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01 Outubro 2019

O Papa Francisco jocosamente referiu-se a um livro recentemente


lançado, que conta a resistência encabeçada por religiosos americanos
ao seu papado, como uma “bomba”. Agora, em entrevista ao Crux,
Nicolas Senèze, autor do livro e correspondente em Roma da revista
católica francesa La Croix, fala sobre o porquê acredita que uma
minoria de católicos americanos tem sido influente nas tentativas de
modelar a narrativa em torno das reformas de Francisco.

Em “Como a América quis mudar o papa” [em tradução livre], lançado


no começo de setembro deste ano, Senèze analisa os eventos
tumultuosos de 2018 depois dos pedidos públicos do ex-núncio
apostólico nos EUA, Dom Carlo Maria Viganò, para que Francisco
renunciasse com base na forma como lidou com a crise de abusos
sexuais clericais.

Ainda que inicialmente tenha escolho o silêncio diante das acusações –


dizendo aos jornalistas que fizessem a sua lição de casa examinando as
declarações de Viganò –, em conversa informal com Senèze ao viajar
para a África neste mês de setembro, Francisco disse que considera
“uma honra que os americanos me ataquem”. Na entrevista ao Crux, de
Senèze falou que acha que o papa está se permitindo falar sobre o
assunto hoje para resistir à “minoria poderosa” que poderia levar a
Igreja a um cisma.

A entrevista é de Christopher White, publicada por Crux, 28-09-


2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis a entrevista.
Você acredita que a resistência a Francisco nos Estados
Unidos é mais forte do que em outros países?

Não tenho certeza de que a oposição a Francisco é mais forte nos


Estados Unidos do que em outros lugares. O Papa Francisco ainda
retém a confiança de uma maioria dos católicos americanos, mesmo se
esta confiança estiver em declínio, principalmente por causa de uma
campanha poderosa para manchar a sua imagem.

A minoria que se opõe a Francisco no catolicismo americano tem


um forte poder: eles têm muito dinheiro e uma imprensa poderosa,
controlam parte do episcopado e, até a chegada de Francisco, eram
capazes de ditar a conduta no Vaticano.

Como caracterizaria a situação em seu país, a França?

Na França, também, a influência de uma imprensa católica


americana hostil ao papa pode ser sentida, mas devo reconhecer que
ela se limita a setores restritos. O catolicismo francês é muito diferente,
primeiro porque nunca conheceu a situação de minoria como é nos
EUA. Se hoje os praticantes católicos são uma minoria na França, uma
maioria do povo francês ainda se define como católicos.

O problema de hoje é a questão da identidade em um contexto onde os


próprios franceses se perguntam qual a identidade francesa. Para os
católicos, isso correspondente com a chegada de um papa que,
diferentemente de seus antecessores, não está imerso na cultura
francesa. Com Francisco, a França – assim como a Europa – está
aprendendo que não está mais no centro da Igreja, e isso pressupõe
certos desafios.

Além disso, existe uma série de católicos mais culturais do que


praticantes, pessoas sensíveis a um discurso identitário sobre o
cristianismo e que podem, pelo contrário, ficar impressionadas com as
palavras exigentes do Papa Francisco, que convida para ir além de uma
identidade católica simples, a um agir coerente com o Evangelho.

Em sua opinião, como a crise de abusos sexuais mudou ou


contribuiu para a resistência a Francisco nos EUA?

É difícil não ver como a crise de abusos sexuais mudou profundamente o


catolicismo americano. Ela mudou a forma como os clérigos são
percebidos e questionou o modo como administravam a Igreja, permitiu
a emergência dos leigos. O problema é que os leigos que assumiram o
poder em algumas dioceses americanas apenas perpetuaram o modelo
clerical e impuseram uma visão muito moralista de Igreja.

Em uma abordagem puramente moral ao abuso sexual, estes católicos


americanos achavam-se muito bem com a “tolerância zero” defendida
por Bento XVI. Mas Francisco entendeu que a tolerância zero,
embora indispensável, não bastava: não basta punir os abusadores
quando cometem um crime. A Igreja precisa agir para evitar abusos e
erradicar as suas causas. É a luta que Francisco lidera contra a cultura
do abuso e contra o sistema de acobertamento que permite
continuar.
A luta de Francisco contra o clericalismo questiona fundamentalmente
toda a visão de Igreja defendida por estes leigos. Entre eles, as coisas só
poderiam terminar mal, especialmente porque Francisco também os
fere com sua denúncia dos excessos do capitalismo, sua condenação da
pena de morte ou por dialogar com Cuba e a China.

Alguns críticos o acusam de não ter vindo aos EUA


entrevistar, em primeira mão, lideranças católicas locais.
Qual a sua resposta a eles?

Eu não quis fazer nem uma investigação sociológica nem um relatório


sobre o catolicismo americano. O livro focaliza como os católicos
americanos opositores ao Papa Francisco tentaram forçá-lo a
renunciar e como trabalham atualmente para preparar o próximo
conclave, na tentativa de ter um papa favorável às suas opiniões.

A minha cena do crime é, portanto, Roma e adoto um ponto de vista


principalmente romano. Esta visão externa me ajuda a dar um passo
atrás e olhar para o catolicismo americano, para identificar mais
facilmente algumas de suas fraquezas que não necessariamente vemos
quando estamos imersos nele. Isso me permite também sair de uma
narrativa imposta pela imprensa que, na maior parte, se opõe a
Francisco.

Depois da carta de Viganò, o Papa Francisco inicialmente


permaneceu em silêncio em face das críticas. Como vimos
recentemente, incluindo no comentário feito sobre o seu livro, o
papa está começando a falar sobre a resistência a ele. Por que
acha que agora ele está disposto a falar?

Há um ano, dificilmente Francisco falaria. Ele teria caído na armadilha


preparada por Viganò. Ele é o papa, e não poderia polemizar sem
humilhar um ex-colaborador.

Mas, ao permanecer silente, ele também abriu a porta para o trabalho


dos jornalistas. Enquanto trabalhava no livro, fiquei muito
impressionado pela qualidade do trabalho de meus colegas americanos
– incluindo os do Crux! – em dissecar as afirmações de Viganò e
mostrar, finalmente, como as suas alegações eram bastante frágeis.

A maneira de agir do Papa Francisco é profundamente jesuíta, está


profundamente enraizado na espiritualidade inaciana, o que é normal
para um homem modelado durante muitos anos pelos Exercícios
Espirituais. Ao deixar os jornalistas fazerem o próprio trabalho,
Francisco possibilitou que desmascarassem as forças que estavam
atuando contra ele e contra a Igreja.

Creio que quando ele fala hoje – por exemplo quando os jornalistas lhe
perguntam sobre o cisma (ele repetiu a palavra que apareceu na
pergunta formulada) –, é também para provocar a maioria silenciosa
que o apoia e para ajudar a emancipá-la de sua minoria poderosa e dar-
lhes voz.

Leia mais
◦ ‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 1: O homem do
escândalo
◦ ‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 2: O acusador
◦ ‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 3: A América contra o
papa
◦ ‘Como a América quis mudar o papa.’ Capítulo 4: Enfrentando o poder
do dinheiro
◦ O Papa e a sombra de um cisma. Editorial do Le Monde
◦ Cisma? “A ideologia da primazia de uma moral asséptica sobre a
moral do povo de Deus”, denuncia o Papa Francisco em entrevista
coletiva
◦ Heresia e cisma: Papa Francisco e as palavras inquietas
◦ Papa Francisco: “Para mim, é uma honra que os americanos me
ataquem”
◦ Muitos católicos em todo o mundo sentem-se honrados pelas críticas
de setores estadunidenses reacionários, opulentos e supremacistas...
◦ EUA: um complô para fazer com que o papa renuncie
◦ ''Há um plano para forçar Bergoglio a renunciar", denuncia Arturo
Sosa

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