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Fisionomia da
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arte- fotografia

Enquanto ferramenta
veto r, a fotografia ficava externa é alheia à arte;
quanto material, ela se mistura COI;T1 a arte, em o
inusitadas que aliam à matéria fot'ográfica uma
cepção e uma área de circulação artísticas. A al
arte-fotografia introduz no interior da arte muda
profundas, alheias à fotografia vetor" ou ferrament
que, diga-se, denuncia a imprecisão teórica da n
de "medium artístico", utilizada indistintamente
designar todos os cruzamentos entre a fotografia
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r: arte. Por sua amplidão e novidade,ltais mudanças
çam, mediante o material-fotografia, os contorno
uma outra arte dentro da arte.

André Rouillé ~';.4 Uma outra arte dentro da arte


TRADUÇÃO I CONSTANCIA EGREJAS

" A aliança arte-fotografia se caracteriza po


grandes linhas: de um lado, põe fim'~o ostracismo

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.~'.~~; durante muito tempo repeliu a fotografia para fo
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campo da arte; de outro, vem assegurar a permanê
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.,: . d~ arte-objeto em um campo artístico ameaçado

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I A ARTF-FOTOGRAFIA I : FISIONOMIA DA ARTE·FOTOGRAFIA I

desrnaterialização: e, por fim, enceta um forte movimento de secularização da as técnicas, por não mais a relegarem à periferia de suas obras. Essa passagem
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arte.
:~1 função de vetor para a de material de arte contemporânea é capital. Enquanto
1~
vetor, ou a ferramenta, fica externo à obra, o material participa dela totalmente
:;1
Utiliza-se uma ferramenta, mas trabalha-se, experimenta-se, combinam-se mat
Novo MATERIAL (MIMÉTICO E TECNOLÓGICO) PARA A ARTE
I riais, transformando-os infinitamente em meio a um processo perpétuo, técnica
A fotomontagem e o fotograma terão mostrado que, contrariamente à doxa, esteticamente inseparáveis. Mesmo que o material seja sempre uma simples m
a fotografia é um material rico e complexo, em que se distinguem três grandes téria inerte, mesmo se sempre encobrir um sentido, mesmo se opuser resistênci
componentes: o material de registro, o material inscritível e a razão maquínica. mesmo se induzir posturas, mesmo assim será, antes de tudo, aberto, disponíve
O material de registro se compõe da luz, de superfícies sensíveis. dos produtos a um grande número de potenciais, sem finalidades fixas, nem formas impostas
químicos. Sem forma nem significado, é o material de base, próprio do dispositivo Do instrumento ao material, os artistas livram a fotografia das sujeições fu
técnico. É ele que dá à imagem sua natureza scrniótica de impresso bem como sua cionais e a liberam das coerções da transparência documental; ou, ainda, adotam
matéria industrial, suas propriedades técnicas e seus efeitos estéticos particulares es~a transparência como uma característica artisticamente pertinente; ou, p
(resultantes das cores, sensibilidade cromática, gr<:nulação, ctc.). Em segundo lu- fim, eles a questionam. A série "Turquia", de René Sultra e Maria Barthélerny, p
gar, por que a imagem fotográfica funciona tecnicamente, influenciando o regime exemplo, compõe-se de quatro grandes paisagens (1,20 rn x 1.80 m), cuja feitu
de impressão, as coisas, os estados de coisas e os eventos do mundo lhe são mate- é totalmente transparente. e a forma, voluntariamente banal, pois o projeto dess
rialmente necessários: eles constituem seu material inscritível. Este se compõe, en- artistas não é documentar as paisagens da Turquia, mas um programa artístic
tão, do conjunto da natureza, dos seres e das coisas aquém de qualquer forrnatação que questiona a relação habitar-comer. Desse modo, em cada uma das quatr
fotográfica. O material inscritível é externo ao dispositivo e carregado de signifi- paisagens da série, eles inserem uma forma geométrica branca, obtida em tiragem
cados específicos, Que as coisas e os eventos do mundo façam parte do material à parte, com a ajuda de urna máscara opaca. Em uma das provas, a presença des
da fotografia, isto é testemunhado pelo corte que seu advento realizou no campo forma chega a quase ocultar completamente a imagem: ao mesmo tempo habita
das imagens, rompendo o confronto platônico entre as coisas e as imagens. Se, de e comer a imagem. Essas formas brancas, vazias de informação, invertem a lógic
fato. as coisas compõem o material inscritível da fotografia, então as imagens e o mimética da fotografia. quebram o gênero tradicional da paisagem e perturbam
mundo cessam de ser externos para se interpenetrarcm. Finalmente, em terceiro os hábitos visuais. Manchas cegas que polarizam o olhar. falhas de luz, que põem
lugar. sendo a fotografia uma imagem tecnológica, o material que proporciona a descoberto a matéria fotográfica. espécies de guaridas primitivas que se opõem
sua matéria conta com um último componente: a "razão maquínica" É aquela que a seu entorno como um interior ao exterior, superfícies planas que rompem
se atualiza nos aparelhos técnicos. aquém de qualquer escolha estética, de qual- perspectiva linear - essas zonas dialéticas são, ao mesmo tempo, afotográficas
quer gesto figurativo. A razão maquínica engloba principalmente a perspectiva plenamente fotográficas, porque, nelas, a lógica da fotografia-material confronta
linear das ópticas e o mimetismo automático das imagens, mas também o tempo -se com uma lógica documental anterior.
de pose maquínica, a submissão da forma redonda (não orientada) da imagem
óptica à forma (orientada) do enquadramento ortogonal, ete. Esse logos maquíni- No decorrer dos anos 1980, a fotografia - enquanto material de registro, m
co, que pré-forrna autornaticarner-te a imagem, independentemente de qualquer terial inscritível ':' razão maquínica, isto é, enquanto material de captura mimétic
escolha figurativa e estética, participa plenamente do material fotográfico, e tecnológica - adquire um lugar importante na arte, por razões ligadas às pro
A aliança arte-fotografia possibilita, pela primeira vez, a entrada no campo da fundas evoluções da fotografia, da arte e cio mundo. As eras do carvão e do ferr
arte de um material de captura mirnética e tecnológica. Os numerosos artistas da mecânica e da química, que é a da fotografia, são sucedidas pela era eletrônica
que, a partir daí, empregam a fotografia como material, dominam perfeitamente isto é, um novo estado da ciência, da indústria e da informação, e de novas nece

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I A ARTE·FOTOGRAFlA I I FlSIONOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

sidades em imagens, que ultrapassam em muito as capacidades do procedimento indústria, os materiais de nenhum modo são elementos neutros, transp
fotográfico, criticam-no de obsolescência, e colocam-no às margens da produção. ~.JI ., ou inertes,' eles evoluem com as condições técnicas e econômicas, com
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Essa diminuição das funções práticas do procedimento é acompanhada de uma "',
tões estéticas e com as sensibilidades. Se é difícil seguir totalmente Ador
valorização estética das imagens, favorecendo a ascensão de uma arte e de um
'11 quem "a força produtiva estética é a mesma do trabalho útil e, em si, per
mercado de arte fotográficos, bem como o acesso da fotografia ao patamar de • mesmos fins",' se uma arte não se elabora necessariamente com base no
material artístico. mais evoluído, a adoção da fotografia como material por inúmeros artis
Depois da arte moderna, que durante todo o século XX abriu amplamente a temporâneos atesta, em compensação, que eles sempre procuram escolh
arte para um grande número de materiais, no alvorecer do século XXI é a vez de os materiais disponíveis, os que atingiram um certo nível de maturidade
ser a fotografia considerada um dos principais materiais artísticos; acompanhada os que mais convêm às sensibilidades e aos hábitos visuais do momento.
da evolução das práticas. Ao declarar "eu pinto com a fotografia", Christian Bol- de, de agora em diante, a pintura propriamente dita dividir a notoriedade
tanski é, na França, uma das figuras emblemáticas deste movimento que vai na fotografia (e também com o vídeo e a eletrônica) é o sintoma de um ce
contracorrente da concepção modernista segundo a qual o artista deve purificar tamento da massa pictórica, de sua substituição parcial pela fotografia, e
sua arte de todos os elementos emprestados, e dela extrair a especificidade, a es- vação, em curso, dos materiais artísticos. Este tornar-se-fotografia, de um
sência. Essa mística da pureza, que levava a perseguir as mínimas dessemelhan- cada vez maior dos materiais artísticos, inscreve-se em um movimento m
ças e heterogeneidades e, portanto, visava a excluir, corrcspondia a um penedo plo, próprio das sociedades desenvolvidas: a generalização inusitada, em
histórico, intelectual e político de confronto, de isolamento, de guerra fria: a um de meio século, da figuração analógica; a passagem, de uma relativa par
reinado do "ou': Essa cultura, feita de oposições, de exclusões e de contrastes - a uma superabundância de imagens fotográficas, fílmicas e televisivas, g
entre Leste e Oeste, entre o comunismo e o capitalismo, e entre seus respectivos extraordinário desenvolvimento das tecnologias de difusão. A figuração a
valores -, desmoronou a partir da derrota americana no Viernã (1975) e a derro- acompanha, a partir de agora, cada um dos nossos instantes e satura noss
cada soviética, com a queda do muro de Berlim (1989). Atualmente, o processo res. Estamos mergulhados na rnirnese: nossas sensibilidades, nossos modo
de globalização, que se acelera e se generaliza, as trocas, os encontros e os contatos e nossas relações com o real, estão aí profundamente impregnados. Torna
que se intensificam, os limites, geográficos ou não, que se deslocam, as fronteiras mético o próprio material artístico - material de registro e material inscri
que oscilam e se reconfiguram uma após a outra, os totalitarismos que se desfa- fotografia responde a essa situação. A rnirnese, que tinha deixado de ser o
zem e se renovam, a flexibilidade, o nomadismo, a mestiçagern que fazem a regra da arte, torna-se, agora, o ponto de partida. E, assim, a arte se encontra, m
do presente, as exclusões que se deslocam ... tudo isso manifesta, na arte e em vez, profundamente transformada.
outros setores, o fim do reinado do "ou" e o advento de uma nova época: a do "e".
Assume-se a unidade dos contrários, proclama-se a falência das antigas oposições
REDEFINIÇÕES DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA
e exclusões. Sob o reino da mesriçagem, não é mais inconcebível ser bissexual
(hetero e homo), ou ser plástico, isto é, optar abertamente por uma combinação A aliança arte-fotografia consagra, paradoxalmente, o declínio da rep
sem limites das praticas e dcs materiais. Somente dentro desse contexto que obras ção, transfere o fabrico das obras da mão para uma máquina, e promove
como as de Boltanski e de muitos outros podem ser, ao mesmo tempo, plenamen- para a categoria do fazer. Em outros termos, a aliança arte-fotografia sur
te pictóricas e totalmente fotográficas. uma espécie de finalização da ação que a fotografia exerceu sub-repticiame
..~
Expressão de uma situação particular do mundo, da arte contemporânea e da .~;
Pierre Macherey, Pour wle théorie de Ia productíon linémirc (Paris: François Maspero, 1974), p. 5
fotografia, essa transformação da fotografia em material artístico dá vez à questão I.~
Theodor W. Adorno, TI •-iorie esthétique, trad. Mare Iirnenez & Éliane Kaufholz (Paris: Klincksi
da historicidade dos materiais. Porque na arte, como aliás na construção ou na 'Zl'; I p.2J.
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I A ARTE·FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ART'·FOTOGRAFIA I

arte, na esteira dos ready-made de Duchamp. Como se, três quartos de século mais -fotografia. Os "quadros fotográficos" são os primeiros a ser produzidos p

tarde, após ter servido de paradigma à arte moderna por intermédio da obra de máquina, a liberar-se da habilidade manual do artista, a afastar-se do sabe

Marcel Duchamp, a fotografia viesse impor-se diretamente enquanto material na artesanal. Assim, substituir a mão por uma tecnologia significa transpor

arte na virada do século XXI. mais sólidos obstáculos da tradição artística: o e-o necessário entre a arte e

Enquanto os fotógrafos-artistas não desistiram de inverter ou de desfocar as do artista, a antinornia absoluta entre a arte e a fabricação mecãnica. En
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capacidades rniméticas da fotografia, são estas as capacidades que, ao contrário, os máquinas como as de Moholy- Nagy, ou aquelas, muito espetaculares, de [e
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artistas apreciam. Essas posturas opostas, que intervêm simultaneamente mas em ~.;-I
guely, permanecem o fruto de um minucioso trabalho artesanal, a arte-foto

dois campos distintos, traduzem o mesmo processo de declínio da representação. abre resolutamente a arte para a fabricação mecânica em si.

Os fotógrafos recusam a representação em suas propriedades mais tradicionais: A tecnologia substitui a ação manual do artista, ou, às vezes, recobr
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a nitidez, a transparência. Os artistas, ao contrário, aceitam o mimetismo sem talmente. A obra de Georges Rousse é exemplar a esse respeito. Em salas

reservas: não como uma representação, cópia considerada verdadeira de um refe- de entrepostos abandonados, de palácios em ruína, ou de prédios conden

rente, mas como uma manifestação, um elemento que só se remete a ele mesmo. demolição, ele pinta as paredes, o chão e o teto de um cômodo, para criar

Aliás, este é um traço característico da arte-fotografia: a fotografia passa do status de que volumes geométricos simples e monumentais ocupam todo o espaç
de documento (ferramenta ou veto r) para o de material artístico quando a repre- balha durante vários dias, às vezes até recortar paredes e divisórias. E em s
sentação produzida é abolida na apresentação dada. No caso, a imagem fotográfica como num passe de mágica, o que era achatado, pictórico surge em volum
pode exigir um processo mínimo de produção, como nos clichês de amador de quadros fotográficos. Mas esses volumes são apenas chamarizes, objetos
Christian Boltanski: ou, ainda, a produção da imagem pode ser talvez muito ela- organizados a partir de um ponto de vista, trompe-l'eeil que só existe pelo
borada, como em Patrick Tosani, por exemplo, mas sem constituir a finalidade do Esse trabalho efêmero de pintura, destinado a desaparecer junto com os
trabalho. Pois, com a fotografia, o artista procura menos representar o real do que -: 'c'
que lhe servem de suporte, apoia-se inteiramente na fotografia: é o aparelh
problernatizá-lo. Visa menos a chegar à Ideia, o ser platônico do real, do que atua- gráfico que delimita o espaço a ser pintado, que define o ponto de vista e qu
lizar as ideias que formou em si. As faculdades de apresentação da fotografia, o a perspectiva; é uma grande prova fotográfica em cores que, sozinha, emerg
fato de ela ser uma impressão luminosa das coisas e de que nela se entrecruzem o longo processo arquitetural e pictórico organizado pela fotografia; finalm
material de registro e o material inscritível, apontam-na como o material artístico uma crítica ao ilusionismo, à evidência banal e ao factício dessa imagem

mais bem apropriado a tal projeto. gráfica que é proposta. Em todo caso, a arquitetura, a pintura e a fotogra
A arte-fotografia perfaz a representação (ao mesmo tempo, leva-a a seu apo- convocadas para produzir o imaginário, para tornar indiscerníveis o real e
geu e acaba com ela), reduzindo-a a uma apresentação e mecanizando-a. A arte- A fotografia serve, aqui, ao poder do falso, que, por uma espécie de ind
-fotografia não só desloca para os conceitos as finalidades do' projeto estético da transforma 11mlugar real em um espaço virtual - produzido não pelo elet

realidade, mas, também, transfere a fabricação das imagens da mão do artista mas pelo corpo, pelo tempo. pela duração, pelo trabalho manual (até em e
para uma máquina. Assim, uma dupla tradição é posta em xeque: a da filosofia Em quadros fotográficos de dimensões às vezes imponentes, que ago
platônica do original e da cópia, c a da concepção manual, artesanal, da arte. A re- ptlll as galerias dos museus, o lento e minucioso trabalho da mão é tota
presentação foi, sem dúvida, um dos principais alvos da arte do século XX, a partir abolido ou subordinado a uma máquina e a um processo tecnológico. O tr
dos ready-made de Ducharnp, que não são representações, mas apresentações de nal contato direto entre o artista e sua tela é substituído pelo contato a d

coisas, até à aventura fecunda da abstração, sem esquecer as contribuições inaugu- entre uma coisa e uma superfície fotossensível. A fabricação manual e a
rais das fotomontagens e dos fotogramas. b precisamente em continuação a eles, da imagem se esfuma, em prol da seleção e, depois, do registro químico. En
que substituíam a mão do artista pela máquina fotográfica, que se situa a arte- obras tradicionais foram cr;adas na intersecção de um saber-fazer manu

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I A ARTE-FOTOGRAFIA I
I FtS!O~OM!-\ DA ARTE·FOTOGRAFII\ I

um processo de escolha estética contínuo e pleno de direito, a arte-fotografia traz para fortalecer a ideia de que o artista é a única verdadeira origem da obra
uma da pia mudança às condições da criação. De um lado, substitui a habilidade razão de sua originalidade, Assim, o artista tende a eclipsar a obra. E, ne
manual por um saber-fazer tecnológico, de outro, restringe o processo de escolha ravolta, a figura de Pollock cruza com outra grande figura da crônica mod
antes do enquadramento ou, principalmente, no momento dele, A arte-fotografia Marcel Ducharnp, ao ser fotografado por Man Ray, Embora o Pollock de
faz, assim, a arte ir à deriva, Com os ready-niadc de Marcel Ducharnp, criar não e o Duchamp de Man Ray encarnern duas versões de artista e inúmeros
significava mais fabricar (manualmente), mas escolher. Ao delegar a fabricação a opostos, embora o caráter manual, a expressão da emoção e da espontaneid
uma máquina, a arte-fotografia conduz a este limite, onde criar é enquadrar. um se distingam radicalmente da postura intelectual e da fria distância d
Duchamp e Pollock têm em comum o fato de serem dois artistas-atores

DESCONSTRUÇÃO DA ORIGINALIDADE MODERNISTA dos - tanto um quanto outro - com dois novos modos de agir artisticamen
Após Van Gogh, com quem ele divide um destino trágico, Pollock e
Ao substituir a mão pela máquina, a arte-fotografia prossegue o trabalho, .rica o privilégio concedido ao autor, tanto pelo modernismo artístico,
encetado por Marcel Ducharnp, de solapar as noções tradicionais de artista, de pelo existencialisrno, e até mesmo pelo Ocidente, que lhe delega sua d
talento, de interioridade e de intenção, Ela vem minar o mito modernista da ori- de autenticidade e de originalidade. No entanto, no decorrer dos anos 19
ginalidade, o culto à individualidade do artista enquanto ponto de origem e prin- gem numerosos questionamentos acerca da noção de autor não só na ar
cípio de originalidade de sua obra. Andy Warhol, mas, também, no pensamento estruturalista, com Roland
Harold Rosenberg insiste sobre isto. que a pintura expressionista abstrata, que e Iacques Lacan, c, naturalmente, com o famoso artigo "Qu'est-ce qu'un
ele nomeia "pintura-ato", é inseparável da biografia do artista, que ela é um mo- [O que é um autor?], que Michel Foucault publica em 1969. Fiel às su
mento da complexidade de sua vida, da "mesma substância metafísica" de sua cepções anti-humanistas, já em seu livro Les mots et les choses [As palav
existência, em resumo, que o quadro modernista "só poderia justificar-se enquan- coisas], Foucauit observava que "o homem não passa de uma invenção
to ato de gênio'" Iackson Pollock foi, sem dúvida, aquele que mais contribuiu uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso sabe
para a sustentação dessa ideologia modernista, não só em razão do valor de exem- desaparecerá desde que este haja encontrado uma nova forrna'" Em seu ar
plo, que a crítica, especialmente a de Clernent Greenberf, atribuiu à sua maneira convida a "proceder a uma inversão da ideia tradicional de autor" e "reex
singular de trabalhar, mas também na repercussão do grande sucesso alcançado os privilégios do sujeito"." Trata se, pois, de "retirar do sujeito (ou de seu su
pelas fotografias que Hans Namuth fez dele em seu ateliê. Manchado de tinta, to) seu papel de fundamento originário e de analisá-Io como uma função
inclinado sobre sua tela colocada no chão, e como que agitado por um delírio t e complexa do discurso': Afirmar que "o autor não precede às obras" s
criativo, Pollock encarna o pintor modernista como o inverso do pintor de cava- inverter radicalmente o discurso modernista, que considera o autor como
lete: o artista-ator substituiu o artista-fabricante.' Mas, mais basicamente ainda, tância criativa da obra. Longe de ser a fonte do perpétuo surgimento da no
os efeitos ideológicos das fotografias de Namuth resultam da verdadeira inversão o autor, ao contrário, teria corno função, entravar a proliferação do senti
que causam entre as obras e o artista, porque as tornadas em câmara alta conferem sempenhar "o papel de regulador da ficção, papel característico da era indu
a ele e a seu corpo uma preeminência sobre as telas colocadas 110 chão, e porque ..,
~. burguesa, do individualismo e da propriedade privada" .
suas sutilezas de cores, de texturas e de feitura escapam à fotografia em preto e Dentro desse amplo movimento de reconsideração dos pressupostos
'Sf
branco. As fotos de Pollock feitas por Namuth também contribuem, em 1950, ~ nistas, Roland Barthes publica, em 1968, um artigo com o título, explíci

Harold Rosenberg.Ls tradition du /louveau (Paris; Minuit, 1962), pp. 27·28.


~.. , Miehel Foucault, Les n/ols et lcs choses. Une archéologíe des sciences humaines (Paris: Gallimard, 196
, Bárbara Rose, "Le mythe Polloek porté para Ia photographic", em Hans Namuth (org.), Eatelier de lockson
Michel FOl~~dl1lt, "Qu'cst-ce qu'un autcur?", em Bulíetin de Ia Société Française de Pllilosophic, ns
Pollock (Paris: Mácula, 1978). s/p. As presentes propostas inspiram-se fortemente neste texto, 1969.

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I A ARTE-FOTOGRAFIA I [ FISIONOMIA DA ARTE-fOTOGRAFIA)

mort de l'auteur" [A morte do autor l/ para opor-se a ideias herdadas e explicar tiva do gesto de apropriação de Sherrie Levine mobiliza em alto grau o mate
que "a unidade de um texto não está em sua origem, mas em sua destinação": que o procedimento e as obras fotográficas, porque, para o senso comum, a fotog
é o leitor, e não o autor, que detém o papel principal; resumindo, "o nascimento é o emblema do procedimento mecânico, logo não artístico, de apropriação
do leitor é a recompensa da morte do autor". Após ter jogado o leitor contra o au- aparências, de fabricação de simulacros, Ao empregar a fotografia para apropr
't1~
tor, Barthes (em 1971, no artigo "De l'ceuvre au texte" [Da obra ao textol)" adota o ~. -se de provas reputadas objeto de um trabalho fotográfico minucioso e cons
r.
partido do texto, contra o da obra. Enquanto o autor sempre se apropria da obra, radas obras-primas da arte fotográfica, Levine não somente faz uma apropria
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o texto foge ao processo de filiação, "O autor é considerado o pai e o proprietá- ao quadrado, mas mostra vigorosamente que nem a ferramenta nem o gesto
rio da obra", e a sociedade lhe garante tal poder. Ora, nenhum indivíduo está na o autor são garantias de valores artísticos. Pois provas técnica e formalmente
origem do texto, seu autor não tem nem biografia nem psicologia, pois "o eu que i
sofisticadas quanto as de fotógrafos com a reputação de um Evans ou de um
escreve o texto nunca é o eu de papel". Desse modo, o feudo estruturalista nega ton, jóias da arte fotográfica, não têm acesso ao campo da arte (propriame

ao artista, e também ao autor, o papel de origem da obra; e, à obra, seu status de dito) a não ser através de reproduções corriqueiras, ou seja, à custa de uma de

lugar originário de um sentido a ser interpretado. Ao mesmo tempo que o texto lorização de suas qualidades específicas enquanto objetos. Logo, o valor artís

substitui a pluralidade e o intermediário pela unidade da obra, a exploração pela se encontraria menos na coisa do que em seu contexto. A criatividade do arti

interpretação, e a colabcração l:';;;~ica do autor e do espectador pelo consumo. Os a atmosfera da obra não passariam de noções obsoletas. É todo o sistema artís

porvires eclipsam as antigas noções de origem e de original. tradicional, revigorado pela pintura modernista, que é contestado. E, para Sh
Levine, com este aspecto fundamental: a dominação masculina que pesa d
Na mesma época, os artistas conceituais são movidos por preocupações seme-
sempre, indissociavelrnente, sobre a arte e sobre as mulheres. Via procedim
lhantes ao procurar, muitas vezes por meio da fotografia, "amordaçar o afeto"? e
to fotográfico, Sherrie Levine inventa uma postura crítica vigorosa, contrária
liberar-se do "ofício no sentido artesanal do termo". Sua finalidade é conjurar a
sistema artístico dominante. Postura definida pela apropriação, contra a cria
originalidade, abolir o mito do artista-criador, para chegar a uma arte desencar-
pela reprodução, contra o original; pelo plagiador, contra o criador. Mas, i
nada e analítica, oposta aos valores restaurados pelo expressionismo abstrato. Mas
mente: pelo feminino, contra o masculino; o autorríatisrno, contra o gesto; e
foi apenas uma década mais tarde, no feudo pós-modernista, que, especialmente
mesmo, pela arte contemporânea, contra a fotografia. "Um quadro é somente
pelo viés da fotografia, as questões de originalidade, de plágio e de direitos de pro-
espaço onde se fundem e entrechocam várias imagens, todas sem originalidade
priedade tornam-se o objeto de trabalhos como os da artista americana Sherrie
afirma, em 1982, Levine, que proclama abertamente a morte do pintor em pro
Levine. A esse respeito, em 1981, ela causa uma grande repercussão ao fotografar
plagiador, em termos próximos daqueles que, quinze anos antes, Barthes em
provas de alguns dos mais célebres fotógrafos modernos: documentos realiza-
gara em "La mort de l'auteur"
dos para a Farm Security Administration, por Walker Evans; nus de Neil, filho
de Edward Weston, feitos pelo pai; paisagens, de Eliot Porter. Além da inevitável
perda de qualidade, em razão da reprodução, as fotografias de Levine diferem DECLÍNIO E PERMANÊNCIA DA ARTE-OBTETO

dos originais de Weston e de Evans apenas pelas menções Sherrie Lcvine segundo
Na entrada dos anos 1980, a arte-fotografia, corno dissemos, insere-se em
Edward Weston ou Sherrie Levine segundo Walker Evans. A eloquência desconstru-
longa corrente de desobjetivação e de desmaterialização da arte, de desmistif
7 Robnd Barthes.t'La rnort de l'auteur" (1968), em te bnússemcnc de 10langue. Essa i, critiques IV (Paris: Seuil. ção do artista-criador e da originalidade da obra, que balizaram todo o século
~'+
19M),pp.61-67. para atingir seu apogeu nos anos 1970 com a arte conceitual.
• Robnd Barthes, "De l'ceuvre au texte" (1971), em te bruissemenc de Ia latlgl/e, cit., pp. 69-77.
, Sol u,Witt, "Paragraphs on Conceptual Ar!", em Artforum, 5 (10):79-83, Nova York, verão de 1967. apud
0wIes Harrison & Paul Wood, Ar! etl théorie, 1900-1990. Une anthologie (1992) (Paris: Hazan, 1997), ]0 Sherric Levine, "Déclaration"; em 5tyle, Vancouver, mar. de 1982, p. 48. apud Cbar! -s Harrison & Paul
pp_910-913. Ar: etl théorie, cit., p. IIS7.

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I A ARTE-FOTOGRAFIA I I FISIONUMi", DA ARTE·f010GRAFIA I

Para o artista conceitual Terry Atkinson, o objeto material na arte do final dos recimento total do objeto na arte, mas somente o fim de sua hegemonia e
anos 1960 é um vestígio da época finda, quando dominavam a ciência mecânica a ele consagrado). Após Dada, que fazia da arte um evento - e do eve
e a indústria, 11 o que confirmaria o esgotamento histórico da pintura e da escul- arte -, após o suprematista Maiakovski, segundo o qual "as ruas são nos
tura, que, segundo ele, chegaram "ao limite do que poderia ser chamado de seu céis, e as praças, nossas paletas': após as tentativas surrealistas de vacâ
nível interno"," Por seu lado, Robert Smithson introduz em suas obras processos arte, 14 Yves Klein vende, a preço de ouro, em 1959, uma de suas ZOl1e de s
de desintegração mineral, como a oxidação (a ferrugem) com a função estética picturale immatérielle [Zona de sensibilidade pictórica imaterial], dos
e simbólica de depreciar a materialidade resistente, rude e industrial do aço, tão Three Dimensions, e, em 1961, a Sa/le vide [Sala vazia], um espaço puro."
apreciado pelos escultores modernistas David Smith ou Anthony Caro. Em 1968, do objeto e afirmação da vida, ainda com Ben Vautier, os happenings
Smithson já diagnostica uma perda do ofício, uma queda do ateliê, um declínio Kaprow e, sobretudo, com o famoso slogan Fluxus, de Robert Filliou: "
das noções de criatividade e de artista: o artista clássico copiava um modelo, ele que faz a vida mais interessante (importante) do que a Arte" (I969)_ No
explica; "o artista moderno elabora uma gramática abstrata dentro dos limites de ano, na interseção da land arl, da arte corporal e da arte conceitual, Victor
seu ofício"!' e de seu ateliê; com a land art, ao contrário, "saído do confinarr:ento analisa a concepção de arte em que prevalecem os comportamentos em
do ateliê, o artista escapa às armadilhas do ofício e à escravidão da criatividade" A fabricação tradicional de objetos (em que o artista é mais um coordena
perda do oficio de artista, a desmaterialização das obras, isto é, a relativização do fermas existentes eu ...j:Jeum criador de novas formas): "O que se conc
objeto de arte no processo criativo e o advento da fotografia na arte inserem-se na são os próprios objetos individuais, mas sistemas estéticos capazes de
mesma dinâmica. No início dos anos 1980, a aliança arte-fotografia surge, assim, objetos"," Ora, esse duplo processo de declínio da arte-objeto e de asce
na esteira da arte conceitual, como resultado de um longo declínio dos valores arte-comportamento prossegue, trinta anos mais tarde, sob outros aspect
materiais e artesanais da arte; como efeito de um processo que conduz obras-ob- vez que a fabricação de artefatos conta menos do que a produção de
jetos, feitas para o olhar, em direção a propostas sem forma material determinada, com o mundo. "Viver na arte" opõe-se, então, a "fazer arte'"? e, também,
feitas para o pensamento. A arte-fotografia atinge, então - graças ao deslocamen- fotografia, quando ela assegura a permanência do objeto na arte.
to de critérios artísticos durante muito tempo encarnados pela pintura em prol de A aliança entre a arte e a fotografia é; desse modo, de uma ambivalênc
critérios associados à fotografia -, seu aparente déficit de material idade e de sub- ..;. nente: possibilitada pelo declínio do objeto na arte, contribui para traze
jetividade. A aliança arte-fotografia, pela qual a fotografia se torna um material para o objeto. Na tand art ou na arte corporal, a fotografia-vetor já preen
artístico, vai, de certo modo, selar a vitória da arte conceitual sobre a arte-objeto função de salvar o objeto. Ao documentar ações efêrneras, prolongava a
(única, artesanal, subjetiva, etc.), tal qual a pintura modernista a defendia. -eventos nos clichés-objetos próprios para exposição, venda, reprodução,
Trata-se, porém, de uma semivitória. Se a arte-fotografia vem opor uma es- lação, consulta. Em resumo, a fotografia-vetor reconciliava a arte-even
pécie de quase-objeto (tecnológico) aos objetos artísticos canônicos (manuais) o mercado. Quando, a partir dos anos 1980, se agrava a crise da represe
concretizados pela pintura, um quase-objeto é sempre um objeto, que, no caso, quando a pintura e " escultura mal dissimulam a distância que as separa
vai assegurar uma permanência da arte-objeto diante de um movimento longo e do, quando os materiais artísticos tradicionais sofrem de esgotamento
crescente de desmaterialização da arte (a desrnaterialização não sendo o desapa-
" Nicolas Bourriaud, Formes de I·ie. L'arl moderne er /'illv<nlioll de soi (Paris: Denoêl, 1999), pp. 70
" Terry Atkinson & Michael Baldwin, "Air Show" (1968), em Arl 6- Langage, catálogo (Eindhoven: Van Abbe " Ver YVts Klein, catálogo (Pari" Centre Gcorgcs-PompidoulMusée National d'Art Modcrne, m
Museurn), aplld Charles Harrison & Paul Wood. Art en théorie, cit., pp. 937-946. 1983).
n Terry Atkinson, "Editorial lntroduction to Art-Language", em Arl-Langage, catálogo (Coventry, maio de " Victor Burgin, "Esthétique situationnelle" em Studio Internatíonaí, 178 (915): 118-121. out, de
1969), apuâ Charles Harrison & Paul Wood,Art en théoríe, cit., p. 954 Charles Harrison & Paul Wood, Arl <n IIIéori<, cit., pp. 961-963.
" Robert Smithson, "Une sedirnentation de l'espric Earth projects", em Robert 5",illl5on. U paysag< entropique, 17 Gcrmano Celant, "Arte Povcra", Milão, 1969. a(>lId Charles Hatrison & Paul Wood, Arl <n
1960-1973, catálogo (Marselha: Musées de M.r><:ilIe/lRMN, 1994), pp. 192-197. pp.965-968

348
I A ARTE· FOTOGRAFIA 1 1 FIS.ONOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA 1

quando os artistas tendem a voltar de um outro espaço e tempo - das obras in :'i obra é, aqui, uma relação que se estabelece de modo hipotético e transitório
:t:
situ, ou das perfcrmances - para os lugares sagrados da arte, quando, depois da uma situação e o que ela pode produzir". Para Rirkrit Tiravanija, "não é o
arte conceitual e da corporal, as artes-eventos de hoje em dia não cessam de apos- vê que é importante, é o que acontece entre as pessoas': O evento, o proce
sar-se dos valores tradicionais dos museus e das instituições artísticas - o objeto, o interação social e a troca prevalecem ao objeto. O papel do artista consiste,
fazer, a visualidade, a mo nu mentalidade -, então o inconcebível acontece: a foto- diante, em propor um dispositivo, em oferecer oportunidades das quais o p
grafia, durante muito tempo o maldito outro da arte, torna-se um dos principais possa se apossar para que algo aconteça, não exatamente uma coisa, mas
materiais da arte contemporânea .. relação em constante devi r: um estar-lá conjunto, que aja sobre os comportam
A aliança arte-fotografia pode servir: para preencher parcialmente o vazio dei- tos. Entramos, aqui, em urna nova era onde a obra é periférica, em que ela
xado pela pintura; para restituir o impulso a um certo mercado da arte; para sal- mais o centro, mas somente a expressão de conexões.
var os principais valores do mundo da arte. A fotografia foi adotada pela arte tão Em parte, é a essa situação, já embrionária no início dos anos 1980, que a
rápida e incondicionalmente quanto foi violentamente banida, mas com a con- ça arte-fotografia vem responder. Uma situação cuja lógica econômica e e
dição de que viesse (temporariamente) tomar o lugar deixado vago pela pintura, implícita poderia ser assim formulada: melhor um quase-objeto de arte (de
que abastecesse o mundo da arte em quadros - quadros fotográficos. O fato de a rial fotográfico) do que nenhum objeto. De certa maneira, mais vale acender
fotografia contribuir para assegurar a permanência do ql1?r1ro C ~.: seus valores (o vela do que maldizer a escuridão ... Ao longo das duas últimas décadas do
objeto, o fazer, a visual idade, a monumentalidade) confirma novamente que seu XX, é a fotografia, enquanto material, que serve de escudo para a desmate
emprego como material da arte provém exatamente do campo da arte e não do zação da arte. Se o efeito disso é arrastar a arte para fora de seu recinto sa
campo fotográfico. Por outro lado, o grande tamanho da maioria dos quadros fo- secularizá-Ia, não leva, no entanto, a nenhuma aproximação entre o cam
tográficos, longe de ser secundário, condiciona sua capacidade de funcionar como arte e o da fotografia.
quadros - há uma ruptura total em relação aos pequenos clichês da fotografia-
-vetor da arte. Finalmente, como resposta ao saber-fazer manual dos pintores, os
ARTE-FOTOGRAI'JA FORA DA FOTOGRAFIA
artistas que trabalham com o material-fotografia dão provas, geralmente, de um
alto nível de competência (tecnológica). Tudo parece, então, funcionar como se a De modo nenhum a aliança entre a arte e a fotografia consiste em uma
mudança de material fosse a concessão que o mundo da arte deveria aceitar para penetração dos campos artístico e fotográfico. É, sim, fruto das transforma
renovar o quadro, para salvá-I o enquanto forma estética, ideológica e comercial. que afetaram o campo da arte, fora do campo fotográfico e sem ele, ou quas
Tratava-se de respondera uma situação caótica: a falência da pintura tradicional, insere em um processo artístico absolutamente não fotográfico.
o declínio crescente da arte-objeto em prol da arte-evento, e, mais recentemente, É preciso ressaltar que a noção de "aliança arte-fotografia" nada tem e
a ascensão da arte em rede, em particular a arte visual na internet. Tratava-se, em mum com a "fotografia plástica", esta categoria fraca de que Dominique
suma, de resistir à desmaterialização da arte, que, longe de ser interrompida, se faz uso, acriticamentc, no título de seu livro La photographie plasticienne. E
intensificou mais ainda após o fim da arte conceitual. em que, no final dos anos 1960, "o medium fotográfico infiltrava-se na arte d
Nos anos 1990, de fato, uma nova geração de artistas inventa, a exemplo de neira curiosa e paradoxal: como imagem-rastro [image-traceJ, relíquia, com
Rirkrit Tiravanija, uma arte onde a obra é concebida "como um elo, um comuta- cumento em que a qualidade da definição [da imagem] é muitas vezes med
dor, uma passagem, jamais como um fim, um resultado"." Diferente de um objeto Ou seja, uma imagem precária e frágil. Pobre"," O recurso compulsivo à ont
findo, acabado e inerte, diante do qual o espectador deve deter-se e observar, a do traçado, da relíquia, do vestígio, e até mesmo do "restante': vem sustentar

•• Ap/ld Pierre Lamaison. "Des IrOUS dans le récl", em Conncxions ímpiicites (Paris: ANSBA, 1997). p. 24. " Dornmique Baqué, La pholograplJie plasticíenne. UII arl paradoxal (Paris: Regard, 1998), p. 49.

-ItI
350 351
..
I A ARTE· FOTOGRAFIA I I FISIO'lOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

longa ladainha essencialista acerca da mediocridade, da precariedade e da pobre- to, a desvantagem, grave, de remeter à teoria da comunicação, à transmissã
za da fotografia. Isso, curiosamente, no final de um século em que a pobreza dos mensagens e de informações - como não pensar no célebre "O meio (medi
materiais foi reivindicada por algumas das correntes mais dinâmicas da arte, de a mensagem";" de McLuhan? Em segundo lugar, essa acepção estritamente
Duchamp à arte conceitual, à arte Povera e outras. Além do mais, tal postura pare- nicista do termo dissimula o fato de nenhum medium limitar-se a seus
ce totalmente contraditória ao projeto (do livro citado) que parece querer tomar técnicos. O medium é inseparável dos usos que preenche, da visão que au
o lugar crescente que, hoje em dia, a fotografia ocupa na arte contemporânea - a do campo específico em que se desenvolve, e, nesse caso, das funções estética
menos que, de fato, se tratasse apenas de sugerir que tal lugar só seria um sintoma assume. A fotografia dos fotógrafos não é, de fato, a dos fotógrafos-artistas,
c'
do (suposto) longo declínio da arte ... 20 pouco a dos artistas. Em terceiro lugar, a redução tecnicista operada pela noç
Mas é preciso ressaltar, principalmente, quanto é errôneo, ou pelo menos uni- medium é acompanhada, com Dominique Baqué, de uma constante confusã
':}
lateral, afirmar que a fotografia "se infiltrou na arte", que "entrou na arte'?' (como campos fotográfico e artístico, como se a diferença entre eles fosse apenas de
se entrasse em estado de graçal), mesmo que fosse de um modo paradoxaL Isso não de natureza; como se eles, mútua e indiferentemente, se interpenetrassem
significa, de um lado, conferir-lhe um papel ativo, contraditório à sua (suposta) infiltrassem o bastante para uma dinâmica estritamente artística fazer parte d
pobreza; e, por outro, fazer crer que a iniciativa (se não a estratégia de infiltração) grafia. Em quarto lugar, tal confusão se traduz pela ausência de distinção entr
tenha vindo do campo fotográfico, enquanto o movimento, ao contrário, veio duas práticas heterogêneas que são a arte dos fotóg. ,,;üs, de uiii lado, e a foto
de diferentes setores do campo da arte. Não foi o "medium fotográfico que se dos artistas, do outro. A falsa noção (nunca explicitada) de "fotografia plásti
infiltrou na arte", mas os artistas que se serviram dele para responder às suas ne- expressão cabal dessa confusão. Finalmente, o emprego, sem distinção, do
cessidades artísticas próprias. Não houve, na arte, infiltração pela fotografia, mas medium oculta o fato fundamental de que, na arte do final do século XX, a foto
utilização do dispositivo técnico fotográfico pelos artistas - sem a prática nem desempenha outros papéis além de medium, em particular o de um materia
a
o saber-fazer, nem mesmo os usos, nem a cultura, nem o público da fotografia.
Ter-se-ia, como prova, que a maioria dos fotógrafos ignora completamente
contemporânea, e rejeita aquilo que conhece dessa arte; do mesmo modo que os
a arte .~
~
:;:('1

,{
.~
ocasionalmente,
Não diferenciar
temporânea,
frustra a retórica ontológica
as diversas funções preenchidas
da relíquia ou do vestígio.

nem distinguir o campo artístico do campo fotográfico, leva


pela fotografia na arte

artistas ignoram a produção fotográfica. Em resumo, não há, da parte dos fotó- cialmente Dominique Baqué) a achar paradoxal que "a entrada da fotogra

,
;~
grafos, uma infiltração na arte, mas uma utilização da fotografia pelos artistas; e Ci arte" se faça no apogeu do fotojornalismo, tanto nos Estados Unidos, co
não de toda a fotografia, mas somente de sua parte técnica. ~. bert Frank, Lee Friedlander, Garry Winogrand, quanto na França, com Ê
Mostrou-se como, a partir dos anos 1960, o campo da arte contemporânea Boubat, Robert Doisneau, Izis. Essa situação paradoxal levaria a "uma verd
se apossa do procedimento fotográfico: ora como simples ferramenta, ora como
ti ruptura epistemológica quanto à natureza, ao status e à função do medium
:"1
vetor, ora como materiaL Diante dessas múltiplas funções, é reducionismo falar gráfico" e, mesmo, a "um remanejamento ontológico do medium'." No m
indistintamente de "medium fotográfico': como o fazem sistematicamente Domi- ~
nique Baqué, Rosalind Krauss e outros. Mesmo que, entre a maioria dos autores,
~.
".
Ora, ao levá-Ia em conta, a situação não é tão paradoxal assim; e, em todo
está longe de provocar tais transformações. Basta, também aqui, não consid
~.
o termo medium designe estritamente "suporte" técnico, ele apresenta, no entan- .~ fotografia no singular, e distinguir entre os campos fotográfico e artístico.
'li: um lado, admitimos que o fotojornalismo evolui no campo (o da fotografia)

,. Um exemplo entre outros: "Medíum precário e frágil, sitiado pelo utilitário e pelo consumlvel, a fotografia
regras, atores e ritmos são completamente independentes daqueles do cam
é esta imagem ontologicamente incerta e pobre, da qual sempre se duvida. Mas t devido à fotografia ser o
medium da dúvida que faz da luta pelo seu reconhecimento uma luta tão obstinada". Cf Dominique Baqué, 12 MarshaU MacLuhan, "te message c'est le médium", em Pour comprendre les média (Paris: Mame/
IA photographie plasticíenne, cit., p. 56. 1968), pp. 25·40.
li O capítulo 2 intitula-se "Une entrée en art paradoxal". 2) Dominique Baqué, IA photographie plasticienne, cit., p. 50.

352
~:-~.
•• 353

.:.::.:r.z;....
I A ARTE-FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE-FOTOGRAFIA!

tístico, isto é, que fotógrafos e artistas se ignoram completamente; e se, de outro, uma cultura aberta à alteridade, à diferença, ao consenso. Desaba a hegemo
admitimos reconhecer que não são os fotógrafos que introduzem a fotografia no "ou", exclusivo e unívoco, em prol da postura do "e", mais tolerante, mais re
campo da arte, mas os artistas que recorrem a ela em função de suas próprias ao outro, ao diferente. É exatamente a remoção da trava modernista que
necessidades, então, é normal conceber que se desenvolvam simultaneamente aos ~tistas abrir o cenário cultural e artístico para os excluídos do moder
dois movimentos relativamente autônomos. De um lado, o jornalismo e a moda as mulheres, a classe operária, as minorias sexuais e raciais oprimidas, ete.
conferem à fotografia um alto grau de acabamento e um forte poder de atração, flexibiliza e mesmo, às vezes, inverte a oposição estrita, tipicamente mod
principalmente entre os artistas; de outro, artistas tão diferentes como Christian entre a "grande arte" e a "arte popular", em particular entre a pintura e as i
Boltanski, Victor Burgin, [an Dibbets, Hans-Peter Feldmann, Hamish Fulton, tecnológicas como a fotografia e o vídeo. Após muitas décadas de abstraç
Paul-Armand Gette, Iochen Gerz, Gilbert & George, [ohn Hilliard, ete. concedem pois dos movimentos minimalista e conceitual, a arte reata explicitament
uma nova atenção ao procedimento fotográfico, com outras finalidades, outros o mundo. Ela se seculariza. A fotografia, que para Warhol foi uma ferr
usos, outras práticas, inusitadas entre os fotógrafos: consumar o fim do moder- capital, é um dos principais materiais da arte a partir dos anos 1980. Em
nismo, desconstruir os mitos da originalidade e da autenticidade, esboçar ligações de vinte anos, seu papel e sua ação mudaram porque a situação da arte (
entre a arte e a política, abolir o lugar do sujeito nas obras, ete. ciedade ocidental) também mudou profundamente,

Passagens da arte-fotografia Dos GRANDES AOS PEQUENOS RELATOS

o fim do modernismo na arte, do qual o pós-modernismo foi apenas uma A simultaneidade é evidente: a arte contemporânea volta-se para o co
expressão transitória, manifesta-se sobretudo pelas mudanças profundas nos para o corriqueiro, no momento em que a fotografia se torna um dos pr
,materiais e nos valores artísticos, e no próprio espaço da arte. A fotografia vem materiais dessa arte. Não porque a arte tivesse sido involuntariamente ca
contribuir para essas mudanças, tornando-se um dos materiais possíveis da arte, pela fotografia, não porque esta fosse, por natur:za, a fornecedora do ver
se não o material preferido, e mesmo exclusivo, de muitos artistas. A aliança arte- mas sobretudo por ter sido escolhida e trabalhada pelos artistas de modo
-fotografia que se forma no início dos anos 1980 não é evidentemente o único ruinasse o que era universal na arte. Sabe-se, de fato, que, dos anos 1920 at
caminho tomado pela arte, que, num mapa geral, deixa grandes áreas também da Guerra do Vietnã, a fotografia ilustrou zelosa e eficazmente os grandes
para o vídeo, para as instalações, para as performances e, cada vez mais, para a arte históricos da modernidade. Segundo Iean-François Lyotard, esses relatos,
midiática e em rede. Mas, no decorrer das últimas décadas do século, o que sur- mente aos mitos, não se remetiam a um ato original fundador, mas conv
preende é a quantidade crescente de obras total ou parcialmente fotográficas nas a construir um futuro, a realizar uma ldeia universal de liberdade, de "
galerias, nos museus e nas coleções. socialismo, de enriquecimento geral, ete. O modo característico da moder
A razão deve ser buscada na resistência que o material-fotográfico oferece, ao era, assim, o projeto de realização da universalidade."
opor-se à desmaterialízacão da arte. Reside igualmente na transformação dos va- Foi o crítico americano Clernent Greenberg que deu ao grande relato
lores artísticos, que, como dissemos, repercute as profundas mudanças no mundo: modernista sua última e mal; eloquente expressão, baseada no postulado
o prolongado término da Guerra Fria, entre a derrota americana no Vietnã, em "o domínio próprio e único de cada arte coincide com tudo o que a natu
1975, e o desmoronamento do regime soviético com a queda do muro de Berlim, seu medium tem de único"," Cada arte é, assim, convidada a liberar-se
em 1989. Durante esses quinze anos, o mundo oscila. Na arte, como em outros
" lean-Françcis Lyotard, Le post-moderne expliqllé aI/X enfants (Paris: Galilée, 1988), pp. 36-37.
setores, uma cultura modernista de exclusão, de oposição, caracterizada por uma
2S Clement Greenberg. "Modcrnist Painting" em Arr atld Liternture. nQ 4.1965. Traduzido para o
mística da pureza, pela recusa a dessemelhanças e a hett:rogeneidades, cede lugar a Peinture. Cahiers Théoriques. not 8·9. t 974.

354 355

-=""
I A ARTE·FOTOGRAFIA I I FI$I(n':OMIA DA ARTE-F0TOGRAFIA I

as convenções que não lhe são essenciais, a fim de descobrir seu "grau zero", de (Pesquisa e apresentação do que sobrou da minha infância,1944-1950), era
"~I 'f;,\,~

manifestar sua essência em toda a sua pureza. Para purificar a arte dos elementos , "busca de uma parte de mim que havia desaparecido, uma escavação arqueoló
~:
emprestados das outras artes, o método preconizado é a autocrítica, Na França, das profundezas de minha memória"," Em suas Vitrines de réference (1970
i;.-
os pintores do grupo Support-Surface e da revista Peinture, Cahiers Théoriques, constitui microeventos, gestos e objetos irrisórios de sua infância," expondo
por exemplo, servem-se da pintura para criticar a pintura: pintar a própria pin- vitrines, objetos mínimos e imagens modestas, relíquias cuidadosamente arr
tura, ajustar seus limites à especificidade de seu medium - o piano, a forma do das e etiquetadas. Com a fotografia, entre verdadeiro e falso, confecciona á
suporte, as propriedades do pigmento. Como nos domínios da religião, da edu- (em 1971, o Alb';n de photos de Ia famille D. entre 1939 et 1964; e, em 1972,
cação, da sociedade ou da economia, o projeto moderno é, na arte, voltado para membres du club Micke)' en 1955) e levanta inventários ridículos como o lnven
»
um objetivo e ligado a uma ideia de emancipação: liberar a pintura de qualquer des objets ayant appartenu à une femme de Baden-Baden (1973).
coisa que perturbe sua essência. Esse ideal de pintura pura une-se ao da sociedade Mas as direções antimodernistas que Boltanski e alguns outros artistas
sem classe, da escola libertadora, do bem-estar pelo progresso técnico, que, em çam no início dos anos 1970 só vão se afirmar no decorrer da década seg
comum, têm de atribuir um limite temporal para a história: a "liberdade uni- com a ascensão das "estéticas do ordinário"," Uma grande parte da arte ocid
versal, a absolvição da humanidade inteira'." Ora, após terem dado coerência e que a recente aliança com a fotografia dota de um poder mimético sem d
dinamismo às nossas ações e nossos pensamentos, esses grandes relatos acusavam inigualável, orienta-se em peso para as partes baixas do real: o banal, o fam
uma defasagem crescente em relação ao percurso do mundo. Na arte, é a Bienal e mesmo o trivial. Passa da abstração modernista para a mais tosca figu
de Veneza de 1980 que evidenciou o esgotamento do grande relato da pintura Após a complexidade estética da arte modernista e a sofisticação teórica d
pura. O que se traduz pela volta da figuração, em detrimento da abstração univer- conceitual, ocorre uma espécie de recuo. Um grande movimento de dessub
salizante, em seguida, rapidamente, para uma ampla adoção da fotografia pelos ção e de dessacralização, encorajado pelas obras em material fotográfico, a
artistas. Sendo suprimido o duplo ferrolho modernista da pureza e da abstração, arte. Ao contrário das fotografias artísticas, em que Jean-Claude Lemagny
a fotografia pôde, assim, enquanto matéria e mirnese, isto é, enquanto material a matéria, a sombra e a ficção, mas também opostos aos ouropéis e ao p
rnimético, adquirir a legitimidade artística que até então lhe era recusada. Esta dos clichês comerciais e publicitários, artistas como Peter Fischli e David
"falha da modernidade"," que a fez perder sua credibilidade no grande relato da [oachirn Mogarra, Pierre Huyghe, Claude Closky, Saverio Lucariello, Beat S
arte modernista, foi acompanhada de um recolher-se, das obras, em preocupações Thomas Hirschhorn, Lewis Baltz, e Dominique Auerbacher ligam-se a lu
locais, íritimas e cotidianas. Na virada dos anos 1980, os grandes relatos cedem gestos, objetos familiares, banais ou irrelevantes. Às iluminações deslumbra
lugar, na arte, à proliferação de pequenos relatos e ao emprego crescente da foto- ou refinadas, às composições originais ou sofisticadas, aos ângulos de vista
grafia para Ihes dar corpo e forma. taculares ou insólitos e ao peso das matérias, eles preferem escritas volun
Na França, essa passagem dos grandes para os pequenas relatos, do global para mente neutras e discretas, provas de uma finura radical e formas extremam
o local, do extraordinário para o ordinário, do novo para o déjã-vu, ou seja, do rigorosas, A sombra cede lugar à ilusão de transparência, a matéria se ause
universal para o particular, esboça-se desde 1970, nas primeiras obras de Chris- a ficção esbarra na literalidade e n~ fria denotação, definindo assim uma po
tian Boltanski, em seu interesse pela banalidade, pelos inveniários e pelas imagens
?
estereotipadas da cultura popular. Ele dirá que sua primeira coletânea, publicada .;
'}
" Démosthenes Davvetas, "Christian llultanski", ern Flash Arr, n' !24, out-nov, de 1985, pp. 82-83.
em 1969, Recherche et présentation de tout ce qui reste de mon enfance, 1944-1950 ~'t .

" Reconstitution de gesres effectués par Christian Bolranski ent" 1948 er 1954, catálogo, Paris, nov, de
';"~~#
Essais de reconstieution d'objets ayaMt appartenu à Christian Bo!tanski entre J 948 et 1954. catálogo. Pa
de 1971.
" Jean-François Lyotard, Ú post-moderne expíiqué aux enfant;, cit., p. 45. JO Em maio de 1995, encarregado da direção artística do Moi de 'a photo [Maio da foto], de Reims,
'! ..
lbid., p, 52. tema "Esthétiques de l'ordinaire" [Estéticas do ordinário] (21 exposições, um catálogo, um colóquio

356 357

-1
ífol;~_.
I A ARTE-FOTOGRAFIA I I FISIONO"IA DA ARTE· FOTOGRAFIA 1

representar ordinariamente O ordinário, ou seja, entrelaçar uma forma de conteú- total" (Lyotard). O advento das estéticas do ordinário se traduz por uma
do com uma forma de expressão. reorientações ternáticas: para o privado (Nan Goldin), para os pequenos
Longe de ser um grau zero da escritura, longe de remeter a um aquém da íntimos (Saverio Lucariello), para a poetização do irrisório (Joachim Mo
arte, essa postura estética, que recusa temas e formas extraordinárias, testemunha para os signos da sociedade de consumo (Dominique Auerbacher), para
um requinte estilístico capaz de recusar o maneirismo ingênuo das fotografias queologia dos estereótipos visuais (Peter Fischli & David Weiss), para um
de "arte", bem como resiste à trivial imaginária das mídias. Eis o paradoxo: en- nornia e um recenseamento dos automatismos da vida cotidiana (Claude C
quanto as mais aperfeiçoadas tecnologias alargam sem cessar os limites do visível, para a uniformização planetária dos corpos.(Beat Streuli), ete.
enquanto as mídias de massa se esforçam para nos projetar nos mais longínquos Em 1986, Nan Goldin puhlica The Ballad af Sexual Dependency (A ba
e desconheádos lugares, enquanto as imagens de síntese superpõem mundos vir- dependência sexual), uma crônica de sua vida privada, extraída de um va
tuais ao real, enquanto uma concorrência feroz obriga a indústria cultural - a porama de setecentos diapositivos, realizados em Nova York e Boston ent
publicidade, a televisão, a imprensa, o turismo, etc. - a redobrar as sofisticações e 1985. Nunca um artista, ainda mais uma mulher, havia colocado a fotogra
gráficas, um número crescente de artistas utiliza a fotografia para descobrir o perto de sua vida amorosa e sexual para demonstrar publicamente os sofrim
próximo, o imediato, o aqui, o banal, o ordinário. Simples, sóbria e diretamente. errâncias e afins. Os clichês aparentemente espontâneos, de conteúdo, enq
Virando esteticamente do avesso os sonhos factícios e as imagens pomposas, en- ;••,:;;to e iluminação muitas vezes precários, expõem a pequena história
fáticas e vazias das mídias. Projeto desesperado? Desproporção infinita das forças mullher magoada. História emocionante e dramática, mas tristemente ba
em confronto? Sem dúvida. Mas ficou aberta uma brecha. E isso devemos à arte que se misturam, no cotidiano, o amor, a paixão, o sexo, a droga, a aids,
e à sua aliança com a fotografia. Como se fosse o último lugar onde ainda pu- e... os golpes. A vivência íntima irrompc na arte, graças à fotografia, com
déssemos atingir, interrogar ou simplesmente descrever o que é, o que somos, o inversão romântica do modernismo. Na França, Georges Tony Stol! adota
que vivemos, o que acontece, longe do insólito, do extraordinário, naquilo "que versão homossexual, um procedimento parecido. Os pequenos dramas
regressa todo dia, o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infra- preenchem a partir daí toda a obra. O cotidiano individual apaga a história
ordinário, o ruído de fundo, o habitual"," a constatação local substitui a relato global.
Logo, o grande relato da arte modernista fracassou na arte dos pequenos re- Ainda nessa direção, Saverio Lucariello vai mais longe quando, sobre
~h;
latos infraordinários. Fotografar um universo circunscrito na vida cotidiana, nos ..,
dípticos, ele imita os pequenos gestos de uma intimidade insignificante co
J
.:u.
gestos diários, nos lugares familiares, nos objetos usuais, invisíveis de tanto serem çar o traseiro ou o sexo (Madus-vivendi, 1995), palitar os dentes, espreme
vistos, vai opor-se às concepções modernistas, para as quais a criação consistia ji espinha na bochecha (Petits travaux). Goldin abalou os grandes relatos
.,
em um processo ininterrupto de mudança, de ruptura, de. negação, em busca pequenas histórias de sua vida privada; dez anos mais tarde, Lucariello
desenfreada do inédito. O fetichismo modernista do nunca-visto transforma-se toda história e produz a partir de acontecimentos mínimos de sua vida
em uma ligação compulsiva ao já-visto, ao sempre-no-mesmo lugar. Inverte-se na. Enquanto Goldin podia aparecer como heroína trágica, a insignificânc
a procura do extraordinário em uma focalizacão no infraordinário. Enquanto se gestos de Lucariello põe em perigo a própria figura do artista, enquanto
:~'.
modifica a figura do próprio artista: às movimentadas vanguardas do grande pro- preconcebida do mau gosto visa a inverter os valores dominantes da art
;(
pósito de questionar a arte e de revolucioná-Ia, sucedem artistas com ambição
bem mais modesta, menos ligados a um ideal do que a um fazer e a urna vivência.
Uma arte do quase-nada, cuja tarefa, bem pós-modernista, seria "fazer a guerra
t um século de itinerários
a imbecilidade,
subterrâneos
o ridículo, o fracasso, o inacabado,
e de resistência aos valores moder
o mau gosto tomam,
"." ~,
forma de desforra."

" Georges Porte, L'infra-ordinaire (Paris: Seuil, 1989), p. 11. " lean-Yves Jouannais,/tlfamie (Paris: Hazan, 1995), pp. 9-33.

358
359
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I A ARTE-FOTOGRAFIA J
I FICJIONOMtA DA ARTE-FOTOGRAFIA!

Em uma época de movimento acelerado, as viagens imóveis de Ioachin Mo- na praia, etc.). O conjunto oscila entre as ilustrações para calendários, as
garra têm, sem dúvida, alguma coisa de ridículo. Em vez de atravessar o mundo férias e os cartões postais. Tratar assim as aparências de maneira uniforme
em busca do extraordinário, ele prefere acreditar, como Marcel Proust, que a úni- banal e neutra, à maneira de uma simples constatação, de inventário, se
ca verdadeira viagem "não é ir rumo a novas paisagens, mas ter outros olhos".
Assim, ele constrói, em seu domicílio e somente para ele, um mundinho sob a
:~, ção aparente, sem critério de qualidade, sem referências (nem data nem l
iJ contexto), sem hierarquia, sugere que o "mundo visível" é apenas quinqu
forma de uma réplica irrisória e maravilhosa desses lugares longínquos e místicos ~
1 mercadoria padronizada, um imenso déjã-vu, em que o próximo e o dis
que povoam seus sonhos. Cada uma de suas Paisagens (1986-1991) se resume a ~: misturam na mesma uniformização. Não se descobre mais, encontra-se; n
uma fotografia de grande formato de uma planta pequena, frágil, dentro de um ~
mais, reconhece-se. E mesmo o visível nos escapa sob o acúrnulo dos ester
~'

vaso. Mais abstratamente ainda, os mais célebres vulcões são reduzidos a vulgares
vasos de flor vazios, colocados de cabeça para baixo no chão. O mesmo desdém,
i~. visuais.

.:I
Com Claude Closky, a enumeração e a classificação são outra represe
em relação aos grandes lugares do turismo internacional, à atualidade mundial, às :"
do banal. Em Ia batlle, 25 juillet-l l aOllt 1995, ele alinha cem clichês de
.'
grandes obras arquitetônicas é revelado na maneira como Mcgarra ridiculariza as em férias com o mesmo enquadramento: na praia, de costas, as mãos a
obras-primas da arte contemporânea, por exemplo, ao relacionar Spitat letty, de nos quadris. De 1 à 1000 [rancs (1993) reúne publicidades recortadas de
Robert Smithson, a uma fotografia do descascarnento de uma maçã, ou Concetto depois classificadas conforme a ordem crescente dos preços exibidos nas i
spaziale, de Lucio Fontana, a um alvo de papelão furado por balas de espingarda Em outras obras, linguísticas, o acúmulo denuncia a indigência dos slog
de quermesse. blicitários (um slogan para cada dia em Calendar 2000), ou os clichês ling
Outra versão do ordinário: em 1990, Dominique Auerbacher trabalha a partir (B/rI-b/a, 1998), ou a mesquinharia de nossos desejos (Envie?). Estas taxo
de catálogos de venda por correspondência, e com eles, em particular, o catálogo levantam a perigosa capacidade do cotidiano de nos tornar cegos e pass
da Ikea. Artigos domésticos, como poltronas, são expostos em grande formato e fazer-nos autômatos. Chamam a atenção para aquilo que, à força de se ver
em planos muito próximos. Ora, não são as próprias poltronas que são reprodu- vê mais; para aquilo que nunca se contesta por sempre estar próximo e
zidas, mas a imagem impressa delas, e esta não foi fotografada, mas reproduzida aceito; para os automatismos criados pelos hábitos cotidianos.
por uma fotografia colorida bem ampliada (1 m x 1 m). Assim, é transposta uma Já a aparente literalidade dos clichês de Iean-Luc Moulene e a extre
etapa que consiste em mobilizar, na intersecção de dois níveis de banalidade, as ~.
vialidade das coisas representadas obedecem menos a um procedimento
mercadorias e as imagens que servem para promovê-Ias. ta do que a uma tentativa de experimentar as capacidades da arte em
Os artistas suíços Peter Fischli & David Weiss seguem igualmente este caminho T
energia do real. Na série Vingt-quatre objets de greves [Vinte e quatro ob
'.
íngreme, onde a fronteira entre a arte e a realidade parece dissolver-se." Após o greves]: a fotografia Ia pantinoise (1999), imitação em vermelho de um m
célebre vídeo intitulado Der Lau] de Dinge [O correr' das coisas] (1984), em que, cigarros Gauloises feito por ocasião da greve da fábrica dos cigarros, em
inabalável, uma energia caótica se transmite de uma coisa para outra, eles publi- (1982), quer reavivar a energia da luta e a iniciativa militante. Em 1994, M
cam álbuns de fotografias como Bilder, Ansichten (Imagens, Vistas), com o sub- diretamente nas paredes do centro de arte mo-terna de Poitiers, cela foto
título "Sichtbare Welt" (Mundo visível) (1991). Nem imagem insólita, nem visão serigrafadas de latas de conserva, sacos de plástico, corpos desnudos, retra
pessoal, nem pesquisa artística particular: o álbum contém apenas vistas de luga- tantâneos (Photomaton), etc., ampliados no formato monumental de 4 m
res superconhecidos (Sunset Boulevard, as Pirâmides, a Esfinge, etc.), ou imagens A repetição do modelo publicitário (matéria impressa, grande formato e c
de estereótipos visuais (um galho de macieira, um gato, um pôr do sol, palmeiras em parede) e o universo infraordinário representado introduzem uma

II Theodor W. Adorno. Théorie esthétiouc, cit., p. 231.


São objetos comuns, fora de padrão. fabricados por operários para angariar fundos de greve (N. E.)

)60
361
I A ARTE-FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

defasagem com o lugar de exposição (um centro de arte) e com os gêneros tradi- mente para substituir, nas obras, a superficialidade do mundo atual. O espeta
cionais das belas-artes (nu, retrato, natureza-morta, paisagem). o frívolo, c efêrnero, o extravagante, que crescem ao ritmo da ascensão vertig
::-.~~~' das mídias, contaminam os grandes domínios da cultura e da arte, e cond
Antes de Perec - e antes mesmo de Musil, Gombrowicz ou Beckett -, o progra- .;!-..
ma estético de Flaubert já consistia em "escrever bem o medíocre"," isto é, aplicar a modernidade tardia para um vasto processo de abolição da profundidad
as exigências do gênero nobre da poesia nos assuntos mais triviais e no romance, inversão dos valores modernistas manifesta-se por uma passagem da prof
o gênero literário considerado então o mais baixo." Basta mencionar Duchamp dade para a superfície, em particular na pintura, onde a platitude moder
e Schwitters, Beuys e Boltanski, ou ainda o filósofo Arthur Danto e seu livro La cara a Greenberg, foi dar na superficialidade pós-modernista. Todos os pó
transfiguration du banal (A transiiguração do banal) (1981) para lembrar quanto a •• dernistas têm em comum a superficialidade, que traduz um refluxo dos mo
questão do trivial é uma das mais vivas da arte, da literatura e.do pensamento do "em profundidade" dos períodos anteriores: a profundidade herrnenêutica
século XX. Se os artistas dos anos 1980 se inserem em uma corrente secular, inter- o exterior e o interior; a profundidade dialética entre a aparência e a essên
:íi, profundidade freudiana entre o manifesto e o latente; a profundidade exist
vêm em um momento particular, em que as mutações das sociedades industriais
.~

afetam nossos sistemas de representação, tanto simbólicos quanto políticos ou entre a inautenticidade e a autencidade: ou mesmo a profundidade semiótic
sociais, e atingem nossas referências, nossas certezas e nossos valores. O presente ~ tre o significante e o significado. Todos esses modelos que governaram o
;:
vacila e o futuro se mostra incerto, o que suscita uma imensa necessidade de se-
gurança, de identidade, de permanência. A hostilidade do mundo exterior incita
t •...
mento, as práticas e os discursos modernistas
modelos em que prevalece a superfície 0'1
se desvalorizam
as superfícies múltiplas."
em prol de

~
;1-
cada um a refugiar-se em seu interior, a fechar-se em si próprio, no seu cenário -; O inicio dos anos 1980 assiste, então, ao advento de uma pintura na c
i.ç
privado, entre seus objetos familiares. Os interesses, os olhares, os pensamentos ·r mão das vanguardas modernistas, com o retorno intempestivo da figu

IJ,
e as ações práticas ou artísticas tendem, assim, a deslocar-se de alhures e do lon- narração e da ornamentação. Esse pós-modernismo formalista, que Iürgen
gínquo, rumo ao aqui e ao próximo: o cotidiano e o familiar são transformados bermas qualificará de "neoconservador"," afeta rapidamente amplos seto
em universo e em refúgio. Quando o mundo não é mais acessível a não ser através arte, provoca o nascimento de novos tipos de obras e de práticas inéditas,
de um sistema de midiatízações, que o modifica em espetáculo, quando um fluxo .~ o emprego da fotografia como material artístico. As telas modernistas, cuja
, li

sempre crescente de imagens o encobre e substitui, quando o mundo está, assim, \



~-
tude era patrulhada pela questão da essência da pintura, são sucedidas por
reduzido a uma abstração, a um signo, a uma mercadoria que circula e se troca, que, desse ponto de vista, são totalmente superficiais, fantasistas e lúdicas: i
então, nessa situação (que é a que prevalece no Ocidente), fotografar o cotidiano rentes às questões de essência, de pureza, de delimitação do território artísti
pode surgir como um modo de reatar com o concreto, o tangível, o vivido, o uso. hierarquia dos gêneros - no polo oposto à "arte que fala da arte"," Elas são
Isso talvez consista em defender os valores humanos da vida contra a predomi- ficiais ao se liberarem das imposições e prescrições estéticas da pureza; ao in
nância crescente do abstrato, do factício, do virtual, do alhures. Do superficial. as questões que não cessaram de sobrecarregar as imagens do período preced

" Frederic Iarneson, "La déconstruction de l'expression", em New Left RevielV, n' 146, jul.-ago. de 1984
DA PROFUND:.OADE À SUPERFícIE 92, apud Charles Harrison & Paul Wcod.Art en tlléorie, cit., pp. 1165-1172.
" lürgen Harbernas, "La rnodernité: un projet inachcvé", em Critique. n' 143, QuI. de 1981. pp. 950-9
Inserida em um amplo movimento de passagem dos grandes relatos moder- L'époque,la mode.Ia morale.la passio/l, catálogo (Paris: Centre Georges-Pornpidou, 1987), pp. 449-
bermas distingue o antimodernismo dos jovens conservadores, o pré-modernismo dos velhos conser
nistas para os pequenos relatos infraordinários, a fotografia contribui sirnultanea- c o pós-modernismo dos neoconscrvadores, O termo "ncoconservador", com fortes (anotações ideo
políticas, parece irr.por-se menos na fotografia do que na pintura.
" Gustave Flaubert, carta para Louise Colet, 12-9·1853, em Correspondance (Paris: Bibliothêque de Ia Pléiade, " Segundo Gilbert [Prousch] & George [Passmorc], "existem artistas que fazem arte que fala da arte,
1973-1998). que fazem arte que fala da vida. Ê uma distinção importante" (entrevista com Marli" Ga)'ford), em
" Pierre Bourdieu, us rêgtes de I'arl. Cenêse el sln/eture du chnmp íittéraíre (Paris: Seuii: 1992), p. 140. Georgc, catálogo (Paris: Musée d'An Moderne de Ia ViII. de Paris, 1997), p. 43.

362 363
[ A ARTE· FOTOGRAFIA I [ FISIONOMIA DA ARTE·fOTOGRAFIA I

ao misturar desmesuradamente imagens de todas as origens, oriundas de esferas de indivíduos reduzidos ao único presente de sua simples aparência, rosto
outrora paralelas e estanques. artísticas ou não; ao jogar com as maneiras e as perfícies. A expressão muda revela uma espécie de extenuação, uma erosão
~.

aparências, sem considerar os conteúdos e os significados. As obras, então, são su- e fatal do humano.
perficiais ao adotar amplamente como princípio o pastiche, que desfaz os contex- "ti.[ De modo muito diferente, por enquadramentos excessivamente fechad
tos e os sentidos históricos, que afoga a memória nas miragens do artifício e nos 1/ corpo e provas muito ampliadas, justapostos em trípticos ou dípticos, o
~'
exageros da bela aparência. Sentidos originais, status, essência, hierarquias, estilos, alemão Thomas Florschuetz elimina o objeto por inteiro, toda a identidad
enquanto apostas posteriores a debates de definições e de delimitações, conferiam f.~.,. corpos são vistos de tão perto que se decompõem em fragmentos quase abst
uma forma de consistência às imagens modernistas. 1: essa consistência que de-
saparece nas imagens pós-modernistas sob o efeito das misturas, das mestiçagens i
f
muitas vezes impossíveis de situar na geografia corporal,
de consistência carnal. Assim estilhaçados, como as mil peças intercambiávei
e sempre despro

e das reciclagens; sob a dependência do ecletismo generalizado, do bricabraque um quebra-cabeça, o rosto, o corpo, o sujeito perdem sua unidade. Quanto
das práticas, dos materiais, das referências, dos gêneros, dos estilos e das épocas. Wal\, com Young Workers (1983), uma grande caixa iluminada, composta d
O caráter exclusivo do modernismo garantia às imagens a profundidade de um rostos de jovens trabalhadores fotografados em clcse-up, ele busca o instante
pronunciamento; o caráter inclusivo" do pós-modernismo, em que as imagens só o indivíduo é, ao mesmo tempo, ele mesmo e um outro, onde a identidade
valem por si próprias, Ihes confere leveza, esbelteza, flexibilidade, superficialidade.
As misturas sem restrições e a abolição das estruturas estéticas da arte modernista
:I contra a não identidade, ao contrário da lógica habitual da fotografia, que te
conferir uma identidade às coisas. 1:assim que cada um dos modelos não pos
;t."
resultam em imagens flutuantes, sem ancoragem nem leis. ele mesmo, mas desempenha o papel de um outro qualquer, o de um persona
e
Talvez seja na intersecção da figura humana com a fotografia que a superfi- que, como no teatro ou no cinema, pode ser muito diferente dele. A dialética
cialidade se manifesta de maneira mais evidente na arte dos anos 1980, quando ~~
·t superfície" (da identidade e da não identidade) substitui aqui a dialética "em
a esbelteza da imagem encontra o aniquilamento do rosto e as mutações radicais
I:i fundidade" (da aparência e da personalidade própria) do retrato tradicional.

.~
do sujeito - dois fenômenos que bem poderiam constituir um dos traços princi- Cindy Sherrnan, Thomas Ruff, Ieff Wal\ e, naturalmente, Thomas Florschu
pais do período. Em suas autorrepresentações, a artista americana Cindy Sherman muitos outros artistas do final do século XX, o retrato tornou-se impossível,
~.
preenche os papéis de diretora, atriz, modelo e fotógrafa. Ao disfarçar-se e maqui- ~ que o rosto se desfez, porque o sujeito individual perdeu sua antiga unidade
lar-se, funde-se em uma multidão de personagens: vedetes de cinema (na série dos antiga profundidade.
"Untitled Film Stills"), modelos de pinturas antigas (na série "History Portraits"). Essa passagem da profundidade para a superfície, para a qual o material
Mas seu rosto, que, com urna docilidade surpreendente, se curva a todos estes tografia contribui significativamente, é acompanhada de um grande declíni
.;;D.'
travestismos, não quer exprimir nenhum ser profundo. Ao assumir mil feições, afeto. Todo sentimento, toda emoção ou toda subjetividade certamente não
Cindy Sherman não tem mais nenhuma. E suas obras, que fazem referência só a sapareceram, mas não mais estão ligados a um eu de que a obra seria a expre
ela, não têm nada de autorretrato. Harold Rosenberg qualifica a pintura expressionista abstrata do pós-guerra
Thornas Ruff, ao contrário, fotografa seus modelos - geralmente jovens - da "pintura de ação': para significar que, aí, a expressão já não é a questão princ
maneira mais neutra e mais direta possível, sem rodeios nem efeitos. Sempre tira- "A pintura de ação", ele observa, "preocupa-se com a criação de si, com a defin
dos de frente, com uma extrema precisão, os rostos, sem sombras nem asperezas, do si ou com a transcendência do si, mas isso a afasta da expressão do si, qu
parecem sem profundidade e sem relevo. Lisos e transparentes, eles são desprovi- põe a aceitação do eu tal qual ele é, com suas feridas e sua magia."? O declíni
dos de consistência humana. Vazios, esvaziados de sua substância, são não rostos expressão agrava-se nos anos 1980. Primeiramente, em razão da importância

J9 Charles Iencks, Le langage de l'architeclllre post-modcrne (Paris: Denoel, 1979), p. 7. 40 Harold Rosenberg, La tradition du 'Iouveau, cit., p. 28.

364 365
I A ARTE.FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

o material-fotográfico adquiriu na arte, o que, radicalmente, dá um fim na função Ê ainda um mundo todo de superfície, desprovido de consistência hu
individualizante do "carimbo" e da pincelada característicos do expressionismo '1 que emana das grandes séries de castelos de água, armazéns, altos-fornos,
abstrato. Uma outra razão deve ser buscada no importante recuo do ideal huma- metros, etc. que os artistas alemães Bernd e Hilla Becher fotografam como
nista, em uma desvalorização do indivíduo, em um declínio dessa interioridade, tantos símbolos de uma época industrial que expira. Embora seu primeiro
da alma, de que o retrato seria a expressão. significativamente intitulado Sculptures anonymes. Une typologie des bãtimen
A passagem da profundidade à superfície encontra-se no centro dos ternas e dustriels (Esculturas anônimas. Uma tipologia das construções industriais),
das formas da obra de Patrick Tosani: "Produzo uma superfície em uma parede", reça em 1970, foi somente uma década mais tarde que sua postura artíst
ele declara. "E esta questão da superfície está presente em várias de minhas sé- reconhecida. Eles próprios se colocam no cruzamento da série, da neutral
ries. Como flotar o reali?" Tal preocupação atravessa as séries dos "Retratos", das de uma "maneira direta" de fotografar "sem composição", bem como de
"Chuvas", dos "Saltos altos': das "Colheres': das "Geografias" (das peles de tambor) qualquer "expressão de si"," qualquer sentimento. "O princípio de catalo
naquilo que elas rompem a tradicional relação de representação. Pois as séries de das ciências naturais é, para nós, um princípio artístico";" aponta Hilla
Tosani (em grande formato) são mais uma replicação do que uma representação Por sua sistematização, essa obra (que justapõe séries de imagens organizad
dos objetos - que, aliás, são menos referentes de representações do que operadores "famílias de objetos") reflete-se nos livros-inventários de Edward Ruscha
para analisar a fotografia. Elementares, familiares, até mesmo infraordinários, os Building 011 the Sunset Strip, 1966), de Hans-Pcter r..~~:::ann (Bi/der 1'01

objetos nunca são escolhidos pelo que são, mas como suportes para uma análise manl1, 1968-1971), ou de Sol LcWitt (Pliotogir/s, 1978). Seu espírito inspirou
em imagem da fotografia. Tosani é um "fotógrafo da fotografia". O tempo por tamente os artistas alemães Thomas Struth, Thomas Ruff, Axel Hüte ou A
exemplo: o tempo longo, scdimentado nos estratos dos "saltos", difere do fluxo Gursky, todos antigos alunos dos Becher; e também marcou indiretamen
temporal das "Chuvas", ou da imobilização das coisas pelos instantâneos que sim- trabalhos de artistas franceses como )ean-Louis Garnell, Dominique Auerb
bolizam os "Gelos': ou da duração animada e fluida dos "Retratos" ou, ainda, da Sophie Ristelhueber ou Patrick Tosani. Entre esses artistas, a distância sim
sucessão breve e ritmada das batidas das baquetas sobre as peles dos tambores, etc. entre a imagem e a coisa é, muitas vezes, tão tênue que elas parecem c
Conduzidas a partir dos "meios mais objetivos da fotografia: a precisão, a frontali- dir-se. Tal ficção de analogia se apoia no vocabulário formal associando
dade das tomadas, a cor, a nitidez, a ampliação';" tais reflexões e experimentações frontalidade, simplicidade, a precisão da descrição e a evidência da comp
são seguidas pela abolição da profundidade formal e simbólica, bem como pela to- r e também em uma certa distância, cuidadosamente mantida, em relação
tal ausência de afeto, a ponto de as imagens parecerem ser "assinadas, não pelo seu -tudo da fotografia utilitária, prática ou documental. Pois não são produç
autor, que as inventa, mas pela fotografia que as produz"? Ao aplicar à fotografia ~ fotógrafos, nem mesmo de fotógrafos-artistas, mas obras de artistas, cujo
a postura analítica e o extremo domínio técnico que os modernistas reservavam à formato indica que elas seguramente não são feitas para o catálogo dos fot
pintura, Tosani confere uma espécie de legitimidade ao material-fotografia. Mas, documentais, nem para o livro dos fotógrafos-artistas, mas para a parede
promovendo objetos comuns (saltos, colheres, bonequinhos de plástico, grãos de galeria ou aquela, mais vasta e mais prestigiada ainda, do museu. A transpa
café, costeletas, bolhas de ar, montes de roupas) ao nível de verdadeiros totens, ele e a objetividade não são, aqui, algo aquém da arte, mas sim os dados de u
fixa sua obra em um deterrninisrno local, longe do universo modernista. cujo material exclusivo é a fotografia - com sua matéria, seu funcionament
nico e formal, e seu poder descritivo .

., Patrick Tosani, "Une autre objectivité" (entrevista com Iean-François Chevrier), em Iean-Prançois Chevrier
& Iam es Lmgwood (orgs.), Un, a,,,,, objectivité, catálogo (Milão: Idea, 1989), p. 215.
" Ibid., p. 213. 44 Entrevista de Bernd & Hilla Becher, com Ican-François Chevrier.Jarnes Lingwooc! e Thomas Struth
" [ean de Loisy, "Lhypothêse d'une image nécessaire", em Patrick Tosani, catálogo (Rochechouart: Musée -François Chevrier & Iarnes Lingwood (orgs.), Une autr, objectivité, cit., pp. 57-63.
Départememal d'Art Contemporain, 1988), p. 37. 4) Ibidem.

366 367
I A ARTE· FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE·FOTOGRAFIA I

A fotografia torna-se um material da arte no momento em que a reportagem e -t


na realidade da realidade que o documento, esse ideal do verdadeiro, ta
o documento fotográficos são atingidos por grave crise de confiança. De fato, uma i preocupa: ou para tentar aproximar-se o mais possível da representação id
época termina: a da crença na veracidade e na objetividade dos documentos,
culto do referente, a da negação da escrita, a do esquecimento da singularidade
a do
t para questioná-Ia e redefini-la, Os artistas, ao contrário,
des descritivas da fotografia o meio de tornar mais visível qualquer coisa q
apreciam nas cap

do olhar. Para fotografar a França do início dos anos 1980, a Datar (a oficialíssima seja da ordem do visível: "Não 'restituir o visível', mas tornar visível" (Paul
Delegação para a Organização do Território e para a Ação Regional) também fez Diante do fotógrafo preocupado em reproduzir formas, ou do fotógrafo-a
um apelo significativo aos artistas para assumirem sua "visão pessoal?" em vez da que procura inventar novidades, o artista serve-se da fotografia sobretudo
dos docurnentaristas, Impôs-se, assim, com energia, a evidência, durante muito um material mimético, para captar [orças. Qualquer que seja a aparente
tempo refutada, de que uma "representação da paisagem deve ser criada, mais do dade descritiva das obras, qualquer que seja o respeito à analogia, a arte
que simplesmente registrada'." Uma maneira de afirmar que a arte não se opô e ao ao realismo ao procurar captar forças em vez de representar estados de
documento, mas torna-se uma condição de sua pertinência." ao renunciar à ilusão de poder captar e comunicar a realidade em sua un
e simplicidade (supostas). O realismo não está nas propriedades analógic
procedimento fotográfico, mas na postura que consiste em crer na realidad
Do vrsívst. AO INAPRESENT Á VEL
instituir o visível como garantia do verdadeiro, em restringir o concebív
Portanto, a postura documental, mesmo adotada pelos artistas, acaba desem- limites do visível e do apresentável.
bocando nesta situação: a ausência de uma realidade e de um futuro em que se Ao contrário dos fotógrafos realistas, que acreditam na realidade, muit
pudesse acreditar, passíveis de fundamentar um realismo. Enquanto um realis- tistas se servem da fotografia para captar forças, para "mostrar que há al
mo sempre supõe uma crença na realidade, é exatamente o inverso que domina podemos conceber e que não é possível ver nem mostrar'l'" Esta é a abordag
atualmente: a perda da crença na realidade, "a descoberta da pouca realidade da Patrick Tosani, cuja imagens, poderosamente analógicas, estão no polo opo
realidade, associada à invenção de outras realidades"." A crença precipita-se na do realismo. Na série intitulada Corps du dessous (1996), Tosani instala seu
suspeita; o documento elimina-se na ficção. delos sobre uma placa de plexiglas sustentada por um pequeno andaime, co
Tal suspeita diante da realidade vem mais dos artistas do que dos fotógrafos. do o aparelho fotográfico exatamente debaixo. Os modelos, geralmente v
Enquanto a mimese permanece o objetivo principal do fotógrafo documental- e e calçados em tons escuros, adotam posições amontoadas, muito densas,
preocupação capital do fotógrafo-artista em suas próprias tentativas em ultra- concentradas, enquanto no enquadramento apertado e na vista, em total c
passá-Ia -, para os artistas que trabalham com a fotografia ela, ao contrário, não baixa, os corpos são mostrados encobertos pelos sapatos e pelas pernas.
. ~~
é nem um objetivo nem um obstáculo a ser suplantado, mas somente um dos junto do dispositivo (ponto de vista, enquadrarnento, roupas, poses, dim
elementos do processo criador. Ê pelo fato de os fotógrafos ainda acreditarem das imagens, etc.) é, de fato, concebido para transformar em massa densa a
do modelo, em fazer sentir o peso (inapresentável) na própria apresentação
trick Tosani explica:
46 Gaston Defferre, "Preface" en: rnysase!, phorogrnphics. La Missioll r'lO~ograplljque de Ia Datar. Travallx en
(0"rs.1984·1985, catálogo (Paris: Hazan, 1985), p, l l,
., Iacques Sallois, "Introduction", em Paysages, photographies. La Mission photographique de Ia Datar, cit., p. 13. Minha intenção, com esta massa escura sobre fundo branco, comprimida em
•• Após a Missão heliogrãfica (1851) e o controle da Farm Security Administration na América de entreguerras, enquadrarnento, é desenvolver a noção de massa, isto é, como esta imagem va
ocorreram outras iniciativas: na Itália ("Commune di San Caseiano in Vai di Pesa"), na Bélgica ("04'50', Ia
nhar o maior peso possível, no sentido físico. Corno este corpo vai ficar pes
Mission photografique à Brurelles"), na França ("Les quatre saisons de Ia paisage", em Belfort), ou entre a
França e a Inglaterra ("Mission photografique trans-Manche) .
., Iean-François Lyotard, "Qu'est-ce que le post-modernisme?", em L'tpoque. Ia mode, Ia mora/e, Ia passion, cit.,
pp.457-462. SO Iean-Prançois Lyotard, Le post-moderne cxpliqué aux ffl!llnts, cit., p. 26.

368 369
I A ARTE· FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

imponente e denso. Para chegar a tal efeito, utilizo apenas a dimensão da imagem, formal de Boltanski fica bem estabelecido: os clichês e retratos fotográfic
mas também a posição do corpo, amontoado, e o aspecto preto, denso, da maioria preto e branco, muitas vezes desfocados, à maneira de uma prática já ultrap
das imagens." de amadores; o emprego recorrente da penumbra, ou de lamparinas de f
tensidade, para criar atmosferas propícias ao recolhimento; os acúmulos
Essa abordagem, entre apresentável e inapresentável, baseia-se em uma cons-
enferrujadas, de roupas, de objetos; mas também os monumentos, as est
ciência aguda da dualidade de seu material: "Estou sempre nessa dupla constata-
.:?W túmulos, os memoriais. Em outras palavras, vestígios, traços de existênc
ção, c(;'ntraditória," confessa Tosani, "de utilizar a fotografia por seus desempenhos,
pressos, depósitos: toda uma retórica da nostalgia, da ausência, da memó
. suas qualidades, mas também para constatar sua fraqueza"," A suspeita que se lan-
desaparecimento, do esquecimento, da perda de identidade, com a onipr
ça sobre a realidade atinge o próprio material artístico. Dupla suspeita, que torna
surda da morte e do Holocausto. Boltanski não fez da fotografia somen
impossível o realismo.
dos seus principais materiais, ele construiu sua obra em torno do paradig
Enquanto Patrick Tosani inventa maneiras de fazer sentir o inapresentável no
fotografia, mais precisamente em torno da fotografia tal como André Bazin
própriointerior da apresentação, Christian Boltanski dá ao inapresentável o valor
cebia: relíquia, lembrança, "proveniente do complexo da múmia". Atorm
de um conteúdo desaparecido. Se a nostalgia atravessa toda a obra de Boltanski, a
por um passado agitado e pela morte, o real de Boltanski não tem consi
partir de Leçons de ténêbres [Lições de trevas), ela perde seu caráter estritamente
Demasiadamente nostálgica para ser realista, sua obra - que iguala futuro
individual para adquirir uma dimensão histórica e coletiva, para tornar-se, in-
te e que considera a totalidade como uma soma de unidades - frustra q
separavelmente, a expressão patética do drama do povo judeu e a expressão do
projeto de futuro, qualquer perspectiva universal, qualquer visão moderni
destino fatal do homem. Em 1998, sua exposição Derniêres années [Últimos anos l,
sempre um e um e um, Um acúmulo de pequenas memórias";" declara B
no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, dá acesso a uma ampla sala escura
à revista americana Blind Spot.
onde Menschlidi (Humano, 1994) estende, como um imenso memorial, 1.500 fo-
É através da ficção, e dando ao inapresentável a forma de um outro
tografias de indivíduos anônimos, certamente falecidos. Em seguida, mergulhada
sível, que Sophie Calle se desvia do realismo. Para Suite vénitienne [Suít
na mesma penumbra, uma instalação de latas metálicas enferrujadas, Les registres
ziana] (1998), ela segue um desconhecido durante vários dias; já para La
du Grand Hornu [Os registros do Grande Hornu] (1977), evoca a lembrança de
[A Fiação] (1981), ela se faz seguir por um detetive particular, cujos rela
crianças empregadas nas minas da Bélgica entre 1910 e 1940. Mais afastado, os Lits
fotografias servirão para ela montar uma espécie de autorretrato. Para Le
[Leitos] (1998), as Images noires [Imagens pretas], uma série de quadros sem ima-
[Os hotéis) (1981), emprega-se como faxineira em um hotel, a fim de, no
gem] (1996), e os Portants [Suportes), pequenos clichês flous, em preto e branco,
tos, obter uma série de indícios sobre clientes que nunca mais verá, mas d
recobertos de véus (1996), traçam uma espécie de passagem entre a vida, a anula-
imagina a vida. Em Les aveugles [Os cegos] (1986), ela propõe um ideal d
ção e o repouso da morte. No subsolo do museu, no final de' uma longa descida,
visual com a ajuda de fotografias que lhe foram sugeridas por cegos de na
descobre-se IA réserve du musée des enjants [O acervo do museu das crianças]
ete. Todos os trabalhos de Sophie Calle associam uma regra de jogo, textos
(1989), um amontoado de roupas de crianças, e Perdu [Perdido) (1998), cerca de 5
tra!!d' e, sobretudo, uma relação (real Oll fictícia) com um outro. Relaçõ
mil objetos acumulados em estantes." Simples , despojado, a partir daí, o sistema
a artista e seu outro mesclando atração e repulsão, presença e ausência,
guição e fuga, fascinação e àesinteresse, voyeurismo e exibicionismo em i
51 Patrick Tosani, "Contours el. enveloppe du corps" (entrevista com Pascal Beausse), em Le lournal, n 4, Paris,
Q

1998, p. 5. O formato das imagens coloridas é aproximadamente de 2,3 m x 1,6 rn,


quiproquós e engodos entre realidade e ficção, entre a arte e a vida. Na
" lbidem, Sophie Calle, o indeterrninado, o intervalo e, por fim, o inacessível, como
" Por ocasião da exposição, Christian Boltanski publicou Kaddislr (Paris: Paris-Musécs/Gina Kchayoff, 1998),
um livro de 1.140 páginas, constituldo somente de fotografias em preto e branco e com quatro temas:
Menschlich (Humano), Sachlich (Objetivo), Ortlich (local). Sterblich (Mortal). " Iohn Baldessari & Christian Boltanski, "What is Erased", entrevista em Bíínd Spot, n' 3, Nova York

370 371

.s:
I A ARTE· FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE·FOTOGRHIA I
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.:

do inapresentável, acontecem no cruzamento de seus textos de aparência objetiva, fato social." De fato, a arte-fotografia acompanha o colapso da arte modern
de seu engajamento pessoal e do seu uso muito documental da fotografia: quantas como o dedínio dos movimentos minimalista e conceituaL Estes, embora
(falsas) garantias de autenticidade necessárias à ficção. A ficção intervém em uma sessem à arte modernista, compartilhavam com ela a mesma concepção
hesitação sutil entre o verdadeiro e o falso, em uma dúvida cuidadosamente man- santuário, afastada do mundo, e uma mesma visão, fortemente hierarqui
ti da: os textos são resumos de enquetes ou da literatura? As situações são reais ou e1itista, de cultura.
fictícias? Trata-se de arte ou de vida? Tantas interrogações que alimentam a ficção A arte rompe seus últimos elos com o modernismo ao abrir-se para a ig
ao apoiar-se na fotografia. e menosprezada cultura de massa: suas produções, suas formas, suas figur
Sob a aparência de objetividade e de transparência documentais, as grandes materiais. Christian Boltanski e Annette Messager fazem parte dos prim
provas em cores do artista alemão Andreas Gursky não têm muita coisa a ver com considerar artisticamente o imaginário popular: as fotografias de família,
qualquer realismo ou procedimento documental. Simplesmente porque nem a gem, de imprensa ou de publicidade. Na metade dos anos 1970, eles vas
mimese nem a representação da realidade são os objetivos de Gursky. Na gran- as ideias preconcebidas acerca do valor de prova da fotografia, proclamand
de vista frontal da fachada da estação Montparnasse (Paris, Montparnasse, 1993), "ela mente, que ela não fala da realidade, mas apenas dos códigos culturais
como em suas outras obras, Gursky sistematicamente faz referência a outras rea- 1975, Le I'oyage de noces à Venise [A viagem de núpcias em Veneza] (série "I
lidades: as de obras, na maioria abstratas, da arte moderna (pensa-se em Gerhard -modeles"}" confronta os clichês em cores feitos por Boltanski (à moda
Richter, Iackson Pollock, Don Iudd, etc.). As linhas horizontais e verticais da fa- ristas) em Veneza com os desenhos convencionais da cidade, realizados
chada da estação desenham uma grade e delimitam retângulos coloridos regu- de cor por Messager, Não para fixar momentos de intimidade, mas para
lares que transformam Paris, Montparnasse em um verdadeiro quadro abstrato, quanto os fotógrafos amadores têm tendência a reproduzir imagens preexi
em uma evocação direta das famosas Farbtafeln (Cartelas de cor) de Gerhard em copiar modelos culturais. Aqui, os estereótipos visuais, as "Images-mo
Richter," Portanto, Girsky fotografa imóveis, locais, interiores de fábricas, espaços são denunciados pelo seu poder de encobrir e ocultar o real. Mostrada ta
de produção, pistas de corrida, aeroportos ou, ainda, espaços de exposição e vitri- em fotonovelas, a força das situações representadas e fotografadas no Mes
nes não por serem o que são. Ele não busca restituir o visível, mas tornar visível -témoins [Minhas fotos testemunho] (1973). Na série Le bonheur illustré
que o mundo pode ser visto como uma série de obras de arte, que a arte moderna licidade ilustrada] (1976), Annette Messager não desenha conforme o re
instruiu nosso olhar. Ao contrário da postura realista ou documental, que pensa conforme as revistas e os prospectos da indústria turística: "Eu copio, eu
poder oferecerum acesso direto ao real, Gursky entrecruza a realidade material eu re-recopio"," ela explica.
com a da arte moderna. Suas obras são menos a reprodução das aparências do que Copiar, recopiar, re-recopiar: o artista não é mais o ponto de partida d
a conversão das aparências em obras de arte. originais, fechado no santuário modernista da pintura pura. Sua ação
va evoca a máquina, em particular a fotografia, e espalha-se audaciosamen

DA ALTA À BAIXA CULTURA mundo profano do estereótipo, do tão detestado kitsch. Essa nova situaç
marca a vitória dos simulacros sobre as cópias, abre de par em par as po
No momento em que se esgotam os projetos realistas, por falta de uma rea- arte para a fotografia, e também para as questões sociais. No decorrer d
lidade na qual se crer, a arte-fotografia colabora para a secularização da arte: para
a ruptura de seu isolamento fora do mundo, para a afirmação de seu caráter de
56 Theodor W. Adorno, Théorie esrhétiqlle, cit., p. 21.
H Christian Boltanski, entrevista com Delphine Renard, em Kaddish, cit., p. 75 .
.::~. Le voyage de naus à Venise faz parte da série 'Images modeles'; realizada por C. Boltanski e Annette
.~ SI

" Michel Gauthíer, "Vues irnprenables sur readymades, La photographie selon Andreas Gursky", em Les Cahiers ,. em 1975. Outras peças da série foram realizadas em Bcrlim e em Berck-Plage,
".
du Muste National d'Art Modeme, n' 67, Paris, primavera de 1999, pp. 65·87. " A/mette Messager, comédie tragMic, /97/·/989, catálogo (Grenoble: Muséc de Grenoblc, 1991). p.

372 173
"
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~
I A ARTE· FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

1970, nos Estados Unidos, várias artistas feministas, como Barbara Kruger, [enny Washington pelo direito ao aborto. A crítica social e ideológica, no entanto,
~
Holzer, Martha Rosler, mais tarde Cindy Sherman - mas também homens como não é direta, a vontade didática se mostra mais discreta quando os antagonis
Richard Prince e Victor Burgin -, tentam igualmente desconstruir os estereótipos são menos enunciados do que sugeridos pela forma das obras. As formas on
da cultura de massa concedendo um grande espaço para os materiais e ferra- tramam as relações entre a arte e a sociedade."
mentas da comunicação comercial: a fotografia, os cartazes publicitários, as pla- Na virada dos anos 1970, Martha Rosler encontra na fotografia um me
cas luminosas na cidade, etc, As mulheres desempenham um papel capital nesse enterrar radicalmente o modernismo e responder a algumas questões ref
movimento de secularização, que desloca a arte para além dos limites tradicionais tes à Pop Art, a arte conceitual e à representação do social. Servindo para
da reflexividade, a fim de situá-Ia em uma perspectiva mais ampla de denúncia brar a casca da interioridade, da subjetividade e da autenticidade"," a fotog
da segregação sexual, tanto no campo da arte como no campo, mais vasto, das aproxima Martha Rosler da arte conceitual - que, todavia, critica por limit
mídias. "Minha resposta pessoal", dirá Martha Rosler, "era que a pintura pertencia ao "grau zero da fotografia"," e por ser esteticamente muito "autorreferencial
à ordem do gigantesco, do macho e do heróico, enquanto a fotografia pertencia à . niilista';" fora do mundo e da realidade social. Na Pop Art, Rosler mais a
ordem do pequeno, das questões pessoais e do caritativo"." de a reunir em colagens as imagens da cultura de massa (revistas, publicida
As grandes fotomontagens em preto e branco de Barbara Kruger, muitas vezes etc.) do que a trabalhar com os objetos. Quanto à sua vontade de represen
com slogans (de um vermelho forte) sobrepostos, ~~nl1nciam os estereótipos di- realidade social extra-artística, de inventar uma nova postura documental."
fundidos pelas mídias da sociedade pós-industrial, como tantos outros vetares de história da fotografia que ela pode realizá-Ia, entre a tradição americana dos
normas de integração, de submissão, de exclusão, de poder. Com uma sólida ex- 1930 (Farm Security Administration e Walker Evans) e Robert Frank, Weege
periência gráfica adquirida em agências de publicidade, Kruger concebe suas ima- Friedlander, Garry Winogrand ou Larry Clark. Então Martha Rosler incorp
gens como cartazes - alguns foram apresentados em painéis publicitários - cuja fotografia ao seu trabalho, colocando (sempre em imagens) a questão acer
eficácia significante nasce da confrontação de montagens fotográficas e slogans. que podem fazer a fotografia e o aparelho fotográfico: "O que é representáv
Frequentemente compostos dos pronomes I (eu) e You (você/vocês), esses slogans que não o é, o que é um instantâneo, o que é uma imagem estética - o que
sugerem que uma mulher (eu) interpela um espectador (você/vocês) masculino. forma fotográficai'l'" Uma de suas primeiras obras, The Bowery in Two I
A exclamação indistintamente crítica e adrnirativa What Big Musc/es You Have! quate Descriptive Systems (A Bowery em dois sistemas descritivos inadequa
(Que músculos você ternl, 1986) destaca-se de uma longa lista de palavrinhas 1974), situa-se assim entre o documentário social (inspirado em Walker E
i,
tão carinhosas quanto tolas que uma mulher poderia dirigir a um homem: "Meu a arte conceitual, e a questão acerca dos limites da representação fotogr
'-
':%
senhor': "Meu magnatazinho", "Meu professor de desejo", "Meu Popeye'; "Meu Constituída por uma série de dípticos texto/imagem, a obra consagra se
grande artista': etc. Aqui, a mulher é uma vitima consentida. Em We Don't Need rua miserável de Nova York, devastada pelo alcoolismo. As tomadas em p
Another Hera (Não precisamos de outro herói, 1986), onde uma moça com tran- branco - de vitrinas, lojas, pedestres -, frontais, em uma composição tão di
ças louras testa os bíceps de um garotinho, o poder masculino é ridicularizado quanto rigorosa, são inspiradas em Walker Evans; as palavras que acompan
e recusado. A crítica fica ainda mais mordaz em Your Confort is my Silence (Seu a imagem rompem com a tradição documental da Iotczrafia única e auro
conforto é meu silêncio, 1981). E é a luta das mulheres pela liberdade de dispor ciente, inspirando-se nos conhecimentos da arte conceitual; todavia, os t
de seu corpo que está diretamente em jogo com Your Body is a Battlegraund (Seu
" Theodor W, Adorno, Théorie esthétíque, cit., P- 2 J.
corpo é um campo de batalha, 1989), um cartaz de apoio, em 1989, à passeata em { 62 Benjamin Buchloh, Conversat;ol1 avec Martha Rosler, cit., p. 45.
""
~!~: " Ibid., p. 37,
~;Ii " Jbid., p. 35.
• Benjamin Buchloh, Conversation avee Martl,a Roslcr (Villeurbanne: Institut d' Art Contcmporain, J 999). • '1: 65 Ibidem .
p.45. 'P •• Ibid., p. 75.
~.
,-
314 315
'. ( A ARTE·FOTOGRAFIA I ( FISIONOMIA DA ARTE·FOTOr.RAFIA I

utilizados saem totalmente do registro tautológico, autorreferencial e analítico da imaginário popular: o cinema "série B':' a fotonovela, a imprensa sensaciona
arte conceitual para evocar, sem legenda, estados do corpo e situações sociais: e a televisão. Trata-se de um inventário de estereótipos da solidão e das fru

Comatose (em coma), Unconscious (inconsciente), Passed out (desmaiado), Kno- 'IJ
~ -r
,,1, ções da mulher ocidental pós-guerra: a amante abandonada (Untitled #6),
" vem ingênua sonhando com o príncipe encantado (Untitled #34), a dona de
cked out (nocauteado), Laid out (exposto), etc, Enfim, como o título já indica, a "

1:
confrontação dos sistemas fotográfico e textual visa a negar a ilusão documental I realizada, mas completamente entediada (Untirled #11), a mulher em lág
f
r. diante de um copo vazio (Untitled #27), até mesmo a mulher espancada (Un
humanista sem renegar a fotografia; a destacar que todos os sistemas descritivos '!t
são inadequados para medir a experiência; a lembrar que as estruturas sociais são
"1. #30). Fechadas em seu interior, todas essas mulheres estão condenadas às t
I;
, domésticas (Untitled # 3 e #10), na expectativa de realizar seus desejos, o
opacas à representação. t
decIaradamente reprimidas (Untitled #14). Do exterior, ao agir, elas são alt
Martha Rosler, como Annette Messager, dirige seus primeiros trabalhos com a
fotografia contra os estereótipos da mulher-objeto. A série Beauty Knows No Pain
t damente sedutoras, como a jovem livreira iUntítled #13), ou inconscientes,
a caroneira (Untitled #48). Raras são aquelas, como a jovem secretária da
(A beleza não 'Conhece a dor, 1966-1972) compõe-se de grandes clichês feitos a
(Untitled #21), para as quais sua função é que prevalece. E, também, estão m
partir de imagens extraídas de revistas pornográficas ou da publicidade de linge-
lhadas nas arquiteturas frias e imponentes da cidade (Ulltitled #63) e subm
rie. Em Untitled (Kitchen I), por exemplo, um seio tomado de perfil, em close-up,
à autoridade de um olhar onipresente (C':;:i"~d #80). Eis o que de fato uni
ocupa a frente de um fogão elétrico. A mensagem é clara: na sociedade patriarcal,
série: as mulheres estão sempre sob a dominação de um olhar-poder anôn
a mulher só se distingue dos aparelhos da cozinha por acrescentar ao estatuto de
supostamente masculino. Produtos do desejo e do olhar masculinos, esses e
utensílio doméstico aquele de objeto sexual. A série de fotomontagens Bringing
ótipos substituem o poder e o controle que a sociedade patriarcal exerce so
the War Home (Trazer a guerra para casa, 1966-1972) evoca como os aconchegan-
mulheres - suas energias, suas atividades, suas emoções, seus desejos, seus co
tes apartamentos das classes médias americanas são acometidos pelas imagens da .~
!/; Simultaneamente, mas em um outro universo e no final de um outro
guerra; como, ao contrário, clichês eróticos de mulheres acompanham os solda- ,~
.~',
J' rário, o artista e crítico de arte norte-americano [ohn Coplans inicia uma
dos no front. Em Make up/Hands up (Maquilagem/Mãos ao alto, 1966-1972), a \jf fotográfica inteiramente centrada em seu próprio corpo. Suas grandes prova
maquilagem diária pode ser assimilada a uma microviolência consentida, como t, preto e branco recortam e isolam partes bem circunscritas: os pés, os joelh
reflexo da violência brutal que uma mulher, com as mãos levantadas, sofre da t· nádegas e, sobretudo, as mãos. Coplans trata o corpo à maneira de um ent
parte de soldados armados. ~:
~~
logista, pedaço por pedaço, privado de suas dimensões narrativas e eróticas.
A crítica dos estereótipos femininos, entabulada no decorrer dos anos 1970 ~.il:
'!
":t-
.. de perto, sempre decapitado, deslocado pelo plano muito próximo e amp
via material-fotografia, vai continuar com outros artistas, cujas obras passarão do o corpo se reduz à justaposição de seus membros, de suas engrenagens e
corpo para os fluxos corporais. '.
"i. nismos externos. Desse corpo devolvido à sua epiderrne, a uma superfície
'::.
tf. espessura, o artista se serve como de um material artístico e lúdico, brincand
::-
transformar seus pés em arquitetura egípcia, de fazer sua mão sorrir ou meta
Dos CORPOS AOS FLUXOS CORPORAIS
íoseá-la em grande escultura." É assim, através do humor - que, como diz
.t
Entre 1977 e 1980, Cindy Sherman realiza sua célebre série de 69 clichês em ~:c. Deleuze, procede de uma "dupla destituição, da altura e da profundidade, em
preto e branco, Untitled Film Stills (Fotografias de cena sem título), voltada para
estereótipos femininos tal como eles aparecem na mídia e no cinema americano São "série B" os filmes feitos com poucos recursos, poucos diálogos. pouca roupa, muitos gritos. so
alguma nudez e sexo, (N, E,)
dos anos 1950. De fato, fotografias de cena, os clichês são encenações inteiramente
., lohn Coplans, entrevista com Iean-François Chevrier, em Iean-François Chevrier & Iarnes Lingwood
concebidas, interpretadas e fotografadas por Cindy Sherrnan, fazendo referência o Une all/re objectivité, cit., pp, 93·100,

376 377
• ( A ARTE·FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE·FOTOGRAFIA I

da superfície" -,"" que Coplans desarticula a narração e a história da arte, e que volve objetos equívocos espalhados pelo chão: pedaços de carne, forminhas
ele destitui a unidade do corpo em benefício de uma arte do fragmento e da pele. ~.
de bolos com aparência de excrementos, de substâncias duvidosas oscilando
Enquanto Coplans se coloca no nível da pele, mostrando com precisão as mí- *; alimento e vômito. Enquanto dessa confusão emerge um par de óculos
nimas nervuras e os detalhes, alguns artistas vão, nos anos 1990, tentar atravessá- l onde está refletido o rosto de uma mulher em via de gritar ou vomitar de
-Ia. Não para mergulhar na carne ou para explorar os órgãos do corpo, mas para diante dessa alteridade abjeta, que transgride e ameaça o corpo limpo e
ter acesso aos fluxos, fluidos e secreções que os percorrem. Thomas Florschuetz é que, portanto, faz parte de sua constituição. O equívoco entre bolo e rnerd
~i
o pioneiro desse movimento, com suas fotografias em cores, de enorme formato, r, entre alimento e vômito, aponta a confusão dos fluxos abjetos que entram
geralmente apresentadas em dípticos ou trípticos, e situadas ainda mais perto do do corpo, isto é, a permeabilidade e a instabilidade de suas fronteiras, a
corpo do que as de Coplans. A ponto de, muitas vezes, um leve fiou diluir a textura dade de sua unidade. O corpo limpo, unificado e perfeitamente delimitado
da pele até lhe dar um aspecto cadavérico; igualmente a ponto de tornar-se difícil estereótipos sociais e culturais é apenas uma ilusão, uma tentativa de contr
situar as partes representadas. Ao oposto das imagens de Coplans, em que a pele, abjeto. Vã tentativa, pois os corpos, principalmente o das mulheres, não são
o espírito - e o humor - de um conteúdo vibram em uníssono, as de Florschuetz tos fechados, porém máquinas atravessadas, ou mesmo transpassadas, por
procedem à constatação desencantada de sua total desintegração. Tal abolição do em todos os sentidos. A água, a urina, o alimento, o vômito, a merda, o esp
sujeito realiza-se na conjunção da extrema fragmentação e da aparente rlpmmpo- o s<lngue não cessam de passar, transgredir, redefinir ou violar as fronteir
sição das carnes. Ela é repetida pela reunião, em dípticos e trípticos, de fragmentos corpo segundo uma série de atos: beber, urinar, comer, vomitar, copular,
corporais tão equívocos quanto intercarnbiáveis, para recompor corpos com for- corpos ingerem, digerem e rejeitam os resíduos. Eles escorrem (como tubula
mas humanoides, pouquíssimo humanas para consistir em um sujeito. Enquanto e enchem todos os seus orifícios. Expulsas, suas matérias e fluididades pr
a fragmentação do corpo, como a exemplifica Coplans, faz a forma tradicional do tornam-se impróprias e são assimiladas imediatamente como imundas. Ê

nu cair radicalmente em desuso, e a consistência carnal desaparece nos trabalhos mente além dos estereótipos e do abjeto, entre o limpo e o imundo, entre im
de Florschuetz, a dissolução das aparências prossegue inexoravelmente em artistas e fluxos, entre o exterior e o interior, que a obra de Cindy Sherman situa o
tão diversos como Gilbert & George, Cindy Sherman, e Andres Serrano, cujo in- feminino.
teresse passa dos corpos para os fluxos corporais, da superfície visível aos dejetos O corpo e o sexo masculinos, o esperma, a homossexualidade, a relig
das profundezas. Em outras palavras, o corpo é assimilado através de seus detritos sangue, a urina e sobretudo o excremento dominam a obra de Gilbert & Ge
e líquidos: a água, o sangue, a urina, o esperma, a rnerda, o vômito ou o alimento partir de 1982, época em que eles abandonam o preto e branco pela fotogra
apodrecido. cores, e adotam a estrutura recorrente de seus quadros fotográficos: conjunt
A partir de 1985, as séries Disasters and Pairy-Tailes (Desastres e contos de formatos muitas vezes monumentais (até 10 metros de comprimento), com
fadas) ou Civil War (Guerra civil), de Cindy Sherman, apresentam espécies de de elementos cuja justaposição desenha uma programação rigorosa. Em Shi
rostos de mutantes e corpos desintegrados, feridos, sujos de líquidos, detritos, (Fé de merda, 1982), excrementos saindo de quatro ânus cor-de-rosa, dis
podridão. Aqui é colocada uma interrogação acerca das fronteiras da feminilida- simetricamente nos quatro lados do quadro, formam uma cruz - o tem
de, a partir do papel que as substâncias e a repulsa desempenham na construção vocador da cruz cristã feita de excrernentos é especialmente retomado em
das fronteiras corporais e subjetivas da mulher; não a partir do invólucro exterior em Shitty (Merdoso). E, ainda mais, a merda raramente é representada se
imposto pelos estereótipos, mas do ponto de vista de seus fantasmas, sobre seu in- Gilbert & George não se representem eles próprios, frequentemente nus,
terior informe. Em Untitled #175 (1987), uma inquietante atmosfera azulada en- em Naked (Nu, 1994). Em 1983, em Shitted, eles ainda estão vestidos, se
no chão, mostrando ao espectador uma língua na mesma cor vermelha do
•• GiU.~ Deleuze, Logiqu« du sens (Paris: Mu.uit, 1969), p. 16L enormes excrementos que flutuam acima deles. Além de elementos temátic

378 379
, I A ARTE· FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE-FOTOGRAFIA J

muns, a postura de Gilbert & George diverge radicalmente da de Cindy Sherrnan. perfeitamente na história da pintura"," embora utilizando como material
Os formatos, a proximidade formal (com a escultura e com o vitral) dos quadros sivamente a fotografia, e proclamando abertamente o esgotamento histór
de Gilbert & George, o modo de aparecimento dos artistas em suas obras, o uni- pintura, sua total obsolescência.
verso sexual, tudo isso os opõe. Mas, sobretudo para Gilbert & George, a mer- -s- A merda designa menos a coisa do que exprime a miséria existencial
da, o sangue ou a •.•rina não são abjetos. Os corpos são atravessados, penetrados, mem, sua condição de mortal, sua pobreza por ser efêrnero - em referênc
exibidos, mas sua unidade não é questionada. Os detritos e excreções corporais relatos ancestrais, segundo os quais o homem, nascido de detritos (a t
estão, ao mesmo tempo, maciçamente presentes, como esculturas, e graficamente lama), volta a ser detrito após sua morte. O sangue, a urina, os escarros, a
abstratos, distanciados. Oposta ao olhar trágico que Cindy Sherman lança sobre 9 o esperma: os fluidos e secreções do corpo jamais são mantidos nos lim
corpo feminino, a visão de Gilbert & George é sobretudo positiva, anticonformis- sua intimidade. São, ao contrário, dela deliberadamente destacados: Blood
ta, alegremente provocadora. Em todo caso, motivada por um sólido bom senso Spunk.Piss (Sangue, lágrimas, porra, urina, 1996), um grande afresco foto
e uma boa dose de humor: "Se mostramos merda, é que achamos que é preciso de 12 metros de comprimento, compõe-se de quatro grandes painéis obtido
aceitá-Ia como todo o resto. De qualquer maneira, somos obrigados a isso. Mos- a ampliação de vistas microscópicas de sangue, lágrimas, esperma e urina
tramos a beleza que há nela':69 Gilbert & George desafiam diretamente aqueles que humores corporais, aqui, nada têm de abjeto, de carnal, nem de individual.
chamam de "burgueses', e afirmam abertamente o desejo de "confrontarem-se, de nham uma vasta e estranha paisagem abstrata e dão substância e vida ao h
serem subversivos no sentido positivo do termo"," cujo nascimento é simbolizado pela dupla nudez de Gilbert e de George.
Na verdade, ..a merda c todas as secreções corporais inserem-se em uma vasta A urina, o sangue e o sexo constituem, com a religião e a morte, algu
rede de símbolos e de metáforas que, supõe-se, dão sentido à vida, ao homem e ao grandes componentes da obra de Andres Serrano, onde as excreções cor
mundo: "Fazemos arte que fala da vida", declaram Gilbert & George. "Há artistas diferentemente de Cindy Sherman e de Gilbert & George, se inserem em um
que fazem arte que fala da arte, e outros que fazem arte que fala da vida. É uma tativa, sernilúdica, serni-irônica, serniprovocadora, de reconfigurar os terr
distinção importante';" Para eles, falar da vida consiste nada menos do que revi- do aceitável e do inaceitável. Serrano provocou escândalo quando da exposi
sar a história sagrada, reinterpretar as antigas cosmologias; o Paraíso e o Inferno, seu Piss Christ (Cristo urinado, 1987), a fotografia de um crucifixo mergu
Deus e o Homem, a Criação, a queda e a redenção do homem," etc. A cidade mo- na urina que desencadeou nos Estados Unidos uma grande polêmica a pro
derna e a natureza florescente de Here and There (Aqui e lá, 1989), por exemplo, da subvenção da arte pele Estado através do National Endowment for th
são z:petiçõesterrestres do Paraíso e do Inferno, do "aqui embaixo", e do "além': Essa imagem faz parte da série Immersions, de estatuetas religiosas imer
Ao contrário da metafísica édas religiões monoteístas, Gilbert & George propõem urina, no sangue e no leite. Paralelamente, a série Fluid Abstractions compõe
uma nova cosmologia: material, terrestre e humana. É esse caráter cosmológico vistas abstratas de secreções corporais como Ejaculation in Trajectory (198
que confere aos quadros fotográficos a aparência de vitrais: suas dimensões mo- é o clichê de urna ejaculação do artista. Aqui a urina e o esperma não tem
numentais, suas formas e cores simples, suas figuras com contorno, sua estrutura de abjeto, de feio ou de repugnante. Muito ao contrário: a estetização, a b
í":
em forma de grade. É igualmente a partir dessa ambição cosmológica inspirada na o tratamento "reverencioso" da imagem conferem, segundo Serrano, uma
arte antiga, em particular a medieval, que Gilbert & George afirmam "inserir-se imensidade espiritual ao seu Piss Christ e a aparência de uma tela da Action
ting a seu esperma imobilizado no ar sob o clarão de um flash estroboscópic
•• Gilbert [Prousch] & George [Passmore], entrevista com Martin Gayford, em Gilben 6- George, catálogo, cit.,
p.67.
,. lbid., p. 71.
11 Ibid., p. 43. 7l Gilbert [Prousch] & George [Passrnore], entrevista com Martin Gayford, em Gilbert 6- George, cat
11 Wolf Iahn, "La mort du monstre et Ia création du monde': em Gilbert &. George, catálogo, cit., p. 91. p.91.

380 381

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• I A ARTE-FOTOGRAFIA I I FI510NOMIA DA ARTE-FOTOGRAFIA 1

o poder perturbador da obra de Serrano baseia-se em sua maneira de sempre lado do material-fotografia, cujo funcionamento se afasta da impressão fotog
criar situações onde o aceitável sistematicamente se opõe ao inaceitável, e onde ca como um rastro do referente. A impressão serve de sustentação à ideologia
uma estética amoral tenta manter instável tal equilíbrio. Encontrar a beleza nos cumental e a todo sistema da "fotografia-documento'; mas na arte-fotografia
lugares menos esperados", redefinir a divisão entre o normal e o anormal: é essa papel é apenas secundário, de suporte à alegoria. Do documento à arte contem
a orientação constante dessa obra que mistura incessantemente o sexo, a religião, rânea, a fotografia oscila, assim, entre o rastro da impressão e a alegoria. Pas
a morte e os fluidos corporais. Mergulhar um crucifixo na urina, expor um jato da figura retórica da impressão (isto é, do parecido, do mesmo, da repetição
de seu esperma em uma fotografia de um metro e meio de extensão, fotografar cânica, do unívoco, do verdadeiro) para a figura da alegoria que, ao contrári
uma mulher urinando na boca de um rapaz (Leo's Fantasy, A History of Sex, 1996), duplicidade, ambiguidade, diferença, ficção. Da impressão à alegoria, a fotog
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representar cadáveres no necrotério com um estilo eminentemente pictórico (The ~ passa da repetição da própria coisa para uma outra coisa diferente da coisa -
Morgue, 1992), ou simplesmente compor quadros geométricos abstratos com leite W mão do alegorista, a coisa se torna outra coisa"," observa Walter Benjamin.
e sangue (Milk, Blood, 1986): são, a propósito do corpo, tentativas de deslocar as A alegoria caracteriza-se por sua dupla estrutura, cuja primeira parte (um
fronteiras do aceitável. Para isso, Serrano emprega deliberadamente Lima estraté- tido próprio, explícito) remete a uma segunda (um sentido latente, figurado
gia de choque, confrontando elementos culturalmente antinômicos: o crucifixo passagem do explícito para o figurado é, também, a passagem do particular
e a urina; os estigmas de mortes violentas nos cadáveres do necrotério e a serena o universal (religioso, moral, filosófico). Com Platão, a caverna serve para e
beleza das referências às pinturas de Bellini ou Caravaggio; a arte e a pornografia os graus do conhecimento e os do ser. Nas Máximas e reflexões, Goethe opõe a
nos clichês de A History of Sex. goria (em que o particular vale unicamente como exemplo do geral) ao sím
Esse provocador jogo de mixagern, tão característico de um certo pós-rnoder- (em que o particular não visa expressamente ao geral). Além disso, no sím
nismo, ultrapassa os domínios do corpo e de seus fluidos quando o afro-cubano existe uma relação analógica, uma semelhança entre o representante sensíve
Serrano, sempre em busca de conflagrações temáticas, não hesita em fotografar representado inteligível; a brancura é o símbolo da inocência, a coroa de sang
membros encapuzados da Ku Klux Klan (The Klan, 1990) paralelamente a uma da infelicidade. Em resumo, a alegoria é a expressão de ideias através de imag
série acerca dos sem-teto (The Nomads, 1990), com 05 mesmos procedimentos: a enquanto o símbolo, por meio de imagens, dá a impressão de ideias.
estetização, a monumentalização e a heroicização dos sujeitos. Em nome de uma Mais amplamente, o mecanismo da alegoria consiste em duplicar um texto
redefinição dos limites do inaceitável e de um total desligamento político. A pos- uma imagem) em outros, em lê-Ios através de outros, à maneira do comentár
tura antipolítica, muito pós-moderna, de Serrano opõe-se às utopias abertamente da crítica, que produzem textos sobre textos e imagens primários. De fato, a
políticas de artistas modernos como Hans Haacke, mas também aos universos goria funciona com base no princípio do palirnpsesto:" a produção alegórica
possíveis que caracterizam as obras de certos artistas da modernidade tardia. visa a restabelecer um significado original perdido ou obscuro (não é uma her
nêutica), mas acrescenta um significado ao significado anterior, substituindo-o.

Do RASTRO À ALEGORIA ~ suplemento alegórico é, ao mesmo tempo, acréscimo e substituição; ele subs
~
r» o significado anterior, que é apagado ou disfarçado, como em um palimpsesto.
Uma das características mais fortes da arte-fotografia é, finalmente, contribuir contrário do ideal da fotografia-documento, que não é o de substituir o real, o
para a renovação da alegoria na arte contemporânea. A alegoria serve de princí- ficar no lugar dele, mas de transmiti-Io o mais fielmente possíveL
pio estético para numerosas obras do pós-modernismo, embora adaptando-se ao
funcionamento do próprio material-fotografia. Com a arte-fotografia, opera-se,
•então, um duplo movimento em favor da alegoria: no lado das práticas artísticas ,. Waiter Benjamin, L'arigi"e du dmme bamque allema"d (Paris: Flamrnarion, 1985), p. 197.
7S Craig Owens, "L'impulsion allégoriquc: vers une théorie du post-modernisme" (1980), apud Charles
pós-modernistas, em que muitos recusam os grandes princípios da alegoria; do rison & Paul Wood, Arr en théorie, cit., pp. 114,-1150.

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• IA ARTE· FOTOGRAFIA J I FISIONCMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

A partir dos trabalhos de Walter Benjamin e de Paul De Man sobre a alegoria) Não se trata mais de uma imitação da natureza, feita pela fotografia, mas d
Craig Owens considera) em 1980) que o pós-modernismo é marcado pela volta de imitação da cultura, imitação de segunda ordem. Imitação de obras que im
modos alegóricos nas obras) em oposição às vigorosas exclusões lançadas pela crí- não mais fazer ver o ser através das imagens) mas fazer ver imagens através
tica modernista: "A apropriação) a 'especificidade do sítio» o efêrnero, o acúrnulo, palimpsesto." Na arte-fotografia) a alegoria prevalece sobre a estampa.
o jogo do discurso) a hibridização - essas diferentes estratégias caracterizam uma Um outro aspecto da alegoria que se manifesta nas obras a partir dos
grande parte da arte atual) distinguindo-a de suas predecessoras modernistas';" 1980 é a ruína, o fragmento) o fracionarnento, a imperfeição, a incomple
Acrescentaremos que o material-fotografia toma parte na maioria dessas estraté- Walter Benjamin insiste sobre "a relação do alegórico com tudo aquilo que
gias artísticas) e que o dispcsitivo-fotografia é um de seus modelos ou objeto de mentário) desordenado, atravancado"," Segundo ele, "na área da intuição
questionamento. rica) a imagem é fragmento) ruína';" As obras com caráter de ruína são a
Quando Sherrie Levine, como vimos) fotografa) exatamente iguais) as provas fisicamente inseridas em um lugar específico e para ele concebidas, como fo
de fotógrafos modernos célebres - Walker Evans, Edward Weston e Eliot Porter de 1970) a Spiral [etty. Robert Smithson realizou essa obra especificamente
- de maneira tal que as cópias quase se confundem com os originais) a fotografia o lago Salgado [Great Salt Lake, Rozel Point, Utah]: adaptando-a às suas pa
é para ela o objeto e o instrumento de suas apropriações e de seus questionamen- <,
laridades topográficas e às suas ressonâncias psicológicas) embora sabend
tos. Ela lhe serve para afirmar " ;6v:osamentc que nem a ferramenta nem o gesto estaria condenada a desaparecer, absorvida pelas águas. Para conjurar o
0'0 <
nem o autor são garantias do valor artístico; que este se encontra menos na coisa b efêmero da obra, utilizou a fotografia. Mas) como vimos, não na qualidade d
-:t
do que em seu contexto; e que o sistema modernista da arte caducou. Na esteira terial artístico, porém como simples documento. No decorrer da década seg
de Sherrie Levine, a postura de apropriar-se das imagens de imagens será ampla- ao contrário, alguns artistas introduzem a fotografia na própria matéria d
mente retomada. A série Montagnes de magazine (1994) de Ioachim Mogarra, por ,it.
obras urbanas in situ, em particular nas obras de caráter político (ver ad
.."
exemplo) compõe-se de grandes fotografias de montanhas: como o título indica) o~o
seja sob a forma de diapositivos) nas grandes projeções noturnas que Krz
~.
os clichês não foram feitos da natureza, mas segundo as imagens de montanhas Wodiczko organiza sobre as construções emblemáticas do poder; seja nos
~
impressas em revistas. Distanciamento entre as grandes tiragens expostas e as ~ jos pelos quais Dennis Adams exprime certas forças subterrâneas ativas na
"'.Y
modestas imagens de onde elas provêm; menosprezo pelos gêneros canônicos da l des onde ele intervém; seja nos altares profanos, insignificantes e efêmero
história da arte; jogo com os referentes da fotografia; interferência na identidade
J:I. Thomas Hirschhorn instala na esquina das ruas) em homenagem a artistas,
das coisas; inversão lúdica das hierarquias: questíonamento, através da arte e da tores ou filósofos (Mondrian, Carver, Deleuze) como antimonumentos (
~
fotografia, dos valores tradicionais da arte e da fotografia. Dominique Auerbacher, ~ 1997-2000). O caráter fragmentário) desordenado e atravancado de elem
';
por seu lado, fotografa fotografias publicadas em catálogos de venda por corres- disparatados e insignificantes, que se encontram na obra de Hírschhorn, ta
pondência (1995); Éric Rondepierre faz clichês de fotogramas de filmes legenda- se encontram, como nos aposentos dos alquimistas barrocos, nos trabalh
dos, em que se misturam as matérias fílrnica, textual) fotográfica e videográfica; Peter Fischli e David Weiss: evidentemente em Der Lau] der Dinge (O corr
Michal Rovner fotografa eventos da Guerra do Golfo a partir de um aparelho de coisas) 1986-1987), onde se produzem reações químicas e mecânicas em
televisão. A recorrência dessas abordagens traduz uma ruptura da ligação do ho- na sequência de inúmeros objetos heteróc1itos agrupados no chão; igualmen
mem com o mundo, um esgotamento da imagem-ação tal como ela se manifestou série fotográfica Bilder, Ansichten (Imagens, Vistas), onde são acumuladas
durante muito tempo na reportagem) e a transformação do homem em voyeur.77 denadamente amostras de estereótipos estéticos próprios da fotografia turí

" Barbara Cassin, L"If't sophistique (Paris: Gallimard, 1995), pp. 15 e 4480
,. !bid., p. llSO. 79 ""alter Benjamin, L'origine du drome brroljue alltmand, cit., p. 202.
rr Gilles Deleuze, Cínéma 2. L'i,,;;g,:t,'inps (Paris: Minuit, 1985), pp. 220·221. •• Ibid., pp. 191 e 189.

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]i,
J
~ I A ARTE· FOTOGRAFIA I I FISIONOMIA DA ARTE· FOTOGRAFIA I

Com outras obras de inspiração alegórica - algumas de Martha Rosler, Bar- rias estabelecidas (as da história da arte). O pós-modernismo, que supri
bara Kruger, Louise Lawler, Claude Closky, Annette Messager -, essas obras ce- l' recobriu todo o edifício da arte modernista, pode assim aparecer como um
dem um grande espaço para o material-fotografia. Não porque a fotografia seria movimento- alegórico. Enquanto as regras modernistas consistiam em dist
uma "arte alegórica" como afirma muito rapidamente Craig Owens, mas por suas em excluir, em classificar - era o período do "ou" -, o pós-modernismo
propriedades específicas a colocarem na medida de satisfazer aos procedimentos centou, sem regras nem distinções - era o período do "c:". Mistura, mestiç
alegóricos. Em outras palavras, o material-fotografia é adotado por certos artistas ecletismo, reciclagem, bricabraque das práticas, dos materiais, das referência
por suas potencial idades alegóricas, ao contrário da fotografia-documento, em gêneros, dos estilos e das épocas no seio de uma mesma obra: o modernism
que os fotógrafos privilegiam suas propriedades de impressão. Entre a fotografia-o exclusivo, o pós-modernismo foi inclusivo." A pureza greenberguiana foi
-documento e a arte-fotografia alegórica, os procedimentos diferem sensivelmen- da pelas infinitas mixagens e entrecruzamentos de matérias fotográficas, e
te: enquanto o fotógrafo está à procura de uma visão totalizante e coerente, o rais, gráficas, pictóricas. Os clichês de telas feitos por Êric Rondepicrre a pa
artista do pós-modernismo multiplica as vistas parciais, fragmentárias, estilha- filmes hollywoodianos legendados são puras fotografias, mas nelas interfe
çadas, até mesmo irrisórias. O primeiro tenta conseguir, em um instante deci- fotografia, o vídeo, o cinema e o texto. O tratamento das legendas como el
sivo, a essência de uma situação; o segundo só pede à fotografia que conjure o tos estritamente formais conduz, aliás, a uma confusão do visual e do ver
caráter efêmero das coisas, registrando suas aparências planas, ou acomodando maneira comparável, mas simétrica, às obras de Barbara Kruger, que, ao m
inventários sem ordem definida, sem profundidade, sem ideia preconcebida nem tempo, são imagens para ver e escritas p'lIa decifrar. Outro exemplo: cad
ponto de vista consolidados. Passa-se da profundidade à superfície, da busca de das grandes composições da série Office at Nigrü (Escritório à noite, 1985
um sentido global à justaposição de olhares parciais, do ponto de vista singular de ~ctor Burgin, divide-se em três faixas verticais: um clichê fotográfico
à série de vistas fragmentadas. No plano editorial, muitas vezes isso se traduz em branco de secretárias movimentando-se em escritórios à noite, uma monoc
livros grossos, compostos de grande quantidade de clichês, geralmente vazados e urna parte composta de pictogramas. Além da mescla de registros - foto
nas páginas, sem bordas e, às vezes, sem nenhum texto ou introdução. De um monocromia e pictograma -, a série ressalta o caráter de carta enigmática
lado, uma visão em profundidade e uma vontade de atravessar a superfície das goria, com seu aspecto de escrita constituída de imagens concretas.
coisas para daí extrair um sentido; do outro lado, a exposição de vistas assubjeti- Além de sua diversidade, as obras do pós-modernismo têm em comum
vas e assignificantes, o mais neutras e desligadas possível. Da impressão do tempo goria, isto é, a ruína, o fragmento, a imitação e o palimpsesto que é passa
e do espaço à utilização de procedimentos alegóricos, da fotografia-documento à por substituição, supressão ou disfarce - de um elemento a outro. Na aleg
arte-fotografia, são grandes as distâncias que dizem respeito aos usos, aos meios elemento de partida torna-se - sem regras nem leis nem grandes princípios
culturais, às formas, assim como aos regimes de verdade e às relações com o mun- ladores - alguma coisa de outro (alIas = outro). Desse modo, na superfície,
do e com as coisas. modernismo joga com as maneiras e as aparências, na indiferença dos con
Como a alegoria funciona como um palimpsesto, para ela o real não é um ob- e dos significados, em um momento em que, no mundo global, se atenuam
jetivo, mas um ponto de partida. Trata-se menos de circunscrevê-lo, de interrogá- flexibilidades ideológicas, os grandes sistemas desabam, os antagonismos
-10 ou de transmitir-lhe o sentido do que de se apossar dele artisticamente, com o locam, as identidades se confundem. A alegoria é uma figura estética.ao m
risco de encobri-lo, disfarçã-lo, transformá-lo,
Para a abordagem
até mesmo suprirni-lo
alegórica, a realidade material, histórica, social ou artística é,
totalmente.
.
1;
<
tempo efeito e motor da secularização da arte.

então, tratada como um material maleável, sem limites, sem restrições, sem con-
sideração ~?m _afidelidade (a da fotografia-documento), para as normas estéticas ~I?:,'i
e a geografia das práticas (as do modernismo), para as cronologias e as catego- " CharJes [encks, Le langage de l'archltecture post-moderne, cit., p. 7.

.•.
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