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Os Templários e o Islão (lição de história ecuménica)

Por Vitor Manuel Adrião

Uma das acusações de maior peso no processo contra os Templários, sem dúvida, terá
sido a das sua relações próximas com o Islão, que mais que heresia religiosa era
politicamente um imperdoável pecado capital para o imperialismo de Roma. Por isto, mais
que as controversas acusações de bruxaria e sodomia, foi esta acusação claramente
política quem mais pesou na abolição assassina da Ordem do Templo. O papado e os reis,
seus vassalos, não podiam permitir que houvesse intimidades com o agareno, alegando o
risco desse atraiçoar quaisquer tratos e contratos com os cristãos e vir a perder-se os
territórios e suas riquezas duramente conquistados na Terra Santa, e mesmo na Europa
Ocidental. De maneira que, receoso e só tendo a calúnia para se defender e sobretudo
ofender, o eclesiástico romano considerava inadmissível em toda a linha que um bom
cristão pudesse conviver com um perro infiel.

A fonte original dessa acusação dos Templários terem se tornado mais islâmicos que
cristãos, assim atraiçoando e até renegando a Fé católica que os legitimava e o seu chefe
supremo, o Papa, foi Frederico II Hohenstaufen (1194-1250). Ele fora educado em sua
menor idade pelos Templários (que repetiram a experiência com Jaime I de Aragão e Dinis
I de Portugal), por cujos documentos sobreviventes desse tempo fica demonstrado que o
pretendiam utilizar para fins de natureza sinárquica. Porém, já desde 1210 o rei e futuro
imperador encaminhava por sua conta e risco esse ideal, mal compreendido e pior
realizado, através de uma política expansionista por força das armas, o que lhe acarretou a
inimizade do Templo e a hostilidade do Papado – Gregório IX excomungou-o de 1227 a
1229, e Inocêncio IV fez o mesmo em 1245. 

Em 1229 Frederico II coroou-se rei de Jerusalém, após ter negociado com os muçulmanos
sunitas do Egipto a rendição e entrega incondicional da Cidade Santa, em prejuízo do
espírito messiânico de conquista que havia inspirado as anteriores expedições de cruzados
e completamente à margem da legalidade pontifícia. Nunca obteve o reconhecimento
como rei de Jerusalém por parte dos Templários e nem tampouco do sultão do Egipto, que
aqueles deverão ter auxiliado secretamente a surpreender e a vencer no campo de
batalha o autonomeado rei de Jerusalém, na realidade, um rei-fantoche possuído do título
mas não do reconhecimento oficial tanto do Papado como do Califado. Ficou-lhe o ódio e
o desejo de vingança, a qual viria a consumar pela acusação da Ordem do Templo
conspirar com o Islão, na Terra Santa, contra a Cristandade. Todos sabiam que Frederico II
sempre fora péssimo cristão e excelente oportunista político, mas Filipe, o Belo, e
Clemente V necessitavam de mais esse conspirador de peso, mesmo que o detestassem
pessoalmente, no seu processo contra o Templo[1].

Frederico II Hohenstaufen cerca de 1240. Biblioteca Vaticana

Durante o julgamento em Paris dos cavaleiros da Ordem Templária, foi invocado contra
eles o episódio daquele guerreiro cristão franco recém-chegado a Jerusalém que os
Templários repreenderam por ter molestado um árabe durante a sua oração, episódio que
fora narrado em primeira mão pelo próprio molestado, o príncipe Usama ibn Munqidh,
embaixador do sultão de Damasco cerca de 1175, considerado um amigo do Templo:
“Quando estava em Jerusalém – escreveu Usama – costumava ir à mesquita Al-Aqsa, a
Cúpula da Rochedo, ao lado da qual há um pequeno oratório que os francos converteram
em igreja. Sempre que entrava nela, que estava em poder dos Templários que eram meus
amigos, eles colocavam o pequeno oratório à minha disposição, para que eu pudesse rezar
lá as minhas orações. Um dia, tinha entrado e dito o Allahu akkbar e preparava-me para
me levantar quando um franco se atirou a mim pelas costas, levantou-me e virou-me para
que eu ficasse voltado para oriente. ‘É assim que se reza!’, disse. Alguns Templários
intervieram imediatamente, agarraram o homem e afastaram-no do meu caminho. Mas
assim que o deixaram ele agarrou-me de novo, obrigou-me a virar para o oriente e repetiu
que era assim que se rezava. De novo os Templários intervieram e levaram-no. Pediram-
me desculpa e explicaram: ‘É um estrangeiro que só chegou hoje e nunca viu ninguém orar
para qualquer outra direcção que não fosse para oriente’. ‘Terminei as minhas preces’,
respondi e saí estupefacto com o fanático.”

A acusação de amizades e até filiação encapotada ao Islão é ainda mais apertada quando
se aponta a indesmentível simpatia dos Templários pelo Xiismo ismaelita, mormente as
suas relações com esses “assassinos” fumadores inveterados de “haxixe” (invenção
oitocentista que pegou universalmente, diga-se de passagem), ou seja, aqueles da Ordem
dos Assacis (no singular árabe, assa, “guardião”) ou Ashashins (no plural
árabe, hashîshiyya, “ervanários”, ordinariamente “assassinos”; e “ervanários” certamente
com o duplo sentido do que seriam: “médicos” e “vegetarianos”), a sua pressuposta “irmã
gémea”, fundada no Cairo em 1090 e terminada em 1271.

Além de darem a entender nada saber de política diplomática ultramarina, os inquisidores


ainda percebiam menos do sentido último e supremo das relações do Templo com o Islão.
O tempo de duração dos Assacis e a sua actuação foram praticamente idênticas às dos
Templários, havendo mesmo uma complementaridade entre ambos e que só se pode
explicar à luz da Tradição Primordial representada por ambas as Milícias, como que
demandando uma maior aproximação, e mesmo fusão, socioespiritual do Oriente com o
Ocidente à luz de um mesmo Espírito Salvífico, apesar de sob nomes diversos. Ademais,
tanto os Templários como os Assacis proclamavam-se abertamente Guardiões da Terra
Santa e Assassinos da Heresia. Eis duas intenções aproximativas de ambos e,
principalmente, explicativas do sentido real do apodo depreciativo dos segundos.
Oriunda do Xiismo, a Ordem dos Assacis constituía-se o ramo esotérico, sufítico, e
militar do Ismaelismo. Derivava do movimento dos Nizâristas e mantinha-se fiel à
autoridade do primogénito do califa fatimida Al Mustansis, executado em
Alexandria no século XI (1094). Fugidos do Egipto, os Assacis estabeleceram-se no
Norte do Irão, no seio do maciço montanhoso de Elbrouz, na fortaleza de Alamût,
e depois na fortaleza de Masyaf, perto de Hamah, na Síria, estruturados como
sociedade fechada, secreta, sob a autoridade de um Mestre incontestado,
o Sidna, “Senhor”, ou Cheikh el Djebel(ou Djabal, o “Todo-Poderoso”,
prerrogativa do Arcanjo Mikael, Miqaïl ou Miguel) que era Hassan Al Sabah, o
“Velho da Montanha” (Alborj, a “Montanha Primordial”, assim se associando ao
Monte Meru dos hindustânicos),  tendo travado uma luta sem quartel contra o
Sunismo, seu inimigo mortal, utilizando sistematicamente o terror político e
militar que lhe granjeou a má fama perdurando até hoje[2].

É facto provado que a Ordem do Templo sempre privilegiou mais o Xiismo, mais
místico e aberto, que o Sunismo. Como diz Bernard Marillier[3], “uma coisa é
certa: a Ordem dos Assacis desenvolve-se à medida das conquistas cristãs e da
implementação das fortalezas templárias, o que não foi obra do acaso, mas devia
corresponder a um movimento paralelo, de ordem material e sobretudo espiritual
ou supra-espiritual tendo por objectivo a realização de um “grande desejo”
ligado a dados precisos provenientes da Tradição Primordial. De resto, é provável
que o Templo tenha compreendido toda a vantagem que poderia tirar de uma
aliança com os Assacis, primeiro contra os príncipes cristãos que se opunham ao
seu poder no Oriente, donde o assassinato pelos Assacis do filho de Raymond de
Tripoli, hostil ao Templo, aliança comum contra o príncipe de Antioquia – pela
qual os Templários foram censurados pelo Papa Gregório IX em 1236 –, a seguir,
na luta contra o seu inimigo comum, o Sunismo, por razões certamente
diferentes: razões doutrinais para os Assacis, razões políticas e diplomáticas para
o Templo: tratava-se, para este, de enfraquecer a corrente maioritária do Islão,
logo, de afastar quanto possível a ameaça sobre o Oriente cristão mas também
sob o seu próprio projecto de domínio da Terra Santa. […] Estas relações eram
reforçadas pelos múltiplos laços que o Templo tecia pela via das relações
económicas e financeiras e, como já vimos, por uma intensa actividade
diplomática visando criar um espaço político e religioso cristão coerente, ou seja,
um vasto conjunto unificado supra-espiritual. Estabeleceu numerosos tratados e
acordos com os poderes muçulmanos e foi muitas vezes solicitado por estes como
garante dos tratados assinados entre eles e os cristãos porque, como escrevia o
cronista Aboul Faradj, os Templários eram “considerados como homens puros,
incapazes de faltar à sua palavra”. Recordemos que foi graças aos conselhos do
Mestre Robert de Craon e graças à sua amizade com o sultão de Damasco que o
rei de Jerusalém, Foulques IV d’Anjou, conseguiu estabelecer uma aliança contra
o sultão de Bagdad. […] Sublinhemos enfim outras estranhas semelhanças entre
as duas Ordens: um mesmo período de duração no tempo, uma prática iniciática
quase idêntica – onde só os nomes mudam, não o fundo – devido ao facto de que
ambas se ligam a uma tradição implicando uma iniciação cavaleiresca da mesma
natureza e a unicidade do sagrado que, para além das suas manifestações
contingentes, permanece análogo no tempo e no espaço, e enfim uma destruição
súbita perpetrada pelos poderes instituídos, os Mongóis e o sultão do Egipto
Baibar para os Assacis em 1271, o rei de França Filipe IV o Belo e o Papa
Clemente V para os Templários em 1312″.

Castelo e cidade de Alamût, Irão, centro principal da Ordem dos Assacis

Aparte as manobras políticas e militares do tempo, a verdade é que os Assacis em


tempo algum foram sinónimo de “assassinos” e “fumadores de haxixe”. Esses
epítetos caluniadores não vão além do século XIX, como já disse, e têm origem
que poderia ser cómica se não pegasse a mentira dramática. Com grande
propriedade, escreveu Chema Ferrer Cuñat[4]:
“Após a morte prematura do Iman Ismael – filho de Abraão através de Agar, serva
de sua esposa Sara –, o seu irmão ficou com o poder em detrimento do filho de
Ismael. Uma parte importante do Xiismo defendeu a legitimidade deste filho e
assim nasceu o Ismaelismo. O movimento teve que manter-se na clandestinidade,
sobretudo pela concepção esotérica e heterodoxa que mantinham na prática
religiosa. Os ismaelitas defendem a existência de um sentido esotérico do Corão,
que só se comunica àqueles que pertencem aos graus superiores da iniciação. Daí
que também sejam conhecidos como batiniyya (de batin, “esotérico”)
e talimiyya (de talim, “doutrina”).

“No ano 969 os ismaelitas alcançam o poder através da dinastia fatimida, que
governará no Egipto durante mais de dois séculos. Isto colocará um grave
problema, já que o delineado básico da sua religião não estava concebido para
converter-se num culto aberto, oficial e exotérico (externo), e ainda menos para
que fosse susceptível de chegar a todas as camadas da sociedade muçulmana.

“Esta corrente ismaelita sofrerá ainda mais uma cisão, no ano 1094, pouco antes
da chegada dos cruzados ao Oriente, quando os sucessores do califa fatimida Al
Mustansis (c. 1038-1094) se enfrentavam pelo poder. Surgem assim os Nizâristas,
partidários de Nizâr, um dos filhos do califa fatimida. Muitos dos seguidores do
Iman Nizâr acharam refúgio na fortaleza de Alamût, nas montanhas do Irão. Deste
grupo de Nizâristas se constituiu a seita conhecida no Ocidente como a dos
Assassinos.

“O fundador da seita dos Assassinos, em 1090, foi o carismático Hassan Al Sabah,


conhecido como o “Velho da Montanha”.

“A chamada “seita dos Hashshashin” ou Assassinos derivou do Ismaelismo (Xiismo


Septimano) e das doutrinas dos Sufis, consideradas desviadas e heréticas pelo
Islão. Estavam também imbuídos do esoterismo greco-alexandrino, ou seja, do
hermetismo e do neoplatonismo. Foi tal a sua fama que até o mesmíssimo Marco
Polo (c. 1254-1324) relatava a Rustichello de Pisa, o escritor que plasmou as suas
viagens no Livro das Maravilhas do Mundo, quem eram aqueles misteriosos
cavaleiros islâmicos. Foi tanta a sua popularidade, por cometerem crimes e
magnicídios entre os personagens mais relevantes do seu tempo, que, segundo
outras teorias, o apelativo de hashshashin ou hashashiyyin (fumadores de haxixe,
ou drogados em haxixe) derivou para o conceito de “assassino”. Ainda que o
significado deste vocábulo estivesse vinculado ao de “comedores de erva”, a
fama daquelas gentes desviou-se para o sentido que se lhe deu na Europa: em
numerosas línguas ocidentais, um “assassino” é o criminoso que comete um
homicídio. Resta assinalar, sem dúvida, que aos membros desse exército secreto
que no Oriente também eram chamados ghulat (“fanáticos”) pelos seus inimigos,
e que no Ocidente ficaram conhecidos como Assassinos, não se lhes fez de todo
justiça. Parece que Marco Polo se confundiu ao ouvi-los chamar hashshashin.
Acreditou o célebre viajante e comerciante veneziano que tal denominação se
devia a que o seu cruel fanatismo era estimulado pelo consumo de haschis. Daí se
derivou, nos romances de várias línguas, a palavra “assassino”. Porém, a verdade
parece ser outra. “Se acreditarmos no grande escritor de origem libanesa Amin
Maalouf, em seu livro magistral Samarcande, a palavra provém da forma como
Hassan Al Sabah costumava chamá-los: Assasiyoum, ou seja, fiéis a Assa, que é
dizer, ao fundamento da Fé. Eram também chamados os Fidaï, ou seja, “os que
se sacrificam”.” (Cf. Manuel Caballero, O Velho da Montanha, in El Universal, 23
de Setembro de 2001). Portanto, uma forma mais correcto de denominá-los
seria Assasis ou Assacis.

“Para os ismaelitas, a visão que se tem no Ocidente da suposta «seita dos


Assassinos» é uma visão alterada e caluniosa. Abdelkarim Osuna afirma que o
Ismaelismo Reformado de Alamût foi “um movimento de iniciação e cavalaria
espiritual de beleza e amplidão comparáveis ao de S. Francisco de Assis, porém,
pelo que se vê uma e outra vez, manchado pela necessidade de algumas mentes
em tornar tenebroso o que não se compreende”. E acrescenta: “A lenda negra de
Hassan Sabbah tem sido repetida numerosas vezes desde que foi recolhida por
algumas crónicas cruzadas e por Marco Polo. Segundo relata Henri Corbin na
sua História da Filosofia Islâmica, foi resgatada por Von Hammer-Purgstall no
século XIX (Geschichte der Assassinen), o qual transferiu a sua obsessão pelas
sociedades secretas aos fatimidas, e “atribuiu-lhes todos os crimes que na Europa
atribuíam aos franco-maçons ou aos jesuítas”. Ele inventou o termo “seita dos
Assassinos”, e a partir daí produziu-se uma etimologia quase cómica: S. De Sacy,
em sua Exposé sur la religión des Druzes, sustém que “assassinos” provém
de hashshashin: consumidores de hashish” (Abdelkarim Osuna, Fantasias sobre “o
Velho da Montanha”, in Webislam núm. 144, 20 de Outubro de 2001). Teríamos,
portanto, que “os Assassinos” na realidade representariam o arquétipo de
“Guardiões da Terra Santa” dentro do mundo Islâmico, o mesmo que
representariam os Templários dentro do Cristianismo.”

O estabelecimento de relações da Ordem do Templo com a Ordem dos Assacis


parece remontar a 1118, ainda em vida de Hugues de Payens, pois é nesta data
que se estabelece um tratado secreto através do qual o Mestre ismaelita se
compromete a entregar Damasco a Balduíno II em troca da cidade de Tiro, com a
garantia do Templo. Com o tempo estreitaram-se os laços entre ambas as
Milícias, pois numerosos cronistas cristãos e muçulmanos assinalam visitas
frequentes de dignatários templários a Alamût, contudo sem se saber que nível
atingiam esses contactos e quais os fins visados, adianta Bernard Marillier (in ob.
cit.).

Mas o que se sabe e é incontestável, é que mesmo não sendo alterados os


princípios fundamentais da teologia católica pelo Templo, ainda assim muita
metafísica islâmica veio a influenciá-la com conhecimentos e interpretações mais
amplas e profundas, de onde a origem ultramarina do Hermetismo Templário
certamente recebido dos Assacis e do Iman Madhi Al Sabah, representante directo
da Tradição Primordial, isto é, da Sabedoria Iniciática das Idades. Paul du Breuil
não deixou de notar[5]: “Os Templários foram rapidamente influenciados pela
filosofia exótica [antes devera dizer, esotérica] e isto foi notado no processo,
quando os inquisidores denunciaram práticas e conhecimentos heréticos,
maometanos, maniqueístas e zoroastristas”.
Corte de Hassan Al Sabah, o “Velho da Montanha”

Havia, com efeito, várias semelhanças flagrantes entre as estruturas hierárquicas


dos Templários e dos Assacis. Estes possuíam duas bases: o estudo do Corão, num
sentido profundo e restrito, hermético, ensinando que Allah se confunde com a
Sabedoria Universal cujo atributo principal é o Conhecimento, que no crente
deve ir do raciocínio à intuição, e a nobre arte das armas (fatah); assim também
o Templo procedia de modo idêntico no manuseio da Bíblia, principalmente no
referente aos Profetas e ao Evangelho do Apóstolo S. João, onde a interpretação
do espírito primava sobre a letra, o símbolo era penetrado para só ficar o seu
ocultado sentido, isso a par do manuseamento das armas com nobreza e
distinção. Tal como os Templários possuíam três votos perpétuos (pobreza,
obediência e castidade), também os Assacis os tinham: para eles o caminho
espiritual (tariqat) implicava três preceitos fundamentais, como sejam: a
pobreza espiritual (fair), a postura espiritual (jerqueh) e a lembrança contínua
de Deus (zekr).

Até nas vestimentas eram semelhantes: vestes brancas para os Templários e os


Assacis, cruz vermelha para aqueles e cinto ou faixa e turbante vermelhos para
estes. Já a sua hierarquia era rigorosamente paralela: o Grão-Mestre para o
Templo e o Cheikh El Djebel para os Assacis; o Grão-Prior e o Daïkebir; o Prior e
o Daï; o Cavaleiro e o Rafik; o Escudeiro e o Fidawi; o Servente e o Lassik. O que
resulta na tabela seguinte comparativa das semelhanças entre as hierarquias dos
Assacis e dos Templários:
Observa-se a analogia e os pontos de encontro entre as duas Cavalarias, cujo
espírito de demanda da Perfeição nelas era o mesmo e o que certamente as
interligava: à Militia e aos Miles cristãos correspondia a Futouwwat e
os Fatâs islâmicos cujo arquétipo era Ali, o “Cavaleiro por excelência”, genro de
Mahometh (ano 624), uma e outra conhecendo e exercendo rituais similares
(jejum, penitências, investiduras, códigos de honra, etc.). Tais laços foram
longe, porque se houveram Templários recebidos com todas as honras nas cortes
muçulmanas, igualmente houveram príncipes islâmicos, como Saladino e os
sultões de Damasco e do Egipto, que foram investidos na “Cavalaria cristã”,
conforme estabelece um cronista cristão desse tempo: “Sei de boa fonte que
vários sultões foram recebidos de bom grado e com grande pompa na Ordem, e
que os próprios Templários lhes permitiram celebrar as suas superstições com a
invocação de Mahometh”[6].
Guerreiro Assaci do Líbano

A esse conjunto de contactos falta juntar os laços espirituais que a Ordem do


Templo mantinha com outros grupos muçulmanos, como igualmente com judaicos
e cristãos orientais (como o Zoroastrismo convertido em Igreja Nestoriana ou
Caldeu-Assírio-Aramaica no Oriente, e também com a Igreja Copta ou Egípcia e os
vários movimentos gnósticos e sufis povoando a orla mediterrânea, enquanto na
Europa deu-se de relações com o Maniqueísmo e o Catarismo, desde o Sul de
França até ao extremo ocidental do continente).
Essa inter-relação política, cultural e sobretudo espiritual dos Templários com
outros povos, prova manifesta do seu amplo espírito católico, ou seja,
“universalista” de acordo com o próprio significado greco-latino do termo, pauta-
se inteiramente pelo que está escrito nos pressupostos Estatutos Secretos da
Ordem do Templo, escritos por Mestre Roncelin: “Sabei que Deus não faz
qualquer diferença entre as pessoas, cristãos, sarracenos, judeus, gregos,
romanos, francos ou búlgaros, porque todo o homem que reza é salvo por Deus”.
– 2.ª parte, artigo 5.

Essa «heresia» política, sobretudo, foi colada pelos acusadores à outra «heresia»
religiosa: a dos Templários não terem nas suas igrejas a imagem de Cristo
cravado na Cruz, e mesmo esta ser alvo de pouca devoção. Já disse noutra parte
que os cavaleiros-monges adoravam sobretudo o Cristo Ressuscitado, simbólico
do Espírito vencedor da carne, esta representada na Cruz expressora da Matéria e
do Homem nela incarnado, pelo que este representava a personalidade temporal
da Individualidade intemporal que não era Jesus Homem mas o próprio Cristo
Deus, a cujo Advento consignaram toda a sua Obra que nisto, aqui sim, foi
verdadeiramente Teúrgica. Os mesmos presumidos Estatutos Secretos o
confirmam: “Porque o Filho de Maria e José foi santo, livre de todo o pecado e
crucificado, nós veneramo-Lo em Deus; mas a madeira da cruz consideramo-la
como o sinal do animal de que fala o Apocalipse”. – 1.ª parte, artigo 20.

O texto desses Estatutos, a ser verdadeiro, prova a existência de uma pressuposta


doutrina secreta no seio da Ordem do Templo. Eles foram dados à luz do
conhecimento público quando no limiar do ano 1780 Friedrich Münter, bispo de
Copenhaga, fez a sua descoberta capital na Biblioteca Corsini dos Arquivos do
Vaticano. Diz que aí descobriu um pergaminho in 4.º, repartido em quatro partes,
ornado com a Cruz do Templo e cada página composta por duas grandes colunas
em escrita latina.

A primeira parte não é mais do que a Regra primitiva da Ordem, copiada à mão
por um tal Mathieu de Tramlay “no dia de São Félix do ano 1205”, e com
aditamentos do mesmo. Conserva-se em Roma, na Biblioteca Corsini.

A segunda e terceira partes, assinadas pelo copista Robert de Samfort, que


efectivamente foi Procurador do Templo em Inglaterra, são datadas de 1240.
Compõem-se, respectivamente, por trinta e vinte artigos, que o descobridor
Münter agrupou sob a indicação: “Aqui começa o Livro do Baptismo de Fogo, ou
Estatutos Secretos, redigidos para os Irmãos pelo Mestre Roncelinus”.

Finalmente a quarta parte, que Münter intitulou: “Aqui começa a lista dos sinais
secretos que o Mestre Roncelinus reuniu”, dando avultadas indicações
criptográficas.

Realmente houve um Templário chamado Roncelinus ou Roncelin du Fos, referido


pelos inquisidores tanto em Chinon como em Paris, o que pressupõe a-priori a sua
existência real. José Medeiros, responsável pela edição portuguesa desse
documento[7], diz: “O único templário conhecido com esse nome foi o provençal
Roncelin do Fos – segundo alguns, recebido em 1281 – mas igualmente
mencionado como Mestre da Comenda de Tortosa, na Síria, em 17 de Junho de
1242. Segundo Charles d’Artefeuil[8], Roncelin foi recebido na Ordem em 1267
pelo cavaleiro Jean de Pellissier”.

O bispo Münter não iria ficar muito tempo na posse desses documentos. Numa
carta escrita ao seu amigo Wilke, que preparava uma História dos Templários,
revelou que a maior parte deles desapareceram da sua posse sem saber como. Foi
somente em 1877 que o sábio alemão Mertzdorff, que era maçom, publicou as
três últimas partes do manuscrito pressupostamente descoberto pelo supracitado
bispo luterano Münter (que era também maçom, segundo Aldo Bonfiglio[9]), ao
ter a sorte de os encontrar em Hamburgo num rolo dos arquivos privados da Loja
maçónica dessa cidade a quem haviam sido oferecidos por um tal dr. Buck[10].

Friedrich Münter (14.10.1761 – 9.4.1830)


Pela leitura do texto em português recentemente publicado (até ao momento só
conhecia a sua versão francesa), depreende-se com facilidade que o mesmo
desobedece quase inteiramente aos cânones tanto ortodoxos como heterodoxos
do Templo, impondo-lhe usos e costumes que na época eram universalmente
desconhecidos, e se acaso não foi fabricado sobre as calúnias e suspeitas tornadas
públicas pouco antes e após a extinção da Ordem, contudo parece obedecer à
estrita necessidade de legitimar a Franco-Maçonaria como herdeira directa da
Ordem do Templo, o que não é verdade em toda a linha senão de maneira muito
indirecta e tardia.

O próprio José Medeiros acaba ponderando ante o mais que controverso


documento tal como está apresentado hoje: “Se a Regra Secreta é um documento
falso do século XVIII,   ajudar-nos-á a compreender a necessidade de justificação
de uma ligação à Ordem do Templo de algumas das Sociedades Filosóficas que se
consideravam como guardiãs da Tradição do Ocidente. Se, na realidade, é um
documento escrito no século XII, por Roncelin do Fos, a sua primeira tradução
deveria ser revista, para o expurgar de palavras e interpretações pouco
correctas”.

Fica-me a impressão de que o bispo Münter, se acaso não inventou esse


documento de Hamburgo, certamente acrescentou elementos de sua lavra
exclusiva ao mesmo que pressupostamente descobriu, assim tendo alterado
consideravelmente a suposta redacção latina original para que ficasse como ora
se apresenta. A verdade é que o Mestre Jacques de Molay sempre negou a
existência de uma Ordem interna e de uma Regra secreta no Templo. E isto
parece-me sincero, porque o que se passaria não seria mais que o
aprofundamento do entendimento teológico por parte dos mais doutos que, para
não afectarem a compreensão geral e ortodoxa da catequese, reservariam para si
esses conhecimentos heterodoxos que, parece, seriam registados em bezerras,
isto é, livros de apontamentos pessoais contendo pensamentos metafísicos de
índoles diversas que na época teriam influenciado alguns dos Templários.
Obviamente que tais livros, espécie de diários pessoais, eram reservados do
conhecimento dos demais, tanto por serem íntimos como para não originar
afectação de natureza alguma.

É a única maneira plausível que encontro para explicar os numerosos


depoimentos que vão nesse sentido pelos Templários detidos (todos eles
confessando não terem visto directamente mas, tão-só, terem ouvido de outréns,
os quais, por sua vez, acabando por confessar também terem ouvido… e assim
arrastando-se o círculo vicioso do “diz que disse”), parecendo ser a única
excepção a do Preceptor do Templo de Laon, Gervais de Beauvais: “Havia na
Ordem um regulamento tão extraordinário, sobre o qual tinha de ser guardado
um tão grande segredo, que qualquer Irmão preferia que lhe cortassem a cabeça
a revelá-lo”. E o seu advogado, Raoul de Presles, corrobora que o Irmão Gervais
“possuía um livrinho com os estatutos da sua Ordem, que mostrava de boa
vontade, mas tinha outro mais secreto que nem por todo o ouro do mundo o
mostrava”[11]. Tal livro secreto seria uma bezerra, o caderno de apontamentos
pessoais do género que Roncelin du Fos eventualmente, a ser verdade, utilizaria
para escrever a sua “regra secreta”.
Aquando do processo contra o Templo, alguns desses documentos estritamente
pessoais, muitos deles talvez que praticamente coevos dos inícios da Ordem,
deverão ter chegado à posse do Papa Clemente V que os terá feito desaparecer.
Talvez também esteja neles a causa de na altura do julgamento se ter inventado
a lenda dos “dois cavaleiros adoradores do diabo”, inspirada na figura de dois
guerreiros para um só cavalo tal como estava gravada nos selos templários dos
sécs. XII-XIII, tendo em cercadura a sigla latina: Sigillum Militum Xpistii (“Selo da
Milícia de Cristo”). Esse selo, que foi igualmente gravura de numerosos
documentos do Templo assim como de moeda corrente, tendo percorrido a
Europa e o Médio Oriente através do sistema bancário que ele fundou, acabou
servindo aos inquisidores como prova cabal e argumento positivo de terem havido
práticas sodomitas e demoníacas por parte dos acusados. A lenda é a seguinte:

Dois cavaleiros cruzados marchavam para o combate montados num só cavalo,


pois eram muito pobres e, como bons amigos, compartilhavam a mesma montada.
Antes de se enfrentarem com os agarenos, um deles encomendou-se a Jesus
Cristo e o outro, a Lúcifer. Aconteceu que o cavaleiro que se encomendara a
Jesus Cristo ficou ferido, enquanto o seu companheiro, que se havia entregue a
Lúcifer, saiu ileso do combate. Este convenceu o amigo ferido, face ao ocorrido,
do poder superior que tinha um amo como o Diabo, e logo aquele se entregou nas
mãos de tão poderoso senhor. Depois, como ambos buscavam poder e glória,
fundaram uma Ordem de Cavalaria que puseram sob a protecção de Lúcifer,
alcançando em pouco tempo enormes honras e riquezas como nunca se viu em
toda a Terra.
Carta templária alemã com a gravura de dois cavaleiros para um só cavalo (século XIV)

Apesar do óbvio sentido malévolo que os inquisidores lhe incutiram, a lenda não
deixa de igualmente sugerir o entendimento dúplice que os Templários tinham da
sua Ordem: desde o mais imediato e exotérico, público, rendendo graças ao Papa
e a Deus, ao mais transcendente e esotérico, restrito, prestando obediência ao
Mestre e ao Diabo, isto é, à Sabedoria Diáblica ou Iniciática que, nem por isso,
deixa de ser igualmente Divina, até mesmo mais comparativamente ao
entendimento simples ou popular. Um e outro entendimentos estavam
interligados, pois não raro quem se ligava a uma Religião aprofundava o seu
conhecimento por igual filiação a uma Ordem. Esses dois cavaleiros chamavam-se
Hugues de Payens e Geoffroy de Saint-Omer, aquele “convertido” por este. E
ambos acabaram “convertendo” os seus sete companheiros fundadores originais
da Milícia, um deles Arnoldo ou Arnaldo[12].

Esse último é identificado ao antecessor de D. Gualdim Pais no Mestrado da


Ordem em Portugal, ou seja, D. Fr. Pedro Arnaldo da Rocha, 3.º Mestre Provincial
natural de Santarém, comendador da cidade e superintendente da construção da
sua igreja de St.ª Maria de Alcáçova, fundada em 1154, segundo a notícia dada
por Viterbo[13]: “Assim consta da inscrição que depois da morte de D. Hugo e de
D. Pedro Arnaldo, se mandou exarar naquela igreja: “Ano da Encarnação – 1154.
Segundo a presente carta VII. Reinando D. Afonso, filho do regente Conde D.
Henrique, e sendo casado com a Rainha Mafalda, foi esta igreja fundada em
honra da St.ª Virgem Maria, Mãe de Cristo, pela Milícia do Templo de Jerusalém,
sendo Mestre Hugo e Pedro Arnaldo o seu Gerente. Que as suas almas repousem
em paz. Amém”.”

Na inscrição, que traduzo do latim, está escrito o nome grego Petro, Pedro,


singular masculino de Petra, Rocha, logo seguido de Arnaldus, o que dá o nome
completo de Pedro Arnaldo da Rocha. Foi ele quem recebeu da rainha D. Teresa a
primeira doação portuguesa ao Templo, cerca de 1125, antes mesmo deste ser
reconhecido oficialmente pela Santa Sé: os bens e termos da vila de Fonte
Arcada, em Penafiel. Ainda segundo Viterbo, foi o primeiro Mestre português a
quem D. Afonso Henriques isentou de tributos, dando-lhe direitos extraordinários
em 1157.

Segundo Frei Bernardo da Costa[14], D. Fr. Pedro Arnaldo da Rocha veio a


encontrar a morte gloriosa na batalha da conquista de Alcácer do Sal, pelejando
ao lado de D. Gualdim Pais e de D. Paio Peres Correia, Mestre da Ordem de
Santiago. Tombar no campo da honra era a mais gloriosa morte que um Templário
poderia encontrar, sobretudo aqui no extremo ocidental da Península Ibérica, por
participar até à última consequência do sentido mítico-bélico do Pelágio, ou seja,
da demanda activa do Saber Arcano neste “Porto do Graal”, assim considerado
Terra Santa de Maria, dos Anjos, Heróis e Mártires, na peleja contra a Ignorância
e o Mal tão somente simbolizados – não que o fosse – no agareno ocupante de
uma terra não sua.

Quanto ao facto de Pedro Arnaldo ter sido um dos fundadores da Ordem em


Jerusalém e nomeado Procurador da mesma na Província de Portugal, a verdade
é que o seu nome aparece como Frei Arnaldo na assinatura do foral de Redinha,
em 1159. Posteriormente Frei Bernardo da Costa, certamente recorrendo a
documentos alcobacenses hoje desaparecidos, viria a escrever na sua História da
Ordem de Cristo, pp. 125-126: “O mesmo Ferreira [Alexandre Ferreira, nas
suas Memórias e Notícias da Ordem dos Templários] repete no segundo tomo e
nos dá a notícia de outro Cavaleiro, e diz, referindo a Faria [Manuel de Faria e
Sousa (1590-1649), Epítome de las Historias Portuguesas, 1.º de 2 vols., Madrid,
1628]: “D. Arnaldo foi um dos primeiros nove instituidores dos Templários”.
Repete o mesmo Ferreira: “E por autoridade deste grande escritor foi Arnaldo um
dos nove cavaleiros gloriosos instituidores da Ordem”. […] Bem pode ser que,
nesta parte, diga melhor Brandão [Fr. António Brandão, no seu 1.º de 2 vols.
da Monarchia Lusitana, Lisboa, 1632: “E assim parece que seria dos primeiros em
Portugal, e não na Palestina”], e que na verdade Arnaldo da Rocha seja um dos
primeiros Cavaleiros Templários, não dos da Palestina, mas de Portugal. […] Ele o
faz, dizendo ser companheiro de D. Gualdim Pais, primeiro Mestre neste Reino no
ano de 1126. […] Porém não podemos duvidar que fosse um dos primeiros
Cavaleiros que entrasse em Portugal a estabelecer a Ordem”.
Reforça o facto de D. Fr. Pedro Arnaldo ser o Mestre que participou na fundação
da Ordem, o caso importante do Templo se firmar primeiro em Portugal e só
depois nos reinos de Espanha, segundo o mesmo Viterbo (ob. cit.), e isso lhe
concedia primazia peninsular que decerto não nasceu do nada, mas e tão-só por
um dos fundadores do Templo ser português.

Também se pretendia ser português um outro cavaleiro que igualmente seria um


dos fundadores da Ordem do Templo: Gondomare, Gondemare ou Gondemas.
Ideia seiscentista e setecentista, certamente nascida para reforçar a importância
primaz do Portugal Templário e soberano ante as pretensões políticas de Espanha
e da restante Europa em o dominar, ganhou força posteriormente por via de um
romantismo filológico, pois a única ideia plausível que encontro é a do nobre
cavaleiro franco fundador do Templo eventualmente ter acabado por instalar-se
em Gondomar, nas proximidades do Porto, e daí a toponímia do lugar a qual,
mesmo assim, é muitíssimo anterior ao nome do mesmo, sobre a qual já
disse[15]: “Com efeito, o orónimo e topónimo Gondomar divide-se em gundu,
“guerreiro”, termo derivado do antigo dialecto alto-alemão do grupo
ocidental, wuntu, sonorizado guntu, e maru, termo universalizado na língua
japonesa significativo de “mar”, mas que, na prosódia hindu-germânica do
sânscrito mahu e maha, significa “grande”. Mahu entrou no grego sob a
prolação mega, “grande”, e no latim como prefixo de “grandeza”: magno. Entre
nós tomou a forma mago, como na expressão “Rei Mago”, que quer dizer “Grande
Rei”. Em resumo, Gondomar possui a significação primitiva de Guerreiro Grande,
solar ou celeste em tudo semelhante ao S. Jorge, “Grande Obreiro”, “Supremo
Lavrador”, de que fala a hagiografia e retrata a iconologia religiosa”.

Também na Europa, na Península Ibérica, mormente em Portugal os Templários


deram-se de intimidades com o Islão, primeiramente através dos moçárabes, os
cristãos submetidos aos árabes após estes conquistarem a Península Ibérica
liderados por Tarique, no ano 711, cuja entrada fizeram pelo pelo Sul. Os
moçárabes eram os “como que árabes”, cristãos sujeitos aos usos e costumes
arábicos, mesmo que mantendo o seu rito católico, um misto de ariano-visigótico
e greco-bizantino (donde se chamar ao rito moçárabe igualmente de hispânico),
no interior dos seus guetos, as al-kênissah ou caneças (“assembleias de cristãos”),
tendo a casta moçárabe começado a florescer entre os séculos VIII-IX como cristã
inserida e subordinada à estrutura social muçulmana, excepto na religião, ainda
que a Cruz e o Crescente em muito se identifiquem por meio dela.

O moçárabe, nome aliás escrito na forma plural, aparece pela primeira vez no
foral que Afonso VI concedeu (1101) à cidade de Toledo, onde o monarca refere
os súbditos quos vulgo mozarabes vocitant, de onde se infere que o nome carecia
de uso nas instituições culturais e jurídicas[16].

Durante a ocupação muçulmana da Península Ibérica, o estado islâmico limitou a


propagação judaica e cristã aos sobreditos guetos ou lugares de delimitação fixa.
Assim, a paróquia é o gueto dos cristãos como a alfama é o asilo ou gueto dos
judeus (após a Reconquista cristã e imitando o modelo islâmico, criar-se-ia
o gueto da moirama, ou seja, a mouraria), com a diferença de que a paróquia –
nome gótico – se designa, no direito muçulmano, por al-kenîssah ou kulicia. Al-
kenîssah não é apenas um templo, nem uma capela, nem uma ermida no monte.
É, mesmo na forma evolutiva da palavra (caniça, caneça), uma cabeça de
assembleia cristã: a sede paroquial[17].

O desenvolvimento da rede paroquial durante a Reconquista cristã alerta para a


função da freguesia nas acções da conquista e consolidação do domínio
das caneças contra as assembleias mesquitais. Algumas
dessas caneças feneceram, ocupadas pela moirama e logo transformadas
em mesquitas e mesquitelas, enquanto outras sobreviveram durante os séculos
de ocupação. Caneça, ou caneças, topónimo moçárabe, é uma igreja paroquial
aonde acorrem semanalmente as populações circunvizinhas, as populações
desse gueto cristão tornado mais importante em regime de hábito disperso, como
sucedia na região estremenha, mormente nas terras saloias de Loures, Mafra e
Sintra[18].

Dentro da caneça o moçárabe é cidadão de pleno direito, freguês, filho da Igreja


(feligrês, corruptela de fillius Ecllesia), mesmo que a sua mulher sirva de
lavadeira ao califa.

O modelo jurídico islâmico por sua perfeição aristotélica serviria de inspiração ao


senado latino dos cristãos, reformulado por D. João I mas cuja origem recuará a
D. Afonso II[19]. O senado islâmico era a shari’a, o tribunal no qual o cádi ou juiz
agia como representante do califa. Por via de regra, era um muçulmano do sexo
masculino, de bom carácter e comprovado saber. Embora a sua jurisdição
abrangesse ao mesmo tempo a lei civil e a lei penal, na prática o Estado
encarregava-se da maior parte da última. Ora, era exactamente isso que o
senado fazia: mantinha a lei civil e só aplicava a penal após ordens expressas do
Estado vigente.
Foi através do moçarabismo que os Templários nesta parte da Península Ibérica
recolheram e assimilaram parcela enorme da cultura árabe, principalmente a
vertente filosófico-religiosa, para não falar da político-militar. Nessa primeira
vertente, entra aqui a presença moçarábica da santa mártir Íria, diminutivo
de Irene, a Íris grega que, em egípcio cóptico, associa-se a Ísis, sendo
exactamente ela, por sua natureza cristã e arábica, o ponto de encontro entre o
eclesial e o mesquital.

Padroeira das cidades templárias de Tomar e Santarém (corruptela filológica


de Santa Irene), Íria foi a mártir portuguesa nascida junto às margens da
velha Nabância(Tomar, sendo curioso que num quadro de Gregório Lopes na
igreja de S. João Baptista desta cidade, “A cabeça de João Baptista”, Salomé e
Herodes estejam à mesa onde um prato apresenta a curiosidade de um nabo,
ou nabão, alusão à memória nabantina do primitivo burgo) nos finais do século
VII, segundo a sua tradição hagiográfica, sendo hoje evocada a 20 de Outubro.
Mais vocacionada a uma vida de adoração e contemplação mística, mantendo a
incorrupção da virgindade espiritual, que ao casamento carnal, recusou a
proposta de um mancebo árabe que por ela se tomara de amores, e ele, possuído
de paixão desesperada, deu-se em fatal cegueira de amor e degolou-a com a sua
espada, de seguida atirando o corpo ao rio Nabão. O cadáver veio corrente abaixo
até Scalabis, indo tomar o nome da santa mártir – Santarém. Após o achamento
do corpo santo, verificou-se faltar-lhe a cabeça. Seria encontrada quase à boca
da ribeira de Sacavém, diante do povoado de Azóia, cujo nome viria a ser
secundado pelo da santa – Santa Íria de Azóia –, esta que acabaria elegida
imagem ideal do Amor supremo tanto por cruzados como por crescentados,
fazedores da Guerra Santa (Al-Fatah através da Jihad ou Crescentada)
no Oriente (Chark) e no Ocidente (Gharb) da Península Ibérica, batendo-se pela
posse efectiva dos lugares sagrados assim consignados pela Tradição Primordial.

Santa Iria, Tomar

Quanto ao termo azóia, os eruditos derivam-no do arábico az’zawiya, “canto


angular”. Para se entender o que isso significa, ter-se-á de recorrer à cultura
religiosa arábiga ou árabe erudita.

O equivalente muçulmano das ermidas cristãs são as cubas e os seus habitantes,


os santões, espécie de marabutos, proliferaram no Andaluz nos séculos VIII-IX.
As cubasem breve se transformaram em comunidades, algumas vezes com muita
gente, comunidades essas chamadas az’zawiyas, “azóias”, topónimo frequente a
sul do Mondego. A azóia era um mosteiro, espécie de convento, onde se
treinavam milícias maométicas, aptas para a guerra islâmica, que passa pela
educação da alma, escolástica corânica agregada em madrasa que os cristãos
chamariam de “carvoeira”, carvoaria” e até “bafometaria”.

As casas onde as azóias existiam inspiravam-se na arquitectura árabe, casada com


os condicionalismos locais, e muitas delas foram incorporadas em edifícios
cristãos posteriores (e tem-se na freguesia de Santa Íria de Azóia as ruínas do
convento e capela dos Monjões, possivelmente dos alvores da Nacionalidade),
quando não simplesmente transformadas em eremitérios e ermidas cristãs. A casa
é, porém, o menos. O mais é o espírito da azóia, ou seja, a Companhia de
Mahometh, meio militar, meio mística, verdadeira Cavalaria Ideal entre dois
mundos: o mundo do Islão e o mundo a que a Guerra Santa ou Al-Fatah tinha de
ser levada, para maior glória de Allah.

As azóias começaram, algumas vezes, por simples eremitérios em torno de


um santãoou monjão, como Maruani al-Xintari, coevo do Conde D. Henrique,
peregrino, eremita, pregador e asceta da Serra da Lua, Al-Shantara ou Sintra.

A tradução de azóia como “canto angular” terá a ver com a posição estratégica


em que era sempre instalada, como se verifica no concelho de Sintra onde se
avista a aldeia da Azóia, junto ao Cabo da Roca nas faldas de São Saturnino da
Peninha da Serra, e também na freguesia de Santa Íria, na zona oriental do
concelho de Loures, defendendo-a das possíveis incursões inimigas pela margem
ribeirinha. Isso leva-me ao castelo de Pirescoxe, distado cerca de 1,5 km dessa
freguesia, cujo povoamento cristão recuará aos inícios do século XIII, à época de
D. Paio Peres Correia, Mestre da Ordem de Santiago, de quem o dito castelo
herdou o nome: Pires, ou Peres, Coxe, ou Correia, em arábigo[20].

Além da hagiografia tradicional de Íria, parecendo inspirada nessa outra


hermética de Ísis, apercebe-se que alguns dos Templários acaso se terão dado ao
exercício da Alquimia (Allah-Chêmia, “Química Divina”), e a ter acontecido
decerto aprenderam junto dos sábios do Islão que viviam reclusos em cubas e
em azóias. Isso reporta-me à recomendação feita aos Irmãos do Templo nos
artigos 7 e 19 da sua pressuposta Regra Secreta: “Tende em vossas casas lugares
de reunião vastos e escondidos a que se terá acesso por corredores subterrâneos
para que os Irmãos possam ir às reuniões sem o risco de serem perturbados… É
interdito, nas casas onde os Irmãos não são Eleitos, trabalhar certas matérias
pela Ciência Filosófica e, portanto, transmutar os metais vis em ouro e prata. Isto
nunca será feito senão em lugares escondidos e em segredo”.

A verdade é que símbolos, emblemas e imagens de indiscutível significado


hermético, muitos deles pertencentes ao imobiliário tradicional da Alquimia,
decoram aqui e ali o Roteiro Templário de Norte a Sul de Portugal. Talvez que a
prova mais flagrante se encontre na igreja-matriz da Golegã (próxima do castelo
templário da Cardiga), construção templária reconstruída no século XVI por uma
Confraria de Mestres-Canteiros liderada pelo francês Diogo Boytac, sob a
protecção dos Freires de Cristo da Comenda da Cardiga[21]. Encontra-se aí, numa
das faces do púlpito manuelino e inscrita em caracteres góticos, precisamente a
palavra Alquimia, e como se não bastasse, lê-se noutra face: Mariz.
Ora, desde pouco antes da Golegã a Tomar o itinerário apresenta filologicamente
as características de uma geografia sagrada por onde se realizará uma Alquimia
Mística, como consecução derradeira da Grande Obra no Homem e na Natureza,
aqui, no Luso e na Lusitânia: Salvaterra de Magos (a “Terra Salva”, a “Terra
Essencial ou Vermelha” da Matéria-Prima que os Magos ou Filósofos do Fogo terão
de manipular argilaticamente para dela construírem um Homem Novo, mais justo
e perfeito mental, moral e corporalmente; “Terra Salva” que na Bíblia se aponta
em Caná, lugar onde o Noivo transformou a água em vinho, e, curiosamente,
tem-se próxima a Salvaterra a vila dos vinhos fortes, Cartaxo), Golegã (ou
“Gólgota”, onde o seco e o húmido se atritam ou crucificam, a fim de resultar a
quintessência da ressurreição da Alma Universal que a tudo anima como Fogo da
Vida, Ignis Vitae), Cardiga (ou “Cardo”, planta joanina emblemática tanto da
Fénix – símbolo da Alquimia – como do Fogo Sagrado), Atalaia (a “Vigia” do
Espírito Santo, onde já se percepciona a Iluminação do Adepto de retorno ao
Éden) e Tomar ou Tat Maris (o “Mar Universal”, representativo
do Éter ou Akasha, o que é representado na Casa Eclesial de Santa Íria, Ísis ou
Maria, onde se celebra o Pentecostes e o Espírito Santo se revela como a
vivíssima Pedra Filosofal, expressiva da Iluminação Interior do Adepto).

Essa relação mística com o mar e a navegação nele, tanto por cristãos como por
islâmicos, tão-só traduz o movimento do Espírito Santo por sobre as Águas
Primordiais da Criação. Niffari, um asceta do Islão do século X que morreu no
Egipto, deixaria escrito no seu tratado A Revelação do Mar[22]: “Deus me
ordenou que contemplasse o mar, e eu vi os navios […]. Eles [os navegadores] se
movem porque Deus os faz mover-se, e as suas palavras são as palavras de Deus
que deslizam sobre as suas línguas, e a sua visão é a visão de Deus que entrou em
seus olhos”.

Esse particular trajecto ribatejano, em muito semelhante a tantos outros feitos


sagrados existentes ao longo do Roteiro Templário Português, acaso terá o seu
sinal comprovativo na célebre “Pedra de Roseta” grega que os Templários
parecem ter adoptado, como se vê inscrita nas paredes das celas que acabaram
sendo os seus cárceres, nos seus castelos franceses de Chinon e Jarnac, antes do
julgamento e sentença final em Paris:

Cuja tradução (segundo o manuscrito grego 2511 depositado na Biblioteca


Nacional de Paris), é: “O semeador está à charrua. O seu trabalho faz mover as
rodas”.

Exposta criptograficamente, trata-se de uma referência óbvia à agricultura, mas


neste caso à Agricultura Hermética, ou seja, a própria Alquimia, cujo semeador
ou adepto, percorrendo as doze fases da Grande Obra (Ergon), persegue a
colheita, que é dizer, a Iluminação Espiritual como meta suprema que os
Templários retratavam no próprio Cristo Ressuscitado, feito assim a divina Pedra
Filosofal, isto é, o Pão da Vida Eterna.

A verdade é que essa “Pedra de Roseta” viajou por toda a Cristandade e as cinco
letras do SATOR acabaram sendo interpretadas, pelos eclesiásticos da Igreja
Copta, como representativas dos cinco cravos da Cruz de Cristo. Foi assim que a
lenda levou a grafar na capela do “caçador” Santo Eustáquio, em Bréscia, que os
pastores que foram adorar o Salvador recém-nascido chamavam-
se Sator, Arepo e Teneton.

Ao ser posto em cruz esse quadrado encerra a palavra TENET (“movimento”), que
será a chave do criptograma como imagem codificada de Deus, em volta da qual
todas as coisas se fazem e desfazem numa perfeita repartição, numa perfeita
igualdade.

O T nos extremos da cruz poderá ser a inicial tanto de Templum como


de Templatium, “templo e templário”, e o N central de Nostra e Nudator, “nu,
despojado”, e sendo Tenet “movimento, acção, equitativo, equilibrado” ou
conforme a Regula, “regra”, assim concluo: “Puro e Justo é o nosso Templo”…
bem diversa dessa outra acção cesarista que, afinal de contas, foi
completamente impura e injusta para com os infelizes aprisionados.

O Templo configurava o próprio Corpo de Cristo. Templo de Cristo movendo,


moldando em seu tempo os arquétipos de Portugal e de todo o Mundo aonde
chegou. Esta mesma mensagem encerra-se numa pintura de Gregório Lopes
exposta na igreja de S. João Baptista de Tomar, referente ao milagre da
multiplicação dos pães (que se seguiu ao da multiplicação dos peixes, segundo o
relato evangélico, pelo que Cristo foi cognominado nas tradições do Graal,
principalmente no Parzival, de “Rei Pescador” – Rex Piscatoris). Nela vê-se o
Salvador, em destaque sobre um pequeno outeiro cercado pela multidão,
operando o referido milagre, segurando na destra um bordão com um listel
branco desfraldado onde se lê em latim a frase do Evangelho de João: Hic est
panis quem dedit vobis dnnus adsod – “Este é o Pão que vos dá a Vida Eterna”.
Mas se juntar-se as palavras estpanis o termo soará estranhamente Hispânia,
Península cuja cabeça é Portugal como “Terra de Luz” (Lux-Citânia), pelo que
depende dele dar ao Mundo o Pão da Sabedoria como o mais precioso Pão
Eucarístico revelador do Mental Iluminado, o que se ajusta muito bem à frase
dos Actos dos Apóstolos (XIII, 47): “Estabeleci-te como Luz (Lux) das Nações
(Citânia) a fim de levares a Salvação aos confins da Terra”.

Se no Ocidente europeu, mormente na Península Ibérica, os Templários chegaram


à cultura arábica por via indirecta, ou seja, através da moçarábica, como já
disse, no entanto no Médio Oriente o contacto foi directo, a ponto do seu sistema
funcional político-militar decalcar-se grandemente daquele dos ismaelitas da
Milícia dos Assacis.

Também já disse que o Templo manteve relações estreitas com várias sociedades
filosóficas e corporativas existentes nessas partes orientais: tanto colégios
cristãos de Bizâncio ou independentes de foro anacorético, como corporações
muçulmanas ou tarucs, florescidas do século IX em diante com o
Movimento Karmate ou Ismaelita, do qual sairiam em 1090 os Assacis. Foi pela
adaptação do modelo de uns e outros que os Templários do reino de Jerusalém
constituíram comunidades de construtores, posteriormente propagadas na Europa
ocidental com o acréscimo, devido à influência de Cluni e de Cister, do lígure-
celticismo, adicionando-se depois a cultura judaica.

Como foi igualmente falado, no aspecto militar os Templários eram em muito


idênticos aos Ribat do Islão, em ambos os casos treinados na destreza suficiente
para um só homem derrubar três adversários, nunca devendo recuar em número
inferior a esse, o que inúmeras vezes levou uns e outros, por excesso de zelo, a
serem completamente chacinados na batalha.

O Grão-Mestrado, iniciado com Hugues de Payns, tinha em relação à Milícia cristã


a mesma autoridade que o Cheikh el Djebel em relação aos cavaleiros Assacis.
Esse último, por seu halo de mistério e secretismo, chegou mesmo a ser
identificado ao próprio Preste João (de quem já se fala em 1177, devido a
Frederico I e o Papa Alexandre III terem recebido dele uma suposta carta), filho
de Feirefiz, cavaleiro da Távola Redonda, este que após ter recebido o Baptismo
do Fogo e da Água casou com a princesa do Santo Graal, filha de Parsifal e
Condwiramur, e retirou-se para o Oriente onde estabeleceu o Cristianismo que foi
mantido pelo seu filho primogénito, o Preste João, estabelecendo-se assim a
linhagem do Santo Graal cuja dinastia, segundo o Parzival de Wolfram Von
Eschenbach, ia até ao pai, filho de Lohengrin (por sua vez, filho de Parsifal,
o Chevalier au Cygne ou “Cavaleiro do Cisne”, e de Brancaflor) e de Elsa,
duquesa de Brabante, prosseguindo a linhagem mítica até Godofredo de Bouillon,
o Chevalier Cygnatus ou “Cavaleiro Assinalado”, primeiro rei cristão de
Jerusalém, como era predicado em 1170 pelas canções de gesta anónimas de que
deu notícia o arcebispo Guilherme de Tiro[23]. É assim que o mito apologético dá
Godofredo de Bouillon ou Bulhão (natural de Bolonha sobre o Mar, Lorena, 1058 –
Jerusalém, 18 de Julho de 1100) como bisneto de Parsifal e neto de Lohengrin,
desde logo por direito consanguíneo um membro efectivo da Dinastia Eleita e da
Ordem Eleitora do Santo Graal. Com isso tudo, quando foi coroado rei de
Jerusalém em 1099, na realidade o que se estava entronizando era um
cavaleiro Cygnatus – um assinalado, um eleito – por direito legítimo dignitário e
expressão directa do Graal Vivo, do Rex Rexis, o Rei dos Reis como Imperador
Universal (tanto valendo por Melkitsedek, Preste João ou Bey Al Bordi…),
consequentemente, legalmente investido na representação ou até incarnação
directa do Centro Supremo do Mundo (Salém ou Shamballah) expressado
simbolicamente no Centro Supremo da Cristandade: Jerusalém.

Se acaso Godofredo de Bouillon recusou a coroa de ouro de rei da cidade santa de


Jerusalém, foi por não querer equiparar-se a Cristo Rei aí coroado com uma coroa
de espinhos, e mesmo após entronizado manteve a humildade titular de ser
só Advocatus Sancti Sepulchri (Protector do Santo Sepulcro). Recuando a dinastia
sagrada do Santo Graal à pessoa do próprio Jesus Cristo, segundo a hagiografia
mítica, cujo Sangue Real perpetuou a linhagem, logo só a sua descendência tendo
direito ao trono da cidade santa, então compreende-se porque os Templários
frustraram os planos imperialistas de Frederico II, aventureiro por conta própria
imerecedor da coroa santa de Jerusalém e do santo Império Espiritual do Mundo
de então.

Godofredo de Bouillon (1058-1100)


Ambas as Ordens do Templo e dos Assacis, como também foi dito, fizeram a sua
Guerra Santa ou Al-Fatah, Cruzada e Crescentada, que, mais que de beligerância
pela posse e domínio daquele considerado na Idade Média o Centro do Mundo,
seria sobretudo santa por consistir na guerra (jihad) que o homem tem que travar
consigo mesmo, como verdadeiro guerreiro no sentido místico, batalhando pela
supremacia e vitória da sua natureza espiritual sobre a inferior, anímica ou
animal[24]. Daí as palavras de Ibn El-Arabi, o Al-Andalusi, inseridas no seu Risale-
Tul-Wujudiyyah (“Tratado do Ser”): “Por isso o Profeta disse: “Morre antes de
morreres”, isto é, conhece-te a ti próprio antes de morreres. Porque quando tu
“te conheceres a ti próprio”, o teu egoísmo desaparece e tu sabes que não és
outro do que Deus”.

Foi nesse sentido que o mais arábigo dos cristãos, Raimundo Lúlio, ao ver a
Cristandade perder inteiramente o Médio Oriente em 1287 propôs a Filipe, o
Belo, uma Cruzada de Conversão à Terra Santa, onde Templários e Hospitalários
estivessem juntos e nessa união houvesse um só Grão-Mestre, com o título
de Bellator Rex, “Rei Guerreiro”, decalque do Piscatoris Rex, o “Rei Pescador”
da lenda do Parzivalincarnado por Cristo nos já citados milagres das
multiplicações dos pães e dos peixes. O plano desenvolvido por Lúlio, publicado
em 1305 no seu Liber de Fine, após ter visitado Chipre em 1302, não teve
seguimento, para tristeza do seu amigo Jacques Borguemundus de Molay. À obra
de Lúlio o rei contrapusera um outro livro, DeRecuperatione Terrae Sanctae – “Da
Recuperação da Terra Santa”. Tinha sido escrito por Pedro de Bois, membro não
oficial do formidável grupo de advogados de Filipe e colega de Nogaret, o
advogado principal do rei francês, e escondia a verdadeira intenção, sob a capa
de uma pretensa Cruzada, da hegemonia universal dos Capetos a que pertencia
Filipe. Tal não deve ter passado despercebido a de Molay, quiçá vendo nisso a
tentativa de substituir uma dinastia sagrada por essa outra completamente
profana cuja intenção era o domínio imperialista do mundo conhecido, pois quem
possuísse a Terra Santa possuiria o mundo, pelo que de imediato o Grão-Mestre
desaprovou as pretensões do monarca francês e o projecto dessa Cruzada foi
arquivado.

Descendente em linha directa da Mística Templária após a extinção da Ordem, na


Europa Central formou-se um outro Movimento Místico, misto de cátaro e
arábigo, nos meados do século XIV e que chegou ao século XVII: o do Cristão
Rosa+Cruz.

A Rosa+Cruz, emblema hermético da Pedra Filosofal, tanto valendo


por Iluminação Mística, já era conhecida dos Templários como se verifica em
várias lápides tumulares e selos de abóbada suas. Como Instituto, parece ter sido
inspirado na determinação de alguns Templários de natureza clausural,
contemplativa, em restaurar os laços rompidos entre o Oriente e o Ocidente pela
perda da Terra Santa, e depois pela abolição da Ordem.

Também os Assacis pouco menos tempo duraram que os Templários. Em seu lugar
ficaram os Sufis, místicos islâmicos de natureza idêntica aos Rosa+Cruzes com os
quais mantiveram ligações próximas de cultura e espiritualidade, notórias no
período Henriquino, tudo isso levando-me às seguintes correntes sucessórias das
originais Milícias do Ocidente e do Oriente:

O Sufismo é anterior ao Movimento Assaci, pois data dos meados do século VIII,
tendo influenciado inteiramente a religiosidade do segundo. Os sufis cobriam-se
com um manto de lã de maneira igual aos anacoretas cristãos, só nisso sendo
iguais, pois que como pregadores eram completamente opostos à via ascética
ou azuhd, primando pelo convívio doutrinal com todas as castas do Islão.
Praticavam o dhikr, a repetição de palavras ou sentenças corânicas em louvor
de Allah, e postulavam três votos universais: faqr (pobreza
absoluta), twakkul (entrega confiante a Deus) e tauh’îd (união com Deus). No seu
caminho para Deus, o sufi passa por diversos estados místicos (ah’wâl) e estações
de entendimento (maqâmât). A união com Deus é fruto da Sabedoria de Deus
(ma’rifa).
O saber arábigo presente na cultura hispânica e na Ordem do Templo

Há um misticismo ortodoxo, sunita, e um outro heterodoxo, xiita ou livre. Este foi


o mais frequente e expressivo no Médio Oriente, e também em Portugal, que por
sua natureza eclética impossibilitava a-priori qualquer tipo de fundamentalismo
com recurso às armas. Quanto ao Sunismo, está documentado, por exemplo, pelo
filósofo Algazel.

Em Portugal, o Sufismo brilhou através do Moçarabismo e, sem dúvida alguma, os


Templários vieram depois a ser influenciados por ele. Dentre os sufis famosos no
País, figuram os nomes de Abû Al-Walîd Al-Bâjî (de Beja, século XI), Ah´med ben
Qasî (de Silves, século XII) e de Al’Uriâni (de Loulé, século XIII), um dos mestres
de Ibn Arabi de Múrcia[25]. Esse cuidado dos Templários em manterem o vínculo
à cultura e à espiritualidade árabes, levam-me a citar aqui as palavras preciosas
do Professor Henrique José de Souza[26]:

“Os Árabes concorreram, de grande modo, para a libertação do espírito humano,


a ponto de fazer emudecer Roma, mas obrigando-a a realizar quantas possíveis
imagináveis cruzadas fossem necessárias… mas, para a intelectualidade futura da
nossa própria Raça, os Árabes foram poderosamente protegidos pelas chamadas
“Forças Invisíveis”. Sim, as que procedem do verdadeiro “Culto de Melkitsedek…”
para não dizer, de uma “Religião cujas fronteiras jamais serão transpostas por
indivíduos de cultura medíocre, muito menos, possuidores de um carácter abaixo
da crítica…” Se tal não tivesse acontecido, Roma teria conquistado toda a Terra,
jamais se preocupando em desenvolver as suas faculdades intelectuais. Sim,
porque a melhor maneira de governar, seja política ou religiosamente, é
mantendo o analfabetismo, enfim, a ignorância.»

Os sábios árabes como os maiores vultos da universidade medieval

Voltando ao tema da Fraternidade R+C, aquele que nela demandava o Grau


Supremo, o da Iluminação Mística ou Crística, era
considerado Rosacruciano ou Rosacruzista, que no Sufismo equivalia
ao Taçawwuf, e só o Iluminado ou conquistador desse estado supremo podia
efectivamente considerar-se Rosa+Cruz, igual em natureza e consciência ao
sufi Mutaçawwfin.

Como aponta René Guénon[27], não será desinteressante indicar que o


termo çûfî(sufi), pelo valor das letras que o compõe, equivale numericamente
a el-hikmah-el-ilahiyah, que é dizer, a “Sabedoria Divina”, afinal,
a Teosofia corrente nos cultos neoplatónicos de Alexandria que vários dos
Templários souberam assimilar e trazer para o Ocidente adaptando-a às luzes do
esclarecimento deste, impulsionando-o assim para o então ainda longínquo Ecce
Occidens Lux!

O Rosa+Cruz e o Sufi (e também o Yogui) estão ao mesmo nível consciencial: o


Crístico, Intuicional ou Búdhico, comparticipando igualmente dos Mistérios
Maiores como Jinas Representativos da Agharta mesma, como “Seres
Transcendentes” porque ligados pela Intuição à Mónada Divina
– Anupadaka ou Noûs.

O Rosacruciano, correspondendo de modo imediato ao Taçawwuf idêntico em


natureza e consciência ao Ayatolah (e ao Yoguim), concorre ao nível da Tríade
Superior ou Individualidade Espiritual, mas ainda estando nos Mistérios Menores
da personalidade humana pelos quais procura firmar o alinhamento psicomental
(kama-manásico) com a divina Intuição, a Inteligência Espiritual ou a presença do
seu Cristo Interno, pelo que ainda possui o “Ser Imanente” incarnado ou
crucificado na Matéria, esta que já foi pelo Rosa+Cruz superada e transformada
em esfera solar que é a Rosa florescida no centro da Cruz, o “Ser
Transcendente”.
Pedra de cabeceira tumular templária com a Rosa+Cruz (século XIII). Igreja de Santa Maria de Loures, 28.ª
Comenda da Ordem do Templo em Portugal

A ligação entre o Sufismo e a Rosa+Cruz encontra o seu maior eco em Mohyid-Din


Ibn Arabi, cujas obras, Kitâb el-Isrâ (“Livro da Viagem Nocturna”) e Futûhât el-
Mekkiyah(“Revelações de Meca”), encontram severas semelhanças com o plano
traçado por Dante Alighieri, pressuposto cronista póstumo do Templo, para
sua Divina Comédia[28]. Afirma Ibn Arabi no Hikmatun Nuriyah: “O Mundo
depende de cada um dos Nomes Divinos, em virtude do que é análogo a tal Nome
do Mundo, e também porque todo o Nome está contido na determinação
essencial de Deus, pois Ele é Deus e nada mais”.

Quantos e quais serão esses Nomes Divinos de cada um dos quais, diz Ibne Arabi,
depende o Mundo? Mahometh afirmou que “Deus possui noventa e nove Nomes,
ou seja, cem menos um; aquele que os conhecer entrará no Paraíso”, e a
autoridade do Profeta é tão grande que basta para afirmar a importância do
conhecimento e da meditação sobre cada um dos Nomes Divinos.
Há duas versões, uma de Tirmiddhi e outra de Ibn Majda, e como apresentam
algumas diferenças irei apresentar a ambas para se poder, no momento, pelo
menos ter uma ideia do mistério transcendente que se oculta sob os véus deste
simbolismo sem dúvida promanado de um outro “Canto dos Cantos” ou “Ode ao
Som” (Odissonai)[29].
O número 99 tem, aliás, um valor profundamente místico, principalmente quando
se atenta no facto de ser um múltiplo de 11 que é um dos números-chaves na
interpretação dos Mistérios Celestes. O próprio Dante, que recebeu o influxo
esotérico das correntes Sufi e Xiita ou Livre do Islão, veio a dividir a Divina
Comédia em 99 cantos, 33 para cada uma das suas três partes: “Inferno”,
“Purgatório” e “Paraíso”. É verdade que a divina obra de Dante possui ainda um
centésimo canto que geralmente é incluído na primeira parte, e que deveria ser
antes uma espécie de introdução geral ao poema[30]. Mas também alguns
místicos do Islão afirmam que se poderia acrescentar um centésimo à lista dos 99
Nomes Divinos: o de Allah. Os mais sábios, no entanto, referem-se vagamente a
esse último Nome, não o designando por termo algum e dizendo apenas que ele
é al ism el ‘a’z’am, “o maior dos Nomes”, Nome desconhecido dos homens.

Isso vem concordar com o que afirmam todas as tradições a respeito de alguma
coisa que depois de certa época se ocultou aos homens, ou foi por eles perdida:
o Haoma dos persas, o Soma dos hindus, o Santo Graal do cristianismo celta, ou
então, o que mais recorda a tradição islâmica, o Grande Nome Divino dos judeus,
cuja pronúncia foi esquecida e a que se refere a Maçonaria moderna no
simbolismo da “Palavra Perdida” equivalente do “Silêncio Sacerdotal”.

Essa concordância das tradições religiosas não revela um plágio, como poderão
pensar alguns imbuídos do cepticismo moderno, mas a sua unidade
transcendente, unidade paradisíaca provinda de uma única Tradição Primordial
da qual só participam os que compreenderam e harmonizaram em si mesmos os
99+1 Nomes de Deus.

Assim, para terminar, a Rosa floresce na Cruz tal qual a Luz de Deus na Alma do
Místico.
NOTAS

[1] In Resumen Histórico de la fundación, progresos, decadencia y total


extincion de la Orden Militar de los Templarios (sem o nome do autor).
Imprenta de Fuentenebro y Cía., Madrid, 1807. E também Pierre Boulle, L
´étrange Croisade de l´empereur Fréderic II. Ed. Flammarion, Paris, 1968.

[2] Vd. Bernard Lewis, Os Assassinos, uma seita islâmica radical. Editora


Terramar, Lda., Lisboa, Abril de 2003.

[3] Bernard Marillier, Templários, pp. 43-48. Hugin Editores, Ltda., Novembro de


1998.

[4] Chema Ferrer Cuñat, Los templarios y la secta de los Asessinos. In Codex


Templi (Los misterios templarios a la luz de la Historia y de la Tradición).
Santillana Ediciones Generales, S.L., Madrid, Abril 2006.

[5] Paul du Breuil, la Chevalerie et l´Orient. Éditions Guy Trédaniel, Paris,


1990.

[6] Apontamento referido por Bernard Marillier, ob. cit., retirado da obra de J.-


C. Frère, L´Ordre des Assassins, C.A.L./Grasset, 1973.

[7] A Regra Secreta dos Templários. O Livro de Baptismo de Fogo. Introdução


de José Medeiros. Apêndice de Dr. Carlos Ratzin. Zéfiro – Edições e Actividades
Culturais, Unipessoal Lda., 1.ª edição 13 de Outubro de 2006.

[8] Charles d´Artefeuil, Histoire héroique et universelle de la noblesse de


Provence. Avignon, 1757-1786.

[9] Aldo Bonfiglio, Storia della Massoneria in Sicília dal 1750 al 1800.


In Homnis Dignitate, n.º 4, revista oficial da Gran Loggia Regolare d´Itália.

[10] Gérard de Séde, Os Templários estão entre nós, pág. 134. Edições Estúdios
Cor, S.A.R.L., Lisboa, 1974.

[11] Raymond Oursel, Le Procès des Templiers, pp. 94-95. Paris, 1955.

[12] Mateo Bruguera, Historia General de la religiosa y militar Orden de los


Caballeros del Temple desde su origen hasta su extinción, refundida por
Francisco de A. Rierola y Masferrer. Imprenta de la Immaculada Concepción,
Barcelona, 1888-1889.

[13] Viterbo, Elucidário. Ed. Civilização, vol. II, p. 588.

[14] Frei Bernardo da Costa, História da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus


Christo, p. 22. Coimbra, 1771.

[15] Vitor Manuel Adrião, A Ordem de Mariz – Portugal e o Futuro. Editorial


Angelorum, Lda., Carcavelos, Maio de 2006.
[16] In Portugalia Monumenta Historica, Scriptores, 84.

[17] Pinharanda Gomes, A Filosofia Arábigo-Portuguesa. Guimarães Editores,


Lisboa, 1991.

[18] Vitor Manuel Adrião, Sintra, Serra Sagrada (Capital Espiritual da Europa).


Dinapress Livros, Lisboa, 2007.

[19] Augusto Vieira da Silva, Dispersos, vol. I. Biblioteca de Estudos


Olisiponenses, Lisboa, 1968.

[20] Vitor Manuel Adrião, Rotas de Loures. Edição do autor subsidiada pelo


Município, Loures, 1994.

[21] A Igreja Matriz da Golegã, in Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e


Monumentos Nacionais, n.º 32, Junho de 1943. E Jorge Segurado, Matriz da
Golegã, precursora do «Manuelino». Alocução do autor na Câmara Municipal da
Golegã, 27 de Junho de 1984.

[22] Reynold A. Nicholson, Os Místicos do Islã. Madras Editora Ltda., S. Paulo,


2003.

[23] La Chanson du Chevalier au Cygne et de Godofroid de Bouillon, 2 vols.


Ed. Célestin Hippeau, Paris, 1874, 1877. Frédéric A.F.T., Baron de
Reiffenberg, Le Chevalier au Cygne et Godefroid de Bouillon, 3 vols. Bruxelles,
1846-1859. Anwar Hatem, Les Poèmes épiques des croisades: Genése,
historicité, localisation. Essai sur l´activité littéraire dans les colonies
franques de Syrie au Moyen Âge. Paris, 1932.

[24] Pierre Ponsoye, El Islam y el Grial. Ediciones de la Tradicion Unanime, José


J. de Olañeta, Editor, Palma de Mallorca, 1984.

[25] José Garcia Domingues, Portugal e o Al-Andalus. Hugin-Editores, Lda.,


Lisboa, Outubro de 1997.

[26] Henrique José de Souza, Cagliostro e São Germano. Revista “Dhâranâ”, 28-


9-1941, Rio de Janeiro.

[27] René Guénon, Aperçus sur l´Initiation. Paris, 1946.

[28] Robert Bonell, Dante o Grande Iniciado. Uma mensagem para os tempos


futuros. Madras Editora Ltda., S. Paulo, 2006.

[29] Ary Vasconcelos, Os Noventa e Nove Nomes de Deus. Revista “Dhâranâ”,


Ano XXVI, Outubro de 1951, Rio de Janeiro.

[30] Vitor Manuel Adrião, Firenze Insolita e Segreta. Éditons Jonglez, San Marco,


Venezia, Maggio 2011.

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