Como noticia o texto trazido à debate, a Constituição da República instaurou um regime de seguridade social unificado, que congrega saúde, assistência social e previdência. No que tange à previdência, ela não positivou um modelo aos moldes do relatório apresentado por William Beveridge ao Parlamento britânico no pós-Segunda Guerra Mundial. Isso porque essa proposta visava amparar os cidadãos para todas as intercorrências passíveis de ocorrerem ‘do berço ao túmulo’. Institui-se, assim, universalidade nos aspectos subjetivo (âmbito de pessoas seguradas) e objetivo (âmbito de infortúnios abrangidos pelo sistema), independentemente da lógica da equivalência entre contribuinte do sistema e beneficiário da previdência.
O modelo brasileiro de seguridade social, por sua vez, ostenta um conjunto de
princípios que, ao lado da universalidade, a mitigam aos moldes da ponderação de valores jurídicos. Um preceito notoriamente conflitante com a universalidade é ‘seletividade’ na prestação de benefícios e serviços (art. 194, § único, III) que fundamenta a regra de que somente aqueles que ostentam a qualidade de segurado têm direito aos benefícios previdenciários, que se depreende do art. 201 do mesmo texto constitucional.
Essa mitigação da universalidade deve-se não a uma intenção perversa de uma
elite dominante ou coisa que o valha, que se regozija com a penúria do nível de vida médio de muitos brasileiros – enquanto come caviar nos almoços de domingo, segundo a impressão ingênua e quase cinematográfica de alguns. Na realidade, a restrição subjetiva dos direitos previdenciários explica-se pela insuficiência de recursos estatais e sociais para o financiamento de um sistema plenamente universal, como, aliás, está revelando-se mesmo em países desenvolvidos e com PIB per capita muito superior ao nacional. Diante desse quadro fático que pressiona por soluções jurídicas compatíveis, cabe ao Direito corrigir distorções atuais para direcionar ações no plano do possível, ao invés de impor normativamente prestações inalcançáveis.
Ora, nesse sentido, é estarrecedor que se sustente que um regime de
aposentadoria muito mais generoso que a previdência dos trabalhadores em geral seja devido ao funcionário público, sem falar nas categorias especiais de militares e membros de Poder. Mais iníquo ainda é tratar essa benesse como um ‘direito’, no sentido moral da expressão, do servidor público, uma ‘retribuição pelos anos de dedicação à coisa pública’ na visão da autora, que seria imprescindível para a atração dos melhores profissionais a fim da prestação de serviços públicos de excelência. A estabilidade, o elevado prestígio social, em especial no interior do país, e a remuneração em níveis superiores à média do mercado já são suficientes para assegurar a qualidade do funcionalismo. Não se justifica, portanto, que valiosos recursos estatais sejam destinados a fornecer mais conforto para aqueles que já possuem um padrão de vida correspondente ao dos 5% mais ricos da nação. Se o Estado deve combater desigualdades econômicas e concentrar-se na tutela dos mais vulneráveis, é salutar que sucessivas reformas da previdência tenham destituído servidores públicos de privilégios substancialmente onerosos para o Erário, devendo-se ressaltar, contudo, que ainda há segmentos da elite do funcionalismo que gozam de aposentadorias superiores às compatíveis com a sociedade brasileira.
Em relação à instituição de contribuição de servidores públicos inativos par ao
custeio da previdência dos demais funcionários, há ponderação de valores jurídicos relevantes. De um lado, há mudança na regra do jogo para pessoas que já se inseriam no sistema antigo, suscitando violações da irretroatividade da norma jurídica, sobretudo do direito adquirido, e, mais genericamente, da segurança jurídica. Todavia, é elementar na análise da controvérsia que o regime de aposentadoria dos servidores públicos anterior é injusto, porque alimenta desigualdades por meio de política pública estatal sem atingir resultado valorativamente relevante.
Trata-se, dessa forma, de debate na seara da chamada justiça de transição, em
que se examina as condutas devidas na passagem de um sistema imoral para um mais adequado. Interpretar essa medida como aplicação do princípio da solidariedade da previdência, para então denunciar a incorreção da aplicação dessa noção normativa, perde de vista a iniquidade do regramento pretérito. Assim, em sede de ponderação, considerando que as contribuições não-estatais são imprescindíveis para a viabilidade de um regime previdenciário e que os servidores públicos inativos, em regra, se locupletaram com um regime de privilégios, julgo justo que devam contribuir para o custeio do sistema atual, nos moldes gerais instituídos pela reforma previdenciária.
A irrepetibilidade dos valores pagos por erro da Administração Pública como efeito da extinção do ato administrativo de concessão de benefícios previdenciários:: uma abordagem de acordo com os ditames do neoconstitucionalismo