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HISTÓRIA DA ELETROTERAPIA

- A Aventura Secular da Estimulação Elétrica Transcutânea -

Prof. Carlos Castro

Aquele que foi, sempre será;


Aquilo que foi feito
é o que deveria ter sido feito:
E não há nada de novo sob o sol.

Eclesiastes, 1:9.

A Estimulação Elétrica (EE) usada com fins terapêuticos - a Eletroterapia - ocupa, desde o final dos anos 60,

um lugar de destaque no arsenal de recursos terapêuticos usados pelos fisioterapeutas. Esse ressurgimento

consagrador da eletroterapia deveu-se a dois fatores principais:

(1) aos impressionantes avanços da tecnologia microeletrônica, e

(2) às descobertas neurofisiológicas feitas principalmente no campo dos mecanismos de dor e analgesia,

que permitiram entender, programar e sistematizar melhor o uso da EE nas mais variadas síndromes

dolorosas, além de renovar o interesse pelo seu uso em outros tipos de problemas, especialmente os

motores, vasculares e funcionais.

Não obstante essa recente retomada, o uso da estimulação elétrica transcutânea para fins terapêuticos perde-

se na noite dos tempos. Suas técnicas não são novas e seus princípios básicos são estudados há muitos e

muitos séculos.

O presente texto convida o leitor a fazer uma viagem numa espécie de túnel do tempo, desde a época

em que se fazia estimulação com peixes elétricos até o emprego de modernas próteses mioelétricas

computadorizadas, e a conhecer um pouco da aventura secular da eletroterapia (e também algumas das suas

desventuras).
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Na história do uso terapêutico das correntes elétricas, nós vamos encontrar "aparelhos" utilizados há

muito e muito tempo: os peixes elétricos [Fig. 1].

Os povos da Abissínia (atual Etiópia) foram provavelmente os primeiros a utilizar a eletricidade

como meio terapêutico. Apesar de não haver evidências escritas sobre o uso terapêutico dos peixes elétricos

nos tempos mais antigos, é notável que o malopterus electricus, ou peixe gato do Nilo, tenha sido

representado nas paredes dos túmulos dos faraós egípcios da V Dinastia (2750 a.C.).

Figura 1. Peixe elétrico usado para estimulação terapêutica.

Qualquer bom tratado de História da Medicina ou da Fisioterapia e os textos sobre a história da

Eletroterapia e da Eletroanalgesia falam sobre o uso terapêutico dos peixes elétricos em diversos problemas

(LICHT, 1970; KANE & TAUB, 1975; MORUS, 1993; MOTTELAY, 1980; ROWBOTTOM M &

SUSSKIND, 1984; TALBOT, 1970).


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Todos esses textos contam a clássica história de Antero, acontecida mais ou menos à época da

crucificação de Cristo. Antero, um escravo liberto do imperador Tiberius, que padecia de gota, ao passear as

margens do rio Tibre, pisou, por acaso, em um peixe elétrico, recebendo uma forte descarga de eletricidade.

Imagino eu que depois de xingar muito, por causa do susto que levou e da dor que sentiu, ele percebeu que

havia ficado instantaneamente aliviado de suas dores articulares!

Scribonius Largus, (46 d.C.), médico de Messalina e do imperador romano Marco Aurélio, é quem

nos conta a história de Antero. Essa é, provavelmente, a referência escrita mais antiga sobre os efeitos

analgésicos dos peixes elétricos. Scribonius usava esses peixes para curar nevralgias, cefaléias e artrites. Ele

afirmava que:

"Quando se aplica o torpedo negro vivo a uma zona dolorosa, ele alivia e cura algumas cefaléias

crônicas e intoleráveis sempre que a dor esteja localizada. Existem, todavia, muitas espécies de

torpedo e é necessário testar duas ou três variedades antes de se conseguir a insensibilidade; este

adormecimento é sinal de cura...". E ainda:

"Quando se dispõe de um torpedo negro vivo e se aplica sob os pés, faz-se desaparecer a dor da

artrite. O paciente deve permanecer em pé na água, junto a areia, e o torpedo deve adormecer

todo o pé e a perna, até o joelho. Quando isto acontece, alivia-se a dor e a cura é permanente.

Assim curou-se Antero, escravo liberto de Tibério." (In: KANE & TAUB, 1975, p. 125)

Scribonius notou ainda que o adormecimento era gradual e que podia persistir mesmo após o contato com o

peixe ter sido interrompido.

Cláudio Galeno (130-200 d.C.), considerado um dos mais notáveis médicos da Antigüidade, pois

escreveu quase uma centena de dissertações médicas conhecidas, também estudou o uso dos peixes elétricos,

tanto vivos quanto mortos, para o tratamento de diversas doenças. Ele afirmava que o peixe, quando tomado

numa refeição, não tinha nenhum efeito, mas quando era aplicado vivo em um paciente sofrendo de dores de

cabeça, produzia uma grande analgesia. Galeno escreveu:


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"Aplico, pois, um torpedo vivo na cabeça de uma pessoa que sofre de cefaléia porque creio que

o remédio exerce um efeito calmante, como todas as coisas que produzem uma sensação de

adormecimento. Eu pude comprovar que, de fato, se passa dessa forma".

Na primeira alusão escrita sobre o peixe elétrico ele é chamado de "Nark", sugestivo termo grego

que pode ser traduzido por "adormecimento", e que deu origem à palavra narcose. Em latim, o peixe elétrico

recebeu o nome de Torpedo, derivado de "Torpeu", "dormente".

Além do Torpedo marmorata, um peixe marinho que possui de cada lado de sua cabeça um órgão

elétrico cujas descargas são capazes de paralisar suas vítimas, existem outras variedades principais de peixes

elétricos, como por exemplo: o Gymnotus electricus, nos rios da África, o Malopterus electricus, do rio Nilo,

e o Electrophorus ou Enguia Elétrica, do rio Amazonas, este último sendo capaz de gerar mais de 550 Volts

de tensão! Supõe-se que os órgãos elétricos se originam em músculos e em geral dispõem-se em uma série

de placas formando uma bateria orgânica usadas provavelmente como proteção contra predadores e para

paralisar as presas desses animais.

CORNWALL & FUKAMOTO (1999) resumem as aplicações do peixe Torpedo na Antigüidade da

seguinte forma: ele foi usado por diversos médicos para tratar enxaquecas (o peixe era envolvido ao redor da

cabeça), artrites (colocando-o debaixo dos pés), asma (respirando sua fumaça enquanto o peixe cozinhava) e

hemorróidas (onde se enfiava o peixe é que não podemos imaginar, dizem os autores!). Esse tipo de

tratamento continuou a ser usado por toda a Idade Média e Renascimento e é empregado até hoje em

algumas culturas.

Em tempo: a indicação para tratar hemorróidas é comer um ensopado de peixe elétrico. Obviamente,

o tratamento não funcionou.


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Jogados em outra época pelo nosso "Túnel do Tempo", vamos encontrar William Gilbert (1544 -

1603), médico da rainha Catarina II da Inglaterra, (aquela que o rei Henrique VIII trocou pela Ana Bolena

que, aliás, dizem as más línguas, não estava lá com essa bola toda).

Pois, então, William Gilbert escreveu uma grande obra sobre Eletricidade Médica, chamada "DE

MAGNETE" e é considerado um dos pais da moderna eletroterapia, por ter sido o primeiro a classificar e

generalizar o fenômeno da eletricidade.

Otto de Guericke, em 1654, construiu a primeira máquina elétrica, um gerador eletrostático

aperfeiçoado pelo médico britânico Hauksbee 50 anos depois.

Outro "bioengenheiro" foi Van Musschenbrok, médico holandês de Leyde, que inventou o primeiro

condensador elétrico (a garrafa de Leyde, como ficou mais popularmente conhecida) constituído por um

recipiente de vidro revestido de folhas de estanho [Fig. 2]. E ele próprio foi a primeira vítima de sua

invenção: numa carta escrita em 1746 a um amigo, ele conta que levou um choque tão violento na mão

direita que todo o seu corpo sacudiu, como se ele tivesse sido atingido por um raio!

Figura 2. Uma unidade isolada e uma bateria feita com garrafas de Leyde.

Essa é a outra parte da história pois, se os peixes elétricos foram usados principalmente para aliviar

dores, desde a Antigüidade já se sabia que esses animais eram capazes de produzir descargas elétricas que
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induziam contrações musculares involuntárias nas pessoas. Plínio, em sua “História Natural” (Apud LICHT,

1970), já escrevia a respeito do peixe elétrico:

"Inclusive a uma distância considerável e somente tocando-o com a ponta de um arpão ou de

um bastão, o peixe tem a propriedade de adormecer até o braço mais forte e de atravessar os pés

de um corredor por mais veloz que ele seja".

O abade Nollet, médico e - a julgar por essa história - um grande gozador, sabedor dessa

propriedade das correntes elétricas e freqüentador da corte e dos lugares mais badalados

da Paris do século XVI, fez uma divertidíssima experiência com a garrafa de Leyde. Em

Versailles, diante do rei e de toda corte de França, ele colocou 240 soldados em fila, de

mãos dadas. Depois, ele pediu para que os dois soldados que estavam nas extremidades

da fila segurassem, cada um deles, um dos pólos da bateria de garrafas. Fechado o circuito, os 240 soldados

levaram um choque tão grande que pularam para cima, todos ao mesmo tempo, para o delírio e aplausos

gerais da galera real e o ódio mortal da soldadesca recém - eletrocutada.

Jallabert (1748) e o próprio abade Nollet trabalharam muito com a estimulação de hemiplégicos e de

soldados paralíticos. Deshais (1749) foi quem sistematizou essas experiências em Montpellier, publicando

uma tese chamada "De Hemiplegia per Eletricitaten Curanda".

O suiço Jallabert e o estadista, físico e empinador de pipas americano Benjamim Franklin (1706 -

1790) mostraram que duas pontas metálicas permitem descarregar à distância um corpo eletrizado (Olha o

conceito de eletrodos nascendo aí, gente!). Gray e Wheeler, em 1729, descobriram as propriedades

condutoras e isolantes dos corpos e das substâncias.

Zetzell, em 1754, na Suécia, publicou seus bons resultados de tratamento eletroterápico para dores

de cabeça e de dentes e Lovett publica, em 1756, o primeiro livro em língua inglesa sobre eletricidade

médica, chamado "Subtil Medium Proved".


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John Wesley, fundador da Igreja Metodista, foi um entusiasta da eletroterapia, tornando-se um

pesquisador da área e publicando em 1759 seu "Desideratum: or Electricity Made Plain and Useful by a

Lover of Mankind and of Common Sense". Neste livro, Wesley dá diversos exemplos de tratamentos

eletroterápicos para dores ciáticas, histeria, dor de cabeça, pedra nos rins, angina pectoris e gota, entre outras

indicações.

Nessa história toda, o salto de qualidade da eletroterapia se deu em função de dois fatos: os

experimentos de Galvani e a invenção da pilha de Volta. Luigi Galvani e Alesandro Volta: dois italianos

contemporâneos no século XVIII e arquiinimigos científicos!

É curioso observar que um conjunto de experimentos feitos com pernas de rãs permitiu descobertas

importantes nos campos de Física e da Fisiologia, fundou os estudos eletrofisiológicos e gerou um clássico

da literatura de terror de todos os tempos.

Luigi Galvani, professor, médico e investigador nos campos de anatomia comparativa, fisiologia e

química da vida (Bolonha, 1737 - 1798), juntamente com sua esposa Lúcia, fizeram essas revolucionárias

experiências na Itália, durante o ano de 1780.

Dizem que a primeira observação sobre a eletricidade feita pelo casal foi obra do acaso. Madame

Galvani encontrava-se no laboratório do marido dissecando uma rã bem próxima a uma máquina

eletrostática quando, acidentalmente, o bisturi tocou a máquina: Galvani viu saltar faíscas das pernas de uma

rã morta que sua esposa dissecava e, quando as faísca saltaram, os músculos da rã se contraíram e suas

pernas chutaram!

Luigi ficou enlouquecido. "O que teria provocado uma contração num ser já morto?", perguntava-se

ele. A partir dai o Sr. e a Sra. Galvani, além de trabalharem duro no laboratório, convidavam seus amigos

para saraus de verão em sua casa de campo, onde os espantados convidados podiam ver com seus próprios

olhos as contrações da rã todas as vezes que, ao longe, um relâmpago brilhava nos céus.
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Milagre? Não. Galvani certamente conhecia os experimentos de Franklin, que, quarenta anos antes,

havia inventado o pára-raios. Assim, ele pegava uma rã dissecada, pendurava a pobre fora de casa e ligava a

extremidade cefálica do animal a um fio vindo de um pára-raios e outro fio ligava as pernas do bichinho a

um poço d'água. [Fig.3]

Figura 3. Experimento de Galvani com rãs e eletricidade (veja explicação no texto).

Quando, nas tardes chuvosas do verão, um relâmpago brilhava no firmamento, "simultaneamente

todos os músculos (da rã) entram em violentas e múltiplas contrações”. Assim, "juntamente com o esplendor

e a luminosidade do relâmpago, aparecem os movimentos e as contrações musculares, precedendo os trovões

e servindo como aviso para eles", segundo palavras do próprio Galvani.

O que parecia milagre para o casal Galvani e seus convidados tem hoje uma explicação lógica muito

simples. Durante uma tempestade, a atmosfera torna-se densamente carregada de eletricidade e o relâmpago
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ocorre quando uma parte dessa carga passa da atmosfera para a terra. Desse modo, a rã, ligada ao "circuito"

do relâmpago, recebe e reage a uma pequena corrente elétrica que circula através de seu corpo.

Mas, eu disse que hoje esse experimento tem uma explicação lógica. Na época de Galvani muitas rãs

mortas foram tornadas vivas e histórias fantásticas foram inventadas para explicar a origem dessa força vital

descoberta por Galvani, que ele chamou de "eletricidade animal".

Dos seus estudos sobre os efeitos da eletricidade em rãs, o cientista de Bolonha derivou a hipótese

que os tecidos animais são dotados de uma eletricidade intrínseca envolvida em processos fisiológicos

fundamentais, como a condução nervosa e a contração dos músculos. O trabalho de Galvani (embora não por

vontade dele) varreu para longe das ciências da vida os fluidos misteriosos e as entidades enganosas como os

"espíritos animais" e fundou uma ciência nova, a Eletrofisiologia. Dois séculos de trabalho de pesquisa

demonstraram como a concepção de Galvani de eletricidade animal foi um grande insight. Entretanto, seus

contemporâneos místicos consideraram que seus experimentos provavam que a alma existe, e que ela fluía

pelo corpo na forma de eletricidade. Afinal de contas, os crentes sempre descreveram a alma como uma

forma de energia.

Essas experiências, entre tantos outros importantes dados para o desenvolvimento da ciência,

ajudaram a gerar uma das melhores obras de terror da história da literatura fantástica: o "Frankenstein",

escrito por Mary Shelley em 1816. [Fig. 3]

Mary tinha 19 anos quando escreveu esse romance. Era a segunda esposa de Percy B.Shelley, poeta

e intelectual rebelde, (..."Pois existem dois mundos, da vida e da morte: / Um é o que cruzaste; mas o outro /

Jaz sob a terra, onde habitam / As sombras de todas as formas que pensam e vivem / Até que a morte as una

e não mais se separem ..." - Shelley, Prometeus Unbound Ato I).

O casal era amigo de Lord Byron e com ele passaram o verão de 1816 numa casa perto do lago de

Genebra, na companhia de outro escritor, este de letras menores, chamado John Polidori.
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Conta-nos Mary Shelley, na sua introdução ao "Frankenstein", que "Aquele... (1816) estava sendo

um verão muito desagradável, e as chuvas incessantes nos obrigavam a permanecer em casa durante vários

dias. (...) - 'Cada um de nós vai escrever uma estória de fantasmas'- disse Lord Byron, e sua proposição foi

aceita. (...) muitas e longas eram as conversas entre Lord Byron e Shelley às quais eu assistia como ouvinte

devota, mas silenciosa. Durante uma delas, discutiu-se sobre várias doutrinas filosóficas e, entre outras, sobre

a natureza do princípio da vida, e se havia possibilidade de ele ser descoberto e comunicado a algo. Eles

falavam das experiências do Dr. Darwin (...) que havia guardado um pedacinho de aletria numa caixa de

vidro até que, por algum meio extraordinário, ele começou a se mover voluntariamente. Afinal de contas,

não era assim que a vida devia ser criada. Talvez se pudesse reanimar um cadáver. As correntes galvânicas

tinham dado sinal disso; talvez se pudesse fabricar as partes componentes de uma criatura e depois juntá-las

e animá-las com o calor da vida." (o grifo é nosso) (SHELLEY, 1985).

Dá para entender o porquê do "Frankenstein", hoje um

monstro que nos é até simpático, ter sido um romance tão

assustador à época em que foi escrito? É por que o

monstro tinha verossimilhança, i.é., ele estava no mundo

do possível, em função das teorias e evidências científicas

existentes naqueles tempos.

Só por curiosidade: segundo VERÏSSIMO (1999),

John Polidori, nesse concurso, acabou por escrever "The

Vampyre", história na qual Bram Stocker se inspirou para

escrever seu Drácula. Não se sabe exatamente o que se

passou naqueles dias chuvosos na Villa Champuis:


Figura 3. Frankenstein, o moderno Prometeu:
ninguém sabe se as duas histórias nasceram na mesma
Pedi eu, ó criador, que do barro Me fizesses
noite, nem quem dormiu com quem (se é que alguém
homem? Pedi para que Me arrancasses das
conseguiu dormir); não se sabe o que aconteceu com as
trevas? (O Paraíso Perdido, x, 74:3-45).
histórias de Byron e Shelley (se é que eles também
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escreveram uma), e nem mesmo quem ganhou o concurso. Mas, a humanidade ganhou, de uma só tacada, e

pelo motivo que ela mais critica na conduta dos Homens, - a mais absoluta falta do quê fazer -, dois dos

maiores arquétipos do horror de todos os tempos, Drácula e Frankenstein, "que já nasceram com a autoridade

dos mitos, e que se levantaram dali para caminharem com suas próprias pernas, até hoje, juntando novos

significados pelo caminho". Mas, deixemos a literatura de lado e voltemos à História da Eletroterapia.

Não obstante a relevância dos experimentos de Galvani, esse estudioso de Bolonha é preterido na

história de ciência, porque a importância de suas pesquisas parece ficar limitada ao fato de que elas abriram

os caminhos aos estudos do físico Alessandro Volta, que culminaram em 1800 com a invenção da bateria

elétrica.

Alessandro Volta (1745 - 1827), grande físico italiano, percebendo o alcance da descoberta de

Galvani, criou, em torno de 1800, a primeira bateria utilizável para fins práticos. Volta foi um forte opositor

das teorias de Galvani sobre eletricidade animal. Galvani, acreditava que tinha provado que o corpo possui

eletricidade e, em 1791, ele fez um anúncio dramático aos cientistas da Europa: ele descobrira que uma força

vital fluía pelo sistema nervoso, e este era o élan da vida. Dois anos depois dessa comunicação de Galvani,

Alessandro Volta fez sua própria interpretação a respeito do assunto. Volta afirmou que o Galvani tinha

descoberto era uma forma nova de eletricidade: as correntes elétricas de Galvani eram causadas

simplesmente pelos íons salgados existentes no corpo. Volta não acreditava na existência de qualquer tipo

intrínseco de eletricidade animal e, portanto, em nenhuma evidência para a existência de uma alma.

À Galvani, ninguém lhe deu mais ouvidos, e isso foi para ele um terrível bofetão na cara. Ele

publicou mais um relatório anonimamente, mas este também não recebeu nenhuma atenção da comunidade

científica. Então, ele abandonou as pesquisas e, finalmente, morreu miserável.


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Volta tornou-se rico e famoso desenvolvendo a pilha. Nessa época (1800), tanto Galvani quanto sua

esposa já haviam morrido e, ironicamente, o gerador de correntes contínuas, idealizado por Volta, ficou

conhecido como gerador de "Corrente Galvânica".

O tema da controvérsia científica entre Galvani e Volta já dura há dois séculos e foi mantida por seus

sucedâneos, estudiosos da excitabilidade elétrica em nervos e músculos, cientistas como Nobili, Matteucci,

du Bois-Reymond, von Helmholtz, Bernstein, Hermann, Lucas, Adrian, Hodgkin, Huxley, e Katz.

As experiências de Galvani e a pilha de Volta tiveram o duplo mérito de possibilitar o início dos

estudos em Eletrofisiologia da ação do músculo estriado e de despertar o interesse a comunidade clínica da

época para o uso terapêutico das correntes galvânicas, inclusive para introduzir substâncias medicamentosas

no organismo (Iontoforese). As descobertas de Galvani e a invenção da pilha de Volta ofereceram à medicina

uma nova fonte de eletricidade, preciosa para a terapêutica e para a pesquisa, que fez renovar e incandescer o

interesse médico pela eletroterapia. A eletricidade, até então estática, tornou-se dinâmica com a pilha alcalina

de Volta e com as correntes ditas farádicas.

Esses inventos vão encontrar na França um de seus mais famosos usuários: Duchenne de Boulogne,

considerado um dos maiores eletroterapeutas de todos os tempos. Guillaume Benjamin Amand Duchenne de

Boulogne, neurologista francês, nasceu em Boulogne-sur-Mer em 17 de setembro de 1806 e morreu em Paris

em 15 de setembro de 1875, aos 69 anos. (veja as URL http://mambo.ucsc.edu/psl/dus.html e

http://www.whonamedit.com/doctor.cfm/950.html).

Pesquisador sério e metódico, mas também um grande artista e fotógrafo, Duchenne desenvolveu

uma imensa atividade eletroterapêutica e divulgou sua grande experiência clínica numa monografia

riquíssima em ensinamentos, “De l'électrisation localisée et de son application à la physiologie, à la

pathologie et à la thérapeutique” (Paris, J. B. Baillière et fils, 1855; 2nd edition, 1861; 3rd editon, 1872).

Segundo informações do Prof. Palmiro Torrieri Junior [comunicação pessoal], há um exemplar deste livro na

biblioteca da SUAM - RJ, do acervo original da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, ABBR -
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RJ. Na URL http://www.moesbooks.com/cgi-bin/moe455/index.html (Moe's Books - 2476 Telegraph

Avenue Berkeley CA 94704 Internet/Art: (510) 849-2133 Main store: (510) 849-2087

moe@moesbooks.com) encontra-se a venda um exemplar da terceira edição desse livro por U$ 250.

Duchenne foi um clínico brilhante, responsável pelo desenvolvimento de uma meticulosa técnica de

exame neurológico e demonstrando um grande interesse pela eletrofisiologia e pela eletroestimulação.

Duchenne construiu seu próprio aparelho de estimulação neuromusuclar e aprimorou a técnica de uso de

eletrodos de superfície. Ele descobriu que a estimulação elétrica externa podia provocar movimentos nos

músculos e inicialmente ele usou isso como uma forma de terapia, mas depois avaliou as possibilidades

diagnósticas do método. Nas duas primeiras edições de “De l'Electrisation localisée”, Duchenne fez

descrições clínicas exatas sobre o curso usual da poliomielite, incluindo suas alterações elétricas típicas e

prognósticos de recuperação baseados nos achados elétricos. Em função dessas alterações, Duchenne fazia

uma distinção entre “estimulação indireta via nervo” e estimulação direta do músculo. Ele também realizou

eletroestimulação do reto e da bexiga em incontinências urinárias, e do útero em amenorréias. Os primeiros

resultados foram descritos em uma comunicação feita à Academia de Medicina de Paris em 1848. Usou

também a EE para analisar o mecanismo da expressão facial, tendo publicado um estudo a respeito disso e

tendo sido um dos primeiros a usar a fotografia para ilustrar os processos das doenças [Fig. 4].
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Figura 4. Ilustração do livro The Mechanism of Human Facial Expression Paris: Jules Renard, 1862,

mostrando Duchenne fazendo eletroestimulação na face de um paciente, “O Velho”, o principal sujeito das

fotografias de Duchenne. Esse paciente sofria de um tipo de anestesia quase total da face. Essa circunstância

fez dele o sujeito ideal para as investigações de Duchenne, uma vez que os eletrodos de estimulação que ele

usava geravam um certo desconforto, senão dor.

Os testes eletrodiagnósticos, portanto, começaram a ser feitos nos meados de 1800. Uma excelente

revisão histórica das técnicas tradicionais de avaliação elétrica pode ser encontrada no livro de Sidney Licht

"Eletrodiagnóstico e Eletromiografia". O reconhecimento precoce dos pontos motores por Duchenne e o

mapeamento posterior desses pontos, feito por outros cientistas, foram os principais passos para o

desenvolvimento dos testes elétricos. A instrumentação e o entendimento da eletrofisiologia desenvolveram-

se durante essa época, com os procedimentos de curvas intensidade-duração e cronaxia sendo descritos e
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usados em animais de laboratório. Adrian reportou o uso dessas técnicas eletrodiagnósticas em humanos em

1916. As curvas intesidade-duração, medidas cronaximétricas e outros testes elétricos ganharam importância

com o seu uso freqüente para avaliar lesões periféricas durante as duas grandes guerras. Nos anos 1950, a

ênfase da EE foi dada no eletrodiagnóstico e na estimulação de músculos desnervados.

A Estimulação Elétrica (EE) usada com fins terapêuticos - a Eletroterapia - ocupa, desde o final dos

anos 1960, um lugar de destaque no arsenal de recursos terapêuticos usados pelos fisioterapeutas. Esse

ressurgimento consagrador da eletroterapia deveu-se a dois fatores principais:

(1) aos impressionantes avanços da tecnologia microeletrônica, e

(2) às descobertas neurofisiológicas feitas principalmente no campo dos mecanismos de dor e analgesia,

que permitiram entender, programar e sistematizar melhor o uso da EE nas mais variadas síndromes

dolorosas, além de renovar o interesse pelo seu uso em outros tipos de problemas, especialmente os

motores, funcionais e vasculares.

LIBERSON et al (1961) inauguraram o conceito moderno de "eletroterapia funcional" ao usá-la para

o controle do pé caído de hemiplégicos. Nas Olimpíadas de Montreal, em 1976, Yadov M. Kots, um médico

da delegação russa, foi visto usando o que ficou conhecido como Corrente Russa (CR) para fortalecimento

muscular em atletas de alta performance. Kots afirmava que a CR produzia ganhos de força de 30 a 40%

maiores do que com o exercício voluntário, com contrações musculares induzidas eletricamente de 10 a 30%

maiores que a capacidade de contração voluntária máxima dos sujeitos. Ninguém conseguiu reproduzir os

achados de Kots mas, o interesse pela Estimulação Elétrica Neuromuscular ficou renovado a partir dessa

época. As principais indicações dos programas NMES são: fortalecimento muscular, manutenção de ADM e

controle de contraturas, controle da espasticidade, facilitação e reeducação neuromuscular, EE do fluxo

sangüíneo, e EE em disfunções urinárias. As indicações dos programas FES são: para ortostatismo e marcha

em lesões medulares, para dorsiflexão assistida do pé e tornozelo, para subluxação do ombro, no controle da

escoliose, e no auxílio ao posicionamento do paciente para exercício.


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Mas, o nosso "Túnel do Tempo" novamente conseguiu nos localizar e nos transportar para o século

XXI, ano 2003. Entretanto, (Oh!, suprema desgraça!), caímos no Brasil. Com tantos centros desenvolvidos

em eletroterapia - EUA, Canadá, França, Inglaterra, Suécia - viemos parar no ..."Meu Brasil brasileiro, meu

mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos"... (obrigado, Ari Barroso).

E o quê nós encontramos aqui nesse imenso pais tropical? Um resumo ilustrativo da própria história

da eletroterapia, desde seu passado mais remoto (quantos peixes elétricos existem no rio Amazonas, heim,

heim?) até o próprio futuro da eletroterapia (as órteses mioelétricas funcionais para marcha assistida de

paraplégicos e próteses funcionais para amputação de membros superiores, desenvolvidas no Departamento

de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual de Campinas e na Engenharia Elétrica da USP de São

Carlos, pelo Prof. Alberto Cliquet).

Aparelhos geradores de tensão eletrostática, descendentes diretos da garrafa de Leyde? Tem, nas

melhores delegacias do bairro!!

Estimuladores galvâno- farádicos? Já estão desaparecendo, mas foram os primeiros a chegar.

Correntes Diadinâmicas e (Ai!) Ultra-Excitantes? Tem, desde 1978.

TENS? Claro que tem, desde 1982. Em maio de 1982, no IX Congresso Internacional da Word

Confederation for Physical Therapy, em Estocolmo, Suécia, pude tomar contato direto com essa nova

tecnologia para eletroanalgesia que recém tomava corpo naquele início dos anos 80. Após ouvir dezenas de

comunicações sobre o uso da TENS feitas nesse Congresso, trouxe para o Brasil, a pedido de uma empresa

nacional produtora de equipamentos para eletroterapia (a KLD Biossistemas), um aparelho TENS americano

(o Tenscare, da 3M), a partir do qual produziu-se o primeiro equipamento destinado especificamente à

eletroanalgesia no Brasil, o TENSYS – 831.

FES? Sim, desde 1985 que a FES se fez no Brasil.

Aparelhos computadorizados, geradores universais de pulsos para eletroterapia e eletrodiagnóstico?

Claro que sim, ó pá!, desde o começo da última década do século XX.

Correntes Interferenciais, Correntes Russas, Estimuladores Galvânicos Pulsáteis de Alta Voltagem,

Micro-correntes? Já estão todos no mercado.


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Então, não foi tão ruim ter vindo parar aqui no Brasil. Até porquê são com os recursos disponíveis

no nosso mercado é que nós vamos ter que trabalhar, não é mesmo? Além disso, com o absurdo aumento de

cursos de graduação em Fisioterapia no Brasil, as empresas estrangeiras produtoras de equipamentos para

eletroterapia vislumbraram um imenso mercado e estão chegando fortemente em nosso país.

Este capítulo tentou refazer o caminho da eletroterapia, - desde o uso do peixe elétrico num ato

terapêutico até o emprego das modernas próteses elétricas facilitadoras do movimento voluntário -,

destacando seus momentos de grande aceitação e também de total descrédito. Esses períodos de descrédito

deveram-se, sobretudo, à falta de conhecimento das possibilidades e das limitações da eletroterapia, que fez

acreditar, em alguns momentos históricos, que ela fosse a panacéia universal para a cura de todos os males.

Portanto, praticar uma eletroterapia baseada em evidências clínicas é necessário para não mais desacreditar

esse método válido e fundamentado cientificamente.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cornwall MW & Fukamoto D. PT580 - PHYSICAL AGENTS. Northern Arizona University. Disponível em

URL: http://jan.ucc.nau.edu/~cornwall/physagnt/physagnt.html (acesso em janeiro de 1999).

Kane K & Taub A. A History of Local Electrical Analgesia. Pain 1975 1: 125-38

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