Você está na página 1de 10

Resumo Meditações Parte I e II:

A filosofia, para Descartes, é o estudo da sabedoria, uma ciência que abrange tudo quanto o homem pode
saber. Contudo, para que esse conhecimento seja assim, deve ser deduzido de causas primeiras.  Para
Descartes, a investigação sobre os princípios do conhecimento é a primeira parte da verdadeira metafísica,
esta que tem por desígnio pesquisar em que limites podem funcionar o intelecto humano e descobrir no
interior desse limite se é possível a obtenção de certezas. Assim, o filósofo tem como objetivo construir um
pensamento que seja capaz de conhecer as coisas em sua verdade, pretendendo através de seus escritos de
metafísica uma filosofia universal, capaz de fornecer conhecimentos seguros de todas as coisas. Para tanto,
esse pensamento deve estar alicerçado em um solo inabalável, beneficiado por “homens de bem”, que não se
deixaram deformar pelos prejuízos da Escola; pelos homens que não conduzem seu pensamento
exclusivamente através da lógica, mas que são capazes de raciocinar sobre coisas fáceis e simples e, deste
modo, bem conduzir sua razão para descobrir verdades até então ignoradas (PASCAL, 1990). Esse modo de
pensar oferece a possibilidade de o homem libertar-se das opiniões do senso comum e apossar-se dos seus
próprios juízos, através de um processo rigorosamente regrado.
O parágrafo acima esboça o programa metódico do pensamento cartesiano posto em obra com
suas Meditationes de prima philosophia, cujos motivos e intenções já se mostram declarados desde de sua
edição em 1641, como no seguinte documento:
Faz alguns anos já, dei-me conta de que admitira desde a infância muitas coisas falsas por verdadeiras e de
quão duvidoso era o que depois sobre elas construí. Era preciso, portanto, que, uma vez na vida, fossem
postas abaixo todas as coisas, todas as opiniões em que até então confiara, recomeçando dos primeiros
fundamentos, se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências. Mas, como
tal se me afigurasse uma vasta tarefa, esperava alcançar uma idade que fosse bastante madura, que nenhuma
outra se lhe seguisse mais apta a executá-la. Por isso, adiei por tanto tempo que, de agora em diante, seria
culpado, se consumisse em deliberar o tempo que me resta para agir. É, portanto, em boa hora que, hoje, a
mente desligada de todas as preocupações, na serenidade segura deste retiro solitário, dedicar-me-ei por fim a
derrubar séria e genericamente minhas antigas opiniões (DESCARTES, 2004, p. 23).
A passagem mostra aquilo que é o propósito primeiro do exercício cartesiano, a busca de um solo seguro
sobre o qual seria possível edificar todo e qualquer conhecimento científico. Para isto, efetua-se o que o autor
chama de inspeção do espírito (mentis inspectio) sobre os conhecimentos pré-concebidos, tendo por intuito
sondar sua confiabilidade. Tal exame dispõe-se a suspender a validade de todo saber que se constrói como
mera opinião e sua pretensa legitimidade, dando crédito apenas àquilo que pudesse se estabelecer como um
saber sólido. Diante da amplitude desta tarefa, que requisitaria uma longa verificação de todos os
conhecimentos em questão; e da indisponibilidade de tempo hábil para sua execução plena, urge a
necessidade de um método que conduziria o espírito na busca da verdade das ciências.
O caminho constituído pelo método perfaz-se a partir do exame daquilo que nos vem mediado pelos pré-
conceitos e opiniões, i. e, crenças herdadas de maneira irrefletida, podendo conter erros que, uma vez
tomados equivocamente por certas, fariam fracassar o empreendimento da ciência, como um edifício que rui
por ter suas bases minadas. Para evitar isto, Descartes cria um recurso que será utilizado em boa parte das
meditações: a dúvida.
Durante a Primeira Meditação, em seus §§ 1-3, Descartes apresenta aquele que é um dos mecanismos mais
importantes do seu método, o princípio da dúvida. Segundo M. Gueròult (1968), com esta, Descartes duvida
do valor de verdade dos conhecimentos, em uma medida preventiva aos erros a que estamos sujeitos por
meio de nossa apreensão sensível. Para o autor, enganos são imediatamente oriundos da imperfeição dos
sentidos, fonte de onde provêm a maioria desses conhecimentos. Deste modo, Descartes, por medida de
segurança, não se permite assumir nenhuma pretensa certeza, nem mesmo quanto às ciências exatas como a
matemática. Utilizando esse princípio, Descartes descrê de tudo que pode ser posto em dúvida.Tal figura
apresenta-se e justifica sua utilidade já na sinopse das Meditações, na qual encontramos as seguintes
assertivas:
Expõe-se na Primeira Meditação as causas por que podemos duvidar de todas as coisas, principalmente das
materiais, ao menos enquanto os fundamentos das ciências não forem diversos dos que temos até agora. E,
mesmo que a utilidade de uma dúvida tamanha não apareça de imediato, é ela, no entanto, muito grande por
deixar-nos livres de todos os preconceitos, por aplainar um caminho em que a mente facilmente se desprenda
dos sentidos e por fazer, enfim, que já não possamos duvidar das coisas que, em seguida se descubram
verdadeiras (DESCARTES, 2004, p. 19).
Com a dúvida, o autor pode mobilizar os argumentos que constituem sua investigação. Assim, a Primeira
Meditação é inteiramente dedicada à apresentação desta dúvida, que pode ter suas características elencadas
assim:
a)    metafísica: não é uma adjetivação gratuita. Aponta para a ordem das razões e ao encadeamento com suas
proposições. A dúvida em sua funcionalidade tem papel metódico, sendo peça indispensável ao que
Descartes chamou de método de análise. Para o autor, “o método se resume em ordenar os objetivos quais
devemos concentrar o olho de nosso espírito para descobrir o verdadeiro”
(DESCARTES apud COTTINGHAM, 1995). Sendo, assim, o procedimento analítico partindo dos efeitos,
regredindo das idéias complexas às simples, tornando clara e distinta a percepção das noções primeiras em
contraste com as opiniões;
b)   deliberada:  a dúvida cartesiana não é espontânea. Difere, assim, da dúvida vulgar por não a sofremos
como quem vacila entre uma ou outra opção. Ela é convencionada, produto de um ato de vontade. Assim, o
autor, decididamente, se reserva o direito de negar todo conhecimento que ofereça a menor possibilidade de
incerteza, duvidando. Afirmar que a dúvida é deliberada não significa dizer que ela é arbitrária, tampouco
uma afecção cética, pois, na dúvida, opta-se por não acatar as proposições que se nos apresentam
imediatamente, evitando qualquer juízo prévio. Destarte, a dúvida é o que permite a liberdade do meditador
não assumir o duvidoso por certo;
c)    hiperbólica: a dúvida é propositadamente exagerada. É uma hipérbole; isto quer dizer que, ao examinar o
conteúdo dos conhecimentos, ela amplia seu raio de ação, tomando o incerto já como duvidoso e o duvidoso
por falso, suspendendo, antecipadamente, sua validade, assumindo, a partir de uma generalização, sempre por
enganador aquilo que pode enganar uma vez.
O exagero da dúvida tem seu porquê, visa a reverter a inclinação às opiniões ordinárias, tomando o partido
contrário,[2] fazendo que as inclinações que tendem para o lado do dogma, possam receber uma força para
seu oposto, assumindo, após esta operação, a média áureaentre estes dois pontos. É isto que Descartes ilustra
na seguinte passagem:
Eis porque creio não esteja agindo mal, se, entrando voluntariamente numa direção de todo contrária, passe a
me enganar a mim mesmo e finja por algum tempo que essas opiniões são de todo falsas ou imaginárias, até
que, finalmente, os pesos das duas ordens de preconceitos tendam, por assim dizer, a igualar-se e já nenhum
mau hábito desvie meu juízo da reta percepção das coisas (DESCARTES, 2004, p. 31).
Acrescente-se, ainda o fato de a dúvida ser:
d)   sistemática: ao seguir-se intrinsecamente aos argumentos das meditações; e
e)    retrospectiva: atuando sempre em um conhecimento efetivo, isto é, já dado.
Usando dessas premissas é que Descartes aplica sua dúvida sobre aqueles que supostamente seriam os
conhecimentos e os meios pelos quais estes chegam a nós, a saber: pelos sentidos. O autor se vale de uma
imagem que se pretende imediata à intelecção do seu leitor: “Por exemplo, que agora estou aqui, sentado
junto ao fogo, vestindo esta roupa de inverno, tendo este papel às mãos e coisas semelhantes”
(DESCARTES, 2004). Abstração que poderia ser trazida para um exemplo ainda mais próximo de nós
quando afirmamos que eu esteja aqui, em pé junto à lousa, vestindo uma camisa listrada com um lenço no
bolso enquanto dou aula, ou que nós estejamos sentados em classe diante do livro-texto empunhando a
caneta. Descartes argumenta que duvidar disso sem um motivo seria equiparar-se a loucos; contudo, o fato de
sermos humanos, possuindo a necessidade de dormir e ao dormir sonharmos, seria motivo suficiente para
duvidarmos se o que acontece _ agora _ seria realidade ou sonho, que poderíamos estar enganados pensando-
nos dispostos quando, na realidade, apenas representamos estas experiências em sonhos, pois, “com que
freqüência, o sono noturno não me persuadiu dessas coisas usuais, isto é, que estava aqui, vestindo esta
roupa, sentado junto ao fogo, quando estava, porém, nu, deitado entre as cobertas!” (DESCARTES, 2004).
O “argumento do sonho”, como ficou conhecido, busca atuar sobre a veracidade dos juízos feitos a partir dos
sentidos, seus conteúdos e mesmo a fonte destes conhecimentos. Este argumento assevera que não há nada na
realidade que nos garanta que esta não seja ilusória como num sonho ou que “vejo do modo mais manifesto
que a vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor
quase me confirma na opinião de que estou dormindo” (DESCARTES, 2004).
Contudo, o autor argumenta que, embora não seja real o que há no sonho, o conteúdo do sonhado possui
elementos reais. Isto se confirmaria observando que, ao sonharmos, representamos coisas tais quais estas se
manifestam no real, e, por mais que fossemos inventivos, o bastante para representarmos criaturas como
sereias, centauros etc., ou se criássemos através da imaginação algo tão extraordinário de modo a nunca
termos visto algo parecido, pelo menos as formas e as cores desta figura seriam reais, bem como sua
extensão, quantidade, duração e lugar que ocupa no espaço. Estas seriam, para o autor, evidências de que
ciências, como a física, a medicina e outras que se ocupariam dessas, poderiam incorrer em incertezas por
depender dessas noções complexas. Diferentemente, a aritmética e a geometria, que tratariam de coisas muito
simples e gerais e que, por sua essência matemática, não estariam sujeitas à dúvida, pois, quer eu esteja
acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o numero cinco e o quadrado nunca terá
mais do que quatro lados (…). Descartes (2004) assevera que isto não pode estar submetido a alguma
falsidade ou incerteza, não se submetendo a dúvida hiperbólica pelo recurso do argumento do sonho.
Entretanto, na carta a Mesland, datada de 2 de maio de 1644, Descartes (1970) ressalta que, nosso espírito,
por mais atento que seja, sempre se distrai das razões que não fazem conhecer as coisas de maneira
apropriada. Isto seria motivo para duvidar, suspendendo nossos juízos. Com isto, o autor pode apontar uma
razão para duvidar até mesmo das idéias matemáticas, por exemplo, dado a estas em sua exatidão ainda não
serem plenamente evidentes.
Assim, o próximo passo das Meditações é submeter mesmo às idéias matemáticas, inicialmente resguardadas
em seu poder de persuasão, também a dúvida. Destarte, cogita-se a hipótese de Deus, sendo aquele que, entre
suas perfeições, contaria com a onipotência, me enganar a todo instante. O autor formula este argumento da
seguinte maneira:
(…) tenho uma certa velha opinião que há um Deus, que pode todas as coisas e pelo qual fui criado tal qual
existo. Mas, de onde sei que ele não tenha feito que não haja de todo terra alguma, céu algum, coisa externa
alguma, figura alguma, grandeza alguma, lugar algum e que não obstante eu sinta todas estas coisas e que, no
entanto, todas elas não me pareçam existir diferentemente de como me aparecem agora? Mais: do mesmo
modo que julgo que os outros às vezes erram acerca de coisas que presumem saber á perfeição, não estaria eu
mesmo de igual maneira errando, cada vez que adiciono dois a três ou conto os lados do quadrado ou faço
outra coisa que se possa imaginar ainda mais fácil? (DESCARTES, 2004, p. 29).
O argumento busca sustentar que Deus, do mesmo modo com que criou os homens, poderia enganá-los
sempre, fazendo que absolutamente tudo que afirmarmos, até mesmo as idéias simples da matemática
estivessem sujeitas à dúvida. Afinal, quem asseguraria ao meditador que um triângulo teria, verdadeiramente,
três lados? Também esta representação poderia ser enganosa se Deus, onipotente, engana.
No argumento do Deus enganador, Descartes convoca a figura divina para endossar seu sistema de idéias.
Entretanto, para o próprio filósofo, este argumento, tal como formulado, ainda não é de todo efetivo. Pois
poderia receber a objeção de que a Deus, perfeito em sua essência, não se poderia atribuir o predicado de
enganador, ou de embusteiro. Considerando que perfeição é atributo das coisas acabadas (isto é, das que nada
falta ou falha) e que a idéia de Deus, para Descartes, não só e plena, mas a “soma de todas as perfeições, isto
já seria suficientemente persuasivo para refutar, por contradição, a idéia de um Deus, que, ao enganar, falha;
ou seja, que incorre na imperfeição de faltar com a verdade” (DESCARTES apudCOTTINGHAM, 1995).
Esse argumento pode ser expresso, em outras palavras, assim: ora, se Deus é considerado perfeito, não
poderia sofrer dessa imperfeição; logo, Deus não pode ser enganador. A dúvida introduzida por Descartes na
crença da existência de Deus não é cabida e sucumbe ao seu próprio caráter duvidoso. Esse argumento nos
deixa transparecer que, ainda em Descartes, vige a verdade enquanto adequação (adequatio), consagrada
durante toda a filosofia medieval. Prova disso é que o autor se preocupa com que aquilo que seja a realidade
venha até ele tal qual realmente é, e não como uma representação ou sob o efeito de qualquer outra
interferência.
Este problema argumentativo se remedeia quando o autor, desconsiderando a hipótese de Deus falhar,
reformula o argumento, introduzindo outra figura: o gênio maligno.
A justificativa de Descartes se constrói da seguinte maneira: Deus é onipotente, o que confirma que pode,
inclusive, enganar-nos. Contudo, este também é perfeito e, como tal, não incorreria na falta de enganar-nos.
Isto permite afirmar que, embora Deus possa nos enganar, ele não o quer, por ser perfeito e bom. No entanto,
nos enganamos e, se Deus não nos engana talvez outra coisa o faça. Dizendo com o autor: “Suporei, portanto,
que há não um Deus ótimo, fonte soberana da verdade, mas algum gênio maligno e, ao mesmo tempo,
sumamente poderoso e manhoso, que põe toda a sua indústria em que me engane” (DESCARTES, 2004).
Assim, o gênio maligno é um artifício psicológico que aparece no texto no intuito de eximir Deus da hipótese
de ser um embusteiro. Ao gênio maligno, sim, podemos atribuir a alcunha de enganador e, com este
argumento, presenciamos a dúvida estendida a todo e qualquer juízo possível, quadro que inspira cuidados
quanto ao fato de não tomarmos nada por certo e indubitável, posto que estaríamos tentados a recolher nossas
opiniões pregressas, uma vez que estas se tornaram familiares devido à longa convivência que antecedeu a
dúvida sistemática. Do mesmo modo, impedido de ignorar o exercício elaborado até então que teriam
revelado o quão incerto é o conhecimento possível ao homem, como águas que, uma vez agitadas, trazem à
tona suas impurezas agora suspensas em turbidez, apontando a necessidade do tratamento exaustivo do tema
e problemas.
Tendo sido a dúvida universalizada com o argumento do gênio maligno, Descartes aponta a impossibilidade
do exercício, iniciado com a Primeira Meditação, ser interrompido. Interromper neste ponto, no qual a dúvida
atua de fato sobre tudo, seria incorrer na impossibilidade de qualquer outra enunciação que se pretenda
científica, ou seja, todo conhecimento reto permaneceria embargado pela iminência desta dúvida
implacável. Isto seria motivo suficiente para dar prosseguimento às meditações que, em seu estado atual
supõe-se “(…) falsas todas as coisas que vejo: creio que nunca existiu nada do que a memória mendaz
representa; não tenho nenhum dos sentidos todos; corpo, figura, extensão, movimento e lugar são quimeras.
Que será, então, verdadeiro?” (DESCARTES, 2004).
Esta proposição resumida traz o saldo parcial do balanço da investigação cartesiana, descrevendo que o
meditador não pode asseverar nada por enquanto, sob pena de que qualquer afirmativa seja reconduzida ao
engano, dada a ação do “grande embusteiro”. Contudo, é deste exato ponto que parte o próximo argumento.
Descartes está irresistivelmente inclinado a aceitar que é enganado, persuadido de que é burlado a cada
instante em que é. Do mesmo modo que, em cada vez que se engana, duvida; e que, ao duvidar, é alguma
coisa. Afinal, se o enganador engana, o faz com algo ou alguém. Descartes vê nisso a evidência necessária
para afirmar que, enquanto duvida (o que já seria uma forma de pensar), esteja enganado ou não; ele próprio,
efetivamente, é. Ou seja, enquanto penso, duvido, ou, mesmo, sou enganado; “eu sou, eu existo” (Descartes,
2004) e isto é indubitável. Esta última proposição encontra sua clássica formulação como “penso, logo
sou”anos antes no Discurso do método (1637) em francês: “je pense donc je suis”, mais tarde nosPrincípios
de filosofia (1644), em latim, “cogito ergo sum”, é apontada como a primeira e mais certa verdade até agora.
Afirmar que se é (ou existe) na medida em que se pensa (ou duvida) é para o autor uma proposição
necessariamente verdadeira, pois essa resiste às objeções céticas e à dúvida. Uma vez que, posso duvidar de
tudo, menos de que sou, e mesmo enganado pelo gênio maligno, eu, ainda assim, sou (ou existo) como
aquele que é enganado.
O autor, tendo chegado à proposição de que é, ainda não sabe asseverar precisamente o que é (respeitando o
curso de suas meditações), pois:
Com efeito, ocorria-me, em primeiro lugar, que eu tinha um rosto, mãos, braços e toda essa máquina de
membros, que se percebe também em um cadáver e que eu designava pelo nome de corpo. Além disso,
ocorria que me alimentava, andava, sentia e pensava, ações que eu referia por certo a uma alma. Mas o que
essa alma era, ou não o notara ou, se me detinha em considerá-lo, imaginava um não sei que de diminuto, a
exemplo do vento ou do fogo ou de um éter, infuso em minhas partes mais grosseiras. Sobre o corpo não
tinha, na verdade, dúvida alguma e julgava conhecer-lhe a natureza distintamente. Tentava-se talvez
descrevê-la tal qual minha mente a concebia, explicava-o desta maneira: entendo por corpo tudo o que pode
terminar por alguma figura, estar circunscrito em algum lugar e preencher um espaço do qual exclui todo
outro corpo. É percebido pelo tato, pela vista, pelo ouvido, pelo gosto, pelo olfato e é, também, movido de
muitos modos, não em verdade por si mesmo, mas por um outro, que o toca e do qual recebe a impressão.
Pois, ter a força de mover-se a si mesmo, de sentir e de pensar, de modo algum julgava pertencer á natureza
do corpo. Ao contrário, ficava antes admirado de encontrar tais faculdades em certos corpos (DESCARTES,
2004, p. 47).
Do mesmo modo que atributo e faculdade eram tomados como pertencentes ao corpo e, logo em seguida, a
dúvida revelou que estas convicções se sustentariam apenas pela certeza sensível. Descartes se priva de
assumir qualquer resposta imediata para explicar o ser que é e seu modo de existir. Entre elas aquela que
pareceria mais óbvia, a de que é um homem. Contudo, esta resposta não decorre dos desdobramentos
necessários do argumento das meditações (construído de maneira análoga a uma expressão matemática que
exige obediência à ordem das operações a serem efetuadas).[3] Tal resposta é “importada” e diz mais do que
a pergunta quer saber, responde mais do que a resposta restrita possibilita, além de acrescentar uma
infinidade dificuldades quanto à noção complexa de homem, que Descartes (2004) considerou uma digressão
ao curso da Meditação.
A pergunta pelo que sou enquanto duvido só pode ter coerentemente a resposta: sou algo que duvida, ou sou
algo que é enquanto duvida (ou pensa). Daí a afirmativa de que:
Não sou essa compaginação destes membros, chamada de corpo humano; não sou também um ar sutil, infuso
nestes membros; não sou um vento, nem um fogo, nem um vapor, nem um sopro, nem algo que eu possa
formar em ficção, pois supus que tais coisas nada eram. Permanece, porém, a afirmação: eu mesmo sou, no
entanto, algo (DESCARTES, 2004, p. 49).
Ser algo pensante é o que sustentará, doravante, o argumento de Descartes. Convencido de que os sentidos
podem criar falsas impressões na medida em que corre o risco de estar dormindo (ainda sob a dúvida do
argumento do sonho), o autor pode avaliar como certo que o que apreende pelos sentidos, isto é, o que vê,
ouve e sente nada mais seria que algo que pensa ver, ouvir e sentir, ou, obedecendo à mesma “mecânica” do
argumento que conclui que existo, vê-se, ouve-se e sente-se na medida em que se pensa. O filósofo avalia
este ponto: “(…) começo a conhecer o que sou com um pouco mais de luz e de distinção do que
anteriormente” (DESCARTES, 2004).
É, precisamente, a partir deste “ponto de luz” que Descartes partirá para a inspeção das coisas comuns que
acreditamos compreender distintamente. Esse exame partirá dos corpos tal como apreendemos.
O conceito de corpo (corpus), tal como tratado por Descartes nas Meditações, possui três sentidos, referindo-
se, inicialmente, aos corpos em geral, como matéria ou substância extensa manifesta em três dimensões e
inscrita no universo físico; aos corpos em sua incidência individual, determinando um corpo, podendo este
ser um elemento da física, um ente concreto como uma rocha, um monte ou um planeta (corpo celeste) e,
ainda, como o corpo humano, em questão aqui: geralmente presente nas Meditações na forma distintiva
frente à mente, ligado aos sentidos e submetido ao pensamento (COTTINGHAM, 1995). No intuito de tratar
esse problema, Descartes não aborda os corpos de maneira geral; antes, toca um corpo em particular; usa,
assim, o exemplo do pedaço de cera. Esta inspeção deverá revelar que os corpos em sua natureza são mais
difíceis de serem conhecidos que o próprio ser pensante; este último doravante tratado como “cogito”.
Através da experiência feita com um corpo de cera que, em um primeiro momento apresenta uma série de
características naturais e, num segundo, após ter sido aproximado do fogo, sofre alterações físicas mudando
sua extensão (DESCARTES, 2004). Descartes investiga, para além dos acidentes, o que de substancial
haveria nesse, isto é, o que haveria de constante no corpo a ponto de podermos estabelecer uma relação de
identidade no seu primeiro estado com o segundo, reconhecendo-o como a mesma cera.
O mesmo corpo é visto em ambos os casos, sendo a mesma cera de antes do experimento. Entretanto, sua
percepção não é mais compreendida como algo dado puramente pelos sentidos “(…), não é um ato de ver, de
tocar, de imaginar, e nunca o foi, embora antes o parecesse, mas é uma inspeção só da mente, que pode ser
imperfeita e confusa, como antes era, ou clara e distinta, como agora, sendo presto menos ou mais atenção às
coisas de que se compõe” (DESCARTES, 2004).
Com esta afirmativa, o autor se encaminha a afirmar que o conhecimento dos corpos em suas propriedades,
visando, principalmente, à extensão, não ocorre por meio dos sentidos ou da imaginação (que poderia
representar diversas formas para a coisa), mas por outros meios, cujas causas mostrar-se-iam mais evidentes
e distintas. Descartes sustentará que os elementos que possui para comprovar a existência de objetos externos
ao espírito (como o pedaço de cera e o próprio corpo humano) com muito mais facilidade dão razão ao
conhecimento da natureza do ser pensante, do espírito, da mente.[4] Deste modo, o autor valida a tese que
nomeia a Segunda Meditação ao afirmar categoricamente que não há evidência maior e mais fácil de se
conhecer do que o próprio espírito, assegurando, ainda, que a descoberta da natureza do cogito pode
contribuir também para o esclarecimento da natureza das coisas que dependem do corpo.[5]
Gueròult considera isso de maneira pontual, ressaltando as verdades sobre as quais o conhecimento seguro
poderia futuramente edificar-se. Enfocando também o papel do espírito em face do corpo e dos sentidos:
Existo como coisa pensante, tal é a primeira verdade indubitável na ordem das razões. Mas a natureza não é
outra coisa do que o puro pensamento e a pura inteligência, excluindo todo elemento corporal, tal é a segunda
verdade que decorre imediatamente, segundo a ordem precedente. Eu me conheço, logo, em minha existência
e em minha essência e agora que, nela mesma, o corpo é rejeitado do saber e anulado pelo gênio maligno,
este permanece a mim desconhecido em sua existência e em sua essência. Donde concluo que, o corpo é
menos fácil de conhecer que a alma, porque a alma já é conhecida antes dele na ordem das razões tal é a
terceira verdade. Esta verdade, que resulta imediatamente da via de ordem, não tem nenhuma necessidade de
uma demonstração suplementar. Todavia, há uma grande diferença entre estar convencido e estar persuadido.
Ora, esta é uma verdade do entendimento puro, aquela que se opõe rigorosamente a uma persuasão nascida
de minha natureza, quer dizer, de minha alma unida substancialmente ao corpo, provando ao sentimento que
esta não fazia um com ele; sendo desde a imaginação uma tendência a crer que todos meus conhecimentos
provêm dos sentidos, que os corpos que posso ver, tocar, sentir são diretamente apreendidos sem o menor
concurso da inteligência; que eles são, primeiramente, desconhecidos e, por conseguinte, melhor conhecido
que a alma, aquele estado incorpóreo não seria o estar não sentido, o não tocado, nem visto, mas somente
pensado (GUERÒULT, 1968, pp. 119-120).
A descoberta do cogito como essência pensante da existência divorcia definitivamente a mente do corpo,
passando a ser, o segundo, um traço acidental deste que pensa. O eu pensante, agora capaz de
autodeterminar-se como aquele que é enquanto pensa, não depende (como poderíamos presumir) do
conhecimento dado a nós unicamente por meio dos sentidos (como atributos do corpo), pois mesmo este já
seria determinado mediatamente pelo espírito (BEYSSADE, 2001). Isto nos permite inferir que o
acontecimento do espírito é mais fácil de ser efetuado e comprovado por ser imediatamente dado pelo próprio
pensamento enquanto pensa, o que não ocorre em se tratando da idéia derivada e complexa de corpo, motivo
pelo qual o corpo permanece em suspenso, pela dúvida, até que possa ser afirmado, com certeza, na sexta
Meditação.
Pensar o espírito como coisa distinta e, ainda, independente do corpo é realmente inovador. Contudo, não
deixa de estar relacionado com o modo com que estas duas estruturas aparecem na tradição filosófica,
principalmente na escolástica. O próprio Descartes (1953) viabiliza esta avaliação quando, na carta de 30 de
julho de 1640, a Mersenne se aproxima da doutrina tomista ao defender a posição de que o homem é
composto de espírito e corpo, e não de um corpo usando o espírito.
Inúmeros são os momentos da obra de Descartes em que este aborda a diferença entre corpo e espírito;
autores como J. Marques exploram, de maneira minuciosa, a problemática de o autor pensar a união entre
alma e corpo, considerando este problema fundamental à própria compreensão de homem em Descartes
(MARQUES, 1993). Em verdade, esta mesma questão oferece para alguns comentadores problemas
derivados logicamente insolúveis no pensamento de Descartes. Como exemplo, podemos tomar a
possibilidade de pensarmos em mentes sem corpo, hipótese comentada por Cottingham (1999). Este sustenta
que, embora não existam mentes sem corpo, a filosofia de Descartes concede esta possibilidade, afirmativa
que causa desconforto entre os filósofos atuais, uma vez que hoje se sustentar que toda consciência é produto
de um sistema físico-orgânico e incorporado a ela. Tal situação pode ser traduzida em termos mais
pragmáticos com a seguinte analogia: conceber a hipótese da possibilidade da mente sem um cérebro (ou
qualquer estrutura física de natureza similar) seria defender idéia análoga a de que poderia haver a digestão
(compreendida, também como a mente por um produto fisiológico) sem o estômago ou coisa que a valha.
Guardando as devidas proporções que diferenciam os dois fenômenos, para a abordagem atual, orientada por
uma perspectiva neurologista, tal idéia se apresenta insustentável, embora perfeitamente viável pela
argumentação metafísica, feita por nosso autor. Os desdobramentos deste problema poderiam delongar-se por
mais tempo, o que optamos por não fazer neste trabalho.
Ao final da apresentação das duas primeiras Meditações (que partiram das trevas absolutas da incerteza para
a dúvida capaz de questionar todas as opiniões pré-concebidas, através do argumento do sonho que, como
exposto, pôs em dúvida os conhecimentos dados a partir do sentido e do conhecimento; a partir do sentido e
da hipótese do gênio maligno, decorrente do Deus enganador) encontrou-se um ponto de luz que nos
permitiria o conhecimento indubitável de si mesmo como algo que pensa.[6] Assim, tratou-se da natureza da
coisa de natureza corpórea, afirmando que a primeira é mais fácil de conhecer que a segunda.
Por que descartes considera importante a fundamentaçao do conhecimento cientifico?
Segundo ele o saber científico deveria ser usado em prol do desenvolvimento humano e a natureza deveria
ser transformada e modificada em benefício do homem. 
1.Qual o objetivo principal da filosofia de Descartes?
Defender a possibilidade do conhecimento científico refutando o ceticismo. 
"Defesa do novo modelo de ciência inaugurado na época, contra a concepção escolástica de inspiração
aristotélica em vigor no final da Idade Média.Defende que a nova ciencia se encontra no caminho certo,ao
passo que a antiga havia adotado concepções falsa e errôneas como exemplo do sistema geocêntrico.

2.Porque Descartes considera importante o fundamentação do conhecimento científico ? 


Considera que o conhecimento é possível,para isso é preciso organizar o fundamento em bases confiáveis
para alcança-lo. 

3.Qual o papel do Método de Descartes? 


O método visa por uma ordem , um caminho para garantir o sucesso de uma tentativa de conhecimento e da
elaboração de uma teoria científica. 

4.Por que Descartes julga necessário refutar os céticos? 


Descartes propõe encontrar uma certeza básica,imune às duvidas do céticos que possa servir de base e
fundamento para a construção de uma nova teoria científica. É preciso assim encontrar um ponto de
apoio,que possa servir de partida seguro para o processo do conhecimento. Descartes não exclui a duvida
cética , mas utiliza como parte do processo.

5.Formule com suas próprias palavras o argumento do cogito. 


Em busca de uma base , " a primeira verdade " .Descartes passa a duvidar de tudo mas de maneira
metódica,que o difere dos céticos.Então se duvida,é porque se pensa,se duvida porque pensa é porque de
fato se existe. 

6.Você considera este argumento bem-sucedido? 


Aqui,cabe a cada um julgar a teoria de Descartes, as criticas ajudarão na resposta. 

7.Qual o papel do sujeito pensante para Descartes ? 


O sujeito pensante deve duvidar , não tomar nada como verdade por aparência e sim usar de caminhos para
se chegar a verdade comprovando algo ou fato.(questão sujeita a correção) 

8.Oque significa " solipsismo"? 


É o isolamento do "eu" em relação a tudo mais,ao mundo exterior e ao próprio corpo,que também é um
elemento externo. Consequência do Cogito de Descartes que exige tais critérios que não são aplicados a
nada mais a não ser o próprio pensamento. 

9.Como se pode interpretar o individualismo no pensamento de Descartes? 


O simples fato de sermos dotados de idéias inatas,colocadas por Deus em nós onde a capacidade racional
dentro de nós mesmos leva o apontamento de Descartes como um dos idealistas do individualismo. 

10.Como entender a oposição mundo interior x mundo exterior na filosofia de Descartes? 


O mundo interior; o mundo do Cogito do pensamento que difere do mundo exterior onde Deus garante sua
existência,sendo ele mesmo o único capaz de garantir o conhecimento sobre o mundo.Deus esta entre o
interior(pensamento , Cogito ) e o exterior. 

11.Porque Descartes Precisa recorrer a uma prova sobre a existência de Deus ? 


Para superar as exigências radicais do idealismo e conceber algo exterior ao pensamento. Então ocorre
uma transferência do idealismo para o Realismo,com o argumento ontológico , provando a existência de
Deus.

Parágrafo 49:

Art. 49.: Que a força da alma não basta sem o conhecimento da verdade. Na verdade, há pouquíssimos
homens tão fracos e irresolutos que nada queiram senão o que suas paixões lhes ditam. A maioria tem juízos
determinados, segundo os quais regula parte de suas ações; e, embora muitas vezes tais juízos sejam falsos e
fundados mesmo em algumas paixões pelas quais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir,
todavia, como ela continua seguindo-os quando a paixão que os causou está ausente, podemos considerá-los
como suas armas próprias, e pensar que as almas são mais fortes ou mais fracas em virtude de poderem
seguir mais ou menos esses juízos e resistir às paixões presentes que lhes são contrárias59. Mas há,
entretanto, grande diferença entre as resoluções que procedem de alguma falsa opinião e as que se apoiam
tão-somente no conhecimento da verdade; visto que, se seguirmos as últimas, estamos certos de não ter
jamais do que nos lamentar nem arrepender, ao passo que o teremos sempre, se seguirmos as primeiras,
quando lhes descobrimos o erro.

No parágrafo seguinte (49), Descartes observa que "há pouquíssimos homens tão fracos e irresolutos que
nada queiram senão o que suas paixões lhes ditam". Isso, porém, não é tudo:

Há, entretanto, grande diferença entre as resoluções que procedem de alguma falsa opinião e as que se
apóiam tão-somente no conhecimento da verdade, visto que se seguirmos estas últimas estaremos certos de
não ter jamais do que nos lamentar nem arrepender, ao passo que o teremos sempre, se seguirmos as
primeiras, quando lhes descobrimos o erro.

O conhecimento moral é, pois, de capital importância para que a alma alcance o equilíbrio interior, pela
indispensável iluminação do processo de controle das paixões. E nesse particular o Espiritismo tem
contribuições de alta relevância para fazer. De modo pioneiro na história do pensamento, forneceu à moral
um embasamento seguro e objetivo, a partir da análise racional dos fatos da vida humana, vistos de uma
perspectiva muito ampliada e detalhada com relação àquelas do materialismo ou das religiões dogmáticas. À
luz do conhecimento espírita, o critério do bem e do mal, do certo e do errado, dos deveres e direitos, não é
mais uma questão de gosto, de prescrições, de cultura ou de época, nem se funda "em algumas paixões pelas
quais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir" (ibid., § 49). Resulta, antes, do exame objetivo
das conseqüências de nossas ações, com vistas à aproximação gradual da felicidade.[6]

Para exemplificar o raciocínio, consideremos as paixões do amor e do ódio, da humildade e do orgulho, da


piedade e da dureza, da esperança e do desespero, da coragem e do medo. Se perguntarmos quais delas
devem ser cultivadas e quais reprimidas, a resposta pressuporá um certo critério moral. Evidentemente existe
na humanidade terrena, em seu presente estado evolutivo, uma multiplicidade de critérios morais, capazes de
levar a diferentes classificações das paixões enumeradas. Há quem julgue, por exemplo, que a humildade
rebaixa a criatura; que a piedade é apanágio das almas frágeis; que a desesperança é a postura correta diante
da triste situação do mundo e da natureza humana...

Parágrafo 50: Que não existe alma tão fraca que não possa, sendo bem conduzida, adquirir poder absoluto
sobre as suas paixões. E é útil aqui lembrar que, como já foi dito mais acima, embora cada movimento da
glândula pareça ter sido unido pela natureza a cada um de nossos pensamentos desde o começo de nossa
vida, é possível todavia juntá-los a outros por hábito, assim como a experiência mostra nas palavras que
excitam movimentos na glândula, os quais, segundo a instituição da natureza, representam à alma apenas os
seus sons, quando proferidas pela voz, ou a figura de suas letras, quando escritas, e que, não obstante, pelo
hábito adquirido em pensar no que significam quando ouvimos o som delas, ou então, quando vemos suas
letras, costumam fazer conceber mais essa significação do que a figura de suas letras, ou então o som de suas
sílabas. É útil também saber que, embora os movimentos, tanto da glândula como dos espíritos e do cérebro,
que representam à alma certos objetos sejam naturalmente unidos aos que provocam nela certas paixões,
podem todavia, por hábito, ser separados destes e unidos a outros muito diferentes, e, mesmo, que esse hábito
pode ser adquirido por uma única ação e não requer longa prática. Assim, quando encontramos
inopinadamente uma coisa muito suja num alimento que comemos com apetite, a surpresa do achado pode
mudar de tal forma a disposição do cérebro que, em seguida, não possamos mais ver esse alimento exceto
com horror, ao passo que até então o comíamos com prazer. É pode-se notar a mesma coisa nos animais;
pois, embora não possuam a menor razão, nem talvez61 nenhum pensamento, todos os movimentos dos
espíritos e da glândula que provocam em nós as paixões não deixam de existir neles também e servem-lhes
para manter e fortalecer, não como em nós, as paixões62, mas os movimentos dos nervos e dos músculos que
costumam acompanhá-las. Assim, quando um cão vê uma perdiz, é naturalmente levado a correr em sua
direção, e, quando ouve um tiro de um fuzil, tal ruído o incita naturalmente a fugir; mas, não obstante,
adestram-se comumente de tal maneira os cães perdigueiros que a vista de uma perdiz os leva a deter-se e o
ruído que ouvem depois, quando alguém atira à perdiz, os leva a correr para ela. Ora, essas coisas são úteis de
saber para encorajar cada um de nós a aprender a observar suas paixões; pois, dado que se pode, com um
pouco de engenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos de razão, é evidente que se
pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem as almas mais fracas poderiam
adquirir um império absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e
conduzi-las.

Falamos em hábitos e isso nos conduz a outro tópico da análise cartesiana. Quando recorremos à noção de
automatismo para explicar o mecanismo das paixões devemos esclarecer mais sua natureza, se é permanente
e inalterável ou não. Pois bem: Descartes sustentava que esse automatismo das paixões (embora, repitamos,
não tenha usado essa expressão) podia ser alterado. Essa possibilidade era por ele entendida em termos das
associações de pensamentos e movimentos corporais com os fluxos dos espíritos animais. Ele assumia que a
Natureza determinava essas associações, mas que podíamos até certo ponto alterá-las "por hábito" (§ 50).
Lembra, por comparação, que mesmo os animais podem ter suas reações naturais parcialmente alteradas por
condicionamento (como diríamos hoje). O cão, que por uma disposição natural é levado a correr na direção
da perdiz para apanhá-la, pode ser treinado para deter-se quando a vê, esperando pelo caçador. E conclui (§
50):

Ora, essas coisas são úteis de saber para nos encorajar a aprender a regrar nossas paixões. Pois dado que se
pode, com um pouco de engenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos de razão, é
evidente que se pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem as almas mais
fracas poderiam adquirir um império bem absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante
engenho em domá-las e conduzi-las.

Deve estar claro que o "engenho" ou habilidade a que se refere Descartes é precisamente a aludida técnica de
a alma "representar" para si as coisas que tendam a diminuir as paixões que quer combater e a incrementar as
que lhes são contrárias. Desse modo, novas associações mentais se estabelecem (para ele seriam associações
psico-fisiológicas), e as más paixões se vão amainando, até voltarem à sua condição natural e primitiva,
incapaz de produzir males. A cólera, por exemplo, iria se transmudando em mágoa, e esta depois se reduziria
à mera desaprovação, ao mero desagrado, natural e decorrente do próprio senso moral, de que não se pode
nem deve abdicar.

Parágrafo 148: Que o exercício da virtude é um soberano remédio contra as paixões. Ora, posto que essas
emoções interiores nos tocam mais de perto e têm, por conseguinte, muito mais poder sobre nós do que as
paixões que se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a alma tenha sempre do
que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que vêm de outras partes não dispõem de poder algum
para prejudicá-la; mas antes servem para aumentar a sua alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por
eles ofendida, conhecer com isso sua própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha assim do que estar
contente, precisa apenas seguir estritamente a virtude122. Pois, quem quer que haja vivido de tal maneira que
sua consciência não possa censurá-lo de nunca ter deixado de fazer todas as coisas que julgou serem as
melhores123 (que é o que chamo aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão poderosa para torná-lo
feliz que os mais violentos esforços da paixão nunca têm poder suficiente para perturbar a tranquilidade de
sua alma

Você também pode gostar