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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

ANÁLISE MUSICAL II

APOSTILA

PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS


***
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

ANÁLISE MUSICAL II

APOSTILA

PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS

Porto Alegre, março de 2007


***
SUMÁRIO

1. CANTO GREGORIANO ......................................................................................................................1


1.1. SISTEMA MODAL ECLESIÁSTICO........................................................................................................1
1.2. MUSICA FICTA ...................................................................................................................................2
2. ORGANUM ............................................................................................................................................5
2.1. ORGANUM PARALELO .......................................................................................................................5
2.2. ORGANUM LIVRE ...............................................................................................................................6
2.3. ORGANUM MELISMÁTICO ..................................................................................................................7
2.4. ORGANUM DA ESCOLA DE NOTRE DAME...........................................................................................8
3. MOTETO MEDIEVAL .......................................................................................................................10
3.1. MOTETO NA ARS ANTIQUA..............................................................................................................10
3.2. ARS NOVA – MOTETO ISORRÍTMICO ................................................................................................12
4. POLIFONIA RENASCENTISTA.......................................................................................................26
4.1. MÚSICA VOCAL SACRA ....................................................................................................................26
4.2. SISTEMA MUSICAL DA RENASCENÇA ...............................................................................................39
4.3. MÚSICA VOCAL PROFANA ................................................................................................................44
4.4. CARACTERÍSTICAS DA MÚSICA VOCAL POLIFÔNICA DA RENASCENÇA .............................................49
4.5. MÚSICA POLIFÔNICA INSTRUMENTAL ..............................................................................................49
5. CONTRAPONTO MODAL ................................................................................................................52
CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA DO CONTRAPONTO MODAL ...........................................................52
6. CONSIDERAÇÕES SOBRE A FUGA...............................................................................................60
6.1. A FUGA ..........................................................................................................................................60
6.1.1. Definição dos elementos da fuga ............................................................................................62
6.1.2. As seções da fuga ....................................................................................................................65
6.2. ANÁLISES DA FUGA N° 2 DO CRAVO BEM TEMPERADO .....................................................67
6.2.1. Análise de Richardson ............................................................................................................67
6.2.2. Análise de Benjamin ...............................................................................................................76
6.3. GLOSSÁRIO DE TERMOS APLICADOS À FUGA.........................................................................81
7. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRELÚDIO.....................................................................................83
7.1. ASPECTOS ELABORADOS NO PRELÚDIO .................................................................................83
7.2. TIPOLOGIA DE PRELÚDIOS NA OBRA DE J. S. BACH ..............................................................84
8. BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................................85
1

1. CANTO GREGORIANO

O canto gregoriano é o resultado da compilação dos diversos tipos de canto litúrgico


realizada a cargo do Papa Gregório I (590-604), como parte da reforma da liturgia
romana no final do século VI. O sistema de organização das alturas do canto gregoriano
foi ordenado no tratado Musica Enchiriadis, no século IX.
As linhas melódicas do canto gregoriano caracterizam-se por serem essencialmente
diatônicas, com utilização exclusiva das notas naturais. Neste sistema, as notas si
natural e si bemol são consideradas como variantes diatônicas da mesma nota. A
estrutura, em sua totalidade, é organizada segundo um sistema de modos eclesiásticos,
que se dividem em dois grupos de quatro modos autênticos e quatro modos plagais.

1.1. Sistema Modal Eclesiástico1

Quadro 1..1: Modos Eclesiásticos.

Para se definir em qual modo se encontra determinada melodia, é necessário analisá-la


de acordo com as quatro principais características modais. Estas são:
nota final (finalis) – é a nota com a qual toda a melodia finaliza, coincidindo
geralmente com sua primeira nota. É o centro em torno do qual as outras notas do modo
gravitam.

Está indicada no Quadro 1.1 acima como: w


nota de recitação (confinalis, tuba ou tenor ) – nota em torno da qual a melodia
se movimenta, sendo a principal nota melódica do modo.
Está indicada no Quadro 1.1 acima como: „

1
Para cada modo há dois nomes: 1. em latim – Protus authentus (primeiro autêntico), Protus plagalis
(primeiro plagal), etc. – primeiras referências datam do séc. IX; 2. em grego – Dórico, em textos dos
séculos IX e X, a partir de interpretações errôneas de textos de Boecio (✝524) .
2

extensão melódica (ambitus) – o âmbito da linha melódica do canto gregoriano


abrange geralmente uma oitava, podendo ser ampliado em até um tom abaixo ou dois
tons acima;
modelos melódicos – são fórmulas melódicas características de cada modo, que
são utilizadas para enfatizar suas características expressivas. O exemplo abaixo refere-
se a um dos modelos melódicos do modo dórico, segundo Johannes Affligemensis (séc.
XII):

Exemplo 1.1: modelo melódico do modo dórico.

Os modos autênticos e plagais têm a mesma finalis, porém distinguem-se quanto ao


ambitus e apresentam diferentes fórmulas melódicas. A posição da confinalis é distinta:
• nos modos autênticos, encontra-se à distância de quinta justa da finalis, com
exceção do modo frígio, no qual a confinalis recairia sobre a nota si (considerada
na Idade Média como sendo diabolus in musica), por esta razão a confinalis é a
nota mais próxima de si, neste caso, a nota dó;
• nos modos plagais, encontra-se à distância de terça (maior ou menor) da finalis,
com exceção do modo hipomixolídio, no qual a confinalis seria a nota si, sendo
transportada, então, à nota dó, pela mesma razão anterior.

É possível determinar que a melodia abaixo, Benedicamus Domino, está composta


no modo hipodórico, devido às seguintes características: 1. inicia e termina na nota ré
(finalis); 2. a primeira frase tem como nota mais aguda a nota fá, as duas frases finais
iniciam com a nota fá, que é a nota que gera movimento melódico (confinalis); 3. a
extensão (ambitus) da melodia estende-se de lá1 a lá2; 4. a melodia inicia por um
modelo melódico caraterístico do modo hipodórico (suas primeiras quatro notas: ré-lá-
dó-ré).

Exemplo 1.2: canto gregoriano – Benedicamus Domino

1.2. Musica Ficta


Musica ficta (do latim, música falsa) é a utilização de notas alteradas na estrutura
essencialmente diatônica dos modos eclesiásticos. Esta denominação provém do fato de
que estas notas eram realizadas na prática, porém não eram escritas. Estas ‘notas falsas’
tornaram-se cada vez mais freqüentes na música sacra e profana a partir do século XIII,
sendo consideradas como estando na origem da dissolução do sistema modal
eclesiástico, que ocorreu nos século XVI e XVII. Os editores atuais de música antiga,
escrevem a musica ficta com os sinais de alteração escritos acima das notas que
consideram que devem ser alteradas.
Os casos mais comuns de musica ficta são os seguintes:
Modos Dórico/Hipodórico:
3

• alteração da nota si para si bemol, por duas razões:


1. com o intuito de evitar o trítono (diabolus in musica) fá-si ou si-fá (especialmente no
modo Hipodórico, em que a nota fá é a confinalis).

Exemplo 1.3: Missa LU IX , Kyrie (modo dórico)

2. para bordar a confinalis, no modo dórico, dando ênfase à nota de recitação.

Exemplo1.4: Missa LU XI , Kyrie (modo dórico).

• alteração ascendente do VII grau do modo, para gerar a sensível dó#.

Exemplo 1.5: Jacopo da Bologna (séc. XIV), madrigal Fenice fù (modo dórico).

Modos Frígio/Hipofrígio:
Não há alterações.

Modos Lídio/Hipolídio:

• alteração da nota si para si bemol, para evitar o trítono com relação à finalis do
modo.

Exemplo 1.6: responsório Verbum caro (modo hipolídio).


4

Modos Mixolídio/Hipomixolídio:
• alteração ascendente do VII grau, para gerar a sensível fá#.

Exemplo 1.7: William Byrd (1543-1623), moteto Tu es Petrus (modo mixolídio).

As alterações com função de gerar sensíveis foram utilizadas, especialmente a


partir do século XIII, para polarizar os diferentes graus dos diversos modos, não
somente a finalis. No exemplo abaixo, ocorre a polarização simultânea da finalis e da
confinalis do modo dórico (em sol), gerando quintas ou quartas paralelas alcançadas
através de um artifício chamado duplas sensíveis. Este tipo de cadência, denominado
cadência de Landini, foi amplamente utilizado pelos compositores da Ars Nova, entre
eles, Francesco Landini (daí o seu nome dado à cadência).

Exemplo 1.8: Francesco Landini, balatta Non avrà ma’ pietà.


5

2. ORGANUM

O termo organum originou-se da palavra grega organo, que significa


instrumento. Musicalmente, na Idade Média, passou a significar: ‘arte de combinar
melodias’. A primeira referência ao organum foi encontrada no tratado do século IX
Musica Enchiriadis, que descreve o canto paralelo em oitavas, quitas ou quartas abaixo
do canto gregoriano. A voz que realiza a melodia gregoriana original, chamada de vox
principalis (ou cantus, daí vem a origem do termo cantus firmus a partir do século
XIII), encontra-se escrita acima da vox organalis, aquela que realiza o organum, ou
seja, o contraponto. O organum é considerado como estando nas origens da polifonia da
música ocidental.
Ao longo dos séculos IX a XII desenvolveram-se diversos tipos de organa
(plural de organum). Estes são os seguintes:

2.1. Organum Paralelo


Encontrado a partir do século IX. A vox organalis é escrita em movimento
constantemente paralelo à voz de cantus. Há quatro tipos de organum paralelo:
• organum à oitava – a vox organalis está disposta à oitava inferior do canto
gregoriano;
• organum à quinta – a vox organalis está colocada à quinta inferior do canto
gregoriano;
• organum à quarta – a voz de tenor está escrita à quarta inferior do canto gregoriano,
a vox organalis não se limita a duplicar o canto gregoriano, mas é modificada
sempre que é necessário evitar o trítono, iniciando a polifonia prorpriamente dita,
isto é, a independência melódica entrre as vozes. Ulrich (1987, p. 199) denomina
este processo de polifonia artificial;
• organum composto – escrito em mais de duas vozes, combinando os intervalos de
quartas, quintas e oitavas em movimentos paralelos.

Abaixo, exemplos de organum paralelo:


6

Exemplo 2.1: Musica Enchiriadis (séc. IX), diferentes tipos de organum paralelo.

2.2. Organum Livre


Encontrado em exemplos desde o século XI. Os intervalos perfeitos (quarta,
quinta e oitava) são livremente utilizados para realizar a linha melódica que se
contrapõe ao canto gregoriano original. A vox organalis passa a ser escrita acima da vox
principalis.
O exemplo abaixo é um organum livre:

Exemplo 2.2: organum livre sobre Cuncti potens.

No organum livre pode haver, ocasionalmente, ocorrência de intervalos imperfeitos


(terças ou sextas). A livre utilização de movimentos paralelos, diretos, oblíquos e
7

contrários na relação entre as vozes é um passo importante para a conquista da


independência das partes que formam o contraponto. A diafonia de Guido d’Arezzo (c.
995-1050), na qual as vozes se relacionam preferencialmente por movimento contrário,
também desempenhou importante papel no desenvolvimento da polifonia medieval.

2.3. Organum Melismático


Encontrado desde o início do século XII. Cada nota da melodia gregoriana
original é alongada para a realização da vox principalis. Sobre esta, a vox organalis
realiza amplos melismas2 com utilização de todos os intervalos diatônicos na relação
entre as vozes. As limitações intervalares ocorrem somente nos inícios e finais de frases,
que devem conter exclusivamente intervalos perfeitos, especialmente a oitava. Apesar
de ser considerado como consonância neste período, o intervalo de quarta raramente é
encontrado em inícios e finais de frases.
No exemplo abaixo, ocorrem todos os intervalos diatônicos possíveis entre as
partes, inclusive o intervalo de trítono aparece no final do primeiro pentagrama.

Exemplo 2.3: organum melismático sobre Cuncti potens.

2
Melismas são movimentos melódicos em que cada sílaba do texto é realizada por um grupo de notas. No
canto gregoriano, chama-se canto melismático aquele em que ocorrem diversos melismas em uma única
melodia; o exemplo mais comum de canto melismático ocorre nas melodias para o texto Alleluia.
8

A característica mais importante do organum melismático para o


desenvolvimento posterior da polifonia é a independência rítmica entre as partes. Desta
forma, a polifonia já está plenamente estabelecida nesta espécie de organum, pois existe
independência melódica e rítmica na relação entre as vozes que constituem a textura
musical.

2.4. Organum da Escola de Notre Dame


Característica da segunda metade do século XII, a Escola de Notre Dame3 conta
com os primeiros compositores conhecidos da música polifônica européia: Leoninus e
Perotinus Magnus. A principal diferença existente no organum de Notre Dame com
relação aos diferentes tipos de organum anteriores é a notação rítmica, que permitiu que
texturas com mais de duas partes fossem concebidas, com ênfase na independência
rítmico-melódica na relação entre três ou quatro vozes.
A maneira que os músicos de Notre Dame encontraram para desenvolver
diferentes padrões rítmicos foi a utilização de estruturas métricas existentes na prosódia
da poesia grega e latina. O resultado é atualmente conhecido como modos rítmicos da
Escola de Notre Dame.
Rítmica Modal – modos rítmicos oriundos da prosódia greco-latina:
1º. Troqueo: forte-fraco: − ∪ ;
2º. Iambo: fraco-forte: ∪ − ;
3º. dáctilo: forte-fraco-fraco: − ∪ ∪ ;
4º. anapesto: fraco-fraco-forte: ∪ ∪ − ;
5º. espondeo: forte-forte: − − ;
6º. tríbraco: fraco-fraco-fraco: ∪ ∪ ∪ .

Na prosódia clássica havia, ainda, mais um modo, que não foi utilizado pela
Escola de Notre Dame (anfíbraco: fraco-forte-fraco: ∪ − ∪ ).

Abaixo, Benedicamus Domino, conhecido organum da Escola de Notre Dame,


atribuído à geração de Leoninus. Este é um organum duplum, pois está escrito a duas
vozes4.

3
O nome deriva da Catedral de Notre Dame, em Paris, que foi construída a partir 1163 e inaugurada em
1182.
4
Há, também, organum triplum, a três vozes, e organum quadruplum, a quatro vozes. Em geral, os
organa a três ou quatro vozes eram realizados com base no acréscimo de uma ou duas vozes a algum
organum duplum preexistente.
9

Exemplo 2.4: Leoninus (?), organum sobre Benedicamus Domino.

Como a Escola de Notre Dame passou a escrever organa a três e quatro vozes,
as denominações tradicionais (vox organalis e vox principalis) foram abandonadas. Em
substituição, passaram a utilizar a seguinte terminologia para as partes:
• tenor – voz que sustenta o canto gregoriano, encontra-se geralmente abaixo das
outras vozes;
• duplum – contraponto escrito imediatamente acima do tenor;
• triplum – linha melódica escrita acima do duplum
• quadruplum – linha melódica escrita acima do triplum;
Devido ao fato de que todas as partes eram escritas para vozes masculinas,
gerando um registro geral de alturas relativamente estreito, ocorrem muitos cruzamentos
de vozes no organum com três ou quatro vozes. Por esta razão, nem sempre a voz que
está escrita acima, soa realmente no registro superior, podendo ocorrer, por exemplo,
que certos trechos da parte de triplum estejam escritos em um registro mais grave do
que o duplum.
Uma seção importante no organum da Escola de Notre Dame é a clausula, que
ocorre nas proximidades do final das peças. Na clausula, a voz de tenor (aquela que
mantém o cantus) passa a se movimentar mais rapidamente, apresentando estrutura
rítmica repetitiva e definida. Em outras palavras, são aplicados padrões rítmicos modais
também à voz de tenor, que passa a se movimentar com a mesma agilidade que as
outras vozes. No Benedicamus Domino, a clausula principia no início da palavra
‘domino’ (c. 54) e estende-se até a última nota atacada pelo tenor (c. 68).
Com o tempo, as clausulae (plural de clausula) passaram a ser escritas como
peças musicais independentes dos organa nos quais se originaram. Perotinus foi um dos
primeiros músicos a compor clausulae como peças avulsas.
A importância da clausula para o desenvolvimento da polifonia reside,
principalmente, em dois aspectos:
1. todas as vozes que fazem parte da textura polifônica passam a ser tratadas
com a mesma importância rítmica;
2. deu origem à forma mais importante da música modal polifônica: o moteto.
10

3. MOTETO MEDIEVAL

3.1. Moteto na Ars Antiqua


Com base nas clausulae do organum de Notre Dame, generalizaram-se duas
práticas no decorrer do século XIII:
• composição de clausulae como peças independentes;
• acréscimo de novos textos às vozes superiores – estes textos eram,
inicialmente, bíblicos em latim, posteriormente foram acrescentados textos
profanos em francês ou italiano, levando a música polifônica para fora dos
domínios da Igreja;
O próprio termo ‘moteto’5 surge da aplicação de novos textos à música já
existente. A voz de duplum passa a ser chamada de motetus (voz à qual um novo texto
foi acrescentado6). Desta maneira, quando um músico escrevia uma clausula
independente e acrescentava um texto diferente às vozes de duplum, triplum ou
quadruplum, na realidade já estava realizando um moteto.
As principais características do moteto da Ars Antiqua são:
• politextualidade – aplicação simultânea de diferentes textos, em línguas
diferentes (latim, francês e italiano) nas diversas vozes;
• música profana – o moteto deixa de ser um gênero de música sacra e
converte-se em música secular;
• regras de contraponto – surgem as primeiras regras para a combinação entre
as vozes, visando o controle das dissonâncias, que eram tratadas como notas
de passagem ou bordaduras. Em motetos a três ou quatro vozes, cada parte
deveria estar em consonância somente com uma das outras, podendo ser
livremente composta com relação às demais;
• emancipação de terças e sextas – estes intervalos passam a ser considerados
como consonâncias imperfeitas, podendo aparecer no decorrer de frases,
raramente no início e jamais no final;
• música vocal e instrumental – as vozes de motetus (duplum, triplum e
quadruplum) passam a ser cantadas por solistas e a voz de tenor (cantus),
que no organum era um canto gregoriano com seus valores alargados, passa
a ser instrumental (o cantochão permanece sendo utilizado como cantus
firmus).

Tipos de moteto
moteto simples a duas vozes duplum (motetus, solista vocal)
tenor (instrumental)
moteto duplo a três vozes triplum (solista vocal)
duplum (solista vocal)
tenor (instrumental)
moteto triplo a quatro vozes quadruplum (solista vocal)
triplum (solista vocal)
duplum (solista vocal)
tenor (instrumental)
Quadro 3.1: tipos de moteto da Ars Antiqua.

5
O termo vem do francês mot (palavra).
6
Da mesma forma, as vozes de triplum e quadruplum também eram chamadas de motetus.
11

No decorrer do século XIII, o moteto vai-se tornando independente da clausula


que lhe deu origem. São compostas peças inteiramente novas, onde o único elemento
que se mantém da época de Notre Dame é a utilização do canto gregoriano na voz de
tenor como cantus firmus para novas composições. Abaixo, está um exemplo de moteto
anônimo do século XIII, extraído do Codex de Bamberg.
12

Ex. 3.1: Codex de Bamberg (séc. XIII), O mitissima.

3.2. Ars Nova – Moteto Isorrítmico


O termo Ars Nova surgiu a partir do tratado escrito por Philippe de Vitry (1291-
1361), em 1322, intitulado Ars Nova Musicae (A Nova Arte da Música). A expressão
Ars Antiqua surgiu, em oposição à expressão Ars Nova, para designar o período
anterior a este.
O sistema mensural desenvolvido por Vitry tem sua origem no século XIII. É
uma ampliação do sistema proposto por Franco de Colônia, em seu tratado Ars Cantus
Mensurabilis (A Arte do Canto Mensural, 1280), que propunha a divisão proporcional
dos valores rítmicos em grupos de três (divisão ternária) para substituir a rítmica modal
da Escola de Notre Dame. Este sistema mensural dos séculos XIII e XIV é o precursor
do sistema de divisão rítmica atual.
As principais contribuições do tratado de Vitry são as seguintes:
• acréscimo de uma figura rítmica, a semínima, ao sistema anterior, que era composto
por longa, breve, semibreve e mínima;
• introdução da divisão binária;
• utilização de um sistema de sinais colocados junto à clave para indicar se a divisão
era binária ou ternária (precursor das atuais fórmulas de compasso);

Com o sistema mensural, as possibilidades de combinações rítmicas ampliaram-


se consideravelmente, levando à necessidade de princípios definidos para a organização
da estrutura rítmica. O fundamento para a estruturação rítmica passa a ser a isorritmia,
ou seja, a composição de uma série rítmica com a extensão de, aproximadamente, uma
frase musical que será repetida na voz de tenor durante toda a música. Este padrão
rítmico recebe o nome de talea (do francês taille: corte, esquema métrico de um
13

poema). Em geral, somente a voz de tenor é isorrítmica, mas podem ser aplicadas
taleae7 às outras vozes.
Com base no conceito de utilização da talea como uma série rítmica, alguns
músicos passaram a utilizar, em seus motetos, uma série de alturas, isto é, um padrão
melódico repetido na voz de tenor, denominado color (do latim: cor, ornamento).
Além da voz de tenor, torna-se importante a elaboração de uma parte que se
contrapõe ao tenor e está escrita abaixo deste, chamada de contratenor. O tenor e o
contratenor apresentam a mesma tessitura e cruzam constantemente. Assim, não é mais
somente uma voz (o tenor) que serve de base para a composição, mas o contraponto
entre as duas vozes (tenor e contratenor) será o fundamento sobre o qual o compositor
irá elaborar as outras partes. As partes de tenor e contratenor são, geralmente,
instrumentais. O tenor continua sendo elaborado a partir do canto gregoriano (cantus
firmus). Um excelente exemplo de peça construída sobre esta base é a Missa de Notre
Dame de Guillaume de Machaut.
O moteto isorrítmico é aquele construído com base nos processos descritos
acima. Suas principais características são:
• politextualidade – o significado da poesia torna-se, muitas vezes, ininteligível pela
utilização simultânea de diferentes textos em diversas línguas e pela ruptura com
relação à métrica da poesia (muitas vezes, as frases musicais quebram as palavras,
deixando sílabas da mesma palavra em frases diferentes);
• cruzamento constante entre as vozes;
• utilização freqüente de sensíveis duplas, gerando as cadências de Landini;
• utilização mais ampla de consonâncias imperfeitas;
• tenor é geralmente mais lento do que as outras vozes;
• utilização de talea e color na voz de tenor – muitos motetos possuem uma segunda
parte em que os valores rítmicos da talea são diminuídos, tornando o tenor mais
movido no final da música. Podem ser utilizadas taleae nas outras vozes (duplum ou
triplum);
• utilização de seções em hoquetus (do latim, soluço) – o hoquetus já existe desde a
época da Escola de Notre Dame, consistindo em trechos nos quais as vozes
superiores apresentam contraponto truncado, com ritmo complementar rápido entre
as partes (com alternância de pausas de maneira que sempre que uma voz tem pausa,
a outra canta). Com o tempo, o hoquetus deixou de ser um trecho de uma peça
polifônica para converter-se em um gênero instrumental independente.

Abaixo, está sintetizada a análise de Baur (1985, p. 76-85) do moteto Bone


pastor de Machaut:
A melodia da voz de tenor foi tomada do segmento ‘bone pastor’, do canto
gregoriano Lauda Sion. Esta melodia é repetida, como color, no moteto de Machaut a
cada 48 compassos. A melodia completa é dada abaixo:

Ex. 3.2: canto gregoriano Lauda Sion, utilizado por Machaut como cantus firmus.

7
Plural de talea.
14

A color é organizada ritmicamente a partir da seguinte talea:

Ex. 3.3: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, talea.

O processo inicial realizado pelo compositor foi combinar a talea e a color em


uma única linha de tenor.

Ex. 3.4: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, tenor.

Como o número de notas da color é o dobro do número de unidades rítmicas da


talea, é necessário repetir esta última a cada 24 compassos. Desta forma, há duas
colores e quatro taleae no decorrer dos primeiros noventa e seis compassos da peça. No
compasso 97 ocorre uma mudança na voz de tenor: os valores originais da talea são
substituídos por durações que são exatamente a metade da original, ou seja, ocorre uma
diminuição rítmica na talea.

Ex. 3.5: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, diminuição da talea.


O restante da peça é construído como no início: com quatro taleae (em
diminuição) e duas colores. A estrutura completa do tenor isorrítmico está apresentada
no quadro abaixo:

96 compassos 46 compassos

colores: 48 48 24 22

taleae: 24 24 24 24 12 12 12 10
Quadro 3.2: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, estrutura isorrítmica geral.
15

Esta estrutura proporcional (2/1) serve como base para a organização de toda a
peça, o que é típico dos motetos deste período. No ponto em que se inicia a diminuição
da talea, no compasso 97, começa um processo de repetição de padrões rítmicos nas
vozes de duplum e triplum, ou seja, são aplicadas taleae também a estas vozes. Se forem
comparados os compassos 97-108 aos compassos 109-120, percebe-se imediatamente a
similaridade (há pequenas diferenças somente nos compassos 102 e 114).

Ex. 3.6: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, talea nas vozes duplum e triplum.

Quando todas as vozes de um moteto são organizadas por meio de técnicas


isorrítmicas, este chama-se moteto pan-isorrítmico. Na peça Bone Pastor, em que as
vozes superiores não apresentam colores, toda a segunda parte do moteto é pan-
isorrítmica. A primeira seção, compassos 1-96, é parcialmente isorrítmica. Uma
insinuação de repetição rítmica pode ser percebida nas passagens que iniciam nos
compassos 25 e 49, embora não contendo repetição rítmica literal, estas passagens
certamente implicam em pan-isorritmia.
16

Ex. 3.7: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, isorritmia no duplum e triplum.

A técnica de sensíveis duplas é amplamente utilizada por Machaut. Abaixo, são


apresentados dois exemplos característicos, em que as duas vozes superiores resolvem
por semitom ascendente, enquanto a voz inferior se movimenta por tom inteiro
descendente. No exemplo 3.8a, as sensíveis são naturais; no exemplo 3.8b, as sensíveis
são alteradas (musica ficta)

Ex. 3.8: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, duplas sensíveis.

Além das típicas cadências com duplas sensíveis que ocorrem por movimento
paralelo entre as vozes (cadências de Landini), Machaut emprega outro tipo de cadência
que iria se tornar comum somente a partir do século XVIII (uso do que seria chamado
posteriormente de acorde de sexta italiana). Neste caso, as duas sensíveis são resolvidas
17

por movimento contrário na mesma nota, à distância de oitava (nota lá, no exemplo
abaixo).

Ex. 3.9: duplas sensíveis por movimento contrário.

Na peça de Machaut, este processo ocorre entre os compassos 56-58.

Ex. 3.10: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, duplas sensíveis por movimento contrário.
18

Abaixo, foram colhidos alguns segmentos do moteto Bone Pastor para


demonstrar certas técnicas e procedimentos característicos do moteto isorrítmico.
• cruzamento de vozes:

Ex. 3.11: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, cruzamento de vozes.

• utilização regular de consonâncias imperfeitas (o que gera, em um nível secundário,


estruturas triádicas – neste caso, as notas dó-mi-sol da linha do triplum):

Ex. 3.12: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, utilização de intervalos imperfeitos.

No exemplo acima, o intervalo mais recorrente, tanto melodicamente em cada


voz quanto verticalmente entre as vozes, é o intervalo de terça.

• politextualidade:

Ex. 3.13: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, politextualidade.


19

• hoquetus:

Ex. 3.14: G. de Machaut, moteto Bone Pastor, trecho em hoquetus.

O seguinte exemplo apresenta o moteto Bone Pastor de Machaut na íntegra.


20
21
22
23
24
25

Ex. 3.15: G. de Machaut, moteto Bone pastor.


26

4. POLIFONIA RENASCENTISTA

A forma vocal polifônica mais importante da Renascença é o moteto, que retorna


à liturgia desde a Missa de Notre Dame, de Machaut. A transição do moteto medieval
ao renascentista ocorre a partir da Guerra dos Cem Anos (meados do séc. XIV a meados
do séc. XV) entre França e Inglaterra. Os músicos franceses, em contato com os
ingleses na guerra, conheceram uma forma de canto comum nas Ilhas Britânicas desde o
século XIII, o fauxbourdon (falso bordão8), que consiste na sucessão de intervalos de
terças e sextas em movimento paralelo a partir de um cantus firmus disposto como linha
de baixo.

Ex. 4.1: fauxbourdon Beata viscera (séc. XIV).

4.1. Música vocal sacra


No Renascimento, o moteto mantém-se como a forma e gênero musical mais
elaborado, vindo a influenciar todos os gêneros de música vocal e instrumental. A partir
da Inglaterra, a nova estrutura do moteto renascentista chega à França, aos Países
Baixos, à Itália, à Alemanha, a Espanha e Portugal, ultrapassando as fronteiras
européias e chegando a outros continentes através das grandes navegações.
As principais características do moteto renascentista são:
• estilo vocal puro – na música sacra renascentista desenvolve-se o canto polifônico a
cappella, sem partes puramente instrumentais (os instrumentos, geralmente de
sopro, podem ser utilizados para dobrar ou completar partes vocais);
• volta do moteto à liturgia – o moteto sacro torna-se, na Renascença, o gênero
musical mais importante que influencia toda a música, desde canções profanas até
danças instrumentais;
• uso de imitações – o cantus firmus não permanece fixo em uma única voz, mas
percorre todas as vozes que compõem a textura musical, através da utilização de
técnicas imitativas;

8
O termo ‘falso bordão’ originou-se da utilização constante de intervalos de terças e sextas com relação
ao baixo. Estes intervalos, segundo os princípios teóricos da música continental européia, por serem
‘imperfeitos’, somente poderiam ser realizados em pontos específicos e não no decorrer de toda a música.
Quando os franceses ouviram o bordão se movimentando o tempo inteiro com base nos intervalos
imperfeitos, chamaram-no de ‘falso’. A prática britânica de canto em terças e sextas deu origem àquilo
que, posteriormente, seria chamado de tríade.
27

• canti firmi9 de várias origens – as melodias que servem de base para a composição
de motetos não são mais retiradas somente da tradição gregoriana, porém há
diversas obras em que o cantus firmus é obtido a partir de melodias profanas
conhecidas, inclusive para a composição de missas10, ou é criado pelo próprio
compositor;
• politematismo – cada seção do moteto renascentista apresenta um novo tema
(sujeito, ou ponto de imitação, retirado de um fragmento da melodia que serve como
cantus firmus) que é imitado por todas as vozes. Quando o processo de imitação é
completado, inicia-se a nova seção com um novo fragmento melódico a ser imitado;
• texto único – volta à utilização de um só texto, em latim, em todas as vozes;
• separação das vozes em planos distintos – os cruzamentos entre as vozes ficam cada
vez mais raros na música renascentista e as vozes tornam-se cada vez mais
independentes entre si. Na segunda metade do século XVI, as vozes já estão bem
definidas com seu registro claramente distinto;
• emancipação dos intervalos imperfeitos – as consonâncias imperfeitas passam a ser
a base intervalar para a estrutura harmônica da música renascentista, o que gera, no
século XVI, o conceito de tríade como sendo a combinação vertical mais natural
entre as partes. Este princípio leva, na segunda metade do século XVI, à utilização
abundante de acordes perfeitos, formados especialmente sobre o II grau, o III grau e
o VI grau das escalas modais (a esta estrutura harmônica costuma-se chamar de
caráter modal eclesiástico);
• tratamento rigoroso das dissonâncias – se, por um lado, as consonâncias imperfeitas
tornaram-se a base para a música renascentista, por outro lado, as dissonâncias
passam a ser evitadas. Foram desenvolvidas regras e técnicas de contraponto
extremamente sofisticadas para que as dissonâncias fossem utilizadas da forma mais
suavizada possível (toda a dissonância deveria ser preparada e resolvida como
consonância – nota de passagem, bordadura ou suspensão);
• sistematização da escrita a quatro vozes11 – devido ao uso da imitação, que faz com
que o cantus firmus percorra todas partes, não há mais distinção hierárquica quanto
à importância das diversas vozes, pois todas passam a ter o mesmo valor na
estrutura polifônica imitativa;
• forma bipartida – muitos motetos da Renascença apresentam a estrutura dividida em
duas partes, chamadas na época de prima pars e secunda pars. a primeira parte é
geralmente polifônica em métrica binária, sendo, a segunda parte, homofônica em
métrica ternária (influência das danças na música vocal sacra);
• rítmica fluida e contínua – o ritmo torna-se mais fluido em comparação com a
música da Ars Nova, voltando às características de maleabilidade rítmica do canto
gregoriano;

A análise do moteto Sicut cervus de Palestrina demonstra de modo eficaz


algumas das caraterísticas gerais do moteto mencionadas acima. O aspecto mais
importante em grande escala é a divisão entre prima pars (c. 1-58) e secunda pars (c.

9
Plural de cantus firmus.
10
As missas construídas a partir de canti firmi profanos tornaram-se conhecidas pelo nome das canções
que lhes deram origem. Uma das melodias mais utilizadas pelos compositores renascentistas foi a canção
L’Homme armé. São amplamente conhecidas as missas denominadas L’Homme armé de Dufauy,
Ockeghem, Obrecht, Josquin, Morales e Palestrina.
11
As vozes passam a ser divididas em soprano (do latim sopranus, superior), alto (de contratenor alto, ou
seja, voz que se contrapõe ao tenor acima deste), tenor e baixo (de contratenor baixo, isto é, voz que se
contrapõe ao tenor abaixo deste).
28

59-117) para reunir as diversas seções em duas partes distintas. A análise da prima pars
demonstra que há três seções nesta parte. Estas seções estão divididas, conforme a
segmentação do texto, da seguinte maneira:
• primeira seção – Sicut cervus desiderat ad fontes aquarum (c. 1-25),
• segunda seção – ita desiderat (c.23-44)
• terceira seção – anima mea ad te, Deus12 (c. 40-58)

O entrelaçamento entre as seções pode ser claramente percebido ao serem


definidos o início e final de cada seção: a primeira seção estende-se do tenor do
compasso 1 até o contralto do compasso 25; a segunda seção já começa no baixo do
compasso 23, antes de finalizar a seção anterior, e se completa no baixo do compasso
44; a terceira seção inicia no soprano do compasso 40 e finaliza, em todas as vozes, no
compasso 58. Como a terceira seção coincide com o final da primeira parte, todas as
vozes terminam concomitantemente.
O cantus firmus da primeira seção é apresentado pela voz de tenor, que se
desenvolve com base nos processos imitativos a partir deste primeiro tema.

Ex. 4.2: G. P. Palestrina, moteto Sicut cervus, exposição do cantus firmus da primeira seção, no tenor.

Característica do moteto renascentista é o fato da imitação já ter início antes do


sujeito ser apresentado por completo na entrada anterior. Assim, enquanto o tenor
completa a apresentação do cantus firmus, a voz de contralto já realiza a imitação a
partir do terceiro compasso. A voz de soprano inicia sua imitação do cantus firmus, com
relação à entrada do contralto, em um ponto anterior à entrada do contralto em
comparação com o tenor, isto é, na metade do segundo compasso após a entrada da voz
de contralto. O baixo entra, com relação ao soprano, na mesma proporção da entrada do
contralto com relação ao tenor, ou seja, dois compassos depois.
Outro aspecto importante na entrada das vozes é o deslocamento métrico das
entradas do cantus firmus nas diversas partes. No moteto Sicut cervus, o tenor e o
contralto iniciam suas entradas na parte principal do compasso. As vozes de soprano e
baixo realização as imitações a partir da metade do compasso (parte secundária). A
imitação do segmento inicial do cantus firmus, e não do tema completo, é um processo
típico das técnicas imitativas da música renascentista. Nos exemplos que seguem, a
porção do tema que é imitada pelas vozes (denominada ponto de imitação) está indicada
entre colchetes. As imitações são realizadas no contralto (c. 3), soprano (c. 4) e baixo (c.
6), respectivamente (as notas indicadas por setas são variantes das notas reais do cantus
firmus, modificadas devido às necessidades geradas pelas técnicas de contraponto).

12
O texto significa: “Assim como o cervo deseja as águas da fonte / também deseja / minha alma a ti,
Deus”.
29

Ex. 4.3: G. P. Palestrina, moteto Sicut cervus, imitações do cantus firmus na exposição da primeira seção.

O quadro abaixo resume a ordem de entradas do cantus firmus na primeira seção


do moteto e sua estrutura polifônica (as linhas retas indicam o tema, as linhas
pontilhadas indicam contraponto livre, as linhas duplas indicam as entradas do tema da
segunda seção, espaços em branco indicam pausas):

PRIMEIRA SEÇÃO DO MOTETO SICUT CERVUS


COMPASSOS
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25

Quadro 4.1: G. P. Palestrina, moteto Sicut Cervus, estrutura polifônica da primeira seção.

O quadro acima demonstra que o cantus firmus está presente, em alguma voz,
durante toda a seção – esta é outra característica comum nos moteto do século XVI.
Todas as entradas do cantus firmus ocorrem no I grau ou no V grau do modo jônio em
fá. Este aspecto demonstra o grande valor dado à classificação destes graus como finalis
e confinalis ainda nesta época. O modo é considerado como sendo jônio em fá devido à
‘armadura’ com sib e porque o baixo estende-se, principalmente, em um âmbito
melódico que percorre as notas de fá1 a fá2. Sendo que a extensão total da voz inferior
amplia-se além do âmbito característico do modo (fá1-lá2), alcançando a nota sib2,
somente em dois pontos: no início (c. 10) e no final (c. 114) do moteto.
Nos compassos 22-23 há uma cadência V-I que é utilizada para finalizar a
primeira seção e separá-la da segunda, que, conforme já foi dito, inicia no baixo na
metade do compasso 23. Esta distinção entre as seções é, porém, obscurecida pela linha
melódica da voz de contralto, que permanece até o compasso 25, enquanto o baixo e o
tenor já iniciaram a nova seção. Este fato pode ser facilmente verificado se forem
comparados os textos das diferentes vozes nos compassos 23-25. Enquanto o contralto
permanece com o texto da primeira seção (Sicut cervus desiderat ad fontes aquarum), as
outras vozes já estão cantando o texto da seção seguinte (ita desiderat).
O cantus firmus da segunda seção é apresentado pelo baixo entre os compassos
23 e 30.
30

Ex. 4.4: Palestrina, moteto Sicut cervus, apresentação do segundo tema no baixo.

A linha melódica deste segundo tema está realizada de forma mais despojada na
entrada do soprano, nos compassos 26-31, do que no baixo. Além disto, as vozes de
tenor e contralto imitam um segmento maior da linha de soprano do que do baixo. Desta
forma, a apresentação da parte de soprano pode ser considerada como sendo a entrada
‘real’ do cantus firmus na segunda seção.

Ex. 4.5: Palestrina, moteto Sicut cervus, segundo tema no soprano.

No tenor, a imitação ocorre a partir do V grau da escala (c. 25-28):

Ex. 4.6: Palestrina, moteto Sicut cervus, segundo tema no tenor.

O contralto imita o cantus firmus a partir do IV grau (c. 28-32), sendo esta a
primeira vez, neste moteto, que a entrada de um tema ocorre em um ponto distinto da
finalis ou da confinalis.

Ex. 4.7: Palestrina, moteto Sicut cervus, segundo tema no contralto.

A estrutura da segunda seção está composta conforme os mesmos princípios da


primeira, com o tema sendo imitado em todas as vozes, em diferentes graus do modo.
As vozes que não estão realizando o cantus firmus realizam contraponto livre. Nesta
seção, conforme foi mencionado acima, nem todas as entradas do tema ocorrem no I
grau ou no V grau. As entradas em pontos distintos dos graus principais são: a primeira
entrada do contralto, no compasso 28, ocorre no IV grau; a entrada do soprano no
compasso 34 é realizada no II grau; a entrada do contralto no compasso 33 ocorre no VI
grau; a entrada do baixo no compasso 39 dá-se sobre o IV grau.

Na terceira seção, o seguinte cantus firmus é apresentado no soprano:


31

Ex. 4.8: Palestrina, moteto Sicut cervus, apresentação do terceiro tema, no soprano.

Nesta seção, pela primeira vez a apresentação de um tema não se dá a partir da


finalis do modo, mas a partir do IV grau. As entradas do ponto de imitação são
intercaladas entre o IV grau e o I grau, em cascata, ou seja, de cima para baixo, na
seguinte ordem: IV grau no soprano, I grau no contralto, IV grau no tenor e I grau no
baixo.

Ex. 4.9: Palestrina, moteto Sicut cervus, imitações do terceiro tema em cascata.

Todas as entradas do tema da terceira seção ocorrem somente no I grau ou no IV


grau. Este aspecto demonstra uma característica da música do final do século XVI, que
é a valorização do IV grau como sonoridade importante nas proximidades do final de
uma parte ou de uma peça musical. A Escola de Veneza, da passagem do século XVI ao
XVII (com os compositores Andrea Gabrieli, Giovanni Gabrieli e Claudio Monteverdi),
desenvolveu amplamente a utilização do IV grau, que é uma das diferenças importantes
entre o Sistema Modal e o Sistema Tonal.
Quanto à estrutura polifônica, ocorrem os mesmos procedimentos que já foram
observados nas outras seções. Estes processos de organização formal e contrapontística
são comuns nas obras polifônicas da Renascença. Duas características também comuns
no século XVI, embora não ocorram com tanta freqüência quanto outras apontadas
anteriormente, são:
• a cadência melódica na voz de soprano antecede as outras vozes (c. 55-58), isto faz
com que o soprano sustente uma nota longa enquanto as vozes inferiores chegam à
cadência final da primeira parte;
• cadência plagal para terminar a prima pars (c. 47-58), enquanto a secunda pars
finaliza com uma cadência perfeita (c. 116-117).

O quadro abaixo apresenta a estrutura completa da prima pars do moteto Sicut


cervus de Palestrina (as linhas simples indicam as entradas do cantus firmus da primeira
seção, as linhas duplas indicam as entradas do cantus firmus da segunda seção, as linhas
triplas indicam as entradas do cantus firmus da terceira seção, as linhas pontilhadas
indicam contraponto livre, os espaços em branco indicam pausas):
32

ESTRUTURA GERAL DA PRIMA PARS DO MOTETO SICUT CERVUS


COMPASSOS
1 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55

Quadro 4.2: G. P. Palestrina, moteto Sicut Cervus, estrutura geral da prima pars.

A observação do quadro acima demonstra a estrutura polifônica, multiseccional


e politemática típica do moteto renascentista, em que cada seção apresenta um cantus
firmus distinto com texto diferente. Os segmentos em que o cantus firmus não está
presente são aqueles que ligam uma seção a outra, pois aí o contraponto livre serve tanto
para finalizar a seção anterior quanto para preparar o início da seção seguinte. Os
processos politemáticos são ampliados pela utilização constante de contraponto livre, o
que gera índices de variação altamente sofisticados, com pouca repetição das estruturas
melódico-rítmicas durante toda a peça. Neste contexto, o elemento de unificação interno
em cada segmento é a imitação do cantus firmus em todas as vozes em cada seção. Os
processos de entrelaçamento das seções funcionam com o sentido de garantir a
continuidade da estrutura temporal que, de outra maneira, tornar-se-ia fragmentada. A
separação claramente definida entre duas partes, por meio de cadência em todas as
vozes, permite a articulação formal necessária para a manutenção do fluxo contínuo da
peça do início ao fim. A secunda pars do moteto apresenta as mesmas características
gerais que a prima pars.

A seguir, o moteto Sicut cervus de Palestrina, na íntegra.


33
34
35
36
37
38
39

Ex. 4.10: G. P. da Palestrina, moteto Sicut cervus.

4.2. Sistema musical da Renascença


Os principais teóricos da música renascentista são Henricus Glareanus (1488-
1563) e Gioseffo Zarlino (1517-2590), que escreveram os tratados mais importantes
para a compreensão da música dos séculos XV e XVI.
Glareanus, em seu tratado Dodekachordon (1547), desenvolveu o Sistema
Modal, acrescentando quatro modos aos oito já conhecidos, ampliando para doze o
número de modos. Estes novos modos já existiam na prática desde a Idade Média, mas
eram considerados ‘impuros’ pela Igreja por serem utilizados na música profana. Os
novos modos são: eólio e hipoeólio (cantus mollis), jônio e hipojônio (cantus durus).
As escalas destes modos são as seguintes:

Quadro 4.3: novos modos da música renascentista.

Na prática, devido à polifonia com as vozes em registros de altura distintos, não


há distinção real entre os modos autênticos e plagais, pois cada voz possui sua própria
tessitura. Do ponto de vista teórico, porém, o modo considerado como sendo
característico de cada obra como um todo é aquele que se encontra na voz mais grave.
Assim, o Credo da Missa Papae Marcelli de Palestrina, cujo fragmento é apresentado
no exemplo abaixo, está composto no modo hipomixolídio, pois a voz mais grave
encontra-se neste modo.
40

Ex. 4.11: G. P. Palestrina, Missa Papae Marcelli, Credo.

Zarlino, discípulo de Willaert e mestre de capela de São Marcos em Veneza,


escreveu seu tratado Le Istitutioni Harmoniche em 1558, obra que teve grande
influência na música dos séculos seguintes. Um dos conceitos apresentados por Zarlino,
que permaneceu válido até o final do século XIX, é o princípio de tríade. Para Zarlino,
compor com base nas tríades seria um processo de “imitazione della natura” (imitação
da natureza), pois as tríades maior e menor seriam parte da estrutura natural do
Universo. Outra contribuição importante de Zarlino foi o basso seguente, que consiste
em uma técnica de dobrar a voz mais grave da textura polifônica por meio de um
instrumento. O basso seguente deu origem, no final do século XVI, ao basso continuo,
que foi um elemento essencial na música do século XVII e primeira metade do século
XVIII.
O mais importante na obra teórica de Zarlino, no entanto, foi a organização
rigorosa dos princípios do contraponto, com base na música de seu mestre Willaert. O
tratamento das dissonâncias como notas de passagem, bordaduras ou suspensões que
devem ser cuidadosamente preparadas e resolvidas foi amplamente discutido por
Zarlino. Sua obra, que é considerada como sendo o primeiro tratado de contraponto da
música européia, influenciou profundamente Johannes Fux (1660-1741) a escrever seu
Gradus ad Parnassum (1725), em que desenvolveu a estrutura do contraponto por
espécies estudado até os dias de hoje. Para Zarlino, a “harmonia origina-se do cantar
simultâneo das várias vozes”. Este princípio leva à compreensão da harmonia de
intervalos do Renascimento, na qual os acordes formam-se como o resultado da
superposição das diversas linhas melódicas que soam simultaneamente.

Música Ficta
41

No Renascimento, a utilização das alterações é ampliada por duas razões: 1. o


acréscimo de quatro modos ao sistema tradicional e 2. novas necessidades estilísticas
devido à sonoridade das consonâncias imperfeitas. Além das alterações já usuais na
Idade Média, são acrescentadas as seguintes:

Modos eólio/hipoeólio

• alteração ascendente do VII grau do modo, para gerar a sensível sol#.

Ex. 4.12: O. Lasso, moteto Oculus non vidit.

• alteração ascendente do VI grau do modo, para evitar o intervalo de 2ªA entre o VI e


o VII graus.

Ex. 4.13: O. Lasso, Oculus non vidit.

Modos jônio/hipojônio

Não há alterações.

Além das alterações características de cada modo, tornam-se comuns as


seguintes notas alteradas:
• alteração de mi para mib, para evitar o trítono com sib (em todos os modos em que a
nota sib se tornou característica).

Ex. 4.14: A. de Fevin, Missa Mente Tota, Agnus Dei.

• alteração ascendente do III grau dos modos menores (aqueles que têm a 3ªm a partir
da finalis: dórico, frígio e eólio, autênticos e plagais). O resultado chama-se terça de
picardia ou cadência de picardia.
42

Ex. 4.15: A. Willaert, Ricercar.

As alterações mais usuais na música do Renascimento levaram à transição do


Sistema Modal Eclesiástico ao Sistema Tonal da música Barroca. Resumidamente, o
processo é o seguinte:

• as alterações características do modo dórico (sib e dó#) dão origem à escala de Ré


Menor Harmônica:

Ex. 4.16: modo dórico alterado e escala de ré menor harmônica.

• a alteração do IV grau do modo lídio (sib) origina a escala de Fá Maior:

Ex. 4.17: modo lídio alterado e escala de fá maior.

• a alteração do VII grau do modo mixolídio (fá#) é a origem da escala de Sol Maior:

Ex. 4.18: modo mixolídio alterado e escala de sol maior.

• as alterações do modo eólio (fá# e sol#) dão origem à escala de Lá Menor Melódica:

Ex. 4.19: modo eólio alterado e escala de lá menor melódica.


43

• o modo jônio, que normalmente não é alterado, é considerado como sendo a ‘escala
natural’ do Sistema Tonal.

Ex. 4.20: modo jônio e escala de dó maior. (escala natrual)

• o modo frígio, por não sofrer alterações, foi o último modo a se converter em
tonalidade, dando origem à cadência frígia e perdurando até a época de Bach e
Haendel. A linha melódica do coral de Bach apresentado a seguir contém vários
elementos característicos do modo frígio, que são reforçados pelo predomínio de
cadências frígias existentes na harmonização bachiana. Em um total de oito frases,
ocorrem quatro cadências frígias, nos compassos: 2, 6, 12 e 17.
44

Ex. 4.21: J. S. Bach, Paixão Segundo São João, Choral N.º 21.

4.3. Música vocal profana


Os dois gêneros mais importantes da música vocal profana renascentista são a
chanson e o madrigal.
A chanson é um gênero vocal de origem francesa, que se tornou muito popular
entre os compositores franco-flamengos nos séculos XV e XVI. A principal
característica da chanson é a descrição realista do texto através da representação
45

musical de ruídos humanos e da natureza, tais como: cantos de pássaros, cenas de


caçada, sons de batalhas, etc.
Do ponto de vista estrutural, a chanson apresenta escrita contrapontística
geralmente a quatro vozes, em que a melodia principal é apresentada pela voz de tenor.
Há alternância de seções polifônicas e homofônicas, em que as primeiras são mais vivas
e as segundas são declamatórias.
Os princípios de organização e estruturação existentes no moteto aparecem, de
forma modificada, na chanson, adaptados às características estilísticas e às necessidades
descritivas do gênero profano. No exemplo abaixo, está a chanson D’ung aultre amer
mon coeur s’abesseroit de Ockeghem.

Ex. 4.22: J. Ockeghem, chansin D’ung aultre amer mon coeur s’abesseroit.
46

O madrigal é considerado o gênero profano mais importante da Renascença, a


partir do qual se deu a transição ao estilo Barroco. Nas cortes italianas do século XVI
reuniam-se intelectuais altamente especializados que procuravam criar uma linguagem
artística rica em sentimentos e imagens poéticas, tendo como referência a poesia de
Petrarca e Boccaccio. Na busca de uma arte refinada e subjetiva, que retomasse os
ideais da dramaturgia greco-romana, chegaram a um estilo musical fortemente
expressivo, com utilização abundante de cromatismos e dissonâncias sem preparação ou
resolução, abandonando os princípios de contraponto dominantes na época. Este estilo
tornou-se conhecido como música reservata (música reservada), pois seus realizadores
reuniam-se em pequenos grupos nas grandes salas13 das residências de ricos
comerciantes que patrocinavam suas pesquisas. O madrigal foi o gênero musical mais
cultivado pelos intelectuais humanistas do Renascimento. Suas realizações são ainda
hoje chamadas de madrigalismo.
As principais características do madrigalismo são:
• expressão de caráter lírico (individualismo)
• descrições subjetivas do texto, com a representação musical de passagens
específicas e, inclusive, de palavras isoladas, como, por exemplo: movimento
escalar ascendente rápido utilizado para representar o fogo, escalas descendentes
utilizadas para significar a descida da alma ao inferno, fortes cromatismos na
expressão ‘lasciatemi morire’ (deixai-me morrer), etc.
• influências do moteto: forma multiseccional, estrutura politemática e utilização de
técnicas imitativas como elemento unificador.

No trecho do madrigal apresentado no exemplo abaixo, é notável o contraponto


entre o movimento cromático ascendente apresentado pela voz superior em comparação
com os arpejos descendentes, em imitação, nas quatro vozes inferiores. O texto do
poema de Petrarca diz:

Só e pensativo, os mais desertos campos


Vou medindo a passos demorados e lentos;
E sustento meus olhos, para fugir, atentos
Aos passos humanos na areia impressos.

13
Da produção oriunda destas reuniões nas câmaras das residências de nobres e burgueses originou-se a
expressão ‘música de câmara’ (do italiano, musica da camera).
47
48

Ex.4.23: L. Marenzio, Solo e pensoso.


49

No madrigal de Marenzio, a representação musical do texto pode ser facilmente


observada no soprano do madrigal apresentado acima, que se move solitário em passos
demorados e lentos. Este é o sentido da representação subjetiva de passagens isoladas
do texto que os madrigalistas buscavam realizar em suas obras.

4.4. Características da música vocal polifônica da Renascença


As principais características da música vocal polifônica da Renascença (moteto,
chanson e madrigal) são:
• forma multiseccional – com várias seções, cada uma com tema distinto;
• entrelaçamento entre a seções – enquanto uma voz está terminando determinada
seção, as outras já estão iniciando a seção seguinte;
• emprego sistemático de processos imitativos – enquanto uma das vozes realiza o
cantus firmus, as outras seguem com contraponto livre;
• politematismo – cada peça musical apresenta vários temas, que são utilizados como
pontos de imitação (em cada seção é apresentado um único tema que será imitado ao
longo da seção nas diferentes vozes);
• geralmente, não há repetição de seções (na chanson pode haver um refrão que se
repete);
• número de seções pode ser bastante extenso, por esta razão pode ocorrer divisão da
música em duas partes (prima pars e secunda pars) para separar os grupos de seções
de outro por meio de uma cadência bem definida;
• em cada seção é utilizado um segmento retirado do texto, que é tratado por meio de
melismas ou repetido diversas vezes.

4.5. Música polifônica instrumental


Na música polifônica dos séculos XIV e XV, os instrumentos eram utilizados
geralmente para reforçar ou para substituir as partes vocais. Na segunda metade do
século XV e, principalmente, durante o século XVI tem início a escrita de música
polifônica estritamente instrumental. Durante a Renascença não se torna característica a
escrita idiomática para instrumentos.
Inicialmente, a música polifônica instrumental era, simplesmente, a transcrição
de peças vocais (motetos ou chansons) para instrumento solista (alaúde ou teclado) ou
grupo instrumental. Estas transcrições recebiam diversas denominações, entre elas
chamavam-se canzona da sonar (canção para tocar).
Os dois exemplos a seguir apresentam a canção Bonjour mon coeur de Orlando
di Lasso (1532-94) e a versão para ser tocada em teclado realizada por Peter Philips
(1560-1633).
50

Ex. 4.24: O. di Lasso, Bonjour mon coeur.

Ex. 4.25: P. Philips, Bonjour mon coeur.

A partir da prática de transcrever música vocal para instrumentos, desenvolveu-


se um dos principais gêneros polifônicos instrumentais da Renascença, o ricercare
(italiano, procurar). Inicialmente, o ricercare é a transcrição de motetos para
instrumento solista, tornando-se, posteriormente, uma das formas instrumentais mais
elaboradas da Renascença. Sua estrutura é multiseccional e politemática, com utilização
das mesmas técnicas de imitação e contraponto encontradas no moteto.
51

Outro gênero que tem a mesma estrutura que o ricercare é a fantasia. Na


verdade, os dois termos foram utilizados indiscriminadamente por diferentes músicos
para significar o mesmo tipo de estrutura instrumental. Geralmente se considera que a
fantasia apresenta mais características idiomáticas do instrumento para o qual é
destinada, mais aproximada da técnica instrumental. No ricercare, as técnicas
contrapontísticas geralmente são realizadas de forma mais abstrata e similar à música
vocal.
A Fantasia XXXV de Francesco da Milano (1497-1543), apresentada no exemplo
abaixo, poderia ser facilmente confundida com um ricercare (ou com um moteto, se lhe
fosse adaptado um texto em latim). Há determinadas passagens, porém, em que
prevalece a técnica instrumental sobre a escrita contrapontística, em especial na
seqüenciação melódica, com base em fragmentos escalares, que se encontra nos
compassos 18-22.

Ex. 4.26: F. da Milano, Fantasia XXXV.

Os gêneros polifônicos instrumentais da Renascença (ricercare e fantasia) são


importantes principalmente por duas razões:
• deram o impulso definitivo na direção da escrita idiomática instrumental que se
desenvolveu no período Barroco.
• deram origem a uma das formas mais importantes da música ocidental – a fuga.
52

5. CONTRAPONTO MODAL

Considerações Sobre a Técnica do Contraponto Modal

Os princípios e regras do contraponto desenvolvidos por Johann Joseph Fux


(1660-1741) em sua obra Gradus ad Parnassum (1725) serviram de base para o estudo
do contraponto desde então, até os dias de hoje. Com base na análise da polifonia vocal
de compositores como Palestrina e Lasso, Fux organizou o estudo do contraponto
divido em cinco espécies. Antes de abordar o contraponto por espécies, é necessário
definir quais são as dissonâncias no estilo vocal puro da Renascença.
Quanto à combinação entre os sons, os intervalos podem ser classificados em
duas categorias: intervalos melódicos e intervalos harmônicos. Na música renascentista,
os critérios de consonância e dissonância são diferenciados conforme a categoria
intervalar.
Os intervalos melódicos são classificados em:
• Consonâncias: nota repetida, 2ªm, 2ªM, 3ªm, 3ªM, 4ªJ, 5ªJ e 8ªJ; o intervalo de 6ªm é
considerado consonante somente quando o movimento for ascendente.
• Dissonâncias: 6ªm descendente, 6ªM, 7ªm, 7ªM, todos os intervalos aumentados e
diminutos e todos os intervalos compostos.
Os intervalos harmônicos são classificados em:
• Consonâncias Perfeitas: uníssono, 5ªJ e 8ªJ.
• Consonâncias Imperfeitas: 3ªm, 3ªM, 6ªm e 6ªM.
O intervalo de 4ªJ é considerado consonante quando não ocorre em relação ao
baixo.
• Dissonâncias: 2ªm, 2ªM, 7ªm, 7ªM e todos os intervalos aumentados e diminutos; o
intervalo de 4ªJ é considerado dissonante quando ocorre em relação ao baixo; os
intervalos compostos são classificados conforme seus correspondentes simples.
Com base nessa classificação de afinidade intervalar, Fux concebeu o princípio
do contraponto por espécies, que visa desenvolver as habilidades do estudante no
controle dos diferentes tipos de dissonância. Esse sistema foi o principal método
didático estudado pelos músicos dos séculos XVIII e XIX na aprendizagem das técnicas
de composição. No início do século XX, o musicólogo dinamarquês Knud Jeppesen
(1892-1974) desenvolveu o sistema de Fux com base na análise estilística do sistema
modal eclesiástico do século XVI. Assim, o sistema didático de Fux encontra seu
correspondente musicológico nos princípios estilísticos de Jeppesen.
Como as dissonâncias na música renascentista são sempre cuidadosamente
preparadas e resolvidas, existem quatro possibilidades para a utilização de dissonâncias:
1. Nota de Passagem – consiste em uma dissonância que ocorre por grau
conjunto entre duas consonâncias.
2. Bordadura – é uma dissonância que 'borda' uma consonância, ou seja, volta
para a mesma nota de onde partiu.
3. Cambiata – é o único tipo de dissonância resolvida por salto (na verdade, o
conceito de nota cambiata foi introduzido na teoria musical do século XVII,
mas já era utilizada na prática pelos músicos da Renascença). A cambiata
consiste em: 1. movimento descendente de uma consonância em tempo
principal para uma dissonância em tempo secundário; 2. salto descendente
para uma nota no tempo principal seguinte, que pode ser consonante ou
53

dissonante; 3. movimento ascendente por grau conjunto até alcançar a


próxima consonância. Há algumas variantes de cambiata, sendo a mais
comum aquela em que todas as notas, à exceção da cambiata, são
consonantes.
4. Suspensão – é o único tipo de dissonância em tempo principal. A suspensão
consiste em três estágios: 1º. preparação da suspensão como consonância no
tempo secundário anterior, 2º. apresentação da suspensão como dissonância
no tempo principal, 3º. resolução da suspensão como consonância imperfeita,
por grau conjunto descendente, no tempo secundário seguinte.
Abaixo, exemplos dos diferentes tipos de dissonância:

Ex. 5.1: tipos de dissonância da música renascentista.

As cinco espécies de contraponto, conforme concebidas por Fux e desenvolvidas


por Jeppesen, são as seguintes:

• Primeira Espécie – contraponto de nota contra nota.


Consiste em uma linha melódica na qual é realizada uma nota de contraponto
para cada nota do cantus firmus. Como, no estudo das espécies, o cantus firmus é escrito
em semibreves, a voz de contraponto também se apresenta somente com semibreves14.
No contraponto de primeira espécie podem haver somente consonâncias15.

Ex. 5.2: contraponto de primeira espécie, realizado por Jeppesen.

14
Na prática musical, o cantus firmus pode ser realizado com qualquer combinação de valores rítmicos.
15
Todos os exemplos de contraponto apresentados a seguir foram retirados da obra Counterpoint – the
polyphonic style of the sixteenth Century, de Knud Jeppesen.
54

• Segunda Espécie – contraponto de duas notas contra uma


Para cada nota do cantus firmus, combinam-se duas notas de contraponto.
Assim, a voz do contraponto consiste em uma linha melódica em mínimas contra as
semibreves do cantus firmus. Nessa espécie, as dissonâncias podem ocorrer como notas
de passagem.

Ex. 5.3: contraponto de segunda espécie, realizado por Jeppesen.

• Terceira Espécie – contraponto de quatro notas contra uma


Na terceira espécie, são realizadas quatro notas de contraponto para cada nota do
cantus firmus, ou seja, o contraponto é escrito em semínimas. Além de notas de
passagem, podem ocorrer dissonâncias como bordaduras e cambiatas.

Ex. 5.4: contraponto de terceira espécie, realizado por Jeppesen.

• Quarta Espécie – contraponto sincopado


É na quarta espécie que se estuda o controle mais rigoroso das dissonâncias. A
voz que se contrapõe ao cantus firmus, desenrola-se como uma seqüência de síncopes
resolvidas como suspensões. Assim, cada uma das notas do contraponto é atacada no
tempo secundário como consonância, transformando-se em dissonância no tempo
principal seguinte por meio do movimento da voz que conduz o cantus firmus. A
dissonância gerada deve ser resolvida por grau conjunto descendente em uma
consonância imperfeita no tempo secundário seguinte. Quando ocorre consonância no
tempo principal, essa pode ser movimentada livremente. No tempo secundário somente
podem haver consonâncias.

Ex. 5.5: contraponto de quarta espécie, realizado por Jeppesen.


55

• Quinta Espécie – contraponto florido


O contraponto florido é a combinação das outras espécies. Contrapõe-se ao
cantus firmus uma linha melódica livremente construída com diversos valores rítmicos,
conforme os princípios de cada espécie.

Ex. 5.6: contraponto de quinta espécie, realizado por Jeppesen.

Além das espécies descritas acima, existem ainda:

• Contraponto Livre
O contraponto livre é a combinação de linhas melódicas compostas livremente,
sem a utilização de cantus firmus. As diretrizes de cada espécie devem ser seguidas na
relação entre as vozes. Assim, semibreves devem ser conduzidas somente como
consonâncias, mínimas podem ser tratadas como notas de passagem, semínimas podem
ser tratadas como notas de passagem, cambiatas ou bordaduras e síncopes com
dissonâncias devem ser resolvidas como suspensões16.

Ex. 5.7: contraponto livre, realizado por Jeppesen.

• Contraponto imitativo
O contraponto imitativo consiste em reproduzir, em uma voz, trechos melódicos
apresentados em outras vozes. Na imitação é necessário respeitar as diretrizes de cada
espécie na relação entre as partes.

16
Nos exemplos seguintes, o compasso 2/2 está realizado como se fosse 2/1, pois essa era uma prática
comum na música renascentista. Ainda hoje, muitos editores publicam a música desse período dessa
forma.
56

Os procedimentos para realizar um trecho em contraponto imitativo são os


seguintes:
1. Compor a proposta (sujeito) em uma das vozes
2. Imitar a proposta em outra voz (resposta)
3. Compor um trecho em contraponto à resposta (continuação da proposta)
O tipo mais comum de continuação após a imitação é seguir com contraponto
livre até o final da seção. Essa é a forma típica na música renascentista, em que após um
início de seção com imitação localizada, cada voz segue realizando contraponto livre até
a cadência.

Ex. 5.8: contraponto imitativo, realizado por Jeppesen.

Outra maneira de dar continuidade é seguir com contraponto imitativo até o final
da seção. Se a peça inteira é composta com esse método, tem-se um cânone.
Os procedimentos para a composição de um cânone são os seguintes:
1. Compor a proposta (sujeito) em uma das vozes
2. Imitar a proposta em outra voz (resposta)
3. Compor um trecho em contraponto à resposta (continuação da proposta)
4. Imitar a continuação da proposta (segmento realizado no item 3)
Os procedimentos n.º 3 e n.º 4 devem seguir até o final ou até a preparação da
cadência. Geralmente, as cadências são preparadas com um pequeno trecho em
contraponto livre, para que todas as vozes terminem ao mesmo tempo.

Ex. 5.9: cânone, realizado por Jeppesen.


57

• Contraponto Invertido (ou contraponto duplo)

O contraponto invertido consiste na mudança da posição das vozes, em que a


voz que se encontrava inicialmente no baixo passa para cima e/ou aquela que era
inicialmente a voz superior, torna-se a voz inferior. Como nesse processo ocorre
inversão dos intervalos, é necessário tomar cuidado com os intervalos que mudam de
categoria na inversão. Pode-se tomar qualquer intervalo como base para a inversão da
posição das vozes, sendo mais comuns o contraponto invertido à oitava, o contraponto
invertido à décima e o contraponto invertido à décima segunda.
Abaixo está apresentada uma tabela com as inversões intervalares em cada um
dos três tipos de contraponto invertido citados anteriormente. No quadro abaixo, os
intervalos apresentados no pentagrama superior, transformam-se naqueles do
pentagrama inferior em cada tipo de inversão (à oitava, à décima ou à décima segunda).

Ex. 5.10: tabela de inversões.

No contraponto invertido à oitava, a voz inferior é transposta à oitava superior


(ou, ao contrário, a voz superior é transposta à oitava inferior). O que gera as seguintes
mudanças de intervalos (cf. exemplo 5. 10):

O intervalo: 1 2 3 4 5 6 7 8
Transforma-se em : 8 7 6 5 4 3 2 1

Nesse processo, é necessário tomar cuidado com o intervalo de 5ªJ, pois ao ser
invertido transforma-se em 4ªJ, mudando assim da categoria de consonância perfeita
para dissonância quando ocorre em relação ao baixo. Nesse caso, o intervalo de 5ªJ deve
ser tratado como dissonância, para aparecer de forma correta na inversão.
58

Ex. 5.11: contraponto invertido à oitava, realizado por Jeppesen.

No contraponto invertido à décima, a voz inferior é transposta à terça composta


superior (ou, ao contrário, a voz superior é transposta à terça composta inferior).
Assim, no quadro abaixo, os intervalos da linha superior, transformam-se nos
intervalos da linha inferior (cf. exemplo 5. 10):

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

Nesse processo, é necessário tomar cuidado com os intervalos de 3ª, 6ª e 10ª


(maiores ou menores), pois ao serem invertidos transformam-se, respectivamente, em
8ªJ, 5ªJ e uníssono, mudando assim da categoria de consonâncias imperfeitas para
consonâncias perfeitas. Nesse caso, devem ser evitados movimentos paralelos de terças
e sextas (simples ou compostas), pois na inversão à décima apareceriam movimentos de
quintas e oitavas paralelas.

Ex. 5.12: contraponto invertido à décima (terça), realizado por Jeppesen.

No contraponto invertido à décima segunda, a voz inferior é transposta à quinta


composta superior (ou, ao contrário, a voz superior é transposta à quinta composta
inferior).
59

Assim, no quadro abaixo, os intervalos da linha superior, transformam-se nos


intervalos da linha inferior (cf. exemplo 5. 10):

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

Nesse processo, é necessário tomar cuidado com o intervalo de 6ª (maior ou


menor), pois ao ser invertido transforma-se em 7ª (maior ou menor), mudando da
categoria de consonância imperfeita para dissonância. Assim, os intervalos de sexta
devem ser tratados como dissonâncias para aparecerem de forma correta na inversão à
décima segunda.

Ex. 5.12: contraponto invertido à décima segunda (quinta), realizado por Jeppesen.

Os tipos de contraponto mais ocorrentes na prática musical dos séculos XV e


XVI são o contraponto livre, o contraponto imitativo e o contraponto invertido. As
cinco espécies desenvolvidas por Fux têm um sentido didático concebido a posteriori
para o ensino das técnicas e procedimentos para o controle das dissonâncias, não sendo
parte da prática musical da Renascença. Nesse período, o processo de composição
musical mais importante foi a técnica da imitação.
60

6. CONSIDERAÇÕES SOBRE A FUGA

6.1. A FUGA17

Fuga: primeiramente chamada de chace e caccia. Um procedimento, não uma


forma.

Termos semelhantes:

1. cânone: imitação entre vozes quase sempre exata, a qual continua durante toda
a peça. A idéia de um tema definido que se repete não está presente.
2. round ou catch: um cânone que se repete em todas as vozes sucessivamente.
3. fugato: o uso livre ou parcial de um trecho fugal dentro de outro movimento
maior.
4. fuga acompanhada: a apresentação inicial do tema tem acompanhamento
harmônico. Ex.: o segundo Kyrie da Missa em Si Menor de Bach.
5. fuga acadêmica: a apresentação inicial do tema é sem acompanhamento.
6. fuga coral: a melodia coral é tratada de forma fugal.

EXEMPLOS HISTÓRICOS

1. Oswald von Wolkenstein (c. 1377-1445): Minnesinger alemão. Peças com


entradas imitativas.
2. Dufay: uso de cânone: Gloria ad modum tube.
3. Josquin: Missa ad fugam (missa canônica).
4. Palestrina: Missa ad fugam; moteto Veni, sponsa Christi (a 4 vozes com
pontos de imitação).

Na Música Barroca

A Fuga derivada do moteto:


Inglaterra: fantasia, fancy.
Ex.: Orlando Gibbons: fantasias para teclado; John Dowland: fantasias para
alaúde.
Itália – fuga monotemática, ricercare; geralmente dividida em seções.
Ex.: Frescobaldi: Ricercare dopo il Credo (de Fiori Musicali, 1635), dividida
em duas partes, tema cromático com uso de aumentação na segunda parte e dois novos
contra-sujeitos.
Alemanha - fantasias monotemáticas
Ex.: Sweelinck: Fantasia chromatica – o sujeito é uma escala descendente da
tônica até a dominante.
Scheidt: Tabulatura nova, 1624.

17
Texto elaborado pela Prof.ª Any Raquel Carvalho para a disciplina Fuga, do Departamento de Música
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
61

A Fuga derivada da canzona: Frescobaldi.

A Fuga derivada da toccata:


a. Froberger
b. Buxtehude: expandiu esta estrutura. Tocata - fuga - improvisação- fuga
c. Pachelbel
d. J.C.F. Fischer: publicou a coleção de prelúdios e fugas Ariadne Musica em
1702.
4. J. S. Bach: Capriccio em Mi maior (BWV 993), duas fugas sobre um tema de
Albinoni (BWV951, 951a), o Cravo Bem Temperado (2 volumes), inúmeras fugas
para órgão, A Arte da Fuga.
5. Handel: principalmente nos seus oratórios: Saul (primeira parte), Judas
Maccabeus (fuga dupla), O Messias (fugas completas); e também nos seus Concertos
Op. 6 n.º 3, 6 e 7.

No Período Clássico

Freqüente em movimentos de sonata.

Haydn: fugas completas nos últimos movimentos dos Quartetos Op. 20


Mozart: finales dos Quartetos K168 e K173; Quarteto K387 (dentro dum
movimento de sonata); Fuga em Dó menor K426 para dois pianos
Beethoven: como meio de expressão pessoal.
- seções na marcha fúnebre
- Quarteto, Op. 59 No. 3 (finale)
- Sonata Hammerklavier Op. 106, com aumentação, movimento retrógrado,
inversão e stretto; fuga dupla
- Quarteto em Dó menor Op. 131 (início)
- Grosse Fugue em Si-bemol Op. 133
- seções fugais no desenvolvimento da Sonata para Piano Op. 111, Mov. I
- Sinfonia 9: movimentos I, II, IV

Séc. XIX

Mendelssohn: Fuga em Mi menor (dos 6 Prelúdios e Fugas para piano, Op.


35); Sonata No. 6, Op. 65 para órgão (penúltimo movimento)
Schumann: Fuga No. 3 em Fá Menor (das 4 Fugas para Piano, Op. 72);
Quinteto para Piano (fuga dupla)
Brahms: Variações sobre um tema de Handel (final); Réquiem Alemão (3
fugas)
Reger: Variações Sobre um Tema de Bach, Op. 81 (fuga dupla);
Berlioz: Te Deum (abertura); Grande Messe des Morts (“Hosanna”)’ Sinfonia
Fantastique (“Ronde du Sabbat”)
Bizet: Sinfonia, segundo movimento
Franck: Prélude, Fugue et Variation, Op. 18; Prélude, Choral et Fugue.
Verdi: Réquiem (Sanctus); Falstaff (última cena)
62

Século XX

Hindemith: Ludus Tonalis


Shostakovich: 24 Prelúdios e Fugas (1 950-1955)
Bartók: Musica para Cordas, Percussão e Celesta (1936); Quarteto No. 5
(último movimento)
Schoenberg: Variações para Orquestra, Op. 31 (não é uma fuga verdadeira)
Berg: Wozzeck (Ato lI, cena 2)
Webern: Quarteto Op. 28, movimento I

6.1.1. Definição dos elementos da fuga

A fuga é uma técnica contrapontística escrita para um número específico de


vozes ou instrumentos. É composta por uma melodia (o sujeito) que inicia em uma voz
sem acompanhamento. Cada uma das vozes subseqüentes só inicia após a entrada
completa da anterior. A fuga é composta por: sujeito (tema), resposta, contra-sujeito
(contratema; opcional), exposição, episódios e coda (opcional). O fim da exposição dá-
se após a entrada de todas as vozes e, em geral, termina com notas do acorde sobre o I
grau ou V grau.

O SUJEITO

Nem todos as melodias servem como sujeito de fuga. Portanto, é preciso


considerar o tipo de fuga (instrumental ou vocal) e o número de vozes. Na escolha do
tema, ou sujeito, é preciso levar em conta sua extensão e a linha melódica resultante.
Em geral os temas nas fugas barrocas não são longos e dificilmente ultrapassam a
extensão de uma oitava; muitas vezes mantém-se dentro de uma extensão de quarta ou
quinta. Isto porque, quanto maior a sua extensão, mais difícil é evitar o cruzamento de
vozes, o que torna obscura sua textura e sua identificação.
Na fuga vocal, a extensão de oitava permite a modulação deste sujeito sem sair
da registro de cada voz.
O sujeito pode variar de 4-5 notas até um sujeito bastante longo (o que não
é muito comum), mas o essencial é transmitir uma idéia completa com contorno
melódico e rítmico.
O tema não deve ser composto por arpejos e/ou saltos estranhos. Muitos dos
materiais a serem utilizados na fuga serão derivados desta linha melódica, a qual deverá
ser clara e de fácil assimilação.
A linha melódica também deve ser construída de forma a aceitar vários tipos de
acompanhamento. Desta forma será possível notar, logo de início, se a linha melódica
“serve” ou não como sujeito. Todo sujeito deve terminar em tempo forte.
O andamento também é um fator importante. Quanto mais lento o andamento,
menos compassos devem compor o sujeito. Um tema curto poderá ser repetido mais
vezes, uma vez que é facilmente percebido e lembrado. No entanto, a qualidade do
sujeito não depende de sua extensão, mas sim, de sua capacidade de expressar uma idéia
completa.
O ritmo de um sujeito pode ser todo igual ou contrastante, mas não deve ser
repetitivo.
63

A estrutura harmônica do sujeito tende a ser bastante simples, pois deve-se


considerar não somente sua estrutura horizontal, mas também a vertical. Em geral, a
harmonia do sujeito baseia-se apenas no acorde de I grau ou nos acordes de I e V graus.
A maioria das fugas contém sujeitos diatônicos, mas existem aquelas em que há
modulação. Sujeitos cromáticos são raros. A fuga barroca sempre inicia no primeiro ou
quinto grau.

Quanto à Primeira nota do sujeito:


a) Se a primeira nota do sujeito for a tônica (I grau), a resposta iniciará no V
grau.
b) Se a primeira nota do sujeito for o V grau, a resposta iniciará no I grau.

Quanto à última nota do sujeito:


a) Se o sujeito terminar no I grau, a resposta terminará no V grau.
b) Se o sujeito terminar no V grau, a resposta terminará no I grau.
c) Se o sujeito terminar no III grau da tônica, a resposta terminará no III grau da
dominante.
d) Se o sujeito terminar no III grau da dominante, a resposta terminará no III
grau da tônica.

A RESPOSTA

A origem e a natureza da resposta tonal

As opiniões dividem-se marcadamente no que diz respeito à origem e natureza


da resposta tonal (modificada melodicamente) na fuga, como distinta da resposta real
(melodicamente idêntica). Alguns fazem remontar a origem da resposta tonal à época
modal, considerando o seu freqüente aparecimento durante o Barroco como nada mais
do que a permanência de um costume modal, enquanto outros, fazendo remontar a sua
origem ao sentimento que o compositor do século XVI gradualmente passa a ter em
relação à tonalidade maior-menor.

Os séculos XV e XVI

Tradicionalmente, o sujeito da fuga é respondido à quinta superior ou à quarta


inferior (resposta na dominante), ou, mais raramente, à quarta superior e à quinta
inferior (resposta na subdominante).
A resposta tem sua origem na técnica imitativa da polifonia vocal renascentista,
daí o uso dos intervalos de quarta e quinta, uma vez que estes intervalos marcam a
distância aproximada entre os registros vocais adjacentes – contralto para soprano, tenor
para contralto, etc.
O primeiro a recomendar entradas imitativas aos intervalos de quarta, quinta e
oitava parece ter sido o teórico Bartolomé Ramos de Pareja no século XV. Mais tarde, o
intervalo de oitava foi desconsiderado por não permitir maior variedade (Nicholà
Vicentino). Foi este teórico que observou que o uso de movimento contrário
enriqueceria a fuga: quando uma voz salta descendentemente à quinta, a outra deverá
subir uma quarta e vice-versa, para que a oitava possa ser corretamente formada. Surge,
então, pela primeira vez na teoria musical, o princípio da resposta tonal. As notas pivô (I
e V graus) marcaram a divisão estrutural entre as formas autênticas e plagais dos
modos:
64

1) pentacorde + tetracorde, com pivô na dominante (Ex.: dó - sol + sol - dó)


2) tetracorde + pentacorde, com pivô na tônica (Ex.: sol - dó + sol - dó)

Conseqüentemente, a partir do século XVII, a seguinte regra começa a ser


aplicada: um salto da tônica para a dominante deve ser respondido tonalmente por um
salto da dominante para a tônica, e um salto da dominante para a tônica deve ser
respondido tonalmente por um salto da tônica para a dominante. A resposta para um
sujeito que inicia na dominante deve começar na tônica deste mesmo modo, resultando
na origem da resposta na subdominante.

O século XVII

Com o uso cada vez menor dos modos característicos do sistema modal, a
resposta tonal torna-se cada vez mais freqüente. De acordo com John Playford
(lntroduction to the Art of Descant, 1697), os intervalos estabelecidos como os únicos
para uma resposta eram: uníssono, oitava, quarta e quinta.
É preciso lembrar a vasta diferença entre a aplicação da técnica de fuga no
século XVI e XVII. No século XVI a fuga raramente ultrapassava o equivalente
moderno de uma exposição. Já no final do século XVII encontramos um sujeito de fuga
como material suficiente para a construção de uma movimento extenso.

O século XVIII

No seu Traité de l’Harmonie (1722), Rameau comenta sobre a técnica de fuga


no seu último capítulo. Sua explicação do uso da resposta tonal é bastante detalhada.
Outros autores sobre este assunto neste século são: Johann Mattheson e Marpurg.

O século XIX

Uma das obras teóricas mais importantes sobre fuga do início deste século é de
Luigi Cherubini: Cours de Contrepoint et de la Fugue (1833), a qual foi adotada no
Conservatoire National de Paris e na Royal Academy of Music, Londres. No entanto,
Cherubini tem sido muito criticado pelo seu estilo extremo que contém pouca relação
entre a teoria e a prática. Sobre a fuga, ele comenta que é a perfeição do contraponto e
que esta pode ser considerada como a transição entre o contraponto de cinco espécies e
a composição livre.

A Resposta Real

A resposta real nada mais é do que a transposição exata do sujeito uma quinta
acima. Não deve haver mudança de modo (3ªM permanece como 3ªM, por exemplo). O
ritmo permanece o mesmo e os intervalos exatos são mantidos.
A resposta real é utilizada quando não há salto entre I e V graus no sujeito, e
quando o sujeito inicia no I grau (a tônica).
65

No entanto, como a escala de oito notas contém duas “meias-escalas” desiguais


(tônica-dominante; dominante-tônica), alguns ajustes são, às vezes, necessários. Este é o
caso da resposta tonal, a qual é usada para que, ao transpor a resposta, não ocorra
modulação para um tom distante.

A Resposta Tonal

A resposta tonal ocorre quando há modificação na transposição do sujeito para a


realização da resposta. Isto se dá quando existe um salto entre primeiro e quinto graus
no sujeito, ou quando o sujeito inicia com o quinto grau.

Observação: A resposta na subdominante (uma quarta acima ou uma quinta


abaixo do sujeito) corre quando o sujeito modula para a dominante, e quando o sujeito
inicia com os graus V-IV-V ou V-IV-III.

A função da resposta tonal é alterar o início do tema, o qual, se não for


modificado, formaria uma progressão de V–V/V, se transposto literalmente, e neste caso
modularia para uma tonalidade muito distante da tônica (de Dó Maior iria para Ré
Maior, por exemplo).
A resposta tonal deve ser utilizada somente nos seguintes casos:
Regra 1. Quando ocorrer um salto de 5ª entre a primeira e a segunda notas do
tema, sendo estas tônica e dominante, respectivamente. Na resposta tonal (transposição
exata ao V grau), a nota mais aguda deste salto é a 5ª abaixada em um grau, resultando a
segunda apresentação do tema numa harmonia sobre o IV grau da dominante, ao invés
de V grau18.
Regra 2. Quando o tema inicia no V grau, sua resposta sempre será tonal e a
primeira nota da resposta precisa ser baixada em um grau.
Regra 3. Um tema modulante (de I para V) pode estar sujeito a maior
modificação tonal pela transposição descendente de seu final por um grau19.

6.1.2. As seções da fuga

A EXPOSIÇÃO

Contra-sujeito: ocorre quando o material da primeira voz que se contrapõe à


entrada da segunda voz também aparece nesta voz logo a seguir. Quando isto não
acontece, este material chama-se contraponto livre.
O aspecto vertical é bastante importante e a voz que terminou de apresentar o
tema (seja o sujeito ou a resposta) precisa cuidar o resultado vertical e sua implicação
harmônica. Podem ocorrer notas estranhas ao acorde, mas a progressão harmônica
resultante precisa ser clara e simples.
O aspecto horizontal da voz que é contraposto à resposta também precisa fazer

18
Em Dó Maior, se o tema inicia com o salto melódico dó-sol (5ª ascendente), a resposta será realizada
com as notas sol-dó (não sol-ré, como seria o caso em uma transposição literal).
19
Em Dó Maior, um tema modulante que tem o final com as notas lá-sol terá sua resposta com as notas
mi-dó (não mi-ré).
66

sentido melódico. Pode usar material derivado do sujeito ou ser completamente novo e
contrastante.

Continuação da Exposição
Depois da apresentação do sujeito e sua resposta (duas vozes entraram até este
momento), o compositor tem 3 opções: (1) entrar com o sujeito em seguida na terceira
voz; (2) entrar com a resposta em seguida na terceira voz (o que é muito raro); (3)
continuar com as duas vozes por mais algum tempo antes da terceira entrada, formando
uma codetta (ponte). Esta última possibilita a volta a um acorde de tônica na entrada da
terceira voz, dando maior ênfase à entrada dessa voz, uma vez que ela demora mais para
iniciar a sua apresentação do tema.
A partir deste momento, o compositor pode: (1) considerar terminada a
exposição se for uma fuga a 3 vozes; (2) reapresentar a resposta na primeira voz; (3) se
for uma fuga a 4 vozes, entrar com a quarta voz.

Finalização da Exposição
Uma vez que todas as vozes foram apresentadas, termina a exposição. A
exposição de uma fuga barroca geralmente termina num acorde de tônica ou dominante.

O EPISÓDIO

A função do episódio é separar as sucessivas apresentações do tema no decorrer


da fuga e aliviar a rigidez de sua forma. Podem durar de poucos a vários compassos.
Também tem o objetivo de modular de um tom para outro.

São comuns nos episódios:


Pontos de imitação – pequenos fragmentos do tema, que passam de uma voz
para outra sem desenvolverem verdadeiros cânones, utilizados para a elaboração de
episódios.

Seqüências – existem vários tipos de seqüência:

1. diatônica ou tonal
2. modulante ou real
3. simétrica
4. parcial ou acompanhada
5. dupla
6. composta
7. canônica
8. com variáveis ascendentes e descendentes
9. cujos membros se contraem vertical ou horizontalmente

Na seqüência modulante cada novo membro seqüenciado aparece em uma


tonalidade distinta. Na seqüência parcial algumas das vozes apresentam seqüências
enquanto outras contém material livre. Na seqüência dupla, duas vozes distintas
realizam duas seqüências independentes que diferem na sua extensão ou direção.
Todos os tipos de seqüência acima têm algo em comum: possuem, no mínimo,
dois membros completos e o início do terceiro. Cada seqüência estabelece algum tipo de
67

desenho ascendente ou descendente que é mantido de forma regular. O intervalo mais


comum de ascendência ou descendência na seqüência é a segunda (seqüência transposta
por graus conjuntos).

A CODA

Nem toda a fuga tem coda. Após a exposição e a realização de episódios


intercalados com novas apresentações do tema em outras tonalidades, a fuga
acadêmica20, para finalizar, precisa apresentar o tema no mínimo em uma voz, na
tônica, antes de finalizar. Feito isto, pode haver uma coda, a qual tem a função de
reforçar a tonalidade, podendo utilizar qualquer material. Em geral o material usado na
coda é derivado de elementos anteriormente apresentados.

6.2. ANÁLISES DA FUGA N° 2 DO CRAVO BEM TEMPERADO

6.2.1. Análise de Richardson21

A fuga como um todo

Antes de estudar os diversos detalhes da fuga, é recomendável considerar sua


composição como um todo, observando desde o modo como uma seção leva à outra e a
maneira como é alcançado o desenvolvimento lógico de cada fuga em particular, até o
modo como se sustenta como uma obra de arte única.
As principais divisões são:
A Exposição,
a seção intermediária e
a seção final (às vezes chamada de ‘recapitulação’).
Na exposição devemos examinar
o sujeito,
a resposta,
o contrasujeito (ou contrasujeitos),
e, em alguns casos, as codettas.
Na seção intermediária devemos procurar as reapresentações do tema em novas
tonalidades e com algumas modificações.
Intercalados entre estas reapresentações ocorrerão episódios, ou divertimentos,
os quais, em alguns casos constituem a evidência proeminente das habilidades do
compositor.

20
Fuga acadêmica, ou fuga escolástica, é aquela que segue rigorosamente os modelos deixados pelos
compositores do Período Barroco, em especial J. S. Bach.
21
Traduzido de: RICHARDSON, 1930, p. 7-15.
68

Na seção final devemos procurar um retorno do sujeito na tonalidade original,


apresentado de um modo ainda mais interessante do que antes, e freqüentemente
seguido por uma Coda.
Com estes objetivos em mente, o estudante deveria analisar cuidadosamente
todas, ou várias, das fugas do Cravo Bem Temperado.
Para mostrar como realizar a análise, uma das fugas do Cravo Bem Temperado
será tomada agora e será analisada a seguir.

Análise da Fuga n.º 2, em Dó menor

A Fuga n.º 1, bela e interessante, não é um modelo útil para o iniciante, tendo em
vista sua estrutura irregular e incomum. A Fuga n.º 2, contudo, servirá de modo
excelente para a análise. Com esta fuga aberta diante de nós, procederemos a análise.
Inicialmente, o sujeito, apresentado pelo contralto, ou segunda voz.:

Este é desenvolvido a partir de uma figura repetida três vezes, seguida por outra
que se subdivide em duas partes.
Observe o ritmo (aqui pode ser afirmado que as barras de compasso são
enganadoras nestas obras, e pode ser duvidoso se Bach as utilizou no mesmo sentido
que os estudantes atuais as realizam. O aluno aprende que ao contar quatro tempos, deve
considerar o primeiro como um tempo fortemente acentuado e o terceiro deve ser
acentuado levemente. Se este procedimento for aplicado a este sujeito, o ouvido
treinado irá se revoltar, pois é claro que os três primeiros grupos estão dispostos no
mesmo ritmo e não poderiam ser acentuados de modo diferente. Freqüentemente,
quando Bach utiliza 4/4 ele irá empregar o primeiro e o terceiro tempos de modo
indiferente em pontos onde ele possivelmente não pretenderia conduzir um efeito
rítmico variado; veja a Fuga n.º 8, onde o sujeito é apresentado no primeiro tempo e a
resposta no terceiro. Seria absurdo supor que isto significaria um ritmo cruzado. Veja-se
também as Fugas n.º 16, 27, 28, 29, 33, 43.
É bom lembrar que as barras de compasso somente chegaram a ser utilizadas de
maneira generalizada por volta do ano 1600, e a intenção na época era simplesmente
indicar o ponto onde as várias partes vocais coincidiam. Bach, nascido em 1685,
certamente compreendia o assunto deste modo, e acreditava que cada uma de suas
linhas melódicas teria seu próprio ritmo. De acordo com idéias modernas, a mesma
indicação de compasso poderia ser 2/4 ou 4/8, e o sujeito de que estamos tratando teria,
então, a extensão de quatro compassos).
Neste momento, chamaremos esta figura

de figura a. A seguinte, figura a2,


69

desenvolve-se a partir da figura a tomando as três últimas notas em movimento


contrário22 [sic]. Assim, o desenho melódico /\ transforma-se em \/. A próxima figura,
a3

é a figura a2 repetida com expansão intervalar. Então, segue-se a figura b

formada por três notas rápidas derivadas ritmicamente do início do sujeito. Esta figura
está dividida em duas partes, estando a segunda em movimento contrário [sic] com
relação à primeira.
Olhe novamente o sujeito completo, e perceba como este inicia na tônica e
termina na mediante. O primeiro acento recai sobre a nota Láb, o segundo sobre a nota
Sol e o último sobre Mib, formando uma linha descendente obtida gradativamente.

Aqui nós temos a lei musical de unidade e variedade ilustrada de um modo


fascinante, a primeira figura sendo apresentada três vezes, com acréscimo de interesse
[pelas repetições variadas], a segunda figura sendo apresentada duas vezes, com uma
mudança por movimento contrário [sic] e um ritmo cruzado.
Os dois próximos compassos: apresentam a resposta no soprano, [primeira voz],
enquanto o contralto, [segunda voz], conduz o contrasujeito

22
O autor, aqui, certamente está se referindo às técnicas de inversão e movimento retrógrado, visto que a
expressão movimento contrário é geralmente utilizada na relação entre diversas vozes (enquanto uma
realiza movimento ascendente a outra desce). N. do T.
70

A resposta é tonal, ou seja, por ser uma transposição do sujeito a um intervalo de


5ªJ ascendente, apresenta uma pequena mudança na linha melódica em * para fazer
com que a nota dominante [da resposta] corresponda à tônica [do sujeito].
O contrasujeito está escrito em contraponto duplo à 15ª (duas oitavas), o que
significa que, quando invertido, o efeito musical será tão satisfatório quanto na posição
original.
Observe que o contrasujeito, ao mesmo tempo em que está perfeitamente
harmonizado23 [sic] com o sujeito, apresenta uma nova melodia tão interessante e
característica quanto o sujeito.
Os dois compassos seguintes: são um interlúdio, que protela a entrada da terceira
voz.

A isto geralmente se chama codetta.


A figura

é obviamente derivada da primeira figura do sujeito com expansão intervalar, sendo


reproduzida três vezes em seqüência por graus conjuntos ascendentes. Esta figura é
acompanhada24 [sic] por

figura retirada do contrasujeito e utilizada em movimento contrário [sic],


acompanhando [sic] a figura a em seqüência, sendo que ambas são rematadas no quarto
grupo, para levar à nova apresentação do sujeito.
Esta codetta está escrita em contraponto duplo à 12ª, ou seja, pode ser invertida à
oitava como é usual, e também à 12ª, transpondo a voz superior 12ª inferior ou a voz
inferior à 12ª superior. Isto é importante e será discutido adiante.

23
Aqui o autor certamente pretende afirmar que o contrasujeito está em relação perfeita com o sujeito,
visto que “harmonizado” não é adequado a uma fuga, que é uma forma contrapontística. N. do T.
24
Outro termo mal empregado. Esta diferença terminológica certamente deve-se à época em que o livro
foi escrito (1929), não estando ainda totalmente uniformizada a terminologia musical. N. do T.
71

Agora, seguindo: o sujeito está no baixo, com o contrasujeito no soprano, como


antes, enquanto o contralto apresenta uma nova linha melódica. O que é esta linha? É
um segundo contrasujeito que se combina com as outras duas linhas em contraponto
triplo, isto é, contraponto escrito de tal modo que qualquer uma das três linhas poderia
ser colocadas em qualquer posição com o mesmo efeito musical. De agora em diante,
estas três linhas serão usadas conjuntamente. (Alguns teóricos chamariam esta de ‘fuga
tripla’25; o nome mais simples seria: fuga com dois contrasujeitos).
Nós chegamos agora à conclusão da Exposição da fuga, onde cada voz já expôs
o sujeito ou resposta na tonalidade da tônica ou da dominante.
A seguir, segue-se o Episódio I:

Aqui o soprano é conduzido com a figura a, imitada à 4ªJ pelo contralto, sendo
que as duas notas

são adicionadas para completar a harmonia. Esta linha é acompanhada [sic] pela figura
b no baixo, que será relacionada com o início do contrasujeito 1. Como há somente três
vozes, o baixo reproduz a figura b, transpondo-a à 6ª inferior e unindo as duas
apresentações por uma nota de passagem. Este compasso inteiro é realizado em
seqüência, um grau abaixo.
Será observado que estas seqüências produzem modulações através de Dó
menor, Fá menor, Sib Maior e Mib Maior, permanecendo nesta última tonalidade.

25
Aqui há outro erro terminológico, pois o termo “fuga tripla” é utilizado quando uma fuga é composta
com três temas (sujeitos) e não com um único sujeito e dois contrasujeitos. N. do T.
72

Neste ponto , o soprano apresenta o sujeito em Mib Maior, a tonalidade relativa


de Dó menor. O baixo apresenta o contrasujeito 1 e o contralto, o contrasujeito 2. As
duas notas adicionais no contralto

são utilizadas neste ponto no episódio que examinamos anteriormente. Há uma pequena
mudança no contrasujeito 2, em que as notas intermediárias são realizadas por
movimento contrário [sic]. Esta sendo uma modificação não essencial.

Em seguida, vem o Episódio II:

Aqui, iniciamos em Mib Maior, havendo uma modulação de passagem para Sib
Maior, finalizando em Dó menor.
Note-se que este episódio é formado pela figura b no soprano, aqui em
movimento contrário [sic], acompanhada [sic] pela figura c; que faz parte do
contrasujeito 2 – sua segunda figura. Esta é utilizada em terças pelo contralto e baixo
com uma seqüência abrangendo um âmbito de 4ªJ inferior, enquanto o soprano realiza
sua seqüência abrangendo um âmbito de 5ªJ superior. Este processo se realiza em um
compasso. Na continuação, em vez de permanecerem na mesma direção, as duas vozes
inferiores realizam a seqüência uma 5ªJ acima, enquanto o soprano realiza uma 4ªJ
abaixo, criando o efeito de um desenho de um compasso duplicado em seqüência um
grau conjunto acima. Aqui podemos admirar outra ilustração de maestria de unidade e
variedade. O material utilizado inclui somente dois tempos do compasso; o modo como
é tratado proporciona interesse para a construção de oito tempos [dois compassos].
Agora, segue-se:
73

Aqui a resposta no contralto, contrasujeito 1 no soprano e contrasujeito 2 no


baixo. Este último contrasujeito é ouvido pela primeira vez na parte inferior. No
primeiro tempo do compasso 17 há uma cadência em Sol menor.
O Episódio seguinte é tão longo quanto o primeiro e apresenta um interesse
peculiar.

Episódio III:

O baixo agora possui a figura a e o contralto, a figura b. Se o leitor voltar à


codetta, compasso 5, verá que temos aqui duas linhas melódicas invertidas em
contraponto duplo à 12ª. O soprano duplica as primeiras três notas em terças,
enriquecendo a harmonia.
Como ocorreu na codetta, estas figuras combinadas são reproduzidas em
seqüência duas vezes, durante seis tempos. Há falsas relações26 que são justificadas pela
seqüência; seriam impossíveis de outro modo.
O material do compasso 17 à metade do compasso 18 é, agora, reproduzido
desde a segunda metade do compasso 18 até o final do compasso 19: o contralto
apresenta a figura a, mas a inversão [do contraponto] não é mais à 12ª, agora ocorre à

26
A falsa relação é o movimento de semitons cromáticos entre notas de vozes diferentes. Por exemplo,
nesta fuga, o contralto toca Sib no terceiro tempo do compasso 19, enquanto o soprano toca, no mesmo
tempo, Si natural. Note-se que meio tempo antes, o baixo também fazia Sib. A falsa relação era
terminantemente proibida nos tratados de contraponto do século XVIII. N. do T.
74

oitava. Examine isto cuidadosamente. Todo o trecho é transposto à 5ªJ inferior,


resultando em uma modulação de volta à tônica original, tonalidade na qual a seção
final será realizada.

Aqui o sujeito é apresentado pelo soprano, o contrasujeito 1 no contralto e o


contrasujeito 2 no baixo. Note-se que esta é uma nova disposição das duas linhas
[contralto e baixo].
Agora, segue-se o Episódio IV, do compasso 22 à metade do compasso 26. Este
subdivide-se em duas seções. A primeira:

Até este ponto nós simplesmente tivemos o Episódio I transposto à 5ªJ inferior.
A isto, agora, são adicionados mais dois compasso e meio nos quais os seguintes
artifícios são apresentados:

Aqui, a figura b permanece no baixo. O soprano apresenta a figura d, derivada


de a, com resposta no contralto em imitação à 4ªJ. No compasso 25, a figura a aparece
em uma nova forma, com o salto de 6ª, em vez de voltar para cima, movimenta-se para
baixo. Isto é reproduzido duas vezes em seqüência um grau conjunto acima, juntando-se
à figura b, inicialmente em movimento contrário [sic], em seguida em movimento direto
[sic], levando à harmonia de sétima de dominante.
Agora segue-se:
75

Aqui nós temos o sujeito no baixo, enquanto as duas vozes superiores


apresentam os dois contrasujeitos. Há aqui, contudo, uma irregularidade. Ao comparar
este trecho com o compasso 7, notar-se-á que o contrasujeito 1 é apresentado pelo
soprano, passando em seguida para o contralto, enquanto o soprano segue com o
contrasujeito 2. Este procedimento é claramente realizado para obter variedade,
evitando que estes compassos apresentem uma reprodução exata de apresentações
anteriores. De passagem, note-se que o sujeito inicia-se, aqui, no terceiro tempo do
compasso, em vez do primeiro, fornecendo outra ilustração daquilo que havíamos
referido no início deste capítulo. Evidentemente, aqui não se trata de ritmo cruzado. O
sujeito termina com uma cadência invertida, seguida por uma extensão que leva a uma
conclusão enfática:

Estes três compassos são a única parte da fuga que apresenta material
independente, não sendo derivado do sujeito ou dos contrasujeitos. Assim finaliza a
fuga, como uma obra estritamente contrapontística. O compositor, contudo, adiciona
uma Coda em estilo livre com o sujeito no soprano, desta vez harmonizado de maneira
homofônica:

O baixo sustenta um pedal de tônica. A voz intermediária não apresenta uma


linha contrapontística, mas simplesmente preenche os acordes conforme pode ser
convincentemente tocado pela mão direita.
76

Note-se que a cadência final possui a terça no soprano. Esta é uma 3ªM
(picardia), seguindo a velha regra anterior aos dias de Bach que proibia a conclusão de
uma peça musical com uma terça menor.

6.2.2. Análise de Benjamin27

Análise de uma fuga completa

É necessário ante de iniciar a composição de uma fuga inteira, analisar várias


fugas de Bach para descobrir como as técnicas que estudamos operam em conjunto para
produzir uma obra unificada e convincente. Aqui, como uma amostra, está uma análise
da Fuga N.º 2 do Cravo Bem Temperado, mostrando o material temático, as divisões em
seções e seqüências. Nesta análise28, (S) indica material episódico derivado do S; (CS)
indica material derivado do CS.

27
Traduzido de: BENJAMIN, 1986, p. 270-275.
28
As abreviações vão como segue: S: sujeito; R: resposta (na partitura: A, do inglês Answer); CS:
contrasujeito; Exp.: Exposição; Rp.: Reapresentações, ou Reexposições (na partitura: ME, do inglês
Middle Entries, que significa Entradas Intermediárias); Ep. Episódio; Recap.: Recapitulação; CAP:
Cadência Autêntica Perfeita (ambos acordes estão em estado fundamental, ou em posição de tônica no
soprano); CAI: Cadência Autêntica Imperfeita (acorde de tônica não está em estado fundamental, ou não
tem a tônica no soprano); c.: compasso (no gráfico: m., do inglês measure); m.d.: mão direita; m.e.: mão
esquerda.
77
78
79

O seguinte quadro é uma breve descrição dos principais eventos temáticos desta
fuga:

COMPASSO DESCRIÇÃO DOS ACONTECIMENTOS


c. 1-2 S na segunda voz
c. 3-4 R tonal na 1ª voz; CS na 2ª voz (contraponto duplo)
c. 5-6 Codetta em seqüência, em contraponto duplo
c. 7-8 Modelo completo desta fuga; contraponto triplo:
CS1 [na 1ª voz]
CS2 [na 2ª voz]
S [na 3ª voz]
c. 9-11 Ep. I; contraponto triplo
c. 11-12 Reexp. I:
S [na 1ª voz]
CS2 [na 2ª voz]
CS1 [na 3ª voz]
c. 13-14 Ep. II; 1ª voz relacionada com 3ª voz (ver c. 9-10), por inversão
c. 15-16 Reexp. II:
CS1 [na 1ª voz]
R [na 2ª voz]
CS2 [na 3ª voz]
c. 17-19 Ep. III, uma reelaboração em contraponto triplo da codetta; note-se a troca
de vozes no c. 18; frase de 3 compassos
c. 20-21 Recapitulação:
S [na 1ª voz]
CS1 [na 2ª voz]
CS2 [na 3ª voz]
c. 22-26 Ep. IV, transposição do Ep. I
c. 25-26 Reelaboração livre de materiais motívicos
c. 26-28 Última entrada completa [nas três vozes]:
CS1 [na 1ª voz]
CS2 [na 2ª voz]
S [na 3ª voz]
c. 29-31 Coda com pedal de tônica [e tratamento homofônico do tema, na m.d.]

Há uma multiplicidade de detalhes admiráveis nesta obra; somente alguns serão


discutidos aqui. O entrelaçamento de seções, nos c. 11 e 20 (onde episódios se
sobrepõem a reapresentações), é notável, assim como também é impressionante a troca
de material entre as vozes nos c. 18 e 26-27. O fato de a obra inteira ser concebida em
contraponto duplo e triplo significa que a Exp. e o Ep. I contém virtualmente todo o
material motívico-contrapontístico da peça; esta é uma fuga organizada de forma
extremamente sólida. O modelo de contraponto triplo invertido para esta obra pode ser
encontrado nos c. 7-8, que dão origem aos c. 11-12, 15-16, 20-21 e 26-28. A codetta é a
base para o Ep. III e, possivelmente, para os c. 25-26. O Ep. I é o modelo para o Ep. II
(parcialmente) e para o Ep. IV.
80

Há, ainda, breves passagens de algum material temático livre (embora estes
materiais estejam motivicamente relacionados a S e CS), o que é necessário a uma obra
de arte, prevenindo-a de se tornar seca, ou um mero exercício acadêmico. Veja-se c. 25-
26 e 29, e, em alguma extensão, a Coda.
A estrutura fraseológica é bastante regular. O S de dois compassos impõe sua
extensão [de tempo] à organização frasal. Todas as frases têm a duração de dois
compassos (mais um tempo no terceiro compasso) até o Ep. III, c. 17-19, o qual contém
uma variação sumamente necessária na estrutura das frases e evita uma total quadratura.
O Ep. IV possui uma extensão de quatro compassos e meio, o que significa que o S
entra (inicialmente) no terceiro tempo, em vez de entrar no primeiro tempo (c. 27), e a
cadência final recai sobre o terceiro tempo. Assim tanto a extensão da frase quanto o
metro são deslocados.
As modulações são alcançadas suavemente. A modulação para a tonalidade
relativa pode ser entendida como sendo obtida através do acorde comum (pivô) no c. 10,
embora a natureza seqüencial desta passagem obscureça, de certa forma, o momento da
modulação. A mudança para Sol menor ocorre por volta do c. 15, com a entrada da R na
dominante. O retorno a Dó menor é alcançado de modo muito sutil na seqüência da
passagem do c. 18-20; pode-se dizer que esta é uma modulação pela linha estrutural e
por meio de seqüência.
As derivações de materiais utilizadas na codetta e nos episódios são muito
claras. Há pouca transformação temática além das inversões melódicas (c. 13-14, na 1ª
voz) e não há stretto. A obra está quase inteiramente baseada na técnica de contraponto
duplo e triplo.
A seguir, há um gráfico de aspectos gerais da obra:

Exp. Ep. I Rp. I Ep. II Rp. II Ep. III Recap. (Rp. III) Ep. IV Rp. IV Cad CODA||
1-9 9-11 11-13 13-15 15-17 17-20 20-22 22-26 26-28 28-29 29-31
dó (sol)......... Mib.....................(dó) sol......................dó......................................................................................
CAP CAP CAI

A estrutura é binária29:

SEÇÃO I SEÇÃO II (incluindo a Coda)


1-17 17-31
tons: Dóm MibM Solm Dóm

17 compassos 15 compassos

O seguinte exemplo mostra uma redução dos c. 1-13, apresentando a


organização estrutural das alturas e a importância do círculo de quintas nos episódios.

29
Esta forma é também chamada de bipartida, para diferenciá-la da forma binária das danças barrocas. N.
do T.
81

Esta redução, apenas um entre vários caminhos possíveis de compreensão da


estrutura fundamental das alturas, mostra o quanto unificada e direcional é a
organização linear desta peça. Os episódios, em função de sua natureza seqüencial, são
tipicamente organizados deste modo. Do início ao fim da peça, pode-se ouvir a
importância dos graus conjuntos em âmbito de terças, especialmente os conjuntos de
notas Mib-Fá-Sol e Sol-Fá-Mib. Este conjunto de notas está marcado no exemplo com
colchetes. Observe-se a importância linear e tonal da nota mediante Mib. Os principais
deslocamentos de tônica-dominante e graus de chegada estão indicados no gráfico.
Estas estruturas de alturas primárias estão prolongadas ou preenchidas com o repertório
usual de notas secundárias (graus conjuntos, notas de passagem e padrões no círculo das
quintas). Desta forma, ocorre, como sempre, a combinação de um contraponto e uma
superfície temática coerentes com uma estrutura linear altamente direcionada que faz
com que esta obra se torne tão convincente.

6.3. GLOSSÁRIO DE TERMOS APLICADOS À FUGA

cancrizans ocorre quando um sujeito é re-exposto em movimento retrógrado.


codetta finalização de uma seção intermediária, na fuga geralmente ocorre no
final da exposição.
comes termo conseqüente de um cânone (latim), também utilizado como
resposta de uma fuga.
contra-exposição seção que geralmente segue o primeiro episódio,
apresentando o sujeito e a resposta nas tonalidades originais (tônica e dominante),
normalmente com os mesmos contrapontos da primeira exposição. A principal diferença
da contra-exposição está na ordem de entrada das vozes, que não é a mesma da
exposição.
contrafuga expressão que designa uma fuga na qual a primeira resposta é uma
inversão do tema (ou sujeito); o tema invertido então figura na fuga como um todo.
82

Pode também, em obras como A Arte da Fuga, de J. S. Bach, significar uma fuga com
outro tema que não o principal, que é introduzido como um contraponto ou um cantus
firmus.
contraponto livre contraponto realizado com material livre, ou seja, não
derivado do sujeito, da resposta, do contrasujeito, ou de qualquer segmento importante
da fuga.
contrasujeito (tb. contratema, comes) contraponto recorrente ao sujeito, ou
seja, material temático secundário que aparece contraposto ao sujeito na exposição.
Alguns autores consideram que o contrasujeito deve aparecer pelo menos duas vezes na
exposição.
dux termo antecedente de um cânone (latim), também utilizado como sujeito de
uma fuga.
episódio (tb. divertimento) seção intermediária em que o sujeito não é
apresentado completo. O episódio ocorre sempre entre duas seções de apresentação do
sujeito, tendo por função criar contraste e/ou desenvolver os materiais apresentados nas
exposições. São características das elaborações de episódios: modulação, fragmentação
temática, imitação motívica e canônica, seqüenciação e intensificação contrapontística.
exposição (tb. apresentação) seção de abertura da fuga, na qual o sujeito é
exposto em todas as vozes, alternadamente.
fuga acompanhada tipo de fuga comum na música vocal, em que a exposição
do tema tem acompanhamento instrumental.
fuga dupla fuga com dois temas (ou sujeitos); por extensão: fuga tripla é a
fuga com três temas, fuga quádrupla é a fuga com quatro temas.
fuga de permutação fuga sem episódios.
fugato passagem ou seção em estilo fugal em uma obra com outra forma que
não a da fuga.
fughetta pequena fuga, geralmente com material simples e poucas vozes. O
termo é utilizado também para fugas longas construídas com temas leves e rápidos.
recapitulação seção final da fuga, em que o sujeito é re-exposto na tônica após
sofrer várias transposições e modulações.
resposta entrada do tema na dominante (ou, ocasionalmente, em outra
tonalidade). Alguns autores aplicam este termo somente para a exposição, considerando
como sendo sujeito as entradas do tema fora da tônica nas seções subseqüentes.
reexposição (tb. reapresentação, entrada intermediária) seção em que o
tema retorna após a exposição, geralmente ocorre entre episódios.
stretto entrada do tema nas diversas vozes em superposição. As entradas em
stretto podem ocorrer em qualquer ponto do tema, em qualquer intervalo. São comuns
os stretti em inversão, retrógrado, aumentação ou diminuição rítmica. Há dois tipos
especiais de stretto: 1. o stretto maestrale, no qual todas as vozes participam; 2. o falso
stretto, no qual uma das vozes não apresenta o tema completo.
sujeito (tb. tema, dux) material principal da fuga, apresentado na tônica na
abertura da obra. Alguns autores consideram como sujeito somente as apresentações do
material principal na tônica, diferenciando-o, então, de tema, que seria qualquer
entrada em qualquer tonalidade. Outros teóricos da fuga referem-se ao sujeito como
sendo qualquer apresentação do tema principal, diferenciando-o da resposta (entradas
em outras tonalidades) somente na exposição.
83

7. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRELÚDIO

7.1. ASPECTOS ELABORADOS NO PRELÚDIO30

7.1.1. Elaboração Melódica

a) princípio de oposição: tensão/relaxamento


b) formulação matemática (simetria, proporções)
c) construção de frases
d) seqüênciação melódica
e) justaposição de diferentes melodias

7.1.2. Elaboração Harmônica

a) princípio de oposição: tensão/relaxamento


b) apresentação tonal: I - V - I
c) elaboração tonal: modulações, ciclo de dominantes, círculo de quintas

7.1.3. Elaboração de Variações

a) repetição de padrões motívicos


b) repetições diferenciadas de padrões (variantes)
c) variações em todos os parâmetros: altura, duração, intensidade, timbre
d) organização de variações no tempo, conforme: inter-relações com outros
elementos de organização geral da obra, elaboração tonal, elaboração
melódica, oposição
e) organização matemática: simetrias, relações proporcionais

7.1.4. Oposição/Contraposição

a) oposição de materiais melódicos, motívicos ou temáticos


b) oposição de contornos ou densidades melódicas
c) oposição de segmentos, partes ou seções
d) oposição harmônica: acordes diferentes, escalas diferentes (pentatônica,
hexatônica, diatônica, octatônica, cromática, etc.), tonalidades diferentes,
modos diferentes,
e) oposição de timbres ou texturas
f) oposição rítmica ou métrica: hemiólia, mudança de compasso, figuras
rítmicas contrastantes, quebra da continuidade

30
Texto elaborado a partir de estudos realizados por Jeferson Gross com base na análise dos prelúdios de
J. S. Bach (obras analisadas: suítes para cravo, alaúde e violoncelo; partitas para cravo e violino; O Cravo
Bem Temperado).
84

7.1.5. Organização Temporal

a) justaposição imediata de materiais


b) organização por simetria ou assimetria
c) organização por frações proporcionais ou não proporcionais de tempo
d) estrutura métrica ou não métrica
e) articulação da obra em partes ou seções: forma contínua, bipartida, tripartida,
ou organização em formas fixas (A B; A B A; A B A C A)

7.1.6. Texturas típicas encontradas

a) monofonia
b) homofonia, melodia acompanhada
c) polifonia
d) heterofonia
e) mistura de diferentes texturas

7.1.7. Tensão e Relaxamento no Plano Geral

a) elementos que geram tensão no plano geral: fragmentação melódica,


modulação, contraposição de elementos (por justaposição ou superposição),
intensificação contrapontística, seqüenciação, instabilidade harmônica,
níveis extremos de registro, cadências em acordes de tensão
b) tensão máxima geralmente ocorre no terceiro quarto da obra
c) relaxamento final: volta à tonalidade principal, linha melódica com contorno
descendente, volta a materiais do início, figuras rítmicas de maior duração,
cadência em acordes de repouso, repetição dos mesmos acordes ou
encadeamentos harmônicos

7.2. TIPOLOGIA DE PRELÚDIOS NA OBRA DE J. S. BACH

a) Prelúdio arpejado: com forma contínua, em que um padrão fixo de arpejo


permanece durante longo período de tempo
b) Prelúdio em forma de invenção: com estrutura contrapontística imitativa,
porém mais livre que a fuga
c) Prelúdio estilo coral: com estrutura homofônica predominante e blocos de
acorde; existem os prelúdios corais para órgão, onde uma melodia luterana é
elaborada por meio de variações harmônicas e contrapontísticas e
apresentada em situações religiosas
d) Prelúdio com estrutura de toccata: geralmente em duas partes contrastantes,
em que a primeira parte tem caráter improvisatório, com alternância de
acordes em bloco e escalas rápidas, e a segunda parte apresenta estrutura
contrapontística de caráter imitativo
e) Prelúdio com referência às danças: com elementos retirados de determinada
dança, como sua organização rítmica, forma binária e estrutura harmônica
típica: I – V | V – I ||
f) Prelúdio em forma de moto perpetuum: em que um padrão rítmico melódico
permanece durante longo período de tempo
85

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