophie, Éditions Sociales, Paris, 1947.
4. Marx, El Capital, op. cit., tomo m, voI. I, pág. 79. Os capítulos I e 11 deste volume
são essenciais para a compreensão do problema metodológico aqui indicado. En-
quanto "realidade" (com aparência) a mais-valia não é; enquanto conceito ela nega
a aparência que assume como realidade mistificada: "Partindo de uma taxa de mais-
valia dada e de uma magnitude desta taxa, a taxa de mais-valia não expressa senão
o que em realidade é; uma medida distinta da mais-valia na qual se toma como
base o valor do capital em seu conjunto e não simplesmente o valor da parte do
capital de que nasce diretamente (o capital variável- F.H.) mediante a troca com
o trabalho. Mas na realidade (quer dizer, no mundo dos fenômenos) as coisas ocor-
rem inversamente (...)", pág. 78.
5. Marx, El Capital, tomo m, voI. I, pág. 57.
6. A própria noção de valor, se, no sistema capitalista desenvolvido, parece um con-
ceito que desempenha, logicamente, uma função básica, é a expressão consciente
de um processo histórico que, como tal, aparece historicamente antes do pleno
desenvolvimento do sistema capitalista (na economia de trocas diretas).
7. Marx, El Capital, op. cit., tomo I, voI. I, pág. 39.
8. Giannotti, J. Arthur, "Notas para uma análise metodológica de O Capital", Revis-
ta Brasiliense, nO 29, São Paulo, maio-junho de 1960, pág. 65. Ver também, sobre
o mesmo problema, pág. 69.
9. "A própria ciência histórica burguesa visa, é verdade, estudos concretos; ela acusa
mesmo o materialismo histórico de violar a unicidade concreta dos acontecimen-
tos históricos. Seu erro está em pretender encontrar esse concreto no indivíduo
histórico empírico (trate-se de um homem, de uma classe ou de um povo) e na
consciência que é dada empiricamente (quer dizer, dada pela psicologia individual
ou pela psicologia das massas). Porém, quando ela crê ter encontrado o que há de
mais concreto, está o mais longe possível desse concreto: a sociedade como totali-
dade concreta, a organização da produção num nível determinado do desenvolvi-
mento social e a divisão em classes que ela opera na sociedade". Lukacs, G., Histoire
et Conscience de Classe, Les Éditions de Minuit, Paris, 1960. O trabalho de Lukacs
aqui referido, especialmente o artigo sobre consciência de classe, do mesmo livro,
é fundamental para a análise de conceito de totalidade na dialética.

5 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

10. Lévi-Strauss, Claude, "La Notion de Structure en Ethnologie", Anthropologie


Structurale, Librairie Plon, Paris, 1958; Nadel, S. F., The Theory ofSocial Structure,
Cohen & West, Londres, 1957. Existem diferenças, que não cabe analisar aqui, na
maneira como estes autores caracterizam o conceito de estrutura e quanto ao va-
lor heurístico e metodológico da abordagem "estruturalista". Sobre o conceito de
estrutura em geral, ver Firth, Raymond, "The Meaning of Social Anthropology",
Elements of Social Organization, Watts & Co., Londres, 1961.
11. Sobre as determinações gerais e as determinações particulares que operam nas to-
talidades, bem como sobre a explicação a partir destas últimas, ver, especialmen-
te, Marx, Contribuição à Crítica da Economia Eblítica, trad. de F. Fernandes, Editora
Flama, S. Paulo, 1946, págs. 203-204. Ver ainda O Capital, já citado, tomo lI,
capítulos 1 a 4, e F. Fernandes, "Os Problemas da Produção na Sociologia", Fun-
damentos Empíricos da Explicação Sociológica, op. cit., capo VI, esp. pág. 136.
12. Para a crítica, do ponto de vista do próprio método funcionalista, dessa represen-
tação da dinâmica social, ver F. Fernandes, "O Método de Interpretação Fun-
cionalista na Sociologia", já citado.
13. Sobre o conceito de práxis ver Karl Marx, "Thêses sur Feuerbach", in Marx, Karl
e Engels, Friedrich, Études Philosophiques, Éditions Sociales, Paris, 1951, especial.
mente as teses I e m.
14. No primeiro capítulo a análise é histórica, no sentido de que se ordenam os even-
tos conforme sua sucessão temporal. Começa-se a distinguir, é certo, um "tempo
social" (como, por exemplo, quando se relacionam, como um momento, as for-
mas de ocupação e exploração econômica com a quantidade de mão-de-obra es·
crava utilizada), mas esse só se concretiza como passo metodológico no segundo
capítulo.
15. Lévi-Strauss, Claude, "La Notion de structure etc.", op. cit., pág. 319.
16. Quanto às possibilidades de utilização do método funcionalista na análise de pro-
blemas de mudança social e de fenômenos sociais diacrônicos, ver, especialmente,
F. Fernandes, "O método de interpretação funcionalista na sociologia", Funda-
mentos Empíricos da Explicação Sociológica, já citado, esp. págs. 284 e segs. So-
bre a neutralidade ideológica do funcionalismo, ver Merton, R. K., op. cit., esp.
págs. 38-47.
17. A "manipulação de séries causais contínuas em relações de seqüência", por exem-
plo, está excluída das análises funcionais, o que explica a razão pela qual, inde-
pendentemente de outros motivos metodológicos, estaria excluído o recurso
sistemático à análise funcionalista neste trabalho. Cf. F. Fernandes, op. cit., pág. 284.
18. F. Fernandes, op. cit., págs. 271-272, discute de uma perspectiva correta a elabo-
ração do fator tempo na análise funcionalista. Explica também por que a análise
funcionalista só pode lidar com significações dadas: "ela toma sociedades já cons-

5 2
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

tituídas como objeto de investigação e as estuda de modo a reter como se processa


atualmente (ou seja, no lapso de tempo considerado) o exercício das atividades
vitais para a existência das coletividades humanas" (pág. 272).
19. Lévi-Strauss, Claude, "Magie et Religion", Anthropologie Structurale, op. cit.,
pág.266.
20. Merton, R. K., op. cit., pág. 51.
21. Marx, El Capital, op. cit., tomo lI, pág. 112.
22. Sartre, J.-P., "Question de Méthode", Critique de la Raison Dialectique, Librairie
Gallimard, Paris, 1960, pág. 27.
23. Fernandes, F., "Os problemas da indução na sociologia", Fundamentos Empíricos
da Explicação Sociológica, op. cit., pág. 124.
24. Está claro que a referência à construção "analítica" das totalidades é relativa. Todo
o procedimento dialético de interpretação ou de análise supõe a realização do cir-
cuito abstrato-concreto já indicado. Refiro-me apenas ao procedimento heurístico
que evita a "dedução" do real a partir de totalidades abstratas, definidas a priori.
25. Sartre, J.-P., op. cit., pág. 66.

5 3
CApíTULO I O escravo na formação do
Rio Grande do Sul
A importância relativamente pequena do escravo na organização do tra-
balho do Brasil Meridional tem sido acentuada por todos os autores que
se preocuparam com o problema. A existência generalizada de escravos
também tem sido ressaltada, por outro lado, por quase todos. Cumpre,
entretanto, distinguir áreas e momentos históricos da região que se desig-
na comumente como o Brasil Meridional (Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul) para que estas afirmações ganhem sentido.
Já salientei noutro trabalho l que a compreensão do processo de de-
senvolvimento da economia sulina depende da análise das funções eco-
nômicas que ela desempenhou, graças à maneira peculiar pela qual se
articulou com o que se poderia designar como a economia propriamente
colonial do Brasil, isto é, com o setor exportador da economia. Esta aná-
lise mostra que houve áreas do Brasil Meridional cuja produção, em de-
terminados momentos históricos, articulou-se com a economia colonial
como uma economia subsidiária, mas de vital importância para seu de-
senvolvimento. Outras áreas, entretanto, povoaram-se e mantiveram-se
organizadas em torno de padrões de "economia de subsistência", ligan-
do-se apenas ocasionalmente às áreas da economia exportadora do país,
mantendo-se, em regra, fechadas sobre si próprias.
O escravo foi utilizado de forma variável no Brasil Meridional con-
forme a área considerada se inserisse, num dado momento histórico, no
plano da economia mercantil organizada para atender os estímulos das
áreas mais desenvolvidas do país ou da região do Prata (isto é, para aten-
der o mercado que se formava graças à atividade da economia de expor-
tação), ou se organizasse nos moldes da economia de subsistência. No
primeiro caso havia a utilização regular do braço escravo, no segundo caso
a utilização do escravo tendia a ser insignificante.

5 7
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Entretanto, todas as vezes que se criavam condições no mercado geral


do país para a articulação de qualquer das áreas sulinas onde se praticava a
economia de subsistência com as áreas de economia exportadora, empre-
gava-se também, mas de forma intermitente, o braço escravo. Estas condi-
ções dependiam da impossibilidades eventual de verem as áreas de economia
exportadora suas necessidades de subsistência supridas localmente. Isto
acontecia graças a duas condições principais: ou porque a rentabilidade do
produto colonial que sustentava a economia das áreas de exportação cres-
cia de forma a compensar a utilização de todos os recursos de mão-de-obra
daquelas áreas na sua produção, forçando a importação de víveres de ou-
tras áreas2 ; ou porque alguma contingência (pestes, más condições de clima
num ano etc.) obrigava as áreas de economia exportadora a importar das
áreas de economia de subsistência os gêneros necessários à vida.
Do ponto de vista econômico, a razão da utilização decrescente da mão-
de-obra escrava, conforme se tratasse de áreas de economia exportadora,
de economia mercantil subsidiária desta, ou de economia de subsistência,
é sobejamente conhecida. Prende-se a que a produtividade média desses
três tipos de economia também é decrescente, variando com ela as possi-
bilidades de produção e utilização de excedentes econômicos3• Ora, a apli-
cação do capital tende a distribuir-se na proporção direta do lucro que
pode ser gerado por unidade de capital. No período escravocrata a maior
parte das inversões, considerando-se a precariedade das condições técni-
cas da produção, fazia-se sob a forma de mão-de-obra escrava. Essa, as-
sim, era mais ou menos abundante conforme se tratasse de uma região de
economia para a exportação, de economia mercantil visando o mercado
interno, ou de economia de subsistência.
Por esses motivos a análise da participação do negro na formação do
Rio Grande do Sul depende da compreensão do processo histórico de
desenvolvimento econômico desta área do Brasil Meridional.

1. os ESCRAVOS NA ECONOMIA PREDATÓRIA E NA PRODUÇÃO PARA O CONSUMO LOCAL

Inicialmente, convém reafirmar que a integração da região sulina ao do-


mínio português deveu-se, concomitantemente, a razões políticas e mili-

58
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

tares, que obedeceram à estratégia da expansão colonial portuguesa, e a


razões econômicas, que diziam respeito ao comércio de mulas e cavalos
feito pelos "paulistas" para o suprimento da área mineradora do Brasil4 •
Disto resultou que o povoamento do Rio Grande processou-se apoiado
em duas formas básicas de ocupação da terra: a vila fortificada, núcleo
militar estável, e a estância de criação, que não deixou de constituir-se
como um ponto de apoio para a penetração militar na direção sul. A es-
tância, entretanto, antes de organizar-se como uma forma estável de pro-
priedade e de gerar um tipo definido de organização do trabalho e de poder,
foi antecedida por formas bastante mais precárias e provisórias de ocupa-
ção e povoamento. No período da preia ao gado, que, no dizer de Olivei-
ra Vianna, criava-se no regime de compáscuos, havia meros pontos de
apoio para a atividade dos comerciantes do gado. Estes pontos de apoio
eram os "currais", onde se concentrava o gado pilhado nas campanhas
sulinas5•
O escravo foi utilizado apenas em escala restrita na economia das vi-
las fortificadas e nos currais que retinham o gado preado. Esta afirmação
é verdadeira tanto para o período inicial da penetração do Sul, isto é, para
o período da ocupação da zona entre a costa e as lagoas, como para os
momentos posteriores da penetração luso-brasileira na direção do sul, do
sudoeste e do oeste, pois a penetração se fez, em regra, através de pontos
fortificados e de estâncias de pilhagem. Às vezes estas últimas assumiam a
dupla característica que marcou o processo de penetração no sul, trans-
formando-se em núcleos de guerreiros pilhadores de gado, ou melhor, de
saqueadores de gado militarizados.
Isto significa que houve negros escravos desde a primeira metade do
século XVIII, no início do processo de formação do Rio Grande. Basta
lembrar a composição da Frota de João Magalhães (1725), formada na
maior parte por homens pardos, escravos de Brito Peixoto, povoador de
Laguna. A referência à qualidade de pardos atribuída a acompanhantes
dos primeiros conquistadores, povoadores e preadores de gado é comum
nos documentos relativos ao antigo Continente de São Pedro. A corres-
pondência dos governadores do Rio Grande, desde a do fundador do Pre-
sídio histórico, aponta, algumas vezes, a presença de escravos. Da mesma
maneira, as atas das "vereanças" de Viamão e Porto Alegre falam em negros

59
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

escravos6 • O comércio de negros escravos com o Rio da Prata - ou me-


lhor, seu contrabando - , da mesma maneira, foi persistente, embora os
dados para avaliar a importância numérica dessa atividade sejam escassos
e precários7 •
Também não há dúvida que continuou havendo a utilização do es-
cravo negro, mas em escala reduzida, nas áreas das fronteiras móveis,
que se iam incorporando ao domínio luso. No século XIX os viajantes
que percorreram as áreas recém-incorporadas à Província ou à Capi-
tania registraram a presença dos negros nas atividades econômicas.
Estas observações são válidas mesmo para as regiões missioneiras e para
as fronteiras de Corrientes e do Uruguai, onde a abundância da mão-
de-obra indígena tornava praticamente desnecessária a escravidão ne-
gra. Arsene Isabelle indica que, entre o pessoal regular de uma tropa
de carretas que fazia o comércio entre as Missões e o Rio Pardo, havia
dois negros e um índio, e que os viajantes que desta mesma direção
demandavam Porto Alegre abrigavam-se nas casas de hóspedes das es-
tâncias, onde eram servidos por um negro ou um índios. Saint-Hilaire
refere-se insistentemente a criados negros nas estâncias da fronteira,
na região das Missões na direção do Rio Pardo; Luccock, viajando, é
verdade, em área de povoamento mais antigo, também menciona a
presença de escravos nas estâncias, trabalhando como domésticos para
atender aos forasteiros 9•
Contudo, mormente no século XVIII, a utilização de negros nos cur-
rais foi reduzida e ocasional. Apenas nas povoações e vilas que cresceram
em torno dos pontos fortificados a utilização de escravos nos misteres
domésticos e nos serviços urbanos foi maior. Para comprovar a utilização
de escravos pelos portugueses nas vilas militarizadas, basta mencionar que
depois da rendição da Colônia do Sacramento, quando os habitantes des-
ta praça forte foram levados para Buenos Aires, carregaram consigo 342
escravos, "entre negros, mulatos y pardos"lO.
Todavia, a existência ocasional de negros nos currais e sua presença
nas povoações e vilas, mesmo que em número maior do que a bibliografia
histórica registra, como as informações acima parecem mostrar, não ex-
plica a proporção de negros na população no Rio Grande, tal como apa-
rece nos mapas de população de 1780. Neste levantamento, conhecido

6 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

pelo nome de seu autor, Tenente Córdova l !, a distribuição provável da


população segundo a origem racial nas diversas freguesias continentinas
seria a seguinte:

Freguesia Brancos Índios Negros Total


Madre de Deus 871 96 545 1.512
Rio Grande 1.643 182 596 2.421
Estreito 880 97 277 1.254
Mostardas 360 40 191 591
Viamão 1.028 114 749 1.891
Santo Antônio 828 91 270 1.189
Conceição do Arroio 234 25 158 417
Aldeia dos Anjos 210 1.890 255 2.355
Vacaria 291 32 248 571
Triunfo 637 - 640 1.277
Taquari 580 - 109 689
Santo Amaro 512 - 208 720
Rio Pardo 1.317 438 619 2.374
Cachoeira 42 383 237 662
Totais 9.433 3.388 5.102 17.923

Aurélio Pôrto calcula que em 1787 havia 526 brancos, 285 negros e
189 índios para cada mil habitantes. Os livros de registro de batismo de
Jesus-Maria-José mostram que, em 1738, houve o batismo de 2 negros
e 2 índios para 4 brancos. Dos 350 batizados que Aurélio Pôrto compu-
tou entre 1747 e 1758,21 foram de negros, 21 de índios e 303 de bran-
cos12• É conhecida a inconsistência das informações sobre as populações
coloniais, principalmente sobre a composição dessas populações segun-
do a cor ou a condição. Mesmo assim, a proporção entre brancos e ne-
gros em muitas freguesias do Rio Grande parece não deixar margem a
dúvidas sobre a importância do coeficiente de negros no conjunto da
população. Além disso, o recenseamento de 1814, transcrito do Apenso
ao quadro estatístico de 1868 organizado por Antonio Eleutherio de
Camargo, confirma as indicações do levantamento de 178 O, ampliando
as informações desse mapa pela determinação da condição da popula-
ção negra:

6 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

CENSO DA POPULAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL, POR ZONAS,


SEGUNDO A CONDIÇÃO DA POPULAçÃO PRESENTE EM 1814 1J

Brancos Indígenas Livres Escravos Recém- Total


nascidos

Freguesia de Viamão 1.545 11 188 908 160 2.812


Santo Antônio da
Patrulha (freguesia) 1.706 8 330 961 98 3.103
Conceição do Arroio 837 19 180 538 74 1.648
São Luiz de Mostardas
(freguesia) 723 5 68 281 74 1.151
N. S. dos Anjos (aldeia) 1.292 256 233 716 156 2.653
Porto Alegre (cidade) 2.746 34 588 2.312 431 6.111
S. Bom Jesus de
Triunfo (vila) 1.760 55 240 1.208 193 3.456
Santo Amaro (vila) 953 27 66 773 65 1.884
São José do
Taquari (fazenda) 1.092 42 67 433 80 1.714
Rio Pardo (cidade) 5.931 818 969 2.429 298 10.445
Cachoeira (vila) 4.576 425 398 2.622 204 8.225
Piratini (vila) 1.439 182 335 1.535 182 3.673
Pelotas 712 105 232 1.226 144 2.419
Rio Grande (cidade) 2.047 38 160 1.119 226 3.590
Missões (povos) 824 6.395 77 252 403 7.951
Total da província 32.300 8.655 5.399 20.611 3.691 70.656

N.B.: Santo Amaro, hoje é General Câmara; N. S. dos Anjos é Gravataí; e São Luiz de Mostardas,
São José do Norte.

Os dados acima sugerem que a participação do escravo negro na po-


pulação do Rio Grande do Sul, pelo menos a partir do último quartel do
século XVIII, foi bastante acentuada. Como explicar isto diante das afir-
mações iniciais sobre o papel do negro nas estâncias pioneiras e nas vilas
fortificadas do Continente de São Pedro?
Cumpre, desde logo, afirmar o que havia inicialmente insinuado: não
é certo que o coeficiente de negros na atividade das vilas e estâncias sulinas
tenha sido tão pequeno quanto geralmente se acredita. Para explicar a
presença do número acentuado de negros na população do Rio Grande
durante o período colonial não basta, porém, considerar as atividades
econômicas até aqui apontadas. É certo que houve o emprego de mão-de-

62
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

obra escrava nas vilas que se desenvolveram, exigindo alguma diferenciação


econômica e a organização de meios regulares de manutenção da vida ur-
bana, pois as fontes são claras a esse respeito 14• Entretanto, os núcleos
urbanos cujo crescimento justificava a utilização de escravos em propor-
ções consideráveis eram apenas Rio Grande, Porto Alegre e Rio Pardo.
Da mesma maneira, sabe-se que houve emprego de negros nas estâncias,
onde os misteres domésticos, ao que parece, reservavam-se a eles. Porém,
o pessoal ocupado no trabalho das estâncias sempre foi reduzido 1s• Como,
por outro lado, no período colonial a população urbana do Rio Grande
era bem menor do que a rural, só é possível explicar os altos coeficientes
de população negra sugeridos pelos recenseamentos coloniais pela deter-
minação de alguma outra forma de atividade rural capaz de permitir a
importação de escravos.
As interpretações correntes sobre a formação do Rio Grande insis-
tem apenas na importância da estância e da economia do gado para o
desenvolvimento da região. Caracterizam assim de forma um tanto su-
mária o processo de organização da vida econômica do sul. Nas mo-
nografias sobre a conquista e a organização da economia do Rio Grande,
os historiadores, para serem fiéis às fontes, substituem a esquematização
corrente das obras de síntese por análises nas quais ressaltam a varieda-
de de formas econômicas de produção que existiram no sul. Entretanto,
os mesmos autores, nos trabalhos em que discutem as condições gerais
de formação da província, concentram a atenção quase exclusivamente
nas estâncias. Não o fazem, está claro, por desconhecimento da realida-
de, mas porque esta é a imagem que se projeta no processo da autocons-
ciência do Rio Grande transparecendo no que chamaria de "a ideologia
gaúcha".
Na realidade, todavia, desde muito cedo na história do Rio Grande
do Sul, desde a época chamada pelos historiadores de o "feliz período
patriarcal", que vai do período da fixação dos lagunistas nos campos de
Viamão até a invasão de 1763, a economia da região repousou sobre a
criação de gado e sobre a agricultura. Agricultores foram os açorianos,
agricultores eram também os criadores de gado. Não os criadores das es-
tâncias da "campanha gaúcha" (embora, mesmo aí, as chácaras existissem
ao lado das estâncias), mas os criadores do Rio Grande histórico, daquele

6 3
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

compreendido entre a "fronteira do Rio Pardo", a "fronteira do Rio Gran-


de" e o litoral.
Nos pedidos de sesmarias feitos pelos lagunistas ou seus descendentes
há referências aos campos de criação e às lavouras 16• Parece que as lavou-
ras constituíam, na maior parte do antigo Continente, atividade comple-
mentar das estâncias. Não se pode, por isso, exagerar sua importância.
Entretanto, na área de ocupação mais antiga, a atividade agrícola não era
tão restrita. Quando chegaram os casais açorianos sua importância tor-
nou-se acentuada. A desorganização da lavoura causada pela invasão
castelhana mostra bem, por contraste, a importância que esta atividade
teve nos anos anteriores. As providências reclamadas pelas Câmaras para
o atendimento dos agricultores expulsos do Rio Grande indicam o vulto
e o caráter regular que as plantações haviam assumido. A correspondên-
cia do Marquês do Lavradio com o General João Henrique de Bõhm,
encarregado da expulsão dos invasores do Rio Grande, confirma ampla-
mente aqueles documentos. Nela se vê a preocupação constante do vice-
rei do Brasil com a crise de suprimentos que se esboçava por causa dos
estragos feitos nas lavouras pelos espanhóis. As conseqüências dos danos
agravaram-se devido à maior demanda de alimentos acarretada pela pre-
sença de grandes contingentes militares portugueses na região. O Marquês
do Lavradio insistia com o general para que ele procurasse obter, por to-
dos os meios, a volta ao campo dos antigos agricultores: "A mim me pare-
cia q' V. Exa. por conta da fazenda Real fizesse dar a estes homens, algum
gado, e instrumentos precizos, para el1es principiarem as suas lavouras,
obrigando-se elles a irem satisfazendo, pelos rendimentos da sua fazenda,
este emprestimo, o socorro com q' se lhe houver assistido" (14-8 -1776).
As providências, entretanto, não foram tomadas a tempo de evitar a
crise de abastecimento: "Pelo q' respeita a farinha ainda q' pareça incrivel,
q' seja precizo, q' eu do Rio de Janeiro esteja provendo athe deste genero
a hum continente tão extenso, e tão fertil e q' ama gente, q' tem nelle, o
podia fazer m. to abundante, se a tropa q'esta no mesmo Continente em
parte do tempo q' tem tido de descanso, o tivessem aproveitado em tra-
balhar para a sua sustentação, como eu por muitas vezes tenho insinuado;
sem embargo disto, venho q' tudo se deixa cahyr só sobre os meos om-
bros, tenho sempre remetido as farinhas q' tenho podido" (1-12-1777)17.

64
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

A subsistência das populações locais em condições normais era provi-


da, portanto, pela agricultura da região. Na agricultura empregava-se mão-
de-obra escrava. Sobre este ponto - se não bastassem os dados referentes
à composição da população - seria possível acrescentar outros documen-
tos, como os testamentos dos povoadores, açorianos ou lagunistas. En-
tretanto, para os objetivos do presente trabalho, parece-me desnecessário
juntar esse tipo de documentação. É preciso ressaltar, contudo, que não
deve ter havido concentração de escravos nas mãos de poucos agricultores
poderosos. Dito noutras palavras: a riqueza não se concentrou no perío-
do inicial da formação do Rio Grande. É verdade que houve senhores de
muitas sesmarias, proprietários de grandes rebanhos. Todavia, os estanciei-
ros do Rio Grande realmente ricos e poderosos no período aqui conside-
rado basearam sua riqueza muito mais no comércio dos gados que na posse
das terras ou de animálias. Cristóvão Pereira, figura do período do
desbravamento dos caminhos das tropas, continuava a servir para exem-
plificar o homem rico da segunda metade do século XVIII. Além disso, a
posse da terra e do gado sem o domínio correspondente do braço huma-
no transforma-se em mera condição potencial de riqueza. O diálogo que
Luccock travou com um rico proprietário ilustra muito bem esta afirma-
ção. O proprietário de terras e gados queria comprar algumas mercadorias
levadas pelo viajante inglês. Como não possuísse dinheiro, ofereceu-lhe a
ilha em que se encontravam na Lagoa dos Patos (que media de 18 a 20
milhas quadradas, segundo a avaliação de Luccock) com os edifícios e gado
(mais de mil cabeças). O viajante propôs-lhe outro negócio: dar-lhe-ia soma
igual pelos couros, entregues em São Paulo, dentro de um mês, prontos
para embarque. "Isto ele recusou, alegando que, se os encontrasse, o tra-
balho e salários lhe trariam despesa maior que o preço oferecido, por onde
se evidenciou o baixo valor das terras e do gado e o como era falha de
população uma zona de solo tão rico e fértil"18.
O proprietário da "zona velha" do Rio Grande nos meados e na se-
gunda metade do século XVIII, com mais forte razão, lutava com a escas-
sez de mão-de-obra. Isto equivale a dizer que não havia um tipo de atividade
econômica compensadora para a importação de mão-de-obra. Assim, os
lagunistas e os açorianos - criadores ou lavradores 19 - valeram-se,

6 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

inicialmente, do trabalho próprio e do trabalho dos agregados, com al-


gum auxílio de escravos20 .

2. A MERCANTILlZAÇÃO DA ECONOMIA E A ESCRAVIDÃO

A. Crescimento econômico e escravidão

Este quadro modificou-se completamente quando, depois das invasões


castelhanas, a agricultura concentrou-se sobre um effeito, capaz de pro-
vocar um fluxo de trocas entre a área sulina e mercados externos a ela.
Refiro-me às plantações de trigo. O último quartel do século XVIII e os
primeiros anos do século XIX foram, graças à exploração do trigo, um
período próspero para a agricultura do Rio Grande. As estatísticas exis-
tentes, apesar de inseguras e discrepantes 21 , indicam o aumento contínuo
da exportação de trigo neste período. Gonçalves Chaves ainda menciona
o trigo como um cereal que até 1814 era bastante produzido. Desde en-
tão, por causa da ferrugem, segundo pensava o mesmo autor, a produção
decrescera. Em 1822 já se consumia trigo americano no Rio Grande 22.
Neste ínterim, contudo, houve o aproveitamento regular de escravos ne-
gros na lavoura.
As lavouras de trigo, que pertenciam sobretudo aos açorianos, não ti-
veram condições contínuas de prosperidade. As informações de Pizarro,
Ayres de Casal, do General Bõhm, e muitas outras, dão conta das dificul-
dades enfrentadas pelas plantações gaúchas. Os malogros neste período
(último quartel do século XVIII) deveram-se quase sempre aos efeitos
desastrosos da política colonial, como bem ilustra a carta enviada em
28-6-1787, pelo governador Veiga Cabral da Câmara ao vice-rei: "O
terreno é muito necessitado e desanimador pela grande quantidade de
gêneros que lhes tem tirado a Fazenda Real, sem se lhes pagar, e que por
isto os tem animado com assegurar-lhes que daqui em diante lhes não há
de tirar senão com dinheiro à vista, e que fica nesta resolução"23. Além
dos embargos, o recrutamento constituía um obstáculo permanente à agri-
cultura da região. Já mostrei noutro trabalho como esta política levou uma

6 6
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

área do Brasil Meridional ao retrocesso econômico e à estagnação. De fato,


quando isto ocorria numa região como a Ilha de Santa Catarina, cuja agri-
cultura era meramente de subsistência, os danos eram quase irreperáveis24 .
Outra coisa, entretanto, sucedia no Rio Grande do Sul: graças ao trigo,
ao comércio de gado e, mormente, à exploração de couros e do charque,
a economia da região pôde suportar com mais êxito a sobrecarga da polí-
tica colonial. Por causa destes ramos da atividade econômica houve a ar-
ticulação regular da economia sulina com os mercados de outras áreas
coloniais, e mesmo com a Metrópole. Do comércio resultou a acumula-
ção de alguma riqueza e a vitalidade necessária para que, apesar dos
desmandos e das invasões, a economia do extremo sul pudesse, na quadra
colonial, manter-se e expandir-se 25 .
Aurélio Pôrto, comentando a carta de Veiga Cabral da Câmara, afir-
ma que '~pesar de todos esses contratempos o Rio Grande remetia largos
sobejos de sua produção de trigo até para Lisboa, em navios que vinham
se abastecer em nossos mercados. Há uma estatística interessante de ex-
portação desse cereal de 1793 a 1822 de que consta que foram exporta-
dos para o Rio de Janeiro, em 1793, 8.040 alqueires, em 1794,43.114
alqueires, em 1795, 12.878 alqueires, em 1796, 13.436 alqueires, em 1797,
16.810 alqueires, em 1798, 13.028 alqueires, em 1799,22.070 alqueires,
em 1800,58.726. Em 1808 sobe a exportação a 200.859 alqueires e 5.001
arrôbas de farinha. Em 1807 foram exportados para Lisboa 132.795
alqueires de trigo"26. Os dados apresentados por Gonçalves Chaves mos-
tram que a exportação continuou até o período da Independência, sofrendo
queda acentuada a partir de 1814, para atingir, logo depois, a decadência
completa.
As freguesias nas quais se registrou maior concentração de escravos,
no mapa do Tenente Córdova, foram exatamente aquelas onde houve
produção de trigo. Muitas delas, como lembra Dante de Laytano, eram
povoações ou vilas que se tinham originado como sedes de distritos pecuá-
rios e, mais tarde, receberam populações açoritas. Noutras, os próprios
fazendeiros de gado "tentaram a agricultura com o plantio de trigo,
malgrado a deficiência de braços"27. Esta "deficiência de braços" era, real-
mente, deficiência de capitais. Desde o momento em que do fluxo de trocas

6 7
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

entre o Continente de São Pedro e os mercados internos, da Colônia, ou


externos, do Prata e mesmo da Europa, resultou uma massa de renda re-
lativamente apreciável, inverteram-se os termos do problema. Na econo-
mia colonial somente os produtos de exportação podiam criar condições
e estímulos para o impulso de crescimento, isto é, para o aumento da ren-
da por unidade de produção e seu contínuo reinvestimento. No sul esse
processo realizou-se através das exportações de trigo, gado, couros e
charque. Com efeito, a massa de renda gerada pelos trigais sulinos, soma-
da à renda produzida pela mercantilização da economia do gado, permi-
tiu que o quadro econômico da região fosse alterado. A tal ponto que as
descrições da economia preadora do gado, reproduzidas e endossadas por
Oliveira Vianna, e os depoimentos sobre a vida aventurosa nas fronteiras
sulinas, generalizados como "fatos típicos" da sociedade pastoril rio-
grandense por autores que não fizeram a crítica cuidadosa das fontes,
deixam de ter sentido no novo período da economia gaúcha inaugurado
quando o fluxo das trocas comerciais permitiu o incremento da renda
monetária no sistema econômico local. A partir deste momento a deman-
da de braços, incrementada pela expansão da economia, pôde ser atendi-
da pela compra de escravos.
Entretanto, a economia do trigo não permitiu a concentração de ri-
quezas nos moldes, por exemplo, da economia açucareira ou cafeeira. A
base social da produção, na fase inicial da mercantilização, era a família
açoriana possuidora de lotes de terra relativamente acanhados. Tecnica-
mente a produçãO, tal como no-la descrevem Dreys e Saint-Hilaire, era
precaríssima28 • E, economicamente, a demanda do trigo sujeitava-se a um
mercado altamente competitivo para as condições da época. Por estas ra-
zões, não houve a mesma concentração espantosa de riqueza que caracte-
rizou a produção brasileira tipicamente colonial. Não obstante, sempre
que a exportação de trigo permitia lucros, havia tendência para acrescer
os campos e utilizar mão-de-obra escrava. Noutros termos, processava-se
a ampliação do capital através do reinvestimento dos lucros.
Não é válida, portanto, a explicação de que os fazendeiros tentaram a
agricultura "malgrado a deficiência de braços", pois o que havia era defi-
ciência de condições de mercado e de recursos monetários. Logo que a
agricultura proporcionou-os, o problema da mão-de-obra pôde ser resol-

68
CAPITALISMO E ESCRAVIDAO NO BRASIL MERIDIONAL

vido pela importação de escravos. Perde sentido também a afirmação de


que, iniciando "o trabalho agrícola, os açorianos não poderiam contar
consigo mesmos e apelariam para os negros"29, porque iniciando o traba-
lho agrícola os açorianos só podiam contar consigo, e não "apelaram" para
os negros, mas reinvestiram, sob a forma de mão-de-obra escrava, o exce-
dente gerado por seu trabalho, logo que a expansão do comércio de trigo
permitiu que esse excedente assumisse forma monetária pela qual era
possível adquirir escravos30•

B. A exploração sistemática da empresa agropastoril e o problema


da mão-de-obra

Os trigais gaúchos foram, pois, trabalhados pela mão-de-obra escrava.


Ainda assim não se explica a proporção tão acentuada de negros na popu-
lação do Rio Grande no começo do século XIX. Essa só pode ser compre-
endida quando se considera que, além da lavoura do trigo e da utilização
do escravo em toda a sorte de serviços domésticos e ofícios urbanos, hou-
ve outro canal regular de absorção da mão-de-obra escrava na economia
gaúcha: a estância e o charque.
A economia do Rio Grande do Sul sofreu intensa transformação no
início do século XIX por causa das possibilidades que a ela se abriram
com o aproveitamento mais intenso e regular do gado. No fim do século
XVIII, o regime dos currais, dos compáscuos, das razias dos pilhadores e
comerciantes de gado da fase heróica da expansão portuguesa, estava
prestes a terminar como processo básico de apropriação e exploração eco-
nômica. Bettamio, nas suas imprecações de homem urbano, assinala, po-
ssivelmente, um estado de espírito que, se não era geral, começava a
impor-se nas áreas de povoamento mais antigo, onde a criação, como a
agricultura, não constituía mais aventura. Diz o cronista, referindo-se ao
Rio Pardo: "Nesta povoação ou nas suas vizinhanças, é que por estudo
vivem muitos homens separados de comunicações para estarem mais ap-
tos a poder sahir ao campo fazer os roubos de gados (a que chamão arre-
adas) sendo estes homens de qualquer empresa; mas quanto a mim são
uma peste que ali reside, e uns perturbadores da paz, e socego publico,
que para se conservar, me parecia ser o melhor meio, tiral-os a todos das

69
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

fronteiras, e dar-lhes suas moradas no interior do paiz, e até conceder-


lhes terrenos equivalentes aos que lá possuirem"3!.
Na verdade os homens que faziam as arreadas tão fustigadas por
Bettamio continuaram a existir durante boa parte do século XIX, não só
na fronteira do Rio Pardo como nas demais do antigo Continente. Estes
homens, os "gaúchos", que foram, nos primórdios da história rio-gran-
dense, a mola da economia do gado e da defesa militar - o que teria sido
Rafael Pinto Bandeira senão pilhador destemido, que a argúcia dos vice-
reis transformou, depois, em grande estancieiro e num pilar da ordem
colonial portuguesa? - passariam a ser, mais tarde, instrumentos dos gran-
des proprietários na luta contra outros grandes proprietários, freqüen-
temente de além-fronteira, para a manutenção de uma riqueza obtida e
mantida já por mecanismos básicos que não se assentavam mais no roubo
sem rebuços.
O novo período da economia rio-grandense foi, pois, o do gaúcho, do
tropeiro, do militar, do antigo colono ou do administrador colonial -
freqüentemente uns e outros tipos sociais representados pelo mesmo ho-
mem - que se transformou em estancieiro.
No tempo de Bettamio, que coincide com o início do período das
charqueadas (1780), o estancieiro ainda era, em larga medida, alguém que
se apropriava da terra e das manadas sem a elas ajuntar grande trabalho
que as transformasse:
"A irregularidade com que se tem morto o gado no Continente ajuda
muito à causa do diminuto número que hoje tem; porque mata-se sem
attenção a serem vacas, e ainda sem repararem se estão prenhes, o que
continuando será acabar de todo o Continente, ou o meio das riquezas
delle"32.
Em 1808, a estância gaúcha, conforme o depoimento de Manoel An-
tônio de Magalhães, ainda partilhava da condição de empresa de coleta
e pilhagem, que havia destruído vastas reservas animais para manter o
ritmo de exportação da indústria do charque e da exportação dos cou-
ros, ao mesmo tempo que começava a organizar-se como uma empresa
mais racionalizada. De mulas, não havia "maior necessidade, pela abun-
dância que ha na capitania"; mas o gado vacum precisava ser, ainda,
importado do Prata para os charqueadores, por serem melhores os de

7 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

lá, diz o Almanak. E acrescenta: "Não ha duvida que esta capitania póde
pelo tempo adiante ter gados para toda a América, e ainda para expor-
tar muitas carnes salgadas para fóra, mas é preciso que o governo, mu-
nido de ordens superiores, obrigue todos os fazendeiros a fazerem nas
suas fazendas os precisos rodeios nos seus gados, e apezar de grandes
despezas que se precisam fazer, os façam amansar e chegar todas as se-
manas aos curraes, porque ha muitas fazendas, todas alçadas, e a maior
parte dos fazendeiros, ainda os mais ricos, apenas têm a quarta parte do
gado manso, e ainda vem aos curraes e rodeios, que se costumam fazer;
todo o mais é tão bravo como os touros de Portugal que vêm aos
curros"33.
Em 1820 já não deveria ser tão generalizada a ausência de rodeios,
pois mesmo nos campos de Ibicuí, nas fronteiras do Rio Uruguai, havia
rodeios regularmente, segundo o testemunho de Saint-Hilaire: "aqui, dis-
se-me meu hospedeiro, pode-se marcar anualmente, um quarto do reba-
nho existente. Quando um estancieiro possui 4.000 bovinos pode marcar
anualmente 1.000 novos, donde saem 100 para os dizimeiros. Dos 900
restantes as vacas (cêrca de 450) ocuparão os lugares das que são abatidas
ou morrem. Dos 450 machos são deduzidos 50 que morrem de moléstias
naturais, ou por acidente de castração"34. Ainda assim, a atividade pasto-
ril desenvolvia-se mais como uma mercê da natureza que como fruto do
trabalho humano: "Os homens ricos desta Capitania são os possuidores
de rebanhos, aos quais não dão cuidado algum e que se multiplicam facil-
mente", registrou o naturalista judiciosamentés. Persistia na década de
1820, portanto, a situação de uma economia que mais se apropriava dos
dons da natureza do que criava, com o trabalho humano, a riqueza. Em
suas Memórias, Gonçalves Chaves relata a freqüência com que se roubava
ou abatia gado alheio de forma generalizada no Rio Grande do Sul: "Cada
homem mata as rezes de seu vizinho para gasto da sua casa, sem procurar
paga-la, ainda que sempre se cobre com o pretexto de pagar com outra.
Quasi geral ha muito pouco escrupulo em matar rezes para comer, an-
dando em viagem, e tomar cavalios sem consentimento de seu dono"36.
Este costume indica que, até então, a economia criatória do sul são se
moldava como uma empresa organizada para obter lucros e tão-somente
para isso.

7 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Em 1834, depois do período de transição por que passou a econo-


mia gaúcha, entre a mera apropriação de um bem natural e a produção
do gado, já surpreendemos a estância, conforme o testemunho de Dreys,
como uma empresa econômica organizada, da qual o mesmo Dreys foi
o ideolóco mais que o analista. De fato, Dreys define a estância, como
faz com as charqueadas, descreve-a, mostra as condições da "estância
perfeita", que, no seu dizer, "mais segurança offerece aos interesses do
especulador", e exalta-a como exalta os gados que nela apascentam e os
homens que a possuem. A rotina da vida econômica organizada substi-
tuíra, nessa época, o período das "arreadas" ousadas, da perseguição à
alimária "alçada".
"Todos os seis meses dá-se hum rodeio, cujo fim he reunir todos os
animais n'hum centro commum, para os reconhecer, e marcar os recem-
nascidos. (...) Nessa mesma occasião de rodeio, opera-se a castração do
gado que não se quer conservar para a propagação". "(...) O gado capado
toma a denominação de novilho, e são os novilhos que se vendem para as
charqueadas, tendo de 5 annos para cima: poucos são os touros e as vacas
que para lá se mandão"37.
Percebe-se na descrição a engrenagem de um mecanismo econômico
mais complexo em funcionamento. Produzia-se o gado para as char-
queadas, ou para a exportação em pé. Num e noutro caso, mercadorias
que eram, atendia-se aos requisitos do mercado que os consumia, ao qual,
na verdade, sujeitava-se a economia da estância. A partir desse período
a estância passou a organizar-se como uma empresa capaz de produzir
lucros.
Na estância assim organizada havia o problema da mão-de-obra.
Os autores afirmam, em geral, que se utilizava mão-de-obra livre. Não
creio, firmado na documentação coeva, que a utilização do escravo nas
fazendas de criação tenha sido tão restrita quanto se supõe. Os depo-
imentos de Saint-Hilaire sobre a presença de negros na atividade
criatória são constantes. Na região dos campos de Viamão dormiu numa
estância onde, ao lado da "casinha mal construída, de pau-a-pique e
barro, mas coberta de telhas, que era a do estancieiro, viam-se algu-
mas casas de negros" (pág. 17). Em Pitangueiras, viu "alguns negros
escravos" (pág. 20). Em Boa Vista diz que "nas estâncias desta região,

7 2
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

quase puramente pastoril, não são precisos tão numerosos escravos


como acontece nas regiões açucareiras ou na exploração de minérios"
(pág. 21). Depois de uma permanência em Porto Alegre, o naturalista
retoma viagem, voltando a Boa Vista e seguindo para Rio Grande. No
caminho, fica numa estância em Palmares, de aparência pobre, mas cujo
proprietário possuía algum gado "além de ser senhor de muitos escra-
vos e ter grande número de cavalos". Ainda em Rio Grande, reafirma
a observação que fizera nos campos de Viamão: "várias pastagens com-
portando uma imensidão de gado não exigem dos estancieiros grandes
despesas com os escravos; como acontece nas regiões de mineração ou
indústria açucareira" (pág. 70). Mas, na freguesia de Nossa Senhora
da Conceição do Estreito Norte de São Pedro do Rio Grande, chama-
da Norte, havia 2.000 almas, "das quais 2/3 são homens de côr, negros
e mulatos, livres e escravos. A metade dessa população é rural e o res-
to habita na aldeia Norte (...)" (pág. 72). Demandando os então cha-
mados "campos neutrais" da fronteira do Xuí, o viajante volta a
percorrer, como fizera nos campos de Viamão, extensa zona de cria-
ção. Na estância que visita, registra que a areia da região obriga o es-
tancieiro "a pôr continuamente negros a desentulhar seu jardim" (pág.
104). Adiante, na "estância do Silvério", empregavam-se 12 negros para
cuidar do pomar (pág. 105). Ao sair da "Estância Caiova", refere-se
de novo a um negro (pág. 109). Em Tahim, que fora já ponto extremo
da posse portuguesa, diz que pousou "em uma estância cujo proprie-
tário está ausente, e onde apenas encontrei um negro. Êsse homem
alimenta-se somente de carne, sem farinha e sem pão, conforme é useiro
tratar-se os escravos nesta região", confirmando, assim, a existência
regular de escravos na região. Mais adiante, pousa numa estância "cer-
cada de algumas senzalas" (pág. 114). Descrevendo a Estância de José
Bernardes diz que se compõe "como tôdas as outras, da casa do dono
e algumas casas de negros" (pág. 114). Saint-Hilaire continuou a indi-
car a presença de negros até quase Angostura, donde passa para terri-
tório uruguaio.
Depois que Saint-Hilaire visitou a Cisplatina, retornou ao Brasil pela
fronteira do Rio Uruguai, marginando-o acima do Ibicuí. Nesta região,
demandando as Missões, não registra a presença de negros nas estâncias.

7 3
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Essas estâncias eram formas de ocupação muito mais precárias que as


visitadas pelo naturalista nos campos de Viamão e na região da estreita
faixa entre a Lagoa Mirim e o Atlântico. Compartilhavam mais do anti-
go padrão da empresa de pilhagem dos áureos tempos. O naturalista
explica como procuravam os estancieiros resolver o problema da mão-
de-obra na área: "os estancieiros desta região, não tendo escravos, apro-
veitam a imigração dos índios para conseguir alguns que possam servir
de peões" (pág. 150).
Nas margens do Uruguai e nas Missões os peões eram, pois, índios.
Utilizavam-se os índios, algumas vezes a troco de salários que variavam
de oito a doze patacas por mês 38 • Entretanto, na época de Saint-Hilaire, o
roubo de crianças indígenas, a coerção e a espoliação dos índios constituíam
a regra: "os roubos dos indiozinhos são abusos dos mais terríveis que se
praticam aqui. São levados a trabalhar como escravos, e se utilizam para o
povoamento do solo, visto como longe de suas terras não encontram
mulheres com que se possam casar" (pág. 220). A tal ponto ocorria isto
que foi preciso instalar uma guarda para evitar que saíssem das Missões
crianças índias roubadas pelos brancos (pág. 238). Os índios eram trata-
dos, em geral, como escravos: "Creio não ser muito de se estranhar o pouco
afeto dos índios pelos patrões, uma vez que eles são tratados como ani-
mais" (pág. 240). Não apenas índios serviam às estâncias: muitos brancos
fugidos de Corrientes também se transformavam em peões e capatazes dos
portugueses, como se pode verificar pela referência expressa de Saint-
Hilaire (pág. 187).
À medida que o naturalista se distancia das Missões no caminho para
Santa Maria, volta a registrar a presença de negros escravos, até mesmo
na condição de zeladores de estância (cf. pág. 239). Porém, nesta região
(da capela de Santa Maria) a mão-de-obra básica na estância era indígena.
Apenas, nas áreas de Santa Maria, onde além da criação praticava-se a
agricultura (as terras da região eram divididas entre muitos proprietários),
havia o emprego de escravos negros, ao lado do trabalho dos brancos
proprietários: "O dono da casa e seus filhos cuidam do gado e os negros
tratam da plantação: contudo, nesta região ninguém se envergonha de
trabalhar. Os homens menos ricos possuem vacas de leite e cultivam a terra
por suas próprias mãos" (página 257).

74
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Depois de Santa Maria, Saint-Hilaire penetra no coração da antiga


fronteira do Rio Pard039, seguindo desta localidade para Porto Alegre, por
via fluvial. Pouca coisa diz, então, sobre a utilização dos negros, mesmo
porque, como acentua Lallemant, "embora tenha grandes pastagens, a
região entre Rio Pardo e Taquari perde a aparência de pampa"40.
A presença de escravos nas atividades pastoris e agrárias, registrada
tão minuciosamente por Saint-Hilaire, encontra confirmação em depo-
imentos de viajantes e observadores que se referem a épocas anteriores
e posteriores à viagem do naturalista. Assim, Mawe, para justificar a tese
de que os "campeiros" rio-grandenses eram superiores aos platinos, es-
creveu: "Mas deve-se compreender que os espanhóis têm peões nas suas
fazendas, que estão mais ligados às índias do que a eles, enquanto os
portugueses possuem crioulos, criados nos negócios, ou negros experi-
mentados, que não são inferiores a ninguém neste trabalho"41. Dreys,
35 anos depois, reafirmava a utilização regular de negros nas estâncias:
"A estância é servida ordinàriamente por um capataz e por peões, debai-
xo da direção d'aquelle; às vêzes os peões são negros escravos, outras
vêzes e mais commumente são índios ou gaúchos assalariados; sua ocu-
pação consiste em velar sobre os animais, conte-los nos limites da
estancia, reuni-los, quando he mister"42. O mesmo autor, falando sobre
as condições do trabalho escravo, repete a informação de que os negros
participavam das atividades criatórias: "Os negros do Rio Grande não
estão n'huma posição excepcional senão porque pertencem às estancias
e às charqueadas; os negros domésticos são os mesmos em todas as par-
tes: ora, nas estancias, pouco tem que fazer o negro, excepto na ocasião
·
rara dos ro delOs; ()"43
... .
Além disso, a economia das estâncias, excluindo-se os períodos de
excepcional valorização dos produtos do gado, quando havia abandono
das atividades agrárias - até mesmo dos produtos necessários para a
subsistência - não se resumia à criação, mesmo na área predominante-
mente pastoril44• Ao lado da "estância gaúcha", havia a "chácara", na
acepção originária da palavra, que abastecia as populações locais. E, sem
que se designassem como "chácaras"45, havia as plantações para a sub-
sistência em quase todas as estâncias do Rio Grande do Su146 . Predomi-

7 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

nava a criação do gado, mas a estância, na medida em que tendia para o


padrão de organização de unidade econômica autárquica, produzia para
o autoconsumo. Não só para o consumo alimentar, como para o consu-
mo dos utensílios necessários à vida, incluindo-se o vestuário corriquei-
ro da campanha e os objetos necessários para a faina rústica47 • Também
nas atividades acessórias da estância houve a utilização de escravos ne-
gros como se pode ver nos depoimentos de Saint-Hilaire e na memória
existente sobre uma estância de Piratini. Nessa, o autor afirma que a
propriedade como "quase todas desse tipo" constituía "uma espécie de
povoado perdido como um oásis na solidão dos campos, pois precisava
de quase tudo". Os escravos, segundo este depoimento, haviam sido
empregados desde os trabalhos de ereção das divisas até a agricultura,
os trabalhos de campeiro, as atividades artesanais de fiação, de pedrei-
ro, carpintaria, ferraria, alfaiataria etc. A necessidade de escravos com
alguma habilidade artesanal nas estâncias fazia com que seu preço fosse
maior 48 •
Tais informações confirmam-se tanto pelo noticiário de compra e venda
de escravos dos jornais de Pelotas e Porto Alegre, como adiante se verá,
como pelos dados contidos na pasta "Correspondência e Papéis Avulsos"
do Arquivo Vieira Braga (visconde de Piratini) da Biblioteca Rio-Gran-
dense. A correspondência mostra que nas estâncias desse proprietário (na
segunda metade do século XIX) além dos escravos domésticos e dos
campeiros havia escravos utilizados na agricultura e nos serviços ar-
tesanais 49• Noutros documentos da mesma coleção verifica-se que anterior-
mente (1832) os escravos negros também eram empregados em toda sorte
de misteresso•
Em suma, os dados indicados parecem confirmar que o escravo negro
supriu basicamente o mercado de trabalho nas zonas de povoamento an-
tigo. Nessas, tanto nas lides urbanas como na agriculturaS1 e na atividade
pastoril- a partir do momento em que a criação se transformou em fai-
na rotineira que se contrapunha às antigas arreadas impetuosas - houve
o aproveitamento regular da mão-de-obra escrava. Nas áreas que se in-
corporaram à economia rio-grandense nos fins do século XVIII e pri-
mórdios do século XIX, onde se repetia, neste período, a aventura da
conquista e da preia ao gado, a presença do negro foi mais ocasional que

7 6
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

rotineira, sendo mais aproveitado na qualidade de doméstico que na de


peão.
Excetuam-se deste quadro, finalmente, a zona missioneira e as fron-
teiras do Uruguai e da Argentina (tão móveis, então) onde a influência
das reduções jesuíticas havia sido dominante. Nesta última área, à me-
dida que as diversas regiões que a compuseram foram sendo incorpo-
radas à economia luso-brasileira, uma espécie de escravidão dissimulada
sujeitava os indígenas ao trabalho nas estâncias. Posteriormente, a partir
do segundo quartel do século XIX, o desenvolvimento da economia
pastoril e a incorporação efetiva das "zonas fonteiriças" (não de limi-
tes, é claro, pois estes, muitas vezes, ficavam bem além - na direção
do atual Uruguai ou da Argentina - das zonas que aqui designo como
fronteiriças) ao sistema político e administrativo do Rio Grande
redefiniram o padrão de organização da atividade econômica das es-
tâncias da região, no sentido do emprego de mão-de-obra indígena na
condição de assalariada52 •
No conjunto pode-se, pois, afirmar que, sem ter sido exclusiva ou
predominante e variando de importância relativa conforme as diver-
sas áreas e períodos da economia de criação, houve a utilização do
escravo negro na vida pastoril gaúcha desde quando a estância substi-
tuiu os currais.

c. Produção escravista: as charqueadas


Foi a indústria do charque, todavia, que tornou a exploração do escravo
regular e intensa no Rio Grande do Sul. O aproveitamento da carne atra-
vés da salga e do curtimento data de 178053• Antes dessa época abatia-se
o gado somente para o aproveitamento do couro. A salga e subseqüente
secagem das carnes existiam apenas para o uso das estâncias. Só a partir
do estabelecimento de Pinto Martins (1780) houve a comercialização re-
gular do produto. Entretanto (se bem que nos fins do século essa ativida-
de já fosse florescente na área de Pelotas, às margens do rio do mesmo
nome e do São Gonçalo, e na área próxima a Porto Alegre, às margens do
Jacuí), só no segundo decênio do século XIX as charqueadas tiveram um
impulso realmente acentuado. Em 1822 havia, apenas nos arredores de

7 7
.---_------------------------------ -

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Pelotas, 22 charqueadas54, e no início do século havia na própria vila de


Porto Alegre dois estabelecimentos de salga, além dos que existiam às
margens do Jacuí55.
Sabe-se que as charqueadas, bem como as atividades paralelas de ex-
ploração dos sebos, graxas, couros etc., nem sempre foram prósperas. A
concorrência dos saladeiros do Rio da Prata era intensa e a produção
platina possuía condições favoráveis para vencer a competição. A eco-
nomia platina do charque levava vantagem por causa da melhor quali-
dade do gado, das taxas mais baixas a que estava sujeita a exportação,
do mais fácil acesso aos portos, das relações que mantinha com os ingle-
ses e, sobretudo, como veremos noutro capítulo, por causa do tipo de
organização do trabalho que possuía. Houve tempo no Rio Grande do
Sul em que a exportação era tão reduzida que os couros, por exemplo,
serviam apenas como surrões para conter o trigo que se comerciava, para
fazer pelotas (pequenas e precárias embarcações), para o uso no vestuá-
rio e para o emprego nas lides do campo e nos serviços domésticos. As
descrições dos hábitos da campanha gaúcha mostram que para fazer a
maior parte destas mercadorias os animais eram abatidos a esmo, sem
constituírem objeto de exploração econômica regular. Todavia, depois
que o mercado platino começou a ressentir-se das guerras e das lutas
pela independência, houve alguma prosperidade nas charqueadas rio-
grandenses. Luccock, com a perspicácia de comerciante, notara as trans-
formações favoráveis que, por esta razão, a economia gaúcha começava
a sofrer: "A procura de couros e de sebo encontrava oferta principal-
mente aqui (na cidade do Rio Grande) e em Buenos Aires, e a admissão
da navegação britânica no último destes lugares produzira efeitos ime-
diatos e notáveis nesses artigos. Montevidéu, sua rival, achava-se em
apuros e quanto à Espanha já não podia nem suprir as necessidades nem
comprar os produtos do país. Por isso tudo, o comércio interior, de além
das fronteiras, o mais lucrativo de que São Pedro gozava, achava-se em
progresso"56.
O viajante não podia notar, porém, que o maior benefício advindo para
a economia gaúcha das complicações internas da política do Prata e das
disputas dos portugueses na Cisplatina estava na expansão da indústria
do charque 57. Doze anos depois de Luccock, Saint-Hilaire teve o ensejo

7 8
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

de registrar o fato: "Como a barra é muito perigosa e a carne-sêca destas


cercanias inferior à de Buenos Aires e Montevidéu, era nestes portos que
mais a procuravam antigamente. Mas, depois da guerra, Rio Grande tor-
nou-se o centro dêsse comércio e por isso um importante pôrto para o
Brasil "58.
Por isso a exportação do charque e dos couros teve grande incremen-
to no primeiro quartel do século XIX e, conseqüentemente, houve enor-
me afluxo de escravos negros para as zonas das charqueadas. Não se possui
os número dos escravos importados para exploração do charque, mas sabe-
se - pelas estatísticas demográficas - que nas áreas das charqueadas a
população escrava era considerável. Cada charqueada ocupava, em mé-
dia, 80 escravos, como se depreende da leitura de Saint-Hilaire59 • Couty
confirma a indicação, referindo-se ao período do fim do século: "As boas
charqueadas de Pelotas têm de 60 a 90 escravos: tôdas possuem, além disso,
alguns trabalhadores livres"6o. Em 1833 havia, fora os pardos livres, 5.000
negros nas charqueadas de Pelotas61 .
O rendimento e a produção das charqueadas não foi constante du-
rante o século XIX. De modo geral, a taxa de lucro obtida pelos
charqueadores nos primeiros trinta anos só se repetiu no último quar-
tel do sécul062 . Contudo, as flutuações do valor da produção interferi-
am muito pouco sobre a quantidade de produtos e menos ainda sobre
o volume da mão-de-obra escrava ocupada, por causa da própria na-
tureza do regime escravocrata de produção que, como se verá adiante,
mantém relativamente constantes os disponíveis de mão-de-obra e o
ritmo da produção. Sendo assim, a indústria do charque, apesar dos
longos períodos de crise por que passou, constituiu durante todo o
século XIX o setor da economia gaúcha que mais absorveu trabalho
escravo. Na metade do século, a tal ponto o pastoreiro e a salga63 ha-
viam dominado a economia que o presidente da Província dizia sobre
a agricultura: "He este ramo quasi desconhecido na Provincia. Ha lu-
gares não interrompidos de terreno em que não existe uma só arvore
plantada, e em que nenhuma semente tem sido lançada à terra; e o
terreno presta-se a quasi tudo"64.
Constituíra-se já, portanto, a sociedade rural gaúcha, latifundiária e
escravista, dos criadores de gado e charqueadores.

7 9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

D. A mão-de-obra escrava nas atividades comerciais e urbanas

Além do charque, o comércio de mulas para a região paulista e minei-


ra permitiu ingressos relativamente consideráveis de recursos em espécie.
Este desenvolvimento é atestado pelos viajantes e pela intensificação cres-
cente do intercâmbio de bens de consumo entre os grandes empórios co-
merciais da Província (Rio Grande, Porto Alegre, Rio Pardo) e a zona rural.
Quando em 1858 Lallemant percorreu o interior, notou, diversamente do
que ocorria na época de Saint-Hillaire, que o comércio aumentara a tal
ponto que entre os grandes empórios comerciais da Província e os com-
pradores rurais surgiam, por toda parte, núcleos de redistribuição das
mercadorias, como Cachoeira, Santa Maria, Itaqui, Uruguaiana, Alegrete
e São Gabriel. O viajante não compreendia como as vilas, de pouca popu-
lação, tinham tamanha importância comercial: é que estes núcleos es-
pelhavam a prosperidade das estâncias da zona da campanha gaúcha e das
Missões, donde saíam as muladas para São Paulo, Minas e Rio de Janeiro
e o gado para as charqueadas65 •
Nas cidades (Rio Grande, Pelotas, Porto Alegre e Rio Pardo) havia
também alguma atividade de transformação, sobressaindo, além do apro-
veitamento dos derivados do gado nos arredores de Pelotas e Porto Ale-
gre, as oficinas de construção naval 66 • Sobrepondo-se a todas estas
atividades, o comércio importador e exportador criava sólidas fortunas
urbanas.
Desde o início do século XIX o comércio desempenhava nas vilas e
cidades o mesmo papel que as estâncias exerciam na economia rural: cons-
tituía-se no núcleo dinâmico de acumulação de riqueza. Já indiquei que
Luccock, em 1810, encontrara um comércio razoável na cidade do Rio
Grande, com boas perspectivas de futuro. Antes disso, em 1804, Mawe
observava que muitas e rápidas fortunas fizeram-se com o contrabando
de mercadorias na mesma cidade67 • Na região do Rio Pardo, como nos
campos de Santa Maria e Alegrete, naturalmente em menor escala, a ati-
vidade que mais impressionou os viajantes foi a comercial. As vilas dessa
área eram empórios donde se redistribuíam os gêneros necessários para
as estâncias da região e para a Província das Missões68 • Nos serviços aces-
sórios do comércio, como os transportes, utilizavam-se negros. Os navios

8 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

que subiam o Jacuí, assim como as carretas que demandavam os campos69,


encontraram na mão-de-obra escrava o recurso regular para manter o tra-
balho braçal.
Com o desenvolvimento da economia pastoril e do charque, a ativi-
dade comercial intensificou-se extremamente na Província. Porto Ale-
gre, Rio Grande e Pelotas tornaram-se os grandes empórios do Rio
Grande do Sul. A primeira cidade, por causa de sua posição realmente
privilegiada, que não escapou à argúcia dos viajantes, tornou-se o
entreposto básico para as áreas da bacia do Jacuí e da região de Viamão;
Rio Grande, por ser o único porto de mar da Província, manteve-se
durante o século XIX como praça comercial de importância; e Pelotas,
sendo o núcleo dos charqueadores, não podia deixar de ser também (ape-
sar da proximidade com o Rio Grande) um forte centro de negociantes.
Em 1833, quando os efeitos da economia do charque já se faziam sentir
plenamente, Isabelle descreve nestes termos a "vida comercial" daque-
las cidades: "O comércio é ativo em Porto Alegre; vi sempre uns cin-
qüenta barcos, tanto nacionais como estrangeiros, ocuparem a barra,
independentemente de uma grande quantidade de pirogas de todos os
tamanhos, chalanas destinadas ao transporte das mercadorias, facilitan-
do admiravelmente as comunicações com o interior (...) A maior parte
dos barcos que vão a Porto Alegre são norte-americanos, brasileiros, ita-
lianos e alguns ingleses. Vê-se, de tempo em tempo, algum navio fran-
cês, vindo de Marselha ou de Bordéus, (...)"70. Em Rio Grande e São
José, que o viajante considerava áreas "mortalmente tristes", o "atrati-
vo do ganho, uma atividade portuária ou algum interesse muito grande
é só o que pode induzi-los a viver (... ). No entanto, por causa do merca-
do que oferece a campanha vizinha do Estado Oriental, essas cidades
são comerciais, principalmente a da margem direita (Rio Grande), onde
chegam ordinariamente os navios procedentes da Europa. Vê-se facil-
mente, pelo bem-estar dos habitantes, que os negócios são bons nesta
província. Há, no meio deles, alguns imensamente ricos, que construÍ-
ram casas e armazéns espaçosos"71. Sobre Pelotas o viajante francês pro-
fetizou com segurança: "São Francisco de Paula é uma encantadora
cidadezinha que não tem mais de dez anos de existência e que já rivaliza
com Porto Alegre pela atividade de seus habitantes, a importância de suas

8 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

transações comerciais e o grande número de prédios que diariamente se


constroem (...). É fácil de prever que, em poucos anos, esta será a se-
gunda cidade da província e talvez também a mais comercial: porque
toda a parte sul, desde São Gabriel (ao centro) até o Prata, e mesmo a
fronteira nordeste da Banda Oriental, são abastecidas por São Francisco
de Paula, ao passo que Porto Alegre abastece o norte, a partir do Jacuí,
compreendendo a Serra e as Missões do Uruguai, mas esta parte, ainda
que mais populosa que a outra, não é tão rica, porque as estâncias são
mais raras devido à má qualidade das pastagens, ao grande número de
matas e à desigualdade do solo"72.
Alguns comerciantes destas cidades eram agentes de firmas estran-
geiras, como lembra Isabelle; outros recrutavam-se entre a população
local ou ádvena, mas já radicada no Rio Grande. Saint-Hilaire, não dei-
xando de salientar a prosperidade de alguns desses homens, ridiculari-
zou-os e os descreveu como parvenus: "Entre os homens do Rio Grande,
todos negociantes, encontrei quase a mesma frieza e os modos desde-
nhosos dos habitantes do Rio de Janeiro. São em parte constituídos de
Europeus nascidos em uma classe inferior e que não receberam educa-
ção alguma. Começam como caixeiros de lojas e passam depois a nego-
ciar por conta própria. Como os lucros do comércio são avultados, neste
País, eles não tardam a adquirir fortuna que jamais alcançariam em suas
pátrias respectivas. Inflam-se de orgulho na proporção da riqueza e che-
gam ao cúmulo de comprar à Secretaria do Estado a comenda da Or-
dem de Cristo, hoje tida como símbolo de riqueza e fruto da corrupção.
Fora do Rio de Janeiro não vi algures um tão grande número de homens
condecorados, o que não é outra coisa senão uma das provas da riqueza
da região"73.
O comércio possibilitara, portanto, a formação e a prosperidade de
algumas cidades. Para atender às necessidades dos núcleos urbanos de-
senvolveu-se o artesanato. Nalgumas áreas, essa atividade assumia pro-
porções consideráveis, mormente nos períodos e nas regiões em que a
economia rio-grandense - de si já bastante isolada das outras áreas eco-
nomicamente importantes do país - se viu obrigada a um esforço de auto-
abastecimento, como na Guerra dos Farrapos74.

82
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Nas cidades, tanto nos serviços domésticos como no artesanato, tam-


bém houve o aproveitamento regular da mão-de-obra escrava negra. So-
bre a utilização do escravo doméstico não insistirei porque neste aspecto
o Sul em nada diferiu do resto do Brasil. Os viajantes mostram que por
toda parte houve emprego de negros nesta atividade - até nos confins
das Missões indígenas, quanto mais nas casas aburguesadas das cidades75 .
Cabe, todavia, ressaltar a participação do escravo no sistema artesanal
urbano por causa da importância de que esse tipo de profissão se reves-
tiu, no fim do século XIX, para a integração dos negros à sociedade de
classes.
Luccock registrou em 1810 a intensa utilização dos escravos na estru-
tura artesanal do Rio Grande: "Sempre que muitos são da propriedade de
um só senhor, aqui, como no Rio, costuma-se ensinar a alguns deles o ofício
de carpinteiro, a outro o de remendão e os restantes habilitados a diver-
sas ocupações úteis; costumam também alugá-los a quem deles possa ne-
cessitar, ressarcindo assim vantajosamente os gastos que tiveram em
instruí-los. Há grande escassez, aqui, de artesãos livres; creio que apenas
um ferreiro, um sapateiro, um ou dois carpinteiros, nenhum ferrador,
torneiro ou operário profissional em estanho ou latão, e, como em conse-
qüência disso é freqüente que um estrangeiro encontre dificuldades em
acorrer às suas necessidades, não somente são aqueles escravos muito dis-
putados, como ainda bastante estimados pelas suas prendas para que os
protejam de fadigas excessivas e maus tratos"76. Os anúncios de compra,
venda e aluguel de escravos demonstram que também em Porto Alegre e
Pelotas o artesanato era exercido por eles77 •
Em 1872, quando a mão-de-obra livre já era consideravelmente em-
pregada no Rio Grande do Sul, a população escrava da Província conti-
nuava a distribuir-se, entre outras ocupações, no setor artesanal, como se
verifica pela tabela a seguir.
Vê-se, portanto, que também nas atividades urbanas houve a utiliza-
ção regular de escravos negros. Os dados indicados na tabela confirmam-
se pelas descrições dos viajantes que percorreram as cidades. Os ofícios e
os serviços urbanos ligados ao comércio e ao transporte de mercadorias
eram exercidos exclusivamente pelos negros 78•

83
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

PROFISSÕES DA POPULAÇÃO ESCRAVA DO RIO GRANDE DO SUL


SEGUNDO O CENSO DE 1872

Profissões Escravos
Homens Mulheres Total
artistas 38 26 64
marítimos 39 - 39
pescadores 14 - 14
costureiros - 3.342 3.342
canteiros, calafates, mineiros
e cavouqueiros 11 - 11
operários em metais 23 - 23
operários em madeiras 205 . 205
operários em tecidos - 27 27
operários de edificações 14 - 14
operários de vestuários 13 . 13
operários de chapéus 8 - 8
operários de calçados 42 - 42
lavradores 29.363 19.373 48.736
criados e jornaleiros 563 403 966
serviço doméstico 242 1.178 1.410
sem profissão 5.121 7.756 12.877
Total 35.686 32.705 67.791

3. CONCLUSÕES

A análise desenvolvida neste capítulo mostra que houve intensa utiliza-


ção da mão-de-obra cativa na economia rio-grandense. O escravo negro
tornou-se peça essencial para a produção gaúcha desde o momento em
que, graças às lavouras de trigo, criaram-se estímulos para a articulação
mercantil dos produtos da região. No período de formação das lavou-
ras e da economia criatória o aproveitamento do escravo pode ter sido
ocasional, mas desde quando as condições de mercado permitiram e
suscitaram a organização da economia do gado em moldes "mercantis"
o emprego de mão-de-obra escrava generalizou-se. Nas estâncias a quan-
tidade de negros utilizados não chegou a ser grande, tanto porque houve

84
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CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

a utilização concomitante do trabalho indígena e do trabalho de peões


gaúchos livres como porque a quantidade de mão-de-obra requerida pela
empresa criatória é sabidamente pequena. Nas charqueadas, porém, o
trabalho organizou-se exclusivamente à base da escravidão. Paralelamen-
te, na economia urbana que se formou como conseqüência da produção
agrícola e criatória houve o aproveitamento regular do trabalho escravo.
O artesanato e os serviços econômicos urbanos mantiveram-se, até o
terceiro quartel do século XIX, graças ao emprego da mão-de-obra es-
crava. Finalmente, nos serviços domésticos, tanto na área rural como
nas cidades, os escravos foram amplamente utilizados. Em razão das
atividades sumariamente indicadas neste capítulo, houve um contingen-
te apreciável de negros e escravos na população gaúcha. Se é verdade
que, em conjunto, a proporção de negros e escravos não foi predomi-
nante no Rio Grande, senão em uma ou outra freguesia da área de po-
voamento antigo, o número de cativos negros sempre foi consideráveF9,
e a atividade econômica dependeu, em larga margem, do trabalho es-
cravo regular.
Por isso, quando a partir de 1850 cessou a possibilidade de manter-se
o fluxo da corrente de importação de escravos, o padrão de equilíbrio
funcional do sistema socioeconômico foi duramente atingido. De forma
aguda, a crise de mão-de-obra impôs-se à preocupação dos produtores e
do Governo depois de 1865 (particularmente entre 1875-1888), quando
a expansão da lavoura cafeeira provocou enorme evasão de escravos do
sul para o "norte". A desagregação do sistema servil foi rápida. Em 1863
ainda havia 77.419 escravos na Província, sabendo-se que nos períodos
de maior utilização desse tipo de mão-de-obra seu número girava na casa
dos 70 a 80 mil. Em 1872 o censo computava 67.791 escravos, em 1884
havia 60.000 matriculados, no ano seguinte 22.709 (ou, descontando-se
os escravos que, embora matriculados, já deviam ser forros no fim do ano,
12.000), caindo, finalmente, para o total de 8.500 escravos em 18878°. É
fácil compreender, com base nesses dados, que durante esse período a
desorganização do trabalho servil impôs a necessidade de redefinir os
padrões de funcionamento do sistema econômico. A alternativa da im-
portação de imigrantes ou do aproveitamento da mão-de-obra nacional
(inclusive os ex-escravos) passou a constituir preocupação constante dos

8 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

produtores e das autoridades. Não obstante, como se verá no capítulo ~


a rapidez da desagregação da ordem escravocrata levou muitos produto-
res à ruína, não permitindo o reajustamento, em tempo oportuno, aos
novos mecanismos de ação econômica necessários para a mantença do
trabalho produtivo à base da mão-de-obra assalariada.
Finalmente, cabe considerar que, independentemente da significação
que teve a quantidade de escravos no conjunto da população, o papel
desempenhado pela mão-de-obra escrava foi decisivo na economia rio-
grandense. Pelos motivos indicados neste capítulo, a economia exporta-
dora brasileira de tipo colonial só poderia organizar-se à base da escravidão.
Por isso, no Rio Grande do Sul sempre que houve possibilidade de ser a
produção local intensificada graças à articulação com os mercados consu-
midores de outras áreas, a economia gaúcha tendeu a organizar-se nos
moldes da produção escravista.

NOTAS

1. Cor e mobilidade social em Florianópolis, aspectos das relações entre negros e brancos
numa comunidade do Brasil Meridional, em colaboração com Octávio lanni, Com-
panhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, vol. 307, São Paulo, 1960, capo I.
2. Vale reproduzir aqui a acurada observação de Antônio José Gonçalves Chaves nas
"Memorias Economo-Politicas", reeditadas por J. B. Hafkmeyer S. J., na Revista
do Instituto Histórico e Geographico do Rio Grande do Sul, 11 e III trimestres, ano
11, Porto Alegre, 1922. Este autor, charqueador e comerciante, homem lúcido e
muito bem informado, dizia em 1833, embora referindo-se à utilização da carne-
seca e não a outros gêneros da alimentação: "Os proprietários de Escravos e gente
livre não dependem da carne-seca em parte nenhuma do Brasil para sua manuten-
ção, se não nos lugares aonde os grandes preços do algodão, açúcar, tabaco, café e
outros artigos conhecidos comumente por gêneros Coloniais, e que constituem o
máximo das exportações do Brasil, desvia os homens de demandar à terra respec-
tiva os comestíveis, de que carecem" (pág. 139).
3. Sobre o conceito de excedente econômico, ver Baran, Paul A., A Economia Política
do Desenvolvimento Econômico, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1960 (tradução
de S. Ferreira da Cunha), capítulo segundo.

86
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

Utilizarei na parte inicial deste capítulo a noção de capital em sentido lato, con-
forme é corrente na economia moderna.
4. Cf. F. H. Cardoso e O. Ianni, loco cit., Borges Fortes ressalta a mesma coincidência
de interesses econômicos e políticos na conquista do Brasil Meridional: "Reuni-
ram-se, assim, todas as conveniências. As do governo, do Rei da Capitania, na afir-
mação da soberania do território, na colheita de impostos, na manutenção da linha
de comunicações com a Colônia: as dos pioneiros do Rio Grande com a facilidade
de virem buscar gados e os cavalos nas campanhas ermas do Sul criando-se a for-
tuna própria e a prosperidade da incipiente vila da Laguna", Rio Grande de São
Pedro (Povoamento e Conquista). Biblioteca Militar, vol. XXXVII, Rio de Janei-
ro, 1941, pág. 19.
Também Jaime Cortesão, "O território da Colônia do Sacramento e a Forma-
ção dos Estados Platinos", Revista de História, ano V, nO 17, janeiro-março de 1954.
São Paulo, págs. 135-165, chama a atenção para a importância do comércio por-
tuguês nas Vacarias do Mar. Antes da exploração regular das tropas e muito antes
da indústria da salga, a exportação de couros constituiu base da atividade econô-
mica e do povoamento da vasta região que ia de Laguna à Colônia, e do litoral às
Missões. Refere Cortesão à página 141 de seu artigo: "Tamanho foi o desenvolvi-
mento tomado por este negócio que, em 1702, a Fazenda Real resolveu arrematar,
pela quantia, enorme para a época, de 70.000 cruzados anuais, a caçada dos cou-
ros nas campanhas da Colônia. É então que pela primeira vez aparece no cenário
do território da Colônia, donde volvido alguns anos ia destacar-se a Província de
São Pedro, o grande desbravador dessas regiões, o português Cristóvão Pereira de
Abreu, que arrematou esse contrato."
5. A importância militar das estâncias fica patente quando se sabe que as sedes eram
construídas em pontos elevados, como no geral também o eram as cidades da cam-
panha oriundas de antigas estâncias, para permitir melhor defesa.
6. As atas, no período relativo ao século XVIII, foram publicadas pelo Boletim Muni-
cipal da Prefeitura de Porto Alegre, que vem indicado na Bibliografia Geral deste
trabalho. Sobre o teor dessas informações os exemplos que transcrevo a seguir ilus-
tram seu significado: "Registro de carta que os oficiais da Câmara escreveram a S.
Magestade pedindo para os moradores do Rio Grande uma ração de carne por
esmola: (...) Muitos destes moradores vivião de commercio e na mesma invazão
(castelhana, na época de d. Pedro de Ceballos) perderão as fazendas que conservavão
nas suas lojas e devião a maior parte d'ellas aos commerciantes da cidade do Rio
de Janeiro e devendo estes compadecer-se da consternação a que se achão reduzi-
dos só cuidam em os mandar executar para que lhes satisfação o que lhes devem
com o fim de lhe tirar alguns escravos que poderão escapar com os quaes trabalhão
em lavouras para o fim de se poderem sustentar e as suas famílias, impossibilitan-
do-os de todos os meios de subsistirem (...)", Boletim Municipal, Prefeitura Muni-

87
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

cipal de Porto Alegre, ano UI, nO 9, 1941, págs. 474-475. No mesmo Boletim, à
página 477, há nova referência aos prejuízos ocasionados pela invasão castelhana
à cidade do Rio Grande, quando os habitantes "não puderam salvar mais que al-
guma roupa e parte dos seus escravos".
7. Felix de Azara, Memoria sobre el Estado Rural dei Rio de la Plata y otros informes,
Editorial Bajel, Buenos Aires, 1943, defende, na Memoria de 1801, a não restitui-
ção dos negros fugidos dos portugueses. Com o peso de sua experiência das coisas
platinas assegura a importância para os espanhóis do contrabando de escravos, cf.
págs. 20-21. Manoel Antônio de Magalhães, em 1808, dizia: "Jamais se deverão
consentir à exportação do domínio de toda a América portuguesa escravo algum,
pois não só é enfraquecer as nossas colonias, por engrossar quatro homens que
n'ellas commerciam, mas dar forças ao inimigo, ao mesmo tempo que todas as
nossas capitanias se acham na maior necessidade d'elles, como é constante, e o
alto galarim a que elles tem chegado com a exportação, que há mais de vinte annos
se faz para Montevideo, faz com que no curso d'este tempo, por uma boa conM,
passem de sessenta mil, que para ali se têm transportado, e não so faz que a pobre-
za jamais possa comprar um escravo, mas porque todos estes tem passado por
contrabando, sem pagarem os competentes direitos a S.A.R.", in "Almanack da
villa de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da Capitania do Rio Grande
do Sul", Revista Trimensal do Instituto Histórico e Etnographico do Brasil, Rio de
Janeiro, tomo XXX, la parte, 1867, pág. 47.
8. Arsene Isabelle, Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834), tradução e notas de
Dante de Laytano, seção do Arquivo Histórico do Museu Júlio de Castilhos, Se-
cretaria da Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
1946, págs. 20 e 33.
9. "Pelas onze horas, surge um escravo, munido de água e toalha, para o rosto e as
mãos, seguindo-se-lhe de perto um outro, que traz a água quente e fria, para lavar
os pés (...). John Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do
Brasil. Tradução de Milton da Silva Rodrigues, Livraria Martins Editora, São Pau-
lo, 2 a edição, 1951, pág. 145.
10. Studem, Elena F. S., La Trata de Negros en el Río de la Plata durante el sigla XVIII,
Departamento Editorial de la Universidad de Buenos Ayres, Buenos Aires, 1958,
pág. 262, nota 1.
11. Cf. Transcrição de Dante de Laytano, "O negro no Rio Grande do Sul", Primeiro
Seminário de Estudos Gaúchos, Universidade Católica do R.G.S., Porto Alegre,
1957, págs. 34-35. Sobre a presença de negros na formação do Rio Grande, ver
também Ericksen, Nestor, O Negro no Rio Grande do Sul, Livraria do Globo, Por-
to Alegre, 1940.
12. Cf. Aurélio Pôrto, "O Elemento Africano na Formação Étnica do Rio Grande do
Sul", A Manhã, Rio, 15-11-1942.

88
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

13. Dados in Appenso ao Quadro Estatístico e Geographico da provincia de São Pedro


do Rio Grande do Sul, organizado em virtude de ordem do Excellentísssimo Sr. Dr.
Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, presidente da Provincia, pelo Ba-
charel Antonio Eleutherio de Camargo, engenheiro da Província, Typ. do Jornal do
Commercio, Porto Alegre, 1868. Dentre os computados como livres contam-se,
conforme nota do quadro, os de todas as cores, o que significa "pardos", negros e
descendentes de índios.
Dante de Laytano, no trabalho já indicado, à página 37, reproduz mapas en-
viados por Joaquim Felix da Fonseca a D. Diogo de Souza, em 1811, onde, com
menor riqueza de informação, também se pode ver a importância do coeficiente
de negros na população.
14. Ver, por exemplo, Luccock, John, Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridio-
nais do Brasil, já citado. A viagem data de 1808.
15. Apenas a título de exemplo, pois o fato é sabido, transcrevo a informação de
Lallemant sobre a pequena quantidade de homens empregados no trabalho das
estâncias: ''A criação do gado, como é feita no Rio Grande do Sul, pede muita
terra e pode ser realizada com poucos braços: aliás, geralmente é feita por si
mesma e por isso é praticada com pouco cuidado", Robert Avé-Lallemant, Via-
gem pelo Sul do Brasil, no ano de 1858 (primeira parte). Instituto Nacional do
Livro, Rio de Janeiro, 1953, pág. 357. Laytano calcula que há necessidade de 10
homens para 1.000 cabeças de gado. Aires de Casal, na Corografia Brasílica,
Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1954, à pág. 143, assegura que: "Para costeár
uma fazenda de cinco mil cabeças, bastam seis homens com cem cavallos ao
menos".
16. Vide o capítulo lI, "As estâncias do Viamão", do livro do Gal. Borges Fortes, Rio
Grande de São Pedro, já referido acima. Neste capítulo o A. transcreve pedidos de
outorga de sesmarias onde se lê que os ocupantes das terras haviam "plantado man-
timentos" (1740), ou, então, que "todos vivem de lavouras e criação de animais",
numa informação de 1784.
17. Cartas extraídas de "Correspondencia passiva do Ten-Gal. João Henrique Bõhm",
publicada no Boletim do Centro Rio-Grandense de Estudos Históricos, Rio Gran-
de, ano I, 1939, págs. 10-160. A correspondência refere-se às cartas do Marquês
do Lavradio no período de 1774-1779.
18. Luccock, op. cit., pág. 149.
19. Tanto uns (os açorianos) transformaram-se muitas vezes em criadores ou invernistas,
como outros (os lagunistas) tiveram, como já disse, plantações. Isto quando, ao
mesmo tempo, as propriedades não eram de criação e lavoura. Rubens de Barce-
los, em trabalho publicado inicialmente n'A Federação em 1922 e transcrito na
Província de São Pedro, nO 3, dezembro de 1945, págs. 13-14, com o título "Esbo-
ço da Formação Social do Rio Grande", sintetiza bem o processo de formação da

89
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

propriedade rural gaúcha no') fins do século XVIII: "Os primeiros chefes de casal
prosperando com o produto das colheitas de trigo adquiriam escravos a fim de
incrementar as lavouras, requerendo maiores datas de terra logo que dispunham
de cabedais bastantes para sua demarcação e cultura.
Certa suficiência econômica parece ter sido condição exigida pelos governa-
dores para conceder as sesmarias. Ao lado, porém, desses lavradores, constituídos
de açorianos e sua prole, robustecendo-se lentamente, pelo trabalho da terra e pelo
comércio, surgiam, paralelamente, outros domínios, concedidos a negociantes enri-
quecidos no tráfico e, principalmente, à gente de qualidade, que vinha a serviço
das tropas".
20. O inventário de Jeronymo de Ornellas Menezes e Vasconcellos, um dos mais anti-
gos povoadores do Viamão, indica que deixou apenas 8 escravos na sua herança.
Cf. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, nO 80, ano
XX, Porto Alegre, dezembro de 1940, pág. 360.
21. Sobre a produção ou a exportação de trigo ver, principalmente, A. J. Gonçalvez
Chaves, Memorias economo-politicas, op. cit., págs. 92-93; Alfredo Varela, Rio
Grande do Sul, descripção phisica, historica e economica, voI. 1°, Echenique &
Irmãos Editora, Porto Alegre, 1897, pág. 439; Olinto Sam Martim, ''Aspectos Eco-
nômicos da Villa Porto Alegre", in Revista do Instituto Historico e Geographico do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1943, nO 89, ano XXIII, pág. 126; Aurélio Pôrto,
Dicionário enciclopédico do Rio Grande do Sul, Editora Universo Ltda., Porto Ale-
gre, 1936-1937, verbete "açoreana", fascículo I, pág. 64 e segs.
22. A explicação de Gonçalves Chaves sobre a decadência da cultura do trigo baseia-
se na inexistência de amparo governamental à agricultura, somada à moléstia vul-
garmente chamada ferrugem, que atacou os trigais gaúchos. Achava este autor que
só com a importação de novas sementes o mal seria sanado. Dreys, Nicolao, No-
ticia Descriptiva da Provincia do Rio Grande de São Pedro do Sul, J. Villeneuve e
Comp., Rio de Janeiro, 1838, concorda com esta explicação e atribui a ferrugem
à qualidade do solo, arenoso, em que se plantavam os trigais. Muitos autores en-
dossaram estas explicações, acrescentando um ou outro fator novo que teria
coadjuvado a ferrugem na faina de exterminar os trigais sulinos. Assim, há os que
lembram, não sem razão, os efeitos negativos para a agricultura da política militar
de recrutamento de homens do campo e de "embargos" de mantimentos para o
munício das tropas. Entretanto, a explicação da decadência da agricultura gaúcha
parece ser outra, como sugere o Desembargador Florêncio de Abreu, no trabalho
O Gado bovino e sua influência na antropogeografia do Rio Grande do Sul, Rio,
1942. Parece que a economia do gado passou a ser tão lucrativa que houve o aban-
dono da agricultura de vários cereais no Rio Grande do Sul e não apenas do trigo.
A importação de novas sementes seria possível, se houvesse incentivo econômico
real para propiciá-Ia. Os estragos da política militar sobre a agricultura haviam

9 O
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sido tão ou mais intensos no século XVIII do que no século XIX e o trigo continuara
a ser plantado. Entretanto, com a desorganização da economia criatória do Prata,
a estância impôs-se de forma avassaladora. Acresce que a criação exige muito menos
braços do que os trigais, virtude que não podia ser desprezada no Sul. A opinião
de Florêncio de Abreu é compartilhada também por Assis Brasil.
23. Cf. Verbete açoreana no dicionário já referido de Aurélio Pôrto, pág. 64.
24. Cf. Cor e Mobilidade Social em Florian6polis, já indicado.
25. Há muitas referências aos transtornos que a política de recrutamento e de em-
bargos causou à agricultura. Indicarei aqui apenas duas fontes clássicas. Primei-
ro, Manoel Antônio de Magalhães, op. cit., pág. 54: "parece acertado que no
tempo de paz todos os soldados filhos de agricultor se devem licenciar no tempo
das plantações e colheitas, não só para ajudar seus pais e parentes, mas para ga-
nharem com que se possam melhor tratar, e o serviço de trezentos ou quatrocen-
tos homens licenciados n'aquelle tempo, por força deve adiantar muito a
agricultura da capitania (...}". Esta proposta mostra também o que afirmo neste
trabalho: que o cultivo dependia do braço do agricultor e de seus familiares, não
obstante a utilização de escravos. O segundo depoimento é de Sebastião Francis-
co Bettamio, escrito em 1780. Bettamio propõe a criação de armazéns reais (es-
pécie de silos): "Tudo isto será de grande utilidade, mas para se executar é preciso
que os lavradores lha achem, especialmente na verdade e promptidão com que
se lhes devem fazer as entregas dos productos dos seus fructos, não se lhes to-
mando para a Fazenda Real sem se lhes pagarem; porque se suppozerem que é
forma de lhes fazerem para este effeito ajuntar os seus fructos, ficarão desconfi-
ados, e os esconderão, ficando frustrado todo o trabalho, o qual deve ser só em
os animar, e mostrar-lhes as utilidades que se lhes seguem, e que elles com effeito
as percebão para se lhes desvanecer a desconfiança em que vivem por causa das
dividas que com elles se tem contrahido pela Fazenda Real, procedidas de fructos
que se lhes tem tomado, e estão por pagar", in "Noticia Particular do Continen-
te do Rio Grande do Sul", Revista do Instituto Historico e Geographico Brasilei-
ro, tomo XXI, 3° trimestre de 1858, Typographia Brasiliense de Maximiano
Gomes Ribeiro, Rio de Janeiro, 1858, pág. 258.
26. Aurélio Pôrto, op. cit., nota 20 da pág. 64. Os moinhos de trigo foram erguidos só
depois de 1773, data em que, segundo se pode ler em Borges Fortes, op. cit., pág.
88, chegaram pelo navio "Campelo" oito pedras para a construção de moinhos.
Azeredo Coutinho aponta que em 1793 teria havido proibição da entrada de trigo
gaúcho em Portugal para evitar a concorrência com os agricultores metropolita-
nos. A proibição, segundo a mesma fonte, teria provocado desinteresse pelas plan-
tações do cereal no Rio Grande e, mais tarde, dificuldades de suprimento para a
população e os exércitos portugueses. Os dados e as indicações acima contradi-
zem a segunda parte das informações de Azeredo Coutinho: apesar de ter a "polí-

9 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

tica colonial" obrigado a proibição das importações portuguesas de trigo gaúcho.


as plantações continuaram até quase a Independência. Provavelmente o consumo
na Colônia e o munício das tropas permitiam a expansão dos trigais. não sendo
descabido supor, em face da informação sobre novas importações portuguesas em
1807, que a proibição teve de ser cancelada ou não foi cumprida por causa da
escassez posterior de trigo. Ver Azeredo Coutinho, José Joaquim da Cunha, Ensaio
Economico sobre o Commercio de Portugal e suas Colonias, Typographia da Aca-
demia Real das Sciencias, 3a ed., Lisboa, 1828, págs. 145-146.
27. Dante de Laytano, Açorianos e alemães, no desenvolvimento da colonização e agri-
cultura do Rio Grande do Sul, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1948, pág. 21.
28. Cf. Dreys, Nicolao, Noticia Descriptiva da Provincia do Rio Grande de São Pedro
do Sul, op. cit., págs. 67-69; e Saint-Hilaire, op. cit., págs. 109 e 130-131.
29. Dante de Laytano, "O negro no Rio Grande do Sul", já citado, pág. 61.
30. O mecanismo era, realmente, mais complicado. A explicação completa da transforma-
ção da economia tritícola colonial numa exploração escravista supõe a resposta à se-
guinte questão: quais as condições para a organização de uma economia capitalista
numa área onde, além de haver terras abundantes e escassa mão-de-obra, a base eco-
nômica de produção assenta-se na pequena propriedade familiar? Nessa situação cabe
distinguir, com Marx, a confusão entre "duas categorias inteiramente distintas de pro-
priedade privada: a que se baseia no trabalho pessoal do produtor e a que se funda-
menta sobre a exploração do trabalho alheio (...) A segunda não só é a antítese direta
da primeira como, além disso, floresce sempre sob sua tumba", EI Capital, Fondo de
Cultura Económica, trad. de Wenceslao Roces, México, 1946, tomo I, vol. lI, pág.
855. Numa economia onde os fatores naturais de produção são escassos, esse antago-
nismo se resolve facilmente pela "proletarização" do pequeno empreendedor. Quan-
do, como no sul, a abundância de terras tornava praticamente impossível esse caminho
(sem, naturalmente, eliminá-lo como recurso acessório) e impedia, pela mesma razão,
a importação de mão-de-obra livre - pois esta automaticamente transformar-se-ia no
seu contrário (produtor independente) - o único recurso para organizar a produção
de forma a atender ao mercado estava na importação de escravos. Esses, legalmente.
viram-se impedidos de produzir de motu proprio. A escravidão consistira, portanto,
num meio para impedir a tragédia da economia colonial no afã de capitalizar-se, como
a descreve Wakefield: "Onde a terra é muito barata e todos os homens são livres, onde
todo o mundo pode, desejando, obter um pedaço de terra para si, o trabalho não só é
muito caro (...) mas a dificuldade está em obter trabalho combinado a qualquer preço"
(citado por Marx, já indicado, pág. 859); e ainda: "a única base natural e espontânea
da riqueza colonial é, segundo o próprio Wakefield, a escravidão. A colonização siste-
mática que ele propõe não é mais do que um pis a//er, para ter de tratar com homens
livres, em vez de entender-se com escravos", Marx, op. cit., pág. 858. Ao mesmo tem-
po. porém, a escravidão impedia o desenvolvimento das outras condições necessárias

92
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

para O florescimento do capitalismo (a começar pela mercantilização da "força de tra-


balho"). A abundância dos fatores naturais da produção agrícola, por outro lado, cons-
tituía um elemento limitativo constante da economia colonial no sentido de sua plena
integração ao regime capitalista: "Como nas colônias não se impôs, entretanto, ou só
se deram passos muito esporádicos ou com uma margem de ação muito reduzida, o
divórcio entre o trabalhador e suas condições de trabalho, com sua base, a terra, não
existe tão pouco o divórcio entre a agricultura e a indústria, não se destruiu ainda a
indústria doméstico-rural, e, sendo assim, onde encontrará o capital seu mercado inte-
rior?" (idem, idem, pág. 859). A escravidão, com mais forte razão, impedia a formação
do "mercado interno".
Por essas razões, a economia brasileira encontrou-se ilhada entre a escravidão
e a produção para a subsistência. As contradições geradas pelas condições da for-
mação da economia capitalista no sul serão estudadas no capítulo IV.
31. Bettamio, op. cit., pág. 241.
32. Bettamio,op. cit., pág. 279.
33. Manoel Antônio de Magalhães, op. cit., págs. 45 e 46-47.
34. Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821), trad. de LeonamA. Pena,
Ariel Editora, Rio de Janeiro, 1935, págs. 161-162.
35. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 277.
36. Gonçalves Chaves, Memórias, op. cit., pág. 181.
37. Dreys, Noticia Descriptiva, op. cit., págs. 142-143.
38. Saint-Hilaire registrou uma conversa sobre as Missões na qual mostra que não com-
preendeu o sentido da utilização do índio como força de trabalho: "Disse-lhe (a
um hospedeiro) admirar-se dos estancieiros desta província (das Missões) não pos-
suírem negros em vez de alugar os peões a oito e a doze patacas por mês" (pág.
267). O interlocutor respondeu que não se podia utilizar negros porque as índias,
pelo muito entusiasmo que por eles demonstravam, punham-nos em perdição,
transmitindo-lhes moléstias venéreas que os devastavam. A razão, obviamente, é
que era mais econômico, dadas a abundância de índios e as formas de sujeição
(sem que formalmente fossem escravos) a que eram submetidos, utilizá-los, em
vez de obter escravos negros, escassos e caros.
39. Convém frisar que esta região, como provavelmente também a Província das Mis-
sões, foi ocupada por "paulistas", tanto por antigos tropeiros como por fugitivos
da Capitania: "Quando os Paulistas, mormente os do distrito de Curitiba, come-
tem qualquer falta ou querem fugir ao serviço militar, refugiam-se na Capitania
do Rio Grande, onde se estabelecem e de onde não saem mais", escreveu Saint-
Hilaire (pág. 234). De fato, o naturalista passara em algumas estâncias pertencen-
tes a paulistas e um deles fez comentários bastante elucidativos sobre o tipo de
população que ocupou aquelas áreas: "Lamenta esse homem que tanta gente de
sua terra para aqui venha com o intuito de ganhar a vida, se entregar a tantos

9 3
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

disparates pelos índios, não se enriquecendo nunca. Vários fogem para não se sub-
meterem ao serviço do rei, o qual é aqui muito mais penoso que na Capitania de
São Paulo: outros vêm na esperança de fazer fortunas e se empobrecem mais. A
maior parte não tem, aliás, o projeto de permanecer nesta Capitania; uns come-
tem maus negócios e envergonham-se de regressar; outros finalmente metem-se
em diversos negócios complicados e envelhecem fazendo cada ano a intenção de
atravessar o deserto, em retôrno, no ano seguinte"(235-236).
40. Lallemant, op. cit., pág. 324.
41. Mawe, John, Viagens ao interior do Brasil, Zélio Valverde, Rio de Janeiro, 1944,
trad. de Solena Benevides Viana, pág. 300.
42. Dreys, op. cit., pág. 142. Manoelito de Ornellas, no livro Gaúchos e Beduínos, José
Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1956, 2 a edição, pág. 26, também sublinha a
existência de negros campeadores no Rio Grande do Sul. Da mesma forma, Nestor
Ericksen, op. cit., pág. 18, ressalta que havia peões negros.
43. Dreys,op. cit., pág. 203.
44. Sobre a economia extrativa pude comprovar apenas o emprego de escravos nas lavras
de ouro: "Uma infinidade de riachos e terrenos são auríferos nesta Província, mas os
métodos de lavagem são muito ruins e o pó que se obtém não dá grande resultado ao
proprietário de negros empregados neste serviço", Isabelle, op. cit., pág. 36.
Arsene Isabelle, em trabalho posterior, Emigração e Colonização, Gráfica Edi-
tora Souza, Rio, 1951, confirma a utilização de negros nas lavras de Caçapava, di-
zendo que "os pretos escravos utilizados nesse trabalho o fazem com indolência e
sem a menor atenção" (pág. 58). Ainda sobre a utilização da mão-de-obra escrava
nas lavras, convém realçar que quantitativamente sua importância foi pequena. O
presidente Angelo Muniz da Silva Ferraz diz que em "1857 extrahião-se (no destrito
de Santo Antônio de Serra) apenas 4.600 oitavos, empregando-se na mineração 29
pessoas livres e escravos, inclusive alguns faiscadores" in Relatorio do Presidente de
São Pedro do Rio Grande do Sul, Angelo Muniz da Silva Ferraz, apresentado à Assem-
bléia Legislativa Provincial na la Sessão da ga Legislatura, Typographia do Correio
do Sul, Porto Alegre, 1858, pág. 37. Na freguesia de São Sepé, segundo a mesma
fonte, pág. 38, "trabalhavão 46 pessoas, entre livres e escravos", na mineração.
Nem com relação ao carvão (onde parece ter sido empregado o trabalhador
livre), nem com relação ao mate, de tão grande importância, encontrei dados com-
pletos. A exploração do mate foi contínua no Rio Grande. Entretanto, tratava-se
de atividade puramente extrativa, baseada em tecnologia muito rudimentar. Dreys
assim se refere a essa produção: "(...) a herva-matte, que ainda se está preparando
pelo methodo imperfeito da selvagem industria dos Indios das antigas Missões,
industria estacionaria que, em perto de 3 seculos, não fez quase progressos alguns,
e que a guerra tem necessariamente tornado morosa e, para assim dizer, nulla, (...)",
op. cit., pág. 162. Também Gonçalves Chaves, op. cit., págs. 165-169, dá conta do

94
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

tratamento rudimentar que se dispensava à erva-mate e afirma que só em condi-


ções excepcionais o produto gaúcho podia concorrer com o paraguaio no merca-
do platino. É provável que tivesse sido utilizada mão-de-obra escrava na preparação
do mate, sobretudo quando, na segunda metade do século XIX, as condições téc-
nicas da sua industrialização melhoram. A partir dessa época utilizaram-se moi-
nhos movidos a vapor nas cidades (Porto Alegre e vila de São Jeronymo), cf. Relatório
Barros Pimentel de 1864, pág. 54. Entretanto a extração foi predominantemente
feita pelos indígenas, cf. o mesmo relatório, e ao que tudo indica segundo o méto-
do rudimentar, descrito por Saint-Hilaire à pág. 214 de seu livro. Os colonos es-
trangeiros parece não se terem interessado pelo mate: "estragão os hervaes, e os
derrubão, porque ainda não se compenetrarão da necessidade de os beneficiar"
(Relatório Muniz da Silva Ferraz, 1858, pág. 33). Não obtive qualquer documento
que comprovasse o emprego de escravos negros quer na coleta quer na produção
do mate. Ver também Tchauer, Carlos S. J., História do Rio Grande do Sul dos dois
primeiros séculos, Livraria Selbach, Porto Alegre, 1918.
45. Saint-Hilaire,op. cit., pág. 136, explica o que é uma chácara: "Parei em uma chá-
cara habitada por um paulista. Conforme disse já, uma estância é uma proprieda-
de onde podem existir algumas culturas, porém ocupando-se principalmente da
criação de gado. A chácara tem área menor e só se destina à agricultura". Havia
estancieiros que, no depoimento do mesmo autor, também plantavam: "Nos arre-
dores de Santa Maria existem muitos estancieiros, os quais, além da criação de
gado, dedicam-se à agricultura. Os produtos da lavoura são consumidos aqui mes-
mo. Todavia, são exportadas pequenas quantidades para Capela de Alegrete, onde
os proprietários, tendo quase os mesmos hábitos dos gaúchos, ainda não se dedi-
cam à agricultura" (pág. 246).
46. Dreys, op. cit., falando sobre a região do Rio Grande noutra época confirma a
utilização de escravos na agricultura: "a Ilha dos Marinheiros, como a Ilha de
Turatana, não tem quase população alguma, além dos escravos empregados na
manutenção das quintas, e de poucos pescadores, cujas famílias se ocupam ao
mesmo tempo da criação de algum gado" (pág. 57).
47. Jorge Salis Goulart, A Formação do Rio Grande do Sul, Livraria Globo, 2 3 edição,
Porto Alegre, 1933, registra esse aspecto da economia gaúcha. "O regime econô-
mico apresenta também esse dualismo: dentro do latifundio pastoril florescia a
pequena lavoura do trigo, feijão, arroz ou mandioca".
48. Cf. Luiz G. Gomes de Freitas, "Estâncias Antigas - Caminhos Antigos - Cânha-
mo e Linho", Revista do Museu Júlio de Castilho e Arquivo Histórico do Rio Gran-
de do Sul, ano III, nO 4, Porto Alegre, 1954, págs. 41-85. As informações que utilizei
referem-se a meados do século XIX.
49. O levantamento sistemático dos inventários e testamentos dos estancieiros gaú-
chos poderia trazer muita luz para a compreensão da atividade e da organização

9 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

das estâncias. Infelizmente esta documentação jaz inédita nos arquivos. Parece que
por volta dos meados do século a estância próspera do sul contava com escravaria
numerosa, tanto para o serviço doméstico como para a produção. O inventário de
Bento Gonçalves, que era estancieiro da fronteira (onde a utilização de negros nunca
foi grande), acusa 33 escravos, em 1857, Cf. "Inventário dos bens deixados pelo
Cel. Bento Gonçalves da Silva", Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1947, ano XXVII, nO 105 a 108, pág. 40.
50. Ver o regulamento, registrado a mão, "Instrução para o Snr. João Francisco da Silva,
Capataz da Estância da Música" redigido por João Francisco Vieira Braga, datado·
de 28-7-1832, na estância de São João. No arquivo Vieira Braga existe a correspon-
dência sobre a administração da estância, entre o proprietário e o capataz.
51. Nas vizinhanças das cidades a utilização dos escravos nas lides campestres já devia
ser norma. Em 1827, por exemplo, anunciava-se no jornal Diário de Pôrto Alegre,
nO 75 de 5-9-1827, a venda de uma fazenda nos seguintes termos: "Vende-se a Fa-
zenda Morretes (...) distante desta cidade, trez leguas, tem boas Cazas de vivenda,
Pomar, Olaria, Engenhos de cana e farinha, vinte e cinco Escravos, Oleiros, Campeiros
e Roceiros, Boiada e mais gado manço de criar, Animaes cavallares, ovelhas, Embar-
cações, e mais utensilios da mesma Fazenda (...)" in Rita Gomes Soares, "Coleção de
Anúncios do Diário de Pôrto Alegre de 1827", Comunicações e Contribuições do
Serviço de Arquivo Histórico do Estado, saparata dos Anais do III Congresso Sul-Rio-
grandense de História e Geografia, Porto Alegre, 1940, pág. 91.
52. Em 1846 parece que a utilização do indígena já era bem menos intensa. Caxias, então
Conde e Presidente da Província, lamentava que com tanto índio disponível houvesse
a importação de escravos. Cf. "Relatório com que abrio aIa sessão ordinária da 2 a
Legislatura da Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
no 1° de Março de 1846, o Exmo. Snr. Conde de Caxias, Presidente de nossa Provín-
cia", manuscrito incluído no volume Fallas e Relatórios (1829-1847) da Biblioteca da
Assembléia Legislativa do Estado, folhas 45-46, transcrito no capítulo V.
53. Muito antes desta data havia a fabricação de charque no Sul. Parece que foram os
jesuítas que a introduziram, cf. Antônio Carlos Machado, ''A Charqueada", Pro-
víncia de São Pedro, 8 de março de 1947, págs. 121 e segs. A partir de 1779, entre-
tanto, é que houve a intensificação da criação de estabelecimentos saladeiros,
primeiro no rio São Gonçalo e depois no Jacuí.
54. Abreu e Silva, Florêncio de, "Retrospecto Econômico e Financeiro do Rio Grande
do Sul (1882-1922)", Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, nO 8, de-
zembro de 1922, pág. 239. Saint-Hilaire menciona que na paróquia de São Fran-
cisco de Paula (Pelotas) havia 18 charqueadas em vez de 22 (Viagem, pág. 96).
55. Spalding, G. Walter, "Comércio, Indústria e Agricultura do Estado do Rio Grande
do Sul", Anais do Primeiro Congresso de História e Geografia Sul-Rio-grandense,
comemorativo do centenário da Revolução Farroupilha, vol. m, 1936, pág. 221.

96
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

56. Luccock, op. cit., pág. 122.


57. O charque servia para o consumo dos escravos, sendo exportado principalmente para
o Rio de Janeiro, a Bahia e as Antilhas. Antes do florescimento da exploração do
charque gaúcho os centros consumidores brasileiros eram abastecidos pelo Ceará.
58. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 76. Adiante, à pág. 81, o naturalista insiste na idéia de
que a prosperidade do Rio Grande deveu-se às dificuldades internas da economia
platina: "Entretanto, pode dizer-se que somente após a insurreição dos espanhóis a
cidade começou a florescer. Antes dessa época não se viam senão palhoças".
59. Nas estâncias desta região (refere-se, aqui, às charqueadas próximas de Porto Ale-
gre), quase puramente pastoril, não são precisos tão numerosos escravos como acon-
tece nas regiões açucareiras ou na exploração de minérios. Cerca de 80 negros, apenas
ocupam-se na construção do curtume, e depois nele trabalharão", op. cit., pág. 27.
60. Louis Couty, Le Maté et les Conserves de Vumde, rapport à son excellence monsier le
Ministre de l'Agriculture et du Commerce sur as mission dans les provinces du Paraná,
Rio Grande et les Etats du Sud, Typographia Nacional, Rio de Janeiro, 1880, pág. 133.
61. Cf. Antônio Carlos Machado, ''A Charqueada", op. cit., pág. 133.
62. Sobre a quantidade da exportação do charque entre 1805 e 1820, há dados nas
Memórias de Gonçalves Chaves, págs. 92-93; sobre o valor da~ exportações en-
tre 1837-1845 e sobre valor e quantidade entre 1850-1865 existem dados no
Quadro Estatístico e Geográfico da Província de São Pedro, elaborado por Antô-
nio Eleutherio de Camargo, já citado. Ver ainda o Retrospecto Financeiro, já ci-
tado, de Florêncio de Abreu. Sobre as exportações de charque nas duas últimas
décadas do século, ver o trabalho citado por Celso Furtado (Formação Econô-
mica do Brasil, pág. 172) de J. P. Wilemam, Brazi/ian Exchange, Buenos Aires,
1896, pág. 106. Celso Furtado, à base dessas informações, diz, na obra e página
indicada, o seguinte: "No Rio Grande do Sul coube o impulso dinâmico ao setor
pecuário através de suas exportações para o mercado interno do país. Essas ex-
portações - particularmente as do charque, que chegaram a constituir a metade
das vendas totais do Estado para os mercados interno e externo, no fim do sécu-
lo passado - reintegraram a pecuária rio-grandense na economia brasileira."
Os períodos de expansão da indústria do charque, no lapso de tempo que estamos
considerando, prenderam-se sempre às dificuldades ocasionais do mercado
platino, conforme acentua Florêncio de Abreu, O gado bovino e sua influência
na antropogeografia do Rio Grande do Sul, Rio, 1942, pág. 27.
Nem sempre os criadores e os charqueadores perceberam com clareza as ra-
zões das desvantagens que levavam em face dos saladeiros, como mostrarei adian-
te; freqüentemente atribuíam os momentos de retração à política fiscal do Império,
tanto no que diz respeito às taxas aduaneiras quanto no que se refere às importa-
ções do sal que necessitavam. Walter Spalding (in "Pecuária, charque e char-
queadores no Rio Grande do Sul", Revista do Instituto Histórico e Geográfico do

9 7
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Rio Grande do Sul, nO 91-92, ano XXII, Porto Alegre, 1943) garante, com segu-
rança, que entre 1785 e 1835 a exportação do charque foi a maior da Província
(pág. 136). Assegura ainda que a taxa de importação do sal foi um dos fatores
responsáveis pela queda posterior do produto. Acrescenta, também, que a revolu-
ção Farroupilha (35-45) desorganizou profundamente a economia pastoril gaú-
cha. Pude coligir os seguintes dados sobre a exportação do charque:

EXPORTAÇÕES DO CHARQUE

1805 - 951.910 arroubas 1846 - 2.556.765


1806 - 806.776 " 1847 - 1.104.194
1807 - 966.052 " 1848 - 2.454.609
1808 - 868.070 " 1849 - 2.119.452
1809 -741.762 " 1850 - 1.843.554
1810 - 891.799 "
1811 - 1.038.556 "
1812 - 1.243.972 "
1813 - 1.108.702 " 1851 - 1.906.717
1814 - 1.303.515 " 1852 - 1.492.744
1815 - 1.259.620 " 1853 - 1.754.026
1816 - 1.933.300 " 1854 - 1.403.530
1817 -763.143 " 1855 - 1.170.983
1818 - 919.482 " 1856 - 1.229.069
1819 -770.648 " 1857 - 1.462.023
1820 - 948.986 " 1858 - 970.580 1/2
1859-60 - 1.695.5461/2
1860-61 - 1.997.083
1837-8 - 156.053 9/40 1861-62 - 1.889.384
1838-9 - 157.316 13/160 1862-63 - 2.126.164
1839-40 - 433.127 139/160 1863-64 - 1.932.700
1840-41 - 61.285 19/40 1864-65 - 2.395.818
1841-42 - 600.354 33/40
1842-43 - 728.327 27/80
1843-44 - 1.112.768 1/8
1844-45 - 951.034 63/80

FONTES

1) Até 1820, Gonçalves Chaves, Memórias, págs. 92-93.


2) Relatório, Miranda Castro, 1848-1849.
3) Appenso ao Quadro Estatístico etc., elaborado por Eleurherio de Camargo.
4) Relatório, Angelo Muniz de Silva Ferraz, 1858, pág. 39.

9 8
CAPITALISMO E ESCRAVIDAo NO BRASIL MERIDIONAL

63. Além das atividades econômicas que mencionei, houve outra que absorveu a mão-
de-obra escrava com regularidade: a plantação do linho-cânhamo. Nas Missões já
se tentara desde o século XVIII o plantio de Linum usitatissimum, mas os esforços
foram baldados. O insucesso parece que se deveu à incapacidade dos indígenas de
ajustarem-se aos requisitos técnicos da obtenção do fio. Em 1783, por determina-
ção estatal e sob controle estatal, fundou-se a Real Feitoria do Linho Cânhamo na
Ilha do Canguçu, Lagoa dos Patos, em área hoje pertencente ao município de
Pelotas. Desde o início da exploração a mão-de-obra foi escrava. O negócio, por
razões diversas (desde a má administração até os erros técnicos e as condições eco-
nômicas adversas), não prosperou. Em 1803, sob a designação de Real Feitoria do
Linho Cânhamo, as instalações e a escravaria foram transferidas para o Fachinal
do Courita, às margens do rio dos Sinos, hoje município de São Leopoldo. As co-
lheitas, contudo, não aumentaram (nunca houve produção de mais de 300 arrou-
bas), salvo num período em que o inspetor do estabelecimento foi substituído pelo
Padre Antônio Gonçalves da Cruz. Esse, entretanto, foi assassinado por um escra-
vo em 1815 porque era "dado a infligir maus-tratos aos escravos, que eram, mui-
tas vêzes, bàrbaramente castigados", cf. Leopoldo Petry, "O Município de São
Leopoldo", Anais do Primeiro Congresso de História e Geografia de São Leopoldo,
Livraria do Globo, 1947, pág. 146.
O linho cultivado nestas Feitorias não foi o Linum usitatissimum, mas o Canabis
sativa, cujo fio servia para a cordoalha náutica, de que tanto precisava a Coroa,
conforme se pode ver in Luiz G. Gomes de Freitas, "Estâncias antigas - veículos
de carga-cânhamo e linho", op. cit., págs. 73-75. Todo o esforço de plantação do
cânhamo repousou no braço escravo. Quando em 1824 foi extinta a feitoria, lá
existiam 321 escravos, cf. "Inventário de Extinta Feitoria, Hoje-Colônia de São
Leopoldo", in Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, nOS 15 e 16, 1924.
Não creio que em outra época o número de escravos tenha suplantado esse total,
pois a produção sempre foi pequena, como se pode verificar pelos dados sobre
seu valor contidos no "Quadro Estatístico e Geográfico da Província de São Pedro
do Rio Grande do Sul" organizado por ordem do Dr. Homem de Mello em 1868,
já citado, página 34. No mesmo relatório há dados que mostram que a despesa
foi, em regra, superior à receita. O empreendimento não poderia, pois, vingar.
Por outro lado, os lavradores independentes recusavam-se a plantar linho-cânha-
mo, fervendo as sementes que recebiam, antes de semeá-las. Esta prática se com-
preende porque, não servindo a fibra do cânhamo para a feitura de tecidos de uso
caseiro, sua produção encontrava comprador apenas no Governo, que era mau
pagador contumaz. O regime dos embargos espantava o cultivador açorita. En-
contra-se um resumo relativamente completo da história do cânhamo no sul em
Aurélio Pôrto, O Trabalho Alemão no Rio Grande do Sul, Estabelecimento Gráfico
Santa Terezinha, Porto Alegre, 1934, capítulos 11, m, IV e V, da Primeira Parte

9 9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

(Ensaios de Agricultura, 1783-1824). Por aí também se fica sabendo que houve


aproveitamento da mão-de-obra indígena na plantação do cânhamo e que os 381
escravos aludidos no Inventário da Feitoria foram mandados para o Rio por serem
escravos da Nação. Os maus-tratos e as condições miseráveis de vida constituíam
norma entre a escravatura do estabelecimento.
64. Silva Ferraz, Angelo Muniz da, Relatório de 1858, página 39.
65. Vide Lallemant, op. cit., esp. págs. 178-198-273-280, onde menciona sua passa-
gem pelas vilas indicadas. Sobre São Gabriel, diz à página 307: "Notavelmente
grande é aqui o número de casas comerciais. Em cada três casas uma certamente é
uma loja, onde se encontram todos os artigos e utensílios. E embora São Gabriel
conte 2.000 habitantes e animada vizinhança, não se compreende como todos
aqueles estabelecimentos comerciais possam existir e mesmo fazer fortunas".
66. Os relatórios dos Presidentes da Província dão conta da utilização de escravos na
indústria naval gaúcha. Assim, por exemplo, em 1873 empregavam-se nos "esta-
leiros" da Província 210 "nacionai-s" (sem especificação de cor), 125 "estrangei-
ros" e 47 escravos, conforme se pode ler à página 33 da Falla, do presidente João
Pedro Carvalho de Morais, de 1873.
No serviço de transporte fluvial- de grande importância na economia sulina
- a utilização de escravos foi bastante acentuada também. Através dos Relatórios
e Fallas pode-se obter, por exemplo, os seguintes dados sobre os "remadores" da
navegação fluvial do Porto de Porto Alegre:

Em 1859

Livres 931
Escravos 569

Em 1864, na navegação fluvial da Província empregaram-se:

Como remadores:

Nacionais Estrangeiros Escravos

No ano de 1864 1.354 687 1.146


No ano de 1872 868 893 653
Dados obtidos, respectivamente, nas seguintes fontes:
Relatório do Cons. J. Antão Fernandes Leão de 1859;
Relatório do Dr. Espiridão Eloy de Barros Pimentel, 1864, página 72;
Falla do Dr. João Pedro Carvalho de Morais, 1873, pág. 33.

1 OO
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

67. John Mawe, Viagem ao Interior do Brasil, já citada, pág. 229:


"No velho sistema vigente nos últimos quatro anos, estabeleceu-se um comér-
cio muito lucrativo com os espanhóis, que, em grande número, e com a maior avi-
dez, compravam, por preços elevados, o tabaco e as manufaturas inglêsas que
podiam ser transportadas a cavalo. Assim, o Rio Grande e seus arredores torna-
ram-se locais invejáveis, onde se faziam fortunas consideráveis em curto espaço de
tempo, pois as mercadorias compradas, embora de contrabando, eram muito pro-
curadas e pagas em espécie".
68. "O comércio é próspero (em Rio Pardo) porque este ponto é o armazém de abaste-
cimento das cidades e vilas do norte e oeste; dali partem continuamente tropas de
mulas e carretas para todas as povoações do interior", diz Isabelle, op. cit., pág. 50.
69. Sobre os negros nos navios, ver a viagem de Saint-Hilaire; sobre a utilização de
escravos nas carretas, diz Arsene Isabelle, referindo-se à tropa de carretas em que
ele voltava para Rio Pardo: "Fora os dois companheiros e eu, o pessoal se compu-
nha do tropeiro ou capataz (contramestre), quatro arreadores (picadores), sendo
dois negros e um índio; o capataz e um picador eram brasileiros", op. cit., pág. 20.
70. Arsene Isabelle, op. cit., págs. 64-65.
71. Idem, ibidem, pág. 77.
72. Arsene Isabelle, op. cit., págs. 79-80. Enganou-se Isabelle apenas no que dizia res-
peito às possibilidades de Pelotas suplantar Porto Alegre como centro comercial.
O viajante não podia prever o surto da imigração que fez prosperar exatamente a
zona da Província que continha "grande número de matas".
73. Saint-Hilaire,op. cit., pág. 71-72. À página 95, o mesmo autor reafirma a rudeza
dos comerciantes europeus (portugueses) e presta mais uma informação sobre a
camada onde eram recrutados: "Entre os negociantes aqui domiciliados muitos
são europeus, outrora marinheiros, e em geral analfabetos".
74. Limeira Tejo menciona o desenvolvimento artesanal no período Farroupilha, in
"A indústria Rio-Grandense em função da Economia Nacional", Estatística Indus-
trial do Rio Grande do Sul, Diretoria Geral de Estatística, Estado do Rio Grande
do Sul, 1937, Porto Alegre, 1935. O mesmo autor insiste noutro artigo sobre a
importância do artesanato no Rio Grande do Sul: "Contribuição à crítica da eco-
nomia rio-grandense", parte 11: "processus" industrial, in Província de São Pedro,
dezembro de 1945, nO 3, págs. 74-91, esp. págs. 81-82.
75. Lallemant, por exemplo, afirma que se viam "igualmente numerosos negros em
São Borja, não, porém, em proporção com a população branca, como na parte
oriental do Brasil", op. cit., pág. 257. Que os negros eram utilizados nas ocupa-
ções domésticas em todo o Rio Grande, incluindo-se a zona missioneira e a zona
da campanha, atestam todos que o percorreram, como se viu na parte inicial do
capítulo. Os dados sobre ocupações de escravos, reproduzidos adiante, mostram
o predomínio absoluto das ocupações domésticas entre os escravos do Sul.

1O1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

76. Luccock,op. cit., pág. 135. Não há dúvida que em toda a região de povoamento
antigo houve a utilização de escravos nos "ofícios". Rubens de Barcellos, op. cit.,
descrevendo a sociedade colonial gaúcha afirma: "Ao lado desses agricultores ri-
beirinhos aglomerados em povos viviam comerciantes e mesterias, gente de pe-
quenos ofícios, ferreiros, carpinteiros, calafates etc., classe não mui numerosa, que
a importação crescente do africano não deixou desenvolver-se" (pág. 15).
77. Os anúncios de compra e venda de escravos do jornal A Ordem de Porto Alegre,
entre abril de 1861 e março de 1862, apresentaram escravos com as seguintes
especificações de profissão:

Trabalhadores de roça 14
Domésticos 27
Artesãos 17
Sem especificação 3

Em Pelotas a distribuição das ocupações que apareceram nos anúncios, de ju-


nho de 1852 a junho de 1853, não diferia grandemente da distribuição de ocupações
em porto Alegre, exceto quanto à existência de escravos especializados no traba-
lho das charqueadas: roceiros, 4; charqueeiros, 4; domésticos, 34; artesãos, 6; sem
especificação, 6.
Estes anúncios (cuja repetição foi desprezada para o cômputo) mostram
que na realidade a escravidão urbana foi essencialmente doméstica. Obtive in-
dicações sobre anúncios de compra e venda de escravos em outros períodos,
nos quais a tendência da composição das ocupações não se altera. Ao contrá-
rio, quando existe alguma alteração é no sentido de que houve no passado maior
número de escravos nos ofícios urbanos. Assim, em 1827 na coleção de anún-
cios compilados por Rita Gomes Soares, "Coleção de Anúncios do Diário de
Porto Alegre de 1827", op. cit., págs. 73-98, os anúncios de compra, venda,
aluguel ou fuga de escravos mencionam as seguintes ocupações: domésticos,
31 anúncios; artesãos, 12, náuticos, 5, outros, 1 e, num único anúncio, 25 es-
cravos com ocupações rurais.
78. Assim, Arsene Isabelle diz: "Os fardos, por pesados que sejam, são transportados
pelos negros para o pátio da alfândega para serem vistoriados; dali outros negros
(porque a raça africana desempenha no Brasil a profissão de cavalos e mulas) os trans-
portam para o seu respectivo destino" (op. cit., pág. 59); Saint-Hilaire, da mesma
maneira, depõe: "É na Rua da Praia, próximo ao cais, que fica o mercado. Nele ven-
dem-se laranjas, amendoim, carne-sêca, molhos de lenha e hortaliças, principalmente
de couve. Como no Rio de Janeiro os vendedores são negros" (págs. 49-50).
Entre os serviços urbanos prestados pelos escravos o transporte da água assumia
importância considerável. A ele se referem Luccock e Saint-Hilaire. Em 1861 até
num Relatório presidencial há menção dessa atividade: os inúmeros barris de água

1 02
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

tirada dos rios eram conduzidos pelos "pretos à cabeça" para venderem pelas ca-
sas. Relatório apresentado ao vice-presidente da Província de São Pedro do Sul pelo
comendador Patrício Corrêa da Câmara à 2a sessão da 9a legislatura da Assembléia
Provincial, Porto Alegre, 1861, pág. 40.
79. Os principais dados sobre a composição da população do Rio Grande do Sul se-
gundo a condição são os seguintes:

Total Escravos Libertos

1814 (a) 70.656 20.611 5.399


1858 (b) 282.547 70.880 5.413
1860 (c) 309.476 76.109
1861 344.227 77.588
1862 276.446 75.721
1863 392.725 77.419
1872 (d) 434.813 67.791

(a) Censo existente em apêndice no "Quadro Estatístico e Geográfico" de Eleutherio


de Camargo, já citado.
(b) Segundo Relatório apresentado à Assembléia Provincial de São Pedro do Rio
Grande do Sul na 2asessão da sa Legislatura pelo conselheiro Joaquim Antão
Fernandes Leão, Porto Alegre, 1859, pág. 76.
(c) Os dados de 1860 a 1863 estão no Relatório apresentado pelo presidente da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, de Esperidiáo Eloy de Barros
Pimentel, na la sessão da lIa Legislatura da Assembléia Provincial, Porto Ale-
gre, 1864, pág. 46. Neste mesmo Relatório há indicações sobre a condição da
população no ano de 1863, distribuída por comarcas. Dispensamo-nos de
transcrevê-las porque a unidade tomada como base dificulta qualquer análise,
mormente comparativa.
(d) Conforme o Censo Geral de 1872.
80. Os dados acima foram retirados de Relatórios presidenciais e serão indicados de forma
precisa nos capítulos subseqüentes. Em 1887 Porto Alegre contava apenas com 58
escravos, 45 dos quais habitavam a zona urbana e 13 a rural. Entre os 58, 15 pos-
suíam profissões agrícolas, 2 eram artistas e 43 jornaleiros, dos quais 37 domésticos.
Entre os escravos da Província 3.878 possuíam profissões agrícolas, 1.414 eram ar-
tistas e 3.142 jornaleiros, vivendo 1.229 em áreas urbanas e 7.213 em áreas rurais,
Cf. Relatório com que o Exmo. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça, 3D vice-presi-
dente passou a administração da Província do Rio Grande do Sul ao Presidente Exmo.
Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Vi/lanova, em 27 de novembro de 1888, Officinas
Typographicas do Conservador, Porto Alegre, 1888, pág. 33.

1 03
CApíTULO 11 A Sociedade Escravista
(realidade e mito)
o objetivo deste capítulo é a análise da formação da sociedade senhorial
gaúcha. Seu escopo básico é a caracterização do tipo de dominação que se
desenvolveu no Rio Grande do Sul e a definição dos princípios estrutu-
rais que regulavam o comportamento dos agentes sociais na área conside-
rada. A significação que a forma de autoridade legítima e os padrões
estruturais de ação possuem para a investigação do sistema de relações
entre senhores e escravos é óbvia. A partir do conhecimento das normas
estruturais vigentes na sociedade global gaúcha é possível compreender
de forma mais rica os padrões e mecanismos sociais que controlavam a
interação entre senhores e escravos.
Entretanto, a análise e as interpretações aqui desenvolv:idas acabaram
por possuir um interesse mais geral que o da simples introdução ao estu-
do das relações entre senhores e escravos. Por paradoxal que pareça, diante
do conhecimento que se possui da sociedade tradicional brasileira, a
historiografia rio-grandense admite, em geral, que a sociedade gaúcha se
formou a partir de princípios democráticos e igualitários de orientação
do comportamento social. Essa interpretação, a ser verdadeira, tornaria o
estudo das relações entre senhores e escravos e entre negros e brancos no
Rio Grande de importância decisiva para a verificação dos efeitos exerci-
dos pelas condições estruturais sobre as formas de regulamentação do
comportamento de camadas raciais diversas em interação. Isto porque as
análises existentes sobre estes problemas no Brasil baseiam-se em situa-
ções sociais, nas quais a assimetria das posições dos grupos raciais em
contacto era rigidamente assegurada por padrões estruturais e a análise
comparativa com situações diversas permitiria maior compreensão do
problema. Por todos estes motivos, impunha-se a verificação dos funda-
mentos das interpretações correntes sobre o sentido da sociedade tradicio-

1 07
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

nal gaúcha quanto ao tipo de ordenação das relações sociais que ela per-
mitia e quanto ao padrão por ela suposto de distribuição, exercício e acei-
tação da autoridade.
O resultado a que cheguei foi, contudo, o oposto do que à luz da
bibliografia histórica comum seria de esperar. Na verdade a sociedade
rio-grandense não só se organizou nos moldes de urna estrutura patri-
monialista, corno às posições assimétricas na estrutura social corres-
pondiam formas de comportamento reguladas por rígidas expectativas
de dominação e subordinação. Freqüentemente a compatibilidade en-
tre as expectativas era assegurada pelo exercício violento e arbitrário
da autoridade inerente às posições hierarquicamente superiores do sis-
tema social.
Tendo em vista os resultados das análises e interpretações da primeira
parte do capítulo ("A camada senhorial"), pareceu de bom alvitre subme-
ter a bibliografia que afiançava a tese da democracia rural gaúcha a urna
crítica cuidadosa. É o que se faz na segunda parte do capítulo ("A demo-
cracia gaúcha"), onde os textos são tornados não mais corno fontes, po-
rém como objeto de estudo. Essas interpretações partem de urna distorção
ideológica que implica a reconstrução idílica do passado. Apesar disso, é
importante discutir os resultados alcançados pelos autores que defendem
a tese da democracia da estância, em face da análise sistemática do mate-
rial empírico disponível, para assim obter maior rigor e objetividade na
reconstrução histórica e na interpretação sociológica da formação da so-
ciedade senhorial gaúcha e da posição que o negro assumiu nela.

1. A CAMADA SENHORIAL

O padrão de equilíbrio estrutural da sociedade gaúcha mantinha-se, du-


rante o século XVIII e o início do século XIX, através de formas autocrá-
ticas de dominação. Esta verificação é válida tanto para a caracterização
do sistema de posições sociais vigentes nas vilas e povoados que se forma-
ram ao redor dos burgos militarizados ou das póvoas açoritas - que não
deixaram de ser militarizadas - corno para a caracterização do padrão

108
---------------

CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

estrutural dos sistemas de relação criados nas estâncias originadas da es-


tabilização dos bandos guerreiros de preadores de gado! e nos povos
jesuíticos submetidos à dominação portuguesa. No conjunto, por outro
lado, tanto a "ordem civil" e a "ordem militar", como os segmentos de
cada uma dessas ordens internamente, superpunham-se e a forma estru-
tural mantinha-se através de liames autocráticos de dominação.
Efetivamente, as descrições da vida social contidas na documentação
coeva mostram que tanto as relações entre comandantes militares e seus
subordinados como as relações entre militares e civis e, posteriormente,
as relações entre os administradores e os súditos del-Rei ou entre os che-
fes dos bandos de saqueadores que se afazendaram e seus ex-subordina-
dos que se transformaram em capatazes ou peões não primaram por
subordinar-se a princípios democráticos de afirmação de autoridade e
poder. Ao contrário, parece que a violência e a arbitrariedade se inseri-
ram de tal forma no sistema de relações sociais que se justificaria falar na
perversão do sistema autocrático de mando no Rio Grande do Sul. O apelo
ao arbítrio e à força bruta a tal ponto esteve presente no sistema de domi-
nação existente no sul que a violência e a falta de respeito às normas for-
malmente estabelecidas contavam como componentes de fundamental
importância para a manutenção do sistema de controle social e para a
motivação dos ajustamentos às condições normais de vida.
Um sistema estruturado a partir de tais princípios supunha, natural-
mente, mecanismos básicos de socialização que adestravam os agentes
sociais para alcançar um mínimo de gratificação do ego pelo exercício da
violência e pela prática da arbitrariedade. Dessa maneira, tornava-se pos-
sível o desempenho regular dos papéis socialmente requeridos pela ordem
social autocrática que se formou no Rio Grande do Sul.
Convém, contudo, antes de fundamentar empiricamente estas afirma-
ções, ponderar que este sistema autocrático pervertido foi o resultado de
processos de ajustamento e de adaptação que se desenvolveram diante das
condições políticas, econômicas e sociais que definiram e limitaram as
possibilidades de atuação social dos habitantes da região sulina em deter-
minados momentos da penetração, ocupação e exploração do antigo
Continente de São Pedro. A historiografia existente mostra em que con-
dições se processou a ocupação militar do sul e indica a forma que as ten-

1 09
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

tativas de exploração econômica tiveram de assumir em face das circuns-


tâncias históricas. A criação de pontos fortificados, as tentativas de ex-
ploração de gado e, mesmo, da agricultura à base do trabalho açoriano
tiveram que enfrentar sérias dificuldades por causa das pretensões espa-
nholas às terras da fronteira sul e sudoeste do Brasil.
Ao lado da tensão constante em que viviam as populações sulinas em
face das guerras, guerrilhas e acordos infindáveis, que por si só seriam
suficientes para tornar mais vigorosa a pressão de ordem militar sobre a
ordem civil, as condições de luta naquelas fronteiras - vastas, sem mui-
tos pontos defensáveis solidamente pela própria configuração natural da
região e onde a perícia na utilização do cavalo e no golpe de surpresa
constituíam elementos estrategicamente decisivos - tornavam a própria
ordem militar não diria mais rígida, porém mais dependente, para a sua
preservação, da existência de pessoas com qualidades e incentivos (como
a coragem pessoal e a ousadia diante do inimigo) que as tornavam, ao
mesmo tempo, pouco aptas para a submissão aos regulamentos e à rotina.
Da bravura e impetuosidade à indisciplina e ao desmando a diferença é
pouca, quando a ordem militar e a própria sociedade não possuem as
condições necessárias para manter os mecanismos regulares de obediên-
cia e a noção do dever, isto é, o respeito à ordem jurídica instituída.
A expansão portuguesa na direção sul e os esforços para mantê-la
apoiaram-se inicialmente no deslocamento dos "clãs patriarcais" dos
lagunistas e na ousadia dos "tropeiros paulistas". Uns e outros, no correr
dos tempos, "afazendaram-se", apropriando-se de grandes tratos de ter-
ras. Posteriormente, ainda no século XVIII, a tropa de linha da Coroa
começou a pesar numericamente entre os ocupantes do Continente de São
Pedro; e desde meados do século, os açorianos iniciaram o cultivo de pe-
quenos lotes de terra.
Se os núcleos básicos de ocupação do solo e de exploração econômica
fossem só esses e se a defesa regular da posse pudesse ter sido organizada
de forma eficaz, a sociedade gaúcha ter-se-ia organizado nos moldes tra-
dicionais da estrutura patrimonialista brasileira. Talvez, apenas, a influência
da ordem militar, com o conjunto de prebendas, honrarias e normas rígi-
das e formais que a noção de hierarquia e o sentimento da nobreza dos
atos heróicos impõem, intensificasse a formação de um mundo rural de

11 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

estilo senhorial. Coexistiriam, assim, num arranjo estrutural sui generis


para a época colonial, segmentos sociais de pequenos proprietários "ple-
beus" com a camada senhorial dos grandes proprietários.
Entretanto, nem foi possível manter a pequena propriedade como algo
significativo econômica e socialmente, como vimos no capítulo precedente,
nem os métodos regulares de exploração da riqueza, isto é, organizados
conforme os padrões vigentes nas áreas economicamente prósperas e so-
cialmente estáveis da Colônia, encontraram condições de êxito; nem,
tampouco, os métodos de defesa baseados na utilização regular da tropa
de linha puderam manter-se em face dos recursos táticos de um inimigo e
de um habitat completamente diversos daqueles para os quais as tropas
portuguesas haviam sido organizadas e adestradas na Europa, como se verá
adiante.
Não preciso insistir sobre o tipo de "empreendedor econômico" e de
organização do trabalho que as condições de uma economia predatória,
cujo objeto de ação econômica era disputado não apenas por grupos de
pilhadores mas por grupos de pilhadores que serviam a interesses políti-
cos de Estados adversários, acabaram gerand02• O "gaúcho" e o "contra-
bandista" representam bem este tipo de ocupante das campanhas sulinas.
Convém, contudo, ter presente que o pilhador de gado e o contrabadista
passaram a agir "fora da lei" apenas quando as relações entre as duas
Coroas ou entre os Estados sul-americanos se normalizaram e quando,
concomitantemente, a atividade econômica da região organizou-se à base
da apropriação privada da terra e dos rebanhos. Antes disso, os papéis
desempenhados por uns e outros eram essenciais para a manutenção da
posse da terra e para a exploração e comércio dos gados alçados e dos
gêneros necessários à vida. Dreys, que não foi contemporâneo do gaúcho
e do contrabandista típicos do século XVIII, assim descreve, reportando-
se ao passado, a faina destes últimos: "O contrabando não era sem peri-
gos, mas desafiava o perigo o engodo do lucro, de modo que o trânsito
fraudulento dos gêneros comerciais entre as duas nações tinha tomado
uma sorte de marcha habitual e metódica pela intervenção dos contra-
bandistas"3.
Homens brancos no geral, às vezes estrangeiros, isto é, nem portu-
gueses, nem originais da terra4 , os contrabandistas, para sobreviver eco-

111
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

nomicamente com êxito, organizavam-se em bandos nos quais a autori-


dade e a liderança, por efêmeras que fossem, eram exercidas à base do
domínio também autocrático do chefe: "Nada havia que não intentassem
com a esperança d'algum benefício; quasi estrangeiros, na sua vida ex-
cepcional, a tôda sociedade civilizada, verdadeiros hóspedes dos desertos
que buscarão até com preferência para esconder suas operações, vivião os
contrabandistas fora das leis gerais e sem leis peculiares, sujeitos somente
às ordens de hum chefe electivo, cuja autoridade limitava-se à duração da
expedição para o qual tinha sido creado, e cujo poder não reconhecia, às
vezes, outro título senão o da força physica ou da dexteridade, mesmo
durante o curso de seu reinado ephemero"5.
É um equívoco, entretanto, pensar que a ação dos contrabandistas se
desenvolvia à margem das normas vigentes nos núcleos mais estáveis da
sociedade sulina. As relações de fidelidade e o sistema de dependência e
favores recíprocos que marcam as estruturas patrimonialistas de poder não
deixaram de se fazer sentir nas normas sociais que regulavam a interação
dos bandos de contrabandistas com seus protetores e instigadores, os es-
tancieiros: "Como os gauchos, tinhão os contrabandistas principios de
moral natural que não lhes permittião offender nem deixar offender, na
pessoa nem nos bens, os homens de quem não tinhão reccebido aggravos,
menos ainda aqueles a quem devião a hospitalidade que geralmente
achavão, quanto mais que onde eIles estavão, podia-se deixar tudo à sua
disposição; erão, n'esse caso, guardas seguros e nunca espoliadores"6.
Os portugueses da administração e do exército não deixaram de apoiar
os "contrabandistas" nas "arreadas" contra os castelhanos. Na correspon-
dência entre o General Bõhm, e Raphael Pinto Bandeira, que comandava a
tropa do Rio Pardo em 1774, há apelo expresso para a ação dos contraban-
distas em apoio à Coroa: ''A necessidade que havemos de ter de cavalos e
gados, me faz dizer-lhe que será útil ver se há quem queira ir buscar porção
grande e com condição de lhe favorecermos a entrada (... )"7.
Logo que a exploração do gado tornou-se uma atividade organizada
(no início do século XIX) os bandos de contrabandistas perderam a im-
portância que tiveram noutros tempos nas áreas da fronteira, mormente
na chamada fronteira do Rio Pardo - vasta área na qual, no dizer de
Bettamio, faziam aqueles "resolutos homens", os gaúchos, as arreadas

112
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

temidas. Dreys testemunha ter encontrado muitos dos antigos contraban-


distas que haviam "trocado a vida tormentosa em que tinham andado pela
existencia mais tranquilla e sedentaria do lavrador ou do negociante"8.
Haviam sido absorvidos, pois, pelas atividades submetidas ao controle da
esfera racionalizada da sociedade. Mesmo aí, entretanto, apesar de que
"quasi todos estavão encanecidos pela idade", continuavam ágeis, "ainda
afferrados aos costumes militares e sempre promptos a recorrer às suas
armas por qualquer duvida"9.
Entrementes, quando se começava a definir legalmente a posse das
terras e a dividir os rebanhos nas estâncias 1o, os "contrabandistas" que não
se afazendaram, estes sim, passaram a viver "fora da lei", isto é, fora dos
interesses econômicos do Estado e dos fazendeiros, pois antes a "lei" con-
sistia justamente em prear quanto gado fosse possível nas vastas campa-
nhas de posse indeterminada. Tem plena razão Oliveira Vianna quando
afirma: "Os nossos preadores, que até então operavam sobre rebanhos
sem dono, passaram a ser "ladrões de gado", desde que entraram a ope-
rar sobre rebanhos senhoreados. Por outro lado, como seu campo de ope-
rações eram as estâncias da outra banda da fronteira, o arrebanhamento
dos gados passou a ser, por esse fato, considerado contrabando. Daí veio
que o primitivo tipo de preador, ao modo de Cristóvão Pereira, transfor-
mou-se nesse outro tipo mais perigoso, qu~ era o contrabandista de fron-
teira"l1.
Dreys distingue "gaúchos" de "contrabandistas", mostrando os pri-
meiros como descendentes dos índios e brancos, enquanto os últimos,
como indiquei, seriam brancos: "formados originariamente do contacto
da raça branca com os indígenas, elles (os gaúchos) se recrutarão inces-
santemente dos mesmos productos, e ainda de todos os individuas que
n'essas imediações nascem"12. Mais correto seria, possivelmente, dizer que
entre os gaúchos - população instável que habitava as campanhas do
pampa desde o Continente de São Pedro até Buenos Aires, de origem ét-
nica e racial variável, onde, sem dúvida, o sangue indígena não deixou de
estar presente ll - alguns se organizavam em bandos de contrabandistas,
enquanto outros (sem que isso signifique a impossibilidade de eventual-
mente organizarem-se num ou noutro bando, quando não num grupo de
guerreiros na época das lutas armadas entre os Estados rivais) entrega-

113
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

vam-se às fainas irregulares da campanha, como peões, nas invernadas e


nas "tropas". Porém, o que importa salientar para o fim do presente capí-
tulo é que Dreys registrou que no grupo por ele designado gaúcho tam-
bém vigiam normas que mostram bem até que ponto a sociedade sulina
na época da preia do gado implicava um tipo de organização de poder
patriarcal, embora pervertida pelas condições já apontadas: "Sem chefes,
sem leis, sem policia, os gauchos não tem de moral social, senão as ideias
vulgares, e sobre tudo huma sorte de probidade condicional que os leva a
respeitar a propriedade de quem lhes faz beneficios ou de quem os em-
prega, ou n'elles deposita confiança"14.
Duas conclusões impõem-se sobre as afirmações feitas até agora. A
primeira é que seria enganoso pensar a sociedade pastoril e senhorial gaú-
cha, do século XVIII, organizada à base da estância, como uma estrutura
independente e oposta aos grupos pilhadores da fronteira: não só os peões
se transformavam em "acaudilhados" dos pilhadores e retornavam à condi-
ção de peões, como os pilhadores muitas vezes se "afazendavam", tornan-
do-se proprietários. Além disso, a existência desses bandos era fundamental
tanto para a administração e a Coroa como, mais tarde, para os estanciei-
ros: uns e outros ligavam-se aos saqueadores gaúchos (embora a esfera
organizada de sociedade 15 não sancionasse essas relações) na qualidade
de mandantes e protetores, quando não pela própria solidariedade advinda
de terem sido uns e outros, noutras épocas, irmãos de armas 16 , sujeitos às
mesmas vicissitudes, unidos pelos mesmos objetivos.
A segunda conclusão é que, numa sociedade tão plasticamente consti-
tuída pela associação de interesses solidários entre os núcleos componen-
tes da ordem formalmente estabelecida e os grupos formalmente postos à
margem da sociedade, partes estas, além disso, fluidas, dificilmente po-
der-se-ia pensar que as normas vigentes numa fossem inoperantes noutra.
Assim, o chefe autocrático do bando de pilhadores, cuja autoridade advinda
da posse de atributos pessoais ajustados às necessidades da luta para o êxito
econômico e a sobrevivência17, ao se transformar em estancieiro, isto é,
em proprietário, não deixava de ser um chefe cujo poder de mando en-
contrava limites apenas na força dos outros chefes e do Estado - nos
momentos e nas regiões onde este se fez presente - ou na "força physica
e dexteridade" dos que se lhe opunham. Da mesma forma, o exercício da

1 14
- --------------------------------..,
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

autoridade constituída fazia-se através de recursos que se coadunavam com


as qualidades dos chefes de bando: a violência e o arbítrio.
Além do mais, os pilhadores e estancieiros também mantinham rela-
ções definidas com os exércitos regulares e a governança colonial. Não é
preciso insistir sobre o que tão bem mostrou Oliveira Vianna: tanto os
chefes dos bandos de saqueadores como os estancieiros da fronteira pro-
vinham, muitas vezes, da tropa portuguesa: eram antigos desertores. A
maioria, contudo, compunha-se de aventureiros cujo concurso para a posse
e defesa da Colônia era decisivo. A eles sempre apelou a administração
nos momentos de luta. Grupos irregulares de guerreiros eram sempre re-
crutados, sob a chefia de algum estancieiro, para acorrer às batalhas, de-
pois das quais voltavam para seus campos. Além desses guerreiros, a defesa
do Continente de São Pedro foi feita, essencialmente, por um tipo especi-
al de soldados que, não sei como melhor qualificar, se dizendo que cons-
tituíam um ajuntamento de "arreadores" ou dizendo que formavam o
núcleo donde, pela deserção, saíam os ousados contrabandistas: os famo-
sos Dragões18 • Que se tratava de desordeiros e atrabiliários pouca dúvida
existe, pois até a mais alta autoridade da Colônia admitia o fato: "O que
V. Excia. me diz do Regimento de Dragões, me não faz novidade: eu sem-
pre tive aquelle Corpo por Hum ajuntamento de homens resolutos, for-
tes e destemidos, porem nunca os julguei capazes de entrarem em hum
serviço aonde fosse precizo a boa ordem de todos os corpos, a disciplina,
e subordinação, o conhecimento da regularidade, q' devem ter os movi-
mentos, e todos as mais circunstancias desta qualide. porem para o Pays
emq'estavão, epa os nimigos que tem acombatter, e segundo a pouco ou
nenhúa disciplina, q'ali ha, julgo q'ainda hoje assim mesmo pode ser de
mta utilide", dizia o Marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, ao Gal. Bõhm
em janeiro de 177619•
Sem que servissem para "a boa ordem de todos os corpos, a discipli-
na, e subordinação", serviam, contudo, para as "arreadas" oficiais que a
Coroa patrocinava: "Torno a lembrar a V. Excia oquanto será util, a Tro-
pa de Raphael Pinto, para furtar, arrear e obstruir, todas as cavalhadas e
gados, q' os Castelhanos tem preparado para o sustento da nova Tropa, q'
esperão e pa. as conduçoens da Artilharia, e de todas as mais conduçoens
em ocaziões semelhantes parece ser justo, dar-se aquelle official, e a sua

1 1 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Tropa, toda a liberdade e deixa-los obrar segundo a sua pratica e costu-


me", dizia o mesmo Lavradio em fins de 1766 2°.
Não sem razão, adquirida na larga experiência de refregas e reveses
das tropas de linha portuguesa nas lutas sulinas, o Marquês do Lavradio
descria das possibilidades de êxito destas tropas se não tivessem forte
apoio de corpos compostos por habitantes da região, para os quais, fi-
nalmente, sempre apelava. Comentando a chegada de tropas de linha
castelhanas, dizia o Marquês: ''A guerra da Europa, torno a dizer, he feita
por Exercitos regulares: he verde, q'tãobem he coomposta de alguns
corpos irregulares, chamados assim pela differença q'fazem dos corpos,
q' tem mais disciplina, porem esta mesma Tropa, q'grandissima differença
não faz daq' nos temos n'esse Continente. Aquella Tropa (falo compa-
rando-a com a Tropa do Pays) heverdade q'serve para inquietar os
Exercitos, para surpreender alguns comboyos, epara praticar differentes
outras hostilidades, porem isto mesmo, sempre o fazem debaixo de hua
certa ordem. Os nossos, não opraticão assim, todo oseo cuidado, he em
fazer hostilidades sem se exporem, vivem nos matos sem fazerem
differença dos bixos, conhecem tãobem e achão-se tão familiarizados,
com aquellas habitações q'nellas se recolhem, aly se sustentão e con-
servão, sem outro nenhum socorro, q'oda sua espingarda, eo da sua es-
pada, e daly saem como feras, a fazerem os grande estragos, q' em todos
os tempos temos visto. Que partidos poderão tirar com semelhantes
homens as tropas frescas, q' chegão da Europa?"21.
Homens rudes e ambiciosos eram os "peleadores" da campanha. De
sua ambição dá-nos conta ainda Lavradio: "o celebre Raphael Pinto, não
se esquece0 das suas utilidades como costumava, porem como agora nos
he necessario, não ha outro remedio senão deixallo fartar. O espirito de
honra deste official he omesmo q'odos Paulistas, porem assim mesmo na
occazião prezente nos he util e conviniente"ll. E quanto à honra dos
paulistas, o Marquês não a tinha certamente em elevada conta. Contrasta
por isso o julgamento dos contemporâneos com a forma pela qual alguns
historiadores descreveram, não se sabe firmados em que dados, o "espíri-
to de honra do dragão gaúcho"23: "Não he ocaprixo de honra q'os con-
duz aospirigos e as atrevidas acçoens, q'elles mtas. vezes intentarão e
puzerão em pratica: elles dão-lhe o nome de estimulos de honra, porem

1 1 6
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

emquto. amim, não foy nem será nunca, q'hum espirito de ambição,
escreyo q'todas as vezes, q'se repartir com elles, com mão muito larga,
doq'elles aprehenderem, q'este será o unico modo, de os ter sempre con-
tentes, ese conseguir delles algum bom serviço"24.
Não há dúvida que os "arreadores" gaúchos a serviço das tropas por-
tuguesas souberam impor sua honra nesse sentido. Aurélio Pôrto mostrou,
em trabalho publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul, como os principais troncos genealógicos dos estanciei-
ros da fronteira estavam ligados aos oficiais e subalternos dos Dragões do
Rio Pardo. Este é um ponto não só muito analisado pela historiografia
gaúcha como fartamente documentado: a outorga inicial das sesmarias
era concedida àqueles que se destacavam nas lutas contra os castelhanos
ou aos que possuíam cabedais. Trouxeram cabedais os lagunistas, forma-
ram-no os traficantes de gados vacuns ou muares, os comerciantes e fun-
cionários reais e os açorianos que prosperaram; asseguraram-se do direito
a sesmarias por atos de bravura e banditismo contra o inimigo os oficiais
e subalternos das tropas (regulares, de dragões ou de milícias) que luta-
ram no sul: "Distribuiram-se as sesmarias (propriedades destinadas á es-
tancieiros) - aos homens que haviam prestado serviços de certa relevância,
como ficou dito - merecedores de recompensas como os militares, ou
àquelles que dispuzessem de recursos pecuniarios sufficientes para se
installarem como estancieiros e manterem o seu estabelecimento"2S.
O processo de apropriação parece ter-se intensificado posteriormente
à paz assegurada pelo Tratado de Santo Ildefonso (1777), que durou cer-
ca de 23 anos, até a campanha das Missões, de 1801. Neste período os
antigos batalhadores receberam muitas concessões de sesmarias, princi-
palmente quando o Brigadeiro José Marcelino de Figueiredo exerceu a
governança militar do Rio Grande do SUF6. Walter Spalding assegura que
bem poucos "foram os dragões que não receberam dessas úberes terras
rio-grandenses, para nelas construírem os seus lares e organizarem suas
estâncias, pequenas ou grandes". Neles se acham os troncos das famílias
de gaúchos e estancieiros: "os Castro Morais, os Queiroz e Vasconcelos,
os Martins, os Nunes de Miranda, os Albuquerque, os Gomes Porto,
Magalhães, Rodrigues, Cruz, Escobar, Coutinho, Araujo, Fontoura, Borba,
Antunes, Siqueira, Carvalho, Santos, Cardoso, Santos Robalo"27.

117
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Seria crível afirmar que a "sociedade pastoril" assim constituída fora


uma "ordem democrática"? Parece óbvio que não. Os lagunistas e prea-
dores paulistas transferiram para o sul o mesmo sistema de organização
do trabalho, de apropriação e distribuição da terra e o mesmo sistema de
poder vigente no resto da Colônia: a grande propriedade mantida e dirigida
pela família patriarcal, à base do trabalho escravo, com o concurso dos
agregados. Basta relembrar a composição da Frota de Magalhães ou as
expedições de Cristóvão Pereira. Os militares, os gaúchos enfim, obtive-
ram a cessão das terras com um benefício distribuído em nome da Coroa
pelos comandantes, governadores e capitães-generais, para que as explo-
rassem e delas usassem no seu proveito e real interesse através da única
maneira de manter o latifúndio: a exploração da mão-de-obra disponível,
isto é, dos não-proprietários e dos escravos28 • Desde o século XVIII, por-
tanto, criava-se com a grande propriedade o que era inevitável em termos
das condições de organização do poder e do trabalho então possíveis: uma
sociedade estruturada estamentalmente.
É certo que, naquele período, a obtenção inicial de sesmarias pôde ser
feita em nome de qualidades extra-econômicas e independentemente da
condição social de origem dos que as requeriam. Mas isto não significa
que a ordem social tivesse sido democrática. Muitas camadas da nobreza
européia - em diferentes épocas - asseguraram o sistema de utilização
fundiária que serviu de base para a formação da ordem estamental, a par-
tir da distribuição do butim entre guerreiros. Não pretendo negar a influ-
ência sobre as relações entre estancieiros, capatazes e peões que tal tipo
de obtenção de terras e direitos possa ter exercido no século XVIII: a ca-
maradagem militar, até certo ponto, poderia ter subsistido na estância.
Contudo, não só através da instituição da herança a igualdade originária
do senhor, beneficiário de sesmarias, e do agregado, não beneficiado por
concessões reais, desaparece necessariamente, como a camaradagem não
significa ausência de distância social. Tanto mais quanto esta camarada-
gem além de inserir-se num grupo social tão fortemente hierarquizado,
como é o grupo militar, ainda se exprimia numa situação social onde os
traços autocráticos de personalidade eram decisivos para permitir a lide-
rança e onde o próprio sistema socialmente sancionado de poder basea-
va-se na utilização da violência e na falta de respeito à pessoa humana.

118
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

Entre os dragões, por exemplo, a tal ponto iam as técnicas violentas e


arbitrárias de manutenção da disciplina e do espírito de hierarquia que,
segundo relata uma representação que enviaram ao comandante da tro-
pa, chegava-se até as sevícias corporais, e, note-se, não as regulamentares:
"com palavras injuriosas, acutilados, como sucedeu ao cabo-de-esquadra
José da Costa Vasconcelos, e Antônio da Costa Soeira, ficando aleijado
das mãos e ao soldado João Vaz da Silva, e Antônio da Costa Soeira, fi-
cando também um de um pé e outro de uma mão, êstes promovidos pelo
Alferes Antônio José da Gama Lôbo e afrontados como sucedeu ao solda-
do Inácio da Costa, sendo chamado à casa do Capitão Tomaz Luiz Osório
donde as portas fechadas por dois mascarados com sacos de areia e
calabrotes foi tão maltratado que o levaram para o hospital. Na mesma
forma o Alferes Rodrigo de Mendonça Furtado que comandava a guarda
do corpo mandou abordar o soldado infante Cristóvão de Albuquerque
rodeado de soldados com baionetas caladas e ao soldado Sebastião Ruy
Paiva fechando-o no corpo da guarda e com pau fêz o mesmo"29.
Além disso, para confirmar a interpretação de que nunca houve socie-
dade latifundiária pastoril democrática no Rio Grande, sabe-se que as
sesmarias concedidas foram objeto de muitas disputas nas quais as quali-
dades requeridas para a confirmação da outorga eram já muito diferentes
daquelas demonstradas na luta contra os castelhanos pelos primeiros es-
tancieiros: mais a astúcia, que a bravura, mais a condição de membro de
uma parentela, que a de membros de uma companhia de bravos, mais a
proteção do capitão-general e seus sequazes, que a camaradagem com o
comandante, forjada nas batalhas30. Efetivamente, no testemunho insus-
peito de Manoel Antônio de Magalhães, no início do século XIX, "um
homem que tinha proteção do govêrno tirava uma sesmaria em seu nome,
outra em nome do filho mais velho, outras em nome da filha e filho que
ainda estavam no berço; e d'este modo ha casa de quatro e mais sesmarias:
este pernicioso abuso parece se deveria evitar"31.
A prática da distribuição da terra, e mesmo da redistribuição da terra,
entre os validos, datava já do século XVIII. Gonçalves Chaves escreveu,
referindo-se à sua época, que "os Cartorios estão cheios de pleitos, sôbre
posses, e limites de terras; e a origem destes males data do Governo do
Tenente-General Sebastião Xavier32• Este homem cheio só de si, de suas

119
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

fidalguias, e caprixo militar, atropelou absolutamente os direitos mais sa-


grados de pacíficos, e laboriosos Colonos, tomando-lhes muitas vezes a
terra, que elles com seu consenso tacito tinhão povoado, e cultivado de-
pois de a conquistarem aos Espanhoes, Bugres, e Feras, para dar a seus
validos, para o que muitas vezes mandou lançar por terra Estabelecimen-
to de bastante importancia, e carregar de ferros a muitos proprietarios,
que se atrevião offerecer qualquer repugnancia em perder os seus traba-
lhos, a ponto de que houve muitas famílias, que por cazos semelhantes
fugirão para os Espanhoes"33. Chaves, depois de mostrar o processo da
ocupação da terra arrebatada aos espanhóis - que "só fizerão alto alem
do Arroio Grande e Santa Tecla" - e de reafirmar a importância que a
ocupação teve para as pretensões políticas portuguesas, dizendo que os
comandantes das guardas portuguesas concediam as posses sem limites
certos, acrescenta: "Daqui vem a confusão entre as posses e reconhecidas
demandas que desde então se tem multiplicado, e aggravado escandalosa-
mente; porque o dito Governador longe de limitar, como devia com jus-
tiça, e rectidão as pretenções de alguns, assignando com autenticidade o
que cada hum devia possuir, e aproveitar, cuidou somente em exalar a
ambição dos mais poderosos seus validos, para se sustentarem em grande
extensões de terra; poiz em duvida, sempre que comvinha a seus fins, a
legitimidade das posses, e assim os favorece0 sempre, permitindo-lhes athé
introduzirem-se nas mesmas terras já roteadas, ou tiradas do primitivo
estado da natureza, por difíceis e aturados trabalhos dos primeiros
occupantes, reduzindo-os a diminutas quantidades, e muitas vezes a total
abandono. (...) Apresentarão-se athé Sesmarias em favor de individuas não
conhecidos nem domiciliados e então em favor destes (...) os mandavão
(aos antigos ocupantes) expulsos com suas famílias, gados, e bens de qual-
quer natureza, por escoltas militares (...); estes males se praticarão, e sen-
tirão por tôda a extensão da Provincia"34.
A descrição do processo de ocupação das terras feita por Gonçalves
Chaves não permite qualquer dúvida sobre a natureza da sociedade que
se criara no Rio Grande. Os efeitos "democratizadores" da concessão de
sesmarias apenas aos defensores da Coroa, como um benefício, foram
muito limitados, mesmo no século XVIII. D. Diogo de Souza foi o único
governador (capitão-general) que tentou disciplinar a concessão das

120
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sesmarias de forma a atender, segundo regras formais estabelecidas de


antemão, a um mínimo de eqüidade na outorga, estabelecendo ainda, atra-
vés de um Band035 , que todas as terras já doadas estavam sujeitas a novo
registro para que a concessão valesse. Entretanto seu sucessor, o Marquês
de Alegrete, serviu-se das disposições do mesmo Bando para intensificar
o regime de favoritismo na outorga de sesmarias: "mal sabia Sua Ex-
cellencia (d. Diogo), que fazia hum Diploma, por via do qual o Marquez
de Alegrete seu Sucessor constituiria hum rico patrimonio, senão por si,
ao menos para seus Ajudantes d'Ordens, e mui particularmente para hum
seu Secretario particular (cousa nova) Boaventura; e que poucos bons
resultados se colheirão de suas fadigas"36 (...) "No tempo do Marquez de
Alegrete acontecerão sobre a materia cousas muito galantes: seus favori-
tos detinhão na sala todos os requerimentos, que impetravão terras, em
quanto examinavão se era cousa, que enchesse o olho; e quando aconte-
cia ser cousa boa, não apparecia mais o requerimento, ainda que o
Impetrante revolvesse toda a Sala, e em virtude de outro, que de novo se
fazia apparecião logo Editais em favor do novo pretendente conluiado.
Destes casos acontecerão infinitos (...)"37.
Na realidade era impossível, na estrutura patrimonialista, tentar defi-
nir normas que implicassem a idéia de um dever objetivo para reger a dis-
tribuição dos bens e dos direitos pertencentes à Coroa. A subordinação
puramente pessoal ao senhor, ou a quem lhe faz as vezes, impera como
critério fundamental para a distribuição prebendária e para concessão de
benefícios nas estruturas patrimonialistas38 . A distribuição dos cargos ne-
cessários para a arrecadação dos tributos para a fazenda real, por exem-
plo, seguia os mesmos critérios. Pode-se mesmo dizer que os cargos
atribuíam-se como prebendas típicas, com o agravante de que numa socie-
dade "nova", em processo de formação, os limites dos direitos e obriga-
ções inerentes aos cargos não estavam ainda estabelecidos. Assim, faltando
a tradição consagradora dos limites no exercício do poder conferido, e
sendo fluido o sistema de controle mantido pela administração real em
área tão longínqua quanto o Rio Grande, não estranha que o arbítrio pes-
soal do mandatário se exacerbasse a extremos, e que os negócios da fa-
zenda del-Rei se vissem confundidos com os "negócios da fazenda" - da
casa - do súdito a quem a Coroa concedia favores. O processo iniciado

12 1
r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -. _.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

em Portugal de formação do Estado patrimonial sofria, por essa razão,


uma espécie de regressão para um sistema mais próximo do patrimo-
nialismo patriarcal e isso graças, exatamente, aos benefícios e às prebendas
concedidas pelo Estado patrimonialista português como um recurso para
manter-se operante. À custa da fazenda real, fortalecia-se o sistema do
"poder doméstico". Esta é uma questão muito importante para a compre-
ensão da origem do sistema do poder e para a caracterização da estrutura
da sociedade colonial no Rio Grande do Sul: antes da formação da socie-
dade senhorial mantida pelo latifúndio que vigorou no século XIX (a partir
aproximadamente de 1820) com todas as implicações conhecidas da po-
sição decisiva do chefe local (do estancieiro ou charqueador) e do pa-
triarcalismo, o favoritismo do Poder Real e os instrumentos de coerção
deste mesmo Poder foram decisivos para a formação das fortunas e a in-
serção de seus possuidores na estrutura política e social do Rio Grande.
O depoimento de Manoel Antônio de Magalhães é muito elucidativo
para as questões apontadas acima. Diz esse autor, ele próprio beneficiário
da Coroa39 como "administrador dos contratos do quinto e dízimo, e
numeráveis da tropa de toda a capitania": "O ouvidor que acabou o anno
passado recebeu quando chegou perto de duzentos autos para despachar,
e apenas despachou onze em todo o tempo que serviu, sem lhe importar
os interesses de S. A. R. nem dos povos; cuidou em casar-se e estabelecer
na casa mais rica da capitania, e ha pouco sahiu para essa côrte a pedir o
lugar de juiz de fóra d'esta, como uma cousa de bagatela, sendo de maior
importância, e mais rendoso de toda a America, enquanto se não nomea-
ram os outros dois, como tenho dito, sendo muito possivel que o alcance
com aquellas vantagens que tem o lugar de creação, enganando S. A. R. e
seus ministros, que não podem saber de uma semelhante conduta. Vem
um ministro d'estes para uma terra onde sua mulher se vê rodeada de
immensos parentes pobres, e na sua casa mil dependencias que arrumar, e
tratando d'estas e dos seus particulares interesses, vexam-se os povos e
tudo se poem em desordem. O ouvidor existente, fazendo-lhe justiça, tem
mostrado limpeza de mãos; mas, seja Deus louvado para sempre, nem
escrever sabe, é um louco e fatuado; descompoem com gritos e palavras
insultantes aos povos, de modo que se acham no maior vexame e todos
fogem de o ver e tratar"40.

12 2
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Nos juízes ordinários, mais ainda, transparecem as características de


suma ordem patrimonialista onde o contrapeso da tradição não havia
decantado as praxes que asseguram os direitos dos povos e o patrimônio
do rei. A referência expressa que Magalhães fez aos "bachás da Turquia"
é muito significativa: o arbítrio do senhor, quando absoluto, nas socieda-
des de tipo patrimonialista, leva ao sultanato. É óbvio que seria falacioso
caracterizar a estrutura do poder organizado no sul em termos de sultanato,
pois as normas formais imperantes e mesmo os limites impostos pela hie-
rarquia de poder formalmente estabelecida não permitiriam tal caracteri-
zação. Contudo, no período de formação da sociedade patrimonialista, a
transição do domínio absoluto do chefe local para o domínio, em nome
da lei e de "El-rei, nosso Senhor", fez-se em condições tais que o arbítrio
pessoal e a insolência dos que exerciam cargos de mando eram muito gran-
des: "Os dois juizes ordinarios que serviam o anno passado, um d'elles de
pessimos costumes, ignorantissimo louco e fatuado, cheio de dividas, eleito
por empenhos; o outro homem cordato e dos bons da terra; o primeiro
ficou n'esta villa governando, e o fez à maneira dos bachás da Turquia,
chegando a ter grossos grilhões nas suas escadas para atemorisar os po-
vos, e os fez botar em algumas pessoas, prendendo e descompondo os
povos, e os que vinham à sua casa com a barba mais crecida lh'as manda-
va fazer pelo barbeiro, tirar os capotes aos que entravam na sua casa de
capote, fazendo pagar dividas com violencias, e outras muitas cousas de
que eu mesmo sou testemunha ocular"41.
Quando o arbítrio ia a tais extremos, havia sempre o recurso às auto-
ridades superiores. Entretanto, no caso acima mencionado, não quis o
governador decidir, por não "querer embaraçar com jurisdições alheias",
dizendo que competia recurso ao vice-rei do Rio de Janeiro: as próprias
limitações de esfera de competência e atribuições agiam, assim, como um
entrave para o funcionamento das regras da ordem patrimonial-estatal que
formalmente caracterizava a estrutura da sociedade colonial. De fato o
patrimonialismo patriarcal ainda vigia plenamente. Nem mesmo a desa-
vença que se seguiu pôde surtir efeito, porque a ordem patriarcal e o fa-
voritismo familiar contrapunham-se como forças vivas à letra morta das
ordenações estatais: "Este mesmo homem, considerando-se criminoso pelo
que tinha feito, tirou logo carta de seguro, e principiando-se em Janeiro a

1 2 3
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

chamada devassa da Janeirinha, jurando inúmeras pessoas n'ella de vista


e facto proprio contra o mesmo juiz, são passados oito mezes sem ter sido
pronunciado, e por consequencia, e proposito nulla a mesma devassa, para
que, pondo-se lhe pedra em cima, nunca mais se fallasse n'aquillo, fican-
do por consequencia impune um crime de tanta ponderação. Mas, Exmo.
Sr. que ha de ser, quem tal ha de dizer, o juiz d'este anno de uma capital
como esta é um miseravel irmão do meirinho do ouvidor da comarca, ir-
mão de um ventanario d'esta mesma villa, que serve com seu irmão juiz
ordinario; e que respeito podem ter os povos d'esta capitania a um ho-
mem semelhante, sendo culpado de tudo isto o ouvidor que acabou, por-
que, sendo o que alimpava as pautas, quis fazer juiz o irmão do seu
meirinho"42.
A situação descrita caracterizou, com raras exceções, a administração
no período colonial do século XIX. Saint-Hilaire resume bem suas obser-
vações sobre os abusos que viu, dizendo: "Entretanto, os abusos atingiram
o cúmulo, ou melhor, tudo era abuso. Os diversos poderes confundiam-
se e tudo era decidido pelo dinheiro e pelos favores. O clero era a vergo-
nha da Igreja Católica. A magistratura, sem probidade e honra (...) os
empregos multiplicavam-se ao infinito, as rendas do Estado eram dissipa-
das pelos empregados e pelos afilhados, as tropas não recebiam seus sol-
dos; os impostos eram ridiculamente repartidos; todos os empregados
desperdiçavam os bens públicos; o despotismo dos subalternos chegou ao
cúmulo, em tudo o arbítrio e a franqueza andando ao par da violência"43.
Assim como da distribuição real de cargos para a coleta de impostos e
para a administração da justiça resultava, ao lado do fortalecimento do
tesouro real e da manutenção da ordem estatal-patrimonial, o fortaleci-
mento de um tipo de sociedade patriarcalista, com larga margem de arbí-
trio pessoal no exercício do mando, também surtia o mesmo efeito a
distribuição dos cargos eclesiásticos. Havia em toda capitania quatro vi-
gários de cara, que tinham jurisdição sobre suas freguesias e sobre as mais
pequeninas que ficavam nos seus distritos (Porto Alegre, Rio Grande de
São Pedro, Rio Pardo e Bom Jesus do Triunfo). Magalhães, zeloso do ser-
viço real, achava que com a vinda da família real para o Brasil seria muito
natural que os vigários "se lembrassem de lhe offerecer como um dom
gratuito o rendimento de dois ou tres annos, lembrando se de que tudo

1 24
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

que possuem o devem ao mesmo Sr.; mas estou certo que nenhum delles
o faria", acrescenta44 .
Duas atitudes bem distintas estão evidenciadas no texto acima: a do
súdito, funcionário real, fiel ao soberano - por mais que se beneficie da
fazenda real o funcionário patrimonial é um servidor do rei num cargo
que lhe foi conferido patrimonialmente - e a dos que, recebendo cargos
do rei, tratavam de servir-se deles em benefício da própria casa, em vez de
servir ao rei ou ao Estado Patrimonial. De fato, acrescenta ainda Maga-
lhães, um coronel "na sua praça passa com a decencia precisa com menos
de oito centos mil reis; e um vigário d'estes com semelhante renda cuida
em levar vida regalada, enriquecer os seus parentes, enthesourar o que
pode, e muitas vezes esquecendo-se das suas obrigações, sem se lembrar
da pobreza da sua freguesia, e do seu grato e augusto soberano de quem
imana tudo o que possue"45.
Em face da tendência para o desenvolvimento do poder das famílias e
para o fortalecimento das fortunas particulares - da qual não escaparam
os açorianos, como logo indicarei -, os representantes diretos do rei (go-
vernadores militares e capitães-generais) muitas vezes reagiram, e no rea-
gir extremaram mais ainda o aspecto de poder despótico de que se revestia
a autoridade dos que, dispondo da força e não limitados pela tradição,
tentavam organizar e defender o Rio Grande para a Coroa. Disso é exem-
plo a famosa disputa do governador José Marcelino com Rafael Pinto
Bandeira, que resultou na prisão desse último, Bandeira, poderoso chefe
de bandos locais, dividiu o butim das invasões contra os espanhóis sem se
ater às normas emanadas do vice-rei. Este protestou; o governador
Marcelino, que fora pessoalmente responsabilizado pelo Marquês do
Lavradio, não hesitou: prendeu Rafael Bandeira por malversaçã046. O
mesmo governador notabilizou-se pelos processos adotados no tratamento
dos vereadores da recém-criada vila de Porto Alegre (1773): os vereado-
res, ligados aos interesses dos moradores de Viamão, negavam-se a morar
na nova capital criada por Marcelino. O governador tratava-os com ener-
gia e total desprezo pelas funções de que se haviam investido: "...parece
querem se divertir, e multiplicar vans correspondencias, digo só que
ou Vmcês governarão bem a Republica, ou interrompo a sua governança.
Vmcês o estão vendo, e o Continente todo presenciando, o eu nem sei

12 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

como Vmcês podem governar bem a villa de Porto Alegre, conservando-


se ausentes d'ella todo o anno, morando em Viamão, tendo-os eu adver-
tido por ordem superior que vão residir á dita villa: a nada se tem movido,
havendo mais de quatro annos que a dita villa está formada. Insisto con-
tudo em que o dito açougue não seja arrematado e não quero mais con-
testações sobre esse objecto", dizia o brigadeiro em 1777.
As arbitrariedades de Marcelino não discrepavam muito da forma pela
qual os capitães-generais, mais tarde, governaram as Capitanias. Entre-
tanto, se o governador militar diante do Senado da Câmara comportava-
se como um zeloso servidor de interesses impessoais - na disputa sobre
a arrematação do açougue acima mencionada47 isto fica evidenciado e a
solução dada pelo vice-rei, de quem Marcelino era desafeto, o comprova
- os capitães-generais e os juízes ordinários de seu tempo, como mos-
tram os documentos transcritos acima, serviam-se da prepotência para o
enriquecimento próprio e, mais do que isso, para o enriquecimento de
seus validos.
São dois momentos, pois, do processo de formação da sociedade rio-
grandense; no primeiro, a autoridade militar, à qual não faltava o sober-
bo desprezo pelo poder civil e pela fonte donde derivava, os negócios48 ,
opunha-se a um patriarcado composto de lavradores e estancieiros açoria-
nos, os homens bons, que se fizeram senhores de escravos, produtores de
trigo e criadores de gado. O comportamento do governador Marcelin049
mostra como era frágil o poder dos negociantes e lavradores açorianos
nas zonas de povoamento antigo do Rio Grande no século XVIII. A su-
cessão do governador militar, ao cabo de muitas representações da Câ-
mara aos vice-reis, indica o início de uma transformação na estrutura do
poder, que se completou nos últimos anos do século XVIII e primeiros do
XIX: a tendência para o fortalecimento das parentelas com o apoio dos
representantes do rei. Estes representantes não deixaram de ser arbitrários
e violentos, pois as violências e os arbítrios derivavam da própria inves-
tidura na estrutura de poder: "Serão necessarios volumes para enumerar
os despotismos, oppressões, violencias, depredações, e proternios, que os
capitães generais do Brasil tem praticado contra os povos (... ) Não se diga
que estas maldades tem alguma cousa de commum com o nosso caracter
Nacional. Os Capitães Generais do Brasil são os mais máos magistrados,

126
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

que há no mundo (dizemos) logo os Portuguezes são os mais máos ho-


mens que há no mundo (nos dirão) mas não se deve tirar tal consequencia;
elles são tão máos porque são Capitães Generais, e não precisão outro
motivo (...)" "Não há hum so que não tenha praticado violencias, e opres-
sões, mais ou menos horrorosas, segundo o seu genio e caracter, e o mais
he que sempre impunemente"5o, Entretanto o sentido emprestado ao
emprego de arbítrio e o resultado com ele alcançado passaram a definir-se
noutro contexto: faziam-se agora para servir mais aos comensais que ao
Erário Real.
Se a administração local no período da Capitania serviu para o enri-
quecimento e prestígio dos funcionários e militares, ou dos servidores elei-
tos e de suas famílias 51 , no período da Governadoria - quando ainda era
instável a economia gaúcha e muito sujeita aos azares da guerra - não
deixaram os vereadores, juízes ordinários, almotacéis e procuradores do
Conselho de prestigiarem-se pelo uso da autoridade e mesmo de servi-
rem-se dessas posições para o enriquecimento próprio: a distribuição dos
contratos de arrematação e a preocupação constante com o "baixo preço"
do trigo, que as atas da Câmara registram, indicam iss052. Não possuíam,
apenas, no século XVIII, as mesmas probabilidades de verem suas ordens
obedecidas, por causa da interferência dos governadores e comandantes
militares. Entretanto, nos métodos de obtenção de seus desígnios os ho-
mens bons, lavradores e criadores açorianos, não diferiam muito dos gover-
nadores militares: "nomiarão a Antonio Mendes Pacheco para servir o
mesmo cargo (de Alcaide) o qual sendo chamado a Camara Não quis
aceytar por cujo motivo os officiais da camara omandarão prender athe aceytar
aservir omesmo officio deAlcaide5 3", E, noutra ata: reuniu-se a Câmara "para
oefeito de semandarem soltar os homens bons que costumão andar na
Governansa da Ré Publica os quaes os havia mandado recolher prezos
destas Cazas da Camara estemesmo Senado pelomotivo dehaverem incor-
rido naspenas doEditaI que semandou fixar nesta Villa do Porto alegre e
outros no Arrayal de Viamão para nodia vinte equatro se acharem nestas
Cazas da Camara para se proceder aeleição dehum veriador comoconsta
do acordão retro (...)"54,
Agiam, da mesma forma, mandando prender os que se demorassem a
cumprir os "acórdãos" de ordem econômica, como, por exemplo, quando

1 27
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

determinavam o levantamento dos estoques e trigo: "Acordarão mais Se


mandasse publicar mais hum Edital tanto neste Arrayal como emtodas as
Povoaçoens deste continente para que todos os lavradores e todas as pes-
soas que tiveram trigo ovenha denunciar os Alqueyres que tiverem aeste
Sennado dentro em trinta dias depois da publicação do Edital compena
deserem presos trinta dias eo trigo que Selhe achar confiscado"ss.
Este tipo de ação mostra até que ponto seria enganoso julgar que na
área de colonização açoriana a sociedade se organizara, pura e simples-
mente, nos moldes de uma região campesina européia. As transformações
por que passou a economia dos açorianos, como se indica no capítulo
precedente, transformaram-na numa economia agropecuária onde ao lado
da "data" propriamente colonial havia a fazenda e a estância que se man-
tinham à base da mão-de-obra escrava. Seus proprietários seriam, por assim
dizer, chefes plebeus, cabecilhas de parentelas que, se ainda não possuíam
no século XVIII as condições e as ligações suficientes para se tornarem
figuras proeminentes na estrutura de poder do Continente de São Pedro,
em nada se assemelhavam a uma camada de campesinos pobres.
É certo que houve alguma diferenciação social interna no grupo dos
açorianos e descendentes e que nem todos, apesar de muito generali-
zadamente possuírem escravos, poderiam ser considerados como grandes
ou médios proprietários. Sobre estes "colonos" pobres recaiu o peso dos
desmandos do poder colonial: os embargos, as violências e o mais temido
de todos - o recrutamento. Mas, exatamente porque esta população cons-
tituía uma espécie de reserva militarizada para a defesa do Continente,
não esteve imune aos padrões de comportamento que tinham vigência nos
demais segmentos da estrutura da sociedade rio-grandense: "Tais fatos
mostram a rigorosa disciplina em que viviam as populações ribeirinhas
do Rio Grande e a força do sentimento hierárquico nelas existente. As
povoações eram fechadas (Porto Alegre, Rio Pardo, Rio Grande) por meio
de valados, trincheiras e outras obras de fortificações, em cujas portas
aquartelava a força militar. A população civil, por sua vez, estava consti-
tuída em milícias de ordenanças, espécie de guarda territorial, sob o co-
mando de capitães-mores, escolhidos no geral dentre o seio da população
pelo Senado da Câmara. Esta hierarquia rigorosa, esta presença da ação
disciplinadora da autoridade policiando a existência do povo em todos os

128
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

seus passos, através de sucessivas gerações, havia necessariamente de agir


como força de fixação do caráter ordeiro do recruta", dirá Rubens de
Barcelos56.
De resto, o recrutamento para servir às milícias e a atuação constante
das milícias na defesa do Rio Grande fizeram com que os agricultores
pobres sem perder a qualidade de agricultores, se militarizassem: "A tro-
pa miliciana d'esta capitania é seguramente a melhor do mundo para o
paiz em que estamos, muito valente e desembaraçada; S. A. R. d'ella póde
confiar tudo; a maior parte dos soldados são pobres e casados, e no seio
das suas familias tratam das suas agriculturas, ou d'aqueles modos de vida
que cada hum tem"; (...) "parece acertado que no tempo de paz todos os
soldados filhos de agricultores se devem licenciar no tempo das planta-
ções e colheitas, não só para ajudar seus pais e parentes, mas para ganha-
rem com que se possam tratar (...)", dizia Magalhães57 •
A militarização da população do Continente de São Pedro foi muito
generalizada. Isto significa que os descendentes dos açorianos que não
haviam enriquecido sofriam as duras penas do serviço militar. A partir de
1801 as guerras e guerrilhas intensificaram-se e nelas foi envolvida quase
que exclusivamente a população do Rio Grande, como notou Saint-Hilaire:
"A fronteira meridional deste País (Brasil) há muito tempo não goza se-
não curtos intervalos de paz, mas salvo algumas tropas vindas de São Pau-
lo e Santa Catarina, todos os soldados que combateram a Espanha são
naturais da Capitania (...). Disto resulta que enquanto os habitantes desta
Capitania se tornaram completamente militarizados, os povos das outras
províncias caem pouco a pouco na inércia"58.
A Luccock não passou, também, despercebida a "militarização" do Rio
Grande: "Na realidade a cidade (Rio Grande) é uma guarnição, sendo o
Governador seu comandante-em-chefe. Tem debaixo de suas ordens dois
regimentos de linha, pertencente um a Rio Grande e o melhor dêles a São
Pedro; possue, ademais, um corpo de cavalaria recrutado entre os estan-
cieiros e um regimento de milicia. Todo homem livre da região se acha
alistado numa ou noutra dessas unidades, sendo que se conseguiria levan-
tar uma fôrça considerável em pouco tempo, numa qualquer emergência.
A tropa camponesa e a milicia eram falhas em tudo, excepto em número;
apareciam em campo munidas de laços e eram de-fato capazes de apanhar

129
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

o inimigo com maior pericia do que a que podiam desenvolver no uso do


mosquete"59.
Não deixaram também de ser fluidos, portanto, os limites entre a "or-
dem rústica" dos açorianos e a "ordem militar". No século XIX os "ho-
mens bons" das cidades eram já descendentes dos açorianos enriquecidos
cujos padrões de comportamento não encontram símile nas comunidades
aldeãs. Além de prósperos senhores de alguns escravos eram homens nos
quais o despotismo militar e o regime de favoritismo haviam criado a pre-
disposição para explorar arbitrariamente com fins pessoais as vantagens
dos cargos públicos. Tornavam-se portanto felizes beneficiários das fidalgas
distribuições de terra, feitas, em nome del-Rei, pelos capitães-generais e
seus auxiliares.
Foram estas condições nas quais se originou a camada de grandes pro-
prietários e senhores de escravos no Rio Grande do Sul. Proprietários cujo
poder encontrava limites apenas na prepotência dos capitães-generais e
militares, e cujo domínio consolidou-se tão logo as bases econômicas de
seu prestígio permitiram-lhes uma situação de independência diante da
burocracia imperial brasileira, que sucedeu a dominação político-militar
lusitana, como se verá no capo I~ A partir desse momento, poder-se-ia
falar no apogeu da dominação senhorial dos estancieiros60•
Em suma, a análise aqui desenvolvida demonstra que a sociedade gaú-
cha acabou por configurar-se nos moldes de uma estrutura patrimo-
nialista. Ao mesmo tempo, condições peculiares fizeram com que a
autoridade, no período inicial da formação do Rio Grande, se revestisse
de características tão marcantes de arbítrio e violência que não seria exa-
gerado admitir que o sistema patrimonialista de poder sofreu uma
distorção no sentido de um tipo de poder sultanístico, embora jamais a
estrutura global de dominação se tivesse configurado conforme esse
padrão de poder tradicional.
Entretanto, o processo de constituição da sociedade patrimonialista
não se desenvolveu de forma unilinear e, considerando-se os interesses
das camadas que exerciam o poder, o sentido da estrutura patrimonialista
de domínio variou historicamente.
De fato, inicialmente, na fase da conquista, a atividade econômica e
social da região subordinava-se, de forma total e imediata, aos interesses

130
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

e ao poder da Coroa e do Estado português. Os funcionários reais agindo


impessoalmente defendiam, contra a população local, às vezes violenta-
mente, o que supunham serem os direitos da Coroa. Tão logo, contudo,
em face das peculiaridades dos imperativos político-econômicos da ocu-
pação do sul e diante das condições naturais e morais de vida na frontei-
ra, o Poder Real se viu obrigado a reconhecer e fortalecer a autoridade
exercida pelos chefes de bandos guerreiros e chefes de parentela, a ordem
estatal-patrimonial representada pelos funcionários e militares portugue-
ses passou a coexistir com uma forma de dominação que se aproximava
do patriarcalismo originário.
Num segundo momento de constituição da sociedade sonhorial gaú-
cha os chefes de parentela puderam reforçar o domínio que exerciam e
consolidar o poderio econômico que haviam alcançado. A Coroa, com o
objetivo de garantir seus interesses, conferiu cada vez mais autoridade,
prestígio e possibilidades de apropriação de bens econômicos aos senho-
res locais. Paralelamente, os funcionários reais, civis e militares passaram
a utilizar, cada vez mais, a parcela de poder auferido para expropriar os
habitantes da região não amparados pelo Poder, tornando-se, eles próprios,
empresários econômicos. Assim, quando a rotinização da vida econômica
e política no primeiro quartel do século XIX permitiu a estabilização da
camada de proprietários de terras, gados e escravos, eles passaram a exi-
gir, de forma crescente, maior participação no poder, visando mais o acres-
centamento da riqueza pessoal do que o fortalecimento e os interesses do
Erário e do Poder Real.
Os cargos, favores e influências que o Estado Patrimonial Português
concedeu ou propiciou para assegurar os interesses políticos e econômi-
cos da Coroa e do Estado resultaram na intensificação das condições fa-
voráveis para a formação de uma camada de senhores61 que, logo que se
viu fortalecida, passou a agir independentemente dos interesses coloniais
portugueses. A apropriação estamental das posições burocráticas pelos
senhores locais (antigos empreendedores ou antigos funcionários trans-
formados em empreendedores) permitiu a utilização do poder estatal com
o fito exclusivo de fortalecer o prestígio pessoal e de consolidar a riqueza
familiar. Desfigurava-se, assim, o sentido original da ordem patrimonial-
estatal e lançavam-se as bases para o desenvolvimento da sociedade lati-

13 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

fundiária, escravocrata e pastoril do Rio Grande do Sul, mais próxima do


patrimonialismo-patriarcal que do patrimonialismo-estatal.

2. A "DEMOCRACIA GAÚCHA"

Como se definia e regulava socialmente a condição de escravo na socie-


dade senhorial gaúcha? A maior parte dos autores que cuidaram do pro-
blema do escravo no sul não hesitou em apoiar-se em Saint-Hilaire para
responder: "não há, creio, em todo Brasil, um lugar onde os escravos se-
jam mais felizes que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto
os escravos, mantêm-se próximos deles e tratam-nos com menos despre-
zo. O escravo come à vontade, não é mal vestido, não anda a pé e sua
principal ocupação consiste em galopar pelos campos, cousa mais sadia
que fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais que os cercam uma
superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos seus
próprios 0Ihos"62. A este testemunho, os comentadores acrescentam, às
vezes, o julgamento de Dreys: "nas estâncias, pouco tem que fazer o ne-
gro, excepto na occasião rara dos rodeios".63
Utilizando esses textos, e outros de teor semelhante, muitos autores
têm chegado à conclusão de que o Rio Grande organizou-se, no passado,
nos moldes da "democracia racial" e da "democracia rural":
"Os senhores de estância exerciam grande influência moral sobre os
inferiores, peões, agregados e escravos. Iam, por isso, para onde os levas-
se ou mandasse o chefe, o "sinhô". Iam de boa-mente, sem relutância,
mesmo porque os estancieiros não costumavam dominar pelo terror e sim
pela brandura, mas principalmente pelo exemplo - exemplo de abnega-
ção e coragem - que cativava e entusiasmava os comandados. E, no cam-
po da luta, com raríssimas exceções, senhores, escravos, peões e agregados,
nivelavam-se tratando-se quase como de iguais para iguais"64.
Temeroso de que sua afirmação pudesse ser interpretada como um
indício de aviltamento do comportamento senhorial, que, paradoxalmente,
nega, o mesmo autor, depois de explicar que o "igualitarismo" não teve
origem no relaxamento ou na fraqueza dos superiores, "mas sim no caráter

132
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

simples e lhano do povoador e na necessidade de apoio nos tormentosos


dias iniciais do Rio Grande"65, acrescenta: "Não eram os patrões, senho-
res, chefes ou comandantes que se rebaixavam até os escravos, peões ou
soldados, mas estes é que se elevavam, pela dedicação e pelo carinho até
seus amos e superiores. Daí, também, não termos tido o trágico período
da escravatura que tão doloroso e malsão foi no nordeste e centro. Raros
foram, no Rio Grande do Sul, os casos capazes de mais enegrecer as ne-
gras páginas da escravidão"66.
O autor desses comentários, depois de dizer que as atas da Câmara
Municipal de Porto Alegre registram a nomeação de um único "capitão-
de-mato" no século XVIII (em 1798) indicando que "por certo naquele
ano é que surgiram os primeiros casos de mau trato e fuga de escravos"67,
conclui: "Não comprovará isso nossa assertiva de que também os escra-
vos gozavam de regalias e de que eram democraticamente tratados pelos
senhores estancieiros?"68.
Nestes textos a ideologia da "democracia racial" e da "democracia rural
gaúcha" está claramente expressa. Como ideologia, além de não corres-
ponder às condições reais de existência social, é formalmente contraditó-
ria nela mesma: supõe uma relação entre senhores, escravos, agregados,
peões, que é ao mesmo tempo autocrática e democrática, senhorial e igua-
litária69 .
Em face da análise já desenvolvida, é desnecessário insistir na impro-
cedência da caracterização da sociedade gaúcha nestes termos. Como,
entretanto, a reconstrução da "idade de ouro" do Rio Grande do Sul nos
moldes de uma sociedade democrática e sem preconceitos repete-se em
quase todos os autores que discutiram a questão - o que indica tratar-se
de um processo de autoconsciência deformada - convém deslindar, atra-
vés da análise dos principais autores do mito da democracia campesina e
racial, o mecanismo intelectual pelo qual se deforma a história e convém
verificar a função desse processo nas interpretações sobre a situação do
negro no Rio Grande.
Salis Goulart é possivelmente o maior expoente dessa ideologia, por-
que além de louvar a democracia rural tenta explicá-la em termos que
pretende científicos70 . Caracteriza o "espírito gaúcho" dizendo: "o ga-
úcho nunca admitiu preeminências de classes ou de raças" (pág. 27).

13 3
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

"Estudando a existência do gaúcho não descobrimos classes intransponíveis


por qualquer preconceito ou interesse. Surge apenas, nessa época embrio-
nária da nossa formação, uma indiferenciação de classes sociais; como que
se nota uma classe única, a dos gaúchos (igual sempre, quer se trate de
ricos ou de pobres, pelo garbo dos gestos, pelo amor da guerra, pelo gosto
das aventuras) constantemente preocupados com a galhardia do perigo,
feliz na roda amistosa do chimarrão, entre relatos guerreiros ou façanhas
dos dias de rodeio, revelando todos, humildes e potentados, os mesmos
hábitos, os mesmos costumes, os mesmos ideais" (pág. 37).
Na "sociedade sem classes" do Rio Grande do Sul as relações entre
senhores e escravos ou peões seriam fraternais: "O gaúcho é mais um amigo
do que um subordinado de seu patrão" (pág. 30). "Entre chefes e empre-
gados, pela natureza de ligações amistosas que os uniam, se encontra muito
do caráter da vida patriarcal, onde o patrão se entrega com os seus subor-
dinados aos trabalhos da comunidade" (pág. 28). O "clã patriarcal" en-
globava senhores e dependentes: "ei-los os trabalhadores pobres buscando
ocupação em campos distantes onde faltassem braços, para sofrerem mais
tarde o influxo de família do patrão. Os pobres, devido à inexistência da
pequena propriedade e não podendo, em regra geral, permanecer ao lado
dos filhos, em terras alheias, onde todos os trabalhos não exigiam outros
elementos além dos existentes, deveriam separar-se deles, seus descenden-
tes, ligados aos novos patrões pela vida fraternal das lidas pastoris, iam
com seus chefes constituir novas famílias". "Assim estes se formavam, a
nosso crer, pelos donos das estâncias, seus parentes e peões, tais eram os
laços de intimidade democrática e de unidade afetiva que uniam todos os
moradores de um latifúndio" (pág. 31).
A "intimidade democrática" entre senhores e escravos, estancieiros e
peões7 ) fortalecer-se-ia na experiência quotidiana diante de condições si-
milares de existência material: "Patrões e empregados alimentavam-se com
o mesmo churrasco e o mesmo chimarrão, cavalgavam os mesmos ani-
mais e juntos entregavam-se às mesmas fainas dos campos, às mais velo-
zes correrias, que era como um derivativo de alegria na vida monótona
dos descampados. "O general Osório, em sua estância, não se envergo-
nhava de trabalhar ao lado dos peões". "O empregado, não criando como

134
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

não criava interesses opostos aos do patrão, identifica-se com ele, torna-
se seu amigo e por assim dizer seu igual"72.
Na vida militar o espírito igualitário, criado nas lides pastoris da cam-
panha, se apresenta num ângulo complementar: "o regime militar do povo
gaúcho apresenta o sistema de cooperação voluntária de maneira a irma-
nar os combatentes nos campos de batalha e a tirar todo rigorismo da
hierarquia militar" (pág. 48).
Nessa "sociedade utópica" o escravo era tratado com benevolência:
"Julgamos que o nosso espírito democrático já se formara antes da grande
introdução do elemento negro. Esse ponto de vista explica o fato de
serem, como relatam os historiadores, os escravos mais bem tratados aqui
do que nas demais províncias do Brasil. O espírito de fraternidade que o
tempo depositou na alma da nossa gente foi tão grande que numa das
poucas lendas criadas pela alma gaúcha (a do Negrinho do Pastoreio)
estigmatiza a execranda memória de um senhor perverso" (pág. 55). Por
isso, a escravidão no Sul "contrasta com os rigores da do Norte" (pági-
na 56)73.
Salis Goulart, historiador bem informado, não podia deixar de reco-
nhecer a existência de restrições aos negros, de desigualdade de condi-
ções materiais de existência e assim por diante. Entretanto, como ideólogo
da "democracia rural", não percebe as contradições que perfilha e postula,
ora mostrando a existência de trabalhadores pobres que sequer possuíam
vida familiar organizada, ora indicando a existência de barreiras aos ne-
gros74 • Em contradição significativa, Goulart revela outro aspecto da "ideo-
logia gaúcha": alguns de seus defensores justificam o racismo, tomando-o
como resultado da explicação científica e elevando-o à categoria de hipó-
tese científica de explicação da realidade.
Ao contrário do que se poderia depreender à primeira análise, as fun-
ções da ideologia da "democracia rural" não deixam de ser contraditó-
rias. Por um lado, é inegável que a aceitação da existência de uma sociedade
democrática, embora inverídica historicamente, vale como demonstração
do vigor do padrão brasileiro de convivência inter-racial. Doutra parte,
nessa ideologia75 estão implícitos elementos que permitem a compreen-
são de outras funções sociais da crença na igualdade pretérita entre bran-
cos e negros, senhores e escravos. Ela assume uma importância considerável

135
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

no processo de avaliação atual do negro pelo branco e de racionalização


dos motivos de tratamento assimétrico no presente: toda reconstrução do
passado rio-grandense em termos da "sociedade rural democrática" visa,
ao mesmo tempo, glorificar o branco-senhor, magnânimo em face do
negro, e considerar o negro como realmente e não socialmente inferior.
Assim, o branco castigaria o negro (as evidências dos suplícios e as obser-
vações dos viajantes não são desconhecidas dos historiadores eruditos),
porém, merecidamente 76 ; a sociedade seria democrática, mas sem "rebai-
xamento" dos senhores aos inferiores; e assim por diante.
A crença na inferioridade racial do negro se exprime claramente em
Salis Goulart, como se vê no texto citado na nota 73. Corresponden-
temente, nesse como noutros autores, sempre que o "problema racial" no
Rio Grande é admitido, juntam ao mesmo tempo informações, dados ou
afirmações que procuram demonstrar a pequena participação do "coefi-
ciente negro" na população. Para diminuir ainda mais o número de ne-
gros, acrescenta-se que a participação indígena na população gaúcha foi
bem maior 77•
A consideração do negro como inferior não implica, entretanto, a
defesa do racismo militante, ou do isolamento racial como solução para
o futuro. Ao contrário, os autores confiam numa miscigenação mágica
capaz de criar o "tipo rio-grandense", no qual o sangue negro acabará
diluído na branquidade fundamental através da miscigenação progressi-
va da população: "No referido censo (da população escolar de Pelotas),
o coeficiente das crianças de cor é de 12,65. É bem possível que este
último número seja mais ou menos o mesmo para a poulação negra e
mulata de todo o estado. Nessa estatística escolar esse último coeficien-
te 12 para as crianças de cor subdivide-se em dois: 9 representando os
mistos e 3 os pretos. Isto demonstra que o número de indivíduos de cor
pronunciada é insignificante e que o processo de clarificação vai sempre
em progresso"78.
O vigor da "ideologia gaúcha" é tão grande que mesmo um autor
que se tem dedicado a estudar os negros no Rio Grande, como Dante de
Laytano, dela não escapa. Em Laytano os circunlóquios e as reticências
ante as formas mais extremadas de afirmação da igualdade básica de bran-
cos e negros, senhores e escravos no Rio Grande do Sul são maiores que

1 36
---._--

CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

nos outros autores, pois trata-se do tradutor de Arsêne Isabelle e do


comentador de quantos viajantes pôde consultar sobre o problema ne-
gro no Rio Grande. Apesar disso, nada o impediu de comentar Saint-
Hilaire, referindo-se às descrições das estâncias pobres, feitas pelo
viajante, nos seguintes termos: "O negro na estância, entretanto, pos-
suía quase as mesmas regalias de seus senhores, pelo menos o stand de
vida de ambos era semelhante"79. O processo de reconstrução idílica do
passado torna-se claro. É preciso reconhecer, como Laytano fez, que as
fontes divergem quanto ao tratamento dispensado ao negro. O próprio
Saint-Hilaire descreve situações sociais nas quais o negro era considera-
do socialmente de forma diversa8o , embora divirjam menos quanto ao
stand de vida do negro. Entretanto, em vez de levar a análise até o pon-
to de compreender os motivos dessas informações aparentemente con-
traditórias, os historiadores que postulam a "democracia gaúcha" sem
justificar as razões optam por um tipo determinado de informações e,
ato contínuo, rejeitam as outras informações ou subestimam sua impor-
tância. Assim, Laytano, depois de citar um texto de Isabelle no qual o
autor descreve as duras condições de vida do escravo negro, omite as
considerações feitas por Isabelle contra a exploração do negro dizendo:
"Isabelle desabafa e solta impropérios terríveis contra a exploração do
negro (...), mas essa má literatura agora não nos interessa"81; ou faz co-
mentários que, possuindo alguma base documental, ganham contornos
diversos dos que os textos permitem: "No papel de criado, sua posição
(do negro escravo) é mais humanizada, uma vez que ele bebe no mesmo
chifre que serviu de copo para o seu senhor, o que não é pouco, quando
as concessões ao negro eram tão restritas"82.
O último texto exemplifica bem o caráter ideológico da análise desses
autores: partem de algo que tem base na realidade - a diferença de trata-
mento dos escravos negros nas diversas situações sociais de existência;
atribuem às condições mais brandas da vida do escravo a qualidade de
mais humanas, definindo o "humano" em termos exteriores àquilo que
socialmente poderia significar um tratamento simétrico; admitem a con-
cessão feita pelo branco ao negro (beber água no mesmo chifre) como algo
que humaniza a condição de escravo; e, finalmente, mostra que a hu-
manização é relativa, já que as concessões ao negro eram restritas, o que

1 37
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

destrói, numa contradição formal com outras afirmações, o igualitarismo


entre senhores e escravos.
Para fundamentar em termos de "autoridade intelectual" a tese da
"democracia campesina" do pampa, existe a obra de Oliveira Vianna.
Esse autor, como indiquei, generaliza o primeiro momento da consti-
tuição da sociedade gaúcha e, com o auxílio de textos de Saint-Hilaire,
Azara, Bettamio, Magalhães, e outros cronistas, utilizados sem o cui-
dado de precisar o período ou as situações sociais a que eles se refe-
rem, acaba por fazer uma análise que coincide, nos pontos principais,
com as teses fundamentais do mito da democracia rural: "reconstrói"
uma sociedade que teria sido, ao mesmo tempo, no conjunto, demo-
crática, escravocrata, impregnada de espírito militar, caudilhesca e
"açoriana". O mesmo mecanismo que levou Spalding, Salis Goulart ou
Laytano a redefinir o passado do Rio Grande em função do mito da
branquidade e do igualitarismo da campanha está presente na síntese
brilhante e às vezes literariamente bela, mas lacunosa e equívoca, de
Oliveira Vianna83 •
A análise sistemática da documentação disponível revela condições
de existência do escravo muito mais complexas que as pressupostas pelo
referido mito da democracia rural gaúcha. Viu-se, sumariamente, quais
as impulsões intelectuais e sociais que estão subjacentes às interpreta-
ções correntes sobre o igualitarismo gaúcho. Sociologicamente a ques-
tão principal não é a de opor a um mito o "desencantamento" analítico
do passado. O fundamental é compreender a significação desse proces-
so. Em primeiro lugar, fica patente que a interpretação do passado pela
idealização da democracia social e racial implica uma perspectiva
etnocêntrica de abordagem da história. Os defensores da "democracia
gaúcha" identificam-se com os agentes históricos e procuram explicar
as ações humanas pretéritas em função de valores do presente: atribu-
em sentidos atuais à ação dos personagens históricos para permitir a
aprovação pelo presente dos atos passados. A distorção é, entretanto,
mais grave porque a identificação não se realiza com "o passado", mas
com determinada camada social histórica. A reconstrução idílica da so-
ciedade senhorial como democrática e sem preconceitos resulta na glo-
rificação dos senhores gaúchos. Em segundo lugar, o mito da democracia

138
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

gaúcha encobre, no que diz respeito ao negro, outro tipo de prejuízo


intelectual: supõe, desde logo, a inexistência de qualquer tensão nas
relações entre negros e brancos. Ainda uma vez, portanto, mas sob ou-
tro aspecto, apresenta-se como um mecanismo de defesa desenvolvido
pelo grupo branco dominante que acaba por impedir a análise objetiva
da vida social. Desse ângulo, a idealização do passado nos termos em
que foi feita, ao invés de desmentir, confirma as interpretações desen-
volvidas na primeira parte deste capítulo. Com efeito, tudo indica que
os valores senhoriais elaborados na sociedade escravocrata gaúcha fo-
ram tão intensos que persistem como uma barreira para a compreensão
intelectual do passado pelo presente. O "problema" negro e a sociedade
escravocrata como "problema" não caem no horizonte intelectual dos
agentes sociais, senão através de formas de apreensão da realidade que a
desfiguram e impedem seu conhecimento objetivo.
Contudo, a simples possibilidade de formulação de interpretações
semelhantes às que vimos na segunda parte deste capítulo coloca real-
mente um problema para a indagação sociológica. Apesar das muitas in-
formações sobre a espoliação social do negro e sobre a inevitável
assimetria nas relações entre senhores e escravos, as análises e interpre-
tações feitas pelos ideólogos da "democracia da estância" indicam que o
escravo submeteu-se, de fato, no Rio Grande do Sul, a situações variá-
veis de existência social e esteve sujeito a formas de tratamento que não
foram uniformes. Houve, efetivamente, situações sociais nas quais a
interação entre senhores e escravos, sem ter tido, como é óbvio, qual-
quer cunho igualitário, foi mais "humana". Quais os efeitos da diferen-
ça entre as formas de tratamento dispensadas aos negros nas diversas
situações de existência em que o escravo foi empregado no sul? Qual a
significação da existência de possibilidades diversas de participação na
produção e na cultura sobre o comportamento e consciência do escra-
vo? Noutros termos: quais as conseqüências dos diferentes modos de
existência do negro na determinação da condição de escravo?

13 9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

NOTAS

1. Florêncio de Abreu, "O gado bovino e sua influência na antropogeografia do Rio


Grande do Sul", A Província de São Pedro, nO 11, março-junho de 1948, Porto
Alegre, diz, à pág. 32, que "Bem ao contrário do que seria lícito supor, a grande
maioria das vilas e cidades do Rio Grande do Sul não teve a sua origem da indús-
tria pastoril (...). Tendo sido, a princípio e durante largos anos, o Continente de
São Pedro o grande teatro das campanhas cisplatinas, é natural que as primeiras
povoações tenham tido sua origem nos presídios, fortes, guardas e acampamentos
militares". E aponta as vilas e cidades que tiveram esta origem: Rio Grande, São
José do Norte, Rio Pardo, Santo Antônio da Patrulha, Santa Maria, Bagé, Alegre-
te, Jaguarão, Uruguaiana. Embora estas cidades viessem a tomar impulso, mais tarde,
por causa da criação ou do comércio de gado, foram, inicialmente, redutos, guar-
das ou depósitos militares. Os açorianos fundaram Porto Alegre, Taquari; Viamão,
Pedras Brancas, Vacaria, Bom Jesus, Rosário, Conceição do Arroio, São Gabriel e
Pelotas, estes sim, foram núcleos desenvolvidos mais diretamente em função da
economia do gado.
2. Oliveira Vianna, op. cit., analisa na maior parte do livro a empresa econômica e o
tipo de empresário gerado por essa conjuntura.
3. Dreys, op. cit., pág. 200.
4. "Os contrabandistas formarão-se a princípio na população branca, e particular-
mente entre alguns aventureiros estrangeiros (...)" Dreys, op. cit., pág. 200.
5. Dreys, op. cit., págs. 200-201.
6. Dreys, op. cit., pág. 201.
7. Citado por Oliveira Vianna, op. cit., pág. 151.
8. Dreys, op. cit., pág. 201.
9. Dreys, op. cit., pág. 202.
10. É certo, contudo, que a separação dos pastos custou muito a ser feita no Sul. Possi-
velmente só depois da Revolução Farroupilha esta prática transformou-se em regra
geral. Antônio Carlos Machado, num artigo muito informativo, "A Charqueada",
Província de São Pedro, nO 8, março de 1947, págs. 121-136, atribui à Revolução
Farroupilha, pela desorganização da produção e dizimação dos rebanhos que acar-
retou, a difusão do hábito de cercar as terras: "Diante da considerável escassez do
gado, nos anos de após-guerra, se criou entre os estancieiros a consciência de que
manter os seus rebanhos no regime antigo de concriação difusa era agravar o
descalabro, inclinando-se a alterar convenções outrora consideradas como invioláveis.
E se alguns fazendeiros chegaram a fazer grandes cercas foi isso devido exclusiva-
mente aos seus interesses, dirigidos agora no sentido de novos e melhores processos
bovino-técnicos" (pág. 122).

140
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

11. Oliveira Vianna, op. cit., pág. 154.


12. Dreys, op. cit., pág. 192.
13. Quanto à miscigenação dos gaúchos, parece não haver dúvida. Saint-Hilaire se re-
fere a um branco que tinha costumes dos gaúchos (expressão que o naturalista em-
prega para significar "fronteiriço", fora da lei), apesar de branco: "Sou tentado a
acreditar que esse homem, apesar de ser branco, pertence aos habitantes desta re-
gião que têm costumes semelhantes aos dos Gaúchos" (op. cit., pág. 159).
14. Dreys,op. cit., pág. 192.
15. Emprego aqui a expressão "esfera organizada de sociedade" para indicar aqueles
setores da organização social que, por pertencerem a área racionalizada da ativi-
dade social, possuíam canais regulares e formais de "reconhecimento social" e ma-
nutenção das regras estabelecidas.
16. Segundo Oliveira Vianna, tanto para a constituição dos bandos de pilhadores ou
de guerreiros, como para a formação das primeiras estâncias da fronteira, os exér-
citos regulares e as milícias e corpos de Dragões forneceram contingentes eleva-
dos. Além disso, nos períodos das invasões castelhanas, tropas regulares, tropas
de milícias e bandos autônomos lutavam lado a lado.
17. Aqui cabe um parêntese. A bibliografia relativa à formação da sociedade gaúcha
descreve a sociedade pastoril como "democrática". O equívoco ficará evidente no
transcorrer deste capítulo. Não só era uma sociedade organizada em bases pa-
trimonialistas, como o exercício da autoridade era autocrático. Por certo, mesmo
na sociedade democrática, a liderança autocrática pode existir, sem contradição
nos termos. Contudo, se a seleção inicial dos proprietários, como a afirmação que
fiz neste trecho, pode ter sido realizada independentemente da condição social da
pessoa que se "apropriava" da terra, o que faria supor um processo democrático
de formação da camada social dominante, isto não significa que nas relações deste
segmento com os demais segmentos da estrutura social se tenham definido rela-
ções democráticas, nem significa, tampouco, que o processo "democrático" de se-
leção para "apropriação" inicial tenha sido mantido no decorrer da história. Digo
"apropriação" entre aspas porque a utilização das sesmarias só se legalizou como
posse depois da Independência. Contudo, doravante empregarei, forçando os ter-
mos, o conceito de propriedade para caracterizar a relação entre o sesmeiro e a
sesmaria.
18. Os Dragões constituíam inicialmente um corpo de cavalarianos que, na intenção de
seus organizadores, deveria possuir grande mobilidade tática e capacidade de im-
provisação, devendo ser capaz até de lutar como um corpo de infantes. Os dragões
deveriam defender a Colônia do Sacramento, tendo sido organizados por provisão
régia de 1737. Seu núcleo básico foi composto por uma companhia de Dragões de
Minas Gerais, para a qual recrutaram oficiais vindos diretamente de Portugal, sob a
chefia do Coronel Diogo Osório Cardoso. O regimento acabou de compor-se no

1 41
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Rio Grande, com o concurso de oficiais que se destacaram nas lutas da Colônia.
André Ribeiro Coutinho, mestre de campo que substituiu Silva Pais, declarou a Gomes
Freire que "com as levas que V. Excia. ao mesmo tempo mandou das Minas, do Rio
de Janeiro, de São Paulo e Santos, com algumas pessoas da Bahia, e com um desta-
camento da Colônia e todos os que se achavam das Praças do Brasil, naquele Domí-
nio, formei o casco do Regimento dos Dragões", in "Memórias dos serviços prestados
pelo Mestre de Campo André Ribeiro Coutinho no Governo do Rio Grande de São
Pedro, dirigida a Gomes Freire de Andrade em 1940", Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2° trimestre de 1936, págs. 237·249. O recruta-
mento posterior dos Dragões foi feito entre gente do Rio Grande, como se verifica
pela correspondência de Lavradio com o General Bõhm.
Os historiadores se têm preocupado muito com a procedência dos primeiros
povoadores do Sul, e, como os "dragões" contam entre estes, muita discussão foi
travada para estabelecer donde procederam. Este debate, na forma como tem sido
conduzido, não traz qualquer esclarecimento sobre as normas de comportamento
e o tipo de liderança que se estabeleceram no Sul. Por isso, omito referências ex-
plícitas às "origens" dos dragões e demais povoadores do Sul. Convém, entretan-
to, transcrever o que diz José Honório Rodrigues, O Continente do Rio Grande.
Edição São José, Rio, 1954, refutando outros historiadores sobre o povoamento
do Rio Grande do Sul: "O povoamento do Rio Grande não pode, deste modo,
limitar-se, como se tem feito, ao coeficiente lagunista, de origem paulista, e aos
açoritas. A corrente que parte de Laguna a caminho do Viamão é realmente
lagunista, de origem paulista, mas a que forma a do núcleo do Rio Grande não é
só de açorianos. É carioca, baiana, açoriana, com predomínio da gente do Rio e,
mais tarde, dos casais da Ilha Terceira. O povo da Colônia do Sacramento que se
transfere para o Rio Grande era, em grande parte, do Rio; os dragões que vão ao
Presídio são também em boa parte de cariocas, especialmente recrutas mensalmente
apreendidos nas ruas do Rio; as mulheres livres e desimpedidas, as "marsuelas" e
as moças são também colhidas no Rio de Janeiro. Esta a origem inicial dos
povoadores do Rio Grande" (págs. 35-36). À página 45, reafirma Honório
Rodrigues: "O povoamento do Rio Grande se fez no período colonial com
mazombos de vária origem e açorianos. Dominam o açoriano e o lagunista, de
origem paulista, mas influi também o carioca de origem minhota. Em proporções,
equivalentes menos significativas, indígenas e negros". Apesar da imprecisão de
linguagem e da ausência de prova documental sólida, estas afirmações indicam que
houve povoadores provenientes de várias áreas no Rio Grande, e não apenas
lagunistas e açorianos.
O Regimento dos Dragões, com esta denominação e como formação regio-
nal, existiu até 1824, quando se transformou no 5° Regimento de Cavalaria do
exército de la linha.

1 42
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Sobre os Dragões, ver os seguintes trabalhos apresentados ao Segundo Con·


gresso de História e Geografia Sul Rio Grandense, in Anais do Segundo Congresso
de História e Geografia Sul-Rio-Grandense, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1937.
(a) "A formação do regimento de dragões do Rio Grande de S. Pedro" pelo Cel. J. C.
Rego Monteiro, págs. 127-135.
(b) "A revolta dos Dragões do Rio Grande", por Walter Spalding, págs. 137-167.
(c) "A formação dos Dragões e os primeiros Osórios do Rio Grande", pelo Dr. Fernando
Luiz Osório, págs. 169-201.
19. Lavradio, Correspondência, op. cit., páginas 81-82.
20. Op. cit., págs. 19-29. Sobre a condição dos Dragões como "bandoleiros a servi-
ço d'el Rei" a correspondência de Lavradio com o General Bõhm é riquíssima. À
página 121, p. ex., diz o Marquês: "Depois disto esta Tropa ligeira vive ordinaria-
mente doq' apanha pelo campo.
"Com proezas q'fazem se sustentão e as repartem entre sí.
"O gado que apanhão não se lhes faz restituir, nem são castigados co a pena
q'tem os q'se aproveitão do alheio".
À pág. 125 da correspondência há uma carta na qual Lavradio ordena que as
tropas do Coronel Rafael Pinto "faça todas as arreadas e mais estragos, q'couberem
no possivel, nos Gados e cavalhadas, não so afim a'eIles (os castelhanos) não achem
gados comq' se sustentarem, ecomq' possão fazer as suas conduçoens (...)"; e as-
sim por diante.
21. Lavradio, Correspondência, op. cit., pág. 124. Nas lutas contra os chefes platinos,
no séc. XIX, a ineficiência das tropas portuguesas de linha transparece novamen-
te: "Ninguém nega ao exército português-europeu valor e experiência, mas ele
não conhecia absolutamente a região e devia tornar-se sem utilidade dentro de
uma guerra de partidos cheia de caracteres particulares e hábitos completamente
estranhos aos europeus. Como poderiam, por exemplo, os soldados europeus su-
jeitar a viver sem carne, sem sal, sem farinha e sem pão? Sendo necessário para
eles outro sistema de alimentação, era preciso fazer-se-lhe acompanhar de consi-
derável bagagem o que lhes impedia de agir com a indispensável rapidez. Os caça-
dores, acostumados às guerras de escaramuças, foram, em toda a divisão, os únicos
soldados medianamente eficientes. Mas a cavalaria estava habituada a manobras
muito exercitadas e não o estava aos cavalos semi-selvagens da região, nem a se
deslocar continuamente para poder lutar contra a de Artigas" (Saint-Hilaire, op.
cit., págs. 77-78). Por isso, em todas as lutas do Prata as milícias e os bandos che-
fiados pelos estancieiros foram decisivos. Na fronteira de Lagoa Mirim Saint-Hilaire
também encontrou tropa local: "Os soldados aqui acantonados estão quase todos
atualmente em gozo de licença. São guerrilhas, corpos de voluntários formados no
correr da guerra atual pelo estancieiro Bento Gonçalves. Segundo informes que
obtive esse homem reunia sob seu comando uma dúzia de desertores, sendo depois

143
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

reconhecido de utilidade pelos chefes militares, e alistado posteriormente em nú-


mero considerável de voluntários" (pág. 124).
22. Lavradio, op. cit., pág. 83.
23. Refiro-me, é claro, ao "gaúcho" como tipo específico de habitante da campanha
contestada do século XVIII.
24. Idem, ibibem, pág. 81.
25. Fernando Luiz Osório, Sangue e Alma do Rio Grande, Porto Alegre, 1937, pág. 86.
26. Antes dos governadores militares havia o que se chamava de "comandância" do
Rio Grande, exercida pelo chefe das tropas que, por isso, desempenhava também
funções administrativas. Foram comandantes do Rio Grande, então parte da Ca-
pitania do Rio de Janeiro, o Brigadeiro Silva Pais, o CeI. André Ribeiro Coutinho,
o Coronel Diogo Osório Cardoso e o Tenente-Coronel Pascoal de Azeredo. Por
carta régia de 9-9-1760 o Rio Grande foi desmembrado da Capitania do Rio de
Janeiro, passando a ser administrado por governadores. A 19 de setembro de 1807
foi criada a Capitania Geral de São Pedro, à qual subordinava-se também a Ilha de
Santa Catarina. Poucos foram os capitães-generais: D. Diogo de Souza, conde do
Rio Pardo, tomou posse apenas em 1809 e em 1814 foi substituído por Luiz Teles
da Silva, Marquês de Alegrete, que governou até 1818, quando D. José de Castelo
Branco Correia e Cunha Vasconcelos e Souza, conde da Figueira, assumiu o gover-
no. Este interrompeu a administração em 1820, sendo a Capitania, a partir daí,
governada por um triunvirato, até a Independência.
27. In Walter Spalding, "A revolta dos Dragões do Rio Pardo", op. cit., pág. 160.
28. Quanto a isso não há dúvida, como tornarei a mostrar adiante.
29. Citado por Spalding, op. cit., págs. 147-148, segundo transcrição de texto de Au-
rélio pôrto. A representação refere-se a 1740. Na luta com os adversários, então,
a violência era inaudita (e recíproca). Ainda nas lutas contra Artigas as guerras eram
atos de banditismo: "Quanto às selvajarias que certos portugueses atribuem ao pes-
soal de Artigas, parece pelo testemunho de oficiais probos terem sido absoluta-
mente recíprocos."
"Os hábitos carnívoros dos habitantes desta Capitania os tornam cruéis e sangui-
nários. Na Batalha de Taquarembó eles massacraram impiedosamente mulheres e cri-
anças e teriam matado todos os prisioneiros se os oficiais a isso não se opusessem",
Saint-Hilaire, op. cit., pág. 44. Também contra as populações civis praticavam-se vio-
lências: "Quando os insurretos espanhóis apossaram-se da aldeia de S. Nicolau, o
Marechal Abreu veio com suas milícias em socorro da província (das Missões), e asse-
gura-me meu hospedeiro que em sua retirada esses soldados causaram maiores danos
que os próprios inimigos, pilhando sem escrúpulo, carregando com o gado e com os
cavalos das estâncias por onde passavam", idem, ibidem, pág. 107.
30. É preciso, contudo, não esquecer que se houve, de fato, distribuição mais ou menos
ampla da terra no século XVIII, porque o objetivo era ocupar a área, os comandantes

144
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sempre se beneficiaram mais. No processo de incorporação das Missões ao domí-


nio português (já no século XIX), esta tendência era nítida. Nesta época já havia a
apropriação legal da terra pela "compra" concomitantemente com a concessão de
sesmarias: "Já passei por três estâncias pertencentes ao Marechal Chagas e, entre
chácaras e estâncias, possui ele oito na província das Missões, calculando-se em
24 léguas a extensão do terreno que podem ocupar. Todas estas terras foram com-
pradas, porém a preços baixos e, acreditar-se na voz do povo, foi o medo que por
mais de uma vez obrigou os proprietários a vendê-Ias. Admitindo-se mesmo que
nunca tenha sido empregada a coação, é preciso reconhecer-se ser escandaloso um
comandante de província tornar-se, durante seu governo, possuidor de tamanha
extensão de terrenos, enquanto deixava seus administrados em completo abando-
no", Saint-Hilaire, op. cit., pág. 194. Além disso, os empregados do marechal es-
tavam isentos dos serviços de guerra e seus gados não eram requisitados para a
alimentação da tropa.
Os administradores das antigas fundações jesuíticas, embora não obtivessem
extensões tão grandes de terra, adquiriam suas estâncias da mesma forma. Cf. Saint-
HiIlaire, op. cit., pág. 181.
31. Manoel Antônio de Magalhães, op. cit., pág. 53. Também Gonçalves Chaves, na
Terceira Memória, refere-se a distribuições de terra sem nenhum critério equitativo.
32. O Tenente-General Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara substituiu o gover-
nador José Marcelino em 1780. Governou até 1801, quando o comandante da
esquadra Paulo José da Silva Gama assumiu a governadoria militar. Esse, que foi o
último a governar nesta qualidade, passou o poder em 1809 a D. Diogo de Souza,
já com o título de capitão-general.
33. Gonçalves Chaves, op. cit., págs. 147-148. No começo do século o regime de ocu-
pação do solo estava muito pouco consolidado juridicamente: "Em oitocentos e
dois ainda não havia entre os vassalos de C. E, senão quinhentos e trinta e nove
proprietários de terrenos demarcados judicialmente, entre creadores de gados de-
nominados Fazendeiros, e Lavradores, que só criam o necessário para o seu servi-
ço, e gasto", dizia Aires de Casal, Corografia Brasílica, tomo I, op. cit., pág. 143.
34. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 148. O mesmo processo repetiu-se, anos mais tar-
de, com relação aos "campos neutrais" do lbicuí. Os portugueses consentiram que
seus homens ocupassem as terras, de modo que ao legitimarem a conquista das
Missões já havia muitos portugueses estabelecidos naquelas paragens. Entretanto,
também nesse caso, houve a redistribuição posterior das terras: "Contou-me meu
hospedeiro que seu cunhado foi um dos primeiros que se fixaram nesta região,
antes dela ser inteiramente do domínio português, mas depois disto um cidadão
tirara títulos de sesmaria por ele ocupado, pretendendo expulsá-lo. Fazendo re-
presentação ao Conde, este houve por bem mandar as partes à justiça. Quero crer,
entretanto, não haver a menor dúvida sobre essa questão", escreveu Saint-Hilaire,

1 45
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

op. cit., pág. 242. Porém havia dúvidas, e muitas, sobre esse tipo de posse: ''Aliás,
não é o cunhado de meu hospedeiro o único que se acha nesse embaraço. O mes-
mo terreno é dado a várias pessoas. Mais freqüentemente ainda sucede que um
pobre agricultor, inteiramente estranho às demandas, estabelece-se em um terre-
no, com permissão do comandante, e quando tem construída sua choupana e lo-
calizado seu gado, homens ricos de Porto Alegre e de outros lugares obtêm títulos
de sesmaria desse mesmo terreno e pretendem expulsar quem já labutou, substitu-
indo-o por um administrador a fim de apurar rendimento, sem constrangimento",
Saint-Hilaire, já citado, pág. 242.
35. Este Bando, transcrito às págs. 333-339 do livro de Gonçalves Chaves, é im-
portantíssimo para a análise da formação da propriedade rural no Rio Grande
do Sul.
36. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 156.
37. Idem, ibidem, pág. 157. Um dos poucos autores que analisaram adequadamente o
processo de formação das estâncias foi Carlos Dante de Moraes, "O povo rio-
grandense nas vésperas de 35", Fundamentos da Cultura Rio-grandense, Faculda-
de de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, 1954, págs. 33-60.
38. O conceito de estrutura patrimonialista é inequívoco. Utilizo-o conforme sua for-
mulação clássica: ''A este caso especial da estrutura patrimonial de dominação, ao
poder doméstico descentralizado mediante a distribuição de terras e às vezes de
pecúlios aos filhos ou a outras pessoas dependentes do círculo familiar, damos aqui
o nome de dominação patrimonial", Max Weber, Economía y Sociedad, Fondo de
Cultura Econámica, México, 1944, vol. IV, pág. 137. Por estrutura patriarcal de
dominação se entende, ainda conforme Weber, pág. 131, o seguinte: "Em sua es-
sência não se baseia (a estrutura patriarcal) em dever servir a uma 'finalidade' im-
pessoal e objetiva e na obediência de normas abstratas, mas exatamente no
contrário: na submissão em virtude de uma devoção rigorosamente pessoal. Seu
germe está radicado na autoridade de um dominus (senhor) dentro de uma comu-
nidade doméstica. Sua posição autoritária pessoal tem de comum com a domina-
ção burocrática posta a serviço de fins objetivos a continuidade de sua subsistência,
o 'caráter quotidiano'. Além disso, ambos encontram apoio, em última instância,
na obediência a 'normas' por parte dos que estão submetidos ao poder. Mas estas
normas são racionalmente criadas na dominação burocrática, apelam para o sen-
tido da legalidade abstrata e se baseiam em um exercício técnico, enquanto que na
dominação patriarcal baseiam-se na 'tradição', na crença no caráter inquebrantá-
vel do que sempre aconteceu de uma maneira determinada. "
Vê-se, pois, que a dominação patriarcal é um tipo de dominação tradicional.
Weber acentua que a dominação tradicional pode ser exercida: 1) através de um
quadro administrativo e 2) sem ele. O recrutamento do quadro administrativo pode
ser feito tanto através do "recrutamento patrimonial" quando os laços de "senti-

146
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CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

mento" (piedade) unem os recrutados ao senhor (por pertencerem à mesma linha-


gem, por serem escravos, funcionários domésticos etc.), quanto através do "recru-
tamento extrapatrimonial", quando há relações pessoais de confiança ("favoritos",
livres de todas as categorias); ou através de um pacto de fidelidade com o senhor
que se torna, então, legitimado com tal (vassalagem); ou quando funcionários en-
tram livremente em relações de "sentimento" (piedade) (op. cit., voI. 1, pág. 236).
Os casos originários da dominação tradicional eram constituídos com a au-
sência do quadro administrativo pessoal do imperante (na gerontocracia e no
patriarcalismo originário). Quando surge um quadro administrativo e militar do
senhor, toda a dominação tradicional tende ao patrimonialismo e ao sultanato (pág.
241, vol. I). Os "companheiros", então, transformam-se em "súditos".
"Chama-se dominação patrimonial a toda dominação primariamente orienta-
da pela tradição, mas exercida em virtude de um direito próprio; e é sultanista a
dominação patrimonial que se move, na forma de sua administração, dentro da
esfera do arbítrio livre desvinculada da tradição. Do patriarcalismo originário se
distinguem ambos, inclusive o sultanato, pela existência de um quadro adminis-
trativo" (op. cit., vol. I, pág. 242).
Caracterizarei adiante a sociedade sulina e usarei alguns conceitos na acepção
weberiana. Contudo, ainda que na metodologia de Weber esteja implícita e explí-
cita a idéia de que estes conceitos são "probabilidades típicas de acontecer" que
podem estar presentes em situações histórico-sociais diversas e cuja validade para
a descrição de situações de existência que transcorrem realmente na história inde-
pendem de análise concreta da forma particular pela qual se combinam as "proba-
bilidades diversas" no processo histórico, em nenhum momento a análise aqui
desenvolvida será "tipológica" no sentido weberiano.
Convém ainda deixar claro que, para Weber, os limites entre os conceitos tí-
pico-ideais são fluidos. Assim, a "estereotipização e a apropriação monopolizadora
dos cargos por seus titulares criaram o tipo estamental do patrimonialismo". Nes-
se sentido, algumas situações históricas no Brasil permitiriam o emprego rigoroso
da expressão patrimonialismo estamentaI. E como, por outro lado, Weber consi-
derava a possibilidade de usufruto de certas regalias distribuídas patrimonialmente
como prebendas (na medida em que eram doadas de um modo renovado, mas com
apropriação individual e não hereditária), mas não deixou de considerar a trans-
formação das prebendas em possessões patrimoniais, não seria descabido dizer que
a "apropriação" de cargos na administração colonial (e quiçá as sesmarias) impli-
cou a distribuição de prebendas, à base das quais se organizou a estrutura pa-
trimonialista estamental de dominação do Estado burocrático patrimonial:
"A base das prebendas desenvolveu-se especialmente durante os primeiros
tempos do Estado moderno burocrático-patrimonial. E isto ocorreu então de

147
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

modo geral, com a máxima intensidade dentro da cúria papal, na França e, com
menor intensidade - por causa do escasso número de cargos - na Inglaterra.
Tratava-se sobretudo de benefícios, sinecura, que foram concedidos aos favore-
cidos ou familiares, com a autorização de encarregar um representante mais ou
menos proletário a realizar o trabalho efetivo, ou que foram adjudicados a
solicitantes mediante arrendamento ou entrega de quantias fixas. Com isso se
converteram as prebendas em uma possessão patrimonial do arrendatário e do
comprador, existindo os mais diversos usos, até chegar à venda e à cessão here-
ditária" (vol. rv, pág. 163).
A prebenda dada com usufruto vitalício, diz Weber, aproxima-se muito do
feudo (vol. IV, pág. 62). O feudalismo é, para Weber, um "caso limite" da estrutu-
ra patrimonial: "Em oposição à ampla esfera da arbitrariedade e da correspon-
dente falta de estabilidade das posições do poder dentro do patrimonialismo,
encontra-se a estrutura das relações feudais. O feudalismo é um "caso limite" da
estrutura patrimonial no sentido da estereotipação e fixação das relações entre os
senhores e os vassalos" (voI. IV, pág. 204). As "relações feudais" existem "I} sem-
pre entre membros de uma camada que, do ponto de vista social, se acha hierar-
quicamente articulada, mas que, situada acima da massa de cidadãos livres, constitui
diante deles uma unidade. Trata-se de pessoas que, em virtude da relação feudal2}
estão relacionadas entre si de um modo contratual e não mediante uma relação de
tipo patrimonial" (voI. IV, pág. 206). É óbvio que não cabe, nesse sentido, qualifi-
car de feudal a estrutura da sociedade gaúcha: inicialmente não houve a "estabili-
dade de posições" requeridas pelas estruturas feudais, nem sequer a definição
contratual das relações entre senhores e vassalos. A estabilidade que a sociedade
rural gaúcha veio a adquirir no século XIX fundamentava-se já na "propriedade"
territorial e na exploração econômica direta da propriedade, e não na manuten-
ção tradicional de um conjunto rentável de direitos, que constituem o fundamen-
to sobre o qual repousa qualquer estrutura feudal para permitir o desenvolvimento
de um estilo de vida senhorial nobre, baseado na utilização cavalheiresca do ócio,
e não, como no sul, no negócio.
39. Sobre a importância do "Real Erário" na vida colonial brasileira, ver, especialmen-
te, Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo (Colônia), Editora
Brasiliense, Sâo Paulo, 1945, 2 a ed., último capítulo, principalmente págs. 362-
363.
40. Manoel Antônio de Magalhães, op. cit., págs. 62-63.
41. Manoel Antônio de Magalhães, op. cit., pág. 61.
42. Idem, ibidem, págs. 61-62.
43. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 245.
44. Magalhães, op. cit., pág. 51.
45. Magalhães, op. cit., pág. 51. O rendimento dos vigários era muito alto. O cronista
diz, às págs. 50-51, que em Porto Alegre as rendas do vigário alcançavam de seis a

148
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sete mil cruzados; em Bom Jesus de um conto a três mil cruzados; no Rio Pardo de
cinco a seis mil; e em Rio Grande de dez para onze mil cruzados anuais.
Saint-Hilaire anotou em vários trechos de seu diário os desregramentos dos
padres, e Luccock não deixou de registrá-los: "Sempre se encontra no interior da
casa do Vigário (de Rio Grande) o confôrto necessário para nos fazer esquecer do
seu desconfôrto externo. Era homem de algum zêlo e de maior bondade de cora-
ção, considerado como o pai da comunidade, mas não reverenciado feito santo.
Sob seu teto havia diàriamente lugar para o repouso vespertino tanto de católicos
como de heréticos, cuja conversação animada era por vêzes variada por jogos de
cartas e danças. Alguns dos clérigos subalternos que ali encontrávamos pareciam
ser pessoas dignas de respeito; mas se seus serviços tivessem que ser reforçados
pelo exemplo, dificilmente conseguiriam evitar uma grande frouxidão dos costu-
mes". (Luccock, op. cit., pág. 125). Sobre a transformação das prerrogativas ecle-
siásticas em sinecuras para obtenção de recursos pecuniários, Saint-Hilaire relata
o caso de um cura que autorizara o capelão de Santa Maria a praticar a confissão,
sob a condição de que o pagamento realizado pelos fiéis para a obtenção do sacra-
mento se destinasse a ele, cura, e não ao capelão. Para o cura, escreveu Saint-Hilaire,
"esta parte da paróquia é uma espécie de sinecura, em que usufrue seus encargos
(...) creio ser impossível levar mais longe o comércio das cousas sagradas", op. cit.,
pág.247.
46. A historiografia gaúcha discute freqüentemente o papel de Marcelino de Figueiredo
na administração do Rio Grande, tendo sido suas arbitrariedades e violências muito
criticadas pelos contemporâneos e pelos historiadores. O desembargador Florêncio
de Abreu colocou a questão nos devidos termos: a arbitrariedade era geral na épo-
ca (cf. Florêncio de Abreu, "José Marcelino de Figueiredo no governo de São Pedro,
1769 a 1780", Anais do II Congresso de História e Geografia do Rio Grande do
Sul, op. cit., tomo m, págs. 177-207). Marcelino, cujo verdadeiro nome era Ma-
nuel Jorge Gomes de Sepúlveda, nobre português que fora obrigado a mudar de
nome e embarcar para a América porque se envolveu em complicações políticas,
simbolizou a atitude do militar doublé de funcionário administrativo real. Não foi
sem razão, por isso mesmo, quem nem sempre contentou os grandes proprietários.
Preferia manter um tipo de distribuição de terra que, se podia ser útil à Coroa,
prejudicava os interesses e as ambições dos chefes locais: a pequena propriedade
açoriana.
47. Tratava-se do açougue da Aldeia de N. S. dos Anjos, conforme se pode ler na ata
da reunião de 26-1-1778, Boletim Municipal nO 15, pág. 383. A Câmara apelou
para o vice-rei, Marquês do Lavradio, que, entretanto, confirmou a decisão de
Marcelino, cf. "Atas da Câmara Municipal de Porto Alegre (julho de 1778 a de-
zembro de 1780)", Boletim Municipal, vol. VII, 16, Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, 1944, pág. 39. Lavradio não gostava de José Marcelino, como se pode

149
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

comprovar na correspondência do marquês com o General Bõhm, já citada, es-


pecialmente na carta de 7-5-1775, contida na página 52 daquela publicação. Como,
entretanto, Marcelino representava, de fato, pela sua ação, o ideal do "funcioná-
rio da Coroa", o vice-rei do Brasil, governante "esclarecido" que era, soube sem-
pre fazer-lhe justiça, como se pode ver, por exemplo, na carta de 11-1-1776
endereçada ao General Bõhm (op. cit., págs. 82-83).
48. O incidente entre a Câmara e o governador, a propósito do pagamento, ordenado
por Marcelino, do aluguel da casa do "Mestre dos Meninos", mostra o desprezo
que o nobre governador votava aos "homens de capote": "que elle tinha aculpa
de pedir favores ahomens de capote e retirando-se depois do referido, alguns
dosditos Oficiais da Camara a suas cazas a Capelia de Viamam, aonde morão dis-
tante desta Villa tres leguas nomesmo dia os mandar a chamar, evindologo asaberem
delle que queri este lhes respondera, queo Portamda Praça desta Villa não sahissem
mais para fora e ficassem soprezados (...)" '~tas da Câmara Municipal de Porto
Alegre", Boletim Municipal nO 16, págs. 46-47. Os vereadores ficaram detidos
durante onze dias graças a esta arbitrariedade de Marcelino.
O "Mestre dos Meninos" era "homem pardo cazado com uma preta", como
acentuaram os vereadores melindrados.
49. A ata da Câmara de 15-4-1780, transcrita no Boletim citado na nota acima às págs.
77-80, resume as violências praticadas pelo governador em suas relações com ve-
readores, funcionários da Câmara ou com a Câmara como instituição. As violên-
cias iam do desacato à prisão.
50. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 5.
51. Também os encarregados da administração militar locupletavam-se quanto podiam,
principalmente à custa dos proprietários paisanos. Referindo-se aos problemas en-
frentados por um comissário de guerra para organizar mais regularmente o servi-
ço dos víveres destinados à tropa, Saint-Hilaire diz que o homem andava a "braços
com inúmeros obstáculos, não somente devidos à natureza da região e aos hábitos
dos soldados, mas ainda aos oriundos da desonestidade dos Chefes Militares, acos-
tumados a tirar proveito da desordem até agora reinante nos serviços de rancho.
Parece, com efeito, que não existe nenhuma escrita. Os oficiais requisitam gado
dos estancieiros e dão vales que devem ser pagos pela junta da fazenda real. Du-
rante algum tempo os pagamentos foram feitos com pontualidade, mas atualmen-
te estão suspensos por falta de verba", op. cit., pág. 83.
52. Vide, por exemplo, a ata da reunião de 16-3-1768, in '~s 'Vereanças' das Câmaras
de Viamão e Pôrto Alegre", Boletim Municipal, ano m, nO 8, vol. 4, pág. 279,
onde se manda diminuir o tamanho do pão, mantendo-se o mesmo preço.
53. "Atas da Câmara de Pôrto Alegre", Boletim Municipal, nO 16, pág. 367, ata da ses-
são de 3-8-1776. Na ata da sessão seguinte, de 7-8-1776, op. cit., pág. 368, consta
que o referido cidadão "aceitou" o cargo e por isso foi solto.

1 5O
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

54. "Atas da Câmara de Pôrto Alegre", Boletim Municipal, nO 16, pág. 58.
55. '1ls 'Vereanças' das Câmaras de Viamão e Pôrto Alegre", Boletim Municipal, Pre-
feitura Municipal de Porto Alegre, Ano m, nO 8, Porto Alegre, 1941, pág. 279.
56. Rubens de Barcelos, "Esbôço da Formação Social do Rio Grande", Província de
São Pedro, nO 3, dezembro de 1954, pág. 16. Os "fatos" a que o autor se refere no
início da frase eram as ordens rigorosas das Câmaras. Transcrevi algumas atas que
confirmam esta assertiva. Barcelos lembra que até a falta às solenidades públicas,
procissões e ofícios religiosos respondia-se com pena de prisão, por ordem da Câ-
mara. Convém ressaltar que, no período colonial, a população organizava-se em
milícias de ordenanças em todo o Brasil e que os agricultores pobres foram coagi-
dos à militarização parcial. Nas áreas próximas das fronteiras disputadas, contu-
do, esse processo assumiu aspectos de maior rigor.
57. Manoel Antônio de Magalhães, op. cit., págs. 53-54.
58. Saint-Hilaire,op. cit., pág. 95.
59. John Luccock, op. cit., págs. 121-122.
60. Saint-Hilaire, que percorreu a Província quase no momento final do período de
transição entre o domínio despótico dos chefes de tropa e capitães-generais e o
domíno dos estancieiros, charqueadores e exportadores, pôde registrar os efeitos
e as condições dos dois tipos de dominação: "Cada capitania ficou sendo uma es-
pécie de "pachalick" onde o capitão-general continuava a gozar de um poder ab-
soluto e onde podia, a seu talante, reunir em si todos os podêres", escreve à página
289, referindo-se ao período da vinda da família real para o Brasil. Adiante, con-
tudo, mostra os limites da dominação autocrática dos chefes militares no Rio Gran-
de do Sul, por volta de 1820: "Tive, já, ocasião de expor alguns inconvenientes
desse sistema militar; para esta capitania, eles existem e muito graves. Como os
corpos dela dependentes são quase inteiramente compostos de homens da região,
tendo a guerra necessidade de grandes verbas e dando lugar a grandes fortunas,
formou-se, aqui, uma espécie de aristocracia de família, embaraçosa para os capi-
tães-generais e perigosa para a paz dos cidadãos" (págs. 289-290).
Sobre os desmandos dos militares, além das indicações e textos já transcritos,
existem ainda muitos outros depoimentos. Luccock, por exemplo, que percorreu
a capitania em 1810 - pleno período de formação da sociedade senhorial, mas
não ainda época do domínio político dos estancieiros e charqueadores - descre-
veu da seguinte maneira um episódio no qual ele desejava apossar-se de um cavalo
para substituir sua montaria, já cansada: "Neste instante, um homem, que depois
soubemos ser o proprietário, surgiu galopando em nossa direção, cheio de cólera
e proferindo ameaças veementes. Se o tivéssemos visto antes, teríamos natural-
mente pedido sua permissão para a troca, apesar de que, se o nosso guia fosse
soldado, semelhante civilidade seria tida por ociosa; ao contrário, o raivoso cava-
leiro teria, talvez, sido obrigado a apear e entregar ao meu uso o próprio cavalo

1 5 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

que montava", op. cit., página 183. Também em Saint-Hilaire existem informa-
ções sobre os abusos do poder militar com relação aos cultivadores e criadores.
EntretaÍlto, nessa época já reinava certo inconformismo sintomático com relação
a esse estado de coisas: "Queixou-se muito (o hospedeiro, na região das Missões)
dos abusos de que são vítimas os cultivadores desta Capitania, meu informante em
particular, e espera providência da Côrte. Acontece sempre serem seus animais
levados por oficiais, os quais prometem devolvê-los da estância vizinha e nunca
cumprem o prometido. (...) Tomam ao cultivador os animais que lhe são necessá-
rios, ou mesmo, arrebanham os que se acham nos campos e assim, todo o ônus
recai sobre aquêles residentes à margem das estradas.
"Já disse a respeito dos animais tomados dos estancieiros para nutrição das
tropas, nunca pagos. Atualmente a cousa é pior. Há algum tempo, levaram muitos
bois dêste distrito, para Belém e Capela de Alegrete, e acharam um excelente meio
para evitar reclamações dos proprietários: não lhes dar recibos", op. cit., pág. 258.
As reclamações dos criadores e agricultores indicam o início do novo período
da história do Rio Grande do Sul. Os abusos eram ainda cometidos, mas é preciso
não esquecer que Saint-Hilaire se refere à zona das Missões, recém-incorporada
ao domínio luso. Nas áreas mais antigas do Rio Grande a estância e a charqueada
começavam a impor-se como empresas essenciais para a economia da região, sen-
do seus proprietários, e não qualquer soldado ou chefete militar, os verdadeiros
esteios da "ordem constituída".
61. Utilizo nesse trabalho a expressão "camada senhorial" em sentido diverso da-
quele com que os historiadores costumam empregá-la, como, por exemplo, Marc
Bloch, La Société Féodale: les classes et le gouvernement des hommes. Éditions
Albin Michel, Paris, 1949, esp. livro III: "La féodalité comme type social et son
action". É óbvio que, como boa parte da análise desenvolvida neste capítulo pro-
cura demonstrar, a "camada senhorial" do Rio Grande não se firmou à base de
direitos de senhorio, e, muito menos, como uma camada feudal. Ao contrário, e
isso constituirá o tema do capo Iv, os senhores no Rio Grande, como no Brasil,
eram empreendedores econômicos. Entretanto, o uso do conceito está consa-
grado para definir o tipo social de chefe de família e proprietário de escravos
que exerceu influência decisiva na sociedade brasileira. Seria, porém, falacioso
pensar que a expressão se legitima apenas com referência a um tipo definido de
posse de escravos. Existe algo mais na acepção pela qual se usa o conceito de
senhor na sociedade patrimonialista brasileira: é que esta, como se viu neste ca-
pítulo, formou-se pelo fortalecimento do poder político e econômico dos chefes
de parentela (dominus) que conseguiram exercer influência ou dispor de posi-
ções na ordem estatal.
62. Saint-Hilaire,op. cit., pág. 55.
63. Dreys, op. cit., pág. 203.

1 52
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

64. Walter Spalding, Gênese do Brasil-Sul, Edição da Livraria Sulina, Porto Alegre, 1953,
pág.35.
65. Idem, ibidem. Spalding, estendendo o alcance da "democracia gaúcha", explica em
nota que esse caráter marcara também o convívio entre senhores, agregados e ar-
rendatários açorianos, pois a lhaneza também era qualidade dessa gente. As guer-
ras teriam, portanto apenas catalisado uma "virtude potencial" dos açorianos.
66. Walter Spalding, Gênese do Brasil-Sul, pág. 36.
67. Idem, ibidem, pág. 36. Curioso que em 1798, que, a crer-se na hipótese de Spalding,
seria o ano primeiro do suplício dos cativos, a Câmara já definia normas rigorosas
para os escravos "apanhados em quilombos". Estes deveriam ser marcados a ferro
quente com um E. Cf. Fortunato Pimentel, "A Escravatura em Pôrto Alegre", in
Aspectos Gerais de Pôrto Alegre, 10 vol., Porto Alegre, 1945, pág. 18. Está claro,
pois, que a hipótese não procede. Esta ata foi transcrita, no trecho referido acima,
pelo próprio Walter Spalding, num trabalho denominado "O govêrno do municí-
pio de Pôrto Alegre", in Boletim Municipal, nO 1, vol. 1, ano I, Porto Alegre, 1939.
Isto reafirma o caráter "ideológico" da representação da democracia gaúcha por
seus intérpretes. Não só evidencia o desconhecimento da realidade, como demons-
tra a distorção com que se "reconstrói" a sociedade senhorial gaúcha.
68. Idem, ibidem, pág. 37. Note-se que Spalding se refere, quanto à documentação, ao
século XVIII, mas não limita a validade de suas conclusões. Por isso, com mais
forte razão os resultados a que chega podem ser cotejados com a afirmação de
Saint-Hilaire.
69. Spalding chega a falar num "feudo democrático": "As estâncias, portanto, como
mais adiante veremos, semelhavam pequenos feudos medievais - feudos demo-
cráticos - e os proprietários, senhores absolutos, soldados e generais" (pág. 34).
70. Jorge Salis Goulart, A Formação do Rio Grande do Sul, edição da Livraria do Glo-
bo, Porto Alegre, 1933. Não discutirei aqui a explicação que o autor pretende dar
à formação histórico-social do Rio Grande, porque não cabe na problemática des-
te livro. Possui, contudo, interesse científico muito escasso.
71. Para exemplificar a lealdade que decorria dessas ligações o Autor afirma: "Quantas
vezes dois peões travaram luta tremenda, entrecruzando os facões afiados, pelo
fato de ter um deles desrespeitado a marca do cavalo da estância rival." O "exem-
plo", que é uma afirmação, serve realmente para mostrar até que ponto o senti-
mento de lealdade para com o senhor orientava o comportamento dos sequazes
deste.
72. Salis Goulart, op. cit., págs. 45-46.
73. Deixo de indicar no texto algo que possui muita significação para que se compre-
enda, ao mesmo tempo, até que ponto o autor não tinha consciência das contradi-
ções (formais) do que afirmava e para a análise do processo de criação da "ideologia
gaúcha" como um aspecto da inconsistência cultural básica da atitude brasileira

153
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

com relação ao problema racial: o mesmo homem que louva a igualdade racial e
social no passado, quando avalia a situação do presente, afirma coisas desse jaez:
"Os elementos inferiores que existem no seio do nosso povo, disciplinados pelos
fatores de escol, não poderão entravar a 'marcha' ascendente dos nossos grandes
destinos (...) Os elementos euro-africanos de que nos fala Sergi, que existem no
Rio Grande do Sul mais aptos para a civilização, têm assumido sempre a direção
dos demais (índios, negros), fazendo-os progredir sob uma forte e constante ori-
entação.(...)
Os batalhões de índios que tivemos, as forças de negros e mulatos que toma·
ram parte em diversas páginas difíceis da terra rio-grandense, comandadas por ofi-
ciais de raça branca, são a prova mais cabal de que os elementos inferiores aqui
foram conduzidos para objetivos perfeitamente sociais" (pág. 239). No parágrafo
seguinte o autor assegura a diminuição das "raças inferiores" em face das imigra-
ções constantes dos "elementos eugênicos".
74. Assim, afirma, por exemplo, a existência, óbvia, de "preconceito social" contra os
negros, para negar, equivocadamente, o mesmo fenômeno, quanto aos índios: ''A
união do grande Rafael Pinto Bandeira com uma índia autêntica é um exemplo de
que o preconceito social não impedia essas ligações como acontecia em relação
aos negros". In ''Aspectos da Formação Rio-grandense", Anais do 2° Congresso etc.,
voI. m, pág. 88.
75. No plano do romantismo histórico talvez o autor mais representativo da ideologia
gaúcha seja Fernando Ozorio. Entre outros trabalhos são ilustrativos: Sangue eA/ma
do Rio-Grande, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1937 (em parte publicado tam-
bém, sob a forma de comunicação, nos Anais do Segundo Congresso de História e
Geografia Su/-Rio-grandense, voI. 11, Livraria do Globo, 1937, sob o título "O
Rincão de Pelotas").
Neste Autor a bravura e a camaradagem originada das condições de vida dos
gaúchos são salientadas como o "nivelamento social produzido pela democracia
campesina". Assim, por exemplo, afirma nos trabalhos indicados (págs. 85 na edi-
ção do livro e 55-56 na edição dos Anais): "Depois de conquistado o território ao
sul da Jacuhy - foram as terras da campanha repartidas entre os que mais se
distinguiram nas lutas contra os espanhóis. E os Dragões e os seus descendentes,
portanto, foram o chefe das fazendas - dominadores da nossa história, da nossa
mentalidade brasileira e não platina -ligando o território de formação pampeana,
ao destino da Pátria. Nem ambiciosos, nem façanhudos ou cruéis. Elles foram a
imagem viva do espírito livre, incapaz de servilismo que surgiu nas populações do
interior, em meio da sociedade rural reflectindo, logicamente, a direção autonomica
que tornavam os proprietários nativos da terra, irmanados aos gaúchos humildes,
nivelados aos patrões, valorizados no culto da lealdade, da coragem e da abnega-
ção. Elles constituiram como um symbolo da grandeza da raça e do sentimento da

154
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

terra, - aquella grande officina que Le Play julgava tão apta a garantir a paz soci-
al, numa cooperação voluntária dos Dragões e os seus descendentes, formadores
das classes rurais - os pastores e os agricultores, - que, no solar das estancias,
fundaram o patriarchado rio-grandense". A vida rural criou "o destemor de
affrontar o perigo em comum, a camaragem, a fraternidade entre humildes e po-
tentados, ricos e pobres. (...) Todos revelaram os mesmos habitos, costumes e as-
pirações (...)" (pág. 84 da edição em livro).
A "democracia rural" quando descrita pelos epígonos assume conotações de
puro verbalismo sem a menor preocupação documental: "O senhor batalhava de
par com o escravo ou peão, suportando, galhardamente, as ardentias do verão ou
os rigores da invernia. E o contacto provocado pelo trabalho em comum, tornava-
o humano, fazendo-o compreender que o escravo, embora lhe fôsse inferior, ti-
nha o direito de ser tratado como gente e não como bêsta de carga, da qual se
exige trabalho e fôrça e a recompensa é descansá-Ia", Margarida Pardelhas, "O
povo rio-grandense", Anais do 2 0 Congresso, vol. I1I, págs. 117-118. E, mais adi-
ante: "Estancieiro, filhos, escravos e peões, viviam irmanados em o mesmo traba-
lho e preocupações, sob regime que bem se pode classificar de patriarcal". Nessa
linha, reconstrói-se a partir de um arquivo imaginário a "sociedade democrática
gaúcha".
76. Dante de Laytano, firmando-se no testemunho de Dreys, fala do "justo castigo"
nas charqueadas, nos seguintes termos: "os negros das xarqueadas, do Rio Gran-
de do Sul são bem tratados pelos seus senhores, que só lhe aplicavam os castigos
merecidos", "O negro no Rio Grande do Sul", op. cit., pág. 76.
77. Vale a pena documentar mais amplamente os meandros intelectuais por onde se
perde a análise desses autores sobre a branquidade básica do gaúcho. Salis Goulart,
por exemplo, assim se exprime: "O que superiormente distingue o tipo étnico que
se está formando em nosso Estado, é este notável contingente de raça branca, fun-
dida com menor coeficiente de sangue indígena e africano. Naturalmente o ele-
mento aborígine é entre nós inferior ao do extremo Norte, ao mesmo tempo que
atualmente se calcula em 85% da população total o coeficiente ariano" (pág. 89).
Insistindo sobre a importância da "contribuição ariana" para a formação da popu-
lação do Rio Grande, apesar da verificação de que "até agora não temos ainda
definido um tipo rio-grandense" (pág. 91), Goulart mostra que os açorianos eram
germânicos: "Na formação étnica do açoriano entrou realmente forte dosagem de
sangue germânico, visto que os Açôres foram povoados por indivíduos da raça
flamenga" (pág. 90).
Mais curiosa ainda é a posição equívoca do autor em face das teorias racistas
(Ammon, Lapouge, Chamberlain). Nega-as. Não porque inexistam diferenças ra-
ciais, mas porque as diferenças apontadas por esses autores deixam os brasileiros
em maus lençóis: temos poucos "dólicos-Iouros" em nossa população e nem por

155
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

isso somos, em conjunto, inferiores. Até Garibaldi era branquicéfalo etc. O argu-
mento decisivo contra os dólicos é o seguinte: "Se a dolicocefalia é um índice de
superioridade, como compreender o fato de serem as raças negras fortemente
dolicocéfalas?" (pág. 93)(...)
78. Salis Goulart, ''Aspectos da formação do Rio Grande do Sul", op. cit., pág. 90.
Noutros autores encontram-se variantes dessa reconstrução idílica do passado gaú-
cho: ''A tendência para a clarificação da família rio-grandense é notável" (...) "O
clima também foi hostil à raça negra", diz à pág. 211 Rúbio Brasiliano, em "Terra
do Gaúcho", Anais do 2° Congresso, vol. I. Este autor também poderia ter sido
tomado para exemplificar a ideologia da democracia rural gaúcha. Quanto à
contrapartida dessa, a democracia racial, em Rúbio Brasiliano, como em todos os
outros, o "problema negro" é resolvido mostrando-se a pequena participação do
negro na população rio-grandense. Também nestes textos há afirmações inteira-
mente contraditórias; nas conclusões do trabalho em que afirma a tendência para
a clarificação, R. Brasiliano diz: ''A mestiçagem com o negro foi nula, como já es-
crevemos em capítulo anterior. O contingente negro na população rio-grandense
foi diminuto. Cronistas primitivos que aqui aportaram, escrevem com admiração
sobre a forma humana por que eram tratados os escravos. Além disso, a democra-
cia sempre imperou entre a gente das nossas estâncias, a necessidade de defesa
comum, tudo levou o colonizador a contar mais com o esforço coletivo, do que
com a lealdade duvidosa do negro, evitando assim a sua grande introdução no
interior" (página 219).
Convém lembrar que a esperança na "branquidade fundamental" do gaúcho já
se encontrava expressa em Apolinário Pôrto Alegre, na sua "Viagem a Laguna-1866",
transcrito em Província de São Pedro, nO 8, 1947 págs. 105 e segs. Falando dos aço-
rianos diz: "É o elemento que veio constituir o foco donde derivou tôda a primitiva
camada da população, no sul do Brasil, o único que frutificou e caracterizou a raça
atual que ainda não está fixa, mas em brilhante via de formação (...). Qual será êsse
tipo? O elemento etíope, que já rareia, desaparecerá de todo" (pág. 106).
79. Laytano, Dante, "O negro no Rio Grande do Sul", op. cit., pág. 76.
80. Pelo menos com relação ao tratamento do escravo nas charqueadas, os cronistas
forneceram dados abundantes e seguros que mostram as rudes condições da vida
de senzala. Diante dessas evidências Laytano fez comentários como esse: "O pro-
letariado das casas de salgar carne foi o mais sacrificado da democracia campesina.
Início do período industrial, a coletividade trabalhista oferecia um aspecto de
volume, grandeza, que apenas poderia ser dominado pela energia, então sinôni-
mo de chicote, hoje com as devidas proporções, lei social", op. cit., pág. 76. Não
é à toa que, secundando Dreys - para quem uma charqueada bem organizada
deveria viver sob regime penitenciário - considerava merecidos os castigos apli-
cados pelos senhores nos escravos.

156
1·-------------------------......
!

CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

81. Laytano, "O negro no Rio Grande do Sul", op. cit., pág. 84. Aliás na "Biografia e
Viagens de Arsene Isabelle", contida em sua tradução, Dante de Laytano não dei-
xou de registrar que "Isabelle não foi honesto conosco" seus conceitos são
impiedosos e quase nunca correspondem à verdade", in Arsene Isabelle, Viagem
ao Rio Grande do Sul, op. cit., pág 105. É verdade que Isabelle era um inimigo
declarado dos jesuítas e que Dante de Laytano acha que "a América Portuguesa
reconheceu e reconhece ainda que deve, aos Discípulos de Loyola, realizações dig-
nas da mais adiantada civilização" (idem, pág. 102). Questão de pontos de vista.
Mas isso não impede, segundo penso, que os fatos relatados por Isabelle possam
ser tomados, não diria como verdadeiros, mas como objeto para exame e crítica.
Ou então de nada valeria traduzir esse autor. Além disso, participo antes da opi-
nião de Augusto Meyer, expendida no Prefácio à tradução do livro de Isabelle
(Emigração e Colonização, Gráfica Editora Souza, Rio, 1950), do que da idéia de
Dante de Laytano e outros sobre a "má vontade" de Isabelle com o Rio Grande.
Augusto Meyer assim se expressa: "Não vejo, portanto, fundamento algum que
justifique a tão repisada aversão de Isabelle ao Rio Grande do Sul; da leitura deste
livro, e de sua própria ordem de composição, ressalta pelo contrário a simpatia
mais viva, pela terra dos Farrapos, então já em plena convalescença da áspera luta
intestina" (pág. 8).
82. Idem, ibidem, pág. 86.
83. Oliveira Vianna, Populações Meridionais do Brasil, história, organização, psicolo-
gia, 2° volume, póstumo, O Campeador Rio-Grandense, Livraria José Olympio Edi-
tora, Rio de Janeiro, 1952. Não me preocuparei com documentar a afirmação de
que a ideologia da democracia rural era defendida por Oliveira Vianna porque
esta análise interessa menos diretamente ao tema do presente trabalho. A razão é
simples: não se trata, como os outros autores que indiquei, de um autor local. Con-
tudo, no livro de Oliveira Vianna está presente a idéia do "arianismo" gaúcho. Da
mesma maneira, o autor acredita no igualitarismo criado na campanha, por força
das condições naturais de vida nos pampas. Eis alguns textos significativos: "Na
formação da população gaúcha, com efeito, os contingentes étnicos que para ali
convergiram são muito particulares e distinguem-se acentuadamente dos contin-
gentes que entraram na formação de grupos nacionais. OH. Afer., por exemplo,
contribuiu ali com menor coeficiente do que para outro qualquer grupo regional
do nosso povo. Os elementos principais da formação da população gaúcha são o
H. americanus, representado pelos bravios e robustíssimos 'minuanos', 'tapes',
'charruas' e o homem branco, representado pelos continentes peninsulares que
para ali afluíram (...). Os elementos brancos tiveram a preponderância: - e os
elementos arianos, especialmente nas classes superiores que contribuíram para a
sua formação, eram mais puros do que em qualquer outro núcleo nacional e, mes-
mo, do que entre os espanhóis fronteirinhos" (págs. 330-331).

1 57
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

"Entre os pastôres rio-grandenses há, por exemplo, uma tradição, cuja gênese
só é possível no pampa e que de modo algum poderia surgir entre os grupos de
base agrícola do centro-sul, ou entre os grupos de base pastoril dos sertões do norte.
E essa tradição de igualdade e familiariadade entre patrões e servidores (grifo no
texto) essa interpenetração das duas classes rurais - a alta e a baixa, a senhorial e
a servil; fenômeno êste que constitui na sua substancialidade, o espírito da demo-
cracia rio-grandense" (págs. 289-290). Em abono dessa tese cita Alfredo Vareia,
outro ideólogo da democracia rural, e textos de Saint-Hilaire: aquele transcrito
no início do presente tópico, e outro em que, na edição original citada por Olivei-
ra Vianna, o naturalista diz: "Les maitres travaillent ainsi que les esclaves; se tiennent
moins éloignés et leur témoignent moins de mépris", em confronto com os fazen-
deiros do centro-sul.

1 58
CApíTULO 111 Senhores e escravos
Do ponto de vista jurídico é óbvio que, no sul como no resto do país, o
escravo era uma coisa, sujeita ao poder e à propriedade de outrem, e, como
tal, "havido por morto, privado de todos os direitos" e sem representação
alguma 1. A condição jurídica de coisa, entretanto, corresponde à própria
condição social do escravo.
A reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente. Por um
lado, tornava-se uma peça cuja necessidade social era criada e regulada
pelo mecanismo econômico de produção. Por outro lado, o escravo auto-
representava-se e era representado pelos homens livres como um ser in-
capaz de ação autonômica. Noutras palavras, o escravo se apresentava,
enquanto ser humano tornado coisa, como alguém que, embora fosse capaz
de empreender ações com "sentido", pois eram ações humanas, exprimia,
na própria consciência e nos atos que praticava, orientações e significa-
ções sociais impostas pelos senhores. Os homens livres, ao contrário, sen-
do pessoas, podiam exprimir socialmente a condição de ser humano
organizando e orientando a ação através de valores e normas criados por
eles próprios. Nesse sentido, a consciência do escravo apenas registrava e
espelhava, passivamente, os significados sociais que lhe eram impostos.
A condição de senhor, por sua vez, definia-se de forma complexa e
contraditória. As contradições decorriam fundamentalmente de que se o
escravo era socialmente uma coisa, pois sua consciência era a consciência
passiva de uma situação social dada e criada pela ação dos outros, os se-
nhores, por outro lado, objetivavam a existência e a vontade através da
vida e do trabalho do escravo, e, nesta medida, alienavam-se.
O jogo complexo de contradições que deriva das relações entre se-
nhores e escravos fornece o travejamento básico para a compreensão do
processo de formação e desenvolvimento dos sistemas de interação en-

1 61
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

tre escravos e senhores. Da mesma maneira, se essas contradições não


definem as possibilidades concretas de modificação das relações entre
senhores e escravos, limitam o alcance do processo de superação da
condição de escravo: a luta pelo reconhecimento de si implica a exten-
são a todos da possibilidade do exercício formal da liberdade, mas nesse
esforço esgotam-se as potencialidades históricas da dialética do senhor
e do escravo.
Entretanto, sociologicamente o fundamental é mostrar que a dialética
das relações senhor-escravo desenvolve-se através de múltiplas contradi-
ções que se definem e se resolvem no processo histórico de forma variá-
vel, conforme condições determináveis de existência e de consciência
social. Por isso, as formas de atualização do comportamento numa socie-
dade que se organizava basicamente em função das relações entre senho-
res e escravos não podem ser "deduzidas" ou reconstruídas analogicamente
a partir da caracterização abstrata dessas relações. A única via para resol-
ver as questões propostas no fim do capítulo 11 consiste na análise dos
modos de manifestação do comportamento social de senhores e escravos
nas condições de existência social típicas da sociedade senhorial gaúcha.
Isto é, através de um procedimento de análise que permita tanto a decom-
posição da sociedade escravocrata nas partes ou núcleos básicos que a
constituíram quanto a recomposição do todo no qual se configurou essa
sociedade, na medida em que, no fluxo histórico, estas partes deteminaram,
condicionando-se e contradizendo-se reciprocamente, um tipo ou padrão
definido de organização social que se poderia denominar "sociedade
escravista gaúcha".
Os dois primeiros capítulos fornecem os dados necessários para a des-
crição dos componentes essenciais da sociedade escravocrata no Rio Gran-
de do Sul: a "família", a "estância", a "charqueada", a "cidade" ("o mercado
urbano")2 foram os modos de existência típicos dessa sociedade. No pre-
sente capítulo não será considerado o processo histórico subjacente à for-
mação dos padrões de integração e funcionamento dos sistemas sociais
nucleares aqui referidos. A análise considerará os sistemas sociais nuclea-
res depois de constituídos, quando, portanto, as características fundamen-
tais das relações entre senhores e escravos apresentam-se em sua plenitude.
Se abstrairmos, pois, os vários momentos de formação da sociedade

162
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

escravocrata gaúcha para surpreendê-la tal como a descreveu Dreys, o que


significou ser escravo em cada um dos elementos nucleares dessa sociedade,
e nela como uma totalidade?
Para responder a essa questão, é preciso conduzir a análise de maneira
que as informações fornecidas pela investigação histórica possam ser situa-
das tanto com relação a situações vividas que lhes deram origem como
quanto à sua significação no que se refere ao padrão de integração da
sociedade senhorial gaúcha como um todo. Noutras palavras, é preciso
compreender concretamente de que maneira, em cada uma das situações
típicas e decisivas para a constituição da sociedade senhorial gaúcha, o
escravo se inseria nos sistemas sociais particulares que nelas se desenvol-
viam e como se articulavam esses vários sistemas num todo complexo. Mas,
ainda aqui, não basta a enumeração das situações e sua descrição: é preci-
so compreender os mecanismos sociais básicos que mantinham senhores
e escravos em cada uma dessas situações em posições determinadas de
afastamento recíproco e o conjunto de valores que orientavam seus com-
portamentos. Todavia, ao procurar definir a estrutura e os mecanismos
de funcionamento dos subsistemas e da sociedade global, não desejo omi-
tir os pontos de fricção, as inconsistências e as contradições que a ação
humana criava e superava no processo histórico-social, pondo em xeque,
a cada momento, a validade do padrão estrutural requerido pela socieda-
de senhorial. Em outras palavras, não desejo obscurecer a práxis humana
que produz e destrói estruturas, iluminando e possibilitando sua compre-
ensão.
O texto de Saint-Hilaire, transcrito anteriormente (cf. pág. 129), refe-
re-se a uma situação social particular e a um momento dado da experiên-
cia do naturalista diante da sociedade gaúcha: não havia dois meses que
Saint-Hilaire chegara à Capitania e, a caminho da cidade do Rio Grande,
atravessava uma região de estâncias pobres, de população originariamen-
te açoriana ou lagunista. Por isso, afirmou: "Os senhores trabalham tanto
quanto os escravos." No mesmo trecho, Saint-Hilaire escreveu também
que os senhores se mantinham próximos dos escravos e os tratavam com
menos desprezo, o que o fez considerar que não havia em todo o Brasil
lugar onde os escravos fossem mais felizes. Entretanto, quando adquiriu,
pela experiência, maior conhecimento do sul escreveu: "Nesta Capitania,

1 63
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

não existe praticamente o que se chama populaça, e quando existe é pou-


co numerosa. Os negros que a representam são muito distanciados dos
homens livres, e por demais subservientes, para se meterem nessas coisas
(insurreição)" (pág. 273). Além disso, Saint-Hilaire, com escrupulosa
meticulosidade, retificou a opinião que emitira, reformulando-a à vista
da situação global: ''Afirmei que nesta Capitania os negros são tratados
com bondade e que os brancos com eles se familiarizam, mais que em
outros pontos do País. Referia-me aos escravos das estâncias, que são em
pequeno número; nas xarqueadas a cousa muda de figura, porque sendo
os negros em grande número e cheios de vícios trazidos da Capital, torna-
se necessário tratá-los com mais energia" (páginas 93-94).
Analiticamente a distinção é fundamental: o escravo negro na es-
tância chegou a conviver com os senhores e com os agregados em situ-
ação diversa daquela experimentada pelo escravo na charqueada.
Condições de existência diferentes resultaram em modalidades diver-
sas de regulamentação da condição social do escravo. Essas possibili-
dades, entretanto, se implicaram atitudes diversas da parte dos senhores
para com os escravos e, portanto, polarizações emocionais e possibili-
dades de existência social variáveis, jamais anularam a significação
fundamental da condição de escravo. Esta foi expressa por Saint-Hilaire
ao referir-se aos escravos das estâncias: "Eles fazem sentir aos animais
que os cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa,
elevando-se aos seus próprios olhos." O reconhecimento social, a ex-
pectativa de aprovação, o escravo da estância teria de procurar em si
mesmo, comparando-se aos animais e não aos homens livres. Esse pro-
cedimento revela a condição de escravo vista conforme sua significa-
ção social geral: o escravo não encontra a condição de pessoa humana
objetivada no respeito e nas expectativas formadas em torno de si pe-
los homens livres, pelos senhores. Diante da impossibilidade real de
reconhecimento social, a objetivação imaginária, subjetiva, na condi-
ção de senhor de outros seres vivos, nada mais reflete senão a aliena-
ção essencial do escravo.
A existência de condições gerais que definem a posição do escravo
independentemente das formas variáveis pelas quais senhores e escravos
regulam suas relações recíprocas não significa que, em última análise, a

164
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sociedade escravocrata seja sempre igual, independentemente das condi-


ções particulares que assuma. Ao contrário, embora exista algo de comum
na condição de escravo é fundamental para a interpretação sociológica a
análise dos modos particulares de relação entre senhores e escravos nas
situações concretas de existência.
Nesse sentido, ainda é simplista a distinção entre duas modalidades
fundamentais de ser escravo no sul (na estância e na charqueada). A cate-
goria de "escravo-de-estância" implica determinações demasiadamente
abstratas para os requisitos da explicação sociológica. Basta comparar a
descrição das estâncias pobres visitadas por Saint-Hilaire com a vida de
uma grande estância dos meados do século XIX3 para evidenciar que as
condições a partir das quais senhores e escravos interagiam nessas duas
situações eram muito diferentes. A análise do primeiro capítulo deste tra-
balho mostra que tanto houve o colono que se tornou criador e proprie-
tário de escravos ao afazendar-se como houve o militar e o administrador
da Coroa que se tornaram poprietários de sesmarias e senhores de escra-
vos. Na aurora da dominação senhorial os descendentes de uns e de ou-
tros tornaram-se senhores na plenitude da expressão. No processo de
constituição do mundo rural gaúcho, entretanto, os gêneros de vida, as
formas de participação cultural e as atitudes dos proprietários de escravo
com relação à coisa possuída eram diversas, conforme os múltiplos canais
de ascensão percorridos pelos que conquistaram as posições privilegiadas
da estrutura social em formação.
Os negros ao interagirem com brancos de posição social e de condi-
ção econômica diversas viveram experiências sociais também diversas, a
começar pelas próprias condições materiais de existência. Nisso as fontes
são claras: as diferenças entre o padrão de vida dos senhores e dos escra-
vos foram relativamente maiores ou menores, conforme se tratasse de
proprietários muito ou pouco ricos. A situação de existência e de convi-
vência social dos escravos possuídos por estancieiros poderosos era di-
versa da situação da vida dos escravos de criadores ou agricultores que,
apesar de proprietários de escravos, não podiam qualificar-se como se-
nhores poderosos. Nesse último caso, sem que as condições de vida dos
negros fossem melhores, eles se distanciavam menos do padrão de vida
dos senhores porque esse era mais baixo.

1 65
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Essa verificação, entretanto, não sugere a inexistência de diferenças


entre a vida material do senhor e do escravo nas propriedades mais mo-
destas, como querem os partidários do mito da democracia rural, nem
significa que a existência do escravo tivesse sido tão branda quanto os
mesmos autores o fazem supor. As descrições de Saint-Hilaire mesmo
quando se referem às estâncias mais rústicas assinalam diferenças no pa-
drão de vida: "As construções destas estâncias constam de algumas palho-
ças esparsas e da casa do dono, coberta de telhas, porém pequena e de um
só andar. O interior quase desmobiliado não oferece comodidade" (pág.
55). Distinções semelhantes existiam em todas as estâncias percorridas no
caminho entre Porto Alegre e Rio Grande e no caminho de Santa Catarina
para Porto Alegre: "Paramos numa estância, à qual pertencem os campos
percorridos. Trata-se de uma casinha mal construída, de pau-a-pique e
barro, mas coberta de telha. Ao redor viam-se várias carroças; aos lados
laranjeiras, currais e algumas casas de negros" (pág. 17). Também no cami-
nho entre Rio Grande e os campos neutrais o naturalista notou tanto a
precariedade das habitações rurais como a diversidade de condições ma-
teriais de existência entre senhores e escravos: ''A estância em que pousei
não passa de minguada choupana, sem mobiliário, e cercada de algumas
senzalas" (pág. 114); ou ainda: ''A estância de José Bernardes compõe,
como todas as outras, da casa do dono e algumas casas de negros e duma
cozinha em pequena choupana à parte, segundo o costume de quase todo
o Brasil. Coberta de palhas, a casa do dono, como todas depois da estân-
cia do Silvério, é baixa e de enchimento. O interior compõe-se de duas
peças - a sala e o quarto do proprietário, sendo este separado daquela
por uma cortina"4. Da mesma forma, quando Saint-Hilaire viajou entre
as Missões e Rio Pardo, encontrou estâncias tão rústicas quanto as da fron-
teira com a Cisplatina. Numa delas teve de valer-se da condição de bran-
co, de "senhor", para evitar que uma negra o alojasse numa choupana
paupérrima: "Da estância onde paramos, situada no alto de uma colina,
avista-se vasto panorama. Algumas choupanas, em péssimo estado, com-
põem essa habitação. Uma negra, que me recebeu, quis abrigar-me em um
casebre próximo, mas mostrei-me contrariado e fiz-me importante, de
modo que me foi aberta a melhor e mais limpa de todas as casas. Mas é
tão mal coberta que, se chover, entrará água por todos os lados"s.

166
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

As informações são claras. A vida rural do Rio Grande do Sul, no pe-


ríodo em que Saint-Hilaire o percorreu, era realmente rústica. Os dados
não permitem exagero algum na descrição do "mundo senhorial" gaúcho
das áreas mais pobres. Luccock, com a experiência de comerciante, ob-
servara em 1808 a parcimônia da vida no extremo sul: "Ninguém que
possua alguma experiência do mundo, e ignore os hábitos deste seu re-
canto especial, poderá fazer idéia de quão poucas são as necessidades que
seu povo demonstra ter e quão generalizado é seu pouco caso pelo luxo"6.
Entretanto, apesar da rusticidade, havia sempre a casa do estancieiro e a
choupana do escravo. A telha francesa simbolizava, em face da choupana
de palha, a distância que estava mais solidamente marcada entre a varan-
da senhorial da casa-grande e a senzala das plantações de açúcar ou café.
Da mesma maneira, no vestuário e na alimentação, objetivava-se todo um
mundo de espoliação social de que o escravo era vítima: ''Antes de deixar
a estância de Xuí a dona da casa mostrou-me tecidos de linho, de algodão
e lã, muito fortes, feitos em sua casa, sendo os de lã mais grosseiros e des-
tinados às roupas dos escravos"7. A produção, através do trabalho das
senhoras, do tecido utilizado pelos escravos, ao contrário do que pensam
os paladinos da "democracia campesina", não significa igualdade de tra-
tamento entre os membros da família e os agregados e escravos, mas exa-
tamente o oposto: nas condições materiais de um mundo de existência
rústico e pobre as distinções mantêm-se como se podem manter. A eco-
nomia de trocas escassas obrigava a produção doméstica dos tecidos para
o vestuário de todos. Entretanto, as diferenças no modo de participação
nas condições materiais de vida eram mantidas: havia os tecidos mais re-
finados e os mais grosseiros8 •
A primeira impressão de Saint-Hilaire ("o escravo come carne à von-
tade, não é mal vestido, não anda a pé") tem, pois, uma significação rela-
tiva no que diz respeito à "feliz condição do escravo gaúcho". É certo que
havia carne à vontade. Mas disso não se pode concluir que senhores e
escravos tivessem padrões semelhantes de alimentação: "Pousei em uma
estância cujo proprietário está ausente, e onde apenas encontrei um ne-
gro. Esse homem alimenta-se somente de carne, sem farinha e nem pão,
conforme é useiro tratar-se os escravos nessa região", observou Saint-
Hilaire9•

1 67
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

A rigor, antes da grande expansão da pecuária e da exploração do


charque, os homens ricos da Capitania, os proprietários de escravos, não
podiam manter um estalão de vida que se assemelhasse ao "estilo de vida
senhorial": "Várias vezes tenho assinalado a existência de homens muito
ricos nesta capitania. Inúmeros são os estancieiros que dispõem de renda
de até 40.000 cruzados. Todavia, em suas casas, nada existe que anuncie
uma tal fortuna. O Major Felipe, por exemplo, é possuidor de 40.000
cruzados; entretanto, um campônio francês, com mil escudos de renda,
vive com mais conforto"!o. Um estilo de vida mais próximo do padrão
senhorial de existência só pôde ser mantido nas cidades, sobretudo em
Pelotas!!, e nas poucas estâncias possuídas por homens mais refinados, cujas
maneiras e cujos ideais de vida formaram-se nas cidades da Província, na
Corte ou na Europa. Porém, do ponto de vista do cosmo moral imperante
nas estâncias rústicas, a inexistência do gênero senhorial de vida só pode-
ria agravar a condição de escravo. Analisei noutro trabalho os efeitos so-
ciais da existência do regime escravocrata numa economia que propiciava
poucas possibilidades de acumulação de riqueza!2. Os resultados daquela
análise são válidos para as áreas do Rio Grande, onde à condição de se-
nhor não correspondia a existência de um estalão senhorial de vida:
inexistindo diferenças acentuadas no modo de existência material que
marcassem profundamente a condição de senhor em face da condição de
escravo, o abrandamento nas relações entre senhores e escravos, permiti-
do pelo patriarcalismo brasileiro tradicional, não encontrava condições
para manifestar-se sem o risco de ser confundido com o igualitarismo, que
possibilitava perda de prestígio social. Numa sociedade que desenvolvia
entre seus membros a violência e o arbítrio como elementos essenciais para
a manutenção das posições de domínio, tal conseqüência só poderia sig-
nificar, ao contrário do que estipula a ideologia da "democracia rural",
um tratamento para o escravo que, além de ser assimétrico, era brutal.
Tanto mais que a inexistência de padrões senhoriais de vida não significa
que os senhores deixassem de autoconceber-se como grand-seigneurs, à
imagem da "aristrocracia rural" brasileira das regiões mais ricas. Isabelle
percebeu e registrou, com certa ironia, os "ares de grandeza" das damas
rústicas do Rio Grande: "Quando favorecidas pela sorte parecem-se mui-
to com as nossas grandes e poderosas damas da velha nobreza do campo.

1 68
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

E não pensem que essas brasileiras do campo não possuam certa espécie
de dignidade natural; ao contrário, apesar de nunca terem saído de suas
estâncias, chácaras e fazendas, e em tempo algum abandonado suas va-
cas, plantações de algodão ou de feijão, senão apenas para irem à pe-
quena cidade vizinha, e embora na mais crassa ignorância, não deixaram
de cultivar, no mais alto grau, suas vaidades, susceptibilidades e ares de
grandeza" 13.
Da mesma forma, a análise sobre a extrapolação para o negro em ge-
ral de toda sorte de estereótipos e atitudes cujo sentido primeiro fora o de
justificar a dominação senhorial em face do escravo 14 tem plena significa-
ção para as situações particulares da sociedade escravista gaúcha. O teste-
munho de Luccock é elucidativo: "parece por toda parte bastante que uma
pessoa tenha a tez de um preto para que se designe como objeto sobre o
qual a tirania se pode exercer. Tendo certa vez ocasião de tomar pelos tre-
medais que circundam a Baía da Mangueira, recorremos a um expedien-
te, muito comum aqui, mas que só mesmo a necessidade pode justificar.
Na barca, encontramos com dois pretos aos quais obrigamos, mostrando-
lhes nossos braços e convencendo-os de que seria inútil resistir, a que nos
servissem de guias, levando-nos através dos atoleiros. Felizmente os ho-
mens se mostraram cordatos, não dando motivos para medidas mais du-
ras. Uma vez a salvo, em terreno firme, despedimo-los com generosa paga
e uma exortação para que fossem sempre polidos para com nossos
patrícios. Se tivessem sido encontrados e ocupados por brasileiros, teri-
am-nos mandado embora com as mãos vazias. Tal é o quinhão da escra-
vatura, e quando um déspota necessita dos seus serviços, não se dá ao
trabalho de indagar se um preto é escravo ou forro"ls. A própria legislação
sancionou o costume: basta ser "preto" para ser considerado escravo. As-
sim, a lei de regulamentação do ensino primário da Província proibia de
freqüentar as escolas públicas "os escravos, e pretos ainda que sejão livres
e libertos"16.
A hipótese sobre a brutalidade corrente nas relações entre senhores e
escravos encontra confirmação em inúmeros testemunhos e registros. Além
disso, numa sociedade onde o regime patrimonialista de mando era per-
vertido por causa de condições históricas peculiares, a coerção necessária
à manutenção do regime escravocrata teria de exercer-se dentro de pa-

1 69
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

drões que supunham a violência como um traço normal. Arsene Isabelle,


descrevendo o tratamento dispensado aos escravos na Província, faz uma
referência explícita à situação do campo que não deixa margem para dú-
vidas quanto a essa interpretação: "Sabeis como esses senhores, tão supe-
riores, tratam seus escravos? - Como tratamos nossos cães! - Começam
por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofeta-
das da mão delicada de sua senhora, metamorfoseada em harpia, ou ain-
da um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo; se resmungam
são ligados ao primeiro poste e então o senhor e senhora vêm, com gran-
de alegria no coração, para ver como são flagelados até verterem sangue
aqueles que não têm, muitas vezes, outro erro que a inocência de não ter
sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões! Feliz ainda o
desgraçado negro, se seu senhor ou senhora não tomam, eles mesmos, uma
corda, rêlho, pau ou barra de ferro e não batem, com furor brutal, no
corpo do escravo, até que pedaços soltos da pele deixem correr sangue
sobre o seu corpo inanimado! Por que geralmente se carrega o negro sem
sentidos para curar seus ferimentos; sabeis com quê? com sal e pimenta,
sem dar-lhes mais cuidado do que o que se presta a um animal atacado de
feridas, e que se quer preservar dos vermes. Julgareis que esse tratamento
não seja menos cruel do que os fustigados de rebenque? Bem! Vi essas
coisas no ano da graça de 1834! Vi mais ainda - Há senhores tão bárba-
ros, principalmente no campo, que fazem incisões nas faces, espáduas,
nádegas ou coxas de seus escravos, a fim de colocar pimenta. Outros le-
vam seu furor frenético até o ponto de assassinar um negro e atirá-lo, como
a um cão, numa cova; e se alguém, surpreso pela sua ausência, se informa
da sorte do negro, ele responde friamente: "morreu" (o filho da p... mor-
reu). Ninguém mais fala nisso. (... )"17.
Está claro que a hipótese de o senhor flagelar pessoalmente o escravo
seria inadmissível quando se tratasse realmente de um "grand-seigneur".
Só em condições rústicas de vida e numa sociedade pouco refinada o im-
perativo da vontade senhorial far-se-ia sentir sobre o escravo de forma
tão direta. Revela-se, assim, na sua espontaneidade, um mecanismo que
se institucionaliza e se torna menos aparente quando a sociedade escravo-
crata está plenamente constituída, ou nos setores da sociedade escravocrata
em que a complexidade do mecanismo econômico e o processo de dife-

17 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

renciação social permitem a existência de um aparato de dominação mais


complicado, como no caso das charqueadas. Disto não deriva, contudo,
necessariamente, nem a falsidade das afirmações de Isabelle, nem a possi-
bilidade delas serem generalizadas.
De fato, há outros testemunhos que, aparentemente, contradizem
Isabelle, sobretudo o de Dreys, já citado: "os negros do Rio Grande não
estão n'huma posição excepcional senão porque pertencem às estancias e
às charqueadas; (...) ora, nas estancias, pouco tem que fazer o negro,
excepto na occasião rara dos rodeios"ts. Também Luccock, numa aprecia-
ção muito genérica, não registrou formas de existência particularmente
rudes na vida ou no tratamento dos escravos do Rio Grande: "Era uso
remeter para São Pedro, provindo de outras partes do Brasil, os escravos
considerados incorrigíveis, e é certo que por aqui encontrei não só maus
escravos como maus senhores. Nada vi, porém, que demonstrasse qual-
quer depravação peculiar no seio da população negra local; ao contrário,
mesmo pelo fato de serem menos numerosos, parecem-me melhores e
muito felizes"t9. Da mesma forma, Saint-Hilaire endossa a relação entre o
pequeno número de escravos das estâncias e seu tratamento menos rude.
A discrepância de testemunhos não significa, todavia, a falsidade de al-
guns. Indica, antes, a diversidade de situações sociais de existência do es-
cravo.
A primeira conclusão parcial que se poderia formular da análise re-
alizada seria, pois, a de que o tratamento dispensado ao escravo ou ao
negro, a etiqueta das relações entre as raças ou camadas, não define
uma forma social determinada e invariável de dominação; sua análise,
portanto, não permite em si mesmo a caracterização da estrutura soci-
al. Parece evidente que houve bons e maus senhores. Além disso, gra-
ças ao estado incipiente da ordem patrimonial e senhorial, a forma de
exprimir a dominação senhorial variou de acordo com as condições
morais e materiais de existência nuns e noutros tipos de organização
de vida no campo. Em quaisquer delas, porém, exerceu-se a domina-
ção senhorial. Virtualmente o "bom senhor" das estâncias poder-se-ia
revelar puramente como senhor: como alguém que dispõe dos meios
capazes de conseguir a objetivação de sua vontade e dos seus interes-
ses na ação do escravo.

17 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Historicamente, e de forma típica, a dominação senhorial no Rio Gran-


de do Sul apareceu como uma dominação diretamente fundada na vio-
lência nas charqueadas. Nessa situação, os mesmos senhores magnânimos
das estâncias utilizavam o recurso à violência e às punições corporais como
forma básica de controle sociapo. As próprias condições sociais do traba-
lho permitiam diferenças no tratamento dispensado ao escravo nas estân-
cias e nas charqueadas. As formas de controle social e as impulsões sociais
para o trabalho escravo eram diversas nestas duas situações de existência.
Na estância também havia toda sorte de técnicas sociais capazes de compelir
o escravo ao trabalho e não se excluía a possibilidade do exercício da vio-
lência para obrigar o cumprimento das tarefas se os incentivos de outra
natureza não fossem porventura suficientes para a manutenção do siste-
ma social de trabalho. Entretanto, a fiscalização do trabalho rotineiro e a
coerção permanente e organizada no trabalho só se impuseram de forma
completa na atividade das charqueadas.
O ritmo e as condições da vida e do trabalho nas charqueadas rede-
finiram o senhor e o escravo no Rio Grande. Mesmo Dreys, ao descrever
as charqueadas, não deixou de registrar o aspecto compulsório do traba-
lho de preparação da carne pela salga: "Huma charqueada bem adminis-
trada he hum estabelecimento penitenciario"21. O próprio ambiente das
charqueadas, tal como no-lo descrevem os viajantes, era algo repulsivo.
Smith assim se refere às casas de salga: "Há um não sei que de revoltante
e ao mesmo tempo cativador n'estes grandes matadouros; os trabalhado-
res negros, semi-nus, escorrendo sangue; os animais que lutam, os soa-
lhos e sarjetas correndo rubros, os feitores estólidos, vigiando immoveis
sessenta mortos por hora, os montes de carne fresca descorando, o vapor
assobiando das caldeiras, a confusão, que entretanto é ordem: tudo isto
combina-se para formar uma pintura tão peregrina e horrida quanto pode
caber na imaginação. De toda esta carnificina derivou a riqueza de Pelotas,
uma das mais prosperas entre as cidades menores do Brasil"22. Também
Lallemant e Saint-Hilaire, que não visitaram os matadouros na época da
safra, registraram as condições pouco estimulantes para o trabalho exis-
tentes nas charqueadas:
"Em toda região há um horrível cheiro de carniça! Couros, chifres,
cascos, ossos, tendões, tripas e nauseantes massas de sangue em putrefa-

1 72
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

ção e, além disso, campos inteiros com carne dependurada, formavam um


verdadeiro monturo em grande estilo e assinalam o distrito onde encon-
tra o seu centro o mais importante ofício da Província, que é abater bois
e cavalos, principalmente éguas. Uma multidão de abutres sobrevoa a re-
gião ou ceva-se em sangue putrefacto!"23, disse o naturalista alemão, cor-
roborando o sentimento de seu colega francês que visitara a região vários
lustros antes. Este, por sua vez, assevera: ''Apesar de ter cessado há meses
a matança nas xarqueadas, sente-se ainda nos arredores um forte cheiro
de açougue, donde se pode fazer idéia do que não será o odor no tempo
da matança. Nessa época, dizem, não se pode aproximar das xarqueadas
sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa multidão de animais
decapitados, o sangue a correr em borbotões, a prodigiosa quantidade de
carne exposta nos secadouros, vejo que tais lugares devem inspirar con-
trariedade e pavor"24.
A contrariedade e o pavor que as charqueadas inspiravam ao branco
livre e estranho metamorfoseavam-se em disciplina e conformismo no
escravo, em poderio e arrogância no comportamento dos senhores. As-
sim, a hierarquização rígida do sistema de posições sociais da sociedade
escravista concretizou-se em sua plenitude na situação de vida imposta
pelo trabalho escravo na charqueada e pelo desfrute do trabalho alheio
racionalmente organizado pelos charqueadores. Os mecanismos básicos
de socialização e de controle da sociedade escravista desenvolveram-se aí
de forma típica. Por esse motivo sua análise permite compreender como
foi possível obter tanto o desempenho adequado dos papéis sociais su-
postos por esse tipo de sociedade quanto a complementaridade necessá-
ria das expectativas de comportamento dos senhores e dos escravos.
A caracterização da charqueada feita por Dreys, como um estabeleci-
mento penitenciário, só parcialmente é verdadeira: na penitenciária o
prisioneiro tem a expectativa contínua da liberdade e pode, por isso, su-
jeitar-se empenhadamente às restrições e ao regulamento na esperança de
abreviar o cativeiro. O escravo, entretanto, não encontrava no cumpri-
mento das normas impostas a esperança de liberdade. Por esse motivo,
não era movido, em tese, por qualquer incentivo suficientemente forte
por si mesmo para mantê-lo na conformidade com as regras impostas. Ao
contrário, só pela negação total da situação em que se via envolvido, atra-

1 73
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

vés da fuga, poderia encontrar a liberdade. Ainda assim, era uma liberda-
de mais nominal que real, como anotou Dreys: "O vago desejo da li-
berdade, de huma liberdade nominal, pois, que, sahindo do cativeiro dos
brancos, cahe no cativeiro mais duro da miseria e dos vicios, atormenta o
negro em todas as situações: escravo sem repugnancia na sua terra, eIle
quer ser livre em todas as mais partes do mundo"2S.
O "vago desejo de liberdade" e a impossibilidade de sua concretização
na sociedade escravista definem, na verdade, a forma assumida pelas rela-
ções entre escravos e charqueadores e, ainda mais, a condição do homem
escravo. Nas charqueadas só era possível manter a disciplina no trabalho
e o respeito aos senhores e à ordem escravocrata através do controle es-
trito da vida do escravo e da violência institucionalizada que o capataz
exercia em nome dos senhores. Essa violência encontrava limites apenas
no Código Negro que, regulando os castigos merecidos, exprimia os inte-
resses e os valores de uma sociedade fundada em relações de violência.
De fato, existe documentação suficiente para comprovar o rigor existente
no regime disciplinar das charqueadas. Além das informações dos viajan-
tes, há registros nos jornais da época sobre o excessivo rigor dos contro-
les a que eram submetidos os escravos26•
Os excessos iam a ponto de permitir assassínios de crianças escravas27•
Contudo, a resignação do escravo à situação era aparente. A transgressão
das normas, o desacato aos senhores, o assassínio de braços, o roubo e a
fuga exprimem, de forma brutal, o inconformismo do escravo, definindo
assim, paradoxalmente, pela negação do respeito à pessoa humana do
senhor e dos brancos a condição humana fundamental do escravo, o "vago
desejo de liberdade". Resulta, pois, que o negro amarrado ao tronco para
ser flagelado exprimia exatamente o que de mais autenticamente humano
havia no escravo. Nessa situação extrema desvenda-se todo o mecanismo
de manutenção da sociedade escravocrata, tão bem compreendido por
Dreys:
"Os negros do Rio-Grande, seja qual for sua apparente resignação,
justificada aliás pela suavidade de sua condição não estão isentos do con-
tagio: varias tentativas fizerão eIles, em tempos differentes, para impri-
mir à toda a população negra hum movimento insurreicional: mas todos
os projectos falharão e não podião deixar de falhar, à vista da immensa

174
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

potencia de repressão que está na circunstância de desenvolver a popula-


ção branca no paiz"28.
A liberdade desejada e impossível apresentava-se, pois, como mera
necessidade subjetiva de afirmação, que não encontrava condições para
realizar-se concretamente. É verdade que houve fugas, manumissões e
reações29• Umas e outras variando de intensidade conforme as circuns-
tâncias histórico-sociais exteriores ao regime escravocrata, como, por
exemplo, as guerras platinas e a Revolução Farroupilha30• A liberdade
assim conseguida ou outorgada não implicava em nenhum moment03!,
porém, modificações na estrutura básica que definia as relações entre
senhores e escravos: não abalava a propriedade servil e os mecanismos
de sua manutenção. Por isso, no conjunto, o desejo e o esforço de liber-
dade desenvolvido pelos escravos apenas indicam a contradição funda-
mental da condição de escravo vista do ângulo da consciência escrava: o
escravo era considerado como uma coisa pelos senhores, comportava-
se em regra de forma heteronômica graças à coerção contínua de que
era vítima e, no entanto, tinha a possibilidade de representar-se como
um ser humano, pois podia negar subjetivamente o que afirmava no
comportamento manifesto: a condição de ser que age em função dos
interesses e da vontade do senhor.
Está claro, também, que a possibilidade de o escravo autoconceber-se
como um agente social capaz de realizar os próprios desígnios era solapa-
da continuamente, graças ao progresso de socialização, às expectativas que
se formavam em torno de seu comportamento e à vigilância estrita a que
o sujeitavam32 •
Saint-Hilaire, já tão acostumado à escravidão que não hesitou em le-
var um indiozinho consigo para obsequiar um amigo que desejava fazer,
por intermédio do naturalista, a oferenda da criança a um nobre euro-
peu33, chegou a condoer-se da situação vivida pelas crianças escravas, tal
a rudeza do tratamento que lhes dispensavam nas charqueadas: "Há sem-
pre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os
outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não
conheço creatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais
sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à pare-
de e é freqüentemente maltratado pelo filho do dono. À noite chega-lhe o

175
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

sono, e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dor-
mir. Não é esta casa a única que usa êsse impiedoso sistema: êle é fre-
quente em outras"34.
É óbvio que o escravo adulto que tivesse passado a infância dessa for-
ma, por maior ânsia de liberdade que pudesse ter, dada a impossibilidade
de realizá-la, não poderia deixar de ser, no geral, submisso a toda sorte de
caprichos senhoriais, tanto mais que a coerção aberta, pelo flagelo, aviva-
lhe a qualquer momento a condição de escravo. Assim, no geral, era pos-
sível obter a "coisificação" subjetiva do escravo: sua autoconcepção como
a negação da própria vontade de libertação; sua auto-representação como
não homem: "He opinião constante entre os viajantes, que o tigre obser-
va uma certa graduação no ímpeto de seus appetites crueis; dizem que
achando facilidade relativa, o tigre atirar-se-há primeiro ao bruto, depois
ao negro, e por ultimo ao branco; se há muitas experiências, em que se
fundamente semelhante distribuição, não o sabemos; mas, o que pode-
mos affirmar he, que em nossas repetidas viagens ao travez daquelles cam-
pos, era custoso determinar hum negro a ir só cortar lenha no capão
visinho, allegando sempre aquella funesta preferencia para ser acompa-
nhado"3s.
Do ponto de vista da percepção social do senhor a reificação do es-
cravo era total. A descrição das relações entre a criança escrava e o filho
do senhor indica que as técnicas socializadoras do sistema escravocrata
permitiam que os senhores mantivessem atitudes e orientassem as ações a
partir de normas que implicavam a despersonalização do escravo. A vio-
lência e a falta de respeito à pessoa do escravo reveladas pelo comporta-
mento senhorial (que eram requisitos para o funcionamento do sistema
de produção escravista) podiam efetivar-se e justificar-se diante dos mo-
res senhoriais graças à reificação prévia do escravo: desde criança o se-
nhor regulava suas expectativas considerando o escravo como um ser
incapaz de vontade, objeto de toda sorte de caprichos e perversidades.
Saint-Hilaire registrou outros aspectos do processo socializador pelo qual
as mulheres brancas eram treinadas para comportar-se senhorialmente,
comportamento que o viajante qualificou como de "orgulho e baixeza":
"Em todas as partes do Brasil por mim percorridas até aqui, não existem
escolas nem colégios para as meninas, criadas no meio de escravos e tendo

176
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sob seus olhos, desde a mais tenra idade, o exemplo de todos os vícios
dêles, adquirindo ao mesmo tempo o hábito do orgulho e da baixeza"36.
No Rio Grande do Sul, em particular, havia uma dimensão que, se não
era nova, exteriorizava-se mais abertamente no comportamento senhorial.
A rusticidade e a violência da atividade prática do gaúcho tornaram o se-
nhor ainda mais rude: "Os brasileiros são em geral prestimosos e genero-
sos, mas o hábito de castigar os escravos embota-lhes a sensibilidade. Nesta
Capitania acresce uma outra modalidade de dureza de coração - o modo
impiedoso com que tratam os animais, aqui. Vivem, por assim dizer, no
meio de matadouros, o sangue dos animais corre sem cessar ao redor de-
les, e desde a infância se acostumam ao espetáculo da morte e dos sofri-
mentos. Não é pois de estranhar sejam mais insensíveis que o resto dos
seus compatriotas"37.
O próprio Gonçalves Chaves, em cuja charquada Saint-Hilaire obser-
vou o tratamento rude dispensado às crianças escravas, assim se refere aos
efeitos dessas práticas sobre a personalidade do jovem senhor: "Hum
menino he desde seus primeiros dias acostumado aos horrorosos castigos
feitos aos Escravos (com que se encaminha à ferocidade) e palavras pou-
co edificantes das suas familias para com seus domesticos; estas são as
impressões, que para sempre se lhes arraigão n'Alma, e he não só rara,
mas quasi impossivel a boa educação"38. Quando adultos, por melhores
que fossem seus sentimentos e por mais que julgassem a escravidão como
um mal desnecessári039, não poderiam deixar de isolar perfeitamente as
idéias e os sentimentos, no plano abstrato, do comportamento efetivo:
"Nas charqueadas os negros são tratados com rudeza. O Sr. Chaves, tido
como um dos charqueadores mais humanos, só fala aos seus escravos com
exagerada severidade, no que é imitado por sua mulher; os escravos pare-
cem tremer deante de seus donos"4o.
A rudeza de tratamento, como percebeu Saint-Hilaire, era condição
necessária para o desempenho e a manutenção da posição do senhor na
charqueada, onde, em comparação com o comportamento do estancieiro
que possuía escravos, a "cousa muda de figura", pois são muitos negros,
"trazidos da Capital", com vícios, a demandar "energia". Por que tudo
isso? A resposta está contida nas explanações anteriores: o "vago desejo
de liberdade" numa aglomeração grande de negros, submetidos a condi-

1 77
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ções duras de trabalho, podia, com relativa facilidade, traduzir-se em re-


volta aberta. Havia, por isso, necessidade de intensificar o controle da vida
do escravo no trabalho e fora do trabalho. Na charqueada a distição entre
o comportamento senhorial "na casa" e "fora da casa" tendia a diminuir,
reelaborando-se o comportamento do senhor de forma unitária como um
puro dominador. O escravo apresentava-se à consciência do senhor como
mera condição para o trabalho, como objeto. Como conseqüência da
reificação do cativo as polarizações emocionais dos senhores definiam-se
de forma peculiar na sociedade escravocrata. O escravo transformava-se
num instrumento cuja presença era sentida e desejada na medida em que
significava a objetivação de um valor fundamental dessa sociedade: a pos-
se do instrumento de trabalho, a materialização da fortuna 41 • Mas, por
outro lado, a valorização social do escravo como condição da produção
exigia e permitia a prática da violência. A dominação senhorial e o traba-
lho escravo organizado só se mantinham pela coação; a coação, por sua
vez, legitimava-se diante do código moral cristão graças à racionalização
permitida pela desqualificação do escravo da categoria de pessoa.
As representações feitas pelos senhores, e em condições normais acei-
tas pelos escravos, correspondiam, pois, à situação do escravo da char-
queada, tal como os interesses senhoriais e as próprias condições de
trabalho e de vida a definiam. As descrições de Dreys e de Couty42 sobre
a técnica de preparação do charque mostram que a produção nas char-
queadas consistia em uma atividade complexa que supunha alguma divi-
são e mesmo especialização do trabalho. A técnica do charque impunha
ao processo produtivo um ritmo e um grau de coordenação que transfor-
mavam os homens nele aplicados em peças da engrenagem produtiva. É
certo que também o operário livre, o trabalhador parcial, é uma peça, uma
coisa, para o industrial. Mas, neste caso, o salário denuncia à consciência
do operário e do capitalista a possibilidade real de a peça transformar-se
em homem: o operário contrata e reivindica. Na escravidão o senhor tam-
bém remunera o escravo, mantendo-o e alojando-o. Mas essa relação bi-
lateral se oculta inteiramente à consciência graças à própria operação de
compra onde o resgate é pago não ao escravo, mas ao traficante de escra-
vo. Assim, o senhor julga que nada paga e nada deve ao escravo e este fica
privado de qualquer instrumento que lhe permita perceber, imediatamente,

178
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

o tipo de transação em que foi envolvido. Nestas circunstâncias, o escra-


vo assemelha-se, de fato, às condições inanimadas de trabalho. Por isso é
percebido socialmente pelo senhor tal qual aparece, na realidade, de ma-
neira imediata: como incapaz de volição e de reciprocidade, res, ins-
trumentum vaca/e.
Por esses motivos, o trabalho realizado na charqueada, possivelmente
de forma mais aguda que em qualquer outra situação de trabalho na eco-
nomia escravocrata brasileira, fazia surgir e encobria todas as contradi-
ções da relação senhor-escravo. A necessidade do trabalho coordenado e
em grande número tornava o escravo uma ameaça constante para a segu-
rança do regime senhorial: poderia negar pela revolta a condição de es-
cravo. A forma de realização do processo de produção, porém, fazia
necessária estrita disciplina que acabava realmente por transformar o es-
cravo em instrumento passivo da população, impedindo, ao mesmo tem-
po, o êxito da revolta possível. Os senhores, agindo no interesse imediato
de manter a produção, impediam, na realidade, graças aos rígidos contro-
les, que o desejo de liberdade se modificasse em ação pela liberdade e as-
sim agindo encobriam a si próprios e aos escravos a realidade humana do
escravo. Percebiam-no como coisa que trabalha, incapaz de reagir às con-
dições de trabalho, e convertiam-no efetivamente em mero instrumento
de trabalho. Paralelamente, a sociedade escravocrata dispunha de meca-
nismos pelos quais moldava a personalidade do escravo, impedindo a for-
mação de atitudes capazes de orientar sua ação para a concretização dos
ideais de libertação. A "socialização parcial" do escravo fazia com que,
em geral, seu adestramento fosse incompleto, limitado como era à trans-
missão de técnicas e à inculcação de normas e valores que motivavam o
negro apenas para o trabalho rude das fazendas e do charque.
Por todos estes motivos, a possibilidade efetiva de os escravos desen-
volverem ações coordenadas tendo em vista propósitos seus era muito
pequena. Não tinham condições para definir alvos que levassem à des-
truição do sistema escravista e não dispunham dos meios culturais (de
técnicas sociais ou materiais) capazes de permitir a consecução dos pro-
pósitos porventura definidos. Está claro que o processo de aniquilamento
pela socialização incompleta e deformadora das possibilidades do escra-
vo reagir como pessoa não era expressamente deliberado pelos senhores.

1 79
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Ele resultava, indiretamente, das próprias condições de trabalho, da re-


presentação do escravo como coisa e da aceitação pelos cativos da repre-
sentação de escravo que lhes era imposta, como se viu acima. Tudo isso,
porém, agia de tal forma que tornava o escravo incapaz de reagir coor-
denadamente contra a situação de espoliação de que era vítima43 .
Resultou, pois, que a revolta de que virtualmente poderiam ser capa-
zes, a inconformidade encoberta na resignação aparente, manifestava-se
apenas em atos individuais de desespero ou em planos frustes de rebelião,
logo contidos pela força das instituições senhoriais44. Não obstante, mes-
mo solapadas continuamente pela repressão senhorial e pelos mecanis-
mos de manutenção da ordem, essas disposições subjetivas contra o
cativeiro não deixavam de constituir-se em possibilidades de negação da
ordem escravocrata e pontos de fricção e inconsistência da sociedade se-
nhorial. Tão logo surgiram condições para a derrocada do regime senho-
rial, como se verá adiante, polarizaram a crítica e a ação das forças novas
que emergiam no Império.
Nas cidades45 , por fim, houve condições de vida que representam o
extremo oposto na condição de escravo. De fato, o depoimento de
Luccock, neste sentido, é muito expressivo: "O preço que se pagava por
um escravo era alto, havendo grande dificuldade em consegui-los, o que
em parte pode justificar o bom trato que lhes dava; desconfio, porém, que
um motivo mais poderoso deve ser procurado na temperatura mais mo-
derada da região, que permite que os seus senhores compartilhem de seus
trabalhos. Na cidade, pareceu-me que a situação deles era tão boa quanto
lhes podia permitir sua mentalidade e costumes". "Sempre que muitos são
da propriedade de um só senhor, aqui, como no Rio, costuma-se ensinar
a alguns deles o ofício de carpinteiro, a outro o de remendão e os restan-
tes habilitados a diversas ocupações úteis; costumam também alugá-los a
quem deles possa necessitar, ressarcindo assim vantajosamente os gastos
que tiveram em instruí-los. Há grande escassez, aqui, de artesãos, nenhum
ferrador, torneiro ou operário profissional em estanho ou latão, e, como
em conseqüência disso, é freqüente que um estrangeiro encontre dificul-
dades em acorrer às suas necessidades, não somente são aqueles escravos
muito disputados, como ainda bastante estimados pelas suas prendas para
que os protejam de fadigas excessivas e maus-tratos"46.

18 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Esse texto permite a compreensão do processo pelo qual também na


cidade o senhor pôde revestir-se, eventualmente, da aparência de bom
senhor. Para obter maior rendimento do trabalho escravo nas cidades (onde
a estrutura econômica exigia a especialização de artífices), a sociedade
escravista transformou em artesão o escravo que antes era força bruta em
geral, apto apenas para o trabalho indiferenciado. Apesar da pequena
quantidade de escravos artesãos e do reduzido valor econômico do arte-
sanato, essa modificação no modo de utilização do escravo foi fundamental
para redefinir o comportamento de senhores e escravos. O escravo-arte-
são, ao mesmo tempo que possuía de fato uma qualidade diversa do sim-
ples escravo, tanto porque possuía habilidades que o transformavam em
ferramenta mais refinada como porque possuía condições materiais e
morais de existência diversas da escravaria da charqueada, era valorizado
pelo senhor 47 • A valorização, é certo, decorria de forma imediata da fun-
ção desse tipo de escravo no processo produtivo e, fundamentalmente,
era o reconhecimento da capacidade de uma ferramenta mais aperfeiçoa-
da render mais trabalho. Não obstante, na medida em que a ferramenta
era humana, sua valorização social exprimia-se nos cuidados dos proprie-
tários com as condições requeridas para o bom desempenho de uma for-
ma especificamente humana de trabalho: a estima, a preocupação com a
fadiga excessiva, com os maus-tratos. Assim os senhores, ainda que tives-
sem exclusivamente o intuito de melhor explorar o escravo, revalorizavam,
socialmente, de fato, a condição do escravo-artesão. A realização pelo
escravo de um tipo mais complexo de trabalho criava, portanto, a possi-
bilidade do reconhecimento social da existência humana do escravo.
A contradição entre a vontade e o interesse dos senhores (obter o
máximo rendimento do trabalho escravo) e a negação implícita da condi-
ção fundamental do escravo na sociedade gaúcha (res, instrumentum
voca/e) no procedimento para obter esse desiderato (aceitar certas quali-
dades humanas do escravo) pôs em xeque, antecipadamente, as bases apa-
rentes sobre as quais se assentava o sistema de valores da sociedade
escravista. Com efeito, o processo de percepção social do escravo como
coisa e de sua constituição efetiva como peça da engrenagem econômica
permitia a racionalização do comportamento senhorial em face dos valo-
res de uma sociedade que se acreditava cristã. Qualquer inconsistência que

18 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

se apresentasse no sistema de valores que orientava o comportamento se-


nhorial acabava por constituir-se num foco de desagregação da ordem
senhorial. Assim, a própria diversidade de formas de consideração social
e de tratamento do escravo possibilitou a polarização de uma atitude
dúplice diante do escravo, que acabou por negar a aparência de que se re-
vestia a qualidade de escravo no mundo senhorial. Ao mesmo tempo que o
escravo era uma mercadoria, um instrumento de trabalho, não deixava de
ser um homem-mercadoria, cuja condição de homem impunha-se à medi-
da que os imperativos da ordem econômica escravocrata forçavam-no a
desenvolver habilidades intelectuais e manuais no trabalho e que este traba-
lho requeria, para maior eficiência, seu reconhecimento como uma realiza-
ção humana.
Além disso, os próprios requisitos para o desempenho eficiente do
trabalho artesanal permitiam que o escravo se adestrasse em técnicas cul-
turais e sociais que ultrapassavam o limite dos mínimos de aprendizado
que a socialização parcial impunha à massa dos escravos das charqueadas
e dos serviços rudes do campo. Em alguns casos, até a instrução elemen-
tar esteve ao alcance dos escravos mais qualificados, que dessa forma pu-
deram aprender a ler e a realizar as operações aritméticas mais simples.
Por todos esses motivos, foram os escravos urbanos que, com a Abolição,
puderam, como se verá noutro capítulo, tentar reajustar-se criticamente
diante das novas condições de vida que se formaram: tornaram-se livres
juridicamente, como todos os demais escravos, e puderam situar-se como
homens livres na sociedade de classes em formação, graças às condições
morais e intelectuais de que foram beneficiários por causa da condição de
artesãos.
Os escravos dos serviços domésticos também se beneficiaram, em de-
terminadas circunstâncias, de condições de vida mais favoráveis que os
escravos das charqueadas, pois é inegável que o tratamento dispensado
aos "crias da casa" era mais benevolente, e nisto o Rio Grande do Sul não
diferiu do resto da sociedade brasileira48 • Entretanto, a benevolência do
senhor para com o escravo doméstico e as possibilidades de maior parti-
cipação cultural desse tipo de escravo não produziram os mesmos resul-
tados que as diferenças de tratamento provocadas pela condição de
escravo-artesão. As razões para isso são evidentes. A benevolência do se-

1 82
- - - ---------------------------------...
CAPITALISMO E ESCRAVIOÃO NO BRASIL MERIOIONAL

nhor poderia, quando muito, levar à concessão de algumas regalias (in-


clusive a manumissão) e a um tratamento menos brutal. Não criava, po-
rém, condições para a reação crítica do escravo à sociedade escravocrata
ou à espoliação social do negro que depois da Abolição os brancos tenta-
ram manter. De qualquer forma, pelo menos com relação a alguma parcelas
da população escrava dedicadas aos serviços domésticos, a convivência
mais íntima com os senhores e a participação num modo urbano de vida
permitiram que também o escravo doméstico escapasse parcialmente dos
limites estanques a que a socialização parcial e inadequada para a vida em
liberdade sujeitava os negros empregados noutros tipos de atividade pro-
dutiva.
Em conclusão, as análises realizadas neste capítulo mostram que hou-
ve, de fato, alguma diversidade nas formas que as relações entre senhores
e escravos assumiram nos vários sistemas nucleares da sociedade escra-
vocrata gaúcha. A diferença do tratamento dispensado aos escravos pren-
deu-se à diversidade das condições de vida a que se submeteram senhores
e escravos nas várias situações sociais de existência que se constituíram
no Rio Grande. Em última análise, a variabilidade das situações permitiu,
quando não forçou, a elaboração de formas diversificadas de exploração
e regulamentação do trabalho escravo. Em determinadas situações histó-
rico-sociais tanto a realização do trabalho escravo como a interação entre
senhores e escravos e as formas de controle a que se submetiam os escra-
vos possibilitaram o abrandamento das formas senhoriais de dominação e
o comportamento benevolente dos senhores.
Em qualquer circunstância, porém, as relações entre senhores e escra-
vos exprimiam-se conforme as regras do sistema de dominação escra-
vocrata, evidenciando, assim, a pequena simplificação que a diversidade
das formas de tratamento e de etiqueta encerra para a determinação da
posição de escravo na estrutura social. Mesmo quando condições históri-
co-sociais peculiares permitiam que o funcionamento da dominação
escravocrata ficasse encoberto por formas sociais mais refinadas de regu-
lar as relações entre senhores e escravos, persistiam os efeitos da ordem
escravista sobre a situação dos escravos e sobre suas possibilidades de al-
terar a ordem social: o reconhecimento social da condição de pessoa hu-
mana era negado aos escravos, objetiva e subjetivamente, pelos homens

1 83
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

livres. Além disso, graças aos mecanismos socializadores da ordem escra-


vocrata, às condições materiais de vida do escravo e às formas pelas quais
os escravos se inseriam no processo de produção, as representações
mantidas pelos senhores sobre a inferioridade ob;etiva dos escravos e so-
bre a impossibilidade natural de o escravo reagir à sua condição, eram
aceitos, em condições normais de funcionamento do sistema, pelos pró-
prios escravos. Restava-lhes apenas a negação subjetiva da condição de
coisa, que se exprimia através de gestos de desespero e revolta e pela ân-
sia indefinida e genérica de liberdade. Porém, nem os atributos de pessoa,
nem o desejo de liberdade (que exprime a qualidade de pessoa humana)
podiam objetivar-se para o conjunto dos escravos, exatamente porque a
situação real em que viviam impedia que a camada escrava se apropriasse
dos requisitos culturais, sociais e materiais necessários para a realização
objetiva de seus desígnios. Sempre que o abrandamento das relações en-
tre dominados e dominadores poderia pôr em risco o sistema escravocrata,
ou que as condições de exploração do trabalho escravo exigiam o enrije-
cimento das formas de interação social e o aumento da distância social
entre senhores e escravos, as relações entre as duas camadas redefiniam-
se, deixando transparecer o fundamento real do sistema escravista de do-
minação: a escravidão funda-se em relações de violência.
Entretanto, se as formas particulares de exprimir socialmente a dis-
tância social entre senhores e escravos, de regular a atividade do escravo
no trabalho e de definir o comportamento recíproco de escravos e ho-
mens livres não definiam a condição de escravo, elas interferiam nas
possibilidades criadas com a Abolição para o escravo reagir à ordem escra-
vocrata e aos efeitos da escravidão sobre o comportamento dos negros.
Tão logo determinados fatores e condições sociais (em grande parte es-
tranhos à ordem escravocrata) começaram a provocar a desintegração do
sistema escravista, os ajustamentos críticos que os escravos e libertos po-
deriam desenvolver potencialmente diante das situações emergentes de
existência tiveram seu âmbito de variação determinado em função do tipo
de participação social e cultural que cada situação particular de vida per-
mitiu aos escravos.

184
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

NOTAS

1. Perdigão Malheiros, Antônio Marques, A escravidão no Brasil, ensaio histórico-;u-


ridico-socíal, Edições Cultura, São Paulo, 1944, tomo I, pág. 17. A edição original
é de 1886.
2. Omito referências à vida militar - tão importante no Rio Grande - porque no
quartel, como é sabido, os escravos não participavam regularmente das atividades
sociais. Por outro lado, não discutirei sistematicamente a posição do escravo na
família enquanto sistema social nuclear. Isso porque implicitamente ao discutir a
condição de escravo nas estâncias e nas cidades apresentarei elementos para a com-
preensão da situação do escravo doméstico. Apenas, ressaltarei os momentos e as
situações nos quais o escravo doméstico gaúcho experimentou condições de vida
diversas do escravo brasileiro.
3. Ver, por exemplo, a descrição da estância do Comendador Cruz Jobim, na região
de São Gabriel, feita por Lallemant, op. cit., págs. 310-311.
4. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 115. Limito-me a indicar algum textos de Saint-Hilaire
para exemplificar o gênero de vida do estancieiro e do negro nestas zonas do Rio
Grande no período em que o naturalista as visitou. Entretanto, o livro está repleto
de descrições semelhantes.
5. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 239. Essa estância, embora pertencesse a um homem
rico, estava abandonada pelo proprietário.
6. Luccock, op. cit., pág. 123.
7. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 128.
8. Também na região de Mostardas Saint-Hilaire pôde verificar que as mulheres fa-
bricavam "os tecidos dos ponchos, muito grosseiros". (...) "Tais ponchos são bran-
cos com riscas pretas ou pardas, e apenas usados pelos negros e índios" (pág. 58).
9. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 112, já citado no capo I. Mas, por outro lado, a dieta
dos senhores rústicos também era muito simples: "Depois de São João esta é a
quarta casa em que paro. As duas primeiras eram habitadas por índios os quais
apenas se alimentavam de milho cozido e de abóboras, e o paulista que possui gado
e negros não se nutre senão de feijão sem farinha", diz o naturalista à pág. 231.
10. Idem, ibidem, pág. 276.
11. Ainda assim é preciso não exagerar. Quando Saint-Hilaire visitou Pelotas concor-
dou com as observações de um patrício seu sobre a vida pouco refinada da Capi-
tania: "Os habitantes desta Capitania são ricos e não ambicionam senão o aumento
dessa riqueza. Tal fortuna entretanto pouco contribui para o confôrto de suas exis-
tências: nutrem-se mal e não conhecem diversões. Os momentos de lazer são de-
dicados ao jôgo, ou às intriguinhas de aldeia. Na maior parte são ignorantes, sem

185
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

educação; como não receberam nenhuma instrução de moral e honra, agem sem-
pre de má fé nos seus negócios" (op. cit., pág. 88). Creio que só no período que
denominei de "aurora da dominação senhorial" (a partir da Guerra dos Farrapos)
poder-se-ia encontrar como contrapartida da riqueza o refinamento das maneiras
e do espírito.
12. Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, Côr e mobilidade social em Flo-
rianópolis, capo lI, esp. págs. 146-152.
13. Isabelle, op. cit., pág. 63.
14. F. Henrique Cardoso e Octávio Ianni, op. cit., loco cito
15. Luceock,op. cit., pág. 135. Isabelle, na linguagem candente com que criticou a
escravidão, dá outro testemunho da transferência para o negro das representações
formadas sobre o escravo: "aqui, como em tôdas as antigas possessões espanholas
e portuguêsas, os negros e mulatos são operários, quer dizer homens laboriosos,
trabalhadores, aquêles que têm necessidade de exercitar mais a sua inteligência,
mas têm a desgraça de ser escravos e, sobretudo, negros. Estes são necessariamente
brutos, os usurpadores do nome de homens. No entanto, esses brutos asseguram a
subsistência e tôdas as alegrias da vida de seus preguiçosos senhores". Arsene
Isabelle, op. cit., pág. 66.
16. Cf. Col1eção das Leis Provinciais de São Pedro do Rio Grande do Sul, Tip. do
Commercio, Porto Alegre, 1846, lei sobre a instrução primária, 1837, art. 3°, pa-
rágrafo 2°. Em 1846 a lei mencionava apenas os escravos.
17. Arsene Isabelle, op. cit., pág. 67. Isabelle, defendendo-se por antecipação dos crí-
ticos que o achariam injusto e exagerado, escreveu, depois de dizer que em Porto
Alegre os negros carregavam fardos pesados ("porque a raça africana desempenha
no Brasil a profissão de cavalos e mulas"): "Viajantes que foram testemunhas da
barbaria impiedosa dos colonos franceses e inglêses puderam achar o jugo dos es-
cravos mais suportável, no Brasil; mas eu que vi negros livres, trabalhadores, fa-
zendo viver os brancos, na categoria de homens, na República Argentina e Banda
Oriental, peço me seja permitido achar sua sorte deplorável no Brasil e revelar a
infâmia dos europeus que não têm vergonha de levar a imoralidade a ponto de
fazer ainda clandestinamente o comércio de carne humana!" (pág. 59). Além dis-
so, no texto transcrito acima Isabelle não critica ou comenta, mas, apenas, registra
o que viu.
18. Dreys, op. cit., pág. 203. No geral Dreys participa da convicção da suavidade do
tratamento dispensado aos negros, como logo veremos.
19. Luccock, op. cit., pág. 134. A crença sobre a remessa dos piores escravos de outras
partes do Brasil para o Rio Grande encontra-se registrada em Mawe. Foi re-
produzida mais tarde por vários outros autores.
20. A distinção entre o comportamento do charqueador e do estancieiro é válida ape-
nas analiticamente e em termos típicos. Realmente a situação era mais complexa,

186
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

pois muitos estancieiros eram charqueadores e seria difícil supô-los senhores mag-
nânimos numa situação e algozes noutra. Isso mostra, ainda uma vez, o processo
deformador de interpretação da realidade utilizado pelos ideólogos da democra-
cia rural: generalizam uma condição particular que pode ter alguma significação
para a caracterização tipológica de formas de comportamento e, a partir disso,
"deduzem" formas concretas e históricas de comportamento.
Sobre a dupla qualidade de estancieiro e charqueador: "O bosquejo que apresen-
tamos das estancias nos Ip.va a fallar das charqueadas que se alimentam dos produetos
d'aquellas, e às vezes reunem-se na mesma mão para comporem a fortuna de hum
só homem; pois há muitos charqueadores que são, ao mesmo tempo, proprietarios
de estancia" (Dreys, op. cit., págs. 145-146).
21. Dreys, op. cit., pág. 205.
22. Herbert H. Smith, Do Rio de Janeiro a Cuyabá, Companhia Melhoramentos, São
Paulo, 1922, pág. 140. A viagem a Pelotas realizou-se em 1882.
23. Lallemant,op. cit., págs. 388-389.
24. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 96. Dreys nega, contradizendo-se, o aspecto repugnan-
te da atividade nas charqueadas: "huma pessoa a quem faltasse a experiencia
propria, considerando que a matança do gado he uma das industrias capitais do
paiz, e reflectindo nas necessarias consequencias, deve se figurar Rio-Grande como
huma terra desfeita em lama de sangue, coberta de fetidos detrimentos, e por isso
envolvida n'huma atmosphera de concepção tão contraria ao commodo como à
conservação da vida. Pois nada disso acontece (...)" (pág. 146). Não acontecia
porque havia estabelecimentos "de natureza tão nojosa", fazendo lançar ao rio os
detritos. Dessa forma, o viajante "passageiro a bordo das embarcações que nave-
gam n'esses rios, esbarra-se às vezes com ilhas movediças formadas da aggregação,
fortuita de huma porção d'aquelles molles detrimentos que vem surgir à superficie
das águas quando a fermentação entra a desenvolver os gazes que contém" (pág.
147). À guisa de balanço das impressões que o ambiente das charqueadas poderia
causar, pondera Dreys: "O certo é que, fóra da estação da matança e n'esta mesma
estação, fóra das horas do trabalho, huma charqueada não tem nada que repugne
à vista, e sempre diremos, em abono da verdade, que, em tempo nenhum, n'hum
estabelecimento d'esses bem administrado, nada se acha que offenda o olfato, não
dizemos de hum sybarita, mas de qualquer homen não previnido nem affeminado.
Certamente as emanações produzidas por tantos animais de natureza e prepara-
ções diversas não deixam de produzir estranha impressão a primeira vez, porem
nunca incommodão, e ainda menos são lethaes; e aquelles que nas charqueadas se
demorão alguns dias, não tardão em ver chegar o momento que a combinação de
todos esses eff!uvios heterogeneos determina huma sorte de sensação agradavel
(...)" (151-152). Não creio que seja necessário insistir sobre a qualidade de ideólogo
da sociedade pastoril gaúcha que caracteriza Dreys. Até os odores da putrefação

1 87
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

transformam-se, através da sua pena, em eflúvios heterogêneos de agradável sen-


sação. Herbert Smith, que visitou as charqueadas em 1882, achou menos agra-
dáveis os eflúvios que delas emanavam: "Porém muito antes de apparecerem os
campos já os nossos narizes nos tinham contado outra história (...)", op. cit.,
pág.135.
25. Dreys, op. cit., pág. 205.
26. Sobre esses rigores há um comentário de O Pelotense, de 9-7-1853, que vale a pena
transcrever, pois refere-se a um período no qual não se punha em dúvida ainda a
validade do regime servil e o direito do senhor castigar o escravo. Ei-lo: - "Quando
se acabará o espetaculo barbaro, e revoltante que diariamente se observa nas ruas
d'esta cidade? Quando os senhores comprehenderão que os escravos são como
nós creaturas formadas à imagem e semelhança do Redemptor, e que é preceito
das obras de misericordia - vestir os nús? - Estamos nós na costa d'Africa onde
apenas se usa de tanga? É levar muito longe o egoísmo, tirar-se todo o proveito do
trabalho de um escravo, e recusar-se-lhe até as roupas que, por caridade e por
decencia, se está na obrigação de dar-lhes. Vi a semana passada um preto nú, com
um trapo amarrado na cintura, e envolto n'uma manta de algodão. Quando o tra-
balho obrigasse esse escravo a desembaraçar-se da manta, poderia elle ser visto
sem offensa da decencia publica? Se eu fosse delegado, dava ordem para se condu-
zirem à minha presença os escravos que por ahi andam em semelhante estado, e
multava n'uma quantia regular os seus senhores, e a beneficio da Santa Casa de
Misericordia.
"Também é digno de severa reprehensão a barbaridade de alguns castigos. Um
senhor póde castigar com vergalho ou palmatoria a seu escravo, mas sem commetter
excessos, que incommodem os visinhos; também se não deviam permitir certos cas-
tigos, que são o painel de nossa vergonha e da barbaridade dos nossos costumes.
Vejam os meus freguezes o que a respeito, diz o homem:
"Viva o Progresso! Fora o Regresso!!
"Sr. Espoleta, - V. que por tantas e repetidas vezes tem conduzido sua pedri-
nha para o edificio de nossa civilização, creio que não se negará a chamar a attenção
da autoridade competente para um facto que, constantemente se reproduz nas ruas
d'esta cidade, e que no nosso entender é desumano, despotico, repugnante e
barbaro! O Sr. A. J. G. tem um infeliz preto seu escravo, o qual conserva com um
ferro ao pescoço; esse ferro apresenta uma aste perpendicular, e por pouco não
fez do infeliz um unicornio. Esperamos pois, que o Sr. Espoleta se compenetrará
da immoralidade do fato, e lhe dará o desenvolvimento necessário se mister for. O
humano."
Na década de 80, quando era intensa a crítica ao regime servil, a documen-
tação sobre violência praticadas contra escravos é muito grande. Basta consultar
os números de A Voz do Escravo, jornal publicado em Pelotas em 1881, para

1 88
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

verificar tais excessos. A título do exemplo transcrevo uma dessas informações:


"Consta-nos que reside na rua da Ponto uma senhora Dna. Maria Leocadia Car-
neiro da Fontoura, que possue uma escrava, a quem inflige os mais barbaros
castigos a ponto de reduzil-a a medonho esqueleto. Consta-nos mais que essa
infeliz ha dois annos é victima d'essas atrocidades, sem que nesse periodo de
tempo tenha havido por ella menor compaixão", A Voz do Escravo, Pelotas, 1-6-
1881, ano I, nO 8, pág. 3.
Na literatura da época a descrição da vida triste do escravo e do tratamento
brutal nas charqueadas serviu como tema para muitas poesias, contos e crônicas.
Veja-se, por exemplo, a Tribuna Litteraria de Pelotas (especialmente na de 22-2-
1882, pág. 4, o poema "Na charqueada", ou "A Escrava e o filho", Guttenberg,
16-10-83). E ainda o já referido A Voz do Escravo e o Parthenon Litterario (por
exemplo, "Pai Felipe, um episódio de xarqueada", publicado em janeiro de 1874,
ano I1I, voI. I, pág. 561 e, principalmente, "Pai Felippe (narrativa)" de fevereiro
de 1874, ano m, voI. 11, págs. 605). Por volta da década de 80 os jornais críticos
e humorísticos como O Século, de Porto Alegre, e o Cabrion, de Pelotas, regis-
tram também muitas críticas às violências da escravidão, como mostrarei noutro
capítulo.
27. Sobre assassínios, veja-se, por exemplo, "Crime horroroso", n'A Voz do Escravo,
de 3-4-81, pág. 2, transcrita do Didrio de Pelotas:
"Hontem às 10 horas da noite veio ao nosso conhecimento um canibalismo
praticado pelo capataz da xarqueada do Sr. Valladares, arrendada ao Sr. Paulino
Leite.
"As 8 horas da manhã, um irmão d'este cavalheiro levou em um carro para a
xarqueada um escravo de propriedade do sr. Paulino Leite e ordenou ao capataz
que o castigasse, retirando-se depois.
"Momentos depois era o pobre escravo amarrado ao tronco, sinistro calvario
em que são immoladas as victimas da escravidão e surrado barbaramente por tres
pretos da mesma xarqueada com assistencia do capataz!
"O castigo durou tres horas seguramente, quando o pobre escravo achava-se
moribundo, banhado em sangue completamente siviciado.
"Depois disso, conservaram-no no tronco, onde deve ter a horas d'estas
exhalado o ultimo suspiro (...)". O Didrio de Pelotas publicou um editorial sobre o
mesmo crime (transcrito nesse exemplar de A Voz do Escravo) protestando contra
o fato. Sendo o senhor do escravo pessoa rica e prestigiosa, o rapaz (de 18 anos
apenas) foi enterrado com atestado médico de que morrera de peritonite. Houve
celeuma grande, tendo algumas testemunhas oculares do crime publicado suas
declarações na imprensa. Contudo, parte da imprensa (O Correio Mercantil) de-
fendeu a opinião da "medicina legal", contra "a maledicencia em sociedade com a
especulação, inventando crimes, exercendo vinganças, que não podem merecer a

189
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

menor consideração", conforme se vê na transcrição parcial feita no mesmo nú-


mero de A Voz do Escravo.
Noutro exemplar de A Voz do Escravo de 1-5-81, pág. 3, denuncia-se o in-
fanticídio praticado por um senhor que, em vista da lei do ventre livre, acabara de
atirar à rua, para morrer, um recém-nascido de escrava sua. Era a terceira vez que
assim agia, tendo liquidado anteriormente outros dois filhos da mesma escrava.
28. Dreys,op. cit., pág.s 205-206.
29. Os relatórios dos presidentes da Província registram várias tentativas de morte e
alguns homicídios praticados pelos escravos. Por exemplo: a Falia do 2° vice pre-
sidente Joaquim Pedro Soares, de 1881, registra o assassínio de um agricultor por
seu escravo (pág. 6). Noutro relatório do mesmo presidente, de 1882, menciona-
se o homicídio de um tenente-coronel por um escravo. Aliás, na década de 80, por
motivos óbvios, aumentou a reação dos escravos contra os senhores e contra a
repressão senhorial. O relatório do Dr. José Leandro de Godoy e Vasconcellos, de
1882, por exemplo, registra o seguinte: "A 24 do mesmo mez (fevereiro de 1882),
no 4° districto de Pelotas, o capitão de matto Alexandre Pinto de Souza, querendo
prender um escravo que andava fugido, foi por este gravemente ferido, travando-se
depois renhida luta, da qual resultou a morte do mesmo escravo" (pág. 4). Nesta
década a tal ponto ia a reação inconsciente dos negros à escravidão que só num rela-
tório do Conselheiro José Antônio de Souza Lima, de 1-6-1883, existem as se-
guintes referências a "crimes" de negros: dois escravos foram presos quando
"carneavam tres rezes furtadas" (pág. 5); evadiu-se da cadeia o "preto Ebrisbello
escravo" (pág. 5); foi ferido o "pardo Paulino, escravo" (pág. 7); foi preso o
"ex-escravo" fulano de tal (pág. 8); foi assassinada a preta livre Prudencia, de 70
anos de idade (pág. 7). Parece certo que nos períodos em que os escravos podiam
antever a liberdade exacerbava-se neles a revolta. Assim foi também durante a guerra
dos Farrapos. Caxias, no relatório de 1840, menciona o seguinte no item sobre a
segurança pública: "os poucos assassinatos que tem havido só mancham a última
classe da sociedade, degradados de todas as luzes da religião, e da civilização, e
por cousas tão animaes e mesquinhas como a intelligencia dos Bugres Selvagens, e
dos escravos africanos que os comettem", op. cit., pág. 26.
30. A fuga de escravos para o Prata era constante. D. Felix de Azara na Memoria sobre
el estado rural dei Río de la Piata em 1801, já citado, explica as razões pelas quais
os espanhóis acolhiam os escravos que fugiam dos portugueses e lamenta que se
tenha tentado impor a restituição, que era obrigatória pelos tratados: "Vemos cla-
ramente que los portugueses desprecian los tratados, que usurpan nuestros terre-
nos, y que abrigan a todo ladrón y malhechor com impudencia increíble. An este
concepto, exige el derecho de represalia, que no devolvamos a sus esclavos prófugos.
Además lo dispuso así S. M. à consulta del supremo consejo, declarando, que aunque
los tratados dispongan la restitución de esclavos, no se debía ni podía hacer, por-

190
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

que la fuga era un medio lícito de conseguir la liber, fundado en eI derecho natu-
ral, contra quien no podía ninguna humana convención. Sin embargo, no se ejecutó
tan justa y utilísima disposición, y algunos representaron repetidas veces contra
ella, haciéndose activos agentes de nuestros naturales enemigos, hasta que han
logrado este ano, por la vía dei ministerio e Estado, y sin noticia dei consejo, revocar
aquella sabia disposición de este, y restabelecer la inhumana restitución. No se
reflexionó la conducta portuguesa en estas partes, ni sobre eI derecho natural que
queda violado, ni eI grande bien dei estado que se desprecía. Se alegó que estas
haciendas se sostenian com esclavos, y que se perdería eI país por su deserción.
Pero se equivocaron mucho porque tenemos muy raros esclavos en eI campo,
haciéndose todo por manos libres. De manera que íbamos a perder muy poco, y
aun nada, porque tratamos tan bien a nuestros esclavos, que no hay ejemplar de
haver estos procurado libertad, pudiéndola conseguir yéndose a unir com los indios
infieles, que ne todas partes nos cercan. Los portugueses aI contrario, los tratan
como a asnos de carga; y teniendo cien esclavos por uno nosotros, su deserción
sería forzosamente más de céntupla de la nuestra, lo que ocasionaría un incremen-
to increíble aI bien público, sin mas perjuicio que alguno muy corto a uno u outro
particular" (págs. 20-21).
Apesar disso, a prática de dar guarida aos negros fugidos continuou a exercer-se,
senão legalmente, de fato. Uma das causas invocadas para as hostilidades contra
Artigas era justamente a proteção que ele dispensava aos negros, com cumplicidade
da tropa de linha. Saint-Hilaire, que percorreu as fronteiras depois das hostilida-
des, registrou testemunhos nesse sentido: "O tratamento dado a esse oficial (um
enviado português) e a proteção que Artigas dava aos negros fugidos da Capita-
nia, foram as razões alegadas para o rompimento da guerra" (op. cit., pág. 43); e,
mais adiante, relatando os impulsos belicosos de um oficial português diante das
agressões castelhanas: "que seu comandante (dos espanhóis) dava guarida aos es-
cravos fugidos do Rio Grande do Sul, entregando-os a Artigas, e que um dia, esgo-
tada tôda a paciência, resolveu agir pela fôrça, sendo punido com prisão" (idem,
página 77). Os negros fugidos lutavam nas tropas de Artigas contra os portugue-
ses, e nisso se empenhavam, pois era a luta pela própria liberdade: "É voz geral
que os mais valentes soldados de Artigas são os negros fugidos, o que é natural
porque êles se batem por sua liberdade" (Saint-Hilaire, op. cit., pág. 32).
Quanto às manumissões, elas intensificaram-se (antes da derrocada do regime
servil) durante a Guerra dos Farrapos. Não existem estudos específicos sobre a
posição dos farroupilhas quanto ao problema negro. Sabe-se que os revoltosos con-
taram com o apoio de contingentes consideráveis de ex-escravos e que todo escra-
vo que servisse às tropas republicanas era considerado forro e, ato contínuo,
cidadão. É certo também que essas manumissões implicavam o pagamento pelo
Governo Republicano do valor dos escravos a seus proprietários, o que equivale

1 91
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ao reconhecimento da propriedade escrava. Contudo, por razões de tática políti-


ca, ao que parece, os Farrapos procuraram, oficialmente, revalorizar o negro, como
atestam as medidas de represália adotadas em decreto contra oficiais brancos prisi-
oneiros que seriam fuzilados como reféns no caso de as tropas legalistas açoita-
rem cidadãos republicanos negros (homens de cor, conforme o texto do decreto)
a soldo da República. O espírito abolicionista dos Farrapos manteve-se até o fim
da campanha, a tal ponto que uma das cláusulas da paz implicava o reconheci-
mento pelos imperiais da liberdade dos escravos que se tivessem batido pela Re-
pública.
Sobre o negro nas lutas Farroupilhas, consultar Dante de Laytano, História
da República Rio Grandense (1835-1845), Editora da Livraria Globo, Porto Ale-
gre, 1936, págs. 141-154.
31. Refiro-me, como é óbvio, ao período que vai até a década de 1870. Depois, com a
derrocada do regime servil, as manumissões e as fugas intensificaram-se graças às
condições intrínsecas à dinâmica da sociedade escravocrata e passaram a ter outro
sentido.
32. A Dante de Laytano não passou despercebida a associação mental que os brancos
livres faziam entre escravo e animal. Comentando as posturas de Rio Pardo, nas
quais às normas relativas aos escravos seguiam-se as referentes aos animais, diz o
historiador: "Por uma coincidência cronológica (entenda-se "de seqüência"), mui-
to ao gôsto da época, logo depois da matéria escravo, seguia-se a parte referente
aos animais". "Vida administrativa do Rio Pardo no tempo da Monarquia", Revis-
ta do Museu Júlio de Castilhos eArquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Ano 2, nO
3, Porto Alegre, 1953, pág. 438.
33. "Quando deixei São Borja o Coronel Paulette pediu-me tomar em São Miguel, um
outro pequeno índio espanhol e mandá-lo, ao chegar ao Rio de Janeiro, ao Mar-
quês de Belas, irmão do Conde de Figueira. Não podia recusar esse ato de
prestimosidade; por isso, trouxe de São Miguel, um guerreiro" (Saint-Hilaire, op.
cit., pág. 295).
34. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 93. A observação foi feita na charqueada de Gonçalves
Chaves, liberal e antiescravista.
35. Dreys,op. cit., pág. 84. Vide, também, a nota 32.
36. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 71
37. Idem, ibidem, pág. 72.
38. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 43.
39. A terceira das Memórias de Gonçalves Chaves, "Sobre a Escravatura", é um belo
arrazoado contra a escravidão, que será comentado no próximo capítulo. Não
obstante, Saint-Hilaire colheu na charqueada de Gonçalves Chaves as observações
sobre as crianças escravas e a rudeza do tratamento dispensado ao escravo.
40. Saint-Hilaire, op. cit., pág. 93.

192
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

41. "Apenas vimos uma casa, na qual pernoitamos. Antes de aí chegarmos, o patrão
mandou seus camaradas içar o corpo de um de seus negros, que se afogara quando
estava em Rio Pardo. Quando avistámos o cadaver dêsse infeliz, o patrão gritou:
'~h, meu dinheiro! Que me custa tanto ganhar!" Sua Mulher foi, em uma piroga,
presidir o enterramento do corpo; sôbre a sepultura foi fincada uma cruz de bam-
bu. Quando a mulher regressou ao barco, estava banhada em lágrimas, mas a ru-
deza com a qual trata os escravos fêz-me crer que ela não chorava outra cousa
senão seu dinheiro". Saint-Hilaire, op. cit., pág. 280.
42. Dreys, op. cit., págs. 147-151 e Louis Couty, op. cit., págs. 133-134.
43. Dreys percebeu bem que os escravos, apesar do desejo vago de liberdade a que
alude, e de serem bons guerreiros, eram incapazes de comportarem-se de forma a
pôr em risco o regime escravocrata: "Hum amigo nosso, official superior da
Republica Argentina, chamava os negros - Suissos da America - em referencia a
suas disposições guerreiras; porem, precisão de chefes instruidos e firmes, como
tambem de disciplina severa, e a difficuldade de encontrarem entre si seus
indispensaveis elementos de sucesso, esse mesmo ardor irreflectido que repelle a
ordem e tende incessantemente a sahir da orbita da subordinação, são outros tan-
tos obstaculos, felizmente invenciveis para os negros abandonados a seu próprio
impulso, por isso que tem sido e sempre serão baldados, tanto no Rio Grande como
em qualquer parte do continente americano, seus esforços para conquistar, em
presença da população branca, uma liberdade que são sabem usar, e que, conside-
rada friamente, fóra das especiosas abstrações de uma philantropia especuladora,
he para elles, na sua existencia local, e para a sociedade, muito menos util que
prejudicial" (op. cit., pág. 206).
44. Excetuam-se desse quadro os momentos em que, por causa das inconsistências
surgidas na própria ordem senhorial, como na revolta dos Farrapos, os negros pu-
deram reagir, mas ao lado de facções de senhores, contra algo para eles inteira-
mente abstrato (como a Coroa) e, subsidiariamente, contra a escravidão. É certo
que houve tentativas de revoltas exclusivamente negras. Os relatórios dos presi-
dentes da Província registram essas "sedições". Assim, por exemplo, o Relatório
Fernando Leão de 1859 dá conta de tentativas de rebelião em Capivaí e Piratini.
Contudo, as revoltas eram logo sufocadas: '~Iguns escravos comprometidos no
plano de insurreição forão convenientemente corrigidos; tôdas as combinações se
desfizerão, e a confiança voltou de novo ao animo dos habitantes de Piratiny" (pág.
4). Nos relatórios do decênio 60-70 há várias referências a tentativas de revolta de
escravos, logo conjuradas. Anteriormente a esse período há registros de tentativas
semelhantes. Assim, no relatório Miranda Castro de 1848 noticia-se uma insur-
reição de escravos que fora tentada em Pelotas: "um plano entre os negros de Nação
Mina existentes nesta ultima cidade e nas charqueadas e Olarias que lhe são pró-
ximas, para uma insurreição" (...) "mais de 30 dos referidos negros estão presos"

1 93
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

(pág. 7). Durante a Guerra dos Farrapos, como já disse, as tentativas de rebelião
aumentaram. Em ofício à Câmara de Porto Alegre o chefe de Polícia dizia, cf. as
atas de 13-10-1838: "que a tentativa de uma insurreição de escravos acaba de ser
descoberta nessa cidade, sendo pois preciso, que a Câmara mande por na mais
restrita excecução as suas posturas relativas a ajuntamentos de escravos e pretos
forros nas tabernas, algazarras e cantarolas pelas ruas da cidade, e outros fatos que
lhe são prohibidos".
45. Está claro que me refiro aqui apenas a algumas categorias de escravos urbanos: os
artesãos e segmentos da escravaria doméstica. Não interessa, para fins da análise
aqui proposta, descrever minuciosamente o que acontecia em geral, num dado mo-
mento, em cada cidade do Rio Grande. Os dados disponíveis, entretanto, mos-
tram que também em Porto Alegre, em Pelotas e no Rio Grande as condições de
vida material e moral dos escravos eram subumanas. Trechos de Isabelle, já trans-
critos, e mesmo de Luccock, indicam isso. A título de ilustração reproduzo uma
informação contida em Alfredo Ferreira Rodriguez, Almanak Literário e Estatísti-
co da Provincia do Rio Grande do Sul para 1889, Carlos Pinto & Com. Editoras,
2a edição, relativa às ocorrências do dia 9 de janeiro de 1888, isto é, poucos meses
antes do 13 de maio e quando, formalmente, há quatro anos Porto Alegre havia
emancipado os escravos: "Na secretaria de policia de Pôrto Alegre, os Drs. Emilio
Ferreira Gomes e Marcelino de Souza Junior procederam ao auto de corpo de
delicto numa escrava que viera a pé de Santo Antônio da Patrulha, fugindo ao seu
barbaro algoz Joaquim Corrêa. O corpo da infeliz estava horrivelmente seviciado:
braço, dorso, nadegas apresentavam um aspecto repugnante" (pág. 241). Durante
a vigência plena do regime escravocrata também nas cidades havia a violência aberta
contra os escravos. É verdade que, nas cidades, a crítica da "opinião pública" nas-
cente podia fazer-se sentir. Há registros de protestos contra abusos da polícia nos
seguintes termos: "Por fallar em policia; o Espoleta chama a attenção do Sr. dele-
gado, para o abuso escandaloso, deshumano, e improprio de nossas civilização,
que commetem os soldados de policia, no acto de prenderem os escravos que se
encontram fóra de horas, embriagados ou em desordem. Para cumprir a ordem da
autoridade, não ha necessidade de dar pancadas, mormente em pobres pretos ve-
lhos que não resistem".
Nas Posturas municipais havia sempre dispositivos específicos sobre os es-
cravos que limitavam legalmente limites tolerados de violência conta os escra-
vos nas áreas urbanas. Transcrevo a seguir as Posturas referentes a escravos da
Câmara Municipal de Porto Alegre, aprovadas pelo Conselho Geral da Provincia
em 1847. Em nada diferem das mencionadas pela mesma Câmara em 1931 e, no
geral, assemelham-se às da Câmara de Rio Pardo (cf. Dante de Laytano, "Vida
Administrativa do Rio Pardo ao tempo da Monarquia" já citada) e de Pelotas.
Ei-las: "POSTURAS POLIClAES DA CAMARA MUNICIPAL DA CIDADE DE

194
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

PORTO ALEGRE, approvadas pelo Conselho Geral da Província, Pôrto Alegre,


1846.
Capitulo 1cp - Nem um escravo ou escrava poderá viver sobre si em qualquer
caza, sem licença da Camara, seja qual fôr o motivo ou pretexto; sob pena de pagar
o senhor dos mesmos escravos, pela primeira transgressão, dez mil reis, e pelas mais
vezes mil reis; incorrendo em iguaes multas o proprietário da caza, sendo pessoa
diversa.
Capitulo 200 - Nenhuma pessoa poderá ter escravos por caixeiros de taber-
nas, botequins, bodegas, e outras semelhantes cazas, senão estando presentes nas
mesmas seos respectivos donos; e quem isto contravier pagará, pela primeira vez,
a multa de quatro mil reis, e pelas mais o duplo. A prohibição desta Postura com-
prehende os boticarios, que empregarem escravos na manipulação ou venda dos
remedios.
Capitulo 21° - Os proprietários das tabernas, botequins, bodegas, e outras
semelhantes cazas, não consentirão ahi, sem justo motivo, escravos parados, nem
já mais os consentirão jogando, conversando, comendo, tangendo, ou bailando.
Os que contravierem serão multados em dois mil reis pela primeira vez, e em qua-
tro mil reis pela segunda e mais vezes.
Capitulo 35° - Todo o escravo ou escrava que for encontrado de noite, de-
pois do toque do sino da Camara, sem bilhete de seo senhor, ou da pessoa cujo
cargo estiver, será conduzido à caza do mesmo para se verificar se vai de seo man-
do; e quando se não verifique, será recolhido à prisão ate que o mesmo senhor
sollicite a sua soltura.
Capitulo 39° - Os capitães de matto vencerão a quantia de dois mil reis de
cada um escravo ou escrava, que prenderem, andando fugindo na Cidade ou Po-
voações do Tempo; a de quatro mil reis, verificando-se a prizão fora das mesmas:
a de seis mil e quatrocentos sendo em quilombo, em que se acharem reunidos trez,
e havendo maior número, vencerão doze mil e outocentos de cada um, cujas quan-
tias lhes pagarão os proprietários dos mesmos escravos.
Artigo Addicional- Ficam prohibidos os castigos feitos, em logares patentes
e publicos, aos escravos, os quaes serão castigados em parte interior da cadea, e
por uma só vez. Outro sim, não escederão os castigos a quarenta açoutes: Os que
praticarem o contrario pagarão vinte mil reis a beneficio dos Expostos: a mesma
pena soffrerão os executadores do arbítrio.
Salla das Sessões do Conselho Geral, dez de Fevereiro de mil outocentos trin-
ta e um. Está conforme, Dr. Marciano Pereira Ribeiro, Secretário Supplente."
46. Luccock, op. cit., págs. 134-135. A maior consideração social dispensada ao escra-
vo-artesão reflete-se na orientação das Câmaras Municipais: "Deve-se revogar a
postura que impuzer ao escravo de ofício mecânico que abrir loja a pena de açoutes",
diz Luiz Maria Vidal, Manual Prático das Câmaras Municipais ou Livro indispen-

1 95
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

sável aos Vereadores, pág. V, citado por Dante de LaytanlJ, "Vida Administrativa
do Rio Pardo ao tempo da Monarquia", op. cit., pág. 482.
47. A posição do escravo artífice parece ter sido superior à do escravo campeiro tam-
bém nas estâncias. Luiz G. Gomes de Freitas no já citado trabalho sobre os "Estan-
cieiros Antigos", diz sobre os escravos da fazenda: "Para serviços de rotina ou de
emergência, contava com pedreiro, carpinteiro, ferreiro, funileiro, quasqueiro, e
até alfaiate, o mulato Militão, que tinha instrução bastante para desapertar os fi-
lhos do estancieiro na solução de contas simples de aritmética, passando a "conta"
por um discreto buraquinho na parede de pau a pique que separava a escola de sua
oficina" (pág. 47). Mais adiante, pág. 48, afirma que os escravos artífices valiam
mais dinheiro do que os outros. Nesta memória o autor declara que na estância
onde passou a meninice os "escravos eram tratados com humanidade. Nunca ou-
vimos falar na existência de troncos ou de outros instrumentos de martírio" (pág.
47). Contudo, exemplifica logo adiante a "triste condição do escravo" referindo-
se ao caso de um velho negro da fazenda que depois de servir 40 anos ao senhor,
por morte deste foi vendido para outro dono, que não lhe devia nenhuma estima
especial.
48. No capo V existe comprovação documental para essa afirmação. Convém ponde-
rar que a "benevolência" senhorial manifestou-se mais no período de desagrega-
ção da ordem escravocrata, e mesmo assim foi muito relativa, como se vê nas notas
anteriores, nO 26 e 27.

1 96
CApíTULO IV Estrutura econômica e política da
sociedade escravocrata
Neste capítulo serão analisadas, em primeiro lugar, as relações entre a
economia escravocrata gaúcha e o sistema de poder, tanto no nível local,
como no nível nacional. Veremos, então, as conseqüências negativas so-
bre a economia do charque ocasionadas pelo desenvolvimento incomple-
to da dominação senhorial dos criadores, curtidores e exportadores
rio-grandenses. De fato, por um lado a economia do gado exercia uma
função subsidiária diante da economia propriamente colonial, do açúcar
e do café. Por isso, por mais poderosos que fossem os chefes locais no
plano regional, eles, como camada social, não foram capazes de exercer,
no plano nacional, a influência necessária para contrapor às adversidades
eventuais do mercado uma política econômica suficientemente vigorosa
para permitir a acumulação contínua de riqueza no plano local, ainda que
à custa dos demais consumidores e produtores nacionais. Por outro lado,
as peculiaridades já apontadas da situação do Rio Grande como Província
de fronteira intensificavam o interesse e a influência do Poder Central na
vida político-econômica da região, diminuindo, ainda mais, as possibili-
dades de a camada dominante local impor de forma autônoma seus inte-
resses.
Em segundo lugar, serão discutidas neste capítulo as condições da pro-
dução escravocrata e os limites impostos à expansão econômica capitalis-
ta pela escravidão. A situação específica da economia do charque no
mercado internacional permite a discussão das possibilidades de desen-
volvimento capitalista da sociedade escravista, mostrando como a escra-
vidão foi, num primeiro momento, o recurso possível para a exploração
mercantil numa região de terras abundantes e escassez de mão-de-obra, e,
no momento seguinte, se transformou num obstáculo à generalização do
sistema mercantil de produção capitalista. Através da análise serão postas

199
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

em evidência as bases sociais da produção mercantil escravocrata, apa-


nhando-se as contradições inerentes a esse tipo de produção e os meca-
nismos e componentes que integram a produção escravocrata vista como
um sistema social.

1. ECONOMIA E pOLíTICA

As bases da dominação senhorial no Rio Grande, como vimos no capítulo I,


prendiam-se fundamentalmente à economia do gado: à criação e à expor-
tação de couros e do charque. O estancieiro e o charqueador representam
tipicamente o senhor gaúcho na dupla acepçãu de proprietários de escra-
vos e de chefes de parentelas poderosas. No período do apogeu da domi-
nação senhorial os chefes de clãs, como diria Oliveira Vianna, somavam
já uma influência decisiva na estrutura político-administrativa da Provín-
cia. Contudo, tanto as bases do poderio senhorial eram relativamente
precárias, como a dominação por eles exercida sobre o aparelho estatal,
por motivos que adiante serão discutidos, nunca foi completa. Isto torna-
va o equilíbrio econômico da sociedade pastoril gaúcha muito vulnerável,
pois os estancieiros e charqueadores viam-se tolhidos dos meios necessá-
rios para controlar, na medida de seus interesses, o processo econômico.
Resultou dessa conjuntura que a sociedade escravista gaúcha nunca che-
gou a apresentar a mesma rigidez que marcou a sociedade escravocrata
constituída nas áreas da economia açucareira ou cafeeira. Nestas últimas
a estabilidade do sistema de exploração econômica e as possibilidades de
utilização dos fatores institucionais e políticos para a manutenção do ní-
vel de renda gerado pelo setor exportador da economia garantiram a per-
petuidade das formas de estratificação social. Por esta razão, a continuidade
histórica do sistema de dominação escravista e patrimonial, organizado à
base da produção de mercadorias coloniais, permitiu a formação de téc-
nicas de controle e de formas de ajustamento social estáveis e eficazes.
Com isso, a distância social que existia entre as posições polares da es-
trutura da sociedade escravocrata e, com menor nitidez, a distância que
existia entre os diversos status intermediários da ordem escravista mar-

200
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

cavam-se de forma rígida, que se exprimia a partir do próprio rigor da


etiqueta.
A dinâmica da sociedade escravocrata gaúcha apresenta característi-
cas peculiares que a afastam do padrão corrente de regulamentação social
vigente nas áreas acima referidas. Nela, houve quase sempre um elemen-
to de instabilidade e de risco que, se não significou a formação de uma
sociedade democrática, não deixou de afetar as possibilidades do pleno
desenvolvimento da sociedade senhorial escravocrata nos moldes das áreas
de povoamento antigo do Brasil. Por um lado, na sociedade escravocrata
gaúcha, no conjunto, não houve condições para a formação plena de um
estilo senhorial de existência. Este só se desenvolve quando existem pos-
sibilidades para a manutenção, através do tempo, das posições economi-
camente privilegiadas por uma camada social estável. Nestas condições, a
superafetação das maneiras, o cultivo do ócio, o refinamento e a tranqüi-
lidade senhoriais podem manifestar-se amplamente, recobrindo as bases
reais da exploração escravocrata. No Sul, ao contrário, as relações de vio-
lência necessárias para a manutenção da escravidão e para a definição das
posições de prestígio de grupos de senhores entre si afloravam a todo ins-
tante, como vimos nos capítulos precedentes, denunciando a ausência de
formas mais elaboradas de exercício da dominação senhorial. Por outro
lado, a inexistência de camadas senhoriais estáveis era, ao mesmo tempo,
causa e conseqüência de uma série de desequilíbrios que se manifestavam
no plano econômico.
Com efeito, a economia pastoril gaúcha esteve sujeita sempre a
flutuações mais ou menos bruscas, cujo ritmo, até certo ponto, escapava
de suas condições internas. A documentação disponível mostra que os anos
de prosperidade intercalavam-se com períodos de retração e que essas
flutuações se deviam antes às condições do mercado nacional e platino do
que à dinâmica do pastoreio e da preparação do charque. Assim, as guer-
ras no Prata ou a política de tributação dos poderes centrais influíam de
forma imediata sobre a prosperidade rio-grandense. Basta cotejar as in-
formações de relatórios sucessivos dos presidentes da Província para que
se verifique o acerto dessa afirmação. Em 1849, por exemplo, Soares de
Andrea dizia: '~lém da falta real de gado que sofre esta Província, e por
consequência tem diminuído, e continuará a diminuir a exportação de

2 o1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

charque, e dos couros, tem sido este mal augmentado pela prohibição que
por muito tempo existe, de passarem gados do Estado Oriental para este
lado"l. Alguns anos depois, Sinimbu reafirmava a crise da economia do
gado em termos não menos peremptórios: "Há factos sociais que só por
outros podem ser destruidos. Em quanto o excesso dessa população, que
ficando desempregada pela diminuição do gado, não procurar em nova
industria util emprego ao tempo que hoje consome em vagamundear, em
quanto os fazendeiros não forem mais previdentes e cautellosos, dispen-
sando os favores da hospitalidade e proteção somente com pessoas co-
nhecidas, morigeradas, e dadas ao trabalho, em quanto os benefícios da
paz não se dilatarem por anos para que, corregindo os instinctos guerrei-
ros, imprimão novos habitos e tornem mais amenos os costumes de clas-
ses pouco ilustradas, não poderemos attingir aquelle estado que outras
sociedades melhormente organizadas e já avançadas na senda da civiliza-
ção ainda não poderão conseguir"2.
É fácil compreender que não possuía bases sólidas uma sociedade ru-
ral cuja economia dependia da impossibilidade de concorrentes seus de
países estrangeiros lançarem-se e competirem no mercado. Ademais, as
guerras a que a fronteira esteve exposta durante o século XIX, bem como
as revoluções, não deixaram de afetar a organização econômica da pro-
dução e, conseqüentemente, a posição econômica e o sistema de lideran-
ça dos chefes de parentela. Por essa mesma razão, o caudilho gaúcho não
poderia ser prudente e cauteloso a ponto de restringir sua hospitalidade e
proteção às pessoas morigeradas e trabalhadoras. Ao contrário, ao núcleo
da família poderosa do sul somava-se, ao lado dos escravos e peões, toda
uma gama de pessoas da "classe pouco illustrada" que vagamundeava pelos
campos. Essa era a forma definida de existir socialmente dos agentes sociais
que escapavam às posições polares do sistema escravocrata: não eram se-
nhores nem escravos, constituíam-se como uma espécie de exército de
reserva, pronto para servir os interesses senhoriais. Por isso, as famílias
pobres que andavam errantes (cf. Soares de Andrea) não constituíram
propriamente uma excrescência do sistema social, mas nele se inscreviam
regularmente.
Por outro lado, as flutuações a que estava sujeita a economia gaúcha
não deveriam afetar diretamente o nível de vida da imensa maioria da

202
------~---------------------------------

CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

população rural, e mesmo das populações urbanas, pois, de uma parte, a


produção do charque e a criação de gado eram relativamente constantes3,
ocupando e permitindo a alimentação da escravaria, e, por outra parte, o
padrão de vida do restante da população rural tendia para o nível da mera
subsistência, independendo, em larga margem, da produção mercantil.
Dessa forma as flutuações a que estava sujeita a economia gaúcha refleti-
am-se diretamente apenas sobre a camada senhorial, cuja possibilidade de
manutenção de um dado standard de vida e de fruição do poder ligava-se
imediata ou remotamente com a situação do mercado. Porém, como se
viu nos capítulos 11 e I1I, indiretamente, a conjuntura afetava também a
população servil, senão quanto à posição na estrutura social ou quanto às
possibilidades de usufruir as condições de existência, ao menos quanto à
"atmosfera moral" que envolvia os escravos. De fato, parece inegável que
o aspecto de rusticidade e incerteza na qual estava imerso o mundo
escravocrata senhorial gaúcho acabou por influir nos modos de convivência
típicos entre senhores e escravos, como vimos no capítulo anterior.
A camada senhorial desenvolveu formas de consciência social pelas
quais pôde reconhecer parcialmente a situação particular da economia
gaúcha e fazer sua crítica. Gonçalves Chaves já havia percebido, em gran-
de parte, até que ponto a economia rio-grandense concorria em bases mais
acanhadas com o mercado platino. A própria forma de tributação no Rio
Grande era pré-capitalista, através do "quinto" pago in natura e dos
"dízimos". Contra esse tipo de impostos Chaves escrevia: "O Quinto deve
ser substituido provisóriamente por hum cruzado por couro, e ser pago a
dinheiro a 3 e 6 mezes na Alfandega na forma da Ley: o Dízimo a trinta
réis por praça (que se entende arrôba, alqueire e couro) e ainda assim há
de render mais 25 por % do que rendia o Contracto. Quanto aos direitos
de 600 por arrouba de carne já traz dicemos, e o repetimos, se he preciso,
que devem ser absolutamente abolidos"4.
Ao sistema de tributação herdado do período colonial atribuía-se a
causa de todos os males da economia gaúcha. A crítica, como seria de es-
perar, concentrava-se sobre os tributos que impediam a livre circulação
do gado pela fronteira e sobre os direitos de exportação. Assim, Gonçal-
ves Chaves, liberal ortodoxo, tornou-se o porta-voz dos interesses ligados
à mercantilização da economia gaúcha e, ipso facto, dos que desejavam

203

l
FERNAN\>O HENRIQUE CARDOSO

pô-la em condições de competir com os produtos platinos: "Todos os


nossos Negociantes sabem que em Montevideo, e nos Portos da União
paga cada couro 252 réis e cada quinto de sebo de cem libras 340 réis e
couros de cavalIo a 69 1/4 réis por couro. Tudo mais he absolutamente
livre. Quem comparar os nossos Direitos com os daquelIes Portos, verá
facilmente, que a não se modificarem nossos Direitos de Exportação, de
nada nos poderão valer nossas commodidades do interior: eIlas terão de
ceder a má qualidade de nossa Barra, e ao favor que aIli se goza nos Direi-
tos: o Commercio do Rio Grande desaparecerá, e com eIle a sua prospe-
ridade, e hirá plantar-se no Rio da Prata"s.
A análise cuidadosa desses e de outros documentos permite que se
amplie o conhecimento dos processos que operavam na economia e na
sociedade gaúchas durante o século XIX e que se compreenda tanto o
quadro de referência mais amplo a partir do qual definiam-se as posições
de senhor e de escravo no Rio Grande do Sul como o mecanismo de per-
cepção social do papel do escravo desenvolvido pelos senhores e as pers-
pectivas de ação que formavam o horizonte da camada dos estancieiros e
charqueadores. Com efeito, Gonçalves Chaves expressava na década de
1820 o que viria a ser o leitmotiv da argumentação dos criadores, char-
queadores e exportadores depois de 1850: a economia gaúcha era instá-
vel porque não podia concorrer com a produção platina. A consciência
das causas reais da instabilidade econômica do sul era naturalmente limi-
tada e parcial. Porém, com essas ressalvas, refletia realmente as modifica-
ções ocorridas no processo econômico de produção: o charque, na medida
em que se tornou uma mercadoria, e adquiriu importância no mercado
exportador, desencadeou uma série de processos correlatos que, numa
palavra, tendiam para a constituição de uma economia capitalista. O li-
vre-cambismo de Gonçalves Chaves exprimia, no plano ideológico, o iní-
cio desse processo.
A situação criada pela economia do charque foi, de fato, sui generis
no quadro do desenvolvimento econômico brasileiro do século XIX. Está
claro que o processo mencionado acima de formação do capitalismo era,
naquela época, muito incompleto. As formulações do charqueador e ex-
portador português 6 correspondiam mais às suas preferências pelo libe-
ralismo e às informações que possuía sobre a economia liberal do que às

204
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

reais necessidades da economia gaúcha. Não obstante, a concorrência


platina instigava, de fato, a mercantilização da economia do charque,
obrigando-a a tender para os moldes capitalistas de produção ou a desa-
parecer. Ora, a produção tipicamente colonial (como a do açúcar ou do
café) fundava-se na exclusividade de um produto tropical no comércio
internacional, garantida tanto por condições naturais mais favoráveis ao
produto quanto pela disponibilidade de mão-de-obra abundante e bara-
ta. É certo que o açúcar brasileiro sofreu a concorrência das Antilhas e
que o progresso técnico das Ilhas foi decisivo para o êxito do produto
daquela região diante da mercadoria brasileira. Mas, de qualquer for-
ma, tanto numa como noutra área, as economias eram tipicamente co-
loniais, enquanto a concorrência entre "saladeros" e "charqueadas"
significava a luta entre duas formas diversas de produção econômica:
uma mais presa à situação colonial e escravocrata, outra mais ligada à
produção capitalista.
No decorrer do século XIX esta característica da concorrência entre
os dois mercados acentuou-se progressivamente e, ao mesmo tempo, pôde
cair parcialmente no nível de consciência social dos produtores brasilei-
ros. Pouco a pouco o livre-cambismo de Chaves substituiu-se por uma
ideologia de compromisso entre as possibilidades apresentadas pelas con-
dições sociais da produção gaúcha e a necessidade de competir em bases
realmente vantajosas no mercado. Esta atitude se acha expressa, por exem-
plo, numa análise publicada anonimamente em O Pelotense de 3-3-1855
sob o título "A Actualidade e o Futuro do Rio Grande do Sul", em que se
descreve sombriamente a economia gaúcha: "O commercio e com elle os
outros ramos da industria definham todos os dias, fallece o trabalho, escôa-
se a população, o numerario desapparece, diminuem as rendas publicas, e
as fortunas particulares soffrem progressivo e consideravel desfalque,
decrescendo de valor as propriedades de raiz, a ponto de tornar-se quase
nominal. " Para o autor as causas de "tão grandes males" eram facilmente
discerníveis: "Ninguém ignora que duas são as causas principais - a
concurrencia dos Estados vizinhos no unico importante ramo de nossa
industria - o xarque, - e o escandaloso contrabando de importação,
que pela fronteira se faz, de toda a qualidade de generos e de qualquer
volume."

205
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

A concorrência ruinosa para os estabelecimentos brasileiros fazia-se


apesar do imposto de 25% pago pelo charque importado que "a ex-
periencia tem mostrado não ser sufficientemente protector, porque não
equivalle ao excesso de preço do gado n'esta provincia, assim como do
sal, em consequencia do tributo que sobre eIle pesa". Por isso o articulista
achava indispensável não o livre-câmbio, mas a proteção dos charqueadores
gaúchos para que pudessem concorrer em bases iguais com os produtores
do Prata? Por outro lado, o imposto sobre a importação das outras mer-
cadorias parecia excessivo aos charqueadores gaúchos, que a isso atribuíam
o contrabando desenfreado: "Ninguém ignora que a origem do mesmo
está não só na modicidade dos direitos que pagam os generos de importa-
ção nos Estados limitrophes, mas ainda na sua classificação, de maneira
que se em consequencia da differença dos impostos, podem os generos ali
importados vender-se por menos 20 por cento do que n'esta provincia, a
sua favoravel classificação dá lugar a um abatimento igual au quasi igual,
resultando extraordinaria vantagem ao contrabandista, e assim um forte
estimulo, que só medidas adequadas pódem vedar." A solução para a cri-
se seria, pois, óbvia, uma vez que o A. não acreditava no controle alfande-
gário da fronteira: "os meios indirectos, a organização de tarifas especiais
e a uniformidade dos direitos de importação com os que pagam as merca-
dorias em Montevidéo, é a providencia salvadora a tomar".
Em lugar do liberalismo conseqüente, mas possivelmente inócuo, de
Gonçalves Chaves os exportadores e charqueadores de meados do século
preferiam uma política que, apesar de contraditória (menos impostos nas
mercadorias em geral importadas diretamente pela Província, mais impos-
tos com relação ao charque platino), possuía a marca de "sadio realismo
econômico" que sempre distingue as camadas conservadoras ávidas por
manter as posições de privilégio. Em face dessa posição, contudo, mani-
festavam-se outros interesses que lhe eram contrários. Efetivamente, os
comentários de a Pelotense mereceram resposta do Correio do Brasil, da
CorteS, na qual este jornal, colocando-se do ponto de vista dos demais
produtores brasileiros, que consumiam charque para seus escravos, faz a
crítica da posição d'a Pelotense, percebendo claramente a contradição das
medidas propostas por este último: "Tem razão a Pelotense em pedir a
diminuição do imposto que pagam os generos de consumo da provincia,

206
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

e mui justas são as considerações que faz acerca dos desastrosos resulta-
dos que pode produzir a continuação de escandaloso contrabando que
existe actualmente. Admira, porém, que O Pelotense, que com tanta saga-
cidade determinou todos os effeitos que para bem da provincia se podem
seguir da diminuição do imposto que pagam todos os generos do consu-
mo, se esquecesse de que pouco antes mostrara as vantagens do augmento
do imposto sobre um producto especial. A modicidade dos direitos, pro-
duzindo a barateza dos produetos, augmenta consideravelmente o consu-
mo: é O Pelotense que o diz, e é isso incontestavel; sendo assim como não
vê que o consumo do xarque (estrangeiro e nacional como já mostramos),
tomaria grande desenvolvimento no paiz em beneficio de todos, se o con-
sumidor pudesse ter esse producto por menor prêço do que tem hoje?"9
Transparece na argumentação a diversidade da situação de interesses.
Em nome do "consumidor nacional", isto é, do plantador de cana ou de
café que precisava alimentar a escravaria, o jornal do Rio mostra a incon-
sistência lógica e do desacerto em termos dos "interesses nacionais" da
posição tomada pelo jornal gaúcho. Este, não obstante, como ressalta uma
vez mais na tréplica lO, traduzia, com toda a inconseqüência da argumen-
tação, um ponto de vista que refletia, de fato, a situação e as possibilida-
des de melhora do mercado gaúcho ll • Contudo, para a análise em curso,
a argumentação que melhor desvenda as condições reais da produção
gaúcha encontra-se na resposta do Correio do Brasil. A solução das difi-
culdades vividas pela economia do charque talvez pudesse ser tentada,
como desejavam os charqueadores e exportadores, através de manipula-
ções tributárias. Para isso, seria necessário apenas que estes segmentos da
população gaúcha pudessem enfrentar os interesses de outros grupos eco-
nômicos do país e tivessem acesso aos círculos de poder que controlavam
a política tributária. Entretanto, a causa do desequilíbrio da economia do
charque estava realmente, como apontou o Correio, na diversidade das
condições de produção entre o Rio Grande do Sul e os países platinos: "o
illustrado autor do artigo (de O Pelotense) confessa que (em virtude de
circunstâncias que não cabe aqui examinar) os gastos de produção do
xarque estrangeiro são menores que os do xarque riograndense, tanto assim
que, para equilibrar as condições de venda dos productos, pede eIle um
augmento de imposto sobre o xarque estrangeiro e a diferença é tal, que

207
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

já não basta a protecção de 25 por cento da tarifa actual: o que acontece-


ria pois se, conforme os desejos do Pelotense, viesse ainda a augmentar
esse imposto?"12.
Conseqüentemente liberal e, com seu liberalismo, porta-voz mais con-
seqüente ainda dos interesses das "províncias do Norte", o Correio de-
fende, por isso mesmo, as virtudes da concorrência estrangeira e, outra
vez, mostra que os curtumes gaúchos produziam em condições econômi-
cas realmente desvantajosas em face dos concorrentes platinos: "Não
havendo um imposto que exclua a industria estrangeira os capitaes brasi-
leiros não podendo empregar-se na industria do xarque, irão tomando
outra direcção mais vantajosa para os capitalistas e para todo o paiz, ou
então o interesse fará com que se descubram novos processos de fabrica-
ção, e novos meios de diminuir os gastos de produção da mesma industria,
que, levantando-se de novo mais poderosa, poderá com vantagem com-
petir com a dos Estados vizinhos"13.
Na polêmica entre os dois jornais transparece, de fato, toda a trama
de interesses contraditórios a que esteve sujeita a economia do charque e
se desvendam os motivos pelos quais a instabilidade econômica impediu
a formação de uma economia poderosa e estável. Por um lado, o charque
gaúcho tinha maior custo de produção que o charque platino. Por outro,
os charqueadores e exportadores não possuíam as condições políticas
necessárias para impor de forma duradoura soluções capazes de garantir
sua prosperidade através da manipulação do poder em benefício da cria-
ção de uma situação de privilégio. A imputação causal seria, nesse caso,
falaciosa. De fato, por um lado, melhores condições de produção poderi-
am favorecer a criação de uma situação de mercado mais satisfatória, ca-
paz de permitir lucros estáveis. Com isso, fortalecer-se-iam o poder e o
prestígio da camada senhorial. Por outro lado, se por qualquer motivo
tivesse sido possível à camada senhorial gaúcha o acesso aos níveis de poder
capazes de permitir a manipulação dos instrumentos fiscais e dos meca-
nismos de pressão política que interferem na vida econômica, o efeito seria
semelhante: obter-se-iam condições mais propícias para o comércio do
charque e, com isso, assegurar-se-ia o prestígio dos charqueadores.
Na realidade tanto uma como outra possibilidade efetivaram-se em
épocas diversas, além de que, como viu-se no capítulo I, a instabilidade

208
CAPITALISMO E ESCRAVIDAO NO BRASIL MERIDIONAL

política da região do Prata contribuiu também, intermitentemente, para


garantir o êxito temporário da economia gaúcha. Entretanto, perturban-
do esse processo, havia contradições na esfera do poder que, em última
análise, se resultavam da base econômica acanhada que sustentava o co-
mércio do charque, não deixaram de impedir decisivamente a expansão
dessa economia. Refiro-me à situação implícita na argumentação de O
Pelotense e do Correio do Brasil: "Concedamos, porém, em contraposição
aos nossos raciocínios, que as provincias do Norte tivessem de pagar um
pouco mais caro esse producto de nossa industria, cremos firmemente
que tão diminuto sacrificio não deveria parecer oneroso, em favor de
uma provincia coirmam, e teriam exuberante compensação no mais avul-
tado consumo dos productos d'aquellas, proveniente do augmento de
riqueza e população d'esta", dizia O Pelotense, acrescentando no pará-
grafo seguinte: "O Rio-Grande do Sul tem inauferíve1 direito de recla-
mar proteção à sua industria, assim como os outros membros do imperio,
que já teriam sido attendidos, e com rasão, se os seus productos soffre-
ssem a concurrencia de similares importados do estrangeiro. Acresce que
a aventura e prosperidade de uma nação depende de iguais condições
de todas as partes que a compõem, e será menos rica e feliz na razão
directa da pobreza e miseria de algumas d'ellas. O que se pede, benefici-
ando a provincia, em nada prejudica o Brasil, devemos pois aguardar
benigno acolhimento"14. A argumentos desse tipo respondia o Correio
do Brasil com a tranqüilidade de quem fala em nome dos "interesses
nacionais", isto é, em nome dos que, efetivamente, controlavam o po-
der e, por isto mesmo, podiam impor seu ponto de vista ao país: "O Rio
Grande, para poder concorrer com os Estados co-produtores do xarque
precisa de um augmento nos direitos de importação, as outras provincias,
productoras, por exemplo, de assucar e café, precisam de que o primei-
ro genero da alimentação dos trabalhadores das fazendas, que é o xarque,
materia prima da força physica, seja o mais barato possive1, para que se
augmente o consumo d'esses productos no interior do paiz, e para po-
derem tambem ellas concorrer com os Estados co-productores nos mer-
cados estrangeiros."15
A questão se resumia, em última análise, à dominação exercida pelas
"Províncias do Norte", isto é, pelos produtores de açúcar e café, sobre o

209
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

resto do país e, particularmente sobre o Rio Grande, isto é, sobre os


charqueadores. As reivindicações destes não se transformavam em reso-
luções e leis emanadas dos Poderes Centrais. Esta situação criava tensões
violentas a ponto de transformarem-se, ocasionalmente, em conflitos aber-
tos de interesses, quando não, na situação mais crítica das relações entre
o Poder Central e a Província, no caso da revolta dos Farrapos, em luta
armada. Efetivamente, a compreensão do processo revolucionário dos
Farrapos só se faz plenamente quando são explicitadas as causas das ten-
sões acima mencionadas, isto é, quando se consideram os interesses dos
charqueadores, contrariados permanentemente pela Coroa. A própria ata
de declaração da República Rio-Grandense indica expressamente que os
farrapos assim agiam contra a "Prepotência do Rio-de-Janeiro, que por
tantas vezes tem destruido seus filhos, ora deprimindo sua honra, ora
derramando seu sangue e finalmente desfalcando-o de suas rendas públi-
cas". A consciência da situação desenvolveu-se no plano político, assu-
mindo a aparência de uma luta contra o "poder absoluto" da Corte, a favor
do princípio federativo e republicano. Não obstante, os motivos reais jo-
garam as cartas decisivas: "O imposto que existe actualmente de 25 por
cento sobre o xarque estrangeiro, foi proposto, se não nos enganamos,
no parlamento por um representante da provincia do Rio Grande, hoje
senador do imperio, para satisfazer as reclamações dos productores de
xarque como um meio efficaz de acabar com a guerra fratricida que então
assolava essa provincia; votou-se o imposto e a guerra continuou; resta-
beleceu-se a paz, e o imposto subsiste, e a industria do Rio Grande acha
hoje que essa protecção ainda não é bastante. Tanto é verdade que no
caminho da protecção não ha paradeiro" 16. Este texto mostra bem até que
ponto as reivindicações dos exportadores gaúchos eram frustradas pela
"prepotência" da política central. Foi necessária uma revolução para con-
seguir o imposto dos 25%, que, entretanto, era insuficiente. Cessada a
revolução, não deixaram de persistir as causas de tensão entre os interes-
ses "da Nação" e dos exportadores sulinos.
A 2 de abril de 1846 a Assembléia Legislativa da Província do Rio
Grande do SUP7 dirigia uma representação aos ''Augustos e Dignissimos
Senhores Representantes da Nação", na qual protestava contra as taxas
excessivas que pesavam sobre os ouros para a exportação e sobre o sal

2 1 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

para importação. Dos altos impostos, no entender da Assembléia Provin-


cial, resultava "não poderem os couros do gado vaccum d'esta Provincia
entrar em concorrencia no mercado estrangeiro com os dos Estados vizi-
nhos do Sul do Imperio, onde menos gravados de impostos, podem estes,
sem prejuizo dos productores, ser vendido por muito menos preço, do
que aquelle, por que são obrigados os Estancieiros, e Charqueadores
Nacionais, para não perderem, a vender os de seus gados". E resultava,
de outra parte, que o tratamento do couro era mais custoso, pois todo sal
utilizado neste mister era importado do estrangeiro, dado que o nacional,
sendo inferior, "serve somente para o uso doméstico das cozinhas, e para
a alimentação do gado nos muito poucos, quasi raros lugares da Provincia,
onde os pastos não teem a sufficiente força alimentaria: nenhum uso se
faz d'elle nas fabricas, nem mesmo para salgar o couro".
As tensões econômicas e políticas acima indicadas são muito ilustrativas
para a explicação do sistema de poder no Brasil imperial e suas conse-
qüências no plano econômico. Pelo menos no caso do Rio Grande do Sul
a idéia vulgar de que sobre o chefe local estruturava-se a pirâmide do po-
der, cujo ápice (o aparelho Estatal Central) meramente refletia o equilí-
brio ou as tensões da base, parece ser insuficiente para explicar a dinâmica
da política de facções e da política econômica imperial. Ao contrário, no
Rio Grande, os interesses locais viam-se freqüentemente contrariados. Os
presidentes da Província, delegados do Poder Central, recrutados em ge-
ral na "burocracia política"18 imperial e, por isso mesmo, relativamente
desvinculados dos interesses dos estancieiros e charqueadores, tornavam-
se agentes dos interesses da política geral contra as reivindicações locais.
Nem de outra maneira se pode interpretar, por exemplo, a política pro-
posta pelo Presidente Soares de Andrea com relação à grande proprieda-
de ruraP9. É mesmo sabido que a função precípua dos presidentes da
Província era organizar e ganhar as eleições e que, portanto, seus interes-
ses imediatos vinculavam-se ao Rio de Janeiro e não à clientela local, pois
essa era facilmente controlada, em termos eleitorais, graças à burla orga-
nizada. Por outro lado, no Rio Grande do Sul tanto o poder efetivo dos
Presidentes da Província como seu comportamento, estranho aos interes-
ses locais, encontraram condições que os acentuaram, por tratar-se de uma
Província de fronteira onde a guerra e as tensões internacionais obriga-

2 1 1
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FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

vam ao fortalecimento da autoridade imperial. Isso não significa que os


chefes de parentela, estancieiros, charqueadores ou exportadores, não
possuíssem prestígio e possibilidade de fazer valer, no plano regional, seus
interesses. Ao contrário, como se viu no capítulo 11, eles exerciam pressão
sobre a estrutura organizada de poder na Província, revestiam-se de
indisputada autoridade nos seus domínios e garantiam para si, como ca-
mada local dominante, situações de privilégio que redundavam em enri-
quecimento. Entretanto, nas grandes questões, naquelas que envolviam
os "interesses nacionais", encontravam limitações aos seus desígnios e não
podiam ser considerados senão como camada subordinada aos grupos
senhoriais das outras áreas do Império, graças sobretudo às manipulações
de que estes últimos eram capazes com relação ao Poder Central, mor-
mente no que diz respeito à tributação. A Revolução Farroupilha dá bem
a idéia de tudo isso: só uma camada senhorial relativamente poderosa
poderia ter resistido durante tantos anos em prejuízos decisivos para sua
economia. Contudo, vencidos os farrapos, em praticamente nada se alte-
rou o equilíbrio real de interesses entre os estancieiros e os fazendeiros
"do norte". Esses continuaram a impor sua política ao Rio Grande do Sul.
O depoimento de Antônio Manoel Corrêa da Câmara, calcado nas
declarações feitas diretamente por charqueadores, mostra que em prati-
camente nada se alterou a situação depois de normalizadas as relações
políticas entre o Império e a Província: desejava-se a redução dos direitos
sobre os couros de 15 para 5% e, quanto ao sal, pedia-se a redução de
240 para 5 Oréis por alqueire. A única modificação sensível parece ter sido
quanto ao consenso, então alcançado, de que o Rio Grande do Sul en-
frentava uma situação espoliativa nas suas relações com o "Norte": "Como
quer que o entendão os legisladores do Brasil, qualquer que seja a op-
posição que fação à reducção de taes direitos os interessados do Norte,
cumpre que uns e outros não ignorem que a falta dessa reducção trará
com sigo (passados os primeiros 6 annos que tenhão de paz nossos vizi-
nhos), o gradual progressivo, e crescente aviltamento os productos pasto-
ris na Provincia de S. Pedro, o que será acompanhado de geral subversão
e transtorno de todas as nossas forturnas, e que teremos por companhei-
ros em tão grande desventura, todas as Provincias irmãs que sustentam de
carne beneficiada a sua numerosa escravatura"20.

2 12
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CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

De nada valeram, entretanto, as reclamações. Os mesmos problemas


que tornavam instável a economia do charque na década de 1840 conti-
nuavam à espera de solução e, até certo ponto, viram-se agravados no fim
da década de 1850: "A falta de braços tende a quebrantar as forças d'esta
industria", dizia, sobre a situação do charque em 1858, o presidente Silva
Ferraz, "a concurrencia do estrangeiro lhe é igualmente fatal; e a interna,
que crearão as circunstancias anormais do Estado vizinho em certo nú-
mero de annos, fazendo~a florescer e augmentar, também com a cessação
d'essa causa até certo ponto a abateo. As charqueadas dos municipios do
Triumpho e d'esta capital esmorecerão em seus trabalhos pela concurrencia
das de Pelotas. As que se fundarão no territorio do Estado Oriental e nas
margens do Jaguarão, e da lagoa Merim produzirão o mesmo effeito"21.
Às causas tradicionais de instabilidade da economia gaúcha acrescen-
tara-se, pois, a da carência, e conseqüente encarecimento, de braços. Ain-
da uma vez, eram as Províncias do Norte as responsáveis (e beneficiárias)
por essa dificuldade suplementar com que passaram a contar os char-
queadores: "Uma parte da População d'esta Provincia igualmente vai
soffrendo desfalque em virtude de sua passagem para as nossas Provincias
do Norte. Refiro-me à população escrava"22, dizia o mesmo Presidente. A
evasão tornou-se constante da década de 50 em diante, compensada ape-
nas nos momentos de expansão do fabrico do charque, quando, apesar
do preço, era vantajoso importar mais escravos.
Até a dissolução do regime servil persistiram tanto a carência de bra-
ços para os charqueadores como, agravadas, as dificuldades de exporta-
ção dos couros e do charque diante da concorrência platina. Assim, em
1864, dizia Barros Pimentel: "Exclusivamente preparado para o consu-
mo interno, o xarque da província encontra numerosa concorrência do
artigo similar que os Estados vizinhos exportão em grande quantidade para
os mercados do norte do Império"23. Pimentel atribuía aos "serviços e
gados" mais baratos do Prata as causas da ruína do charque gaúcho. Em
1872, da mesma forma a Associação Comercial da cidade do Rio Grande,
em arrazoado em resposta a ofício que lhe fora enviado pelo presidente
da Província sobre elevação de impostos, insistia para que o imposto não
fosse muito elevado e alegava, como todos os exportadores do passado,
que os produtos gaúchos achavam-se demasiadamente onerados com tribu-

213
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

tos, em face da situação dos concorrentes platinos: "Julga a comissão (de-


signada pela Associação Comercial para estudar o assunto) que o imposto
por ella indicado é o maximo que póde supportar cada uma das materias
tributadas, e para justificar esta asserção fará as observações seguintes: A
exportação de productos da provincia já se acha onerada com: 9% de
direitos gerais, 3 e 4% (conforme a natureza do producto) de direitos
provinciais e 3/4% do imposto da barra de Pelotas, perfazendo tudo 123/
4% e 141/2%". "Ora, considerando que os nossos productos são, na sua
generalidade, similares dos do Estado Oriental, que pagão apenas um di-
reito de sahida de 8%, e considerando ainda que os nossos productos como
os daquelle Estado se dirigirem todos aos mesmos mercados na Europa e
nos Estados-Unidos, são competidores, fica palpavel a posição desvanta-
josa dos productos da provincia. A comissão estudou este assumpto com
a mais escrupulosa attenção: e se se não tratasse de fornecer elementos
para a realização de uma obra de necessidade tão urgente para esta cida-
de, certamente que rechaçaria qualquer idéia que tivesse por fim aggravar-
se mais a posição, já tão critica, do primeiro ramo de commercio da
provincia, qual é o da exportação"24.
No plano da política econômica geral do Império, entretanto, as
imprecações dos criadores e exportadores foram debalde. As reclamações
do fim do século apenas Indicam que durante o período imperial a domi-
nação do "Norte" sobre o "Sul", isto é, da economia exportadora coloni-
al sobre a economia de base escrava que pôde organizar-se nos setores
dedicados aos produtos de consumo interno, impediu que a economia
gaúcha aproveitasse os momentos que lhe foram mais favoráveis para con-
solidar-se. A heteronomia a que se sujeita o Rio Grande refletia-se, por-
tanto, de forma imediata, sobre as possibilidades que a camada senhorial
tinha para lutar por seus interesses econômicos.

2. A PRODUÇÃO ESCRAVA

A documentação apresentada e analisada na primeira parte deste capítulo


demonstra, pois, que as relações de intercâmbio e as condições de con-

2 14
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

corrência da economia do charque se foram agravando no decorrer do


século XIX, em prejuízo dos produtores gaúchos. Entretanto, as causas
apontadas nos documentos da época para explicar esse processo não são
suficientes para que se compreendam as dificuldades quase permanentes
dos produtos gaúchos. Em geral, fatores secundários no processo econô-
mico assumem papel primordial nas tentativas de explicação que foram
empreendidas. Isso significa que as formas de consciência social desen-
volvidas pelas camadas dominantes não permitiram que os problemas reais
da economia gaúcha caíssem no horizonte de sua crítica. Nem poderia ser
de outro modo, pois a percepção mais profunda da situação real obriga-
ria o desenvolvimento de formas de consciência e de crítica impossíveis
para os charqueadores: a instabilidade e a desvantagem quase permanen-
te das condições de concorrência da economia rio-grandense deviam-se à
própria forma básica de constituição e organização do trabalho na socie-
dade escravista. Assim, o conhecimento objetivo da situação, sua crítica e
o encaminhamento de soluções levariam à negação das condições que
garantiam a situação estamental a que se ligavam criadores, charqueadores
e exportadores. Era, por isso mesmo, socialmente inexeqüível. Por este
motivo, a consciência desenvolvida foi quase sempre limitada ao plano
político, deixando à margem as condições propriamente sociais e econô-
micas. À dominação exercida pelas Províncias do Norte, aos erros da políti-
ca tributária, às questões de fronteira, inclusive o contrabando, atribuíam-se
todos os males e limitações da economia gaúcha. A tal ponto que na revo-
lução dos Farrapos opunham-se princípios e formas de organização do
poder contra outros tantos princípios e formas de organização do poder,
ficando relegadas ao segundo plano quaisquer outras considerações.
Não obstante, se formalmente a consciência assim se desenvolvia, o
processo não foi isento de ambigüidades que, em última análise, denuncia-
vam já a tendência, não plenamente explorada ou manifesta, existente em
alguns grupos para "ver mais claro socialmente". Não poderia passar in-
teiramente despercebida a experimentados homens de negócios a incon-
sistência da argumentação que utilizavam para explicar seus constantes
fracassos. A diferença de impostos nas áreas platina e gaúcha, alegada no
memorial da Associação Comercial, não era tão grande a ponto de expli-
car todos os males que lhe eram atribuídos. Por outro lado, já os revolu-

2 15
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

cionários de 35-45, em nome dos princípios que defendiam, é verdade,


propunham-se à libertação dos escravos, antecipando-se assim, na ação, à
própria consciência de seus males. E, mais significativamente ainda, de-
senvolveu-se no sul a consciência de que só o trabalho livre, propiciado
pela imigração, poderia, enfim, transformar realmente a Província numa
área próspera e feliz. Esta grande idéia salvadora significou a crítica vela-
da, raramente expressa em suas implicações mais diretas, à ordem social
escravocrata, responsável real pelos malogros da economia gaúcha na
°
concorrência com Prata.
De fato, a análise de Couty não deixa margem para dúvidas sobre
esse último ponto. O charque e os couros do Rio Grande não podiam
competir, em condições normais do mercado, porque seu custo era maior,
como os textos transcritos neste capítulo indicam. O custo de produ-
ção, por sua vez, era maior porque o trabalho escravo apresentava me-
nor produtividade 25 que o trabalho livre do mercado platino. Couty
percebeu claramente que era esse o ponto central da questão: "Se um
charqueador de Pelotas abate menos que seu concorrente do Sul, se com-
pra o gado igualmente caro, apesar de ter um mercado direto - uma
tablada - se, principalmente, sua produção pouco variável não é capaz
de acomodar-se às variações do mercado de venda, se, em conseqüên-
cia, os ganhos realizados são certamente menos consideráveis, é preciso
atribuir tudo isso, segundo penso, a uma só e mesma causa: à diferença
da mão-de-obra. No Rio da Prata a mão-de-obra é livre, e em Pelotas
utilizam-se ainda escravos"26.
A partir desta perspectiva é possível compreender, num nível mais geral
e mais profundo de análise, tanto as causas de a impossibilidade da eco-
nomia gaúcha prosperar continuamente como, o que possui acentuada
significação para a explicação da dinâmica da sociedade escravocrata, as
contradições internas do sistema escravista de produção e as barreiras
insuperáveis que esse tipo de organização do trabalho impunha ao desen-
volvimento da técnica de produção e, portanto, à sua própria expansão.
Por isso, o sistema escravista estava destinado ao malogro desde o mo-
mento em que competia com economias organizadas à base do trabalho
livre. Deter-me-ei sobre esta análise porque suas conseqüências, segundo
penso, transcendem o interesse de explicação das causas da crise da eco-

216
CAPITALISMO E ESCRAVIDAo NO BRASIL MERIDIONAL

nomia pastoril do Rio Grande, para lançar luz na compreensão das possi-
bilidades de constituição e expansão do capitalismo moderno nas socie-
dades que têm como fundamento o regime escravocrata27•
A economia escravista, por um lado, é uma economia de desperdício
pela sua própria natureza e, por outro lado, funda-se em requisitos soci-
ais de produção que a tornam obrigatoriamente pouco flexível diante das
necessidades de inovação na técnica de produção. Noutros termos e sin-
tetizando, a economia escravocrata, por motivos que se inscrevem na pró-
pria forma de organização social do trabalho, impõe limites ao processo
de racionalização da produção e à calculabilidade econômica. Isto signifi-
ca que, a partir de um certo limite, a economia escravocrata se apresenta
como um obstáculo fundamental para a formação do capitalismo.
Essas características da produção escrava tornam-se patentes quando
se cotejam as condições de produção dos charqueadores com os "saladeros"
do Prata. O charqueador gaúcho, comprando escravos, comprava força
de trabalho que excedia às necessidades da produção. Por isso, a capaci-
dade ociosa de produção de seus estabelecimentos era uma constante. De
fato, em setembro, outubro e novembro, fora da época da safra e da pre-
paração dos derivados do gado, enquanto os produtores platinos para-
vam, os charqueadores continuavam trabalhando, porque era preciso ocupar
os escravos, tanto por motivos extra-econômicos (para mantê-los ativos e
disciplinados) como para aproveitar a força de trabalho em alguma for-
ma de produção que, se não dava grandes lucros, permitia ao charqueador
a "ilusão do trabalho". Essa função latente do regime de trabalho cons-
tante ocultava à consciência dos senhores as desvantagens do regime de
produção sobre o qual erigiam seu prestígio e sua situação de domínio. O
ato de compra, como vimos, dissimulava ao senhor as reais condições
econômicas da produção escrava: mesmo fora da época das safras, o es-
cravo precisava ser alimentado, vestido e alojado. Custava, portanto, uma
certa retribuição diariamente renovada. Essa retribuição, contudo, quan-
do o trabalho escravo aplicava-se às tarefas acessórias, constituía-se, pra-
ticamente, num desperdício de capital, pois o produto realizado pelo
escravo nessas condições só existia como uma excrescência do mecanis-
mo da produção, como algo que se criava com o fim exclusivo de manter
ocupado o escravo28 •

2 17
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Está claro que isso não quer dizer que o escravo se dedicasse, nesse
período, a trabalhos diferentes da atividade principal da charqueada (a
salga, a preparação dos couros, das graxas e dos demais subprodutos do
gado). Entretanto, ocupava-se com tarefas que poderiam ter sido realiza-
das na ocasião das safras, se houvesse incentivos para melhor organizar e
controlar o próprio processo de produção. Entretanto, no sistema escravista,
o interesse imediato está na organização e no controle da mão-de-obra
como um verdadeiro (aux (rais da produção, isto é, não no sentido de
aumentar a produtividade, mas no intuito e com o resultado de manter a
autoridade no trabalho.
Por outro lado, a continuidade no trabalho é obtida através da vio-
lência e da disciplina militar, porque não há nenhum incentivo pessoal e
externo ao próprio ato de trabalhar (como o afã de melhor retribuição
no caso do trabalhador livre) sobre o qual se possa assentar o trabalh0 29•
Assim, o trabalho escravo compartilha com o trabalho do operário livre
da condição fundamental de trabalho alienado e alienador: não pode
tornar-se fonte de satisfação e realização humana. Mas, no regime capi-
talista, o trabalho livre permite a seleção de uma forma de incentivo à
produção, como o salário, que, com tudo o que possui de mistificador,
dá a ilusão do trabalho retribuído. Em certas circunstâncias pode mes-
mo induzir o trabalhador a dedicar-se à sua tarefa para, com mais traba-
lho, obter maiores salários e, conseqüentemente, maiores possibilidades
de adquirir os meios indispensáveis para sua satisfação na vida extrafabril.
O trabalho escravo, ao contrário, não permite nenhuma forma seme-
lhante de ajustamento do produtor às condições de produção. Torna-se
uma condenação irremissível que só se pode manter graças à coação direta
e contínua30 • Ora, essa necessidade de coação direta e contínua reflete-
se tanto nas preocupações como nos interesses materiais dos senhores,
distorcendo o sentido da produção. Por isso, a organização do trabalho
escravo é uma organização contra o trabalho, isto é, contra as possibili-
dades de intensificar a produção. A energia e os recursos despendidos
no regime escravo com a pura manutenção e funcionamento da escravi-
dão pela escravidão impedem o aproveitamento racional das condições
de trabalho e tornam o regime escravista um regime de desperdíci031 •

2 18
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Também noutro sentido o regime escravista implica o desperdício:


constitui-se como uma barreira para o cálculo econômico e para o apro-
veitamento adequado das condições de mercado. Nem a intensificação da
produção, nem sua redução, podem reagir e ajustar-se dinamicamente às
condições do mercado. A inversão inicial sob a forma de mão-de-obra,
como "capital fixo", era muito grande nas charqueadas e representava uma
desvantagem diante do empresário capitalista que só retribui o trabalho
já realizado e que não inverte um centavo sequer como capital fixo sob a
forma de mão-de-obra. Dessa maneira, qualquer incentivo do mercado
que obrigasse a um aumento de produção em nível mais alto do que o já
permitido pelos meios de produção dos charqueadores (instalações e es-
cravos) obrigava de início a um grande dispêndio adicional para a com-
pra de novos escravos. Enquanto o escravo foi mercadoria barata, esse
fator deve ter sido secundário para o equilíbrio da economia gaúcha. À
medida, porém, que a supressão do tráfico e a drenagem de mão-de-obra
para as Províncias do Norte foram encarecendo o preço das "peças", cres-
ceu a significação limitativa dessa característica da produção escravista para
a economia das charqueadas32 • Por outro lado, por causa do montante de
inversão inicial sob a forma de mão-de-obra, os charqueadores possuíam
estabelecimentos mais modestos que os "saladeiros"33, o que significa que
as grandes intensificações da procura obrigavam, de fato, a novas inver-
sões. Deste ângulo os produtores platinos levavam acentuada vantagem,
como bem compreendeu Couty: "O saladeirista do Sul não precisa fazer
nenhum adiantamento de fundos para assegurar sua mão-de-obra; e êle
está seguro, ao menos atualmente, de encontrar, assim que deseje, traba-
lhadores treinados; ao contrário, o charqueador necessita comprar muito
caro os escravos, e êste capital imobilizado é um fator importante nas re-
giões onde os juros do dinheiro são elevados. Além disso, êsses escravos
desgastam-se, envelhecem e morrem; e, ainda que as operações da salga
sejam muito sadias, e não acarretem doenças ou mortalidade especial, há
dêste ângulo uma nova e considerável perda"34.
O único recurso que restava ao charqueador para atender ao aumento
da demanda era, quando as condições técnicas do estabelecimento per-
mitiam, intensificar o ritmo de trabalho dos escravos. Entretanto, nesse
caso o charqueador defrontava-se com a resistência passiva dos negros,
que, não tendo sua sorte ligada ao ritmo de produção que alcançassem

2 19
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

(ao contrário dos trabalhadores livres do Prata que eram remunerados por
tarefas e pela produção obtida), não sentiam nenhum estímulo para pro-
duzir mais: "O escravo não tem, com efeito, nenhum interesse para tra-
balhar bastante e para ultrapassar a taxa média que lhe é imposta"3s.
Como contrapartida desse processo, também a redução da quantida-
de de produtos não se podia fazer conforme as previsões e as necessida-
des do mercado. Diminuindo a procura, a produção não podia diminuir
no mesmo ritmo, pois a mão-de-obra escrava não é passível de contração
imediata. O saladeirista não só, nos meses da entressafra, dispensava a força
de trabalho que não utilizava e que era propriedade do trabalhador, como
comprava a quantidade de força de trabalho que havia realmente utiliza-
do para a produção das mercadorias requeridas pela demanda. O char-
queador, ao contrário, comprava o escravo e, além disso, retribuía sob a
forma de mínimos vitais a força de trabalho disponível do escravo, utili-
zasse-a ou não. Portanto, também num segundo sentid0 36, o aproveita-
mento da mão-de-obra no regime escravocrata possuía um componente
irracional: a produção marcava-se por um ritmo independente, até certo
ponto, das solicitações do mercad037. À característica fundamental da
produção capitalista de "produção pela produção", imposta pela dinâmi-
ca da acumulação do capital, substituiu-se no regime escravocrata a "pro-
dução pela escravidão", ou a "produção da escravidão" como uma norma
duplamente irracional. A escravidão constituía-se como um sistema de
produção que se pretendia uma forma de exploração absoluta em benefí-
cio dos senhores. Mas, nos momentos de crise, revelava sua face contra-
ditória de "produção pela escravidão". Num e noutro caso, mantinha-se
como um sistema de trabalho contra o trabalho, no sentido que expliquei
aCIma.
Entretanto, a escravidão se tornou um obstáculo insuperável para o
desenvolvimento do capitalismo e um sistema de produção destinado ao
insucesso diante da concorrência capitalista, por uma outra razão mais
diretamente vinculada à própria forma de organização do trabalho escra-
vo: o sistema escravocrata impedia, no Sul, a intensificação do processo
de divisão técnica do trabalho e a especialização profissional. Também por
esse motivo o trabalho escravo apresentava índices menores de produtivi-
dade que o trabalho livre.

220
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

De fato, segundo as informações de Couty, um charqueador com 80


escravos e 10 trabalhadores livres não matava, em média, por dia, senão
de 200 a 250 bois, freqüentemente menos. Um saladeirista possuindo 180
trabalhadores matava e preparava de 600 a 800 animais, isto é, enquanto
um escravo preparava 2 a 3 animais por dia, um trabalhaor livre prepara-
va de 4 a 5 38. Isto não obstante a técnica de preparo do boi, em si mesma,
ser melhor e mais rápida em Pelotas do que no Prata39. Para Couty, a ex-
plicação desse fenômeno estava em que "a superioridade do trabalho li-
vre acusa-se ainda por um outro fato: isto é, pela divisão maior do trabalho
nos saladeros do Sul"40.
Gonçalves Chaves, em 1822, apontara já as conseqüências negativas
da escravidão sobre a divisão do trabalho e a necessidade da intensifica-
ção dessa para a prosperidade das nações: "Nada póde co-operar mais
efficazmente para os trabalhos productivos da huma Nação, do que a
subdivisão do mesmo trabalho: no Brasil aonde o Alfaiate Escravo se
muda para çapateiro, aonde (digo) o Escravo he ao mesmo tempo, la-
caio, boleeiro, ou carpinteiro, visto que as precisões dos Senhores são
absolutas dispensadoras do genio do Escravo, como poderá haver sub-
divisão do trabalho?"41. Nas charqueadas, da mesma forma, a escravi-
dão impunha um limite à divisão do trabalho. Enquanto em Pelotas havia
apenas carneadores, encarregados de todas as operações que antecedes-
sem à salga, salgadores, para salgar e empilhar, trabalhadores para a se-
cagem e trabalhadores encarregados uns das graxas, outros dos couros,
no Rio da Prata cada uma dessas operações era completamente subdivi-
da42 . Finalmente, a especialização do escravo implicaria realmente um
contra-senso, uma vez que o trabalho cativo precisa ser um trabalho
bruto, para impedir que o escravo se anteponha ao senhor: "o embru-
tecimento é condição essencial da escravidão, porque todo o saber do
escravo é perigoso para o senhor; e como de um trabalho brutal não se
podem esperar os melhores resultados, ainda por essa razão pensa-se que
, o trabalho escravo é pouco produtivo"43.
Em suma, o trabalho especializado do Prata custava mais caro, no sen-
tido de que os salários envolviam uma retribuição do trabalho relativa-
mente mais elevada que o trabalho escravo do Rio Grande. Porém,
considerando-se sua maior produtividade e considerando-se o desperdí-

22 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

cio obrigatório da força de trabalho na economia escrava, ainda assim era


mais vantajoso para o produtor o trabalho livre bem retribuído.
Esses fatores (maior produtividade e menor desperdício) eram, como
vimos, correlacionados, e no Rio Grande não se podia aumentar o rendi-
mento do trabalho, isto é, não se podia intensificar o processo de divisão
do trabalho, nem tender para a especialização, exatamente porque as con-
dições sociais do trabalho escravo formavam um obstáculo insuperável a
esses processos. O empresário capitalista podia organizar a produção de
forma a secionar as operações no processo produtivo, mas isso era im-
possível no Rio Grande. A razão é simples: sendo a preparação do charque
uma atividade sazonal, obrigava o charqueador a organizar o processo
produtivo de tal forma que se estendesse por todo o ano, para ocupar o
escravo permanentemente. Não estimulava, pois, nenhuma forma de or-
ganização mais racional do trabalho. Se numa produção sazonal fossem
introduzidas técnicas de produção, como o melhor secionamento das
operações requeridas para o fabrico do charque e demais subprodutos,
que garantissem maior rapidez na produção, o escravo permaneceria ocioso
a maior parte do tempo. Além disso, se o processo de produção se aper-
feiçoasse a ponto de requerer especialistas em certo tipo de operação
produtiva, resultaria que a quantidade de tempo ocioso dos escravos es-
pecialistas, pelo menos em alguns tipos de especialidade, seria maior ain-
da. Com efeito, o tempo requerido para a produção das várias tarefas em
que se decompõe o processo de trabalho num ramo desenvolvido de pro-
dução é variável. Isto introduz uma complicação muito grande na pro-
porção de profissionais de vários tipos, requeridos para a produção de
uma dada mercadoria. Quando se trata de uma economia complexa, or-
ganizada à base da mão-de-obra livre, a oferta automaticamente se ajusta,
grosso modo, a longo prazo, às necessidades do mercado de trabalho. Por
outro lado, o problema da ocupação de profissionais altamente espe-
cializados se resolve seja por causa do volume da produção em grande
escala, que corrige a desproporção entre a quantidade de trabalho de uma
determinada especialidade em face da produção de uma dada fábrica, seja
porque o profissional pode vender sua força de trabalho a mais de uma
empresa no decorrer de um período definido de tempo. No sistema eco-
nômico global, tanto platino como gaúcho, a especialização acentuada do

222
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

trabalho não se podia resolver dessa forma. Os produtores platinos, con-


tudo, ainda aqui levavam vantagem sobre seus concorrentes gaúchos: a
intensificação da divisão do trabalho e da especialização nos saladeiros
resultaria, como resultou, na dispensa de mão-de-obra em geral e na uti-
lização parcial durante o ano da mão-de-obra empregada. Porém, como
os saladeros adquiriam somente a força do trabalho utilizada, a conse-
qüência negativa maior desse processo recaía apenas sobre os trabalhado-
res. Esses, durante parte do ano, voltavam para a campanha, à busca de
uma ocupação provisória, em geral pessimamente remunerada, ficando,
muitas vezes, parte do ano na ociosidade. Assim, ao saladeirista pouco
importava, por exemplo, diminuir o ritmo do abate para 2 ou 3 dias por
semana, desde que fosse essa a necessidade de matança, por causa da pos-
sibilidade maior que possuía de preparar o charque para as exigências do
mercado. Possivelmente os "técnicos" na matança ficariam desocupados
3 ou 2 dias por semana, mas o saladeirista não retribuiria um tostão pelo
trabalho não realizado. Já o senhor de escravos não poderia suportar o
ônus social que representariam 2 ou 3 dias de ociosidade de seus escra-
vos. Além disso retribuiria todo o tempo, sob a forma de alimentos, ves-
tuários e alojamento, a força de trabalho que não consumira.
Por isso, o senhor de escravos interessava-se antes por ocupar sempre
o escravo do que por ocupá-lo melhor, ou mais produtivamente: ''Assim,
alguns trabalhos como os dos couros, e mesmo o empilhamento ou o
embarque, são às vezes executados um pouco tardiamente, de preferência
nos dias de desocupação, e por todos os escravos. Numa palavra, não há
especialização do trabalho porque se procura economizar mão-de-obra"44.
A expressão final de Couty, com o contra-senso aparente, mostra bem o
sentido anticapitalista do sistema escravista: economizar mão-de-obra na
economia escravocrata significa o oposto do que por esse processo se
entende numa economia capitalista. Nessa, economiza-se a retribuição ao
trabalho, isto é, diminui-se o tempo necessário para a manutenção do
operário gasto na produção. Naquela, como o senhor adquire compulso-
riamente a força de trabalho de escravo em todos os momentos da vida,
significa fazer com que, durante todo o tempo, o escravo desgaste sua força
de trabalho em tarefas que aparentemente interessam ao senhor, mesmo
quando, na realidade, essas tarefas significam um desperdício de tempo

223
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

em termos do processo de produção. Numa palavra, o sistema escravocrata,


numa economia mercantil que visa o lucro, encobre para a proprietário
de escravos o sentido real da produção capitalista e impede o pleno
florescimento do capitalismo.
Mas também noutro sentido o regime de trabalho escravo erige-se
como uma barreira à intensificação da divisão técnica do trabalho e, por-
tanto, à racionalização do processo de produção requerida pelo capitalis-
mo moderno. Já afirmei repetidas vezes que o estímulo decisivo para o
trabalho no regime escravista é a violência e o controle estrito do escravo.
Isto aumenta o custo social da produção porque exige a organização de
um corpo de trabalhadores parasitários do processo de trabalho (feitores
etc.) e introduz mais um elemento de irracionalidade no processo produ-
tivo. Com efeito, em Pelotas o controle da produção do escravo era feito
de molde a impedir o secionamento do trabalho. Cada escravo era obri-
gado a executar um conjunto de tarefas diversas capazes de serem rea-
grupadas e medidas. Por esse motivo, o mesmo escravo dedicava-se, num
mesmo dia, a muitas tarefas diferentes: "Ele deverá trazer, no fim de sua
jornada, um certo número de orelhas que indicarão o número dos ani-
mais e dos couros que preparou"45.
Portanto, a escravidão constituía-se como um obstáculo para o pro-
gresso da economia gaúcha tanto por motivos estritamente econômicos,
isto é, de mercado, como por motivos que se prendiam diretamente à forma
de organização do trabalho escravo. A situação descrita e analisada neste
capítulo, foi, sob certos aspectos, particular às condições da economia do
charque, mas acredito que possua significação geral em termos da econo-
mia escravocrata46. Ela mostra que o regime servil limita as possibilidades
da racionalização da vida econômica e, por conseqüência, de desenvolvi-
mento do capitalismo. Insisto sobre este ponto porque, como é sabido, o
regime escravista desenvolveu-se no Brasil como um recurso para a ob-
tenção de mão-de-obra abundante para a produção mercantil de produ-
tos agrários tropicais numa economia que supunha já o desenvolvimento
do capitalismo comercial. Sabe-se que tal sistema funcionou adequada-
mente, isto é, permitiu lucros elevados ou razoáveis, por muito tempo.
Ninguém ignora, também, que historicamente as possibilidades de persis-
tência desse regime encontraram seu ocaso com o término do tráfico, que

224
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

reduziu drasticamente o fornecimento da mão-de-obra. Não obstante, a


análise que fiz demonstra que, teoricamente, o regime escravocrata acaba
por tornar-se um entrave para o desenvolvimento do capitalismo inde-
pendentemente das possibilidades de suprimento de escravos, tão logo haja
necessidade de intensificar os meios técnicos de produção e de apelar para
a calculabilidade e para a economia dos fatores de produção.
Dessa forma, a sobrevivência do sistema escravocrata prende-se à exis-
tência de conjunturas econômicas que permitam altos lucros, pois nesse
caso não existe incentivo nem necessidade para racionalizar o processo
de produção que, assim, pode realizar-se nos quadros de uma economia
de desperdício. Foi, de fato, o que aconteceu com os "produtos tropicais",
cuja produção fazia-se em situação de monopólio, por economias escra-
vistas embora de países ou colônias diferentes. Havendo concorrência e,
mormente, concorrência entre produtores que organizam o trabalho à base
do salário e produtores que o organizam à base da escravidão, este último
tipo de economia está destinado irremissivelmente ao fracass047•
Em última análise, este progresso se explica porque a única forma
possível de incrementar o rendimento do trabalho escravo está no aumento
do número de horas da jornada de trabalho, processo que esbarra com
limites naturais; ou então na intensificação do ritmo de trabalho sem gran-
des alterações técnicas, processo que, como indiquei, esbarra com limites
psicossociais. Noutros termos, isto significa que a escravidão permite ape-
nas uma intensificação absoluta de mais produto, enquanto a mola sobre
a qual assenta a dinâmica do sistema capitalista desenvolvido é a produ-
ção de mais-valia relativa, obtida graças à introdução de recursos técnicos
e à subdivisão do trabalho, que permitem produzir em menos tempo o
equivalente ao salári048 • Ora, por mais que o senhor de escravo não per-
ceba que parte do tempo gasto por seus escravos resume-se a produzir os
meios necessários às suas vidas, esse processo não deixa de ocorrer na
realidade49•
Por outro lado, o escravo precisa, além disso, produzir mais produtos
para cobrir o capital inicialmente investido na sua compra, sem o que a
empresa escravista brasileira, que visava lucros que se realizavam no mer-
cado, estaria, desde o início, condenada. Esta exigência da economia es·
crava voltada para a produção capitalista mercantil mostra não só sua

225
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

fragilidade para concorrer com a produção capitalista assalariada, como


evidencia outra contradição do sistema "escravocrata-capitalista" de pro-
dução: na economia capitalista o capital variável é circulante, enquanto,
na economia "capitalista" à base de mão-de-obra escrava, o "capital variá-
vel" é "fixo". É evidente que as próprias categorias que permitem a des-
crição e a explicação da economia capitalista aparecem contraditórias, às
vezes nos termos, quando aplicadas à economia escravista. Isto revela, mais
uma vez, a inviabilidade, em termos capitalistas, da organização escrava
do trabalho. Do ângulo estritamente econômico a conseqüência imediata
de o pagamento do trabalho implicar um empate de capital fixo resume-
se no ritmo menor da rotação do capital na economia escravista. Se acres-
centarmos a esse efeito o fato de que a proporção entre elementos fixos e
circulantes em favor do primeiro determina maior tempo para a rotação
do capital e, conseqüentemente, pode afetar negativamente a taxa de lu-
cro, ver-se-ão as desvantagens do sistema escravista diante da economia
puramente capitalista50•
Assim, parte maior do resultado da produção do trabalho escravo,
quando comparada com a dos trabalhadores livres, destinava-se ao traba-
lho necessário, ou a ressarcir o empate inicial de capital, donde haver maior
necessidade ainda de aumentar o segmento da jornada correspondente ao
trabalho excedente, para garantir o aumento de "mais produto relativo".
Isto, porém, como mostrei, era impossível no regime escravo, por causa
dos óbices que ele impunha ao desenvolvimento técnico e à divisão do
trabalho.
Acresce que na organização do trabalho escravo a parte da jornada de
trabalho desviada da produção de mais produtos é ainda maior por causa
das necessidades de "produzir a escravidão". Pouco importa que a jorna-
da de trabalho escravo seja x ou x + n se, na verdade, n = y, sendo y o
tempo consumido para dar ocupação permanente ao escravo e não para
aumentar, num período anual, digamos, a quantidade de produtos pro-
duzidos. Durante todo o incremento de tempo de trabalho, em termos do
mecanismo da empresa escravista brasileira, o trabalho não era produtivo
e para o capitalista só conta o trabalho produtivo entendido como um
trabalho criador de mais-valia. Desse ângulo o trabalho escravo numa
economia capitalista (a escravidão moderna) apresenta-se como uma con-

226
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

tradição em si mesmo quando o sistema capitalista em que ela se insere


tende ao crescimento. As tensões criadas por este tipo de organização do
trabalho não conduzem à supressão do sistema capitalista; colocam ape-
nas o problema do término da escravidão como requisito para a forma-
ção plena do sistema mercantil-industrial capitalista. O desenvolvimento
das forças produtivas, nestas condições, coloca a possibilidade da supres-
são pura e simples do sistema escravista, que passa a apresentar-se como
um obstáculo para o desenvolvimento do capitalismo. A expansão cres·
cente do mercado impõe a divisão e racionalização do trabalho e da pro-
dução para o atendimento da demanda e a realização do lucro, e a
escravidão impede o desenvolvimento destes processos.
Nos períodos de retração do mercado, o caráter de economia de des-
perdício da produção escrava aparece claramente como a negação do sen-
tido que a produção capitalista possui quando se desenvolve plenamente,
tal como foi classicamente caracterizada: "A produção capitalista não é
mais produção de mercadorias, mas substancialmente produção de mais-
valia. O trabalhador não produz para si mesmo, mas para o capital. Por
isso, neste caso, não é suficiente que produza em termos gerais, pois deve
produzir concretamente mais-valia. Dentro do capitalismo s6 é produtivo
o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou que trabalha
para tornar rentável o capital"sl. Contudo, se apenas nos períodos de
retração da procura se desvenda o conteúdo irracional, sob o ponto de
vista capitalista, da produção escrava, esse conteúdo não deixa de existir
em toda a produção escrava. Apenas, o trabalho continuamente desperdi-
çado e improdutivo oculta-se sob o véu de um trabalho árduo e estafante.
Por certo, também o escravo não produz para si mesmo, senão na peque-
na proporção em que se ocupa da criação do equivalente aos meios indis-
pensáveis para sua vida, mas parte do trabalho que executa não se destina
nem a repor o capital inicial empatado na sua compra, o que, em si mes-
mo, já constitui um desperdício de capital do ponto de vista do sistema
capitalista, nem a acrescer o capital. É, por estas razões, uma produção
sem sentido dentro dos quadros da economia capitalista desenvolvida.
Produz, apenas, condições que mantêm a estabilidade da escravidão e seu
influxo negativo sobre o crescimento econômicoS2 •

227
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

NOTAS

1. Soares Andrea, op. cit., pág. 10.


2. "Relatório apresentado à Assembleia Legislativa desta Província no dia 6 de outu-
bro do corrente anno pelo Exmo. Sr. Presidente João Lins Vieira Cansansão de
Sinimbu", in Tribuna Rio-Grandense, ano I, nO 1, 12-10-1853, pág. 3.
3. As causas reais dessa estabilidade aparente serão explicadas no decorrer do pre-
sente capítulo.
4. Gonçalves Chaves, opo cit., pago 178.
5. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 178. Na mesma página, no parágrafo subseqüen-
te, continua Chaves: "Acima dissemos que estes regulamentos, ou modificações de
Direitos, devem ser privisorios, e isto fundando-nos em que nosso Systema de im-
postos deve ser calculado, em forma que esta Provincia comprada com Buenos
Ayres, não pague mais impostos nas sahidas dos generos de Exportação simiihantes
aos daquelle Estado, do que o que alli se pagarem. Este ponto deve estar sempre
presente aos nossos Legisladores; porque tal pode ser a differença em impostos,
que faça transplantar em pouco tempo todo o nosso Commercio para aquelle Es-
tado" (o ..)
6. Chaves foi o que se poderia considerar na linguagem de hoje um homem de negó-
cios progressista. Além de possuir modelar charqueada, desenvolveu a navegação
e procurou, por todos os meios, incentivar a diferenciação e a prosperidade da
economia gaúcha.
7. O autor procura mostrar que os consumidores não perderiam, pois não se deseja-
va o monopólio e a subseqüente alta dos preços, e sim condições favoráveis para
concorrência, como exporei mais adiante.
8. As citações que faço adiante foram transcritas em O Pelotense de 21-5-1855 do
artigo publicado pelo Correio do Brasil de 5-4-1855, assinado por MoOoF. A res-
posta deste último deveu-se à reprodução no Jornal do Commercio do Rio de Ja-
neiro do trabalho aparecido em O Pelotense de 5-3-1855.
9. O Pelotense, 21-5-1855, págo 3.
10. ''A actualidade e o futuro do Rio Grande do Sul (11)", O Pelotense, 24-5-1855, págs.
1 e 2.
11. O Pelotense procura mostrar na tréplica que a suposição do Correio do Brasil de
que o aumento do imposto sobre o charque platina redundaria em maior preço a
ser pago pelo "consumidor nacional" era falsa: "E com effeito não pretendemos a
exclusão do charque estrangeiro, mas que se eleve o respectivo imposto de manei-
ra que equilibre a condição do productor brasileiro, neutralisando as vantagens
que na venda tem o productor estrangeiro, em consequencia dos menores gastos
de producção.

228
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

"Opina o habil escriptor do Correio, que não será o único resultado da eleva-
ção dos direitos, porque só affectando elles o preço da venda, seria o consumidor
nacional obrigado a comprar por mais o que pode obter por menos.
"Semelhante objecção, assás procedente, quando o imposto recai sobre a mer-
cadoria em geral qualquer que seja o productor, perde toda a força na hypothese
que nos occupa, de affectar o produeto estrangeiro em beneficio do nacional que
não póde competir com elle, por que o accrescimo do imposto n'este caso apenas
diminúi o lucro que até então tinha o estrangeiro, vendendo o seu genero pelo
mesmo preço ou pouco menor que o do nacional, não obstante a differença dos
gastos de produção." O Pelotense, 24-5-1855, pág. 1.
12. O Pelotense, 21-5-1855, pág. 2. A seguir o Correio do Brasil afirma que o grande
prejudicado com isso seria o "consumidor nacional", obrigado a obter por maior
preço o que poderia comprar com menor dispêndio. Esta parte da argumentação
é que foi refutada na tréplica transcrita na nota acima. Ainda na tréplica, O Pelotense
argumenta com o que aconteceu nos períodos excepcionais de guerra, quando o
preço do charque não subiu excessivamente: "Para corroborar a nossa opinião fir-
mada em principios que julgamos incontroversos, memoramos o facto de não ter
havido alteração no preço d'este genero durante os bloqueios de Montevideo e
Buenos Ayres, quadras em que, affluindo d'ahi os gados, foi somente importado
por esta provincia nos portos consumidores. Accrescentamos que·, se a elevação
do imposto custasse algum pequeno sacrificio às tres provincias importadoras,
teriam ellas sobeja compensação no maior consumo dos seus productos em virtu-
de do desenvolvimento da população e riqueza do Rio Grande", O Pelotense, 24-
5-1855, pág. 2.
13. O Pelotense, 21-5-1855, págs. 2-3.
14. "A Actualidade e o Futuro do Rio Grande do Sul", O Pelotense, 5-3-1855, pág. 1.
15. O Pelotense, 21-5-1855, pág. 1.
16. Réplica do Correio do Brasil, já citada, pág. 3. Compreende-se que a Guerra dos
Farrapos não tenha cessado com a aprovação da lei: o processo revolucionário
embora instigado pelas condições econômicas desfavoráveis não se resumia nelas.
17. Cf. Manuscritos da Biblioteca da Assembléia Legislativa, Livro de Registro de Leis,
Decretos e Representações (1846), fls. 29.
18. Aparentemente há uma contradição nos termos na expressão "burocracia políti-
ca". Contudo, a expressão serve para caracterizar a camada de onde, no Império,
recrutavam-se os altos funcionários e os que, sem serem propriamente funcionários,
passavam a existência exercendo funções públicas, como muitos presidentes de
Província "profissionais". Eram políticos, em geral ligados às atividades produto-
ras dominantes, porém nem sempre eles próprios plantadores ou exportadores,
cujas possibilidades de êxito na vida, de prestígio e de obtenção de recursos mate-
riais ligavam-se diretamente à sua escolha para os Gabinetes pelo Imperador, ou

229
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

para O exercício de altos cargos pelos Gabinetes. O papel da alta burocracia im-
perial, como camada, ainda não foi bem estudado. No sul a influência "civi-
lizadora" dessa burocracia foi enorme. O papel dos juízes e desembargadores,
por exemplo (em geral nordestinos), foi muito grande na difusão de hábitos novos
na Província.
19. Diz Soares de Andrea, à pág. 11 do relatório já citado: "Embora se diga, que essas
grandes Fazendas tem de ser divididas pelos futuros herdeiros dos actuaes possui-
dores; este caso dá-se algumas vezes, mas também se dá o de haver um herdeiro
que toma a si as partilhas dos outros a dinheiro, e ainda argumenta os seus campos
com outras compras, e assim o remédio pelas sucessões será tardio" (...) "Não
proporei que se offenda esse direito de propriedade, quando possuida a legitimo
Titulo; mas alguns modos ha de ir destruindo este mal, e mais depressa talvez do
que se pode esperar. Eu conheço os seguintes: (...)". Em seguida alinha algumas
medidas que permitiriam o desdobramento das propriedades, sendo as principais
as seguintes:
(a) obrigar medição das terras à custa dos fazendeiros;
(b) comprar com dez a vinte contos por ano terras para serem loteadas e depois
vendidas ou aforadas;
(c) tornar a Fazenda Provincial, quando tivesse que receber "sello de Heranças e
Legados", co-herdeira na distribuição dos campos, que seriam, por sua vez,
vendidos e aforados.

20. Antônio Manoel Corrêa da Câmara, Ensaios Statisticos da Provincia de São Pedro
do Rio Grande do Sul, Typ. do Mercantil, Porto Alegre, 1851, pág. 61.
21. Relatório Souza Ferraz, 1858, pág. 39. Cabe indicar que a situação parecera pior
dez anos antes, segundo o mesmo relatório, a tal ponto que experimentados ob-
servadores previam o fim dos curtumes, "logo que a paz e a tranquilidade reinas-
sem por 6 annos no Estado vizinho" (pág. 40). Entretanto, nada disso aconteceu
pois houve a guerra civil, donde abundância e barateza no preço dos gados, con-
comitantemente com ausência de concorrentes para o charque. Cessada a guerra
civil no Prata (1848-51), a economia charqueadora gaúcha voltou a apresentar
perspectivas sombrias: o volume do charque produzido não decresceu, mas as
possibilidades de lucro não eram grandes. O contraste entre um consumo em ex-
pansão e lucros em retração vinha já desde antes, como anotou o mesmo Souza
Ferraz: "N'essa epocha, não obstante as circunstancias anormaes do paiz vizinho,
ou se avaliava em quase nada o lucro dos charqueadores, ou se acreditava nos seus
prejuizos, que se estimavão em 2$203 rs. por rez" (pág. 40). Isto, provavelmente,
por causa do nível internacional dos preços, que afetava fortemente as exporta-
ções de couro. O processo de desvalorização desses produtos vinha, aliás, de longa

230
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

data, conforme se verifica em Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, Fundo


de Cultura, Rio de Janeiro, 1959, pág. 131: "entre 1821-30 e 1841-50 (...) os
exportadores (...) de couros e peles mais que dobraram a quantidade para receber
um valor em 120/0 inferior".
Apesar da conjuntura desfavorável para os charqueadores e exportadores, acha-
va Silva Ferraz que a Província não havia "perdido com esta concurrencia (dos
platinos) na massa geral de sua riqueza". Isto porque, tão logo recomeçou a pros-
peridade no Prata, retomaram vigor as vendas, ou o contrabando, do gado rio-
grandense para o sul, o que propiciava lucros aos estanceiros.
22. Silva Ferraz no mesmo Relatório de 1858, à pág. 13.
23. Relatório Barros Pimentel, 1874, pág. 63.
24. Relatório apresentado a S. Ex. o Sr. Presidente da Provincia de São Pedro do Rio
Grande do Sul pela Associação Comercial da Cidade do Rio Grande, Porto Alegre,
Typographia do "Constitucional", 1873, págs. 4-5.
25. A relação produto-capital era maior no Rio Grande do que no Prata. No fim do
período escravocrata já havia plena consciência da menor produtividade do traba-
lho escravo: "Porquanto, posto que o trabalho livre seja sempre mais productivo,
comtudo em certas circunstâncias o trabalho servil (...)" "Importancia do Traba-
lho Livre", A Discussão, 17-9-1884, pág. L
26. Louis Couty, op. cit., pág. 132. Pela expressão tablada se designava o lugar onde
os charqueadores compravam os bois. Como as charqueadas localizavam-se pró-
ximas umas das outras em Pelotas, foi possível organizar esse sistema de compra e
venda do gado que se efetuava diretamente entre criadores e charqueadores.
Herbert Smith, no seu Do Rio de Janeiro a Cuyabá, pág. 137, assim descreve a
tablada: "Chamava-se assim um descampado extenso e quasi liso, onde de Dezem-
bro a Maio se vendem as manadas que chegam. Algumas trazem quinze dias de
viagem. Pode haver aqui ao mesmo tempo umas vinte datas, cada uma de centenas
de cabeças; rudes gaúchos vestidos com a habitual camisa de chita, ceroulas fofas
ou bombachas e ponchos riscados, galopeam em todas as direções, conservando
os animaes nos logares impedindo que se mesturem as tropas; (...) Os donos das
xarqueadas movem-se rapidamente aqui e alli em bellos cavallos, examinando as
tropas, calculando-lhes o valor com rapidez e precisão admiraveis, e fechando os
negocios as pressas com os estancieiros e peões. O cercado é sempre ativo, porque
a concurrencia é muito forte entre os vinte ou trinta xarqueadores; em geral boia-
das inteiras são vendidas pouco tempo depois de chegadas".
27. Utilizo, neste contexto, a expressão "capitalismo moderno" na acepção de Max
Weber, Historia Económica General, Fondo de Cultura Económica, 2 a ed., Méxi-
co, 1956, págs. 236-238 e 265-266. Também na acepção marxista o capitalismo
desenvolvido supõe a produção de mais-valia relativa, processo que encontra na
escravidão um limite decisivo, como mostrarei adiante.

23 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Quando noutros contextos utilizo, e continuarei usando, a expressão sistema


para-capitalista, pré-capitalista, ou tendências capitalistas no Rio Grande durante
o século XIX, não desejo, em nenhum momento, fazer supor que todas as caracte-
rísticas do moderno capitalismo pudessem existir naquela região no período con-
siderado por este trabalho.
28. Cf. Couty, op. cit., pág. 139. Ver também Couty, Louis, r esclavage au Brésil, Librairie
Guillaumin, Paris, 1881, onde a mesma análise é feita com menos pormenores.
29. "O Escravo, diz hum Economista, consome o mais que pôde, e trabalha o menos
que póde - He esta huma verdade que não precisa ser demonstrada: o Escravo
que por modo algum pode esperar premio do seu trabalho, interessa-se em consumir
e em não trabalhar. Tal he effectivamente a sua indigencia corporal e espiritual,
que já mais póde ter faculdades para dirigir bem o trabalho de que he encarregado;
mas ainda quando alguma entidade estranha lhe sl:lbministrasse idéias para esse fim,
elle não tem interesses por não esperar recompensa, não se aproveita della". Gon-
çalves Chaves, op. cit., pág. 38.
30. Os efeitos negativos dessas condições de trabalho foram percebidos na época.
Entretanto, que fazer? Tratava-se de um requisito funcional do sistema escravista.
A título de exemplo da consciência desenvolvida pela opinião média do Rio
Grande sobre os efeitos danosos destes aspectos da escravidão, transcrevo um
trecho de um artigo, sem assinatura, escrito por um jovem n'O Pelotense de 17-
9-1852, pág. 1: "porque as officinas do Brasil não podem competir com as da
França, Grã Bretanha etc.? por que ahi os trabalhadores são livres, trabalham
com prazer, seus movimentos são expontâneos, expõe a sua existencia para
concluirem a tarefa que lhes é imposta, para agradarem a seus amos, e acredita-
rem-se; assim o trabalho augmenta d'uma maneira extraordinária. Já com as fa-
bricas brasileiras acontece o contrario, porque são servidas com escravos que,
considerados verdadeiras bestas de carga, não trabalhando para sí, sô trabalham
em attenção ao medo dos rigorosos castigos, único meio que os esquiva da oci-
osidade".
31. Couty, cotejando essa situação com o que ocorria no Prata, diz que o saladeirista,
ao contrário do charqueador, "paga apenas a quantidade de mão-de-obra for-
necida", op. cit., pág. 138. Entretanto, a análise de Couty não foi mais explícita
sobre este e outros pontos importantes porque ele se limitou a comparar as duas
economias quanto à mão-de-obra, não se interessando, como tento fazer neste
capítulo, pela discussão das implicações mais gerais da produção escravista.
32. Couty, à página 142 de seu trabalho, chama expressamente a atenção para a difi-
culdade que os senhores tinham de encontrar escravos, depois da lei de 1871, para
serem treinados nos trabalhos das charqueadas.
33. Cf. Couty, op. cit., pág. 140. A importância relativa da inversão sob a forma de
mão-de-obra era maior ainda, pois o equipamento das charqueadas correspondia

232
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

a níveis técnicos muito precários, utilizando-se máquinas apenas nasgraisseries (cf.


pág.147).
34. Couty, op. cit., pág. 138.
35. Couty,op. cit., pág. 140.
36. O primeiro sentido já foi referido acima: utilizava-se a mão-de-obra lentamente
para ocupar o escravo o tempo todo. A essa forma de desperdício soma-se a se-
gunda, que, por sua vez, intensifica os efeitos negativos sobre o processo produti-
vo da utilização lenta do escravo.
37. Quem melhor analisou em termos gerais essas características da economia escrava
foi Celso Furtado, A Economia Brasileira e Formação Econômica do Brasil, já cita-
dos. A análise de Furtado orienta-se no sentido de mostrar o caráter pouco dinâ-
mico da economia escravocrata, uma vez que ela, até certo ponto, pode subsistir
independentemente dos estímulos do mercado. Noutros termos, a economia
escravista é estável por que se mantém como um fim em si mesma.
38. Couty, op. cit., pág. 133-4. As boas charqueadas possuíam de 60 a 90 escravos,
segundo o mesmo autor.
39. Couty,op. cit., págs. 133-4. Esta é uma questão curiosa que mostra bem como o
custo maior da produção de Pelotas devia-se exclusivamente à escravidão, por causa
da impossibilidade de intensificar-se o processo de divisão de trabalho no regime
escravocrata. Couty mostra que o custo "material" da produção era menor em
Pelotas do que no Prata, e que, não obstante, o produto acabava por custar mais
caro. Smith, que conhecia o livro de Couty, assim resume o pensamento deste úl-
timo sobre a questão: "No que diz respeito a pastos, meios de communicação, preço
da terra, qualidade e valor do gado e despezas para criai-o, tudo é a favor do Rio
Grande do Sul; o custo material, em outros termos, é um pouco menor que em
Montevideo e na republica Argentina. Nos últimos estados porém, há mais com-
pleta divisão de trabalho nos saladeiras (...)", op. cit., págs. 141-2. Noutros ter-
mos, o "custo social" da produção brasileira é que era maior.
40. Couty, op. cit., pág. 135.
41. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 46.
42. Couty, op. cit., págs. 135-6. A descrição feita por Dreys, op. cit., págs. 147-150,
coincide com as etapas do processo de produção sugeridas por Couty. Convém
notar que houve alguns aperfeiçoamentos na técnica de matar o gado e que as
charqueadas melhor organizadas de Pelotas passaram a utilizar instrumental mais
desenvolvido para abater os animais, em contraposição às verdadeiras caçadas que
se fazia no início do século para o mesmo fim. Dreys descreve essa transformação
nos seguintes termos: "homens tão esclarecidos como o são em geral os char-
queadores do Rio Grande, não podiam deixar de chamar a industria em auxilio de
seus trabalhos, tanto para economizarem os braços, como para minorarem quanto
possível, não somente o perigo, como também as repugnancias inseparaveis do

233
FERNANDC HENRIQUE CARDOSO

acto e das consequencias da matança" (op. cit., pág. 148). Por isso a técnica usada
para a matança passou a ser a seguinte: "O gado fechado no curral he impellido na
direção de dous corredores separados hum do outro por huma especie de esplanada
levantada a 7 ou 8 palmos do solo; hum peão, de pé em cima d'ella, lança no boi
que apparece n'esses corredores hum laço cuja extremidade está atada, fóra do
recinto, n'um cabrestante posto em movimento por huma roda de ferralho
(trinqueta) manejada por dous negros: quando o boi, puxado pelo laço, chega a
encontrar-se com a cerca contra a qual a cabeça se acha comprimida, huma pessoa
(ordinariamente hum capataz) que o espera exteriormente, introduz-lhe a ponta
da faca nas primeiras c1aviculas cerebraes, d'onde resulta ficar o boi espontanea-
mente privado de movimento; n'esse estado, hum guindaste, rodando sobre seu
eixo, eleva o animal asphyxiado para fóra do curral por cima do cercado, e o trans-
porta para debaixo de hum telheiro, sobre hum lagedo disposto em segmento de
esphera aonde se sangra, sem que, graças à diposição bem entendida no lugar, a
operação deixe depois quasi vestigios nenhuns", Dreys, op. cit., págs. 148-9. Essa
técnica continuava sendo usada em 1882, quando Smith visitou as charqueadas.
No livro desse viajante, já citado, há uma descrição, às págs. 138-40, do processo
de preparação do charque e demais subprodutos do boi tal como era feita em
Pelotas.
43. "Importancia do Trabalho Livre", A Discussão, 13-9-1884, pág. 1.
44. Couty, op. cit., pág. 142.
45. Couty, op. cit., pág. 142.
46. A possibilidade de generalizar a análise de Couty foi vista por Smith: "Ultimamen-
te, e apezar das tarifas protectoras, tem havido no Brasil importação de carne secca
dos saladeros do Rio da Prata, que são agora concorrentes perigosos de Pelotas. O
Dr. Couty mostrou, do modo mais conclusivo, que a gravidade real da concorrencia
resulta da qualidade differente do trabalho empregado, - escravos em Pelotas, e
trabalhadores livres nos estados platinas. Falha-me o espaço para reproduzir inte-
gralmente o raciocinio d'este distincto escritor: é um dos mais poderosos argu-
mentos que tenho visto a favor da emancipação, tanto mais poderosos por tratar
da questão debaixo do ponto de vista commercial, sem o minimo vislumbre de
sentimentalismo, e apparentemente, sem saber que era um argumento applicavel
a outras industrias" (pág. 141).
47. A esse respeito, o artigo "Importancia do Trabalho Livre", publicado emA Discus-
são, Pelotas, 17-9-1884, pág. 1, mostra como foi possível alcançar, na época, algu-
ma consciência dos efeitos negativos do trabalho escravo para a concorrência com
o trabalho assalariado.
48. '~produção de mais-valia absoluta se consegue prolongando a jornada de traba-
lho acima do ponto no qual o trabalho limita-se a produzir um equivalente do
valor de sua força de trabalho e fazendo com que o capital se aproprie deste mais-

234
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

trabalho. A produção de mais-valia absoluta é a base geral sobre a qual repousa o


sistema capitalista e o ponto de partida para a produção de mais-valia relativa.
Nesta, a jornada de trabalho aparece desdobrada de antemão em dois segmentos:
trabalho necessário e trabalho excedente. Para prolongar o segundo diminui-se o
primeiro mediante uma série de métodos, com a ajuda dos quais se consegue pro-
duzir em menos tempo o equivalente do salário. A produção de mais-valia absolu-
ta gira toda ela em redor da duração da jornada de trabalho; a produção de
mais-valia relativa revoluciona desde o alicerce até ao acabamento os processos
técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais". Karl Marx, El Capital, I, 1, Fondo
de Cultura Económica, México, 1946, págs. 560-561.
49. Marx mostra que o trabalho assalariado obscurece a percepção pelo operário de
que uma parte de seu trabalho (o trabalho excedente) não é remunerada. Acentua,
concomitantemente, a ilusão do senhor, propiciada pela economia escravocrata,
de que parte alguma da jornada de trabalho corresponde ao escravo: "a forma de
saldrio obscurece toda a marca da divisão da jornada de trabalho em trabalho ne-
cessdrio e trabalho excedente, em trabalho pago e trabalho não-retribuído. Aqui,
todo o trabalho aparece como se fosse trabalho retribuído. (...) No trabalho dos
escravos, até a parte da jornada em que o escravo não fazia mais do que repor o
valor do que consumia para viver e na qual, portanto, trabalhava para si, se apre-
sentava exteriormente como trabalho realizado para seu dono", El Capital, op.
cit., tomo I, vol. lI, pág. 608.
50. Caio Prado Júnior foi o primeiro a salientar na análise da economia escravocrata
brasileira as conseqüências anticapitalistas do trabalho escravo, porque ele impli-
cava a inversão de capital fixo: "De um modo geral, de um ponto de vista estrita-
mente financeiro e contabilístico, o trabalho escravo, sendo as outras circunstâncias
iguais, é mais oneroso que o assalariado. O escravo corresponde a um capital fixo
cujo ciclo tem a duração da vida de um indivíduo; assim sendo, mesmo sem repre-
sentar o risco que representa a vida humana, forma um adiantamento a longo pra-
zo do sobre-trabalho eventual a ser produzido. O assalariado pelo contrário fornece
este sobre-trabalho sem adiantamento ou risco algum. Nestas condições, o capita-
lismo é incompatível com a escravidão", História Econômica do Brasil, pág. 180,
nota 57. Infelizmente, Caio Prado apenas enunciou a tese na nota e não pôde,
pela própria natureza do livro, desenvolvê-la em face dos problemas da economia
cafeeira que o preocupavam no capítulo em que inseriu essa nota tão importante.
Marx diz textualmente: "No sistema escravista, o capital dinheiro invertido para
comprar a força de trabalho desempenha o papel próprio da forma-dinheiro do
capital fixo, o qual vai-se repondo gradualmente, ao expirar o período de vida
ativa do escravo", El Capital, tomo lI, pág. 511.
Como o presente trabalho não é de economia não poderei desenvolver mais
amplamente as implicações sobre as condições de realização do lucro da econo-

235
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

mia escravista. Marx, depois de mostrar que a proporção entre capital fixo e capi-
tal circulante na composição orgânica do capital não afeta a taxa de lucro, ressalva
dois casos, o segundo dos quais ocorre quando "a diferente proporção entre os
elementos fixos e circulantes determina uma diferença quanto ao tempo de rota-
ção durante o qual se realiza um certo lucro", El Capital, op. cit., tomo IH, voI. I,
pág.197.
51 Karl Marx, op. cit., tomo I, voI. I, pág. 560. Grifos do texto.
52. As conclusões deste capítulo mostram, além dos resultados que interessam imedia-
tamente à compreensão das bases sociais da produção escravista ressaltadas na parte
conclusiva, que há dois problemas que devem ser mais bem esclarecidos. Em pri-
meiro lugar, é preciso salientar que, se no plano teórico-sistemático há uma in-
compatibilidade entre expansão do capitalismo e manutenção da escravidão,
historicamente esta contradição nem sempre manifestou-se plenamente e, menos
ainda, pôde cair no nível de consciência dos agentes sociais. De qualquer forma,
isto não justifica generalizações apressadas: é preciso evitar relações simplistas entre
escravidão e capitalismo. Assim, as explicações sobre o término do tráfico negrei-
ro fundadas no interesse de a Inglaterra evitar a concorrência entre os produtos
de suas colônias e os produtos das economias escravistas de outras áreas precisam
inserir-se em quadros explicativos mais amplos para que o sentido da história não
se inverta. O trabalho de Eric Willians, Capitalism & Slavery, The University of
North Caroline Press, Richmond, 1944, distingue, com razão, a existência de in-
teresses monopolistas na Inglaterra, que lutavam pela manutenção do sistema co-
lonial-escravista, dos interesses industrialistas, que lutavam pela extinção do tráfico
e abolição da escravatura. Por isso, os documentos, afirmações e medidas políticas
inglesas sobre o tráfico e a abolição refletem ora uns ora outros interesses, não
sendo legítimo concluir, em face de preocupações inglesas como a concorrência
da produção escravista brasileira, que, de fato, a economia escrava produz só por
ser escrava lucros maiores que a economia à base da mão-de-obra livre; nem,
tampouco, que a manutenção da escravidão era possível ou essencial para a pros-
peridade industrial da Inglaterra, mesmo quando a acumulação de capitais já per-
mitia a produção em massa. Com efeito, nem sempre a política oficial inglesa ou
as afirmações de políticos e homens de negócio ingleses, o "ponto de vista da In-
glaterra", significou o ponto de vista dos interesses industrialistas ingleses. Ao
contrário, muitas vezes coincidiu com os interesses dos produtores coloniais, preo-
cupados efetivamente com a produção brasileira e com a desorganização da pro-
dução colonial inglesa. E, muitas vezes, à necessidade de expansão do mercado
sentida pelos interesses industrialistas sobrepôs-se a vontade de manutenção da
posição de domínio dos grupos ligados aos interesses colonialistas, para os quais a
manutenção do tráfico e da escravidão nas áreas competidoras constituía sério
problema. Dessa conjuntura não cabe inferir que a economia escrava produz altos

236
--- ----------------------------------
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

lucros, mesmo em situação de concorrência com outros tipos de economia, pois a


relação é, na verdade, inversa: só em conjunturas altamente favoráveis aos gran-
des lucros pode manter-se a economia escrava competindo com a produção assa-
lariada. Nem cabe inferir que escravidão e expansão do capitalismo industrial
mantêm-se simultaneamente: à medida que os interesses industrialistas impuse-
ram-se aos interesses colonialistas, a mercantilização crescente da economia capi-
talista industrial atingiu as economias periféricas, suscitando e favorecendo a
alteração da ordem escravista.
Em segundo lugar, nada justifica que se analise a produção econômica escravista
partindo de um quadro teórico de referência elaborado para analisar sistemas ca-
pitalistas nos quais a força de trabalho é uma mercadoria de propriedade dos tra-
balhadores. Creio que os próprios conceitos elaborados para descrever e explicar
este último tipo de economia (basicamente as economias industriais capitalistas
que empregam trabalho assalariado) precisam ser redefinidos ou utilizados com
reserva quando se discutem a produção e a economia escravocrata organizada para
permitir lucros. Esta crítica alcança até os trabalhos de Celso Furtado (A Econo-
mia Brasileira e Formação Econômica do Brasil), que tanta luz lançaram, noutros
pontos, para a compreensão da economia escravocrata.

237
CApíTULO V A desintegração da ordem
escravocrata
Neste capítulo analisa-se um conjunto complexo de questões que, direta
ou indiretamente, são essenciais para a compreensão da sociedade es-
cravocrata gaúcha e para a avaliação dos efeitos de sua desagregação tan-
to sobre o destino do homem negro como sobre as possibilidades, abertas
pela Abolição, de redefinição das representações que os brancos manti-
nham sobre os negros e das formas de consciência e de comportamento
dos escravos. O capítulo foi dividido em dois tópicos nos quais são anali-
sados os processos básicos que aceleraram o fim do "antigo regime" no
Rio Grande do Sul, a saber, a imigração e a abolição. Os resultados alcan-
çados com a discussão das condições e efeitos desses processos permitem
completar o conhecimento da sociedade escravocrata. Isto porque alguns
aspectos das regularidades funcionais e das condições estruturais que ga-
rantiam a exeqüibilidade do sistema escravocrata revelam-se melhor atra-
vés da análise dos momentos de dissolução do sistema: neles aguçaram-se
as contradições sobre as quais se assentava a escravidão.
Paralelamente, procurou-se mostrar, na discussão da Imigração e da
Abolição, como a análise científica dos processos sociais só alcança
inteligibilidade plena quando são consideradas, simultaneamente, as con-
dições estruturais e funcionais subjacentes à práxis humana, o sentido
emprestado socialmente à ação e o grau de consciência do processo social
que historicamente é possível atingir. A partir dessa perspectiva suponho
ter determinado a dialética que existia entre as exigências da situação so-
cial, os objetivos e projetos que orientavam a ação e a consciência da situ-
ação que podia ser socialmente alcançada no período de desagregação da
ordem escravocrata gaúcha. As contradições entre esses níveis do real, o
desencontro entre os objetivos visados e os resultados finais atingidos, a
inexeqüibilidade, em termos das condições objetivas, de muitas das solu-

241
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ções propostas e objetivos perseguidos e, finalmente, os limites impostos


à ação, em muitas circunstâncias, pela impossibilidade do desenvolvimento
de formas de consciência adequada da situação real não foram obscureci-
dos pela análise. Da mesma maneira, o processo histórico não foi interpre-
tado a partir da realidade já constituída, como se as soluções encontradas
não pudessem ter sido diferentes ou como se as exigências da situação ti-
vessem conduzido necessariamente a ação humana ao resultado histórico
obtido. Numa palavra, procurei, na mesma medida em que determinava
as condições para a ação, inclusive as que permitiam a consciência da si-
tuação, compreender essas condições como, ao menos em parte, frutos
da ação e dos desígnios humanos.

1. A IMIGRAÇÃO E A ESCRAVIDÃO

o sistema escravocrata, por condições inerentes a si mesmo, constituía,


como vimos, um obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas
e para a formação plena do sistema capitalista de produção no Rio Gran-
de. As conseqüências deste processo na economia gaúcha agravaram-se
consideravelmente desde o momento em que se interrompeu o suprimen-
to regular de mão-de-obra com a cessação do tráfico. O êxodo de braços
para as "Províncias do Norte" acelerou, mais ainda, o processo de desor-
ganização da ordem servil no Sul. Desde 1850 os Presidentes da Província
se queixavam da evasão dos escravos e da pequena entrada de "peças"
para substituírem as que eram exportadas. O movimento migratório da
mão-de-obra escrava afetava diretamente as rendas da Província, por causa
da taxa de 32$000 paga por cada novo escravo introduzido no Rio Gran-
de. Por isso, a preocupação inicial dos Presidentes foi corrigir o dese-
quilíbrio fiscal ocasionado pela suspensão do tráfico e pela demanda
crescente de escravos pelas fazendas do "norte": "Decresceu este imposto
(sobre os escravos introduzidos na Provincia) no ultimo anno, por que é
sabido que houve affluencia de exportação de escravos, e não de impor-
tação, o que obrigou a tomar medidas a tal respeito na lei do orçamento
em vigor", dizia Patrício Corrêa da Câmara em 18571, Por essa época, o
preço de cada escravo já orçava em mais de um conto de réis2, Contudo,

242
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

apesar das indicações relativas à evasão de escravos desde a década de 50,


os efeitos reais da cessação do tráfico só se manifestaram no Rio Grande
depois de 1865 e, de forma crescente, nos anos posterior a 18703 •
Tanto a extinção do tráfico como a contínua desvantagem dos produ-
tos básicos do Rio Grande do Sul em face dos produtos do Prata acaba-
ram por refletir-se de alguma forma nas preocupações dos responsáveis
pelo governo e dos beneficiários da economia rio-grandense. Efetivamente,
a partir de meados do século às antigas queixas contra os Poderes Cen-
trais por causa da tributação, os charqueadores, exportadores e adminis-
tradores da Província acrescentavam, como um dos males da economia
gaúcha, a "escassez de braços".
Foi, portanto, sob a forma de "problema de mão-de-obra", que a ques-
tão servil se colocou, inicialmente, nas cogitações dos gaúchos. E, nesta
qualidade, apresentou-se de forma ambígua, porque, como vimos, o mal
era a escravidão e não a falta de escravos, e porque, na realidade, não
deixava de existir mão-de-obra potencialmente disponível, havendo na
realidade má distribuição da mão-de-obra e, sobretudo, desperdício no
seu emprego graças à ociosidade gerada pela própria escravidão, como
indica o texto de Soares Andrea já citado. De fato, o segmento da popula-
ção que vivia errante, ou que estava à margem da economia de mercado,
deveria ser grande, sem contar a população indígena que, variando de
período para período, chegou a ser considerável. A crer-se na escassa
documentação disponível sobre o assunto, parte ponderável da popula-
ção liberta regredia, do ponto de vista econômico, à condição de produ-
tora da própria subsistência4 • Entretanto, não só o sistema de trabalho
escravo tendia a tornar-se a forma de trabalho por excelência e, nesta
medida, impedia o desenvolvimento do trabalho livre, como existiam ra-
zões sócio-culturais que tornavam o escravo forro e seus descendentes li-
vres praticamente inaproveitáveis para o trabalho regular. Smith analisou
essa questão a partir de um ângulo preconceituoso, mas sugestivo para a
compreensão dos motivos pelos quais a força de trabalho disponível apre-
sentava-se como inaproveitável do ponto de vista dos produtores do sé-
culo XIX. Diante do que observara na vida da família de um pescador
mulato que habitava uma ilha fronteiriça a Porto Alegre, disse o viajante
americano: "Ha uma classe como esta em todos os paizes, extrato inferior

243
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

da civilização, mais apparente talvez na America do Sul, porque é fácil


viver n'estas plagas ubertosas, e porque as raças mestiças, tão comuns aqui,
herdaram os habitos inertes e descuidadosos de seus antepassados indios
e africos; apenas alguns têm a ambição de erguer-se da vida animal.
Augmentaram as listas da população, mas para o estado são verdadeiro
zero, não fazendo bem nem mal; quase nada trazem ao mercado e ainda
menos levam para casa; vivem ao deus dará, satisfeitos quando têm pro-
visão para um dia e palhoça que os abrigue. Hão de desapparecer em grande
parte, à medida que da terra se forem apossando gentes mais industrio-
sas; hão de submergir-se e morrer diante da onda de imigração européia.
Pois que morram! É o único serviço que podem prestar ao paiz, e a lei
inexoravel do progresso determinou sua extincção. Não lhes contexto sua
felicidade presente, e seu viver pittoresco têm certo encanto, não ha duvi-
da. Tambem uma arvore morta é pittoresca, mas prefiro a viva"s. É certo
que, apesar do descaso com que se olhava o aproveitamento dessa popu-
lação ociosa para a produção mercantil, sua existência não deixou de pro-
vocar reação nas cogitações sobre o problema da mão-de-obra, mesmo
antes da supressão do tráfico, como se infere do texto do Relatório de
Caxias6 de 1846: "É uma grande deshumanidade o deixarmos vagar por
esses desertos invios sem os socorros da Religião e da civilização esses restos
dos primeiros habitantes de nosso Paiz, que tão uteis podiam ser, como
muitos delles nos tem sido, emquanto que a custa de tantos perigos e des-
prezos vamos buscar braços africanos que nos ajudem".
Porém, também desde antes do fim do tráfico havia preocupação não
apenas com a mão-de-obra livre, mas com a mão-de-obra que seria, por
assim dizer, regeneradora e civilizadora. Por esse motivo, a mão-de-obra
livre eventualmente disponível não era a mão-de-obra capaz de operar o
milagre desejado: a radicação no país de uma população "industriosa" e
"civilizadora". Esta é uma questão central para a compreensão menos
simplista dos impulsos ideológicos do abolicionismo e de todo o processo
de consciencialização do problema da mão-de-obra. Seria óbvio e tenta-
dor, em face da análise final do capítulo precedente, relacionar escassez
de braços, escravidão, imigração e abolicionismo numa hipótese de expli-
cação que se resumiria no esquema aparente pelo qual esses processos se
ligam de forma automática e seqüente. Com efeito, em face da escassez

244
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

da mão-de-obra (real em termos da densidade demográfica ou por causa


das condições sociais que regulavam o aproveitamento dos braços), os
esforços pela imigração ganham imediatamente sentido e a abolição apa-
rece como um imperativo das condições econômicas de produção. Isto
tanto porque não havia braços suficientes depois do término do tráfico,
como porque a concorrência nas charqueadas entre a mão-de-obra livre e
a escrava resolvia-se de forma desfavorável para esta última. Entretanto,
apesar destas relações terem operado de forma regular como condição
propiciadora para a transformação do trabalho escravo, seu encadeamen-
to não foi mecânico nem elas bastam para explicar a formação de atitudes
antiescravistas, os esforços pela imigração e o movimento abolicionista.
Acredito que isso seja verdadeiro em vários sentidos. Primeiro, por-
que, em termos objetivos, os interesses envolvidos naqueles processos não
eram coincidentes e unívocos. Segundo, porque a consciência da situação
de interesses não chegou a se definir como consciência adequada senão
de forma muito limitada. Terceiro, porque a crítica à escravidão realizou-
se através de pessoas e grupos que não possuíam interesses imediatos na
abolição. E, finalmente, porque tanto a percepção dos problemas reais
criados pelo trabalho escravo foi muito parcial pelos que fizeram a crítica
da escravidão, como porque o movimento abolicionista mostra que as
atitudes inconformistas polarizaram-se sobretudo em torno de valores e
objetivos externos à dinâmica da sociedade escravista? Entretanto, mes-
mo independentemente destes aspectos do problema, que fornecem a
contraprova da argumentação, torna-se patente, em face da análise do
material disponível, que se o movimento em prol da imigração implicou a
crítica indireta da escravidão, foi mais em função da crença abstrata na
validade e nas virtudes do trabalho livre do que por causa da crítica direta
das condições concretas do trabalho escravo, da economia escravista e da
situação do escravo. Além disso, os partidários da imigração raramente
formaram as convicções e orientaram a atuação em função do grande
problema imediato do regime servil na fase de desagregação da sociedade
escravocrata, a saber, a falta de braços.
Em 1847, antes da supressão do tráfico e da evasão de braços escra-
vos para o norte, o Presidente da Província já dizia em seu relatório: "Na
opinião geral é considerada a Colonização a necessidade mais palpitante

245
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

do Império: a vastidão das terras desertas, que não quereis sem dúvida
povoar com negros e que não é possível igualmente povoar pelo lento e
gradual crescimento da população (... )"8.
O que se desejava, por volta dos meados do século, era, mais do que
povoar, ou dispor de mão-de-obra, renovar os processos e as relações de
trabalh0 9• Com efeito, não passa despercebido aos que conhecem os pro-
blemas da época que nessa fase os anseios pela "renovação" das ativida-
des econômicas do sul começaram a impor-seIo. A partir de então, os
relatórios dos presidentes da Província referem-se amiúde à Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional, à qual, não raro, pertenciam. Em al-
guns relatórios, entre as preocupações centrais com a produção, incluí-
am-se os problemas relativos à técnica agrária ou industrialII. Assim, por
exemplo, o Relatório Moniz Ferraz de 1858 insiste em mais de uma pas-
sagem sobre a precariedade dos meios técnicos utilizados na agricultura e
sobre a necessidade da difusão de conhecimentos básicos das ciências agro-
nômicas: "Força é n'este passo chamar a vossa attenção sobre a necessi-
dade de implantar-se entre nós o ensino de sciencias indispensaveis ao
melhoramento de nossa agricultura, e igualmente da criação d'aquelles
estabelecimentos, que tendem a aperfeiçoal-a"l2. No ano seguinte, o Pre-
sidente Fernandes Leão retomou o tema, relacionando-o com a escassez
de escravos. Preconizava "a introdução de processos agrarios mais aper-
feiçoados, e machinarias, e instrumentos que facilitem o trabalho do bra-
ço humano. Em uma provincia como esta, em que ha falta de braços
escravos, todos os dias se sente a urgencia do emprego de instrumentos
agricolas, que facilitando o trabalho, desenvolvão as forças productivas
da terra com a multiplicada vantagem, que se nãopode esperar da força
bruta" 13.
Os problemas que a economia gaúcha enfrentava não eram, por cer-
to, derivados fundamentalmente da utilização de tecnologia inadequada,
nem as soluções desse tipo, muitas vezes propostas, chegaram a exercer
qualquer influência ponderável sobre o comportamento dos agricultores
e criadores. Tanto assim que, dez anos depois do Relatório Moniz Ferraz,
o presidente Barros Pimentel voltava a insistir nos mesmos problemas, sem
indicar progresso algum 14. Tratava-se de um falso equacionamento da situa-
ção econômica. A mesma perspectiva parcial e inadequada serviu para

246
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

explicar os problemas da economia do charque, cujo malogro ora era atri-


buído às pastagens precárias do Brasil, ora às condições insatisfatórias da
técnica dos charqueadores, como queria o mesmo presidente Pimentel,
achando que, enquanto "não se descobrir um meio de preparação ao ar
livre, que conserve agradaveis o aspecto e gosto da substancia alimentícia,
afim de ser transportada em quantidade correspondente à sua produção,
e provocar a sua procura nos mercados estrangeiros, nada se terá conse-
guido de satisfatorio"ls. As causas fundamentais dos insucessos eram ou-
tras, como vimos no capítulo anterior. Nem por ser uma perspectiva falsa,
contudo, essa tendência deixou de refletir as modificações que realmente
se verificaram na economia e de espelhar uma atitude geral relevante para
a compreensão das esperanças depositadas no século XIX nas virtudes
renovadoras da imigração. Com efeito, à escassez de braços úteis tentava-
se responder com "a máquina" ou com a "técnica avançada", uma e outra
impossíveis diante das condições econômicas, sociais e culturais vigentes,
e por isso mesmo soluções que correspondiam a uma falsa consciência. À
escassez de mão-de-obra somada à inépcia do trabalhador nacional e à
desorganização da escravidão, com os temores subseqüentes de que o negro
livre além de não desejar trabalhar fosse culturalmente incapaz para o tra-
balho livre de melhor qualidade 16, pretendia-se responder com a entrada
de fortes correntes migratórias européias no país.
A atitude pró-imigração, portanto, era engendrada por um conjunto
de motivos que, se incluíam a escassez de escravos disponíveis, não se
restringiam a essa questão, abrangendo tanto a vontade consciente de
progresso, quanto, o que nela já está implícito, a crítica das condições
sociais e econômicas da produção escravocrata. Assim, as preocupações
com a imigração, ao mesmo tempo que transcendiam o "problema da mão-
de-obra", implicavam a crítica da escravidão, e, por isso, em termos dos
estritos interesses dos charqueadores, a imigração, com o antecedente ou
subseqüente abolição, não chegou a constituir motivo suficientemente forte
para fazer desse grupo o núcleo no qual seriam recrutados os partidários
da transição do regime de trabalho escravo para o trabalho livre. Ao con-
trário, os proprietários de escravos não representavam a imigração como
a grande panacéia, mas como a ruína da economia escravista. Conseqüen-
temente, encaravam o prolongamento da escravidão a qualquer preço (pelo

247
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

"emancipacionismo", com as cláusulas de prestação de serviços, pelo apego


à lei de 71 ou pelo que mais fosse) como a tábua de salvação. E, inversa-
mente, poder-se-ia afirmar que antes da escassez de braços (isto é, de es-
cravos) os "imigracionistas" eram favoráveis ao trabalho livre. Queriam a
abolição para propiciar não apenas maiores lucros, mas o "progresso",
fetiche máximo do século XIX. Está claro que me refiro a esses processos
tal como eram vistos socialmente, isto é, representados pelos diversos
grupos que exerciam influências nas correntes sociais. É óbvio, entretan-
to, quem nem sempre os grupos mantiveram clara consciência de seus
interesses reais e que, por outro lado, como os efeitos dos processos soci-
ais sobre a sociedade ou sobre cada grupo em particular independem, em
larga medida, da representação que deles se faz, os resultados efetivos da
Abolição e da Imigração podem ter sido diferentes dos desejados e espe-
rados pelas várias camadas da sociedade gaúcha. De qualquer maneira, é
preciso deixar claro que a defesa da imigração, no sul, responde a uma
atitude crítica contra a escravidão e contra as formas de produção gera-
das pela escravidão.
Não se pretendia apenas substituir o escravo pelo colono, procedimento
que, além de resolver o problema da premência de braços, libertaria capitais
e permitiria maior racionalização na aplicação dos fatores de produção.
Desejava-se, mais do que isso, inaugurar um novo padrão de produção, com
novas formas de propriedade e novos tipos de relação de produção. Esta
atitude fica patente quando se sabe que no Rio Grande discutia-se a ques-
tão da vinda de mão-de-obra européia polemizando-se contra a "coloni-
zação" e a favor da "imigração": "Collocada a questão neste terreno,
pergunta-se: qual dos factores é o melhor e mais vantajoso - a coloniza-
ção que apenas conserva a industria existente, ou a immigração que pro-
movendo novas industrias emancipa-nos da dependencia estrangeira?",
perguntava um articulista de A Discussão em 1884 17 • A resposta era ób-
via: "Se pois condenava-se a instituição escrava com infecunda em resul-
tados beneficos para o paiz que a tem, como propagar a colonização, que
não é senão uma sucedanea do braço servil?"18. Não se desejava, portan-
to, resolver apenas o problema de escassez de mão-de-obra; ansiava-se pela
renovação das práticas de trabalho; esperava-se a libertação do espírito
criador no trabalho, milagre que só o imigrante, isto é, o braço estrangeiro,

248
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

livre, proprietário, e não peado pelas velhas formas de produção ou por


qualquer liame contratual limitativo poderia realizar: ''A imigração, ao
contrario, dando largas à expansão do estrangeiro, tem por fito os ramos
de progresso, rasgando scintillantes horizontes à aclimatação de todas as
industrias"19.
A imigração não era representada, pois, como solução para os proble-
mas dos proprietários de escravos, mas como salvação para os problemas
da região. Tanto assim que, como atitude prudente, era cabível ser favo-
rável à imigração e à emancipação gradual, para que o progresso obtido
com o trabalho livre não fosse prejudicado pela desorganização das "ve-
lhas indústrias" (isto é, do charque), que o açodamento na libertação dos
escravos tornaria irremediável, com ou sem novos imigrantes2o • Os pro-
prietários de escravos aferravam-se à emancipação gradual, interessando-
se pouco pela imigração. A tal ponto que os defensores desta última viam
os escravocratas como vítimas de preconceitos retrógrados. Por isso, os
imigracionistas achavam necessário "profligar o prejuizo dos lavradores,
que vêm no immigrante não um elemento de trabalho, porquanto estão
natural e inconscientemente aguerridos ao feudalismo escravista, mas sim
um objecto de temor, um comparticipante de seus proveitos (... ). Portan-
to, não é para admirar, que se proclame que a imigração custa a prosperi-
dade da lavoura"21.
Compreende-se facilmente as duas posições. Por certo, ganharia com
a imigração a lavoura. Mas que significação possuía uma totalidade abs-
trata como essa para proprietários de escravos, cuja prática diária se resu-
mia às suas charqueadas, particulares e concretas? Essa diferença marca,
na verdade, a distância que vai do pensamento utópico ao pensamento
conservador. Este último, aferrado ao que é imediato, fruto e condição da
experiência vivida no dia-a-dia, não vê nas totalidades abstratas, defor-
madas e deformadoras do real, a mediação necessária no processo da cons-
tituição de novas formas de existência. Às ousadias que negam o presente,
responde o conservador com a palavra sábia de prudência. Que poderia
importar para um senhor de escravos, que via o encarecimento de suas
"peças" e o desejo crescente de liberdade que a propaganda pelo trabalho
livre acabava por incutir nos cativos, toda a argumentação capaz de pro-
var as virtudes da imigração? Talvez o "colonato" ou qualquer outra for-

249
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ma de contrato que garantisse aquilo que, afinal, contava porque era real,
a necessidade de levar adiante a empresa, pudesse interessar-lhe. Em vez
disso, os utopistas apegados à idéia de liberdade no trabalho ofereciam
projetos de bem-estar coletivo futuro: "Quando mesmo fosse possível
asseverar-se isso (que a imigração pode beneficiar as cidades, porém não
a lavoura, cujo trabalho rude só pode ser mantido através da importação
de braços com prévios contratos de trabalho), teríamos que somente ga-
nharia a lavoura, porquanto o assentamento dos imigrantes nos focos ci-
vilizados importaria concurrência inevitavel aos ociosos e nacionais que
ahi permanecessem, os quais vexados por aquelles competidores, retirar-
se-hiam para o interior, a cata de empregos na profissão rural"22.
Os que defendiam a imigração nesses termos diante da objeção dos
proprietários de escravos não queriam, pois, implicitamente, e não podi-
am, mesmo, resolver o problema concreto de tal ou qual senhor de escra-
vos. Apegavam-se e defendiam a "implantação de novas indústrias", a
"nova mentalidade", o "princípio da liberdade no trabalho e de trabalho"
e assim por diante. Respondiam sempre aos proprietários de escravos, que
desejavam resolver o problema da sua empresa, com argumentos em prol
da "civilização", do "progresso" do país: "precisamos de circulação, de
capitais, de novas industrias que tragam novos habitos, que não se alcan-
çam senão pela assimilação"23.
Finalmente, o problema da mão-de-obra, tal como era percebido e como
efetivamente se colocava para o proprietário e para a empresa escravocrata,
de forma alguma poderia ser resolvido através da "imigração", nos moldes
preconizados pelos que se interessavam pela "libertação do trabalho"24. Com
efeito, estes viam na entrada de imigrantes uma condição para a radicação
da liberdade no país, jungida a seu esteio fundamental em termos da con-
cepção liberal do mundo, a propriedade individual: "A Sociedade Central
de Imigração, além de quanto já tem dito nesse sentido pronunciando-se,
de modo conhecido, contra todo e qualquer contrato de locação de serviços
com o emigrante na Europa, assim como contra todo e qualquer systema
que não consagre a posse, no presente ou no futuro, do lote de terra pelo
colono, e contra todo e qualquer systema de adiantamento de capitais que
não lhe permitta a mais plena liberdade de acção e de locomoção ou mu-
dança, se reserva ainda para a discussão plena desse assumpto (... )"25.

250
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Ideólogos do liberalismo, levavam às últimas conseqüências os princí-


pios, esquecendo-se de que, no jogo complexo dos compromissos entre
os ideais e a prática, a liberdade de trabalho que construiu o capitalismo
moderno repudiou dentre seus componentes básicos a posse dos instru-
mentos de produção. A mão-de-obra livre que poderia servir, eventual-
mente, aos interesses dos antigos proprietários de escravos teria de ser livre
num sentido bem diverso: livre da posse da terra e dos instrumentos de
trabalho.
De resto, mão-de-obra livre e proprietária já existia no Rio Grande há
muito, sem resolver o problema da escassez de braços. A partir de meados
do século, a atividade econômica da "zona colonial" passou a contribuir
de forma marcante e crescente na produção gaúcha. Moniz Ferraz comen-
tando e verificando a justeza das afirmações de Soares de Andrea sobre a
economia da Província em 1849 - quando Andrea afirmava que a agri-
cultura era "um ramo quase desconhecido na Provincia" - retificava,
passados nove anos, o quadro esboçado por seu antecessor: "De fato, os
documentos dos annos anteriores a essa épocha demonstrão que esta
provincia recebia de differentes portos como sejão os do Rio de Janeiro,
da Bahia, de Santa Catharina, e de Paranaguá diversos cereais, e princi-
palmente a farinha de mandioca, cuja importação annual nos 7 annos
decorridos de 1816 a 1822 regulou termo medio 143.295 alqueires. Em
menos de 9 annos conseguio a colonização, como o referido meo ante-
cessor o previo, collocar-nos em uma posição contraria. Hoje esta provincia
é essencialmente agricola. Além dos differentes productos com que são
abastecidos nossos mercados, annualmente exporta uma não mesquinha
quantidade de cereais para differentes partes do Império"26.
Embora a afirmação de que a Província era essencialmente agrícola
possa ser contestada, como o foi em outros relatórios de presidentes da
Província27, o texto de Moniz Ferraz indica algo muito importante para a
análise das condições subjacentes à maneira como a questão servil e o
problema da imigração se apresentaram no Rio Grande do Sul. A partir
dos fins da década de 1850, havia na Província uma próspera economia
agrícola organizada à base de pequenos proprietários livres e independen-
tes28 . A expansão da cultura do café nas antigas plantações das regiões do
"Norte" propiciou este processo. A escravaria antes ocupada no cultivo

25 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

de cereais e gêneros alimentícios concentrou-se, a partir de meados do


século, no cultivo do produto que, por destinar-se ao mercado mundial,
dava maior margem de lucro, compensando o alto custo da mão-de-obra
ocasionado pela extinção do tráfico. Havendo menor quantidade de pro-
dutos alimentícios exportáveis na zona tradicionalmente produtora, o Rio
Grande pôde não só produzir para o consumo local como exportar para
o resto do Império. Ainda uma vez, portanto, verifica-se o caráter de eco-
nomia complementar do setor exportador da economia nacional, que
caracterizava a produção gaúcha. A importância relativa dos núcleos co-
loniais e da produção artesanal e semi-industrial, instaurada pelos imigran-
tes nos núcleos urbanos, aumentou incessantemente durante a segunda
metade do século. Esse processo, no conjunto, repercutiu tanto sobre as
avaliações e expectativas que se formaram quanto ao trabalho livre e quan-
to às vantagens do trabalhador independente, como sobre as bases reais
nas quais se assentava a prosperidade gaúcha.
A colônia simbolizava o Canaã do trabalho livre. Era o milagre dese-
jado, que se materializava nas estatísticas de produção e exportação, numa
crítica viva às velhas formas de produção escravocrata. O êxito do imi-
grante era, ao mesmo tempo, a condenação da escravidão e a revalorização
do trabalho: "Dificilmente em qualquer outra parte da Europa, tem o tra-
balho, mais do que no Rio Grande, o seu direito, o seu crédito, a sua es-
tima e o seu êxito. Não o embaraça nenhuma conveniência, nenhuma
classe, nenhuma posição, nascimento e passado, nenhum espírito de casta
do antigo Egito ou dos hindus. Só se emigra pelo trabalho, pelo trabalho
honrado, pelo trabalho capaz e só por ele!", escreveu Lallemant29• Há,
por certo, algum exagero nessas afirmações. Elas exprimem mais a avali-
ação de um europeu do que o reconhecimento do valor do trabalho que
os brasileiros do sul, nessa época, teriam desenvolvido. Não obstante, havia
a prosperidade crescente a desafiar os preconceitos tradicionais e a des-
moralização do trabalho imposta pelo regime servil. A crer-se em Lalle-
mant, até em Pelotas - baluarte da economia escravista - a esperança
de prosperidade estava voltada mais para as colônias do que para as
charqueadas: "Os pelotenses, porém, cujas condições de vida, de um modo
geral, parecem piorar, desejam ansiosamente que se desenvolvam colôni-
as em sua vizinhança, para com isso haurirem suas forças vitais e terem

252
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

uma vida local mais importante. Assim, pois, o governo provincial pre-
tende instalar em Pelotas uma extensa colônia, notadamente de alemães"30.
A mística do progresso encarnara nos braços livres dos colonos-pro-
prietários, fazendo a imigração surgir como a grande alavanca que impul-
sionava a região para o futuro. Por volta da década de 70, e principalmente
em 80, a imigração constituía um êxito estrondoso diante do marasmo da
economia escravocrata. Em 1866 Homem de Mello, cotejando a produ-
ção da zona colonial com a economia criatória, assim se expressava: "Os
habitantes da campanha guardão ainda uma instinctiva repugnancia aos
trabalhos agricolas, que felizmente n'esta provincia, progridem obedecendo
ao impulso vigoroso e energico do trabalho livre da laboriosa população
estrangeira que colonisa as ferteis regiões banhadas pelos rios Jacuhy,
Taquary, Sinos, Cahy, e que já se extende pelas serras centrais"31.
Com o êxito da economia das áreas de imigração a escravidão e a so-
ciedade senhorial que lhe era correlata ficaram postas em xeque dupla-
mente: porque não eram capazes de competir com o dinamismo da área
colonial e por constituírem-se em obstáculos à intensificação desejada da
imigração. Resultou que o movimento pela imigração, se não constituiu
uma crítica direta à escravidão, implicou a sua condenação prática. As-
sim, antes de constituírem-se no sul as comissões de libertação dos escra-
vos, organizaram-se comissões de proteção aos imigrantes. Os presidentes
da Província eram peremptórios a respeito dessas questões: "é a coloniza-
ção o problema de cuja solução depende essencialmente a grandeza, ri-
queza e poder de nossa patria (...). É uma dessas necessidades sociais que
se não pode acudir de prompto: depende de modificações profundas nas
condições da sociedade brasileira (...). Elles (os imigrantes) lutam com a
nossa ignorancia, com os nosso escravos, com os nossos costumes, com as
nossas molestias, com as necessidades, com as nossas instituições"32.
Para aliviar as dificuldades encontradas pelos colonos, reclamava o
Poder Provincial a colaboração das populações: "no intuito de auxiliar a
administração nos esforços que empenha para attrahir a immigração, esse
elemento de prosperidade e riqueza de que tanto necessitamos, proporci-
onando aos immigrantes os principais recursos para o seu estabelecimen-
to nas colonias, officiei em 24 de março ultimo à câmaras municipais de
São Sebastião do Cahi, Rio Pardo e Cachoeira, invocando o seu patriotis-

253
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

mo para que providenciassem a criação de associações que se incumbis-


sem de, a expensas suas, receber ahi os immigrantes, que se destinassem
às colonias Caxias, Santo Angelo e Mont'Alverne, e de edificar nos por-
tos de desembarque um barracão que lhes sirva de abrigo", dizia em 1882
o presidente José Leandro de Godoy e Vasconcellos33 • No mesmo relató-
rio, ainda prestava contas de que, em Rio Pardo, havia uma comissão
angariando recursos, em subscrição pública, para as despesas com o aco-
lhimento, o sustento e o transporte dos imigrantes recém-chegados.
Este processo indica que a revisão das atitudes e expectativas diante
do problema do trabalho fez-se no Rio Grande em condições tais que a
crítica ao sistema escravocrata impediu substancialmente a reavaliação
social do escravo em termos do homem negro. A ênfase era posta nagran-
deza do país e no progresso que o estrangeiro, branco e livre, traria consi-
go. Quando se cogitava da escravidão na discussão do problema imigratório
era para apontá-la como um obstáculo ao progresso que, por assim dizer,
viria do exterior pronto e acabado. Por certo, trabalho livre e trabalho
escravo eram incompatíveis, impondo a necessidade da abolição. Não que,
em si mesma, a escravidão fosse representada como um mal para a econo-
mia ou para os que dela dependiam, senhores ou escravos. O braço livre
desejado era o braço estrangeiro, sem mácula, não o braço do liberto ou
do negro degradado pela escravidão. Esse, ao contrário, passava a ser
considerado em si mesmo, independentemente do sistema escravocrata,
como causa de ociosidade, marasmo, dissolução. O que fora fruto da es-
cravidão passava a ser confundido com sua causa e tido como fator de
imobilismo e atraso.
Assim, se a economia provincial podia, de fato, beneficiar-se com a
imigração e se, em tese, os defensores do trabalho livre eram contra a es-
cravidão, o movimento pela imigração não trouxe consigo a necessidade
de considerar o problema do escravo enquanto pessoa privada de liberda-
de. Os críticos do "colonato" e da "escravidão" apegavam-se ao "traba-
lho livre" e não ao trabalhador concreto, tal qual a escravidão o havia
plasmado. Se, pois, por um lado, o movimento pela imigração constituiu
uma crítica indireta ao regime escravocrata e, nesse sentido, repercutiu
sobre o destino do escravo, por outro lado não levou à reconsideração do
problema do negro. Ao contrário, para a consciência do "branco ilustrado",

254
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

que se empenhava pela renovação das práticas de trabalho de sua terra, o


negro passou, mais ainda, diante do imigrante próspero e proprietário, a
simbolizar, mesmo depois de livre, o aviltamento do trabalho, a inépcia
para as tarefas grandiosas, o anti-homem.
Paralelamente, a crescente corrente imigratória e o êxito da economia
das áreas de imigração faziam com que a prosperidade da Província de-
pendesse cada vez menos da mão-de-obra escrava. Isso não significa que
inexistisse um "problema de mão-de-obra". Esse persistia e se agravava,
sem que a imigração nos moldes em que foi feita (isto é, através de imi-
grantes que trabalhavam em terras próprias) pudesse resolvê-lo. Tanto
persistia a crise de braços, que os Relatórios dos presidentes da Província,
não raro, insistiam no refrão: faltam-nos braços e capitais34• Porém, ago-
ra a crise de braços afetava diretamente os proprietários de escravos3S, não
mais a prosperidade geral da província.
Desta situação resultou que, contraditoriamente, quanto menos a pros-
peridade da Província dependia dos escravos e quanto mais imigrantes
entravam, mais os proprietários de escravos viam no apego à escravidão a
única solução para seus problemas. Pelas mesmas razões, a escravidão es-
tava cada vez mais condenada a desaparecer. Contradição tanto maior
quando se sabe que a produção escrava era, exatamente, a principal causa
de instabilidade da economia do charque e se constituía no grande empe-
cilho para seu desenvolvimento.
Por isso, enquanto uns afirmavam, com razão, que a abolição podia
ser feita sem abalos para a economia da Província, outros viam na aboli-
ção o cataclismo geral, porque confundiam a própria ruína com a ruína
de todos. Na verdade, a grande corrente imigratória que se dirigia para o
sul possibilitava a abolição imediata de todos os escravos sem grandes
prejuízos para a Província, como reconheceu, em 1888, o Barão de Santa
Thecla: "Se o regímen da pequena propriedade e do trabalho livre se foi
estabelecendo pouco a pouco entre nós, deve-se isso à colonização (...). A
passagem da industria pastoril para a agricultura propriamente dita já está
em grande parte effectuada, graças aos fortes nucleos coloniaes (...). Não
foi outro o motivo por que se deu na Provincia sem abalo immediato a
extinção do elemento servil no trabalho e actividades nacionaes"36. Em
termos objetivos, não foi por outra razão que a partir de 1884, cinco anos

255
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

antes, pois, do 13 de maio, a maior parte da população escrava na Provín-


cia já estava, formalmente, livre: a economia rio-grandense não dependia
mais da mão-de-obra escrava.
Disso se aperceberam os que se batiam pela abolição. Quando o pro-
jeto Dantas pôs em jogo, novamente, a questão servil- em 1884 - re-
publicanos e liberais apressaram-se a defender a abolição, alegando que,
na Província, a escravidão pouco significava:
"No Rio Grande, n'esta terra que em 1836 já aboliu a escravidão, não
ha quem não seja abolicionista e, como já dissemos, possuindo em pleno
desenvolvimento a pequena lavoura e não dependendo do braço escravo a
criação do gado, nenhum perigo economico nos ameaça pela emancipação
completa", dizia o órgão dos liberais37 , e, no mesmo dia, afirmavam os re-
publicanos38 : "O Rio Grande não precisa de fazer escravos para viver e
progredir. A sua industria agricola desenvolve-se rapidamente, servindo-se
do trabalho livre; não é o braço escravo que lhe serve de instrumento. A sua
industria pastoril tambem independe do escravo para receber o mais amplo
desenvolvimento e para poder competir com os progressos operados n'este
sentido nas republicas platinas, quando a provincia quebrar o jugo aviltante
da centralização imperial. A economia do Rio Grande, portanto, nada
soffrerá no dia em que desapparecer do seu solo o ultimo escravo".
Entretanto, ainda uma vez convém evitar a explicação pela ligação
aparente entre os fenômenos. Não desejo afirmar, de nenhum modo, que
os abolicionistas possuíam uma espécie de presciência do processo histó-
rico, constituindo-se nos fautores da nova ordem por saberem-na ina-
pelável, graças ao desenvolvimento espontâneo e irremissível das condições
econômicas. E não considero, como poderia parecer óbvio em face da
análise do capo ~ que o "capitalismo moderno" se implantou no Rio
Grande do Sul por força da necessidade de concorrência econômica do
sistema de produção e, ipso facto, se transformou numa espécie de mons-
tro que sorveu o regime escravo. Nem uma coisa nem outra são verdadei-
ras. O abolicionismo, como ideologia, não correspondeu à forma de
consciência adequada das novas condições de produção, nem à impossi-
bilidade de a economia escravocrata enfrentar a economia à base da mão-
de-obra livre39 • A esse respeito, convém frisar que as condições econômicas
que interferiram no equacionamento da questão servil não se constituíram

256
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

independentemente de decisões humanas que poderiam ter sido outras.


Com efeito, os charqueadores, que, em tese, poderiam ter sido os mais
ardentes defensores da abolição, mantiveram-se escravocratas até o fim40.
O abolicionismo difundiu-se, no sul; corno urna forma de consciência antes
de mais nada política, através de grupos que a ela se apegaram corno uma
ideologia libertária que, ao mesmo tempo, servia aos interesses (não ne-
cessariamente pessoais, diretos e econômicos) dos partidários do traba-
lho livre, isto é, da imigração.
A análise do processo histórico visto corno um conjunto de faits
accomplis possui urna inteligibilidade aparente enganadora. Em face do
que vimos neste capítulo, seria fácil inferir a ligação necessária entre a visão
conservadora e escravocrata dos charqueadores com a situação objetiva
da economia do charque: imigrantes proprietários de nada serviam aos
charqueadores. Entretanto, por que não tentaram os charqueadores im-
portar, corno fizeram os fazendeiros paulistas, mão-de-obra livre em con-
dições que permitissem sua utilização nas charqueadas? Por que não
tentaram, desde o fim do tráfico, a emancipação gradual da escravidão
com cláusulas que garantissem a continuidade no trabalho? Por que, en-
fim, em vez de liquidarem-se corno senhores, não se transformaram nos
homens da nova época, em empresários realmente capitalistas?
Na verdade houve tentativas por parte dos charqueadores de reagir às
condições nas quais estavam acostumados a trabalhar. O exemplo mais
grandioso de crítica do sistema escravocrata feito por um habitante do
sul, antes do movimento abolicionista, coube a Gonçalves Chaves, char-
queador dos maiores. O pensamento de Chaves sobre o problema da mão-
de-obra e sobre a abolição pode resumir-se no seguinte texto: "Corno se
ha de passar no Brasil sem Escravos (dizem muitas pessoas) se não ha quem
se alugue por criado? Mas corno ha de haver quem se alugue, por hum
anno, hum mez ou hum dia, se quem assim poderia negociar seu traba-
lho, se acha alugado com seus descendentes por huma eternidade! Confi-
ra-se peremptoria liberdade aos cativos, e logo teremos quantos criados
nós precisarmos; confia-se-Ihes gradual liberdade, e gradualmente tere-
mos criados, e trabalhadores de toda a especie"41.
Liberal conseqüente, Chaves foi capaz de compreender, pelo amor aos
princípios que adotou, mais do que pôde explicar ajudado pelo conheci-

257
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

mento adquirido na prática diária de carneador e exportador. Como vi-


mos, Gonçalves Chaves não chegou a ter consciência clara de que, no caso
específico da economia da charqueada, era a escravidão a causa de todos
os males, mas foi capaz de, no "Discurso demonstrando os terriveis in-
convenientes do Systema de Escravidão", compreender que, em geral e
em si mesma, a "Escravatura he inconciliavel com a economia política
moderna". Por isso, propôs sua extinção graudal e a cessação quase ime-
diata do tráfic042 . Acreditava que, derrubado o regime escravocrata, ces-
sariam seus efeitos sobre a desqualificação do trabalho e, automaticamente,
o labor manual ganharia nova dimensão moral, redimindo os trabalhado-
res, a sociedade e a economia de quanta perturbação lhes trazia o regime
escravo: "A Escravatura produz todos estes males; pois se eIla se desse o
seu lugar, virião infallivelmente da Europa familias inteiras para o Brasil:
enriquecerião bem de pressa com os productos do seu próprio trabalho;
ramificarião por toda a parte, e com as noticias que dessem aos seus
patricios de sua fortuna, attrahirião muitos mais povos; entrelaçar-se-hião
com a parte da Nação mais apurada, e operarião população livre, briosa,
industriosa, afoita e laboriosa; ao mesmo tempo que com este terrivel
systema, nos tornamos incapazes de todas essas virtudes"43.
Entretanto, Gonçalves Chaves não só antecipava-se ao sentimento
da época, graças ao horizonte intelectual mais amplo que possuía como
homem ilustrado, como adiantava-se às possibilidades reais de solução
da questão servil: distorcia, no entusiasmo pelas novas idéias, as condi-
ções e os efeitos da transformação do regime de trabalh044 . Por isso, se
é possível invocá-lo para mostrar que a qualidade de "charqueador pro-
gressista" permitiu-lhe, embora em termos gerais, fazer-se adepto da
emancipação, sua atitude não pode ser considerada como iniciativa de
que os charqueadores poderiam ter-se posto à frente da crítica à escra-
vidão em termos atuantes, isto é, como líderes ou próceres ativos do mo-
vimento abolicionista. Na verdade, mesmo que as condições que regulavam
socialmente a formação de atitudes críticas se tivessem desenvolvido no
sul de forma plena e sem ambigüidades, os "charqueadores progressis-
tas" não teriam possibilidades para agir antecipadamente como o patri-
arcado rural paulista do Oeste agiu mais tarde no que se refere à
escravidão, pois o sistema escravocrata se impunha como uma instituição

258
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

nacional que respondia às necessidades da economia exportadora e às


aspirações das camadas dominantes do país45 . Neste passo, a condição
de dependência da economia sulina dentro da economia brasileira (cujo
tonus dominante era dado pelo setor exportador de produtos tropicais)
reaparece como fator limitativo.
Contudo, algo poderia ter sido tentado pelos charqueadores para re-
solver o problema da mão-de-obra quando as condições se tornaram mais
propícias à alteração do regime servil (depois de 1870 e 1880). E, real-
mente, houve tentativas de importação de imigrantes para trabalhar dire-
tamente nas charqueadas, assim como se inventou um sistema misto de
escravidão e retribuição do trabalho em dinheiro. Pagava-se ao escravo
por tarefa que excedesse a um quantum estipulado de produção: "Sendo
esta tarefa, geralmente, de 6 a 8 animais, e podendo um escravo ativo
preparar de 12 a 14, vê-se que o escravo podia fazer verdadeiras econo-
mias. Alguns escravos do sr. Costa, onde esta excelente prática é antiga, já
puderam libertar-se; mas é preciso declarar que mais freqüentemente eles
dão outro destino a seus ganhos, e dão pouca importância a uma liberda-
de comprada por trabalho e privações"46.
Apesar de as fontes não permitirem a análise sistemática da prática
inventada pelos charqueadores, não é difícil perceber que se tratava de
um expediente in extremis. Por ele se revela até que ponto a escravidão
alienava também os senhores, tornando-os parte solidária do sistema es-
cravo: no desespero de mantê-la em condições já insustentáveis econômi-
ca e socialmente (lembro o trecho final da frase de Couty), imaginavam
um sistema de trabalho que, além de negá-la nos seus fundamentos (como
pagar a força de trabalho a quem já fora comprado, com todos os atribu-
tos, para sempre?), se funcionasse resultaria na autodestruição do regime
escravocrata, pois o escravo podia comprar, com o pecúlio formado, a
própria liberdade.
Não foi, todavia, como um puro gesto de irreflexão que os char-
queadores passaram a agir assim. Outras soluções foram tentadas para
resolver a "escassez de braços". Fizeram-se esforços para importar estran-
geiros, sobretudo bascos, que formavam um contingente respeitável da
mão-de-obra utilizada com êxito nos saladeiros, e os libertos só não fo-
ram utilizados porque se negavam a trabalhar4 7 • Entretanto, todas as ten-

259
FERNAflDO HENRIQUE CARDOSO

tativas fracassaram, e fracassaram pela elementar e decisiva razão de que


o sistema escravocrata se impunha de forma avassaladora e absorvente,
como um fiat exclusivo.
Essa característica do regime escravo deriva das condições funcionais
do sistema, tem seu móvel imediato nos processos psicossociais que moti-
vam o comportamento dos agentes sociais e responde às exigências cultu-
rais engendradas pela sociedade escravista. No sistema escravista, o atributo
por excelência definidor do homem, a capacidade de trabalho que lhe
permite modificar a natureza e, modificando-a, recriar-se, reveste-se da
aparência enganadora de uma qualidade anti-humana. Já vimos os princi-
pais aspectos do trabalho escravo. Insisto apenas para mostrar como de-
les deriva uma concepção fundamentalmente alienadora do trabalho que
impede o desenvolvimento das formas mais complexas do labor humano.
Por um lado, todo trabalho assume a forma de um ato de coerção, apare-
cendo essencialmente como um processo de privação de liberdade. Por
outro lado, o processo de trabalho, na escravidão, se restringe, por causa
dos imperativos econômicos e sociais analisados no capítulo IV, às técni-
cas mais elementares de tratamento da natureza, resumindo-se a formas
quase indiferenciadas de utilização da força bruta, simplificação que o faz
aparecer como equivalente de uma atividade puramente animal.
Graças a essa metamorfose, tanto o ato de trabalhar como o agente
que o executa assumem uma significação específica na sociedade escra-
vocrata. Para a consciência do senhor, o trabalhador é representado, en-
quanto escravo, como um inimigo. A violência gerada, que é necessária à
manutenção do sistema escravocrata, se transforma, do ângulo senhorial,
graças a mecanismos de defesa, na antiviolência: é preciso conter a rea-
ção dos escravos. O escravo é indolente, só trabalha coagido, castigado:
"Havendo liberdade em huns e escravidão em outros, o mal he pessimo,
às outras causas de odio ajunta-se ainda esta que he poderosissima nos
espiritos ainda os mais grosseiros. O Senhor teme os Escravos, e por isso
os castiga severamente, para salvar sua conservação no meio dos temo-
res; o Escravo aborrece o Senhor só porque o he, e porque o castiga. Que
estado violento para ambos!"48. E, tanto para o senhor como para o ho-
mem livre em geral, não apenas o escravo representa o Mal, mas o pró-
prio trabalho que ele executa transforma-se em ato infamante, que não

260
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

deve ser partilhado pelos homens livres: "Como ha de um homem livre


associar-se na cultura da terra, ou em qualquer ramo de trabalho com um
homem cativo, se immediatamente todo mundo o considera o mais des-
graçado de todos os homens com este labeo - anda trabalhando junto
com os negros - e - mesmo todos tem para si, que com isso perdem de
sua dignidade, o brio, e, se he só a classe Escrava que privativamente deve
fazer o trabalho da Agricultura, e artes pezadas, como se poderão os
productos do Brasil?"49.
Por essas razões, a principal aspiração do homem livre é tornar-se se-
nhor, pois na sociedade escravista só é representado realmente como ho-
mem livre quem não precisa trabalhar para viver50, isto é, quem possui
escravos: a liberdade na sociedade escravista define-se pela escravidão. Por
isso, toda gente aspirava a ter escravos e, tendo-os, não trabalhar. Mesmo
os que não possuíam recursos aplicavam o pouco que conseguiam na ob-
tenção de escravos51 para dedicarem-se ao ócio: "Mais vale hum casal de
gente livre do que mil negros cativos, he necessario tirar-lhes a tinha da
Escravatura, que do contrario gastão logo os seus primeiros meios em
comprar escravos, e depois os chamão ao serviço domestico, exigindo
deIles todo o serviço, sem lhes deixar tempo nem para dormir, eIles fo-
gem ou morrem, e a familia nada prospera"52.
Não espanta, em face da desqualificação social do trabalho, que o "tra-
balhador nacional" e o "liberto" se negassem a trabalhar nas charqueadas.
Assim agindo, não só correspondiam às motivações da personalidade-status
do homem livre brasileiro, como adstringiam-se estritamente à avaliação
do trabalho imposta pela cultura da sociedade escravocrata. Da mesma
maneira, as tentativas de utilizar nas charqueadas, concomitantemente,
escravos e imigrantes livres estavam condenadas de antemão. Fizeram-se
algumas, visando entregar o trabalho mais complexo das máquinas para a
fabricação de graxas e sebos, então introduzidos, a homens livres. Mas
elas "tiveram pouco êxito, pois a combinação de trabalhadores livres e
escravos acarreta múltiplos inconvenientes"53. Todo o sistema de traba-
lho organizava-se sob pressupostos de funcionamento (a coação e a vio-
lência) incompatíveis com o aproveitamento de trabalhadores livres, mesmo
quando eles não respondiam em seu comportamento à motivação e às nor-
mas da sociedade senhorial. Por isso, o dilema enfrentado pelo senhor de

26 1
FERNANDO HENRIQUE CAROOSO

escravos dono de charqueada não tinha solução nos quadros da econo-


mia escravocrata: o virtual trabalhador nacional, compartilhando os va-
lores da ordem senhorial, preferia a miséria e a ociosidade à desqualificação
social imposta pelo trabalho semelhante ao do escravo; o trabalhador
livre estrangeiro não podia sujeitar-se às condições de trabalho que lhe
eram impostas pelos senhores. Estes, por sua vez, movidos por hábitos
arraigados, eram capazes de redefinir a concepção do trabalho e do tra-
balhador.
A escravidão não se constituía apenas, portanto, num estado social
objetivo, isto é, no conjunto de atos de dominação e submissão dos ne-
gros escravos. Ela implicava, ao mesmo tempo, uma série de avaliações
sobre o papel do empreendedor, sobre o trabalho, sobre os homens livres
em geral, sobre a sociedade e o destino humano, que faziam do mundo
senhorial um todo homogêneo e dominador. Senhor e escravo constituÍ-
am-se no núcleo da sociedade e da Weltanschauung senhorial, mas a
cosmovisão derivada da relação de dominação e subordinação absoluta
transcendia os limites desse tipo de associação. Mesmo quando os senho-
res já não possuíam os escravos capazes de, objetivamente, garantir a con-
tinuidade do trabalho e da sociedade escravocrata, continuavam presos à
concepção senhorial do mundo: agiam como senhores. Assim, a ordem
social criada pelos senhores acabou por convertê-los em seus escravos:
cegou-os diante das exigências do presente e do futuro, tornando-os inca-
pazes de ver claro socialmente. Por isso, não puderam ajustar-se aos re-
quisitos impostos pelas novas condições de trabalho e de mercado que
impunham outra visão do homem, das coisas e do fluxo social. Importa-
ram homens livres, mas consideraram-nos como escravos; quiseram apro-
veitar os resultados do trabalho livre, mas utilizaram procedimentos de
trabalho válidos e necessário para o regime escravo. O fracasso era, nes-
sas condições, inapelável. Para que tivessem êxito seria preciso, como afir-
mou Couty, romper com os velhos hábitos e práticas de trabalho, "e não
desejar subjugar trabalhadores livres e responsáveis, pois que se pode levá-
los à vigilância perpétua e aos procedimentos de direção que são necessá-
rios para os escravos"54.
Para agir como empreendedor capitalista não bastava, portanto, dei-
xar de possuir escravos. Era preciso redefinir valores e normas de com-

262
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

portamento e esse processo não poderia ocorrer automaticamente. Ele


supõe uma série enorme de tentativas individuais que, sendo favorecidas
pelas condições técnicas, sociais e econômicas em geral, podem obter êxi-
to, não sem alguns fracassos de permeio. Mas nada pode assegurar de
antemão que uma determinada camada de produtores à base da escravi-
dão será capaz de modificar seu comportamento, mesmo quando sua sal-
vação esteja, objetivamente, na utilização da mão-de-obra livre55. No Rio
Grande do Sul não houve, no período de transição da economia es-
cravocrata para a produção à base da mão-de-obra livre, nenhum fator
que instigasse, na economia do charque, a formação de uma camada de
novos empresários, sem compromissos insuperáveis com o passado
escravocrata. Os novos empreendedores eram recrutados, em regra, en-
tre imigrantes cujas atividades concentravam-se no plantio de cereais ou
na pequena empresa semi-industrial. Foram essas as atividades que, mais
tarde, constituíram os núcleos dinâmicos da economia capitalista do Rio
Grande do Sul. Os charqueadores continuaram a debater-se com seus
problemas crônicos, incapazes que foram, mesmo depois da Abolição, de
reagir como empresários autenticamente capitalistas. Enquanto na Expo-
sição de 1875, realizada em Porto Alegre, era intensa a atividade artesanal
da "área colonial" e, em 1901, época da outra exposição, a atividade
manufatureira era considerável56 , o relatório sobre a participação da eco-
nomia gaúcha na mostra preparatória, organizada pela Câmara Munici-
pal do Rio Grande, para a Exposição Universal de 1889, continuava a
lamentar a sorte da economia do gado: ''A exportação dos produtos bovi-
nos atravessa em toda parte, uma revolução que a direção técnica do nos-
so governo e os próprios industriais negligenciaram de seguir no tempo
oportuno. A antiga carne-seca do tipo produzido no Rio Grande, não
corresponde mais às necessidades dos mercados consumidores"57.
Passara o "tempo oportuno" sem que as tentativas empreendidas tives-
sem obtido o êxito previsto por Gonçalves Chaves: a falta de escravos iria
libertar capitais que se transformariam em máquinas, graças às quais a
produção gaúcha seria de melhor qualidade que no período escravocrata58.
Nada disso ocorreu, em parte por causa das condições precárias de con-
corrência, em parte porque os charqueadores não foram capazes de to-
mar as resoluções necessárias em tempo oportuno para reajustar as

263
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

empresas e, finalmente, em parte, porque a pressão da ideologia imi-


grantista e a vitória da pequena propriedade privaram os charqueadores,
de fato, de estímulos mais poderosos para forçar a vinda de imigrantes
não proprietários. Por isso, mesmo depois da Abolição, continuava o di-
lema do charque: "É uma indústria, portanto, que deve transformar-se
ou desaparecer"59.
Os projetos e as opções que, consciente ou inconscientemente, os
charqueadores gaúchos fizeram no decurso do processo histórico criaram
os "fatos incontestáveis", as condições que se erigiram em fatores condi-
cionantes da experiência. Por outro lado, as decisões relativas à imigração
criaram também as condições para que a produção gaúcha se organizasse,
depois da desagregação do regime servil, à base da economia artesanal e
semi-industrial. A antiga economia das estâncias permaneceu intocada, mas
sem o élan suficiente para produzir, senão muitas décadas depois da Abo-
lição, a reorganização da indústria da carnéo.

2. o ABOLICIONISMO E o HOMEM NEGRO

O abolicionismo correspondeu, no Rio Grande do Sul, enquanto ideolo-


gia, a uma forma de compromisso entre interesses de ideais divergentes e,
até certo ponto, contraditórios. Nele encontraram denominador comum,
por motivos diversos e visando atender a interesses diferentes, tanto as
pessoas e grupos empenhados em resolver o "problema da mão-de-obra"
de suas propriedades rurais, como indivíduos e círculos sociais que, sem
estar imediatamente interessados na substituição de braços para a lavou-
ra, desejavam instaurar "nova ordem", à base do trabalho livre. Finalmente,
juntaram-se também à campanha abolicionista, aceitando o sentido que
lhe foi emprestado pelos demais grupos, pessoas que, em tese, estavam
mais preocupadas com a solução dos problemas do homem negro do que
com a introdução de imigrantes ou com os efeitos danosos que a escravi-
dão acarretava ao desenvolvimento da economia. Da transação entre es-
tes objetivos e interesses diversos resultou, em termos dos ideais humanos
apregoados pelos abolicionistas autênticos, uma ideologia espúria, que,

264
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

sob o véu de motivos altruísticos alegados, encobria situações de interesse


que nada tinham a ver com os propósitos do "humanitarismo" ou com as
aspirações dos escravos.
Tal acordo foi possível porque, como afirmei, a crítica à escravidão
que impulsionou o abolicionismo no sul foi, antes de mais nada, uma crí-
tica da sociedade livre e do homem branco plasmado pela sociedade
escravocrata. Era a auto-emancipação que os brancos "livres" desejavam,
muito mais do que a emancipação do escravo: ''A família brasileira liber-
ta-se afinal do elemento dissolvente - o escravo, e do espetáculo con-
tristador - a prostituição permanente, caudataria da escravidão", dizia
A Federação para comemorar o 13 de mai0 61 .
Se nem sempre a ideologia abolicionista exprimiu-se em termos dire-
tos como processo de regeneração da sociedade dos brancos livres, indi-
retamente essa foi a motivação decisiva para granjear o apoio de amplas
correntes da opinião. Tal incentivo revestia-se da aparência de uma luta
pelo progresso e pela grandeza da Nação, fazendo pendant, dessa forma,
ao movimento pró-imigração. Esse seria, por assim dizer, o aspecto cons-
trutivo da ideologia do progresso, enquanto a abolição representava a
destruição do passado, necessária para o êxito da nova ordem. Por isso,
entre os slogans abolicionistas estava sempre presente a idéia da Pdtria,
da Civilização, da Integração do País no Concerto das Nações Livres e
Civilizadas62 • Não era o sistema escravocrata que aparecia, diretamente,
como a preocupação dominante, e muito menos o destino do negro, mas
a idéia da Pátria "conspurcada pela nódoa negra". Em nome do patriotis-
mo, portanto, impunha-se a abolição: "não tarda no Rio Grande a con-
clusão solemne da grande obra, em que estão empenhados o nossos
tradicional amor à liberdade, os nossos brios de povo livre e civilizado, o
nosso indomável patriotismo"63. Em pouco tempo, a Abolição, em vez de
significar uma tentativa de resgatar um compromisso moral dos brancos
para com os negros, como queriam os mais autênticos e conseqüentes
abolicionistas, transformava-se numa pura virtude dos brancos, indiferente
ao negro enquanto pessoa ou escravo - a generosidade do povo gaúcho,
o apego à Pátria, que existia em cada um, faria de todos "bons abo-
licionistas", independentemente das opiniões sobre a escravidão como
forma de espoliação social ou das opiniões sobre o negro enquanto homem:

265
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

"Sim todo bom brasileiro julga ver em si reflectido o ignominioso ferrete


que enodôa o pavilhão do seu paiz; dalhi a boa vontade e apoio que o
movimento abolicionista encontra em todos os corações que aspiram ao
que é bom e justo"64.
A partir dessas premissas, nada mais coerente que uma atitude de com-
placência e mesmo de transigência diante das ponderações dos "outros
partidos", os senhores de escravos, que alertavam a nação sobre os peri-
gos da Abolição imediata: "Dous grandes sentimentos se acham actual-
mente em jogo nesta gravissima questão, a liberdade do escravo, e o
patriotismo, isto é, o amor pela salvação do país"65. O "amor pela salva-
ção do país", em 84, não significava mais a manutenção da escravidão a
qualquer preço e sua justificação em nome do princípio da propriedade e
da necessidade do trabalho escravo para evitar a ruína do país, pois o prin-
cípio já fora abalado pela lei do ventre livre. Exprimia, apenas, as tentati-
vas ainda viáveis seja de manter por mais algum tempo a escravidão, sob
a afirmação de que as leis promulgadas anteriormente bastavam para fa-
zer a emancipação gradualmente, seja de impor "contratos de prestação
de serviços" aos libertos. Por isso, os mais ferrenhos escravocratas apare-
ciam como abolicionistas patriotas: "Sim! convem que se liberte ao escra-
vo, mas sem causar abalo no paiz e mediante a indemnização a que tem
direito o senhor". "É por esse modo que quer a nação que o escravo
desappareça do imperio de Santa Cruz; (...)"66.
O pensamento conservador e reacionário sobre "a questão servil"
transparece nítido nessas idéias. Está claro que, no Rio Grande do Sul,
pelas condições que tantas vezes indicamos neste trabalho, nenhuma grande
ruína seria provocada pela Abolição imediata. Numericamente o setor que
seria mais duramente alcançado pelos efeitos da Abolição era o dos servi-
ços domésticos67, de nenhuma significação no plano da produção econô-
mica; realmente só as charqueadas teriam de enfrentar sérios problemas
com a transição da escravidão para o trabalho livre. Não obstante, a es-
cravidão era defendida com argumentos que, se poderiam ter validade em
termos gerais para as áreas onde havia concentração de escravos nas pro-
priedades rurais, não correspondiam ao condicionamento econômico di-
reto da situação gaúcha de produção. O apego aos argumentos tradicionais
de defesa da escravidão explica-se porque a motivação para atitude

266
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

escravocrata não se formava apenas, nem diretamente, em função dos


interesses econômicos do país ou da região. Por certo, o interesse imedi-
ato do proprietário levava-o a exigir a indenização, fundamentado no
princípio basilar da propriedade. Mas, ainda uma vez, é preciso acrescen-
tar às motivações estritamente racionais com relação a interesses, a visão
senhorial do mundo, à qual estavam presos proprietários de escravos e
não proprietários. O escravismo era um modo de ser coerente e comple-
to: ou existe a escravidão, ou o cataclismo é fatal, porque a escravidão
representa a ordem legítima, os princípios estabelecidos, sem os quais há
"a morte da nação".
Assim, na ideologia escravocrata coexistiam valores e princípios com a
defesa mais ou menos consciente de interesses imediatos. Se todos os que se
apegavam aos interesses próprios camuflavam a "sórdida realidade" em
nome de valores e princípios, nem todos os que defendiam o "partido da
ordem" faziam-no movidos por "motivos racionais", em termos dos inte-
resses pessoais, embora, uns e outros, acabassem por alinhar-se entre os
defensores da espoliação social sem travas. Pelo fato mesmo de ser uma
ideologia (no sentido sociológico que lhe atribui Mannheim), o escravismo
fazia dos mais puros e íntegros, isto é, dos que mais se apegavam aos prin-
cípios independentemente dos interesses em jogo, os mais cegos e menos
"objetivos". E transformava os que mistificam porque se apegavam à "sór-
dida realidade" nos aparentemente mais lúcidos e mais "objetivos".
Essa ambigüidade na motivação e no comportamento se reproduzia,
por outras razões e de maneira inversa, entre os abolicionistas. Por isso,
como ideologia, o abolicionismo exprimiu no Rio Grande uma forma de
consciência que englobou tanto um conhecimento adequado como uma
distorção da realidade, capaz de levar em conta e justificar posições e inte-
resses sociais. Entretanto, no abolicionismo o processo aparecia de outra
forma: só os que negavam o presente de forma conseqüente e apegavam-
se a princípios eram capazes de ver claro socialmente, eram "objetivos";
os que mistificavam, em nome dos compromissos que a prática impunha,
acabavam por nada entender, presas das próprias contradições. Vê-se, pois,
que as funções e os efeitos do bom côté e da mera racionalização que exis-
te em toda ideologia são completamente diferentes, conforme a polariza-
ção ideológica se volte para o passado ou para o futuro.

267
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

o ponto crucial para a compreensão da ideologia abolicionista está,


exatamente, na delimitação das possibilidades de conhecimento adequa-
do da sociedade escravocrata abertas ao abolicionismo68 • Em primeiro
lugar, o abolicionismo não foi a formulação possível de um "ponto de vista
dos escravos". A situação dos escravos na sociedade brasileira apresentou
muitos matizes. No Rio Grande do Sul, como vimos, é possível estabele-
cer um gradient que vai desde a situação do negro na charqueada até o
pólo oposto do negro artesão, passando pela atividade dos escravos nas
estâncias e nos serviços domésticos. Quando o escravo participava da pro-
dução em grande escala para a exportação - processo fundamental por-
que imprimia o sentido da economia e da sociedade colonial69 - atuava
unicamente como mão-de-obra reificada. Nesta qualidade, é obvio que
não podia tomar consciência da sociedade como um todo nem do sentido
que sua situação de dependência adquiria no contexto social: a socializa-
ção parcial a que o sujeitavam, a despersonalização a que era submetido e
as formas de coerção e controle desenvolvidas pela sociedade escravocrata
tornavam o escravo incapaz de reação coordenada e de perceber critica-
mente sua posição. A consciência possível do escravo nessa situação só
poderia manifestar-se pela negação da escravidão através do sentimento
de revolta. A revolta exprimia a relação mítica do negro com o mundo de
escravos criado pelos brancos: a liberdade transformava-se no Bem Abso-
luto e a escravidão aparecia como o Mal Absoluto. A fuga e o assassínio
do senhor significavam para a consciência escrava a procura do Bem e o
extermínio do Mal. Nenhuma perspectiva social de futuro, entretanto,
podia ser entrevista pelos escravos nesta situação. No melhor dos casos, a
ação coordenada dos negros poderia levá-los à formação de quilombos,
numa tentativa de retorno à situação tribal. Em geral, a consciência de
revolta não chegava a exprimir-se no ato de negação da situação escrava,
limitando-se à reelaboração subjetiva do sentido do mundo: na fabulação
e nas crenças religiosas, o negro se libertava e se transformava em senhor.
Quando, porém, o negro participava da produção doméstica ou
artesanal, começava a ter a possibilidade de perceber a sociedade como
um todo e de apreender o sentido da situação do escravo e do negro na
totalidade. Entretanto, a inserção do escravo no artesanato e nos serviços
limitava a possibilidade de conhecimento totalizador da sociedade por-

268
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

que a "prestação de serviços" era uma atividade lateral na sociedade


escravista brasileira. A dinâmica da sociedade global era regulada pelas
relações de produção e pelo desenvolvimento das forças produtivas que
se processavam no setor exportador da economia. Por este motivo, nem
mesmo o escravo urbano utilizado na prestação de serviços pôde desen-
volver uma consciência totalizante da situação. Além disso, como a rela-
ção jurídica entre senhores e escravos ocultava a relação econômica
fundamental que os ligava, faltava também ao escravo a possibilidade de
um ponto de partida imediato para a compreensão adequada do jogo das
relações econômicas subjacentes às ideologias e formas imediatas das re-
lações entre os homens?o. Em suma, o escravo doméstico ou artesão não
podia pôr em xeque a totalidade do sistema escravocrata porque estava à
margem do tipo de produção que dava sentido à economia escravista. Por
outro lado, o fundamento econômico das relações entre senhores e escra-
vos, ao contrário do que sucede com o operário para quem o salário de-
nuncia de forma imediata a natureza dessas relações, encobria-se através
de uma multiplicidade de formas culturais que dissimulavam seu sentido
real, contribuindo para impedir a formação da consciência adequada da
situação escrava.
Não obstante, o escravo urbano pôde alcançar, embora precariamen-
te, algum grau de compreensão da sociedade escravocrata?l. Apenas, pe-
las razões apontadas acima, a consciência possível da situação de escravo
só podia ser formal: descobria a inferioridade do negro e a dependência
do escravo, tomando como padrão o cidadão livre e universal. Nesse sen-
tido, a Abolição não podia representar para o escravo qualquer possibili-
dade de alteração imediata de forma por que se situava no processo
produtivo. Significava, apenas, a generalização da liberdade, como con-
dição para a igualdade formal entre os homens. Dessa descoberta à des-
coberta subseqüente dos negros livres, que será analisada no próximo
capítulo, de que a cor não deve definir a posição do homem na sociedade,
a distância era curta. Finalmente, o escravo pôde apresentar também o
sentido imediato da relação senhor-escravo como uma relação de violên-
cia. Por isso, foi capaz de reagir. As ameaças, as fugas e os assassínios do
período de desagregação do sistema servil significavam algo mais que o
extermínio do Mal Absoluto. Eram a antiviolência legitimamente violen-

269
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ta porque visava acabar todo um "estado de violência". As fugas organi-


zadas e as ameaças aos senhores, também organizadas, denunciavam mais
do que um "sentimento de revolta", o objetivo de extermínio do sistema
escravocrata. A ação dos escravos começava a voltar-se para a totalidade
do sistema que já aparecia como um estado de violência. O sentido real e
profundo da escravidão teria, contudo, de permanecer inacessível à cons-
ciência escrava, pelas razões indicadas anteriormente.
O abolicionismo como consciência totalizante e, até certo ponto, como
consciência crítica da situação 72 não podia ser, portanto, uma ideologia
que espelhasse o "ponto de vista escravo". Mas isso não significa que o
abolicionismo exprimia apenas a compreensão pelos brancos livres da
necessidade de liquidar o sistema escravista porque este constituía o obs-
táculo fundamental para a formação plena do regime capitalista. Ao con-
trário, o "abolicionismo autêntico" se não podia basear-se na "perspectiva
dos escravos", como ponto de partida para exprimir a consciência crítica
da sociedade escravista, não deixou de refletir o ponto de vista teorica-
mente imputável aos escravos: o desejo da generalização da liberdade e
de equalização jurídica entre os homens.
Nabuco foi quem melhor formulou o que estou designando aqui como
"abolicionismo autêntico". Percebeu que o sistema escravista não impli-
cava apenas a degradação do escravo, mas a constituição de uma socieda-
de totalmente organizada sobre a escravidão e marcada por ela: "Assim
como a palavra Abolicionismo, a palavra Escravidão é tomada neste livro
em sentido lato. Esta não significa somente a relação do escravo para com
o senhor; significa mais: a somma do poderio, influencia, capital, e clien-
tela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a de-
pendencia em que o commercio, a religião, a pobreza, a indústria, o
Parlamento, a Coroa, o Estado enfim, se acham perante o poder aggregado
da minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de ente~
humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regi-
me a que estão sujeitos; e por último, o espirito o principio vital que ani-
ma a instituição toda, sobretudo no momento em que ella entra a recear
pela posse immemorial em que se acha investida, espirito que ha sido em
toda a historia dos paizes de escravos a causa do seu atrazo e da sua ruina"?3.
Por isso, o abolicionismo deveria ser, para Nabuco, a crítica completa do

270
CAPITALISMO E ESCRAVIDAo NO BRASIL MERIDIONAL

sistema escravocrata como produtor de seres alienados, senhores ou es-


cravos: "a emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de
que o escravo é martyr, mas também a eliminação simultanea de dois typos
contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor"74.
Entretanto, Nabuco entendeu, ao mesmo tempo, que para o Abo-
licionismo não se deformar numa mistificação sem glória precisava mos-
trar que seus alvos transcendiam o "problema do negro", sem relegá-lo a
segundo plano, integrando-o na questão fundamental do país, que era a
do trabalho livre: "No Brasil, porém, o Abolicionismo é antes de tudo em
movimento político, para o qual, sem dúvida, poderosamente concorre o
interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de
um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e
a união das raças na liberdade"75. A "liberdade ou a compaixão pelo ne-
gro" não aparecem como racionalizações para permitir pura e simples-
mente a introdução de imigrantes e a generalização do trabalho livre
requerido pelo capitalismo nascente. Ao contrário, esses processos se le-
gitimam pela inclusão do negro neles: reconstruir o Brasil sobre o traba-
lho livre e a união das raças na liberdade, tal era o objetivo de Nabuco.
Assim, no "abolicionismo autêntico", a perspectiva do escravo - que
requeria a generalização da liberdade e a dissolução, no plano ideal, da di-
ferença entre os homens - se acrescenta à compreensão que os brancos
podiam ter da necessidade de introduzir o trabalho assalariado. Atingir tão
largo ângulo de compreensão da sociedade escravocrata equivalia, para os
brancos livres, a incorporar a perspectiva do "escravo crítico", generalizan-
do-a para todos os escravos, numa verdadeira transfiguração das consciên-
cias. É o que Nabuco exprime magnificamente na idéia de mandato dos
escravos negros assumido pelos brancos livres: "É êsse ponto de vista, da
importância fundamental da emancipação, que nos faz sub-rogar-nos nos
direitos de que os escravos e os seus filhos - chamados ingenuos por uma
applicação restrictiva da palavra, a qual mostra bem o valor das ficções que
contrastam com a realidade - não podem ter consciencia, ou tendo-a, não
podem reclamar, pela morte civil a que estão sujeitas. Aceitamos êsse man-
dato como homens politicos, por motivos políticos, e assim representamos
os escravos e os ingenuos na qualidade de Brasileiros escravos, isto é, no
interesse de todo o paiz e no nosso proprio interesse"76.

27 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Dessa maneira, o abolicionismo autêntico aparece como a forma pos-


sível de consciência totalizante da sociedade escravocrata brasileira. A
negação da escravidão suposta por ela, ao mesmo tempo que tinha sua
impulsão fundamental na necessidade imposta pelo desenvolvimento do
capitalismo de generalizar a liberdade formal do trabalhador, desvendava
o conteúdo e o sentido da sociedade escravista, mostrando que ela se fun-
dava na violência e que a supremacia da "raça" branca sobre a "raça" negra
nada mais significava que a racionalização necessária para permitir o do-
mínio e a espoliação de um grupo social (a "minoria aristocrática") sobre
toda a sociedade, através dos escravos negros.
Não nego que no Rio Grande do Sul, em algumas figuras exponenciais,
o Abolicionismo tenha assumido, parcialmente, a mesma grandeza. Con-
tudo, o que interessa neste capítulo não é a caracterização das expressões
mais refinadas do pensamento abolicionista gaúcho, mas a maneira pela
qual se integrou, como um movimento social, na vida diária do Rio Gran-
de. Por isso, utilizarei na análise os jornais e os depoimentos sobre o com-
portamento efetivo dos que podiam ser classificados como pró ou contra
a escravidão, e deixando de lado os discursos pronunciados no Senado e
nas Câmaras pelos representantes do Rio Grande.
Ora, na sua expressão vulgar, o abolicionismo, no Sul, só muito obscura
e difusamente constitui-se como uma forma de consciência totalizante, isto é,
tornou-se uma perspectiva capaz de permitir a inteligibilidade do real. Em
geral, predominou o aspecto de pura ideologia de mascaramento das coisas.
Foi, sem dúvida, um "movimento político" que visava "reconstituir o Brasil
sobre o trabalho livre", e não deixou de ser um movimento de homens livres,
que tinha por objeto escravos. Contudo, parecendo, formalmente, semelhante
ao abolicionismo de Nabuco, foi, na verdade, inteiramente diverso nas suas
funções, afastando-se do que preconizava seu maior teórico. Isto porque cada
um dos aspectos do problema abolicionista, tomado isoladamente ou arbi-
trariamente reputado como o ângulo fundamental da questão, acabava por
destorcer a realidade, resultando um conhecimento mistificado e mistificador:
ou se negava a sociedade escrava na totalidade ou o conhecimento se trans-
formava em mera ideologia77•
No que consistiu, em essência, o abolicionismo de 84 no Rio Grande
do Sul, senão na adoção do ponto de vista reacionário dos escravocratas,

272
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

que viam apenas o problema da mão-de-obra e não a sociedade escravista


como um todo? A questão real, para eles, porque imediata, porque "obje-
tiva", era, como sempre, a da transição de uma forma de trabalho para
outra. Para que não houvesse abalos, a transição precisava ser gradual e, o
quanto possível, com respeito ao princípio de propriedade. Tudo isso era
tão óbvio, tão fortemente apoiado na experiência, na prudência, na reali-
dade, que aparecia como a única solução possível e verdadeira. Para esca-
par dessa espécie de argumentos e para ver que a verdade contida neles
era parcial, sem deixar de, num certo sentido, ter conteúdo material, se-
ria preciso ser abolicionista, na acepção de Nabuco.
Os republicanos gaúchos, sem alcançar uma consciência totalizante,
puderam radicalizar a crítica porque seus objetivos iam além do proble-
ma da mão-de-obra: precisavam destruir os fundamentos da ordem le-
gal. Por isso, foram capazes de compreender, pelo menos, que o escravismo
do fim do Império transformara-se, apresentando-se como "eman-
cipacionismo" e que este devia ser combatido: "Logo que começou a
agitação abolicionista no paiz, os adversarios não ocultavam as suas ver-
dadeiras intenções, nem mesmo julgavam um desaire a denominação de
defensores da escravidão (...) eram esclavagistas confessos" (...). "Mas
de certo tempo em diante elles começaram a se cohibir de manifesta-
ções de franco escravagismo. Mudaram de estrategia: de esclavagistas
confessos passaram a proclamar-se emancipadores". "Não defendemos
a escravidão, dizem elles, não queremos conservai-a, desejamos mesmo
extinguil-a, mas lentamente, sem abalo, sem violencia, por meio da
emancipação gradual; não ha brazileiro que seja escravocrata, não so-
mos abolicionistas, mas, sim, emancipadores"78.
Entretanto, que defendiam os jornais "abolicionistas" de 1884 em geral,
e especialmente os de Pelotas? A emancipação com cláusula de prestação
de serviços ou, então, a abolição, com indenização aos proprietários: "Pro-
curemos revelar mais sabedoria do que generosidade. Não precipitemos,
a demora não será longa; é preferivel esperar o sublime momento da re-
denção do escravo para saudai-o com risos e flores, do que precipitai-o
no meio das desgraças da patria. A emancipação por indennização ou
contracto de serviços é o meio a seguir para resolver o arduo problema",
escrevia o jornal de Pelotas79 que se jactava de ter sido o primeiro de todo

273
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

o Império que deixou de publicar anúncios de venda, aluguel, compra ou


fuga de escravos80.
Quando, no auge do debate público no Rio Grande, a "questão ser-
vil" aparecia como "questão política", A Discussão pregava a necessidade
de "fazer alguma coisa já" pela sorte do escravo. Esta alguma coisa não se
definia bem, variando de editorial para editorial, pois a pressão aboli-
cionista se via comprimida diante dos "mais altos interesses do País" que
em Pelotas eram muito poderosos, uma vez que a cidade era o núcleo dos
charqueadores 81 . Nos momentos de maior ousadia abolicionista, prega-
va-se a abolição imediata com indenizaçã0 82, nos períodos de reflexão e
prudência, insistia-se na impraticabilidade da Abolição e nas virtudes da
emancipação gradual, conforme o espírito da lei de 1871 83 . Em geral de-
sejava-se a "liberdade" com cláusulas de prestação de serviços, pois as-
sim, a um só tempo, resolvia-se o "problema do negro" sem transformá-lo
num ocioso, isto é, resolvia-se, muito mais do que o "problema do ne-
gro", "o problema da mão-de-obra"84.
Essa posição "abolicionista" foi partilhada por quase todos os órgãos
da imprensa que lutaram contra os escravocratas. A Reforma, de Porto Ale-
gre, manifestava-se favoravelmente à liberdade condicional, porque o "ser-
viço doméstico não pode ser desorganizado de um momento a outro",
impondo a atitude prudente de estabelecer cláusulas de prestação de servi-
ços de 2 e 3 anos85 , no máximo de 5. E mesmo A Voz do Escravo, embora
alguns anos antes do projeto Dantas, manifestava-se ora a favor da liberda-
de imediata, ora contra86 . Parecia que nenhum grande progresso se fizera
desde 1852, quando o conspícuo O Pelotense antecipava-se à discussão,
premido já pelos efeitos presumíveis da suspensão do tráfico, e afirmava
enfático: "Nas circunstâncias em que se encontra o Brasil, essa manumissão
geral só póde produzir beneficos effeitos, vindo lentamente, e não de cho-
fre: queremos dizer, vindo na melhor harmonia com a subordinação, com
o bem dos mesmos emancipados, e com os interesses dos senhores"87.
A consciência abolicionista, tal como se reflete nos jornais antiescravo-
cratas, era, portanto, conciliadora. Não negava a sociedade escravocrata como
um todo. Cedia, a cada passo, aos compromissos que a "realidade", isto é, as
necessidades da prática escravocrata, impunha. Definia-se mesmo como uma
medição entre o imobilismo dos escravistas e a precipitação dos que queriam

274
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

a abolição total a qualquer preço. Não foi um movimento de escravos, em


nenhum momento desejou afirmar-se como um movimento contra a ordem
social no seu conjunto e, muito menos, como um movimento que refletisse o
"ponto de vista" dos escravos88 . Desse ângulo, a ideologia abolicionista apa-
rece como uma "falsa consciência". Tanto mais falsa quanto objetivamente
refletia os interesses dos que a desposavam, isto é, quanto realmente os
"emancipadores", porque defensores da permanência do escravo nas suas
charqueadas, mais razões possuíam para agir assim, em nome dos interesses
objetivos de sua "situação de c1asse"89. Por causa desses interesses, não podi-
am ver claramente o problema com que se defrontavam, que era o da escra-
vidão, enxergando na "questão servil" simples "problema de mão-de-obra".
Escravocratas ou emancipadores, falavam a linguagem mistificadora dos "al-
tos interesses da Pátria", da impraticabilidade da libertação imediata sem abalos
profundos, do princípio da propriedade, não como meros invólucros para
encobrir a realidade, mas porque para eles esta era a realidade. Imersos, como
estavam, num mundo que não era o da pura ação racional com relação a fins
econômicos90, não podiam sequer perceber que seu interesse real, mas num
nível mais profundo da realidade, era também o da transformação imediata
do regime escravo. Assim, apegavam-se a fórmulas cujos efeitos, mais que o
de encobrir os "interesses inconfessáveis" dos que as utilizavam, consistiam
em não permitir a tão necessária redefinição de objetivos, de valores e de
formas de conduta dos charqueadores escravocratas, nem a plena adequação
do comportamento dos partidários da imigração aos fins por eles mesmos
propostos91 .
A ideologia refletia, portanto, o nível aparente da realidade em cujo
imediatismo e "objetividade" perdiam os que não eram capazes de enca-
rar a sociedade escravista como um processo total. Exprimia um ponto
de vista falso, não apenas porque seus defensores queriam encobrir inte-
resses, mas porque a "situação de classe", na qual se inscreviam, não per-
mitia compreensão global da sociedade.

..
Por que, então, a "onda abolicionista" cresceu de forma avassaladora
em 1884? A resposta a esta indagação não é simples e permite caracterizar

275
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

melhor a ideologia abolicionista vulgar e o movimento abolicionista do


sul. Antes de mais nada, o movimento de 84 foi um movimento políti-
co. Não na acepção de Nabuco, mas no sentido tradicional da influên-
cia dos partidos no Império. Só assim se explica o empenho da máquina
administrativa da Província, sob a direção do conselheiro José Júlio de
Albuquerque de Barros, nas festas de libertação dos escravos em toda a
Província: o presidente, representante do partido liberal, prestigiava o
projeto de um gabinete liberal que, aduza-se, acabou por não ser apro-
vado. Pela mesma razão, o partido conservador abria as baterias contra
o "abolicionismo dos liberais". A grande questão política do Império apa-
recia como uma questiúncula entre facções. Entretanto, como é sabido,
tanto havia liberais escravocratas, como conservadores abolicionistas 92 .
Os republicanos, que nesse particular eram mais capazes de compreen-
der os motivos "políticos" das disputas e, por isso mesmo, de situarem-
se numa perspectiva verdadeiramente política, não apenas apoiavam as
medidas propostas através do Sr. Dantas pelo "dictador constitucional"
aliando-se, abertamente, ao Partido Liberal, como reduziam às verda-
deiras proporções o conteúdo programático-partidário; que era atribu-
ído às iniciativas dos liberais: "O juízo final que se pode fazer em face
dos sucessos actuais, é que os partidos, que se proclamam destinados a
servir a patria por todas as formas e em todos os sentidos não tem plano
definido sobre a questão culminante no presente, não dizem o que pen-
sam, não sabem o que querem. Somente, existem partidarios do libera-
lismo que são também partidarios do esclavagismo; bem como conta o
partido conservador muitos aggremiados que são intransigentemente
abolicionistas. Eis o que é capaz de produzir a politica dos rotulos!"93.
O aspecto de passeata festiva que a libertação de 1884 assumiu em
Porto Alegre e Pelotas foi possível por causa do bafejo oficial, que tanto
irritava o Partido Conservador, como se vê nas repetidas acusações con-
tra o Sr. José Julio "que por ordem de seu patrão, despertou nesta capital
o movimento abolicionista (00.)"94. Entretanto, o simples fato de o partido
governamental ter-se posto ao lado do projeto emancipador, projeto que
representava, em si mesmo, no entender de Nabuco, uma transação entre
os interesses "da lavoura" e o abolicionism095 , não basta para explicar a
"onda abolicionista". Explica, apenas, as repercussões que a disputa sobre

276
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

o projeto teve na imprensa local e o acirramento da paixão das facções


envolvidas na luta pelo poder.
Para compreender mais amplamente a abolição de 84 no Rio Grande
é preciso completar a análise que fiz até agora. Nem o abolicionismo foi
integramente uma forma de consciência, nem a libertação dos cativos,
realizada nessa época, representou muito mais do que uma simulação. Com
efeito, houve certa radicalização do pensamento abolicionista. Esta
radicalização se exprimiu melhor através de A Federação, não porque o
republicanismo ou o positivismo, de tão larga influência no Rio Grande,
implicassem por si a idéia da abolição e da revalorização do negro 96 , mas
porque, não havendo no sul o eleitorado poderoso dos grandes fazendei-
ros escravocratas para ser disputado, político-eleitoralmente os republi-
canos nada perderiam sendo conseqüentes com suas posições, favoráveis,
em geral, ao trabalho livre do imigrante. Por isso, criticavam a emancipa-
ção gradual, pondo-se ao lado da abolição imediata e pregando e ação
direta na Província97 , independentemente das leis promulgadas no Parla-
mento: "Então, quando na camara dos deputados, que agora vai ser eleita
(depois da rejeição do projeto Souza Dantas) se discutirem timidamente
os meios de abolir gradualmente o escravo, para se conciliar em má hora
essa necessidade nacional com os interesses de um grupo de escravagistas,
os representantes do Rio Grande, a uma só voz, bradarão perante o go-
verno e perante o parlamento: Votamos pela abolição immediata, como
representantes da provincia que já effectuou no seu territorio!"98. Insisti-
am, também, em que o caráter nobilitante do movimento abolicionista de
84 no Rio Grande estava exatamente no aspecto de liberdade sem indeni-
zação: "Honra ao povo do Rio Grande, que esquecendo-se de dissensões
partidárias, movido pela reflexão, libertou seus escravos sem cometter
tropelias, sem receber dinheiro a troco de creaturas humanas, sem espe-
rar intervenção dos corpos legislativos e sem desorganizar o trabalho"99.
Não foram os republicanos os únicos a se manifestar dessa forma.
Os jornais críticos de Pelotas (O Cabrion) e de Porto Alegre (O Século)
não deixariam de desmascarar os falsos abolicionistas que libertavam
os escravos depois de avaliados e pagos pelas comissões libertadoras, e
os emancipadores que manumitiam impondo cláusulas de prestação de
serviços.

277
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Porém a radicalização transpareceu mais no movimento abolicionista


do que em sua ideologia. Aquele processou-se em Porto Alegre e em Pelotas
graças à ação de clubs e grupos, que, em 84, passaram a agir de rua em
rua, pressionando os proprietários de escravos. A tal ponto que O Con-
servador protestava dizendo "que o grande número de liberdades que se
tem dado é devido apenas as ameaças, e imposições, que tem sido até
publicamente feitas"lOo. Além disso, a luta pela abolicão chegou a atingir
os tribunais, mesmo antes de 84 101 , e galvanizou a "opinião pública". A
"opinião pública" que se organizava a agia não exprimia apenas o ponto
de vista dos charqueadores, exportadores, comerciantes e estancieiros: do
movimento abolicionista participavam gráficos102, alfaiates, sapateiros,
funileiros etc. 103 e representantes da pequena burguesia urbana, para os
quais o abolicionismo era sentido como o grande movimento humanitá-
rio do século e que dele participavam por impulsões diferentes daquelas
que moviam os "emancipadores" e os interessados na intensificação da
onda de imigrantes104 . Por outro lado, a reação dos próprios escravos, sem
ser grande ou decisiva, não deixou de existir. Os senhores temiam-na, como
se pode confirmar pelas notícias e editoriais de O Conservador, talvez mais
do que efetivamente ela poderia significar. De qualquer forma, a impren-
sa registrou algumas tentativas de "liberdade a qualquer preço"105.
Por todas essas razões, é válida, aparentemente 106, a análise feita pelos
que acreditavam que o movimento abolicionista de 84 fora o resultado
do empenho da opinião pública pela redenção do escravo: "Enquanto os
governos erigiam essa impatriotica e desumana divisa (- não nos interes-
sa a sorte dos negros, confiamos à ação do tempo a tarefa de libertar os
opprimidos -) e a praticavam, inalteravelmente, o movimento liberta-
dor, que renascia pujante, recebia um vasto impulso; a propaganda
abolicionista, inflammada da nobre paixão natural à idéia, levava o seu
poderoso influxo a toda a parte, accendendo convicções, despertando
entusiasmos ardentes, promovendo a colligação nacional em favor dos
opprimidos e contra a criminosa instituição"107.
Porém, só "aparentemente" esta análise procede 108 . Em nível mais
complexo de compreensão do processo abolicionista, tanto é possível
mostrar que, ao lado dos abolicionistas autênticos, havia os que, com a
mesma fraseologia, visavam apenas apossar-se do movimento para ser-

278
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

vir a interesses diversos daqueles dos escravos, como se pode demons-


trar que objetivamente (isto é, considerando-se a realidade como um
processo total) uns e outros acabaram por servir apenas ao lema do pre-
sidente da Província - "supprimir o escravo, conservando o operario,
no Rio Grande do Sul"109. Esse lema correspondia, essencialmente, à
formulação consciente do grande problema que a economia criatória
havia colocado, como um desafio, aos senhores rio-grandenses. Neste
sentido - e só neste sentido - o abolicinismo, em todas as suas formas
no Rio Grande do Sul, foi um momento da "falsa consciência". Mesmo
os que quiseram partir do ponto de vista do negro, acabaram por agir
conforme os interesses da economia escravocrata em dissolução em quiçá,
no melhor dos casos, conforme os interesses dos que, a qualquer preço,
queriam criar as condições para a economia capitalista plena, isto é,
desejavam o trabalho-livre, pouco se interessando pelo tipo de liberda-
de que teria o trabalhador llo .
O Relatório de 1885, do Presidente Albuquerque Barros, e o ofício
por ele dirigido à Praça do Comércio de Porto Alegre e às associações co-
merciais do Rio Grande e Pelotas constituem as peças básicas para enten-
der o significado real do movimento de 84 e a "vontade geral", à qual os
abolicionistas autênticos emprestaram apoio. Nesses documentos, fundem-
se os interesses dos proprietários e as aspirações dos imigracionistas
recobertas pela fraseologia abolicionista, num momento de conciliação que
mal esconde o sentido conservantista da abolição de 84. Esta, em última
análise, garantiu aos senhores, graças às cláusulas de prestação de serviço,
a continuidade do statu quo l11 , deu aos imigracionistas a ilusão de que a
Província era já a Canaã da Liberdade, e aos abolicionistas altruístas per-
mitiu a ilusão de que o imperativo de consciência fora obedecido: "Felici-
to-me de haver sido durante a minha administração que se operou na
Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul esse brilhante movimento
abolicionista que dentro de poucos mezes restituio à liberdade cerca de
quarenta mil escravos. Não contribuí para tão notavel e auspicioso acon-
tecimento senão demonstrando a conveniencia e praticabilidade do systema
de emancipação por meio da locação ou da condição da alforria, applau-
dindo a espontaneidade do movimento, e assegurando os direitos adqui-
ridos pelo patrono ou pelo liberto"1I2.

279
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Cláusula de prestação de serviços chamava-se a fórmula milagrosa que


permitiu a "liberdade" de 40.000 escravos em poucos meses ll3 , isto é, que
permitiu aos senhores de escravos, a um tempo, elidir a si próprios o grande
problema do trabalho livre e esquivarem-se das pressões dos anti ou a-
escravagistas, pois todos aceitaram a abolição através dessa fórmula. Por
isso, o presidente da Província pôde escrever: "No dia 16 de Outubro o
municipio de Pelotas, em que o elemento servil era mais numeroso e onde
parecia impossivel extingui-lo sem arruinar a mais importante de suas
industrias - as xarqueadas -, proclamava a liberdade de quatro mil es-
cravos. (...) Essa cidade foi a primeira a applicar em grande escala o systema
de alforria com clausula de serviço, que posto menos generoso do que o
da libertação incondicional, não o exclue, e permitte, como aconteceu ali
e depois em toda a Provincia, que concorram todos para a emancipação
na medida de suas possibilidades, sendo muito desiguais as condições dos
possuidores de escravos e os generosos de trabalho em que estes se em-
pregam. Ordinariamente o mesmo proprietario dividiu a sua escravatura
em classes, conforme a idade, a saude e profissão: a uns libertava sem
condição, a outros com prazo mais ou menos longo, desde um até cinco
annos"! 14.
Nada mais explícito, pois, do que a análise da abolição de 84 por seu
grande incentivador oficial. Entre o lema abolicionista intransigente -
carne humana não se vende nem se compra - e a tese escravocrata sem
rebuços -liberdade do escravo, mediante indenização - foi engendra-
do um sistema que consistia, para a maioria dos escravos validos, numa
simples promessa de liberdade futura. Repetia-se, assim, a mesma mano-
bra utilizada com relação aos ingênuos, na lei de 1871. "Suprimir a escra-
vidão, conservando-se o escravo" tal seria o significado real do lema
suprimir a escravidão, conservando o operário. Formalmente, assinava-
se a promessa de libertar o escravo, mas tudo permanecia como dantes.
Ainda uma vez, entretanto, a explicação para esse procedimento não
está na hipótese de que o braço escravo era decisivo para a economia da
Província. Ao contrário, no memorial ao comércio indicado acima, o Pre-
sidente insistia que a Província era a "parte do Império a que menos deve
arrecear-se de crise por essa transformação"t1s. Apenas, o que fundamen-
talmente interessava aos abolicionistas oficiais do Rio Grande, ao lado do

280
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

ângulo político do problema, era a introdução de imigrantes e não a sorte


dos escravos: "No momento, pois, em que a Província toma por si, à cus-
ta de todos os sacrifícios, a heroica resolução de abolir para sempre o tra-
balho escravo, o maior obice da immigração (...) resolvi fazer um appello,
por intermedio das tres mais importantes raças commerciais, aos pro-
prietarios das terras, criadores, agricultores e ao commercio para combi-
narmos nos meios de promover mais activamente a immigração e garantir
o bem estar dos immigrantes"116. Por isso, a transação com o escravismo
foi possível com tanta facilidade: para os abolicionistas-imigrantistas e para
os abolicionistas que não se sentiam responsáveis pelo mandato dos es-
cravos, a Abolição era um problema de brancos para brancos 117• O que a
explica é algo exterior à escravidão, o que dela se espera é a solução do
problema migratório. O resto é "um problema de consciência". Este foi
resolvido graças à aparência de que se revestiu o movimento de 84. A
grande festa de libertação de Porto Alegre, a 7 de Setembro, e a festa da
libertação de Pelotas corresponderam à dramatização do comportamento
nobiliante dos brancos, pelo qual se fez uma espécie de catarse coletiva,
que eliminou a consciência culpada. Pouco importa que as coisas não ti-
vessem mudado radicalmente 118 : tudo se passou como se, de fato, a Pro-
víncia tivesse abolido a escravidão completamente e sem indenizações 119•
Os senhores de escravos, entretanto, participaram do movimento
abolicionista com consciência mais clara de seu significado imediato: pro-
clamando-se pela emancipação, garantiam-se com as cláusulas de pres-
tação de serviços. Porém, a clara consciência dos interesses imediatos
não significou, de nenhuma forma, que os escravocratas estivessem agin-
do orientados pela "consciência adequada" da situação. Os senhores, mis-
tificando para agir lucidamente do ponto de vista de seus interesses
imediatos ou apegando-se à "sórdida realidade", agiam, na verdade, da
forma mais cega possível quanto aos interesses reais da sociedade e, até
certo ponto, contra os próprios interesses, que eles sequer eram capazes
de perceber.
De qualquer forma, o abolicionismo dos escravocratas de 84 permite
o exato entendimento da motivação que levou parte dos senhores a ade-
rir ao movimento. O Conservador reduziu a campanha abolicionista de
84 às devidas proporções quanto aos resultados objetivos que traria para

281
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

a escravidão: "Com raras excepções se verifica que os senhores de escra-


vos, cujos nomes enriquecem este livro (refere-se às relações seguidas de
senhores que alforriavam seus escravos, cujos nomes eram transcritos na
imprensa abolicionista)120, os tem libertado mediante alguns annos de ser-
viços, e de conformidade com as disposições conseguidas na lei de 28 de
setembro"l2l.
Está claro que sem a pressão abolicionista nem isso seria conseguido:
o senhor agarra-se à escravidão enquanto pode l22 • Porém, pressionado,
prestidigita, tornando-se abolicionista à sua moda: "Em meados do cor-
rente mez o centro abolicionista entendeu que era tempo de agitar o espirito
publico com o problema servil. Resistir ao temporal pareceu-me temeri-
dade; qual capitão prudente puz-me a capa; concedi liberdade a meus
escravos com a cláusula de prestação de serviços por 4 annos, dando as-
sim o exemplo da exequibilidade de minhas ideias sôbre a transformação
do trabalho e a localização dos libertos em poder dos ex-senhores. Aos
amigos que me fizeram a honra de consultar, externei as minhas opiniões
e aconselhei-os em que eu havia feito. Os meus conselhos foram seguidos
cabendo-me a gloria de dizer: a maior parte das cartas de liberdade passa-
das nesta capital são copias mais ou menos fieis das que passei aos meus
escravos (... )"123. Para os senhores, portanto, tratava-se de mero expedi-
ente para manter o trabalho escravo. Não raro, tentavam obter algo mais
do que isso: fazer com a "abolição" um bom negócio. As fontes registram
tentativas de obter avaliações favoráveis das juntas e grupos de eman-
cipadores e também a imposição de retribuições mensais a serem pagas
pelos ex-escravos aos senhores124.
Fica patente, em face da discussão e da documentação apresentada,
que o abolicionismo, nos moldes em que se desenvolveu no Rio Grande,
não implicou a revisão, pelos senhores e pelos brancos livres em geral, da
representação social que mantinham sobre o escravo, enquanto pessoa.
Não espanta, pois, que o negro livre, de 84 ou de 88, permanecesse, na
consciência e no comportamento dos homens, representado e tratado como
uma coisa. É certo que esse processo não se desenvolveu sem ambigüida-
des, como se vê no próximo capítulo, e é certo também que, pouco a pouco,
houve "a descoberta do homem" no escravo. Porém, nada alterou subs-
tancialmente a orientação do comportamento dos brancos livres. Apenas

282
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

tornou mais aguda a contradição entre os ideais professados e as formas


de comportamento manifestadas pelos senhores, na medida em que con·
tinuava a agir com relação ao escravo como se ele fosse uma mercadoria
- força bruta apta para o trabalho - quando se impunham, socialmen·
te, a obrigação moral de perceber no escravo as qualidades que aprova·
vam também para si.

NOTAS

1. Relatório já citado, pág. 69.


2. No mesmo relatório citado acima, à pág. 67, o Presidente se queixa de que, apesar
dos escravos venderem-se por mais de 1.000$OOOrs., o crescimento de imposto
de meia sisa, de 1854 a 1856, não fora acentuado. Isto aconteceu porque havia
evasão de renda, pois as vendas se faziam através de "escriptos particulares". Sem
escritura pública o movimento real de venda de escravos era incontrolável.
3. Com efeito, segundo dados contidos no Relatório Barros Pimentel de 1864, pág.
47, a relação entre entradas e saídas de escravos pela barra da Província acusava
ligeira vantagem a favor do número dos que ingressavam na Província, isto no pe-
ríodo compreendido entre 1859 e 1863. Acreditava o Presidente que esses eram
os únicos registros seguros sobre movimentos de população. Durante o mesmo
período houve um aumento de 5.829 escravos na população da Província. Mas
isso se explica porque, nessa época, houve expansão na produção de charque,
conforme se pode ver pela tabela anexa ao capo I.
4. Ver, para exemplo, os textos em que Saint-Hilaire se refere a negros e mulatos que
viviam nos campos, transcritos no capo I. Sobre a existência errante, na campanha,
de amplos segmentos da população rural, há referências em alguns outros relató-
rios. Ver, p. ex., Relatório de 1856 do Barão de Muritiba, pág. 7.
5. Smith, op. cit., pág. 43.
6. Relatório do Conde de Caxias, 1846, folhas 45-46.
7. Essas questões serão retomadas adiante e esclarecidas no decorrer deste capítulo.
8. Manuscrito da Biblioteca da Assembléia Legislativa, já citado, folha 74.
9. Mesmo antes da cessação do tráfico, já se desejava proibir que os imigrantes pos-
suíssem escravos, para não deturpar o sentido esperado da imigração, isto é, a re-
abilitação do trabalho: "A segunda (idéia do Presidente sôbre as Colonias) he que
na mesma ley, ou em outra se declare, que ninguém possa possuir Escravos dentro

283
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

das Colonias já existentes, ou das que para o futuro se derem, e que todo o Colo-
no que dentro de trez dias, depois de avisado não puzer fóra da Colonia quantos
escravos tiver, seja elle com tudo quanto lhe pertence posto fóra da Colonia; e
esta dada a outro". (Relatório Soares Andrea, 1849, pág. 33.)
10. O mesmo é verdadeiro para Santa Catarina, como se pode comprovar no trabalho
que escrevi sobre a história econômica dessa área no capo I do livro Cor e Mobili-
dade Social em Florianópolis e, segundo suponho, para toda a região de Minas
Gerais, Estado do Rio, São Paulo e Paraná.
11. Contrastando com essa atitude, na primeira metade do século quase se poderia dizer
que havia um conformismo oficial diante das precária condições técnicas da produ-
ção gaúcha, raramente superado, como, por exemplo, o foi através de uma Repre-
sentação enviada pelo Conselho Geral da Província ao Imperador, pedindo modelos
de instrumentos agrícolas e homens que ensinassem os agricultores a utilizar esses
instrumentos, já que a agricultura "nesta Província está atrazada, pois que não se
conhecem outros instrumentos alem do simples arado, e a enxada, tendo por isso,
os Lavradores a necessidade de manterem mais braços, que lhe serião poupados por
instrumentos proprios, mas que não tem conhecimento (...)", in Livro de Propostas
do Conselho Geral da Província do Rio Grande do Sul, manuscrito da Biblioteca da
Assembléia Legislativa pág. 18, sessão de 9-1-1829. Op. cit., pág. 36.
12. No mesmo relatório reclama o presidente contra o fato de não haver a Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional remetido sementes de trigo que lhe haviam sido
encomendadas, demonstrando assim os esforços que "efetivamente se fazião para
melhorar tecnicamente as culturas". Já o relatório do ano anterior, de Patrício
Corrêa da Câmara, mostrara preocupação com a importação das sementes de tri-
go (op. cit., pág. 64).
13. Relatório Antão Fernandes Leão, 1859, pág. 75.
14. O presidente enumerava entre as razões que impediam o maior progresso das cul·
turas as seguintes: "1°, os processos até aqui usados no amanho das terras, na co·
Iheita e preparação dos productos da lavoura; 2°, a falta do emprêgo de machinarias
e outros instrumentos aratorios que supprindo e multiplicando o trabalho do ho-
mem, e utilizando as forças da natureza, concorrão para augmentar a produção
com economia de tempo e capitais (...); 3°, a falta de instrução profissional". Op.
cit., pág. 50. Da mesma forma, Moniz Ferraz insiste, à pág. 54, sobre a exploração
predatória das hervaes.
15. Barros Pimentel, op. cit., pág. 63.
16. Discutirei essas questões adiante.
17. "Supremacia da immigração sôbre a colonização", A Discussão, Pelotas, 29-8-1884,
pág.I.
18. Idem, ibidem. "Colonização", "colono" e "colonato" referem-se neste contexto às
práticas de engajamento de mão-de-obra livre empregada nas fazendas de café.

284
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

Importavam-se trabalhadores livres, não proprietários, que se agrupavam nas ca-


sas fornecidas pelos fazendeiros, as "colônias". Juridicamente tratava-se de traba-
lhadores livres que através de contratos de trabalho assumiam compromissos,
variáveis quanto às obrigações e à forma de retribuição do trabalho, de cuidar das
plantações. Ver sobre a "colonização", Denis, Pierre, Le Brésil au xx: Siecle, Librairie
Armand Colin, Paris, 1909, capo VII, esp. pág. 121.
19. Idem, ibidem.
20. No artigo em questão, apesar da ênfase posta na renovação, defende-se uma posi-
ção de compromisso no que diz respeito à questão servil: "Mas essas revolução do
trabalho não deve operar-se de chofre, mas sim paulatinamente, attendendo às
circunstancias do paiz, afim de manter-se sempre em verdadeiro pé de igualdade o
equilibrio. Por isso entendemos que a questão abolicionista e a de immigração de-
vem caminhar por linhas paralelas".
21. "Supremacia da imigração sôbre a colonização", A Discussão, Pelotas, 19-9-1884,
pág. 1.
22. Idem, ibidem.
23. Idem, ibidem.
24. No relatório de 1889, o Barão de Santa Thecla, quando o grosso da corrente mi-
gratória dirigia-se para São Paulo e não mais para o Sul, defendia as virtudes da
"imigração" contra o "colonato", atribuindo o êxito desse último apenas ao em-
penho e à deliberação dos paulistas de recrutar e amparar a mão-de-obra estran-
geira: "É necessário ter bem em vista que não são as condições agrícolas da província
de São Paulo e o seu actual systema de cultura por meio de jornaleiros que chama
agora para lá forte corrente imigratória. A colonização pelo systema da pequena
propriedade foi e sempre ha de ser preferida pelos immigrantes; em toda parte e
em todos os tempos os servos querem passar a senhores ou emancipar-se e os jor-
naleiros aspiram a tornar-se proprietarios.
"A corrente immigratoria tem-se desviado para aquella provincia engrossan-
do consideravelmente, por esforços poderosos e efficazes. Empregaremos esfor-
ços identicos. (...)" (pág. 19).
25. "Imigração e Colonização - IV", A Discussão, Pelotas, 30-9-84, pág. 1.
26. Relatório de 1850, já citado, pág. 32.
27. O Relatório Barros Pimentel de 1864 é taxativo nesse ponto: "Principal ramo da
sua indústria, a criação do gado occupa e absorve a maior parte dos braços da
Provincia, em prejuizo de outros ramos da agricultura, especialmente o da lavou-
ra" (pág. 54). Esse presidente atribuía ao papel preponderante da economia criatória
as dificuldade por que passava a Província, uma vez que o preço dos produtos
bovinos decaíra muito.
28. Não cabe aqui fazer a análise do movimento de colonização no Rio Grande. O
material para isso é abundante. Restringindo-me ao essencial, além dos Relatórios

285
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

dos presidentes da Província, parecem de fundamental importância os trabalhos


dos viajantes, especialmente os de Isabelle e Lallemant.
29. Ave-Lallemant, op. cit., pág. 362.
30. Idem, ibidem, pág. 390. E mais adiante: "Se todos os imigrantes que chegam e se
dirigem a Pelotas e às regiões distantes, ao Uruguai, ao norte e ao nordeste da Pro-
víncia forem ajudados na mesma proporção em que se deseja a sua vinda, com isso
ambas as partes serão servidas" (pág. 290).
31. Relatório Homem de Mello de 1866, pág. 78.
32. Falla Joaquim Pedro Soares de 7-3-1881, pág. 43. Nos jornais da época, da mesma
maneira, a imigração aparecia como o grande plano salvador.
33. Relatório J. L. Godoy e Vasconcellos, 1882, pág. 27.
34. "Esta provincia é ricamente abastecida de produtos espontaneos. Braços e capitais é
que faltão para recolhel-os das mãos da natureza que benéfica os offerece abundan-
tes e variados ao trabalho do homem" (Relatório Barros Pimentel, 1864, pág. 57).
Moniz Ferraz, no relatório de 1858, reclamava não ter sido possível realizar
os trabalhos de desobstrução dos rios da Província, "por falta de braços" (pág.
48). O mesmo acontecera com o reparo dos faróis (pág. 45). A tal ponto a escassez
de braços perturbava as obras provincias que Moniz Ferraz, em pessoa, dignou-se
tentar obtê-los: "Foi-me preciso, durante minha estadia de São Gabriel empenhar-
me para reunir trabalhadores" (pág. 49). O presidente acreditava que a escassez
fosse devida ao recrutamento para a guarda nacional.
35. Refiro-me aqui, como é óbvio, aos charqueadores. A escassez de braços na estân-
cia era muito menos premente, pela própria natureza do trabalho pastoril e por-
que, como se viu no capítulo I, sempre houve a utilização de assalariados. O outro
grande setor de utilização de escravos era o de "serviços domésticos". Mas esse
ramo de atividade não possuía significação em termos da economia provincial de
molde a pesar nas decisões sobre o problema da mão-de-obra.
36. Falla do Barão de Santa Thecla, 1889, pág. 17.
37. ''A questão do dia", A Reforma, Porto Alegre, 1° de agosto de 1884, pág. 1. Adian-
te mostrarei os limites dessas afirmações pró-abolição.
38. "A abolição no Rio Grande", A Federação, Porto Alegre, 1° de agosto de 1884,
pág. 1. A mesma idéia repete-se noutros editais da época, tanto de A Federação,
corno de A Reforma. Alguns dos editais de A Federação, como o indicado nesta
nota, foram escritos por Júlio de Castilhos, corno se verifica na coletânea de arti-
gos de Castilhos publicados no livro de Othelo Rosa, Júlio de Castilhos, perfil
biographico, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1928.
39. Este problema será analisado no próximo tópico relativo à ideologia abolicionista.
40. É certo que havia, presumivelmente, um fator ligado às condições de mercado
que limitava a formação de atitudes francamente abolicionistas entre os char-
queadores, por mais progressistas que fossem: o temor da extinção do mercado

286
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

consumidor. De fato, o charque constituía o gênero básico de alimentação da


escravaria. Os charqueadores podiam temer a retração do mercado ocasionada
pela Abolição, que, nos moldes como estava sendo encaminhada a "questão ser-
vil", levaria a população liberta a níveis de vida ainda mais precários. De qual-
quer forma, não houve consciência clara deste problema, que poderia ser
enfrentado pelos charqueadores se tivessem sido capazes de uma atitude econo-
micamente agressiva. Algumas modificações técnicas na produção teriam permi-
tido novos consumidores.
41. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 40.
42. Na página 50 do livro já mencionado, Gonçalves Chaves expõe as medidas que
julgava necessárias para a transformação do regime de trabalho. As principais eram:
a) dar um prazo de 18 meses para os interessados no tráfico liquidarem seu negó-
cios; b) proibir, depois disso, o tráfico; c) promover a emancipação através de as-
sociações filantrópicas, "quando já estejamos certos de que nossa força física excede
a da raça preta"; d) libertar os descendentes de escravos logo que fizessem 25 anos,
se possuíssem certidões de idade, e logo que fizessem 20 anos, atestadas por pes-
soa idônea, em caso contrário; a segunda ou, no máximo, a terceira geração de
escravos que contivesse sangue branco seria imediatamente libertada.
43. Chaves, op. cit., págs. 39-40.
44. Na verdade, em 1817, data do Discurso, a economia do charque não fora ainda
posta em xeque pelos saladeiros. Por isso também era difícil para Chaves passar
do nível da crítica geral do sistema escravocrata à crítica particular e concreta dos
efeitos desse sistema sobre a economia do charque. Apegava-se à idéia de que o
excesso de tributação respondia pelos malogros ocasionados no charque. Por ou-
tro lado, o projeto de Chaves supunha que a transformação do escravo em ho-
mem livre podia operar-se sem contradições e atritos, e isso, como mostrarei
adiante, não passava de um desejo irrealizável. Se a "economia" talvez pudesse
resistir a essa transformação, desde que se importasse mão-de-obra, os ex-escra-
vos e os ex-senhores, ao menos parcialmente, não seriam capazes de se meta-
morfosearem em operários e empreendedores. Caberia a outros homens a empresa
de sucedê-los.
45. Seria possível levar um pouco mais longe a análise para mostrar que ainda não era
neste nível - dos interesses da Nação, isto é, dos grupos dominantes do país -
que deveríamos procurar a explicação global dos mecanismos de sustentação da
escravidão como instituição e de sua validação no plano ideológico. Realmente, o
ãngulo mais completo e complexo, a partir do qual se pode explicar a escravidão
no Brasil, situa-se na discussão da formação do sistema capitalista mundial. Entre-
tanto, seria escapar demasiadamente dos padrões relativos a uma monografia como
essa enveredar por uma análise desse tipo. Ver Eric Williams, Capitalism & Slavery,
já indicado.

287
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

46. Couty, op. cit., pág. 43.


47. "Eles (os charqueadores) sabem bem como é difícil, para esta transformação do
trabalho, contar com os escravos libertos, que geralmente não trabalham mais, ou
mesmo com a população indígena", escreveu Couty, op. cit., pág. 145.
48. Soares Franco, citado em Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 49. A mesma ordem de
idéias encontra-se no editorial deAFederação, de 17-5-1888, pág. 1, "Livres!", onde,
para comemorar o 13 de maio, se afirma que só o trabalho livre traz a confiança e a
estima recíprocas: "Nós não tínhamos esta salutar confiança: o senhor era o inimigo
do escravo, o escravo era o inimigo do senhor em quem elle não enxergava senão o
homem que enriquecia à custa do seu trabalho emquanto elle vivia miseravel, que
tinha alegrias emquanto elle era desgraçado privado de todas as consolações, priva-
do de afectos, separado muitas vezes, por toda a vida, de sua mãe e de seus filhos
para ir em terra distante ser a besta de carga explorada e desprezada".
Não cito em abono dessa tese os autores que descreveram as condições da
escravidão noutras regiões do Brasil porque adotei a norma de utilizar apenas ma-
terial expressadamente referente ao Rio Grande, ou material citado por autores
do Sul, quando endossam para essa região conceitos expendidos para outras. Con-
vém, entretanto, fazer um parêntese para reproduzir o que, a esse respeito, disse
Perdigão Malheiros: "os escravos, hão por vêzes tentado (insurreições) e ainda
tentam (...) (a escravidão) é o vulcão que ameaça constantemente a sociedade, é a
mina pronta a fazer explosão à menor centelha", op. cit., I, 43-44.
49. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 38.
50. Claro que aqui me refiro essencialmente ao trabalho como um ato pessoal e direto
de interferência do homem sobre a natureza.
51. Cf. textos já citados no capítulo I.
52. Gonçalves Chaves, op. cit., pág. 46.
53. Couty, op. cit., pág. 144.
54. Couty, op. cit., pág. 146.
55. Os fazendeiros paulistas que empreenderam o "colonato" e tiveram êxito foram,
muitas vezes, "novos homens", capazes de ajustar-se às novas condições de produ-
ção. Houve, certamente, entre os fazendeiros do "Oeste" paulista antigos lavra-
dores do vale do Paraíba. Porém, as condições favoráveis da terra e do mercado
instigaram a criação de novas técnicas agrícolas e comerciais e favoreceram a
redefinição do "horizonte cultural" dos cafeicultores.
56. Cf. Limeira Tejo, Retrato Sincero do Brasil, Editora Globo, Porto Alegre, 2 a edi-
ção, 1951, págs. 199-202; ver também O Império do Brasil na Exposição Univer-
sal de 1876 em Philadelphia, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1875,
especialmente pág. 324 e seguintes; e Catalogo da Exposição Estadual de 1901,
Officina Typographica de Gundlach & Becker, Porto Alegre, 1901, especialmente
págs. 119-263 (sobre Porto Alegre).

288
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

57. Trecho reproduzido in Alfred Marc, Le Brésil, excursion atravers ses 20 Provinces,
Paris, 1890, volume lI, págs. 480-481.
58. Gonçalves Chaves, op. cit., páginas 45,46 e 47.
59. Relatório já citado, da Câmara do Rio Grande, in Alfred Marc, op. cit., pág. 482.
No Relatório de 1888 do Barão de Santa Thecla registrava-se o agravamento da
crise do charque. À concorrência platina somava-se a concorrência dos Estados
Unidos, Austrália e Nova Zelândia:
"Nossa principal industria, a pastoril, já actualmente em período de grave crise,
que infelizmente pode ser muito prolongada e quiça perdurar por muitos annos
indefinidamente. Assim penso porque tem-se desenvolvido com intensidade de-
masiada a industria pastoril nos Estados Unidos, Australia, Nova Zelandia e em
outros paizes.
"A abundancia da producção traz o abaixamento dos preços, e tais são já as
condicções de producção, que a carne dos gados da Nova Zelandia vai ao merca-
do do Rio de Janeiro competir em qualidade e em preço com a dos gados da
provincia de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Goyaz, e chega até aos mercados
europeus, onde alcança ainda preços remmuneradores. Não é por conseguinte para
acreditar que desta vez os produetos bovinos voltem a alcançar dentro de poucos
annos, ou mesmo de muitos, preços animadores e proporcionados capitaes em-
pregados na industria da criaçâo (...)" (pág. 18).
A economia pastoril no Prata, ao contrário, continuava a aperfeiçoar-se tecni-
camente, tanto no que diz respeito às pastagens e à melhoria das raças quanto no
que se refere à técnica de preparação da carne. Enviava-se no fim do século car-
neiros congelados para a Inglaterra (cf. Alfred Marc, op. cit., vol. lI, pág. 482),
sem mencionar que tanto pela técnica (até químicos utilizavam-se) como pelo vul-
to do negócio (onde havia capitais ingleses e alemães) os saladeiros platinos cons-
tituíam realmente uma empresa capitalista (cf. Cte. Eugene de Robiano, Dix-Huit
Mois dans l'Amérique du Sud, E. Plon & Cie, Paris, 1878, capo XVI, esp. págs.
184-192).
60. A análise efetuada neste capítulo permite que se compreendam também algumas
características do desenvolvimento econômico do Rio Grande no século XX. Com
efeito, a forma pela qual se realizou a integração do imigrante na sociedade gaú-
cha (como proprietários) foi responsável tanto pelo surto rápido de progresso in-
dustrial no fim do século XIX e início do século XX como pelas proporções
relativamente modestas que a indústria gaúcha alcançou nos meados do século XX.
Atividade familiar, semi-artesanal no início, permitiu, mais tarde, oficinas e atelliers
de ótima qualidade técnica, mas erigiu-se como um obstáculo para a construção
da "grande indústria". Isto tanto porque persistiu o "problema da mão-de-obra"
(a escassez de trabalhadores não proprietários dos meios de produção), como
porque a formação de mentalidade de "grande empresário" foi dificultada graças

289
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ao grande número e ao êxito de pequenos proprietários. Assim, ainda uma vez, o


que foi tentativa, possibilidade, opção, no passado, acabou por revestir-se da qua-
lidade de condição, fator, causa externa à vontade humana no futuro, definindo
possibilidades de ação diversas do que se desejara e imprevisíveis para os que, sem
o saber, optavam por si criando barreiras à opção dos pósteros.
61. Acrescentando, adiante: "Não é só a raça espoliada que soffreu n'este largo lethargo;
as vitimas da escravidão são recrutadas tanto entre os vencidos como entre os
dominadores", "Livres!", A Federaçilo, 17-5-1888, pág. 1. Dois dias antes outro
editorial insistia na argumentação: "Todos os brasileiros devem exultar: não é da
libertação de uma raça que se trata, é toda a sociedade brasileira que liberta-se da
escravidão", "O golpe final", A Federação, 11-5-1888, pág. 1.
62. Os editoriais relativos à discussão do projeto Dantas de 1884, assim como os arti-
gos pela Abolição publicados nesta época ou nos anos imediatamente anteriores e
posteriores, e ainda as notas e artigos comemorativos de 1888 estão repletos de
argumentos desta natureza. Pode-se encontrá-los tanto nos grandes órgãos da opi-
nião abolicionista (do Partido Liberal, como A Reforma, do Partido Republicano,
como A Federação) ou A Discussão, de Pelotas, quanto nas revistas de tipo literário
que defendiam a Abolição, como o Parthenon Litterario, e mesmo nos jornais tipi-
camente abolicionistas como O Século, O Cabrion e A Voz do Escravo. A posição
político-partidária dos grandes jornais contava pouco, com exceção dos órgãos
republicanos, para fundamentar a atitude pró-abolição no Brasil. Como, porém, a
grande batalha de imprensa em torno da questão foi travada no Rio Grande em
1884, época em que um gabinete liberal tornara-se abolicionista, sob influxos da
Coroa, o jornal do partido Conservador espelhou melhor os interesses dos
escravocratas, sendo dessa forma coerente - quase por acaso - com o que seria
de supor serem os ideais conservadores. Isso não significa, entretanto, que os
membros do partido liberal deixaram de ser escravistas e que os do partido con-
servador estavam imunes ao abolicionismo. No momento desejo apenas mostrar
que todos os órgãos abolicionistas insistiam, predominantemente, na acentuação
das conseqüências da Abolição para a grandeza do país, cuidando apenas secunda-
riamente da sorte que estaria reservada para o escravo quando se transformasse,
formalmente, em negro-cidadão. A título de exemplo, ver os seguintes trechos de
tópicos da imprensa sobre a Abolição: "É urgente proclamar que esta provincia,
que tem sido em todos tempos a sentinella avançada da dignidade nacional, não
deixa medrar no seu solo a instituição negra, que conspurca a honra da patria mais
do que as affrontas do estrangeiro inimigo" ('~vante" in A Federação, 8-8-84, pág.
1); "O Brasil precisa tornar-se digno do mundo americano" ("A Dissolução da
Câmara", in A Federação, 30-7-84); "Será essa então a hora bendita da redenção
dos captivos e do ingresso da pátria na larga estrada do bem, a estrada infinita da
civilização" ('~bolição do Captiveiro" in A Ideia, Porto Alegre, 10-1-1883); re-

290
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

petindo a mesma idéia, ver "Liberdade", poesia de Caldas Júnior, in A Lente, Por-
to Alegre, 7-9-1884, pág. 1; e ainda, o "Hynno Abolicionista" de Achylles Porto
Alegre, transcrito em vários jornais, inclusive em O Século, Porto Alegre, 7-9-84.
Em O Século como em O Cabrion e em A Ventarola apareceram várias gravuras
críticas cujo conteúdo era o mesmo dos textos acima indicados. Significativa tam-
bém é a posição de A Voz do Escravo. No segundo número do jornal a nota da
redação assim se manifesta: "Compra e venda do escravo, fuga de escravos, barba-
ridades commetidas contra os escravos, eis os artigos ou annuncios que occupam
quase sempre um lugar em nosso jornalismo! Entretanto é pelo jornalismo que se
conhece do adiantamento moral de um povo. Ora imaginemos esses jornais per-
correndo os paizes da America e da Europa. Que idéia deverão fazer de nós os
demais povos? a resposta é fácil- que idéia fazemos nós da Russia e da Turquia?"
"A Voz do Escravo", in A Voz do Escravo, Pelotas, 30-6-1881, nO 2, pág. 1.
63. "Honra ao Rio Grande", A Federação, 3-9-1884, pág. 1.
64. "O abolicionismo", Tribuna Litteraria, Pelotas, 15-1-1882, pág. 1. Sobre a genero-
sidade do povo há também muitas referências, como por exemplo, in ''A Abolição
no Rio Grande", A Federação de 4-8-84, pág. 1.
65. Editorial sobre ''A questão do elemento servil", in O Conservador, Porto Alegre,
11-8-1884, pág. 1. Adiante, no mesmo editorial: "a questão servil está com-
plectamente prêsa à das finanças", por isso, o jornal critica os que entre "o patrio-
tismo e a liberdade sacrificam aquelle sentimento, unico que deve dominar o espírito
de todo o cidadão das difficuldades da patria, para aceitar de preferencia a liber-
dade do escravo, que trará a morte da nação se por ventura vingarem as idéias do
abolicionismo".
Noutro editorial, de 20-8-84, dizia o jornal: "Mas convença-se o Sr. José Jú-
lio (presidente da Província, do Partido Liberal), que apezar da extraordinária
agitação que os abolicionistas estão fazendo, e com a qual suppõem emancipar em
dois mezes a provincia do Rio Grande do Sul, não conseguirão modificar a opi-
nião da nação, já manifestada em favor daquelles, que querem a liberdade do es-
cravo de harmonia com a lei de 28 de Setembro de 1871 e os grandes interesses
do paiz, porque esses é que são os verdadeiros patriotas, e os que defendem o sa-
grado direito de propriedade, consignado na Constituição do Imperio".
66. ''A Opinião do Paiz", O Conservador, 6-8-1884.
67. Isto se evidencia tanto nas preocupações com a desorganização do serviço domés-
tico em conseqüência da abolição, expressas na imprensa e nos Relatórios, como
a partir da análise das informações sobre o número de escravos (com predomínio
deles nas cidades) e sobre a quantidade de escravos alforriados por cada senhor.
Os 1.810 escravos cujas a!forrias foram obtidas até o 22 de agosto de 1884,
em Porto Alegre, segundo dados compilados em A Reforma desse período, perten-
ciam a 125 senhores. Em Porto Alegre a maioria dos proprietários possuía poucos

29 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

escravos, o que mostra o peso dos escravos de serviço doméstico nessa área. Dis-
tribuíam-se assim:

Número de proprietários Quantidade de Escravos


48 até 4
53 de 5 a 10
18 de 11 a 15
6 mais de 15

as seis pessoas da última categoria possuíam 209 escravos.

68. Utilizei nesta frase a expressão "conhecimento adequado" e utilizarei a seguir, da


mesma forma que no tópico sobre Imigração e Escravidão, o conceito de "consci-
ência adequada" em sentido preciso, conforme Lukacs, "La Conscience de Clas-
se", Histoire et Conscience de Classe, op. cito Distingo, pois na análise a consciência
efetivamente alcançada em termos históricos, do grau possível de consciência que
a "situação de classe" das camadas sociais permitia objetivamente, embora histori-
camente a consciência possível nem sempre tivesse sido alcançada. Tentarei mos-
trar os limites sociais que a posição na estrutura social da camada escrava e da
camada de senhores impunha à consciência da situação social. Tipicamente só o
proletariado é capaz de atingir o "conhecimento adequado" da sociedade, isto é,
pode perceber a sociedade burguesa em sua totalidade, pois a compreensão das
determinações essenciais deste tipo de sociedade não se opõe a seus interesses de
classe. Ao contrário, permite-lhe, simultaneamente, criticar a sociedade capitalis-
ta e perceber que os propósitos e a dinâmica particular da classe proletária coinci-
dem com a dinâmica objetiva da sociedade de classes.
Como a análise deste capítulo é simultaneamente teórica e histórica, não me
limito a mostrar as impossibilidades teóricas de "compreensão adequada" da situa-
ção social que restringia as possibilidades de consciência dos escravos. Mostro, ao
mesmo tempo, como, no plano histórico, as posições variáveis assumidas pelos es-
cravos no processo produtivo abriram-lhes graus diversos de possibilidade de compre-
ensão da sociedade escravista, permitindo que se vislumbrasse no "escravo crítico",
dentro de certos limites, a possibilidade de desenvolver formas de consciência que
se voltavam, sem atingi-las plenamente, para a totalidade da sociedade escravocrata.
69. Sobre o "sentido da produção colonial", ver Caio Prado Júnior, Formação do Bra-
sil Contemporâneo (colônia), Editora Brasiliense, São Paulo, 2 3 edição, 1945, págs.
13-26 ("Sentido da Colonização"); e Hist6ria Econômica do Brasil, Editora
Brasiliense, São Paulo, 1953, capo 11.
70. Neste ponto reaparece a distinção fundamental entre escravos e proletários com
relação às possibilidades sociais que se abrem a uns e outros para o desenvolvi-

292
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

mento de formas de consciência adequada na análise das situações sociais em que


se inserem. Ver adiante a impossibilidade paralela de os senhores, enquanto cama-
da social, definirem seus interesses e objetivos racionalmente.
71. É preciso ponderar que havia mobilidade horizontal entre os escravos. Por isso, é
provável que as formas de consciência e de reação que descrevo aqui em termos
típicos (escravo das charqueadas X escravo artesão) tenham ocorrido historica-
mente de maneira mais complexa. Basta lembrar que nas fazendas havia escravos
que aprenderam ofícios nas cidades. Estes podem ter influído as formas de com-
portamento e de consciência dos escravos "do eito", principalmente no período
de desagregação do regime servil.
72. Já indiquei, na nota 68, os limites à consciência adequada a que as camadas envol-
vidas na sociedade escravocrata estavam jungidas. Uso aqui a expressão "consciência
totalizante" para indicar que o Abolicionismo significou o grau máximo possível
de compreensão da sociedade escravista permitido pelas condições sociais da socie-
dade escravocrata.
73. Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, Companhia Ed. Nacional, São Paulo, 1938,
pág.7.
74. Idem, ibidem, pág. 20.
75. Idem, ibidem, pág. 19.
76. Joaquim Nabuco, op. cit., pág. 20. Os trechos das págs. 19-20 são extraídos do
capítulo III, "O mandato da raça negra", de fundamental importância para análise
do Abolicionismo e da sociedade escravocrata.
77. O presente trabalho não visa demonstrar essa tese. Por isso, essas afirmações se
revestem de certo dogmatismo. No âmbito de cogitações bem mais limitado desta
monografia, entretanto, acredito que seria possível demonstrar que, de fato, o
"abolicionismo vulgar" no Rio Grande se transformou numa ideologia e pouco
contribuiu para o conhecimento dos problemas da sociedade gaúcha exatamente
porque partiu de perspectivas parciais que não permitiam compreender a totali-
dade do processo histórico e, dessa forma, descobrir e criticar os efeitos da escra-
vidão em todos os planos da vida social e econômica.
78. "Os emancipadores", A Federação, 7-8-1884, Porto Alegre, pág. 1.
Essa idéia e a crítica da posição dos emancipadores ("como bem disse o sr. C.
Ottoni na tribuna do senado, perante a lei de 28 de setembro - à qual se apega-
vam os emancipadores - o verdadeiro emancipador é a morte") reaparece no
editorial '~inda os emancipadores", dias depois. A crítica visava editoriais de O
Conservador, trechos dos quais foram reproduzidos acima.
79. "Emancipação", in A Discussão, 15-10-1884, pág. 1.
80. Cf.'~ libertação do município", A Discussão, 3-9-84, pág. 1.
81. Um editorial do jornal A Ordem, de Jaguarão, transcrito em A Discussão, 15-10-
84, pág. 1, calculava em 5 mil o número de escravos de Pelotas que se beneficiou

293
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

com a "libertação do município": "Dos municipios da provincia era talvez o de


Pelotas que contava com maior número de escravos, cerca de cinco mil. Muitas
fortunas, especialmente entre os xarqueadores, eram construidas em grande parte
pelo elemento escravo".
82. Comentando um plano do jornal para a abolição imediata com indenização a ser
resgatada por apólices da dívida pública, dizia o jornal in "O Abolicionismo, as
finanças e a politica opporturna", no dia 7-7-84: "O conjunto d'este plano adap-
ta-se tanto às opiniões correntes entre as classes illustradas, que apenas dois pon-
tos podem causar estranheza à primeira impressão: a abolição imediata com
indennização e a mudança de capital do imperio (...). A fixação do prazo não satis-
faz as soffregas aspirações dos abolicionistas, com grande prejuizo do progresso
do paiz, que verá suas forças vivas esterilisadas n'essa luta e com o perigo ainda
maior de insurreição de escravos, estimulados pela continuação da propaganda".
83. "Pondo de parte a ideia de uma emancipação total e repentina, o que importaria a
destruição de um mal, criando outro ainda maior, para aquelles mesmo a quem se
pretende beneficiar (.,,) - seria uma loucura. No entanto é indispensável fazer al-
guma cousa promptamente, no sentido de uma emancipação gradual onde for possivel
sem abalo ou vio!encia, attendendo ao mesmo tempo ao estado precario da lavoura
e às finanças do paiz". "Elemento Servil", A Discussão, 5-8-1884, pág. 1.
84. Era esse o sentido profundo da defesa da lei de 1871. Não sem alguma ironia, um
comentarista de A Discussão dizia a esse propósito: ''A ocasião ainda tem algum
cabello na parte anterior da cabeça; por detraz é inteiramente calva. Se lhe deitardes
a mão ao topete - artigo 4° da lei número 2.040 de 28 de setembro de 1871 -
lograreis garantir-vos por sete annos com os serviços de vossos trabalhadores, mas
se a deixardes escapar, com a revogação d'esta por nova lei - nem escravos nem
serviços garantirão vossa quietude e prosperidade", ''A Emancipação", A Discus-
são, 14-11-1884, assinado por Brasílico. O lema de Brasílico era: façamos a revo-
lução antes que a façam. A idéia repetiu-se noutros editoriais. Assim, a 22-10-84
escrevia: "Tratemos de transformar o pessoal sevfil em pessoal livre, porque este
será o unico meio de salvarmo-nos. Não esperemos que uma nova lei faça suppor
o triumpho do opprimido sobre o oppressor", e aconselhava a liberdade com clá-
usulas de prestação de serviços, nos moldes da lei de 71.
85. "Avante Pôrto Alegre", A Reforma, Porto Alegre, 15-8-1884, pág. 1.
86. Desa forma, ao mesmo tempo em que no editorial de 30-1-1881,A Voz do Escravo
denunciava os que dizendo-se "abolicionistas" achavam "um mal horrivel a
extincção immediata do elemento servil", propunha a criação de loterias para com
seu resultado comprar a liberdade dos escravos.
87. O Pelotense, 17-9-1852, pág. 1.
88. Sobre a significação dessas afirmações, convém explicitar que elas não significam que
o abolicionismo como "consciência adequada" devesse exprimir o que realmente os

294
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

escravos pensavam sobre a Abolição, ou que só escravos ou ex-escravos seriam ca-


pazes de pensar e agir em termos da sociedade escravocrata como uma totalidade.
Sabe-se que nada disso "aconteceu", nem essas são as condições de possibilidade de
conhecimento verdadeiro. Utilizo aqui, formalmente, as expressões "perspectiva do
escravo" e "ponto de vista dos escravos" no mesmo sentido em que Lukacs empre-
gou a noção de "ponto de vista do proletariado" para exprimir a idéia de "consciên-
cia verdadeira de classe. Cf. "La Conscience de Classe", in Histoire et Conscience de
Classe, Les Éditions de Minuit, Paris, 1960, págs. 67-107.
Sobre os dois pontos que mencionei no texto há dados significativos. O Sécu-
lo, que foi o mais radical dos jornais abolicionistas, comentando uma festa pela
libertação dos cativos realizada pelo Parthenon Litterario, ironiza a participação
do grupo Floresta Aurora, de negros porto-alegrenses: "N'esta terra todo mundo
se julga orador. É uma mania como outra qualquer, mas o Parthenon deve ter ro-
lhas promptas para tapar a bocca a esses maniacos, por que elle não é nenhum
receptaculo de sandices. Ora, o que quer dizer umas florestas auroras e quejandas
a deitaram também o seu ovinho em homenagem a uma associação Iitteraria de
tão alevantados creditos?", in "Pelo amor de Deus" (Folhetim do Século), O Sécu-
lo, Porto Alegre, 24-6-1883, pág. 3. Mesmo mais tarde, em 1887 os abolicionistas
não queriam ser confundidos com os que negavam a validade da ordem legal: "Não
sou anarchista, como anarchistas não são os abolicionistas, em cujas fileiras mili-
to", dizia um comentarista de A Ventarala, Pelotas, 4-12-1887, pág. 3. "Desejo
apenas, continuava, o cumprimento das leis sôbre os escravos" (sexagenários, ventre
livre, disposições sobre contratados e ingênuos etc.).
89. "Car la 'fausse conscience' de la bourgeoisie, par laquelle elle se trompe ellemême,
est au moins, malgré toutes les contradictions dialectiques et sa fausseté objective,
en accord avec sa situation de classe", Lukacs, op. cit., pág. 49.
90. Este é o universo do capitalismo, e a economia escravista, como vimos no capítulo
Iv, era, até certo ponto, anticapitalista no que diz respeito à racionalidade da ação
econômica.
91. "Les véritables 'puissances motrices' qui 'sont derriêre les mobiles des hommes
agissant dans l'histoire' ne pouvaient par conséquent jamais parvenir à la conscience
(même pas comme conscience simplement adjugée) dans les temps pré-capitalistes.
Elles sont, en vérité, restées cachées comme puissances aveugles de I'évolution
historique derriêre les mobiles. Les moments idéologiques ne 'recouvrent' pas
seulement les intérêts économiques, i1s ne sont pas seulement des drapeaux et des
mots d'ordre de combat, ils font partie intégrante et sont des élements de la lutte
réelle elle-même. Certes, quand le sens sociologique de ces luttes est cherché par le
moyen du matérialisme historique, alors ces intérêts peuvent, sans aucun doute,
être découverts comme rnornents d'explication finalernent décisifs." Lukacs, op.
cit., pág. 82.

295
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

92. Nesse sentido A Voz do Escravo de 6-3-1881, págs. 1 e 2, criticava acerbamente o


comportamento dos representantes da Província no Parlamento em face de um
projeto apresentado por Nabuco em 1880: "excepção honrosa do liberal convic-
to, do cidadão que até hoje ainda não desmentiu as idéias que professa, do illustre
deputado Sr. Dr. Fernando Ozorio, todos os representantes do Rio Grande do Sul
foram adversos a esse grande e humanitario projecto de Nabuco que vinha marcar
uma nova e gloriosa epocha para o Brazil. Cinco Deputados Gerais, e tres Senado-
res Rio Grandenses mostrarão-se mais escravocratas do que patriotas, mais ami-
gos de uma pequena porção que representa o vil interesse, a injustiça e o egoismo,
do que da grande idéia que representa as aspirações, o progresso, e felicidade fu-
tura de sua Patria!" O jornal critica particularmente, sem o citar, Silveira Martins.
Mais tarde, com menos justiça. Torres Homem haveria de ser criticado pelos mais
radicais por haver-se embaído com a possibilidade da emancipação condicional.
Esse, anos depois, comemorando o 13 de maio, tenta justificar sua atitude: "Que
importava isso, si estava alcançando o fim principal do abolicionismo, que é anu-
lar a propriedade do escravo?" (A Reforma, 13-5-1888, pág. 1).
93. "Os partidos e o elemento servil", A Federação, 10-7-1884, Liberais e Republica-
nos uniram-se na promoção de festa-s comemorativas da libertação de Porto Ale-
gre: "Liberais, conservadores, republicanos, todos unimo-nos debaixo da bandeira
que tem por divisa a libertação total dos escravos no territorio riograndense". "Ao
povo o que é do povo", A Federação, setembro de 1884; "Os partidos liberal e
republicano, sob tantos pontos de vista em completa divergencia, consorciaram-
se para festejar o início da reforma social, cuja realização tranformara de todo a
feição da sociedade brasileira." A Reacção, Porto Alegre, 6-10-1878, ano I, nO 1.
Com mais forte razão, uniam-se liberais e republicanos em 84: "Estamos de accordo
neste ponto com os collegas da Federação. A provincia de Rio Grande deve ir ao
encontro da lei e não esperar a sua effectividade", A Reforma, Porto Alegre, 1-8-
1884, pág. 1. No mesmo número, A Reforma anuncia que o Partido Republicano
aderiu a um meeting seu. Apesar de unirem-se aos liberais para acelerar o processo
abolicionista, os republicanos não deixaram de criticar as inconsistências do com-
portamento do Partido Liberal com relação à questão servil. Ver, por exemplo, os
editoriais, sob o título de ''As questões sociais e os partidos", publicados emA Fe-
deração de 21-22-23 e 24 de julho de 1884.
94. O Conservador, Porto Alegre, 20-8-1884, pág. 1.
95. Cf. a esse respeito Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, Cia. Ed. Nacional,
São Paulo, 1936, tomo 11, pág. 373. Fundamentalmente o projeto Dantas visava
conseguir a abolição para os sexagenários (que foi obtida em 85 pelo gabinete Sa-
raiva) e pretendia aumentar o fundo de emancipação para o resgate de escravos.
96. Que os republicanos, por razões de politiquice, e por sólidos motivos econômicos,
transigiram com a escravidão, os percalços para a realização da Convenção de Itu

296
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

mostram bem. De resto, parece que os republicanos em São Paulo tiveram o cui-
dado de evitar a discussão do problema da abolição, cf. José Maria dos Santos, Os
Republicanos Paulistas e a Abolição, Livraria Martins, São Paulo, 1942.
Quanto ao positivismo, veja-se o trabalho de Roque Spencer Maciel de Bar-
ros, A ilustração brasileira e a idéia de universidade, Faculdade de Filosofia Ciên-
cias e Letras, Boletim nO 241, págs. 178-9: "Para o cientificismo a escravatura deve
desaparecer não por um decreto, motivado por considerações éticas, mas pelo de-
senvolvimento do trabalho livre, que há de tornar antiquado e antieconômico o
trabalho escravo". Por isso, apelavam para a imigração, considerando a escravi-
dão um mal maior para os brancos do que para os negros, para os quais até pode-
ria ser benéfica. Não é de estranhar, pois, que o positivismo tenha influenciado no
Rio Grande tanto a ideologia imigracionista como a atitude dos partidários do
trabalho livre para com a escravidão. Essa sempre foi mais de prudência que de
grandes entusiasmos pela abolição imediata.
97. "Já que um governo pusilanime, sem coragem para arrostar o esclavismo, tem de-
morado pela sua incapacidade a resolução do grande problema social (...) pro-
curemo nos proprios recursos da provincia os meios de livrar-nos quanto antes
desse cancro (...}". F. M. de Azevedo, "A Redenção dos cativos", in A FederaçãO,
setembro de 1884.
98. "A liberdade victoriosa", A Federação, 16-8-84, pág. 1. No mesmo editorial: "Mas
o que vem dar maior lustre à exemplarissima agitação de que é hoje theatro Porto
Alegre, o que fal-a realçar ainda mais, é que a abolição aqui se vai operando sobre
este moralissimo principio: abolição sem indennização pecunniaria".
Cito estes trechos apenas como exemplo, dentre muitos outros editoriais nos
quais aparecia a exigência de medidas mais radicais. Cf. ainda: "Os emancipadores",
A Federação, 7-8-84; e "Ainda os emancipadores", aparecido dias depois. Noutros
editoriais transparece a compreensão adequada que os republicanos do sul pude-
ram desenvolver quanto aos interesses dos partidos e os da nação, na questão ser-
vil, como, por exemplo, in "A opinião do Conservador", A Federação, 19-8-1884,
pág. 1.
99. "Libertação de Porto Alegre", A Federação, 7-9-1884, página 1.
100. O Conservador, 20-8-84, pág. 1. A Reforma protestou contra a afirmação de O Conser-
vador, porque havia sido citado trecho de um editorial seu como exemplo de ameaça
e porque a crítica visava atingir a situação liberal.
101. Cf., por exemplo, "Reivindicação de liberdade", A Voz do Escravo, 10-7-1881, pág.
3, onde se descrevem as ações propostas pela escrava Simeana visando libertar uma
filha menor. As petições e a orientação da escrava a cargo do advogado Bezerra
Cavalcanti.
102. O Conservador de 18-84 noticia um convite de A Federação para que os tipógrafos
se reúnam para discutir o problema escravo.

297
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

103. "Alfaiates, sapateiros, funileiros e etc. todos tiverão um representante de fita a


tiracollo. Parece que a gente estava em pleno carnaval", diz o comentarista de
O Século sobre a festa do Parthenon na qual estiveram os representantes da
Floresta Aurora ironizados, como os operátios, no mesmo artigo. Cf. O Século,
24-6-1883, pág. 3.
104. Muitos grupos de funcionários públicos uniam-se para libertar os escravos de Pelotas
e Porto Alegre. Cf., por exemplo, a notícia de O Conservador, de 14-8-1884 sobre
a alforria, sem indenização, outorgada pelos empregados da tesouraria da fazenda
e secretaria do governo a seus escravos.
105. O Conservador de 24-7-1884, sob o tópico "Insubordinação" refere que em "Na-
tividade de Carangola, na fazenda denominada Boa Vista, de propriedade do Sr.
Antonio Francisco de Paula, todos os escravos (em número de 50) suspenderam o
trabalho, e armados de espingardas e fouces, declararam que tirariam a vida àquelle
que os quizesse obrigar a trabalhar". Por outro lado, o número de fugas noticiado
nos jornais desse período foi relativamente alto. Mais tarde, em 1888, parece ter
havido abandono das estâncias pelos escravos e, de qualquer forma, a repercussão
das fugas nas outras Províncias foi grande. Basta ver, por exemplo, as ilustrações
de A Ventarala, de Pelotas.
106. Ainda uma vez convém precisar o sentido que empresto a esse conceito. Não
quero dizer que o movimento abolicionista no que tinha de mais utópico fosse
puramente enganador e que, por isso, deva ser desmascarado, nem muito menos
que as impulsões utópicas do comportamento não sejam objetivas, no sentido
de verificáveis, como fatos ocorridos. Ao contrário, elas exprimem um nível do
real, foram eficazes, permitiram a ação e, até certo ponto, constituem-se como
condições para inteligibilidade do real. Entretanto, há um real aparente e um
real subjacente aos acontecimentos tal qual eles podem ser percebidos pela cons-
ciência não-científica. O real para se tornar inteligível precisa ser captado na sua
totalidade, como aparência - que ele também é - e como relação a um tempo
histórica e lógica, entre fatos, situações e processos, que podem permanecer
ocultos à consciência. O processo histórico desenvolve-se condicionado pela
dialética entre esses dois níveis da realidade, e o processo de conhecimento cien-
tífico se constitui através da demonstração das ligações dialéticas desses níveis
numa totalidade, isto é, pela determinação das relações essenciais que dão senti-
do à história.
107. "O abolicionismo triumpha", A Federação, 19-7-1884, pág. 1. Em 1888, estava já
mais claro esse aspecto do problema: a posição dos abolicionistas autênticos se
fora precisando nos últimos tempos da escravidão, e a "opinião" pesando cada
vez mais, no processo histórico. Por isso, A Federação voltou, com maior ênfase, a
repisar seu ponto de vista: "A Libertação dos escravos é trabalho exclusivamente
da iniciativa popular (...). A aspiração equalitaria crescia sempre; a propaganda

298
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

alastrava-se por toda a parte vencedora até que conseguiu vencer o cordão do
escravismo estendido entre ella e as fazendas e penetrou nas senzalas. Então toda
a resistencia cessou; tinham fallado ao negro em liberade; fugiam alguns, outros o
souberam, fugiam também (...). As cousas tinham chegado a um ponto tal que o
escravo libertava-se, se o não libertassem", in "A lei libertadora", A Federação, 15-
5-1888, "Liberais e Conservadores", 12-5-88.
Não me ocupo mais detidamente neste capítulo com as idéias de 1888 no Rio
Grande porque a repercussão que a discussão da lei áurea teve na imprensa local
foi relativamente pequena e muito presa à questão no plano nacional, isto é, quando
aos efeitos da luta abolicionista nas Províncias "do Norte". O sul considerava-se já
sem escravos, pelo menos esse era o ponto de vista da "grande imprensa".
108. A rigor, se quisermos partir da motivação do comportamento dos "abolicionistas"
a questão é bastante mais complicada. Havia os "emancipadores" que nada mais
desejavam senão manter a escravidão na forma pela qual ainda era possível. Estes,
quando o movimento de 84 atingiu o auge foram os que mais rapidamente passa-
ram a conceder cartas de alforria com a cláusula de prestação de serviços. Havia
os que, não possuindo escravos, transigiam com os escravistas "emancipadores"
porque só se interessavam pela imigração, e aceitavam qualquer forma de transi-
ção para o trabalho livre. E havia ainda os que, por serem filiados à situação libe-
ral, aceitavam o movimento emancipador de 84 mais por razões político-partidárias
do que por motivos econômicos. Se eu tivesse interessado neste trabalho no
"desmascaramento" desse tipo de abolicionismo, teria que discutir mais por-
menorizadamente as diversas posições "abolicionistas", para mostrar como elas
decorriam de formas diversas de participação na realidade, ou, o que em última
análise dá no mesmo, como a práxis se diversificava. Porém, para os fins que te-
nho em mira, tanto faz partir de qualquer um desses motivos ou de englobá-los
num só tipo: em nenhum deles o problema central é o homem negro e a crítica da
sociedade escravocrata.
109. Cf. Relatório J. J. de Albuquerque Barros, 19-9-1885, editado em 1886, pág. 166.
O lema na verdade significava: suprimir a condição legal de escravo, conservando
sua condição real.
110. Os jornais abolicionistas não se cansaram de criticar os abolicionistas de última
hora e os escravistas transvestidos em abolicionistas. Entre os primeiros, em 84,
havia muitos que eram filiados ao partido liberal e, por isso, viam-se na contin-
gência de declararem-se abolicionistas, nos limites do projeto Souza Dantas; mas
havia outros que, por mero oportunismo, aderiram ao movimento: para obter a
concessão de favores imperiais etc. Em 1881 A Voz do Escravo (de 1° de maio)
alertava sobre aos escravagistas que queriam passar a abolicionistas: "Mas... a
ambição dos homens, a falta de humanidade e a ignorancia, de mãos dadas com
repugnantes anachronismos, têm levado alguns individuos a uzarem de um rotulo

299
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

falso para advogarem os interesses mesquinhos e individuais dos escravagistas"


(pág. 1).
Em 1888, muitos escravagistas ferrenhos se proclamaram abolicionistas: "Os
advogados que tratavam da causa dos escravos - por dinheiro - e que "engoli-
am" o peculio d'estes, hoje, meus senhores, batem no peito como uns graudos,
impertigam-se e dizem a êste povo que os conhece: "Nós somos um dos abo-
licionistas que mais têm feito pela causa: quando fallarem em abolicionistas, te-
nham muito cuidado (...). Os senhores de escravos que collocavam machos aos
pés e garralheiras ao pescoço d'aquelles pobres infelizes, proclamam-se aboli-
cionistas do Amazonas ao Prata (...) Os carrascos que nas cadeias publicas tiravam,
à sangue frio, as nadegas aos pobres cativos na ponta do vergalho de cinco pernas
(...) quasi sempre por um motivo futil apresentado "pelas senhoras", esquecidos
de todas as crueldades que praticaram, dizem cheios de si, por seu turno: Fui e
serei sempre abolicionista" ("Uma imitação de notas", A Ventarala, Pelotas, 29-1-
1888, pág. 2). Em O Século as críticas aos senhores abolicionistas eram contun-
dentes em 84. Por exemplo, numa ilustração em que aparecem dois escravos
conversando, um diz ao outro: "Elles fallão muito na nossa alforria mas é tudo
dos dentes pra fóra. Olha; meu senhor é um dos grandassos d'um tal congresso
abolicionista que arranjarão no Parthenon, no entanto eu estou cativo", O Século,
13-1-1881.
Quanto às artimanhas abolicionistas para obtenção de favores da Coroa, tam-
bém há vários registros. Por exemplo, o artigo intitulado "Pomada", O Século, de
23-8-84, conta que um genro da Baronesa da Cahy fez avaliar por baixo os negros
dessa senhora quando de sua morte, para assim herdá-los por quantia irrisória (se-
tenta escravos por 2.082$000) e, em seguida libertar os negros. O advogado do
espólio, entretanto, comprou os negros, arvorou-se no verdadeiro benfeitor des-
ses escravos, pelo que foi criticado nos seguintes termos: "Somos inimigos da po-
mada e sobretudo dos pomadistas, por isso vamos contar ao leitor a forma por
que o Dr. Antero adquiriu tão acrescido número de escravos para fazer o seu bo-
nito e sair barão ou visconde". Neste e noutros números o jornal se refere à sua
atitude abolicionista, sem pretensão ao viscondado.
111. A adesão dos charqueadores ao movimento de 84, que foi parcial, não desmente a
análise que fiz no tópico precedente. De fato, nem esse movimento era abolicionista,
nem a "transformacão" do escravo em operário pela cláusula de prestação de ser-
viços permitiu, como é óbvio, resolver todos os problemas da empresa char-
queadora, para cuja solução era preciso uma transformação real da organização
do trabalho. Por isso, mesmo quando aderiram ao movimento de 84, os senhores
de escravos continuavam a agir prisioneiros da visão senhorial do trabalho e de
seus interesses imediatos, deixando de perceber e enfrentar os problemas reais
impostos pelo desafio da concorrência capitalista à economia escrava.

300
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

112. Relatório Albuquerque Barros, 1885, pág. 177.


113. Os dados numéricos são avaliações imprecisas. Segundo o relatório citado na nota
anterior, pág. 178, em 30-6-1884 havia 60.000 escravos matriculados, no ano se-
guinte esse número descia para 22.709, donde "só ter-se-hão libertado 37.291 ou
menos porque a morte e a mudança de domicilio também influem no decres-
cimento". Entretanto, o presidente acreditava que um terço dos escravos matricu-
lados já estivesse livre. Calculando o número de escravos a partir dos impostos
gerais e provinciais que os oneravam, e descontando a evasão provável, o Presi-
dente Albuquerque Barros avaliava que em 1885 não excedia de 12.000 o número
de escravos no Rio Grande do Sul.
114. Relatório Albuquerque Barros, 1885, págs. 177-178.
115. Cf. transcrição do memorial, in Relatório 1885 J. J. Albuquerque Barros, pág. 167.
116. Idem, pág. 168. O memorial foi enviado às Associações Comerciais em meados de
1884. A 19-9-85, data em que o Relatório de transmissão do cargo foi apresenta-
do pelo Presidente, esse comentava: '~s associações commerciais da captial, Rio
Grande e Pelotas accudiram pressurosamente a esse appello, organizando socieda-
des protectoras da immigração e na cidade de Pelotas subscreveu-se um capital de
300.000$000 para emprehender a colonização das terras devolutas no municipio"
(pág. 169). Essa sociedade dissolveu-se logo depois.
117. A melhor análise dos efeitos do processo abolicionista sobre as representações que
os brancos mantinham dos negros é a de Florestan Fernandes no capítulo 11 do
livro escrito em colaboração com Roger Bastide, Brancos e Negros em São Paulo,
Cia. Ed. Nacional, São Paulo, 1959, 2 a ed., esp. págs. 132-139. Ver, no mesmo
trabalho, a caracterização do abolicionismo como um movimento de brancos para
os brancos.
118. A 11-12-1887, pág. 3, escrevia A Ventarala: "Como previ, entre abolicionistas
e possuidores de escravos houve um accordo honroso para ambas as partes.
Equivale isto a dizer-se que em 31 do corrente mez não haverá no municipio
um único cativo", isto quando a 16-10-1884 havia sido feita a festa de reden-
ção dos cativos...
A 1-1-1888, pág. 3, dizia o mesmo jornal: "N'estes últimos dias tem-se reali-
zado grande numero de contractos de locação de serviço, sendo já pouquissimos
os individuos que ainda teem o nome de cativos". (Grifo meu.) (A expressão final
é significativa.) E a 22-1-1888, pág. 3, repetia o jornal: "Da acanhada esphera em
que milito na imprensa da Provincia, entendo que nos achamos nas mesmas con-
dições da provincia de São Paulo e que o que resta fazer-se para que não soffram
os interesses dos Srs. xarqueadores, é a immediata libertação dos escravos". Fora,
portanto, muito parcial a libertação de 84.
Não discutirei neste trabalho o movimento abolicionista próximo a 1888 no
Rio Grande porque, por um lado, repercutiu menos intensamente na opinião e na

3 O1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

imprensa (pois para a consciência dos brancos livres, o Rio Grande já fizera a abo-
lição) e, por outro lado, nada acrescentou à motivação do comportamento
abolicionista ou escravocrata nem às respectivas ideologias. A título de exemplo
da atitude abolicionista de 88: depois das considerações que transcrevi acima so-
bre a similitude da questão servil em São Paulo e no Rio Grande, diz o articulista:
"Os abolicionistas serão os primeiros a auxiliar a execução da lei do trabalho; elles
não querem o desmembramento social, não desejam que se deem as grandes
commoções que abalam os meios interceptam o progresso: entendem que todos
os povos devem seguir a marcha de evolução".
119. As descrições e os comentários feitos pela imprensa sobre a festa de Porto Alegre
e a de Pelotas fundamentam amplamente essa análise. Dispenso-me de citar tre-
chos desses jornais porque seria fastidioso para o leitor. Contudo, basta tomar
qualquer dos jornais - e especialmente O Século, que muito contribuiu para a
organização da "quermesse" final da libertação em Porto Alegre - no período
imediatamente anterior e posterior a 7 de setembro e 16 de outubro - para veri-
ficar a veracidade das afirmações que fiz.
120. Não indicarei aqui mais dados sobre esta prática. Basta dizer que durante quase
todos os dias, nos vários jornais que compulsei, havia registro dos nomes dos se-
nhores magnâmimos. Mesmo em O Conservador ocorria isso, mormente quando
se tratava da alforria - com cláusula de prestação de serviços - concedida por
um membro do Partido Conservador. Assim, por exemplo, no dia 20-8-84 noticia
que um cavalheiro conservador libertou todos os escravos, menos os fugidos; e
comenta: "Esse acto muito honra aquelle cavalheiro, que o praticou na maior
expontaneidade, sem se intimidar das ameaças com as quais andam por ahi certos
tabus a impressionar os tolos".
121. O Conservador, ''A Questão Social IX", 26-8-1884, página 1.
122. Já mostrei que não se pode considerar o movimento abolicionista de 84 simples-
mente como uma peça no jogo dos interesses dos escravocratas. Ele foi, ao mesmo
tempo, contrário disso. Daí poder-se falar da pressão abolicionista sobre os se-
nhores: "Era realmente um prazer ver nos casos em que encontravamos as cartas
de libertação sobre a meza; não tinhamos, portanto, o menor trabalho", disse um
chefe liberal num discurso (cit. in O Conservador, "A Questão Servil XI", 28-8-
84). Para chegar a esse ponto, contudo, foi preciso muita pressão, como escreveu
O Conservador, de 28-8-84, comentando as técnicas usadas para libertar os escra-
vos: "Nenhum resultado, por consequencia colheram os abolicionistas em favor
da sua causa, porque a cidade de Porto Alegre emancipa-se devido apenas à reso-
lução que a este respeito tomaram os proprietários de escravos, impellidos pelas
grandes ameaças e imposições de que eram vítimas todos os dias!"
123. Francisco da Silva Tavares, "Eu e o abolicionismo", O Conservador, 29-4-84. Tra-
ta-se de um deputado à Assembléia Provincial que propôs um projeto de lei para

302
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

garantir a mão-de-obra necessitada pelos ex-senhores, através da obrigatoriedade


do trabalho do liberto, sob controle dos que os libertassem.
Não foi só em Porto Alegre que as coisas se passaram dessa forma. Em Pelotas,
como já comprovei, foi esse o sentido da abolição de 84 e no resto da Província
não foi diferente. O correspondente de Gravataí do Mercantil descreve o movi-
mento abolicionista daquela cidade nos seguintes termos: ''A febre abolicionista
desenvolveu-se a final entre este bom e desinteressado povo e, em poucos dias,
mais de 200 cartas de liberdade foram passadas. Isto é o que se diz e o que se pre-
tende fazer crêr (...). Para que se faça uma ideia exata do liberalismo emancipador
deste lugar, basta dizer-se que a mór parte dessas cartas, se não a sua totalidade,
são passadas com a clausula de prestação de sete longos annos de trabalhos e crueis
soffrimentos; isto é, o máximo da lei, chegando alguns senhores a ser tão exigen-
tes que só com a clausula de tres annos (e isto por muito favor) passavam de liber-
dade e escravos maiores de 60 annos!!!". O Mercantil, Porto Alegre, 1-9-1861.
124. Ou então, fazia-se o contrário, concedia-se a liberdade com cláusula de prestação
de serviços, para evitar que os escravos fossem emancipados por 20,30 ou 40$000,
cf. ''A Questão Servil XI", O Conservador, 28-8-84. É verdade que os grupos de
pressão abolicionistas reagiam, intensificando as subavaliações dos escravos. Isso
tornou-se possível porque a "situação" era oficialmente abolicionista: "Os servi-
ços impostos aos escravos pelos senhores em troca de sua liberdade, começavam a
ser completamente inutilizados por influência do Sr. José Júlio!", dizia O Conser-
vador, narrando a seguir o esbulho sofrido por um proprietário. "O seu ex-escra-
vo Izidoro, canteiro, com a idade de 22 annos e que foi ha dias liberto por este
nosso amigo com a condição de prestar-lhe 7 annos se serviços foi hontem avalia-
do perante o Dr. Juiz de Direito da 2 a vara pela quantia de 200$000rs. sem ter
sido citado para este acto o Sr. Annibal de Freitas", ''A ponta do véo levantada", O
Conservador, 11-9-84. Cabe considerar, entretanto, que essa medida pode ter sido
tomada por mera represália política. Quanto à imposição de pagamento, O Con-
servador, de 29-8-84, num tópico "Um abolicionista da gemma", denuncia o Sr.
Carlos Pinto, em casa de quem se reuniam os abolicionistas, porque este possuía
um escravo, encadernador, de quem seu proprietário exigiu 25$000 mensais du-
rante cinco annos (1.500$). O patrão desse preto (proprietário de oficina) propôs
a compra do rapaz por 500$000, mas o Sr. Pinto queria 1.000$. "Mas o caso é
este: mais tarde o Sr. Pinto recebe da comissão da kermesse pela liberdade do seu
escravo a quantia de 1.000$000, que ele embolsa muito satisfeito, e diz, ter dado
liberdade ao seu escravo sem condição alguma, e A Reforma assim ha de annunciar".
Sobre avaliações favoráveis aos proprietários, cf. O Conservador, de 28-8-84.
Noutro número, O Conservador, de 4-9-1884, critica os Srs. Amaya de Gusmão e
Raphael de Oliveira que, pertencendo às comissões que percorriam as casas de
família para emancipar escravos que eram comprados depois de avaliações irrisó-

303
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

rias (100$000 no máximo), libertaram seus escravos (um, cada qual), através do
fundo de emancipação, à razão de 800$ por cabeça. No mesmo exemplar, O Con-
servador critica o sr. Fontoura Palmerio por ter imposto a cláusula de prestação de
serviços durante 6 anos a uma sexagenária, liberta, portanto, pela lei de 1831, que
proibira, desde essa época, a entrada de escravos no país.

304
CApíTULO VI O negro na sociedade de
classes em formação
Viu-se, no capítulo anterior, que o abolicionismo e o movimento pela
imigração não levaram os brancos a redefinir socialmente as representa-
ções sobre os negros. Esses movimentos foram controlados pelas cama-
das dominantes que, assim, conseguiram orientar, na direção de seus
interesses, a reintegração da ordem existente. Por isso, as representações
tradicionais sobre os negros puderam, até certo ponto, manter-se. Ape-
nas, com a desagregação do antigo regime, acentuaram-se as inconsistên-
cias culturais dos padrões vigentes de relações raciais e tornou-se mais
evidente o caráter ambíguo das expectativas que rotineiramente caracte-
rizavam as relações entre senhores e escravos.
De fato, a linearidade suposta nos capítulos III e V deste trabalho só
parcialmente é verdadeira: o escravo foi socialmente representado não
apenas como coisa, mas também como homem-tomado-coisa. Sociologi-
camente essa ambigüidade não pode ser interpretada como se derivasse
do caráter do senhor (o bom e o mau senhor), ou da consciência que o
senhor era capaz de desenvolver da situação de escravo. Ela derivava da
própria situação de senhor e de escravo na sociedade escravista. Os escra-
vos, como vimos no capítulo I1I, foram reduzidos à condição de coisa,
isto é, de alguém que possuía apenas "consciência passiva" da situação
em que se encontrava, e cuja ação refletia os desígnios dos senhores. A
"socialização parcial" e o controle estrito de seu comportamento, que se
impunham como requisitos para a persistência das relações de domina-
ção-subordinação na ordem escravocrata, destruíam nos escravos os atribu-
tos de pessoa humana. Os senhores representavam-nos como instrumentos
de trabalho e eles se comportavam, efetivamente, como seres incapazes
de ação autonômica. Obtinha-se, dessa forma, a reificação quase comple-
ta dos escravos. Porém, desde quando a camada senhorial precisou aper-

307
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

feiçoar O instrumento humano de trabalho para tornar a exploração


escravista mais eficiente, criou o antiescravo potencialmente eficaz. O
escravo-artesão, engendrado pela dinâmica da economia escravista do sul,
sendo capaz de dominar uma técnica mais refinada de trabalho, permitiu
a revelação social dos atributos de pessoa humana que se encobriam na
categoria de escravo.
A própria exploração senhorial, portanto, criou situações nas quais o
escravo, tendo-se transformado em ferramenta-inteligente, negava em seu
comportamento as representações que dele eram feitas: o escravo-alfaia-
te, o escravo-ferreiro, o escravo-tecelão, ao adestrarem-se como artífices
para transformar a matéria bruta, distinguiam-se da tesoura, da bigorna,
do tear, das condições inanimadas de trabalho, como senhores de uma
técnica específica de manejá-los. Evidenciava-se assim a possibilidade
humana que neles existia de assenhorearem-se da natureza. No trabalho
mais complexo dos escravos-especialistas, eram os seus desígnios, embo-
ra servindo a terceiros, e suas qualidades pessoais, que permitiam o traba-
lho. Com isso o trabalho escravo despia-se da aparência de atividade
anti-humana que o caracterizava enquanto se resumia ao emprego da for-
ça bruta sem qualquer qualificação. Noutros termos, o trabalho escravo
ao desenvolver-se, tornando-se mais complexo, permitia que a contradi-
ção inerente à condição de escravo se revelasse na sua plenitude: ao tra-
balhar o escravo negava as representações que tendiam a fazer dele o
anti-homem e, ao mesmo tempo, permitia que ficasse socialmente evidente
a necessidade da coação e da violência para transformar um homem em
escravo, em coisa.
Surgia, dessa forma, a possibilidade objetiva da negação da situação
de escravo. Agindo como não-escravo, o negro podia desenvolver alguma
consciência crítica e o branco podia perceber, na própria ação dos escra-
vos, as contradições encerradas nas representações que construíra sobre
o negro-escravo. Isso significa que através da mediação de uma forma
determinada de organização material da produção havia a possibilidade
da consciência da condição de homem do escravo. Entretanto, a criação
dessa nova forma de produção e a consciência que dela os homens eram
capazes (com a conseqüente descoberta pelo branco do outro igual a si
mesmo no escravo) não foram dois momentos distintos de um processo,

308
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

mas duas faces solidárias da mesma totalidade. A consciência como que


se continha na própria situação criada: o escravo, quando agia na quali-
dade de produtor-inteligente, aparecia para o branco, no ato de trabalhar,
como outro homem! e, simultaneamente, para a nova modalidade de tra-
balho, precisava de um tipo de adestramento capaz de possibilitar-lhe si-
tuar-se criticamente na sociedade escravocrata.
A qualificação do trabalho escravo pode ter assumido reduzida signi-
ficação em termos históricos devido à proporção relativamente pequena
de escravos desse tipo na massa da população servil. Em outra situação
social de existência, contudo, a contradição coisa-homem contida na si-
tuação de escravo revelou-se, senão de maneira tão marcante, de forma
muito generalizada: na escravidão doméstica. Também aqui o senhor po-
dia descobrir-se no escravo a cada instante e a cada instante repelir, às
vezes violentamente, esta perda de si mesmo no outro socialmente des-
prezado. A ambigüidade do comportamento do branco diante do escravo
doméstico, tematizada pela literatura, simboliza a alienação completa do
senhor: toda a rigidez das normas e da etiqueta no convívio diário - todo
aquele "estado violento para ambos" do cronista - impunha-se exata-
mente para que o senhor visse no escravo a pura "objetividade" e não se
encontrasse, a cada momento, no outro que era escravo. Mas esse estado
de permanente tensão não se manteve nunca de forma pura: faltou na
sociedade de castas brasileira o elemento escatológico para justificar a
repugnância pelo escravo. Ao contrário, na ética da religião oficial, todos
eram iguais perante Deus, e na prática da vida doméstica a vontade do
senhor podia exprimir-se na posse da escrava, sem que isso implicasse nojo,
mas apenas desqualificação social do produto de uma miscigenação que
continha, em si mesma, toda a contradição da representação que o bran-
co mantinha da situação de escravo: alguém que se suplicia e que se ama,
sem nunca ser igual.
Assim, a sociedade escravista nos moldes em que se desenvolveu no
Brasil possuía um elemento constante de dissolução que se originava no
plano estritamente social: o escravo não chegou nunca a ser representado
inteiramente como coisa e a escravidão supunha a coisificação do escra-
vo. Isso não significa que a reciprocidade de expectativas tenha deixado
de ser obtida em termos tais que garantissem o funcionamento do sistema

309
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

escravocrata. Ao contrário, vimos neste trabalho, especialmente nos capí-


tulos lU e I~ que havia condições regulares de funcionamento normal do
sistema. Significa apenas que essas condições mantinham-se graças à vio-
lência: violência do senhor contra o escravo, violência do senhor contra
si mesmo. E significa ainda que qualquer brecha no sistema de pressão
constante acabaria por fazer com que toda a escravidão ruísse, o que ex-
plica a manutenção da disciplina e da violência senhorial até a Abolição.
Apesar da pressão da ordem escravocrata, a partir de meados do sécu-
lo XIX, e mais precisamente depois de 1870, os princípios de casta que
regulavam a relação senhor-escravo começaram a perder a antiga eficá-
cia. O reconhecimento implícito da condição de pessoa no escravo e a
ação do negro como pessoa solaparam, no plano cultural e social, o siste-
ma de direitos e deveres recíprocos engendrados pela exploração escravista.
A inconsistência mais aparente do sistema de valores da ordem escravocrata
brasileira localizava-se no plano das idéias relativas à vida sexual e à
misceginaçã02• As fontes indicam de forma concludente que no Rio Grande
do Sul, pelo menos a partir de meados do século XIX, as relações sexuais
entre senhores e escravos (brancos e negros) assumiram o mesmo ritmo
que as regulou nas demais áreas do país3•
O intercurso sexual entre brancos e negros era, em si mesmo, um fa-
tor potencial de desequilíbrio do sistema de normas e controles que defi-
nia as posições e a atuação social recíproca de senhores e escravos na
sociedade de castas brasileira. À medida que a ordem social foi-se tornan-
do menos rígida na definição de regras exclusivas em função das raças para
a realização de uniões ilícitas e permitiu a valorização sexual da mulher
negra - ainda que em termos de pura libertinagem - criou-se mais um
foco dinâmico de tensões culturais. As relações sexuais entre senhores e
escravas, apesar do caráter de pura concupiscência, desencadeavam pro-
cessos de interação social que escapavam inteiramente ao jogo de expec-
tativas sociais que definiam o comportamento de senhores e escravos. Com
efeito, as fontes indicam até que ponto as senhoras reagiam às preferênci-
as amorosas de seus maridos, com manifestações de ciúmes sádicos4 • Sabe-
se também que os próprios senhores agiam contra os escravos que se
tornavam seus rivais amorosos na disputa das negras, torturando-os ou
vendendo-os. O clássico triângulo amoroso renasceu envolvendo casa-

3 1 o
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

grande e senzala num jogo de relações espúrias, denunciando as inconsis-


tências culturais da moral senhorial brasileira.
Mais grave ainda, como fator de tensão e desequilíbrio na ordem
escravocrata brasileira, foi a miscigenação resultante das uniões entre se-
nhores e escravos. É conhecida a transigência do comportamento senho-
rial diante de escravos filhos de senhores. Entretanto, mesmo que não se
considere na análise esse aspecto da questão, a própria existência de fi-
lhos de brancos livres entre os escravos tornava-se um elemento de nega-
ção dos pressupostos da inferioridade natural, que se desejava atribuir ao
escravo enquanto negro. Efetivamente, a miscigenação crescente denun-
ciava a inexistência de repulsa entre as raças. Ao mesmo tempo, a quali-
dade de escravo atribuída aos filhos dos senhores evidenciava o caráter
social da escravidão. Por outro lado, as qualidades de pessoa humana tor-
navam-se mais perceptíveis nos escravos descendentes de senhores, tanto
porque os pais, freqüentemente, lhes dispensavam tratamento mais bran-
do, como porque, em razão desse tratamento, sujeitavam-se a processos
socializadores que limitavam menos suas potencialidades de reação social
como pessoas.
Isso evidencia, amplamente, as inconsistências do sistema de castas
brasileiro que, ao mesmo tempo que se criou para garantir a reificação do
escravo, requerida pela produção econômica escravista, não se organizou
a partir de valores culturais capazes de negar toda e qualquer qualidade
humana do escravo. A literatura da segunda metade do século é rica de
textos que mostram, exatamente, o oposto: há como que uma redescoberta
do homem no escravo. A ênfase posta pelos textos no carinho das mu-
camas, na fidelidade dos negros velhos, no sofrimento da mãe-escrava, na
dedicação e amor pelo senhor etc., possui uma ambigüidade que é signifi-
cativa. Exaltando as qualidades de apego ou de submissão aos brancos,
textos deste tipo como que preparam a imagem do negro livre desejada
pelos senhores, mas, ao mesmo tempo, obrigam a uma revisão da repre-
sentação social do negro, descobrindo no escravo a pessoa humanas.
Culminando esse processo, a participação do escravo na luta pela li-
berdade, por mais casual que tenha sido, consistiu no desmascaramento
cabal da imagem do escravo suposta pelo sistema de castas6• Depois de
1884 houve uma espécie de revolta surda dos escravos contra o logro da

3 1 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

emancipação com cláusula de prestação de serviços e a debandada do tra-


balho foi maciça: "Com effeito, o que estamos presenciando nesta capi-
tal? Uma grande parte dos libertos de 1885, violando a fé dos contractos
e a todos surprehendendo pela sua ingratidão, abandonarem precipitada-
mente a casa de seus bemfeitores tão depressa estiveram de posse da carta
de alforria; outra não tardou muito a ser despedida como meio de se li-
vrarem os senhores dos aborrecimentos das constantes infidelidades dos
seus criados. Mais de duas terças partes dos contractados daquelle tempo
andam vagando pela cidade maltrapilhos, sem abrigo, sem pão, frequen-
temente hospedes da cadeia e do hospital. Na campanha a situação não é
diferente: os libertos vivem em correrias, vagando durante o dia pelas
estradas e tabernas e repartindo a noute entre o deboche e a rapina. Apezar
da falta de braços não se encontra hoje um jornaleiro que se sujeite ao
trabalho por algum tempo, devido aos habitos de ociosidade que nelles
estão arraigados. Assim, ao passo que escasseiam os braços para os traba-
lhos de criação e lavoura, o serviço doméstico acha-se também completa-
mente desordenado; (... )"7.
Esse texto indica o que sucedeu. Os escravos, ao tornarem-se homens
livres, viram-se na contingência de agir como "lumpen": precisavam pri-
meiro libertar-se da condição passada, negando completamente o jugo que
lhes havia sido imposto. Para isso, precisavam divorciar-se por inteiro da
situação na qual os haviam plasmado como objetos. Tiveram de destruir-
se como seres produtivos porque iriam destruir assim, ipso facto, a situa-
ção de trabalho que haviam criado para eles, mas contra eles. É óbvio que
tal processo não foi produto da ação voluntária dos negros. As condições
econômicas de existência somadas à falta de socialização prévia para a vida
em liberdade e à eliminação rápida dos negros das posições no mercado
de trabalho levaram-nos, entretanto, a comportarem-se de tal forma que
sua ação, inadvertidamente para eles, ganhou o sentido de uma revolta
inconsciente. A descrição sombria, e verdadeira, do que ocorreu depois
de 84 não deixa margem para dúvidas quanto ao comportamento dos ex-
escravos: "a vadiagem progride desenfreadamente; o abuso da aguarden-
te marcha a par com a degradação moral; a prostituição toma proporções
inquietadoras e o pauperismo augmenta com esse grande número de
individuos que, lançados de chofre em um meio muito differente daquelle

3 12
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

em que viviam e cercados de novas e urgentes necessidades, estragam-se


pela maior parte na orgia vegetando em lastimavel miseria, onde fatal-
mente perecerão, arrastando a sua descendencia"8.
Semelhante estado de anomia espelha um processo complexo e pro-
fundo do qual não poderiam ter consciência escravos ou senhores, bran-
cos ou pretos: a abolição representava, historicamente, uma revolução sui
generis. Não foi por acaso que o movimento abolicionista organizou-se
entre os brancos e foi norteado por valores e objetivos que mais diziam
respeito aos problemas dos brancos do que às questões dos negros. Os
escravos, enquanto sujeitos de uma práxis rebelde, não tinham por obje-
tivo outra coisa além da supressão da escravidão. Da mesma maneira, eram
esses os objetivos dos brancos que compreendiam a situação de alienação
dos escravos. Suprimida a escravidão, os negros continuariam irremis-
sivelmente sujeitos a outras modalidades de escravidão e de alienação: à
escravidão da miséria ou à condição de párias de uma sociedade de clas-
ses em formação, engajados automaticamente, como ficariam, no exérci-
to proletário de reserva. A abolição, por assim dizer, suprimia apenas uma
forma anômala de ser da produção capitalista, num processo cujos efeitos
sobre a estrutura de poder circunscreviam-se, de forma imediata, a gru-
pos das camadas dominantes.
Essa interpretação não significa que o processo de reconstrução da
ordem social nos moldes da sociedade de classes e a abolição, como mo-
mento culminante no plano político da desagregação da sociedade escra-
vocrata, não tenham exprimido uma revolução social. Ao contrário: a
dissolução da ordem estamental e a constituição da sociedade de classes,
que lentamente se foi produzindo no interior da sociedade escravocrata,
tiveram significação revolucionária marcante. Apenas, é preciso distinguir
diversos níveis no processo histórico. Há momentos nos quais a ação so-
cial humana situa-se historicamente em condições tais que se torna possí-
vel, a um tempo, ter consciência da história e plasmar, graças a essa
consciência, o sentido do curso histórico em função dos interesses de uma
camada determinada da sociedade. É o que ocorre, por exemplo, com as
revoluções proletárias. Nesse caso o processo todo é revolucionário: por-
que permite uma compreensão global da práxis humana em condições
determinadas, que só é possível pela negação da realidade constituída,

3 13
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

porque exige a negação concreta dessa realidade através da ação que a


destrói; porque recria a ordem social a partir de novos princípios de
estruturação que implicam, ao mesmo tempo, a imposição da vontade e
da práxis do grupo revolucionário a toda a sociedade; porque, finalmen-
te, a ação proletária revolucionária consciente leva, a longo termo, à su-
peração completa da situação de classe, destruindo tanto a burguesia como
o proletariado enquanto classe. Noutros contextos histórico-sociais, en-
tretanto, como no caso da abolição da escravatura no Brasil, não só a práxis
rebelde depende da ação de outros grupos para realizar seus objetivos,
mantendo-se como uma espécie de grande clamor surdo cuja voz s6 se
pode exprimir graças às cordas vocálicas alheias, como a ação negadora
da revolução se restringe a certos alvos que, uma vez atingidos, permitem
apenas a criação de possibilidades para novas revoluções: o escravo, ao
transformar-se em negro livre, assume outra posição, alienada.
Trata-se, por assim dizer, de uma mutação dentro da alienação, um
momento de mediação entre a pura condição de passividade (ser-objeto)
e a negatividade capaz de conduzir à superação dialética. Por isso, afirmei
que se tratava de uma revolução sui generis. Entretanto, se o negro ao
assumir a condição de homem livre, numa sociedade cujos princípios de
estruturação e formas de organização social continuavam regulados con-
forme os interesses das camadas dominantes constituídas no período
escravocrata, mudava simplesmente a forma de ser escravo, as diferenças
existentes entre a escravidão de casta e a alienação imposta pela liberdade
na miséria não eram meramente formais, no sentido de irrelevantes quan-
to às perspectivas de modificações no processo histórico real. Ao contrá-
rio, permitiram a futura conquista efetiva pelo negro da condição de pessoa
humana. Nesse sentido preciso, portanto, o abolicionismo foi, de fato, um
movimento de conseqüências revolucionárias. Mesmo quando não são
considerados os efeitos produzidos pela alteração da ordem escravocrata
no plano da organização social do país, as repercussões da Abolição sobre
o destino do homem negro criaram as condições para que este se situasse
criticamente na sociedade de classes.
Essa é, aliás, uma questão importante para a análise sociológica. Nes-
te caso, a diferença que medeia entre ser escravo e ser formalmente livre,
embora sem provocar alteração nas condições materiais da vida e, pelo

3 14
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

menos no primeiro momento, sem a redefinição favorável de expectati-


vas e representações quanto ao negro, implica todo um universo potenci-
al de novos ajustamentos. A reorganização da ordem social teria de
conduzir forçosamente à redefinição de normas de ação e de sistemas de
controle social que permitiriam potencialmente, como de fato permiti-
ram, a conquista de posições sociais novas pelos negros, com todas as
conseqüências que esse processo - já agora estrutural- desencadeia na
organização e na orientação da conduta recíproca de brancos e negros.
Assim, os processos mediadores entre a ação revolucionária capaz de al-
terar condições estruturais e a ação aparentemente irrelevante do ponto
de vista das alterações nas condições materiais de existência e das formas
reais dos homens se representarem e agirem socialmente desempenham
funções sociais importantes, que não podem ser desprezadas pela análise
sociológica.
A fixação de quadros teóricos rígidos para a compreensão da práxis
social acaba por impedir a análise do real na diversidade e na multiplicidade
de suas contradições. Por isso, ainda que stricto sensu a abolição não
corresponda formalmente às características da revolução burguesa ou da
revolução proletária, ela não deixa de ser uma espécie de revolução de
segundo grau. A própria consciência da situação escrava acabou por ex-
primir-se de forma sui generis através do branco livre que descobria e re-
velava a condição de escravo. E, se no movimento abolicionista do sul a
participação real do escravo e do negro foi pequena, o temor da ação em
massa, a concretização de alguns gestos de revolta e, mais do que tudo, a
conduta do ex-escravo depois da Abolição (o abandono das estâncias),
mostram que a passividade do escravo era relativa. As condições da escra-
vidão fizeram com que a reação do negro parecesse tênue em face da
máquina repressiva senhorial. Tão logo essa máquina perdeu as condições
morais e legais para agir e coagir, o negro exprimiu de forma taxativa sua
repulsa à situação que lhe fora imposta.
Com efeito, o negro livre tinha de optar entre continuar trabalhando
nas mesmas condições que antes, com o status formal de cidadão, ou rea-
gir a tudo o que o trabalho desqualificado pela escravidão significava,
passando a viver na ociosidade e no desregramento. Foi essa a alternativa
que os brancos criaram para os negros. A escravidão de fato, dadas as

3 1 5
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

condições e a avaliação social do trabalho realizado anteriormente pelos


escravos, situação à qual teriam de sujeitar-se se continuassem a trabalhar
nas antigas ocupações, ou a liberdade da miséria. Quando os ex-escravos
recusaram-se em massa a permanecer escravos legalmente livres, como
demonstra o texto transcrito acima9, nada mais fizeram do que agir
revolucionariamente em termos das condições possíveis de ação. Apenas,
a opção que podiam realizar, em razão das peculiaridades que apontei da
situação de escravo na economia capitalista10, não permitia que moldas-
sem a sociedade conforme seus interesses mais profundos, senão no sen-
tido de generalizar a liberdade formal do cidadão: o ato de revolta contra
o statu quo significava, automaticamente, a condenação à miséria e a con-
dições morais subumanas de vida.
A partir desta perspectiva é fácil compreender que a "consciência da
situação" desenvolvida pelo escravo não só esteve presente de forma la-
tente no processo da abolição, como se manifestou ativamente, depois da
libertação, através da recusa pelo negro de participar da mistificação
emancipacionista que os brancos lhe quiseram impor. A recusa do negro
ao trabalho assume, dessa forma, um significado bem mais profundo do
que o da simples ociosidade. O processo alienador da sociedade escra-
vocrata havia contaminado de tal forma a consciência e o sentido das ações
humanas que o trabalho aparecia como a qualidade anti-humana por ex-
celência, sendo necessário, por isso, que o homem negro se afirmasse pri-
meiro como ocioso, para sentir-se livre e poder recomeçar todo o caminho
da lenta e penosa reconstrução de si na sociedade de classes que começa-
va a formar-se.
A partir deste momento, os brancos intensificaram a redefinição das
representações que mantinham sobre os escravos: os negros não traba-
lham "devido aos habitos de ociosidade que nelles estão arraigados" (sic!).
Num processo de racionalização coletiva, o que havia sido resultado da
exploração escravocrata e o que era a forma possível de reação humana
do ex-escravo passava a ser atributo negativo inerente ao negro, condição
criada pelo negro. Pensando na condição degradante dos ex-escravos, o
Presidente da Província escrevia que era preciso tomar medidas, "senão
para extirpar, ao menos modificar o mal, mesmo por interêsse especial
dessa pobre classe, algoz de si mesma, que de outra sorte terá de maldizer

3 16
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

do benefício da liberdade, que lhe outorgaram sem os requisitos que a


deviam acompanhar"t1. A revolta do negro contra a situação de trabalho
que, à sua custa, as camadas dominantes queriam manter aparecia aos
brancos como um ato de infidelidade, como ingratidão, como atributos
negativos, já agora de uma "raça" que antes queria ser algoz de si mesma
(sic) negando-se a trabalhar, do que corresponder às expectativas que o
branco mantinha sobre o comportamento do negro livre.
É verdade que durante o regime escravocrata, como é sabido, as re-
presentações sociais desenvolvidas pelos brancos livres atribuíam ao es-
cravo uma série de qualidades que também podem ser definidas em
termos de preconceitos de raça ou de cor. Essas representações agiam
como formas de acomodação dos negros e brancos na ordem escra-
vocrata, operando como um mecanismo supletivo no sistema de sanções
sociais a que os escravos estavam sujeitos. O sistema complexo e assi-
métrico de atribuição de direitos e deveres entre negros e brancos na
sociedade de castas manteve-se com o concurso de representações sobre
as qualidades e o papel social do branco e do negro definidos em termos
etnocêntricos pelos brancos. A noção de "raça", mesmo naquele perío-
do, era definida socialmente através do "sentimento de comunhão den-
tro de um sistema de graduação social, de prestígio e de valores culturais"12,
como escreveu Florestan Fernandes, muito mais do que em termos de
qualidades biológicas, embora com fundamento nestas, principalmente
na cor da pele, pois negro e escravo foram vocábulos que assumiram
conotações intercambiáveis: "Negro equivalia a 'indivíduo privado de
autonomia e liberdade'; escravo correspondia (em particular do século
XVIII em diante) a 'indivíduo de côr'. Daí a dupla proibição, que pesa-
va sobre o negro e o mulato: o acesso a papéis sociais que pressupunham
regalias e direitos lhes era simultaneamente vedado, pela 'condição so-
cial' e pela 'cor'B.
Entretanto, depois da Abolição o preconceito foi redefinido socialmen-
te num duplo sentido: não só formalmente, cor e condição social não
correspondiam mais à mesma e irremissível situação de casta dos escra-
vos, como o negro livre passou a frustrar mais generalizadamente as ex-
pectativas dos brancos e, mais tarde, a ameaçar a exclusividade das posições
sociais por eles mantidas. A partir desse momento, começa realmente o

3 17
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

"problema negro": o preconceito muda de conteúdo significativo e de


funções sociais.
O preconceito de "raça" ou de "cor" era um componente organizatório
da sociedade de castas. Nela, porém, a representação do negro como so-
cialmente inferior correspondia tanto a uma situação de fato, como aos
valores dominantes na sociedade. O efeito das representações precon-
ceituosas e da discriminação racial inseria-se no sistema de controles sociais
com o mesmo grau de aceitação coletiva que, por exemplo, a tortura do
negro fugido poderia ter: era um componente essencial e "natural" do
sistema de castas. A tal ponto que o "problema negro" ou a "luta contra o
preconceito" aparecem como um verdadeiro nonsense na problemática
da sociedade escravista. Apenas lateralmente, apesar da enorme impor-
tância desse processo, a função reguladora do preconceito agia no disci-
plinamento das expectativas e possibilidades de ascensão social: no caso
dos mulatos claros livres 14•
Com a desagregação da ordem servil, que naturalmente antecedeu,
como processo, à abolição, foi-se constituindo, pouco a pouco, o "pro-
blema negro", e com ele intensificando-se o preconceito com novo con-
teúdo. Nesse processo o "preconceito de cor ou de raça" transparece
nitidamente na qualidade de representação social que toma arbitrariamente
a cor ou outros atributos raciais distinguíveis, reais ou imaginários, como
fonte para a seleção de qualidades estereotipáveis15 • De um momento para
o outro, o negro - que fora sustentáculo exclusivo do trabalho na escra-
vidão - passa a ser representado como ocioso, por ser negro, e assim por
diante.
Cabe, entretanto, ponderar que as representações estereotipadas fazi-
am-se com base na realidade. Seria falso supor que os brancos imputas-
sem todos os atributos negativos aos negros como uma simples projeção
ou como um recurso de autodefesa imaginário. Não se pode dizer que o
negro desordeiro, ocioso, bêbado etc. era uma imagem criada pelo bran-
co. Ao contrário, e muito pior, o branco não criou apenas essa represen-
tação do negro: fê-lo, de fato, agir dessa forma. E o fez tanto porque criou
as condições de vida e de opção para os negros indicadas acima, quanto
porque passou, ao mesmo tempo, a representá-los de conformidade com
essa imagem16 •

3 18
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Essa análise mostra que a idéia corrente entre muitos psicólogos so-
ciais e sociólogos de que o preconceito, enquanto estereótipo, apresen-
ta-se como urna deformação, consciente ou inconsciente, com base parcial
na realidade, das qualidades dos outros avaliadas a partir de critérios
etnocêntricos, deve ser ampliada. Com efeito, a avaliação preconceituosa
pode ser inteiramente "objetiva", isto é, apoiada em dados de fato, e nem
por isso deixa de ser preconceituosa. Só quando há a compreensão das
ações e representações sociais em termos do significado que possuem
no processo de constituição e de manutenção de uma totalidade deter-
minada é que o observador pode decidir sobre a atribuição da qualidade
de preconceito ou estereótipo às ações e representações particulares. Isto
fica evidente quando se sabe que as manifestações preconceituosas con-
tra o negro, depois da Abolição, eram, muitas vezes, a mera concep-
tualização da experiência vivida. Por isso os primeiros movimentos dos
negros porto-alegrenses contra o preconceito concentraram os esforços
na re-socialização do negro para a vida em liberdade e na alteração das
condições morais e materiais da comunidade negra. Era preciso modifi-
car, mais do que uma atitude, uma situação social na qual o preconceito
se cristalizara como uma forma de comportamento que, se ao consti-
tuir-se fora imposta pelos brancos, aparecia, depois, como um compo-
nente real, objetivo, do mundo negro.
O Exemplo, jornal dos negros de Porto Alegre que começou a circular
em dezembro de 189217, evidencia a procedência dessa análise. Critican-
do a desordem, a mão armada, provocada por um negro, operário civil,
numa reunião do "Club Recreativo Operário", também de negros, escre-
ve: "Lamentamos, repetimos, a pratica de tão feia acção, que só serve para
nos deprimir aos olhos daquelles que se julgam superiores a nós e que vão
por ahi affirmando não haver baile de negro sem rollo". E, na verdade,
como não hão de dar curso a tal expressão desairosa, quando os nossos
são os primeiros a abraçar a ingrata tarefa de nos desmoralizar, de aniqui-
lar-nos?"18.
O mecanismo de atribuição de qualidades negativas aos negros fica
evidente. Os brancos isolavam certos aspectos do comportamento dos
negros das condições que os produziram, passando a encará-los como
atributos invariáveis da "natureza humana" dos negros. As funções laten-

3 1 9
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

tes desse processo são também compreensíveis: procurava-se manter os


negros dentro dos limites de participação social elaborados na antiga or-
dem social. O impedimento legal da condição de escravo e a violência
senhorial eram suficientes na ordem estamental para garantir a espolia-
ção social do negro. Na sociedade de classes, porém, quando todos se
tornam iguais perante a lei, é preciso desenvolver mecanismos sociais que
assegurem, em nome de uma desigualdade natural, a acomodação dos
negros ao sistema de atribuição de posições e vantagens assimétricas, como
se ele fosse construído em torno das barreiras de "raça". Com isso, garan-
tir-se-ia, de forma imediata, o suprimento abundante da mão-de-obra19 e,
indiretamente, a perpetuidade no desfrute das posições de autoridade e
prestígio que a antiga ordem social assegurava aos brancos em geral e aos
senhores em particular.
Entretanto, se o comportamento do negro constituía a matéria-prima
para a elaboração de representações preconceituosas e se o preconceito e
a discriminação interferiam, como componentes organizatórios, no siste-
ma de relações e posições sociais que definiam a conduta recíproca de
brancos e negros depois da Abolição, os mecanismos de ajustamento dos
dois grupos raciais não se limitaram a esses processos. A violência do se-
nhor sobre o escravo não se metamorfoseou apenas em preconceito
antinegro. Ela continuou a existir, ativamente, embora sob forma diversa
da que assumia na sociedade de castas. O preconceito, nesse sentido, apa-
rece como uma racionalização do branco para seu próprio comportamento
arbitrário. Numa sociedade formalmente de classes, as arbitrariedades não
podiam justificar-se mais pela lei ou pelos valores da moral exclusivista
dos brancos. É neste sentido preciso que o preconceito se torna um recur-
so de autodefesa do branco: a espoliação social que ele deseja manter jus-
tifica-se "por motivos naturais".
As arbitrariedades referidas acima manifestavam-se nos diversos pla-
nos da vida social: no trabalho, na religião, na recreação, nas escolas, e
assim por diante. Cristalizavam, às vezes, em práticas discriminatórias, com
a função evidente de impedir que o negro pudesse partilhar de forma
comum com os brancos os benefícios da ordem formalmente democráti-
ca, como, por exemplo, freqüentar as mesmas escolas, ou dançar nos
mesmos salões: ''Acaba de vir ao nosso conhecimento que algumas esco-

320
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

las publicas da capital recusam abertamente admittir ao ensino crianças


de côr, outras que, limitando o número destas, mesmo assim maltratam-
nas, a ponto de seus pais, em justa indignação retirarem-nas das aulas"20,
ou, no segundo caso: "A igualdade e a fraternidade têm sido postergadas
pelos homens desde os primeiros dias de sua existência. (...) Motivam esses
juizos o orgulho vil e mesquinho de certas sociedades bailantes, existen-
tes em Porto Alegre, as quais, de comum accordo, resolveram que salões
por ellas frequentados não podiam ser cedidos a sociedades de pardos.
(...) Em Porto Alegre, existe ainda muito falta de luz, muito orgulho e um
odio latente contra nós"21.
Outras vezes a discriminação visava, além de evitar que os negros "dei-
xassem seus lugares" como nos casos anteriormente citados, reavivar-lhes
a condição de "cidadãos" incumbidos de cumprir as tarefas mais árduas.
Assim, quando em 1893 houve necessidade de intensificar o recrutamen-
to para a Brigada Militar por causa da revolução Federalista, os negros
foram caçados nas ruas para alistarem-se à força: ''A policia está infrin-
gindo a lettra da Constituição do Estado! Desconhece a igualdade de to-
dos perante a lei e prende os homens de côr violentando-lhes a liberdade,
coagindo-os a abandonar seus labores, lares e famílias, obrigando-os a
verificarem praça na força militar do Estado"22.
Porém, mesmo quando a violência do branco não se institucionalizava
ou não emanava de resoluções oficiosas, fazia-se presente, de forma es-
pontânea, nas relações entre as duas raças: "Não é raro ver-se nas repar-
tições publicas, nas mesas de rendas por exemplo, um homem de côr ser
o primeiro a chegar para pagar as decimas e ser o ultimo despachado,
quando não o mandam voltar em outro dia, tendo que tragar esta pre-
terição humilhante muito calado muito resignado para evitar ser verbal-
mente, grosseiramente insultado ou ir dali para a policia. O que ahi fica
tem-se dado comigo"23.
Nem mesmo no lar ou nas festas os negros estavam abrigados das ar-
bitrariedades. O comportamento dos brancos fazia com que não tivessem
"vida privada", levando-os a viver em contínuos sobressaltos: "Não te-
mos o direito de, tranquillos, darmos um baile na intimidade da familia
sem sermos importunados pela ronda que ao ter conhecimento que são
pessoas pretas e pardas que se divertem, batem estupidamente e, antes de

32 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

tudo perguntam-no se temos a licença, se os donos da casa são casados;


responsabilizam-nos catonicamente pelo que houver e muitas vezes dei-
xam de sentinella a ordenança que não estando pelos autos trata de apressar
o termo da festa; aviltamento estes a que não estão sujeitas pessoas de côr
branca"24.
A qualidade de homem de cor definia, desde logo, o processo interativo
entre pessoas das duas raças que se encontrassem na rua. À representação
de que "negro não é gente", seguia-se o comportamento do branco, que
pautava pelo desrespeito à pessoa humana do negro: "Era a noite de 27
do p. p., chegava-me para casa, só, pacificamente, às onze e meia horas,
quando a patrulha que estava postada à esquina da Travessa Paysandu e
Rua dos Andradas, embargou-me o passo ordenando que voltasse. TIve a
felicidade, porém, de um dos brigadas não estar disposto a dar um pas-
seio até a cadêia, e portanto, intercedeu em meu favor, dizendo ao com-
panheiro:
- "Deixa, deixa este.
"E, enquanto eu estava em perspectiva desagradavel de ir pernoitar
na cadêia e de lá sabe Deus para onde, passavam e perpassavam, já sós, já
acompanhados, indivíduos de côr branco sem serem vexados a dizerem
ao que andavam. Com quanto a lei de 13 de maio seja um facto con-
summado, só me resta aconselhar aos meus iguais, que é prudente não
sahirem depois do toque de recolher, isto enquanto não fôr violado o lar
e de lá arrebatados dos braços das espôsas, irmãs ou filhos. - A resigna-
ção por fraqueza não envilece"25.
Além disso, a discriminação e a violência oficializada atingiam os ne-
gros no que era essencial para a inserção na sociedade de classes, da qual
deviam participar. Depois de procurar negar-lhes as regalias e a segurança
devidas a todo cidadão, os brancos tentavam impedir o acesso do negro
às posições de mais prestígio e de melhor remuneração no funcionalismo
público, mesmo que as obtivessem por concursos: ''Ainda está bem paten-
te na imaginação de todos quantos sabem desse facto, o concurso realiza-
do para o preenchimento de uma vaga na Secretaria do Governo, ao qual
concorreram 33 candidatos, sendo unicamente approvado o cidadão de
côr parda Justino Coelho da Silva Junior; isto porque não puderam offuscar
o brilho da intelligencia desse modesto moço. Porém, contra a expectati-

322
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

va geral, o que sucedeu? .. Gaspar da Silveira Martins, então presidente


da província nulificou o concurso! !!"26.
O universo moralmente degradante de violência aberta contra o es-
cravo e de solapamento contínuo das possibilidades de manterem os ne-
gros vida associativa regular, que caracterizou o período escravocrata,
transfigurava-se num mundo cheio de restrições, discriminações, avalia-
ções negativas, frustrações e, não raro, persistência de formas arbitrárias
e violentas de coagir os negros livres a um estilo de vida próximo da anomia
social. Estes, na sua grande maioria, não podiam agir senão de forma a
corroborar as expectativas preconceituosas dos brancos: ignorantes e mal
preparados em geral para o desempenho das atividades mais bem qualifi-
cadas que lhes garantissem o mínimo de condições materiais e morais de
existência capaz de permitir o espírito crítico, acabaram por desenvolver
formas de comportamento acomodatícias diante da onipresença violenta
ou frustradora dos brancos. Mesmo os segmentos da população negra que
foram capazes de pensar criticamente a situação, acabaram por aceitar
como auto-concepção de seus papéis sociais e como auto-explicação de
seus insucessos o "estado em que se encontravam", como parte de um
grupo "objetivamente" inferior, negando-se a ver nos brancos os fautores
dessa situação: "De ha muito que o estado de acabrunhamento em nosso
meio, é tomado como preconceito de raça: e isso, provado com a nature-
za de facto evidente; porém esses mesmos factos deixam ver claramente
que, si existe preconceito, é tão sómente pela absurda falta de instrucção
na maior parte desse meio"27.
Esse texto exemplifica os efeitos mais amplos do processo de espolia-
ção social que os negros continuaram a sofrer depois da Abolição. Além
de terem sido coagidos à vida de ociosidade e miséria, acabaram por
autoconceber-se nos moldes impostos pela ideologia racial dos brancos.
Com efeito, teoricamente a opção que coube aos negros quanto ao pro-
cesso de integração à ordem social em formação estava balizada entre dois
pólos: a consciência da autenticidade da condicão de negro na sociedade
de classes, com a dupla determinação de proletário e negro, ou a transi-
gência com a ideologia dos brancos, enquanto "raça" e enquanto grupo
social dominante. Esta última garantiria a integração imediata à "comuni-
dade nacional", nas posições socialmente menos favorecidas, alimentando,

323
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ao mesmo tempo) uma concepção alienada da sociedade e da situação que


o negro podia aspirar nela.
Entretanto) a "opção)) era teórica. Realmente) em face do estado de
anomia que reinava entre os negros no período escravocrata) quando a
única forma de socialização que recebiam para a vida na ordem social-
mente organizada limitava-se ao trabalho) e diante da revolta dos negros
livres contra o trabalho, que intensificou no primeiro momento a desor-
ganização social do meio negro, a massa da população negra não tinha
possibilidades reais de escolha da forma pela qual assumiria consciência
de si enquanto parte da sociedade mais ampla e do significado dessa socie-
dade28 . Por isso, os negros acabaram por aceitar a representação que os
brancos faziam deles e a legitimidade da ideologia da "sociedade sem pre-
conceitos)) que lhes foi imposta. Não era o branco que era arrogante, mas
o negro que era humilde; não havia falta de oportunidades sociais para o
negro trabalhar, o negro é que era tímido ou vagabundo; não era o bran-
co que evitava socialmente o negro, era o homem instruído que não po-
dia conviver com o negro boçal; e assim por diante. O grande espoliado
transformava-se no responsável pelo "estado de acabrunhamento" cujos
efeitos marcaram tão fortemente a personalidade-status do homem ne-
gro que, no presente, quase todos se definem como vítimas de um terrível
"complexo de inferioridade)), complexo da "negritude))29.
A herança que os negros livres receberam dos escravos fora a tal pon-
to aniquilada pelos brancos que não havia sequer a possibilidade de recu-
perar a "relação de si-mesmo consigo)) enquanto forma específica de
subjetividade negra. A cultura dos grupos africanos fora destruída siste-
mática e deliberadamente pelos senhores brancos; as formas de ser dos
negros reduziram-se aos padrões de sentimento e comportamento que os
brancos criaram para melhor explorá-los e nelas socializaram-nos. Por isso,
os negros tiveram de empreender a lenta reconstrução de si como pessoas
a partir do símile existente e possível: o ideal de personalidade do negro
livre resumia-se à reprodução em si da imagem onipresente do branc03o.
Alienação mais completa seria impossível: aceitaram a imagem de negro e
a ideologia de convivência inter-racial desenvolvidas pelos brancos; e de-
finiram como projet031 a inautenticidade, motivados pela ideologia do
branqueament0 32.

324
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Entretanto, seria falacioso, também aqui, discutir a questão em ter-


mos da "reponsabilidade" do negro. A "opção" foi possível em situações
determinadas, e existiu, como mostrarei a seguir. Mas, para a generalida-
de dos membros do grupo negro, a possibilidade efetiva de reconhecimento
de si dependia, naturalmente, de sua aceitação como pessoas pelos bran-
cos. Não havendo, como não houve, condições para a imposição desse
reconhecimento, que implicaria uma inversão de fato nas relações de do-
minação entre os dois grupos sócio-raciais33 , a única tentativa possível de
obtenção do desiderato dos negros consistia no esforço de assemelharem-
se aos brancos tomando de empréstimo suas formas de pensar, sentir e
agir, na ingrata esperança de que os brancos se descobrissem neles, isto é,
reconhecessem socialmente que os negros já estavam socializados para as
formas organizadas de vida da sociedade existente. Entretanto, o sistema
vigente de status e papéis impedia qualquer possibilidade de êxito dessas
tentativas de ajustamento à ordem social desenvolvidas pelos negros.
Nessa terefa quase perdida de antemão, os negros tentaram organizar
as ações de tal forma que parecessem semelhantes aos brancos, em suas
formas de comportamento. Para tanto, tornaram-se formais, como os bran-
cos de maior tradição senhorial: "Houve tempo em que eu quis parecer
homem abastado ou bacharel acreditado, dentista ou mesmo operario com
fundos depositados na Caixa Economica, porque andava mettido num
namoro de encher olho, e nessa occasião, me custa dizer, caros leitores,
passei por boas decepções. Todas as tardes envergava a minha teimosa 3'!
(como diz o Nicolau) e ia rua fóra em busca da casa da prenda desejada, a
galante filha de um honesto, sisudo e bom taverneiro que, cuidando com
zelo de seus interesses, já tinha uma reserva muito apreciavel (...)" 35.
Ao branco, o comportamento do negro insistindo em parecer refina-
do nas maneiras apresentava-se como um acinte: "negro pernóstico", e
uma ameaça: "cada macaco em seu galho". Mas, para o negro, era o es-
forço ingente de desenvolver uma forma organizada de vida: já que não
possuía uma que fosse propriamente sua (fora reduzido ao estado de
anomia da senzala e à promiscuidade da "maloca"), teria de apropriar-se
dos padrões de comportamento dos brancos com os quais convivera, isto
é, dos antigos senhores36• Era natural que, na pena tosca dos jornalistas
negros e na sensibilidade dos negros, pouco afeita às sutilezas da etiqueta

325
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

dos brancos, a tentativa de comportar-se "como gente fina" resultasse em


afetação que o branco interpretava como pernosticismo: ''A 5 do corren-
te alou-se à região etherea o innocente Euclides, filho do nosso amigo
Alberto Silva"37.
Esse "mimetismo" era fundamental para o negro situar-se como pes-
soa. Não só porque, subjetivamente, sentia-se alguém, como porque al-
cançava, de fato, ao menos em parte, o objetivo visado: começava a
impor-se como pessoa aos antigos senhores graças ao respeito à etiqueta
dos brancos nas manifestações exteriores do comportamento: "Na ver-
dade, o único meio de um pobre diabo por-se a salvo dessa fera, desse
monstro que faz de um pacato burguez um heróe (o recrutamento) é an-
dar enfronhado numa sobrecasaca, seja ella preta ou esverdeada, azulou
côr de burro quando foge, a questão é ser ou parecer o fato de gala. (...) E
não ha duvida que tem produzido effeito o meu estratagema; a minha
pessoinha ainda não foi violada, até pelo contrario tem sido alvo de inte-
ressantes equivocos; as patrulhas me deixam passar livremente e muitas
vezes tenho ouvido um dos soldados dizer para o outro: "Deixa este moço
passar porque parece ser gente decente... é algum bacharel bahiano ou
dentista carioca. E eu acolho essa opinião com soberbia, porque, em
summa, é uma felicidade ser tratado por moço para quem costumavam
appellidar de briguet, gente ordinária, vagabundos e quejandos pelo facto
de ter a côr bronzeada"38.
O processo de "branqueamento" do negro não se limitou, todavia, à
imitação das formas exteriores de comportamento dos brancos. Tudo foi-
se definindo para os negros pela perspectiva dos brancos. A própria Abo-
lição passou a ser sentida como um "problema nacional", muito mais do
que um "problema do escravo": "Saudo-te, 13 de Maio, por seres o salva-
dor da Honra da Patria! por teres trazido ao brasileiro solo a liberdade,
condição essencial para o bem estar e progresso da humanidade!"39.
Entretanto, a alienação não se processou como uma entrega sem do-
res. Para tornarem-se iguais aos brancos e um dia, quem sabe, sentirem-se
como componentes do mesmo grupo nacional foi preciso primeiro que
os negros se afirmassem como o "outro grupo".
O ponto de partida era já alienado: o grupo de referência não era "o
nosso grupo", mas o grupo dos brancos, diante do qual os negros eram

326
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO !'lO BRASIL MERIDIONAL

"os outros". De qualquer maneira, no próprio processo de tentar realizar


suas aspirações alienadas, os negros tomavam consciência de si como o
que eram, como grupo espoliado. Contraditoriamente, ao mesmo tempo
que precisaram lutar para tentar ser o que não eram e o que não poderi-
am ser (iguais aos brancos), descobriam o que realmente eram: párias da
sociedade de classes, lumpen e negros. Sem consciência plena do proces-
so, os negros sentiram, mais do que compreenderam, a dupla determina-
ção que os limitava. No afã de escapar da autenticidade, reencontravam-se
adiante, de corpo e alma, em face de cada barreira que se lhes antepunha.
Perceberam por esse caminho que a reação dos brancos a eles objetivara-
se nas condições de vida que enfrentavam. Com isso, descobriram que o
esforço hercúleo desenvolvido para sentirem-se, subjetivamente, iguais aos
brancos de pouca valia para fazer com que esses, reciprocamente, corres-
pondessem à expectativa. Era preciso primeiro destruir as barreiras im-
postas pelas condições degradadas de existência para depois tentar obter
o reconhecimento social da condição de pessoas40 • Para o êxito desses
propósitos fazia-se necessário, ainda uma vez, lutar. Assim, a falta de cor-
respondência do branco aos ideais raciais por eles próprios criados e in-
centivados com o propósito de manter a espoliação social de que eram
beneficiários agiu como elemento catalisador no processo de negro
redefinir-se. O "preconceito", reverso, no plano da conduta, da espolia-
ção do negro no processo de produção da vida, permitiu a "luta contra o
preconceito", e dessa forma a práxis social dos negros criou a possibilida-
de histórica do negro definir-se como pessoa.
A análise da coleção de O Exemplo evidencia esse processo como com-
plexo e contraditório. Houve o início da formulação de uma ideologia
"racista anti-racista", da mesma maneira como houve tentativas de expli-
car a situação do negro de conformidade com o ideal de "sociedade sem
preconceitos" defendido pelos brancos. Nesse último caso, que foi o tono
provavelmente dominante no esforço de autocompreensão desenvolvido
pelos negros, as limitações impostas pela alienação inicial forçaram o ne-
gro a mover-se no "mundo das aparências". A ilusão fundamental, nesse
caso, não estava propriamente na negação da existência de barreiras e
preconceitos que condicionavam a integração do negro à sociedade de
classes, mas na compreensão errônea do sentido destas barreiras e pre-

327
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

conceitos: o branco repudiaria o negro enquanto homem ignorante, não


enquanto homem negro: "Em nosso primeiro artigo nos compromettemos
provar o contrário do que se estabelece ou por outra se tem estabelecido
com relação ao que se chama preconceito de raça; preconceito este que
muitos dos nossos julgam allusivos aos homens de côr em geral. Mas isso
tanto assim não é que muitos de nossos irmãos são chamados a occupar
cargos públicos; e alguns os occupam debaixo de alta responsabilidade,
bem a contento d'aquelles de quem são delegados: mostrando assim se-
rem dignos de figurar no grande circulo da igualdade social. Vê, pois, o
leitor que para esses não existe o preconceito de raça de que se queixam
muitos (...). Julgo ter assim provado que a instrução é o único motivo pelo
qual elles tem o merito que lhes é dispensado e de que se torna merecedor
todo o homem que se impõe a consideração publica, pelos seus actos, ilus-
tração e isenção de caracter"41.
Mesmo neste caso, entretanto, a consciência da situação desenvolvida
pelos negros não resultava numa atitude complacente diante das vicissi-
tudes que lhes eram impostas. O sentido da luta é que variava para pau-
tar-se pela norma "eduquemo-nos e seremos pessoas como os brancos":
"Quando em primeiro artigo pedimos a nossos irmãos de raça, para não
olvidarem-se de mandar educar seus filhos, foi porque razão nos sobrava
para assim proceder, certos de que cumpririamos um dever de lealdade
para aquelles que são nossos iguais. Sim! Temos razão para assim proce-
der, repetimos, porque muitos pais e mães esquecem o dever que têm de
educar seus filhos, sem pensar que assim concorrem para que a ignorancia
seja mantida ainda muito alem de nossa espectativa"42.
A ignorância que os preocupava não era a da sociedade em geral, mas
a "dos nossos"43. Grupo à parte, precisava sentir-se como tal para, depois,
forçar sua aceitação na sociedade mais ampla. Essa "aceitação" deveria
ser duplamente conquistada: era preciso obter uma "posição" na nova
sociedade, processo no qual implicitamente a condição de negro era per-
cebida e modificada no que ela possuía de objetivamente inferior (social-
mente), mas era necessário também mostrar com isso que o negro era capaz
de ascensão e, portanto, não era inferior enquanto homem. O divisor de
água entre as atitudes conformistas e as que não aceitavam a ideologia
racial dos brancos aparecia justamente neste ponto. Enquanto uns acredi-

328
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

tavam que a ascensão social e a instrução seriam suficientes para provocar


a revisão das representações e das formas de comportamento do branco
para com os negros, outros acreditavam que o "preconceito" manter-se-ia
se não houvesse uma "luta contra o preconceito". Todos os que foram ca-
pazes de situar-se como negros, entretanto, não só compreenderam que
viviam em condições sociais espoliadoras e que, portanto, era preciso obter
uma classificação adequada na estrutura de classes em formação44, como
acreditavam na necessidade do negro afirmar-se, corajosamente, como al-
guém que reivindica legitimamente novas posições sociais: "Com franqueza:
fechemos os olhos aos preconceitos do mundo e vistamos a couraça
impermeavel da firmeza, olhando melhor para nós mesmos; mais um pouco
orgulhosos sejamos e atiremo-nos decididos à conquista de melhores posi-
ções sociais porque somos livres e temos talento! Saibamos aproveitai-o!
saibamos ser livres!"45
A ênfase posta na instrução não significava, pois, a mera acomodação
do negro à ordem social classista com o engodo subseqüente no que diz
respeito ao "problema negro". Isto porque mesmo os que queriam proce-
der assim precisavam lutar muito mais do que qualquer outro cidadão para
obter instrução, por causa da resistência oferecida pelos brancos, e nesse
processo re-socializavam-se para a liberdade: "Não basta amarmos e ca-
sarmos é necessario que nos compenetremos de nossos deveres paternos.
Devemos pensar, porque vamos firmar um compromisso de fazer a nos-
sos filhos mais que nossos pais nos fizeram; de garantir-lhes a subsistência
e a de sua mãe e dar-lhes uma educação, pela qual honradamente possam
com independência ganhar a vida"46.
Por certo, a questão era na realidade mais complexa. Não bastava
desejar ascender socialmente através da instrução; era preciso que hou-
vesse possibilidades efetivas para isso, e elas eram escassas. De qualquer
maneira, se não tivesse havido a reação dos negros, a situação da comuni-
dade negra em Porto Alegre seria pior hoje. Foi a partir do núcleo de ne-
gros que reagiram contra as condições de vida que lhes eram impostas
pelos brancos, apesar de a maioria não desejar outra coisa que a acomo-
dação às normas de ajustamento racial impostas pelos brancos, que co-
meçou a diversificar-se a camada de negros na estrutural social da cidade47.
A atitude de negação diante das condições estabelecidas, tão vigorosamente

329
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

expressa n'Q Exemplo, permitiu a consciencialização da condição de in-


ferioridade a que o negro fora relegado e a intensificação dos focos de
insatisfação que levaram às tentativas de introduzir mudanças nas expec-
tativas e formas de comportamento dos negros. Q futuro passou a ser vis-
to, pelo grupo, como uma decorrência da ação e dos alvos que fossem
capazes de se propor: "Em breve tempo, esse orgulho desmedido de uma
parcella de raça caucasea ha de ser contido e soterrado; (...). Depende
unicamente de nós; sejamos fortes, façamo-nos respeitar em qualquer ter-
reno, dentro da orbita da lei, que verão si da união não nascerá a força e
si não será uma realidade a nossa justa pretenção"48.
Apenas, paulatinamente, no élan para obterem o reconhecimento so-
cial da condição de pessoas humanas não mantiveram, enquanto negros,
a mesma fidelidade aos valores da comunidade negra como um todo, tal
qual aspiravam os que defendiam, n'Q Exemplo, um "racismo anti-racis-
ta". A posição inteiramente conseqüente de um Esperidião Calisto exigia
que o negro, no processo de ascensão, reivindicasse, ao mesmo tempo, a
qualidade de cidadão igual ao branco. Neste caminho não havia conces-
sões possíveis: "Destruido o captiveiro pelo retumbar dos golpes do
abolicionismo na consciência trevosa e torpe dos que mercadejavam com
os seus semelhantes sobreveio o preconceito de raça officialmente insti-
tuido, não em leis, mas impregnado nos costumes, o que é mais pernicio-
so; não tão selvagem, porém, mais aviltante; porque conscientes de sermos
livres e bons cidadãos, nos obriga a mendigar aos potentados numa res-
salva, para com ella no bolso, ampararmos nossa liberdade individual"49.
Os canais de ascensão do negro, entretanto, eram socialmente regula-
dos pelas camadas dominantes brancas. A democracia brasileira e sua matriz
social classista limitavam-se ainda a um simulacro bastante deformado pela
sobrevivência do antigo regime. O negro ascendia socialmente como ne-
gro, e o processo de ascensão era regulado pela fidelidade dos "cidadãos"
aos chefes de parentela poderosos. A mobilidade social controlada fazia
com que, como condição para a ascensão, estivesse inscrito já um princí-
pio de subordinação. O negro, "cria de casa" do coronel fulano, é que podia
ser porteiro de repartição pública; não era fulano de tal, por seus méritos,
que obtinha um emprego determinado. A sociedade de classes parecia
sancionar a velha ordem de senhores e fâmulos. A consciência da situação

330
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

criou nos negros, por assim dizer, a insatisfação necessária para definição
de novos níveis de aspiração, mas a sociedade, marcada pelo patri-
monialismo, fazia com que a realização desses ideais de ascensão impli-
casse nova alienação. O negro subia como negro e como "protegido"so.
Não raro, o primeiro cuidado do "cavaleiro da fortuna", assim alçado às
posições sancionadas pela ordem burguesa, consistia em evitar o contacto
com os outros "negros". A própria expressão negro continha agora, para
aquele que havia alcançado o ideal de "branqueamento social", um res-
quício de desprezo, surgia a "vergonha da negritude".
Nesse contexto, o mulato apareceu como um negro ao mesmo tem-
po privilegiado e estigmatizado pela dupla condição de trânsfuga da raça
e parvenu. Com efeito, toda a ambigüidade da situação de negro como
se revelara no matiz mais claro da pele dos mestiços. Enquanto a ordem
estamental vigeu plenamente, as regras de exclusão social definiam a po-
sição do mulato em termos bastante taxativos no Rio Grande do Sul:
"escapou do branco, é negro". Como resultado de relações entre bran-
cos e negros, os mestiços nunca deixaram, é certo, de simbolizar e de ser
focos potenciais de tensão na ordem escravocrata. Demonstravam, em
si próprios, a inexistência do sentido de repugnância mútua entre as
camadas sociais que constituíam a sociedade servil. Nesse sentido, de-
nunciavam a existência de uma inconsistência cultural na sociedade de
castas brasileiras1 . Porém, só com a desagregação da ordem escravocrata
o problema do mulato transpareceu integramente, pois a mencionada
inconsistência pôde revelar-se em termos concretos. O mulato é um negro
e, portanto, um inferior, mas, ao mesmo tempo, é um negro privilegia-
do. Admitida a ideologia do branqueamento, o mulato já representa um
passo no sentido da "redenção" da raça pelo seu aniquilamento. Social-
mente, também, as oportunidades de êxito do mulato na aventura da
ascensão eram maiores porque, como se sabe, o pai branco ajudou mui-
tas vezes a carreira do filho mestiço. Por essas razões os mulatos, mais
que os negros, podiam tentar "escapar" com maiores chances da condi-
ção de negros. Foram, possivelmente os primeiros "negros envergonha-
dos" de sua pele.
A reação contra a possibilidade de ascensão do mulato e contra sua
falta de "autenticidade" foi, por isso, imediata. Para o branco, o mulato

33 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

representava a possibilidade, tornada efetiva, de o negro tentar concorrer


por melhores posições sociais: não conhece "o seu lugar"; é pernóstico;
"não se pode confiar nele" etc. Para o negro, o mulato passava a ser um
homem "sem bandeira", falso, perigoso 52•
Com a diferenciação social interna do grupo negro, e a efetiva corres-
pondência entre diferentes matizes de pele (mais claros e mais escuros) e
diferentes posições socialmente superpostas (artesãos e pequenos funcio-
nários versus lumpen e trabalhadores sem qualificação) não só as repre-
sentações sobre o mulato tiveram cada vez maior curso entre os negros
como, efetivamente, correspondiam a posições sociais diversas, a partir
das quais os "negros claros" começaram a organizar a conduta diferente-
mente dos negros, não estando ausente neste processo um preconceito dos
mulatos contra os negros53.
Não obstante, no período que estamos considerando, o processo de
mobilidade vertical foi reduzido. Em geral, a massa da população mante-
ve-se alheia tanto às possibilidades como às aspirações de ascensão. Ape-
sar disso, as primeiras manifestações de consciência da posição do negro
na estrutura de classes em formação possuem muito interesse para a aná-
lise do problema negro brasileiro. Elas representaram as tentativas que o
negro podia desenvolver para obter o reconhecimento social da condição
de pessoa e de cidadão. A ideologia racial do negro polarizou-se entre dois
extremos: entre uma ideologia que já foi definida como "contra-ideolo-
gia de compromisso"54 e uma "ideologia da negritude". Neste último caso
a ideologia negra aparecia revestida da qualidade de um racismo anti-ra-
cista. A afirmação orgulhosa do negro como raça55 era a condição prévia
para a integração à sociedade comum de negros e brancos. Não havia a
formulação de qualquer ideal segregacionista (pois a posição não era sim-
plesmente racista), mas também não se aceitava o processo de acomoda-
ção interracial nos moldes, por fim vitoriosos, desejados pelos brancos:
com a contrapartida do mito da branquidade. Entre essas posições, houve
possibilidade de opção. Mas neste caso quem "escolhia" não eram mais
os lumpen negros criados como uma espécie de detritos sociais humanos
pela sociedade escravista, no período de sua transformação. Para os lumpen
negros não podia colocar-se qualquer problema de consciência. A possi-
bilidade de opção havia sido também histórica e socialmente constituída:

332
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

o negro que reagiu às condições em que vivia fora produzido socialmente


com a possibilidade de reagir. Por certo, essa "produção" implicou uma
práxis humana anterior e, assim, não foi dada mas criada. Porém, condi-
ções histórico-sociais determinadas limitaram esse processo: o homem cria
sua própria história, recriando-se, dentro de condições sociais e econô-
micas ("condições de vida") determinadas. O crítico de O Exemplo era o
produto social do escravo artesão e do escravo doméstico, que teve mai-
ores possibilidades de ajustar-se às condições de liberdade nas zonas ur-
banas56• A análise das ocupações dos articulistas de O Exemplo, e, até certo
ponto, do círculo de seus leitores, mostra como quase todos possuíam uma
atividade regular na ordem econômica urbanaS? Entre esses, houve a op-
ção entre os dois caminhos a seguir.
Ainda uma vez, todavia, as oportunidades efetivas de realização pes-
soal tendiam para um dos lados do dilema. Como afirmei, as condições
precárias sobre as quais tentava-se organizar a sociedade de classe no Bra-
sil impuseram, desde o início, um momento prévio de alienação para que
se desse a integração do negro à sociedade de classes. O ideal de ascensão,
legítimo de todos os ângulos e necessário para a afirmação do negro en-
quanto cidadão da sociedade de classes e enquanto negro, sufocava no
nascedouro as aspirações de fidelidade à "raça". A inserção do negro na
sociedade global, como pessoa e como negro, isto é, como homem, sim-
plesmente, supunha uma revolução muito mais ampla do que havia sido a
transformação do regime servil e que, nas circunstâncias históricas, era
impossível. Por isso, os ideais de afirmação autêntica do negro puderam
sucumbir tão rapidamente no processo de acomodação à ideologia racial
dos brancos e no esforço desesperado pela obtenção de melhores posi-
ções na sociedade de classes. O ideal de branquidade e a caricatura da
conduta pequeno-burguesa dos brancos generalizaram-se entre os negros
capazes de reagir as próprias condições de vida, quase desaparecendo as
reivindicações da negritude. Constituiu-se assim um novo momento da
alienação do homem negro. Sua história é a história da ascensão social do
negro, que ultrapassa a problemática deste livros8 •

333
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

NOTAS

1. Relembro O texto de Luccock já citado sobre os escravos artesãos: "não somente


são aquêles escravos muito disputados, como ainda bastante estimados por suas
prendas para que os protejam de fadigas excessivas e maus tratos" (págs. 134-135).
2. Sobre os efeitos da miscigenação nas relações entre senhores e escravos, ver Florestan
Fernandes, Brancos e negros em São Pau/o, op. cit., págs. 115-116.
3. Sobre isso, basta ver as estatísticas da população onde o número de mulatos é com-
putado. Cabe lembrar que no período áureo da ordem escravocrata as coisas se
passavam de outro modo. Saint-Hilaire chegou a impressionar-se com o número
restrito de mestiços da população de Porto Alegre: '~qui veem-se pouquíssimos
mulatos. A população compõe-se de pretos escravos e de brancos, em número muito
mais considerável, (...)", op. cit., pág. 28. Isso se pode explicar pelas peculiarida-
des da colonização açoriana, feita à base da família organizada. Entretanto, no pe-
ríodo que nos interessa neste capítulo, a situação já era outra. A crítica humorística
do Rio Grande do Sul está repleta de anedotas e charges que mostram, claramen-
te, como o homem branco mantinha relações libidinosas com as escravas. Por exem-
plo, O Século de 27-1-1884 publica uma charge representando um senhor abraçado
a uma criada, com a seguinte legenda:
Servas domésticas
"- Dá cá um beijo, mulatinha do caroço ..
"- Olhe seu Casusa, a senhora pode ver .
"- Não te assutes. Eu, por causa das dúvidas, comprei-lhe no leilão do Ernesto
uns brincos de campainha. De longe eu ouço quando ella vem!"
E assim muitas outras charges de O Século e de O Cabrion. No número d'O
Século de 28-1-1883, pág. 4, há uma charge equivalente à transcrita acima. Sob a
epígrafe '~s cenas conjugais", reproduz o diálogo entre o marido surpreendido
pela esposa abraçando uma negra:
"- Misericórdia! Que desafôro é êste, Teixeira?
"- Não é desafôro nenhum, minha velha, estava aqui apenas a ensaiar uma
crítica para o carnaval."
Também a literatura, mormente a subliteratura da província, registra casos de
amor entre senhores e escravos ou entre "sinhazinhas" e escravos. Ver, por exem-
plo, '~oredever", n'O Figaro, ano I, nO 13, de 2'1 12-1878; também '~mucama",
n'O Século d~ 21-1-1883; '~Escrava", n'O Pyri/ampo, ano I, nO 1, Porto Alegre,
19-4-1881. Nesse último trabalho, que é um conto, narra-se a sedução e o estupro
de uma escrava pelo senhor, seguido do suicídio da moça, para encontrar "a re-
missão de sua honra e a sua mais ampla liberdade" (pág. 3).

334
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

4. Num poema, ''A mucama" d'a Século de 21-1-1883, há alguns versos significati-
vos sobre isso, embora referentes ao êxito de uma mucama com os namorados da
"nham-nham" e não da senhora:
"A nham-nham tudo observa,
Mas tudo faz que não vê
Fica ralada de inveja
Ralada não sei por que,
E por tu já não me trata
- Me trata por vosmecê."
5. Não insistirei na comprovação dessas afirmações, porque são quase evidentes. Em
todo caso, basta olhar as coleções do Parthenon Litterario, especialmente a série
de epístolas sobre ''A Escravatura", publicadas no segundo semestre de 1872, ou
então "Pai Felipe", narrativa publicada em 1874. Ver também os poemas da Tribu-
na Litteraria de Pelotas, sobre a escravidão, esp. ''A Escravidão", no nO de 22-1-
1882; poemas e crônicas do Cabrion e de a Século. Essas fontes mostram, ao mesmo
tempo, em que termos era feita na época a crítica do sistema escravocrata.
6. A documentação desse processo já apareceu no capítulo anterior.
7. Relatório Azambuja Villanova, 1887, págs. 71-72.
8. Relatório Azambuja Villanova, 1887, pág. 71.
9. Existem outros documentos que mostram a mesma reação dos negros. Ver, por
exemplo, as charges de A Ventarola, Pelotas, do início de julho de 1888.
10. Ver, além do que está dito nas páginas imediatamente anteriores a essa, capítulo Iv,
''A produção escrava".
11. Relatório Azambuja Villanova, 1887, pág. 72. (grifos meus.)
12. Roger Bastide e Florestan Fernandes, op cit., pág. 114.
13. Roger Bastide e Florestan Fernandes, op. cit., pág. 114. Não discuti mais ampla-
mente essas questões porque o presente trabalho não tem como objeto a análise
do preconceito ou da discriminação. Não obstante, os dados apresentados no ca-
pítulo III confirmam os resultados da análise de Bastide e Fernandes.
14. Fica evidente, pois, que não partilho da mesma convicção dos sociólogos e psicó-
logos sociais que definem o preconceito como "um conceito valorativo". A crítica
de Allport (in G. A//port, The Nature of Prejudice, Addison Wesley Publishing
Company, Boston, 1954, esp. págs. 9-12) é correta. Entretanto, em termos de suas
funções sociais o preconceito nas sociedades de classe e nas sociedades de casta
apresenta-se de forma variável. Da mesma maneira, a consciência do preconceito
e as reações a ele possuem potencialidades e graus diferentes nestas duas formas
de estrutura social.
15. Ver, sobre a noção de preconceito racial, Roger Bastide e Florestan Fernandes, "O
preconceito racial em São Paulo", in Negros e Brancos em São Paulo, já citado,
esp. págs. 325-329.

335
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

16. Aqui cabe uma explicação: se alguém fizer um corte num dado momento do pro-
cesso histórico social, os brancos que "produzem" os negros, tal qual os descrevo
aqui, também foram "produzidos", isto é, encontraram-se diante de condições e
alternativas criadas por outros. Nesse sentido, tanto negros como brancos são o
resultado de "condições dadas". Para explicar o COf'lportamento de uns e outros,
seria preciso fazer uma análise da produção capitalista na fase de desagregação da
sociedade escravista equivalente à que se fez no capítulo IV sobre a produção es-
cravocrata. Por razões óbvias, não cabe neste trabalho tal tipo de análise. Entre-
tanto, como as condições sociais e materiais concretas da sociedade escravocrata e
a escravidão dos negros foram engendradas pela exploração capitalista organiza-
da pelos brancos e, mais ainda, como os brancos em geral (proprietários dos mei-
os de produção ou não) foram os beneficiários da escravidão negra, acredito que
se justifique falar na responsabilidade dos brancos pela situação dos negros, como
fiz nesse trabalho, apesar do esquematismo inerente a um juízo desse tipo.
17. A coleção de O Exemplo que utilizei para essa análise (quase completa do nO 1 ao
nO 54, isto é, de dezembro de 1892 a dezembro de 1894, com a quebra de mais ou
menos cinco números, e bastante desfalcada do nO 81 ao número 148) foi-me gen-
tilmente cedida pelo Prof. Dr. Dario Bittencourt, da Universidade do Rio Grande
do Sul. De 1895 a 1920, parece que foi suspensa a publicação de O Exemplo. De
1920 a 1930, graças principalmente aos snrs. Clemente de Oliveira e Dario
Bittencourt, o jornal voltou a aparecer regularmente.
18. "Desagradavel", O Exemplo, Ano lI, nO 20, 30-4-1892, págs. 1 e 2.
19. Sobre o papel do negro na formação do exército proletário da reserva, ver "Con-
dições Sociais da Industrialização de São Paulo", Revista Brasiliense, nO 28, São
Paulo.
20. ''A quem toca", O Exemplo, ano I, nO 5,8-1-1893, pág. 1. Noutro testemunho,
este do maior lutador negro dos fins do século passado e início deste em Porto
Alegre, Esperidião Calisto, barbeiro profissional, num artigo intitulado "Pelo De-
ver", n'O Exemplo, ano lI, nO 32, pág. 1 e 2, afirma-se: "Quem escreve estas li-
nhas frequentou a aula primaria do 1° districto desta Capital, dirigida pelo então
professor publico Raphael Antonio de Oliveira; e o que fazia esse funcionario? ..
Separava-nos para um quarto contiguo à sala, onde estavam os brancos; e lá
recebiamos a instrucção correspondente à obumbrada luz diurna que exiguamen-
te nos iluminava. Eis ahi estabelecido o preconceito escolar, tendo por base a côr,
nos afugentando das aulas publicas!"
21. "Em nosso posto", O Exemplo, ano lI, nO 27, pág. 1.
22. "Escandalo", O Exemplo, Ano lI, nO 13, 12-3-1893, pág. 1. A mesma reclamação
repete-se no número de 17-9-1893. Nesta época, muitas anedotas transcritas n'O
Exemplo giraram em torno da necessidade de os negros recolherem-se cedo às re-
sidências para não serem presos como vagabundos e obrigados a alistarem-se.

336
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

23. Esperidião Calisto, "Por um vexame", O Exemplo, ano 11, nO 13, 12-3-1893, pág.
1. O Exemplo de 19-11-93, pág. 4, narra caso semelhante sob a epígrafe "Muito
Bem", referindo-se a um incidente no Jóquei Club quando um branco agrediu o
pagador de "pules" porque se recusara a atendê-lo antes que a um menino preto
que estava na fila havia mais tempo. O agressor justificou seu comportamento
"porque negro não é gente". Depois disso, houve reação popular contra o agressor,
daí o título do artigo.
24. Esperidião Calisto, "Por um vexame", O Exemplo, ano 11, nO 13, 12-3-1893, pág.
2. Se isso ocorria com uma pessoa como Calisto, homem ilustrado, imagine-se o
que ocorria com os negros realmente ociosos. Aliás, nem precisava ser ocioso.
Bastava ser negro e a violência da polícia assumia aspectos inauditos. Ver, por
exemplo, a descrição em O Exemplo, ano I, nO 5, de 8-1-1893, pág. 4, das violên-
cias a que foi submetido um preto velho por suspeitas de roubo de gado; ou a
agressão de que foi vítima um caixeiro, n'O Exemplo de 22-1-1893, pág. 7, sob o
título "Brutalidade"; e ainda "Prisão e ferimento", O Exemplo, 24-12-1893, pág.
1, e assim por diante.
25. Esperidião Calisto, "Por um vexame", já citado. Às vezes os salões de baile, como
o do "Floresta Aurora", o mais tradicional dos clubes de negro em Porto Alegre
(que existe até hoje), eram invadidos por rapazes brancos, com a passividade cúm-
plice da ronda. Reagindo a um desses casos O Exemplo, de 1-1-1893, Ano I, nO 4,
pág. 1, publicou uma nota, "Mais um vexame", que descreveu a cena de banditismo
e protestou nos seguintes termos: "Um consôlo nos resta todavia... Nunca um grupo
de homens de côr invadiu um salão, fomentou desordens e insultou familias que
pacificamente entregavam-se a modestos folguedos. (...) Censurando esse proce-
der indebito, sentimos apenas a desconsideração da parte das autoridades que não
veem nosso direito de equidade, negando-nos aquillo que, como cidadãos temos
direito - a igualdade perante a lei e o respeito inquebrantavel a nossos direitos
civis". Noutro tópico, "Muito bem", de O Exemplo de 30-7-1893, pág. 1, repete-
se a informação de que outro baile fora invadido por soldados e paisanos, sendo,
posteriormente, repelidos à força.
26. Esperidião Calisto, "Pelo Dever", O Exemplo, ano 11, nO 32, 23 de julho de 1893,
pág.I.
27. Miguel Cardoso, "Actualidade", O Exemplo, 25 de junho de 1893, ano 11, nO 28,
pág.l.
28. "Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fa-
zem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado", Karl Marx, O 18 Brumdrio de
Luis Bonaparte, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1956, pág. 17.
29. Discutirei esse problema num próximo trabalho, sobre A ascensão social do negro
em Porto Alegre.

337
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

30. Talvez a música e a religião tenham sido os únicos setores da cultura nos quais
pôde manter-se a "alma negra". A compreensão das formas religiosas negras do
Rio Grande tem, por isso mesmo, uma importância muito grande. Através da re-
ligião, os negros puderam não apenas exprimir-se como negros, mas manter for-
mas de sociabilidade muito importantes no processo de reorganização da vida do
negro livre. Sobre as religiões negras no Rio Grande, além dos trabalhos de Bastide
e Herskowits, existem estudos de Dante Laytano e Carlos Galvão Krebs. Este úl-
timo escreveu um trabalho sobre as religiões negras no sul, ainda inédito, que de-
verá esclarecer muitos problemas importantes sobre o tema.
31. Sobre o conceito de "projeto", ver Sartre, "Question de Méthode", Critique de la
raison dialectique, tomo I, Librairie Gallimard, Paris, 1960, págs. 63-64 e 66-67.
32. Também essa questão só será discutida noutro trabalho. Adianto, entretanto, que
a "ideologia do branqueamento" apresentou-se, também no sul, como uma pers-
pectiva pela qual se definiam todos os ideais de comportamento dos negros com
vistas à assimilação completa no grupo branco. Em termos da "raça negra" essa
perspectiva levaria ao desaparecimento do negro, pela miscigenação, aspiração
constante dos negros gaúchos.
33. Esta pelas razões tantas vezes explicadas neste trabalho, era objetivamente im-
possível.
34. Casaca.
35. Décio Vital, "Alfinetadas", O Exemplo, ano 11, nO 16,2-4-1893, pág.2.
36. As descrições dos bailes das sociedades recreativas dos negros, feitas por informantes
velhos do grupo negro de Pelotas e Porto Alegre, mostram que - isto já no século
XX - os negros tentaram reproduzir os padrões de galanteio e refinamento da
mais aristocrática sociedade branca. Ainda hoje, entre as famílias negras cujos an-
cestrais puderam situar-se melhor na vida pela obtenção de uma profissão urbana,
mantém-se a tradição de uma complicada etiqueta entre a dama e o cavalheiro nos
salões de dança. O convite para bailar precisava ser feito aos pais da moça, a pos-
tura na dança é extremamente convencional, e o fim da partida obriga a um pe-
queno desfile pelo salão, no qual a dama apóia-se, levemente e à distância, no braço
esquerdo do cavalheiro, que a acompanha até a mesa ou cadeira de seus pais ou
acompanhantes.
37. O Exemplo, ano 11, nO 17,9-4-1893, pág. 4. Os convites de casamento, morte e
solenidades em geral eram todos escritos em estilo rebuscado. Dispenso-me de re-
produzi-los para não cansar o leitor.
38. Décio Vital, ''Alfinetadas", já citado.
39. Herculano Silva, "13 de Maio", O Exemplo, ano 11, nO 22, 13 de maio de 1893,
pág. 1. Na mesma página há um artigo assinado por A. Gama no seguinte tom:
"Todavia, posto que tarde, a Patria Brasileira sentiu que, para collocar-se com ga-
lhardia entre os paizes cultos cumpria-lhe despedaçar as algemas que grilhoavam

338
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

uma multidão de seus filhos; e, esmagando a resistencia que moviam os despoticos


subjugadores da vontade humana, atirou à contemplação do universo, ávido de
luz civilizadora, a sábia lei que se concretisa nesta famosa data - 13 de Maio de
1888". Também sobre o 28 de setembro, O Exemplo escrevia artigos do mesmo
teor, louvando Rio Branco (cf. "28 de setembro", O Exemplo, 30-9-1884, ano 11,
nO 91, pág. 1). Havia nestes artigos, é certo, referências aos sofrimentos dos ne-
gros. Mas, em geral, da verificação sobre o desmantelamento físico e moral da
raça negra não resultava senão um apelo ao esquecimento do passado inglório:
"nutrimos o maximo empenho de riscar, tanto quanto possível, de nossa memoria,
esses mesmos horrores, para que também o odio, quiça justo, não turve a superio-
ridade de nossos sentimentos" (A. Gama, "13 de maio", já citado).
40. Não insistirei neste trabalho sobre essa questão. Mas é patente que o esforço
educativo dos "negros conscientes" visava difundir novos padrões de conduta para
os negros e incutir no espírito dos membros do grupo a necessidade da obtenção
de uma qualificação profissional capaz de garantir melhores oportunidades na vida.
As seções críticas de O Exemplo ("Pauladas", "Mexericando", "Burlesqueando",
"Ferroando") operavam como meios de controle social recriminando o compor-
tamento dos negros dados à embriaguez, às aventuras amorosas, ao desmazelo e à
ociosidade. Noutro trabalho pretendo descrever as técnicas utilizadas para a críti-
ca e a educação do meio negro. Basta dizer, por ora, que até a maneira pela qual as
moças comportavam-se nos bailes, nos namoros e no trabalho era analisada. Ao
lado dos exemplos negativos havia, freqüentemente, os modelos de conduta que
deviam ser adotados. Especial relevo era dado aos problemas de organização da
família e da honra da mulher negra.
41. Miguel Cardoso, "Actualidade-I1I", O Exemplo, ano 11, nO 31, 16-7-1893, pág. 1.
Este artigo provocou a resposta de Esperidião Calisto no trabalho "Pelo Dever",
já citado, que é uma das mais vigorosas e lúcidas páginas já escritas sobre a signi-
ficação da ascensão social de alguns negros no período inicial de formação de sis-
tema de classes. Reproduzo aqui um trecho desse artigo, para fundamentar a análise
que farei adiante sobre a radicalização na ideologia dos negros: "Quanto a um ou
outro individuo de côr preta ou parda occupar uma posição official de origem
meramente politica, é porque desgraçadamente ainda existem muitos a quem os
bafejos de ephemeras regalias obcecam-lhes de tal maneira os sentimentos nobres,
que não sentem echoar em sua alma os estalidos das palmatoadas dadas nos
entremuros da cadeia, em homens justamente conceituados, negociantes estabele-
cidos, simplesmente porque trazem o estigma da côr preta ou parda! (E isto em
nossa civilizada capital!...)".
"Não devemos nos vangloriar por posições adquiridas por tão alto preço. Elias
são uma especie de injecção de cocaina com que os potentados anesthesiam os
brios dos homens de côr, de merecimento puramente material, afim de abusarem

339
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

da humildade do isolado proletário que não encontra uma voz auctorizada que
proteste contra as violencias que são infringidas, que reclame por seus direitos de
cidadãos brazileiros, estatuidos na Constituição da Republica" (pág. 2).
42. Miguel Cardoso, ''Actualidade (11)", O Exemplo, ano 11, nO 29, 2-7-1893, pág. 1.
43. Nos editoriais e nos artigos de O Exemplo, era freqüente a referência aos "nos-
sos", ou à "nossa classe", como uma forma de dizer os negros.
44. ''Ainda mesmo sendo operario é imprecindivel a instrucção; pois urge acabar com
a concorrencia que nos faz o estrangeiro dentro de nosso paiz, fazendo soffrer
mais à nossa classe que constitui o verdadeiro proletariado: essa concorrencia é
feita no commercio, como na industria e mesmo na agricultura", dizia Miguel
Cardoso, defensor da idéia de que o preconceito era fruto das condições em que o
negro se encontrava, n'O Exemplo de 2-7-93, pág. 2. No editorial "Trabalhemos",
d'O Exemplo de 9-4-1893, Ano 11, nO 17, pág. 1, repete-se a idéia: "Todos devem
conhecer a leitura e a escriptura, elementos indispensaveis à marcha regular da
vida e dos negocios, quaisquer que sejam".
45. ''A questão do ensino", editorial de O Exemplo, 3-11-1895, ano III, nO 147, pág.
1.
46. "Ferroadas", O Exemplo, 4-6-1893, ano 11, nO 25, pág. 2. Esse artigo ilustra o es-
forço de difusão de valores que implicam formas regulares de associação entre os
negros. Ele discute os problemas resultantes da modificação das formas de com-
portamento amoroso dos negros ("a mocidade ressente-se da necessidade de ca-
sar") e procura aproveitar as conseqüências desse processo do ponto de vista da
redefinição de expectativas e padrões de comportamento do par amoroso, tendo
em vista o futuro.
Quanto à insistência sobre a necessidade dos negros obterem instrução há vários
artigos, críticas e editoriais d'O Exemplo. A título de ilustração transcrevo um tre-
cho do editorial ''Aconselhando'', de O Exemplo, 2-4-1893, ano 11, nO 16, pág. 1:
"Os homens de cor preta e parda na sua maioria constituem hoje uma grande co-
munhão que, para ser solida e saliente, necessita apenas de instrução (...) cum-
pram um dever que lhes é imposto pela condição paterna, mandando os filhos
para a escola, afim de receberem ahi a luz e o conhecimento da verdade".
47. Descreverei em próximo trabalho esse processo de forma pormenorizada. Posso
adiantar, entretanto, que houve possibilidades em Porto Alegre para a formação
de uma "pequena burguesia" negra e que boa parte dos seus componentes, direta
ou indiretamente, descende das famílias dos mesmos indivíduos que desde o sécu-
lo XIX reuniram-se n'O Exemplo e depois noutros jornais e sociedades recreati-
vas e beneficientes, para a "luta contra o preconceito".
48. "Em nosso posto", editorial de O Exemplo, de 18-7-1893, ano II, nO 27, pág. 1.
49. Esperidião Calisto, "Duras Palavras", O Exemplo, de 13-5-1893, ano II, nO 22,
pág.3.

340
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

50. Calisto sonhava com o oposto desta situação: "Porém, no dia em que um homem
pardo ou preto, independente e de merecimento quer moral, quer intelectual, ti-
ver a hombridade, a altivez de caracter para repelir uma posição que não passa de
detritos de politicagem, com os quais lhe tentam engodar a consciencia, fazendo
sentir aos correligionarios da facção partidaria a que estiver filiado o menosprezo,
a falta de equidade, perante as leis, que soffrer um seu igual, digno de acatamento
e de garantias, pela sua conducta inatacavel, nesse dia, eu tenho certeza, seremos
mais tolerados na comunhão social brasileira", "Pelo Dever", já citado.
51. "Quando nós declaramos que o espírito de casta impera numa sociedade, sabemos
que os diferentes grupos que compõem esta sociedade se repelem em vez de atraí-
rem-se, que cada um deles se concentra sobre si próprio, isola-se, esforça-se para
impedir que seus membros contraiam casamento ou mesmo entrem em relações
com os membros dos grupos vizinhos. Um homem recusa sistematicamente a ar-
ranjar mulher fora de seu círculo tradicional; ainda mais, recusa todo alimento
preparado por outros que não sejam seus congêneres; o simples contacto com
'estrangeiros', parece-lhe alguma coisa impura e degradante", C. Bouglé, Essais
sur /e régime des castes, Félix Alcan, Paris, 1935, pág. 4. Para Bouglé o espírito de
casta supõe, além da repulsão recíproca, a tendência à hierarquização rígida e à
especialização hereditária. Mesmo os autores que não são tão explícitos quanto
Bouglé na formulação do princípio de repulsão como um requisito para a existên-
cia de situações de casta, insistem na necessidade de um mínimo de distância recí-
proca e de endogamia entre as castas; ver, por exemplo, Bryse Ryan, Caste in Modem
Cey/on, the shina/ise system in transition, Rutgers University Press, New Brunswick,
1953, esp. pág. 89. Isso não quer dizer que a sociedade escravocrata brasileira não
fosse regida por princípios de casta. Ao contrário, não só era como é possível
mostrar que, mesmo no presente, há vestígios deste sistema. Numa pesquisa clás-
sica sobre o problema negro nos Estados Unidos, dirigido por \v. L10yd Warner e
escrita por Allison Davis, Burleigh B. Gardner e Mary R. Gardner, Deep South, a
social anthropological study ofcaste and c/ass, University of Chicago Press, Chica-
go, 1946 (3 a ed.), os autores defendem o ponto de vista de que a estrutura social
americana rege-se por princípios de classe e de casta (esp. págs. 9-14) exatamente
porque as relações entre brancos e negros organizam-se através de regras de ex-
clusão recíproca que foram definidas como de casta. Entretanto, também neste
caso o "princípio de repulsão" entre as camadas que formam as castas é relativo:
existem relações sexuais entre brancos e negros, mas não são socialmente aprova-
das: "Casta, como é usada aqui, descreve um arranjo teórico da população de um
dado grupo numa ordem na qual privilégios, deveres, obrigações, oportunidades
etc., são distribuídas desigualmente entre os grupos que são considerados superi-
ores e inferiores. Existem sanções sociais que tendem a menter esta distribuição
desigual. Parte desta definição descreve também as 'classes'. Uma organização de

341
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

castas, contudo, deve ser definida, além disso, como uma organização na qual o
casamento entre os dois grupos não é sancionado e onde não há oportunidades
para os membros do grupo inferior subirem para o grupo superior, nem para os
membros deste caírem naquele" (pág. 9). O ponto central da questão estaria, por-
tanto, na definição da posição social da prole gerada pelas relações entre mem-
bros de diferentes castas: "O segundo capítulo deste livro descreve o sistema de
castas pomenorizadamente e sublinha sua organização em torno do controle do
sexo, pela atribuição de posições na casta inferior aos descendentes de relações
sexuais entre membros de castas diversas, e pela manutenção dos descendentes de
relações sexuais intercasta na casta em que nasceram" (pág. 6). Neste caso, não se
toma a repugnância recíproca, característica do sistema de castas hindu, como a
questão fundamental. Mesmo que as relações entre indivíduos de castas diversas
sejam tão íntimas quanto as relações sexuais, mantém-se uma espécie de "repug-
nância social" pela progênie. Weber também se refere à situação de contacto entre
negros e brancos nos Estados Unidos como se fosse definida por princípios de casta,
embora para ele as "regras de endogamia (...) formam sempre as bases essenciais
de uma casta", Religion of India, The Sociology of Hinduism and Buddhism, The
Free Press, Glencoe, 1958, pág. 32. A essa base Weber acrescenta a existência de
regras complexas de classificação social (social rank) e a impossibilidade de
fraternização entre as castas. Contudo, Weber se permite empregar o conceito de
castas para definir as relações entre negros e brancos exatamente porque "na
América estas barreiras implicam em que o casamento é absoluta e legalmente inad-
missível, deixando de lado que este intercasamento resultaria em boicote social"
(pág. 40). Sobre a utilização dos conceitos de classe e castas para descrever e
explicar as relações entre negros e brancos nos EE.DU., ver ainda Myrdall Gunnar,
An American Dilemma, Harper and Brothers, Nova York, 1944, esp. págs. 31-32;
Johnson, Charles S., Patterns ofNegro Segregation, Harper and Brothers, Nova
York, 1943, mostra os limites de validade da utilização do conceito de castas
nos EUA.
No Brasil, não só a "repugnância recíproca" não se manteve rotineiramente,
como a "repugnância social" da prole foi incompleta: o paternalismo patriarcal
"tolerou" e "protegeu" o fruto das uniões ilícitas entre os negros e brancos, a par-
tir do período de desagregação da ordem servil. Porém, também esse processo foi
contraditório e "impuro". Em determinadas situações sociais havia a rejeição com-
pleta não apenas do bastardo como dos pais (quando, por exemplo, tratava-se, em
raríssimos casos, de mãe branca). E no período escravocrata típico (até a primeira
metade do século XIX), os efeitos suasórios do paternalismo não se faziam sentir.
Justifica-se portanto, mesmo a partir da conceituação de Warner, falar em socie-
dade escravocrata de castas, e com mais forte razão, o emprego do conceito está
justificado quando se pensa em todos os outros princípios que definem as situa-

342
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

ções de castas, apresentados pacificamente pela literatura especializada. Apenas,


cabe fazer, como fiz, a ressalva de que o sistema de valores da sociedade de castas
brasileira apresenta inconsistências culturais típicas.
52. Para comprovar isso, basta indicar os provérbios sobre os mulatos que pude colher
em Porto Alegre. Em alguns transparece a representação do mulato como um ne-
gro que quer "passar por branco", por isso é pior do que o negro. Este, sendo
"puro" (isto é, negro na pele e comportando-se como negro), é bom:

1- "Mulato é negro no duro, metido a branco"


2- "Negro retinto é honesto"
3- "O negro quanto mais prêto, mais fiel ao patrão"
4- "Branco é gente, prêto é bicho, e mulato pior do que bicho"
5- "Prêto saindo da cozinha mulato é"
6- "Branco é gente, prêto é bicho, põe o mulato no lixo"
7- "Branco mandão, mulato falador, negro trabalhador"

A "falsidade" do comportamento do mulato é estigmatizada em muitos pro-


vérbios:

1 - "O mulato pela sua mistura é uma raça sem pátria"


2 - "Negro pretão é bom amigo; o mulato é falso como a sua côr"
3 - "Negro tem bandeira. Mulato não tem bandeira"

Em muitos outros ditados populares o mulato é representado como um "ne-


gro em degenerescência":

1- "Mulato é preto enfraquecido"


2- "Mulato é fim de raça"
3- "Mulato foi uma mistura infeliz de português com o africano"
4- "Mulato bom é raro como môsca branca"
5- "Casamento de negro com branco dá mulato sem-vergonha"

53. Esses problemas, bem como a significação do mulato, serão discutidos no próxi-
mo trabalho sobre a ascensão social dos negros de Porto Alegre, onde a problemá-
tica se impõe. Adianto, contudo, que, por volta de 1915, formaram-se clubes só
de mulatos em Porto Alegre. Estas descriminações provocaram reações violentas
nos antigos batalhadores contra o preconceito dos brancos, como Esperidião
Calisto. Existe um jornal crítico na década de 20, A Thezoura, com abundante
material sobre esses problemas.

343
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

54. Ver Octávio lanni, "A Ideologia Racial do Negro e do Mulato", in Fernando
Henrique Cardoso e Octávio lanni, Cor e Mobilidade Social em Florianópolis, já
citado, págs. 211-226, esp. págs. 224-226.
55. Houve até a formulação vaga de reivindicação da qualidade de africanos pelos ne-
gros de Porto Alegre e a identificação lírica com a África: "A Africa, patria de herois
como Menelike, dará ainda muito que fazer ao orgulho dos brancos recalcitran-
tes!", "Cuba", O Exemplo, 3-11-1895, ano m, nO 147, pág. 2.
56. Foi neste sentido que escrevi que o escravo artesão significava potencialmente o
negro crítico, o antiescravo, o homem negro.
57. Note-se que não se pode falar em pequena burguesia negra nessa época. Eram operá-
rios, alguns funcionários subalternos de repartições públicas, ou trabalhadores
especializados: barbeiros, alfaiates, lavadeiras, tipógrafos, pintores, guardas de alfân-
dega, condutores de carro, operários de fábricas ou da construção civil etc. Um levan-
tamento que fiz na coleção de O Exemplo da década de 20 mostrou que, nessa ocasião,
já havia maior quantidade de negros exercendo profissões definidas e que alguns co-
meçavam a dedicar-se a ocupações pequeno-burguesas. Entretanto, a diversificação
profissional deve ter-se limitado ao mesmo grupo de negros que, desde os fins do sé-
culo, já possuía maiores possibilidades de integração à vida urbana, sem-alcançar ca-
madas mais amplas da população negra. Através de entrevistas com os membros mais
idosos do grupo negro, pude verificar que, de fato, as famílias negras melhor situadas
no presente, não considerando casos individuais de ascensão, são famílias negras anti-
gas. Isto é, são descendentes dos negros que desde o século XIX e início do século XX
puderam manter vida familiar organizada, o que importa em terem obtido empregos
urbanos capazes de garantir a subistência da família. Precariamente embora, consegui
dados nessas entrevistas para mostrar que os negros artesãos (principalmente alfaiates
e pintores), tanto em Porto Alegre como em Pelotas, foram os primeiros a conseguir
manter uma parentela organizada a ponto de ainda hoje haver a memória dos ances-
trais. Entretanto, apesar de que, efetivamente, o processo existe uma "pequena bur-
guesia" de cor. Esta pequena burguesia relaciona-se com a sociedade global através de
padrões que possuem alguns pontos de contaeto significativos com a pequena burgue-
sia negra nos EUA, cf. Fraiser, Franklin, Bourgeoisie Noire, Librarie Plon, 1955.
58. Quero chamar a atenção, finalmente, para dois problemas. Primeiro, a ascensão
do negro não constituiu um puro processo de alienação: ela ao mesmo tempo, e
contraditoriamente, levou a nova possibilidade de desmistificação. Segundo, a aná-
lise desenvolvida neste trabalho mostra que o ponto de partida histórico do negro
livre no Brasil situou-se em condições diversas da história do homem negro mo-
derno africano: lá ele está, como escreveu Sartre, encurralado na "autenticidade",
aqui o negro começa sua história já alienado enquanto negro. Cf. Jean-Paul Satre,
"Orfeu Negro", Reflexões Sobre o Racismo, Difusão Européia do Livro, São Paulo,
1960, págs. 105-149.

344
Conclusões

A técnica expositiva adotada nesta monografia permitiu que os principais


resultados analíticos fossem evidenciados em cada capítulo. Da mesma for-
ma, o método de interpretação adotado obrigou à contínua retomada de
problemas já abordados para que sua elucidação se ampliasse em níveis cada
vez mais complexos de análise. Ainda assim, cabe discutir no plano de sín-
tese os principais resultados da monografia para o conhecimento da socie-
dade escravocrata rio-grandense e da situação que o negro ocupou nela.
Inicialmente, cabe dizer que, embora a investigação histórica tenha sido limi-
tada ao Rio Grande do Sul, algumas interpretações e resultados do trabalho po-
dem, dentro dos limites de generalização requeridos pelo método de interpretação
utilizado, servir para a caracterização da estrutura da sociedade escravocrata
brasileira e da forma que a interação entre senhores e escravos assumiu nela.
A economia rio-grandense era subsidiária da economia propriamente
colonial (exportadora de produtos tropicais) do Brasil. Por isso a escravidão
não chegou, em regra, a desenvolver-se no Rio Grande do Sul com a mesma
intensidade que naquelas regiões, cuja produção, sendo mais lucrativa, com-
pensava amplas inversões de capital na compra de escravos. Não se benefi-
ciou tampouco a economia escravocrata sulina das mesmas conjunturas
favoráveis que caracterizaram a economia exportadora brasileira: nunca houve
no Sul um produto tipicamente tropical e colonial capaz de proporcionar os
grandes lucros que a situação de quase-monopólio daqueles produtos permi-
tia. Todavia, essas peculiaridades, tendo sido analisadas a partir de uma pers-
pectiva que considera dialeticamente as relações entre o particular e o geral,
permitem a compreensão de certas características essenciais da escravidão
brasileira que se manifestaram mais claramente no Rio Grande do Sul.
Em primeiro lugar, o sistema escravocrata gaúcho, não tendo sido nun-
ca a forma exclusiva de produção nem tendo alcançado o mesmo grau de

345
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

desenvolvimento que caracterizou esse sistema noutras áreas, revela as con-


dições mínimas essenciais para a integração e o funcionamento da ordem
social. Se, a partir dos resultados do sistema mais simples, não se pode
explicar o mais complexo, nele aparecem claramente algumas determina-
ções gerais que ficam obscurecidas nas formas mais complexas de inte-
gração da ordem escravocrata.
Algumas características particulares de organização do sistema escra-
vocrata gaúcho revelam, na configuração singular que as exprime, os pa-
drões gerais da escravidão brasileira. A impossibilidade do sistema servil de
produção manter-se com o desenvolvimento do capitalismo, por exemplo,
pôde evidenciar-se na análise da situação da economia escravocrata rio-
grandense. Os motivos principais que permitiram essa compreensão pren-
dem-se exatamente às peculiaridades da economia do Sul. Primeiro, porque
a economia do charque produzia em condições para-industriais e não-agrá-
rias. Segundo, porque o charque e os couros sofreram a concorrência dire-
ta da produção industrial capitalista e nunca foram produtos dominantes
no mercado internacional, não podendo, pois, beneficiar-se de conjunturas
capazes de gerar grandes lucros independentemente das condições sociais,
econômicas e técnicas da produção. Graças a essas condições peculiares, a
forma especificamente capitalista de produção (que permite a obtenção de
lucros pela mais-valia relativa) precisava ser implantada por causa da escra-
vidão. Revelou-se, dessa maneira, uma característica do regime servil que,
embora operando em qualquer circunstância, ficava obscurecida no funci-
onamento do regime escravocrata nas áreas da economia exportadora.
Cabe advertir, contudo, que as interpretações desenvolvidas neste li-
vro têm validade apenas para as situações histórico-sociais em cujos siste-
mas sociais globais operam determinações essenciais do mesmo tipo das
que, conforme a análise mostrou, engendravam a atividade social concre-
ta no Rio Grande do Sul.

1. A SOCIEDADE ESCRAVOCRATA RIO-GRANDENSE

As análises efetuadas no livro demonstram que houve a utilização regular


do braço escravo no Rio Grande do Sul desde o momento em que se de-

346
CAPITALISMO E ESCRAVIOÃO NO BRASIL MERIDIONAL

senvolveu a produção mercantil para exportação. A partir desse momen-


to o equilíbrio funcional do sistema econômico ficou na dependência do
fluxo contínuo da importação de negros. Com esse processo a estrutura
da sociedade gaúcha, que no período da formação da economia pastoril e
da conquista territorial formara-se pela justaposição de grupos familiares
complexos, teve o padrão de integração estrutural redefinido. A super-
posição da camada de senhores sobre a camada de escravos, daí por dian-
te, constituiu o nexo estrutural básico da sociedade rio-grandense.
As condições materiais e morais de existência propiciaram, no período
colonial, a formação de uma economia precária, fundada no aproveitamen-
to, com fins mercantis, do gado existente na região. A continuidade desse tipo
de economia dependia da mobilidade espacial e da capacidade de agressão e
defesa de pequenos grupos de homens livres, liderados por chefes cujo poder
repousava nas qualidades pessoais requeridas para o exercício regular da ati-
vidade preadora. Quando as condições de luta entre espanhóis e portugueses
permitiram a estabilização dos grupos de pilhadores, organizaram-se as es-
tâncias e houve o aproveitamento de escravos. Entretanto, a função desem-
penhada pelos escravos era ocasional ou acessória com relação ao conjunto
das atividades da economia criatória. A posse de escravos não era decisiva
para garantir o êxito econômico, nem para que os chefes de grupos assegu-
rassem suas posições de prestígio. Por isso, a estrutura da sociedade colonial,
nessa fase, continuou sendo definida pela posição que ocupavam os chefes de
grupo, como chefes de parentela e proprietáros de terra, independentemente
da qualidade de senhores de escravos. À dominação exercida pelos "chefes de
família" superpunha-se, apenas, o domínio, imposto também pela violência,
exercido pelos funcionários patrimoniais que serviam ao Estado português.
A significação maior do liame entre o Estado e os produtores particulares estava
em que, no processo inicial de apropriação das terras, o beneplácito, o apoio
e o interesse dos funcionários civis e militares da Coroa eram essenciais para
a posse legítima e efetiva dos meios de produção.
Logo que houve a intensificação do fluxo de trocas entre a região sulina
e o mercado consumidor ligado às áreas de exportação da economia bra-
sileira, criaram-se condições novas para a atividade econômica do Rio
Grande do Sul. A produção reorganizou-se para o atendimento em gran-
de escala da demanda de trigo, charque e couros. Historicamente esse
processo manifestou-se pelo fortalecimento do poder e da riqueza das

347
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

famílias que se haviam apropriado das terras e do gado. Paralelamente,


houve a utilização regular do escravo como peça básica da força de traba-
lho aplicada na produção de mercadorias para a exportação. Essa solução
impôs-se diante da escassez de braços e da falta de condições sociais para
o emprego de mão-de-obra assalariada.
As novas condições de produção e de existência social provocaram a
reintegração da ordem social. O enriquecimento progressivo das famílias
e a posse de um meio de produção, como o escravo, que independia do
concurso direto e imediato dos representantes da Coroa, ocasionou a
redefinição da estrutura de poder no Rio Grande. O patrimonialismo es-
tatal foi substituído aos poucos por uma forma de patrimonialismo mais
próxima do patriarcalismo. Desfez-se o poder autônomo dos chefes de
bando; o pater familias (cujo poder adviera, até então, da condição de
chefe de agregados livres e proprietário da terra e da força de trabalho de
seus familiares) transformou-se em senhor de escravos; os funcionários
reais, por sua vez, utilizaram o poder que dispunham para transforma-
rem-se em produtores econômicos e senhores, confundindo seus inte-
resses com os da camada senhorial, da qual passaram a ser a expressão
política. Lançaram-se dessa forma as bases da dominação senhorial
escravocrata: a posse de escravos tornou-se condição essencial para a
produção de mercadorias e para o exercício do poder, dependendo este
diretamente da capacidade que cada senhor tinha de produzir aquelas.
A partir dessa perspectiva é possível entender que, neste plano, o prin-
cipal resultado da monografia consistiu em mostrar concretamente que a
sociedade escravocrata constItuiu-se como uma tentativa para intensificar a
produção visando a realização de lucros no mercado. A única forma histo-
ricamente possível de alcançar esse objetivo estava na intensificação da es-
cravidão. Com isso, determina-se a especificidade da "escravidão moderna"
no Rio Grande do Sul e, simultaneamente, torna-se possível estabelecer tanto
as regras de funcionamento do regime escravocrata-capitalista quanto os
limites que, nas condições em que foi criado, ele próprio se impôs.
A empresa escravocrata rio-grandense pode ser encarada, portanto,
como uma tentativa para responder às necessidades de intensificação da
produção, criadas pela expansão do mercado interno do país. Noutras
palavras, a expansão do mercado consumidor nacional (charque e, parcial-

348
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

mente, couros) alimentada pelo desenvolvimento da economia exporta-


dora (açúcar e café) alcançou e afetou a produção pré-mercantil das áreas
economicamente marginais do país. Entretanto, ao mesmo tempo que o
processo de integração da incipiente economia de trocas do Rio Grande
ao mercado revolucionou as técnicas e a organização da empresa econô-
mica naquela área, fê-lo à base de mão-de-obra escrava, que era o único
recurso que podia ser utilizado para obter o fim desejado, por causa das
condições histórico-sociais da economia brasileira. Com isso, introduziu-
se uma contradição básica no sistema econômico-social. As relações de
produção a partir das quais se visava intensificar a produção capitalista
mercantil impediam o pleno desenvolvimento do regime capitalista, na
medida em que este requer a mercantilização da força de trabalho e a es-
cravidão constitui a mercantilização do próprio trabalhador.
Enquanto a produção mercantil escravocrata funcionou em conjuntu-
ras econômicas que permitiram altos lucros e o suprimento de mão-de-obra
escrava foi constante e barato, a fragilidade inerente ao sistema por causa
da contradição básica que o definia não caiu no ângulo de consciência soci-
al dos produtores nem afetou seriamente os recursos de que ele dispunha
para promover a integração estrutural e funcional. Quando cessou o supri-
mento de braços e a concorrência alterou as conjunturas favoráveis do
mercado, o sistema revelou-se por inteiro, permitindo, simultaneamente, a
crítica da ordem servil pelos grupos que não eram beneficiários diretos da
escravidão.
A partir desse momento, que coincidiu e foi intensificado pelo declínio
da escravidão no Brasil advindo da cessação do tráfico, a desagregação do
regime escravocrata no Rio Grande do Sul foi contínua e crescente. Os
esforços feitos para salvar a empresa escravocrata apenas serviram para
reafirmar a inviabilidade do sistema na nova conjuntura diante dos novos
empreendimentos econômicos da região, organizados à base da mão-de-
obra livre. Somente a incapacidade de alguns grupos senhoriais reajusta-
rem-se à situação emergente fazia-os insistir em salvar a escravidão numa
tentativa de salvar as próprias empresas.
O processo de declínio da escravidão provocou o reajustamento dos gru-
pos e camadas da estrutura social. Por um lado, a dicotomia entre a casta
dos escravos e a casta dos senhores, que exprimia no plano estrutural as
relações básicas de produção, desfez-se lentamente na ordem social de classes

349
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

em formação. As novas condições de produção beneficiaram os grupos de I


proprietários e capitalistas não ligados diretamente ao passado escravocrata
(imigrantes e comerciantes urbanos), em detrimento dos antigos senhores. A
posição de cada pessoa no mercado passou, cada vez mais, a definir as possi-
bilidades de obtenção de prestígio e a capacidade de controlar a estrutura
política da Província (ou do Estado) e as possibilidades de novos empreendi-
mentos econômicos, independentemente de as pessoas satisfazerem a condi-
ção estamental de pertencer à camada senhorial.
Por outro lado, a reintegração da ordem fez-se de forma a impedir as
conseqüências mais gerais que poderiam decorrer da Abolição. No con-
junto, apesar da desvantagem relativa que os antigos proprietários de escra-
vos incapazes de redefinir imediatamente as formas de atuação econômica
tiveram de enfrentar, a análise do processo abolicionista e da desagrega-
ção de ordem servil no sul mostra que a reintegração da ordem fez-se em
benefício dos grupos dominantes que emergiram no passado escravocrata.
Promoveu-se a imigração e criaram-se as condições de revalorização do
trabalho livre necessárias para o êxito do sistema capitalista assalariado,
mas não houve qualquer movimento que revelasse a consciência da res-
ponsabilidade social dos brancos pela situação degradada do negro, nem
houve qualquer redefinição de atitudes e expectativas dos brancos que fosse
favorável aos negros.
O resultado imediato do sentido assumido pelo processo de reinte-
gração da ordem social foi o tipo de ajustamento que os negros tiveram
de desenvolver para participar da sociedade de classes em formação. Não
tiveram chances econômicas para assumir plenamente o status de cida-
dão que a Abolição formalmente lhes concedera, nem puderam, sequer,
definir criticamente a posição que os brancos lhes impuseram na socieda-
de de classe, como salientaremos no próximo tópico.

2. o NEGRO NA SOCIEDADE DE CASTAS E NA SOCIEDADE DE CLASSES

As interpretações desenvolvidas neste trabalho sobre as condições de exis-


tência social do escravo confirmam e ampliam os resultados conhecidos soci-
ologicamente sobre a situação do negro na sociedade brasileira de castas. Em
todos os sistemas de convivência social de que os escravos participaram no

350
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

Rio Grande do Sul, sua condição básica definiu-se pela alienação social das
qualidades de pessoa humana. A definição do escravo como um objeto e a
incapacidade do escravo realizar socialmente desígnios seus, ou de sequer
concebê-los, marcam a situação social do escravo. Por outro lado, a forma
violenta pela qual os dominadores impunham seus interesses e sua vontade
aos escravos, obtendo, dessa maneira, a transformação do negro em instru-
mento, exprime a forma específica que a dominação senhorial assume na
sociedade escravocrata. A escravidão é um sistema de dominação no qual
transparece de forma pura a relação que existe obscurecida em qualquer ou-
tro sistema social baseado na superposição de camadas portadoras de inte-
resses antagônicos: a integração do sistema mantém-se pelo exercício da
violência. A imagem do escravo como objeto e a heteronomia na ação que os
dominadores impõem aos dominados no regime escravocrata são obtidas pela
coação aberta e contínua e pela socialização do escravo para suportar o exer-
cício da violência no desempenho das funções que deles esperam os senho-
res. Nas situações em que o regime escravocrata desenvolve-se plenamente
os escravos, além disso, são socializados apenas para as tarefas da produção
escravista. Dessa forma o sistema resguarda-se contra possíveis reações dos
cativos, destruindo as possibilidades de ação coordenada contra o sistema
servil: o escravo torna-se um ser parcial, capaz apenas de executar as formas
mais rudes de trabalho. Por isso, a socialização parcial, inadequada para o
desenvolvimento de personalidade humana, e a violência constante constitu-
em os mecanismos básicos de sustentação da ordem escravocrata.
Nas situações em que os principais requisitos gerais da ordem escra-
vocrata puderam desenvolver-se no Rio Grande do Sul, a alienação do es-
cravo tendeu a ser completa. Os senhores representavam os escravos como
instrumentos de produção e os escravos auto-representavam-se como seres
incapazes de comportar-se como homens livres. Para a obtenção desse re-
sultado a socialização parcial e a violência institucionalizada operaram
amplamente. Porém, a alienação do escravo no plano das representações
apenas espelhava a situação real do negro na sociedade mercantil escra-
vocrata. Se em qualquer sistema escravista a relação senhor-escravo repou-
sa na assimetria social e na heteronomia desse último assegurada pela
violência (processos que levam à reificação), na sociedade servil organizada
como um recurso para a produção capitalista mercantil o escravo torna-se
de fato uma mercadoria. Por isso, se nas estâncias a reificação do escravo

35 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

pôde ser relativa, nas charqueadas o escravo desempenhava efetivamente


as funções de coisa, por ser escravo e por representar capital objetivado.
As relações entre senhores e escravos, contudo, não foram analisadas neste
livro apenas a partir da perspectiva mencionada acima. Procurou-se também
encarar dinâmica e concretamente a situação dos escravos. Consideraram-se
tanto as contradições inerentes às determinações gerais da relação senhor-
escravo quanto as diferenças e contradições que historicamente foram sendo
construídas a partir das situações particulares de existência social que se con-
figuraram no Rio Grande do Sul. Com efeito, só aparentemente a reificação
do escravo foi completa. Na verdade, o escravo negava subjetivamente a con-
dição que lhe era imposta e procurou transformar, dentro dos limites social-
mente existentes, a situação social em que o envolveram. Nas reações violentas
contra a violência senhorial institucionalizada e nas fugas constantes, o escra-
vo exprimia a qualidade fundamental de homem, negando, na prática, a re-
presentação que dele se fazia como um ser capaz apenas de realizar a vontade
e os interesses dos que socialmente eram os seus contrários. Por isso, a escra-
vidão era o vulcão em que assentava a sociedade, e esta se tornou a fonte de
uma situação de violência para ambos, senhores e escravos.
Os senhores acabaram sendo a expressão noutro plano da mesma si-
tuação basicamente alienadora. Autores e produtos de um sistema criado
para permitir lucros e que acabou por impedir a expansão dos lucros ter-
minaram por revelar-se socialmente como seres também alienados. Qual-
quer desiderato que tivessem dependia dos escravos, seus inimigos, para
ser realizado. Finalmente, tornaram-se vítimas da própria criação: agar-
raram-se, quanto puderam, ao sistema escravocrata, mesmo quando ele
já não era capaz de permitir o fim almejado, o lucro.
Porém, tanto por causa da eficácia dos mecanismos de manutenção da
ordem quanto, principalmente, por causa da situação peculiar do escravo
no regime escravocrata mercantil-capitalista, a dialética entre senhores e
escravos não exprimia o movimento determinante do processo social, e a
reação do escravo estava fadada a manifestar-se como revolta e não como
ação capaz de reconstruir, na base dos próprios interesses, a ordem social.
As relações essenciais que marcavam o curso dos acontecimentos partiam
da contradição entre a necessidade de intensificar a produção de mais-valia
relativa imposta pelo sistema capitalista de produção e a inviabilidade desse
processo numa sociedade cuja produção baseava-se no trabalho escravo.

352
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

Assim, da mesma forma que no regime capitalista o operário constitui o


verdadeiro limite, no regime escravocrata "capitalista" o escravo constitui
o limite do sistema. Mas, enquanto no primeiro caso a contradição entre o
operário e a ordem capitalista pode resolver-se dialeticamente, no segundo
caso a contradição não pode ser superada pela ação do escravo. Ao contrá-
rio, o sentido da desagregação da ordem servil é dado pelos grupos que
historicamente são capazes de superar a contradição dominante entre a
expansão do capitalismo e a barreira que a ela impõe a escravidão. Supri-
mir o escravo conservando o operário foi a expressão consciente do movi-
mento de desintegração da ordem escravocrata em benefício dos grupos
empenhados na generalização, no país, do trabalho assalariado.
Historicamente, contudo, os escravos submeteram-se a formas de exis-
tência social variável. Se as diferenças eram irrelevantes para a caracteri-
zação da dominação escravocrata e para definir as possibilidades de
alteração da ordem social de forma a atender os interesses sociais dos es-
cravos, elas não deixaram de influir quanto às possibilidades de consciên-
cia social dos cativos e quanto às possibilidades de ajustamento dos
ex-escravos à nova ordem advinda da desintegração do regime servil.
Com efeito, a análise realizada nessa monografia mostrou - e este foi,
nesse plano, um dos principais resultados - as formas de consciência pos-
sível da situação e as formas efetivas de consciência que limitavam a ação
dos escravos. Os tipos de insersão dos escravos na atividade produtiva cir-
cunscreviam o universo de fins e objetivos que poderiam polarizar seus in-
teresses e seu comportamento social. Se as determinações essenciais da
condição de escravo na sociedade capitalista-escravocrata limitavam igual-
mente para todos as possibilidades de alterar a ordem conforme os interes-
ses sociais e circunscreviam a questões laterais o "ponto de vista" presuntivo
dos escravos, as formas particulares pelas quais os escravos se integraram
no processo produtivo (na charqueada, no mercado urbano, na família ou
na estância) abriam-lhes possibilidades variáveis de reação aos brancos e de
reajustamento social na fase de formação da sociedade de classes.
No Rio Grande do Sul é possível distinguir dois tipos básicos e polares
de ajustamento dos negros à nova ordem de classes advinda depois da Abo-
lição. A massa dos ex-escravos despreparada social e culturalmente para o
exercício das possibilidades de atuação social inerentes à qualidade de cida-
dãos que os negros haviam adquirido ajustou-se passivamente, conforme

353
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

os interesses das antigas camadas senhoriais e dos brancos em geral, às no-


vas condições de existência. Nessas, os brancos procuraram redefinir as
representações que mantinham sobre os escravos, metamorfoseando-se de
maneira que pudessem racionalizar a espoliação social dos negros livres e
compeli-los a aceitar o sentido que queriam dar às novas formas de partici-
pação social dos ex-cativos. Por isso, para os brancos, o negro, de inferior
social na sociedade de castas, passava a inferior biológico na sociedade de
classes. O "preconceito" apareceu no novo contexto como uma técnica de
ajustamento entre os grupos étnicos a partir do reconhecimento necessário
e prévio da existência de desigualdades sociais, expressas sob a forma de
desigualdades naturais. A maior parte dos negros ratificou essa situação pela
aceitação do "ideal de branqueamento" e pelo estímulo a uma "ideologia
de compromissos", que legitimava o preconceito e anuía às diferenciações
sociais que os brancos quiseram impor aos negros, por serem negros.
A segunda forma de ajustamento foi a tentativa de uma reação crítica
contra a espoliação social imposta pelos brancos aos negros. Essa reação
partiu de ex-escravos, ou seus descendentes, ligados ao artesanato urba-
no ou à escravidão doméstica. Os escravos desse tipo puderam, benefici-
ando-se de melhores condições materiais e morais de existência, tentar
uma tomada de consciência da situação de alienação e espoliação social a
que haviam sido reduzidos. A tentativa de formulação de uma "ideologia
de negritude" e a luta contra o preconceito foram os recursos utilizados
para a re-socialização do negro, para a tentativa de reeducação dos bran-
cos e para a transformação das condições morais e materiais de existência
da comunidade negra. Esses esforços constituíram as tentativas mais gran-
diosas que os negros rio-grandenses puderam empreender como ~m mo-
mento de sua luta contra a alienação social.
As condições globais de formação da sociedade de classes e o sentido
efetivo do processo de desagregação da ordem servil, já indicados, não
propiciaram, contudo, que, nessa fase, os negros obtivessem sua insersão
na ordem social na qualidade de iguais aos brancos, tal qual, formalmen-
te, passaram a ser depois da Abolição. O insucesso dessas tentativas evi-
dencia, também, a precariedade da nova ordem democrática que se supôs
implantada no país e a persistência de traços acentuados do "antigo regi-
me" na sociedade de classes que se formara.

354
Bibliografia*
Trabalhos Teóricos sobre Metodologia e sobre a
Caracterização de Sistemas Sociais Globais

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*Estão relacionados apenas os trabalhos que foram citados no texto ou aqueles cuja consulta
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TRABALHOS SOBRE A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA

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CARDOSO, Fernando Henrique, "Condições sociais da industrialização de São Paulo",
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COlJfY, Louis, Le Brésil en 1884, Faro & Lino, Rio de Janeiro, 1884.
FERNANDES, Florestan, A organização social dos Tupinambá, Instituto Progresso Edi-
torial, São Paulo, 1949.
FAORO, Raymundo, Os donos do poder, formação do patronato político brasileiro, Edi-
tora Globo, Porto Alegre, 1958.
FREYRE, Gilberto, Casa-grande & senzala (Formação da família brasileira sob o regime
de economia patriarcal), 2 vaIs., Livraria José Olympio Editora, 73 ed., Rio de Ja-
neiro, 1952.
FREYRE, Gilberto, Sobrados e mocambos (Decadência do patriarcado rural e desenvol-
vimento do urbano), 23 ed., Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 3 vols.,
1951.
FURTADO, Celso, A economia brasileira, A Noite, Rio, 1954.
FURTADO Celso, Formação econômica do Brasil, Editora Fundo de Cultura, Rio de
Janeiro, 1959.
HOLLANDA, Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, 33 edição, Livraria José Olympio, Rio de
Janeiro, 1956.
PRADO JúNIOR, Caio, Formação do Brasil contemporâneo (Colônia), Editora Bra-
siliense, 2 3 edição, São Paulo, 1945.
PRADO JúNIOR, Caio, História econômica do Brasil, Editora Brasiliense, São Paulo, 33
ed., 1953.

357
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

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tora Nacional, São Paulo, 3 a edição, 1957.
TEJO, Limeira, Retrato sincero do Brasil, Editora Globo, Porto Alegre, 2a ed., 1951.
VARNHAGEM, Francisco Adolpho (visconde de Porto Seguro), História geral do Brasil,
antes da sua separação e Independência de Portugal, 3 a edição integral, com notas de
Rodolpho Ganio, Companhia Melhoramentos, São Paulo, tomos IV e V.
VIANNA, Oliveira, Populações meridionais do Brasil (história, organização e psicologia),
10 volume, Livraria José Olympio Editora, 5 a edição, Rio de Janeiro, 1952.

TRABALHOS GERAIS SOBRE A HISTÓRIA POLíTICA, ECONÔMICA OU


SOCIAL DO RIO GRANDE DO SUL

AZEVEDO, Thales de, Gaúchos - Notas de antropologia social, Bahia, 1949.


BARCELOS, Rubens de, "Esboço da formação social do Rio Grande", Provincia de São
Pedro, Porto Alegre, nO 3, dezembro de 1945, págs. 13-24.
BRANDÃO, Souza, Rio Grande do Sul, a terra, o homem e o trabalho, Graphica Saner,
Rio de Janeiro, 1930.
BRASIL, Assis, História da república Rio-grandense (10 vol.), Rio de Janeiro, 1882.
CORUJA, Antônio Alvares Pereira, Anna historico sul-riograndense em forma de ephe-
merides, 10 folheto de 10 de janeiro até 31 de março, Typ. de José Dias de Oliveira,
Rio de Janeiro, 188~
DOCCA, E. F. de Souza, História do Rio Grande do Sul, Edição da "Organização Simões",
Rio de Janeiro, 1954.
FARIA, Octávio Augusto de, Historico da divisão administrativa do Rio Grande do Sul,
Officinas Typographicas de Carlos Echenique, Porto Alegre, 1917.
FERREIRA Filho, Arthur, História geral do Rio Grande do Sul (1503-1957), Editora
Globo, Porto Alegre, 1958.
GOULART, Jorge Salis, A formação do Rio Grande do Sul, Livraria Globo, Porto Alegre,
2a ed., 1935.
HARNISCH, Wolfgang Hoffmann, O Rio Grande do Sul, Editora Globo, Porto Alegre,
1952.
LAYTANO, Dante de, História da república Rio-grandense (1835-1845), Editora da Li-
vraria do Globo, Porto Alegre, 1936.
LIMA, Alcides, História popular do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Livraria do Globo,
1935.
MAIA, João, História do Rio Grande do Sul, Livraria e officinas a vapor de Franco &
Irmão, Porto Alegre, 1898.
ORNELLAS, Manoelito de, Gaúchos e beduínos (a origem étnica e a formação social do
Rio Grande do Sul), 2 a ed., revista e aumentada, José Olympio Editora, Rio de Ja-
neiro, 1956.

358
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

PINHEIRO, José Feliciano Fernandes (visconde de São Leopoldo), Anais da província


de São Pedro, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1946.
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natural, 2 a ed., revista, Livraria Seibach, Porto Alegre, 1956.
RODRIGUES, Alfredo E, Noticia historica e descriptiva do estado do Rio Grande do Sul,
Livraria Americana, Rio Grande, 1896.
RODRIGUES, José Honório, O continente de São Pedro, Edição São José, Rio, 1954.
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Edição da Livraria do Globo, Porto Alegre, 1930.
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TESCHAUER, Carlos S. J., Historia do Rio Grande do Sul dos dois primeiros séculos, 3
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VARELA, Alfredo, O solar brasilico, remate nos muros austrinos, 2 vols., Edições Insti-
tuto América, Rio, s.d.p.
VARELA, Alfredo, Rio Grande do Sul, descrippão physica, historica economica (1 0 vol.),
Livraria Universal, Pelotas e Porto Alegre, 1897.
VIANNA, Oliveira, Populações meridionais do Brasil (história-organização-psicologia),
segundo volume, póstumo, "O Campeador Rio-Grandense", Livraria José Olympio
Editora, Rio de Janeiro, 1952.

TRABALHOS SOBRE PROBLEMAS ESPEcíFICOS DA FORMAÇÃO DO


RIO GRANDE DO SUL E DA ÁREA PLATINA

ABREU E SILVA, Florêncio, ''José Marcelino de Figueiredo no govêrno de São Pedro de


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vaI. m, págs. 177-207, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1937.
ABREU E SILVA, Florêncio, "O gado bovino e sua influência na antropogeografia do
Rio Grande do Sul", A Provincia de São Pedro, nO 11, março-junho de 1948, Porto
Alegre.
ABREU E SILVA, Florêncio de, "Retrospecto econômico e financeiro do Rio Grande do
Sul (1822-1922)", Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, nO 8, Porto
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359
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ALEGRE, Augusto Porto, A fundação de Pôrto Alegre, Livraria do Globo, Porto Alegre,
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do Rio Grande do Sul, vol. I, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1937.
CANABRAVA, A. P., O comércio português no Rio da Prata (1580-1640), Boletim de
História da Civilização Americana, nO 2, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1944 (esp. capo X. "As mercadorias do
comércio platino", item a, os artigos de importação, págs. 116-118).
CIDADE, F. de Paula, "Raças em caldeamento", O Soldado, Rio, 1927.
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FORTES, João Borges, Casais, Rio de Janeiro, 1932.
FORTES, João Borges, Rio Grande de São Pedro (Povoamento e Conquista), Biblioteca
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GOMES SOARES, Rita, "Coleção de Anúncios do Diário de Porto Alegre de 1827",
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360
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

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36 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

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SPALDING, Walter G., "Comércio, Indústria e Agricultura do Estado do Rio Grande do
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SPALDING, Walter, "Pecuária, charque e charqueadores no Rio Grande do Sul", Revista
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ano XXII, nO 91-92, Porto
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SPALDING, Walter, Tradições e superstições do Brasil Sul (ensaios de folc/ore), Edição da
"Organização Simões", Rio, 1953.
TEJO, Limeira, ''A indústria Rio-Grandense em função da economia nacional", Estatis-
tica Industrial do Rio Grande do Sul, Diretoria Geral de Estatística, Estado do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1935.

TRABALHOS ESPEcíFICOS SOBRE O NEGRO NO RIO GRANDE DO SUL

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gre, 1942.
LAYTANO, Dante de, "Como Saint-Hilaire viu o negro no Rio Grande do Sul", Anais do
III Congresso Sul Rio-Grandense de História e Geografia, Prefeitura Municipal de
Porto Alegre, 1940, 2° voI.
LAYTANO, Dante de. "O negro no Rio Grande do Sul", Primeiro Seminário de Estudos
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TAVARES, Francisco da Silva, "Eu e o abolicionismo", O Conservador, Porto Alegre,
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362
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASil MERIDIONAL

MEMÓRIAS, NOTíCIAS E VIAGENS RELATIVAS AO RIO GRANDE DO SUL

"A maior asneira da minha vida, ou numa viagem terrestre desde a Cidade de S. Pedro
do Rio Grande do Sul até a Provincia do Rio de Janeiro", manuscrito, datado de
1854, da Biblioteca Rio Grandense, Rio Grande.
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e, Memorias Historicas do Rio de janeiro e das
provincias anmexas a jurisdição do Estado do Brasil, Imprensa Régia, Rio de Janei-
ro, 1920, tomo 9, págs. 327-368.
AVÉ-LALLEMANT, Robert, Viagem pelo Sul do Brasil no ano de 1958 (Primeira parte),
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AZARA, Félix de, Memoria sobre el Estado Rural dei Rio de la P/ata y otras informaciones,
Editorial Bojel, Buenos Aires, 1943.
BETTAMIO, Sebastião Francisco, "Noticia Particular do Continente do Rio Grande do
Sul", Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXI, 30 trimestre
de 1858, Typographia Brasiliense de Maximiliano Gomes Ribeiro, Rio de Janeiro,
1858.
CÂMARA, Antônio Manoel Corrêa da, Ensaios Statisticos da Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul, Typographia do Mercantil, Porto Alegre, 1851.
CASAL, Ayres de, Corografia Brasílica, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1954.
CHAVES, Antonio José Gonçalves, "Memórias Economo-Políticas", reeditadas por J. B.
Jikmeyer, S. J., Revista do Instituto Historico e Geographico do Rio Grande do Sul,
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COUTINHO, José Joaquim da Cunha de Azeredo, Ensaio Economico sobre o Commercio
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DREYS, Nicolau, Noticia Descriptiva da Provincia do Rio Grande de São Pedro do Sul,
J. Villeneuve e Comp., Rio de Janeiro, 1839.
GARIBALDI, José, Memórias de josé Garibaldi (traduzidas do manuscrito original por
Alexandre Dumas), Officinas a vapor d'Intransigente, Rio Grande, 1907.
ISABELLE, Arsêne, Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834), tradução e notas de Dante
de Laytano, secção do Arquivo Histórico do Museu "Julio de Castilhos", Secretaria
da Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1946.
ISABELLE, Arsêne, Emigração e Colonização, Gráfica Editora Souza, Rio de Janeiro, 1951.
LINIERS, Conde de, "Memória sôbre o Pôrto de S. Pedro do Rio Grande do Sul- 1798",
Boletim do Centro Rio-Grandense de Estudos Históricos, vaI. m, Rio Grande, 1941.
LUCCOCK, John, Notas sôbre o Rio de janeiro e partes meridionais do Brasil, trad. de
Milton da Silva Rodrigues, Livraria Martins Editora, São Paulo, 2 a ed., 1951.
MAGALHÃES, Manoel Antonio de, ''Almanack da villa de Pôrto Alegre, com reflexões
sôbre o estado da Capitania do Rio Grande do Sul", Revista Trimensal do Instituto
Histórico e Etnographico do Brasil, Rio de Janeiro, tomo XXX, 1a parte, 1867.

363
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

MARC, Alfred, Le Brésil, excursion atravers ses 20 provinces, Paris, 1890.


MAUÁ, Visconde de (lrineu Evangelista de Souza), Autobiografia ("Exposição aos cre-
dores e ao público", seguido de "O meio circulante no Brasil"), Zélio Valverde Edi-
tor, Rio, 1947.
MAWE, John, Viagens ao interior do Brasil, trad. de Solena Benevides Viana, Zélio
Valverde, Rio de Janeiro, 1944.
MULHALL, Between the Amazon and Andes, or ten years ofa lady's travels in the Pampas,
Gran Chaco, Paraguay and Matto Grosso, Eduard Stanford, London, 1881 (sem
interesse).
PINHO, Augusto A. de, Uma Viagem ao Sul do Brasil, Typ. de F. A. de Souza, Rio de
Janeiro, 1872 (sem interesse).
ROBIANO, Eugene de, Dix-Huit Mois dans l'Amérique du Sud, E. Plon & Cie., Paris,
1878.
SAINT-HILAIRE, A., Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821), trad. de Leonam Aze-
vedo Pena, Ariel Editora, Rio de Janeiro, 1935.
SMITH, Herbert H., Do Rio de Janeiro a Cuyabá, Companhia Melhoramentos, São Pau-
lo, 1922.
SOUTHEY, Robert, History ofBrazil (3 vols.), Longman, Hunst, Rus and Or, Londres,
1810, 1817, 1819.

ANAIS, CATÁLOGOS, COLEÇÕES, DOCUMENTOS IMPRESSOS E RELATÓRIOS

Album comemorativo do "Cinquentenario del/a colonizzazione italiana nel Rio Grande


dei Sud" (1875-1925), Porto Alegre.
Anais do Primeiro Congresso de História e Geografia de São Leopoldo, Livraria do Glo-
bo, Porto Alegre, 1947.
Anais do Primeiro Congresso de História e Geografia Sul Rio-Grandense, comemorativo
do Centenário da Revolução Farroupilha, 3 vols., publicação do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1936.
Anais do Segundo Congresso de História e Geografia Sul Rio-Grandense, 3 vols., Livraria
do Globo, Porto Alegre, 1937.
Anais do III Congresso sul-rio-grandense de História e Geografia, 4 vols., Prefeitura
Municipal de Porto Alegre, Porto Alegre, 1940.
Anais do N Congresso de História e Geografia sul-rio-grandense, Livraria do Globo, Por-
to Alegre, 2 vols., 1946.
Anais do II Seminário sul-rio-grandense de Sociologia, Gráfica da Universidade do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 1960.
Catálogo da Exposição Estadual de 1901, Officina Typografhica da Gundlach & Becher,
Porto Alegre, 1901.

364
CAPITALISMO E ESCRAVIDAo NO BRASIL MERIDIONAL

Col/eção das Leis Provinciais de São Pedro do Rio Grande do Sul, Typ. do Commercio,
Porto Alegre, 1846.
Collecção dos actos, regulamentos, e instruções expedidos pela presidencia da Província
de São Pedro do Rio Grande do Sul, tomo XIX, 1863, Typographia do Correio do
Sul, Porto Alegre, 1864.
Documentos sôbre a Colônia do Sacramento, código nO 467 do Fundo Geral, Secção de
reservados da biblioteca nacional de Lisboa, Biblioteca Rio Grandense, oficinas grá-
ficas da imprensa oficial, Porto Alegre, 1945.
Estatutos da Associação Emancipadora Club Abolicionista, Livraria Americana, Pelotas,
1904.
Fundamentos da Cultura Rio-Grandense, primeira série, Faculdade de Filosofia da Uni-
versidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1954.
Lavradio, marquês do (D. Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão Eça e Melo Silva
e Mascarenhas), "Correspondência passiva do Tte. GaI. João Henrique de Bohm",
Boletim do Centro Rio Grandense de Estudos Históricos, Rio Grande, ano I, nO 1,
págs. 10-160.
O Império do Brasil na Exposição Universal de 1876 em Philadelphia, Typographia Na-
cional, Rio de Janeiro, 1875.
Primeiro Seminário de Estudos Gaúchos, Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 1957.
Relatório apresentado a S. Ex. o Sr. Presidente da Provincia de São Pedro do Rio Grande
do Sul pela Associação Commercial da Cidade do Rio Grande, Typographia do "Cons-
titucional", Porto Alegre, 1873.
Recenseamento Geral do Brasil (1872).

RELATÓRIOS E FALAS DOS PRESIDENTES DO RIO GRANDE DO SUL

ANDRADE, Américo de Moura Marcondes, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. América
de Moura Marcondes de Andrade passou a administração desta Provincia ao Exmo.
Snr. Felisberto Pereira da Silva, no dia 26 de janeiro de 1879, Typographia do Jornal
do Commercio, Porto Alegre, 1879.
ANDRÉA, Francisco José de Souza Soares, Additamento feito ao relataria, que perante a
Assembléa Provincial do Rio Grande de São Pedro do Sul dirigia o Exmo. Vice-Presi-
dente da Provincia em sessão de 4 de março de 1848 pelo I/mo. E Exmo. Snr. Presi-
dente da Provincia e comandante do Exercito em guarnição Francisco José de Souza
de Andréa, para ser presente à mesma Assembléa, Typographia do Jornal do Com-
mercio, Porto Alegre, 1848.
ANDRÉA, Francisco José de Souza Soares de, Relatório ao Presidente da Provincia de
São Pedro do Rio Grande do Sul, o tenente-general Francisco José de Souza Soares de

365
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Andréa, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial de 10 de junho de 1849,


Typographia de Porto Alegre, 1849.
ARARIPE, Tristão de Alencar, Relatório com que o Exmo. Snr. Conselheiro Tristão de
Alencar Araripe passou a administração desta Provincia ao Exmo. Snr. Dr. João Dias
de Castro, 2a vice-presidente no dia 5 de fevereiro de 1877. Typographia do Jornal
do Commercio, Porto Alegre, 1877.
AVILLA, Henrique d', Falia com que (...) abrio a 2a sessão da 18a Legislatura d'Assembléa
Provincial no dia 10 de Maio de 1880, Typ. da Reforma, Porto Alegre, 1880.
AVILLA, Henrique d', Relatório com que foi passada a administração (ao Dr. Joaquim
Pedro Soares) pelo Exmo. Snr. Dr. Henrique d'Avilla a 4 de março de 1881. Typo-
graphia da Reforma, Porto Alegre, 1881.
BARCELLOS, Israel Rodrigues, Relatório com que o Exmo. Snr. Doutor Israel Rodrigues
Barcellos passou a administração da Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul ao
Exmo. Snr. Dr. João Sertorio, no dia 4 de junho de 1869, Typ. do Rio-Grandense,
Porto Alegre, 1869.
BARCELLOS, Miguel Rodrigues, Falia que S. Ex., o Snr. Dr. Miguel Rodrigues Barcellos
vice-presidente da Provincia do Rio Grande do Sul dirigio à Assembléia Legislativa
Provincial no dia 20 de outubro de 1885 por occasião da instalação de sua sessão
ordinaria, Officinas typographicas do Conservador, Porto Alegre, 1887.
BARCELLOS, Miguel Rodrigues, Relatório apresentado a S. Exa. o Snr. Desembargador
Henrique Pereira de Lucena, presidente da Provincia do Rio Grande do Sul, pelo Exmo.
Snr. Dr. Miguel Rodrigues Barcellos, Vice-presidente, ao passar-lhe a administração
da mesma Provincia no dia 28 de outubro de 1885, Off. Typ. do Conservador, Porto
Alegre, 1887.
BARROS, José Júlio de Albuquerque, Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Miguel
Rodrigues Barcellos, 20 vice-presidente da Provincia do Rio Grande do Sul pelo Exmo.
Snr. Conselheiro José júlio de Albuquerque Barros ao passar-lhe a Presidencia da mes-
ma Provincia no dia 19 de Setembro de 1885. Officinas Typographicas do Conserva-
dor, Porto Alegre, 1886.
BELLO, Luiz Alves Leite de Oliveira, Relatório do vice-presidente da Província de S. Pedro
do Rio Grande do Sul, Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, na abertura da Assembléia
Legislativa Provincial em 10 de outubro de 1852, Typographia do Mercantil, Porto
Alegre, 1852.
BELLO, Luiz Alves Leite de Oliveira, Relatório com que o vice-presidente Luiz Alves Leite
de Oliveira Bello entregou a presidência da Província de S. Pedro do Rio Grande do
Sul ao Exmo. Snr. barão de Muritiba no dia 26 de setembro de 1855, Typographia do
Mercantil, Porto Alegre, 1855.
BOA VISTA, visconde da, Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Vice-presidente da Provincia
de São Pedro do Rio Grande do Sul, Dr. Antonio Augusto Pereira da Cunha pelo vis-

366
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

conde da Boa Vista, ao passar-lhe 14' administração da mesma Provincia no dia 16 de


abril de 1866, Typ. do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1866.
BRANDÃO, Francisco de Carvalho Soares, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Francisco
de Carvalho Soares Brandão, presidente da Provincia, entregou a administração da
Provincia do Rio Grande do Sul a S. Excia. O Snr. Dr. Joaquim Pedro Soares, vice-
presidente, no dia 14 de janeiro de 1882, Typ do Jornal do Commercio, Porto Ale-
gre, 1882.
BUENO, José Antonio Pimenta, Relatório do Presidente da Provincia de São Pedro do Rio
Grande do Sul, o conselheiro José Antonio Pimenta Bueno, na abertura da Assembléa
Legislativa Provincial no 1° de outubro de 1850, Typ. de F. Ponatelli, Porto Alegre,
1850.
cÂMARA, Patricio Corrêa da, Relatório do vice-presidente da provincia de S. Pedro do
Rio Grande do Sul, o comendador Patricio Corrêa da Câmara, na abertura da Assem-
bléia Legislativa Provincial em 11 de outubro de 1857, Typographia do Mercantil,
Porto Alegre, 1857.
cÂMARA, Patricio Corrêa da, Relatório apresentado pelo vice-presidente da Provincia
de São Pedro do Sul comendador Patricio Corrêa da Câmara, na 2a sessão da 9a
Legislatura da Assembléia Provincial, Typographia do Jornal A Ordem, Porto Ale-
gre, 1861.
CÂMARA, Patrício Corrêa da, Relatório (...) passou do Exmo. Snr. Dr. João Marcellino
de Souza Gonzaga, actual Presidente da mesma Provincia. Typographia do Correio
do Sul, Porto Alegre, 1864.
CAMPELLO, João Chaves, Falla com que o Exmo. Snr. Dr. João Chaves Campello abrio
a segunda sessão da 17a Legislatura do dia 12 de Março de 1878, Typographia do
Mercantil, Porto Alegre, 1878.
CASTRO, Antonio José de Azevedo, Falla dirigida à Assembléa Legislativa da Provincia
do Rio Grande do Sul pelo presidente Dr. José Antonio de Azevedo Castro, em a se-
gunda sessão da 16a Legislatura, Typographia do "Rio Grandense", Porto Alegre,
1876.
CASTRO, Fausto de Freitas e, Relatório apresentado a S. Excia. O Snr. Conselheiro Ben-
to Luiz de Oliveira Lisboa, Presidente da Provincia do Rio Grande do Sul, pelo Exmo.
Snr. Dr. Fausto de Freitas e Castro, 1° vice-presidente ao passar-lhe a administração
aos 25 dias do mezde janeiro de 1887. Off. Typ. do Conservador, Porto Alegre, 1887.
CASTRO, João Capistrano de Miranda, Relatório do vice-presidente da provincia de São
Pedro do Rio Grande do Sul, João Capistrano de Miranda Castro, na abertura da
Assembléia Legislativa Provincial em 4 de março de 1848, acompanhado do orça-
mento para o ano financeiro de 1848-1849, Typographia do Pôrto Alegrense, Porto
Alegre, 1848.
CASTRO, João Dias de, Relatório com que o Exmo. Snr. 2 0 vice-presidente da Provincia
de S. Pedro do Sul, Dr. João Dias de Castro, passou a administração da mesma ao

367
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Exmo. Snr. Conselheiro Senador Jeronimo Martiniano Figueira de Mello, no dia 20


de outubro de 1871, Typ. do "Rio Grandense", Porto Alegre, 1871.
CASTRO, João Dias de, Falia dirigida à Assembléa Legislativa da Provincia de S. Pedro
do Rio Grande do Sul pelo 20 vice-presidente Dr. João Dias de Castro em la sessão da
17a legislatura. Typographia do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1877.
CASTRO, João Dias de, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. João Dias de Castro, 2 0 vice-
presidente, passou a administração desta Provincia ao Exmo. Snr. Desembargador
Francisco de Faria Lemos, no dia 21 de maio de 1877, Typographia do Jornal do
Commercio, Porto Alegre, 1877.
CASTRO, José Antonio de Azevedo, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. José Antonio de
Azevedo Castro passou a administração desta Provincia em 5 de abril de 1876 ao
Exmo. Snr. Conselheiro Tristão de Alencar Araripe, Typographia do "Rio Grandense",
Porto Alegre, 1877.
CAXIAS, conde de, Relatório com que abrio a primeira sessão ordinaria da segunda
legislatura da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul no dia 10 de março de 1846
o Exmo. Snr. conde de Caxias, presidente da mesma Província, Typographia I, J. Lopes,
Porto Alegre, 1840.
COELHO, Jeronymo Francisco, Relatório do Presidente da Provincia de S. Pedro do Rio
Grande do Sul,Jeronymo Francisco Coelho, na abertura da Assembléa Legislativa Pro-
vincial em 15 de dezembro de 1856, Typographia do Mercantil, Porto Alegre, 1856.
CUNHA, Antonio Augusto Pereira da, Falla com que o vice-presidente da Província de
São Pedro do Rio Grande do Sul, Dr. Antonio Augusto Pereira da Cunha, abrio a la
sessão da 12 a legislatura da Assembléa Provincial em 3 de novembro de 1866,
Typographia do Rio Grandense, Porto Alegre, 1866.
CUNHA, Antonio Augusto Pereira da, Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Presidente
da Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul, Dr. Francisco Ignacio Marcondes
Homem de Mello pelo Dr. Antonio Augusto Pereira da Cunha, 20 vice-presidente,
Typographia do Riograndense, Porto Alegre, 1867.
CUNHA, Joaquim Vieira da, Relatório com que o senhor doutor Joaquim Vieira da Cu-
nha, 10 vice-presidente d'esta Provincia, passou a administração da mesma ao Exmo.
Snr. Marechal de Campo Guilherme Xavier de Souza, no dia 14 de julho de 1868,
Typ. do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1868.
FERRAZ, Angelo Moniz da Silva, Relatório com que o Exmo. Snr. conselheiro Angelo
Muniz da Silva Ferraz entregou a presidencia da Provincia de São Pedro do Rio Gran-
de do Sul ao 20 vice-presidente, o Exmo. Snr. Commendador Patricio Correia da
Câmara, no dia 22 de abril e este ao Exmo. Snr. Conselheiro Joaquim Antão Fernandes
Leão, em 4 de maio de 1850, Porto Alegre, 1859.
FERRAZ, Angelo Moniz da Silva, Relatório do Presidente da Provincia de S. Pedro do Rio
Grande do Sulo, Angelo Moniz da Silva Ferraz, apresentado à Assembléa Provincial
na la sessão da 8a Legislatura, Typ. do Correio do Sul, Porto Alegre, 1858.

368
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

FLORES, Carlos Thompson, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Carlos Thompson Flo-
res passou a administração da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao 3° vice-
presidente o Exmo. Snr. Dr. Antônio Corrêa de Oliveira a 15 de abril de 1880; este
ao Exmo. Snr. Dr. Henrique d'Avila a 19 do mesmo mês e Falta com que o último
abrio a 2a Sessão da 18a Legislatura d'Assembléa Provincial no dia 1° de Maio de
1880, Typ. A Reforma, Porto Alegre, 1880.
FLORES, Carlos Thompson, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Carlos Thompson Flores
passou a administração da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao 3° vice-pre-
sidente, o Exmo. Snr. Antônio Corrêa de Oliveira, Typ. A Reforma, Porto Alegre, 1880.
FONSECA, M. Deodoro da, Relatório apresentado a S. Excia. O Snr. Dr. Miguel Calmon
du Pin Almeida, presidente da Provincia do Rio Grande do Sul, pelo Exmo. Snr. Ma-
rechal de campo Manoel Deodoro da Fonseca, 1° vice-presidente, ao passar-lhe este a
presidencia aos 9 dias do mez de novembro de 1886, OH. Typ. do Consevador, Porto
Alegre, 1886.
FONTES, Meandro Rodrigues, Relatório com que S. Excia. O Snr. Dr. Meandro Rodrigues
Fontes, 1° vice-presidente passou a administração da Provincia de S. Pedro do Rio
Grande do Sul em 16 de julho de 1883 ao Exmo. Snr. Conselheiro Dr. José Julio de
Albuquerque Barros, Typ. do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1884.
GALVÃO, Manoel Antonio, Relatório do Presidente da Provincia de S. Pedro do Rio Grande
do Sul, o senador conselheiro Manoel Antonio Galvão na abertura da Assembléia
Legislativa Provincial em 5 de outubro de 1847, Typographia do Argos, Porto Ale-
gre, 1847.
GONZAGA, João Marcelino de Souza, Relatório com que o bacharel João Marcelino de
Souza Gonzaga entregou a administração da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do
Sul ao Illmo. E Exmo. Snr. Visconde da Boa Vista, Typ. do Rio Grandense, Porto
Alegre, 1865.
LEÃO, Joaquim Antão Fernandes, Relatório apresentado à Assembléa Provincial de S.
Pedro do Rio Grande do Sul na 2a sessão da 8a legislatura pelo conselheiro Joaquim
Antão Fernandes Leão, Typographia do Correio do Sul, Porto Alegre, 1859.
LEÃO, Joaquim Antão Fernandes, Relatório apresentado a Assembléa Provincial de S.
Pedro do Rio Grande do Sul na la sessão da 9a legislatura, pelo conselheiro Joaquim
Antão Fernandes Leão, Typ. do Correio do Sul, Porto Alegre, 1860.
LEÃO, Joaquim Antão Fernandes, Relatório que o conselheiro Joaquim Fernandes Leão,
presidente da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, apresentou à Assembléa
Legislativa da mesma Provincia na sessão extraordinaria de 1861. Typ. do Correio
do Sul, Porto Alegre, 1861.
LEMOS, Francisco de Faria, Relatório com que o Exmo. Snr. Desembargador Francisco
de Faria Lemos passou a administração da Provincia ao Exmo. Snr. Dr. João Chaves
Campelto, 2° vice-presidente, no dia 10 de fevereiro de 1878, Typographia do Jornal
do Commercio, Porto Alegre, 1878.

369
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

LIMA, Francisco Xavier Pinto, Relatório com que o Excellentissimo senhor conselheiro
Francisco Xavier Pinto Lima abria a la sessão da 14 a legislatura da Assembléa
Legislativa Provincial em 14 de Março de 1871, Typ. do Rio-Grandense, Porto Ale-
gre, 1871.
LIMA, Francisco Xavier Pinto, Relatório com que o Exmo. Snr. Conselheiro Francisco
Xavier Pinto Lima passou a administração desta Provincia ao Exmo. Snr. Coronel
João Simões Lopes, 10 vice-presidente, no dia 24 de maio do ano de 1871, Typ. do
"Rio Grandense", Porto Alegre, 1871.
LIMA, José Antônio de Souza, Falla dirigida à Assembléa Legislativa pelo presidente
Conselheiro José António de Souza Lima na la sessão da 21 a Legislatura, Typ. do
Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1883.
LIMA, José Antonio de Souza, Relatório com que S. Excia. o Snr. Conselheiro José Anto-
nio de Souza Lima passou a administração da Provincia do Rio Grande do Sul em 10
de junho de 1883 ao Exmo. Snr. Dr. Meandro Rodrigues Fontes 1° Vice-presidente,
Typ. do ''Jornal do Commercio", Porto Alegre, 1883.
USBOA, Bento Luiz de Oliveira, Relatório apresentado ao Il/mo. e Exmo. Snr. Dr. Rodrigo de
Azambuja Vil/a Nova, vice-presidente da Provincia do Rio Grande do Sul, pelo conselhei-
ro Bento Luiz de Oliveira Lisboa, por occasião de passar-lhe a administração da mesma
Provincia em 25 de abril de 1887, Off. Typ. do Conservador, Porto Alegre, 1887.
LOPES, João Simões, Relatório com que o Exmo. Snr. 1° vice-presidente da Provincia
Coronel João Simões Lopes, passou a administração da mesma ao 20 , Exmo. Snr. Dr.
João Dias de Castro, no dia 12 de setembro de 1871, Typographia do Rio-Grandense,
Porto Alegre, 1871.
LUCENA, Henrique Pereira de, Falla apresentada à Assembléa Legislativa Provincial do
Rio Grande do Sul pelo Presidente da Província o Exmo. Snr. Desembargador Henrique
Pereira de Lucena ao instalar-se a 2a sessão da 21 a legislatura em 7 de março de 1886,
Of. Typ. "O Conservador", Porto Alegre, 1887.
LUCENA, Henrique Pereira de, Relatório apresentado pelo Exmo. Snr. Desembargador
Henrique Pereira de Lucena, presidente da Provincia do Rio Grande do Sul a S. Excia.
o Snr. Marechal de Campo Manoel Deodoro da Fonseca, la vice-presidente ao pas-
sar-lhe a administração da mesma Provincia em 8 de maio de 1886, OH. Typ. do
Conservador, Porto Alegre, 1887.
MACIEL, Leopoldo Antunes, Relatório apresentado por S. Excia. o Snr. Dr. Leopoldo
Antunes Maciel, 10 vice-presidente, ao entregar a administração da provincia de São
Pedro do Rio Grande do Sul ao Exmo. Snr. Conselheiro José Antonio de Souza Lima,
no dia 28 de outubro de 1882, Typ. do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1883.
MELLO, Francisco Ignacio Marcondes Homem de, Falla dirigida à Assembléa Legislativa
da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul pelo presidente Dr. Francisco Ignacio
Marcondes Homem de Mello, em a segunda sessão da 12a legislatura, Typ. do Rio
Grandense, Porto Alegre, 1867.

370
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

MELLO, Francisco Ignacio Marcondes Homem de, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr.
Francisco 1. Marcondes Homem de Mello passou a administração d'esta provincia ao
excellentissimo senhor doutor Joaquim Vieira da Cunha, 1° vice-presidente, no dia
13 de abril do ano de 1862, Typ. do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1868.
MELLO, Jeronimo Martiniano Figueira de, Falla dirigida à Assembléa Legislativa da
Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul pelo presidente Conselheiro Jeronimo
Martiniano Figueira de Mello em a segunda sessão da 14a legislatura, Typ. do Rio-
Grandense, Porto Alegre, 1872.
MELLO, Jeronimo Martiniano Figueira de, Relatório com que o Exmo. Snr. Conselheiro
Jeronimo Martiniano Figueira de Mello presidente desta provincia passou a adminis-
tração da mesma ao Exmo. Snr. Dr. José Fernandes da Costa Pereira Junior, no dia 11
de julho de 1872, Typ. da Constitucional, Porto Alegre, 1872.
MENDONÇA, Joaquim Jacintho de, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Joaquim Jacintho
de Mendonça, 3° vice-presidente, passou a administração da provincia do Rio Gran-
de do Sul ao Exmo. Snr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova em 27 de janeiro de
1888. Officinas Typographicas do Conservador, Porto Alegre, 1888.
MORAES, João Pedro Carvalho de, Falla com que o Exmo. Snr. Dr. João Pedro Carvalho
de Moraes Presidente da Provincia abroa a sessão da 15a Legislatura da Assembléa
Legislativa Provincial no dia 1° de março de 1873, Typ. do "Constitucional", Porto
Alegre, 1873.
MORAES, João Pedro Carvalho de, Falla dirigida à Assembléa Legislativa da Provincia
de S. Pedro do Rio Grande do Sul pelo presidente Dr. João Pedro Carvalho de Moraes
em a segunda sessão da 12a legislatura, Typ. do Rio Grandense, Porto Alegre, 1874.
MORAES, João Pedro Carvalho de, Falla dirigida à Assembléa Legislativa da Provincia
de S. Pedro do Rio Grande do Sul pelo presidente Dr. João Pedro Carvalho de Moraes
em a primeira sessão da 16a legislatura, Typ. do "Rio Grandense", Porto Alegre,
1875.
MURITIBA, barão de, Relatório com que o conselheiro barão de Muritiba entregou a
presidencia da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao Exmo. Snr. Presidente
e commandante das armas, conselheiro, e general Jeronymo Francisco Coelho, no
dia 28 de abril de 1856, Typ. do Mercantil, Porto Alegre, 1856.
OLIVEIRA, Antonio Corrêa de, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Antonio Corrêa de
Oliveira presidente desta Provincia passou a administração da mesma, ao Exmo. Snr.
DT. Henrique d'Avila a 19-4-1880, Typ. de A Reforma, Porto Alegre, 1880.
PEREIRA JUNIOR, José Fernandes da Costa, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. José
Fernandes da Costa Pereira Junior presidente desta Provincia passou a administração
da mesma, ao Exmo. Snr. Dr. João Pedro Carvalho de Moraes, no dia 1 de Dezembro
de 1872, Typ. do Constitucional, Porto Alegre, 1873.
PIMENTEL, Esperidião Eloy de Barros, Relatório apresentado pelo presidente da
Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, Dr. Esperidião Eloy de Barros Pimentel,

37 1
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

na la sessão da ll a Legislatura da Assembléia Provincial, Typ. do Correio do Sul,


Porto Alegre, 1864.
PIMENTEL, Esperidião Eloy de Barros, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Esperidião
Eloy de Barros Pimentel, passou a administração da Provincia do Rio Grande do Sul
ao Exmo. Snr. 2° vice-presidente commendador Patrício Corrêa da Câmara, Typ. do
Correio do Sul, Porto Alegre, 1864.
PIMENTEL, Joaquim Galdino, Falla que o Exmo. Snr. Dr. Joaquim Galdino Pimentel
presidente da Provincia dirigia à Assembléa Legislativa da Provincia de S. Pedro do
Rio Grande do Sul por occasião de ser instalada a la sessão da 23 a legislatura em 1°
de março de 1889, Officinas Typographicas do Conservador, Porto Alegre, 1889.
ROCHA, Francisco de Assis Pereira, Relatório apresentado pelo presidente da Provincia
de S. Pedro do Rio Grande do Sul desembargador Francisco de Assis Pereira Rocha na
la sessão da 1aa legislatura da Assembléia Provincial, Typographia do Jornal "A Or-
dem", Porto Alegre, 1862.
ROCHA, Francisco de Assis Pereira, Relatório com que o desembargador Francisco de
Assis Pereira Rocha entregou a presidencia da provincia de São Pedro do Rio Grande
do Sul ao Exmo. Snr. vice-presidente o commendador Patricio Corrêa da Câmara, no
dia 18 de dezembro de 1862, Porto Alegre, 1865.
SERTORIO, João, Falla dirigida à Assembléa Legislativa da Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul pelo presidente Dr. João Sertorio, em a la sessão da 13 a legislatura,
Typ. do "Rio-Grandense", Porto Alegre, 1869.
SERTORIO, João, Relatório com que o excellentissimo Snr. Dr. João Sertorio, presidente
d'esta Provincia, passou a administração da mesma ao Exmo. Snr. Dr.João Capistrano
de Miranda e Castro, 1° vice-presidente, no dia 29 de agosto de 1870, Typ. do Rio
Grandense, Porto Alegre, 1870.
SILVA, Antonio da Costa Pinto, Relatório com que o Snr. Dr. Antonio da Costa Pinto
Silva presidente d'esta Provincia passou a administração da mesma ao Exmo. Snr.
Dr. Israel Rodrigues Barcellos, no dia 20 de maio de 1869, Typ. do Rio-Grandense,
Porto Alegre, 1869.
SILVA, Felisberto Pereira da, Falia dirigida à Assembléa Legislativa da Provincia de S.
Pedro do Rio Grande do Sul pelo presidente Dr. Felisberto Pereira da Silva em a la
sessão da 18a Legislatura, Typ. do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1879.
SILVA, Felisberto Pereira da, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Felisberto Pereira da
Silva passou a administração da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao Exmo.
Snr. Dr. Carlos Thompson Flores no dia 19 de julho de 1879, Typ. da Livraria Ame-
ricana, Pelotas, 1880.
SINIMBU, João Lins Vieira Cansansão de, Relatório do Presidente da Provincia de S. Pedro
do Rio Grande do SulJoão Lins Vieira Cansansão de Sinimbu na abertura da Assembléa
Legislativa Provincial em 6 de outubro de 1853, Typ. do Mercantil, Porto Alegre,
1853.

372
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

SINIMBU, João Lins Vieira Cansansão de, Relatório do Presidente da Provincia de S. Pedro
do Rio Grande do Sul João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu, na abertura da
Assembléa Legislativa Provincial em 2 de outubro de 1854, Typ. do Mercantil, Porto
Alegre, 1854.
SINIMBU, João Lins Vieira Cansansão de, Relatório com que o Dr. João Lins Vieira
Cansansão de Sinimbu entregou a presidencia da Provincia de S. Pedro do Rio Gran-
de do Sul ao vice-presidente Dr. Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, no dia 30 de ju-
nho de 1855, Porto Alegre, 1855.
SOARES, Joaquim Pedro, Falla com que o Exmo. Snr. Dr. Joaquim Pedro Soares, 2° vice-
presidente da Provincia, abrio a la sessão da 19a legislatura da Assembléa Legislativa
Provincial no dia 7 de março de 1881, Typ. da Reforma, Porto Alegre, 1881.
SOARES, Joaquim Pedro, Relatório com que o Exmo. Snr. Dr. Joaquim Pedro Soares pas-
sou a administração da Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul ao Exmo. Snr. Dr.
José Leandro de Godoy e Vasconcellos, a 27 de fevereiro de 1882, Typ. do "Conser-
vador", Porto Alegre, 1882.
SOUZA, Guilherme Xavier, Relatório com que o excellentissimo Snr. Marechal de Cam-
po Guilherme Xavier de Souza passou a administração desta Provincia ao Exmo. Snr.
Dr. Israel Rodrigues Barcellos, 1° vice-presidente da mesma, no dia 1° de agosto de
1868, Typ. do Rio Grandense, Porto Alegre, 1868.
VASCONCELLOS, José Leandro de Godoy e, Relatório apresentado por S. Excia. o Snr.
Presidente Dr. José Leandro de Godoy e Vasconcellos ao passar a administração desta
Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul, em 9 de setembro de 1882 ao Exmo. Snr.
Dr. Leopoldo Antunes Maciel, 1° vice-presidente, Typ. do Mercantil, Porto Alegre,
1881.
VILLANOVA, Rodrigo de Azambuja, Relatório apresentado ao Illmo. e Exmo. Snr. Dr.
Joaquim Jacintho de Mendonça, 3° vice-presidente, por S. Excia. o Snr. Dr. Rodrigo
de A Villanova, ao passar-lhe a administração da Provincia de São Pedro do Rio Grande
do Sul, em 27 de outubro de 1887, OH. Typ. do Conservador, Porto Alegre, 1888.
THECLA, barão de Santa, Falla que à Assembléa Legislativa Provincial de São Pedro do
Rio Grande do Sul dirigio o Exmo. Snr. Barão de Santa Thecla, vice-presidente da
Provincia ao installar-sea 2a sessão da 22 a legislatura em 27 de janeiro de 1888, Typ.
do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1889.
THECLA, barão de Santa, Falla que à Assembléa Legislativa Provincial de São Pedro do
Rio Grande do Sul dirigio o Exmo. Snr. Barão de Santa Thecla, vice-presidente da
Provincia, e Relatório com que o Exmo. Snr. Barão de Santa Thecla 1° vice-presiden-
te passou a presidencia da Provincia de São Pedro do Rio Grande do Sul ao Exmo.
Snr. Dr. Joaquim Galdino Pimentel, Presidente da Provincia em 8 de dezembro de
1888, Typ. do Jornal do Commercio, Porto Alegre, 1889.

373
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

JORNAIS E REVISTAS

A Discussão, PeJotas, 1-7-1884 a 31-12-1884.


A Federação, Porto Alegre, 1883-1884; 1° semestre de 1888.
A Idéia, Pelotas, 10-11-1878 a 2-3-1879.
A Ordem, Porto Alegre, 1861-1862.
A Penna, Pelotas, 6-7-1884 a 30-11-1884.
Arauto das Letras, Pelotas, 6-8-1882 a 7-6-1883.
A Reforma, Porto Alegre, 1-3-1884 a 7-9-1884,1-3-1888 a 19-5-1888.
A Tribuna Rio Grandense, Rio Grande, 1853.
A Ventarola, Pelotas, 1887-1888.
A Voz do Escravo, Pelotas, 1881, nOS 1-13.
Boletim do Centro Rio Grandense de Estudos Históricos, Rio Grande, nOs 1, 2 e 3.
Boletim Municipal, Porto Alegre, nOs 8, 9, 12-16, 19 e 20.
Cabrion, Pelotas, fevereiro de 1879 a 26-6-1881.
Correio de Pôrto Alegre, Porto Alegre, nOs esparsos de 1849, 1851 e 1852.
Correio do Sul, Porto Alegre, 15-10-1852 a 1-1-1853.
Diário de Pelotas, Pelotas, 4-1-1876 a 30-12-1876.
Jornal do Commercio, Porto Alegre, de 1-1-1888 a 31-5-1888.
"Jornaes do Rio Grande do Sul", coleção Agostinho José Lourenço, Biblioteca Rio
Grandense, Rio Grande, vaIs. 40, 41, 42, 44, 45, 47, 48, 59, 80.
Mercantil, Porto Alegre, 1-7-1884 a 15-9-1884.
O Artilheiro, Pelotas, 7-4-1849 a 31-12-1851.
O Caixeiro, Porto Alegre, 1873-1874 (nOs 1-13).
O Commercio, Porto Alegre, nOs esparsos de 1841.
O Conservador, Porto Alegre, 1-7-1884 a 31-12-1884; 1-5-1888 a 20-5-1888.
O Exemplo, Porto Alegre, 1892-1895 (nOs 1-54 e nOs esparsos de 81-148).
O Farrapo, Pelotas, 7-5-1889 a 4-8-1889.
O Gratis de Pelotas, 1-7-1859 a 31-8-1859.
O Guahyba, Porto Alegre, 1856 (nOs 1-22).
O Imparcial, Porto Alegre, 1845.
O Mestre Barbeiro, Porto Alegre, 1835 (nOs 1-32).
O Pelotense, Pelotas, 7-1-1852 e 21-3-1855.
O Pervigil, Pelotas, 2-7-1882 a 13-5-1883.
O Porto Alegrense, Porto Alegre, nOs esparsos de 1849.
O Povo, Piratini, 1838-1840 (nOs 1-160).
O Século, Porto Alegre, 1883-1884 (nOs 108 a 206).
Progresso Litterario, Pelotas, nOs esparsos de 1877.
Provincia de São Pedro, edição da Livraria do Globo, Porto Alegre, nOs 3, 8, 10, 11, 15,
16 e 19.

374
CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL

"Rebuscos", recortes de jornais, Biblioteca Rio Grandense, Rio Grande, vaI. 5.488, es-
tante 2.
Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, nO 1, ano I, 1921 a nO 18, 1925; Revis-
ta do Museu e Archivo Publico, nO 19, 1927 a nO 24, 1930.
Revista do Instituto Historico e Geographico do Rio Grande do Sul (coleção completa).
Revista do Museu Júlio de Castilhos e Arquivos Históricos do Rio Grande do Sul, Secreta-
ria de Educação e Cultura, Porto Alegre, nOs 1 a 4.
Revista da Sociedade Parthenon Litterario, Porto Alegre, janeiro de 1872 a dezembro de
1875; 1877 e 1879.
Tribuna Litteraria, Pelotas, 1-1-1882,23-4-1882.
Tribuna Rio Grandense, Porto Alegre, nOs esparsos de 1855.
Tribuna Rio Grandense, Rio Grande, nOs esparsos de 1853, 1854 e 1855.
Zé Povinho, Pelotas, 7-1-1883 a 1-7-1883.

375
o texto deste livro foi composto em Sabon,
desenho tipográfico de Jan Tschichold de
1964, baseado nos estudos de Claude
Garamond e Jacques Sabon no século XVI,
em corpo 10/13,5. Para títulos e destaques,
foi utilizada a tipografia Frutiger, desenhada
por Adrian Frutiger, em 1975.

A impressão se deu sobre papel Chamois


fine 80g/m 2 pelo Sistema Cameron da
Divisão Gráfica da Distribuidora Record.
Considerado um dos mais importantes trabalhos de sociologia bra-

sileira do século XX, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional

apresenta uma análise dos processos de constituição e desagrega-

ção da sociedade escravocrata rio-grandense, vistos a partir da

situação social que o negro nela assumia. Neste livro, que foi sua

tese de doutorado, Fernando Henrique Cardoso faz uma aborda-

gem dialética da formação da sociedade escravista gaúcha e da

sua transformação, apoiado num extenso conjunto de dados

empíricos encontrados em censos, jornais da época, relatórios ofi-

ciais e relatos de viajantes. Ao demonstrar que os padrões estrutu-

rais que constituíam esse tipo de sociedade, bem como sua dinâ-

mica, são resultantes de um conjunto de ações e relações humanas

desenvolvidas em condições histórico-sociais concretas, o autor

reconstrói a totalidade social concreta que resultou da interação

entre senhores e escravos na sociedade gaúcha.

Publicado originalmente em 1962, este livro é fruto do progra-

ma de investigação sobre a sociedade escravocrata e o negro nos

estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, coordena-

do, entre 1955 e 1960, por Florestan Fernandes, pioneiro da "esco-

la paulista de sociologia". Nesses cinco anos, Fernando Henrique

Cardoso aplicou-se em levantar dados e estudar a situação social

dos negros no Brasil meridional com o objetivo de ampliar o co-

nhecimento sociológico sobre o preconceito racial no país.

ISBN 85-200-0635-3

9 788520006351

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