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A MÁ MÃE

Uma abordagem arquetípica*

JAMES HILLMAN
(Dallas)

Traduzido por Flora Schroeder Garcia

I.

O que se segue retoma um tema gasto: mãe e criança. O arquétipo da mãe, o


arquétipo da criança – a psicologia profunda funda a si mesma, e a seus fundadores, sobre
essas rochas. Que a vida e a psicologia profunda comecem com a mãe e a criança indica
que nós estamos na retórica dos princípios, de questões fundacionais. Que o tema seja tão
gasto indica que ele se tornou inconsciente outra vez, posto suavemente em um sulco, um
sepulcro. Nós acreditamos que sabemos bastante a esse respeito; leia a literatura
psicológica de Freud e Jung, passando por Wickes, Neumann e Fordham a Berry: nós
todos acreditamos que sabemos qual é o problema com a mãe.1
Se conseguirmos encontrar uma nova perspectiva nesse tema básico e se, em
particular, a má mãe puder ser revista, então podemos estar revisando a base da psicologia
e mesmo da própria vida. Encontrar essa perspectiva é o nosso propósito. Começamos
com quatro pressuposições:
Em primeiro lugar, há uma experiência da má-maternagem que necessita
seriamente ser compreendida enquanto um fenômeno psicológico em si mesmo,
separadamente das normas sobre comportamentos bons e maus ou atos de maternagem
(“mothering”). Mesmo as ditas boas mães experienciam a si mesmas como más mães.
Em segundo lugar, nós podemos analisar essa experiência de má-maternagem
separadamente de casos empíricos, protocolos fenomenológicos e pesquisas sociológicas.

* Esse artigo foi escrito para o Nippon Life Insurance Foundation Symposium [Simpósio da
Fundação da Nippon Life Insurance] de 1982, “The Parents-Child Bonding” [“O vínculo
Mãe/Pai-Criança”] e proferido em Osaka, em novembro de 1982. A revisão publicada aqui inclui
uma coda e outras adaptações feitas para um seminário sobre “Education of the Imagination”
[“Educação da Imaginação”] realizado em janeiro de 1983 no The Dallas Institute of Humanities
and Culture [Instituto de Humanidades e Cultura de Dallas]. [Nota do Autor]
Há também estruturas arquetípicas na experiência e essas podem ser investigadas por um
método arquetípico.
Em terceiro lugar, nós presumimos que há uma criança interior, uma imago da
criança arquetípica, afetando cada um de nós e, assim, afetando cada mãe e cada ato de
maternagem.
Em quarto lugar, nós podemos distinguir entre os conteúdos arquetípicos da mãe
e da criança enquanto conteúdo em um conjunto e a estrutura arquetípica do conjunto
enquanto tal. Mãe e criança não são somente cada um o que são, mas eles são como são
porque eles estão entrelaçados em um conjunto que afeta a natureza de cada um.
Nós precisamos, portanto, observar mais atentamente os conjuntos se quisermos
compreender quaisquer conteúdos, como mãe e criança, que são compreendidos por um
conjunto. Esses conjuntos – e eu uso o termo para díades, pares, acoplamentos,
polaridades, sizígias –, quaisquer que sejam seus conteúdos, são afetados por padrões de
pensamento de oposição tais como escuro/claro, vivo/morto, ordem/desordem,
verdadeiro/falso, presença/ausência, vertical/horizontal. Filósofos elaboraram antinomias
básicas adicionais e dissecaram as oposições em diferentes classes (contradições,
contrários, complementares, etc.). Estruturalistas localizaram diferentes espécies de
oposições em práticas sociais e estruturas linguísticas.
O vínculo mãe-criança, simplesmente porque o vínculo é um conjunto, está sujeito
à influência do pensamento de oposição ou “oposicionismo” (“oppositionalism”). Esse
fato complica o que quer que nós digamos sobre o nosso assunto. Embora o
oposicionismo não seja o único modo pelo qual o pensamento reflexivo procede (pode-
se refletir em imagens, com sentimentos e ao brincar), o oposicionismo afeta, contudo, os
padrões individuais e a reflexão sobre esses padrões em qualquer relacionamento dual
específico entre homem e mulher, superior e inferior, novo e velho e, além disso, no
interior da relação mãe-criança. Mais tarde, nós faremos uma tentativa de libertar o
conjunto do oposicionismo, mas, por enquanto, é importante reconhecer que o
comportamento humano está sujeito à estruturação transhumana de configurações
arquetípicas, como, por exemplo, o conjunto.
Ao colocar a relação do conjunto em primeiro plano, eu inverti a abordagem
habitual da psicologia que geralmente considera a rubrica mãe-e-criança como prévia a
todas as outras. Quero mostrar, contudo, que ela se submete a uma categoria além de si.
Essa abordagem “meta” física a um problema empírico – a experiência da má-
maternagem – é uma contribuição do ponto de vista arquetípico à psicologia.
Um fator meta- ou superordenado aparece também na abordagem biológica do
vínculo mãe-criança. Ela igualmente imagina que o conjunto, designado como “vínculo”,
é o fator determinante a que tanto a criança quanto a mãe se submetem. Filhotes de aves
canoras esticam seus pescoços para cima e abrem suas bocas de modo a revelar o ponto
de sinalização amarelo que, antecipado pelo mecanismo de liberação inato da mãe, libera
a comida que está no bico dela para dentro das gargantas deles. A lactação na mãe humana
coincidente à busca do recém-nascido pelo mamilo é um exemplo adicional do vínculo
superordenado – um padrão coordenado delicado, complexo e de enorme durabilidade,
mantendo mãe e criança unidos em um único padrão de comportamento que, em
conformidade com Jung, nós podemos denominar uma imagem arquetípica do instinto.
A lactação não é um mecanismo simples; mãe e criança não estão invariavelmente
à serviço dessa função. Cada um traz consigo suas idiossincrasias individuais. Enquanto
conteúdos, eles afetam a relação – é evidente. E a psicologia habitualmente localiza as
estruturas psíquicas que modificam o vínculo no interior da mãe per se ou da criança per
se, assim como da interação idiossincrática entre eles. Eu desejo acrescentar uma
dimensão localizando as estruturas psíquicas que influenciam o vínculo no interior da
fenomenologia da “conjuntice” (“tandemness”). Meu ponto é que, em qualquer momento
da maternagem ou da “criançagem” (“childing”), a “dualdade” (“twoness”) arquetípica
está operando, tornando necessária uma rica fenomenologia de ambivalência,
bipolaridade, tensão que constele oposições de diversas espécies. Aqui, no conjunto, e
não meramente na mãe ou na criança ou na interação instintiva superordenada entre
ambos, os principais problemas psicológicos da maternidade (“motherhood”) e da
infância (“childhood”) começam.
A influência do oposicionismo sobre os conjuntos pode tomar diversas formas.
Para nossa consideração, eu irei destacar uma: imagina-se que a criança é boa; a mãe, má.

II.

Reações não ponderadas de maternagem são complicadas por ideias ponderadas,


ou fantasias, sobre maternagem boa ou má. Essas fantasias diferem de cultura para
cultura, mas qualquer que seja seu conteúdo, as fantasias permanecem normas constantes
no governo do modelo de comportamento consciente da maternagem. Essas fantasias
diretivas e corretivas operando no interior da mãe como culpa têm um importante impacto
sobre sua criança. Uma criança cresce no interior da sombra da culpa da mãe a respeito
da maternagem tanto quanto no interior da maternagem em si. A culpa em relação a
“como ser uma boa mãe” deriva habitualmente da Mãe arquetípica, imaginada ou
enquanto a mãe de fato de uma mulher, sua avó, ou enquanto ideais normativos
sustentados pela cultura.
Devido a esse ou/ou acrescentando ao conjunto, tensões na relação mãe-criança
tendem a ser colocadas em um lado ou em outro; ou a mulher é errada, culpada ou a
criança. Mesmo que os sintomas – como severos transtornos autistas ou motores -
apareçam apenas na criança, a mãe assumirá a culpa por eles para si por causa do
arquétipo ideal. A mãe, portanto, sente ser uma má mãe.
O próprio conjunto reforça essa avaliação. Se ela é má, então a criança é boa, o
que oferece um mágico modo de cura por meio da crença na bondade dessa última. Esse
é, evidentemente, um círculo vicioso, uma vez que quanto mais a criança é boa, mais má
deve ser a mãe. As fantasias arquetípicas da Criança Divina, boa, forte e risonha criam
um sentido inevitável da própria mãe enquanto negativa.
O conjunto arquetípico influencia também a teoria psicológica. Muitas escolas
foram apanhadas no mesmo padrão de pensamento que as mães. A culpa pela condição
humana é ainda posta sobre a mãe, os seus seios, os seus hábitos durante a gravidez, o
seu cuidado durante os primeiros nove meses e assim por diante. Se a mãe é considerada
responsável, insinua-se evidentemente que quem pensa desse modo ocupou a posição de
boa criança. Possivelmente uma razão pela qual a teoria de culpar a mãe é tão popular e
persistente; ela concede a nós, psicólogos, os privilégios da infância inocente. O altar em
que grande parte da Psicologia adora é o templo da Mãe Negativa.
Então, a psicologia encontra uma mãe “nunca suficiente”. Se ela está sempre
presente, então diz-se que ela promove fraqueza, mimo e dependência. Se ela nutre com
afeição calorosa e proximidade, então chamam-na de sufocante e devoradora. Se ela
deseja muito para sua criança, fantasiando o futuro da criança a partir das reservas do
próprio espírito, então ela está dominando a vida da criança com seus objetivos. Se ela é
previdente, intuitiva e desprendida, então sua sabedoria profética é a de uma bruxa. Se
ela se deleita na vida e nos prazeres dos sentidos, então ou ela está seduzindo suas crianças
ou ela está privando suas crianças de suas vidas ao viver de modo tão voluptuoso a sua
própria vida. Qualquer que seja o estilo da maternidade, ela parece amaldiçoada. O que
pode uma mulher fazer? Qualquer que seja o seu padrão de existência, ela torna-se vítima
do matiz negativo lançado pelo fator arquetípico da mãe negativa. Todo o tempo em que
empenha-se arduamente para encenar o modelo da boa mãe – sendo presente para sua
criança, nutridora, protetora, atenta, sagaz em seu julgamento, portadora da tradição,
sensível aos valores de pequenos sinais no vínculo -, em seu interior, ela é assombrada
por sentimentos de inferioridade e de fracasso ou ela defende-se de modo vívido contra
sua maldade.

III.

Nós agora estamos prontos para examinar essa experiência de maldade a partir de
três perspectivas e de oferecer soluções a ela. Podemos dizer, primeiro, que a má mãe
reflete a própria negatividade no arquétipo. A fenomenologia da mãe negativa foi
explicada em detalhe pela escola junguiana. O trabalho de Jung sobre os símbolos da
libido materna (1912) apresenta o contexto mito-patológico da mãe negativa e a libertação
dela por meio de batalha. Em 1938, Jung compôs um importante ensaio a partir de seus
insights sobre o arquétipo da mãe. A isso, seguiram-se os estudos mastodônticos de
Neumann sobre as manifestações simbólicas da mãe negativa e seus efeitos psicológicos.
O trabalho de ambos foi complementado por Esther Harding, por H. G. Baynes e John
Layarde, na Inglaterra, e pela escola londrina de junguianos, especialmente no que diz
respeito a crianças pequenas e no que se refere a ideias da relação mãe-criança absorvidas
de Melanie Klein, Anna Freud, Bowlby, Winnicott, Fairbairn e Guntrip.
Nessa literatura abundante, duas ideias dominantes sobressaem-se. Primeiro: a
mãe humana não é o mesmo que a imago arquetípica, embora ela seja influenciada por
ele e seja percebida pela sua criança por meio dele. Segundo: a imago arquetípica tem
uma natureza dual, dois lados, positivo e negativo. Símbolos e metáforas expressam essa
natureza dual. O oceano, que é fonte de vida, representa também afogar-se em
aniquilação. A terra tanto nos sustenta quanto nos enterra. Os recipientes (jarras, caixas,
casas, instituições, cidades) protegem e também sufocam. Os receptáculos
transformadores (alambique, forno, banheira) servem tanto à necessidade de temenos
quanto de narcisismo. Aqueles animais que representariam, de acordo com a literatura
junguiana, o arquétipo da mãe demonstra a natureza dual do modo mais claro. O amoroso
urso com seus pelos desgrenhados e abraços apertados é também um monstro que agarra,
que esmaga; a paciente vaca com sua comida ruminada e seu úbere é também passividade
estúpida, presumida; o lobo nutridor é, ao mesmo tempo, ávida voracidade.
A psicologia junguiana considera a natureza dual da experiência de maternagem
enquanto um dado arquetípico e, portanto, irredutível. Você não pode ter um lado bom
sem o outro. No momento em que a maternagem é estrelada (“stellated”), ambos os lados
são constelados (“constellated”). Tampouco é possível converter o negativo em positivo.
A experiência da mãe empírica de sua maldade é a intimação de uma realidade
arquetípica. Kali espreita eterna, de modo que sempre haverá impulsos de destruir a
criança. O abuso infantil, mesmo um deleite instintivo nele, é dado pela natureza
arquetípica da maternagem. A experiência plena da maternagem invoca o impulso de
destruir a criança, de alimentar-se de sua vida, de transformá-la em pedra, de enlouquecê-
la, de abusar dela ou de abandoná-la. Esse lado da maternagem aparece na madrasta dos
contos-de-fadas.
A terapia junguiana tem como objetivo tornar essa sombra, esse lado mau, da
maternagem consciente à paciente individual que está procurando lidar com seus
sentimentos de ódio em relação à sua criança e com sua inferioridade em relação ao seu
ideal somente-positivo de maternagem. Ao reconhecer sua lealdade 2 a um princípio em
que a natureza dual está sempre presente, há menos probabilidade de que ela caia em um
oposicionismo cruel com sua criança (levando-a a encenar a mãe cruel negativa em
sinistras punições e apaixonados acessos).
Ao deslocar a maldade da identificação pessoal para localizá-la no lado negativo
do arquétipo em si, uma terapia junguiana pode aliviar autorrecriminações torturantes. A
maldade não pode ser legitimada por esse deslocamento, mas, ao menos, a paciente pode
enxergar sua necessidade arquetípica. Pois os arquétipos são os portadores sobre-
humanos da consciência coletiva e, assim, auxiliam o humano comum a carregar os fardos
sobre-humanos da vida. (Os arquétipos todos têm uma função de maternagem). Enquanto
um evento humano universal, a má-maternagem pertence a qualquer mãe e à Grande Mãe.
Essa perspectiva arquetípica deixa a mãe menos solitária com sua maldade e, assim,
menos impelida a reprimi-la e então forçada a atuá-la.
Segundo: a má mãe, enquanto um fenômeno arquetípico, implica a boa mãe. Se a
primeira perspectiva localizava a experiência no lado negativo do arquétipo, a segunda
perspectiva re-instala (“re-locates”) o negativo em si na conjunção de opostos no interior
do arquétipo. Em vez de opor lados positivos e negativos e de oscilar entre sentimentos e
comportamentos denominados de bons e de maus, nós compreendemos, aqui, que a
dualidade significa que há sempre o bom na experiência do mau.3
Aqui, volto-me para a ideia budista de Sunyata, O vazio ou vácuo metafísico.
Contra esse pano de fundo, os sentimentos de inferioridade e de fracasso – de que não se
tem nada a oferecer, de que se é destituído de valores, de amor, de beleza e das virtudes
positivas da maternagem – assume um significado mais profundo. A culpa em relação a
uma imagem plenamente positiva da maternagem é esvaziada, evacuada. Isso esvazia a
própria imagem positiva de modo que a mãe pode ver através de seu aspecto idealizado
delirante. Esse esvaziamento permite à culpa mover-se. Não mais ela é má porque
fracassou em relação à imagem idealizada da boa mãe. Agora a própria imagem
idealizada, tomada de sua mãe, de sua avó, de sua cultura, mostra sua própria vacuidade.
Os ídolos caem; os santos solidários esvanecem. Ela desperta para a percepção de que
boas imagens têm maus efeitos. E, à medida que o bom revela sua maldade, a experiência
mais profunda de sua maldade (sua inferioridade e seu fracasso) prova ser onde reside, de
fato, sua bondade.
O que eu quero dizer aqui é que a sensação de maldade sobre sua maternagem é,
de fato, onde ela se aproxima àquele terreno de ser, a Grande Mãe, cujo apoio aparece
exatamente quando ela se sente desiludida por todas as fantasias normativas, toda a
bondade ausente. Onde nada a sustenta, ela descobre que o Nada a sustenta. O sunyata
enquanto um vácuo metafísico torna-se manifesto na ausência de vontade pessoal dela de
fazer o bem e ser correta. Nessa condição esvaziada, ela pode ser nutrida por momentos
de não ser nada além do que ela é. Reações não ponderadas afirmam o vínculo.
A culpa também encontra, então, uma nova localização. A culpa – que força ações
literais de direcionamento e de correção desse ou daquele caso de maldade – torna-se a
voz interior do sunyata: “eu fracasso porque o fracasso é inerente a todas as ações
motivadas pela minha vontade. ” Elas podem ter êxito apenas quando elas surgem do
terreno do vazio, quando eu estou enraizada em uma maternagem indefinida, esvaziada,
que está além de todas as noções positivistas, técnicas a seu respeito. Eu abandono a busca
por como ser mãe. Sustentar em si sustenta; em minha ausência, tudo no mundo além de
mim e fora de mim ampara minha criança. A minha própria negatividade torna-se a via
negativa, não apenas da maternagem, mas a maternagem torna-se também uma atividade
que faz a alma, psicoterapêutica. A maternagem torna-se desliteralizada de somente o
cuidado em si de uma criança empírica para um caminho de aprofundamento da
compreensão da bondade sustentadora do mundo.
A psicoterapia conduz ao sunyata ao liberar – não somente normas idealizadas,
mas permitir que, a partir da terapia, se atinja o fundo do poço. Sua busca corretiva,
construtiva, fracassa. Uma terapia completamente não-solidária. Cai-se no colo do poço
sem fundo. Pois somente a criança abandonada pode ser encontrada pela loba maternal.
É a criança abandonada que descobre o sunyata.
Antes de prosseguir com a minha principal preocupação, a terceira perspectiva –
a má mãe em conjunto com a boa criança -, nós precisamos relembrar que essa criança,
assim como mãe, carrega símbolos sobre suas costas. Criança, também, é uma metáfora
arquetípica, que indica tanto uma pessoa jovem de fato quanto uma aura de conotações
simbólicas impessoais. E, assim como mãe pode ser abstraída em positivo e negativo,
criança pode ser dividida nas oposições entre puerilidade (“childlikeness”) e infantilidade
(“childishness”). O oposicionismo assombra o discurso da psicologia.
De acordo com os estudos de Freud, Jung, Kerenyi, Neumann, Brown, Campbell
e Bachelard sobre sua fenomenologia arquetípica, nós encontramos essas qualidades e
expectativas em relação à criança. Futuridade: a liberação de fantasias esperançosas
adiante no tempo ou além do tempo; redenção do presente pelo renascimento no futuro.
“E uma criança pequena irá conduzi-los.” Crescimento: maturação enquanto um processo
desenvolvimental com aumento na dimensão e na diferenciação da função. Simplicidade:
a criança enquanto energia primitiva, natural, uma intensa semente de ser. Origens: os
diminutos princípios de qualquer processo, seja enquanto princípio em um mundo além,
com conhecimento inato desse além, seja nesse mundo enquanto o novo fresco e
imprevisível. Amoralidade: a dedicação ao prazer e à perversão polimorfa, próxima ao
animal ou ao insano, e, portanto, necessitado de batismo, iniciação e educação.
Dependência: fraqueza, exposição, abandono – sentimentos que produzem em série os
desejos por onipotência de muitos tipos de heroísmo, magia e faz-de-conta. Alegria: um
deleite onde o eu e o mundo encontram-se fundidos: “o arquétipo da felicidade simples”
(Bachelard).
Nós somos obrigados a lembrar essas implicações arquetípicas da criança em
discussões relativas a crianças de fato e infância. Nós devemos ser cuidadosos a respeito
do que dizemos sobre crianças de fato até que possamos vê-las e não poderemos vê-las
muito claramente até que possamos ver as noções que governam nossos modos de ver, as
projeções arquetípicas que surgem quando quer que a imago da criança seja constelada.
A história das ideias sobre crianças na psicologia profunda mostra que elas, assim como
os primitivos, os animais, os artistas, os inventores e os insanos, foram forçadas a carregar
todo tipo de fragmento descartado e fantástico da psyche que os adultos e as adultas
“normais” excluíram de seu domínio. Por definição, as crianças são o grupo arquetípico
minoritário, seja idolatradas como perfeitas desde o princípio seja denegridas como
pedaços de natureza indomada que necessitam de disciplina para convertê-las à
maioridade (“adulthood”). Nós não poderemos vê-las pelo que são até que possamos ver
o que consideramos “infantil” (“childish”) – i.e., rudimentar, principiante4, menor,
dependente, imaturo – em nossas próprias mentes, até que nós tenhamos recuperado das
crianças e da infância uma variedade de possibilidades que nós, enquanto adultos,
renegamos e situamos nesse mundo especial denominado infância.
Listemos as atitudes e os comportamentos desse domínio especial que
supostamente pertence às crianças: espontaneidade, criatividade, divertimento, fantasia,
fascínio, curiosidade; vivacidade emocional em lugar de abstrações conceituais;
necessidade de prazeres sensuais e gratificação imediata dos desejos; processos de
pensamento que superam leis naturais ou o que é frequentemente denominado
pensamento mágico e uma percepção mágica de ações e objetos concretos; história
enquanto lenda em vez de enquanto tempo passado factual; timidez e vergonha em lugar
de decoro afetado; uma imaginação eidética conduzindo à familiaridade fácil com vozes,
faces e figuras de faz-de-conta, assim como com animais e fantasmas; alegria retórica –
hipérbole, melopeia, aliteração, rima, ruídos onomatopeicos e apotropaicos, sequências
narrativas e o amor por histórias. Tudo isso em uma palavra: imaginação. 5
Esses traços, essa imaginação pertencem ao arquétipo da criança e não
literalmente à infância e às crianças de fato. A identificação literal de uma pessoa de fato
a uma personificação arquetípica é o erro psicológico onde quer que nós a encontremos;
a feminilidade literalizada e esperada somente de mulheres, o senex literalizado somente
em pessoas idosas, a sombra escura literalizada somente em grupos étnicos escuros.
Agora, à terceira perspectiva: a má mãe emerge no interior do conjunto com a boa
criança. Nós não mais falaremos da má mãe enquanto uma figura autocontida como foi o
caso na primeira e na segunda perspectivas – ambas baseadas em ideias de negatividade
no interior de um único arquétipo. Agora nós olhamos para o conjunto que é
superordenado ou a mãe ou a criança e que afeta ambos. O conjunto tem este efeito: as
qualidades que a criança de fato recebe da projeção arquetípica empobrecem a mãe dessas
mesmas qualidades. Dito do modo mais extremo: o que a criança tem e é, a mãe não tem
e não é.
Embora ingressar na maternidade possa expandir a existência da mulher nas
direções encontradas nos modelos de mãe do mito, da cultura e da tradição familiar, ainda
assim, devido ao conjunto com a criança, a maternidade também a restringe a uma
existência mais singularmente adulta. Espera-se que ela se distancie de atitudes
imaginativas e comportamentos espontâneos que pertencem ao arquétipo da criança. Ela
sente que não lhe é mais permitido ser imatura, rudimentar, principiante. A mãe torna-se
separada de sua criança de fato devido à sua separação da infantilidade. Ela pode
ressentir-se de sua criança de fato por reter qualidades das quais ela é agora privada
simplesmente por sua posição no conjunto. Ou ela pode tentar recuperar essas
possibilidades agarrando-se à sua criança de fato. Estruturas básicas de má-maternagem
– a rejeição de sua criança, o ressentimento em relação à sua criança, a dependência de
sua criança e o fomento da dependência por parte de sua criança– derivam da relação da
mãe empírica no interior do conjunto.
Além disso, ela perde a habilidade de imaginar uma saída//a. Tendo perdido a
criança, ela perdeu a imaginação, que seria o próprio caminho de retorno. Por exemplo, a
mudança radical nos sentimentos sexuais depois do parto (uma reclamação de maridos
sobre suas esposas) pode ser parcialmente compreendida enquanto uma mudança
arquetípica, um movimento no mito e um movimento para o interior de um novo conjunto.
A mulher perdeu sua criança ao dar-lhe à luz. Tornou-se separada de sua perversão
polimorfa, de sua curiosidade e de sua espontaneidade – o terreno divertido da alegria
sexual.

IV.

Nós podemos agora chegar a conclusões de modo a definir a má mãe. Até o


momento, eu restringi essas observações à experiência de maldade, sem definir o
conteúdo de maldade para além das convenções aceitáveis – como que a má mãe rejeita,
demanda, mima, é culpada, é autocentrada e assim por diante.
Abstive-me de definir o conteúdo de maldade porque uma abordagem
psicoterapêutica deve ser assiduamente cuidadosa em relação às normas. Uma vez que
nós definimos exatamente o que uma boa mãe é – alma nutridora, corpo protetor, espírito
promotor – nós somente acrescentamos à culpa da qual a mãe já padece por fracassar em
viver à altura dessas normas. As normas na terapia tornam-se contraproducentes em
relação ao que visam estabelecer. As normas são dirigidas à vontade; elas dão-lhe padrões
e alojam-se no superego. No entanto, é precisamente porque a paciente não pode
remendar sua situação deplorável por meio da sua vontade que ela vem à terapia. A
mulher já tem a melhor das normas, que somente faz com que ela se sinta pior. Para a
psicoterapia, ao contrário, a questão é analisar pouco a pouco a experiência da maldade –
quando ela se sente má, o que é sua “falta”, quais são seus atos “maus”, como eles são
performados, em que estado de ânimo, para qual criança, como ela se autocorrige, quem
ela toma como modelo para si mesma? E quem diz-lhe que ela é “má”: que voz? Nós
observamos a experiência, sua fenomenologia vivida, suas imagens e vozes, seus padrões
míticos.
A fenomenologia da experiência da maldade sugere imagens de sua natureza
arquetípica. Porém, devemos novamente ser cautelosos e, dessa vez, por uma razão
teórica. Se a mãe é uma figura em um conjunto, então nós não podemos aduzir
experiências da mãe negativa somente dos estereótipos míticos habituais: Kali na Índia,
Yamamba no Japão, Baba Yaga dos contos folclóricos eslavos ou Frau Hölle dos contos
folclóricos germânicos. Abuso infantil em abundância aqui. As damas detestáveis assam
crianças no forno ou comem-nas vivas. Envenenam-nas, fazem-nas dormir um sono
infinito, transformam-nas em pedra. Elas, de fato, apavoram-nas. Terreno em abundância
aqui para anorexia, dislexia, recusa escolar, mutismo e violência eruptiva.
No entanto, nós não podemos esboçar nossa definição de má maternagem a partir
dessas damas porque essas terríveis, devoradoras, petrificantes mães negativas são
protótipos encerrados em si mesmos. Elas são independentes. Elas não são figuras em um
conjunto. Então, apenas aqui, uma abordagem arquetípica difere da de Neumann, Harding
e outros terapeutas junguianos. Eles tendem a ler os comportamentos humanos em termos
de figuras arquetípicas únicas, lendo mitos com consciência monoteísta. Para eles, é
costumeiro que uma figura arquetípica seja uma e única: a Grande Mãe, a Mãe Negativa,
a Criança Divina, o Puer Aternus e seus semelhantes.
Mitos, contudo, situam-se em um campo policêntrico de pessoas. Mitos não são
apenas contos sobre essas pessoas, mas contos sobre suas complicações estruturais, suas
relações psicológicas. Figuras míticas estão em tramas, como Aristóteles denomina os
mitos; e ações humanas refletem não somente as figuras individuais como também o
pathos, o sofrimento ocasionado pelas tramas. Em outras palavras, para estudar como a
natureza humana performa sua imitatio dos deuses, nós não podemos confinar nossa
investigação a figuras míticas; ao contrário, temos que analisar, desmontar, os
entrelaçamentos de suas tramas.
Assar uma criança no fogo – esse conteúdo – não é em si má maternagem. Quando
Deméter assa Demofonte, é uma coisa; se a bruxa assar João, será outra. Bom e mau
dependem aqui da trama, da estrutura do mythos.
Não que a estrutura seja anterior à figura, anterior ao conteúdo – apenas para
seguir por um momento com a teoria arquetípica. Ao contrário, figura e estrutura são
coincidentes.6 O próprio termo “mãe” recebe seu significado em parte pelo conjunto com
“criança”. A mãe está sujeita a uma psico-lógica de relacionamento que é tão primordial
quanto as figuras do relacionamento. A mãe não é apenas a mãe: ela está sempre em uma
trama com a criança – agora denominada “interação neurótica” – e isso determina a má-
maternagem tanto quanto a figura singular da Mãe Terrível. Uma estrutura psicológica é
uma relação, uma configuração ou trama.
Essa complicação primordial do conjunto, essa trama, é um modo como eu
compreendo a ênfase de Jung – e de Heráclito antes dele – nos opostos. Figuras e
conteúdos simbólicos não determinam sozinhos o que acontece na alma. Eles estão
sujeitos às tenções de relações que, ao serem pensadas abstratamente, tornam-se
“opostas”. Eu prefiro derivar os opostos das tensões, das tramas, o pensamento lógico do
pensamento dramático - e não ao contrário. Eu realmente sustento que as relações
psicológicas precedem, em tempo e em posição hierárquica, as concepções filosóficas.
Além disso, se a tensão dos opostos requer uma linguagem de superação, transcendência
e conjunção, conjuntos e tramas afirmam relacionamentos desde o princípio. Nós estamos
sempre conjugados.
Que nós estejamos sempre conjugados sugere um terreno para o fenômeno da
consciência. Conscientia é o termo latino para o grego syneidesis, que, como
“consciência”, significa “com-conhecer”, “junto-conhecer”, um eidos compartilhado em
relação. Os sentimentos de culpa da má maternagem apontam, portanto, para além de sua
localização no ego subjetivo ou no superego; a culpa é derivada complexamente de nossos
conjuntos, não simplesmente de nossas pessoas. Sentimentos “maus” expressam o agon
e o páthos das tramas a que estamos sujeitos, aquelas tensões de relações no interior das
e entre as almas dos seres humanos, assim como entre a alma humana e a alma do mundo.
O conjunto sempre nos força a considerar um Outro. A culpa lembra esse outro e a
consciência é a pré-condição de qualquer individualismo; a sensação de maldade é o preço
que se paga por aquela negligência da realidade-de-conjunto das questões humanas que
nós atualmente denominamos Ego.
Quer nós denominemos essas complexas tensões como tramas ou, mais
particularmente, conjuntos, elas organizam eventos em padrões definidos, sujeitando os
eventos humanos à prioridade da imagem. Uma imagem é a intensificação, a epítome, da
trama, porque, nela, estrutura e conteúdo, relações e figura, mitos e pessoas mesclam-se.
Essa visão tem relevância terapêutica imediata. Uma mãe de fato, procurando
retificar sua sensação de maldade modelando seus dilemas com sua criança em qualquer
figura simbólica única de mãe, não pode ser suficientemente aliviada. Não ela, mas o
modelo é inadequado; os problemas dela derivam da relação em si. Ela está certa ao dizer
que seu problema aparece somente quando ela está com sua criança. Ela está sofrendo da
psico-lógica do conjunto que instala a maldade como parte de sua trama.
Portanto, a má maternagem recebe sua definição do efeito oposicionista da lógica
de conjunto. A tensão dramática com sua criança reduz-se à separação e à perda de sua
criança. Como a criança é equivalente à imaginação, a linguagem da mãe torna-se sem
imaginação, imperativa, abstrata. Como a criança é crescimento, a mãe torna-se estática
e vazia, incapaz de reagir com novidade espontânea. Como a criança é atemporal, eterna,
a mãe torna-se temporalmente delimitada, programada, apressada. Sua moralidade torna-
se unilateralmente responsável e disciplinadora. Seu senso de futuro e de esperança é
deslocado para sua criança de fato; desse modo, a depressão pós-parto pode tornar-se um
subtom crônico. Como sua criança de fato carrega os seus sentimentos de vulnerabilidade,
ela pode assisti-la em demasia ao ponto de negligenciar a si mesma, com consequentes
ressentimentos. Além disso, os processos de pensamento da mãe tornam-se restritos a
formas adultas de raciocínio de modo que as vozes e as faces fantasmagóricas, os animais
e as cenas da imaginação eidética tornam-se distanciados e dão a impressão de serem
alucinações e ilusões patológicas. E sua linguagem perde seu poder emocional e
encantatório; ela explica e argumenta.
A terapia deriva dessa descrição. E o primeiro passo da terapia é ver o próprio
conjunto imaginativamente, a partir do pólo da criança em vez do pólo de oposicionismo,
moralismo e desesperança do adulto, que imediatamente transforma conjuntos em
problemas: seios bons e maus, mães positivas e negativas, cérebros esquerdos e direitos.
Experienciar um conjunto enquanto uma oposição é já estar separado da criança. Do polo
infantil, o conjunto é uma gangorra, upa-la-la/upa-le-lê7, o jogo eterno de cabo de guerra,
oferecendo incentivos infinitamente prazerosos.
Então a terapia com uma mãe de fato é a reaproximação com sua criança
arquetípica de imaginação – pelo re-avivamento de fantasias, re-encontro de prazeres, re-
lançamento de espontaneidade, re-despertar de sonhos8. Retoma as vozes, os animais e
os fantasmas. As coisas assumem nomes e faces. A terapia volta-se novamente para a
história das crianças, iniciando com as histórias infantis da paciente que perduram no
momento, sua vergonha e sua tolice, e com a história da infância da paciente. A terapia
da mãe começa no conjunto com sua criança de imaginação perdida e o terapeuta da mãe
é sua criança de fato. Embora as mães saibam disto e o pratiquem brincando com suas
crianças, mesmo uma experiência momentânea de má maternagem pode fazer com que
uma mulher recue para a postura adulta, sua separação e sua perda. O próprio movimento
para dentro e para fora da imaginação torna-se um conjunto.

V.

Eu ofereci três perspectivas sobre a experiência da má mãe e sugestões para


terapias sugeridas por essas perspectivas. Em primeiro lugar, nós vimos a experiência em
contraste com a figura arquetípica da Mãe Terrível. Essa perspectiva considera que a
experiência da má maternagem é dada pela destrutividade do arquétipo e que a terapia é
compreensão dessa necessidade arquetípica. Em segundo lugar, nós vimos a experiência
em contraste com o vazio de sunyata. Essa perspectiva considera que as profundezas do
fracasso de uma pessoa são o terreno mais profundo da maternagem. A terapia abandona
as normas sustentadoras da boa maternagem para permanecer com a má experiência em
que o bem mais profundo reside. Em terceiro lugar, nós localizamos a experiência no
interior do conjunto mãe-criança, afirmando que a má maternagem resulta da lógica
impessoal de oposições que acresce aos conjuntos. A terapia é a recuperação da criança
separada e perdida, a recuperação da imaginação.
Para concluir, uma palavra sobre o meu método arquetípico. Em vez de apresentar
uma antropologia básica da relação mãe-criança em termos de pesquisa positivista ou de
valores filosóficos positivos a respeito da bondade e da maldade, eu fiz um esforço para
entrar nessa relação permanecendo com a má maternagem enquanto dado primário.
Enquanto uma experiência sempre recorrente, ubíqua e emocionalmente importante, ela
é considerada arquetipicamente necessária. Abordagens positivistas, à medida que
enrijecem os resultados de suas pesquisas e que fortalecem suas evidências em normas,
dificultam à mulher individual encontrar necessidade em seu desvio das normas, que se
tornam progressivamente mais normativas, deixando-lhe progressivamente menos espaço
para a sua crescente sensação de maldade. Os resultados de pesquisas positivas tendem a
forçar os profissionais a verem as “más experiências” normativamente, enquanto
patologias, literalmente más, a serem eliminadas. A positividade no método demonstrado
aqui é, portanto, terapêutica em vez de normativa. A má maternagem encontra lugar
enquanto uma necessidade arquetípica em todos os três modelos. O método pretende
resultar em uma compreensão arquetípica da má maternagem, que, como todas as
profundas patologizações dadas pela vida humana, pertence à psico-lógica fundamental
das relações humanas que estão estabelecidas no interior dos cosmoi de padrões
arquetípicos, padrões que forçam tanto a necessidade quanto a compaixão sobre nós.

Uma coda sobre educação

A educação das crianças, como Jung disse em sua palestra sobre o assunto em 1924,
começa com a educação de pais e professores e começa na educação básica – não na
educação superior; em níveis atrasados, não avançado; ao abaixarmos nossas visões e
seus padrões, de quatro, com pintura a dedo, com tambores, com pés descalços; com dias
mais lentos e não horas mais longas; com saborear e não testar; com nonsense em vez de
jargão. Demasiado Rousseau e a educação sentimental? Demasiado Rudolph Steiner,
escolas livres e jardins de infância alegres-alternativos? Não me entenda mal: eu estou
falando sobre nós, adultos – não sobre o que as crianças deveriam estar fazendo.
Se rimas nonsense e pinturas a dedo parecem demasiado infantis, veja o que nós
fazemos agora com a criança – bicos de ressentimento e junk food, violência esportiva
passivo-agressiva na frente da TV, baldes de pipoca, baldes de cerveja. O ambiente
doméstico adulto com seus brinquedos da Apple, o lar como uma Radio Schack9, uma
ilha de fantasia ou um armário de itens colecionáveis, seus salões de jogos, seus
apetrechos e aparelhos para construir corpos enquanto a imaginação é barateada e seca.
Mary Kay e livros comprados no supermercado. Enquanto isso, o crescimento, a
originalidade e a iniciativa, essas forças primordiais da criança, são consumidas pela
hiperativa fantasia de onipotência denominada “desenvolvimento” - seja pessoal, místico
ou financeiro, o projeto de si mesmo no espaço.
Rimas nonsense e pintura a dedo significam que eu não estou recomendando a
substituição de infantilidade ordinária por formas superiores de puerilidade10, como os
devaneios de Bachelard a respeito da infância, a criança divina de Jung, a inocência e o
deleite de Blake, a fascinante criança platônica no cosmos. Uma educação terapêutica
deve ter cautela em relação ao curso enobrecedor. A terapia é uma educação que opera
com equivalências, não conversões. É uma questão de escambo honesto. Nós não
podemos transformar pecadores em santos ou centavos em dólares sem passar a perna na
sombra. Então, em troca de dedilhar botões, pintura a dedo; em vez do jogo nonsense de
linguagem da TV, Lewis Carroll; em vez de Kodachrome, ovos de Páscoa. O escambo
primitivo da estupidez pela simplicidade – principiando no X da questão.
A educação, contudo, não pode parar onde começa. Por definição, a educação
deve “conduzir para fora”11. Ela conduz a simples fantasia à imaginação. Os próprios
dedos e a língua, torcendo-se em seu coro silábico, desejam mais do que repetições. Os
dedos e a língua encontram novidade ao sofisticarem a fantasia em imaginação.
Nós chegamos ao antigo enigma - a diferença entre fantasia e imaginação – e,
agora, podemos localizar essa diferença no conjunto mãe-criança. A fantasia é a atividade
da criança sem mãe (“motherless”); a imaginação é fantasia maternada (“mothered”): ela
é proposital, responsiva, cuidadosa. Ela materna porque é focada na criança – focada na
imaginação. A palavra-chave do imaginar é, portanto, não livre, mas fecundo; seu
objetivo, portanto, não é somente explorar, mas promover; e a euforia da fantasia é
contida pela consistência e pelo cuidado. Criança e Mãe, ambos. Para sermos conduzidos
a esse Ambos, nós devemos elaborar outra equivalência psicológica, substituindo a
criança de fato enquanto foco da educação pelo foco na imaginação do adulto. Nós
retomamos a infância. Essa recuperação da infância do domínio das crianças dá-lhes sua
oportunidade de postura graciosa, dignidade e sobriedade, seu desejo por razão e por
dever, à medida que retornamos ao armário da nossa infantilidade. Esse movimento é
primordial porque a fantasia de educar a imaginação foi completamente posta sobre as
crianças de fato – o que elas deveriam fazer por nós. Elas tiveram que fazer o que a nós,
adultos, não é permitido (exceto em asilos e naquele asilo nacional, a Califórnia, o estado
de ouro da infância) 12, deixando-nos com uma infantilidade subnutrida, carente, muda,
abusada e violenta, digna de Pacman, Star Wars e Halloween – entretenimento da mente
adulterada.
Essa mente adulterada é a má mãe em seu ápice. Ao forçar a infância sobre as
crianças, cada um de nós tornamo-nos más mães. Cada um de nós uma “mamã” – e isso
quando quer que, onde quer que, nós recorramos a uma resposta não-imaginativa, na
linguagem, na política administrativa, nas relações humanas, no consumo.
Encontros diários com a cidade do mundo são momentos imaginativos para a
mente de uma criança. Para a imaginação, eventos são histórias, pessoas são figuras,
coisas e palavras são imagens. Para a imaginação, o próprio mundo é uma mãe, uma
grande mãe. Nós estamos aninhados em sua linguagem, apoiados por suas instituições,
nutridos por suas coisas. O complexo da grande mãe que tanto aflige nossa psiquê
ocidental – seu pavor da e seu fascínio pela matéria; sua negação da dependência, que nós
chamamos de Livre Arbítrio; o anseio oral da economia do consumidor (“consumer
economics”) enquanto cura para a depressão - não pode ser resolvido pela terapia pessoal
apenas. A terapia pessoal enquanto cura, e a própria noção de cura, é uma defesa
apotropaica contra ela – banindo a cidade do consultório. A pequena mãe do consultório
pode cuidar de nós por um momento, mas do lado de fora jaz o enorme, imenso mundo e
apenas o enorme, imenso mundo pode nos curar – não da Grande Mãe, mas por meio
dela, pois a palavra “cura” (“cure”) vem de cura, “cuidado”. O semelhante cura o
semelhante porque os semelhantes cuidam um do outro. A própria cidade materna-nos
uma vez que nós recuperamos a criança de imaginação.
Nós precisamos apenas nos lembrarmos de que a cidade, a metro-polis, significa
em sua raiz uma Mãe corrente, fluente, aglomerante. Nós somos suas crianças e ela pode
nutrir nossas imaginações se nós nutrirmos a dela. Assim, a magna mater não é a magna
culpa. A culpa de fato por tudo – todo o combo do centro da cidade e do orçamento, do
analfabetismo e do rearmamento, do declínio ético e do veneno ecológico, da causa do
fenecimento de nossas instituições (governo, escolas, família, comércio e serviços,
editoração e linguagem) - é a negligência da cidade. E a cidade pode ser restaurada
enquanto mãe pela criança de imaginação. Sem essa criança, nós não podemos imaginar
nossa civilização além desse ponto ou promover a imaginação da nossa civilização, de
modo que a própria civilização se torna uma má mãe, não oferecendo nenhum terreno ou
trago à alma. Evidentemente, a mãe individual se sente um fracasso. A experiência da
má-maternagem é dada pela própria civilização quando a educação da imaginação é
negligenciada.
Portanto, para terminar onde nós começamos, com uma conclusão clássica, cíclica
apropriada ao modo retórico do arquétipo que estamos invocando, a mãe interminável:
sim, restaure a criança à mãe, a imaginação às instituições de educação, incluindo a
psicoterapia – mais, à totalidade da cidade do mundo – e, de fato, você re-vê os alicerces
da vida cotidiana.
1
Cf. Patricia Berry, “What’s the Matter with Mother” [“Qual é o problema com a mãe?”] in
Echo’s Subtle Body [O corpo sutil de Eco] (Dallas: Spring Publications, 1982). [Nota do Autor]
O termo “matter” pode ser traduzido como “assunto”, “matéria”, “questão”, “problema”; a
expressão “what’s the matter?” é empregada para perguntar “qual é o problema?”. O título do
artigo de Patricia Berry enfatiza, por meio da assonância, o vínculo entre matter (“problema”) e
mother (“mãe”). É digno de nota que matter e mother derivam, respectivamente, de materia
(“matéria”) e de mater (“mãe”), termos latinos cuja raiz é comum. [Nota da Tradutora]
2
No original, Hillman emprega “fealty” que significa a lealdade, especialmente em relação a um
rei ou a uma rainha. [NT]
3
Ibid. [NA]
4
Trata-se de tradução para “infantile”. O termo “infantile” refere-se pejorativamente ao que é
típico de uma criança e, portanto, inadequado ao adulto. Nesse contexto, poderia ser traduzido,
possivelmente de modo mais preciso, como “infantil” ou “imaturo”. Entretanto, optei por traduzir
“infantile” por “principiante” de modo a evitar a repetição vocabular, uma vez que, ao longo do
texto, os termos “childish” e “imature” são traduzidos por “infantil” e “imaturo”. [NT]
5
Cf. Christine Downing, “To Keep Us Imagining: The Child” [“Para manter-nos imaginando: a
criança”] in The Goddess [A deusa] (New York: Crossroads, 1981). Também o meu “Abandoning
the Child” [“Abandonando a criança”] em Loose Ends [Pontas soltas] (Spring Publications,
1975). [NA]
6
Cf. Berry, “An Approach to the Dream” [“Uma abordagem ao sonho”] in Echo, pp. 63-64. [NA]
7
No original, “upsidaisy/downsidaisy”. “Upsidaisy” é uma expressão costumeiramente utilizada
para reconfortar uma criança que tropeçou e/ou que está sendo levantada. A expressão empregada
por Hillman assinala a alternância entre “up” (“em cima”) e “down” (“embaixo”) como o
movimento da gangorra. [NT]
8
No original, “[…] through re-kindling fantasies, re-finding pleasures, releasing spontaneity, re-
awakening dreams.” Por meio da repetição do prefixo re-, é enfatizado caráter de realizar
novamente. Optei por manter essa ênfase e traduzir esse trecho como “[...] pelo re-avivamento de
fantasias, re-encontro de prazeres, re-lançamento de espontaneidade, re-despertar de sonhos”.
Entretanto, tradução menos estranha ao português seria ““[...] pelo re-avivamento de fantasias,
re-encontro de prazeres, liberação de espontaneidade, re-despertar de sonhos”. [NT]
9
Radio Schack é uma cadeia de lojas varejistas de artigos eletrônicos sediada nos EUA. [NT]
10
No original, “[...] I am not recommending the replacement of trashy childishness with higher
forms of childlikeness […]”. Optei por manter, ao longo do texto, a tradução de “childishness”
por “infantilidade” e de “childlikeness” por “puerilidade”. Nesse trecho, contudo, é digna de
observação a oposição sutil e significativa entre “childishness” e “childlikeness”, enfatizada no
nível verbal pelo destaque gráfico dos sufixos -ish e -ness. [NT].
11
No original, “lead out”, literalmente “conduzir para fora”, pode ser traduzido como “mostrar a
saída”. [NT]
12
No original, “[...] except in asylums and in that national asylum, California, the golden state of
childhood”. O termo “asylum”, traduzido por “asilo”, pode ter o sentido de “refúgio”, “santuário”
ou de “manicômio”, “hospício”. Embora Hillman subscreva ao primeiro sentido, implica
ironicamente o segundo. [NT]

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