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LUMEN ET VIRTUS

REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 26 DEZEMBRO/2019
ISSN 2177-2789

A ENCENAÇÃO DE BENT, DE MARTIN SHERMAN


NO BRASIL DURANTE A DITADURA MILITAR
(1981) E PÓS-DITADURA MILITAR (2006)

Prof. Dr. Lajosy Silvai

RESUMO – Este artigo pretende analisar ABSTRACT – This essay aims to analyze
duas encenações de Bent, de Martin two performances of Bent, by Martin
Sherman que ocorreram em 1981 e 2006 no Sherman that took place in Brazil in 1981
brasil. Essas encenações sugerem o quanto and 2006. These performances suggests how
foi diferente as questões relacionadas à different the issues related to politics
política sobre diversidade mudaram durante changed during military dictatorship (1981)
a ditadura militar (1981) e o pós-ditadura and pos-dictatorship when the reception of a
(2006), quando a recepção de uma peça de play performance is related to time and
teatro está relacionada ao tempo e espaço. space.

PALAVRAS-CHAVE – Bent, Teatro Gay, KEYWORDS – Bent, Gay Drama, Politics,


Política, História, Brasil. History, Brazil.

Introdução que os distinguem: os prisioneiros


Bent, escrita por Martin Sherman em políticos, contrários ao partido nacionalista
1979, trata da perseguição a homossexuais de Hitler, recebem um triângulo vermelho;
na Alemanha durante a ascensão do criminosos comuns, o triângulo verde; os
nazismo. O conflito da peça focaliza o judeus, uma estrela amarela; sendo os
cotidiano de duas personagens, Max e homossexuais, a mais baixa categoria, o
Horst em um campo de concentração, triângulo rosa.
onde judeus, homossexuais e prisioneiros A peça é dividida em dois atos: a ação
políticos tentam sobreviver. Nesse campo do primeiro ocorre em Berlim, com a
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de concentração, os prisioneiros são descrição da fuga das personagens para


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divididos em grupos, obrigados a usar uma floresta e depois elas são levadas para
roupas marcadas por figuras geométricas um campo de concentração em Dachau.
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No segundo ato, a ação da peça ocorre conviver com o outro e o conflito sobre
nesse campo de concentração, quando aceitação e resistência se faz a partir do
observamos o cotidiano das personagens diálogo criado entre as personagens. Para
Max e Horst na tarefa de mover pedras de Max, o mais importante é sobreviver, não
um lado para o outro, utilizado como importa se é preciso mentir, enquanto
forma de tortura psicológica. Horst não abre mão de usar o triângulo
O espaço da peça é dividido entre o por entender que a sua resistência também
privado e o público, quando as é um ato de sobrevivência.
personagens deixam seu apartamento e
passam a vagar pela Alemanha. No início A primeira encenação brasileira (1981)
do primeiro ato, a peça descreve o A primeira encenação brasileira1 de
apartamento de Max e Rudy, quando a Bent no Brasil tomou forma a partir da
perseguição aos homossexuais se torna leitura de uma reportagem sobre a
oficial na Alemanha hitlerista. Os soldados encenação inglesa da peça em Londres,
homossexuais da SS não são mais úteis aos tendo o ator Ian Mckellen, gay e ativista o
propósitos de Hitler e começam a ser primeiro a interpretar Max no teatro. Logo
assinados como um expurgo chamado de após a encenação inglesa, a peça é
Noite das Facas Longas. Max e Rudy, um apresentada na Broadway, com Richard
casal de namorados, não dão crédito ou Gere (ator em ascensão no período) no
são alienados ao que está acontecendo na papel de Max. A primeira encenação
Alemanha de Hitler, pois viveram na mundial ocorreu em Londres, onde Martin
boêmia de Berlim. Quando membros da Sherman2 reside desde 1980.
Gestapo matam um soldado da SS O diretor brasileiro Roberto
chamado Wolf, eles fogem para uma Vignati comprou os direitos da peça, a
floresta, onde são capturados e levados partir da sugestão do ator Mário Lago que
para um trem rumo a Dachau. Nesse trem, havia lido reportagens sobre a encenação
apenas Max sobrevive, porque Rudy usa na Broadway. O espetáculo estreou em 14
óculos e sutilmente por sua fragilidade ser de janeiro de 1981 em São Paulo. A
mais evidente. princípio, o diretor sabia sobre o tema da
Nesse segundo ato, as personagens Max peça (campo de concentração) que
e Horst se encontram em um campo de colocava “em questão o posicionamento
concentração, onde desenvolvem o ato do homossexual no campo de
inútil de mover pedras de um lado para o
outro vigiado por guardas nazistas. No 1
O espetáculo foi dirigido por Roberto Vignati,
trem, Max havia feito um pacto com os com tradução e produção de Luiz Fernando
Tofanelli.
oficiais, ao se declarar como heterossexual 2 Um dos últimos trabalhos de Sherman foi o

e judeu para escapar do triângulo rosa, mas roteiro do filme Sra. Anderson apresenta
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é obrigado a violar o cadáver de uma judia. (2005), filme de Stephen Frears, sobre socialite
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inglesa que abre um teatro de vaudeville em


Uma vez juntos no campo de Londres e o mantém durante a I Guerra
concentração, Max e Horst são obrigados a Mundial.
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concentração”3 e cita as primeiras reações à tinha sete cenários e contava com uma
peça que gerou inúmeros debates na época, produção rica para os padrões brasileiros,
uma vez que os judeus eram vistos como dada a complicada cenografia que buscava
as únicas vítimas do holocausto, sem que reproduzir em detalhes cenas como a do
houvesse citação à hierarquia no campo de vagão de prisioneiros, que chegava a ser
concentração como o cartaz da peça da arremessada em direção à plateia para criar
montagem brasileira fez questão de o efeito real de um trem se movimentando.
apresentar. O apuro da técnica buscava alcançar um
De fato, a motivação de Martin padrão de qualidade na produção nos
Sherman para escrever a peça ocorreu, moldes da Broadway que atualmente pode
quando o ator viu homossexuais ser vista na transposição de musicais como
fantasiados de nazistas em uma parada gay O Fantasma da Ópera, Chicago e A
de Nova Iorque. O autor assumiu essa Bela e a Fera no eixo Rio-São Paulo. Essa
tarefa de educar as novas gerações sobre o preocupação descreve a necessidade de se
que se passou nos campos de concentração reproduzir um teatro que, ao mesmo
nazistas, uma vez que a homossexualidade tempo que se arriscava a discutir temas
era intolerável e os que utilizavam o problemáticos como a homossexualidade
triângulo rosa seriam os mais perseguidos do ponto de vista comercial, tenta inseri-
não só pelos nazistas, como também pelo los sob uma perspectiva mais apurada e
outros presos no campo de concentração. uma representação mais emocional e
Na entrevista dada em 2004, ampla. Essa tentativa visava superar a
Roberto Vignati afirma que pensou em barreira de gêneros a qual peça pertenceria,
realizar a montagem da peça a partir da o gay drama/theater. É como se a produção
linguagem cinematográfica e convidou o precisasse desse aparato técnico para se
cenógrafo Irênio Maia, que acabara de distanciar do aspecto marginal no qual o
voltar do exílio da Alemanha durante a gay drama sempre esteve inserido nos
ditadura militar. Maia trabalhou como espaços alternativos. Isso ajudaria a
cenógrafo de um teatro estatal alemão; e alcançar o sucesso que a primeira
segundo as palavras do diretor “conhecia encenação brasileira de Bent conseguiu no
melhor que ninguém a problemática” do país, sendo reencenada e com troca de
nazismo e ficaram discutindo meses, pois elenco até 1984.
eles acreditavam que a peça só poderia ser No seu trabalho Gay Drama/Queer
encenada sob uma perspectiva realista. Performance, Torsten Graff comenta que
Na época, Vignati trabalhava como os dramaturgos gays americanos têm tido
diretor na Rede Globo e aproveitou as um espaço expressivo, ao levar um debate
férias para se envolver no projeto. A peça sobre questões políticas da representação
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da homoafetividade dificilmente
3 As transcrições e recortes aqui são de uma encontrado em outros lugares do mundo
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entrevista concedida pelo diretor em


novembro de 2004, que resultaram como parte
(GRAFF, 2001, p. 11). De fato, as
da minha tese de doutorado. definições de gay drama e queer performance
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podem ser questões relacionadas ao enquanto representação naturalista da cena,


público LGBT, sem o filtro de um teatro a despeito da ousadia técnica buscar a
heteronormativo, quando as personagens perfeição na encenação, como se a jornada
protagonistas são homossexuais e seus das personagens fosse a do espectador, que
conflitos estariam centrados não apenas na deve acompanhar seu percurso e seus
sua sexualidade, mas sim em sua desdobramentos rumo à catarse no final da
cosmovisão de um mundo em que essas peça.
personagens estariam à margem ou Quanto à constituição da ação
restritos ao gueto, ironicamente, um dramática, Sábato Magaldi afirma que o
símbolo da repressão que vem desde o texto de Sherman é “uma contradição”, já
nazismo e permanece no imaginário de que havia homossexuais fardados a serviço
muitos homossexuais até hoje. de Hitler, pois o dramaturgo não
Esse teatro também tenta encontrar aprofunda a questão “além do processo de
espaço em uma representação mainstream, transformação humana das personagens
ao acenar para uma plateia diversa, quando centrais” e depois ele complementa:
os produtores da Broadway escolhem um
ator e símbolo sexual como Richard Gere duas linguagens. Uma explícita e
grandiloquente, nos moldes da Broadway e
para interpretar Max. Contudo, a aceitação na superfície das sensações; outra mais
por um espaço mais amplo sempre causará contundente, traria à cena maior densidade
conflitos, uma vez que o aspecto queer humana. Uma visão menos aparatosa do
texto poderia tirar dele um clima dramático
(inicialmente traduzido como esquisito, próximo às criações de Peter Weiss e Max
bicha, viado, termo pejorativos) agora Frisch. Seria, talvez, inesquecível, mas
quer um status de identidade própria. Não seguramente menos comercial. Nesta hora
de acertar um sucesso, Roberto Vignati
deseja mais depender da aprovação da preferiu o primeiro caminho, o show
heteronormatividade ou até mesmo do dramático (MAGALDI, 1981).
mainstream para existir.
Quanto à recepção da crítica brasileira Ao tentar focar em um tema universal, é
em 1980, Alberto Guzik descreve a possível falar de um teatro sem bandeiras
produção como “sofisticada, ainda que em defesa de minorias? Estaria o texto
preferíssemos cenários menos pirotécnicos, condenado ao recorte dramático do
que variam desde o naturalismo do trem momento histórico e focado no
até o formalismo simplificado do emocional? O que seria a busca então pela
acampamento” (GUZIK, 1981). De fato, o dignidade humana? De fato, havia
texto de Martin Sherman não descreve homossexuais fardados a serviço de Adolf
cenários elaborados, mas sugere lugares ou Hitler, mas a Noite das Facas Longas
espaços, sem pormenores, devido ao comprova que nem todos estavam a salvo
do nazismo, mesmo os que ajudaram na
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caráter simplificado e prático de suas


rubricas. A encenação realista resida no sua ascensão. O oficial Ernest Röhm
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fato de que se trata da descrição de um (1888-1934), de extrema importância para


momento histórico, portanto, justificável proteger a propagação do ideal nazista, é
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citado por uma das personagens como porque a homofobia é uma criação coletiva
“bicha”, mas o seu papel na ascensão de sugerida por ideais heternormativas. Em
Hitler apenas dura, enquanto for útil aos outras palavras, seria preciso trazer os
ideais de Hitler. Sendo um degenerado, não heterossexuais para o debate, porque eles
deveria existir segundo a lógica da raça são os maiores disseminadores da
ariana, perfeita e pura. Portanto, há homofobia, mesmo que esse debate seja
também uma crítica de Sherman, aos que apenas sugerido na peça por abranger
pensam defender e apoiar um regime todos. Com efeito, Horst afirma que
totalitário que irá destruí-los. existem gays de todos os tipos, de modo
Tanto Martin Sherman, quanto Roberto que isso implica no reconhecimento de que
Vignati parecem valorizar o universalismo não é apenas a orientação sexual o
de temas que a peça sugere como a principal causador da homofobia, mas a
valorização da compaixão e a compreensão ausência de compreensão da diversidade
de um momento histórico horrível, além como um fator inquestionável do ser
de uma política que defende a humano. Para as pautas de resistência
homoafetividade, termo até então política para o período, o ato de Horst
inexistente na época da encenação em equivaleria a um pedido de compreensão a
1981. Ao situar seu conflito nas minorias, favor do amor como um direito universal.
os homossexuais, surge outro paradoxo A busca pela empatia – nem sempre aceita
que é a fragmentação do Holocausto, – poderia ser um ato político contra a
enquanto representação dramática em homofobia em 1981, que levanta questões
detrimento do que se entende como como violência e marginalização a serem
consciência do “bem comum” aos moldes discutidas no século XXI.
de uma concepção concebida por Platão. Ao utilizar a estrela de David para
Nesse sentido, o universalismo é a busca escapar do rebaixamento que o triângulo
por um tema conciliador que possa rosa impõe, a rejeição de Max a si própria
abranger o maior número de espectadores pode ser comparada às personagens
possíveis, um ideal de representação que homossexuais que aparecem em narrativas
deveria instigar a empatia não só aos como O Segredo de Brokeback
homossexuais, mas aos heterossexuais que, Mountain, conto de Annie Prouxl. São
por sua vez, poderiam entender o homens que se casam com mulheres para
sofrimento das minorias. esconder o que sentem um pelo outro.
Essa ênfase na centralidade de uma Ennis Delmar e Jack Twist estabelecem
noção unificante do “bem” estabelece uma uma relação construída a partir de migalhas
uniformidade para a representação da e fragmentos, ao condenarem a si próprios
homossexualidade no teatro, uma que vez a uma vida de desilusão e melancolia que
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que seria importante descrever os conflitos também se estende às próprias mulheres


em torno da sua aceitação e criar um com quem se casaram, destinadas à
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movimento que abarque os heterossexuais infelicidade e à indiferença dos seus


no macrocosmo das relações interpessoais, maridos.
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A questão política da divisão entre Para Vignati, o realismo era


categorias, a dos homossexuais sendo a imprescindível dado ao tema do nazismo
mais baixa evidente, é descrito na peça, que, especialmente naquele momento da
quando Horst vai se alimentar e é tratado ditadura militar, não poderia ser
com escárnio pelos companheiros do representado de outra forma. Era
campo de concentração. Ele recebe uma intencional fazer uma relação entre a
porção de sopa mais rala e luta por uma violência política da ditadura militar e a
sobrevivência negada a ele, mesmo que ação da peça e a ascensão do nazismo. É
pareça contraditório estigmatizar pessoas importante lembrar que a ação de Bent
em categorias em um campo de ocorre antes da eclosão da Segunda
concentração. Afinal, todos naquele espaço Mundial, momento em que as personagens
estão condenados à morte, independente mencionam as Olímpiadas de 1936.
dos símbolos impostos em seus uniformes. Roberto Vignati afirma que
Ao usar o triângulo rosa, Horst assume
esse ato como político e se afasta de Max, o espetáculo tinha essa colocação de verdade
absoluta ligada ao realismo e procurando
porque não defende a mentira como forma uma dialética na interpretação na qualidade
de salvação. Talvez por entender que todos de trabalho de cada trabalho de cada ator,
tanto que... que partiram dessa coisa de
estão condenados à morte, Horst não persona entre os dois personagens da peça.
consegue compactuar que fingir ser judeu Os dois (Max e Horst) seriam os
não ajudará Max a sobreviver no campo de protagonistas do espetáculo (...) Tanto é que
quando o Sherman veio ao Rio de Janeiro,
Dachau. ele ficou assim bobo porque no mundo
Por outro lado, é importante ressaltar as inteiro era sempre o Richard Gere em... e
contradições da montagem brasileira entre quem fazia o Max era o ator que parecia o
nome primeiro no letreiro ou programa. E
o apelo comercial levantado por Magaldi aqui não! Era o Kito Junqueira (Max) e
(alusões à Broadway) e o momento político Ricardo Petraglia (Horst) em Bent.4
pelo qual os brasileiros passavam, que se
tratava da abertura política e o retorno dos A questão da persona estabelece a
anistiados em 1981, questão levantada por construção das personagens sob uma
Roberto Vignati durante a entrevista. A perspectiva psicológica e conflituosa, já
boa recepção e o sucesso comercial da que temos dois posicionamentos diante da
peça criavam um diálogo entre a repressão homossexualidade: uma alienante (Max) e
que o campo representava e o alívio outra politizada (Horst) que estabelecem
emocional que o público buscava no uma contraposição e a força motriz da
processo de abertura política no país. É a peça, já que essas personagens não podem
catártica cena, na qual Max e Horst fazem ser classificas em protagonistas ou
sexo verbalmente, impossibilitados de se secundárias. É interessante observar
também que a relação entre essas
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tocarem e sob a vigilância dos oficiais, que


catalisou os espectadores brasileiros sobre personagens pressupõe a
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a opressão e a censura da ditadura militar.


4
Em entrevista gravada em áudio em 2003.
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homossexualidade como uma O caráter sentimental do melodrama


representação da limitação social, política e pode ser visto como uma forma de
histórica. A afeição e o direito ao amo estabelecer uma verdade comum e coletiva,
precisam ser legitimados no discurso de cujo intuito é enfrentar as ameaças e os
Horst ao questionar padrões desenganos de uma sociedade repressora
heteronormativos como os defendidos por do indivíduo comum. A identificação de
Max. quem assiste/presencia o “conflito alheio” faz
Como afirma Raymond Williams, essa com que o espectador atue como uma
característica do “novo drama” (presente espécie de testemunha para reduzir as
em Bent), descreve “a consciência do eu ambiguidades, simplificando-as na maioria
num momento de passagem da das vezes como podemos ver nas
experiência: uma autoconsciência que é telenovelas, derivadas do drama burguês.
agora em si mesma dramática (...)” e que Com efeito, Ismail Xavier descreve a
estabelece “o processo da vida comum hegemonia do melodrama como uma
visto com maior intensidade a partir da combinação de sentimentalismo e prazer
experiência individual” (WILLIAMS, 2002, visual (figurinos e cenários rompantes),
p. 121). Por essa razão, a questão da luta como elemento ligado à indústria cultural,
pela “dignidade humana”, independente citando aqui Peter Brooks (XAVIER,
das siglas como a militância LGTB+ atual 2003. p. 89). Mais adiante, o autor cita a
(sigla que ainda nem existia na época), questão do continuity-system, pois ele é uma
pareça ser o chamariz inicial de Bent, ainda construção de um padrão clássico
que a noção política da peça estabeleça a narrativo, o melodrama e sua tradição
experiência individual como foco de reiterada pela indústria cultural (idem, p.
atenção do diretor Roberto Vignati, que 111). Contudo não é toda produção
segue à risca a estrutura formal de Bent. O cultural que se sustenta se não existe um
expurgo da emoção – aqui vista como diálogo entre o produto, o público e o seu
alienante ou que possa remeter ao “teatro tempo.
culinário”, termo de Brecht para designar Lidar com a emoção parece ser a maior
qualquer teatro palatável para o público dificuldade para os críticos que trabalham
pequeno burguês, é o contraponto para na contramão do pensamento dialético: é
reler a peça sob uma perspectiva que fuja possível emocionar-se sem alienar-se do
ao melodrama, apontada como estética processo de construção? A morte de Horst
predominante na peça por Sábato Magaldi não seria apenas mais um processo de
e Jefferson Del Rios que a descrevem individualização do ser humano diante da
como “convencional”, bem urdida em repressão, pois ele ressignifica a resistência
termos de tessitura dramatúrgica, cabendo como um ato político e não individual.
14

ao diretor Roberto Vignati a tarefa de Esse processo de criação artística adotada


organizar esses elementos num “armazém por Martin Sherman não é simplista,
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de surpresas” (termo de Magaldi). porque a década de 70 tornou-se um ponto


chave para a militância das minorias, que
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resolveram revidar as agressões sofridas O diálogo de Bent com o surgimento


como a rebelião do Stonewall Inn em 1969. da militância gay abre outros debates em
A polícia agredia homossexuais discussão sobre a representação da
gratuitamente com prisões e repressão, homossexualidade no teatro. No Brasil, a
mas, dessa vez, houve um confronto que peça chegou a viajar pelo país com mais de
marcou a militância política. setecentas apresentações entre de 1981 a
Para Magaldi, “Sherman sabe que os 1982, com substituição de atores do elenco
nazistas não foram obrigatoriamente um original e uma retomada da peça em 1986.
bando de psicopatas. Hitler foi ao poder Vignati descreve a reação do público
com mais de 11 milhões de votos (num que ora ria das cenas, ora se emocionava
eleitorado de 35 e com a esquerda dividida) como num “quebra-cabeça” dramático,
a 196 cadeiras no Parlamento. O Führer cercado por anotações da assistência de
não estava só...” (MAGALDI, 1981), direção sobre os procedimentos utilizados
porém, é importante ressaltar que esse em cena pelos atores e os técnicos. Na
aspecto surge em momentos da peça cena final, o diretor utilizou Wagner,
quando Rudy ressalta a presença de compositor preferido de Hitler, e
nazistas entre os soldados da Gestapo e o desenvolveu um estudo do período
posicionamento do ativista Magnus histórico com os atores, com oficinas e
Hirschfeld (1868-1935), famoso médico e trabalho corporal, pois as pedras
sexólogo, que é o pioneiro a defender os carregadas pelos atores no campo de
direitos dos homossexuais. Sherman concentração, por exemplo, eram
descreve a história da homossexualidade e verdadeiras. A representação do nazismo e
seus pioneiros na luta por direitos em um a suástica também foram outros elementos
anexo no final da peça impressa. trabalhados para compor uma
Quanto à representação do nazismo, representação realista do período.
parece uma dicotomia que se estabelece O diretor não utilizou a canção que
entre o que é abominável do ponto de vista aparece no texto de Sherman e pediu uma
ético e moral e o esmaecimento dos afetos composição para os músicos Amilson
diante das imagens provocadas pelas Godoi (compositor e diretor musical) e
atrocidades. O Holocausto parece um fato Celso Viáfora (letrista). Aqui segue a
histórico que conduz o Nazismo para uma transcrição da letra:
representação do Mal Absoluto. Por vezes,
esse Mal Absoluto acaba por reiterar uma Ah, Berlim
representação estereotipada do nazista Adormeceremos sob o seu silêncio
como ícone máximo da crueldade; o que e o tempo assim, suspenso
terá o peso dos enganos.
talvez tenha levado dramaturgos como
15

Martin Sherman a representá-lo dentro dos


I
moldes tradicionais, já que analisá-lo sob Uma noite e nada mais
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diversas perspectivas poderia ser o mesmo antes que eles abram o gás
que relativizá-lo ou endossá-lo.
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antes que entornem o rum Viva a cor de nossa tez.


ali no chão Viva a nação.
uma noite pra partir Morram esses imorais.
ruas, pois que descobri Destruam logo esse tumor
guardem minha festa E vamos dar um basta:
porque sempre fomos um Pederasta no xadrez!

Ah, Berlim III


Encontre para mim
nas suas arestas Vou cuspir na Cruz de Aviz
um lindo garoto Tomar Moscou, Londres, Paris
com o sangue dos potros E depois Hollywood pra comer a
e os olhos azuis Dietrich
que eu lhe direi desaforos, sim
que eu me porei nos seus poros Viva o povo alemão
antes que lhe cubram de pus. Viva a cor desse brazão
lhe quebrem os ossos Viva o Füher nosso pai
lhe cortem o pescoço Viva a terra mais sagaz
lhe arranquem a luz Viva quem sabe o que faz
nos calabouços. Viva quem sabe o que trai.

Com mãos cachorras Enquanto a música original de Bent


e muito mais exalta uma Berlim melancólica, decadente e
cuspindo sobre os seus ais a vida boêmia dos marginalizados, sem se
até que morra
ater a aspectos políticos como a ascensão
o meu rapaz
do nazismo, a composição de Amilson
com risos de bacanais
e mãos de ferro
Godoi e Celso Viáfora evocam uma Berlim
e temporais mais ligada à situação dos brasileiros
e os berros de Satanás. durante a ditadura militar ao ressaltar
questões como a marginalização do artista
II e questionadores do período, prisões e
Mas quem se fodeu, fodeu torturas, quando mencionam “calabouços”
antes eles do que eu. e atos como quebrar ossos e cortar
Viva o Füher, nosso pai. gargantas. Ao optar por uma letra original,
Viva a Nação. o diretor e o produtor da peça decidiram
Vai ter chopp pra xuxu
que a composição brasileira seria mais
até fazer bico no cu
assertiva e contundente, ao relacionar a
e quilos de salsicha
com chucrute e com melão.
ditadura militar com a perseguição aos
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homossexuais nos campos de


concentração.
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Heil Meu Santo Protetor.


Minha raça superior.
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A letra faz parte programa da peça, rico analisa questão da efeminação e do


em informações, com artigos sobre a estereótipo estarem relacionados ao
homossexualidade, o período histórico, o ideológico e ao social. De acordo com o
funcionamento dos campos de crítico e ativista gay, o problema não é ser
concentração e análise da importância de efeminado, mas sim os valores que a
Bent, enquanto peça teatral por críticos, efeminação traz para o epicentro da
ensaístas e jornalistas, além de referências discussão de papéis sociais: o efeminado
ao espetáculo da Broadway. Há referências ou passivo na relação entre dois homens
a autores como Albert Camus, Emile Zola reificaria a submissão e a manutenção do
com temas políticos: o famoso discurso patriarcado repressor.
J’acuse de Zola (“Já que tantos ousaram. A Sinfield afirma que ser “ativo”,
verdade, eu a direi porque me prometi “passivo”, “masculino” ou “feminino” são
dizer... Meu dever é falar; não quero me construções ideológicas, não atribuições
tornar cúmplice”) e um trecho de O mito de naturais e que suas funções primárias é a de
Sísifo de Camus. No final do programa, o manter o modelo das relações
regulamento de Dachau foi incluído e heterossexuais (SINFIELD, 1998, p. 49).
alguns dos seus parâmetros como a ideia Mais adiante, Sinfield comenta que a noção
de que “só o trabalho liberta o homem”, as de “alma feminina” num corpo masculino
infrações e as punições dentro do campo ou vice-versa foi uma noção anunciada por
de concentração. sexologistas na virada do século XIX,
Quanto ao fato de Bent ser ou não como já foi apontado por Foucault em A
parte do gay drama, Vignati afirma que – História da Sexualidade, devido à
para a composição do espetáculo – necessidade de mapear e rotular a
interessava colocar a questão da discussão, homossexualidade (idem, p. 50).
sem defender “bandeiras”, pois era No início de Bent, a questão dos papéis
importante trazer o assunto para o debate, parecem estabelecidos entre Max (o
a ponto de organizações como a masculino) e Rudy (o feminino). Sendo o
comunidade judaica de São Paulo primeiro casal homoafetivo da peça, Max e
promover eventos para a discutir a peça, Rudy vivem no espaço convencional de
escrita por um judeu americano, Martin um apartamento e seus papéis
Sherman. A integração era a premissa do estabelecidos, aquele quem ama e cuida
espetáculo que nos faz pensar na sua (Rudy, o efeminado) e quem é cuidado e
consagração à busca de uma representação deseja ser livre da afetividade (Max, o
sem lugares comuns ao gay drama como a homossexual mais heteronormativo). No
solidão nos centros urbanos, os conflitos início do primeiro ato, há a interferência de
internos que apenas envolveriam a Wolf, um oficial da SS, que se torna um
17

necessidade de exaltar a liberdade sexual. amante ocasional de Max, despertando a


Quanto aos estereótipos que podem melancolia e a impossibilidade do afeto em
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advir do teatro ou qualquer outra forma de Rudy.


representação artística, Alan Sinfield (1998)
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Embora apareça por alguns minutos em média branca e de grandes metrópoles


cena, Wolf representa o homossexual que como a Berlim de Bent, onde a maioria
vive de favores, amante de generais da das personagens não passa dos trinta e
Gestapo e sustentam um sistema de cinco anos, sendo jovens e bonitos. No
repressão e violência. A questão da beleza final do século XX, havia poucos estudos
e da juventude é outro ponto que Sinfield sobre a homoafetividade e os LGBTs5,
toca, quando ele descreve o ideal da estudos que hoje são mais amplos, porque
masculinidade que alguns homossexuais não seria possível ignorar a diversidade.
abraçam como referencial, o straight acting Enquanto era vista como subcultura, a
que condiciona o padrão heteronormativo, representação da homossexualidade
ou seja, a valorização de homossexuais passava por um modelo mediado pela falsa
mais masculinos como forma de segurança que bares, boates, o meio gay,
marginalizar os que não se enquadram trouxessem conforto para quem desejava
nesse padrão. ser representado nos palcos ou na tela de
No Manifesto criado pela Frente de um cinema. Para Sinfield, essa subcultura
Liberação Gay de Londres em 1971, não exige modelos positivos, mas
Sinfield cita a questão da opressão a qual simplesmente núcleos de manifestação de
os homossexuais são submetidos à medida uma representação homossexual na
que representam uma ameaça à unidade música, ficção, poesia, peças, filmes e
familiar, contudo, atualmente o foco da estudos culturais (SINFIELD, 1998, p. 40),
militância LGBT+ parece se concentrar ou seja, é a partir do início do século XXI
nas críticas aos privilégios desse modelo que passamos a ver a importância da
heteronormativo promovido pelo Estado, palavra representatividade.
quando adotar crianças e constituir uma Países considerados desenvolvidos
família tornou-se um fator predominante dentro dos padrões econômicos como os
para justificar uma relação entre pessoas do Estados Unidos importam a imagem do
mesmo sexo (SINFIELD, 1998, p. 71). homossexual moderno que deveria servir
Nos anos sessenta, a militância estava de modelo internacional para outras
voltada para a questão de liberação sexual, culturas. Esse modelo é predominante para
ao passo que atualmente discutem-se plateias de todo mundo que desejam se
papéis sociais sob uma perspectiva de identificar com esses modelos, pois, em
desconstruir modelos ligados ao
heteronormativo. Essa discussão pretende 5 Durante 1980 até os primeiros anos do século
promover a diversidade e não assimilar XXI, a sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes)
imposições como a masculinidade tóxica, era predominante no Brasil. Com o avanço dos
quando os próprios homossexuais estudos sobre gênero e diversidade ao longo desses
anos até 2019 (ano desse artigo), essa sigla passou a
18

reproduzem modelos de repressão entre si. ser LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Todavia, as discussões sobre diversidade Transgêneros). Essa sigla também pode ser alterada
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ao incluir Q (Queers) e o símbolo + para indicar


nem sempre são inclusivas. Elas podem uma tentativa do movimento de abarcas todas as
estar concentradas no modelo de classe minorias.
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muitos países subdesenvolvidos, muitos funcionado como uma tentativa de


dos filmes e peças com temática gay sequer integração a partir da ideia de que existem
chegam ao mercado ou são lançados temas que transcendem fronteiras de
apenas em festivais em cidades como São gênero. Dessa forma, o conflito de Max e
Paulo e Rio de Janeiro. Horst parece essencialmente humano,
Essa imagem da “importação” de um porém, ele também questiona o aspecto
modelo é traçada a partir de estudiosos da social e político, inerente e impossível de
homocultura como o americano James ser evitado à revelia de qualquer diretor
Green que desenvolveu pesquisas sobre a que venha encenar a peça futuramente. Por
representação da homossexualidade no mais que diretores e dramaturgos não
Brasil. É possível citar no seu estudo – queiram levantar bandeiras, o cerne de
Além do Carnaval: a homossexualidade Bent é a conscientização dos abusos que
masculina no Brasil do século XX –, homossexuais sofreram no passado e
quando o autor sugere o modelo brasileiro excluídos de uma historiografia mais
como feito essencialmente de papéis oficial. Essa historiografia descreve o
(macho e fêmea), portanto, diferente do Holocausto, sem ressaltar as minorias,
americano: é esse olhar sobre o exotismo apagadas em função do registro de uma
latino como resultado de discussões tragédia focalizada mais nos judeus em
periféricas, já que os latino-americanos – campos de concentração.
não abençoados pela estabilidade
econômica – viveriam na marginalidade; e Análise e tradução de Bent (2006):
tudo o que nos chega aqui como inovador prática e diálogo
(paradas gays, manifestações políticas) são É importante ressaltar a importância da
ideias fora do lugar, esgotadas em seus país pesquisa teatral no que diz respeito à
de origem (Estados Unidos), onde as integração entre o projeto e uma prática
primeiras paradas gays teriam ocorrido. que resulte num projeto de trabalho como
É compreensível que peças como a encenação de uma peça. Felizmente, esse
Bent possam ser palatáveis ou processo ocorreu graças a colaboradores
melodramáticas como se de Max e Horst como o Professor Dr. Paulo Merísio, chefe
pedissem por compreensão, já que seria do Departamento de Artes Cênicas da
difícil sobreviver a um mundo caótico e Universidade Federal de Uberlândia, e o
dominado pela loucura do nazismo. O Grupo de Teatro Confraria Tambor, que
apagamento histórico com o surgimento encenaram Bent a partir da minha
dos skinheads e células nazistas no século tradução dentre os meses de setembro a
XXI e o avanço do fascismo reafirmam dezembro de 2006.
que a luta histórica dos LGBTs está longe A minha experiência na tradução
19

de acabar. de Bent, utilizada para essa encenação,


Ao evitar uma bandeira política abarca o aspecto teórico relacionado aos
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concentrada na homossexualidade, a estudos literários e a prática cênica sem


montagem brasileira de Bent talvez tenha entrar na questão teórica do processo de
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traduzir, uma vez que a tradução não era o projeto que colaborasse na construção de
meu foco de análise. O que eu observei uma identidade e linguagem do grupo; que
durante o processo de tradução da peça foi já havia encenado Barrela de Plínio Marcos
como ela interfere no resultado final de um sob sua direção, peça que também trata do
texto, dado que a tradução de uma peça cotidiano de presos numa cadeia, encenada
teatral salienta outras problemáticas, em vários festivais.
quando são comparadas à tradução de um Para o diretor, Barrela6 e Bent são
romance ou conto. textos que descrevem “personagens que
A fluência do diálogo é algo que o texto estão numa situação social bastante
dramático parece exigir, visto que uma degradante” e ambos espetáculos apontam
peça é traduzida para ser encenada, não para a questão do confinamento, sendo o
lida como um processo individual de texto de Plínio Marcos, o espaço de uma
leitura, sem interferências e pausas, como cela; o de Sherman, o campo de
ocorre na leitura de um romance ou conto. concentração.
Houve uma preocupação da minha parte Para a concepção do espetáculo, Paulo
no que diz respeito a manter uma fluência Merísio buscou relacionar um espetáculo
do diálogo, já que a peça em questão que se relacionaria a Bertold Brecht, uma
pertence a uma vertente do teatro realista e vez que o diretor criou um narrador que
contemporânea na valorização do diálogo não existe no texto original de Sherman.
curto, preciso e “editado” para manter a Era importante para o diretor estabelecer
atenção do espectador na cena, bem uma relação entre o que o espectador
diferente dos textos produzidos por assistia, a representação de um momento
autores como Henrik Ibsen e August histórico e sua relação com o presente.
Strindberg, precursores do realismo na Dessa forma, o diretor acreditava que
dramaturgia. “uma leitura distanciada” colocaria a
Não são raros os casos em que textos “situação como um evento histórico do
são cortados ou simplificados para evitar qual o espectador não teria nada a ver”,
que o público se entedie. Esse aspecto da pois a plateia poderia se emocionar com o
fluência do diálogo é outro aspecto formal drama das personagens, mas enxergaria as
que só foi observado durante o processo questões apontadas pelo texto (homofobia,
de tradução. discriminação e isolamento) como eventos
Quanto à concepção do espetáculo, situados em um contexto histórico
em entrevista concedida para a pesquisa, o determinado (1934). Como a homofobia se
diretor e professor Paulo Merísio comenta tornou uma pauta importante, a escolha de
que havia uma vaga lembrança da Merísio em 2006 se torna mais do que
encenação dirigida por Roberto Vignati em
20

1981. A importância da temática atraiu o 6 Escrita em 1958 por Plínio Marcos, Barrela teve
diretor para o projeto, uma vez que ele sua estreia em 1º de novembro de 1959, em Santos.
Página

Após ficar proibida pela Censura Federal por 21


tinha interesse, a convite do Grupo anos, foi reescrita pelo autor e estreou em 1980, em
Confraria do Tambor, em dirigir um São Paulo.
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atual. O Brasil está nas primeiras serviu para salientar outros aspectos
colocações dos países em que a incidência informativos sobre a Alemanha da época e
de violência e assassinatos de LGBTs são o que ocorreria no Brasil, em termos de
maiores e tendem a aumentar, mesmo que homofobia. O diretor também afirma que
os direitos civis dessa população estejam não lhe interessava inserir Bent no
assegurados como o casamento e a lei contexto do gay drama por acreditar que
recente que criminaliza a homofobia no existiria uma limitação do gênero, embora
Brasil. a encenação da peça sugerisse elementos
A figura do narrador criada por Paulo de uma cultura gay como os gogoboys:
Merísio, que não existe no texto original, Ao inserir elementos extratextos como
surge como uma tentativa – a partir de um o narrador e os gogoboys, o diretor parece
recurso didático - de explicar o contexto descrever a necessidade de integrar o
histórico de Bent (1934) e relacioná-lo à passado e o presente para que o espectador
violência cometida contras homossexuais, busque uma relação entre o que ocorreu e
com dados atualizados sobre assassinatos o que acontece, mesmo que a opção do
de LGBTs em cidades como São Paulo e diretor tenha recebido críticas quando a
Rio de Janeiro. peça foi encenada no Festival de Ponta
Esse narrador remete à imagem de Grossa em 2006, uma vez que Bent, por
Adolf Hitler, sobretudo, a representação de pertencer a um teatro realista e dramático,
Charles Chaplin em O Grande Ditador não comportaria elementos brechtianos e a
(1940), quando o ator parodia Hitler ao releitura (o uso de referências explícitas à
brincar com o globo do mundo. O contemporaneidade como os gogoboys), pois
narrador procura situar o espectador com eles não dialogariam com o teatro de
interferências (depoimentos sobre Brecht. Para os avaliadores desse festival, o
homossexuais assassinados no Brasil) para uso do efeito de distanciamento e a
situar o público sobre o que ele assiste: um presença de um narrador não deveriam se
episódio histórico, portanto, situado numa misturar com um texto “convencional,
instância discursiva (aparentemente) dramático e realista”.
distanciada (1934), “mas que está aqui Esse hibridismo, mistura de linguagens
também” (palavras do diretor) ao descrever e concepções estéticas, parece ser o ponto
casos de intolerância e violência contra os de partida para a concepção do espetáculo
LGBTs. encenado em Uberlândia e diversas outras
Para Paulo Merísio, o narrador teria cidades de Minas Gerais e no já citado
uma função brechtiana de narrar, relatar, festival. O hibridismo pode ser que não
mas também como uma concepção “cênica agrade um espectador que espera uma
e poética” ao construir elementos que representação histórica e realista do que
21

dialogam com a plateia, uma vez que o ocorria em 1934, com as intervenções de
mesmo ator poderia representar diversos caráter épico emprestadas de Brecht. Os
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papeis desde o narrador até os soldados do teóricos do dramaturgo alemão também


campo de concentração. Essa narração podem se ressentir com a questão de uma
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dialética mais voltada para o dramático, É importante ressaltar que essa


que se imiscui com a dialética proposto homenagem a Luiz Martinez Correia
pelo teatro épico de Brecht, quando o também se deve às circunstâncias de sua
importante não é valorizar a dramatização morte ao ser vítima de um assassinato
do conflito, mais o questionamento que motivado por homofobia em dezembro de
fogem da dramaturgia tradicional. 1987. O narrador criado pelo diretor
O diretor ressaltou a importância de se ressalta o crime por homofobia nessa
estudar o período histórico para que essa montagem mineira de Bent. Isso se deve
relação sobre a contemporaneidade ao fato dos crimes homofóbicos serem
ocorresse, uma vez que os atores assistiram relativazados como um crime comum a
a filmes, documentários e fizeram heterossexuais, ou seja, não se leva em
pesquisas para compreender essas relações. conta que LGBTs são assinados apenas
A pesquisa histórica é algo também por existirem, o que não ocorre com
observado quanto ao preparo dos atores heterossexuais.
nas duas montagens analisadas por essa Paulo Merísio insere Pedaço de Mim7
pesquisa, já que essa faceta do nazismo, a de Chico de Buarque no espetáculo para
perseguição a homossexuais, é falar da repressão e da relação entre o
desconhecida e a importância de apontar cabaré (o clube de Greta), a relação com o
sua “ressurreição” na proliferação de teatro de Luiz Martinez Correia e as
grupos neonazistas que se posicionam circunstâncias da sua morte. Com versos
contra homossexuais, negros e nordestinos como “Oh, pedaço de mim
no contexto brasileiro atualmente. Oh, metade afastada de mim... (...) Leva o
Paulo Merísio homenageou Luiz vulto teu/Que a saudade é o que revés de
Martinez Correia, quando o narrador um parto. A saudade é arrumar o quarto do
descreve a importância dos espetáculos filho que já morreu”, Chico Buarque
Theatro Musical Brasileiro I e II (1985 e 1987) descreve a perda do amor, assim como o
que aliava uma perspectiva épica ao teatro drama de pessoas que perderam seus filhos
de variedades, quando a música tornou-se durante o ditadura militar no Brasil.
um dos instrumentos fundamentais da Embora tenha traduzido o texto,
linguagem cênica. A pesquisa de Luiz indicado bibliografia e enviado parte da
Martinez Correia concentrava-se na minha pesquisa, o diretor Paulo Merísio
releitura de dramaturgos críticos à teve total liberdade para trabalhar, sem
sociedade burguesa como Anton interferência da minha parte no que diz
Tchekhov ou releituras de peças como respeito a questionar as opções estéticas do
Titus Andronicus de William Shakespeare diretor. Durante o espetáculo, observou-se
aliada a uma crítica à violência na cidade do que o diretor valorizou o hibridismo
22

Rio de Janeiro, com recortes de jornais


como cenário numa montagem da peça em
Página

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Pedaço de Mim é uma composição de Chico
1975. Buarque para A Ópera do Malandro, lançado no
formato LP em 1977 e 1978.
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enquanto proposta cênica, daí, portanto, a acredita e defende enquanto leitura do seu
surpresa ao constatar a utilização de tempo; que pode ser questionado em
elementos do teatro épico de Brecht. trabalhos, ensaios e uma fortuna crítica.
Independente se o corpus do trabalho é
Considerações finais uma peça inserida num gênero específico, a
É provável que o teatro - assim como hipótese que eu defendo é que todo
qualquer outra forma de representação produto artístico deve desenvolver um
artística - não consiga dar conta de diálogo com o seu tempo para se
questões históricas ou consiga respondê-las historicizar e consequentemente apontar
sob uma perspectiva dialética na sua novos caminhos para uma compreensão
totalidade, mesmo porque o princípio da mais ampla da totalidade, das contradições
dialética é desenvolver um pensamento e da alienação provocada pela ideologia
que, mesmo coerente em seu dominante. Uma peça de teatro deve
encadeamento interno de ideias, pressupõe sustentar uma análise crítica e histórica ao
a possibilidade de sofrer uma refutação a descrever sua inserção na indústria cultural,
partir da discussão num fluxo contínuo de já que será impossível descrever qualquer
interpretação. O teatro pode ser visto produção artística como “obra de arte.”
como uma interpretação do que o autor

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo, 27 janeiro de 1981, p. 33.
GUZIK, Alberto. “O homossexualismo tratado com respeito”. In: Isto é. São Paulo: (214):
10, 28 jan. 1981.
MAGALDI, Sábato. “Bent, sem bandeiras além da dignidade humana”. In: Jornal da Tarde.
São Paulo. 13 fev. 1981, p. 16.
SINFIELD, Alan. Gay and After. London: Serpent’s Tail, 1998.
SHERMAN, Martin. Bent. New York: Applause Theater, 1998.
TORSTEN Graff. “Gay Drama and Queer Performance”. In: Amerikastudien / American
Studies. Vol. 46, No. 1, Queering America (2001), pp. 11-25.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify,
2003.
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

i
Professor do PPGL - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Amazonas - UFAM, Manaus-AM, Linha de Pesquisa: Literaturas em línguas
estrangeiras, literatura comparada e diálogos Brasil – louis.silva1974@gmail.com

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