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A AUTONOMIA PRIVADA E OS SEUS DIFERENTES


SIGNIFICADOS À LUZ DO DIREITO COMPARADO

A COMPARATIVE STUDYON THE VARIOUS


MEANINGS OF PRIVATE AUTONOMY

DÁRIO MOURA VICENTE


Professor Catedrático da Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa.
dmouravicente@fd.ulisboa.pt

Recebido em: 30.07.2016


Aprovado em: 26.08.2016

ÁREA DO DIREITO: Civil

RESUMO: Propomo-nos examinar neste estudo os ABSTRACT: The purpose of this study is to provide
diferentes significados do conceito de autonomia a comparative perspective regarding the various
privada à luz do Direito Comparado. Interessa-nos meanings attributed to the concept of private
averiguar, em especial, se a autonomia privada autonomy. The paper is particularly concerned,
pode considerar-se dotada, nas famílias jurídicas on the one hand, with determining whether
contemporâneas, de um significado unívoco e se private autonomy has a univocal meaning across
constitui nelas o fundamento exclusivo da força contemporary legal systems and, on the other,
obrigatória dos contratos de Direito Privado. whether it provides the sole ground for the
enforceability of private contracts.
PALAVRAS-CHAVE: Autonomia privada – Direito com- KEYWORDS: Private autonomy – Comparative
parado – Familias jurídicas contemporâneas – Con- law – Contemporary legal systems – Contracts –
tratos – Força obrigatória. Enforceability.

SUMÁRIO: I. Posição do problema – 1. A autonomia privada nos instrumentos internacionais de uni-


ficação e harmonização do Direito dos Contratos – 2. Triunfo de um ideal? – II. A autonomia privada
sob o prisma dos Direitos nacionais – 3. Consagrações e limites da autonomia privada nos sistemas
romano-germânicos – 4. A questão no Direito chinês contemporâneo – 5. A questão na ótica
do Direito muçulmano – 6. A autonomia privada nos sistemas de Common Law – 7. Os diferen-
tes significados da autonomia privada nos Direitos contemporâneos – III. Viabilidade e limites
de uma unificação internacional do Direito dos Contratos sob a égide do princípio da auto-
nomia privada – 8. Os reflexos dos limites nacionais à autonomia privada nos instrumentos
internacionais de harmonização e unificação do Direito dos Contratos – 9. A insuficiência dos
instrumentos de soft law na regulação dos contratos internacionais. Autonomia e heteronomia –
10. Conclusão.

VICENTE, Dário Moura. A autonomia privada e os seus diferentes significados à luz do direito comparado.
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 275-302. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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I. POSIÇÃO DO PROBLEMA

1. A AUTONOMIA PRIVADA NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE UNIFICAÇÃO E


HARMONIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS
Um breve relance pelos mais recentes instrumentos internacionais de unificação
e harmonização do Direito dos Contratos – entre os quais sobressaem os Princí-
pios Unidroit sobre os Contratos Comerciais Internacionais (doravante Princípios
Unidroit),1 os Princípios de Direito Europeu dos Contratos (Principles of European
Contract Law, doravante PECL),2 o Projeto de Quadro Comum de Referência (Draft
Common Frame of Reference, doravante DCFR)3 e a Proposta de Regulamento do
Parlamento Europeu e do Conselho relativo a um Direito Comum Europeu da
Compra e Venda (Common European Sales Law, doravante CESL)4 – permite-nos
verificar que o princípio da autonomia privada conquistou neles uma vastíssima (e
aparentemente consensual) consagração. Senão vejamos.
Estabelecem os Princípios Unidroit, no seu art. 1.1, intitulado “liberdade con-
tratual”, o seguinte: “As partes são livres de celebrar um contrato e de estipular o
seu conteúdo”.
O art. 1:102 (1) dos PECL declara, por seu turno, sob a epígrafe “liberdade
contratual”:
As Partes são livres de celebrar um contrato e de estipular o seu conteúdo, sem
prejuízo das exigências da boa-fé e das regras imperativas estabelecidas por estes
Princípios.
Na mesma linha geral de orientação, o DCFR acolhe no art. II.-1:102 (1) a se-
guinte regra: “As Partes são livres de celebrar um contrato ou outro ato jurídico e de
estipular o seu conteúdo, sem prejuízo de quaisquer regras imperativas aplicáveis.”
E o CESL, anexo à referida proposta de regulamento europeu, dispõe no art. 1.º,
n. 1: “As partes são livres de celebrar um contrato e de estipular o seu conteúdo,
sob reserva das disposições imperativas aplicáveis”.

1. Cfr. International Institute for the Unification of Private Law. Unidroit Principles of Interna-
tional Commercial Contracts. 3. ed. Roma, 2010. Existe tradução do articulado em língua
portuguesa, disponível em: [www.unidroit.org].
2. Cfr. Commission on European Contract Law. Principles of European Contract Law. Parts I
and II. Haia/Londres/Boston, 2000; Part III, Haia/Londres/Nova Iorque, 2003.
3. Cfr. BAR, Christian von; CLIVE, Eric; SCHULTE-NÖLKE, Hans (org.). Principles, Defini-
tions and Model Rules of European Private Law. Draft Common Frame of Reference (DCFR).
Outline Edition, Munique, 2009.
4. Documento COM (2011) 635 final, de 11.10.2011, disponível em: [http://eur-lex.europa.eu].
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Além de consagrarem, nos referidos termos, o princípio da liberdade de cele-


bração e estipulação do conteúdo dos contratos, os instrumentos em apreço – que
alguns reconduzem à noção, bem conhecida dos internacionalistas, de soft law5
– acolhem regras que submetem à vontade das partes a própria aplicabilidade das
respetivas disposições.
Neste sentido, pode ler-se no preâmbulo dos Princípios Unidroit que estes
“enunciam regras gerais destinadas a reger os contratos comerciais internacionais”
e que “serão aplicáveis sempre que as partes acordem em submeter o contrato a
estes Princípios”.
Os PECL declaram, por sua vez, no art. 1.101 (2), que as suas disposições se
aplicam quando as partes houverem acordado incorporá-los no seu contrato ou
que este contrato será regido por elas.
Na introdução ao DCFR é também equacionada a sua aplicabilidade como ins-
trumento opcional, aí definido como “um conjunto adicional de regras jurídicas
que as partes podem escolher a fim de regerem os seus direitos e obrigações re-
cíprocos”. Afirma-se ainda nele a este respeito: “O presente DCFR é intencional-
mente redigido por forma tal que, havendo vontade política nesse sentido, possa
proporcionar a realização de progressos com vista à criação de um tal instrumento
opcional”.
A mesma orientação subjaz à referida proposta de regulamento da União Euro-
peia, que prescreve no art. 3.º:
As partes podem acordar que o direito europeu comum da compra e venda seja
aplicado aos seus contratos transfronteiriços de compra e venda de bens, de forne-
cimento de conteúdos digitais e de prestação de serviços conexos, que se enqua-
drem no âmbito territorial, material e pessoal fixado nos arts. 4.º a 7.º.

5. Por meio da qual se têm geralmente em vista instrumentos reguladores das relações eco-
nómicas internacionais sem caráter normativo, mas nem por isso desprovidos de eficá-
cia. Esta derivaria, designadamente, da sua incorporação em contratos de Direito Pri-
vado e da aplicabilidade de sanções informais ao seu incumprimento. Sobre a natureza
jurídica dos instrumentos referidos no texto, vejam-se, com posições muito diferencia-
das, CANARIS, Claus-Wilhelm. Die Stellung der “Unidroit Principles” und der “Prin-
ciples of European Contract Law” im System der Rechtsquellen. In: BASEDOW, Jürgen
(org.). Europäische Vetragsrechtsvereinheitlichung und deutsches Recht. Tubinga, 2000.
p. 5 e ss.; BONELL, Michael Joachim. Towards a Legislative Codification of the Uni-
droit Principles?. Uniform Law Review. 2007. p. 233 e ss.; e DESSEMONTET, François.
The application of soft law. Halakha and Sharia by International Arbitral Tribunals. The
American Review of International Arbitration. vol. 23. 2012. A Tribute to Professor Hans
Smit, p. 545 e ss.
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2. TRIUNFO DE UM IDEAL?
À luz destas disposições, dir-se-ia que a autonomia privada conquistou, nos
instrumentos jurídicos em apreço, a sua máxima extensão possível: acolhe-se neles
não só a liberdade de celebração e estipulação do conteúdo de contratos internacio-
nais, mas também a liberdade de conformação do próprio regime normativo aplicá-
vel a estes contratos, o qual pode ser, de acordo com as suas disposições, escolhido
pelos interessados sem sujeição necessária a qualquer Direito estadual.6
A ser isto exato, a autonomia privada constituiria neste domínio uma verdadeira
faculdade de autorregulação (self-governance ou self-regulation) pelos próprios inte-
ressados das relações jurídicas de que estes são partes. O contrato teria, assim, a
fonte exclusiva da sua eficácia jurídica na vontade das partes.
Mas será realmente assim?
A resposta a este quesito pressupõe uma breve digressão pelos principais sis-
temas jurídicos nacionais, de cujos princípios comuns os instrumentos interna-
cionais a que aludimos se apresentam como uma espécie de restatements. É o que
faremos em seguida.

II. A AUTONOMIA PRIVADA SOB O PRISMA DOS DIREITOS NACIONAIS

3. CONSAGRAÇÕES E LIMITES DA AUTONOMIA PRIVADA NOS SISTEMAS


ROMANO-GERMÂNICOS

a) À face da maior parte dos sistemas jurídicos ocidentais, o reconhecimento


de efeitos aos contratos onerosos explica-se, em primeiro lugar, pelo princípio da
autonomia privada, de que a liberdade contratual constitui o elemento nuclear: os
particulares são livres de contratar, pertencendo-lhes, no caso de o fazerem, o po-
der de fixarem, em termos vinculativos, a disciplina aplicável ao contrato.7

6. Alude-se, a este propósito, à doutrina do “contrato sem lei” ou “sem lei estadual”, de cujas
incidências na arbitragem internacional nos ocupámos em Da arbitragem comercial inter-
nacional. Direito aplicável ao mérito da causa. Coimbra, 1990. p. 190 e ss.
7. Sobre o contrato como ato de autonomia privada vejam-se, na doutrina portuguesa: AS-
CENSÃO, José de Oliveira. Direito civil. Teoria geral. 2. ed. Coimbra, 2003. vol. 2, p. 77 e
ss.; FERNANDES, Luís Carvalho. Teoria geral do direito civil. 5. ed. Lisboa, 2010. vol. 2,
p. 32 e ss.; OLIVEIRA, Nuno Pinto. Princípios de direito dos contratos. Coimbra, 2011.
p. 147 e ss.; e CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil. 4. ed. Coimbra, 2014.
vol. 2, p. 56 e s.
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Esse princípio está em estreita conexão com a economia de mercado, na medida


em que pressupõe, e é instrumento necessário, do exercício da liberdade de em-
presa e da propriedade privada, postuladas por aquela; mas constitui também uma
projeção no domínio contratual do direito ao livre desenvolvimento da personalida-
de, que as Constituições de diversos países, entre os quais a Alemanha8 e Portugal,9
hoje consagram.
Poucos sistemas jurídicos terão ido tão longe na exaltação da vontade humana
enquanto fonte de efeitos jurídicos como o francês: de acordo com o art. 1.134
do Code Civil, as convenções “valem como lei” entre aqueles que as celebraram;10
uma fórmula que foi posteriormente replicada nos códigos espanhol e italiano.11 O
contrato seria, assim, segundo certo entendimento, uma espécie de lex privata dos
respetivos sujeitos: uma fonte criadora de regras jurídicas, situada no mesmo plano
que a própria lei.12

8. Cfr. o art. 2 (1) da Lei Fundamental alemã, segundo o qual: “Todos têm o direito ao livre
desenvolvimento de sua personalidade, desde que não violem direitos de outrem e não
atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral”. No sentido do texto, vejam-se as
decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão de 12.11.1958, Entscheidungen des
Bundesverfassungsgerichtshofes, 8. p. 274 e ss. (p. 328), e de 13.05.1986, idem, 72. p. 155
e ss. (p. 170). Entendem que a liberdade contratual está compreendida no direito funda-
mental ao livre desenvolvimento da personalidade: BROX, Hans; WALKER, Wolf-Dietrich.
Allgemeines Schuldrecht. 39. ed. Munique, 2015. p. 28.
9. Haja vista ao art. 26.º, n. 1, da Constituição, segundo o qual: “A todos são reconhecidos
os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil,
à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da
vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
Pronunciam-se pela inclusão da autonomia privada no âmbito da tutela conferida por este
preceito: RIBEIRO, Joaquim de Sousa.. O problema do contrato. As cláusulas contratuais
gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra, 1999. p. 145 e ss., n. 350; e PIN-
TO, Paulo Mota. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Portugal-Brasil ano
2000. Tema Direito. Coimbra, 1999. p. 149 e ss. (p. 214). O Supremo Tribunal de Justiça
português reconheceu no acórdão de 09.07.1998, Boletim do Ministério da Justiça, vol. 479.
p. 580 e ss., que o princípio da autonomia privada é tutelado constitucionalmente.
10. “Les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites”.
11. Cfr. os arts. 1.091 do Código Civil espanhol (segundo o qual: “Las obligaciones que nacen
de los contratos tienen fuerza de ley entre las partes contratantes, y deben cumplirse a
tenor de los mismos”) e 1372, n. 1, do Código Civil italiano (que estabelece: “Il contratto
ha forza di legge tra le parti. Non può essere sciolto che per mutuo consenso o per cause
ammesse dalla legge”).
12. Ver, para uma exposição e crítica deste entendimento: ROUHETTE, Georges. The Obli-
gatory Force of Contract in French Law. In: HARRIS, Donald; TALLON, Denis. Le contrat
aujourd’hui: comparaisons franco-anglaises. Paris, 1987. p. 38 e ss.; e GHESTIN, Jacques.
Traité de droit civil. La formation du contrat. 3. ed. Paris, 1993. p. 31 e ss.
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Porém, segundo se deduz do referido preceito do código francês, os contratos


apenas produzem os efeitos neles visados na medida em que se hajam “formado
legalmente”. Requer-se na lei francesa, além disso, que lhes esteja subjacente uma
“causa real e lícita”;13 e “a obrigação sem causa, baseada numa falsa causa ou numa
causa ilícita, não produz qualquer efeito”.14 Por outro lado, consoante resulta do
art. 1.135 do referido Código, os contratos obrigam não apenas ao que neles se
encontra estipulado, mas também às consequências que a equidade, os usos e a lei
imputem às obrigações convencionadas pelas partes.15 E a ordem pública limita,
em qualquer caso, a liberdade contratual.16
Não falta por isso quem observe, referindo-se às disposições do Código francês,
que “os próprios textos que parecem consagrar a autonomia da vontade, na reali-
dade restringem-na”.17 Em França, a vontade das partes não constitui, em suma, a
única medida das obrigações decorrentes do contrato.18
O advento, modernamente, dos contratos coletivos, dos contratos de adesão e
até de contratos obrigatórios evidencia, em todo o caso, um certo declínio da con-
ceção de contrato que inspirou o preceito do Código francês citado em primeiro
lugar.19 No mesmo sentido concorreu a vision morale du contrat que, sob a influ-
ência designadamente de Georges Ripert,20 logrou afirmar-se no Direito francês
contemporâneo, bem patente no favor debitoris por este amplamente acolhido e nas
obrigações de informação impostas aos profissionais nas relações contratuais com
consumidores.
Também em Itália o contrato se distingue dos demais modos de constituição,
regulação ou extinção de relações patrimoniais pelo papel nele desempenhado pela

13. Cfr. o art. 1.108 do CC: “Quatre conditions sont essentielles pour la validité d’une conven-
tion: le consentement de la partie qui s’oblige; sa capacité de contracter; un objet certain
qui forme la matière de l’engagement; une cause licite dans l’obligation”.
14. Art. 1.131 do CC: “L’obligation sans cause, ou sur une fausse cause, ou sur une cause illi-
cite, ne peut avoir aucun effet”.
15. “Les conventions obligent non seulement à ce qui y est exprimé, mais encore à toutes les
suites que l’équité, l’usage ou la loi donnent à l’obligation d’après sa nature”.
16. Cfr. o art. 6 do CC: “On ne peut déroger, par des conventions particulières, aux lois qui
intéressent l’ordre public et les bonnes mœurs”.
17. Rouhette, est. Op. cit., p. 31.
18. Ghestin, Jacques. Op. cit., p. 41 e s.
19. Cfr. FABRE-MAGNAN, Muriel. Droit des obligations. Contrat et engagement unilatéral. Pa-
ris, 2008. vol. 1, p. 55 e ss.
20. Ver RIPERT, Georges. La règle morale dans les obligations civiles. Paris, 1949.
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autonomia privada.21 Tal como em França, consagra-se no sistema jurídico transal-


pino o princípio da força vinculativa dos contratos.22 Mas também nele se entende
que para a produção de um tal efeito jurídico não basta o acordo das partes: é ainda
exigível uma justificação económico-social: uma causa.23 Prevê-se, por isso, um
controlo jurisdicional do uso feito pelos privados da sua autonomia, tendente a
verificar, inter alia, se os interesses prosseguidos pelo contrato são “meritevoli di
tutela secondo l’ordinamento giuridico”;24 controlo esse que, segundo Francesco
Galgano, visa proteger os próprios contraentes, em particular o mais débil.25 No
tocante aos contratos celebrados por consumidores, tal proteção é ainda levada a
efeito mediante a cominação de ineficácia das cláusulas ditas vessatorie.26 No Di-
reito italiano, a intangibilidade da vontade individual cede, pois, como sublinha
Bianca,27 perante a exigência de justiça social.
Perante o Direito alemão contemporâneo, acentua-se igualmente na doutrina o
papel do contrato como meio de conformação autónoma das relações jurídicas.28
A consagração da liberdade contratual terá mesmo constituído, segundo o histo-
riador do Direito Uwe Wesel, a mais importante alteração ocorrida no Direito Civil
alemão no século XIX: por força dela, subordinou-se a contratação privada ao livre
jogo das forças do mercado.29
O conceito de contrato e as respostas dadas pela lei aos problemas por ele sus-
citados são, de acordo com aquele entendimento doutrinal, essencialmente deter-

21. Haja vista ao art. 1322, n. 1, do CC, que dispõe: “Le parti possono liberamente determina-
re il contenuto del contratto nei limiti imposti dalla legge”.
22. Art. 1.372 do CC: “Il contratto ha forza di legge tra le parti. Non può essere sciolto che per
mutuo consenso o per cause ammesse dalla legge. Il contratto non produce effetto rispetto
ai terzi che nei casi previsti dalla legge”.
23. Cfr. o art. 1.325 CC, segundo o qual: “I requisiti del contratto sono: 1) l’accordo delle
parti; 2) la causa; 3) l’oggetto; 4) la forma, quando risulta che è prescritta dalla legge sotto
pena di nullità”.
24. Art. 1.322, n. 2, do CC.
25. Cfr. Diritto privato. 16. ed. Pádua, 2013. p. 250.
26. I.é, aquelas cláusulas que “apesar da boa fé, implique, em prejuízo do consumidor, um
significativo desequilíbrio dos direitos e obrigações decorrentes do contrato” (art. 1469-bis
do CC).
27. Diritto civile. Il contratto. 2. ed. Milão, 2000. vol. 3, p. 33.
28. Ver, por exemplo, LARENZ, Karl. Richtiges Recht. Grundzüge einer Rechtsethik. Munique,
1979. p. 60.
29. Cfr. Die Geschichte des Rechts. Von den Frühformen bis zur Gegenwart. 3. ed. Munique,
2006. p. 457.
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minados pela sua função de instrumento da autonomia privada.30 Neste sentido,


escreveu Werner Flume:31
“O contrato é a principal expressão da autonomia privada. A ideia do contrato
é que aquilo que foi contratualmente estipulado vale porque os contraentes, no
exercício da sua autonomia, acordaram que assim deverá ser.”
Mas também na Alemanha se reconhece há muito a necessidade de comple-
mentar essa doutrina, na definição do fundamento da eficácia dos contratos, com
outros pontos de vista, nomeadamente a tutela da confiança e a justiça comutativa
traduzida no equilíbrio das prestações a cargo das partes.
Alude-se a este respeito, na literatura mais recente, com destaque para a obra
de Claus-Wilhelm Canaris,32 a uma materialização da autonomia privada, refletida
designadamente na maior preocupação da lei e da jurisprudência com a liberdade
fáctica de tomar as decisões subjacentes à contratação. Nesta ressumaria a evolução
de uma Weltanschauung liberal, que inspirou a redação originária do Código Civil
alemão, para o contemporâneo Estado social de Direito.
Em boa medida, essa evolução deu-se ao abrigo de cláusulas gerais consagradas
no próprio Código Civil, como as que estabelecem a nulidade dos negócios jurí-
dicos contrários aos bons costumes (§ 138) e o princípio da boa fé (§ 242). Por
outro lado, a garantia constitucional da autonomia privada, tal como o princípio do
Estado social, reclamariam, conforme entendeu o Tribunal Constitucional Federal
na Bürgschaftsentscheidung,33 que os tribunais cíveis verifiquem se um “contrato
inusitadamente oneroso para uma das partes”, que consagre uma “composição de
interesses manifestamente desajustada”, reflete uma diferença estrutural no poder
negocial das partes; e que, sendo este o caso, os tribunais o corrijam ao abrigo
daquelas cláusulas gerais. E declara-se ainda nessa decisão: “A Ciência do Direito
Civil converge no sentido de que o princípio da boa fé representa um limite intrín-
seco à liberdade de conformação dos contratos e legitima o controlo judicial do
conteúdo dos mesmos”.

30. Para uma síntese acerca do tema, veja-se UNBERATH, Hannes. Vertragsfreiheit. In: BA-
SEDOW, Jürgen; HOPT, Klaus J.; ZIMMERMANN, Reinhard (org.). Handwörterbuch des
Europäischen Privatrechts. Tubinga, 2009., vol. 2. p. 1692 e ss.
31. Cfr. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Das Rechtsgeschäft. 4. ed. Berlim, etc., 1992.
vol. 2, p. 4.
32. Ver Wandlungen des Schuldvertragsrechts – Tendenzen zu seiner “Materialisierung. Ar-
chiv für die civilistische Praxis, 2000. p. 273 e ss.
33. Decisão de 19.10.1993, Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichtshofes, 89, p. 214 e ss.
(p. 234).
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Noutros casos, a “materialização” da autonomia privada operou-se com base em


legislação avulsa, como é o caso da lei das cláusulas contratuais gerais e dos diplo-
mas legais de proteção do consumidor.34
A liberdade contratual tem na Alemanha como corolários os princípios da fide-
lidade ao contrato (Vertragstreue) e da eficácia relativa das relações obrigacionais
(“Relativität der Schuldverhältnisse”). Mas também estes princípios consentem aí,
como se verá a seguir, importantes desvios, ditados designadamente por conside-
rações de justiça comutativa e pelo respeito devido ao valor da confiança legítima:
o primeiro, por via da relevância atribuída ao desaparecimento da “base do negó-
cio” (Geschäftsgrundlage); o segundo, por meio da sujeição dos contraentes, em
determinadas condições, a deveres de proteção (Schutzpflichten) relativamente a
terceiros.
O Direito vigente em Portugal confere também um lugar central à vontade das
partes na produção dos efeitos do contrato – o qual, na sua expressão mínima, se
traduz na exigência de consciência da declaração, consagrada no art. 246.º do CC,
sem a qual esta não produz qualquer efeito.
Por si só, a vontade humana não produz, todavia, efeitos jurídicos; antes é o
Direito que se impõe às pessoas, só dele derivando esses efeitos. Nenhuma vontade,
por mais esclarecida que seja, pode, aliás, ponderar e querer todos os efeitos jurí-
dicos dela derivados.35 E mesmo pelo que respeita aos efeitos jurídicos estipulados
pelas partes, a circunstância de eles se produzirem para além do momento da cele-
bração do contrato e independentemente da vontade dos contraentes de se mante-
rem vinculados demonstra que não é apenas a vontade que obriga nos contratos.
À mesma conclusão se chegará tendo presente que, por via da interpretação e
da integração, se imputam no Direito português à vontade dos contraentes conse-
quências das suas declarações que não foram rigorosamente queridas por eles.36 E
outro tanto se infere do facto de a usura e a alteração das circunstâncias em que as
partes fundaram a decisão de contratar conferirem à parte lesada o direito à modi-
ficação do contrato segundo juízos de equidade.37
A liberdade contratual exerce-se, além disso, “dentro dos limites da lei”,38 ma-
xime das normas imperativas por meio das quais o Estado procura desempenhar as
suas incumbências no domínio social e económico.

34. Entretanto incorporados no BGB. Vejam-se, designadamente, os §§ 305 a 310, 312a a 312f
e 346 a 359.
35. Neste sentido, CORDEIRO, António Menezes. Op. cit, p. 54.
36. Haja vista, designadamente, aos arts. 236.º e 239.º do CC.
37. Cfr. os arts. 283.º e 437.º do CC.
38. Art. 405.º, n. 1, do CC.
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Mais recentemente, vem-se admitindo em Portugal o controlo judicial do conte-


údo dos contratos à luz dos princípios constitucionais da igualdade entre os sexos
e da não discriminação, os quais de igual modo importam restrições à liberdade
contratual.39
Supomos não ser fundamentalmente diversa desta a orientação prevalecente no
moderno Direito brasileiro, sobretudo após a publicação do atual Código Civil.
Também no Brasil, com efeito, a liberdade contratual se exerce “em razão e nos li-
mites da função social do contrato” (art. 421 do CC);40 e também nele a lesão enor-
me (a que se refere o art. 157 do Código)41 e a onerosidade excessiva da prestação
(disciplinada no art. 478)42 constituem fundamentos de exoneração do devedor, ou
pelo menos de modificação do contrato.
O exposto até aqui basta para se poder concluir que nos sistemas romano-
-germânicos a autonomia privada, embora constitua o esteio da contratação entre

39. Cfr. a Lei 134, de 28.08.1999, que proíbe as discriminações no exercício de direitos por
motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica; a Lei 18, de 11.05.2004,
que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de ori-
gem racial ou étnica, com o objetivo de estabelecer um quadro jurídico para o combate à
discriminação baseada em motivos de origem racial ou étnica, transpondo para a ordem
jurídica interna a Diretiva 43/CE, do Conselho, de 29.06.2000; e a 14, de 12.03.2008, que
proíbe e sanciona a discriminação em função do sexo no acesso a bens e serviços e seu
fornecimento, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva 113/CE, do Conselho,
de 13.12.2004.
40. No sentido de que a função social do contrato, no caso particular da autonomia privada,
significa que “o reconhecimento e o exercício desse poder, ao realizar-se na promoção da
livre circulação de bens e de prestação de serviços e na autorregulamentação das relações
disso decorrentes, condicionam-se aos efeitos sociais que tal circulação possa causar, ten-
do em vista o bem comum e a igualdade material”, veja-se AMARAL, Francisco. Direito
civil. Introdução. 8. ed. Rio de Janeiro, 2014. p. 93.
41. Cfr. GODINHO, Adriano Marteleto. A lesão no novo Código Civil brasileiro. Belo Horizonte, 2008;
e GLITZ, Frederico, Contrato e sua conservação. Lesão e cláusula de hardship. Curitiba, 2012.
42. Ver, sobre o regime brasileiro da onerosidade excessiva, ASCENSÃO, José de Oliveira.
Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo Código Civil. Revista CEJ, 2004.
p. 59 e ss.; KHOURI, Paulo Roque. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil,
Código do Consumidor e Lei n. 8.666/93. A onerosidade excessiva superveniente. São Paulo,
2006; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia privada
e teoria da imprevisão. São Paulo, 2006; BARROS, André Borges de Carvalho. A onerosi-
dade excessiva como fundamento da revisão ou resolução do contrato no Código Civil e
no Código de Defesa do Consumidor. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio. Direito
contratual. Temas atuais. São Paulo, 2007. p. 315 e ss.; e FRANTZ, Laura Coradini. Exces-
siva onerosidade superveniente: uma análise dos julgados do STJ. In: MARTINS-COSTA,
Judith (org.). Modelos de direito privado, São Paulo, 2014. p. 215 e ss.
VICENTE, Dário Moura. A autonomia privada e os seus diferentes significados à luz do direito comparado.
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 275-302. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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DOUTRINA INTERNACIONAL 285

particulares, não pode hoje aspirar à condição de fundamento exclusivo da força


obrigatória dos contratos.43
b) Na verdade, os efeitos do contrato fundam-se também nesses sistemas jurídi-
cos na tutela da confiança: cada contraente deve responder pelas expetativas dignas
de tutela jurídica que gerar na contraparte por meio da sua declaração.
Escreve Manuel Carneiro da Frada:44
“O contrato representa um importantíssimo Tatbestand de confiança: para além de ato
de autonomia privada, criador de normas de comportamento que se impõem às partes,
ele configura indiscutivelmente um elemento de confiança e estabilização de expetativas.”
O valor da confiança manifesta-se no Direito português, nomeadamente, na dis-
ciplina legal dos problemas da formação do negócio jurídico,45 da interpretação da
declaração negocial46 e da falta e vícios da vontade e da declaração.47 Nele se funda,
além disso, o vasto acervo de deveres pré-contratuais de conduta que vinculam re-
ciprocamente as partes na negociação e na conclusão dos contratos,48 assim como
de certos deveres de proteção e cuidado relativamente aos interesses de terceiros.
Outro tanto sucede no Direito brasileiro,49 que protege igualmente a confiança
legítima, inter alia, por meio das regras relativas à interpretação da declaração de
vontade,50 ao dolo por omissão informativa,51 à ilicitude no exercício dos direitos52
e à responsabilidade pré-contratual.53

43. Em sentido convergente, veja-se GÁNDARA, Rocío Caro. En la secular búsqueda europea
de un paradigma de justicia contractual: el enfoque de justicia relacional. In: LORENZO,
Sixto Sánchez (org.). Derecho contractual comparado. Una perspectiva europea y transnacio-
nal, cit., 2013. p. 53 s. (p. 84).
44. Cfr. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra, 2004. p. 666.
45. Haja vista, designadamente, ao art. 230.º, n. 1, do CC, que consagra o princípio da irrevo-
gabilidade da proposta de contrato.
46. Cfr. o art. 236.º, n. 1, do CC, que consagra nesta matéria a doutrina da impressão do des-
tinatário.
47. No Código Civil, a tutela da confiança explica, por exemplo, a responsabilidade do decla-
rante que haja culposamente emitido uma declaração sem consciência dela: art. 246.º.
48. Veja-se, designadamente o art. 227.º do CC.
49. Ver MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado. Critérios para a sua aplicação.
São Paulo, 2015. p. 230 e ss., sublinhando, a este propósito, a relação de interdependência
entre os princípios da autonomia privada e da confiança.
50. Art. 112 do CC.
51. Art. 147 do CC.
52. Art. 187 do CC.
53. Art. 422 do CC.
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Na doutrina alemã, não falta quem tenha procurado fundar na confiança a efi-
cácia da declaração de vontade54 ou do contrato em geral.55 Uma orientação mais
matizada vê nos princípios da autonomia e da proteção da confiança o fundamento
da eficácia obrigatória do contrato.56 A tutela da confiança encontrou acolhimento
normativo expresso na cláusula geral da boa-fé consignada no § 242 do BGB.57
Nela se funda o substancial alargamento do escopo obrigatório do contrato levado
a cabo pela jurisprudência alemã ao longo de um século e acolhido no Código Civil
pela Lei de Modernização do Direito das Obrigações: é a tutela da confiança que
justifica, designadamente, a imposição aos contraentes de certos deveres acessórios
de conduta perante a contraparte, tanto nos preliminares como na execução dos
contratos, assim como a inclusão de terceiros na esfera de proteção do contrato.58
c) Avulta ainda neste domínio uma ideia de justiça comutativa, expressa nome-
adamente nas regras que visam assegurar o equilíbrio das prestações: nos contratos
onerosos comutativos, à prestação de cada um dos contraentes deve corresponder,
por parte do outro contraente, uma prestação de valor proporcional.
Embora a conceção que esteve na raiz do BGB colocasse o acento tónico na de-
nominada “justiça processual” ou “formal” do contrato, traduzida, v.g., na ausência
de vícios da vontade, a evolução registada no Direito Civil alemão ao longo do
século XX, culminando na Modernização do Direito das Obrigações, denota uma
crescente preocupação com a “justiça material”, ou “substantiva”. Dela são expres-
sões, por exemplo, a consagração da figura da “perturbação da base do negócio”
(“Störung der Geschäftsgrundlage”) no § 313 do BGB59 e o controlo do conteúdo

54. Cfr. EICHLER, Hermann. Die Rechtslehre vom Vertrauen. Privatrechtliche Untersuchungen
über den Schutz des Vertrauens. Tubinga, 1950. p. 106 e s.; e CRAUSHAAR, Götz von. Der
Einfluss des Vertrauens auf die Privatrechtsbildung. Munique, 1969. p. 35 e ss. e 58.
55. ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Einführung in die Rechtsvergleichung. 3. ed. Tubinga,
1996. p. 318.
56. Cfr. ZIPPELIUS, Reinhold.echtsphilosophie. 3. ed. Munique, 1994. p. 220.
57. Ver, neste sentido, WOLF, Manfred; NEUNER, Jörg. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen
Rechts. 10. ed. Munique, 2012. p. 112.
58. Declara-o expressamente o § 311 (3) do BGB, segundo o qual pode constituir-se uma re-
lação obrigacional integrada pelos deveres de consideração pelos direitos, bens jurídicos
e interesses alheios a que alude o § 241 (2) em relação a pessoas que não sejam partes no
contrato, mas em quem haja sido depositada particular confiança e que, dessa forma, ha-
jam influenciado consideravelmente as negociações ou a conclusão do mesmo.
59. Segundo o qual: “(1) Quando as circunstâncias que constituíram a base do contrato se
houverem alterado severamente depois da conclusão deste, e se as partes não o tivessem
concluído ou o tivessem concluído com outro conteúdo caso tivessem previsto essa al-
teração, pode ser exigida a adaptação do contrato, desde que, tendo em conta todas as
circunstâncias do caso concreto, em especial a repartição contratual ou legal do risco, não
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DOUTRINA INTERNACIONAL 287

das cláusulas contratuais gerais sob o prisma da ocorrência de um “prejuízo des-


proporcionado” para uma das partes previsto no § 307(1) do BGB.60 Também nisso
se reflete a aludida “materialização” do Direito dos Contratos.
Compreende-se assim que, como notou Karl Larenz,61 o Direito alemão dos
Contratos assente hoje na conjugação dos princípios da autonomia privada e da
confiança com o do equilíbrio das prestações. Escreveu a este respeito aquele autor
na sua Parte geral do Direito Civil alemão:62
“O Direito dos Contratos do BGB não pode ser entendido com base no princí-
pio da autonomia privada – por mais central que este seja – nem do princípio da
confiança, nem da justiça contratual comutativa, mas antes da interação destes
princípios.”
No Direito português, em parte por influência alemã, a ideia de justiça contra-
tual está subjacente às regras, atrás referidas, que disciplinam a usura e a alteração
das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar.63 Outro tanto
sucede no Brasil em razão da norma do Código Civil relativa à lesão, a que fizemos
referência acima.64
Também em França se entende hoje que a justiça contratual, traduzida num cer-
to equilíbrio entre as prestações das partes nos contratos onerosos, é fundamento
da força obrigatória reconhecida ao contrato. “O contrato”, sublinha Jacques Ghes-
tin, “não é vinculativo senão na medida em que for justo”.65 É certo que apenas

seja exigível a uma das partes a vinculação ao contrato inalterado. (2) É equiparada a uma
alteração de circunstâncias a situação em que se revelem erradas representações essenciais
que tenham estado na base do contrato. (3) Quando a adaptação do contrato não seja
possível ou exigível a uma das partes, pode a parte lesada resolver o contrato. Nas relações
obrigacionais duradouras, opera o direito de denúncia em lugar do direito de resolução”.
60. Que dispõe: “São ineficazes as estipulações constantes de cláusulas contratuais gerais que
prejudiquem o cocontratante do predisponente de forma desproporcionada e contrária às
exigências da boa-fé”.
61. Cfr. Richtiges Recht cit., p. 79.
62. Cfr. Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts. 7. ed. Munique, 1989, p. 48.
63. Ver, neste sentido, DUARTE, Rui Pinto. O equilíbrio contratual como princípio jurídico.
Escritos jurídicos vários 2000-2015. Coimbra, 2015. p. 685 e ss., que observa a este respei-
to: “o princípio não exige que os valores das prestações sejam iguais, mas antes limita a
desigualdade, por um lado, em função do seu grau e, por outro, em função da correspon-
dência desses valores com a vontade das partes”.
64. Cfr., neste sentido, NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, cit., p. 154
e ss.
65. Cfr. Contrat. In: ALLAND, Denis; RIALS, Stéphane (org.). Dictionnaire de la culture juri-
dique. reimpr. Paris, 2007. p. 276 e ss. (p. 280). Ver ainda, no mesmo sentido, GHESTIN,
VICENTE, Dário Moura. A autonomia privada e os seus diferentes significados à luz do direito comparado.
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o desequilíbrio originário das prestações contratuais, e não o superveniente, tem


relevo no Direito Civil francês. Mas está-se atualmente muito longe da ideia, sus-
tentada por Alfred Fouillée nos primórdios do século XX, conforme a qual “qui dit
contractuel dit juste”.66

4. A QUESTÃO NO DIREITO CHINÊS CONTEMPORÂNEO


Nesta matéria, o Direito chinês apresenta significativas diferenças relativamente
aos Direitos ocidentais. A ideia de liberdade contratual não faz parte, com efeito, da
tradição jurídica chinesa. Esta assenta ainda hoje no pensamento de Confúcio, que
é fundamentalmente adverso a essa ideia.67 E com ela são largamente incompatíveis
certos postulados em que em alguma medida assenta a economia chinesa, mormen-
te o planeamento central da economia.68
Os Princípios Gerais de Direito Civil da República Popular da China, adotados em
1986, consagraram, é certo, no art. 4.º, o princípio da autonomia da vontade. Por
seu turno, a Lei dos Contratos da República Popular da China, adotada em 1999,
estabeleceu no art. 4.º: “Uma parte tem o direito de celebrar um contrato volunta-
riamente ao abrigo da lei e nenhuma entidade ou indivíduo pode interferir ilicita-
mente com esse direito”.
Estes preceitos refletem a evolução da China, desde os anos 1980, para a de-
nominada economia socialista de mercado. A consagração, neles feita, da liberdade
contratual, é, porém, limitada, pois apenas se refere à conclusão do contrato, e não
à escolha do parceiro contratual, nem à estipulação do conteúdo do contrato, à sua
modificação ou cessação e à definição da respetiva forma.
Os referidos Princípios Gerais de Direito Civil estabelecem, com efeito, a nulida-
de de todos os contratos económicos que violem os planos imperativos do Estado
(art. 58, n. 6); e a Lei dos Contratos prevê diversas restrições adicionais à liberdade
contratual. Entre estas sobressaem as que resultam dos princípios da justiça, da
boa-fé e da legalidade.

Jacques. La notion de contrat. Recueil Dalloz Sirey, 1990. p. 147 e ss. (p. 149 s.); ______.
Traité de droit civil. La formation du contrat cit., p. 42 e 203 e ss.; e GHESTIN, Jacques;
JAMIN, Christophe. Le juste et l’utile dans les effets du contrat. In: MONTEIRO, António
Pinto (coord.). Contratos: actualidade e evolução. Porto, 1997. p. 123 e ss.
66. Cfr. FOUILLEE, Alfred. La science sociale contemporaine. 5. ed. Paris, 1910. p. 410.
67. Neste sentido, FU, Junwei. Towards a Social Value Convergence: a Comparative Study of
Fundamental Principles of Contract Law in the EU and China. Oxford University Compar-
ative Law Forum, 2009, p. 3.
68. Ver XIE, Huaishi. Contract Law in the Far East – China and Japan. International Encyclo-
pedia of Comparative Law, vol. 11. Tubinga/Haia, vol. 7, capítulo 6. p. 35 e ss.
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As partes devem, nos termos do art. 5 da Lei, conformar-se com o princípio da


justiça na estipulação dos seus direitos e deveres, v.g., observando certa proporção
no que respeita ao valor das respetivas prestações e à distribuição dos riscos contra-
tuais; o que está em conformidade com o conceito de retidão (yi) proclamado pelo
Confucionismo como virtude moral essencial.69
As partes devem, por outro lado, segundo o art. 6.º, observar o princípio da
boa-fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das obrigações que sobre si
impendem, solução que é exigida por outra virtude cardeal proclamada pelo Con-
fucionismo: a benevolência (ren), que implica igualmente a noção de fiabilidade ou
de lealdade.70
Finalmente, na conclusão e na execução do contrato, as partes devem, consoan-
te prescreve o art. 7.º da Lei dos Contratos, observar as leis e os regulamentos ad-
ministrativos relevantes, bem como a ética social, e não podem perturbar a ordem
social e económica, nem prejudicar o interesse público (concebido, este último, de
forma muito ampla). Em ordem a assegurar o cumprimento desta disposição, o art.
127 atribui à Autoridade da Indústria e do Comércio, bem como a outras autorida-
des relevantes, a incumbência de “monitorar e lidar com qualquer ato ilegal que,
pela conclusão de um contrato, prejudique os interesses do Estado ou os interesses
públicos”.
Sempre que o Estado determine, em função das suas necessidades, a aquisição
de bens, as pessoas jurídicas e organizações interessadas concluirão os correspon-
dentes contratos em conformidade com os direitos e deveres estabelecidos nas leis
e nos regulamentos administrativos aplicáveis (art. 38 da Lei dos Contratos). O
planeamento central da economia continua, assim, a condicionar a celebração de
contratos.
São em todo o caso nulos, de acordo com o art. 52 da mesma Lei, todos os
contratos que: (a) sejam concluídos por meio de dolo ou coação de qualquer das
partes e que prejudiquem os interesses do Estado; (b) envolvam conluio das partes
em prejuízo dos interesses do estado, da coletividade ou de um terceiro; (c) procu-
rem ocultar uma finalidade ilícita sob uma forma legítima; (d) Lesem o interesse
público; ou (e) violem disposições imperativas da lei ou de regulamentos adminis-
trativos.71
Apesar de ter transposto para o seu sistema jurídico certas noções fundamentais
do Direito dos Contratos dos países ocidentais (em boa parte sob a influência da
Convenção de Viena Sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias e dos

69. Cfr. FU, Junwei. Op. cit., p. 5.


70. Idem, p. 6.
71. Ver, sobre esta disposição, BU, Yuanshi (org.). Chinese Civil Law. Munique, 2013. p. 41 e ss.
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Princípios Unidroit, que inspiraram visivelmente a referida Lei dos Contratos),72 a


China manteve-se, assim, fiel à tradição confucionista, mormente por via das limi-
tações impostas na lei à autonomia privada.73

5. A QUESTÃO NA ÓTICA DO DIREITO MUÇULMANO


Um breve olhar pelo Direito muçulmano mostra-nos que tampouco existe nele
um princípio de liberdade contratual como o que se encontra consagrado nos sis-
temas jurídicos ocidentais.74 O Direito muçulmano assenta, com efeito, de acordo
com as Escolas Zahirita e Hanifita, num princípio de tipicidade dos contratos (ditos
uqud, plural de aqd).75 Mesmo dentro dos tipos contratuais permitidos pelo Direito
muçulmano, existem restrições à liberdade contratual, relativas, designadamente,
aos bens suscetíveis de serem transacionados.76
A filiação do Direito muçulmano no pensamento religioso explica as restrições
por ele impostas à liberdade contratual, uma vez que esta, tomada na aceção oci-
dental, seria incompatível com o controlo ético das transações postulado pelo Islão.
O Corão exige, é certo, no versículo 5:1, o cumprimento dos contratos pelos
fiéis. Aí se diz: “Ó vós que credes! Cumpri todos os contratos”.
Mas proscreve-se nele o enriquecimento injustificado consistente no recebimen-
to de uma vantagem monetária de outrem sem o pagamento de uma contrapartida
(dito riba), assim como a especulação (gharar). Declara a este respeito o versículo
2:275:
“os que praticam a usura não se levantarão de seus túmulos senão como aquele
que o demónio possuiu, deixando-o transtornado; e isso porque disseram que o
comércio é o mesmo que a usura; no entanto, Deus consente o comércio e veda a
usura.”77

72. Neste sentido, TIMOTEO, Marina. Il contratto in Cina e Giappone nello specchio dei diritti
occidentali. Pádua, 2004. p. 332.
73. A conclusão é de FU, Junwei. Op. cit., p. 17.
74. Neste sentido, SCHACHT, Joseph. An Introduction to Islamic Law. reimpr. Oxford, 1982.
p. 144. Ver também, sobre o tema, YASSARI, Nadjma. The concept of freedom of contract in
Western and Islamic Legal Cultures. Innsbruck, 1999. p. 109 e ss.
75. Ver VOGEL, Frank E. Contract law of Islam and the Arab Middle East. International Ency-
clopedia of Comparative Law. Tubinga/Haia, vol. 11, vol. 7, capítulo 7. p. 28 s.
76. Está nesse caso, designadamente, a proibição da venda de bens futuros, que o Direito mu-
çulmano consagra. Cfr., sobre o ponto, DAU-SCHMIDT, Nicholas C. Forward contracts
– Prohibitions on risk and speculation under islamic law. Indiana Journal of Global Legal
Studies, 2012. p. 533 e ss.
77. Vejam-se ainda os versículos 2:276, 2: 278, 3:130, 4:161 e 30:39.
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Daqui provém, designadamente, a proibição da cobrança de juros no Direito


muçulmano.78 Um contrato celebrado em contravenção a estas regras é anulável
(fasid). A autonomia privada tem aqui a sua expressão mais restrita.

6. A AUTONOMIA PRIVADA NOS SISTEMAS DE COMMON LAW


a) Outra, bem diversa das anteriores, é a conceção que prevalece a este respeito
no Direito inglês contemporâneo, assim como no norte-americano. Estes perma-
neceram fundamentalmente alheios à ideia, que vingou no continente europeu, de
que aos tribunais seria dado escrutinarem o exercício da autonomia privada, desig-
nadamente por meio das noções de causa, lesão enorme e onerosidade excessiva
da prestação. Por outro lado, a adequação da denominada consideration – que é,
nesses sistemas jurídicos, um elemento constitutivo da generalidade dos contra-
tos79 – encontra-se subtraída neles a qualquer crivo jurisdicional.80
A isso não será estranha a circunstância de os juristas ingleses de Oitocentos te-
rem recebido dos economistas liberais, com destaque para John Stuart Mill, a ideia
de que o exercício, livre de quaisquer constrangimentos, da autonomia privada
possibilitaria por si só um adequado equilíbrio dos interesses das partes no contra-
to. Justificou-o aquele autor nos seguintes termos:
“a liberdade do indivíduo, nas coisas em que só ele é interessado, implica uma
correspondente liberdade de um qualquer número de indivíduos regularem por
acordo mútuo as coisas que lhes digam respeito conjuntamente, e que a mais nin-
guém respeitem (…) A razão para não interferir nos atos voluntários de uma pes-
soa, exceto para salvaguardar terceiros, é a consideração pela sua liberdade. A sua
escolha voluntária é a prova de que o que escolher é desejável, ou pelo menos su-
portável para si, e de um modo geral atende-se melhor ao seu bem, permitindo-lhe
que utilize os seus próprios meios de o buscar.”81

78. Ver, sobre o tema, SIDDIQI, Mohammad. Riba. Bank Interest and the Rationale of its Prohi-
bition. Jeddah, 2004.
79. Cfr. a decisão proferida pela Câmara dos Lordes em 1778 no caso Rann vs. Hughes [1778]
101 E.R. 1014, em que Lord Skynner afirmou: “The law of this country supplies no means
nor affords any remedy to compel the performance of an agreement made without suffi-
cient consideration”.
80. Consagra esta ideia o § 79 do Restatement (Second) of Contracts ao dispor: “If the require-
ment of consideration is met, there is no additional requirement of (a) a gain, advantage,
or benefit to the promisor or a loss, disadvantage, or detriment to the promisee; or (b)
equivalence in the values exchanged (...)”.
81. Cfr. On Liberty. Londres, 1859. p. 194 s.
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292 REVISTA DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO 2016 • RDCC 8

Não faltou, é certo, quem visse na evolução do Direito dos Contratos ocorrida
em Inglaterra ao longo do século XX um declínio progressivo da liberdade contra-
tual: é este o cerne da tese de Patrick Atiyah originariamente publicada em 1979.82
E nos Estados Unidos chegou a ser anunciada, também nos anos 1970, a “morte do
contrato”: neste sentido se pronunciou Grant Gilmore.83
A verdade, porém, é que na sua essência o Direito inglês se manteve fiel – sobre-
tudo no domínio comercial – a uma perspetiva marcadamente liberal dos contratos;
e outro tanto se dirá do Direito norte-americano. O seu ex libris é o princípio da
sanctity of contracts, por força do qual só em situações excecionais é permitido ao
devedor exonerar-se das suas obrigações contratuais.84 Por outro lado, a imputação
de efeitos ao contrato não expressa ou tacitamente queridos pelas partes, como
aqueles que na Alemanha e em Portugal decorrem dos deveres acessórios de con-
duta decorrentes da boa-fé, só em limitada medida é admitida na lei e na jurispru-
dência, que procuram assim preservar o mais possível a vontade dos contraentes.
Pode, a esta luz, dizer-se que a autonomia privada encontra contemporanea-
mente a sua consagração mais ampla nos Direitos inglês e norte-americano.
b) É certo que também nesses Direitos tiveram eco as teorias que procuram fun-
dar a força vinculativa dos contratos na ideia de tutela da confiança. Esta é tida ne-
les como essencial ao funcionamento regular de uma economia baseada no crédito,
que necessariamente depende de as expetativas induzidas nos agentes económicos
através de promessas contratuais não serem defraudadas.85 É, designadamente, na
tutela da confiança que se funda o reconhecimento, no Direito norte-americano, de
certos efeitos às promessas contratuais não negociadas (unbargained-for promises)

82. Cfr. The Rise and Fall of Freedom of Contract. 3. ed. Oxford, 1988. reimpr. O autor viria
posteriormente a reconhecer uma certa recuperação da liberdade contratual durante o
consulado de Margareth Thatcher como Primeira-Ministra: ver An introduction to the law
of contract. 5. ed. Oxford, 1995. p. 27.
83. Cfr. The Death of Contract. 2. ed. Columbus, 1995 (a 1.ª ed. data de 1974).
84. Sobre a sanctity of contracts como ideia-força de uma conceção individualista do Direito
dos contratos ver ADAMS, John N.; BROWNSWORD, Roger. The ideologies of contract.
Legal Studies, 1987. p. 205 e ss., esp. p. 208 e ss.
85. Na doutrina norte-americana, avulta a este respeito o influente estudo de Lon Fuller e
William Pardue, publicado em 1936, The Reliance Interest in Contract Damages.Yale Law
Journal, 1936. p. 52 e ss. e 373 e ss. (sobre o qual pode ver-se uma recensão em língua
portuguesa por Ruy de Albuquerque, Ciência e Técnica Fiscal, 1962. p. 544 e ss.). Em
Inglaterra sobressai, em defesa da relevância da confiança como fundamento da eficácia
dos contratos, Atiyah, An introduction to the law of contract cit., p. 35, que, repercutindo e
desenvolvendo as ideias de Fuller e Perdue, aponta como primeiro propósito do Direito
dos Contratos “the desire to enforce promises and to protect the reasonable expectations
which are generated both by promises and by other forms of conduct”.
VICENTE, Dário Moura. A autonomia privada e os seus diferentes significados à luz do direito comparado.
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 275-302. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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por via do denominado promissory estoppel, a que o § 90(1) do Restatement (Se-


cond) of Contracts deu acolhimento.86
Mas a tutela da confiança está muito longe de ter gerado nos sistemas de com-
mon law os desenvolvimentos que lhe são atribuíveis nos Direitos romanistas, em
particular aqueles que se traduzem na constituição de uma relação jurídica obri-
gacional pelo mero estabelecimento de negociações contratuais, integrada por de-
veres de informação, lealdade e proteção fundados na salvaguarda das expetativas
legítimas da contraparte.87 Reconheceu-o, por exemplo, Lord Ackner na decisão
proferida pela Câmara dos Lordes em 1992 sobre o caso Walford vs. Miles,88 em
que se pode ler:
“O conceito de um dever de conduzir negociações de boa-fé é intrinsecamente
repugnante à posição adversária das partes envolvidas em negociações. Cada uma
das partes nas negociações tem o direito de prosseguir o seu próprio interesse, con-
tanto que evite fazer falsas declarações.”
Ao que não será estranha uma certa reserva do pensamento liberal relativamente
à proteção irrestrita de expetativas não contratuais, tida como fundamentalmente
incompatível com o funcionamento livre do mercado.89
c) Tão-pouco é o equilíbrio das prestações, nos Direitos anglo-saxônicos, requi-
sito de eficácia do contrato e critério de interpretação deste. É o que resulta, desig-
nadamente, da já referida irrelevância da “adequação” da consideration. As figuras
do common law que, em situações pontuais, permitem dar alguma proteção à parte
lesada em virtude de um contrato iníquo (como a undue influence e a unconsciona-
bility) estão, sob este ponto de vista, muito longe das regras continentais sobre a
lesão e a usura.
Por outro lado, a onerosidade excessiva da prestação devida por uma das partes,
ainda que decorrente de uma alteração anómala de circunstâncias, só constitui fun-
damento de modificação ou resolução do contrato (ressalvados os casos em que as
partes lhe hajam expressamente atribuído relevância no quadro de uma cláusula de

86. Dispõe esse preceito: “A promise which the promisor should reasonably expect to induce
action or forbearance on the part of the promisee or a third person and which does induce
such action or forbearance is binding if injustice can be avoided only by enforcement of
the promise. The remedy granted may be limited as justice requires”.
87. E na correlativa responsabilidade pela violação de tais deveres in contrahendo, cominada
designadamente pelos Direitos alemão, italiano, português e brasileiro: cfr. o nosso Da
responsabilidade pré-contratual em direito internacional privado. Coimbra, 2001. p. 239 e ss.
88. [1992] 2 WLR 174.
89. Cfr. HAYEK, F. A. Law, Legislation and Liberty. reimpr. Londres, 1993. vol. 1. p. 102 e s., e
vol. 2, p. 124 e s.
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hardship) dentro dos apertados pressupostos em que opera a doutrina da frustration


of contracts. Esta tem-se por verificada, como declarou Lord Radcliffe em Davis
Contractors Ltd. vs. Fareham U.D.C,90 julgado pela Câmara dos Lordes em 1956,
“sempre que a ordem jurídica reconhece que, sem que haja incumprimento de
qualquer das partes, uma obrigação contratual se tornou insuscetível de ser execu-
tada, porque as circunstâncias em que a sua execução teria lugar a transformariam
em algo radicalmente diferente daquilo que foi convencionado no contrato. Non
haec in foedera veni. Não foi isto que prometi fazer.”
Não surpreende assim que para alguns seja o interesse – e não a justiça ou o
equilíbrio sinalagmático das prestações – a razão de ser precípua da vinculação ao
contrato no Direito inglês.91

7. OS DIFERENTES SIGNIFICADOS DA AUTONOMIA PRIVADA NOS DIREITOS


CONTEMPORÂNEOS
a) O contrato é um instrumento de realização de escolhas individuais volunta-
riamente assumidas; mas ele é também um importante fator de criação e consoli-
dação de expetativas e um mecanismo por meio do qual as sociedades não assentes
no planeamento central da atividade económica disciplinam as trocas de bens e
serviços, assegurando a sua conformidade com as conceções de justiça nelas pre-
valecentes.
Os efeitos jurídicos do contrato podem, como acabamos de verificar, ser expli-
cados a partir de qualquer destas perspetivas. Em última análise, o seu regime pode
refleti-las todas; mas tem variado no tempo e no espaço a relevância atribuída a
cada uma delas. Essas perspetivas tendem, na verdade, a atribuir um alcance desi-
gual, na disciplina do conteúdo e dos efeitos do contrato, às intenções das partes, às
expetativas geradas pelas declarações de cada uma delas no espírito da outra e ao
equilíbrio de interesses dele emergente.
Assim, uma conceção que procure salvaguardar ao máximo a liberdade de vin-
culação e a segurança do tráfico jurídico propenderá a atribuir maior relevância ao
primeiro destes aspetos; uma conceção que valorize mais as expetativas geradas na
contraparte ou em terceiros ou a justiça comutativa nas trocas entre privados admi-
tirá com maior facilidade a intervenção do Estado na relação contratual, pela lei ou
pelos tribunais, imputando-lhe ou recusando-lhe efeitos na medida do necessário a
fim de salvaguardar aqueles desideratos.

90. [1956] 2 All E. R. 145.


91. Neste sentido, LORENZO, Sixto Sánchez. El derecho inglés y los contratos internacionales.
Valencia, 2013. p. 27.
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A análise acima empreendida demonstra que estas conceções obtiveram acolhi-


mento diferente nos sistemas jurídicos contemporâneos. Não pode, assim, impu-
tar-se à autonomia privada um significado unívoco nesses sistemas jurídicos.
Nos sistemas romano-germânicos, o fundamento da eficácia do contrato é, como
se viu acima, a vontade das partes; mas ela assenta também numa ideia de equidade,
traduzida na preservação de certo equilíbrio entre as prestações contratuais. Este
pode implicar que aos contratos sejam conferidos efeitos em rigor não queridos
pelas partes. Admite-se, pois, com certa amplitude, a intervenção dos tribunais na
conformação do conteúdo do contrato, mediante a atribuição a este de efeitos não
convencionados pelas partes.
Por outro lado, a relação contratual expande-se, nesses sistemas, quer para a
fase que o antecede, dando origem a deveres de conduta funcionalmente ligados
ao contrato, cuja violação faz o infrator incorrer em culpa in contrahendo, quer re-
lativamente a terceiros, em especial por via dos contratos com eficácia de proteção
de terceiros.
Estes fenômenos não têm paralelo nos sistemas de common law, que se mantive-
ram mais estritamente fiéis aos princípios da autonomia privada e da relatividade
dos contratos e que se mostram, por conseguinte, muito mais relutantes em admitir
a sujeição das partes a deveres de conduta por elas não expressa ou implicitamente
convencionados. Para tanto contribuiu decisivamente a ausência nesses sistemas
jurídicos, em particular no inglês, de uma cláusula geral de boa-fé como a que
vigora hoje em boa parte dos Direitos continentais. Esta circunstância reflete-se
também na ausência de uma regra que preveja a adaptação dos contratos com fun-
damento em hardship sempre que falte uma estipulação das partes nesse sentido.
Nos sistemas de common law, o fundamento da eficácia do contrato é assim,
sobretudo, a vontade das partes: os desvios à estabilidade e à relatividade dos con-
tratos fundados na ideia de equivalência das prestações são muito mais limitados,
dado que aos tribunais é em princípio vedado apreciar a fairness das transações
entre privados; a frustration of contracts só tem lugar em casos muito contados; e a
privity of contracts impede, em princípio, a vinculação de terceiros por contratos de
que não sejam partes. Se os contraentes se vinculam por sua vontade, devem eles,
e só eles, ficar adstritos às suas estipulações.
No Direito chinês, a conclusão do contrato é também, em princípio, fruto da
vontade das partes; mas são estabelecidas pela lei fortes restrições à livre conforma-
ção do seu conteúdo e à própria liberdade de celebração dos contratos, que tem de
se conformar com os planos estaduais.
O Islão consente, por seu turno, a celebração de contratos; mas tão só daqueles
que a Xaria tipifica, entre os quais sobressai a compra e venda. E mesmo no tocante
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a estes, com sujeição a estritas exigências no tocante à equivalência das prestações


acordadas pelas partes.
b) Estas diferenças de regime não são reconduzíveis a meros aspetos de técnica
jurídica, antes radicam em razões mais profundas, de índole histórica e filosófica.
O Direito dos Contratos dos sistemas romano-germânicos é, com efeito, em lar-
ga medida, tributário da ética contratual formulada por S. Tomás de Aquino, a qual
postula, como corolário da justiça comutativa, que se observe uma certa proporção
no valor das prestações contratuais.92 Subjaz àqueles sistemas, assim, uma visão
moral do contrato,93 que explica não apenas a preocupação com o equilíbrio das
prestações, mas também o favor debitoris e as demais manifestações de solidarismo
contratual de que se deu conta acima.
Ora, os juristas anglo-saxónicos do século XIX, como Anson e Polock, que lan-
çaram as bases do atual Direito dos Contratos dos sistemas de common law, não
foram recetivos a essa conceção acerca das relações entre os contraentes, a qual se
afigurava demasiado paternalista ao pensamento dominante na época.94 No mesmo
sentido concorreu, nos Estados Unidos, o pensamento marcadamente hostil a toda
a fundamentação da ordem jurídica em princípios éticos, que aflora designadamen-
te na obra de Oliver Wendell Holmes95 e de Roscoe Pound,96 dois expoentes do de-
nominado realismo jurídico norte-americano segundo o qual o Direito é sobretudo
a expressão normativa de necessidades sociais, tal como os juízes as interpretam.
Na China, é o pensamento confucionista e a sua tradição de autoridade que jus-
tifica o alcance fortemente restritivo com que o princípio da liberdade contratual se
encontra acolhido na lei. Mas é também esse pensamento que explica a conceção
altamente flexível das relações contratuais que tende a prevalecer neste país, nos
termos da qual o contrato não é visto como a expressão definitiva dos direitos e

92. Cfr. Summa Theologica, parte II-II, questão 77, art. 1: “Se o preço exceder a quantidade
do valor da coisa ou se, inversamente, a coisa exceder o preço, desaparece a igualdade da
justiça. Por onde, vender mais caro ou comprar mais barato do que a coisa vale é em si
mesmo injusto e ilícito”.
93. Nesse sentido CABRILLAC, Rémy. Droit européen comparé des contrats. Paris, 2012. p. 23.
94. Reconhece-o, por exemplo, GORDLEY, James. The Philosophical Origins of Modern Con-
tract Doctrine. Oxford, 1991. p. 146 e ss. e 201 e ss.
95. Cfr. The Common Law. reimpr., Boston, etc., 1963. p. 5: “The life of the law has not been
logic: it has been experience”; e p. 32: “Every important principle which is developed by
litigation is in fact and at bottom the result of more or less definitely understood views of
public policy”.
96. Cfr. An Introduction to the Philosophy of Law. New Haven/Londres, 1982. p. 47: “I am con-
tent to think of law as a social institution to satisfy social wants – the claims and demands
and expectations involved in the existence of civilized society”.
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obrigações das partes, mas antes como o ponto de partida de uma relação de negó-
cios em permanente adaptação, podendo o mesmo, designadamente, ser renegocia-
do sempre que as circunstâncias em que foi celebrado se alterarem.
Nos sistemas muçulmanos, as restrições impostas à liberdade contratual fun-
dam-se na natureza revelada da Xaria e na visão teocêntrica da vida em sociedade
que lhe subjaz, à qual é alheia a noção ocidental de que os indivíduos são os me-
lhores juízes dos seus próprios interesses e de que lhes pertence, por conseguin-
te, uma certa esfera de autodeterminação. No mesmo sentido concorre a ética de
solidariedade própria do Islão, que proscreve todo o ganho injusto à custa alheia.

III. VIABILIDADE E LIMITES DE UMA UNIFICAÇÃO INTERNACIONAL DO DIREITO DOS


CONTRATOS SOB A ÉGIDE DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA

8. OS REFLEXOS DOS LIMITES NACIONAIS À AUTONOMIA PRIVADA NOS


INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE HARMONIZAÇÃO E UNIFICAÇÃO DO DIREITO
DOS CONTRATOS
Se voltarmos agora de novo a nossa atenção para os instrumentos internacio-
nais de harmonização e unificação do Direito dos Contratos a que fizemos alusão
acima, verificaremos que os limites à autonomia privada estabelecidos nos sistemas
jurídicos nacionais que aqui examinámos não são neles inteiramente desprovidos
de consequências. Isso sucede designadamente pelo que respeita a três pontos que
importa analisar: a obtenção de vantagens excessivas à custa alheia, a alteração de
circunstâncias e a eficácia das normas imperativas. Vejamo-los.
a) No tocante ao primeiro, merece especial referência o art. 3.2.7 dos Princípios
Unidroit, que – fazendo-se eco da tendência, a que aludimos acima, para a materia-
lização dos contratos acolhida em alguns sistemas jurídicos romanistas – admite a
anulação do contrato ou de uma das suas cláusulas por uma das partes quando, no
momento da respetiva conclusão, o contrato ou a cláusula atribuíssem injustamen-
te uma vantagem excessiva à outra parte. Para tanto, acrescenta o mesmo preceito,
deve ter-se nomeadamente em consideração a circunstância de a outra parte ter
beneficiado de forma desleal do “estado de dependência, de carência econômica, da
urgência das necessidades, da imprevidência, da ignorância, da inexperiência ou da
inaptidão para a negociação da primeira”, bem como a natureza e os fins do contra-
to. O tribunal pode, a pedido da parte lesada, adaptar o contrato ou a cláusula a fim
de o tornar conforme às exigências da boa-fé em matéria comercial.
Na mesma linha fundamental de orientação se inserem os PECL, cujo art. 4:109
admite a anulação ou a adaptação do contrato se ao tempo da respetiva conclusão
uma das partes fosse dependente da outra ou tivesse com ela uma relação de con-
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fiança, se se encontrasse em situação de necessidade económica ou fosse imprevi-


dente, ignorante, inexperiente ou carecida de bargaining skills e a outra, sabendo
ou devendo saber disso, tiver tirado vantagem dessa situação de forma grosseira-
mente injusta ou tiver obtido para si um benefício excessivo. O DCFR consagra no
art. II.-7:207 uma regra fundamentalmente coincidente com esta.
O CESL prevê também no art. 51.º que uma parte pode anular um contrato se,
no momento da sua celebração: (a) tinha uma relação de dependência ou de con-
fiança com a outra parte, tinha dificuldades económicas ou outras necessidades ur-
gentes, ou era imprevidente, ignorante ou inexperiente; e (b) a outra parte conhe-
cia ou devia conhecer a referida situação e, à luz das circunstâncias e da finalidade
do contrato, explorou a situação da primeira parte obtendo um benefício excessivo
ou uma vantagem injusta.
Estas disposições estão na linha das regras dos sistemas romanistas atrás refe-
ridas em matéria de usura. Elas vão, porém, consideravelmente além do que os
sistemas de common law permitem ao abrigo das doutrinas da undue influence e da
unconscionability.
b) Consideremos agora a alteração de circunstâncias em que as partes fundaram
a decisão de contratar.
Os Princípios Unidroit ocupam-se da matéria nos arts. 6.2.1 a 6.2.3, que dis-
ciplinam a denominada hardship. O primeiro destes preceitos começa por afirmar
que as partes estão adstritas ao cumprimento das suas obrigações, mesmo que a
execução delas se haja tornado mais onerosa. Ressalva-se porém a ocorrência de
hardship, que o art. 6.2.2 define como a situação em que sobrevêm factos que “al-
teram fundamentalmente o equilíbrio do contrato”, quer porque o custo da reali-
zação da prestação a cargo de uma das partes aumentou, quer porque o valor da
contraprestação a que tem direito diminuiu, e em que, além disso, se encontrem
preenchidos os seguintes requisitos: (a) os factos em questão ocorreram ou torna-
ram-se conhecidos da parte em desvantagem após a conclusão do contrato; (b) tais
factos não poderiam ter sido razoavelmente tomados em consideração pela parte
em desvantagem no momento da conclusão do contrato; (c) esses factos estão fora
da esfera de controlo da parte em desvantagem; e (d) o risco da respetiva ocorrên-
cia não foi assumido pela parte em desvantagem. Em caso de hardship, a parte lesa-
da pode, segundo o art. 6.2.3, exigir a renegociação do contrato. Na falta de acordo
a respeito desta dentro de um prazo razoável, qualquer das partes pode submeter
a questão ao tribunal. Este, caso conclua pela ocorrência de hardship, pode, se o
considerar razoável, pôr termo ao contrato ou adaptá-lo por forma a restabelecer
o equilíbrio das prestações. Os PECL ocupam-se do tema no art. 6:111, em que se
estabelece uma regra análoga.
Estes instrumentos preveem, pois, uma obrigação de renegociação do contrato,
a cargo das partes, em caso de alteração de circunstâncias. O incumprimento dessa
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obrigação sujeita a parte inadimplente ao dever de indemnizar a outra pelo dano


daí resultante. Só se essa renegociação falhar é que o tribunal pode intervir, adap-
tando ou pondo termo ao contrato se for caso disso. O ónus da prova da ocorrência
dos pressupostos de uma situação de hardship é, em todo o caso, da parte lesada.
O tribunal goza de considerável discricionariedade na concessão da providência
requerida.
Também o DCFR admite, no art. III.-1:110, a modificação e a resolução judicial
do contrato se a execução de uma obrigação emergente deste se tornar tão onerosa,
em virtude de uma alteração excecional de circunstâncias, que seria manifestamen-
te injusto manter o devedor vinculado à obrigação. Neste instrumento o estabele-
cimento de negociações para a revisão do contrato não constitui uma obrigação de
qualquer das partes, mas tão só um ónus da parte que pretenda obter a modificação
ou resolução ope judicis do contrato. A preferência pela via negocial é, pois, menos
nítida nele.
É em todo o caso manifesto que, tanto neste instrumento como nos que o pre-
cederam, se foi muito além do que os sistemas de common law consentem ao abrigo
da doutrina da frustration of contracts.
c) Uma palavra, por último, a respeito da eficácia das normas imperativas. A
matéria é objeto do art. 1.4 dos Princípios Unidroit, de acordo com o qual:
“Os presentes Princípios não limitam a aplicação de regras imperativas, de ori-
gem nacional, internacional ou supranacional, aplicáveis segundo as normas perti-
nentes do direito internacional privado.”
Por sua vez, os PECL estabelecem a este respeito no art. 1:103(1):
“Quando a lei de outro modo aplicável o permitir, as partes podem acordar que
o seu contrato seja regido pelos princípios, com o efeito de que as regras imperati-
vas nacionais não serão aplicáveis. (2) Devem, no entanto, ser reconhecidos efeitos
às regras imperativas de Direito nacional, supranacional e internacional que, de
acordo com as regras relevantes de Direito Internacional Privado, sejam aplicáveis
independentemente da lei reguladora do contrato.”
Ressalva-se assim, nos casos em que os Princípios em apreço constituam a lex
contractus, a aplicabilidade das denominadas normas internacionalmente imperati-
vas, ou de aplicação imediata, dos ordenamentos jurídicos nacionais, bem como do
Direito Internacional ou do Direito da União Europeia, conexos com o contrato.97
Estão neste caso as normas sobre os controlos cambiais ou a defesa da concorrência
que contendam com a validade ou a suscetibilidade de cumprimento dos contratos.

97. Ver, sobre esse conceito, SANTOS, António Marques dos. As normas de aplicação imediata
no direito internacional privado. Esboço de uma teoria geral. Coimbra, 1991, com amplas
referências bibliográficas e jurisprudenciais.
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Tais normas devem ser aplicadas, na medida em que as regras pertinentes de Direi-
to Internacional Privado assim o determinem.
O CESL não consagrou, é certo, uma regra análoga. Pelo contrário, no art. 11.º
da proposta de regulamento que visava adotá-lo dizia-se: “Se as partes acordarem
de forma válida na aplicação do direito europeu comum da compra e venda a um
determinado contrato, apenas este direito comum pode reger as questões abrangi-
das pelas suas disposições”. A circunstância, porém, de o art. 6.º, n. 2, do Regula-
mento de Roma I sobre a lei aplicável às obrigações contratuais98 estabelecer que a
escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato não pode ter como consequência
privar o consumidor da proteção que lhe proporcionam as disposições não derro-
gáveis por acordo da lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual
implica que as disposições do CESL não seriam aplicáveis aos contratos celebrados
por consumidores sempre que oferecessem a este uma proteção inferior à da lei do
país da sua residência habitual.99 E ainda que assim não fosse, o CESL apenas seria
aplicável mediante uma escolha expressa das partes (aliás de duvidosa plausibilida-
de tanto no que respeita aos consumidores como relativamente às empresas),100 na
falta da qual os Direitos dos Estados-Membros da União Europeia permaneceriam
aplicáveis aos contratos de compra e venda internacionais abrangidos por esse ins-
trumento, retirava a essa disposição muito do seu aparente alcance uniformizador.
Justamente por isso, o sistema de opting-in adotado no projeto mereceu severas
críticas na doutrina europeia,101 às quais não terá sido alheio o seu abandono pela
Comissão Europeia.102

98. Regulamento (CE) 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17.06.2008.


99. Neste sentido também RÜHL Gisela. The Common European Sales Law: 28th regime, 2nd
regime or 1st regime?. Maastricht Journal of European and Comparative Law, 2012. p. 148 e ss.
100. Conforme notou, entre outros, POSNER, Eric. The Questionable Basis of the Common Eu-
ropean Sales Law: the role of an optional instrument in jurisdictional competition. Chicago,
2012. Disponível em: [http://ssrn.com].
101. Ver DORALT, Walter. The optional european contract law and why success or failure may
depend on scope rather than substance. Max Planck Private Law Research Paper n. 11/9.
Disponível em: [http://ssrn.com]; EIDENMÜLLER, Horst; JANSEN, Nils; KIENINGER,
Eva-Maria; WAGNER, Gerhard; ZIMMERMANN, Reinhard. The proposal for a regulation
on a common european sales law: deficits of the most recent textual layer of european con-
tract law. The Edinburgh Law Review, 2012. p. 301 e ss.; EIDENMÜLLER, Horst. What Can
Be Wrong With an Option? An Optional Common European Sales Law as a Regulatory
Tool. Common Market Law Review, 2013. p. 69 e ss.
102. A proposta do CESL foi, com efeito, retirada pela Comissão Europeia empossada em 2014
e anunciada a sua substituição por uma nova proposta destinada a potenciar o comércio
eletrónico no “mercado digital único”: cfr. o anexo 2 ao documento COM (2014) 910
final, de 16.12.2014, disponível em: [http://eur-lex.europa.eu], no qual se contém o Pro-
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DOUTRINA INTERNACIONAL 301

9. A INSUFICIÊNCIA DOS INSTRUMENTOS DE SOFT LAW NA REGULAÇÃO DOS


CONTRATOS INTERNACIONAIS. AUTONOMIA E HETERONOMIA
O que acabamos de dizer permite-nos concluir que a autonomia privada conhe-
ce também, nos instrumentos jurídicos em apreço, limites à sua eficácia, decorren-
tes quer de certos preceitos desses instrumentos, quer dos sistemas jurídicos com
que o contrato se ache de alguma sorte ligado.
Esses instrumentos acabam, assim, por reconhecer que a faculdade de as partes
se darem a si próprias um ordenamento que discipline o respetivo contrato não é
irrestrita. Autonomia e heteronomia entrelaçam-se inevitavelmente, mesmo na re-
gulação do contrato internacional. A ideia de um contrato sem lei, exclusivamente
regido pelas suas próprias estipulações ou por princípios gerais nele incorporados
por efeito da vontade das partes, mostra-se por isso inviável.
Não pode, por outro lado, dizer-se que as regras constantes dos mencionados
textos internacionais correspondam, sequer no espaço europeu, a um jus commune.
O significado da autonomia privada, e o modo como esta se articula com outros
princípios que com ela concorrem na regulação dos contratos – como a tutela da
confiança e a equivalência das prestações – varia muito significativamente, como
vimos, entre os sistemas jurídicos nacionais atrás examinados.
As soluções a este respeito consagradas nos Princípios Unidroit e nos demais tex-
tos referidos aproximam-se, sobretudo, das que se encontram acolhidas nos Direitos
da Europa continental; estão, em contrapartida, muito longe das que vimos serem
acolhidas pelos Direitos anglo-saxónicos, no Direito chinês e no Direito muçulmano.

10. CONCLUSÃO
Não há, em suma, na matéria que nos ocupou neste estudo, um modelo único,
nem os textos de fonte internacional que aqui examinámos representam qualquer
mínimo denominador comum entre as diferentes tradições jurídicas nacionais. Pelo
contrário: o significado da autonomia privada varia, sempre variou e continuará
muito provavelmente a variar no tempo e no espaço, não obstante todos os esforços
envidados, aos mais diversos níveis, no sentido de unificar o Direito dos Contratos.

grama de Trabalho da Comissão Europeia para 2015. Em 09.12.2015, foram apresentadas


pela Comissão Europeia duas propostas de Diretivas em execução deste propósito: a Pro-
posta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre certos aspetos relativos aos
contratos de fornecimento de conteúdos digitais (COM (2015) 634 final) e a Proposta de
Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certos aspetos que dizem respei-
to a contratos de vendas em linha de bens e outras vendas à distância de bens (documento
COM (2015) 635 final).
VICENTE, Dário Moura. A autonomia privada e os seus diferentes significados à luz do direito comparado.
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 275-302. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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O que, se bem cuidamos, nada tem de surpreendente: a diversidade dos signifi-


cados possíveis deste conceito – tão caro ao Direito Contratual de tradição ociden-
tal, mas tão estranho ao das demais tradições jurídicas – não é senão a expressão,
neste domínio específico, da imensa diversidade dos Direitos por meio das fron-
teiras; diversidade essa que é, por seu turno, uma consequência inelutável da na-
tureza cultural do Direito, para que chamou a atenção no Brasil o Professor Miguel
Reale,103 e da intrínseca variabilidade de todas as manifestações de cultura humana.
Numa época, como a presente, em que tudo tende para o nivelamento e para a
uniformização – para cujos perigos alertou Bento XVI104 – não será demais recordar
esse traço indelével do Direito.

PESQUISA DO EDITORIAL

Veja também Doutrina


• A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica – perspectivas estrutu-
ral e funcional, de Francisco dos Santos Amaral Neto – Doutrinas Essenciais de Direito Civil
2/579-606, Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil 1/117-144 (DTR\2012\1420);
• Autonomia privada e estipulação contratual, de Luiz Edson Fachin – Soluções Práticas – Fa-
chin 1/321 (DTR\2012\113); e
• Autonomia privada romana, de Christian Baldus – RT 904/41-72 (DTR\2011\1197).

103. Cfr. Filosofia do direito. 20. ed. São Paulo, 2002. p. 217 e ss. e 300 e ss.
104. Cfr. a Encíclica Caritas in Veritate, de 29.06.2009, n. 26.
VICENTE, Dário Moura. A autonomia privada e os seus diferentes significados à luz do direito comparado.
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 275-302. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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