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Prova – Direito e Justiça

Caio Xavier – 10776252 – 13/191

Segundo a teoria hartiana, a apreensão de um fenômeno pode ocorrer por dois


enfoques: como simples regularidade causal (ponto de vista externo) ou como uma
ordem normativa válida, que impõe padrões de conduta e sujeita a críticas aqueles que
não os respeitam (ponto de vista interno). No que tange ao ordenamento jurídico,
forçoso reconhecer o elemento valorativo trazido pelo ponto de vista interno, que reside
no conceito de crítica pelo descumprimento da regra. Sem ele, tornam-se ininteligíveis
distinções intuitivas básicas, como a diferença entre o pagamento de um tributo e a
execução da pena de multa.

Essa chave de interpretação imprescindível para a compreensão das práticas


sociais é seu sentido. Ele imprime uma intenção às ações individuais e coletivas
disciplinadas conforme a prática, fornecendo-nos uma orientação para deliberar sobre
nossa conduta e para justificar ou não o estado atual da prática. Para o Direito, tal
sentido é a justiça, de modo que tanto a compreensão do conteúdo da legislação atual
quanto sua análise crítica se fundamentam na métrica estabelecida por alguma
concepção do conceito de justiça. Com esse arcabouço teórico, torna-se possível
analisar as normas da Lei 13.979/2020, averiguando sua dimensão normativa e sua
fundamentação conforme a justiça.

No primeiro nível, evidencia-se que cada medida sanitária cominada impõe uma
obrigação ao destinatário, cuja violação provoca, inclusive, a imposição de sanções,
consequências deliberadamente pensadas para afligirem o agente. Ilustrativamente, só o
ponto de vista interno revela que muitas pessoas estão trancadas em casa porque se
atribuiu, por meio de intencionalidade coletiva, um desvalor à conduta de sair
imotivadamente.

No segundo nível, é possível argumentar quanto ao sucesso de determinados


preceitos jurídicos em adequarem-se ao sentido de sua prática e, consequentemente, se
eles são espécimes de bom Direito. Cumpre destacar que não só o conteúdo da teoria da
justiça adotada, mas também sua aplicação nas situações concretas são passíveis de
discussão objetiva, segundo os critérios da argumentação racional. Passa-se, assim, a
examinar se as teorias aristotélica e rawlsiana de justiça fornecem justificação para as
medidas impostas.

Para Aristóteles, a justiça é a virtude das relações com os outros, primando por
diferentes formas de igualdade interpessoal em relação a bens e malefícios. As
restrições decorrentes do COVID-19 concretizam a modalidade da justiça distributiva,
isto é, a relação de indivíduos com a coletividade para a repartição de ônus e bônus
gerados pelas coisas comuns. De início, deve-se identificar o interesse coletivo que se
pretende tutelar, a saúde pública, bem que se considera comum sob duas perspectivas: o
financiamento público dos serviços de saúde e a interdependência entre as integridades
físicas individuais oriundas da alta taxa de contágio da moléstia. Estabelece-se, em
seguida, que as limitações de liberdade legalmente previstas fomentam a saúde pública,
ao reduzirem as infecções contraídas devido ao contato social.

A justiça distributiva aristotélica reclama ainda que os objetos divididos


respeitem um critério adequado, definido a partir da pertinência entre o motivo da
divisão e as qualidades pessoais de cada membro da coletividade. A princípio, a
involuntariedade da pandemia recomenda a igualdade na distribuição das limitações da
liberdade, o que assenta o acerto da lei emergencial. Entretanto, entendo também
razoável que certas pessoas pudessem ser aliviadas de parte dos encargos por condições
pessoais relevantes para a saúde pública, a exemplo dos profissionais de saúde.

Também na visão de Rawls as restrições adequam-se aos princípios da justiça.


Para o autor, a justiça deve ser arguida sob o véu da ignorância, isto é, o
desconhecimento hipotético de nossas condições pessoais como garantia de
imparcialidade e empatia na deliberação coletiva do conteúdo da justiça. Tal prescrição
já impacta a avaliação das medidas em tela: mesmo que já estejamos imunizados ou não
sejamos grupos de risco, impõe-se que pensemos o que escolheríamos caso não
soubéssemos de nossa posição. Ante a gravidade dos riscos envolvidos, penso que
prevaleceria a chancela das medidas restritivas e protetivas.

Quanto ao princípio da igual liberdade, estabeleceram-se as mesmas proibições


para todos, com a menor limitação compatível com as necessidades médicas. Sem
critérios diferenciadores, não há arbitrariedade moral na suspensão temporária de
liberdades básicas dos cidadãos. O princípio da diferença strictu sensu também
autorizaria a distribuição desigual dos recursos, como vacinações, se os não-favorecidos
fossem beneficiados pelo afrouxamento mais célere das restrições.

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