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Parte Geral – Doutrina

A Evolução do Casamento até o Presente


ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO
Doutor em Direito, Professor Titular de Direito Civil, Regente de Pós-Graduação e Ex-Diretor da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, Professor Titular de Direito Romano,
de Direito Civil e Ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
em São Paulo, Professor Titular de Direito Romano e Diretor da Faculdade de Direito da Funda-
ção Armando Alvares Penteado – FAAP, em São Paulo, Advogado e Ex-Conselheiro Federal e
Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Parecerista, Consultor Jurídico.

ANTIGUIDADE
Ensinam os doutrinadores, entre os quais Jean Gaudemet1 e John
Gilissem2, que o casamento, na antiguidade, era, geralmente, constituído por
contrato, acompanhado de celebrações religiosas e festas familiares, por rapto
simulado da mulher ou, ainda, por mera convivência como marido e mulher
(casamento de fato).
Entendo que o forte do casamento antigo é a coabitação dos cônjuges,
tanto que sua desconstituição pelo divórcio acontecida por prazo contado da
falta de convivência.
Na Odisseia de Homero, conta-se sobre a ausência de Ulisses de seu lar
por mais de cinco anos, em viagens e aventuras que motivou o divórcio auto-
mático dele e de sua esposa Penélope, que passou a receber propostas de novo
casamento, embora não correspondidas.
Também no Direito romano, à semelhança, surgiu o divortium bona
gratia, que existia, também automaticamente, quando o marido, em razão de
guerra ou de prisão, estando em lugar desconhecido, afastava-se, por cinco
anos, do convívio de sua esposa.
Divórcio automático esse que foi adotado pelo § 6º do art. 226 da Cons-
tituição Federal de 1988, quando assentava que a separação conjugal por mais
de dois anos consecutivos causava o divórcio entre os cônjuges, que podia ser
requerido por qualquer destes ao cabo desse prazo. Atualmente, esse direito po-
testivo dos cônjuges pode ser exercido a qualquer tempo, tendo sido eliminado
esse prazo de dois anos pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010.

1 Institutions de L’antiquité. Paris: Ed. Sirey, 1967.


2 Introdução histórica ao direito. Fundação Calouste Gulbenkian, 1986 (trad. do original em francês Introduction
historique au droit. Bruxelas: Émile Bruylant, 1979).
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Lembre-se de que, no Direito romano, estavam presentes as formas anti-
gas de casamento, assim o usus, baseado na posse dos cônjuges, previsto na Lei
das XII Tábuas, de 450 a.C.; a confarreactio, em que se dava a entrega da mu-
lher a seu marido, na porta da casa deste (deductio mulieris in domum mariti),
e a coemptio, que implicava a compra simulada da mulher.
A confarreactio era cercada de festividade aos deuses domésticos (ante-
passados), com sacrifício de pequenos animais logo à entrada da casa (atrium).
Era o procedimento matrimonial reservado ao patriciado, consistindo na
oferta a Júpiter Farreus de um pão de farinha de trigo (panis farreus), em ritual
religioso, perante 10 testemunhas, acompanhado de palavras solenes do sacer-
dote de Júpiter (flamen Dialis). Era uma espécie de casamento religioso.
A coemptio era o casamento privativo dos plebeus, bem mais simples.
Como visto, o casamento era um fato social realizado sem qualquer for-
malidade oficial ou celebração pelo Estado Romano.

ETAPAS DE DESENVOLVIMENTO
Essas modalidades matrimoniais desenvolveram-se em 2 etapas, princi-
palmente.
Em uma primeira etapa, pela Inglaterra, via Germânia, que adotou, por
muito tempo, a lei canônica, como um ato de vontade dos nubentes, com a
indispensável consumação (coabitação).
A Lei de Lord Hardwike, de 1753, tornou impossível contratar esse casa-
mento clandestino, sem formalidades. Extinguiu-se, assim, esse casamento da
common law, sem formalidades.
Por outro lado, na Escócia, a par do casamento religioso, existia o casa-
mento de fato (irregular).
Conta-se que os casais que não tinham consentimento a se casarem pas-
savam a fronteira da aldeia de Gretna Green e iam declarar-se casados nessa
aldeia escocesa, perante a primeira pessoa que lá encontrasse (geralmente o
ferreiro dos animais).
Atualmente, há algumas exigências criadas pelos Tribunais, havendo ne-
cessidade da coabitação por determinado tempo.
Ao seu turno, nos Estados Unidos da América do Norte (USA), existe até
o presente momento o casamento de fato, conhecido por marriage on common
Law.
Basta viver o casal juntos por algum tempo apontado na common law
para que se tornem casados.
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São mais ou menos 14 Estados Americanos que adotam essa forma de
casamento, que se considera extinto pela falta de coabitação dos cônjuges por
igual prazo.
Fiz, certa feita, na Universidade de Durhan, na Inglaterra, uma palestra
ressaltando a origem do casamento de common law no usus (posse) do Direito
romano.
Destaque-se, ainda, que na Rússia (União Soviética), antes da revolução
de outubro de 1917, existia somente o casamento religioso, criando-se, então,
no mesmo ano, o casamento civil.
Ao seu turno, no México, no Estado de Tamaulipas, permanece o casa-
mento de fato, por convivência dos cônjuges.
Em uma segunda etapa, as três espécies do casamento de fato e o reli-
gioso estão presentes na Espanha, em seus Forais e em Portugal, nas Ordena-
ções do Reino, Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, esta de 1603, que regulava
o casamento religioso per palavras de presente à porta da Igreja, ou fora dela
com licença do Prelado, por scriptura (forma de documento comprovador do
casamento) e o casamento de conhuzudos, que era o casamento de fato, da
antiguidade.
Este último foi proibido em 1563, pelo Concílio de Trento, contudo esse
casamento clandestino continuou a figurar nas Ordenações Filipinas, de 1603,
por força do costume da época.

NO BRASIL
No Brasil, com o advento do Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890,
secularizou-se o casamento, com formalidades que impedem a existência do
casamento presumido ou de fato. Este e o casamento religioso autônomo fo-
ram extintos. Ao lado do casamento civil, sempre existiu o casamento religioso,
também nos Textos Constitucionais, todavia, com efeitos civis, o que implica
que se tiver efeitos civis é casamento civil. Caso contrário, é concubinato puro,
hoje união estável.
A Lei nº 1.110, de 1950, invocando a Constituição de 1946, cuida das
duas espécies de habilitação ao casamento, sendo uma prévia à celebração
religiosa e outra posterior a elas.
O casamento religioso deve ser autônomo, em meu entendimento, como
sempre foi antes do Decreto nº 181 citado. Esse vem sendo meu entendimento.
À falta desses casamentos tradicionais, passaram os casais a viver em
concubinato puro, sem agressão ao casamento. Ao lado deste, continuaram a
existir os condenados concubinatos impuros (adulterinos e incestuosos).
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Sempre entendi também que existiu o concubinato desleal, quando pa-
ralelo a outro concubinato.
Ao seu turno, a Constituição de 1967, após a Emenda nº 1 de 1969, acen-
tuava, em seu art. 175, que “a família é constituída pelo casamento e terá direito
à proteção dos Poderes Públicos”.
Como eu havia proposto, o Projeto da Constituição de 1988 dizia, sim-
plesmente: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
Contudo, após muitas intervenções, surtiram na Constituição de 1988 as
discriminações, no art. 226: o casamento civil (§ 1º); o casamento religioso com
efeitos civis, na forma da lei (civil) (§ 2º); a união estável (§ 3º); e a entidade
familiar (§ 4º).
Destaque-se, nesse ponto, que, um ano e meio antes da edição da Cons-
tituição de 1988, escrevi meu livro do Concubinato ao casamento de fato3, pro-
pondo a inclusão no Texto Constitucional do concubinato puro, o que foi feito
sob o nome de união estável, com base no meu esboço de anteprojeto (nesse
livro): o Estatuto dos Concubinos e do Casamento de Fato4.
Com fundamento nesse anteprojeto, sob a relatoria da Deputada Beth
Azize, editou-se a Lei nº 9.278, de 10 de maio, em cujo art. 1º ressalta-se o con-
ceito de união estável como convivência duradoura, com o intuito de constitui-
ção de família, assentando, em seu art. 5º, minha ideia fulcral pelo qual, quanto
ao patrimônio, não havendo estipulação em contrato escrito, os bens móveis e
imóveis adquiridos, onerosamente, por um ou por ambos os conviventes, no
período em que durar a união estável, são considerados fruto do trabalho e da
colaboração comum, pertencendo a ambos, em condomínio e partes iguais.
Depois da Constituição Federal e antes da Lei de 1996, minha tese foi
acolhida pelo Tribunal do Rio Grande do Sul, em caso relatado pelo Desembar-
gador Clarindo Favreto, depois pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em
caso relatado pelo Desembargador Menezes Direito, depois pelo Ministro do
Superior Tribunal de Justiça, e depois pelo Supremo Tribunal Federal.
Este último caso citado foi relatado no Superior Tribunal de Justiça pelo
Ministro Cláudio Santos, reconhecendo que bastava “estreita colaboração de
ordem pessoal, às vezes de muito maior valia”, como deveria ser entendida a
expressão “esforço comum” constante da Súmula nº 380 do Supremo Tribunal
Federal5.

3 Ed. Cejup, Belém, 1987.


4 O.c., p. 280 a 284, especialmente art. 10, p. 281.
5 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 248.
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O instituto do casamento veio sofrendo transformação, como o encurta-
mento dos prazos para sua extinção, tal o prazo de 2 anos de separação, de fato
do casal para ocasionar o divórcio.
Com a PEC do Divórcio, promulgada pelo Congresso Nacional em
13.07.2010, instituiu-se o divórcio na legislação brasileira. O único objetivo
dessa emenda constitucional foi o de eliminar os prazos que existiam no § 6º do
art. 226 da Constituição Federal.
O divórcio passou, então, a ser exercido como um direito potestativo de
cada cônjuge.

HOMOSSEXUALISMO E CASAMENTO HOMOSSEXUAL


No tocante à união homoafetiva, destaque-se, inicialmente, que existiu
na antiguidade o costume homossexual, como na Grécia, em que os homens
casados tinham suas mulheres cuidando da família em casa, além de possuírem
concubinas, com o hábito homossexual nos banhos públicos.
Esses hábitos homossexuais mostram-se, por exemplo, na obra de Platão,
O banquete, em que os homens presentes trocam declarações de amor.
Entre nós, a homossexualidade foi considerada doença mental até 15
de dezembro de 1973, excluída do rol de doenças por decisão da American
Psychiatric Association desde 1991.
Surgiu, então, a parceria registrada na legislação estrangeira, na
Dinamarca, pela Lei 372, de 1º de junho de 1989; na Noruega, pela Lei 40,
de 30 de abril de 1993, parecida com a lei dinamarquesa; na Suécia, por seu
Parlamento, desde 1º de janeiro de 1995, pela Lei de 23 de junho de 1994, com
intervenção obrigatória judicial em sua dissolução.
A Finlândia foi o único país escandinavo que não aderiu ao casamento
entre pessoas do mesmo sexo, até a pesquisa que fiz.
Na Islândia, à semelhança da lei dinamarquesa, admite-se o casamento
entre pessoas do mesmo sexo, desde 27 de junho de 1996, sendo ainda admiti-
do na Holanda, desde 1º de janeiro de 1998.
O mesmo aconteceu em algumas cidades dos Estados Unidos da
América do Norte, como em São Francisco.
A Alemanha, ao seu turno, ampliou, em 1998, os direitos dos conviven-
tes do mesmo sexo, tendo sido registrado, em 2002, o primeiro divórcio de
homossexuais pelo Tribunal de Oldenbourg.
Nos Estados Unidos da América do Norte, a Suprema Corte da Califórnia
negou, em 27 de fevereiro de 2004, pedido do Procurador-Geral Billy Lockyer
para anulação de mais de 3.500 casamentos gays e suspensão de outros.
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Vários outros países admitem esse casamento de homossexuais, tendên-
cia que cresce dia a dia.
Ressalte-se a lei que admitiu casamento em Portugal, desde 11 de feve-
reiro de 2010 (Decreto nº 9/X), na Assembleia da República, embora negado o
direito a adoção pelos companheiros.
Em razão dessa lei portuguesa, recebi convite para fazer palestras nas
Faculdades de Direito de Coimbra e de Braga, o que foi realizado.
Essa Lei alterou a redação do art. 1.577º do Código Civil português, com
a seguinte redação: o casamento é “o contrato celebrado entre duas pessoas que
pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”.
Ao seu turno, em 15 de julho de 2010, a Argentina acolheu também o
casamento entre homossexuais, tornando-se o primeiro país da América Latina
a autorizar essa espécie de casamento.
Essa lei argentina conferiu direito de herança entre os homossexuais, o
direito de adotar filhos, registrados em nome de ambos, o de pagar impostos
como casal, de pedir crédito utilizando a renda dos dois, podendo um ser in-
cluído no plano de saúde do outro.

EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO


Do mesmo modo, ainda que se cogite de mera convivência, no plano
fático, entre pessoas do mesmo sexo, não se configura a união estável, e sim a
união homoafetiva autônoma.
Realmente, desde que foram conferidos efeitos ao concubinato, até o ad-
vento da Súmula nº 380 do Supremo Tribunal Federal, sempre a jurisprudência
brasileira teve em mira o par andrógino, o homem e a mulher.
Com a Constituição Federal, de 05.10.1988, ficou bem claro esse posi-
cionamento de só reconhecer como entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, conforme o claríssimo enunciado do § 3º do seu art. 2266.
Entretanto, prefiro entender que o art. 226 não é taxativo em relacionar
os modos de constituição de família, sendo mais fácil admitir que, atualmente,
a união homoafetiva foi reconhecida no âmbito do direito de família, sendo

6 Com entendimento contrário, Maria Berenice Dias (União homossexual, o preconceito e a justiça. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2000, nº 8, p. 147) conclui: “Um Estado Democrático de Direito, que valoriza
a dignidade da pessoa humana, não pode chancelar distinções baseadas em características individuais.
Injustificável a discriminação constante do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, bem como inconstitucional
a restrição das Leis nºs 8.971/1994 e 9.278/1996, que regulamentam a união estável, ao se referirem
somente ao relacionamento entre um homem e uma mulher”. Cita a autora, lastreando seu entendimento,
decisões da justiça gaúcha (Op. cit., principalmente p. 131-36).
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perfeitamente viável incluí-la no rol do art. 226, citado, como uma categoria
autônoma. Já disse que o Estado não pode mencionar na Constituição de modo
taxativo, como o povo deve constituir sua família. Por essa razão, essa relação
do art. 226 da Constituição Federal é meramente enunciativa7.
Mesmo com a possibilidade de incluir-se o casamento homossexual no
aludido art. 226 da Constituição, como figura autônoma, a jurisprudência bra-
sileira resultou relutante em admiti-lo.
Cite-se o famoso caso de união entre um pintor e um fotógrafo, no Rio de
Janeiro, cuja decisão de primeiro grau, após 17 anos de convivência, reconhe-
ceu o direito do companheiro sobrevivo de 50% sobre o patrimônio adquirido
por esforço comum.
Em segunda instância, reconheceu-se esse direito, mas como sociedade
de fato e não de caráter familiar, reduzindo se a participação do companheiro
sobrevivente.
Houve certa relutância da jurisprudência em admitir essa sociedade com
natureza familiar.
Em 1995, a então Deputada Federal Marta Suplicy apresentou o Projeto
de Lei nº 1.151, objetivando disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo
sexo.
Embora a autora desse projeto ressalta que ele não se refere ao casamen-
to, nem propõe a adoção de crianças ou a constituição de família, mas garante
direito de cidadania, sem discriminar as pessoas em razão de sua orientação
sexual, possibilitando aos homossexuais o direito à herança, previdência, de-
claração comum de Imposto de Renda e nacionalidade.
Esse projeto foi muito criticado injustamente, sendo tachado de ser imo-
ral e atentar contra a lei natural.
Por ameaça muito forte, principalmente por deputados católicos e evan-
gélicos, deixou de ser votado esse projeto na sessão extraordinária da Câmara
em 1998, continuando sem andamento, também pelo temor de sua autora de
uma derrota8.

POSIÇÃO ATUAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


Em 5 de maio de 2011, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em
ocasião histórica, julgou duas ações diretas de inconstitucionalidade – Arguição

7 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 240 a 243 e Direito de família – Curso de direito civil. São Paulo: Atlas,
p. 205-210.
8 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito de família, c., análise de Projeto, p. 184 a 194.
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de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132/RJ e outra cone-
xa – ADIn 4.277 –, relativas à apreciação de uniões homoafetivas, em que se
discutiu a interpretação legitimadora do art. 1.723 do Código Civil, em face da
Constituição Federal, permitindo a declaração de sua incidência também sobre
a união de pessoas do mesmo sexo, com convivência pública, contínua e du-
radoura, com o intuito de constituição de família, ações estas já anteriormente
mencionadas, respectivamente ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República
e pelo Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.
O julgamento foi pela procedência das ações, admitindo a união de pes-
soas do mesmo sexo como entidade familiar, nos termos do acórdão, que está
para ser publicado.
Por essa procedência, votaram a favor dez Ministros: o Relator Carlos
Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Celso de
Mello, Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Cezar Peluso;
isso porque o Ministro José Antonio Dias Toffoli não votou em razão de impedi-
mento, por ter dado parecer favorável à anulação das decisões do TJRJ, à época,
pela Advocacia-Geral da União.
Embora não tendo sido disponibilizados todos os votos, o que pude ob-
servar é que eles reconhecem a união homoafetiva como entidade familiar,
vendo o art. 226 da Constituição Federal não em numerus clausus, mas com
texto dispositivo (não taxativo), admitindo direitos à pensão alimentícia e previ-
dência, à herança de bens adquiridos em comum e à adoção conjunta.
Aplicam-se à união homoafetiva como entidade familiar
as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterosse-
xual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles
que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta
máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no
âmbito jurídico. (voto do Ministro Ricardo Lewandowski)

O Ministro Relator Carlos Ayres Britto fundamentou seu voto no art. 3º,
inciso IV, da Constituição Federal, que proíbe toda discriminação em virtude de
sexo, raça, cor, idade, ou por quaisquer outras formas.

POSIÇÃO ATUAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça admitiu o casamento homos-
sexual, ao julgar, por sua 4ª Turma, em 25 de outubro de 2011, o recurso de
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duas mulheres lésbicas do Rio Grande do Sul, que cassara autorização para a
realização de casamento civil9.
Esse julgamento foi acolhido por 4 votos contra 1, o do Ministro Raul
Araújo, que entendeu ser a matéria de competência do Supremo Tribunal Fe-
deral.
Como visto, o Superior Tribunal de Justiça, ao autorizar o casamento
civil entre mulheres10, facilitou a vida dos “casais” homossexuais, que não mais
necessitam de união estável reconhecida.
Assim, de simples proteção de união de família que tinham esses “ca-
sais”, com aplicação analógica da legislação da união estável, passaram a exis-
tir autonomamente como casados (casamento civil), enquadrada a união nas
normas sobre esse casamento, no Código Civil.
Em seu voto, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão afirmou “que não é
possível vetar aos casais homoafetivos os direitos garantidos aos heterossexuais.
Impedir que se casassem [...] seria violar princípios expressos na Constituição”.
Entendo que a competência do Superior Tribunal de Justiça foi admitida
corretamente, pois julgou matéria de direito de família e não exclusivamente
de direito constitucional, embora estivessem presentes no julgamento vários
princípios constitucionais. Aliás, atualmente, esses princípios integram as rela-
ções jurídicas, principalmente quando está presente a preservação da dignidade
humana.
O casamento civil é instituto jurídico do direito civil da família, que sem-
pre teve proteção, maior ou menor, nos Textos Constitucionais.
Pontifica-se, assim, o Poder Judiciário a resolver os problemas dos ci-
dadãos, mesmo sem o apoio da legislação específica. Principalmente porque
o Poder Legislativo tem sido expresso em negar a união homoafetiva, por ele
celeremente reprovada, com duros termos dos segmentos religiosos que o inte-
gram, desde o projeto da Deputada Marta Suplicy, que era mais suave do que
a atual decisão do Superior Tribunal de Justiça, pois não considerava a parceria
homossexual como casamento.
Com essas decisões judiciais ainda não vinculativas, cada interessado,
para a defesa de seus direitos homoafetivos, tem que recorrer ao Poder Judiciá-
rio, alegando os precedentes existentes, para que seus direitos sejam reconhe-
cidos.

9 Tribuna do Direito, Direito de Família, 1º nov. 2011, p. 18; REsp 1183378.


10 O Estado de São Paulo, reportagem de Felipe Recondo, em 26 de outubro de 2011, Vida, p. A19.
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MINHA ATUAL POSIÇÃO
Com todas as decisões que se originaram de nossos Tribunais a culminar
com esses julgamentos recentes de nossos Tribunais Superiores, reconhecendo
a união homoafetiva como entidade de direito de família, ora equiparando-a,
em certas regras, analogicamente, com a união estável, ora com casamento ci-
vil, admitiu-se uma realidade social brasileira e mundial, que vem acontecendo
e da qual não podemos fugir.
Assim, também o meu enfoque sobre a matéria que sofreu alterações e
que merece ser, nessa feita, esclarecido.
A proteção que sempre dediquei à união homoafetiva como sociedade
de fato sofre uma transformação a considerá-la atualmente como união de ca-
ráter familiar. Assim aconteceu, também, porque o posicionamento social mu-
dou, colocando em ostentação a convivência de pessoas do mesmo sexo que
existia em verdadeiro anominato.
Não pode o jurista fugir à realidade.
O mero comportamento homossexual que sempre existiu na humani-
dade mostra-se, atualmente, como núcleos familiares que merecem o respeito
da sociedade que, em princípio, mostra-se hostil a essa convivência, como em
outras situações mostrou-se no passado.
Assim aconteceu com o repúdio à ideia do divórcio e com a convivência
concubinária pura (não incestuosa e não adulterina), em que viviam pessoas
desquitadas aos olhos críticos da sociedade, principalmente as mulheres, que
sofriam discriminações sociais pela sua condição de serem desquitadas e mal
vistas como se de mal comportamento, restos de um machismo que agoniza
atualmente, depois do reconhecimento paulatino dos direitos da mulher, prin-
cipalmente a partir da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, conhecida como
Estatuto da Mulher Casada.
No tocante ao concubinato puro, muito lutei pela sua defesa, que culmi-
nou com a publicação de minha tese intitulada “Concubinato ao casamento de
fato”, publicada um ano e meio antes da Constituição Federal de 1988.
Com meu11 esforço muito grande junto ao Relator da Constituinte, então
Senador Bernardo Cabral, foi incluído o concubinato puro (como era por mim
chamado) no texto da mesma Constituição, no § 3º de seu art. 226, com o nome
de união estável.

11 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato, cit..., p. 240.


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O anteprojeto de lei que elaborei na aludida tese foi utilizado como Pro-
jeto de Lei nº 1.888, de 1991, pela Deputada Beth Azize, com o apoio constan-
te do grupo CFEMEA, de Brasília, e que se transformou na Lei nº 9.278, de 10
de maio de 1996.
Depois, a matéria foi incorporada ao Código Civil, tendo a união estável
recebido o respeito e a aprovação de nossa sociedade, que reprovara, antes, a
união concubinária pura.
Atualmente, a grande defesa da união homoafetiva é sua quase equipara-
ção à união estável, de um lado, e o reconhecimento como casamento, de outro
lado, que acolhe especificamente a convivência heterossexual.
A consideração atual de que as regras da união estável devem ser apli-
cadas analogicamente à união homoafetiva foi o entendimento do Supremo
Tribunal Federal ao interpretar o art. 1.723 do Código Civil, diante dos casos
concretos que foram apresentados à decisão, como mais recentemente o enqua-
dramento dessa união homoafetiva como casamento, no Código Civil.
Todavia, além dessa interpretação da Corte Suprema e do Superior Tribu-
nal de Justiça, é melhor encarar a união homoafetiva como um instituto jurídico
autônomo dentro do contexto enunciativo do art. 226 da Constituição Federal,
já que o Tribunal Supremo considerou essa convivência como entidade de di-
reito de família.
Bem apreendeu esse espírito o Ministro Ricardo Lewandowski quando
referiu, em seu cuidadoso e profundo voto, meu entendimento12:
Nesse sentido, aliás, observa o Professor Álvaro Villaça Azevedo que: “[...] a
Constituição de 1988, mencionando em seu caput que a família é a ‘base da
sociedade’, tendo ‘especial proteção do Estado’, nada mais necessitava o
art. 226 de dizer no tocante à formação familiar, podendo o legislador constituin-
te ter deixado de discriminar as formas de constituição da família. Sim porque ao
legislador, ainda que constituinte, não cabe dizer ao povo como deve ele consti-
tuir sua família. O importante é proteger todas as formas de constituição familiar,
sem dizer o que é melhor”.

Desse modo, enquanto não for a matéria objeto da legislação própria, a


união homoafetiva irá recebendo a proteção como se fosse união estável, por
analogia, com os beneplácitos dos arts. 1.723 a 1.725, ou como casamento
civil, em cada caso específico, seja, respectivamente, julgamento do Supremo
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça.

12 Idem, ibidem.
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Não poderiam, entretanto, os companheiros homoafetivos converter sua
união em casamento, nos moldes do art. 1.726 do Código Civil, principalmente
ante a posição do Supremo Tribunal Federal. Todavia, ante o julgamento do
Superior Tribunal de Justiça, o reconhecimento da união homoafetiva é como
casamento, autônomo.
Muitos juízes vinham já, sob interpretação do primeiro julgado do Su-
premo Tribunal Federal, admitindo a conversão de uniões homoafetivas em
casamento, com aplicação analógica do art. 1.726 do Código Civil, como uma
decisão em São Paulo e outra em Brasília.
Se, de futuro, o Poder Legislativo for levado a admitir no Brasil o ca-
samento entre pessoas do mesmo sexo, aí minha sugestão é de que se siga o
exemplo português, alternando-se os textos do Código Civil na parte relativa
ao casamento civil, acrescentando-se ao lado da palavra “cônjuge” o vocábulo
“companheiro”; ao lado da locução “homem e mulher”, a expressão “cônju-
ges e companheiros”, esta última palavra também após a expressão “marido e
mulher”.
Como exemplo, o art. 1.511 ficaria assim redigido: “O casamento ‘civil’
estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e de-
veres dos cônjuges ‘e dos companheiros’”; o art. 1.514 seria redigido: “O casa-
mento civil realiza-se no momento em que ‘duas pessoas’ manifestam, perante
o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz ‘as’ declara ‘ca-
sadas’”; o art. 1.517 teria o seguinte texto: “As pessoas com 16 (dezesseis) anos
podem casar-se exigindo-se autorização de ambos os pais ou de seus represen-
tantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil”; e assim por diante.
Isso se não preferir o legislador admitir, no atual Estatuto das Famílias, o
restabelecimento de seu art. 68 – que foi retirado do projeto de Lei nº 2.285,
de 2007, criado pelo IBDFam, e apresentado pelo Deputado Sérgio Barradas
Carneiro (PT/BA).
Eis a íntegra do art. 68 desse Estatuto:
É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas do mesmo
sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com o objetivo
de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes
à união estável.
Parágrafo único. Entre os direitos assegurados, incluem-se:
I – guarda e convivência com os filhos;
II – a adoção de filhos;
III – direito previdenciário;
IV – direito à herança.
98 R������������������������������������������������������������������������������������������������������������������RDF Nº 86 – Out-Nov/2014 – PARTE GERAL – DOUTRINA
Esse artigo poderia atualizar-se, referindo-se diretamente ao reconhe-
cimento como casamento civil, evitando-se a conversão. Como o direito de
família é dinâmico e muda rapidamente com o progresso e com o compor-
tamento da sociedade, é viável que ele se destaque do Código Civil, para ser
continuamente adaptado segundo as necessidades sociais, um Estatuto fora do
Código Civil, este com normas mais duradouras, como o Estatuto da Criança e
do Adolescente, o Estatuto da disposição do próprio corpo, o Estatuto do Idoso,
o Estatuto do Consumo e outros.
O futuro da união homoafetiva, parece, assim, deve ser encarada como
casamento civil, como instituto jurídico autônomo, incluído como uma das es-
pécies mencionadas no art. 226 da Constituição Federal (casamento civil atí-
pico).

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